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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


UMA PONTE PARA PASSAR / Pearl S. Buck
UMA PONTE PARA PASSAR / Pearl S. Buck

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

Lembro-me do dia em que decidi fazer o filme no Japão, um dia de abril, há um ano, um dia como este no qual começo a história de meu regresso à Ásia. Sempre soube que o regresso era inevitável, não um regresso permanente, pois me sinto demasiado feliz em minha terra para pensar em viver noutro lugar, mas, apesar de tudo, um regresso. Não se vive metade da vida na Ásia, sem um regresso. Quanto à época, à causa, ou à concretização, mesmo, do regresso, eram coisas que eu não sabia. Neste nosso mutável mundo, o que mais muda é a geografia. A terra amiga da China, berço de minha infância e juventude, é, por enquanto, terra proibida. Recuso-me a chamá-la país inimigo. Em minha memória, o povo é extremamente bom e o país extremamente belo.
A China, porém, não é toda a Ásia, embora seja a maior parte dela. Há outros países aos quais eu poderia regressar - Japão, índia, Coréia e todos os demais. O Japão, creio, é o que melhor conheço depois da China. Logicamente, regressaria a êle, mas quando? Não sou turista. Não sinto prazer em visitar um país apenas para ver a paisagem. Nem tampouco visitá-lo na qualidade de pessoa importante. Quando regressar ao Japão, disse a mim mesma, será para a realização de um projeto, um trabalho, algo interessante a fazer, algo que explique a não aceitação de todos os convites para jantar, para fins de semana, entretenimentos que as pessoas hospitaleiras oferecem aos amigos. Mas que projeto? Uma nova pergunta foi acrescentada às minhas "onde" e "quando".
Inesperadamente, um dia, propuseram-me ir ao Japão trabalhar, em companhia de outros, na filmagem de meu livro A Grande Onda. O trabalho seria algo de novo e, por conseguinte, de excitante. Já estou longe do conservadorismo e da prudência da juventude. Cheguei à idade aventureira e A Grande Onda é um livro aventuroso. Envolve uma longínqua aldeia de pescadores, maremotos, um vulcão, coisas que eu não via há décadas e que ansiava rever. As perguntas estavam respondidas. "Onde", era o Japão; "quando", era agora.

 

 

 

 

Não, não inteiramente respondidas, pois ainda havia minha família a considerar. Alguns de seus membros eram velhos, outros muito jovens, uma grande família que se espraiava sobre gerações e se bifurcava em ramificações. Podia eu, devia eu, deixá-los a todos em semelhante momento? Realizamos um conselho de família. A resposta foi que eu podia e devia. O médico da família assegurou-me não haver motivo para adiar a partida. As crianças, pequenas e grandes, achavam-se alegres e sadias. E êle? Êle estava como sempre estaria agora. Se eu esperasse pela possibilidade final, talvez tivesse de esperar anos. Seis meses antes, não teria podido deixá-lo. Mas, no breve intervalo, a diferença, para mim, foi como entre o dia e a noite. Êle mergulhara num mundo somente seu. Eu não havia aprendido ainda a suportar o que era e sempre teria de ser.
- Vá, disse o médico. - Você precisa mudar de ares. Tem um longo caminho pela frente.
- Vá, disse minha filha responsável. - Eu cuidarei de tudo.
Assim encorajada, foram assinados os contratos e adquiridas as passagens.
O livro, naturalmente, tinha de receber um tratamento novo. A Grande Onda é uma história simples, mas seu tema é vasto. Trata da vida e da morte e novamente da vida, através de um punhado de seres humanos numa remota aldeia de pescadores, no extremo sul da adorável ilha de Kyushu, no Japão meridional. O livro sempre tivera vigorosa vida própria. Conquistara alguns prêmios em seu gênero, fora traduzido para várias línguas, mas nunca para a estranha e maravilhosa linguagem do cinema. Usar essa linguagem era, por si só, uma aventura. Não mais palavras, agora, porém seres humanos, movendo-se, falando, morrendo corajosamente, vivendo e
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amando com uma coragem ainda maior. Estou habituada às artes usuais. Familiarizei-me com a tela e o pincel, o barro e a pedra, os instrumentos musicais, mas o cinema é diferente de todas. Também é, contudo, uma grande arte. Mesmo quando profanado por gente vulgar e material barato, a potencialidade do processo é inspiradora. Quando os artistas são suficientemente grandes, temos muitos grandes filmes. Não me achava dominada pela ilusão de grandeza, mas esperava que pudéssemos fazer um filme fiel à gente sobre a qual eu escrevera.
Partimos em certa manhã de maio. O Japão fora um vizinho próximo durante todos os meus anos na China. Quando criança, se viajávamos de Vancouver ou São Francisco, o Japão era a última parada antes de Xangai, porta de entrada do meu lar chinês. Se partíamos de Xangai, então o Japão era a primeira parada na rota para o meu lar americano. Fora, também, o nosso refúgio, quando as guerras revolucionárias nos expulsaram da China. Certa vez passei vários meses numa pequena casa japonesa, nas montanhas próximas de Unzen, perto da região sul da ilha de Kyushu, nas imediações de Obama. Nesse mesmo ano, passeara em lancha ao redor de Kyushu e parará rapidamente em Obama, a fim de banhar-me em suas fontes de água quente. Vejo agora, na imaginação, minha aldeia de pescadores naquela região de litoral esplêndido, montanhas verdes e seu vulcão fumegante.
- Eu a reconhecerei no momento em que a vir, disse à minha família. - Será uma pequena aldeia, espremida numa praia rochosa, enseada arenosa entre montanhas, algumas casas de pedra atrás da alta muralha do mar. Vejo-a como se me lembrasse dela, embora não saiba seu nome.
Se o Japão me fora próximo e familiar no passado, agora parecia-me situar-se do outro lado do portão de minha casa, na Pensilvânia. Tomamos um jacto em Nova York, mais ou menos a duas horas de distância da casa de pedra de minha fazenda, e decolamos em questão de
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minutos. Meditei na incrível dimensão de minha vida. Embora, Deus querendo, eu tenha mais décadas a viver neste belo globo, foi só na idade adulta que comecei minha experiência da vida e dos homens. Menina, viajei em carro de mão, liteira, carroça de mula ou em barco puxado ao longo de um preguiçoso canal por homens andando no caminho da sirga. Fiz doze anos antes de ver um trem, na China, e só depois dos quinze foi que viajei nele. Conhecia navios, pois os havia no Rio Iã-tsé para conduzir-nos a Xangai e, de lá, através do Pacífico, ou, rio acima, a Kiukiang e às montanhas de Lu, onde nos refugiávamos do tórrido calor do verão da planície. Só vi ou andei em automóvel quando entrei no colégio e depois disso passei anos sem voltar a vê-lo, até à época em que fui viver em meu próprio país. Tornei-me, então, uma mulher moderna e, naturalmente, passei a viajar pelo ar. Não, esperem - tomei, certa vez, um pequeno avião desengonçado para encurtar uma viagem a Rangoon. Se o não fizesse, levaria oito dias a bordo de um barco vagaroso. E noutra ocasião voei da Suécia a Copenhagen. Sim, e ainda outra vez voei do Ceilão a Java, descendo, em certo momento, no calor úmido da selva de Sumatra. Anos mais tarde, minha primeira viagem a jacto foi na Europa, a bordo dos incrivelmente rápidos e silenciosos aviões que voam entre Copenhagen e Roma. Meu interesse pela ciência manteve aguçada a minha curiosidade no que se refere ao progresso dos jatos e dos foguetes, e agora me impaciento com tudo quanto seja menos veloz que o jacto - eu, que comecei a vida a uma velocidade não superior a cinco quilômetros por hora, numa liteira!
Mas quando o jacto me ergueu da terra ao céu, naquela manhã de maio em Nova York, confesso que experimentei uma exaltação quase única. O enorme pássaro metálico aprestou-se para o vôo, seus motores roncaram, a criatura tremeu com a sua própria força interior. Parte da exaltação era, talvez, a inquieta consciência de minha completa impotência, ao ganharmos altura. Eu me havia entregue à máquina. Não podia fugir, não podia descer. Não tinha decisões a tomar, pois o único caminho era subir. Um
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velho provérbio chinês diz que, dos trinta e seis caminhos de fuga, o melhor é correr. Não sei quais são os outros trinta e cinco - é curioso que, durante tantos anos na China, nunca pensei em perguntar, talvez porque a resposta óbvia seria a de que os outros caminhos eram desnecessários, pois sempre se pode correr. Mas em nossa época moderna isto já não é verdade. Quando nos entregamos a um avião e a porta se fecha, separando-nos da terra e do lar, não há mais fuga, mesmo correndo. O resultado é uma estranha sensação de paz - desesperada, talvez, porém paz.
Tais pensamentos fortuitos esvoaçavam através de minha mente, naquela manhã, enquanto observava, pela pequena janela, o globo afastar-se, rodopiando, de mim. Quando - e se - eu regressasse a êle horas depois, o vasto continente da minha terra natal e a faixa azul do Oceano Pacífico estariam entre mim e o meu lar, embora na minha infância nosso navio levasse semanas para atravessar o mesmo oceano e nosso trem mais outra semana para atravessar o continente. Contudo, este mundo novo nunca me parecera estranho. A velocidade tornara-se coisa tão natural quanto necessária. Flutuávamos sobre um mar de nuvens prateadas e eu me recostei na poltrona para trabalhar no script de meu filme.
As Ilhas do Havaí são trampolins entre a Ásia e os Estados Unidos. Lembro-me delas como ilhas de esperança, quando eu era menina e viajava em navios. Dez dias de São Francisco a Honolulu, ou oito dias de Yokohama a Hono-lulu, era a previsão. Mas, rumando para o oriente ou para o ocidente, estava sempre ansiosa por alcançar as ilhas do verde eterno, onde se podia colher cocos à vontade e as grinaldas de flores fragrantes eram o cumprimento de todos os dias. A velocidade do avião privara-nos um pouco da excitação do grande navio atracando suavemente no cais, depois da longa viagem, e da vista de grupos de amigos esperando, ou mesmo da tristeza dos últimos momentos
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de adeus, amigos acenando do cais enquanto o grande navio içava as âncoras para iniciar a longa viagem.
A bordo de nosso avião a jacto, aterrissamos hábil e precisamente em Honolulu, sem o menor atrazo, e fomos recebidos por pessoas eficientes que nos levaram ao hotel para passarmos a noite. Eu decidira por essa parada, não apenas porque queria rever Honolulu, mas particularmente porque desejava rodar uma vez mais ao longo das sinuosas montanhas, atrás da cidade. Queria ver os esquiadores aquáticos cavalgando as suas pranchas na crista das ondas. Desejava, acima de tudo, sentir a atmosfera do Havaí, agora como Estado livre de uma nação livre. Eu imaginava que, pertencer a uma nação, como parte integrante, devia significar o abrandamento dos descontentes e resmungões da ilha - não que houvesse muitos resmungos no Havaí, onde o ar é sempre tépido e a chuva e o sol caem diariamente tanto sobre justos como injustos, em geral ao mesmo tempo. Não - seria uma questão de estado de espírito.
Era noite quando chegamos e a lua brilhava sobre a alvura da arrebentação e o mar escuro. O hotel era palaciano e ao atravessarmos o imenso vestíbulo para reclamar nossos quartos a fim de nos instalarmos para dormir, homens e mulheres ainda iam e vinham, gente de várias raças e costumes. Ninguém me era estranho, a não ser as turistas, em "Mãe Hubbards", aqueles trajes legados por missionários sensíveis nos dias primitivos em que, como Adão e Eva no seu Éden, os havaianos não sabiam que estavam nus. Os missionários sabiam, naturalmente, e, gozando as fantasias e caprichos do coração humano, pensei algumas vezes se teriam sido os primitivos missionários que ordenaram às adoráveis mulheres nuas que se cobrissem, não fosse o santo ceder ao diabo que há dentro de todos nós, ou se teriam sido as missionárias, de saias e mangas compridas, de golas altas, as quais sabiam jamais poder competir com os macios corpos morenos que nada mais vestiam além de um alegre pedaço de pano ou um punhado de folhas nos quadris e uma flor vermelha nos seus ondulados cabelos negros. Só Deus sabe, e Ele
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guarda tais segredos para Si mesmo - com um sorriso, talvez! Hoje, graças aos caprichos da moda, as moças do Havaí trajam elegantes vestidos ocidentais e as turistas vestem esvoaçantes "Mãe Hubbards" e mais uma vez são as havaianas que levam a melhor.
O ar do Havaí é divino, nada menos. Deitei-me em minha confortável cama, dormi e acordei para respirar a suave e pura atmosfera soprada para dentro do aposento por um vento gentil do mar, e tornei a dormir até que o sol inundou o quarto. Levantei-me, tomei banho, vesti-me e fiz sozinha a primeira refeição, no terraço contíguo ao aposento. O ar, lá fora, era exatamente da temperatura do meu corpo. Não senti choque de frio nem de calor. É assim que uma criança não nascida deve sentir as águas acolhedoras de seu primeiro lar. Suave fluidez indescritível, e o resultado é o bem-estar, ausência total de conflito com o meio circundante.
Já havia esquiadores aquáticos desfrutando a expansão matinal das ondas, e homens e mulheres quase despidos vadiavam na praia. E eu tinha toda a razão quanto à mudança de estado de espírito. O garção, que trouxera meu café, movimentava-se com uma calma e uma confiança que significavam satisfação íntima. Conversamos brevemente sobre o assunto, após ter eu observado que, quando lá estivera antes, Honolulu não era capital de um Estado.
- Tudo agora é melhor, disse-me êle.
- Melhor como? perguntei. Ergueu os ombros, expressivamente.
- Não é questão de comida, de roupas ou de coisas que se possa pegar com as mãos. É, apenas, melhor... Agora existimos. Agora podemos falar... Madame, a marmelada está muito boa - laranja fresca, abacaxi fresco. Recomendo-lhe!
- Obrigada, tornei eu, e acho que tem razão. Tudo está melhor.
Refleti sobre essa sabedoria depois que êle partiu o meu ovo na xícara, serviu-me café e se foi. A exclusão é sempre
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perigosa. A integração é a única segurança, se vamos ter um mundo pacífico, integração numa comunidade nacional, inclusão numa comunidade internacional de nações. Creio que todas as nações devem pertencer às Nações Unidas, tão inevitável e irrevogàvelmente quanto uma criança tem de nascer numa família. A renúncia deve ser impossível. Se, num arroubo de impertinência, a criança se retira ou mesmo foge, ainda continua sendo um membro da família. A relação básica se aplica, numa escala mundial, à família das nações. Todas as coisas básicas são simples e compreensivas. Só as coisas simples podem ser suficientemente grandes para conter todas as confusões.
Não gosto de praticar esqui aquático. O mar e eu não somos inimigos, mas somos, digamos, amigos cautelosos. Tenho tido encontros com o mar colérico, e até mesmo com o mar cordial, dessa cordialidade que o leão também possui, quando derruba um homem com uma patada brincalhona.
Certa vez, num dia de agosto, no Vinhedo de Martha, êle e eu estávamos nadando na arrebentação. Alguns dias antes houvera uma tempestade e, embora o céu estivesse azul naquela manhã, o mar se agitava em ondas magníficas.
- Segure minha mão, disse êle. - Juntos seremos bastante fortes.
Não nos tornamos bastante fortes, mesmo juntos. O mar apanhou-nos em suas enormes garras, quebrou-se o equilíbrio, sacudiu-nos violentamente até deixar-nos sufocados, cegos e quase afogados. Ainda de mãos dadas, fomos afinal atirados à praia e assim escapamos. O que recordo era a nossa total impotência, naqueles momentos, dentro da onda, quando ficamos à mercê de uma força insensata e impiedosa. Caminhamos em silêncio pela praia, êle e eu, gratos pela vida e não querendo saber mais do mar naquele dia.
Não tinha vontade alguma, por conseguinte, de esquiar sozinha em Honolulu.
Tampouco adianta imaginar que posso me divertir numa multidão.
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Há caçadores de autógrafos em toda parte do mundo e, não gostando de parecer descortês, o melhor para mim é permanecer solitária. Sozinha, portanto, apreciei meu terraço, a vista do mar e da montanha. Li os jornais locais, sempre uma ajuda à compreensão, e deixei o dia fluir até o almoço com amigos e um passeio ao redor das ilhas num jipe aberto. Waikiki é para turistas e só quando saímos dela é que vemos as outras praias, abrigadas em enseadas, onde as pessoas que vivem em Honolulu, ou nas proximidades, reúnem suas famílias para se divertirem e fazer piqueniques. A estrada é excelente e percorre um litoral deslumbrante. Paramos várias vezes para observar o estouro das pesadas ondas contra as negras rochas de lava antiga. Novamente, como tantas vezes em minha vida, demorei-me a admirar, maravilhada, os estranhos e íngremes penhascos daquelas montanhas negras e abruptas, encarando o mar. É incrível que seres humanos possam galgar aqueles altos pilares de rocha vulcânica, ou que existam cavernas e fendas entre elas. Contudo, em outras épocas, homens as galgaram levando para dentro das cavernas e fendas canoas e botes, transformando-os em túmulos de seus famosos capitães do mar. Hoje, outros homens as galgam para trazer de volta as embarcações, limpá-las da poeira antiga e colocá-las em museus. Lembrei-me da Noruega e dos grandes navios em museus, os quais lá também eram túmulos dos homens do mar. Aqui no Havaí a façanha parece incrível em virtude da formação íngreme das montanhas semelhantes a recifes.
Estava escuro quando voltamos ao hotel e as manchetes do jornal da tarde noticiavam um vasto terremoto no Chile. Li o relato do desastre e me afligi por aqueles que haviam perdido a vida.
Chile! Recordei que a Expedição Downwind, do recente Ano Geofísico Internacional, levara em navio, na sua exploração suboceânica do Pacífico, um aparelho que, posto no chão marinho, podia medir o fluxo de calor proveniente do centro da Terra para o solo do Pacífico. Na elevação da Ilha de Páscoa o fluxo de calor aumentou acentuadamente.
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A Ilha de Páscoa e Sala y Gomez, ambas chilenas, são o resultado desse aumento. E logo depois da costa ocidental do próprio Chile há uma longa e profunda vala, de base muito estreita, uma compensação dos Andes, mas produzida provavelmente por um rio serpeante de elemento frio, fluindo do centro do oceano e abrindo caminho sob a rochosa massa continental. Um estranho e silente mundo subterrâneo, este leito oceânico, mundo violento quando sobrevém a catástrofe, no conflito entre o fogo e a água, o calor e o frio.
O Chile parecia muito distante das aprazíveis ilhas do Havaí e eu me voltei para as exigências da noite. Jantaríamos no night club do outro lado da rua e fomos, portanto, apreciar as comidas, a música e as danças havaianas. As danças fizeram-me rir repetidas vezes. Não eram apenas belas - também sutis e alegres, sátiras da vida. Uma dança, ostensivamente em memória dos primeiros missionários, era particularmente cômica. Entrou no palco uma encantadora e esbelta morena. Trajava um vestido ocidental branco e fora de moda, de musselina bordada, não uma "Mãe Hubbard" mas a espécie do vestido que uma mulher de missionário deve ter usado há uma centena de anos, gola alta, mangas compridas, estreito no colo, saia arrastando no chão, de cauda franzida. A moça era a imagem da doce inocência, seus longos cabelos negros suavemente penteados formando um coque na nuca. O único toque colorido, com exceção de seus polpudos lábios vermelhos, era uma flor escarlate de hibisco atrás da orelha esquerda, e essa flor me tornou desconfiada. Em poucos minutos minhas suspeitas foram confirmadas e não pude conter o riso. Pois essa moça, essa inocente donzela da ilha, envolta em branco da cabeça aos pés, executou uma dança tão carregada de todos os ardis que a mulher usa para seduzir o homem que a própria Eva, se a tivesse visto, ter-lhe-ia pedido algumas lições. Dentro de sua branca embalagem o bonito corpo moreno se arqueava e estremecia em alegria sensual, não primitiva pois essa alegria é eterna, renovando-se em cada geração de homem e mulher, uma dança de amor.
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A luz amortecida das lanternas caía sobre o círculo de faces atentas, cada qual absorta em seu próprio sonho, sua lembrança pessoal ou desejo insatisfeito. Quando terminou, houve um silêncio, um longo suspiro, depois aplausos estrondosos. A encantadora jovem sorriu, agradeceu e se foi. Embora continuássemos aplaudindo até nos arderem as palmas da mão, ela não voltou à cena.
O mestre de cerimônias prefaciava cada número com uma agradável e animada conversa. Por diversas vezes, durante a noite, mencionara uma ressaca. Dissera, atirando a palavra como se fosse uma piada, que talvez apreciássemos a excitação de uma ressaca e que, por conseguinte, encomendara uma como atração adicional para a noite. Nenhum de nós o levou a sério até o momento em que, agora, ao despertarmos novamente para a realidade, êle começou de novo a tagarelar sobre a ressaca. Súbito, ouvi de maneira aguda e clara o que êle dizia. Não estava nos anunciando uma ressaca - advertia-nos de sua aproximação.
Levantei-me imediatamente, com minha companheira, saí da sala e atravessei a rua em direção ao hotel. Lá tudo era confusão. Hóspedes estavam sendo transferidos para os pavimentos superiores e havia barricadas nas ruas que davam para o mar. Que fazer? olhamos uma para a outra, consternadas. A partida de nosso jacto estava programada para a uma hora da madrugada. Agora, eram quase onze horas. Se a vida e suas crises me ensinaram alguma coisa, foi continuar com o plano traçado até que a sua execução se torne impossível. Corremos, pois, aos nossos quartos, arrumamos as malas e tomamos o último táxi disponível para o aeroporto.
O aeroporto, em Honolulu, como todos sabem, fica numa estreita península exatamente acima do nível do mar. Quando chegamos, estava alarmantemente vazio. Uns poucos empregados olhavam o horizonte e o chofer mostrava-se apressado em receber o seu dinheiro e ir embora. Minutos depois encontramo-nos sozinhos na grande sala de espera e fomos escoltados por um soturno funcionário até o pavimento superior, entrando numa confortável sala
Uma Ponte
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de clube, na qual havia apenas uma assustada garçonete atrás do balcão de refeições. Recebeu-nos sem entusiasmo, serviu-nos o café e em seguida dirigiu-se para a grande janela, de onde ficou olhando a escuridão sobre o mar. Sentamo-nos no sofá e ficamos ouvindo, obrigatoriamente, o clangor do rádio, instalado no teto, sobre nossas cabeças. Estava transmitindo jazz, mas de quando em quando a música era interrompida e uma voz inexorável anunciava que a ressaca atingira outra ilha e que a sua altura estava aumentando. Em poucos minutos golpearia Hilo, com uma altura calculada em mais de dezoito metros. Aprendemos, também, que a ressaca era conseqüência do terremoto no Chile. Havia uma conexão continental, sob o oceano, entre aquela profunda vala, na costa chilena, e as ilhas do Pacífico. Estranho simbolismo, esse, pelo qual um terremoto, num hemisfério, produz uma ressaca no outro!
Minha meditação foi interrompida pelo súbito desaparecimento da garçonete. Ela voltara ao balcão, murmurando algo sobre seu marido e seus três filhos. Ficariam alarmados quando não chegasse em casa à meia noite, como de costume? Não podíamos responder à sua pergunta, nem ela tampouco, e sem outra palavra, nem ao menos adeus ou boa noite, deixou-nos e não tornamos a vê-la.
Permanecemos sentados na vasta sala. A música de jazz extinguiu-se à meia noite e ficou apenas a voz, anunciando a investida da ressaca. Consideramos nosso destino, fosse êle qual fosse, e a conversa cessou. Os aviões tinham sido removidos do campo, disse-nos a voz, e todos os vôos foram cancelados. As estradas para o hotel estavam interditadas. O silêncio sobre a cidade era ominoso. Tornamo-nos parte do silêncio. Nada havia a fazer, exceto esperar.
Súbito, à uma hora da madrugada, em ponto, a porta se abriu. Um rapaz ofegante gritou-nos que descêssemos imediatamente ao campo. Nosso jacto decolaria nos próximos minutos. Sim, a bagagem estava a bordo. Pegamos nossas maletas de mão e corremos atrás dele. Lá estava o jacto. Fomos empurrados para o seu bojo, e mais depressa do que jamais vi um jacto decolar, subimos ao céu. No momento
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exato em que deixamos a terra, o rádio anunciou a chegada da ressaca.
Subindo ao céu, lembrei-me da morte. As precedentes horas de ansiedade, o instante final da partida, a inevitável separação da terra e tudo quanto havíamos aprendido, a ascensão ao espaço desconhecido - não é esta a experiência da morte? Há uma diferença. Do vôo final não se regressa. Para nós havia a esperança de regressar ao belo Japão.
Contudo, antes que pudéssemos chegar de novo à terra, a ressaca havia golpeado. Cortando velozmente o ar, a grande altitude, soubemos pelo rádio que, viajando em direção ao ocidente, ela já havia alcançado o Japão. Viajara mais depressa que o nosso jacto para atacar, com cruel violência, as praias nordestinas. O povo da região fora advertido pelo governo, mas não podia compreender. A experiência lhes ensinara que terremoto e ressaca vinham sempre juntos. Não podiam compreender que um terremoto no Chile significasse uma ressaca em suas praias. Que estranha coincidência, a de estarmos chegando ao Japão, naquele exato momento, para fazer um filme intitulado A Grande Onda!
- Como foi que o conseguiu? perguntaram os repórteres, no aeroporto, em Tóquio. - Quem é o seu agente de publicidade?
Estavam brincando, naturalmente. Não tínhamos agente de publicidade, mas era certo que viéramos montados na publicidade da gigantesca ressaca. Afligia-me que o meu regresso à Ásia se verificasse junto com uma tempestade. Sentia-me impotente para outra coisa que não fosse exprimir minha simpatia pelos que haviam sofrido.
Quanto ao mais, esperara uma chegada tranqüila a Tóquio. Era entre duas e três horas da madrugada e eu não imaginei que houvesse alguém no aeroporto para receber-me. Pensei que um ou dois sócios em negócios, alguns amigos, talvez, depois uma rápida corrida através das ruas escuras até o velho Imperial Hotel, um banho e cama. Fora um longo vôo, afinal de contas. Em determinado momento, durante a noite, pousamos na Ilha Wake
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para reabastecer o avião, mas isto não parecera importante. Vi, pela janela, apenas um amontoado de prédios e homens movimentando-se aqui e acolá, tratando de seus negócios. Poderia ter sido em qualquer lugar, no meio da noite. Tóquio era outra coisa.
- Alegra-me que tenhamos chegado a uma hora tão macabra, dissera eu. - Não pode haver ninguém à nossa espera.
- Não tenha tanta certeza, redargüiu minha companheira.
O grande avião estremeceu ao baixar e as luzes de Tóquio brilharam entre as trevas.
- Eu estava certa, disse. - Não há ninguém aqui. Um homem em uniforme branco avançou para mim.
- A senhora é...
- Sim, somos nós, respondi.
- Então seja bem-vinda ao Japão, tornou êle. - Pertenço à aviação japonesa. Por aqui, por favor... Um momento, por favor... fotógrafos e repórteres.
Paramos. Luzes nos focalizaram nas trevas e câmaras dispararam. Repórteres aglomeraram-se à nossa volta, com perguntas e exclamações sobre a ressaca.
- Obrigado, disse o homem quando demonstramos sinais de exaustão. - Seus amigos estão à sua espera.
Esperando por nós? Passamos rapidamente pela alfândega e nossos amigos nos esmagaram, literalmente, com saudações e flores.
Como me senti? De certa maneira, também, como se tivesse chegado à pátria após longa ausência. De certa maneira, também, como se tivesse chegado a um país novo e estranho. As faces sorridentes, as vozes cálidas, às vezes os olhos marejados de lágrimas, reclamavam-me como a um dos seus. Homens e mulheres que eu conhecera jovens durante minha própria juventude lá estavam, tão mudados quanto eu, tendo a seu lado filhos e netos como os que eu deixara em casa, os meninos em roupas ocidentais, as meninas em seus quimonos formais.
- Minhas filhas levantaram-se à uma hora da madrugada
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a fim de que pudessem vestir o quimono para recebê-la, disse com orgulho uma amiga.
Eu sei quanto tempo leva vestir apropriadamente um quimono e fazer o penteado adequado. As meninas eram belas e me alegrei por haverem elas e as outras vestido quimono para fazerem sentir-me em casa, pelo menos quando chegasse. No tempo em que morei no Japão, antes da guerra, todas as minhas amigas usavam quimono. As mais modernas e liberais possuíam, talvez, um costume ou vestido ocidental, mas isto era incomum e não muito aprovado. Agora as japonesas usavam vestidos ocidentais todos os dias e sempre, exceto nas poucas ocasiões formais da vida, quando punham seu quimono. Muitas delas têm só um quimono e algumas nenhum. Há exceções, naturalmente. As velhas usam quimono e certas mulheres distintas, mesmo em seus negócios, o usam sempre. Minha especial amiga usa quimono porque lhe assenta bem. Ela alcançou a posição e a idade em que pode usar o que lhe apraz.
Naquela noite, atrás da multidão amiga com suas flores e fotógrafos, eu estava consciente da própria cidade de Tóquio. Sabia quão severamente fora bombardeada durante a guerra e que agora se achava reconstruída, nova e próspera, talvez um símbolo do Japão que me era estranho. Contudo, pensei, mesmo as pessoas que foram receber-me pareciam mudadas para melhor. O velho formalismo rígido havia, de certo modo, desaparecido. Ouvi risadas prontas, não o velho riso polido, mas espontâneo e real. Todos falavam livremente e sem medo. Isto era novo. Perdurava a doce cortesia, mas impregnada de vida e bom humor, como se uma antiga inibição tivesse sido removida. Esta foi a minha primeira impressão, naquela noite, e tornarei a falar nisso muitas e muitas vezes porque a encontrei expressa em toda parte e de várias maneiras.
Entrementes, os fotógrafos acompanhavam pacientemente nossos passos. Os fotógrafos japoneses são infatigáveis, filosóficos e incrivelmente ágeis. Não pedem sorrisos ou poses agradáveis. Suas câmaras disparam incessantemente, onde quer que a pessoa esteja e faça o que fizer.
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Voam dentro da noite como vagalumes. Fomos fotografados continuamente, cobertos de flores e cercados de amigos. Movemo-nos em massa, afinal, para os carros que nos esperavam e fomos conduzidos, a toda velocidade, para o Imperial Hotel. Não sei por que nunca tive medo dos motoristas japoneses. Arremetem através de ruas sem sinais e de multidões compactas, gritando e advertindo, contudo não sofrem acidentes; eu, pelo menos, nunca vi algum. Tudo isso me parecia bastante natural, recordando-me outros dias, anos antes, quando fui conduzida exatamente do mesmo modo, através de ruas ou ao longo da beira de penhascos, montanhas acima e abaixo, ou sobre o mar e a estrondosa arrebentação. A falta de medo talvez se deva simplesmente ao fato de que, na Ásia, eu me descontraio adotando a aceitação oriental e compreendo que nada há, praticamente, que eu possa fazer a respeito de nada.
Afinal chegamos, e vivos, ao Imperial Hotel, esse paraíso onde o Japão recebe o mundo com a sua própria graça e estilo, combinados com um espantoso acervo de conforto e bom serviço. Uma hora depois, estávamos dormindo em aposentos refrigerados, cercados de flores em cestas japonesas.
Não obstante, demorei muito a adormecer. A memória se pôs a trabalhar e imagens desfilaram pela minha mente. A primeira foi a face vívida de minha mãe, cabelos castanhos, pele morena, olhos castanhos. Estávamos sentadas na ampla varanda de nossa casa, na China. Eu tinha, talvez, sete anos, garota descalça de compridos cabelos louros, sentada no chão diante dela, apertando os joelhos e escutando. Ela me contava a história de minha irmã, que morrera antes de eu nascer.
- No Mar Amarelo, dizia minha mãe, entre o Japão e a China. Tínhamos ido passar o verão no Japão, nas montanhas que ficam atrás de Nagasaki. Foi antes de descobrirmos Kuling, nas montanhas de Lu, em Kiangsi, aqui na China. Fazia tanto calor no Vale do Iã-tsé, que receei
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pela saúde das duas crianças. Passamos um ótimo verão no Japão - o ar era fresco e saudável no alto daquelas montanhas. Eu queria ficar até outubro, mas seu pai disse que precisava voltar em setembro. Não deveria ter-lhe dado ouvidos, mas sempre o fiz. Voltamos num vapor japonês - o Hiroshima Maru - o bebê adoeceu. Não sei o que era - febre alta e disenteria. Tinha apenas seis meses de idade e não era forte. E eu sempre sofro de enjôo, no mar - não podia nem mesmo segurá-lo. Seu pai tentou cuidar de mim. E o velho Dr. Martin começou a passear no convés com o bebê nos braços. Nunca esquecerei o seu aspecto - tão alto e ereto, com o pequenino bebê no colo.
Aqui seus olhos sempre se enchiam de lágrimas e eu também soluçava por vê-la chorar, e me aproximava dela. Estendeu a mão para mim e eu a agarrei com as minhas.
- E então? supliquei.
- Bem, você sabe, querida. Ela morreu em meus braços. Eu estava deitada numa espreguiçadeira, tão doente! Era uma noite parada e quente, a velha Lua mergulhando no mar. E súbito o vi deter-se e examinar o rosto do bebê. E eu... compreendi.
Senti a mão dela em minha face, ansiei por confortá-la e de fato a confortei, suponho, à minha maneira infantil. Pois a história usualmente terminava com ela enxugando os olhos e dizendo vivazmente:
- Agora vamos ouvir um pouco de música, antes de irmos para a cama.
Ou talvez sugerisse uma laranja, manga ou um pedaço de toranja.
Que coisa volátil a memória! Quando pensei na toranja, lembrei a delícia dessa fruta suculenta e doce, parenta da grape-fruit mas infinitamente melhor sob todos os aspectos, a casca fácil de destacar, os gomos soltos uns dos outros e o sabor soberbo. Comparada com ela, a grapefruit é uma pequena bolsa de caldo azedo que só se extrai com muito esforço. Resolvi procurar toranjas novamente, no Japão, pois não as tinha visto em meu país.
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Dos lábios de minha mãe, portanto, ouvi pela primeira vez os nomes de cidades japonesas, e vi, com os olhos do espírito, paisagens de montanha e litoral. E minha pequenina irmã morta fora enterrada num cemitério cristão de Xangai, como eu sabia, pois vi seu nome com os de três outras crianças de nossa família, que nasceriam mais tarde na China, e lá morreriam. Isto foi antes de eu nascer na casa colonial de minha avó, em West Virgínia.
Contava nove anos quando vi pela primeira vez o Japão, o que se deu quando visitei também pela primeira vez a minha própria terra. Nosso navio parou em Nagasaki. Era um barco canadense, pois meu pai estava convencido de que somente os ingleses sabiam de fato fazer navios e pô-los a navegar, e só em um capitão inglês se poderia ter confiança de que controlaria adequadamente a sua tripulação. A cidade de Nagasaki é um porto marítimo, naquela época bem pequeno, um punhado de casas plantadas na praia e empurradas, por trás, pelas altas montanhas. O povo falava um dialeto e meu pai não me deixou aprender uma palavra sequer, porque, explicou, não se tratava de japonês puro e era importante que as primeiras palavras de uma língua fossem aprendidas com a sua pronúncia perfeita. Êle próprio era um lingüista consumado e eu sempre lhe obedeci. De outra maneira, isto não me haveria ocorrido. Quanto ao nome de Hiroshima, permaneceu para mim como o nome do navio japonês no qual minha irmã morreu, até anos, décadas mais tarde, quando se tornou a cidade da morte, depois que a bomba caiu.
O vestíbulo do Imperial Hotel é o lugar onde qualquer um encontra qualquer um, de qualquer parte do mundo. Desci a êle na manhã seguinte num elevador cujo cabineiro era uma bela japonesa em quimono. Quando entrei no vestíbulo fui abordada por uma americana de fisionomia agradável.
- Você me parece familiar, disse ela. - Sou de Ohio. Não a conheço?
Sorri e sacudi a cabeça. Ela sorriu e continuou seu caminho.
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No instante seguinte minhas mãos foram calorosamente agarradas e vi, à minha frente, um velho amigo da índia.
- Imagine, encontrá-la aqui, gritou êle. - Por que não está em Nova Delhi? Nosso quarto de hóspedes a aguarda.
Sentamo-nos e trocamos promessas. Deu-me notícias de sua família, de sua bonita e jovem esposa, muito mais moça que êle e que contrariara a vontade dos seus para desposá-lo, pois êle tem idade suficiente para ser seu pai. Mas ela é uma jovem decidida, eram felizes juntos e, para seu imenso orgulho, dera-lhe dois filhos. Tirou fotografias da carteira, enquanto me falava deles. Vi a família reunida em seu belo jardim tropical. Ismaya estava encantadora em seu sari, uma jovem mulher tranqüila e bem organizada, seus dois meninos segurando-lhe as mãos e, atrás deles, meu amigo, alto, elegante e de cabelos grisalhos.
- Pareço o avô, não é? observou orgulhosamente. - Mas deixe-me dizer-lhe: aconselho aos pais a que tenham filhos quando forem velhos. Minha casa nunca estará vazia. Deixá-la-ei antes de meus filhos e, quando eu me fôr, eles confortarão sua mãe.
Minha secretária japonesa achava-se a meu lado. Curvou-se, sorriu conciliadoramente e lembrou:
- Por favor, agora está na hora da entrevista coletiva. Todos estão esperando.
Entrevista coletiva! No Japão este é um acontecimento formal, formidável mesmo, e disso tivemos a prova. O dia era quente, maio em Tóquio é sempre quente. Reunimo-nos numa vasta sala, na extremidade da qual havia uma comprida mesa e, atrás desta, uma fila de cadeiras. Tomamos nossos lugares, não ao acaso, mas de acordo com meticuloso protocolo. Discutimos, primeiro, quem sentaria à mesa. Depois discutimos a ordem em que nos sentaríamos.
Tenho comparecido a muitas entrevistas coletivas, mas a respeito desta havia uma excitação peculiar. A grande sala estava apinhada de repórteres de todos os jornais e revistas - mais de setenta. Os fotógrafos eram numerosos, porém permaneciam esperando, tranqüilos, com as câmaras em repouso.
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Como é habitual no Japão, a entrevista começou com discursos de pessoas selecionadas. Em nosso caso, fora combinado que eu faria algumas breves observações a título de introdução. O que eu disse foi, simplesmente, que me sentia feliz por estar de novo no Japão, grata pela bondade com que me receberam em minha última visita e pronta a informar sobre o avanço de nosso projeto, A Grande Onda, uma história japonesa. Falei que estávamos contentes por poder dizer-lhes que uma de suas próprias companhias era co-produtora do filme e que havia solicitado ao diretor dessa companhia que fizesse a comunicação formal.
Enquanto isto ocorria, as costumeiras moças bonitas serviam-nos copos de chá gelado. Grande inovação, essa do chá gelado, influência do Ocidente, sem dúvida, pois eu só me lembrava de haver tomado chá quente no meu tempo. Naquele calor úmido o chá gelado era uma bênção. A imprensa permanecia submissamente sentada, sem chá, ouvindo com atenção. Não eram permitidas perguntas enquanto não terminassem as discussões.
O discurso, neste caso, foi notável. O diretor da companhia cinematográfica era muito conhecido e altamente respeitado. Homem do lado jovem da meia-idade, temperamento calmo, completa segurança e agradável calor. Não compreendo japonês, mas o discurso continuou durante algum tempo. Fiquei a imaginar o que estaria dizendo, pois habitualmente é homem de poucas palavras. Nosso tradutor contou-nos depois, em particular, o que fora dito. Como podia deixar de emocionar-me? Havia sido um bonito discurso, no qual dissera que sua companhia se sentia honrada por tomar parte na filmagem de A Grande Onda. Disse que certa vez êle próprio pensara, alguns anos antes, em fazer um filme do livro, pois o lera numa época de profunda depressão espiritual, quando o Japão se achava diante do mundo, pela primeira vez em sua altiva história, como nação derrotada. Êle próprio não sabia como recuperar a confiança mental. Um dia encontrou esse livrinho e o leu. Sentiu que o autor desejara transmitir, através dele, uma mensagem de esperança ao povo japonês,
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uma crença em que, se eles haviam vivido através dos séculos com a constante possibilidade de destruição por maremotos e terremotos, e na verdade sofreram várias vezes, tragicamente, os efeitos de tais catástrofes naturais, apenas para sobreviverem com renovada força e coragem, assim também tornariam a sobreviver mesmo à derrota. Agora, por uma coincidência peculiar, tinha a oportunidade de tomar parte, por intermédio de sua companhia, no preparo da versão cinematográfica da história. Anunciava, portanto, naquela entrevista coletiva, que sua companhia se reunira aos americanos como co-produtora de A Grande Onda.
Ouvi, com gratidão à vida. Para uma escritora constitui a mais alta recompensa saber que um livro, escrito em dúvida e solidão, atingiu um coração humano com uma significação ainda mais profunda que aquela de que a escritora tinha consciência ao escrevê-lo. É algo extra, a compensação inesperada. Muitas perguntas seguiram-se ao discurso. Referiam-se à produção, ao local da filmagem, aos nomes dos atores, pois tínhamos que ver e ouvir muitos candidatos. Vinham se processando negociações, havia semanas, com certos astros, e somente um ficara decidido. Mostrávamo-nos resolutos, esgrimíamos com bom humor todos os esforços feitos para extrair informações sobre o elenco. Súbito, quando nos achávamos prestes a dispersar, recebemos notícia de que haviam chegado a bom termo as negociações relativas a um astro. Pudemos, então, anunciar que o conhecido ator japonês Sessue Hayakawa faria o papel do Velho Cavalheiro em A Grande Onda.
Com isto os jornalistas partiram, exceto uma repórter inglesa que não entendia japonês. Gastei alguns minutos com ela e com mais um ou dois que desejavam algumas informações especiais.
Todos então se foram e fiquei novamente só. Este era o esquema imutável de meus dias desde que êle cessara de ser êle mesmo - uma multidão, depois ninguém. Sentia saudades, agora, especialmente porque êle teria gostado dessa entrevista coletiva. Presidira muitas delas, para mim, em várias partes do mundo, a primeira das
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quais quando voltei da China, tímida e bastante assustada para determinar, no segredo do meu espírito, que, fosse o que fosse que estivesse à minha espera, eu não permitiria modificação alguma em minha vida. Foi modificada, naturalmente, no momento em que nos conhecemos em Montreal. Eu chegara de Xangai por mar e por trem e embora o conhecesse um pouco através de suas cartas - escrevia as cartas mais encantadoras e bem compostas que jamais li - vi-o pela primeira vez, queimado pelo sol e com olhos de um azul surpreendente. Fiquei sem fala, com a minha habitual timidez, mas êle estava perfeitamente à vontade, como sempre estivera em qualquer parte e com qualquer um, feliz atributo para mim quando tive de enfrentar, no dia seguinte, a formidável imprensa em Nova York. Mas êle conhecia os repórteres e eles o conheciam e o apreciavam, pois começara sua vida profissional como jornalista. Colocou-nos todos à vontade e me surpreendi respondendo francamente às perguntas que me faziam. Demasiado francamente, disse-me êle depois, divertido, pois quando indagaram minha idade não me ocorreu escondê-la, porquanto na China cada ano era considerado uma honra a mais.
Seu desembaraço natural fazia dele um excelente presidente, e de fato presidia uma espantosa variedade de organizações. Quantas vezes tomei assento nessas reuniões e fiquei a observar enquanto êle, aparentemente sem esforço, permitia a expressão de cada voz dissidente, a apresentação de todos os argumentos, e depois, tranqüilamente, em poucas palavras, sintetizava o consenso de opiniões numa lúcida resolução! Possuía o raro dom de, da desordem, criar a ordem, um dom editorial. Mas, além disso, possuía o dom da compreensão humana que o capacitava a selecionar o essencial do supérfluo e descobrir pontos de acordo entre aqueles que discordavam.
A pequena secretária apareceu de novo a meu lado. - Temos tempo de ir ao velho templo Meiji antes de passar no escritório e quero que a senhora o visite primeiro,
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por favor, disse-me ela. - Tóquio está nova demais, por causa dos bombardeios, mas o templo é antigo e a senhora se sentirá melhor depois de vê-lo.
Chamou um táxi e disparamos através da cidade, tão mudada que eu não a teria reconhecido, nova, agitada, mas não bonita. O palácio, porém, continuava como era, intocado. Vi os seus tetos arqueados elevando-se, como antigamente, atrás das altas muralhas de pedra, circundadas de fossos. Entramos então no templo Meiji e na velha paz. Vaguei pelos caminhos, Sumiko discretamente quieta a meu lado, e descansamos à margem do lago. Está como no meu tempo de menina, quando eu ali ficava com a minha governanta japonesa. As mesmas carpas gordas, enormes, movendo-se preguiçosamente entre os nenúfares... Foi o que eu disse a Sumiko.
- As mesmas não, por favor, replicou ela. - Na guerra muita gente faminta vinha aqui apanhar carpas e comêlas.
Sustentei, porém, que algumas delas eram as mesmas. Pois não poderiam, de outro modo, ter crescido tanto, mesmo no decurso de muitos anos.
- Talvez, tornou ela polidamente. - De qualquer maneira, é tempo de irmos andando, o escritório espera, sem dúvida.
Atravessamos o portão, tomamos outro táxi alucinado e fomos transportadas como um raio aos escritórios da grande companhia cinematográfica japonesa.
Aqui, pausa para um breve interlúdio.
O aspecto mais surpreendente do novo Japão é a mulher japonesa. Minha primeira amiga japonesa era esposa de um inglês, que vivia numa grande casa em encosta de montanha, perto do lar de minha infância, na China. Devo ter conhecido outras japonesas em minhas idas e vindas do Japão, mas nenhuma me causara impressão tão profunda quanto a senhora da casa inglesa, e isto porque eu só a via quando passava em sua liteira, transportada por carregadores uniformizados. Ela sempre usava quimono e os cabelos no alto penteado lustroso das damas do Japão antigo. O rosto empoado de branco e os olhos de ônix fitando,
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vagos, um ponto à sua frente, até divisar-me, de pé, na poeira da estrada. No verão levava um pequeno pára-sol de seda branca pintada com flores de cerejeira, e no inverno usava sobre o quimono um casaco de brocado. Trocávamos olhares, os dela tristes e inexpressivos até sorrir-me, e os meus abertos de maravilhamento e admiração pela sua beleza. Uma bela mulher, um homem elegante, uma criança bonita, são fontes de alegria, mesmo que o sejam apenas para os olhos, se o não são para nada mais. Era assim que eu me lembrava dela, minha amiga de certo modo, por causa do sorriso.
Anos depois, conheci mais intimamente, como amigas, outras japonesas ocasionais. Elas pareciam, fossem quem fossem, sempre remotas, um tanto tristes, esmagadas pelo dever, e isto era verdade quer se tratasse da esposa de um lavrador, quer de um homem rico e de posição. Era preciso sempre atravessar uma barreira, a do desapontamento com a vida, talvez, se não uma mágoa pessoal, antes que se pudesse atingir a mulher interior. Talvez ela nunca pudesse ser alcançada. Sua voz suave e gentil, suas maneiras modestas e plenas de consideração para com os outros, vestia o silêncio como a um traje, e a menos que fosse diretamente interpelada, parecia apagada no segundo plano.
Nada disto é verdade, agora. A mulher antiquada simplesmente desapareceu do Japão, ou pelo menos é o que me parece. Os homens mudaram pouco, tanto na aparência como no comportamento. Mas as mulheres? Não posso descrever as diferenças que, num dia ou num lugar, encontrei nas japonesas. Permitam-me abordar o tema gradativamente, através de mulheres particulares que vim a conhecer enquanto fazíamos o filme.
Mal entramos nos escritórios da grande companhia cinematográfica japonesa, espantei-me com o que vi. Noutros tempos eu teria sido recebida por um jovem, secretário e assistente dos diretores. O escritório seria composto de rapazes. Agora, porém, era composto de moças, todas em elegantes trajes ocidentais, muitas delas falando inglês fluentemente. Tive a impressão, também, de que todas
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eram eficientes e bonitas. Uma delas avançou para nós, quando aparecemos, e era certamente muito bonita. Tinha os cabelos curtos e ondulados - deixem-me dizer aqui e agora, e tornar a repeti-lo, provavelmente quanto deploro a ondulação permanente, no Japão. Os macios cabelos negros e lisos, que eram, outrora, a glória da mulher japonesa, são atualmente cortados curtos e torturados em compactos caracóis em forma de perucas. Pior que tudo, está na moda, especialmente para atrizes, como vim a descobrir, tingir os cabelos negros de um ferrugento castanho. O brilho natural se perde e a côr barrenta embaça a leve tonalidade creme da pele, tão bonita anteriormente. Por algum motivo, esse castanho ferrugento também tirou o efeito dos olhos negros, embora as japonesas disponham das últimas novidades para make-up de olhos, maquilagem do rosto, em forma líquida, seca ou pastosa.
Essa aparência moderna, contudo, nada é, comparada ao comportamento atual. Desapareceram os modestos olhos baixados, a delicada reserva, a aproximação indireta dos homens. Em vez disso, olhares ousados, palavras francas, ataque sexual aberto a qualquer homem disponível, com preferência pelos demasiado suscetíveis americanos, é a regra do dia.
Estou me adiantando à minha história. Não aprendi imediatamente tudo isto, ao entrar nos escritórios da grande companhia cinematográfica japonesa. O que vi foi um bando de mulheres bonitas, esmeradas, serenas, eficientes, vistosas e como que indestrutivelmente jovens. Uma delas conduziu-nos ao gabinete interno. Confesso que foi tranqüilizador ver a minha especial amiga sentada atrás de uma escrivaninha muito moderna, sem dúvida, mas vestindo um quimono de seda cinza prateada e um cinto vermelho pálido. Levantou-se para receber-nos, curvando-se profundamente, com toda a antiquada graça. Seu inglês é perfeito, e eu sabia que fala igualmente bem francês, alemão e italiano, pois parte de seu trabalho consiste em viajar por países europeus, tratando de filmes japoneses. Nada há, nela, realmente, de antiquado, a não ser seu vestido. É sócia no negócio, em pé de igualdade,
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com seu marido e dois outros homens. Eles se rendem à sua sabedoria, eficiência e julgamento, embora eu tenha ouvido subterrâneos resmungos ocasionais do gerente de produção, quanto ao fato de que ela estava "tomando muita altura ultimamente". Mas como se tratasse de um celibatário, coisa repreensível, por si mesma, num homem de mais de cinqüenta anos, no Japão, não o levei a sério.
