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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


UMA PREÇE PARA DANNY FISHER / Harold Robbins
UMA PREÇE PARA DANNY FISHER / Harold Robbins

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                   

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Talvez em nenhum dos seus livros Harold Robbins tenha alcançado maior vigor dramático e maior intensidade lírica do que em "Uma Prece para Danny Fisher".
Sem dúvida, o realismo fundamental do escritor americano consagrado pelo público brasileiro serve de espinha dorsal ao romance, estruturando algumas das suas páginas mais fortes de paixão, exaltação dos sentidos e conflitos humanos. Mas por tudo isso passa como que uma corrente sangüínea vitalizante de ternura e emoção que sugere ao lado das torpezas da vida quotidiana o lado sentimental e a nota poética da vida.
Estará muito enganado, porém, quem julgar por essas palavras que se trata de um romance em oposição às características da literatura de Robbins. Há nele violência, explosão, sensualidade, perfídia e exaltação na maior abundância. O herói, criado numa família que tem de enfrentar tempos difíceis, encontra o rumo do sucesso na vida e o da afirmação da sua personalidade da maneira mais áspera e brutal.
A arte do romancista e o que dá categoria e valor ao livro é mostrar como, através de todas as vicissitudes e peripécias, o coração humano continua fiel às suas tendências, aos seus amores, e aos seus ódios, numa inflexível marcha para o destino, apesar de todos os desvios impostos pela vida.
Roteiro de uma existência humana plenamente passada entre o baixo-mundo de Nova York e entre criaturas mais ou menos marginais, "Uma Prece para Danny Fisher" é um relato empolgante pela sua intensidade e pelo seu tema fortemente lírico do destino criado pela vontade do homem.
Danny Fisher é a figura central do livro, em torno de quem evoluem pessoas e acontecimentos, numa família como tantas, em que o carinho materno não consegue atenuar a intransigência paterna. Há ainda um doce amor que dá sentido à vida, homens que se movem e vencem materialmente passando de um lado para outro das fronteiras do crime e até uma cadelinha que empresta a parte do livro uma nota de indizível ternura.

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Há muitas maneiras de ir ao cemitério de Mount Zion. Pode-se ir de automóvel, através das muitas belas estradas de Long Island, ou de subway, ou de ônibus ou de bonde. Há muitas maneiras de ir ao cemitério de Mount Zion, mas nesta semana não há maneira alguma que livre a pessoa de ser apertada e perturbada pela multidão.
Por quê? - perguntarão, decerto, porque, quando se está em plena vida, é um pouco assustador ir a um cemitério - salvo em determinadas ocasiões. Mas nesta semana, a semana anterior aos Grandes Dias Santos, é uma dessas ocasiões. Esta é a semana em que o Senhor Deus Jeová chama os Seus anjos para junto Dele e abre-lhes o Livro da Vida. E seu nome está escrito numa dessas páginas. Consta da página qual será o seu destino no ano que vai começar.
Durante esses seis dias, o livro ficará aberto e você terá a oportunidade de provar que merece a bondade Dele. Durante esses seis dias você se dedica a atos de caridade e devoção. Um deles é a visita anual aos mortos.
E para ter certeza de que a sua visita aos que partiram será notada e por ela lhe será dado o devido crédito, você apanhará uma pedrinha na terra aos seus pés e a colocará na sepultura para que o Anjo do Registro a veja quando passar pelo cemitério à noite.
Vocês chegam à hora marcada a um arco de pedra branca. As palavras CEMITÉRIO DE MOUNT ZION estão gravadas na pedra acima da sua cabeça. Vocês são seis. Olham-se sem jeito uns para os outros e as palavras lhes chegam com dificuldade aos lábios. Estão todos ali. E como por um acordo secreto, sem uma palavra, todos começam a mover-se ao mesmo tempo e transpõem aquele arco.
À direita, está a casa do administrador; à esquerda, o escritório dos registros. Nesse escritório, marcados pelo número da sepultura e pela sociedade funerária, estão os atuais endereços de muitas pessoas que caminharam sobre a terra com vocês e de muitos que caminharam sobre a terra antes do seu tempo. Vocês não param a fim de pensar nisso porque para vocês todos, exceto eu, pertencem a ontem.
Vocês caminham por uma longa estrada à procura de um certo caminho. Vêem afinal: números brancos num disco preto. Uniram pelo caminho lendo os nomes das sociedades funerárias sôbre cada seção de sepulturas. O nome que estão procurando é agora visível, letras pretas polidas em pedra cinzenta. Entram na seção.
Um velho baixo com o bigode e a barba manchados pelo fumo vem ao encontro de vocês. Sorri incertamente enquanto brinca com uma pequena insígnia na lapela. É o leitor das preces da sociedade funerária. Dirá as suas preces por vocês em hebraico porque tal é o costume há muitos anos.
Vocês murmuram um nome. ele bate com a cabeça mim gesto de aquiescência que tem alguma coisa de pássaro; conhece a sepultura que vocês procuram. Vocês o seguem, passando por cima de outras sepulturas porque o espaço ali é escasso, Ele pára e aponta com a mão velha e trêmula. Vocês fazem um gesto afirmativo, é aquela a sepultura que estão procurando e ele se afasta um pouco para trás.
Um avião passa roncando para pousar num aeroporto próximo, mas vocês não o olham. Estão lendo as palavras na sepultura. A paz e o sossego descem sobre vocês. As tensões do dia abandonam-lhes o corpo. Levantam os olhos e fazem um breve sinal para o homem que lê as preces.
ele se aproxima e fica diante de vocês. Pergunta os nomes para que possa incluí-los na prece. Um por um, vocês respondem a ele.
Minha mãe.
Meu pai.
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Minha irmã.
Marido de minha irmã.
Minha mulher.
Meu filho.
A prece dele é uma cantarola, um amontoado ininteligível de palavras que ecoa monòtonamente entre as sepulturas. Mas vocês não o estão escutando. Vocês estão cheios de recordações de mim. Para cada um de vocês eu sou uma pessoa diferente.
Afinal a prece termina, o leitor da prece É pago e vai cumtinuar os seus deveres em outro lugar. Vocês olham para o chão à procura de alguma pedrinha. Seguram-na cuidadosamente na mão e, cono os outros, um de cada vez, encaminham-se para a sepultura.
Embora o frio e a neve do inverno e o sol e a chuva do verão trilham estado perto de mim desde a última vez que estiveram aqui juntos, os pensamentos de vocês são de novo como eram daquela vez. Estou fortemente presente na recordação de todos, menos um.
Para minha mãe, sou uma criança assustada, que se aconchega ao seu seio e procura segurança nos seus braços.
Para meu pai, sou um filho difícil, cujo amor era difícil de rnfrentar, mas era tão forte quanto o meu por ele.
Para minha irmã, sou o brilhante e jovem irmão, cujo arrojo causava amor e medo.
Para o marido de minha irmã, sou o amigo que partilhou a esperança comum de glória.
Para minha mulher, sou o amante que, junto dela à noite, rendia culto com ela no santuário da paixão e juntou-se a ela num filho.
Para meu filho... para meu filho não sei o que sou, porque ele não me conheceu.
Há cinco pedras depositadas na minha sepultura e você, meu filho, ainda está ali pensando. Para todos os outros, eu sou real, mas, para você, não. Por que deve então você estar aqui e chorar a quem não conheceu?
Em seu coração, há o pequeno canto dolorido de um ressentimento de criança. Porque eu falhei a você. Nunca pôde contar as vantagens de que as crianças gostam: "Meu pai é o mais forte" ou o mais inteligente, ou o mais bondoso ou o mais carinhoso. Você tem escutado em amargo silêncio, numa frustração cada vez maior, enquanto os outros lhe diziam essas coisas.
15
L
Não fique sentido, nem me condene, meu filho. Suspenda o seu julgamento, se lhe é possível, e ouça a história do seu pai. Fui humano e, portanto, falivel e fraco. E embora em minha vida eu tenha cometido muitos erros e tivesse falhado a muita gente, eu não falharia voluntariamente a você. Escute-me então, é o que lhe peço, escute-me, ó meu filho, e saiba de seu pai.
Venha comigo até ao começo, ao princípio de tudo. Porque nós que fomos da mesma carne, do mesmo sangue e do mesmo coração, estamos juntos agora numa recordação.
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DIA DE MUDANÇA
1." DE JUNHO DE 1925
Volto às mais antigas recordações. É o dia do meu oitavo aniversário. Estou sentado na boléia de um caminhão e olho ansiosamente para as placas em cada esquina. Quando o caminhão se aproximou de outra esquina, tratou de diminuir a marcha.
- É neste quarteirão? - indagou o motorista ao preto que citava sentado ao meu lado.
O preto, imenso, virou-se para mim:
- É neste quarteirão, garoto? - Os dentes, grandes e brancos, destacavam-se em seu rosto.
Eu estava tão excitado que mal podia falar.
- É aqui sim -, respondi.
Contorci-me todo para olhar a rua. Era ali mesmo. Reconheci as casas, cada uma parecida com a outra - e sempre com uma árvore delgada na frente. Tudo parecia exatamente igual ao dia em que eu lá fora com Papai e Mamãe, no dia em que eles compraram a casa para mim, para o meu aniversário.
Naquela ocasião todos sorriam, até mesmo o corretor que vendera a casa a Papai. Mas Papai não estava se deixando enganar. Sabia o que queria. Disse ao corretor que a casa devia estar pronta no dia 1º de junho porque era o dia do meu aniversário e a casa era o meu presente.
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E no dia marcado a casa estava pronta como Papai queria, porque era 1° de junho, o dia do meu aniversário. E nós estávamos nos mudando para lá.
Lentamente o caminhão dobrou a esquina. Ouvi nitidamente o raspar suave dos pneus no cascalho quando o caminhão saiu da rua pavimentada. Minha nova rua não estava ainda pavimentada. Estava coberta com um cascalho cinzento. As pedras faziam barulho quando os pneus as levantavam no ar, lançando-as contra os pára-lamas.
De repente dei um pulo.
- Lá está ela - gritei, apontando com o dedo. É a minha casa. A última do quarteirão. A que está isolada das outras. ,
O caminhão começou a frear para parar em frente à minha casa. Vi o nosso carro parado na entrada de automóveis. Mamãe e minha irmã, Miriam, que era dois anos mais velha que eu, tinham ido na frente para levar o pão e o sal à casa nova e arrumar as coisas para a chegada. Mamãe queria que eu fosse com ela, mas preferi ir no caminhão e o motorista disse que podia.
Tentei abrir a porta antes que o caminhão parasse, mas o preto segurou-a e disse com um sorriso:
- Espere um instante, garoto. Você ficará por aqui bastante tempo.
Quando o caminhão parou, ele largou a porta. Na pressa de descer, tropecei no estribo e estatelei-me no chão. Ouvi uma imprecação resmungada nas minhas costas e senti que mãos fortes me seguravam para pôr-me de pé.
A voz rouca do preto indagou nos meus ouvidos:
- Machucou-se, garoto?
Sacudi a cabeça. Não creio que pudesse falar, mesmo que o quisesse - estava muito absorvido contemplando a casa.
Era de tijolos avermelhados, com o teto de tabuinhas marrons. Na frente da casa havia um pequeno alpendre, quase uma varanda. Era a casa mais bonita que eu já vira. Aspirei o ar orgulhosamente e olhei para o outro lado da rua a fim de ver se alguém me estava observando. Não havia ninguém. Éramos as primeiras pessoas do quarteirão que se mudavam.
O preto estava de pé ao meu lado.
- É uma casa linda -, disse éle. - Você é um garoto de sorte em possuir uma casa bonita como esta.
Sorri-lhe agradecido porque, quando lhe dissera pouco antes que Papai me dera a casa como presente de aniversário, sua reação fora de zombaria, como a de todos os outros.
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Logo depois subi as escadas correndo e bati na porta.
- Mamãe! Mamãe! Sou eu, estou aqui.
A porta abriu-se e lá estava Mamãe, com um lenço na cabeça. Passei por ela e fui até o meio da sala. Tudo na casa cheirava a novo: a tinta das paredes, a madeira das escadas, tudo enfim era novo.
Ouvi Mamãe perguntar ao motorista por que demorara tanto.' Perdi sua resposta porque estava contemplando a escada, mas Mamãe voltou para a sala murmurando algo sobre prolongar o serviço por receber o pagamento por hora.
Segurei-a pelo braço, indagando:
- Mamãe, qual é o meu quarto?
Pela primeira vez eu ia ter um quarto inteiramente meu. Antes daquele dia, vivíamos em um apartamento onde eu dormia num quarto com minha irmã. E então, certa manhã, pouco antes de Papai decidir comprar-me uma casa, Mamãe entrara em nosso quarto e eu estava sentado na cama vendo Mimi vestir-se. Mamãe olhou para mim e, mais tarde, na hora do café, disse-nos que íamos ter uma casa e eu passaria a ter um quarto só meu.
Naquela hora, me respondeu:
- É o primeiro lá de cima, ao lado da escada, Danny. E agora não fique no meu caminho pois tenho muita coisa a fazer.
Subi a escada aos pulos, os saltos dos sapatos ressoando sonoramente. No alto da escada, hesitei por um momento, olhando ao redor. O quarto grande da frente era de Mamãe e Papai, depois vinha o de Miriam e depois o meu. Abri a porta do meu quarto e entrei devagar.
Era um quarto pequeno. Tinha duas janelas e, através delas, eu podia ver as duas janelas da casa do outro lado da rua. Virei-me e fechei a porta. Atravessei o quarto e encostei o rosto na janela, tentando ver o que havia lá fora. Não consegui enxergar muita coisa e, por isso, abri a janela.
Olhei para a estradinha que corria entre as casas. Bem embaixo de mim estava a capota do Paige novo, o carro que Papai acabara de comprar. Um pouco acima, atrás da casa, havia uma garagem. Atrás da garagem não havia nada - só terrenos baldios. Aquele era um novo bairro em Flatbush. Todos os lotes eram antes terrenos baldios, mas a cidade os fora ocupando. Para os lados da esquina, estavam construindo mais casas parecidas com a nossa e pude vêlas quando me ergui na ponta dos pés na janela.
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Voltei para o centro do quarto e, lentamente, dei uma volta, examinando cada parede. E, durante todo o tempo, dizia para mim mesmo, baixinho:
- Meu quarto, este é o meu quarto.
Senti um nó formar-se em minha garganta, uma sensação engraçada. Como daquela vez em que fiquei ao lado do caixão de Vovô, segurando a mão de Papai, e olhando para o rosto mais branco com o pequeno yamalka preto na cabeça. A voz de Papai soara suavemente nos meus ouvidos.
- Olhe para ele, Danny -, disse-me, embora parecendo que estava falando mais para si próprio. - Este é o fim a que todos os homens chegam, esta é a última vez que podemos olhar o seu rosto.
Papai então curvou-se e beijou o rosto sereno dentro do caixão e eu também fiz o mesmo. Os lábios de Vovô estavam gelados e não se moveram quando os meus os tocaram. Um pouco do frio deles percorreu-me o corpo.
Havia um homem ao lado do caixão com uma tesoura. Papai abriu o paletó e o homem cortou um pedaço de sua gravata. O homem lançou-me um olhar de interrogação. Papai acenou afirmativamente com a cabeça e disse em iídiche:
- ele é do seu sangue.
O homem cortou também um pedaço da minha gravata e senti um nó na garganta. Era uma gravata e a estava usando pela primeira vez. Agora, nunca mais poderia usá-la. Olhei para Papai. Estava olhando para o caixão e seus lábios se mexiam. Apurei os ouvidos para entender o que estava dizendo, mas não consegui. ele largou minha mão e eu corri para Mamãe, ainda com o nó na garganta.
Agora, sentia a mesma coisa.
De repente, joguei-me ao chão e apertei o rosto contra ele. O chão estava frio e o cheiro do verniz novo entrou-me pelo nariz e os olhos começaram a arder. Fechei os olhos e ali fiquei por alguns minutos. Depois, apertei os lábios contra o chão frio.
- Eu te adoro, casa -, sussurrei. -Você é a casa mais bonita que existe no mundo inteiro. E você é minha e eu te adoro.
- Danny, que está fazendo deitado no chão?
Fiquei em pé de um pulo e olhei para a porta. Era Miriam. Tinha um lenço amarrado na cabeça, como mamãe.
- Nada -, respondi sem jeito.
Ela olhou para mim com estranheza. Pude ver que não conseguia imaginar o que eu estava fazendo.
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- Mamãe disse para você descer e não atrapalhar. Os homens já vão trazer a mobília aqui para cima.
Segui-a para o andar de baixo. O aspecto de novo da casa já estava começando a desaparecer. Nos degraus, pude ver lugares onde os nossos pés tinham desgastado a cera. A mobília estava na sala de estar e o tapete, antes pendurado em uma vara de bambu, estava num canto, pronto para ser colocado quando os homens houvessem acabado.
Mamãe estava em pé no meio da sala. Havia umas pequenas manchas de sujeira em seu rosto. Perguntei-lhe.
- Há alguma coisa que queira que eu faça, Mamãe?
Ouvi o sorriso de escárnio de Miriam atrás de mim. Ela não gostava de meninos e achava que não prestavam para coisa alguma. Deixava-me irritado.
- Há alguma coisa, Mamãe? - insisti.
Mamãe sorriu-me e seu rosto enterneceu-se. Gostava quando ela me sorria. Pôs a mão em minha cabeça e, de brincadeira, puxoume os cabelos.
- Não, Lourinho -, respondeu. - Por que não vai até lá fora e não brinca um pouco? Eu o chamarei quando precisar de você.
Sorri-lhe também. Sabia que estava se sentindo òtimamente quando me chamava de Lourinho. Sabia também que isso irritava Minii. Eu era o único louro da família, todos os outros eram morenos. Papai costumava, de vez em quando, bulir com Mamãe por causa disso, o que sempre a deixava com raiva, não sei por quê.
Olhei em triunfo para Mimi e saí de casa. Os homens haviam descarregado o caminhão e havia um bocado de mobília na rua. Fiquei lá, vendo-os trabalhar, por algum tempo. O dia estava quente e o negro tirara a camisa. Podia ver seus músculos agitando-se sob a pele negra. O suor escorria de seu rosto, porque fazia a maior parte do trabalho enquanto o outro homem estava sempre falando e dizendo-lhe o que fazer.
Depois de algum tempo, cansei-me de observá-los e mirei todo o quarteirão até a esquina, imaginando que espécie de vizinhança teríamos. O campo aberto do quarteirão atrás de minha casa, que vira pela janela do quarto, intrigava-me. Nas proximidades de nossa casa velha não havia um único terreno baldio, apenas as grandes e feias casas de apartamentos.
Através da porta aberta da minha casa vi que Mamãe estava OCUpada e, quando perguntei se podia dar uma volta pelo quarteirão, não houve resposta. Saí do alpendre e encaminhei-me para a esquina, sentindo-me feliz e orgulhoso - tinha uma casa tão bonita e o dia estava tão lindo.
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Esperava que todos os meus aniversários fossem bonitos assim.
Ouvi os ganidos assustados de um cachorro assim que dobrei a esquina. Olhei na direção do barulho, mas não consegui determinar de onde partia exatamente. De qualquer maneira, dirigi-me para onde supunha que estivesse o cachorro.
As redondezas mal começavam a desenvolver-se - Hyde Park, era como a chamavam, em Flatbush Leste, seção de Brooklyn. Caminhei pela rua de casas inacabadas, cujas estruturas nuas de madeira branca refulgiam ao sol brilhante da tarde. Atravessei a rua seguinte e os prédios ficaram para trás. Ali só havia terrenos vazios. Os ganidos assustados do cachorro soavam agora um pouco mais altos, mas eu ainda não podia determinar de onde vinham. Era estranho pensar como os sons podiam chegar a grandes distâncias, aqui, no espaço aberto. Onde vivíamos antes, perto da farmácia de Papai, não se podia ouvir um barulho mesmo partido da outra esquina. O terreno da quadra seguinte ainda não fora ocupado e era apenas um grande buraco vazio de uma esquina a outra. Logo que o buraco fosse aterrado, pensei, começariam a construir aqui também.
Eu já podia determinar de onde partiam os ganidos: da quadra seguinte. Vi dois garotos na beira do buraco, olhando para baixo. O cachorro devia ter caído lá dentro. Apressei o passo e, num instante, estava ao lado dos garotos. Um cachorrinho castanho estava ganindo, enquanto procurava escalar a borda do buraco. Conseguia subir um pouco, mas depois escorregava e caía de novo no fundo do buraco. Naquele momento gania mais alto, enquanto rolava para o fundo. Os dois garotos riam, eu não sabia por quê. Não achava aquilo engraçado.
- É o seu cachorro? - perguntei.
Ambos viraram-se para olhar-me. Não responderam. Repeti a pergunta.
O garoto maior perguntou:
- Quem quer saber?
Algo em seu tom de voz assustou-me. Não era nada cordial. - Estou apenas perguntando.
ele veio em minha direção, bamboleando um pouco, era maior que eu.
- E eu disse: quem quer saber ?
Sua voz estava ainda mais áspera. Dei um passo para trás, desejando não ter saído da casa nova.
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Mamãe dissera-me apenas que não ficasse no caminho até que os homens da mudança terminassem de colocar toda a mobília dentro da casa.
- O cachorro é seu? - insisti, tentando sorrir e forçando a voz para não tremer.
O garoto grande aproximou o rosto bem perto de mim. Olhei-o, com firmeza, bem nos olhos.
- Não -, respondeu ele, depois de algum tempo.
Virei-me para ver novamente o cachorro, que continuava tentando a escalada do buraco. A voz do garoto grande soou bem junto de meu ouvido:
- De onde você é? Nunca o vi por aqui. Virei-me para ele.
- Rua 48, este. Mudamos hoje. Para as casas novas. Somos a primeira família de todo o quarteirão.
Seu rosto estava sombrio e fechado. Perguntou: - Qual é seu nome?
- Danny Fisher. E o seu?
- Paul -, disse ele, acrescentando, e este é meu irmão Eddie. Ficamos em silêncio por um minuto, olhando o cachorro, que conseguiu subir a metade do caminho antes de cair de costas novamente. Paul sorriu.
- É engraçado. Esse cachorro tolo não vai ter inteligência bastante para sair daí.
- Não acho tão engraçado -, retruquei. - Talvez o pobre cachorro nunca consiga sair.
- E daí? - zombou Paul. - ele bem o merece por ter caído lá antes.
Eu não disse nada. Ficamos parados na beira do buraco, olhando o cachorro. Ouvi algo mover-se do outro lado e virei-me. Era Eddie, um garoto menor que eu. Sorri-lhe e ele também me sorriu.
Paul passou por mim e foi ficar ao seu lado. Havia algo em suas maneiras que nos fêz parar de sorrir. Eddie parecia envergonhado - e eu não podia imaginar o motivo.
- Para que escola você vai? - perguntou Paul.
- Não sei -, respondi. - Acho que para aquela perto de L'tica, na Avenida D.
- Em que ano você está?
- No quarto ano.
- Quantos anos você tem?
- Oito -, respondi orgulhosamente. - Hoje é o dia do meu aniversário. Por isso é que nos mudamos. Papai comprou-me a casa como presente de aniversário.
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Paul fungou desdenhosamente. Senti que não conseguira impressioná-lo.
- Você é um garoto esperto, não? Você está na mesma turma que eu, que já tenho 9 anos.
- É certo, mas saltei o terceiro ano -, respondi quase em tom de desculpa.
Seus olhos tornaram-se frios e desconfiados.
- Você vai ao Sagrado Coração?
- Fiquei intrigado e indaguei:
- O que é isto?
- A Igreja do Sagrado Coração. Perto de Troy.
- Não -, respondi, sacudindo a cabeça.
- A Santa Cruz então? Aquela igreja grande onde fica o cemitério?
- Que cemitério? - perguntei. Estava começando a sentir-me estranho. Não queria responder à pergunta. Imaginava o que havia de tão importante neste assunto para ele continuar a fazer perguntas.
ele apontou na direção da Estrada Clarendon. Uma quadra depois dela via-se a grade de ferro acabando em cruz do cemitério. Virei-me para ele, dizendo mais uma vez que não.
- A que igreja você vai então? - insistiu.
- A igreja nenhuma.
ele ficou calado por alguns instantes, pensando em minha resposta.
- Você não acredita em Deus? - perguntou finalmente.
- Acredito, sim. Mas não vou à igreja. ele me olhou cèpticamente.
- Se você não vai à igreja, então não acredita em Deus.
- Acredito, sim. - Podia sentir que lágrimas de raiva começavam a chegar-me aos olhos. ele não tinha o direito de dizer aquilo. Empertiguei-me todo e declarei com voz estridente.
- Sou judeu e freqüento uma sinagoga.
Os dois irmãos se entreolharam, como compreendendo tudo, subitamente. Os seus rostos se transformaram em máscaras sombrias e inamistosas. Paul deu um passo ameaçador em minha direção. Instintivamente, dei um passo para trás. Meu coração estava aos pulos. Procurava imaginar o que os deixara tão irritados. Paul aproximou o rosto do meu, rosnando:
- Por que você matou Cristo?
Fiquei bastante apavorado com a selvageria de sua voz.
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- Não O matei, respondi com a voz trêmula. Nem mesmo O conheci.
- Matou, sim! - A voz de Eddie estava mais alta que a de seu irmão e igualmente selvagem. - Meu pai nos disse! Disse que os judeus O mataram, que O pregaram na cruz. Disse também que vão mudar-se para as casas novas do bairro.
Tentei acalmá-los, dizendo de forma apaziguadora:
- Talvez alguns judeus que eu não conheço O tenham matado, mas minha mãe sempre disse que ele era um rei dos judeus.
- Eles O mataram, de qualquer forma -, insistiu Paul.
Pensei por alguns segundos. O cachorro começou a ganir novamente, mas fiquei com medo de virar-me para olhá-lo. Tentei mudar de assunto.
- Devemos tentar tirar aquele cachorro de lá.
Eles não responderam. Notei que ainda estavam fora de si. Tentei pensar em alguma coisa que os satisfizesse. E sugeri.
- Talvez eles O tenham matado porque ele era um mau rei. Seus rostos empalideceram. Fiquei apavorado e virei-me para correr, mas não fui rápido bastante. Paul segurou-me, torcendo-me o braço. Tentei livrar-me, mas não consegui. Comecei a chorar.
O rosto de Paul abriu-se num sorriso de desprezo. Largou meu braço e deu um passo para trás, dizendo:
- Então você quer tirar o cachorro do buraco?
Tentei sufocar meus soluços. Com a mão, limpei os olhos.
- Quero, sim.
ele respirou profundamente, continuando a sorrir.
- Está certo, judeuzinho. Vá buscá-lo.
Avançou de repente em minha direção, os braços estirados.
Em pânico, tentei sair de seu caminho, mas suas mãos atingiram-me o peito e todo o ar saiu dos meus pulmões. Comecei a rolar para dentro do buraco. Procurei algo em que segurar para não chegar ao fundo, mas nada havia. Bati no fundo do poço e por um minuto fiquei lá estendido, procurando recobrar o fôlego.
Ouvi um rosnido entre lamuriento e feliz e uma língua morna lambeu-me o rosto. Sentei-me. O cachorrinho marrom, que era apenas um filhote, estava lambendo meu rosto, batendo a cauda e dando pequenos ganidos de felicidade.
Levantei-me e olhei para cima. Agora sentia vergonha por ter chorado, mas, de alguma forma, o cachorro parecia tão feliz em verme que eu não tinha mais medo.
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Paul e Eddie estavam olhando para mim.
- Safados imundos! - gritei. Era o pior palavrão que conhecia. Vi-os se abaixarem e apanharem alguma coisa no chão. Um
segundo depois uma chuva de pedras caiu em cima de nós. O cachorro ganiu quando uma delas atingiu-o. Cobri a cabeça com os braços até a chuva de pedras parar, mas nenhuma me atingiu. Olhei novamente para eles.
- Vou pegar vocês dois por causa disso! Eles sorriam com escárnio.
- Judeu desgraçado! - berrou Paul.
Peguei uma pedra e joguei neles, mas caiu longe. Outra chuva de pedras caiu em cima de mim. Dessa vez, não cobri o rosto com bastante rapidez e uma me acertou no rosto. Arremessei outra pedra contra eles, mas também não acertou. Eles se abaixaram para apanhar mais pedras.
Corri para o centro do buraco, onde as pedras não podiam atingir-me. O cachorro correu ao meu lado. Lá, sentei-me numa pedra grande. O cachorro encostou-se a mim e cocei sua cabeça. Enxuguei o rosto com a manga da camisa e olhei de novo para os dois irmãos.
Estavam gritando e agitando os punhos em minha direção, mas não consegui ouvir o que diziam. O cachorro estava sentado aos meus pés, abanando a cauda e olhando-me. Curvei-me e encostei meu rosto nele.
- Está tudo bem, cachorrinho. Quando eles se forem embora, vamos sair daqui.
Levantei-me e, pondo o polegar no nariz, fiz uma careta para eles. Ficaram bastante irritados e jogaram mais pedras em mim. Ri para eles - não podiam atingir-me de onde estavam.
O sol começara a desaparecer quando se foram finalmente embora. Sentei-me na pedra e esperei um pouco. Fiquei ali mais meia hora antes de convencer-me de que haviam mesmo ido. Já era quase noite fechada.
Caminhei para a borda do poço e olhei para cima. Era bastante alto e íngreme, mas pensei que não haveria grande dificuldade na escalada. Havia bastante pedras e arbustos e podia apoiar-me neles. Apoiei-me em uma pedra grande e, lentamente, iniciei a escalada, baseando-me nas mãos e nos joelhos para não cair de costas. Subira já cerca de um metro e meio, quando ouvi o som lamuriento atrás de mim. Olhei para trás.
O cachorro estava sentado no fundo do poço olhando para mim, os olhos brilhando. Quando viu que eu virara para olhá-lo, deu um latido agudo e feliz.
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- Está bem, venha. Que está esperando ?
ele pulou contra a encosta e começou a trepar em minha direção. Arrastava-se também de barriga. A um palmo de mim, começou a escorregar. Segurei-o pelo cangote e puxei-o para perto de mim. A calda se agitava alegremente.
- Venha -, disse eu. - Vamos sair daqui.
Comecei a subir novamente e movi-me quase um metro. Olhei para o lado a fim de ver como o cachorro se estava saindo, mas não o enxerguei. Estava parado onde o deixara, a cauda pendente, os olhos cravados em mim. Chamei-o. Sua cauda agitou-se, mas ele não se moveu. Não ia mesmo mover-se, por isso comecei a subir novamente.
Subira cerca de um metro quando ele começou a dar ganidos altos e agudos. Parei para olhá-lo. Imediatamente o ganido cessou e a cauda voltou a balançar-se.
- Está certo -, disse eu. - Vou descer para ajudá-lo. Voltei cuidadosamente para onde ele estava e apanhei-o pelo
cachaço. Segurando-o com uma das mãos, comecei novamente a escalada. Gastei quase 15 minutos para subir a metade do caminho, puxando-o para cima depois de cada passo. Parei então para recuperar o fôlego. Meu rosto e minhas mãos estavam cobertos de terra e minhas calças e camisas estavam rasgadas. O cachorro e eu grudamo-nos à parede do poço, com medo de escorregarmos e cairmos novamente no fundo.
Depois de alguns minutos, começamos a subir novamente. Estávamos quase no alto quando uma pedra cedeu sob o meu pé e escorreguei. Frenèticamente, larguei o cachorro e agarrei-me à parede do poço numa tentativa de não cair. Escorregara apenas menos de um metro quando meus dedos conseguiram firmar-se na parede do poço. O cachorro começou a ganir. Virei-me para olhá-lo, mas ele caíra.
Olhei para o fundo do poço. Estava levantando-se. Olhou para mim e deu um latido curto. Quando me virei e recomecei a escalada, ele voltou a ganir. Procurei não ouvir os seus ganidos lamurientos, que partiam do fundo de sua garganta. Corria de um lado para outro, parando a cada instante para olhar-me e chorar. Parecia estar coxeando. Chamei-o. Parou e olhou-me, a cabeça um pouco de lado.
- Venha! - disse eu.
ele pulou em direção à parede do poço e tentou escalá-la até onde eu estava, mas escorregou e caiu. Chamei-o novamente e mais uma vez ele tentou e caiu.
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Finalmente, sentou-se e, erguendo uma das patas em minha direção, começou a ganir.
Sentei-me e escorreguei para o fundo do poço. ele correu para os meus braços com a cauda abanando. A para deixou-me uma marca de sangue na camisa quando o peguei para examiná-lo. As delicadas patas haviam-se cortado e escalavrado de encontro às pedras.
- Está muito bem, cachorrinho -, disse eu suavemente. Vamos sair daqui juntos. Não o abandonarei.
Pareceu compreender minhas palavras, pois balançou a cauda alegremente e lambeu-me o rosto com a língua suave e úmida. Coloquei-o no chão e dirigi-me para o outro lado do poço, em busca de um lugar mais fácil de escalar. ele correu ao meu lado, os olhos sempre cravados em mim. Esperava que Mamãe me deixasse ficar com ele.
Já era quase noite. Começamos novamente a subir, mas de nada adiantou. A menos da metade do caminho, escorreguei e fui novamente ao fundo do poço. Estava bastante cansado e com muita fome. Não íamos conseguir. Até a Lua surgir, não adiantava tentar de novo.
Sentei-me em uma pedra no meio do poço e procurei pensar no que devia fazer. Mamãe devia estar zangada porque eu não chegara em casa na hora do jantar. Fazia frio e comecei a ter arrepios. Tentei abotoar o botão do colarinho da camisa, mas ele caíra.
Uma sombra escura correu perto de mim na escuridão. O cachorro rosnou e avançou para abocanhá-la. De repente, fiquei com medo: havia ratos no poço. Abracei-me ao cachorro e comecei a chorar. Nunca conseguiríamos sair. Outro rato passou perto de nós. Com um grito apavorado, corri para a borda do poço e tentei subila. Tentei várias vezes, mas em todas escorreguei e caí.
Fiquei finalmente estirado no chão, exausto demais para mover-me. Estava molhado e sentindo-me mal. Recuperei o fôlego e comecei a gritar:
- Mamãe! Mamãe!
A voz ecoou surdamente através do poço. Continuei a gritar até ficar rouco e a voz ser apenas um guincho em minha garganta. Não houve resposta.
A Lua finalmente surgira no céu e sua luz branca arrancava uma sombra profunda de cada pedra. A noite estava viva, cheia de sons estranhos e movimentos esquisitos. Quando comecei a pôr-me de pé, um rato veio chocar-se contra o meu peito.
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Caí novamente no chão, gritando aterrorizado. O cachorro pulou atrás do rato e abocanhou-o ainda no ar. Com um safanão raivoso quebrou-lhe o pescoço e atirou-o longe.
Fiquei de pé e encostei-me contra a parede do poço, por demais apavorado e enregelado para fazer outra coisa senão olhar. O cachorro ficou na minha frente, o pêlo todo eriçado e latindo. Seus gritos soavam como se cem cachorros estivessem despertos e latindo na noite.
Não sei quanto tempo ficamos ali, dessa maneira. Meus olhos queriam fechar-se e tentei mantê-los abertos, mas não consegui. Finalmente, exausto, caí no chão.
Agora já não sabia mais se Mamãe estaria zangada comigo. Não era minha culpa. Se eu não fosse judeu, Paul e Eddie não me teriam jogado no fundo do poço. Quando saísse, perguntaria a Mamãe se, por favor, não poderíamos ser outra coisa. Talvez, então, não ficassem mais com raiva de mim. Mas, bem no fundo de mim, sabia que mesmo isso não faria muita diferença. Mesmo que Mamãe quisesse, Papai não mudaria. Eu sabia disso. Depois que formava opinião sobre alguma coisa, nada o fazia mudar. Por isso permanecera judeu ao longo de todos aqueles anos. Não, de nada adiantaria.
Mamãe devia estar bastante zangada comigo. Era horrível, lembro-me de ter pensado quando comecei a adormecer, era horrível que isto acontecesse depois da ótima maneira que o dia começara.
Os latidos do cachorro eram agora mais altos e, misturados com o desagradável eco, ouvi alguém chamando o meu nome. Tentei abrir os olhos mas não consegui, de tão cansado que estava.
A voz era cada vez mais alta, mais insistente.
- Danny! Danny Fisher!
Meus olhos agora estavam abertos. A luz soturna da Lua formava sombras fantásticas no poço. Uma voz de homem chamou novamente o meu nome. Lutei para levantar-me e tentei responder, mas não consegui pronunciar palavra alguma. Era apenas um sussurro fraco e rouco. O cachorro começou novamente a latir furiosamente. Ouvi vozes no alto do poço. Os latidos do cachorro eram cada vez mais estridentes e excitados.
O clarão de uma lanterna caiu no poço e começou a mover-se, à minha procura. Sabia que não podiam ouvir-me e, assim, corri atrás do clarão da lanterna, procurando mostrar-me. O cachorro correu nos meus calcanhares, sempre latindo.
De repente a luz estava em cima de mim e fiquei quieto. Coloquei as mãos nos olhos, pois a luz estava incomodando. Uma voz de homem gritou:
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- Lá está ele!
Outra voz soou na escuridão acima de mim:
- Danny! Danny! Você está bem? Era a voz de Papai.
Ouvi então o barulho de um homem escorregando pela borda do poço em minha direção. Corri para ele, chorando, e senti que me pegava no colo. Estava tremendo. Senti seus beijos em meu rosto,
- Danny, você está bem? perguntou-me.
Apertei meu rosto de encontro a ele. Estava todo arranhado e dolorido, mas a sensação da lã áspera de seu terno era bastante agradável.
- Estou bem, Papai -, disse entre soluços. - Mamãe é que vai ficar zangada: rasguei as calças.
Algo que parecia uma risada soou em sua garganta.
- Mamãe não vai ficar zangada.
Erguendo o rosto para o alto do poço, ele gritou:
- O garoto está bem. Jogue uma corda para sairmos daqui.
- Não esqueça o cachorro, Papai, - disse eu. - Temos também de tirá-lo daqui.
Papai curvou-se e coçou a cabeça do cachorro.
- Certo, vamos tirá-lo daqui. Se ele não estivesse latindo, não teríamos descoberto onde você estava.
Virou-se de repente e olhou-me.
- É por causa dele que você está aqui embaixo?
Sacudi a cabeça.
- Não -, respondi. - Paul e Eddie jogaram-me aqui porque sou judeu.
Papai olhou para mim de modo estranho. A corda caiu aos nossos pés e ele abaixou-se para apanhá-la. Eu mal pude ouvir as palavras que murmurou:
- O bairro é novo, mas as pessoas são as mesmas.
Não sabia o que ele queria dizer com isso. Enrolou a corda na cintura e apanhou-me com um braço, segurando o cachorro com o outro. A corda esticou-se e começamos a mover-nos para a borda do poço.
- Você não está com raiva, não é, Papai?
- Não, Danny, não estou com raiva.
Ficou em silêncio enquanto nos aproximávamos da borda do POÇO.
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- Então, posso ficar com o cachorro, Papai? - perguntei. - É um cachorro tão bonito!
O cachorro deve ter adivinhado que estávamos falando dele. A cauda sacudiu-se contra o corpo de Papai.
- Vamos chamá-lo de Rexie Fisher -, acrescentei.
Papai olhou para o cãozinho e depois para mim. Começou a rir.
- Você vai chamá-la de Rexie Fisher. Não é ele, é ela.
O quarto estava escuro, mas eu me sentia aquecido e confortável depois do banho que tomara, deitado na cama. Havia sons novos dentro da noite, sons que vinham da janela, novos sons com os quais devia viver. Meus olhos estavam bem abertos sob o impacto deles, mas não estava com medo. Nada havia para temer. Estava em minha casa, em meu quarto. Subitamente meus olhos começaram a fechar-se. Virei-me de lado e minha mão roçou na parede. Estava áspera da tinta quase fresca.
- Eu te adoro, casa -, murmurei meio adormecido.
Debaixo da minha cama o cachorro moveu-se e deixei o braço cair. Senti o seu focinho na palma da minha mão. Meus dedos coçaram-lhe a cabeça. Seu pêlo estava úmido e frio, pois Mamãe fizera Papai dar um banho em Rexie antes de deixar-me levá-la para o meu quarto. Sua língua lambeu-me os dedos.
- Eu te adoro também, Rexie --, sussurrei.
Uma sensação de quentura, conforto e abandono começou a penetrar-me. Lentamente, senti que o último vestígio de tensão me deixava o corpo e o nada que é o sono dominava-me.
Eu estava em casa. E o primeiro dia da minha vida de que me lembro transformou-se em ontem e todos os dias da minha vida transformaram-se em amanhã.
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TODOS OS DIAS DA MINHA VIDA
LIVRO PRIMEIRO
O Sol comprimia-se tèpidamente contra minhas pálpebras fechadas. Um pouco incomodado, coloquei o braço sobre os olhos e movi impacientemente a cabeça no travesseiro. Por alguns instantes senti-me em posição confortável, mas logo a luz do sol insinuou-se sob meu braço e despertou-me. Deixei de tentar esconder-me dela e sentei-me na cama, esfregando os olhos. Havia acordado.
Espreguicei-me. Bocejei. Afastei os cabelos dos olhos e olhei, sonolento, pela janela. Era uma manhã clara e brilhante. Desejei poder continuar a dormir, mas a janela dava para leste e o Sol matutino sempre batia em meu rosto.
Olhei preguiçosamente para o quarto. Minhas roupas estavam em cima de uma cadeira, amarrotadas. A raquete de tênis com as cordas meio frouxas - que eu nunca tinha tempo de retesar - estava encostada na cômoda. O velho despertador, em cima da cômoda e perto do pente e da escova, indicou-me que já passavam 15 minutos das 7 horas. A flâmula púrpura e branca do Ginásio Erasmus Hall estava pendurada no espelho.
Olhei para baixo, ao lado da cama, procurando os chinelos. Não estavam lá. Sorri, pois sabia onde estavam. Rexie constumava puxálos para debaixo da cama e deles fazia um travesseiro. Abaixei-me e cocei-a. Ela levantou a cabeça e preguiçosamente abanou a cauda.
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Cocei-a novamente e tirei os chinelos. Levantei-me e calcei-os. Rexie fechara os olhos e dormia novamente.
Ouvi um som débil vindo do quarto de meus pais enquanto andava para abrir a janela. Isso trouxe-me à lembrança o fato de que hoje era o meu grande dia; o dia do meu Bar Mitzvah. Comecei a sentir-me nervoso. Esperei não esquecer nenhum dos elaborados rituais hebreus que aprendera especialmente para a ocasião.
De pé, em frente à janela aberta, respirei profundamente. Devagar, comecei a contar mentalmente:
- Para dentro, dois - três - quatro; para fora, dois - três - quatro.
Em poucos minutos, senti que o nervosismo desaparecia. Tudo daria certo, não esqueceria coisa alguma. Ainda olhando pela janela, tirei a camisa pela cabeça e joguei-a em cima da cama. Dia do Bar Mitzvah ou não, tinha que fazer minha ginástica, senão não pesaria bastante para entrar no time de futebol no outono.
Estendi-me no chão e fiz dez flexões. Depois levantei-me e comecei a abaixar-me sem dobrar os joelhos. Olhei-me. Os músculos delgados sobressaíam no corpo magro, onde se podiam contar as costelas. Examinei o peito cuidadosamente para ver se algum cabelo verdadeiro surgira durante a noite, mas continuava a haver somente aquela penugem rala e dourada. De vez em quando desejava que meu cabelo fosse preto como o de Paul, em vez de louro. Apareceriam énTão de maneira mais evidente.
Terminei os exercícios e apanhei os halteres que estavam no canto do quarto, começando a manejá-los em frente da janela. Ouvi um comutador de luz ser ligado na janela do outro lado da rua. Imediatamente ajoelhei-me e olhei pela fresta da janela, cautelosamente.
Era o quarto de Marjorie Ann Conlon. Era a maior amiga de Mimi. De vez em quando a persiana estava levantada e eu podia dar uma boa olhada. Ficava contente da janela de seu quarto estar virada para oeste, pois isso tornava necessário que todas as manhãs acendesse a luz.
Com todo cuidado, espreitei pela fresta e prendi a respiração. A persiana estava levantada. Era a terceira vez na semana que ela se esquecia de abaixá-las. Da última vez que a espiara tive a impressão de que ela sabia que eu a estava olhando, por isso tive que ser extremamente cauteloso. Ela era uma garota engraçada, sempre implicando comigo e olhando-me fixamente quando lhe falava.
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Nas últimas semanas tivéramos várias discussões acaloradas por causa de assuntos sem maior importância e eu não queria convidá-la para a minha festa de Bar Mitsvah, mas Mimi insistira.
Vi a porta do armário de seu quarto mover-se suavemente e ela surgiu. Estava só de calcinhas. Parou no meio do quarto por um momento, como se estivesse à procura de alguma coisa. Finalmente encontrou e inclinou-se em direção à janela para apanhá-la. Senti um suor úmido brotar em minha testa. Podia vê-la nitidamente.
Paul dizia que ela tinha o corpo mais bonito da vizinhança. Não concordei. Mimi era muito mais bonita. Além disso, Mimi não era desproporcionada de seios como Marjorie Ann.
Paul sugeria que levássemos as duas para o porão a fim de apurar o caso. Fiquei louco de raiva, segurei-o pelo colarinho e disse que lhe daria uma surra se se atrevesse a fazê-lo. Paul limitaramse a sorrir e afastar minha mão. Disse que eu estava nervoso apenas por temer que Mimi nos denunciasse.
Marjorie Ann estava agora olhando pela janela, parecendo que à minha procura. Abaixei ainda mais a cabeça. Ela estava rindo para si mesma quando abotoou o porta-seios. Senti-me pouco à vontade. Era um sorriso de esperteza e imaginei se ela saberia que eu estava olhando. Parecia haver um motivo; peculiar na maneira pela qual se movia ao redor do quarto.
Ainda não terminara de ajustar o porta-seios quando franziu os olhos. Sacudiu os ombros e deixou que o porta-seios escorregasse pelos braços. Segurou os seios com as mãos em concha por um momento e aproximou-se da janela, como se quisesse examiná-los na luz.
Meu coração começou a martelar-me no peito, excitado. Paul estava certo. Ela tinha realmente belos seios. Olhou novamente para fora, o sorriso de orgulho de novo no rosto, e voltou para o meio do quarto. Cuidadosamente ajustou o porta-seios e abotoou-o nas costas.
Ouvi um barulho do lado de fora do meu quarto. Era a voz de Mimi. Virei-me rapidamente e joguei-me na cama. Não queria que Mimi me surpreendesse espreitando. Lancei um olhar rápido pela janela e vi a luz apagar-se no quarto de Marjorie Ann. Suspirei. Tinha razão; ela sabia que eu estava olhando. Ouvi passos aproximando-se da porta do meu quarto. Fechei os olhos e fingi que estava dormindo. A voz de Mimi veio da porta.
- Danny, você já se levantou?
- Acordei agora -, respondi, sentando-me na cama e esfregando os olhos. - Que quer você?
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Seus olhos passaram pelo meu peito e ombros nus. Uma suspeita surgiu neles.
- Onde está a sua camisa? - Perguntou-me. Viu-a então ao pé da cama.
- Você já tinha saído da cama ? Olhei para ela.
- Já -, respondi.
- Que estava fazendo? -, perguntou com suspeita.
Seus olhos dirigiram-se para a janela do quarto de Marjorie Ann, do outro lado da rua. Meus olhos se arregalaram e banquei o inocente.
- Estava fazendo ginástica. Depois deitei-me de novo na cama para um cochilo.
Podia ver que minha resposta não a satisfizera, mas ela nada disse. Abaixou-se no pé da cama e apanhou a camisa. Seus seios comprimiram-se com força contra o pijama de seda fina que usava. Não pude afastar meus olhos deles.
Mimi notou para onde eu estava olhando e seu rosto ficou vermelho. Raivosamente, jogou a camisa em cima da cama e caminhou para a porta.
- Mamãe pediu-me que o acordasse e lhe dissesse para não deixar de tomar banho. Não quer que você esteja sujo para o seu Bar Mitzvah.
Pulei da cama logo que a porta se fechou atrás dela e tirei as calças do pijama. Sentia-me quente e vibrando, como sempre acontecia depois de espiar Marjorie Ann. Olhei-me. Estava em boa forma. Tinha 1 metro e 63 centímetros de altura e pesava quase 52 quilos. Mais 3 quilos e estava apto a entrar para o time de futebol.
- Chuveiro frio, rapazes -, dissera o professor na escola. - Uma boa chuveirada fria.
O que eu ia fazer agora era justamente entrar debaixo do chuveiro frio.
Enrolei-me no roupão de banho e olhei para o corredor. Não havia ninguém. A porta do banheiro estava aberta e dirigi-me para lá. A porta do quarto de Mimi também estava aberta. Ela estava fazendo a cama. Fiz-lhe uma careta, pondo o polegar no nariz e abanando a mão, ao passar por ela. Meu roupão abriu. Fechei-o rapidamente. Agora ela saberia como me sentia quando entrara no meu quarto. Talvez fosse melhor fazer as pazes com ela ou podia denunciar-me. Nunca se podia saber o que iria fazer. Voltei até sua porta, sempre segurando o roupão.
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- Mimi.
Ela olhou para mim.
- Que quer você?
Sua voz estava gelada. Olhei para meus chinelos.
- Você quer usar o banheiro primeiro?
- Por que pergunta? - indagou com a voz cheia de suspeita. Podia ouvir Mamãe e Papai falando, lá embaixo. Mantive a voz tão baixa quanto possível.
- Eu vou - vou tomar um banho de chuveiro e talvez você: esteja com pressa.
- Não estou com pressa -, respondeu, a voz ainda gelada e bastante formal.
Pude ver que ainda estava com raiva.
- Mimi -, disse novamente.
Que quer disse encarando-me fixamente.
Meus olhos afastaram-se.
- Nada -, respondi. Comecei a virar-me e depois olhei para fia, subitamente.
Estava olhando para minhas mãos, segurando o roupão. Dessa vez, ela abaixou os olhos.
- Vocês, garotos, são nojentos, - resmungou. - Você está cada dia mais parecido com seu amigo Paul. ele está sempre olhando para a gente.
- Não estava olhando -, disse defendendo-me.
- Você estava, sim -, disse acusadoramente. - Aposto que também estava espiando Marjorie Ann.
Meu rosto ficou vermelho.
- Não estava, não!
Sacudi as mãos enfaticamente e o roupão abriu-se novamente. Vi os olhos de Mimi baixarem e rapidamente fechei-o.
- Estou notando que não se importa de olhar, senhorita pretensiosa!
Ela não me deu a menor atenção.
- Vou dizer a Mamãe o que você estava fazendo -, disse ela.
Atravessei o quarto rapidamente e segurei-a pelas mãos.
- Você não vai dizer coisa nenhuma!
- Você está-me machucando! Seus olhos fixaram-se nos meus.
- Você não vai dizer nada! - repeti asperamente, apertando mais seus pulsos.
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Ela me encarou, os olhos castanhos arregalados e assustados, embora com uma curiosidade profunda a aparecer. Deu um suspiro profundo.
- Está bem -, disse. - Não vou dizer nada a Mamãe, mas vou dizer a Marge que ela estava certa. Disse que você a andava espiando. Vou dizer-lhe que não se esqueça de fechar sempre a persiana.
Larguei-lhe os pulsos. Um sentimento vago de triunfo inundoume. Estava certo, Marge sabia todo tempo que a estava espiando.
- Se Marge deixa a persiana levantada, é porque sabe o que está fazendo.
Deixei Mimi de pé, ao lado da cama, e fui para o banheiro. O pincel de barba de Papai ainda estava na pia, secando. Coloquei-o no armarinho de remédios e fechei a porta. Tirei o roupão e entrei debaixo do chuveiro.
A água estava gelada, mas ali fiquei, rangendo os dentes. Depois de algum tempo os dentes começaram a bater, mas continuei embaixo da água. Era bom para mim. Sabia o que estava fazendo. Quando finalmente saí do chuveiro e olhei-me no espelho, vi que tinha os lábios roxos de tanto frio.
2
Acabei de abotoar a camisa e olhei-me no espelho. Peguei a escova e passei-a de novo no cabelo. Mamãe ficaria satisfeita. Minha pele estava limpa e brilhando, até meus cabelos pareciam mais claros.
Abaixei-me e olhei embaixo da cama.
- Acorde, Rexie. Está na hora de levantar.
Ela ficou de pé, abanando a cauda. Curvei-me e cocei sua cabeça. Ela lambeu minha mão.
- Como está esta manhã, menina? - perguntei, dando-lhe um rápido abraço. A cauda moveu-se em círculos e ela esfregou-se contra as minhas calças.
Saí do quarto e desci as escadas. Ouvi a voz de Mamãe, vinda da cozinha. Parecia extremamente excitada com alguma coisa. Estava dizendo:
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- Você conhece sua cunhada Bessie. Vai procurar alguma coisa de que falar. Pensa que é a única que pode fazer um Bar Mitzvah correto. Joel...
Papai interrompeu-a.
- Ora, Mary, fique calma. Tudo vai dar certo. Além do mais, foi você que decidiu dar uma recepção em casa.
Dei um suspiro de alívio. Pelo menos não estavam falando de mim. Mimi nada dissera. Aquela discussão já durara seis meses - desde que viera à baila o assunto do meu Bar Mitzvah.
Papai queria alugar um pequeno salão para a festa, mas Mamãe não queria.
- Não podemos desperdiçar dinheiro -, dissera ela. - Você sabe muito bem como os negócios andam ruins e as dificuldades que está tendo para pagar as prestações do seu empréstimo. E o banco não vai ficar esperando pelos seus 3 mil dólares.
Papai lhe dera razão. Não tinha outro jeito. Os negócios não tinham melhorado desde então. Se algo acontecera, a julgar pelo que deixara escapar em casa, é que tudo piorara. Nos últimos meses tornara-se bastante nervoso e irritado.
Abri a porta e entrei na cozinha, com Rexie nos meus calcanhares.
- Bom dia -, disse aos dois. Que quer do armazém, Mamãe?
Ela mal olhou para mim.
- O de sempre, Danny.
- Posso comprar alguns bolos de geléia? Sorriu-me.
- Pode, Danny.
Tirou um dólar de um copo que estava numa prateleira em cima <la pia e deu-me.
- Além do mais, hoje é o dia do seu Bar Mitzvah.
Peguei o dólar e caminhei para a porta da cozinha. Ouvi a voz de Mamãe atrás de mim:
- Não se esqueça de conferir o troco, Danny.
- Está bem, Mamãe -, respondi por cima do ombro, abrindo a porta para deixar Rexie sair. Ela correu à minha frente, saindo para a rua.
Ouvi vozes na varanda dos Conlons quando cheguei à rua. Com
o canto dos olhos vi Mimi e Marjorie Ann, as cabeças bem juntftfl. Passei por elas como se não as tivesse visto, mas tive que parar à espera de Rexie. Marge estava olhando para mim e começou a rir. Senti meu rosto ficar vermelho.
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- Estarei em sua festa esta tarde -, disse-me ela. Estava com raiva de mim mesmo por ter corado.
- Não me faça favor algum -, disse-lhe em tom insultuoso - Você não precisa vir por consideração a mim.
O seu sorriso foi de escárnio.
- Ora, Danny, que maneira de falar! -, disse em tom sarcástico. - Você sabe que não se sentiria bem se não me visse. Além do mais, você será um homem quando voltar do Bar Mitzvah. E será engraçado ver como você agirá então!
Rexie começou a correr alegremente pela rua abaixo. Segui-a sem responder.
A sinagoga era escura e sombria, um pouco de luz apenas filtrando-se pelas janelas pequenas no alto das paredes. Olhei ao redor nervosamente. Estava de pé na pequena plataforma, contemplando a sala em frente da Tora. Os três velhos que estavam na plataforma juntos comigo usavam pequenos yamalkas pretos. O meu era de seda branca.
Os rostos fora da plataforma olhavam-me cheios de expectativa. Reconheci a maioria. Eram meus parentes. No fundo da sinagoga havia uma pequena mesa coberta de bolos e garrafas de uísque e vinho, brilhando no lusco-fusco.
O Reverendo Herzog, meu professor, apanhou a Tora e abriu-a. Fêz-me sinal para que me aproximasse da balaustrada, virou-se para a congregação e disse em iídiche:
- Nesses dias agitados, é bom para um homem encontrar um jovem que não se envergonha de ser judeu. Também é bom para um homem ensinar esse jovem. E é uma honra para um homem preparar tal jovem para o seu Bar Mitzvah e dar-lhe as boas-vindas ao ingressar no estágio judeu da idade viril.
Virou-se solenemente para mim.
- Tenho este jovem ao meu lado.
Virou-se novamente para a congregação e continuou a falar. Procurei manter o rosto contrito. O velho hipócrita! Costumava gritar comigo durante as lições. Eu de nada servia, nunca seria coisa alguma; nunca faria meu Bar Mitzvah porque era muito estúpido.
Surpreendi num vislumbre o rosto de minha irmã, olhando-o. Havia nela um olhar absorto e enlevado. Ela me sorriu suavemente, um lampejo de orgulho em seus olhos. Retribuí o sorriso.
A voz do Reverendo Herzog estava sumindo e ele se virou para mim. Lentamente movi-me para o centro da plataforma e coloquei minhas mãos sobre a Tora. Vi Papai e Mamãe que me sorriam ansiosamente.
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Por um momento, não me lembrei de nada e fui tomado de pânico. Esquecera inteiramente o ritual que passara tantos meses decorando.
Ouvi o sussurro rouco do Reverendo Herzog em meu ouvido:
- Borochu ess...
Agradecido, peguei a deixa e comecei:
- Borochu ess Adonai...
Agora estava tudo bem e as demais palavras vieram-me à mente facilmente. Mamãe sorria orgulhosamente para as pessoas em volta dela.
Comecei a sentir a solenidade da oração. Desejei ter prestado mais atenção ao significado das palavras que pronunciava tão fluentemente em hebraico. Lembrei-me vagamente de que estava pedindo a ajuda de Deus para tornar-me um homem honrado e auxiliar-me a levar uma boa vida de judeu. Um profundo senso de responsabilidade dominou-me. Num dia você era um menino, no outro, um homem. Nesse ritual, aceitava a responsabilidade. Jurava, perante um grupo de parentes e amigos, que sempre cumpriria minhas obrigações de bom judeu.
Nunca pensara muito sobre esse assunto antes. Bem no fundo de mim, sabia que nunca quisera ser judeu. Lembrei-me da primeira vez que pensara nesse assunto: o dia em que Paul e seu irmão menor, Eddie, haviam-me jogado dentro do poço em Clarendon e Troy, o dia em que encontrara Rexie. O poço já estava aterrado e haviam construído casas no local, mas nunca passava por lá sem lembrar-me. Lembrei-me de ter perguntado a Mamãe, no dia seguinte, se não podíamos ser outra coisa que não judeus. Qual fora a sua resposta, não tinha importância agora. Estava naquele momento consagrando-me como judeu.
As últimas frases da oração saíram dos meus lábios e, olhando para a congregação, tive uma sensação de triunfo. Mamãe estava chorando e Papai assoava o nariz num grande lenço branco. Sorri para eles.
O Reverendo Herzog estava colocando o talete em meus ombros, o talete de seda branca adornado com a estrela azul de David que Mamãe comprara para mim. Disse algumas palavras e logo tudo terminou.
Desci os degraus. Mamãe abraçou-me e beijou-me, dizendo meu nome repetidas vezes. Comecei a sentir-me embaraçado, desejando que ela me largasse. Supostamente eu era um homem agora e ela estava me tratando como se ainda fosse um garoto.
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Papai deu-me uma palmadinha no ombro.
- Você é um ótimo menino, Danny.
Estava sorrindo. Virou-se para o Reverendo Herzog que descera os degraus atrás de mim e perguntou:
- ele se portou muito bem, Reverendo, não foi?
O Reverendo Herzog acenou a cabeça brevemente sem nada dizer e passou por Papai, dirigindo-se para a mesa do lanche. Os outros homens da plataforma seguiram-no rapidamente.
Papai segurou meu braço e levou-me para a mesa. Notei que estava satisfeito. Cerimoniosamente, derramou um pouco de uísque num copo de papel e ofereceu-me.
- Harry! - disse Mamãe em protesto. ele sorriu alegremente para ela.
- Ora, Mary, o garoto agora é um homem! Sacudi a cabeça. Papai estava certo. Tomei-lhe o copo.
- L'chaim -, disse Papai.
- L'chaim -, respondi.
Papai inclinou a cabeça para trás e derramou o uísque pela garganta. Fiz a mesma coisa. Queimava como fogo enquanto passava em direção ao estômago. Engasguei-me e tossi.
- Veja o que você fêz, Harry -, disse Mamãe em tom de censura.
Olhei para Papai através das lágrimas. Estava rindo. Fui tomado por outro acesso de tosse e Mamãe puxou-me a cabeça para o seu seio.
A casa estava superlotada. Tive de botar Rexie em meu quarto e fechar a porta. Muita gente sempre a deixava nervosa. Passei pela sala em direção à escada do porão. Mamãe fizera lá embaixo uma sala para os meninos.
Meu tio David chamou-me, Estava de pé num canto da sala, conversando com Papai. Caminhei em sua direção e ele estendeume a mão.
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- Mazeltov, Danny!
- Obrigado, tio David.
Sorri automaticamente. Segurando minha mão, virou-se para Papai.
- Parece que foi ontem que eu estava em seu B'riss, Harry. Papai acenou a cabeça, concordando.
Corei, impaciente. Sabia o que ia dizer, já ouvira a mesma coisa umas vinte vezes naquele dia. E ele não me desapontou.
- O tempo voa, não é? - A cabeça do tio David acenava ativamente. - E agora você já é um menino grande.
Meteu a mão no bolso e tirou uma moeda.
- Aqui está, Danny, para você.
Virei a moeda de ouro nos dedos - era uma moeda de 10 dólares.
- Obrigado, tio David. Sorriu para mim.
- Está um garoto bastante crescido -, disse, voltando depois para Papai. - Em breve poderá dar-lhe uma mão no negócio como o meu Joel faz.
Papai sacudiu a cabeça, discordando.
- Não quero saber de negócios para meu Danny -, disse com firmeza. - Meu Danny vai ser um profissional liberal. Será advogado ou talvez médico. E se as coisas correrem bem, um dia vou abrir-lhe um lindo escritório.
Olhei para Papai, surpreso. Era a primeira vez que o ouvia falar sobre isso. Eu mesmo nunca pensara no que ia ser, nunca me preocupara com isso.
Um sorriso consciente aflorou aos lábios de tio David.
- É claro, Harry, é claro, - disse em tom apaziguador. - Mas você sabe como os tempos andam difíceis. E você já está tendo do lutar bastante agora. Mas se seu Danny for trabalhar na farmácia durante o verão, como o meu Joel, que mal haverá nisso? Nenhum. E você economiza cinco dólares por semana, que teria de pagar a um menino, de outra maneira. Cinco dólares são sempre cinco dólares.
Tio David olhou-me e acrescentou:
- E Danny é um bom rapaz. Estou certo de que gostaria de ajudar como o meu Joel faz. Não é verdade, Danny?
Acenei a cabeça afirmativamente. Ninguém ia dizer que meu primo Joel era melhor do que eu.
- É, tio David -, respondi rapidamente.
43
Papai olhou para mim. Havia uma sombra de perturbação em seus olhos. Seus lábios tremeram levemente.
- Há bastante tempo para falar sobre isso, Danny -, disse devagar. - Ainda falta um mês para as férias. Enquanto isso, vá lá para baixo. As crianças devem estar esperando por você.
Dirigi-me para a escada do porão, deixando a moeda escorregar para dentro do meu bolso. Atrás de mim ouvi a voz do tio David dizendo que era uma boa idéia e que não iria causar-me dano algum.
No alto da escada parei e olhei para o porão. Mamãe pendurara bandeirolas nas paredes e no teto e o porão estava com uma aparência alegre e de festa, mas o pessoal estava muito quieto. Lá em cima os adultos estavam todos falando em voz alta, cada um tentando abafar o outro e todos falando ao mesmo tempo como se nunca mais fossem ter a oportunidade de se encontrar. As vozes ecoavam surdamente ali embaixo. Todos os meninos estavam de um lado do porão, as meninas no outro. Estavam todos calados e embaraçados. Não era o mesmo ambiente de lá de cima.
Quando me dirigi para o lado em que estavam os meninos, meu primo Joel avançou ao meu encontro. Era um ano e meio mais velho que eu e seu rosto estava coberto de espinhas. Ouvira algumas histórias sobre elas e esperava que não me acontecesse o mesmo.
- Olá, Joel -, disse desajeitadamente. - Está-se divertindo?
ele acenou afirmativamente, os olhos nas meninas do outro lado.
- Estou -, respondeu rapidamente, demasiado rapidamente.
Segui seu olhar. Estava mirando Marjorie Ann. Ela me viu olhála e murmurou algo para minha irmã, que começou a dar risadinhas. Andei em sua direção, com Joel ao meu lado.
- Que é tão engraçado? -, indaguei. Tinha a impressão de que estavam rindo de mim.
Mimi sacudiu a cabeça em silêncio e deu outra risadinha. Marge sorriu zombeteiramente.
- Estávamos esperando que você descesse para animar a festa -, disse ela.
Forcei um sorriso e olhei ao redor. Todos olhavam para mim, solenemente. Ela estava certa, a festa era bastante desanimada. Os adultos estavam divertindo-se, mas os meninos não sabiam o que fazer.
- Por que estão quietos assim? - gritei, levantando as mãos. - Vamos fazer algumas brincadeiras.
- Que brincadeiras?
44
A voz de Mimi era desafiadora. Olhei-a em silêncio. Não pentnm nisso. Corri os olhos pelo porão, desorientado.
- Que tal brincarmos de correio? - sugeriu Marge.
Franzi o cenho. Era justamente o tipo de brincadeira que não qurria. Coisa de maricas.
- De que deseja brincar? -, disse ela em tom sarcástico. -
correio?
Comecei a falar, mas Joel interrompeu-me.
- Está ótimo - disse ansiosamente -, vamos brincar de
correio.
Virei-me para ele com uma expressão de desgosto no rosto. Sabia porque tinha tantas espinhas: por causa de meninas. Eu lhe teria dado uma resposta se os outros meninos não tivessem aceitado também a sugestão.
Quando nos sentamos em semicírculo, no chão, baixei os olhos, mal-humorado, para minhas pernas cruzadas, desejando ter pensado logo em outra brincadeira. Joel chamara Marge ao quartinho da fornalha, que funcionava como a repartição do correio. Estava convencido de que Marge me chamaria quando chegasse a sua vez.
Acertei. A porta do quartinho da fornalha abriu-se e Joel surgiu à minha frente. Fêz-me um gesto apontando com o polegar para a
porta às suas costas. Senti que corava ao levantar-me.
- Que garota! - murmurou-me Joel quando passei.
Olhei para Mimi. Estava observando-me. Senti o rosto afogueado.
Hesitei por um momento diante da porta, depois abri-a e entrei. Encostei-me na porta fechada atrás de mim, procurando ver na escuridão do quarto. A única luz vinha de uma diminuta janela no canto.
- Estou aqui, Danny. - A voz de Marge vinha do outro lado da fornalha.
Ainda estava segurando a maçaneta. Senti as pulsações aceleradas.
- O que é que você quer? -, gaguejei, completamente enrouquecido. De repente, comecei a sentir medo dela. - Para que me chamou?
Ela sussurrou:
- Para que acha que o chamei?
Havia um toque de zombaria em sua voz.
- Queria ver se você é realmente um homem.
55
I
Não podia vê-la, pois estava atrás da fornalha.
- Por que não me deixa em paz? -, perguntei asperamente, sem afastar-me da porta.
A sua voz era suave.
- Se você quer que tudo acabe logo, é melhor vir até aqui, Não vou machucá-lo, Dannyzinho.
Caminhei para a fornalha. Ela estava encostada nela, sorrindo. Seus dentes brilhavam no escuro. Estava com as mãos nas costas. Eu não disse nada. Seus olhos sorriam também.
- Você estava espiando-me pela janela esta manhã - disse subitamente.
Fiquei todo tenso.
- Não estava, não!
- Estava sim. Eu vi e Mimi disse que você estava.
Encarei-a. Ajustaria contas com Mimi depois.
- Se está certa - disse furiosamente -, então por que não abaixou a cortina?
Ela deu um passo em minha direção.
- Talvez eu não quisesse -, respondeu de maneira provocante.
Olhei-a nos olhos. Não estava compreendendo.
- Mas...
Seus dedos tocaram meus lábios, forçando-me a calar. Havia uma expressão tensa em seu olhar.
- Talvez eu quisesse que você olhasse.
Calou-se por um segundo, observando meu rosto, e acrescentou:
- Gostou do que viu?
Não sabia o que responder. Ela começou a rir suavemente.
- Você gostou. Eu vi que gostou. Seu primo Joel acha que sou formidável e não viu nem a metade do que você viu.
Ela estava muito perto de mim. Colocou os braços ao redor do meu pescoço e puxou-me. Mexi-me desajeitadamente. Senti sua respiração contra minha boca e depois seus lábios. Fechei os olhos. Nunca antes conhecera um beijo assim. Não era como o beijo de minha mãe, nem o de minha irmã, nem o de qualquer outra pessoa que já beijara.
