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"Somente o Ministério das Relações Exteriores da Inglaterra poderia ter mandado um touro para agarrar um matador!"
A observação acima, de um jovem diplomata, foi feita quando o Serviço de Segurança do Ministério encarregou seu funcionário Alan Turner - um tipo singular, duro, franco, Cativante e desajustado - para o papel de touro; quanto ao matador, chamava-se ele Leo Harting, um segundo-secretário de meia-idade, em posto na Embaixada Britânica em Bonn, elemento sobrenatural como um duende, leve como a escuridão, sempre conseguindo esgueirar-se entre as sombras como se elas fossem uma rede.
Foi exatamente Harting, o homem que, após vinte anos de serviço aparentemente leal à Coroa, simplesmente desapareceu um dia, levando consigo arquivos oficiais suficientemente valiosos para frustrarem ou na verdade comprometerem toda a posição do seu país na mesa de negociações em Bruxelas, onde um claudicante Governo Britânico está empenhado em uma desesperada tentativa final para salvar a economia nacional e ingressar no Mercado Comum Europeu.
É nessa atmosfera de crise próxima que Alan Turner é enviado de Londres com a missão expressa de encontrar Leo Harting. "Mas o que desejam eles?", pergunta ele. "O homem ou os seus arquivos?". Gradualmente, vai-se tornando claro que uma coisa não é suficiente sem a outra...
......
Dez para a meia-noite: uma piedosa sexta-feira de maio e uma leve neblina do rio pairando sobre a praça do mercado. Bonn fora uma cidade balcânica, suja e misteriosa, crescida ao longo dos trilhos. Bonn era como que uma casa sombria onde alguém havia morrido, uma casa envolta no negro luto católico e guardada por policiais. Seus casacos de couro brilhavam à luz das lâmpadas, enquanto sobre eles drapejavam bandeiras negras, como se fossem pássaros. Era como se todo o mundo, menos eles, tivesse ouvido o alarme e fugido. Ora cruzava um carro, ora passava um apressado pedestre, seguindo-se o silêncio em sua esteira. Ouviu-se o ruído de um bonde, mas ao longe. Na mercearia, pendente de uma pirâmide de latas, a nota manuscrita anunciava a emergência: "Fique aqui em sua loja!" Entre as migalhas, porcos de marzipã como ratos sem pêlos apregoavam o esquecido Dia dos Santos.
Somente os cartazes falavam. Pendentes das árvores e dos faróis, eles travavam sua guerra inútil, todos a uma mesma altura, como se esse fosse o regulamento; os dizeres eram pintados com tinta brilhante, montados sobre papelão, envoltos em estreitas fitas negras, e se erguiam em sua direção vividamente enquanto ele passava apressado. "Que os Trabalhadores Estrangeiros Voltem para sua Terra", "Livremo-nos da Bonn Prostituída!", "Unir Primeiro a Alemanha, a Europa Depois!" O maior cartaz fora colocado acima de todos os outros, em uma faixa larga, do outro lado da rua: "Que Seja Aberta a Estrada do Leste, a do Oeste Fracassou!" Seus olhos escuros nem lhes dava atenção. Um policial bateu os calcanhares e fez uma careta em sua direção, proferindo um palavrão com relação ao tempo; um outro o desafiou, mas sem convicção;um outro ainda o xingou de "Guten Abend", mas ele não deu qualquer resposta, pois não tinha cabeça a não ser para a volumosa figura, uns cem passos a sua frente, que caminhava apressadamente descendo a ampla avenida, penetrando na sombra projetada por uma das bandeiras negras, para emergir logo em seguida quando o lampião alto o tomava de volta.
A escuridão não tivera qualquer cerimônia em chegar, do mesmo modo que o dia cinzento não tivera em desaparecer, mas a noite estava fresca e cheirava a inverno. Na maior parte do tempo, Bonn não tem estações definidas; o clima está todo nos interiores, um clima de dores de cabeça, morno e parado como água engarrafada, um clima de espera, de gostos amargos tomados por empréstimo ao vagaroso rio, de fadiga e de relutância em crescer, e o ar não passa de uma aragem exausta soprando sobre a planície e o crepúsculo, quando chega, nada mais é a não ser o sombreamento da neblina do dia, iluminada pelos focos de luz das lamentosas ruas. Naquela noite de primavera, no entanto, o inverno voltara a fazer uma visita, deslizando pelo vale do Reno a coberto de uma escuridão predatória, fazendo com que eles se apressassem, acutilando-os com inesperado frio. Os olhos do homem menor, fixados à frente, abrigavam lágrimas de frio.
A avenida fez uma curva, levando-os ao longo dos muros da universidade. "Democratas, Enforquem o Barão da Imprensa!", "O Mundo Pertence aos Jovens!", "Que os Nobres Ingleses Vão Pedir Esmolas!", "Para a Forca, 'Axel Springer!", "Longa Vida para Axel Springer!", "Protesto É Liberdade!" Os cartazes eram gravados em madeira em uma gráfica de estudantes. Lá no alto a folhagem nova cintilava em um fragmentado céu de vidro verde. Aqui as luzes eram mais brilhantes e havia menos policiais. Os homens seguiram em frente, nem mais depressa nem mais devagar; o primeiro deles atarefadamente, com o alvoroço de um porteiro de igreja. Suas passadas, ainda que rápidas, eram teatrais e desajeitadas, como se ele tivesse descido de um lugar mais importante; um caminhar pleno de dignidade de um burguês alemão. Seus braços mal se moviam pendentes ao lado do corpo, e ele estava empertigado. Saberia ele estar sendo seguido? Mantinha a cabeça erguida com autoridade, mas autoridade era uma coisa que lhe caía mal. Um homem impelido para a frente pelo que havia visto? Ou pelo que deixara para trás? Seria medo o que o impedia de voltar-se? Um homem de posses não vira a cabeça. O segundo homem seguia em sua esteira com leveza. Um fantasma, tão leve quanto a noite, deslizando pelas sombras como se elas fossem uma rede: um rústico espreitando um cortesão.
Entraram em uma estreita ruela; o ar estava impregnado do cheiro de comida azeda. Uma vez mais as paredes se dirigiam a eles, agora na loquaz liturgia da literatura germânica: "Os Homens Fortes Bebem Cerveja!", "Saber É Poder. Leiam os Livros do Sebo!" Então, pela primeira vez, os ecos de suas passadas se misturaram em um inconfundível desafio; pela primeira vez, o homem de posses pareceu acordar, sentindo o perigo às suas costas. Não foi mais do que um tremor, uma diminuta imperfeição no ritmo de seu imponente caminhar; mas isso o levou para a beira da calçada, afastando-o da escuridão das paredes, dando a impressão de que se sentia mais confortável nos lugares iluminados, onde a luz dos lampiões e os homens da polícia podiam protegê-lo. Mesmo assim o seu perseguidor não diminuiu a marcha. "Encontre-nos em Hanover", convidava o cartaz. "Karfeld Fala em Hanover!", "Encontre-nos em Hanover no Sábado!"
Passou um bonde vazio. O sino único de uma igreja começou a badalar monotonamente, um cantochão fúnebre lembrando as virtudes cristãs em uma cidade vazia. Os dois homens continuavam a caminhar, mais próximos um do outro, mas o que ia na frente ainda não olhara para trás. Viraram uma outra esquina; à frente deles a grande espira da catedral parecia cortada em uma lâmina de metal projetando-se contra o céu vazio. Relutantemente os primeiros chamados do sino foram respondidos por outros, até que em toda a cidade ergueu-se uma lenta cacofonia de clangores incertos. Um Angelus! Uma incursão aérea? Um jovem policial, postado à frente de uma loja de artigos de esporte, descobriu a cabeça. No pórtico da catedral uma vela ardia em um recipiente de vidro vermelho; em um dos lados havia uma loja de livros religiosos. O homem corpulento se deteve e inclinou-se para a frente, como se estivesse examinando alguma coisa na vitrina; correu os olhos rua abaixo e, nesse momento, as luzes da vitrina iluminaram em cheio suas feições. O homem menor correu em frente; parou; tornou a lançar-se correndo para a frente, mas era muito tarde.
A limusine havia se aproximado, um Opel Rekord dirigido por um homem pálido, escondido por trás dos vidros enfumaçados. A porta traseira do carro se abriu e fechou; pesadamente o veículo ganhou velocidade, indiferente ao grito agudo, um grito de fúria e de acusação, de total desamparo e de profundo aborrecimento, arrancado como que à força do peito de quem o soltara, soando abruptamente na rua vazia e morrendo também abruptamente. O policial voltou-se e acendeu sua lanterna. Apanhado no foco da luz da lanterna, o homenzinho nem se mexeu; tinha os olhos presos à limusine que se afastava. Sacudindo-se pelo calçamento, derrapando nos trilhos do bonde, desrespeitando os sinais de tráfego, a limusine desapareceu no rumo oeste, na direção das colinas iluminadas.
- Quem é você?
O foco da lanterna se deteve sobre o casaco de tweed inglês, demasiado peludo para um homenzinho tão insignificante, sobre os elegantes e finos sapatos sujos de lama, e sobre os olhos escuros que nem pestanejavam.
- Quem é você? - repetiu o policial. O repicar dos sinos se ouvia agora por toda a parte e seus ecos persistiam estranhamente.
A pequenina mão desapareceu nas dobras do casaco e logo emergiu com uma carteira de couro. O policial aceitou a carteira cautelosamente, e abriu sua presilha enquanto fazia malabarismos com sua lanterna e com a pistola negra que comprimia desajeitadamente na mão esquerda.
- O que aconteceu? - perguntou o policial, devolvendo a carteira preta. - Por que você gritou?
O homenzinho não respondeu. Ele dera algumas passadas ao longo da calçada.
- Você nunca o viu antes? - perguntou o homenzinho, ainda olhando na direção por onde o carro seguira. - Você não sabia quem ele era? - Falava em voz baixa, como se houvesse crianças dormindo no andar de cima; uma voz vulnerável que respeitava o silêncio.
- Não.
O rosto astuto e enrugado se abriu em um sorriso conciliatório.
- Desculpe-me. Cometi um engano idiota. Pensei que o havia reconhecido. - Sua inflexão de voz nem era inteiramente inglesa nem inteiramente alemã, mas a de uma particularmente eleita terra de ninguém, escolhida e situada entre o inglês e o alemão. E ele a deslocaria um pouco em cada uma dessas direções, parecia estar dizendo, se isso trouxesse embaraços para o interlocutor.
- É o tempo - comentou o homenzinho, determinado a manter a conversa. - Com esse frio repentino olha-se mais para as pessoas. - O homenzinho acabara de abrir uma lata de pequenos charutos holandeses e os estava oferecendo ao policial. Este não aceitou, e ele acendeu um para si mesmo.
- São as desordens - respondeu o policial. - As bandeiras, as frases. Todos nós nos sentimos nervosos hoje em dia. Esta semana Hanover, na semana passada Frankfurt. Isso rompe a ordem natural. - O policial era jovem e havia sido treinado para sua função. - Deviam cerceá-los mais - acrescentou, empregando um lugar-comum. - Como os comunistas.
O policial fez uma saudação indefinida; uma vez mais o estranho sorriu, um último sorriso afetado, de subordinação, sugerindo amistosidade, reduzindo-se relutantemente. E foi embora. Permanecendo onde estava, o policial ouviu atentamente os passos irem desaparecendo. De repente, pararam; logo recomeçaram, mais rapidamente e - seria sua imaginação? - com maior convicção do que antes. Por um momento pensou sobre isso.
- Em Bonn - comentou consigo mesmo com um suspiro de alívio, recordando o caminhar leve do estranho - até as moscas são funcionárias.
Pegando sua caderneta de notas, anotou cuidadosamente a hora, o local e a natureza do incidente. Ele não era um homem de idéias rápidas, embora fosse admirado por sua meticulosidade. Completados esses assentamentos acrescentou o número do veículo que, por alguma razão, guardara na cabeça. De repente parou e ficou olhando para o que escrevera, o nome e o número do carro que anotara; lembrou-se do homem volumoso e de seu caminhar apressado; seu coração começou a bater rapidamente. Lembrou-se da instrução secreta que lera no quadro de avisos da sala de recreação e da pequena foto descorada, de muitos anos atrás. Com a caderneta de notas ainda na mão, correu na direção da cabine telefônica com a rapidez que suas botas lhe permitiam.
Lá em uma pequena cidade da Alemanha
Vivia um sapateiro
Chamado Schumann
Ich bin ein Musikant
Ich bin fur das Vatefland
Eu tenho um enorme tambor
Que toco assim!
Uma canção cantada nos refeitórios militares ingleses na Alemanha ocupada, acompanhando as bebidas, com variações obscenas, nos tons da Marche Militaire.
Capítulo 1
O Sr. Meadowes e o Sr. Cork
Por que você não desce e vai a pé? Era o que eu faria se tivesse a sua idade. É melhor do que ficar preso aqui com esses vagabundos.
- Para mim está bem - respondeu Cork, o contador albino, olhando ansiosamente para o homem mais velho sentado a seu lado, no banco do motorista. - Temos que nos apressar pouco a pouco - acrescentou, em seu tom mais conciliatório. Cork era londrino, brilhando como tinta, e o preocupava ver Meadowes irritado. - Tínhamos que deixar que isso nos acontecesse, não, Arthur?
- Eu gostaria de atirar toda essa corja no Reno.
- Você sabe muito bem que não o faria.
Eram nove horas de uma manhã de sábado. A via que levava de Friesdorf até a embaixada estava congestionada com carros de protesto, as calçadas apinhadas com os fotógrafos do líder do Movimento e as faixas se sucediam acima do leito da rua, com cartazes de arregimentação: "O Ocidente nos Decepcionou; Os Alemães Podem Voltar-se para o Leste sem se Sentir Envergonhados." "Terminemos Logo com a Cultura Coca-Cola!" Cork e Meadowes encontravam-se detidos mesmo no centro da imensa coluna, enquanto o clangor de buzinas se fazia ouvir de todos os lados em um incessante concerto. Por vezes, elas se faziam ouvir por séries, começando lá na frente e caminhando lentamente até o fim, lá atrás, de modo tal que seu clangor passava por cima das cabeças como um avião, por vezes em uníssono, traço ponto traço, K de Karfeld, eleito nosso líder; de outras vezes havia como que uma liberação para todas, soando como em uma sinfonia.
- Que diabo afinal eles desejam? Para que essa balbúrdia toda? Um bom corte de cabelos é o que a metade deles precisa, uma boa sova e de volta para a escola.
- São lavradores - observou Cork. - Eu lhe disse que eles estão destilando, em greve, até o Bundestag.
- Lavradores? Esse bando? Eles morreriam se enterrassem seus pés na umidade, pelo menos a metade deles. Garotada. Olhe só aqueles lá adiante. E desanimador, eu diria.
À sua direita, em um Volkswagen vermelho, encontrava-se três estudantes, dois rapazes e uma moça. O que estava à direção usava jaqueta de couro, tinha os cabelos longos, e olhava atentamente através do pára-brisa para o carro que se encontrava à sua frente, a palma de sua mão magra repousando sobre o volante, esperando o sinal para fazer soar a buzina. Seus dois companheiros, grudados um no outro, beijavam-se intensamente.
- Aquele é o grupo de apoio - observou Cork. - Para eles é uma farra. Você conhece o slogan dos estudantes: "Só há liberdade de fato quando se luta por ela." Não é muito diferente da nossa terra é? Soube' do que eles fizeram na Grosvenor Square na noite passada? - perguntou ele, tentando uma vez mais mudar de assunto. - Se isso é educação, eu me agarro à ignorância.
Meadowes, porém, não se desviaria.
- Deviam apelar para o Serviço Nacional - declarou, olhando para o Volkswagen. - Isso os separaria.
- Já tem isso. Há uns 20 anos ou mais. - Percebendo que Meadowes estava se preparando para ceder, Cork escolheu o assunto que mais provavelmente o animaria. - Diga-me uma coisa, como foi a festa de aniversário de Myra? Tudo bem, não? Aposto que ela gostou um bocado.
No entanto, por alguma razão, a pergunta somente serviu para lançar Meadowes em uma melancolia ainda mais profunda, depois do que Cork achou que permanecer em silêncio seria a melhor atitude. Havia tentado tudo sem obter êxito. Meadowes era o tipo do sujeito decente, devoto o tipo que não se fabrica mais e que merecia a atenção de todo mundo- nada obstante, até para a devoção filial de Cork havia um limite. Tentara o novo Rover que Meadowes comprara para sua aposentadoria, isento de impostos e com dez por cento de desconto. Elogiara seu acabamento, seu conforto e seus acessórios até ficar cansado e, para sua preocupação, tudo o que arrancara fora um grunhido. Tentaram o Exiles Motoring Club, do qual Meadowes era um apoiador entusiástico; tentara os jogos esportivos das crianças da comunidade que esperavam fazer realizar naquela tarde nos jardins da embaixada. Havia tentado até a grande festa da noite anterior à qual eles tinham preferido não comparecer, pois o bebe de Janet estava tão perto e, no que dizia respeito a Cork, esse era o cardápio completo e Meadowes podia empanturrar-se com ele. Sem férias à vista, sem a perspectiva de longas e ensolaradas férias longe de Karfeld e das negociações de Bruxelas, longe também de sua filha Myra, Arthur Meadowes estava tendendo para o limite da tensão.
- Sabe - insistiu Cork, tentando um novo tema - a Dutch Shell subiu de novo.
- E a Guest Keen desceu três pontos.
Cork, resolutamente, havia investido em ações não britânicas, mas Meadowes preferia pagar o ônus do patriotismo.
- Não se preocupe, elas vão subir de novo depois de Bruxelas.
- A quem você está querendo tapear? Os boatos são os piores possíveis, não é mesmo? Posso não ter a sua inteligência, mas eu sei ler.
Meadowes, como o próprio Cork era o primeiro a reconhecer, tinha todos os motivos para se mostrar melancólico, mesmo sem levar em consideração os seus investimentos no aço inglês. Os Meadowes estavam de volta, quase sem nenhuma folga, de uma estada de quatro anos em Varsóvia, mais do que suficiente para deixar qualquer um irritado. Ele se achava em sua última missão, encarando uma aposentadoria no outono e, na opinião de Cork, estavam piores e não melhores quanto mais perto esse dia chegava. Isso sem mencionar os nervos despedaçados por uma filha: Myra Meadowes se encontrava no rumo de uma recuperação, é verdade, mas se a metade do que diziam a seu respeito fosse verdadeiro, havia ainda um longo caminho a ser percorrido por ela.
Some-se a isso as responsabilidades da Seção de Arquivo e Protocolo da chancelaria - isto é, do manuseio de um arquivo político durante a crise mais intensa de que se podia lembrar - e se obtém um total maior do que as suas funções fariam supor. Até mesmo Cork, metido em Codifícação/Decodificação, tinha sentido um pouco da tensão, com o tráfico de rádio extra e as horas extras, além do bebê de Janet por chegar, sem contar com o faça-isso-ontem que se pede em quase todas as chancelarias; e sua própria experiência, como ele mesmo sabia muito bem, não era nada em comparação com o que o velho Arthur tivera que enfrentar. São os fatos partidos de todas as direções, concluiu Cork, que impulsionam a todos nos dias de hoje. Nunca se sabia o que iria acontecer em seguida. Num momento você estaria expedindo um "Responda Imediatamente" sobre agitações em Bremen, ou sobre um congresso de escoteiros a ter lugar no dia imediato em Hanover, e no momento seguinte o estariam levando de volta à corrida do ouro, ou a Bruxelas, ou levantando algumas centenas de milhões em Frankfurt e Zurique; e se em Codificação/Decodifícação era duro, mais duro ainda era para aqueles que tinham que percorrer os arquivos, organizar o papelório espalhado, registrar os novos documentos e pô-los em circulação novamente. . . o que o fez lembrar, de algum modo, que precisava telefonar para o seu contador. Se a frente de trabalho da Krupp continuasse como estava, ele bem que poderia dar uma olhada no aço sueco, exatamente as entradas e saídas para a conta bancária do bebê.
- Opa - disse Cork se animando. - Vamos ter uma demonstração, não é mesmo?
Dois policiais haviam descido o meio-fio para interpelar um agricultor enorme em um Mercedes Diesel. Primeiro, o homem baixou o vidro e gritou na direção dos policiais; logo em seguida, abriu a porta e tornou a gritar com eles novamente. De súbito, os policiais se retiraram. Cork bocejou desapontado.
Vez por outra, ponderou Cork consigo mesmo, o pânico chega isoladamente. Um grito sobre o corredor de Berlim, helicópteros russos incomodando a fronteira, altos e baixos com o Comitê do Governo das Quatro Potências em Washington. Ou eram intrigas: iniciativa diplomática suspeita da Alemanha em Moscou que tinha que ser cortada pela raiz, um acorde suspeito no embargo da Rodésia, silenciar um motim do Exército do Reno em Minden. E era assim mesmo. Você engolia às pressas sua comida, trabalhava como livre atirador e continuava até que sua tarefa tivesse sido cumprida e ia para casa como um homem livre. E era assim; era assim a vida; era assim Bonn. Quer você fosse profundo como De Lisle, ou superficial, por trás da sanefa verde da porta, a cena era a mesma; um pouco de drama, uma lufada de ar quente, em seguida um pouco de excitação com ações e dividendos, de volta ao marasmo e à movimentação para o posto seguinte.
Até Karfeld. Cork olhava desconsoladamente para os cartazes. Até Karfeld vir à tona. Nove meses, refletiu ele - as feições enormes, pesadonas e sem vida, a expressão de sinceridade plana - nove meses desde que Arthur Meadowes atravessara afobado a porta de conexão com o Arquivo, trazendo as novidades sobre a demonstração de Kiel, a indicação de surpresa, o protesto dos estudantes e um pouco da violência que gradualmente eles haviam aprendido a esperar. Quem percebera isso dessa vez? Alguns socialistas contrademonstradores. Alguém que apanhou até morrer, alguém que foi apedrejado. . . isso costumava deixá-los chocados nos velhos tempos. Naquela época ainda estavam verdes. Cristo, pensou ele, isso deve ter sido há uns 10 anos; Cork, porém, podia datar os fatos quase ao detalhe da hora.
Kiel fora na manhã em que o médico da embaixada anunciara que Janet estava grávida. Daquele dia em diante nada mais tinha sido a mesma coisa.
As buzinas se fizeram ouvir novamente de forma selvagem; o comboio arrancou para a frente e parou subitamente, com estrépito, e emitindo as mais diferentes notas.
- Algum êxito, então, com aqueles arquivos? - indagou Cork, seu cérebro se iluminando em relação à causa suspeita de motivar a ansiedade de Meadowes.
-Não.
- O carrinho não apareceu?
- Não, o carrinho não apareceu.
Pipocas, pensou Cork de repente: algum equipamentozinho sueco com um dispositivo de levante-e-caminhe, uma firma realmente capaz de se movimentar com rapidez. . . valendo uns 200 pacotes e lá vamos todos nós...
- Espere aí, Arthur, não permita que isso o deprima. Não estamos em Varsóvia, você sabe: agora estamos em Bonn. Escute aqui: sabe quantas xícaras a menos na cantina, somente nas últimas seis semanas? Imagine, não foram quebradas, apenas sumiram: 24.
Meadowes não se mostrou impressionado.
- Ora, quem deseja furtar uma xícara da embaixada? Ninguém. Todo mundo está de cabeça virada. Todo mundo está envolvido. É a crise. Isto acontece em toda a parte. O mesmo se passa com as pastas.
- Mas as xícaras não são secretas, aí está a diferença.
- Nem os carrinhos dos arquivos - ponderou Cork. - Se vamos até aí. Nem a lareira elétrica da sala de conferências que está deixando a Administração quase maluca. Nem a máquina de escrever de carro longo do centro de datilografia, nem. . . olhe, Arthur, você não pode ser responsabilizado, pelo menos com tanta coisa acontecendo; o que você poderia ter feito? Você sabe muito bem como são os diplomatas, quando se trata de redigir telegramas. Veja De Lisle, veja Gaveston: sonhadores. Não estou querendo dizer que não sejam geniais, mas eles não sabem, na metade do tempo, onde se encontram, suas cabeças estão nas nuvens. Você não pode ser culpado por isso.
- Eu posso ser culpado. Eu sou o responsável.
- Está bem, então torture-se - explodiu Cork, perdida toda sua paciência. - De qualquer modo, a responsabilidade é de Bradfield e não sua. Ele é o chefe da chancelaria. Ele é o responsável pela segurança.
Com este comentário final, Cork se voltou mais uma vez a inspecionar a indesejável cena em derredor. Sob muitos aspectos, concluiu para si mesmo, Karfeld tinha muitas respostas a dar.
A perspectiva que se estendia ante Cork teria oferecido pouco consolo a qualquer homem, fosse qual fosse sua preocupação. O tempo estava infame. A neblina monótona do Reno, como bafo em um espelho, pairava sobre toda a desolada solidão da burocrática Bonn. Edifícios gigantescos, ainda inacabados, elevando-se melancolicamente em áreas não cultivadas. À sua frente, a Embaixada britânica, todas as janelas iluminadas, sobressaindo-se no terreno árido, como um hospital improvisado no crepúsculo da batalha. No portão da frente, sua bandeira, a Union Jack, misteriosamente a meio pau, drapejava tristemente sobre um punhado de policiais alemães.
A própria escolha de Bonn como a sala de espera para Berlim era, de longa data, uma anomalia; agora era um abuso. Talvez somente os alemães, tendo eleito um chanceler, tivessem trazido a capital até sua porta. Para acomodar as levas de diplomatas, políticos e funcionários do governo que ali serviam sem buscar honradas - e também para conservá-los a distância os habitantes locais haviam construído um subúrbio fora dos muros de sua cidade. Era através da extremidade sul desse subúrbio que o tráfego estava agora procurando progredir: um amontoado de construções monótonas e barracos ao acaso estendendo-se ao longo da estrada de via dupla quase até o simpático aglomerado de Bad Godesberg, cuja principal indústria, que anteriormente fora o engarrafamento de água, era agora a diplomacia. Na verdade, alguns ministérios foram levados para a própria Bonn, adicionando suas arquiteturas forçadas aos pátios pavimentados; na verdade, algumas das embaixadas situam-se em Bad Godesberg; mas a sede do Governo Federal, bem como a grande maioria das noventa e tantas missões estrangeiras creditadas junto a ele, sem mencionar os assessores políticos, a imprensa, os partidos políticos, as organizações de refugiados, as residências oficiais dos dignitários federais, o Kuratorium pela Alemanha indivisível, e toda a superestrutura burocrática da capital provisória da Alemanha Ocidental, encontram-se alinhadas ao longo dessa artéria viária entre a ex-sede do Bispado de Colônia e as vilas vitorianas de uma estância hidromineral do Reno.
Dessa capital artificial, desse Estado ilha, a que faltam não só identidade política como uma tessitura social e está sempre submetido a condições de transitoriedade, a Embaixada britânica é uma parte inseparável. Imagine-se um enorme edifício, tipo fábrica, sem nenhum relevo, o tipo de construção que se pode ver em inúmeros pontos do Ocidente, normalmente tendo no alto do telhado um símbolo de seus produtos; pinte-se em volta o sombrio céu da região renana, adicione-se um indefinido traço da arquitetura nazista, somente um sopro, nada mais, erga-se no terreno irregular por trás de tudo isso duas desbotadas balizas de futebol para a recreação dos mal lavados, e se terá retratado, com razoável precisão, o espírito e a força da Inglaterra na República Federal. Com um tentáculo estendido ela se agarra ao passado, enquanto com outro alisa o presente; com um terceiro busca, ansiosamente, nas terras úmidas do Reno, desencavar o que está enterrado para o futuro. Construída ao tempo em que a Ocupação caminhava no sentido de seu prematuro fim, ela apreendeu com precisão aquele estado de espírito de renúncia desgraciosa; uma face de pedra voltada para um ex-inimigo, um sorriso sombrio oferecido ao aliado de hoje. À esquerda de Cork, quando eles finalmente conseguiram transpor os portões, estão as instalações principais da Cruz Vermelha, à sua direita, uma fábrica da Mercedes; por trás dele, do outro lado da avenida, os sociais democratas e um depósito de Coca-Cola. A embaixada se encontra separada desses improváveis vizinhos por uma faixa de terra devoluta que, coberta de azedinhas e de barro, encaminha-se sem desníveis até o negligenciado Reno. Essa faixa é conhecida como o cinturão verde de Bonn, motivo de grande orgulho para os planejadores da cidade.
Um dia, talvez, se mudem para Berlim, contingência da qual se fala ocasionalmente, mesmo em Bonn. Um dia, talvez, todas aquelas montanhas cinzentas deslizarão até a auto-estrada e silenciosamente se acomodarão nos úmidos estacionamentos do Reichstag, cortados por valetas; até que tal aconteça, essas tendas de concreto continuarão a existir, discretamente temporárias em acatamento ao sonho, discretamente permanentes em acatamento à realidade; elas permanecerão, se multiplicarão, crescerão, pois, em Bonn, o movimento substituiu o progresso e o que quer que deixe de crescer morrerá.
Estacionando o carro em seu lugar habitual, por trás da cantina, Meadowes caminhou vagarosamente à sua volta, como sempre fazia depois de uma viagem, experimentando as maçanetas e inspecionando a pintura em busca de marcas de alguma pedra casual. Ainda mergulhado em pensamentos, atravessou o pátio da frente até o pórtico onde dois policiais militares, um sargento e um cabo, encontravam-se examinando os passes. Cork, ainda ofendido, seguia a distância, de modo que, quando chegou à porta da frente, Meadowes já se encontrava empenhado em conversa com as sentinelas.
- Então quem é o senhor! - estava querendo saber o sargento.
-Meadowes, do Arquivo e Protocolo. Ele trabalha para mim. Meadowes procurou olhar por cima do ombro do sargento, que puxou a lista de encontro à sua túnica. - Ele tem estado ausente por doença. Eu queria verificar.
- Então por que ele está no térreo?
- Ele tem uma sala lá. Ele tem duas funções. Duas tarefas diferentes. Uma comigo, uma no térreo.
- Nada - disse o sargento, tornando a consultar a lista. Um grupo de datilógrafas, as saias tão curtas quanto o permitia a embaixatriz, conversando animadamente, subia os degraus por trás deles.
Meadowes suspirou, ainda sem se convencer.
- Você quer dizer que ele não chegou? - perguntou Meadowes com aquela meiguice que anseia por contradição.
- É o que estou dizendo. Nada. Ele não chegou. Ele não está aqui. Claro?
Os dois acompanharam as garotas até o saguão. Cork tomou o braço de Meadowes e o puxou para o abrigo das sombras do subsolo.
- O que está havendo, Arthur? Qual é o problema? Não são apenas as pastas que estão faltando, não é? O que está acabando com você?
- Nada está acabando comigo.
- Então por que essa história toda a respeito de Leo estar doente? Ele nunca esteve doente um único dia em toda a sua vida.
Meadowes não respondeu.
- Em que Leo anda metido? - quis saber Cork, tomado de profunda suspeita.
- Em nada.
- Então por que você perguntou por ele? Você não pode também tê-lo perdido! Meu Deus, há 20 anos que têm estado tentando perder Leo.
Cork percebeu uma discreta hesitação em Meadowes, a proximidade da revelação e o relutante recuo.
- Você não pode responsabilizar-se por Leo. Ninguém pode. Você não pode ser o pai de todo mundo, Arthur. Provavelmente ele anda por aí se desfazendo de alguns cupões de gasolina.
As palavras mal acabaram de ser proferidas antes que Meadowes se voltasse para ele, na realidade muito irritado.
- Não fale assim, está ouvindo? Não ouse falar assim! Leo não é nada disso; é muito chocante dizer uma coisa dessas a respeito de qualquer pessoa; desfazendo-se de cupões de gasolina... Tudo porque ele é um... temporário.
A expressão de Cork, enquanto acompanhava Meadowes a uma distância segura, subindo a escada aberta até o primeiro andar, falava por si mesma. Se era isso o que a idade fazia com as pessoas, a aposentadoria aos 60 anos não estaria chegando cedo demais. A aposentadoria do próprio Cork seria diferente. Ele sonhava - e quem não tem os seus sonhos? em ir viver em uma ilha grega. Creta, pensava ele; Spetsai. Eu poderia fazer isso aos 40, se aqueles doidos voltassem para casa. Bem, aos 45, de qualquer modo.
A um passo de distância da Seção de Arquivo e Protocolo, ao longo do corredor, situa-se a sala de codificação e decodificação e, um passo mais adiante, o elegante escritório ocupado por De Lisle. Chancelaria não significa nada mais a não ser seção política; seus jovens são a elite. É aí, se isso é possível em algum lugar, que os sonhos dos brilhantes diplomatas ingleses podem ser realizados; e ninguém mais perto disso do que Peter de Lisle. Era uma figura elegante, esbelta, quase bonita, cuja juventude persistira obstinadamente até cerca dos 40 anos; seus modos eram lânguidos, quase chegando ao ponto de letargia. Essa letargia não era fingida, mas simplesmente enganadora. A árvore genealógica da família De Lisle tinha sido desastrosamente podada por duas guerras, e além disso exaurida por uma sucessão de catástrofes, pequenas mas violentas. Um irmão tinha morrido em um desastre de automóvel; um tio cometeu suicídio; um outro irmão morreu afogado em um feriado em Penzance. Assim, por degraus, o próprio De Lisle havia adquirido as energias e as obrigações de um improvável sobrevivente. Ele preferiria não ter sido levado a essa situação absolutamente, estava implícito em suas maneiras; mas, como esse fora o rumo das coisas, não lhe restava alternativa a não ser envergar o manto.
Enquanto Meadowes e Cork entravam em seus separados gabinetes, De Lisle estava entregue à tarefa de juntar a papelada espalhada em artística confusão em cima de sua mesa. Depois de pôr os papéis em ordem ao acaso, De Lisle abotoou o colete, empertigou-se, lançou um olhar cobiçoso à fotografia do Lago Windermere, fornecida pelo Ministério do Trabalho com a generosa permissão da companhia London, Midland and Scottish Railway, e se encaminhou alegremente até o patamar da escada para dar as boas-vindas ao novo dia. Aproximando-se da comprida janela, olhou durante um momento para baixo, para as filas de carros negros dos agricultores e para as ilhotas de cor azul onde brilhavam as lanternas dos policiais.
- Eles têm uma verdadeira paixão pelo aço - observou para Mickie Crabbe, um homem mal vestido e de olhos lacrimosos, permanentemente curvado sob uma ressaca. Crabbe vinha galgando as escadas devagar, uma das mãos tranqüilizantemente apoiada no corrimão, os ombros estreitos arqueados protetoramente. - Eu tinha quase esquecido. Eu me lembrava do sangue, mas havia me esquecido do aço.
- É preferível - resmungou Crabbe. - É preferível. - E sua voz se arrastou atrás dele como os frangalhos de sua própria vida. Seu cabelo, somente, não havia envelhecido, continuava negro e luxuriante em sua cabecinha pequena, como se fertilizado pelo álcool. - Bobagens - exclamou Crabbe, fazendo um inesperado alto. - Os alvos sangrentos não foram ainda levantados.
- Eles serão levantados - assegurou De Lisle, amavelmente. - Eles vêm sendo mantidos pela Revolta dos Camponeses.
- Lá atrás, na outra estrada, está tudo vazio como uma igreja; malditos hunos - acrescentou Crabbe vagamente, como se se tratasse de um cumprimento, continuando a arrastar-se penosamente em sua rota.
Seguindo-o lentamente ao longo do corredor, De Lisle abriu porta após porta, olhando para o interior para chamar um nome ou para um cumprimento, até chegar passo a passo até a sala do chefe da chancelaria, onde bateu com mais força e entrou com uma inclinação.
- Todos presentes, Rawley - informou. - Prontos quando você quiser.
- Já estou pronto.
- Escute aqui, você por acaso não pegou o meu ventilador elétrico? Ele sumiu completamente.
- Felizmente não sou cleptomaníaco.
- Ludwig Siebkron solicitou uma audiência às quatro horas - acrescentou De Lisle, calmamente. - No Ministério do Interior. Não quis dizer por quê. Eu o apertei mas ele não quis abrir o jogo. Disse que desejava apenas discutir nossas medidas de segurança.
- Nossas medidas de segurança são perfeitamente adequadas do jeito que estão. Já discutimos isso com ele na semana passada; Siebkron vai jantai comigo na terça-feira.
Não posso imaginar que precisemos fazer mais alguma coisa. O local já está apinhado de policiais. Eu me recuso a permitir que nos transformem em uma fortaleza.
A voz era austera e auto-suficiente, uma voz acadêmica, embora com timbre militar; uma voz que mantinha muita coisa em reserva; uma voz que guardava seus segredos e sua soberania, arrastada, mas quase cortante.
Dando um passo para dentro da sala, De Lisle fechou a porta e passou o trinco.
- Como foi a coisa na noite passada?
- De forma adequada. Se você quiser, pode ler a minuta. Meadowes a está levando para o embaixador.
- Imaginei que fosse a respeito disso que Siebkron estava telefonando.
- Não tenho obrigação de informar Siebkron; nem pretendo fazê-lo. Nem faço idéia por que terá telefonado a essa hora nem o porquê de convocar uma reunião. Sua imaginação está caminhando à frente da minha.
- Dá na mesma, aceitei em seu nome. Pareceu-me conveniente.
- Para que horas fomos convocados?
- Quatro da tarde. Ele vai mandar nos pegar. Bradfield franziu o cenho em desaprovação.
- Ele está preocupado com o tráfego. Julga que uma escolta tornará as coisas mais fáceis - explicou De Lisle.
- Compreendo. Por um momento, imaginei que ele estivesse procurando nos economizar as despesas.
Foi uma pilhéria, da qual compartilharam em silêncio.
Capítulo 2
"Eu podia ouvir os seus gritos ao telefone..."
Em Bonn, a reunião diária da chancelaria tem lugar, normalmente, às 10 horas, horário que permite que todos abram a correspondência recebida, dêem uma espiada em seus telegramas e nos jornais alemães, e talvez se recuperem da cansativa rodada social da noite anterior. Como um ritual, De Lisle comparava essas reuniões com a de orações matinais em uma comunidade agnóstica: ainda que pouco contribuindo em termos de inspiração ou de preparo, elas estabeleciam o tom para o dia e serviam como uma lista de chamada, imprimindo um senso de atividade corporativa. No passado, os sábados eram usados para o trato de assuntos não oficiais, voluntários, que faziam com que o isolamento fosse quebrado e restauravam o senso de lazer. Agora, tudo isso era passado. Os sábados tinham sido incluídos na situação geral de alarme e estavam sujeitos à disciplina dos demais dias úteis.
Entraram individualmente, De Lisle à frente. Aqueles que tinham por hábito cumprimentar-se uns aos outros assim o fizeram; os demais assumiram seus lugares silenciosamente no semicírculo de cadeiras, seja remexendo em suas pilhas de telegramas coloridos ou contemplando vagamente pela enorme janela os remanescentes de seu fim de semana. A neblina da manhã estava-se dissipando; nuvens negras se haviam juntado sobre a sólida asa da parte de trás da embaixada; as antenas no telhado plano erguiam-se como árvores surrealistas contra o fundo sombrio.
- Dia horrível para esportes - observou Mickie Crabbe,mas ele não tinha prestígio na chancelaria e ninguém se preocupou em responder.
De frente para eles, sozinho em sua mesa de aço, Bradfíeld ignorou-lhes a chegada. Ele pertencia àquela escola de funcionários civis que liam com a pena, que se movimentava rapidamente junto com seu olhar de linha para linha, parando de quando em quando para corrigir ou anotar.
- Pode alguém me dizer - perguntou ele, sem levantar a cabeça como posso traduzir Geltungsbedürfnis?
- A necessidade de alguém de auto-afirmar-se - sugeriu De Lisle, observando a pena balançar-se, parar e recomeçar de novo.
- Muito bem. Podemos começar?
Jenny Pargiter era a funcionária de informações e a única mulher presente. Ela lia lamuriosamente, como se estivesse contrariando uma opinião popular; e lia sem esperança, sabendo em seu íntimo que era normal a qualquer mulher, quando dando notícias, não ser acreditada.
- Além dos agricultores, Rawley, a principal notícia é o incidente de ontem em Colônia, quando estudantes durante uma manifestação, apoiados pelos operários metalúrgicos da Krupp, viraram o carro do Embaixador americano.
- O carro vazio do Embaixador americano. Como sabe, há uma diferença. - Rabiscou alguma coisa na margem do telegrama. Mickie Crabbe, interpretando a interrupção como sendo humorística, riu nervosamente.
- Também atacaram um homem velho e o acorrentaram às grades da praça da estação, com a cabeça raspada e um cartaz em torno do pescoço com os dizeres "Eu Rasguei os Cartazes do Movimento". Parece que o homem não foi ferido seriamente.
- Parece?
- Assim foi considerado.
- Peter, você preparou um telegrama durante a noite. Nós veremos uma das cópias, não é mesmo?
- O telegrama alinha as principais implicações.
- Quais são elas?
De Lisle não se alterou.
- Que a aliança entre os estudantes dissidentes e o Movimento de Karfeld está progredindo rapidamente. Que o círculo vicioso continua: a inquietação cria o desemprego e o desemprego gera a inquietação. Halbach, o líder dos estudantes, passou a maior parte do dia de ontem trancado com Karfel em Colônia. Juntos, eles combinaram tudo.
- Foi também Halbach quem liderou a delegação estudantil antibritânica em Bruxelas, não foi? A delegação que jogou lama em Haliday-Pride.
- No telegrama frisei esse ponto.
- Prossiga, Jenny, por favor.
- Na maior parte dos principais jornais foram feitos comentários.
- Exemplos.
- Neue Ruhrzeitung e jornais associados deram ênfase à pouca idade dos manifestantes. Insistem em que os manifestantes não são camisas pardas e desordeiros, mas jovens alemães completamente desencantados com as instituições de Bonn.
- E quem não está? - murmurou De Lisle.
- Obrigado, Peter - disse Bradfield, sem qualquer vestígio de gratidão, e Jenny Pargiter corou desnecessariamente.
- Ambos, o Welt e o Frankfurter Allgemeine, estabeleceram paralelos com recentes eventos ocorridos na Inglaterra; eles se referem especificamente aos protestos antivietnamitas em Londres, aos movimentos raciais em Birmingham e aos protestos da Associação de Proprietários de Casas de Aluguel quanto a alugá-las a negros. Ambos falam de um amplo afastamento de eleitores com relação aos governos que elegeram, seja na Inglaterra ou na Alemanha. O problema começa com os impostos, de acordo com o Frankfurter; se o contribuinte não acredita que seu dinheiro esteja sendo empregado de forma sensata, ele argumenta que seu voto está também sendo desperdiçado. Chamam a isso de nova inércia.
- Ah. Mais um slogan foi criado.
Cansado de sua longa vigília e de sua inteira familiaridade com os tópicos, De Lisle se mantinha alheado, ouvindo as velhas frases como se emitidas por uma estação transmissora de rádio: "crescentemente preocupados pelos sentimentos antidemocráticos, não só da direita como da esquerda. . . o Governo de Coalizão Federal deveria compreender que somente uma liderança realmente forte, mesmo que à custa de certas minorias extravagantes, pode contribuir para a unidade européia. . . os alemães devem recuperar a confiança, e interpretar a política como o solvente entre pensamento e ação..."
Por que seria, pensava ele ociosamente, que o jargão da política alemã, mesmo em tradução, a fazia parecer inteiramente irreal? Penugens metafísicas, era a expressão que ele havia introduzido em seu telegrama na noite passada, e se sentia muito satisfeito com isso. Bastava a um alemão embarcar em um tópico político para ser arrastado a uma corrente de abstrações ridículas. . . Mas, seriam as abstrações realmente tão enganosas? Até mesmo o fato mais óbvio era curiosamente implausível; até mesmo o evento mais aterrador, quando chegava a Bonn, parecia ter perdido todo o seu sabor. De Lisle procurava imaginar como seria ser agredido pelos estudantes de Halbach; apanhar até o rosto sangrar; ter a cabeça raspada, ser acorrentado e chutado. . . tudo parecia distante. Entretanto, a que distância ficava Colônia? Cerca de quilômetros? Três mil quilômetros? Precisava informar-se melhor, pensou com seu botões, devia comparecer às reuniões e conhecer os acontecimentos na hora. Mas, como lhe seria possível, quando ele e Bradfield eram os que redigiam a maior parte das mensagens sobre política? E quando, também, havia tantos assuntos delicados e potencialmente embaraçosos para ser cuidados.. .
Jenny Pargiter prosseguia animada em seu relato.. . O Neue Zurcher publicara um artigo especulativo quanto a nossas chances em Bruxelas, estava ela dizendo; ela considerava vital que todos da chancelaria lessem esse artigo o mais atentamente. De Lisle suspirou audivelmente. Será que Bradfield jamais a dispensaria?
- Segundo o articulista, não nos foram deixados, absolutamente, quaisquer pontos de negociação, Rawley. Nada. O Governo de Sua Majestade é tão sem representatividade quanto o de Bonn; não tem apoio do eleitorado e muito pouco por parte do Parlamento. O Governo de Sua Majestade encara Bruxelas como a cura mágica para todos os males ingleses; ironicamente, porém, só pode ter êxito com a boa vontade de um outro governo combalido.
- Exato.
- E, ainda mais ironicamente, o Mercado Comum virtualmente deixou de existir.
- Exato.
- O artigo se intitula A Ópera dos Mendigos. Eles também ressaltam que Karfeld está solapando nossas chances de um efetivo apoio alemão às nossas pretensões.
- Tudo isso, para mim, parece muito previsível.
- E o apelo de Karfeld com relação a um eixo comercial Bonn-Moscou excluindo os franceses e os anglo-saxões vem recebendo uma séria atenção em alguns círculos.
- Que círculos são esses? - murmurou Bradfield, a pena baixando mais uma vez. - A expressão anglo-saxão não existe na corte - acrescentou. - Recuso-me a ter minha origem determinada por De Gaulle. - Isso serviu de deixa para que os funcionários mais velhos soltassem uma judiciosa gargalhada intelectual.
- O que pensam os russos sobre o eixo Bonn-Moscou? - quis saber alguém. Talvez fosse Jackson, um homem da época das colônias, que gostava de oferecer algo de senso comum como um antídoto aos enfatuados ares intelectuais. - O que quero dizer é que isso é metade do problema, não é mesmo? Alguém apresentou isso aos russos como uma proposição?
- Veja nossa última informação - falou De Lisle.
Através da janela aberta ele imaginava que ainda podia ouvir o lamentoso coro das buzinas dos agricultores. Isso é Bonn, ocorreu-lhe de súbito; aquela estrada é o nosso mundo; quantos nomes tem ela naqueles oito quilômetros entre Mehlen e Bonn? Seis? Sete? Assim somos nós: uma batalha verbal por alguma coisa que ninguém deseja. Uma constante e estéril cacofonia de reclamações e protestos. Não importa quão novos os modelos, quão rápido o tráfego, quão violenta a coalizão, quão altos os edifícios, a estrada permanece imutável e sua destinação irrelevante.
- Vamos ficar por aí, está bem? Mickie?
- Oh, meu Deus, sim.
Crabbe, voltando à vida, começou a desenrolar uma longa e ininteligível história que ouvira do correspondente do New York Times no American Club, que a ouvira de Karl-Heinz Saab, que, por sua vez a tinha ouvido de alguém no escritório de Siebkron. Dizia-se que Karfeld na verdade estivera em Bonn na noite passada, pois, depois de aparecer com os estudantes em Colônia no dia anterior, ele não havia retornado a Hanover para se preparar para a reunião de amanhã, como se acreditava, mas sim dirigira pessoalmente até Bonn, por uma estrada secundária e tomara parte em um encontro secreto na cidade.
- Consta que ele falou com Ludwig Siebkron, sabe, Rawley - completou Crabbe, mas qualquer que fosse a convicção que poderia demonstrar em sua voz ela parecia filtrada através de inúmeros coquetéis.
Bradfield, irritado com esse relatório, rebateu com dureza.
- Estão sempre dizendo que ele falou com Ludwig Siebkron. Por que, diabo, os dois não poderiam conversar? Siebkron é o responsável pela ordem pública; Karfeld tem inúmeros inimigos. Avisem Londres acrescentou Bradfield cansadamente, tomando mais uma nota. - Enviem-lhes um telegrama informando sobre este boato. Não fará mal algum. Uma bátega de chuva se abateu de súbito sobre a janela de esquadria de aço, sua fúria surpreendendo a todos.
- Pobre dos esportes da Commonwealth - cochichou Crabbe, mas uma vez mais sua preocupação não encontrou eco.
- Disciplina - continuava Bradfíeld. - A reunião de amanhã em Hanover começa às dez e meia. Parece uma hora inconveniente para uma demonstração, mas, tanto quanto sei, eles têm um jogo de futebol amanhã à tarde. Aqui jogam aos domingos. Não posso imaginar se isso terá algum efeito sobre nós, mas o embaixador está pedindo a todo o pessoal que permaneça em casa após os ofícios religiosos, a não ser que tenham algo para fazer na embaixada. A pedido de Siebkron haverá mais policiais alemães nos portões da frente e dos fundos durante todo o domingo e, por alguma outra razão que somente ele sabe, a polícia civil estará presente hoje à tarde durante as competições esportivas.
- Trajes mais civis - De Lisle sorriu, lembrando-se de uma piada eu nunca vi.
- Silêncio. Segurança. Nós recebemos de Londres os passes impressos da embaixada. Eles serão distribuídos na segunda-feira e devem ser apresentados sempre, depois disso. Treinamento contra incêndio. Para a informação de todos haverá um exercício ao meio-dia de segunda-feira. Talvez todos devam esforçar-se por estar presentes, a fim de dar exemplo aos funcionários de menor categoria. Recreação. Competições esportivas da comunidade terão lugar esta tarde nos jardins dos fundos da embaixada; corridas eliminatórias. Uma vez mais sugiro que todos se façam presentes. Com as respectivas esposas, é claro - acrescentou ele, como se isso colocasse uma carga ainda mais pesada nas costas de todos. - Mickie, o Encarregado de Negócios de Gana, está precisando ser observado. Mantenha-o afastado da embaixatriz.
- Posso fazer uma observação sobre esse ponto, Rawley? - Crabbe retorcia-se nervosamente; os tendões no pescoço mais pareciam pernas de galinha, retesadas sobre a pele envelhecida. - A embaixatriz estará entregando os prêmios às quatro horas. Quatro. Seria possível que todo mundo estivesse gravitando em torno do pavilhão principal um quarto de hora antes? Desculpem-me - adicionou ele. - Às quatro menos um quarto, Rawley. Desculpem-me. - Dizia-se que ele havia sido um dos ajudantes de Montegomery durante a guerra e isso era tudo que lhe havia ficado.
- Anotou, Jenny?
Nada a que eles prestassem atenção, revelava seu dar de ombros.
De Lisle se dirigiu a todos os presentes, tendo como ponto focal algo no ar, que é o território especial da classe dominante da Inglaterra.
- Permitam-me que pergunte se alguém está trabalhando sobre o levantamento das personalidades? Meadowes está me amolando a respeito disso, e eu juro que não tenho tocado nesse assunto há meses.
- Quem estava com esse encargo?
- Bem, aparentemente eu.
- Nesse caso - observou Bradfield - você deve tê-lo esboçado.
- Não creio que o tenha feito, e esse é o ponto. Sinto-me feliz com o puxão de orelhas, mas não posso imaginar o que eu faria com isso.
- Bem, alguém mais recebeu essa mesma incumbência? Todas as declarações de Crabbe eram confissões.
- Eu também estava encarregado - murmurou ele, lá de seu lugar sombrio perto da porta. - Você sabe, Rawley.
Ficaram aguardando.
- Antes de Peter era eu quem deveria ter feito o levantamento, mas não o fiz. De acordo com Meadowes, Rawley.
Ninguém, ainda, lhe deu apoio.
- Há duas semanas, Rawley. Só que ainda nem toquei no assunto. Desculpem-me. Arthur Meadowes veio atrás de mim como um maníaco. Nada bom, sabem. Eu não havia preparado.
Um monte de sujeiras a respeito de industriais alemães. Não faz meu tipo. Eu disse a Meadowes: o melhor é perguntar a Leo. Ele prepara as personalidades. Elas são as flores de Leo.
Crabbe sorriu cansadamente passando pela fila de seus colegas até chegar à janela perto da qual se encontrava a cadeira vazia. De repente, estavam todos olhando para aquela cadeira vazia, não com alarme ou surpresa, mas curiosamente, notando uma ausência pela primeira vez. Era uma cadeira simples de pinho envernizado, diferente das outras e ligeiramente cor-de-rosa, sugerindo remotamente um boudoir. No assento havia uma pequena almofada bordada.
- Onde está ele? - indagou Bradfield rispidamente. Fora o único que não acompanhara o olhar de Crabbe. - Onde está Harting?
Ninguém respondeu. Ninguém se voltou para Bradfield. Jenny Pargiter, o rosto vermelho, manteve os olhos em suas mãos masculinas e práticas apoiadas no colo farto.
- Preso naquela maldita balsa, eu diria - observou De Lisle, apelando rapidamente pelo salvamento. - Sabe Deus o que os agricultores estão fazendo daquele lado do rio.
- Alguém irá verificar, está bem? - sugeriu Bradfield, em tom de voz o mais desinteressado. - Telefonem para a casa dele ou algum coisa assim.
Somente para fins de registro, nenhum dos presentes interpretou essa missão como sendo sua e todos se retiraram da sala em curiosa desordem, sem olhar para Bradfield, nem uns para os outros, nem para Jenny Pargiter, cuja confusão parecia além do que poderia suportar.
A última corrida do saco estava terminada. O vento forte, açoitando a terra árida, atirava golfadas de chuva de encontro às lonas. As armações úmidas estalavam lamentosamente. Dentro do pavilhão as crianças remanescentes, negras em sua maioria, haviam-se agrupado em torno do mastro. As pequeninas bandeiras da Commonwealth, dobradas pelo tempo em que foram mantidas em depósito e diminuídas pela secessão, pendiam desconsoladamente. Sob elas, Mickie Crabbe, ajudado por Cork, o funcionário da Seção de Codificação/Decodificação, estava reunindo os vencedores para a entrega dos prêmios.
- M'butu, Alistair - resmungou Cork. - Onde diabo ele se meteu?
Crabbe levou o megafone à boca.
- Sr. Alistair M'butu, por favor, queira se apresentar. Alistair M'butu . .. Jesus - murmurou - nunca posso diferençar uns dos outros.
- E Kitty Delassus. Ela é branca.
- E a Srta. Kitty Delassus, por favor - acrescentou Crabbe, nervosamente engolindo o "s" final; nomes, ele aprendera através de amargas experiências, eram uma fonte de ofensas terríveis.
A embaixatriz, em um velho casaco de vison, aguardava benevolamente à mesa de cavaletes, por trás de uma variedade de embrulhos de presentes da Naafi. O vento voltou a açoitar, violentamente; o Encarregado de Negócios de Gana, desanimado ao lado de Crabbe, estremeceu e levantou a gola de pele de seu sobretudo.
- Desclassifique-os - instou Cork. - Entregue os prêmios aos outros colocados.
- Eu torço o pescoço dele- declarou Crabbe .piscando violentamente. - Eu torço seu maldito pescoço. Escondido do outro lado do rio. Raios!
Janet Cork, em adiantada gravidez, conseguira localizar as crianças e as conduzia para o grupo dos vencedores.
- Espere até segunda-feira - sussurrou Crabbe, levando o megafone aos lábios. - Vou dizer-lhe umas boas.
Mesmo assim, não o faria, pensando bem. Não diria coisa alguma a Leo. Na verdade iria ficar bem longe de Leo. Conservaria a cabeça baixa e esperaria até a coisa passar.
- Senhoras e Senhores! A embaixatriz vai agora proceder a entrega dos prêmios!
Todos bateram palmas, mas não para Crabbe. O fim estava à vista. Com um perfeito insouciance, que tanto servia para o lançamento de um navio como para um pedido de casamento, a embaixatriz deu um passo à frente para ler seu discurso. Crabbe ouvia desatentamente: um evento para a família. . . nações iguais da Commonwealth.. . se todas as grandes divergências do mundo pudessem ser resolvidas de uma forma tão amistosa... um agradecimento de todo o coração ao Comitê de Esportes, Srs. Jackson, Crabbe, Harting, Meadowes...
Lamentavelmente imóvel, um policial civil, postado contra a lona do pavilhão, retirou um par de luvas do bolso de seu casaco de couro e ficou olhando alheado para um de seus colegas. Hazel Bradfield, mulher do chefe da chancelaria, deu com os olhos de Crabbe e sorriu radiosa. Uma tal amolação, procurava ela sugerir, mas já estava quase tudo terminado, quando então poderiam até tomar um drinque. Crabbe desviou os olhos rapidamente . A única coisa que procurava dizer para si mesmo ardentemente era não saber de nada, não ver nada. Distância, era a palavra. Distância. Olhou para o relógio. Faltava exatamente uma hora até que o sol se pusesse sobre o mastro. Se não em Bonn pelo menos em Greenwich. Primeiro tomaria uma cerveja, só para dar a partida; depois tomaria algo mais forte. Distância. Não ver coisa alguma e se escafeder pelos fundos.
- Ei - sussurrou Cork em seu ouvido - escute aqui. Você se lembra daquela indicação que me deu?
- Qual, meu velho?
- South African Diamonds. Baixaram seis pontos.
- Insista nelas - rebateu Crabbe com completa insinceridade, retirando-se prudentemente para um dos lados do pavilhão. Mal acabara ele de encontrar o tipo do cantinho sombrio e protetor que naturalmente atraía sua natureza acanhada, quando uma mão se abateu sobre seu ombro fazendo-o rodar nos calcanhares. Recuperando-se do susto, Crabbe se viu cara a cara com um policial. - Que diabo - explodiu ele, que era um homem de pequena estatura e odiava que lhe encostassem a mão. - Que diabo. . . Mas o policial já estava sacudindo a cabeça e esboçando uma desculpa. Ele lamentava, estava dizendo, havia confundido o cavalheiro com outra pessoa.
Urbano ou não, De Lisle, enquanto isso, estava ficando cada vez mais zangado. A jornada desde a embaixada o havia irritado consideravelmente. Detestava bicicletas a motor, detestava ser escoltado, e uma barulhenta combinação dessas duas coisas era quase o máximo que podia suportar. Detestava também uma deliberada descortesia, quer o alvo fosse ele ou alguma outra pessoa. E uma deliberada descortesia, achava ele, era o que vinham recebendo. Mal haviam eles transposto os portões do pátio do Ministério do Interior e as portas do carro tinham sido abertas violentamente por um grupo de jovens em casacos de couro, todos gritando ao mesmo tempo.
- Herr Siebkron irá recebê-los imediatamente! Por favor! Sim! Imediatamente, por favor!
- Vou à minha própria velocidade - resmungou Bradfield enquanto eram conduzidos, quase empurrados até o elevador de aço sem pintura. Vocês não ousem dar-me ordens. - E, dirigindo-se para De Lisle: - Vou falar sobre isso com Siebkron. Parecem um bando de macacos.
Os andares superiores lhes restituíram a calma. Era essa a Bonn que conheciam: os interiores pálidos e funcionais, nas paredes as reproduções pálidas e funcionais, a beca não polida; as camisas brancas, as gravatas cinzentas e os rostos pálidos como a lua. Eram sete pessoas. Os dois homens sentados ao lado de Siebkron não tinham nome absolutamente, e De Lisle imaginou maliciosamente se não seriam funcionários burocratas ali trazidos para fazer número. Lieff, um cavalo de parada de cabeça vazia, do departamento de protocolo, encontrava-se sentado à sua esquerda; do4ado oposto, à direita de Bradfield, um velho Polizzeidirektor de Bonn, de quem De Lisle gostava instintivamente: ura homem monumental ostentando cicatrizes de combate, com remendos brancos como que cobrindo os ferimentos de bala no couro de sua pele. Havia cigarros em maços em um prato. Uma moça de fisionomia séria oferecia café solúvel, e esperaram até que ela se retirasse.
O que desejaria Siebkron?, perguntava a si mesmo pela centésima vez, desde a enérgica convocação às nove horas daquela manhã.
A reunião começou, como começam todas as reuniões, com um resumo do que fora dito em sua prévia ocasião. Lieff leu as minutas em um tom de melíflua bajulação, como alguém outorgando uma medalha. Essa era uma ocasião, insinuava ele, da maior felicidade. O Polizeidirektor desabotoou sua jaqueta verde e acendeu um comprido charuto holandês até que ele queimasse como uma torcida de papel. Siebkron tossiu aborrecido, mas o velho policial o ignorou.
- Tem objeções a essas minutas, Sr. Bradfield?
Normalmente, Siebkron sorria ao fazer esse tipo de perguntas e, ainda que seu sorriso fosse tão frio quanto o vento norte, De Lisle esperou por ele nesse dia.
-Assim, de momento, não - respondeu Bradfield prontamente mas devo vê-las prontas antes de assiná-las.
- Ninguém está lhe pedindo que assine.
De Lisle levantou os olhos bruscamente.
- Permitam-me - disse Siebkron - ler a seguinte declaração, de que serão distribuídas cópias.
Foi uma leitura rápida.
O decano, frisou ele, já havia discutido com Herr Lieff do departamento de protocolo, e com o Embaixador americano, o problema da segurança física das sedes diplomáticas, na eventualidade de que um movimento civil surgisse a partir das demonstrações de minorias na República Federal. Siebkron lamentava que medidas adicionais se mostrassem necessárias, mas julgava desejável antecipar-se a eventos desagradáveis mais do que tentar corrigi-los, quando fosse demasiado tarde. Siebkron tinha recebido a garantia do decano de que todos os diplomatas chefes de missão cooperariam ao máximo com as autoridades federais. O Embaixador britânico já se tinha comprometido com esse procedimento. A voz de Siebkron atingira um nível duro, de raiva. Lieff e o velho policial haviam-se voltado deliberadamente para olhar Bradfield e suas expressões eram francamente hostis.
- Tenho certeza de que os senhores subscreverão essa opinião - disse Siebkron em inglês, colocando sobre a mesa uma cópia do documento.
Bradfield não fez nenhum comentário. De um bolso interno, tirou sua caneta-tinteiro, desatarrachou a tampa, colocou-a cuidadosamente na outra extremidade da caneta e percorreu com a ponta linha após linha do texto.
- Isto é um aide-memoire?
- Um memorando. O senhor encontrará junto a tradução alemã.
- Não vejo nada aqui que precise ser feito por escrito de maneira alguma - disse Bradfield, prontamente. - Você sabe muito bem, Ludwig, que nós sempre concordamos sobre esse assunto. Nossos interesses são idênticos.
Siebkron não levou em consideração esse amável apelo.
- O senhor sabe também - prosseguiu Siebkron - que o Dr. Karfeld não se inclina muito para o lado dos ingleses. Isto coloca a Embaixada britânica numa categoria especial.
O sorriso de Bradfield não se abalou.
- Sabemos disso. Confiamos em que você tome providências para que os sentimentos do Sr. Karfled não sejam expressos em termos físicos. Confiamos inteiramente em sua capacidade de conseguir isso.
-Precisamente. Então o senhor entende a minha preocupação pela segurança de todo o pessoal da embaixada.
A voz de Bradfield chegou às raias da caçoada.
- Ludwig, o que é isso? Uma declaração de amor?
O restante chegou depressa ao fim, atirado como um ultimato:
- Como conseqüência, devo solicitar que, até novas instruções, todo o pessoal da Embaixada britânica, abaixo do posto de conselheiro, fique confinado à área de Bonn. Por favor, baixem instruções para que eles, a bem da própria segurança, permaneçam em suas residências. - Ele estava novamente lendo o que se encontrava em sua pasta à sua frente. - De ora em diante, pelas 11 da noite, hora local.
Faces pálidas voltaram-se para eles através dos rolos de fumaça de tabaco, como lâmpadas durante uma anestesia. Na momentânea surpresa e confusão, somente a voz de Bradfield, tão fluente e decisiva quanto a voz de um comandante no campo de batalha, não vacilou.
Era um princípio de ordem civil que os britânicos haviam aprendido através de amarga experiência em muitas partes do mundo, disse ele, que incidentes desagradáveis fossem na verdade provocados por precauções exageradas.
Siebkron não fez qualquer comentário.
Conquanto reconhecendo todo o mérito profissional e pessoal de Siebkron, Bradfield sentia-se obrigado a alertá-lo energicamente contra qualquer medida que pudesse ser mal interpretada pelo mundo exterior.
Siebkron aguardou.
Como Siebkron, insistia Bradfield, ele próprio tinha a responsabilidade de preservar o moral da embaixada e, desse modo, fortalecer o pessoal mais novo contra as crises ainda por chegar. Ele não poderia, a essa altura, apoiar qualquer medida que pudesse parecer uma retirada em face de um inimigo que ainda não havia avançado... quereria Siebkron realmente dizer que não era capaz de controlar um punhado de vagabundos?. . .
Siebkron estava se levantando, os outros junto com ele. Uma ligeira inclinação de cabeça substituiu o obrigatório aperto de mãos. A porta foi aberta e os casacos de couro os acompanharam apressadamente até o elevador. Saíram para o pátio enlameado. O barulho das motocicletas os ensurdecia. A Mercedes os levou à estrada. O que fizemos nós nesse mundo?, pensava De Lisle. O que fizemos nós nesse mundo para merecer isso? Quem teria atirado a pedra na janela da professora?
- Isso não tem nada a ver com a noite de ontem, não é? - indagou De Lisle a Bradfield, finalmente, ao se aproximarem da embaixada.
- Não há nenhuma ligação imaginável - retorquiu Bradfield, que permanecia sentado em posição ereta, mantendo uma expressão dura e zangada. - Qualquer que seja a razão - continuou, mais como um lembrete para si mesmo do que como uma confidencia para De Lisle - Siebkron é um fio que não desejo cortar.
- Correto - disse De Lisle, e desceram do carro. As atividades esportivas estavam acabando naquele momento.
Por trás da igreja anglicana, em uma colina boscosa, em uma estrada semirural distante do centro de Bad Godesberg, a embaixada havia construído para seu próprio uso uma modesta amostra da Surrey suburbana. Confortáveis casas de corretores de bolsas, com lareiras e longos corredores para criados de que não mais dispunham, escondiam-se por trás dos exíguos alfeneiros, proporcionando um esplêndido isolamento. O ar vibra com a música suave da British Forces Network. Cães de inconfundível raça inglesa perambulam nos imensos jardins; os passeios estão obstruídos pelos carros pequenos das esposas dos conselheiros da embaixada. Nessa alameda, todos os domingos durante os meses mais quentes, um ritual mais agradável substitui as reuniões da chancelaria. Alguns minutos antes das 11 horas, os cães são chamados para dentro e os gatos soltos nos jardins, enquanto uma dúzia de mulheres com chapéus coloridos e bolsas com eles harmonizadas emerge através de uma dúzia de portas dianteiras, seguidas por seus maridos em trajes domingueiros.
Logo uma pequena multidão está reunida na alameda; alguém soltou uma piada; alguém riu; olham em volta ansiosamente em busca de alguém desgarrado ou para cima, para as casas mais próximas. Será que os Crabbes dormiram demais? Será que alguém deveria chamá-los? Não, finalmente lá vêm eles. Calmamente começam todos a se deslocar na direção da igreja, as mulheres na frente, os homens em seguida, com as mãos enfiadas nos bolsos. Ao chegarem aos degraus da igreja todos param, sorrindo convidativamente para a mais categorizada das mulheres presentes, que, com um pequeno gesto de surpresa, galga os degraus à frente de todos e desaparece através da cortina verde, enquanto os que lhe são inferiores passam a segui-la, como que acidentalmente, na ordem de sucessão que o protocolo, caso eles se preocupassem com esse tipo de coisas, teria exatamente exigido.
Naquele domingo pela manhã, Rawley Bradfíeld, acompanhado por Hazel, sua linda mulher, entrou na igreja e sentou-se em seu costumeiro banco, ao lado dos Tills, que pela ordem natural das coisas os haviam precedido na procissão. Bradfíeld, ainda que teoricamente um católico romano, considerava um dever de honra comparecer à capela da embaixada; este era um assunto em que ele declinava de consultar quer sua igreja, quer sua consciência. Os dois constituíam um casal simpático. O sangue irlandês estava presente abundantemente em Hazel, cujo cabelo castanho-avermelhado brilhava onde os raios de sol o tocavam ao penetrar através das janelas de caixilhos de chumbo; também Bradfíeld tinha uma maneira de tratar sua mulher em público que, ao mesmo tempo, era cavalheiresca e determinante. Diretamente por trás deles, Meadowes, o funcionário do arquivo e protocolo, mantinha-se sentado inexpressivamente ao lado de sua filha loura e muito nervosa. Era uma moça bonita, mas as mulheres em particular se sentiam inclinadas a admirar-se como um homem da retidão de seu pai podia tolerar uma tal quantidade de make-up.
Tendo se acomodado em seu banco, Bradfíeld procurou no hinário os números anunciados - havia alguns deles que ele tinha condenado em nome do bom gosto - e em seguida correu os olhos pela igreja a fim de constatar as ausências. Como não havia nenhuma, Bradfíeld se dispunha a retornar a seu hinário quando a Sra. Vandelung, mulher do Conselheiro holandês e, no momento, Vice-Presidente da Liga Internacional de Senhoras, inclinou-se em seu banco para indagar, em um murmúrio que de algum modo revelava um subtom histérico, por que não havia organista. Bradfíeld olhou na direção da pequena recâmara iluminada, e para o banquinho vazio coberto pela almofada bordada e, no mesmo instante, pareceu aperceber-se do embaraçoso silêncio à sua volta, silêncio que foi ainda acentuado pelo ranger da porta de oeste, quando Mickie Crabbe, destinado a atuar como auxiliar ,fechava-a sem a ajuda de um voluntário. Pondo-se rapidamente de pé, Bradfíeld se deslocou pelo corredor. Da fila da frente do coro, John Gaunt, o guardião da chancelaria, observava com disfarçada apreensão. Jenny Pargiter, dura como uma noiva, olhava fixamente à frente, nada vendo senão a luz de Deus. Janet Cork, mulher do funcionário da codificação/decodificação, estava ao lado de Jenny, pensando sobre o filho por nascer. O marido estava na embaixada, em rotineiro turno de serviço na sala de codificação/decodificação.
- Onde, diabo, se meteu Harting? - perguntou Bradfíeld, mas um olhar para a expressão de Crabbe avisou-o de que sua pergunta não teria resposta. Esgueirando-se para a alameda, venceu rapidamente a curta distância até a colina e abriu o portãozinho de ferro que levava à sacristia, onde entrou sem bater.
- Harting não apareceu - disse. - Quem vai tocar o órgão?
O capelão, que considerava a embaixada como um desafio, mas que acreditava estar fazendo progressos, pertencia à Low Church, tendo mulher e quatro filhos em Wales. Ninguém sabia a razão pela qual sua família não estava com ele.
- Ele nunca faltou antes. Nunca.
- Quem mais pode tocar?
- Talvez a balsa não esteja funcionando. Segundo ouvi, há uma porção de problemas por aí.
- Ele teria seguido o caminho mais longo, pela ponte. Já fez isso inúmeras vezes. Não há ninguém que possa substituí-lo?
- Não que eu saiba - respondeu o capelão, alisando com os dedos a ponta da estola dourada, seus pensamentos muito distantes. - Mas também nunca houve uma oportunidade para se indagar. Realmente nunca.
- Então, o que vai fazer?
- Talvez seja quem possa dar o tom - sugeriu duvidosamente o capelão, mas seu olhar estava fixo em um cartão-postal de tema batismal, enfiado por trás de um calendário. - Talvez fosse essa a resposta. Johnny Gaunt deve ter um ótimo tom de tenor, sendo galês.
- Muito bem. O coro deve dar início. É melhor que os avise imediatamente.
- O problema é, como o senhor sabe, que eles não conhecem os hinos, Sr. Bradfíeld - contestou o capelão. - Leo também não veio ao ensaio do coro na sexta-feira, sabe. Ele não veio, realmente não veio. Temos que cortar isso, sabe.
Recuando para o ar fresco, Bradfield se viu cara a cara com Meadowes, que silenciosamente saíra de seu lugar ao lado da filha e o acompanhara até os fundos da igreja.
- Harting desapareceu - observou Meadowes, em tom assustadoramente calmo. - Verifiquei em toda a parte. A relação dos doentes; o médico; estive em sua casa. Seu carro está na garagem, mas ele não usou o leite. Desde sexta-feira ninguém o viu ou teve notícias dele. Também não compareceu ao Exiles. Tratava-se de uma ocasião especial, o aniversário de minha filha, mas ele também lá não apareceu. Disse que tinha compromissos, mas ia dar um jeito neles. Havia prometido à minha filha um secador de cabelos como presente; ele não faz isso, Sr. Bradfield, não é sua maneira de agir.
Por um momento, apenas por um momento, a compostura de Bradfield pareceu abandoná-lo. Ficou olhando para Meadowes furioso, depois se encaminhou de volta para a igreja, como se ainda não decidido sobre o que destruir, como se estivesse furioso ou desesperado, apressou-se a vencer a distância, escancarou as portas e anunciou a novidade para os que tão complacentemente esperavam do lado de dentro.
- Venham comigo.
Mesmo enquanto transpunham os portões principais da embaixada e muito antes de serem liberados pela vistoria da polícia, podiam reconhecer os sinais da crise. Duas motocicletas do Exército se encontravam estacionadas em frente ao gramado. Cork, o funcionário da codificação/decodificação que se encontrava de serviço, aguardava no topo da escada, tendo em mãos, ainda, um Guia de Investimentos ao Alcance de Todos. Uma viatura verde da polícia alemã, a luz azul piscando, estacionara ao lado da cantina, e podiam escutar o estalejar do rádio.
- Graças a Deus o senhor chegou - disse Macmullen se dirigindo ao guardião chefe. - Mandei o motorista de serviço buscá-lo; ele deve ter cruzado com o senhor na estrada.
Por todos os lados soavam as campainhas do edifício.
- Há uma mensagem de Hanover, senhor, do consulado geral; não consegui ouvir muito bem. Aquela reunião não está indo bem, senhor; está acontecendo o diabo por lá. Estão depredando a biblioteca e vão marchar para o consulado; não sei para onde o mundo está caminhando; pior, muito pior do que Grosvenor Square. Eu podia ouvir a gritaria pelo telefone, senhor.
Meadowes acompanhou Bradfield apressadamente até as escadas.
- Você falou em um secador de cabelos? Ele ia dar um secador de cabelos à sua filha?
Era um momento de deliberada inconseqüência, de deliberada lentidão talvez, um gesto nervoso antes de entrar no fogo da batalha. Foi pelo menos como Meadowes o recebeu.
- Ele o encomendou especialmente - disse.
- Não se preocupe - falou Bradfield e já estava entrando na sala de codificação, quando Meadowes se dirigiu a ele mais uma vez.
- O arquivo desapareceu - sussurrou Meadowes. - A pasta verde destinada às minutas especiais. Desapareceu desde sexta-feira.
Capítulo 3
Alan Turner
Era um dia para se estar quase livre; um dia para ficar em Londres e sonhar com o campo. Em St. James's Park, o prematuro verão estava entrando em sua terceira semana.
Às margens do lago, moças repousavam como flores cortadas ao calor não natural de uma tarde de maio. Alguém tinha acendido uma fogueira e o cheiro da grama queimada se misturava com os ecos do tráfego. Só os pelicanos, rodeando seus pavilhões ilhados, pareciam dispostos a mover-se; somente Alan Turner, seus enormes sapatos rangendo no calçamento, tinha algum lugar para ir; desta vez nem mesmo as garotas poderiam chamar-lhe a atenção.
Seus sapatos eram de um pesado couro cru marrom e muito pespontado em suas viras. Trajava um terno tropical manchado e conduzia uma sacola de lona manchada. Era um homem de grande estatura, madeireiro, de cabelos claros, de rosto liso e pálido, ombros largos e dedos quadrados de um alpinista, que caminhava com o ritmo lento de uma barcaça; o andar largo e agressivo de um policial, intencionalmente sem sutileza. Era difícil adivinhar-lhe a idade. Universitários o considerariam velho, porém velho para ser universitário. Ele seria capaz de alarmar os jovens com sua idade e os idosos com sua juventude. Seus colegas de longa data haviam deixado de especular. Sabia-se tratar-se de alguém que ingressara tarde, o que nunca era um bom indício, e que fora aluno do St. Anthony's College, Oxford, que aceita todos os tipos de pessoas. As publicações oficiais do Ministério do Exterior eram reservadas. Enquanto lançavam uma implacável luz sobre a origem de todos os outros Turners, no caso de Alan se mantinham de boca fechada, como se, considerados todos os fatos, sentissem que o silêncio era a melhor política.
- Então também o chamaram - disse Lambert, emparelhando-se com Alan. - Creio que Karfeld realmente foi para a cidade desta vez.
- E que diabo esperam que nós façamos? Guarnecer as barricadas? Preparar cobertores?
Lambert era um homem vigoroso e de baixa estatura e gostava do que se dizia a seu respeito, de que era capaz de se dar com todo mundo. Ocupava uma posição elevada no departamento ocidental e dirigia uma equipe de críquete, aberta para todos.
Começaram a galgar Clive Steps.
- Você não os mudará nunca - disse Lambert. - É o que penso. Uma nação de psicopatas. Acham sempre que estão contra eles. Versalhes, cerco, punhalada nas costas; mania de perseguição, este é o problema.
Lambert deu tempo para que Turner concordasse com ele.
- Estamos trazendo todo o departamento. Até as garotas.
- Cristo, elas vão ficar assustadas com isso. Com a convocação das reservas.
- Isso poderia compensar Bruxelas como sabe. Um golpe direto no nariz. Se o Gabinete alemão perder a calma na frente interna, estamos todos em xeque. - A perspectiva o deliciava. - Nesse caso teremos que encontrar uma solução bem diferente.
- Pensei que não houvesse nenhuma.
- O Secretário de Estado americano já falou com o embaixador deles; disseram-me que concordaram sobre uma compensação plena.
- Então não há com o que se preocupar, não é mesmo? Podemos ir em frente com o nosso fim de semana. Todos podem voltar para a cama.
Haviam chegado ao topo da escadaria. O fundador da índia, um dos pés casualmente apoiado em uma chapa de bronze descorado, olhava por cima deles com desprezo, na direção das clareiras do parque.
- As portas foram deixadas abertas. - A voz de Lambert mostrava-se macia em respeito. - Estão indo em frente com o horário de dias da semana. Meu Deus, é o que estão fazendo. Bem - observou ele, sem receber qualquer eco de admiração - você segue o seu caminho, eu sigo o meu. Veja só - acrescentou, astutamente - isso nos poderia trazer muitas vantagens. Unir o restante da Europa por trás de nós contra a ameaça nazista. Nada como o bater de botas para enrijecer velhas alianças. - Com um final aceno de cabeça de boa vontade não dissimulado, sumiu na imperial escuridão da entrada principal.
Por um momento, Turner ficou olhando suas costas, comparando seu corpo esguio com os pilares toscanos do grande pórtico; havia mesmo algo de melancólico em sua expressão, como se na verdade ele gostasse de ser um Lambert, pequeno, bem proporcionado, capaz e despreocupado. Finalmente, recompondo-se, continuou na direção de uma porta menor do lado do edifício. Era uma porta envidraçada tendo um quadro de papelão pregado pelo lado de dentro do vidro, avisando ser a entrada proibida para pessoas não autorizadas. Teve alguma dificuldade em transpô-la.
- O Sr. Lumley está à sua procura - avisou o porteiro. - Quando o senhor dispuser de um minuto, estou certo. - Era um homem jovem e efeminado e preferia o outro lado do edifício. - O Sr. Lumley o procurou muito particularmente, na verdade. Tudo pronto para a Alemanha, creio.
O seu rádio transistor continuou ligado o tempo todo; alguém estava transmitindo diretamente de Hanover e se ouvia ao fundo um bramido como se fosse um bramido do mar.
- Bem, pelo jeito você está conseguindo uma ótima recepção, a julgar pelo som. Já atacaram a biblioteca e estão agora se dirigindo para o consulado.
- A biblioteca foi atacada na hora do almoço. Ali pela uma da tarde. A polícia isolou o consulado. Três de profundidade. Não há qualquer maldita esperança de que cheguem a algum ponto próximo. As coisas pioraram depois disso - alertou o porteiro por trás dele. - Estão queimando os livros lá no mercado. Espere só!
- Vou esperar. É isso mesmo o que vou fazer. - A voz de Turner era terrivelmente calma, mas vigorosa; voz de Yorkshire, tão comum como um vira-lata.
- Sua passagem para a Alemanha foi reservada. Procure a seção de viagens! Viagem por terra e de segunda classe! O Sr. Shawn vai de primeira!
Abrindo a porta de sua sala deparou-se com Shawn recostado sobre a mesa, sua túnica da Brigada de Guardas colocada no encosto da cadeira de Turner. Os oito botões rebrilhavam aos incidentais raios de sol que, mais ousados do que os demais, haviam passado pelo vidro colorido. Shawn estava falando ao telefone.
- Têm que pôr tudo em uma sala - estava dizendo, naquele arrastado tom de voz que leva o mais calmo dos homens à histeria. Já deveria ter repetido isso várias vezes anteriormente ao que parecia, mas tornava a repetir em benefício das mentes menos favorecidas. Com as incendiárias e as de fragmentação. Este é o ponto número um. Ponto dois, todos os empregados contratados localmente devem ir para casa e lá permanecer; não podemos pagar indenizações a cidadãos alemães que venham a ser feridos quando a nosso serviço. Comunique-lhes isso em primeiro lugar e então torne a me chamar. Cristo Todo-Poderoso! - desabafou para Turner, depois de desligar. - Você alguma vez tentou lidar com esse homem?
- Que homem?
- Aquele palhaço de cabeça oca, mestre em erros e omissões. O encarregado das porcas e dos parafusos.
- O nome é Crosse. - Turner soltou sua sacola num canto. - E ele não é nenhum palhaço.
- É débil mental - resmungou Shawn, desanimado. - Juro que é.
- Então não comente sobre isso ou irão colocá-lo na segurança.
- Lumley está à sua procura.
- Eu não vou - disse Turner. - Não vou perder meu tempo. Hanover é um posto tipo D. Não têm códigos, cifras, nada. O que vou ficar fazendo lá? Resgatar as malditas jóias da Coroa?
- Então por que trouxe sua sacola?
Apanhou um punhado de telegramas em cima da mesa.
- Eles estão sabendo da reunião há meses. Todo mundo sabe, do departamento do ocidente para baixo, até nós. A chancelaria informou sobre isso em março. Uma vez eu vi o telegrama. Por que não evacuaram o pessoal? Por que não mandaram os rapazes para casa? Falta de dinheiro, suponho. Indisponibilidade de passagens de terceira classe. São uns estúpidos!
- Lumley também disse isso.
- Lumley é outro estúpido - replicou Turner, sentando-se. - Não vou a seu encontro até que tenha visto os documentos.
- Faz parte da política não os mandar de volta - continuou Shawn, percebendo o ponto de Turner. Shawn interpretava sua posição mais como adito do que como efetivo do departamento de segurança; era tranqüilo, entre os compromissos, e ele não perdia oportunidade de demonstrar sua familiaridade com o mundo político mais amplo. - Negócios, como de costume, é a palavra de ordem. Não podemos permitir que sejamos acuados pelas regras do populacho. Afinal de contas, o Movimento é uma minoria. O leão britânico - acrescentou ele, numa piada sem convicção - não pode dar-se o luxo de se irritar com as alfinetadas de uns poucos vagabundos.
- Oh, não; claro que não.
Turner pôs de lado um dos telegramas e passou para um outro. Lia fácil e sem esforço, com a confiança de um intelectual, arrumando os papéis em pilhas separadas, de acordo com algum critério não revelado.
- Então o que está acontecendo? O que têm eles a perder além de sua honra? - perguntou, ainda lendo. - Por que, diabo, nos convocaram? Indenizações fazem parte do departamento do Ocidente, certo? Evacuações é assunto daquele camarada dos erros e omissões, certo? Se estão preocupados com relação aos contratos, podem ir chorar no Ministério do Trabalho. Então, por que não nos podem deixar em paz?
- Porque é a Alemanha - sugeriu, sem muita convicção, Shawn.
- Oh, que se danem.
- É uma pena se isso estraga alguma coisa - falou Shawn com um fungar de desagrado, pois suspeitava de que a vida sexual de Turner fosse mais colorida do que a sua própria.
O primeiro telegrama relevante era de Bradfield. Estava marcado como Urgentíssimo; havia sido expedido às 11:40 e submetido ao funcionário residente às 2:28. Skardon, o Cônsul Geral de Hanover, havia convocado todo o pessoal e suas famílias para a sede e estava apresentando urgentes reclamações junto à polícia. O segundo telegrama era um noticiário da Reuter expedido às 11:53: manifestantes haviam invadido a Biblioteca britânica; a polícia não conseguia controlar a situação; o paradeiro de Fraulein Eick (sic), a bibliotecária, era desconhecido.
Logo depois desse último chegou um outro telegrama urgente, procedente de Bonn: "Norddeustcher Rundfunk informa que Eick repetindo Eick morta pela multidão." Essa mensagem foi contraditada imediatamente, pois Bradfield, através dos bons ofícios de Herr Siebkron, do Ministério do Interior ("com quem mantenho um íntimo relacionamento"), havia conseguido entrar em contato direto com a Polícia de Hanover. De acordo com suas últimas estimativas, a Biblioteca britânica havia sido saqueada e seus livros queimados na presença de uma enorme multidão. Cartazes impressos haviam aparecido com slogans antibritânicos, tais como "Os Agricultores Não Pagarão pelo Império!" e "Trabalhem pelo Próprio Pão, Não Roubem o Nosso!" Fraulein Gerda Eick (sic), de 55 anos, residente em Hohenzollernweg, 4, Honover, tinha sido arrastada dois lances de degraus de pedra abaixo, fora chutada e levara pancadas no rosto, tendo sido obrigada a lançar no fogo seus próprios livros. A polícia a cavalo e com equipamento antimotins estava sendo convocada das cidades vizinhas.
Uma anotação de Shawn, à margem, declarava que a Seção de Informações de Pessoal revelara um registro sobre a infortunada Fraulein Eick. Era uma professora aposentada, que trabalhara algum tempo com a Ocupação inglesa, algum tempo com a seção de Hanover da Sociedade Anglo Alemã, e que, em 1962, fora distinguida com uma condecoração britânica, por serviços de âmbito internacional.
- Mais uma anglófila morde o pó - resmungou Turner.
Seguia-se um longo ainda que apressadamente compilado sumário de boletins e notícias de rádio. Turner estudou-o também com bastante atenção. Ninguém, parecia, pelo menos de todos aqueles que haviam estado presentes, era capaz de dizer precisamente o que tinha detonado o distúrbio, nem o que atraíra a multidão à biblioteca, em primeiro lugar. Ainda que manifestações fossem agora um lugar-comum no cenário alemão, um distúrbio dessa escala não era; as autoridades federais haviam-se confessado, elas mesmas, "profundamente preocupadas". Herr Ludwig Siebkron, do Ministério do Interior, tinha quebrado seu habitual silêncio para observar, durante uma entrevista coletiva, haver "motivos para ansiedades muito reais". Uma decisão imediata devia ser tomada para proporcionar adicional proteção para todos os edifícios oficiais e semi-oficiais britânicos e todas as residências inglesas em toda a República Federal. O Embaixador britânico, depois de alguma hesitação inicial, havia concordado em estabelecer uma eventual ordem de recolher para o seu pessoal.
Os relatos do incidente pela polícia, pela imprensa e até mesmo pelos próprios delegados eram desanimadoramente confusos. Declaravam alguns ter sido um movimento espontâneo; um gesto coletivo, agravado pela palavra "britânica" que por acaso aparecia ao lado do edifício da biblioteca. Era natural, achavam eles, que, à medida que o dia da decisão em Bruxelas se aproximava rapidamente, a política de oposição do Movimento ao Mercado Comum assumisse uma forma especificamente antibritânica. Outros juravam ter percebido um sinal, um lenço branco sendo acenado de uma janela; uma testemunha afirmava mesmo ter sido lançado um foguete por trás da torre da cidade, emitindo estrelas vermelhas e douradas. Para alguns, a multidão havia surgido com um ímpeto positivo, para outros fora uma coisa momentânea; para outros, ainda, havia oscilado. "Foi um movimento liderado a partir do centro", informou um oficial superior da polícia. "A periferia estava imóvel, até que o centro se movimentou." "Os que estavam no centro", a Rádio Ocidental confirmava, "mantiveram sua compostura. As tropelias partiram de uns poucos vagabundos lá na frente. Os outros foram então obrigados a acompanhá-los." Em um único ponto parecia haver concordância: o incidente tivera lugar na ocasião em que a música estava mais alta. Chegou mesmo a ser sugerido por uma mulher que prestara testemunho ter sido a própria música o sinal que desencadeara a correria da multidão.