O gabinete era elegante, moderno até à última cadeira, mas da parede pendiam uma fina pintura antiga e alguma excelente caligrafia. Minha amiga convidou-nos a sentar, e duas ou três das bonitas moças trouxeram-nos chá verde em xícaras japonesas. Sorvêmo-lo conversando amenidades. Ela convidou-me a passar o fim de semana em sua casa de campo de Kamakura. Aceitei, e disso falarei mais, depois. Não demoramos, pois nunca é de boa educação, no Japão, prolongar uma primeira visita. Passados cerca de quinze minutos, a bonita jovem levou-nos ao gabinete do diretor da companhia, homem alto e elegante, nem jovem nem velho.
Estava sentado atrás de sua escrivaninha e, quando entramos, levantou-se, curvou-se e convidou-nos a sentar ao redor de uma comprida e ampla mesa. Não falava muito inglês, e sua secretária, outra moça bonita, servia de intérprete para nós ambos. Era um homem inteligente, como se podia ver de suas finas feições civilizadas, e homem do mundo, seguro, autoconfiante, cortês. A sala, como a maioria dos escritórios e gabinetes no Japão, tinha atmosfera calma, era bem decorada e parca mas excelentemente mobüiada com móveis modernos. Sentamo-nos à mesa em confortáveis cadeiras de couro e outra moça bonita, ou duas delas, trouxe-nos chá fresco. Enquanto os homens conversavam através da bonita intérprete, eu examinava a sala. Da parede próxima a nós, no extremo do aposento, pendiam três impressivos retratos a óleo, dos fundadores da companhia, como me disseram. Esses eram os únicos quadros, além de, na parede oposta, como observei a seguir, um grande calendário, no qual estava impressa, em estilo de cartão postal, a forma vivaz de uma bela banhista, em plenas cores, fascinante objeto sobre
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o qual pareciam ainda estar fixos os olhos dos três solenes cavalheiros, apesar de mortos. Fiquei a imaginar, rindo interiormente, se uma daquelas esmeradas e bonitas pequenas não teria pendurado ali a sua duplicata, com intenção humorística.
Entrementes a conversa prosseguia, animada. Era óbvio que o nosso anfitrião compreendia perfeitamente o inglês, mas a bonita moça interpretava para êle de igual maneira, com uma digna vivacidade. Êle, obviamente, confiava no bom senso e na competência da intérprete. Que pensa o homem japonês desse novo tipo de mulher? Resolvi tratar de descobri-lo, algum dia. Quanto a ela, parecia ser extremamente útil, além de ornamental, e, acima de tudo, parecia feliz. Desaparecera sua antiga tristeza. A tragédia a abandonara, e se o que a substituíra não fora exatamente a comédia, fora algo de vivaz e encantador.
Os detalhes de nossa cooperação foram fixados num espaço de tempo espantosamente curto - se é que se pode fixar a fluidez e as exigências de uma filmagem. Concluídas, pelo menos, as preliminares, aquele chefe da grande companhia triangular convidou-nos a nos reunirmos com o terceiro restante, o gerente de produção. Sabíamos, então, que havíamos chegado ao definitivo, ao prático, ao homem com o qual teríamos de tratar muitas e muitas vezes. Mas somente seria possível encontrá-lo depois do domingo, pois estávamos no fim do dia e aquele era o último dia útil da semana. O fim de semana, na sociedade japonesa, tornou-se acontecimento tão importante como na maioria dos países ocidentais. Nada podia ser feito enquanto não terminasse. Era o momento ideal para aceitar o convite de minha amiga.
Não muito longe da grande e moderna Tóquio fica a tranqüila cidade de Kamakura. É famosa na História japonesa, mas famosa também agora porque nela residem alguns dos mais renomados escritores japoneses. O marido de minha amiga achava-se na Europa, mas ela própria veio buscar-me em seu confortável automóvel com chofer.
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Rodamos através da populosa cidade e dos subúrbios que se estendiam até o campo. Era uma ensolarada tarde de agosto, mas só vimos que fazia sol depois de sair da cidade, em virtude do smog, que é o mesmo em toda parte, e em Tóquio às vezes pode ser forte e denso, como era naquele dia.
Desfrutei grandemente o passeio, não apenas porque me dava oportunidade de ver os delineamentos gerais da nova e espantosa Tóquio, pelo menos numa direção, mas também porque descobri que eu realmente podia conversar com a igualmente espantosa nova mulher japonesa, que se achava a meu lado. Ela continuava formosamente japonesa, em seu quimono de seda cinza, cabelos lisos, feições amáveis e serenas, mas seu espírito era cosmopolita e sofisticado, no verdadeiro sentido da palavra. Ela podia ser, e era, ela mesma em qualquer parte do mundo, à vontade em qualquer capital. Estou acostumada às mulheres cosmopolitas e sofisticadas de muitos países, porém minha amiga tem uma qualidade individual e fora do comum. Não pode ser tomada por outra coisa senão por japonesa, e no entanto essa cristalização natural do nascimento e da educação é apenas o meio através do qual ela comunica uma experiência universal, com sabedoria e encanto. Uma rosa é uma rosa em qualquer parte do mundo, mas num aposento japonês, arranjada num vaso japonês, numa tokonoma japonesa, a rosa se torna de certo modo japonesa. Assim é minha amiga.
Receio ter-lhe feito uma centena de perguntas, e fiquei deliciada com as suas respostas francas e informadas. Duas horas se escoaram como se fossem minutos.
- Convidei alguns de nossos escritores para vê-la, disse-me afinal. - Jantaremos numa hospedaria famosa.
Quando chegamos a Kamakura o Sol já se havia posto e fomos diretamente para a hospedaria. O carro parou a alguma distância e caminhamos ao longo de uma trilha estreita, longe da rua principal de Kamakura. No fim do caminho atravessamos um portão de madeira e degraus de pedra nos conduziram através de um jardim até um amplo gramado, iluminado por lanternas de pedra. Os
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tetos baixos dos prédios se aninhavam sob grandes árvores, galgando as encostas abruptas de uma montanha, atrás da hospedaria.
Estávamos atrasados e os hóspedes, alguns dos mais queridos escritores japoneses, já esperavam por nós. Todos vestiam quimonos japoneses escuros e se achavam sentados num comprido banco de pedra, tomando chá. Fui apresentada a eles, um a um, e reconheci especialmente o Sr. Kawabata e Jiro Osaragi. O Sr. Kawabata é presidente do P. E. N. Clube do Japão e tinha acabado de voltar, no mesmo jacto que eu, de uma visita à América do Norte e do Sul. Como eu nunca o havia encontrado, não sabia quem era, a bordo do avião. Êle estava sentado do outro lado do corredor, em frente a mim, e de quando em quando eu o olhava.
- Deve ser um grande homem do Japão, murmurei à minha companheira de assento.
Não era alto e tinha as feições delicadas e finas. Os olhos, contudo, revelavam o homem. Grandes, negros, e tão luminosos de inteligência que eram, de fato, janelas através das quais se podia vislumbrar um espírito sensível e brilhante.
Agora eu tornava a vê-lo, reconhecendo-o instantaneamente.
- Era o senhor... no jacto! exclamei. Êle sorriu:
- Eu a conhecia, mas a senhora, a mim, não.
- Conheço-o agora, declarei. - Li seus livros. Sei que foi à América do Sul. E - perdoe-me - sabia, quando o vi naquele dia, que o senhor era... alguém.
Riu da minha tolice e eu admirei, intimamente, suas feições delicadamente esculpidas, a pele ebúrnea e firme e a massa de cabelos brancos. Tem sessenta e dois anos de idade. O pesado quimono de seda completava seu ar de aristocrata. Contudo, também é muito vivaz e moderno. Quando elogiei, mais tarde naquela noite, o excelente serviço da Japan Airlines assumiu uma expressão travessa e sacudiu a cabeça.
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- Mas eu tenho uma queixa, disse êle. Nem sempre a aeromoça é muito bonita!
Rimos e minha amiga explicou cordialmente que o famoso escritor exerce atração sobre as jovens e é, por conseguinte, um connoisseur.
Permanecemos sentados durante uma hora, admirando a Lua e saboreando suco de frutas gelado. A conversa era em inglês, ou em japonês traduzido em meu benefício. A maioria dos escritores não falava inglês.
Fomos, então, chamados e passamos ao restaurante, tiramos os sapatos à entrada e ingressamos numa ampla sala, aberta dos dois lados para o jardim. Aí, no frescor produzido por um grande ventilador elétrico, conversamos ou descansamos, de quando em quando, em pacífico silêncio. Eu me sentara ao lado de Jiro Osaragi e minha amiga nos servia de intérprete. Tinha acabado de ler, pela segunda vez, sua terna novela, Homecoming, livro quase feminino, em sua graça e sutileza. Era difícil imaginá-lo escrito por aquele homem de meia idade, alto, forte e elegante. Êle, certamente, nada tinha de feminino. Mas a combinação de delicadeza e força, de ternura e crueldade, é habitual na obra de escritores japoneses, e talvez seja inerente à natureza nipônica.
Enquanto conversávamos, era servido um prato após outro. Estávamos na época da truta marinha, a primeira boa estação depois de muito tempo, segundo me contaram, pois a truta do mar fora destruída nos últimos anos, de um modo que não compreendi bem, talvez pela radiação atômica. De qualquer maneira, agora evidentemente, era uma iguaria. Serviam a truta individualmente, assada, em pedras quentes em vez de pratos, cada peixe colocado como se estivesse nadando no leito oceânico. Uma linha de sal simbolizava a praia, um pedaço de galho de cedro as algas marinhas. Era demasiado refinado para ser comido, mas o comemos e o achamos delicioso. Retirado esse prato, trouxeram a seguir um pedaço de bambu verde, aberto ao meio, e recheado com fumegante carne fresca de codorniz jovem. E assim continuamos até o fim da refeição, voltando depois para o jardim. Aqui, num caramanchão
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aberto, comemos genghis khan, prato mongol de finas fatias de carne e vegetais cozidos num fogareiro de carvão, precursor, atrevo-me a dizer, do moderno sukiyaki. Devia, adequadamente, ser preparado e comido ao ar livre, como fizemos, em homenagem à nômade vida mongol. Mas não entrarei nesse assunto de iguarias, pois não há limites para a engenhosidade e imaginação dos japoneses em questões culinárias. A noite passava, demasiado rápida, e chegou a hora da separação. Dissemos nossos adeuses e seguimos nosso caminho.
A casa de minha amiga é grande, uma combinação de arquitetura japonesa antiga e moderna, situada num amplo jardim e cercada por um muro de pedra. Ao entrar, vislumbrei uma ampla sala de estar, mobiliada com cadeiras e sofás ocidentais, e ao lado dela um aposento em estilo japonês. Mas já era muito tarde e fui levada a um quarto do sobrado, onde se colocou um colchão, um lençol imaculado e um travesseiro sobre o tatami no soalho. Ela indicou-me o banheiro particular, tateou uma garrafa térmica de chá para verificar se estava quente, e desejou-me uma bondosa boa noite.
Quando ela se foi, afastei o shoji e descobri atrás dele uma ampla varanda que dava para um belo jardim, inundado, naquele momento, pela dourada luz da Lua, uma luz tão brilhante que embaçava as lâmpadas das lanternas de pedra. A paisagem era de uma paz inefável e eterna, a Lua deslizando muito alto, por cima da copa das árvores, como vinha fazendo há inumeráveis anos. Permita Deus que possamos vê-la deslizar pelo mesmo caminho, através do céu, por muitos séculos vindouros! Lembrei, contudo, que fora aquela mesma Lua que apenas recentemente quase levara o nosso mundo à catástrofe final.
Um grande radar, instalado para captar a menor explosão de energia fora do comum, em qualquer parte do mundo, registrou certa noite que uma explosão desse tipo estava ocorrendo. O sinal de alerta voou ao redor do globo. Distância não é problema para a transmissão, e em dois segundos as ordens de revide podiam ter sido enviadas e
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recebidas. Exatamente a tempo chegou uma frenética mensagem de adiamento. Que acontecera? A Lua cheia se havia erguido e, em alguma parte, um jovem perturbado negligenciara de registrar o seu surgimento e explicar, assim, a conseqüente explosão de energia. As ordens foram sustadas exatamente a tempo e a raça humana foi salva.
Desviei-me da Lua e fui para a cama. As velhas lanternas ardiam nos jardins a noite inteira e os grilos cantavam enquanto eu adormecia.
Pela manhã minha amiga declarou que eu devia ver o famoso templo Kamakura. Saímos de casa após um tardio desjejum e fomos em automóvel até esse antigo templo, construído no período de Meiji, há cerca de cento e cinqüenta anos. Era domingo e lá se encontrava uma multidão de pessoas, passeando. Jovens japoneses perambulavam por ali, moças e rapazes, de mãos dadas, para espanto meu - sombras do velho Japão! - ou lado a lado, levando cestas de merenda. Gente do campo tinha vindo à cidade e os mais velhos caminhavam lentamente, a mulher alguns passos atrás do homem.
Mas quando nos aproximamos do grande pavilhão de entrada, de fina madeira de cedro, encontramos autêntica agitação. Estavam realizando um filme para televisão. Homens em trajes do velho garbo, de xógum e daimyo, esgrimiam e combatiam, numa peça histórica. Reunimo-nos à multidão de espectadores. No momento em que o diretor, irrequieto jovem de óculos escuros, no melhor estilo de Hollywood, gritou "Ação!" - no momento em que as câmaras estavam prestes a disparar - a ação cessou. Um rapaz, montado numa bicicleta, entrou pedalando no meio da cena medieval, descendo da colina do templo. Ouviram-se altos brados do diretor, frenéticos, também no melhor estilo de Hollywood, a advertir o moço ciclista que fosse pedalar no bosque. O rapaz obedeceu, alarmado, e os guerreiros tomaram de novo seus lugares, mergulhando na batalha.
Nota de rodapé:
(1) xógum - antigo governador militar do Japão (N. do T.).
Fim da nota de rodapé.
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Mas nesse momento um bando de colegiais apareceu ao longe. Novos gritos, as crianças foram impelidas para o bosque e uma vez mais voltamos ao passado. E assim continuou a coisa. Havia algo de simbólico em tudo aquilo, velho e novo, combinação que se sentia em toda parte no Japão - vinho novo em frascos velhos.
A grande sala de estar, na bela casa japonesa, mobiliada em estilo ocidental, é para a família, como descobri quando regressamos. A sala de estar japonesa era para a mãe de minha amiga, agora com oitenta anos de idade. Ela sentava-se sobre uma almofada, no chão, com as pernas cruzadas debaixo do corpo. Sobre uma mesa baixa, à sua frente, achavam-se as suas preciosidades, seus livros, um vaso de flores, seu pequeno papagaio verde, numa gaiola. Ela poderia ter saído dos séculos passados. Contudo sentia-se inteiramente feliz na moderna e confortável casa japonesa. Estava na família, no centro dela, bem-vinda e cálida, mas ela própria era o velho Japão. Algo novo e algo velho, mais uma vez!
O dia decorreu em agradável paz, em conversa e explicação do jardim e da biblioteca. Voltei para Tóquio sozinha, à noite no carro made-in-Japan, confortável, provido de ar condicionado, e meditei sobre aquele fim de semana. Um pequeno incidente sobrepunha-se, em meu espírito, a todos os demais. Havia, na tranqüila e luxuosa casa, uma irmã mais moça, gentil e discreta, e que já não era jovem. Eu me refreara de fazer perguntas a seu respeito. Não era de minha conta a razão por que se encontrava lá. Mostrava-se útil, estava contente. Mas a minha inveterada, incontrolável, insaciável curiosidade de romancista acabou levando a melhor, antes que eu me fosse. Estou, realmente, em termos de boa amizade com essa família japonesa, mas senti-me compelida a começar desculpando-me.
- Envergonho-me de fazer tantas perguntas, disse à minha amiga. - Mas, se não perguntar, como ficarei sabendo?
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- Pergunte o que lhe aprouver, respondeu bondosamente.
E eu:
- Por favor, sua irmã mais moça nunca se casou? É tão fora do comum!
Houve um instante de hesitação na fisionomia serena da irmã mais velha. Então respondeu:
- Casou-se uma vez, há vinte anos. Era um bom homem, um velho amigo... Quatro dias depois do casamento, ela voltou para casa.
Aguardei, esperando não fazer outra pergunta. Mas não, ela veio correndo aos meus lábios:
- Por que voltou ela para casa?
A irmã mais velha respondeu com inteira simplicidade:
- Não sabemos. Não gostamos nunca de perguntar. Não fiz mais perguntas. Vinte anos e eles não gostavam de perguntar! A resposta revelou a delicada reticência de todo um povo... Não, vinho novo em velhos frascos, não. Invertam a metáfora - vinho velho em frascos novos. A diferença é sutil mas profunda.
No dia seguinte comparecemos ao encontro marcado com o gerente de produção. É uma figura importante em qualquer companhia cinematográfica, mas na companhia japonesa ocupava o lugar de primeiro ministro. Tudo dependia dele, esperava-se que fizesse milagres, e todos os "sins" e "nãos" da cúpula vinham através dele.
Assim, na manhã de segunda-feira, muito quente, fomos introduzidos no seu gabinete por uma bonita moça. Vimos um enorme japonês em mangas de camisa, cabelos revoltos, olhos selvagens, queixo pesado, boca franzida, voz alta. Estava berrando num telefone enquanto três moças bonitas, em várias partes do aposento, falavam em outros três telefones, de acordo com o que êle lhes ditava, mas em voz aveludada. Rolou seus grandes olhos ferozes em nossa direção, mas não demonstrou reconhecer-nos de outra maneira a não ser por um imperioso aceno de sua grande mão, convidando-nos a sentar. Sentamo-nos em
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cadeiras baixas, ao redor de uma mesa baixa e uma bonita moça serviu-nos chá enquanto esperávamos. Êle interrompeu a conversação, afinal, com um berro feroz e veio cumprimentar-nos, todo cordialidade, bondade, impaciência e um certo ar de desespero, que mais tarde soubemos ser a sua disposição habitual.
Pôs de lado as formalidades e falou com aparente franqueza - certamente franqueza do momento. Faço esta qualificação, pois aprendi, mesmo em meu próprio país, que a encantadora e desarmante franqueza dos cidadãos permanentes do mundo teatral não transmite necessariamente o que é, comumente, denominado verdade. Verdade, no teatro, pode ser estritamente momentânea e confinada nos limites da esperança, expectativa, ou mesmo, possivelmente, da intenção. O gerente de produção, portanto, pertencia estritamente ao mundo teatral. Falava em japonês e sua intérprete era uma das bonitas moças educadas nos Estados Unidos, que abrandava o que êle dizia sem destruir-lhes a força. Ela era muito hábil. Mas nós ainda não o conhecíamos de fato. Disse, apenas, naquele dia, com ar embaraçado, que faria tudo quanto pudesse para ajudar-nos, pedindo-nos somente um favor. Devíamos deixar a seu cargo o arranjo das questões financeiras com o elenco. As companhias cinematográficas japonesas, disse-nos, não eram muito favoráveis à co-produção de filmes americanos. Os americanos pagam salários absurdos e tornam os atores descontentes e indisciplinados quando, depois, vão tratar com suas próprias companhias japonesas. Bateu seu grande punho na mesa. Vejam, trovejou, o que acontecera na Itália! Isto não devia repetir-se no Japão. Concordamos e nos despedimos.
Agora que havíamos conhecido todas as pessoas importantes, a tarefa seguinte era a programação. No preparo de um filme, a programação é tão importante quanto a reunião de dados para alimentar uma máquina computadora. Todos os ingredientes necessários devem ser providos imediatamente e em tal ordem que assegurem o resultado adequado. Assim, nós tínhamos não só de considerar os arranjos com a nossa companhia cinematográfica japonesa
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cooperante, mas tínhamos, ao mesmo tempo, de pensar em encontrar lugares para a filmagem bem como escolher atores, montador, câmaraman e tudo o mais que entra na vasta complexidade de um filme. Agora que nossa película está terminada verifico que tenho muito mais respeito por todos os filmes, até mesmo os maus, do que tinha antes. Por mais insatisfatórios que possam ser do ponto de vista artístico, entram, em sua preparação, sofrimento e esforço imensos, muitos desapontamentos e muita agonia, para não falar no cansaço do corpo e do espírito. Fazer um filme é um grande trabalho.
Enquanto o gerente de produção cumpria suas promessas de ajudar-nos a encontrar nosso elenco, decidimos trabalhar na escolha dos cenários. Litoral, casa de pescador, fazenda, mansão senhorial e um vulcão ativo eram os cenários de que necessitávamos. Paisagem e incidente enriqueceriam a história que seria vivida nesses lugares. Havia também a ressaca, porém mais tarde.
Entramos em consultas para estabelecer o que deveríamos fazer em primeiro lugar, agora que estavam feitos os contatos preliminares, e decidimos escolher os lugares, especialmente o vulcão. Esperávamos encontrar tudo perto de Tóquio, se possível, pois lá é que ficam os estúdios. Eu, pessoalmente, não alimentava essa esperança, porque via, na imaginação, uma pequena aldeia situada numa ampla enseada ao lado do mar, sobre ela o eirado de uma fazenda na encosta da colina, e em alguma parte junto dela a casa do Velho Cavalheiro. Eu estava certa de que semelhante paisagem não podia ser encontrada perto de Tóquio. O vulcão, porém, era outro assunto. A estranha ilha negra de Oshima não fica longe da cidade - apenas algumas horas em um pequeno e trôpego vapor costeiro, e quarenta e cinco minutos por avião. Decidimos pelo barco, esperando, ainda, que navegando ao longo das praias denteadas, descobríssemos uma aldeia de pescadores à qual pudéssemos voltar. Era provável que o mar ficasse agitado, como nos disseram, e o barco certamente era pequeno. Tratava-se de um vaporzinho asseado e
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quando embarcamos nele já estava cheio de colegiais e seus professores, em passeio.
Os colegiais são os bem-amados do Japão, como qualquer um pode ver. Todos, atualmente, vestidos em roupas ocidentais. Nas menores aldeias e nas mais antigas vêem-se às oito horas da manhã bandos de meninos e meninas, elegantemente trajados, imaculadamente limpos, cada qual com mochila e garrafa térmica, rumando em ziguezagues para a escola. Nas férias ou nos dias feriados, dirigem-se, com a mesma aparência imaculada, a vários lugares famosos, sempre em ordem e aparentemente muito felizes.
Nesse dia, o número de colegiais era espantosamente grande e o pequeno vapor mergulhava muito abaixo da linha de água. Mas ninguém parecia ter medo e como fizesse um bonito dia, o mar reluzindo com a espuma branca da crista das ondas, decidi afastar o receio e gozar a breve viagem. Durante toda a manhã costeamos o litoral soberbamente belo, sem ver uma só aldeia que nos parecesse apropriada. Entramos, afinal, num amplo ancoradouro e nos encontramos no porto. Fomos imediatamente para o hotel, pois lá deveríamos passar a noite, voltando pelo vapor da manhã. O hotel de veraneio era grande, um tanto maltratado, como é próprio desse tipo de hotéis em toda parte, e para embaraço meu verifiquei que me tinham reservado a suíte do Imperador. O cordial hoteleiro assegurou-me que o Imperador e a Imperatriz a tinham ocupado havia apenas uma semana e a acharam tão confortável que não quiseram levantar-se para o desjejum, o que me deixou tão apavorada que pedi um aposento menos augusto. Contratamos então um carro e rodamos pela ilha, rumo ao vulcão.
Oshima é negra. Pensei nos versos que o Rei Salomão cantava para a sua amada escura: "Tu és negra, mas graciosa". Assim é Oshima. A ilha inteira é formada pelo transbordamento do vulcão e isto significa que o solo é lava, comprimida pelo tempo e pelo clima. Não há terras cultivadas, mas os vales e as colinas mais baixas são verdes de camélias silvestres. Quando florescem, no começo da primavera, a ilha se transforma num jardim famoso
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em todo o Japão. A subsistência dos habitantes depende, porém, não das flores mas do óleo extraído das sementes de suas vagens. Óleo de camélia - como isto sôa refinado! É um líquido fino, claro como água e sem cheiro. Serve para tudo, desde para cozinhar até passar nos cabelos.
Havia umas poucas aldeias de pescadores na costa da ilha, com pequena população em virtude da pobreza da terra. A linha litorânea é selvagem e eu parei freqüentemente o carro a fim de poder gozar a terrível beleza da alta e alva arrebentação estourando contra os rochedos da negrura do ébano.
As estradas eram ásperas e nos alegramos ao desistir afinal de nossa busca e rumar para o próprio vulcão. Vira-o, o dia inteiro, fumegando sobre nós e expelindo suas nuvens de gás amarelo-sulfurino, uma visão terrífica. Quando alcançamos sua base, ficamos realmente assustados. As montanhas eram lisas, negras e totalmente despidas de capim, e até mesmo de pés de camélia. A fumaça, o gás e o vapor tinham destruído tudo numa área de centenas de quilômetros quadrados e as descarnadas montanhas que circundavam o vulcão alçavam seus picos negros contra o céu. Assim deverá parecer a Lua ao primeiro astronauta e eu me sentia como um astronauta, tão inacreditável era que aquilo fosse a nossa Terra. Não pudemos aproximar-nos da cratera, pelo menos naquele dia. Disseram-me que a sinuosa estrada tinha de doze a dezesseis quilômetros de comprimento e era preciso vencê-la a cavalo. Havia por ali grupos de cavalos selados à espera, com seus ansiosos donos. Mas não nos era necessário subir ao vulcão para saber que tínhamos encontrado o que procurávamos. Fiquei durante longo tempo no topo de um monte negro e nu, ao pé do vulcão, e vi o Sol poente avermelhar as espirais de vapor branco até se assemelharem às chamas de fogo vivo. Aqui voltaríamos mais tarde com nossos atores, cinegrafistas e equipe. Subiríamos ao topo da cratera e filmaríamos a cena do nosso pequeno herói, Yukio, o filho do lavrador, quando êle se debruçara a fim de olhar para dentro do centro do nosso globo.
E nunca esquecerei que, antes de voltarmos a Tóquio,
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vimos inesperadamente, naquela tarde, o nevado cume do Monte Fuji, erguendo-se acima das nuvens, a meio caminho do céu. Há visitantes que passam meses no Japão sem ver o Fuji. É inteiramente por acaso e pela graça de Deus que a montanha sagrada aparece ante olhares humanos. Rodávamos numa estrada da encosta da montanha, no meio da tarde, o céu estava turbulento de nuvens, e enquanto eu sonhava com a visão, sem me atrever a alimentar qualquer esperança, vi de súbito o perfeito pico branco contra um campo de repentino céu azul. Poucas, pouquíssimas paisagens famosas são melhores do que o rumor de sua beleza. O Taj Mahal é uma delas e o Fuji é outra. Paramos por três minutos e meio para contemplá-lo com deleite e terror. Então as nuvens esconderam de novo a sua majestosa forma.
Abri os olhos em Tóquio, na manhã seguinte, às cinco horas, inteira e totalmente desperta. Algo me havia chamado, não uma voz, pelo menos não ouvi voz alguma. Estava, simplesmente, consciente de ter sido chamada de alguma forma. O aposento não se achava escuro nem claro. A noite findara mas o alvorecer ainda não viera. Permaneci imóvel em minha cama, ouvindo, esperando, convencida de que alguém estava tentando alcançar-me. A impressão se desvaneceu lentamente e fiquei de novo sozinha, mas não como estava antes. Faltava, ainda, acontecer algo. Devia estar preparada.
A um quarto para as seis o telefone tocou. Soube imediatamente qual seria a mensagem.
- Chamada transoceânica, por favor, disse uma voz. - Dos Estados Unidos, por favor, Pensilvânia chamando... está pronta?
- Estou esperando por ela, respondi. Sabia, agora, o que estivera esperando durante sessenta minutos.
- Aguarde, por favor, disse a voz.
Estivera aguardando havia uma hora e continuei. Em sete minutos, com os olhos sobre o relógio na mesinha, a
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voz de minha filha chegou a mim vencendo os milhares de quilômetros de terra e mar que nos separavam.
- Mamãe?
- Sim, querida.
- Tenho de lhe dizer uma coisa. Está preparada?
- Sim, querida.
- Mamãe. A voz jovem, clara e brava, fraquejou por um instante, mas prosseguiu resoluta: - Mamãe, Papai nos deixou esta manhã, enquanto dormia.
- Imaginei que era isso que você ia me dizer.
- Como soube?
- Eu apenas... sabia.
- Quando voltará para casa?
- Hoje... no primeiro jacto.
- Vamos esperá-la em Nova York.
- Mandarei um cabograma, tão logo tenha o número do vôo.
- Todos vieram para casa. Estamos todos aqui. Trataremos de tudo, até você chegar.
- Eu sei.
Trocamos algumas palavras particulares, o coração falou ao coração, e desliguei. Por um instante houve o arrependimento, oh, eu nunca deveria ter partido, oh, eu poderia estar lá, quando êle se foi. Deixei tudo isso de lado. Havia discutido integralmente esse próprio momento com o médico de nossa família. Êle dissera, anos antes, respondendo a uma pergunta minha: "Pode levar anos, pode ser amanhã. Você deve continuar a viver exatamente como sempre viveu. O coração dele é forte, sua digestão perfeita - penso que viverá muito tempo. Mas lembre-se, quando chegar a hora, seja como chegar, você nada poderia ter feito para impedi-lo. Eu também não, mesmo que estivesse sentado à sua cabeceira".
Hesitou, depois prosseguiu: "O cérebro está severamente afetado. Naturalmente você deve esperar uma mudança total de personalidade... nós não sabemos..."
Aquele cérebro brilhante, que respondia tão rapidamente ao meu próprio pensamento... sim, houve mudança de personalidade. O homem que eu conhecia tão bem, o
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companheiro prudente, tornou-se outra pessoa, uma criança confiante, um menino gentil e indefeso, ao qual ninguém podia deixar de amar. Éramos felizes, mesmo assim. Quando o cérebro falha e fica somente o corpo, é verdade que às vezes se verifica uma terrificante mudança de personalidade. Os chineses crêem que o ser humano tem três almas e sete espíritos terrenos. Quando as almas partem, ficando apenas os espíritos terrenos, a pessoa se torna má e cruel, de várias e imprevisíveis maneiras. Não foi assim com êle. Seus espíritos terrenos formavam um só bloco com suas três almas. Continuou a ser o que sempre fora, amável, paciente, preocupado em não perturbar, como sempre, a não ser que, pouco a pouco, a comunicação cessou. A linguagem se perdeu, a vista faltou, o cérebro parou de viver, exceto durante o sono.
Era muito cedo para acordar alguém com a notícia. De qualquer modo, quem poderia partilhar de meus pensamentos e de minhas lembranças? Quão rapidamente, num só instante, os anos de vida feliz se tornaram apenas lembranças! Estava, agora, completa a longa e lenta preparação dos últimos sete anos. O dia que eu temera, havia chegado. Viera a solidão final.
Não havia como ocultar a notícia. Alguém, da mesa telefônica, contara a alguém. Uma hora depois o telefone começou a tocar e os amigos batiam à minha porta. Nada daquilo parecia próximo ou real. Ouvia vozes perguntando. Ouvia minhas próprias respostas. Sim, é verdade que tenho de tomar o primeiro jacto para casa. Não havia lugares disponíveis, porém os amigos, mais uma vez, trataram de conseguir-me um. Alguém cedeu seu lugar, ao saber do ocorrido. Mas o primeiro jacto partiria à meianoite e eu tinha um dia inteiro para passar, de qualquer modo. A bondade, a simpatia crescente, tornavam-se difíceis de suportar. Eu sabia que tinha de sair da cidade, ir para o campo, longe de telefones, onde ninguém pudesse bater à minha porta.
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Nesse momento, Miki disse:
- Venha passar o dia na minha casa.
Miki, minha amiga, vive a cerca de duas horas de Tóquio. Um bom serviço ferroviário estabelece a ligação com rapidez e conforto - os trens japoneses são excelentes - mas fomos no automóvel dela. Quando chegamos à pequena cidade perto da qual ela mora, a atravessamos diretamente até o sopé de uma escarpa colina, que não é propriamente uma montanha, e o portão abriu-se para receber-nos.
- Daqui para a frente teremos de andar, disse Miki vivamente.
Havia conforto naquela voz confiante e realista, alívio em saber que Miki podia comportar-se exatamente como se eu tivesse apenas ido passar um dia comum. Na verdade nunca tinha visto a sua casa. Ela estivera na minha, na Pensilvânia, mais de uma vez. Conhecia o seu trabalho pelas crianças nipo-americanas, nascidas no Japão. Ela é única entre as mulheres japonesas. Por que digo japonesas? É única, simplesmente. Jamais conheci mulher como essa. É moderna até à última célula do cérebro, mas seu sangue é japonês antigo e nobre. Pertence a uma das grandes famílias do Japão e seu marido tem ocupado muitos postos honrosos. Ela viveu na Europa e visita os Estados Unidos uma ou duas vezes por ano. Usa roupas ocidentais porque se pode movimentar mais livremente com elas, porém só pode ser japonesa, em qualquer parte do mundo. Ri de sua própria aparência e chama a si mesma de "cara-de-abóbora". É verdade que tem o rosto redondo, mas é graciosa, de olhos vivos, e o ar de uma pessoa habituada a ser ouvida. Sua história, como ela própria a conta, é mais ou menos assim:
Um dia, durante o mais rigoroso período da guerra, entrou num trem para ir ao campo em busca de alimento. O trem estava apinhado e do porta-bagagens caiu um pacote sobre a sua cabeça. O embrulho era de papel de jornal, que se desfazia. Ela o abriu a fim de tornar a embrulhá-lo melhor e viu que tinha diante de seus olhos horrorizados um menino recém-nascido. Estava morto.
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Nesse momento a polícia entrou no vagão à procura de traficantes do mercado negro. Viram o que tinha no colo e a prenderam imediatamente por tentar livrar-se de uma criança morta. Pensaram que o menino fosse dela. Passou um mau quarto de hora até que um velho lavrador saiu em sua defesa.
- A criança não é dela. Uma moça entrou aqui, pôs o pacote no porta-bagagens e tornou a sair.
A polícia, afinal, se convenceu e ela foi salva. Mas, segundo conta, nunca esqueceu aquele pequeno menino morto.
- Sinto para sempre o peso da criança em meus joelhos, costuma ela dizer.
Dias mais tarde, ao passear pela manhã em seu belo jardim, notou que algo se movia sob uma grande moita. Um coelho, pensou. Inclinou-se para ver se estava ferido e encontrou um bebê. Alguma jovem mãe desesperada o tinha deixado ali. Levou a criança para casa e cuidou dela. Daí por diante passou a se dedicar às crianças nipo-americanas nascidas no Japão. O que começou com um pequeno corpo morto cresceu até se transformar num grande trabalho vivo para milhares de crianças nascidas de mães japonesas e de pais americanos, brancos e negros. Organizou uma agência de adoção, própria, e colocou mais de mil órfãs em lares dos Estados Unidos. As crianças ainda continuam a nascer e ela ainda as coloca. Mas muitas delas vivem em sua companhia e continuarão em sua casa até crescerem e se tornarem capazes de cuidar de si mesmas. Nesse dia, ao subir a colina, ouvi suas vozes vindas do alto, exclamando, rindo, gritando em meio aos folguedos. O caminho serpeante por entre grandes árvores, era calçado de pedra e degraus também de pedra davam acesso às encostas mais íngremes. O dia estava agradàvelmente fresco e a luz do Sol caía por entre os troncos sobre a terra coberta de musgo. Longe, abaixo de nós, as casas da aldeia se amontoavam, com seus tetos de palha e telhas. Lembro-me que caminhava lentamente, minhas energias usualmente fortes, minadas por dentro. Fazia perguntas e ouvia suas respostas, mas durante o tempo todo achava-me
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longe de todos e perto de ninguém. Era como se estivesse suspensa, sem peso, no espaço. Mente e coração entorpecidos. Compreendi, de súbito, que ela estava falando e eu não sabia o que dizia.
- Quantas crianças tem aqui, Miki? perguntei, apenas para dizer alguma coisa.
- Cento e quarenta e oito, respondeu-me.
Ela caminhava com seu habitual passo rápido e parou, esperando que eu a alcançasse.
Cento e quarenta e oito! Estavam espalhadas por toda parte, nos velhos e belos prédios japoneses e nos jardins do lar ancestral de Miki. Ela construíra também algumas casas modernas, funcionais para escola e dormitórios. Em um dos dormitórios vi duas meninas absorvidas no cuidado de um coelho e de alguns ratos do campo. Era permitido às crianças manterem seus bichos junto de si e cada uma tinha um lugar especial para as suas coisas particulares. A maioria dos orfanatos é triste, mas Miki, de alguma forma, fizera de seu enorme estabelecimento um lar ao invés de um orfanato. Cerca da metade das crianças, como notei, eram filhas de pai negro. A proporção de nascimentos, naturalmente, é muito inferior, mas a maior parte das crianças brancas tinha sido adotada, ao passo que das negras apenas umas poucas, pela simples razão de que são poucos os casais negros que podem suportar o custo de uma adoção.
Passeamos pela propriedade, parando aqui e ali para olhar algum ponto especial de interesse. O grande deleite é a escola e está agora trabalhando arduamente na construção do prédio para o curso secundário. Estivera empenhada numa corrida de palmo a palmo, nos últimos dez anos, nessa história de escolas, mantendo-se um pouco à frente de suas crianças. Lembro-me de que olhamos todas as salas de aula e notei em cada porta um pequeno mapa de bronze. Examinando-o verifiquei que cada um era de um Estado dos Estados Unidos e Miki respondeu à minha pergunta:
- Todos os anos vou ao seu país e concentro meus apelos num Estado. Quando o povo de lá me dá dinheiro suficiente
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para mais uma sala de aula, volto e acrescento-a à minha escola. Ponho na porta, então, como agradecimento, um mapa do Estado, gravando nele a minha gratidão ao seu povo.
- Mas seus mapas, em tamanhos relativos, são tão diferentes da realidade! disse eu. - Rhode Island, por exemplo, está bem grande, aqui, embora seja nosso menor Estado.
Abriu outra porta, enquanto eu falava, e vi um quarto pequeno, não maior que um armário e demasiado estreito para uma sala de aula. Uma espécie de despensa, talvez? Na porta havia um mapa quase do tamanho da palma da minha mão. Representava a gratidão ao povo do Texas!
Miki riu ante o meu espanto:
- O povo texano gosta de guardar o seu dinheiro para o Texas, disse ela francamente - Agradeço-lhes de igual modo pelo que me deram para as crianças nipo-texanas, mas você vê que o Texas é muito pequeno, aqui em nossa escola.
Não havia o menor ressentimento na voz jovial de Miki. Expressava apenas a aceitação do povo assim como o encontrara. Continuou a mostrar amàvelmente o caminho através de cozinhas asseadas e salas de jantar. As crianças, até um certo ponto considerável, cuidavam de si mesmas e ajudavam em tudo, tagarelando e rindo enquanto trabalhavam. Fêz algumas observações aqui e acolá e as crianças a ouviram com atenção, mas sem medo. Quando ela fala é firme e objetiva, despida de sentimentalismo. Creio, porém, ter notado um afeto secreto por quem ela denominava "meu garoto levado", ou "minha garota levada". É verdade que aprecia, até mesmo gosta, as máscriações que apareciam tão freqüentemente aqui como em qualquer parte. Explicou que ela própria fora uma "garota levada" quando era pequena e agora ri mas administra, ao mesmo tempo, a necessária palmada ou punição. Não tem medo de suas crianças e elas sabem que as tem todas no coração. Descobri que ela própria dorme, num quarto, com as mais levadas e as mais novas.
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- Às vezes um garoto indisciplinado quer fugir, disse-me. - Está habituado à liberdade selvagem das ruas. Quando desconfio que tentará fugir, amarro uma corda no seu tornozelo, com um nó que êle não poderá desatar, e a outra ponta da corda no meu próprio tornozelo. Se procurar fugir à noite, eu acordo e o apanho.
Seu maior orgulho é o teatro, que deixou por último, como um regalo final. Miki é uma atriz nata, não há dúvida alguma. Tudo quanto faz é dramático e forte. Ela admite que ama o teatro acima de tudo. No centro do lugar que é a sua vida criou, por conseguinte, um pequeno e lindo teatro, moderno e conveniente, onde as crianças apresentam peças e danças.
- Depois do almoço, prometeu ela, minhas crianças cantarão e dançarão para você.
Sim, a manhã, que se prenunciara à minha frente com a extensão de séculos, já havia passado. O Sol ascendera ao zênite e o gongo tocava para as crianças. Largaram seus brinquedos e correram para a sala de jantar. Eu não esquecera um só momento que estava sozinha no mundo, mas, de algum modo, o eterno conhecimento não havia penetrado bastante profundamente em mim. Miki passara o dia inteiro mostrando-me a vida, fizera-me caminhar de um centro da existência ao outro. E agora, antes que fôssemos almoçar, reservava-me mais um dom da vida.
- Vamos ver os bebês, disse.
Caminhamos até o fim do jardim e lá, numa casa ensolarada construída para bebês, os vimos, aos pequeninos recém-nascidos e aos que estavam aprendendo a sentar-se e a andar. Mulheres bondosas, às quais os bebês se agarravam, cuidavam deles. Confortou-me ver como os bebês se afastavam de mim, uma estranha, para se aconchegarem às que cuidavam deles. Visitei muitos orfanatos onde as crianças corriam para os estranhos e não queriam largálos na hora da partida.
- Todos serão adotados, disse Miki, menos este pequenino, que é retardado mental. Tenho de pensar em alguma coisa para êle... Esta garotinha vai para Nova York. Este menino parte na próxima semana para San Francisco.
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Eu própria vou levá-los - onze bebês para seus novos pais americanos. Voarei por cima do Pólo Norte.
Olhei de perto, com amor, cada bebê. São sempre bonitas as crianças que trazem nas veias o Oriente e o Ocidente. Kipling esqueceu-se delas ao dizer que não podia haver encontro entre o Oriente e o Ocidente. Eles sempre se encontraram, como corações verdadeiros devem encontrar-se, no amor se não na política. É o amor que reúne os seres humanos, muitas espécies de amor, mas unicamente o amor. Deixei com relutância as crianças, pois elas me traziam profundo conforto. O amor é mais forte do que o ódio e a vida é mais forte que a morte.
Voltamos através dos jardins, agora em pleno sol, e chegamos a uma enorme casa japonesa, construída com madeira velha, e toda aberta, num dos lados, para o que fora outrora um belo jardim japonês, mas que era, agora, um poeirento e nu campo de basebol. Um grupo de meninos havia comido às pressas e já estava de volta no campo, com bastões e bolas. Circundamo-los e entramos na casa, tirando antes os sapatos no degrau mais baixo. Galgamos mais um degrau e chegamos à grande e bela sala de estar de Miki. Tinha a mesma mistura cosmopolita de Oriente e Ocidente que caracterizava a própria Miki. Num dos extremos do aposento, profundos sofás forrados de cetim, um tanto gasto, formava um círculo acolhedor. Elegantes biombos antigos achavam-se em vários lugares e as paredes estavam cobertas de velhos rolos de pergaminho e fotografias modernas. No outro extremo da sala havia uma mesa de refeições, baixa, comprida e larga, e dois antigos armários polidos.
- Sei que gosta de comida chinesa, disse Miki ao entrarmos. - Convidei, portanto, um General chinês, meu velho amigo, e o melhor restaurador de Tóquio, para providenciar nosso almoço.
O General surgiu de um distante canto da sala e apresentou-se. Homem extremamente elegante, cabelos brancos, de aparência delgada e ágil. É muito comum, entre Generais chineses, eufemisticamente reformados, tornarem-se restauradores em capitais de países estrangeiros.
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São homens de gosto, mas talvez tenham conservado consigo, também, seus cozinheiros particulares, de acordo com a teoria de que, se o homem tem garantida uma boa cozinha, pode suportar tudo, inclusive a derrota na batalha. Pode ser, mesmo, que a lembrança de seu bom cozinheiro tenha ajudado um General a interromper o combate antes do jantar. Mas nem todos os Generais permanecem tão magros quanto o General Wang.
Gostaria de poder descrever o refinado tato de minha anfitriã e de meus companheiros de mesa, durante a deliciosa refeição chinesa. Todos sabiam o que me havia acontecido, contudo ninguém falou no assunto. Não procuravam, por outro lado, simular uma falsa jovialidade. Conversavam com tranqüilo interesse sobre vários temas, despertando habilmente minha atenção quando eu mergulhava num silêncio demasiado prolongado, distraindo-me com agradáveis interpelações que exigiam resposta, e insistindo para que eu provasse uma iguaria após outra, não por ter apetite, pois sabiam que eu não o tinha, mas por cortesia para com o cozinheiro, que ficaria magoado se eu não comesse. Lembro-me de ter ouvido, em determinado momento, um telefone tocar, mas a ligação fora aparentemente adiada para depois do jantar. Não recordo quais eram os pratos. Não consigo lembrar sobre que se conversou. Eu escutava, sorria, dava as respostas que me pareciam adequadas, e era sustentada, não pelo que estava sendo dito, mas por aquela forte atmosfera de compreensão nunca posta em palavras. Lembro-me de que uma bela japonesa, de cabelos grisalhos num moderno penteado italiano, achava-se sentada a um dos extremos da mesa. Vestia um quimono de suave cetim vermelho e falava excelente inglês. Lembro-me de que disse ter acabado de voltar de Paris e que era cunhada de Miki.
Lembro-me, também, que se desenrolava um vigoroso jogo de basebol enquanto comíamos, e ouvi por diversas vezes o forte estalo de bastão contra a bola, ruído de pés correndo, gritos e palmas. No meio de tudo isso, Miki mantinha um olhar vivo no jogo e de quando em quando gritava instruções ou aprovação.
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Quando terminou a refeição, Miki disse-me que havia um chamado transoceânico para mim. Acompanhou-me a um pequeno quarto, fechou a porta e passou-me o receptor. Ouvi novamente, através de milhares de quilômetros de terra e mar, a voz de minha filha tão nitidamente como se estivesse no quarto contíguo.
- Mamãe, planejamos tudo mas queremos saber se você aprova. A cerimônia será depois de amanhã e nosso próprio ministro, naturalmente, se incumbirá dela. Pensamos que ficaria melhor na biblioteca, porque êle gostava muito dessa sala, você sabe. Êle poderia... o esquife poderia ser colocado em frente à lareira... não ficando ninguém lá, exceto o pessoal da fazenda e da casa... e as enfermeiras que cuidaram dele... e todos nós. Depois o levaremos ao cemitério da família... nada de flores, achamos; apenas pedir dinheiro às pessoas presentes para a "Casa dos Bem-vindos".
As crianças haviam planejado tudo como eu o teria feito e agora restava-me, apenas, voltar rapidamente para casa. Repeti sim, sim, sim, várias vezes e reafirmei meu amor e meus agradecimentos a todos eles. Então, quando repus o fone no gancho, tudo, de súbito, me pareceu excessivo. Pela primeira vez permiti-me sentir, e reconhecer, que tudo fora excessivo, desde aquele dia, há sete anos, no ensolarado parque de Sheridan, Wyoming, quando se deu o primeiro ataque. Esse pequeno ataque parecera, na ocasião... não mais que uma leve insolação, pensamos nós. Tínhamos planejado, há muitos anos, uma viagem de verão com toda a família, através do Oeste, até o Yellowstone Park e depois ao Oregon e Washington. Foram dias confortáveis e felizes, todos nós num grande automóvel com ar condicionado, dirigido pelo nosso experimentado e fiel chofer. "A viagem fará bem a êle", dissera o médico da família, "se não fôr guiando".
E assim parecera, até àquele dia de sol. Devíamos ir, no dia seguinte, a Yellowstone, mas, em vez disso, êle e eu ficamos num agradável rancho enquanto as crianças foram e voltaram. Depois seguimos todos para casa, pensando ainda que não tinha sido nada, mas que seria melhor
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voltar, de qualquer modo, para perto de nosso próprio médico. O médico de Sheridan não estava muito certo de que se tratava de insolação. Mais tarde soubemos que não fora. Mas êle parecia bem como sempre, vigoroso, continuando sua vida ocupada, nos escritórios de Nova York e no escritório rural, em nossa casa.
Escondi o rosto nas mãos, quando pus o fone no gancho, e lutei comigo mesma. E Mikí, com aquela delicadeza tão natural na Ásia antiga, e habituada à dor humana, sentou-se ao meu lado em silêncio, sem estender a mão para tocar-me, sabendo que todo conforto seria vão, exceto o conforto de uma amiga sentada serenamente ao meu lado. Venci a minha luta, enxuguei os olhos e Miki levantou-se.
- As crianças estão esperando por nós, disse ela.
Estas foram as suas palavras, mas o que ela realmente disse era que eu devia viver, começar agora mesmo a viver. A morte não devia interromper a vida. Havia outros esperando por nós. Saímos do pequeno quarto e ela me conduziu ao teatro.
A audiência compunha-se das crianças mais velhas, da equipe do estabelecimento e de nós. O entretenimento consistia em dança e música. A música, uma banda de jazz e canções populares. O que me interessava eram as crianças. Tinham todas uma beleza impressionante, sem exceção, e obviamente talentosas. As meninas, em quimono, executaram bailados japoneses, com leques e flores, no estilo antigo. A banda de jazz era formada de rapazes, muitos deles de sangue negro, realmente simpáticos.
Confesso que naquele dia, olhando e ouvindo as crianças de Miki, parecia-me que eu nunca mais poderia tornar a sorrir. Contudo as crianças trouxeram-me seu próprio conforto e, em amor e determinação, decidi, na medida de minha capacidade, ajudar Miki a encontrar famílias para elas.