Afastou o rosto do meu. Ainda sentia, porém, a sua respiração contra a minha boca.
- Dê-me a sua mão -, pediu-me rapidamente. Aparvalhado, estendi-lhe a mão. Minha cabeça girava e o quarto parecia vago e distante. De repente, um choque pareceu percorrer meus dedos como uma corrente elétrica.
46
Ela enfiara minha mão por dentro do vestido e toquei-lhe o seio, o bico duro. Assustado, tirei a mão.
Ela começou a rir suavemente, os olhos brilhando em minha direção.
- Gosto de você, Danny.
Foi até à porta e voltou-se para olhar-me. O ar de zombaria retornara ao seu rosto.
- A quem devo mandar agora, Danny? Sua irmã?
4
Passei pela sala, com Rexie nos meus calcanhares.
- Danny, venha aqui um minuto.
A voz de Papai vinha do sofá, onde estava sentado ao lado de Mamãe. Ela parecia cansada. Acabara de fazer a limpeza, depois de os convidados saírem.
- Sim, Papai -, respondi, parando na frente deles.
- Gostou do seu Bar Mitzvah?
- Gostei muito, Papai. Obrigado, Ele levantou um pouco a mão.
- Não me agradeça. Agradeça a sua mãe. Ela é que fêz todo o trabalho.
Sorri para ela.
Ela me sorriu com um ar fatigado e ajeitou a almofada ao seu lado. Sentei-me. Com a mão, desmanchou meus cabelos.
-- Meu querido Lourinho. Você agora já é um homem. Em breve estará se casando.
Ele começou a rir.
Não tão cedo, Mary. ele ainda é muito jovem.
Ela olhou-o.
Logo, logo. Veja como os 13 anos passaram depressa.
Ele sorriu. Tirou um charuto do bolso e acendeu-o, uma expressão pensativa no rosto.
47
- David sugeriu que Danny fosse trabalhar na farmácia durante o verão.
Mamãe endireitou o corpo no sofá.
- Mas Harry, ele ainda é uma criança! Papai riu alto.
- Você já pensa nele para casar, mas diz que no próximo verão ainda é muito moço para trabalhar.
Virou-se para mim.
- Que acha disso, Danny? Encarei-o.
- Farei tudo o que você quiser, Papai. Papai sacudiu a cabeça.
- Não foi isso que perguntei. Quero saber o que quer ser, o que deseja fazer quando crescer?
Hesitei por um momento.
- Na verdade, não sei. Nunca pensei nisso.
- Já é hora de você começar a pensar, Danny. Você é um rapaz esperto. Já está bastante adiantado na escola para quem tem apenas 13 anos. Mas toda essa esperteza de nada adianta a menos que saiba para onde está indo. É como um navio sem leme.
- Trabalharei na farmácia este verão, Papai. Além do mais, o que eu quero mesmo é ajudá-lo. E sei que os negócios não andam muito bem estes dias.
- Estão bastante ruins, mas não tão ruins que eu queira que você faça algo que não deseja -, disse Papai olhando para o seu charuto. - Sua mãe e eu temos grandes planos para você. Será um médico ou um advogado e irá para a universidade. Talvez, se você fôr para a farmácia não chegue até à universidade. Foi o que aconteceu comigo. Nunca concluí os meus estudos. Não quero que isso lhe aconteça.
Olhei para Papai e depois para Mamãe. Ela estava me olhando, a tristeza estampada em seus olhos. Estavam com medo de que me acontecesse o mesmo que a Papai. No entanto, os negócios estavam ruins e Papai precisava da minha ajuda. Sorri para eles.
- Trabalhar na farmácia durante o verão não tem a menor importância, Papai. No outono, voltarei à escola.
ele se voltou para Mamãe. Por um longo momento ficaram se olhando. Mamãe balançou a cabeça levemente e Papai voltou a encarar-me.
- Está certo, Danny -, disse lentamente. - Vamos fazer assim por algum tempo. Depois, veremos.
48
Os garotos gritavam enquanto a bola pulava de um lado para o outro da rede de vôlei. Havia quatro jogos em realização no ginásio da escola. Com o canto dos olhos vi o Sr. Gotkin andando em nossa direção. Voltei a concentrar-me na bola. Queria que tivesse uma boa impressão de mim, pois era o treinador do time de futebol.
A bola vinha em minha direção, bem alta, mas pulei e dei uma cortada. Ela bateu no alto da rede, rolou para o outro lado e caiu no chão. Olhei em volta orgulhosamente, achando-me o maior. Era o oitavo ponto que eu fazia dos quatorze marcados por meu time. O Sr. Gotkin não podia deixar de reparar.
Mas ele não estava nem olhando para o meu lado. Conversava com um garoto na outra quadra. A bola voltou novamente a jogo. Errei o que pareciam ser duas bolas fáceis, mas nas duas vezes foram recuperadas. Quando o jogo parecia desenvolver-se no outro lado da quadra, dei outra olhada no professor. E, neste momento,
ouvi atrás de mim o grito súbito de Paul: - Danny, a bola é sua!
Girei rapidamente. A bola pairava fácil sobre a rede, na minha direção. Preparei-me e pulei. Uma figura escura no outro lado da rede moveu-se como um relâmpago antes de mim e bateu na bola, arremessando-a na direção do chão. Automaticamente minhas mãos deslocaram-se para proteger-me o rosto, mas não fui bastante rápido. Caí no chão, meio tonto.
Levantei-me cheio de raiva, o lado do rosto atingido pela bola, vermelho e ardendo. O garoto escuro, no outro lado da rede, sorria para mim.
- Você fêz de propósito -, gritei. O sorriso deixou seu rosto.
- Que houve, Danny? -, indagou com escárnio. - Você é o único herói permitido no jogo?
Passei por baixo da rede em sua direção, mas uma mão me segurou o ombro firmemente e deteve-me.
- Continue o jogo, Fisher -, disse o Sr. Gotkin calmamente. - Não quero brigas por aqui.
Voltei para o meu lugar. Estava agora com mais raiva que antes. A única coisa que Gotkin se lembraria era de que eu ficara irritado.
- Você me paga -, murmurei para o garoto.
ele deu um estalo com a língua e fêz um gesto de troça. Minha chance chegou no ser seguinte. A bola veio alta na rede e o garoto pulou. Pulei mais alto e, com as duas mãos, golpeei a bola, para baixo.
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ele foi atingido bem na boca e caiu ao chão. Vaiei-o sonoramente.
ele se levantou e, passando por baixo da rede, derrubou-me pelas pernas. Rolamos pelo chão, esmurrando-nos mutuamente. Sua voz soava tensa e irada ao meu ouvido:
- Canalha! Gotkin separou-nos.
- Eu disse que não queria brigas por aqui. Olhei para o chão de mau humor e não respondi.
- Quem começou a briga? A voz de Gotkin era áspera.
Olhei para o outro garoto e ele franziu a testa, mas nenhum de nós respondeu.
Mas Gotkin não esperava resposta alguma.
- Continuem o jogo -, disse com uma voz de enfado. - E nada de brigas.
Depois, afastou-se. Imediatamente eu e o outro garoto voltamos a atracar-nos. Segurei-o pela cintura e estávamos rolando pelo chão antes que Gotkin tivesse tempo de separar-nos novamente.
Com os braços, manteve-nos afastados um do outro. Havia uma expressão cansada em seus olhos.
- Vocês insistem mesmo em brigar? Nenhum dos dois respondeu.
- Se querem lutar, vão lutar ao meu modo.
Ainda segurando-nos, gritou para o professor substituto que era seu assistente.
- Pegue as luvas.
O substituto veio com as luvas e Gotkin deu um par a cada um.
- Calcem-nas, - disse quase alegremente.
Virou-se para os outros garotos que estavam no ginásio e começavam a agrupar-se em torno de nós e disse:
- É melhor fechar as portas, rapazes. Assim ninguém vai atrapalhar-nos.
Sorriram, excitados, enquanto eu me atrapalhava com as luvas a que não estava acostumado. Sabia do que estavam rindo. Se o diretor aparecesse, aconteceria o diabo.
As luvas de boxe pareciam estranhas em minhas mãos. Nunca as usara antes. Paul, silenciosamente, começou a amarrá-las para mim. Olhei para o outro garoto. O meu primeiro impulso de raiva já desaparecera.
50
Não tinha nada contra ele, nem ao menos sabia-lhe o none. Aquela era a única aula que tínhamos juntos. ele parecia estar começando a sentir-se da mesma maneira. Caminhei em sua direção.
- Isso é uma estupidez - disse eu.
Gotkin replicou antes que o garoto pudesse abrir a boca.
- Está ficando covarde, Fisher? - disse em tom de zombaria.
Havia um excitamento estranho em seus olhos. Senti meu rosto ficar vermelho.
- Não, mas... Gotkin interrompeu-me.
- Então volte para o seu lugar e faça o que eu lhe disser. Comecem a lutar. Quando um fôr derrubado, o outro não poderá bater-lhe enquanto eu não permitir. Entenderam?
Acenei com a cabeça. O outro garoto umedeceu os lábios e fez o mesmo. Vi que Gotkin sentia-se novamente satisfeito.
- Muito bem, comecem - disse.
Senti alguém empurrando-me para a frente. O garoto também vinha em minha direção. Ergui as mãos e procurei mantê-las da maneira como vira alguns lutadores fazerem no cinema. Cautelosamente, circulei ao redor do garoto. ele estava tão cauteloso quanto eu, observando-me atentamente. Por quase um minuto mantivemos uma distância de mais de meio metro entre nós.
- Pensei que vocês estivessem querendo brigar -, disse Gotkin. Olhei-o rapidamente. Os olhos ainda brilhavam de excitação.
Um raio explodiu em meus olhos. Ainda pude ouvir os outros Karotos começarem a gritar. Outro raio espocou. Depois, senti uma dor aguda e ardente no ouvido direito e na boca. Senti que estava caindo. Um zumbido estridente soava dentro da minha cabeça. Sacudi-a irritado para eliminar o zumbido e abri os olhos. Estava apoiado nas mãos e nos joelhos. Olhei para cima.
O garoto dançava à minha frente. E sorria.
O nojento me acertara quando eu não estava olhando. Levantei-me, a raiva assomando em mim. Vi Gotkin dar-lhe uma palmadinha no ombro. E logo ele estava em cima de mim. Desesperadamente, aproximei-me e agarrei-o pelos braços.
Minha garganta estava gelada e senti a respiração queimando. Sacudi a cabeça. Não podia pensar direito com aquele zumbido estridente.
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Sacudi a cabeça novamente. De repente, o barulho parou e a respiração ficou mais fácil.
Senti Gotkin separar-nos. Sua voz era rouca.
- Afastem-se, garotos.
Minhas pernas agora estavam firmes. Levantei as mãos e esperei que o outro garoto avançasse.
ele me atacou, com os braços abertos. Movi-me para o lado e ele passou por mim. Sorri. Era bem fácil: bastava manter a cabeça em cima dos ombros, ficar de cabeça fria.
ele deu a volta e avançou novamente para mim. Desta vez, esperei-o. Vi que seus punhos estavam bastante altos. Lancei minha mão direita contra a sua barriga. Suas mãos abaixaram-se e ele dobrou-se. Seus joelhos começaram a vergar-se e eu recuei. Olhei interrogativamente para o Sr. Gotkin.
ele empurrou-me rudemente para cima do garoto. Atingi-o mais duas vezes e ele retesou-se, inteiramente aturdido.
Agora eu estava firme. Senti uma onda de poder fluir-me pelo ' corpo até os braços. Ergui a mão direita quase do chão e acertei-o bem no queixo. O choque da pancada correu pelo meu braço. ele girou uma vez em torno de si mesmo e depois caiu de rosto no chão.
Dei um passo para trás e olhei para o Sr. Gotkin. Estava com uma expressão entusiasmada, olhando para o garoto. A língua lhe corria nervosamente pelos lábios, as mãos estavam cerradas e as costas de sua camisa estavam cobertas de suor, como se ele é que tivesse lutado.
Um silêncio repentino dominou o ginásio. Virei-me para o garoto, deitado quieto, sem mover-se. Lentamente, o Sr. Gotkin ajoelhou-se ao seu lado.
Virou o garoto de frente e bateu-lhe no rosto. O professor agora estava pálido. Olhou para o assistente.
- Apanhe os sais de cheirar -, gritou com voz rouca.
As mãos lhe tremiam violentamente enquanto balançava o vidro de sais no nariz do garoto.
- Acorde, garoto.
Parecia estar suplicando. Gotas de suor brilhavam em seu rosto.
Por que o garoto não se levantava? Não devia ter deixado que me forçassem a lutar.
- Talvez seja melhor chamarmos um médico -, sussurrou o assistente para o Sr. Gotkin, ansiosamente.
Gotkin respondeu em voz baixa, mas pude ouvi-lo ao abaixar-me.
52
- Não, se você gosta desse emprego!
- Mas, se o garoto morrer?
A objeção do assistente ficou sem resposta, à medida que a cor começava a voltar ao rosto do garoto. ele tentou sentar-se, mas Gotkin obrigou-o a deitar-se.
- Devagar, garoto - disse Gotkin quase gentilmente. - Você estará bem em um minuto.
Pegou o garoto nos braços e olhou em volta.
- Fiquem de boca calada. Compreenderam?
Sua voz era ameaçadora. Silenciosamente, todos assentiram. Seus ulhos correram pelo ginásio e fixaram-se em mim.
- Você, Fisher disse asperamente -, venha comigo. Os outros podem voltar aos seus jogos.
Caminhou para o seu escritório, ainda com o garoto nos braços, <• eu segui-o. Colocou o garoto num divã de couro e fechou a porta.
- Pegue aquele jarro de água -, disse-me por cima do ombro. Em silêncio entreguei-lhe o jarro e ele derramou-o no rosto <lo garoto, que se sentou sacudindo a cabeça.
- Como está-se sentindo? - perguntou Gotkin.
O garoto forçou um sorriso. Olhou-me timidamente.
- Como se uma mula me tivesse dado um coice.
Gotkin começou a rir de alívio. Depois seus olhos fixaram-se en mim e o sorriso desapareceu.
- Por que não me avisou que sabia lutar, Fisher?
- Nunca tinha lutado com luvas, Sr. Gotkin -, disse ràpidamente. Juro.
Olhou-me em dúvida, mas parece que finalmente acreditou, pois voltou-se para o garoto perguntou:
- Vamos esquecer toda esta história?
O garoto olhou-me e sorriu novamente. Acenou afirmativamente com a cabeça.
- Nem me quero lembrar do que aconteceu -, disse sensatamente.
Gotkin olhou-me por um segundo, uma expressão especulativa em seu rosto.
Então apertem as mãos e podem ir-se embora.
Apertamos as mãos e caminhamos para a porta. Quando a fechava, vi o Sr. Gotkin abrir uma gaveta de sua escrivaninha e tirar algo de dentro, levando-o à boca.
Neste momento, o assistente passou por mim e entrou no escritório.
53
- Dê-me um também -, disse, ao fechar a porta. - Nunca mais quero passar outro minuto como aquele.
A voz de Gotkin retumbou através da porta fechada.
- Aquele garoto, o Fisher, é um lutador nato. Você viu como... ?
Olhei para cima, consciente de mim mesmo. Meu ex-adversário esperava-me. Embaraçado, segurei-o pelo braço e voltamos juntos para o jogo de vôlei.
Esperei impacientemente por Paul, na esquina das Avenidas Bedford e Church, atrás da escola. O relógio da drogaria do outro lado da rua mostrava que já passavam 15 minutos das 3 horas da tarde. Esperaria mais cinco minutos e depois iria para casa sozinho.
Ainda estava vibrando com uma nova excitação. A notícia da minha luta no ginásio correra pela escola como fogo na floresta. tôdos os meninos estavam tratando-me com um novo respeito e as meninas olhavam-me com uma curiosidade reprimida. Por várias vezes ouvira grupos de pessoas falando a meu respeito.
Um Ford parou no meio-fio à minha frente e buzinou. Olhei.
- Fisher, dê um pulo até aqui.
O Sr. Gotkin estava debruçado para fora do carro. Vagarosamente, caminhei em sua direção. Que queria ele agora? Abriu a porta.
- Entre. Vou levá-lo até sua casa.
Olhei para o relógio rapidamente e tomei uma decisão: Paul teria que ir para casa sozinho. Em silêncio, entrei no carro.
- Para que lado você vai? - perguntou o Sr. Gotkin em tom cordial, enquanto saía com o carro.
- Depois de Clarendon.
Rodamos algumas quadras em silêncio. Observei-o com o canto dos olhos. Devia ter um motivo para dar-me carona. Imaginei quando iria falar. De repente, diminuiu a marcha do carro e parou junto ao meio-fio.
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Uma jovem caminhava pela calçada. Gotkin debruçou-se na janela do carro e gritou:
- Ceil!
Ela parou para olhar-nos e reconheci-a: era a Srta. Schindler, a professora de arte. Sua classe era uma das mais populares da escola. As meninas não podiam compreender por que todos os garotos subitamente escolhiam a cadeira de arte no terceiro ciclo. Mas eu podia. No ano seguinte eu estaria em sua classe.
Ela tinha cabelos castanho-escuros, olhos escuros e uma pele suavemente bronzeada. Estivera em Paris, estudando, e os garotos afirmavam que nunca usava porta-seios. Ouvira-os comentarem o que viam quando ela se curvava sobre suas mesas.
- É você, Sam -, disse ela sorrindo e andando em direção ao carro.
- Entre, Ceil -, disse Gotkin. - Vou levá-la até em casa. Virou-se para mim.
- Afaste-se, garoto. Dê lugar para ela.
Aproximei-me dele e a Srta. Schindler sentou-se ao meu lado, fechando a porta depois. O banco dianteiro do carro mal dava lugar para nós três. Senti a pressão de sua coxa contra a minha. Olhei-a com o canto dos olhos. O pessoal estava certo. Mexi-me, inconfortável.
A voz de Gotkin era mais alta que o normal.
- Onde você se meteu, menina? Ela respondeu em voz baixa.
- Por aí, Sam -, disse evasivamente, olhando para mim. Gotkin viu a direção do seu olhar e perguntou:
- Você conhece a Srta. Schindler, Fisher? Sacudi a cabeça e respondi que não.
- Este é Danny Fisher -, disse Gotkin para ela.
Ela virou-se para mim, cheia de curiosidade.
- Você é o menino que lutou na escola hoje?
- Já sabe da história? - indagou Gotkin.
- Toda a escola já sabe.
Lutei para reprimir um sorriso de orgulho.
- Não se pode manter nada em segredo naquela escola -, resmungou Gotkin. - Se o velho souber da história, estou na rua.
A Srta. Schindler olhou-o:
- É o que eu sempre disse, Sam. Os professores não podem ter vida particular.
Virei rapidamente para ela, intrigado.
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Ela viu meu olhar e enrubesceu.
- Ouvi dizer que foi uma luta e tanto.
Não respondi. Tinha a impressão de que ela não estava realmente interessada na briga. Gotkin respondeu por mim.
- Foi, sim. Fisher se levantou e nocauteou o outro num instante. Nunca vi nada parecido.
Havia uma sombra nos olhos negros da moça.
- Você nunca pode esquecer o que já foi, não é, Sam? - perguntou ela.
ele não respondeu. Ela falou de novo, sem mudar a voz.
- Pode-me deixar aqui, Sam. É esta a minha esquina.
ele parou o carro em silêncio. Ela desceu do carro e se inclinou sobre o estribo para nós.
- Muito prazer em conhecê-lo, Danny - disse ela com um sorriso encantador -, e veja se não se mete mais em brigas. Adeus, Sam.
A moça tinha também um lindo andar. Voltei-me para o professor de Educação Física. Estava olhando-a pensativamente, com os lábios apertados. Saiu novamente com o carro e disse:
- Se você pode dar-me ainda alguns minutos, garoto, gostaria de que fosse comigo até à minha casa. Quero mostrar-lhe uma coisa.
- Está certo, Sr. Gotkin -. disse eu, de novo intensamente curioso.
Acompanhei-o pela entrada do porão de uma casa para duas famílias.
- Entre ali -, disse-me Gotkin, apontando-me uma porta. - Já volto.
Vi-o subir a escada do andar superior e entrei pela porta que ele me havia indicado. Ao abrir a porta, ouvi vozes abafadas no andar de cima. Parei e abri a boca de espanto ao ver a sala. Estava montada como um ginásio pequeno, mas completo. Havia paralelas, saco para treinar socos, cavalo-de-pau, barra fixa, pesos. Num pequeno sofá de couro encostado à parede havia várias luvas de boxe. Havia muitas fotografias espalhadas pelas paredes. Fui olhá-las. Eram fotografias do Sr. Gotkin, mas ele parecia bem diferente. Estava de calções e luvas de boxe com uma expressão de ameaça no rosto carrancudo. Eu não sabia que ele tinha sido pugilista.
Um telefone numa mesinha ao lado do sofá começou a tocar. Fiquei hesitante. O telefone tornou a tocar. Eu não sabia se devia atender ou não. Quando tocou mais uma vez, tirei o receptor do gancho.
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Já ia falar, quando ouvi a voz do Sr. Gotkin atender. Devia haver uma extensão lá em cima.
Fiquei escutando. Nunca havia falado numa extensão e tinha receio de desligar se voltasse a colocar o fone no lugar. Era uma mulher que falava.
- Sam, você está louco? Como é que foi me pegar com aquele garoto dentro do carro?
Reconheci a voz e fiquei escutando.
- Mas eu não podia mais. Tinha de ver você de qualquer jeito. Estou quase maluco, sabe disso?
A Srta. Schindler disse com voz dura:
- Eu lhe disse que estava tudo acabado e está mesmo. E nunca devia ter começado. Eu devia estar fora do meu juízo. Se Jeff descobrir, estaremos perdidos.
- Mas ele nunca vai descobrir. Vive muito ocupado com as aulas. Não sabe nem que dia é hoje. Palavra que não sei como você foi casar-se com aquele idiota.
- ele nada tem de idiota. Sam. Jeff Rosen vai acabar diretor da escola. Subirá mais do que você que acabará sendo expulso.
Gotkin parecia ter mais segurança.
- Mas, menina, ele não lhe dá atenção. Com as aulas noturnas e tudo mais, ele não tem tempo de dar felicidade a uma mulher de verdade como você.
- Sam! - disse ela, num débil protesto. A voz dele pelo telefone era forte.
- Lembra-se do que foi que você disse da última vez, Ceil? Como era conosco? Nunca houve nada de parecido com você. Lembra-se de que você mesma disse isso? Pois eu me lembro e fico alucinado só de me lembrar. Venha, querida. Quero você.
- Não posso, Sam -, disse ela, com voz queixosa. - Eu disse...
- Não quero saber o que foi que você disse, Ceil. Venha. Vou deixar a porta lá embaixo aberta e você poderá entrar diretamente.
Houve um momento de pausa e então a voz dela se fêz ouvir pesadamente pelo telefone:
- Gosta de mim, Sam?
- Loucamente, Ceil. Loucamente. Você vem?
Eu quase podia ouvir-lhe a hesitação. Disse por fim:
- Estarei aí dentro de meia hora, Sam.
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- Ficarei esperando, meu bem -, disse Sam, com uma voz como se estivesse sorrindo.
- Eu te amo, Sam -, disse ela e o telefone foi desligado. Coloquei rapidamente o fone no lugar. Ouvi passos na escada e voltei a atenção para as fotografias nas paredes.
Quando a porta se abriu, voltei-me e disse:
- Não sabia que era pugilista, Sr. Gotkin.
ele estava com o rosto afogueado. Olhou para o telefone e para mim e disse:
- É verdade. Queria mostrar-lhe os meus troféus e, se você estivesse interessado, eu poderia dar-lhe algumas lições. Acho que você tem qualidades para ser um grande pugilista, rapaz.
- Oh, Sr. Gotkin, eu bem que gostaria. Quer começar agora?
- Agora não, meu filho. Surgiu-me agora mesmo um negócio imprevisto e não é possível. Amanhã na aula eu lhe direi quando é que vamos começar.
- Está bem, Sr. Gotkin - murmurei sem esconder a minha decepção.
ele pôs a mão em meu ombro e me levou até à porta.
- Sinto muito, meu filho, mas são os negócios, compreende?
Sorri-lhe já na porta.
- Claro que compreendo, Sr. Gotkin. Amanhã está muito bem.
- Amanhã então -, disse Gotkin, fechando rapidamente a porta.
Atravessei prontamente a rua e cheguei a uma entrada de carros. Sentei-me num lugar de onde pudesse observar a porta dele e fiquei esperando. Cerca de quinze minutos depois ela apareceu na rua.
Passou caminhando depressa, sem olhar para um lado nem para outro, até chegar à porta. Olhou para um lado e para outro e entrou, fechando logo depois a porta.
Fiquei ainda alguns minutos ali, antes de levantar-me. O Sr. Gotkin ficaria surpreso se soubesse até que ponto eu compreendia. Que dia aquele! Primeiro a luta na escola, depois aquilo. E a Srta. Schindler era casada com o Sr. Rosen, professor de Matemática. Havia em mim uma nova sensação de poder. Bastava uma palavra minha e todos eles estariam perdidos.
Havia diante de mim um hidrante de incêndio. Pulei carniça com facilidade por ele. Como tinha sido bom que Paul se tivesse atrasado!
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Sentia os braços cansados. O suor me corria pela testa e me caía nos olhos que estavam começando a arder. Enxuguei-os com as costas das luvas de boxes e virei-me de frente para o professor.
A voz dele era áspera e também ele estava coberto de suor.
- Levante a esquerda, Danny. E bata! Bata firme! Não dance com a mão, como se estivesse fazendo um passo de bale. Bata, partindo do ombro! Depressa! Assim, está vendo?
Virou-se para o saco e bateu com a esquerda. A mão se movia com tanta rapidez que parecia uma mancha. O saco rodava loucamente de encontro à tábua. Virou-se de novo para mim.
- Agora, bata em mim. Depressa!
Levantei as mãos e movi-me cautelosamente em torno dele. Já treinava havia duas semanas e havia aprendido o suficiente para ter cuidado com ele. Era um professor exigente e em geral me castigava pelos meus erros - com um soco no queixo.
Deu volta comigo pelo ringue, movendo ligeiramente as luvas. Fiz uma finta com a mão direita. Por uma fração de segundo, vi-o seguindo a finta com os olhos e acertei-lhe a esquerda no rosto, como ele me havia ensinado.
A cabeça dele se dobrou para trás com o soco e, quando voltou, havia uma marca vermelha na face. Ergueu o corpo e baixou as mãos.
- Está bem, garoto -, disse ele, com voz frustrada. - Por hoje, chega. Você aprende depressa.
Respirei satisfeito. Estava cansado. Desapertei os cordões das luvas com os dentes.
- As aulas vão-se encerrar na semana que vem, Danny, - disse ele, olhando-me pensativamente.
- Sei disso -, disse eu, tirando uma das luvas.
- Vai para algum acampamento de verão?
- Não. Vou ajudar meu pai na farmácia.
-- Fui convidado para passar o verão como diretor de esportes num hotel dos Catskills, - disse ele. - Posso conseguir-lhe um lugar de copeiro no hotel. Gostaria de continuar com essas lições.
- Eu também gostaria. Sr. Gotkin. Mas não sei se meu pai consentirá.
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ele se sentou no sofá e me olhou.
- Que idade tem você, Danny?
- Treze anos. Fiz meu Bar Mitzvah este mês.
- Só? - perguntou ele com surpresa e um pouco de decepção. - Pensei que fosse mais velho. Parece mais velho. É maior do que muitos garotos de quinze anos.
- Vou falar com Papai. Talvez ele me deixe ir com o senhor.
Gotkin sorriu.
- Faça isso mesmo, garoto. Talvez ele deixe.
Joguei um pedaço de carne para Rexie embaixo da mesa e olhei para Papai. Parecia com boa disposição. Acabava de dar um arroto de satisfação e desapertara o cinto.
- Papai, - disse eu, hesitantemente.
- Que é? - perguntou ele.
- Meu professor de ginástica foi convidado para um lugar num hotel do interior durante o verão e diz que pode arranjar-me um lugar também, se eu quiser ir.
Papai continuou a mexer o chá enquanto eu o olhava.
- Já falou com sua mãe sobre isso? - perguntou-me ele. Mamãe saiu nesse momento da cozinha e perguntou:
- Falou comigo o quê? Repeti o que tinha dito a Papai.
- E você o que foi que disse a ele? - perguntou ela.
- Disse que ia ajudar Papai na farmácia, mas ele achou que de qualquer modo eu devia falar com Papai.
Ela olhou para Papai por um momento e depois voltou-se para mim.
- Você não pode ir -, disse ela categoricamente. Pegou alguns pratos e voltou para a cozinha.
Eu estava desapontado ainda que ela houvesse dito justamente o que eu esperava. Baixei os olhos para a mesa.
Papai chamou-a e disse:
- Mas, Mary, não é tão má idéia assim.
-- Foi decidido que ele iria para a farmácia neste verão e é para onde ele vai. Não vou deixá-lo passar o verão todo entregue a si mesmo. Ainda é muito criança para isso.
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Papai tomou o chá em pequenos goles.
- Se ele é tão criança assim, não pode ir para a farmácia também. Sabe como são os vizinhos. Além disso, um verão no campo só poderia fazer bem a ele. - Virou-se para mim. - É um bom hotel?
- Não sei, Papai -, disse eu, cheio de esperança. - Não perguntei.
- Procure saber de todos os fatos, Danny. E então sua mãe e eu decidiremos.
Eu estava sentado nos degraus da entrada quando eles saíram de casa. Papai parou diante de mim.
- Vamos ao cinema com o Sr. Conlon e a mulher -, disse ele. - Não se esqueça de ir para a cama às nove horas.
- Está bem, Papai -, disse eu. Não queria fazer coisa alguma que destruísse as minhas chances de ir para o interior com o Sr. Gotkin.
Papai foi até à porta do Sr. Conlon e tocou a campainha. Mimi saiu de casa com casaco. - Vai também? - perguntei-lhe.
Na verdade, isso não me interessava muito. Não estávamos em muito bons termos desde a festa do meu Bar Mitzvah. Ela tinha querido saber o que eu e Marge tínhamos feito no porão e eu disse a ela que perguntasse à amiga se queria mesmo saber.
- Marge e eu vamos ao cinema -, disse ela, fazendo-se de importante. - Papai disse que eu podia.
Desceu os degraus. Os Conlons apareceram na porta deles. Marge não estava com eles.
- Marjorie Ann não vai, Sra. Conlon? - perguntou Mimi.
- Não, Mimi -, respondeu a Sra. Conlon. - Estava muito cansada e resolveu ir dormir cedo.
- Talvez fosse melhor você ficar em casa também, Mimi -, disse Mamãe.
- Mas você disse que eu podia ir.
- Deixe-a ir, Mary -, disse meu pai. - Nós prometemos que ela iria e estaremos de volta às onze horas.
Vi todos partirem no Paige de Papai. O carro desapareceu. Olhei para o relógio da sala em cima da lareira. Faltava um quarto para as oito. Senti vontade de fumar um cigarro.
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Levantei-me e fui até um armário do corredor onde encontrei um maço amassado de Luckies num dos paletós de Papai. Voltei para a porta, sentei-me nos degraus e acendi o cigarro.
A rua estava em sossego. Podia-se ouvir o vento que agitava as folhas das árvores novas. Encostei a cabeça na parede fria e fechei os olhos. Gostava de sentir no rosto o contato dos tijolos. Gostava de tudo em minha casa.
- É você, Danny ? - era a voz de Marge. Abri os olhos. Ela estava de pé na porta dela.
- Sou.
- Está fumando! - disse ela, incrèdulamente.
- E daí? - perguntei, tirando uma fumaça para desafiá-la. - Sua mãe disse que você ia para a cama.
Ela se aproximou da minha porta e ficou no pé da escada. O rosto dela parecia muito branco à luz das lâmpadas da rua.
- Não estou com vontade de ir para a cama.
Tirei a última fumaça do cigarro, joguei-o fora, levantei-me e espreguicei-me.
- Acho que vou entrar -, disse eu.
- É obrigado a entrar? - perguntou ela.
Olhei-a. Havia uma expressão muito atenta no rosto dela.
- Não sou não, mas tanto faz. Não estou fazendo nada aqui.
- Podemos ficar sentados e conversar -. disse ela prontamente.
O jeito pelo qual ela disse isso me despertou a curiosidade.
- Conversar sobre quê?
- Coisas -, respondeu ela vagamente. - Há uma porção de coisas sobre as quais podemos conversar.
Comecei a sentir uma exaltação peculiar dominar-me. Senteime de novo na escada e disse, fingindo-me desinteressado.
- Está bem. Vamos conversar então.
Ela se sentou na escada abaixo de mim. Estava usando um vestido leve que se fechava do lado. Quando ela se virou para me olhar, o vestido se abriu ligeiramente e eu vi a sombra cair entre os seios dela. Ela sorriu.
- De que é que você está rindo? - perguntei, no mesmo instante em desafio.
- Sabe por que foi que fiquei em casa, Danny?
- Não.
- Porque eu sabia que Mimi ia ao cinema.
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- Pensei que você era amiga de Mimi -, disse eu, com surpresa.
- E sou. Mas sabia que se Mimi fosse, você teria de ficar em casa. Foi por isso que eu não fui -, disse ela, olhando-me misteriosamente.
Sentia de novo aquela exaltação. Não sabia o que devia dizer e fiquei calado. Senti a mão dela tocar-me o joelho e dei um salto.
- Não faça isso! - exclamei.
Os olhos estavam grandes e inocentes.
- Não gosta?
- Não. Sinto um arrepio pelo corpo todo. Ela riu mansamente.
- Isso quer dizer que você gosta. E é por isso mesmo que se faz. - Fêz-me então uma pergunta que me pegou de surpresa: - Por que é que você sempre me olha da sua janela?
Podia sentir que o meu rosto havia ficado vermelho no escuro.
- Já disse a você que não olho.
- Pois eu olho você. Quase todo o dia de manhã. Quando você faz exercício. E fica sem nenhuma roupa. É por isso que abro a minha cortina. Para você poder me ver também.
Acendi outro cigarro. Os dedos me tremiam. À luz do fósforo vi que ela estava rindo.
- Então olhei e pronto! - disse de repente. - Que é que vai fazer?
- Nada, Danny. Gosto de que você me veja.
Não gostei do modo que ela olhava para mim. Levantei-me e disse.
- Agora vou entrar.
- Você está é com medo de ficar aqui comigo.
- Medo nada! É que prometi a Papai que iria para a cama cedo.
Kla me pegou na mão mas eu me desvencilhei logo dela. - Pare com isso!
- Agora, eu sei que você está com medo! Senão ficaria mais um pouco. É tão cedo ainda. Km vista disso, sentei-me.
- Kstá bem. Vou ficar até às nove horas.
- Você é engraçado, Danny. Não é como os outros garotos.
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- Por que não sou? - perguntei, tirando uma fumaça do cigarro.
- Você nunca tentou me pegar nem fazer nada.
- Por que é que eu ia fazer isso ?
- Todos os outros garotos fazem. Até meu irmão Fred, sabia disso?
Sacudi a cabeça. Não confiava mais na minha voz.
- ele quis fazer até mais do que isso, mas eu não deixei. Disse a ele que ia contar tudo a Papai e Papai era capaz de matá-lo se soubesse disso.
Não falei. Continuei a fumar. O fumo me queimava os pulmões. Tossi e joguei o cigarro fora. Aquilo não era bom para o meu preparo físico. Ela estava olhando para mim e eu perguntei:
- Por que é que está me olhando? Ela me respondeu.
- Vou beber um copo de água -, disse eu. Corri para dentro de casa, passei pelas salas escuras e cheguei à cozinha. Enchi um copo e bebi a água sôfregamente.
- Não vai-me dar água também? - perguntou ela por trás de mim.
- Claro -, disse eu. Não a tinha ouvido aproximar-se. Tornei a encher o copo.
Ela segurou-o por um momento e tornou a botá-lo na pia sem tomar uma gota. Botou-me no rosto as mãos que estavam frias do copo.
Fiquei ali imóvel diante dela. Senti-lhe então a boca na minha. Ela me empurrava de encontro à pia. Tentei afastá-la de mim, mas estava sem equilíbrio.
Agarrei-a com força pelos ombros e ouvi-a dar um grito de dor. Apertei com mais força e ela tornou a gritar. Aprumei o corpo e ri. Eu era mais forte do que ela. Tornei a apertá-la.
Ela me pegou nervosamente as mãos.
- Não lute comigo, Danny! Eu gosto de você e eu sei que você gosta de mim.
Empurrei-a violentamente. Ela recuou alguns passos desequilibrada e parou, olhando para mim. Os olhos brilhavam quase como os de um gato no escuro e o peito arfava de esforço. Compreendi então olhando-a que ela tinha razão.
O barulho de um carro dobrando uma esquina no quarteirão chegou-me aos ouvidos. Minha voz era um murmúrio de pavor dentro da noite.
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- Estão voltando! É melhor ir-se embora daqui!
Ela riu e se aproximou de mim. Alarmado por um medo que não compreendia, corri para a escada e fiquei nos degraus, escutando-lhe a voz que flutuava para mim na escuridão, chamando-me.
Ela era tão sabida, tão segura. Sabia muito mais do que eu. Respondi então sabendo que não adiantava mais. Nada podia impedir o que me estava acontecendo.
Depois, ela saiu, a casa ficou em silêncio e eu subi lentamente para o meu quarto.
7
Estendi-me na cama, com os olhos abertos no escuro, sem poder dormir. O som do riso dela, seguro e conhecedor, ainda me ressoava nos ouvidos. Sentia-me emporcalhado. Nunca mais teria coragem de olhar para ninguém. Todo o mundo saberia logo o que havia acontecido.
- Nunca mais -, tinha eu dito a ela.
- Ela havia rido, com aquele curioso riso de quem sabia.
- Você diz isso agora, Danny. Mas nunca mais vai parar.
- Eu não -, dissera eu, sabendo que estava mentindo. - Sinto-me sujo.
- Você não pode parar, Danny. É um homem agora e não vai mais parar.
Cheguei ao alto da escada e quis gritar para ela que estava enganada, mas sabia que não adiantava. Ela já saíra. Fui para o meu quarto, tirei a roupa e me joguei na cama no escuro.
Sentia o corpo fraco e as pernas doloridas. Tentei fechar os olhos mas o sono não chegou. Estava esgotado e vazio.
Ouvi o estalo do interruptor da luz do quarto dela. Olhei automaticamente para lá. Lá estava ela, olhando para a minha janela e sorrindo. Tirou lentamente o vestido e o corpo nu brilhou sob a luz elétrica. Ouvi-lhe a voz como um sussurro rouco.
- Está acordado, Danny?
Fechei os olhos e virei-me para o outro lado. Não ia olhar. Não ia responder.
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- Não me engana, Danny. Eu sei que você está acordado. - A voz dela adquiriu de repente um tom de comando. - Olhe para mim, Danny!
Não pude mais suportar o som daquela voz martelando-me os ouvidos. Levantei-me com raiva, encostei-me ao peitoril e disse, com o corpo tremendo:
- Deixe-me em paz. Por favor, deixe-me em paz. Disse a você que nunca mais!
Ela riu e continuou a falar.
- Olhe para mim, Danny! Não gosta de olhar para mim ? Levantou os braços e esticou bem o corpo, exibindo-se para mim.
Fiquei olhando-a sem poder falar. Não queria olhar, mas não conseguia desviar os olhos.
Ela riu e chamou-me.
- Danny!
- Que é? - perguntei com voz angustiada. -• Acenda a sua luz que eu quero ver você!
Por um instante, não a compreendi. Mas as palavras dela me chegaram à consciência e eu senti o fôlego faltar-me ao mesmo tempo que me percebia. Eu fora traído. Meu corpo me traíra.
- Não! - exclamei, dilacerado entre a vergonha e o medo. Afastei-me da janela. - Deixei-me em paz! Já lhe pedi que me deixasse.
- Acenda a luz, Danny -, disse ela com voz suave e persuasiva. - Faça esse favor para mim, Danny!
- Não! - gritei para ela num momento faiscando de rebelião.
Hesitei um instante, já estendendo a mão para o interruptor. Ela tinha razão. Nunca mais poderia fugir dela. Estava perdido.
- Não! - tornei a gritar, rebelando-me. Odiava tudo o que me estava acontecendo - tudo aquilo que eu ia ser, minha virilidade e sua expressão.
- Nunca! - gritei e saí correndo, batendo a porta do meu quarto e fugindo de tudo o que de lá podia ver.
Entrei no banheiro e tirei o pijama. Olhei para o meu corpo traidor e bati em mim mesmo, cheio de raiva. A dor me deu alguma satisfação. Estava certo. Faria o corpo pagar pelo que me tinha feito. Bati de novo. A dor me fêz dobrar o corpo.
Apoiei-me na pia com uma mão e com a outra abri o chuveiro. O barulho da água caindo no banheiro teve sobre mim um efeito calmante. Entrei debaixo da água.
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A água fria me bateu no corpo quente e me provocou um súbito arrepio. Segurei-me para agüentar a força da ducha. De repente, deixei-me cair na banheira e comecei a chorar.
Quando acordei na manhã seguinte, foi como se nada houvesse acontecido, como se a noite da véspera tivesse sido parte de um sonho, um pesadelo que o sono se encarregara de apagar.
Escovei os dentes, penteei os cabelos e, enquanto me vestia, cantarolei. Olhei-me com surpresa ao espelho. Percebi com espanto que nada havia demais comigo. Tudo o que me haviam dito que ia acontecer não passava de uma mentira. Os olhos estavam azuis e límpidos, a pele estava lisa e macia, os lábios não estavam mais doloridos.
Saí do quarto sorrindo. Ninguém ia saber o que havia acontecido. Mimi passava pelo corredor a caminho do banheiro.
- Bom dia! - exclamei com voz alegre.
Ela olhou para mim e sorriu.
- Bom dia. Você estava mergulhado num sono tão profundo ontem à noite que nem ouviu a gente chegar.
- E não ouvi mesmo -, disse rindo. Calculei que a nossa guerra privada estivesse terminada. Rexie desceu as escadas comigo.
- Bom dia, Mamãe -, disse eu, entrando na cozinha. - Temos pão fresco hoje?
- Não pergunte tolices, Danny -, disse ela, sorrindo tolerantemente.
- Está certo, Mamãe. - Tirei o dinheiro do copo em cima da pia e me encaminhei para a porta. - Vamos, Rexie.
Abanando o rabo, Rexie saiu comigo. Correu à minha frente até que se sentou no meio-fio e ficou-me esperando. Olhei-a, sorrindo, Era uma bela manhã e ia ser um lindo dia. O sol estava brilhando e o ar estava fresco e agradável.
Rexie prosseguiu pelo quarteirão e eu fui atrás dela. A noite passada tinha sido um sonho mau, nada mais do que isso. Não havia realmente acontecido. Sentia o peito dilatar-se forçando a camisa quando enchia os pulmões de ar.
- Danny!
A voz dela, suave e mansa, me fêz parar. Virei-me e vi-a toda sorridente.
- Por que fugiu de mim ontem à noite?
Um gosto amargo me subiu à boca. Era verdade. Não fora um sonho então e eu não poderia escapar. Comecei a odiá-la. Cuspi no chão e murmurei:
- Cadela!
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Ainda sorria quando se aproximou de mim. Refletia no corpo a segurança que tinha. O andar me recordou o que eu vira à noite na janela.
- Você gosta de mim, Danny -, disse ela, chegando perto de mim. - Não lute então. Eu gosto de você.
Olhei-a friamente e disse.
- Odeio sua ousadia.
- Isso é o que você pensa, mas eu sei que não é verdade, - disse ela, deixando de sorrir. Fêz um gesto curioso com as mãos. - Você vencerá isso e vai querer mais disso. Vai voltar.
Compreendi o que queria dizer o gesto e fiquei sabendo que ela estava certa. Eu ia voltar.
Dei-lhe as costas e saí correndo pela rua, chamando Rexie. Mas não estava na realidade correndo atrás da cachorra. Estava era fugindo dela. E sabia que nunca poderia correr tanto que conseguisse parar de crescer.
8
Quase não pude esperar que a última aula terminasse. O Sr. Gotkin tinha dado todas as informações pedidas por Papai e eu estava ansioso por chegar à farmácia e dizer-lhe. Papai ia gostar. Ficava sempre contente quando eu aparecia por lá. Quando eu era menor, Papai costumava mandar-me ir falar com os outros negociantes da vizinhança para me mostrar. Eu também gostava disso, porque todos eles me faziam muita festa.
Tomei o bonde na esquina de Church com Flatbush, passando depois para o que atravessava a cidade em Sands Street, perto do Arsenal de Marinha. O bonde me deixou a duas ruas da farmácia.
Esperava que Papai me deixasse ir para o interior com Gotkin. Tinha ainda mais interesse nisso porque era o único meio de fugir de Marjorie Ann. Tinha medo dela e das coisas que ela me fazia sentir. Seria ótimo se eu pudesse ficar todo o verão ausente.
Ouvi um toque de cometa. Eram quatro horas e estavam rendendo a guarda no Arsenal de Marinha. Fiquei olhando. Alguns minutos mais não fariam diferença.
68
NÃO ESTAVA LÁ QUANDO...
Papai abriu a registradora e olhou. A fita mostrava uma féria de nove dólares e quarenta cents. Sacudiu a cabeça e olhou para o grande relógio na parede. Quatro horas já. Em tempos normais, a registradora mostrava àquela hora dez vezes mais. Não sabia como iria continuar a fazer os seus pagamentos se a situação continuasse assim.
Ouviu um caminhão frear em frente à loja e levantou a cabeça. Era o caminhão de Towns énd James. Era uma firma atacadista com que fazia negócio desde que abrira a farmácia. O motorista entrou com um pequeno pacote.
- Alô, Tom -, disse Papai, sorrindo.
- Alô, Doutor. Trouxe-lhe uma encomenda. São doze dólares e seis cents.
Papai tirou a caneta do bolso.
- Está bem. Vou assinar a nota.
- Desculpe, Doutor, mas é pagamento à vista.
-- À vista? - perguntou Papai, magoado. - Mas eu faço negócios com eles há quase vinte anos e sempre paguei as minhas contas.
O motorista encolheu os ombros e disse delicadamente:
- Sei disso. Mas nada posso fazer. São ordens. Veja o carimbo na nota.
Papai abriu a registradora e contou o dinheiro devagar em cima do balcão. O motorista pegou o dinheiro e deixou o embrulho em cima do balcão. Papai ficou com vergonha de olhar para ele. O seu crédito sempre fora um dos seus motivos de orgulho.
Uma mulher entrou na farmácia e Papai perguntou-lhe com um sorrriso:
- Que deseja, senhora?
Ela colocou dez cents em cima do balcão.
- Pode fazer o favor de trocar isto que eu quero falar no telefone?
Papai pegou a moeda e deu-lhe dois níqueis de cinco cents. Viu-a entrar na cabina do telefone. O embrulho ainda estava em cima do balcão, no lugar onde deixara o motorista. Papai não queria abri-lo. Niiu queria nem tocar nele.
Dobrei a esquina e olhei para a rua. Avistei as letras azuis na fachada da farmácia:
69
FARMÁCIA FISHER
Corri, passando pela porta aberta do bar. Lá dentro, havia um rumor de vozes alteradas. Não parei para olhar. Havia sempre discussões ali.
Quando cheguei à porta da farmácia, Papai estava atrás do balcão, muito pequeno e moreno com o paletó que usava no trabalho. Parecia estar examinando um embrulho que estava no balcão em frente dele. Entrei.
- Alô, Papai. - As minhas palavras pareceram ressoar na casa vazia. O cheiro tão conhecido dos remédios chegou-me ao nariz. Iria lembrar-me sempre daquele cheiro quando visse uma farmácia. Quando eu era menor, sentia-o até nas roupas de Papai quando ele voltava do trabalho para casa.
- Danny! - exclamou Papai com uma voz que parecia contente. Deu a volta pelo balcão para falar comigo. - Que é que está fazendo aqui?
- O Sr. Gotkin já me deu todas as informações sobre o hotel do interior.
Papai teve um sorriso cansado.
- Eu sabia que você devia ter um motivo.
- De qualquer maneira, eu viria até aqui.
Papai me olhou diretamente. Eu não o estava enganando. Passou a mão afetuosamente pela minha cabeça.
- Está bem, Danny. Vamos lá para os fundos e conversaremos sobre o caso.
Comecei a acompanhá-lo até aos fundos da farmácia. Já havia passado o balcão quando houve um grito na porta. Voltei-me, assustado.
- Doutor! - tornou a gritar o homem.
Senti a mão de Papai nos meus ombros e fui empurrado para trás dele. O rosto de Papai estava lívido.
O homem estava coberto de sangue. Tinha ao lado do rosto um longo talho irregular que descia até ao pescoço. O corte era muito rasgado e via-se o branco do osso do maxilar por baixo do sangue que corria. Deu alguns passos trôpegos para dentro da farmácia com o sangue a espadanar-lhe nos pés. Estendeu as mãos para o balcão e agarrou-se desesperadamente ao mesmo, voltando para nós o rosto cheio de dor.
- Feriram-me, Doutor!
Perdeu a força nas mãos que se agarravam ao balcão e começou a escorregar para o chão. Ficou de joelhos diante do balcão ainda com a mão a segurá-lo acima da cabeça, com o rosto voltado para nós. Parecia que estava rezando.
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- Socorro, Doutor -, murmurou na sua voz fraca, que era quase um sussurro. - Não me deixe morrer.
Por fim, não pôde mais segurar-se e caiu estendido no chão aos nossos pés. Papai estava com o rosto muito branco e movia os lábios em silêncio. Tinha a testa banhada de suor.
- Papai! - exclamei.
ele me olhou angustiadamente.
- Não vai fazer nada por ele?
Não podia acreditar que Papai fosse deixar o homem morrer ali.
Com os lábios apertados, Papai pôs um joelho no chão ao lado do homem. Este havia desmaiado e estava de boca aberta.
- Danny -, disse meu pai calmamente -, telefone pedindo uma ambulância.
Corri para o telefone. Quando voltei, a farmácia estava cheia de gente amontoada em torno do homem estendido no chão. Tive de abrir caminho para passar.
- Afastem-se um pouco -, disse Papai. - Dêem-lhe ar para respirar.
Ninguém lhe deu atenção, mas ouviu-se outra voz que reforçou o pedido de meu pai. Era um guarda.
- Não ouviram o que o Doutor disse? - perguntou ele com o hábito da autoridade. - Façam então o que ele está mandando!
A ambulância chegou muito tarde. O homem já estava morto. Tinha morrido ali no chão da farmácia porque havia brigado com outro homem por causa de um copo de cerveja. Eu não sabia que um copo de cerveja pudesse ter tanta importância, mas aquele teve. Valeu a vida de um homem.
Acabei de limpar o balcão os últimos traços de sangue. Dos fundos da farmácia, Papai me olhava. Virei-me para ele.
- Ih, Papai -, disse, cheio de admiração. - Teve muita coragem em socorrer o homem. Eu não seria capaz. Ficaria logo enjoado.
- Eu estava enjoado, Danny. Mas não podia agir de outra maneira.
Sorri para ele.
- Sabe que mudei de idéia, Papai? Não quero mais ir passar o verão fora. Essas coisas acontecem muito aqui?
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- Não -, disse Papai, acendendo um cigarro. - E você vai para fora.
- Mas, Papai -, disse eu, realmente desapontado.
- Não ouviu o que eu disse, Danny? Você vai para fora.
Tive a impressão de que havia alguma coisa errada, alguma coisa fora do lugar.
-- Guardou o embrulho que estava em cima do balcão, Papai?
Papai olhou para o balcão e uma sombra lhe passou por um momento pelos olhos.
- Não, não peguei nele.
- Acha que foi alguma das pessoas que estavam aqui que levou?
- Não sei, Danny. Mas não tem importância. Não era coisa de que eu precisasse muito.
Estava eu sentado nos degraus da porta, afagando distraidamente a cabeça de Rexie. Era a minha última noite em casa. Na manhã seguinte, Gotkin iria apanhar-me no seu Ford e nós partiríamos para o interior. Estava triste. Era a primeira vez que ia ficar longe de casa.
A noite me envolvia na sua tranqüilidade. A casa estava às escuras. Só havia luz na cozinha, onde Mamãe e Papai ainda conversavam.
- Veja se procede bem enquanto eu estiver fora -, disse eu a Rexie.
Ela abanou o rabo. Compreendia tudo o que eu dizia. Nunca vi um animal mais inteligente.
- O verão não vai demorar muito, Rexie. Quando menos se esperar, o outono está aí e eu volto para casa.
Ela encostou a cabeça no meu joelho e eu lhe cocei o pescoço. Ela gostava disso.
Ouvi a porta dos Conlons abrir-se e olhei. Era Marjorie Ann. Levantei-me no mesmo instante, chamei Rexie e saí pela rua. Não queria falar com ela.
- Danny!
Ouvi o tropel dos passos de Marjorie Ann que corria atrás de mim. Alcançou-me quase sem fôlego.
- Vai-se embora amanhã, Danny?
- Vou.
- Posso passear um pouco junto com você? - perguntou ela com voz baixa e humilde.
Olhei-a, surpreso. Ela não costumava ser assim.
- A rua é pública -, disse eu, recomeçando a andar. Ela me acompanhou.
- Passou em tudo, Danny?
- Passei. Média 85.
- Ótimo - disse ela, toda satisfeita. - Eu quase fui ao pau em Matemática.
- Matemática é fácil.
- Para mim não é.
Ficamos calados depois disso. Os nossos passos ecoavam no passeio. Só depois que chegamos à outra esquina foi que ela tornou a falar.
- Ainda está muito zangado comigo, Danny?
Vi uma expressão de mágoa no rosto dela, mas não respondi. Continuamos a caminhar e de repente ouvi um soluço. Parei e olhei para ela. Se havia uma coisa que eu não podia suportar era choro de mulher.
- Que é que há? - perguntei com aspereza.
- Não queria que você fosse embora zangado comigo -, disse ela com os olhos cheios de lágrimas. - Eu gosto de você, Danny.
- Se gosta, por que é que vive me provocando e me forçando a fazer coisas que eu não quero?
- Eu só estava fazendo isso pensando que você ia gostar -, disse ela, com a voz entrecortada pelos soluços.
- Mas não gosto. Fico muito nervoso.
- Se eu prometer parar com isso, você ainda vai ficar zangado comigo, Danny? - perguntou ela, pegando-me na mão.
- Se prometer mesmo, não.
- Então prometo -, disse ela, com um sorriso a brilhar por entre as lágrimas.
Sorri também e disse:
- Então não estou mais zangado com você.
Compreendi então que nunca estivera zangado com ela. Comigo mesmo é que eu ficara zangado. Havia gostado das coisas que ela me fizera.
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Continuamos a caminhar de mãos dadas. Rexie foi olhar um terreno baldio e nós ficamos esperando que ela saísse.
- Posso ser sua namorada, Danny?
- Você está louca?
A minha exclamação foi involuntária, mas no mesmo instante os olhos dela se encheram novamente de lágrimas. Largou minha mão e começou a correr, em pranto.
Fiquei um momento parado. Depois, corri atrás dela e peguei-a pelo braço.
- Marjorie Ann!
Ela se voltou para mim, com o rosto banhado em lágrimas
- Deixe de choro. Se quiser, pode ser minha namorada.
- Oh, Danny! - exclamou ela, passando os braços pelo meu pescoço e tentando beijar-me.
- Pare com isso, Marge. Você prometeu!
- Só um beijo, Danny. Se eu sou sua namorada, não tem importância nenhuma.
O que ela dizia era lógico. Além disso, eu estava com vontade de beijá-la.
- Está bem, mas só um beijo.
Ela me pegou o rosto e beijou-me. Senti-lhe os lábios quentes. Abracei-a e ela encostou a cabeça no meu ombro.
- Farei tudo o que você quiser, agora que sou sua namorada, Danny! - Apertou minha mão de encontro ao peito. - Tudo o que você quiser. Nunca mais vou provocar você.
Os olhos dela brilhavam. Nem parecia a mesma que eu sempre havia conhecido. Tinha um calor que eu nunca vira nela.
Beijei-a de novo, demoradamente. Ela se aconchegou a mim e eu senti o calor subir-me pelo corpo. As têmporas começaram a latejar. Afastei-me dela.
- Agora, vamos para casa, Marjorie Ann. É só o que eu quero.
Papai me chamou logo que eu entrei em casa. Aproximei-me.
- Que é, Papai?
ele estava visivelmente embaraçado. Olhou para Mamãe, mas ela estava lendo o jornal e nem levantou a vista. ele olhou fixamente para um ponto no chão, pigarreou e disse:
- É a primeira vez que você se ausenta de casa, Danny.
- É verdade, Papai.
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ele estava olhando para o teto, evitando cuidadosamente encarar-me.
- Você já está bem crescido, Danny, e há algumas coisas que sua mãe e eu achamos que devemos dizer-lhe.
- A respeito de mulheres, Papai? - perguntei, rindo.
ele me olhou cheio de surpresa. Mamãe largou o jornal e ficou a observar-me.
- Está um pouco atrasado, Papai. Hoje em dia, ensinam essas coisas na escola.
- É mesmo? - perguntou ele incrèdulamente.
Fiz um sinal afirmativo com a cabeça e disse, ainda sorrindo:
- Se quer saber de alguma coisa, Papai, não tenha acanhamento. É só me perguntar.
- Está vendo, Mary? - disse meu pai com um sorriso de alivio. - Eu bem lhe disse que não tínhamos de dizer nada a ele.
Mamãe olhou para mim cheia de dúvidas e eu procurei tranqüilizá-la.
- Não se preocupe, Mamãe. Sei cuidar de mim.
Subi as escadas, ainda sorrindo. Os dois não sabiam com quem estavam falando. Eu era um perito em pequenas. Não tinha provado isso naquela noite mesmo?
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- Ela faz isso, Danny?
Olhei para o rapaz, aborrecido. O rosto dele estava afogueado enquanto ele seguia a pequena com os olhos até à varanda.
Estendi a mão e tranquei o balcão da concessão. Devia ser a milésima vez que me faziam uma pergunta dessas desde que eu trabalhava ali. Era aquele o meu terceiro verão no Hotel e Country Club Mont-Forn.
- Todas elas fazem -, respondi displicentemente. - Que é que acha que elas vêm procurar aqui? Ar puro e sol?
Os outros rapazes em torno do balcão riram, mas ele continuou a olhar para ela.
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- Há alguma coisa a respeito dessas mulheres de slacks! - disse ele com voz emocionada.
- Quem quer saber de slacks? - perguntei. O que me interessa são as blusas.
Tratei de fechar a concessão enquanto eles ainda estavam rindo. Aqueles garçons e boys jamais gastavam um centavo. Só estavam ali pelos poucos dólares que recebiam e pelas mulheres. Não eram nem bons no serviço, mas o hotel não se incomodava. Queria apenas que eles contentassem os hóspedes e, como os hóspedes eram principalmente mulheres, todo mundo ficava feliz com a combinação.
Os rapazes saíram para a varanda. Eram quase todos mais velhos do que eu, mas eu pensava neles como garotos. Sentia-me velho. Talvez fosse pelo meu tamanho - eu tinha um metro e oitenta - ou talvez porque eu fosse um veterano de três verões. Peguei o caixa do dia e comecei a escriturá-lo. Sam gostava de ter tudo em ordem.
Lembrava-me do meu primeiro verão ali. Eu era então muito inexperiente. Tinha sido logo depois do meu Bar Mitzvah. Eu era um garotinho que adulava Gotkin na esperança de que ele me pusesse no time de futebol americano no outono. Que farsa era tudo isso!
Gotkin nunca mais voltou à escola, Na primeira noite, limpara o concessionário num jogo de dados. No dia seguinte, estava de posse do negócio. Antes do fim da primeira semana, sabia que não ia voltar. "Disso é que eu gosto", disse ele. "Quem quiser que vá servir de ama-sêca para aqueles garotos."
Era a ele que eu servia em vez de trabalhar para o hotel e ele foi correto comigo. Foi para Miami Beach durante o inverno e, no verão seguinte, pegou a concessão daquele hotel e de mais um na mesma zona. Naquele verão, tinha a concessão de cinco hotéis. Dois rapazes em cada lugar e tudo o que ele fazia era aparecer uma vez por dia e pegar o dinheiro. Não andava mais de Ford. Tinha um belo conversível Pierce.
Mas aquele primeiro verão tinha sido difícil. Acho que todo mundo via como eu era verde. Era o alvo de todas as pilhérias dos rapazes e as pequenas todas se divertiam à minha custa. Sam teve afinal de intervir para me deixarem em paz. Tinha receio de que eu acabasse perdendo a cabeça e batesse em alguém.
Eu não queria voltar no verão seguinte, mas quando Sam apareceu em minha casa e disse que conseguira outro hotel e que eu é que iria tomar conta da concessão ali, fui com ele. Precisávamos de dinheiro, pois os negócios de Papai iam de mal a pior. Trouxe quinhentos dólares no fim do verão.
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Lembro-me da expressão de Mamãe quando coloquei o dinheiro em cima da mesa da cozinha e disse-lhe que ficasse com ele. As lágrimas lhe chegaram aos olhos e ela se virou para Papai tentando escondê-las de mim. Os lábios dela tremiam mas eu pude ouvir o que murmuravam: "Meu Lourinho". Foi só.
Papai quase chorou também. De dia para dia, a situação na farmácia ficava pior. Aquele dinheiro ajudaria muito. Mas os lábios dele se apertaram com obstinado orgulho.
- Bote seu dinheiro no banco, Danny -, disse ele. - Vai precisar dele quando tiver de ir para a universidade.
Sorri. A mim ele não enganava mais, que eu sabia das coisas.
- Podemos aproveitar o dinheiro agora -, disse eu com inegável lógica. - Se daqui a dois anos é que terei de ir para a universidade. Pensaremos no caso quando chegar o momento.
Papai me olhou durante muito tempo e, por fim, recolheu o dinheiro com as mãos trêmulas.
- Está muito bem, Danny. Mas fique sabendo que, quando as coisas melhorarem, você terá o seu dinheiro de volta.
Mas sabíamos, naquele momento mesmo, que o dinheiro nunca mais me voltaria às mãos. Os negócios não estavam absolutamente melhorando e iam por água abaixo, como tudo mais.
Mas aquele era o último verão e eu já tinha dado adeus ao dinheiro. Naquele ano, Sam me prometera uma gratificação de cem dólares se eu conseguisse uma receita maior do que a do ano anterior. Eu só precisava de um pouco de sorte naquelas últimas semanas da temporada. Olhei para o relógio. Ainda tinha tempo de nadar um pouco antes do almoço.
Fechei a concessão e saí para a varanda. A pequena nova e o rapaz de olhos grandes estavam jogando tênis de mesa. A pequena era boa mas podia melhorar um pouco o estilo.
Cheguei por trás dela e tirei-lhe a raqueta da mão.
- Relaxe mais o corpo menina, - disse eu, cheio de confiança. - Está muito dura.
O rapaz dos olhos grandes me olhou de má cara e me jogou a bola com toda a força, rebati-a com a maior facilidade. Repetiu a manobra e eu tornei a rebater. Eu era bom naquilo e tinha consciência disso. Na próxima vez, dei efeito na bola e a fiz passar longe da sua mão frenética.
Sorri para a pequena.
- Viu como é fácil ?
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- Como você faz, é - replicou ela sorrindo -, mas para mim não é.
- Quem foi que disse? Vou-lhe mostrar.
Entreguei-lhe a raqueta e fiquei por trás dela. Coloquei-lhe as mãos para trás e depois fui lentamente levando o braço direito dela para o lado esquerdo quase à altura do ombro. Ela se encostou em mim quando os nossos braços se cruzaram e eu senti os seios rígidos contra o meu braço. Sorri para o rapaz. ele estava fervendo de raiva, mas não teve coragem de abrir a boca. Eu era grande demais para ele.
Olhei para ela sorrindo e perguntei:
- Não é fácil?
Ela estava ficando vermelha. Tentou afastar-se de mim, mas não pôde. Eu era bem mais forte. E preferiu não reclamar para não fazer escândalo. Murmurou:
- Acho que sim...
Sorri e larguei-a. Ela não esqueceria com facilidade aquela lição de pingue-pongue. Os outros rapazes também não a esqueceriam. Vi que olhavam para mim, cheios de inveja. A medida do sucesso ali não eram dólares, mas mulheres. Nenhum deles iria acreditar que eu só ganhara dólares com os meus verões ali.
- Continue a treinar, menina... - disse eu, saindo da varanda, muito contente comigo mesmo.
Atravessei o campo de basebol em direção ao cassino. Sam e eu tínhamos um bangalô de um quarto só nos fundos. No primeiro ano, tínhamos tido um quarto por cima do cassino e o barulho nunca nos havia deixado dormir. Naquele ano, Sam havia tomado o bangalô que nos servia de depósito e quarto de dormir. Sam mandara até instalar um telefone para ficar em contato com as outras concessões.
Abri a porta e fiquei aborrecido. Estava tudo desarrumado com caixas espalhadas por todo o quarto. Tive a impressão de que nunca teria tempo de arrumar aquilo.
Apanhei o meu calção de gabardina e vesti-o. Pisando com cuidado por entre as caixas, encaminhei-me para a porta, prometendo a mim mesmo que arrumaria tudo aquilo à tarde. Fechei a porta e fui para a piscina.
A piscina estava como eu gostava - vazia. Era por isso que só ia nadar de manhã. Os hóspedes raramente apareciam antes do almoço. Olhei para o velho cartaz na entrada da piscina.
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No começo da temporada, quando era pintado de novo, era muito claro e nítido, mas àquela altura já estava desbotado pelo sol e era pouco mais do que um sussurro:
CUIDADO COM O PÉ-DE-ATLETA!
TODOS OS BANHISTAS DEVEM LAVAR
OS PÉS ANTES DE ENTRAREM NA PISCINA -
Por Ordem da S. Pública.
Eu obedecia religiosamente à ordem. Se havia uma coisa que eu não queria era pé-de-atleta. Fiquei lavando os pés durante dois minutos até chegar à borda da piscina.
Corri os olhos pela varanda para ver se alguém me estava olhando. O sujeito dos olhos grandes e a pequena ainda estavam jogando pingue-pongue. Ninguém estava olhando. Senti-me estranhamente desapontado.
Entrei na água e nadei vigorosamente até à ponta da piscina. A água estava bem fria naquela manhã e eu tinha de nadar depressa para não me resfriar. Desde que não havia ninguém por ali, eu podia praticar o meu crawl. Às vezes, me atrapalhava, perdia a conta e respirava errado, fazendo a água subir pelo nariz. Eu ficava meio sufocado e achando que era um perfeito idiota.
Acertei a braçada, contando com muito cuidado. Já estava nadando havia quinze minutos quando ouvi uma voz de homem chamar-me e levantei a cabeça zangado. Era um dos boys do hotel.
- Uma mulher está na portaria procurando seu patrão.
- Não sabe que ele não está? Por que veio me dizer? Diga a ela que pode ir-se embora.
- Já disse e ela respondeu que quer falar com você. Quem podia ser?
- Ela disse quem é?
- Como é que eu posso saber? - disse o boy, encolhendo os ombros. - Não perguntei. Só queria era olhar para ela. Se eu fosse você, não deixaria de ir falar com a pequena. É formidável!
Sorri e saí da piscina. Peguei uma toalha e tratei de enxugar-me.
- Que é que está esperando então? - perguntei ao boy. -Mande-a vir aqui.
- OK, Danny -, disse ele, rindo. - Mas se eu fosse você, tomaria providências especiais antes de mandá-la vir até aqui.
Quando acabei de me enxugar, sentei-me num banco para calçar as sandálias. Senti uma sombra cair sobre os meus pés e levantei a cabeça. Era Miss Schindler que estava ali sorrindo.
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- Alô, Danny!
Levantei-me imediatamente e vi com surpresa que já estava mais alto do que ela.
- Oh... Srta. Schindler! Ela me olhou, ainda sorrindo.
- Como você cresceu, Danny! Quase não o reconheci!
Olhei-a e, de repente, foi muito engraçado, mas me lembrei de casa. Ela era de outro mundo muito diferente daquele ali. Pensei na carta de Mamãe que eu estava para responder já fazia uma semana.
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-• Sam não está no momento -, disse eu em resposta a uma pergunta dela. - Está correndo as outras concessões. Deve estar de volta hoje à noite.
Notei no rosto dela um curioso ar de satisfação.
- Estou aqui perto e me lembrei de vir até aqui -, disse ela prontamente.
Não dei a menor demonstração de estranheza. Mas sabia como ela estava perto. Cento e cinqüenta quilômetros no mínimo que era a distância da cidade até ali.
- Está bem -, disse eu e tive uma idéia. •- Onde é que está? Posso dizer a ele que lhe telefone logo que chegar.
- Não! ele não pode fazer isso! - replicou ela muito depressa demais. Compreendi tudo. O marido dela devia andar por ali e ela não queria que ele soubesse de nada. Devia ter percebido o que eu estava pensando porque acrescentou: -• Acontece que eu estou viajando e não sei onde vou ficar esta noite.
- Por que não fica aqui? É um bom lugar e eu posso conseguir-lhe um desconto.