O correspondente do Spiegel, por outro lado, falando na Rádio Norte, apresentara um circunstanciado relato de como um ônibus cinzento, alugado por um misterioso Herr Mayer, de Luneburg, tinha transportado um "grupo de 30 homens escolhidos até o centro da cidade de Hanover, uma hora antes da demonstração ter início e que esse grupo, constituído parcialmente por estudantes e parcialmente por agricultores jovens, havia formado um anel protetor em torno do pódio do orador. Haviam sido esses "homens escolhidos" que tinham dado início à correria. Toda a ação, assim, tinha sido inspirada pelo próprio Karfeld. "É uma declaração aberta", insistia ele, "de que o Movimento, de agora em diante, pretende dar o tom de sua própria música."
- Essa Eick - indagou Turner, finalmente. - Quais são as últimas notícias a respeito dela?
- Ela está passando tão bem quanto se poderia esperar.
- O que significa esse "tão bem"?
- Oh, foi o que disseram.
- Está bem.
- Felizmente nem a Eick nem a biblioteca estão sob a responsabilidade britânica. A biblioteca foi criada durante a Ocupação, mas logo em seguida foi entregue aos alemães. Atualmente está sob o controle e é da responsabilidade exclusiva da autoridade Local. Não tem nada de britânico.
- Então eles queimaram livros que lhes pertenciam.
Shawn deixou escapar um sorriso de surpresa.
- Sim, de fato - comentou. - Pensando bem é isso mesmo. Aí está um aspecto muito útil; podemos até sugeri-lo à seção de imprensa.
O telefone estava tocando. Shawn levantou o fone e ficou escutando.
- É Lumley - informou, cobrindo o bocal com a mão. - O porteiro disse a ele que você já havia chegado.
Turner pareceu não ouvir. Estava estudando um outro telegrama; era uma mensagem curta, dois parágrafos, não mais; estava dirigido como "pessoal para Lumley" e assinalado "urgente"; essa era a segunda cópia, passada para Turner.
- Ele quer você, Alan - disse Shawn, desligando.
Turner leu o texto uma vez, tornou a ler. Pondo-se de pé, encaminhou-se até o armário de aço de onde retirou uma caderneta de notas de capa preta, que recolheu dentro do terno tropical.
- Seu micróbio estúpido - falou ele calmamente lá da porta. - Por que você não aprende a ler os seus telegramas? Durante todo o tempo mugindo sobre extintores de incêndio e nós com um maldito desertor nas mãos.
Esticou a folha de papel para que Shawn a lesse.
- Uma fuga planejada, é como chamam a isso. Quarenta e três pastas faltando, nenhuma delas com classificação abaixo de confidencial. Uma pasta verde classificada como Máximo e Limite, desaparecida desde sexta-feira. Eu diria que tudo foi planejado.
Deixando Shawn ainda com o fone na mão, Turner seguiu rapidamente pelo corredor, na direção da sala de seu chefe. Seus olhos eram olhos de nadador, muito claros, a cor tendo sido lavada pelo mar.
Shawn ficou olhando às suas costas. É isso o que acontece, concluiu para si mesmo, quando alguém abre suas portas para o pessoal mais de baixo. Eles abandonam mulheres e filhos, usam uma linguagem pornográfica pelos corredores e estão pouco ligando para todas as cortesias de costume. Com um suspiro, Shawn recolocou o fone no lugar, tornando a retirá-lo. E discando para o departamento de notícias. Aqui fala Shawn, informou ele. S-H-A-W-N. Tinha-lhe ocorrido uma boa idéia com relação aos distúrbios em Hanover, uma idéia que podia ser levada à entrevista coletiva: afinal de contas, não temos nada com isso, se os alemães resolvem queimar os próprios livros. . . Ele achava que isso cairia muito bem como um exemplo da cabeça fria dos ingleses. Sim, Shawn, S-H-A-W-N. Absolutamente não; poderiam até mesmo almoçar juntos um dia desses.
Lumley tinha uma pasta aberta à sua frente e sobre ela sua velha mão repousava como uma garra.
- Não sabemos de nada a seu respeito. Nem mesmo está fichado. No que nos diz respeito, ele não existe. Nem foi investigado, quanto mais liberado. Tive que consultar seus documentos com o departamento do pessoal.
- E daí?
- Há um certo ranço, isso é tudo. Um ranço estranho. Foi refugiado, imigrou na década de 30. Escola agrária, Corpo de Pioneiros, Remoção de Bombas. Foi atraído pela Alemanha em 1945. Sargento Temporário; Comissão de Controle; um velho aventureiro, ao que parece. Um exilado profissional. Naqueles tempos havia pelo menos um em cada refeitório da Alemanha Ocupada. Alguns sobreviveram outros se apresentaram nos consulados. Muitos deles retornaram; sumiram na noite ou adotaram a cidadania alemã novamente. Muitos ingressaram no mundo do crime. Em sua maioria, não tiveram infância e esse é o problema. Desculpe - disse Lumley, abruptamente e quase corando.
- Algum formulário?
- Nada para botar fogo no Tâmisa. Descobrimos parentes próximos. Um tio que vive em Hampstead; Otto Harting. Durante algum tempo pai adotivo. Nenhum outro parente vivo. Trabalhava no ramo farmacêutico. Devia ser um alquimista, pelo jeito. Patentes de remédios, esse tipo de coisas. Já está morto. Morreu há 10 anos. Foi membro da Seção de Hampstead do Partido Comunista britânico, de 41 a 45. Uma condenação por causa de meninas.
- Meninas de que idade?
- O que isso interessa? Seu sobrinho Leo morou com ele durante algum tempo. Alguma coisa pode ter sido omitida. O velho pode até tê-lo recrutado, então eu creio... Uma penetração longa. O que estaria de acordo com o modelo. Ou alguém poderá tê-lo feito lembrar disso mais tarde. Nunca deixam você se safar, sabe, desde que tenha provado do negócio. Maus como os católicos.
Lumley odiava a fé.
- E como foi sua admissão?
- Obscura. Sua função está arrolada como reclamações e serviços consulares, o que quer que isso signifique. Ele tem status diplomático, só isso. Um segundo secretário. Você conhece esses tipos de arranjo. Sem direito à promoção, à remoção, à pensão. A chancelaria lhe concede um espaço vital. Não é exatamente um diplomata.
- Cara de sorte.
Lumley deixou a observação passar.
- Gratificação de representação. - Lumley consultou o arquivo.- Cento e quatro libras por ano, a cobrir 50 convidados para coquetéis e 34 convidados para jantar. Com notas fiscais. É muito pouca cerveja. Contratado localmente. Emprego temporário, é claro. Já está nisso há 20 anos.
- O que me deixa ainda 16 pela frente.
- Em 1956 ele fez um requerimento para se casar com uma moça de sobrenome Aickman. Margaret Aickman. Alguém que ele conhecera no Exército. Aparentemente o requerimento não teve curso. Desde então nada consta sobre ter ou não se casado.
- Talvez tenham parado de solicitar. As pastas que estão faltando se referem a quê?
Lumley hesitou.
- Um cardápio variado - disse ele, casualmente. - Um cardápio bem variado. Bradfield está neste momento procurando organizar uma relação. - Podiam ouvir o rádio do porteiro estalando novamente no corredor.
Turner percebeu o tom e voltou ao assunto.
- Que espécie de cardápio?
- Política - redargüiu Lumley. - Não é do seu campo absolutamente.
- Está querendo dizer que não posso saber?
- Estou querendo dizer que você não precisa saber. - Lumley falou quase despreocupadamente; seu mundo estava morrendo e ele não queria que ninguém adoecesse. - Ele escolheu um momento todo especial, devo reconhecer - continuou Lumley - com essa confusão toda por aí. Talvez tenha apenas apanhado um punhado de coisas e caído fora.
- Disciplina?
- Não há muita coisa. Meteu-se em uma briga há cinco anos em Colônia. Uma confusão em um night-club. Conseguiram abafar.
- E não o puniram?
- Gostamos de dar às pessoas uma segunda chance. - Lumley ainda se achava mergulhado na pasta, mas seu tom de voz estava prenhe de insinuações.
Lumley tinha cerca de 60 anos, fala grosseira e cinzenta; o rosto cinzento, o terno cinzento fazendo-o parecer com uma coruja, curvado e seco. Há muitos anos tinha sido embaixador em algum lugar sem expressão, mas o posto não havia durado.
- Você me passará um telegrama diariamente. Bradfield está tomando conta dos detalhes. Mas não me telefone, entendeu? Essa linha direta é uma ameaça. - Fechou a pasta. - Já conversei com o departamento do Ocidente, e Bradfield conversou com o embaixador. Deixarão você partir sob uma condição.
- Muito simpático da parte deles.
- Os alemães não devem saber. De modo algum. Eles não devem saber do desaparecimento. Não devem saber que estamos procurando localizá-lo; não devem saber que houve um vazamento.
- E se ele está de posse de algum material comprometedor da OTAN? O assunto é deles tanto quanto nosso.
- Decisões desse tipo não são absolutamente de sua conta. As instruções para você são de ir com calma. Não avance o sinal. Entendeu?
Turner não respondeu coisa alguma.
- Você não deve perturbar, aborrecer ou ofender. Andam se equilibrando por lá no gume de uma faca; qualquer coisa pode romper o equilíbrio. Bem, amanhã, a qualquer hora. Há mesmo o perigo de que os hunos pensem que estamos fazendo jogo duplo com o os russos. Se essa idéia se difundir, tudo pode ir pelos ares.
- Parece que estamos achando as coisas muito difíceis - disse Turner, tomando por empréstimo o vocabulário de Lumley. - Jogar individualmente com os hunos.
- A embaixada meteu uma idéia na cabeça, e nem Harting, nem Karfeld, e muito menos você tiveram essa idéia. É Bruxelas. Assim, lembre-se disso. E é melhor que o faça, porque, se não for assim, você irá se dar mal.
-Por que não mandar Shawn? Ele é cuidadoso. Iria encantar a todos.
Lumley empurrou um memorando por cima da mesa. Nele estavam anotadas as particularidades pessoais de Harting.
- Porque você o encontrará e Shawn não. Não é que eu o admire por causa disso. Você poria abaixo toda a floresta para encontrar um grão de milho. O que o impele? O que está procurando? Algo absoluto. Se há alguma coisa que realmente odeio é um cínico à procura de Deus.Talvez um pouco de fracasso seja aquilo que você necessite.
- Há muito desse artigo por aí.
- Tem tido notícias de sua mulher?
-Não.
- Você poderia perdoá-la e sabe disso. Já aconteceu antes.
- Jesus, você se arrisca - murmurou Turner. - Que diabo você sabe sobre o meu casamento?
- Nada. E eis aí por que tenho condição de dar conselhos. Tudo o que quero é que você pare de punir a nós todos por não ser perfeito.
- Mais alguma coisa?
Lumley o examinou como um .velho magistrado a quem não foram deixados muitos processos.
- Cristo, você é rápido em menosprezar - disse ele, por fim. - Você me assusta, posso lhe dizer. Você terá que gostar das pessoas muito breve ou será tarde demais.
Vai precisar de nós, sabe disso, antes de morrer. Mesmo que não sejamos tão bons assim. - Enfiou uma pasta na mão de Turner. - Vá em frente. Ache-o. Mas não pense que se encontrará fora da coleira. Se fosse você, seguiria no trem da meia-noite. Chegará na hora do almoço. - Seus olhos velados e amarelados piscaram na direção do parque ensolarado. - Bonn é um maldito lugar enevoado.
- Vou de avião se não houver problema sobre isso.
Lumley balançou a cabeça vagarosamente.
- Você não pode esperar, não é mesmo? Você não pode esperar para pôr as mãos nele. Escavando a terra, não é mesmo? Cristo, eu gostaria de ter o seu entusiasmo,
- Você já teve.
- E arranje um terno ou qualquer coisa assim. Procure parecer alguém de lá.
- Mas não sou de lá, sou?
- Está bem - disse Lumley, sem se preocupar mais. - Use a capa da mariposa. Cristo - acrescentou ele - eu pensava que sua classe já estava sofrendo por ser muito conhecida.
- Há uma coisa que você ainda não me disse. O que eles preferem: o homem ou as pastas?
- Pergunte a Bradfield - respondeu Lumley, evitando olhar para o outro.
Turner foi até sua sala e discou o número de telefone de sua mulher. A irmã dela atendeu.
- Ela não está - informou.
- O que você quer dizer é que ela ainda está dormindo.
- O que você quer?
- Diga-lhe que estou saindo do país.
Ao desligar, Turner foi novamente atraído pelo som do rádio do porteiro. Ele o havia posto a pleno e o sintonizava com a rede européia. Uma dama bem-educada estava apresentando um sumário das notícias. A próxima reunião do Movimento teria lugar em Bonn, dizia ela; na sexta-feira, cinco dias a partir de hoje.
Turner sorriu. Era algo parecido com um convite para o chá. Pegando sua sacola, dirigiu-se para Fulham, uma área bem conhecida por suas pensões e pelos homens que se encontravam exilados de suas mulheres.
Capítulo 4
Dezembros de renovação
De Lisle foi a seu encontro no aeroporto. Tinha um carro esporte que talvez fosse um pouco juvenil para sua idade, carro que avançava ruidosamente por sobre o calçamento molhado das pequenas localidades. Ainda que se tratasse de um carro bastante novo, sua pintura já estava manchada pelo leite das nogueiras das arborizadas avenidas de Godesberg. Eram nove horas da manha, mas as luzes das ruas ainda estavam acesas. De ambos os lados, em campos planos, casas de fazenda e construções novas se estendiam nas faixas de neblina, como cascos batidos pelo mar. Gotas de chuva salpicavam o reduzido pára-brisa.
- Reservamos acomodações para você no Adler; suponho que esteja bem. Não sabíamos que tipo de posses você tem.
- O que dizem os cartazes?
- Oh, nós quase não os lemos mais. Reunificação. . . Aliança com Moscou.. . Anti-América. .. Anti-Inglaterra.
- É bom saber que ainda estamos no primeiro time.
- Acho que você chegou num dia típico mesmo de Bonn. Por vezes a neblina é um pouco mais fria - continuou De Lisle, animadamente quando então damos a isso o nome de inverno. Por vezes é mais quente, e aí está o verão. Você conhece o que dizem sobre Bonn: ou está chovendo ou as passagens de nível estão baixas. Na realidade, ambas as coisas acontecem ao mesmo tempo, é claro. Uma ilha isolada pela neblina, é o que somos. O local é muito metafísico: os sonhos substituíram grande parte da realidade. Vivemos em algum ponto entre o futuro próximo e um passado não tão recente assim. Não pessoalmente, se você entende o que estou querendo dizer. Quase todos nós achamos que temos estado aqui há séculos.
- Há sempre uma escolta atrás de você?
O Opel preto vinha a uns 30 metros atrás. Nem ganhava nem perdia terreno. Na frente, encontravam-se sentados dois homens louros e os faróis do cano estavam acesos.
- Eles estão nos dando proteção. Essa é a teoria. Talvez você tenha ouvido falar do nosso encontro com Siebkron. - Viraram à direita e o Opel os acompanhou. - O embaixador está muito furioso. E agora, claro, alegam que Hanover justifica tudo: nenhum inglês estará a salvo sem a presença de guarda-costas. Essa não é absolutamente a nossa opinião. Ainda assim, talvez depois de sexta-feira vamos nos livrar deles novamente. Como estão as coisas em Londres? Ouvi dizer que Steed-Asprey pegou Lima.
- Sim, e estamos todos vibrando com isso.
Uma placa rodoviária amarela indicava que Bonn estava a seis quilômetros.
- Creio que teremos de rodear a cidade, se você não se importa; é provável que haja uma parada de inspeção para os que chegam e para os que saem. Estão examinando passes e outras coisas.
- Pensei que você tivesse dito que Karfeld não os preocupava.
- Todos nós dizemos isso. Faz parte de nossa religião local. Somos treinados para encarar Karfeld como irritante, mas não como epidêmico. Você terá que se acostumar a isso. Tenho um recado de Bradfield para você, agora me lembro. Ele lamenta não ter podido vir apanhá-lo pessoalmente, pois se encontra muito ocupado.
Afastaram-se bruscamente da estrada principal, passaram por cima dos trilhos do bonde e avançaram ao longo de uma estreita alameda aberta. Ocasionalmente um cartaz ou uma fotografia se levantavam à sua frente e logo desapareciam na neblina.
- Isso foi tudo o que Bradfield mandou dizer?
- Há o problema de quem sabe o quê. Ele imaginou que você gostaria de esclarecer isso imediatamente. Cobertura, é como vocês chamam, não?
- Sim, pode ser.
- O desaparecimento de nosso amigo foi noticiado de uma forma geral - prosseguiu De Lisle, no mesmo tom amistoso de voz. - Isso era inevitável. Felizmente, porém, Hanover interveio, e conseguimos tapar alguns furos. Oficialmente, Rawley autorizou-o a sair em licença de saúde. Não revelou detalhes; limitou-se a citar problemas pessoais e deixou as coisas por aí. O pessoal de baixo pode pensar o que quiser: problema de nervos, contrariedades de família, podem dar vaza a seus próprios boatos. Bradfield tocou no assunto durante a reunião desta manhã. Quanto a você...
- O quê?
- Por causa da crise, uma inspeção geral na segurança. O que lhe parece isso? Para nós pareceu bastante convincente.
- Você o conhecia?
- Harting?
- Sim. Você o conhecia?
- Creio que sim - disse De Lisle, parando em um sinal de tráfego.
- Mas devemos deixar que Bradfíeld conte a história, não acha? Diga-me uma coisa, como vão os nossos pequenos Lordes de York?
- Quem são eles?
-Desculpe-me - falou De Lisle, genuinamente perturbado. - É como designamos localmente o Gabinete. Foi uma tolice minha.
Estavam chegando perto da embaixada. Ao tomarem a esquerda para cruzar a estrada, o Opel preto passou por eles vagarosamente, como um velho avô que tivesse visto seus netos a salvo do outro lado da rua. O saguão estava em torvelinho. Mensageiros se misturavam com a polícia e com jornalistas. Uma grade de ferro isolava a escada do subsolo. De Lisle conduziu-o rapidamente até o primeiro andar. Alguém devia ter telefonado da portaria, pois Bradfíeld já estava se pondo de pé quando entraram.
- Rawley, este é Turner - disse De Lisle, como se não houvesse muito o que fazer a respeito, e prudentemente fechou a porta sobre eles.
Bradfíeld era um homem de compleição robusta, autocontestado, de ossos longos e bem conservados, daquela idade e geração que pode passar com pouco sono. Ainda assim, as tensões das últimas 24 horas já estavam aparecendo nas pequenas e incomuns marcas nos cantos de seus olhos e no incomum palor de sua tez. Estudou Turner sem comentários: a sacola de lona firme no punho pesado, o batido temo marrom-claro, as feições inexpressivas e indefinidas quanto à sua classe; durante um momento, foi como se um impulso de involuntária raiva ameaçasse sua costumeira compostura, ou de objeção estética de que alguma coisa tão ofensivamente incongruente tivesse sido colocada à sua frente em uma ocasião dessas. Lá fora, no corredor, Turner podia ouvir o murmúrio de vozes apressadas, o ruído de passos, bater mais rápido das máquinas de escrever e o ressoar fantasma dos aparelhos de codificação na sala dos códigos.
- Foi bom você ter vindo em uma ocasião tão embaraçosa. Você poderia me deixar tomar conta disso. - Pegou a sacola de lona e a acomodou por trás de sua cadeira.
- Meu Deus, que calor - disse Turner. Caminhando até a janela, encostou seus cotovelos no peitoril e olhou para o lado de fora. Lá longe, à sua direita, as Sete Colinas de Königswinter, envolvidas em nuvens pouco densas, elevavam-se como sonhos góticos de encontro ao céu descolorido. No sopé das colinas, Turner podia perceber o brilho amortecido da água e a sombra de navios imóveis.
- Ele morava lá, não é mesmo? Königswinter?
- Temos algumas casas alugadas na outra margem, mas nunca são muito procuradas. A balsa é um inconveniente.
No gramado revirado, operários estavam desmontando o pavilhão, sob os olhares atentos de dois policiais alemães.
- Imagino que você tenha uma rotina em tais casos - falou Bradfield, dirigindo-se às costas de Turner. - Você nos dirá o que deseja e nós faremos o melhor que pudermos para atendê-lo.
- Ótimo.
- O pessoal da codificação dispõe de uma sala onde você poderá ficar sem ser perturbado. Eles estão instruídos para enviar os seus telegramas sem comunicar a qualquer outra pessoa. Mandei colocar lá uma mesa e um telefone para você. Pedi também ao funcionário do arquivo que preparasse uma relação das pastas que estão faltando. Se você desejar mais alguma coisa, tenho a certeza de que De Lisle fará o possível para atendê-lo. E, quanto à parte social - Bradfield hesitou - eu o convido para jantar conosco amanhã à noite. Será um prazer para nós. É o comum nas noites de Bonn. De Lisle lhe arranjará um dinner jacket, tenho certeza.
- Há muitas rotinas - replicou Turner, finalmente. Estava apoiado no aparelho de aquecimento, olhando em volta da sala. - Em um país como esse deve ser muito fácil. Chamar a polícia. Verificar nos hospitais, casas de pensão, prisões, hospedarias do Exército de Salvação. Fazer circular sua fotografia e descrição pessoal e esquadrinhar a imprensa local. Depois, eu mesmo irei procurar por ele.
- Procurar por ele? Onde?
- Verificar outras pessoas. O seu passado. Motivos, associações políticas, amigos, namoradas, contatos. Quem mais estava envolvido; quem o conhecia; quem o conhecia pela metade; quem o conhecia por uma quarta parte; quem o manejava; com quem se encontrou e onde; com quem mantinha correspondência; casas que freqüentava, pontos de encontro; há quanto tempo tudo vem ocorrendo. Quem o protege, talvez. A isso é que chamo procurar. Então prepararei um relatório; indico a culpa, e arranjo novos inimigos. - Turner continuava a examinar a sala e parecia que nada passava despercebido a seu olhar claro e inescrutável. - Essa é uma rotina. Para os países amigos, é claro.
- A maior parte do que você sugeriu é bastante inaceitável por aqui.
- Oh, claro. Lumley já me disse isso tudo.
- Talvez, antes que você vá mais adiante, seria bom ouvir a minha versão sobre o assunto.
- Por favor, sirva-se - falou Turner, em um tom de voz que poderia ter sido deliberadamente escolhido para irritar.
- Imagino que no seu mundo os segredos sejam um padrão absoluto. Eles importam mais do que qualquer outra coisa. Aqueles que os preservam são seus aliados, aqueles que os quebram são a sua caça. Aqui, este simplesmente não é o caso. Até agora as considerações políticas locais excedem de muito as considerações de segurança.
De súbito, Turner sorriu.
- É sempre assim - observou ele. - É gozado.
- Aqui em Bonn, atualmente, temos que concorrer para uma coisa: manter a todo custo a confiança e a boa vontade do governo federal. Reforçar sua decisão contra a crescente crítica de seu próprio eleitorado. A coalizão está enferma; o vírus mais fraco poderá matá-la. Cabe-nos mimar o inválido. Consolar, encorajar e ocasionalmente ameaçá-lo, e pedir a Deus que lhe dê vida suficiente para que nos veja no Mercado Comum Europeu.
- Que quadro encantador. - Turner estava novamente olhando através da janela. - É o único aliado que temos e está de muletas. Os dois indivíduos doentes da Europa escorando-se um no outro.
- Quer goste ou não, esta é a verdade. Aqui estamos jogando pôquer. Com as cartas abertas e sem nada na mão. Nosso crédito está esgotado, nossos recursos são zero. Ainda assim, em troca de um sorriso e não mais do que isso, nossos parceiros apostam e jogam. O sorriso é tudo o que temos. Todo o relacionamento entre o Governo de Sua Majestade e a coalizão federal repousa nesàe sorriso. Nossa situação é tão delicada quanto possível; e tão misteriosa também. E tão crítica. Todo o nosso futuro com a Europa poderá ser decidido dentro de 10 dias. - Fez uma pausa, aparentemente esperando que Turner dissesse alguma coisa. - Não é por coincidência que Karfeld escolheu a próxima sexta-feira para sua manifestação em Bonn. Lá pela sexta-feira os nossos amigos do gabinete alemão serão forçados a decidir se se dobram à pressão francesa ou honram os seus compromissos para conosco e para com seus parceiros dos Seis. Karfeld detesta o Mercado e é favorável a uma abertura com o Leste. Em resumo, ele se inclina por Paris e, a longo prazo, por Moscou. Marchando sobre Bonn e aumentando o ritmo de sua campanha, ele está deliberadamente exercendo pressão sobre a coalizão no momento mais crítico. Está acompanhando o meu raciocínio?
- Eu me safo com poucas palavras - respondeu Turner. Uma foto em Kodachrome da Rainha pendia diretamente por trás da cabeça de Bradfield. Seu brasão era visto em toda parte; no couro azul das cadeiras, na caixa de ciganos de prata, até mesmo nos blocos de rascunho colocados em cima da grande mesa de reuniões. Era como se a monarquia tivesse voado até aqui de primeira classe e partido, deixando para trás presentes grátis.
- É por essa razão que lhe estou pedindo que se mova com toda a 'circunspecção possível. Bonn é uma aldeia - continuou Bradfield. - Mantém os hábitos, a visão e a dimensão de um poço paroquial, mas ainda assim não passa de uma aldeia dentro de um Estado. Nada é mais importante para nós do que a confiança de nossos anfitriões. Já há indicações de que os tenhamos ofendido. Não sei como o fizemos. Suas maneiras mesmo nas últimas 48 horas, tornaram-se frias. Nós estamos sob vigilância; nossas chamadas telefônicas são interceptadas; temos dificuldade até em estabelecer nossos contatos oficiais com os ministérios.
- Está bem - disse Turner. Já lhe bastava o que ouvira. - Entendi o recado. Estou avisado. Estamos pisando em terreno movediço. E agora?
- Agora isso - replicou Bradfield. - Nós ambos sabemos o que Harting pode ser ou talvez tenha sido. Sabe Deus se há antecedentes. Quanto maior sua traição por aqui, quanto maior o embaraço em potencial, maior o abalo da confiança alemã. Vamos admitir a pior hipótese. Se fosse possível provar, não estou dizendo com isso que seja possível, mas há indícios, se fosse possível provar que em virtude das atividades de Harting nesta embaixada nossos segredos mais íntimos têm sido passados para os russos há muitos anos, segredos que em grande parte compartilhamos com os alemães, então esse choque, insignificante como possa ser a longo prazo, poderia cortar o último fio que sustenta nosso crédito por aqui. Espere. - Bradfield permanecia sentado à sua mesa, muito teso, tendo uma expressão de desagrado sob controle no rosto atraente. - Escute-me só. Há alguma coisa aqui que não existe na Inglaterra. É aquilo que tem o nome de aliança anti-soviética. Os alemães a levam muito a sério e nós zombamos disso a nosso próprio risco: ela ainda é o nosso bilhete para Bruxelas. Durante cerca de 20 anos nós nos enfiamos na brilhante armadura de defensores. Podemos estar falidos, podemos mendigar empréstimos, dinheiro e comércio; podemos, ocasionalmente. . . reinterpretar. . . nossos compromissos com a OTAN; quando os canhões troam, podemos até esconder nossas cabeças embaixo dos cobertores; nossos líderes podem ser tão fúteis quanto os deles.
O que Turner percebeu na voz de Bradfield naquele momento? Autodesgosto? Uma sensação implacável quanto ao próprio declínio? Falava como um homem que tivesse tentado todos os remédios e não mais procuraria os médicos. O abismo existente entre eles se havia fechado, e Turner ouviu sua própria voz falando através da neblina de Bonn.
- Por tudo isso, em termos de psicologia popular, temos uma grande força que não é citada: que quando os bárbaros vierem do Leste os alemães podem contar com nosso apoio; que o Exército do Reno será rapidamente agrupado nas colinas de Kentish e as forças nucleares de dissuasão inglesas independentes entrarão em posição rapidamente. Entende você, agora, o que Harting pode significar nas mãos de um homem como Karfeld?
Turner tirara sua caderneta de notas do bolso do paletó. Ela estalou audivelmente quando a abriu.
- Não - respondeu Turner - não estou entendendo. Ainda não. Você não quer que ele seja encontrado, você quer que ele continue desaparecido. Se você queria as coisas a seu modo, não deveria ter mandado me convocar. - Sacudiu a cabeça em relutante admiração. - Bem, vou lhe dizer uma coisa: ninguém jamais me tirou da jogada tão depressa. Cristo. Eu mal me sentei. Eu mal sei o nome completo do homem. Em Londres não ouvimos falar dele, sabia? Ele não mereceu nenhuma referência, pelo menos em nossos livros. Nem mesmo em um maldito manual militar. Ele pode ter sido raptado. Ele pode ter sido atropelado por um ônibus, fugido com uma garota, por tudo o que sabemos. Mas você, Cristo! Como você exagerou! Ele é todos os espiões que conhecemos concentrados num só. Então, o que ele beliscou! O que você sabe que eu não sei? - Bradfield tentou interromper, mas Turner continuou a acuá-lo implacavelmente. Ou será que não devo fazer perguntas? E não devo importunar ninguém?
Estavam-se encarando um ao outro, através de séculos de suspeição: Turner sagaz, predatório e vulgar, com o olhar duro de um novo rico; Bradfield em desvantagem mas não vencido, mergulhado em si mesmo, proferindo suas palavras como se elas fossem feitas para ele.
- Nossa pasta mais secreta desapareceu. Sumiu no mesmo dia em que Harting desapareceu. Ela contém o spectrum completo de nossas conversações mais delicadas com os alemães, formais e informais, nos últimos seis meses. Por motivos que não dizem respeito a você, sua publicação nos arruinaria em Bruxelas.
Turner pensou inicialmente que era o barulho dos motores do avião que ainda zunia em seu ouvido, mas o tráfego em Bonn é tão constante como a neblina. Olhando pela janela, foi de repente assaltado pelo sentimento de que, de então em diante, seria incapaz de ver ou de ouvir com clareza; que esse sentimento estava sendo envolvido e submergido pelo enjoativo calor e pelos sons dissonantes.
- Escute aqui. - Turner apontou para sua sacola. - Eu sou o aborteiro. Você não me deseja, mas tem que me aceitar. Um trabalho limpo e sem seqüelas, é pelo que você está pagando. Está bem. Farei o melhor que puder. Antes, porém, de todos nós saltarmos por cima do muro, vamos contar um pouco nos dedos, está bem?
O questionário começou.
- Ele era casado?
- Não.
- Nunca foi?
-Não.
- Vivia sozinho?
- Tanto quanto eu saiba.
- Quando foi visto pela última vez?
- Na manhã de sexta-feira, na reunião na chancelaria. Aqui mesmo.
- Depois não foi mais visto?
- Sei que o funcionário da pagadoria o viu, mas estou me limitando às pessoas a quem posso perguntar.
- Mais alguém desapareceu?
- Ninguém.
- Fizeram uma verificação completa, não é? Não faltou nem um pássaro qualquer do arquivo?
- Há sempre gente de licença, mas ninguém está sendo considerado ausente.
- Então, por que Harting não tirou uma licença? É o que normalmente fazem, como você sabe. Deserção com conforto, é o meu conselho.
- Não faço idéia.
- Você não era chegado a ele?
- Claro que não.
- E os amigos dele? O que dizem?
- Ele não tem amigos com quem valha a pena falar.
- Ninguém com quem valha a pena falar?
- Tanto quanto eu saiba ele não tem amigos íntimos na comunidade. Poucos de nós os temos. Temos conhecidos, mas poucos amigos. É o que ocorre nas embaixadas. Com uma vida social tão intensa, aprende-se a dar valor à privacidade.
- E quanto a alemães?
- Não faço idéia. Ele já teve uma certa familiaridade com Harry Praschko.
- Praschko?
- Aqui existe uma oposição parlamentar; os democratas livres. Praschko é um de seus membros mais brilhantes. Em seus tempos ele foi um sem-número de coisas, menos acompanhante de viagens. Há uma nota arquivada, segundo a qual os dois foram amigos por uns tempos. Conheceram-se durante a Ocupação, acredito. Nós conservamos uma relação de contatos úteis. Perguntei-lhe uma vez sobre Praschko, como assunto de rotina, e ele me disse que o relacionamento havia sido interrompido. Isso é tudo o que lhe posso dizer.
- Em certa ocasião ele esteve noivo de uma moça chamada Margaret Aickman, com quem pretendia casar-se. Esse Harry Praschko foi indicado como pessoa capaz de dar referências, em sua qualidade de membro do Bundestag.
- E daí?
- Nunca ouviu falar de Aickman?
- Lamento, mas para mim nada significa.
- Margaret.
- Foi o que você disse. Nunca ouvi falar de noivado nenhum nem dessa mulher.
- Manias? Fotos? Selos? Radioamador?
Durante todo o tempo Turner escrevia. Talvez estivesse preenchendo um formulário.
- Ele gostava de música. Tocava o órgão da capela. Creio que possuía também uma coleção de discos. Seria melhor que você fizesse perguntas ao pessoal de baixo; com quem ele se sentia mais à vontade.
- Você nunca foi à casa dele?
- Uma única vez. Para jantar.
- E ele foi à sua?
Houve uma pequena parada no ritmo das interrogações, enquanto Bradfield rememorava.
- Uma vez.
- Para jantar?
- Para drinques. Ele não era muito do tipo de jantares. Desculpe-me se ofendi os seus instintos sociais.
- Não tenho tais instintos.
Bradfield não se mostrou surpreendido.
- Ainda assim você gostava dele, não é verdade? Isto é, você lhe deu esperanças. - Turner se pôs de pé e se encaminhou até a janela, como uma grande mariposa atraída pela luz. - Você tem alguma coisa dele arquivada, não é? - A voz de Turner soava desinteressada, como se ele tivesse sido afetado pelo estilo retórico de Bradfield.
- Somente contracheques, relatórios anuais, uma referência pessoal do Exército. Tudo do tipo padronizado. Leia isso se você quiser. - Como Turner não respondesse, Bradfield continuou. - É muito pouca coisa o que conservamos aqui sobre o pessoal, pois há mudanças muito freqüentes. Harting era a exceção.
- Ele estava aqui há 20 anos.
- Sim. Como disse, ele era a exceção.
- E nunca foi efetivado. Bradfield não disse nada.
- Vinte anos na embaixada, a maior parte deles na chancelaria, e nunca foi efetivado. Seu nome nunca foi apreciado. É de fato surpreendente. - O comentário de Turner bem poderia ter sido a respeito da vista.
- Creio que todos nós supúnhamos que isso já tivesse sido feito. Afinal de contas ele veio da comissão de controle; presume-se que para isso é necessário um certo nível.
- Ser efetivado é um razoável privilégio, creio. Não é o tipo de coisa que se faça por todo o mundo.
O pavilhão fora removido. Sem terem onde abrigar-se os dois policiais alemães se puseram a andar pelo gramado, seus casacões de couro drapejando preguiçosamente em torno das botas. Parece um sonho, imaginou Turner. Um sonho indesejável e barulhento. "Bonn é um local muito metafísico", lembrou-lhe De Lisle, com sua voz agradável. "Os sonhos substituíram grande parte da realidade."
- Será que lhe devo dizer uma coisa?
- Dificilmente poderei impedi-lo.
- Está bem: você já me avisou, o que é bastante usual. Mas, o resto da história?
- Não faço idéia do que você está querendo dizer.
- Você não dispõe de nenhuma teoria, é o que estou querendo dizer. É algo diferente de tudo aquilo com que já me defrontei. Não há pânico. Não há explicação. Por que não? Ele trabalhava para você. Você o conhecia. Agora me diz que ele é um espião; que sumiu com o melhor de seus arquivos. Ele é um lixo. É sempre assim por aqui, quando alguém vai embora? Os ferimentos cicatrizam assim tão rapidamente? - Fez uma pausa. - Deixe-me ajudá-lo, está bem? "Ele trabalhou aqui durante uns 20 anos. Implicitamente nós confiávamos nele e ainda confiamos." O que diz a isso?
Bradfield nada disse.
- Tente de novo. "Sempre tive suspeitas sobre ele, a partir daquela noite em que estivemos discutindo Karl Marx. Harting engoliu uma azeitona sem cuspir o caroço." Adiantou alguma coisa?
Bradfield continuou sem dizer nada.
- Como vê, não é comum. Está compreendendo o que quero dizer? Ele não é importante. Você não o convidaria para jantar. Você lavou as mios a respeito dele. E que tipo era ele. O que ele traiu.
Turner o observava com seu olhar frio, de caçador; observava esperando um movimento, um gesto, a cabeça inclinada, à espera do vento. Em vão.
- Você nem mesmo se preocupou em explicá-lo, nem para mim nem para você mesmo. Nada. Você apenas. . . o ignora. Como se o tivesse sentenciado à morte. Você não está incomodado em que eu esteja sendo pessoal, está? Tenho apenas certeza de que você não dispõe de muito tempo: isso é a próxima coisa que você vai me dizer.
- Eu não tinha me apercebido - retrucou Bradfield, com frieza que se esperava que eu fizesse o seu trabalho, nem que você fizesse o meu.
- Capri. O que me diz disso? Ele se aproveitou de uma oportunidade. A embaixada imersa no caos, ele se apoderou de algumas pastas, atirou-as em cima dos tchecos e se mandou com a garota.
- Ele não tem garotas.
- Aickman. Ele a desenterrou. Deu no pé com Praschko, dois coelhos com a mesma paulada. A noiva, o melhor amigo e o noivo.
- Já lhe disse, ele não tem namorada.
- Oh. Então disso você tem certeza? Então há coisas sobre as quais você tem certeza. Ele é um traidor e não tem ninguém com ele.
- Tanto quanto se saiba, ele não tem mulheres. Isso o satisfaz?
- Talvez ele seja veado.
- Tenho certeza de que ele não é desse tipo.
- Deu uma coisa nele. Todos nós somos um pouco amalucados, quando chegamos à idade que chegamos, não é mesmo? Menopausa masculina, o que acha?
- Esta é uma sugestão absurda.
- Será mesmo?
- Por tudo o que sei, sim. - A voz de Bradfield tremia de raiva; a de Turner era pouco mais do que um murmúrio.
- Mesmo assim nunca sabemos, não é mesmo? Não, até que seja tarde demais. Ele mexia com dinheiro?
- Sim, mas não está faltando nada. Turner voltou-se para ele.
- Jesus - disse, os olhos brilhando de triunfo. - Você foi verificar. Que mente suja a sua. - Talvez ele tenha simplesmente entrado no rio - sugeriu Turner consoladoramente, seus olhos fixos ainda em Bradfield. - Nada de sexo. Nada pelo que viver. O que acha disso?
- Já que você está perguntando: ridículo.
- Para um sujeito como Harting, no entanto, o sexo é uma coisa importante. Quero dizer, quando se está sozinho, é a única coisa. Não sei como esses caras se arranjam, é o que estou querendo dizer. Você sabe? Sei que eu não conseguiria. Umas poucas semanas é o que posso agüentar. Esta é a única realidade quando se vive sozinho. Pelo menos é o que acho. Sem falar em política, é claro.
- Política? Harting? Eu não imaginaria que ele lesse um jornal mais do que uma vez num ano. Em tais assuntos ele era uma criança. Um completo inocente.
- Eles são, por vezes - concordou Turner. - E isso é uma coisa notável. - Tornando a sentar-se, Turner cruzou uma perna sobre a outra e se inclinou para trás na cadeira, como um homem que está prestes a fazer confidencias. - Conheci um sujeito, certa vez, que vendeu seus direitos de herança por não ter conseguido alojar-se em um subsolo. Acho que gente desse tipo erra mais do que se fosse convertido a isso pelo Livro das Personalidades. Seria esse o problema de Harting? Não tinha direito a participar de jantares; para ele não havia lugar. Afinal de contas ele era um temporário, não é mesmo?
Bradfield não respondeu.
- E já estava por aqui há muito tempo. Algo assim como pessoal permanente. - Nada de bom-tom, não em uma embaixada. Se permanecem por muito tempo se tornam nativos. Mas então ele era nativo, não era? Meio nativo. Meio huno, como diria de Lisle. Ele nunca falava sobre política?
- Nunca.
- Você não percebia nele nenhuma tessitura política?
-Não.
- Nenhuma explosão? Nenhuma tensão?
-Não.
- E sobre aquela briga em Colônia?
- Que briga?
- Há uns cinco anos. Em um night club. Alguém o castigou bastante; ele ficou hospitalizado durante seis semanas. Conseguiram abafar o fato.
- Isso foi antes de minha vinda para cá.
- Ele bebia?
- Não que eu soubesse.
- Falava russo? Tomava lições?
- Não.
- O que fazia ele em suas folgas?
- Ele raramente teve folgas. E, se teve, creio que as passava em sua casa em Künigswinter. Acredito que Harting tinha interesse por seu jardim.
Durante algum tempo, Turner abertamente perscrutou o rosto de Bradfield, à procura de alguma coisa que não conseguia encontrar.
- Ele não andava com mulheres - falou. - Não era veado. Não tinha amigos, mas não era um recluso. Não foi investigado e vocês não têm dados sobre ele. Era um inocente político, mas soube escolher as pastas que tinham importância para vocês. Nunca se apossou de dinheiro, tocava órgão na capela, tinha um certo interesse pelo jardim e amava ao próximo como a si mesmo. É isso? Ele não era nada demais, positiva ou negativamente. Então que diabo era ele, pelo amor de Deus? O eunuco da embaixada? Será que vocês não têm opinião alguma - persistiu Turner, em súplica zombeteira - que possa ajudar um pobre investigador em sua solitária tarefa?
No colete de Bradfield havia uma corrente de relógio atravessada, não mais do que um fio de ouro, um minúsculo símbolo de devoção da sociedade organizada.
- Você parece estar deliberadamente gastando o tempo com assuntos que não estão em jogo. Não tenho interesse nem tempo de brincar com os seus jogos tortuosos. Insignificante como Harting fosse, obscuros que possam ter sido os seus motivos, nos últimos três meses ele, infelizmente, teve um acesso considerável a informações secretas. Esse acesso ele obteve às escondidas e sugiro que você, em lugar de especular sobre suas inclinações sexuais, preste alguma atenção àquilo que ele roubou.
- Roubou? - repetiu Turner, suavemente. - É uma palavra engraçada - completou, escrevendo-a com deliberada deselegância em grandes letras maiúsculas na parte de cima de sua caderneta de apontamentos. O clima de Bonn já havia cravado nele suas garras; escuras manchas de suor já tinham começado a aparecer no tecido fino de seu deselegante terno. - Está bem - afirmou, com súbita impetuosidade. - Estou desperdiçando o seu maldito tempo. Agora vamos começar do começo e verificar por que você o ama tanto.
Bradfield examinou sua caneta-tinteiro. Você poderia ser um veado, parecia dizer a expressão de Turner, se não amasse a honra acima de tudo.
- Você poderia traduzir isso para o inglês?
- Fale-me a respeito dele, de seu próprio ponto de vista. Como era o seu trabalho, como era ele.
- Sua única função, logo que cheguei aqui, era lidar com as queixas dos civis alemães contra o Exército do Reno. Estragos produzidos pelos tanques nas plantações; granadas perdidas nos campos de tiro; gado e ovelhas mortos durante manobras. Desde que terminou a guerra, isso tem sido uma verdadeira indústria na Alemanha. Quando assumi a chancelaria, há uns dois anos e meio, ele era catedrático nesse assunto.
- Ele era um perito, é o que está querendo dizer.
- Como quiser.
- São apenas termos emotivos, como sabe. Eles me abalam. Não posso deixar de gostar de Harting, quando você me fala assim sobre ele.
- Reclamações eram o seu métier, se você prefere. Elas o trouxeram para dentro da embaixada, em primeiro lugar; ele conhecia sua função de dentro para fora, pois a exerceu durante anos, a vários títulos. Primeiro para a Comissão de Controle, depois para o Exército.
- E antes, o que fazia? Ele apareceu em 1945.
- Ele pertencia às Forças Armadas, é claro. Um sargento ou qualquer coisa assim. Seu status foi então alterado para o de assistente civil. Não faço qualquer idéia sobre qual seria o seu trabalho. Imagino que o Ministério da Guerra lhe possa dizer alguma coisa.
- Mas não podem. Tentei também os velhos arquivos da Comissão de Controle. Estão conservados em naftalina até a eternidade. Levarão semanas até conseguirem desencavar a documentação sobre Harting.
- De qualquer modo, ele soube escolher. Enquanto as unidades britânicas estivessem estacionadas na Alemanha haveria manobras; e os civis alemães apresentariam reclamações para fins de indenização. Poder-se-ia dizer que o trabalho de Harting, ainda que especializado, estava pelo menos assegurado por nossa presença militar na Europa.
- Meu Deus, não seriam muitas as pessoas que conseguiriam uma hipoteca sobre isso - comentou Turner, com um sorriso súbito e contagiante, mas Bradfield o ignorou.
- Harting se preparou para suas funções de maneira adequada. Mais do que meramente adequada; era bom no que fazia. Tinha umas noções de leis adquiridas em algum lugar, não só de leis alemãs como militares. Era naturalmente curioso.
- Um ladrão - sugeriu Turner, observando Bradfield.
- Quando ele tinha dúvidas, recorria ao adido legal. Não é fácil, atuar como um intermediário entre os fazendeiros alemães e o Exército inglês, alisar-lhes as penas, mantendo as coisas longe da imprensa. Tudo isso exige um certo instinto. Ele tinha esse instinto - observou Bradfield, com indisfarçável desprezo. - A seu nível, ele era um competente negociador.
- Mas ele não era do seu nível, não é mesmo?
- Ele não era do nível de ninguém - respondeu Bradfíeld, preferindo evitar a indireta. - Profissionalmente, ele era único. Meus predecessores acharam melhor deixá-lo só e quando assumi não vi nenhuma razão para mudar essa prática. Ele era adido à chancelaria e assim podíamos exercer um certo controle disciplinar; nada mais. Harting comparecia às reuniões matinais, era pontual, não causava problemas. Era querido até certo ponto, mas, segundo suponho, não gozava de confiança. Seu inglês nunca foi perfeito. Era socialmente ativo até certo ponto, principalmente nas embaixadas menos discriminatórias. Dizem que se dava bem com os sul-americanos.
- Ele viajava em função de seu trabalho?
- Sim, com freqüência e para muitos lugares. Por toda a Alemanha.
- Sozinho?
-Sim.
- E conhecia o Exército de cabeça para baixo: tinha os relatórios das manobras; conhecia os seus regulamentos, efetivos, conhecia tudo, certo?
- Ele conhecia mais do que isso; ouvia comentários nos refeitórios por todo o país; muitas das manobras eram do interesse de interaliados. Algumas envolviam a experiência de novas armas. Como essas armas também produziam danos, ele era obrigado a saber até que ponto. Há muita informação solta por aí que ele poderia ter adquirido.
- Coisas da OTAN?
- Principalmente.
- Há quanto tempo vinha ele exercendo essas funções?
- E de 1948 ou 1949, creio. Não sei dizer, sem recorrer aos arquivos, quando os ingleses pagaram pela primeira vez indenizações.
- Vinte e um anos, digamos, um pouco mais um pouco menos.
- Esse é o meu cálculo.
- Para um funcionário temporário, nada mal.
- Devemos prosseguir?
- Sim, claro. Prossiga - respondeu Turner afavelmente, pensando: Se eu fosse você nem perguntaria.
- Essa era a situação, quando eu assumi. Ele era um homem sob contrato; seu emprego estava sujeito a uma revisão anual. A cada dezembro seu contrato era apresentado para renovação e sua renovação era recomendada. Era nesse pé que as coisas se encontravam até 18 meses atrás.
- Quando o Exército do Reno caiu fora.
- Nós preferimos dizer aqui que o Exército do Reno foi juntar-se à nossa reserva estratégica no Reino Unido. Você deve lembrar-se de que os alemães ainda estão pagando os custos do apoio.
- Eu me lembrarei disso.
- De qualquer modo, apenas um arcabouço de força permaneceu na Alemanha. A retirada ocorreu quase subitamente, creio que nos pegou de surpresa. Houve disputas sobre acordos de compensação, houve rebeliões em Minden. O Movimento estava acabando de surgir; os estudantes, principalmente, estavam se tornando particularmente barulhentos; as tropas estavam se constituindo em uma provocação. A decisão foi tomada ao nível mais elevado; o embaixador nem foi consultado. A ordem chegou;o Exército do Reno partiu em um mês. Àquela época nós vínhamos fazendo um grande número de cortes. Era a mania em Londres, por essa época. Jogavam as coisas fora e chamavam a isso de economia.
Uma vez mais, Turner percebeu aquele amargor íntimo em Bradfíeld, uma mácula de família a que hóspede nenhum fazia referência.
- E Harting foi deixado são e salvo.
- Durante algum tempo, sem dúvida, ele tinha visto de que lado o vento estava soprando. O que, porém, não diminui o choque.
- Ele ainda era temporário?
- Claro. Nada obstante, suas chances de efetivação, se seriamente existiram, estavam diminuindo rapidamente. No momento em que se tornou aparente que o Exército do Reno devia retirar-se, a sentença estava lavrada. Somente por essa razão achei que teria sido um erro proporcionar a Harting algum arranjo permanente.
- Sim - comentou Turner. - Percebo.
- É fácil argumentar-se que ele era tratado injustamente - retomou Bradfíeld. - Pode argumentar-se também que ele bem que merecia o que ganhava. - A convicção surgia como uma mancha, reprimida como pudesse ser.
- Você disse que ele lidava com dinheiro oficialmente. - Turner pensou: É o que os médicos fazem. Tateiam até que possam fazer o diagnóstico.
- Ocasionalmente, Harting levava cheques ao Exército. Era como uma caixa-postal, e isso era tudo. Um intermediário. O Exército retirava o dinheiro, Harting pagava os interessados e obtinha um recibo. Verifiquei suas contas regularmente. Os auditores do Exército, corno você sabe, são notoriamente suspicazes. Não houve irregularidades. O sistema funcionava à prova d'água.
- Mesmo para Harting?
- Não foi o que eu disse. Além do mais ele sempre pareceu confortavelmente folgado. Não creio que fosse uma pessoa avarenta. Não tenho essa impressão.
- Ele vivia com seus próprios meios?
- Como posso saber que meios tinha? Se vivia do que ganhava aqui, creio que gastava o que ganhava. Sua casa em Königswinter era bastante grande; certamente acima do seu nível. Acho que ele mantinha um certo padrão por aqui.
- Percebo.
- Na noite passada, fiz questão de examinar suas retiradas em dinheiro durante os últimos três meses que precederam o seu desaparecimento. Na sexta-feira, depois da reunião da chancelaria, ele retirou 71 libras e quatro pênies.
- Uma quantia esquisita como o diabo.
- Ao contrário, é uma quantia lógica. Sexta-feira foi o décimo dia do mês. Ele retirou exatamente a terça parte do seu salário e gratificações mensais, deduzidos
impostos, seguros, e chamadas telefônicas pessoais. Fez uma pausa. - Aí está um de seus aspectos que eu talvez não tenha enfatizado: ele era uma pessoa inteiramente auto-suficiente.
- Ele é, é o que você está querendo dizer.
- Até hoje eu ainda não o peguei em uma mentira. Tendo decidido partir, ele parece ter retirado o que lhe era devido e nada mais.
- Algumas pessoas dão a isso o nome de honradez.
- Não roubar? Eu diria tratar-se de uma realização negativa. Ele poderia saber também, dado o seu conhecimento de leis, que um ato de furto teria justificado um contato com a polícia alemã.
- Meu Deus - comentou Turner - você não lhe concede nenhum ponto por sua conduta.
A Srta. Peate, assistente pessoal de Bradfield, trouxe café. Era uma mulher de meia-idade, pouco enfeitada, dura e plena de desaprovação. Parecia já saber de onde vinha Turner, pois lançou sobre ele um olhar de soberano desprezo. Eram seus sapatos, percebeu Turner, que mereciam dela maior objeção, e pensou: Muito bom, é para isso mesmo que os sapatos servem.
- O Exército do Reno se retirou em curto prazo - continuou Bradfíeld e ele foi deixado sem emprego. Isso foi o resumo de tudo.
- E sem acesso às informações militares da OTAN? Era isso o que você estava me dizendo.
- Essa é a minha hipótese.
- Ah - fez Turner, afetando ter ficado esclarecido e escreveu em sua caderneta de apontamentos hipótese, como se a própria palavra representasse um acréscimo a seu vocabulário.
- No dia em que o Exército do Reno partiu, Harting veio me procurar. Isso foi há uns 18 meses aproximadamente.
Bradfield ficou em silêncio, atingido por suas próprias reminiscências.
- Ele é tão vulgar - disse Bradfield por fim, em um momento de pouco característica suavidade. - Entende o que digo? Tão completamente insignificante. - Isso parecia surpreendê-lo ainda. - Agora é fácil perder de vista: a aguda insignificância de Harting.
- Ele nunca será insignificante de novo - disse Turner, descuidadamente. - Você pode muito bem ir-se acostumando com isso.
- Harting entrou; parecia pálido e isso era tudo; de resto não havia qualquer modificação. Sentou-se naquela cadeira que ali está. Por falar nisso, essa almofada é dele. - Bradfield permitiu a si mesmo um sorriso, rápido e descolorido. - A almofada era uma prerrogativa territorial. Ele era o único membro da chancelaria que reservava seu lugar.
- E o único que podia perdê-lo. Quem bordou essa almofada?
- Realmente não faço idéia.
- Ele dispunha de uma governanta?
- Não que eu saiba.
- Percebo.
- Não fez qualquer comentário sobre a mudança de sua situação. Na verdade, ao que me lembro, no arquivo estavam ouvindo o noticiário pelo rádio. Os regimentos estavam sendo embarcados nos trens.
- Momento importante para ele.
- Creio que sim. Perguntei-lhe em que poderia ajudá-lo. Bem, respondeu, o que desejava era ser útil. Tudo em tom muito comedido, tudo muito delicado. Ele notara que Miles Gaveston estava sob tensão, devido aos distúrbios de Berlim, a agitação dos estudantes em Hanover e várias outras pressões: será que ele não poderia ajudar? Respondi ressaltando que ele não era qualificado para lidar com assuntos de ordem interna, os quais eram preservados para os membros regulares da chancelaria. Não, retrucou ele, não era isso o que estava querendo, absolutamente. Nem por um momento lhe passaria pela cabeça sobrepor-se aos nossos esforços principais. Mas estivera pensando: Gaveston tinha uma ou duas funções sem importância; não poderia assumi-las? Ele tinha em mente, por exemplo, a Sociedade Anglo-Alemã, que então se encontrava bastante inativa, mas que ainda acarretava uma certa quantidade de correspondência de baixo nível. E havia também a seção de pessoas desaparecidas: não poderia ele assumir umas poucas coisas desse tipo, a fim de aliviar os ocupadíssimos funcionários da embaixada? Isso fazia algum sentido, tive que admitir.
- E por isso disse que sim.
- Concordei com isso. Em uma base puramente provisória, é claro. Um arranjo provisório. Falei que o avisaríamos em dezembro, quando seu contrato terminava; até então ele poderia preencher seu tempo com quaisquer serviços menores que pudesse encontrar. Esta foi a cunha. Fui um tolo, sem dúvida, em lhe dar ouvidos.
- Eu não disse isso.
- Nem seria preciso. Dei-lhe a mão, e ele pegou o pé também. Dentro de um mês, Harting havia assoberbado tudo; todas as rebarbas do serviço de uma chancelaria, todo o rebotalho que uma grande embaixada atrai: pessoas desaparecidas, requerimentos à Rainha, visitantes não anunciados, viagens oficiais, Sociedade Anglo-Alemã, cartas de ofensas, ameaças, todas as coisas que, em primeiro lugar, não deveriam ser endereçadas a uma chancelaria. Numa mesma medida ele também espraiara seus talentos pelo campo social. Capela, o coro, o comitê de suprimentos, o comitê de esportes. Chegou mesmo a dar partida a um movimento de poupança nacional. Não sei quando, pediu que lhe fosse permitido usar o título "Consular", e eu consenti. Não temos aqui serviço consular, como você sabe; tudo que diz respeito a consulado vai para Colônia. - Bradfield deu de ombros. - Quando chegou dezembro ele era uma pessoa útil. Seu contrato foi apresentado - Bradfield apanhara novamente a caneta-tinteiro e estava olhando para sua ponta - e eu o renovei. Por mais um ano.
- Você o tratou bem - disse Turner, os olhos durante todo o tempo fixos em Bradfield. - Você de fato foi muito bom para ele.
- Ele não tinha onde se agarrar aqui. Já estava no umbral da porta e sabia disso. Creio que essa circunstância teve alguma influência. Somos mais inclinados a aceitar as pessoas das quais temos facilidade em nos livrar.
- Você teve pena dele. Por que não admite esse fato? É uma razão bastante aceitável, por Deus.
- Sim. Creio que era isso. Daquela primeira vez eu realmente tive pena dele. - Bradfield sorriu, mas apenas da própria estupidez.
- Ele realizava bem o seu trabalho?
- Harting não era ortodoxo, mas era eficiente. Preferia usar o telefone à palavra escrita, mas isso era natural;ele não sabia escrever corretamente. Inglês não era sua língua nativa. - Deu de ombros. - Concedi-lhe mais um ano - tornou a dizer.
- Que terminou no último mês de dezembro. Na verdade uma concessão. Uma concessão para trabalhar; para ser um de nós. - Turner continuava a observar Bradfield. - Uma concessão para espionar. E você a renovou uma segunda vez.
-Sim.
- Por quê?
Mais uma vez Turner notou aquela hesitação que parecia significar estar escondendo alguma coisa.
- Você não sentiu pena dele, sentiu? Dessa vez não?
- Os meus sentimentos não vêm ao caso. - Baixou a caneta-tinteiro com um gesto brusco. - As razões para conservá-lo eram totalmente objetivas.
- Eu não disse que não fossem. Mas você ainda pode ter pena dele.
- Nós estávamos com falta de pessoal e com excesso de trabalho. Os inspetores já haviam cortado pelo meio o nosso efetivo, apesar de todas as minhas advertências contrárias. Os orçamentos haviam sido cortados ao meio. Não era somente a Europa que estava sendo cortada. Não havia mais regularidade em lugar nenhum. Rodésia, Hong-Kong, Chipre. . . As tropas britânicas estava correndo de um lado para o outro, procurando apagar um incêndio na floresta. Estávamos a meio caminho para dentro da Europa e novamente a meio caminho para fora. Falava-se de uma Federação Nórdica; sabe Deus que idiota teria dado nascimento a uma tal idéia! - declarou Bradfield com o mais completo desprezo. -Tínhamos sondas em Varsóvia, Copenhague e Moscou. Num momento estávamos conspirando contra os franceses, no momento seguinte conspirando com eles. Enquanto tudo isso ocorria, encontramos energia bastante para nos desfazer de três quartas partes de nossa Marinha e de nove décimos de nossa força independente de dissuasão. Foram nossos piores dias; nossa época mais humilhante e mais assoberbada de trabalho. Para coroar tudo, Karfeld acabara de assumir o Movimento.
- Então Harting o arrastou para o mesmo ato novamente.
- Não para o mesmo ato.
- O que está querendo dizer?
Pausa.
- Havia outra finalidade. Havia mais premência. Senti que era assim, e não liguei. Culpo-me a mim mesmo. Percebi que havia nele uma nova atitude e não procurei saber o quê. - Em seguida, continuou. - Na época atribuí o fato ao estado generalizado de tensão em que todos estávamos vivendo. Percebo agora que Harting estava jogando o seu trunfo.
- E daí?
- Começou dizendo que não estava ainda rendendo a pleno. Tinha tido um bom ano, mas achava que poderia fazer mais ainda. Aqueles eram dias difíceis; gostaria de sentir que realmente estava ajudando a colocar as coisas nos eixos. Perguntei-lhe o que tinha em mente; imaginei que ele então iria abrir o jogo. Harting disse, bem era dezembro. .. este foi o ponto mais próximo de seu contrato a que jamais se referiu. .. e ele naturalmente estivera pensando a respeito do levantamento das personalidades.
- O que é isso?
- As biografias de figuras destacadas da vida alemã. Nosso próprio confidencial Quem é Quem. Todos os anos preparamos esses dados, cada um de nós contribuindo com alguma coisa sobre as personalidades alemãs com que lida. O pessoal da comercial escreve a respeito de seus contatos comerciais, o da economia sobre os economistas, os adidos, a imprensa, os das informações, todos contribuem com sua parte. O grosso do material é altamente comprometedor, parte dele tem origem em fontes secretas.
- E a chancelaria as edita?
- Sim. Uma vez mais ele havia escolhido com toda a precisão. Era mais uma outra tarefa que interferia com nossas obrigações normais. Estava sempre em atraso. De Lisle, que devia tê-la compilado, encontrava-se em Berlim; a tarefa estava se tornando uma embaraçante amolação.
- E por isso você lhe deu função.
- Em uma base provisória, sim.
- Até o seguinte dezembro, por exemplo?
- Sim. Agora é fácil imaginar as razões pelas quais ele podia estar pretendendo essa particular função. O levantamento lhe garantia um laissez-passer para qualquer parte da embaixada, pois corre ao longo de toda a fronteira; cobre todo o âmbito dos assuntos federais: indústria, forças militares, administração. Uma vez encarregado do levantamento, Harting poderia procurar quem quer que desejasse, sem que lhe fossem feitas perguntas. Podia retirar pastas de qualquer outro arquivo: comercial, econômico, naval, militar, de defesa. . . todos lhe abririam as portas.
- E o problema de uma investigação nunca passou por sua cabeça?
- Nunca. - A nota de autocrítica voltara.
- Bem, todos nós temos os nossos momentos - disse Turner, calmamente. - E foi assim que ele conseguiu obter acesso?
- Há mais coisas.
- Mais? Mas isso é tudo, não é?
- Nós não temos aqui tão-somente os arquivos; temos também um programa de destruição. Vem funcionando há anos. A finalidade é manter espaço disponível no arquivo para novas pastas e dar fim àquelas antigas de que não mais necessitamos. Isto parece um projeto de certo modo acadêmico, e de fato é; nada obstante, acontece que é vital. Há um limite econômico claramente definido com relação à quantidade de documentos com que o arquivo pode lidar e à quantidade de documentos que poderá manter. O problema é parecido com aquele do tráfego nas estradas: estamos constantemente criando maior número de documentos do que podemos digerir. Muito naturalmente, é mais uma dessas tarefas que pegamos e largamos à medida que o tempo permite; era também uma completa maldição. Por uns tempos ele seria esquecido, mas logo o Ministério do Exterior enviaria correspondência, solicitando nossos últimos números. - Deu de ombros. - Como eu digo, tudo muito simples. Não se pode prosseguir indefinidamente, mesmo em lugar deste tamanho, abrindo mais pastas do que podemos destruir. O arquivo já está estourando as costuras.
- Então Harting indicou a si mesmo para a função.
- Precisamente.
- E você concordou.
- Em uma base provisória. Ele faria uma tentativa e veria como se saía. Durante cinco meses ele vinha trabalhando nisso. Quando tivesse dúvidas, disse-lhe eu, devia consultar De Lisle. Nunca o fez.
- Onde Harting realmente executava o seu trabalho? Aqui nesta sala? Bradfield hesitou claramente.
- No arquivo da chancelaria, onde s2o guardados os documentos mais sensíveis. Ele poderia retirar o que desejasse, desde que não abusasse. Nato há sequer registro algum sobre o que ele consultava. Há também algumas cartas que estão faltando. O chefe do arquivo lhe dará os detalhes.
Vagarosamente Turner se pôs de pé, esfregando as mãos uma na outra, como se nelas houvesse areia.
- Das quase 40 pastas que estão faltando, 18 foram retiradas do levantamento de personalidades e contêm o material mais sensível com relação a políticos alemães de alto nível. Uma cuidadosa leitura apontaria claramente na direção de nossas mais delicadas fontes. As restantes são ultra-secretas e cobrem acordos anglo-alemães sobre diferentes assuntos: tratados secretos, cláusulas secretas de acordos dados a público. Se ele desejava nos embaraçar, dificilmente teria escolhido melhor. Algumas das pastas recuam até 1948 ou 1949.
- E aquela pasta especial? Conversações formais e informais?
- É aquilo a que denominamos de verde. Está sujeita a procedimentos especiais.
- Quantas verdes existem na embaixada?
- Essa é a única. Estava em seu lugar no cofre-forte do arquivo até quinta-feira pela manhã. O chefe do arquivo deu pela falta na tarde desse mesmo dia e pensou que estivesse sendo usada. Sábado pela manhã ele estava preocupadíssimo. No domingo, informou-me do desaparecimento.
- Diga-me - falou finalmente Turner - o que aconteceu a ele no último ano? O que aconteceu entre os dois dezembros? Sem falar de Karfeld.
- Nada específico.
- Então por que você se afastou dele?
- Não me afastei - respondeu Bradfield com desprezo. - Como não sentia nada com relação a ele, nem pró nem contra, a questão não apareceu. Apenas aprendi, durante o ano interveniente, a reconhecer sua técnica. Vi como ele lidava com as pessoas; como lisonjeava para abrir seu caminho. Eu via através dele e isso é tudo.
Turner olhou-o.
- E o que foi que você viu?
A voz de Bradfield ficou seca, finita e irredutível como uma fórmula matemática.
- Dissimulação. Pensei que a esta altura eu já tivesse deixado isso claro.
Turner levantou-se.
- Começarei por sua sala.
- A guarda da chancelaria tem as chaves. Eles esperam por você. Pergunte por Macmullen.
- Quero ver a casa de Harting, seus amigos, seus vizinhos; se necessário falarei com seus contatos no exterior. Quebrarei todos os ovos que forem necessários, nem mais nem menos. Se você não gostar, fale com o embaixador. Quem é o chefe do arquivo?
- Meadowes.
- Arthur Meadowes?
- Creio que sim.
Alguma coisa puxou-o para trás: relutância, um vislumbre de incerteza, quase de dependência, um meio-tom diferente de tudo o que se passara antes.
- Meadowes esteve em Varsóvia, não é mesmo?
-Correto.
- E Meadowes tem uma relação das pastas que estão faltando, não tem? - A voz de Turner agora era mais alta.
- E das cartas.
- E, é claro, Harting trabalhava para ele.
- Claro. Meadowes está esperando que você o procure.
- Em primeiro lugar, quero ver a sala de Harting. - Esta era uma decisão que ele parecia já ter tomado.
- Como quiser. Você mencionou que iria também visitar a casa dele...
- Bem, e daí?
- Temo que no momento não seja possível. Desde ontem ela se encontra sob a guarda da polícia.
- Isso é comum?
- O quê?
- A proteção pela polícia?
- Siebkron insiste nesse ponto. Não posso discutir com ele neste momento.
- Isso se aplica a todos os contratados?
- Principalmente os mais graduados, sim. Imagino que tenham incluído a casa de Harting por ser distante.
- Você não parece convencido disso.
- Não posso imaginar qualquer outra razão.
- E as embaixadas da Cortina de Ferro? Harting ia por lá?
- Ele estava com os russos, eventualmente; não posso dizer com que freqüência.
- Esse homem, esse Praschko, o amigo que ele tinha, o político. Você disse que costumavam viajar juntos.
- Isso foi há 15 anos.
- E quando a associação acabou?
- Consta dos arquivos. Há uns cinco anos.
- Foi nessa época que houve a tal briga em Colônia. Talvez tenha sido com Praschko.
- Tudo é possível.
- Uma pergunta mais.
- O quê?
- O contrato que Harting tinha. Se ele expirasse. . . digamos, na última quinta-feira?
- O quê?
- Você o teria renovado? Novamente?
- Nós estamos sob grande tensão. Sim, eu o teria renovado.
- Você vai sentir sua falta.
A porta foi aberta pelo lado de fora, por De Lisle. Seus traços suaves estavam contraídos e solenes.
- Ludwig Siebkron telefonou. A mesa telefônica tinha ordens de não passar os chamados que viessem para você. Eu mesmo falei com ele.
-Bem?
- A respeito da bibliotecária, Eich. Aquela infeliz mulher que foi atacada em Hanover.
- O que aconteceu com ela?
- Lamento, mas ela morreu há uma hora. Bradfield recebeu a informação em silêncio.
- Verifique - disse em seguida - onde serão os funerais. O embaixador deve manifestar-se de alguma forma; um telegrama aos parentes será melhor do que flores. Nada por demais ostensivo; somente os seus mais sentidos pêsames. Converse com o pessoal da secretaria particular; lá saberão quais as palavras. E alguma coisa também da Sociedade Anglo-Alemã. É melhor que você mesmo trate disso. Mande um telegrama também à Associação dos Bibliotecários; eles andaram se interessando por ela. E telefone para Hazel e diga-lhe, está bem? Ela pediu para ser mantida particularmente informada.
Bradfield estava sereno e perfeitamente controlado.
- Se precisar de alguma coisa - disse, voltando-se para Turner - fale com De Lisle.
Turner o estava observando.
- De qualquer modo nós o esperamos amanha à noite. Às cinco para as oito? Os alemães são muito pontuais. É um hábito local que nós nos reunamos antes de eles chegarem. E se você vai até a sala de Harting, talvez possa levar sua almofada. Não vejo razão para conservá-la aqui.
Cork, curvado sobre os aparelhos de codificação e alisando as fitas impressas nos rolos ouviu o ruído e voltou seus olhos avermelhados reprovativamente na direção da enorme figura no portal.
- Esta é a minha sacola. Deixe-a onde está; volte mais tarde.
-Está bem - concordou Cork e pensou: um gozador. Sorte sua, com todo o mundo avermelhado explodindo na sua cara, o bebê de Janet por chegar a qualquer momento, e aquela pobre mulher de Hanover definitivamente no plano horizontal, compartilhar com um gozador a sala de dia. Isto, porém, não era somente o que o preocupava. A greve dos operários metalúrgicos alemães estava-se expandindo rapidamente; se ao menos ele pudesse ter imaginado que isso ia ocorrer, na sexta-feira e não no sábado, aquela pequena agitação sobre o aço sueco teria permitido um lucro de quatro xelins em três dias; e cinco por cento ao dia, na batalha perdida de Cork contra a sua situação funcional, era o material com que as vilas do Adriático eram feitas. Ultra-secretas, leu, cansadamente, Pessoal para Bradfield e Operador: por quanto tempo isso iria prosseguir? Capri. . . Creta. . . Spetsai. . . Elba. . . Arranjem para mim uma ilha, cantarolou ele, em uma improvisação esganiçada de uma canção popular - pois Cork sonhava em gravar seus próprios discos também - Arranjem para mim uma ilha, qualquer ilha, mas não Bonn.
Capítulo 5
John Gaunt
A multidão no saguão havia diminuído. O relógio do posto dos Correios, acima do elevador lacrado, marcava 10:35; aqueles que não ousavam correr o risco de ir até a cantina haviam-se reunido junto à mesa da frente; na guarda da chancelaria haviam preparado o chá do meado da manhã, que estava sendo tomado enquanto se conversava em tom velado, quando ouviram suas passadas aproximar-se. Os saltos de seu sapato eram reforçados com metal e produziam eco de encontro à imitação de mármore das paredes, como disparos em um campo de tiro. Os mensageiros, com o instinto que os soldados têm de reconhecer as autoridades, baixaram cuidadosamente as xícaras e abotoaram os botões de suas túnicas.
- Macmullen?
Ele permanecia no degrau de baixo, uma das mãos apoiada no corrimão, e na outra a almofada bordada. De ambos os lados, estendiam-se armários de aço pelos corredores, apoiados em colunas de cromo, penetrando na escuridão como guetos de uma esplêndida cidade. O silêncio passou a ser importante, anulando 'tudo o que havia acontecido antes.
- Macmullen está de folga, senhor. Foi até a Naafi.
- Quem é você?
- Gaunt, senhor. Estou no lugar dele.
- Meu nome é Turner. Estou verificando a segurança física. Quero ver a sala 21.
Gaunt era um homem pequeno, um devoto galês, com uma longa memória sobre a Depressão, herdada de seu pai. Chegara a Bonn procedente de Cardiff, onde era motorista da polícia. Conduzia as chaves em sua mão direita, caída ao longo do corpo, e seu caminhar era firme e bastante solene, de um modo tal que, ao preceder Turner na entrada escura do corredor, mais parecia um mineiro encaminhando-se para a boca da mina.
- É realmente chocante tudo isso que eles vêm fazendo - estava dizendo Gaunt, à frente de Turner e fazendo com que o som fosse levado para trás. - Peter Aldock, um companheiro meu, tem um irmão lá em Hanover, onde esteve com a Ocupação, casou-se com uma moça alemã e abriu uma mercearia. Ele estava aterrorizado, claro; bem, diz ele, todos sabem que o meu George é inglês. O que vai acontecer com ele! Pior que o Congo. Alô, padre!
O capelão se encontrava sentado frente a uma máquina portátil em um pequeno compartimento pintado de branco, do lado oposto ao da mesa telefônica, embaixo de uma foto de sua mulher, a porta escancarada para confissões. Uma cruz de vime se encontrava presa por um cordel.
- Bom dia, John - respondeu o capelão, em um tom de voz ligeiramente reprovativo, que lembrou a ambos a granítica intratabilidade de seu Deus galés; Gaunt tornou a dizer "Alô", mas não alterou o passo. De todos os lados à sua volta chegavam os inconfundíveis sons de uma comunidade multilíngüe; o solitário e monótono alemão do chefe do serviço de imprensa ditando uma tradução; os uivos do encarregado de viagens gritando ao telefone; o assobio entoado e distante, não inglês, que parecia vir de todo o lado, infiltrando-se de outros corredores. Turner identificou o cheiro de salame e de segundas refeições, de tinta gráfica e de desinfetante, e pensou: transbordo em Zurique, finalmente você está a bordo.
- Aqui embaixo a maioria é de empregados locais - explicou Gaunt, acima da barulheira. - Sendo alemães não lhes é permitido ir mais acima. - Sua boa vontade com estrangeiros podia ser percebida, embora controlada: a boa vontade de uma enfermeira, temperada por vocação.
Uma porta se abriu à sua esquerda; um clarão de luz incidiu de repente sobre eles, atingindo o reboco desbotado da parede e o esmaecido verde de um quadro de avisos bilíngüe. Duas moças, prestes a sair da sala de informações, recuaram para que passassem, tendo Turner olhado para elas mecanicamente, enquanto pensava: Este era o seu mundo. Segunda classe e estranho. Uma delas levava uma garrafa térmica, a outra lutava com uma pilha de pastas. Por trás delas, através de uma janela exterior protegida com telas de joalheria, ele vislumbrou o estacionamento e ouviu o ruído provocado por uma bicicleta a motor, quando um mensageiro se afastava. Gaunt havia mergulhado para a direita, enveredando por um outro corredor; pararam à frente de uma porta, Gaunt tateando com a chave e Turner olhando por cima de seus ombros, para uma tabuleta pendente da almofada central: "Harting Leo, Reclamações e Serviços Consulares", uma inesperada testemunha para o homem vivo, ou um inesperado monumento para o morto.
As letras das duas primeiras palavras tinham uns cinco centímetros de altura, regulares em suas bordas e cortadas ao meio por creiom vermelho e verde; as palavras "Serviços Consulares" eram em tamanho bastante maior, sendo as letras sublinhadas com tinta, para lhes dar a ênfase extra que a expressão demandava. Inclinando-se, Turner tocou ligeiramente a superfície; era papel montado sobre madeira e, mesmo àquela luz fraca, pôde perceber os traços feitos à régua com lápis, a fim de demarcarem os limites superiores e inferiores das letras, o que talvez definisse uma modesta existência ou uma vida artificialmente truncada pela Dissimulação. "Dissimulação. Pensei que a esta altura eu já tivesse deixado isso claro."
- Rápido - urgiu Turner.
Gaunt destrancou a porta. Ao empunhar a maçaneta e abrir a porta, Turner tornou a ouvir a voz da irmã de sua mulher ao telefone e sua própria resposta ao bater com o receptor: "Diga-lhe que estou saindo do país." As janelas se encontravam fechadas. O calor subia até eles, partindo do linóleo. Havia um fedor de borracha e de cera. Uma das cortinas estava ligeiramente erguida. Gaunt se esticou para recolocá-la no lugar.
- Deixe como está. Afaste-se da janela. E fique por aí. Se aparecer alguém, diga-lhe para cair fora. - Atirou a almofada bordada em cima de uma cadeira e examinou a sala.
A mesa dispunha de puxadores cromados;era melhor do que a mesa de Bradfield. O calendário na parede anunciava uma firma de importadores holandeses de material diplomático. Turner, apesar de seu corpanzil, movia-se com leveza, examinando sem tocar em nada. Pendurado na parede, um velho mapa militar, mostrando as divisões das zonas originais da ocupação militar. A zona inglesa estava assinalada com verde brilhante, uma faixa fértil entre desertos estranhos. É como uma cela de prisão, pensou ele, segurança máxima; talvez seja devido às grades. Que lugar para se abandonar e quem não o faria? O cheiro era estranho, mas não conseguiu identificá-lo.
- Bem, estou surpreso - estava dizendo Gaunt. - Há muita coisa faltando, devo dizer.
- Tais como?
- Não sei. Uns aparelhos pequenos. De todos os tipos. Esta é a sala do Sr. Harting - explicou Gaunt. - O Sr. Harting tinha a mania de engenhocas.
- Que tipo de engenhocas?
- Bem ele tinha uma máquina de fazer chá, o senhor conhece, daquelas tipo despertador? Fazia um chá delicioso, bem que fazia. Pena que tenha sumido, de fato.
- O que mais?
- Uma estufa. Daquelas novas, com duas grades em cima. E uma lâmpada. Uma lâmpada chocante, japonesa. Capaz de ser virada para todas as direções. Regulada em meia força, sua luz era suave. Muito barata também, ele me disse. Mas eu não poderia comprar uma, sabe, pelo menos agora que as gratificações foram cortadas. Mesmo assim - continuou Gaunt, consoladoramente - espero que ele tenha levado tudo isso para casa, não acha, se é para lá que ele foi.
- Sim. Sim, espero que tenha ido.
Sobre o peitoril da janela se encontrava um rádio transistor. Inclinando-se até que os seus olhos ficassem ao mesmo nível do painel, Turner ligou o rádio. Imediatamente ouviram o enjoativo falatório de um comentarista das Forças britânicas sobre os tumultos de Hanover e as perspectivas de uma vitória inglesa em Bruxelas. Lentamente, Turner movimentou a agulha de sintonia ao longo da faixa iluminada, o ouvido durante todo o tempo atento à mutante babel de alemão, francês e holandês.
- Pensei que o senhor tivesse se referido à segurança física.
- De fato.
- O senhor má olhou as janelas. Nem as fechaduras.
- Eu vou olhar, eu vou olhar. - Turner tinha percebido uma voz eslava e estava escutando com profunda concentração. - Você o conhecia bem, não? Vinha aqui com freqüência tomar chá?
- Bastante. Dependia, na verdade, de estar ou não muito ocupado.
- Espere lá fora - disse Gaunt. - E me dê as chaves.
- Então, o que foi que ele fez? - quis saber Gaunt, hesitante. - O que está havendo de errado?
- O que fez? Nada. Ele está de licença por motivo de saúde. Desejo ficar sozinho e isso é tudo.
- Dizem que ele está em dificuldades.
- Quem?
- Boatos.
- Que tipo de dificuldades?
- Não sei. Uma batida de carro, talvez. Ele não foi ao ensaio do coro, sabe? Nem esteve na capela.
- Ele dirige mal?
- Realmente não sei dizer.
Parte como um desafio, parte por curiosidade, Gaunt permaneceu junto à porta, observando Turner abrir o armário de madeira e olhar para o seu interior. Três secadores de cabelos, ainda dentro das caixas, surgiram no fundo do armário, ao lado de um par de galochas de borracha.
- Você é amigo dele, não é?
- Realmente não. Relacionamento do coro da capela.
- Ah - fez Turner, agora olhando para Gaunt. - Você cantava para ele. Eu também costumava cantar no coro.
- Ah, é? Onde foi isso?
- Yorkshire - respondeu Turner com inusitada amabilidade, enquanto seu olhar mortiço continuava fixo na cara lisa de Gaunt. - Ouvi dizer que ele é um ótimo organista.
- Não era mal, eu diria - concordou Gaunt, impetuosamente admitindo um interesse comum.
- Quem é o amigo mais chegado de Harting? Alguém do coro? Uma senhora, talvez? - indagou Turner, ainda em tom de piedade.
- Leo não era chegado a ninguém.
- Então para quem ele teria comprado essas coisas? - Os secadores de cabelo eram de qualidade e de complexidade variável; os preços nas caixas iam de 80 a 200 marcos. - Para quem? - repetiu Turner.
- Para todos nós. Diplomatas e não diplomatas, não importava. Ele desempenha uma função, sabe, e tem os descontos diplomáticos. Leo está sempre pronto a prestar um favor. Não importa o que você imaginar: rádios, lavadoras de pratos, carros. Ele consegue um desconto, o senhor sabe.
- Ele sabe como viver, não é?
- Sabe sim.
- Ele também cobra alguma coisa, creio. Pelo seu trabalho - sugeriu Turner, insinuantemente. - Também é justo.
- Eu não disse isso.
- Também arranjava garotas, não é mesmo? Sr. Faz-Tudo?
- Claro que não - protestou Gaunt, chocado.
- O que havia para ele, sob este aspecto?
- Nada. Pelo menos que eu saiba.
- Apenas um amiguinho de todo mundo, não é? Gosta que gostem dele. É isso?
- Bem, todos nós gostamos, não é mesmo?
- Nós somos uns filósofos, não é?
- Sempre prontos - continuou Gaunt, lento em perceber as mudanças na disposição de Turner. - Arthur Meadowes pode ser um exemplo. No momento em que Leo foi para o arquivo, logo no dia seguinte, aqui estava ele recolhendo a correspondência. "Não se preocupe", disse Leo para Arthur."Poupe suas pernas, você já não é tão jovem e tem muita coisa com que se ocupar. Eu faço isso para você." Esse é o Leo. Prestativo. Virtuoso mesmo, considerando suas condições desfavoráveis.
- Que tipo de correspondência?
- Tudo. Classificada e não classificada, não fazia diferença. Ele passava recibo pela correspondência e a levava a Arthur.
- Sim, percebo - disse Turner, completamente imóvel. - E possivelmente ele entrava aqui quando passava, não é? Para ver as coisas em sua própria sala; preparar uma xícara de chá.
- É isso mesmo - retorquiu Gaunt. - Sempre pronto para ajudar. Abriu a porta. - Bem, deixo o senhor aqui.
- Fique - disse Turner, ainda o observando. - Você pode ficar e conversar comigo, Gaunt. Eu gosto de companhia. Fale-me sobre as condições desfavoráveis de Harting.
Recolocando os secadores de cabelos nas respectivas caixas, Turner tirou do armário um paletó de Unho, ainda no cabide. Um summer jacket, do tipo usado pelos garçons. Da botoeira, pendia uma rosa murcha.
- Que condições desfavoráveis? - insistiu Turner, atirando a rosa na cesta de papéis. - Você pode me dizer, Gaunt. - Turner tornou a sentir o cheiro do armário que sentira antes, mas não conseguira definir, um cheiro adocicado, familiar, uma mistura de ungüento masculinos e charutos.
- Foi somente em sua infância. Ele tinha um tio.
- Fale-me sobre esse tio.
- Nada; só que ele era maluco. Sempre mudando de política. Leo tinha um jeito todo especial para contar as coisas. Falou-nos de como ele costumava sentar-se no porão em Hampstead, com seu tio, enquanto as bombas caíam, fazendo balas em uma máquina. Frutas secas. Amassava as completamente, enrolava-as em açúcar e depois as enlatava. Leo costumava cuspir nelas, apenas para se vingar do tio. Minha mulher ficou muito chocada, quando ouviu essa história; eu lhe disse que não fosse tola, que isso era privação. Ele não tinha carinho, sabe, não o que se tem geralmente.
Tendo examinado os bolsos, Turner cuidadosamente retirou o paletó do cabide e encostou os ombros da roupa de encontro a seu próprio corpanzil.
- Um pouco pequeno?
- Ele se veste bem - disse Gaunt. - Andava sempre bem trajado, assim é Leo.
- Seu tamanho?
Turner levou o paletó na direção de Gaunt, que recuou reprovativamente.
- Menor - respondeu o homem, os olhos ainda fixos no paletó. Mais para o tipo de bailarino. Borboleta. Você diria que ele usava o tempo todo sapatos de salto alto.
- Um fresco?
- Certamente não - respondeu Gaunt, novamente muito chocado e enrubescendo ante a pergunta.
- Como você sabe?
- Ele é um sujeito decente, aí está - tornou Gaunt, aborrecido. Mesmo que tenha feito alguma coisa de errado.
- Piedoso?
- Respeitoso, muito respeitoso. E sobre religião. Nunca atrevido nem retraído, embora fosse um estrangeiro.
- O que mais ele disse a respeito do tio?
- Nada.
- E o que mais a respeito de suas opiniões políticas? - Turner estava examinando a mesa, verificando as fechaduras das gavetas.
Colocando o paletó sobre uma cadeira, Turner estendeu a mão para as chaves. Relutantemente, Gaunt as entregou.
- Nada. Nada sei a respeito de suas opiniões políticas.
- Quem falou a respeito de Harting ter feito algo de errado?
- O senhor. Todas essas indagações. Procurando saber tanta coisa sobre ele; isso não me agrada.
- O que teria ele feito, para que eu ande atrás dele desse modo?
- Só Deus sabe.
- Em Sua sabedoria. - Turner tinha aberto as gavetas de cima. - Você tem um diário igual a este?
O diário era encadernado em couro azul, tendo estampado o brasão real.
-Não.
- Pobre Gaunt. Por demais humilde? - Turner estava folheando o diário, recuando. Uma vez parou e fechou o cenho; de outra anotou algo em sua caderneta preta.
- É porque se destina a conselheiros e daí para cima - redargüiu Gaunt. - Eu não aceitaria um livro desses.
- Ele ofereceu um a você, não foi? Essa era uma outra de suas facetas, creio. O que teria acontecido? Ele surripiou alguns lá do arquivo e os distribuiu pelos velhos amigos do andar de baixo. "Isso aqui é para vocês, rapazes: as ruas, por lá, são pavimentadas com ouro. Aqui está uma lembrança do seu velho companheiro." A coisa era assim, Gaunt? Mas suas virtudes cristãs impediram que você aceitasse, não foi? - Fechando o diário, Turner abriu as gavetas de baixo.
- E se fosse assim? O senhor não tem motivo para remexer em sua mesa, tem? Não por uma pequena coisa como essa! Pegar um punhado de diários; bem, isso não é o fim do mundo, é? - Seu acento galés havia transposto todas as barreiras e ele corria solto.
- Você é um bom cristão, Gaunt. Você sabe como o diabo trabalha melhor do que eu. As pequenas coisas levam às grandes coisas, não é mesmo? Pega uma maçã num dia, no seguinte já está assaltando um caminhão. Você sabe como são essas coisas, Gaunt. O que mais lhe contou ele a seu próprio respeito? Outras reminiscências da infância?
Turner encontrara um abridor de cartas, um elegante objeto de prata, de punho largo e chato, e estava lendo o que nele se encontrava gravado, à luz da lâmpada.
- L.H., de Margaret. Quem seria essa Margaret?
- Nunca ouvi falar dela.
- Ele uma vez ficou comprometido para se casar, você sabia? -Não.
- Srta. Aickman. Margaret Aickman. Acende alguma luz?
- Não.
- E sobre o Exército. Ele lhe contou alguma coisa?
- Ele adorava o Exército. Em Berlim, Leo me contou, costumava ir ver os exercícios da cavalaria. Adorava isso.
- Mas ele era da infantaria, não era?
- Na verdade não sei.
-Não.
Turner tinha posto o abridor de cartas de lado, junto ao diário azul, e fez mais uma anotação em sua caderneta e pegou uma latinha chata de charutos holandeses.
- Ele fumava?
- Ele gostava de um charuto, sim. Mas isso era tudo o que fumava, sabe? Tinha sempre cigarros, mas só uma vez o vi fumando um. Sempre havia uma ou outra pessoa reclamando na chancelaria, ouvi dizer. Sobre os charutos. Não os apreciavam. Mas Leo, quando queria, sabia ser teimoso, eu posso dizer.
- Há quanto tempo você está aqui, Gaunt?
- Cinco anos.
- Ele se meteu em uma briga em Colônia. Foi no seu tempo? Gaunt hesitou.
- É engraçado como as coisas estão se modificando por aqui, devo admitir - falou Turner. - Você deu um novo significado para "a necessidade de saber", deu sim. Todo mundo sabe, exceto as pessoas que precisam saber. O que aconteceu?
- Apenas uma briga. Dizem que ele a provocou, isso é tudo.
- Como?
- Não sei. Dizem que ele mereceu, sabe? Ouvi isso de meu antecessor: trouxeram Leo de volta uma noite e mal se podia reconhecê-lo, foi o que ele me disse. Ele mereceu, foi o que me disse; era o que haviam dito a ele. Sabe, Leo podia ser brigão, não estou negando isso.
- Quem? Quem disse a seu antecessor?
- Não sei. Não perguntei. Isso seria intrometer-me.
- Ele brigava com freqüência?