A tarde chegou ao fim. Era tempo de regressar a Tóquio e tempo de voltar para casa. Miki, até o último momento, recusou-se a deixar-me.
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O jacto decolou à meia-noite. Amigos vieram despedir-se, envolvendo-me em sua bondade e afeto. Mas eles tinham de voltar às suas próprias vidas e eu tinha a minha a enfrentar. Havia um certo conforto em encontrar-me, afinal, entre estranhos, aos quais não necessitava corresponder. Achei meu lugar, afivelei o cinto, recostei-me e fechei os olhos. Era o primeiro instante em que me via totalmente só, desde o momento em que o mundo mudara, naquela manhã. Há muito tempo, quando eu soube que minha filha ficaria retardada para sempre, aprendi que há duas espécies de dor, uma que pode ser mitigada e outra que não pode. Esta era diferente, contudo semelhante num particular - também não podia ser mitigada. Não obstante, eu aprendera, anos atrás, a técnica da aceitação. O primeiro passo é, simplesmente, render-se à situação. É um processo espiritual, mas começa com o corpo. Ali, atada ao meu assento enquanto o avião subia ao escuro céu noturno, rendi conscientemente meu corpo, músculo por músculo, osso por osso. Cessei de resistir, cessei de lutar. Que viesse o que tinha de vir, eu nada podia fazer para alterar o que já havia acontecido. O avião me continha, me controlava, e me isolava.
De uma curiosa maneira o espírito deve, às vezes, acompanhar o corpo, exatamente como, em outros momentos, é o espírito que conduz. Agora que o corpo se rendera, o espírito achou mais fácil render-se também ao mesmo comando. A vida pode ser inexorável, mas a morte sempre o é. O passo seguinte consiste em reconhecer a inexorabilidade. O passado se torna estático. É história e os fatos históricos não podem ser modificados. O que foi feito está feito. Pode-se extrair lições do passado, pode-se entesourá-lo, mas não se pode modificá-lo. Vinte e cinco anos foram vividos em felicidade, mas tinham sido vividos. O Fim fora escrito. Não se continua a escrever um livro depois que essa palavra o termina. É preciso começar outro livro.
Mas não se pode começar imediatamente. É necessário tempo para a descontração total, reconhecimento total da inexorabilidade, compreensão total de que a vida do
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passado terminou. Somente então as novas forças podem ser convocadas. Duvido, mesmo, que possam ser convocadas. Elas têm de brotar das próprias fontes do ser, convertendo-se numa vontade nova de viver. O mais que a vontade pôde, naquela noite, enquanto o jacto flechava o seu caminho entre nuvens e estrelas, foi apenas ordenar ao corpo que se rendesse e ao espírito que se retirasse. Finalmente, adormeci.
Consultei meu relógio. Eram três horas da madrugada. O tempo perdia o sentido, nesse vôo veloz, e o céu já estava claro. Eu deixara Tóquio na noite anterior, domingo, mas chegaria a Nova York na manhã de segundafeira, após mais um dia e uma noite de vida, se não de tempo. Estava começando a compreender a relatividade do tempo com relação ao espaço e à velocidade. Que milagre ter Einstein nascido coincidentemente com a experiência prática de jactos e foguetes no espaço! Minha mente, incapaz até então de enfrentar a profunda transformação ocorrida em minha própria vida, explorava o sentido da eternidade, tempo sem começo e sem fim. Tudo quanto existe agora, sempre existiu e sempre existirá, sendo a única lei universal e eterna a da transformação. E contudo a transformação pode ser assustadora. Se a morte é apenas uma transformação, então que é a transformação? Êle sabia e eu não. Num certo momento, durante o sono, êle morrera. No instante anterior estava vivo e, no seguinte, morto. Quer dizer, num instante era isto, e no instante seguinte aquilo, o mesmo e contudo diferente.
Onde está êle agora?
Einstein provou-nos que a massa pode converter-se em energia. Esta sentença, tão simplesmente escrita, resultou no despertar de minha própria mente para a nova era. Era mais do que um despertar da mente. Era a conversão de minha alma, a iluminação de meu espírito, a unificação de todo o meu ser. Adquiri uma nova concepção da morte, uma visão nova da vida. Como Paulo de Tarso, eu seguia meu caminho quando uma luz surgiu sobre mim, uma claridade
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ardente que alterou meu curso. Essa equação, que Einstein eritalizou em alguns símbolos breves, é a chave de nosso universo e, sem dúvida, de muitos outros além do nosso. O que era massa pode tornar-se energia, é energia potencial mesmo enquanto continua massa. Será esta a prova científica do que chamamos alma?
Enquanto o coração sangrava em segredo, minha mente revirava-se e se retorcia, procurando. Meditei sobre o milagre das máquinas mágicas, os computadores, o mecanismo pensante representado em matéria concreta. São construídas segundo o princípio do cérebro humano, porém o cérebro é infinitamente mais complexo, os nódulos infinitamente mais numerosos. O cérebro pode criar idéias novas, as máquinas não, por enquanto. Não obstante, o princípio é o mesmo. Sabemos como construir cérebros com materiais brutos, se não com elementos humanos.
Na verdade há duas escolas de pensamento entre os cientistas que criam as máquinas. Alguns acreditam que as máquinas podem ser aperfeiçoadas em verdadeiros cérebros, iguais aos humanos, e até mesmo, sob certos aspectos ultrapassá-los. Um cérebro humano, por exemplo, necessitaria de uma vida inteira para chegar a certas conclusões de matemática astronômica. A máquina, desde que lhe sejam fornecidos os elementos devidos, pode chegar a essas conclusões em alguns minutos. Outros cientistas, porém, acreditam que a máquina nunca poderá reproduzir o cérebro humano. Há no cérebro humano, sustentam eles, uma vontade, uma percepção, uma consciência - chamem-na alma ou o que fôr - que não pode ser representada através do material de uma máquina.
Espero que a segunda escola esteja mais perto da verdade. Devo crer que está, pois se somos apenas máquinas, nossa massa meramente carne em vez de metal, então, quando a massa se deteriora... ah, mas esperem! A massa não pode perder-se, ela apenas pode transformar-se. Transformar-se em quê? É isto que precisamos saber, que saberemos algum dia. Sinto-me encorajada nessa fé, pois sabemos que não há absolutos neste inacreditável universo em que vivemos. Até mesmo as linhas paralelas, que se
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prolongam ao infinito, acabam por encontrar-se em alguma parte.
Onde está você? Sabe que estou aqui, no alto, acima da Terra? Você está aqui, também? Com que rapidez se processa a transformação? A energia, que você é agora, se transporta instantaneamente a algum outro lugar? Você vive além das barreiras do espaço sem ar? Estamos sem comunicação...
Comunicação... é o que deve ser pensado agora, imaginado, investigado. Há um pesado cordão de radioatividade mortal circundando a Terra. As únicas saídas ficam nos dois pólos. Terão, essas saídas, um propósito especial? É incrível que não nos possamos comunicar mais. Quando êle estava aqui, ríamos freqüentemente porque nossos pensamentos irrompiam em palavras idênticas, os mesmos pensamentos, no mesmo momento. Contudo mostrava-se céptico acerca de qualquer noção do sobrenatural. Embora fosse dotado de cálido sentimento de compaixão, de completa integridade, de inflexível convicção moral, não aceitava as esperanças e premissas da religião. Insistia em sua completa independência, como ser humano.
- Nada sabemos do futuro, dizia. - Não me enganarei a mim mesmo, nem permito que me enganem.
- Mas não saber não significa que nada haja a saber, tornava eu.
- Seja o que fôr, eu o saberei na época devida... ou não o saberei, porque terei cessado de existir, concluía êle.
Essa era a grande discussão entre nós, a pergunta de Hamlet feita em termos universais. Viremos a ser ou não viremos? Êle dizia que não. Eu recusava semelhante crença positiva. Como podíamos dizer não, se não sabíamos que o sim era impossível? Agora êle sabe e eu não.
Isto não é leal de sua parte. Pensei que sempre saberíamos juntos. Você pode achar uma maneira de me dizer. Você é ou não é?
Impeli a pergunta para dentro da noite e depois a retirei em pânico. Eu não queria, realmente, saber a verdade. Se êle existe, a espera, sozinha, seria intolerável. E não posso
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suportar a idéia de que êle não existe. Que eu espere, então, até descobrir por mim mesma, por experiência. Se tenho razão, minhas primeiras palavras a êle, quando eu chegar, serão ditas com amor e triunfo.
- Aqui estou. Agora sabemos.
Até então, continuo como estávamos antes, êle duvidando, eu crendo. Sim, penso que ainda creio, embora não tenha descoberto, ainda, como saber. Fé, disseram-nos os santos através das eras; possibilidades, dizem hoje os cientistas, porque tantas coisas que antes considerávamos impossíveis são agora possíveis. Santos e cientistas...
A luz da madrugada que impregna um avião a jacto é maravilhosamente bela. Voávamos em direção ao Sol nascente, numa cascata de luz, gloriosa e majestática, erguendo-se da curvatura do globo. Pessoas acordavam, mexiam-se e olhavam para fora, através das pequenas janelas. Havia no ar uma fragrância de café e uma aeromoça, nova em folha, estava alerta, servindo suco de frutas. Ao meu lado, um passageiro levantou-se e caminhou pelo corredor. Durante toda a noite eu não tivera consciência da presença daquele estranho, contudo sabia que se achava ali. Mais cedo ou mais tarde nos falaríamos, mas eu me havia refugiado nas trevas. Agora o dia começara, o primeiro dia de minha nova e solitária vida. Pouco importava o número de pessoas que me rodeava, dentro de mim haveria sempre, a partir de agora, uma permanente solidão. Que significava isto? Que podia significar? Era o que restava descobrir. Não devia insistir em saber tudo ao mesmo tempo. Aprendi há muitos anos, que para ser paciente com os outros, é preciso ser paciente consigo mesmo.
Não aprendi essa lição de uma só vez. Era, com freqüência, impaciente comigo mesma, e comigo mais que com os outros, até aprender, penso que através do exercício da música, que a aprendizagem era um processo de dia a dia. Pode-se trabalhar sòlidamente durante quatorze horas, decorando uma sonata de Beethoven para uma só
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execução, mas esta aprendizagem não é permanente. A fim de que a música permaneça para sempre gravada na mente é preciso que também tenha sido absorvida espiritualmente - isto é, deve tornar-se parte do ser, por um período de tempo e através de exercício contínuo. O que eu tinha a descobrir sobre solidão, o que tinha a aprender sobre seu uso, seu significado, só podia ser adquirido através da vida diária e da experiência nova. Ir ao teatro sozinha, quando êle já não podia acompanhar-me, custara-me esforço. Amávamos o teatro, eu e êle, e lá passamos algumas de nossas horas mais felizes. Rir juntos, durante uma noitada de Gilbert e Sullivan - bem, êle gostava de Gilbert e Sullivan, sabia tocar e cantar essas operetas e todos os nossos filhos conheciam as canções. Tive de aprender também a gostar delas, pois me eram estranhas. Mas nós éramos ecléticos e gostávamos de teatro, fosse qual fosse, indignando-nos apenas quando uma peça era tão obviamente tola que profanava uma nobre e antiga arte. Êle, certamente, teria ficado desapontado comigo, para não dizer desgostoso, se eu tivesse deixado de freqüentar o teatro por ter de ir sozinha. Relâmpagos dessa espécie de percepção incidental passavam-me irrelevantemente pelo espírito e eu os afastava. Dia a dia era o caminho pelo qual de há muito eu aprendera a viver, e hoje estava aqui, a milhares de metros acima da terra, encerrada nesta veloz concha prateada, cercada de pessoas que nunca tinha visto antes e que provavelmente nunca tornaria a ver.
Há um certo conforto, ao mesmo tempo superficial e orgânico, na necessidade de lavar e vestir o corpo, de comer e de beber. Pareceu-me, quando encarei o espelho, que nunca mais me tornaria a preocupar com a minha aparência, pois nunca mais tornaria a ouvir suas palavras de apreciação e louvor. Eu sabia, naturalmente, que não podia, quanto à verdade, confiar nele a esse respeito. Era demasiado generoso, e possivelmente ninguém mais podia ver-me como êle me via. Eu não acreditava, nem por um momento, ser tudo quanto êle dizia que eu era. Mas, como
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mulher, gostava de ouvir mesmo aquilo que sabia não poder ser verdadeiro. Contanto que êle acreditasse, que mais importava?
Era esse o mesmo rosto para o qual eu fora compelida a olhar durante tantos anos? Eu não era a mesma pessoa e o rosto devia pertencer a alguma outra. Não obstante, lavei-o, fiz a maquilagem usual e tomei os cuidados habituais com os meus compridos cabelos. Esses cabelos! Mesmo quando menina eram a minha cruz, sempre compridos, lisos e emaranhados. Naquela época eram da côr do mel-amarelado, minha mãe não os cortava, adulava-me quando eu chorava e me elogiava depois de os ter penteado e amarrado com uma fita na minha cabeça. Fazia cachos quando eu era pequena, depois longas tranças, e eu ansiava pelo dia em que, já grande, poderia cortá-los, como os cortei assim que pude, para deixá-los crescer de novo, porque êle os preferia compridos. Agora posso cortá-los novamente, pois êle nunca os verá, mas compreendi no mesmo momento que eu nunca os cortaria, embora sejam agora da côr da prata, em vez de dourados. Minhas mãos, sem o menor cuidado, executaram sua tarefa habitual e não pude crer, ao olhar o espelho, que estivesse, depois de tudo, com a mesma aparência, mas estava.
Quando voltei ao meu assento, a aeromoça serviu-me a refeição e pude sentir o cheiro do café, do toicinho e das torradas. Embora o espírito estivesse longe e não tomasse parte em nada disto, o corpo se comportou como de costume. Ó carne cruel!
E todos, no jacto, estavam despertos agora, eu não conhecia ninguém e ninguém me conhecia, pelo que me sentia grata. A aeromoça levou, afinal, a bandeja do café, semiterminada. Tentei ler uma novela japonesa, mas acabei deixando-a de lado. Não queria uma história de amor nem mesmo uma história de seres humanos. Abri minha frasqueira e tirei um livro fino, Science and Human Values, por J. Bronowski. Li esse livro durante toda a manhã, o cérebro trabalhando nitidamente a par de minha vida individual.
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Quer nosso trabalho seja arte ou ciência, ou o trabalho diário de sociedade, apenas a forma pela qual exploramos nossa experiência é que é diferente; a necessidade de explorar permanece a mesma. É por isso que, no fundo, a sociedade de cientistas é mais importante que suas descobertas. O que a ciência tem a ensinar, aqui, não é a sua técnica mas o seu espírito; a irresistível necessidade de explorar... Pois esta é a lição da ciência, a de que o conceito é mais profundo que as leis e o ato de julgar mais decisivo que o julgamento. Num livro que escrevi sobre poesia, disse: "A poesia, por si mesma, não nos leva a ser justos ou injustos. Leva-nos, isto sim, a pensamentos a cuja luz a justiça e a injustiça são vistas com terrível nitidez de contornos".
O que é verdade para a poesia é verdade para todo o pensamento criador. E o que eu disse, então, de um valor é verdadeiro para todos os valores humanos. Os valores pelos quais teremos de sobreviver não são regras de comportamento justo ou injusto, mas são aquelas iluminações mais profundas à luz das quais a justiça e a injustiça, o bem e o mal, os meios e os fins, são vistos com terrível nitidez de contornos.
Aqui terminava o livro e eu o fechei, grata a um cérebro pensante que falava a outro cérebro. Quão grata, na verdade, sou a meus eruditos pais, àqueles dois que, desde os meus primeiros anos, me ensinaram, pelo seu exemplo, a encontrar alívio, coragem e força no uso do cérebro! Seja qual fôr o sofrimento individual e por mais absoluta que seja a solidão individual, o cérebro, treinado no uso e pelo uso, continua a explorar. Eu levava, dentro do crânio, meu próprio instrumento. Não precisava, não devia, retirar-me, parar ou cessar de evoluir pelo fato de ter de seguir sozinha o meu caminho.
Uma estranha paz, cálida e viva, fluiu dentro de mim. Recostei a cabeça no espaldar da poltrona e fechei os olhos. Lembro-me de ter sorrido para mim mesma, embora não saiba por quê. Era como se nos houvéssemos
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comunicado, êle e eu, por meio do pensamento e do silêncio, em vez de por palavras.
Escoava-se o dia e eu ainda não falara com ninguém. Então, no meio da tarde, meu companheiro de lugar perguntou-me se podia dizer que me havia reconhecido. Senti-me relutante em admitir o reconhecimento, mas nunca pude mentir confortàvelmente e agora não valeria o esforço. Agradeci-lhe e respondi que sim, era eu. Tornou-se necessário, então, conversar polida e casualmente, mas eu ainda podia continuar solitária, não mencionando a razão por que estava ali, e fiz perguntas a seu respeito. Não lhe recordo o nome, parece impossível lembrar alguma coisa específica sobre essa viagem, e duvido que reconheceria seu rosto se tornasse a vê-lo. Era alto, porque eu tinha de levantar a cabeça quando êle falava, e um tipo magro de rosto ocidental. A única coisa de que me lembro era que estava viajando para o Wells Fargo Bank e isso despertava um vago interesse histórico. Wells Fargo é um nome romântico na História Americana, mas sobre negócios bancários eu nada sei além das necessidades de cada dia.
Encorajado pela minha ignorância, o viajante explicou-me, com uma clareza seca e viva, qual era exatamente a sua tarefa, e eu captei a significação da atividade bancária internacional, particularmente em nosso mundo moderno. Êle estivera em Singapura, Hong-Kong e outras cidades que eu conhecia bem, mas as vira sob uma luz inteiramente nova para mim, em áreas desconhecidas, onde homens manipulam a troca de moedas, proporcionam capital e criam poder, segundo acham conveniente. Ouvi com um interesse a princípio desatento, depois superficial e finalmente real, "a irresistível necessidade de explorar". Quase esqueci minha pessoa e me surpreendi quando a voz do rádio, sobre nossas cabeças, anunciou que tínhamos chegado a Honolulu. Vi, então, que era noite outra vez. Tínhamos atravessado um dia inteiro em curto espaço de tempo e estávamos uma vez mais entrando em nosso próprio país.
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Sobreveio a azáfama do desembarque, a entrada em fila para a inspeção da alfândega e eu de nada me lembro. O que recordo é novamente uma experiência. Pois enquanto esperava, profundamente consciente de estar só, aproximou-se um funcionário da alfândega e me pediu que saísse da fila. Eu assim fiz e êle inclinou sobre o balcão para falar em voz baixa.
- Não quero atrasá-la, mas desejo falar-lhe confidencialmente sobre um assunto.
Surpreendi-me uma vez mais comigo mesma. Nunca vira aquele homem antes, tipo grande e robusto, de bondoso rosto redondo, muito americano.
- A senhora compreende, disse êle em voz baixa, tenho uma filha retardada.
Ah, agora eu sabia porque me tinha chamado de lado! Estou acostumada a que me chamem de lado para dizer-me isso. Tive a mesma experiência em toda parte do mundo. "Quero lhe contar... tenho uma filha..."
- Fale-me dela, disse eu.
Ouvi enquanto êle falava, e embora todas as palavras me fossem familiares, sentia-me cheia de íntimo espanto. Como podia ser que, naquele próprio instante em que eu necessitava desesperadamente que me despertassem a vontade de viver, esse homem estivesse ali, chamando-me de volta à vida? Pois muito de minha vida fora dedicada ao trabalho com e para os pais de filhos retardados e para estes. Tal fora o meu destino. Contudo, nas últimas horas, desde o momento em que a voz de minha filha chegara a mim, pelo telefone, naquela madrugada em Tóquio, eu não me lembrara uma só vez dessa parte de minha vida. Agora aqui estava, reclamando-me de novo.
- A senhora vê, dizia o homem, a coisa é assim. Minha mulher e eu andamos discutindo. Ela diz que os americanos sempre põem seus filhos retardados em instituições porque assim é melhor para as crianças. E ela diz que devemos fazer o que os americanos fazem, agora que o Havaí é um Estado. E eu digo que nossa menina não dá nenhum trabalho... é gentil, tranqüila e se sentiria muito sozinha numa instituição.
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- Sua mulher se sentiria mais feliz se ela fosse internada? perguntei.
- Não. Ela chora quando fala nisso, mas diz que será melhor para a menina.
- O senhor quer que ela vá?
- Eu? Isto me partiria o coração. Considerei:
- Que aconteceria se vocês dois morressem? Quem cuidaria de sua filha?
- Muita gente! Minha mulher é havaiana. Tem uma dessas grandes famílias havaianas. Todos cuidarão de nossa filha. Na verdade, ficam malucos quando falamos em interná-la. É só que minha mulher...
- Diga a sua mulher que ela está enganada e que todos vocês estão certos, disse eu. - Sua filha tem muita sorte. Possui uma família que quer conservá-la. Estou certa de que pais americanos, nas mesmas circunstâncias, desejariam ter tanta sorte quanto o senhor e sua mulher, por terem tal família.
Seu rosto honesto se desanuviou.
- Obrigado, disse êle.
Conduziu-me de volta à seção de bagagens.
- Algo a declarar?
- Nada, respondi. Era verdade. Eu nada tinha a declarar.
- Okay, tornou êle, marcando minhas malas com giz e sorrindo. - Adeus. Nunca me esquecerei da senhora. Este é o meu dia de sorte. Verá quando eu contar à minha mulher. Ela não vai acreditar em mim. É um milagre.
Era um milagre para mim, também.
Então, como para testar-me, fiquei de novo só. Nunca viajara sozinha antes de êle adoecer. Viajar sempre fora um acontecimento alegre, para nós. Êle era um delicioso companheiro de viagem. Sempre sabia o que havia para se ver e onde ir. Eu o acompanhava descuidadamente feliz. Agora tinha de achar o restaurante e conseguir algo para comer. Haviam-nos dado cupões para o jantar. Mas aonde deveria eu ir? Quando uma mulher foi sempre acompanhada por um homem jovial e informado, mergulha em
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confusão ao se ver subitamente só. Segui o caminho errado, perguntei a alguém, tomei a direção oposta e cheguei tarde demais ao restaurante, não encontrando nenhum lugar vago. Estava prestes a sair de novo e a não pensar mais em comida, quando um americano de aspecto agradável aproximou-se de mim e perguntou se eu estava procurando um lugar. Se assim era, havia um acolá... dois na verdade, se eu não me incomodava de jantar com êle.
Aceitei com alívio e me guiou até uma mesa meio escondida. Sentamo-nos, êle encomendou o jantar e eu me senti grata. A solidão interior era invencível e permanente. Eu sabia disso, mas era como se êle, em alguma parte, houvesse visto a minha situação e, não podendo estar comigo, mandava estranhos em seu lugar. Perguntei o nome do desconhecido. Deu-mo, disse que era cientista e que fora mandado de Washington para trabalhar com outros cientistas, no Japão. Novamente uma parte de minha vida me reclamava. A ciência, em especial a física nuclear, era de há muito uma atração para mim, e me pus a ouvir agora, com interesse e compreensão, inteiramente desligada de meu ser interior. Os japoneses, disse-me, eram excelentes cientistas, e, particularmente, sabem sobre a ionosfera mais do que quaisquer outros cientistas do mundo. A ionosfera, essa camada de atmosfera superior onde, segundo diz Clyde Orr, "as radiações produzem uma fermentação mágica de moléculas e ions em metástase, entidades atômicas carregadas de eletricidade" (Between Earth and Space página 21). É o berço da eletricidade, a fonte das tempestades elétricas, contra as quais a energia armazenada na terra executa um eterno dueto de violência contraponteada. Minha mente foi de novo agitada por irresistível curiosidade e me lembrei, como se êle, onde quer que estivesse, me houvesse recordado que a vida podia prosseguir nesses interesses que havíamos partilhado. Passou-se uma hora e a voz pelo rádio pediu que tomássemos novamente nossos lugares no jacto. O dia passara de algum modo e por três vezes um ser humano fora mandado falar comigo, ajudar-me, recordar-me a vida.
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A noite caiu uma vez mais. Não sabia como denominar essa noite, uma noite sem nome, pois o tempo se estendera mais do que o seu nome. Eu vivera vinte e quatro horas mais que o espaço entre a noite de domingo e a manhã de segunda-feira. Havia dado o passo inicial em minha futura vida. Nessa noite dormi, intermitentemente, mas sem medo. Ninguém podia tomar o seu lugar, êle não esperava isso, nem eu, mas os estranhos viriam quando eu os necessitasse, podia aprender deles e deixá-los ir, porque viria outro. Era como o movimento universal de toda a vida, as ondas de energia que se abatem sobre o nosso globo, feitas de inumeráveis partículas separadas. Que são os seres humanos senão partículas, nós também vamos e vimos, incessantemente, em ondas de movimento e substância. Minha vida era agora parte do todo, uma partícula separada, só e à parte, contudo inevitavelmente arrastada no fluxo e refluxo da maré humana.
Quando chegou a aurora seguinte, foi para derramar sua luz dourada sobre a paisagem da América. A voz no rádio anunciou que começaríamos agora a descida sobre a cidade de Allentown, na Pensilvânia. Allentown fica apenas a poucos quilômetros de minha fazenda. Imaginariam as crianças que eu estava passando por ali, mas muito alto, entre as nuvens? Fiz uma rápida toilette, tomei café, e então fomos descendo velozmente até que vi as brilhantes torres de Nova York.
Agora era preciso enfrentar de novo os amigos e a família. Por um instante senti medo. Havia sido mais fácil aqui, ao abrigo dos que nada sabiam sobre a minha viagem e por que a estava fazendo. Eu não dissera a ninguém e assim não tive de receber o peso da simpatia. Mas era tempo, agora, de encontrar meus filhos e sobretudo de aceitar sua ajuda. Confortando-me, eles também seriam confortados.
Era uma bonita manhã. O sol se infiltrava por entre a neblina, enquanto eu atravessava o campo, rumo ao aeroporto. Do outro lado da porta esperavam-me minha querida
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e única irmã e duas de minhas filhas, acompanhadas pelo fiel teuto da Pensilvânia, que dirigia meus carros há muitos anos. Olhei cada rosto e meus temores se desvaneceram. Eu me havia enganado - era bom estar com os que me conheciam e amavam, e aos quais eu amava. Sou rica em três filhos e seis filhas, dessas seis a mais velha é a criança que nunca cresceu, à qual eu devo tanto, e mais outros cinco, que vão da minha filha competente, profissional, terapeuta-ocupacional, até o gentil-menino nipoamericano, que me veio do Japão. As duas mais moças são de sangue japonês, sendo seus pais soldados americanos. A seguinte, vivaz, ordeira, é de sangue alemão, sendo seu pai também americano. A pequenina do meio, casada e com três perfeitos bebês, é a que mora do outro lado do córrego, a de cabelos negros, grandes olhos violetas e temperamento ardente, suavizado por um rápido senso de humor. Cada filho tem sua força individual, cada filha sua graça peculiar, cada qual um lugar indispensável em minha vida. Mas hoje eu me alegrava por terem ficado em casa as três filhas menores e por terem a do meio e as mais velhas vindo receber-me em companhia de minha irmã; três mulheres fortes e compreensivas.
Naturalmente éramos íntimas, mais íntimas do que fôramos em nossa feliz vida comum. A morte dele estreitara todos os laços que nos uniam. Tampouco me passou despercebida a serena compreensão do nosso motorista. Apanhou meus cupões de bagagem, conduziu-nos ao automóvel, entramos e ficamos à sua espera. Em poucos minutos estávamos a caminho de casa, através as ruas de Nova York, do Túnel Lincoln e da barreira de pedágio. Era tudo familiar e seguro, uma viagem que eu fizera centenas de vezes através dos anos, a princípio sempre com êle, e sozinha nos últimos cinco anos. Foram precisos sete anos para que seu forte corpo e fino cérebro terminassem seu período sobre a Terra.
E como fora divertido, desde o começo, quão cheios de satisfação os anos em comum! Havíamos começado em Nova York, onde êle vivera durante trinta anos, antes de nos encontrarmos. Passamos o primeiro inverno num
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hotel cosmopolita, numa suíte de agradáveis aposentos, o que não me parece estranho, pois com o trânsito de pessoas de todas as partes do mundo, bem podia ser um hotel de Xangai ou Pequim. E no ano seguinte, quando adotamos nossos dois primeiros bebês, mudamo-nos para um apartamento com terraço e começamos nossa vida de pais. Êle sempre quisera ter uma família grande; como nos regozijamos com o seu agradável crescimento! Dois anos se passaram, trazendo-nos apenas alegria e satisfação - adotamos mais dois bebês. Então seu sonho seguinte, que era viver no campo, tornou-se uma necessidade. Quatro crianças pequenas mal podem caber, com êxito, em qualquer apartamento. Minha infância decorreu num velho e espaçoso bangalô tropical, cercado de jardins e, além do muro, das colinas e campos da cidade de Chinkiang, porto do grande Rio Iã-tsé, na província de Kiangsu. Eu não podia imaginar uma criança crescendo no cimento, entre torres, por mais belas que fossem, embora eu ame Nova York como cidade. Mudamo-nos para a nossa casa de campo, e êle se devotou, como sempre esperara poder fazê-lo, ao trabalho editorial. Era um homem de negócios relutante e, se o seu brilhantismo fosse apenas um pouco mais canalizado, poderia ter sido escritor de livros. De qualquer forma, escreveu alguns, tão variados quanto êle próprio. Inteligentes versos para crianças, uma novela humorística de mistério, um excelente trabalho sobre Marco Pólo, simplificado depois para a infância e editado pela Random House nas séries Landmark, e mais um estudo crítico de Buffalo Bill, personagem pelo qual tinha um interesse muito céptico.
À medida que passavam os anos, a casa de campo ia se transformando num confortável e esparramado lar para uma família em crescimento. Ensinou as crianças a jogarem tênis, basebol e golfe, e elas aprenderam bem cedo a nadar e a montar. Eu vivia ocupada com o meu próprio trabalho, mas a grande janela de meu estúdio dá para a piscina e eu via, por instinto, quando uma criança se tornava ousada demais. Nossa vida achava-se despreocupadamente organizada em torno do trabalho e das crianças, e
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nós a vivíamos profundamente. Nossos prazeres consistiam em música, gente, crianças, livros, o mundo das matas, da montanha e do mar.
Não sei se é mais fácil ver o fim chegar de súbito ou gradativamente ao longo dos anos. Se me houvesse sido dado escolher, eu teria preferido um fim súbito, com choque e tudo. Pois assim as lembranças não ficariam emaranhadas na lenta e agonizante perda da percepção e da fala e, por último, do reconhecimento mesmo das pessoas amadas e queridas. Há, porém, um conforto. Êle não teve consciência de seu próprio declínio. Ao ficar reduzido aos aspectos físicos elementares da vida, sua natureza essencial permaneceu, como já disse, o que sempre fora, uma altruísta suavidade.
A transformação se processou lenta, muito lentamente. Quando seus olhos fraquejaram e não podia mais ler, mandamos buscar as gravações dos livros. Devo aqui expressar a minha gratidão à Biblioteca de Livros para Cegos, que estabeleceu um fluxo contínuo de discos para a nossa casa, sem qualquer despesa, e seu cérebro se manteve estimulado e vivo, além do que temêramos. Mas também isto chegou ao fim. Sobreveio o dia em que as palavras cessaram de ter sentido e até mesmo a música se esvaiu. Contentava-se apenas em existir. Teria sofrido se soubesse, e eu agradeço à bondosa inteligência, seja qual fôr, o fato de êle nunca ter sabido. O corpo vivia, aliviado de qualquer pressão do cérebro, do espírito ou da emoção, e assumiu uma estranha durabilidade própria.
Isto vai durar muito tempo, repetiu o médico da família. - Você deve continuar o seu trabalho habitual. Deve viver, viajar, não se deixe absorver por aquilo que não pode ser socorrido.
E de fato era essa a única maneira de suportar o que nos estava ocorrendo. Tentei viver como de costume, na medida em que me era possível.
O desfecho viera inesperadamente. Eu ouvia as palavras de minha filha de cabelos negros, enquanto rodávamos
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para casa através da verde zona rural naquele fim de primavera. Tudo estava na mesma, com relação a êle, até dois dias antes. Ela atravessara o córrego, com seus três filhos, após o café, para a sua visita matinal. Encontrou-o acordado e pronto para o dia. As crianças subiram em sua cama, beijaram-no e lhe acariciaram o rosto. Êle proporcionava, penso eu, um elemento de segurança total na vida delas. Estava sempre na cama, desde que elas tinham nascido, e não se lembravam de que houvesse sido diferente. Saíram e, ao voltarem um pouco mais tarde, êle estava morto. Era uma história tão simples que eu não pude suportar ouvi-la. Durante longo tempo não sabia que estava vivo e também não soube quando morreu.
- Não havia nada que se pudesse ter feito, disse minha filha.
- Eu sei, respondi. - Sei disso há muito tempo. Nada pude sentir no momento senão a consciência do fim, um imenso cansaço do corpo e do espírito, agora que eu sabia tudo quanto havia a saber. Suponho que duas noites de sono interrompido e a tensão de procurar ser eu mesma, na medida do possível, embora entre estranhos, fora mais fatigante do que pensei. Permaneci em silêncio, as mãos nas cálidas e jovens mãos de minha filha. O carro entrou afinal em nossa estrada familiar. As bondosas pessoas que me ajudam na casa, no escritório e no campo, estavam esperando. Tive de cumprimentá-las, aceitar suas lágrimas e simpatia, e afinal a liberdade de ir para meu quarto. As crianças estavam em casa, recolhidas de toda parte. Tudo fora feito. O quarto dele, que por tanto tempo havia sido um hospital, já se convertera em quarto de hóspedes. A cama de hospital desaparecera, os tapetes eram novos e limpos, crespas cortinas brancas guarneciam as janelas. Meu quarto estava imaculado e alegrado com rosas. Eu via tudo e nada sentia. Caminhava como que dormindo. Quando alguém parava de falar por um momento, eu adormecia. Depois do almoço, que suponho ter comido, mas do qual não me lembro, deitei-me no sofá da sala de estar, eu que nunca fico exausta, e enquanto
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as crianças confabulavam, dormi. Foi diferente de qualquer outro sono que já tive. Caí, simplesmente, inconsciente.
Os dois dias seguintes centralizaram-se em três acontecimentos. Fomos, todos nós, dar-lhe nosso último adeus. Vimos apenas o seu corpo, naturalmente. Êle não estava lá. Mas o corpo é precioso. Através do corpo expressamos nosso amor e é com o corpo que vivemos. Lembro-me de minha mãe, um dia, quando eu não contava mais de sete anos. Eu estava desesperadamente doente, com difteria, numa cidade chinesa. Meu irmão menor havia acabado de morrer da mesma doença, iam enterrálo naquele dia e minha mãe soluçava. Uma amiga, bem intencionada mas sem compreensão, reprovou-a.
- É só o corpo dele, disse à minha mãe. - Sua alma está no céu, com Nosso Senhor.
Minha mãe, apesar dos soluços, encolerizou-se.
- Mas seu corpo é precioso, gritou ela. - Eu lhe dei nascimento. Eu o cuidei e amei. Onde quer que sua alma esteja, está fora do meu alcance. Estão levando o seu corpo e êle é tudo que eu tenho.
Voltaram-me à memória essas palavras enquanto eu me achava junto do seu querido corpo. Jazia num féretro, os olhos fechados, as mãos repousando de cada lado. Vestia seu terno de lã, o de que gostava, cinza azulado, e a gravata azul escura que eu lhe dera no último Natal. Seus belos cabelos, apenas parcialmente brancos, estavam penteados para trás, como êle sempre os usava. Seu rosto estava novamente jovem, desaparecidas as rugas, os lábios tranqüilos. Beijei-lhe a face. Toquei em sua mão, que sempre fora quente e de reação rápida. A carne estava fria.
Tivemos, no dia seguinte, a cerimônia simples que as crianças haviam planejado. Haviam afastado para um lado os móveis da biblioteca e quando a manhã ia pelo meio, o sol inundava o pátio e a pequena fonte, e um garotinho de pedra da Itália brincava gentilmente dentro da piscina, postei-me à janela de meu quarto de dormir. Homens o
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estavam trazendo para casa, pela última vez. Quando desci, nosso pessoal doméstico e do campo, as crianças e suas famílias, e as enfermeiras que haviam cuidado dele, estavam esperando por mim. Os homens tinham colocado o féretro diante da lareira. A tampa estava fechada. O ministro de nossa família leu em voz alta trechos dos livros que considerou adequados. Proferiu depois algumas palavras de amizade. Não recordo o que disse. Fiquei pensando nas muitas horas que passamos neste aposento. Fora, primeiro, quarto de brinquedos das crianças. Depois, quando cresceram o suficiente para quererem jogar basquetebol e andar de patins, transformamos o celeiro em sala de jogos e fizemos deste aposento a biblioteca da família, forrando-o com estantes. Por cima da lareira pendia o quadro da ilustração de uma história de John Galsworthy, que êle publicara no Collier's, quando era editor dessa revista. É um belo quadro a óleo, evocativo e poético. A história foi a primeira, creio eu, publicada na América por Galsworthy. É sobre uma jovem noviça num convento, na última noite de seu noviciado. Tinha de decidir, naquelas horas finais, se se tornaria freira ou se voltaria para a vida e para o seu amado. Quis o acaso que uma bela bailarina pedisse abrigo no convento, para passar a noite e, depois da refeição vespertina, dançasse para as freiras. O artista descreve a dança, a comprida saia vermelha rodopiando ao redor dela. No segundo plano, a pequena noviça permanece fascinada e, como diz a história, foge naquela noite para encontrar-se com o amado e viver sua vida de mulher, como esposa e mãe. O quadro sempre estivera pendurado ali, acima da lareira revestida de carvalho, e lá está pendurado agora.
Quanto aos livros, sempre teve grande cuidado em que fossem adequadamente classificados em suas seções próprias - ficção, ciência social, biografias, literatura infantil, livros de viagem, livros novos e assim por diante. Era um amante de livros, um homem culto e de espírito largo. Embora eu conhecesse bem e profundamente a Ásia, contava-me sobre ela fatos que eu não sabia. Quando visitamos, certa vez, a índia, o Sudeste da Ásia, a China
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e o Japão, êle sabia todas as pessoas importantes que devíamos conhecer e podia contar-me a história de todos os lugares que víamos. Era um companheiro encantador e interessante tanto na pátria quanto no estrangeiro. Acima de tudo, nunca me tratava com a condescendência do homem para com a mulher.
Subi de novo ao meu quarto, enquanto levavam o féretro, e esse, de certo modo, foi, e ainda é, o pior momento. Êle estava saindo para sempre de nossa casa e do nosso lar. Seguiu-se, então, a longa corrida ao cemitério de sua família, em Nova York, onde estão enterrados os seus pais. Sim, todos se mostraram bondosos. Aqueles que tinham o dever de cuidar dele nessa última viagem, mostravam-se pensativos e quietos. Quando nos aproximamos do fim do percurso, policiais conduziram-nos ao nosso destino, através do tráfego.
Faço uma pausa, aqui, recordando. E que recordo eu? Isto - em meio àquela triste corrida, cada momento da qual era agonia concentrada, ao ponto de sentir meus próprios ossos doerem, aconteceu-me ver pela janela traseira, e contra a minha vontade, a longa e lenta procissão de carros pretos. Sim, mas no extremo da fila havia mais dois carros. Eram camionetas, vermelhas como os carros de bombeiros. Reconheci-as imediatamente. Uma pertencia ao meu segundo filho e outra ao meu igualmente jovem cunhado. Estremeci quando mas vieram orgulhosamente mostrar, antes de minha partida para o Japão, e eu, heroicamente, as admirei. Agora lá estavam, reluzentes e vivas ao sol da manhã. Eu sabia por quê - e meu coração se dissolveu de novo, em lágrimas e risos. Que vergonha, que lástima, que êle não pudesse ver aquelas duas camionetas de um vermelho brilhante fazendo-lhe as honras nessa ocasião - e como teria rido!
Por que digo que teria? É possível que em algum lugar você esteja rindo. Ainda é possível. Mantenho minha posição, até...
Tudo estava pronto para nós, quando chegamos ao tranqüilo lugar. Os pássaros cantavam e as flores desabrochavam. A celebração da cerimônia final, de devolução
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do seu corpo à terra, não demorou muito. Nosso ministro nos havia acompanhado e proferiu as palavras finais de paz e aceitação. Meus filhos e meu enteado, jovens e fortes, ficaram ao meu lado. Meu enteado continuaria a firma do pai. Minhas filhas me acompanharam de volta ao automóvel e partimos... Mas, oh, aquele último momento silente, em que êle devia ser deixado para trás, e a chegada à casa, agora vazia! Desses não posso falar. A outras mulheres em circunstâncias semelhantes, que venham a ler estas páginas, posso apenas dizer que não há como fugir de tais momentos, quando eles chegam. Têm de ser vividos até o fim, não uma porém muitas vezes, através da lembrança. Disseram-me que se atenuam com o tempo. Não acho. Volto para casa como se voltasse para o céu, toda vez que a deixo, mas não é a mesma coisa, nunca será a mesma. Sei disso agora. Não havendo como fugir do fato, só pode haver aceitação. E a aceitação vem afinal, mas não de uma vez... oh, nunca de uma vez.
Eu não deveria, creio, ter ido a Vermont. Mas nós sempre íamos para lá quando o verão esquentava na Pensilvânia. E pode tornar-se muito quente, pois, como disse alguém, este Estado é "a distante extremidade delgada do trópico". Nossas matas e campos tornam-se luxuriantes como qualquer floresta e as noites permanecem quentes. Talvez eu sentisse que poderia escapar, de algum modo, de sua contínua ausência. Custei a aprender como isto é impossível, seja qual for a parte do mundo para onde eu vá. De qualquer maneira, após algumas semanas, fui para Vermont com minhas três filhas menores. Anos antes, quando ficou estabelecido que eu e a tasneira não podíamos viver juntas, construí uma casa de três cômodos para êle e para mim - dois quartos e uma grande sala de estar, que servia também de sala de jantar, com um balcão de cozinha. Nela, êle e eu passamos bons verões, e as crianças tinham quartos próprios em cima da garagem. Nessa casa, que fora dele e minha, entrei agora sozinha. As meninas se alojaram nos quartos sobre a garagem. Pus-me a escrever
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e a praticar no piano, passando horas no alto terraço que dava para a montanha Stratton. Não sei por que imaginei que tudo seria mais fácil aqui. Pois na verdade eu não podia escrever. Meu cérebro, perdido em pensamentos, lembranças e perguntas, simplesmente não se ocupava com a criação de vidas de outras pessoas. Achava-me tão afastada de todos como se fosse eu que tivesse morrido. Não, assim não podia ser. Vermont não era o lugar. E pela primeira vez precisei de outra ocupação que não fosse escrever. Precisava de trabalho que eu tivesse que fazer, trabalho com outros, compelindo-me a acordar cedo diariamente e a ir a um lugar determinado, onde fosse minha obrigação estar.
Quando esta convicção me invadiu, tomei minha decisão. Voltaria ao Japão e retomaria meu trabalho no filme. Meus colaboradores tinham estado ocupados. Haviam descoberto os locais, uma aldeia de pescadores que consideravam ideal para o nosso filme, uma fazenda com as plantações em terraços na encosta do morro, uma praia deserta, uma casa de pescador, uma mansão senhorial. Já tínhamos o vulcão. Tudo pronto para que eu voltasse ao trabalho. Quando partiria? Respondi que imediatamente. Aproximava-se o fim de agosto. As meninas breve voltariam à escola, e poderiam morar com sua irmã mais velha. Não havia razões de família que me detivessem em casa e eu bendisse a perspectiva de trabalho e do Japão.
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A atmosfera em meio à qual desembarcamos mais uma vez do jacto, no aeroporto próximo a Tóquio, foi de boas vindas e de serena e muda simpatia. Quanto mais profundos os sentimentos, menos palavras para expressálos, acham os japoneses. Nós, americanos, julgamos necessário falar, mandar cartas e cartões de condolências. Centenas de cartas haviam jorrado no meu estúdio, antes de minha partida, e eu as li todas porque era bom conhecer a estima que dedicavam a êle, em tantos lugares do mundo. Pessoas amigas e estranhas, faziam-me parar nas ruas e estradas rurais, para dizer-me: "Lamentei tanto quando soube..."
Em Tóquio nada se dizia, porém tudo era transmitido. A consideração era delicada, mas completa. Meu quarto, no hotel, estava flamante de flores e cestas de frutas. As pequenas camareiras estavam sempre presentes e solícitas. Eu compreendi, pois no Japão nem mesmo o amor é expresso em palavras. Não existem frases como "eu te amo" na língua japonesa.
- Como é que você diz ao seu marido que o ama? perguntei certa vez a uma amiga japonesa.
Ela me olhou ligeiramente chocada:
- Uma emoção tão profunda como o amor entre marido e mulher não pode ser posta em palavras. Deve ser expressa pelas atitudes e pelos atos.
Também não existem, em japonês, equivalentes de nossas palavras de amor - namorada, querida, meu bem, e as outras. Alguns jovens japoneses estão começando a usar as palavras inglesas, mas não seriamente, talvez. Mas talvez ninguém use mais essas palavras seriamente. Ouço diretores americanos espalhá-las descuidada e casualmente pelas amadas e não-amadas, de igual maneira, à moda de Hollywood e da Broadway, e sempre me incomodo.
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Para um escritor todas as palavras isoladas como combinadas com outras, cada qual devendo ser usada somente no seu lugar próprio, como jóias. A língua inglesa é peculiarmente rica em palavras de amor, cujas raízes mergulham no velho solo anglo-saxão. Ouvir um homem chamar uma secretária, ou uma atriz, ou talvez apenas uma moça de cujo nome não se recorda, pelas preciosas palavras do amor, sempre me... bem, me irrita! É uma profanação do sentimento verdadeiro, o mais profundo do coração humano. Para mim, nada na vida se iguala ou mesmo se assemelha, em valor e riqueza, ao amor autêntico entre homem e mulher, com tudo quanto implica. As palavras que usamos há séculos para expressar esse amor não devem ser maculadas, pois pertencem a todos nós. Se são maculadas por um descuidado mau uso, como expressaremos o amor verdadeiro? Somos roubados de algo que não pode ser substituído. Qualquer mulher que ouvir o homem que ama chamá-la de querida, meu coração, meu amor, só pode sentir-se irritada quando essas palavras são destruídas.
- Como pode usar essas palavras assim? perguntei a um americano.
Êle riu, sem compreender.
- Isto faz com que as garotas se sintam bem, respondeu despreocupado. - É informal... sabe... amigável.
As moças japonesas não se sentem "bem" com isso, nem o consideram amigável. As poucas que o aceitam, são problemas. Elas acham que palavras de amor significam amor e se tornam sérias e, por conseguinte, incômodas. As outras, que não andam em busca do amor dos americanos, com os seus conseqüentes benefícios, consideram semelhante homem indevidamente interessado em sexo e, por conseguinte, insultante. São necessárias muitas explicações para que elas se acalmem. São em geral muito polidas para queixar-se na presença do homem, mas, por trás, quanto desprezo!
- Vou processá-lo se êle tornar a dizer isso, exclamou uma jovem atriz com os seus olhos negros reluzentes de
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fúria... E de fato o processou. Sim, tivemos nossos problemas.
Nossos cenários estavam prontos, embora eu ainda só os tivesse visto em filme; a tarefa seguinte era encontrar o elenco. Sendo japonesa a história de A Grande Onda, o elenco tinha de ser japonês e nós havíamos contratado uma equipe e um cameraman japoneses. Pela primeira vez uma companhia cinematográfica americana estava fazendo um filme no Japão, co-produzido por uma companhia cinematográfica japonesa - a maior e, sob vários aspectos, a melhor - com equipe e cameraman japoneses. Era uma experiência e profundamente interessante. Já tinha visto, antes, filmes extraídos de meus livros, mas nenhum como este, e com a minha presença. Eu não pretendia interferir na direção nem em qualquer dos aspectos profissionais, pois conheço minhas áreas de ignorância, mas teria o privilégio de estar onde me aprouvesse e de falar quando desejasse. Creio, tudo considerado, que meus companheiros de trabalho confiavam na minha capacidade de permanecer calada. Eu não falaria muito, freqüentemente. Sou, de fato, uma mulher calada por natureza, a menos que me sinta oprimida pelo que eu considere injustiça, circunstância na qual, segundo me dizem, me torno torturantemente faladora.
Gostei, certamente, de participar da escolha do elenco. Deram-nos um gabinete no elegante edifício de propriedade dos nossos co-produtores japoneses e todos os dias eu para lá me dirigia bem cedo, ficando até tarde, olhando, escutando, julgando, desaprovando ou aprovando, enquanto os responsáveis davam audiência a atores e atrizes, adultos e crianças. Nossa primeira preocupação era encontrar as crianças - dois meninos e duas meninas - que começariam a história. As crianças nos procuravam, portanto, acompanhadas de suas mães.
Tenho visto várias crianças de teatro, tristes muitas vezes. Mas as crianças japonesas, de teatro, não são tristes. Parecem-se com as demais crianças japonesas, sadias, felizes, revelando a aparência geral dos que são muito amados. Nem elas nem suas mães se mostravam tensas, como
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tantas mães e crianças americanas nas mesmas circunstâncias, diferença esta que só posso atribuir à possibilidade de que a concorrência não é tão importante na vida japonesa como é na nossa, e que o desejo de sobressair vem depois da consideração dos sentimentos humanos.
Elas entraram, uma após outra, cada mãe acompanhando discretamente seu astro particular. Curvavam-se com a graça proporcionada por aquela articulação extra que parece ter-se desenvolvido na coluna dorsal dos japoneses. É única, essa curvatura. O chinês agita jovialmente a cabeça ao cumprimentar e ao se despedir, e o coreano faz um altiva inclinação. O japonês executa uma reverência, profunda mas também altiva.