Ela sacudiu a cabeça.
- Sam vai ficar aborrecido quando souber que esteve aqui e não o esperou.
- Não -, disse ela com voz firme. - Não devo ficar. Senti-me desapontado. Percebi de repente que queria que ela
ficasse. De certo modo, era uma lembrança de casa e eu estava satisfeito de vê-la.
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O telefone no bangalô começou a tocar. Peguei a toalha e corri para lá.
- Espere um minuto -, disse-lhe eu: - Talvez seja Sam e eu direi que está aqui.
Abri a porta e peguei o telefone.
- Alô? Sam?
- Sou eu -, disse ele, com voz rouca. - Como vai tudo?
- Muito bem. Mas sabe quem está aqui? É a Srta. Schindler. Diz que veio ver você.
- Que é que ela está fazendo aí?
- Disse que passou por aqui e se lembrou de vir falar com você.
- Diga a ela que eu só vou voltar hoje muito tarde. Arranje um bom quarto para ela e deixe-a lá até eu voltar
- Mas já falei nisso a ela, Sam, e ela diz que não vai ficar. A voz dele se tornou confidencial.
- Escute, garoto, estou contando com você. No dia em que você estiver louco por uma pequena como eu estou por essa, compreenderá o que eu estou dizendo. Faça tudo o que ela quiser, mas não a deixe sair daí. Estarei de volta antes de uma hora da madrugada.
Desligou abruptamente o telefone e eu fiquei ali sem saber o que iria fazer. Que era que ele esperava de mim? Raptá-la? Coloquei o fone no gancho e me dirigi para a porta. Sam tinha falado como se eu soubesse o que eu devia fazer, como se estivesse falando com outro homem e não com um garoto. Senti um pouco de orgulho com isso, mas antes que eu chegasse à porta, ela apareceu.
- Posso entrar? - perguntou, olhando curiosamente para dentro do bangalô.
- Claro, Srta. Schindler -, disse eu, empurrando algumas caixas com o pé para que ela pudesse passar. - Eu já devia ter arrumado isso, mas não tive tempo.
Ela fechou a porta e se voltou para mim.
- Foi Sam? Confirmei com a cabeça.
- Que foi que ele disse?
- Disse que eu lhe desse um quarto e fizesse tudo o que a senhora quisesse para que ficasse aqui até voltar.
- ele parece ter muita confiança em si mesmo, não acha? Eu me sentia mal e não podia encará-la. Não respondi.
- Que é que vai dizer a ele se eu não ficar?
Virei-me para o lado e arrumei algumas caixas, mas não respondi.
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- Que é que vai dizer a ele? - repetiu ela. > '
Encarei-a então. Que fosse para o diabo. Que era que ela me podia fazer? Eu não estava mais na escola.
- Nada -, disse eu zombeteiramente.
- Está bem -, disse ela de repente. - Vou ficar. Arrume o quarto para mim.
- Mas Sam me disse que lhe arranjasse um quarto.
- E eu disse que vou ficar aqui.
- Mas isto aqui está todo desarrumado. Terá mais comodidade no hotel.
Ela se encaminhou para a porta e abriu-a.
- Sam disse que você tinha de fazer tudo o que eu quisesse contanto que eu ficasse e eu vou ficar aqui. Vou descer para pegar o carro. Enquanto isso, arrume o quarto.
Vi-a fechar a porta. Eu estava nas mãos dela e ela sabia disso. Não compreendia era por que estava tão zangada. Não podia ter revelado tanto assim o que eu sentia.
Fui até à janela e fiquei olhando-a. Ela desapareceu abaixo da piscina. Eu compreendia perfeitamente o que Sam sentia por ela. Aquela pequena impressionava com o andar muito mais do que as outras com maiô de banho.
Saí da janela e olhei com aborrecimento para o quarto. A carta de Mamãe ainda estava em cima da mesa, sem resposta havia mais de uma semana. E ia continuar assim porque naquele dia eu não teria tempo.
EU NÃO ESTAVA ALI QUANDO. . .
Mamãe amarrou o avental enquanto descia as escadas. O ar estava parado e ela sabia que ia fazer outro dia de muito calor. Estava cansada antes que o dia começasse. Vivia muito cansada ultimamente. Não conseguia mais dormir direito.
Papai tinha-lhe levado um tônico. Ela o tomara todos os dias de manhã durante uma semana, mas não havia adiantado. É claro que ela disse a ele que tinha melhorado, pois ele ficaria satisfeito com isso. Um homem precisa de sentir-se útil e ele já vivia bem cheio de problemas com os seus negócios.
Tinha muita pena de Papai. Naquela noite, ele tivera o sono muito agitado. A voz dele a havia acordado e ela ficara em silêncio, ali no escuro, a ouvir aqueles murmúrios queixosos que lhe vinham do coração. As lágrimas lhe subiram aos olhos.
Depois disso, não conseguira mais dormir. A noite parecia que não ia acabar mais. Agora, estava cansada e nada podia fazer.
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O opressivo calor já àquelas horas da manhã não a fazia sentir-se melhor. Aquelas últimas semanas de agosto eram quase sempre as piores. Já não podia suportar aquele calor e desejou que o verão acabasse.
Atravessou a cozinha e abriu a porta da geladeira. Estava quase vazia. Sempre fizera questão de ter a geladeira bem abastecida porque gostava de ter tudo em casa sem necessidade de ir fazer compras de última hora. Agora, a geladeira estava de fazer pena. O gelo estava quase no fim, só havia três ovos e um restinho de manteiga. Até a garrafa de leite com menos de uma xícara no fundo era uma coisa que lhe apertava o coração.
Fechou devagar a porta da geladeira. Os três ovos teriam de chegar para o café da manhã. Afinal de contas, era uma coisa boa que eu não estivesse em casa. Resolveu ir olhar na caixa da correspondência para ver se minha carta já havia chegado.
Ouviu o barulho da carrocinha do leite. Assim era melhor. Poderia conseguir, com o leiteiro, ovos e manteiga além do leite. ele poria tudo na conta e ela poderia usar os poucos dólares que havia na lata acima da pia para fazer uma boa sopa de galinha. Encaminhou-se para a porta da frente um tanto apressadamente para alcançá-lo antes que ele se fosse embora.
O leiteiro estava ajoelhado diante da caixa de depósito quando ela abriu a porta. Levantou-se com uma expressão estranha no rosto.
- Bom dia, Madame... - murmurou ele com voz embaraçada.
- Bom dia, Borden. Foi muito bom eu ainda encontrá-lo aqui. Preciso também de ovos e de manteiga.
- Bem, Madame, sinto muito mas...
- Quer dizer que já acabou tudo? - perguntou ela desapontada.
ele sacudiu a cabeça e apontou para a caixa de depósito.
- Não compreendo... - murmurou Mamãe, seguindo" a direção dos dedos do leiteiro. Compreendeu então. Havia um papel amarelo na caixa, sem garrafa de leite.
Ela pegou a nota e leu. Estavam interrompendo o fornecimento. Ela já devia três semanas. Levantou para o leiteiro os olhos cheios de horror.
- Sinto muito, Madame...
Algumas gotas de água caíram no passeio em frente à casa. Viu então que era o seu vizinho, o Sr. Colon, que regava o jardim com a mangueira e os observava.
- Bom dia, Sra. Fisher -, disse ele, notando o olhar dela.
- Bom dia -, respondeu ela automaticamente.
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Era preciso fazer alguma coisa. Tinha certeza de que ele percebera tudo. Tornou a olhar para a conta. Devia quatro dólares e oitenta e dois cents. Na lata da cozinha havia apenas cinco dólares.
Tentou sorrir. O sorriso foi mais uma careta nos seus lábios brancos.
- Ia agora mesmo lhe pagar -, disse ela numa voz a que procurou dar firmeza. - Espere um pouco.
Entrou e fechou a porta. Encostou-se por um instante nela, sentindo-se muito fraca. A nota lhe caiu dos dedos trêmulos. Não se abaixou para apanhá-la. Teve receio de perder os sentidos se o fizesse. Foi até à cozinha e apanhou o dinheiro dentro da lata.
Contou o dinheiro bem devagar, como se esperasse que por um milagre houvesse muito mais. Mas não. Havia apenas cinco dólares. Um arrepio lhe passou pelo corpo quando ela voltou para a porta da frente.
O leiteiro ainda estava esperando no mesmo lugar onde ela o deixara, mas tinha na mão uma cestinha de arame com leite, manteiga e ovos. Entregou-lhe o dinheiro em silêncio. ele o contou, guardou-o no bolso e deu-lhe o troco de 18 cents.
- Aqui está a sua encomenda, Madame -, disse ele, sem querer encará-la.
Ela sentiu vontade de recusar, mas não teve coragem. Pegou a cesta, cheia de vergonha.
- Desculpe, Madame, mas eu não tenho culpa -, disse ainda o leiteiro. - É o patrão. Compreende?
Ela bateu com a cabeça. Compreendia perfeitamente. O leiteiro se afastou e a voz do Sr. Conlon fêz-se ouvir na casa defronte.
- O calor hoje vai ser de matar, Sra. Fisher -, disse ele, sorrindo.
- Vai sim, Sr. Conlon -, respondeu ela, mas com a cabeça muito longe.
Entrou, fechou a porta e voltou para a cozinha. Guardou pensativamente o leite, os ovos e a manteiga na geladeira. Esta, ainda assim, parecia vazia. Sentiu que ia chorar, mas os olhos permaneceram secos. Ouviu barulho na escada e fechou rapidamente a geladeira. A família estava descendo para o café.
Alguns minutos depois, o leite, a manteiga e os ovos estavam em cima da mesa e todos comiam. Olhando-os, ela sentiu um leve calor subir-lhe pelo corpo.
Mimi estava muito animada. Tinha lido à noite no jornal um anúncio promissor. A énd S, uma loja de departamento de Brooklyn, estava precisando de moças para trabalharem como vendeuses e ela ia até lá.
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Papai tomou café em silêncio. O rosto estava abatido e cansado, mostrando as rugas que aparecem quando não se dormiu bem.
Depois, saíram todos e Mamãe ficou sozinha. Acabou de lavar os pratos e viu que o leite, a manteiga e os ovos ainda estavam em cima da mesa. Abriu a geladeira para guardar tudo e viu que o pedacinho de gelo já estava todo derretido. Fechou a porta.
Ouviu passos na entrada. Devia ser o carteiro. Correu para a porta da rua. O carteiro já estava na casa ao lado. Abriu a caixa de correspondência, tirou algumas cartas e olhou-as rapidamente. Não havia nenhuma minha. Só contas. Voltou para a cozinha e abriu-as. Gás, telefone, luz - tudo atrasado.
Havia ainda uma carta que ela não reconheceu de pronto. Abriua. Era um aviso do banco de que a prestação da hipoteca não fora paga no dia do vencimento.
Deixou-se cair pesadamente numa cadeira ao lado da mesa. Com a vibração, a porta da geladeira mal fechada se abriu. Ficou a olhála. Devia levantar-se e ir fechar a geladeira, senão o pouco frio que ainda restava acabaria. Mas não tinha forças para levantar-se e ir fechar a porta. Não tinha importância. Nada mais tinha importância. Não lhe restavam mais nem forças para chorar. Sentia-se terrivelmente fraca. Ficou a olhar para a geladeira quase vazia e lhe pareceu que ela crescia e crescia até que ela se perdeu no seu mundo meio vazio, meio frio.
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Eu estava conversando com uma pequena logo depois de ter fechado a concessão quando vi a Srta. Schindler entrar no cassino. Olhei-a pelo canto dos olhos, enquanto ela espiava da porta.
Só a vira mais uma vez naquela noite, quando correra ao bangalô para apanhar umas caixas de cigarros de que precisava na concessão. Era uma dessas noites em que se tem a impressão de que basta estender a mão para tocar nas estrelas - uma noite clara e límpida como nunca se tem na cidade. Ela estava sentada nos degraus do bangalô. Ouvia-se um pouco amortecida pela distância a barulheira da orquestra do cassino. Ela levantou os olhos para mim por um momento e eu pensei que fosse me dizer alguma coisa, mas decerto mudou de idéia.
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Não disse uma palavra. Limitou-se a olharme em silêncio, enquanto eu apanhava os cigarros e saía. Não lhe disse nada também.
Olhei para o meu relógio. Onze e meia. Ela devia ter-se aborrecido sozinha, lá no bangalô. Eu havia ficado o tempo todo esperando que ela aparecesse.
Viu-me afinal e veio na minha direção. Desvencilhei-me da pequena, dizendo:
- A mulher do patrão vem aí. Tenho de prestar contas a ela. Deixei a pequena com cara zangada, mas pouco me importava com isso. Encontrei a Srta. Schindler no meio do caminho.
- Alô -, disse-lhe, sorrindo. - Estava mesmo com curiosidade de saber quanto tempo ia levar até aparecer aqui.
Ela sorriu para mim. Foi um sorriso de verdade e eu percebi que tudo ia bem entre nós.
- Alô, Danny. Desculpe o que fiz esta tarde.
Os olhos dela pareciam sinceros e eu me senti cheio de amizade e interesse por ela.
- Não tem nenhuma importância, Srta. Schindler. Sei que estava nervosa.
Estendeu a mão para mim.
- Estava sentindo-me muito sozinha naquele bangalô.
- Sei perfeitamemnte como se sentia -, disse eu, olhando para a mão dela no meu braço. - Às vezes, também me sinto muito sozinho aqui. Na cidade, não se nota nada disso, mas aqui o céu é tão grande que a gente se sente muito pequeno e abandonado.
Ficamos durante algum tempo num silêncio constrangido até que eu ouvi a orquestra tocar uma rumba.
- Quer dançar, Srta. Schindler?
Ela concordou com um gesto e eu a levei para o salão de danças. Ela se acomodou nos meus braços e nós pegamos o ritmo da música. Era muito leve e dançava muito bem.
- Dança bem, Danny -, disse ela, sorrindo. - Tudo que faz é bem, assim?
- Infelizmente não, Srta. Schindler -, murmurei, embora soubesse que dançava bem e tinha de dançar depois de ter passado três verões ali. - Mas Sam diz que tenho um bom senso de ritmo. É por isso que eu sou bom no boxe.
- Ainda quer ser pugilista, Danny?
- Querer, não quero. Mas Sam diz que eu tenho um jeito natural para o ringue e posso ganhar muito dinheiro quando tiver idade suficiente.
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- E o dinheiro é tão importante assim?
Eu sentia todos os movimentos do seu corpo enquanto a guiava num passo complicado.
- Isso a senhora é que vai responder. O dinheiro é ou não importante?
Ela não respondeu. Ninguém respondia certo quando se tratava de dinheiro. Em vez disso, olhou para mim e disse sorrindo:
- Não é preciso ter tanta cerimônia comigo aqui, Danny. Meu nome é Ceil.
- Eu sei -, respondi calmamente.
Dançávamos e eu cantarolava baixinho a música. Siboney... Siboney... Quando se gostava de fato de música de rumba, podia-se perder toda a noção do tempo quando se dançava. Eu gostava e podia ver que ela também gostava. A música nos unia e eu tinha a impressão de que já havíamos dançado muitas vezes juntos.
De repente, a orquestra começou a tocar a Valsa da Despedida e nós nos entreolhamos sorridentes e surpresos.
- Por hoje é só, Geil. Já deve ser meia-noite.
- Exatamente -, disse ela, olhando o relógio.
- Muito obrigado pela dança, Srta. Schindler.
Ela riu e isso me surpreendeu. Era a primeira vez que ria desde que chegara.
- O nome é Ceil... Já esqueceu?
- Gostei muito de dançar com você, Ceil... Mas agora vou procurar um quarto para mim, senão terei de dormir na varanda.
- Oh! Vim tirar você das suas comodidades...
- Não tem importância, Ceil. Você não sabia.
- Sinto muito, Danny. Não vai ter dificuldade em conseguir um quarto, vai?
- Claro que não. Boa noite, Ceil.
Havia no rosto dela uma expressão de nervosismo - como <l vira quanndo se está esperando alguém sem saber se a pessoa vai aparecer ou não.
- Quero beber alguma coisa, Danny. Pode-me arranjar?
- Tenho algumas garrafas de cerveja guardadas para Sam. Posso abrir para você.
- Cerveja, não. Não arranja outra coisa?
- Sam tem uma garrafa de uísque no bangalô. Posso ir buscar uma garrafa de soda e gelo para você.
Será ótimo.
Consegui uma garrafa de soda e uma bandeja de gelo na prateleira da geladeira atrás do balcão da concessão. O cassino estava quase vazio quando voltei para onde ela estava.
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- Pronto. Agora, vou levar isso até ao bangalô e mostrar-lhe onde está o uísque.
Ela saiu comigo. Nesse momento, apagaram as luzes do cassino e tudo ficou mergulhado na escuridão. Senti-a hesitar ao meu lado.
- Segure meu braço, Ceil. Conheço tudo isso por aqui. Esperei que ela apoiasse apenas a mão no meu braço, mas ela passou o braço por dentro do meu e passou a caminhar muito perto de mim. Tinha tanta consciência da proximidade que várias vezes quase tropecei. Sentia o rosto muito vermelho e afogueado quando acendi a luz depois de abrir a porta do bangalô.
Fiquei olhando-a e vi que havia uma expressão divertida nos olhos dela. Eu não sabia o que dizer.
- Ainda estou com sede, Danny.
Fui até à mesa todo confuso, abri a gaveta e tirei a garrafa de uísque.
Ela estava no segundo ou terceiro uísque e nós estávamos sentados na escada do bangalô quando o telefone tocou.
Levantei-me e corri para atender. Ela me acompanhou, mas não com tanta rapidez. O uísque tinha feito efeito e ela estava levemente tocada, mas estava junto a mim quando atendi.
Ouvi a voz de Sam que ressoou pelo quarto.
- Danny?
- Pronto, Sam.
- Não posso estar aí esta noite, como prometi.
- Mas, Sam...
Um riso de mulher ecoou no telefone. Ouvi uma exclamação de surpresa de Ceil, ao meu lado.
Sam parecia estar escolhendo cuidadosamente as palavras.
- Diga a esse camarada que está aí esperando por mim que fiquei preso aqui e que só poderei chegar aí amanhã depois do almoço quando então fecharemos o negócio. Compreendeu?
- Compreendi, sim. Mas...
- Muito bem então, garoto. Até amanhã. ele desligou o telefone e eu me voltei para ela.
- Sam ficou preso num negócio e não poderá chegar esta noite. Estava um pouco tonta com o uísque, mas não o bastante para não entender tudo.
- Não minta, Danny! - disse ela com raiva. - Ouvi tudo!
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Havia uma expressão de sofrimento no rosto de Ceil e pela segunda vez naquela noite tive pena dela.
- Bem, vou indo, Ceil.
Ela me agarrou o braço e eu me voltei, surpreso. Vi a outra mão dela se mover mas não me esquivei a tempo. Atingiu-me o rosto em cheio e continuou a esbofetear-me.
Consegui agarrar-lhe os pulsos e perguntei:
- Pare! Que quer dizer com isso?
Tentou soltar as mãos mas eu era forte demais para ela. Afinal parou e gritou:
- Acha isso muito engraçado, não é?
Cobri-lhe a boca para evitar que ela gritasse e houvesse escândalo. Ela me cravou os dentes na mão e eu a tirei com um grito de dor.
- Doeu, não foi? Agora já sabe o que eu estou sentindo e não vai achar tão engraçado assim!
- Ceil! Por favor, não faça tanto barulho! Quer que eu seja expulso daqui agora mesmo?
O vigia da noite pouco se incomodava com o que acontecesse nos bangalôs, desde que não houvesse barulho. Mas não me preocupei mais, porque ela se apoiou em mim, soluçando. Fiquei em silêncio, sem querer sequer mover-me, com receio de que ela voltasse a gritar.
- Vocês todos são iguais. Nenhum presta! - murmurou ela, entre os soluços.
Alisei-lhe os cabelos macios.
- Pobre Ceil -, murmurei, sentindo de fato pena dela.
- Sim -, disse ela numa voz em que se misturavam a raiva e o álcool. - Pobre Ceil. Só Danny sabe o que Ceil está sentindo.
Levantou então os olhos para mim e perguntou:
- Danny sabe o que Ceil veio fazer aqui?
Não respondi porque não sabia o que ia dizer. Ela me passou os braços pelo pescoço e levantou o rosto para mim.
- Danny está com pena de Ceil? Dê um beijo em Ceil. Fiquei parado, com medo de me mover. Não queria mais problemas.
Ela puxou o meu rosto para ela e beijou-me. Senti os dentes que me mordiam os lábios.
- Danny sabe o que Ceil veio fazer aqui e não vai deixar Ceil voltar como veio, não é?
Aquilo era comigo. Ri e abracei-a com força. Beijei-a. Ela pareceu perder toda a força entre os meus braços. Levantei-a e carreguei-a para a cama.
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Deixei-a ali e comecei a lirar impacientemente as roupas. Curvei-me sobre ela, segurando-a com firmeza. Ela me abriu os braços e eu senti o vestido rasgar-se entre os meus dedos.
A voz dela era um ressoante sussurro em meu ouvido. A minha voz foi-se levantando num grito crescente.
- Danny!
- Srta. Schindler... Ceil!
A noite estava em silêncio e eu lhe escutava a respiração leve no meu ombro. Toquei-lhe levemente os olhos fechados. As faces estavam úmidas. Ela tinha chorado. Os lábios estavam um pouco inchados. Curvei-me para beijá-la.
- Não, Danny. Chega, sim?
Sorri e sentei-me na cama. Espreguicei-me, sentindo o corpo estuante e quente. Levantei-me, fui até à porta e abri-a. O ar fresco da noite caiu suavemente sobre mim.
Desci os degraus e pisei na grama, sentindo a força da terra que me subia pelo corpo. Levantei as mãos para o alto, como se quisesse tocar as estrelas cintilantes. Comecei a pular e depois a rolar pelo chão, rindo de alegria.
Era a alegria da descoberta. Para isso é que eu tinha sido criado. Para isso era que eu estava neste mundo. Peguei um punhado de terra nas mãos. Aquela era a minha terra, o meu mundo.
Voltei para o bangalô e estendi-me ao lado do seu corpo nu. Um instante depois, dormia profundamente.
13
Fui sacudido violentamente e sentei-me na cama, esfregando os olhos.
- Onde está ela? - perguntou aos meus ouvidos a voz trovejante de Sam.
Abri os olhos. A cama ao lado de mim estava vazia. A luz cinzenta do amanhecer entrava pelo quarto. Sam estava com os olhos injetados e tornou a perguntar:
- Onde está ela?
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Olhei-o, confuso. Não sabia o que dizer. O coração começou a bater precipitadamente. Estava com tanto medo que nem tentei mentir. ele me agarrou e puxou para fora da cama.
- Não minta, Danny! Sei que ela estava aqui. Na portaria me disseram que ela não tomou um quarto e ficou aqui. Você dormiu com minha pequena, Danny!
Abri a boca para responder, mas não foi preciso. Ouvi a voz de Ceil na porta
- Quem é sua pequena, Sam?
Nós ambos nos voltamos para olhá-la com surpresa. Sam me largou e eu apanhei às pressas um lençol para cobrir-me. Ela estava com um maio de banho e ainda molhada da piscina. Aproximou-se de Sam e olhou-o bem no rosto.
- Quem é sua pequena, Sam? - repetiu.
- Você veio aqui procurar-me, - murmurou ele, confuso.
-- Era o que eu pensava, Sam. Mas cheguei aqui e vi que tudo era muito diferente. Quer saber mesmo o que vim fazer aqui?
ele sacudiu a cabeça e olhou para mim. Eu já estava vestindo as calças.
Vim dizer a você que acreditava em todas as suas promessas e que ia divorciar-me de Jeff para casar-me com você.
Sam deu um passo na direção dela, mas ela estendeu a mão para fazê-lo parar.
- Não, Sam, isso foi ontem. Hoje, o caso é outro. Eu estava perto do telefone quando você falou com Danny ontem à noite e eu ouvi tudo o que você disse. Foi a primeira vez que vi as coisas com clareza a seu respeito, a meu respeito. Foi a primeira vez em que fui realmente honesta comigo mesma. Não era que eu quisesse você ou que você me quisesse. Somos muito parecidos. Queríamos alguém. Não importava quem fosse.
Apanhou um cigarro em cima da mesa, acendeu-o e disse:
- Agora, se vocês dois saírem daqui, eu poderei me vestir. Sam e eu nos dirigimos para o hotel. ele ia de cabeça baixa e parecia pensativo.
- Desculpe, Sam. ele nem respondeu.
- Não pude evitar.
- Cale-se, Danny! - disse ele asperamente. Chegamos à concessão e eu disse, muito formalizado:
- Vou-me embora, logo que acabar de fazer as contas.
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- Por que, Danny?
- Sabe muito bem por quê.
ele riu, me embaraçou os cabelos e disse:
- Calma, Campeão. Ninguém o está mandando embora.
- Mas, Sam...
- Não quero conversa, Danny. Não podia esperar que você ficasse um garoto pelo resto da vida. E quer saber de uma coisa? Acho que foi até um favor que você me fêz!
Voltei para casa no princípio de setembro com 600 dólares. Coloquei o dinheiro em cima da mesa da cozinha, sentindo-me quase como um estranho. O verão havia transformado a todos nós.
Eu havia crescido ainda mais. Estava bem mais alto do que Papai e Mamãe, que pareciam ter encolhido durante a minha ausência. Estavam mais magros. O rosto redondo de Papai estava encovado e havia uma sombra azulada debaixo dos seus olhos. Os cabelos de Mamãe estavam quase inteiramente brancos. Dessa vez, não houve fingimentos, nem ilusões a respeito do dinheiro. A necessidade era muita.
Falamos de muitas coisas no nosso primeiro jantar juntos, mas guardamos silêncio sobre algumas. Era melhor assim. Não havia necessidade de falar sobre o que já sabíamos.
Depois do jantar, fui para a porta e sentei-me nos degraus. Rexie se sentou ao meu lado e eu lhe cocei a cabeça.
- Teve saudades de mim, menina?
Ela balançou o rabo e encostou a cabeça no meu colo. Tivera saudades, sim, e estava contente de que eu tivesse voltado para casa.
Olhei para a rua. Ela também havia mudado durante o verão. Fora asfaltada e o asfalto lhe dava um aspecto novo e melhor.
Mimi apareceu e sentou-se ao meu lado. Ficamos muito tempo em silêncio. O gordo Freddie Conlon saiu de casa e, quando me viu, falou de longe. Dei adeus e vi-o afastar-se pela rua.
Afinal, Mimi falou.
- Marjorie Ann ficou noiva neste verão -. disse ela, olhando-me atentamente.
- Ah, ficou? - murmurei, desinteressadamente. Não sentia nada por ela. Marjorie pertencia ao meu tempo de criança.
- O noivo é da polícia. Vão-se casar depois que ela concluir o curso em janeiro. ele é muito mais velho do que ela. Já tem trinta anos.
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- Escute, Mimi. Por que é que me está dizendo essas coisas. Ela ficou vermelha.
- Ora, por nada... Achei que gostaria de saber do que aconteceu por aqui durante o verão.
- E acha que isso me interessa?
Ao menos, isso não havia mudado. Não havia ainda muitas horas que eu tinha chegado e já estava brigando com Mimi.
- Pensei que você gostasse de Marjorie Ann...
- Pensou por quê?
- Você era sempre tão delicado com ela. E ela me disse...
- Que foi que ela lhe disse? Olhamo-nos numa batalha silenciosa.
- Ela me disse que vocês tinham feito coisas...
- Que coisas?
- Coisas que não deviam -, disse ela, desviando o olhar. - Depois que você viajou em junho, ela me disse que estava com receio de que estivesse esperando um filho...
•- Ela é doida! - exclamei. - Nem cheguei a tocar nela.
- Sério, Danny? - perguntou Mimi, mostrando nos olhos o alívio que sentia.
Lembrei-me do que havia acontecido no hotel e sorri. Marjorie Ann era uma boba. Não é com o dedo que uma pequena fica esperando um filho.
- Sério, Mimi. Bem sabe que eu não iria mentir para você.
- Para dizer a verdade, eu não acreditei nela, Danny. Marjorie Ann sempre gostou muito de inventar coisas. Tomara que ela se case logo e vá-se embora daqui. Não gosto mais dela.
Ficamos olhando para a rua em silêncio. Já estava bem escuro e de repente os lampiões se acenderam.
- Os dias estão de novo ficando mais curtos -, disse eu.
Ela não respondeu e eu fiquei olhando para ela. Parecia uma Kgarotinha, apesar dos fartos cabelos negros que lhe caíam pelos ombros. Embora fosse dois anos mais velha do que eu, sentia-me bem mais velho do que ela. Talvez fosse porque era de tipo pequeno. Já teria beijado alguém? Tirei logo o pensamento da cabeça. Não, minha irmã não era dessas.
- Papai e Mamãe parecem cansados -, disse eu, mudando de assunto - Deve ter feito muito calor aqui na cidade.
- Não é apenas isso, Danny. As coisas não têm corrido bem. os negócios de Papai vão muito mal e todas as nossas contas estão atrasadas. Ainda na semana passada, quase nos cortaram o fornecimento de leite.
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Felizmente, consegui um emprego por hora numa loja. Do contrário, teria sido muito pior.
Arregalei os olhos de espanto. Eu sabia que a situação era ruim, mas não até àquele ponto.
- Eu não sabia. Mamãe nunca me disse nada nas cartas que me escrevia.
- Você bem conhece Mamãe e sabe que ela não seria capaz de mandar-lhe dizer essas coisas.
Tirei do bolso o maço de cigarros e já ia acender um, quando ela me disse:
- Quero um também, Danny.
- Nunca soube que você fumava -, disse eu, surpreso, passando-lhe o maço.
- Nem eu sabia que você fumava. Mas vamos ter cuidado para que Mamãe não veja, senão vai falar.
Rimos e escondemos os cigarros na concha das mãos.
- Felizmente, vou terminar o curso neste verão -, disse Mimi. - Poderei então conseguir um emprego permanente para ajudar de verdade.
- As coisas vão tão mal assim, Mimi?
- Se vão! Mamãe está falando até em entregar a casa. Não podemos continuar a fazer os pagamentos da hipoteca.
- Não! Isso é que não pode ser! - exclamei, realmente alarmado. Minha casa, não. Não podia acreditar nisso.
- Não sei se pode ser ou não -, exclamou Mimi. - A verdade é que não há mais dinheiro.
Fiquei em silêncio. Não era mais garoto e não acreditava que a casa fosse minha como Papai tinha dito em outros tempos, mas não queria sair dali. Era angustioso pensar naquela casa com outras pessoas, com outra família comendo na cozinha, com outra pessoa dormindo no meu quarto. Gostava dali e não queria ir para outra casa.
- Talvez fosse melhor eu deixar a escola e me empregar, Mimi.
- Nada disso, Danny! Você tem de acabar a escola. Bem sabe que é o que Papai e Mamãe mais desejam. Não se preocupe, Danny. Tudo vai acabar bem, tenho certeza.
- Acha mesmo?
- Claro que sim -, disse ela, sorrindo. Levantou-se, jogou o cigarro fora e disse: - Vou ajudar Mamãe a lavar os pratos.
Eu esperava que ela tivesse razão. Não podíamos sair dali. Para mim, não havia outro lugar para viver.
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14
Meu nome é Danny Fisher. Tenho quinze anos e quatro meses de idade. Estou no sexto ano da escola secundária de Erasmus Hill e o meu turno é o da manhã. É uma hora da tarde e as aulas do dia estão terminadas. Estou na esquina de Flatbush com Church e vejo passarem os garotos que vão para casa.
Dizem que há mais de três mil alunos na escola e neste momento parece que todos eles estão passando pela esquina. Estão rindo e alguns dos rapazes troçam das meninas. Olho-os com inveja porque não há nada que os preocupe.
Não têm nada em que pensar até amanhã quando voltarão à escola. São muito diferentes de mim. Tenho uma casa que quero mais conservar do que a qualquer outra coisa no mundo. Por isso, tenho de trabalhar. Olho para um relógio numa vitrina e vejo que já passam cinco minutos de uma hora. Vou andando com pressa porque tenho de estar no trabalho à uma e meia.
Desço a Avenida Flatbush. Já se está no fim de outubro e eu sinto o primeiro frio do inverno. Aperto o casaco no corpo. Paro um minuto em frente a um cinema e olho os cartazes. Parece um bom filme. Enquanto estou ali, outros garotos da escola entram no cinema. Eu gostaria de entrar também, mas não tenho tempo. Recomeço a caminhada.
Quase meia hora depois, chego às seis esquinas onde Flatbush e Nostrand se encontram. É a estação terminal de Flatbush do subway.
Há muitas casas de comestíveis naquela esquina: A énd P, Bohack's, Roukstony's, Daniel Reeves, Fair-Mart. É nesse último armazém que eu entro.
Detrás do balcão, um homem levanta a cabeça e me grita:
- Ande depressa, Danny! Temos uma porção de entregas esperando.
Corro até os fundos do armazém. Coloco os livros numa prateleira e visto um avental enquanto volto para o armazém. As entregas estão no chão perto da porta e eu começo a levá-las para o carrinho.
Um dos empregados vai até à rua e confere as compras comigo. Dá-me o dinheiro exato para fazer os trocos e eu saio. O carrinho e eu entramos e saímos das ruas e do tráfego até que são seis horas e escurece.
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Volto para o armazém, pego uma pesada vassoura e começo a varrer.
Às sete horas, tiro o avental, dobro-o e coloco-o na prateleira para usá-lo de novo no dia seguinte. Pego os meus livros e o gerente me abre a porta, fechando-a cuidadosamente depois que eu saio. Subo a Avenida Nostrand até Newkirk. Tomo ali um ônibus, mas tenho de ir em pé, porque o ônibus está cheio de gente que volta para casa.
Salto na minha esquina e caminho todo o quarteirão. Os pés me doem e os músculos do pescoço e dos ombros estão doloridos de tanto que carreguei as pesadas caixas, mas esqueço tudo isso quando Rexie vem correndo pela rua ao meu encontro, batendo o rabo e latindo de contentamento. Faço-lhe festas e entro em casa, ainda sorrindo.
Deixo cair um bocado de trocados na mesa da cozinha. Conto as moedas. Oitenta e cinco centavos de dólar. As gorjetas foram boas hoje. Tiro vinte e cinco centavos para mim e coloco o resto na lata acima da pia.
Mamãe está-me olhando e diz:
- Suba e vá-se lavar, Danny. O jantar está esperando.
Papai já está sentado à mesa. Quando passo, me dá uma palmadinha amistosa nos ombros. Não diz uma palavra, nem eu. Sabemos ambos o que sentimos e eu estou contente.
Todos os dias, agora, há alguns trocados e, aos sábados, depois de eu ter trabalhado o dia inteiro, de sete da manhã às onze da noite, o gerente me paga o dinheiro da semana. Três dólares e meio. Nas boas semanas, chego a fazer dez dólares contando as gorjetas.
É bom que os estudos não me dêem muito trabalho porque quase todas as noites o sono me vence quando estou fazendo os meus deveres que só vou acabar no dia seguinte, num período de estudos. Atiro-me na cama exausto e durmo imediatamente, mas quando acordo na manhã seguinte estou de novo forte e bem disposto. Tenho a meu favor a infatigabilidade da juventude.
Há ocasiões em que vejo garotos bricando na rua e tenho vontade de entrar na brincadeira. Se uma bola vem para o meu lado, pego-a para devolvê-la e o desejo de jogar também é forte. Mas devolvo a bola e me afasto.
Não tenho tempo de jogar. Estou calado e pensativo. Estou disputando um jogo muito mais importante. Estou trabalhando para salvar a minha casa.
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Mas há em ação forças que eu desconheço por completo. A fria mecânica sem sentimento da finança e do crédito, a máquina dos negócios e da economia que mantêm um cuidadoso nível na vida de todos em todas as camadas da sociedade, não são mais do que palavras para mim. E há as pessoas que cuidam dessas máquinas.
São pessoas muito parecidas com Papai e com Mamãe, com Mimi e comigo. São vítimas das máquinas ao mesmo tempo que cuidam delas. Estão sujeitas às mesmas regras de nível das pessoas a quem as aplicam. Quando o nível deixa de acusar o equilíbrio correto, fazem uma nota num papel. Esse papel é dado a outras pessoas. Se estas concordam com as primeiras, mais papéis são escritos e remetidos.
Depois disso, deixamos de ser pessoas e nos tornamos estatística. Muitas providências decorrem do fato de não podermos manter o nosso equilíbrio econômico. Mas em nenhuma dessas providências figura coisa alguma sobre as minhas emoções, os meus sentimentos e os de minha família em face desse fracasso. Os outros se interessam pelo nosso saldo no banco e não pelos nossos sentimentos.
Pouco lhes importava o que eu senti quando cheguei em casa naquela noite em fins de outubro e encontrei Mamãe chorando.
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EU NÃO ESTAVA PRESENTE QUANDO ...
Mamãe olhou para o relógio. Dentro de poucos minutos, estaria na hora do almoço. A manhã havia passado sem que ela soubesse ao certo o que havia feito. Havia acordada com a impressão de que alguma coisa de ruim lhe iria acontecer naquele dia e para não se deixar dominar por êsse pressentimento procurara não ficar parada um só instante.
Limpara e espanara todos os cantos da casa e fora até o porão para remexer as cinzas da fornalha e aproveitar os pedacinhos de carvão que caíam pela grade. Mas, apesar de todos os seus esforços, não conseguiu livrar-se do mau presságio.
Chegando à cozinha, acendeu o fogo e colocou sobre o bico de gás uma panela com um pouco de água. Ouviu um barulho no chão.
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Rexie se havia levantado de baixo da mesa da cozinha e fora até à porta, de onde estava batendo o rabo e olhando para Mamãe.
- Quer ir lá fora? - perguntou Mamãe, abrindo a porta da cozinha.
Rexie saiu latindo e Mamãe voltou ao fogão. Colocou um ôvo dentro da água, que estava começando a ferver.
Depois de comer, tirou a mesa e colocou os pratos na pia. Sentia-se tão cansada que nem tinha coragem de lavá-los.
De repente, sentiu o coração bater com tanta força que lhe parecia sacudir todo o corpo. Ficou assustada. Tinha ouvido dizer muitas vezes que os ataques de coração chegam sempre inesperadamente. Foi para a sala e se estendeu no sofá, encostando a cabeça nas almofadas. As palmas das mãos estavam molhadas de suor. Fechou os olhos e procurou descansar.
Pouco a pouco, o coração se acalmou. A respiração ficou mais fácil e o seu medo desapareceu. "Estou apenas cansada", disse ela em voz alta. As palavras ressoaram na casa vazia e ela resolveu tomar um banho quente. Isso a repousaria e só poderia fazer-lhe bem. Afinal de contas, tudo era simplesmente nervoso. Tirou a roupa no banheiro enquanto a banheira se enchia e olhou para o espelho.
Levou, espantada, a mão aos cabelos. Estavam já bem grisalhos e o preto que ainda restava parecia desbotado. Parecia que tinha sido ontem que os seus cabelos eram vivos e lustrosos. No rosto havia uma porção de sulcos fundos e a pele já não era macia e fina como dantes. Era quase como se outra pessoa a olhasse do fundo do espelho.
Desabatoou o soutien. Os seios, livres da peça que os sustentava mecanicamente, descaíram como uma massa informe para o peito. Examinou-se no espelho. Sempre tivera orgulho dos seus seios. Lembrava-se ainda de como tinham sido bem feitos, firmes e estuantes de vida quando ela havia amamentado os filhos. Papai gostava de olhá-la nessas ocasiões. Sentava-se diante dela cheio de admiração e, ao fim de certo tempo, dizia rindo à criança: "Não acha que já chega? Será que não vai deixar nada dessa beleza para o Papai?" Ela ficava muito vermelha, ria e dizia a ele que saísse do quarto e tivesse modos, mas no fundo o que tinha era orgulho. E agora... Não havia mais alegria para ele nos seios dela. Quem podia sentir alguma coisa, à vista daqueles horrores?
Também não fazia mais diferença alguma. Nenhum deles tinha mais vontade de nada. As lutas daqueles últimos anos haviam-lhes roubado até isso. A memória do prazer era bem fraca nela. Isso era coisa para gente nova ou sem preocupações na vida.
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Entrou na banheira e o calor bom da água lhe envolveu o corpo. Sentiu-se leve e calma. Parecia livre de receios, confortável e segura. Descansou a cabeça na borda da banheira e sentiu as pálpebras pesadas de sono.
"Estou ficando uma velha muito boba", pensou antes de cochilar.
O coração estava batendo de novo. Tentou mover os braços, mas sentiu-os pesados e inertes. Tinha de levantar-se, pensou ela desesperadamente. Fazendo um grande esforço, levantou a cabeça e abriu os olhos, espantada.
Ouviu o barulho do telefone e isso acabou de acordá-la. Lembrou-se de que subira para tomar um banho. Devia ter dormido muito porque a água estava quase fria. O telefone continuava a tocar. Saiu rapidamente da banheira, enrolou uma toalha no corpo e desceu para atender.
Logo que pegou no telefone e ouviu a voz de Papai percebeu que havia acontecido alguma coisa. De certo modo, havia esperado por aquilo o dia todo.
- Mary - exclamou ele com voz trêmula. - O banco obteve um mandado do juiz e vão executá-lo amanhã!
Ela procurou mostrar-se calma.
- Conversou com eles?
- Fiz tudo o que era possível. Supliquei que esperassem, que me dessem mais um prazo, mas eles disseram que nada mais podiam fazer.
- Falou com seu irmão David? Talvez ele tenha algum dinheiro sobrando.
- Falei com ele, sim... Está tudo acabado.
- Que é que vamos fazer, Harry?
- David virá com o carro esta noite. Vamos tentar tirar o mais que fôr possível da farmácia. Esconderemos tudo na casa dele até que eu possa abrir a casa em outro lugar.
- Mas se você fôr surpreendido irá para a cadeia!
- Irei então para a cadeia -, disse ele com voz apática. - De qualquer maneira, a situação não é muito melhor do que isso. Vou-lhe dizer logo: executaram também a hipoteca da casa. - E acrescentou em idich, língua em que só raramente falava: -- Alies iss forloren - tudo está perdido.
Foi essa a noite em que quando cheguei em casa encontrei Mamãe chorando sentada à mesa da cozinha, enquanto Mimi, também com lágrimas nos olhos, lhe segurava a mão.
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Foi essa a noite em que saí de casa sem jantar e fui ajudar Papai a transportar apressadamente os caixotes de mercadorias no carro do tio David.
Foi essa a noite em que fiquei ao lado de meu pai às duas horas da madrugada e ele olhou para a farmácia fechada e murmurou com voz entrecortada pelo choro.
- Vinte e cinco anos... Vinte e cinco anos!
Foi essa a noite em que vi meu pai e minha mãe caírem soluçando nos braços um do outro e soube que eles também tinham sentimentos que não podiam dominar.
Subi em silêncio para o meu quarto, tirei a roupa e me estendi na cama de olhos abertos no escuro. Não pude dormir e vi a claridade da manhã entrar no meu quarto. E eu nada podia fazer. Nada.
Foi essa a primeira noite em que tive de reconhecer que aquela casa não era minha mesmo, mas de outras pessoas, e não senti vontade nem de chorar.
100
DIA DE MUDANÇA
1º DE DEZEMBRO DE 1932
Estava errado. Tudo estava errado, nada mais dava certo. Soube disso no momento em que entrei na estação do subway em vez de voltar a pé para casa. Quando me levantei naquele dia, senti um aperto no estômago como se me tivessem dado um soco no plexo solar. Havia piorado durante todo o dia. Naquele momento, a sensação dolorosa se espalhava pelo corpo todo. Eu saía da escola para casa, mas não havia mais casa.
Um expresso estava parado na estação quando desci as escadas e eu corri automaticamente para ele, conseguindo entrar quando as portas já se iam fechando. Não havia lugar nos bancos e eu me encostei à porta do outro lado. A porta só se abria daquele lado uma vez e eu podia ficar ali com o mínimo de perturbação possível.
Fazia frio dentro do trem e eu apertei o casaco no corpo. Havia nevado poucos dias antes, mas as ruas já estavam limpas. Quando o trem entrou no túnel, respirei fundo, para ver se me livrava daquele mal-estar que me dominava. Não adiantou nada.
Naquela manhã, as barricas e os caixões espalhados pela casa já vazia e estranha me recordaram a triste verdade. Era o dia da mudança. Saí do quarto sem olhar para trás em despedida, com Rexie nos meus calcanhares. Eu queria esquecer tudo - esquecer que já fora garoto a ponto de acreditar que aquela casa fosse minha. Mas já estava com idade bastante para saber que essas coisas só se dizem para enganar os garotos.
101
A luz voltou de repente ao trem e eu olhei pela janela. Estávamos na Ponte de Manhattan. Tinha de descer na próxima parada, Canal Street, para ali tomar o trem Broadway-Brooklyn. Saltei e tive de esperar alguns minutos pelo outro trem, mas faltava ainda um quarto para as quatro quando cheguei à esquina das ruas Essex e Delancey.
Era como se fosse um mundo diferente. As ruas estavam cheias de gente que andava apressadamente, falando várias línguas. Havia muitos vendedores ambulantes com os seus carrinhos e camelôs que apregoavam as suas mercadorias em pequenos mostruários, prontos a desmontá-los e fugir quando a polícia aparecesse. Fazia frio, mas muitos homens estavam sem capote e sem chapéu e as mulheres levavam apenas um xale passado pela cabeça. E em tudo ouvia a voz surda da pobreza. Havia pouco riso na rua exceto das crianças e ainda assim a alegria delas era meio tolhida.
Desci a Rua Delancey, passando pelas lojas baratas, com as suas vitrinas melancólicas e pelo cinema onde um grande cartaz anunciava sessões pela manhã com preço reduzido. Entrei na Rua Clinton e andei dois quarteirões até à esquina de Stanton, com a cabeça baixa. Não queria ver nada. E a opressão no estômago era cada vez pior.
Levantei os olhos. Era ali - uma velha casa cinza de cinco andares, com janelas estreitas. Havia uma pequena escada para a porta da rua e de cada lado da escada havia uma casa comercial. Uma delas era uma alfaiataria, com as janelas escuras e sujas. A outra estava vazia.
Subi a escada com os pés pesando como chumbo. Voltei-me no alto para olhar para a rua. Era ali que íamos viver. Uma mulher saiu de casa e passou por mim na porta, deixando um forte cheiro de alho.
Entrei. O vestíbulo estava escuro e eu tropecei em alguma coisa no chão. Abaixei-me para ver de que se tratava. Era um saco de papel cheiro de lixo. Dexei-o no mesmo lugar.
Subi três andares e em cada patamar vi os saquinhos de lixo, à espera de que o zelador do prédio os levasse. O cheiro forte da comida pairava no ar parado e frio dos corredores. Soube qual era o nosso apartamento vendo os caixões que tinham sido deixados já vazios no corredor.
Bati e Mamãe me abriu a porta. Ficamos ali por um momento, olhando um para o outro, sem falar. Entrei. Meu pai estava sentado à mesa e eu ouvia em outro lugar do apartamento a voz de Mimi.
102
Eu estava na cozinha, onde a pintura branca das paredes mal escondia as numerosas camadas de sujeira. Mamãe já colocara nas janelas as cortinas amarelas que davam à peça um ar forçado de alegria. Ela olhou para mim ansiosamente e eu fiquei sem saber o que podia dizer. Nesse momento, Rexie apareceu correndo e eu me abaixei para fazer-lhe festas.
- Gostei -, disse eu, sem levantar a cabeça.
- Mas não é tão ruim assim -, disse Mamãe, depois de trocar um olhar com Papai. - Depois, só ficaremos aqui até seu pai arrumar a vida de novo. Venha que eu vou mostrar a você o resto do apartamento.
Acompanhei-a, mas não havia muito para ver, o que não é de estranhar num pequeno apartamento de quatro peças. O meu quarto era mais ou menos metade do que eu tinha na outra casa e o de Papai e Mamãe não era muito maior. Mimi ia dormir no sofá da sala.
Que é que eu podia dizer? O aluguel era barato: vinte e oito dólares por mês com aquecimento e água quente.
Voltamos para a cozinha. Rexie me seguia o tempo todo. Meu pai não dizia uma palavra. Continuava a fumar, olhando para mim.
- Rexie deu muito trabalho? - perguntei-lhe.
- Não, não deu nenhum.
A voz dele parecia diferente, como se ele não estivesse seguro de si mesmo.
- É melhor ir dar um passeio com ela, Danny -, disse minha mãe. - Passou o dia todo em casa e deve estar um pouco inquieta.
Foi bom ter alguma coisa para fazer. Encaminhei-me para a porta e chamei-a.
- Leve-a na corrente, Danny. Ela não conhece a rua e pode perder-se.
- Está bem.
Rexie e eu saímos para o corredor escuro e eu comecei a descer as escadas.
Quando já estava no meio do primeiro lance, percebi que ela não me estava acompanhando. Tinha ficado no alto da escada a olhar para mim. Chamei-a mas ela não saiu do lugar. Tornei a chamá-la e ela se sentou no chão e ficou a me olhar, sacudindo nervosamente o rabo. Subi e coloquei nela a coleira com a corrente.
- Vamos, Rexie. Deixe de ser boba.
Ela me seguiu cautelosamente. Em cada patamar, eu tinha de fazer-lhe festas para que ela se decidisse a descer o outro lance de escadas.
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Chegamos afinal à porta, de onde ela olhou para a rua. De repente, tentou voltar para dentro. A corrente fê-la parar e ela se deitou no chão. Ajoelhei-me ao lado dela e senti-lhe o corpo trêmulo. Carreguei-a e levei-a para a rua nos braços. Não parecia mais com tanto medo, mas quando saímos pela Rua Clinton ela corria os olhos apreensivamente em torno. O barulho do tráfego parecia amedrontá-la.
Parecia haver menos tráfego numa rua lateral e eu entrei por lá com ela. Na esquina, esperei que o sinal abrisse. Um grande caminhão passou todo sacolejante e Rexie puxou ansiosamente a corrente, toda encolhida e com o rabo entre as pernas. Estava realmente apavorada. Ajoelhei-me para acalmá-la. Nesse momento, ouvi uma risada atrás de mim e virei a cabeça para ver quem era. Três rapazes mais ou menos da minha idade estavam encostados a uma parede e me olhavam. Um deles ria do medo de Rexie e me disse:
- Que é que há, menino? A cachorra é covarde.
- Covarde como você, menino -, respondi sarcàsticamente. Os outros dois ficaram quietos diante da minha resposta e se
voltaram para o garoto com que eu estava falando, como se esperassem alguma coisa. ele os olhou por um momento e se encaminhou para onde eu estava. Conhecia perfeitamente a situação. ele me provocara e tinha de reagir à altura para não se desmoralizar diante dos companheiros. Sorri amargamente. Ia ter uma surpresa. Senti-me um pouco melhor. Aquela oportunidade de violência atenuava um pouco o que eu estava sentindo.
Eu ainda estava ajoelhado ao lado de Rexie quando ele chegou junto de mim e perguntou:
- Que foi que você disse?
- Você ouviu perfeitamente o que eu disse -, disse eu, arremedando-lhe o tom de voz e tratando de levantar-me.
Vi o pé dele mover-se, mas não me pude desviar com a rapidez suficiente. O pontapé me acertou na boca e eu caí para trás. A corrente de Rexie me caiu das mãos. Tentei desesperadamente agarrála, mas ela fugiu rapidamente dos meus dedos. Sacudi a cabeça tentando livrar-me do atordoamento. Ouvi então o grito.
Levantei ansiosamente, esquecido da briga. Rexie estava correndo pelo meio da rua, por entre o tráfego, em ziguezagues, inteiramente desorientada.
- Rexie!
Ela parou no mesmo instante ao ouvir-me e voltou para onde eu estava. Ouvi-lhe o grito estridente quando ela desapareceu sob as rodas de um caminhão pequeno de entrega que dobrara a esquina
104
correndo para aproveitar o sinal. Corri para ela e ouvi-a gritar mais uma vez, mais fracamente. Estava deitada perto do meio-fio, com o peito arfando e o belo pêlo castanho todo sujo de sangue e de lama. Caí de joelhos ao lado dela.
- Rexie! - exclamei, com a voz estrangulada na garganta. Quando a levantei, um leve guincho se escapou dela, quase um
gemido. Os olhos estavam mansos e cheios de dor. Botou a língua para fora e me lambeu a mão delicadamente, deixando nela uma marca de sangue.
O corpo começou então a tremer violentamente. De repente, teve uma convulsão e ficou imóvel. Não havia mais luz nos seus olhos.
- Rexie! Que é isso, menina?
Não podia acreditar que tivesse acontecido aquilo com ela, tão viva, tão bonita.
Um homem saiu do meio do povo que se havia ajuntado em volta e murmurou:
- Perdoe-me, garoto. Eu nem vi!
Olhei-o por um momento mas não o vi. Só posso me lembrar de que estava muito pálido, nada mais. Tomei o caminho de casa carregando Rexie. As pessoas saíam da minha frente em silêncio. Não podia chorar. Os olhos me ardiam mas eu não podia chorar. Cheguei à porta, entrei pelo vestíbulo escuro e subi a escada com os seus cheiros fortes. Abri a porta com o pé.
Mamãe levantou-se da cadeira com um grito.
- Danny! Que foi que houve?
Olhei-a sem poder falar. Papai e Mimi chegaram correndo à sala depois de ouvirem o grito dela. Todos estavam olhando para mim.
- Morreu -, disse eu afinal, sem reconhecer a minha voz, de tão áspera e rouca. - Um caminhão.
Havia no chão perto de mim uma caixa de papelão vazia. Coloquei-a lá dentro e fechei as tampas da caixa. Quando me levantei, os olhos de Mimi estavam cheios de lágrimas.
- Como foi, Danny?
Tive inveja das lágrimas dela. Talvez se eu pudesse chorar, me sentisse melhor.
- Já aconteceu -, murmurei com amargura, •- Que importância tem saber como foi?
Lavei na pia da cozinha as mãos ensangüentadas e enxuguei-as numa toalha de pratos. Depois, peguei a caixa e me encaminhei para a porta.
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- Que é que vai fazer? - perguntou meu pai. -- Vou enterrá-la. Não posso deixá-la aqui.
- Sinto muito, Danny -, disse ele, levando a mão ao meu ombro.
Os olhos dele estavam cheios de pena e compreensão, mas isso não me interessava. Nada mais me interessava. Tirei rudemente a mão dele do meu ombro.
- E tem de sentir mesmo por que a culpa toda é sua! - exclamei raivosamente. - Se não tivéssemos perdido a casa e não nos mudássemos para cá, isso não teria acontecido.
Vi os olhos dele se encherem de mágoa. Mas saí para o corredor e fechei a porta. Era o culpado mesmo. Não devia ter deixado que perdêssemos a casa.
Tomei o bonde Utica-Reid e levei a caixa no colo durante a longa viagem sobre a ponte e através de Williamsburg até chegar a Flatbush. Saltei do bonde em Clarendon Road e senti a caixa mais pesada em minhas mãos ao passar por aquelas ruas tão minhas conhecidas. Podia ver ainda Rexie correndo atrás de mim, a bater alegremente o rabo. Podia ouvir os seus latidos de satisfação quando me avistava.
Já estava escuro quando cheguei a casa. Olhei-a da rua. Tínhamos saído naquela manhã, mas a casa tinha já o aspecto de abandonada.
As luzes estavam acesas na casa dos Conlons quando entrei pelo portão, mas ninguém me viu. Fui até o quintal e coloquei a caixa no chão. Era direito o que eu ia fazer. Ali é que ela tinha vivido, ali é que fora feliz. Ali é que devia descansar.
Precisava de alguma coisa para cavar a terra. Lembrei-me da pá do porão, com a qual se botava o carvão na fornalha. Dirigi-me para a casa, mas logo voltei a fim de apanhá-la. Ela nunca havia gostado de ficar sozinha.
Ainda tinha a chave no bolso e abri a porta. Levei a caixa para dentro e coloquei-a na escada que vinha da cozinha. A casa estava no escuro, mas eu não precisava de luz. Conhecia-a palmo a palmo.
Desci ao porão. A pá estava no lugar do costume. Peguei-a e subi. Ia levar Rexie comigo enquanto eu lhe cavava a sepultura, mas mudei de idéia e deixei-a na escada da cozinha. Aquela pá sempre lhe dera um estranho medo.
Cavei a terra com o maior cuidado. Não queria que ninguém me ouvisse. O ar frio da noite me batia no rosto, mas eu não me importava. Suava por baixo do casaco.
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Quando achei que o buraco já estava de tamanho suficiente, fui buscar a caixa. Coloquei-a no fundo da escavação. De repente, ocorreu-me uma idéia: e se ela não estivesse morta?
Ajoelhei-me, levantei a tampa da caixa e escutei. Nada ouvi. Mas não me contentei com isso. Toquei-a com a mão e verifiquei que todo o calor já havia fugido do pequeno corpo. Fechei lentamente a caixa e levantei-me.
Senti lágrimas nos olhos enquanto jogava terra sobre ela. Podia-se rezar pelos cachorros? Não sabia, mas rezei por ela. Depois de cobrir a sepultura, alisei a terra com os pés. A Lua havia nascido e a sua fria luz branca lançava sombras fantásticas sobre o chão. Rexie gostava do frio, que a animava e lhe dava vontade de correr. Esperava que ela gostasse do tempo onde estivesse.
Não sei quanto tempo fiquei ali com a pá na mão, mas estava enregelado, quando afinal resolvi ir-me embora. As lágrimas me rolavam em silêncio pelo rosto.
Entrei na casa e mecanicamente subi ao meu quarto. Encostei a pá na parede e fui até ao lugar onde costumava ficar a minha cama. Podia ver as marcas no chão do lugar onde Rexie dormia debaixo da minha cama. Estendi-me no chão e chorei. Afinal, as lágrimas secaram e eu me levantei. Desci as escadas e deixei a casa.
Freddie Conlon estava voltando para casa quando cheguei à rua.
- Danny! - exclamou ele, surpreso. - Que está fazendo aqui? Veio buscar alguma coisa que deixou na casa?
Passei por ele sem responder. Não podia dizer-lhe que deixara alguma coisa ali. Muito mais do que havia esperado.
O relógio na vitrina da joalheria perto da esquina da Rua Clinton com Delancey marcava nove horas da noite quando cheguei à rua. Andava como em sonho. As pessoas passavam por mim e havia barulho e confusão, mas eu não via nem ouvia coisa alguma. O corpo me doía e eu sentia o rosto latejar no lugar onde eu havia levado o pontapé.
Já estava subindo a escada da frente do prédio quando tive a impressão de acordar de repente. Passei a ouvir o ruído do tráfego, as vozes das pessoas. Olhei em torno, como se estivesse vendo a rua pela primeira vez. Olhei para a esquina e vi lá um grupo de garotos. Desci a escada e encaminhei-me para a esquina.
Parei e olhei para o grupo que estava na esquina, mas não o vi. Depois de esperar alguns minutos, já ia sair, quando afinal encontrei-o. Estava sentado ao balcão da lanchonete, tomando um sorvete.
Entrei sem que ele me visse. Bati-lhe de leve no ombro. ele se voltou e mostrou no mesmo instante que me havia reconhecido.
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- Vamos para fora -, disse eu.
Olhou para mim e, depois, para os outros garotos na lanchonete. Não lhe dei tempo de pensar. Tornei a bater-lhe no ombro, dessa vez com mais força.
- Vamos lá fora!
ele empurrou a taça com o sorvete e disse ao garçom:
- Quer guardar isso um instante para mim, Moishe? Volto já.
O tom de voz era arrogante, mas não me impressionou. Peguei o sorvete e derramei-o na pia atrás do balcão.
- Pode deixar, Moishe, - disse eu. - ele não vai tomar o resto.
Dei-lhe as costas e marchei para a rua, ouvindo os passos dele atrás de mim. Na esquina, virei-me para ele.
- Ponha as mãos em guarda.
ele se aproximou com os lábios arreganhados de desdém.
- Valentão, hem?
A angústia que eu sentira o dia inteiro começou a explodir dentro de mim.
- Não sou valentão, mas para você...
De repente, lembrei-me. Recuei, mas não com a rapidez necessária. O joelho dele me atingiu entre as pernas, ao mesmo tempo que o punho me batia no rosto. Caí de quatro pés. Vi o sapato dele aproximar-se do meu rosto e tentei desviar-me. O bico do sapato me bateu no pé do ouvido e eu me estatelei no chão.
O barulho do tráfego me parecia vir de muito longe na estranha tontura que eu sentia na cabeça. Sacudi a cabeça e me levantei nos joelhos.
O outro estava rindo de mim.
- Valentão, hem?
Apoiei-me num hidrante que estava ao lado e levantei-me. Tornei a sacudir a cabeça. Estava-se desanuviando rapidamente e eu sentia o sangue quente que me corria por dentro da boca.
ele ainda estava rindo e zombando de mim. <
- E agora? Ainda acha que é valentão, sujeitinho à-toa?
Olhei-o cautelosamente, ainda apoiado no hidrante. Era bom que ele continuasse a falar. Estava-me fazendo um favor, estava-me dando tempo. Eu sentia a força voltar-me às pernas.
ele se aproximou de mim de novo, devagar, deliberadamente, sem se apressar. Estava cheio de confiança.
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Procurando ainda ganhar tempo, dei a volta ao hidrante. Só precisava de mais alguns segundos. Felizmente, Sam me ensinara a avaliar a minha força e poupá-la.
Parou e tornou a me insultar:
- Covarde também, hem ? Igualzinho ao seu cachorro!
Afastei-me do hidrante. Já estava bem. Avancei para ele.
Veio ao meu encontro brandindo os punhos, com a direita à frente. Foi o segundo erro que cometeu e tão ruim para ele quanto o outro. O primeiro foi dar-me tempo.
Com a esquerda afastei para o lado a direita dele e com a outra mão atingi-lhe a barriga, logo abaixo do cinto. ele encurvou o corpo para a frente, baixando as mãos para proteger as virilhas e eu o acertei com um uppercut de esquerda no lado do queixo. ele se virou um pouco de lado e começou a cair. Dei-lhe mais oito socos no rosto e no queixo antes que ele caísse no passeio.
Estava estendido aos meus pés. Curvei-me para ele. Devia ser forte como um cavalo pois já estava tentando levantar-se. Dei-lhe um pontapé na cabeça e ele se estendeu desacordado.
Olhei-o durante alguns segundos. Virei-me então para ir-me embora. Tive então consciência da grande multidão que nos cercava. E senti mais do que ouvi um súbito movimento atrás de mim.
Voltei-me prontamente. ele já estava de pé e avançava para mim. Vi alguma coisa brilhar-lhe na mão que desceu sobre mim ao mesmo tempo que eu pulava para o lado. Senti a manga do meu casaco rasgar-se na ponta da faca. ele passou por mim com o ímpeto do golpe e eu lhe dei na nuca um murro com toda a força.
A multidão abriu caminho diante dele enquanto ele ia cambaleando até à parede. Fui atrás dele. Não lhe podia dar a oportunidade de virar-se para atacar-me de novo.
Agarrei-lhe a mão que empunhava a faca e torci-a sem piedade. ele deu um grito. Torci com mais força e ele largou a faca, que caiu no passeio. Joguei-a para longe com um pontapé. O rosto dele estava todo contorcido de medo e de dor. Os olhos estufados pareciam que iam sair das órbitas. Encostando-lhe a cabeça, comecei a esmurrá-lo desesperadamente com a outra mão.
Sentia-me dominado por uma violência desenfreada, numa espécie de alegria selvagem. Pela primeira vez na minha vida, tinha prazer em lutar. O meu primeiro soco achatou-lhe o nariz. Senti os ossos se quebrarem. ele tornou a gritar.
Dei uma gargalhada nervosa ao atingir-lhe a boca. Quando ele abriu a boca para tomar fôlego, vi que lhe havia arrancado alguns dentes.
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Nunca me senti tão feliz quanto naquele momento. O sangue lhe corria pelo rosto. Mas não me bastava. Queria que ele ficasse todo ensangüentado, que não tivesse mais rosto. Sentia uma nuvem vermelha diante dos meus olhos e ria de alegria enquanto o esbordoava.
Senti então que me agarravam e me afastavam dele. Procurei desvencilhar-me. Senti de repente uma dor violenta na nuca e as pernas curiosamente fracas. Larguei o meu adversário e ele caiu no chão aos meus pés. Agarraram-me os braços com força e eu virei a cabeça para ver quem era que me estava segurando. Quando a nuvem vermelha começou a dissipar-se, vi as fardas azuis da polícia.
Levaram-me para o posto policial perto da ponte de Williamsburg e me jogaram dentro de uma célula. Pouco depois, um homem foi ver-me. Era um médico que me examinou e colocou esparadrapo no meu braço, no lugar onde a faca me havia cortado.
Fiquei ali quase quatro horas até aparecer outra pessoa. Eu estava cansado, mas não podia dormir. Os meus olhos estavam pesados de sono, mas eu não os podia fechar. Só podia era pensar. Pensar numa cachorrinha que tentava sair de um buraco junto comigo.
Ouvi a porta da célula abrir-se e um guarda entrou, dizendo-me delicadamente:
- Seu pai veio buscá-lo, rapaz.
Levantei-me e peguei meu casaco na cama. Era quase como se eu tivesse feito isso muitas vezes antes, mas a verdade era que eu estava além de qualquer sentimento. Segui o guarda pelo corredor cinzento e pelas escadas. Abriu uma porta e me fêz sinal para entrar. Meu pai e outro homem estavam sentados na sala.
- Vim buscá-lo, Danny, para levá-lo para casa -, disse meu pai, levantando-se.
Olhei-o apàticamente. Casa? Aquele lugar? Aquilo nunca seria casa para mim.
O homem que estava ao lado de meu pai olhou para mim.
- Felizmente para você, rapaz, soubemos tudo o que aconteceu. Aquele rapaz que você surrou vai passar algumas semanas num hospital. Mas ele é um mau elemento e talvez você nos tenha feito um favor. Pode ir e veja se não nos dá mais trabalho.
Sem nada dizer, encaminhei-me para a porta. Ouvi a voz de meu pai atrás de mim, agradecendo ao homem o que havia feito. Saí do posto policial e cheguei à rua onde meu pai me alcançou e começamos a andar. Na esquina da Rua Delancey, ficamos esperando que o sinal abrisse.
- Sua mãe e eu ficamos muito assustados, Danny. Não sabíamos o que havia acontecido com você.
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A voz dele estava embargada pela emoção, mas ele tentava falar como se nada estivesse sentindo. O rosto dele habitualmente vermelho estava pálido à luz das lâmpadas da rua. Parecia-me que já havia ouvido aquelas palavras. Em outro tempo, em outro lugar. Não respondi.
O sinal abriu e nós atravessamos a rua. No outro lado, ele tentou falar de novo.
- Por que fêz isso, Danny? - Havia angústia no rosto dele. Tinha acontecido alguma coisa que ele não compreendia. - Você não é de fazer essas coisas.
Talvez não fosse dantes. Mas tudo passara a ser diferente. Eu estava num mundo diferente e era um diferente Danny Fisher. Mas de novo nada disse.
Meu pai tentou ainda dizer alguma coisa e ficou calado depois, até chegarmos à nossa rua. Na esquina, houve um momento em que os nossos olhos se encontraram, mas logo desviamos o olhar.
A rua estava deserta e suja, cheia de latas de lixo. Os nossos passos ressoavam na calçada.
Tinha começado a nevar. Fechei a gola do casaco em torno do pescoço. Pelo canto do olho, vi meu pai caminhando ao meu lado. Vi então o que seria a nossa vida: meu pai e eu éramos estranhos caminhando em silêncio através da noite.
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TODOS OS DIAS DA MINHA VIDA
LIVRO SEGUNDO
Papai olhou para o relógio quando saímos do vestíbulo sombrio e chegamos à rua.
- Um quarto para as três -, murmurou ele. - Tenho de andar depressa senão chegarei atrasado.
Olhei-o sem qualquer interesse. Cinco meses de vida ali e parecia que estávamos separados havia muitos anos. Desde o primeiro dia da nossa mudança, nada tinha dado certo. Papai estava trabalhando como empregado numa farmácia da Rua Delancey, ganhando
23 dólares por semana.
- Vem comigo? - perguntou Papai.
Bati com a cabeça. Para mim era a mesma coisa. Ia-me encontrar com a turma na esquina, perto da loja "nada além". Apressei o passo a fim de acompanhá-lo.
A lembrança daqueles cinco meses estava bem viva em nós ambos. Voltava para casa da escola e encontrava-o sentado na cozinha do triste apartamento a olhar para as paredes, com uma expressão de desespero no rosto. Tinha tentado ter pena dele sem poder. ele mesmo é que havia concorrido para aquilo. Devia ter sido mais esperto. Quando ele chegara poucos dias antes dizendo do emprego que havia conseguido tive a impressão de ter levado um soco no estômago. Vinte e três dólares por semana para um farmacêutico registrado, com uma experiência de vinte e cinco anos, era pouquíssimo.
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Não estava certo. Aquele dinheiro mal dava para comer.