- Não.
- Talvez uma mulher estivesse envolvida. Margaret Aickman, quem sabe?
- Não sei.
- Então por que ele é brigão?
- Não sei - tornou a dizer Gaunt, mais uma vez hesitante entre suspeita e uma paixão natural por comunicar-se. - O que o senhor tem com isso? - resmungou, arriscando uma agressão, mas Turner o ignorou.
- Está certo. Nunca se intrometer. Nunca falar de um amigo. Deus não iria gostar disso. Admiro um homem firme em suas convicções.
- Pouco me importa com que Leo tenha feito - continuou Gaunt, reunindo coragem enquanto prosseguia. - Ele não era mau. Talvez fosse um pouco amargo, mas tinha que ser, pois era do continente, todos nós sabemos. - Apontou para as gavetas. - Mas não era mau assim.
- Ninguém é. Sabe disso? Ninguém jamais é mau assim. É para isso que existe misericórdia. Realmente, todos nós somos pessoas adoráveis. Há até um hino sobre isso, não há? Um dos hinos que ele costumava tocar e que você e eu costumávamos cantar, Gaunt, antes de crescermos e nos tornarmos distintos. Aí está uma coisa adorável a respeito dos hinos: nós nunca os esquecemos, não é mesmo? Como poesias. Eu diria que Deus sabia uma coisa ou duas quando inventou as rimas. Diga-me, o que Leo aprendeu quando era criança? O que aprendeu nos joelhos de seu tio?
- Leo sabia falar italiano - disse Gaunt subitamente, como se isso fosse um trunfo que estivesse escondendo.
- Ah, sabia?
- E aprendeu italiano na Inglaterra. Na Escola Agrícola. Os outros meninos não falavam com ele, sabe, porque ele era alemão, e por isso Leo costumava ir de bicicleta conversar com os italianos prisioneiros de guerra. E nunca esqueceu essa língua, nunca. A memória dele é notável, posso lhe dizer. Nunca se esquece de uma única palavra que se diga para ele.
- Maravilhoso.
- Poderia ter sido um verdadeiro crânio, se tivesse tido as condições favoráveis que o senhor teve.
Turner olhou friamente para Gaunt.
- Quem, diabo, lhe disse que tive condições favoráveis?
Turner tinha aberto uma outra gaveta; estava atulhada com todas as pequenas coisas comuns a qualquer vida particular em qualquer escritório: grampeador, lápis, elásticos, moedas estrangeiras e bilhetes de trem usados.
- Quantas vezes havia coro, Gaunt? Uma vez por semana, não era? Vocês cantavam belas canções, rezavam, e depois davam uma fugidinha para tomar uma cerveja lá na estrada, e Leo lhe falava sobre a vida dele. E havia também uns passeios, suponho. Viagens de trem, suponho. É disso que gostamos, não é, você e eu? Algo físico mas ao mesmo tempo espiritual. Passeios, instituições, coros. E Leo também comparecia, não? Conhecia todo mundo, ouvia suas pequenas confidencias, segurava-lhes as mãozinhas. Pelo jeito ele devia ser um grande companheiro.
Durante todo tempo em que falava, Turner continuava a registrar itens em sua caderneta de notas:material de costura, um pacote de agulhas, pílulas de diferentes cores e finalidades. Gaunt se chegou para mais perto.
- Bem, não é só isso, sabe. Só eu moro no andar de cima, há um apartamento lá que deveria ser de Macmullen, mas ele não pode ocupá-lo, pois tem muitos filhos e não seria possível ter essas crianças soltas por lá, não é mesmo? Primeiro, ensaiávamos na sala de reuniões, às sextas-feiras, sabe, no outro lado do saguão, perto da tesouraria, e ele aparecia logo em seguida na minha casa para uma xícara de chá, sabe. Bem, eu tinha algumas xícaras com essa finalidade; era uma alegria poder retribuir tudo o que Leo fez por nós; coisas que comprava para nós e tudo. Ele adorava uma xícara de chá - disse Gaunt, com simplicidade. - Também gostava de uma lareira. Sempre achei que ele gostaria de ter uma família, embora não tivesse nenhuma.
- Ele lhe disse isso, não? Leo lhe disse que não tinha família? -Não.
- Então como você sabe?
- Era evidente demais para ser comentado. Leo também não era educado; realmente ele se arrastava, pode-se dizer.
Turner havia encontrado um frasco com pílulas amarelas e grandes e as estava sacudindo na palma da mão, cheirando-as cautelosamente.
- E foi assim durante anos, não? Umas conversas íntimas depois dos ensaios?
- Oh, não. Ele nem se dava conta de minha pessoa, realmente, pelo menos até uns meses atrás e eu não gostava de importuná-lo, absolutamente, sendo ele um diplomata, sabe. Só recentemente ele se interessou. O mesmo com o Exiles?
- Exiles?
- Motoring Club.
- Há quanto tempo? Quando ele passou a interessar-se por você?
- No Ano-Novo - respondeu Gaunt, agora intrigado. - Sim, desde janeiro, eu diria. Ele parece ter tido uma mudança de atitude em janeiro.
- Neste último janeiro?
- Certo - respondeu Gaunt, como se pela primeira vez se estivesse apercebendo do fato. - No último janeiro. Na verdade, desde que começou com Arthur. Arthur exerceu uma grande influência em Leo. Fez com que ele ficasse mais contemplativo, sabe. Mais do tipo meditativo. Uma grande melhora, diria eu. E minha mulher concorda com isso, sabe.
- Aposto que sim. Em que mais ele mudou?
- É isso mesmo. Mais reflexivo.
- Desde janeiro, quando ele se interessou por você. Pronto: chega o Ano-Novo e Leo fica reflexivo.
- Mais resoluto. Como se ele estivesse doente. Nós não desconfiamos, sabe. Falei para minha mulher - Gaunt baixou a voz em reverência a essa citação - que não me surpreenderia, se o médico não o tivesse avisado.
Turner estava novamente olhando para o mapa, primeiro diretamente, em seguida de esguelha, observando os buracos correspondentes às unidades desaparecidas. Numa velha estante de livros havia um punhado de relatórios sobre censo, recortes de jornais e de revistas. Ajoelhando-se, Turner se pôs a remexer neles.
- Sobre o que mais vocês conversavam?
- Nada de sério.
- Política apenas?
- Eu gosto de conversas sérias - respondeu Gaunt - mas não me agradava ter com ele esse tipo de conversa, pois nunca se sabia onde ia terminar.
- Ele perdia a calma, não é?
Os recortes se referiam ao Movimento. Os relatórios sobre levantamento de dados diziam respeito ao aumento de apoio público a Karfeld.
- Leo muito delicado. Sob este aspecto era como uma mulher; você podia desapontá-lo inteiramente, bastava uma palavra para isso. Ele era vulnerável. E calmo. Aí está uma coisa que nunca entendi quanto a Colônia, sabe. Eu disse para minha mulher. Bem, não sei se estou certo, mas se foi Leo quem começou aquela briga, deve ter sido o diabo que se apossou dele. Mas ele já viu muita coisa, não é mesmo?
Turner tinha-se deparado com uma foto de uma manifestação de estudantes em Berlim. Dois rapazes estavam segurando um homem velho pelos braços, enquanto um terceiro batia nele com as costas da mão. Seus dedos estavam voltados para cima e a luz dividia os nós como uma escultura. Um risco havia sido feito em torno da foto com uma caneta de tinta vermelha.
- O que estou dizendo é que nunca se sabia quando se estava sendo pessoal, sabe - continuou Gaunt. - Atingindo-o muito de perto. Às vezes eu pensava, e na verdade cheguei até a comentar com minha mulher, que nunca se sentia muito à vontade perto dele, e eu disse: "Bem, eu não gostaria de sonhar como ele."
Turner se pôs de pé.
- Sonhar com quê?
- Apenas sonhar. Coisas que ele viu, creio. Dizem que viu muita coisa, sabe? Todas as atrocidades.
- Quem disse isso?
- São conversas. Creio que um dos motoristas. Marcus. Já foi embora. Estiveram juntos em Hamburgo, em 1946 ou coisa assim. Chocante.
Turner havia aberto um velho número da Stern que se encontrava na estante. Grandes fotos dos tumultos de Bremen cobriam ambas as páginas. Havia uma fotografia de Karfeld falando de um alto palanque de madeira; jovens gritavam em êxtase.
- Creio que isso o irritava muito, sabe - prosseguia Gaunt, olhando por cima do ombro de Turner. - Ele volta e meia falava sobre o fascismo.
- Ah, era? - indagou Turner, com suavidade. - Conte-nos alguma coisa, Gaunt. Eu me interesso em conversas desse tipo.
- Bem, não era sempre. - Gaunt parecia nervoso. - Ele ficava inflamado a respeito disso. Podia acontecer de novo, dizia ele, e o Ocidente ficaria olhando apenas; os banqueiros todos iam fazer um pouco de pressão e ficaria tudo por aí. Ele dizia que o socialismo e o conservantismo não tinham mais significado, não quando todas as decisões eram tomadas em Zurique ou Washington. Podia-se ver isso, dizia ele, nos acontecimentos recentes. Bem, isso era verdade, eu tinha que admitir.
Por um momento cessou todo o ruído de fundo: o tráfego, as máquinas, as vozes, e Turner não ouvia nada mais senão as batidas de seu próprio coração.
- Então, qual seria o remédio? - perguntou Turner, em voz baixa.
- Ele não tinha nenhum.
- Ação pessoal, por exemplo?
- Ele não disse.
- Deus?
- Não. Ele não acreditava em Deus. Não verdadeiramente, no seu coração.
- Consciência?
- Já lhe falei. Ele não me disse.
- Nunca sugeriu que vocês poderiam pôr as coisas no lugar? Você e ele juntos?
- Ele não era desse tipo - protestou Gaunt, impacientemente. - Ele não gostava de companhia. Não quando se tratava de. . . de seus próprios problemas, sabe.
- Por que sua mulher não gostava dele? Gaunt hesitou.
- Ela gostava de ficar junto de mim quando Leo estava perto, isso era tudo. Nada que ele tenha dito ou feito, sabe; mas ela gostava de ficar junto. - Gaunt sorriu, indulgentemente. - Você sabe como eles são - completou. - Muito naturais.
- Ele ficava por muito tempo? Sentava-se e falava durante horas de cada vez? Sobre coisa nenhuma? Flertava com sua mulher?
- Não diga uma coisa dessas - explodiu Gaunt.
Afastando-se da mesa, Turner abriu novamente o armário e notou o número impresso nas solas das galochas de borracha.
- Além disso ele não se demorava muito. Gostava de sair e de trabalhar de noite. Ultimamente, é o que quero dizer. No arquivo e coisas assim. Leo falou comigo: "John", disse ele, "gosto de prestar minha contribuição." E prestava mesmo. Leo se sentia orgulhoso de seu trabalho nesses últimos meses; de fato, valia a pena ver. Trabalhava a metade da noite, às vezes, sabe? De outras, a noite toda.
O frio olhar de Turner se fixou no rosto escuro de Gaunt.
-Ah, é?
Deixou cair as galochas de volta no armário e elas produziram um ruído absurdo no silêncio.
- Bem, ele tinha muito o que fazer, sabe; muita coisa mesmo. Cheio de responsabilidades, o Leo. Excelente homem, de fato. Bom demais para este andar, é o que digo.
- E era isso o que acontecia todas as sextas-feiras, desde janeiro. Depois do coro. Ele subia, tomava um chá, conversava e ficava por lá até que tudo estivesse calmo, depois caía fora e ia trabalhar no arquivo?
- Regular como um relógio. Vinha preparado, sabe. Primeiro, o ensaio do coro, depois uma xícara de chá até que todos tivessem ido embora, em seguida para o arquivo. "John", dizia ele. "Não posso trabalhar quando há muito movimento, não suporto isso, adoro paz e tranqüilidade para dizer a verdade. Não sou tio moço como antes e isso é um fato." Trazia uma sacola, tudo pronto. Garrafa térmica, um sanduíche, talvez. Um homem muito eficiente, Leo era; prático.
- Ele assinava o livro da noite?
Gaunt gaguejou, despertando finalmente com relação à plena ameaça existente naquele tom de voz calmo e destruidor. Turner bateu ao mesmo tempo ambas as portas do armário.
- Ou vocês não se importavam? Bem, não se preocupavam com isso, não é mesmo? Não se pode ser oficial de mais, pelo menos para uma visita. Além do mais um diplomata, não é, um diplomata que o distinguia com sua presença em sua casa. Deixe que ele entre e saia como quiser no meio da maldita noite, não era o que você fazia? Seria faltar com o respeito registrar o fato, não é mesmo? Uma pessoa da família, como Leo era, não é mesmo? Não vamos estragar isso com formalidades. Isso não seria cristão. Não faz idéia a respeito da hora que Leo saía do prédio, creio. Duas horas, quatro horas?
Gaunt tinha que permanecer muito atento para escutar as palavras, em voz tão baixa eram elas proferidas.
- Não há nada de mal, há? - quis saber Gaunt.
- E a tal sacola? - prosseguiu Turner, no mesmo tom de voz terrivelmente baixo. - Não seria adequado olhar o que continha, creio. Abrir a garrafa térmica, por exemplo. O Senhor não aprovaria isso, não é mesmo? Não se preocupe, Gaunt, não há nada de mal. Nada que uma oração e uma xícara de chá não cure. - Turner estava junto à porta e Gaunt tinha que ficar olhando para ele. - Vocês estão apenas brincando de famílias felizes, não é mesmo? Deixe que ele dê tapinhas em suas costas para que você se sinta à vontade. - Sua voz assumiu a entonação galesa e Turner satirizou cruelmente. - "Veja só como somos virtuosos... Como temos amor.. . Como somos grandes recebendo diplomatas. . . Sal da terra, é o que somos. . . Sempre alguma coisa no cocho. . . E, desculpe-me, mas você não pode possuí-la, pois isso é meu privilégio." Muito bem, Gaunt, você achou o que procurou. Eles dizem que você é um guarda: Leo teria conseguido arrastá-lo para a cama por meia coroa. - Turner abriu a porta. - Leo está em gozo de licença por motivos de saúde, e não se esqueça disso ou você vai estar metido em águas mais quentes do que já está.
- Talvez esse seja o mundo de onde o senhor vem - disse de repente Gaunt, olhando para Turner como se estivesse fazendo uma revelação. Mas não é o meu, Sr. Turner, assim não venha com essa conversa para cima de mim, sabe. Fiz o melhor que pude com Leo e tornaria a fazer, e não sei por que essas distorções todas em sua mente. Veneno, é o que isso é; veneno,
- Vá para o inferno.
Turner atirou as chaves na direção de Gaunt que as deixou cair a seus pés.
- Se há mais alguma coisa a respeito dele que você saiba, algum outro maravilhoso pedacinho de disse-me-disse, é melhor que me conte logo. Rápido. Bem?
- Vá embora - disse Gaunt sacudindo a cabeça.
- O que mais dizem os faladores? Um pouco de cochichos no coro, não, Gaunt? Pode me contar, não vou comê-lo.
- Nunca ouvi nada.
- O que Bradfield pensa a respeito dele?
- Como vou saber? Pergunte a Bradfield.
- Bradfield gostava dele?
O rosto de Gaunt se tornara mais sombrio de desaprovação.
- Não tenho o que dizer - explodiu. - Não faço comentários sobre meus superiores.
- Quem é Praschko? O nome Praschko significa alguma coisa para você?
- Não há mais nada. Não sei.
Turner apontou na direção da pequena pilha de objetos de Leo em cima da mesa.
- Leve essas coisas para a sala de codificação/decodificação - determinou. - Vou precisar delas mais tarde. E os recortes da imprensa. Leve-os para o funcionário do arquivo e faça com que ele passe recibo, compreende? Quer você goste ou não goste dele. E faça uma lista de tudo o que está faltando. Tudo o que Leo levou para casa.
Turner não foi imediatamente ao encontro de Meadowes; ao contrário, saiu e parou à beira do gramado ao lado do estacionamento de automóveis. Um véu de neblina se estendia sobre o campo árido enquanto o tráfego rumorejava como um mar em fúria. O edifício da Cruz Vermelha estava sombreado pelos andaimes e coberto por um guindaste cor de laranja: uma engrenagem de óleo ancorada no alcatrão. Os policiais o observavam cuidadosamente, pois ele permanecia imóvel e seus olhos pareciam voltados para o horizonte, ainda que o horizonte estivesse obscuro. Finalmente - e isso poderia ter sido em resposta a um comando que os policiais não ouviram - Turner fez meia-volta e se encaminhou lentamente para os degraus da frente.
- O senhor deve obter o passe necessário - observou o sargento com cara de fuinha - entrando e saindo todo o dia.
O arquivo recendia a poeira, cera de lacrar e tinta de impressão. Meadowes estava esperando por ele. Estava desfigurado e parecia extremamente cansado. Não se moveu enquanto Turner se encaminhava em sua direção, por entre mesas e fichários, mas o encarava com dureza e desprezo.
- Por que tinham que mandá-lo? - perguntou Meadowes. - Será que não tinham mais ninguém? Quem você vai destruir desta vez?
Capítulo 6
O Homem-memória
Encontravam-se em um pequeno aposento privado, um compartimento revestido de aço, que servia ao mesmo tempo de escritório e de cofre-forte. As janelas eram duplamente protegidas, por uma tela fina e por barras de aço. Da sala vizinha, chegava o ruído constante de passos e de papel. Meadowes usava um terno escuro. As beiras da lapela estavam pregadas com alfinetes. Armários de aço se alinhavam ao longo das paredes, cada um deles com um número gravado e fechado por uma fechadura de segredo.
- De todas as pessoas que jurei que não iria ver de novo...
- Turner estava no topo da lista. Está certo. Está certo, você não é o único. Vamos acabar logo com isso, está bem?
- Ela não sabe que você está aqui - disse Meadowes. - Nem vou dizer a ela.
- Está certo.
- Leo a encontrou algumas vezes; não houve nada entre eles.
- Vou me manter longe dela.
- Sim - falou Meadowes. Não estava olhando para Turner, mas sim para os armários, por trás dele. - Sim, é o que você tem que fazer.
- Tentar e esquecer é comigo - disse Turner. - Não se preocupe. - Por um momento sua expressão pareceu abrandar-se, enquanto sombras se abatiam sobre sua tez clara, até um ponto em que seu rosto ficou tão envelhecido como o de Meadowes e do mesmo modo tão cansado.
- Vou lhe dizer tudo uma só vez - avisou Meadowes. - E chega. Vou lhe dizer tudo o que sei e depois caia fora.
- Tudo começou com o Exiles Motoring Club - falou Meadowes. Foi realmente como o conheci. Gosto de canos, sempre gostei. Eu ia comprar um Rover, Três Litros, especialmente para a aposentadoria. ..
- Há quanto tempo você está aqui?
- Um ano. Sim, já faz um ano.
- Veio direto de Varsóvia?
- Passamos uma temporada em Londres antes de vir. Em seguida me mandaram para cá. Foi em 1968. Eu ainda tinha dois anos pela frente e, depois de Varsóvia, acho que aceitava as coisas tranqüilamente. Eu queria cuidar dela, conseguir tê-la novamente. . .
- Tudo bem.
- Como regra não costumo sair muito, mas me associei a esse clube, Reino Unido e Comunidade Britânica, clube da alta, mas decente. Achei que seria bom para nós: uma noite por semana, as reuniões no verão, os encontros no inverno. Podia levar Myra, sabe; levá-la de volta a tudo e ter sempre um olho nela. Myra se encontrava perdida, precisava de companhia. Eu sou tudo o que ela tem.
- Tudo bem - falou Turner.
- Era um grupo de gente fina quando nos associamos, ainda que, é claro, seja igual a qualquer outro clube, com altos e baixos, dependendo de quem o dirige. Junte-se a um grupo bom e você pode divertir-se a grande; junte-se a um mau grupo e lá vêm as encrencas e todo o resto.
- E Harting era grande por lá, não?
- Deixe-me prosseguir com minha própria velocidade, está bem? - A atitude de Meadowes era firme e de desaprovação: um pai corrigindo o filho. - Não. Ele não era grande por lá, não naquela época. Era um sócio e apenas isso. Não creio que ele tenha aparecido nenhuma vez em seis reuniões. Bem, na verdade, Leo não se integrava de fato. Afinal de contas era um diplomata e o Exiles não significa nada para um diplomata. Em meados de novembro, tivemos a assembléia geral anual. Você não vai anotar em sua caderneta?
- Novembro - disse Turner, sem se mexer. - A AGA. Há cinco meses.
- Foi uma reunião realmente engraçada. Uma atmosfera engraçada. Karfeld tinha-se lançado havia umas seis semanas e todos nós estávamos imaginando sobre o que aconteceria em seguida, creio. Freddie Luxton se encontrava na presidência, mas acabava de ser transferido para Nairóbi; Bill Aintree era o diretor social, mas tinha sido designado para a Coréia; todos nós, que restávamos, estávamos agitados, procurando eleger novos diretores, cumprir a agenda e fixar as atividades para o inverno. Foi quando Leo apareceu e de uma forma que significou o seu primeiro degrau para o arquivo. - Meadowes fez uma pausa. - Não sei que tipo de idiota eu sou - disse, em seguida. - Não sei mesmo.
Turner aguardou.
- Vou lhe contar: eu nunca tinha ouvido falar dele, não como alguém entusiasmado pelo Exiles. E ele tinha a reputação que você sabe. ..
- Que reputação?
- Bem, diziam que ele era assim um pouco como um cigano. Sempre ao violino. E havia também aquela história sobre Colônia. Não gostei das coisas que ouvi, para ser franco, e não queria vê-lo meter-se com Myra.
- Que história é essa sobre Colônia?
- São boatos, isso é tudo. Andou envolvido em uma briga. Uma briga em um night club.
- Não conhece detalhes?
-Não.
- Quem mais se encontrava por lá?
- Nem faço idéia. Onde estava eu?
- No Exiles. AGA.
- Os eventos de inverno. Sim. "Bem", disse Bill Aintree, "alguma sugestão de vocês?" Imediatamente, Leo se pôs de pé. Ele se encontrava a umas três cadeiras de onde eu estava. Comentei com Myra: "O que será que ele está querendo?" Bem, Leo tinha uma proposta, segundo disse. Com relação aos eventos de inverno. Ele conhecia um velho em Königswinter que era dono de uma cadeia de lanchões, muito rico, e grande admirador dos ingleses, esclareceu ele, e muito bem situado no Anglo-Alemão. Esse velhote teria concordado em nos arrendar dois lanchões com suas tripulações, para levar todo o Exiles até Koblenz e trazê-lo de volta. Era algo assim como algum tipo de favorecimento pelo que os ingleses fizeram por ele durante a Ocupação. Leo sempre conhecia gente desse tipo comentou Meadowes, enquanto um breve sorriso de afeto iluminava a tristeza de seus traços. - Haveria acomodações cobertas, rum e café durante a viagem e um almoço quando chegássemos a Koblenz. Leo havia programado tudo; achava que podia conseguir o passeio por 21 marcos e 80 por cabeça, incluindo as bebidas e um presente para o seu amigo. - Meadowes explodiu. - Não posso ir mais depressa do que isso, não é meu jeito.
- Eu não disse nada.
- Você está me apressando o tempo todo, posso perceber - disse Meadowes, lamuriosamente, e suspirou. - Todos concordaram com a idéia, pertencentes ou não ao comitê. Você sabe como as pessoas são quando há alguém que sabe o que quer...
- E Leo conseguiu.
- Creio que alguns achavam que ele estava ganhando alguma coisa, mas ninguém se importou. Alguns dentre nós achavam que Leo estava procurando descontos para parecer honesto, mas que, bem, ele merecia alguma coisa. E, de qualquer forma, o preço era bastante razoável. Bill Aintree estava saindo, pouco lhe importava; fez a proposta. Freddie Luxton já estava de malas prontas, e pouco lhe importava. Apoiou a idéia. A proposta foi feita e aprovada sem que uma única voz se levantasse contra ela e, mal a reunião terminou, Leo veio em nossa direção, onde estávamos eu e Myra, sorrindo satisfeito. "Ela vai adorar", observou. "Myra adorará. Um agradável passeio pelo rio. Ela vai adorar." Parecia que Leo havia previsto aquele passeio exatamente para ela. Eu disse que sim, que ela adoraria e lhe ofereci um drinque. Realmente, parecia errado que ele estivesse fazendo tanto e que ninguém lhe estivesse dando qualquer atenção, dissessem o que dissessem dele. Eu estava com pena dele. E agradecido - acrescentou Meadowes com simplicidade. - E ainda estou: foi um evento agradabilíssimo.
Outra vez Meadowes fez uma pausa e novamente Turner aguardou, enquanto o homem mais idoso lutava com seus conflitos e suas perplexidades particulares. Através da janela de grade, vinha o incessante rumor das batidas do coração de ferro de Bonn: o barulho distante das escavadeiras e dos guindastes, o ruído dos carros em disparadas vãs.
- Pensei que Leo estivesse dando em cima de Myra, para ser honesto - disse Meadowes por fim. - Eu estava de olho nisso, não me importo de admitir. Mas não havia sinal algum de que assim fosse, nem de um lado nem de outro. Só Deus sabe como me preocupo com essas coisas depois de Varsóvia.
- Acredito em você.
- Pouco me importa que você acredite ou não. Esta é a verdade.
- Leo tinha uma certa reputação a esse respeito, não?
- Um pouco.
- Com quem?
- Vou prosseguir com a história, se você não se incomodar - falou Meadowes, olhando para as mãos. - Não vou dar vazão a esse tipo de porcarias. Principalmente, tratando-se de você. Há mais bobagens comentadas por aqui do que seria bom para qualquer de nós.
- Descobrirei - disse Turner, a expressão gélida como a de um morto. - Vai me tomar tempo, mas você não precisa preocupar-se.
- Terrivelmente fria estava a temperatura - continuou Meadowes. - Pedaços de gelo sobre a água, uma beleza, se é que isso significa alguma coisa para você. Exatamente como dissera Leo: rum e café para os adultos, chocolate para as crianças e todo mundo feliz como um grifo. Partimos de Königswinter, tendo tomado um drinque na casa de Leo antes de ir para bordo e, desde que lá chegamos, Leo não deixou de nos dar atenção, a mim e a Myra. Ele nos isolou, e assim foi. Parecia que éramos as únicas pessoas ali presentes para ele. Myra adorou que assim fosse. Leo enrolou os ombros dela com um xale, contou-lhe piadas. . . Desde Varsóvia nunca vira Myra rir assim. Toda hora ela estava me dizendo: "Há anos não me sinto tão feliz."
- De que tipo eram as piadas?
- Sobre ele mesmo principalmente. . . através do tempo. Contou uma história lá de Berlim, quando estava empurrando um carrinho cheio de pastas de arquivo no campo de parada no meio de um exercício da cavalaria; o primeiro-sargento montado em seu cavalo e Leo lá com o seu carrinho de mão. . . Leo podia imitar todas as vozes, podia sim; num minuto estava montado a cavalo, no minuto seguinte já era o cabo da guarda. . . Podia até imitar os clarins e outros instrumentos. Realmente maravilhoso; um dom maravilhoso. Muito divertido, o Leo. .. muito divertido.
Meadowes olhou para Turner, como se esperasse ser contraditado, mas o rosto de Turner permaneceu inexpressivo.
- Na viagem de volta, Leo me chamou para um lado. "Arthur, uma palavrinha", disse ele; isso é ele mesmo, uma palavrinha. Você conhece a maneira como ele fala.
-Não.
- Confiantemente. Todo mundo é especial. "Arthur", disse ele, "Rawley Bradfield acaba de me mandar chamar; eles desejam que eu vá para o arquivo a fim de ajudá-lo por lá, e antes que eu responda sim ou não, gostaria de ouvir o que você acha." Colocando em minhas mãos, percebe? Se a idéia não me agradasse, ele daria resposta negativa; era isso o que estava sugerindo. Bem, isso me pegou de surpresa, não me importo de confessar. Eu não sabia muito bem o que pensar; afinal de contas ele era um segundo secretário. . . isso não parecia correto, essa foi minha primeira reação. Também, para ser franco, eu não estava certo de que acreditasse nele. Assim, perguntei-Lhe: "Você tem alguma experiência de arquivos?" Sim, mas fazia muito tempo, respondeu, ainda que sempre imaginasse voltar a trabalhar com eles.
- Quando foi isso?
- Quando foi isso, o quê?
- Que ele andou lidando com arquivos?
- Em Berlim, creio. Nunca perguntei nada a Leo a respeito de seu passado, realmente; nunca se sabe o que poderíamos ouvir.
Meadowes sacudiu a cabeça.
- Assim, ali estava ele com essa sugestão. Embora não parecesse certo, o que poderia eu responder? "Bradfield é quem sabe", respondi. "Se ele está mandando você para lá e você está de acordo, há trabalho bastante." Para ser honesto, isso me amolou um pouco. Cheguei mesmo a pensar em conversar com Bradfield a respeito, mas não o fiz. O melhor, pensei, é que isso morra por aí; provavelmente não ouvirei falarem nisso novamente. Durante algum tempo, foi o que aconteceu. Myra estava ruim novamente, havia a crise de liderança no país e o impasse em Bruxelas. Quanto a Karfeld, por todo lado era uma agitação total. Havia delegações da Inglaterra, protestos de sindicatos, velhos camaradas e não sei o que mais. O arquivo era uma verdadeira colméia, e Harting saiu de minha cabeça. Nessa época ele era o diretor social do Exiles, e de outra forma eu raramente o via. O que quero dizer é que Leo não era lembrado. Havia muito mais coisas sobre que pensar.
- Entendo.
- O que aconteceu em seguida foi Bradfield me chamando. Foi antes do feriado, por volta de 20 de dezembro. Em primeiro lugar, perguntou-me como eu ia indo com o programa de destruição. Estava um pouco atrasado; nós havíamos estado realmente muito ocupados nesses últimos meses. Destruição era urna das últimas coisas com que alguém poderia estar-se preocupando.
- Agora prossiga com cuidado; quero o filé e os ossos.
- Respondi que estava em suspenso. Bem, disse Bradfíeld, como eu me sentiria se ele mandasse alguém para me ajudar nesse assunto, para trabalhar no arquivo e pô-lo em dia? Era uma sugestão, esclareceu, não havia nada em definitivo, mas desejava sondar-me em primeiro lugar, tinha havido uma sugestão de que Harting poderia ser capaz de dar uma mãozinha.
- Sugestão de quem?
- Ele não disse.
Pareceu, de repente, que ambos se aperceberam de uma mesma coisa, cada um deles surpreendido a seu modo.
- Quem mais poderia ter sugerido alguma coisa a Bradfield? - indagou Meadowes. - Isso não faz sentido.
- Era o que eu também estava pensando - confessou Turner, e o silêncio voltou.
- Então você respondeu que o aceitaria? - perguntou Turner.
- Não, eu respondi a verdade. Eu disse que não precisava dele.
- Você não precisava dele? Você disse isso a Bradfield?
- Não me pressione dessa maneira. Bradfíeld sabia muito bem que eu não precisava de ninguém. De qualquer modo, não para destruição. Eu tinha estado na biblioteca, em Londres, e falado com eles, em novembro, logo que o pânico a respeito de Karfeld começou. Eu lhes disse que estava preocupado com o programa, eu estava atrasado, seria possível esperar até que a crise tivesse passado? Na biblioteca me disseram que esquecesse o assunto.
Turner olhou para ele.
- E Bradfield sabia disso? Você tem certeza de que Bradfield sabia?
- Mandei-lhe uma minuta da conversação. Bradfield nunca me fez qualquer referência a ela. Depois disso, perguntei à sua secretária particular, a qual tinha certeza de lhe ter entregue a minuta.
- Onde está essa minuta? Onde ela está agora?
- Sumiu. É uma minuta perdida: preservá-la ou não era da responsabilidade de Bradfield. Mas lá na biblioteca estão sabendo a respeito; ficaram muito surpreendidos em saber que nos havíamos mesmo preocupado com a destruição.
- Com quem você falou lá na biblioteca?
- Uma vez com Maxwell, outra com Cowdry.
- Você lembrou a Bradfield essas coisas?
- Comecei a lembrar, mas ele logo me interrompeu. Não me deixou falar. "Está tudo arranjado", disse ele. "Harting vai trabalhar com você em meados de janeiro e tratará de personalidades e destruição." Em outras palavras, já está tudo resolvido. "Você pode esquecer que ele é um diplomata", aduziu Bradfield. "Trate-o como um subordinado. Trate-o como você quiser. Mas ele chegará em meados de janeiro e isso é um fato." Você sabe como Bradfíeld se livra das pessoas. Especialmente de Harting.
Turner estava fazendo anotações em sua caderneta, mas Meadowes não prestou atenção.
- Foi assim, então, que Leo veio trabalhar comigo. Esta é a verdade. Eu não o queria, eu não confiava nele, pelo menos não completamente e, para começar, creio que deixei que ele soubesse disso. Estávamos todos por demais ocupados: Eu não queria perder tempo instruindo um homem como Leo. O que eu poderia fazer com ele?
Uma moça trouxe chá. O bule veio coberto por um abafador de lã marrom e os cubos de açúcar estavam enrolados individualmente e marcados com a insígnia Naafi. Turner sorriu para a moça, que o ignorou. Ele podia ouvir alguém aos gritos falando sobre Hanover.
- Dizem que as coisas na Inglaterra também não vão bem - falou Meadowes. - Violência, demonstrações, todo o tipo de protestos. O que foi que surgiu na sua geração? O que nós lhes fizemos? É algo que não compreendo.
- Bem, começaremos com a chegada dele - tornou Turner. Assim é que deveria ser, pensou, ter-se um pai em quem se pudesse acreditar: valores a seu próprio sabor e um abismo tão grande quanto o Atlântico.
- Eu disse a Leo quando ele chegou: "Leo, trate de afastar-se do caminho. Não se meta entre meus pés e não vá perturbar ninguém mais." Recebeu isso como um cordeiro. "Está bem, Arthur. Como você disser." Perguntei-lhe se tinha alguma idéia por onde começar. Sim, respondeu. Personalidades o conservaria ocupado por uns tempos.
- Parece um sonho - observou Turner baixinho, e finalmente erguendo os olhos de sua caderneta de anotações. - Um sonho maravilhoso. Em primeiro lugar, Leo assume o Exiles. Um único homem assume, uma verdadeira tática do Partido; eu faço o trabalho sujo, você pode ir dormir. Então Leo se aproxima de você, aproxima-se de Bradfield, e dentro de uns poucos meses assume o topo do arquivo. Como se mostrava ele? Sedutor? Imagino que Leo dificilmente poderia deixar de rir.
- Mostrava-se calmo. Não procurava absolutamente seduzir. Moderado, eu diria. Nada absolutamente do que me disseram que ele era.
- Quem?
- Oh. . . não sei. Havia muita gente que não gostava dele e muita gente que sentia ciúmes dele.
- Ciúmes?
- Bem, ele era um diplomata, não é verdade? Mesmo sendo temporário. Diziam que em uma quinzena estaria controlando aquela área, reduzindo os arquivos em dez por cento. Você sabe como falam. Mas Leo estava mudado. Todos admitiram esse fato, até mesmo o jovem Cork e Johnny Slingo. Isto quase pode se datado, diziam eles, de quando a crise começou. A crise o teria acalmado. - Meadowes sacudiu a cabeça, como se odiasse ver um homem direito cometer erros. - E se mostrou útil.
- Não me diga. Ele o tomou de surpresa.
- Não sei como conseguiu isso. Não conhecia nada sobre arquivos, pelo menos do nosso tipo de arquivos; e, pela minha vida, não sei como conseguiu aproximar-se de todo o mundo e fazer indagações, mas, em meado de fevereiro, o levantamento de personalidades estava pronto, assinado e expedido, e o programa de destruição estava de novo em seus trilhos. Todos nós trabalhávamos em volta dele: Karfeld, Bruxelas, a crise de Coalizão e tudo o mais. E lá estava Leo, firme como uma rocha, dando conta de sua parte e de outras. Ninguém precisava dizer-lhe duas vezes a mesma coisa, e creio que aí residia metade do segredo. Sua memória era notável. Conseguia obter alguma informação, levava-a consigo e voltaria semanas mais tarde, quando você já estivesse esquecido de tudo. Não creio que se tenha esquecido de uma única palavra que alguém jamais lhe tenha dito. Podia escutar com os olhos, Leo podia. - Meadowes sacudiu a cabeça a essa reminiscência. - O homem-memória,
era como Johnny Slingo o chamava.
- Muito habilidoso. Para um arquivista, é claro.
- Você vê tudo isso de forma diferente - disse Meadowes, finalmente. - Você não é capaz de distinguir entre o bem e o mal.
- Avise-me quando eu estiver errado - replicou Turner, escrevendo durante todo esse tempo. - Ficarei agradecido por isso. Muito agradecido.
- Destruição é um estranho jogo - observou Meadowes, no tom reflexivo de um homem que está revendo suas próprias habilitações. - Para começar, pensa-se que é simples. Seleciona-se um arquivo grande, digamos um arquivo com 25 volumes. Vou dar exemplo: Desarmamento. É uma verdadeira colcha de retalhos. Você, em primeiro lugar, tem que verificar as datas e o material, certo? Então o que se encontra? Desmontagem industrial do Ruhr, 1946; política da Comissão de Controle sobre a alocação de licenças, 1949; restabelecimento do potencial militar da Alemanha, 1950. Parte desse material é tão velho que se tem que achar graça. Basta correr os olhos para as colunas atuais e o que se encontra? Ogivas explosivas para o Bundeswehr. Há uma distância de milhões de quilômetros. Tudo bem, pode dizer-se, vamos queimar os papéis antigos, eles são irrelevantes. Há pelo menos uns 15 volumes que poderiam ser jogados fora. Quem é o funcionário encarregado do desarmamento? Peter de Lisle. Perguntaremos a ele: "Por favor, podemos destruir o que existe até 1960?". Não há projeções, disse ele, e assim poder-se-ia ir em frente. - Meadowes sacudiu a cabeça. - Só que isso não era possível. Não se está nem na metade do caminho. Não se pode apenas botar nas costas 10 volumes e atirar tudo no fogo. Para começar, há o livro de protocolo: quem vai cancelar todos os lançamentos? Há o fichário, que tem que ser percorrido. Há tratados? Claro: verifique junto ao departamento legal. Há interesses militares? Verifique com o adido militar. Há cópias em Londres? Não. Assim, recuamos e esperamos por mais uns dois meses: não pode ser feita nenhuma destruição de original sem que venha uma autorização da biblioteca em Londres. Percebe o que estou querendo dizer?
- Estou acompanhando - respondeu Turner, aguardando.
- Há ainda as referências cruzadas, os arquivos semelhantes das mesmas séries: serão também afetados? Devem ser destruídos também? Ou devemos manter alguma coisa para ficar seguros? Antes que se possa saber onde pisamos, lá estamos nós revirando todo o arquivo, metendo o nariz em todos os cantos e em todas as frestas: depois que se começa, não há como acabar, nada é respeitado.
- Acho que isso lhe servia como uma luva.
- Não há restrições - tornou Meadowes, simplesmente, como se estivesse respondendo a uma indagação. - Talvez isso possa ofendê-lo, mas esse é o único sistema que sou capaz de entender. Qualquer um pode olhar o que quiser, este é o meu lema. Quem quer que venha trabalhar aqui eu confio. Não há outra forma de dirigir o setor. Não posso sair fuçando por aí, indagando quem está olhando o quê, posso? - perguntou Meadowes, ignorando o olhar surpreendido de Turner.
"Ele se entregou à tarefa como um pato caindo nágua. Sentia-se feliz e essa era a primeira coisa. Deleitava-se em estar trabalhando aqui, e cedo era eu que me deleitava com o fato de tê-lo por aqui. Leo gostava do ambiente. - Meadowes fez uma pausa. - A única coisa que realmente nos incomodava - disse Meadowes com um inesperado sorriso - eram aqueles malditos charutos que ele fumava. Holandeses de Java, creio eu. Empestavam o local. Nós brincávamos como ele a respeito disso, mas Leo não se importava. Mesmo assim, acho que estou sentindo agora a falta desses charutos. - Em seguida, continuou calmamente. - Na chancelaria, Leo se encontrava fora de seu nível, pois não é absolutamente do tipo daqueles que lá trabalham e o andar inferior também não tinha muito o que lhe oferecer, em minha opinião; este local aqui era exatamente certo. - Meadowes inclinou a cabeça na direção da porta fechada. - Aqui, por vezes, é como uma loja: você tem os clientes e temos uns aos outros. Johnny Slingo, Valene. . . bem, eles gostaram de Harting também, e isso era tudo. Todos eram contrários a Harting quando chegou, mas, em uma semana, todos estavam com ele, essa é a verdade. Ele tinha algo em si mesmo. Sei o que você está pensando: que ele lisonjeou o meu ego, suponho que você diria. Está bem, lisonjeou. Todo mundo gosta de ser querido e Leo gostou de nós. Está bem, sou um solitário; Myra é uma preocupação, eu falhei como pai e nunca tive um filho homem; há também um pouco disso tudo, creio, ainda que haja apenas uma diferença de 10 anos entre nós. Talvez o fato de ele ser pequeno é que faça a diferença.
- Leo gosta de garotas, não? - perguntou Turner, mais para quebrar o desagradável silêncio do que porque estivesse preparando perguntas em sua própria cabeça.
- Só como passatempo. ..
- Já ouviu falar de uma mulher de nome Aickman? -Não.
- Margaret Aickman. Estiveram noivos e iam casar-se, ela e Leo. -Não.
Ainda não se haviam encarado um ao outro.
- Ele gostava também de seu serviço - continuou Meadowes. - Naquelas primeiras semanas. Não creio que tivesse percebido até então o quanto sabia em comparação conosco. Sobre a Alemanha, é o que quero dizer, o berço deste país.
Meadowes se interrompeu, recordando, e isso poderia ter ocorrido há 50 anos.
- Leo conheceu aquele mundo também - continuou ele. - Conheceu-o de dentro para fora.
- Que mundo?
- A Alemanha do pós-guerra. A Ocupação; os anos sobre os quais os alemães nem gostam mais de ouvir falar. Conhecia-o como a palma de suas mãos. "Arthur", disse-me certa vez, "conheci essas cidades quando elas eram apenas paradas para os carros. Ouvi essa gente falai quando até mesmo sua linguagem estava proibida." É claro que por vezes isso o absorvia completamente. Eu o percebia mergulhado em um arquivo, imóvel como um camundongo, inteiramente fascinado. Ou se afastava e procurava na sala alguém que dispusesse de um momento, a fim de revelar algo em que tinha esbarrado. "Olhem aqui", diria. "Estão vendo esta pasta? Nós desfizemos essa firma em 1947. Vejam só!" De outras vezes mergulharia de imediato em um sonho e ficava completamente alheado, isolado. Creio que aborrecia o fato de saber tanta coisa. Era estranho. Acho que por vezes quase se sentia culpado. Com freqüência se referia a sua memória. "Vocês estão me fazendo destruir minha infância", disse numa ocasião... nós estávamos separando algumas partes para a máquina. "Vocês estão me tornando um homem velho." Eu observei: "Se é isso o que estou fazendo, você é o mais feliz dos homens vivos." Rimos muito nessa ocasião.
- Alguma vez Leo se referiu à política? -Não.
- O que dizia sobre Karfeld?
- Estava preocupado. Estava muito satisfeito em poder ajudar.
- Oh, claro.
- Era verdade - disse Meadowes, provocadoramente. - Você não compreenderia uma coisa dessas. Mas era verdade o que ele dissera: era aquele material velho de que nós estávamos querendo nos ver livres; era sua infância; era aquele material velho o que mais significava para ele.
- Tudo bem.
- Escute aqui. Não estou escondendo nada sobre Leo. Por tudo o que sei, ele arruinou minha carreira, o que quer que reste depois que você tiver acabado com isso. Mas é como lhe estou dizendo: você tem que ver também o que existe de bom nele.
- Não estou discutindo com você.
- Sua memória também o aborrecia. Lembro-me de uma vez com relação à música: Leo fez-me ouvir uns discos. Creio que principalmente para que pudesse vendê-los a mim; havia feito um negócio de que estava muito orgulhoso, numa das lojas da cidade. "Olhe aqui", disse eu. "Não adianta, Leo, você está perdendo seu tempo. Tenho que conhecer um disco antes que possa aprender um outro. Nessa ocasião já terei esquecido o primeiro." Reagiu a isso imediatamente: "Então você deveria ser um político, Arthur", disse ele. "É isso o que eles fazem." Leo estava sendo honesto.
Turner sorriu subitamente.
- É muito engraçado - comentou.
- Teria sido - replicou Meadowes - se ele não tivesse parecido tão sério ao dizê-lo. Em outra ocasião, estávamos falando sobre Berlim, alguma coisa relacionada com a crise, e eu disse: "Bem, deixe para lá, ninguém está pensando mais em Berlim", o que é realmente verdade. Estou-me referindo a arquivos; ninguém retira as pastas ou se preocupa com as contingências; pelo menos não como costumavam fazer antes. O que quero dizer é que, politicamente, é um ponto morto. "Não", protestou Leo. "Temos que considerar a memória longa e a memória curta. A memória curta serve para lembrar as pequenas coisas e a memória longa para esquecer as grandes." Foi o que disse; isso me tocou. Há muitos dentre nós que pensam dessa forma, o que não se pode evitar nos dias de hoje.
- Às vezes, Leo levava-o até sua casa, não é? Essas eram grandes ocasiões, não eram?
- De vez em quando. Quando Myra estava ausente. Por vezes eu dava uma fugida até lá.
- Por que quando Myra estava ausente? - Turner pôs muita ênfase ao falar: - Você ainda não confiava nele, não é?
- Havia rumores - respondeu Meadowes, calmamente. - Havia falatório a respeito dele. Eu não queria que ela fosse envolvida.
- Ele com quem?
- Com garotas. Garotas de um modo geral. Leo era solteiro e gostava de divertir-se.
- Quem?
Meadowes sacudiu a cabeça.
- Você entendeu mal - disse Meadowes, que brincava com dois clipes de papel, procurando encaixar um no outro.
- Alguma vez Leo falou na Inglaterra durante a guerra? Sobre um tio de Hampstead?
- Uma vez me falou sobre sua chegada a Dover com uma identificação em volta do pescoço. Isso também não era comum.
- O que não era comum?
- Falar sobre si mesmo. Johnny Slingo disse que o conhecia há anos, antes de ele vir para o arquivo e nunca arrancou palavra nenhuma dele. Agora estava completamente aberto, comentou Johnny; devia ser a idade que estava chegando.
- Continue.
- Bem, aquilo era tudo o que tinha, um rótulo: Leo Harting. Rasparam sua cabeça, despiolharam-no e o enviaram para uma Escola Rural. Aparentemente ele podia optar entre ciências domésticas e agricultura. Escolheu agricultura porque pretendia ser proprietário de terras. Para mim parecia maluquice, Leo desejando ser agricultor, mas assim foi.
- Nada a respeito de comunistas? Um grupo de garotos de esquerda em Hampstead? Nada como isso, absolutamente?
- Nada.
- Você me diria se houvesse alguma coisa?
- Creio que não.
- Alguma vez ele se referiu a um homem chamado Praschko? No Bundestag?
- Uma noite me disse que Paschko o havia abandonado.
- Como? Abandonado como!
- Não disse. O que falou é que tinham emigrado juntos para a Inglaterra e voltado juntos para aqui após a guerra. Praschko havia escolhido um caminho e Leo outro. - Meadowes deu de ombros. - Não insisti com ele. Por que deveria fazê-lo? Depois daquela noite nunca mais voltou a tocar no assunto.
- Aquela conversa toda a respeito de memórias: o que você acha que ele tinha em mente?
- Algo histórico, creio. Leo pensava um bocado a respeito da história. Veja só, isso foi apenas há alguns meses.
- E que diferença faz?
- Isso foi antes de Leo seguir uma pista.
- Uma o quê?
- Leo seguia uma pista - respondeu Meadowes de maneira simples. - É isso que estou procurando dizer a você.
- Quero ouvir alguma coisa a respeito das pastas que estão faltando - disse Turner. - Quero examinar o livro de protocolo e a correspondência.
- Espere a vez. Há algumas coisas que não são meros fatos e se você prestar atenção poderá ouvir algo sobre elas. Você é como Leo, é, sim: sempre desejando a resposta, mesmo antes de ter ouvido a pergunta. O que estou querendo dizer é que eu sabia, desde o momento em que chegou aqui, que Leo andava atrás de alguma coisa. Bem, nós todos também estávamos de um certo modo, mas Leo buscava algo real. Algo em que se podia quase tocar e que significava muito para ele. Isto é raro por aqui, acredite-me.
Parecia ser uma vida inteira que Meadowes estava querendo descrever.
- Um arquivista é como um historiador; há épocas nas quais ele tem manias; lugares, reis, rainhas. Todas as pastas aqui estão relacionadas, ligadas umas às outras. Dê-me uma pasta da sala ao lado, qualquer pasta, posso traçar um caminho nítido através de todo o arquivo desde os direitos de navegação na Islândia até os últimos guias sobre o preço do ouro. É nisso que está a fascinação dos arquivos; não há onde parar.
Meadowes prosseguia. Turner estudava o rosto cinzento e paternal, os olhos cinzentos toldados por preocupações, e percebeu que raiava à excitação.
- Você pensa que dirige um arquivo - prosseguiu Meadowes - mas não é assim. Ele é que o dirige. Os arquivos possuem qualidades que cativam e não há nada que se possa fazer a respeito. Johnny Slingo, por exemplo. Você o viu quando chegou, à esquerda, aquele velho de paletó. Ele é do tipo intelectual, academia e tudo o mais. Johnny está nisso há um ano apenas, veio para nós lá da administração, na verdade, mas está amarrado com o nove-nove-quatro: relações da Alemanha Federal com os terceiros partidos. Johnny poderia sentar-se onde você se encontra e recitar a data e o local de cada negociação isolada já havida sobre a Doutrina Hallstein. Ou, o meu caso. Ajo mecanicamente. Gosto de carros, de inventos, todo esse mundo. Acho que sei mais a respeito de infringência dos direitos de patentes alemãs do que qualquer funcionário da seção comercial.
- Qual é a pista de Leo?
- Espere aí. É importante o que estou dizendo. Passei muito tempo pensando sobre isso nas últimas 24 horas e você vai ouvir tudo, quer queira quer não. Os arquivos conquistam as pessoas; não há como evitar-se. Eles governarão sua vida, se você deixar. Para alguns homens eles são sua mulher e filhos, já vi isso acontecer. E há ocasiões em que eles se apoderam de você, e você envereda por uma pista e não pode cair fora; foi exatamente o que eles fizeram com Leo. Não sei como isso acontece. Um documento atrai o seu olhar, alguma coisa tola: a ameaça de uma greve dos plantadores de cana em Surabaya, é hoje a nossa piada favorita. "Ei", você diz para você mesmo, "por que o Sr. Fulano não assinou isto aqui?" Você vai apurar e o Sr. Fulano jamais viu esse documento. Ele nunca, absolutamente, leu esse telegrama. Bem, ele tem que ver, não tem? Só que tudo isso se passou há três anos e o Sr. Fulano é agora o embaixador em Paris. Então você começa procurando saber que medida foi tomada ou não foi tomada. Quem foi consultado? Por que não informavam Washington? Você procura as referências cruzadas, retira o material original. Mas então já é muito tarde; você já perdeu o senso das proporções; você está distante e quando finalmente consegue desvencilhar-se do problema está 10 dias mais velho e coisa alguma mais sábio, embora talvez esteja novamente a salvo por alguns anos. Obsessão é o nome disso. Uma viagem particular. Isso acontece a todos nós. É assim que somos feitos.
- E foi o que aconteceu com Leo?
- Sim. Foi o que aconteceu com Leo. Só que a partir do primeiro dia em que aqui chegou eu sentia que. . . bem, que ele estava esperando. Só pelo modo que olhava, o modo que mexia nos documentos. .. Sempre olhando por cima da margem. Eu levantava os olhos e dava com o olhar dele, aqueles pequeninos olhos castanhos, perscrutando tudo. Sei que você me acha fantasioso, mas não me importo. Pouco me incomodo com isso, por que deveria eu me incomodar? Todos nós temos problemas e, além disso, naquela ocasião aqui era como uma fábrica. Mas de qualquer modo essa é a verdade. Pensei sobre isso e essa é a verdade. Para começar, não era muito, apenas eu percebi esse fato. Depois, gradualmente, ele seguiu sua pista.
Um sino se fez ouvir subitamente; um repicar longo e continuado percorrendo os corredores para cima e para baixo. Ouviram o bater de portas e o ruído de pés que corriam. Uma moça estava gritando: "Onde está Valerie? Onde está Valerie?"
- Exercício contra incêndios - comentou Meadowes. - Atualmente são três ou quatro por semana. Não se preocupe. O arquivo está dispensado.
Turner sentou-se. Parecia ainda mais pálido do que antes. Passou a mão no cabelo crespo e claro.
- Estou ouvindo - disse.
- Desde março Leo vinha trabalhando em um grande projeto: todos os sete-zero-sete. São os estatutos. Há cerca de 200 deles ou mais e, em sua maioria, dizem respeito à passagem quando a Ocupação terminou. Termos da retirada, direitos residuais, direitos de evocação, fases de autonomia e sabe Deus o que mais. Tudo material de 1949 a 1955, sem significado por aqui. Leo podia ter começado em meia dúzia de lugares sobre a destruição, mas no momento em que se deparou com os sete-zero-sete, eles passaram a ser os únicos para ele. "Estes", disse Leo, "são o que me convém, Arthur, e posso gastar neles os meus dentes de leite. Sei sobre o que estão tratando; para mim é um terreno familiar." Não creio que ninguém tenha olhado para aquilo nos últimos 15 anos. Complicados, ainda que obsoletos. Cheios de termos técnicos. Surpreendente o que Leo sabia, entende? Todos os termos, em inglês e em alemão, todas as expressões legais. - Meadowes sacudiu a cabeça em admiração. - Vi uma minuta sua subir para o adido legal, um resumo de uma pasta; não consegui entender o que ali estava e tenho dúvida de que alguém na chancelaria o conseguisse. Tudo a respeito do Código Penal prussiano e sobre a soberania de justiça regional. E a metade de tudo isso também em alemão.
- Leo sabia mais do que estava preparado para saber. É isso o que você está querendo dizer?
- Não, não é - respondeu Meadowes. - E não comece a colocar palavras em minha boca. Leo estava sendo usado, é isto o que estou querendo dizer; ele possuía muitos conhecimentos com os quais não fazia nada há anos. De repente, pôde empregar tudo. Com os sete-zero-sete - prosseguiu Meadowes - não havia nenhum problema real de destruição: em enviar tudo de volta para Londres para que ficasse arquivado em outro lugar, mas tudo tinha que ser lido e submetido a exame do mesmo modo que os demais, e ele tinha mergulhado profundamente nisso nas últimas semanas. Já lhe disse que Leo era muito calmo aqui, era sim. E uma vez que se enfiou nos estatutos foi ficando cada vez mais calmo. Ele estava numa pista.
- Quando isso aconteceu?
Na parte de trás da caderneta de Tucker havia um calendário; ele o abriu à sua frente.
- Há três semanas. Ele foi continuando, foi continuando. E ainda jovial, imagine; ainda se mexendo daqui para ali, para ajudar as moças a sentar-se ou a amarrar algum volume. Mas algo se havia apoderado dele e isso lhe significava muito. Ainda curioso: ninguém jamais o curará disso; tinha que saber exatamente o que cada um de nós andava buscando. Mas controlado. E ficou pior. Mais e mais pensativo; mais e mais sério. Então na segunda-feira, na última segunda-feira, ele mudou.
- Uma semana de hoje para trás - disse Turner. - Foi no dia cinco.
- Sete dias. Isso é tudo? Meu Deus.
Da porta próxima veio um cheiro de lacre quente e um som abafado de um carimbo grande sendo aplicado em um pacote.
- É a mala das duas horas que eles estão preparando - murmurou Meadowes, inconseqüentemente, e consultou seu relógio de prata, de bolso. - Deve estar pronta meio-dia e meia.
- Se você quiser eu volto depois do almoço.
- É melhor que eu me veja livre de você antes - disse Meadowes se você não se incomoda. - Pôs o relógio de lado. - Onde está Leo? Você sabe? O que aconteceu com ele? Foi para a Rússia, é isso?
- É isso o que você pensa?
- Ele pode ter ido para qualquer lugar, não se pode dizer. Não era como nós. Procurava ser, mas não era. Mais como você, eu suponho, de certo modo. Obstinado. Sempre ocupado, mas sempre fazendo as coisas de trás para a frente. Nada era simples, acho que esse era seu problema. Muita infatilidade. Ou nenhuma. Dá no mesmo, realmente. Gosto das pessoas que crescem lentamente.
- Fale-me sobre a última segunda-feira. Ele mudou: como?
- Mudou para melhor. Havia-se livrado de alguma coisa fosse o que fosse. A pista estava levantada. Quando entrei, ele estava sorrindo, realmente contente. Johnny Slingo, Valerie, ambos notaram esse fato, do mesmo modo que eu. É claro que todos estávamos trabalhando a pleno: eu tinha estado aqui todo o sábado e o domingo; os outros entravam e saíam.
-E Leo?
- Bem, ele estivera ocupadíssimo também, não há dúvida, mas nós não o víamos por aqui há bastante tempo. Uma hora aqui, três horas ali...
- Ali onde?
- Em sua própria sala. Ele fazia assim por vezes, levava algumas pastas lá para baixo, para trabalhar com elas. Era mais calmo. "Gosto de conservá-la aquecida", dizia ele. "É a minha velha sala, Arthur, e não quero que ela esfrie."
- E ele levava as pastas lá para baixo, não é mesmo? - indagou Turner, muito calmo.
- Depois a capela; isso tomava uma parte do domingo, é claro. Tocava o órgão.
- Há quanto tempo, por falar nisso, ele procedia assim?
- Oh, há anos e anos. Era uma necessidade de afirmação - disse Meadowes com uma risadinha. - Só para torná-lo indispensável.
- Então, na segunda-feira ele estava contente.
- Sereno. Não há outra palavra para ser usada. "Gosto daqui, Arthur", disse ele. "Quero que você saiba disso." Sentou-se e prosseguiu em seu trabalho.
- E permaneceu nesse mesmo estado até ir embora?
- Mais ou menos.
- O que você está querendo dizer com "mais ou menos"?
- Bem, nós tivemos uma briga. Foi na quarta-feira. Leo passara bem a terça-feira, feliz como um moleque, mas na quarta eu me deparei com ele numa posição estranha, Havia cruzado as mãos no colo e as estava fitando, a cabeça inclinada.
"Estava procurando a pasta verde. O limite máximo - prosseguiu Meadowes, que passou a mão na parte de cima da cabeça, numa pequena demonstração de nervosismo. - Como lhe disse, ele sempre mostrava curiosidade. Há muitas pessoas que são assim, que não conseguem evitá-lo. Não importava o que quer que fosse; eu poderia deixar sobre a mesa uma carta de minha própria mãe; tenho certeza de que, se tivesse uma chance, por menor que fosse, Leo a iria ler. Estava sempre pensando que todo mundo conspirava contra ele. Para começar, todos nós ficamos doidos, com Leo remexendo em tudo, arquivos, armários, por toda a parte. Ele não estava aqui uma semana e já estava passando recibo da correspondência. Toda a correspondência, lá na sala dos malotes. No princípio, não me preocupei com isso, mas Leo ficou agastado quando eu lhe disse para parar com aquilo e no final deixei por isso mesmo. - Meadowes abriu as mãos, procurando uma resposta. - Então, em março, recebemos de Londres uns documentos sobre contingências do comércio, uma orientação especial para economia em novos alinhamentos e planejamento conseqüente, e eu o apanhei com todo o pacote em cima de sua mesa. "Escute aqui", falei, "você não sabe ler? Toda essa documentação é dirigida aos destinatários, e não para você." Não moveu um fio de cabelo. Estava na verdade zangado. "Pensei que pudesse ver tudo!", exclamou, e quase que me agrediu. "Bem, você pensou errado", respondi. Isso foi em março. Levou algum tempo antes que nós esfriássemos.
- Deus nos perdoe - disse Turner, em voz baixa.
- Depois veio essa história do verde. Uma pasta verde é rara. Não sei o que contém. Nem Johnny, nem Valerie. Essa pasta tem uma caixa própria. O Sr. Embaixador dispõe de uma das chaves, Bradfield de outra que compartilha com De Lisle. A caixa tem que voltar para cá, para o cofre-forte, todas as noites. É passado recibo tanto quando sai como quando volta, e somente eu mexo com isso. Bem, de qualquer modo: hora do almoço, quarta-feira. Leo ficou por aqui, enquanto Johnny e eu fomos até a cantina.
- Era freqüente que ele ficasse por aqui na sua hora do almoço?
- Ele gostava que assim fosse. Gostava de calma.
- Entendo.
- Havia uma fila enorme na cantina e eu não suporto filas. Assim, eu disse a Johnny: "Fique aqui, eu vou voltar e acabar uns trabalhos e tento de novo dentro de meia hora." Voltei então inesperadamente. Entrei. Não vi Leo e o cofre-forte estava aberto. E lá estava ele; lá parado, com a caixa da pasta verde.
- O que você está querendo dizer com a caixa?
- Apenas com ela na mão. Olhando para o fecho, tanto quanto eu pudesse perceber. Curiosidade apenas. Sorriu quando me viu, imperturbável. Eu já lhe disse que Leo é vivo. "Arthur", disse ele, "você me pegou, você descobriu qual o meu pecado secreto." Eu falei: "Que diabo está você procurando? Veja só o que tem nas mãos?" Qualquer coisa assim. "Você me conhece", tornou ele, muito conciliadoramente. "Não consigo evitar isso." Baixou a caixa. "Na verdade, eu estava procurando uns sete-zero-sete. Você não os teria visto em algum lugar? Março e fevereiro de1958." Algo assim.
- E depois?
- Li para ele o Regulamento Disciplinai. O que mais poderia fazer? Disse também que iria comunicar o fato a Bradfield, e outras coisas. Eu estava furioso.
- Mas você não comunicou, não é mesmo?
- Não.
- Por que não?
- Você não compreenderia - falou Meadowes, depois de algum tempo. - Você acha que tenho o miolo mole, eu sei. Era aniversário de Myra, na sexta-feira; íamos ter uma comemoração especial no Exiles. Leo tinha ensaio no coro e um jantar.
- Jantar? Onde?
- Ele não disse.
- Não há nada em seu diário.
- Isso não é da minha conta.
- Continue.
- Ele prometera dar uma passada lá por casa durante a noite e levar um presente para ela. Ia ser um secador de cabelos que tínhamos escolhido juntos. - Meadowes tornou a sacudir a cabeça. - Como posso explicar? Já lhe disse: eu me sentia responsável por Leo. Ele era esse tipo de pessoa. Você e eu poderíamos fazê-lo explodir com um sopro, se o desejássemos.
- Turner o encarou incredulamente.
- E creio que também havia alguma coisa a mais. - Olhou Turner na cara. - Se eu falasse com Bradfield. Leo sabia disso. Não há lugar nenhum para onde ele possa ir, há? Está percebendo o que quero dizer? Como agora, por exemplo: espero que tenha ido para Moscou, pois não há outro qualquer lugar para onde possa ir.
- Você está querendo dizer que suspeitava dele?
- Creio que sim. Lá no fundo, creio que eu suspeitava. Varsóvia me fez isso, você sabe. Eu gostaria que Myra tivesse ficado morando lá, com o seu estudante. Tudo bem, eles o puseram a par disso; eles fizeram com que ele a seduzisse. Mas ele disse que ia casar com Myra, não disse? por causa da criança. Eu teria adorado essa criança mais do que sou capaz de expressar. Foi isso que você tirou de dentro de num. Do mesmo modo que dela. Isso é tudo. Você sabe que não devia ter feito o que fez.
Turner agradecia agora o ruído do tráfego, agradecia a qualquer som que pudesse penetrar naquele maldito tanque e abafar o eco acusador da voz monótona de Meadowes.
- E na quinta-feira a caixa desapareceu? Meadowes deu de ombros.
- O escritório particular trouxe-a de volta ao meio-dia de quinta-feira. Eu mesmo passei o recibo e a coloquei no cofre-forte. Sexta-feira não estava lá. E aí está
o que houve.
Fez uma pausa.
- Eu devia ter comunicado o fato imediatamente. Eu devia ter corrido para procurar Bradfield na tarde de sexta-feira quando descobri. Não fui. Dormi em cima disso. Remoí tudo no sábado. Espremi a cabeça de Cork, fui atrás de Johnny Slingo, transformei a vida deles num inferno. Eu estava quase maluco. Não queria levantar a lebre. Perdemos toda a educação durante a crise. Todo mundo pisava em brasas. Alguém tinha levado o nosso carrinho, eu não sabia quem: um dos funcionários do Escritório militar, era o que eu desconfiava. Tinham levado também nossa poltrona giratória. Uma máquina de escrever de carro longo, do centro de datilografia; diários, coisas de todos os tipos, até xícaras da Naafi. De qualquer modo, tudo isso eram desculpas. Pensei que um dos usuários poderia tê-la pegado: De Lisle, escritório particular...
- Você perguntou a Leo?
- Nessa ocasião ele já havia sumido, não é mesmo?
Uma vez mais Turner havia voltado à rotina do interrogatório.
- Ele tinha uma pasta, não tinha? -Sim.
- Era-lhe permitido trazê-la aqui?
- Ele trazia sanduíches e uma garrafa térmica.
- Então era permitido?
- Sim.
- Na quinta-feira Leo estava com a pasta?
- Creio que sim. Sun, estava com ela.
- Essa pasta era suficientemente grande para conter a caixa da pasta verde?
-Sim.
- Leo almoçou aqui na quinta-feira?
- Ele saiu por volta do meio-dia.
- E voltou?
- Já lhe disse: quinta-feira é o seu dia especial. Dia de reunião. Algo que ficou de sua função anterior. Ele vai a um dos ministérios em Bad Godesberg. Algo relacionado com reclamações pendentes. Na última quinta-feira, Leo tinha antes um encontro para o almoço. Depois então foi para a reunião.
- Ele sempre compareceu a essa reunião? Todas as quintas-feiras?
- Desde que veio para o arquivo.
- Ele possuía uma chave, não é?
- Para quê? Chave de onde?
Turner se sentiu em um terreno inseguro.
- Para permitir-lhe entrar e sair do arquivo - explicou. - Ou ele conhecia a combinação.
Meadowes riu abertamente.
- Somente eu e o chefe da chancelaria sabemos como entrar e sair daqui e ninguém mais. Há três combinações e meia dúzia de alarmes contra ladrões e há ainda o cofre-forte. Nem Slingo, nem De Lisle, ninguém. Exceto nós dois.
Turner lançava anotações rapidamente.
- Diga-me o que mais está faltando? - perguntou Turner por fim.
Meadowes destrancou uma das gavetas de sua mesa e retirou uma relação de material. Seus movimentos eram ágeis e surpreendentemente confiantes.
- Bradfield não lhe disse?
-Não.
Meadowes passou-lhe a relação.
- Pode guardar essa aí - disse ele. - Há 43 delas. Todas são caixas para as pastas e todas desapareceram desde março.
- Desde que ele seguiu sua pista.
- As classificações quanto à segurança variam de confidencial a ultra-secreto, mas em sua maior parte são classificadas somente como secretas. Há pastas sobre organização, conferências, personalidades e duas sobre tratados. Os assuntos variam de desativação de instalações químicas no Ruhr em 1947 a minutas de correspondência não oficial anglo-germânica nos últimos três anos. Há ainda a pasta verde, a de conversações formais e informais...
- Bradfield me disse.
- Elas são como peças, creia-me, como peças de um quebra-cabeça. . . foi o que pensei inicialmente. . . Comecei a mexer com elas em minha cabeça. Hora após hora. Não tenho dormido. De vez em quando. . . - Meadowes fez uma pausa. - De vez em quando, creio que me vinha uma idéia, uma espécie de quadro, meio quadro, eu diria. ..
Obstinadamente, ele concluiu:
- Não há uma linha nítida nisso, nem uma razão. Algumas estão assinaladas por Leo e destinadas a diferentes pessoas; outras estão marcadas como "destinadas à destruição", mas em sua maior parte estão simplesmente faltando. Não se pode dizer, percebe? Não se pode manter controles, é impossível. Até que alguém pergunte pela pasta não se sabe que ela está faltando.
- Caixas de arquivo?
- Já lhe disse. Todas as 43. Juntas elas devem pesar um bocado, eu diria.
- E as cartas? Há cartas que também estão faltando.
- Sim - concordou Meadowes, relutantemente. - Estão faltando 33 cartas recebidas.
- Nunca foram registradas, não? Ficaram por aí para que qualquer um as apanhasse? De que tratavam? Você não esclareceu esse ponto.
- Nós não sabemos. Essa é a verdade. São cartas de departamentos alemães. Sabemos as referências porque a sala dos Correios as enumera no diário. Elas nunca chegaram ao arquivo.
- Mas você já verificou as referências, não é?
Meadowes respondeu com rispidez.
- As cartas que estão faltando pertencem às pastas que desapareceram. As referências são as mesmas. Isso é tudo o que posso dizer. Como vieram de departamentos alemães, Bradfield determinou que não solicitássemos cópias até que se tenha chegado a uma decisão em Bruxelas; para que nossa curiosidade não os alertasse sobre o desaparecimento de Harting.
Tendo recolocado no bolso sua caderneta de anotações, Turner se pôs de pé e foi até a janela gradeada, tocando os trincos e testando a resistência da malha de ferro.
- Havia alguma coisa a respeito de Leo. Ele era diferente. Algo que fazia com que você o observasse.
Da estrada chegou a seus ouvidos o lamento em duplo tom de uma sirene de emergência que se aproximou e desapareceu.
- Ele era diferente - repetiu Turner. - Durante todo o tempo que você falou eu ouvi a mesma coisa. Leo isso, Leo aquilo. Você o tinha de olho, você o sentia, eu sei que era assim. Por quê?
- Não havia nada.
- E os tais rumores? O que diziam sobre ele que deixou você assustado? Seria ele o amiguinho de alguém, Arthur? Seria ele alguma coisa para Johnny Slingo, em sua idade avançada? Estaria ele no páreo dos frescos, é por isso esse rubor todo?
Meadowes sacudiu a cabeça.
- Você perdeu seu veneno - disse ele. - Não me assusta mais. Eu o conheço, conheço sua peçonha. Não tem nada relacionado com Varsóvia. Ele não era desse tipo. Não sou criança e Johnny também não é homossexual.
Turner continuou a encarar Meadowes.
- Há alguma coisa que você ouviu. Alguma coisa que você sabia. Você estava de olho nele, sei que estava. Você o observava ao atravessar a sala; como parava, como se esticava para pegar uma pasta. Ele estava desempenhando a mais idiota das tarefas no arquivo, e você fala sobre ele como se se tratasse do embaixador. Por aqui era um caos, foi você mesmo que disse. Todo mundo, à exceção de Leo, procurando as pastas, arrumando-as, consultando-as, estabelecendo relações entre eles, todos empenhados em conservar a bola rolando durante uma crise. E Leo, o que estava fazendo? Leo estava em destruição. Ele podia não estar fazendo nada, mas o seu trabalho era importante. Quem disse foi você, não fui eu. Então, o que havia com ele? Por que você o tinha de olho?
- Você está sonhando. Você é desconfiado e não pode ver coisa alguma direito. Mas, se por acaso estivesse certo, eu não lhe diria nada nem em meu leito de morte.
Um aviso do lado de fora da sala de codificação dizia: "Volto às duas e quinze. Para emergências chamar pelo telefone 333." Turner bateu à porta de Bradfield e experimentou a maçaneta; a porta estava trancada. Foi até a balaustrada e olhou aborrecido para o saguão lá embaixo. À mesa da frente um jovem guarda da chancelaria lia um livro de engenharia. Turner pôde notar os diagramas na página da direita. Na sala de espera envidraçada, o Encarregado de Negócios de Gana, com uma gola de veludo, olhava pensativamente uma foto de Clydeside, tirada de muita altura.
- Todos no almoço, meu velho - sussurrou uma voz por trás dele.- Até as três nenhum huno vai se mexer. Trégua diária. O espetáculo deve prosseguir. - Uma figura encurvada se destacava entre os extintores de incêndio. - Crabbe - apresentou-se. - Mickie Crabbe - como se o nome em si mesmo fosse uma desculpa. - Peter de Lisle já está de volta. Esteve lá pelo Ministério do Interior, ajudando mulheres e crianças. Rawley mandou que ele cuidasse de sua alimentação.
- Quero passar um telegrama. Onde é a sala três-três-três?
- Sala de repouso, meu velho. Estão todos repousando um pouco depois de toda a agitação. Tempos difíceis. É preciso uma folga - sugeriu ele. - Se for urgente dá para esperar, se for importante é tarde demais, é o que digo. - Tendo dito isso, Crabbe conduziu Turner ao longo do silencioso corredor como um decrépito cortesão acompanhando-o ao leito. Passando pelo elevador, Turner parou e mais uma vez olhou para ele. Estava firmemente fechado a cadeado e num aviso se lia: "Não está funcionando."
Os trabalhos são separados, disse para si mesmo, por que preocupar-se, pelo amor de Deus? Bonn não é Varsóvia. Varsóvia foi há centenas de anos. Bonn é hoje. Vamos fazer o que temos de fazer e cair fora. Reviu a sala rococó na Embaixada de Varsóvia, o candelabro sujo de poeira, e Myra Meadowes sozinha no sofá idiota. "De outra vez, vão mandá-la para um país da Cortina de Ferro", estava gritando Turner. "Bem que você podia arranjar seus amantes com mais cuidado!"
Diga-lhe que estou saindo do país, lembrou-se; que fui procurar um traidor. Um traidor adulto, forte, de dentes vermelhos, um traidor mercenário.
Vamos Leo, nós temos o mesmo sangue, você e eu; homens do submundo é o que somos. Vou caçá-lo no meio dos esgotos, Leo; é por isso que sou tão cheiroso. Temos dentro de nós o lixo da terra, você e eu. Caçarei você, você me caçará, e todos nós nos caçaremos a nós mesmos.
Capítulo 7
De Lisle
O American Club não estava tão severamente guardado como a embaixada. "Não é nenhum sonho gastronômico", explicou De Lisle, enquanto mostrava seus documentos ao soldado americano que se encontrava à porta, "mas dispõe de uma piscina maravilhosa." De Lisle havia reservado uma mesa próximo a uma janela que se debruçava sobre o Reno. Acabados de sair do banho, tomaram martinis e ficaram apreciando os enormes helicópteros marrons que passavam por eles na direção da pista de aterragem à montante do rio. Alguns estavam assinalados com cruzes vermelhas, outros não ostentavam qualquer símbolo. De vez em quando, embarcações brancas, de passageiros, deslizavam através da neblina, conduzindo grupos de turistas na direção da região de Nibelungs; o ruído de seus próprios alto-falantes os seguiam como uma pequena trovoada. Numa ocasião passou um bando de colegiais e eles ouviram os acordes de Lorelei tocados em um acordeão, com o devotado acompanhamento de um coro celestial, ainda que imperfeito. As sete colinas de Königswinter estavam agora muito mais próximas, ainda que a neblina toldasse seus perfis.
Com uma calculada hesitação, De Lisle apontou a de Petersberg, um cone regular coberto de florestas em cujo topo se via um hotel retangular. Na década de 30, Neville Chamberlain estivera lá, explicou ele.
- Foi quando abrimos mão da Tchecoslováquia, é claro. Da primeira vez.
Depois da guerra, havia sido a sede da Alta Comissão Aliada; mais recentemente a Rainha o havia utilizado para sua estada durante uma visita oficial. Para a direita ficavam Drachenfels, onde Siegfried matara o dragão e se banhara com o seu sangue mágico.
- Onde fica a casa de Harting?
- Não pode ser vista daqui - respondeu De Lisle tranqüilamente, não apontando mais nada. - Fica no sopé do Petersberg. Ele vive, por assim dizer, à sombra de Chamberlain. - A partir daí, De Lisle conduziu a conversação para outros campos mais gerais.
- Creio que o problema em ser um bombeiro visitante é que, com freqüência, você chega no local depois que o fogo já foi apagado. É isso?
- Ele vinha aqui com freqüência?
- As embaixadas menores realizam aqui suas recepções, quando suas salas de recepção não são suficientemente grandes. O que costuma ser uma de suas características, é claro.
Uma vez mais o tom de De Lisle se tornou reticente, ainda que o salão de refeições estivesse vazio. Apenas no canto próximo à entrada, sentados em seu bar de paredes de vidro, o inevitável grupo de correspondentes estrangeiros gesticulava, bebia e conversava, como cavalos-marinhos em um solene ritual.
- Toda a América é como isso aqui? - indagou De Lisle. - Ou pior ainda? - De Lisle olhou em derredor, vagarosamente. - No entanto dá um senso de dimensão, creio. E de otimismo. Esse é o problema com os americanos, não é mesmo? Toda essa ênfase no futuro. Tão perigoso. Isso faz com que eles sejam destruidores no presente. É muito melhor olhar para trás, é o que digo sempre. Não vejo qualquer esperança quanto ao futuro, e isso me dá um grande senso de liberdade. E de cuidado: somos muito mais condescendentes uns com os outros em uma cela de prisão, não é mesmo? Não me leve muito a sério, está bem?
- Se você desejasse os arquivos da chancelaria tarde da noite, o que faria?
- Desencavaria Meadowes.
- Ou Bradfield?
- Oh, isso seria realmente ir um pouco longe. Rawley possui as combinações, mas precisa de tempo. Se Meadowes ficar embaixo de um ônibus, Rawley pode ainda chegar aos documentos. Você teve uma manhã cheia disso, não é mesmo - acrescentou, solicitamente. - Posso perceber que está ainda sob o efeito do éter.
- O que você faria?
- Oh, eu retiraria as pastas durante a tarde.
- Bem, e com toda essa trabalheira durante a noite?
- Se o arquivo estiver aberto numa hora de crise, não há problema. Se estiver fechado, bem, quase todos nós dispomos de cofres e de caixas-fortes que são liberados para guardar documentos durante a noite.
- Harting não dispunha de nenhum.
- Vamos chamá-lo de ele de agora em diante?
- Então, onde é que ele trabalharia? Se retirasse pastas à tarde, pastas classificadas e trabalhasse até tarde: o que ele faria?
- Ele as levaria para sua sala, creio, e as entregaria à guarda da chancelaria quando fosse embora. Se ele não estivesse trabalhando no arquivo. A guarda possui um cofre.
- E a guarda passaria recibo por elas?
- Oh, meu Deus, sim. Eles não são irresponsáveis a esse ponto.
- Então eu podia saber alguma coisa através do registro da guarda durante a noite?
- Poderia.
- Ele saiu sem se despedir da guarda.
- Oh, Deus! - disse De Lisle, nitidamente intrigado. - Está querendo dizer que ele as levou para casa?
- Qual o tipo de carro que ele tinha?
- Um minicarro.
Ambos ficaram em silêncio.
- Não há qualquer outro lugar onde ele possa ter estado, uma sala de leituras especial, uma caixa-forte no térreo?
- Lugar nenhum - respondeu De Lisle categoricamente. - Bem, você não acha que é melhor tomar mais alguma coisa e esfriar um pouco a cabeça?
Chamou o garçom.
- Bem, passei uma hora horrível no Ministério do Interior com os homens sem expressão de Ludwig Siebkron - disse De Lisle.
- Fazendo o quê?
- Oh, lamentando a pobre Srta. Eich. Foi triste. E também muito estranho - confessou ele. - Na verdade, foi muito estranho. - De Lisle afastou-se do assunto. - Você sabia que o plasma sangüíneo vinha em latas? O ministro diz que agora querem armazenar um pouco na cantina da embaixada, para uma emergência. É a coisa mais orwelliana que já ouvi. Rawley vai ficar furioso. Ele acha que os alemães já foram longe demais. Aparentemente nenhum de nós pertence mais a qualquer grupo: unissangue. Creio que isso contribui para a igualdade. - Em seguida, continuou: Rawley está ficando irritado em relação a Siebkron.
- Por quê?
- Sobre o que ele insiste em fazer, apenas pelo bem dos pobres ingleses. Está bem, Karfeld é desesperadamente contra os ingleses e contra o Mercado Comum Europeu. Além disso, Bruxelas é crucial e a entrada britânica no Mercado toca os nervos nacionalistas e leva o Movimento à loucura, a reunião de sexta-feira é realmente alarmante e muita gente está em cima do muro. Pode aceitar-se tudo isso com sinceridade. E coisas desagradáveis aconteceram em Hanover. Mas nós ainda não havíamos merecido tanta atenção, realmente não. Em primeiro lugar o recolher, depois os guardas e agora esses deploráveis carros. Penso que ele nos está pressionando com isso tudo de propósito. - Esticando-se além de Turner, De Lisle apanhou o cardápio enorme com sua mão fina, feminina. - Que tal ostras? Não é o que comem as pessoas verdadeiramente finas? Aqui há ostras em todas as estações do ano. Creio que as obtêm em Portugal ou qualquer lugar desses.
- Nunca provei ostras - retrucou Turner, com uma insinuação agressiva.
- Então você deve comer uma dúzia para gostar - replicou, naturalmente, De Lisle, tomando mais um pouco de martini. - É muito agradável encontrar alguém de fora. Não creio que você possa entender isso.
Uma fieira de balsas subia o rio contra a correnteza.
- O que há de pior, creio, é que não se sente em última análise que todas essas precauções sejam para o nosso próprio bem. Os alemães parecem ter sido subitamente espicaçados, como se estivéssemos sendo deliberadamente provocadores; como se fôssemos nós que estivéssemos fazendo demonstrações. Lá, eles mal falam conosco. Um gelo total. Sim. É isso o que estou querendo dizer - concluiu De Lisle. - Eles nos ameaçam como se fôssemos hostis. O que é totalmente frustrante, já que o que todo mundo deseja é ser amado.
- Ele participou de um jantar sexta-feira à noite - observou Turner de repente.
- Ah, participou?
- Mas não assinalou esse fato em seu diário.
- Um tolo. - De Lisle olhou em volta, mas não apareceu ninguém. - Onde está esse maldito rapaz?
- Onde esteve Bradfield na sexta-feira à noite?
- Cale a boca - disse De Lisle, rispidamente. - Não gosto desse tipo de coisas. E há o próprio Siebkron - prosseguiu, como se nada tivesse acontecido. - Bem, todos nós sabemos corno ele é astuto; todos nós sabemos que ele está tapeando a coalizão e todos nós sabemos que ele tem aspirações políticas. Também sabemos que ele tem um assustador problema de segurança pela frente, na sexta-feira, e um punhado de inimigos para dizerem que ele se saiu muito mal. ótimo - De Lisle acenou com a cabeça na direção do rio, como se, de alguma maneira, o rio estivesse envolvido em suas perplexidades. - Então, por que passar seis horas no leito de morte da pobre Srta. Eich? O que é assim tão fascinante em vê-la morrer? E por que chegar ao ridículo ponto de colocar sentinelas em qualquer residência de ingleses por menor que seja? Ele está obcecado a nosso respeito, juro que está; ele é pior do que Karfeld.
- Quem é Siebkron? Qual a função dele?
- Oh, mexe em águas sujas. O seu mundo, de certo modo. Desculpe-me, eu não devia ter dito isso.
De Lisle enrubesceu, intensamente aborrecido. Somente a oportuna chegada do garçom salvou-o de seu embaraço. O garçom era um rapaz ainda bem jovem, e De Lisle se dirigiu a ele com inusitada cortesia, pedindo-lhe a opinião em questões acima de sua competência, entregando a seu julgamento a escolha do Moselle e indagando minuciosamente quanto à qualidade da carne.
- Dizem em Bonn - continuou De Lisle, novamente ficaram a sós - para tomar de empréstimo uma frase, que se você tiver Siebkron como amigo não precisa de nenhum inimigo. Ludwig é verdadeiramente um tipo local. Sempre o braço esquerdo de alguém. Ele vive dizendo que não quer que nenhum de nós morra. Aí está exatamente por que ele é tão assustador: faz com que isso seja possível. É fácil esquecer que Bonn pode ser uma democracia, mas é uma democracia assustadora. - De Lisle fez uma pausa. - O problema com relação a datas - refletiu ele, finalmente - é que elas criam compartimentos no tempo. 1939 a 1945. 1945 a 1950. Bonn, não é antes da guerra, guerra ou pós-guerra. É tão-somente uma cidadezinha na Alemanha. Não é possível dividi-la mais do que se poderia fazer com o Reno. Ele avança lentamente ou seja lá o que diz a canção. E a neblina esbate as cores.
Corando subitamente, De Lisle tirou a tampa do molho e se dedicou à delicada tarefa de deixar cair uma gota em cada ostra. Isso demandou toda a sua atenção.
- Nós nos desculpamos por Bonn. Aí está como reconhecemos os nativos. Eu gostaria de colecionar modelos de trens - continuou animadamente. - Eu gostaria de dar maior ênfase a trivialidades. Você tem algo como isso? Um hobby, é o que quero dizer?
- Não tenho tempo - retrucou Turner.
- Nominalmente, ele dirige algo que se chama Comitê de Ligação do Ministério do Interior; sei que foi ele próprio quem escolheu essa designação. De uma feita, perguntei-lhe: ligação com quem, Ludwig? Para ele essa pergunta foi uma grande piada. Ele regula em idade conosco, claro. Geração da linha de frente menos cinco anos; ligeiramente aborrecido por não ter tomado parte na guerra, eu suspeito, e não pode esperar ficar velho. Ele namora também a CIA, mas por aqui isso é um símbolo de status. Sua ocupação principal é conhecer Karfeld. Quando qualquer pessoa quer conspirar com o Movimento, Ludwig Siebkron toma conta. É uma vida bizarra - falou De Lisle, percebendo a expressão de Turner. - Mas Ludwig se rejubila com isso. Governo invisível, é o que ele gosta. Weimar teria enchido suas medidas. E é preciso que você compreenda o governo por aqui: todas as suas divisões são artificiais.
Compelidos, aparentemente, por um mesmo impulso, os correspondentes estrangeiros haviam deixado o bar e se encaminhavam como um grande cardume na direção da mesa central, já preparada para eles. Um homem volumoso, tendo posto os olhos em cima de De Lisle, levantou um punhado de cabelos negros em cima de seu olho direito, e estendeu o braço em uma saudação nazista. De Lisle, em resposta, ergueu seu copo.
- Aquele lá é Sam Allerton - explicou De Lisle. - Na verdade ele é um sujo. Onde é que eu estava? Divisões artificiais. Sim. Eles nos enlouquecem completamente por aqui. Sempre a mesma coisa: em um mundo nebuloso nós buscamos sempre o absoluto. Antifranceses, pró-franceses, comunistas, anticomunistas. Puro não-senso, mas fazemos isso sempre e sempre. Aí está por que nos enganamos tanto a respeito de Karfeld. Tão terrivelmente enganados. Discutimos sobre definições, quando deveríamos estar discutindo sobre fatos. Bonn seguirá para a forca discutindo o comprimento da corda com que seremos enforcados. Não sei como se pode definir Karfeld; quem saberá? O Poujade alemão? A revolução da classe média? Se é isso o que ele é, então concordo que estamos arruinados, pois na Alemanha todo mundo é classe média. Como na América: relutantemente iguais. Mas eles não querem ser iguais. Quem quer? Apenas são. Unissangue.
O garçom havia trazido o vinho, e De Lisle insistia com Turner para que o provasse.
- Tenho certeza de que o seu paladar é mais apurado do que o meu - disse De Lisle, mas Turner declinou e então De Lisle serviu-se de um pouco, elaboradamente, para prová-lo. - Muito bem escolhido - disse, apreciativamente, dirigindo-se ao garçom. - Muito bom.
"Todas definições inteligentes se aplicam a ele, todas elas, claro que sim; elas se aplicam a qualquer um. Exatamente como a psiquiatria: imaginem-se os sintomas
e sempre se pode achar um nome para eles. Ele é isolacionista, chauvinista, pacifista, revanchista. E deseja uma aliança de comércio com a Rússia. Ele é progressista, o que atrai os alemães mais velhos, ele é reacionário, o que atrai os alemães mais moços. Os jovens por aqui são muito puritanos. Eles desejam purificar-se da prosperidade; querem arcos e flechas e Barbarossa. - De Lisle apontou desanimadamente para as Sete Colinas. - Querem tudo isso em vestimentas novas. Não é de admirar-se que os mais velhos sejam hedonistas. Mas os mais jovens. . . - De Lisle fez uma pausa. - Os mais jovens - repetiu com profundo desdém - descobriram a mais profunda de todas as verdades: que a maneira mais eficaz de punir os próprios pais é imitá-los. Karfeld é o adulto adotivo dos estudantes. . . Desculpe. Este é o meu hobby favorito. Diga-me para calar a boca.
Turner pareceu não ter ouvido. Estava olhando os policiais de pé, a intervalos, ao longo da calçada. Um deles havia encontrado um bote amarrado na margem e estava brincando com a escota, fazendo-a rodar como se fosse uma corda de pular.