Somente um garoto, na interminável procissão, parecia relutante ou rebelde. Entrara no começo da manhã, ladeado pela mãe e pela tia, o único menino que precisava de escolta de duas mulheres, e o motivo logo se tornou evidente. Era um garoto vistoso, mas rabugento, sua inclinação foi quase descortês e a princípio não queria falar. A mãe e a tia desculparam-se gentilmente desoladas por semelhante comportamento e nos informaram que êle era um campeão de natação. Isto nos pareceu ótimo, o papel exigia um bom nadador. Felicitamos o garoto, que se limitou a continuar rabugento. Convidamo-lo a sentar-se e êle se sentou, ainda rabugento. Condescendeu, após vários rogos sussurrados por suas parentas, a responder rapidamente às nossas perguntas - demasiado rapidamente - olhando o tempo todo para a parede. Sim, disse, respondendo a uma pergunta direta, estava na escola - escola japonesa. Sim, falava inglês - às vezes. Estivera três anos no Cairo, Egito, e lá freqüentara uma escola inglesa, mas preferia não falar inglês... Gostava mais da escola japonesa que da inglesa... Não desejava lembrar-se do Cairo. Bem, era uma cidade, nada mais... Foi-se tornando cada vez mais rabugento. Ocorreu-nos uma coisa. Fizemos a pergunta final:
- Quer trabalhar neste filme?
Levantou a cabeça, sua fisionomia se iluminou pela primeira vez. Gritou:
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- Não!
Fizemos mais uma pergunta certeira:
- Deseja ser ator?
Iluminou-se, agora, como uma lâmpada a gás néon:
- Não!
Estouramos de riso e êle nos olhou, esperançoso.
- A entrevista está terminada, lhe dissemos, e você é um homem prudente. Sabe o que quer.
Retirou-se, sem sorrir, varão arrogante, as parentas trotando atrás dele, magoadas porém conformadas. Era óbvio que conquistara uma vitória sobre a família e que estava acostumado a tais vitórias.
Passaram-se os dias e os atores ficaram reduzidos aos impossíveis e aos possíveis, constituindo estes últimos o grupo menor. O Japão tem muitos excelentes atores de ambos os sexos e de todas as idades, mas estávamos procurando atores excelentes que também falassem inglês, pois esta seria a língua dos diálogos. Esperamos, a princípio, um tanto fora da realidade, que seu inglês fosse perfeito. Depois esperamos apenas que seu inglês fosse bastante compreensível, de modo que pudesse dar a ilusão de japonês.
Ilusão que me faz recordar um incidente de minha própria vida, na China. Eu tinha parado para descansar um dia em certa hospedaria de beira de estrada, numa província remota. Uma velha veio derramar chá na minha xícara. Agradeci-lhe em chinês e perguntei-lhe como o preparava. Olhou-me aterrorizada e deixou cair o bule de chá.
- Que os deuses me protejam, balbuciou ela. - Que se passa comigo? Estou compreendendo inglês!
Era algo assim que esperávamos conseguir, mas havia ocasiões em que imaginávamos se não estaríamos sendo tolos em alimentar tal esperança. A variedade de pronúncia dos japoneses que falam inglês é espantosa, mas tem uma característica comum. A consoante "1" parece alheia tanto ao ouvido como à língua japonesa.
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O dia passava nesse divertido trabalho, até anoitecer, e o problema de todos os dias era que no fim de cada um havia sempre a noite.
Pela primeira vez na vida eu me sentia triste quando chegava o anoitecer. Os outros se reuniam aos seus maridos e esposas, mas eu voltava sozinha para o meu quarto de hotel. As janelas davam para os tetos da nova Tóquio, como disse; não era bonita, pois não tinha havido tempo suficiente para criar beleza. A cidade fora apressadamente reconstruída depois da guerra. Uma pena, pois tendo sido vastamente achatada pelos bombardeios, bem poderiam, se possível, ter traçado ruas largas e amplas pistas de velocidade, fazendo uma cidade moderna porém bela à maneira japonesa. Não a fizeram. A guerra havia sido áspera, a gente estava desesperadamente ansiosa por começar a viver de novo, e o governo se achava quase falido. As casas eram levantadas a trouxe-mouxe. Ainda hoje é quase impossível encontrar uma casa pelo seu número ou mesmo pela sua rua. Não se pode confiar senão no desconhecido.
As noites, em solitários quartos de hotel, são inpossíveis, pelo menos para mim. Tinha muitos amigos, convites em quantidade, mais do que poderia aceitar, mas não satisfaziam. Era preciso sempre manter uma fachada, uma pose, e isto podia ser feito durante o dia de trabalho, quando a mente se achava ocupada. Era diferente quando se tinha de reagir individualmente a outros. Em desespero e solidão, dei para perambular à noite pelas ruas, desconhecida e livre. Tóquio é rica em teatros e cinemas e eu habitualmente parava nuns e noutros. Embora não compreendesse os diálogos, era fácil captar o curso da história, e eu me divertia suavemente, de maneira superficial pelo menos, com o que via. As casas estavam apinhadas, o auditório grave e intenso até que um momento cômico produzia riso alto, staccato, interrompido instantaneamente pela intensa gravidade, de novo.
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Numa dessas noites aconteceu-me ver uma americana, mais ou menos da minha idade, perambulando como eu. Paramos, espantadas uma com a outra, e então falei. Era de Los Angeles, seu marido tinha ido a Formosa, onde ela não quisera acompanhá-lo, sua filha fora jantar com um jovem americano e ela estava satisfazendo o velho desejo secreto de perambular sozinha pelas ruas de Tóquio. A essa altura, porém, ela parecia incerta, embora não assustada, e eu lhe propus que fôssemos ver o filme juntas, para nossa mútua satisfação. O conhecimento amadureceu em amizade, sucedendo-se depois um jantar com sua família, e mais tarde outro ainda, em Los Angeles. O toque deste incidente é que eu não imaginava qual a aparência de uma mulher americana em meio à multidão japonesa. Quando a vi, esqueci, naturalmente, que a minha aparência era igual à dela, entre milhares de japoneses.
Experimentava, na verdade, um cálido sentimento de conforto quando me achava sozinha, em meio a uma multidão japonesa. Isto devia decorrer da lembrança subjacente da atmosfera da minha infância quando, acompanhada pela minha babá chinesa, eu me sentava num teatro chinês, ou ao ar livre, na eira de uma aldeia, ou no pátio de um templo, para ver uma peça. Na China o importante era sempre a peça, sendo desconhecido o sistema de astros e estrelas, a não ser, naturalmente, que se fosse a Xangai ou Pequim assistir o desempenho de uma estrela como, por exemplo, Mei Lang-fang, ou Butterfly Wu. Quando criança não tive esse privilégio, mas apreciei as peças de milagres e os longos dramas históricos através dos quais o povo chinês aprendia religião, filosofia e a história de sua própria raça. Aceitavam-me como membro assíduo da audiência, e eu me perdia, loura criança americana dentro da multidão asiática - multidão bondosa naqueles tempos e nunca me consideraram responsável pelos pecados do colonialismo como todos os brancos são hoje considerados, por todos os asiáticos, segundo parece. Eu tinha consciência, apenas, de estar cercada de gente agradável e bem humorada. Em Tóquio, agora, eu encontrava a mesma gente, embora de uma nação e país diferentes, que me
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aceitava apenas porque se havia habituado aos americanos como parte da paisagem mundial. Sabem o que temos de melhor e de pior, através dos longos anos da Ocupação, e não podemos mais surpreendê-los, quer pelo bem, quer pelo mal.
Tóquio tem, naturalmente, seus aspectos negros. Há ruas nas quais gosto tão pouco de andar sozinha quanto em certas partes de Nova York e Filadélfia, onde aprendi que é perigoso não apenas caminhar assim, mas até mesmo rodar com as portas de meu carro destrancadas. Cidades são cidades e em todas se pode encontrar rufiões.
Era o tempo, também, dos motins de estudantes em Tóquio, sobre os quais nós, norte-americanos, fomos tão mal informados. Não eram anti-americanos. Eram japoneses que gostavam de sua constituição embora tivesse sido elaborada por americanos - pelo menos por um americano. Gostavam especialmente da parte em que o Japão, como nação, promete nunca mais promover guerra. Agora os americanos pedem a eles, japoneses, que tomem partido no caso de uma guerra, e ao lado do Ocidente, embora se orientem para a Ásia e, no futuro, devam ser, de acordo com o senso comum, um povo neutro. Com as bases americanas em seu território sentem que estão sendo forçados a tomar partido. Tudo isto acumulou-se produzindo uma situação para eles insuportável pela sua confusão. Os japoneses são um povo bem organizado, têm seus diferentes níveis, não confundem a parte melhor de seu ser com a pior. Seja qual fôr o nível em que se encontrem temporariamente, é aquele e não outro. Fizeram o motim, portanto, para proclamar sua confusão, mas não odeiam a ninguém. Em confusão são capazes de assassínio, não necessariamente por ódio, mas apenas para aclarar a confusão.
Os estudantes sempre foram uma alarmante, excitante e interessante parte de minha vida. Não me refiro aos relativamente plácidos estudantes da América do Norte, cujos momentos mais ativos não produzem nada de mais violento, ou mesmo de mais excitante, do que as travessuras de colégio. Estou acostumada aos estudantes do Japão,
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da índia e da Coréia. Na China, a nova era, fosse qual fosse - e temos tido novas eras com espantosa e rápida mudança - foi sempre anunciada por um levante de estudantes. O povo respeitava esses moços e moças porque eram pessoas que, se não cultas, estavam não obstante em busca da cultura e portanto mais privilegiadas e presumivelmente melhor informadas do que o cidadão mediano que não sabia ler e escrever. Os povos asiáticos acreditam que os livros são cofres de sabedoria humana e desde que somente os estudantes têm acesso aos livros, a posição de um estudante na Ásia era revestida, e ainda é, de um prestígio sem qualquer proporção com a sua idade e série escolar. Eram um grupo devotado e arriscavam a vida em cada levante. Durante o regime Nacionalista na China, vi muitos deles serem mortos por suspeita de comunismo. Alguns deles eram, sem dúvida, comunistas, mas a maioria era simplesmente de jovens patriotas dedicados, desejando desesperadamente melhorar as condições em que seu povo vivia. Eles são os inumeráveis e anônimos mártires, mas não podem ser ignorados, apesar disso. Se alguém quiser saber o que vai acontecer num país asiático, observe os estudantes.
Quanto ao filme, enquanto tudo isso se passava, nós precisávamos de uma ressaca. Tudo o mais podia ser encontrado, mas a ressaca não podia ser convocada à vontade. A própria história começava com uma ressaca. Certa vez, quando eu estava passando um ano no Japão, na ilha de Kyushu, travei conhecimento com uma pequena e adorável aldeia de pescadores, no extremo sul da costa. Cerca de uma dúzia de casinhas de pedra se amontoavam atrás de um dique pétreo. As casas, do lado do mar, não tinham portas nem janelas. Não é que os pescadores não amassem o mar. Amavam-no de fato, pois gerações de famílias tinham vivido ao lado dele e do seu produto. Essas gerações, contudo, também haviam conhecido a fúria daquelas vastas ondas desencadeadas pelos terremotos debaixo do
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mar. Vulcão e mar trabalham juntos em favor da morte e eu os vira trabalhar dessa forma num luminoso dia de setembro. Houve premonições. A água no poço fundo, disseram-me os pescadores, estivera barrenta por alguns dias. O poço, cavado na praia, ficava apenas a poucos metros do mar e ao pé de um alto penhasco, mas a água era doce. Era lá que as mulheres da aldeia iam, caminhando um quilômetro e meio na ida e outro tanto na volta, buscar toda a água fresca que gastavam, e isto durante centenas de anos. Quando sugeri que isso era um sofrimento, os homens sorriram, incrédulos. Devo dizer que as mulheres sorriram também.
O terremoto, naturalmente, chega primeiro. O terremoto no Chile desencadeou uma ressaca que atravessou o mar e atingiu o noroeste do Japão, mas comumente o terremoto é no Japão, ou sob o mar próximo. Terremoto - nem posso proferir a palavra para mim mesma, sentada aqui sobre a sólida terra de minha casa rural da Pensilvânia, sem um toque daquela interminável náusea do coração e do corpo, aquele desalento orgânico, que invade um ser humano quando a terra treme debaixo de seus pés. É como se o próprio globo se estivesse dissolvendo no espaço. A única segurança que temos, nós os humanos, é esta terra que é o nosso lar, este globo ao qual nos apegamos. A catástrofe nos assola, trovões e relâmpagos rugem e faíscam no céu, ventos descem do espaço exterior, chuvas caem torrencialmente das nuvens, até mesmo o mar pode erguer-se, tempestuoso, mas debaixo de tudo temos a terra, ou sentimos que a temos. Podemos ter sido gerados no mar, mas agora somos criaturas da terra. Quando a terra nos atraiçoa, quando não nos podemos manter sobre nossos pés, quando o chão se fende e traga nossas casas e nossa gente, então estamos realmente perdidos... Certa vez, em um violento terremoto no Japão, a terra se abriu e uma criança que corria tombou dentro da brecha. A mãe, que perseguia a criança, pulou atrás dela, e a terra fechou-se de novo, deixando de fora apenas os seus compridos cabelos negros, como estranhas algas sobre a trêmula superfície...
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No segundo dia após meu regresso a Tóquio, quando estava escrevendo diante da mesa do quarto do hotel, depois da meia-noite, senti aquele profundo e agitado tremor de terra e mais uma vez a velha náusea me invadiu. Não foi mais do que um ligeiro tremor, mas naquele instante minha mão perdeu o controle e a escrivaninha sacudiu. A maioria das pessoas continuou dormindo, mas o jornal da manhã noticiava um acentuado tremor. Tais tremores ocorrem freqüentemente no Japão, centenas, milhares deles por ano, na média de quatro por dia, e de cada vez é uma lembrança, a um povo corajoso, de que vive em ilhas perigosas. O efeito que essa tensão eterna produz sobre eles é óbvio. Têm temperamentos extremos - uma jovialidade exagerada, uma profunda e às vezes frenética melancolia. Uma superfície disciplinada e estudada, sorrisos, calma e displicência, forradas, sem exceção, diria eu, por uma negra tristeza, oriunda do conhecimento, em crianças e adultos, de que a catástrofe é endêmica a despeito da beleza das montanhas e do mar, e da benevolência da vida. Esse conhecimento universal gera neles uma consideração, uma terna cortesia, como a significar que a melhor atitude é sermos bons uns para os outros, pois o mundo pode acabar a qualquer momento. Quando essa bondade inerente tem de ser ignorada, como no tempo de guerra, quando os homens devem ser ensinados a serem brutais, podem tornar-se cruéis além de qualquer imaginação... Mas eu estava falando de terremotos - e de ressacas.
Necessitávamos, portanto, de uma ressaca. Podíamos reproduzir o terremoto com a câmara, mas a ressaca estava além de nossas possibilidades. Foi nisso que tivemos sorte. Nossos co-produtores japoneses possuíam o melhor estúdio para efeitos especiais do país e, como me disseram, do mundo. Eu não sabia o que significava "efeitos especiais" em linguagem cinematográfica, mas descobri que queria dizer reprodução, em miniatura, de uma cena da natureza. Os japoneses são supremamente talentosos nesse tipo de trabalho e, dentre todos êles Tsuburaya é o mais
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talentoso. Felizmente Tsuburaya pertencia à equipe de nossos co-produtores japoneses e, mediante hora marcada, encontramo-lo em seus escritórios.
É um artista, o que se percebe ao primeiro olhar. Vestia roupas de trabalho, calças e camisa modelo saco e um paletó japonês. Saudou-nos com encantadora cortesia natural. Sim, disse êle, sabia que desejávamos uma ressaca e já havia preparado alguns desenhos para mostrar-nos. Eram aquarelas espantosamente precisas do horizonte ascendente, do avanço da onda e do elevado estouro da crista. Uma ressaca não aparece primeiro como onda. Ao invés disso, o horizonte se levanta, o mar sobe em direção ao céu em linha reta, corre para a terra, um muro de água que pode ter um ou sessenta metros de altura. Uma sucção poderosa concentra a água em forma de onda, de modo que, olhando do alto de um penhasco, se vê o fundo nu do oceano, muito além da praia. Então a gigantesca onda se arqueia sobre sua própria base e arrasa terras, casas e pessoas.
Eu observava a fisionomia de Tsuburaya enquanto êle descrevia as seqüências que tinha pintado. Gostaria de traçar aquele belo rosto japonês, mesmo que fosse em palavras. Digo belo no sentido profundo do termo. Não era bonito no sentido superficial. Estava gasto pelo pensamento e pela concentração. Era tão sensível quanto um rosto de criança, uma criança genial, mas em nada infantil. Era arguto e gentil, contudo fresco, forte e bem humorado, o rosto de um artista purificado pela satisfação de sua plena realização através da arte. Conversamos tranqüilamente, eu ouvindo enquanto êle descrevia seus planos. Iria à aldeia de pescadores, com seu cameraman, e fotografaria tudo. Depois construiria os cenários no estúdio, recriaria as cenas e as adaptaria ao filme. Isto seria feito mais tarde, quando o trabalho estivesse progredindo. Entrementes, senti a particular satisfação do escritor que sabe que seu trabalho foi compreendido e está prestes a ser transplantado com fidelidade para outro meio.
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Aprendi por experiência que as pessoas que trabalham no teatro não devem ser julgadas pelos padrões aplicados aos demais. Formam um grupo à parte, por temperamento, seja qual for sua raça, classe ou nacionalidade. Um ator chinês, homem ou mulher, é como um ator americano, e é como um ator de qualquer outro país, porque eles são, acima de tudo, atores. O mesmo acontece com os diretores, seja qual fôr sua idade, côr, religião, nacionalidade - todos prima-donas, sem uma única exceção. Faço esta observação geral como preliminar ao nosso primeiro problema real na feitura do filme. Tudo havia decorrido tão agradàvelmente, tão facilmente, que eu devia esperar, alegremente pessimista como sou, uma tempestade no horizonte, um nó na linha, um enguiço na máquina.
Aconteceu numa quente manhã de verão quando o ar condicionado estava quebrado - a fim de proporcionar a temperatura apropriada à tempestade que se avizinhava, suponho eu. O gerente de produção se aproximou de mim com exagerada cortesia. Estávamos no seu escritório, como de costume, o diretor americano e eu, e o gerente de produção se mostrava demasiado cordial para nos inspirar segurança. Eu devia ter percebido que êle estava com alguma idéia. Ordenou a várias moças bonitas que nos trouxessem e quando o americano disse que preferia café, porque era o único lugar em Tóquio onde havia bom café, o gerente de produção gritou a outro bando de moças bonitas que trouxessem café. Quando estávamos todos sentados em volta da baixa mesa redonda, e depois de ter enxugado a transpiração de seu bem nutrido rosto e pescoço, disse, demasiado negligentemente, que, estando também em jogo, no filme, a reputação de sua firma, eles gostariam de indicar um assistente de direção japonês ao americano.
Sei que nada na vida é realmente fortuito. Portanto, ao ver um súbito alerta nos olhos do americano, dei um tom casual à minha resposta. Nós, naturalmente, recebíamos com satisfação essa ajuda, disse eu. Queria que o filme fosse autêntico em todos os detalhes. Era o que se esperava em meu próprio país. O gerente de produção
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mencionou, ainda mais casualmente, o nome de um diretor. Eu o reconheci. Era o nome de um famoso diretor de cinema japonês, agora oficialmente aposentado mas ainda inexgotàvelmente um diretor.
Gostaria de vê-lo, tornou o diretor americano também casualmente.
Tudo parecia macio e civilizado, o gerente de produção deu um suspiro feliz e insistiu em que tomássemos ginger ale, além do chá e do café. Era um homem grande, alto e pesado, e era temperamental. Na verdade eu fora chamada em particular, no dia anterior ao nosso encontro, e advertida de que êle e o diretor americano talvez não se dessem bem, por não serem harmônicas as suas respectivas naturezas. Perguntei qual a significação disso. Explicaram-me, em termos japoneses, que tanto o americano quanto o japonês eram cheios de energia e determinação. O americano não cedia facilmente nos pontos em que se considerava com a razão. O japonês fazia o mesmo. Digamos claramente que nenhum dos dois cedia jamais. Isso me perturbara e agora me ocorria que um assistente de direção japonês talvez agisse como pára-choque.
Mas, quando mencionei essa possibilidade, mais tarde naquele dia, ao diretor americano, este respondeu bruscamente que não queria pára-choques. Gostava do gerente de produção japonês porque era tão franco quanto um americano e por conseguinte podia tratar com êle. Percebi certa tensão na voz do diretor americano e adiei a discussão. Lembrei-me de que o tempo cuida de muitas coisas. É o que a Ásia me ensinara.
Prosseguimos, entrementes, na escolha do elenco, sem consideração ao mais que estava ocorrendo - um processo que não é diferente em Tóquio ou na Broadway. Sentamo-nos, a convite, atrás da comprida mesa do escritório, e os atores ou atrizes se aproximavam um a um, de cada vez. Tínhamos suas fotografias diante de nós e os estudávamos cuidadosamente do ponto de vista fotogênico, enquanto eram feitas as perguntas. O problema era o inglês. Havia muitos jovens elegantes e muitas, muitas moças bonitas, e alguns personagens mais
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velhos e seus contracenantes femininos. As perguntas eram sempre as mesmas:
- Seu nome?
- Quantos filmes já fez?
- Em sua opinião, qual foi o seu melhor papel?
Em determinado momento da chuva de perguntas, em geral bem depressa, tornava-se transparente que o inglês do candidato era demasiado fraco, na verdade inexistente. A única frase perfeita em inglês era sempre a mesma:
- Não sei falar inglês.
- Onde estudou inglês? inquiríamos.
- Na escola... sim.
- Quantos anos na escola?
- Seis ânus.
- Seis anos?
Um aceno. Tentávamos não sorrir quando esses seis anos eram repetidos por diversas vezes. Afinal um dos rapazes que estudara inglês disse:
- Dez ânus.
Tentamos fazê-lo repetir palavras inglesas, trechos de diálogo. Um bom ouvido pode tornar possível o aprendizado do diálogo em inglês. Às vezes o ouvido era muito bom. De modo geral, não era.
- Na próxima vez em que você fizer um filme, aconselhei a mim mesma, em particular, trate de se limitar aos países de língua inglesa.
Quando, finalmente, aparecia um ator que falava inglês com perfeição, procurávamos não aceitá-lo apenas por esse fato. Havia outras exigências. Assim passavam os dias, sem esperança mas não de todo desesperados. Entrementes não se deixou morrer a questão do assistente de diretor. O gerente de produção disse-nos, certa manhã, que nos havia marcado um encontro com o diretor japonês. Eu estava cada vez mais impressionada com o gerente de produção, com a sua eficiência e sua crônica desesperação. Êle tinha de produzir um filme por semana para a população japonesa faminta de películas. Era e é um programa intoleràvelmente pesado, mas êle me assegurou
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que não podia ser atenuado enquanto a televisão não se desenvolvesse e proporcionasse uma verdadeira competição, quando, continuou ele, as companhias cinematográficas teriam de produzir filmes melhores e, por conseguinte, menos numerosos. Entrementes, não podia parar. Realizava conferências com diretores, com todo mundo, segundo parecia, enquanto se metia conosco, aparecendo e reaparecendo, sempre em mangas de camisa, o largo rosto brilhando de suor, apesar das sajas refrigeradas. Tinha um rosto muito bonito, na clássica tradição japonesa, embora não tão bonito quanto devera ter sido, sem dúvida, na juventude, antes que o vinho e o resto nele deixassem sua marca. As bochechas também estavam pesadas agora, havia bolsas sob seus expressivos olhos. Mas desanuviava-se facilmente com o riso, e quando ria era como o rugido de um leão. Punha de lado as formalidades, sempre que possível, e nos pedia franqueza. Falava em japonês, sendo interpretado por uma das bonitas jovens que abrandavam o que êle dizia sem destruir-lhe a força. Era muito engenhosa. Mas eu ainda não o conhecia realmente. Isto veio depois.
Uma tarde fomos conduzidos a outro gabinete onde nos disseram que esperássemos para falar com o diretor japonês que nos fora proposto. Esperamos. Êle entrou cerca de cinco minutos depois, com a vaga aparência de um Stokowski japonês, porém maior. Era bonito para a sua idade, os cabelos brancos penteados para trás, o perfil altivo. Curvou-se não muito profundamente e notei a frieza refletir-se na fisionomia do diretor americano. Dois jovens atores estavam prestes a criar uma cena para nós. O diretor japonês sentou-se. Êle compreendia inglês tão bem quanto o gerente de produção mas, como este, não sabia falar. O diretor americano explicou que desejava que os dois atores representassem uma cena entre Toru e Yukio, personagens principais de A Grande Onda. O diretor japonês pegou uma caneta e se pôs a escrever como pensava que a cena devia ser. O diretor americano tentou, através da nossa intérprete, interromper esse procedimento sob a alegação de que não queria que
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a cena fosse fixa e sim fluida. O japonês silenciou-a com um gesto imperioso. Os olhos do americano adquiriram o brilho do aço e êle tornou a instruir a intérprete.
- Diga ao cavalheiro, por favor, que não quero a cena escrita. Quero que os atores improvisem.
A intérprete, aterrorizada pela fama e pela altivez do diretor nipônico, fez um esforço por obedecer. Novamente o gesto imperioso da real mão! O americano manteve sua posição. Quando o japonês se inclinou para dar o papel aos atores, com suas próprias instruções, o americano apanhou-o, dizendo num inglês firme:
- Não quero que tenham instruções escritas. Houve um momento de amedrontado silêncio de parte dos atores. A quem deviam obedecer? Ao americano, decidiram finalmente, e o japonês recostou-se na cadeira, com ar terrível. Eu sabia o que estava para vir, mas sabia, também, que isso devia esperar até voltarmos ao hotel. O americano mantinha maneiras perfeitas em público, mas quando a cena terminou - bem representada, por sinal, considerando a tensão da atmosfera - levantamo-nos, fizemos uma reverência ao diretor japonês e aos demais presentes e saímos. A intérprete foi conosco no automóvel, de modo que nada dissemos. Mas ao saltarmos, na porta do hotel, o americano falou-me por entre os dentes cerrados.
- Preciso lhe falar, antes que tudo se esboroe. Curvei-me ante o inevitável.
- Muito bem. Falemos agora, em meus aposentos. Espero-o dentro de quinze minutos.
Eu necessitava de alguns minutos a fim de preparar-me para a provação de uma conferência com uma prima-dona. Definir uma prima-dona? Seja qual fôr o sentido consignado no dicionário, na vida real significa uma pessoa egoconcêntrica - não necessariamente egoísta ou egotista, e não inteiramente egocêntrica, mas certamente uma pessoa cujo ser tem como núcleo o ego. Falando de modo geral, há duas espécies de diretores; o diretor de atores e o diretor de diretores. O diretor de atores é querido pelos atores. Êle os corteja, os fascina, os acata, lisonjeia-os,
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liga-os a si emocionalmente até que façam o melhor para êle. Chama, a isso, "desenvolver seus talentos". Mais cedo ou mais tarde também os destrói, especialmente se não o libertam do laço emocional criado por êle. Espera ser libertado tão logo a peça estréie ou o filme termine, pois a emoção serviu ao seu propósito, e fica indignado quando não o libertam. Alguns atores - as mulheres, para ser mais precisa - são tão tolos ao ponto de quererem continuar o laço, e quando este é cortado ficam destruídas, pelo menos por algum tempo. São, contudo, tão dependentes em termos emocionais que continuam afetuosamente a falar como "diretor de atores". O diretor de diretores, por outro lado, evitará o uso da emoção como instrumento para o desenvolvimento do ator, homem ou mulher. Êle sabe o que quer, e não admite o truque do "desenvolvimento". Diz ao ator exatamente o que deve ser feito, em termos de arte e da peça, e o ator deve representar em conseqüência. Sem exceção, que eu saiba, os diretores japoneses pertencem a este último grupo.
Neste ponto de minha análise houve uma batida à minha porta e o diretor americano entrou no que se designa por ominoso silêncio. Sentou-se e começou, como de costume, salientando alguns equívocos menores que eu cometera durante o dia - menores ou maiores, isto não importava, pois a essa altura cada equívoco era grande e todos meus.
- Por que - inquiriu êle com assustadora nitidez, os olhos verrumando-me o rosto - tinha de cumprimentar aquele japonês como se fosse um velho amigo? Por que tinha de lhe agradecer e dizer que era bom contar com a sua ajuda?
Balbuciei alguma coisa acerca da polidez à maneira japonesa, et cetera, mas nada podia impedir o inevitável. Êle não vacilou.
- Devo lhe dizer - e eu sabia que êle devia - que se esse diretor japonês não fôr afastado imediatamente, eu voltarei para Nova York.
Fiquei sem fala. Afastar o japonês depois que o gerente de produção o convidara? Era o mesmo que pedir para afastar o Monte Fuji da paisagem do Japão!
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O americano continuou num tom frígido:
- Só pode haver um diretor. Sou eu... ou não sou eu. O céu desabou. Eu estava esmagada. Chegara a crise que havia temido. Esperara que o tempo a fizesse menos violenta, fora tolamente otimista e agora me sentia desesperada. Não sou boa combatente em nenhuma circunstância e quando posta diante de uma batalha tento sempre seguir o velho e bom provérbio chinês. "Dos trinta e seis caminhos de fuga, o melhor é correr". O problema, naquele instante, era que não havia lugar para onde correr. Não podia correr, portanto.
Levantei-me da cadeira. Estávamos no fim do dia, quase seis horas, eu gostaria de ter mandado vir um bule de chá verde japonês, ao qual sou afeiçoada, e então, bebericando-o, ler uma novela japonesa enquanto esperava pelo jantar. Não havia possibilidade nem de chá, nem de novela. Pensei no pior e no mais assustador lugar, e não consegui pensar noutro. Disse:
- Vamos agora mesmo ao gabinete do gerente de produção e lhe dizer tudo.
Esperei que o diretor americano admirasse minha coragem. Mas reagiu exatamente como se eu lhe tivesse dito que fôssemos ao zoológico, procurássemos o maior e mais feroz leão e lhe torcêssemos o rabo. Não mostrou qualquer sinal de admiração. Levantou-se e partimos, a intérprete timidamente atrás de nós. Empalideceu quando lhe explicamos nosso objetivo.
- O diretor japonês, balbuciou ela, é um homem muito importante. O gerente de produção também.
Foi a minha vez de empalidecer. Comecei a odiar temporariamente aquele diretor americano. E por que tive eu de ceder à idéia de fazer um filme no Japão? Mas estava aqui. Havíamos chegado ao edifício. Subíamos no elevador. Anunciamo-nos à porta do escritório do gerente de produção. Sim, precisávamos vê-lo antes que saísse, dissemos. A moça bonita olhou-nos surpreendida, insinuou que o gerente de produção estava muito ocupado, et cetera, mas respondemos que esperaríamos. Fomos admitidos e nos sentamos. O gerente de produção ignorou-nos enquanto
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trovejava num e noutro telefone. Observei, tolamente, que os telefones eram todos de côr azul-turquesa numa sala verde. Contei os botões das costas de uma,bonita moça que falava ainda em outro telefone, repetindo em voz gentil os rugidos do gerente de produção. Trouxeram-nos chá verde mas não me atrevi a engoli-lo, com medo de ficar sufocada. Após longos cinco minutos, dez minutos, fosse qual fosse o tempo, o gerente de produção baixou seu corpanzil a uma das cadeiras em círculo e grunhiu algo à sua intérprete. Compreendi perfeitamente que perguntara, à sua própria maneira, por que diabo estávamos ali.
Eu própria não tinha certeza. Desejava não estar ali, mas um olhar ao perfil soturno do americano foi suficiente para destruir pergunta e resposta. Mergulhei no assunto, sabendo que estava cometendo suicídio. Comecei assegurando ao gerente de produção - que compreendia cada uma de minhas palavras em inglês, mas fingia que não - que seu desejo de ajudar-nos muito nos honrava, mas, considerando as circunstâncias, os diretores sendo diretores, jovens e velhos - fui meandrando, esperando evitar a questão final, no último momento, quando devia dizer diretamente, de algum modo, que não queríamos o diretor japonês... quer dizer, o diretor americano é que não queria; quer dizer, eu estava certa de que o gerente de produção compreendia quão embaraçoso seria para um diretor americano, fazendo seu primeiro filme no Japão, dizer a um diretor mais velho, tão respeitado, et cetera. O americano achava impossível até mesmo a idéia desse fato, para não mencionar a confusão dos atores, que não saberiam a qual dos dois... e por aí afora...
A intérprete lutava com os meus sincopados esforços. Como eu sabia, o gerente de produção compreendia perfeitamente onde eu queria chegar. Interrompeu os balbucios e a interpretação. Bateu nos seus gordos joelhos com as grandes e bonitas mãos. Rugiu para nós e em inglês!
- Diretor americano tem de ser forte! Diretor americano tem de dizer a todo mundo: "Vocês escutem aqui o que estou dizendo!"
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Bateu no vasto peito para ilustrar como o diretor americano devia comportar-se. O americano, porém, permaneceu frio. Disse com terrível calma:
- Sei como me comportar dessa maneira no meu próprio país. Não me comportarei assim aqui no Japão. Devo pedir que o diretor japonês seja afastado.
Os dois homens se olharam, para não dizer se fuzilaram, um ao outro. Abri a bolsa e tirei o leque chinês que conservo para tais emergências. Embora a sala estivesse bem refrigerada, achei necessário abanar-me. Tentei pensar em algo remoto e agradável, as montanhas de Vermont, por exemplo, como as via da janela de minha sala de estar.
Ouvi a alta rajada de um suspiro. Era o gerente de produção. Levantou-se e começou a andar pela sala, esfregando a cabeça com as mãos. Estava murmurando, ainda em inglês.
- Eu temia que qualquer coisa parecida com isso fosse acontecer... oh, sim, diabos!
Sentou-se e ponderou. Conheço meu Japão e compreendi que êle se sentia muito infeliz. Alguém tinha de ficar com a cara no chão e não podia ser o velho e famoso diretor japonês. Também não podíamos ser nós, pois, como estrangeiros, não sabíamos o suficiente para ficar com a cara no chão. Êle ergueu a cabeça e atirou-me um olhar reprovador. Você, transmitiu-me esse olhar, você sabia mais. Devia ter-me poupado isto.
- Lamento, murmurei atrás do meu leque. - Lamento muito. Mas que posso fazer? Se não lhe tivesse dito, se tivéssemos começado a trabalhar, o problema teria sido pior.
- Ah, sodeska suspirou êle. - É verdade... melhor resolver logo.
Voltou ao idioma japonês. Não podia mais falar inglês.
- Diga a eles, falou à intérprete, diga a eles que tratarei do assunto. Vê-los-ei amanhã. Estou ocupado mas os verei.
Deu-nos as costas assim que pôde e voltamos ao hotel.
- Afinal está feito, disse eu ao americano.
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Êle se recusou a demonstrar alegria.
- Ainda não vimos o fim da história, respondeu soturnamente.
No dia seguinte pareceu que êle estava certo. Voltamos aos estúdios e retomamos a escolha do elenco. Tudo era como no dia anterior, exceto o fato de não vermos o gerente de produção, do qual dependíamos para tudo. Bonitas atrizes entravam, informavam que haviam estudado inglês durante seis anos, declaravam que não sabiam falar inglês e nos deixavam. Jovens elegantes entravam com a mesma ladainha. Ficamos enormemente alegres com um ator mais velho que podia fazer o papel do pai de Toru e que falava um inglês perfeito. E durante todo esse tempo, nada do gerente de produção. Quando perguntamos por êle a uma moça bonita, ela saiu e voltou para dizer que êle podia encontrar-se conosco nos escritórios da cidade, às duas horas. Estava muito ocupado, et cetera. Serviram-nos deliciosos sanduíches de carne - ontem de vaca e hoje de porco temperado. Faço uma pausa aqui para dizer que, no Japão, a carne é de vacas Kobe, alimentadas a cerveja e massageadas à mão, diariamente, por devotados vaqueiros, razão por que é mais tenra do que qualquer outra que já provei.
Às duas horas, exatamente, estávamos nos escritórios da cidade. Nenhum gerente de produção apareceu no horizonte desse dia ou de qualquer dia. O americano ficou indignado e eu resignada. As moças bonitas saíam trotando e voltavam para dizer que o gerente de produção nos veria às cinco horas do dia seguinte, ou do seguinte, ou do seguinte. Isto significava um adiamento da decisão sobre o nosso elenco, que nós simplesmente não nos podíamos permitir. Voltamos ao hotel e nos queixamos à minha especial amiga, por telefone. Era inútil pensar em comer ou em dormir, se o gerente de produção nos tinha abandonado. Houve uma longa espera. Ela nos chamou. Desta vez o americano assumiu a ofensiva. Explicou sua posição, inalterada e inalterável. Escutou a resposta dela e pela primeira vez em dois dias a sua fisionomia se iluminou. Deduzi que a questão do diretor de produção havia sido
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resolvida. Êle fora convidado a renunciar. Tudo estava em ordem, disse minha amiga.
Porém mais tarde, durante meu jantar solitário, surpreendi-me subitamente sem apetite, apesar da deliciosa salada de carne de siri que haviam posto à minha frente. Uma tórrida noção agitava-se dentro de mim, um eco do passado, meu passado na Ásia. Não estava tudo bem - não de todo, não de todo. Há sempre um preço para a vitória. Qual seria, eu não sabia. Ainda não sei. Resta uma dívida a ser paga. Posso apenas dizer que o gerente de produção não... o quê? É bem possível que eu nunca venha a saber. De qualquer modo, naquele dia, o episódio estava encerrado.
E sempre, ao cabo do dia, de todos os dias, vinha o regresso a ninguém! Depois dos problemas, resolvidos e não resolvidos, depois das idas e vindas de muita gente, da dúvida e da preocupação, da excitação da descoberta, dos risos partilhados, da crescente confiança no trabalho, todos os dias tinham o mesmo fim. Eu voltava aos aposentos do hotel, abria a porta, entrava e a trancava de novo. As flores estavam frescas, os quartos refrigerados, as cartas amontoavam-se sobre a mesa - cartas de ninguém. A carta pela qual eu ansiava não podia ser escrita porque êle se fora. Não abri as outras. Que esperassem até a minha secretária japonesa chegar e eu ser forçada a trabalhar a fim de que ela pudesse trabalhar. Os convites eram muitos, mas me faltava disposição para aceitá-los. Tinha de aceitar alguns, os que se relacionavam com os tristes e ansiosos pais de crianças retardadas, alguns outros de velhos amigos em homenagem às bondades do passado. Adquiri então o hábito de mandar vir o jantar para o quarto e de comer sozinha, de modo que não precisasse ser compelida a sorrir a desconhecidos que podiam abordar-me com perguntas e elogios. Quando chegava a noite, a vida perdia subitamente o sentido.
Contudo, não me sentia impaciente comigo mesma. Sabia, por experiência, que é preciso tempo para que o ser
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absorva o sofrimento. Uma vez feito esse ajustamento, começa de novo o desenvolvimento e a vida nova. Era demasiado cedo. Verifiquei que era impossível ficar sentada sozinha nos quartos do hotel. Estivesse êle comigo e esta seria a parte melhor do dia. Sempre fora a melhor parte. Tínhamos de passar separados muito de nossa vida, durante as horas do dia, pois cada um de nós exercia uma profissão, um trabalho. Mas quão ansiosamente esperávamos para poder passá-la juntos! íamos os dois onde quer que tivéssemos de ir, eu cedendo à necessidade dele, êle à minha, dependendo da importância que atribuíssemos à ocasião específica. E em vinte e cinco anos de casados não passamos uma noite separados, até que se tornou necessário, para êle, viver e trabalhar somente em casa. Mesmo então eu recusava todos os convites que me fizessem passar a noite fora, até que êle cessou de saber se eu estava presente ou não. E quando êle parou de saber, tudo foi diferente, exceto a memória.
Rejeitei esse tempo de inconsciência. Quando penso nele, penso nele como o conheci, vivo, vívido, com infinita variedade de pensamentos e de palavras, dominante, com invencíveis preconceitos em algumas questões, como eu costumava dizer impetuosamente quando discordávamos, e êle sorria, aceitava sorrindo a acusação sem a menor intenção de modificar-se. Mas êle sabia que eu não o queria modificado. Fosse o que fosse, era êle mesmo, e eu gostava disso. Por exemplo: não podia pregar um prego sem bater no seu polegar; por conseguinte, recusava-se sabiamente a pregar pregos. Não tomava parte nos assuntos caseiros, por mais ocupada que eu estivesse. Não comia o que não gostava, pouco importando o bem que o alimento lhe fizesse. Ao mesmo tempo era disciplinado quanto à qualidade e quantidade do que comia. Quando falava, nenhum de nós o interrompia. Era o pai, bem como o marido, e contudo recusava-se a tomar qualquer parte na disciplina de nossa grande família. Eu própria não sou disciplinadora, pois sou dada a rir das más-criações, a menos que esteja zangada, e nem a jovialidade nem a cólera são a atmosfera adequada à disciplina. As professoras de nossas nove crianças
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eram unânimes numa observação que, mais cedo ou mais tarde, sempre nos era feita, mas particularmente a mim, pois êle não comparecia a reuniões de pais e professores, e eu tinha de ir sozinha. A observação era simples:
- Seus filhos estão estragados.
Concordei, desamparada. Como podia ser de outra maneira, se tinham uma mãe que ria com demasiada facilidade e que custava muito a se zangar e quando se zangava, tinha tais acessos que as crianças a olhavam espantadas e pensavam que ela não estava agindo a sério? Quanto a êle, o máximo de sua disciplina era olhar a criança retratá-la com fria desaprovação e depois voltar-se para mim com uma observação feita tão casualmente que me deixava invariavelmente atordoada e incapaz de outra coisa senão de uma débil resposta.
- Você permite que continue uma coisa dessas? perguntava êle.
- E você, permite? redargüia eu.
Seguia-se o silêncio e a criança, isolada pelo nosso mutismo, acabava se submetendo, depois de uns poucos minutos em que tentava manter sua independência. Olhando, agora, para essas mesmas crianças, posso apenas dizer, pelo que sei, que se saíram bem. Isto é, nenhuma delas é delinqüente ou esteve na cadeia. Naturalmente ainda há tempo para a cadeia, mas duvido que cheguem alguma vez a ela.
Estou fazendo justiça a êle, como disciplinador? Talvez não, pois havia uma ofensa que não tolerava de qualquer criança: ato ou palavra que considerasse falta de respeito a mim. Se uma criança se comportava dessa forma, sua reação era instantânea, invariável e trovejante.
- Você não sabe que a sua mãe é a maior mulher do mundo?
O absurdo da observação reduzia-me imediatamente a um estado de embaraço que as crianças compreendiam. Sofriam comigo, sobretudo porque não haviam tido qualquer intenção de desrespeitar-me. Eu apreciava a livre
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discussão, a discordância animada, e a explosão dele matava a intercomunicação. Se estávamos à mesa, perdíamos o apetite e ficávamos em silêncio. Não sei o que pensava desse silêncio, pois não permitia protestos ou discussão sobre o assunto relativo ao respeito a mim, nem mesmo de minha parte!
Eu, por meu turno, obedecia-lhe demasiado literalmente e isto por dois motivos. Passara minha vida na China, até nos encontrarmos, e havia aprendido que a mulher deve obedecer ao homem, se possível. Em segundo lugar, eu era desgraçadamente ignorante acerca de meu próprio país. Nasci tarde e meus pais já viviam há décadas na China, antes que eu aparecesse em sua vida. Eram moços quando saíram da pátria, meu pai com vinte e oito e minha mãe apenas com vinte e três anos, ambos idealistas e intelectuais. Atingiram a maturidade dentro da cultura e da sociedade chinesas, não em sua própria terra. Quando fui, afinal, viver em meu país e nos casamos, êle e eu, afirmou que, entre outros prazeres, era bom casar comigo pois eu era tão ignorante que poderia contar-me todas as velhas piadas americanas, as quais para mim seriam novas. Isto era verdade, e êle deveria ter vivido para contá-las todas, pois não chegou ao fim delas. A qualquer instante dizia-me algo que me provocava uma sadia gargalhada.
Errou somente numa decisão familiar e agora sei que eu lhe deveria ter desobedecido, por razões práticas. Mesmo nesse caso, em princípio estava certo. Eis a questão: êle não acreditava em tarefas escolares para fazer em casa. Argumentava, e com razão, que a escola retinha a criança durante as melhores horas do dia. Se o currículo fosse cuidadosamente planejado e eliminadas todas as tolices e perda de tempo, tudo poderia ser concluído dentro do horário escolar. Acreditava que a vida em família, à noite, não devia ser estragada por ter a criança de fazer os deveres escolares do dia. Como de hábito, ignorava tudo quanto não merecia a sua aprovação. Eu não havia sido educada no sistema escolar americano e não me restava solução melhor senão concordar com êle. Conseqüentemente, gozávamos nossas noites todos juntos, fazendo música,
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jogando e lendo em voz alta. O resultado aparecia, ai de mim, nos boletins das crianças e numa atitude geral, devo confessá-lo, de considerar a escola mais um passatempo do que um trabalho. Repito que não lhe deveria ter obedecido. Eu deveria reunir as crianças ao redor da mesa grande, à noite, e fazer com que cumprissem suas tarefas escolares, até que crescessem o suficiente para assumir suas próprias responsabilidades... Mas, como viveria êle, nesse caso? Noites solitárias, nenhuma lembrança de noites felizes. Estou contente por termos vivido como o fizemos.
Eu mergulhava facilmente em tais reminiscências meio risonhas, meio chorosas, e era necessário que eu despertasse. Assim, depois que terminava o jantar e a pequena garçonete japonesa, sempre solícita quando eu deixava meu prato pela metade, tirava a mesa, eu ia perambular de novo pelas ruas de Tóquio. Dirigia-me freqüentemente a Ginza, mercado, bazar e centro de diversões, sempre distraída pela variedade de pessoas que iam apreciar o festivo cenário. Bandeiras, balões, flores de papel de todas as cores presas nos beirais dos telhados, flutuavam sobre as ruas e lojas; em plena rua, exibidores enalteciam suas mercadorias. Automóveis americanos, prova de riqueza, achavam-se estacionados junto ao meio-fio, com os choferes polindo zelosamente os cromados enquanto seus patrões examinavam brinquedos, ou sedas, ou jóias. Bicicletas passavam loucamente por entre o enxame de pessoas e mulheres caminhavam estalando as solas de madeira dos seus geta, com os bebês amarrados às costas.
Mais significativo que tudo eram os moços e moças andando de mãos dadas num estado de entorpecida felicidade, olhando vitrinas ou apenas perambulando. A gente custa a se acostumar com essa história de mãos dadas no Japão moderno. É algo inteiramente novo. No velho Japão os namorados encontravam-se em segredo, galgavam vulcões e se atiravam nas ardentes crateras para significar a profundeza de seu amor desesperado. Atualmente caminham
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de mãos dadas em Ginza ou fazem piqueniques em lugares famosos onde, antigamente, cometiam suicídio juntos. Mudaram os pais ou foram os jovens que aprenderam a exigir seus direitos? Certamente há alguma mudança nos pais. As quatro principais catástrofes do velho Japão, se podemos confiar num antigo dito japonês, são "terremotos, incêndios, inundações e pais". Terremotos, incêndios e inundações ainda são temíveis, mas os pais?
Houve, certamente, uma mudança nos pais, mas a mudança maior foi nas mães. Nenhuma mãe do velho Japão teria sonhado em permitir que sua filha andasse de mãos dadas com um rapaz, em Ginza, ou em qualquer outro lugar, nem a filha teria sonhado em desobedecer. Mas devo abordar gradativamente e pouco a pouco essa mudança da mulher japonesa. É profunda e esmagadora.
Quanto a Ginza, embora as mercadorias fossem espantosas, extravagantes, clamorosas e às vezes belas, minha diversão era o povo - é a minha diversão, onde quer que eu ande. Graças a ele, escapo de mim mesma. Quando a meia noite chegava e a multidão se dispersava - pois os japoneses vão cedo para a cama, exceto os cavalheiros dos bares - eu voltava aos aposentos do hotel, entrava de novo, trancava a porta e ia para a cama.
Na estranha existência flutuante daqueles dias e noites, fui certa vez ao Teatro Kabuki a convite do ator principal. A troupe tinha voltado de uma temporada de êxito em Nova York, porém eu não chegara a vê-los lá. Parecia-me de algum modo incongruente a presença do Kabuki na mais moderna das cidades, e num ou noutro momento, possivelmente, eu estaria de novo em Tóquio. A peça, naquela noite, era a mesma que haviam apresentado em Nova York - A Cobra Branca. Eu conhecia bem a história, pois é uma antiga narrativa chinesa. A Cobra Branca é uma mulher que assume a forma de serpente para certos fins próprios.
A noite estava clara e as ruas de Tóquio achavam-se
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mais cheias que de costume. Tomei um táxi e chegamos à entrada do teatro, vasto saguão coberto de pinturas, cheio de coisas em exibição e apinhado de gente. Alguém estava à minha espera. O ator declarara que não começaria o show enquanto eu não chegasse e fôssemos fotografados. Fui conduzida aos bastidores, onde êle se encontrava, travestido de mulher - a Cobra Branca. Sua caracterização era perfeita, sinistra e graciosa. Vestia um quimono branco muito justo, sem qualquer traço de côr. A cabeleira era branca e o rosto, pescoço e mãos haviam sido pintados da alvura da neve. Até os lábios eram brancos, embora delineados em vermelho na margem interna. Os olhos eram olhos de serpente, negros e brilhantes, dardejando de um lado para o outro. Ao ver-me, estendeu a mão e eu a segurei, sentindo-a fria e lisa, na minha palma. Quis largá-la porque estava fria e lisa como pele de cobra, mas ela agarrou-se à minha, e assim, mão na mão, fomos fotografados. Êle falou alguns minutos, quase sem mover os lábios rígidos, e então o gongo soou marcando a hora de entrar em cena.