Dobramos a esquina da Rua Delancey e chegamos à porta da farmácia onde meu pai estava trabalhando. ele parou e me olhou com hesitação. Eu sabia que me queria perguntar onde eu ia passar o resto da tarde, mas achava que não lhe ficava bem perguntar. Eu é que devia dizer-lhe, mas não disse. Em vez disso, sacudiu ligeiramente a cabeça e entrou na farmácia. O relógio da vitrina marcava três horas em ponto.
Eu não estava com pressa e me encostei à vitrina para ficar vendo quem passava. Ouvi uma voz dentro da farmácia e virei-me.
Um homem saía de trás do balcão, tirando o casaco.
- Foi ótimo você ter chegado, Fisher! Estava louco para sair daqui. O patrão hoje está de não se agüentar.
Papai olhou para o relógio e mostrou no rosto uma expressão de satisfação.
Um homem veio dos fundos da casa com os óculos grossos, brilhando.
- É você, Fisher? - perguntou com uma voz irritada. - Ande depressa. Tenho uma porção de receitas à sua espera.
- Muito bem, Sr. Gold, - disse meu pai, com um tom de medo e docilidade que eu nunca havia notado nele. - Não tive a intenção de fazer o senhor esperar.
- Podia muito bem chegar cedo -, disse o homem com desprezo. - Isso não lhe faria mal algum.
- Desculpe, Sr. Gold -, disse meu pai abjetamente.
- Bem, não fique aí parado como um idiota, Fisher. Tome aqui estas receitas e vá trabalhar!
Deu as costas e saiu. Papai olhou-o por um momento com o rosto parado. Depois, encaminhou-se para o balcão das receitas e vestiu o casaco branco com que trabalhava.
Começou a aviar as receitas, apanhando os vidros nas prateleiras e medindo cuidadosamente as doses. Em dado momento, levantou os olhos e me viu a olhar para ele. Uma expressão de confusão e vergonha se lhe espalhou pelo rosto. Fiz o olhar vago como se não tivesse visto e saí de junto da vitrina.
A turma já estava à minha espera quando cheguei lá. Saímos no mesmo instante da esquina. Não queríamos chamar a atenção. Não perdi tempo com eles.
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- Já sabem o que têm de fazer -, disse eu, com voz baixa e pausada. - Vamos entrar displicentemente. Dois de cada vez. Sem fazer barulho e sem chamar a atenção. Quando estivermos todos lá dentro, eu darei o sinal e Spit e Solly começarão a briga nos fundos da loja. Todo o mundo olhará para eles e os outros entrarão em ação. Não se esqueçam! Não peguem lixo, mas só coisas que possamos vender com facilidade. Não olhem uns para os outros, para ver como vão indo. Cada qual deve pegar o que puder no primeiro momento e sair rápido. Não esperem por nada. Todos sabem onde iremos encontrar-nos depois. Esperem uma hora antes de ir para lá. Compreenderam? Está bem então. Vou entrar agora. Fiquem olhando para mim e não façam nada enquanto eu não der o sinal.
A turma se dispersou e eu me afastei rapidamente. Dobrei a esquina e entrei na loja "nada além". Estava cheia de gente. Ótimo! Isso facilitaria o nosso trabalho.
Fui até ao lugar onde serviam sorvetes no fim do balcão. Senteime e fiquei esperando que a garçonete chegasse para servir-me. Pelo espelho, vi Spit e Solly passarem atrás de mim.
- Que é que vai ser ? - perguntou a garçonete.
- Que é que há para se tomar, menina?
Eu procurava ganhar tempo, porque as coisas ainda não estavam no ponto.
Ela me olhou e respondeu com voz meio cansada:
- Veja ali no cartaz Não sabe ler?
Fingi que estava lendo o cartaz na parede atrás dela. Mais dois rapazes entraram.
- Quero um ice cream soda duplo, de chocolate.
A moça se afastou do balcão e começou a preparar o que eu pedira com a habilidade displicente de uma longa prática. Enquanto isso, corri os olhos pela loja.
Os rapazes estavam todos a postos e prontos para a ação. Esperei o sorvete, desejando que a moça andasse depressa. Queria acabar logo com aquilo. A idéia tinha sido muito boa enquanto a discutíamos. Mas naquele momento eu me sentia terrivelmente nervoso. A garçonete chegou com o meu ice cream.
Coloquei o dinheiro em cima do balcão e ela guardou a moeda na registradora.
Os rapazes me olhavam pelo canto dos olhos. Mexi o ice cream com dois canudos de palha e comecei a tomá-lo. No momento em que senti o gosto doce na boca, a briga começou atrás de mim.
Estava rindo intimamente quando me voltei para o ponto de onde vinha o barulho. Solly havia caído sobre uma estante de mostruário cheia de latas de conserva.
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O barulho foi ouvido em toda a loja e uma porção de gente começou a correr para lá. Os rapazes estavam trabalhando bem. A garçonete disse alguma coisa e eu me voltei para ela, assustado. Ela me olhava curiosamente.
- Que é que está havendo ali? - perguntou ela.
- Não sei. Parece que é uma briga.
- Pois estou achando que é coisa combinada.
- Como assim? - perguntei, sentindo o sangue correr mais depressa.
- Aqueles dois não estão batendo de verdade um no outro -, disse ela. - Aposto que os amigos deles estão levando coisas da loja. Esse truque é muito velho. Olhe ali, está vendo?
Apontava um dos rapazes que estava enchendo os bolsos no balcão das perfumarias. Nesse momento, ele virou a cabeça e me viu. Começou a sorrir, mas eu sacudi rapidamente a cabeça e ele correu para a porta.
Virei-me para o balcão. A garçonete estava olhando para mim, com os olhos arregalados.
- Você também está metido nisso, - murmurou ela. Segurei-lhe o braço em cima do balcão, sorrindo friamente.
- E que é que você vai fazer, menina? Ela me olhou um instante e sorriu.
- Nada. Não tenho nada com isso. A dona disto aqui é muito rica e pode agüentar o prejuízo.
Larguei-lhe o braço e olhei para a loja. Todos os rapazes já haviam saído e Solly estava sendo levado para a rua por dois homens. Sorri tranqüilizado.
Virei-me para o balcão e sorri. Ela sorriu também. Era evidente que eu havia impressionado a pequena.
- Como é seu nome, menina?
- Nellie.
- O meu é Danny. Mora perto daqui?
- Na Rua Eldridge.
- A que horas vai sair daqui?
• Às nove horas quando a loja fechar. Levantei-me e disse muito seguro de mim mesmo.
- Vou esperá-la na esquina.
Não esperei pela resposta. Saí, passando pelo lugar onde estavam arrumando a estante sobre a qual Solly havia caído. Parei um instante olhando. Voltei então ao balcão.
A pequena ainda estava olhando para mim. Sorri para ela.
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- Até às nove, Nellie.
- Até lá, Danny.
Dei adeus para ela e me dirigi para a porta. Sabia que ela me estava seguindo com os olhos. Ao passar por um balcão, apanhei displicentemente um pente e passei-o pelo cabelo. Saí guardando o pente no bolso da camisa.
O vendedor ambulante me olhou muito sério
- Onde foi que conseguiu essa mercadoria?
- Quer comprar ou ouvir relatório? - perguntei. ele olhou a caixa e pegou um vidro de desodorante.
- Comprar eu quero. Não quero é aborrecimentos com a polícia.
- Pode deixar -, disse eu, pegando a caixa. - Pelo preço, não vai faltar quem queira comprar.
- Espere aí -, disse ele, agarrando-me prontamente a mão. - Eu não disse que não queria comprar.
- Então deixe de fazer perguntas. Quinze dólares e tudo é seu.
- Quinze, não. Dez.
- Quatorze e não se fala mais nisso.
O ritual tinha começado. Regateava-se tudo no East Side. Era normal e esperado.
- Onze. Sacudi a cabeça.
- Doze -, disse ele olhando-me o rosto.
- Nada feito.
ele deu um suspiro e disse quase num murmúrio.
- Doze e cinqüenta. Estendi a mão e disse:
- Pode pagar.
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O homem abriu a bolsa e tirou o dinheiro, contando-o na minha mão. Contei também, guardei tudo no bolso e já ia saindo quando o ambulante me chamou.
- Quando tiver mais disso, pode vir falar comigo que nós faremos negócio.
Eu estava olhando para ele e pensando. Doze dólares e cinqüenta divididos por sete dava menos de dois dólares para cada um. Não valia o trabalho.
- Está bem. Conte comigo -, disse eu, sabendo que nunca mais iria procurá-lo. Não havia vantagem naquilo.
Olhei para o meu relógio quando atravessei a Rua Rivington. Quase seis horas. Só ia encontrar-me com a turma na esquina às sete horas. Tinha tempo de passar por casa e pegar o jantar de Papai. Todos os dias, Mamãe ia levar o jantar para Papai na farmácia. Naquele dia, iria poupar-lhe o trabalho.
Os corredores cheiravam mal. Vi os sacos de papel com o lixo diante das portas. O encarregado do prédio bebêra mais uma vez e se, esquecera de recolher o lixo. Por mais que tivesse visto aquilo, não podia habituar-me.
Tropecei num degrau meio solto e disse um palavrão. Detestava aquele prédio. Gostaria de que tivéssemos dinheiro para sair dali. Eu iria juntar dinheiro, comprar de novo a nossa velha casa e deixar aquele bairro nojento.
Entrei em casa. Mamãe estava diante do fogão. Ela levantou os olhos para mim.
- Quer que eu leve o jantar de Papai?
Ela me olhou com alguma surpresa. Era a primeira vez que eu me oferecia para isso.
- Quer o seu jantar antes? - perguntou ela.
- Não, Mamãe. Não estou com fome. Um camarada me pagou dois cachorros-quentes no café.
-- Não quer nem um prato de sopa?
-- Muito obrigado, Mamãe. Não estou com vontade.
Bastava olhar para a panela para ver que a sopa não ia chegar para todos.
Ela estava muito cansada para insistir e tratou de preparar a marmita de meu pai. Depois de embrulhada, peguei-a e fui saindo.
- Volte cedo para casa hoje, Danny -, disse-me ela quando cheguei à porta.
- Está bem, Mamãe -, disse eu, já começando a descer as escadas.
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Parei diante da farmácia e olhei. Havia alguns fregueses que estavam sendo atendidos por um caixeiro. Papai devia estar na sala dos fundos. Entrei e me encostei ao balcão. De repente, ouvi o alto timbre de voz do gerente da farmácia e prestei atenção involuntariamente, lembrando-me do que já acontecera naquele mesmo dia.
- Mas você é mesmo um cretino! - gritava o homem. - Não sei onde era que estava com a cabeça quando o empreguei. Esse é o mal de todos vocês que trabalharam por conta própria. Pensam que sabem de tudo e não querem ouvir a ninguém!
Ouvi então o murmúrio bem baixo da voz de meu pai. Não podia perceber o que ele dizia e olhei pela porta de vidro que separava a farmácia da sala dos fundos. Papai estava ali de pé falando com o Sr. Gold. Este o olhava com os olhos fuzilantes e o rosto vermelho de raiva. Começou a gritar de novo antes mesmo que Papai acabasse de falar.
- Não quero desculpas, não quero explicações! Tive pena de você quando chegou aqui chorando à procura de emprego, mas, com os diabos, ou faz o serviço como eu quero ou pode ir embora! Está ouvindo, Fisher? Ou faz o que eu quero ou vai para o olho da rua! É só!
Ouvi então Papai perfeitamente.
- Desculpe, Sr. Gold -, disse ele num tom de voz derrotado e servil que me deu náuseas. - Prometo que isso não vai mais acontecer.
Senti um impulso quase incontrolável de matar aquele cachorro que falava com meu pai assim e fazia meu pai rastejar daquela maneira. Nenhum homem tinha o direito de fazer isso com outro. Papai estava inteiramente amesquinhado, com as costas encurvadas, os ombros caídos, a cabeça inclinada respeitosamente.
A voz do caixeiro me interrompeu os pensamentos.
- Deseja alguma coisa?
Voltei-me para ele, atordoado. A náusea tomara o lugar da raiva. Sacudi a cabeça e me dirigi para a porta. Lembrei-me então da marmita que tinha na mão e voltei, colocando-a em cima do balcão.
- Vim trazer o jantar do Dr. Fisher -, disse eu e saí. O alto timbre da voz do Sr. Gold ainda me acompanhou alguns instantes
na rua.
- Um dólar e meio para cada um? - perguntou Spit com voz queixosa.
Olhei-o friamente e disse com voz firme:
- Se podia conseguir mais, por que não foi vender?
119-
- Está bem, Danny, está bem. Não estou discutindo.
Acabei de distribuir o dinheiro. Tinha tirado dois dólares deles, mas isso era mais do que justo. Eu é que havia planejado o serviço.
- Que é que vamos fazer agora, Danny? - perguntou Spit, cheio de expectativa.
- Não sei ainda. Mas uma coisa assim é que não vamos mais fazer. Rende muito pouco. Mas não se preocupem que eu vou descobrir alguma coisa que preste.
Olhei para o meu relógio. Eram quase sete horas.
- Bem, vou tentar a sorte naquele jogo de dados na garagem -, disse eu. - Alguém quer ir comigo?
- Eu, não -, disse Spit. - Já marquei encontro com uma pequena. Assim, tirarei algum lucro do meu dinheiro.
A turma se dispersou e eu dobrei a esquina sozinho. Spit me havia lembrado de uma coisa de que eu estava quase esquecido. Tinha um encontro marcado às nove horas com a garçonete dos sorvetes. Parecia uma boa pequena e bem inteligente. Era assim que eu gostava. Não podia tolerar pequenas cretinas. Só sabiam fazer uma coisa quando a gente as encostava com o traseiro nas portas. As inteligentes, não. Com elas, a gente podia conversar.
Estava quase chegando à garagem. Sentia-me melhor. Os três dólares e meio que eu tinha no bolso eram o mesmo que nada. Se eu estivesse com sorte, poderia fazer melhor figura junto da pequena.
Um garoto italiano de rosto magro estava à porta da garagem, servindo de vigia. Estendeu a mão para me fazer parar.
- Aonde é que vai?
Afastei-lhe a mão sem me mostrar zangado.
- Calma, rapaz. Vou tentar a sorte. O italianozinho sorriu, reconhecendo-me.
- OK, Danny.
Atravessei a garagem escura no rumo de uma luz nos fundos. Num espaço escondido por alguns automóveis arrumados em volta, um grupo de homens e rapazes formava um pequeno semicírculo. Falavam em voz baixa, pontilhada apenas pelo barulho dos dados. Várias pessoas me olharam, mas logo me reconheceram e tornaram a concentrar a sua atenção no jogo.
Fiquei bem quieto durante alguns minutos, procurando sentir como estava o jeito do jogo. Não gostava de lançar logo os dados. Via primeiro quem era que estava com sorte e seguia quem fosse. Havia um camarada baixote e moreno que parecia ir muito bem.
120
Olhei-o mais e vi que ele ganhava mais duas apostas. Decidi-me então. Na primeira vez em que ele apostasse contra Os dados eu apostaria com ele. Quando chegou a hora, joguei um dólar no chão.
- Contra -, disse eu e o banqueiro cobriu minha aposta.
O homem que jogou os dados fêz o ponto e eu perdi a aposta. Acompanhei de novo o baixote. Dessa vez, ganhei. Tornei a apostar e a ganhar. Tinha já sete dólares e estava começando a achar que era o meu dia de sorte.
O homem que estava lançando os dados levantou a cabeça.
- Para mim, chega -, disse ele, aborrecido, levantando-se e batendo nas calças para limpá-las.
O banqueiro correu a vista pelo pessoal.
- Quem quer os dados?
Não houve resposta. Ninguém os queria. O banqueiro não estranhou. Sabia que os pequenos jogadores achavam que dados que davam a favor eram azarados. Mas não podia substituí-los. Olhou para mim.
- Pegue os dados, Danny. O primeiro dólar de graça. Avancei sem muita vontade e peguei os dados. Não tinha outro
recurso. Fora o último a chegar ao jogo e a regra indicava que os dados eram meus. Não podia recusar. Comecei a sacolejar os dados na mão.
De repente, senti-me dominado por uma impressão de certeza. O coração me batia com força. Não podia errar. Estava no ponto, eu sabia. Joguei dois dólares no chão. Outro dólar apareceu ao lado. Era a parada do banqueiro. Soprei com força nas mãos enquanto mais dinheiro se acumulava no chão. Joguei os dados. Foram bater na parede, voltaram e pararam.
Ponto real! Tornei a pegar os dados e a sacudi-los. Dessa vez, falei tudo com eles. Conversa de dados, que uma pessoa estranha ao jogo não pode compreender. Sentia-os quentes na mão e sabia que eles me compreendiam, ainda que ninguém mais me compreendesse. Joguei os seis dólares.
O ponto era quatro. Tornei a pegar os dados e a conversar com eles. Quando senti que estavam bem quentes e prontos, joguei-os e fiz o ponto.
Recolhi nove dólares e deixei o resto. Sentia o suor correr-me pelo rosto enquanto os sacudia na mão. Estava dominado pela febre do jogo.
Era quase um quarto para as nove quando voltei a mim e olhei para o relógio. Larguei os dados e saí do jogo. Havia ganho mais de vinte dólares e sentia a camisa colada ao corpo.
121
Quando saí da garagem, o garoto da porta sorriu.
- Já ficou limpo?
- Limpo? Pegue lá isto -, disse eu, jogando-lhe uma moeda de meio dólar.
3
Estava no passeio diante da loja e via as pequenas que iam saindo. Acendi um cigarro. Já eram nove e dez. A pequena estava demorando. Talvez estivesse fazendo isso de propósito para se valorizar. Mas, se era assim, estava muito enganada. Esperaria mais cinco minutos e se ela não aparecesse que fosse para o inferno.
- Alô, Danny -, disse ela, calmamente. Estava ao meu lado. Tinha-a visto sair, mas sem reconhecê-la. Parecia muito mais jovem de vestido do que com o uniforme da loja.
- Alô, Nellie -, disse eu. Arregalei os olhos. Era apenas uma garotinha. No máximo, devia ter a minha idade. Depois de um momento de hesitação, perguntei: - Está com fome?
Ela bateu com a cabeça. Parecia um pouco confusa, menos senhora de si do que se mostrara no balcão dos sorvetes.
Tomei-lhe o braço e levei-a para a esquina, olhando-a pelo canto dos olhos. Os cabelos eram bem pretos com reflexos azulados sempre que passávamos por uma vitrina iluminada. Os olhos eram grandes e bonitos. Usava um batom de um tom mais suave do que o que usara durante o dia.
-- Sabe que parece bem mais moça? - perguntei.
- Temos de parecer mais velhas na loja -, disse ela, voltando o rosto para mim. - Do contrário, não nos deixariam no emprego. Você é que parece mais velho do que achei na loja.
Sorri para ela. Isso me agradava. Chegamos afinal ao restaurante.
- Vamos comer -, disse eu, abrindo a porta e fazendo-a entrar antes de mim.
Um velho chinês de aspecto cansado nos levou a uma das mesas. Entregou-nos dois cardápios e se afastou lentamente. O restaurante estava quase vazio. Só havia fregueses em mais duas mesas.
122
Passei os olhos ligeiramente pelo cardápio. Já sabia o que queria. Olhei então para ela.
- Chow mein para mim -, disse ela, sorrindo.
Um jovem garçom chinês de aspecto tão cansado quanto o velho que primeiro nos atendera truxe chá para a mesa e tomou nota dos nossos pedidos. Quando ele se afastou, olhei para a pequena. Ela imediatamente desviou os olhos e ficou levemente corada, mostrando um certo constrangimento.
- Que é que há? - perguntei.
- Eu não devia estar aqui -, respondeu ela, nervosamente.
- Não sei nem quem é você. Meu pai...
- Seu pai não vai gostar disso, não é? - perguntei, sorrindo confiantemente. - Que idade você tem afinal de contas?
- Dezessete.. . Não, dezesseis...
- Trabalha há muito tempo na loja?
- Há quase um ano. Lá pensam que eu sou mais velha.
- Seu velho é muito severo com você?
Havia em minha voz um interesse que eu não podia dominar e isso parecia dissipar a sensação de estranheza entre nós.
- Muito, não. Sabe como são esses italianos antiquados. Vivem dizendo que na velha terra era assim, que na velha terra era assado. Por exemplo, tenho de ir diretamente do trabalho para casa. Sou velha bastante para mentir sobre a minha idade e trabalhar o dia inteiro para levar o dinheiro para casa, mas não sou velha bastante para sair com rapazes. Se ele souber que saí com você, vou sofrer o diabo.
- Por que veio então? - perguntei, disposto a saber aonde queria chegar.
Ela teve um sorriso meio triste.
- Talvez eu já esteja ficando cansada de viver tanto na velha terra. Acho que já é tempo de Papai ficar sabendo que estamos em outra terra onde tudo é diferente.
- Foi esse o único motivo, Nellie?
- Não -, confessou ela, ficando vermelha. - Queria sair com você. Queria saber como você era.
- E está gostando?
Ela fêz um sinal afirmativo, com o rosto ainda vermelho.
- E você? Gosta?
- Claro que sim, Nellie -, disse eu, segurando-lhe a mão. - Claro que sim.
123
Ela parou na esquina da rua debaixo do lampião.
- É melhor me deixar aqui, Danny. Meu pai pode estar na porta à minha espera.
- Está-me dando um fora em boas condições -, disse eu, friamente.
- Não é não, Danny -, disse ela com voz triste. - Não é mesmo. Você não conhece meu pai.
- Escute, esse truque é velho, mas eu caio nele mais ou menos. Estou quase acreditando em você.
Ela me segurou a mão.
- Tem de acreditar em mim, Danny. Eu não iria enganar você, fique certo disso.
- Que é que vai dizer a ele por chegar tão tarde?
- Vou dizer que tivemos de fazer trabalho extra na loja. Isso às vezes acontece.
- E ele vai ficar zangado?
- Se eu disser isso, não. ele não se importa de que eu trabalhe quanto fôr preciso.
Larguei-lhe a mão e recuei para a porta de uma loja, distante do lampião.
- Venha para cá -, disse eu.
Ela me olhou um segundo, deu um passo na minha direção e perguntou nervosamente:
- Para quê?
- Você sabe para quê. Venha.
Ela deu mais um passo e parou, com uma estranha mágoa no rosto.
- Não, Danny. Está enganado. Não sou dessas.
-- Então é um fora mesmo -, disse eu com voz cortante. - Está bem, menina. Pode ir. Já teve o seu divertimento.
Tirei um cigarro e acendi-o. Quando levantei a cabeça, ela ainda estava olhando para mim. Havia uma curiosa tensão na sua atitude de imobilidade. A luz do lampião tirava-lhe reflexos azulados da cabeça.
- Que é que está esperando? Vá logo para casa. Seu velho não está esperando?
Ela deu mais um passo para mim.
- Não é assim que eu quero, Danny. Não quero que você fique zangado comigo.
Pois estava ficando mesmo. Se uma pequena me dá o fora, dá mesmo e pronto. Por que é que ela tinha de fazer tanto barulho por isso?
124
- Para que você pensa que eu saí com você? Para ser largado assim na esquina? Tenho todas as mulheres que quiser. Não preciso de me estar preocupando com você.
Havia lágrimas nos olhos dela, quando me disse em voz entrecortada:
- Pensei que gostasse de mim, Danny. Eu gostei de você. Agarrei-a pelo braço e puxei-a para junto de mim na porta
mal iluminada. Joguei o cigarro no chão e tomei-a nos braços.
Sentia-lhe a resistência do corpo, enquanto ela olhava para mim, de olhos arregalados e assustados. E estava imóvel, muito imóvel.
- Danny!
Beijei-a prontamente, esmagando-lhe os lábios de encontro aos dentes. Mas os lábios estavam frios. Beijei-a de novo. Dessa vez mostraram-se um pouco mais quentes e se abriram ligeiramente. Tornei a beijá-la. E ela me retribuiu o beijo.
Olhei-a, sorrindo.
- Achou tão ruim assim, Nellie?
Ela escondeu o rosto no meu ombro e murmurou com voz chorosa:
- Agora, você vai achar que eu não presto.
Eu estava confuso. Aquilo não era absolutamente o que eu havia esperado.
- Por que me está dizendo isso? Quando a convidei hoje à tarde, você já devia saber de que se tratava. Por que aceitou o convite?
Ela voltou para mim os olhos arregalados ainda, mas em que já não havia medo.
- Porque gostei de você, Danny. E foi por isso que não fui para casa quando você mandou.
Olhei-a por um momento e beijei-a de novo. Não havia mais tensão em seu corpo quando me restituiu o beijo. Aquele beijo era de verdade.
- Mas você se mostrou tão sabida na loja, - murmurei. - Percebeu logo que Spit e Solly estavam apenas fingindo que lutavam. Como podia saber isso se é tão inocente quanto está parecendo agora?
- Giuseppe, meu irmão mais velho, lutou boxe. E me ensinou como era que se fingia uma luta.
- Está dizendo a verdade, Nellie? - perguntei, com os meus últimos vestígios de cepticismo na voz.
- Estou, Danny.
125
Beijei-a de novo. Havia uma nova confiança, uma agradável compreensão nesse beijo. A febre havia desaparecido.
- Gosto de você -, disse eu de repente, rindo. - Você é esquisita, mas simpática.
- Não está mais zangado? - perguntou ela, sorrindo.
- Não, menina.
Dessa vez, ela levantou o rosto para mim e esperou os meus lábios, com os olhos fechados.
- Danny -, murmurou ela -, me dê um beijo, Danny. Houve nela uma transformação. Os lábios se abriram para o
meu beijo e ela se chegou muito para mim. Apertei-a com mais força.
Os olhos dela ainda estavam fechados e nós flutuávamos dentro de uma névoa. A esquina desaparecera, o lampião sumira, não havia mais a porta. Tudo se havia desvanecido menos o ardor do nosso beijo. Fechei os olhos e procurei com as mãos o calor do seu corpo.
- Danny! Pare, Danny! - disse ela num sussurro, que me soou aos ouvidos como um grito, ao mesmo tempo que todo o corpo dela tremia alucinadamente de susto.
- - Tenha calma, menina. Confie em mim.
O pânico a deixou tão rapidamente quanto a havia dominado. Escondeu o rosto no meu ombro.
- Nunca senti isso em minha vida, Danny!
- Nem eu -, disse com toda a sinceridade.
- Danny, você... você acha que o que há entre nós dois é amor?
Eu não sabia. Tentei sorrir e disse:
- Talvez seja, Nellie.
Quase no mesmo instante, sentimos ambos uma confusão na cabeça e nos separamos. Ela baixou os olhos e começou a ajeitar o vestido. Quando acabou, eu estava fumando um cigarro. Estendeume a mão e ficamos ali de mãos dadas, até o cigarro acabar de queimar-se.
Joguei-o fora, vendo-o cair numa porção de fagulhas, e me voltei para ela com um sorriso.
- Alô, Nellie.
- Alô, Danny.
Começamos a rir e depois trocamos um beijo rápido.
- Espero que seu pai não vá ficar zangado, Nellie.
- Não vai não. Vou dizer-lhe que estava trabalhando.
126
Caminhamos até à esquina onde ficava o lampião. O rosto dela estava corado e alegre, com os olhos cintilantes e cheios de uma animação nova. Os dentes muito brancos se destacavam no seu sorriso entre os lábios vermelhos.
- Já lhe disse que você é bonita?
- Não.
- Então foi porque não tive tempo. Mas vou dizer agora. Você é muito bonita. Linda como uma estrela de cinema.
- Oh, Danny!
- Acho que está na hora de ir andando, menina. Ela bateu com a cabeça.
- Boa noite, então.
- Vou ver você ainda, Danny?
- Claro que sim. Passarei amanhã pela loja.
- Sério? Vou-lhe preparar uma coisa especial. Com três conchas de sorvete!
- Três conchas ?! Neste caso, vou ainda que você não queira!
- Boa noite, Danny. - Boa noite, Nellie.
Ela deu alguns passos e então se voltou para mim, com um ar de ansiedade.
- Mas vá sozinho e não com os seus amigos, não é? Eles poderiam ser apanhados!
- Está preocupada por eles, Nellie?
- Por eles? Eles não me interessam nada. É por sua causa que estou preocupada.
Não pude deixar de emocionar-me. Era uma boa menina aquela.
- Fique descansada que não vou levá-los.
- E você tem de andar com eles e fazer coisas assim, Danny? Pode ser apanhado. Por que não arranja um emprego?
- Não posso. Minha família não quer que eu saia da escola.
- Tenha cuidado, Danny -, disse ela, ternamente.
- Vou ter.
Subiu de novo no passeio e me deu um beijo rápido.
- Boa noite, Danny.
- Boa noite, menina.
Vi-a atravessar a rua e chegar a uma porta. Ainda se voltou de lá para me dar adeus e desapareceu dentro do prédio.
Voltei pela rua. Estava feliz. Tão feliz que até me esqueci de que detestava tudo por ali até ao momento em que atravessei a Rua Delancey defronte da farmácia em que Papai trabalhava e tornei a ver o Sr. Gold.
127
ele estava à porta da farmácia metendo no bolso uma bolsinha de couro e lona. Eu sabia que era uma bolsa usada para fazer um depósito noturno num banco.
Escondi-me automaticamente numa porta e observei-o. Faltavam poucos minutos para a meia-noite. O homem começou a descer a Rua Delancey na direção de Essex. Segui-o lentamente à distância de uns cem passos.
Não soube a princípio por que o estava seguindo, mas logo compreendi. Entrou na Rua Essex e começou a caminhar mais depressa. Fui para o outro lado da rua e procurei acompanhar-lhe a marcha, enquanto a idéia tomava forma no meu espírito.
ele foi até ao banco na esquina da Avenida A com a Rua 1. Depois, tirou a bolsa e colocou-a na caixa dos depósitos noturnos. Em seguida, continuou o seu caminho pela Avenida A.
Deixei-o. Não me interessava mais o que ele fizesse daí por diante. Acendi um cigarro e comecei a pensar.
Ao mudar-me para aquele bairro, tudo me havia parecido um mundo diferente. E era. Ali só havia uma regra de vida: ou a pessoa fazia por si e lutava ou passava fome.
As crianças sabiam disso ainda melhor do que os adultos. Desde cedo, ficavam entregues à própria sorte para que se arrumassem como pudessem. Eram insensíveis, cruéis e desiludidos mais do que eu poderia ter imaginado. Só houve uma coisa que me salvou de ser esmagado por eles. Eu lutava melhor do que todos eles e às vezes pensava mais depressa.
Mas isso tinha levado tempo. Durante algum tempo, olharamme atravessado. Não podiam entender-me muito bem. Depois da briga no dia em que Rexie foi atropelada mostraram algum respeito por mim. Mas foi só depois de freqüentar muito tempo o café da esquina que comecei a conhecê-los.
Daí por diante, dominei a situação. O rapaz que eu derrotara tinha sido o chefe da turma. Os rapazes passaram a viver então inteiramente desorientados. Spit e Solly haviam tentado assumir a chefia, mas não puderam obter o respeito dos outros. A única linguagem que eles podiam entender era a superioridade física.
Um dia, Spit se aproximou de mim enquanto eu tomava um sorvete. Dentro de uma chuva de perdigotos, convidou-me a entrar para a turma.
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Ouvi-o cautelosamente, mas ao fim de algum tempo comecei a sair com eles. Sentia-me muito sozinho ali e tinha de identificar-me com alguém. Podia muito bem ser como os rapazes da Rua Stanton.
Mas o centro de todas as preocupações continuava a ser o dinheiro. A falta de dinheiro era o que flagelava o Baixo East Side como uma peste. Era visível por toda a parte - nas ruas sujas, nas vitrinas, desleixadas, nas casas mal cuidadas. Ouvia-se por toda a parte - nos pregões ansiosos dos vendedores ambulantes, nos demorados debates em que se regateava o preço das coisas para ganhar um centavo.
Quando se tinha dólares no bolso, era-se um rei. Quando não havia dólares, procurava-se alguém que os tivesse e quisesse pagar as coisas para a gente. Mas os reis não vivem no East Side, a menos que possam arrancar bastante dinheiro da pobreza geral para levar uma vida confortável.
Havia muita gente assim - os usurários, os bookmakers, os pequenos criminosos. Eram os sabidos, os heróis, os invejados, os fortes que tinham conseguido sobreviver. Eram os nossos exemplos, os homens para quem voltávamos os olhos cheios de admiração.
Eu queria ser como eles e não como meu pai, que ficara à margem da vida em conseqüência da sua inabilidade em marchar com os tempos. Meu pai e outros como ele formavam o povo do Baixo East Side e eram muitos. Não íamos ser como eles, se pudéssemos dar um jeito. Éramos sem duvidei mais espertos e íamos ser os reis. Quando eu fosse rei, compraria de novo a minha casa em Brooklyn e sairia daquele bairro imundo.
Voltei para casa. Spit me perguntara qual seria o nosso próximo golpe. Naquela ocasião, eu não sabia. Achava apenas que dar um golpe como o da loja não valia a pena. Mas já sabia o que íamos fazer. Era um golpe com o qual mataria dois coelhos de uma cajadada. Resolvi, antes de ir para casa, passar pelo café da esquina para conversar com Spit e Solly.
Agitava-me inquietamente na cama. Estava nervoso demais para poder conciliar o sono. Uma buzina soou com estrépito na rua, bem embaixo da minha janela. Saí da cama e fui sentar-me junto à janela. Acendi um cigarro e olhei para baixo.
Havia um caminhão da limpeza parado junto ao meio-fio. Ouvi o barulho metálico das latas de lixo que os homens despejavam dentro do caminhão.
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Lembrei-me da expressão de Spit quando eu havia explicado o golpe que íamos dar. Ficara com medo, mas Solly se entusiasmara com a idéia e a mesma foi aprovada. Nós três poderíamos executar o serviço sem precisar de mais ninguém. Mas, antes, teríamos de observar Gold muito bem. Isso era da maior importância.
Um de nós teria de acompanhá-lo durante várias noites quando ele saísse da farmácia para ficarmos sabendo os seus hábitos e tudo o que fazia nessas ocasiões. Então, na noite mais favorável, nós o assaltaríamos.
Devíamos conseguir bem uns duzentos dólares. Tínhamos apenas de atordoar o homem com uma boa pancada e tomar-lhe a bolsa. Não podia haver nada mais fácil. Omiti o fato de que meu pai trabalhava na farmácia. Os outros nada tinham com isso.
Ouvi da janela uma voz de mulher e pensei em Nellie. Era estranho que fosse italiana. Em geral, as italianas eram altas e fortes e a gente sabia o que eram logo que abriam a boca. Ela era diferente. Tinha voz macia e era doce e terna.
Gostava de mim também. Não tinha dúvida alguma sobre isso. Era estranho como essas coisas aconteciam. Saía-se com uma pequena com uma intenção e de repente se via que as coisas não saíam como se esperava. A pequena era direita e descobria-se que se gostava mesmo dela. E não se queria fazer nada que fosse capaz de desagradar-lhe.
Era uma coisa muito estranha. Nunca tinha sentido aquilo por mulher alguma. Talvez, como ela tinha dito, fosse amor. Talvez. Eu nunca me contentara em segurar a mão de uma pequena e deixar tudo ficar nisso mesmo.
Ouvi novamente a voz da mulher. Estiquei o pescoço pela janela a fim de ver quem era. A rua estava vazia. Tornei a ouvir a voz e percebi que não me era de todo estranha. Quem seria?
A mulher falou de novo. Dessa vez, consegui descobrir que o som vinha do alto. Olhei para cima. Havia uma brasa de cigarro no parapeito do terraço. Reconheci então a voz. Era de Mimi. Que estaria fazendo no terraço àquela hora? Já passara de uma da madrugada. Lembrei-me então de que ela me falara de um colega de trabalho no escritório por quem se interessava, um tal George. Eu tinha dito que ela tivesse cuidado, pois um camarada que trabalhava como escriturário num escritório não podia prestar e ela me respondera, muito exaltada:
- Pois fique sabendo que é muito melhor do que aqueles vagabundos com quem você costuma andar no café.
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Resolvi subir e ver o que era que Mimi estava fazendo. Sabia muito bem que quando se subia para o terraço àquelas horas da noite não era para olhar estrelas. Vesti as calças e subi.
A porta que dava para o terraço estava aberta e eu entrei. Escondi-me na sombra da porta e olhei. Mimi estava ali. E o rapaz também. Estavam atracados num abraço que não acabava mais.
Separaram-se afinal e o rapaz começou a falar em voz baixa. Não podia perceber o que ele estava dizendo, mas tive a impressão de que estava suplicando alguma coisa. Mimi sacudiu a cabeça e ele tornou a despejar uma torrente de palavras. Afinal, Mimi sacudiu de novo a cabeça e começou a falar.
- Não, George, nem pense em casamento. Gosto muito de você mas estou cansada de viver preocupada com dinheiro. Se nos casarmos, continuarei na mesma vida e não quero mais viver assim.
Ri comigo mesmo. Mimi não era trouxa. Um dólar era um dólar. Ainda assim, parecia estranho que alguém já estivesse querendo casar-se com ela. Tinha de convencer-me de que não era mais uma garotinha, como eu parecia pensar ainda.
O camarada voltou a abraçá-la. Disse alguma coisa a ela e, beijou-a. Pelo jeito dela, tive a impressão de que não era a primeira vez que subia a um terraço. Desci em silêncio e voltei para o meu quarto.
Cerca de quinze minutos depois, ouvi a porta abrir-se e saí para o corredor. Ela estava fechando a porta cuidadosamente e levou um susto quando me viu.
- Que é que está fazendo aqui, Danny? Sem responder, limitei-me a rir.
- De que é que está rindo? - perguntou, zangada. -• Seu batom manchou-lhe a boca toda.
- Você estava me espionando!
- Não houve outro jeito. Você e seu amiguinho estavam fazendo tanto barulho lá em cima que eu não consegui dormir.
- Você tem uma imaginação muito suja! - exclamou ela.
- Tenho mesmo? - disse eu, sorrindo e apontando para o vestido dela.
Mimi olhou e os olhos se lhe arregalaram de surpresa. Toda a frente do vestido estava cheia de manchas de batom. Olhou para mim, com o rosto muito vermelho.
- Aceite um conselho de irmão. Sempre que fôr encontrarse com um namorado para um namoro violento, limpe antes o batom.
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Poupará muito tempo e trabalho quando tiver de lavar as roupas.
Ela mordeu os lábios, zangada demais para me dar uma resposta.
Sorri e disse ainda, antes de voltar para o meu quarto. - Boa noite, Mimi. Não se esqueça!
5
Papai apareceu para tomar café quando estávamos começando a comer. Havia no seu rosto rugas que não eram apenas de cansaço. O sofrimento e o desânimo se estampavam nas encovadas faces, outrora redondas e rosadas.
Tive pena dele. A minha feroz altivez se chocava com a lenta desintegração do seu amor-próprio.
- Sente-se aqui, perto da janela -, disse eu, levantando-me Era o lugar mais confortável da cozinha.
- Obrigado, Danny -, disse ele, sentando-se. - E obrigado também por ter levado o meu jantar. Estava tão ocupado que nem vi a hora que você chegou.
- O caixeiro me disse -, murmurei, poupando-lhe os sentimentos. Não gostaria de que eu dissesse que ouvira Gold gritar com ele.
Mamãe colocou um prato de mingau diante dele e disse:
- Por que não dormiu um pouco mais, Harry?
- Quem pode dormir quando clareia o dia? - perguntou Papai - Ainda não me habituei a isso.
- Mas você devia descansar mais, trabalhando até tão tarde quanto você trabalha.
Papai pegou a colher e começou a tomar o mingau, mas logo empurrou o prato. Não estava com apetite.
- Quero apenas café, Mary -, disse ele com voz cansada.
- Trabalhou muito, ontem? - perguntou Mamãe, colocando uma xícara de café diante dele.
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- O Sr. Gold me fêz trabalhar muito -, disse ele e logo levantou os olhos para mim, compreendendo o que tinha dito.
Conservei-me impassível. Não sabia de nada, nada tinha visto e nada tinha ouvido.
- Que espécie de homem é esse Gold, Papai?
- Por que está perguntando isso, Danny?
- Por nada. Curiosidade, apenas -, disse eu. Não podia dizer-lhe a verdadeira razão.
Papai pensou um instante e falou, escolhendo cuidadosamente as palavras e de certo modo surpreendendo-me.
- É um bom homem, mas um pouco nervoso. Tem muitas coisas que fazer, muitas coisas em que pensar.
Levei à boca mais uma colher de mingau e perguntei com a maior displicência que me foi possível.
- Está satisfeito em trabalhar para ele, Papai?
- Ora, de qualquer maneira é um emprego.
- ele é o gerente da farmácia, não é? Como chegou a esse cargo ?
- O homem que ocupava o lugar antes dele ficou doente e teve de afastar-se. ele ocupava o mesmo lugar que eu tenho hoje e foi promovido.
Isso me interessava muito. Era um bom ângulo.
- Quer dizer que se ele sair, o senhor irá para o lugar dele?
- Não sei, mas é bem possível... O supervisor gosta de mim.
- Quem é ele?
- É o gerente da cadeia de farmácias. Trabalha no escritório central.
- É chefe do Sr. Gold também?
- É chefe de todo o mundo. Mas por que tantas perguntas, Danny? Está pensando em ir trabalhar em alguma farmácia no verão?
- Talvez.
- Não vai trabalhar com o Sr. Gotkin no interior?
- Não sei ainda. Não tenho tido notícias dele.
Eu estava decepcionado também com isso. Eu tinha esperado que Sam me escrevesse mas até então nada recebera. Talvez o caso do ano anterior com Miss Schindler o houvesse aborrecido mais do que ele deixara transparecer.
- Por que não escreve para ele? - perguntou Mamãe.
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- Para onde? Não sei nem onde ele está. E pode ser até que já tenha desistido de continuar com o negócio.
Nesse momento, Mimi chegou, dizendo:
- Quase não tenho tempo de tomar café, Mamãe. Vou chegar atrasada ao serviço.
Mamãe sacudiu a cabeça.
- Não sei o que há com você, Mimi. Fica acordada até tarde e não é de admirar que custe a levantar-se de manhã.
- Pois eu sei o que há com ela - disse eu, rindo -, Mimi tem um namorado.
- É um bom rapaz, Miriam? - perguntou Papai. Respondi antes dela.
- Nada. É um joão-ninguém, um camarada do escritório em que ela trabalha.
- Mentira! - exclamou Mimi, com raiva. - É muito bom rapaz, Papai. Está estudando à noite.
- Sem dúvida --, disse eu. - Estuda na Universidade do Terraço.
- É melhor ficar calado, Danny! - retorquiu Mimi. - Ao menos, tem mais juízo do que você e não passa os dias vagabundando no café da esquina. Está lutando para ser alguma coisa e não um desocupado como você.
- Não diga coisas assim a seu irmão -, disse Mamãe. - Não é bonito isso.
- Por quê? - perguntou Mimi, quase gritando. - Quem é ele? Deus? Quem ele pensa que é para que todo o mundo tenha medo de dizer a ele o que pensa? Desde que nos mudamos para cá, é só Danny isso e Danny aquilo. Quando ele mudou de escola, todo o mundo achou isso terrível. Eu mudei também e ninguém disse nada. Será que ele já procurou algum emprego depois da escola ou tentou fazer qualquer trabalho? ele sabe como estamos precisando de dinheiro e não é capaz de levantar um dedo para ajudar, mas ninguém diz nada a ele. Todo o mundo tem receio de ofendê-lo. E a única coisa que ele faz é passar o dia inteiro naquele café da esquina com uma turma de vagabundos iguais a ele e depois vir para casa e comer e dormir como se fosse um príncipe. Pois ele é um vagabundo, nada mais do que um vagabundo e já é tempo de que alguém lhe diga a verdade.
- Cale-se, Mimi! - disse Papai, levantando-se muito pálido. Mimi ainda estava com o rosto vermelho de raiva. De repente, desatou a chorar e saiu correndo da sala.
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Papai e Mamãe ficaram olhando-me à espera de que eu dissesse alguma coisa, mas fiquei calado.
- Ela não está inteiramente errada, sabe, Danny? - disse afinal meu pai. - Aqueles seus amigos do café da esquina não são gente que preste.
- Não fui eu que escolhi esta rua para morar -, disse eu, empurrando o prato e levantando-me. - Não tenho culpa de que nos tivéssemos mudado para cá. Que querem que eu faça? Que fique metido dentro de casa porque Mimi não gosta dos amigos que eu arranjo?
- Não é isso, Danny -, disse Papai. - Não pode arranjar outros amigos?
Não adiantava. ele nunca me poderia compreender. A estranheza que eu havia sentido entre nós dois no dia da nossa chegada àquela casa havia aumentado. E era muito tarde para tentar consertar alguma coisa.
- Não há outros amigos por aqui.
- Por que não procura então o que fazer? Não pode deixar de encontrar alguma coisa.
- Há uma coisa que resolveria tudo, Papai. Mas não é nada que eu possa fazer. Só o senhor pode.
- O que é?
- Conseguir de novo a minha casa. O senhor a perdeu. Procure recuperá-la. Talvez então possamos recomeçar tudo de novo.
Vi a mágoa encher os olhos dele e crescer até ao ponto em que não pude mais suportar e saí correndo do apartamento.
Ela me viu longe, no mesmo instante em que cheguei à porta. Enquanto me encaminhava para ela, Nellie teve tempo de olhar rapidamente para o espelho, sentei-me num dos bancos do balcão e ela se voltou para mim, sorrindo.
- Alô, Danny.
Boa menina aquela. Respondi, sorrindo:
- Alô, Nellie. Como é? Seu pai ficou muito zangado?
- Não, acreditou no que eu disse.
Vi pelo espelho que o gerente se aproximava de nós.
- Uma soda de chocolate? - perguntou ela, num tom absolutamente indiferente. - Muito bem, senhor.
O gerente passou por nós e ela deu um suspiro de alívio. Depois, colocou o sorvete diante de mim e disse com voz terna:
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- Seu cabelo é tão louro que chega a parecer branco. Sonhei com você esta noite.
A pequena estava mesmo apaixonada e isso me agradou, fazendo-me ficar vaidoso.
- Foi um bom sonho?
Ela bateu com a cabeça e perguntou:
- E você? Pensou em mim?
- Um pouco.
- Pois eu quero que você pense muito em mim.
Olhei-a. Estava com o rosto cheio de animação e mais bonito ainda. Tinha menos maquilagem do que na véspera e parecia mais jovem. Ela começou a ficar vermelha sob o meu olhar.
- Vai-se encontrar comigo esta noite? - perguntou ela, ansiosamente.
- No mesmo lugar.
Vi que o gerente se aproximava de novo de nós.
- Dez cents -, disse ela, com voz puramente comercial. Coloquei o dinheiro em cima do balcão e ela o guardou na registradora. O gerente já havia passado.
- Nove horas -, disse ela. Fiz um sinal afirmativo e ela se virou para o lado a fim de atender outro freguês. Acabei de tomar o meu sorvete e saí da loja.
Caminhávamos os três pela Rua Delancey, Solly, Spit e eu.
- A casa é esta -, disse eu, parando em frente à farmácia.
- Mas não é aqui que seu pai trabalha? - perguntou Spit, surpreso.
Espantei-me. Nunca pensei que ele soubesse. Mas, pensando bem, não havia segredos naquela rua.
- E daí? - perguntei agressivamente.
- E se ele desconfiar? - perguntou Spit.
- Que é que tem isso? Nunca pensam em mim.
- Mas acontece que esse golpe é sério mesmo. Se a polícia o pegar, jogará você na cadeia e se esquecerá do lugar onde está a chave.
- Querem fazer coisas que não rendem nada como aquele serviço da loja ou querem ganhar dinheiro de verdade?
- Danny tem razão -, disse Solly. - Vamos fazer alguma coisa que valha a pena.
Fomos até à esquina e então eu me voltei para Spit.
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- Decida de uma vez. Está nisso ou não está?
- OK, - disse ele, prontamente. - Estou.
- Ótimo - disse eu, batendo-lhe no ombro. - Eu sabia que podia contar com você. Agora, escutem que eu vou dizer como vamos agir.
Ficamos na esquina e combinamos o serviço. O tráfego barulhento do East Side passava por nós. Havia um guarda a poucos passos de nós, mas ninguém nos dava atenção. Os garotos gostam mesmo de fazer ponto nas esquinas e ninguém pode fazer nada a esse respeito.
6
Estava chuviscando e nós nos abrigamos na porta do outro lado da rua, defronte da casa de Nellie. Já estávamos começando a pensar que éramos donos daquele portal e, sempre que alguém se aproximava dele, ficávamos indignados como se se tratasse de algum intruso. Ainda tinha nos lábios o gosto dela, mas naquele momento estávamos muito quietos, com meus braços passados em torno dela, olhando para as ruas molhadas e escuras.
- Na semana que vem começa o mês de junho, Danny.
- É verdade.
- Já conheço você há quase três semanas, mas tenho a impressão de que o conheço toda a minha vida.
Sorri para ela. Eu sentia a mesma coisa. Sentia-me bem quando estava junto dela. Nunca me sentia melhor do que nesses momentos.
- Gosta de mim, Nellie?
-- Se gosto de você? Sou louca por você. Amo-o tanto, Danny, que chego a ter medo.
- Amo-a também, Nellie.
- Oh, Danny, como seria bom se nós já tivéssemos idade para nos casarmos!
Isso me pareceu tão esquisito que não pude deixar de sorrir.
- Você está rindo de mim, Danny!
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- Não é de você que estou rindo, minha querida. Estou pensando é no que diria seu pai se soubesse.
-- Que mal faz o que ele disser depois que nos casarmos? Beijei-a e abracei-a.
- Abrace-me com mais força, Danny! Gosto de que você me abrace. Gosto de sentir suas mãos em mim. Pouco me importa que digam que é pecado!
- Pecado? Quem é que diz isso?
Ela me prendeu as mãos contra o seio e disse ansiosamente.
- Não me incomodo, Danny! O Padre Kelly pode dizer o que quiser. Farei todas as penitências que ele mandar, contanto que você não deixe de gostar de mim!
- E que é que o Padre Kelly tem com isso?
Era a primeira vez que me ocorria a idéia de que tínhamos religiões diferentes.
- Não devia lhe dizer isso, Danny. Mas, todas as semanas, depois da confissão, ele me faz um sermão contra você.
- Falou com ele a nosso respeito? Que é que ele diz?
- Diz que é errado o que eu estou fazendo e que devo parar - disse ela, encostando a cabeça no meu ombro. - E que é pior ainda porque é com você.
- Comigo? Por quê?
- Porque você não é católico. ele diz que nunca nos poderemos casar. Nenhuma igreja nos aceitaria. Mas ele diz que não devia me interessar por você, pois há muitos bons rapazes católicos que eu posso conseguir.
- Cachorro! - exclamei. - E se ele contar tudo a seu pai?
- Não fará isso, fique descansado. Um padre não conta nunca o que ouve em confissão. O que se diz no confessionário é a Deus que se diz. ele está apenas ali como testemunha e conselheiro. Pensei que você soubesse disso.
- Pois não sabia. E o que é que ele manda você fazer, depois que você conta tudo a nosso respeito?
- Tenho de fazer muitas orações e de fazer penitência diante da imagem da Virgem Maria.
- E não lhe dá nenhum castigo?
- Será que você não compreende, Danny? O padre procura apenas fazer a gente compreender que errou e arrepender-se do erro. Quando há arrependimento, esse castigo já é bastante.
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Comecei a sorrir. Aquilo não tinha qualquer importância.
- E você está arrependida?
- Nem um pouco. E é isso que complica tudo. Acho que nunca serei perdoada.
- Não se preocupe com isso, menina. Nada estará errado enquanto nos amarmos.
Já ia beijá-la quando ouvi passos que vinham pela rua. Afastamo-nos apressadamente um do outro e um homem passou sem sequer olhar para o lado.
Olhei para o meu relógio.
- Ih! Mais de onze horas. É melhor você ir entrando senão seu pai hoje vai-se zangar de verdade!
- Mas eu não quero ir - disse ela, sorrindo. - Quero é ficar com você para sempre!
Sorri para ela, não queria também que ela fosse, mas naquela noite tinha outra coisa para fazer. Havíamos escolhido aquela noite para dar o golpe. Spit e Solly iriam esperar-me perto da farmácia às onze e meia.
- Vá para casa - disse eu, rindo. - Vá que eu tenho de ir também.
-- Está bem - disse ela, beijando-me. - Amanhã à noite?
- Amanhã à noite.
Ela atravessou a rua e da porta se voltou para me dar adeus.
Olhei para o relógio. Eram 11h 25minutos. Teria de andar depressa para chegar na hora. Comecei a correr, mas logo parei. Não há quem não repare num camarada que passa correndo àquelas horas da noite.
Solly estava esperando na esquina, logo depois da farmácia, no outro lado da rua.
- Onde está Spit? - perguntei um pouco sem fôlego.
- Está ali - disse Solly, apontando e eu vi Spit postado na outra esquina, a sorrir para mim.
Do outro lado da rua, o Sr. Gold estava de pé no centro da farmácia, falando com Papai. Este escutava, com uma expressão de abatimento, na rua. O cachorro não dava uma folga ao velho, pensei com raiva. Virei-me para Solly.
- Espero que meu velho não saia com ele de novo esta noite, senão teremos de adiar o golpe para a semana que vem.
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Era isso que nos tinha feito demorar tanto. Em algumas noites, meu pai costumava acompanhar o Sr. Gold até ao banco. Já havíamos marcado o serviço duas vezes, sendo forçado a adiá-lo.
- Vamos ver - disse apenas Solly.
Solly era OK. Não falava muito, mas eu podia confiar nele.
Olhei para a farmácia. O Sr. Gold ainda estava falando com meu pai. Parecia estar muito aborrecido e Papai o ouvia de ombros caídos, numa atitude de completa resignação. Ora, Gold não teria vontade de falar tanto depois do que iríamos fazer com ele naquela noite.
- ele está-se preparando para sair! - disse Solly.
Gold tinha saído de junto de meu pai e estava olhando para a registradora. Chamou meu pai, disse-lhe alguma coisa e, em seguida, se encaminhou para a porta.
- Lembra-se de tudo o que eu lhe disse, Solly? - perguntei, cem apenas um leve tremor de emoção na voz.
- Lembro-me, sim.
- Está bem. Passe a borracha.
ele me deu o cassetete curto de borracha e eu o guardei no bolso. Depois, atravessei a rua.
- Vamos, rapaz, - disse eu, quando passei por Spit na outra esquina.
Subimos a rua caminhando em direção oposta à de Gold. Chegamos à primeira esquina e nos voltamos para olhar Gold.
ele estava justamente entrando na Rua Essex. Solly vinha logo atrás dele, parecendo que estava voltando para casa depois da última sessão do cinema. Fêz um sinal que havíamos combinado e que dizia que tudo estava em ordem.
Começamos a caminhar rapidamente pela Rua Ludlow, que é paralela à Essex.
- Tudo certo com você, Spit?
- Tudo certo, Danny.
Continuamos a andar depressa. Não havia tempo a perder. Andamos três quarteirões até chegarmos ao terreno baldio pouco antes da Rua Houston. O terreno se estendia até à Rua Essex. Comecei a sentir-me amedrontado e desejei vagamente que não me tivesse metido naquilo. Lembrei-me então de como Gold falara com meu pai.
- A coisa é comigo, - disse eu.
- Boa sorte -, disse Spit, sorrindo.
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Dei um empurrão amistoso em Spit e tentei sorrir. ele continuou pela rua e dobrou a esquina. Mergulhei nas sombras do terreno baldio.
Fiquei à espera no escuro, encostado a uma parede. O coração me batia tão forte que eu tinha a impressão de que podia ser ouvido de longe. Prendi a respiração para ver se diminuía o barulho; Não adiantou nada. Tirei o cassetete e bati com ele de leve na mão, ouvindo um barulho surdo. As mãos estavam úmidas e eu esfreguei-as nas calças.
Estava começando a ficar preocupado. E se a coisa não der certo? Quis esticar o pescoço para fora da parede a fim de ver se eles já vinham vindo, mas sabia que não podia me arriscar. Tornei a dar uma respiração profunda e procurei acalmar-me. Tudo tinha que dar certo pois fora muito bem planejado.
Era tão simples e tão fácil que não podia falhar. Solly vinha pela rua atrás de Gold. Poderia ver qualquer pessoa que viesse para eles. Spit desceria a rua, caminhando na direção deles. Poderia ver qualquer pessoa que viesse atrás deles. Se houvesse alguma possibilidade de alguém nos ver, eles começariam a assobiar e eu deixaria Gold passar. O plano era simples assim. Não podia haver contratempo algum. Fiquei do meu posto olhando para a esquina mais afastada à espera do primeiro sinal de Spit que me informaria que estava chegando.
Os segundos pareciam arrastar-se. Eu estava recomeçando a ficar nervoso. Seria bom que eu pudesse acender um cigarro. Procueir devassar a escuridão com os olhos. Ouvi passos que se aproximavam de mim.
Era Spit, que vinha naquele curioso andar arrastado que tinhí De repente, o nervosismo se dissipou e me senti inteiramente calmo; Não era mais possível recuar. Segurei o cassetete e esperei na ponta dos pés, pronto a entrar em ação quando me dessem o sinal.
Spit levou a mão ao rosto. Comecei a deslizar para o ângulo da parede. Gold apareceu um pouco afastado da linha do prédio e eu marchei em silêncio para trás dele.
Vibrei com vontade o cassetete. Houve um barulho surdo e Solli recolheu nos braços o homem que caía e arrastou-o para as sombras do terreno baldio.
Olhamos para Gold estendido no chão.
- Quem sabe se você não matou o homem? - exclamou Spit, com voz amedrontada.
Senti no coração uma pontada de medo. Abaixei-me e meti a mão por dentro do colete de Gold. Com uma sensação de alívio, senti o coração bater.
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Depois, passei a mão pela cabeça do homem. Nem depressão, nem sangue. Eu tivera sorte.
- Ande depressa! - disse de repente Solly. - Pegue a grana e vamo-nos embora!
Essas palavras me dissiparam o medo. Solly tinha razão. Dei uma busca rápida nos bolsos de Gold e encontrei a bolsa com o dinheiro. Vi então Spit ao meu lado, com o pulso de Gold entre as mãos.
- Que é que está fazendo, Spit?
- Tirando o relógio dele. É uma beleza!
- Nem pense nisso! - exclamei, zangado. - Quer ser agarrado pela polícia no primeiro dia em que aparecer com ele?
Tornei a sentir o coração de Gold e vi que estava batendo com mais força. Levantei-me e disse.
- OK. Vamo-nos embora!
Mas antes que eu pudesse dar um passo, senti que me agarravam um tornozelo. Ao mesmo tempo, a voz de Gold soou como um toque de clarim na noite tranqüila.
- Socorro! Polícia!
Spit e Solly começaram a correr. Olhei e vi que Gold me agarrava o tornozelo com as duas mãos, gritando com toda a força dos pulmões.
Olhei em torno frenèticamente. Spit e Solly estavam quase desaparecendo do outro lado da Rua Essex. O meu coração estava disparado mesmo. Tentei mover-me mas não consegui. O medo me havia paralisado as pernas. Vi que alguém havia saído da casa de delicatesen de Katzys e vinha correndo para onde eu estava.
Tinha de sair dali. Dei um violento pontapé na mão de Gold e
senti o bico do sapato atingir-lhe o braço. O homem gemeu, deu um grito de dor e, no mesmo instante, fiquei livre e comecei a correr.
A rua que eu estava deixando atrás de mim se enchia rapidamente de gritos e movimento. Mas sem demora dobrei a esquina da Rua Stanton. O instinto me fêz parar e eu fiquei na esquina, hesitando um instante. Tomei sem demora uma decisão. Tinha de saber se ele me havia reconhecido. Dei a volta ao quarteirão. O terreno baldio estava cheio de gente.
Aproximei-me. A polícia já estava lá e os guardas estavam gritando para que todos se afastassem. Gold estava sentado no chão, segurando o braço e gemendo de dor.
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- Que foi? - perguntei a um dos curiosos.
O homem respondeu sem virar a cabeça para mim. Não queria tirar os olhos de cima de Gold.
- Aquele camarada ali foi assaltado!
Cheguei mais perto de Gold. Um guarda estava ajoelhado ao lado dele. Ouvi então o que ele dizia e com isso os meus receios se dissiparam.
- Como eu podia ver quem foi? - exclamava Gold. - Fiquei inconsciente, estou dizendo. Levem-me a um médico que o bandido me quebrou o braço.
Fui saindo calmamente através da multidão. Dentro em pouco, esta começou a dispersar-se, atendendo aos guardas. Tomei o caminho de casa. Fui para o meu quarto e só quando tirei as calças foi que me lembrei de que ainda estava com o dinheiro.
Passei para o banheiro e tranquei a porta. Rasguei então a bolsa com o canivete e contei o dinheiro. Uma fortuna! Cento e trinta e cinco dólares!
Meti o dinheiro no bolso e olhei em torno à procura de um lugar onde pudesse deixar a bolsa, da qual tinha de me livrar. Havia acima do vaso uma janelinha que dava para um poço de ventilação que nunca se limpava. Subi na tábua e joguei a bolsa pela janelinha. Voltei para meu quarto e procurei dormir.
Fechei os olhos mas os pensamentos me corriam desordenadamente pela cabeça. Quem sabe se Gold não se lembraria de mim logo que a dor passasse? Tivera tempo de sobra para me olhar bem. Senti um suor frio no corpo. Não adiantava querer dormir. Os meus nervos pulavam a qualquer ruído noturno. Ouvi bater uma porta e saltei da cama. Tinham ido buscar-me.
Vesti as calças e fui até à porta, apurando os ouvidos. Ouvi apenas as vozes de meu pai e de minha mãe. Papai estava chegando.
Tornei a deitar-me e pousei a cabeça no travesseiro com um suspiro de alívio. Eu estava sendo um idiota. Ninguém podia suspeitar de mim. Pouco a pouco, o nervosismo me abandonou, mas, ainda assim, não consegui dormir.
A noite parecia interminável. Meti uma ponta do travesseiro na boca para não gritar. Comecei a rezar silenciosamente. Era a primeira vez que rezava conscientemente. Pedi a Deus que não deixasse que eu fosse agarrado e jurei que nunca mais faria aquilo.
Só consegui fechar os olhos de pura exaustão quando a luz cinzenta da manhã começou a entrar no quarto. E, ainda assim, não dormi de verdade. Ouvi o tempo todo o barulho do osso quebrado com o meu pontapé e o grito lancinante de Gold.
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Alguém me estava sacudindo. Tentei livrar-me das mãos que me agarravam. Por que não me deixavam em paz? Eu estava tão cansado.
- Acorde, Danny! Acorde!
- Deixe-me dormir, que estou cansado, - disse, virando-me para o outro lado.
Ouvi os passos que saíam do quarto e cochilei. Eu estava esperando pelo sinal e vi Spit levar a mão ao rosto. Gold ficou de repente perto de mim. Levantei a mão. Nesse momento, Gold se voltou para mim.
- Sei quem é você! - exclamou ele. - É Danny Fisher!
- Não! - gritei. - Nunca mais!
Senti uma mão no meu ombro e me sentei na cama com um pulo.
- Danny! - exclamou minha mãe, assustada. - Não está passando bem?
Compreendi que fora apenas um sonho, embora tudo me parecesse muito real.
- Não, Mamãe. Estou bem.
Havia um ar de profunda preocupação no rosto de Mamãe. Encostou a mão na minha testa quente e me fêz encostar de novo a cabeça no travesseiro.
- Vá dormir, Danny, - disse ela carinhosamemnte. - Você estava chorando no seu sono.
O sol brilhava forte lá fora na rua quando tornei a abrir os olhos. Espreguicei-me.
- Está melhor, Lourinho?
Minha mãe estava sentada ao lado da cama.
- Estou, sim, Mamãe. Não sei o que foi que houve comigo. Felizmente, Mamãe achou melhor não me fazer perguntas. Passou-me às mãos uma xícara fumegante.
- Tome este chá, Danny. Beba que lhe fará bem.
Olhei para o relógio da cozinha logo que entrei. Já passava de duas horas da tarde.
- Onde está Papai?
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- Teve de voltar mais cedo para a farmácia - disse Mamãe. - Aconteceu alguma coisa com o Sr. Gold.
- Foi mesmo? - perguntei displicentemente, encaminhando-me para a porta.
- Aonde é que vai? - perguntou Mamãe nervosamente. - Não me diga que vai sair depois de ter passado tão mal.
- Tenho de sair, Mamãe. Tenho um encontro marcado com uns amigos.
Spit e Solly já deviam estar estranhando a minha demora.
- Você falará com eles depois. Não pode ser tão importante assim. Volte para a cama e descanse.
- Não posso, Mamãe. Tenho de ir e, depois, acho que o ar livre só me poderá fazer bem.
Olhei para Solly ao passar pelo café, fiz-lhe um sinal e continuei a andar. Mais adiante, entrei num edifício e fiquei esperando no vestíbulo. Não tive de esperar muito. Solly e Spit logo apareceram. Eu já estava com o dinheiro nas mãos e entreguei-o.
- Pronto! - disse eu.
Solly meteu prontamente o dinheiro no bolso sem contá-lo, mas Spit contou e levantou para mim o olhar desconfiado.
- Trinta dólares só?
- Vocês ainda têm sorte de pegar isso. Lembram-se de como fugiram e me abandonaram lá?
- Achei que conseguiríamos mais dinheiro, - insistiu Spit.
- Por que então não ficou lá comigo para contarmos o dinheiro logo depois?
ele me olhou com os olhos meio fechados. Era evidente que não acreditava em mim, mas estava com receio de dizer alguma coisa.
- Está bem, Danny - disse ele por fim. - Não estou reclamando.
Deu-me as costas e saiu em silêncio. Virei-me para Solly.
- E você? Tem alguma coisa a dizer?
- Não, Danny. Nada, - disse ele, com um sorriso. Sorri-lhe também e disse:
- Neste caso, vá saindo. Não quero passar o dia inteiro aqui.
Saltamos do bonde e Nellie me tomou o braço.
- Aonde é que vamos? - perguntou ela.
- Você vai ver.
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Tinha sido assim toda a noite. Havia-me encontrado com ela logo que haviam fechado a loja e dissera que queria mostrar-lhe uma coisa. Ela me acompanhou sem discutir e nós tomamos o bonde Utica-Reid. Ficamos em silêncio durante toda a viagem, olhando pela janela, de mãos dadas. Tinha vontade de dizer a ela onde é que íamos, mas estava com receio. Ela podia rir de mim. Mas já podia dizer-lhe por que havíamos chegado. Estávamos numa esquina deserta e escura, quase às dez horas da noite, numa rua de Brooklyn onde ela nunca tinha estado. Apontei para o outro lado da rua.
- Está vendo, Nellie?
- Vendo o quê? Só estou vendo ali uma casa vazia.
- É isso mesmo, - disse eu, sorrindo, feliz. - Bonita, não é?
- Ninguém está morando ali.
- Foi justamente isso que viemos ver.
Por um momento, havia quase esquecido que Nellie estava comigo. Achava que não haveria muita dificuldade em recuperar a casa logo que meu pai pegasse o emprego de Gold.
- Mas foi isso que viemos ver no meio da noite, Danny? Uma casa vazia.
- Não é uma casa vazia qualquer, Nellie. É minha casa. Era ali que eu morava. Espero dentro em breve voltar.
Ela compreendeu e murmurou gentilmente:
- É uma bela casa, Danny!
- Papai me deu essa casa como presente de aniversário quando fiz oito anos. No mesmo dia da mudança, caí dentro de um buraco tentando salvar uma cachorrinha e tiveram de chamar a polícia para me procurar. - Respirei fundo. O ar ali era doce e fresco. - Ela morreu quando nos mudamos para onde estamos agora. Foi atropelada na Rua Stanton, mas eu a trouxe para cá e enterrei-a aqui. Foi o único lar que conhecemos e eu gostava muito da cachorrinha. Foi por isso que a trouxe para cá. Era o único lugar onde ela... onde nós poderíamos ser felizes.
- E agora você vai voltar, - disse ela com uma voz que era uma carícia de tão suave. - Que bom, Danny.
Eu sabia que ela compreenderia logo que soubesse. Levei-lhe a mão aos meus lábios e beijei-a.
- Vamos voltar, Nellie.
Não me importava de sair dali e voltar. Sabia que a minha ausência da casa seria por pouco tempo.
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Cheguei à porta e pisquei os olhos ante a luz da cozinha acesa. Mamãe e Papai estavam olhando.
- Veio cedo para casa, - disse eu a Papai, sorrindo. Talvez ele já tivesse recebido a boa notícia.
- Mas você voltou tarde, - replicou ele com voz zangada. - Onde era que estava?
Olhei-o com surpresa. ele não estava agindo como eu havia esperado. Talvez alguma coisa tivesse saído errada. Talvez Gold me tivesse reconhecido.
- Estava por aí, - disse eu, cautelosamente. Era melhor não dizer coisa alguma ainda.
Papai pareceu perder a calma e gritou.
- Por aí ? Isso é resposta que você dê a seu pai ? Sua mãe quase louca de preocupação por sua causa e você quando volta para casa diz apenas que estava por aí! Perguntei onde era que estava. Responda !
Era claro que tinha acontecido alguma coisa.
- Disse a Mamãe que já me estava sentindo bem e ela não devia ter-se preocupado.