- De Londres não param de indagar: quem são os apoiadores? De onde ele obtém o dinheiro? Definam, definam. O que lhes vou dizer? "O homem da rua", escrevi certa vez, "é tradicionalmente a mais indefinível classe social." Em Londres adoram esse tipo de resposta, até que ela chega ao departamento de pesquisa. "Os desencantados", eu disse, "os órfãos de uma democracia morta, as baixas de governo de coalizão." Os socialistas que pensam que eles se venderam ao conservadorismo; anti-socialistas que pensam que eles foram vendidos aos vermelhos. O povo é por demais inteligente para votar. Karfeld é o chapéu que cobre todas as cabeças. Como se pode definir um estado de espírito? Meu Deus, como são obtusos. Já não nos mandam mais instruções: apenas perguntas. Eu lhes disse: "Certamente vocês têm a mesma sorte de coisas na Inglaterra, não é? A violência é a mesma por toda parte." E, afinal de contas, ninguém suspeitaria de uma conspiração mundial em Paris: por que procurar uma coisa dessas por aqui? Estado de espírito. . . ignorância. . . monotonia. - De Lisle se inclinou por cima da mesa. - Você já votou alguma vez? Tenho certeza de que sim. Com o que se parece? Você se sentiu modificado? Era como uma missa? Você se afastou ignorando todo mundo? - De Lisle comeu mais uma ostra. - Creio que Londres tem sido bombardeada. É essa a resposta? E você será cego se nos elogiar. Talvez Bonn seja poupada. Um pensamento aterrorizante. Um mundo em exílio. Nada obstante, é isso o que nós somos. Habitado por exilados, também.
- Por que Karfeld tem ódio aos britânicos? - quis saber Turner. Sua mente estava muito distante.
- Isto, confesso, é um dos insolúveis mistério.s da vida. Todos nós já arriscamos um palpite a respeito na chancelaria. Já falamos sobre isso, lemos sobre isso, discutimos sobre isso. Ninguém tem a resposta. - Deu de ombros. - Quem vai acreditar em motivo nos dias de hoje, quanto mais em um político? Procuramos uma definição a respeito. Algo que tenhamos feito em relação a ele um dia, talvez. Alguma coisa que ele nos tenha feito um dia. As impressões da infância são as mais duradouras, é o que dizem. Por falar nisso, você é casado?
- O que tem isso a ver com o caso?
- Meu Deus - disse De Lisle, admirado. - Você é espinhado.
- O que faz Karfeld para ganhar dinheiro?
- Ele é químico industrial. Dirige uma enorme fábrica perto de Essen. Há uma teoria segundo a qual os britânicos deram duro nele durante a Ocupação, desativaram
sua fábrica e arruinaram seu negócio. Não sei se essa história é verdadeira. Fizemos algumas tentativas para descobrir, mas pouco havia para que se prosseguisse, e Rawley, acertadamente, proibiu-nos de indagar aí por fora. Sabe Deus - prosseguiu ele com um pequeno estremecimento - o que Siebkron pensaria de nós, se começássemos com esse jogo. A imprensa se limita a dizer que ele nos odeia, como se não fosse necessárias explicações. Talvez a imprensa esteja certa.
- Qual é o seu currículo?
- Previsível. Diplomado antes da guerra, convocado para a engenharia. Frente russa como perito em demolição; ferido em Stalingrado, mas conseguiu escapar. O desapontamento da paz. A luta dura e o progresso lento. Tudo muito romântico. A morte do espírito e o renascimento gradual. Há os costumeiros boatos de que ele era tio de Himmler ou qualquer outra coisa do mesmo tipo. Ninguém dá muita atenção a esses boatos; é um indício de chegada a Bonn nos dias de hoje, quando os alemães orientais desencavam uma improvável alegação contra alguém.
- Mas não há nada de verdadeiro?
- Sempre há alguma coisa; mas nunca é suficiente. De qualquer modo, isso já não impressiona ninguém, a não ser nós, assim por que preocupar-se? Ele diz que chegou à política por degraus; fala de seus anos de sono e seus anos de despertar. Ele tem uma queda para um fraseado bastante messiânico, eu temo, pelo menos quando fala a seu próprio respeito.
- Você nunca o encontrou, não é?
- Bom Deus, não. Somente li a seu respeito. Escutei-o pelo rádio. Ele está muito presente em nossas vidas, de um certo modo.
Os olhos claros de Turner tinham voltado a contemplar Petersberg; o sol, intrometendo-se por entre as colinas, incidia diretamente sobre as janelas do hotel cinzento. Há lá uma colina que parece quebrada como uma pedreira; pequenos motores, brancos de poeira, embaralham-se em seu sopé.
- Você tem que dar a mão à palmatória com ele. Em seis meses modificou toda a galère. Os quadros, a organização, o jargão. Antes de Karfeld eles eram apenas engrenagens; ciganos, pregadores errantes, renascidos de Hitler, essas bobagens todas. Hoje são um grupo aristocrático, diplomado. Nada de hordas em mangas de camisa para ele, muito obrigado; nada do seu não-senso socialista, a não ser por parte dos estudantes, a Karfeld é bastante inteligente para tolerá-los. Ele sabe o quanto estreita é a linha entre o pacifista que ataca o policial e o policial que ataca o pacifista. Mas, como quase todos nós, Barbarossa usa camisas limpas e é diplomado em engenharia química. Herr Doktor Barbarossa, é o grito que se ouve hoje. Economistas, historiadores, estatísticos. . . acima de tudo, advogados, é claro. Os advogados são os grandes gurus alemães e sempre o foram; você sabe o quanto os advogados são ilógicos. Mas os políticos não: políticos não são nem um pouco respeitáveis. E quanto a Karfeld, é claro, eles gostam demais de representação; mas Karfeld não quer que ninguém o represente, muito obrigado. Poder sem governo, é o seu lema. O direito de conhecer melhor, o direito de não ser responsável. É o fim, você percebe, não o princípio - disse De Lisle, com uma convicção bastante desproporcional a sua letargia. - Não apenas nós como os alemães temos mantido a democracia e ninguém nos dá crédito por isso. É como o barbear-se. Ninguém o agradece por se barbear, ninguém o agradece pela democracia. Chegamos agora ao outro lado. A democracia só era possível sob um sistema de classes, aí está: era uma indulgência assegurada pelos privilegiados. Não temos mais tempo para isso: um lampejo entre o feudalismo e a automação, que agora sumiu. O que ficou? Os eleitores estão separados do parlamento, o parlamento está separado do governo, e o governo está separado de todo o mundo. Governo pelo silêncio, é o lema. Governo por alienação. Não preciso dizer nada a você sobre isso; é um produto bem britânico.
De Lisle fez uma pausa, aguardando que Turner fizesse algum outro comentário, mas Turner estava ainda perdido em pensamentos. Na mesa grande em que se encontravam, os jornalistas estavam discutindo. Um deles ameaçava bater em alguém, um terceiro estava prometendo bater com as cabeças de um no outro.
- Não sei o que estou defendendo. Ou o que estou representando; quem sabe? "Um cavalheiro que mente pelo bem de seu país", é o que nos dizem em Londres com um piscar de olhos. "Prazerosamente", digo eu. "Mas me digam antes qual a verdade que devo esconder." Não fazem a menor idéia. Fora do ministério, os pobres sonhos mundiais de que temos um livro gravado a ouro tendo POLÍTICA escrito na capa. . . Deus, se ao menos eles soubessem. - De Lisle terminou o seu vinho. - Talvez você saiba? Supõe-se que eu obtenha o máximo de vantagens com um mínimo de fricção. O que entendem por vantagens não sei: poder? Tenho dúvidas de que poder nos seja vantajoso. Talvez devêssemos entrar em declínio. Será que precisamos de um Karfeld? Um novo Oswald Mosley? Receio que mal o notemos. O oposto de amor não é ódio é apatia. Apatia, aqui, é o nosso pão de cada dia. Apatia histérica. Beba um pouco mais do Moselle.
- Você acha que é possível - começou Turner, seu olhar ainda voltado para as colinas - que Siebkron já saiba a respeito de Harting? Isso os tornaria hostis? Isso acarretaria uma atenção extra?
-Mais tarde - disse De Lisle, calmamente. - Não em frente das crianças, se você não se importa.
O sol incidia sobre o rio, dominando-o a partir de lugar nenhum como um grande pássaro dourado, abrindo suas asas sobre todo o vale, brincando com a superfície das águas e imprimindo-lhe os movimentos leves de um novo dia de primavera. Determinando ao auxiliar de garçom que levasse ao jardim dois cálices de seu melhor conhaque, De Lisle caminhou elegantemente por entre as mesas até a porta lateral. No centro do salão, os jornalistas tinham feito silêncio; sombrios pelo que beberam, derreados em suas cadeiras de couro, aguardavam o estímulo de uma catástrofe política.
- Que pena - observou De Lisle, quando saíram para o ar fresco. Como tenho sido chato. É assim em todos os lugares onde você vai? Creio que todos nós descarregamos nossos corações com o estranho, não é? E todos nós acabamos como pequenos Karfelds? É isso? Anarquistas patriotas da classe média? Como deve ser chato para você.
- Tenho que ver a casa dele - disse Turner. - Tenho que verificar.
-Você está fora da corte - replicou de Lisle, calmamente. - Ludwig Siebkron a mantém vigiada.
Eram três horas; um sol claro havia aparecido por entre as nuvens. Encontravam-se sentados no jardim ao abrigo de guarda-sóis de praia, sorvendo o conhaque e apreciando as filhas de diplomatas batendo bola e rindo nas quadras de tênis, úmidas de argila vermelha.
- Praschko, eu suspeito, não é boa coisa - declarou De Lisle. - Há muitos anos nós costumávamos ter seu nome em nossos livros, mas ele se aborreceu conosco. - Bocejou. - Ele foi muito perigoso em outras épocas; um pirata político. Sem ele nenhuma conspiração estava completa. Encontrei-o algumas vezes; o inglês ainda o atrapalha. Como todos os conversos, anseia pelas lealdades perdidas. Hoje em dia, é um democrata livre; Rawley já lhe falou sobre isso? Trata-se de um lar para as causas perdidas, se é que já houve alguma; há criaturas muito estranhas por lá.
- Mas ele era amigo.
- Você é inocente - rebateu De Lisle, sonolento. - Como Leo. Há pessoas que podemos conhecer por toda uma vida, sem nos tornar amigos. Podemos conhecer pessoas cinco minutos e nos tornar amigos por toda uma vida. Praschko é assim tio importante?
- Ele é tudo o que obtive - disse Turner. - É tudo o que consegui para continuar. É a única pessoa de quem ouvi dizer que conhecia Leo, fora da embaixada. No casamento de Leo, ele ia ser o padrinho.
- Casamento? De Leo? - De Lisle se pôs ereto na cadeira, sua compostura desaparecida.
- Ele foi noivo, há muito tempo, de uma moça que se chamava Margaret Aickman. Parece que se conheceram antes de Leo vir para a embaixada.
De Lisle relaxou, em aparente alívio.
- Se você está pensando em se aproximar de Praschko... - disse ele.
- Não estou, não se preocupe; foi uma mensagem que recebi. - Tomou um gole. - Mas alguém avisou Leo para cair fora. Alguém o fez. Ele ficou maluco. Sabia que dispunha de pouco tempo e pegou tudo em que pôde pôr a mio. Tudo. Cartas, pastas. . . e quando finalmente se mandou nem se preocupou em pedir licença.
- Rawley não teria concedido; pelo menos nesta situação.
- Licença por motivos de saúde; ele a teria obtido sim, e isso foi a primeira coisa em que Rawley pensou.
- Leo levou também o carrinho?
Turner não respondeu.
- Creio que levou meu excelente ventilador elétrico. Com toda a certeza vai mesmo precisar dele em Moscou. - De Lisle se reclinou ainda mais em sua cadeira. O céu estava azul, o sol tão quente e forte como se estivesse passando através de vidro. - Se assim foi, tenho que comprar um novo.
- Alguém o avisou para cair fora - insistiu Turner. - É a única explicação. Ele entrou em pânico. É por isso que pensei em Praschko: ele tem um passado de esquerda. Companheiro de viagem foi a expressão que Rawley usou. Ele era um velho companheiro de Leo; até passaram a guerra juntos na Inglaterra. - Turner olhou para o céu.
- Você está prestes a enunciar uma teoria - murmurou De Lisle. - Posso ouvi-la se aproximando.
- Eles voltaram para a Alemanha em 1945; para prestar serviço militar; então se separaram. Seguiram rumos diferentes: Leo permanece como cidadão inglês e cobre aquele objetivo, Praschko permanece alemão e se vê envolvido com a política alemã. Os dois formam um excelente par, como agentes a longo prazo, eu diria. Talvez ambos estejam na mesma jogada... recrutados ainda na Inglaterra ao tempo em que a Rússia era uma aliada. Gradualmente, vão desfazendo o seu relacionamento. Isso é normal, é, sim. Não haverá segurança, se continuarem associados.. . ter nossos nomes ligados é um perigo: mas eles continuam seu relacionamento; continuam em segredo. Então, um dia, Praschko vem a saber. Há apenas umas semanas. Por acaso, talvez. Ele colhe o fruto no pomar de Bonn do qual vocês tanto se orgulham: Siebkron está na pista. Algum indício veio à tona; alguém falou; fomos traídos. Ou, talvez, estejam apenas atrás de Leo. Pegue suas malas, diz ele, leve o que puder e caia fora.
- Que mente horrível você deve ter - comentou De Lisle, pomposamente. - Que mente suja e inventiva.
- O problema é que ela não funciona.
- Não funciona mesmo? Não em termos humanos. Fico feliz que você reconheça essa verdade. Leo não entraria em pânico, não faz o seu tipo. Ele se mantém sob controle. E, embora possa parecer uma bobagem, gostava de nós. Ele era o nosso tipo de homem, Alan. Não do tipo deles. Ele esperava muito pouco da vida. Cavalo de mina. Era o que eu costumava pensar dele naquelas malditas baias do andar térreo. Mesmo quando ia lá em cima, parecia trazer com ele um pouco de escuridão. Achavam-no um folgazão. O folgazão extrover...
- Ninguém, com quem eu tenha falado, o achava folgazão.
De Lisle voltou a cabeça e encarou Turner com real interesse.
- Não? Que pensamento horrível. Cada um de nós pensava que o outro estava rindo. Como palhaços, em uma tragédia. Horrível - concluiu De Lisle.
- Está bem - concedeu Turner. - Ele não era adepto. Mas podia ter sido quando era mais jovem, não é mesmo?
- Podia.
- Então, ele adormece... sua consciência fica adormecida, quero dizer-
-Ahn.
- Até que Karfeld o desperta novamente: o novo nacionalismo.. . o velho inimigo. .. ..Leo desperta de repente. "Ei, o que está acontecendo?" Percebe que tudo está acontecendo de novo; diz então que a história se repete.
- Foi realmente Marx quem disse que "A história se repete, mas da primeira vez é uma tragédia e, da segunda, uma comédia?" Isso parece muito espirituoso para um alemão. Ainda que eu tenha que admitir que Karfeld torna o comunismo terrivelmente atraente.
- Como era ele? - insistiu Turner. - Como era ele realmente?
- Leo? Meu Deus, como cada um de nós é?
- Você o conhecia. Eu não.
- Você não está me submetendo a um interrogatório, está? - perguntou De Lisle, em tom que não era absolutamente humorístico. - Seria o cúmulo que eu estivesse pagando o almoço para você me tirar a máscara.
- Bradfield gostava dele?
- De quem Bradfield gosta?
- Mas tinha Leo sob observação?
- No seu trabalho sim, pois isso era importante. Rawley é um profissional.
- Ele é também católico romano, não é?
-Meu Deus - exclamou De Lisle com uma veemência completamente inesperada. - Que coisa horrível de dizer-se. Realmente não se deve compartimentar as pessoas dessa maneira, isso não funciona. A vida não se compõe apenas de tantos cowboys e tantos peles-vermelhas. Menos ainda a vida diplomática. Se você pensa que a vida é assim, seria melhor que se derrotasse a si mesmo. - Dizendo isso, De Lisle atirou a cabeça para trás e fechou os olhos, deixando que o sol o recompusesse. - Afinal de contas - adicionou ele, sua tranqüilidade bastante reavivada - isso é o que você objeta em Leo, não é? Ele sumiu e se juntou a alguma fé idiota. Deus está morto. Você não pode encarar uma coisa dessas de ambas as maneiras, pois isso seria demasiadamente medieval.
De Lisle deixou-se imergir novamente em um silêncio apreciativo.
- Tenho de Leo uma visão particular - disse ele, finalmente. - Aqui está alguma coisa para sua caderneta de notas. O que você acha do seguinte: uma maravilhosa tarde de inverno. Compareci a uma tediosa conferência alemã, eram quatro e meia e eu não tinha muito o que fazer, e, assim, resolvi dar um passeio por conta própria até as colinas por trás de Godesberg. Sol, frio, um pouco de neve, um pouco de vento... era como imagino uma ascensão aos céus. De súbito, lá estava Leo. Indisputavelmente, inquestionavelmente, positivamente Leo, agasalhado até as orelhas em um casacão negro balcânico, com um daqueles horrorosos chapéus que são usados no Movimento. Ele se encontrava de pé ao lado de um campo de futebol, observando alguns meninos dando chutes em uma bola e fumando um daqueles charutinhos sobre os quais todo mundo reclama.
- Sozinho?
- Inteiramente só. Pensei em parar, mas não parei. Não havia por ali nenhum carro que eu pudesse ver e ele se encontrava a quilômetros de qualquer lugar. Mas de súbito eu pensei, não, não pararei; ele está numa igreja. Está olhando uma infância que nunca teve.
- Você gostava dele, não gostava?
De Lisle poderia ter respondido, pois a pergunta não parecia tê-lo desconcertado, mas foi interrompido por um inesperado intruso.
- Alô. Mais um lacaio?
A voz era indistinta e áspera. Como o seu proprietário estivesse de pé diretamente em frente ao sol, Turner teve que apertar os olhos a fim de poder vê-lo; de longe discerniu o perfil ligeiramente oscilante e o cabelo negro e despenteado do jornalista que os havia cumprimentado no almoço. O jornalista estava apontando para Turner, mas sua pergunta, a julgar pela inclinação da cabeça era dirigida a De Lisle.
- O que ele é - perguntou o jornalista - pró ou contra?
- O que você deseja que eu diga, Alan? - perguntou De Lisle alegremente, mas Turner declinou de responder. - Alan Turner, Sam Allerton. De Lisle continuou, sem se aborrecer. - Sam representa um bocado de jornais, não é mesmo Sam? É um homem tremendamente poderoso. Não que ele se preocupe com poder. Jornalistas nunca se preocupam com isso.
Allerton continuava a fitar Turner.
- De onde ele vem?
- Da cidade de Londres - respondeu De Lisle.
- De que parte da cidade de Londres?
- Ag e Fish.
- Mentira.
- O Ministério das Relações Exteriores, então. Você não tinha desconfiado?
- Quanto tempo ele vai ficar por aqui?
- Está apenas de visita.
- Durante quanto tempo?
- Você sabe como são os visitantes.
- Eu sei de que tipo são suas visitas - disse Allerton. - Ele é um perdigueiro.
Os olhos mortiços e claros de Turner fizeram-no lembrar-se: os sapatões pesados, o rosto inexpressivo e o olhar fixo e sombrio.
- Belgrado - disse ele, por fim. - Foi lá. Um cara lá da embaixada se meteu com uma espiã e foi fotografado. Nós todos tivemos que silenciar sobre o fato, ou o embaixador não nos cederia mais nenhum vinho do Porto. Segurança Turner, é o que você é. O rapaz de Bevin. Você prestou um serviço também em Varsóvia, não? Lembro-me disso. Alguém com quem você foi muito duro. Também tivemos que esconder isso sob o tapete.
- Caia fora, Sam - falou De Lisle.
Allerton começou a rir. Era um barulhão terrível, implacável e maldoso; na verdade parecia até que lhe causava dor, pois ele se sentou e se interrompeu a si mesmo com gritos baixos e pornográficos. Sua cabeleira negra e oleosa sacudia-se como uma peruca mal ajeitada; sua pança, protuberante em relação a sua linha da cintura, balançava-se incertamente.
- Bem, Peter, como está Luddi Siebkron? Vai nos manter sãos e salvos, não é mesmo? Vai salvar o Império?
Sem uma palavra, Turner e De Lisle se levantaram e se encaminharam pelo gramado até o estacionamento.
- Vocês por acaso ouviram as notícias? - gritou Allerton por trás deles.
- Que notícias?
- Vocês não sabem mesmo de nada. O Ministro do Exterior da Alemanha Federal acaba de partir para Moscou. Conversações de alto nível sobre o tratado de comércio soviético-alemão. Vão juntar-se ao Comecon e assinar o Pacto de Varsóvia. Tudo para agradar Karfeld e enfraquecer Bruxelas. A Inglaterra de fora, a Rússia por dentro. Um não agressivo Rappallo. O que vocês pensam disso?
- Que você é um tremendo mentiroso - disse De Lisle.
- Bem, é gostoso imaginar-se - replicou Allerton com uma deliberada entonação de homossexual. - Mas não me venha dizer que isso não pode acontecer, meu querido, porque um dia acontecerá. Um dia isso vai acontecer. Eles têm que proceder assim. Dão um tapa na cara de Mamãe. Encontram um Papai para a terra natal. Isso já não é mais o Ocidente, é? Então, quem vai ser o Papai? - Allerton levantara a voz, enquanto os dois continuavam andando. - É isso o que vocês, estúpidos lacaios, não compreendem! Karfeld é a única pessoa na Alemanha que lhes está falando a verdade: a Guerra Fria está terminada para todo mundo, exceto para os fodidos dos diplomatas! - Sua advertência final os atingiu, quando batiam as portas do cano. - Não se preocupem, queridos - ouviram-no dizer. - Agora podemos ferrar no sono, pois Turner está aqui.
O pequenino carro esporte seguiu seu caminho lentamente sob as arcadas, salutares da colônia americana. Um sino de igreja, amplificado ao máximo, celebrava a luz do sol. Nos degraus da capela da Nova Inglaterra, um par de noivos encarava o flash das máquinas fotográficas. Entraram na Koblenzerstrasse e o ruído os engolfou como um furacão. Lá no alto, indicadores eletrônicos mostravam as velocidades teóricas que deveriam ser seguidas. As fotografias de Karfeld tinham-se multiplicado. Duas Mercedes, com algarismos egípcios nas placas, passaram por eles, endireitaram-se e sumiram.- Aquele elevador - disse Turner, subitamente. - Lá na embaixada. Há quanto tempo está parado?
- Meu Deus, quando aconteceu alguma coisa? Em meados de abril, suponho.
- Tem certeza disso?
- Você está pensando no carrinho? Que desapareceu também nos meados de abril?
- Você não é mau - disse Turner. - Você não é absolutamente mau.
- E você estaria cometendo o mais terrível dos enganos, se jamais se julgasse um especialista - retorquiu De Lisle, com a mesma imprevisível força que Turner já detectara nele antes. - Apenas não continue a pensar que está de avental branco; não imagine que somos todos espécimes de laboratório. - De Lisle deu um violento golpe de direção a fim de evitar uma carreta e imediatamente um clamor de fúria se ergueu por trás deles.- Estou salvando sua alma, ainda que você possa não estar notando. - De Lisle sorriu. - Desculpe. Siebkron me ataca os nervos, isso é tudo.
- Ele anotou um P. em seu diário - disse Turner, de súbito. - Depois do Natal encontrar-me com P. Oferecer um jantar a P. Em seguida nada mais a respeito. P poderia ter sido Praschko.
- Poderia.
- Quais os ministérios que se situam em Bad Godesberg?
- Construções, Ciências e Saúde. Tanto quanto eu saiba são esses três somente.
- Ele tomava parte em uma reunião todas as quintas-feiras à tarde. Em qual desses ministérios sena?
De Lisle parou num sinal de tráfego, e Karfeld franziu a cara para eles como um ciclope, um dos olhos arrancado por uma mão dissidente.
- Não acredito que ele comparecesse a uma reunião - disse De Lisle, cautelosamente. - Pelo menos recentemente, não.
- O que você está querendo dizer?
- Exatamente isso.
- Pelo amor de Deus?
- Quem disse a você que ele ia?
- Meadowes. E Meadowes soube disso através do próprio Leo, que falou tratar-se de uma reunião semanal regular e com autorização de Bradfield. Algo relacionado com reclamações.
- Ó, meu Deus - tornou De Lisle em voz baixa. Arrancou, mantendo-se na pista da esquerda contra o predatório clarão de uma Porsche branca.
- O que significa esse "Ó, meu Deus"?
- Não sei. Não é o que você talvez esteja pensando. Não havia nenhuma reunião, pelo menos para Leo. Não em Bad Godesberg nem em qualquer outro lugar; não às quinta-feiras, nem em outro dia qualquer. Até a chegada de Rawley, ele, na verdade, comparecia a uma reunião de nível inferior no Ministério das Construções. Eram discutidos contratos particulares para a reparação de casa alemãs danificadas durante manobras militares dos Aliados. O carimbo de Leo selava essas propostas.
- Até a chegada de Bradfield? -Sim.
- E o que aconteceu então? As reuniões deixaram de ser realizadas, é isso? Como todo o resto de seu trabalho.
- Mais ou menos.
Em lugar de entrar à direita para o portão da embaixada, De Lisle tomou a esquerda e se preparou para outra volta.
- O que você quer dizer com "mais ou menos"?
- Rawley acabou com isso.
- Com a reunião?
- Já lhe disse: era uma coisa mecânica. Podia ser resolvida por correspondência.
Turner estava quase em desespero.
- Por que você está fazendo jogo de palavras? O que há? Bradfield acabou ou não com a reunião? Que papel ele desempenhou nisso?
- Calma - aconselhou De Lisle, tirando uma das mãos do volante. - Não se apresse. Rawley determinou que eu fosse em lugar de Leo. Ele não queria que a embaixada fosse representada por alguém como Leo.
- Alguém como.. .
- Por um temporário. Aí está! Por um temporário, sem status pleno. Ele achava que isso estava errado e mandou que eu substituísse Leo. Depois disso, Leo nunca voltou a falar comigo. Pensava que eu o tivesse intrigado. Agora chega. Não me pergunte mais nada. - Estavam passando novamente pela garagem Arai, indo na direção norte. O empregado da bomba de gasolina reconheceu o carro e fez um gesto amistoso para De Lisle. - O problema é seu. Não vou discutir Bradfield com você nem que me bata até sua cara ficar azul. Ele é meu colega, meu superior e. . .
- E seu amigo! Cristo me perdoe: a quem vocês representam por aqui? Vocês mesmos ou os pobres e malditos contribuintes? Vou lhe dizer quem: o clube. O seu clube. O maldito Ministério das Relações Exteriores; e se você vir Rawley Bradfield parado na Ponte de Westminster e agindo como um camelô para conseguir algum dinheiro extra, o melhor que você faz é virar a cara.
Turner não estava gritando. Era mais a completa lentidão de suas palavras que lhe emprestavam força.
- Vocês me fazem vomitar. Todos vocês. O circo todo. Vocês não davam dois pênies por Leo, nenhum de vocês, enquanto ele estava aqui. Comum como pó, não era mesmo? Sem origem, sem infância, sem nada. Vamos empurrá-lo para o outro lado do rio, onde ele não será notado! Escondam-no nas catacumbas junto do pessoal alemão! Merece um drinque, mas não um jantar. E o que acontece agora? Ele deserta e leva junto metade dos segredos de vocês como medida de segurança, e de repente vocês se sentem culpados e enrubescem como um bando de virgens, cobrindo o colo com as mãos e não dirigindo a palavra a homens desconhecidos. Todo mundo: você, Meadowes, Bradfield. Você sabe como ele abriu seu caminho por aqui, como ele enganou a todos; como ele roubou e trapaceou. Você também sabe de algo mais: uma amizade, um caso amoroso, alguma coisa que o transformou em alguém especial para você, que o fez interessante. Há todo um mundo em que ele viveu e nenhum de vocês quer dar nome a essas coisas. O que foi que houve? O que foi que houve? Onde, diabo, ia ele às quintas-feiras à tarde, se não ia o ministério? Quem correu com ele? Quem o protegeu? Quem lhe dava ordens e dinheiro e arrancava dele informações? Quem segurou sua mão? Ele é um espião, pelo amor de Deus! Ele pôs a mão na caixa do dinheiro! E no momento em que vocês descobrem este fato, ficam todos do lado dele!
- Não - protestou De Lisle. Estavam parando em frente do portão; policiais convergiram sobre o carro, batendo nos vidros. Ele os deixou esperando. - Você entendeu errado. Você e Leo formam uma parelha igual. Vocês estão do outro lado da cerca. Ambos. Esse é o problema de vocês. Quaisquer que sejam as definições, quaisquer que sejam os rótulos. É por isso que você está esperando no ar.
Entraram no estacionamento, e De Lisle conduziu o carro em direção da cantina onde Turner estivera pela manhã, apreciando o campo.- Tenho que ver a casa de Leo - insistiu Turner.
- Tenho que ver. - Estavam ambos olhando para a frente, através do pára-brisa.
- Creio que você já me disse isso.
- Está bem, esqueça o assunto.
- Por que esquecer? Não tenho dúvidas de que você irá mesmo, de qualquer maneira. Mais cedo ou mais tarde.
Saíram do cano e caminharam vagarosamente pelo asfalto. Os estafetas se encontravam por ali, deitados na grama, suas motos estacionadas em torno do mastro da bandeira. Os gerânios, marcialmente dispostos, brilhavam como pequeninos guardas à beira do gramado.
- Ele amava o Exército - disse De Lisle, enquanto galgavam os degraus. - Realmente o amava.
Quando pararam para mais uma vez para mostrar seus passes ao sargento com cara de doninha, Turner se voltou casualmente e olhou na direção da rua.
- Olhe só! - exclamou ele, de súbito. - É aquele mesmo par que nos pegou no aeroporto.
Um Opel negro havia-se aproximado do estacionamento; dois homens se encontravam sentados no banco da frente; de seu vantajoso observatório nos degraus, Turner podia facilmente perceber os múltiplos reflexos do grande espelho retrovisor rebrilhando ao sol.
- Ludwig Siebkron nos acompanhou ao almoço - comentou De Lisle, com um sorriso seco - e agora nos trouxe para casa. Eu o avisei: não pense que é um especialista.
- Então, onde você se encontrava na sexta-feira à noite?
- De tocaia - explodiu De Lisle - esperando para assassinar Lady Ann e roubar seus diamantes de valor incalculável.
A sala de codificação estava novamente aberta. Cork se encontrava deitado em uma cama de rodas, um livro sobre bangalôs do Caribe largado no chão ao seu lado. Sobre a mesa na sala de dia encontrava-se um envelope azul da embaixada, dirigido a Alan Turner Esquire. O nome estava escrito a máquina; o estilo era seco e direto. Havia inúmeras coisas, dizia quem escrevera a carta, que o Sr. Turner poderia gostar de conhecer com relação ao assunto que o havia trazido a Bonn. Se lhe fosse conveniente, continuava o signatário, poderia vir tomar um cálice de vinho no endereço acima às seis e meia. O endereço era em Bad Godesberg e quem assinava era a Sita. Jenny Pargiter, da seção de imprensa e informações, atualmente adida à chancelaria. Assinara o nome e o datilografara por baixo da firma para fins de clareza; a letra P era inusitadamente grande, admitiu Turner; ao abrir o diário azul, ele concedeu a si mesmo um sorriso raro, ainda que enigmático, de expectativa. P de Praschko; P de Pargiter. E P era também a inicial no diário. Vamos Leo, vamos dar uma olhadela em seu criminoso segredo.
Capítulo 8
Jenny Pargiter
Suponho - começou Jenny Pargiter, em palavras ensaiadas - que o senhor esteja acostumado a lidar com assuntos delicados.
O xerez se encontrava entre eles, sobre a mesinha de tampo de vidro. O apartamento era escuro e feio: as cadeiras, vitorianas de vime, as cortinas, alemãs e muito pesadas. Reproduções de quadros pendiam das paredes da saleta de jantar.
- Como um médico, o senhor deve ter também padrões de confiança profissional.
- Claro - assegurou Turner.
- Foi mencionado na reunião desta manhã na chancelaria que o senhor estava investigando o desaparecimento de Leo Harting. Fomos avisados de que não deveríamos comentar esse fato, nem entre nós mesmos.
- Mas têm autorização para discutir o assunto comigo - observou Turner.
- Sem dúvida. Mas, naturalmente, eu gostaria de saber até onde uma confidencia poderá chegar. Por exemplo, qual é o seu relacionamento com o Departamento de Pessoal?
- Isso depende da informação.
A moça havia erguido o cálice de xerez até a altura de seus olhos e parecia estar avaliando o conteúdo do líquido. Tratava-se evidentemente de uma atitude destinada a demonstrar sua sofisticação e sua abertura de espírito.
- Suponhamos que alguém. . . suponhamos que eu mesma tenha sido leviana. Em um assunto pessoal.
- Isso depende da pessoa com quem a senhorita foi leviana - redarguiu Turner, e Jenny Pargiter enrubesceu subitamente.
- Não é isso absolutamente o que estou querendo dizer.
- Olhe aqui - disse Turner, observando a moça - se a senhorita me disser em confiança que esqueceu um volume de pastas no ônibus, terei que dar os detalhes ao Departamento de Pessoal. Se a senhorita me disser que de vez em quando sai com um namorado, não vou desmaiar por causa disso. A razão principal - continuou Turner, empurrando seu cálice por cima da mesa para que a moça tornasse a enchê-lo - é que o Departamento de Pessoal não quer saber que nós existimos. - As maneiras de Turner eram bastante casuais, como se ele pouco se importasse. Mantinha-se sentado, impassivelmente, ocupando toda a cadeira.
- Há esse aspecto de proteger outras pessoas, terceiros que não podem necessariamente falar por si mesmos.
- Há também a questão de segurança - rebateu Turner. - Se a senhorita não julgasse tratar-se de algo importante, não teria, em primeiro lugar, procurado me ver. Fica a seu critério. Não lhe posso oferecer quaisquer garantias.
A moça acendeu um cigarro com movimentos abruptos e angulares. Não era uma moça feia, mas parecia vestida de maneira muito infantil ou muito idosa, de modo que qualquer que fosse a idade de Turner ela não seria sua contemporânea.
- Aceito - concordou ela, e ficou olhando para ele sombriamente, como que avaliando o quanto Turner poderia levar. - No entanto, o senhor entendeu mal as razões pelas quais eu lhe pedi para vir até aqui. É o seguinte. Como tenho a certeza de que lhe contarão todos os tipos de boatos a respeito de mim e de Harting, achei que seria melhor que o senhor ouvisse de mim a verdade.
Turner baixou o cálice e pegou sua caderneta de notas.
- Cheguei aqui às vésperas do Natal - disse Jenny Pargiter - vinda de Londres. Antes disso eu estava em Djacarta. Voltei a Londres pretendendo casar-me. O senhor não leu sobre o meu noivado?
- Lamento dizer que não - respondeu Turner.
- A pessoa de quem eu estava noiva decidiu, à última hora, que não éramos feitos um para o outro. Foi uma decisão muito corajosa. Fui então destacada para Bonn. Nós já nos conhecíamos de muito tempo; na universidade havíamos seguido o mesmo curso e sempre presumi que houvesse muita coisa de comum entre nós. A outra pessoa decidiu de maneira diferente. É para isso que servem os noivados. Estou completamente satisfeita. Não há razão alguma para que alguém sinta pena de mim.
- A senhorita chegou aqui pelo Natal?
- Pedi, particularmente, que pudesse estar aqui para as festas. Nos anos anteriores sempre passamos o Natal juntos. Exceto, é claro, quando eu estava em Djacarta. A... separação, nessa época, certamente seria dolorosa para num. Eu estava mais do que ansiosa por aliviar a tensão em uma nova atmosfera.
- Entendo.
- Como uma mulher solteira na embaixada, é comum receber-se convites nessa época. Quase todo mundo na chancelaria me convidou para passar o Natal em sua casa. Os Bradfields, os Crabbes, os Jacksons, os Gavestons todos me convidaram. Meadowes também me convidou. O senhor, sem dúvida, conheceu Arthur Meadowes.
-Sim.
- Meadowes é viúvo e mora com sua filha, Myra. Ele é na realidade um 83, embora não usemos mais essa classificação. Achei muito tocante ser convidada por um membro do pessoal menos graduado.
Jenny tinha um sotaque muito leve, mais provinciano do que regional, e apesar de todas as suas tentativas de se desfazer dele, o sotaque a desafiava o tempo todo.
- Em Djacarta sempre mantivemos essa tradição. Nós nos misturávamos mais. Em uma embaixada maior, como a de Bonn, as pessoas tendem a permanecer em seus grupos. Não estou sugerindo que devesse haver uma assimilação total: eu mesma encararia isso como ruim. Os As, por exemplo, tendem a ter gostos diferentes, do mesmo modo que diferentes interesses intelectuais dos Bs. O que estou sugerindo é que em Bonn as distinções são muitas e muito rígidas. Os As permanecem junto com os As e os Bs com os Bs, mesmo dentro das diferentes seções: os economistas, os adidos, a chancelaria; todos formam panelinhas. Não acho isso certo. O senhor aceita um pouco mais de xerez?
- Obrigado.
- Assim, aceitei o convite de Meadowes. O outro convidado era Harting. Passamos um dia agradável, ficamos lá até a noite e depois saímos. Myra Meadowes ia sair. . . ela tem andado muito doente, o senhor sabe; teve uma ligação em Varsóvia, com alguém local indesejável e tudo andou muito perto de terminar em uma tragédia. Pessoalmente, sou contra casamentos precipitados. Myra Meadowes ia a uma festa de jovens, e seu pai tinha sido convidado pelos Corks e, assim, não havia razão para que permanecêssemos. Quando estávamos saindo, Harting sugeriu um passeio. Ele conhecia um lugar, não muito distante, e seria ótimo se fôssemos até lá de carro, respirar um pouco de ar fresco depois de tantas comidas e bebidas. Eu gosto muito de exercício. Aceitei o convite e em seguida ele propôs que voltássemos para sua casa e que jantássemos juntos. Mostrou-se muito insistente.
Jenny não estava mais olhando para Turner. As pontas dos seus dedos se tocavam no colo, fazendo uma cesta das mãos.
- Achei que seria errado uma recusa. É uma dessas decisões que as mulheres acham extremamente difíceis. Eu ficaria muito satisfeito em outra noite, mais cedo, mas não quis ofendê-lo. Afinal de contas era o dia do Natal e o comportamento de Harting durante o passeio tinha sido completamente inquestionável. Por outro lado, deve ser dito que eu mal o tinha visto antes daquele dia. Concordei, na eventualidade, mas disse que não desejava chegar tarde em casa. Ele aceitou essa imposição e eu o acompanhei em meu carro até Kònigswinter. Para minha surpresa verifiquei que ele havia preparado tudo para a minha ida. A mesa estava posta para duas pessoas. Chegou mesmo a convencer o encarregado das caldeiras que acendesse a lareira. Após o jantar, Harting declarou que me amava. - Jenny deu uma longa tragada no cigarro. O tom de sua voz era mais casual do que nunca: certas coisas precisavam ser ditas. - Ele me falou que em toda sua vida nunca havia sentido uma tal emoção. Desde o primeiro dia em que cheguei à embaixada ele estava de cabeça virada. Apontou na direção das luzes das barcaças lá no rio. "Eu ficava na janela de meu quarto", disse, "e ficava olhando para elas durante toda a noite. Uma manhã depois da outra, eu apreciava a madrugada raiar sobre o rio." Tudo isso se devia a sua obsessão por mim. Fiquei tonta.
- O que a senhorita disse?
- Não tive chance de dizer coisa alguma. Ele queria me dar um presente. Mesmo que jamais me visse novamente, queria que eu aceitasse esse presente de Natal como um símbolo de seu amor. Harting desapareceu no escritório e voltou com um pacote, embrulhado e pronto, com uma inscrição: "Para meu amor." Naturalmente eu estava inteiramente perdida. "Não posso aceitar esse presente", falei. "Eu me recuso. Não posso permitir que você me dê coisas. Isto me deixa em situação desvantajosa." Expliquei-lhe que, embora ele fosse inglês sob inúmeros aspectos, a esse respeito os ingleses agiam de maneira diferente. No continente era bastante comum ter uma mulher de repente, mas na Inglaterra a corte era um assunto longo de reflexão. Teríamos que nos conhecer melhor um ao outro, comparar nossos pontos de vista. Havia a discrepância de nossa idade; eu tinha que levar em conta minha carreira. Eu não sabia o que fazer - aduziu ela, desanimadamente. O brilho havia desaparecido de sua voz; a moça estava desanimada e um tanto patética. - Ele ficou repetindo que afinal de contas era Natal e que eu devia receber o que estava me dando, como um presente comum de Natal.
- Qual era o presente?
- Um secador de cabelos. Ele disse que acima de tudo apreciava o meu cabelo. De manhã via o sol brilhar sobre os meus cabelos. Nas reuniões na chancelaria, o senhor compreende. Ele devia ter falado figurativamente, pois estávamos aqui com um inverno terrível. - A moça tomou uma respiração curta. - Deve ter custado para ele umas 20 libras. Ninguém, nem mesmo meu noivo nós períodos em que fomos mais íntimos, jamais me deu algo assim tão valioso.
Jenny Pargiter encenou um segundo ritual com a caixa de cigarros, mergulhando sua mio para a frente e a detendo subitamente, selecionando um cigarro como se fosse um chocolate, não este mais aquele, acendendo-o com uma profunda ruga na testa.
- Nós nos sentamos e ele pôs um disco na vitrola - continuou ela. - Lamentei não gostar muito de música, mas achei que ela poderia distraí-lo. Estava com muita pena dele e relutante em deixá-lo naquelas condições. Ele se mantinha olhando para mim. Eu não sabia para onde olhar. Finalmente, aproximou-se e tentou me abraçar e eu disse que tinha de ir para casa. Acompanhou-me até o carro. Foi muito correto. Felizmente, tínhamos mais dois dias de folga e eu pude decidir o que fazer. Ele me telefonou duas vezes me convidando para jantar, e eu recusei. No fim do feriado a minha resolução já estava tomada. Escrevi-lhe uma carta e lhe devolvi o presente. Achei que não havia outra solução para mim. Fui cedo e deixei o pacote na guarda da chancelaria. Expliquei em minha carta que tinha pensado longamente sobre tudo o que ele dissera e estava convencida de que nunca seria capaz de retribuir sua afeição. Assim, seria errado de minha parte encorajá-lo e, como éramos colegas e iríamos nos ver com freqüência, achei que era prudente dizer-lhe tudo isso imediatamente, antes...
- Antes de quê?
- Que os falatórios começassem - respondeu a moça, com súbito arrebatamento. - Nunca vi um lugar igual a este para falatórios. Ninguém pode se movimentar sem que façam algum comentário malicioso a respeito.
- Que comentários fizeram a seu respeito?
- Só Deus sabe - respondeu ela, inutilmente. - Só Deus sabe.
- Com que guarda a senhorita deixou o pacote?
- Walter, o mais novo de todos. É filho de Macmullen.
- Ele tocou no assunto com outras pessoas?
- Pedi-lhe que encarasse o assunto como confidencial.
- Devo confessar que essa recomendação deve tê-lo impressionado admitiu Turner.
Jenny Pargiter encarou Turner zangada, seu rosto vermelho de embaraço.
- Muito bem. Então a senhorita lhe devolveu o presente. O que ele fez em seguida?
- Naquele dia, ele compareceu à reunião na chancelaria e me desejou bom-dia, como se nada tivesse acontecido. Sorri para ele e isso foi tudo. Estava pálido, mas impávido. .. triste, mas controlado. Senti que o pior já havia passado. . . Felizmente, ele estava prestes a iniciar uma nova função no arquivo da chancelaria e eu tinha esperança de que isso desviasse sua mente para outras coisas. Durante algumas semanas mal falei com ele. Eu o via na embaixada ou em atividades sociais e ele parecia bastante feliz. Não me fez qualquer alusão à noite de Natal nem ao secador de cabelos. Ocasionalmente, durante coquetéis, ele se aproximava e ficava perto de mim e eu sentia que. . . ele desejava me sentir por perto. Às vezes percebia seus olhos em cima de mim. Uma mulher percebe essas coisas; sentia que ele não havia ainda desistido completamente. O jeito que ele tinha de me olhar era... não deixava dúvidas. Não consigo saber por que não percebi tudo isso antes. No entanto, eu continuava a não encorajá-lo. Fora essa a decisão que eu tomara e quaisquer que fossem as tentações imediatistas para aliviar-lhe as tensões, eu sabia que a longo prazo nenhum objetivo seria atingido. . . por estar cedendo a ele. Eu achava também que qualquer coisa assim tão repentina e.. . irracional passaria rapidamente.
- E assim fez?
- Continuamos assim por cerca de uma quinzena. Meus nervos começavam a sentir-se atacados. Parecia que eu era incapaz de ir a uma festividade qualquer, de aceitar qualquer convite sem vê-lo. Ele nem mesmo se dirigiu mais a mim. Apenas me olhava. Onde quer que eu estivesse seus olhos me seguiam. . . Seus olhos são muito sombrios. Eu os chamaria de olhos espirituais. Castanho-escuros, como seria de esperar-se, mas revelando profundo senso de dependência. . . Por fim, eu já tinha até medo de sair. Acho que, naquele período, eu tinha até um pensamento indigno. Eu desconfiava de que ele andava lendo minha correspondência.
- E agora, ainda pensa assim?
- Todos nós dispomos de escaninhos próprios no arquivo. Para telegramas e correspondência. Todos no arquivo ajudam a separar a documentação que chega. Há o costume aqui, do mesmo modo que na Inglaterra, que os convites sejam enviados sem fechar. Teria sido bem possível para ele ler o que continham.
- Por que um tal pensamento era indigno?
- Porque não era verdade - redargüiu ela. - Acusei-o disso e ele me garantiu que não era verdade.
- Entendo.
A voz da moça se tornou ainda mais pedagógica. Um tom decidido, não revelando qualquer dúvida.
- Ele nunca faria uma coisa dessas. Não fazia parte de sua natureza, isso jamais havia passado por sua cabeça. Ele me garantiu categoricamente que não estava. .. me espreitando. Essa foi a expressão que ele usou, e que eu imediatamente lamentei. Não posso imaginar como me deixei levar a uma tão ridícula metáfora. Ao contrário, assegurou ele, estava meramente seguindo seu padrão social normal; se isso me desagradava, ele iria mudá-lo ou declinar de todos os futuros convites até que eu lhe dissesse que pó* dia aceitá-los. Nada estava mais longe de sua cabeça do que ser uma carga para mim.
- Então, depois disso, voltaram a ser amigos, não é mesmo? Turner percebeu a busca da moça por palavras evasivas, observou-a equilibrar-se desajeitadamente na borda da verdade e desajeitadamente recuar.
- Desde 23 de janeiro ele não voltou a falar novamente comigo deixou ela escapar. Mesmo àquela pouca luz, Turner percebeu lágrimas que desciam por seu rosto, enquanto, a moça deixava a cabeça pender para a frente e suas mãos se erguiam rapidamente para ocultá-las. - Não posso prosseguir. Penso nele o tempo todo.
Pondo-se de pé, Turner abriu a porta do armário de bebidas e serviu meio copo de uísque.
- Tome - disse ele, com delicadeza. - Disto é que a senhorita gosta. Beba e pare de fingir.
- É o excesso de trabalho. - A moça pegou o copo. - Bradfield nunca relaxa. Ele não gosta de mulheres. Ele as odeia. Ele deseja nos enterrar a todas.
- Agora me conte o que aconteceu no dia 23 de janeiro.
Jenny Pargiter estava sentada de lado na cadeira, com as costas voltadas para Turner, e sua voz tinha se alteado acima do seu controle.
- Ele me ignorava. Fingia estar engolfado em seu trabalho. Eu ia até o arquivo para apanhar meus documentos e ele nem levantava os olhos. Pelo menos para mim. Não o fazia mais. Podia ser que o fizesse para outras pessoas, mas não para mim. Oh, não. Ele nunca se interessava muito pelo trabalho; bastava observá-lo nas reuniões da chancelaria para perceber tal fato. Ele era preguiçoso por natureza. Leviano. No momento porém em que escutava que eu estava me aproximando, não poderia trabalhar com mais afinco. Olhava para outro lado, mesmo que eu o cumprimentasse. Ainda que eu me encaminhasse diretamente para ele no corredor, era a mesma coisa. Ele nem me via. Eu não existia. Pensei que fosse acabar maluca. Não estava direito: afinal de contas ele é apenas um B, o senhor sabe, e temporário, na realidade ele não é nada. Ele não tem significado algum e o senhor devia ouvir o que dizem a respeito dele. . . Vigarista, é o que consideram. Uma boa cabeça mas desequilibrado. - Por um momento, ela pairou muito acima da classe de Harting. - Escrevi-lhe cartas. Liguei para o seu telefone em Königswinter.
- Todos sabiam, não é mesmo? A senhorita espalhou tudo, não foi?
- Primeiro, ele deu em cima de mim. . . cercou-me com declarações de amor. . . na verdade como um gigolô. Claro, há uma parte dentro de mim que percebe através de tudo isso, é certo, não se preocupe. Com esses extremos de calor e de gelo desse jeito: quem ele pensa que é?
A moça permanecia sentada de lado, a cabeça enterrada nos braços, os ombros sacudindo ao ritmo de seus soluços.
- A senhorita tem que me dizer - falou Turner. Estava de pé, perto dela, com a mão em seu braço. - Escute. A senhorita tem que me contar o que aconteceu no final de janeiro. Foi alguma coisa importante, não foi? Algo que ele pediu que a senhorita fizesse para ele. Algo político. Alguma coisa especial de que a senhorita teve medo. Ele influiu sobre a senhorita . . . pegou-a de surpresa. . . e conseguiu o que queria; alguma coisa muito simples que ele não podia conseguir por si mesmo. E depois de conseguir o que queria não quis mais saber da senhorita.
Os soluços cessaram.
- A senhorita lhe disse alguma coisa que ele precisava saber; a senhorita lhe fez um favor: um favor para ajudá-lo em seu trabalho. Muito bem, a senhorita não foi a única. Há algumas outras pessoas que fizeram a mesma coisa, de uma forma ou de outra, acredite-me. Então, o que é isso? - Ajoelhou-se ao lado dela. - Foi isso que julgou indigno? Foi isso que afetou terceiras pessoas? Diga-me! Foi alguma coisa que a deixou aterrorizada! Diga-me o que foi!
- Oh, Deus, eu lhe emprestei as chaves. Eu lhe emprestei as chaves disse Jenny Pargiter.
- Continue!
- Do funcionário de plantão. Todas elas. Ele falou comigo e me implorou. . . não, não implorou. Não.
A moça estava ereta na cadeira, o rosto branco. Turner encheu-lhe o copo novamente e tornou a pô-lo em suas mãos.
- Eu estava de serviço. Serviço de plantão à noite. Há coisas que temporários não podem tomar conhecimento: instruções especiais, planos de emergência. . . Eu havia ficado para distribuir uma porção de telegramas; deviam ser umas sete e meia, oito horas. Eu estava saindo da sala de codificação. . . e indo para o arquivo e o vi por ali. Como se estivesse me esperando. Sorrindo. "Jenny", disse ele, "que agradável surpresa." Fiquei muito feliz.
Os soluços irromperam novamente.
- Fiquei muito feliz. Ansiava que ele voltasse a falar comigo de novo. Ele estava ali esperando por mim; eu sabia que estava; ele estava fingindo ter sido casual. Eu me dirigi a ele: "Leo." Jamais o havia tratado assim antes. Leo. Conversamos, de pé, no corredor. Que surpresa agradável, ele não se cansava de repetir. Será que ele poderia me convidar para jantar? Lembrei-lhe, no caso em que tivesse esquecido, de que eu estava de plantão. Mas isso não pareceu aborrecê-lo. Que pena, que tal amanhã? E no fim da semana? Telefonaria para mim no sábado pela manhã, estaria bem? Estaria ótimo, respondi, eu apreciaria muito. Poderíamos antes dar uma volta, sugeriu ele, pelo campo de futebol? Eu estava tão feliz, ainda tinha em minhas mãos todos aqueles telegramas, então eu disse, bem, é melhor que eu me mexa, vou colocar estes telegramas no escaninho de Arthur Meadowes. Ele quis tirar os telegramas de minha mão, mas eu disse que não era preciso, que eu mesma me encarregaria disso, estava tudo bem. Estava-me voltando para ir embora. . . eu queria ser a primeira a me afastar, o senhor entende, eu não queria vê-lo se afastando de mim. Eu já estava indo embora, quando ele falou. "Oh, Jenny, escute aqui, por acaso. . ." O senhor conhece a maneira dele falar. "Bem, aconteceu uma coisa ridícula, o pessoal do coro está todo aí embaixo e ninguém consegue abrir a sala de reuniões. Alguém trancou a porta e não conseguimos encontrar a chave. Será que você não nos arranja uma?" Parecia de fato um pouco esquisito ; em primeiro lugar eu não conseguia imaginar por que alguém desejaria trancá-la. Respondi que sim, que iria lá embaixo e abriria a sala; tinha só que verificar antes alguns telegramas chegados, a fim de providenciar a distribuição. Ele sabia que eu dispunha de uma chave; o funcionário de plantão dispõe de uma cópia das chaves de todas as dependências da embaixada. "Não precisa que você desça", disse ele. "Basta me arranjar a chave que eu faço isso para você. Não levará dois minutos". Ele percebeu minha hesitação.
A moça fechou os olhos.
- Ele era tão sensível - explodiu Jenny. - Magoava-se com tanta facilidade. Eu já o havia acusado de violar minha correspondência. Eu o amava. . . juro que nunca amei ninguém mais... - Gradualmente, o choro de Jenny parou.
- Então a senhorita lhe deu as chaves? Todo o molho? As chaves das salas, dos cofres...
- Chaves de todas as mesas e dos arquivos de aço; das portas da frente e dos fundos do prédio e a chave para ligar o alarme no arquivo da chancelaria.
- As chaves do elevador?
- Naquela época o elevador não estava trancado... as grades não tinham sido instaladas. Instalaram naquele fim de semana.
- Durante quanto tempo ele ficou com as chaves?
- Uns cinco minutos. Talvez menos. Não é muito tempo, é? - Segurara o braço de Turner, suplicante. - Diga que não havia tempo.
- Para fazer moldes? Ele poderia ter feito 50 moldes, se soubesse quais as chaves que estava procurando.
- Mas ele precisaria de cera ou qualquer outro material maleável. Andei perguntando.
- Ele poderia ter esse material pronto em sua sala - disse Turner, indiferentemente. - Ele vivia no andar de baixo. Não se preocupe - aduziu, delicadamente. - Pode ser que ele tenha somente deixado o coro entrar. Não permita que sua imaginação voe demais.
Jenny havia parado de chorar. Sua voz acalmou-se. Ela falava em um tom de auto-incriminação.
- Não havia ensaio de coro nessa noite. O ensaio do coro é às sextas-feiras. Naquela noite era quinta.
- Como se lembrou? Perguntou na guarda da chancelaria?
- Eu já sabia! Eu já sabia quando lhe entreguei as chaves! Disse para mim mesma que não devia fazer aquilo, mas fiz. Eu, porém, tinha que confiar nele. Era um ato de cessão, de dar. O senhor percebe? Um presente de amor, um ato de amor. Como posso esperar que um homem entenda uma coisa dessas?
- E depois que a senhorita cedeu - falou Turner, pondo-se de pé ele não a procurou mais, não foi assim?
- É como fazem todos os homens, não é?
- Ele telefonou para a senhorita no sábado?
- O senhor sabe que não - respondeu ela, com o rosto mergulhado no antebraço.
Turner fechou a caderneta de notas.
- A senhorita está me ouvindo? -Sim.
- Alguma vez ele lhe mencionou uma mulher: uma Margaret Aickman? Ele foi noivo dela. Ela também conhecia Harry Praschko.
- Não.
- Nenhuma outra mulher?
-Não.
- Ele alguma vez falou sobre política?
-Não.
- De algum modo ele deu à senhorita algum motivo para imaginar que ele fosse uma pessoa de sólidos conhecimentos de extrema esquerda?
-Não.
- Alguma vez a senhorita o viu em companhia de pessoas suspeitas? -Não.
- Tio Otto?
- Não.
- Alguma vez ele mencionou Praschko? Bem, sim ou não? Alguma vez ele mencionou Praschko? Está me ouvindo?
- Ele disse que Praschko era o único amigo que jamais teve. - Ela recomeçou a chorar e Turner aguardou.
- Mencionou quais as idéias políticas de Praschko?
-Não.
- Disse que ainda eram amigos?
A moça sacudiu a cabeça.
- Alguém almoçou com Harting na última quinta-feira. No dia anterior a seu desaparecimento. No Maternus. Foi a senhorita?
- Já lhe disse! Juro!
- Foi a senhorita?
-Não.
- Mas no seu diário ele marcou como sendo. Escreveu um P. Foi dessa mesma maneira que assinalou a senhorita de outras vezes.
- Não fui eu!
- Então foi Praschko, não foi?
- Como posso saber?
- Porque a senhorita teve um caso com ele! A senhorita me falou só da metade e não me contou o resto! A senhorita estava dormindo com ele até o dia que ele sumiu!
- Isso não é verdade!
- Por que Bradfield o protegia? Ele odiava Leo; por que passou a protegê-lo desse modo? Dando-lhe serviço? Mantendo-o na folha de pagamento?
- Por favor, saia - disse ela. - Por favor saia e não volte mais aqui.
- Por quê?
- Saia! - repetiu ela, pondo-se de pé.
- A senhorita jantou com ele sexta à noite. A noite em que ele sumiu. A senhorita estava dormindo com ele e não quer admitir isso!
-Não!
- Ele lhe pediu a pasta verde! Ele fez com que a senhorita lhe entregasse a caixa de correspondência!
- Não fez! Não fez! Saia!
- Quero um táxi.
Turner aguardou enquanto ela telefonava.
- Sofort - falou ela. - Sofort, venha imediatamente e o leve embora.
Turner já estava na porta.
- O que o senhor irá fazer quando o encontrar? - quis saber Jenny, na voz vagarosa que se segue às emoções.
- Não é da minha conta.
- O senhor não se importa?
- Nós nunca o encontraremos, assim por que iria me importar?
- Então por que o estão procurando?
- Por que não? É assim que passamos nossas vidas, não? Procurando por pessoas que nunca encontraremos.
Turner desceu lentamente as escadas até o saguão. De um outro apartamento vinham os ruídos de uma festa. Um grupo de árabes, completamente bêbados, passou por ele vestindo seus trajes típicos e gritando. Turner esperou na porta da frente. Do outro lado do rio, as luzes diminutas do Petersberg de Chamberlain pareciam um colar na escuridão úmida. Um edifício novo se erguia diretamente à frente de Turner. Parecia ter sido construído de cima para baixo, começando com o guindaste e daí descendo. Turner lembrou-se de já ter visto aquele edifício antes, mas de um diferente ângulo. Uma ponte ferroviária escarranchava-se no fim da avenida. Enquanto o expresso a atravessava ruidosamente, Turner percebeu os silenciosos passageiros no vagão-restaurante.
- Para a embaixada - disse ele. - Para a Embaixada britânica.
- Englische Botschaft?
- Inglesa não. Britânica. E estou com pressa.
O motorista blasfemou contra ele e praguejou contra os diplomatas. A corrida foi rápida e, de certa feita, quase bateram em um bonde.
- Você andou rápido, não?
Turner pediu um recibo. O motorista tinha no porta-luvas um carimbo de borracha e um talão, e bateu com tanta força o carimbo que o papel rasgou. A embaixada parecia como um navio, com todas suas janelas em fogo. Figuras escuras se deslocavam no saguão, com o lento deslizar de um salão de danças. O estacionamento estava cheio. Jogou fora o recibo. Lumley não apoiava despesas de táxi. Era uma nova regra desde o último corte. Ninguém seria indenizado de tais despesas. Com a exceção de Harting, cujas despesas pareciam ser cumulativas.
Bradfield se encontrava em reunião, avisou a Srta. Peate. E provavelmente ele estaria voando para Bruxelas com o embaixador, na madrugada seguinte. Ela havia encostado os seus documentos e mexia em uma bandeja de localização em couro azul, distribuindo nomes em torno de uma mesa de jantar, pela ordem de precedência, e falou com Turner como se fosse uma de suas obrigações deixá-lo frustrado. E De Lisle se encontrava no Bundestag, assistindo aos debates sobre a legislação de emergência.
- Quero ver as chaves do funcionário de plantão.
- Temo que o senhor só possa tê-las, se autorizado pelo Sr. Bradfield.
Turner discutiu com ela e era isso que ela queria. Ele venceu, o que era também o que ela queria. A Srta. Peate forneceu-lhe uma autorização por escrito assinada pela seção de administração e visada pelo ministro (político). Turner levou a autorização até a mesa da frente onde Macmullen se encontrava de serviço. Macmullen era um homem grande e volumoso, em alguma época sargento da polícia de Edinburgh e, seja lá o que foi que ouvira a respeito de Turner, não lhe agradara.
- E o livro da noite - disse Turner. - Quero ver o livro da noite desde janeiro.
- Pois não - respondeu Macmullen, permanecendo por perto de Turner enquanto este olhava o livro, para o caso em que tentasse levá-lo. Já eram oito e meia e a embaixada estava ficando vazia.
- Até amanhã pela manhã - sussurrou Mickie Crabbe ao passar. Meu velho.
Não havia referências a Harting.
- Registre minha entrada - disse Turner, empurrando o livro por cima do balcão. - Vou ficar lá dentro a noite inteira.
Como Leo fizera, pensou.
Capítulo 9
Quinta-feira criminosa
Havia cerca de 50 chaves das quais apenas uma meia dúzia tinha indicações. Turner permaneceu de pé, no primeiro dos corredores, onde Leo estivera, abrigado na sombra de uma coluna, olhando a porta da sala de codificação. Eram cerca de sete e meia, hora de Leo, e ele imaginou Jenny Pargiter se aproximando com um punhado de telegramas na mão. No momento, o corredor estava muito barulhento e o ferrolho de aço da sala de codificação/decodificação se erguia e baixava como uma guilhotina para que as moças do arquivo entregassem e recebessem telegramas; naquela quinta-feira à noite, no entanto, tinha sido uma ocasião de muita calma, uma estiada na crise que se avolumava, e Leo falara com Jenny ali mesmo onde Turner se encontrava agora. Tornou a olhar para o seu relógio e em seguida para as chaves e pensou: cinco minutos. O que Leo teria feito? O ruído era ensurdecedor; pior do que durante o dia; não apenas as vozes mas a própria batida das máquinas proclamavam um mundo entrando em emergência. Mas aquela noite era calma, e Leo, uma criatura do silêncio, esperando aqui para atrair sua caça e destruí-la. Em cinco minutos.
Turner caminhou ao longo do corredor, até o saguão, e olhou para baixo, no poço da escada, observando os grupos de datilógrafas da tarde serem tragados pela escuridão, sobreviventes de um navio em chamas, deixando que a noite os recolhesse. Ativo mas despreocupado, devia ser a atitude de Leo, pois Jenny o observara durante todo o seu deslocamento até ali; e Gaunt e Macmullen o teriam visto descer essas escadas; ativo mas não triunfante.
Permaneceu no saguão. Mas que risco, ocorreu-lhe subitamente: que jogo perigoso. O pessoal abriu para que fossem admitidos dois funcionários alemães. Portavam pastas pretas e caminhavam portentosamente como se ali estivessem para desenvolver uma operação. Usavam mantas cinzentas postas por cima do capote, com dobras amplas e batidas como túnicas russas. Que risco. Ela poderia negar-se; poderia persegui-lo; poderia ficar sabendo dentro de poucos minutos, se é que ainda não sabia, que ele estava mentindo, ela ficaria sabendo no momento em que chegasse ao saguão e não escutasse nenhum som partido da sala de reuniões, não visse nem rastos de toda uma dúzia de integrantes do coro sendo registrados no livro da noite, não visse chapéus nem capotes naqueles mesmos ganchos ao lado da porta, onde, neste exato momento, os dois funcionários alemães estavam se desembaraçando de seus agasalhos; ela deveria saber que Leo Harting, refugiado, meio marginalizado, amante fracassado e mestre em artifícios de terceira classe, tinha mentido para ela a fim de obter as chaves.
"Um presente de amor, um ato de amor. Como posso esperar que um homem entenda uma coisa dessas?"
Antes de entrar no corredor, Turner parou e examinou o elevador. A porta pintada de dourado se encontrava trancada; o painel central de vidro era preto, pregado por dentro. Duas pesadas barras de aço tinham sido colocadas horizontalmente para reforçar a segurança.
- Há quanto tempo isso aí está assim?
- Desde Bremen, senhor - respondeu Macmullen.
- Quando foi Bremen?
- Janeiro, senhor. O último janeiro. O escritório aconselhou que o fizéssemos, senhor. Mandaram um homem aqui especialmente. Ele reforçou o porão e o elevador, senhor.
- Macmullen prestou essas informações como se fossem uma prova perante jurados de Edinburgh, em uma série de movimentos verbais exercitados. - Ele trabalhou durante todo o fim de semana - acrescentou Macmullen com horror, pois era um homem autocondescendente e que depressa se sentia exausto com o trabalho.
Turner se encaminhou lentamente até a melancólica sala de Harting, pensando: essas portas deviam estar fechadas; essas luzes apagadas, essas salas silenciosas. Será que a luz estaria brilhando por entre as grades? Ou somente essas luzes azuis noturnas acesas por uma Grã-Bretanha mais humilhada e suas próprias passadas ecoando nos cofres?
Duas moças passaram por ele, vestidas de acordo com o momento. Uma usava jeans e o encarou diretamente, calculando seu peso. Jesus, pensou Turner, não demora muito e vou agarrar uma delas, e abriu a porta para a sala de Leo, lá permanecendo no escuro. Atrás de que você andava, imaginou Turner, você seu ladrãozinho?
Latas. Latas de charuto, cheias de massa de vidraceiro endurecida; um brinquedo de plástico daquela grande loja Woolworths, de Bad Godesberg; um pouco de talco branco para garantir uma impressão nítida. Três movimentos da chave, deste lado, do outro lado, um golpe direto na massa e a certeza de que os recortes ficam claramente visíveis. Talvez não se trate de um molde perfeito, o que depende da impressão, mas um metal flexível cederá um pouco na matriz e se amoldará de modo a ajustar-se nas paredes interiores. . . Vamos, Turner, costumava dizer o sargento, você achará o que procura se o que procura tiver pêlos em volta. Então ele já as tinha prontas. Todas as 50 latas? Ou apenas uma?
Somente uma chave. Qual delas? Que caverna de Aladim, que câmara secreta escondia os tesouros dessa fervilhante casa inglesa?
Harting, seu ladrão. Começou na própria porta de Harting, só para importuná-lo, para lembrar a um ladrão ausente que sua porta pode também ser mexida, e caminhava lentamente ao longo do corredor, experimentando as chaves nas fechaduras e de cada vez que encontrava uma que servia retirava-a do chaveiro e a metia no bolso, pensando: Em que esta aqui lhe serviu? As portas, em sua maioria, não estavam sequer trancadas, de modo que as chaves, de qualquer modo, eram uma redundância: armários, lavatórios, lavabos, salas de descanso, escritórios, uma sala de primeiros socorros que fedia a álcool e uma caixa de chaves elétricas de ligação.
Algum microfone? De que natureza era o seu interesse técnico, ladrão? As bugigangas, os secadores de cabelo, as partes e as peças: seria tudo isso uma capa conveniente para disfarçar alguma aparelhagem mágica idiota destinada a uma escuta às escondidas?
- Bolas - fez Turner em voz alta e, já com uma dúzia de chaves de encontro à sua coxa, subiu novamente as escadas indo cair diretamente nos braços do secretário particular do embaixador, um homem agitado e emproado que assimilara muito da autoridade de seu chefe.
- Sua Excelência sairá dentro de um minuto; se eu fosse você seria breve - disse ele, com toda a frieza. - Ele não aprecia muito pessoas como você.
Na maioria dos corredores era como se fosse dia claro. A seção comercial estava celebrando a semana escocesa. Um galo silvestre lilás, pintado em tecido xadrez Campbell, pendia ao lado de uma fotografia da Rainha em trajes escoceses. Miniaturas de uísque escocês encontravam-se montadas em uma collage, com dançarinos e tocadores de gaita, em molduras de compensado. No Plano Aberto, sob exuberantes exortações para comprar do Norte, escriturários de rostos pálidos atacavam obstinadamente suas máquinas em operações de adição e subtração. Impasse em Bruxelas!, um aviso os alertava, mas as máquinas não pareciam impressionadas. Subiu um andar e se encontrou no Whitehall com os adidos, cada um ostentando em suas portas um dístico com o ministério a que pertenciam e seu posto em estêncil.
- O que o senhor deseja? - indagou um sargento-escrevente, e Turner lhe disse para guardar na cabeça uma linguagem civil. Em algum lugar uma voz com tonalidade militar se empenhava galhardamente em um ditado. Na sala de datilografia, as moças se encontravam sentadas desconsoladamente em filas, como escolares: dois subalternos com aventais verdes alimentavam delicadamente um duplicador mamute, enquanto um terceiro punha de lado os coloridos telegramas como se fossem peças de fino linho para serem lavadas. Acima de todos, a datilografa chefe, de cabelos azulados e sessentona, sentada em um estrado separado, examinava os estênceis. Ela somente, pressentindo o inimigo, levantou os olhos repentinamente, o nariz na direção do vento. Por trás dela, as paredes estavam cheias de cartões de Natal das datilógrafas chefes de outras missões. Alguns mostravam camelos, outros ostentavam as armas da Rainha.
- Vou verificar as trancas - resmungou ele, enquanto o olhar dela dizia: "Vá em cima do que você quiser, mas não de minhas garotas."
Cristo, com uma delas eu já me arranjava... Por certo, você poderia separar uma delas para um rápido giro no paraíso, não é? Harting, seu ladrão.
Eram 10 horas da noite. Turner havia visitado todas as salas a que Harting tinha acesso; nada havia conseguido, a não ser uma dor de cabeça por todo o seu trabalho. O que quer que Harting desejasse não se encontrava mais lá ou tinha sido escondido de uma tal forma que levaria semanas para ser descoberto; ou era tão óbvio que se tornara imperceptível. Turner sentiu aquela moleza que se segue à tensão, e em sua cabeça fervilhavam recordações descoordenadas. Cristo: um único dia. Do entusiasmo à frustração em um único dia. De um avião à mesa do plantonista de dia, todas as pistas e nenhuma delas; vivi toda uma existência e é apenas segunda-feira. Ficou olhando para a capa em branco do talão de telegramas sem saber que diabo escrever. Cork dormia e os robôs estavam em silêncio. As chaves se encontravam amontoadas à sua frente. De uma em uma começou a recolocá-las no chaveiro. Junte tudo, pensou; construa. Você não irá para cama pelo menos até decidir que trilha seguirá. A tarefa de um intelectual é pôr ordem no caos. Definir a anarquia. É um cérebro sem um sistema. Por favor, professor, o que é um sistema sem cérebro? Pegando um lápis, Turner preguiçosamente desenhou um gráfico dos dias da semana e dividiu cada um deles em setores de uma hora. Abriu o diário azul. Recomponha os fragmentos, transforme todas as peças em uma peça única. Quem o encontrará é você e não Shawn, Leo Harting, reclamações e serviços consulares, ladrão e caçador, vou persegui-lo até o fim.
- Você por acaso entende alguma coisa sobre ações? - indagou Cork, acordando com um palpite.
- Não, não entendo.
- Meu problema é, você compreende - continuou Cork, esfregando os olhos avermelhados - que se houver uma queda em Wall Street e uma queda em Frankfurt e não nos aproveitamos do mercado nessas circunstâncias, como isso irá afetar o aço sueco?
- Se eu fosse você - replicou Turner - assinalaria todo o love com vermelho e esqueceria o assunto.
- Mas estou decidido - explicou Cork. - Estamos com umas terras em perspectiva lá no Caribe...
- Cale a boca!
Construa. Coloque suas idéias em um quadro-negro e veja então o que acontece com elas. Vamos Turner, você é um filósofo, diga-nos como o mundo gira. O que de absoluto, por pequeno que seja, pomos na boca de Harting, por exemplo? Fatos. Construa. Será que você, meu querido Turner, afinal de contas não abandona a vida contemplativa do acadêmico a favor da vida funcional do servidor civil? Construa; ponha suas teorias em funcionamento e De Lisle o considerará uma pessoa de fato.
Em primeiro lugar, as segundas-feiras. Nas segundas-feiras são os convites para fora. Os jantares americanos são os preferidos, tinha-lhe dito De Lisle no almoço, em um aparte; tais jantares eliminam as dores da localização. As segundas-feiras são reservadas para eventos fora. Fora para um diferente tipo de escravidão. Harting, essencialmente, era um homem de segunda linha. As embaixadas menores. As embaixadas com salas de recepção menores. O pessoal B saía às segundas-feiras.
- ... e se for uma garota, creio que nós poderemos escolher uma babá de cor preta, uma Amah; ela poderia tratar do aprendizado, até o nível O pelo menos.
- Você não pode ficar quieto?
- Desde que tenhamos dinheiro - aduziu Cork. - Não se pode consegui-las barato, estou certo.
- Estou trabalhando. Será que você não compreende?
Estou tentando, pensou Turner, enquanto sua mente vagava por outros campos. Estava com a moça baixinha que vira no corredor, cujos lábios sem pintura desapareciam tão relutantemente na pele coberta de pêlos; relembrou o longo olhar apreciando sua nascente pança e ouviu a moça rindo do mesmo modo que sua mulher rira: Alan, meu querido, supõe-se que você deva me possuir e não brigar comigo. É um ritmo, é como uma dança, será que você não pode compreender? E Tony dança tão bem. Alan, querido, devo chegar um pouco tarde hoje à noite e amanhã devo estar fora, em um tipo de jogo a distância como meu amante de segunda-feira. Alan, pare. Pare! Alan não me bata! Juro que não irei vê-lo de novo, juro. Até terça-feira.
Harting, seu ladrão.
As terças-feiras eram para passar o tempo em casa. Casa é uma terça-feira; casa é receber gente. Fez uma lista delas e pensou: é pior do que Blackheath. É pior do que sua maldita mãe lutando por seu fragmento de poder; é pior do que Bournemouth e bolo de frutas secas para o pastor; é pior do que os domingos negros em Yorkshire e casamentos marcados para as seis horas da tarde; é um hábito adquirido, uma inatacável detenção preventiva da mudança social inútil. Os Vandelungs (holandeses). . . os Canards (canadenses). . . os Obutus (ganenses). . . os Cortenzanis (italianos) ... os Allertons, os Crabbes e também, com toda a certeza, os Bradfields; este bando de felizardos se misturava com nada menos de 48 chatos definidos apenas por suas quantidades: os Obutus mais seis. . . os Allertons mas dois. . . somente os Bradfields. Por favor, dê-lhes o máximo de atenção, está bem? "Sei que ele mantém um certo padrão por aí." Champanha e tudo mais, naquela noite. Ovas de esturjão pagas pelo contribuinte russo. Sua mulher o interrompeu: querido, por que não vamos jantar fora esta noite? Os Willoughbys não se importam, pois sabem que odeio cozinhar e Tony adora comida italiana. Oh, claro, qualquer coisa para agradar Tony.
- E se for um menino, eu mesmo me encarrego. Deve haver alguns recursos para meninos, mesmo em um lugar como esse. O que quero dizer é que é um paraíso, não é mesmo, especialmente para professores.
Quarta-feira era recreação. Noite de pingue-pongue. Noite de canções. O sargento do refeitório: "Tome um gole daquele gim com uísque, Sr. Turner, somente para esquentar um pouco. Os rapazes falam muito do senhor, e tenho certeza de que o senhor não ficará aborrecido se eu repetir o que disseram, pois estamos no Natal: O Sr. Turner, dizem eles - sempre o tratam com respeito, senhor, o que não fazem com todo mundo - o Sr. Turner é duro; o Sr. Turner é firme. Mas o Sr. Turner é decente. Bem, senhor, a respeito de minha dispensa. . ." Noite no Exiles. Uma noite para penetrar três ou quatro centímetros a mais na carne da embaixada; volte aqui, garotinha, e baixe esses jeans. Uma noite estritamente para negócios. Estudou os compromissos em detalhes e pensou: você escondeu bem os seus segredos, admito. Você soube se apregoar, não é mesmo? Dança escocesa, Clube de Boliche, Exiles Motoring, comitê de esportes. Mais rápido que eu, rapaz: você acreditou de fato. Também reconheço isso em você. Lutou mesmo por seu objetivo, não é verdade? Você ficou com a bola e passou a perna em todos eles, seu ladrão.
Com o que - dado que os fins de semana não estão assinalados com coisa alguma a não ser jardinagem e algumas idas até Hanover - lá se foram as quintas-feiras.
Quintas-feiras criminosas.
Faça um círculo em torno de quinta-feira, telefone para o Adler e verifique a que horas eles fecham. Eles não fecham. Faça um outro traço em volta do primeiro, de quatro por dois centímetros e decore o espaço que ficou entre os dois com serpentes sinuosas; faça com que suas línguas bipartidas lambam sugestivamente as suaves curvas góticas da letra T e aguarde o latejar de uma atormentada cabeça aparecer no ruído ensurdecedor dos aparelhos de codificação. E o resultado?
Silêncio. Um odioso silêncio.
O resultado é uma quinta-feira envolta em mistério sexual, tantalizada pela abstinência. Uma quinta-feira cercada por meticulosos apontamentos feitos com uma caligrafia uniforme e chata por um homem com coisa alguma para fazer e com tempo sobrando. "Lembre-se do moedor de café de Mary Crabbe", alertaria o devotado prefeito da cidade natal de Turner em Yorkshire a seu feliz biógrafo; lembre-se de moer Mary Crabbe, seu ladrão. "Converse com Arthur sobre o aniversário de Myra", o Sr. Crail, ministro da igreja, conhecido em toda Yorkshire pela inutilidade de seus sermões, sussurraria benevolentemente; "Sociedade Anglo-Alemã de Jantares à Americana para os Amigos da Cidade Livre de Hamburgo", "Almoço de Contribuição das Damas Internacionais, Trajes de Todas as Nações,15.00 marcos alemães. Vinho Incluído", anunciava o chefe do cerimonial, em letras exageradas sobre as páginas enfileiradas. E providencie uma nota mental para arruinar a carreira de Jenny Pargiter. E a aposentadoria de Meadowes. E Gaunt? E Bradfield? E quem mais ao longo da estrada? Myra Meadowes? Você é um destruidor, Harting.
- Você não pode desligar essas porcarias?
- Quem me dera eu pudesse - replicou Cork. - Alguma coisa está chegando, mas não me pergunte o quê. Pessoal para o próprio Bradfield decifrar. Para ser entregue a Bradfield, em mãos, pelo mensageiro. . . deve ser o seu maldito aniversário.
- Parece mais com o seu funeral - resmungou Turner.
Nas quintas-feiras, porém, Harting tinha algo para fazer e que ainda não fora descoberto. Algo sobre o que ele falava muito. Pouco falava. Algo urgente e construtivo; algo secreto. Algo que fez com que todos os outros dias não valessem nada, algo em que acreditar. Nas quintas-feiras, Leo Harting chegava ao âmago de alguma coisa, e mantinha a boca fechada. Nem mesmo a mentira semanal estava registrada. Somente na última quinta-feira havia um registro, onde se lia: "Maternus. Uma hora. P. O resto estava em branco, tão inocente e pouco revelador como as virgenzinhas do andar térreo.
Ou tão culpado.
Toda a vida de Harting decorreu naquele dia da semana. Ele vivia de quinta a quinta, do mesmo modo que outros vivem de ano a ano. Que tipo de encontro tiveram, Harting e seu patrão? Que tipo de relacionamento após todos esses anos de colaboração? Onde se teriam encontrado? Para onde levara aquelas pastas e cartas e lera de um só fôlego suas informações? No torreão de uma casa de telhas de ardósia? Em uma cama macia com lençóis de linho, com uma garota macia, a calça jeans pendente da cabeceira da cama? Sob a ponta em cima da qual passava o trem? Ou em uma desarrumada embaixada com um candelabro empoeirado e o velho patriarca Meadowes colocando sua mãozinha no sofá dourado? Em um lindo quarto barroco do Godesberg Hotel. Num edifício cinzento dos novos conjuntos residenciais? Em um modesto bangalô com um nome em ferro batido e vidros manchados na porta de entrada? Procurava imaginá-los, Harting e seu chefe, furtivos mas confiantes, as piadas sussurradas e as risadas sussurradas. Olhe aqui: esta piada me foi contada pelo homem da banca de literatura pornô; eu mesmo dificilmente me separo disso. Você gosta de tudo certinho, não é mesmo? "Bem, é bom sonhar", balbuciou Allerton. Estariam esvaziando uma garrafa, enquanto casualmente planejavam o assalto à cidadela e, ao fundo, a câmera fazia tomadas e um assistente gentilmente manuseava os papéis? Mais uma querido, mas com toda a delicadeza, como Tonny. Você não tem confiança, querido, não leu os regulamentos nem aprendeu todas as partes do fuzil.
Ou foi alguma coisa apressada? Um encontro em uma ruela deserta, um frenético enlaçar-se enquanto se deslocavam de carro por avenidas secundárias e rezavam pedindo a Deus que não houvesse um acidente? Ou no alto de um morro? Ou num campo de futebol, com Harting usando um chapéu balcânico e o uniforme cinzento do Movimento?
Cork estava ao telefone com a Srta. Peate, e em sua voz se percebia um toque de horror.
- Atenção para os grupos 700, de Washington. Londres, por favor, transmitam e decifrem vocês mesmos. É melhor que você o avise logo. Ele vai estar por aqui a noite toda. Escute aqui, querida, pouco me importa que ele esteja reunido até com a Rainha da Inglaterra. Esta mensagem é de prioridade máxima e é minha obrigação informá-lo. Se você não quiser fazer, faço eu. Ooh! Ela é uma putinha.
- Fico satisfeito que você pense assim - disse Turner, com um de seus raros sorrisos.
- Acho que ela é o capitão da equipe.
- Inglaterra contra o Resto do Mundo - concordou Turner, e ambos riram.
Foi com Praschko, então, que ele almoçou no Maternus? Se assim fora, dificilmente Praschko poderia ser seu contato regular, pois ele não teria registrado aquele P, não Harting, que cobria seus rastros tão bem; nem tampouco almoçaria em público com Praschko, depois da dificuldade que tiveram em cortar seu relacionamento. Nesse caso haveria um intermediário, um elo entre Praschko e Harting? Ou foi nesse dia que o sistema falhou? Não desligue, Turner, raciocine, pois o irracional poderá ser a sua queda. Ponha ordem no caos. Seria esse P um sinal de que Praschko se propunha a vê-lo pessoalmente, talvez para avisá-lo de que Siebkron estava em sua pista? Para dar-lhe ordem - eis aqui uma chance - para dar-lhe ordem a qualquer risco e a todo o custo para roubar a pasta verde antes de sumir?
Quinta-feira.
Pegou as chaves e as fez rodar suavemente em torno do dedo. Quinta-feira era o dia da reunião... o dia da pressão... o dia em que ele foi avisado. .. o dia antes de ele sumir. .. o dia da reunião semanal para receber e dar informações... o dia em que ele tomou emprestado as chaves com a Srta. Pargiter.
Cristo: será que ele tinha mesmo dormido com Pargiter? Há certos sacrifícios, General Shlobodovitch, que nem mesmo Leo Harting fará a serviço da Mãe Rússia.
As inúteis chaves. O que Harting supunha obter delas? Entrar na cobiçada caixa-forte? Bolas, ele teria seguido as prescrições; Meadowes o instruíra mesmo a respeito. Ele saberia muito bem que não encontraria cópias da chave da caixa-forte no molho do funcionário de plantão. Então entrar no próprio arquivo? Bolas, novamente. Estava cansado de saber que o arquivo estava protegido com trancas melhores do que essas.
Então que chave ele queria?
Que chave ele queria tão desesperadamente que punha em perigo sua própria carreira como espião a fim de obter uma cópia dela? Que chave ele queria que o fez procurar Jenny Pargiter e arriscar-se à desaprovação da embaixada, de fato incorrer nela, se Meadowes e Gaunt soubessem de alguma coisa. Que chave? A chave do elevador, de modo que pudesse retirar sorrateiramente as pastas, escondê-las em algum lugar num dos andares superiores e depois retirá-las calmamente dentro de sua própria pasta? Era isso o que significava o carrinho desaparecido?
Visões fantásticas surgiam. Turner viu a pequenina figura de Harting se esgueirando pelo corredor escuro, empurrando o carrinho à frente para dentro do elevador aberto, viu a pirâmide de caixas de pastas de arquivo se equilibrando na prateleira superior, enquanto na de baixo ficavam os artigos acidentais: o material de expediente, o carimbo, os diários, as máquinas de carro longo do centro de datilografia. . . Viu o miniveículo esperando perto da porta lateral e o senhor sem nome de Harting abrindo a porta e ele dizendo: "Oh, pare com isso", no melhor estilo colegial, no exato momento em que a Srta. Peate aparecia para pegar os telegramas e o suspiro da Srta. Peate soou como uma declaração de sua abstinência sexual.
- Ele vai querer também os livros de códigos - avisou-a Cork.
- Ele conhece muito bem os regulamentos de decodificação, muito obrigada.
- Escute aqui, o que há por aí, o que está acontecendo em Bruxelas?
- perguntou Turner.
- Boatos.
- Sobre o quê?
- Se quisessem que o senhor ficasse sabendo, não iam usar o sistema de pessoa a pessoa não é?
- Você não conhece Londres - replicou Turner.
Ao retirar-se, a moça conseguiu até, em seu modo de andar - em seu ritmo lento, os ingleses não são sensíveis a nada, não sentem nada, andar sensual é para as classes mais baixas - transmitir seu particular desprezo por Turner e todo o seu trabalho.
-Eu poderia assassiná-la - falou Cork, convictamente. - Poderia cortar sua odiosa garganta. Não teria sequer um momento de arrependimento. Está aqui há três anos, e a única ocasião em que sorriu foi quando o Velho bateu com seu Rolls-Royce.
Era um absurdo. Não havia dúvida; ele sabia que era um absurdo. Espiões do calibre de Harting não roubam; eles registram, memorizam, fotografam, espiões como Harting agem por corrupção e por cálculo, não por impulso. Cobrem seus rastros e sobrevivem para amanhã recomeçar novamente.
Nem contam mentiras translúcidas.
Eles não dizem a Jenny Pargiter que há ensaio de coro na quinta-feira, quando ela poderá verificar em menos de cinco minutos que esses ensaios são realizados às sextas. Não informam Meadowes de que estão comparecendo a reuniões em Bad Godesberg, quando não só Bradfield como De Lisle sabem que não estão; e não teriam feito nada disso durante dois anos ou mais. Não retiram seus saldos de salários e gratificações antes de desertar, como uma senha para qualquer um que possa estar interessado; não se arriscam à curiosidade de Gaunt, a fim de trabalhar até tarde da noite.
Trabalhar onde!
Ele desejava privacidade. Queria fazer durante a noite coisas que não podia fazer durante o dia. Que coisas? Usar sua máquina fotográfica em alguma sala remota onde teria escondido as pastas, onde poderia trancar-se? Onde estava o carrinho? Onde estava a máquina de escrever? Ou será que o desaparecimento desses objetos, como presumia Meadowes, nada tinha a ver com Harting? No momento, só havia uma resposta: Harting tinha escondido as pastas em um esconderijo durante o dia, havia-as fotografado à noite em privacidade e as havia devolvido pela manhã... Só que na manhã seguinte ele não havia devolvido as pastas. Então por que roubá-las?
Um espião não rouba. Regra número um. Uma embaixada, descobrindo uma falta, pode mudar seus planos, refazer ou anular tratados, tomar uma série de medidas profiláticas para fazer face ou amenizar o mal que tenha sido causado. A melhor garota é a garota que você não pode ter. O mais eficaz dos disfarces é o disfarce que nunca é descoberto. Então, por que roubar? A razão já estava clara. Harting se encontrava sob pressão. Premeditadas como todas as suas ações pareciam ser, todas elas levavam a marca de um homem correndo contra o tempo. Por que a pressa? Qual o limite fatal?
Calma, Alan; delicadamente, Alan; faça como Tony. Seja como o adorável, fleumático, esbelto, rítmico, anatomicamente entendido, amistoso Tony Willoughby, muito conhecido nos melhores clubes e famoso por sua técnica copulativa.
- Eu preferia mesmo que o primeiro fosse um garoto - disse Cork. - O que quero dizer é que quando se tem um garoto atrás da gente a família continua. Sabe, eu não gostaria de ter família grande. A não ser que se pudesse resolver o problema de empregada. Você por acaso é casado? Oh, meu caro, desculpe a pergunta.