Ocupei meu lugar na platéia e ali passei algumas horas de prazer puro. O palco era enorme, maior do que todos que já vi, e o espetáculo soberbo. Em meio a massas de côr e esplendor, a Cobra Branca se movia com sinuosa serenidade, ao mesmo tempo terrífica e simbólica, e nunca vi a peça representada mais poderosa e belamente. Em minha opinião, não há arte no mundo que ultrapasse o Kabuki em poder imaginativo. Mas talvez seja porque as histórias dessas peças foram parte de minha infância que eu tornava a viver agora. De qualquer modo, a platéia japonesa estava absorta como só pode estar neste teatro. Terminada a peça, saímos num silêncio de sonho.
O imenso palco, o enorme elenco, o esplendor dos trajes e a extraordinária iluminação, lembraram-me, por contraste, o confinado e estreito palco da Broadway. Ano a ano o teatro foi sendo comprimido e diminuído simplesmente em virtude do custo de montagem de uma peça. Uma grande arte está sendo estrangulada pelos artesãos e mecânicos sindicalizados. Autores, diretores e atores ofereceram
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reduzir seus rendimentos, mas não houve a mesma disposição por parte dos operários sindicalizados. Demorei-me, depois da peça, no teatro Kabuki, naquela noite, e conversei sobre o assunto com amigos japoneses, ante uma xícara de chá. Eles haviam visitado Nova York e sustentavam que o teatro japonês nunca poderia sofrer semelhante desastre.
- Nós amamos demais a arte, disseram eles. - Compreendemos os benefícios espirituais e emocionais da arte. Até os nossos operários compreendem isso e jamais destruiriam uma parte tão importante de nossa vida apenas por cobiça pessoal.
Espero que tenham razão.
Passava muito da meia-noite quando cheguei aos aposentos do hotel. Já pronta para deitar-me, fui até à janela, como é meu costume, antes de dormir, seja qual fôr a parte do mundo em que esteja, e olhei a cidade quieta. Uma Lua velha e torta pendia do céu e sua luz pálida brilhava sobre os tetos. Nesse momento, senti de novo o profundo estremecimento interno de um terremoto. Começou como um tremor, depois cresceu num movimento ondulante. Um quadro caiu, livros escorregaram da escrivaninha, um vaso de flores espatifou-se no chão. Agarrei-me ao peitoril da janela e senti o coração bater-me nas costelas. Iria ser perigoso? Não... a terra aquietou-se de novo. Somente a Lua continuava pendendo lá em cima, imutável e fixa. Esperei mais alguns minutos, depois coloquei os livros no lugar e enchi o vaso com água, para as flores.
Custei muito a adormecer. O tremor de terra havia, de algum modo, abalado as raízes de meu mundo temporário. Reconheço a minha necessidade de raízes. Suponho que é o resultado de minha infância na China. Por mais que eu amasse aquele país, e devo sempre amá-lo muito, tinha sempre consciência, ao mesmo tempo, do tumulto em que vivíamos, da possibilidade de que, a qualquer momento, as iras e insatisfações existentes havia séculos contra os povos ocidentais poderiam inflamar-se em crises nas quais nós, inocentes que éramos individualmente, perdêssemos nossas vidas, como de fato quase as perdemos e por mais
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de uma vez. Possivelmente essa lembrança infantil de sempre presente incerteza, sobre a qual eu não tinha mais controle que uma folha na tempestade, sempre me perseguira - pelo menos até êle aparecer. Agora que êle se fora, a velha consciência subterrânea do perigo tornava a voltar.
Êle não se ressentia de tais sombras negras. Resolutamente jovial, naturalmente alegre, nunca suspeitara nem esperara a catástrofe. Ao ser compelido pelo fato, tinha o estranho hábito de decidir quando o enfrentaria. O método era simples mas absoluto. Relacionava todas as piores possibilidades e as escrevia em sua letra clara e firme. Então apanhava na escrivaninha o grande relógio de ouro de seu pai e decidia o dia e a hora em que atacaria o problema total. Era sempre o último momento possível. Até chegar esse momento, comportava-se com o seu encanto usual. Sempre encontrou a solução, ou pelo menos uma saída, e esta nunca era por qualquer dos trinta e seis caminhos chineses. Êle jamais correu.
Acabei por depender muito do seu talento para tratar com o improvável, para solver o insolúvel e conseguir o impossível - e isto sempre sem a ajuda de amigos. Tinha amigos incontáveis, de alta e baixa posição, alguns entre os homens mais ricos do mundo, outros pobres. Os ricos não o ajudaram nas duas crises financeiras de sua vida. Venceu suas crises sozinho e triunfantemente. Os pobres pediam-lhe dinheiro emprestado, sem sentirem vergonha. Para indignação minha, distribuía de igual modo a ricos e pobres, mantendo uma sorridente indiferença.
- Não têm intenção de me fazer mal, dizia êle.
Odiei o terremoto. Despertara-me velhos temores e os velhos temores recordaram-me seu inabalável bom humor, seu alegre pessimismo, seus lampejos de impaciência, seu afetuoso cinismo para com a humanidade, acima de tudo sua jovial aceitação da vida como a encontrava, nada disso existia mais. A velha incerteza estava de novo comigo, e para sempre.
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O mais moderno teatro, em contraste com o Kabuki, foi para mim um choque violento. Aconteceu da seguinte maneira. Procuramos um dia o gerente de produção com uma lista de nossos personagens experimentais. Entramos em seu gabinete, precedidos de uma bonita moça, e o encontramos, naquela manhã, com ar de homem de negócios revestido de dignidade. O homem mundano e jovial havia desaparecido totalmente. Demorou-se durante o tempo adequado para mostrar quão ocupado se encontrava e talvez quão importante era - ficamos sabendo que estava ocupado e era importante e nos sentamos para esperar. Chegou o chá mas o gerente de produção ainda estava ocupado. Reuniu-se a nós, finalmente, e lhe entregamos nossa lista de atores. Indicou imediatamente dois nomes duvidosos. Parecia que não sabia falar absolutamente inglês, naquela manhã. A bonita intérprete disse que êle estava apenas sugerindo, não dirigindo - isto com um olhar amargo ao americano - mas deveríamos fazer uma escolha melhor dos dois homens principais. Concordamos prontamente mas lhe recordamos que o homem que mais queríamos não nos fora liberado pela sua firma. Ouvindo isso, levantou-se, deu alguns passos, coçou a cabeça, grunhiu alto várias vezes e falou em três telefones ao mesmo tempo. Nada aconteceu além de não... não... não.... dos três interlocutores. Êle prendeu uma moça bonita a um quarto telefone, sentou-se atrás de seu bureau, torceu os cabelos com ambas as mãos e tornou a grunhir. Bateu então na cabeça, com os punhos cerrados, e voltou-se para nós, radiante. Tivera uma idéia. A exibição final dos cantores e músicos japoneses de rock-and-roll estava se realizando naquele mesmo instante em seu próprio teatro de rock-and-roll. Êle nos acompanharia até lá, poderíamos ver os melhores dançarinos de rock-and-roll e poderíamos então fazer a nossa escolha. Ordenaria a todos os escolhidos por nós que fossem nossos atores. Eles o ouviriam.
- Sou um grande produtor, disse em voz alta, e agora em inglês.
Concordamos àlacremente e êle se atirou para a frente,
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um behemoth (x) porém cordial, e nós o seguimos, sendo empacotados em automóveis e entregues no teatro. Era um lugar enorme e quando fui conduzida à poltrona de um camarote, o último e único assento vago no vasto teatro, reservado naturalmente para o próprio gerente de produção, fiquei atordoada com o que vi. Ali estavam reunidos todos os adolescentes do Japão, ou assim parecia; certamente milhares e milhares deles.
Sentei-me e me pus a olhar o palco e a platéia, simultaneamente. Era, de fato, um Japão novo para mim, rockand-roll, rock-and-roll, moças dançarinas e rapazes cantores, canções americanas, canções ocidentais em inglês, e apenas umas poucas canções japonesas. As moças gritavam exatamente como fazem em meu próprio país, e pareciam igualmente tolas. Que aflição é essa, dos jovens, propagando-se de nação a nação? Milhares e milhares de jovens japoneses - oh, muito jovens - os executantes têm menos de vinte anos ou pouco mais, e as mocinhas em saia e blusa saíam correndo da platéia para pendurarem coroas de flores de papel e fitas de papel em seus rapazes favoritos. Só havia uma cantora, bonita moça de dezoito anos, com uma excelente voz.
- Que pensam os pais? perguntei ao gerente de produção.
- Ficam desgostosos, tornou êle, mas que podem fazer? De fato - que podem eles fazer, aqui ou em qualquer outro lugar?
Nosso objetivo, porém, era encontrar atores. Depois do grande final, descemos a uma sala pequena e quente e entrevistamos três ou quatro rapazes que nos pareceram com possibilidades, observados no palco, através de binóculos de ópera. Estávamos esperançosos, pois cantavam tão bem em inglês que achamos que poderiam falar de igual maneira. Mas não era esse o caso. A única frase que pronunciavam bem era a mesma.
- Não sei falar inglês.
Nota de rodapé:
1 - Um animal, provavelmente o hipopótamo, descrito em Jó, XL. 15-24; daí, um animal grande e forte (N. do T.).
Fim da nota de rodapé.
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E cada um deles havia estudado seis anos de inglês na escola. Encontramos, então, uma brilhante exceção - um rapaz de fisionomia gentil, conhecido como o Eddie Fisher do Japão. Falava ótimo inglês. A explicação consistia em que sua mãe tinha sangue inglês e êle aprendera a falar em casa. Pedimos-lhe que nos procurasse na manhã seguinte, para o ouvirmos.
Enquanto se desenrolavam esses fatos, eu observava uma transformação no gerente de produção. Estava amaciando. Viu o nosso problema dos "seis anos de inglês" e ficou preocupado. Convidou-nos a jantar com êle e perguntou-nos se queríamos ir ao lugar onde sempre ia, ou se tínhamos alguma preferência. Aceitamos, gratamente surpreendidos, dizendo que o acompanharíamos ao seu lugar favorito. Entramos nos automóveis, abrindo caminho de novo através de oceanos de jovens à espera que seus cantores preferidos saíssem pela porta do palco, e não tardamos a parar diante de um restaurante que não se assemelhava a nenhum dos que eu conhecera. Não era, obviamente, lugar para turistas, nem talvez para senhoras. Mas eu não me intimidei. O gerente de produção, evidentemente, reinava aqui como em toda parte. Era um lugar fascinante, pequeno mas limpo, dessa limpeza que só os japoneses conhecem, as rudes mesas de madeira e os balcões, feitos de tábuas de seis polegadas de espessura, não pintadas mas esfregadas até ficarem da alvura da neve. O gerente de produção deu ordens à maneira de quem está habituado a ser sempre obedecido, e o foi. Juntaram os extremos de duas tábuas e êle nos indicou nossos lugares. O meu ficava em frente ao dele e assim tive plena oportunidade de observar esse homem extraordinário.
Pois agora aparecia um homem novo. Anunciou, mesmo, que não era o mesmo homem que tínhamos visto até então e começou a explicar a sua pessoa e a sua vida. Não era casado, disse-nos, e insistiu em afirmar que era o homem mais solitário de Tóquio. Morava com sua mãe, maravilhosa mulher a quem adorava, mas êle já tinha cinqüenta anos de idade. Não os aparentava. Sua aparência era a de uns castigados trinta e nove. Entrementes, continuou
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a falar-nos de sua desgraçada vida. Passava o dia inteiro andando de uma conferência para outra, preparando o filme semanal que estava obrigado a produzir. Acordava cedo todas as manhãs, apesar de dormir tarde, e lia durante a fria madrugada.
- Que lê o senhor? perguntei com interesse. Talvez lesse poesia ou Zen Budismo. Respondeu por entre os dentes cerrados:
- Só leio argumentos de cinema... centenas... centenas... centenas que jorram em cima de mim todos os dias... Fico sempre deprimido, depois. Portanto venho para cá, todas as noites, beber.
Quanto mais bebia, melhor era o inglês que falava. Nunca era perfeito, mas expressivo e... explosivo. Não parava também de falar japonês. Mantinha, na verdade, um extraordinário monólogo bilíngüe com os japoneses que nos cercavam. Pilheriava e quando viu que eu não estava bebendo sakè ordenou que enchessem de água um jarro de vinho e anunciou aos brados que eu estava bebendo ultrajantemente, e estourou em gargalhadas com o seu próprio espírito. Subitamente se pôs a derramar conselhos sobre o diretor americano. Um diretor, disse êle, não pode ser um artista puro... puro não, puro não! Devia ter o mal dentro de si - por fora amável, por dentro mau, mau, pois de outro modo as pessoas não teriam medo dele. O americano ouvia sem responder, sorrindo. De repente o gerente de produção bateu na própria cabeça com os punhos cerrados. Tivera de novo uma idéia, uma idéia gloriosa!
- Bebendo, sou uma fonte de idéias, exclamou, fascinado consigo mesmo.
Sua idéia relacionava-se com o genro de minha amiga, um jovem ator promissor. A esposa dele era proficiente em inglês e podia ser útil a todos. Se os incluíssemos em nosso elenco, todos os ressentimentos desapareceriam e todos os corações ficariam aliviados. Recordou-nos que tivera de sofrer muito quando fora obrigado a dizer ao grande diretor japonês que êle não trabalharia no filme
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conosco. Tivera de assumir plena responsabilidade por um triste equívoco e curvar-se ao nível mais baixo - e isto doía. Mas poderia perdoar-nos se...
Respondemos que gostaríamos, naturalmente, de ver os dois jovens, mas que devíamos considerar o filme antes dos sentimentos. Mas êle já estava ao telefone e, depois de uma explosão em japonês, voltou para junto de nós, todo alegria e satisfação.
- Agora, exclamou, devemos ser todos felizes. Bar ou casa de geishas?
Pedimos que decidisse por nós.
- Bar, naturalmente, declarou. - Geisha é muito antiquado. No bar nos descontraímos. Bar de alta classe. Vou lá todas as noites.
Tomamos de novo táxis e disparamos através das ruas congestionadas. Os choferes de táxi japoneses são descritos em agitado detalhe por todos os turistas americanos e nada necessito acrescentar a essas descrições exceto para confirmar que tudo quanto dizem é verdade. São zelosamente bondosos, emocionalmente interessados em cada passageiro e inteiramente descuidados quanto à vida, membros, ou propriedades de quem quer que seja, inclusive de si mesmos.
Tive a impressão, ao entrarmos, de que se tratava de um certo número de pequenas salas confortáveis agrupadas ao redor de um bar. O gerente de produção começou a se descontrair imediatamente, afrouxando o cinto e tirando a gravata. O bar era pequeno e apinhado de homens de negócios e moças bonitas, das quais havia muitas. Fui apresentada a uma esbelta e elegante mulher ainda jovem, que o gerente de produção declarou ser a melhor madame de Tóquio. Ela parecia competente e modesta e, ao ouvir meu nome, caiu num estado de emoção, declarando que havia lido todos os meus livros. Eu era seu ídolo, et cetera. Fiquei comovida mas ligeiramente embaraçada. Apresentou-me suas moças, depois que nos sentamos, muito apertados, num banco circular junto do próprio bar; essas moças sentaram-se perto de mim, uma a uma, e através de uma delas, que falava inglês, familiarizei-me um tanto
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com suas vidas. Quase todas eram casadas e tinham filhos. Não, não gostavam do trabalho no bar, disseram, mas seus maridos não tinham bons empregos, ou estavam desempregados, e aquele era um trabalho fácil. Detectei, ou imaginei ver, uma certa tristeza paciente em seus olhos e me lembrei de uma visita que fiz certa vez em Paris, há muitos anos, ao Folies Bergère. Então, como agora, eu era humanamente curiosa e, depois do show, deixei minha escolta e fui aos bastidores conhecer as coristas. Elas também não eram moças. Eram mulheres, casadas em sua maioria, com problemas domésticos de maridos desertores, maridos doentes, pobreza, enfermidade - e a maior parte delas não era jovem.
- Por que esse trabalho? perguntei.
- À noite as crianças estão dormindo e em segurança.
- É melhor do que deixá-las sozinhas o dia inteiro, e assim por diante, o mesmo em Paris como em Tóquio...
Nossa conversa foi agora interrompida pelo gerente de produção.
- Minha melhor amiga, anunciou êle, apresentandonos uma moça pequenina.
Seu rosto era um camafeu de tristeza. Eu já a havia notado. Estivera sentada ao lado de um vaidoso homem de negócios, servindo-lhe bebida e petiscos. Em certo momento, com o meu maldito olho observador de novelista, vi-o passar o braço ao redor dela, com demasiada força, e a moça se encolheu com uma expressão no olhar que, por piedade, não descreverei. Sentou-se ao meu lado, agora, sem falar, apenas olhando-me com tão profunda serenidade que senti a comunicação estabelecer-se entre nós. Disto, não falarei.
A noite se esgotou. Levantei-me para partir. A madame, a quem as moças chamam "mama", organizou uma fila para que me fizessem a reverência de despedida. Ela própria acompanhou-me até o automóvel, inclinando-se na janela para falar-me, num inglês bastante bom. Tinha educação e não era mulher superficial ou tola. Olhava-me com afeto e calor, apertou-me as mãos, deu-me um grande buquê e foi com relutância que me deixou partir.
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Sozinha no automóvel, meditei nesse fenômeno da vida japonesa, a vida noturna de homens separados de suas famílias. É uma força destrutiva da vida familiar, um resquício de feudalismo. A mulher japonesa moderna odeia bares e as casas de geishas que afastam seus maridos do lar. As japonesas antiquadas aceitavam-nas como aceitavam tudo quanto os homens faziam, porém as japonesas modernas anseiam por um autêntico companheirismo com os homens que amam. Mas os homens continuam a se afastar de casa, "e eu aprendi", como disse um dia, com fria calma, minha pequena secretária japonesa, "a não importuná-lo mais. Aprendi, até, a como recebê-lo com um sorriso feliz às duas horas da madrugada".
Sim, ela podia fazê-lo. As mulheres japonesas sempre foram mais fortes do que os homens, pois, como as chinesas, jamais tiveram favores. Ela nunca ouvira falar de cavalaria ou de cavaleiros em armaduras douradas. Nascera fêmea - isto é, uma pessoa inferior, uma carregadora de pesos, uma escrava obediente. Em séculos de tal existência, enquanto se obrigava ao devotamento e ao dever, ela acumulava uma força interior que não pode ser ultrapassada. Dava nascimento ao homem, zelava-o e cuidava dele, abrigava-o e o defendia, sem fazer perguntas. Por que perguntaria ela, se não havia ninguém para responder? Era traída apenas por uma pessoa, uma outra espécie de mulher, a mulher que não se casava, a mulher que não era dobrada pelas preocupações domésticas e as crianças, a mulher instruída, treinada e enfeitada para divertir os homens. Era traída pela geisha. Tudo quanto um homem não podia encontrar em sua esposa sem instrução e gasta pelo trabalho, mas da qual necessitava para seu conforto e bem-estar caseiro, êle procurava e encontrava na geisha, cujo único dever consistia em agradá-lo, atrair seu olhar, seduzi-lo com música, conquistar-lhe o espírito com a sua instrução. As melhores geishas são mulheres inteligentes e brilhantes. Têm a sua correspondente na Hetera grega, contra a qual as mulheres gregas também gemiam suas acusações.
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Perguntei, um dia, a uma bela geisha:
- Não se preocupa com a esposa desse homem que você capturou?
Ela ergueu os ombros.
- São os homens que criam a procura. Nós somos apenas a mercadoria.
Resposta cínica. A sua equivalente moderna, a moça de bar, é-lhe inferior sob todos os aspectos. Uma geisha bem treinada pode ser, à sua maneira, uma mulher de distinção e graça. Qualquer mulher, parece, pode ser moça de bar. Se seu rosto é mais ou menos bonito, tem sorte, mas se não é muito bonito, tem outras mercadorias a vender. Sua influência sobre os homens ainda é menos afortunada que a da geisha. É menos graciosa, menos distinta, sob todos os aspectos. Às vezes não é mais do que uma moleca de rua e quase sempre é uma prostituta. As geishas podem ser prostitutas, mas não são obrigadas a sê-lo. Podem manter seu domínio sobre os homens por outras maneiras, se assim o desejam. A moça de bar tem poucos recursos além do sexo, e atualmente o sexo é mais cru do que nunca, no Japão. O naturalismo sempre existiu, mas o sexo, per se, é usado pelas mulheres, agora, como isca e como arma, e pelos homens como uma fuga, comparável ao alcoolismo. Fuga de quê? Do desespero e de uma sensação de inferioridade pessoal, suponho eu. De que mais procura o macho humano escapar?
Mas pondo de lado as geishas e as moças de bar, algo aconteceu às jovens mulheres japonesas, e eu imagino que esse algo são os homens americanos. Muitas mulheres japonesas foram cortejadas por americanos e os dois, homem e mulher, surpreenderam-se ao encontrar o que vinham procurando há muito tempo - a mulher, um homem que aprecia a gentileza, a deferência e uma atitude naturalista em relação ao sexo; o homem, uma mulher que aprendeu a respeitá-lo, a servi-lo, a crer que seu interesse sexual por ela é todo o amor que deve esperar de qualquer homem. Embora eu me lembre de um certo jovem americano que se queixava de que a japonesa era uma esposa
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maravilhosa ao chegar pela primeira vez à América, mas, dois anos depois, tendo aprendido os novos costumes femininos, não era melhor do que uma americana!
Seja como fôr, as jovens, no Japão, não aprenderam os costumes americanos. Libertaram-se, isto é tudo. Movimentam-se por toda parte com delicioso desembaraço e serenidade, ao mesmo tempo ousada e feminina, atrevida e tímida, uma encantadora combinação de aparente inocência e verdadeira sofisticação, a qual, se não permanente, é muito atraente enquanto dura. E talvez, ao ir viver na América, ela descubra que o americano é em geral encantador mas um perpétuo menino, e o que lhe agradava e surpreendia no começo torna-se insípido ao verificar que o menino não cresce nunca. Conheço um certo americano que trouxe uma bela esposa japonesa para casa e a apresentou com entusiasmo aos seus acolhedores pais. Um ano mais tarde, a mesma jovem mulher anunciou que desejava divorciar-se porque se apaixonara por outro homem. O homem, como se revelou, era o pai dele, que também se havia apaixonado por ela. O homem mais velho queria uma esposa que o adorasse, e a japonesa fora treinada para adorar, e a jovem mulher queria, como disse, "um homem mais sábio".
Talvez não haja regras para esse eterno jogo entre homem e mulher. O homem japonês, tanto quanto posso ver, não mudou muito. Fico a imaginar se gostará de sua mulher quando descobrir o que ela realmente é. Até agora, não o sabe.
Naquela noite, quando fui para o meu hotel, cheia de tais pensamentos, estava chovendo, as ruas achavam-se inundadas e a chuva caindo torrencialmente encerrou-me numa caixa de som. Sou claustrófoba e fugi pelos corredores silenciosos da vasta parte nova do hotel, onde ficavam meus aposentos, para o velho edifício desenhado por Frank Lloyd Wright. Fora uma de suas primeiras manifestações e decerto em nada se assemelha ao seu trabalho
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posterior, o Museu Guggenheim, em Nova York, ou o Dallas Little Theater. Tampouco se assemelha a nenhum outro, no Japão. É um curioso monte de cantos e beirais enxadrezados e superdecoração. Sua glória consiste em que atravessou, firme, todos os terremotos e isto porque o arquiteto descobrira que Tóquio está construída sobre um trêmulo mar de lama. Nesse mar mergulhou êle milhares de troncos de pinheiros do Oregon e sobre essa base construiu a sua monstruosidade. O prédio realmente flutua e pode, por conseguinte, ajustar-se a qualquer coisa.
A flutuação conduz ao ajustamento? Refleti sobre a questão enquanto procurava um dos muitos cantos no velho e escuro vestíbulo. Se assim era, então eu devia estar me ajustando. Parecia-me que eu não estava vivendo, nem mesmo existindo, apenas flutuando sobre a superfície do tempo. Levantar-me pela manhã e trabalhar, caminhar sozinha à noite, dormir rapidamente e acordar de madrugada, não pensar no passado ou no futuro, mas apenas no dia de hoje, nesta noite, meditar sobre homens e mulheres, recordava-me quão rara fora a minha experiência matrimonial. Não sou mulher fácil de casar, ou assim o imagino. Sou dividida no fundo do meu ser, tendo uma parte de mulher, a outra parte de artista que nenhuma relação tem com mulher. Como artista sou capaz de crueldade, pois os artistas são e devem ser implacáveis.
- Pode suportar ver-se retratado numa novela? perguntei-lhe certa vez. - Não como você é, naturalmente - sempre crio meus próprios personagens, mas roubo tudo quanto necessito - a maneira pela qual pediu que me casasse com você, por exemplo, a qual estou certa de que nunca foi usada antes por outro homem. Posso precisar dela para outros homens e mulheres.
Êle sorriu. Tinha um sorriso maravilhoso, que começava em seus profundos olhos azuis - olhos desperdiçados num homem, pois eram pura violeta, com longos cílios negros, mas eu gostava deles e talvez por isso não fossem desperdiçados.
- Leve-a, respondeu. - É sua de qualquer maneira. Leve tudo quanto tenho para dar...
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Seu atributo único era compreender um artista. Duvido que compreendesse as mulheres ou se preocupasse em compreendê-las. Tinha uma baixa opinião das mulheres em geral. Não desgostava delas, mas sua atitude era impessoal e um tanto condescendente. Quando me queixava de que era injusto, retrucava tranqüilamente:
- Não menosprezo as mulheres, absolutamente. Pelo contrário, acho que podem ser muito mais do que são. Elas se avaliam por muito pouco quando se contentam em ser cozinheiras, lavadeiras e amas-sêcas, se podem ser qualquer coisa que desejem ser e fazerem o que lhes aprouver. Ninguém as impede, a não ser elas próprias.
Desde que êle mesmo tinha uma atitude de cavalheiro inglês com relação aos problemas domésticos - era inglês por ambos os lados e sua mãe nascera na Inglaterra - eu sentia que essas observações estavam impregnadas de injustiça, mas não sou o tipo que sustenta uma discussão e certamente êle não era puritano, no que se refere a mulheres. Começou cedo sua vida, graduando-se em Harvard com honras, quando contava apenas vinte anos, e casou-se imediatamente. As mulheres achavam-no atraente, e êle sabia disso, com olhos azuis, cabelos negros e pele morena. Suas maneiras eram encantadoras, às vezes enganosas quando estava falando com uma mulher. Contudo, tinha seu próprio e invencível código. Não chamaria, por exemplo, pelo primeiro nome uma mulher que trabalhasse para êle, nem a convidaria para almoçar, ou para marcar um encontro fora das horas do expediente. Sentia que qualquer exigência de natureza pessoal feita a uma empregada era uso desleal do poder do patrão. Lembro-me de que teve certa vez uma secretária que era desusadamente jovem e bonita. Quando algum amigo ou visitante a negócios fazia a esse respeito observações impertinentes e invejosas, êle se mostrava frio como só um inglês pode mostrar-se.
- Miss Kirke é uma secretária eficiente, do contrário eu não a empregaria, era a sua invariável resposta.
O resultado de semelhante atitude era, naturalmente, a total devoção de suas secretárias. Mesmo hoje, que Miss
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Kirbe está casada e tem filhos crescidos, ela e outras como ela dizem-me em carinhosa recordação:
- Era tão divertido trabalhar para êle... e podia-se ter confiança. Nunca insinuava propostas. A gente podia agir com inteira naturalidade.
Humilde tributo, mas quão significativo! E no entanto, às vezes, podia fazer-me furiosamente feliz. Gostava de dizer, por exemplo, que eu era diferente de qualquer outra mulher que conhecera porque tinha um cérebro de homem num corpo de mulher. Eu explodia em imprecações, invariavelmente, diante dessa noção. Por que dizer de uma mulher, exclamava eu, que tinha cérebro de homem só porque era dotada de uma boa mente? Só aos homens é que a Natureza concedera o supremo dom? Havia alguma lei de hereditariedade que negasse cérebros às mulheres? Êle ria, simulava procurar um abrigo, e depois dizia gravemente que eu tinha razão.
- Peço desculpas, concluía com os olhos cintilando, mas naturalmente nunca se desculpava por aquilo em que acreditava.
Para mim, mais precioso que diamantes, era o fato de que apreciava meu espírito. Gostava da conversação profunda sobre temas abstrusos. Apreciava as réplicas argutas. E muito acima dos diamantes e da própria vida situava-se o fato de que compreendia que eu tinha de ficar só quando estava escrevendo. Nunca perguntava o que estava eu escrevendo ou a respeito de que era o livro. Quando uma novela se achava concluída, datilografada e pronta para ser entregue ao editor, eu própria a levava a êle e a apresentava, à maneira chinesa, com ambas as mãos. Seu estúdio ficava ao lado do meu, mas separado por duas portas. O seu ficava no prédio velho e o curto corredor fora outrora o quarto de defumar, onde os camponeses, durante uma centena de anos, defumaram presunto e toicinho. As duas portas ficavam sempre fechadas quando eu estava escrevendo e êle nunca as abria, mas levantava-se quando eu entrava com o trabalho terminado e o recebia gravemente.
- Este é um grande dia, costumava sempre dizer.
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Era sempre um grande dia. Punha tudo de lado e sentava-se para a tarefa de que mais gostava, dizia-me êle, acima de todas - a leitura de um original escrito por mim. Revisava cuidadosamente mas parcamente. Não me lembro de que tivesse feito jamais uma correção que envolvesse algo mais sério do que uma preposição mal colocada ou uma confusão de tempo. A língua chinesa tem poucas preposições e nunca aprendi totalmente a manejar essas refratárias e precisas palavrinhas inglesas. Quanto à confusão de tempo, era algo de que eu sempre tinha de ser salva. Não tenho noção do tempo. Não quero dizer que seja impontual. Pelo contrário, aprendi bem cedo a ser exageradamente pontual - digo exageradamente porque sou pontual demais e perco meu tempo esperando por outras pessoas. Meus pais eram duas criaturas separadamente ocupadas, que viviam de acordo com programas separados aos quais eu, como criança, tinha de me ajustar. Vivo segundo um programa, também, como uma pessoa separadamente ocupada, e o mesmo fazia êle. Não - quero dizer que eu não dava atenção ao ano, ao mês ou ao dia. Não me lembro de aniversários ou de qualquer data importante que todos acham que as mulheres não esquecem. Uma secretária tinha de recordar-me tudo isso e avisar-me com antecedência. Êle, por sua vez, tinha o desconcertante hábito de lembrar-se perfeitamente do tempo. Em qualquer manhã à mesa do café, ou a qualquer momento do dia, podia consultar o relógio e perguntar:
- Lembra-se do que estávamos fazendo há dez... vinte (etc.) anos, neste momento?
A princípio, querendo ser perfeita, eu tentava lembrar. Mais tarde, resignei-me. Passei a afirmar ousadamente que não lembrava. Então êle me dizia:
- Foi a primeira vez que a beijei... ou lhe propus casamento... ou você disse que não me queria... ou a peguei de surpresa em Yokohama, etc, etc."
A caçada de fato fora longa. Havíamos passado da primeira juventude quando nos encontramos pela primeira vez, cada qual resignado, pensávamos nós, ao seu casamento insatisfatório, e cada qual conhecido em seu próprio
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ramo. Eu o recusara firmemente em Nova York, Estocolmo, Londres, Paris e Veneza, e depois navegara, pela rota da índia, para casa, em Nanking, China.
Seis meses depois cabografou-me para que o fosse encontrar em Xangai a fim de ouvir o "não" de novo e desta vez para sempre. Depois disso fui sozinha a Pequim para alguns meses de pesquisa necessária à conclusão de minha tradução de Shui Hu Chuan, ou Todos os Homens São Irmãos, e estava lá havia menos de uma semana quando êle apareceu inesperadamente em meio a uma tempestade de pó proveniente do deserto de Gobi. Separamo-nos de novo, eternamente, indo êle para a Mandchúria e eu de novo para casa, a fim de preparar as malas para uma visita de verão aos Estados Unidos, com o objetivo de ver se tudo estava bem com a minha filha retardada. Levei comigo minha filha menor e minha secretária, achando-me com relação a êle, num estado de espírito resignado. Havia tomado, pensava eu, uma decisão prudente. Não queria tumulto em minha vida.
Era uma bela manhã de julho, lembro-me, e estávamos atracando no pier de Yokohama. Eu resolvera não desembarcar, pois estivera várias vezes na cidade. Em vez disso, ficaria trabalhando na tradução e a secretária levaria minha filhinha ao parque. Mal me havia preparado para a minha solitária tarefa quando ouvi a voz que era, agora, a que eu melhor conhecia em todo o mundo.
- Apareci de novo... continuarei aparecendo, você sabe... em todas as partes do mundo. Você não pode escapar de mim.
Lá estava êle, magro, moreno, elegante, fumando seu velho cachimbo de torga... A despeito disso, eu dizia "não" todos os dias a bordo do navio e novamente em Vancouver e durante todo o inverno em Nova York. Mas a primavera, naquela cidade mágica, foi a minha perdição e nos casamos a onze de junho e vivemos felizes para sempre, juntos como homem e mulher, separadamente em nosso trabalho profissional.
Êle era um grande editor - vi-o pegar manuscritos confusos e transformá-los num todo unificado - mas teria
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sido um fino crítico. Julgaria o escritor dizendo quão bem realizara o objetivo que estabelecera para si mesmo, e não estontearia o leitor com irrelevantes observações de sua cabeça. E era um gênio em sua especialidade de arrancar livros de escritores que não sabiam que eram escritores. Um exemplo notável foi um curto manuscrito que lhe chegou um dia de uma americana do Sião. Era, então, editor e proprietário da revista Ásia. Lembro-me do artigo. Intitulava-se "O Inglês do Rei", e o rei era o Rei do Sião. A autora fizera uma pequena e excelente pesquisa sobre o inglês vernáculo do rei, tímido e delicioso. Mas êle viu mais do que o pequeno e leve ensaio. Viu um personagem e um homem e convidou a americana a escrever mais sobre aquele rei. Chegaram alguns artigos e, afinal, graças à sua persuasão e encorajamento, um manuscrito em tamanho de livro. Pôs-se a trabalhar para criar um livro com o material que tinha ali e pedindo o que faltava. O resultado foi um livro fascinante, que intitulou Ana e o Rei de Sião, o qual se tornou mais tarde um fabuloso musical na Broadway, da autoria de Rodgers e Hammerstein.
A lista é expressiva. Foi êle que trouxe aos americanos os grandes livros de Jawaharlal Nehru, e, através de sua companhia editora, aos leitores de todo o mundo. Foi êle quem discerniu no jovem Sukarno da Indonésia a promessa de um futuro líder asiático e o encorajou a escrever seu primeiro livro, tornando-se conhecido, assim, no Ocidente. Foi êle quem publicou o primeiro livro de advertência contra o nazismo, nos Estados Unidos, uma profecia tão adiantada à época, embora não à realidade, que encontrou poucos leitores. E foi êle, também, que editou todos os melhores livros de Lin Yutang e estabeleceu, pela primeira vez, sua reputação como escritor. Possuía o dom da compreensão universal, um espírito eclético, um julgamento sintetizador, vivificado pela fé no talento, onde quer que o encontrasse.
Orgulhava-se de ser editor e considerava-o uma profissão nobre. Seu impulso nunca era fazer dinheiro. Se um livro era suficientemente bom para merecer publicação, êle o aceitava com entusiasmo, pouco importando que concordasse
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ou não com o conteúdo. Suas próprias opiniões sempre se situavam com firmeza do lado do liberal inteligente. Numa família fortemente republicana, êle votava sempre com os democratas, com ocasionais variações em favor dos socialistas, como voto de protesto. Editava, contudo, autores conservadores, que às vezes o eram no sentido mais estreito. Acreditava que também eles tinham o direito de ser ouvidos e, se apresentavam bem suas opiniões, dispensava aos seus livros o mesmo cuidado editorial que dava a todos os outros. A escala de autores que êle difundiu vai de Fritz Sternberg a James Burnham.
Um editor - acreditava êle - tinha o alto privilégio de descobrir o talento e o dever de ajudá-lo a se desenvolver até produzir seus melhores frutos, apresentando-o então ao mundo. Era um empresário de escritores e livros, mas um homem de tão terna compreensão das necessidades, delicadeza e timidez das pessoas de talento, que as guiava sem parecer fazê-lo, extraindo-lhe idéias mediante perguntas engenhosas e honesto louvor e apreciação. Das numerosas cartas que recebi depois de sua morte, muitas eram de escritores dizendo que, até êle ajudá-los a se compreenderem, haviam sido incapazes de escrever.
Que direi quanto a mim? Foi êle quem viu algo em meu primeiro livrinho, uma tentativa rejeitada por todos os outros editores até que êle percebeu naquelas páginas a possibilidade de que o autor pudesse um dia escrever um livro melhor. As opiniões de sua equipe estavam divididas a respeito do livro e coube a êle, como presidente da companhia, desempatar com seu voto. Votou a favor e foi por meio dessa estreita oportunidade que minha vida começou.
Ai de mim, não é bom sonhar demasiado. O vestíbulo do velho Imperial Hotel, em Tóquio, excetuando um porteiro sonolento, estava deserto. A chuva parara e uma lua nova balançava acima das nuvens quando saí para respirar o ar frio da noite. Lua nova? Estava em Tóquio havia três semanas. Durante dois meses estivera sozinha.
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A música sempre constituíra uma parte importante de minha vida, como fundo e meio para o pensamento e o sentimento. Para o filme eu queria música japonesa, não a tolice sintética que passa por oriental em nossas tentativas americanas, mas uma criação original no Japão e por japonês. Devia ser, ademais, japonês moderno, pois a transformação que se operou em todos os aspectos da vida nipônica em coisa alguma é mais evidente do que na música. A música é o barômetro - e o termômetro, nesse particular - de toda cultura, a arte mais reveladora do temperamento de um povo, do caráter e da reação à influência exterior. Alegrei-me, portanto, quando Toshiro Miyazumi disse que gostaria de escrever a música para A Grande Onda. Eu conhecia sua obra, mas nunca nos havíamos encontrado e foi um prazer especial vê-lo, certa manhã, esperando por mim na sala de estar do hotel. Levantou-se, apresentou-se e, ao mesmo tempo, ofereceu-me um presente - o disco de sua sinfonia, Nirvana.
- Sou o seu compositor, disse modestamente. Sentamo-nos e examinei francamente sua fisionomia. Era um rosto encantador, forte e gentil, sereno, poético e sem malícia. Um rosto inocente, diria eu, com diferença de que não era um rosto infantil, embora ostentasse a franca expressão de uma criança. Reconheci essa qualidade, pois só é encontrada em pessoas altamente dotadas, sábias como serpentes e gentis como pombas, segundo diz o velho livro.
- Sinto-me feliz, respondi-lhe.
Toshiro Miyazumi é denominado o Leonard Bernstein do Japão e realmente se assemelha a Bernstein no brilho de seu talento. Mas, ao contrário de Bernstein, dedica-se à composição de música. É verdade que já regeu, mas prefere compor.
- Fale-me de si, por favor, disse eu.
Parecia que nada havia a dizer. Mordeu o lábio, tentou recordar.
- Nasceu em 1929, lembrei-lhe.
Um lampejo de gratidão iluminou seu rosto encantador e sereno.
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- Ah, sim, nasci mas comecei minha vida aos seis anos de idade, compondo e tocando piano.
- E depois? Refletiu e afinal falou:
- Ingressei na Universidade de Tóquio. Eu estava a ponto de perguntar:
- E no intervalo?
Mas decidi calar-me. Esperaria e o deixaria apresentar sua vida assim como a via. Nada houve, portanto, entre os seis anos e a Universidade de Tóquio.
Após meditar, continuou:
- Quando tinha vinte e um anos, recebi uma bolsa de um ano para o Conservatório de Paris. Havia um homem, Tony Oben, que me ensinava. Muito conservador, nada interessado no novo método de composição... Eu era, portanto, mau aluno. Porque lá as técnicas eram formais, os ritmos um tanto antiquados e a harmonia tradicional... A criação é diferente. A energia é emoção. Não posso, porque uso o método dos doze tons. Pesquisei e fui para os compositores austríacos - Arnold Schoenberg, Anton Webern, que usam método novo para expressar a composição contemporânea.
- Mas você também usa temas clássicos, recordei-lhe. - Você é versátil...
Aceitou a observação com um sorriso.
- É muito difícil sustentar a minha vida só com a música clássica, embora eu a ame. Voltei ao Japão e durante vários anos compus diversas espécies de música - orquestral, de câmara, e assim por diante, bem como para filmes musicais. Suponho que a música de rádio e televisão é o meu trabalho, mas quero sempre ser um artista...
Houve uma longa pausa, abrangendo anos.
- Cinco anos depois voltei à Europa e freqüentei os festivais musicais da Suécia, da Alemanha e de outros lugares, onde minha música era executada.
- Como se sentiu ouvindo sua música executada através do mundo? inquiri.
Lançou-me um olhar eloqüente, mas era demasiado modesto para falar.
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- Voltei ao Japão e constituí um grupo de música contemporânea, tendo ganho alguns prêmios. Isto é tudo.
Tudo é muita coisa para um jovem de trinta e um anos, mas aparentemente sua história estava contada. Não se mostrava absolutamente tímido, e permaneceu descontraído, esperando.
- E esse disco? perguntei, indicando o presente.
- Foi tocado em Tóquio, première no segundo dia de abril de 1958, após quase um ano de trabalho.
- Interessa-se pela religião? O título sugere budismo.
- O sino do templo budista japonês, tornou êle. - É uma mistura típica de sons. Gosto muito dele pois sou interessado em música concreta e electrônica, isto é, em criar estruturas musicais de energia sonora, como sugere Edward Varese. Por outras palavras - o método de composição consiste em dar vida musical à energia inerente ao próprio som. Assim, introduzo timbres novos em minhas composições - por exemplo: tons mesclados. Combinações de várias dezenas de tons puros tornaram-se dominantes em minhas obras.
A face tranqüila ficara subitamente animada e bela.
- Sinto-me atraído pelas vozes dos sacerdotes budistas cantando sutras, sem melodia, naturalmente, mas com a habitual entonação e ritmo, e quando quaisquer sacerdotes tomam parte juntos, o grupo produz uma espécie de ruído musical através da mistura de vozes de diferentes alturas. Acrescentei, a uma orquestra completa, instrumentos de sopro de madeira e instrumentos de sopro de metal, colocados em cantos diferentes da sala, para obter um efeito direcional por meio do cruzamento de sons por cima das cabeças do auditório...
Nenhum silêncio agora - as palavras jorravam dele numa torrente de pensamento criador!
- O Nirvana, estado ideal do ser para o budista, é simbolizado pelo repicar do sino. Assim, talvez eu seja religioso. Compus esta sinfonia com a idéia de criar meu próprio Nirvana musical. Não é música religiosa, suponho eu, no sentido mais puro da palavra. É uma espécie de cantata budista. Espero que goste.
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Sorriu de súbito:
- Falo demais.
Quebrei o silêncio seguinte.
- Que fará depois do nosso filme?
- Vou a Nova York, escrever música para o Ballet da Cidade de Nova York. Será executada na próxima estação.
- Inteiramente diferente de uma cantata budista?
- Gosto de variar, mas antes de ir a Nova York terminarei a música para A Grande Onda. O filme é fora do comum, também, e completamente diferente. Tenho a música na cabeça claramente, realmente romântica, não do romantismo wagneriano, ao mesmo tempo forte e delicada, com a filosofia oriental contemporânea. Como é que escreve assim? A emoção é oriental.
Foi a minha vez de não saber o que dizer. De que modo pode dizer uma escritora como escreve? Mas eu esquecera sua pergunta.
- Quero uma canção nela, disse eu. - Quero uma canção que seja como o nascer do Sol, jovem, fresca e cheia de esperança. Os jovens de sua terra começando de novo a vida em sua própria época, neste momento nunca vivido antes. Quero esta canção.
Inclinou-se para mim, todo apelo e rogo:
- Se eu compuser a música, escreverá a letra?
- Não posso, respondi.
Nada mais havia a dizer. Apertamo-nos as mãos e êle partiu. E a canção foi escrita por outra pessoa.
Parou no escritório no dia seguinte, ao meio-dia, e olhou para dentro. Sempre estava acontecendo alguma coisa ali, e aquele momento não constituiu exceção. Centenas de trajes estavam amontoados no chão e várias pessoas - homens, rapazes e uma ou duas moças - as estavam manipulando com um corrido acompanhamento em japonês de várias alturas de tom. Procuravam uma peça de vestuário pedida pelo modelo para diversas partes do filme. O modelo era um microscópico ser humano, de idade vaga, não jovem certamente. Tinha cerca de um metro e meio e eu ficaria surpreendida se pesasse quarenta
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quilos. Era pele e osso, e se o esqueleto era de criança o rosto fascinava. Enrugado, vivaz, cheio de graça e malícia, era a face de um velho fauno. O topo da cabeça era calvo, mas circundado de cabelos que saíam retos do crânio, como se o velho fauno estivesse sob os efeitos de um choque elétrico. Estava, sem dúvida, carregado de alguma espécie de eletricidade, pois dava ordens sem cessar, enquanto experimentava uma roupa de pescador feita para um homem quatro vezes maior que êle. Não obstante, era um bom modelo. Apertou as calças no peito, torceu o cinto, ajeitou o casaco japonês e tornou-se um pescador. Todos riram e eu me sentei para observar.
Conhecia todos os personagens de A Grande Onda, como parecia, e serviu de modelo para todos. Quando encarnava uma mulher, dava-nos as costas. Eu reconhecia cada personagem, até mesmo a menina Setsu. Como podia um velho posar de tal maneira que sugeria uma garota jovial, até mesmo de costas, é algo que não posso explicar. Desejei, pela milionésima vez, entender japonês, pois os presentes riam convulsivamente de tudo que o velho fauno dizia. De quando em quando se mostrava insatisfeito e atirava para longe um traje, ou rejeitava o que lhe ofereciam e se punha a remexer entre a confusão de roupas amontoadas com toda a feroz intensidade de um macaco procurando pulgas.
Nesse momento alguém teve uma inspiração.
- Êle é o que estamos procurando... um magnífico criado para o Velho Cavalheiro. Será que fala inglês?
O velho fauno sorriu com todos os dentes, nenhum deles em bom estado, e sacudiu a cabeça com referência ao inglês.
Aos outros replicou que pensaria no assunto e nos falaria amanhã. No dia seguinte, o velho fauno, experimentando mais trajes e dançando sobre suas pernas magras, iluminou-se quando entrei na sala. Uma torrente de palavras japonesas jorrou dele, as quais, traduzidas, significavam que integraria o elenco, mas apenas se lhe prometêssemos não cortar seus cabelos. Disse que não trabalharia conosco se lhe cortássemos os cabelos.
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Olhei o círculo de arame negro eletrificado cercando o crânio calvo e ossudo.
- Diga-lhe, tornei, que eu nunca pensaria em cortar esses cabelos. Prometo que não os cortaremos.
Todos nós olhamos gravemente aqueles valiosos cabelos.
- Ai! - exclamou o fauno jovial com um riso que atravessou a sala. Súbito o sorriso desapareceu. Tagarelice japonesa jorrou de onde estivera o sorriso.
A paciente intérprete explicou:
- Êle pergunta se tem de falar inglês. Se fôr assim, não pode.
- Terá de dizer apenas duas linhas e nós lhe ensinaremos todos os dias, foi a nossa promessa.
Mais palavras japonesas e a intérprete informou:
- Diz êle que precisa de um bom professor. Tem de falar inglês com perfeição.
- Terá um bom professor, prometemos.
Verificaríamos mais tarde que nenhuma aula conseguiria prevalecer sobre a sua invencível pronúncia japonesa. Reduzimos suas linhas a duas palavras essenciais: yes e no. São as que diz no filme, impressivamente e com orgulho. Esperara a vida inteira para tornar-se ator, dizia êle, mas o mais perto que conseguira chegar fora trabalhar com os trajes. Nunca esquecerei sua expressão beatífica quando soube que lhe daríamos o papel. No que lhe dizia respeito, era um astro. Dirigiu-nos um largo sorriso e o fauno se tornou novamente macaco, remexendo por entre as roupas, mas agora procurava febrilmente seu próprio traje.
Naquela noite, pela primeira vez desde que êle partira, senti um alívio, ligeiro embora, da pesada opressão de... como a denominarei? Choque, desolação, solitude, seja qual fôr o seu componente, havia lançado sobre mim um peso do qual não podia escapar. Não perambulei pelas ruas naquela noite. Em vez disso decidi por uma massagem japonesa, jantar solitário em meu quarto, uma comprida
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carta às crianças em casa e um livro. Este é um programa bastante comum, mas eu ainda não o havia cumprido depois de ter ficado só. Mas o riso o tinha possibilitado agora. Rio com facilidade, pois o mundo está cheio de pessoas e incidentes engraçados, porém não havia rido com freqüência nos últimos meses e nunca o fizera com o autoesquecimento que de algum modo o velho fauno me inspirara naquela tarde. Constitui talento peculiar do artista penetrar no ser de outra pessoa e isto é particularmente verdadeiro quanto ao novelista. Discutimos freqüentemente o assunto, êle e eu, e sempre me perdoava quando, temporariamente, eu me achava absorvida por outro que não êle. Esta é uma estranha absorção e não sei como descrevê-la a não ser comparando-a ao foco de total interesse essencial próprio do cientista teórico. Esse cientista também é, por temperamento, um artista, e nenhum de nós pode escapar ao que é.
Mas eu não havia sido capaz de me deixar absorver por ninguém, desde que êle morrera, até àquela tarde em que, durante uma hora, o velho hábito retornou. Senti-me estimulada e quase esperançosa. Fiquei pelo menos aliviada, embora, brevemente, do miasma de tristeza em meio ao qual andara durante tantas semanas. Ri de todo o coração e me senti curada por uma hora. Posso informar que cumpri meu programa para a noite e fui deitar-me a uma hora razoável pela primeira vez em todas aquelas semanas. O fato marcava um começo.