- Por que não veio jantar em casa então? Sua mãe não sabia do que lhe havia acontecido. Você poderia ter caído morto no meio da rua e nós não saberíamos de nada.
- Desculpe. Não pensei que ela se fosse preocupar.
- Não quero desculpas suas. Quero apenas que me diga onde era que estava!
Olhei-o e vi que não adiantava dizer-lhe alguma coisa naquele momento. Estava vermelho de raiva. Dei-lhe as costas e fui saindo sem uma palavra.
De repente, Papai me pegou pelos ombros e me virou de frente para ele. Arregalei os olhos de surpresa. Papai estava com o cinto na mão e o sacudia ameaçador amente.
- Não saia sem me dar uma resposta! Não tolero mais os seus modos comigo! Desde que nos mudamos para cá, você pensa que pode fazer o que bem quiser e entender, sem prestar contas a ninguém ! Mas está muito enganado! Já é tempo de abrir-lhe os olhos! Custe o que custar! Responda!
Apertei rigidamente os lábios. Papai nunca me batera em toda a minha vida. Não podia acreditar que fosse bater naquele momento, quando eu já era mais forte e maior do que ele. Fiquei a olhá-lo em silêncio.
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- Onde era que você estava?
Não respondi. Ouvi o cinto sibilar no ar. Pegou-me no rosto. Vi faíscas nos olhos e ouvi minha mãe gritar. Sacudi a cabeça e abri os olhos.
Mamãe estava segurando o braço de meu pai e pedindo-lhe que parasse. ele a empurrou para o lado, gritando:
- Estou farto, fique sabendo, farto! Um homem pode suportar tudo, mas de seu filho deve receber o devido respeito!
Tornou a vibrar o cinto. Levantei os braços para proteger-me, mas não pude evitar o golpe. A fivela me pegou na testa e eu me senti cair, atordoado.
Olhei para meu pai dentro de uma névoa de dor. Não devia deixar que ele me batesse. Podia tomar o cinto dele na hora em que eu quisesse. Mas não fiz nada disso. Não fiz nem um movimento para evitar a pancada seguinte do cinto. Este desceu de novo e eu rangi os dentes de dor.
Mamãe abraçou-se desesperadamente a ele.
- Pare com isso, Harry! Pare que você vai matá-lo!
Papai empurrou-a e ela foi cair desamparadamente numa cadeira. O cinto continuou a golpear-me a tal ponto que tive a impressão de que vivera sempre naquele curioso mundo de dor.
- E agora? Vai responder ou não vai?
Olhei para ele. Papai parecia ter três cabeças e todas giravam. Sacudi a cabeça. Papai estava levantando três mãos cada qual com um cinto que descia. Fechei os olhos.
- Fui ver a casa!
A pancada que eu esperava não veio e eu abri os olhos. Os três cintos ficaram suspensos no ar sobre a minha cabeça.
- Que casa? - perguntou de muito longe a voz de Papai. Foi então que compreendi que havia respondido. Dei um suspiro e respondi numa voz que eu não reconhecia:
- Nossa casa. Fui ver se alguém já estava vivendo lá. Pensei que agora que o Sr. Gold vai-se afastar, o senhor passaria a ser gerente da farmácia e nós poderíamos voltar para lá.
Houve na cozinha um silêncio que me pareceu interminável. Senti então Mamãe sentada no chão ao meu lado, encostando-me a cabeça ao seio.
Tornei a abrir os olhos e olhei para Papai. Havia-se atirado exausto numa cadeira e me estava olhando com os olhos muito abertos. Parecia mais velho e mais cansado.
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- Como é que você pôde ter essa idéia? - dizia ele. - Ainda ontem à noite o Sr. Gold me disse que iam fechar a farmácia no fim do mês, pois estava dando prejuízo. Estão perdendo dinheiro e a partir do dia primeiro estarei desempregado de novo!
Eu não podia acreditar nisso e as lágrimas começaram a rolar-me pelo rosto. Comecei então a compreender pouco a pouco. Era isso o que Gold estava fazendo quando conversara com meu pai junto à registradora. Era por isso que meu pai estava com o ar tão deprimido.
Tudo era claro para mim depois disso. A raiva de Papai, a preocupação de Mamãe, pela manhã. Por um momento, senti-me de novo muito pequeno e me refugiei no abrigo, na proteção e no conforto do seio materno.
Tinha sido inútil. Toda a miséria por que eu havia passado de nada adiantava.
Por quanto tempo ainda eu ia viver como uma criança, sonhando sonhos de criança? Já era tempo de parar. Não havia meio algum de recuperar a casa.
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Esquivei-me com facilidade de um cansado punch de direita e acertei em contragolpe um soco da esquerda. Passei sem esforço pela guarda do outro e compreendi que ele estava batido. Levantei a cabeça nesse momento ao ouvir o gongo que encerrava o round.
Voltei para meu canto. Deixei-me cair no banco e sorri para o homem que entrou no ringue com a toalha e um balde de água. Abri a bòca e deixei algumas gotas da esponja molhada em meu rosto rolarem para a língua.
- Como se está sentindo? - perguntou o homem ansiosamente.
- Estou bem, Giuseppe. Vou acabar a luta neste round. ele não dá mais nada.
- Poupe seu fôlego, Danny - disse Giuseppe Petito, passando me a esponja pelo pescoço e pelos ombros. - Tome cuidado.
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Aquele camarada ainda tem uma direita perigosa. Não facilite. Prometi a Nellie que você não se machucaria. Ela ficaria furiosa comigo se eu não cumprisse a minha promessa.
- Acho que você dessa vez está salvo, - disse eu, passando a luva amistosamente pela cabeça de Giuseppe. Gostava daquele camarada.
- Isso só depende de você, - replicou ele, sorrindo. - Ela pode ser sua pequena, mas é minha irmã e você não a conhece como eu conheço. Ela não queria nem que eu metesse você nisto.
Eu ia responder quando o gongo tocou. Levantei-me de um salto e Giuseppe saiu do ringue. Fui até o centro e toquei as luvas com o meu adversário. O juiz tirou a mão e eu me esquivei de um súbito jab de esquerda.
Conservei as mãos frouxamente à minha frente, dando cautelosamente voltas em torno do rapaz, esperando uma oportunidade para atacar. Baixei ligeiramente a esquerda, esperando fintá-lo para um direto com a direita. Mas ele não mordeu a isca e eu levantei de novo a guarda.
Recomecei a dar voltas em torno dele. A assistência começou a vaiar e a bater com os pés. Que queriam que fizéssemos para ganhar um relógio de dez dólares? Matar-nos um ao outro? Olhei ansiosamente para o meu canto.
Um sexto sentido me fêz abaixar o corpo. Pelo canto do olho, tinha percebido uma direita que vinha na direção do meu queixo. O soco passou acima do meu ombro e eu entrei em cheio na guarda do rapaz.
Levantei a mão direita num uppercut em que coloquei toda a minha força. Acertei-o bem no queixo. Os olhos dele se vidraram de repente e ele avançou cambaleante para mim, tentando um clinch.
A assistência estava aos gritos naquela hora. Afastei-me prontamente dele e entrei em ação com a esquerda. Atingi o rosto desprotegido do rapaz e ele caiu de bruços. Virei-me e voltei confiantemente para o meu canto. Não era preciso que ninguém me dissesse que a luta estava acabada.
Giuseppe já estava no rinque, jogando uma toalha em torno dos meus ombros.
-- Ótimo! - exclamou. - Como gostaria de que você já tivesse dezoito anos!
Ri e voltei para o centro do ringue. O juiz chegou perto de mim e levantou-me a mão. Disse-me então pelo canto da boca:
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- Você está ficando bom demais para essas lutazinhas, Fisher. Giuseppe apareceu na porta do camarim.
- Já está vestido, garoto?
- Só falta amarrar os sapatos.
- Ande depressa, Danny. O gerente quer falar com você no escritório.
- Que será que ele quer, Giuseppe? - perguntei, saindo com ele para o corredor.
Em geral, quando Skopas, o gerente, queria falar com alguém era para alguma coisa desagradável. Todo o mundo sabia que, embora ele figurasse apenas como gerente do estádio, era um agente <Ia turma mais ou menos desonesta que controlava o boxe.
- Não sei, Danny. Talvez ele queira lhe dar uma medalha de ouro em vez do relógio, - disse ele, rindo, mas eu bem via que estava preocupado.
- Pouco me importa o que ele me dê, contanto que eu possa empenhar por dez dólares.
Chegamos à porta do escritório e Giuseppe abriu-a.
Havia vários homens no escritório e todos fumavam charutos e falavam. Logo que entrei, pararam de conversar e olharam para mim. Olhei-os por um momento e voltei-me para o homem que estava sentado a uma mesa atravancada de coisas.
- Quer falar comigo, Sr. Skopas?
- É você Danny Fisher?
- Exatamente.
Skopas sorriu sem vontade, mostrando os dentes amarelados, enquanto a careca lhe rebrilhava à luz.
- O pessoal está-me dizendo que você é muito bom. Soube que já tem uma boa coleção de relógios.
Sorri. Parecia que não ia haver problemas. Muito ao contrário.
- Bem, eu teria a coleção se pudesse ficar com eles. Mas não posso.
- ele quer dizer que dá os relógios ao pai, - apressou-se em dizer Giuseppe, dando-me uma cotovelada.
Compreendi que ele tinha razão. Não conhecíamos aqueles homens e um deles podia ser um representante da Federação de Pugilismo. Se eu confessasse que passava os relógios adiante, estaria sendo ilegalmente um profissional.
Skopas voltou-se para Giuseppe e perguntou asperamente:
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- Quem é você?
Era minha vez de protegê-lo.
É meu manager, Sr. Skopas. Já lutou muito com o nome de Peppy Petito.
- Ah, lembro-me, - disse Skopas. - Um bom lutador, mas com um queixo de vidro. Então é isso que está fazendo agora? Explorando os garotos?
- Não, Sr. Skopas, eu...
- Está muito bem, Petito. Pode ir saindo. Tenho um negócio para tratar com seu amigo.
Giuseppe olhou-o por um momento e, então, inteiramente abatido, se encaminhou para a porta.
Peguei-o pelo braço e disse a Skopas:
- Parece que está enganado em relação a ele. Giuseppe é irmão de minha pequena. Só está tomando conta de mim porque pedi a ele. Se ele tiver de sair daqui, eu irei com ele.
Skopas mudou imediatamente de expressão e sorriu!
- Por que não disse logo? Assim é diferente! - Tirou um charuto do bolso e disse: - Tome, Petito, e não leve a mal.
Giuseppe guardou o charuto no bolso e sorriu.
- Bem, - disse eu a Skopas
Ele sorriu.
- O que é que quer comigo?
-- Você vai indo muito bem aqui no clube e eu achei que devia dizer-lhe.
- Ah, muito obrigado. Mas não disse há pouco que tinha um negócio para tratar comigo?
Houve um brilho instantâneo no seu olhar, mas ele continuou a falar como se eu não o tivesse interrompido.
- O pessoal do centro da cidade anda sempre à procura de valores novos e eu naturalmente falei em você. Queria que soubesse que eles assistiram às suas últimas lutas e gostaram muito. A conclusão a que todos chegamos, rapaz, é que você é bom demais para se perder nestas lutas sem importância e resolvemos tomar conta de você. Não precisará mais de lutar para ganhar relógios.
Acendeu um charuto e eu fiquei esperando que ele acabasse.
- É para ganhar o que, que eu vou lutar agora? - perguntei impassivelmente. Não era preciso perguntar para quem eu ia lutar. Disso eu já sabia.
- Pela glória, garoto, - respondeu ele -, pela glória. - Resolvemos que você vai lutar nas Luvas de Ouro para ganhar nome.
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- Ótimo! - disse eu. - E em matéria de dinheiro? Afinal de contas, cada relógio me rende dez dólares.
O sorriso de Skopas foi tão frio quanto o seu olhar. Soprou uma baforada de charuto na minha direção e disse.
- Não somos miseráveis, garoto. Você receberá cem dólares por mês até chegar à idade de ser profissional e, aí então, dividiremos o que você ganhar.
- Ganho mais de dez relógios por mês nesta batida, - repliquei, zangado. Senti a mão de Giuseppe que tentava conter-me no ombro e empurrei-a. Não era isso o que eu estava procurando. - E se eu não aceitar?
- Neste caso, não terá nada. Mas você é um garoto inteligente. Sabe muito bem que não pode enfrentar o pessoal. Já contratamos até um camarada para ser seu manager quando você passar para os profissionais.
- Parecem muito confiantes. Afinal de contas, por que pensam que eu quero ser profissional?
- Porque você precisa do dinheiro, garoto. É por isso que você vai ser pugilista. É por isso que você luta para ganhar relógios.
Tinha razão. Eu precisava do dinheiro. Papai estava ainda desempregado e aquele dinheiro era só com que eu podia contar, salvo se assaltasse alguém e o caso com Gold me havia revelado que eu não tinha disposição para aquilo. Mas o que me era proposto eu não queria. Era muito bom ganhar alguns dólares de vez em quando, mas eu não queria ficar sujeito àquela gente. Tinha visto o que acontecera a muita gente que embarcara naquele canto de sereia. Para mim não servia.
- Vamos, Giuseppe, - disse eu. - Prazer em conhecê-lo, Sr. Skopas. E de qualquer modo, muito obrigado.
Quando eu ia saindo, um homem surgiu à minha frente e uma voz que eu conhecia me soou aos ouvidos.
- Como é, Danny Fisher, não vai falar com o seu novo manager?
- Sam! - exclamei, rindo. - Sam Gotkin! Eu devia ter sabido!
Skopas me havia acompanhado até à porta e disse:
- O garoto não vai trabalhar conosco, Sr. Gotkin.
Tomei uma decisão rápida. Voltei-me para Skopas, com um sorriso nos lábios.
- Se não se incomodar, Sr. Skopas, pode dizer a seus amigos que fechou o negócio!
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- Vamos comer alguma coisa, - disse Sam alguns minutos depois.
- Está bem, Sam, - disse eu. - Mas espere um pouco. Voltei até à mesa de Skopas. A tensão havia desaparecido da sala. Até Skopas estava rindo.
- Sr. Skopas, desculpe que tivesse perdido a calma. Obrigado pelo que fêz por mim.
- Comigo está tudo certo, garoto.
- Está bem, - disse eu, estendendo a mão. - Mas não esqueça o meu relógio.
ele riu e disse para os outros homens no escritório:
- O garoto é dos bons. Vai longe. Se eu tivesse cinco mil, teria ficado com ele para mim.
Houve surpresa no meu rosto porque os outros homens riram. Olhei para Sam e ele fêz um sinal afirmativo com a cabeça. Sam devia estar muito bem de vida para gastar cinco mil dólares comigo.
Skopas tirou duas notas do bolso e colocou-as na minha mão.
- Não tenho relógios hoje aqui comigo. Por isso, vamos suprimir desta vez o intermediário.
Olhei com pena para o prato. Uma justiça era preciso fazer àquele restaurante. Era impossível comer tudo o que serviam.
- Estou estourando, - disse eu, largando o talher. - E você, Giuseppe?
- Estou-me forrando, - respondeu ele, com a boca cheia. Olhei para Sam e disse:
- Vejo que não pôde também comer tudo.
- Comi demais, - disse ele. - Tenho de controlar meu peso agora.
Tinha razão. Estava mais gordo do que quando o vira pela última vez.
- Por que não respondeu à carta que lhe escrevi no ano passado? - perguntou ele de repente.
- Mas não recebi carta alguma, Sam.
- Pois estive procurando você, Danny. Cheguei a ir vê-lo na sua casa velha, mas lá ninguém sabia do seu endereço. Tinha um emprego para você.
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- No verão passado? Pois olhe que estava bem precisando disso. As coisas estiveram bem ruins.
- Já concluiu o curso na escola?
- Ainda não. Só em junho. Mas como foi que você me descobriu, Sam? A última notícia que tive de você foi que tinha ido para a Flórida?
- E fui mesmo. Dei-me muito bem lá. Mas não me esqueci de você. Sempre disse que um dia faria de você um campeão e disse a alguns amigos que ficassem atentos para quando você aparecesse. Eu sabia que isso tinha de acontecer mais cedo ou mais tarde. Quem luta tão bem quanto você não pode ficar longe do ringue muito tempo. - Olhou para o cigarro que eu estava fumando e tirou-o de minha boca. - Vai ter de desistir disso para poder trabalhar comigo.
- Gosto de trabalhar para você, Sam. Não sei é se gosto da idéia de ser pugilista.
- Então o que é que está fazendo nesses clubes baratos, lutando para disputar relógios?
- Estava precisando de dinheiro e meu amigo Giuseppe sabia onde eu poderia conseguir três ou quatro relógios por semana em lutas de amadores de três rounds. Pareceu-me fácil e tentei a coisa com bom resultado. Mas não tinha a idéia de me tornar profissional... Talvez depois, quando eu concluísse o curso na escola.
- Que ia fazer então? Pegar algum emprego a dez dólares por semana ? E isso se tivesse sorte...
- É, não havia pensado nisso...
- Está bem, - disse Sam, sorrindo. - De agora em diante, quem vai pensar nessas coisas para você sou eu.
Giuseppe se despediu na esquina. Já ia saindo, quando o chamei. Tirei uma nota do bolso e entreguei-lhe.
- Tome, - disse eu. - Diga a Nellie que é para botar na conta.
-- Está bem, Danny. Direi a ela.
- Diga a ela também que irei esperá-la perto da loja amanhã à noite, - disse eu, quando ele se ia afastando. Voltei-me depois para Sam. - Bom rapaz esse.
- Italiano? - perguntou Sam.
- Sim. Que é que tem isso?
- Para mim, nada. Mas que é que sua família diz de você estar interessado por uma italiana?
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- Minha família não gosta e a familia dela também não gosta de que ela se interesse por mim. Mas ninguém tem nada com isso. O caso é apenas entre Nellie e mim.
- Claro, Danny. Não se aborreça comigo.
- Não estou aborrecido, - disse eu. Mas estava. Sempre discutia a esse respeito em casa.
Sam me pegou pelo braço.
- Venha até meu carro que eu tenho algumas coisas para lhe dizer.
Examinei-o bem quando ele se encostou ao carro. Era evidente que ele estava bem de vida. O rosto estava redondo e havia um bom começo de barriga. A boa vida fazia isso.
- Bem, - disse éle, acendendo um charuto -, quero que ouça com muita atenção o que lhe vou dizer e não se esqueça de nada. Tem de ser assim porque, enquanto você não se tornar profissional, não nos poderemos ver muito. Mas nunca deixarei de estar em contato com você, compreendeu?
Compreendia perfeitamente. As regras relativas às lutas de amadores eram muito rigorosas e fiscalizadas.
- Vá amanhã até ao Clube de Rapazes do East Side. Procure Moe Spritzer e diga-lhe quem é e que fui eu que o mandei. ele sabe o que deve fazer. ele já tem um pedido de inscrição para você nas Luvas de Ouro e você só terá de assiná-lo. De agora em diante, até que você mude de categoria, ele será o seu treinador. Terá de fazer tudo o que ele mandar, compreendeu ?
- Compreendi, - disse eu, apesar de tudo, impressionado. Sam havia pensado em tudo.
- Todos os meses, enquanto você se; conservar em linha, Moe lhe dará 100 dólares. Se você desistir, todo o acordo estará desfeito. Mas proceda bem, garoto, e o mundo será seu. Aparecerei no clube de vez em quando para ver como você vai indo. Quando isso acontecer, não me dê qualquer atenção. Quando eu quiser falar com você tomarei as providências necessárias.
Abriu a porta do carro, sentou-se ao volante e perguntou:
- Alguma pergunta, Danny?
- E se eu não me sair bem nas luvas de Ouro? Que é que irá acontecer neste caso?
Sam hesitou um pouco, mas respondeu com voz clara e firme.
- Neste caso, Danny, perderei os cinco mil dólares que gastei para pegá-lo. A turma do centro da cidade já ia pegá-lo quando eu me atravessei na frente. Você vai ser o que eu quis ser e não pude, Danny. Investi em você um bocado de dinheiro duramente
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ganho e sei que você não vai jogá-lo fora, rapaz. Você não é mais uma criança, Danny. Você vai enfrentar uma luta dura, não nego. Não espero que você faça o que estiver acima das suas forças, mas dê tudo o que puder. Confio em você e ficarei muito aborrecido se me falhar.
Deu-me adeus e partiu com o carro. Senti o coração bater com força. Sabia que Sam não estava brincando e falara com muita sinceridade. Senti alguém tocar-me no ombro e voltei-me. Era Giuseppe.
- Ouviu o que ele disse?
- Ouvi, sim.
- Que é que acha?
- Bem, Danny. ele está gastando um bocado de dinheiro com você, mas sabe muito bem que esse dinheiro está sendo bem empregado. Você vai ser campeão um dia, disso eu tenho certeza. E já iniciou a marcha para o título.
Eu ainda estava indeciso.
- Acha que eu devo aceitar, Giuseppe? ele me respondeu, cheio de espanto:
- Se deve aceitar? Danny, quem é você para abrir mão de um milhão de dólares?
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Olhei-me no espelho. Além do leve machucado no alto da maçã do rosto, do lado esquerdo, não havia em mim qualquer sinal da luta da noite anterior. Tinha tido sorte.
Acabei de pentear o cabelo e saí do banheiro. Quando me aproximei da cozinha, ouvi a voz de Papai e entrei sorrindo.
- Bom dia, - disse eu.
Papai parou no meio do que estava dizendo e olhou para mim. Mas não respondeu ao meu cumprimento.
- Sente-se, Danny, - disse Mamãe. - Já lhe vou dar seu café.
Sentei-me, enquanto meu pai me observava. Dia a dia, havia mais rugas no seu rosto, rugas de preocupação e desespero. Os olhos pareciam velados por uma cortina de angústia que só se dissipava nos momentos de raiva.
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E parecia que ele recorria cada vez. mais a esses momentos de raiva, como a única válvula à sua disposição.
Tirei do bolso uma nota de dez dólares e coloquei-a em cima da mesa.
- Ganhei alguns dólares na noite passada, - disse eu.
Papai olhou para o dinheiro e para mim. Os olhos dele começaram a brilhar. Eu sabia que aquilo era um sinal de que estava a ponto de explodir. Curvei a cabeça sobre o prato e comecei a comer depressa. Queria evitar a cena que estava iminente.
-- Como conseguiu esse dinheiro? - perguntou Papai com voz áspera. - Lutando?
Bati com a cabeça, sem dizer palavra e continuei a comer.
- Você não fêz isso, fêz Danny? - perguntou Mamãe ansiosamente
- Tive de fazer, Mamãe. Precisamos do dinheiro. Se não fosse assim, como iríamos consegui-lo?
- Mas nós já lhe dissemos que não queremos que você lute, Danny, - continuou Mamãe. - Você pode um dia machucar-se gravemente. Pode deixar que nos arranjaremos.
- Como, Mamãe? Os empregos estão difíceis. Teríamos de receber o socorro do governo.
- Talvez isso fosse melhor do que você se arriscar a morrer de um murro.
- Mas, Mamãe, não me estou arriscando. Tomo todas as precauções. Já tomei parte numas trinta lutas e o que de pior já me aconteceu até agora foi um arranhão perto de uma sobrancelha que sarou num dia. Tomo todo o cuidado e nós precisamos do dinheiro.
Papai estava inteiramente pálido e os dedos que seguravam a xícara de café tremiam incontrolàvelmente. Olhava para mim, mas não falou diretamente comigo e, sim, com Mamãe.
- Isso é coisa daquela mulher, daquela italiana. Ela é que o obriga a fazer isso. Ela pouco se importa que ele possa morrer de um soco, contanto que ele tenha dinheiro para sair com ela e pagarlhe boas coisas.
- Como o senhor está errado! Pela vontade dela, eu nunca subiria a um ringue para lutar. Mas acontece que é essa a única maneira que eu tenho de ganhar algum dinheiro.
Papai não pareceu ouvir o que eu tinha dito. Continuou a falar com uma voz cheia de desprezo.
- Uma vigarista italiana! Quanto você tem que dar a ela para ir com você para os cantos escuros? Uma boa moça judia não servia para você?
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Não, não podia servir porque uma moça judia não faria as coisas que ela faz. Uma moça judia não deixaria um rapaz lutar para ganhar dinheiro para ela, fazendo com que um filho se torne um estranho para seus próprios pais. Quando é que você paga a ela, Danny, para fazer com você as coisas que faz de graça para os rapazes da raça dela?
Senti um ódio frio substituir dentro de mim o calor da raiva. Levantei-me lentamente, olhei-o e disse com voz trêmula:
- Não fale mais assim, Papai. Não diga mais coisas assim sobre ela. Nunca mais. Pelo menos, enquanto eu estiver presente. É uma boa moça, tão boa quanto as melhores de nossa raça e melhor do que muitas. Não a culpe dos seus fracassos. Se estamos nesta situação, a culpa é sua e não dela.
ele me olhou durante alguns segundos. Depois, baixou o olhar e levou a xícara de café aos lábios.
- Sente-se e acabe de tomar o seu café que está ficando frio, Danny, - disse Mamãe, tomando-me pelo braço.
Sentei-me mas não tinha mais fome. Limitei-me a tomar o resto do café. Mamãe se sentou ao meu lado. Durante algum tempo, houve na cozinha um silêncio cheio de tensão.
- Não se zangue com seu pai, Danny - disse ela, gentilmente. - Só está falando para seu bem. Vive muito preocupado com você.
- Mas ela é uma boa moça, Mamãe. ele não devia falar assim.
- Mas, Danny, apesar de tudo ela não é de nossa religião.
Não respondi. Que adiantava? Não seriam capazes de compreender. Conhecia muitas moças judias que não valiam nada. Por que deviam elas ser melhores do que Nellie?
- Talvez Papai arranje um emprego e você possa deixar de lutar, - disse Mamãe.
De repente, senti-me velho, muito velho, muito mais velho do que eles. Aquelas esperanças não passavam de balas para enganar crianças.
- É muito tarde agora, Mamãe. Não posso mais parar.
- Não pode por quê? Que é que está dizendo?
- Não vou mais lutar por pouco dinheiro. Alguns dos figurões do boxe acham que eu sou muito bom e eu fiz um trato com eles. Vou inscrever-me nas Luvas de Ouro para ganhar nome. Vão-me pagar cem dólares por mês, e, quando eu tiver idade bastante, serei profissional.
- Mas...
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Tinha pena dela, mas não havia outro jeito. Tínhamos de comer.
- Não adianta discutir, Mamãe. Já fiz o trato e eu não posso mais voltar atrás. Cem dólares por mês é tanto quanto Papai poderia conseguir num emprego. Podemos viver perfeitamente com isso.
As lágrimas lhe jorraram dos olhos e ela se voltou para Papai.
- Que é que vamos fazer, Harry? ele é uma criança ainda. E se ficar machucado?
- Deixá-lo, - respondeu meu pai secamente. - Espero que ele se machuque mesmo. Será bem feito.
- ele é nosso filho, Harry!
- Parece mais filho do diabo do que nosso, - disse ele, iradamente.
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Saí do vestíbulo escuro, piscando os olhos ao sol ofuscante e fiquei por um momento deixando que o ar quente da primavera me envolvesse. A casa ainda não se livrara do frio e da umidade do inverno.
Estava satisfeito. Já havia quatro meses que eu fizera o trato com Sam. Tinham sido bons meses. Eu havia passado pelas eliminatórias das Luvas de Ouro e só me faltava uma luta para as finais no Madison Square Garden - se eu ganhasse. Mas eu não tinha dúvidas a esse respeito.
Enchi os pulmões com o ar fresco. O colarinho estava muito apertado no pescoço e eu o desabotoei. Os meus colarinhos tinham passado a ficar muito apertados. Era o treinamento que fazia isso. Spritzer era um leão em matéria de preparo físico. Sam também era. Exigiam muito de mim, mas tinham razão. O preparo físico era tudo ou quase tudo no boxe.
Se Papai ao menos compreendesse que aquilo era um meio de vida como outro qualquer, tudo seria perfeito. Mas ele não compreendia e vivia reclamando, culpando a Nellie de tudo e dizendo que só os vagabundos eram pugilistas. Quase não nos falávamos mais. ele não cedia um centímetro, como ainda acontecera pouco antes, quando eu saía de casa.
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Papai estava lendo um jornal em cima da mesa da cozinha quando cheguei.
- Vou chegar tarde esta noite, Mamãe.
- Outra luta? - perguntou ela ansiosamente.
- É a semifinal, Mamãe. No Grove, em Brooklyn. Depois, haverá as finais no Garden e não lutarei mais até o ano que vem.
- Vai ter cuidado, Danny?
- Não se preocupe, Mamãe. Não vai haver nada.
Papai levantou os olhos do jornal e disse a Mamãe como se eu não estivesse presente:
- Não se preocupe, Mary, não vai acontecer nada. Ouça o que diz este jornal sobre ele. Começou a ler com voz ligeiramente sarcástica:
"Danny Fisher, o sensacional corisco do East Side com uma carga de dinamite em cada punho, deverá dar hoje outro passo para o campeonato na sua divisão quando enfrentar Joey Passo nas semifinais das Luvas de Ouro no Grove, esta noite. Fisher, chamado por muitos o "destruidor da Rua Stanton", em vista do seu cartaz de quatorze nocautes sucessivos, está sendo atentamente observado por todo o mundo pugilístico. Fala-se muito que passará a ser profissional logo que tiver a idade necessária.
"Fisher, que é um rapaz esbelto e louro que fala pouco, torna-se no ringue um frio assassino impiedoso, que age sobre o adversário como uma máquina, sem sentimento, nem compaixão. Este comentarista afirma que Fisher é o mais implacável e promissor amador que já conheceu. Quem fôr ao Grove hoje à noite, pode ter como certo que não se decepcionará. Ver-se-á sangue, carnificina e morte súbita, porque a verdade é que quando Fisher entra em ação, podem crer que o que se vê é um verdadeiro massacre!"
Papai largou o jornal e olhou para Mamãe.
- Como é agradável ler essas coisas a respeito de um filho - "assassino, massacre, morte súbita"! Que orgulho que isso dá a um pai!
Mamãe olhou para mim, e eu podia ver que ela estava preocupada.
- É verdade o que o jornal diz, Danny?
- Claro que não, Mamãe. Esse jornal patrocina as Luvas de Ouro e, por isso, tem de exagerar um pouco para vender mais entradas. É só isso.
- De qualquer maneira, tenha cuidado, Danny.
- Não se preocupe, Mary, - disse Papai ironicamente. - Nada acontecerá a ele. O diabo zela pelos seus sequazes. -
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Voltou-se para mim. - Continue, assassino. Sei que você seria capaz de matar por um dólar todos os seus amigos.
Foram essas as primeiras palavras que ele me dirigiu diretamente. Já havia ouvido muitos insultos dele sem replicar, mas dessa vez achei que devia dizer alguma coisa.
- Fique descansado, Papai. Matarei a quem fôr preciso para ganhar os dólares que lhe permitam passar os dias inteiros aqui na cozinha, na boa vida, sem fazer nada.
Bati a porta e desci as escadas, chegando à rua, onde ao ar quente da primavera senti-me bem melhor. Olhei para o relógio. Tinha prometido a Spritzer que estaria no ginásio às quatro horas. Só dispunha de vinte minutos e saí em passo acelerado.
Quando cheguei à esquina, chamaram-me. Era Spit.
- Venha cá um instante, Danny.
- Não posso agora, Spit. Estou com muita pressa. Mas Spit se aproximou de mim e disse.
- Sabe, Danny? Meu patrão quer conversar com você.
- Quem? Fields?
- Sim. Eu disse que conhecia você e ele me disse que levasse você para falar com ele.
Bem, não era possível deixar de dar atenção a um homem como Maxie Fields. Era o grande homem do bairro. Política, jogo, agiotagem - ele dominava tudo.
Muita gente na turma ficara com inveja quando Spit dissera que um tio dele, que era agente do jogo de números, conseguira que Fields o empregasse como boy. Spit nos dissera isso orgulhosamente, dizendo que não precisava mais de ir à escola e que um dia seria um grande homem, como Fields, enquanto nós estaríamos torcendo a cabeça para ganhar a vida. Não o tinha visto muito desde que ele começara a trabalhar, mas não me parecia que estivesse muito bem de vida. Estava usando as mesmas roupas modestas de sempre.
Entrei com ele na loja e passei por uma saleta em que havia Billchês como num banco. Passamos por uma sala que tratava de corridas de cavalos e onde havia alguns homens que olhavam um grande quadro-negro.
Afinal, Spit bateu numa porta e, quando uma voz mandou-o entrar, abriu-a. Fiquei um momento parado na porta. Já havia ouvido falar naquilo, mas não tinha acreditado. Aquilo era um escritório como só se vê em fita de cinema, inteiramente em desacordo com um prédio velho como aquele.
Um homem grande e barrigudo, de rosto vermelho e com os sapatos maiores que eu já havia visto, se aproximou de nós. Não era preciso ninguém me dizer que se tratava de Maxie Fields.
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- Já lhe disse que não me importunasse a toda hora, Spit!
- Mas não me pediu que lhe trouxesse Danny Fisher para falar com o senhor ? Aqui está ele.
A raiva de Fields desapareceu instantaneamente.
- Você é Danny Fisher?
- Sou.
- Eu sou Maxie Fields - disse ele, estendendo-me a mão. Foi um aperto de mão forte e cordial, cordial demais. Não gostei disso.
Vírou-se para Spit e disse:
- Vá saindo, garoto.
- Sim, Sr. Fields, - disse Spit, submisso, saindo do escritório.
- Queria conversar com você, - disse ele, sentando-se pesadamente numa cadeira. - Tenho ouvido falar muito em você. Quer beber alguma coisa?
- Não, muito obrigado, - disse eu. Talvez aquele camarada não fosse tão ruim assim. Afinal de contas, me estava tratando muito bem. - Tenho uma luta esta noite.
- Vi você lutar na semana passada, sabe? Você é muito bom. Aquele Sam é um sujeito de sorte.
- Como? Conhece Sam?
- Conheço tudo e todos, - respondeu ele, sorrindo. - Nada acontece nesta cidade sem eu saber. Não há segredos para Maxie Fields.
Já me haviam dito isso e eu estava começando a acreditar.
- Sente-se, Danny. Quero falar com você.
- Desculpe, Sr. Fields, mas já vou chegar ao ginásio atrasado.
- Eu disse que se sentasse.
A voz dele era amistosa, mas havia nela um subtom de comando. Sentei-me. Depois de me olhar por um momento, voltou a cabeça para a outra sala e gritou:
- Traga-me alguma coisa para beber, Ronnie! Não quer nada mesmo, Danny?
Sacudi a cabeça e sorri. Nesse momento, uma pequena entrou na sala levando a bebida que ele havia pedido. Tornei a arregalar os olhos de espanto. Como aquele escritório, a pequena estava também I'm desacordo com o ambiente. A sua classe era muito superior.
- Pronto, Maxie - disse ela, entregando o copo ao mesmo tempo que me olhava com curiosidade.
ele bebeu tudo quase que de um só gole e limpou a boca na manga da camisa.
- Ih! Com que sede eu estava!
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Eu nada disse. Estava olhando a pequena de pé junto à cadeira dele. Fields percebeu o meu olhar e riu. Estendeu a mão e deu uma palmada na pequena, rindo.
- Vá saindo, Ronnie, - disse ele, jovialmente. - Você está distraindo o meu amigo e eu tenho de conversar com ele.
Ela se virou em silêncio e saiu da sala. Senti que o meu rosto estava vermelho, mas não podia desviar os olhos dela. Por fim, a porta se fechou e eu olhei para Fields.
- Tem bom gosto, rapaz, - disse ele, sorrindo. - Mas uma coisa assim custa caro. Nunca menos de vinte dólares por hora.
Arregalei os olhos. Não sabia que se podia pagar tanto por uma mulher.
- Até quando serve bebidas? - perguntei.
ele deu uma prolongada gargalhada. Quando parou de rir, disse:
- Sabe que é OK, Danny? Estou gostando de você.
- Obrigado, Sr. Fields.
- Escute, vai vencer esta noite?
- Acho que sim, Sr. Fields - respondi sem saber o que ele queria.
- Também acho que você vai ganhar. E, como eu, uma porção de gente. Sabe que não são poucos os que afirmam que você vai ser campeão mundial?
Sorri. Talvez Papai julgasse que eu não tinha valor, mas muitas outras pessoas pensavam o contrário.
- Espero que não estejam errados.
- Não estão não. Os meus homens lá embaixo me disseram que receberam aqui no bairro apostas em você no valor de quatro mil dólares. Isso é muito dinheiro para pagar até para mim, mas você parece direito e eu não me importo agora que o estou conhecendo.
- Não sabia que aceitava apostas nos favoritos.
- Aceitamos qualquer aposta. Nada é grande, nem pequeno demais. Fields topa qualquer parada.
Comecei a ficar meio assustado. Que queria ele comigo? Onde queria chegar? Fiquei em silêncio, à espera.
Em dado momento, ele me deu uma palmada no joelho.
- Você é OK, garoto, e eu gosto de você. Ronnie! Traga mais um copo!
A pequena veio lá de dentro com um copo, entregou-o a Fields e foi saindo.
- Espere um pouco, Ronnie.
Ela se voltou e ficou no centro do escritório, olhando para nós.
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- Gosta dela, não gosta, garoto? - perguntou-me Fields, piscando o olho.
Senti que o meu rosto estava todo vermelho.
- Bem, garoto, eu gosto de você e vou-lhe dizer uma coisa. Depois de ganhar a luta esta noite, venha para cá. Ela estará esperando por você e tudo será por minha conta. Que tal?
Senti um aperto na garganta, quis falar, mas o bolo na garganta não deixava as palavras saírem. Eu sabia que aquilo não era para mim. Nellie havia modificado uma porção de coisas na minha vida.
- Não se sinta envergonhado, garoto, - disse Fields, que me observava atentamente. - Ela não está envergonhada.
- Não, obrigado, Sr. Fields, - disse eu, conseguindo afinal falar. - Tenho uma pequena. E, além disso, estou em treinamento.
- Não seja bobo, garoto. Não é isso que o vai matar. - Voltou-se para a pequena e disse: - Tire a roupa, Ronnie. Mostre a ele o que vai perder se não aceitar.
- Mas, Max! - protestou a pequena.
- Mandei tirar a roupa, não mandei? - exclamou ele com voz fria e áspera.
Ela encolheu os ombros. Levou a mão às costas e fêz correr um fecho. O vestido escorregou para o chão. Fields se levantou e foi até onde ela estava. Estendeu a mão para o busto dela. Fêz um gesto rápido e arrancou o soutien. Voltou-se então para mim.
- Olhe bem, garoto. É o que pode haver de melhor nesta cidade. Que é que me diz deste material?
Levantei-me e dei um passo em direção à porta. Havia naquele camarada alguma coisa que me metia medo.
- Não, muito obrigado, Sr. Fields. Tenho de ir andando. Já devia estar no ginásio.
Fields sorriu.
- Está bem, garoto. Se é assim que você quer, que é que se vai fazer? Mas não se esqueça de que a oferta está de pé na hora em que você quiser.
Olhei para a pequena. Ela ainda estava de pé no mesmo lugar, nua e impassível. Tive pena dela. Vinte dólares por hora eram muito dinheiro, mas não davam para comprar o amor-próprio de uma pessoa. E as mulheres, sérias ou não, baratas ou caras, todas tinham amor-próprio. Sorri meio sem jeito para ela e disse:
- Adeus, menina.
Ela ficou de repente muito vermelha e desviou o olhar sem responder.
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- Obrigado, Sr. Fields - disse eu, e saí.
ele não me respondeu.
Fechei rapidamente a porta e desci correndo a escada. O homem era horroroso. Sentia-me feliz de já estar na rua. Até as ruas sujas pareciam limpas depois de ter estado naquela sala com ele. Mas tinha a impressão de que ainda iria vê-lo no meu caminho.
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Voltei para o meu canto, sentindo o corpo rígido e com as costas e os lados envoltos numa cortina vermelha de dor. Deixei-me cair pesadamente no banco e me curvei para a frente, procurando tomar fôlego.
Giuseppe estava de joelhos diante de mim, comprimindo na minha testa uma toalha molhada. Spritzer me dava massagens no lado, com as mãos a moverem-se num lento movimento circular.
- Você está bem, Danny? - disse Giuseppe, olhando para mim.
Fiz um sinal afirmativo com a cabeça. Não queria falar. Tinha de poupar o fôlego. Tinha havido algum erro. Aquela luta devia ter sido fácil para mim. Não podia compreender. De acordo com os jornais, eu devia dar cabo dele no segundo round, mas já íamos para o terceiro e eu ainda não havia conseguido colocar um soco que prestasse.
- Acha que ele está bem, Sr. Spritzer? - perguntou ansiosamente Giuseppe.
Spritzer respondeu com uma voz seca que penetrou no nevoeiro que me envolvia a cabeça.
- Está bem, sim. O que acontece é que ele tem lido demais os jornais. Só isso.
Compreendi imediatamente o que ele queria dizer. E achava que ele estava com a razão. Eu estava muito seguro de mim mesmo e me mostrava disposto a acreditar em tudo o que se dizia a meu respeito. Do oturo lado do ringue, Passo estava sentado no seu canto, respirando com facilidade e confiança, com as luzes brilhando no seu corpo de ébano.
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O gongo tocou e eu me levantei, dirigindo-me para o centro do ringue. Passo se aproximava cheio de confiança, com uma espécie de sorriso no rosto. Eu conhecia aquele sorriso. Usara-o muitas vezes quando pensava que tinha a luta ganha. Uma raiva surda começou a ferver dentro de mim. Aquele sorriso não devia estar naquela cara. Apliquei um direto com toda a minha força. Senti uma fonte de dor jorrar-me do corpo. Eu havia errado e Passo me atingira com uma esquerda nos rins. Baixei as mãos para cobrir o flanco. Uma bomba me explodiu no rosto.
Sacudi a cabeça para desanuviá-la. Havia uma escuridão diante dos meus olhos como se eu tivesse saído do sol para uma sala escura. Ouvi uma voz estranha perto de mim. "Cinco!" Voltei a cabeça para o lugar de onde vinha a voz.
O braço do juiz estava de novo levantado e ele ia dizer outra palavra. Olhei em torno e tive uma imensa surpresa. Que era que eu estava fazendo ali quase deitado na lona? Eu não havia caído.
"Seis!" Um choque me percorreu dos pés à cabeça. ele estava fazendo a contagem contra mim! Não era possível. Levantei-me desajeitadamente.
O juiz me tomou as mãos e limpou as luvas na camisa. Quando ele se afastou, ouvi a multidão que rugia. Mas o clamor era diferente dessa vez. Naquela noite, não estavam gritando por mim, mas por Passo. Estavam gritando para que ele desse cabo de mim.
Entrei em clinch. O corpo de Passo estava encharcado de suor. Aproveitei exultante aquele instante de descanso. O juiz nos separou.
Senti então uma pontada de dor num lado e, logo a seguir, no outro. O rosto escuro de Passo dançava diante de mim. ele estava sorrindo. Avançava para mim. As luvas dele faiscavam diante de mim, dilaceravam-me. Tinha de fugir delas, senão acabaria em frangalhos. Olhei desesperadamente para o meu canto.
Giuseppe me olhava com os olhos cheios de medo e de dor. Voltei a cabeça rapidamente para Passo. Estava dando um golpe. Vi o soco que vinha na minha direção, o soco do nocaute. Vinha com uma lentidão irritante. Senti um medo alucinado. Tinha de deter aquele soco. Quase alucinado, dei um direto no queixo desprotegido <lo outro.
De repente, Passo começou a cair. Tropecei nele. O juiz me fez virar e encaminhou-me para o meu canto. Lágrimas de dor me desciam pelo rosto. Tinha de sair dali. Não suportava mais aquilo.
Giuseppe estava entrando por entre as cordas, rindo. Olhei-o, espantado. De que era que ele estava rindo? A luta estava terminada
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e eu havia perdido. Era um alívio. Aquela luta havia acabado. Nada mais importava.
Estava de bruços na mesa, com a cabeça apoiada nos braços e Spritzer me massageava suavemente as costas. A dor foi cedendo pouco a pouco e eu senti um imenso conforto envolver-me. Estava cansado. Fechei os olhos.
Ouvi Giuseppe colocar em cima da mesa o vidro de álcool para as massagens e perguntar:
- ele está bem, Sr. Spritzer?
- Está, sim. É resistente e moço e tem fibra.
Não me movi. Ao menos, Spritzer não estava zangado porque eu havia perdido. Bateram na porta, Giuseppe abriu e alguém entrou com um passo pesado.
- ele está bem, Moe? - Era a voz de Sam e estava cheia de preocupação.
- Está, sim. Fique descansado, Sam.
- Que foi que aconteceu? - perguntou Sam. - ele hoje nem parecia o mesmo. Como apanhou!
- Calma, Sam. O garoto estava começando a acreditar nos jornais. Foi para o ringue pensando que lhe bastava olhar para Passo para o outro beijar a lona.
- Mas você não tem a obrigação de mantê-lo em forma? - perguntou Sam, ainda com a voz áspera.
-- Há coisas em que nem eu posso dar jeito, Sam. Há muito que espero isso, mas de hoje em diante tudo correrá melhor. ele já levou a lição de que precisava.
Sam se aproximou e colocou a mão delicadamente em minha cabeça. Mexeu-me nos cabelos. Continuei de olhos fechados e comecei a me sentir bem. ele não estava zangado comigo.
O último traço de aspereza havia desaparecido da voz dele. Havia até uma nota de orgulho.
- Viu aquele último soco que pegou o negro, Moe? Foi mortal!
- Quase foi mesmo, - respondeu calmamente Spritzer. - O queixo de Passo foi fraturado em dois lugares.
Virei o corpo na mesa e sentei-me. Todos me estavam olhando. - Isso é verdade?
- É, sim, Danny, - disse Giuseppe. - Soube da notícia há alguns minutos.
- Quer dizer que... que eu venci ?
- Sim, garoto, - disse Sam, sorrindo. - Você venceu.
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Deitei-me de novo na mesa, mas a vitória não me exaltava. Estava-me lembrando do que meu pai dissera naquela manhã, que por dinheiro eu era capaz de matar todos os meus amigos.
Estávamos na esquina da Rua Delancey com Clinton. Passava pouco da meia-noite. As vitrinas ainda estavam iluminadas e havia algumas pessoas na rua.
- Sente-se com força para ir para casa, Danny? - perguntou Giuseppe.
- Claro que sim - disse eu, rindo. Já não sentia dor. Só uns. pontos doloridos nas costas e dos lados.
- Pode mesmo, garoto? - perguntou Spritzer.
- Não estaria dizendo se não estivesse, Sr. Spritzer.
- Está bem, mas faça o que estou dizendo, Danny. Procure dormir bem e fique amanhã na cama descansando o tempo que puder. Só quero que você me apareça no ginásio depois de amanhã.
- Está bem, Sr. Spritzer. Virei-me para Giuseppe e acrescentei. - Diga a Nellie que aparecerei amanhã à noite.
- Está certo, Danny. Vou dar o seu recado.
Deixei-os na esquina e fui descendo a Rua Clinton, no caminho de casa. Respirei fundo. Escapara de boa. Spritzer tinha razão. Eu estava lendo demais os jornais. Ia parar com isso. Dobrei a minha esquina e me aproximei de casa.
Um vulto saiu da escuridão diante de mim.
- Danny? Era Spit.
- Que é que você quer? - perguntei com impaciência. Estava ansioso para me jogar na cama.
- O Sr. Fields quer falar com você.
- Diga a ele que estou com o corpo todo moído. De outra vez,, irei falar com ele.
- É melhor você vir, Danny. Fields não é um camarada em quem se possa dar o fora. ele pode tornar a vida para você muito difícil. Se eu fosse você, não deixaria de ir.
Pensei por um momento. Spit tinha razão. Não se pode dizer que não é possível quando Maxie Fields manda chamar. Eu tinha de ir, mas sairia depois de alguns minutos.
- Está bem, - disse eu com relutância.
Acompanhei Spit. Quando chegamos diante da porta de Spit,, ele tirou uma chave do bolso e abriu-a. Entrei e ele me entregou uma chave.
- Pode subir. Você sabe onde é a porta.
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- E você? Não vem comigo?
- Não. ele disse que queria conversar sozinho com você. Não toque a campainha. Abra a porta com essa chave.
Depois de dizer isso. Spit saiu rapidamente. Respirei profundamente e comecei lentamente a subir as escadas.
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Abri a porta e fiquei parado, olhando para a sala. Estava vazia. Tive um segundo de hesitação. As luzes estavam acesas e isso me surpreendeu. Estava habituado a apagar a luz sempre que saía de alguma sala e ali tudo estava aceso ainda que não houvesse ninguém. Eram sócios da companhia de eletricidade?
Entrei, deixando a porta aberta.
- Sr. Fields? - disse eu em voz alta. - Sou eu, Danny Fisher. Não disse que queria falar comigo?
A porta do outro lado da sala se abriu e a pequena que vira ali naquela tarde apareceu.
- Feche a porta, Danny, - disse ela, calmamente. - E fale mais baixo, senão vai acordar toda a vizinhança.
Fechei automaticamente a porta e perguntei:
- Onde está o Sr. Fields? Spit me disse que ele queria falar comigo.
- Foi só por isso que subiu? - perguntou ela, com voz descrente.
Compreendi o que ela queria dizer, mas fingi não ter entendido.
- Foi só por isso. Onde está ele? Quero vê-lo logo e voltar para casa. Estou morto de cansaço.
- E parece mesmo que está.
- Bem, leve-me para onde ele está, que quero logo resolver isso.
- Está bem, venha comigo.
Passei atrás dela por uma pequena cozinha, pela porta aberta de um banheiro e então cheguei a um quarto. Ela acendeu um abajur e apontou para uma cama.
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- Aí está ele - o grande Maxie Fields em toda a sua glória. Canalha!
Fields estava estendido na cama, dormindo a sono solto. A camisa estava entreaberta mostrando uma espessa massa de cabelos no peito. Havia no quarto um forte cheiro de uísque.
- Está dormindo? - perguntei à pequena.
- Sim, está dormindo esse porco imundo! Saí do quarto e entreguei-lhe a chave.
- Entregue isto a ele e diga que não pude esperar. Em outra ocasião virei falar com ele.
- Espere um pouco, Danny. Não saia. ele me disse que conservasse você aqui até ele acordar.
- Isso é que não! Do jeito que ele está, vai dormir a noite toda e eu não posso esperar.
- Sei disso, mas de qualquer maneira espere um pouco para salvar as aparências. Se sair logo, ele saberá que eu não o prendi aqui e ficará zangado.
- Como é que ele vai saber? Está como um pedaço de pau ali jogado.
-Vai saber, sim, - disse ela, aproximando-se da janela e levantando um canto das cortinas. - Venha ver.
- Que é?
- Olhe para aquela porta ali bem em frente, do outro lado da rua.
Havia ali um vulto e percebia-se a brasa de um cigarro. Nesse momento, um automóvel dobrou a esquina, os faróis iluminaram um instante a porta e eu vi que era Spit que estava ali.
- ele está olhando, sim. E daí?
- Ele dirá a Fields quanto tempo você demorou.
- Que é que tem isso? ele de qualquer modo está dormindo e eu não posso ficar esperando até que ele acorde.
- Escute, você não quer que eu sofra por isso, não é? - perguntou ela com o medo estampado no rosto. - Já deve ter compreendido para que ele mandou chamar você. Se sair logo, ele pensará que fui eu que não quis e mandei-o embora. Vai ficar furioso comigo e não sabe do que ele é capaz quando se aborrece. Por isso, fique mais um pouco. Depois, pode ir-se embora.
Aquela pequena não estava fazendo fita. Estava com medo mesmo. Lembrei-me de como tinha tido pena dela quando Fields a obrigara a ficar nua em minha presença e disse:
- Está bem. Vou ficar.
- Obrigada, Danny, - disse ela, dando um suspiro.
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Sentei-me no sofá e reclinei o corpo cansadamente nas almofadas.
- Como estou cansado! - murmurei.
- Eu sei, Danny. Fui ver a luta. Quer um pouco de café?
- Não, obrigado. Foi ver a luta mesmo?
- Fui. Maxie me levou.
Senti uma pontada de dor nas costas e, torcendo o rosto, perguntei:
- Que será que ele quer de mim?
- Você está muito cansado, - disse ela, em vez de responder à minha pergunta. - Por que não se deita no sofá e não procura ficar à vontade?
Era uma boa idéia. Estendi-me no sofá macio e fechei os olhos por um momento. Nunca me havia deitado em coisa mais macia. Viver era bom quando se tinha dinheiro. Ouvi o barulho de um interruptor e abri os olhos. Ela havia apagado o lustre e a sala estava iluminada apenas por um abajur a um canto. Estava sentada numa cadeira diante do sofá com um copo de uísque na mão.
- Você não respondeu à minha pergunta, - disse-lhe eu.
- Não posso responder, -- disse ela, tomando um gole de uísque -, porque não sei.
- ele deve ter dito alguma coisa, - murmurei, apoiando-me num cotovelo. Senti as costas repuxadas e não pude deixar de dar um gemido.
- Pobrezinho, - disse ela com ternura. - Está machucado.
- As costas estão doloridas, - disse eu, sorrindo. - Levei muitos socos.
Ela se sentou no chão ao lado do sofá e começou a esfregarme delicadamente as costas, com um toque leve e reconfortante. Olhou para o relógio.
- Fique assim mais meia hora. Já é quase uma hora da manhã. Depois disso, pode ir-se embora. Eu lhe esfregarei as costas.
- Obrigado, - disse eu, sentindo-lhe a mão. - Isso me está fazendo tanto bem.
- Fico contente com isso, - murmurou ela e, de repente, inclinando-se para a frente, me beijou. Olhei-a espantado e ela me disse:
- Essa é a minha maneira de agradecer. Você é um bom rapaz, Danny.
- Não devia ter feito isso, - murmurei. - Tenho uma pequena. Depois, é isso que ele quer que eu faça e eu não gosto de fazer senão aquilo que eu quero.
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- E não quer?
- Não foi isso que eu disse. Disse apenas que é isso o que ele quer e eu não sei o ângulo dele.
- E se eu disser que isso ficará entre nós? - perguntou ela. - ele nunca saberá.
- Não posso acreditar em você.
- E acredita se eu disser que tenho verdadeiro ódio dele?
- ele lhe paga pelo seu tempo. Por tanto dinheiro assim eu não acredito em nada.
Ela baixou os olhos um instante e depois me perguntou:
- Acreditará em mim se eu disser o que é que ele quer de você?
Não respondi. Olhei-a impassivelmente, esperando que ela falasse.
- ele quer que você perca de propósito a sua próxima luta. ele perderá um bocado de dinheiro se você ganhar.
Eu já havia suspeitado de alguma coisa nesse rumo.
- ele devia me conhecer melhor, - murmurei.
- Você é que não o conhece, Danny. ele é ruim e mesquinho. Não recua diante de coisa alguma. Você devia tê-lo visto na hora da luta, enquanto você estava em desvantagem. Ria todo feliz. Tudo o divertia muito até o momento em que você derrubou o preto. Se você tivesse perdido, ele não se daria ao trabalho de mandar chamá-lo esta noite.
- Pois eu ganhei e não há nada que ele possa fazer.
- Aí é que você se engana, Danny. Você ainda é muito moço e não o conhece. Já lhe disse que ele não recua diante de coisa alguma. Se ele não o puder comprar de uma maneira ou de outra, mandará os homens dele contra você. Depois disso, você talvez não possa mais lutar, pois as ordens dele mandarão aleijá-lo.
- E você, menina? Qual é a sua parte em tudo isso?
Ela não respondeu. Não era preciso. Ela não era diferente das outras pessoas. Ninguém tinha uma chance diante do camarada que tinha o dinheiro. Era uma velha história. Já sabia de tudo. A minha única chance de ser alguém, de deixar de ser uma pessoa com quem se podia fazer o que se quisesse, era ficar firme ao lado de Sam e ser um grande pugilista. Só assim escaparia de ser um anônimo, uma pessoa que desaparece de repente das ruas sem que ninguém lhe sinta a falta.
- E agora? Acredita em mim? - perguntou ela. - Estamos ambos na mesma situação.
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Levantei-me e fui até à janela. Levantei um pouco a cortina e oihei. Spit ainda estava do outro lado da rua.
- ele ainda está lá? - perguntou ela.
- Está.
- Mais quinze minutos, - disse ela, olhando para o relógio -, e você poderá sair. Mas é melhor esperar sentado. Procure descansar.
Joguei-me numa poltrona diante dela e senti o cansaço dominarme de novo.
- Que é que vai fazer, Danny?
- Nada, - disse eu, encolhendo os ombros. - Que é que eu posso fazer?
Ela se aproximou de mim e sentou-se no braço de minha poltrona. Acariciou-me a cabeça e eu fechei os olhos.
- Pobre Danny... Nada pode fazer, ninguém pode fazer nada. Vai tomar conta de você, como tomou conta de mim, como toma conta de todo mundo que o cerca. É como um polvo que devora tudo o que está por perto.
- Você está chorando! - exclamei, vendo as lágrimas que lhe rolavam pelo rosto.
- Estou chorando, sim. Conhece alguma lei que impeça uma prostituta, uma vagabunda, de chorar? Ou será que acha que ele não vai gostar disso?
- Desculpe, - apressei-me em dizer. Ela não tinha culpa. Estávamos ambos perdidos e nenhum de nós poderia escapar. Não adiantava nos iludirmos. Não podíamos vencer.
Peguei-a pelos ombros e beijei-a. Os lábios dela eram macios e quentes. Ela caiu no meu colo, e me olhou, espantada.
- Danny, - disse ela, com voz terna -, você não disse que tinha uma pequena?
- Tenho, sim, mas acontece que você está aqui, - disse eu e tornei a beijá-la. - Como é seu nome?
- Ronnie. Mas esse não é meu verdadeiro nome. Meu nome é Sara, Sara Dorfman. Quero que você saiba disso.
- Que diferença faz? Talvez nem meu nome seja meu. Nada me pertence. A única coisa importante é que, se eu tenho de fazer o que ele quer, ao menos posso tomar tudo o que ele me quer dar.
Ela me passou os braços pelo pescoço e me puxou para ela. Sussurrou ao meu ouvido.
- O que lhe vou dar, Danny, é alguma coisa que ele nunca poderia pagar - por mais que estivesse disposto a pagar.
Os lábios dela estavam colados aos meus. Passei as mãos pelo corpo dela e senti a carne quente que se me oferecia.
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Depois, a tensão desapareceu num turbilhão ardente e nós ficamos em silêncio. Ouvíamos a respiração um do outro. Eu podia ver que ela comprendia.
- Vai aceitar o dinheiro dele? - perguntou-me.
- Não sei, - respondi amargamente. - Não sei o que é que vou fazer.
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Fechei a porta e saí para o passeio. Senti no rosto o ar frio da noite. Tudo estava tranqüilo e doce. Mas dentro de poucas horas a rua começaria a acordar. Voltaria a ser barulhenta e suja a tal ponto que seria difícil tolerá-la.
Olhei para a porta do outro lado da rua e vi a brasa do cigarro de Spit. Aproximei-me e ele levantou para mim os olhos assustados.
- Quer-me dar um cigarro, Spit?
- Claro, Danny. Tome, - disse ele, com voz nervosa.
- Fogo.
A mão trêmula de Spit riscou o fósforo e eu aspirei a fumaça até aos pulmões. Era tão bom! Spritzer fazia questão de que eu não fumasse, mas isso não tinha mais importância.
- Falou com ele, Danny? - perguntou Spit, ansiosamente.
Olhei-o e vi-lhe no rosto a expressão de cinismo. Até ele sabia o que Fields queria. Senti a. cólera crescer dentro de mim. Todo mundo sabia o que Fields queria. Eu também sabia o que ia fazer. Ninguém esperava outra coisa e eu era igual aos outros. Não tinha a menor chance.
- Não, - respondi com uma tensão súbita na voz. - ele estava ferrado no sono. Bêbado.
- Esteve então com aquela pequena o tempo todo? Fiz um sinal afirmativo com a cabeça.
- E deitou-se com ela, Danny?
Havia no rosto dele uma expressão obscena. Era quase como se Maxie Fields me estivesse olhando por detrás do ombro dele.
- E que é que você tem com isso? - perguntei, agarrando-o pela gola da camisa.
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- Nada, Danny, nada! Largue-me!
- Para quê? - perguntei, olhando com frieza.
- Sou seu amigo, Danny. Não fui eu que levei você para Fields? Não fui eu que lhe dei a oportunidade de ganhar algum dinheiro?
Ri. Essa era muito boa. Meu amigo... Tornei a rir e largueilhe a camisa.
- Ih, Danny! - exclamou ele, nervosamente. - Cheguei a pensar que você ia me bater!
Tornei a rir. Nisso ele tinha razão. Fechei a mão e dei-lhe um soco com toda a força na boca do estômago. ele se dobrou todo e começou a escorregar para o chão. Olhei-o com desprezo e disse:
- Ia mesmo.
ele me olhou, todo confuso.
- Que é que há, Danny? Eu só lhe estava fazendo um favor. Dei-lhe uma bofetada e gritei:
- Não quero favores!
ele então começou a levantar-se e eu via que os olhos dele estavam naquele momento cheios de ódio. Meteu a mão por dentro da camisa. Esperei até que a faca estivesse na mão dele a atingi-o de novo, dessa vez perto da virilha. A faca lhe fugiu das mãos tilintando no passeio e ele caiu para a frente, vomitando violentamente.
Senti uma fria satisfação. Talvez eu não tivesse chance contra Maxie Fields, mas podia entender-me com um dos seus sequazes.
- Você me paga por isso, Danny! Juro que você me pagará por isso!
-- É melhor não tentar, - disse eu, empurrando-o para cima do vômito. •- Talvez o seu patrão não goste disso. Dei-lhe as costas e voltei para casa.
Olhei o meu relógio. Quase duas e meia. Comecei a subir as escadas. Quando cheguei ao patamar vi que havia luz na cozinha do nosso apartamento. Esperava que meu pai não estivesse acordado. Para mim já chegava o que eu havia passado naquela noite.
Abri a porta. Mamãe levantou os olhos para mim e eu sorri para ela.
- Não era preciso me esperar, Mamãe.
Ela se levantou e veio para mim, olhando-me com atenção e perguntando ansiosamente:
- Você está bem, Danny?
- Claro que está, - disse Papai, chegando à porta. - ele é Danny Dinamite. Que mal pode acontecer-lhe? É o que diz o jornal de hoje.
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Merece bem esse novo nome que lhe estão dando depois de quebrar em dois lugares o maxilar de um pobre rapaz na luta da noite passada.
- O jornal já dá a notícia?
- Por que se espanta? - perguntou Papai. - Foi secreto o que você fêz ? Que foi que fêz durante toda a noite ? Comemorando com a sua italiana?
Não respondi. Não adiantava mais discutir com ele. ele não podia compreender que tinha sido um acidente.
Mamãe pousou a mão no meu ombro com o rosto cheio de preocupação.
- O jornal disse que você levou um terrível castigo no princípio da luta.
- Não foi tão ruim assim, Mamãe. Estou bem, agora.
- Mas o outro não está! - exclamou meu pai. - Vai parar agora ou vai continuar até matar alguém?
- Ora, Papai, foi apenas um acidente. São coisas que acontecem e a minha intenção não foi essa.
- Acidente nada! Como pode ser um acidente se o que se procura no boxe é fazer o adversário perder os sentidos? Mary, qualquer destes dias teremos um assassino dentro de casa e isso será também um acidente.
A áspera monotonia dos seus gritos me fêz perder a paciência.
- Deixe-me em paz! Está ouvindo ? Deixe-me em paz! - gritei nervosamente e deixei-me cair numa cadeira, cobrindo o rosto com as mãos.
Senti as mãos de Mamãe nos ombros. Ouvi-lhe a voz cheia de calma energia.
- Harry, vá-se deitar.
- É um erro que você faz em mimá-lo, Mary. Um dia, ele matará alguém e você será tão culpada quanto ele.
- Serei então culpada. ele é nosso filho e nós somos culpados de tudo o que ele fôr ou fizer.
- Você pode ser, mas eu não, - retorquiu meu pai, raivosamente. - Já tomei uma decisão. Ou ele deixa de lutar ou não terei mais contemplação. Se lutar mais uma vez, não precisará mais voltar para casa. Não quero assassinos dormindo debaixo do meu teto!
Os passos dele ressoaram pelo corredor e houve um momento de silêncio. Depois, Mamãe me disse.
- Danny, tenho aí uma sopa de galinha muito gostosa. Vou esquentar para você.
- Não estou com fome, Mamãe.
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- Mas experimente tomar um pouco, meu filho. Só lhe pode fazer bem.
Talvez Papai tivesse um pouco de razão, mas se não estivéssemos precisando tanto de dinheiro, aquilo não teria acontecido. Não havia nada mais para fazer.
Mamãe colocou o prato de sopa diante de mim e sentou-se ao meu lado.
Provei a sopa. Estava realmente gostosa e quente e era capaz de dissipar o meu torpor. Sorri para Mamãe.
A sopa quente me fêz voltar o sono e o cansaço. Peguei distraidamente o jornal que Papai havia deixado em cima da mesa e comecei a folheá-lo em busca da seção de esportes. Dentro havia algumas folhas de papel cheias de números e de contas. x
- Que é isso, Mamãe?
- Nada, Danny. Era seu pai que estava fazendo cálculos.
- Sobre quê?
- Um amigo dele tem uma farmácia que quer vender a seu pai e ele estavam fazendo contas para ver se conseguia levantar o dinheiro. Mas não é possível. ele tem muitas mercadorias ainda na casa do Tio David, mas é muito difícil vendê-las para ter o dinheiro da entrada. Não se pensa mais nisso.
O sono havia desaparecido. Se eu conseguisse o dinheiro, talvez ele mudasse de opinião.
- De quanto ele precisa, Mamãe?
- Quinhentos dólares. Mas podiam ser até quinhentos milhões. Onde é que vamos conseguir esse dinheiro?
Olhei-a. O corpo estava cansadamente descaído, numa atitude de resignação e indiferença. O instinto da luta havia desaparecido. Só restava a pequena preocupação de existir de um dia para outro.
Quinhentos dólares. Fields me arranjaria isso com facilidade. ele mesmo me dissera que aceitaria quatro mil dólares de apostas na minha luta.
De repente, Mamãe falou. Era quase como se ela estivesse falando consigo mesma, pois nem olhava para mim.
- É uma coisa que faz bem só de se pensar nela. Talvez as coisas pudessem voltar a ser o que eram. Mas não adianta sonhar.
Levantei-me com a minha decisão tomada.
- Estou cansado, Mamãe. Vou-me deitar.
- Ouça o que seu pai está dizendo, Danny, - disse ela, abraçando-me. - Abandone essas lutas. Você não calcula o que ele sofre com isso. Passou a noite toda inquieto.
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- Não posso, Mamãe.
- Então faça isso por minha causa, Lourinho. Em junho, você vai terminar o curso. Arranje então um emprego e tome novo rumo.
Olhei para as folhas de papel com as contas em cima da mesa. Nós bem sabíamos que não era aquela a solução.
- Não posso sair, Mamãe. Não posso mesmo.
- Mas você pode um dia ficar machucado, Danny. Como o outro rapaz saiu hoje à noite. E isso eu não poderia agüentar.
- Não se preocupe, Mamãe, - disse eu, beij ando-lhe a testa. - Tudo vai dar certo. Nada me acontecerá.
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Parei em frente a casa por um momento, olhando-me na vitrina. Estava vazia a loja. Apenas, lá no fundo, havia um homem encostado ao balcão.
- Que é, garoto? - perguntou ele, quando me aproximei
- Quero falar com o Sr. Fields.
- Vá saindo, garoto. O Sr. Fields não tem tempo a perder com fedelhos.
- ele vai falar comigo, - disse-lhe friamente. - Sou Danny Fisher.
- O pugilista? - perguntou ele com uma nota inconfundível de respeito.
O homem pegou um telefone e falou rapidamente. O meu nome já estava ficando conhecido. Isso me agradava. Não era mais um ninguém. Mas isso não iria durar. Depois da minha próxima luta, eu voltaria a ser um desconhecido, outro dos muitos que haviam tentado e acabaram derrotados. Seria prontamente esquecido.
O homem largou o telefone e apontou a porta.
- Fields disse que pode subir.
Atravessei as outras salas ainda vazias àquela hora e subi a escada. Chegando em frente à porta de Fields, bati. Quem me abriu a porta foi Ronnie. Arregalou os olhos e recuou um pouco ao ver-me.
- Entre, - disse ela.
- Onde está ele, Ronnie? - perguntei, vendo a sala vazia.
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- Está fazendo a barba. Não demora, - disse Ronnie. Chegou mais perto de mim e disse em voz baixa: - Spit esteve aqui hoje de manhã e contou o que você fêz. Maxie ficou furioso.
- Isso passa, Ronnie, - disse eu, rindo.
- Ontem à noite, você me chamou Sara, - disse ela, pegando-me a mão. - Pensei que não viria mais aqui.
- Isso foi ontem à noite. Mudei de idéia.
- Danny, - perguntou ela com os olhos anuviados, - você voltou por minha causa?
- Sim, Ronnie. Por você e pelo dinheiro.