Suponhamos por um momento que aquela furiosa visita particular ao arquivo fosse o resultado de uma adormecida simpatia para com os comunistas, reacendida pelos eventos do último outono; suponhamos que tenha sido isso que o impulsionou. Nesse caso, qual o apressado fim para o qual sua fúria era dirigida! Meramente o limite final determinado por um ansioso senhor? O primeiro estágio era facilmente dedutível: Karfeld chegou ao poder em outubro. De então em diante, um partido nacionalista popular era uma realidade; até mesmo um governo nacionalista não era impossível. Durante um mês, dois meses, Harting cismou. Vê a cara de Karfeld em todos os lados, ouve os lemas familiares. "Ele é realmente um convite ao comunismo", dissera De Lisle.. . O despertar é lento e relutante, as velhas associações e simpatias jazem lá no fundo e demoram a vir à superfície. Então o momento de decisão, o ponto da virada. Seja por si próprio ou como resultado da persuasão de Praschko, ele decide trair. Praschko se aproxima dele: a pasta verde. Consiga a pasta verde e nossa antiga causa estará servida. . . Consiga a pasta verde para que ela esteja disponível no dia da decisão em Bruxelas. . . O que continha a pasta, Bradfield havia dito, poderia efetivamente comprometer e nossa postura em Bruxelas. . .
Ou estaria ele sendo chantageado? De que natureza era a corrida? Teria tido ele que escolher entre satisfazer um senhor ansioso e ficar comprometido por alguma desconhecida indiscrição? Teria, por exemplo, havido alguma coisa no incidente em Colônia, que depusesse contra ele: uma mulher, algum envolvimento com malfeitores comuns? Teria desviado fundos do Exército do Reno? Estaria vendendo uísque e cigarros livres de impostos? Ter-se-ia deixado atrair para algum envolvimento homossexual? Teria ele de fato sucumbido a alguma da dezena de tentações clássicas que são a dieta básica da espionagem diplomática? Garota, enfie esses jeans imediatamente.
Não era o caráter. De Lisle estava certo: havia uma mola, um objetivo impulsionador por detrás das ações de Harting que se situava além da autopreservação; uma agressividade, uma implacabilidade, um fervor infinitamente mais positivos do que o relutante desempenho de um homem sob ameaças. Nessa vida subterrânea que Turner se encontrava agora investigando, Harting não era um executante, mas o agente principal. Não era um delegado, mas um mandante; não era um oprimido, mas um opressor, um caçador, um perseguidor. Nisto, pelo menos, havia uma identidade entre Turner e Harting. Mas a caça de Turner tinha nome. As pistas de Harting, até um certo ponto, eram claras. Mas além desse ponto elas se perdiam na neblina do Reno. O que mais confundia em tudo era isso; ainda que Harting caçasse sozinho, refletia Turner, ele não quisera patrocínio. . .
Estaria Harting chantageando Bradfield?
Essa pergunta ocorreu a Turner subitamente, fazendo-o sentar-se ereto. Seria essa a explicação para a hesitante proteção de Bradfield? Seria por isso que Harting encontrara trabalho no arquivo e lhe era permitido sumir nas quintas-feiras à tarde e vaguear pelos corredores com uma pasta?
Consultou o diário mais uma vez e pensou: fundamentos das questões. Madame, mostre a este cansado colegial seus fundamentos, ensine suas partes, leia o livro desde o princípio... eram os conselhos do seu professor e quem é você para ignorar os conselhos de seu professor. Não indague por que Cristo nasceu no Dia de Natal e sim se ele de fato nasceu. Se Deus nos deu cérebro, meu caro Turner, nos deu também a capacidade de enxergar através de Sua simplicidade. Assim, por que quintas-feiras, afinal de contas? Por que à tarde? Por que reuniões regulares! Desesperado como estivesse, por que encontrar-se com seu contato à luz do dia, em hora de trabalho, em Godesberg, quando sua ausência da embaixada seria, em primeiro lugar, motivo de uma mentira? Era um absurdo: Bolas, Turner, se assim fosse. Harting poderia encontrar seu contato a qualquer hora. À noite, em Kònigswinter: nas encostas cobertas de vegetação do Petersberg de Chamberlain; em Colônia, em Koblenz, em Luxemburgo ou na fronteira com a Holanda nos fins de semana, quando não havia necessidade de desculpas, verdadeiras ou não, a serem oferecidas a alguém.
Largou o lápis e praguejou em voz ata.
- Problemas? - perguntou Cork. Os robôs vibravam selvagemente e Cork tratava deles como se fossem crianças famintas.
- Nada que as orações não curem - respondeu Turner, lembrando-se de algo que dissera a Gaunt naquela manhã.
- Se você quer mandar o tal telegrama - avisou Cork, imperturbável - é melhor que ande depressa. - Cork se deslocava rapidamente de uma máquina para outra, mexendo nos papéis e nos botões de comando, como se sua tarefa fosse conservar tudo em funcionamento. - Pelo jeito, as coisas estão indo para as nuvens em Bruxelas. Ameaças de uma greve geral dos hunos, se não levantarmos nosso veto sobre o Fundo Agrícola. HalidayPride diz achar que isso é um pretexto. Em meia hora estarei fazendo reservas para junho, se continuarmos nessa batida.
- Que tipo de pretexto? Cork leu em voz alta:
- "Uma porta conveniente pela qual deixar Bruxelas até que a República Federal volte ao normal."
- Amanhã trato disso - falou Turner, empurrando o talão de telegramas para o lado.
- Já é amanhã - falou Cork, suavemente.
Se eu fumasse fumaria um de seus charutos. Até que eu me arranjaria com um deles, pensou; se não posso ter um daqueles, vou me arranjar com um charuto. Desde o início até o fim ele sabia que toda a tese estava errada.
Nada funcionava, nada se interligava, nada explicava a energia, nada tinha explicação. He montara uma cadeia na qual nenhum dos elos era capaz de suportar os outros. Com a cabeça nas mãos, deixou que as Fúrias se soltassem e observou-lhes a postura em movimentos lentos diante de sua cansada imaginação: Praschko, o homem sem cara, espião-mestre, controlando, a partir de uma posição de inexpugnabilidade parlamentar, uma rede de refugiados-agentes; Siebkron, o auto-intitulado guardião da segurança pública, tendo a embaixada como suspeita de cumplicidade em uma traição maciça à Rússia, alternadamente protegendo e perseguindo aqueles que ele acreditava serem os responsáveis. Bradfield, rigoroso, acadêmico de alta classe, que ao mesmo tempo odiava e protegia espiões, inescrutável com relação a todos os seus criminosos conhecimentos, zelador das chaves do arquivo, do elevador e da sala de mensagens, prestes a partir para Bruxelas, depois de passar acordado toda a noite; a fornicadora Jenny Pargiter, compelida a uma cumplicidade ainda mais sinistra por uma paixão ilusória, que já tinha enegrecido seu nome por toda a embaixada; Meadowes, cego por frustrado amor paterno com relação ao pequenino Harting, precariamente carregando a última das 40 pastas no seu carrinho; De Lisle, de duvidosa ética, lutando pelo direito de Harting de trair seus amigos. Cada um deles, ampliado e desfigurado, assomava à sua frente, dançava, contorcia-se e desaparecia em face das próprias objeções zombeteiras de Turner. Até os fatos, que apenas umas horas antes o haviam conduzido às fímbrias da revelação, agora o lançavam de volta às selvas de suas próprias dúvidas.
Ainda assim, de que outra forma, dizia a si mesmo, enquanto guardava seus pertences no arquivo de aço e abandonava Cork às máquinas em protesto; de que outra forma, perguntaria o ministro religioso, cortando com suas mãos suaves e enormes o bolo de frutas no pratinho, de que outra forma as fantasias se multiplicam, de que outra forma a sabedoria é forjada e um conhecimento da ação de Cristo é finalmente obtido, se não através da dúvida? Seguramente, minha querida Sra. Turner, a dúvida é o maior dom de Nosso Mestre àqueles que necessitam de fé? Enquanto caminhava pelo corredor, Turner perguntou-se mais uma vez: que segredos contém a mágica pasta verde? E quem vai me dizer: eu, Turner, um temporário?
O orvalho se erguia no campo e se espalhava na estrada como vapor. A pavimentação brilhava sob a umidade cinzenta das nuvens, e as rodas dos veículos crepitavam na pesada umidade. De volta às sombras, pensou ele cansadamente. Hoje não há mais caçada. Nem anjinhos para dominarem este velho macaco careca. No fim da trilha e ainda nada de absoluto; nada para me transformar em um fracassado.
O porteiro da noite no Adler encarou-o bondosamente.
- O senhor se divertiu? - perguntou o homem, entregando-lhe a chave.
- Não muito.
- Devia ir a Colônia. É como Paris.
O dinner jacket de De Lisle se achava colocado cuidadosamente sobre a cadeira de braços, com um envelope pregado na manga. Uma garrafa de uísque da Naafi se encontrava em cima da mesa. "Se você quiser dar uma olhadela naquela casa", leu Turner, "eu o apanho quarta-feira pela manhã, às cinco horas." Um post-script desejava-lhe uma noite agradável com os Bradfields, e numa observação humorística à margem pedia que não sujasse a lapela com sopa de tomate, pois De Lisle não desejava ter suas idéias políticas mal interpretadas; particularmente, aduzia De Lisle, desde que Herr Ludwig Siebkron, do Ministério do Interior alemão, deveria estar presente.
Turner apressou-se a tomar um banho, pegou o copo em cima da pia e o encheu de uísque até a metade. Por que De Lisle se abrandara? Compaixão por uma alma perdida? Deus nos salve. E, dado que este era o final de uma noite de perguntas idiotas, por que estava ele sendo convidado a conhecer Siebkron? Foi para a cama e ficou meio adormecido até a tarde, sonhando com Bournemouth e com as espinhentas, e por isso mesmo impraticáveis coníferas, que se alinham ao longo de Branksome; e ouviu sua mulher dizer, enquanto colocava na mala a roupa das crianças: "Encontrarei meu caminho e você encontrará o' seu, e vamos ver quem chegará primeiro no céu." Também ouviu Jenny Pargiter gritando novamente, e tornando a gritar, clamando por piedade em um mundo vazio. Não se preocupe, Arthur, pensou, eu não me aproximaria de Myra para salvar minha vida.
Capítulo 10
Cultura nos Bradfields
Você devia proibi-los mais ainda, Siebkron - declarou Herr Saab incansavelmente, a voz pastosa com o burgundy. - São uns idiotas malucos, Siebkron. Turcos. - Saab havia excedido a todos em falar e em beber, obrigando-os a um embaraçoso silêncio. Somente sua mulher, uma bonequinha loura de origem desconhecida e de colo macio e à mostra, continuava a dignar-se a agraciá-lo com olhares de admiração. Sem ação, incapazes de retaliação, os demais convidados continuavam sentados, morrendo de tédio pela diatribe de Herr Saab. Por trás deles, dois empregados húngaros se movimentavam como enfermeiras por entre os leitos, e haviam sido avisados - do que não havia dúvida no cérebro de Turner - de que Herr Ludwig Siebkron merecia mais atenção do que todos os outros pacientes juntos. E era necessário. Em seus olhos claros e arregalados já não havia nada a não ser os últimos sinais de vida; suas mãos brancas se encontravam dobradas como guardanapos ao lado do prato e toda sua atitude de quem não está ouvindo mais nada era a de uma pessoa esperando ser removida.
Quatro castiçais de prata, 1729, feitos por Paul de Lamerie, de base octogonal, e nas palavras do pai de Bradfield, muito decentemente cunhados, uniam Hazel Bradfield ao marido, como uma fileira de diamantes, ao longo da grande mesa. Turner encontrava-se sentado no centro, a meio caminho entre o segundo e o terceiro, mantendo-se rígido devido às faixas metálicas do dinner jacket de De Lisle. A camisa, também era demasiado pequena para ele. O chefe da portaria havia conseguido comprar essa camisa para ele em Bad Godesberg por um preço mais elevado do que qualquer outra que jamais comprara em toda sua vida e agora ela o estava incomodando, com os pontos do colarinho meio engomado comprimindo a carne em seu pescoço.
- Eles já estão vindo das pequenas cidades. Serão umas 12 mil pessoas naquela maldita Praça do Mercado. Sabem o que estão construindo? Estão construindo um Schaffott. - Seu inglês mais uma vez o derrotara. - Que diabo é um Schaffott! - perguntou ele, dirigindo-se a todos de um modo geral.
Siebkron estremeceu como se lhe tivessem oferecido água.
- Uma plataforma - murmurou, e os olhos mortiços voltaram-se na direção de Turner, piscaram e se apagaram.
- O inglês de Siebrkon é fantástico! - exclamou Saab, alegremente. - Siebkron sonha com Palmerston durante o dia e com Bismarck à noite. Agora estamos entre o dia e a noite e ele está no meio. - Siebkron ouviu o diagnóstico, sem que isso lhe trouxesse qualquer conforto. - Uma plataforma. Espero que eles possam enforcar nela aquele maldito sujeito. Siebkron, você é generoso demais com ele. - Ergueu seu cálice na direção de Bradfield, um grande brinde repleto de cumprimentos importunos.
- O inglês de Karl-Heinz também é fantástico - disse a bonequinha. - Você é muito modesto, Karl-Heins. É tão bom quanto o de Herr Siebkron. - Entre seus seios, lá no fundo, Turner conseguiu perceber uma pequena mancha branca. Um lenço? Uma carta? Frau Saab não se interessava por Siebkron; ela não se interessava por homem algum, na verdade, cujas virtudes fossem exaltadas acima das de seu marido. Sua intervenção cortou o fio da meada: uma vez mais a conversação caiu como uma pipa solta e, por um momento, nem mesmo seu marido tinha vento que a empinasse.
- Você falou em proibi-los. - Siebkron tinha apanhado um ralador de noz-moscada de prata e o estava passando suavemente em torno da luz da vela, procurando falhas reveladoras. O prato à sua frente fora completamente limpo, o prato de um gato num domingo. Era um homem mal-humorado, pálido, bem esfregado e com idade não superior à de Turner, tendo em si alguma coisa de hoteleiro, um homem habituado a andar em cima dos tapetes dos outros. Seus traços eram arredondados, mas não flácidos; seus lábios eram autônomos, separando-se para desempenhar uma função, unindo-se para desempenhar outra. Suas palavras não eram uma ajuda, mas sim um desafio, parte de uma silenciosa interrogação que somente cansa, ou a profunda frieza de seu coração impedia que ele a exprimisse em voz alta.
- Já. Proibi-lo - concordou Saab, inclinando-se bastante por cima da mesa para alcançar seus ouvintes. - Proibir as reuniões, proibir as marchas, proibir tudo. Como os comunistas, essa é a única coisa que eles compreendem. Siebkron, Sie waren ja auch in Hanuover! Siebkron estava lá também. Por que não o proibiu? São bestas selvagens. Eles têm força, nicht wahr Siebkron? Meu Deus, também já tive minhas experiências. - Saab era um homem mais velho, um jornalista que trabalhava para inúmeros jornais na sua época, mas que em sua maioria haviam desaparecido desde a guerra. Ninguém parecia ter muitas dúvidas com relação às experiências por que passara Herr Saab. - Mas nunca odiei os ingleses. Siebkron, você pode confirmar o que estou dizendo. Das konnen sieja bestatigen. Durante 20 anos, escrevi sobre essa louca república. Fui crítico, por vezes um crítico incisivo, mas nunca fui duro com os ingleses. Isso eu nunca fui - concluiu ele, lançando suas últimas palavras de uma tal forma que imediatamente levantou dúvidas sobre tudo o que afirmara.
- Karl-Heinz é fantasticamente forte para o inglês - disse a bonequinha. - Ele come inglês, bebe inglês. - Suspirou como se as demais atividades de Saab fossem também em inglês. A bonequinha comera bastante e parte da comida ainda podia ser vista em sua boca enquanto falava e sua delicada mãozinha segurava outras coisas que cedo iria comer também.
- Nós temos um débito com você - falou Bradfield com muita animação. - Que você possa mantê-lo assim por muito tempo, Karl-Heinz. - Ele voltara de Bruxelas meia hora antes e, durante todo o tempo, não tirara o olho de cima de Siebkron.
A Sra. Vandelung, mulher do conselheiro holandês, ajeitou melhor sua estola sobre os ombros largos. - Nós vamos todos os anos à Inglaterra - disse ela fatuamente, a propósito absolutamente de nada. - Nossa filha está na escola na Inglaterra, nosso filho está na escola na Inglaterra. . . - E foi por aí. Nada do que ela amava, acalentava, ou possuía tinha caráter diferente das coisas inglesas. O marido, homem encarquilhado e com aspecto de marinheiro, tocou no belo pulso de Hazel Bradfield e concordou com a cabeça com refletido fervor.
- Sempre - sussurrou ele, como se fosse um juramento. Hazel Bradfield, despertando de seu sonho, sorriu solenemente em sua direção, enquanto os seus olhos se fixavam desinteressadamente na mão cinzenta que ainda segurava a sua.
- Bernhard - disse ela, delicadamente - você está muito gentil esta noite. As mulheres vão ficar com ciúmes de mim. - Também não era, do mesmo modo, uma piada agradável. A voz de Hazel Bradfield era um tanto cortante; ela poderia ser uma dentre várias filhas, concluiu Turner, interceptando-lhe o olhar aborrecido quando Saab recomeçou seu monólogo; no entanto, não tinha contemplação com suas irmãs mais simples. "Estarei sentado no lugar de Leo", pensou ele. "Comendo a etapa de Leo?" Mas Leo ficava em casa às terças-feiras. . . e, além do mais, Leo não seria admitido aqui, lembrou a si mesmo, levantando o cálice em resposta a um brinde de Saab, porém sem beber.
Miraculosamente, o tema de Saab era ainda os britânicos, mas ele o havia enriquecido com detalhes autobiográficos, sobre os inconvenientes dos bombardeios.
- Sabem o que dizem a respeito em Hamburgo? - continuava ele. - Pergunta: qual a diferença entre um inglês e um hamburguês? Resposta: o hamburguês fala alemão. E naqueles porões, o que nós dizíamos? Graças a Deus são bombas britânicas! Saúde, Bradfield! Nunca mais.- De fato, nunca mais - replicou Bradfield, e cansadamente brindou-o no estilo alemão, encarando-o por cima da borda do cálice;sorvendo a bebida e tornando a encará-lo.
- Bradfield, você é uma peça, a melhor de todas. Seus ancestrais lutaram em Waterloo, e sua mulher é tão linda quanto a Rainha. Você é a melhor peça na Embaixada britânica e não convidou os malditos americanos nem convidou os malditos franceses. Você é um bom sujeito. Os franceses são uns bastardos - concluiu ele para o alarme de todos os presentes, seguindo-se um momento de atônito silêncio.
- Karl-Heinz, tenho certeza de que isso não é muito correto - disse Hazel, o que provocou um risinho em sua extremidade da mesa, originado em uma inobservada e idosa Gräfin, convocada à última hora para fazer par com Turner. Um inesperado clarão de luzes elétricas se abateu sobre o grupo. Os húngaros marchavam a partir da cozinha como se fossem a mudança da guarda matutina e retiraram garrafas e louça com inconsiderado panache.
Saab se inclinou ainda mais por cima da mesa e apontou um dedo grande e não muito limpo na direção do convidado de honra.
- Vejam só este Ludwig Siebkron que aqui está, é um sujeito tremendo. Todos nós da imprensa o admiramos porque nunca conseguimos agarrá-lo e, no jornalismo, só admiramos aquilo que não conseguimos ter. E sabem por que não conseguimos agarrar Siebkron?
A pergunta divertiu enormemente Saab. Olhou, satisfeito, em volta da mesa, seu rosto moreno brilhando em deleite.
- Porque - explicou Saab - ele está sempre ocupado com seu bom amigo e... Kumpan. - Estalou os dedos em frustração. - Kumpan - repetiu. - Kumpan?
- Companheiro de drinques - sugeriu Siebkron. Saab olhou para ele, surpreendido pela ajuda partida de uma tão inesperada procedência.
- Companheiro de drinques - resmungou. - Klaus Karfeld. - E silenciou.
- Karl-Heinz, você tem que lembrar-se de Kumpan - interveio sua mulher delicadamente, e Saab acenou com a cabeça e sorriu para ela bravamente.
- Veio trabalhar conosco, Sr. Turner? - indagou Siebkron, dirigindo-se ao ralador de noz-moscada. De repente, as luzes focalizaram Turner, e Siebkron, erguendo-se de seu leito, estava realizando a rara cirurgia de uma operação particular.
- Durante uns poucos dias - respondeu Turner. Os ouvintes foram lentos em acompanhar e assim, por uns poucos momentos, os dois homens se encararam um ao outro em secreta comunhão, enquanto os demais continuavam em seus separados rumos. Bradfield tinha-se engajado em uma conversação inconseqüente com Vandelung; Turner escutou qualquer coisa sobre o Vietnã. Saab, voltando a campo subitamente, assumiu o assunto e seguiu por conta própria.
- Os ianques lutariam em Saigon - declarou ele - mas não lutariam em Berlim. Parece ter sido uma pena que não tivessem construído em Saigon o Muro de Berlim. - Sua voz se tornara mais alta e mais agressiva, mas Turner somente a escutava emergindo das sombras que se localizavam por detrás do olhar fixo de Siebkron. - De repente, os ianques ficaram malucos com relação à autodeterminação. Por que não procuram agir um pouco assim na Alemanha Oriental? Todo mundo luta pelos malditos africanos. Todo mundo luta pelas malditas selvas. É uma lástima que não tenhamos penas. - Saab parecia estar desafiando Vandelung, mas sem êxito: a pele cinzenta do velho holandês continuava lisa como um caixão e nada ali nasceria de novo. - Talvez seja uma pena não termos palmeiras em Berlim. - Ouviram-no fazer uma pausa para tomar um trago. - Vietnã é merda. Mas pelo menos desta vez eles não podem dizer que fomos nós que provocamos - aduziu, com mais do que um indício de autopiedade.
- Guerra é uma coisa terrível - observou a Grafin. - Perdemos tudo. - Ela, porém, estava falando após o pano ter subido.
Herr Ludwig Siebkron estava disposto a falar e havia colocado de lado o ralador de noz-moscada, a fim de caracterizar sua disposição.
- E de onde o senhor é, Sr. Turner?
- De Yorkshire. Durante a guerra eu estava em Bournemouth.
- O que Herr Siebkron quer saber é de que departamento - interveio, bruscamente, Bradfield.
- Ministério das Relações Exteriores - disse Turner. - Como todos os outros. - Turner olhou, indiferentemente, para ele, do outro lado da mesa. Os olhos claros de Siebkron nem condenaram nem apreciaram, mas esperaram pelo momento de inserir o bisturi.
- Será que podemos saber, Sr. Turner, qual a seção do Ministério das Relações Exteriores é feliz ao ponto de poder contar com seus serviços?
- Pesquisa.
- Ele é também um montanhista famoso - interveio Bradfield, lá de longe, e a bonequinha deixou escapar uma exclamação com a intensa surpresa de um deleite sexual.
- Die Berge! - Do canto do olho Turner viu uma mãozinha de porcelana erguer-se até as alças do vestido, como se ela fosse arrancá-lo em seu entusiasmo. - Karl-Heinz..
.
- No ano que vem - a voz pastosa de Saab tranqüilizou-a num sussurro. - No ano que vem nós vamos às montanhas. - Siebkron sorriu para Turner, como se aquilo fosse uma piada da qual eles podiam seguramente compartilhar.
- Mas o Sr. Turner agora está no vale. Está hospedado em Bonn, Sr. Turner?
- Godesberg.
- Em algum hotel, Sr. Turner?
- No Adler. Apartamento 10.
- E que espécie de pesquisa posso imaginar que seja conduzida do Hotel Adler, apartamento 10?
- Ludwig, meu prezado amigo - interpôs Bradfield, e sua jocosidade não era muito insincera. - Com toda a certeza você reconhece um espião assim que põe os olhos em cima dele. Alan é nossa Mata Hari. Ele freqüenta os leitos do pessoal do Gabinete.
O riso, dizia a expressão de Siebkron, não é eterna; esperou até que os risos cessassem.
- Alan - repetiu ele calmamente. - Alan Turner, de Yorkshire, trabalhando no Departamento de Pesquisa do Ministério das Relações Exteriores, hóspede do Hotel Adler, montanhista famoso. Desculpe a minha curiosidade, Sr. Turner. Todos nós vivemos à margem aqui em Bonn, o senhor sabe. Quanto a minhas penas, sou encarregado da proteção física da Embaixada britânica, e tenho naturalmente um certo interesse nas pessoas a que protejo. Sua presença aqui foi sem dúvida informada ao Departamento de Pessoal, não é? A informação deve ter-me escapado.
- Nós o citamos como um técnico - interpôs Bradfield, agora claramente irritado por ser questionado na presença de seus convidados.
- Muito sensato - disse Siebkron. - Bem mais simples do que pesquisa. Ele realiza pesquisa mas o arrolam como técnico. Os seus técnicos, por outro lado, estão todos empenhados em pesquisa. É um arranjo perfeitamente simples. Mas sua pesquisa é de natureza prática, Sr. Turner? Estatística? Ou, quem sabe, o senhor é um teórico?
- Pesquisa em geral.
- Pesquisa em geral. Uma responsabilidade muito católica. O senhor ficará aqui por muito tempo?
- Uma semana. Talvez mais. Depende do tempo que o projeto demandar.
- Um projeto de pesquisa? Ah, então o senhor tem um projeto? No início pensei que estivesse substituindo alguém. Ewan Waldebere, por exemplo; ele estava empenhado em pesquisa comercial, não é isso, Bradfíeld? Ou Peter McCreedy, em desenvolvimentos científicos. Ou Harting: o senhor não estará substituindo Harting? É uma pena que ele tenha ido embora. Um dos mais antigos e mais valiosos colaboradores que tinham.
- Oh, Harting! - A Sra. Vandelung tinha ouvido o nome e deixava claro que tinha firmes opiniões a respeito. - Sabem o que já andam dizendo por aí? Que Harting está bêbado em Colônia. Ele bebe intermitentemente, como sabem. - Sentia-se divertida em atrair-lhes a atenção. - Nos dias úteis ele usa asas de anjinho, toca o órgão e canta como um bom cristão; nos fins de semana, porém, ele vai a Colônia, e briga com os alemães. É muito como Jekyll e Hyde, eu lhes garanto. - A Sra. Vandelung riu, indulgentemente. - Oh, ele é muito repulsivo, Rawley, você se lembra de André de Hoog, tenho certeza. Ele ouviu tudo isso da polícia daqui: Harting teve uma briga feia em Colônia. Em um night club. Tudo por causa de uma mulher ruim. Oh, ele é muito misterioso, eu lhes garanto. E agora não temos quem toque o órgão.
Através da nevoa, Siebkron repetiu sua pergunta.
- Não estou substituindo ninguém - respondeu Turner, e escutou a voz de Hazel Bradfield, à sua esquerda, firme mas vibrante com tudo aquilo, sem expressar raiva.
- Sra. Vandelung conhece bem os nossos tolos hábitos ingleses. Espera-se que deixemos os homens com suas piadas.
Relutantemente as mulheres se separaram. A pequenina Frau Saab, desolada por se afastar do marido, beijou-lhe a nuca e fez com que ele se comprometesse a manter-se sóbrio. A Grafin declarou que na Alemanha contava-se com um conhaque após as refeições: o conhaque ajudava a digestão. Somente Frau Siebkron seguiu sem reclamar; era uma mulher calma e feiosa, que desde cedo em seu casamento aprendera que não valia a pena resistir. Bradfíeld se encontrava junto ao aparador com as garrafas e as bandejas da prata; os húngaros trouxeram café em um bule Hester Bateman, que colocaram com inobservada pompa na extremidade da mesa onde estivera Hazel. O pequenino Vandelung se achava perdido em recordações; estava de pé, junto às janelas francesas, olhando na direção das encostas escuras e cobertas de vegetação, à claridade de Bad Godesberg.
- Agora vamos provar o vinho do Porto - assegurou Saab aos presentes. - Com Bradfield isso é sempre uma fantástica experiência. - Dirigiu-se a Turner. - Tenho tomado vinhos do Porto por aqui, posso dizer-lhe que são mais velhos do que meu pai. O que vamos tomar esta noite, Bradfíeld? Um Cockburn? Talvez ele nos sirva um Cruft. Bradfield conhece todas as marcas. Eín ríchtíger Kenner; Siebkron, como é Kenner auf Englisch?
- Connoísseur.
- Francês! - Saab estava indignado. - Em inglês não existe uma palavra para Kenner! Têm que usar uma palavra francesa? Bradfield! Telegrama! Esta noite mesmo! Sofort an Ihre Majestat! Recomendações pessoais ultra-secretas para a maldita Rainha. Todos connoisseurs ficam proibidos. Somente Kenner permitidos! É casado, Sr. Turner?
Bradfield, depois de sentar-se na cadeira de Hazel, estava passando o vinho para sua esquerda. A bandeja era dupla, esmeradamente unidas suas duas partes com fios de prata.
- Não - respondeu Turner, de uma forma tal que a palavra seria difícil de ser ouvida por qualquer pessoa que estivesse interessada. Saab, no entanto, só ouvia sua própria música.
- Que loucura! Os ingleses deviam crescer! Deviam procurar. Formar uma cultura. Inglaterra, Alemanha e Escandinávia! Os franceses que vão para o inferno, os americanos que vão para o inferno, os africanos que vão para o inferno. Lein-Europa, está-me entendendo, Turner? - Saab mantinha o punho cerrado, rígido desde o cotovelo. - Sólida e boa. Que possa falar e pensar. Não sou assim tão doido. Kultur. Sabe o que quer dizer isso? Kultur? - Tomou um gole. - Fantástico! - exclamou. - Sempre o melhor! Número um. - Levou o cálice de encontro à luz da vela. - O melhor vinho do Porto que já tomei. Pode ver-se o sangue no coração. Bradfield, que marca é este? Cockbum na certa, mas ele sempre me contradiz.
Bradfield hesitava, apanhado entre dois fogos. Olhou primeiro para o cálice de Saab, em seguida para as garrafas e depois para o seu próprio cálice.
- Fico feliz que o esteja apreciando, Karl-Heinz - disse Bradfield.
- Mas creio, na verdade, que o que você está tomando é Madeira.
Vandelung, lá da janela francesa, pôs-se a rir. Era uma risada dissonante e vingativa que prosseguiu durante algum tempo, enquanto seu corpo franzino se sacudia ao seu ritmo, erguendo-se e baixando com o arfar dos velhos pulmões.
- Bem, Saab - disse ele por fim, encaminhando-se lentamente de volta à mesa. - Talvez você possa também levar um pouco de sua cultura para os Países Baixos.
Começou a rir-se novamente, como um colegial, tapando a boca com a mão para esconder as falhas, e Turner teve então pena de Saab, sem se importar absolutamente com Vandelung.
Siebkron não tomou o vinho do Porto.
- Esteve hoje em Bruxelas. Espero que sua ida tenha sido coroada de êxito, Bradfield. Ouvi dizer que surgiram novas dificuldades. Lamento muito. Meus colegas me disseram que a Nova Zelândia apresentou um sério problema.
- Ovelhas! - exclamou Saab. - Quem comerá as ovelhas? Os ingleses criaram lá uma tremenda fazenda e ninguém quer comer as ovelhas.
A voz de Bradfield era completamente circunspecta.
- Nenhum problema novo foi apresentado em Bruxelas. As questões da Nova Zelândia e do Fundo da Agricultura estão há anos em cima da mesa. Não há problemas que não possam ser resolvidos entre amigos.
- Entre bons amigos. Esperamos que você tenha razão. Esperamos que a amizade seja suficientemente grande e as dificuldades suficientemente pequenas. Vamos contar com isso. - O olhar de Siebkron tornou a voltar-se para Turner. - Então Harting foi embora - observou ele, as mãos completamente juntas, como que em oração. - Uma grande perda para a nossa comunidade. Particularmente para a igreja. - Olhando diretamente para Turner, acrescentou: - Meus colegas me disseram que o senhor conhece o Sr. Sam Allerton, o renomado jornalista britânico. O senhor falou com ele hoje, creio.
Vandelung se servira de um cálice de Madeira e o estava provando ostentosamente. Saab, sombrio e de cara fechada, olhava de um para outro sem entender quase nada.
- Ludwig, que idéia esquisita. O que está querendo dizer com "Harting foi embora"? Ele está de licença. Não posso imaginar como todos esses boatos se espalharam. Pobre sujeito, seu único crime foi não ter avisado o capelão. - A risada de Bradfield era completamente artificial, mas em si era também um ato de coragem. - Licença por motivos de saúde. Não é próprio de você, Ludwig, obter uma informação errada.
- Como vê, Sr. Turner, tenho grandes dificuldades por aqui. Para meus pecados, sou o responsável pela ordem civil durante as demonstrações. Responsável perante o meu ministro, o senhor compreende. E com modesta capacidade. Mas responsável, de qualquer forma.
Sua modéstia era piedosa. Com uma gola engomada e uma sobrepeliz, ele poderia, em qualquer ocasião, tomar parte no coro de Harting.
- Estivemos esperando por uma pequena demonstração na sexta-feira. Temo que entre certos grupos minoritários os ingleses não sejam muito populares atualmente. Os senhores devem compreender que não desejo que ninguém fique ferido; absolutamente ninguém. Naturalmente, devido a isso, gosto de saber onde todos estão. Só assim posso protegê-los. Mas o pobre Sr. Bradfield com freqüência tem uma sobrecarga de trabalho tão grande que não me avisa. - Parou e olhou em seguida para Bradfield e depois desviou o olhar. - Bem, mas não estou culpando Bradfield de que não me avise. Por que deve na? - As mãos brancas se separaram numa concessão. - Há sempre algumas pequenas coisas e uma ou duas coisas importantes que Bradfield não me diz. Por que deveria dizer? Isso não seria coerente com sua vocação de diplomata. Estou certo, Sr. Turner?
- Não é problema meu.
- Mas é meu. Deixe-me explicar o que acontece. Meus colegas são gente observadora. Olham a sua volta, contam as cabeças, e notam que está faltando alguém. Fazem investigações, perguntam a empregados e amigos, e dizem que essa pessoa desapareceu. Imediatamente me preocupo por ela. Assim também os meus colegas. Não gostam que ninguém se extravie. O que poderia ser mais humano? Alguns são jovens, alguns deles. Apenas rapazes. Harting foi para a Inglaterra?
A última pergunta foi feita diretamente a Turner, mas Bradfíeld tomou a si a resposta, com o que Turner o abençoou.
- Ele tem problemas de família. Obviamente nós não podemos anunciá-los. Não pretendo pôr a vida particular de um homem exposta em cima da mesa a fim de satisfazer seus arquivos.
- O que é um princípio muito salutar. E que todos nós devemos seguir. Escutou isso, Sr. Turner? - Sua voz era notavelmente enfática. Qual a razão de uma perseguição no papel? Qual a razão?
- Por que, diabo, está você tão preocupado com Harting? - indagou Bradfield, como se se tratasse de uma piada. - Já estou surpreso de que você até soubesse da existência dele. Vamos tomar café, está bem?
Bradfíeld se pôs de pé, mas Siebkron permaneceu onde estava.
- Mas é claro que nós sabemos de sua existência - declarou ele. Apreciamos o trabalho dele. Na verdade admiramos muito o seu trabalho. Em um departamento tal como o meu, a habilidade do Sr. Harting encontra muitos admiradores. Meus colegas falam nele constantemente.
- De que você está falando? - Bradfield estava rubro de raiva. - Por que tudo isso? O que está havendo?
- Ele costumava estar com os russos, o senhor sabe - explicou Siebkron a Turner. - Em Berlim. Isto foi há muito tempo, é claro, mas estou certo de que ele ficou sabendo de muita coisa através deles, não acha, Sr. Turner? Um pouco da técnica, um pouco da ideologia, talvez? E uma alça. Os russos não soltam nunca.
Bradfield colocara as duas garrafas em uma bandeja e aguardava à porta esperando que passassem à sua frente.
- Que trabalho era esse? - perguntou Turner asperamente, enquanto Siebkron se levantava com relutância da cadeira.
- Pesquisa. Pesquisa em geral, Sr. Turner. Exatamente como o senhor, sabe? É agradável saber-se que o senhor e Harting têm interesses comuns. Na verdade, foi por essa razão que perguntei se o senhor iria substituí-lo. Meus colegas ficaram sabendo através do Sr. Allerton que o senhor e Harting têm muitas coisas em comum.
Hazel Bradfield levantou os olhos quando os homens entraram, e o olhar que ela trocou com Bradfield era eloqüente quanto à conjuntura. Suas quatro convidadas se encontravam sentadas em um único sofá. A Sra. Vandelung estava bordando; Frau Siebkron, de negro, tinha as mãos no colo e olhava particularmente fascinada para a lareira aberta. A Grafin, consolando-se da imprópria companhia que era obrigada a manter, sorvia lentamente um enorme conhaque. Seu rosto sovina luzia com pequeninas flores vermelhas como papoulas em um campo de batalha. Somente a pequena Frau Saab, o colo empoado de fresco, sorriu ao vê-lo entrar.
Elas estavam acostumadas, resignadas à monotonia.
- Bernhard - disse Hazel Bradfield, tocando na almofada a seu lado - venha sentar-se junto de mim. Esta noite estou especialmente bem acomodada. - Com um sorriso de raposa, o velho sentou-se obedientemente ao lado dela. - Agora me fale sobre todos os horrores que devo esperar na sexta-feira. - Hazel jogava com sua fenecida beleza, e jogava bem, pois havia em sua voz um toque de ansiedade que nem mesmo a orientação de Bradfield conseguira eliminar inteiramente.
A uma mesa separada sentou-se Siebkron, como um homem que viajasse em uma classe diferente. Bradfíeld falava com a mulher do alemão. Não, concedeu ela, não conhecia Bruxelas; ela não viajava freqüentemente com o marido.
- Mas a senhora deve insitir - declarou Bradfield, e de imediato se lançou a uma descrição de um hotel favorito em Bruxelas. O Amigo; uma pessoa devia hospedar-se no Amigo; lá o serviço era o melhor que ele jamais conhecera.
Frau Siebkron não dava importância aos grandes hotéis; passava as férias na Floresta Negra; era de que as crianças mais gostavam. Sim; Bradfield gostava da Floresta Negra; tinha bons amigos em Dornestetten.
Turner ouvia em invejada admiração o interminável fluxo de conversa trivial de Bradfield. Ele não contava com a ajuda de ninguém. Tinha os olhos sombrios de cansaço, mas sua conversação era tão fresca, tão atenciosa e tão despreocupada como se ele se encontrasse em férias.
- Vamos, Bernhard; você é como uma velha e sábia coruja e ninguém jamais me diz coisa alguma. Sou apenas a Hausfrau. O que se espera de mim é que leia a Vogue e faça canapés o dia inteiro.
- Você conhece o ditado - replicou Vandelung. - O que mais pode acontecer em Bonn, antes que alguma coisa aconteça? Eles não podem fazer nada que não tenhamos visto antes.
- Podem pisar em minhas rosas - observou Hazel, acendendo um cigarro para si mesma. - Podem me roubar o marido a qualquer hora da noite. Viagens diárias a Bruxelas! Um absurdo. E olhe só o que fizeram em Hanover. Pode-se lá imaginar o que aconteceria, se eles quebrassem essas janelas? Lidando com aquele lamentável departamento de obras? Todos nós estaríamos aqui encapotados enquanto decidiam quem ia pagar. Isto é péssimo, realmente. Graças a Deus, temos o Sr. Turner para nos proteger. - Ao dizer isso, o olhar de Hazel voltou-se para ele, parecendo-lhe ao mesmo tempo ansioso e inquisitivo. - Frau Saab, seu marido tem viajado para tudo que é lado atualmente? Tenho certeza de que os jornalistas são maridos muito melhores do que diplomatas.
- Ele é muito sincero. - A bonequinha corou, desditosamente.
- Ela quer dizer leal. - Saab beijou-lhe a mão com amor. Abrindo sua bolsinha tirou de dentro um pó compacto e separou suas pétalas douradas de uma em uma.
- Fazemos um ano de casados amanhã. É muito lindo.
- Du bist noch schöner - exclamou Saab, e a conversação descambou para uma troca de informações domésticas e financeiras sobre a casa recém-montada de Saab. Sim, eles haviam comprado um lote de terreno em Oberwinter. Karl-Heinz o havia comprado no ano anterior para o contrato de casamento e seu valor já subira quatro marcos por quadratmeter.
- Karl-Heinz, como se diz quadratmeter?
- A mesma coisa - assegurou Saab. - Metro quadrado - e olhou carrancudo para Turner, caso ele ousasse contradizê-lo.
De repente, Frau Saab tomou a palavra e ninguém conseguia detê-la. Toda a vida dela foi exposta aos presentes em uma mixórdia oriental de esperanças e desapontamentos; o rubor que aumentara de forma tão linda em seu rosto lá permaneceu como o fluxo de calor do êxito sexual.
Eles haviam esperado que Karl-Heinz conseguiria o Buro de Bonn de seu jornal. Editor de Bonn: era isso o que esperavam. Seu salário subiria mais mil e ele de fato assumiria uma posição. Ao contrário, o que tinha acontecido? O jornal tinha indicado Den Flitzdorf, e Flitzdorf não passava de um garoto, sem experiência e coisa nenhuma, completamente homossexual, e Karl-Heinz que já trabalhava para o jornal há 18 anos e tinha tantos contatos, era ainda um mero segundo homem e tinha que fazer dinheiro extra escrevendo para todos os jornalecos.
- Imprensa amarela - observou o marido, mas pelo menos desta vez ela o ignorou por completo.
Bem, quando isso acontecera tiveram uma longa discussão a respeito e decidiram que iriam em frente com seus planos de construção ainda que a Hypothek fosse assustadora; mas, mal tinham acabado de pagar o que deviam ao Makler e uma coisa realmente terrível acontecera: os africanos vieram para Oberwinter. Era horrível. Karl-Heinz sempre fora muito acerbo contra os africanos, mas agora eles na verdade haviam comprado o lote vizinho ao seu e estavam construindo uma Residenz para um de seus embaixadores e duas vezes por semana vinham todos, subiam na estrutura como macacos e berravam que queriam tudo diferente; não demoraria muito teriam ali uma colônia inteira, com Cadillacs, crianças e música a noite toda, enquanto ela ficava ali sozinha, quando Karl-Heinz tinha que trabalhar até tarde e já estavam até pondo trancas especiais nas portas a fim de que ela não...
- Eles falam demais! - exclamou Saab, suficientemente alto para que Siebkron e Bradfield se voltassem para ele repreensivamente, pois os dois se haviam afastado até a janela onde conversavam tranqüilamente olhando a noite. - Mas não estamos bebendo nada!
- Karl-Heinz, pobre sujeito, nós não lhe estamos dando nenhuma atenção. - Com uma última palavra para Siebkron, Bradfield cortou a sala na direção da bandeja de prata finamente lavrada onde se encontravam as garrafas. - Quem mais deseja tomar alguma coisa?
Vandelung gostaria de acompanhá-lo, mas sua mulher o proibiu.
- Tem que tomar um grande cuidado - informou ela à jovem Frau Saab, num comentário terrivelmente audível - ou sofrerá um ataque cardíaco. Comer muito, beber muito, falar em demasia: isso afeta o coração. E com uma jovem esposa que não se satisfaz facilmente - acrescentou prazerosamente - ele poderia morrer com facilidade. - Tomando a mão cinzenta do marido com firmeza, Frau Vandelung o conduziu para o saguão. No mesmo instante, Hazel Bradfield se inclinou sobre a abandonada cadeira. - Sr. Turner - falou, em voz baixa - há um assunto em que o senhor poderia ajudar-me. Posso afastá-lo daqui por um momento?
Foram até o solário. Plantas e raquetes de tênis jaziam nos peitoris das janelas; um trator de brinquedo, uma vara e um punhado de taquaras estavam espalhados pelo chão. Sentia-se um misterioso aroma de mel.
- Pelo que sei, está fazendo uma sindicância sobre Harting - disse ela. Sua voz era brusca e imperativa; ela era bem a mulher de Bradfield.
- Estou?
- Rawley está mortificado. Estou convencida de que Leo Harting se encontra por trás de tudo isso.
- Compreendo.
- Ele não dorme e não quer tocar no assunto. Nestes últimos três dias, mal fala comigo. Ele não quer saber de absolutamente nada exceto seu trabalho. Rawley está a ponto de estourar.
- Ele não me deu essa impressão.
- Acontece que ele é meu marido.
- Muita sorte dele.
- O que Harting levou com ele? - Seus olhos brilhavam de raiva ou determinação. - O que ele roubou?
- O que faz com que pense que ele roubou alguma coisa?
- Ouça. Eu, e não você, sou a responsável pelo bem-estar de meu marido. Tenho o direito de saber se Rawley está em dificuldades; diga-me o que Harting fez. Diga-me onde ele está. Há comentários por aí, está todo mundo falando. Essa ridícula história sobre Colônia; a curiosidade de Siebkron: por que não posso saber o que está acontecendo?
- É o que eu mesmo estava imaginando - disse Turner.
Ele pensou que Hazel iria agredi-lo, mas, se ela o fizesse, ele revidaria. Ela era bonita, mas os cantos de sua boca estavam arqueados para baixo na frustrada fúria de uma criança rica, e em sua voz e nos seus modos havia algo terrivelmente familiar.
- Saia. Deixe-me sozinha.
- Pouco me importa quem você seja. Se deseja tomar conhecimento de segredos oficiais, você pode muito bem ir à sua fonte - replicou Turner, e esperou que ela novamente se erguesse contra ele.
Em lugar disso, Hazel passou rapidamente por ele, entrou no saguão e subiu as escadas correndo. Durante um momento, Turner permaneceu onde estava, olhando confusamente os brinquedos de crianças e de adultos, as varas de pesca, o equipamento para croquet e toda a tralha casual e perdulária de um mundo que ele jamais conhecera. Ainda perdido em pensamentos, encaminhou-se de volta, lentamente, à sala de estar. Quando entrou, Bradfield e Siebkron, lado a lado junto da janela francesa, voltaram-se como um só homem para encará-lo, o objeto de seu compartilhado desprezo.
Era meia-noite. A Grafin, bêbada e sem palavras, tinha sido levada a um táxi. Siebkron fora embora; suas despedidas se haviam limitado aos Bradfields. A mulher dele devia ter ido junto, ainda que Turner não tivesse notado sua saída; a almofada onde ela estivera sentada mal revelava marcas. Os Vandelungs também já haviam saído. Agora, somente os cinco restantes permaneciam sentados em torno da lareira em um estado de depressão pós-festiva, os Saabs no sofá de mãos dadas e olhando as brasas se apagando, Bradfield em silêncio sorvendo seu uísque; Hazel, em seu vestido longo de tweed verde, aninhada como uma sereia em uma cadeira de braços, brincava com o gato azul de porcelana russa, em uma imitação autoconsciente de um sonho do século XVIII. Ainda que raramente olhasse na direção de Turner, não se preocupou em ignorá-lo; até mesmo, ocasionalmente, fazia um comentário, dirigindo-se a ele. Um comerciante tinha sido impertinente, mas Hazel Bradfield não iria conceder-lhe a graça de roubar-lhe sua cliente.
- Hanover foi fantástico - murmurou Saab.
- Oh, não comece de novo, Karl-Heinz - pediu Hazel. - Creio que já ouvi o suficiente sobre isso para o resto da vida.
- Por que eles correram? - perguntou Saab para si mesmo. - Siebkron estava lá. Eles correram. Da frente. Correram como doidos para aquela biblioteca. Por que fizeram isso? Todos de uma vez: alles auf einmal.
- Siebkron continua a me fazer a mesma pergunta - comentou Bradfield, em um momento de franqueza. - Por que eles correram? Se há alguém que devia saber, é ele, que esteve ao lado do leito de Eich. Eu não estive. Deve ter ouvido o que a moça tinha a dizer, creio. Eu não. O que, diabo, terá se metido dentro dele? E sempre repetindo: "O que aconteceu em Hanover não deve acontecer em Bonn." Claro que não deve, mas ele parece achar que será minha culpa se acontecer. Nunca vi Siebkron assim.
- Mas você? - interveio Hazel Bradfield, com indisfarçável desprezo. - Por que razão perguntar a você? Você nem esteve lá.
- Mas mesmo assim ele me pergunta - redargüiu Bradfield, pondo-se de pé, em um momento de tanta passividade e ternura que Turner foi levado de repente a especular sobre o relacionamento deles. - Mas mesmo assim ele me pergunta. - Colocou o copo vazio em cima do aparador. - Quer você goste ou não. Pergunta repetidamente: "Por que eles correram?" Exatamente como Karl-Heinz está fazendo agora. "O que os fez correrem? O que havia em relação à biblioteca que os atraiu?" Tudo o que posso dizer é que a biblioteca era britânica e todos nós sabemos o que Karfeld pensa sobre os britânicos. Vamos, Karl-Heinz; temos que botar vocês, os jovens, na cama.
- E os ônibus cinzentos - resmungou Saab. - Você leu o que descobriram quanto aos ônibus para a escolta? Eles eram cinzentos, Bradfield, cinzentos!
- E isso é significativo?
-Era, Bradfield. Há mil anos era tremendamente significativo,meu caro.
- Acho que não estou entendendo - observou Bradfield com um sorriso cansado.
- Como de costume - interveio Hazel. Ninguém recebeu suas palavras como piada.
- Você tem sido tremendamente bom para mim, Bradfield - disse com tristeza Saab, quando saíam - Talvez eu fale demais. Nicht wahr, Marlene: eu falo demais. Mas não confio naquele sujeito, naquele Siebkron. Sou um porco velho, entendem? Mas Siebkron é um porco novo. Prestem atenção!
- Por que não confiar nele, Karl-Heinz?
- Por que ele nunca faz uma pergunta a não ser quando já conhece a resposta. - Com essa enigmática afirmativa, Karl-Heinz beijou com fervor a mão de sua anfitriã e mergulhou nas sombras, apoiado no jovem braço de sua adorável mulher.
Turner sentara-se no banco de trás, enquanto Saab dirigia muito lentamente, na mão esquerda da estrada. A mulher de Saab cochilava, apoiada em seu ombro, uma pequena mãozinha cocando ainda carinhosamente os pêlos negros que decoravam a parte de trás do pescoço do marido.
- Por que eles correram em Hanover? - repetiu Saab, ao mesmo tempo que se desviava habilmente dos carros que vinham na mão oposta. - Por que correram aqueles malditos idiotas?
No Adler, Turner pediu que o café da manhã lhe fosse servido às quatro e meia, o que o porteiro anotou com um compreensivo sorriso, como se fosse essa mesma a espécie de hora que ele esperava que um inglês se pusesse de pé. Ao ir para cama, a cabeça de Turner se desligou das desagradáveis e mistificadoras perguntas de Herr Ludwig Siebkron, a fim de se dedicar à pessoa mais agradável de Hazel Bradfield. Era bastante misterioso, concluiu ao pegar no sono, que uma mulher tão bonita, desejável e evidentemente inteligente, pudesse tolerar o imensurável tédio da vida diplomática em Bonn. Se o prezado Anthony Willoughby, da classe superior, alguma vez pousasse o olho nela, imaginou Turner, o que poderia fazer Bradfield? E por que - o coro que o embalou até dormir era o mesmo que o manteve acordado durante a longa, tensa e inexplicável noite - por que, diabo, em primeiro lugar, havia ele sido convidado?
E quem o havia convidado? "Quero convidá-lo para jantar na terça-feira", tinha dito Bradfield. Não me culpe pelo que acontece.
E Bradfield, eu ouvi! Ouvi você ceder à pressão; pela primeira vez senti sua brandura; dei um passo em sua direção, vi uma faca em suas costas e o ouvi falar com minha própria voz. Hazel, sua cadela; Siebkron, seu porco; Harting, seu ladrão: se isso é o que vocês pensam sobre ávida, o veado do De Lisle soprando em seu ouvido, por que vocês não se derrotam a si próprios? Deus está morto. Não se pode encarar isso em seus dois sentidos, pois seria demasiado medieval. ..
Ligou o despertador para as quatro horas, mas ele parecia que já estava até tocando.
Capítulo 11
Königswinter
Ainda estava escuro quando De Lisle o apanhou, e Turner teve que pedir ao porteiro da noite que destrancasse a porta do hotel. A rua estava fria, inamistosa e deserta; a neblina investia sobre eles em faixas repentinas.
- Bem, temos que seguir o caminho longo, pela ponte. A balsa ainda não está funcionando a esta hora. - Suas maneiras eram concisas, quase abruptas.
Tinham entrado na pista de fora da avenida. De cada lado, novos blocos, construídos com azulejos e vidro blindado, surgiam como noturnas ervas daninhas de campos não cultivados, encimandos pelas luzes de pequenos guindastes. Passaram pela embaixada. A escuridão envolvia o concreto úmido como o fumo de uma batalha passada. A Union Jack pendia flacidamente de seu mastro, como flor única na cova de um soldado. Sob a pouca luz do portal da frente, o leão e o unicórnio, seus perfis esbatidos pelas repetidas camadas de vermelho e de ouro, lutavam bravamente por se destacar. Nas terras incultas, as duas balizas do campo de futebol inclinavam-se como bêbados à luz do crepúsculo matutino.
- As coisas estão se esquentando em Bruxelas - observou De Lisle em um tom de voz que prometia poucos detalhes. Uma dúzia de canos se encontrava estacionada no pátio da frente. O Jaguar branco de Bradfield ocupava a vaga privativa que lhe era destinada.
- A nosso favor ou contra nós?
- O que você acha? - continuou De Lisle. - Nós pedimos conversações em particular com os alemães; os franceses fizeram a mesma coisa. Não é que de fato o queiram. Mas é o cabo-de-guerra que eles gostam.
- Quem vence?
De Lisle não respondeu.
A cidade deserta pendia do clarão róseo e extraterreno que embala todas as cidades na hora que precede a madrugada. As ruas únicas e vazias, as casas manchadas como velhos uniformes. No arco da universidade três policiais tinham estendido uma Unha de barricadas e fizeram sinal para que eles diminuíssem a marcha e parassem. Sombriamente os policiais caminharam em volta do pequenino carro, registrando o número da licença, testando a suspensão pondo-se em cima do pára-choques traseiro, e espiando através das janelas embaçadas os ocupantes acomodados no interior do veículo.
- O que foi que eles gritaram? - indagou Turner, enquanto o carro se afastava.
- Atenção aos sinais de desvio. - De Lisle entrou à esquerda, seguindo a seta azul. - Onde, diabo, eles estão nos levando?
Um caminhão movido a eletricidade limpava as sarjetas; dois outros policiais com capotões de couro verde, os capuzes caídos, suspeitosamente observavam seu progresso. Na janela de uma loja uma moça vestia um manequim com trajes de praia, mantendo um dos braços de plástico erguido e por ele enfiando a manga do traje. A moça usava botas de feltro grosso e se arrastava como um prisioneiro. Tinham chegado à praça da estação. Faixas negras cruzavam a estrada e se estendiam ao longo do toldo da estação. "Seja Bem-Vindo Klaus Karfeld!" "Saudações de um Caçador, Klaus!" "Karfeld! Você Luta por Nosso Auto-Respeito!" Uma foto, maior do que qualquer outra que Turner tivesse visto até então, aparecia em um enorme cartaz. "Freitag!" dizia a legenda: Sexta-feira. Refletores focalizavam a palavra deixando todo o resto na sombra.
- Eles estarão chegando hoje. Tilsit, Meyer-Lothringen; Karfeld. Eles estão vindo de Hanover para preparar o terreno.
- Tendo Ludwig Siebkron como anfitrião.
Estavam-se deslocando ao longo de alguns trilhos, ainda seguindo as indicações de desvio. A rota os levou para a esquerda e novamente para a direita. Haviam passado por baixo de uma pequena ponte, voltado para trás, entrado em uma outra praça, parado em sinais de tráfego improvisados até que, de súbito, inclinaram-se para a frente em seus bancos, olhando atônitos para diante, deparando-se com a suave rampa da praça do mercado, na direção do Palácio da Cidade.
Logo à sua frente, as barracas vazias se estendiam em Unhas, como camas em uma tenda de soldados. Além das barracas as lojas especializadas em quinquilharias ofereciam suas empenas pontiagudas na direção do céu que vinha clareando. De Lisle e Turner, porém, olhavam para o cimo da rampa, para o edifício único, rosa e cinza, que dominava toda a praça. Havia escadas encostadas nele; o balcão se encontrava ornamentado de faixas negras; um rebanho de Mercedes achava-se estacionado na frente do edifício, sobre o calçamento. Para a esquerda, em frente a uma loja de produtos químicos, iluminados a partir de uma dúzia de pontos, erguiam-se andaimes brancos, como o perfil de uma torre de assalto medieval. Sua parte superior se erguia até a altura das trapeiras dos edifícios vizinhos; as gigantescas pernas, nuas como raízes crescidas na escuridão, abriam-se obscenamente por cima de suas próprias sombras negras. Operários já começavam a enxamear em sua base. Turner podia escutar o eco das batidas dos martelos e o zunir das serras elétricas. Uma viga de madeira estava sendo içada por uma silenciosa roldana.
- Por que as bandeiras estão a meio pau?
- Luto. É um símbolo. Eles estão de luto pela honra nacional. Cruzaram a longa ponte.
- Agora está melhor - observou De Lisle com um grunhido de satisfação, puxando a gola para baixo, como se tivesse entrado em um mundo mais quente.
O carro ia rápido. Passavam por uma localidade após outra. Não tardaram a atingir a zona rural e seguiram por uma estrada nova, ao longo da margem leste. À sua direita, Godesberg, dividido por camadas de neblina, erguia-se sombriamente sobre a cidade adormecida. Passaram pelas orlas de um vinhedo. Os sulcos, ressaltados pela misteriosa escuridão, eram como as costuras de ligação ao modelo em ziguezague dos caules. Acima do vinhedo, as florestas das Sete Colinas; acima das florestas, castelos em ruínas e torreões góticos se projetavam em negro contra a Unha do horizonte. Abandonando a estrada principal, entraram numa curta alameda que levava diretamente a uma esplanada bordejada por lâmpadas apagadas e árvores podadas. Adiante, o Reno, presente mas indefinido.
- A próxima à esquerda - falou De Lisle, sombriamente. - Avise-me se alguém estiver de guarda.
Um casarão branco se ergueu à frente deles. As janelas de baixo estavam fechadas, os portões da frente, abertos. Turner saltou do carro e caminhou um pequeno trecho sobre o calçamento. Apanhando uma pedra, atirou-a com força e precisão contra a parede lateral do casarão. O som ecoou tortuosamente sobre a água e subiu na direção das encostas negras de Petersberg. Perscrutando a neblina, esperava ouvir um grito ou um ruído de passos. Nada aconteceu.
- Estacione na estrada e volte aqui - disse Turner.
- Creio que apenas ficarei estacionado na estrada. De quanto tempo você vai precisar?
- Você conhece a casa. Volte e me ajude.
- Não é do meu feitio. Desculpe. Não me preocupei em trazê-lo até aqui, mas não vou entrar.
- Então por que você me trouxe?
De Lisle não respondeu.
- Não suje os seus dedos, está bem.
Conservando-se na beira do gramado, Turner seguiu pelo caminho na direção da casa. Mesmo àquela luz percebeu o idêntico senso de organização que caracterizava a sala de Harting. O gramado, grande e em ordem, os canteiros de roseiras aparados e limpos, as rosas cingidas por tiras de palha e identificadas separadamente com etiquetas de metal. Na porta da cozinha, três latas de lixo, numeradas e licenciadas de acordo com os regulamentos locais, dentro de uma bacia de concreto. Quando ia enfiar a chave na fechadura, Turner ouviu um passo.
Inequivocamente, tratava-se de um passo. Tinha produzido o duplo som, embotado mas sem qualquer sombra de dúvida humano, de um calcanhar se apoiando sobre os seixos, ao que se seguiu o apoio da ponta do pé. Um passo cauteloso; um gesto esboçado e em seguida reprimido, uma mensagem enviada e recolhida; mas, fora de qualquer discussão, um passo.
- Peter? - Mudou novamente de idéia, pensou Turner. Seu coração é mole. -Peter!
Mesmo assim não houve resposta.
- Peter, é você? - Turner abaixou-se, pegou rapidamente uma garrafa vazia de dentro da caixa de madeira a seu lado e aguardou, os ouvidos atentos ao mais leve som. Ouviu o cantar de um galo nas Sete Colinas. Escutou o formigamento da terra ensopada, como o formigamento de agulhas de pinheiros em uma floresta; ouviu o ruído de pequeninas ondas batendo na margem do rio; escutou o distante rumorejar do próprio Reno, como o trovejar de uma máquina inumana, um barulho formado de inúmeros outros, separando-se e unindo-se como água invisível; escutou o roncar de barcaças invisíveis, o baque de correntes de âncoras subitamente lançadas; escutou um grito, como o mugido de gado perdido em uma charneca, como uma solitária sirena ecoando na face de um rochedo. Mas não escutou outro passo qualquer nem os reconfortantes tons da voz de De Lisle. Virando a chave, Turner abriu a porta, com firmeza; em seguida ficou imóvel e atento, a garrafa firme na mão, enquanto o leve aroma de charuto velho lhe chegava agradavelmente às narinas.
Esperou, deixando que a sala viesse até ele, emersa da sombra fria. Gradualmente, foram-lhe chegando novos sons. Em primeiro lugar, da direção da área de serviços veio o tinir de vidros; do saguão de entrada o estalar de madeira; no porão uma caixa vazia estava sendo arrastada em um soalho de concreto; soou um gongo, uma só vez, imperioso e marcante; e agora, de todos os lados, erguia-se um zunido vibrante e orgânico, obscuro ainda que muito próximo, pressionando-o mais alto a cada minuto, como se todo o prédio tivesse sido atingido por uma tapona e estivesse tremendo pelo golpe. Correndo até o saguão de entrada, passou para a sala de jantar, acendeu as luzes com um movimento único da palma de sua mão e olhou selvagemente em volta, os ombros encurvados, a garrafa empunhada por seu considerável punho.
-Harting! - gritou Turner. - Harting? - Escutou ruídos de pés irregulares, e abriu a porta divisória. - Harting! - tornou a chamar, mas a única resposta foi a fuligem deslizando pela lareira aberta, e o barulho de uma batida ao acaso no estuque do lado de fora.
Aproximou-se da janela e olhou além do gramado na direção do rio. Na margem oposta, a Embaixada americana, brilhante como uma casa de força, lançava clarões amarelados através da neblina densa nas águas indefiníveis. Finalmente, Turner percebeu a natureza de seu torturador: uma cadeia de seis barcaças, bandeiras ao vento, as luzes de radar brilhando ao alto como estrelas azuis pregadas ao mastro, estava rapidamente desaparecendo na névoa. Quando a última embarcação sumiu, também a estranha orquestra doméstica encostou os seus instrumentos. Os vidros deixaram de tinir, as escadas de estalar, a fuligem de cair, as paredes de tremer. A casa entrou novamente em repouso, reflexiva embora não tranqüilizada, esperando pelo próximo assalto.
Colocando a garrafa no peitoril da janela, Turner se endireitou e percorreu lentamente peça por peça. O local era uma construção tipo quartel, ampla e perdulária, feita para um coronel à custa de reparações, à época em que a alta comissão esteve estacionada em Petersberg; uma de um conjunto, dissera De Lisle, mas o conjunto não foi jamais completado, pois então a Ocupação havia terminado e o projeto fora abandonado. Uma casa estranha para um homem estranho. Havia um lado iluminado e outro na sombra, conforme as peças se debruçassem sobre o rio ou sobre Petersberg; o reboco era grosseiro e mal ajustado às portas. O mobiliário era dúbio, como se jamais tivesse sido decidido por alguém qual o prestígio a que Harting fazia jus. Se havia alguma ênfase, ela recaía sobre o aparelho de som. Dele partiam fios em todas as direções e alto-falantes de ambos os lados da chaminé tinham sido montados sobre eixos para permitir o ajustamento direcional.
A mesa de jantar estava posta para duas pessoas.
Ao centro, quatro querubins de porcelana dançavam em um círculo. A primavera perseguindo o verão, o verão fugindo do outono, o inverno puxando todos eles para a frente. De ambos os lados, dois lugares estavam preparados para jantar. Velas novas, fósforos, uma garrafa de Burgundy, ainda fechada, na cesta para vinho; um ramo de rosas fenecendo em um jarro de prata. Sobre tudo isso uma fina camada de poeira.
Turner tomou notas apressadas em sua caderneta e, em seguida, encaminhou-se para a cozinha. Ela poderia ter sido copiada de urna revista feminina. Turner jamais vira tantos aparelhos. Batedeiras, facas elétricas, torradeiras, abridores. Sobre o aparador uma bandeja de plástico, com as sobras de um desjejum único. Levantou a tampa de um bule. Era chá de ervas, de coloração vermelha viva. Borras desse líquido podiam ser vistas na xícara do chá, manchando a colher. Uma outra xícara se encontrava emborcada na prateleira. Em cima do refrigerador um rádio transistor, semelhante ao que vira na embaixada. Tendo uma vez mais feito anotações, Turner foi até a porta, aguçou os ouvidos, e em seguida começou a abrir os armários, deles retirando latas e garrafas e olhando para seu interior. Ocasionalmente anotava o que encontrava. No refrigerador, embalagens de meio litro de leite Naafi eram mantidas ordenadamente ao longo da prateleira interior. Pegando um recipiente com patê, Turner suavemente o cheirou, procurando testar sua idade. Numa travessa branca, dois bifes, um ao lado do outro. No interior da carne tinham sido introduzidos pedaços de alho. Ele preparou isso na quinta à noite, ocorreu subitamente a Turner. Na quinta à noite ele ainda não sabia que ia desertar na sexta.
O corredor de cima era coberto por passadeiras de esteiras de palha de coqueiro. Os móveis de pinho estavam bastante desconjuntados. Tirou os ternos, de um em um, enfiando as mãos em seus bolsos, jogando-os em seguida para o lado, como se eles não servissem mais. O corte, do mesmo modo que o tipo de construção da casa, era militar; os casacos eram cintados, com um bolsinho a meio caminho no lado direito; as calças, afuniladas e sem bainhas externas. Ocasionalmente, enquanto prosseguia em sua busca, Turner se deparava com um lenço, um pedaço de papel, um toco de lápis, que ele examinava e por vezes anotava, antes de pôr o terno de lado e retirar um outro do desmantelado guarda-roupa. A casa estava novamente tremendo. De algum lugar - desta vez parecia vir dos próprios alicerces da casa - vinha o som de clangores metálicos como os de um trem de carga freando, um local chamando e o outro respondendo, subindo de andar em andar. Mal tinha esse som acabado, quando Turner tornou a ouvir um outro passo. Largando o terno correu para a janela. Tornou a ouvir. Duas vezes. Por duas vezes ouvira a batida sólida de passos. Abrindo as persianas debruçou-se para fora, à luz crepuscular e olhou para baixo na direção do caminho de entrada.
- Peter?
Eram sombras que se moviam ou um homem? Turner deixara acesas as luzes do saguão e elas lançavam faixas de luz no caminho. Não havia vento para agitar as faias. Um homem então? Um homem passando pela janela para o lado de dentro? Um homem cuja sombra se projetara nas pedras do caminho?
- Peter?
Nada. Nem carro, nem guarda. As casas vizinhas imersas na escuridão. Acima dele, a montanha de Chamberlain acordava vagarosamente.
Agora, Turner agia mais rapidamente. No segundo guarda-roupa se defrontou com mais uma meia dúzia de trajes. Incansavelmente, Turner os retirou de seus cabides, remexeu nos bolsos e os botou de lado; então um sexto sentido o avisou: vá devagar. Turner estava agora lidando com um terno de gabardine azul-marinho, uma roupa de verão, mas muito próximo de um terno formal, mais amassada do que as outras e posta em separado, como se estivesse esperando para ser lavada ou pelo amanhã, Turner sopesou-a cuidadosamente. Colocando-a em cima da cama, revistou os bolsos e retirou um envelope pardo, cuidadosamente dobrado. Um envelope pardo oficial, o tipo de coisa que é usado para imposto de renda. Não havia destinatário pelo lado de fora, e o envelope fora lacrado com um selo depois rompido. Dentro, uma chave: uma chave Yale, de cor cinza-chumbo, não modelada de pouco tempo mas gasta pela idade ou pelo uso, uma chave grande e de modelo antigo, uma chave complicada para uma fechadura funda e complicada, bastante diferente das chaves existentes no molho do funcionário de plantão. Uma chave de caixa de mensagens? Repondo-a no envelope, Turner colocou este entre as páginas de sua caderneta de anotações e cuidadosamente examinou os demais bolsos. Três pauzinhos para mexer coquetéis, um deles com alguma sujeira na ponta, como se tivesse sido usado para limpar unhas. Caroços de azeitona. Algumas moedas, quatro marcos e 80 em notas de pequeno valor. E uma conta de bebidas, sem data, de um hotel em Remagen.
Turner deixara o escritório para o fim. Era uma peça ordinária, cheia de caixas de papelão de uísque e de comida enlatada. Uma tábua de passar se encontrava perto da janela fechada. Em uma velha mesa de jogo, pilhas de catálogos, panfletos comerciais e listas de preços diplomáticas em uma incomum confusão. Em um pequeno caderno de notas estavam registrados artigos que Harting evidentemente pensava em obter. Turner correu os olhos no caderninho e o enfiou no bolso. As latas de charutos holandeses se encontravam em uma caixa de madeira; devia haver uma grosa ou mais deles.
A estante com frente de vidro estava trancada. Abaixando-se, Turner estudou os títulos, ergueu-se, tornou a ficar escutando, em seguida pegou uma chave de parafusos na cozinha e com uma poderosa torção lascou a madeira, de modo tal que a fechadura de metal saltou subitamente, como um osso rompendo a carne, e a porta ficou pendente e inutilmente aberta. A primeira meia dúzia de livros era de edição alemã e de antes da guerra, fortemente gravada em dourado. Turner não conseguiu ler os títulos corretamente, mas de alguns pareceu entender: Leipziger Kommentar zum Strafgesetzbuch, de Studinger; Verwaltungsrecht;e havia também o Estatuto de Prescrições de alguém mais. Em cada volume estava grafado: Leo Harting, como o nome no cabide dos casacos; um deles tinha impresso o emblema com o urso de Berlim sobrescrito em uma elaborada caligrafia alemã, muito fraca nas curvas e muito marcada nos traços verticais; Fur meinen geleiebten Sohn Leo. A prateleira mais abaixo era uma mistura: um Código de Conduta para os Oficiais Britânicos na Alemanha, uma publicação em alemão sobre as bandeiras do Reno e um livro de frases inglês-alemão publicado em Berlim antes da guerra, com anotações e marcas de muito manuseio. Do fundo, à direita, Turner retirou um punhado de boletins mensais de poucas folhas da Comissão de Controle da Alemanha, dos anos de 1949 a 1951; alguns dos volumes estavam faltando. Quando Turner abriu o primeiro livro o costado estalou e a poeira chegou celeremente às suas narinas. "Número 18 Unidade de Investigação de Campo, Hanover", lia-se na anotação, escrita, cada palavra, em excelente caligrafia de escrevente, muito acentuada nos traços verticais e refinadas nas curvas, com uma tinta negra e pulverulenta que só os governos podem adquirir. Uma linha fina havia cancelado o título, que fora substituído por outro: "Número 6 Unidade de Inquérito Geral, Bremen." Sob esse título novamente (pois Bremen, também, havia sido riscado) Turner leu as palavras: "Propriedade do Departamento de Consultoria Jurídica, Moenchengladbach", e -sob essas palavras "Comissão de Anistia, Hanover. Não deve ser removido." Selecionando uma página ao acaso, Turner se encontrou subitamente preso ao relato retrospectivo do abastecimento aéreo de Berlim. O sal devia ser preso sob as asas do avião e em hipótese alguma conduzido no interior da fuselagem. . . o transporte de petróleo apresentava sérios riscos nas aterragens e nas decolagens. . . era preferível, nos interesses do moral, senão mesmo da economia, transportar carvão e milho ao invés de preparar o pão antes do embarque para distribuí-lo já pronto. . . usando batatas desidratadas, ao invés de batatas frescas, 720 toneladas podiam ser economizadas nas rações de 900 toneladas para o atendimento da população civil. Fascinado, Turner folheou lentamente as páginas amareladas, seus olhos se detendo em frases de inesperada familiaridade. "A primeira reunião da Alta Comissão Aliada foi realizada em 21 de setembro, em Petersberg, nas proximidades de Bonn. . ." Uma Agência de Turismo alemã estava por ser aberta em Nova York... Os festivais de Bayreuth e de Oberammergau deviam ser reinstituídos tão rapidamente quanto possível... Deu uma espiada no sumário das minutas das reuniões da alta comissão: Métodos de ampliação das oportunidades e das responsabilidades da República Federal Alemã no campo das atividades econômicas e de relações exteriores foram considerados. . . Poderes mais amplos para a República Federal Alemã no campo do comércio exterior, de acordo com o estatuto de Ocupação, foram definidos. . . Foi autorizada a participação direta alemã em duas outras organizações internacionais.. .
O volume seguinte se abriu naturalmente em uma página que tratava da libertação de prisioneiros alemães detidos sob certas categorias de infrações. Uma vez mais, Turner se sentiu compelido a ler: Três milhões de alemães, atualmente em cativeiro. . . os presos estavam passando melhor do que os que se encontravam em liberdade. . . os Aliados se defrontavam com a impossibilidade de separar o joio do trigo. .. a Operação Coalscuttle selecionaria os que iriam para as minas, a Operação Barleycorn, os que iriam para as colheitas. . . Uma passagem se encontrava com uma anotação, na margem, em tinta azul: A 31 de maio de 1948, dessa forma, como um ato de clemência, uma anistia foi concedida, de acordo com o previsto no Decreto 69, a todos os membros da SS que não tenham incorrido em categorias automáticas de prisão, com a exceção daqueles que exerceram atividades como guardas de campo de concentração. As palavras "ato de clemência" estavam sublinhadas, com tinta que parecia incomumente fresca.
Tendo examinado todos os volumes, Turner, com um puxão violento, arrancou-lhes as capas, como se estivesse quebrando as asas de um pássaro; em seguida, virou para o lado de cima o restante, procurando por alguma coisa escondida; depois, levantou-se e se encaminhou para a porta.
A barulhada começara novamente e bem mais alto do que antes. Turner permaneceu imóvel, a cabeça de lado, seus olhos descoloridos esquadrinhando em vão a escuridão: ouviu um apito baixo, monótono, longo, ressoante e triste, pacientemente conclamando, suavemente convencendo, estranhamente se lamentando. Um vento se erguera; fora o vento por certo. Pôde ouvir as persianas novamente, batendo de encontro à parede; mas, com toda a certeza, não tinha fechado a janela? Era o vento: um vento matinal que se erguera do vale do rio. Um vento forte, porém; pois o estalar dos degraus da escada era tenso, e aumentava sua própria escala, como o estalejar dos cabos de um navio, quando suas velas inflam; e os vidros, os vidros da sala de jantar tiniam absurdamente; muito mais alto do que antes.
- Rápido - falou Turner, e estava falando consigo mesmo.
- Testou as gavetas da escrivaninha. Não estavam trancadas. Algumas se encontravam vazias. Lâmpadas, fios, material de costura; meias, abotoaduras extras para camisas; uma gravura sem moldura de um galeão a velas plenas. Olhou atrás da gravura e leu: "Ao querido Leo, de Margaret, Hanover, 1949. Com a mais profunda afeição." A maneira de escrever era nitidamente continental. Turner dobrou a gravura de qualquer jeito e a enfiou no bolso. Sob a gravura havia uma caixa quadrada e pesada, pelo seu aspecto, envolvida em um lenço de seda preta, enrolada como um presente e fechada por alfinetes. Turner tirou os alfinetes e cuidadosamente retirou uma lata de metal prateado e sem brilho; ela devia ter sido pintada uma vez, pois a camada de metal tinha a textura desigual de uma superfície raspada com um instrumento fino. Afrouxando a tampa, Turner viu o que continha e então, delicadamente, quase com reverência, esvaziou o conteúdo para dentro do lenço. Em sua frente se encontravam cinco botões. Cada um deles tinha cerca de dois e meio centímetros de diâmetro, todos de maneira e do mesmo modelo, feitos à mão, grosseiramente, mas com o maior cuidado, como se quem os fez precisasse de instrumentos mas não de habilidade, com dois furos bastante largos para poderem admitir uma linha muito grossa. Embaixo da lata havia um livro escrito em alemão, de propriedade de uma biblioteca de Bonn, tendo nele aplicado um carimbo e estava anotado pelo bibliotecário. Apesar de não ter entendido bem, pareceu a Turner tratar-se de um livro técnico sobre o uso de gases em operações militares. Quem o retirara da biblioteca por último o fizera em fevereiro daquele ano. Certas passagens estavam marcadas e com pequenas anotações nas margens: "Efeitos tóxicos imediatos. . . sintomas retardados nas temperaturas frias." Fazendo a luz incidir plenamente sobre o que estava examinando, Turner sentou-se à escrivaninha e, apoiando a cabeça nas mãos, estudou tudo com grande atenção. Assim, foi somente por instinto que se voltou rapidamente e se deparou com a enorme figura parada no portal.
Era um homem bastante idoso. Usava uma túnica militar e um gorro pontudo, do tipo que os estudantes costumavam usar, ou os marujos da Marinha Mercante durante a Primeira Guerra Mundial. Tinha o rosto escuro e coberto por pó de carvão; mantinha à frente do corpo uma enferrujada ferramenta, semelhante a um tridente, que tremia ameaçadoramente em suas velhas mãos; seus olhos vermelhos e estúpidos estavam, porém, voltados para baixo, para a pilha de livros fora do lugar: na verdade, ele parecia muito zangado. Lentamente, Turner se pôs de pé. O velho não se mexeu, mas o objeto que tinha nas mãos tremia violentamente, e os nós de seus dedos brilhavam na sombra. Turner se aventurou a dar um passo à frente.
- Bom dia - falou Turner.
Uma mão escura se afastou do cabo da ferramenta e ergueu-se mecanicamente até o boné. Turner foi até o canto onde estavam as embalagens de uísque. Abriu a tampa de uma delas, tirou uma garrafa, arrancou a tampa. O velho resmungava, sacudindo a cabeça e ainda olhando para os livros.
- Olhe aqui - disse Turner. - Beba alguma coisa. - Estendeu a garrafa na direção do velho, à altura de sua unha de visão.
Desatentamente o velho deixou a ferramenta cair, pegou a garrafa e a levou aos lábios finos, enquanto Turner se encaminhava rapidamente até a cozinha. Abrindo a porta, gritou a pleno pulmões.
-DeLisle!
O eco reproduziu o chamado selvagemente na rua deserta e para fora, na direção do no.
-De Lisle!
Mesmo antes de voltar ao escritório, foram surgindo luzes nas casas vizinhas.
Turner havia aberto as persianas de madeira para deixar passar a luz do dia que se aproximava, e agora os três formavam um grupo frustrado, o velho piscando na direção dos livros destroçados, a garrafa de uísque apertada em sua mão trêmula.
- Quem é ele?
- O encarregado das caldeiras. Todos nós temos um deles.
- Pergunte-lhe quando viu Harting pela última vez.
O velho não respondeu imediatamente; antes se voltou novamente para o uísque, tomou um gole, e passou a garrafa para De Lisle, em quem ele parecia confiar. De Lisle colocou a garrafa sobre a escrivaninha, ao lado do lenço de seda, e calmamente repetiu a pergunta, enquanto o velho olhava para um, depois para o outro, e em seguida para os livros.
- Pergunte-lhe quando viu Harting pela última vez.
Finalmente, o homem falou. Sua voz era monótona: a fala lenta e arrastada de um camponês, o murmúrio de uma confissão, lamuriosa ainda que sob controle, a voz de uma pessoa de baixa classe procurando consideração. Uma vez estendeu os dedos escuros para tocar os enfeites já estragados da estante; de outra feita acenou com a cabeça na direção do rio, como se o rio fosse onde ele vivia; mas os murmúrios continuavam através de seus gestos, como se se tratasse de uma outra pessoa.
- Ele vende passagens para excursões de lazer - sussurrou De Lisle. - Passa por aqui às cinco da tarde, quando volta para casa, e pela manhã antes de ir para o trabalho. Abastece as caldeiras, limpa o pó e remove o Lixo. No verão, limpa os barcos antes que a tripulação chegue.
-Pergunte-lhe novamente. Quando viu Harting pela última vez? Olhe aqui! - Turner mostrava uma nota de 50 marcos. - Mostre-lhe isso; diga-lhe que será sua, se ele nos disser o que estou querendo saber.
Vendo o dinheiro, o velho examinou Turner cuidadosamente com seus olhos secos e vermelhos. O rosto enrugado e chupado, de quem passara fome em alguma época, e mantido pelas cordas longas de sua pele encarquilhada; a fuligem penetrara em sua pele como os pigmentos em uma lona. Dobrando a nota cuidadosamente ao meio, colocou-a junto com outras em uma carteira retirada do bolso traseiro da calça.
- Quando? - perguntou Turner. - Wann?
Cuidadosamente, o homem começou a juntar as palavras, escolhendo-as de uma por uma, como artigos em uma liquidação. O velho tirara o boné da cabeça; o crânio castanho era coberto por uma penugem escurecida pela fuligem.
- Sexta-feira - interpretou De lisle calmamente. Estava olhando pela janela e parecia distraído. - Leo o pagou na sexta-feira à tarde. Ele deu a volta na casa e o pagou no portal. Disse a ele que ia fazer uma longa viagem.
- Para onde?
- Não disse para onde.
- Quando ele estará de volta? Perguntou-lhe.
Uma vez mais, enquanto De Lisle traduzia, Turner percebia algumas palavras familiares; kommen. . . zurück.
- Leo pagou-lhe dois meses. Ele diz que tem algo para nos mostrar. Algo que vale outros 50 marcos.
O homem olhava rapidamente de um para outro, medroso mas esperançoso, enquanto suas grandes mãos exploravam nervosamente a blusa de brim. Era uma blusa de marinheiro, disforme e manchada, sem relação com sua esquálida estrutura. Encontrando aquilo que estava procurando, com todo o cuidado recolocou no lugar a bainha de baixo, empertigou-se o tirou alguma coisa do pescoço. Ao fazê-lo, começou de novo a resmungar, porém mais rapidamente do que antes, nervoso e indeciso.
- Ele encontrou isso no sábado, no lixo.
Era um coldre feito de couro verde, artigo do Exército, apropriado para uma pistola de calibre 38. Tinha gravado "Harting Leo", pelo lado de dentro e estava vazio.
- Na caixa da fuligem, bem em cima; foi a primeira coisa que ele viu quando levantou a tampa. Não mostrou isso para os outros. Os outros gritaram com ele e ameaçaram dar na cara dele. Os outros lembraram-lhe do que tinham feito com ele na guerra e disseram que iriam fazer de novo.
- Que outros? Quem?
- Espere.
Indo até a janela, De Lisle olhou naturalmente para fora. O velho continuava falando.
- Ele diz que distribuiu panfletos antinazistas durante guerra - informou De Lisle, ainda olhando para fora. - Por engano. Pensava tratar-se de jornais comuns e os outros o apanharam e o penduraram de cabeça para baixo. Esses é que parecem ser os outros a que ele se refere. Diz que gosta mais dos ingleses. Diz que Harting era um verdadeiro cavalheiro. Diz que quer também ficar com o uísque. Leo sempre lhe dá do escocês. E charuto. Charutinhos holandeses, de um tipo que não se pode comprar nas lojas. Leo os obtinha por encomenda. E, no último Natal, Leo deu um secador de cabelos para sua mulher. Ele gostaria de ter também 50 marcos pelo coldre - acrescentou De Lisle, mas já então carros haviam entrado na alameda e a pequenina sala se encheu com o duplo lamento de uma sirena da polícia e o clarão duplo de uma luz azul. Ouviram os gritos e o ruído de pés, enquanto as figuras em verde se agrupavam nas janelas, apontando suas armas para dentro da sala. A porta foi aberta e apareceu um homem jovem com casaco de couro e uma pistola na mão. O homem da caldeira estava chorando, resmungando, esperando ser agredido, enquanto a luz azul piscava como uma pista de danças.
- Não façam nada - tinha dito De Lisle. - Não obedeçam a ordens.
De Lisle estava falando com o rapaz de casaco de couro, oferecendo a exame seu cartão diplomático vermelho. Sua voz era calma, mas muito firme, a voz de um negociador, sem petulância mas sem concessões, endurecida pela autoridade e insinuando privilégios ofendidos. O rosto do jovem policial era tão inexpressivo quanto o de Siebkron. Gradualmente, De Lisle parecia estar impondo sua ascendência. O tom de sua voz era agora de indignação. Começou a fazer perguntas e o rapaz se tornou conciliador, senão mesmo evasivo. Gradualmente, Turner estava entendendo a linha de reclamação de De Lisle. Ele estava apontando para a caderneta de anotações de Turner e em seguida para o velho. Uma lista, estava ele dizendo; estavam fazendo uma lista. Era proibido aos diplomatas fazerem listas? Avaliar estragos, conferir o inventário dos móveis da embaixada? Naturalmente era uma coisa natural em pensar-se, numa época em que as propriedades britânicas se encontravam tão ameaçadas de destruição. O Sr. Harting se afastara para o gozo de um longo período de licença; era conveniente tomar certas medidas, pagar ao homem que tratava da caldeira os seus 50 marcos. . . E desde quando, De Lisle gostaria de saber, estavam os diplomatas britânicos proibidos de entrar em propriedades da Embaixada britânica? Com que direito, De Lisle exigia, havia esse numeroso grupo de milícia invadido a privacidade de cidadãos estrangeiros?
Mais cartões foram trocados, mais documentos mutuamente examinados; nomes e números foram mutuamente registrados. O detetive estava pesaroso, segundo dizia; esses dias eram difíceis, e ficou olhando para Turner durante bastante tempo, como se estivesse reconhecendo um colega. Dias difíceis ou não, De Lisle se manifestava em resposta, os direitos dos diplomatas têm que ser respeitados. Quanto maior o perigo tanto mais necessária a imunidade. Apertaram-se as mãos. Alguém fez uma continência. Gradualmente foram todos se retirando. Os uniformes verdes se dispersaram, as luzes azuis desapareceram, as camionetes se afastaram. De Lisle encontrara três copos e estava servindo um pouco de uísque em cada um deles. O velho choramingava. Turner havia recolocado os botões na lata e pôs esta no bolso, juntamente com o livreto sobre o uso de gases em operações militares.
- Eram esses aí? - perguntou Turner. - Foram esses aí que fizeram perguntas a ele?
- Ele diz: como o detetive, mas um pouco mais velho. Mais claro, diz ele: um tipo de homem mais imponente. Creio que nós dois sabemos a respeito de quem ele está falando. Olhe aqui, é melhor que você mesmo cuide disso.
Tirando o coldre de dentro das dobras de seu sobretudo marrom, De Lisle o passou sem orgulho para as mãos de Turner.
A balsa ostentava as bandeiras da Federação alemã. O brasão de Königswinter estava pregado na ponte. A milícia se apinhava na proa. Seus capacetes de aço eram quadrados, seus rostos, pálidos e tristes. Estavam muito quietos para pessoas tão jovens, e suas botas de borracha não produziam som algum na coberta de aço; olhavam para o rio como se lhes tivesse sido recomendado que se lembrassem dele. Turner permanecia afastado, observando a tripulação em trabalho, e percebia tudo claramente porque estava cansado e assustado e também porque era ainda de manhã cedo: a acentuada vibração da coberta de aço, à medida que os carros galgavam a rampa e se projetavam para a frente à procura dos melhores lugares; o ruído dos motores e o barulho das correntes enquanto os homens gritavam e fixavam os carros, o sino estridente que abafava os carrilhões das torres das igrejas, a uniforme hostilidade dos motoristas ao saírem dos carros e tirarem o dinheiro trocado de dentro de suas carteiras de couro de porco, como se os homens fossem uma sociedade secreta e não pudessem dar-se a conhecer uns aos outros em público; havia os pedestres, os remediados e os pobres, invejando os carros dos quais eram mantidos afastados. A margem do rio foi-se distanciando; a pequena cidade soprava suas espirais de volta às colinas, como num cenário de ópera. Gradualmente, foram descrevendo um sinuoso curso, descrevendo um amplo arco com a corrente a fim de evitar uma outra barcaça partida da margem oposta. Tinham agora reduzido a marcha, quase parando, sendo arrastados pela correnteza enquanto o John F. Kenndey, com uma carga de pirâmides iguais de carvão, passava rapidamente por eles, as crianças sendo salpicadas pelo ar úmido. Em seguida, ficaram jogando em sua esteira, as passageiras do sexo feminino soltando gritinhos de alegria.
- O homem lhe disse alguma coisa mais. Sobre uma mulher. Entendi ele dizer Frau e Auto. Alguma coisa a respeito de uma mulher e de um carro.
- Lamento, meu velho - replicou De Lisle, friamente. - É o sotaque da Renânia. Por vezes me sinto derrotado por ele.