As mergulhador as de haliotes (x) - já falei delas? Penso que não, mas devo falar, pois formavam um pequeno grupo compacto e único em nosso elenco inteiramente japonês. Os moluscos haliotes são uma iguaria da cozinha japonesa, mas difíceis de encontrar pois se agarram às rochas com um poderoso músculo e vivem nas profundezas, onde o mar é escuro e a água gelada. Os pescadores japoneses recusam-se prudentemente a mergulhar para apanhá-los e transferem a tarefa às mulheres jovens, mais capazes de suportar o frio e o perigo.
Nota de rodapé:
(1) - Molusco gasterópode da familia dos Haliotideos. (N. do T.).
Fim da nota de rodapé.
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Os homens conduzem os barcos aos leitos de moluscos e esperam pacientemente enquanto as mulheres mergulham no mar, vestindo apenas shorts e cintos nos quais enfiam as compridas e pesadas facas de ferro necessárias para arrancar os mariscos das rochas.
Para espanto meu, seu traje, tão natural para eles e tão adequado, tornou-se assunto de preocupação e mesmo de controvérsia para nossos produtores americanos. Parecia que as platéias americanas não tolerariam a visão dos peitos nus das mulheres mergulhadoras. Na Europa o espetáculo seria inteiramente aceitável, até mesmo agradável, mas a decência tem padrões absolutos nos Estados Unidos seio-conscientes.
- Como? inquiri eu. - Uma mulher é uma mulher e não pode, propriamente, ser qualquer outra coisa.
- Porta-seios, retrucou lacônicamente o delegado americano. Abrandou um pouco ao ver o meu espanto. - Faremos duas filmagens delas, uma com e uma sem.
E foi o que fizemos. Eu me diverti ao ver quão embaraçadas ficaram as mulheres ao serem compelidas a vestir soutiens côr de rosa sobre seus redondos seios morenos. Sentiram-se realmente nuas, como Eva no jardim, sem dúvida, quando lhe disseram que usasse uma folha como veste.
Uma satisfação peculiar decorrente da transposição de minha história de um meio a outro, da página impressa para o filme, era que os personagens se tornavam vivos, em carne e sangue. Um dia encontramos Setsu e nunca esquecerei o momento de puro prazer angelical em que, olhando para uma jovem mulher, eu a reconheci. Era uma jovem estrela de sua própria companhia, informou-nos o gerente de produção. Para mim o mais importante era o seu adorável rostinho e seus grandes olhos líquidos castanho-claros. Tão pequena de estatura que era, como me contou, membro do Transistor Club, cujos sócios deviam ter todos menos de um metro e meio. Essa pequena-transístor,
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todavia, era ainda menor. Ao ficar junto de nosso crescido Toru, com um metro e oitenta, no filme, era exatamente correto quando êle olhava para baixo, a fim de vê-la, ria e dizia:
- Gosto de você porque é tão pequena e engraçada.
Nosso elenco, afinal, estava completo. Todos sabiam falar inglês ou podiam aprender as poucas palavras que tinham de proferir - exceto a mãe de Toru. Ela era simplesmente demasiado tímida para tentar dizer uma palavra em inglês. Mas tinha uma fisionomia tão suave, além de ser atriz muito conhecida no Japão, que cortamos suas linhas e deixamo-la representar em vez de falar. Entrementes, haviam-se passado três semanas. Todos os contratos estavam assinados. Era um ótimo elenco, sendo o astro, Sessue Hayakawa, mais conhecido no mundo ocidental. Todos os outros eram astros no Japão, exceto Haruko já crescido, uma nova atriz especialmente escolhida para o papel da feroz mergulhadora de haliotes, que se apaixonou por Toru e lutou por êle contra a gentil Setsu.
Quando, finalmente, estávamos prontos para deixar Tóquio, o elenco reunido, o câmara e a equipe esperando, o Velho Cavalheiro convidou-nos para uma festa numa casa de geishas, e para lá fomos uma noite, após nos haver chamado para levar-nos em seu próprio carro. A essa altura eu já me tinha habituado a noites passadas em hospedarias tranqüilas, com amigos japoneses. Uma boa hospedaria, no Japão, nunca fica situada ao lado de uma rodovia. A pessoa tem de saltar do carro ou do ônibus e caminhar pelo menos cem metros, em geral mais, por um caminho musgoso, até um lugar isolado, onde embaixo de árvores, se possível, estendem-se tetos baixos sobre salas abertas para jardins e pequenas piscinas. A tais lugares, tão freqüentemente quanto a minha disposição de aceitar, eu fora convidada por amigos, professores universitários, escritores, teatrólogos, literatos e artistas, grupos de mulheres de talento.
Essas noites decorriam em repousante conversação, comparações de costumes, lembranças de paz e de guerra e
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novamente de paz. Eu apreciava além de qualquer descrição a nova liberdade com a qual podíamos falar. Parecia que, durante os anos em que eu estivera ausente do Japão, fora derrubada alguma barreira, não da minha parte mas da parte deles. Só posso atribuir o fato, pelo menos parcialmente, à experiência que tiveram com os americanos no decurso dos anos de Ocupação e nos posteriores. Houve incompreensões, mas a compreensão prevaleceu.
A noite na casa de geishas não se assemelhava às tranqüilas noitadas entre amigos congeniais. Paramos num suntuoso restaurante novo e depois entramos numa enorme sala onde a mesa baixa mais comprida que já vi se encontrava cercada de convidados, todos eles, como nos assegurou nosso anfitrião, os mais altamente situados de sua classe. Fomos, assim, apresentados a um idoso príncipe rodeado de geishas, das quais havia inúmeras, em seguida a um ministro do atual gabinete, depois a um jovem gigante de mais de dois metros de altura e noventa centímetros de largura, que era o campeão de luta romana no Japão, e assim por diante. Cada convidado masculino estava cercado de várias geishas, e eu própria recebi duas para atender-me, à direita e à esquerda.
Entre cada prato éramos entretidos pelas danças e canções tradicionais das geishas treinadas. Mas a novidade eram duas jovens mágicas. Das melhores que conheci, e eu tenho visto mágicos em todos os países porque os adoro. Essas moças, em contraste com as geishas, usavam vestidos ocidentais, os braços nus até os ombros. Não havia, portanto, a tolice de esconder coelhos, galinhas e jarros de água nas mangas. Elas simplesmente realizavam truques maravilhosos e não tenho a menor idéia de como o faziam
Depois de umas quatro horas agradáveis, a noite chegou ao fim. Refletindo sobre seus incidentes, uma recordação apega-se como leve penugem ao meu espírito. A esposa do Embaixador Americano me havia descrito, num almoço em minha honra, os vestidos formais que ainda eram exigidos às estrangeiras que compareciam a qualquer cerimônia da corte ou do palácio do Imperador. Os vestidos,
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dissera-me ela, deviam ser compridos, de gola alta e mangas longas. Naquele dia, mais tarde, perguntei a uma amiga japonesa de espírito prosaico, o motivo pelo qual as mulheres estrangeiras deviam usar golas altas. Respondeu pronta e exatamente:
- É porque, ao se curvarem, o Imperador não deve ficar embaraçado vendo os seus colos nus.
Nossa última noite em Tóquio. Terminada a festa das geishas sentei-me junto à janela, no escuro, antes de dormir, e contemplei a cidade brilhante, uma massa de edifícios reluzentes, no centro da qual está o elevado e antigo muro cercando o palácio imperial. Sim, há um fosso. Na divisão do velho e do novo, que é o Japão de hoje, lembrei-me da visita de cortesia que fizera naquela manhã ao presidente de outra grande companhia cinematográfica japonesa. Fora bastante bondoso em ceder-nos um dos seus jovens astros para fazer o papel do nosso Toru crescido.
À sua maneira, esse executivo também era notável. É um homem pequeno, magro, saudável e cheio de energia. Olhar agudo e gestos vivos. Expressei minha gratidão e êle disse que queria que o filme fosse um sucesso. Nesse momento observei no alto da parede a miniatura de um templo budista. É um ardente budista, como eu sabia, e conversamos alguns minutos sobre a grande e antiga religião. Lembro-me de que meu erudito pai escrevera certa vez uma longa monografia sobre o tema do budismo como fonte de algumas crenças cristãs. Havia mais de trinta semelhanças desse tipo e falei delas ao distinto budista japonês. Ficou profundamente impressionado e disse que meu pai estava absolutamente certo - há muito de comum entre as duas religiões, e isto não por acidente - estava convencido - mas por experiência histórica partilhada.
No dia seguinte, o último, obedecemos ao costume japonês de oferecer uma festa ao elenco e à equipe antes de iniciarmos a grande aventura. A grande sala que alugamos no hotel estava apinhada. Todos os nossos atores ali se encontravam, nosso cameraman - que sem dúvida os deuses nos haviam mandado - o artista da maquiagem,
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o melhor do Japão, como nos disseram, e muitos outros. Os repórteres insistiram em estar presentes e estavam.
Nossos atôres-crianças traziam suas melhores roupas de festas. A pequena Setsu, o pequeno Toru, o pequeno Yukio, e os seus equivalentes grandes. Todo o nosso elenco, na verdade, fazia-me inchar de orgulho. Eram elegantes, enquadravam-se em seus papéis, e estavam entusiasmados. Nossos co-produtores sentiam-se contentes também, até mesmo o gerente de produção. Êle ficou até o fim da festa, fêz um discurso em japonês que foi sem dúvida excelente, pois houve aplausos estrondosos. Nosso astro, Sessue Hayakawa, também falou em japonês, os repórteres tomaram notas, as câmaras relampaguearam diversas vezes, e a festa terminou. Havia comida e bebida em quantidade e em pouco tempo todos ficaram conhecendo todos.
Foi uma festa adorável. Demoramo-nos a partir, despedindo-nos e assegurando que breve tornaríamos a nos encontrar para trabalharmos juntos em A Grande Onda. Amanhã... amanhã... e tomara que todos os amanhãs brilhem tanto quanto aquele que nos esperava, disse para mim mesma, naquela noite.
Mais uma vez não fui perambular sozinha pelas ruas. Ao invés disso, abri a janela e enviei ao espaço minha mensagem secreta, com amor. Onde quer que está, êle ouviu, ou assim sonhei, pois um conforto novo desceu sobre meu coração e me trouxe o primeiro prenúncio de paz. Era a sua bênção.
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Chegamos à deliciosa cidade de Obama após uma viagem de sete horas em avião, trem e automóvel. Era meianoite quando atingimos nosso hotel, e as camas, feitas à maneira japonesa, sobre esteiras de tatami no chão, pareciam e eram confortáveis. Era um hotel autenticamente japonês - alimentação, encanamento e tudo o mais, um grande hotel, confortável em seu gênero, ao ponto de ter algum luxo.
Eu estava de novo numa cama japonesa. Um colchão grosso posto sobre as esteiras do chão, um colchão macio, lençóis, travesseiros e colcha revestida de seda, tudo imaculadamente limpo, proporcionavam a combinação exata de duro e macio para o mais repousante sono. Há, penso eu, uma certa segurança em dormir no chão, talvez porque não haja nada de onde se possa cair. A pessoa de sono irrequieto pode sacudir braços e pernas e até mesmo rolar de um lado para o outro, e ficará sempre no mesmo nível. É a segurança que a criatura humana sempre sente quando se encontra sobre a terra estável, um contato com a planície básica. Os bebês sabem disso por instinto e dormem mais sadiamente, portanto, quando estão deitados sobre seus estômagos. Então, se acordam, ou apenas sonham, sentem as mãos e os pés tocarem a solidez em vez de agarrarem o ar. Por mais estreita que seja a cama, parece espaçosa quando preparada sobre o chão. E quão sensato, também, o uso do aposento. Durante o dia o quarto de dormir transforma-se numa agradável sala de estar, depois de guardar em armários a roupa de cama. Sábio uso do espaço num país pequeno e superpovoado.
Dormi bem mas acordei cedo, ansiosa por ver os cenários escolhidos para a filmagem. Havíamos chegado tarde e eu não sabia como era a paisagem vista da janela da pequena varanda para a qual o meu quarto abria. Voltava-se
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para o sul, dando para uma baía curva, cercada de verdes montanhas. A rua ficava entre o hotel e o mar, e em baixo das minhas janelas havia uma grande piscina de fumegante água quente - calor natural, pois Obama é uma famosa estação de águas, com fontes naturais quentes.
Tão logo me mexi, o shoji coberto de papel recuou e uma agradável criadinha japonesa numa alegre yukata, ou quimono de algodão, entrou, ajoelhou-se, curvou-se e começou a tagarelar em japonês enquanto desfazia a cama. Em poucos minutos meu quarto de dormir estava transformado em sala de estar, uma mesa baixa e polida no centro, almofadas para sentar, um espaldar para recostar. O nicho de tokonoma continha um gracioso vaso de flores frescas e um rolo de paisagem por um bom artista.
- O desjejum não demora, disse-me a criada por meio de gestos.
Fiz um aceno e desci um renque de degraus até o meu banheiro particular e tomei um banho japonês. A banheira estava cheia de água quente natural, muito refrescante, estimulante sem cansar. O desjejum era um ôvo, alguma fruta, peixe salgado e arroz. O banho mineral dera-me fome. Depois do desjejum partimos num automóvel... Faço aqui uma pausa para dizer que os carros japoneses são tão extraordinários quanto seus motoristas. São adaptados a uma paisagem abrupta e a estradas perigosas. O Japão tem muito boas estradas, muitas mais do que me lembro de ter visto nas visitas anteriores, mas esses carros rodam com o mesmo espírito em estradas ásperas e estreitas ou no cimento e no asfalto. A maioria das estradas é estreita e não tem espaço para uma ultrapassagem confortável. Quando dois carros se encontram frente a frente em semelhante estrada, ambos param. Os motoristas se avaliam mutuamente. Mais cedo ou mais tarde um deles se convence de que é o mais fraco e recua prudentemente até encontrar um canto onde possa esperar que o outro passe. Um motorista de ônibus ou caminhão não perde tempo nessa avaliação. Espera simplesmente que o outro carro saia do caminho, com o ar de quem está fazendo um favor em não empurrá-lo penhasco abaixo. Parece haver
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sempre um penhasco na margem de cada estrada do Japão e muito freqüentemente penhascos pendentes de ambos os lados, sem parapeito ou qualquer outra proteção. A razão, suponho eu, é que, passando quase todas as estradas no alto do penhasco sobre o mar, não adianta sonhar em amuradas. As pessoas devem aprender a cuidar de si próprias. O mesmo princípio é verdadeiro para os que dirigem através de cidades, aldeias e hordas de ciclistas. O resultado é que cada um cuida de si e ensina a seus filhos a fazerem o mesmo. Os acidentes são extraordinariamente poucos, pelo menos em proporção ao risco!
...Rodamos durante uma hora através de uma região fantàsticamente bela e todas as minhas recordações reviveram, pois em certa ocasião, numa outra encarnação, eu vivera alguns meses em Kyushu. Como me lembro bem dessas montanhas de picos pontiagudos, sujeitas a súbitas neblinas de chuva, dessas praias recortadas, das rochas corroídas pelas águas, das aldeias escondidas em enseadas, das casas de lavradores com seus inclinados tetos de sapé com um metro de espessura, e seus campos terraçados, trepando passo a passo pelas encostas até quase o topo das montanhas! Nada mudara. Afastei da memória a cidade de Nagasaki destruída pela bomba, que ficava bem perto, porque os japoneses também a haviam esquecido, construindo uma cidade nova.
Fui vê-la mais tarde e encontrei a combinação simbólica do velho-e-nôvo do Japão dos dias atuais - novo, o monumento erguido em memória dos que morreram quando foi lançada a segunda bomba atômica; velho, a casa construída num monte onde Puccini morou enquanto escrevia Madame Butterfly. Essa casa é hoje um lugar de turismo, não muito conservada, nem mesmo muito limpa. A história foi contada muitas vezes e agora está fora de moda, pois os jovens soldados ocidentais casam-se com suas namoradas japonesas e, se o não fazem, Miki toma conta dos bebês.
Em matéria de velho e de novo, nada foi mais surpreendentemente novo do que o convite, quase casual, num dia quente de verão, para ir cumprimentar o Imperador e a
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Imperatriz na cidade de Fukuoka, um encontro impossível nos dias antigos, quando esses dois personagens eram tão remotos, para não dizer tão improváveis, quanto os deuses. Naquele dia em Fukuoka, porém, postamo-nos em fila na estação ferroviária para dar as boas-vindas, com reverências, às augustas pessoas. Desceram do trem trajando roupas ocidentais, com a expressão bondosa e um tanto cansada. O Imperador não teria dado um homem de negócios muito jovial e sua esposa uma companheira maternal e ansiosa, cujo chapéu e vestido comprido constituíam um problema. Fiquei a imaginar se recordavam os dias em que, remotos e frios viviam no Olimpo.
Não posso negar que meu coração bateu mais rápido ao nos aproximarmos da aldeia de Kitsu, onde vivia Toru, nosso garoto pescador. Há duas centenas de anos Kitsu fora totalmente varrida por uma ressaca. Era fácil ver como acontecera, pois essa pequena aldeia de pescadores jaz como uma sela entre duas montanhas, a menor terraçada até o topo e além. Devo ter pensado em Kitsu quando escrevi A Grande Onda, tão perfeitamente se adaptava essa aldeia à história. Pois após a ressaca o povo a reconstruíra no mesmo lugar, esse obstinado e bravo povo japonês, e no entanto mais cedo ou mais tarde a aldeia seria de novo apanhada por uma onda monstruosa, e é tão vulnerável hoje quanto o era há dois séculos, as casas com a mesma forma e estrutura, dispostas exatamente do mesmo modo, na praia mas sem janelas para o mar.
Eu reconheci cada passo, enquanto subíamos para a aldeia pelo caminho estreito e sinuoso. Aqui estavam as casas, aqui as ruas estreitas que não tinham mais de um metro de largura, certamente, e pelas quais nenhum veículo podia passar, e dificilmente dois seres humanos. Descendo os gastos degraus de pedra, rumamos para o mar, seguidos por vinte e nove crianças, exatamente, pois as contei quando paramos na casa de Toru. Lá estava, também, a casa assim como a vira em meu livro, e até
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mesmo o Avô estava ali, face vivaz e alegre, espreitando-nos por cima do muro. Seus dias de pescador haviam passado e agora eram os filhos e netos que continuavam a labuta. Sua esposa morrera, contou-nos, e a nora e a neta é que cuidavam da casa, secavam e salgavam o peixe e traziam água do poço perto da praia.
Percorremos a aldeia com profundo contentamento porque era tão exatamente certa, as redes de pescar secando na praia, as casas aninhadas entre as colinas terraçadas, um pequeno e velho cemitério numa delas. Havia, mesmo, um renque de degraus de pedra que podíamos usar como entrada da casa do Velho Cavalheiro, na montanha acima.
O tempo tinha passado e era hora do almoço. Comemos num restaurante famoso pelas suas enguias. Galgamos dois lances de escada até uma grande sala arejada, onde comemos enguia com arroz e nos congratulamos pelo cenário do filme.
Eu receava ver nosso próximo cenário e confessei meu temor. Tratava-se da mansão do Velho Cavalheiro, erudito e proprietário de terras. Encontraríamos, morando em semelhante casa, uma família disposta a nos emprestá-la? Devia ser espaçosa, bela e elegante, situada em jardins adoráveis. Perdi pessoalmente a esperança e me distraí pensando em vários substitutos enquanto rodávamos por uma estrada rural.
Mas o impossível tornou-se possível, como tão freqüentemente aconteceu no Japão. No momento em que vi a casa, da estrada, compreendi que era a mansão do Velho Cavalheiro, pouco importando quem morasse nela. Atravessei o portão e me encontrei num adorável jardim. Não havia flores, pois os jardins japoneses raramente têm flores. Um caminho feito de largas pedras irregulares conduzia à entrada principal, ladeado de sempre-vivas, moitas baixas, samambaias e orquídeas sem flor, constituindo a paisagem. À porta achava-se uma dama. Trazia um elegante quimono escuro e curvou-se profundamente. Curvamo-nos em resposta, na medida da nossa melhor capacidade americana, e perguntei se podíamos ver o resto do jardim. Havia uma piscina de tamanho médio, mas desenhada
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de modo a apresentar os aspectos de um lago. Havia uma ponte conduzindo a um caminho estreito e um pavilhão entre árvores. Olhei tudo do ponto de vista do Velho Cavalheiro. Era exatamente a espécie de jardim que êle teria, e eu quase esperava vê-lo aguardando-nos dentro de casa.
Mas êle não apareceu. Havia apenas a dama elegante que nos convidou a entrar na casa e nos conduziu de um aposento a outro, todos espaçosos e decorados com gosto. A casa da fazenda tinha trezentos anos de idade, mas esta era a casa do proprietário, construída apenas há cerca de quarenta anos, para substituir a antiga. O Velho Cavalheiro, quem quer que seja, era homem rico e de gosto. Os móveis, os objetos de arte nos nichos de tokonoma, eram todos de sua escolha. Duas das salas tinham tapetes postos sobre o tatami, com mesas e cadeiras de estilo ocidental, mas nós ignoramos os aspectos modernos do Velho Cavalheiro e nos apegamos ao seu lado japonês.
Agora a dama nos apresentou à sua filha, jovem mulher que não tinha a metade da beleza da mãe, trajando um vestido ocidental que não lhe ficava bem. Mas também era bondosa e me senti comovida e com o coração aquecido quando, após haver feito meu discurso de louvor, ouvi ambas declararem que consideravam uma honra a utilização de sua casa em meu filme, e a dama disse que gostaria, algum dia, de realizar para mim a cerimônia do chá. Aceitei, agradecendo, e então ela nos serviu chá em taças tão pequenas que, antes de prová-lo, eu sabia que o chá era precioso. Era, de fato, o chá perfeito, raramente oferecido a ocidentais. Eu não suportava a idéia de fazê-lo desaparecer, bebendo-o, mas era tão delicioso, tão superior a qualquer chá que habitualmente tomo, que não pude senão sorvê-lo enquanto o elogiava. Ela se sensibilizou com os meus louvores e trouxe o pequeno e valioso bule, derramando em minha taça mais goles do elixir. Era naturalmente um chá raro, feito com as primeiras folhas tenras da planta, na primavera. Trinta gramas dele custam um dólar, o que é muito dinheiro japonês. Estou certa de
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que não o serve com freqüência, mesmo a hóspedes nipônicos. Tê-lo oferecido a nós significava que nos dera um presente. Recebi-o como tal.
Enquanto conversávamos, eu em inglês, ela em japonês, através de um intérprete, perguntou se podia gravar a conversa para seu filho, que estava estudando inglês. Respondi naturalmente que sim, e me diverti ao ver, atrás de uma almofada, um moderno gravador que até então se achava escondido!
Despedimo-nos afinal, com muitas reverências, prometendo voltar em breve, prometendo ter o cuidado de nada quebrar na casa e nada estragar no jardim. Mostrou-se muito graciosa e suplicou-me que deixasse o hotel e fosse morar com ela, mas respondi que devia ficar com a companhia, agradecendo-lhe do mesmo modo.
Restava-nos, agora, ver a casa da fazenda e a praia deserta. A praia podia esperar, pois o dia estava escurecendo, mas tínhamos de ver a casa da fazenda. Atravessamos uma aldeia e eu a reconheci, entre os campos e a estrada. A casa ficava entre terraços, ela própria construída num deles, bastante amplo. A estrada passava na sua frente, seis metros acima da plantação de arroz. Um muro de tijolos antigos protegia a construção, mas o largo portão de madeira estava aberto e por êle entramos no mundo da história do meu livro. Sim, esta era a casa, simples porém espaçosa, paredes de madeira, quartos divididos por shoji, um teto de sapé tão antigo que flores e capim cresciam nele. Galinhas, uma cabra, uma pequena horta, algumas moitas ornamentais, umas poucas rochas decorativas, uma ótima cozinha antiga, uma varanda estreita, um pequeno tanque para lavar arroz e vegetais, o próprio lavrador, viúvo jovial com uma filha casada que cuidava dele - era exatamente certo. E, melhor que tudo, a família era cordial e ansiosa por ajudar. Quando viríamos? Amanhã? Bom... bom... a casa era nossa. Sim, tinham eletricidade - e uma bomba na cozinha, fazenda moderna, disse com orgulho o lavrador. E gostaria que os americanos vissem como tratava de tudo. Chá, por favor, antes de partirmos! Era noite quando nos deixou sair e o trabalho
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começou às sete horas do dia seguinte. Cada hora de luz é preciosa quando se faz um filme no local.
As galinhas, como notei ao sair, eram da mais ruidosa variedade. Só as trevas as silenciaram. Seu cacarejar dissonante, suas exclamações de excitação e ultraje quando chegamos no dia seguinte, constituiriam a música de fundo de todas as cenas filmadas na casa da fazenda.
Mas, ai, fomos retardados e pela chuva... chuva... chuva. Quando chegamos ao nosso hotel, naquela noite, a chuva estava caindo. Eu havia temido a chuva, sempre o azar nas filmagens naturais, especialmente no clima do sul do Japão, onde o mar e a montanha são vizinhos íntimos. Se o vento sopra do mar, o céu se torna claro; se da terra, choverá. Disso eu me lembrava, desde os dias há muito passados, e enquanto estava deitada em minha cama japonesa, ouvindo a chuva e esperando o sono, meditei nas estranhas divisões de minha vida.
Como fora incrível, acima de tudo, que durante toda a primeira metade de minha vida, eu ignorasse que êle existia! Quando estive aqui, antes, onde estava êle? E agora que estou aqui de novo, onde está êle agora? Entre essas duas eras situam-se vinte e cinco bons anos de vida em comum, uma gema engastada na eternidade, antes e depois. E a velha pergunta me assaltou de novo, como assalta todo ser humano que viu a morte chegar demasiado perto. Cerrei os dentes contra a inexorabilidade da morte.
Há vida, além?
Lembrei-me da coragem de seu ateísmo. Com que freqüentemente discutimos sobre o futuro no qual um de nós teria de viver só! Pois teria sido bom demais para ser possível que morrêssemos no mesmo momento e atravessássemos de mãos dadas a invencível barreira. Eu sabia, há anos, que caberia a mim ficar, a mim com a herança de ancestrais longevos em ambos os lados de minha família. A questão era se eu me recordaria da possibilidade de vida além, ou a poria de lado e viveria como
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se a eternidade fosse agora - o que é de certo modo, não havendo começo ou fim no infinito de todas as coisas. Que é então a solitude presente na qual estou vivendo? É o fim do que foi ou é o começo de algo que ainda não compreendo?
Sabia êle que eu estava aqui, no Japão? Estava êle adejando ainda sobre a nossa casa, a essência dele, e perceberia eu sua presença se estivesse lá? Deitada em minha cama japonesa, escutando o ruído do mar alto mesclando-se com a chuva no teto de telhas, lutei contra o poderoso anseio de ir à procura dele, onde quer que estivesse. Pois certamente estava procurando por mim, também. Sentíamo-nos inquietos, sempre, quando separados. Mas onde ficam os caminhos?
Lembrei-me de uma noite no Sardi's, em Nova York. Eu estava com um amigo, de Hollywood, e me encontrava pela primeira vez com sua esposa. Enquanto o marido conversava com outros convidados, essa mulher falava comigo um tanto timidamente, agradável senhora do Midwest, nada Hollywood. Mostrara-se tímida a princípio, mas depois, cedendo a algum impulso, baixou a voz para dizer que desejava "conversar de verdade" comigo. Sofrera, segundo parecia, uma estranha evolução pessoal nos últimos meses. Seu pai, do qual era muito íntima, vivera muitos anos com ela, após a morte de sua mãe. Mas êle também morrera recentemente. Preocupava-se a seu respeito, imaginando se ainda estaria em algum lugar e, se assim era, se estava feliz. Tais preocupações a haviam deprimido e tirado a sua alegria.
Uma noite, contou ela, em que o marido se demorara no trabalho e ela ficara sentada sozinha, fazendo crochê, passatempo a que era afeiçoada, pôs-se a pensar no pai, preocupada como de costume. Súbito ouviu-o chamar seu nome, e levantando os olhos viu-o claramente do outro lado da sala.
- Você deve parar de preocupar-se comigo, disse êle em sua costumeira voz prática. - Estou bem, na verdade estou feliz.
- Ficou com medo? perguntei-lhe.
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- Medo de meu pai? Não!
- Mas êle era o mesmo?
- Exatamente o mesmo, tornou ela, acrescentando, em seguida, meio intrigada. - Bem... eu sabia que, embora êle estivesse ali, seu corpo não estava.
- E tornou a vê-lo?
- Sim, respondeu. - Várias vezes, porém não me preocupo mais. Às vezes, quando Jack e eu estamos sentados tranqüilamente em casa, à noite, êle lendo e eu fazendo crochê, sinto que alguém mais está presente e vejo meu pai sorrindo para nós.
- Jack também o vê? inquiri.
- Perguntei-lhe uma vez: "Jack, está vendo papai ali?" Disse que não, que não o via, mas acreditava que eu o estivesse vendo, porque no velho país de onde viera havia gente como eu, que podia ver além das aparências.
Sim, e lembrando, pensei no que minha filha de quatorze anos dissera no dia posterior ao do funeral. Quisera ficar com o quarto dele, depois de vazio, pois está situado junto do meu e ali dormiu plàcidamente na primeira noite, lembro-me, pois eu lhe perguntara se queria mesmo dormir nele, tão cedo.
- Não quero que esvaziem o quarto, disse ela.
Na manhã seguinte falou com inteira naturalidade, durante o café:
- Papai entrou no quarto ontem à noite. Estava com um aspecto maravilhoso... bom de novo e tão alegre! Voltou apenas para ver se tudo estava em ordem.
Contive minha incredulidade.
- Falou com você?
- Não, apenas sorriu.
- E que vestia êle? indaguei.
- Penso que sua jaqueta de fumar, de veludo vermelho.
Mas a jaqueta vermelha, apesar de sua favorita, fora posta de lado há cinco anos, quando deixara de fumar.
Creio? Se acredito é porque estou certa de que algum dia saberemos como somos cientes, as comunicações serão
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claras, as leis científicas nos revelarão os princípios que governam o universo criador. A religião chama a força criadora por um nome, Deus por quem esperamos. En attendant Godot!
Ali, no escuro da noite, junto do mar japonês, supliquei-lhe que me fizesse saber, por algum sinal autêntico, que vivia em alguma parte, apenas para dizer-me que existia. Não fez sinal algum. Contudo o silêncio não é definitivo. Pode ser apenas definição. Êle está lá, eu estou aqui. Ainda não temos o mesmo comprimento de onda. Isto é fé? Não me atrevo a dar-lhe este nome. Sou familiar com a ciência. Há duas escolas sobre a questão. Uma consiste em crer que o impossível é um absoluto a menos e até que se prove que é possível. A outra, em crer que o possível é um absoluto a menos e até que se prove que é impossível. Eu pertenço a esta última escola. Por conseguinte todas as coisas são possíveis até que se prove que são impossíveis - e mesmo o impossível pode ser assim, como agora.
Dessa maneira minha vida continuava a ser vivida em dois planos separados, um durante o dia, o outro durante a noite; um sobre a Terra, o outro em busca de uma habitação que mãos não construíram.
As chuvas pareciam cair interminàvelmente. Jorraram sem cessar durante três dias. As montanhas estavam ocultas pela chuva e o mar rugia contra as pedras. Olhávamos, alarmados, uns para os outros. E se isso continuasse?
- Pensei tê-la ouvido dizer que a estação das chuvas é em junho e nós estamos em setembro, observou-me o americano, reprovadoramente.
Eu própria estava um tanto espantada com o dilúvio e passei a questão ao mître do hôtel japonês, o qual confirmou que junho sempre fora a estação das chuvas.
- Então que é isto? perguntei.
- É só chuva, redargüiu o japonês.
Ninguém pôde negar o fato e assim passamos a assuntos
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mais controvertíveis. Decidimos trabalhar no argumento, planejando o programa de cada dia, caso a chuva viesse a parar algum dia. Planejamos cena por cena e tomada por tomada. Era necessário um trabalho criador e aprendi também o que não sabia antes - que num filme não se conta a história em seqüência cronológica. Filma-se todas as cenas em cada local, independentemente do tempo em que se situam na narrativa. Assim, nos quatro primeiros dias, ficaríamos na casa da fazenda, filmando tudo quanto se passava nela e com a família de quatro pessoas, Pai, Mãe, Yukio e Setsu. Isto me parecia um negócio muito confuso, mas compreendia a sua lógica.
Sentamo-nos ao redor da baixa e comprida mesa japonesa, juntamente com o nosso cameraman, o técnico de som japonês e assistente de direção. Sentamo-nos no chão, naturalmente, e o cameraman teve a imprudência de escolher uma das cabeceiras da mesa baixa. Digo imprudência porque tinha pernas compridas, muito compridas, e não podia esticá-las quando se cansava de sentar-se sobre elas, porque eu já estava cansada e havia esticado as pernas, cruzadas, por baixo da mesa.
Faço aqui uma pausa de um momento para discutir a questão de sentar-se a pessoa sobre as pernas dobradas. Antes de vir ao Japão este ano, após tão prolongada ausência, fiz todos os dias, rigorosamente, o exercício de dobrar as pernas e sentar-me sobre os pés. Não é fácil e no princípio eu só agüentava três minutos, chegando ao máximo de vinte minutos, o que é insuficiente para um jantar japonês, pelo menos do tipo dos que os meus amigos me oferecem. Estava envergonhada, mas foi o máximo que consegui. Qual não foi minha satisfação, por conseguinte, ao descobrir que, durante os anos de minha ausência, os japoneses haviam abandonado o costume de permanecerem sentados sobre as pernas durante muito tempo! Ao invés disso, sentam-se em cadeiras sempre que possível, e as crianças, muitas delas, não se sentam absolutamente sobre suas pernas e até mesmo a minha amiga disse francamente que não agüentava por muito tempo a postura
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japonesa e achava, de qualquer maneira, que não era boa para a circulação. Atribuía o surpreendente aumento de estatura da sua geração de jovens adultos ao fato de não serem obrigados a sentar-se durante horas sobre as pernas dobradas. Talvez seja esta a razão. Notei, certamente, a nova estatura dos japoneses. Sua aparência é melhor e as pernas são mais retas.
Agora deixem-me falar do cameraman. Primeiro devo dizer que era encantador, bondoso, temperamental e, no seu ramo, um artista. Falava pouco inglês mas compreendia muito mais do que pensávamos. Era obviamente devotado ao seu trabalho e queria que soubéssemos que tinha uma devoção especial por A Grande Onda, no que acreditávamos, pois se assim não fosse por que estaria trabalhando conosco? Era famoso e podia facilmente ganhar a mesma coisa num trabalho mais cômodo. Mas eu estava encantada com êle por outros motivos. Era o ser humano de aparência mais espetacular que já vi. Muito alto e muito estreito nos pés, pernas, corpo, braços, mãos, pescoço e especialmente rosto. Tinha um queixo comprido, atirado para baixo e... mas não posso explicar sua anatomia. Não sei como adquiriu essa aparência. Tudo quanto sei é que gostava dele e apreciava o seu aspecto espetacular. Havia tanta coisa naquele seu rosto comprido que eu o olhava e tornava a olhá-lo por cima da mesa. Era um rosto triste, pensei, e depois achei que não era, de modo que continuei olhando para êle. E nossa assistente japonesa formava um completo contraste, jovem mulher muito moderna em blusa e calças compridas, os cabelos penteados em forma de colmeia. Falava línguas estrangeiras e tinha estudado ballet na Europa. Casara-se recentemente com o nosso principal ator jovem, o Toru crescido. Seus contratos cinematográficos impediam-no de estar conosco até o dia vinte e um, e assim aquela era a primeira separação do casal. Os outros membros do elenco brincavam bastante com ela, forçando-a de hora em hora a escrever cartões-postais para o marido, que eles próprios endereçavam, e assim por diante. Ela deixava, com bom humor, que os outros se divertissem. Era uma jovem
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calma, inteligente, eficiente e, incidentalmente, mas de maneira importante, muito apaixonada.
Mas - ai - no próprio dia em que parou de chover e começamos a filmar nossas primeiras cenas na casa da fazenda, nosso cameraman caiu numa plantação de arroz. Não foi um acontecimento tão suave quanto soa, pois ocorreu no fim de um dia de doze horas de trabalho. Eu saíra do local um pouco mais cedo a fim de tratar de um negócio de Tóquio, pelo telefone, e fui chamada ao hospital. Ao chegar, vi o alongado cameraman estendido num banco do vestíbulo, esperando para ser examinado ao raio X. Temíamos o pior, pois êle não caíra apenas na plantação de arroz ao lado da casa, mas a plantação ficava ao pé de um muro de pedra sobre o qual passava a estrada, e caíra não como eu supusera, sobre lama macia e altas espigas de arroz, mas sobre as pedras no fundo da plantação. Sua estrutura podia ser melhor definida, a qualquer momento, como uma coleção de ossos compridos e finos frouxamente ligados por uma enrugada pele morena. Deitado no banco parecia ter dois metros e meio de comprimento.
Declaramos nosso alarma mas êle se recusou a partilhá-lo e foi levado à sala de raio X contra a sua vontade. Em meia hora o médico informou que não havia ossos quebrados, apenas uma contusão. O próprio cameraman saiu com um ar tão alegre quanto possível, com o seu curioso rosto, esperando a nossa admiração, que não lhe negamos. Estava muito vistoso numa yukata preta e branca, limpa, e também permitira ao médico que pusesse seu braço direito numa tipóia, mas só até sair do hospital, pois insistiu em voltar ao trabalho. Rodamos com êle de volta ao hotel e lhe demos numerosas ordens, através da nossa intérprete, dizendo-lhe que teria um criado que carregaria sua cadeira por toda parte, a fim de que se sentasse, juntamente com um leque, um guarda-chuva, bebida gelada e frutas.
O cameraman ouviu tudo isso sem mudar de expressão e acrescentou:
- E cama também.
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Rimos e a velha figura indomável sentou-se ereta no assento dianteiro. Desejamos-lhe boa noite no seu hotel e assim terminou aquele dia.
Aqui devo consultar minhas notas, rabiscadas nas páginas do meu script, e escritas em toda parte e em qualquer lugar, na casa da fazenda, onde quer que a cena estivesse sendo representada.
A primeira nota diz "Pena..."
Pena?
Ah, sim, é a cena em que Toru jaz em longo estupor depois que a ressaca golpeara, e a pequena e travessa Setsu se insinua no quarto e lhe faz cócegas com a pena para acordá-lo. Era uma cena bonita, interrompida pela Mãe que entra com uma cestinha de ovos, seguida pela última aquisição do nosso elenco, um cãozinho muito inteligente. A última aquisição era, na verdade, um pato, mas ainda não havia aparecido no cenário.
Enquanto se filmava essa cena, vi o Pai em outro canto, ensaiando sua grande cena com Yukio. O Pai é um bom lavrador, com o rosto de um moreno honesto. Nosso maquilador, o melhor do Japão - ou já disse isso antes? - passava delicadamente uma esponja no rosto do Pai, enxugando-lhe o suor da concentração. A criada pessoal da Mãe estava fazendo o mesmo com ela, em outro canto. Foi a criada que nos fêz rir. Era tão eficiente, entrando apressada nos últimos momentos, antes que o câmara os chamasse, a fim de corrigir um cabelo levantado na cabeça da Mãe e acrescentar um toque de make-up no canto do olho ou na margem do lábio.
"Terminado o trabalho", dizem minhas notas, "é um espetáculo ver a Mãe, em seu elegante quimono de seda cinzenta, seguindo seu dignificado caminho ao longo da suja estrada, no alto do muro, sobre o campo de arroz. É uma atriz de alguma distinção no Japão. O Pai atuou em Casa de Chá do Luar de Agosto. Toru e Yukio são
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ambos crianças-estrêlas. Estou orgulhosa com a nossa família da Grande Onda".
Aquele foi o dia, lembro-me, em que o carteiro me trouxe uma carta de um amigo japonês de Tóquio, um colega escritor, que se dera ao trabalho de ir à biblioteca pública a fim de colher, em alguns velhos registros de família, dados sobre ressacas. Escrevia-me que, antes de uma ressaca desabar, há um terrível estrondo cavo proveniente do mar. Os japoneses denominam-no o "canhão do oceano". E um dos sinais da aproximação da onda é que secam os poços, ou transbordam, e a água fica barrenta. E os peixes, especialmente os peixes-gato, nadam em direção à terra.
Enquanto eu lia as fascinantes páginas, ouvi o assistente de direção, um homem, anunciar a nova cena.
- Yoi!
- Hoomba
- Starto!
- Backo!
Os atores tomaram seus lugares e o cameraman ficou atento. Veio então a ordem final do diretor.
- Ação!
- Schis-kani ouvia eu dizer repetidas vezes durante as cenas e não sabia o que significava até que um eletricista fêz eco, trovejando num meio-inglês:
- "Silêncio!"
O resultado foi um profundo silêncio. E fiquei espantada com a simplicidade do mecanismo. O microfone era uma coisa amarrada numa bolsa de algodão e pendurada na ponta de um bambu que estava sempre espetando alguém, como minhas próprias costelas podiam testemunhar, porém funcionava bastante bem. Quando ouvi a trilha sonora repetida, surpreendi-me com a sua nitidez. Os efeitos eram obtidos por meios estranhamente simples. A câmara, por exemplo, estava enrolada tão cuidadosamente quanto um bebê numa tempestade de neve no Central Park. Eu não podia perceber a razão, pois o tempo era muito quente e certamente aquela coisa não estava fria. Perguntando,
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vim a saber que os cobertores e colchas eram para abafar o ruído da própria câmara, a fim de que o microfone não o captasse.
Será possível que eu tenha esquecido de contar como a cidade de Obama celebrou nossa chegada? Ah, mas durou pouco tempo. Chegamos sem pompa nem cerimônias, em pequenos carros japoneses, descarregamos as bagagens e nos instalamos discretamente no hotel. Além do mais éramos todos japoneses, excetuando o diretor americano, sua mulher e filha, e eu. E éramos pessoas tranqüilas, pelo menos como americanos. Mas, num dia ou dois, correu a notícia de que estávamos lá, de que eu estava lá, de que seria feito um filme. Os pais da cidade pediram permissão para visitar-nos e a concedemos com prazer. Chegaram trazendo grandes buquês de flores misturadas e enormes pães-de-ló chatos, uma especialidade de Nagasaki, a cidade próxima. Convidamo-los a tomar chá conosco, eles aceitaram com prazer, e nos pediram, através dos intérpretes, que lhes solicitássemos tudo quanto precisássemos.
- Se não pedirem, disseram-nos, não saberemos. Portanto, peçam!
Prometemos. Terminado o chá, curvaram-se, nós nos curvamos e assim nos separamos.
No dia seguinte foi hasteada uma grande bandeira no muro da rua principal, dando-nos as boas-vindas à cidade de Obama, em inglês e em japonês. O hotel, para não ficar em inferioridade, fêz uma bandeira semelhante, fotógrafos bateram chapas nossas, segurando buquês, e bandeiras continuaram a ser hasteadas durante toda a nossa permanência. Com a passagem do tempo, algumas letras desmaiaram, com as chuvas repentinas às quais estávamos sujeitos, e as bandeiras em geral adquiriram uma aparência borrada, mas as boas-vindas, sinto-me feliz em dizê-lo, continuaram tão cálidas como sempre.
E falando de letras recordo-me que os colegiais nipônicos
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são condenados a aprender três línguas, todas japonesas. Uma é o chinês antigo, ainda usado na escrita formal, a outra é o japonês fonético, e a terceira a nova linguagem necessária nos tempos modernos, a qual é fene ce tica para as palavras inglesas incorporadas ao idioma japonês.
A despeito dessa carga lingüística, as crianças pareciam saudáveis e felizes durante o dia inteiro, exceto o rapaz que vi a caminho de nossa aldeia - Kitsu. Dobramos, um dia, uma esquina inesperada e topamos com uma robusta e irada mãe espancando o menino por algum malfeito. Acabou sua tarefa, apesar do nosso aparecimento, o menino berrando o mais alto que podia, depois ela limpou as mãos, sorriu-nos jovialmente enquanto o rapaz se retirava para um canto da parede a fim de terminar seus soluços, e ela voltou aos seus trabalhos domésticos.
Deve-se espancar as crianças? Retardei o passo, ficando atrás dos outros, no estreito caminho da encosta da colina, e meditei sobre a questão. Era um velho assunto em nossa família americana, nunca dirimido. Êle dizia que acreditava em bater nas crianças até certa idade, porque não eram abertas à razão e funcionavam inteiramente pelo instinto e pela emoção. Eu retrucava que detestava todo castigo físico e acreditava que não fazia bem. A diferença entre nós era que, quando uma criança me provocava a ira, e fazendo justiça a mim mesma devo dizer que isto não era freqüente e só me acontecia quando ultrajantemente provocada, eu podia e me surpreendia administrando umas rápidas e bem colocadas palmadas. Êle, apesar de sua crença no princípio, nunca tivera coragem de bater em criança alguma, por nenhum motivo - exceto numa ocasião momentosa, na qual me recusei a participar do problema.
- Os meninos devem apanhar, disse-me um dia com expressão muito grave.
Não recordo o que fizeram, mas haviam se metido, juntos,
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em alguma diabrura. Postaram-se diante de nós, num belo dia de verão, os três quase da mesma idade, todos bonitos, saudáveis e sem o menor arrependimento.
- Não posso fazer isso, disse eu.
- Então eu terei de fazê-lo, respondeu com firmeza. Para nosso espanto recíproco, meu e dos meninos, bateu realmente num de cada vez. Homens crescidos que são agora, ainda rugem de riso quando recordam juntos o episódio. Eles também não se lembram do que fizeram de errado, mas lembram-se dele com amor e divertimento.
- Sabíamos que tínhamos de chorar, diz o segundo filho, o de alegre senso de humor. - Devíamos ter chorado por êle, a fim de que tivesse a satisfação de saber que estava fazendo um bom serviço, mas foi tão engraçado que... tivemos de rir.
Recordo-me de uma espécie de ruído abafado e a simulação de esfregarem os olhos com os nós dos dedos, mas a mim não enganaram nem por um segundo. Eu sabia que estavam rindo, Deus os abençoe, e tentando não fazê-lo, porque não queriam magoar os sentimentos dele.
Desconfiei que o menino japonês estava simulando algo semelhante. Ela não lhe batera com muita força e êle estava fazendo um barulho fora de qualquer proporção. Deixe que minha mãe se satisfaça, estaria pensando êle. Deixe que ela creia que me está fazendo bem... Sejamos, em resumo, bons para nossos pais!
Naquela noite, durante meu solitário jantar - era um grande siri vermelho - surpreendi-me rindo alto, ao recordar-me. Era a primeira vez que eu ria espontaneamente sozinha, desde quando estávamos habituados a rir juntos, e este foi outro marco no rumo de minha nova vida.
A casa da fazenda era o nosso primeiro cenário e lá trabalhamos durante dias, cada qual semelhante ao anterior. Este era o programa: eu acordava às cinco e meia e descia para tomar banho. A criadinha, sempre vigilante, não precisava ser chamada. Enquanto eu estava ausente do quarto, ela entrava, dobrava a cama, punha a mesa e o assento almofadado, trazia meu desjejum. Esta era, devo
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confessá-lo, a mais fraca refeição do dia, tolerável apenas graças a uma fruta especial, que parecia uma maçã mas era pêra, não da variedade americana macia, mas da enrugada espécie chinesa. Dois ovos cozidos, grossas torradas e um estranho café, completavam o menu. Eu expliquei que comia apenas um ôvo e uma torrada, mas as explicações nada significavam. O gerente da companhia ordenara o que me devia ser servido e o que êle ordenara aparecia. Suponho que a criadinha dava conta das sobras e deixei que as coisas ficassem como estavam.
Seja como for, eu tinha de estar às sete horas na porta da frente. Ali nos juntávamos todos para trocar os chinelos pelos sapatos, no que éramos auxiliados pelas criadinhas. Lotávamos então vários automóveis, curvando-nos para as criadas enfileiradas, que esperavam para fazernos a reverência de despedida, e assim partíamos. As ruas eram limpas, como tudo no Japão, a poeira fixada no chão com água fresca e os paralelepípedos brilhando. As montanhas avançando para o mar eram de um verde reluzente, o mar de um azul faiscante sob o sol da manhã, se o dia era bonito. Rodávamos através da cidade numa irrequieta velocidade, passando por centenas de colegiais de roupas alegres e entrávamos no campo sobre estradas de cascalho entre campos de arroz maduro. Há momentos em que penso que o Japão é o país mais belo do mundo. Mas o encantamento da Ásia consiste em que cada país é belo à sua própria maneira. Dizemos Ásia e penso em termos de um vasto continente enxameante, os povos indiferençáveis um do outro, mas nada pode ser mais equivocado. Os países e povos da Ásia são tão diferentes um do outro como podem possivelmente sê-lo. Mais diferentes que os americanos dos europeus. "Isto é seguro", como dizem meus vizinhos holandeses da Pensilvânia. Na verdade, a índia e a China são duas grandes civilizaçõesmães, e sua influência espalha-se sobre as terras e culturas vizinhas, no entanto cada terra e cada cultura, reconhecendo a influência, desenvolveu-se com uma graça individual e peculiar.
Chegando à casa da fazenda, onde uma platéia interessada
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nos esperava, atravessávamos o portão todas as manhãs e encontrávamos tudo pronto para nós. A família se havia levantado, desfeito as camas, comido e saído para passar o dia fora. De quando em quando algum deles vinha ver o que estávamos fazendo, mas a cortesia a proibia qualquer comentário, fosse o que fosse o que pensassem. Os aldeões vizinhos, porém, vinham olhar francamente e se revezavam.
O primeiro grupo, que vinha cedo, era sempre de colegiais. Éra óbvio que se haviam levantado cedo e paravam a caminho da escola. Mostravam-se comportados e silenciosos, olhando sem piscar. Precisamente às oito e quinze deixavam-nos, incorporados, para começarem as aulas às oito e meia. O contingente seguinte era de mães, que a essa hora já tinham arrumado as casas e providenciado o almoço. Chegavam com os bebês amarrados às costas e não se mostravam tão polidas. Não conseguiam refrear exclamações sussurradas e risadas abafadas com as mãos. Saíam, também precisamente, às onze e meia a fim de tratarem de alimentar seus maridos trabalhadores. Por volta das três horas, os avós e os velhos da aldeia, após terem comido e tirado a sesta, vinham passar o resto da tarde conosco. Às cinco juntavam-se a eles os pais trabalhadores, cujo dia havia terminado. Esses ficavam em nossa companhia, fielmente, até sairmos cerca de sete horas.