- Pois vai conseguir as duas coisas! - exclamou Fields da porta. - Eu disse que você era um rapaz inteligente, Danny. Sabia que ia voltar.
Estava com um robe vermelho de seda pura. Trazia pendurado no queixo um enorme charuto.
- Soube que paga bem, Sr. Fields, - disse eu calmamente. - Vim saber se é verdade.
Sentou-se numa cadeira à minha frente e me olhou. Estava sorrindo, mas os olhos não haviam mudado. Continuavam desconfiados e cautelosos.
- Você maltratou Spit, - disse ele. - Não gosto de que gente minha seja tratada dessa maneira.
- Spit era meu amigo, - disse eu lentamente sem me perturbar. - Fizemos alguns trabalhos juntos. Mas ele quebrou o nosso contrato quando me espionou. Não tolero isso da parte de um amigo.
- ele estava obedecendo a ordens minhas.
- Está certo para mim agora. Mas antes, quando éle era meu amigo, não.
Fields me olhou durante algum tempo em silêncio. Eu sabia que ele compreendera o que eu tinha dito. Não sabia era se aceitaria.
- Ronnie, - disse ele afinal, - quero suco de laranja. E traga um copo também para Danny. Isso não vai prejudicar o treinamento dele.
Quando Ronnie saiu, ele se voltou para mim, rindo:
- Como é? Ela o tratou bem?
Esbocei um sorriso para dissimular o alivio que sentia dentro de mim.
- Foi bem satisfatório, - disse eu.
- Eu disse que ficaria danado da vida se ela não o tratasse bem. E ela é notável na sua especialidade.
Sentei-me na poltrona em frente a ele. Eu a havia beijado naquela poltrona na noite passada. Ela me havia beijado também e me dissera coisas em que eu havia acreditado.
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De repente, deu-me vontade de acabar logo com aquilo.
- Quanto? - perguntei.
- Quanto para quê? - perguntou Fields, fingindo inocência.
- Para perder a luta.
- Vivo, hem? - exclamou Fields, rindo. - Pega as coisas depressa.
- Claro, -- disse eu, cada vez mais seguro de mim mesmo. O Sr. Fields não se interessa senão por aquilo que lhe pode render alguma coisa. Que mal há que eu siga o seu exemplo? Quanto é que eu levo nisso?
Ronnie voltou à sala com dois copos de suco de laranja. Entregou-nos os copos em silêncio. Provei o meu. Excelente. Fields tomou o seu suco e, no fim, me disse:
- Que é que acha de quinhentos?
Sacudi a cabeça. Estava em terreno conhecido. Sabia muito bem como é que se faz negócio.
- Terá de melhorar a proposta.
ele se reclinou na poltrona e perguntou:
- Quanto é que você acha que vale?
- Mil dólares. - Isso o deixaria com três mil dólares de acordo com o que ele mesmo dissera.
- Setecentos e cinqüenta e mais a boneca.
- Vamos falar só em dinheiro, - disse eu, sorrindo. - A boneca eu já tive. E ela é forte demais para o meu sangue.
- Setecentos e cinqüenta são um bocado de dinheiro.
- Para mim não chega. Afinal, tenho de apanhar muito para que o senhor possa ganhar três mil.
- Está bem, Danny, - disse ele, levantando-se e descendo pesadamente as mãos nos meus ombros. - OK, Danny. Mil dólares. Você receberá o dinheiro logo depois da luta.
- Nada feito. Metade agora e metade depois. ele riu e voltou-se para Ronnie.
- Não lhe disse que o garoto era esperto? Negócio fechado. Venha buscar na tarde da luta. Depois, apareça e venha buscar o resto.
Levantei-me lentamente, não deixando que nada transparecesse nos meus olhos.
- Bem, negócio fechado então, Sr. Fields. Até à vista. A voz de Ronnie fêz com que eu me voltasse.
- Danny, você vai voltar?
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- Claro! Para pegar o dinheiro!
A gargalhada de Fields encheu a sala. O rosto de Ronnie ficou vermelho de raiva e ela deu um passo para mim, levantando a mão como se me fosse esbofetear. Segurei-lhe o braço no ar e ficamos assim durante um longo instante.
- Tenha calma, Sara, - disse-lhe em voz baixa, que só ela podia ouvir. - Não estamos em condições de sonhar.
Larguei-lhe o braço e este caiu lentamente. Havia nos olhos dela alguma coisa que até pareciam lágrimas. Mas eu não tinha certeza porque ela me deu as costas, encaminhou-se para onde Fields estava e disse:
- Tem razão, Maxie! ele é muito vivo, vivo demais! Comecei a descer a escada. Alguém vinha subindo e eu parei
para deixar que passasse. Era Spit.
Ficou assombrado quando me reconheceu. Levou instintivamente a mão ao bolso e tirou a faca.
- Se eu fosse você, guardaria isso, Spit, - disse eu, sorrindo. - O patrão pode não gostar.
ele olhou para mim e para a porta de Fields, cheio de indecisão.
- Spit! Onde é que você está? - berrou Fields nesse momento.
- Já vou, chefe, - disse Spit, guardando a faca e subindo apressadamente a escada.
Cheguei à rua. O dia estava claro e luminoso e eu resolvi dar um pulo à casa de Nellie. Ainda era cedo e eu teria tempo de vê-la antes que ela saísse para o trabalho.
E do jeito pelo qual eu me sentia, vê-la não podia deixar de me fazer bem.
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Despertei naquela manhã com a voz de Papai que falava na cozinha. Encolhi-me sonolentamente na cama, tentando vagamente entender o que ele dizia. De repente, acordei de todo. Era aquele o dia. No dia seguinte, tudo estaria acabado e eu voltaria a ser uma criatura normal. Voltaria a ser um ninguém.
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Levantei-me e espreguicei-me. Talvez fosse melhor assim. Meu pai seria feliz então. Teria então o seu dinheiro e eu abandonaria o ringue. Talvez então houvesse paz ali em casa. Naquela última semana entre as lutas, a vida ali tinha sido um inferno, com Papai a provocar-me o tempo todo.
Fui até ao banheiro e me olhei ao espelho. Não adiantava fazer a barba. Isso só serviria para enfraquecer a pele e fazê-la mais fácil de ser cortada. Estava disposto a perder, mas não queria ainda por cima sangrar demais.
Escovei os dentes, lavei o rosto e penteei o cabelo. Resolvi deixar o banho de chuveiro para mais tarde, quando chegasse ao ginásio. Lá havia água quente. Ao voltar para o meu quarto, ouvi a voz de Papai. Vesti-me e desci para a cozinha.
Papai se calou logo que eu entrei. Olhou-me por cima da xícara de café.
- Sente-se, Danny, para tomar o seu café, - disse Mamãe. Sentei-me diante de Papai. Felizmente, ele nada disse. Depois de tudo o que dissera na noite passada, não tinha mais o que falar.
- Alô, Mimi, - disse eu, vendo-a chegar. As coisas estavam tão ruins ali em casa que eu estava até falando com ela.
- Alô, Campeão! - disse ela com um sorriso cordial e espontâneo. - Vai ganhar esta noite?
Papai deu um murro na mesa.
- Será que todo mundo nesta casa enlouqueceu? Não quero mais ouvir falar em lutas nesta casa, estão ouvindo?
Mimi voltou-se para ele e disse calmamente:
- ele é meu irmão e eu direi a ele tudo o que eu quiser. Papai ficou mudo de espanto. Era a primeira vez em toda a sua vida que Mimi lhe respondia. Tentou tomar fôlego e Mamãe encostou a mão no ombro dele.
- Nada de discussões hoje, Harry. Por favor!
- Mas ou... ouviu o que ela me disse ?
- Vamos tomar o nosso café em paz, Harry!
Um silêncio cheio de tensão caiu sobre a cozinha, só quebrado pelo barulho dos pratos na mesa. Tomei o meu café em silêncio. Quando acabei, levantei-me e disse:
- Está bem. Vou indo para o ginásio. Ninguém falou. Forcei um sorriso e perguntei:
- Ninguém aqui vai desejar-me boa sorte? Mimi me apertou a mão, me beijou e disse:
- Felicidades, Danny.
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Sorri agradecendo e me voltei para Papai. ele não levantou os olhos do prato.
Virei-me para Mamãe. Os olhos dela estavam cheios de ansiedade.
- Você vai ter cuidado, Danny?
Fiz um sinal afirmativo. Senti um aperto na garganta ao olhar para ela. Via naquele momento todas as mudanças que os anos haviam operado nela. Ela me deu um beijo no rosto, com lágrimas nos olhos.
- Tenho aqui duas entradas, - disse eu, tirando-as do bolso e entregando a ela.
- Não as queremos! - exclamou Papai. - Pode levá-las! Olhei para Mamãe e ela sacudiu a cabeça. Guardei as entradas
no bolso e encaminhei-me para a porta.
- Danny! - gritou meu pai.
Voltei-me cheio de esperança. Estava certo de que ele havia mudado de idéia. Já estava com a mão no bolso para tirar as entradas quando olhei para o rosto dele e vi que nada havia mudado.
- Ainda vai lutar esta noite?
- Vou.
- Depois de tudo o que eu lhe disse?
- Não posso deixar de lutar, Papai.
- Entregue-me então a sua chave, Danny, - disse ele, estendendo a mão.
Olhei para Mamãe e ela se voltou automaticamente para Papai.
- Agora não, Harry.
- Disse a ele que se tornasse a lutar, não precisava voltar para casa. Eu não estava brincando.
- Mas, Harry, ele ainda é uma criança.
A voz de Papai explodiu de raiva. Encheu a pequena cozinha como uma trovoada numa tempestade.
- Não é criança para arriscar-se a matar alguém! Tem idade bastante para decidir o que quer! Já suportei muita coisa tentando uma conciliação com ele. Mas não vou suportar mais nada! Dei-lhe mais uma chance e ele não a aproveitou!
Olhei-o, incerto. Só podia pensar era que ele era meu pai, que o sangue dele me corria nas veias e que tudo isso pouco representava para ele. Quase com surpresa, vi a chave me voar das mãos e ir cair na mesa diante dele. Depois disso, saí.
Fiquei de pé diante da mesa de Fields enquanto ele contava o dinheiro e colocava-o em cima da mesa.
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Não estava sorrindo naquele momento. Os olhos, sumidos entre as banhas do rosto, estavam bem frios.
- Pronto, garoto, - disse ele com voz rouca. - Pode pegar. Peguei o dinheiro. Cinco notas de cem dólares. Papai pensaria de maneira diferente quando visse aquilo. Guardei o dinheiro no bolso, satisfeito, e disse a contragosto:
- Obrigado.
- Não me agradeça, Danny. E não me engane.
- Eu não iria fazer uma coisa dessas, - disse eu, surpreso.
- Eu não disse que você iria fazer, mas Spit acha que é bem possível.
Olhei para Spit, que estava encostado à parede, limpando as unhas com a faca. Enfrentou o meu olhar com absoluta frieza.
- E o que Spit diz se escreve ou se repete? - perguntei ironicamente.
Fields deu uma gargalhada, fazendo a cadeira estalar. Levantou-se, desceu a mão pesada no meu ombro e disse:
- Não se esqueça de que é meu dinheiro que você está usando.
- Não me esquecerei, Sr. Fields, - disse eu, encaminhando-me para a porta.
- Há mais uma coisa que eu quero que você não esqueça, Danny.
Olhei-o da porta e ele me pareceu extremamente grande e poderoso. Aquele era o Maxie Fields de que eu ouvira falar.
- Que é? - perguntei.
- Estarei vigiando você, - disse ele, com voz forte e ameaçadora.
Abri a porta do ginásio e estranhei o silêncio. Sempre havia ali um bocado de barulho, mas naquele momento tudo estava calmo no Clube dos Rapazes do East Side.
O Sr. Spritzer estava no fundo da sala. ele se voltou lentamente para mim. Atravessei a sala, sabendo que todos os olhos estavam fitos em mim. Gostaria de que não me olhassem assim, como se tivessem orgulho de mim. Havia em meu bolso quinhentos dólares que não lhes dariam motivo algum de orgulho.
- Já cheguei, Sr. Spritzer, - disse eu nervosamente, certo de que todo mundo já sabia o que eu havia feito.
Spritzer me olhou com um largo sorriso.
- Alô, Campeão!
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Pareceu que aquilo fora o sinal para um verdadeiro pandemônio. Todos me cercaram, sorrindo, gritando, abraçando-me, desejando-me felicidades. Quis sorrir para eles, mas não pude. O meu rosto parecia paralisado numa espécie de máscara.
17
A gritaria da assistência ressoava dentro do camarim e me atordoava os ouvidos. Era um mar monótono de som, um grito velho como o mundo. O homem gritava assim na selva quando duas feras lutavam. Os romanos gritavam assim no Coliseu nos espetáculos dos Césares. Cinco mil, dois mil anos não haviam modificado a espécie humana.
Deitado na mesa, estendi os braços de modo a cobrir os ouvidos, mas, ainda assim, ouvia a gritaria.
Uma cigarra tocou no camarim. Spritzer me tocou as costas,
- Está na hora, garoto.
Sentei-me e joguei os pés para fora da mesa. Sentia um peso de chumbo no estômago.
- Nervoso, garoto? - perguntou Spritzer, sorrindo. Bati com a cabeça.
- Isso vai passar, - disse ele, cheio de confiança. Todo o pugilista sente isso na primeira vez que luta no Garden. Não sei ao certo, por quê. Talvez seja alguma coisa do lugar.
Que diria ele se soubesse? Não era o lugar que me impressionava. Era a luta que eu ia deliberadamente perder. Saímos do camarim e chegamos à beira de uma rampa que ia dar no estádio. Era um mar de rostos anônimos que aguardava a decisão sobre a luta que havia terminado. Sam estava ali em algum lugar. Fields também. Até Nellie estava presente. Só meu pai e minha mãe não tinham vindo.
A gritaria aumentou quando a decisão foi anunciada.
- Vamos, Danny, - disse Spritzer.
Começamos a descer a rampa para o quadrilátero iluminado que era o ringue.
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Ouvia perfeitamente os gritos. De vez em quando, distinguia o meu nome no meio da barulheira. Eu seguia Spritzer de cabeça baixa, com a toalha passada em volta do rosto como se fossem os antolhos de um cavalo. Eu ouvia a respiração nervosa de Giuseppe ao meu lado. De repente, a voz dele se elevou acima do clamor da multidão.
- Veja, Danny! Olhe Nellie ali!
Levantei a cabeça e vi-a sorrir para mim, um sorriso terno e ansioso. Logo depois, desapareceu no mar dos outros rostos.
Cheguei ao ringue e passei por entre as cordas. Pisquei os olhos à luz forte do tablado. O speaker pronunciou o meu nome e eu marchei para o centro do ringue. Ouvi-lhe a voz mas eu não estava prestando atenção ao juiz. Sabia o seu pequeno discurso de cor.
"Separem-se quando eu mandar... Havendo um Knockdown, dirijam-se para o canto neutro mais próximo.. Saiam do canto lutando e que ganhe o melhor!"
Que pilhéria! Que ganhe o melhor! Aquele bolo no meu estômago vinha dos quinhentos dólares em meu bolso.
- Não se preocupe, garoto, - dizia-me Spritzer. - O pior que pode acontecer é você perder esta luta.
Olhei-o com surpresa. ele estava mais certo do que pensava. A minha maior preocupação era que alguém me tirasse o dinheiro dos bolsos da calça que eu deixara no camarim. A luta não era nada que me preocupasse. Eu já sabia quem seria o vencedor.
Olhei para o outro lado do ringue e vi que o meu adversário estava um bocado nervoso. Sorri para ele. Se ele soubesse do que eu sabia, não teria motivo algum de ficar nervoso. Era Tony Gardella, um rapaz de origem italiana do Bronx.
O gongo soou. Dirigi-me para o centro do ringue, sentindo-me curiosamente leve e seguro. Saber que ia perder a luta dava-me uma confiança tão grande como eu nunca tivera.
Dei um job de esquerda estudando o rapaz, para saber se ele era realmente bom. O reflexo dele foi muito lento e eu automaticamente desfechei um direto rápido por baixo da sua guarda. Senti os pés dele vacilarem e automaticamente me preparei instintivamente para o golpe final. A assistência gritava, aplaudindo-me. ele estava à minha disposição e eu sabia disso. Lembrei-me então de que não podia acabar com aquela luta. Deixei-o entrar em clinch e recobrar-se. Dei alguns socos leves nas costas e nos rins de Gardella. Quando senti que a força dele estava voltando, fi-lo afastar-se de mim e conservei-o a distância durante o resto do round. Não podia arriscar-me a machucá-lo.
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Ao soar do gongo, voltei para o meu canto. Spritzer estava furioso.
- ele estava batido. Por que não acabou logo com ele?
- Não pude encontrar uma brecha, - disse eu. Teria de tomar cuidado senão ele ia desconfiar.
- Cale-se! - disse ele. - Poupe o seu fôlego!
Quando o gongo tocou de novo, Gardella saiu do seu canto cautelosamente. Baixei um pouco a guarda e esperei que ele entrasse. ele se conservou reservado, colocando-se fora do meu alcance. Olheio espanto. Como era que ele esperava ganhar aquela luta? Seria preciso que eu mesmo me pusesse nocaute? Aproximei-me dele, na esperança de fazê-lo tomar a iniciativa. Gardella recuou imediatamente. Estava ficando mais difícil perder aquela luta do que ganhá-la.
A assistência estava vaiando quando voltamos para os nossos cantos. Sentei-me de cabeça baixa, com os olhos fitos na lona.
Spritzer estava gritando de novo.
- Ataque-o. Não lhe dê tempo de fugir. Está grogue. É por isso que está recuando. Duro nele, Danny!
Quando o gongo tocou, saí do meu canto rapidamente e encontrei-me com ele além do centro. Estava dando socos desvairadamente. Recebera também ordens de lutar. Bloqueei quase todos por puro reflexo. Para mim era um mistério como aquele camarada chegara às finais das luvas. Era fraco demais. Seria uma vergonha deixar um errado daqueles ganhar as Luvas, mas não podia proceder de outra maneira. Eu fizera um trato. Baixei de propósito a guarda por um instante. Os punches me roçaram pelo braço. A dor foi estranhamente doce, como se fosse uma espécie de prêmio. Era como se eu fosse duas pessoas e uma delas tivesse prazer em ver a outra apanhar.
Estava na hora de um contra-ataque meu. Era preciso dar à luta uma aparência de coisa séria. Anunciei amplamente um direto. ele o bloqueou com a maior facilidade e eu fui abalado por um soco no estômago. O rapaz sorria confiantemente para mim. Aquilo me irritou. ele não tinha direito a sorrir assim. Ia dar-lhe alguns bons murros para que ele aprendesse a ter um pouco de respeito. Avancei com a esquerda e procurei acompanhar o murro com um uppercut, mas éle se esquivou com facilidade.
Estava começando a ficar aborrecido. Segui-lhe o vulto que dançava. Os socos choviam sobre mim, mas eu nem ligava. Ia aplicar-lhe aquele soco de mestre para ele ~aber quem era que mandava. Depois, ele podia ganhar a luta à vontade.
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Senti de súbito uma explosão ofuscante no rosto e senti que estava caindo de joelhos. Tentei levantar-me mas não encontrei pernas. Sacudi a cabeça violentamemnte e ouvi a contagem do juiz. Sete! Senti a força voltar-me às pernas. Oito! Já podia levantar-me, sabia que podia, Nove! Mas para quê ? Eu ia perder de qualquer maneira. Podia muito bem ficar ali até o fim da contagem.
Mas estava de pé quando o braço do juiz começou a levantar-se. Por que tinha feito isso? Eu devia ter ficado na lona. O juiz me limpou as luvas na camisa e recuou. Gardella avançou para mim. O gongo tocou e eu voltei prontamente para o meu canto.
Joguei-me no banco. Gostaria de que Spritzer calasse a boca. Não adiantava. De repente, as palavras dele me tocaram vivamente.
- Que é que você quer ser, Danny? Um vagabundo toda a sua vida? Um ninguém? Você pode bater aquele camarada! Tome a iniciativa e acabe com ele!
Levantei a cabeça, olhei para o outro lado do ringue e vi que Gardella estava sorrindo, cheio de confiança. Eu ia ser um vagabundo, um ninguém? Era justamente isso que ia acontecer. Eu seria como todo o mundo mais no East Side, sem nome, sem rosto, um fantasma perdido na multidão.
Levantei-me ao ouvir o gongo e me dirigi para o centro do ringue. Gardella veio ao meu encontro, com a guarda toda aberta. Tinha jogado pelo ar toda a cautela. Ri comigo mesmo. ele pensava que eu já estava no papo. Ora, vá para o daibo, Gardella! Vá para o diabo, Fields! ele podia pegar os seus quinhentos dólares de novo e fazer com eles n que bem quisesse. Se não soubesse, eu ensinaria.
Senti a dor me subir pelo braço até ao cotovelo. Esse levou força. Mais um. Se você, cachorro, pensou que este doeu, espere até levar o outro.
Bloqueei quase preguiçosamente o soco fraco e levantei a mão num uppercut direto. Movi os punhos rapidamente sob a luz forte. O outro descambou para o meu lado e eu me afastei rapidamente.
ele estava caindo. Vi-o cair. Era quase um movimento em câmara lenta. Ficou afinal estendido aos meus pés. Depois, baixei as mãos e dirigi-me para um canto neutro. Não tinha pressa. Dispunha de todo o tempo que quisesse. Aquele não lutaria mais naquela noite.
O juiz me fêz um sinal e eu fui para junto dele. ele levantou o meu braço. A multidão me aplaudia quando voltei para o meu canto rindo. Campeão! Estava tão alto quanto um papagaio. Esse sentimento me acompanhou até ao camarim.
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De repente, tudo desapareceu como se tivessem feito estourar um balão de borracha. Encostado à parede, perto da porta do camarim, estava uma pessoa que eu conhecia bem.
Era Spit, que me olhava com um sorriso bem esquisito. Estava limpando as unhas com a faca e, quando me viu, levantou-a e fêz um gesto para mim, ainda sorrindo. Senti um arrepio na espinha. Em seguida, Spit desapareceu por entre a multidão que enchia o corredor. Corri os olhos em torno para ver se alguém havia percebido alguma coisa. Ninguém o vira. Estavam todos conversando animadamente.
Sam estava no camarim com o rosto todo aberto num sorriso.
- Eu sabia, eu sabia que você seria campeão! Desde aquele primeiro dia na escola!
Olhei-o sem poder falar. Queria apenas era sair dali. E depressa.
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DIA DE MUDANÇA
17 DE MAIO DE 1934
- Boa noite, Campeão, - disse Giuseppe sorrindo. Deixounos no vestíbulo mal iluminado e começou a subir as escadas. Vimo-lo desaparecer na curva do primeiro patamar.
Nellie olhou para mim e passou os braços em torno do meu pescoço.
- É a primeira vez que ficamos sozinhos esta noite e você nem me beijou ainda.
Curvei a cabeça para beijá-la mas nesse momento houve um barulho na escada e eu me afastei num sobressalto.
- Há alguma coisa, Danny? - perguntou Nellie, preocupada.
- Não, Nellie.
- Por que é então que está tão nervoso assim? Não me vai beijar ?
- Ainda estou sob o impacto da luta.
Não lhe podia dizer a verdade, nem a ela, nem a ninguém.
- E esse impacto não o deixa nem me dar um beijo? Tentei sorrir com ela, mas não pude. Beijei-a violentamente.
Ela gemeu ternamente.
- Que é que acha agora?
- Você me machucou, - disse ela sorrindo.
- E não é isso só que eu vau fazer! - disse eu, abraçando-a e beijando-a no nariz, no pescoço, no canto da boca.
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- Como eu te amo, Danny! - sussurrou ela no meu ouvido.
- Minha Nellie! - murmurei, abraçando-a com mais força. De repente, sentia-a enfraquecer nos meus braços. Havia no beijo dela um ardor que me percorreu o corpo como uma corrente elétrica.
Meio alucinadamente, virei-a de costas para mim, e cruzei os braços sobre os seios dela. Beijei-lhe a nuca.
- Danny, estou tão fraca que nem sinto mais as pernas. Abri-lhe a blusa e senti os seios quentes em minhas mãos. Ela
suspirou profundamente e chegou-se mais para mim. Ficamos assim um tempo enorme.
Por fim, ela se voltou para mim, segurando as minhas mãos em cima dos seios. Sorriu para mim, muito feliz.
- Está-se sentindo melhor?
Disse que sim e era verdade. Durante algum tempo, eu havia esquecido tudo mais.
Ela me beijou ternamente e tirou as minhas mãos da blusa. Com os olhos pretos cintilando e o rosto aberto num sorriso, perguntou:
- E agora? Pode ir para casa e dormir bem o resto da noite? Esteve tão nervoso a noite toda!
Era verdade. No restaurante para onde Sam nos havia levado a todos, eu levava um susto ao ouvir os passos de qualquer pessoa que entrasse.
- Aconteça o que acontecer, Nellie - disse eu -, não se esqueça de que eu a amo.
- E eu o amo aconteça o que acontecer, meu querido. Boa noite, Danny.
- Boa noite, meu amor, - disse eu, beijando-a. Vi-a subir a escada e saí para a rua.
Mal tinha dado alguns passos, tive a impressão de que me estavam observando. Parei e observei. A rua estava deserta. Recomecei a andar, mas a curiosa impressão não desapareceu. Parei sob o lampião da esquina para ver o meu relógio. Já passava das duas horas da madrugada. De repente, julguei ver algum movimento nas sombras. Virei-me rapidamente enquanto o coração me batia aceleradamente. Estava pronto a sair correndo.
Apareceu então um gatinho cinzento que saía da escuridão e eu quase ri, tranqüilizado. Só me faltava era ver fantasmas. Continuei o meu caminho.
As luzes da Rua Delancey surgiram à minha frente. Havia muitas pessoas na rua e eu me misturei com elas, exultante com a vizinhança.
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Nada me poderia acontecer ali e fui pouco a pouco sentindo-me melhor.
Numa esquina, um jornaleiro estava gritando. "Os vencedores das Luvas! Olha os jornais! Comprei um jornal e corri para a última página onde saíam as noticias de esportes. Olhei atentamente as fotografias das lutas. A minha estava em cima no canto direito. O flagrante fora batido quando eu estava de pé, olhando para Gardella estendido aos meus pés. Senti um assomo de orgulho. Campeão! Nada poderia despojar-me disso. Gostaria de saber se as pessoas que estavam passando me reconheciam, se sabiam que eu, Danny Fisher, estava ali entre elas.
O sorriso morreu de repente nos meus lábios. Eu estava encarando alguém que me havia reconhecido: Spit. Estava encostado à vitrina do Café Paramount, sorrindo para mim. O jornal escorregou entre os meus dedos inertes e caiu na calçada. As minhas suspeitas eram bem fundadas. Tinham-me vigiado o tempo todo, esperando o momento em que eu estivesse sozinho.
Spit fêz um sinal para um homem que estava de pé na beira do passeio. Reconheci-o também. Era chamado, no bairro, de Cobrador. Fields costumava mandá-lo ir conversar com pessoas que não queriam pagar. Depois de passarem pelas mãos dele, todas elas saldavam as suas contas, isto é, as que ainda podiam.
Misturei-me prontamente com a multidão, dominando a vontade de correr. Estaria em segurança enquanto houvesse gente na rua. Olhei para trás e vi que Spit e o Cobrador me seguiam displicentemente, como se fossem duas pessoas de volta do cinema. Embora parecessem não estar prestando atenção a mim, eu sabia que não perdiam um só dos meus movimentos.
Dobrei a esquina da Rua Clinton, onde havia menos gente mas, ainda assim, eu estava a salv/' A quadra seguinte é que era perigosa. Ficava quase deserta àquela hora da madrugada. Se eu conseguisse passar de lá, estaria quase na esquina perto da minha casa.
Olhei para a frente e senti o coração pequeno. A outra quadra estava completamente deserta. Diminuí os passos, pensando em voltar para a Rua Delancey.
Um rápido olhar para trás me fêz desistir. Eles vinham muito perto de mim. Com certeza me barrariam a passagem. Só podia seguir em fernte. Procurei desesperadamente um saída para aquela situação. Estava quase chegando à esquina. Lembrei-me de que naquela quadra, quase chegando à outra esquina, havia um estreito beco entre duas casas. Se eu pudesse chegar lá antes deles, teria uma chance, uma chance problemática, mas a única.
193
Na esquina, o sinal do tráfego estava mudando quando um grande caminhão com reboque começou a dobrar a esquina. Corri para o meio da rua à frente do caminhão. Os freios rangeram quando cheguei ao outro passeio mas não me virei para olhar. Ouvi os gr:os de Spit, que estava brigando com o motorista do caminhão porque este lhes cortara a passagem. Já estava quase no meio do caminho para o beco quando olhei nervosamente para trás.
Spit e o Cobrador tinham chegado ao passeio da quadra e estavam correndo no meu encalço. O medo me deu mais vigor às pernas. Entrei no beco a toda carreira, batendo com o ombro numa das paredes. O beco estava escuro, tão escuro que eu não via por onde estava indo. Tive de avançar mais lentamente, tateando a parede com a mão. O beco estendia por todo o comprimento dos dois prédios, cerca de doze metros, e terminava num muro alto. Fui andando até chegar a esse muro. Comecei a explorá-lo com os dedos Lembrava-me de que havia a certa altura uma pequena saliência no muro. Encontrei-a e subi para ela, virando-me para a rua. Estendi a mão para frente procurando uma barra de aço que eu me lembrava que havia de um edifício para outro.
Os meus olhos estavam-se habituando à escuridão e eu encontrei a barra na débil claridade que vinha da rua. Segurei-a firmemente com as duas mãos e fiquei esperando. O beco era tão estreito que só um deles de cada vez podia entrar para procurar-me. O coração me batia apressadamente e eu tentei respirar compassadamente. Ouvi um murmúrio de vozes na entrada do beco. Tentei em vão distinguir as palavras. Ficaram então em silêncio e eu ouvi passos que vinham pelo beco.
A luz que vinha da rua mostrou o vulto de um homem. Moviase cautelosamente no escuro, com a mão encostada à parede, como eu havia feito. Outro vulto estava perto da entrada. Muito bem. Um deles estava esperando na rua. Não sabia qual deles havia entrado no beco para agarrar-me. Mas não fiquei muito tempo em dúvida. Uma voz rouca fêz-se ouvir no silêncio.
- Sabemos que está aí, Fisher. Venha conosco para falar com o chefe e terá uma chance!
Prendi a respiração. Era o Cobrador. Não respondi. Sabia qual era a chance que eles me dariam. Quando ele chegou mais perto, tornou a falar:
- Está ouvindo, Fisher? Saia daí e terá uma chance!
A luz por trás dele desenhava-lhe o vulto corpulento. Levantei o corpo tensamente, com as mãos na barra de ferro. ele estava a uns dois metros de mim. Não podia ver-me na escuridão, mas eu o enxergava perfeitamente.
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Deixei-o chegar mais perto. Mais perto. Agora!
Tirei os pés da saliência do muro, segurando-me firmemente à barra de ferro. Balancei o corpo no ar, com os pés em direção à cabeça dele. O homem sentiu tarde demais a iminência do perigo. Tentou esquivar-se para o lado, mas não havia espaço para isso. Os meus sapatos atingiram-no com força no queixo e no rosto. Houve um baque surdo e eu senti alguma coisa afundar sob os meus calcanhares. O Cobrador caiu estendido no chão.
Continuei suspenso pelas mãos da barra de ferro, a observá-lo. O homem era um vulto encolhido no chão e deixava escapar alguns gemidos. Larguei a barra e fui cair ao lado dele. Senti algum movimento perto da minha perna e dei um violento pontapé. A cabeça do homem bateu com um ruído esquisito na parede e, em seguida, houve silêncio. Passei a mão rapidamente pelo rosto dele. Estava inerte, desacordado.
Olhei para a entrada do beco. Spit ainda estava lá de pé. O corpo dele se desenhava contra a luz enquanto ele tentava enxergar na escuridão. Ouvi-lhe a voz:
- Agarrou-o?
Dei um resmungo como se estivesse respondendo afirmativamente. Eu tinha de atraí-lo para dentro do beco se queria sair dali intacto. Era a minha única chance. Agachei-me e esperei.
Ouvi de novo a voz de Spit que vinha avançando cautelosamente pelo beco.
- Segure-o bem! Quero deixar a minha marca nesse cachorro traidor!
Houve um reflexo na parede perto da mão dele e eu compreendi que ele se aproximava de faca em punho. Agachei-me ainda mais e avancei bem devagar, prendendo a respiração.
Levantei-me de repente e procurei atingir com um soco o queixo de Spit. ele virou a cabeça rapidamente, advertido instintivamente do perigo, e eu só pude atingir-lhe o rosto de raspão.
Tornei a ver o brilho da faca vibrada contra mim. Mergulhei desesperadamente e agarrei-lhe a mão. ele se debateu furiosamente, procurando atingir-me os olhos com a outra mão. Senti uma tremenda dor subir-me pelo braço quando Spit torceu a lâmina da faca sobre a palma da minha mão. Tirei a mão instintivamente e a faca de Spit ficou livre. Houve uma dor lancinante no meu lado, quando a mão de Spit desceu.
Soltei uma exclamação surda e agarrei a mão da faca, com toda a força. Spit recomeçou a torcer a faca e eu senti verdadeira agonia nos nervos do braço, mas não podia mais largá-lo.
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Com a outra mão, Spit procurava apertar-me a garganta. Dei-lhe um soco na cara. Senti a dor nos nós dos dedos quando estes lhe bateram nos dentes, mas era uma dor que não me incomodava. Dei-lhe uma joelhada com toda a força entre as pernas. ele gemeu e dobrou o corpo. Torci-lhe o braço armado para as costas. Encostei-o à parede, fazendo pressão com o ombro sobre a garganta dele. Com a outra mão, esmurrei-o repetidamente. Por fim, o corpo dele perdeu a força e começou a escorregar pela parede.
Larguei-o e recuei com a respiração ofegante, enquanto ele descia para o chão. Ficou estendido de bruços aos meus pés. Curveime sobre ele, procurando a faca. Encontrei-a, enterrada cerca de cinco centímetros acima dos quadris. Não senti qualquer emoção, nem de alegria, nem de tristeza. Era ele ou eu.
Levantei-me e saí lentamente do beco. Talvez Spit estivesse morto. Mas isso pouco me interessava. Naquele momento, queria apenas chegar em casa e estender-me na cama. Tudo então estaria certo. Quando acordasse no dia seguinte, talvez achasse que tudo aquilo tinha sido um sonho.
Quando cheguei à porta de casa, comecei a procurar a chave nos bolsos. Não encontrei. Só havia ali as cinco notas de cem dólares e uma ponta de lápis. Procurei cansadamente lembrar-me do que tinha feito com a chave.
Lembrei-me de repente. Eu a havia jogado para Papai naquele dia ao sair de casa, depois de uma discussão. Vi luz por baixo da porta. Alguém ainda estava acordado em casa. Bati de leve na porta.
Ouvi uma cadeira ser arrastada lá dentro e, depois, passos que se aproximaram da porta.
- Quem está aí ? - perguntaram lá de dentro. Era a voz de meu pai.
Sentira um nó na garganta quando me lembrara da chave. Naquele momento, tinha quase vontade de chorar de alívio.
- Sou eu, Papai. Abra.
Tudo correria bem a partir daquele instante. Durante um momento, houve silêncio. Depois, a voz de Papai fêz-se ouvir, pesadamente do outro lado da porta:
- Que veio fazer aqui? Pode ir-se embora!
Custei a compreender as palavras. Devia estar atordoado ainda. Não era possível que meu pai estivesse dizendo isso.
- Sou eu, Danny. Deixei-me entrar, Papai.
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- Eu disse que se fosse embora! - respondeu ele com roz mais forte.
Senti o medo dominar-me. Bati com força na porta, deixando-a marcada com o sangue das minhas mãos.
- Deixe-me entrar, Papai! Deixe-me entrar que eu não tenho para onde ir!
Ouvi a voz de Mamãe que parecia estar suplicando que ele mudasse de opinião.
- Não, Mary! - replicou Papai. - Está acabado. Eu não estava brincando. Desta vez é definitivo!
Ouvi os soluços de Mamãe do outro lado da porta e, depois, o estalo do interruptor da luz. A sala ficara às escuras. O soluço de Mamãe foi-se desvanecendo no interior da casa. Depois, o silêncio foi completo.
Fiquei um momento dentro de um chocado e apavorado assombro. Depois, desci as escadas, sentindo-me só e vazio. De novo nos degraus da entrada, o ar frio da noite me bateu no rosto. Senteime nos degraus e encostei a cabeça na corrimão de ferro. Chorei em silêncio, com as lágrimas a rolarem pela face. Havia uma sensação de queimadura no braço. Esfreguei a mão no lugar e os dedos ficaram molhados e pegajosos. A palma da mão estava cortada e sangrando e a manga direita do casaco estava rasgada. Dentro do rasgão, havia um corte que sangrava também. Mas nada disso me interessava mais. Estava tão cansado. Encostei de novo a cabeça no corrimão e fechei os olhos.
Mas abri-os logo depois de repente. Tive mais uma vez a impressão que já tivera naquela noite. Alguém me estava observando. Procurei ver se avistava alguém na rua.
Um automóvel estava parado do outro lado da rua. As luzes estavam apagadas mas o motor funcionava baixinho. Estavam no meu encalço de novo. Spit e o Cobrador deviam ter ido contar o que acontecera.
Sem levantar-me, rolei pelo chão e voltei ao vestibule Fiquei ali um momento, pensando no que devia fazer. Talvez eu pudesse passar pelos fundos e subir para o terraço do prédio vizinho, fugindo deles assim. Mas que adiantava? Continuariam a perseguir-me até que me encontrassem. Tinham amigos em toda a parte e não havia onde eu me pudesse esconder.
O dinheiro ainda estava em meu bolso. Talvez se eu o desse aos homens, eles me deixassem em paz. Mal a idéia me veio, compreendi que isso também não daria resultado. Mas pensei que o dinheiro ainda servia para o fim que eu tivera em vista. Meu pai
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poderia ainda comprar a tal farmácia com ele. Ao menos, com isso, Mamãe e Mimi teriam uma oportunidade. Se os homens me pegassem com o dinheiro, ficariam com tudo.
Vi no chão uma circular de propaganda. Virei-a. As costas estavam em branco. Tirei o lápis do bolso e escrevi:
"Querida Mamãe: o dinheiro é para comprar a farmácia. Não deixe Papai jogá-lo fora outra vez. Do filho que a ama, Danny".
Embrulhei o dinheiro no papel, levantei-me e joguei tudo na caixa de correspondência do nosso apartamento. Felizmente, a fiscalização da Prefeitura obrigara o proprietário a colocar caixas novas, porque as velhas estavam arrebentadas e qualquer pessoa poderia abri-las. Mamãe acharia o dinheiro no dia seguinte quando descesse para pegar a correspondência.
O carro ainda estava parado do outro lado da rua com o motor funcionando. Limpei as calças. Senti um frio no estômago enquanto descia lentamente os degraus para a rua. Dei deliberadamente as costas para o carro e comecei a subir a rua. Ouvi o carro ser engrenado e sair do meio-fio. Contive o impulso de sair na carreira. O carro vinha-se aproximando de mim.
Podia correr, mas seria alcançado de qualquer maneira. Que fossem para o inferno! Voltei-me e fiquei a espera do carro que se aproximava. As lágrimas me corriam livremente pelo rosto e o medo me enregelava todo o corpo. Tentei desesperadamente dominar a náusea que me subia do estômago.
Recuei alguns passos. Senti a frieza do metal de um lampião e -encostei-me a ele. Já sentia na boca o gosto ácido dos vômitos e um milhão de pensamentos loucos se me atropelavam na cabeça.
Quando foi que você se tornou homem, Danny Fisher.?
Há uma hora na vida de todos nós em que é preciso responder a essa pergunta. Dei a minha resposta naquela fria madrugada escura.
Compreendi que estava com medo de morrer. O medo informe me enchia o corpo, revirando-me o estômago, retorcendo-me os rins, fazendo a minha bexiga esvaziar-se incontrolàvelmente. E então senti de repente que era homem.
Tornei-me homem graças ao conhecimento de que não era imortal, de que era feito de uma carne que ia apodrecer e virar pó e de um sangue que se congelaria negro nas minhas veias quando eu morresse.
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Tornei-me homem ao saber que teria de enfrentar o julgamento pelo que fizera da minha vida. Compreendi que minha mãe e meu pai tinham sido apenas o mecanismo da minha criação e não os responsáveis pela minha alma. Eu fora um acidente na vida deles.
Estava só num mundo solitário. Morreria nesse mundo e ninguém nem me recordaria mais o nome. A morte desceria sobre mim, a terra me cobriria e eu deixaria de existir.
As pernas me pareciam feitas de geléia e, apesar de agarrarme desesperadamente ao lampião, escorreguei até ficar de joelhos no passeio. Fechei os olhos quando o carro parou ao meu lado. Ouvi a porta abrir-se e um tropel de passos na minha direção.
Virei o rosto para o lampião e escondi-o no meu braço dobrado. Comecei a rezar. Rezei para pedir não a vida, mas a morte, a morte bondosa que me levaria daquele terror insuportável.
Uma mão pousou suavemente no meu braço e uma voz sussur-
rou o meu nome.
- Danny!
Tentei esconder mais o rosto e sufoquei um grito de pavor na garganta. A voz da morte era gentil como a de uma bela mulher, mais isso era apenas uma forma mais intensa de tortura.
- Danny, - repetiu a voz, - estava à sua espera. Você tem de fugir!
Não, não era a voz da morte. Era uma voz de mulher, cheia de calor e simpatia. Era uma voz de vida. Quase sem coragem de olhar, levantei a cabeça. Vi-lhe o rosto branco à luz do lampião.
- Vim avisá-lo, Danny. Max mandou Spit e o Cobrador à sua procura!
Olhei-a por um momento e compreendi. Aquela era Sara também chamada de Ronnie. Não me pude conter e dei uma risada nervosa. Estava salvo!
Ela me olhou como se eu tivesse enlouquecido. Sacudiu-me pelos ombros e disse :
- Você tem de se esconder. Eles podem chegar aqui a qualquer momento!
- Ajude-me a levantar, - disse eu com voz rouca. - Eles não vão aparecer.
Ela me segurou pelos ombros e me ajudou, perguntando:
- Por que diz que não vão aparecer?
Eu já estava de pé. Ela me olhou, arregalou os olhos e disse:
- Você está todo ensangüentado!
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- É isso mesmo. Eles já me encontraram.
- E que foi que aconteceu? - perguntou ela, assustada.
- Não sei ao certo o que aconteceu. Deixei-os estendidos num beco perto daqui. Acho que Spit está morto. Talvez o Cobrador esteja também. Não é engraçado? Foram-me matar e eles é que morreram !
- Você tem de fugir, Danny! Fields mandará matá-lo quando souber.
- Para onde é que eu posso ir? Nem meu pai me quer mais em casa!
- Não tem para onde ir, Danny?
- Não...
De repente, ela me agarrou pelos ombros e começou a me levar para o carro. Segui-a em silêncio. Ela abriu a porta e eu entrei, jogando-me no banco. Ela voltou à direção. Quando o carro começou a rodar, fechei os olhos.
Houve uma hora em que os abri e vi que estávamos atravessando uma ponte. Parecia a Ponte de Manhattan, mas eu estava muito cansado para apurar o fato e tornei a fechar os olhos.
Ela me puxou pelo braço e eu acordei. Ouvi vagamente o barulho do mar. Saltei do carro pesadamente, tentando dissipar a névoa dos olhos. Estávamos parados numa rua escura. Mais além, ficava a areia de uma praia. Ela me levou para uma casa, onde havia uma tabuleta. t
V
BEN'S-LANCHES
- Onde estamos? - perguntei.
- Em Coney Island.
Deu a volta à casa e me levou para um pequeno bangalô nos fundos. Bateu na porta, dizendo:
- Ben! Acorde! Sou eu!
Uma luz se acendeu dentro do bangalô. Ouvi um som repetido no chão como de uma bengala pesada e do outro lado da porta uma voz de homem perguntou, ainda tonta de sono:
- Quem é?
- Sou eu, Sara. Abra depressa, Ben!
A porta se abriu e eu vi um homem, todo sorridente.
- Sara! Não esperava você de volta tão depressa. Que é que há?
- Deixe-nos entrar, - disse ela, ajudando-me.
O homem afastou o corpo e ela me levou para um sofá encostado à parede. Joguei-me em cima dele satisfeito. Ela se voltou para o homem.
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- Vá ver um pouco de água quente.
Quando o homem começou a andar na sala, ouvi de novo o som que me parecera de uma bengala. Da calça do pijama dele saía uma perna de pau. Uma das mangas do pijama estava presa com um alfinete de fralda e eu fechei os olhos, pensando que estivesse sonhando. Quando tornei a abri-los, ambos ainda estavam lá - Sara e o homem que só tinha um braço e uma perna.
- ele está ferido, Ben. Temos ao menos de lavar-lhe os ferimentos com água quente.
Procurei levantar-me. Estava sentindo muito calor. Tudo me pareceu turvo diante dos olhos. Por que fazia tanto calor ali?
- Estou bem, -- murmurei. - Não se incomodem que eu estou bem.
De repente, tudo começou a rodar à minha frente. Que queria dizer aquilo ? Talvez eu ainda estivesse no beco... Havia um raio de luz lá ao longe.
- Abra. Papai! - gritei e precipitei-me na direção da luz. Passei por ela tão facilmente quanto um peixe por dentro da água e fui sair na escuridão do outro lado.
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TODOS OS DIAS DA MINHA VIDA
LIVRO TERCEIRO
O sol de julho estava emergindo da água e dourando a crista das ondas quando saí do passeio. A areia estava branca e limpa sob os meus pés. Mais tarde, ficaria suja e cheia de lixo, mas naquela hora estava fresca, macia e agradável.
A praia estava deserta. Daí a duas horas começariam a chegar as primeiras pessoas e, depois a multidão tomaria conta de tudo. Respirei profundamente o ar da manhã e marchei para a água. Era a única hora do dia em que se podia tomar um banho. O Oceano Atlântico ficava todo à nossa disposição.
Tirei a toalha dos ombros e me olhei. Havia no braço apenas uma pequena cicatriz esbranquiçada no lugar onde Spit me atingira. O resto desaparecera na pele queimada que me cobria o corpo.
Entrei na água. Comecei a nadar rapidamente. O gosto da água salgada na boca e no nariz era revigorante. Ao fim de algum tempo, a praia me pareceu pequena e distante. Virei-me de costas e comecei a boiar. Era quase como se eu estivesse num mundo particular.
Era difícil acreditar que já dois meses eram passados desde o dia em que Sara me levara para ali. O que acontecera naquela noite não acontecera realmente comigo, mas com outra pessoa que morava no meu corpo, um garoto que tinha o mesmo nome que eu.
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Mas tudo isso ficara para trás e esquecido. Sara me batizara com um novo nome no momento em que molhara um algodão na água quente para lavar-me os ferimentos.
Danny White. Foi esse o nome que ela deu quando me apresentou ao irmão. Sorri ao pensar nisso. A princípio, não protestei porque estava fraco demais, mas quando vi os jornais no dia seguinte e encontrei meu nome nas fotografias da luta, fiquei contente. Quanto menos o irmão dela ou qualquer outra pessoa soubesse a meu respeito, melhor.
Havíamos procurado ansiosamente nos jornais alguma notícia sobre Spit e o Cobrador, mas nada encontramos. Trocamos olhares curiosos, mas só pudemos conversar à tarde quando Ben saiu.
- Acha que ainda não os encontraram? - perguntei.
- Não sei. Saberei de alguma coisa quando chegar lá esta noite.
- Vai para lá, Sara?
- Não posso deixar de ir. Se eu não aparecer, Maxie saberá que houve alguma coisa e virá procurar-me. É a única maneira que temos de ficar em segurança.
- Eu vou é sair daqui, Sara. Não lhe posso trazer nada senão aborrecimentos e perigo.
- E para onde irá você?
- Não sei, mas arranjarei algum lugar. Não posso ficar aqui. Mais cedo ou mais tarde, descobrirão. E então se voltarão contra você também.
- Você vai ficar aqui, Danny, - disse ela, acariciando-me o rosto. - Você vai ficar aqui e trabalhar com Ben. ele bem que precisa de quem o ajude.
- E se alguém me reconhecer?
- Ninguém vai reconhecê-lo. Coney Island é um lugar muito grande. Mais de um milhão e meio de pessoas vêm para cá no verão e uma multidão é o que pode haver de melhor como esconderijo. Nunca vão suspeitar de que você está aqui.
- E você, Sara? ele vai querer saber onde você esteve ontem à noite. Que é que você vai dizer?
- Nada. Toda a empregada tem direito a um dia de folga. Se èle me perguntar o que estive fazendo, direi que vim ver meu irmão. ele sabe que eu faço isso todas as semanas.
- Seu irmão sabe de Maxie?
- ele pensa que eu sou apenas secretária de Maxie. Acredita que antes disso trabalhei como modelo. Depois que ele sofreu há
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cinco anos o acidente em que perdeu um braço e uma perna, quis morrer. Achou que não podia mais trabalhar e que seria sempre uma sobrecarga para mim. Nós dois não temos outros parentes vivos. Isso aconteceu no ano em que eu concluí o curso. Disse a ele que não se preocupasse, que eu arranjaria um emprego e trataria de tudo até que ele estivesse em condições de trabalhar de novo, do mesmo modo por que ele me havia sustentado depois da morte de nosso pai.
Sorriu tristemente para mim e continuou:
- Eu nessa ocasião era pouco mais do que uma menina. Não sabia quanto dinheiro é preciso para remédio e médicos e não sabia quanto pagam pouco a datilógrafas, mesmo quando sabem taquigrafia como eu. Os quinze dólares que eu ganhava por semana cobriam apenas uma pequena parte das nossas despesas. Meu primeiro emprego foi no escritório de um agente teatral. Aprendi depressa a trabalhar e poucas semanas depois pedi um aumento ao meu patrão e ele me riu na cara. Não compreendi e perguntei de que estava rindo.
- Você é ótima pequena, mas infelizmente não lhe posso pagar mais do que lhe pago.
- Mas eu preciso de mais dinheiro.
ele pensou um momento e afinal me disse:
- Se está precisando mesmo de dinheiro, posso arranjar-lhe um meio de ganhar muito.
- Como? Estou disposta a fazer tudo. Preciso do dinheiro!
- Vai haver uma festa esta noite. Alguns amigos meus estão em visita à cidade e me pediram que lhes mandasse algumas pequenas. Pagam vinte dólares.
- Acho que eu realmente não sabia o que ele estava querendo dizer, mas os vinte dólares eram muito dinheiro e eu fui à tal festa. Nunca tinha visto coisa alguma parecida com aquilo e já ia sair quando o meu patrão apareceu e me viu ali a um canto, aterrada. Sorriu compreensivamente e me levou uma bebida. Depois de alguns goles, senti-me mais animada e tomei outros copos. Depois, só me lembro de ter ido para um quarto com ele.
- Quando acordei no dia seguinte, estava sozinha num quarto estranho e com uma terrível dor de cabeça. Levantei-me um pouco atordoada, procurando as minhas roupas. Estavam em cima de uma cadeira e sobre elas havia um cartão no qual estava escrito o seguinte: "Pode chegar um pouco mais tarde hoje". Havia também uma nota de 20 dólares. Eu havia passado a ser uma profissional. Olhei-me ao espelho mas não havia nada em mim que indicasse qualquer mudança.
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O que havia era o fato de que eu encontrara um meio de ganhar vinte dólares sempre que precisasse. Com o tempo, passei a precisar com muita freqüência.
Levantou-se e olhou para mim. O rosto estava impassível e não havia qualquer emoção na voz.
- E foi isso o que aconteceu. Trabalhei e paguei os remédios e as contas do médico, mas foi só depois de conhecer Maxie Fields numa festa que consegui arrumar este negócio para Ben.
Eu não sabia o que dizer. Senti a boca seca e me deu vontade de fumar. Estendi a mão para o maço, mas parece que ela teve a mesma idéia e as nossas mãos se encontraram e ali ficaram unidas. Ela me olhou bem nos olhos e continuou.
- E assim continuou até à noite em que você ficou porque eu pedi. Ficou para proteger-me, porque não queria que Maxie pensasse que eu havia falhado e não queria que ele me maltratasse. Nunca eu fizera aquilo por amor, sempre por dinheiro. Nunca por mim mesma, só por dinheiro. Até àquela noite. Foi então que compreendi que coisa de infinito valor eu havia vendido. Mas era muito tarde. Eu havia fixado o preço e não podia recuar.
Largou minha mão, tirou um cigarro do maço e acendeu-o para mim.
- Tem mesmo de ir, Sara? - perguntei.
- Tenho, sim - sorriu e acrescentou: - Sabe que é muito engraçado ouvir você chamar-me de Sara? Há muito tempo só quem me chama assim é Ben.
- Você, que eu saiba, não tem outro nome.
- Danny, - disse ela com um olhar cheio de ternura -, vamos conservar tudo entre nós como está. Sejamos amigos.
- Nós somos amigos, Sara, - disse eu, tomando-lhe a mão. Nesse momento, Ben entrou trazendo sopa quente. Tomei um pouco de sopa e adormeci. Quando acordei, ela havia saído e Ben estava sentado ao meu lado.
- Sara já foi? - perguntei.
- Já. O patrão dela, Sr. Fields, esperava-a hoje à tarde. ele a faz trabalhar muito.
- É um homem importante.
ele hesitou um momento e disse:
- Sara me disse que você quer trabalhar aqui neste verão.
- Quero, sim.
- Não posso pagar muito, sabe? Ainda não sei o resultado que isto aqui vai dar.
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- Não fale em dinheiro. Não é o que você me vai pagar que é importante. O que interessa é que eu possa pagar o que ambos estão fazendo por mim.
ele sorriu e me estendeu a mão.
- Creio que nos daremos bem, Danny.
E de fato nos havíamos dado bem. Já fazia dois meses. Sara vinha ver-nos uma vez por semana e tudo estava dando certo. Os negócios não eram muito bons mas Ben fazia o bastante para cobrir as despesas e se sentia muito feliz com isso. Eu era feliz também porque estava fora do alcance de Fields.
Quando Sara reapareceu na semana seguinte, eu já estava quase em condições normais. Tirando o braço que ainda não havia cicatrizado, nada mais sentia. A primeira coisa que lhe perguntei logo que tivemos um momento a sós foi o que havia acontecido a Spit e ao Cobrador. Durante toda a semana, os jornais nada tinham publicado.
Soube então que estavam num hospital privado de um médico conhecido de Fields. O Cobrador ficara com o maxilar quebrado do pontapé que eu lhe dera e Spit levara nove pontos no ferimento que, se fosse alguns milímetros mais profundo, seria fatal pois lhe atingiria o coração. Fiquei de certo modo contente. Não me agradaria ter algum crime de morte nas costas.
Fields ficara realmente furioso. Havia jurado que ainda me encontraria e aí então eu me iria arrepender. Naquela mesma noite, mandara vasculhar todo o bairro à minha procura. Uma semana depois, ainda estava com raiva.
Então, à medida que passavam as semanas, Sara me dizia que ele cada vez falava menos em mim. Estava convencido de que eu fugira da cidade levando o dinheiro. Era bom que ele pensasse assim.
Muitas vezes tinha querido pedir a Sara que procurasse saber alguma coisa a respeito de Nellie e de minha família, mas não tive coragem. Não tentei nem escrever-lhe porque durante muito tempo Fields mandara vigiar a todos, de acordo com Sara. Gostaria de saber se Papai havia comprado a farmácia, se Mimi ainda estava trabalhando, como estava Mamãe e se sentiam a minha falta e lamentavam o meu desaparecimento. À noite, pensava em todos quando me ia deitar. Fechava os olhos e podia imaginar-me de novo em casa e que Mamãe estava preparando o jantar, chegando a sentir até o cheiro da sua sopa de galinha. Mas Papai chegara em casa e eu me sentia tomado de tristeza. Abria então os olhos e tudo desaparecia.
Pensava em Nellie. O rosto dela me aparecia nitidamente, sorridente, com os olhos negros cheios de ternura e amor.
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Gostaria de saber se ela compreendia, se imaginava o motivo do meu desaparecimento. Talvez se lembrasse ainda do que eu lhe tinha dito: "Não se esqueça de que a amo, aconteça o que acontecer". Via-a então sorrir e podia quase ouvir-lhe a resposta: "Não esqueço, Danny".
Ia dormir então embalado pelos roncos de Ben e só ia acordar no dia seguinte com o sol brilhando fortemente, como brilhava naquele momento em que eu boiava ali no mar, balançando levemente pelas ondas mansas.
- Danny!
Voltei-me para a praia, de repente; engolindo um pouco de água, ao ouvir a voz que me chamava da praia.
Era Sara que me dava adeus. Respondi ao adeus e voltei para a praia, sorridente e nadando vigorosamente.
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Ela encontrara minha toalha e estava tirando o roupão ao lado dela quando cheguei.
- Que é que está fazendo aqui, Sara? Só a esperávamos depois de amanhã.
- Maxie teve de sair da cidade. Tenho todo o fim-de-semana à minha disposição.
- Aconteceu alguma coisa?
Ela estava ajeitando os cabelos debaixo de uma touca de banho e me respondeu:
- Como é que eu vou saber? Não tenho nada com isso. O que me interessa é poder passar o fim-de-semana aqui com você.
Só compreendi o sentido das palavras dela quando fomos juntos para o mar. Ela não falara em Ben. Só em mim. Olhei-a, não nadava mal para uma mulher. Tinha uma batida de crawl bem boa e cortava a água com facilidade.
- Já viu Ben?
- Já. Foi ele que me disse que você estava aqui. A água está ótima, não acha? Estou quase sem fôlego.
Dei algumas braçadas para perto dela e segurei-a por debaixo dos braços.
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- Descanse um pouco. Assim.
Ela não pesava nada dentro da água. Sentia-lhe a firmeza do corpo enquanto as ondas nos balançavam de um lado para outro. Senti um calor subir por dentro de mim e me afastei.
Ela olhou para mim. Sentira a mesma coisa.
- Por que fugiu de mim, Danny? - As ondas estavam muito fortes. - Por que foi, Danny? Diga a verdade.
Olhei-a. O rosto dela estava pequeno e lindo sob a touca amarela de borracha e os olhos estavam límpidos e jovens como se a água do mar houvesse lavado tudo dela, todo o seu sofrimento, todo o seu conhecimento das coisas. Não adiantava esconder nada dela. Não se faz isso com uma amiga.
- Estou procurando defender-me, Sara.
- Como assim?
- Você é linda e eu não sou de ferro.
O brilho do seu olhar mostrou que isso lhe agradara.
- E nada mais? - perguntou ela.
- Que mais poderia haver?
Ela hesitou um instante e perguntou em voz pausada:
- Que é que eu sou para você?
- Você é minha amiga. Nada vale mais do que isso.
- Tem certeza, Danny?
- Claro. Não quero estragar tudo.
- Acha que se me beijasse, isso poderia estragar tudo, não é assim, Danny?
- Acho que sim.
Ela me encarou firmemente e perguntou:
- É porque você gosta de outra, não é, Danny? Bati com a cabeça. Uma nuvem passou pelos olhos dela.
- Como é que você sabe sem pôr à prova o seu amor, Danny? Há muitas espécies de amor de que você talvez não faça a menor idéia.
Os lábios dela estavam trêmulos. Os olhos estavam levemente molhados e não apenas de água salgada. Aproximei-a de mim e beijei-a. A boca estava suave, doce e quente. Fechou os olhos e o corpo perdeu a força quando a beijei. Disse-me então em voz bem baixa:
- Sei muito bem que você nunca me poderá amar como ama a outra e assim é que deve ser, Danny. Mas há alguma coisa que temos para dar um ao outro. Talvez não seja muito, nem por muito tempo, mas seja o que fôr temos de dar-lhe toda a importância.
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Não respondi. Nada havia para responder.
- Lembra-se do que eu lhe disse naquela noite, Danny? Nunca foi por amor, sempre por dinheiro. Nunca foi por mim mesma. Quero que ao menos uma vez seja diferente, seja por mim mesma e não pelo que me pagam. Quero você, Danny!
- Será então como você quer, Sara, - disse eu, beij ando-a.
Uma coisa eu havia aprendido: não se paga aos amigos dizendo que não se tem para eles o que querem de nós. E se estiverem dispostos a aceitar como legítima uma boa imitação, a gente não os está enganando; eles é que se enganam a si mesmos.
Sara havia encontrado um meio de compensar-se de muitas coisas e eu era esse meio.
- Você está quase preto e com os cabelos branqueados pelo sol, - disse ela, enquanto me enxugava as costas com a toalha. - Ninguém iria reconhecê-lo agora.
- Mas você me reconheceu.
- Eu sabia onde podia encontrá-lo. Ah! Isso me faz lembrar de uma coisa. Conhece um homem chamado Sam Gotkin?
- Conheço, sim. Que é que há com ele?
- ele foi ver Maxie um dia desses para conversar sobre você.
- Que era que ele queria?
- Queria saber onde você estava. Levou com ele um italiano chamado Giuseppe, se não estou enganada. Você o conhece?
- Conheço. É o irmão de minha pequena. Para que é que foram procurar Maxie?
- Tinham sabido que Maxie mandara procurar você por toda a parte na noite da luta e queriam saber o motivo. Sam e Maxie são velhos amigos. Sam disse que só soube do seu desaparecimento quando sua irmã foi procurá-lo. Por que ela fêz isso?
- Já trabalhei para Sam. Além disso, tudo estava preparado para Sam ser meu empresário quando eu me tornasse profissional. Que foi que conversaram?
- Maxie disse tudo o que sabia sobre o seu paradeiro, isto é, nada.
- Não disse porque era que me estava procurando?
- Disse, sim, e Sam ficou furioso. Disse a Maxie que ele não devia ter-se aproximado de você. Chamou-lhe toda a espécie de nomes.
- E Maxie ouviu calado?
- Inteiramente, não. Maxie disse que Sam devia ter-lhe oferecido sociedade em você desde que você morava no território dele.
210
Tiveram então uma grande discussão. Maxie disse que cuidaria de você quando o encontrasse. Sam disse que ele não devia fazer nada antes dele, pois tinha também contas a ajustar com você.
Não era surpresa para mim. Eu já sabia que não havia ninguém com quem eu pudesse contar.
- E Maxie concordou com isso?
- Concordou no momento. Os dois se sentaram, tomaram alguns uísques e falaram de negócios. Sam então telefonou para sua irmã, marcou um encontro para aquela noite e saiu. Maxie deu então vazão à sua raiva e disse que, se encontrasse você, Sam só iria saber disso muito depois.
Era mais ou menos o que eu esperava dele. Não poderia agir de outra forma. Ela então me perguntou. - Sua irmã é noiva de Sam Gotkin?
- Por que pergunta isso? - exclamei, surpreso.
- Porque um dos argumentos de Sam com Maxie foi que não queria que lhe acontecesse coisa alguma pois estava noivo de sua irmã e uma coisa dessas poderia estragar todos os seus planos. Não sabia disso?
- Não, Sara, não sabia. Até hoje, não sabia nem que eles se conheciam.
Aquilo era o que me parecia mais estranho de tudo. Sam e Mimi... Era difícil de acreditar.
Uma voz nos chamou do passeio. Era Ben que gritou.
- Como é? Vão ficar aí na boa vida o dia inteiro? Pensam que estamos no Natal?
3
Eu estava sentado atrás do balcão, enchendo saquinhos de amendoim. Ben deu um soco no balcão e disse um palavrão.
- Que é que há? -• perguntou Sara, espantada.
- Um freguês vinha para cá, mas um desses malditos garotos tomou-lhe a frente. Ainda admira que eu consiga vender alguma coisa com a concorrência de todos esses garotos.
211
- Mas tenha calma, Ben, - disse Sara. - Não adianta você ficar irritado assim.
- Mas nós estamos gastando um bom dinheiro pagando impostos e assumindo responsabilidades por este negócio e esses garotos estragam tudo. Não pagam um tostão de nada e nos tiram os fregueses vendendo sorvetes, sanduíches e tudo o mais na praia.
- Mas os guardas não lhes dão sossego, - disse Sara.
- É certo, mas os guardas passam a maior parte do tempo olhando as pequenas e nem se importam com eles.
- Apesar de tudo, - disse ela -, eu não seria capaz de passar o dia todo debaixo desse sol quente para vender uma caixa de sorvete e ganhar alguns níqueis.
Ben encerrou a conversa saindo raivosamente para a sala dos fundos, a arrastar pelo chão a perna de pau.
- ele está mesmo zangado, - murmurei.
- E com toda a razão - disse Sara com o olhar triste. - Possuir um negócio assim sempre foi o grande sonho de Ben e ele faz questão de ter êxito aqui. Do jeito que as coisas vão, ele mal tirará o dinheiro das despesas durante o verão. Não fará dinheiro suficiente para manter-se durante o inverno. Isso quer dizer que terá de me pedir dinheiro. E essa idéia o aborrece porque ele tem um espírito muito independente.
Continuei a arrumar os saquinhos de amendoim no balcão. Ela estava com a razão e eu sabia como Ben se sentia. Dali mesmo de onde eu estava, via quatro garotos na praia com as suas caixas. Eram garotinhos mesmo e não pareciam más pessoas. A maioria se dava por muito feliz quando ganhava mais de um dólar por dia porque eram roubados pelos negociantes de quem compravam as mercadorias. Quem fizesse negócio honesto com aqueles garotos poderia ganhar uma fortuna porque havia centenas deles na praia.
Tive de repente uma idéia. Que idiota eu tinha sido em não pensar nisso antes! Sam me havia ensinado isso no interior. Sam ganhava bem nas suas concessões porque dava uma boa participação aos rapazes que trabalhavam para ele. Por que não podia Ben fazer o mesmo ali na praia?
Ben havia voltado e estava junto à registradora olhando para a praia. Bati-lhe no ombro.
- Quer saber de uma coisa, Ben. Esses garotos podem muito bem trabalhar para você como trabalham para os outros.
- Que garotos? De que é que você está falando?
- Os garotos da praia. Por que não os contrata?
212
- Deixe de tolice, Danny. Você acha que eu tenho tempo de andar atrás deles na praia para receber o que me devem?
- Não é preciso andar atrás deles. Pagam adiantadamente o que recebem.
- Mas só pagam a metade. Para o resto, é preciso fazer força senão eles não pagam. Além disso, por que iriam fazer negócio comigo? Podem conseguir mercadoria com qualquer pessoa.
- Não pode deixar de haver um meio de resolver isso, - disse eu. - E se não quisermos dinheiro adiantado? Se pedíssemos que deixassem um depósito, alguma coisa assim como um relógio ou uma bicicleta? Assim, eles não teriam de desembolsar dinheiro e fariam negócio conosco.
- Nem pense nisso, Danny. Além do mais, não temos espaço aqui para atendê-los.
- Espere aí, - disse Sara. - Você tem a sala dos fundos que poderia usar para isso, colocando lá uma geladeira grande.
- Mas, Sara, você bem sabe que eu não tenho tempo. Não posso sair e ir conversar com os garotos convencendo-os a trabalhar comigo.
- Conseguirei os garotos para você. - disse eu no mesmo instante. - Conseguirei os garotos que você quiser.
Sara olhou para mim e se voltou num desafio para o irmão.
- Então?
ele ficou hesitante, sem responder.
- Que é que há com você, Ben? - perguntou ela. - Você sempre disse que queria ganhar um bom dinheiro. Essa é uma boa
oportunidade. Ou será que não se interessa mais por dinheiro? ele sorriu e se voltou para mim.
- Está bem, Danny. Vamos tentar. Às vezes, me esqueço de que não estou mais sozinho.
Estava quase escuro. Todos os garotos que iam aparecer já deviam estar lá. Estava havia uma hora sentado num banco vendo os garotos desaparecerem embaixo do passeio de madeira que marginava a praia.
Acendi um cigarro, levantei-me e desci os degraus de pedra que levavam à praia. Ouvi um murmúrio de vozes quando me abaixei sob o passeio e sorri satisfeito. Eu estava certo. A maneira mais fácil de encontrar um grupo de garotos é descobrir onde eles fazem o seu jogo de dados.
213
Cerca de vinte estavam jogando numa faixa de cimento sob o passeio. Apenas alguns eram de minha altura e minha idade. A maioria era de garotos menores. Passei por entre eles até chegar ao centro da roda. Um dos garotos ia lançar os dados. Havia muitos níqueis amontoados no chão perto dele. Joguei calmamente uma nota de cinco dólares no cimento.
- Cubro qualquer aposta, - disse eu.
Todos os rostos se voltaram para mim. Olhei-os bem. Não havia animosidade neles, mas apenas curiosidade. Até aí, tudo bem. Não havia dificudade. Cinco dólares eram um bocado de dinheiro para aqueles garotos.
O que estava com os dados perguntou:
- Quem é você?
Sorri com o cigarro pendente dos lábios e disse.
- Apenas um camarada que gosta de jogar.
Ele me olhou um momento e depois disse polidamente:
- Recolha o seu dinheiro, sim? Não podemos topar jogo tão alto.