Turner olhou para trás, para a margem de Kònigswinter, protegendo os olhos com a mão enluvada, porque, mesmo naquela miserável primavera, a luz reverberava intensamente na água. Finalmente, enxergou aquilo que estava procurando: de cada lado, como mãos apontando para as Sete Colinas de Siegfried, vilas de cor castanha providas de torres, construídas com as riquezas do Ruhr; entre elas um trecho em branco contra as árvores da esplanada. Era a casa de Harting sendo engolfada pela neblina.
- Estou caçando um fantasma - resmungou Turner. - Uma maldita sombra.
- É a sua própria sombra - retorquiu De Lisle.
- Oh, claro, claro.
- Vou levá-lo de volta até a embaixada - continuou De Lisle. - De lá em diante você irá por seus próprios meios.
- Por que, diabo, você me trouxe aqui, se está tão escrupuloso? - Subitamente, Turner nu. - Oh, claro - disse. - Que idiota eu sou! Eu vou dormir! Você está com medo que eu encontre a pasta verde e então você teria que esperar numa das alas. Impróprio para os temporários. Cristo!
Cork acabara de escutar o noticiário das oito horas. A delegação alemã havia-se retirado de Bruxelas durante a noite. Oficialmente, o Governo Federal desejava "reconsiderar certos problemas técnicos surgidos ao longo das discussões". Não oficialmente, como colocava Cork, eles haviam tirado o corpo fora. Com semblante inexpressivo, Turner observava o papel colorido ir-se desprendendo do rolo e cair dentro da cesta das linhas telegráficas. Isso foi uns 10 minutos antes de chegar a convocação. Houve uma batida na porta e a estúpida cabeça da Srta. Peate apareceu na pequena abertura. O Sr. Bradfield queria vê-lo imediatamente. Seus olhos sombrios brilhavam de satisfação. De uma vez por todas, era o que queria dizer. Enquanto a acompanhava pelo corredor, passou os olhos por uma brochura de Cork sobre lotes de terrenos nas Bahamas, e pensou: isso vai ser útil ao tempo em que ele tiver se livrado de mim.
Capítulo 12
"E lá estava Leo, na segunda classe."
Lá falei com Lumley. Você volta para casa esta noite. A seção de passagens se encarregará de lhe fornecer os bilhetes. - A mesa de Bradfield estava cheia de telegramas. - E eu pedi desculpas a Siebkron em seu nome.
- Desculpas?
Bradfield trancou a porta.
- Será que tenho que explicar-lhe o que houve? Como Harting, você é evidentemente algo como um político primitivo. Você está aqui em uma base diplomática temporária; se assim não fosse, sem dúvida alguma estaria preso. - Bradfield estava pálido de raiva. - Só Deus sabe atrás de que andava De Lisle. Tenho que falar com ele separadamente. Vocês desobedeceram deliberadamente minhas instruções; bem, os homens como você têm os seus próprios códigos, creio, e sou tão suspeito como outro qualquer.
- Você está se lisonjeando a si mesmo.
- Neste caso, no entanto, você foi colocado especificamente sob minha autoridade, por Lumley, pelo embaixador e pelas necessidades da situação por aqui e lhe foi especificamente determinado que não fizesse nada que tivesse repercussões fora da embaixada. Fique quieto e ouça o que tenho a dizer! Ao invés de mostrar um mínimo de consideração com o que lhe foi pedido, você, ao contrário, foi à casa de Harting às cinco horas da manhã, para arrancar os miolos do empregado dele, acordar os vizinhos, berrar por De Lisle e, finalmente, atrair uma batida policial em grande escala, o que, em poucas horas, sem dúvida alguma, tornou-se o assunto da comunidade. Não contente com isso, foi conivente em uma estúpida mentira à polícia de que se encontravam fazendo um inventário; imagino que isso trará um sorriso à boca até do próprio Siebkron, depois da descrição que você lhe ofereceu sobre o seu trabalho ontem à noite.
- Mais alguma coisa?
- A você muitos agradecimentos. O que quer que Siebkron suspeitasse que Harting houvesse feito, você já agora entregou as provas. Você viu pessoalmente qual a atitude de Siebkron. Sabe Deus o que ele não está pensando sobre o que estamos buscando.
- Então esclareça o homem - sugeriu Turner. - Por que não? Alivie a mente dele. Cristo, ele sabe mais do que nós. Por que fazer segredo de uma coisa que todo mundo já sabe? Isto é notório. O pior que podemos fazer é estragar-lhes a caça.
- Não quero que isso seja comentado! Qualquer coisa é melhor, quaisquer dúvidas, quaisquer suspeitas da parte deles, do que uma admissão de nossa parte, neste exato momento, de que durante 20 anos um membro de nosso pessoal diplomático estava a soldo dos soviéticos. Será que você não entende nada sobre isso? Não quero que esse tipo de coisa seja comentado! Deixemos que pensem e ajam como quiserem, mas, sem a nossa colaboração, eles só podem conjeturar.
Era como uma declaração de fé pessoal. Bradfield sentou-se ereto e imóvel como uma sentinela guardando um relicário nacional.
- Isso é tudo?
- Supõe-se que homens como você devam trabalhar em segredo. Apela-se para vocês contando-se com um padrão de discrição. Eu poderia dizer alguma coisa sobre seu comportamento por aqui, se você não tivesse deixado absolutamente claro que atitudes nada representam em sua opinião. Vai levar muito tempo antes que se consiga desfazer a confusão que você vai deixar para trás nesta embaixada. Parece pensar que nada chega ao meu conhecimento. Já alertei Gaunt e Meadowes; sem dúvida há outras pessoas que eu preciso avisar.
- É melhor que eu me vá hoje à tarde - sugeriu Turner, que não tirara os olhos do rosto de Bradfield. - Armei um bolo, não é mesmo? Lamento. Lamento que você não esteja satisfeito com o serviço. Escreverei e pedirei desculpas; isso é o que Lumley gostaria que eu fizesse. Uma carta simples. Eu o farei. Escreverei. - Deu um suspiro. - Parece que sou um pouco como Jonas. A melhor coisa a fazer, de fato, é me mandar. Vai ser uma boa para você, sem dúvida. Você não gosta de se ver livre das pessoas, não é mesmo? Prefere dar-lhe um contrato.
- O que está insinuando?
- Que você deve ter uma maldita razão para estar insistindo em discrição! Comentei com Lumley... Cristo, era uma brincadeira... perguntei a ele, sabe: ele quer as pastas ou o homem? Atrás de que afinal andam vocês? Espere! Num momento você lhe dá um emprego, no momento seguinte não quer saber dele. Se trouxessem seu corpo aqui neste minuto, você pouco se importaria: revistaria os bolsos em busca de documentos e lhe desejaria boa sorte!
Não intencionalmente Turner notou os sapatos de Bradfield. Eram feitos à mão e seu lustro na cor de mogno escuro era tal como somente os criados conseguem obter, ou aqueles que foram treinados por eles.
- Que diabo você está querendo dizer?
- Não sei quem está metendo o dedo em você, nem me importa. Siebkron, seria o meu palpite, pelo modo com que você se arrasta para ele. Por que você nos reuniu ontem à noite, se estava assim tão preocupado que eu não fosse ofendê-lo? Qual a razão disso? Ou será que ele lhe deu essa ordem? Não me responda ainda. A vez é minha. Você é o anjo da guarda de Harting, já notou? Isso se espicha por dois quilômetros, e assinalarei tal fato com letras de dois metros, quando estiver de volta a Londres. Renovou seu contrato, certo? Para início, exatamente isso. Ainda que você o desprezasse. Mas não se limitou a lhe dar trabalho, você inventou um trabalho para ele. Você sabia muito bem que o Ministério das Relações Exteriores está pouco ligando para o programa de destruição. Ou com o índice das personalidades, desconfio. Mas você fingiu; você criou isso para ele. Não me diga que foi por pena de um homem que não pertencia ao serviço.
- O que quer que seja verdade "isso tudo já está agora muito débil observou Bradfield, com uma ponta daquele desalento ou autodesprezo que Turner ocasionalmente tinha notado nele agora.
- E o que me diz da reunião de quinta-feira?
Um olhar de intensa dor cruzou o rosto de Bradfield.
- Meu Deus, você é insuportável - disse ele, mais como uma anotação mental, um juízo particularmente registrado, do que um insulto diretamente proferido.
- Reunião de quinta-feira que nunca teve lugar! Foi você que retirou Harting daquela reunião e destinou a tarefa para De Lisle. Mas Harting continuou a sair nas tardes das quintas-feiras. Você o impediu? Coisa nenhuma. Creio que você sabia muito bem aonde ele ia. - Turner mostrou a chave metálica que apanhara no terno de Harting. - Porque existe um local especial, sabe. Um esconderijo. Talvez eu esteja dizendo alguma coisa que você já saiba. Com quem ele se encontrava por lá? Você também sabe disso? Eu pensava que era com Praschko, até que me lembrei ter sido você mesmo quem me incutiu essa idéia. Assim, estou tendo o máximo de cuidado com relação a esse Praschko.
Turner se debruçara sobre a mesa, gritando na direção da cabeça baixa de Bradfield.
- Quanto a Siebkron, ele está desenrolando uma maldita rede por inteiro. Dúzias de agentes, pelo que sabemos: Harting era apenas um elo em uma cadeia. Você não pode começar a controlar o que Siebkron sabe e não sabe. Você está tratando com uma realidade que conhece e não com diplomacia. - Turner apontou para a janela e para as indistintas colinas do outro lado do rio. - Eles fazem o diabo por lá! Andam por tudo aquilo, conversam com amigos, fazem viagens; já chegaram além das orlas da floresta, sabem como o mundo é!
- Para quem é inteligente, não precisa de muita coisa para se saber disso - replicou Bradfield.
- E é isso o que vou dizer a Lumley, quando voltar novamente para o fog londrino. Harting não agiu sozinho! Ele tinha um chefe e alguém que o controlava e, por tudo o que sei, essas duas pessoas são um mesmo homem! E por tudo o que sei, Leo Harting era o macho de Rawley Bradfíeld! Tendo ao lado um pouco da imoralidade de uma escola particular!
Bradfield se encontrava de pé, o rosto contraído pela raiva.
- Diga a Lumley o que você quiser - murmurou ele - mas saia daqui e não apareça mais.
Foi quando Mickie Crabbe entrou pela porta de conexão com a Srta. Peate, o rosto vermelho cheio de marcas.
Crabbe parecia intrigado e ligeiramente indignado e mastigava absurdamente seu bigode vulgar.
- Rawley, quero avisar. . . - começou a dizer e tornou a começar, como se tivesse entrado na oitava errada. - Desculpe entrar assim, Rawley. Tentei a porta do corredor, mas estava trancada. Desculpe, Rawley. É sobre Leo - informou. O restante veio de sopetão: - Acabo de vê-lo na estação da estrada de ferro. Calmamente, tomando uma cerveja.
- Fale rápido - instou Bradfield.
- Fazendo um favor para Peter de Lisle. Isso é tudo - começou Crabbe defensivamente. Turner percebeu cheiro de bebida no hálito do homem, misturado ao cheiro de hortelã-pimenta. - Peter tinha que ir ao Bundestag. Debate sobre a legislação de emergência, assunto importante aparentemente, segundo dia, e me pediu para cobrir a manifestação na estação da estrada de ferro. Os líderes do Movimento chegando de Hanover. Ver a chegada, ver o que acontecia. Com freqüência eu faço coisas esquisitas para Peter - acrescentou Crabbe, desculpando-se. - A coisa virou um espetáculo. Imprensa, câmeras de televisão, filas de carros nas ruas. - Crabbe olhou nervosamente para Bradfield. - Onde os táxis param, Rawley, sabe. E muita gente. Todos cantando rah-rah e acenando com as velhas bandeirolas negras. Alguma música. - Sacudiu a cabeça em admiração particular. - Aquela praça está coberta de slogans.
- E você viu Leo - interveio Turner, instigando. - Na multidão?
- Mais ou menos.
- O que está querendo dizer?
- Bem, a parte de trás da cabeça dele. A cabeça e os ombros. De relance. Não tive tempo de pegá-lo; sumiu.
Turner o segurou com suas mãos grandes e pétreas.
- Você começou dizendo que o viu tomando uma cerveja!
- Solte-o - disse Bradfield.
- Ei, calma! - Por um momento, Crabbe pareceu feroz. - Bem, eu o vi mais tarde, sabe. Depois que o espetáculo terminou. Quase que cara a cara.
Turner soltou-o.
- O trem chegou e todos se puseram a ovacionar aos gritos, empurrando-se uns aos outros, tentando ter uma visão de Karfeld. Chegaram a sair algumas brigas, creio, mas principalmente entre jornalistas. Uns veados - acrescentou Crabbe, com uma centelha de verdadeiro ódio. - Aquele merda, Sam Allerton, estava lá, por falar nisso. Eu diria que foi ele quem começou a briga.
- Pelo amor de Cristo! - exclamou Turner, e Crabbe olhou frontalmente para ele, com uma expressão que falava mal por si mesma.
- Primeiro desceu Meyer-Lothringen, para quem a polícia tinha preparado uma passagem com o material dos currais; em seguida Tilsit, depois Halpach, todo mundo gritando como ciganos. Beatles - aduziu, inexplicavelmente. - Em sua maioria eram jovens, estudantes cabeludos, esticando-se por cima das grades tentando tocar nos ombros dos caras. Karfeld não apareceu. Um sujeito que estava lá me disse que ele tinha descido pelo outro lado, e atravessado a passagem para evitar a multidão. Ele não gosta que as pessoas cheguem muito perto, pelo menos é o que dizem; é por essa razão que levantam todos aqueles enormes palanques por toda a parte. Assim, metade da multidão se agita tentando ver se podem conhecê-lo. O restante fica por ali aguardando uma chance casual, e então é feita uma comunicação pelos alto-falantes: todos podem ir para casa, pois Karfeld está ainda em Hanover. Que sorte para Bonn, foi o que pensei. - Crabbe sorriu. - O quê?
Nenhum dos dois falou.
- Os jornalistas ficaram furiosos e eu pensei em dar um telefonema para Rawley para lhe informar que Karfeld não tinha aparecido. Londres gosta de acompanhar a trilha,como sabem. Oh, Karfeld. - Voltou-se para Turner. - Gostam de manter Karfled afastado, para que não fale com estranhos. - Resumiu: - Lá no saguão existe um posto dos Correios aberto toda a noite e eu estava exatamente saindo quando me ocorreu - Crabbe fez uma débil tentativa de aliciá-los em uma conspiração - que talvez pudesse tomar uma rápida xícara de café para ordenar meus pensamentos e, por acaso, olhei através dos vidros da porta da sala de espera. As portas são uma ao lado da outra, sabem. Restaurante de um lado, sala de espera do outro. É uma espécie de balcão com uns poucos lugares onde sentar-se. Quero dizer, sentar e não beber - explicou ele, como se se tratasse de um tipo particular de excentricidade com que ocasionalmente se defrontava. Há a primeira classe à esquerda e a segunda à direita, ambas com portas de vidro.
- Pelo amor de Deus! - reclamou Turner.
- E lá estava Leo. Na segunda classe. A uma mesa. Usando uma jaqueta militar, algo semelhante aos uniformes do Exército. Parecia não estar bem.
- Bêbado?
- Não sei. Cristo, podia ser que sim, podia ser que não: oito horas da manhã. - Crabbe parecia muito inocente. - Mas com aspecto cansado, não bem apresentado, não como costuma ser. O polimento, a vivacidade, nada disso. Ainda assim - aduziu, estupidamente - isso acontece com todos nós, creio.
- Você não falou com ele?
- Não, obrigado. Conheço-o quando está assim. Mantive-me a distância, voltei e vim falar com Rawley.
- Ele carregava alguma coisa? - quis saber Bradfield. - Uma pasta? Alguma coisa onde pudesse conduzir documentos?
- Nada disso - murmurou Crabbe. - Rawley, meu velho, lamento muito.
Permaneceram os três em silêncio, Crabbe olhando ora para um ora para o outro.
- Você agiu bem - murmurou Bradfield. - Muito bem, Crabbe.
- Bem? - explodiu Turner. - Procedeu tremendamente mal! Leo não está de quarentena. Por que não falar com ele, não o arrastar pelo pescoço até aqui, não discutir com ele? Deus Todo-Poderoso, vocês não podem estar vivos, nenhum de vocês! Bem? A essa hora ele já pode ter sumido; foi nossa última chance! Leo provavelmente estava esperando por seu último contato; ele deve ter sido desenterrado para viajar para o exterior! Havia alguém com ele? - Turner escancarou a porta. - Perguntei se havia alguém com ele? Vamos!
- Uma criança - disse Crabbe. - Uma menininha.
- Uma o quê?
- Seis ou sete anos de idade. A filha de alguém. Ele falava com ela.
- Harting o reconheceu?
- Acho que não. Parecia que ele olhava para trás de mim.
Turner tirou seu capote do cabide.
- É melhor que eu não vá - disse Crabbe, respondendo mais ao gesto do que à exortação. - Desculpe.
- E você? O que está esperando? Vamos! Bradfield nem se moveu.
- Pelo amor de Deus!
- Eu vou ficar aqui. Crabbe tem um carro. Deixe que ele o leve. Já deve ter passado uma hora depois que Crabbe o viu, ou pensa que viu, com esse tráfego e tudo mais. A essa hora j á deve tendo embora. Não quero desperdiçar meu próprio tempo. - Em seguida continuou, ignorando o olhar de estupefação de Turner. - O embaixador já me pediu para não sair do prédio. Esperamos notícias de Bruxelas a qualquer momento; é altamente provável que ele deseje vir à chancelaria.
- Cristo, o que vocês estão pensando que isso é? Uma conferência tripartite? Ele pode estar sentado lá, cheio de segredos! Não é de admirar-se que pareça abatido! O que se está passando com vocês? Querem que Siebkron ponha as mãos nele antes de nós? Querem que ele seja apanhado como um comunista?
- Já lhe falei: segredos não são sacrossantos. Nós preferiríamos mantê-los, é verdade. Com relação ao que tenho para fazer aqui...
- Aqueles segredos são, não é? E o que me diz da tal pasta verde? Bradfield hesitou.
- Não tenho autoridade sobre ele - gritou Turner. - Nem mesmo sei que cara tem! O que devo fazer quando o vir? Dizer que gostaria de ter uma conversa com ele? Vocês querem que Siebkron o encontre primeiro? - Absurdamente, lágrimas afloram-lhe aos olhos. Sua voz era de máxima súplica. - Bradfield!
- Ele estava completamente só - resmungou Crabbe, sem olhar para Bradfield. - Só ele e ele mesmo, meu velho. E a criança. Disso tenho certeza.
Bradfield olhou para Crabbe, em seguida novamente para Turner, e uma vez mais seu rosto parecia arrasado por dores íntimas, dificilmente contidas.
- É verdade - admitiu por fim, relutantemente. - Sou seu superior. Sou responsável. É melhor que eu vá até lá. - Cuidadosamente, trancando a porta externa, disse à Srta. Peate que Gaveston devia aguardar sua volta, e seguiu à frente, na direção das escadas.
Extintores de incêndio, acabados de chegar de Londres, permaneciam como sentinelas vermelhas ao longo do corredor. No patamar, um carregamento de placas de aço esperava por ser montado. Um carrinho para arquivos estava cheio de cobertores. No saguão, dois homens, em escadas separadas, montavam uma tela de aço. Gaunt os olhou surpreendido, quando passaram rapidamente pela porta de vidro para o estacionamento, Crabbe na frente. Bradfield dirigia com uma audácia que tomou Turner de surpresa. Cruzaram pelo sinal em amarelo, mantendo-se à mão esquerda para virar para a estrada da estação. Mal pararam no posto de inspeção de tráfego; ambos, ele e Crabbe, já tinham seus cartões vermelhos expostos pela janela. O pavimento estava molhado, derraparam nos trilhos de bonde, mas Bradfield manteve o volante firme, esperando pacientemente que o carro voltasse a seu comportamento normal. Aproximaram-se de um cruzamento onde o sinal dizia "Ceda a vez", mas cruzaram-no celeremente, quase sob as rodas de um ônibus que vinha em sentido contrário. Os carros eram em menor número, e as ruas se encontravam apinhadas de gente.
Algumas pessoas conduziam bandeiras, outras usavam capotes de gabardine cinza e chapéus pretos Homburg, que constituíam o uniforme dos seguidores do Movimento. Cediam a passagem relutantemente, fechando a cara ao ver as placas do carro e a brilhante pintura estrangeira. Bradfield em ocasião alguma apertou a buzina nem mudou de marcha, deixando que os passantes abrissem para ele e o evitassem como pudessem. Numa ocasião freou para não pegar um velho, que ou era surdo ou estava bêbado; de outra vez um rapazinho bateu no teto do carro com a mão, deixando Bradfield tenso e pálido. Havia confete nos degraus da estação e as colunas estavam cobertas por slogans. Um motorista de táxi berrava como se tivesse sido atropelado. Estacionaram na área dos táxis.
- À esquerda - gritou Crabbe, enquanto Turner corria à sua frente. Uma porta alta os admitiu ao saguão principal.
- Continue à esquerda - Turner escutou Crabbe gritar pela segunda vez.
Três guichês levavam até a plataforma; três coletores de bilhetes encontravam-se sentados em seus balcões envidraçados. Havia avisos, em três línguas, recomendando que não fossem pedidos favores aos bilheteiros. Um grupo de padres, 'resmungando, olhava para Turner desaprovativamente: pressa, comentaram eles, não é uma qualidade cristã. Uma moça loura, de rosto cor de castanha, passou por ele perigosamente, conduzindo uma mochila e um par de esquis bastante usados; Turner percebeu o arfar de sua blusa de lã.
- Ele estava sentado exatamente aqui - murmurou Crabbe, mas Turner já tinha aberto a porta giratória envidraçada e estava parado do lado de dentro do restaurante, olhando para as mesas através do fumo dos cigarros, uma de cada vez. Um alto-falante transmitia uma mensagem sobre transbordo em Colônia. - Foi-se - estava dizendo Crabbe. - Já se mandou.
O ambiente estava impregnado de fumaça, que se elevava no clarão das longas lâmpadas em tubo e espiralava nos cantos mais escuros. O cheiro era de cerveja, presunto defumado e desinfetante; o balcão distante, branco pela cerâmica holandesa, luzia como uma parede de gelo na neblina. Em um reservado de madeira escura, encontrava-se sentada uma família pobre, de mudança; as mulheres eram velhas e vestidas de negro, as malas amarradas com cordas; os homens estavam lendo jornais gregos. Em uma mesa separada, uma menina mostrava quinquilharias para um bêbado; era para essa mesa que Crabbe estava apontando.
- Ali onde está a menina. Ele estava tomando uma Pus.
Ignorando o bêbado e a menina, Turner levantou os copos e ficou olhando para eles inutilmente. Três tocos pequenos de charutos se encontravam no cinzeiro. Um deles ainda parecia estar soltando fumaça. A criança olhou para Turner, quando ele se abaixou procurando alguma coisa no chão e se levantou de mãos vazias; ela observou Turner deslocar-se de uma mesa para outra, olhando as caras, pegando num ombro, abaixando um jornal, tocando num braço.
- Ele é este aqui? - perguntou Turner, gritando.
Um padre solitário estava lendo o bildzeitung em um canto; ao lado dele, escondido em sua sombra, um cigano de rosto moreno comia castanhas assadas que retirava de uma sacola.
-Não.
- Este?
- Desculpe, meu velho - falou Crabbe, então muito nervoso. - Faltou sorte. Como eu disse, já se mandou.
Perto da janela de vidro cheia de manchas, dois soldados jogavam xadrez. Um homem barbado fazia movimentos como se estivesse mastigando, mas não havia comida à sua frente. Lá fora, na plataforma, um trem estava chegando e a vibração sacudiu a louça. Crabbe estava falando com a garçonete. Debruçado sobre ela, falava em voz baixa, com a mão apertando o braço da moça. A garçonete sacudiu a cabeça.
- Vamos tentar a outra - disse Crabbe, quando Turner se acercou deles. Atravessaram o salão juntos, e a outra mulher acenou afirmativamente com a cabeça, orgulhosa por ter-se lembrado, e contou uma longa história, referindo-se à menina e falando sobre "der kleine Herr", o pequeno cavalheiro, e por vezes sobre "der Kleine", como se a palavra "cavalheiro" fosse um tributo aos seus interrogadores, mais do que a Harting.
- Ele esteve ali até uns poucos minutos atrás - informou Crabbe, com alguma surpresa. - É a versão dela, pelo menos.
- Ele saiu sozinho?
- Não viu.
- Harting lhe causou alguma impressão?
- Calma. Ela não tem muita inteligência, meu velho. Não pense que ela vai muito longe.
- O que fez com que ele fosse embora? Viu alguém? Alguém fez sinal para ele lá da porta?
- Você está avançando muito, meu velho. Ela não viu quando Harting foi embora. Não estava preocupada com ele, que já havia pago direitinho, a cada pedido. Como se tivesse que se levantar de repente. Pegar um trem. Ele saiu para ver o hoo-hah, quando os rapazes chegaram, mas voltou em seguida, fumou mais um charuto e tomou mais um drinque.
- E o que há, então? Por que você está com essa cara?
- É tremendamente estranho - resmungou Crabbe, franzindo o cenho absurdamente.
- O que é tremendamente estranho?
- Ele passou ali a noite inteira. Sozinho. Bebeu, mas sem ficar bêbado. Parte do tempo brincou com a tal menina. Menina grega. Era disso que ele gostava mais: crianças.
Crabbe deu uma moeda à mulher, que agradeceu efusivamente.
- De qualquer modo nós o perdemos - declarou Crabbe. - Sujeitinho belicoso quando fica assim. Briga com qualquer um quando fica irritado.
- Como é que você sabe?
Crabbe fez uma careta de dolorosa reminiscência.
- Você devia tê-lo visto aquela noite em Colônia - murmurou, ainda olhando a garçonete que se afastava. - Jesus!
- Durante a briga? Você estava lá?
- Vou lhe contar - disse Crabbe. Ele estava sendo sincero. - Quando aquele cara se queima, o melhor é fugir dele. Olhe aqui. - Crabbe esticara a mão. O botão de madeira, na sua palma, era idêntico aos que continha a lata arranhada em Kòöigswinter. - Ela pegou isso em cima da mesa - explicou Crabbe. - Pensou que se tratasse de alguma coisa de que ele poderia precisar. Estava guardando para a eventualidade de ele voltar para apanhar.
Bradfield atravessou a porta, vagarosamente. Tinha o rosto tenso, mas inexpressivo.
- Concluí que ele não está mais aqui. Ninguém falou.
- Você ainda afirma que o viu?
- Sem qualquer dúvida, meu velho. Lamento muito.
- Bem, suponho que deva acreditar em você. Sugiro que voltemos para a embaixada. - Olhou para Turner. - A não ser que você prefira ficar. Se tiver mais alguma teoria para testar. - Olhou em volta do salão. Todos os rostos estavam voltados na direção deles. Por trás do balcão fumegava uma máquina cromada sem ninguém por perto. Nem uma só mão se mexia. - Você parece já ter posto sua marca por aqui, de qualquer modo. - Encaminharam-se lentamente para o carro. - Você pode passar pela embaixada para apanhar suas coisas - falou Bradfield. - Mas já deve ter ido embora pela hora do almoço. Se tiver quaisquer papéis, deixe-os com Cork e nós os remeteremos para você pela mala. Há um vôo às sete. Vá nele. Se não conseguir obter vaga nesse vôo, vá de trem. Mas vá.
Esperaram enquanto Bradfield falava com os policiais e lhes mostrava seu cartão vermelho. Seu alemão parecia muito inglês no tom, mas a gramática era impecável. Os policiais acenaram com a cabeça, saudaram-no e os três se foram. Vagarosamente retornaram para a embaixada, através dos rostos cansados da multidão sem rumo.
- Que lugar extraordinário para Leo passar a noite - resmungou Crabbe, mas Turner estava alisando o envelope com a chave metálica que tinha no bolso, ainda imaginando, apesar de todo o seu sentimento de fracasso, que porta essa chave havia aberto.
Capítulo 13
A tensão por ser um porco
Turner estava sentado à mesa da sala de codificação ainda com o capote de chuva, empacotando os troféus inúteis de sua investigação, o coldre do Exército, a gravura dobrada, o abridor de papéis com a gravação de Margaret Aickman; a agenda encadernada em azul, destinada aos funcionários de conselheiro para cima, o pequenino impresso sobre descontos para diplomatas, a caixa raspada com os cinco botões de madeira feitos à mão; e, agora, o sexto botão e os tocos dos charutos.
- Não se preocupe - disse Cork, com simpatia. - Ele vai aparecer.
- Oh, claro. Como os investimentos e os sonhos do Caribe. Leo é o queridinho de todo mundo. Leo é o filho perdido de todo mundo. Todos nós amamos Leo, ainda que ele nos corte o pescoço.
- Sabe, ele não podia deixar nada pela metade. - Cork estava sentado na cama de rodas em mangas de camisa, tirando os sapatos que usava na rua. Tinha elásticos metálicos acima dos cotovelos e sua camisa parecia um anúncio das galerias do metrô. Não vinha qualquer som do corredor. - É isso o que se sabe a seu respeito. Calmo, mas um bom sujeito.
Uma das máquinas vibrou e Cork franziu o cenho reprovativamente.
- Papo - continuou ele. - Era o que ele tinha. Encanto. Podia contar qualquer mentira e a gente acreditava.
Turner tinha posto as coisas em uma sacola para papéis usados. A etiqueta, pelo lado de fora, dizia: "SECRETO. Só pode ser posto fora na presença de duas testemunhas autorizadas."
- Quero isso lacrado e enviado para Lumley - informou Turner.
Cork preparou um recibo e o assinou.
- Lembro-me da primeira vez em que o vi - disse Cork, com o tom de voz que Turner associava com desjejuns em funerais. - Eu estava duro. Estava casado há seis meses. Se eu não tivesse me indisposto com ele.. .
- Você teria aceito seus palpites sobre investimentos. Teria emprestado a ele os livros de códigos para leitura na cama. - Turner grampeou a boca da sacola, dobrando-a para dentro.
- Os livros de códigos, não. Janet. Ele iria ler Janet na cama. - Cork sorriu. - Tremendo! Você nem acreditaria. Vamos almoçar.
Por uma última vez Turner juntou raivosamente as duas extremidades do grampeador.
- De Lisle está por aí?
- Duvido muito. Londres expediu umas instruções do tamanho do seu braço. Todas as mãos disponíveis. Os diplomatas saíram afobados. Deu uma risada. - Eles deviam levar um papo com os caras das bandeiras negras. Procurar os delegados. Zelosas representações de todos os níveis. Não deixar pedra alguma sem ser removida. E vão partir para um outro empréstimo. Por vezes, não sei de onde os Klauts arrancam o dinheiro. Sabe o que Leo me disse certa ocasião? "Vou lhe dizer, Bill, como poderíamos obter uma grande vitória diplomática. Iríamos até o Bundestag e lhes ofereceríamos um empréstimo de um milhão. Só nós dois, eu e você. Garanto que eles iriam desmaiar." Ele estava certo, sabe.
Turner discou o número de De Lisle, mas não houve resposta.
- Diga a De Lisle que o chamei para me despedir - falou a Cork, mas mudou de idéia. - Não se preocupe.
Ligou para a seção de viagens e perguntou por sua passagem. Estava tudo em ordem, garantiram-lhe; o Sr. Bradfield se interessara pessoalmente e a passagem estava a sua espera em cima da mesa. Pareciam impressionados. Cork pegou o casaco.
- O melhor é você telegrafar para Lumley, informando-o da minha hora de chegada.
- Acho que o chefe da chancelaria já fez isso - disse Cork.
- Bem, obrigado. - Turner estava junto à porta, olhando para trás, correndo os olhos pela sala, como se a estivesse vendo pela última vez. Espero que tudo corra bem com o bebê. Espero que seus sonhos se tornem realidade. Espero que os sonhos de todo mundo se tornem realidades. Espero que todos consigam aquilo que almejam.
- Olhe aqui, pense da seguinte maneira - disse Cork, com simpatia. - Há coisas que você deixa de lado, não há?
- É verdade.
- O que estou querendo dizer é que não se pode resolver tudo como se deseja, tudo arrumadinho. Na vida não é possível. Isso fica para as mulheres. Do contrário, você acaba como o Leo: não pode deixar coisa alguma de lado. E você. . . o que vai fazer hoje à tarde? Está passando um ótimo filme no cinema americano.. . não, para você não seria bom. A garotada toda gritando.
- O que você está querendo dizer em ser como Leo, que não pode deixar coisa alguma de lado?
Cork andava pela sala, verificando as máquinas, as mesas, e os papéis a serem jogados fora.
- Vingativo. Não deixava de se vingar. Uma vez ele teve um desentendimento com Fred Anger; Fred era da administração. Dizem que isso durou cinco anos, até Fred ser transferido.
- Por que o desentendimento?
- Nada. - Cork apanhara um pedaço de papel do chão e o estava lendo. - Absolutamente nada. Fred cortou uma árvore no jardim, alegando que estava pondo em perigo a cerca. E estava mesmo. Fred me disse: "Bill, aquela árvore teria caído no outono."
- Ele tinha alguma coisa a respeito de terra - disse Turner. - Ele desejava ter a sua própria nesga de terreno. Não lhe agradava não ter nada.
- Sabe o que Leo fez? Juntou um punhado de folhas, como se fosse uma grinalda e pregou na porta da sala de Fred. Com dois pregos enormes de cinco centímetros. A grinalda foi praticamente crucificada. O pessoal alemão pensou que Fred tinha encerrado o assunto. Mas Leo não estava achando graça. Não estava brincando. Ele era violento, sabe. Os diplomatas, porém, não se apercebiam disso. Todo meloso e cheio de rapapés era Leo com eles. E prestativo. Não estou dizendo que não fosse útil. O que estou querendo dizer é que Leo, quando tinha má vontade com alguém, eu não gostaria de estar no lugar desse alguém. É isso o que estou querendo dizer.
- Leo deu atrás de sua mulher, não deu?
- Pus um ponto final nesse assunto - respondeu Cork. - Foi bom. Vendo o que acontecia por aí. As festas recreativas. Há alguns anos. Ele começou a aparecer por lá. Nada de maldade. Queria dar a minha mulher um secador de cabelos e coisas assim. Ele se encontrou comigo lá na colina. Eu lhe disse: "Vá secar seu próprio cabelo." Foi o que eu disse. "Ela é minha." Você não pode culpá-lo em demasia, não é mesmo? Você sabe o que dizem a respeito de refugiados: perdem tudo, menos o sotaque. Nada mais certo, sabe. O problema com Leo é que queria tudo de volta. Suponho então que era isso: pegue o que houver de melhor entre as pastas e fique com elas. Passe adiante para quem der mais. Não creio que isso seja mais do que lhe devemos. - Satisfeito com a verificação da segurança, Cork reuniu livros e se encaminhou para a porta onde Turner se encontrava. - Você é do norte, não é? - perguntou. - Posso dizer isso pelo seu modo de falar.
- Até onde você o conhecia?
- Leo? Oh, como todos nós, realmente. Eu comprava isso e aquilo, e lhe dava alguma coisa uma vez por outra; fazia um pedido para Dutchman.
- Dutchman?
- Firma de exportadores para diplomatas. De Amsterdã. Mais em conta do que você pode imaginar. Têm de tudo: manteiga, carne, rádios, carros, tudo.
- Secadores de cabelo?
- Tudo. Têm um representante que passa aqui todas as segundas-feiras. Você preenche um formulário numa semana, entrega a Leo e a encomenda chega na semana seguinte. Creio que ele levava alguma coisa nisso, sabe. Imagine só que nunca se conseguia apanhá-lo. Você podia investigar até ficar cansado, mas nunca descobria onde ele empregava seus dividendos. Mas creio que era nesses malditos charutos. Eram realmente detestáveis, sabe. Nem acredito que Leo os apreciasse; só os fumava porque saíam de graça. E porque nós brincávamos com ele por causa disso. Cork riu, com simplicidade. - Leo tapeou a todos nós, essa é a verdade. A você também, acredito. Bem, já vou indo. Até mais.
- Você ia dizer alguma coisa a respeito da primeira vez em que o viu.
- Ia mesmo? Oh, sim, é verdade. - Tornou a rir. - O que queria dizer é que não era possível acreditar em tudo. Meu primeiro dia: Mickie Crabbe me trouxe até aqui. Então foram feitas as apresentações. "Escute aqui", disse Mickie, "só falta uma apresentação", e me levou lá embaixo para ver Leo. "Este é o Cork", disse ele. "Acaba de juntar-se a nós na sala de codificação." Leo se aproximou. - Cork sentou-se na cadeira reclinável ao lado da porta e se encostou para trás, como o rico executivo que tinha vontade de ser. - "Um cálice de xerez?", ofereceu Leo. Nós não devemos beber aqui, mas Leo não se preocupava com isso, ainda que ele próprio não bebesse. "Temos que comemorar esta chegada. Você não canta, por acaso, Cork?" "Só no banheiro", respondi, e todos rimos. Recrutando gente para o coro, sabe: isso sempre os impressionou. Um cavalheiro muito religioso, este Sr. Harting, pensei. Nem por isso. "Quer um charuto, Cork?" Não, obrigado. "Um papinho, então?" Será um prazer, Sr. Harting. Então nos sentamos todos, como um punhado de diplomatas, tomando o nosso xerez, e eu pensando: "Bem, acho que você deve ser um verdadeiro rei por aqui." Móveis, mapas, tapetes. . . todas as atrações. Fred Anger levou um bocado dessas coisas antes de ir embora. Metade das coisas não havia sido comprada. Liberadas, sabe. Como nos velhos tempos da Ocupação. "Então, como estão as coisas em Londres, Cork?", indagou ele. Para me pôr à vontade, o sem-vergonha. "Aquele velho porteiro da entrada principal: ainda insolente com os embaixadores visitantes?" Ele chegou a perguntar isso. "E as lareiras a carvão: ainda põem as lareiras a carvão em funcionamento todas as manhãs, hem, Cork?" "Bem", falei. "Não estão se saindo muito mal, mas é como tudo mais, leva tempo." Perguntas desse tipo. "Oh, ah, realmente", disse ele, "porque recebi uma carta de Ewan Waldebere há somente uns meses, em que me diz que estão instalando um aquecimento central. E aquele sujeito que costumava rezar nos degraus do Número 10, ainda anda por lá, Cork, pela manhã e à noite fazendo suas preces? Parece que não nos ajudou muito, não é mesmo?" Eu lhe digo, praticamente eu estava dando a Leo o tratamento de sir. Ewan Waldebere era o chefe do Departamento do Ocidente nessa ocasião, tudo pronto para ser Deus. Depois, falou de novo sobre o coro, Dutchman e mais algumas coisas, o que podia fazer para ser útil, e quando saíamos eu olhei para Mickie Crabbe, mas Mickie não foi encorajador. "Leo?", disse ele. "Leo? Nunca esteve dentro do Ministério das Relações Exteriores em toda sua vida. Nem mesmo voltou à Inglaterra desde 1945." Cork parou, sacudindo a cabeça. - Ainda assim - continuou com uma risada forçada - não há como culpá-lo, não é mesmo? - Pôs-se de pé. - O que digo é que todos nós ficamos sabendo quem é, mas ainda gostamos dele, não é mesmo? Estou-me referindo a Arthur e. . . a todo mundo. É como minha vila - aduziu com simplicidade - sei que nunca vou chegar lá, mas continuo a acreditar nela da mesma forma. Acho que as pessoas têm realmente. . . não se pode viver sem ilusões. Não aqui.
Tirando as mãos dos bolsos de seu impermeável, Turner olhou primeiro para Cork, depois para a chave metálica na palma de sua manopla, parecendo desanimado e indeciso.
- Qual é o número de Mickie Crabbe?
Cork observou com apreensão Turner levantar o fone, discar e começar a falar.
- Não estão querendo realmente que você continue a procurar por ele - falou Cork, preocupadamente. - Acho que não estão querendo mesmo.
- Não estou procurando por ele coisa nenhuma, vou almoçar com Crabbe, devo pegar o vôo desta noite e nada nesta terra de Deus vai me segurar nesta caixa de sonhos por uma hora a mais do que preciso. - Turner bateu com o fone e saiu da sala. A porta de De lisle achava-se escancarada, mas sua mesa estava vazia. Turner escreveu uma nota: "Passei para me despedir. Adeus. Alan Turner." Sua mão tremia de raiva e humilhação. No saguão, pequenos grupos perambulavam à luz do sol comendo seus sanduíches ou indo almoçar na cantina. O Rolls-Royce do embaixador se encontrava à porta; a escolta de batedores da polícia aguardava pacientemente. Gaunt conversava com Meadowes na mesa da entrada e de repente parou de falar, quando Turner se aproximou.
- Aqui está - disse ele, passando um envelope para Turner. - Aqui está sua passagem. - Sua expressão parecia dizer: "Agora vá embora, volte para o seu lugar."
- Pronto quando você quiser, meu velho - falou Crabbe por trás de sua habitual mancha de sombra. - Você sabe.
Os garçons eram calmos e tremendamente discretos. Crabbe havia pedido caramujos, que disse serem excelentes. A gravura emoldurada no pequeno reservado mostrava pastores dançando com ninfas, exatamente uma sugestão de um pecado oneroso.
- Você esteve com Leo naquela noite em Colônia. A noite em que ele se meteu na tal briga.
- Extraordinário - disse Crabbe. - Realmente. Quer mais água? - perguntou e pôs um pouco mais em cada um de seus copos, mas isso nada mais era do que uma gota derramada pela temperança. - Não sei o que aconteceu com ele.
- Você saía freqüentemente com ele?
Crabbe tentou sorrir e ambos beberam.
- Isso foi há cinco anos, sabe. A mãe de Mary estava doente e ela vivia viajando para a Inglaterra. Por assim dizer eu era um viúvo eventual.
- Então você saía com Leo, ocasionalmente. Tomavam alguma coisa e davam em cima de umas garotas.
- Mais ou menos.
- Em Colônia?
- Calma, meu velho - disse Crabbe. - Você está parecendo um maldito advogado. - Tornou a beber e, enquanto o líquido era engolido, ele estremeceu como um comediante barato imitando a morte. - Cristo - fez ele. - Que dia. Cristo.
- As casas noturnas são melhores em Colônia, não são?
- Aqui não é possível, meu velho - começou Crabbe, com um certo nervosismo. - A não ser que você pretenda escandalizar metade do governo. Em Bonn, todo o cuidado é pouco - acrescentou, desnecessariamente. - Um tremendo cuidado. - Balançou a cabeça, numa frenética afirmação. - Colônia é uma alternativa melhor.
- As garotas são melhores?
- Já não faço mais isso, meu velho. Há anos.
- Mas Leo dava atrás delas, não?
- Ele gostava de garotas - disse Crabbe.
- Então vocês foram a Colônia naquela noite. Sua mulher estava em Londres e você foi para a farra com Leo.
- Nós estávamos apenas sentados a uma mesa. Tomando alguma coisa, sabe. - Juntou o gesto à palavra. - Leo estava falando sobre o Exército, lembrando uma coisa e outra. O velho jogo. Amava o Exército; de fato, Leo amava o Exército. Devia ter seguido a carreira, é o que acho. Não que o tivessem aceito, pelo menos como regular. Em minha opinião, ele precisava de disciplina. Um diabrete, na verdade. Como eu. Isso é bom quando se é jovem, a gente não se importa. Só mais tarde. Fizeram o diabo comigo em Sherborne. O diabo. Deixavam as torneiras abertas, minha cabeça dentro da banheira, enquanto os malditos monitores me batiam. Naquela época eu nem ligava. Achava que era a vida. - Pôs uma das mãos no ombro de Turner. - Meu velho - continuou ele - agora eu os odeio. Não sabia que tinha isso dentro de mim. Tudo vem à superfície. Por qualquer ninharia eu voltaria lá e matava os patifes. Verdade.
- Você o conheceu no Exército?
-Não.
- Então de quem vocês estavam-se lembrando?
- Eu lidei com ele um pouco, nas reclamações. Grupo Quatro.
- Quando Leo esteve em reclamações?
A reação de Crabbe aos aborrecimentos era enervante. Como os caranguejos, parecia que de algum modo misterioso escondia as extremidades de sua presença sob uma carapaça protetora e ali permanecia até que o perigo tivesse passado. Mergulhando a cabeça no copo, assim permaneceu, enquanto fitava Turner com olhos vermelhos e semicerrados.
- Então vocês estavam bebendo e conversando.
- Calmamente. Esperando o espetáculo. Gosto de um bom espetáculo. - A partir daí, Crabbe se perdeu em um inacreditável relato de uma tentativa com uma mulher em Frankfurt por ocasião da última conferência dos democratas livres. - Um fiasco - concluiu, orgulhosamente. - Subiu em cima de mim como um macaco e eu sem conseguir fazer nada.
- Então a briga foi depois do espetáculo?
- Antes. Havia um punhado de hunos no bar, fazendo um bocado de barulho; cantando. Leo ficou ofendido. Começou olhando para eles. A bater com os pés no chão. De repente, pediu a conta. "Zahlen!" Exatamente assim. Tremendamente alto também. Eu falei: "Ei, meu velho, o que está acontecendo?" Ele me ignorou. "Não quero ir embora", falei. "Quero ver o maldito espetáculo." Nem tomou conhecimento. O garçom trouxe a conta, Leo conferiu, meteu a mão no bolso e colocou um botão em cima do prato.
- Que tipo de botão?
- Um botão qualquer. Como aquele que a garota encontrou na Bahnhof. Um botão de madeira com buracos. - Ele estava ainda indignado.
- Não se pode pagar contas com um botão. Pode-se? No começo pensei que se tratasse de uma brincadeira. Dei uma risada. "O que aconteceu com o restante da mulher?", perguntei. Pensei que fosse uma brincadeira, sabe. Mas ele não estava bancando.
- Prossiga.
- "Aqui está", disse ele. "Guarde o troco", e se levantou como se nada houvesse. "Vamos Mickie, este lugar fede." Então caíram em cima dele. Jesus. Fantástico. Nunca pensei que ele fosse assim. Derrubou três, um fugiu, mas então alguém deu-lhe uma garrafada. Todos os golpes; estilo oriental, e sabia como aplicá-los. Então conseguiram dominá-lo. Levaram Leo de encontro ao balcão, de costas, e bateram um bocado. Nunca vi nada igual. Ninguém disse uma palavra. Nem cumprimentos, nada. Sistema. A próxima coisa de que me lembro é que estávamos lá fora, na rua. Leo sobre suas mãos e joelhos e lá vieram eles e lhe deram mais umas porradas, enquanto eu estava despejando minhas entranhas no calçamento.
- Vomitando?
- Tão sóbrio quanto um juiz, meu velho. Mas eles me acertaram no estômago, sabe.
- Você?
Sua cabeça abanava ameaçadoramente enquanto a mergulhava de encontro ao copo.
- Tentei livrá-lo - murmurou. - Tentei me envolver com os outros caras enquanto ele caía fora. O problema - explicou Crabbe, tomando um gole grande de uísque - é que não sou mais o cara que costumava ser. Já então Praschko os tinha dispersado. - Crabbe riu baixinho. - Ele já estava do outro lado da porta, quando o botão foi posto no prato. Parecia saber o que ia acontecer. Não o culpo.
Turner poderia estar perguntando a respeito de um velho amigo.
- Praschko aparecia com freqüência, não? Estava de volta?
- A primeira vez que o vi, meu velho. E a última. Sumiu depois disso. Não o culpo. PM e tudo aquilo. Não é bom para os negócios.
- E o que foi que você fez?
- Jesus, devagar, meu velho. - Estremeceu. - Fiquei com medo de ser mandado de volta para a Inglaterra. Algum maldito socavão em Bushey ou coisa que valha. Com Mary. Não, muito obrigado.
- E como as coisas acabaram?
- Acho que Praschko falou, com Siebkron. A polícia nos levou para a embaixada. A guarda arranjou um táxi e nós fomos para a minha casa e chamamos um médico. Então surgiu Ewan Waldebere, o ministro encarregado da política. Depois Ludwig Siebkron em uma enorme Mercedes. Sabe Cristo o que aconteceu. Siebkron o interrogou. Sentou-se em minha sala de estar e não acabava mais de interrogá-lo. Eu diria que Leo pouco se importou. Seja como for, foi muito sério, quando se pensa nisso. Os malditos diplomatas fazendo misérias nos night clubs, brigando com os nacionais. Muitas cercas a serem remendadas.
O garçom trouxe rins cozidos em vinagre e vinho.
- Meu Deus - disse Crabbe. - Olhe para isso. Delicioso. Ótimo após os caramujos.
- O que foi que Leo disse a Siebkron?
- Nada. Coisa alguma. Você não conhece Leo. Fechado não é a palavra exata. Waldebere, eu, Siebkron. Nem uma sílaba para nenhum de nós. Imagine só, todos gostavam mesmo dele. Waldebere inventou uma licença para ele; novos dentes, pontos, sabe Cristo o quê. Falou a todo mundo que isso tinha acontecido, quando ele estava nadando na Iugoslávia. Mergulhando em águas rasas. Deu com o rosto no fundo. Alguma água: Cristo.
- Por que acha que tudo isso aconteceu?
- Não faço idéia. Não saí mais com ele depois disso. Não era seguro.
- Algum comentário?
- Não, desculpe - disse Crabbe. Seu rosto afundou abaixo da superfície, de mistura com rugas inexpressivas.
- Alguma vez viu essa chave?
- Não. - Sorriu de maneira forçada. - Era de Leo, não? Nos velhos tempos Leo escarafunchava tudo. Agora está mais calmo.
- Há nomes ligados aos fatos? Crabbe continuou olhando para a chave.
- Tente Myra Meadowes.
- Por quê?
- Ela gostaria. Já teve um filho. Em Londres. Dizem que metade dos motoristas passam por ela todas as semanas.
- Leo alguma vez mencionou uma mulher de nome Aickman? Alguém com quem pretendia casar-se?
Crabbe assumiu uma atitude de intrigada rememoração.
- Aickman - repetiu ele. - Engraçado. Era uma pertencente à velha guarda. De Berlim. Leo falou sobre ela. Quando ambos trabalharam com os russos. É isso. Ela é uma dessas entre tantas outras. Berlim, Hamburgo, por aí. Bordou para essas malditas almofadas. Cuidado e atenção.
- O que fazia ele com os russos? - perguntou Turner, após uma pausa. - Que espécie de trabalho era esse?
- Quadripartite, bipartite. . . um desses. Berlim estava por conta própria, sabe. Um mundo diferente, especialmente naqueles dias. Ilha. Uma diferente espécie de ilha. - Sacudiu a cabeça. - Não como Leo - acrescentou. - Todo aquele toque dos comunistas. Não é sua cartilha absolutamente. Tem o couro muito duro para aquela munição toda.
- E essa Aickman?
- Srta. Brandt, Srta. Etling e Srta. Aickman.
- Quem são?
- Três bonecas. Em Berlim. Chegou com elas da Inglaterra. Lindas como umas pinturas, dizia Leo. Nunca tinha visto mulheres iguais. Todas emigradas regressando à Alemanha. Indo para a Ocupação. O mesmo que Leo. Aeroporto Croydon, sentados em cima de uma mala, esperando o avião, aparecem as três bonecas, em uniformes, rebolando seus rabos. Srta. Aickman, Srta. Brandt e Srta. Ething. Transferidas para a mesma unidade. De então em diante, Leo nem olhou para trás. Ele, Praschko e um outro sujeito. Todos vieram juntos da Inglaterra em 1945. Com essas bonecas. Fizeram até uma canção a respeito: Srta. Aickman, Srta. Etling e Srta. Brandt. . . canções para acompanhamento de bebidas, ritmos atrevidos. Naquela noite, na verdade, cantaram essa canção. Na ida de carro, felizes como moleques. Jesus.
Ele mesmo cantaria essa canção por qualquer bobagem.
- A garota de Leo era Aickman. Sua primeira garota. Leo sempre voltaria para ela, era o que dizia. "Nunca haverá ninguém como a primeira", costumava dizer. "Todo o resto não passa de imitações." Usava essas palavras mesmo. Você sabe como os hunos falam. Uns patifes introspectivos.
- O que aconteceu com ela?
- Sei lá, meu velho. Sumiu. É o que todas elas fazem, não é? Crescem. Envelhecem. Como flores. - Um pedaço de fígado caiu-lhe do garfo e o molho salpicou em sua gravata.
- Por que Leo não casou com ela?
- Porque ela seguiu outro rumo, meu velho.
- Que outro rumo?
- Ela não gostava que Leo fosse inglês. Leo me disse. Queria que ele fosse novamente um huno e encarasse a realidade. Era boa em metafísica.
- Talvez Leo tenha ido procurá-la.
- Ele dizia sempre que um dia ia fazer isso. "Já bebi em muitas fontes, Mickie", falava ele, "mas nunca existirá uma garota como Aickman." Bem, mas isso é o que todos dizemos, ou não é? - Crabbe mergulhou no Moselle como se o vinho fosse um refúgio.
-E é?
- Por falar nisso, você é casado, meu velho? Mantenha-se a distância. - Sacudiu a cabeça. - Seria muito bom se eu pudesse dar conta do quarto de dormir. Mas não posso. Para mim é como um pau-de-sebo. Não consigo nada. - Riu abafadamente. - Case-se aos 55, é o meu conselho. Uma bonequinha de 16 anos. Então não sabem o que estão perdendo.
- Era lá que estava Praschko? Em Berlim? Com os russos e Aickman?
- Companhias constantes.
- O que mais Leo lhe falou sobre esse Praschko?
- Que naquela época era um bolchevista. Nada mais.
- Aickman também?
- Talvez, meu velho. Nunca falou nada: isso não o interessava muito.
- E Harting?
- Leo não, meu velho. Não sabia diferenciar o rabo do cotovelo, naquilo que diz respeito à política. Era inquieto. Truta - disse Crabbe. Agora quero truta. Rins são um prato intermediário. Se o voto for secreto, é o que quero dizer.
A piada o afastou do assunto Leo durante todo o tempo da refeição. Só uma vez foi de novo atraído por esse tema; quando Turner lhe perguntou se ele tinha muito o que fazer com Leo nos últimos meses.
- Muito provavelmente não.
- Por que não?
- Leo estava ficando macambúzio, meu velho. Eu percebia. Pronto para saltar em cima de qualquer um. Uma fera briguenta - disse Crabbe, mostrando os dentes em uma súbita careta de embaraço alcoólico. - Ele ia começar a deixar esses botões por aí.
Turner voltou para o Adler às quatro horas; achava-se razoavelmente bêbado. O elevador estava ocupado e, assim, usou as escadas. Aí está, pensava ele. Chegamos ao amargo fim. Continuaria a beber o resto da tarde, iria beber no avião e, se tivesse sorte, quando finalmente chegasse à presença de Lumley, estaria sem fala. A resposta de Crabbe: caramujos, rins, truta e uísque e conserve sua cabeça baixa enquanto as grandes rodas passam por cima. Quando chegou ao seu próprio andar, notou vagamente que o elevador tinha sido preso com uma mala e supôs que o carregador estivesse recolhendo mais bagagem de algum outro quarto. Somos as únicas pessoas de sorte por aqui, pensou Turner. Estamos indo embora. Tentou abrir a porta de seu quarto, mas o trinco estava baixado; tentou com a chave mas não conseguiu. Recuou rapidamente ao ouvir passos, mas na verdade não teria muita chance. A porta foi aberta pelo lado de dentro. Vislumbrou um rosto pálido e redondo e cabelos louros cuidadosamente penteados para trás, uma testa suave sulcada pela ansiedade, viu o látego de couro se abatendo sobre ele em um movimento lento e pensou se o látego cortaria o crânio da mesma maneira que cortava o rosto. Sentiu a náusea se abater sobre ele, o estômago dobrar-se e o bastão de madeira atingir seu joelho pela parte de trás; ouviu a voz agradável do cirurgião chamando a partir das sombras como a grama cauda dos vales do Yorkshire espetando seu rosto de criança. Ouviu a voz sarcástica de Tony Wüloughby, macia como veludo, colante como a de um amante, viu suas mãos de pianista alisando os quadris dela, e ouviu a música de Leo louvando a Deus em cada um dos tabernáculos de madeira vermelha de sua própria infância. Sentiu o cheiro dos charutos holandeses e lá estava novamente a voz de Willoughby oferecendo-lhe um secador de cabelos: sou apenas um temporário, Alan, meu velho, mas tiro dez por cento para os amigos da família. Tornou a sentir a dor, a pancada, quando começaram a espancá-lo e viu o granito negro e úmido do orfanato em Bournemouth e o telescópio na Colina da Constituição. "Se há uma coisa que realmente odeio", observou Lumley, "é um cínico procurando por Deus." Teve um momento de total agonia quando o atingiram nos colhões, e enquanto lentamente desmaiava viu a moça que o havia deixado vagando nas ruas sombrias de sua própria e desafiante solidão. Ouviu o grito de Myra Meadowes quando a desmascarou, mentira por mentira, o grito quando a arrancaram de seu amante polonês e o grito quando a separaram de seu bebê; Turner pensou que ele mesmo seria capaz de gritar, até que percebeu que lhe haviam enfiado uma toalha na boca. Sentiu alguma coisa fria e dura atingir sua cabeça e lá ficar como um pedaço de gelo; ouviu a porta bater e percebeu que estava sozinho; ouviu todos os rastros dos desiludidos e dos desvalidos; ouviu a voz idiota de um bispo inglês, louvando a Deus e a guerra; e adormeceu. Estava em um caixão, um caixão suave e frio. Numa pedra de mármore com lajes polidas e o brilho do cromo na extremidade distante de um túnel. Ouviu De Lisle falando com ele com brandura e Jenny Pargiter soluçando, como as lamúrias de todas as mulheres que ele deixara; ouviu os paternais tons de Meadowes, exortando-o para a caridade e os agradáveis assobios de pessoas despreocupadas. Então Meadowes e Pargiter sumiram, perdidos em outros funerais, e somente De Lisle tinha ficado, e somente a voz de De Lisle oferecia algum consolo.
- Meu caro - estava De Lisle dizendo, enquanto olhava para baixo curiosamente - passei por aqui para me despedir, mas se você está indo tomar banho, poderia, pelo menos, tirar esse terno horroroso.
- Hoje é quinta-feira?
De Lisle tinha pegado um guardanapo e o colocara embaixo da torneira para ficar encharcado.
- Quarta-feira. Quarta-feira como sempre. Hora dos coquetéis.
Inclinou-se sobre Turner e começou a remover delicadamente o sangue que havia em seu rosto.
- Aquele campo de futebol. Onde você o viu. Onde ele pegou Pargiter. Diga-me como chego lá.
- Fique quieto. E não fale ou vai acordar os vizinhos.
Com movimentos os mais delicados possíveis, De Lisle continuava a retirar o sangue coagulado. Liberando a mão direita. Turner cuidadosamente tateou no bolso de sua jaqueta, procurando pela chave de bronze. Ainda estava lá.
- Você já viu isso antes?
- Não. Não vi. Nem eu estava na estufa às três da manhã do dia 2. Mas por que o Ministério das Relações Exteriores - disse De Lisle, levantando-se e contemplando criticamente o trabalho que havia feito - manda um touro para caçar um toureiro? Você não se incomoda de me devolver meu dinner jacket, não é mesmo?
- Por que Bradfield me convidou?
- Convidou-o para quê?
- Para jantar. Para conhecer Siebkron. Por que teria me convidado na terça-feira?
- Amor fraternal; o que mais poderia ser?
- O que havia na tal caixa de mensagens que Bradfield estava tão assustado a respeito?
- Cobras venenosas.
- Esta chave não abriria aquela caixa? -Não.
De Lisle sentou-se à borda da banheira.
- Você não devia estar fazendo uma coisa dessas - disse ele. - Sei o que você vai me dizer; alguém tinha que sujar as mãos. Mas não espere que eu fique satisfeito por ter sido você. Você não é apenas alguém: este é o seu problema. Deixe isso para as pessoas que nasceram com pisca-piscas. Seus olhos cinzentos e suaves estavam sombrios de preocupação. - Há quem estoure a cada dia sob a tensão de ser santo. Você está estourando sob a tensão de ser um porco.
- Por que ele não vai embora? Por que ainda está por aqui?
- Vão perguntar a mesma coisa sobre você amanhã.
Turner estava espichado no longo sofá de De Lisle. Tinha um uísque nas mãos e o rosto coberto com um anti-séptico amarelo retirado da enorme caixa de remédios de De Lisle. Sua sacola de lona estava jogada a um canto da sala. De Lisle se encontrava sentado ao lado de seu cravo, mas não estava tocando o instrumento, tão-somente colocando os dedos sobre as teclas. Era uma peça do século XVIII, de pau-cetim, e a parte de cima apresentava manchas resultantes de sóis tropicais.
- Você carrega esse cravo para todos os lugares?
- Já tive um violino. Mas se reduziu a pedaços em Leopoldville. A cola derreteu. É uma coisa difícil - acentuou De Lisle secamente - perseguir a cultura quando a cola derrete.
- Se Leo é assim tão inteligente, por que não vai embora?
- Talvez porque goste daqui. Eu diria que seria o primeiro.
- E se eles são assim tão inteligentes, por que não o levam embora?
- Talvez porque não saibam que ele está solto.
- O que foi que você disse?
- Eu disse que talvez não saibam que Leo está solto. Não sou um espião, creio, mas sou humano e conheci Leo. Ele é extremamente obstinado. Não posso imaginar, por um só momento, que ele vá fazer exatamente o que eles tenham dito. Se houver "eles", o que duvido. Leo não é um servo natural.
- Tenho estado o tempo todo procurando colocá-lo na fôrma - disse Turner. - Mas a fôrma não serve para ele.
De Lisle tocou algumas notas com um só dedo.
- Diga-me, o que você deseja que ele seja? Mocinho ou bandido? Ou tudo o que você deseja é apenas a liberdade da busca? Você deseja alguma coisa, não é mesmo?
Porque alguma coisa é melhor do que nada. Você é como aqueles abomináveis estudantes: não pode suportar um vácuo.
Turner havia fechado os olhos e se encontrava perdido em pensamentos.
- Espero que ele tenha morrido - disse De Lisle. - O que seria macabro.
- Esta manhã ele não estava morto, não é? - protestou Turner.
- E você não quer que ele esteja em órbita. Isso o aborrece. O que você quer é que aterre ou decole. Para você não há nuanças, não é mesmo? Suponho que aí é que está a graça de caçar extremistas: o que você caça são as suas convicções, não é isso?
- Leo ainda está fugindo - continuou Turner. - De quem ele está fugindo? De nós ou deles?
- Pode estar por conta própria.
- Com 50 pastas roubadas? Oh, por certo. Por certo.
De Lisle examinou Turner por cima do cravo.
- Vocês dois se completam um ao outro. Olho para você e penso em Leo. Você é saxão. Mãos grandes, pés grandes, coração grande e aquele adorável raciocínio que se engalfinha com os ideais. Leo é exatamente o oposto. É um executante. Usa roupas iguais as nossas, usa a nossa linguagem, mas está apenas meio domado. Creio, realmente, que estou de seu lado, Turner: você Q eu formamos a audiência do.concerto. - Fechou o cravo. - Nós somos os únicos que percebemos, que atingimos e que recuamos. Há um Leo dentro de todos nós, mas ele geralmente já está morto quando chegamos aos 20 anos.
- E você, o que é então?
- Eu? Oh, relutantemente, um maestro. - Pondo-se de pé, De Lisle fechou cuidadosamente o teclado com uma pequena chave de bronze de seu chaveiro. - Nem mesmo sei tocar a coisa - disse, fechando a tampa manchada com seus delicados dedos. - Digo a mim mesmo que um dia tocarei; tomarei lições ou comprarei um livro. Mas na verdade pouco me importa: aprendi a viver meio incompleto. Como quase todos nós.
- Amanhã é quinta-feira - falou Turner. - Se eles não souberem que Leo está derrotado, estarão esperando que ele apareça, não é?
- Creio que sim. - De Lisle bocejou. - Mas então eles sabem onde ir, quem quer que sejam eles, não é mesmo? E você não sabe. Aí está um impasse.
- Talvez não seja assim. -Oh!
- Nós sabemos onde você o viu, pelo menos, naquela tarde de quinta-feira quando se supunha que ele tivesse ido ao ministério, não sabemos? O mesmo lugar onde levou Pargiter. Parece ser um território de caça para ele.
De Lisle ficou imóvel, o chaveiro ainda nas mãos.
- Não adianta dizer-lhe que não vá, creio eu? -Não.
- Pedir? Você está agindo contra as instruções de Bradfield.
- Mesmo assim.
- E você não está bem. Muito bem. Vá e procure sua metade não domada. E se encontrar aquela pasta, confiamos em que a devolva sem abrir.
Isto, de repente, era uma ordem.
Capítulo 14
O filho da quinta-feira
O tempo no planalto parecia roubado de outras estações e de outros lugares. Havia um vento marinho de março que cantava na rede de fios, dobrava os tuíbs de capim e violentava a floresta por trás dele; se alguma bruxa maluca tivesse montado um labirinto na terra arenosa, Turner poderia muito bem descer pela trilha e tomar o ônibus elétrico para Bournemouth Square. Era o frio de novembro, quando uma cobertura gelada reveste os brotos das samambaias; lá, porém, o frio se ocultara do vento e se agarrava como águas do ártico aos seus tornozelos; o frio de uma gruta de pedra em uma área do norte, quando somente o medo leva as mãos a trabalharem, e a vida é valorizada porque vencida. As últimas faixas de um sol de Oxford morriam bravamente no vazio campo de futebol; o céu era como o de uma tarde de outono em Yorkshire, negro, encapelado e encardido. As árvores desde cedo iam-se inclinando, castigadas pelo borrascoso vento, a infância de Mickie Crabbe castigada pelas torneiras no banheiro, e quando as lufadas desapareciam esperavam imóveis, as costas arqueadas, pelo próximo assalto.
Os cortes no rosto queimavam e seus olhos claros brilhavam com as dores da falta de sono. Esperou, olhando para a colina. Lá longe, à direita, estava o rio e, como o vento silenciara uma vez, as barcaças chamavam em vão. Um carro vinha subindo lentamente em sua direção; uma Mercedes negra, com chapa de Colônia, uma mulher à direção. No outro lado da cerca uma cabana nova tinha as persianas baixadas e a porta fechada. Uma gralha havia pousado no teto da cabana e o vento alvoroçava suas penas. Um Renault, com chapa diplomática francesa, mulher dirigindo, um passageiro do sexo masculino: Turner anotou em sua caderneta. Sua caligrafia estava difícil e infantil, pois as letras lhe ocorriam com dificuldade. Afinal de contas devia ter reagido também, pois os nós dos dedos de sua mão direita estavam muito feridos, como se tivesse dado um soco em uma boca aberta e atingido os dentes da frente. A caligrafia de Harting era regular, arredondada nos cantos, enquanto a de Turner era grande e em ladeira, ameaçando colisão.
- Vocês são móveis, você e Leo - dissera De Lisle em um momento qualquer na noite anterior, enquanto se encontraram sentados em suas confortáveis cadeiras de braços. - Bonn é estática, mas vocês são móveis... Vocês estão lutando um contra o outro, mas são vocês contra nós. . . O oposto do amor não é o ódio, mas a apatia. . . Vocês têm que entrar em acordo com a apatia.
- Pelo amor de Cristo - protestou Turner.
- Aqui é sua parada - disse De Lisle, abrindo a porta do carro. - E se amanhã pela manhã você não estiver de volta eu aviso a guarda costeira.
Turner havia comprado uma chave inglesa grande em Bad Godesberg, que agora estava atravessada como um peso de chumbo de encontro aos seus quadris: Um ônibus Volkswagen, cinzento, placa SU, cheio de crianças, estacionou perto da cabana. O barulho das crianças lhe chegou aos ouvidos subitamente, um bando de pássaros lutando com o vento, um repicar misturado de reclamações e de risadas. Alguém soprou um apito. O sol os iluminava, fazendo com que parecessem archotes brilhando ao longo de um corredor. A cabana as engoliu. - Nunca soube de ninguém - estava falando De Lisle, em desespero - que se aumentasse tanto com seus defeitos.
Fez a volta rapidamente em torno da árvore. Um Opel Rekord. Dois homens. Placa de Bonn. A chave inglesa o cutucava, enquanto Turner tomava notas. Os homens usavam chapéus e sobretudos e, profissionalmente, não tinham expressão. As janelas laterais do carro eram de vidro enfumaçado. O automóvel continuou, mas em marcha lenta. Turner viu quando suas faces brancas e inexpressivas se voltaram em sua direção, luas gêmeas na escuridão artificial. Seus dentes? Turner se pôs a pensar. Seriam esses os dentes em que sua mão esbarrara? Não posso dizer. Confio em que vocês estão chegando para a festa. Até o cimo da colina, eles não devem ter chegado a 15 quilômetros por hora. Passou uma camionete, seguida por dois caminhões. Em algum lugar, ouviu-se uma campainha. Ou seria uma sineta de escola? Ou o Angelus, ou Compline, ou ovelhas sujas de fuligem em Dales, ou o repique da balsa lá no rio? Nunca mais tornaria a ouvir esse ruído novamente, ainda que não haja verdade, como dizia o Sr. Crad, que não possa ser confirmada. Não, meu filho; mas os pecados dos outros são um sacrifício perante Deus. O seu sacrifício. A gralha voara do telhado. O sol desaparecera. Um pequeno Citroen surgia à vista. Um deux chevaux, sujo como neblina, um flanco amassado, uma placa ilegível, um motorista escondido na sombra, um dos faróis dianteiros acendendo e apagando e a buzina tocando, na direção da cabana. O Opel tinha desaparecido. Vamos, luas, ou iremos perder sua chegada. As rodas se inclinam como membros deslocados quando o pequeno carro deixa a estrada e guina na direção de Turner por cima dos sulcos enlameados e gelados da trilha dos caminhões de madeira, a atrevida traseira balançando sobre o eixo. Ele ouviu o som de música de dança quando a porta se abriu, a boca ressequida pelos tabletes, e os cortes em seu rosto uma cortina de espetos. Um dia, quando o mundo for livre, sua mente febril lhe garantia, as nuvens explodiriam quando colidissem e os anjos de Deus cairão, aturdidos, para que todo o mundo os contemple. Silenciosamente, colocou a chave inglesa no bolso.
Ela estava de pé a menos de 10 metros de distância, de costas para ele, completamente indiferente ao vento ou as crianças que no momento se lançavam sobre os brinquedos que havia no parque. Ela fitava a colina lá embaixo. O motor estava ainda em funcionamento, sacudindo o carro com suas dores internas. Um limpador se agitava inutilmente para cá e para lá, sobre o pára-brisa sujo. Durante uma hora, ela mal se moveu.
Durante uma hora, ela aguardou com uma imobilidade oriental, sem prestar atenção a coisa alguma; a não ser quem não chegava. Permanecia como uma estátua, aumentando de tamanho à medida que a luz a abandonava.
O vento batia-lhe no casaco. Num determinado momento, ergueu a mão para recolocar no lugar errantes fios de cabelo, e de outra caminhou até a extremidade da trilha para olhar para o vale do rio, na direção do Kònigswinter; depois voltou lentamente, perdida em pensamentos, enquanto Turner se ajoelhava por trás das árvores, rezando para que as sombras o protegessem.
A paciência dela se esgotou. Entrando ruidosamente de volta no carro, acendeu um cigarro e apertou a buzina com a mão aberta. As crianças esqueceram os brinquedos e sorriram ao rouquenho soar da bateria cansada. O silêncio voltou.
O limpador de pára-brisa tinha sido desligado, mas o motor continuava funcionando e ela o estava acelerando a fim de estimular o aparelho de calefação. Os vidros das janelas estavam embaçando. Abriu a bolsa, de onde tirou um espelho e um batom.
Estava recostada no banco, com os olhos fechados, ouvindo a música de dança, uma das mãos delicadamente acompanhando o ritmo no volante. Ouvindo um carro, abriu a porta e olhou preguiçosamente para fora, mas era apenas o Rekord negro descendo suavemente a colina e, ainda que as luas se tivessem voltado em sua direção, ela permaneceu completamente indiferente a seu interesse.
O campo de jogo estava vazio. As persianas se haviam cerrado na cabana destinada à troca de roupa. Acendendo a luz do teto, a mulher consultou o relógio para ver as horas, mas já então as primeiras luzes estavam sendo acesas no vale e o rio se perdia na névoa baixa. Turner caminhou pesadamente pela trilha e abriu a porta do lado contrário ao do motorista.
- Esperando alguém? - perguntou ele e se sentou ao lado da mulher, fechando a porta rapidamente, de modo que a luz tornou a apagar-se. Turner desligou o rádio.
- Pensei que você tivesse ido embora - disse ela, calorosamente. - Pensei que meu marido tivesse se livrado de você. - Medo, raiva, humilhação se abateram sobre ela. - Você esteve me espionando esse tempo todo! Escondido nos arbustos como um detetive! Como ousou uma coisa dessas? Você, seu homenzinho vulgar! - Recuou o punho fechado, mas talvez tivesse hesitado quando viu o estado em que estava o rosto de Turner, o que não teria feito grande diferença, porque nesse exato momento Turner a atingiu com dureza na boca e a cabeça dela se chocou contra a coluna do carro. Abrindo a porta do seu lado, Turner deu a volta no veículo a arrancou de dentro, tornando a atingi-la com a mão aberta.
- Vamos dar um passeio - disse Turner - e conversar sobre aquele seu vulgar amante.
Turner a conduziu pela trilha de madeira até à crista da colina. Ela o acompanhou naturalmente, pegando-lhe o braço com ambas as mãos, a cabeça pendida, chorando silenciosamente.
Estavam olhando o Reno. O vento amainara. Acima deles, já as primeiras estrelas brilhavam como centelhas fosforescentes sobre um mar que se agitava suavemente. Ao longo do rio, as luzes se acendiam em séries, hesitantes no momento de seu nascimento, mas logo miraculosamente vivas, crescendo como pequeninas fogueiras sopradas pela brisa negra da noite. Somente os ruídos do rio lhes chegavam aos ouvidos; a descarga dos motores das barcaças e o bater amigo dos relógios anunciando os quartos de hora. Sentiam o enjoativo cheiro do próprio Reno, sua fria respiração sobre suas mãos e suas faces.
- Tudo começou como um desafio. - Ela estava afastada dele, olhando para o vale, seus braços enlaçando o próprio corpo, como se estivesse segurando uma toalha. - Ele não vem mais. Está tudo acabado. Eu sei disso.
- Por que não viria?
- Leo nunca dizia nada. Estava muito longe de ser um puritano. - Acendeu um cigarro. - Porque ele jamais deixará sua busca, eis aí.
- Busca de quê?
- O que todos nós buscamos? Pais, filhos, uma mulher. - Voltou o rosto para ele. - Prossiga - desafiou ela. - Pergunte pelo resto.
- Turner aguardou.
- Quando começou a intimidade, não é isso o que deseja saber? Eu teria dormido com Leo naquela mesma noite, se ele tivesse me convidado, mas não o fez porque eu e a mulher de Rawley e ele sabia que homens bons andam escassos. O que estou querendo dizer é que Leo sabia que tinha de sobreviver. Ele era um réptil, você não percebe? Teria enfeitiçado até as penas de um ganso. - Parou de falar. - Sou uma idiota em lhe dizer essas coisas.
- Será uma idiota maior ainda se não disser. Está em uma enrascada - falou Turner - se é que você não sabe.
- Não me lembro quando não estive em uma enrascada. De que outra forma poderia eu me opor ao sistema? Éramos duas pessoas mordazes e nos apaixonamos um pelo outro.
Ela estava sentada em um banco, brincando com as luvas.
- Foi num jantar. Um maldito jantar de Bonn, com pato assado e alemães horrorosos. Alguém recebendo alguém. Alguém se despedindo. Acho que eram americanos. Sr. e Sra. Alguém terceira. Uma festa dinástica. Terrivelmente provinciana. - Sua voz era natural, rápida e falsamente segura, mas, apesar de todos os seus esforços, tinha aquela nota de destreza duramente adquirida que Turner já percebera em mulheres de diplomatas britânicos por todo o mundo: uma voz que falava através de silêncios, que escondia embaraços, que remediava as ofensas; uma voz que nem era particularmente culta nem particularmente sofisticada, mas que, como alguém na busca de padrões perdidos, obstinadamente segue seu curso. - Tínhamos vindo diretamente de Aden e estávamos aqui havia exatamente um ano. Antes disso, tínhamos estado em Pequim e agora nos encontrávamos em Bonn. Fim de outubro. Outubro de Karfeld. As coisas tinham acabado de ficar quentes. Em Aden tínhamos sido bombardeados, em Pequim houve manifestações contra nós, e agora íamos ser queimados na Praça do Mercado. Pobre Rawley: parece atrair humilhações. Ele foi também prisioneiro de guerra como você sabe. Devia haver uma denominação para ele: a geração humilhada.
- Ele amaria você por causa disso - observou Turner.
- Ele me ama sem isso. - Fez uma pausa. - O engraçado é que eu nunca o havia visto antes. Achava que ele era apenas um idiotazinho. . . temporário. O homenzinho que tocava o órgão na capela e fumava aqueles horrorosos charutos durante os coquetéis. . . Nada por dentro. . . Vazio. E naquela noite, no momento em que ele entrou, no momento em que assomou à porta, senti que tinha me escolhido e pensei: "Atenção. Reide aéreo." Veio para onde eu estava. "Alô, Hazel." Leo nunca me tratara por Hazel, e pensei: "Você, seu diabo atrevido, você vai me pagar por isso."
- Muita bondade sua correr esse risco - disse Turner.
- Ele começou a falar. Não sei a respeito de que; nunca dei muita atenção ao que dizia; não mais do que a ele. Karfeld, creio que era. Arruaças. Correrias e barulhada. Mas eu o notei. Pela primeira vez eu realmente o notei. - Hazel Bradfield ficou em silêncio. - E eu pensei: "Muito bem, onde você estava durante toda a minha vida?" Era como se eu estivesse olhando para uma velha conta bancária e descobrisse que tinha saldo ao invés de estar em vermelho. Ele tinha vida. - Riu. - Em nada parecido com você. Você é a coisa mais morta que jamais conheci.
Turner podia ter batido nela de novo, se não fosse a odiosa familiaridade de sua zombaria.
- O que se notava em primeiro lugar era a tensão. Estava se policiando a ú mesmo. Sua linguagem, suas maneiras. . . tudo fingido. Estava em guarda. Escutava a própria voz da mesma maneira que escutava a de outra pessoa, no ritmo certo, colocando os advérbios da forma gramaticalmente correta. Tentei chamar sua atenção: quem eu pensaria que ele era se não o conhecesse! Um alemão latino-americano?. . . Um delegado comercial argentino? Um desses. Um huno latinizado. - Novamente, fez uma pausa, perdida em recordações. - Leo tinha aqueles aveludados toques alemães de linguagem e os usava para ajustar o equilíbrio de cada frase. Fiz com que falasse a respeito de si mesmo, onde morava, quem cozinhava para ele, onde passava os fins de semana. Quando me dei conta, ele estava me dando conselhos. Conselhos de ordem diplomática: onde comprar carne barata. O posto de pedidos. O Dutchman era bom para isso, a Naafi para aquilo; manteiga do Economat, castanhas do Commissary. Como uma mulher. Tinha uma queda pelos chás de ervas; os alemães são doidos sobre digestão. Em seguida, ofereceu-me comprar um secador de cabelos. Por que você está rindo? - perguntou Hazel, com súbita fúria.
-Eu ri?
- Ele conhecia algum modo de conseguir um desconto; vinte e cinco por cento, disse ele. Havia comparado todos os preços, conhecia todos os modelos.
- Ele estaria olhando também para o seu cabelo. Hazel atacou.
- Conserve o seu lugar - explodiu ela. - Você não chega perto dele nem à distância de um grito.
Turner tornou a bater nela, um golpe longo que atingiu a carne do rosto de Hazel.
- Seu filho da mãe! - reagiu ela, empalidecendo no escuro, tremendo de raiva.
- Prossiga.
- Então eu disse sim - recomeçou ela, finalmente. - De qualquer modo eu estava mesmo chateado. Rawley metido num canto com um conselheiro francês; o restante das pessoas lutando no bufê para se servir de comida. Então eu respondi que sim, que gostaria de comprar o secador de cabelos. Com um desconto de vinte e cinco por cento. Achava que não tinha o dinheiro comigo; será que ele aceitava um cheque? Eu poderia do mesmo modo ter dito, sim, vou para a cama com você. Essa foi a primeira vez em que o vi sorrir; normalmente ele não ri. Todo seu rosto se iluminou. Disse-lhe que fosse pegar alguma comida, e fiquei observando-o durante todo o tempo, imaginando no que aquilo iria dar. Seu andar era aquele andar oscilante. . . Elertanz é como chamam aqui. . . exatamente como na capela, de fato, porém mais duro. Os alemães estavam apinhados no bar, lutando pelo aspargo, Leo passou por eles rapidamente e emergiu com dois pratos servidos de comida, garfos e facas aparecendo no bolso do lencinho' de seu casaco. Ria como um doido. Tenho um irmão chamado Andrew que se diverte com qualquer coisa. Quase não se podia notar a diferença. A partir daí não me importei mais. Um canadense idiota estava tentando dar-me uma aula sobre agricultura, e eu arranquei sua cabeça. Creio que são os únicos que ainda acreditam nisso tudo, os canadenses. Como os ingleses na índia.
Ouvindo um ruído, Hazel voltou rapidamente a cabeça e olhou para trás, ao longo da trilha. Os troncos das árvores eram negros de encontro ao horizonte baixo. O vento começou a cantar; era uma noite úmida que encharcou suas roupas.
-Ele não virá. Foi você mesma quem disse. Continue. Depressa.
- Sentamo-nos em uma escada e ele começou novamente a falar sobre sua vida... Nem precisava ser instado. Tudo vinha naturalmente. . . era fascinante. Sobre a Alemanha nos primeiros dias do pós-guerra. "Somente os rios estavam inteiros." Nunca soube se estava fazendo traduções a partir do alemão ou estava usando sua imaginação ou apenas repetindo alguma coisa que tinha ouvido. - Hazel hesitou e voltou a olhar para a trilha. - Como, durante a noite, as mulheres trabalhavam à luz de lampiões. . . passando pedras como se estivessem apagando uma fogueira. . . Como ele aprendeu a dormir usando o extintor de incêndio como travesseiro. Mostrou até como era, pondo a cabeça de lado e fazendo uma careta com a boca de modo a mostrar como o pescoço ficava duro. Conversas de cima da cama. - Interrompeu bruscamente. - Vou voltar. Se ele encontrar o carro vazio vai embora; é assustado como um gatinho.
Turner a acompanhou pela trilha, mas a esplanada se achava deserta, a não ser pelo Opel Rekord, parado com as luzes apagadas.
- Vamos sentar no carro - disse ela. - Não se incomode com eles. - Pela primeira vez, ela observou as marcas que havia no rosto de Turner, com o auxílio das luzes interiores do carro, e prendeu a respiração.
- Quem fez isso? - perguntou.
- Farão o mesmo com Leo, se o encontrarem primeiro.
Hazel estava recostada no banco do carro, de olhos fechados. Alguém havia rasgado o forro do teto que estava pendente como os andrajos de um mendigo. No chão, um volante de brinquedo com o tubo de plástico. Turner tirou-o do caminho com o pé.
-Por vezes, eu pensava: "Você é vazio. Você está apenas imitando a vida." Mas de um amante ninguém ousa pensar isso. Ele era um negociador, um ator, suponho eu. Foi apanhado entre vários mundos: Alemanha e Inglaterra, Königswinter e Bonn, a capela e os descontos, o primeiro andar e o andar térreo. Não se pode esperar que alguém trave todas essas batalhas e continue vivo. Por vezes, ele apenas nos servia - explicou ela, com simplicidade. - Ou a mim. Como um maítre, Somos todos clientes, não importa o que queiramos. Ele não viveu, sobreviveu. Até hoje. - Acendeu mais um cigarro. No carro, estava muito frio. Hazel tentou ligar o motor para acionar a calefação, mas a ignição falhou.
- Depois daquele primeiro encontro, estava tudo pronto para a cama. Rawley se aproximou, encontrou-me ali com ele e nós éramos os últimos a sair. Rawley havia-se empenhado em uma discussão com Lésère a respeito de alguma coisa e estava satisfeito por ter-se saído bem. Leo e eu estávamos ainda sentados na escada tomando café, Rawley chegou e me beijou no rosto. O que foi isso?
- Nada.
- Vi uma luz lá embaixo.
- Era uma bicicleta cruzando a estrada. Já foi embora.
- Odeio que Rawley me beije em público, mas ele sabe que não posso impedi-lo. Nunca me beija na intimidade. "Venha, querida, está na hora de ir embora." Leo se pôs de pé, quando viu meu marido chegando, mas Rawley nem o notou. Levou-me até onde estava Lésère. "Esta é a pessoa a quem você realmente deve pedir desculpas", disse ele. "Ficou sentado a noite inteira nas escadas, sozinha." Estávamos já saindo, perto da porta, Rawley parou para pegar o capote, e lá estava Leo, segurando o capote para ele. - Hazel sorriu, um sorriso cheio de amor, rejubilando-se à lembrança. - Ele nem parecia estar me notando mais. Rawley se virou de costas para ele, enfiou os braços nas mangas do capote, e percebi que os próprios braços de Leo se enrijeciam e seus dedos se fechavam. Imagine só, eu me sentia feliz. Eu queria que Rawley se comportasse daquela maneira mesmo. - Deu de ombros. - Eu estava fisgada - continuou. - Estava procurando um pássaro e agora encontrava um com penas e tudo. No dia seguinte, busquei seu nome no Livro Vermelho. Você já sabe hoje o que ele é: nada. Telefonei para Mary Crabbe e lhe perguntei a respeito de Leo. Só para me divertir. "Esbarrei num extraordinário homenzinho ontem à noite", falei. Mary teve um ataque. "Meu Deus, ele é um veneno. Fique longe dele. Uma vez, ele arrastou Mickie para um night club e o meteu em uma complicação tremenda. Graças a Deus", continuou ela, "seu contrato termina em dezembro e ele vai embora." Tentei Sally Askew, que é totalmente franca. Eu poderia ter morrido. - Hazel se pôs a rir e, em seguida, enterrou o queixo no peito a fim de imitar os sonoros tons da mulher do ministro para os assuntos econômicos. - "Um solteirão útil, já que os hunos estão em falta." Eles vêm aqui com freqüência, você sabe; somos em maior número do que eles. Muitos diplomatas atrás de uns poucos alemães: isso é Bonn. O problema, segundo Sally, é que os alemães estavam voltando à escola antiga a respeito de pessoas como Leo e, assim, ela e Aubrey tinham relutantemente deixado de convidá-lo. "Ele é um irritante inconsciente, minha querida, se você entende o que quero dizer." Fiquei completamente excitada. Desliguei o telefone e logo lhe escrevi uma carta, na sala de visitas, sobre absolutamente coisa alguma.
Tentou ligar novamente o motor, mas ele nem tossiu. Acomodou melhor o casaco em torno dos ombros.
- Oh - sussurrou ela. - Venha Leo, não deixe uma amizade pelo meio.
No Opel negro uma pequenina luz se acendeu e apagou, como um sinal. Turner não disse coisa alguma, mas seus dedos rudes tocaram de leve a chave inglesa em seu bolso.
- A carta de uma colegial. Obrigada por ter sido tão atencioso. Desculpas por ter tomado todo o seu tempo e, por favor, não se esqueça do secador de cabelos. Em seguida, uma adorável história inventada sobre compras que eu tinha ido fazer no Spanischer Garten e uma senhora idosa deixou cair uma moeda de dois marcos em um caixote de laranjas, moeda que ninguém conseguiu achar e ela dizia que era o pagamento, pois o dinheiro ficara na loja. Eu mesma entreguei a carta na embaixada, e naquela tarde Leo telefonou. Havia dois modelos, disse ele, o mais caro dos quais tinha várias velocidades e não precisava de adaptador.
- Transformador.
- E quanto à cor? Ouvi perguntar. Leo disse que seria muito difícil decidir por mim, com relação a velocidades e a cores. Será que não podíamos nos encontrar e discutir o assunto? Era uma quinta-feira e nós nos encontramos aqui. Ele disse que vinha até aqui todas as quintas-feiras, para desfrutar um pouco de ar fresco e para observar as crianças. Não acreditei nele, mas me senti muito feliz.
- Foi isso tudo o que ele disse com relação às suas vindas aqui?
- Certa vez, Leo disse que lhe deviam tempo.
- Quem devia?
- A embaixada. Alguma coisa que Rawley tomara dele e dera a alguma outra pessoa. Uma função. Assim, ele vinha para cá em lugar disso. - Hazel sacudiu a cabeça realmente com admiração. - Ele é teimoso como uma mula - declarou ela. - "Eles me devem isso", disse Leo, "e assim eu cobro. Esta é a única maneira de viver."
- Pensei que você tinha dito que ele não falava sobre as coisas.
- Não sobre as grandes coisas. Turner aguardou.