Quanto a nós, começávamos a filmar tão logo as câmaras eram instaladas, movendo-nos de um aposento ao outro, segundo as exigências da história. O homem do make-up e seu assistente mantinham zelosa vigilância sobre os atores, impedindo que o calor fizesse o creme e o ruge correrem em riachos pelas suas faces e lhes manchassem os trajes - artista autêntico e homem encantador, o nosso homem do make-up, com suas fórmulas secretas e escovas feitas pelas suas próprias mãos. Achei uma dessas excelentes escovas na praia, depois de terminado o trabalho, quando êle já se havia ido para Tóquio, e a guardei como lembrança. É feita de bambu, uma fina lasca, e provida de uma linha estreita das melhores cerdas.
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Os efeitos de som, no decorrer do dia, eram o nosso veneno. O boi mugia no momento errado, a cabra berrava demais, embora apenas para se mostrar cordial. Quanto às galinhas, acabamos desistindo. Nada podia refreá-las e, conseqüentemente, cacarejam felizes em todas as cenas da casa da fazenda, onde quer que o filme seja exibido.
O trabalho do dia continuava até que chegasse o almoço do hotel, quando o interrompíamos por uma hora. O calor, em agosto, era assustador e nos sentávamos embaixo do grande caquizeiro, no pátio da frente, um espaço pequeno entre a casa e o maciço portão, mas ali nos sentávamos todos, alguns nos degraus da casa, outros em pedras e tocos e nas beiradas da carreta. Cada almoço era servido separadamente, dentro de uma bonita caixinha laqueada, a bandeja de cima contendo peixe e pedaços de carne assada, vegetais e pickles, e a bandeja de baixo cheia de arroz branco. Grandes bules de chá, com as alças envoltas em pequenas tiras de bambu, contra o calor, completavam nossa mais que adequada refeição. Comíamos com pauzinhos japoneses de bambu, acondicionados em papel encerado e postos fora depois de usados, certamente os utensílios para comer mais higiênicos do mundo.
Em vinte minutos a refeição estava terminada e durante o restante da hora de almoço a casa da fazenda ficava quieta. Equipe e atores ficavam estendidos sobre o tatami, como sardinhas, adormecidos. Eu achava um canto tranqüilo atrás de uma mesinha, perto do fundo do aposento, e me deitava olhando as montanhas erguidas para o céu. Nuvens brancas flutuavam contra o azul e lançavam suas sombras oscilantes. Parecia um sonho que eu estivesse ali, que estivesse vendo meu pequeno livro adquirir vida no país onde fora concebido, meus personagens transformados agora em criaturas japonesas vivas, representando minha história.
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Aquele calor de agosto! Quão inquietas estavam as criaturas selvagens! Em meio às vozes humanas o canto alto e ardente de uma cigarra chocava repetidamente o nosso técnico de som. Para mim era um grito que evocava a lembrança nostálgica dos quentes verões de minha infância, nas margens do Rio Iã-tse. Sempre que as cigarras se punham a dar seus gritos agudos e intermitentes, sabia-se que o verão tinha chegado ao seu ponto máximo. Daí por diante podia-se, apenas, esperar por um dia de vento frio e até por um tufão. O técnico de som, contudo, ficava furioso com as cigarras no pátio da casa da fazenda. Gritava e meia dúzia de pessoas da equipe pulava sobre o grande caquizeiro e batia em seus galhos com bambus. Durante cinco minutos o vigoroso inseto ficava quieto, mas depois escutávamos o seu grito serrando o ar. Desta vez os homens trepavam no caquizeiro e começavam a sacudi-lo até que as folhas se punham a cair e os frutos verdes a tremer. Durante meia hora, pelo menos, a cigarra se mantinha prudente, mas depois começava de novo sua interminável canção. Éramos, porém assaltados por outras criaturas. Um galo orgulhoso anunciava o nascimento de cada ôvo que seu harém botava. Galinhas brigavam e gritavam. No meio da multidão curiosa um bebê chorava e tinha de ser afastado.
Um dia tivemos alguma sorte. Quando a nossa pequena Setsu saiu correndo pelo portão da casa da fazenda, com as mangas de seu quimono esvoaçando, surgiu por acaso a mulher mais velha do mundo, curvada sob o peso de um monte de gravetos. Tinha um belo rosto velho, enrugado e moreno, mas seus olhos eram tão jovens quanto a própria vida. Convidamo-la a figurar em nosso filme, ela aceitou graciosamente e posou, endireitando-se para a ocasião e segurando seu comprido bordão, enquanto seu velho rosto alegre assumia uma expressão de nobreza. Nosso assistente de make-up, com equivocado zelo, correu a arrumar as dobras de seu quimono, que se abrira deixando um vislumbre de seus velhos seios, mas lhe gritamos que o deixasse como estava antes, e assim aparece no filme. Vêmo-la caminhando pela estrada, curvada sob
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a sua carga, enquanto a pequena Setsu passa correndo. Queríamos pagar-lhe, mas nos asseguraram que magoaríamos seus sentimentos. O máximo que pôde ser feito com dignidade foi dar-lhe alguns maços de cigarros, o que fizemos, e ela continuou seu caminho.
Chuva e sol alternavam-se através dos dias. Nossos atores trabalhavam bem e se tornaram um grupo conjugado. Começamos a expressar os personagens e vivíamos dentro da história. Lembro-me de que um dia terminou com o episódio em que Toru é levado para casa, depois da ressaca, quando o rapaz desperta de seu estupor, e êle pergunta onde está seu pai e onde está sua mãe. Uma súbita compreensão emotiva invadiu simultaneamente os atores. Eles sabiam, eles compreendiam tudo aquilo muito bem. Lágrimas saltaram dos olhos da mãe da atriz, e eu senti um nó na garganta, pois de súbito eles haviam retratado um momento de absoluta realidade.
A última cena daquele dia candente foi ao ar livre, no curral. Era quase crepúsculo, a multidão somava centenas de pessoas de todas as idades. Formaram um anel à nossa volta, sempre quietas e respeitosas, enquanto os atores preparavam o cenário, completo com carroça, boi, produtos da terra e família de lavradores. Desta vez nossa família incluía o patinho e o cão de Setsu. O pato, que no argumento é um patinho, acabou sendo um pato enorme, o avô de todos os patos vivos, e quando Setsu lutava para conservá-lo debaixo do braço, lembrei-me de Alice no País das Maravilhas e do flamingo no jogo de croquet com a Duquesa. O cão, alegre, do tipo fox terrier - embora o rabo fosse diferente, portanto não sei de que raça era - não se pôs a cabriolar inocentemente como se esperava que fizesse, mas insistiu em perseguir as galinhas como um louco, apavorando uma galinha com uma grande família de pintinhos, para não mencionar uma quantidade de frangas brancas que aparentemente nunca tinham visto um cachorro. O pato foi levado para fora de cena por Setsu, o cão controlado e castigado, e a cena continuou.
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Nesse momento ouvi um cacarejar humano atrás de mim, enquanto o Pai descarregava a carroça. Os cacarejos eram risadas de dois sujos lavradores na multidão, que não se agüentavam com o divertimento que sentiam com a maneira pouco realista com que o Pai manejava a vara e os dois cestos. Eles, obviamente, não acreditavam que fosse um lavrador. Quanto à Mãe, quando apareceu, foi a vez das mulheres rirem. Nenhuma delas era bonita, e a Mãe era bonita. Assim, como podia ela ser uma esposa de um lavrador? Era um problema. Talvez a Mãe fosse demasiado bonita. Mas pode uma mulher ser bonita demais num filme?
A cena terminou afinal e estávamos nos preparando para a próxima, correndo contra a escuridão que cai tão depressa neste clima quente, quando de súbito ouvi latidos altos como de um cachorro enorme e velho. Não pude imaginar o que fosse. Não havia cão indígena na fazenda. Dirigi-me ao estábulo para investigar e vi um porco. Não podia ser porco, pois latia como cão. Mas era porco, um enorme porco velho de ar brigão. Perguntei, por meio de um intérprete, por que motivo o porco latia como cão, se não era cão. A resposta foi simples:
- Não sabemos por que porco late como cão.
Isto foi tudo. O porco continua a latir, a noite caiu, o assistente do cameraman anunciou que não podíamos terminar a cena seguinte porque a luz, na montanha, estava fenecendo. Reunimo-nos e partimos. O porco parou de latir, a multidão mergulhou na noite e nós também mergulhamos. Outro dia havia passado. Amanhã era domingo e nós iríamos descansar, embora tivéssemos sido avisados que não deveríamos esperar mais domingos de folga. Já bastava para aquele dia - pensei apenas no banho e na cama. Banho japonês e cama japonesa.
Levantou-se durante a noite tamanho vento que pensei que estivéssemos sendo açoitados por um tufão. O sonho era uma reminiscência da infância, suponho eu, ou de
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uma vida anterior na ilha, ou talvez apenas a própria A Grande Onda, criado pelo meu próprio espírito. Talvez não fosse mais que a conversa da noite anterior, com a mulher do hoteleiro. Esta hospedaria, dissera-me ela, havia sido freqüentemente açoitada pelos tufões, o derradeiro fora apenas no último ano, quando o mar invadiu aquela própria sala em que eu estava instalada. Seja como for, acordei, ouvindo o vento, e lembrei-me de uma tarde de agosto, há muito tempo. Eu me achava na encosta de uma montanha voltada para o mar, ao sul do Japão. Um tufão se estava formando em alguma parte, no horizonte. Nós havíamos sido advertidos e, de acordo com o bom senso, devíamos estar em segurança dentro de uma casa, com as janelas pregadas com sarrafos e as portas protegidas com barras. Ninguém sabe o que um tufão pode fazer. É incontrolável e, por conseguinte, imprevisível. a libertação de uma força insensata e sua única tarefa é a destruição.
Mas eu vira muitos tufões, na minha infância asiática, e tive o desejo de ver mais um, naquele dia. Um tufão é muito parecido com um furacão, mas os furacões que eu tinha visto em Nova Inglaterra e na Pensilvânia não eram tufões. O trópico ou a proximidade do trópico fornece uma força vulcânica ao vento e à chuva. Nós vivíamos num clima subtropical, a trezentos quilômetros do Oceano Pacífico, mas até hoje me lembro da ordem severa de meu pai e da fisionomia ansiosa de minha mãe:
- Vem vindo um tufão! Ponha as trancas nas janelas e passe o ferrôlho na porta!
Sentamo-nos esperando e ouvindo, enquanto o céu escurecia e o primeiro rugido do vento aumentou para um rosnar raivoso. Árvores se quebrariam, muros desmoronariam e a própria casa tremeria, quando chegasse o ataque, mas nada podíamos fazer senão esperar e ouvir. Quando terminou e o silêncio caiu afinal, abrimos portas e as janelas. O que vimos era sempre o mesmo - destruição por toda parte.
- Estúpido, dizia minha mãe. - Tão estúpido!
Foi a lembrança de seu invariável comentário que me
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deu a idéia de fazer uma história com o tufão e me levara à encosta da montanha, naquela manhã há tanto passada, numa visita anterior ao Japão. O rádio havia anunciado um tufão.
Chegara logo depois de uma hora, precedido por um estranho e distante ruído sobre o horizonte ascendente. Eu me abrigara debaixo de uma rocha, no que era uma espécie de caverna, tendo-me certificado de que essa rocha fazia parte da coluna da montanha e não era uma pedra traiçoeira que a tempestade fizesse cair sobre mim, esmagando-me. Certificara-me, também, de que me achava num ponto bastante elevado, na montanha, onde o mar não poderia alcançar-me. E tomara o cuidado de verificar que não havia árvores por perto, que caíssem sobre mim. Tudo considerado, estava tão segura quanto uma pessoa decidida a correr um risco podia estar.
Lá fiquei eu sentada, esperando, mas desta vez sem família ou casa que me abrigassem. Foi uma experiência profunda, terrificante e compensadora, e me proporcionou a cena que eu desejava para o começo da história. Deixem-me descrevê-la da melhor maneira que posso. O tufão veio do mar, primeiro, como um profundo rugido cavo. Então apareceu como uma monstruosa nuvem negra. A nuvem parecia uma coisa viva, modelando-se desta e daquela maneira, rasgada por ventos conflitantes. Embora podendo esticar-se para a direita e para a esquerda, estendia-se para o alto e se projetava em direção a este e oeste. O dia adquiriu a escuridão do crepúsculo e o terrível rugido veio correndo em direção a mim, provindo das profundezas. Acocorei-me atrás da minha rocha e esperei.
A princípio, lembro-me, não havia chuva, apenas os ventos selvagens e o mar agitado. Uma hora antes o mar estivera calmo e azul. Agora estava negro e tarjado de cristas de espuma branca. Quando a chuva chegou, foi de repente, como se as nuvens se tivessem aberto e a derramado. Uma cortina de chuva caiu entre a montanha e o mar, uma sólida folha de água, a um metro de distância de mim. O capim e as moitas da encosta da montanha
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achatavam-se sob o vento e a chuva. Eu estava cercada da loucura, da irracionalidade de uma energia incontrolada e indisciplinada. Nada disto fazia sentido. Era pior do que inútil - era a natureza destruindo sua própria criação, seu próprio ser. Criar mediante o longo processo de crescimento e depois destruir num acesso de emoção selvagem - não era isto loucura, não era isto irracional? Eu tinha o começo da minha história.
A tempestade esgotou-se afinal. Os ventos se dispersaram, a chuva reduziu-se a uma garoa e a uma neblina, a nuvem abriu-se ao meio e o sol brilhou através dela. Saí de meu abrigo e contemplei as ruínas que tinham ficado. Árvores haviam caído nas partes mais baixas, frestas tinham sido abertas na terra entre as rochas, o próprio capim e os arbustos jaziam achatados e exaustos. Eu podia apenas imaginar a devastação que se abatera sobre as aldeias ao longo da costa, os barcos de pesca quebrados e atirados ao mar, casas esmagadas, quebra-mares rompidos, diques desmoronados. Era, como minha mãe dizia, tudo muito estúpido. Era inútil.
Eu vira a mesma devastação ocorrer na vida humana, em seres humanos, em termos de emoções humanas.
Jazia ali, em minha cama japonesa, anos depois, e meditava na similitude da energia do tufão e da energia da emoção humana. Incontrolada, destrói. Mas deve a emoção ser destrutiva? E se não, quando é valiosa e por quê? Como podemos usar a emoção como energia útil, como energia necessária à vida? Quais as utilidades da emoção e quais as disciplinas necessárias ao seu uso útil? Estas eram as perguntas que eu ansiava por responder, primeiro para mim mesma, depois para os outros. Coloquei-me em primeiro lugar porque sou a lente através da qual vejo os outros.
E, como sempre, quando não posso responder minhas próprias perguntas, ponho o espírito e o coração à procura
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dele. Êle não podia responder, não sempre, mas tinha o talento de orientar a busca por perguntas próprias, engenhosas e ampliadoras. A sua não era uma mente profunda. Não posso fingir que êle sempre me podia acompanhar na busca de conclusões que vinham uma a uma, através das quais a pessoa continua, não como absolutos, mas como passos em direção à verdade. A própria verdade não é, naturalmente, absoluta. Talvez, de fato, impregne o processo, existindo em tudo e em toda parte, um todo do qual, em qualquer etapa só vemos uma parte. Êle não possuía a mente conceptual nem tinha a disciplina do erudito, na qual eu fora treinada. Estava entendido que havia muita coisa que não podíamos partilhar. Nossas naturezas eram essencialmente diferentes. Nossos prazeres, mesmo na música e literatura, eram desiguais. Ambos amávamos a música, por exemplo, porém eu me sinto mais feliz quando estou trabalhando numa sonata de Beethoven ou em Chopin. Êle gostava de música leve, da qual eu também gosto, mas só como caviar. Por outro lado, sou profundamente interessada em jazz, não tanto musicalmente como psicologicamente, e êle não tinha interesse em jazz sob nenhum aspecto. Êle também não tinha interesse pela ciência, embora nutrisse um interesse acadêmico pela tecnologia. Como era um ateu decidido, podia aceitar mas não partilhar meu interminável envolvimento com os físicos teóricos e a tremenda significação de suas descobertas recentes.
O que êle tinha era uma brilhante mente intuitiva e, o que era mais raro, a capacidade de apreciar o que não podia compreender. Êle estimulava, por meio de perguntas engenhosas, nunca parecia conduzir, embora não acompanhasse, descobria sem modelar. Proporcionava uma atmosfera na qual eu podia pensar mais claramente, criar mais espontaneamente do que poderia ter feito de outro modo. Podia ouvir-me pensar em voz alta em torno ou sobre um assunto que me interessava, permitindo-me divagar livremente como se estivesse só, suas perguntas
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nunca sendo marcos orientadores mas convites a tomar caminhos que eu sozinha talvez não tivesse notado.
Compreendo que agora - ai - não tenho ninguém com quem conversar. Silêncio, minha alma!
O programa demandava trabalho ao ar livre; uma cena de piquenique com a pequena Setsu, uma cena de colheita, depois campo e semeadura, mas estava chovendo de novo. Continuamos, não obstante, até um ponto em que se podia ir caminhando, um lugar encantador com uma encosta terraçada e no fundo um velho e cinzento cemitério japonês. Era sobre um desses túmulos de pedra que Setsu tinha de esperar, com a comida, pelo Pai e Yukio, com aqueles maus e desastrosos resultados que não devo contar aqui. O contraste entre os velhos túmulos cobertos de musgo e a nossa bonita menina era o contraste entre a vida e a morte, e eu estava ansiosa por ver a cena. Esperamos nos automóveis enquanto a chuva caía. Uma bondosa família de lavradores convidou-nos a que nos abrigássemos em sua confortável casa e aceitamos, gratos. A mulher preparou-nos chá e discutimos o que fazer. Aqui, montanhas e mar combinavam-se para fazer do tempo um mistério ainda mais incerto do que na maior parte do mundo. O céu tinha a aparência de que continuaria a esvaziar-se por mais quarenta dias. Decidimos ir à casa da fazenda e filmar uma cena de chuva, apropriadamente, e um interior de cozinha. O diretor assistente iria a Kitsu, nossa aldeia de pescadores, a fim de preparar a cena em que os botes saem na chuva para a pesca do tubarão.
A manhã, porém, foi um desapontamento. O dilúvio continuava. O pátio da fazenda transformou-se num lago de lama e os beirais de sapé pingavam tristemente. Dentro da casa a equipe trabalhava sem entusiasmo. O cameraman passou maus momentos até começar o trabalho, o diretor ficou impaciente e eu entediada. A primeira cena foi montada por diversas vezes e o câmara cometia
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repetidamente algum monstruoso engano. Era meio-dia quando ficamos realmente prontos para filmar a cena de chuva e então o sol apareceu, fraco, mas suficiente para nos obrigar a preparar uma chuva artificial. E assim, num dia chuvoso, os homens treparam no teto da casa e puseram em funcionamento a melhor máquina de chuva do mundo, isto é, um bambu ôco, cheio de furos, com uma mangueira de borracha ligada numa das extremidades e a outra vedada. Um belo jorro de chuva artificial começou a pingar dos beirais no lago da lama feito pela verdadeira chuva. Fizemos afinal uma tomada e chegou a hora do almoço. O dia era tão triste que nem mesmo o almoço foi bom.
A cena da cozinha e a da praia chuvosa foram das melhores que filmamos. A cena da cozinha era o terremoto. Nossa mãe lavradora, cheia de confusão, corria de um lado para o outro, tentando salvar sua louça. Estava tão desolada que esqueceu de pôr no chão uma cesta de ovos e estes se quebraram, aumentando a confusão. Nada há, de fato, mais confuso que uma cesta de ovos quebrados, especialmente quando uma mulher se esquece de pô-los no chão antes de correr pela sua cozinha tentando salvar seus pratos durante um terremoto, e ainda vê por cima que a lâmpada de azeite está ardendo e pode atear fogo na casa. Foi uma cena e tanto. Nossa mãe, agindo com realismo, cortou o pé duas vezes nos vidros quebrados, dando assim oportunidade à nossa enfermeira, que éramos obrigados a ter sempre conosco, de salvar a vida de alguém. Ela avançou com ar de importância e aplicou uma fita adesiva no pé da Mãe. Ficamos impressionados com tal eficiência e nos alegramos um pouco.
Pura teimosia me impedia de desistir e tomar meu lamacento caminho de volta ao hotel, e eu estava contente. Com aquela inexplicável reviravolta que parece inevitável quando acontece o pior, o trabalho da tarde tornou-se de súbito excitante. Foram dispensados os atores da casa da fazenda pelo resto do dia e chamada a família de pescadores para as cenas de praia. Terminada a cena de chuva, o Sol se escondeu e começou de novo
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o dilúvio. Tornou-se aparente, agora, que o diretor americano tinha a intenção de dispensar-me também, com o pretexto da tempestade, chuva, ondas violentas e o mais. Quando me neguei a ser dispensada êle fêz vagas sugestões de que eu poderia quebrar uma perna ou qualquer outra coisa no íngreme e estreito caminho que descia a Kitsu, e êle já estava cheio de quedas. Recusei essa argumentação ridícula, pois minhas duas casas favoritas ficam na zona rural da Pensilvânia e nas montanhas de Vermont, e eu ando prodigiosamente por toda parte, trepo em tudo como uma cabra e nunca escorreguei ou caí, a menos que alguém me tivesse deixado cair do colo, quando era bebê, do que aliás não me lembro. Convidei esse diretor a não se preocupar comigo, limitando-se a voltarmos ao hotel, se eu estava num dos automóveis. E assim rumamos para Kitsu.
Nunca deixarei de ser grata por ter ido, pois a experiência me deu... bem, aqui está:
Desci pelo estreito e sinuoso caminho do penhasco sem acidente, e desci à praia, fingindo, ostensiva e indiscretamente, que não me achava lá. Chovia gloriosamente, a água caía a cântaros, o que adoro. Eu estava totalmente protegida pela minha capa e chapéu, bem como por vários guarda-chuvas mantidos sobre minha cabeça por bondosos aldeões. Minha única queixa no Japão é que o povo é tão bondoso que sempre descubro um guarda-chuva sobre minha cabeça, um leque na minha mão e uma almofada onde me sento. Enquanto o diretor moldava a sua cena e espreitava pela câmara, eu me recostei no alto muro fronteiro à casa de Toru e olhei para o mar e o céu cinzentos. Nosso ator, o pai de Toru, era um pescador e, ao receber o sinal, começou a soprar numa grande concha, convocando os botes.
- Corte! gritou o diretor.
Cortamos. A aldeia inteira estava na praia, debaixo de enormes guarda-chuvas, para observar o que se passava e algum menino descuidado atravessara correndo a cena em busca de um lugar melhor no outro lado. O principal da aldeia, que era nosso aliado remunerado, proibira qualquer
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ruído ou movimento e o incidente provocou-lhe um ótimo paroxismo de fúria. Não falo nem compreendo japonês, mas podia perceber que eles estavam chamando os seus concidadãos de bando de cabeças duras, estava querendo mostrar ao mundo que espécie de idiotas eram, ignorando que, quando se atravessa uma cena, estraga-se o filme que estava sendo feito por aqueles americanos, na aldeia de Kitsu, pela primeira vez na história, um lugar desconhecido até agora, como terra de crianças e de tolos? Todos começaram a rir encabulados e recuaram cerca de seis polegadas. Súbito, outro menino, que não havia escutado, passou correndo por entre as pernas terrivelmente arqueadas e cabeludas do próprio principal, não se lembrando de fechar antes o seu guarda-chuva. O resultado foi desastroso, o guarda-chuva ficou inutilizado.
Faço aqui uma pausa de um momento para recordar afetuosamente aquele principal da aldeia de Kitsu. Tinha a cabeça redonda e raspada, rosto áspero e radiante, pernas tortas como as de um caranguejo, uma vontade de ferro e o coração próprio de um rei. Era um ditador, naturalmente, e governava seu povo de maneira absoluta. Todas as noites lhes dizia o que podiam e o que não deviam fazer no dia seguinte. Assim, depois do repreensível comportamento dos meninos, os aldeões foram proibidos de olhar para nós ou de ficarem por perto. Tinham de continuar suas tarefas habituais como se não estivéssemos lá, exceto, como favor especial, durante uma hora, entre as cinco e as seis, mas não podiam ficar a menos de quinze metros de distância para olhar-nos, e em completo silêncio. Seu entusiasmo pelo filme era comovedor, pois estava convencido de que a história era a seu respeito. Como Toru, toda a sua família tinha sido varrida por uma ressaca, quando êle era apenas um menino.
Postada ali, com as costas contra o úmido dique, eu observava o cameraman tomar uma adorável cena dos pescadores carregando suas redes, correndo para o mar e impelindo seus barcos de pesca por entre as ondas e a chuva. O câmara correu então para o grande quebra-mar, que formava uma plataforma ideal para a filmagem dos
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barcos rumando para o alto mar. Os aldeões correram atrás do câmara e eu fui engolida pela multidão. Quase fui empurrada do quebra-mar abaixo, para dentro d'água, o que daria tanta razão ao diretor que eu possivelmente teria de tomar o primeiro avião para casa a fim de escapar à ira de Deus. Mas felizmente fui salva por um robusto aldeão que respirou càlidamente no meu rosto - tinha mau hálito, ai, e da pior espécie, uma pena, pois era um homem muito gentil. Disse-me, respirando forte, que me tinha visto na televisão de Tóquio, pediu permissão para manter seu guarda-chuva sobre minha cabeça e... por que não havia alguém cuidando de uma pessoa tão importante como eu? Respondi que ninguém cuidava de mim quando estávamos fazendo filmes, e obrigada, não precisava de guarda-chuva porque tinha chapéu impermeável, e assim escapei dele, sentando-me no cais de pedra e contemplando a impecável beleza dos barcos de pesca japoneses navegando para o mar alto.
Deixo de lado toda a prosaica rotina, o fato de os terem mandado voltar para partirem de novo porque o cameraman estava com a câmara travada e não pôde filmar e então desconfiou que havia algo de errado com a câmara, tendo o americano observado amargamente que a única coisa errada era o cameraman, e outras conversas miúdas desse tipo. Deixem-me apenas falar de mim, sentada na chuva, aquela chuva oblíqua que Hokusai tanto gostava de retratar em suas gravuras. Cercada pelas verdes colinas terraçadas, as montanhas mais altas envoltas em nuvens e olhando sobre o mar infinito, contemplei o regresso dos barcos e os vi contornarem o extremo do quebra-mar. Como eram belos, como eram soberbos em forma, velocidade e graça! Havia três homens em cada bote, todos remando, não com a agitação dos remadores ocidentais, mas suavemente como um peixe nada, pois esses remadores nunca levantavam seus remos acima da água. Estudei o ritmo daqueles remos. Era em terças contraponteadas, nenhum remo movendo-se no mesmo instante que o outro, mas todo o movimento fluindo harmônicamente. Súbito reconheci o ritmo - era o das nadadeiras de um peixe.
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Os barcos moviam-se através do mar como um peixe movimenta suas barbatanas. Senti a profunda satisfação da conclusão certa. Era exatamente isso e eu me mostrara lenta em compreendê-lo só nesta etapa tardia da minha vida, embora houvesse observado esses barcos desde quando era menina, passando muitos verões no Japão.
Os botes fizeram-se de novo ao mar, numa longa fila. Viraram para a esquerda, acompanhando a curva da baía até serem ocultos por uma ponta rochosa, sobre a qual se erguia, por acaso, a figura de um homem, solitário e desconhecido, fitando o horizonte. Que belo! É suficiente para o dia. Agradeço a Deus, e possa eu ver o belo, toda a minha vida, com a mesma clareza!
Regressei em grato silêncio, lembro-me, tomei meu banho e jantei. O banheiro era grande e duas pequenas janelas de vidro opaco davam para a piscina lá fora. Podia ouvir os nadadores gritando e rindo, enquanto eu me banhava. Teto e paredes de ladrilhos brancos, a banheira quadrada de cimento ladrilhado, com um metro e vinte de comprimento e igual profundidade, um dos extremos erguido para formar um assento e manter, assim, minha cabeça acima da água. Estava sempre cheia de água mineral quente, suave à pele. Mas por que falo da banheira? Mas eu sabia que era melhor não entrar na banheira sem uma preparação adequada, que consistia em encher de água uma pequena tina de madeira, sentar-me num pequeno tamborete de bambu no centro do chão ladrilhado, com a tina diante de mim, ensaboar-me inteiramente e derramar água sobre o corpo. Só depois disso estava preparada para a banheira grande. Quando saía dela, haviam desaparecido todos os pontos doloridos e toques de fadiga. Sentia-me restabelecida e renovada.
Sentei-me, naquela noite, junto da janela, recordo-me, vestida numa fresca yukata e ouvi os nadadores, na piscina lá fora, mergulhando, gritando e rindo. Passara aquele dia mergulhada no belo e agora me parecia insuportável
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não poder falar-lhe a esse respeito. Talvez êle soubesse... mas se não podia comunicar-me seu conhecimento, como seria eu confortada? Eu me havia conduzido tão bem, pensei, e de repente compreendi que não.
- Isso não melhora, tinha-me advertido uma viúva amiga. - Isso fica pior.
Que significa pior? Como podia ficar pior do que isto? Quis de repente afastar toda lembrança do belo e contudo sou das que não podem viver sem beleza - e não me permito chorar. Pensei que estivesse indo bem. Achava que êle devia sentir-se orgulhoso de mim, caso me estivesse observando de algum lugar distante. Agora eu precisava novamente de socorro, urgentemente. Onde encontrá-lo? A beleza me havia desmanchado, tornara-me fraca e saudosa. Os estranhos deviam ser de novo o meu refúgio. Tirei a yukata, enfiei o vestido e saí a perambular novamente pelas ruas, sozinha.
Não longe da porta dos fundos do hotel, numa estreita rua pavimentada, descobri o cinema. Era o único da cidade, e muito bom, com um palco espaçoso, os assentos confortáveis. O proprietário, como cortesia, avisara-nos que não precisaríamos pagar entrada enquanto estivéssemos em Obama. Com a passagem dos dias, adquiri o hábito de enveredar pela rua no frescor da noite e escolher uma poltrona ao lado de uma coluna laqueada de vermelho. Ao meu redor estava a multidão japonesa, de homens em sua maioria, pois não havia bares em Obama e talvez aquele fosse seu único refúgio de crianças choronas e esposas sobrecarregadas. Havia, é certo, três velhas geishas na cidade, porém eram mais ou menos honorárias e se haviam tornado respeitáveis membros da comunidade, agora que se tinham aposentado do negócio ativo. Não podiam, certamente, ser consideradas fontes de distração para homens cansados.
Os filmes eram reveladores. Receio que as películas mais suaves e mais artísticas, feitas no Japão, são as enviadas ao estrangeiro para consumo externo. O material autêntico é conservado em casa e especialmente para áreas remotas, das quais Obama era, sem dúvida, uma. As emoções,
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na tela, eram violentas, primitivas, repetidas e para mim altamente divertidas. Tudo era supercolorido, tanto literal quanto simbolicamente. Os vermelhos eram da côr do sangue, os verdes venenosos, os azuis sulfurosos. Igualmente extremista era a ação. Nunca bastava um só estupro num filme. Vi, através das noites, a mesma pequena ser estuprada duas e três vezes por um homem ou por vários homens. O tiroteio, obviamente copiado dos nossos selvagens westems, era muito mais selvagem. Todos atiravam em todos até que restava só um homem que, por sua vez, atirava em si mesmo. Cheguei à conclusão de que seria uma boa diversão noturna quando todas as mulheres fossem violentadas e todos os homens mortos. A platéia dava então um suspiro de felicidade e se levantava num estado de sonho para voltar às suas mulheres e crianças. No entanto aqueles mesmos homens eram sempre delicadamente corteses com os estrangeiros e gentilmente polidos um com o outro. A natureza nipônica não é tão complexa quanto simplesmente contraditória.
Refletindo sobre as emoções cruas, eu observava sem participar. Parecia-me que o ciúme era a paixão predominante, com a violentação e o assassinato como resultado inevitável. Eu riria disso, mas recordo agora um incidente ocorrido em minha própria casa e conhecido como o "Caso do Prato de Madeira".
Fôramos à Escandinávia, certo ano, êle e eu, numa viagem combinada de prazer e negócios, e paramos em Copenhagen para visitar alguns amigos. Ao jantar, em nossa primeira noite, admirei alguns belos pratos de madeira e exprimi o desejo de comprar uma dúzia para a nossa casa da Pensilvânia. E assim fiz, na manhã seguinte, remetendo-os diretamente para casa. Quando regressamos, os doze pratos de madeira já se achavam lá, desembrulhados e esperando. Pareciam ainda mais bonitos do que eu me lembrava e os usamos em nosso primeiro café. As crianças se haviam levantado mais cedo naquela manhã e tinham tomado café com a sua babá, pois chegáramos tarde na noite anterior. Estávamos só os dois, portanto, êle e eu.
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Durante anos, depois desse café, minha governanta e outras pessoas insistiam em perguntar-me por que só havia onze pratos de madeira e durante anos eu dei respostas vagas. Onze pratos? Tinham certeza de que só havia onze pratos? Eu mesma precisava contá-los... et cetera.
A verdade é que eu sabia que só havia onze pratos. Quando êle e eu começamos a tomar café naquela manhã havia doze, mas quando terminamos havia só onze. Eis como aconteceu - e começo por dizer que é maravilhoso e, pela graça de Deus, uma falta da pessoa amada não constitui impedimento para o verdadeiro amor. Reconheço assim, que essa foi a sua única falta... ou quase a única, a não ser que, como já disse, êle não podia bater um prego sem deixar uma marca azul e preta no polegar, de modo que seguiu sensatamente meu conselho e desistiu totalmente dos martelos. Sua única falta, portanto, era o ciúme! A princípio isto me fazia rir, pois jamais compreendi o ciúme. Se êle, por exemplo, se apaixonasse por outra pessoa que não eu, ou simplesmente se sentisse atraído temporariamente, não me posso imaginar com ciúmes. Se o amado pode encontrar alguém melhor que a que já possui, como se pode ter a coragem de privá-lo dessa alegria? Quanto à atração temporária... bem, a pessoa sempre pode pensar em alguma outra coisa enquanto a história dura e há muitos interesses agradáveis para os quais a vida só nos proporciona muito pouco tempo. A música pode encher as vinte e quatro horas do dia, e também a escultura e a jardinagem, especialmente de rosas e camélias - e também ler, escrever, melhorar o aspecto da casa, caminhar pelos bosques, guiar automóvel, voar, nadar, velejar e, acima de tudo, conversar com pessoas interessantes.
Ai, era esta última ocupação que causava o conflito. Não posso resistir às pessoas interessantes e algumas destas são homens, embora para mim o ponto importante não é que sejam homens ou mulheres. Um bom cérebro é igualmente fascinante quer seja macho ou fêmea a caixa craniana que o contém. Mas não para êle. Êle, o mais
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calmo, o mais frio e o mais sábio dos homens, podia mostrar-se absurdamente ciumento se o cérebro que me atraía fosse contido pelo crânio de um homem. Digo absurdo porque era assim que me parecia a princípio. Eu não tinha intenção de limitar a conversação às mulheres e assim o disse. Fiz uma pilhéria com a história toda, mas êle não riu. Isto me surpreendeu e depois me aborreceu, mas escondi o aborrecimento tão graciosamente quanto pude.
Durante nossa viagem pela Europa êle se mostrara melhor que de costume e eu conversara com muitas pessoas interessantes sem pensar nas conseqüências. Naquela manhã particular, em casa, conversávamos enquanto comíamos, ríamos sobre certos fatos passados e nos divertíamos como de hábito. Era uma adorável manhã, o sol brilhava sobre a mesa do café, a jarra de rosas difundia sua fragrância, e saboreávamos os ovos e o toicinho de nossa própria fazenda. Eu havia acabado de louvar com admiração o efeito produzido pelo toicinho e pelos ovos em nossos pratos chineses azuis, sob os quais estavam os pratos de madeira que tínhamos comprado em Copenhagen, quando aquele homem querido e habitualmente previsível olhoume do outro lado da mesa e parou de rir. Eu o fitei, surpreendida, e vi que seus celestiais olhos azuis estavam começando a ficar verdes.
- Que há de errado? exclamei.
- Esses pratos, tornou êle. - Lembram-me aquele dia, em Copenhagen.
- Mas por que... comecei e fui interrompida. Sua voz era fria como aço.
- A maneira pela qual você falava a... a maneira pela qual você sorriu de...
Agora fui eu que o interrompi, mas não com palavras. Estava furiosa demais para isso. Não sou mulher colérica, nem querelante, nem discutidora. Os repórteres me chamam de "fala-macia", creio. Têm razão. Falo macio e até mesmo gentilmente, de uma maneira um tanto rude. Fui, também, exercitada na tradição confuciana, segundo a qual uma pessoa superior nunca fala ou age colèricamente. Naquela manhã, porém, esqueci tudo sobre Confúcio
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e as pessoas superiores. Na verdade não falei colèricamente porque estava demasiado zangada para falar. Fiquei muda e cega de raiva e obedecendo puramente ao instinto levantei o prato de madeira com o prato chinês azul contendo o toicinho e os ovos e o espatifei no chão. A destruição foi total, pois o chão de nossa sala de jantar era de ladrilhos. Depois saí de casa, atravessei o prado e entrei no bosque. Lá fiquei sentada num tronco, junto do riacho. Ali permaneci sentada durante três horas e pensei na minha vida inteira, examinei meu casamento, pesei as vantagens e desvantagens de estar apaixonada. A essa altura a raiva desaparecera por completo, pude rir e me achava apta a continuar vivendo. Voltei para casa retemperada e faminta, pois não havia tomado o café, antes do acesso de cólera. Encontrei-o sentado soturnamente à sua escrivaninha, tentando trabalhar, e pude perceber de modo bastante claro que êle se sentia exausto por não ter ido à minha procura. Atiramo-nos um nos braços do outro, êle balbuciando algo sobre perdão, mas eu não o deixei falar. Quando estávamos novamente calmos, êle disse com uma humildade que quase me partiu o coração, pois a humildade nunca fizera parte da sua natureza:
- Vou escrever a...
- Não mencione seu nome, interrompi com simpatia.
- Mas não devo encomendar outro prato de madeira? perguntou, ainda humilde.
- Não, tornei eu. - Fiquemos para sempre com onze pratos de madeira. Porque se você esquecer alguma vez, eu contarei os pratos em voz alta, para você ouvir - um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove, dez... onze!
O fim desta história é que vivemos felizes depois e eu nunca tive de contar novamente os pratos, nem uma vez sequer. E continuei a manter todas conversações interessantes em toda parte do mundo e com qualquer um.
Um dia perfeito foi aquele em que mudamos o nosso cenário para a mansão que era a casa do Velho Cavalheiro.
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Em determinado momento após a meia-noite, acordei para uma atmosfera nova. O calor pesado do vento da terra foi subitamente alterado por um vento oeste vindo do mar. O ar estava fresco e claro, prenunciando sol pela manhã. Para uma manhã assim foi que acordamos. As montanhas estavam livres de neblina, o Sol brilhava, o mundo era novo. Entramos nos carros que nos esperavam, com absoluta pontualidade, e rumamos para a casa do Velho Cavalheiro, ao longo dos penhascos. Longe, abaixo de nós, quando fizemos a grande curva, barcos de pesca recolhiam as redes, um círculo de pontos brancos juntando-se mais e mais. Eu disse a grande curva, pois a estrada parecia sempre projetar-se dos penhascos. No ponto exato da curva havia um altar e sobre êle um pequeno deus de pedra, advertência aos motoristas descuidados, alguém a quem rogar e proteger. Passava por êle todas as manhãs e, se não estava escuro, todas as tardes também.
A casa do Velho Cavalheiro ficava perto da cidade de Issahaya, pequena e movimentada, muito limpa como são todas as cidades japonesas, e com muitas lojas de aparência próspera. Havia diversas lojas de cerâmica, pois os famosos vasos de Arita eram feitos nas proximidades, mas nem a cidade nem as lojas atraíam nossa atenção naquele momento. Logo adiante estava a casa, com os seus tetos de telha cobertos de orvalho e brilhando ao sol da manhã. Era uma casa majestosa, cercada por um muro, o portão de entrada imponente, duas grandes portas de madeira com ferrolhos e dobradiças de ferro, à direita um pequeno portão que mal dava passagem a uma pessoa.
Os portões estavam abertos, pois nossa equipe já havia chegado. Quando entramos, os móveis ocidentais tinham sido retirados, ficando apenas os belos objetos japoneses antigos, prontos para o nosso filme. O dono estava em casa naquele dia - homem robusto num quimono escuro. Sua esposa estava com êle e nos cumprimentaram bondosa e càlidamente. Suas duas filhas também se encontravam lá, uma na casa dos vinte anos, a outra com um pouco menos. Elas nos saudaram também com ardor e contentamento.
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Não obstante, fiquei a imaginar se a família teria compreendido o que estava para acontecer. Nossa espantosamente eficiente equipe havia simplesmente entrado na habitação - carpinteiros, eletricistas, técnicos de make-up e outros, transformando numa espécie de fábrica o que fora, um momento antes, um lar pacífico, antiquado e elegante, apesar do cuidado que os homens tomavam em não causar qualquer prejuízo. O fino tatami foi coberto com esteiras e a equipe protegeu com papel macio os ganchos que fixavam os refletores no teto. O teto da casa era belo, de madeira côr de cobre e com um acabamento macio como o cetim. Mas tudo era belo. Entre os quartos e ao longo das varandas, finas cortinas de bambu ligadas com cetim serviam como decoração e como biombos. Em cada aposento o nicho de tokonoma tinha o seu rolo e o seu arranjo de flores especiais. A mesa e os utensílios para a cerimônia do chá ficavam num aposento próprio e na parede abriam-se painéis para revelar um altar budista em reluzente lâmina de ouro. Os jardins não eram grandes, mas achavam-se bem ornamentados e as grandes pedras chatas dos caminhos haviam sido dispostas com engenho e arte. Nossos homens estavam diligentemente colocando algas nas margens e nas frestas do caminho fronteiro e trabalharam tão bem que cheguei a pensar que era realmente musgo, até que me informaram o contrário.
Depois de tudo pronto, sentamo-nos à espera do nosso Velho Cavalheiro, Sessue Hayakawa. Êle havia jantado conosco na noite anterior e parecia, em suas roupas ocidentais, um simpático homem de cinqüenta. Discutimos sobre a velhice e nos falou que praticava yoga e esperava viver cem anos. Sessue Hayakawa disse que sua avó morrera quando contava apenas noventa e nove e os parentes sentiram que ela havia humilhado a família. Tendo chegado tão longe, achavam que devia ter agüentado um pouco mais e completado o século, como haviam feito seus antepassados.
Sessue Hayakawa não tardou a se aprontar e sua aparência era extraordinariamente elegante nos trajes de um
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cavalheiro japonês antiquado e conservador. Examinamos o seu make-up e apontamos ao técnico um cabelo fora do lugar na barba e um canto do bigode ligeiramente sem cola. A secretária-criada, ou criada-secretária de Sessue, abanava-o o tempo todo, acendia seu charuto ou cigarro, dava-lhe chá e o consolava de modo geral. Era jovem, eficiente, e cuidava dele como se fosse um velho e bom bebê, o que talvez era. Fosse o que fosse, era também um ator profissional, um astro, e era uma alegria vê-lo trabalhar. Entregava-se ao seu papel e ganhava estatura à medida que o dia passava. Depois do almoço, seu ajudante lhe trouxe almofadas e um travesseiro, êle ficou apenas com as roupas de baixo, todas de seda branca, deitou-se e dormiu numa calma yoga enquanto a equipe se afanava ao seu redor.
Lembro-me de que naquele dia estávamos sem os nossos dois meninos - Yukio e Toru. Haviam ido a Nagasaki na véspera e beberam cerveja japonesa com comida chinesa, o que não é uma boa combinação. Daí terem passado mal a noite e não poderem comparecer ao local pela manhã. Nosso astro queixou-se de que não podia trabalhar sem eles e por um momento o dia pareceu frustrado. Abrandou depois e disse que se tivesse uma menina do elenco para inspirá-lo, poderia representar. Emprestamos-lhe, assim, nossa pequena-transístor até chegarem os meninos. Ela sentou-se ao pé da câmara, com seu aspecto atraente e bonito, e êle continuou com satisfação e gosto.
Lembro-me de que aquele dia inteiro foi de pura alegria. O ar estava leve e fresco, o Sol brilhante. Encontrávamo-nos todos num estado de euforia, penso eu, partilhando o prazer do belo ambiente e a suave graça com que o trabalho decorria. O Velho Cavalheiro crescia ante os nossos olhos. Era como observar um grande artista pintando um retrato. Sim, vejo, como se a cena estivesse aqui e agora diante de meus olhos, a ampla sala japonesa, o shoji aberto para o adorável jardim. Junto à janela, o Velho Cavalheiro, em vestes de seda branca, erudito e
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aristocrata, poeta e profeta, está sentado numa almofada diante de uma mesa baixa. Traça numa larga folha de papel as letras de um poema.
As crianças de Deus
São muito queridas,
Muito bonitas, mas muito estreitas.
À sua frente estão ajoelhadas as duas crianças. Lê o poema em voz alta e lhes pergunta o que significa. Elas não sabem e êle explica lentamente e com uma grave dignidade.
O diálogo é em inglês e o seu inglês não é perfeito, porém êle é capaz de transmitir o sentido e a atmosfera de sua própria alma. As crianças correspondem à ilusão da realidade. Depois disso, passei o dia todo sorrindo. A noite se aproxima e estou plena de contentamento e expectação. Chegou agora o ponto alto da história, o momento em que o Velho Cavalheiro sabe que a ressaca está próxima. Ordena que repiquem o sino grande e acendam as tochas do lado de fora do portão - aviso final ao povo para que suba a montanha e se abrigue em sua casa, de modo que se possa salvar, com seus filhos. Receia - quase sabe - que ninguém lhe dará atenção, mas talvez venham alguns.
Estava escuro quando nos reunimos para esta cena final e eu torno a vivê-la enquanto escrevo. Deixem-me continuar a usar o tempo presente. Juntou-se uma grande multidão das aldeias e dos campos. O dia terminou e todos se acham livres para espiar o que está acontecendo na colina. Do outro lado da estrada foi construída uma plataforma, a uma distância da câmara, encarando o portão e a casa. Do outro lado do portão, grandes tochas estão prontas para ser acesas. O gerente da companhia, tipo vigoroso de voz tonitruante, sai e se dirige à multidão, conjurando-a a não fazer barulho. É a grande cena, lhes
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diz. Não se deve ouvir uma tosse ou um grito. A multidão exclama promessas em resposta e continua a esperar. Um tempo interminável decorre enquanto são dados os últimos retoques. O homem do make-up está frenético, o Velho Cavalheiro tem de usar um chapéu alto antigo, sua barba precisa estar firme de modo que o vento não possa soprar sequer um fio. Até mesmo o criado tem de ser maquilado com cuidado.
Dão-me uma cadeira de armar, embaixo da alta plataforma e ali me sento em tranqüila excitação, para esperar e observar. São ditas as últimas palavras, o assistente grita o seu "aprontar... vai começar..." e o diretor diz: "Ação!"
Começamos. Observo com um poderoso aperto no coração. Mal posso respirar. Lembro-me quando escrevi a cena - ao terminá-la estava exausta. Agora irei vê-la viva. O Velho Cavalheiro será capaz de representá-la como a escrevi? Será possível que possa fazê-lo com a força e a majestade que me foram reveladas? Atrás de mim, no pátio, entre os circundantes campos de arroz, encontra-se a multidão, silente e absorta. A equipe está ocupada com as luzes e a câmara. De súbito o foco poderoso cai sobre o velho criado que está saindo para acender as tochas. As chamas serpeantes rasgam as trevas para revelarem o Velho Cavalheiro, aquele velho altivo, no topo dos degraus de pedra que levam ao portão. Êle contempla o mar. Está desesperado, aquele velho, um profeta desacreditado, contudo ansioso. Compreende demasiado bem o que acontecerá ao seu povo, ao seu ignorante, obstinado e bem amado povo. Sim, sim... êle é o personagem que eu criei. Vejo-o nítido e inteiro, perfeito na concepção e no detalhe, e me surpreendo ao sentir lágrimas deslizarem pelas minhas faces - eu que nunca choro!
Tal realização raramente ocorre a um artista - umas poucas vezes, talvez, em toda uma vida de criação. A mim isto acontece agora perfeitamente pela primeira vez, a feliz coincidência da criação manifestada na carne e no espírito de outro ser humano. Sinto-me esmagada pela necessidade de partilhar o momento com alguém - aiguém!
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Centenas de pessoas amontoam-se ao meu redor, pessoas bondosas mas, neste momento, estranhas. Entre elas não há ninguém. Volto-me e caminho dentro das trevas até o carro que espera e sou levada para longe, no meio da noite.
Naquele momento compreendi o que antes havia apenas sabido. Êle estava morto. Não haveria mais qualquer comunicação. Se a comunicação fosse possível, ter-se-ia realizado lá, no escuro, quando eu estava só dentro da multidão. Êle me teria ouvido, teria conhecido a minha necessidade. Fossem quais fossem as barreiras, teria de algum modo encontrado o caminho até mim, caso se achasse desperto e consciente, onde quer que se encontrasse. Êle sempre encontrara um caminho. O fato de não ter encontrado só podia significar que a comunicação era agora impossível, ou que não estava nem desperto nem consciente.