Peguei a nota de cinco dólares e perguntei: - Qual é o máximo que vocês jogam?
- Dez cents.
Meti as mãos nos bolsos e tirei um punhado de níqueis. - Jogo assim mesmo. Não sou esnobe. ele jogou os dados e exclamou:
-- Estendeu a mão e pegou alguns dos níqueis que havia ganho. Fiz mais algumas apostas e comecei a conversar com o garoto mais próximo.
- Vocês vendem coisas na praia?
O garoto bateu com a cabeça, sem desviar a atenção dos dados.
- E ganham bom dinheiro?
- Está brincando? - perguntou ele, olhando para mim.
- Não, não estou brincando. Sei que muito dinheiro está rolando nesse comércio ambulante e eu gostaria de saber se vocês estão ganhando o que merecem.
- Coisa nenhuma, - disse ele. - Só nos pagam 20% de comissão e a gente tem sorte no dia em que consegue fazer um dólar e um quarto.
A situação era ainda melhor para nós do que eu havia pensado.
- Acho que vocês estão sendo explorados, - disse eu. - Sei de quem paga 40% e não exige dinheiro adiantado.
- Não é possível! Ninguém faz isso em Coney Island!
214
- Pois eu sei quem faz. E sei também que a casa está procurando vendedores.
ele estava visivelmente interessado e esqueceu momentaneamente os dados.
- Onde? - perguntou ele.
- Acha que os seus companheiros estão interessados? ele riu e disse:
- quem não está interessado em ganhar dinheiro? Quer ver? Eh, pessoal! Este camarada aqui diz que conhece uma casa que paga
40% e não exige dinheiro adiantado.
Todos me cercaram e o jogo acabou nesse instante. Todos começaram a falar ao mesmo tempo.
Levantei a mão para conseguir um pouco de silêncio e disse!
- Se vocês aparecerem amanhã de manhã na casa de Ben Dofman, terei vinte e cinco caixas preparadas para vocês saírem com elas. Vocês aqui são vinte. Levem os amigos também.
Só estava errado numa coisa. Esperava que aparecessem vinte e cinco. Apareceram cinqüenta e no fim da semana havia cento e cinqüenta garotos trabalhando para nós.
O velho despertador na prateleira marcava onze horas quando Ben levantou a cabeça. A luz elétrica mostrava o seu rosto cansado. Empurrou para a frente o resto dos níqueis em cima da mesa e disse:
- Conte o resto, Sara. Não agüento mais.
Ela começou a contar o dinheiro e ele se voltou para mim, exausto.
- Que semana! Nunca me senti mais cansado numa noite de sábado. Esses garotos são mesmo formidáveis!
- Não lhe disse, Ben? Acho que recolhemos em bruto oitocentos dólares desde que começamos na manhã de quinta-feira. Numa semana completa, a arrecadação deve ir a 1.200 dólares, o que representa quatrocentos líquidos, de lucro.
215
- Você tinha razão, Danny, - disse ele, sorrindo. - Tenho de lhe fazer essa justiça.
Sara acabou de contar o dinheiro e embrulhá-lo em pequenos rolos de papel.
- Nunca vi tanto níquel em minha vida, - disse ela, levantando-se.
Ben olhou para ela como se a estivesse consultando sobre alguma coisa. Ela fêz um sinal afirmativo e ele se voltou para mim.
- Eu e Sara queremos que saiba que apreciamos muito isso, Danny. Você fêz muito por nós. De hoje em diante, terá direito a
25% da féria dos vendedores.
Olhei-o surpreso e senti um aperto na garganta. Nunca havia esperado nada tão bom. Fiquei sem poder falar.
- Que é que há, Danny? - perguntou ele. - Acha pouco?
- Eu não esperava tanto, Ben. Não sei como lhe vou agradecer.
- Não me agradeça, rapaz. Agradeça a Sara. Ela acha que você tem direito a uma boa parte desse dinheiro porque, se não fosse você, não conseguiríamos nada.
Sara sorriu e murmurou:
- E acho muito justo.
Os nossos olhos se encontraram. Eu nada disse. Há coisas que não se dizem. Há sentimentos para os quais não se encontra uma expressão. Muito eu devia a ela. Se não fosse por ela, eu talvez não estivesse ali vivo naquele momento.
A voz de Ben me interrompeu os pensamentos.
- Gostaria de ter uma banheira com água quente aqui. Nada me seria mais agradável agora do que um bom banho seguido de uma cama de verdade.
- Por que vocês dois não vão passar a noite no hotel comigo? Temos dinheiro bastante para isso. Vocês dois podem ir para um quarto com banheiro e passar a noite confortàvelmente.
- Foi a melhor idéia que eu ouvi esta noite! - exclamou Ben entusiàsticamente. - Que tal, garoto?
Sacudi a cabeça. O Hotel Half Moon era grande e atraía muita gente da cidade. Alguém ali podia reconhecer-me. Era melhor ficar ali mesmo.
- Não, Ben. Vá você com Sara. É melhor ficar alguém aqui tomando conta da casa.
- Que é que você acha? - perguntou ele a Sara.
Ela me olhou, fiz-lhe um sinal quase imperceptível e ela compreendeu sem demora.
216
- Acho que Danny tem razão. Venha comigo, Ben. Danny ficará aqui tomando conta da casa.
Depois que eles saíram, deitei-me no sofá. Acendi um cigarro e levantei a mão para desligar o interruptor. A brasa do meu cigarro era a única luz que havia na sala.
Estava cansadíssimo. Podia sentir o cansaço invadir-me o corpo, chegando até aos dedos dos pés. Seria bom que eu tivesse ido com eles. Um banho quente lembraria os tempos em que eu vivia em casa com minha mãe. Mas não me podia arriscar. Ao menos, ali estava em segurança.
Apaguei o cigarro e descansei a cabeça nas mãos cruzadas sob a nuca, ficando de olhos abertos na escuridão. Ouvi passos no passeio de madeira. Havia sempre gente passando por ali. Era um barulho monótono que os pés faziam no tabuado do passeio e ao fim de algum tempo acompanhavam as batidas do coração.
Como era estranho aquilo tudo! Ainda achava difícil de acreditar. Já fazia dois meses que eu estava longe de casa. A família estaria pensando em mim? Mamãe estava, com toda a certeza, mas dos outros eu não sabia. Papai, ainda que pensasse, era teimoso demais para dizê-lo a alguém.
Virei o corpo para o lado e fechei os olhos. A tensão me abandonou e eu adormeci.
Ouvi uma batida na porta e levantei-me no mesmo instante. Liguei o interruptor e olhei para o relógio. Já era quase uma hora.
Tornaram a bater e eu me dirigi para a porta, esfregando os olhos, tonto de sono.
- Quem é?
- Sara.
Abri a porta e perguntei, surpreso:
- Que é, Sara? Houve alguma coisa?
- Nada. Estava sem sono e saí para dar um passeio. Passei por aqui e me deu vontade de saber se você ainda estava acordado.
- Estava tirando um cochilo para depois sair e dar um giro também. Entre.
Ela entrou e eu perguntei depois de fechar a porta: - Como é? Ben tomou o banho que queria?
- Tomou, sim, e depois foi dormir contente da vida. Nunca
o vi tão satisfeito desde o dia em que sofreu o acidente.
- Ótimo, - disse eu, sentando-me no sofá.
Ela se sentou numa cadeira diante de mim e perguntou:
217
- Quer-me dar um cigarro?
Entreguei-lhe o maço e ela me pediu fogo. Depois, ficou fumando em silêncio.., olhando para mim. Afinal, perguntou:
- Que idade tem você, Danny?
- Dezoito, - respondi, exagerando um pouco.
- Tenho de voltar amanhã, - disse ela lentamente.
- Eu sei.
- Gostaria de não ir, mas ele estará de volta.
Levantou-se então, quase me assustando com a violência do movimento.
- Que ódio tenho dele, que ódio! Como seria bom que eu nunca o tivesse conhecido!
- Eu também, - murmurei.
- Como pode dizer isso? - perguntou ela com voz áspera. - Que é que você sabe a respeito dele? ele nunca lhe fêz o que tem feito comigo. Não seria possível porque você é um homem e não uma mulher. O máximo que ele pode fazer com você é feri-lo ou matá-lo. Não pode fazer com você o que tem feito comigo!
O choro manso dela encheu a pequena sala. Aproximei-me dela, passei os braços pelos ombros dela e encostei-lhe a cabeça no meu peito. Isso a fêz chorar ainda mais.
- Você não pode nem imaginar o que tenho sofrido na mão dele, Danny! Que coisas ele me tem obrigado a fazer! Ninguém pode jamais saber, nem sequer acreditar. Há nele uma perversidade profunda que chega à beira da loucura. Tenho medo de voltar. Tenho medo dele, do que ele fará comigo!
- Então não volte, Sara. Ben está ganhando bem, agora. Você não tem necessidade de voltar.
- Não posso deixar de ir, Danny. Se eu não aparecer, ele virá buscar-me e então Ben ficará sabendo de tudo. Não posso permitir uma coisa dessas.
Alisei-lhe os cabelos macios, beijei-os e murmurei:
- Algum dia, Sara, você não vai precisar de voltar.
Ela então virou-se para mim e me beijou num beijo longo e delirante. Fechou os olhos, com a última lágrima ainda a brilhar nos cilios.
Os nossos hálitos se confundiram. Senti o quente perfume que vinha do corpo dela.
- Danny! - murmurou ela, sem deixar de beijar-me.
O coração me batia violentamente, estendendo o seu ritmo de exaltação a todo o corpo. Os seios dela eram firmes e os músculos das coxas estavam tensos e trêmulos quando ela se agarrou a mim.
218
- Danny! Não posso mais ficar de pé!
Fomos para o sofá. Ajoelhei-me ao lado dela, tirando-lhe todas as roupas e beijei-a apaixonadamente da cabeça aos pés. Depois, deitamo-nos juntos e só houve o contato dos nossos corpos e a exaltação da nossa carne.
Ela era hábil, eficiente, entendida. Mas, apesar de toda a sua experiência, havia nela alguma coisa que me fazia compreender. E por compreendê-la, amei-a.
Foi Sara quem dormiu no sofá naquela noite comigo. Sara e não Ronnie.
Depois de fechar o refrigerador onde ficavam os sorvetes, voltei para a loja. Ben estava fechando e eu o ajudei.
- Que calor fêz hoje! - disse ele, banhado em suor. - E pelo jeito a noite não vai ser melhor.
- Acho que não.
A multidão passava lentamente, procurando em vão um pouco de ar fresco.
- Não adiantou muito a essa gente vir para cá, - disse Ben.
- Quando faz calor assim, é em toda a parte. Ah, já me ia esquecendo, Danny. Mike esteve aqui à sua procura. Acho que quer que você vá ajudá-lo hoje à noite.
Mike tinha a concessão da Roda da Fortuna, bem perto de nós.
- Pete está bêbado de novo? - perguntei.
Pete era irmão de Mike. Trabalhava com ele, salvo quando se excedia na bebida. Eu já ajudara Mike várias vezes quando isso acontecia.
- Não sei, - respondeu Ben. - Não me disse. Pediu apenas que você aparecesse logo que acabasse aqui.
- Está bem, vou ver o que é que ele quer.
Fui encontrar Mike sozinho, olhando aborrecido para a multidão. Sorriu ao ver-me.
- Está muito cansado para me ajudar esta noite, Danny? Pete não apareceu.
219
Hesitei. Estava cansado, mas sabia que com aquele calor eu não poderia dormir cedo no bangalô. Ben tinha-se mudado para o hotel logo que teve certeza de que as férias continuariam altas. Eu estava sozinho no bangalô.
- Está bem, Mike. Que é que você quer que eu faça? A propaganda ou a roda?
- Propaganda, se não se incomoda. Fiz as duas coisas o dia inteiro e não agüento mais.
Concordei. Amarrei um avental na cintura, peguei uma vareta embaixo do balcão e virei-me para a gente que passava. Mike me fêz sinal para começar e eu iniciei a propaganda na voz metálica que se fazia ouvir acima do murmúrio da multidão.
Gostava muito de fazer a propaganda. Já sabia tudo de cor e tinha ouvido tudo centenas de vezes, mas as palavras sempre me impressionavam. Gostava de fazer as pessoas gastarem os seus níqueis sem que houvesse uma razão verdadeira para isso. Em quase tudo na vida, era assim. Gasta-se dinheiro no que se sabe quase com certeza que não vai dar resultado.
- Venham tentar a Roda da Fortuna! Basta jogar um níquel e toda a vez que a roda gira uma pessoa ganha! Não se pode perder! Ganhar é certo! Venham buscar dinheiro! Tentem a sorte!
Vi um rapaz que se aproximava com uma moça pelo braço. Hesitou um momento em frente da casa. Apontei-o com a minha longa vareta.
- Olá, meu jovem! - exclamei numa voz que se podia ouvir a algumas dezenas de metros de distância. - Sim, é com você mesmo que eu estou falando, você que está em companhia da linda senhorita! Dou-lhe uma chance grátis! O patrão me recomendou que todo o Sir que estiver acompanhado de uma moça bonita tivesse uma chance grátis para a moça junto com a sua! Aposte o seu níquel e escolha dois números! Dois pelo preço de um!
O rapaz olhou para a moça com um sorriso embaraçado e colocou um níquel num dos números vermelhos. Apanhei prontamente o níquel e joguei duas fichas azuis.
- Aí está um rapaz de juízo! - disse eu às pessoas que começavam a juntar-se em frente à casa. - Enxerga de longe um bom negócio. E está muito bem acompanhado, de modo que todo o mundo pode ver como ele é inteligente. Traga a sua pequena à Roda da Fortuna e tenha duas chances pelo preço de uma!
Os níqueis começaram a tilintar no balcão. Eu estava animando a assistência. Olhei por cima do ombro para Mike. ele tinha um sorriso de aprovação e, virando-se para trás, fêz girar a roda. Vi o pé dele enganchar-se no estribo atrás do balcão. Eu já sabia quem ia ganhar.
220
- Pronto, pessoal! - gritei. - Lá vai a roda girando, girando, girando, e ninguém sabe onde vai parar. Todo o mundo ganha quando a Roda da Fortuna gira!
Tinha a longa vareta pronta para bater com ela no ombro da moça que estava com o rapaz quando a roda parasse de girar.
Perto da meia-noite, um vento fresco soprou e o povo começou a dispersar-se para ir dormir. Mike saiu de onde estava e se aproximou de mim.
- Vamos fechar, garoto. Hoje não áe arranja mais nada. Tirei o avental em cujos bolsos havia guardado os níqueis e passei-o a Mike. ele esvaziou os bolsos dentro de um saco sem contar o dinheiro. Desligou o interruptor e saímos, trancando as portas.
- Que dia horrível! - exclamou Mike, exausto.
- Tenho café lá em casa, Mike. Venha tomar uma xícara.
- Até que é uma boa idéia, Danny. Aceito, sim.
Botei o café no fogão para esquentar e Mike se sentou cansadamente numa cadeira.
- É a terceira vez em duas semanas que tive de pedir a sua ajuda, Danny.
Sorri. Mike era um sujeito direito. Não me importava de ajudálo porque sabia que podia contar com ele numa hora de necessidade. ele elevou um pouco a voz.
- Ainda vou deixar um dia aquele meu irmão falando sozinho. Onde é que já se viu beber desse jeito e deixar a gente na mão!
Servi o café e entreguei uma xícara a Mike.
- Estou farto, sabe, Danny? Desta vez, estou falando sério. Vivo dizendo isso, mas desta vez é de verdade. Logo que encontrar um camarada em quem eu possa confiar, mando meu irmão passear.
Continuei calado a tomar o meu café. Já ouvira aquilo uma porção de vezes e sabia que Mike sempre aceitava o irmão de volta.
De repente, Mike bateu com a mão na mesa, com uma expressão engraçada no rosto.
- Sou mesmo um idiota!
- Como assim? - perguntei.
- Ando à procura de uma pessoa e durante todo o tempo essa pessoa está bem diante do meu nariz! Gostaria de trabalhar comigo, garoto?
221
Olhei-o, surpreso. Não havia pensado nisso, mas não era possível.
- Gostar, eu gostaria, Mike, mas não posso abandonar Ben, agora.
- A temporada aqui ainda vai durar umas duas semanas, Danny, e eu me arranjo até lá. Estou falando é depois, quando eu levar a roda para o sul, durante o inverno. Você tem planos para essa época?
Sacudi a cabeça. Não, não tinha feito planos para o inverno. Nem havia pensado nisso. O verão passara com tamanha rapidez que eu nem tivera tempo.
- Venha então comigo, Danny. Nós fechamos isto aqui nos princípios de setembro, descansamos durante uns quinze dias e vamos pegar o show de Petersen no dia 2 de outubro, em Memphis.
- Parece interessante, - disse eu, hesitante. Senti de repente saudades de casa. Até então, tinha sido como nos outros anos. Trabalhava no verão com a certeza implícita de que voltaria para casa. Mas daquela vez seria diferente. Não tinha mais casa para onde ir.
- Você vai gostar, garoto, - disse Mike, sorrindo. - As pequenas no Sul são como coelhos no campo.
Sorri, ainda hesitante. Tinha de conversar com Sara antes de tomar uma decisão. Talvez ela tivesse outros planos.
- Posso lhe dar uma resposta daqui a uns dias, Mike? Tenho de resolver umas coisas antes.
Esperei até ficarmos sozinhos na primeira noite em que ela apareceu depois disso e contei-lhe tudo. Ela me ouviu em silêncio. Quando terminei, acendeu um cigarro.
- Não vai então voltar para casa depois do verão?
- E você acha que eu posso?
- Acho que não. Mas tinha vagamente a idéia de que você voltaria.
- Ainda mesmo que meu pai me aceitasse, quanto tempo você acha que levaria para Maxie Fields saber da minha volta? E quanto tempo eu duraria depois disso?
- Ben acho mesmo que não pode voltar. E sua pequena? Não vai mandar dizer a ela o que está fazendo? Ela deve estar louca de preocupação.
Era engraçado que ela pensasse nisso. Senti um aperto na garganta e disse:
222
- Que é que eu vou fazer? Não posso me arriscar a que transpire alguma coisa sobre o meu paradeiro.
- Neste caso, acho que pode ir, - disse ela, com uma nota de irritação na voz.
- Parece que está zangada, Sara. Houve alguma coisa?
- Não houve nada. Vá com Mike. Você se arranjará. Não precisa de ninguém.
Levei as mãos aos ombros dela e depois as fiz deslizar passando pelos seios até à cintura.
- Preciso de você, Sara.
- Não, Danny - disse ela, levantando-se e afastando-se de mim. - Você não precisa de ninguém. Nem mesmo de mim.
E saiu num repelão da sala sem olhar para trás.
Fiquei ali parado, sem saber o que tinha dado nela. Só no dia seguinte é que Ben me esclareceu. Ela ia deixar de trabalhar com Maxie Fields e os dois iam para o Oeste juntos a fim de montar um pequeno negócio.
6
Combinei com Mike encontrar-me com ele em Memphis no dia
2 de outubro.
- Agora, todos os meus planos estão feitos - disse ele, todo satisfeito.
Os planos de Sara estavam feitos também. Ela tinha dito a Ben que arrumasse tudo e estivesse pronto para partir na primeira quinta-feira de setembro. Ela iria pegá-lo à tarde no carro e partiriam imediatamente. Não tive oportunidade de perguntar-lhe se ela tinha dito alguma coisa a Maxie sobre a sua saída, mas era evidente, da maneira por que falava, que nada dissera.
Por este ou por aquele motivo, sempre se conservou distante de mim nas poucas vezes em que depois disso foi a Coney Island. Parecia que não desejava falar comigo e eu não insisti. Não queria absolutamente discutir com ela. De repente, a temporada chegou ao fim.
223
Ben havia trazido para o bangalô tudo o que levara para o hotel e, quando chegou a quinta-feira marcada, estava com tudo arrumado e pronto para a viagem. Parecia feliz e animado como uma criança a quem se prometeu um passeio. Olhava a cada instante para o relógio. Sara ficara de ir pegá-lo às três horas da tarde.
- Gostaria muito de que você fosse conosco, Danny - disse ele, falando comigo da sala onde estava sentado entre as bagagens, - A princípio, Sara pensou que você iria conosco. Foi uma decepção para nós você dizer que ia trabalhar com Mike.
Compreendi tudo imediatamente. Fora eu uma das principais razões da decisão de Sara. Antes que ela me dissesse alguma coisa sobre os seus planos, eu lhe tinha dito que ia trabalhar com Mike. E ela havia mudado de idéia, pensando que era isso mesmo que eu queria fazer.
Antes que eu tivesse tempo de responder, bateram na porta da rua. Vesti as calças apressadamente enquanto Ben dizia, indo até à porta:
- Sara chegou mais cedo.
Ouvi a porta abrir-se e um arrepio me correu pela espinha.
- Ronnie está aí? Era a voz de Spit.
O meu primeiro impulso foi fugir, mas a única saída era pela porta da rua e eu fiquei encostado à parede do quarto, apurando os ouvidos para tudo o que se passava na sala.
- Ronnie? Quem é Ronnie? - perguntou a voz confusa de Ben.
Outra voz se fêz ouvir.
- Não venha com conversa mole, ouviu? Sabe muito bem de quem é que estamos falando A pequena de Fields.
- Ah, devem estar falando em minha irmã Sara, que é secretária do Sr. Fields. Entrem e esperem. Ela ainda não chegou.
Ouvi passos pesados que entravam no bangalô e colei os olhos na estreita faixa da porta entreaberta. Spit e o Cobrador estavam no meio da sala. O Cobrador estava rindo.
- Secretária de Fields... - dizia ele, rindo. - É um nome novo para a coisa...
Ben fêz uma cara de estranheza e perguntou:
- Há alguma coisa que o Sr. Fields queira? Sei que Sara não se importará de ficar mais uns dias para ajudá-lo.
- Por quê? - perguntou o Cobrador. - Ela está com idéia de sair?
224
- Está. O Sr. Fields não lhe disse? O Cobrador tornou a rir.
- Maxie vâi gostar muito de saber disso. Será uma surpresa para ele descobrir que a pequena dele quer dar-lhe o fora.
- Que foi que você disse? - perguntou Ben, franzindo o rosto.
- Você ouviu muito bem o que eu disse. Nenhuma vagabunda dá o fora em Maxie Fields por mais alto que seja o preço que cobre.
- Está falando de minha irmã! - exclamou Ben com um gritô de animal ferido, lançando-se contra o Cobrador.
Saiu do campo de minha visão e eu só pude ouvir o baque surdo da queda de Ben. Começou a gritar.
- Sara! Fuja! Não entre!
Ouvi o barulho de várias bofetadas e socos, mas Ben continuou a gritar. Mudei de posição na porta até vê-los de novo.
O Cobrador tinha um joelho plantado no peito de Ben e o esbofeteava sem parar.
- Cale a boca, seu cachorro!
Ben continuou a debater-se e gritar. O Cobrador pegou o braço dele e começou a torcê-lo.
- Cale essa boca, resto de gente, senão eu lhe arrancarei o outro braço!
O rosto de Ben ficou branco de dor e ele ficou inerte e em silêncio no chão, olhando apavoradamente para o Cobrador. Senti a náusea subir-me do fundo do estômago. Nunca tinha visto tanto medo nos olhos de ninguém.
- É melhor levá-lo para o outro quarto, - disse Spit. - Se a vagabunda o encontrar assim quando chegar, é capaz de começar a gritar!
O Cobrador levantou-se, ainda segurando o braço de Ben.
- Levante-se!
Ben tentou desajeitadamente levantar-se, mas não conseguiu. O Cobrador torceu-lhe mais o braço e ele deu um grito de dor.
- Não vê que não posso me levantar assim! Tenho uma perna só!
O Cobrador riu. Largou o braço de Ben e pegou-o por baixo dos braços como se fosse uma criança, fazendo-o levantar-se.
- Mas você é mesmo um trapo de gente! - disse ele com a maior insensibilidade.
225
Empurrou Ben e este veio trôpegamente em direção à porta do quarto.
Corri os olhos em torno desesperadamente. Vi perto da porta uma barra de ferro com a qual eu costumava escorar a janelinha nas noites de calor. Apanhei-a e escondi-me atrás da porta.
A porta se abriu e Ben entrou aos tropeções, seguindo pelo Cobrador. Este fechou a porta com o pé sem se virar e acompanhou Ben.
Saí em silêncio por trás dele e acertei-o com a barra de ferro. O sangue jorrou imediatamente do ouvido do Cobrador onde a barra o havia atingido e ele caiu em silêncio. Não soubera nem o que havia acontecido.
- Cheguei a pensar até que você não estivesse mais aqui. - disse Ben, com voz rouca.
- Eu estava aqui o tempo todo mas tive de esperar uma oportunidade para entrar em ação - disse eu, sentindo um gosto amargo na boca.
ele aceitou a minha explicação. Tinha coisas mais importantes em que pensar.
- Ouviu o que disseram a respeito de Sara?
- Ouvi...
- É verdade?
Olhei-o. Havia no rosto dele um sofrimento que nada tinha de material. Vinha-lhe do íntimo. Sara era a irmãzinha mais moça. ele a havia mantido na escola depois da morte dos pais e, depois, ela havia cuidado dele quando sofrera o desastre. Eu sabia que ele acreditaria no que eu lhe dissesse. Por muitos motivos, mas principalmente porque queria acreditar. Talvez algum dia, ele viesse a saber o que ela havia feito. Mas não por mim.
- De modo algum, - disse eu, procurando falar com a maior firmeza. - Maxie Fields é uma espécie de gangster, mas que tem uma porção de negócios legítimos. Sara foi trabalhar com ele e quando descobriu tudo e quis sair, ele não deixou porque ela já sabia demais.
Um pouco de sofrimento lhe desapareceu do rosto, mas não todo.
- Pobre Sara, - murmurou éle. - Que coisas ela tem passado por minha causa. Como foi que você a conheceu, Danny?
- Tive uma briga com esse camarada aí e fiquei ferido. Ela me salvou.
226
Era a primeira vez que ele me interrogava sobre isso. Até então, acreditara no que ela tinha dito, que eu caíra do carro dela naquela noite quando ela me levara para trabalhar com ele.
Ele me olhou fixamente, procurando saber se era verdade o que dizia. Por fim, o resto do sofrimento desapareceu dos seus olhos.
- E o outro que está lá fora? - perguntou ele.
- Vamos cuidar dele, - disse eu. Abaixei-me e tirei-lhe o revólver do coldre no ombro.
- Isso explica uma porção de coisas, - murmurava Ben. - Koi por isso que ela estava com tanta pressa de sair da cidade. Era por isso que sempre tinha de voltar para o trabalho. Não queria que eu soubesse.
Ouvimos o barulho de um automóvel que parava do lado de fora. Fiz sinal a Ben para ficar ali e marchei para a porta. Ouvi a porta da frente se abrir. A voz de Spit estava muito calma.
- Alô, menina. Maxie mandou-nos atrás de você logo que descobriu que suas roupas não estavam mais lá.
- E Ben? - gritou ela. - Que foi que fizeram com Ben?
- Não há nada com ele, Ronnie. O Cobrador levou-o para o quarto para que ele não nos criasse problemas.
Ela atravessou a sala e abriu a porta do quarto. Entrou gritando:
- Ben! Você está bem?
Ben levantou-se, sorrindo para ela. Spit entrou também no quarto. Fui por detrás dele e encostei-lhe o revólver na espinha.
- Fique quieto, Spit, - disse eu com voz lenta. - Estou muito nervoso e nunca mexi até hoje numa coisa destas!
Tenho de dizer a verdade. Spit havia crescido também durante o verão. Tinha mais energia. Nem virou a cabeça. Na realidade, nem se moveu. Perguntou com voz cautelosa, mas curiosa.
- Danny?
Catuquei-o com o revólver.
- Vá até à parede, Spit. Até encostar o nariz. Passou cuidadosamente por cima do Cobrador.
- Sempre com os seus truques, hem, Danny? Primeiro, o dinheiro de Maxie; depois, a pequena dele.
Virei o revólver na mão e bati-lhe no rosto. ele cambaleou e eu o empurrei, fazendo-o ir bater na parede. Tornei a encostar o revólver nas costas dele e tirei-lhe a faca da bainha.
- Maxie não vai gostar disso, Danny. Já deu certo para você uma vez. Mas ele não vai gostar de você machucar a gente dele de novo.
Eu ri e disse friamente:
227
- A gente dele vai gostar ainda menos se levar uma bala. Ou será que Maxie tem um telefone em ligação direta com o inferno?
ele ficou calado e encostou-se mais à parede. Virei-me um pouco e olhei para trás.
Ben estava com o braço passado pelo ombro de Sara e ela chorava desesperadamente.
- Não chore, Sara, - dizia ele ternamente. - Você nunca mais trabalhará para aquele homem.
Ela parou de chorar e voltou-se para mim, perguntando com voz assustada:
- ele sabe, Danny? Eles...
- Disse a ele para que espécie de homem você trabalhava, Sara, - disse eu, interrompendo-a prontamente. - Disse que ele não a deixava sair porque você sabia demais sobre as atividades criminosas dele.
- Já sei de tudo, Sara, - disse Ben. - Por que não me disse antes? Teríamos achado uma solução juntos.
Ela voltou para mim um olhar de gratidão e eu sorri para ela. Ela se voltou para o irmão.
- Tinha medo dele, Ben, e por isso suportei muita coisa.
- Está bem, Sara. Agora, não se preocupe mais. Entregaremos esses camaradas à polícia e seguiremos o nosso caminho.
- Não podemos fazer isso, Ben! - exclamou ela, num tom de medo.
- Decerto - disse eu. - Isso os atrasará e vocês acabarão não viajando hoje. É melhor irem seguindo. Eu tratarei de tudo depois que vocês saírem.
- Acha que é isso que devemos fazer? - perguntou Ben.
- Claro. Tratem de levar a bagagem para o carro. A voz abafada de Spit veio da parede.
- Não agüento mais, Danny. Posso virar-me?
- Espere um pouco, - disse eu, apanhando um pedaço de fio elétrico na prateleira.
Juntei as mãos dele nas costas e amarrei-as com o fio. Apertei com toda a força e virei-lhe o corpo. Os olhos dele estavam faiscando de raiva.
- Sente-se, Spit. Fique à vontade, - disse eu, dando-lhe um soco no queixo e fazendo-o cair em cima do sofá.
Olhei para a sala. Toda a bagagem de Ben já tinha sido levada para o carro. Faltava ainda uma maleta. Ben apanhou-a e me perguntou:
- Tem certeza de que tudo está bem, Danny?
- Claro, Ben. Vá tratando de sair.
228
ele se aproximou de mim e pousou a mão em meu ombro.
- Adeus, garoto. Obrigado por tudo.
- Eu é que agradeço, Ben. Adeus.
Logo que ele saiu, Sara entrou. Veio com os olhos fitos em mim.
- Não quer mesmo vir conosco?
- Não posso agora, - respondi, forçando um sorriso. - Estou um pouco ocupado.
Ela tentou sorrir da minha piada, mas não conseguiu. Caiu de repente nos meus braços.
- Danny!
- É melhor ir logo, Sara. Assim, você deixará para trás todo o seu passado. Não haverá nada para fazê-la recordar-se.
Com os olhos cheios de lágrimas, beijou-me no rosto e disse:
- Adeus, Danny. Felicidades.
Saiu apressadamente, antes que eu pudesse responder. Virei-me para Spit, que me estava observando.
- Procuramos em todo o canto, Danny, menos aqui. Devíamos ter adivinhado. Ronnie esteve também na rua naquela noite. Eu me lembro agora. Que é que vai fazer comigo?
- Estenda-se ai no sofá que você vai ver, - disse eu, pegando em outro pedaço de fio.
ele se deitou no sofá sem muita vontade. Amarrei-lhe os tornozelos com o fio. Dobrei-lhe depois as pernas e amarrei juntos pulsos e tornozelos. Olhei-o satisfeito. Aqueles nós deviam resistir um bocado de tempo.
Voltei para onde estava o Cobrador. O sangue tinha parado de correr do ouvido e ele respirava com mais facilidade. Levantei-lhe uma das pálpebras e vi que os olhos estavam ainda vidrados.
Peguei as poucas coisas que possuía e guardei-as numa maleta que havia comprado. Spit me observava do sofá e em dado momento me disse:
- Você não escapará desta vez, Danny.
Aproximei-me do sofá, levantei os olhos e vi o medo crescer nos olhos dele.
- Como é que você sabe disso?
ele não respondeu. Olhava para o revólver cheio de pavor. Depois de um momento, sorri e guardei a arma no bolso, enquanto uma expressão de surpresa se lhe espalhava pelo rosto.
- Se você é tão esperto quanto eu acho que é, Spit, - disse eu, pegando a maleta e encaminhando-me para a porta, - terá o cuidado de não se atravessar mais no meu caminho. Do contrário, talvez as coisas se passem de maneira diferente.
229
Saí, tranquei a porta e passei o cadeado. Fui depois até ao armarinho da esquina e deixei lá a chave para ser entregue ao senhorio.
A senhora que trabalhava no armarinho com o marido recebeu a chave e me perguntou sorrindo através dos óculos:
- Já vai, Danny? Tudo bem?
- Tudo, Sra. Bernstein. Tudo vai bem agora.
O ônibus do sul estava na barca que desatracava do cais e eu olhava pela janela para as luzes de Nova York. Cintilavam muito e havia começado a chover.
Estava certo para mim. Era assim mesmo que eu me sentia. Deixava alguma coisa para trás, embora não soubesse muito bem o que era. Fosse o que fosse, a chuva a levava. Voltaria algum dia àquela minha cidade. Talvez então as coisas fossem diferentes.
Recostei-me no banco e abri o jornal que comprara pouco antes. Já estávamos rolando pelas planícies de Nova Jersey quando deparei com a notícia. E embora a lesse, não podia acreditar. Dizia:
"Sam Gotkin, grande empresário de concessões de bares e cantinas em estâncias de veraneio e que há tempos foi concorrente ao título dos meio-pesados com o nome de Sammy Gordon, casou-se ontem com Miriam (Mimi) Fisher, irmã de Danny Fisher, campeão das Luvas de Ouro deste ano. Depois da lua-de-mel nas Bermudas, o casal fixará residência num novo apartamento de cobertura em Central Park South, que foi decorado especialmente para a noiva".
Levei automaticamente a mão à corda do ônibus para descer. Mas logo afastei a mão. Que era que me adiantaria voltar? Não poderia mais modificar coisa alguma.
Mimi e Sam... Como havia acontecido isso ? Como eles se tinham conhecido? E que era feito daquele camarada do escritório por quem ela se interessava tanto? Fechei os olhos cansadamente. Nada mais importava. Pelo menos para mim, era como se nunca tivesse existido para eles.
230
A chuva batia nas janelas do ônibus e o barulho me foi entorpecendo, até que eu cochilei. Sam e Mimi começaram a aparecer-me, mas nunca juntos. Sempre que um deles ficava em foco, o outro desaparecia. Não pude desejar-lhes felicidades.
NÃO ESTAVA PRESENTE QUANDO...
ELA estava sentada diante da penteadeira com as lágrimas a lhe rolarem incontrolàvelmente pelo rosto. Tinha à boca um lenço inútil.
- Por que é que ela está chorando? - perguntou meu pai nervosamente a Mamãe. - Não é o dia do casamento dela? Que é que ela tem de chorar assim?
Mamãe olhou-o com má vontade. Pegou-o pelo braço e levou-o até a porta.
- Vá fazer sala aos convidados, - disse ela. - Ela estará bem na hora da cerimônia.
Depois que ele saiu, Mamãe passou o trinco na porta. Esperou com o o rosto calmo e compreensivo que o acesso de choro de Mimi passasse. Não esperou muito. Dentro em pouco, Mimi parou de chorar. Olhou para o lenço que estava amassando nervosamente nos dedos.
- Você não o ama, - disse ela calmamente.
Mimi olhou para ela e disse com voz sumida e cansada:
- Amo, sim, Mamãe.
- Se você não o ama, não tem de casar-se com ele, - disse Mamãe, como se não a tivesse ouvido.
- Estou bem agora. Foi nervosismo ou criancice da minha parte.
- Pensa que já está crescida só porque vai se casar? Não se esqueça de que eu tenho de assinar a autorização para que o casamento se realize.
Mimi voltou-se e olhou-se no espelho da penteadeira. As lágrimas lhe haviam estragado a maquilagem. Levantou-se para ir lavar o rosto na pia.
Mamãe fê-la parar com a mão no braço da filha e disse:
- Você terá de viver toda a sua vida com ele, Miriam. E se não o ama, a sua vida será um inferno. Você...
- Mamãe? - exclamou Mimi, nervosamente. - Não fale assim! É muito tarde agora!
- Não, não é tarde, Miriam. Você ainda pode mudar de idéia.
- É muito tarde, Mamãe. Já era tarde naquela primeira vez em que fui procurá-lo para saber o que havia acontecido a Danny. Que é o que eu vou fazer agora? Dar-lhe todo o dinheiro que ele gastou tentando descobrir onde Danny estava para nós?
231
Restituir-lhe os cinco mil dólares que ele emprestou a Papai para a farmácia? Devolver-lhe todos os vestidos que comprou para mim, junto com o anel, e pedir desculpas, dizendo que tudo foi um equívoco de minha parte?
- Será melhor isso do que ser infeliz pelo resto da sua vida. Não deixe que Papai e eu façamos com você o que fizemos com Danny.
Os olhos de Mamãe se encheram de lágrimas. Mimi abraçou-a.
- A senhora não tem culpa de nada do que aconteceu. Papai foi o único culpado.
- Não, eu podia tê-lo impedido de fazer o que fêz... E é por isso que lhe estou falando. Não cometerei o mesmo erro outra vez.
- Não há nenhum erro, Mamãe, - respondeu Mimi com segurança, como se soubesse de tudo. - Sam me ama. Se eu não o amo agora como ele a mim, isso poderá vir com o tempo. ele é bom e generoso. Tudo acabará dando certo.
Mamãe olhou-a incertamente. Mimi beijou e abraçou impulsivamente Mamãe.
- Não se preocupe, Mamãe. Sei o que estou fazendo. É isso mesmo que eu quero.
Ela estava sentada na cama, com o corpo cheio de tensão do medo antecipado. Ouvia-o escovar os dentes no banheiro. O barulho da água corrente cessou abruptamente. Ela ouviu o estalo do interruptor desligado e deitou-se prontamente na cama, com o corpo todo encolhido.
Ela o ouviu atravessar o quarto no escuro e sentar-se no outro lado da cama, cujas molas se vergaram sob o seu peso. Continuou imóvel, sentindo em todo o corpo um frio que quase a fazia bater os dentes.
Depois de um momento de silêncio, sentiu a mão dele tocar-lhe o ombro. Trancou rigidamente os dentes e ouviu-o murmurar:
- Mimi.
- Sim, Sam, - conseguiu ela dizer.
- Vire-se para cá, Mimi.
Ela disse com uma voz cuidadosamente controlada.
- Por favor, Sam, hoje não. Dói.
A voz dele era delicada e compreensiva.
- Não tentaremos nada hoje. Quero apenas que descanse a cabeça em meu peito. Não quero que tenha medo de mim. Eu a amo.
232
Ela sentiu os olhos cheios de lágrimas. Virou-se e encostou a. cabeça no peito dele.
- Ama mesmo, Sam? Ama-me depois de tudo o que lhe fiz?
- Claro, minha filha. Você não fêz nada. Todas se sentem assim na primeira vez.
Ela se descontraiu pouco a pouco nos braços dele. Levantou a cabeça e beijou-o na boca quase como uma menina beijaria o pai.
- Obrigada, Sam, - murmurou ela. Houve alguns instantes. de silêncio e então ela murmurou: - Tentarei de novo se você quiser, Sam.
- Sério, minha querida? - perguntou ele, com voz contente e feliz.
- Sério, Sam.
Fechou os olhos e sentiu as mãos dele que lhe acariciavam os cabelos. Depois, os lábios dele lhe tocaram de leve as faces e desceram para o pescoço. George costumava fazer isso. Repeliu o pensamento com raiva. Por que tinha de pensar nisso naquele momento? Não estava sendo honesta com Sam. ele não era responsável pelo que havia acontecido. Só ela é que era culpada. Tinha, querido que fosse assim desde o momento em que fora com Nellie procurar Sam.
Levantou contritamente a mão e acariciou-lhe o rosto. As faces estavam lisas. ele havia feito a barba antes de ir para a cama. Beijou-a na boca. Os lábios eram quentes e delicados. Ela o beijou também.
Teve um assomo momentâneo de medo ao sentir-lhe a mão fria e leve debaixo da camisola. Mas o seu toque era delicado e tranqüilizador e pouco a pouco ela se descontraiu, deixando o corpo livre de qualquer resistência. Sentia o pulsar do coração dele contra ela.
Começou a sentir no corpo calor e arrepios. Em outros tempos, sentia isso também... Em que estava ela pensando ? Aquiloera bom e ela estava contente de sentir-se assim naquele momento.
Os lábios dele estavam no seu seio. Teve prazer e segurou a cabeça dele, beij ando-o na testa. Fechou os olhos e pensou em George. Teria sido assim com ele. Teria sido muito mais fácil com ele. Nunca tivera medo dele como tinha de...
A voz dele era um sussurro ansioso dentro da noite..
- Está bem, querida?
Ela bateu vivamente com a cabeça, sem coragem de falar..
233
Sam estava deitado ao lado dela, acariciando o seu rosto afogueado. Havia um secreto orgulho em sua voz quando ele murmurou:
- Viu, querida? Não havia motivo para ter medo.
- Não, - disse ela, escondendo o rosto no peito dele.
Mas no fundo do coração ela sabia que estava mentindo. Teria sempre de mentir-lhe. Teria sempre medo. Não fora o rosto dele que lhe surgira pela frente no momento dilacerante do orgasmo. "Terei de viver toda a minha vida assim, meu Deus?" pensou ela. "Sempre com medo?"
Lembrou-se então das palavras que pronunciara na cerimônia do casamento: "Eu, Miriam, recebo a ti, Samuel, como meu legítimo marido, na riqueza e na pobreza, na doença e na saúde, para amarte, honrar-te e confortar-te, até que a morte nos separe".
ele estava dormindo, com a respiração profunda e tranqüila. Ela lhe olhou o rosto calmo. ele estava feliz. Era melhor assim.
Encostou a cabeça no travesseiro e fechou os olhos. Tinha sido por minha causa e agora iria passar todos os dias e todas as noites da sua vida ao lado dele. E ele nunca saberia do seu fracasso. Só ela saberia que o havia enganado e o enganaria em todos os momentos melhores da sua vida em comum.
8
Eu estava no centro do parque de diversões deserto enquanto a chuva caía sobre mim. Ajeitei a gola do blusão sob as abas largas do chapéu e tirei uma fumaça do cigarro. Aquela chuva não iria parar tão cedo. Olhei para o parque. A lona das barracas molhadas era sacudida pelo vento.
Dois anos daquilo. Tinha sido muito tempo. Havia passado grande parte da minha vida dentro daquelas barracas de lona. Tinha havido dias tão quentes que se chegava a pensar que se estava dentro de um forno em algum ponto do inferno e noites tão frias em que parecia que até a medula dos ossos havia virado gelo.
234 -
Dois anos daquilo. O povo, atravessando o parque ao mesmo tempo que se empanturrava de algodão de açúcar, cachorro-quente e sorvete. As pessoas que chegavam com os olhos desconfiados, sentindo que éramos uns vagabundos, querendo comprar o que tínhamos para vender, mas um pouco aborrecidas com o fato de que nós é que as vendêssemos.
Dois anos fora de casa, sem saber do que tinha acontecido. Nellie, Mamãe e Papai, Mimi, Sam. Os nomes ainda doíam. Todas as vezes que eu pensava que me havia esquecido de tudo, era empolgado por aquele sentimento de vazio e solidão. Estava escondido bem no fundo de mim mesmo, mas não havia desaparecido.
Naquele momento, eu estava quase em casa. Quase, era maneira de dizer. Filadélfia. Eu podia tomar um trem na estação de Market Street e, pouco tempo depois, descer na estação da Pensilvânia. Era fácil quando se pensava nisso. Eu estava a uma hora e vinte minutos de casa apenas. Mas as coisas eram sempre muito simples quando eu pensava nelas. Só deixavam de o ser, quando eu começava a fazê-las. A memória de tudo o que havia acontecido estava sempre comigo. E eu sentia raiva não só do pensar que me causava o exílio forçado, mas também o medo que me dava a minha volta.
Mas eu queria sempre voltar para casa. Havia laços que me prendiam aos que lá estavam, ainda que não quisessem a minha volta. Laços que não posso traduzir em palavra, pois são pura emoção dentro de mim. Estavam a uma hora e vinte minutos apenas de todas essas coisas. Daí a dois dias, quando o parque tomasse o rumo do sul na sua peregrinação anual, eu estaria a seis horas, uma semana depois, a vinte horas e dentro de um mês, seria uma viagem de muitos dias.
Olhei para o céu. As nuvens de chuva estavam baixas e firmes,, o vento me açoitava o rosto, o cigarro estava molhado entre os meus lábios. A chuva iria passar a noite no parque.
Deixei o cigarro cair da boca e apagar-se numa poça de água aos meus pés. Pude quase ouvir o chiado colérico da brasa na sua luta vã com a água. Pensei que era como o cigarro lutando pela vida contra a chuva que me cercava. Não podia respirar, sentia o ar pesado nos pulmões. Tinha de ir para casa. Tinha de ver Nellie de novo. E Mamãe e Mimi. E Papai também, quer ele me quisesse ver, quer não. Ainda que eu soubesse que não poderia ficar e teria de voltar quase no mesmo instante. Podia ser que se passasse muito tempo até eu poder estar em casa de novo. E estava cansado de viver sozinho.
235
O pôquer de todas as noites estava ferrado quando entrei na barraca. Os jogadores me olharam por um instante, enquanto eu batia o chapéu para fazer a água cair. Voltaram depois as vistas para as cartas.
A luz da lâmpada de óleo lhes brilhava nos rostos quando me aproximei da mesa. Fiquei atrás de Mike, olhei o jogo dele e sorri. ele nunca ia ficar rico pedindo duas cartas para fazer flush.
- Vai chover a noite toda - murmurei.
- Vai, sim, - disse Mike distraidamente, com a atenção concentrada nas cartas.
- Quantas ? - perguntou quem estava dando cartas.
- Duas, - disse Mike.
Pegou as cartas e olhou-as. Torceu a cara e murmurou aborrecido:
- Não entra nada. - Jogou as cartas em cima da mesa e olhou para mim. - Quer jogar, Danny?
- Não, muito obrigado. Chega de prejuízo no pôquer. Posso ter a noite de folga, Mike?
Mike riu.
- Arranje uma pequena para mim também e nós dois teremos uma noite de folga.
- Hoje, não, Mike. Quero ir a Nova York. Não vamos sair juntos esta noite.
- Está-se fazendo difícil, Danny? - perguntou outro jogador. - É melhor ter cuidado com essas pequenas de Filadélfia. Todas elas têm um irmão no Exército.
Mike fechou a cara e me perguntou.
- Que é que você vai fazer lá?
Eu nunca lhe contara muita coisa, mas Mike era inteligente. Devia ter desconfiado de que me acontecera alguma coisa desagradável lá. Mas nunca me fizera perguntas e não ia saber de nada naquele momento.
Mike olhou para a mesa. Foi recolhendo as cartas e olhando-as. Seis. Nove. Oito. Sete. Ás. Tudo preto e de espadas. Apertou as cartas nervosamente. Tinha-se esquecido completamente de mim.
- Posso ir, Mike?
- Pode, sim, mas esteja aqui amanhã às onze da manhã que é a hora que vamos sair.
236
A chuva ainda batia nas janelas do trem quando o chefe do l rcm chegou pedindo as passagens. Picotou o meu bilhete e murmurou:
- Que noite horrível!
Não podia concordar com ele. Afinal, eu estava indo para casa e Nova York ficava a apenas cinqüenta e cinco minutos.
9
Estava chuviscando quando subi a escada do subway mas o movimento na Rua Delancey era tão grande como sempre. A chuva não atrapalhava aquela gente, para quem o mundo era a Rua Delancey. Era sempre bom andar pela Rua Delancey e olhar para as vitrinas das lojas, pensando no que se poderia comprar se houvesse dinheiro.
Acendi um cigarro e esperei que o sinal abrisse para eu atravessar a rua. As vitrinas das lojas não haviam mudado. Nunca mudariam. A venda de liquidação na casa de artigos para homens, os bolos e os pães na vitrina de Ratner's... Tudo estava exatamente como na última vez em que eu por ali passara. O balcão de cachorro-quente na esquina da Rua Essex tinha talvez os mesmos fregueses.
O sinal abriu e eu atravessei a rua. As coisas não haviam mudado nada. Os mesmos mendigos estavam vendendo os seus lápis, as mesmas mulheres muito maquiladas passavam por entre a multidão à procura de fregueses com os olhos desiludidos. Mas eu havia mudado. Tive uma prova disso quando uma das mulheres olhou para mim e murmurou um convite quando eu passei. Fiquei a olhá-la, sorrindo. Dois anos antes, ela não teria feito isso. Naquele tempo, eu era apenas um garotinho.
Segui pela rua rumo à loja de Nellie. Ela devia estar lá, não podia deixar de estar. Um relógio na vitrina do Paramount marcava cinco para as nove. Mais cinco minutos e a loja se fecharia e ela sairia. Estava ansioso por vê-la. Ela estaria mudada também? Talvez me tivesse esquecido, talvez tivesse outro namorado. Dois anos são muito tempo para uma moça esperar, especialmente quando não havia notícias. Eu nunca escrevera uma linha que fosse.
237
Cheguei à porta da loja e olhei para dentro. Não havia muita gente na loja, mas tive um receio nervoso de entrar. Talvez ela não me quisesse ver. Fiquei ali um instante indeciso e afinal fui postarme na esquina.
Fiquei sob o lampião, o mesmo lampião onde sempre a esperara. Joguei o cigarro fora e olhei para a porta da loja. Faltavam alguns minutos, só alguns minutos. As têmporas me latejavam e a boca estava seca. Um grupo de pequenas saiu conversando da loja já quase às escuras. Olhei-as ansiosamente quando passaram. Nenhuma era ela.
Olhei de novo para a porta. Mais moças saíam. Torci os dedos nervosamente. Nem sinal dela. Olhei para o relógio. Quase nove e cinco. Se ela estivesse ali, ia sair logo.
Enxuguei o rosto com o lenço. Apesar do ar frio da noite, eu estava suando. Olhei para a porta e vi outras moças que saíam. Olhava cada rosto rapidamente e passava para o seguinte. Nada. Saíam mais lentamente, em grupos de duas ou sozinhas. Chegavam à rua, olhavam para o céu e tomavam rapidamente o caminho de casa.
Tornei a olhar o relógio. Quase nove e vinte. Já havia perdido a esperança. Resolvi ir-me embora. Tinha sido tolice minha pensar que ela ainda trabalhava ali. Tinha sido tolice minha acreditar que dois anos tinham passado sem fazer qualquer diferença. Mas já que estava ali, não me podia ir embora assim. Esperei que a loja ficasse inteiramente vazia e que fechassem a porta.
Tirei um cigarro do bolso e risquei um fósforo. O vento apagou a chama antes que eu pudesse acender o cigarro e eu risquei outro fósforo, protegendo-o com a mão em concha. Nesse momento, ouvi outras vozes femininas e, entre elas, uma que me fêz ficar imóvel, prendendo a respiração. Era ela.
- Boa noite, Molly.
Olhei-a. Ela estava de costas para mim, falando com outra moça, que ia seguir caminho diferente. À fraca luz das lâmpadas da rua, olhei-a avidamente. Ela parecia não haver mudado em nada. A mesma boca suave, a mesma pele branca, o mesmo rosto redondo, os mesmos grandes olhos castanhos. E os cabelos... ninguém tinha cabelos assim, tão negros que até a luz fraca da rua tirava deles reflexos azulados. Fiquei ali sem ação, olhando para ela.
A outra moça afastou-se e ela começou a abrir o guarda-chuva. Era um guarda-chuva alegre, de xadrez vermelho e quando o levantou, ergueu a vista e me viu. Acabou automaticamente de abrir o guarda-chuva, com uma expressão de atordoada incredulidade no rosto. Deu um passo hesitante para mim e parou.
238
- Danny?
Estava olhando para ela. Tentei falar, mas as palavras não me saíram dos lábios O cigarro me caiu dos lábios.
- Danny! Danny! - gritou ela, correndo para mim. O guarda-chuva ficou aberto e esquecido na porta ao lado dela.
Caiu-me nos braços, beij ando-me, chorando e repetindo o meu nome de instante a instante. Os lábios dela eram quentes, depois frios e em seguida quentes de novo. Sentia as lágrimas dela no meu rosto e o seu corpo trêmulo sob a capa curta.
Havia nos meus olhos uma névoa que não era da chuva quando olhei para ela. Fechei os olhos e murmurei-lhe o nome:
- Nellie.
Beijei-a. Os nossos lábios se juntaram, dissolvendo num instante todo o longo tempo que havíamos passado longe um do outro. Era como se nada tivesse acontecido. Só uma coisa era importante - estarmos de novo juntos.
- Danny, Danny! - murmurava ela com a voz entrecortada. -• Por que fêz isso? Nem uma palavra todo esse tempo, nem uma palavra!
Não podia responder. Só eu sabia quanto havia errado. Murmurei apenas com voz rouca e trêmula.
- Não tive outro jeito, meu bem. Era preciso.
Ela estava chorando e os seus soluços me doíam no fundo do coração.
- Nós o procuramos, Danny, procuramos tanto como você nem pode calcular. Era como se a terra o tivesse tragado. Quase morri.
Abracei-a com amor. Rocei os lábios pelos seus cabelos. Eram exatamente como eu me lembrava. Macios, cheirosos, e finos. Uma paz que havia muito eu não conhecia desceu sobre mim.
Tinha o rosto escondido no meu peito e a sua voz me chegou abafada aos ouvidos.
- Eu não poderia suportar isso outra vez, Danny.
Tudo de repente se tornou muito simples. Eu sabia como tinha de ser, como devia ser.
- Não será preciso, meu amor. De hoje em diante, estaremos juntos. Sempre.
O rosto branco, ingênuo e confiante se voltou para mim.
- Sério, Danny?
Pela primeira vez naquele dia, pude sorrir.
- Sério, Nellie. Pensa que só vim fazer uma visita?
239
Tudo estava delineado no meu espírito. O que eu queria, tudo o que eu queria. Não sabia que ia separar-me de Mike quando estivera ali no meio do parque debaixo da chuva, mas naquele momento sabia. Iria falar com Mike e explicar-lhe tudo. ele compreenderia. Eu tinha voltado para casa e ali ficaria.
- De agora em diante, Nellie, tudo o que fizer, será feito junto com você, meu amor!
10
O restaurante estava no mesmo lugar. O mesmo chinês velho nos levou para a mesa e nos entregou os cardápios.
- Você não se esqueceu, - disse ela com os olhos cintilantes. - Lembra-se de que foi aqui que viemos na primeira vez em que nos encontramos ?
Estendeu-me a mão ternamente. Tomei-a, virei-a com a palma para cima e examinei-a, fingindo profunda concentração.
- Vejo um homem alto e moreno chegando à sua vida - disse eu, imitando a voz das quiromantes.
Ela riu e apertou minha mão.
- Errou completamente na côr dos cabelos, - disse ela. Depois, os seus olhos ficaram sérios. - Danny!
Senti o riso extinguir-se dentro de mim ao olhá-la. Ela estava indo diretamente ao meu íntimo.
- Sim, Nellie?
- Espero não estar sonhando. Espero que não esteja lá em casa sonhando porque, quando acordar amanhã, estarei com os olhos vermelhos e minha irmã me dirá que chorei enquanto dormia.
- Isso deve provar que você está acordada, •- disse eu, beijando-lhe a mão.
- Se estou sonhando - disse ela, com os olhos cheios de alegria - não quero nunca acordar. Quero dormir e sonhar para sempre.
- Está acordada, Nellie. Ela me apertou a mão.
- Amo-o, Danny. Acho que o amei desde o primeiro momento em que o vi, desde que você se sentou diante de mim e pediu um ice cream soda de chocolate.
240
Nunca nem olhei para outro durante todo o tempo em que você esteve ausente.
Isso me despertou um sentimento de culpa e eu não pude enfrentar-lhe os olhos.
- Continue, Nellie.
- É verdade o que eu estou dizendo, Danny. Mamãe queria que eu saísse com outros rapazes, mas eu nunca lhe dei ouvidos. Eu sabia que você voltaria, antes mesmo que aquela moça que trabalhava com Maxie Fields me dissesse.
- Que moça? - perguntei surpreso.
- Miss Dorfman. Não se lembra dela? No princípio de setembro, ela passou com o irmão lá pela loja e disse que tinha estado com você, que você estava bem e me mandava lembranças e saudades. Foram muito gentis em fazer isso de passagem por Nova York. Ela disse que você tivera algum problema com Fields, mas logo que as coisas melhorassem, voltaria.
Fiquei satisfeito, Sara era legal. Ainda havia muita gente direita no mundo. Procurara ajudar-me, mesmo, como eu sabia, contra o seu interesse. Se não fosse Sara, talvez Nellie não estivesse ali conversando comigo. Dessa maneira, sempre tinha havido alguém que tinha saudades de mim, que me amava, que me esperava. Nunca tinha estado sozinho.
- É verdade o que disseram, Danny? Que você aceitou dinheiro de Fields para perder a luta naquela noite?
Não respondi à pergunta dela. Havia coisa mais importante.
- Disseram isso, Nellie? Quem foi que disse?
- Mimi veio ver-me quando estava procurando você. Foi mais ou menos uma semana depois que você desapareceu. Giuseppe e eu fomos com ela falar com o Sr. Gotkin e ele disse que o próprio Fields tinha dito isso a ele. É verdade, Danny?
Fiz um sinal afirmativo, batendo lentamente com a cabeça.
- Por que fêz isso, Danny? - perguntou ela, com um tom de mágoa na voz. - E por que não me disse?
- Não podia fazer senão o que eu fiz, Nellie. Precisava do dinheiro para que Papai comprasse uma farmácia e Fields de qualquer maneira estava fazendo pressão sobre mim. Depois, não pude perder a luta - ainda que o tivesse tentado.
- Mas seu pai não lhe abriu a porta naquela noite, segundo me disse Mimi. Por que não voltou para minha casa e não me contou
tudo?
Nada que eu dissesse poderia ser uma explicação. Eu havia complicado tudo.
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- Tinha de sair da cidade. Fields mandou os homens dele atacar-me.
- Tudo isso é tão terrível, Danny. Quase não posso acreditar ainda. Passei dois anos sem saber o que lhe havia acontecido, sem saber em que nem em que devia acreditar.
O sofrimento nos olhos dela me fêz um mal enorme.
- Talvez fosse melhor eu não ter voltado - disse eu amargamente. - Você então poderia esquecer-me e tudo se resolveria.
- Não diga isso, Danny! Nunca mais diga isso! Não quero saber o que aconteceu, nem o que você fêz desde que você não se afaste mais de mim.
Apertei-lhe firmemente a mão. Assim é que devia ser. E assim foi.
Quando acabamos de jantar, risquei um fósforo para acender o cigarro dela e depois o meu.
- Você está mais magro, - disse ela.
- Quem foi que disse? Peso mais cinco quilos agora do que pesava há dois anos.
- Pode ser. Mas parece mais magro. Talvez naquela ocasião você ainda fosse um garoto. Agora, não é mais.
- E não é natural isso. Ninguém fica sempre o mesmo. Você também está crescida.
Ela estendeu a mão e me tocou de leve o rosto, demorando um pouco nos cantos da boca, no nariz e no queixo.
- Você mudou, sim, - disse ela. - A boca está mais firme, o queixo mais forte. O que foi que seu pessoal disse quando o viu?
- Não estive lá, Nellie.
- Não esteve lá, Danny? Por quê?
- Não sei se querem me ver. Tenho a impressão de que não querem, depois de tudo o que aconteceu, depois de eu ter sido posto para fora de casa.
- Apesar do tamanho, acho que em algumas coisas você ainda é uma criança, Danny - disse ela sorrindo. - Pois eu acho que querem muito ver você.
- Acha mesmo? - perguntei, sentindo-me contente.
- Sei que Mimi gostará muito de vê-lo. E sua mãe também. Sabe que Mimi conheceu o Sr. Gotkin quando fomos lá saber de você? Casaram-se e Mimi já tem um filhinho, sabia?
Mais surpresa.
242
- Eu sabia que eles se tinham casado. Li nos jornais. Mas do garoto eu não sabia. Quando foi que ele nasceu?
- No ano passado. E agora ela está esperando outro.
- Como é que você está tão a par da vida dela?
- De vez em quando, telefonamos uma para a outra para saber se há alguma notícia sua.
Fiquei satisfeito. Isso queria dizer que Mimi tinha saudades de mim também.
- Quase não pude acreditar quando li no jornal que ela se havia casado com Sam.
- ele tem sido muito bom para ela. Tem feito muito por sua família também. Ajudou seu pai a abrir a farmácia.
Dei um suspiro. Aquilo era uma coisa que muito me havia preocupado. Naqueles últimos anos, eu sabia com certeza que meu pai precisava de alguém que o ajudasse. Agora, Sam cuidaria dele e isso era muito bom. Pensei que Sam devia estar muito sentido comigo e era natural. Não podia culpá-lo por isso.
- Vai procurar sua família?
- Não, Nellie.
- Mas é de seu dever, Danny. É sua família.
- Não foi isso que meu pai disse.
- Que diferença faz? Sei que não gostam de mim, sei o que pensam a meu respeito, mas, se eu fosse você, iria vê-los.
- Pois eu não vou! Voltei por sua causa, não por causa deles.
11
Estávamos abraçados na entrada do prédio, com os lábios colados com violenta e ardente intensidade. Havia fome em mim naquela hora de despedida que não me davam paz. De repente, ela começou a chorar com soluços profundos que lhe sacudiam o corpo.
Virei-lhe delicadamente o rosto para mim.
- Que é, meu bem?
Ela passou ansiosamente os braços pelo meu pescoço e encostou o rosto ao meu.
- Tenho tanto medo, Danny! Não quero que você vá-se embora de novo! Se você fôr, sei que nunca mais voltará!
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- Calma, menina. Não me vou embora. Estou apenas despedindo-me por esta noite. Voltarei.
- Não vai voltar, Danny! - exclamou ela angustiosamente. - Sei que não vai.
- Não chore, Nellie, - disse eu, beijando-a. - Faça-me esse favor.
- Não se vá embora, Danny, não me deixe nunca mais. Se você fizer isso, eu vou morrer!
- Não a deixarei, Nellie.
Ela estava com o rosto escondido no meu peito e eu tive de apurar os ouvidos para ouvir o que ela dizia.
- Se houvesse ao menos um lugar onde pudéssemos ir, onde pudéssemos ficar juntos, onde eu pudesse ficar, olhar para você e dizer comigo mesma: "ele voltou! ele voltou!"
Levantou a cabeça e olhou para mim.
- Não quero voltar para casa esta noite, dormir com minha irmã e acordar amanhã pensando que tudo foi um sonho. Quero ir com você, segurar sua mão e ver que a luz do dia não afasta você de mim!
- Eu voltarei amanhã, Nellie, porque a amo.
- Não, - replicou ela desesperadamente. - Se eu deixar você ir desta vez, nunca mais o verei. Acontecerá alguma coisa e você não voltará mais. Lembra-se do que você me disse daquela última vez? "Aconteça o que acontecer, não se esqueça de que a amo." Você não voltou. Mas eu não me esqueci. Nunca me esqueci. Mas não posso fazer isso de novo, Danny, não posso. Dessa vez, morrerei. Não posso deixar você ir.
Tentei sorrir, brincar com ela.
- Mas você não pode ficar a noite toda nesta porta, meu bem.
- Procure então um lugar onde possamos ficar, Danny. Procure um lugar onde eu possa sentar-me, conversar e segurar sua mão, para saber que quando o dia de amanhã chegar não será tudo um sonho.
Não gostei do olhar que me lançou o velho que estava na portaria do hotel quando entramos. Gostei ainda menos do jeito pelo qual ele me disse depois que eu assinei o livro de registro "Daniel Fisher e esposa" com um um leve sorriso:
- Dois dólares, faça o favor. Pagamento adiantado.
Coloquei o dinheiro em cima do balcão e fiquei esperando que ele me desse a chave. Eu podia sentir a mão de Nellie em meu braço.
244
O homem pegou as duas notas e olhou para o chão:
- Não têm bagagem?
- Não, - respondi prontamente. - Não tencionávamos ficar na cidade esta noite.
- Desculpe, Sir, - disse ele numa voz cortêsmente descortês, - mas, neste caso, o quarto custará cinco dólares. É a praxe da casa.
Dominei o impulso de dar-lhe uns murros, não por aqueles três dólares que ele me estava roubando e que o dono do hotel nunca iria ver, mas por aquele olhar malicioso dele. ele devia ter notado alguma coisa em meu olhar, porque baixou a vista para o balcão. Tirei mais três dólares do bolso e deixei ao lado dele.
- Obrigado, Sir, - disse ele, entregando-me uma chave. - Quarto 402. Pode tomar o elevador automático ali no fundo do corredor até ao quarto andar.
Fechei a porta e voltei-me para o quarto. Um silêncio embaraçado caiu sobre nós. O quarto era pequeno. Havia um lavatório num canto defronte de um armário embutido. Havia uma penteadeira com espelho. Na parede do fundo havia uma cama de casal. Uma poltrona estava colocada ao lado da cama e um sofá pequeno estava diante de uma estreita janela.
Fui desajeitadamente até à janela, olhei e disse: -- Ainda está chovendo.
- É verdade, - disse ela em voz baixa, como se tivesse medo de ser ouvida por alguém.
Tirei o chapéu e o blusão e me encaminhei para o armário.
- Vou dormir no sofá. Deite-se na cama e procure dormir. Não tarda a amanhecer.
Pendurei o chapéu e o blusão no armário. Tirei também a gravata. Quando voltei, ela ainda estava de pé no mesmo lugar olhando para mim. Não tinha nem tirado a capa. - Não tenha medo, Nellie.
- Não estou mais com medo, -- disse ela suavemente. - Não tenho medo de nada quando você está junto de mim.
Beijei-lhe a testa e disse:
- Tire então a capa e deite-se. Você precisa do descanso. Ela foi pendurar silenciosamente a capa no armário enquanto eu me sentava na poltrona e tirava os sapatos. Ajeitei-me na poltrona e olhei-a. Ela era engraçada - tinha medo de deixar-me e tinha mêclo de ficar comigo no mesmo quarto.
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- Está bem assim? - perguntou ela ao passar por mim.
- Estou, sim.
Ouvi os passos dela atrás de mim e depois o estalo do interruptor. O quarto mergulhou na escuridão. Ela foi até ao outro lado da cama. Ouvi o farfalhar das roupas e depois o barulho dos sapatos dela no chão.
As molas da cama rangeram quando ela se deitou e então só houve no quarto o som da nossa respiração.
Virei-me para outro lado, tentando ajeitar-me na poltrona.
A voz dela quase me assustou:
- Danny!
- Que é, meu bem?
- Ainda está acordado?
- Estou.
- Não consegue dormir?
- Vou conseguir.
Houve um momento de silêncio e então ela falou de novo em voz tão baixa que quase não a pude ouvir.
- Você se esqueceu de uma coisa, Danny.
- Que foi?
- Não me desejou boa noite com um beijo.
Ajoelhei-me ao lado da cama. Ela se sentou para beijar-me. Os lábios dela eram macios e quentes. Passou os braços pelo meu pescoço e eu senti o doce calor do seu corpo.
Abracei-a, sentindo o coração dela bater-me de encontro ao peito. Senti na mão o colchete frio do soutien e apertei-o. O soutien me ficou nas mãos e os seios dela ficaram livres de encontro ao meu corpo. Curvei a cabeça e beijei-os.
Ela me prendeu a cabeça com as mãos e disse suavemente.
- Abrace-me. Danny, aperte-me. Nunca mais me largue. Senti um aperto na garganta.
- Nunca mais a largarei, querida.
A voz dela estava cheia de encantamento.
- Gosto de que você me toque, Danny. Gosto de sentir você perto de mim. Que bom ter você, meu Danny, que bom sentir você!
Olhei-a na escuridão. Havia dentro de mim uma curiosa dor inconsolável, um intenso desejo que até então nuca havia conhecido, uma corrente de emoção que era mais forte do que todas as urgências físicas que meu corpo já experimentara. Tentei falar, para dizerlhe que a amava, mas não consegui. Minha voz se perdeu numa constrição muscular da minha garganta.
246
Ela tocou meu rosto na escuridão.
- Danny! Você está chorando, Danny!
As lágrimas pareceram desobstruir-me a voz.
- Sim, Nellie, estou chorando.
Ouvi-a dar um profundo suspiro. Passou então os braços em torno de mim. Beijou-me de leve os olhos. Falou com uma voz muito baixa cheia de um calor e de uma simpatia que eu nunca havia encontrado em nenhum ser humano.
- Não chore, querido, não chore. Não posso ver você infeliz.
12
O sol, entrando pela janela, me feriu os olhos. Virei-me na cama para evitar a luz e minha mão estendida tocou em alguma coisa macia. Abri prontamente os olhos.