- Apenas conversamos e olhamos o rio e quando descemos nos demos as mãos. Quando estávamos indo embora, Leo disse: "Esqueci de lhe mostrar o secador de cabelos." Respondi: "Que pena. Então teremos que nos encontrar aqui de novo na próxima quinta-feira, não é?" Ele ficou tremendamente chocado. - Quando falava nele, sua voz se fazia especial: zombeteira e possessiva, parecia com isso excluir Turner, mais do que o atrair à conversa. "Minha cara Sra. Bradfield. . .", e eu cortei: "Se
você vier na próxima quinta-feira, permitirei que você me chame de Hazel." Sou uma prostituta - explicou. - É o que você está pensando.
- E depois disso?
- Todas as quintas-feiras. Aqui. Leo estacionava o seu carro na alameda e eu deixava o meu na estrada. Éramos amantes, mas ainda não tínhamos ido para a cama. Era algo muito adulto. Por vezes, ele falava, de outras não falava. Vivia mostrando-me sua casa, do outro lado do rio, como se quisesse vendê-la a mim. Percorríamos todo o caminho do topo de uma colina a outra, de modo que pudéssemos ver a casa. Uma vez brinquei com ele: "Você é o diabo. Está me mostrando todo o inferno." - Não ligou à brincadeira. Nunca se esqueceu de nada, sabe. Era o que havia de sobrevivente nele. Não gostava que eu falasse em mal, sofrimento ou qualquer coisa assim. Conhecia tudo isso de dentro para fora.
- E o resto?
Turner percebeu que o rosto de Hazel se contorcia e o sorriso desapareceu.
- Na cama de Rawley. Uma sexta-feira. Em Leo existe um vingador, sem qualquer dúvida. Ele sempre sabia quando Rawley viajava; costumava ir à seção de passagens para verificar, ver as reservas feitas com o funcionário encarregado. E então me dizia: ele estará em Hanover na próxima semana. . . ele está em Bremen.
- O que Bradfield ia fazer lá?
- Oh, meu Deus. Visitar os consulados. . . Leo me fazia a mesma pergunta. Como eu ia saber? Rawley jamais me diz nada. Por vezes eu achava que ele estava acompanhando Karfeld por toda a Alemanha. .. ele sempre parecia ir aos lugares onde as manifestações se realizavam.
- E de então em diante?
Hazel deu de ombros.
- Sim. De então em diante. Sempre que podíamos.
- Rawley sabia?
- Oh, Deus. Sabia? Não sabia? Você é pior que os alemães. Ele desconfiava. Você quer as coisas muito claras. Há coisas que não podem ser assim. Há coisas que não são verdades até que sejam ditas. Rawley sabe disso melhor do que ninguém.
- Cristo - resmungou Turner. - Você dá a você mesma toda as chances. - Lembrou-se de que, três dias antes, tinha dito a mesma coisa a Bradfield.
A mulher tinha os olhos fixos à frente, através do pára-brisa.
- O que as pessoas valem! Filhos, maridos, carreiras. Você se afoga e chama a isso sacrifício. Você sobrevive e chama você de cadela. Corte-se a você mesmo em pedacinhos. Para quê? Não sou Deus. Não posso agüentar todos eles nas costas. Vivo por eles e eles vivem por alguém mais. Somos todos santos. Somos todos tolos. Por que não vivemos para nós mesmos e apelamos para aquelas coisas só para variar?
- Seu marido sabia? - Turner tinha agarrado o braço dela.
-Sabia!
As lágrimas começaram a escorrer pelos lados do seu nariz. Limpou-as rapidamente.
- Rawley é um diplomata - disse Hazel por fim. - A arte do possível, aí está Rawley. O objetivo limitado, a mente treinada. "Não vamos nos esquentar demais. Não vamos dar nomes às coisas. Não vamos negociar sem saber o que desejamos conseguir." Ele não pode... não pode ficar maluco, isso não é para ele. Ele não pode viver por coisa alguma. Exceto por mim.
- Mas Bradfield sabia.
- Creio que sim - disse ela, cansada. - Nunca lhe perguntei. Sim, ele sabia.
- Porque foi você quem o fez renovar aquele contrato, não foi? No último mês de dezembro. Foi você que insistiu com ele.
- Sim. Foi terrível. Foi uma coisa horrível. Mas tinha que ser feito- completou ela, como se estivesse se referindo a uma elevada causa de que ambos tinham conhecimento. - Ou ele teria mandado Leo embora.
- E a renovação do contrato era o que Leo queria. Por isso é que ele a escolheu.
- Leo me procurou pelo meu dinheiro. Pelo que conseguiu arrancar de mim - disse ela. - Mas ficou comigo por amor. Será que isso o satisfaz?
- Turner não respondeu.
- Leo nunca colocou essas coisas em palavras. Já lhe disse. Jamais tocava nas grandes coisas. "Só um ano mais é tudo o que preciso. Só um ano, Hazel. Um ano para amá-la, um ano para que me paguem tudo o que me devem. Um ano a partir de dezembro, e então vou embora. Eles não se apercebem do quanto precisam de mim." Então, convidei-o para uns drinques. Quando Rawley estava em casa. Foi um início, antes de os comentários começarem. Estávamos só nós três. Fiz com que Rawley voltasse cedo para casa. "Rawley, este aqui é Leo Harting, ele trabalha para você e toca o órgão na capela." "Claro. Já nos conhecemos", disse Rawley. Conversamos sobre coisa alguma. Castanhas do Commissary. Férias da primavera. Como era Kònigswinter no verão. "O Sr. Harting nos convidou para jantar", falei. "Não é gentil?" Na semana seguinte, fomos a Kònigswinter. Leo serviu o que há de melhor. Biscoitos especiais, café. E isso foi tudo.
- O que foi tudo?
- Oh, Cristo, você não percebe? Eu tinha mostrado a meu mando! Eu tinha mostrado a Rawley o que queria que ele comprasse para mim!
- Agora estava tudo muito imóvel. As gralhas haviam-se postado como sentinelas nos ramos que suavemente se embalançavam, e já não havia mais vento para eriçar suas penas.
- Elas são como os cavalos? - perguntou Hazel Bradfield. - Dormem de pé?
Voltou a cabeça para olhar para Turner, mas ele não respondeu.
- Leo odiava o silêncio - disse ela, sonhadoramente. - O silêncio o assustava. Era por isso que gostava de música; era por isso que gostava de sua casa. . . era barulhenta. Nem mesmo os mortos conseguiriam dormir lá. Quanto mais Leo.
Hazel sorriu ao lembrar-se.
- Ele não morava nela; apenas a tripulava. Toda a noite passava subindo e descendo, consertando uma janela, as persianas ou qualquer outra coisa. Toda sua vida era assim. Temores secretos, recordações secretas; coisas de que nunca falaria, mas esperava que você soubesse a respeito. - Bocejou. - Ele não virá mais - disse. - Também tem medo da escuridão.
- Onde ele está? - perguntou Turner, ansiosamente. - O que está fazendo?
Hazel Bradfield não respondeu.
- Escute: Leo fez confidencias a você. Na noite em que se vangloriou, disse-lhe como fez o mundo girar para ele. O quanto era inteligente, os truques que aplicava, as pessoas que enganava!
- Você o interpreta da maneira errada. Completamente errada.
- Então me diga!
- Não há nada para ser dito. Éramos apenas amantes, nada mais. Ele vivia para um outro mundo.
- Que mundo? A maldita Moscou e a luta pela paz?
- Eu tinha razão. Você é vulgar. Quer que todas as linhas se juntem e que as cores casem. Você não tem coragem para ficar nos meios-tons.
- E ele, tinha?
Parecia que Leo saíra da cabeça de Hazel.
- Vamos embora, pelo amor de Deus - disse ela depois de algum tempo, como se Turner a estivesse fazendo esperar.
Turner teve que empurrar o carro uma boa distância antes que ele pegasse. Enquanto desciam pela colina abaixo, Turner percebeu que o Opel se destacava de onde estava e rapidamente procurava posicionar-se por trás deles. Hazel guiou o carro até Remagen, a um dos grandes hotéis da beira do cais, dirigido por uma velha que lhe alisou o braço quando ela se sentou. Onde estava o homenzinho?, perguntou a velha, der nette klein Herr, sempre tão alegre, que fumava charutos e falava tão bem o alemão.
- Ele falava com sotaque - explicou Hazel a Turner. - Um ligeiro sotaque inglês. Era algo que tinha ensinado a si mesmo.
O solário estava quase vazio, com exceção de um jovem casal em um dos cantos. A moça tinha cabelos longos e louros. Ficaram olhando para Turner curiosamente, devido aos cortes em seu rosto. De sua mesa, próxima à janela, Turner viu o Opel estacionar na esplanada lá embaixo. O número da placa havia mudado, mas as luas eram as mesmas. A cabeça dele doía. Ainda não tinha tomado metade de seu uísque e sentira vontade de vomitar. Pediu água. A velha senhora lhe trouxe uma garrafa de água medicinal local e expôs-lhe todas as suas vantagens. Haviam-na usado em ambas as guerras, explicou, quando o hotel foi um posto de primeiros socorros para aqueles que eram feridos quando tentavam atravessar o rio.
- Ele ia me encontrar aqui na última sexta-feira - disse Hazel. - Ia me levar para sua casa, para jantar. Rawley estava seguindo para Hanover. Leo cancelou o encontro em cima da hora.
- Na tarde da última quinta-feira, Leo chegou tarde. Não me importei. Por vezes nem sequer aparecia. De outras, avisava-me. Estava diferente. No último mês ele estava diferente. Tinha mudado. Pensei que tivesse arranjado outra mulher. Estava sempre indo a algum lugar.. .
- Que lugares?
- Berlim, uma vez. Hamburgo. Hanover, Stuttgart. Quase igual a Rawley. Pelo menos era o que dizia; eu não tinha certeza. Leo não se preocupava muito em falar a verdade. Não era como você.
- Leo chegou tarde. Na última quinta-feira. Prossiga!
- Ele havia almoçado com Praschko.
- No Maternus - comentou Turner.
- Tinham tido uma discussão. Esse era outro leoísmo. Você não falaria assim. Na voz passiva, outra de suas formas favoritas. Uma discussão tinha tido lugar, mas não disse por quê. Leo estava preocupado. Pensativo. Sabia que era melhor não procurar arrancá-lo de seus pensamentos e nos limitamos a ficar passeando. Com eles nos observando. E eu sabia do que se tratava.
- De quê?
- Era o ano que ele desejava. Havia encontrado o que queria, e o que quer que fosse, agora não sabia o que fazer com o que encontrara. - Deu de ombros. - Por essa época, eu também já havia descoberto o que era. Leo nunca percebeu. Se tivesse levantado um dedo, eu arrumaria minhas coisas e partiria com ele. - Estava olhando para o rio. - Nem filhos, nem marido, nem porcaria nenhuma teria me impedido. Não, se ele me quisesse.
- O que foi que ele encontrou? - quis saber Turner.
- Não sei. Sei que encontrou, falou com Praschko, e este não gostou. Leo sabia que Praschko não ia ajudar em nada; mas tinha que voltar e verificar. Tinha que ter certeza de que estava por conta própria.
- Como você sabe disso? Até onde ele comentou com você?
- Talvez menos do que ele pensa. Leo achava que eu era uma parte dele e pronto. - Deu de ombros. - Eu era um amigo e um amigo não faz perguntas. Faz?
- Prossiga.
- Rawley ia viajar para Hanover, disse ele; sexta-feira à noite Rawley seguiria para Hanover. Então Leo ia me oferecer um jantar em Königswinter. Um jantar especial. "Para celebrar?", perguntei. "Não. Não. Não é uma celebração, Hazel." Mas tudo agora era especial, e de qualquer modo não havia muito tempo. Ele não ia conseguir um outro contrato. Nem mais anos depois de dezembro. Então, por que não um ótimo jantar de vez em quando? E olhou para mim de uma forma assustadoramente velhaca e recomeçamos a caminhar, Leo me levando. Nós nos encontraremos em remagen, disse ele; nós nos encontraremos aqui. E, em seguida: "Escute aqui, Hazel, que, diabo, Rawley anda atrás em Hanover? Isto é, dois dias antes do comício-monstro?
Ela também tinha, de antemão, uma expressão com referência a Leo, uma carranca, uma pesada carranca ao estilo alemão, de exagerada sinceridade com que certamente brincava com ele, quando estavam juntos.
- O que Rawley, então, estava procurando? - perguntou Turner.
- Nada, como veio a ficar constatado. Ele não viajou. E Leo deve ter ficado sabendo disso, pois cancelou o jantar.
- Quando?
- Telefonou na sexta-feira pela manhã.
- O que foi que disse? Exatamente o que foi que disse?
- Exatamente disse que naquela noite não seria possível. Não deu razões. Na verdade não deu nenhuma razão. Lamentava muito, mas era uma coisa que tinha que fazer. Algo que se tornara urgente. A voz era a que ele usava nos quartos de pensão. "Lamento muito, Hazel."
- E isso foi tudo?
- "Está bem", respondi. - Ela estava lutando contra uma tragédia.
- "E boa sorte." - Deu de ombros. - Desde então não falamos mais um com o outro. Ele desapareceu e eu fiquei preocupada. Foi por isso que você foi jantar conosco. Pensei que poderia saber de alguma coisa. Mas você não sabia. Qualquer idiota podia perceber esse fato.
A moça loura estava-se pondo de pé. Usava um justo e comprido vestido de suède e teve que ajeitá-lo bastante na saia para alisar as acentuadas dobras. A velha senhora estava tirando uma nota. Turner chamou-a e pediu mais água; a senhora saiu do salão para ir buscá-la.
- Sabe que chave é esta?
Desajeitadamente, Turner tirou a chave do envelope pardo oficial e colocou-a sobre a toalha da mesa, à frente dela. Hazel pegou a chave e a manteve cuidadosamente na palma da mão.
- Onde você a conseguiu?
- Köònigswinter. Em um terno azul.
- O terno que ele usou na quinta-feira - comentou Hazel, examinando a chave.
- É a chave que você deu a ele, não é? - disse Turner, com ostensiva reprovação. - A chave de sua casa?
- Talvez seja a única coisa que eu não lhe daria - disse ela por fim. - Era a única coisa que eu não faria por ele.
- Prossiga.
- Creio ser isso o que Leo queria de Pargiter. Aquela cadela da Mary Crabbe me contou que ele tivera um caso com ela.
Hazel olhou para baixo, para a esplanada, para o Opel estacionado nas sombras entre as luzes; em seguida para a outra margem do rio, para os lados de Leo.
- Ele disse que e embaixada tinha alguma coisa que lhe pertencia. Alguma coisa desde muito tempo. "Eles me devem, Hazel." Mas não disse o que era. Recordações, dizia ele. Relacionado com alguma coisa do passado, e eu poderia dar-lhe a chave de modo que pudesse recuperá-la. Eu disse a Leo. "Fale com eles. Fale com Rawley, ele é humano." Leo disse que não, que Rawley seria a última pessoa na terra com quem falaria. Não era nada de valor. Mas estava trancada e nem eles sabiam que a tinham. Você vai interromper. Não. Escute. Estou contando a você mais do que você merece.
Hazel bebeu um pouco do uísque.
- Na terceira vez. . . em nossa casa. Estava deitado na cama e começou a falar sobre o assunto: "Nada de mal", disse Leo, "nada político, mas uma coisa que lhe deviam." Se ele desse plantão, não tinha problema, mas não lhe era permitida uma tal função, sendo o que era. Havia uma chave, nunca dariam por sua falta, ninguém sabia mesmo quantas chaves eram. Uma chave que ele precisava ter. - Interrompeu o que estava dizendo. Rawley o fascinava. Adorava seu quarto de vestir. Todos os paramentos de um cavalheiro. Adorava ficar vendo. Por vezes, era isso o que eu era para ele: a mulher de Rawley. As abotoaduras, Edward Leer. . . Gostava de saber todos os detalhes de bastidores, coisas como quem limpava seus sapatos, onde mandava fazer suas roupas. Fingiu lembrar-se daquilo sobre o que faláramos a noite toda. "Hazel, escute aqui. Você podia me conseguir a chave. Uma noite em que Rawley estivesse trabalhando até tarde, não podia? Você o chamava, dizia que tinha esquecido alguma coisa na sala de reuniões. É uma chave diferente", disse ele. "Não é como as outras. Muito fácil de ser reconhecida, Hazel." Essa aí - declarou Hazel devolvendo a Turner a chave. - "Você é vivo", eu lhe falei. "Você arranjaria um jeito."
- Isso foi antes do Natal?
-Sim.
- Que idiota eu sou! - murmurou Turner. - Jesus Cristo!
- Por quê? O que há?
- Nada. - Os olhos de Turner brilhavam de satisfação. - Por um momento, cheguei a esquecer que ele era um ladrão. Isto é tudo. Pensei que ele tivesse tirado uma cópia daquela chave, mas ela foi roubada. Claro que sim!
- Leo não é um ladrão. É um homem. Dez vezes mais homem do que você.
- Claro, claro. Vocês dois são os maiores. Já ouvi toda essa história, acredite-me. Vocês viviam na parte não revelada da vida, não é mesmo? Vocês eram os artistas, e Rawley o pobre técnico. Vocês tinham alma, os dois, ouviam vozes; Rawley ficava com as sobras somente porque a amava. E durante todo o tempo pensei que eles estivessem fofocando a respeito de Jenny Pargiter. Cristo Todo-Poderoso! Pobre sujeito - disse Turner, olhando pela janela. - Pobre filho da mãe. Jamais gostei de Rawley, não há nenhuma dúvida quanto a isso; mas, Cristo, ele conta com toda minha simpatia.
Deixando algum dinheiro sobre a mesa, Turner acompanhou Hazel Bradfield, descendo os degraus de pedra. Ela estava assustada.
- Leo nunca mencionou Margaret Aickman para você, suponho? Ia casar-se com ela, você sabe. Foi a única mulher a quem jamais amou.
- Leo nunca amou ninguém senão a mim.
- Mas Leo a mencionou? Para outras pessoas ele o fez, sabe. Para todo mundo, exceto para você. Ela era seu grande amor.
- Não acredito nisso. Nunca acreditarei!
Turner abriu o carro para ela entrar, permanecendo do lado de fora, inclinado junto à porta.
- Você tem certeza, não? Você acertou em cheio. Ele a amava. Todo mundo pode imergir em uma guerra, contanto que você tenha seu amiguinho!
- Sim. Acertei em cheio. Leo era sincero comigo. Eu o fiz sincero. O que quer que esteja fazendo agora, ele é sincero. Foi o nosso tempo e não será você quem vai destruí-lo. Nem você nem ninguém. Ele me encontrou.
- O que mais Leo encontrou?
Miraculosamente, o motor do cano pegou.
- Encontrou a mim, e o que quer que seja que ele tenha encontrado por lá, era a outra parte para continuar vivo.
-Lá? Lá onde? Para onde ele foi? Diga-me! Você sabe! O que foi que Leo lhe disse?
Hazel Bradfield pôs o carro em marcha, sem olhar para trás, vagarosamente, até a esplanada e mergulhou na noite e nas pequenas luzinhas.
O Opel se movimentou, preparando-se para segui-la. Turner deixou que ele passasse, atravessou correndo a estrada e saltou num táxi.
O estacionamento da embaixada estava lotado, e a guarda tinha sido dobrada no portão. Mais uma vez o Rolls-Royce do embaixador esperava junto à entrada, como um velho navio para levá-lo para dentro do temporal. Enquanto subia correndo as escadas, o capote de chuva voando atrás dele, Turner tinha a chave pronta em sua mão.
Capítulo 15
O glorioso buraco
Dois mensageiros da Rainha estavam postados junto à mesa; suas bolsas negras de couro pareciam equipamento de pára-quedistas sobre seus uniformes regulamentares.
- Quem é o funcionário de plantão? - quis saber Turner.
- Pensei que você tivesse ido embora - estranhou Gaunt. - Ontem às sete horas era. . .
Houve um estalar de couro, quando os mensageiros, rapidamente, deram passagem a Turner.
- Quero às chaves.
Gaunt viu os cortes no rosto de Turner e esbugalhou os olhos.
- Chame o funcionário de plantão. - Turner pegou o fone e o estendeu a Gaunt por cima da mesa. - Diga-lhe para vir até aqui com as chaves. Imediatamente!
Gaunt protestou. O saguão estremeceu um pouco e parou. Turner ouviu seu tolo sotaque galés, meio reclamando, meio bajulando, mas o agarrou firmemente pelo braço e o arrastou para o corredor escuro.
- Se não fizer o que estou dizendo, vou conseguir que o transfiram para os infernos pelo resto de sua vida.
- As chaves não foram levadas, eu lhe garanto.
- Então onde estão?
- Estão aqui comigo. No cofre. Mas você não pode retirá-las, sabe disso, a não ser com autorização!
- Eu não quero as chaves. Quero que você as conte e isso é tudo. Conte as malditas chaves!
Os mensageiros, ostensivamente discretos, conversavam em voz baixa, um com o outro, mas a voz de Turner os atravessou como uma espada.
- Quantas chaves deve haver lá?
- Quarenta e sete.
Chamando o mais novo dos guardas, Gaunt destrancou o cofre, que era embutido no balcão e dele retirou o familiar molho de chaves de bronze. Vencido pela curiosidade, os dois mensageiros olhavam, enquanto os dedos quadrados, de mineiro, iam separando cada chave como as contas de um ábaco. Contou-as uma vez, tornou a contá-las uma segunda vez e as passou para o rapaz para que também as contasse.
-Bem?
- Quarenta e seis - respondeu Gaunt, de má vontade. - Não há dúvida.
- Quarenta e seis - ecoou o rapaz. - Está faltando uma.
- Quando foram contadas pela última vez?
- É muito difícil dizer - murmurou Gaunt. - Vem entrando e saindo há semanas.
Turner apontou para a grade nova e brilhante que barrava a escada para o porão.
- Como vou lá embaixo?
- Já lhe disse. Bradfield é quem tem a chave. É uma porta de emergência. Os guardas não estão autorizados.
- E como então o pessoal da limpeza vai até lá? E o encarregado da caldeira?
- A sala da caldeira tem um acesso separado, agora, desde Bremen, sabe. Também puseram grades lá. O pessoal da limpeza pode usar as escadas do lado de fora, mas não podem ir mais longe do que o homem da caldeira, por uma questão de prevenção. - Gaunt estava assustadíssimo.
- Há uma saída de incêndio. . . um elevador de serviço.
- Só a escada lá de trás, mas também está fechada, sabe. Trancada.
- E as chaves?
- Com Bradfield. O mesmo com relação ao elevador.
- De onde a escada parte?
- Do andar lá de cima.
- Perto da sala de Leo?
- E o que tem isso?
- Perto da sala dele, ou não?
- Perto.
- Vamos lá!
Gaunt olhou para baixo, olhou para o rapaz, olhou para Turner e novamente para o rapaz. Relutantemente, colocou as chaves na mão do rapaz e, sem uma palavra qualquer para os mensageiros, subiu rapidamente as escadas à frente de Turner.
Parecia dia claro. Todas as luzes estavam ligadas, as portas abertas. Secretárias, auxiliares de escritório e diplomatas, movimentando-se apressadamente pelos corredores, ignoravam-nos. Só se falava em Bruxelas. O nome da cidade passava de boca em boca, como se fosse uma senha, falado em todas as línguas, escrito em todas as máquinas; aparecia na cera branca dos estênceis e zunia em todos os telefones. Subiram mais um lance de degraus para um pequeno corredor com cheiro de piscina. Uma rajada de ar fresco chegou até eles, vindo do lado esquerdo. Na porta, à frente, lia-se "Guarda Particular da Chancelaria" e, logo abaixo, "Sr. e Sra. J. Gaunt, Embaixada britânica, Bonn."
- Era aqui que ele vinha encontrar-se com você? Nas tardes de sextas-feiras, depois do coro? Leo vinha aqui?
Gaunt concordou com a cabeça.
- O que acontecia quando ele ia embora? Você o acompanhava?
- Não me deixava. "Você fica aqui, meu rapaz, e vigie seu telefone, que eu vou cair fora."
- E ali está a porta da escada de trás, não é? - Turner estava apontando para sua esquerda, de onde vinha a rajada de ar fresco.
- Está trancada, porém, sabe. Não é aberta há anos.
- É o único meio de entrar?
- Vai dar diretamente no portão. Iam instalar um deslizador para o lixo, mas o dinheiro acabou e puseram mesmo escadas.
A porta era sólida e sem relevos, trancada com dois robustos cadeados que não eram abertos há muito tempo. Usando a lanterna-lapiseira para iluminar, Turner passou delicadamente os dedos nas bordas laterais da porta, e em seguida empunhou firmemente a maçaneta.
- Venha cá. Você é do tamanho dele. Pegue na maçaneta. Não a gire. Empurre, empurre com força.
A porta cedeu sem ruído.
De repente o ar ficou frio e cheirando a mofo; ar americano, quando falham os condicionadores. Estavam em um estreito patamar. As escadas sob eles eram muito íngremes. Uma janelinha dava para o campo da Cruz Vermelha. Diretamente abaixo, o capuz da chaminé da cantina soltava na escuridão jorros de fumaça brilhante. O reboco estava-se descascando em grandes bolhas. Ouviram o pingar de água. No lado oposto do umbral da porta, a madeira tinha sido cuidadosamente serrada. À fraca luz da lanterna, iniciaram a descida. Os degraus eram de pedra. Uma estreita passadeira de palha de coqueiro corria pelo centro. "O Clube da Embaixada é por aqui", dizia um cartaz muito velho. "Todos são bem-vindos." Ouviram o barulho de uma chaleira fervendo e a voz de uma moça relendo uma passagem de um relatório ditado: "Conquanto as declarações do Governo Federal dêem as razões da retirada como de ordem puramente técnica, mesmo os mais sóbrios comentaristas. .." Instintivamente ambos pararam, com o coração batendo forte, ouvindo as palavras nitidamente proferidas no poço da escada.
- É a ventilação - sussurrou Gaunt. - Está vindo através do poço, sabe.
- Cale a boca.
Ouviram a voz de De Lisle corrigindo-a languidamente.
- Moderados - disse De Lisle. -Moderados soa muito melhor. Troque sóbrios por moderados, está bem, minha querida? Não quero que eles pensem que andamos afogando nossas preocupações em álcool.
A moça riu.
Deviam ter chegado ao andar térreo, pois uma passagem de tijolos se erguia à frente e fragmentos de reboco úmido estavam espalhados pelo linóleo. Um quadro de avisos improvisado anunciava eventos já passados: os Artistas da Embaixada vão fazer uma representação natalina de O Inspetor Geral, de Gogol. Uma grande festa para as crianças da Commonwealth seria realizada na residência; nomes e detalhes de quaisquer exigências dietéticas especiais deviam ser apresentados ao escritório particular no dia10 de dezembro. O ano era 1954 e a assinatura de Harting.
Por um momento, Turner lutou com seu senso de tempo e lugar, e quase perdeu. Tornou a ouvir as barcaças e o tinir dos copos, a queda da fuligem e o estalar do cordame. O mesmo latejar, o mesmo pulsar interno além do registro do som.
- O que foi que você disse? - indagou Gaunt.
- Nada.
Tonto e confuso, Turner foi na frente até a passagem mais próxima, sua cabeça latejando terrivelmente.
- Você não está bem - observou Gaunt. - Quem lhe fez isso?
Encontravam-se em um outro compartimento desocupado, a não ser por um velho torno, a limalha enferrujando em sua base. Havia uma porta na parede oposta. Turner abriu-a e, por um momento, sua serenidade desapareceu, enquanto recuava com um pequeno grito de desgosto, pois ali somente estavam as barras da nova grade que ia do teto até o chão, somente os macacões úmidos pendentes das cordas e a umidade vertendo no concreto. Havia um fedor de roupa suja e de óleo meio queimado; o fogo lançava um clarão trêmulo nos tijolos; luzinhas dançavam sobre o aço novo. Nada apocalíptico, pensou consigo mesmo, enquanto cautelosamente se deslocava pelo corredor na direção da porta seguinte, como um trem noturno em época de guerra; um compartimento apinhado e todos nós dormindo.
Era uma porta de aço, ao mesmo nível do reboco, uma porta de interceptação abaixo da linha-dágua, enferrujada em sua esquadria e com a inscrição "Afaste-se", pintada havia muito tempo com tinta do governo, já descascada. A parede à esquerda tinha sido pintada de branco em alguma época, e Turner podia perceber as arranhaduras por onde o carrinho passara. A luz acima dele era velada por uma proteção de arame e lançava dedos escuros em seu rosto. Turner tinha que lutar incessantemente contra a inconsciência. As antigas tubulações para água, que corriam ao longo do teto, produziam ruídos de descarga e gorgulejavam em seus suportes; a fornalha do outro lado da grade de ferro lançava centelhas que produziam pequenas sombras, acendendo-se e apagando. Cristo, pensou ele, há energia suficiente para o Queen Elizabeth, e para marcar com ferro quente um exército de prisioneiros; é um desperdício em uma solitária fábrica de sonhos.
Teve que lutar com a chave; foi preciso sacudir muito antes que o trinco cedesse. De repente, o trinco se abriu como um bastão se quebrando e ouviram o ruído se distanciar e ressoar em peças longínquas. Que eu me agüente; Ó, meu Deus, que eu me agüente por aqui, pensou ele. Não mude minha natureza nem minha vida; não mude o lugar nem a pista que estou seguindo. . . Devia haver alguma caliça embaixo da porta, que guinchou e em seguida emperrou. Turner teve que empregar toda sua força, sua força contra a água, enquanto Gaunt, o Galés, ficava atrás, olhando ansioso, mas sem ousar tocar. No começo, buscando o interruptor, via apenas a escuridão; em seguida, uma única janela, coberta por teias de aranha, apareceu à sua frente melancolicamente, assustando-o, pois odiava prisões. Situava-se no alto da parede, arqueada como um forno para tijolos e gradeada por medida de segurança. Através da vidraça superior, Turner enxergou o cascalho úmido do estacionamento. Enquanto ali se mantinha, observando e tremendo, o facho de um refletor correu lentamente pelo teto, o refletor de uma prisão em busca de fugitivos, e toda a catacumba se encheu com o trovejar de um motor de partida de automóvel. Havia um cobertor do Exército no peitoril da janela e Turner pensou: você se lembrou de vedar aquela janela; você se lembrou dos vigias de Londres.
Sua mão encontrara o interruptor de luz; era curvo como um seio de mulher, e, depois de o pressionar, ele golpeou com força o próprio corpo, e a poeira se desprendeu ansiosamente em sua direção, subindo do concreto escuro.
- Chamam a isso o Glorioso Buraco - sussurrou Gaunt.
O carrinho se encontrava em um compartimento ao lado da mesa. Pastas em cima, material de expediente embaixo, de variados tamanhos, organizadamente, arrumados, com envelopes grandes e padronizados correspondentes, tudo pronto e à mão. No centro da mesa, perto da lâmpada de leitura, quadrada em sua base de feltro e coberta com uma capa de plástico, a máquina de escrever desaparecida; de carro longo, junto dela três ou quatro latas de charutos holandeses. Em uma outra mesa, uma garrafa térmica e uma quantidade de copos da Naafi; o aparelho para fazer chá, com relógio; no assoalho um ventilador elétrico pequeno em dois tons de plástico, colocado adequadamente sobre a mesa a fim de dispersar os inconvenientes efeitos da umidade; na cadeira nova, com assento de rexine, uma almofada cor-de-rosa, bordada pela Srta. Aickman. Tudo isso, Turner percebeu de relance, embotadamente, cumprimentando tudo laconicamente como se cumprimenta os velhos amigos, ao mesmo tempo que olhava além deles, para o grande arquivo encostado às paredes, do chão até o teto; para as pastas negras e finas, todas com uma parte metálica enferrujada e com o buraco redondo para enfiar-se o polegar, algumas conservando o viço original, outras manchadas pela umidade, coluna após coluna em seus uniformes negros, veteranos treinados e prontos para ser convocados.
Turner deve ter perguntado o que eram elas, pois Gaunt estava resmungando alguma coisa. Não, Gaunt não tinha idéia do que fossem. Não. Aquela área não era sua. Não. Elas se encontravam ali há mais tempo do que qualquer um pudesse lembrar-se. Nada obstante, havia quem dissesse tratar-se de arquivos do departamento jurídico, era o que diziam os palpiteiros, que também diziam que as pastas vinham de Minden em caminhões, e apenas eram mantidas ali, já havia uns 20 anos, quando cessou a Ocupação. Isso era tudo, realmente, que ele podia dizer; era tudo o que tinha ouvido dos palpiteiros, e apenas por casualidade, pois não gostava de mexericos, e aí estava uma coisa que não podiam dizer a seu respeito. Oh, há mais de 20 anos. . . os caminhões haviam chegado numa noite de verão... Macmullen e um outro tinham passado metade da noite ajudando a descarregar. . . Claro que naqueles dias esperava-se que a embaixada pudesse precisar deles. .. Não, ninguém tinha acesso, não atualmente, ninguém realmente precisava deles; quem iria precisar? Há muito tempo, um funcionário da chancelaria tinha pedido a chave para procurar alguma coisa, mas isso fora há muito tempo, Gaunt não podia lembrar-se com precisão, e ninguém, havia anos, tinha descido até aqui, ainda que, é claro, Gaunt não tivesse certeza. . . Durante algum tempo a chave deve ter sido conservada em separado, mas depois a puseram no molho do funcionário de plantão. . . Mais recentemente, porém, Gaunt não se lembrava bem quando, tinha ouvido uma conversa a respeito; Marcus, um dos motoristas, já tinha ido embora, dizendo que não se tratava de arquivos do departamento jurídico, absolutamente, mas arquivos do Grupo, um contingente especializado britânico. .. Sua voz se amaciou, urgente e conspiratória, como a de uma velha na igreja. Turner não estava mais ouvindo. Tinha visto o mapa.
Um mapa liso, editado na Polônia.
Estava acima da mesa, pregado recentemente no reboco úmido, à altura em que alguns poriam os retratos dos filhos. Não estavam assinaladas as principais cidades, nem as fronteiras dos países; não tinha escala, nem setas bonitas indicando as variações magnéticas: somente os locais onde tinha havido campos. Neuengamme e Belsen, ao norte; Dachau, Mauthausen, ao sul; Treblinka, Sobidor, Majdanek, Belzec e Auschwitz, a leste; e Ravensbruck, Sachsenhausen, Kulmhof e Gross Rosen, no centro.
"Eles me devem", ocorreu a Turner de súbito. "Eles me devem." Deus do Céu, que tolo, que idiota completo, que desastrado tenho sido. Leo, seu ladrão, você veio até aqui para pilhar sua própria infância.
- Pode ir. Se precisar, eu o chamo. - Turner olhava para Gaunt sem o ver, sua mão direita apoiada em uma prateleira. - Não diga a ninguém. Bradfield, De Lisle, Crabbe. .. ninguém, está entendendo?
- Não vou falar nada - disse Gaunt.
- Não estou aqui. Eu não existo. Não estive aqui esta noite. Está entendendo?
- Você devia procurar um médico.
- Vá se foder.
Puxando a cadeira para trás, jogou a almofada no chão e se sentou à mesa. Apoiando o queixo na mão, esperou que a peça se imobilizasse. Estava sozinho. Estava sozinho como Harting, contrabandeando, vivendo como Harting de tempo emprestado; atrás, como Harting, de uma verdade perdida. Havia uma torneira ao lado da janela e Turner encheu de água a máquina para fazer chá e ficou remexendo nos botões até que ela começasse a funcionar. Ao voltar para a mesa, quase caiu por cima de uma caixa verde. Era do tamanho de uma pasta fina, mas dura e retangular, feita com o tipo de pano-couro usado para os conjuntos de bridge e coldres de armas de fogo. Tinha as iniciais da Rainha logo abaixo da alça e os cantos eram reforçados com tiras finas de aço. Isso é o que todos nós estamos fazendo, não é? Procurando alguma coisa que não existe?
Turner estava sozinho, tendo por companhia apenas os arquivos e o cheiro de umidade quente da lareira elétrica, e a brisa calma do ventilador de plástico e o murmúrio do aparelho de chá. Lentamente, pôs-se a virar as páginas. Algumas das pastas eram antigas, retiradas das prateleiras, metade em inglês e metade em uma caligrafia gótica cruel, eivada de pontas como arame farpado. Os nomes estavam lançados como atletas, sobrenomes em primeiro lugar, nomes de batismo em seguida, com algumas linhas em cima e uma apressada assinatura embaixo, autorizando sua destinação final. As pastas no carrinho eram novas, o papel de qualidade e macio, as minutas assinadas por nomes familiares. Algumas delas eram apenas pastas de dobrar, registros de correspondência despachada e correspondência recebida, com títulos sublinhados e margens feitas à régua.
Ele se encontrava sozinho, no começo da jornada de Harting, tendo apenas sua pista por companhia, e o soturno gorgolejar das tubulações de água no corredor lá fora, como o arrastar de tamancos sobre uma plataforma de madeira. Elas são como os cavalos?, indagava a voz de Hazel Bradfield, dormem de pé! Ele estava sozinho. E o que quer que seja que ele tenha encontrado por lá, era a outra parte para continuar vivo.
Meadowes estava dormindo. Ele nem por um momento teria admitido o fato; e Cork, por caridade, nem por um momento o teria acusado disso; e é verdade que, tecnicamente, como os cavalos de Hazel Bradfield, seus olhos estavam abertos. Ele estava reclinado em sua cadeira estofada da biblioteca em uma atitude de aposentadoria bem merecida, enquanto os ruídos da madrugada flutuavam através da janela aberta.
- Estou passando o serviço para Bill Sutcliffe - disse Cork, em voz alta e deliberadamente descuidada. - Há alguma coisa que você queria antes que eu vá embora? Podemos preparar uma xícara de chá se você quiser.
- Está bem - concordou Meadowes inaudivelmente, ficando ereto com um impulso. - Estarei bem daqui a um minuto.
Cork, olhando através da janela aberta para o carro estacionado lá embaixo, deu-lhe tempo para se recompor.
- Estamos preparando uma xícara de chá, se você quiser - repetiu Cork. - Valerie já pôs a chaleira para ferver. - Cork, tinha na mão uma pasta com telegramas. - Desde Bremen não houve uma noite igual a esta. Conversa, é o que tudo isso é. Palavras. Às quatro da manhã já se esqueceram até da segurança. O Sr. Embaixador e o Secretário de Estado americano estão falando diretamente na linha livre. Fantástico. Ao diabo tudo eu diria: códigos, cifras, toda a maldita orquestra.
- Já foi tudo para o diabo - replicou Meadowes, mais para si próprio do que para Cork, e veio juntar-se a ele perto da janela.
Madrugada alguma jamais é completamente agourenta. A terra é muito sua senhora; os gritos, as cores, os perfumes, demasiado confiantes para manterem nossas melancólicas previsões. Mesmo a guarda do portão da frente, dobrada desde a tarde, tinha um aspecto doméstico e descansado. A luz da manhã, brilhando em seus capotões de couro, era suave e estranhamente inofensiva; suas passadas, enquanto rodeavam o perímetro da embaixada eram compassadas. Cork se deixou levar para o otimismo.
- Acho que hoje vai ser o dia - disse Cork. - Na hora do almoço já serei pai. O que acha disso, Arthur?
- Eles nunca andam assim com tanta rapidez - observou Meadowes. - Pelo menos os primeiros. - Continuaram a contar os carros.
- Casa cheia, quase como nunca - comentou Cork. E era verdade. O Jaguar branco de Bradfield, o carro esporte vermelho de De Lisle, o pequeno Wolseley de Jenny Pargiter, o carro de freios rápidos de Gaveston, com a cadeirinha de bebê montada no banco dos passageiros, o atapetado Two Thousand de Jackson, até mesmo o arrebentado Kapitãn de Crabbe, duas vezes pessoalmente posto para fora do estacionamento pelo embaixador, tinha voltado às funções durante a crise, suas laterais abertas para fora como garras.
- O Rover parece bem - disse Cork. Em reverente silêncio, admiraram devidamente suas notáveis linhas destacando-se de encontro à cerca do outro lado da cantina. Mais à mão, o Rolls cinzento permanecia em sua vaga própria, guardado por um cabo de Exército.
- Ele o viu? - quis saber Meadowes.
- Com certeza. - Cork molhou a ponta do dedo, selecionou os telegramas mais importantes da pasta que trazia embaixo do braço e começou a ler em voz alta, em voz de falsete e com entonação melosa, um relato do embaixador sobre seu diálogo com o Chanceler Federal.. . - "Eu repliquei que como Ministro do Exterior o senhor tinha uma confiança implícita nos vários empreendimentos já entregues às suas mãos pessoalmente pelo Chanceler e que o senhor confiava inteiramente em que o Chanceler nem por um momento consideraria ceder à pressão de minorias. Lembrei-lhe também da atitude francesa com relação à reunificação da Alemanha, descrevendo-a não apenas como errônea mas também completamente antiamericana, antieuropéia, mas acima de tudo antigermânica. . .
- Ouça - interrompeu Meadowes de repente. - Cale a boca e ouça.
- O quê. ..
- Cale a boca.
Da extremidade distante do corredor podiam perceber um barulho constante, como um carrinho que viesse subindo uma elevação.
- Não pode ser - disse Cork, sucintamente. - Bradfield tem as chaves e ele... - Ouviram o ruído do portão e o ranger de um freio hidráulico.
- São as camas! É isso aí. Mais camas. Foram buscar mais camas; Bradfield abriu para eles.
- Domingo, isto por aqui estará uma verdadeira Arca de Noé, vou lhe contar. Meninos, meninas, até mesmo o maldito pessoal alemão: uma Babilônia, é o que vamos ter. Sodoma e Gomorra, melhor ainda. Escute aqui, o que irá acontecer se ele chegar durante uma demonstração? Azar o meu, não é mesmo? Meu primeiro filho: o bebê Cork nascido em cativeiro!
- Adiante. Vamos ouvir o resto.
- "O Chanceler Federal anotou a ansiedade britânica, que considerou mal colocada, e me garantiu que consultaria seus ministros a fim de ver o que poderia ser feito para restaurar a calma. Sugeri que uma declaração política seria muito oportuna; o Chanceler, por outro lado, julga que a repetição produz enfraquecimento. Neste ponto, pediu que lhe transmitisse seus melhores cumprimentos como Ministro de Estado, tornando-se claro que dava a entrevista como encerrada. Perguntei-lhe se estava pretendendo reservar novas acomodações em Bruxelas, como um meio de pôr um fim a especulações mal informadas, dado que o senhor estava pessoalmente aborrecido por notícias que diziam que os representantes alemães já haviam pago suas contas e cancelado suas reservas. O Chanceler respondeu estar certo de que alguma coisa desse tipo seria feita."
- Zero - falou Meadowes, distraidamente.
- "O Chanceler perguntou pela saúde da Rainha. Ouvira dizer que ela tivera uma ameaça de gripe. Respondi que me parecia que o pior tinha passado, mas que procuraria me informar e lhe dana conhecimento. O Chanceler disse esperar que Sua Majestade se cuidasse; esta época do ano é muito difícil. Repliquei que todos nós esperávamos sinceramente que a temperatura segunda-feira estivesse mais calma e ele achou graça. Despedimo-nos em bons termos." Ha, ha, ha. Eles tiveram também uma conversinha a respeito da demonstração de hoje. O Chanceler afirmou que não devíamos nos preocupar. Em Londres, estão enviando cópias para o Palácio. "A reunião" - acrescentou Cork com um bocejo - "terminou com a costumeira troca de cumprimentos às 22 horas. Um comunicado conjunto foi distribuído à imprensa." Enquanto isso, a economia está subindo pelas paredes e comercial está prevendo a valorização da libra. Ou do ouro ou qualquer coisa assim. Ou talvez seja uma baixa. Quem está ligando?
- Você devia assistir ao exame - disse Meadowes. - Você pode ser necessário por lá.
- Torço por gêmeos - declarou Cork. Valerie entrou com o chá. Meadowes já tinha levado o caneco à boca, quando escutou o barulho do carrinho e o familiar ranger das lamurientas rodas. Com um baque, Valerie baixou a bandeja, e um pouco do chá respingou do bule para dentro do açucareiro. Ela estava com uma suéter verde, e Cork, que gostava de olhar para a moça, observou, quando Valerie se voltou para encaminhar-se para a porta, que a gola redonda tinha provocado uma ligeira irritação na parte lateral do pescoço dela. O próprio Cork, mais rápido do que os demais, entregou a pasta para Meadowes, foi até a porta e olhou o corredor. Era o seu próprio carrinho, carregado até em cima com pastas vermelhas e pretas, sendo empurrado por Alan Turner. Este usava uma camisa de mangas curtas e havia hematomas sob ambos os olhos. Um dos lábios apresentava um corte que fora suturado sumariamente. A barba estava por fazer. A caixa de despachos aparecia por cima da pilha. Cork diria mais tarde que era como se Turner tivesse atravessado sozinho linhas inimigas empurrando o carrinho. À medida que Turner avançava pelo corredor, portas se abriam uma após outra em sua esteira: Edna, do centro de datilografia, Crabbe, Pargiter, De Lisle, Gaveston: uma a uma suas cabeças foram aparecendo, logo seguidas por seus corpos, de modo que, quando Turner alcançou o arquivo, levantou a tampa do baleio de aço e empurrou o carrinho descuidadamente até o centro da sala, a única porta que permanecia fechada era a de Rawley Bradfield, o chefe da chancelaria.
- Deixem isso aí. Nenhum de vocês toque nisso.
Turner atravessou o corredor e, sem bater, foi diretamente até onde se encontrava Bradfield.
Capítulo 16
Tudo uma farsa
Pensei que você tivesse ido embora. - O tom de voz de Bradfield era mais de cansaço do que de surpresa.
- Perdi o avião. Ela não lhe disse?
- Que diabo aconteceu com sua cara?
- Siebkron mandou seus rapazes revistarem meu quarto. Procurando novidades a respeito de Harting. Eu os interrompi. - Sentou-se. - Eles são anglófilos. Como Karfeld.
- O assunto Harting está encerrado! - Deliberadamente, Bradfield pôs de lado alguns telegramas. - Enviei esses telegramas para Londres juntamente com um ofício dando uma avaliação dos danos causados à nossa segurança. Não tenho dúvida de que na ocasião devida será tomada uma decisão sobre ser ou não informados nossos parceiros na OTAN.
- Então pode cancelar sua carta e esquecer os prejuízos.
- Já lhe fiz concessões - explodiu Bradfield, com muita de sua aspereza anterior. - Todos os tipos de concessões. Por sua desagradável profissão, por seu desconhecimento da prática diplomática e por sua rudeza fora do comum. Sua estada por aqui não nos trouxe coisa alguma, a não ser problemas; você parece determinado em ser impopular. Que diabo significa você ter ficado em Bonn depois de ter-lhe dito que fosse embora? Aparecendo aqui de repente, assim semivestido? Você não tem idéia do que se está passando por aqui? É sexta-feira! O dia da demonstração, se é que você se esqueceu.
Turner não se moveu e a raiva de Bradfield por fim atingiu o melhor do cansaço.
- Lumley me disse que você era grosseiro mas eficiente: até agora tem sido apenas grosseiro. Não estou nem um pouco surpreendido que se tenha deparado com violência: você atrai essas coisas. Eu o avisei sobre os danos que poderia produzir; dei-lhe minhas razões para abandonar as investigações do lado de cá; e passei por cima da desnecessária brutalidade com que você tratou meu pessoal. Mas agora basta. Você está proibido de entrar na embaixada. Vá embora.
- Encontrei as pastas - declarou Turner. - Encontrei todas elas e tudo mais. O carrinho. A máquina de escrever e a cadeira. O aparelho elétrico de calefação com duas grades e o ventilador de De Lisle. - A voz de Turner era desconjuntada e inconvincente e seu olhar parecia projetar-se sobre coisas que não se encontravam na sala. - Xícaras de chá e todo o restante da louça em que ele punha a mão, vez ou outra. Cartas que ele apanhou na sala dos Correios e nunca entregou a Meadowes. Eram endereçadas a Leo, sabe. Eram respostas a cartas enviadas por ele. Tinha lá um verdadeiro departamento; uma seção separada da chancelaria. Só que você nunca soube. Ele descobriu a verdade a respeito de Karfeld, e agora estão atrás dele. - Turner tocou o queixo com a mão, levemente. - As pessoas que me fizeram isso estão atrás de Leo. Ele está fugindo porque ficou sabendo de muita coisa e fez demasiadas perguntas. Por tudo o que sei, ainda não o pegaram. Desculpe que eu seja um chato - aduziu, categoricamente. - Mas isso é assim mesmo. Eu gostaria de uma xícara de café, se você não se incomoda.
Bradfield não se moveu.
- E a pasta verde?
- Não está lá. Só sua caixa vazia.
- Ele a levou?
- Não sei. Pode ser que Praschko saiba. Eu não. - Turner sacudiu a cabeça. - Desculpe. - Em seguida, continuou. - Vocês têm que encontrá-lo antes deles. Porque, se não o conseguirem, eles o matarão. É sobre isso que estou falando. Karfeld é uma fraude, um criminoso, e Harting conseguiu provas sobre isso. - Finalmente, Turner levantou a voz. - Fui claro?
Bradfield continuava a encará-lo, atento mas não alarmado.
- Quando Harting esbarrou com ele? - Perguntou Turner como para si mesmo. - No princípio, ele não queria descobrir. Voltou suas costas. Já tinha voltado as costas a muitas coisas, procurando não se lembrar. Procurando não notar. Continuava, como todos nós fazemos, mantendo a disciplina de não se ver envolvido e dando a isso o nome de sacrifício. Tratando do jardim, indo a reuniões festivas. Tocando seus violinos. Sobrevivendo. E não interferindo. Conservando a cabeça baixa e deixando que o mundo passasse por cima dele. Até outubro, quando Karfeld assumiu o poder, Ele conhecia Karfeld, sabe. E Karfeld era devedor dele. Isso era importante para Leo.
- Devia-lhe o quê?
- Espere. Gradualmente, peça por peça, ele começou a. . . se abrir. Permitiu a si mesmo ter sentimentos. Karfeld o estava tantalizando. Nós ambos sabemos o que isso significa, não? Ser tantalizado. A cara de Karfeld estava em toda a parte, como está agora. Sorrindo, franzida, alertando. . . Seu nome continuava zumbindo nos ouvidos de Leo: Karfeld é uma fraude; Karfeld é um criminoso; Karfeld é uma farsa.
- De que você está falando? Não seja completamente ridículo.
- Leo já não gostava dessas coisas, não gostava mais de farsas; ele buscava a verdade. A menopausa do homem: é isso. Sentia-se desgostoso consigo mesmo. . . pelo que deixara de fazer, o pecado da omissão. . . os pecados do cometimento. Sentindo-se mal com seus artifícios e com sua própria rotina. Todos nós temos esses sentimentos, não é mesmo? Bem, Leo os tinha. Em medida plena. Assim, decidiu obter o que lhe era devido: justiça para Karfeld. Sua memória é ótima, sabe. Mas isso não é recomendável nos dias de hoje, pelo que entendo. Assim, armou um plano. Primeiro, trabalhar no arquivo, então renovar seu contrato, depois se apoderar das pastas do arquivo. O levantamento das personalidades. . . as pastas antigas, que eram destinadas à destruição. .. as velhas histórias do Glorioso Buraco. Iria montar o caso novamente, reabrir as investigações. . .
- Não tenho a menor idéia sobre o que está falando. Você está doente; está variando e doente. Sugiro que vá deitar-se. - Bradfield levou a mão ao telefone.
- Em primeiro lugar, ele obteve a chave, o que foi bastante fácil. Largue isso aí! Largue esse telefone! - A mão de Bradfield hesitou e se abateu sobre o mata-borrão. - Depois, começou a trabalhar no Glorioso Buraco, instalou lá o seu pequeno escritório, montou os seus próprios arquivos, conservava minutas, escrevia cartas. . . ele se mexia. Tudo do arquivo que ele precisava, roubava. Era um ladrão. Foi você mesmo quem o disse. Você devia saber. - Por um momento, a voz de Turner se fez delicada e compreensiva. - Quando foi que você mandou vedar o porão? Bremen, não foi? Um fim de semana? Foi aí que ele entrou em pânico. A única vez. Foi quando roubou o carrinho. Estou falando a respeito de Karfeld. Ouça! Sobre sua diplomação, seu serviço militar, seu ferimento em Stalingrado, a fábrica de produtos químicos...
- Todos esses rumores andam por aí há meses. Desde que Karfeld se tornou um sério contestador político, não temos ouvido senão histórias sobre o seu passado e de todas as vezes ele tem conseguido refutá-las satisfatoriamente. Dificilmente existe na Alemanha Ocidental um político destacado a quem os comunistas não tenham difamado uma vez ou outra.
- Leo não é comunista -interveio Turner, profundamente cansado. - Você mesmo foi quem me disse: ele é um primitivo. Durante anos, conservou-se afastado da política com medo daquilo que pudesse ouvir. Não me estou referindo a rumores. Estou-me referindo a fatos: o fato de ter sido criado na Inglaterra. Exclusivo. Está tudo em nossos próprios arquivos britânicos, trancados em nosso próprio porão britânico. Foi lá que ele os desencavou e você não conseguirá enterrá-los de novo. - Em seu tom de voz, não havia nem triunfo nem hostilidade. - A informação se encontra agora no arquivo, se você desejar verificar. Com a caixa vazia. Há coisas que não consegui acompanhar, pois o meu alemão não é muito bom. Dei ordens para que ninguém tocasse naquelas coisas. - Turner sorriu à lembrança, mas poderia ter sido de sua própria situação. - Você quase o atrapalhou como se soubesse o que ele estava fazendo. Leo desceu com o carrinho no fim de semana que colocaram as grades e isolaram o elevador. Leo se sentiu horrorizado, temeroso de que não pudesse continuar; de que não pudesse mais utilizar o Glorioso Buraco. Até então tinha sido uma brincadeira de criança. Tudo o que tinha que fazer era se aboletar no elevador com suas pastas.. . ele podia ir onde quisesse, sabe; o levantamento de personalidades dava-lhe esse direito. . . e seguir diretamente para o porão. Mas você estava pondo um fim em tudo isso, embora sem saber; as grades contra os motins tornaram estranho o seu covil. Assim, ele acomodou no carrinho tudo aquilo de que necessitava e esperou lá todo o fim de semana, até que os operários se retirassem. Foi-lhe preciso arrombar as fechaduras nas portas da escada de trás a fim de sair. Depois disso, confiou em Gaunt, esperando que o convidasse para ir lá no andar de cima. Inocentemente, é claro. Todo o mundo é inocente, em um certo modo de falar. E peço desculpas - acrescentou Turner, delicadamente - peço desculpas pelo que lhe disse. Eu estava errado.
- Esta ocasião não é muito apropriada para desculpas - retorquiu Bradfield e chamou a Srta. Peate para que trouxesse café.
- Vou lhe contar o que aconteceu com os arquivos - disse Turner. - O caso contra Karfeld. Por favor, não me interrompa. Estamos ambos cansados e não dispomos de muito tempo.
Bradfíeld tinha preparado um bloco de papel de rascunho azul sobre o mata-borrão à sua frente; a caneta-tinteiro estava colocada acima do papel. A Srta. Peate, depois de servir o café, retirou-se. Sua expressão, seu olhar de desaprovação, eram mais eloqüentes que quaisquer palavras.
- Vou lhe dizer o que ele conseguiu juntar. Se você quiser, darei os detalhes depois.
- Farei o melhor que puder - falou Bradfield, com um momentâneo sorriso que era como que a lembrança de um homem diferente.
- Há uma vila nas proximidades de Dannemberg, na zona de fronteira. Chama-se Hapstorf. Nela há três homens e um cachorro e está situada em um vale coberto de vegetação. Ou costumava ser assim. Em 1938, alemães instalaram lá uma fábrica. Tratava-se de uma velha fábrica de papel ao lado de um rio de correnteza rápida e com uma casa junto, diretamente em cima de uma rocha. Converteram a fábrica e construíram laboratórios ao longo do rio, transformando o lugar em uma pequena e movimentada estação de pesquisa de certos tipos de gases.
Turner tomou um gole de café e deu uma mordida num biscoito; parecia que para ele era doloroso comer, pois manteve a cabeça pendente para um lado e mastigou cautelosamente.
- Gases venenosos. O local era difícil de ser bombardeado; a correnteza fluía rápida e necessitavam dela para efluente; a vila era pequena e podiam desfazer-se de qualquer pessoa. Está acompanhando?
- Sim. - Bradfield pegara a caneta e anotava os pontos chaves à medida que Turner falava. Este podia perceber os números constantes do lado esquerdo e pensou: que diferença isso faz com relação aos números? Podemos destruir fatos dando-lhes números.
- A população local alega que ignorava o que estava acontecendo por lá, o que provavelmente é verdade. Sabiam que a serraria tinha sido desativada e que uma fábrica muito cara fora instalada. Sabiam que os armazéns na parte de trás eram especialmente guardados e sabiam que não era permitido ao pessoal da fábrica misturar-se com os locais. A mão-de-obra era estrangeira; franceses e poloneses, que não podiam absolutamente sair, de modo que não havia mistura também aos níveis mais baixos. Todo mundo sabia quanto aos animais: Macacos, principalmente, mas também carneiros, bodes e cães. Há um registro de Gauleiter local, recebendo reclamações dos amigos dos animais.
Turner olhou para Bradfield em admiração.
- Leo trabalhou lá, noite após noite, juntando as peças.
- Ele não tinha nada que fazer lá embaixo - disse Bradfield. - O arquivo lá do porão durante muitos anos esteve com seu acesso proibido.
- Ele tinha o que fazer lá embaixo, sem dúvida.
Bradfield tomava anotações em seu bloco.
- Dois meses antes do fim da guerra essa fábrica foi destruída pelos britânicos. Bombardeio de precisão. A explosão foi enorme. O local desapareceu, a vila com ele. Os operários estrangeiros foram mortos. Dizem que o estrondo da explosão se espalhou por quilômetros, tal o seu efeito.
A pena de Bradfield corria sobre o papel.
- Por ocasião do bombardeio, Karfeld estava em sua casa, em Essen; quanto a isso não há qualquer dúvida. Diz ele que estava enterrando sua mãe que havia sido morta durante uma incursão aérea.
-Bem?
- Ele estava em Essen, com certeza. Mas não estava enterrando a mãe. Ela já havia morrido dois anos antes.
- Absurdo! - exclamou Bradfield. - A imprensa teria há muito tempo...
- Há uma cópia fotostática da certidão de óbito original no arquivo - interrompeu Turner, sem se alterar. - Não sei com que se parece a certidão nova. Nem quem a falsificou para ele. Ainda que eu julgue que nós ambos podemos imaginar sem precisar muito esforço de imaginação.
Bradfield encarou Turner com admiração.
- Após a guerra, os britânicos estiveram em Hamburgo e enviaram uma equipe para verificar o que restara em Hapstorf, juntar lembranças e tirar fotografias. Uma equipe comum de informações, nada de especial. Achavam que podiam ser encontrados os cientistas que trabalharam por lá. . . beneficiar-se de seus conhecimentos, está entendendo o que quero dizer? Informaram que nada restou. Mas relataram também alguns rumores. Um operário francês, um dos poucos sobreviventes, tinha uma história com respeito a seres humanos sendo usados como cobaias. Não os próprios operários, mas gente trazida de fora. Tinham usado animais no início, disse ele, porém mais tarde quiseram as coisas ao vivo e, assim, providenciaram algumas remessas especiais. O mesmo operário disse que se encontrava de serviço certa noite, no portão - nessa época confiavam nele - e os alemães o avisaram para voltar para o seu alojamento, ir para a cama e não aparecer até a manhã seguinte. Ele suspeitou de alguma coisa e ficou por ali. Presenciou um fato estranho; um ônibus cinzento, um ônibus comum de cor cinza de um só andar, passar por um portão depois do outro sem ser examinado. O ônibus se dirigiu para trás das instalações, para onde se localizavam os armazéns, e ele não ouviu mais nada. Poucos minutos depois o ônibus saiu, muito mais depressa. Vazio. - Novamente Turner interrompeu seu relato, desta vez para tirar um lenço do bolso e com muito cuidado enxugar as sobrancelhas. - O francês contou também que um amigo seu, um belga, tinha recebido ofertas de vantagens para trabalhar no laboratório novo sob a rocha. Trabalhou lá por uns dias e voltou parecendo um fantasma. Esse belga declarou que não passaria lá mais nenhuma noite, por todos os privilégios do mundo. No dia seguinte, desapareceu. Fora transferido, informaram. Antes de sumir, porém, ele conversara com o seu camarada e mencionara o nome do Dr. Klaus. O Dr. Klaus era o supervisor administrativo, dissera ele; era o homem que cuidava dos detalhes e facilitava as coisas para os cientistas. Era o homem que lhe oferecera aquele trabalho.
- Você chama isso de prova?
- Espere. Espere aí. A equipe fez um relatório sobre o que encontrara, do qual uma das cópias foi para o Grupo de Crimes de Guerra. Esse grupo assumiu a investigação. Eles interrogaram o francês, tomaram um depoimento completo, mas falharam em conseguir provas. Uma velha, que explorava urna loja de flores, tinha uma história com relação a gritos que teria ouvido durante as noites, mas não foi capaz de precisar em que noites, e poderia tratar-se de gritos de animais. Tudo muito fraco.
- Muito fraco mesmo, eu diria.
- Escute aqui - falou Turner. - Nós agora estamos do mesmo lado, não estamos? Não há mais portas a serem abertas.
- Pode haver algumas a serem fechadas - disse Bradfield, pondo-se novamente a escrever. - É isso aí.
- O grupo estava com sobrecarga de trabalho e falta de pessoal, e assim o caso foi encerrado. Suspenso e arquivado. Havia muitos outros grandes casos com que se preocuparem. Ficharam o Dr. Klaus e se esqueceram dele. O francês voltou para a França, a velha esqueceu os gritos que ouvira e isso foi tudo. Até há uns poucos anos.
- Espere aí.
A caneta de Bradfield não corria velozmente. Ele escrevia do mesmo modo que fazia sempre: de forma legível, a fim de facilitar seus auxiliares.
- Então aconteceu um acidente. Do tipo que nós esperaríamos. Um fazendeiro, perto de Hapstorf, comprou um lote de terras devolutas ao conselho local. Era uma terra dura, muito cheia de pedras e coberta de vegetação, mas o homem achou que poderia tirar dela alguma coisa. Na ocasião em que passou a cavá-la e a ará-la, desenterrou 32 corpos de adultos. A polícia alemã deu uma olhada e informou as autoridades de Ocupação. Crimes contra o pessoal aliado eram de responsabilidade da justiça aliada. Os britânicos empreenderam uma investigação e concluíram que 31 dos homens tinham sido gaseados. O trigésimo segundo homem usava a túnica de operário estrangeiro e tinha sido morto com um tiro na nuca. Havia algo mais. . . algo que os revoltou. Os corpos estavam todos remexidos.
- Remexidos?
- Inspecionados. Pesquisados. Autopsiados. Alguém tinham chegado antes por lá. Assim, reabriram o caso. Alguém na cidade se lembrava de que o Dr. Klaus viera de Essen.
Bradfield, agora, estava encarando Turner; pusera a caneta de lado e cruzara as mãos.
- Procuraram todos os químicos com qualificação para conduzir pesquisa de alta qualificação que haviam vivido em Essen e um dos primeiros nomes a surgir foi o de Klaus. Não lhes foi necessário muito tempo para desenterrarem Karfeld. Ele não se doutorara; isso tinha acontecido mais tarde. Mas então eles admitiram que cada um dos membros do pessoal do laboratório estava trabalhando sob um pseudônimo; assim, por que não atribuir-se a si mesmos um título? Essen estava localizada também na Zona britânica, e assim logo o apanharam. Ele negou tudo. Naturalmente. Imagine só: a não ser pelos corpos, pouca coisa havia onde se agarrar. Exceto por uma incidental informação.
Dessa vez Bradfield não interrompeu.
- Você ouviu falar no esquema da eutanásia?
- Hadamar. - Com um aceno de cabeça, Bradfield indicou a janela. Lá adiante, no rio. Hadamar - repetiu.
- Hadamar, Weilmunster, Eichberg, Kalmenhof: clínicas para a eliminação de pessoas indesejadas: quem quer que vivesse da economia sem contribuir para ela. Isso pode ser lido no Glorioso Buraco e também muito coisa no arquivo. Entre as pastas para destruição. A princípio, as pessoas eliminadas eram classificadas por tipo. Você sabe: os deformados, os insanos, crianças de oito a 13 anos de idade com sérias dificuldades. Os que urinavam na cama. Com poucas exceções as vítimas tinham cidadania alemã.
- Davam-lhes o nome de pacientes - interveio Bradfield, com profundo mal-estar.
- Parece que, então, certos pacientes selecionados eram postos de lado para uso médico. Não só crianças como adultos.
Bradfíeld acenou com a cabeça, como se ele também soubesse disso.
- Na ocasião que o caso Hapstorf veio a lume, americanos e alemães já haviam levantado uma série de coisas sobre esse programa de eutanásia. Entre outras coisas, haviam desenterrado provas de que um carregamento de "trabalhadores híbridos", conduzido em um ônibus, tinha sido posto de lado para "perigosas tarefas na Estação de Pesquisa Química de Hapstorf. A lotação de um ônibus é de 31 pessoas. Eles usavam ônibus cinzentos, por falar nisso, se é que de alguma coisa você está-se lembrando.
- Hanover - disse Bradfield, imediatamente. - O transporte para o pessoal da guarda.
- Karfeld é um administrador. Todo mundo o admira por isso. Então como hoje. É agradável saber-se que ele não perdeu seu antigo toque, não é? O seu cérebro é um desses que se desenvolvem em ranhuras.
- Pare de comentários. Quero saber de tudo, rapidamente.
- Ônibus cinzentos, então. Trinta e um lugares e assentos para os guardas. As janelas estavam pintadas de preto por dentro. Sempre que possível eles se movimentavam durante a noite.
- Mas você falou em 32 corpos e não em 31...
- Havia o operário belga, não havia? O que trabalhou sob a rocha e conversou com o operário francês de confiança? Sabiam muito bem o que fazer com ele, que ficara sabendo demais, não é mesmo? Como Leo agora.
- Olhe aqui - disse Bradfield, levantando-se e trazendo o café para perto. - É melhor que você tome mais um pouco de café.
Turner esticou sua xícara, com a mão razoavelmente firme.
- Assim, quando pegaram Karfeld, levaram-no até Hamburgo e o confrontaram com os corpos e as provas de que dispunham, e ele se limitou a rir. Uma idiotice absurda, teria dito, toda a história. Nunca em sua vida esteve em Hapstorf. Ele era um engenheiro. Um homem de demolições. Fez um relato muito detalhado a respeito de seu trabalho na frente russa. .. chegaram mesmo a agraciá-lo com medalhas de campanha e sabe Deus o que mais. Creio que fizeram isso por ele na SS e ele fez uma grande descrição sobre Stalingrado. Havia discrepâncias, mas não muitas, e ele confirmou tudo durante o tempo todo nos interrogatórios e negou jamais ter posto os pés em Hapstorf ou ter qualquer conhecimento da fábrica. Durante meses a fio. "OK", ele se mantinha dizendo, "se vocês têm provas, abram um processo. Levem-no ao tribunal. Não estou preocupado; sou um herói. Nunca administrei nada em minha vida, a não ser a fábrica de minha família em Essen, fábrica que os britânicos reduziram a escombros, não é mesmo? Estive na Rússia e não envenenei híbridos; por que iria fazê-lo? Sou bom amiguinho de todo o mundo. Encontrem uma testemunha viva, encontrem qualquer um." Não conseguiram. Em Hapstorf, os químicos haviam vivido em completa segregação e provavelmente o mesmo acontecera com o pessoal da administração. Os arquivos foram destruídos pelos bombardeios e todos eram conhecidos por seus nomes de batismo ou por apelidos. - Turner deu de ombros. - E isso parecia ser tudo. Karfeld chegou a mencionar uma história a respeito de auxílio à resistência antinazista na Rússia e como as unidades que mencionou ou foram feitas prisioneiras en masse ou dizimadas, também nada conseguiram obter por esse lado. Não parece que essa história da resistência tenha sido repetida desde então.
- Não ajuda mais hoje em dia - disse Bradfield resumidamente. Particularmente em meu meio.
- Assim, o caso jamais chegou aos tribunais. Havia plena razão para isso. As unidades de investigação dos crimes de guerra estavam, elas mesmas, perto de ser desativadas; havia pressão de Londres e de Washington no sentido de ser enterrado o machado e passada toda a responsabilidade para os tribunais alemães. Era o caos. Enquanto as unidades tentavam preparar acusações, seus quartéis-generais estavam preparando anistias. Havia ainda outras razões, razões de ordem técnica para que não houvesse prosseguimento. Os crimes eram principalmente contra os franceses, os belgas e os poloneses, mas como não havia forma de estabelecer a nacionalidade das vítimas, surgiam problemas a respeito de jurisdição. Não os problemas materiais, mas os incidentais, e foram eles que concorreram para a dificuldade de decidir o que fazer. Você sabe como é quando se deseja encontrar dificuldades.
- Eu sei como era então - respondeu Bradfield, calmamente. - Era uma loucura.
- Os franceses não estavam interessados; os poloneses estavam interessados por demais, e já então Karfeld era uma poderosa roda da engrenagem. Era quem estava estabelecendo alguns grandes contratos aliados. Até mesmo subcontratando competidores para fazer face à demanda. Como vê, um grande administrador. Eficiente.
- Você diz isso como se fosse um crime.
- Sua própria fábrica tinha sido destruída por duas vezes, mas agora ele estava explorando um tratado. Realmente parecia uma pena destruí-lo. Havia até alguns rumores - aduziu Turner, sem mudar o tom de voz - de que ele ganhara a concorrência com todos os competidores, porque aparecera com uma encomenda especial de gases raros e a armazenara subterraneamente em Essen, pelo fim da guerra. Era o que ele estava tentando enquanto a RAF bombardeava Hapstorf. Enquanto, supostamente, estava enterrando sua velha mãe. Estava juntando as felpas para forrar seu próprio ninho.
- As provas como você as descreveu até agora - tornou Bradfield, calmamente - não contêm nada que vincule Karfeld a Hapstorf e absolutamente nada que o associe como cúmplice de um plano criminoso. O seu relato em relação a si próprio pode muito bem ser verdadeiro. Que lutou na Rússia, que foi ferido. ..
- Está certo. Foi o que acharam no quartel-general.
- Não há provas de que os corpos tenham saído de Hapstorf. Q gás pode ter sido deles; mas isto não prova terem sido os próprios químicos que o administraram às vítimas, muito menos que era do conhecimento de Karfeld ou que de qualquer modo tenha sido um cúmplice do...
- A casa de Hapstorf dispunha de um porão. O porão não foi afetado pelo bombardeio. As janelas tinham sido fechadas a tijolos e havia tubulações no teto, partidas dos laboratórios acima. As paredes de tijolos do porão estavam dilaceradas.
- O que está querendo dizer com "dilaceradas"?
- À mão - respondeu Turner. - Dedos poderiam ter feito isso.
- De qualquer modo, assumiram a mesma opinião que você. Karfeld manteve a boca fechada, não houve novas provas. Não instauraram o processo. Com razão. O caso foi para as prateleiras. A unidade se deslocou para Bremen, em seguida para Hanover, depois para Moenchengladbach, e os arquivos foram enviados para cá. Juntamente com outras coisas do Departamento Jurídico Geral. Aguardando decisão com respeito a seu destino final.
- E foi essa história que Harting descobriu?
- Leo esteve sempre ligado a isso. Ele foi o sargento encarregado da investigação. Ele e Praschko. O arquivo completo, minutas, memorandos, correspondência, relatórios sobre os interrogatórios, sumários de provas, o caso inteiro do princípio ao fim, chegou agora a um fim, está registrado com a caligrafia de Leo. Leo o prendeu, Leo o interrogou, esteve presente às autópsias, procurou testemunhas. A mulher com quem quase se casou, Margaret Aickman, esteve também na mesma unidade. Uma pesquisadora de arquivos. Davam a eles o nome de caçadores de cabeças: essa foi sua vida. . . Estavam todos ansiosos de que Karfeld fosse adequadamente acusado.
Bradfield permanecia perdido em pensamentos.
- E essa palavra híbrido... - disse ele por fim.
- Era o termo técnico nazista para meio judeu.
-Percebo. Sim, percebo. Então era uma parada sua pessoal, não era? E isso era importante para ele. Assumiu tudo pessoalmente. Vivia para si mesmo; era essa a única coisa que compreendia. - A caneta permanecia imóvel. - Mas dificilmente um assunto para ir a julgamento. De fato, dificilmente podia ser considerado como um caso por quaisquer padrões. Nem a uma análise mais superficial, mais facciosa. Tipo nenhum de processo. Claro que interessante: isso responde pelos sentimentos de Karfíeld com relação aos britânicos. Mas isso não basta para fazer dele um criminoso.
- Não - concordou Turner, com razoável surpresa para Bradfield. - Não. Não é um caso. Mas para Leo isso o amargurava. Ele nunca esqueceu e até onde pôde procurou não trazer à tona. Mas não conseguiu se afastar do assunto. Tinha que certificar-se. Tinha que dar uma outra olhada para ter certeza e, em janeiro deste ano, ele desceu até o Glorioso Buraco e tornou a ler seus próprios relatórios e seus próprios argumentos.
Bradfield continuava sentado e muito atento novamente.
- Talvez fosse sua idade. Em sua maior parte o sentimento de alguma coisa não terminada. - Turner falou como se esse fosse um problema aplicável a seu próprio caso, e para o qual não conseguira solução. - Um senso de história, se você preferir. - Hesitou um pouco. - De tempo. Os paradoxos o empolgaram e ele teve que fazer alguma coisa a respeito. Estava também apaixonado - acrescentou, deixando de olhar pela janela. - Ainda que ele mesmo não o tenha admitido. Usara alguém e conseguira obter mais do que esperava. . . Havia fugido à letargia. É esse o ponto, não é mesmo? O oposto ao amor não é o ódio. É a letargia. O nada. Este lugar. E havia gente por ali que o fazia pensar que ele estava na primeira divisão... - aduziu Turner delicadamente. - Assim, fosse lá por que razões fosse, reabriu o assunto. Releu todos os papéis do começo ao fim. Estudou novamente o fundo do quadro, repassou todos os arquivos contemporâneos, no arquivo e no Glorioso Buraco. Verificou todos os fatos desde o início e começou a fazer investigações por conta própria.
- Que tipo de investigações? - quis saber Bradfield. Os dois não estavam olhando um para o outro.
- Leo instalou seu próprio escritório. Escreveu cartas e recebeu respostas. Tudo em papel da embaixada. Antecipava-se em receber a correspondência da chancelaria quando ela chegava, retirando tudo o que lhe era endereçado. Geria isso como geria a própria vida: secreta e eficientemente. Não acreditando em ninguém, não confiando em ninguém; jogando as diferentes pontas umas contra as outras. . . Por vezes, fazia pequenas viagens, consultava arquivos, ministérios, registros de igrejas, grupos de sobreviventes. . . tudo com papéis da embaixada. Colecionou recortes da imprensa, fez cópias, fazia sua própria datilografia e usava seu lacre privado. Chegou até a roubar um carimbo oficial. Suas cartas recebiam o título de Reclamações e Serviços Consulares, de modo que a maior parte delas vinha às suas mãos em primeiro lugar. Comparava todos os detalhes: certidões de nascimento, de casamento, de óbito da mãe, licença de caça; durante todo o tempo estava procurando discrepância; qualquer coisa a fim de provar que Karfeld não esteve na frente russa. Conseguiu reunir uma fantástica documentação. Assim, não é de surpreender que Siebkron tenha esbarrado nele. Quase não há um só órgão do governo que ele não tenha consultado sob um pretexto ou outro. ..
- Ó, meu Deus - murmurou Bradfield, baixando a caneta em um momentâneo gesto de derrota.
- Lá pelo final de janeiro, chegou à única conclusão possível: que tinha posto os dentes em Karfled e que alguém, parecia ser alguém altamente colocado, provavelmente tratando-se de Siebkron, alguém lhe estava dando cobertura. Disseram-me que Siebkron tem ambições; atrela seu vagão a qualquer estrela enquanto ela se conservar em evidência.
- O que é bastante verdadeiro - concedeu Bradfield.
- Como Praschko nos velhos tempos. . . Está percebendo onde estamos chegando, não é mesmo? Claro, antes de decorrido muito tempo, como ele sabia muito bem, Siebkron foi informado de que a embaixada estava empreendendo algumas investigações, até mesmo através de reclamações e serviços consulares. E que alguém ia ficar com muita raiva, talvez até duro demais. Especialmente quando Leo encontrou a prova.
- Que prova? Como lhe é possível apresentar provas agora, mais de 20 anos decorridos depois do crime?
- Está tudo lá no arquivo - admitiu Turner, com súbita relutância. - É melhor que você veja por si mesmo.
- Não tenho tempo e estou acostumado a ouvir fatos desagradáveis.
- E descartá-los.
- Insisto que você me diga. - Bradfield não fez nenhum drama de sua insistência.
- Muito bem. No ano passado, Karfeld decidiu arranjar um doutorado. Já então ele era uma pessoa de destaque; havia ganho uma fortuna na indústria química. .. seu talento administrativo havia produzido rendimentos em grande escala, e ele estava abrindo seu caminho político razoavelmente em Essen e queria o título de doutor. Talvez ele fosse como Leo: havia largado um trabalho por terminar e queria deixar tudo pronto. Ou talvez julgasse que uma alavanca seria útil: Votem no Dr. Karfeld. Por aqui gostam de um título de doutor. . . Desse modo, voltou aos bancos escolares e desenvolveu uma tese excelente. Não precisou realizar muita pesquisa e todos ficaram bastante impressionados, especialmente seus professores. É maravilhoso, comentavam, como ele consegue tempo.
-E?
- Era um estudo sobre os efeitos de certos gases tóxicos no corpo humano. Aparentemente, tiveram em grande apreço o trabalho; na ocasião, produziu grande excitação.
- Isso dificilmente é conclusivo.
- Oh, é, sim. Karfeld baseou sua análise toda no detalhado exame de
31 casos fatais.
Bradfield tinha fechado os olhos.
- Isso não é prova - disse Bradfield por fim; estava muito pálido, mas a caneta em suas mãos tinha a firmeza de sempre. - Você sabe que isso não é prova. Que levanta suposições eu concordo. Sugere que ele esteve em Hapstorf. Não é nem a metade de uma prova.
- É uma pena que não possamos dizer isso a Leo.
- A informação lhe chegou em meio de sua experiência industrial; era o que Karfeld argumentaria. Adquiriu-a através de uma terceira fonte. Essa seria sua posição.
- Posição dos verdadeiros filhos da mãe.
- Mesmo que se pudesse provar que a informação veio de Hapstorf, há uma dúzia de explicações sobre como poderia ter vindo parar nas mãos de Karfeld. Você mesmo disse que ele jamais esteve engajado em pesquisa. . .
- Não. Mas sentou-se a uma mesa. Isso já aconteceu antes.
- Precisamente. E o próprio fato de que não fez qualquer uso da informação tende a inocentá-lo da acusação de tê-la adquirido.
- O problema, porém - disse Turner - é que Leo é apenas meio advogado: um híbrido. Temos que tratar ainda com a outra metade. Temos de tratar do ladrão.
- Sim. - Bradfíeld estava distraído. - E ele roubou a pasta verde.
- Ainda assim, no que se refere a Siebkron e Karfeld, ele parece ter-se aproximado tanto da verdade que passou a se constituir num risco muito sério, não é mesmo?
- Um caso de prima fade - observou Bradfíeld, examinando suas notas mais uma vez. - Há base para novas investigações, isso eu garanto. Na melhor hipótese, um promotor público pode ser persuadido a proceder um exame inicial. - Olhou para o telefone. - O adido legal deve saber.
- Não se preocupe - tornou Turner, tranqüilizadoramente. - O que quer que tenha feito ou não, Karfeld está livre. Passou do ponto. - Bradfíeld ficou olhando para ele. - Hoje, ninguém pode indiciá-lo nem que fizesse uma confissão gravada a fogo, e assinada pelo próprio Karfeld.
- Claro - concordou Bradfíeld, calmamente. - Estava-me esquecendo. - E parecia aliviado.
- Ele está protegido pela lei. O Estatuto de Prescrições se encarrega disso. Na noite de quinta-feira, Leo colocou uma nota no arquivo. O caso está morto. Não há nada que ninguém possa fazer.
- Mas há uma forma de reabrir.. .
- Sim, há - concordou Turner - mas não se aplica. Como está, a falha é dos britânicos. O caso Hapstorf era uma investigação a cargo dos britânicos. Nunca o transferimos para os alemães. Não houve julgamento, nem relatório público, e quando o judiciário alemão tomou a completa responsabilidade pelos crimes de guerra nazistas não lhe demos nenhuma nota a respeito. O caso de Karfeld cai por inteiro na falha entre os alemães e nós mesmos. - Fez uma pausa. - E agora Leo fez o mesmo.
- O que pretendia Harting fazer? Qual a finalidade de toda essa investigação?
- Ele precisava saber. Tinha que completar o caso. O caso o tantalizava como uma infância confusa ou uma vida com a qual você não consegue pôr-se de acordo. Precisava esclarecer tudo. Creio que ele estava tocando de ouvido o resto da música.
- Quando obteve Leo essa suposta prova?
- A tese chegou no sábado antes de ele partir. Leo mantinha um carimbo de datas, sabe; tudo dava entrada organizadamente nos arquivos. Na segunda-feira ele chegou no arquivo em um estado de euforia. Passara alguns dias imaginando o que faria em seguida. Na última quinta-feira tinha almoçado com Praschko...
- Para quê?
- Não sei. Pensei sobre isso. Não sei. Provavelmente para discutirem qual a ação a empreender. Ou para obter uma opinião sob o ponto de vista legal. Talvez ele imaginasse haver ainda uma forma de ação...
- Não há nenhuma?
-Não.
- Graças a Deus.
Turner ignorou o que Bradfíeld disse.
- Ou talvez para dizer a Praschko que a barra estava ficando muito feia. Pedir-lhe proteção.
Bradfield encarou Turner, cautelosamente.
- E a pasta verde desapareceu - comentou, recobrando seu vigor.
- A caixa estava vazia.
- E Harting fugiu. Você sabe também a razão para isso! - Seus olhos estavam ainda fitando Turner. - Está também registrado em sua documentação?
- Ele registrou em suas notas: "Disponho de pouquíssimo tempo." Todos que se referem a ele dizem que estava sempre em luta contra o tempo. . . uma nova urgência... creio que Leo estava pensando no Estatuto.
- Mas nós sabemos que, de acordo com o Estatuto, Karfeld já era um homem livre, a não ser é claro que algum tipo de interrupção da prescrição possa ser encontrado. Então, por que ele fugiu? E por que com tanta pressa?
Turner não tomou conhecimento da estranha observação nem mesmo do tom de mofa das perguntas de Bradfield.
- Então você não sabe exatamente por quê? Por que ele escolheu esse particular momento para fugir? Ou por que ele escolheu aquela pasta para roubar?
- Presumo que Siebkron o estava apertando. Leo se achava de posse da prova e Siebkron sabia disso. De então em diante, Leo era um homem marcado. Ele tinha uma arma - aduziu Turner - uma velha pistola do Exército. Estava assustado o bastante para levá-la com ele. Deve ter entrado em pânico.
- É mesmo - concordou Bradfield, com aquela mesma nota de alívio. - É mesmo. Não há dúvida de que essa seja a explicação.
Turner olhou para ele surpreendido.
Durante uns 10 minutos, Bradfield não se movera ou dissera uma palavra.
Em um dos cantos da sala havia uma peça feita de uma velha caixa de Bíblia e pernas metálicas bastante feias, encomendada por Bradfield a um ferreiro local em Bad Godesberg. Bradfield estava de pé com os cotovelos apoiados sobre essa peça, olhando pela janela para o rio.
- Não é de admirar-se que Siebkron nos tenha colocado sob guarda - disse finalmente; poderia estar falando a respeito da neblina. - Não é de admirar-se que ele nos tomasse como se fôssemos perigosos. Dificilmente haverá um ministério em Bonn, nem mesmo um jornalista, que não tenha ouvido dizer que a Embaixada britânica está empenhada em uma caçada ao passado de Karfeld. O que esperam que façamos? Que o chantageemos em público? Reaparecer depois de 25 anos de peruca e tudo e indiciá-lo sob a jurisdição aliada? Ou será que pensam que estamos sendo impiedosamente vingativos e nos propomos a exercer nossa vingança sobre o homem que está estragando nossos sonhos com relação à Europa?
- Você o encontrará, não é mesmo? Você o tratará bem, não? Ele vai precisar de toda a ajuda que puder conseguir.
- Todos nós vamos precisar - replicou Bradfield, ainda olhando para o rio.
- Leo não é um comunista. Não é um traidor. Ele julga que Karfeld é uma ameaça. Para nós. Ele é muito simples. Pode ver-se isso pelas pastas. ..
- Conheço seu tipo de simplicidade.
- Ele é de nossa responsabilidade, afinal de contas. Fomos nós que no passado enfiamos essas coisas em sua cabeça: a noção de justiça absoluta. Fizemos-lhe todas essas promessas: Nuremberg, desnazificação. Fizemos com que ele acreditasse. Não vamos permitir que ele seja uma baixa somente porque mudamos de idéia. Você não examinou aqueles arquivos. . . não faz idéia de como os alemães eram então considerados. Leo não mudou. É um homem que ficou para trás. Isso não é um crime, é?
- Sei muito bem o que pensavam. Eu mesmo estava aqui. Vi o que vi: o bastante. Ele deve ser um produto disso; o resto nós fizemos.
- O que estou querendo dizer é que Leo é digno de nossa proteção. Há nele uma espécie de integridade... Foi o que senti lá embaixo. Ele não está obcecado por paradoxos. Para mim e para você há uma dúzia de boas razões para não fazermos nada. Leo dá a volta pelo lado oposto. Na cartilha de Leo, há somente uma razão para que alguma coisa seja feita: porque tem que ser feita. Porque é assim que ele pensa.
- Estou certo de que você não o está oferecendo como um exemplo que deva ser seguido, não é mesmo?
- Há uma outra coisa que o intrigava.
- O quê?
- Em casos como esse, há sempre documentos externos. No quartel-general da SS; com a unidade médica ou a unidade de transporte. Ordens de movimento, cartas de autorização, documentos relacionados partidos de algum lugar que levariam o jogo adiante. Mesmo assim, nada veio à luz. Leo lançava esse tipo de observações a lápis constantemente: por que não há registros sobre Koblenz? Por que isso, por que aquilo? Como se ele suspeitasse de que outras evidências tivessem sido destruídas. . . por Siebkron, por exemplo. Podemos render-lhe homenagens, não podemos? acrescentou Turner, quase suplicante.
- Aqui não há absolutos. - O olhar de Bradfield não se afastava do cenário distante. - Tudo são dúvidas. Tudo é neblina. A neblina confunde as cores. Não há distinções, os socialistas se encarregaram disso. Eles são tudo. Eles são nada. Não é de admirar-se que Karfeld esteja se lamentando.
O que seria que Bradfield estava estudando no no? As pequenas embarcações lutando contra o nevoeiro? Os grous vermelhos e os campos lisos, ou os distantes vinhedos que a partir do sul tanto se estenderam? Ou a fantasmagórica colina de Chamberlain e a longa caixa de concreto onde uma vez o mantiveram?
- O Glorioso Buraco está fora dos limites - disse por fim. - Praschko. Você disse que ele almoçou com Praschko na quinta-feira?
- Bradfield. . .
- Sim? - Ele já estava se encaminhando para a porta.
- Nós agora o encaramos diferentemente, não?
- Será? Talvez ele continue comunista apesar de tudo. - Havia uma nota de ironia no tom de voz de Bradfield. - Você se esquece de que ele roubou uma pasta. Você pensa que pode olhar para dentro do coração dele.
- Por que a teria furtado? O que ela continha?
Bradfíeld, porém, já estava abrindo caminho por entre as camas e as pessoas que se aglomeravam no corredor. Cartazes tinham sido espalhados por todos os lados: Posto de Primeiros Socorros nesta Direção. . . Sala de Repouso de Emergência. . . Crianças não São Permitidas além deste Ponto. Quando se aproximavam do arquivo da chancelaria, ouviram súbitas aclamações seguidas por um incipiente bater de palmas. Cork, pálido, apressou-se a ir a seu encontro.
- Ela já teve a criança - murmurou ele. - Acabam de me telefonar do hospital. Ela não permitiu que me chamassem enquanto eu estava de serviço. - Seus olhos avermelhados estavam arregalados de medo, - Ela nem precisou de mim. Ela nem quis que eu fosse até lá.
Capítulo 17
Praschko
Por trás da embaixada há um caminho asfaltado. Esse caminho conduz da parte leste do perímetro do prédio na direção norte, através de um bairro de casas novas, demasiado caras para moradia dos britânicos. Cada uma delas dispõe de um pequeno jardim de grande valor em termos imobiliários, cada uma delas distinta da do vizinho pelos elaborados desvios arquitetônicos que são a marca dos padrões modernos. Se uma casa dispõe de uma churrasqueira de tijolos e um pátio de pedra britada, a seguinte buscará igualar-se com um muro externo de lousa azul, ou de pedra ousadamente exposta. No verão, jovens donas-de-casa se expõem ao sol ao lado de minúsculas piscinas. No inverno, poodles negros escavam a neve e, ao meio-dia de segunda a sexta-feira, Mercedes pretas trazem seus donos para o almoço. O ar durante todo o tempo fica impregnado, ainda que distantemente, do cheiro de café.