O quarto de hotel tornou-se novamente intolerável. Deslizei sem ser vista através de corredores vazios e ganhei as ruas silenciosas da cidade. Todas as pessoas decentes já estavam na cama e até mesmo um bêbedo seguia, cambaleando, o caminho de sua casa. Era Lua cheia - um mês se havia passado, de algum modo - e à sua luz deixei a cidade e entrei no campo. Silêncio, silêncio por toda parte e apenas silêncio, porque a morte é silêncio. Não sei quanto tempo caminhei ou quão longe fui, ou mesmo onde, apenas o longo intumescer da maré cheia. Lembro-me como era bela a paisagem, à noite, as montanhas emergindo da neblina prateada que cobria os vales. Via tudo e nada sentia. Era como se estivesse flutuando muito longe, numa região estranha, na qual eu não tinha vida. Eu mesma podia estar morta, tão profundo era o silêncio interior. Nunca tornaria a chorar. Sabia, agora, que as lágrimas de nada adiantavam, como não havia qualquer conforto a ser procurado ou encontrado. Havia apenas uma coisa - eu. Tolice, chorar por mim mesma!
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Dei as costas ao mar e rumei terra a dentro, andando num caminho estreito por entre campos de arroz. O ar estava parado até que, de súbito, um vento se levantou de parte alguma, como parecia, e eu me detive para sentir o seu frescor no rosto. Nesse mesmo momento ouvi uma criança chorar, um bebê, como pude compreender pelo tom agudo de sua frenética agonia. Olhei à minha volta. Sim, uma casa de fazenda do outro lado do campo achava-se brilhante de luzes. Estaria doente a criança? Ouvi tantas crianças chorarem que conheço sua linguagem. Não, aquilo não era agonia - surpresa, talvez, medo, possivelmente raiva. Era o choro de uma criança recém-nascida.
Deixei-me cair no barranco relvado, escutando. O choro parou, ouvi risos e vozes. Então a criança era um menino! A criança era outra vida. Deitei-me na relva, como sobre uma cama, e durante longo tempo fiquei contemplando o céu. As estrelas não estavam visíveis, pois a Lua brilhante descrevia seu arco através do céu e a olhei até acreditar que a vi mover-se. Um cansaço desesperado penetrava-me os ossos, o cansaço da aceitação, a aceitação do inevitável, a convicção do imutável. Daí para a frente eu nunca mais devia esperar partilhar os grandes momentos de minha vida. Tais momentos continuariam a ocorrer enquanto eu vivesse, momentos de beleza, momentos de excitação e de regozijo; acima de tudo, momentos de realização. Nesses momentos, êle e eu nos voltávamos um para o outro, tão instintivamente quanto respirávamos. Isto não aconteceria mais... Não é verdade que nunca andamos sozinhos. Há uma eternidade em que caminhamos sozinhos e não sabemos quando acaba.
A noite chegara ao fim e a este, sob o horizonte, o Sol estava brilhando. Era hora de voltar para o meu quarto, hora de preparar-me para o trabalho do dia.
O bom tempo continuou. Rumamos para a casa do Velho Cavalheiro, onde encontramos nossa equipe pronta a começar o trabalho, já com algas frescas nos caminhos.
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Nesse dia um amigo me acompanhava. Havia anos que eu aprendera a ser grata por pequenos milagres. Era um velho amigo de Hiroshima. Nossas relações começaram quando êle, a esposa e os filhos vieram aos Estados Unidos para trabalhar por algumas jovens que, meninas ainda, tinham sido tristemente feridas, mas não mortas, pela bomba atômica. Enquanto viajava fazendo conferências e levantando dinheiro para as despesas de hospital concernentes à cirurgia necessária à restauração de seus rostos desfigurados, restituindo-lhes algo de sua beleza natural, a esposa e os três filhos passaram o verão em minha grande casa. Encontrei-o esperando por mim naquela manhã e me senti alegre ao ver sua fisionomia cordial.
- Gostaria de acompanhar-me à filmagem de hoje? perguntei.
Existe, naturalmente, algo de ator em todos os pregadores.
- Que prazer! tornou êle com o rosto iluminado. Rodando para a casa do Velho Cavalheiro, conversamos sobre muitas coisas. Soube que Hiroshima está reconstruída e muito maior que antes, somando agora cerca de meio milhão de almas, cada qual com o seu respectivo corpo. Menciono o corpo porque foi este o destruído pela bomba, e os corpos são valiosos porque é só através deles, parece, que as almas se podem comunicar.
O dia passou ao mesmo tempo muito depressa e muito devagar. Meu amigo de Hiroshima ficou ao meu lado, absorvido nos infinitos detalhes da feitura de um filme. Conversávamos de quando em quando.
- Prometa-me que irá a Hiroshima antes de partir do Japão, pediu êle.
Não podia prometer. Sabia que não iria. Não era como se eu fosse necessitada. O povo de Hiroshima sobrevivera ao desastre, aprendera que a paz é o objetivo mais valioso da vida humana, pois quando não há paz há morte. Se eu fosse a Hiroshima seria como turista, e eu não sou isso... não em Hiroshima. Mas não podia explicar todos esses aspectos ao meu amigo.
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Separamo-nos no fim do dia, êle para voltar à sua cidade renascida, eu para o meu quarto. Eu estava e não estava lá. Em absoluto repouso passei a noite num silêncio que ficava apenas a um passo do sono. Em determinado momento da noite fui acordada por risos debaixo da minha janela. Levantei-me e olhei para fora. A Lua estava brilhando de novo e lá, na grande piscina, três homens jovens se estavam banhando, seus esbeltos corpos nus meio ocultos entre os fumegantes vapores da água aquecida pela terra, uma cena tão bela de vida que, ao observá-la, quase me convenci de que o pintor, como artista, é superior a todos nós.
Era o último dia na casa do Velho Cavalheiro e eu relutava em partir. O cenário da casa da fazenda fora delicioso, fizera amizade com todos os membros da família, até mesmo com o galo e suas galinhas, e a cabra. Só com o porco que latia foi que mantive uma certa distância, sentindo a nossa mútua falta de interesse, como resultado, sem dúvida, do fato de nada termos em comum.
Com a família do Velho Cavalheiro eu tinha muito em comum. Apreciava plenamente seus espíritos cultivados, sua delicada cortesia, sua cordialidade ao mesmo tempo franca e retraída. Mas ali o fim tinha que chegar também. O Velho Cavalheiro executara sua parte com dignidade e graça, seu criado conduzira Yukio, o garoto lavrador, e Toru, o filho de pescador, à majestosa casa e os levara de novo ao portão depois que Toru tomou a decisão fatídica de escolher a partida. O criado tivera seu grande momento ao portão, pois fora aqui que se desenrolara seu momentoso diálogo, seu yes e seu no. Proferiu essas palavras com importância, e de fato são as palavras mais importantes de qualquer língua, contendo em seus breves sons as forças positiva e negativa de todo o universo.
Fizemos também nossas despedidas, curvando-nos e agradecendo, e eu assinei centenas - estou certa - de grandes cartões de autógrafos que são usados para esse
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propósito no Japão. É quase um prazer escrever o nome na larga superfície creme clara, tão exatamente adequada a uma pincelada ou a uma linha comprida e fina. Instintivamente somos levados a escrever o nome em traços grandes e graciosos. O resultado é de algum modo compensador e as margens prateadas do bonito cartão, as estrelas de prata salpicadas no verso, aumentam a satisfação.
Juntamo-nos de mau grado e saímos do belo lugar, afastando-nos das bondosas pessoas que nele vivem, e fomos transportados em automóveis e caminhões ao nosso próximo cenário, a aldeia de Kitsu. Nossos veículos despejaram-nos no alto de um penhasco e de lá o percurso devia ser feito a pé, por um caminho estreito que descia pela encosta rochosa. Fomos descendo até chegar à aldeia, um amontoado de casas de pedra separadas por estreitas ruas calçadas. Caminhando por aquelas ruas, eu sabia que já amava Kitsu mais que todos os nossos cenários. Fazia um dia gloriosamente luminoso, o sol ardendo sobre a areia e - ai - desta vez o argumento exigia chuva. O rádio de Nagasaki previra chuva, mas parecia que não jorraria daquele céu de brilhante azul. Tínhamos, por conseguinte, de fabricar chuva novamente.
E a fabricamos o dia todo e a noite toda, até secarmos o poço da aldeia com as nossas bombas. A fabricação de chuva era primitiva mas eficaz. Uma pesada mangueira de lona conectava o poço ao tanque próximo da casa do pescador, onde se desenrolaria a cena. Os tanques eram grandes banheiras de madeira, cada qual comportando duzentos litros de água, mas não sei por que não ligamos a mangueira ao mar, pois duzentos litros não eram mais que uma gota para a quantidade de que necessitávamos. Todas as vezes que estávamos prontos para a cena alguém gritava que a água tinha acabado e a bomba de gasolina começava a trabalhar de novo. Ou quando estávamos prontos para a cena, os atores em posição e a chuva caindo, o homem do make-up descobria um fio de cabelo fora do lugar na testa do nosso astro, ou uma linha de suor em sua fronte, e no momento em que a irregularidade estava
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corrigida não havia mais água, outra vez, e portanto não havia mais chuva.
No entanto continuávamos a precisar de chuva, pois agora vinha a cena em que o Velho Cavalheiro advertia a família de pescadores de que era certo a ressaca chegar. O Avô cacarejou que não haveria tufão, apenas chuva. Os velhos da aldeia, contratados como extras e muito orgulhosos de sua nova carreira, reuniram-se na estreita varanda da casa de Toru e concordaram com êle.
Aqueles velhos! Nunca imaginei que uma aldeia pudesse fornecer semelhante coleção de velhos enrugados, dentuços, joviais, chistosos, mas Kitsu os fornecera, evidentemente, pois ali estavam eles. A princípio mostraram-se artificialmente graves e bem comportados, especialmente um velho pássaro de cara de águia, que piscava ocasionalmente seus olhos mortiços mas não dava qualquer outro sinal de vida até que o diretor exigiu algumas risadas no momento apropriado. O velho pássaro, então, espantou a todos nós com os seus gritos, numa estentórica voz de baixo, uma torrente de palavras que, traduzidas, significavam o seguinte:
- Bota o chapéu, americano! Aí eu vou rir!
Todos gargalharam, pois esse chapéu já se havia tornado uma pilhéria. Era um pequeno chapéu de palha trançada frouxa, de um brilhante amarelo sulfurino, a copa circundada por uma berrante fita multicor. Era útil apenas para localizar com facilidade o paradeiro do diretor.
No momento em que estávamos realmente em ação, depois dos risos, a água e a chuva finalmente sincronizadas, um rádio começou a berrar. Paramos de novo, o técnico de som desesperado. Os berros provinham de uma escola no alto do penhasco, e o principal da aldeia, todo devotamento, correu montanha acima para certificar-se de que as crianças estavam limpas e bem comportadas. Esperamos e a água acabou, mas as crianças chegaram limpas, seus narizes foram assoados, trajavam, segundo o caso, vestidos ou calças de algodão limpo. O principal, apesar de sentir-se orgulhoso, mostrou-se severo. Entregues a si mesmas, disse êle, nos rodeariam e perturbariam nossa
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atividade. Assim, sob a sua firme porém benevolente disciplina, como quer que fosse administrada, elas continuaram suas tarefas diárias, obviamente devoradas pela curiosidade a nosso respeito, mas dominadas. Êle, com as pernas arqueadas, andava irrequieto de um lado para o outro, um caranguejo humano, apesar de sorridente.
Ó Kitsu, aldeia querida! Sentei-me, ontem à noite, num pequeno cinema vazio, em Nova York, e assisti o filme terminado, com um amigo do lado para partilhar a recordação e decidir se a película era o que pensávamos que fosse, quando a fizemos. Os juizes definitivos devem ser outros, pois quando Kitsu voltou a mim na tela, quando vi o mar rolando na praia branca, as redes multicoloridas penduradas para secar, os barcos em repouso alteando-se e baixando gentilmente sobre as ondas, os nobres penhascos da praia e da montanha e, sim, talvez mais que tudo, os belos e bondosos rostos dos aldeões, senti um ímpeto de saudade espiritual. Há uns poucos lugares, umas poucas tocas, tão naturalmente ligadas ao nosso ser, que são para sempre nossa terra. Não sei se tornarei a ver Kitsu nesta vida, mas ela está comigo e em mim.
Deixem-me recordar!
Do alto do sinuoso e estreito caminho, como primeiro a vi, Kitsu é, segundo já disse, um amontoado de tetos numa apertada garganta de terra acocorada entre dois braços de mar, cada teto tão perto do outro como as escamas de um peixe. Vista do mar é diferente e eu a prefiro vista do mar. Tomávamos os barcos todas as manhãs, em Obama, costeávamos o soberbo litoral durante meia hora e então, contornando um elevado penhasco sobre rochas maciças, víamos a praia branca e os muros de pedra de Kitsu. Aquelas casas não tinham janelas para o mar. O povo, ao dormir abrigava-se contra seu poderoso amigo e inimigo. O cismo era óbvio. Viviam junto do mar e não viveriam noutra parte, mas o temperamento do mar era o seu temperamento. Se o dia amanhecia bonito e sem
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vento, se a água estava azul como o Mediterrâneo, então a aldeia inteira ficava animada com risos e negócios. Se o dia despontava cinzento e o vento áspero, o povo, sério e ansioso, subia nos quebra-mares para amarrar firmemente os barcos às pedras que tinham rolado até à praia e depois voltava de novo para suas casas. Em dias bonitos, se entrássemos cedo na ampla enseada, podíamos ter a sorte de ver a frota de barcos pesqueiros fazendo-se ao mar e este era um espetáculo inesquecível. Nos dias tempestuosos as ondas abertas terminavam em irada arrebentação e nós íamos por terra. Sentada ali, no cinema escuro, no centro de uma grande cidade americana, regressei a Kitsu. Vi Toru e Yukio no barco de pesca e Setsu... bem, não devo contar a história. Vejo os rostos das crianças, risonhas e despreocupadas, vejo aquelas mesmas crianças crescidas, suas faces jovens firmes de vontade e de propósito; Toru, um jovem, declarando seu amor ao abrigo das grandes pedras cinzentas no fim da curva da praia, torcida e cavada pela tempestade e pelo vento.
Nossos dias caíram na rotina de trabalho. Levantávamonos cedo, tomávamos café e saíamos do hotel às sete. Quatrocentos metros além entrávamos no barco e éramos rapidamente transportados à aldeia. Lá chegados, cada pessoa iniciava sua preparação individual para a cena do dia. Durante uma hora não necessitavam de mim e eu me punha a caminhar ao longo da praia, além do quebra-mar de pedra, até o sopé de uma íngreme colina. Degraus de pedra levavam ao alto do monte, numa extensão de cerca de duzentos metros, e no cume havia um templo de pedra vazio, outrora um altar Shinto. Cercava-o um muro baixo e de lá se descortinava o mar, as montanhas e o céu.
Eu, porém, encontrei meu próprio nicho, atrás do altar. Na beirada do alto penhasco havia uma concavidade nas rochas à qual meu corpo se adaptava exatamente. Para lá ia eu todas as manhãs e, retida naquela cavidade como se estivesse nos braços dele, repousava. Não era o repouso
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do sono. Era o repouso do espírito esvaziado, o espírito liberto. Êle e eu nunca estivéramos aqui, juntos. Nos anos em que eu vivera em Kyushu, não sabia que êle existia, nem êle sonhara que eu pudesse existir. Tampouco havia comunicação entre nós, agora - não posso fingir que ouvi sua voz ou que tive consciência de sua presença. O que ocorreu, gradativamente, à medida que passavam os dias, foi uma profunda invasão de paz. Ninguém se tornou parte de mim, porém eu me tornei parte do todo. O cálido leito de pedra em que eu me deitava, o vento erguendo-se fresco do mar, o céu intensamente azul e as flutuantes nuvens brancas, o retorcido pinheiro curvado sobre a minha cabeça - de tudo isso eu era parte e, além disso, do mundo inteiro. Eu própria cessei de ser, pelo menos por algum tempo, uma criatura solitária com o coração dolorido. Estava consciente da cura que se derramava no meu íntimo. É um fato que, ao cabo de uma hora, quando soou a concha, pude levantar-me retemperada para reunir-me aos meus companheiros de trabalho.
Os degraus de pedra? Tornei a vê-los a noite passada, no cinema escuro, quando o Velho Cavalheiro desceu para advertir os aldeões, seguido pelo seu fiel criado. Sim, aqueles eram os mesmos degraus que eu galgava todas as manhãs ansiosa pela paz que encontrava no abrigo da rocha. Tornou-se um hábito. Eu acordava sôfrega por aquela hora e a saboreava profundamente, com um deleite renovado todos os dias. Descobri, então, que um pouco da paz de cada dia sobrava como um resíduo para a noite. Eu não a usava toda de uma vez, havia acumulação. Tornei-me mais forte. Pude perder um dia, em seguida dois dias, depois mais. Gradativamente me estabeleci em mim mesma e não precisei mais subir àquele alto e solitário lugar, e esperar para receber. Fui capaz de manufaturar a paz dentro de mim mesma, apenas por lembrar-me do fluxo do mar, da montanha e do céu, e de mim mesma enrodilhada na concavidade da pedra. Tinha então a paz dentro de mim e o lugar tornou-se um altar em minha memória. Não sei como se processou essa cura. Não rezo, se a oração consiste em palavras, ou súplicas, ou procura. Se o
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processo tem de ser explicado, digo que consistiu simplesmente em entregar-me de maneira total a um universo que não compreendo mas que sei ser vasto e belo além da minha compreensão, sendo o meu lugar nele não mais que uma concavidade numa pedra. Mas há a concavidade e é minha, e há a pedra.
Esta crônica, para valer alguma coisa, tem de ser fiel. Estávamos a um quarto do caminho, aproximadamente, da feitura do filme e tínhamos chegado ao deserto que fica na metade de todos os planos criadores. O deserto começa no ponto em que se progrediu demais para pensar em desistir, e tão longe do término que o fim é invisível e só pode ser contemplado por uma fé vacilante. Como conheço bem a desolada perspectiva! Enfrento-a em cada livro que escrevo. O primeiro quarto flui como uma brisa do mar. O trabalho é pura alegria. Entro então na metade do livro e a alegria desaparece. Os personagens recusam mover-se, falar, rir ou chorar. Tomam a postura de colunas de sal. Por que, ó, por que o livro foi começado? O trabalho executado já é muito, para que se ponha de lado, no entanto a conclusão está tão distante quanto o fim de um arco-íris. Nada há a fazer senão continuar a trama, impelir os personagens por esse e aquele caminho, soprar sobre eles ardentemente na esperança de restituir-lhes a vida, usar todos os meios de respiração artificial. Em alguma parte, algum dia, embora parecesse inacreditável durante semanas, meses ou mesmo anos, eles começam a respirar. Que alívio! O deserto passou, o último quarto do livro flui suavemente de novo.
Certa manhã, no meio do período deserto do filme, sentei-me na beirada de um barco de pesca e me pus a observar nosso astro, Sessue Hayakawa. Esperava, com soturna paciência, que o chamassem ao cenário. A cena tinha de ser repetida porque o técnico do som descobrira uma mosca no microfone, que ninguém havia notado. Havia moscas apesar do repelente que um dos membros
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da equipe vaporizava zelosamente de igual modo sobre justos e injustos, e uma delas se ocultara habilmente no microfone e zumbia o suficiente para abafar qualquer outro som. Nosso astro esperava e sua secretária-criada abanava-o dentro de seus pesados trajes.
- Por que é que ninguém me abana tão estrategicamente? perguntou o diretor americano.
Ninguém respondeu e ninguém o abanou. Só o astro permanecia pacientemente sentado. Tinha na mão um pequeno rádio-transístor. Escutava uma luta e quando sorri explicou-me que somente assim podia achar a vida suportável, naquelas circunstâncias. Entrementes o homem do make-up corria a aplicar-lhe toalhas geladas nos pulsos e no pescoço e tocando-lhe o rosto. O astro, para infinito terror do homem do make-up, que temia pela barba que tão cuidadosamente lhe havia aposto, acendeu um grande charuto. Mas ninguém se atreveu a insinuar coisa alguma e êle fumou em paz, os olhos fechados, escutando a luta.
No cenário o diretor estava às voltas com o nosso avô que, embora realmente velho, tinha uma voz demasiado jovem. O diretor fazia demonstrações de como devia soar a voz de um velho. Mantive a minha tranqüilidade. Sei que a voz dos velhos é alta e aguda, não baixa e rouca, mas mantive minha tranqüilidade. Aprendera, desde o primeiro dia, a manter a minha tranqüilidade - "pelo amor de Deus!"
Esforçávamo-nos por atravessar o deserto do meio, levantando cedo todas as manhãs, amontoando-nos exaustos nos barcos à noite, aliviados apenas pela beleza do céu crepuscular. Havia noites em que trabalhávamos até tão tarde que estava escuro quando tomávamos a lancha e o mar faiscava com minúsculos peixes fosforescentes, que competiam com as estrelas no céu.
E Sessue Hayakawa avançava para o último dia de seu contrato conosco, estava terminando suas cenas como
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Velho Cavalheiro, e nós ainda continuávamos no deserto. O homem do makeup realizara um trabalho engenhoso, envelhecendo-o mais dez anos, como exigia o argumento, mas o mesmo vento que, certa manhã, levantara demasiado a arrebentação, impedindo a saída dos barcos, arrancou-lhe a sombrancelha esquerda. O homem do make-up merecia ser manietado, porque não trouxera uma sombrancelha extra do hotel. Nada havia a fazer senão fabricar outra sobrancelha com os fios brancos que tinham sobrado da barba... Tudo continuava a andar errado. Os bolos, que os bondosos cidadãos haviam deixado conosco para a equipe, resultaram ser de uma variedade indesejável e ninguém os quis comer. Estávamos todos morosos. As primeiras cópias, que esperáramos ver uma semana antes, foram retardadas. Sofrêramos a interferência de um feriado japonês e de um domingo, e poucas foram as cópias que tínhamos visto, de modo que nos achávamos pelo menos com três dias de atraso em relação ao programa traçado. Afastamo-nos e começamos a remoer negros pensamentos. Entenderia alguém o inglês que nossos atores falavam? Estávamos tentando o impossível - atores japoneses representando em inglês! Os jovens Yukio e Toru, bem como nossa mãe-lavradora, entre outros, falavam antes pouco inglês ou nenhum, e agora estavam falando, mas seria bastante bom? Como soaria a uma platéia americana até mesmo a fala do nosso astro?
No meio do deserto de pessimismo recebemos uma carta de nossa gerente de negócios em Tóquio. Vira as cópias do Velho Cavalheiro e as achou soberbas, dizia ela, inclusive o diálogo. Fizeram-na chorar, informava. Que aquela jovem sofisticada houvesse chorado, significava alguma coisa. Não imagináramos que isto seria possível, tão fria e serena era ela, tão parca em elogios. Nossas esperanças renasceram. Talvez estivéssemos quase fora do deserto.
Com o espírito renovado, oferecemos um jantar a Sessue Hayakawa em homenagem à sua partida. Êle estava com excelente humor, bebeu uma mistura de cerveja gelada com sakè, que agüentou admiràvelmente, e suas histórias eram tão boas quanto sua representação. Cinqüenta
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anos de teatro em vários países formavam um mundo de histórias dignas de serem contadas. Lamentávamos vê-lo partir e creio que êle também o sentia, mas nada há de permanente na vida teatral. Trabalhamos intimamente juntos durante alguns dias, semanas e meses, adquirindo amizade uns pelos outros, separamo-nos e esquecemos. Nada adquire profundidade - é a única maneira de suportá-lo.
As cópias chegaram e fomos ao cinema do outro lado da rua, depois de terminado o espetáculo da noite. Não me fizeram chorar, mas gostei. Então, de súbito, vi nosso jovem astro, nosso Toru crescido. Estava sentado na fila fronteira à minha, profundamente adormecido. Meu coração murchou no assento. Podia êle dormir? Sim, podia e estava dormindo. Voltei-me para meu companheiro.
- Veja aquilo!
- Está bêbedo, foi a indignada resposta.
Sim, houvera uma festa naquela noite e o nosso jovem astro estava bêbedo. Tudo se tornou demasiado evidente quando as cópias terminaram e saímos do cinema. Êle não se podia manter de pé. Não obstante, senti-me gelada. Bêbedo ou sóbrio, como pôde êle dormir? Não, ainda estávamos no deserto e só nos restava continuar arrastando-nos.
Houve mais um momento naquele dia. Foi o último vislumbre, o close-up final do criado do Velho Cavalheiro. Tomamo-lo em frente ao hotel. Juntou-se uma multidão, uma próspera multidão de feriado, com máquinas fotográficas e alegria. O criado do Velho Cavalheiro era, naturalmente, o pequeno e idoso homem do guarda-roupa, mas havia adquirido uma dignidade nova. Realizara o sonho de toda uma vida. Era, agora, um ator. Passara todos aqueles anos fazendo trajes e descobrindo roupas para outros usarem em cena. Mas agora vestira um traje próprio, tivera seu rosto maquiado - só um pouco, pois seu rosto era perfeito para o papel. Naquela noite, na presença da multidão, postou-se com calma e dignidade e o cameraman tomou os close-ups de que necessitávamos para o filme.
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Quando terminaram, curvamo-nos e nos apertamos as mãos, lhe agradecemos e êle curvou-se por sua vez. Disse-nos que aquele era o maior ano de sua vida. Tornara-se um ator, representara um papel com Sessue Hayakawa e no mês seguinte casaria sua filha.
Assim terminou o dia.
- Otsukaresama!
É uma palavra que significa "Você está cansado". Gentil maneira japonesa de dizer: "Chega por hoje".
Era verdade. Estávamos cansados.
Já nos achávamos, agora, muito além do deserto. Faltava uma grande cena em Kitsu, a chegada da ressaca. Enquanto trabalhávamos ao redor dessa cena, nosso técnico a estivera criando no estúdio de efeitos-especiais, em Tóquio. Viera duas vezes a Obama fazer consultas e tirar centenas de fotografias de Kitsu e da praia deserta. Sabíamos que estávamos em mãos seguras, a ressaca seria perfeita, mas só poderíamos vê-la quando voltássemos à cidade. Nossa tarefa consistia em criar a aproximação da onda e depois a recuperação da aldeia.
Uma atmosfera de tensão e de terror caiu sobre a aldeia ao começarmos os preparativos para a ressaca. Uma sensação cortante chegava quase a atingir os ossos. Cada homem, mulher e criança, temia acima de tudo, em sua bela e precária vida, a incontrolável ressaca atacando sem aviso, a não ser o rugido baixo e ominoso sobre o horizonte, a água barrenta do poço, o tremor da terra. Imaginar, apenas, o horror era quase mais do que podiam suportar, ao se disporem obstinadamente à tarefa de representar a terrível realidade. Famílias de lavradores e de pescadores representaram bem a sua parte e nos aproximamos da última noite, quando, em meio às trevas, acenderam-se as tochas diante da mansão do Velho Cavalheiro e as famílias de Kitsu, em pânico, fugiram de seus lares ancestrais, galgando o estreito e sinuoso caminho da montanha, em busca de segurança no topo do penhasco.
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Toru era o astro naquela noite, o menino Toru. Nossa parte da cena era levá-lo ao momento em que vê a aldeia arrastada e nós a vemos através da sua fisionomia. Era aqui que a ressaca seria inserida. Depois disso retomamos a história no ponto em que Toru, em agonia e loucura, êle próprio arrastado pela fúria do mar, fora salvo apenas por uma bondosa e robusta mão que o susteve quando êle se agarrava ao penhasco. Representou soberbamente a cena, mas recordo especialmente o povo enxameando montanha acima, o obstinado e aterrorizado povo tomando o caminho que seus ancestrais tão freqüentemente haviam palmilhado antes, porém na realidade.
Naquela noite, quando tudo terminou e nos fomos sòbriamente, adquirimos uma compreensão nova da incomparável coragem da gente de Kitsu, da sua inabalável devoção ao mar e à sua maneira de vida, maneira boa e limpa, mas perigosa. Despedimo-nos com um terno pesar. Lembro-me de uma multidão de faces bondosas, à luz da lanterna, do principal recebendo com orgulho nossos elogios e agradecimentos, dizendo que a única recompensa que desejava era saber quando seria exibido o filme no Japão.
- Vestiremos nossas melhores roupas e iremos até mesmo a Tóquio, disse-nos.
Finalmente, as chamas das tochas diante do portão do Velho Cavalheiro, no alto da montanha, apagaram-se dentro da escuridão. Estava terminado, o filme fora feito. Nunca esquecerei os belos dias de mar, vento e sol, de refeições partilhadas na praia, dos grandes bules de peltre cheios de chá, nem esquecerei as horas de repouso que passei, semi-adormecida, num bote vazio puxado para a praia, o sonolento marulhar das ondas aos meus ouvidos, o calor do meio-dia sobre mim. Havia afastado naqueles dias e por aqueles momentos as sombras expectantes de perda e solidão. Vivia o dia, a hora, o trabalho, a profunda cura orgânica da calidez do sol, da chuva caindo, do mar tempestuoso.
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Estávamos tão perto, agora, da conclusão do filme que podíamos planejar a atividade de nossos dias. Depois de Kitsu veio a praia vazia de Chijiwa e a grande cena da pesca do tubarão e a última cena com as crianças agora grandes, encontrando o amor e a vida, as alegrias e as penas. A última de todas, em Kitsu, foi a cena com o Velho Cavalheiro, Toru e Setsu. Depois disso restou apenas a cena do vulcão em Oshima, a ser tomada e inserida em seu lugar próprio no filme.
Estou indo muito depressa. Deixem-me recordar primeiro a própria Chijiwa. Num país populoso, num litoral impecável, essa praia ampla e bela foi deixada deserta. Está vazia e assim se encontra há séculos. Visitem-na em qualquer dia e verão redes de pesca espalhadas para secar, mas nenhuma pessoa. Chijiwa encara o mar de um ângulo peculiar de modo que os tufões e as ressacas a atingem com uma força devastadora. Os pescadores, após a freqüente repetição da experiência de destruição total, ouviram afinal a advertência do mar ameaçador e lá não vivem mais.
É uma praia supremamente agradável, contudo, estendendo-se por três quilômetros de comprimento e penetrando terra a dentro, tendo como limites, a este e a oeste, grandes e belas rochas. Minha vida na Ásia e meu amor pela arte asiática condicionaram-me às rochas. Elas acrescentam estabilidade à paisagem e as formas que adquirem com o tempo e o clima exprimem o temperamento da natureza. Significam força, resistência e valores eternos. Na extremidade de Chijiwa existem rochas assim e, tomando-as como fundo, ali representamos a cena final de amor com Toru e Setsu crescidos. Foi na direção das rochas que o Velho Cavalheiro caminhou quando lhes deu seu último adeus.
Não me deixem esquecer, tampouco, os tubarões. É uma cena única no filme e foi uma experiência única a executar. Uma vez por ano os pescadores daquela região saem para a pesca do tubarão. Essas cruéis criaturas do mar destroem o peixe em qualquer área que decidem dominar e os pescadores lhes fazem guerra. Sua vinda é anunciada por cardumes de peixes pequenos, os peixes-iscas, e quando aparecem
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os pescadores preparam sua estratégia. Trazem seus barcos, cerca de duzentos e estendem no meio a maior e mais forte rede do mundo. Então os barcos se abrem num vasto círculo e os peixes-iscas entram naquele espaço, acompanhados pelos tubarões. Quando a rede está cheia dos agitados monstros, os barcos juntam-se e os tubarões ficam numa armadilha. Na praia, centenas de homens começam a puxar a rede, arrastando os tubarões para a terra. Então os matam a pancadas, transportando-os em carroças. Comem as partes mais tenras e do resto fazem azeite e fertilizante. Às vezes o resultado da caçada é bom, às vezes não é. No ano passado os homens pegaram apenas um tubarão, mas este ano lhes trouxemos sorte, dizem eles, pois pegaram e mataram cento e vinte.
Não tenho afeição a tubarões mas não gosto do espancamento de que são vítimas. Gosto muito de ver a frota de barcos pesqueiros, suas alegres velas adejando ao sol brilhante e a multidão animada na praia. A multidão estava sempre conosco e de há muito tínhamos aprendido a aceitá-la como parte da paisagem. Por que descreveria eu a cena posterior, quando está tudo no filme e melhor do que poderia dizer em palavras? É uma guerra ancestral, esta, entre homem e tubarão, e naquele dia o homem ganhou. Enquanto a batalha era novamente travada, nossos personagens enfrentavam sua própria luta pessoal, Haruko e Setsu, crescidas, em seu memorável combate, quando Haruko tentou afogar Setsu, e Toru e Yukio, não mais crianças, enfrentavam os perigos privados de serem homens. Está tudo no filme, até o fim, quando Toru se faz ao mar, em seu barco, e com o seu amor.
Restava-nos apenas, agora, voltar a Oshima, mas eu tinha um sonho a realizar. Era um sonho pequeno, sem importância para ninguém a não ser para mim mesma, e consistia em ir à pequena casa japonesa da encosta da montanha, perto de Unzen, onde certa vez, numa vida anterior, me refugiara durante a Segunda Revolução Chinesa. O exército atacante era orientado pelos comunistas e todos os ocidentais foram obrigados a deixar a cidade de Nanking, onde estávamos morando. Viera para o Japão
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com minha família e alguns outros americanos e nos instalamos nas montanhas, acima de Nagasaki. Lá voltava eu, agora, com uma amiga japonesa como guia e intérprete.
Alugamos um automóvel com motorista e à habitual velocidade alucinada seguimos nosso caminho ao longo da estrada para Unzen, cheia de curvas abruptas. A aldeia montanhesa de que eu me lembrava se havia transformado numa moderna estação de águas, mas as fontes quentes eram as mesmas, lançando jactos de vapor através de centenas de pequenas aberturas nas rochas, e o povo cozia ovos e esquentava água para o chá, sobre aqueles fogões naturais. Eu não podia achar meu caminho, através das ruas novas, para a velha estrada rural de que me lembrava. Detivemos uma jovem mulher para perguntar-lhe se tinha ouvido falar das casas onde, certa vez, há muitos anos, haviam morado americanos refugiados da China. Sua fisionomia iluminou-se - sim, seu avô sabia e sempre falava daqueles americanos. Foi buscar o avô, um velho magro e esperto, que nos conduziu jovialmente à estrada, que descemos até à baixada de um vale, depois atravessamos um riacho, tornamos a subir a montanha e chegamos finalmente a um amontoado de casas japonesas. Encontravam-se, agora, vazias e fechadas, mas vi o pequeno abrigo onde tínhamos vivido em segurança por algum tempo, entre amigos mas em grande pobreza, despidos, pela revolução, de tudo quanto possuíramos. Minha vida mudara completamente nos anos intermediários. Eu não era mais a jovem mulher quase desesperada que morara debaixo daquele teto e dos pinheiros curvados. Passei algum dinheiro ao velho e me afastei, sabendo que nunca voltaria. Mas, ao sairmos de Unzen, alguém nos chamou e paramos o automóvel. Era a jovem mulher e ela me entregou um embrulho.
- Meu avô disse que a senhora costumava comprar estes bolos de arroz para os seus filhos, falou ela. Era verdade. Eu havia esquecido, mas êle não.
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Oshima nos parecera bastante diabólica por ocasião de nossa viagem de investigação, em maio, mas agora era outubro e o vulcão estivera ativo e rebelde nos meses intermediários. Até mesmo em Tóquio o tempo estava ominoso. Planejáramos ir pelo ar e para isso fretáramos um avião que nos transportaria através do canal, por etapas, mas o dia amanhecera sombrio e cinzento e o piloto recusou-se a voar. Agora trabalhávamos contra o tempo, cada um de nós ansioso por chegar em casa, ou para pôr em dia trabalhos atrasados. E para evitar demoras, tomamos passagem no navio noturno. Havia um tufão ao largo e um navio também tem seus azares. Mas tínhamos corrido tantos riscos, havíamo-nos confiado tantas vezes ao mar e ao ar, que um risco a mais nos pareceu bastante razoável.
Em meio à chuva e ao vento sibilante rodamos para o cais, naquela noite, e embarcamos num velho e desequilibrado vapor. Felizmente estava escuro e não pudemos ver quantas pessoas embarcaram. Subimos todos a bordo, câmara, equipe, atores e o mais, e fomos imediatamente para as nossas cabinas. Em poucos minutos nos pusemos em movimento, rumando para o mar.
Estremeço ao lembrar-me daquela noite terrível. O mar estava agitado, o mar e a chuva eram inimigos em luta, mas, pior que tudo, o navio estava carregando quatro vezes mais o peso que comportava, em passageiros que eram centenas de colegiais em excursão a Oshima. Enjoavam às centenas, as pobres criaturinhas, e os lavatórios e corredores tornaram-se inúteis e intransitáveis. O verdadeiro perigo, porém, era o próprio navio. A estrutura superior era demasiado alta e o vapor oscilava de um lado para o outro de tal modo que punha em perigo nossas vidas. Sou uma navegadora experimentada e atravessei várias vezes os oceanos, desde a minha primeira viagem através do Pacífico, aos três meses de idade, até o meu último vôo através do mesmo oceano, poucos meses antes, a uma idade tornada indefinida, contudo nunca tive tanto medo como naquela comprida noite em demanda de Oshima. Antes do alvorecer, um amigo que viajava conosco
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entrou para ver como estava sua esposa, minha companheira de cabina. Seu bondoso rosto achava-se verde de terror.
- Estamos contrariando todas as leis de matemática, resmungou êle. - O navio está balançando num grau matematicamente impossível. Isto não pode ser. Pelo direito, já devíamos ter virado e afundado.
Deitei-me no beliche e meditei sobre uma vida estranha - a minha. Como é que uma mulher de maneiras suaves, pacífica, sem desejos, sem ambições ou mesmo inclinação para a aventura, consegue arranjar uma maneira de estar sempre dentro de uma aventura? Amo tão apaixonadamente o usual, o lugar comum, o dia a dia, que desligo instantaneamente a televisão quando começa um programa de aventuras. Não adianta. Estou constantemente envolvida em alguma ousada expedição e repelindo-a. E sempre odiei particularmente a idéia de me afogar no mar. Não gosto de nenhuma espécie de afogamento, mas se este tem de ser o meu fim, preferiria uma piscina pequena ou, melhor ainda, uma banheira. Contudo, perco a conta dos mares pelos quais viajei, não sei quantas vezes pelo Pacífico, pelo Atlântico um pouco menos, pelo Mediterrâneo, pelo Mar Vermelho, e por todos os mares que se encrespam ao redor das complexas costas da Ásia. Agora, aparentemente, encontraria meu destino entre Tóquio e Oshima. A Grande Onda, sem dúvida!
Amanheceu finalmente, uma alvorada úmida e fraca, o pálido sol franjado de neblina e o mar ainda rugindo e rosnando, suas ondas de crista branca em correntes contraditórias. O esmaecido contorno de Oshima emergiu do nada e corremos a enfiar as roupas. Em quinze minutos chegaríamos ao cais. Os quinze minutos tornaram-se uma hora, depois duas horas, enquanto continuávamos a rolar. Não podíamos atracar porque o mar estava demasiado agitado. Se não acalmasse, disseram-nos, seríamos obrigados a ir para o outro lado da ilha, onde havia um cais inferior. Não acalmou e fomos para o outro lado da ilha, para o cais inferior. Desembarcou uma longa procissão de colegiais pálidos mas resolutos e em seguida saltamos nós,
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rumando para o hotel através da chuva. Desta vez eu me achava demasiado abatida para protestar quando me encontrei novamente alojada no aposento do Imperador, alojamento que recusara na visita anterior por ser imponente demais para a modesta cidadã de uma república.
Tomamos um café rápido e nos dirigimos, em automóveis, para o sopé do vulcão. Havia cavalos esperando pelos que desejassem cavalgar. Preferi ir a pé, pois fazia alguns anos desde a última vez que montara a cavalo. Ademais a experiência me havia ensinado a desconfiar do cavalo, mula e pônei asiáticos. Levam uma vida dura, pois o asiático não é sentimental para com os animais, como nós, americanos. A filosofia da transmigração das almas conduz o asiático a crer que o ser humano que em vida foi um criminoso será, na fase seguinte, um animal do qual não se pode esperar que se comporte melhor do que o criminoso que nele habita. Embora não possa dizer que acredite nisso, se fosse julgar pelo comportamento dos cavalos que conheci na Ásia, posso pelo menos considerar possível que são, de fato, animados por alguma força má. "Não confie em cavalos", diz-nos o bom livro. A pé, por conseguinte, galguei o negro vulcão, subindo a uma paisagem escura e nua, espetacularmente, horrificamente bela.
Sob um tempestuoso céu cinzento o efeito era ainda mais sombrio e estranho. Fitas de vapor branco subiam de todas as brechas e fendas do vulcão e das altas montanhas circundantes. Não as tinha visto em minha visita anterior, o que se explicava pelo tufão, como verifiquei ao perguntar. A cratera do vulcão é muito grande e ficara ainda maior nos últimos dias, pois sob a chuva torrencial suas paredes se haviam desmoronado em diversos lugares. Onde quer que havia uma superfície, fora coberta e vedada. O vapor, assim retido, forçara seu caminho através de canais nas montanhas. Daí as fitas e bandeiras de vapor, todas sopradas pelo vento numa direção. Parei várias vezes para olhar o espetáculo, pois era um espetáculo. Tenho visto algumas das mais magnificentes paisagens do mundo, mas em questão de esplendor e de terror, ponho em primeiro lugar o vulcão da ilha de Oshima, naquele dia.
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Lá passamos dois dias, dias inquietos, maravilhosos, inesquecíveis. Pouco tempo antes de chegarmos o vulcão havia entrado em erupção, atirando grandes pedras ao ar e correndo a montanha. Agora havia guardas por toda parte, para impedir-nos a passagem, mas abrimos caminho até à beira da própria cratera, apesar deles, o câmara empoleirando-se precariamente em qualquer ponto que o suportasse ou contivesse. A descida para a cratera fazia-se em dois planos, um dos quais era um terraço circundante, o outro sem fundo e oculto por nuvens de vapor e gás malcheiroso. Câmara, equipe e diretor desceram ao terraço, mas eu fiquei no alto, não apenas porque sou prudente, mas porque os desolados guardas nos haviam advertido de que devíamos correr para salvar a vida ao menor rugido ou rumor do interior da cratera. Eu não desejava pôr em perigo os homens moços que, em tal caso, poderiam, por uma questão de honra, sentir-se obrigados a correr devagar para acompanhar-me.
O vento soprava áspero e frio e o trabalho prosseguiu sem os riscos e a jovialidade habituais. Rápidos e concentrados cada qual fêz sua parte. Confesso que meu coração perdeu várias pulsações enquanto a equipe andava na ante-sala da cratera, pulando por cima de grandes brechas, afundando no chão fofo de cinzas, postando-se na própria beira do abismo. Lembrei-me novamente de tudo isso quando as cópias foram exibidas no cinema de Nova York. Vi, na tela, o garoto Yukio com os olhos escancarados de medo, o vapor branco subindo sinuoso da cratera e envolvendo-o. Não era de espantar que gritasse a seu pai:
- Somos infelizes, nós, gente do Japão!
- Por que diz isso? pergunta o pai.
- O mar e a montanha trabalham para destruir-nos, responde o menino.
Ficamos contentes quando terminaram os dois dias, o trabalho concluído, e contudo não teríamos gostado de perder aquela experiência. Nunca esquecerei a paisagem, negra como o outro lado da Lua. Voamos por cima do mar, no terceiro dia, sob um céu claro, e chegamos ao aeroporto
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de Tóquio exatamente quarenta e cinco minutos depois, em segurança.
Cinco dias mais tarde o vulcão entrou em erupção e o chão negro de lava sobre o qual havíamos estado, caiu dentro do abismo.
Assim foi feito o filme. Tinha acabado, faltando apenas a cena da ressaca, que estava sendo montada no estúdio de efeitos especiais, em Tóquio. Para lá me dirigi no meu último dia. O famoso artista de efeitos especiais esperava-me, afável em seu terno novo, leve, chapéu e bengala. Tinha o ar confiante de quem sabe que fêz um trabalho triunfantemente bom e depois de mostrar-me a cena concordei com êle. Num espaço tão vasto quanto o Madison Square Garden, em Nova York, que é o maior lugar em que posso pensar no momento, êle reconstruíra Kitsu, as montanhas e o mar. As casas tinham um metro de altura, cada qual em perfeita miniatura, e tudo o mais proporcional. Do lado de fora passava um rio e a água corrente para a ressaca solta dentro do estúdio por grandes comportas dispostas num dos lados. Olhei dentro das casas, subi a pequena montanha, maravilhei-me com a exatidão da praia, e até as próprias rochas onde, na realidade, eu tantas vezes me abrigara. Mas o cenário ainda não estava pronto para a ressaca. Eu a veria depois, na tela, em toda a sua força e terror. Tinha, porém, visto tudo o mais, e me despedi, apresentei meus agradecimentos e parti.
Meu quarto de hotel tornara-se uma espécie de lar e me custava deixá-lo, mas sabia que minhavida nele havia terminado. Fora um lugar agradável e eu ali vivera em paz cada vez mais profunda. Agora, o velho medo de enfrentar outra vida sem êle e voltar só aos lugares onde sempre estivéramos juntos, assaltava-me de novo. Mas tinha de ser feito. Eu não podia escapar e não podia haver mais protelação.
- Volte, volte breve ao Japão, disseram meus queridos
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amigos. Prometi que sim e, afastando-me a custo, entrei sozinha no avião a jacto que me conduziria de volta novamente a Nova York.
Digo Nova York embora, naturalmente, Nova York fique apenas a caminho de minha fazenda na Pensilvânia. Mas fiz uma parada em Nova York, essa cidade de maravilhas e sofrimentos. Êle e eu sempre mantivemos um lugar de pouso em Nova York. Êle o necessitava para seu trabalho e seu espírito, e eu continuei nossa tradição. Não é o mesmo lugar que partilhamos durante tantos anos. Dentro dos confins de nosso velho apartamento eu não poderia escapar à tortura da recordação. Não sei se teria ficado lá ou não, mas os arranha-céus de aço e vidro tinham avançado pela nossa avenida e o prédio onde fizéramos o nosso lar da cidade estava para ser demolido. Encontrei outro apartamento num edifício novo, num bairro residencial mais afastado, onde não havia recordações a não ser as que trago, ocultas, onde quer que esteja.
E aqui conto uma história que nada tem a ver com o filme, fornecendo apenas uma cena de encerramento para mim mesma. Quando eu estava procurando o novo apartamento, uma das filhas ajudou-me a eliminar os impossíveis e levou-me afinal a ver dois ou três que poderiam servir. Era noite, lembro-me, quando olhei esses lugares. Eu estava com pressa e não parecia importar-me muito onde viveria. Entramos em quartos vazios, sem pintura. Olhei por uma ampla janela e discerni vagamente um prédio cujo teto dava para o apartamento. Uma escola, disse minha filha. Bom para mim, pois não haveria nenhum arranha-céu cortando-me a vista. Mas também não me preocupei muito com isso, pois quando é que tenho tempo, em Nova York, para olhar a paisagem? Além do mais, tenho muita paisagem em minha casa da Pensilvânia. Assim, decidi obedecendo a um impulso.
- Fico com êle.
A escolha foi ao acaso, diria eu, totalmente ocasional.
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Mas estou começando a crer que não existe no mundo essa coisa chamada puro acaso. Pois aqui está a preliminar dessa história de encerramento:
Quando eu era menina e relutava, freqüentemente, em fazer minhas obrigações, meu pai costumava dizer com firmeza, mas gentilmente:
- Se você não faz isso porque o certo é fazê-lo, então faça-o para a maior glória de Deus.
Para a maior glória de Deus, portanto, e por meu pai, embora ainda relutante, fiz o que tinha de ser feito, pelo menos tão freqüentemente quanto possível.
Agora a volta ao apartamento. Não o vi uma única vez enquanto estava sendo decorado. Quando tudo terminou, abri a porta e me encaminhei diretamente para a grande janela. Era um dia luminoso, lembro-me, um dos melhores dias de Nova York, o ar fresco do mar e o céu azul. E encarando-me, no prédio fronteiro, sob os beirais do telhado e ao longo do teto, vi essas palavras esculpidas em grandes letras de pedra:
AD MAIOREM DEI GLORIAM
Vejo-as agora, enquanto escrevo. Para a maior glória de Deus! Que significa esta voz do túmulo, do túmulo de meu pai? Êle jaz enterrado no topo de uma montanha, no próprio coração da China perdida para mim. Estou aqui, viva, a milhares de quilômetros de distância. Estamos em comunicação, êle e eu, através de meu pai? Não é possível.
Como ouso dizer que não é?
Algum dia saberemos. Que dia? Naquele dia, talvez, em que santos e cientistas se unirem para a busca total da verdade. São os santos, os crentes, que deverão ter a coragem de instar aos cientistas a que os ajudem a descobrir se o espírito continua sua vida de energia quando a massa que chamamos corpo cessa de ser o continente. A fé proporciona hipóteses, mas só a ciência pode fornecer o computador para a verificação. O descrente nunca prosseguirá na busca. É sempre estático, uma coluna de sal, eternamente olhando para trás.
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Não há milagres, disto tenho certeza. Se alguém caminha sobre a água, cura os enfermos e ergue os mortos novamente para a vida, não é uma questão de mágica mas sim de saber como fazê-lo. Não há sobrenatural; há apenas o supremamente natural, o puramente científico. Ciência e religião, religião e ciência, coloquem-no como quiserem, há dois lados da mesma lente, através da qual vemos obscuramente até que os dois, ajustando seu foco, revelam a verdade.
No dia em que a mensagem vier lá do distante horizonte onde reside "aquela grande maioria", os mortos, a prova nos alcançará, não como uma hoste de anjos no céu, mas como um comprimento de onda gravado num laboratório, um comprimento de onda tão indiscutível e pessoal como a impressão digital pertencente a alguém cujo corpo é pó. Então o cientista, reconhecendo o comprimento de onda, exclamará: "Mas é alguém que conheço! Tomei seu comprimento de onda antes de êle morrer". E comparará sua gravação com o comprimento de onda que acabou de gravar e saberá que pelo menos um aparelho, uma máquina, é capaz de receber uma mensagem há séculos sonhada, a mensagem da continuação da existência individual, que denominamos imortalidade da alma.
Ou talvez não seja um cientista que a receba, mas uma mulher esperando junto de uma janela aberta para o céu.

 

 

                                                                  Pearl S. Buck

 

 

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