Era uma manhã cinzenta, parada e fria, mas a terra estava iluminada com a claridade que se segue à chuva. Dirigiam vagarosamente, com os vidros das janelas abaixados. Passando por um hospital penetraram em uma estrada mais sombria, onde o subúrbio mais antigo tinha revivido; por trás de grenhudas coníferas e arbustos de loureiros azul-escuros, espirais plúmbeas, que em uma ocasião haviam colorido os sonhos de nobreza de Weimar, erguiam-se como lanceiros em uma floresta embolorada. À frente, erguia-se o Bundestag, nu, sem conforto e inconformado; um vasto motel, lamentável por suas próprias bandeiras e pintado de amarelo-leitoso. Por trás, encimado pela Ponte Kennedy e limitado pelo palácio de Beethoven, o castanho Reno prosseguia em seu incerto curso cultural.
Havia policiais por toda a parte; raramente a sede de uma democracia terá estado tão bem protegida contra os seus democratas. À entrada principal, uma fileira de escolares esperava em uma fila inquieta, guardados pela polícia como se fosse propriedade sua. Uma equipe de televisão instalava suas câmeras. Em frente a uma câmera, um homem jovem em um terno de veludo cor de amora fazia piruetas impensadamente, as mãos nos quadris, enquanto um colega avaliava sua tez; a polícia observava perigosamente, surpreendida por sua liberdade. Ao longo do meio-fio, bem arrumadas como os membros de um júri, suas bandeiras mantidas verticalmente como estandartes romanos, a multidão cinzenta pacientemente esperava. Os slogans haviam sido modificados: A União Alemã em Primeiro Lugar - A União Européia Depois - Esta Nação Também É Orgulhosa - Devolvam-no Primeiro o Nosso País! A polícia estava postada de frente para eles, ombro a ombro, controlando-os como se fossem crianças.
- Vou estacionar perto do rio - anunciou Bradfield. - Só Deus sabe o que estará acontecendo quando formos embora.
- O que está havendo?
- Um debate. Emendas à Legislação de Emergência.
- Pensei que já tivessem acabado com isso há muito tempo.
- Aqui em Bonn, nada se resolve.
Ao longo da margem, tão longe até onde a vista podia alcançar de ambos os lados, destacamentos cinzentos aguardavam passivamente, como soldados desarmados. Bandeiras improvisadas declaravam suas origens: Kaiselautern, Hanover, Dortmund, Kassel. Permaneciam em completo silêncio aguardando as ordens para protestar. Alguém havia trazido um rádio transistor que estava funcionando em alto volume. Esticaram a cabeça para ver o Jaguar branco.
Lado a lado caminharam de volta vagarosamente até a colina, longe do rio. Passaram por um quiosque que parecia não conter nada a não ser fotos coloridas da Rainha Soraya. Duas colunas de estudantes formavam uma avenida na entrada principal. Bradfield caminhava à frente, o corpo ereto. À porta, o guarda objetou com Turner, e Bradfield discutiu ligeiramente com ele. O saguão estava assustadoramente quente e cheirava a charuto; estava cheio dos burburinhos sobre a contestação. Jornalistas, alguns deles trazendo máquinas fotográficas, olharam para Bradfield curiosamente, sacudiam a cabeça e afastavam o olhar. Em pequenos grupos, delegados conversavam calmamente, durante todo o tempo olhando em vão sobre os ombros uns dos outros, em busca de alguém mais interessante. Uma figura familiar surgiu à frente deles.
- A melhor peça! Dou minha palavra. Bradfield, você é a melhor peça! Veio ver o fim da democracia? Veio para o debate? Meu Deus, você é tão eficiente por lá! O serviço secreto ainda está com você? Sr. Turner, o senhor é leal, eu espero? Meu Deus, que diabo aconteceu com seu rosto? - Não tendo recebido resposta, continuou em voz mais baixa, furtivamente. - Bradfield, preciso falar com você. É algo tremendamente urgente. Tentei falar com você na embaixada, mas para Saab você está sempre fora.
- Nós temos um encontro.
- Durante quanto tempo? Diga-me, durante quanto tempo. Sam Allerton também quer; nós queremos tratar juntos de um assunto.
Ele havia inclinado a cabeça para perto do ouvido de Bradfield. Seu pescoço parecia sujo, pois ele não tinha feito a barba.
- É impossível dizer.
- Escute aqui. Ficarei esperando por você. É um assunto muito importante. Vou dizer a Allerton: vamos esperar por Bradfield. Nossos jornais são linhas mortas: peixe miúdo. Precisamos falar com Bradfield.
- Sem comentários, você sabe disso. Na noite passada distribuímos nossas declarações. Creio que lhe deu uma cópia. Nós aceitamos a explicação do Chanceler. Estamos ansiosos por ver a equipe alemã de volta a Bruxelas dentro de poucos dias.
Desceram os degraus até o restaurante.
- Aqui está ele. Deixe que eu falo. Deixe que ele fique entregue a mim completamente.
- Vou tentar.
- É melhor que consiga. Conserve a boca fechada. Ele é um freguês muito escorregadio.
Antes de qualquer outra coisa, Turner notou o charuto. Era muito pequeno e pendia do canto de sua boca como um termômetro negro; Turner sabia também que era holandês e que Leo os obtinha de graça.
O aspecto era de quem tinha passado toda a noite editando um jornal. Surgiu na porta que levava à arcada de lojas, caminhava com as mãos nos bolsos, seu paletó fugia da camisa, e ele esbarrava nas mesas sem se desculpar com ninguém. Era um homenzarrão sujo com cabelos grisalhos e curtos, e um peito amplo que se projetava por cima de um estômago ainda mais amplo. Seus óculos estavam atirados para trás, sobre as sobrancelhas, como que para protegê-las. Uma moça o seguia, conduzindo uma pasta. A moça não tinha expressão nem ouvia nada, por estar entediada ou ser muito ingênua; seus cabelos eram negros e abundantes.
- Sopa - gritou ele e seu grito reboou pela sala, enquanto se apertavam as mãos. - E alguma coisa para ela. - O garçom estava escutando as notícias pelo rádio, mas quando viu Praschko diminuiu o volume e se aproximou, preparado para servir. Os suspensórios de Praschko tinham pegadores metálicos que se agarravam obstinadamente à cintura de sua calça.
- Vocês também estiveram trabalhando? Ela não compreende nada
- explicou. - Em língua nenhuma. Nicht wahr, Schatz? Vocês são estúpidos como carneiros. Qual é o problema? - Seu inglês era fluente e fosse qual fosse o sotaque que tivesse era disfarçado por sua entonação americana. - Você é o embaixador atualmente?
- Temo que não.
- Quem é esse cara?
- Um visitante.
Praschko olhou para Turner com todo cuidado, depois para Bradfield, e novamente para Turner.
- Alguma garota se zangou com você?
Somente seus olhos se moviam. Os ombros haviam-se levantado um pouco sobre o pescoço e em suas maneiras podia perceber-se um alerta tenso e instintivo. Sua mão esquerda firmou-se no antebraço de Bradfield.
- Isso é bom - disse ele. - Isso é muito bom. Gosto de variar. Gosto de conhecer gente nova. - Sua voz permanecia em um mesmo plano; incisiva, mas curta; a voz de um conspirador, mantida em tom baixo pela experiência em dizer coisas que não devem ser ouvidas por acaso.
- O que vocês estão procurando? A opinião pessoal de Praschko? A voz da oposição? - Voltou-se para Turner. - Quando se tem uma coalizão, a oposição é um clube muito fechado. - Riu alto, compartilhando a piada com Bradfield.
O garçom trouxe uma sopa goulash. Cautelosamente, com movimentos nervosos e pequenos de sua mão de açougueiro, começou a procurar pela carne.
- Atrás de que vieram aqui? Ei, quem sabe estão querendo enviar um telegrama para a Rainha? - Sorriu. - Uma mensagem de seu velho súdito? OK. Então lhe enviem um telegrama. Com que, diabo, se preocupa ela quanto ao que Praschko diz? Alguém lá se importa? Sou uma puta velha - dirigiu-se também a Turner: - Tenho sido inglês, tenho sido alemão, já fui quase americano. Estou neste bordel há mais tempo do que qualquer outra puta. Ninguém mais me quer. Já estive de todos os lados. Não disseram isso a vocês? Esquerda, Direita, Centro.
- De que lado você está agora? - perguntou Turner.
Seus olhos ainda no rosto amarfanhado de Turner, Praschko levantou a mão e esfregou a ponta do indicador de encontro ao polegar.
- Sabe o que vale na política? - perguntou ele. - Dinheiro. Vendas. Tudo mais não vale nada. Tratados, políticas, alianças: lixo. . . Talvez eu devesse ter permanecido marxista. Então agora abandonaram Bruxelas. Isto é triste. Isto é muito triste. Vocês não têm mais ninguém com quem falar. - Dividiu um pão em dois e mergulhou na sopa um dos pedaços. - Digam à Rainha que Praschko acha os ingleses nojentos, uns hipócritas mentirosos. Sua mulher está bem?
- Vai bem, obrigado.
- Já há muito tempo que janto por aqui. Ainda vivo no gueto, e você? Bom lugar. Ninguém liga. Ninguém gosta de mim por tanto tempo. Aí está por que mudo de partidos - explicou a Turner. - Eu costumava pensar que era um romântico, sempre procurando as flores azuis. Agora estou cheio. O mesmo com amigos, o mesmo com as mulheres, o mesmo com Deus. Todos eles são verdades. Todos eles nos chantageam. Todos eles são bastardos. Jesus. Sabe de uma outra coisa: gosto mais dos novos amigos do que dos amigos velhos. Ei, estou com outra mulher: o que acham dela? - Segurou o queixo da moça e ajustou um pouco o rosto dela para que parecesse melhor; a moça sorriu e lhe afagou a mão. - Estou surpreso - continuou, antes que qualquer dos dois pudesse fazer um comentário adequado. - Houve uma época em que eu era capaz de me deitar em cima de minha volumosa barriga para trazer os nojentos ingleses para a Europa. Atualmente, vocês podem estar berrando no degrau da porta e pouco me importa. - Sacudiu a cabeça. - Estou verdadeiramente surpreso. De qualquer modo, isto, creio, é história. Ou talvez eu seja assim mesmo. Talvez eu esteja apenas interessado em poder: talvez eu gostasse de vocês porque eram fortes e agora odeio vocês porque não são nada. Mataram um rapaz ontem à noite, vocês souberam? Em Hagen. Deu no rádio.
Bebeu um Steinháger que estava na bandeja. O guardanapo ficou preso ao fundo do copo. Ele rasgou o guardanapo.
- Um rapaz. Um velho. Uma bibliotecária maluca. OK, um time de futebol: mas isso não é Armageddon.
Através da janela, as longas colunas cinzentas esperavam na esplanada. Praschko correu a mão em tomo da sala.
- Olhem para essa sujeira. Papel. Democracia de papel, políticos de papel, águias de papel, soldados de papel, delegados de papel. Democracia de casa de bonecas; toda vez que Karfeld espirra, mijamos nas calças. Sabe por quê? Porque ele chega demasiado perto da verdade.
- Então você está a favor dele? É isso? - perguntou Turner, ignorando o olhar de Bradfield.
Praschko acabou a sopa, sem tirar os olhos de cima de Turner.
- O mundo fica mais jovem a cada dia - disse ele. - OK, então Karfeld é um monte de lixo. OK. Estamos ricos, sabe, cara? Temos comido, bebido, construído casas, comprado carros, pago impostos, ido à igreja, feito filhos. Agora queremos alguma coisa real. Sabe o que, cara?
Seus olhos não se haviam afastado do rosto amassado de Turner.
- Ilusões. Reis e rainhas. Os Kennedys, De Gaulle, Napoleão. Os Wittelsbachs, Potsdam. Ei, o que me dizem sobre o levante de estudantes na Inglaterra? O que a Rainha pensa a respeito? Vocês não lhes dão dinheiro bastante? Juventude. Quer saber de uma coisa sobre juventude? Vou lhes contar. - Agora, Turner era seu único auditório. - "A juventude alemã está culpando os pais por terem começado a guerra." É isso o que se ouve, A cada dia algum doido inteligente escreve a mesma coisa em um outro jornal. Quer ouvir toda a história? Eles estão culpando os pais por terem perdido a guerra e não porque a tivessem começado! "Ei, onde está o nosso maldito Império?" O mesmo lá na Inglaterra, creio. A mesma bosta. A mesma gurizada. Querem Deus de volta. - Inclinou-se sobre a mesa até que seu rosto ficasse bem próximo do de Turner. - Escute aqui. Talvez nós possamos fazer um negócio: nós damos o dinheiro e vocês nos dão as ilusões. O problema é que já tentamos. Fizemos o negócio e vocês nos deram um carregamento de merda. Vocês não entregaram as ilusões. É isso o que não gostamos mais nos ingleses. Eles não sabem como fazer um negócio. A Terra Pátria deseja casar-se com a Mãe Pátria, mas vocês nunca deram as caras para a cerimônia. - Explodiu em outra falsa gargalhada estrepitosa.
- Talvez tenha chegado a hora de fazer-se a união - observou Bradfield, sorrindo como um estadista cansado.
Pelo canto do olho, Turner notou dois homens, de rosto claro, de ternos escuros e sapatos de camurça, silenciosamente tomarem assento em uma mesa próxima. O garçom se aproximou deles rapidamente, percebendo sua profissão. Ao mesmo tempo, um bando de jovens jornalistas irrompeu do saguão. Alguns deles traziam os jornais do dia, os títulos falavam de Bruxelas ou de Hagen. À frente dos jornalistas, Karl-Heinz Saab, pai de todos eles, buscou com os olhos Bradfíeld em intensa ansiedade. Além da janela, em um pátio sem graça, filas de cadeiras de plástico estavam arrumadas com flores artificiais plantadas no concreto rachado.
- Aqueles são os verdadeiros nazistas, aquela escumalha. - Sua voz soou alto o bastante para que todo mundo pudesse ouvir, e Praschko indicou os jornalistas com um gesto de desprezo de sua mão gorda. - Usam suas línguas e rabos e pensam que inventaram a democracia. Onde está esse maldito garçom? Morto?
- Estamos procurando Harting - falou Bradfíeld.
-Claro!
Praschko estava habituado a crises. Sua mão, esfregando o guardanapo nos lábios rachados, movia-se no mesmo ritmo seguro. Os olhos, amarelos nas pupilas, mal piscavam enquanto ele continuava a examinar os dois homens.
- Não o tenho visto por aí - continuou ele, descuidadamente. Talvez Leo esteja em cana. Vocês têm por lá uma gaiola especial. - Largou o guardanapo. - Talvez devessem ir lá dar uma olhada.
- Ele não vem trabalhar desde a última sexta-feira. Está desaparecido há uma semana.
- Escute aqui: Leo? Esse cara volta sempre. - O garçom apareceu. - Ele é indestrutível.
- Você é amigo dele - continuou Bradfíeld. - Talvez seu único amigo. Pensamos que podíamos vir consultá-lo.
- Sobre o quê?
- Ah, esse é o problema - disse Bradfíeld, com um ligeiro sorriso. Pensamos que ele podia ter falado com você a respeito.
- Ele nunca teve um amigo inglês? - Praschko estava olhando de um para o outro. - Pobre Leo. - Sua voz agora tinha outro tom.
- Você ocupava uma posição especial na vida dele. Afinal de contas vocês fizeram uma porção de coisas juntos. Compartilharam de inúmeras experiências. Achamos que sempre que precisava de conselhos, ou dinheiro, ou o que quer que seja que alguém precisa em momentos de crise na vida, ele instintivamente iria procurá-lo. Pensamos que ele poderia até ter vindo pedir proteção.
Praschko tornou a olhar para os cortes no rosto de Turner.
- Proteção? - Os lábios mal se separavam enquanto falava; era como se ele preferisse saber que não tinha dito absolutamente nada. - Vocês podem do mesmo modo proteger um. . . - De repente, seu rosto se umideceu. Parecia que vinha de fora a umidade e se assentava nele como vapor. - Vá embora - disse ele para a moça.
Sem uma palavra, ela se pôs de pé, sorriu abstratamente e saiu do restaurante, enquanto Turner, em um momento de alegria irrelevante e de animação, seguiu com os olhos o bamboleio de seus quadris em retirada; mas Bradfíeld já estava novamente com a palavra.
- Não temos muito tempo. - O diplomata estava inclinado para a frente e falava rapidamente. - Você esteve com ele em Hamburgo e Berlim. Há certas coisas que provavelmente são apenas do conhecimento de vocês dois. Está me entendendo?
Praschko esperou.
- Se você puder nos ajudar a encontrá-lo sem escândalo; se você souber onde ele está e puder argumentar com ele; se há alguma coisa que você possa fazer em nome de uma velha amizade, eu me comprometo a ser muito benevolente com ele e muito discreto. Conservarei o seu nome fora disso; bem como o de qualquer outra pessoa.
Era a vez de Turner esperar agora, enquanto olhava de um para o outro. Somente o suor traía Praschko; somente a caneta-tinteiro traía Bradfield. Ele a agarrava com o punho cerrado enquanto se inclinava sobre a mesa. Lá fora, pela janela, Turner via as colunas cinzentas esperando; no canto, os homens com cara de lua observavam estupidamente, comendo pães com manteiga.
- Eu o mandarei para a Inglaterra; eu o tirarei da Alemanha, se for necessário. Ele já se colocou na posição errada; não há como tornar a empregá-lo. Ele fez coisas... comportou-se de uma forma que o coloca fora de qualquer consideração; compreende o que estou dizendo? Qualquer coisa de que ele tenha conhecimento é propriedade da Coroa. . . - Voltou a sentar-se normalmente. - Temos que encontrá-lo, antes que outros o façam - acrescentou.
Praschko continuou a encará-lo com seus olhinhos duros, sem dizer nada.
- Sei também - continuou Bradfield - que você tem interesses especiais que devem ser levados em consideração.
Praschko estremeceu ligeiramente!
- Cuidado - advertiu ele.
- Nada está mais fora de minha mente do que interferir nos problema internos da República Federal. Suas ambições políticas, o futuro de seu próprio partido com relação ao Movimento, são assuntos completamente estranhos a nossa esfera de influência. Estou aqui para proteger a aliança e não para o julgamento de um aliado.
Repentinamente, Praschko sorriu.
- Isso é bom - disse ele.
- Seu próprio envolvimento com Harting há 20 anos, sua associação com certos órgãos do governo britânico.. .
- Ninguém sabe de nada a respeito disso - apressou-se a dizer Praschko. - Tenha muito cuidado sobre isso.
- Era esse ponto que eu ia acentuar - disse Bradfield, com um sorriso recíproco de alívio. - Eu não gostaria por um momento que fosse que se dissesse que na embaixada se abrigam ressentimentos, se processam destacados políticos alemães, se desenterram assuntos de longa data sepultados; que nos alinhamos com países que não simpatizam com a causa alemã a fim de manchar a República Federal. Tenho plena certeza de que, em sua própria esfera, você também não gostaria que esse tipo de coisas fosse dito a seu próprio respeito. Estou realçando uma identidade de interesses.
- Claro - falou Praschko. - Claro. - Sua cara angustiada continuava inescrutável.
- Todos nós temos nossos vilãos. Não devemos permitir que eles se interponham entre nós.
- Jesus - falou Praschko com um olhar de esguelha para as marcas no rosto de Turner. - Temos também amigos muito engraçados. Foi Leo quem lhe fez isso?
- Eles estão sentados num canto - disse Turner. - Foram eles que fizeram isso. Estão esperando para fazerem o mesmo em Leo, se tiverem oportunidade.
- OK - disse Praschko, finalmente. - Penso como vocês. Nós almoçamos juntos. Desde então não o vi mais. O que é que aquele macaco deseja?
- Bradfield - chamou Saab, lá do outro lado da sala. - Ainda demora muito?
- Já lhe disse, Karl-Heinz. Não temos nada a declarar.
- Apenas conversamos e isso foi tudo. Não vejo Leo com freqüência. Ele me chamou: como é, vamos almoçar hoje? Respondi para deixar para amanhã. - Abriu as palmas das mãos para mostrar que não tinha nada escondido nas mangas.
- Sobre o quê vocês conversaram? - quis saber Turner. Praschko encolheu os ombros.
- Você sabe como é a conversa entre velhos amigos. Leo é um bom sujeito, mas.. . as pessoas mudam. Ou talvez não gostemos de que nos lembrem que elas não mudam.
Falamos sobre os velhos tempos. Tomamos alguma coisa. Você sabe como tudo isso é.
- Que velhos tempos? - insistiu Turner, e Praschko olhou para ele zangado.
- Claro. Os tempos na Inglaterra. Tempos de merda. Sabe por que eu e Leo fomos para a Inglaterra? Nós éramos garotos. Sabe como chegamos lá? O nome dele começa por H e o meu por P. Assim, mudei-o para B. Harting Leo, Braschko Harry. Aqueles tempos. Sorte que não nos chamássemos Weiss ou Zachary, sabe: estariam muito lá embaixo. Os ingleses não gostam da segunda metade do alfabeto. Foi sobre isso que conversamos. Fomos para Denver, viagem de graça. Aqueles malditos tempos. A maldita Escola Agrícola em Shepton Mallet, conhece aquela merda de lugar? Talvez agora esteja pintado. Talvez já esteja morto aquele velho que arrancava o nosso couro porque éramos alemães e dizia que tínhamos que agradecer aos ingleses por estarmos vivos. Sabe o que aprendemos em Shepton Mallet? Italiano. Com os prisioneiros de guerra. Eles foram os únicos bastardos com quem podíamos conversar. - Voltou-se para Bradfield. Quem é esse nazista afinal de contas? - perguntou e estourou numa gargalhada. - Ei, será que estou maluco ou qualquer coisa assim? Eu estava no almoço com Leo.
- E ele teria falado em suas dificuldades fossem elas quais fossem, não? - indagou Bradfield.
- Ele queria conhecer o Estatuto - replicou Praschko, ainda sorridente.
- O Estatuto de Prescrições?
- Claro. Ele queria conhecer a lei.
- Aplicada a algum caso particular?
- Devia ser assim?
- Eu lhe estava perguntando.
- Pensei que você talvez tivesse em mente um caso particular.
- Como um assunto amplo de princípio legal?
- Claro.
- Que política poderia ser ajudada por isso, pode me dizer? Não é do interesse de nenhum de nós que o passado ressurja.
- Isso é verdade, hem?
- É bom senso - disse Bradfield, sucintamente. - O que, eu imagino, tenha mais peso com você do que quaisquer garantias que eu posso oferecer. O que ele queria saber?
Agora Praschko se tornou muito vagaroso.
- Ele queria saber a razão. Queria conhecer a filosofia. Então eu lhe disse: "Não é nenhuma lei nova, é uma lei antiga. É para pôr um fim nas coisas. Cada Estado tem uma corte suprema, um ponto além do qual não se pode ir, OKI Na Alemanha tem que haver também um dia final." Falei com Leo como se ele fosse uma criança.. . uma criança terrivelmente inocente, sabe como? Um macaco. Eu disse: "Olhe, você está dirigindo uma bicicleta, sem luzes, OKI Se ninguém descobrir após quatro meses você está limpo. Se houver um homicídio culposo, então não são quatro meses, mas 15 anos; se for um assassinato, 20 anos. Se for o crime de um nazista, mais tempo ainda, porque lhe foi adjudicado um período extra. Esperaram alguns anos antes de começar a contar até 20. Se não abrirem um processo, o crime prescreve." Eu disse mais: "Escute aqui, tocaram essa coisa por aí até que ela quase morresse. Depois a venderam para agradar à Rainha, e emendaram também para agradar a si próprios. No início puseram a data de 1945, depois 1949 e agora mudaram novamente." - Praschko abriu as mãos. - Então ele gritou comigo. "Que diabo é tão importante assim a respeito de 20 anos?" "Não há nada de importante a respeito de 20 anos, como não há nada de sagrado a respeito de número algum de malditos anos. Nós ficamos velhos. Nós ficamos cansados. Nós morremos." Disse isso a ele. Falei ainda: "Não sei o que você meteu nessa sua cabeça idiota, mas é tudo lixo. Tudo tem que chegar a um fim. Os moralistas dizem que isso é uma lei moral, os apologistas dizem que é conveniente. Escute, sou seu amigo e lhe estou dizendo; Praschko diz: isso é um fato da vida e assim não encha sua cabeça com essas coisas." Então ele sentiu fome. Já viram Leo com fome?
-Não.
- Depois do almoço eu trouxe Leo aqui, de volta. Ainda estávamos discutindo, sabe. Durante todo o tempo no carro. Então nos sentamos nesta mesa. Exatamente aqui onde estamos agora. "Talvez eu consiga outras informações", sugeriu ele. Falei: "Se conseguir outras informações esqueça, pois não há coisa alguma que você possa fazer: não perca o seu tempo. Você está muito atrasado. Essa é a lei."
- Por acaso ele não teria sugerido já dispor dessa informação?
- E dispunha? - Perguntou Praschko, de fato muito rapidamente.
- Não sei nem se existe.
Praschko acenou com a cabeça lentamente, o tempo todo com os olhos em Bradfield.
- Então o que aconteceu? - perguntou Turner.
- Isso foi tudo. Eu disse a ele: "OKI Então você prove que houve assassinato: você está muito atrasado desde o último mês de dezembro. Esqueça." Foi isso daí o que eu disse a ele. Leo então pegou no meu braço e sussurrou para mim, como se fosse um padre maluco: "Lei alguma jamais porá fim ao que eles fizeram. Você e eu sabemos disso. É o que ensinam na igreja: Cristo nasceu do ventre de uma virgem e foi para o Céu em uma nuvem de luz. Milhões acreditam nisso. Olhe, eu toco o órgão todos os domingos, e eu os ouço." É verdade o que ele disse?
- Ele tocava órgão na capela - explicou Bradfield.
- Jesus - fez Praschko, maravilhado. - Leo tocava órgão?
- Tocou durante anos.
- Então ele prosseguiu: "Mas você e eu, Praschko, durante toda nossa vida, temos visto testemunhas vivas do mal." Foi o que ele disse. "Não no topo de uma montanha, não à noite, mas lá, no campo em que estávamos todos nós. Somos privilegiados. E agora está tudo acontecendo de novo.
Turner quis interrompê-lo, mas Bradfield o impediu.
- Então, fiquei zangado e disse para ele: "Não venha com essa história de Deus para cima de mim. Não venha argumentar com a justiça milenar de Nuremberg que durou quatro anos. O Estatuto, pelo menos, nos dá 20 anos. E, de qualquer forma, quem impôs o Estatuto? Vocês, ingleses, poderiam ter-nos feito mudá-lo. Quando passaram para nós, poderiam ter dito: olhem aqui, malditos alemães, assumam os casos, ouçam em seus próprios tribunais, prolatem sentenças de acordo com seu próprio Código Penal, mas em primeiro lugar acabem com o Estatuto. Vocês então eram parte nele; continuem parte nele agora. Está acabado. Está acabado e muito bem acabado." Foi o que lhe disse. E Leo continuou a olhar para mim, repetindo meu nome. "Praschko, Praschko."
Tirando um lenço do bolso, Praschko enxugou a fronte e limpou a boca.
- Não liguem para mim - retomou ele. - Fico excitado. Vocês sabem como são os políticos. Eu disse a Leo, enquanto ele olhava para mim: "Aqui é minha pátria. Olhe aqui: Se ainda me resta um coração ele está aqui, neste bordel. Eu costumava perguntar a mim mesmo por quê. Por que não no Palácio de Buckingham? Por que não na Cultura Coca-Cola? Mas este é o meu país. E isso é o que você devia ter encontrado: um país. Não apenas uma maldita embaixada." Ele 'continuou a olhar para mim. Vou lhes dizer, eu estava ficando maluco. Eu lhe disse: "Vamos supor que você encontre a tal prova, me diga o que isso é e o que vale: cometer um crime aos 30, ser punido aos 60? O que significa isso? Somos homens velhos", falei, "Você e eu. Você sabe o que Goethe nos disse: homem algum pode observar o pôr-do-sol por mais do que um quarto de hora." Leo me respondeu: "Está acontecendo de novo. Olhe as caras, Praschko, ouça os discursos. Alguém tem que deter aquele filho da mãe, ou você e eu vamos usar novamente as identificações."
- Se Leo tivesse encontrado a prova - falou Bradfield, o que nós sabemos que não aconteceu, o que teria ele feito? E, se ao invés de continuar procurando por ela, Leo já a tivesse encontrado?
- Oh, Jesus; vou lhe contar: ele ficaria maluco.
- Quem é Aickman? - indagou Turner, depois de um silêncio.
- Quem é o que, rapaz?
- Aickman. Quem é ela? Srta. Aickman, Srta. Etling e Srta. Brandr. .. Leo esteve noivo dela certa ocasião.
- Ela foi apenas uma mulher que ele teve em Berlim. Ou foi em Hamburgo? Talvez nesses dois lugares. Jesus, esqueço de tudo. Graças a Deus, não é?
- O que aconteceu com ela?
- Não ouvi nada a respeito - tornou Praschko. Seus olhinhos mal apareciam nas velhas órbitas.
Imóveis em seu canto, os caras limpas observavam sem expressão, quatro mãos brancas repousavam em cima da mesa, como armas postas em descanso. Os alto-falantes chamavam por Praschko: a Fraktion estava aguardando que ele aparecesse.
- Você traiu Leo - disse Turner. - Você pôs Siebkron atrás dele. Você o vendeu. Leo lhe contou tudo e você avisou Siebkron, porque está subindo também no vagão da banda.
- Cale a boca - disse Bradfield. - Cale a boca.
- Você, maldito filho da mãe - sussurrou Turner. - Você vai matá-lo. Leo lhe disse que tinham encontrado a prova; disse-lhe o que era e pediu que o ajudasse, mas você pôs Siebkron a par para desgraça dele. Você era seu amigo e fez uma coisa dessas.
- Leo está maluco - protestou Praschko. - Você não percebe que ele está maluco? Você nunca o viu naqueles dias. Você nunca o viu naqueles dias com Karfeld no porão. Você pensa que foram aqueles caras que bateram em você? Karfeld não podia nem falar. "Fale! Fale!" - Os olhos de Praschko estavam quase completamente fechados. - Depois que nós vimos aqueles corpos no campo. .. Estavam todos amarrados uns nos outros, Foram amarrados juntos antes de serem gaseados. Leo ficou maluco. Eu disse para ele: "Olhe aqui, a culpa não é sua. Você não tem culpa por ter sobrevivido." Quem sabe Leo mostrou a vocês os botões: O dinheiro do campo? Vocês também nunca viram isso, não é? Nunca saíram com Leo e umas garotas para tomar uns drinques? Nunca o viram pagar com botões de madeira para começar uma briga? Leo está maluco, garanto. - A lembrança levou-o ao desespero. - Eu disse a ele, sentado aqui: "Deixe disso, vamos embora. Que, diabo, jamais construiu Jerusalém na Alemanha? Não deixe que o seu coração se despedace, vamos nos divertir com as garotas!" Falei: "Escute aqui! Temos que controlar nossas mentes ou todos nós vamos acabar malucos." Leo é um monge. Um monge doido, que não se esquece. O que pensam que o mundo é? Um parque de diversões para um punhado de moralistas malucos? Claro que comentei com Siebkron. Você é um rapaz inteligente. Mas tem também que aprender a esquecer. Cristo, se os britânicos não conseguirem, quem conseguirá?
Havia um tumulto quando entraram no saguão. Dois estudantes de casacos de couro tinham rompido o cordão de isolamento à porta e se encontravam de pé, junto à escada, lutando com os porteiros. Um delegado idoso estava mantendo um lenço junto à boca, enquanto o sangue escorria pelo seu pulso. - "Nazistas! "Estava gritando alguém. "Nazistas!", masquem gritava apontava um estudante na sacada, que agitava uma bandeira vermelha.
- Vamos voltar para o restaurante - disse Bradfield. - Podemos sair pelo outro lado.
O restaurante tinha ficado subitamente vazio. Atraídos ou afugentados pelo corre-corre no saguão, delegados e visitantes haviam desaparecido em várias direções. Bradfield não corria, marchava em passadas longas, militares. Estavam na arcada. Uma loja de artigos de couro oferecia bolsas negras de pendurar a tiracolo em ótimo cromo. Na vitrina seguinte via-se um barbeiro espalhando espuma no rosto de um freguês invisível.
- Bradfield, você precisa me ouvir: meu Deus, não posso nem mesmo alertá-lo sobre o que andam dizendo?
Saab estava assustadoramente ofegante. O corpo volumoso arfava por baixo do casaco sebento; lágrimas de suor se acumulavam nas bolsas por baixo de seus olhos. Allerton, o rosto corado sob sua cabeleira negra, espiou por cima de seu ombro. Refugiaram-se em um portal. Ao final do corredor, a calma descera sobre o saguão.
- O que anda dizendo quem?
Foi Allerton quem respondeu por ele.
- Tudo é Bonn, meu velho. Toda a maldita fábrica de papel.
- Escute. Há rumores. Escute. É fantástico o que dizem. Sabem o que houve em Hanover? Por que se rebelaram? Estão cochichando a mesma coisa em todos os cafés: os delegados; os homens de Karfeld é que estão espalhando. Os rumores já se espalharam por toda a cidade de Bonn. Eles foram instruídos para não dizer nada; tudo é um segredo fantástico.
Correu os olhos para baixo e para cima na arcada.
- É o melhor há anos - disse Allerton. - Mesmo nessa bagunça.
- Por que romperam as fileiras na frente e correram como cachorros loucos na direção da biblioteca? Os tais rapazes que chegaram nos ônibus cinzentos? Alguém atirou em Karfeld. No meio da música: atiraram nele de uma janela da biblioteca. Algum amigo daquela mulher, da bibliotecária: Eich. Ela trabalhou para os britânicos em Berlim. Ela era uma emigrée, mudou o nome para Eich. O guarda-costas viu o homem atirar, o guarda-costas de Karfeld. No meio da música! Viram o cara atirando da janela e correram para pegá-lo. Os guarda-costas, Bradfield, que vieram nos ônibus cinzentos. Escute, Bradfield! Escute o que estão dizendo! Encontraram a bala, uma bala de pistola de uma arma inglesa. Percebe agora? Os ingleses estão matando Karfeld: esse é o fantástico boato. Você tem que impedir que continuem dizendo uma coisa dessas; fale com Siebkron. Karfeld está aterrorizado; ele é um grande covarde. Escute: por isso é que ele é tão cuidadoso, por isso é que ele está construindo em toda parte essas malditas Schaffott. Como se diz Schaffott, pelo amor de Deus?
- Plataformas - traduziu Turner.
A multidão do saguão os fez sair para o ar fresco.
- Plataformas! Um segredo absoluto, Bradfield! Para sua informação pessoal! - Ouviram-no gritar. - Não cite meu nome, pelo amor de Deus. Siebkron ficaria tremendamente zangado!
- Fique tranqüilo, Karl-Heinz - respondeu a voz calma, absurdamente formal dentro do torvelinho. - Sua confidencia será respeitada.
- Meu velho - Allerton encostou a cabeça no ouvido de Turner. Não havia feito a barba e as manchas negras se encontravam molhadas pelo suor. - Onde se meteu Leo nesses dias? Parece ter sumido. Dizem que a velha Eich foi uma excelente cantora em seus tempos. .. costumava trabalhar em Hamburgo com os caçadores de cabeças. O que fizeram com a sua cara, meu velho? Ela fechou as pernas antes do tempo, hem?
- Sem comentários - disse Bradfield.
- Ainda não há o que comentar.
- Nem haverá nunca.
- Dizem que quase que ele o pegou em Bonn, na noite anterior da reunião de Hanover. Só que não estava muito seguro a respeito do seu homem. Karfeld estava-se afastando de uma reunião secreta; estava-se encaminhando para um ponto previamente marcado e quase que Leo o pegou. Os frangos de Siebkron chegaram mesmo a tempo.
Ao longo da margem as colunas imóveis esperavam em pacientes escalões. Suas bandeiras negras mal se erguiam à brisa leve. Do outro lado do rio, por trás de uma Unha azulada de árvores, chaminés de fábricas distantes sopravam sua fumaça preguiçosamente à baça luz da manhã. Pequenas embarcações agitavam-se de leve, refletindo a luz, amarradas na grama acinzentada da margem. À esquerda de Turner, erguia-se um velho pavilhão, que não fora ainda derrubado. Um cartaz nele existente proclamava-o como propriedade do Instituto de Exercícios Físicos da Universidade de Bonn.
Estavam na margem, lado a lado. A neblina suave, como a respiração sobre um vidro, trazia mais para perto os horizontes castanhos e cobria a ponte próxima. Não havia sons, mas sim os ecos de coisas ausentes, o grito de gaivotas extraviadas e o lamento das barcaças perdidas, e o inevitável queixume de escavadeiras invisíveis. Não se viam as pessoas, mas sim sombras cinzentas ao longo da praia e um não relacionado bater de pés; não chovia, mas por vezes sentiam a umidade na névoa, como a efervescência do sangue sobre uma pele aquecida. Não havia navios, mas cascos lúbugres navegando na direção dos deuses do Norte; não havia cheiros, com a exceção de cheiro de carvão e de indústrias que não eram visíveis.
- Karfeld está escondido até esta noite - disse Bradfíeld. - Siebkron providenciou para que assim fosse. Está contando que haja nova tentativa esta noite. E ele tentará. - Bradfíeld tornou a repetir tudo isso, exercitando-se como se se tratasse de uma fórmula. - Até a demonstração, Karfeld permanece escondido. Depois da demonstração, Karfeld será escondido novamente. Os recursos de que dispõe Harting são severamente limitados. Ele não pode esperar que vá ficar ao largo por muito mais tempo. Terá que tentar esta noite.
- Aickman está morta - comentou Turner. Eles a mataram.
- Sim. Leo terá que tentar esta noite.
- Faça com que Siebkron cancele a reunião.
- Se estivesse em mim fazê-lo, eu o faria. Se estivesse em Siebkron fazê-lo, ele o faria. - Apontou as colunas. - Agora é demasiado tarde.
Turner olhou para ele.
- Não, não consigo entrever Karfeld cancelando a reunião, assustado como possa estar - continuou Bradfíeld, como se um momento de dúvida tivesse passado por sua cabeça. - A reunião é o fecho de sua campanha nas províncias. Organizou-a de forma a coincidir com o momento mais crítico em Bruxelas. Karfled já está a meio caminho do sucesso.
Voltou-se e se encaminhou vagarosamente pelo caminho que levava ao estacionamento.
- Volte para a embaixada. Tome um táxi. De agora em diante, deve haver uma total proibição de movimentos. Ninguém deverá afastar-se da área da embaixada sob pena de demissão. Avise De Lisle. Diga-lhe o que aconteceu e que separe os documentos relacionados com Karfeld para que eu os examine quando voltar. Tudo que o incriminar: o relatório da investigação, a tese. . . qualquer coisa existente no Glorioso Buraco que possa contar a história. Devo estar de volta no início da tarde.
Abriu a porta do carro.
- Qual é a barganha com Siebkron? - indagou Turner. - Qual o tipo de negócio?
- Não há barganha. Ou eles destroem Harting ou Harting destruirá Karfeld. Em qualquer caso eu tenho que demiti-lo. É a única coisa que importa. Há alguma outra coisa que você preferiria que eu fizesse? Você vê algum outro caminho? Devo informar Siebkron de que a ordem deve ser restaurada. Devo dar-lhe minha palavra de honra de que não tomamos parte no trabalho de Harting e nem tínhamos dele conhecimento. Você sugere alguma outra solução? Ficaria agradecido.
Deu partida ao motor. As colunas cinzentas se agitaram com interesse, satisfeitas em ver o Jaguar branco.
-Bradfíeld!
-Sim?
- Eu lhe imploro. Cinco minutos. Tenho ainda uma jogada a fazer. Algo que nunca mencionamos. Bradfield!
Sem dizer uma palavra, Bradfíeld abriu a porta do carro e saltou.
- Você afirma que não temos parte nenhuma nisso. Temos sim. Leo é um produto nosso, você sabe disso, nós fizemos dele aquilo que ele é, nós o esmagamos entre dois mundos. . . nós o aferramos dentro de si mesmo, fizemos com que visse coisas que ninguém jamais deveria ter visto, que ouvisse coisas que. . . nós o despachamos naquela viagem particular. . . você não sabe como é aquilo lá. Eu sei! Bradfíeld, escute! Nós somos devedores dele. Ele sabia disso.
- Todos nós somos devedores. Poucos são credores.
-Você quer destruí-lo! Você quer transformá-lo em nada! Você quer demiti-lo porque Leo era amante dela! Porque.. .
- Meu Deus - interveio Bradfíeld, suavemente. - Se esse fosse o objetivo que eu tivesse estabelecido para mim mesmo, teria que matar mais de 32. Isso era tudo o que queria me dizer?
- Espere aí! Bruxelas. . . o Mercado. . . tudo isso. A próxima semana é de ouro, a semana seguinte à do Pacto de Varsóvia. Nós nos alistaríamos no Exército de Salvação, se isso agradasse aos americanos. Que importância têm os nomes?. . . Você vê tudo isso com mais clareza do que nós: o desvio de rota. Por que prosseguir dessa forma? Por que você não dá um basta?
- O que vou fazer com Harting? Diga-me o que mais posso fazer com ele, além de demiti-lo? Você sabe como são as coisas por aqui. As crises são acadêmicas. Os escândalos, não. Você ainda não percebeu que somente as aparências têm valor?
- Isto não é verdade! Você não pode ser assim tão apegado à superfície das coisas - retrucou Turner, energicamente.
- O que existe mais, quando a parte de dentro está podre? Quebre a Superfície e podemos mergulhar. Foi o que fez Harting. Eu sou um hipócrita - continuou ele, com simplicidade - creio demais na hipocrisia. Foi o mais próximo da virtude a que já cheguei. É uma declaração sobre o que deveríamos ser. Como a religião, como a arte, como a lei, como o casamento. Sirvo à aparência das coisas. É o pior dos sistemas; mas melhor do que os outros. Essa é a minha profissão e a minha filosofia. E, ao contrário de você - acrescentou Bradfield - não estabeleço contratos para servir a uma nação poderosa, menos ainda a uma nação virtuosa. Todo poder corrompe. A perda do poder corrompe ainda mais. Agradecemos a um americano por esse conselho. É bastante verdadeiro. Somos uma nação corrupta e necessitamos de toda a ajuda que pudermos conseguir. Isso é lamentável e, confesso, ocasionalmente humilhante. Nada obstante, prefiro falhar como poder do que sobreviver pela impotência. Prefiro perder a me manter neutro. Prefiro ser inglês do que ser suíço. E, ao contrário de você, não espero coisa alguma. Não espero mais das instituições do que espero das pessoas. Então você não tem sugestões? Estou desapontando.
- Bradfield! Você a conhece. Conheço você e sei o que sente! Você odeia Leo! Odeia-o mais do que ousa admitir. Odeia-o por sentimento: por amor e até mesmo por ódio. Odeia-o por ser um velhaco e por ser honesto. Por dar atrás dela. Por levá-lo à vergonha. Odeia-o pelo tempo que ela passou com ele. .. pelos pensamentos, pelos sonhos dela em relação a ele!
Mas você não apresentou nenhuma sugestão. Creio que os seus cinco minutos estão esgotados. Leo transgrediu as normas - acrescentou casualmente, como se estivesse passando o assunto mais uma vez em analise. - Sim, transgrediu. Não tanto contra mim mesmo como você poderia supor. Mas contra a ordem resultante do caos; contra a moderação surgida de uma sociedade sem rumo. Não tinha razões para odiar Karfeld e nenhuma para. . . Ele não tinha nada que lembrar-se. Se você e eu temos ainda um objetivo qualquer, este objetivo será livrar o mundo de tais presunções.
- De todos vocês. . . Ouça!. . . De todos vocês ele é o único que é real, o único que acreditou e agiu! Para você, é um jogo estéril e desonesto, um jogo de palavras familiar, e isso é tudo; um passatempo. Mas Leo está envolvido! Ele sabe o que quer e vai conseguir o que quer!
- Sim. Isso somente já seria o bastante para condená-lo. - Agora, Bradfield havia esquecido Turner. - Não há mais lugar para os de seu tipo. Esta é a única coisa que nós aprendemos, graças a Deus. - Estava olhando para o rio. - Aprendemos que até mesmo nada é uma linda e delicada flor. Você fala como se houvesse aqueles que contribuem e aqueles que não contribuem. Como se todos nós estivéssemos trabalhando para o dia em que não mais fôssemos necessários; quando o mundo pudesse empacotar suas coisas e cultivar suas terras. Não há resultantes. Não há dia final. Esta é a vida para a qual trabalhamos. Agora. Neste momento. Todas as noites, quando vou dormir, digo para mim mesmo: mais um dia ganho. Mais um dia acrescentado à vida artificial de um mundo agonizante. E se eu nunca descansar, se eu nunca levantar os olhos, podemos prosseguir por mais cem anos. Sim. - Estava falando para o rio. - Nossa política é aquela maré de 10 centímetros. Dez centímetros de liberdade, para cima e para baixo na margem. Esse é o limite de nossa ação. Além disso, é a anarquia e todo o romântico blá-blá-blá de protesto e consciência. Todos nós ansiamos por uma maior liberdade, cada um de nós. Isso não existe. Aceitando este conceito, podemos sonhar à vontade. Harting, em primeiro lugar, não devia nunca ter ido lá embaixo. E você devia ter voltado para Londres, quando eu lhe falei. O Estatuto criou a lei do esquecimento. Ele a violou. Praschko está muito certo: Harting violou a lei da moderação.
- Nós não somos autômatos! Nós nascemos livres, creio eu! Não podemos controlar o processo de nossos próprios cérebros!
- Meu Deus, quem lhe disse tal coisa? - Encarou Turner e as lágrimas puderam ser vistas. - Tenho controlado o processo do meu cérebro em 18 anos de casamento e 20 de diplomata. Tenho passado metade da minha vida aprendendo a não olhar e a outra metade aprendendo a não sentir. Pensa que não posso aprender também a esquecer? Meu Deus, por vezes me dobro ante as coisas que não conheço! Assim, por que, diabo, não poderia também esquecer? Pensa que sinto prazer no que tenho de fazer? Você não acha que Harting me desafiou a fazer o que vou fazer? Quem deu a partida em tudo foi ele, não fui eu! Sua maldita presunção...
- Bradfield! E Karfeld? Karfeld não saiu dos limites também?
- Há formas muito diferentes de tratar do caso Karfeld. - A carapaça novamente se fechara em torno de sua voz.
- Leo encontrou uma delas.
- A forma errada, como veio a ocorrer.
- Por quê?
- Deixe para lá o porquê.
Começou a encaminhar-se lentamente de volta ao carro, mas Turner ainda estava se dirigindo a ele.
- O que fez com que Leo fugisse? Alguma coisa que leu. Alguma coisa que ele roubou. O que havia na pasta verde? Que conversações formais e informais com políticos alemães eram aquelas? Bradfield! Quem esteve falando com quem?
- Abaixe sua voz, eles podem ouvir.
- Diga-me! Você andou conversando com Karfeld? Foi isso que levou Leo à fuga? Foi o que aconteceu?
Bradfield não respondeu.
- Meu Deus - sussurrou Turner. - Você é como todos os demais, afinal de contas. Como Siebkron e Praschko; nós estamos tentando acertar nosso número com o feliz vencedor de manhã!
- Cuidado! - alertou Bradfield.
- Allerton.. . o que Allerton disse...
- Allerton? Ele não sabe de nada!
- Karfeld veio de Hanover na noite daquela sexta-feira. Veio secretamente a Bonn. Para uma reunião. Era tão secreto que ele chegou e partiu a pé. Aquela noite, afinal de contas, você não foi a Hanover, não é mesmo? Você mudou seus planos, cancelou sua passagem. Leo ficou sabendo disso pela seção de viagens...
- O que você está dizendo é um absurdo completo.
- Você se encontrou com Karfeld em Bonn. Siebkron fez os arranjos, e Leo o seguiu porque sabia o que você andava procurando!
- Você ficou maluco.
- Não, não estou maluco. Mas Leo está, não? Porque Leo desconfiou. Durante todo o tempo, lá no fundo de seu cérebro, ele sabia que você estava secretamente se precavendo contra um fracasso em Bruxelas. Até que viu a pasta, até que na verdade viu e ficou sabendo, pensava que ainda podia agir dentro da lei. Mas, quando viu a pasta, ficou sabendo: realmente tudo estava acontecendo de novo. Ele percebeu. Eis por que estava apressado. Precisava deter você, precisava deter Karfeld, antes que fosse demasiado tarde!
Bradfield não disse nada.
- O que continha a pasta verde, Bradfield? O que Leo levou consigo como lembrança? Por que aquela foi a única pasta que ele roubou? Porque ela continha as minutas daqueles encontros, não é mesmo? E foi isso o que atraiu o seu fogo, Bradfield! Você tem que conseguir a pasta verde de volta! Você assinou as minutas, Bradfield? Com aquela sua caneta tão solícita? - Seus olhos claros estavam iluminados pela raiva. - Quando foi que ele roubou a caixa de correspondência, vamos raciocinar: sexta-feira. . . sexta-feira pela manhã ele fez sua verificação, não é mesmo? Percebeu em preto e branco: ali estava a outra prova que procurava. Levou-a a Aickman. . . "Eles voltaram aos seus velhos truques, temos que parar com isso antes que seja demasiado tarde. . . Nós somos os escolhidos." Eis aí por que Leo roubou a pasta verde! Para mostrar a eles! Crianças vejam, ele diria, a história está de fato se repetindo e não se trata absolutamente de uma comédia!
- Era um documento ultra-secreto. Só por isso ele poderia ir para a prisão durante anos.
- Mas ele não irá, porque você quer a pasta e não o homem. Isso é uma outra parte da liberdade de 10 centímetros, não é mesmo?
- Você preferiria que eu fosse um fanático?
- O que Leo vinha suspeitando há meses, apanhado no ar entre os boatos de Bonn e os pedacinhos que dela conseguiu; agora, ali estava aprova: a prova de que os ingleses estavam cercando suas apostas. Saindo-se com uma política de aproveitamento com relação ao eixo Bonn-Moscou. Qual era a jogada, Bradfield? Qual a carta marcada? Cristo, não é de admirar-se que Siebkron tenha pensado que você estivesse fazendo um jogo tríplice! Em primeiro lugar, você jogou suas fichas em Bruxelas, de uma forma muito viva. "Não deixemos que coisa alguma perturbe o empreendimento." Em seguida, fez sua aposta em Karfeld e fez com que Siebkron aceitasse a parada. "Leve-me secretamente a Karfeld", você lhe teria dito. "Os britânicos estão também interessados em um eixo com Moscou." Imagine só, muito informalmente interessados. Conversações puramente exploratórias e sem testemunhas, imagine só. No entanto, um alinhamento comercial com o Leste não está inteiramente fora de cogitação, Herr Doktor Karfeld, se o senhor por acaso vier a tornar-se uma alternativa confiável a uma coalizão em desmoronamento! Na verdade, nós mesmos somos bastante antiamericanos nos dias de hoje, está no sangue, o senhor sabe, Herr Doktor Karfeld. . .
- Você perdeu sua vocação.
- E o que aconteceu? Mal Siebkron acabara de trazer Karfeld para sua cama, e soube o suficiente para que seu sangue gelasse: a Embaixada britânica está compilando em dossiê sobre o desagradável passado de Karfeld! A embaixada já estava de posse dos registros, os únicos registros, Bradfield, e agora estão prontos para chantageá-lo.
E isso não é tudo!
-Não.
- Siebkron e Karfeld mal se tinham refeito desse pequeno choque e você lhes forneceu um outro maior. Um que realmente os petrificou. Nem mesmo Albion poderia ser assim tão pérfida, pensaram eles: os britânicos, na realidade, estavam tramando assassinar Karfeld. É claro que é um absurdo. Por que matar o homem que você pretende chantagear? Devem ter ficado intrigadíssimos. Não é de admirar-se que Siebkron parecesse tão doente na noite de terça-feira.
-Agora você está sabendo de tudo. Você está a par do segredo: mantenha-o.
-Bradfield!
-Sim?
- Quem você quer que vença? Esta noite, lá adiante, em quem está o seu dinheiro, Bradfield? Em Leo ou no aliado de valor em baixa?
Bradfield deu a partida no motor.
- Amigos em baixa! São o único tipo de amigos que podemos ter! São o único tipo de amigos que temos entranhas para fazer! Somos uma nação orgulhosa, Bradfield! Você pode ter Karfeld agora com vinte e cinco por cento de desconto! Não importa que ele nos odeie. Ele chegará até nós! As pessoas mudam! E o tempo todo ele tem pensado em nós! Aí está uma animada partida! Um pequeno empurrão agora e ele ficará para sempre em movimento.
- Ou você está dentro ou está fora. Ou você está ou não está envolvido. - Pareceu hesitar. - Ou você preferia ser suíço?
Sem qualquer outra palavra ou olhar, Bradfield pôs o carro em movimento e partiu colina acima, virou à direita e desapareceu na direção de Bonn. Turner esperou até perdê-lo de vista antes de voltar pelo caminho do rio na direção da fila de táxis. De repente, ergueu-se por trás dele um inumano rumor de pés e vozes, o rumor mais triste e mais profundo que jamais ouvira em sua vida. As colunas haviam começado a mover-se; elas se arrastavam vagarosamente para a frente, vulgares, pesadonas e assustadoras, um monstro cinzento sem cérebro que não mais podia ser contido, enquanto além, quase perdido na névoa, destacava-se o contorno da colina de Chamberlain, coberta de vegetação.
Epílogo
Bradfield ia na frente; De Lisle e Turner seguiam-no. Ainda era cedo e as ruas estavam sem tráfego. Em toda Bonn nada se movia a não ser os estranhos mudos, vestidos de cinzento, que enchiam as alamedas e se dirigiam apressadamente na direção da praça do mercado. Os estandartes negros, serenados, deslocavam-se em faixas preguiçosas sobre a maré crescente.
Bonn nunca vira essas caras. O velho e o moço, o perdido e o realizado, o alimentado e o faminto, o inteligente e o estúpido, o governado e o desgovernado, todos os filhos da república tinham-se levantado em uma legião única a fim de marchar sobre os seus pequenos bastiões. Alguns eram montanheses, de cabelos escuros, pernas arqueadas e enfeitados para o evento; alguns eram escriturários, sofrendo ao contato com o ar fresco, alguns estavam em trajes domingueiros, a lenta infantaria dos passeios alemães, de gabardine cinzenta e chapéus Homburg cinzentos. Uns conduziam suas bandeiras encabulados, como se tivessem crescido mais do que elas, algumas como bandeiras feitas para o combate, outras como corvos abatidos para o mercado. Birnam Wood tinha vindo para Dunsinane.Bradfield esperou que os outros emparelhassem com ele.
- Siebkron nos reservou um lugar. Devemos penetrar na praça mais acima. Talvez tenhamos que forçar nosso caminho para a direita.
Turner concordou com a cabeça, sem prestar atenção às palavras de Bradfield. Estava olhando para todos os lugares, para cada rosto e cada janela, cada loja, cada esquina e cada passagem entre edifícios. De uma vez, segurou o braço de De Lisle, mas fosse quem fosse já desaparecera de novo, perdido na massa em movimento.
Não apenas a própria praça: sacadas, janelas, lojas, todos os lugares onde apoiar os pés, todas as saliências se encontravam cheias de casacos cinzentos e rostos pálidos e os uniformes verdes dos soldados da polícia. E estavam ainda chegando, mais gente ainda, entupindo as entradas das alamedas sombrias, esticando os pescoços para alcançar com a vista o palanque do orador, buscando um líder, homens sem rostos procurando um rosto; enquanto isso, Turner a todos perscrutava na procura desesperada de uma cara que nem sequer conhecia. Acima das cabeças, à frente dos projetores, alto-falantes pendiam de seus fios como avisos, além deles o céu mal aparecia.
Leo nunca o fará, pensava Turner obtusamente; jamais se infiltrará em uma multidão como essa. Mas a voz de Hazel Bradfield voltou aos seus ouvidos: Eu tive um irmão mais moço, meio amalucado, era difícil separar uma metade da outra.
- Para a esquerda - disse Bradfield. - Vamos para o hotel.
- Você é inglês? - perguntou uma voz feminina, hora do chá em uma casa amiga. - Minha irmã mora em Yarmouth. - A maré, porém, a levou embora. Bandeiras enroladas barraram-lhes o caminho, baixadas como lanças. As bandeiras formavam um anel, dentro do qual estudantes ciganos se encontravam, reunidos em torno de uma pequena fogueira particular. "Queimem Axel Springer", gritou um rapaz, não com muita convicção, e um outro destroçou um livro e o atirou nas chamas. O livro se queimou completamente, asfixiando-se antes de morrer. Eu não faria uma coisa dessas com livros, pensou Turner; eu vou fazer essa mesma coisa com as pessoas, não demora muito. Um grupo de moças repousava sobre colchões, enquanto o fogo transformava seus rostos em poemas.
- Se nos separarmos, vamo-nos encontrar nos degraus da Stern - comandou Bradfield. Um rapaz ouviu suas palavras e avançou, encorajado pelos outros. Já duas moças gritavam em francês. "Vocês são ingleses!", exclamou o rapaz, ainda que seu rosto fosse jovem e nervoso. "Porcos ingleses!" Ouvindo novamente as moças, o rapaz desferiu selvagemente um soco. Turner projetou-se para a frente, mas o golpe acertou o ombro de Bradfield, que não lhe deu atenção. Subitamente, a multidão abriu caminho, seu impulso misteriosamente desaparecido, e o Palácio da Cidade surgiu à frente deles na extremidade oposta da praça, e esse foi o primeiro sonho da noite. Uma mágica montanha barroca confeitada em cor-de-rosa e ouro vivo. Uma visão de estilo e de elegância, de seda, filigrana e luz do sol. Uma visão brilhante e de latina glória, palácios onde minuetos não tocados por De Lisle soavam agradavelmente no coração dos pesadões burgueses. À sua esquerda a plataforma, ainda escura, isolada pela cortina de projetores focalizados sobre o edifício, esperando como um carrasco pela presença imperial.
- Herr Bradfield? - indagou o pálido detetive. Ele ainda não havia mudado o casaco desde aquela madrugada em Kònigswinter, mas faltavam dois dentes em sua boca negra. Seus companheiros de cara de lua se excitaram ao reconhecer o nome.
- Sou Bradfield, sim.
- Recebemos ordens de liberar os degraus para o senhor. - Seu inglês era ensaiado: um pequeno papel para um recém-chegado. O rádio em seu bolso de couro estralejava em urgentes comandos. Levou o aparelho à altura da boca. O cavalheiro diplomata havia chegado, disse ele, e estavam todos em sua localização segura. O cavalheiro da pesquisa também se encontrava presente.
Turner olhou ostensivamente para a boca arrebentada e sorriu.
- Seu safado - disse Turner, com satisfação. O lábio também fora atingido e cortado, embora não tanto como o de Turner.
- Como?
- Safado - explicou Turner. - Filho da puta.
- Cale a boca - determinou Bradfield.
Dos degraus, dominava-se com o olhar toda a praça. Já então a tarde tinha-se transformado em crepúsculo; os vitoriosos refletores dividiam as incontáveis cabeças em faixas brancas que flutuavam como discos pálidos sobre um mar negro. Casas, lojas, cinemas, tinham desaparecido. Somente suas cumeeiras remanesciam, projetando-se como silhuetas de contos de fadas sobre o céu escuro, e esse era o segundo sonho, Contos de Hoffman, o mundo de madeira do faz-de-conta alemão para prolongar a infância dos alemães. Lá em cima, em um dos telhados, um anúncio de Coca-Cola, acendendo-se e apagando-se, lançando sobre os telhados próximos uma coloração de cosmético cor-de-rosa; por uma vez, um errante refletor varreu as fachadas, perscrutando com olho de amante as vitrinas vazias das lojas. Nos degraus mais abaixo, os detetives esperavam, de costas para eles, mãos nos bolsos, negros contra a bruma.
- Karfeld vai chegar pelo lado - disse De Lisle de repente. - Pela passagem à esquerda.
Seguindo a direção indicada pelo braço esticado de De Lisle, Turner notou, pela primeira vez, diretamente sob a base da plataforma, uma estreita passagem entre a farmácia e a Torre da Cidade, não tendo mais do que uns três metros de largura e tornada muito profunda pelas altas paredes dos edifícios adjacentes.
- Nós permaneceremos aqui, está claramente compreendido? Nestes degraus, aconteça o que acontecer. Estamos aqui como observadores, como meros observadores e nada mais. - As feições duras de Bradfield se acentuaram ainda mais ante o dilema. - Se o encontrarem vão entregá-lo a nós. Essa foi a combinação. Devemos levá-lo imediatamente para a embaixada, numa custódia em segurança.
Música, lembrou-se Turner. Em Hanover ele havia tentado quando a música se fazia mais alta. A música supostamente abafaria o espocar do tiro. Lembrou-se também dos secadores de cabelos e pensou: ele não é um homem para mudar de técnica; se deu certo antes, vai dar certo de novo e aí está o que existe de alemão dentro dele; como Karfeld e os ônibus cinzentos.
Seus pensamentos se perdiam no murmúrio da multidão, o agradável rosnado de expectativa que crescia como um orador irado, quando as luzes se apagam. Somente a Torre da Cidade permanecia, altar puro e radioso, adornada pelo pequeno grupo que aparecia em sua sacada. Os nomes foram aparecendo em inúmeras bocas, enquanto à sua volta o lento comentário litúrgico tinha início:
Tilsit, Tilsit estava lá, o velho general, o terceiro a contar da esquerda e, olhe, está usando a medalha, aquela que pretenderam negar-lhe, a medalha especial de guerra, que ele usa pendente ao pescoço, Tilsit é um homem de coragem. Meyer-Lothringen, o economista! Sim, Der Grasse, aquele alto, como se move elegantemente, sabe-se muito bem que ele pertence à melhor família; meio Wittelsbach, dizem; o sangue dirá no final; e um grande acadêmico; de tudo ele entende. E sacerdotes! O bispo! Olhe, o próprio bispo nos está abençoando! Veja os movimentos de suas santas mãos! Ele agora está olhando para sua direita! Esticou o braço! E Halbach, o jovem de cabeça quente! Olhe, está de pulôver! Sua impertinência é fantástica: um pulôver em uma tal ocasião? Em Bonn? Halbach! Du toller Hund! Mas Halbach é de Berlim e os berlinenses são famosos por sua arrogância; um dia ele será o líder de todos nós, tão moço e já tão bem-sucedido.
O murmúrio cresceu até chegar a um bramido, um bramido visceral, faminto, de amor, mais profundo do que de qualquer garganta isolada, mais piedoso do que de qualquer alma isolada, mais amorosa do que de qualquer coração isolado; e morreu novamente, acalmando-se, enquanto os primeiros acordes da música se faziam ouvir. A Torre da Cidade recuou e a' plataforma se ergueu à sua frente. O púlpito de um pregador, a ponte de comando de um capitão, o pódio de um regente? Um berço de criança, um caixão simples de madeira simples, grandioso ainda que virtuoso, um •gral de madeira, alojando a verdade alemã. Em cima dele, sozinho mas valente, o único campeão da verdade, um homem simples conhecido como Karfeld.
- Peter. - Turner apontou delicadamente para a estreita passagem. Sua mão tremia, mas sua vista estava firme. Uma sombra? Um guarda assumindo seu posto?
- Se eu fosse você, não apontava mais para coisa alguma - sussurrou De Lisle. - Podem interpretar mal o seu gesto.
Naquele momento, porém, ninguém estava dando atenção a eles, pois Karfeld era tudo o que viam.
- Der Klaus! - gritava a multidão. - Der Klaus chegou! - Acenem para ele, crianças; Der Klaus, o mágico, venceu toda a jornada até Bonn sobre andas de pinho alemão.
- É muito inglês, Der Klaus. - Turner ouviu De Lisle murmurar. - Ainda que odeie nossas entranhas.
Lá em cima, Karfeld parecia um homenzinho. Diziam que ele era alto; e teria sido fácil, dispondo de tantos artifícios, alteá-lo 30 centímetros ou mais, porém parecia que ele queria ficar mais baixo, como se para dar ênfase a que as grandes verdades saem das bocas humildes; pois Karfeld era um homem humilde e inglês em seu acanhamento.Karfeld era também um homem nervoso, atrapalhado por seus óculos, que não tinha tempo para limpar, aparentemente, nesses dias tão ocupados, pois agora os havia tirado e os limpava, como se não soubesse que estava sendo observado: quem estava fazendo a cerimônia eram os outros, estava dizendo ele, antes de haver pronunciado uma só palavra; não só vocês como eu sabemos por que estamos aqui.
Vamos rezar.
- As luzes são demasiado fortes para ele - comentou alguém.
Ele era um deles, esse solitário Doutor; uma grande dose de poder mental, sem dúvida, uma boa dose acima das orelhas, mas mesmo assim, um deles afinal de contas, pronto a descer daquele pedestal a qualquer momento, caso aparecesse alguém melhor. E absolutamente não era um político. Quase sem ambição, de fato, pois ontem apenas prometera ceder o lugar a Halbach, se essa fosse a vontade do povo. A multidão sussurrava suas preocupações. Karfeld parece cansado, parece descansado; parece estar bem; Karfeld parece doente, mais velho, mais moço, mais alto, mais baixo. . . Fala-se que ele está-se aposentando; não, vai deixar sua fábrica e dedicar-se totalmente à política. Karfeld não pode fazer uma coisa dessas; Karfeld é um milionário.
Calmamente, Karfeld começou a falar.
Ninguém o apresentou nem ele disse seu nome. O acorde musical que anunciara sua chegada não teve companhia, pois Klaus Karfeld ali se encontra sozinho, completamente sozinho, e nenhuma música poderá consolá-lo. Karfeld não é um cabeça-oca de Bonn; ele é um de nós por toda sua inteligência: Klaus Karfeld, doutor e cidadão, um homem decente, decentemente preocupado com o destino da Alemanha, é obrigado, pelo seu senso de honra a dirigir-se a alguns amigos.
Isso era feito com tanta suavidade, com tanta naturalidade, que parecia a Turner que toda a maciça audiência na verdade inclinava os ouvidos a fim de poupar a Karfeld o sofrimento de ter que elevar sua voz.
No final, Turner não poderia dizer o que compreendeu nem como compreendeu tanto. No início, teve a impressão de que o interesse de Karfeld fosse puramente histórico. A fala era sobre a origem da guerra, e Turner percebeu os velhos chavões da velha religião, Versalhes, caos, depressão e envolvimento; os erros cometidos por estadistas de ambos os lados, pois os alemães não poderiam furtar-se às suas próprias responsabilidades. Seguiu-se um pequeno tributo às baixas do irracionalismo: pessoas em demasia morreram, disse Karfeld, e poucas sabiam a causa. Isso jamais deverá acontecer de novo, Karfeld sabia: de Stalingrado ele trouxera mais do que ferimentos; trouxera lembranças, lembranças indeléveis, de sofrimento humano, mutilações e traições...
Na verdade, murmuraram, ele era o pobre Klaus, que havia sofrido por nós todos.
Ainda não havia retórica. Vocês e eu, estava dizendo Karfeld, temos aprendido as lições da história; vocês e eu, podemos olhar essas coisas com imparcialidade: elas não devem de novo acontecer jamais. Era verdade ter havido quem encarasse as batalhas de 1914 e de 1939 como parte de uma continuada cruzada contra os inimigos da herança alemã, mas Karfeld - e ele desejava que todos os seus amigos soubessem disso - Klaus Karfeld não pertencia absolutamente a essa escola.
- Alan. - Era a voz de De Lisle, firme como a de um comandante. Turner seguiu seu olhar.
Uma agitação, um movimento da massa, o passar de uma mensagem? Algo se agitava na sacada. Viu Tilsit, o General, inclinar sua cabeça de soldado e Halbach, o líder estudantil, sussurrar em seu ouvido, viu Meyer-Lothringen inclinar-se para a frente sobre a grade de filigrana, para escutar alguém que se encontrava embaixo. Um policial? Um civil? Viu o brilho dos óculos e a cara de cirurgião paciente, quando Siebkron se levantou e desapareceu; e tudo parou novamente com exceção de Karfeld, acadêmico e homem de raciocínio, que era quem hoje estava com a palavra.Hoje, dizia ele, como nunca anteriormente, a Alemanha era o joguete de seus aliados. Eles a haviam comprado, agora a estavam vendendo. Isso era um fato, assegurou Karfeld, pois ele não abordaria algo teórico. Já havia em Bonn demasiadas teorias, explicou, e ele não pretendia aumentar a confusão. Isso era um/aro, e se tornava necessário, conquanto doloroso, debater entre amigos bons e sensatos como os aliados da Alemanha tinham conseguido esse estranho estado de coisas. Afinal de contas, a Alemanha era um país rico, mais rico do que a França e mais rico do que a Itália. Mais rico do que a Inglaterra, acrescentou casualmente, mas não podemos ser rudes com os ingleses, pois os ingleses afinal de contas ganharam a guerra e eram um povo de dotes incomuns. Sua voz permanecia maravilhosamente controlada, enquanto enumerava os dotes dos ingleses: suas minissaias, seus cantores pop, seu Exército do Reno com sede em Londres, seu Império em desmoronamento, seu déficit nacional. . . sem esses dotes ingleses a Europa certamente sucumbiria. Karfeld sempre dissera isso.
Nesse ponto todos riram; era um riso caloroso e indignado, e Karfeld parecia chocado e talvez um pouquinho desapontado, pelo fato de que esses bem-amados pecadores, a quem Deus, em Sua bondade, havia-lhe indicado em sua humildade como aqueles a quem instruir, se pusessem a rir dentro do templo. Karfeld aguardou pacientemente até que o riso cessasse.
Como então, se a Alemanha era tão rica, se possuía o maior exército mobilizável da Europa e podia dominar o assim denominado Mercado Comum, como então era possível que ela se deixasse vender em público como uma prostituta?
Reclinando-se para trás no pódio, Karfeld retirou os óculos e fez com as mãos um gesto, cauteloso e pacificador, e se fizeram ouvir ruídos de protesto e de indignação, mas Karfeld, nitidamente, não se preocupava com essas coisas. Temos que tentar resolver essa questão de uma forma razoável, generosa e completamente racional, sem emoções e sem rancores, como compete a bons amigos! Era uma mão gorducha e arredondada e que poderia até ter sido costurada, pois nunca separava os dedos, usando o punho cerrado como um bastão.
Procurando, então, uma explicação racional para esse curioso - e, para os alemães pelo menos, altamente relevante - fato histórico, a objetividade se fazia essencial. Em primeiro lugar - o punho novamente se deslocou para cima - tivemos 12 anos de nazismo e 35 de antinazismo. Karfeld não entendia o que havia assim de tão errado no nazismo que tivesse que ser punido eternamente com a total hostilidade do mundo. Os nazistas haviam perseguido os judeus e aí estava o erro. Desejava que ficasse registrado que isso fora um erro. Do mesmo modo que condenava Oliver Cromwell por seu tratamento com relação aos irlandeses, os Estados Unidos com relação aos negros e às suas campanhas de genocídio contra os índios e o perigo amarelo do Sudeste asiático; do mesmo modo que condenava a Igreja por sua perseguição aos hereges, os ingleses pelo bombardeio de Dresden, assim também condenava Hitler pelo que tinha feito aos judeus; e por ter importado aquela invenção britânica, de tanto êxito na Guerra dos Bôeres: o campo de concentração.
Diretamente à sua frente, Turner viu a mão do detetive jovem ser levada suavemente até a abertura do seu casaco de couro; tornou a ouvir o estralejar do rádio. Uma vez mais, Turner aguçou a vista perscrutando a multidão, a sacada, as passagens; uma vez mais correu os olhos nos portais e nas janelas; mas nada viu. Nada a não ser as sentinelas postadas em cima dos telhados e a milícia esperando nos caminhões; nada a não ser uma imensa multidão de homens e mulheres silenciosos, tão imóveis quanto Deus irado ante a presença da Palavra.
Vamos examinar, sugeriu Karfeld - já que isso nos ajudará a chegar a uma solução lógica e objetiva de inúmeras questões que atualmente nos preocupam - vamos examinar o que aconteceu depois da guerra.
Depois da guerra, explicou Karfeld, era muito justo que os alemães fossem tratados como criminosos; e, como os alemães haviam praticado o racismo, que seus filhos e netos fossem também tratados como criminosos. Mas, como os Aliados eram gente generosa, a gente de bem, eles iam de algum modo reabilitar os alemães; como uma concessão muito especial permitiriam que tomassem parte na OTAN.
No início, os alemães sentiram-se acanhados; não desejavam rearmar-se, havia muitas pessoas que estavam saturadas de guerra. Karfeld, mesmo, pertencia a essa categoria: as lições de Stalingrado eram como um ácido corroendo as recordações de um jovem. Mas os Aliados além de bondosos eram determinados. Os alemães entrariam com o exército e os ingleses e franceses iriam comandá-lo. . . E os holandeses, os noruegueses e os portugueses. . . e qualquer outro general estrangeiro que quisesse comandar os vencidos:
- Ora, poderemos mesmo ter generais africanos comandando o Bundeswehr!
Alguns - entre aqueles que estavam na frente, integrando o anel protetor de homens com casacos de couro por baixo da plataforma - alguns começaram a rir, mas ele os fez calarem imediatamente.
- Escutem! - disse Karfeld. - Meus amigos, vocês devem escutar! Foi isso o que merecemos! Nós perdemos a guerra! Nós perseguimos os judeus! Nós não somos capazes de comandar! Somente de pagar! - Sua raiva aplacou-se gradualmente. - Isso - explicou - é porque nós pagamos também pelo Exército britânico. E aí está por que permitiram que entrássemos na OTAN.
-Alan!
- Eu os vi.
Dois ônibus cinzentos se encontravam estacionados ao lado da farmácia. Um projetor passou por sua lataria e se afastou. As janelas estavam completamente às escuras, vedadas pelo lado de dentro.
E nos sentimos agradecidos, continuava Karfeld. Agradecidos por termos sido admitidos a um clube tão exclusivo. Claro que estávamos agradecidos. O clube não existia; seus membros não gostavam de nós; as taxas eram muito altas; e como os alemães ainda eram crianças, não deviam brincar com armas que poderiam ferir os nossos inimigos; mas, de qualquer modo, nós estávamos agradecidos, porque somos alemães e perdemos a guerra.
Uma vez mais levantou-se o indignado burburinho, mas uma vez mais ele o fez cessar com um incisivo movimento de mão.
- Não queremos emoções - lembrou. - Estamos lidando com fatos! Numa minúscula saliência em um plano superior uma mãe cochichou com seu bebê:
- Olhe lá. Você nunca mais vai vê-lo assim.
Em toda a praça nada se movia; as cabeças permaneciam paradas, olhando com olhos cavernosos.
Para dar ênfase a sua grande imparcialidade, mais uma vez Karfeld recuou no pódio e, pelo tempo que quis, ajeitou os óculos e examinou as páginas que tinha à sua frente. Isto feito, hesitou um pouco, olhou duvidosamente para baixo, para os rostos que se encontravam mais perto dele, deliberadamente, inseguro quanto até onde podia esperar que o rebanho seguisse o que ia dizer.
Qual então era a função dos alemães naquele destacado clube? Poria as coisas dessa forma. Primeiro, daria a fórmula e, em seguida, apresentaria um ou dois exemplos simples da maneira pela qual ela poderia ser aplicada. A função dos alemães na OTAN era simplesmente a seguinte: docilidade com o Ocidente e hostilidade com o Leste; reconhecer que mesmo entre os vitoriosos Aliados havia bons vencedores e maus vencedores. ..
Mais uma vez os risos surgiram e morreram. Der Klaus, cochichavam, Der Klaus sabe como soltar uma piada; que clube é essa OTAN. OTAN, Mercado Comum, tudo uma tapeação, tudo a mesma coisa; estão aplicando no Mercado os mesmos princípios que aplicaram na OTAN. Klaus tem-nos dito isso e aí está a razão pela qual os alemães devem ficar longe de Bruxelas. É mais uma armadilha, é o envolvimento completo mais uma vez...
- Aquele é Lésère - cochichou De Lisle.
Um homem pequenino e começando a ficar grisalho, lembrando obscuramente a Turner um motorista de ônibus, havia-se juntado a eles nos degraus e tomava notas alegremente em sua caderneta.
- O conselheiro francês. Grande admirador de Karfeld.
Quando já ia voltar os olhos para a plataforma, aconteceu que Turner olhasse para a rua lateral; foi então que viu pela primeira vez o diminuto, sombrio e amalucado exército, aguardando o sinal.
Diretamente do outro lado da praça, reunido na rua lateral sem iluminação, o silencioso grupo de homens aguardava. Conduziam bandeiras que não eram assim tão negras ao crepúsculo e, à sua frente, Turner estava certo de que se encontravam os remanescentes de uma banda militar. A luz lateralmente projetada pelos refletores fazia brilhar uma cometa e ressaltava os enfeites dos tambores. À sua frente, erguia-se uma figura solitária; o braço estendido como o de um maestro os mantinha imóveis.
Novamente os estalidos no rádio, mas as palavras foram abafadas pelas gargalhadas, pois Karfeld fizera uma outra piada; uma piada severa, suficiente para provocar-lhes raiva, uma referência ao apodrecimento da Inglaterra e à pessoa da monarca. O tom de voz era novo e duro: uma luz surgiu às suas costas, mais viva, um carinho propositado, prometendo a excitação que se aproximava, traçando como as pontas de um chicote as pequeninas vértebras de seu ressentimento político. Assim, a Inglaterra, com os seus aliados, havia reeducado os alemães. E quem estaria melhor qualificado? Afinal de contas, Churchill deixara os selvagens dentro de Berlim; Truman havia lançado bombas atômicas sobre cidades indefesas; entre eles haviam transformado a Europa em ruínas; quem melhor qualificado, então, para ensinar a Alemanha o significado da civilização?
Na rua lateral, nada se tinha movido. O braço do líder ainda se mantinha estendido diante da pequena banda, enquanto aguardavam o sinal para dar início à música.
- São os socialistas - sussurrou De Lisle. - Estão encenando uma contra demonstração. Quem, diabo, permitiu que eles viessem?
Então os Aliados se entregaram ao trabalho: os alemães deviam •aprender como comportar-se. Estava errado matar judeus, explicavam; em lugar disso, matem os comunistas. Estava errado atacar a Rússia, explicavam; mas nós protegeremos vocês, se a Rússia os atacar. Estava errado lutar por suas fronteiras, explicavam; mas nós apoiaremos as suas reivindicações pelos territórios do Leste.
- Todos conhecemos esse tipo de apoio! - Karfeld manteve as mãos com as palmas para cima. - Aqui estão vocês, meus caros, aqui estão vocês! Podem contar com a proteção de meu guarda-chuva enquanto quiserem; até que chova!
Seria imaginação de Turner ou teria ele detectado, nesse lance teatral, um indício daquele tom de dissimulação que tradicionalmente nos salões de música alemães assinalavam os judeus? Começaram a rir, mas novamente Karfeld restabeleceu o silêncio.
Na rua lateral, o braço do regente continuava erguido. Será que ele não se cansará nunca dessa horrível saudação?
- Eles serão assassinados - insistiu De Lisle. - A multidão vai matá-los.
E assim, meus amigos, foi isso o que aconteceu. Nossos vencedores em toda sua pureza, em toda sua sabedoria, nos ensinaram o significado de democracia. Um hurra para a democracia. A democracia é como o Cristo; não há nada que não se possa fazer em nome da democracia.
- Praschko - comentou Turner, em voz baixa. - Praschko escreveu isso para ele.
- É quem escreve muito do que ele diz - confirmou De Lisle.
- Democracia é matar negros na América e dar-lhes camas douradas na África! Democracia é reger um império colonial, lutar no Vietnã e atacar Cuba; democracia é reger as consciências com relação aos alemães! Democracia é saber que o que quer que alguém faça, nunca, nunca será tão ruim quanto um alemão!
Ele ergueu a voz para dar o sinal, o sinal pelo qual a banda esperava. Uma vez mais, Turner olhou para a rua lateral, por cima da multidão, viu a mão branca, branca como um guardanapo, baixar lentamente à luz da lâmpada, teve um vislumbre do rosto branco quando Siebkron abandonava rapidamente seu posto de comando e se retirava para as sombras do calçamento, viu a primeira cabeça voltar-se à sua frente, depois outra e finalmente sua própria cabeça quando também ouviu: o som distante de música, de uma banda de percussão, homens cantando; viu Karfeld debruçar-se no palanque e chamar alguém que se encontrava embaixo; viu-o recuar até o mais profundo recesso, continuando a falar, percebeu, quando Karfeld assumiu um súbito tom de indignação, percebeu, através da nova explosão de indignação de Karfeld e de sua exortação gritada aos altos brados, através de toda a conjuração, as injúrias e o encorajamento, percebeu a inequívoca nota do medo.
- Os socialistas! - gritou o jovem detetive, em tom bem acima do da multidão. Tinha os calcanhares juntos e as ombreiras de couro forçadas para trás e gritava através das mãos em concha. - Os socialistas estão ali naquela alameda! Os socialistas estão nos atacando!
- É uma manobra diversionista - disse Turner, da forma o mais casual. - Siebkron a está encenando. Ê para atraí-lo, pensou ele, para que Leo apareça e lhe dê uma chance de pôr-lhe a mão. Mas a música aí está para abafar o tiro, acrescentou para si mesmo, enquanto a Marselhesa começava a ser tocada. Está tudo preparado para que ele se revele.
No início, ninguém se mexeu. Os acordes de abertura mal foram ouvidos; notas abafadas e irrelevantes tocadas por uma criança em uma gaita de boca. E a cantoria que a acompanhava não era mais do que os cânticos masculinos de uma cervejaria de Yorkshire em uma noite de sábado, remota e sem convicção, emanada de bocas não acostumadas à música; e, para começar, a multidão realmente os ignorou, devido ao seu interesse em Karfeld.
Karfeld, porém, ouvira a música e isto o apressara nitidamente.
- Sou um homem idoso - gritou. - Cedo serei um velho. O que vocês dirão para si mesmos, meus jovens, quando despertarem pela manhã? O que dirão, quando olharem para a prostituta americana que é Bonn? Vocês dirão o seguinte: por quanto tempo, jovens, poderemos viver sem honra? Olharão para o seu governo e dirão; olharão para os socialistas e dirão: devemos seguir até um cachorro somente porque ele está no governo?
Karfeld citou Lear, absurdamente na opinião de Turner, e os projetores se extinguiram de uma só vez, a um negro descer de cortinas; uma escuridão completa se abateu sobre a praça e, com ela, elevou-se o cantar da Marselhesa. Turner detectou o cheiro acre de breu conduzido pela brisa da noite, enquanto em inúmeros pontos centelhas surgiam e apagavam-se; ouviu o chamado sussurrado e a resposta também sussurrada, ouviu a ordem ser passada de boca em boca em apressada conspiração. O canto e a música elevaram-se até um ribombar, apanhados súbita e deliberadamente pelos alto-falantes: um trovejar da plebe monstruoso, e ostensivo, ampliado e destorcido quase a um ponto de não reconhecimento, ensurdecedor e enlouquecedor.
Sim, repetia Turner para si mesmo, com saxônica clareza, era o que eu faria se fosse Siebkron. Eu montaria essa manobra diversionista, levantaria a multidão e faria bastante barulho para provocar Leo a atirar.
A música se fez ouvir ainda mais alto. Viu o policial voltar-se e encará-lo e o jovem detetive erguer uma das mãos em alerta.
- Fique aqui, por favor, Sr. Bradfield! Sr. Turner, fique aqui.
A multidão se agitava excitada, em seu derredor, Turner podia escutar o zumbido dos cochichos, sibilantes e curiosos.
- Tirem as mãos dos bolsos, por favor!
Tochas surgiram em toda sua volta; alguém tinha dado o sinal. Surgiram como esperanças selvagens iluminando as faces preocupadas, transformando em sonhos alucinados suas feições prosaicas, imprimindo em seus olhos a devoção de apóstolos. A pequenina banda avançava para o centro da praça; talvez seu efetivo não fosse de mais de 20 homens, e o exército que marchava em sua esteira era maltrapilho e indeciso, mas agora sua música ressoava por toda parte, uma ameaça socialista ampliada pelos alto-falantes de Siebkron.
- Os socialistas! - tornou a gritar a multidão. - Os socialistas estão nos atacando!
O palanque estava vazio, Karfeld tinha ido embora, mas os socialistas marchavam ainda por Marx, pelo judaísmo e pela guerra.
Acabem com eles, acabem com os nossos inimigos! Acabem com os judeus! Acabem com os Vermelhos! Acabem com a escuridão - bradavam vozes. - Acendam as luzes, persigam os espiões e os sabotadores; os socialistas são os responsáveis por tudo.
A música soou ainda mais alta.
- Agora - disse De Lisle, calmamente. - Conseguiram atraí-lo.
Um grupo silencioso e diligente tinha-se reunido em torno das pernas brancas do palanque; os casacos de couro andavam de ombros curvados, as caras de lua se movimentando para cá e para lá, tudo conferindo.
- Os socialistas! Matem os socialistas! - A fermentação da multidão crescia; o palanque tinha sido esquecido. - Matem-nos! Seja quem for de quem vocês queiram vingar-se, acabem com eles aqui: judeus, negros, tarados, conspiradores, contestadores, provocadores, pais, amantes; eles são bons, são maus, são idiotas, são inteligentes.
- Matem os judeus socialistas! - Nadadores saltando, as vozes sussurravam. Marche! Marche!
Temos que matá-lo, Praschko, dizia para si mesmo Alan Turner em sua confusão, ou estaremos novamente usando identificações...
- Matar quem? - perguntou a De Lisle. - O que estão eles fazendo?
- Perseguindo o sonho.
A música subira a uma nota única, um odioso, cruel e ensurdecedor ruído, uma convocação à batalha e à raiva, uma convocação para pôr fim ao que era feio, para destruir os doentes e os radicais, os estropiados, os repugnantes e os incompetentes. Subitamente, à luz dos refletores, as bandeiras negras foram erguidas e agitadas como mariposas despertadas, a multidão pareceu agitar-se e inclinar-se até que os cordões se romperam e os refletores se dirigiram para as passagens, empurrando a banda à sua frente, aclamando-a como a um herói, abafando-a com beijos, dançando em fúria à sua música, esmagando as vitrinas e os instrumentos, levando as bandeiras vermelhas a se destacarem e mergulharem como manchas de sangue, para em seguida desaparecerem sob a multidão, que, pesadona e em burburinho, arrastada ao acaso por seus próprios refletores, havia atingido a sua lateral e mais além. O rádio estralejou. Turner ouviu a voz de Siebkron, fria e perfeitamente nítida, ouviu a sarcástica ordem: Schaffott. E em seguida já se estava dirigindo às pressas até o palanque, sentiu as mãos dos sobreviventes agarrando-se nele e delas se desligou. Estava correndo. Mãos o agarraram e se desfez delas como de gravetos. Um rosto se ergueu à sua frente e ele o afastou para chegar ao palanque. Foi então que o viu.
- Leo! - gritou.
Ele estava agachado como um artista de solo entre os pés imóveis. Todos se encontravam à sua volta, mas ninguém o tocava. Estavam suficientemente próximos, mas haviam deixado espaço para que ele morresse. Turner o viu levantar-se e cair novamente e mais uma vez gritou: "Leo!" Viu os olhos escuros se voltarem em sua direção e ouviu o seu grito de resposta, a Turner, ao mundo, a Deus ou à piedade, ou à compaixão de qualquer homem que o pudesse salvar do fato. Turner viu o corpo arquear-se, abaixar-se e correr; viu o chapéu Homburg rolar pela calçada e disse:
-Leo!
Empunhara uma tocha e sentia o cheiro de pano chamuscado. Estava brandindo a tocha, afastando as mãos, mas subitamente não encontrou mais resistência; permaneceu na praia, por baixo do palanque, olhando sua própria vida, seu próprio rosto, as mãos do amante agarrando-se nas pedras, os panfletos que esvoaçavam por cima do corpo pequeno.
Não havia arma alguma perto dele; nada para mostrar como tinha morrido, somente o pescoço desconjuntado onde duas peças não mais se encaixavam. Ali jazia Harting como uma boneca quebrada em vários pedaços, cuidadosamente arrumados, pressionada pelo ar cálido de Bonn. Um homem que sentira e não sentia mais; um inocente, procurando além da praça, um prêmio que jamais obteria. Lá ao longe, Turner escutou o grito indignado da multidão e às suas costas surgiu o foco de uma lanterna e o som de passos que se aproximavam.
- Revistem seus bolsos - disse alguém, em uma voz calma de saxão.
John Le Carré
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