Ela estava deitada de lado, com a cabeça apoiada numa mão e os olhos fixos em mim. Sorria.
Olhei-a incrèdulamente por um minuto e sorri para ela. Lembreime então da noite e um incrível calor me correu pelo corpo.
- Já é de manhã, - disse eu.
Ela bateu com a cabeça e os seus lindos cabelos caíram para a frente, emoldurando-lhe o rosto oval com a sua suavidade azulada.
- Já é de manhã - concordou ela, solenemente.
- Você é ainda mais bela de manhã, Nellie. Ela se ruborizou e disse:
- Você é belo quando dorme. Eu o estava olhando. Parece um garotinho.
Fingi-me zangado e perguntei:
- Quer dizer que me acha feio quando estou acordado? Ela riu e passou os dedos pelas minhas costelas.
- Não, mas você está muito magro. Está com todos os ossos de fora. Vou ter muito trabalho para fazer você engordar.
Segurei-a pelos ombros e puxei o rosto para mim.
- Pode começar agora mesmo, - disse eu, beijando-a. - Hum! Estou com tanta fome que seria capaz de comê-la todinha.
- Você me ama, Danny?
- Ainda tem dúvida? - perguntei, rindo.
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- Danny, não me responda assim. Quero que você me diga isso como me disse esta noite.
- Amo você, Nellie. Ela fechou os olhos.
- Diga isso de novo, Danny. Gosto de ouvir.
Corri os lábios pelo pescoço dela. Passei a beijá-la nos ombros, empurando o lençol com o rosto. Tomei os seios entre os dedos e cobri-os com o rosto.
- Amo você, Nellie - disse eu, descansando sobre o seu peito.
Ela suspirou profundamente, com os olhos ainda fechados. Sentia o corpo dela vibrar ao contato dos meus dedos. Disse então com uma voz cheia de felicidade:
- Quero você, Danny. Acho que nunca me vai chegar de ter você.
Passávamos pela igreja quando ela parou de repente e me disse.
- Entre comigo, Danny.
Olhei-a e senti o apelo fervoroso que havia nos seus olhos e disse:
- Está bem.
Entramos na igreja de mãos dadas. Ela se voltou para mim e perguntou com a voz trêmula:
- Não está zangado comigo?
- Zangado por quê?
- Eu não me sentiria bem se não viesse primeiro aqui, - disse ela com um sorriso de gratidão.
Olhei-a enquanto ela seguia por entre os bancos e se ajoelhava diante do altar. Juntou as mãos e inclinou a cabeça, fechando os olhos. Ficou assim durante algum tempo rezando. Depois levantou-se e voltou para junto de mim, com um radioso sorriso no rosto.
Dei-lhe a mão. Saímos a passos lentos da igreja e descemos os degraus até à rua.
- Sinto-me melhor agora, - disse ela timidamente.
- Fico satisfeito com isso, Nellie.
- Eu não podia deixar de ir, Danny. Não me sentiria bem se não fosse.
- Ótimo. - disse eu, chamando um táxi que passava. - Não ia querer uma noiva que não se sentisse bem.
Abri a porta do táxi e ajudei-a a entrar. O motorista se voltou para mim.
- Para onde, chefe?
- Prefeitura.
248
Havia vários outros casais na sala de espera da seção de casamentos. Estavam todos tão nervosos quanto nós.
Olhei de novo para o meu relógio. Dez horas. Estava na hora. Olhei para Nellie. Não era tão difícil ali quanto fora na sala onde tiramos a licença de casamento, talvez porque tivemos de responder a muitas perguntas. Mas mentimos um pouco e tiramos a licença com menos dificuldade do que esperávamos.
A porta se abriu e todo o mundo ergueu os olhos nervosamente. Uma mulher de cabelos grisalhos apareceu e olhou em torno com ar importante. Consultou um papel que tinha na mão e disse:
- Sr. Fisher e Srta. Petito. Tenham a bondade de entrar. Levantei-me e olhei para Nellie, que estava segurando a minha
mão. Sentia os olhos dos outros casais cravados em nós, enquanto a mão de Nellie tremia na minha. Apertei-lhe a mão para tranqüilizá-la.
Acompanhamos a mulher até a sala dos casamentos e ela me perguntou:
- Tirou a licença?
- Sim, senhora, - disse eu, entregando-lhe o documento.
Um homem entrou na sala e subiu a um estrado. A mulher entregou-lhe a licença sem dizer uma palavra. O homem olhou para nós e disse:
- Não fiquem nervosos. Num instante, estará tudo acabado.
Tentamos corresponder ao sorriso com que ele disse essas palavras mas não creio que o tivéssemos conseguido. Estávamos mesmo muito nervosos.
- Trouxeram testemunhas? - perguntou ele. Sacudi a cabeça, sentindo o rosto vermelho.
- Ora, não tem importância, - disse ele, sorrindo de novo. Em seguida, voltou-se para a mulher: - Srta. Schwartz, quer pedir ao Sr. Simpson que venha aqui um instante?
- Pois não, Sr. Kyle, - disse a mulher grisalha, saindo.
- O senhor é Daniel Fisher? - perguntou-me o Sr. Kyle, olhando para a licença.
- Sim, senhor.
- Idade?
- Vinte e três anos, - disse eu protamente, esperando que ele não se interessasse muito sobre esse ponto. - Está tudo escrito aí.
- E eu sei ler - disse ele, lançando-me um breve olhar desconfiado. Depois, voltou-se para Nellie: - Eleanora Petito ?
Ela fêz com a cabeça um sinal afirmativo. O homem continuou a ler a licença e levantou os olhos quando a porta se abriu.
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A mulher grisalha estava de volta com um homem de jaquetão e com cara de passarinho.
O Sr. Kyle olhou para nós sorrindo e empurrou o papel em nossa direção, dizendo:
- Podemos começar. Tenham a bondade de assinar no lugar que eu estou mostrando...
Nellie assinou primeiro com uma letra nervosa e miúda. Depois, foi a minha vez e, então, assinaram as testemunhas e, por fim, o Sr. Kyle.
- Tenham a bondade de dar-se as mãos, - disse ele.
Nellie colocou a mão na minha. Não estava mais trêmula. Eu é que sentia o suor começar a escorrer-me da testa.
Felizmente para mim, a cerimônia foi rápida. Pareceu-me ter acabado antes mesmo de começar. As únicas palavras de que me lembro são as últimas. Não creio que tudo levasse mais de dois minutos.
- Eleanora Petito, aceita o homem aqui presente, Daniel Fisher, como seu legítimo marido?
- Sim, - disse ela, com voz grave e olhos fitos em mim.
- Daniel Fisher, aceita Eleanora Petito aqui presente, como sua legítima mulher?
- Sim, murmurei, olhando-lhe os luminosos olhos de cujos cantos emergiam breves lágrimas trêmulas.
- Assim sendo, em vista da autoridade que me é conferida pela Prefeitura Municipal de Nova York, em nome da lei vos declaro casados. - Olhou para mim e acrescentou: - Pode beijar sua esposa, meu jovem, e na saída pague dois dólares ao escrivão.
Beijamo-nos desajeitadamente e nos encaminhamos para a porta. A voz do homem, mais seca do que tinha sido durante a cerimônia, chamou-nos. Voltamo-nos surpresos, mas ele estava sorrindo.
- Não acham que devem levar a certidão de casamento?
- Muito obrigado - disse eu, confusamente, recebendo a certidão.
Saímos. Os casais que estavam na sala de espera olharam para nós e houve algumas pessoas que sorriram. Sorrimos também e saímos quase correndo do prédio.
Olhamos um para o outro na escadaria da Prefeitura. Víamos o mesmo mundo que havíamos deixado alguns minutos antes, mas tudo havia mudado. Estávamos casados.
Nellie passou a mão pelo meu braço.
- Vamos primeiro dizer a minha família, - disse ela com satisfação.
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- Está bem.
- Depois, iremos dizer a sua família.
- Para quê? Não têm nada com isso, Nellie, e ainda por cima pouco se importam.
- Mas eu me importo e quero que eles saibam, - disse ela, com um brilho de determinação nos olhos.
- Mas eles não se interessam. Nada tenho que lhes dizer. Ela olhou para mim, sorrindo e disse:
- Olhe aí, Danny Fisher, vamos começar a nossa vida de casados com uma briga, vamos?
- Claro que não, - respondi, sorrindo também e olhando-lhe o rosto inundado de felicidade.
- Iremos então dizer a sua família.
- Está certo. E, se quiser, posso até ir para o rádio e dizer ao mundo inteiro.
- Não acha que seria uma boa idéia? - perguntou ela, rindo.
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O porteiro estendeu a mão e nos fêz parar, com um ar de interrogação no rosto.
- O apartamento do Sr. Gotkin, faça o favor.
- O Sr. Gordon mora no C-21, no vigésimo primeiro andar. Passamos por ele e nos dirigimos para o elevador. O ascensorista fechou as portas e se voltou, ficando de costas para nós.
- "Gordon"? Que história é essa? - perguntei a Nellie.
- ele mudou legalmente de nome no ano passado, - respondeu ela, também num sussurro.
Era lógico. Gotkin podia ser muito bom quando ele morava em Brooklyn, mas ali naqueles apartamentos de luxo de Central Park South, Gordon soava melhor.
Olhei para o meu relógio. Passavam poucos minutos das nove da noite. Depois de termos ido à casa dos pais de Nellie, tínhamos ido jantar, seguindo então para a casa de meus pais. Estavam morando num bom edifício em Washington Heights, embora não se comparasse absolutamente com aquele. O porteiro lá nos tinha dito que eles em geral jantavam com a filha nas sexta-feiras e, por isso, estávamos naquele momento no edifício de Mimi.
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Não podia deixar de sentir uma vaga inquietação ao pensar naquela visita. Em casa de Nellie, as coisas não tinham corrido absolutamente mal.
Quem abriu a porta foi o pai de Nellie. Olhou iradamente para ela e uma torrente de palavras em italiano começou a derramar-se dos seus lábios. Em dado momento, ela o interompeu com algumas palavras na mesma língua.
ele se calou de repente e olhou para mim. Olhei-o também com firmeza. Não podia saber o que ele estava pensando, pois a raiva ainda não se lhe apagara da fisionomia. Depois, sem dizer palavra, abriu mais a porta, afastou-se um pouco e nos deixou entrar.
A mãe de Nellie caiu sobre nós com exclamações de espanto. Tomou Nellie nos braços e desatou a chorar. Fiquei parado junto à porta, olhando-as. Nellie começou a chorar também. O pai dela e eu de vez em quando nos olhávamos sem saber o que devíamos fazer.
De repente, ouvi um grito na sala vizinha.
- Danny!
Giuseppe corria para mim, com o rosto aberto num sorriso e a mão estendida. Apertei-lhe a mão e ele me bateu afetuosamente no ombro. Nesse momento, a irmã mais moça de Nellie apareceu e começou a chorar também. Ao fim de algum tempo, as coisas começaram a acalmar-se. O pai foi sem muito entusiasmo buscar uma garrafa de vinho e todos bebêram à nossa saúde.
Quando a garrafa já estava quase vazia, havíamos chegado a bom entendimento. Era evidente que não estavam radiantes com o que havia acontecido, mas aceitaram o fato e estavam esforçando-se ao máximo para que tudo se ajeitasse. A mãe de Nellie chegou a ajudá-la a arrumar a mala para que pudéssemos voltar para o hotel e quis que ficássemos para jantar. Desculpamo-nos dizendo que precisávamos ir ver minha família, que ainda não sabia de nada.
Saltamos no vigésimo primeiro andar. Uma placa de metal na porta trazia o nome: "Sam Gordon". Toquei a campainha e ouvi sons de carrilhão dentro do apartamento.
Nellie parecia pálida à luz do corredor e esperava em silêncio que abrissem aporta. Tomei-lhe a mão e vi que estava úmida de suor.
A porta se abriu e uma empregada com uniforme nos olhou.
- A Sra. Gott... a Sra. Gordon está?
- Quem deseja falar com ela?
- O irmão dela.
Os olhos da empregada se arregalaram um pouco e ela disse:
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- Querem fazer o favor de entrar e esperar um pouco aqui? O vestíbulo para onde havíamos entrado era do tamanho de todo
O apartamento de Nellie. Ouvimos um murmúrio de vozes lá dentro e, então, a criada disse distintamente:
- Está aí um jovem casal que deseja falar com a senhora.
- Disseram o nome? - Reconheci a voz de Mimi.
- Sim, senhora. ele disse que era seu irmão e... Mimi não a deixou acabar.
Danny - gritou ela. - É Danny!
Quase no mesmo instante, chegou correndo ao vestíbulo. Ficamos ali parados um instante. À primeira vista, ela me pareceu a mesma, mas um olhar mais atento mostrou que havia mudado. Os olhos estavam mais escuros e acentuados por olheiras, como se ela não estivesse dormindo bem. Talvez fosse porque estava de novo grávida.
Mas logo ela me passou os braços pelo pescoço e me beijou.
- Danny! Danny! Como fico alegre de ver você! - exclamou ela com lágrimas nos cantos dos olhos.
Sorri-lhe. Também eu tinha alegria em vê-la. Era interessante, mas só naquele momento compreendi quanta falta ela me fizera. Quando eu estava em casa, só vivíamos brigando, mas isso estava inteiramente esquecido.
Ela me pegou nervosamente pela mão e me levou para a outra sala.
- Papai e Mamãe estão aqui.
Olhei para Nellie, voltando a cabeça. Ela sorriu para mim e me animou com um aceno de cabeça. Acompanhava-nos.
Paramos em alguns degraus que levavam a uma sala de estar. Mamãe e Papai estavam sentados num sofá de costas para nós, mas se voltaram um pouco e me olharam. Mamãe levou as mãos ao peito e ficou com os olhos quase fechados. No rosto de Papai apareceu uma surpresa reservada, acentuada pelo comprido charuto que lhe pendia imóvel dos lábios. Sam estava de pé diante deles, com um copo na mão e encostado a uma grande lareira de fantasia. Mostrava nos olhos um brilho particular.
Mimi me levou até ao sofá diante de Mamãe e me largou a mão. Mamãe olhou para mim como se tentasse ler nos meus olhos tudo o que acontecera desde que nos havíamos visto pela última vez.
- Alô, Mamãe - disse eu calmamente.
Ela estendeu a mão para mim, tocou-me a manga do paletó e desceu até encontrar minha mão. Com os olhos cheios de lágrimas, puxou-me para ela, ao mesmo tempo quie me beijava as mãos e murmurava, emocionada:
- Lourinho! Meu filhinho!
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Olhei para a cabeça curvada. Os cabelos já estavam quase de todo brancos. Daquele momento é que eu tivera medo. Não receava a maneira pela qual me receberiam; tinha receio era do que eu sentiria a respeito deles. E ali estava curiosamente calmo e desprendido deles. Era quase como se eu estivesse assistindo a tudo aquilo na tela de um cinema. Na verdade, eu não fazia parte daquela cena. Eu era outro camarada chamado Danny Fisher, que havia passado dois anos ausente e ainda não voltara de fato.
Foi o que aconteceu. O tempo e a solidão haviam erguido entre nós uma barreira que nenhum surto de emoção de qualquer lado poderia eliminar. Senti-me triste apesar de tudo. Que grande coisa havíamos perdido com aquela intimidade confiante que nunca mais voltaria!
- Desculpe. Mamãe, - disse eu, curvando-me e beijando-lhe a cabeça, embora não sentisse dentro de mim motivo algum de pedir desculpas.
Voltei então os olhos para Papai. ele se levantara e fora para o outro lado da sala de onde estava a me olhar. Havia nos olhos dele uma expressão de susto e solidão. Afastei-me lentamente de Mamãe e fui para onde ele estava. Só se ouvia na sala, além dos meus passos, o choro de Mamãe. Estendi-lhe a mão e disse:
- Alô, Papai.
Os olhos dele vacilaram por um momento. Mas acabou apertando-me a mão e dizendo com voz trêmula mas contida:
- Alô, Danny.
- Como vai passando, Papai?
- Muito bem, Danny.
Não tivemos mais nada para dizer e uma tensão sutil começou a invadir a sala. Dei adeus a Sam e ele me respondeu, mas não nos falamos. Os outros olhavam para mim em silêncio.
A decepção cresceu dentro de mim. Tinha sabido sempre que seria assim. Não tinha a menor importância que eu tivesse voltado ou não. Contra a minha vontade, senti a amargura insinuar-se na minha voz.
- Estou ausente há dois anos. Ninguém vai-me perguntar o que fiz durante esses dois anos? Ninguém quer saber o que eu sinto ?
Mamãe ainda chorava devagar, mas ninguém respondeu. Voltei-me para meu pai e perguntei friamente:
- Não vai perguntar? Ou não interessa mesmo? Papai não respondeu.
Foi Mimi que se aproximou de mim. Pegou-me o braço e disse ternamente:
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- Claro que interessa. O que acontece é que ficamos tão surpresos que não sabemos o que dizer.
Senti descer sobre mim uma calma gelada. Tinha certeza afinal de que alguma coisa desaparecera para sempre naquela noite em que a porta de minha casa fora fechada para mim. Tinha querido e não tinha querido vê-los. Mas isso não tinha mais importância. Estava ali entre eles, sentindo-me uma pessoa estranha.
Mimi procurou afastar-me de Papai.
- Venha sentar-se e conte o que foi que fêz. Todos nós sentimos muitas saudades suas.
Voltei os olhos para Nellie que estava parada junto à porta, esquecida pelos outros, a contemplar-nos com os olhos cheios de dor. Sabia que a dor que ela sentia não era por ela, mas por mim. Sorri para ela e olhei para Mimi.
- Não posso demorar-me. - disse delicadamente, sem querer ofendê-la, pois ela ao menos estava esforçando-se. - Vou andando pois tenho muito o que fazer.
- Mas não pode ir-se embora já, Danny - exclamou Mimi, de novo com lágrimas nos olhos. - Você acaba de voltar.
- Mas não voltei de fato, - disse eu, tristemente. - Tentei apenas voltar.
- Mas, Danny... - murmurou Mimi chorando, abraçada comigo.
Eu sabia o que ela estava sentindo, porque estava chorando, mas não adiantava. Tudo se perdera sem remédio.
- Pare, Mimi. Você está apenas agravando a situação - disse-lhe em voz baixa, levando-a até ao sofá onde a deixei.
Depois, fui até onde estava Nellie. Tomei-lhe a mão e voltei-me para eles.
- Só vim aqui esta noite por causa de minha mulher. Ela achou que devíamos comunicar-lhes que nos casamos hoje de manhã.
Vi as expressões que se mostraram no rosto - dor em minha mãe, um duro olhar de quem sabia em meu pai - e fervi por dentro.
- Era ela a única pessoa que na verdade queria que eu voltasse.
Esperei por um instante que dissessem aguma coisa, mas conservaram-se em silêncio. Os parentes de Nellie não haviam gostado mais do que os meus do nosso casamento, mas, ao menos, procederam como seres humanos. Minha família nada teve para dizer, nem sequer votos insinceros de felicidades. Nada.
A dor que havia dentro de mim se dissipou rapidamente, deixando apenas um frio torpor. Beijei o rosto de Mamãe que ainda estava chorando.
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Beijei Mimi e parei diante de meu pai. O rosto dele estava impassível. Passei por ele sem uma palavra ou um gesto.
Virei-me inquietamente na cama. Sabia que havia chorado enquanto dormia, mas naquele momento estava acordado e tinha os olhos secos. Continuei deitado e imóvel para não perturbar Nellie.
Estávamos no pequeno quarto do hotel. Quando percebi que ela também estava acordada, perguntei:
- Você sabia por que eu não queria ir vê-los, não sabia?
- Sabia.
- E, apesar disso, me fêz ir lá.
- Você não podia deixar de ir, Danny. Do contrário, isso ficaria entre nós durante toda a nossa vida. Você tinha de descobrir por si mesmo.
- E descobri mesmo. Ela me abraçou e disse:
- Agora, tudo isso passou e você pode esquecer.
- Esquecer? - exclamei com um riso amargo. Havia algumas coisas de que ela não sabia. - Como é possível esquecer? Passamos tantas coisas juntos - esperanças, receios, o bom e o mau. É fácil você dizer que eu devo esquecer, mas como é que eu posso? Posso tirar de minhas veias o sangue deles e deixar que desça pelo cano da pia para que não haja mais nada entre nós? Bem ou mal, como posso esquecer? Você poderá algum dia esquecer seus pais? Será que as coisas certas ou erradas poderão valer mais do que os laços de carne e sangue que nos unem?
- Não, Danny, você não compreende. Não estou falando do que você deve esquecer, mas daquilo de que não se deve lembrar. É o que lhe fizeram de ofensivo que você deve esquecer para não se tornar o que você não é e ficar a vida toda amargo, ressentido e revoltado como está agora!
Não a compreendi.
- Como é que vou esquecer só isso? Tudo está ligado!
- Não é não, Danny, - disse ela, beijando-me. - Isso é uma coisa inteiramente diferente e eu vou fazer com que você se esqueça dela e só recorde o que houve de bom.
- Como é possível isso?
- Você vai ver. Tenho tanto amor por você, que sei que você nunca mais precisará do carinho e do afeto de ninguém mais!
Compreendi então e beijei-a com reconhecimento. Ela me havia feito uma promessa e eu sabia que a cumpriria. Sabia que na vida que estava à nossa frente, boa ou má, encontraria nela consolo e força e que nunca mais, acontecesse o que acontecesse, eu estaria sozinho.
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DIA DE MUDANÇA
15 DE SETEMBRO DE 1936
Os degraus de madeira rangiam agradàvelmente sob os nossos pés enquanto subíamos a escada. Era um barulho amável que aquela escada havia dispensado a muitos casais novos como nós. Agradava-me aquele barulho.
Eram leves as maletas que eu carregava e não lhes sentia o peso. De qualquer maneira, não pesavam muito. Era bem pouco o que tínhamos em matéria de roupa. Mais tarde, quando eu conseguisse um emprego e ganhasse algum dinheiro, compraríamos algumas coisas. Por enquanto, juntando tudo o que tínhamos, o dinheiro só dava para mobiliar o apartamento.
Nellie parou em frente a uma porta no quarto andar e olhou para mim sorrindo, com a chave na mão.
Sorri também para ela.
- Abra a porta de nossa casa, meu bem.
Ela abriu a porta, mas ficou à entrada, com uma expressão de expectativa no rosto. Larguei as maletas e suspendi-a nos braços, carregando-a através da porta com os braços dela passados pelo meu pescoço. Depois de entrar, olhei-a e ela me beijou. Os lábios estavam macios e trêmulos e ela não pesava nos meus braços.
- Deus abençoe o nosso lar, Danny Fisher - murmurou. Continuei a carregá-la e olhei para o apartamento. Não era
grande. Não se consegue coisa muito espaçosa pagando 25 dólares por mês. Três peças e banheiro. Tudo caiado. Por esse dinheiro, não é possível exigir pintura a óleo.
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Mas era limpo. Tinha aquecimento, água quente e espaço suficiente para viver.
O espaço era suficiente para conter novecentos dólares de móveis: um sofá e algumas cadeiras para a sala, uma cama de casal e uma cômoda com espelho para o quarto, mesa e cadeiras para a cozinha com a bateria de panelas e os pratos. Era um bocado de dinheiro, mas valia a pena ainda que não nos deixasse quase nenhum saldo no banco. Ao menos, não teríamos de pensar nas visitas de algum cobrador.
Deixei-a descer para o chão.
- Traga as malas para o quarto, - disse ela. Apanhei as malas e joguei-as em cima da cama.
- Tire essas malas sujas de cima da cama, Danny! Isto não é nenhum quarto de hotel. Isto aqui é nosso!
Não pude deixar de rir. Basta dar a uma mulher um canto que ela possa chamar de seu e logo ela começa a mandar. Botei as malas no chão e me sentei na cama.
- Venha cá, Nellie, - disse eu, balançando o corpo para cima e para baixo nas molas do colchão.
- Que é que você quer? - perguntou ela, com um ar de desconfiança.
- Quero lhe mostrar uma coisa, - respondi continuando a saltar em cima do colchão.
Ela deu um passo hesitante em minha direção e parou. Estendi a mão e puxei-a rapidamente. Ela caiu em cima de mim e eu rolei pela cama.
- Que foi que deu em você, Danny? - perguntou ela, rindo. Beijei-a e ela afastou o rosto, rindo ainda.
- Danny!
- Só queria que você visse que o homem da loja não nos enganou. O colchão não faz barulho com o nosso peso. Veja!
- Danny Fisher, você é louco! - disse ela, sorrindo, com os dentes muito brancos.
- Louco por você!
- Oh, Danny, Danny! Como eu te amo!
Beijei-lhe o colo. A pele era macia como o cetim dos vestidos nas vitrinas da Quinta Avenida .
- Como eu te amo, querida!
Ela me encarou bem nos olhos e eu senti alguma coisa dentro de mim derreter-se. Ela conseguia isso sempre que me olhava assim.
- Danny, saiba que não se vai arrepender.
- Arrepender de quê?
- De ter-se casado comigo. Serei uma boa esposa para você.
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- Nada disso. O contrário é que é. Espero que você não se arrependa de ter-se casado comigo.
- Oh, Danny - disse ela ternamente, com lágrimas nos olhos. - Nunca hei de me arrepender.
A campainha tocou no momento em que havíamos acabado de colocar as cortinas. Fui abrir a porta e vi a mãe de Nellie e um padre. A Sra. Petito tinha uma pequena sacola de compras na mão e sorriu para mim.
- Alô, Danny.
- Alô, Sra. Petito. Faça o favor de entrar. Ela hesitou um momento e murmurou:
- Trouxe o Padre Brennan comigo. Virei-me para o padre e estendi-lhe a mão.
- Tenha a bondade de entrar. Padre.
Notei o alívio no rosto de minha sogra quando o padre me apertou a mão.
- Alô, Danny, - disse ele cordialmente. - Muito prazer em conhecê-lo.
- Quem é, Danny? - perguntou Nellie do quarto.
- Sua mãe e o Padre Brennan estão aqui.
Ela apareceu no mesmo instante, com o rosto levemente ruborizado. Correu para a mãe e beijou-a. Depois, estendeu a mão para o padre.
- Fico contente de que tenha vindo, Padre. ele não apertou a mão dela.
- Ora, minha filha, tenho certeza de que o que você quer é cumprimentar com mais efusão um velho amigo, - disse ele, colocando as mãos nos ombros dela e beij ando-a no rosto.
A Sra. Petito olhou para mim com alguma incerteza e colocou a sacola no chão.
- Trouxe algumas coisas para casa, - disse ela.
Nellie abriu pressurosamente a sacola. Falou rapidamente em italiano e a mãe lhe respondeu. Nellie voltou-se então para mim e explicou:
- Mamãe trouxe algumas coisas de comer para que nunca haja fome aqui em casa.
As pessoas podiam ser diferentes, mas as suas preocupações básicas eram as mesmas. Lembrei-me de que, quando nos havíamos mudado para a casa de Brooklyn, Mamãe levara sal e um pão para a casa nova pelas mesmas razões.
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- Obrigado, Mamãe, - disse-lhe, afetuosamente.
- Não me agradeça, meu filho, - disse ela, passando a mão no meu rosto. - Gostaríamos apenas de poder fazer mais.
- Querem tomar café? - perguntou Nellie. - Danny pode descer e comprar um bolo para nós.
A Sra. Petito sacudiu a cabeça.
- Não, tenho de voltar para casa e preparar a comida. O Padre Brennan veio comigo para desejar felicidades a Nellie.
- Obrigada, Padre, - disse Nellie, com um sorriso. - Fico muito satisfeita de que tenha vindo. Pensei que...
- Oh, não, Nellie, nada disso. É claro que sempre esperei celebrar o seu casamento, mas ainda assim estou muito contente. -- Hesitou um pouco e acrescentou: - A menos que Danny não tenha objeções a se casar na verdadeira igreja...
Nellie respondeu antes de mim.
- Não creio que a sua pergunta seja oportuna, Padre Brennan. Nenhum de nós falou ainda sobre isso.
- Decerto compreende, minha filha, que o seu casamento, embora possa ser tolerado pela igreja, não é aprovado por ela?
- Sei disso, Padre, - respondeu Nellie, pálida e sem sinal de sorriso.
- E já pensou nos filhos? - continuou o padre. - Nos benefícios espirituais que poderiam receber e de que serão privados?
Dessa vez quem respondeu fui eu.
- Não creio, Padre, que a igreja faça discriminação com as crianças em virtude da fé de seus pais.
- Quer dizer então que não criará dificuldades a que seus filhos sejam criados dentro da igreja?
- O que quero dizer, Padre, é que meus filhos terão liberdade de acreditar no que quiserem. A fé que tiverem ou a falta de fé será um assunto de livre escolha deles. Mas até que tenham idade bastante para decidir por si mesmos, estou disposto a deixar que freqüentem a igreja da mãe.
Nellie se aproximou de mim e me segurou a mão.
- Acho que ainda é um pouco cedo para falar nessas coisas. Afinal de contas, nós mal acabamos de nos casar.
O padre olhou para nós.
- Como católica, Nellie, você tem plena consciência das suas responsabilidades. Por conseguinte, é sempre bom resolver as coisas logo no início para evitar que sobrevenha alguma infelicidade.
Nellie falou então com firmeza.
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- Aprecio muito a sua preocupação e a sua visita, Padre. Pode ter certeza de que faremos o que julgarmos mais certo para nós ambos. Tenha certeza também de que será bem recebido sempre que aparecer nesta casa.
Tive vontade de beijá-la por essas palavras. Ela tinha dito da maneira mais gentil possível que ele não se metesse em nossa vida. ele assim o compreendeu também, mas não deu a menor demonstração na fisionomia.
- A vida de um padre - disse ele com um suspiro - é muitas vezes repleta de decisões difíceis. Em última análise, ele é apenas um ser humano e só pode rezar pela orientação divina nos seus atos. Espero, minha filha, que a minha visita tenha um efeito salutar para o jovem casal.
- Ficaremos muito gratos pelas suas preces, Padre - disse minha mulher polidamente, ainda com a mão na minha.
Levei o Padre Brennan até à porta, onde ele me estendeu a mão.
- Prazer em conhecê-lo, meu filho -• disse ele, mas sem entusiasmo na voz.
Depois que ele saiu, Nellie falou com a mãe rápida e zangadamente em italiano. A mãe levantou a mão protestando e respondeu de maneira incerta. As lágrimas lhe subiram aos olhos. Enquanto a discussão recrudescia, fiquei ali parado, sem saber o que devia fazer. De repente, a discussão terminou como havia começado. A mãe de Nellie abriu os braços para a filha e começou a beijá-la.
Nellie voltou-se para mim.
- Mamãe está arrependida de tê-lo trazido. Pensou que fosse para o nosso bem e espera que você não esteja ofendido.
Sorri para minha sogra.
- Nem pense nisso, Sra. Petito. Sei perfeitamente que a sua intenção foi a melhor possível.
Ela então me abraçou e me beijou o rosto.
- Você é muito bom, Danny. Só lhe peço é que tome bem conta da minha Nellie.
- Quanto a isso não tenha dúvida, Mamãe. Pode ficar descansada.
Depois que a mãe dela saiu, acabamos de arrumar o apartamento. Ainda era cedo na tarde. Sentei-me na sala e liguei o rádio. Uma música suave se espalhou pela sala. Era a Sunrise Serenade, de Frankie Carie, uma música que parecia feita de encomenda para começar vida nova.
Nellie veio para a sala e me perguntou:
- Que é que você quer jantar?
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- Quer dizer que sabe cozinhar também?
- Deixe de tolice, Danny, e diga o que é que você quer.
- Para que vai cozinhar? Vamos jantar fora e comemorar.
- Nada disso, Danny Fisher! Será muito caro. Temos de poupar o nosso dinheiro até você conseguir um emprego. Depois disso, poderemos jantar fora de vez em quando.
Olhei-a com maior admiração. Estava começando a ver que ela era muito mais adulta do que eu havia pensado. Levantei-me e desliguei o rádio.
- Prepare o que quiser como uma surpresa para mim, Nellie. Vou sair um instante e correr as agências para ver se há alguma coisa para mim.
A luz do sol me ofuscou quando saí à rua e eu fiquei um instante parado. Em seguida, encaminhei-me para a estação do trem subterrâneo. Uma sombra surgiu à minha frente. Sem levantar os olhos, tratei de contorná-la para seguir o meu caminho. Mas senti uma mão no braço e uma voz que eu conhecia me chegou aos ouvidos.
- Agora que voltou e está estabelecido, Danny, o Chefe acha que você deve ir fazer-lhe uma visita.
Não era preciso olhar para saber quem era. Eu estava à espera daquilo desde que voltara. Sabia que eles nunca iriam esquecerse de mim.
Spit estava ali à minha frente, com um leve sorriso nos lábios, mas com os olhos sérios. E estava diferente também, muito bem vestido, com um terno escuro bem talhado e uma camisa limpa. Duvidei até por um instante de que fosse ele.
- Estou com pressa, - disse eu, tentando passar.
ele me apertou o braço com mais força e levou a outra mão ao bolso onde pude notar o volume inconfundível de uma pistola.
- Não pode estar com tanta pressa assim, não é mesmo, Danny ?
- Não, não estou, - disse eu, sacudindo a cabeça.
ele me levou até ao meio-fio, onde estava parado um carro com o motor ligado.
- Entre, Danny! - disse ele, rispidamente. Entrei e vi o Cobrador já sentado lá.
- Alô, Danny, - disse ele calmamente, dando-me um soco na boca do estômago.
A dor me correu o corpo todo e eu me dobrei, indo cair no chão do carro. Ouvi a porta bater e o carro pôr-se em marcha.
- Pare com isso, - disse Spit ao Cobrador. - O Chefe recomendou que o levássemos inteiro para falar com ele.
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- Eu sei, mas o cachorro me devia esta, - disse com raiva o Cobrador.
Agarrou-me então pela gola, me fêz sentar no banco e disse:
- Bico calado. Não diga nada ao Chefe, senão na próxima vez será muito pior.
Levei algum tempo até conscientizar o que ele tinha dito. "Da próxima vez"... Isso queria dizer que não iam dar cabo de mim. Por quê? Ao que eu sabia, Maxie Fields não era do tipo capaz de perdoar.
O carrro parou em frente à porta do escritório. Spit saltou e veio ficar à minha frente, ao passo que o Cobrador tomava posição logo atrás. Atravessamos assim as salas e subimos a escada até ao apartamento de Fields. Spit bateu na porta.
- Quem é? - perguntou lá de dentro a voz trovejante de Fields.
- Sou eu, Chefe. Tenho Danny Fisher aqui comigo.
- Traga-o cá para dentro.
Spit abriu a porta, empurrou-me e eu me vi dentro da sala. O estômago ainda me doía mas eu já estava começando a sentir-me melhor.
Maxie Fields, sentado na mesa, parecia uma figura grotesca.
- Não pôde então ficar mais tempo fugido, hem? - disse ele, levantando-se e aproximando-se de mim.
Não respondi. Limitei-me a vê-lo aproximar-se. Não estava com medo dele. O Cobrador sem saber me tinha dado a pista. Vi a mão aberta de Maxie tomar impulso em direção ao meu rosto e instintivamente esquivei-me.
Senti imediatamente uma dor aguda nas costas. Spit, que estava atrás de mim, havia batido com força em mim o cabo da faca. Dessa vez, a mão de Maxie me atingiu em cheio o rosto. Vacilei um pouco nos pés, mas nada disse. Qualquer coisa que eu dissesse só poderia servir para agravar a situação.
- Não foi só você que não pôde ficar longe - disse ele com um sorriso malévolo. Voltou-se para dentro e gritou: - Ronnie, traga-me um uísque. Um velho amigo seu veio fazer-nos uma visita.
Olhei para a porta e vi Sara com os olhos fitos em mim e um copo na mão. Olhou-me por um instante, atravessou a sala em silêncio e foi entregar o uísque a Maxie.
- Como é? - perguntou ele. - Não vai dizer alô a seu velho amigo ?
Ela voltou para mim os olhos distantes e disse:
- Alô, Danny.
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- Alô, Sara.
Fields olhou para mim, com o copo ainda na mão.
- Como nos velhos tempos, hem, garoto? Não mudou nada, não foi?
Olhei o rosto de Sara. Estava frio e impassível, sem o menor vislumbre de expressão.
- Não mudou nada - respondi calmamente.
- Ronnie não pôde viver longe do seu amor. Voltou espontaneamente, não foi?
Julguei ver de relance uma chispa nos olhos dela, mas foi coisa tão rápida que não pude ter certeza.
- Foi, Max - respondeu ela com uma voz impessoal de autômato.
Fields passou o braço pela cintura dela e disse:
- Ronnie não pode viver sem o seu Max, não é? Dessa vez pude ver que os lábios dela tremiam.
- Não, Max.
ele a empurrou zangado e gritou:
- Vá para a outra sala!
Sem olhar para trás, ela se encaminhou para a outra sala e desapareceu.
Fields se voltou para mim e exclamou:
- Ninguém escapa de Maxie Fields!
Não era preciso que ele me dissesse isso. Eu estava convencido. Que teria Fields feito para que Sara voltasse? Teria acontecido alguma coisa a Ben?
Voltou para a mesa e sentou-se à mesma. Encarou-me com os olhos sumidos nas banhas do rosto e disse:
- Não se esqueça disso, Danny. Ninguém escapa de Maxie Fields!
- Não me esquecerei.
ele estava respirando ofegantemente enquanto me olhava. Depois, acabou de tomar o copo de uísque.
- OK, - disse ele, colocando o copo em cima da mesa. - Pode ir.
Fiquei ali sem acreditar, sem coragem de mover-me, pensando que talvez fosse algum truque novo dele. Era fácil demais. Não era possível que ele - Maxie Fields - me soltasse com tamanha facilidade.
- Não ouviu? - gritou ele rispidamente. - Vá-se embora e fique fora do meu caminho. Pode ser que da próxima vez você não tenha tanta sorte. Ou que eu esteja com outra disposição!
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Continuei parado, sem coragem de dar-lhe as costas. O telefone tocou em cima da mesa e ele atendeu.
- Alô? - disse ele e, ao saber quem era, mudou subitamente de expressão e disse cordialmente: - Como vai, Sam ? - Cobriu depois o bocal com a mão e disse: - Se ele não quiser mesmo sair, bote-o para fora, Spit.
Não esperei por outro convite. Saí o mais depressa possível. Foi só quando me vi de novo nas ruas sujas do bairro que comecei a ter uma idéia do que havia acontecido. ele só poderia ter-me deixado livre... se Sara tivesse entrado num trato com ele. Por isso é que ela não me olhara, nem falara comigo. Tinha de ser isso. Era a única explicação que me ocorria.
Olhei para o meu relógio. Duas e meia. Eu ainda tinha tempo de correr as agências de empregos. Não devia ir cedo para casa, senão Nellie perguntaria por que eu não tinha ido às agências e eu não queria contar-lhe o que havia acontecido. Isso só serviria para dar-lhe preocupações sem resultado.
Fui a quatro agências, mas não consegui coisa alguma. Em todas me disseram para voltar no dia seguinte. Voltei para casa um pouco depois das quatro, pensando que, se queria mesma um emprego, tinha de começar bem cedo na manhã seguinte. Não havia muitos empregos disponíveis.
Ela fêz frango à caçadora com espaguete e nós tomamos uma garrafa de Chianti que a mãe dela havia levado. O jantar estava delicioso, mas eu tive de fazer força para comer, pois o estômago me doía. Comi, entretanto, o suficiente para que ela não reparasse.
- Quer um ajudante para lavar os pratos, Nellie?
- Não, senhor. Vá para a sala e ligue o rádio. Não levarei nem dez minutos.
Sentei-me na poltrona ao lado do rádio e liguei. Ouvi um sketch em que um camarada fazia tudo para conseguir um emprego para um amigo. Parecia que era essa a maior preocupação de todo o mundo naquela época, conseguir um emprego. Pelo menos, era a minha. Seria bom quando eu conseguisse. Poderíamos economizar algum dinheiro e talvez quando as coisas melhorassem pudéssemos comprar a nossa casa. Talvez em Brooklyn, onde eu já morara. Gostava daquilo por lá. As ruas eram limpas e o ar era mais puro. Não era como ali entre a Rua Quatro Leste e a Primeira Avenida, embora o lugar fosse melhor do que muitos da vizinhança. A casa era limpa. Tinha quatro andares e moravam nela doze famílias. Não parecia tão arruinada quanto as outras. Não era um mau começo.
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Ouvi Nellie entrar na sala e perguntei:
- Já acabou?
- Não lhe disse que não ia demorar?
Puxei-a para junto de mim. Ela descansou a cabeça no meu ombro. Ficamos assim sentados. Eu me sentia pacificado, feliz e contente.
- Em que é que está pensando, Danny?
- Na minha sorte, - disse eu, sorrindo. - Tenho tudo o que sempre quis.
- Tudo, Danny?
- Quase tudo. Tenho a mulher que eu amo e minha casa. Agora, só me falta um emprego para que eu não queira mais nada.
- Estava para lhe perguntar, Danny. Como se saiu nas agências? Encontrou alguma coisa?
- Não sei ainda, querida. Afinal de contas, apareci lá à tarde e o que havia ainda era muito pouco. Vou ter uma impressão exata amanhã de manhã.
- Li hoje no jornal que o desemprego está mais alto do que nunca.
- Os jornais publicam tudo o que seja capaz de fazer sensacionalismo.
- Mas sei de muitas famílias que estão recebendo socorro do governo. Isso não pode deixar de significar alguma coisa.
- Ora, minha filha, significa apenas que essa gente não quer trabalhar. Quando se quer mesmo trabalhar, sempre se arranja emprego. Eu quero trabalhar e vou arranjar emprego.
- Mas nem todos são assim, Danny.
- Escute, Nellie, só os vagabundos recebem socorro do governo. Eu, não. Quanto a isso, não há motivo de preocupação.
Ela ficou durante algum tempo em silêncio e então me perguntou:
- E se você levar algum tempo sem conseguir emprego?
- Nós nos arranjaremos. Não se preocupe. Você ainda está trabalhando.
- E se eu não puder mais trabalhar, se eu tiver de parar ? Posso ficar grávida.
- Não é preciso ficar. Você sabe que há maneiras de impedir isso.
Ela ficou de repente muito pálida e murmurou:
- Você bem sabe que eu sou católica e a nossa religião não permite isso. É um pecado.
- Que é que os católicos fazem então? As mulheres não podem ficar grávidas o tempo todo.
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- Há ocasiões em que não há perigo, - disse ela, sem olhar para mim.
Senti-me um tanto confuso. Eu tinha muito que aprender. - E se acontecer em outra ocasião?
- Não se deixa acontecer em outras ocasiões, - disse ela, ainda sem olhar para mim.
- Isso é que não! Vamos fazer como todo o mundo faz! Ouvi um soluço e exclamei:
- Mas por que é que você está chorando? Eu não disse nada demais, Nellie!
- Não posso, Danny, não posso! - disse ela, febrilmente, com o rosto encostado ao meu. - Já fiz muitas coisas erradas, mas isso ainda não posso fazer.
- Está bem, Nellie, - disse eu, tentando acalmá-la. - Será tudo como você quer.
As lágrimas dela se transformaram num radioso sorriso.
- Você é tão bom para mim, Danny! - exclamou ela, cobrindo-me o rosto de beijos. - Como eu amo você!
- Também amo você, querida, - disse eu sorrindo - mas será que não há perigo?
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TODOS OS DIAS DA MINHA VIDA
LIVRO QUARTO
A mulher entrou até ficar diante de mim. Sentou-se e ajeitou-se no banco um longo momento, ostentando o busto exuberante. Vi que Jack, meu patrão, não tirava os olhos de cima dela. Não podia censurá-lo. Aquele busto dela era mesmo de chamar a atenção.
Acabei de enxugar o rosto com a toalha fria antes de atendê-la. Era uma dessas noites quentes e abafadas de outubro em Nova York quando o verão trava as suas últimas batalhas sem qualquer esperança de vitória. Cheguei ao balcão e sorri para ela.
- Pronto! Que deseja?
- Limão e soda, Danny, - disse ela, quebrando os olhos como se já me estivesse levando para a cama.
- Já vai, - disse eu, sem fugir com os olhos.
Ela estava com um cigarro apagado na boca quando coloquei o refrigerante diante dela. Risquei o fósforo e acendi-lhe o cigarro.
- Obrigado, Danny, - disse ela. Tirou uma fumaça, tomou um gole e disse: - Devia haver no Subway lugares como este onde se pudesse tomar alguma coisa gelada numa noite quente como esta.
- Pois olhe que eu não iria gostar nada disso - disse eu, forçando um sotaque sulista. Em Nova York, se pensa que os melhores garçons são do Sul. - Neste caso, não a veria por aqui.
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Ela me deu um sorriso compreensivo e ostentou mais o busto. Dei-lhe o meu olhar de admiração esperado e depois fui falar com Jack. Tudo aquilo fazia parte do jogo. As garotas se sentavam assim diante do balcão esperando justamente isso. Era a compensação que tinham pela vida que levavam. Romance num balcão de refrigerante. E, pensando bem, até que era barato.
Já passa de uma hora, Jack, - disse eu. - Posso começar a arrumar?
- Pode sim, Danny, - disse ele, depois de olhar para o relógio. Olhou para a pequena e acrescentou: - Acho que você só dá sorte com elas por causa desse cabelo louro e desses olhos azuis. Quase todas as pequenas que entram aqui vão direto para onde você está. E que bolas que elas lhe dão.
- Não fique com inveja, Jack. Eu posso atrair as pequenas, mas quem fica com o dinheiro é você. E elas não me interessam.
- Sério mesmo, Danny?
- Claro, Jack. Um homem casado com uma filha não tem tempo para essas coisas e eu, além de não ter tempo, não tenho dinheiro. Por outro lado, essas garotas só querem é movimento. Se você marchar mesmo para cima de uma delas, abrem a boca no mundo.
- Não acredito numa palavra do que você está dizendo, - murmurou ele, rindo. - Mas pode começar a arrumar tudo para fecharmos.
Voltei ao balcão, recolhi o dinheiro que a pequena deixou com um sorriso para mim, registrei a venda e guardei o níquel da minha gorjeta. Era uma e um quarto da manhã, mas eu não precisava do relógio para saber disso. Estava cansado. Sentia as pernas fracas e as costas me doíam pois estava ali de pé desde as seis horas da noite. Sete horas e quinze sem me sentar um só instante. Mas era afinal de contas um emprego e os empregos não estavam fáceis naquele ano de 1939, embora houvesse guerra na Europa. Eu devia saber por que já estava até cansado de procurar emprego.
Havia três anos exatamente. Conseguira decerto alguns empregos mas eram coisas que não duravam. Acontecia isso ou aquilo e eu me via de novo sem ter o que fazer. As coisas não foram muito ruins enquanto Nellie pôde trabalhar. Íamos nos arrumando. Mas quando Vickie chegou, tudo mudou um pouco. Fomos bater de cabeça numa barreira que o tempo e a economia haviam levantado contra nós.
Ainda me lembrava do dia em que Nellie voltara para casa do trabalho e me dissera que ia ter um filho. Devo ter feito uma cara esquisita porque ela me perguntou com os olhos magoados:
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- Não ficou contente, Danny?
- Claro que fiquei.
- Por que está então com essa cara?
- Estou pensando onde é que vou achar dinheiro...
- Você vai conseguir um emprego. As coisas não podem continuar indefinidamente assim.
- É isso o que eu não paro de dizer, - murmurei, acendendo um cigarro.
Ela me olhou e disse com tristeza:
- Não está feliz como nosso filho?
- Mas não estou feliz por quê? Tenho até vontade de sair pelo meio da rua pulando e cantando. É maravilhoso. Do jeito que as coisas vão, teremos muita sorte se não precisarmos de nos mudar até daqui. Estou felicíssimo!
- Não pude fazer nada, Danny, - murmurou ela, desanimadamente. - Aconteceu.
-- Sim, aconteceu. Há uma porção de maneiras de evitar que isso aconteça, mas minha querida mulher não acredita nelas. Acredita é no que algum idiota lhe diz a respeito de ciclos e de...
- Danny!
Calei-me. Os olhos dela estavam cheios de lágrimas. Continuei a fumar em silêncio.
- Não quer um filho, Danny? - perguntou ela, por entre lágrimas.
A dor que havia na voz dela me chegou até ao fundo da alma. Abracei-a e disse:
- Perdoe-me, Nellie. É claro que eu quero um filho. Estou apenas preocupado. Os filhos dão despesas e nós não temos dinheiro.
Ela sorriu por entre as lágrimas e disse:
- As crianças não exigem muito. De que mais precisam é de amor.
Mas não tinha sido tão fácil assim. Precisavam também de alguns dólares. Ainda me lembrava de quando, depois de gasto o último dólar das nossas economias, eu tivera de ir ao centro da cidade e requerer socorro do governo. Não me esquecia do jeito pelo qual o funcionário nos tinha olhado - especialmente para Nellie nos últimos meses de gravidez - como se quisesse saber como era que tínhamos coragem de botar filhos no mundo se nem de nós mesmos podíamos cuidar. Tínhamos preenchido uma porção de formulários e os funcionários deram para aparecer em nossa casa nas horas mais estranhas. Esmiuçaram tudo até que não ficou um só cantinho de nossa vida que ainda pudéssemos chamar nosso.
271
Uma investigadora do socorro é que nos havia levado o primeiro cheque. Era gorda e usava um velho casaco de peles.
- Isso é para a comida e as necessidades essenciais da vida - dissera ela, entregando-me o cheque.
Bati com a cabeça sem olhar para ela.
- Se soubermos, - continuou ela num tom ríspido de advertência - que gastou qualquer parte desse dinheiro em uísque ou em jogo ou em qualquer coisa que não seja aquilo a que se destina, os cheques serão imediatamente interrompidos.
Senti o rosto vermelho, mas não olhei para ela. Do jeito pelo qual me estava sentindo naquele momento, não poderia mais olhar para ninguém.
Isso foi antes de Vickie nascer. A primeira vez que a vi foi quando a enfermeira no hospital municipal me deixou olhar pelas vidraças do berçário. Vickie, minha filhinha, minha querida. Pequena, rosada e loura como eu. Pensei que ia estourar de orgulho e alegria. Soube então que nada havia feito de errado, nem de vergonhoso. Valia a pena sofrer qualquer humilhação, passar por qualquer miséria para poder ficar ali e olhar para ela.
Em seguida, a enfermeira me deixou entrar e ver Nellie. Ela estava numa enfermaria no quarto andar do hospital, com mais sete outras doentes. Ela me viu caminhar para a cama, com os olhos negros abertos e firmes. Nada disse. Não sabia o que poderia dizer. Curvei-me sobre ela e beijei-a, ao mesmo tempo que lhe apertava o braço.
Quando levantou os olhos para mim, percebi uma veiazinha que latejava no pescoço. Parecia muito cansada.
- É uma menina, - disse ela.
- É, sim.
- E tem o seu cabelo, Danny.
- Mas os olhos e o rosto são seus. Já vi. É uma beleza.
- Não está então decepcionado? - perguntou ela com um sorriso.
- Nada disso! Ela é exatamente o que eu queria. Outra Nellie. A enfermeira se aproximou.
- Não pode se demorar muito, Sr. Fisher.
Tornei a beijar Nellie e saí da pequena enfermaria. Fui para casa e passei uma noite inquieta no apartamento. Logo que amanheceu o dia, saí para procurar um emprego.
Como, de hábito, nada consegui. Por fim, desesperado ante a idéia de que não seria capaz de sustentar minha filha, fui procurar Sam para ver se ele me podia ajudar.
272
Lembro-me de que fiquei quase uma hora na rua diante do Edifício Empire State onde era o escritório dele, para criar coragem. Afinal, entrei e tomei o elevador até ao andar do escritório dele.
A recepcionista não me deixou entrar para falar com ele. Desci
e liguei para ele de um telefone público. Falou-me com voz áspera
e as suas primeiras palavras me fizeram correr um frio pela espinha
e eu bati o telefone, sentindo as suas palavras ainda me ressoarem no ouvido: "Que é que você quer? Uma esmola?"
Todas as portas se me haviam fechado. Não havia ninguém a quem eu pudesse recorrer. Eu mesmo havia feito a cama em que estava deitado.
Nellie veio para casa com a menina e o verão estava quase no fim quando afinal encontrei alguma coisa. Tinha sido poucas semanas antes e o salário não dava nem para viver. Era trabalho noturno mas eu estava tão desesperado para trabalhar que peguei o lugar assim mesmo. Garçom num balcão de refrigerantes a seis dólares por semana e mais as gorjetas. Se eu conseguisse manter aquilo escondido do pessoal do socorro do governo, poderíamos viver e o dinheiro extra muito nos ajudaria. Os setenta e dois dólares que o socorro nos dava por mês não chegavam para muita coisa.
Quando acabei de arrumar tudo, já eram duas e meia. Tirei o avental e guardei-o embaixo do balcão para usá-lo na noite seguinte. Se eu andasse depressa para pegar o subway, poderia estar em casa antes das três horas. Poderia então ter algumas horas de sono antes que a investigadora do socorro chegasse com o cheque. Ela aparecia em geral às sete horas.
Mal podia manter os olhos abertos sentado à mesa, a ouvir a voz fanhosa e monótona da Srta. Snyder. Era a investigadora encarregada do nosso caso e uma dessas pessoas que entendem de tudo. Naquele momento, estava ensinando Nellie a preparar um molho de carne para espaguete sem usar carne.
- Deve ficar maravilhoso, não acha, Danny?
- O quê? - exclamei, despertado pela voz de Nellie. - Claro que sim.
273
- Não estava nem escutando, Sr. Fisher, - disse a Srta. Snyder, num leve tom de censura.
-- Estava, sim, Srta. Snyder. Não perdi uma palavra do que a senhora disse.
Ela me olhou através dos óculos e disse com voz desconfiada:
- Parece muito cansado, Sr. Fisher. Foi dormir tarde esta noite?
- Não, fui até bem cedo para a cama. Mas não consegui conciliar o sono. Levei um tempo enorme a virar-me de um lado para outro.
Ela se voltou para Nellie. Era evidente que eu não conseguia impressioná-la.
- Como vai a filhinha, Sra. Fisher.
- -Muito bem. Quer vê-la, Srta. Snyder? - disse Nellie, levantando-se.
Sorri intimamente. A Srta. Snyder era solteirona e adorava crianças. Dali por diante, eu poderia pegar no sono e roncar ali diante dela, que ela nem tomaria conhecimento da minha presença.
Esperei que a Srta. Snyder saísse e voltei para a cama. Não tirei nem a roupa. Acordei com a impressão de que estava sozinho em casa. Virei a cabeça para olhar o relógio na mesinha de cabeceira. Meio-dia. Vi uma folha de papel encostada ao relógio. Era um bilhete de Nellie.
"Fui descontar o cheque, pagar as contas e fazer algumas compras. Levei Vickie para que você possa dormir mais um pouco. Há café em cima do fogão. Voltarei às três horas."
Depois de ler o bilhete, levantei-me e espreguicei-me. Fui até ao banheiro e olhei-me ao espelho enquanto passava pelo rosto o sabão de barba. A pele sobre as maçãs do rosto parecia esticada e ressecada e havia pequenas rugas nos cantos dos olhos. Parecia cansado e mais velho.
Ouvi a chave na porta logo que acabei de fazer a barba. Nellie entrou com Vickie num braço e um saco de compras no outro. tomei a menina e fui para a cozinha. Nellie me acompanhou com as compras.
- Paguei o açougue e o armazém - disse ela. - Ainda restarão seis dólares depois de pagarmos o aluguel, o gás e a luz.
- Ótimo, - disse eu. Notei então que Vickie estava quieta demais. Em geral, quando eu a pegava, ficava o tempo todo querendo pular nos meus braços e brincar. - Que é que há com Vickie?
- Não sei, -- respondeu Nellie, olhando para a menina com uma expressão imediata de preocupação. - Está assim desde que acordou.
274
No armazém, começou a chorar. Foi até por isso que vim para casa mais cedo.
- Que é que há com a minha senhorita? - disse eu, balançando-a no braço e esperando que ela risse toda contente, como era seu costume.
Mas ela, ao contrário, começou a chorar. Voltei-me todo confuso para Nellie. Nunca sabia o que havia de fazer quando a menina chorava.
- Vou botá-la na cama, - disse Nellie, tomando-a de mim. - Talvez ela se sinta melhor depois de dormir um pouco.
Sentei-me à mesa e tomei uma xícara de café enquanto Nellie fazia Vickie dormir. Passei os olhos pelo jornal. Havia uma notícia sobre investigações do serviço de socorro em torno de pessoas que estavam agindo fraudulentamente. Mostrei-a a Nellie quando ela voltou para a cozinha.
- Acha que a Srta. Snyder desconfia de alguma coisa? - perguntou ela.
- É muito difícil. Estou sempre em casa quando ela chega.
- É possível que algum dos vizinhos tenha notado alguma coisa e falasse com ela.
- Não iriam fazer isso. Todos eles já têm os seus problemas.
- Apesar de tudo, ela hoje me pareceu um pouco esquisita, como se soubesse de alguma coisa.
- Nem pense nisso, Nellie, - disse eu com mais confiança do que sentia. - Ela não sabe de nada.
Ouvimos Vickie chorar de novo. De repente, no meio do choro, começou a tossir. Corremos imediatamemte para o quarto.
Nellie tomou-a nos braços, bateu-lhe carinhosamemnte nas costas e a tosse passou.
- Danny, - exclamou com os olhos arregalados de espanto e de medo, - ela está com febre.
Coloquei a mão na testa de Vickie e murmurei:
- É, sim. Acho que está com uma pontinha de febre.
- Tossiu a noite toda. Acho que peguei o resfriado nela.
De fato. Eu nem havia pensado nisso. Nellie estava havia uma semana às voltas com um resfriado.
- Vamos chamar o médico, Nellie.
- Talvez seja melhor. O cartão do médico está na prateleira da cozinha. Desça e telefone para ele.
O médico se afastou da menina e chamou Nellie.
- Quero examiná-la agora enquanto seu marido bota a menina no berço.
275
- Ela está bem? - perguntou Nellie.
- Tem apenas um resfriado que atacou a garganta. Vou receitar alguma coisa para ela. Agora, abra a boca.
O médico colocou o abaixador de língua na boca de Nellie e examinou-lhe a garganta. Depois, tirou o termômetro do bolso.
- Então, Doutor?
- Não se aflija, Sra. Fisher. Vamos ver se está com febre. Quando acabei de cobrir Vickie, o médico me perguntou:
- Qual é o número de seu cartão médico?
- Está na cozinha, doutor. Já vou buscar.
Quando voltei, o médico estava olhando o termômetro que pusera em Nellie.
- Sabe que está com febre também, Sra. Fisher?
- Não, não sabia.
- É melhor ir para a cama e passar alguns dias em repouso.
- Mas, Doutor, o senhor ainda não disse o que é que Vickie tem.
- A mesma coisa que a senhora tem. Um resfriado que atacou a garganta. Vou passar duas receitas, uma para a senhora e outra para ela. Sigam as instruções e ambas não tardarão a ficar boas.
- Acha que foi de mim que ela pegou?
- Não sei se foi a senhora que pegou nela ou ela que pegou na senhora. Mas o que interessa é tomar os remédios e repousar. Passarei por aqui amanhã para ver como estão passando. Tem aí o número do cartão? - perguntou ele, entregando-me as receitas.
Passei-lhe às mãos o cartão que me tinham dado no Socorro. Dava-me direito a tratamento médico à custa do serviço.
O médico escreveu alguma coisa. Era evidente que ele julgava que já nos tinha dado tempo de sobra pelos dois dólares que o Socorro lhe pagava por visita.
- Entregue isso à investigadora do Socorro quando ela aparecer - disse ele, passando-me às mãos o cartão com um pedaço de papel escrito.
- Está bem, Doutor.
- Agora, façam o que mandei. Cama e remédios de acordo com as instruções da receita. Voltarei amanhã.
Saiu e eu me voltei para Nellie, exclamando, irritado:
- Bandido! Só quer é ganhar os dois dólares. Quase não nos deu atenção porque somos do Socorro. Gostaria de saber se ele trata assim os outros clientes!
- Que é que podemos fazer, Danny? - perguntou Nellie. - Ao menos, ele veio logo. Há muitos médicos que nem se dão ao trabalho de aparecer quando sabem quem é que vai pagar a conta.
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- Mas não era preciso nos tratar como se fôssemos lixo!
- Você já está na idade de saber como as pessoas são, Dainy.
A paciência dela fêz com que me envergonhasse da minha explosão. Se eu ainda não soubesse àquela altura o que era a vida, nunca iria saber.
- Vou descer e mandar aviar as receitas na farmácia, Nellie. Acho que hoje não vou trabalhar.
- Nada disso, Danny. Vá buscar as receitas. Depois, você irá trabalhar. Nós precisamos do dinheiro.
- Mas o médico não disse que você devia ficar na cama?
- Sempre dizem isso, mas onde era que a gente iria parar se ficasse na cama por qualquer resfriadinho à-toa? Vá trabalhar. Quando voltar para casa, nós duas estaremos bem.
3
Subi correndo as escadas até chegar diante da minha porta. Logo que meti a chave na fechadura ouvi Nellie tossir. Entrei e vi que a luz do quarto estava acesa. Fechei a porta rapidamente e corri para lá.
- Está acordada, Nellie?
Parei à porta, Nellie estava curvada sobre o berço da menina. - Danny! - exclamou ela, com a voz cheia de aflição.
- Que é, Nellie? - perguntei, atravessando o quarto quase de uma passada só.
- Você tem de fazer alguma coisa, Danny! Vickie está ardendo em febre! Deve estar com mais de quarenta graus!
Encostei a mão na testa de minha filha e vi que de fato a febre estava altíssima. Olhei para Nellie e tentei falar com voz calma.
- Não se assuste. Febres altas assim são muito comuns nas crianças. Você parece que está com febre também.
- Não se preocupe comigo - disse ela. - Temos é de fazer alguma coisa por Vickie!
- Calma, Nellie. Vou descer agora mesmo e telefonar para o médico. Não demoro.
277
- Vá logo, Danny, - disse ela com as lágrimas a rolarem pelo rosto, enquanto ajeitava as cobertas da menina. - Depressa! Ela está queimando!
Disquei e ouvi o telefone do outro lado tocar. Passaram vários segundos até alguém atender.
- Alô - disse uma voz cheia de sono.
- O Dr. Addams?
- Sim, é quem fala.
- Doutor, quem fala aqui é Danny Fisher. O senhor veio ver minha filha hoje.
- Sim, Sr. Fisher, sei disso - murmurou ele com uma nota de irritação na voz.
- Pode vir aqui imediatamente, Doutor? A menina está com mais de quarenta graus de febre!
- Está dormindo?
- Está, sim, Doutor. Mas não estou gostando do estado dela. Está toda vermelha e respirando com muita dificuldade. Minha mulher também. Está com febre alta.
- Tomaram os remédios que eu receitei?
- Tomaram sim, Doutor.
- Então, não se preocupe, Sr. Fisher. - A voz do médico mostrava uma segurança profissional que não encontrou eco em mim. - É muito comum a febre aumentar à noite num caso de resfriado. Dê a ambas alguma coisa quente para beber e cubra-as bem. Já devem estar melhor quando eu passar por aí amanhã.
- Mas, Doutor.
- Faça o que estou dizendo, Sr. Fisher, - disse ele e desligou no mesmo instante.
Fiquei parado ali cheio de raiva, compreendendo que ele me batera o telefone. Acho que quebrei o telefone com a força com que o joguei no gancho.
- ele vem? - perguntou Nellie ansiosamente, quando eu subi.
- Não. Disse que não é preciso, pois isso é muito comum. Recomendou-me que desse a você duas alguma coisa quente para beber e que as cobrisse bem.
- Acha que não há perigo, Danny?
- Claro que não, - disse eu, sorrindo mas sem a menor convicção. - ele é médico e sabe o que está fazendo. Deite-se enquanto eu vou preparar um chá bem quente.
Ela se deitou e disse:
- Prepare primeiro a mamadeira de Vickie.
- Fique descansada, Nellie. Cubra-se bem.
278
Levei a xícara de chá para o quarto.
- Tome, Nellie. Beba o seu chá que você se sentirá melhor.
Ela pegou a xícara de chá que eu lhe estendia e provou-o.
- Está bom.
- E não podia deixar de estar. Sabe quem preparou esse chá? Danny, do Waldorf Astoria.
Ela teve um sorriso e tomou outro gole de chá.
- Vá ver como Vickie está.
Olhei para o berço. A menina dormia tranqüilamente.
- Está dormindo e bem calma.
Nellie acabou de tomar o chá e se deitou de novo com os cabelos negros espalhados pelo travesseiro.
- Querida! - murmurei com a voz cheia de admiração. - Estava quase esquecido de sua beleza.
Ela esboçou um sorriso cansado.
- Trabalhar à noite é bom para a sua saúde, Danny. Faz até você ver melhor.
- Vá dormir, meu bem, - disse eu, beijando-lhe a fronte. - Tudo está bem agora.
Voltei para a cozinha e lavei a xícara. Sentei-me numa cadeira e estava acendendo um cigarro quando ouvi Vickie choramingar e tossir. Fui até ao berço e lhe balancei o corpozinho levemente até a tosse passar.
Nellie estava mergulhada no sono da completa exaustão, felizmente o choro de Vickie não a havia acordado. Toquei com os dedos a testa da menina. Ainda estava muito quente. Ajeitei-lhe as cobertas e murmurei bem baixinho:
- Papai volta já.
Voltei à cozinha e apaguei o cigarro que deixara aceso. Apaguei então a luz e voltei para o quarto no escuro. Coloquei uma cadeira ao lado do berço e sentei-me. Estendi a mão à procura dos dedos de Vickie. A mãozinha instintivamente se dobrou em torno do meu indicador. Fiquei ali sentado em silêncio, não querendo nem mover-me para não lhe perturbar o repouso.
Lá fora, brilhava o luar e a noite parecia nova, como se pertencesse a um mundo diferente. Senti Vickie mover-se e olhei para o berço. Ela estava dormindo de lado e se encolhia toda em torno de minha mão. Minha filha, pensei com orgulho. Um susto como aquele é que me provava quanto ela era preciosa para mim. Havia nela muitas coisas que me encantavam - a maneira pela qual arrotava depois das mamadas, os olhinhos azuis seguindo-me quando eu entrava no quarto, as rugas delicadas nas solas dos pèzinhos.
279
"Fique descansada que eu lhe darei uma boa vida, Vickie querida", murmurei. Achei que tinha falado um pouco alto demais e olhei para a cama, mas Nellie ainda estava dormindo. Continuei em voz mais baixa a falar à minha filha. "Fique boa, sim, Vickie? Fique boa e forte para seu Papai. Há todo um mundo lá fora que ele quer que você conheça. Há o sol, a lua, as estrelas e uma porção de coisas maravilhosas que você terá de ver com os seus olhos, ouvir com os seus ouvidos e sentir com esse narizinho. Cresça e fique forte para que nós possamos passar pela rua de mãos dadas, sentindo os nossos corações baterem juntos. Vou-lhe comprar tanta coisa, Vickie! Você vai ter muitas bonecas, muitos brinquedos, muitos vestidos. Tudo o que você quiser, eu darei. Trabalharei sem descanso, vinte e quatro horas por dia, para fazer você feliz. Você é minha filhinha que eu amo de todo o meu coração."
Olhei-a na escuridão. Que louco tinha sido eu em não saber que riqueza eu possuía com ela! Elevei os olhos e rezei.
- Meu Deus! Fazei-a ficar boa!
O silêncio do quarto foi quebrado pelo barulho da tosse de Nellie. Ouvi-a virar-se na cama. Levantei-me, cobri-a de novo e voltei para a cadeira.
A noite foi-se arrastando longa e calma. Comecei a cochilar com a mão em cima de minha filha no berço. Esforcei-me muitas vezes para ficar de olhos abertos, mas o peso que sentia nas pálpebras era imenso.
Um ruído de tosse me chegou aos ouvidos ao mesmo tempo que a luz da manhã me batia nos olhos. Abri os olhos de repente e olhei para o berço.
Vickie estava tossindo violentamente. Tirei-a desesperadamente do berço e tentei acalmá-la, com pancadinhas nas costas. Mas ela não parava de tossir. Os olhinhos estavam fechados e gotículas de suor enchiam-lhe a testa. De repente, ela pareceu ficar rígida nos meus braços, ao mesmo tempo que o rostinho se arroxeava.
Colei a boca à dela e, com toda a energia que me era possível, soprei meu hálito dentro dela, ao mesmo tempo que lhe fazia pressão nos lados. O medo e o conhecimento do que estava acontecendo me constrangiam o coração.
Tentei por muito tempo fazer do meu hálito o seu hálito, da minha vida a sua vida até muito depois de saber sem sombra de dúvida que nada mais poderia fazer por ela.
280
Fiquei ali em silêncio no meio do quarto, apertando ao peito o corpo inerte, que o frio da manhã invadia. Era minha filha. Senti na lágrima a pungência das lágrimas.
- Danny! - exclamou da cama a voz assustada de Nellie.
Voltei-me lentamente para ela. Durante um longo minuto cheio de compreensão mil coisas que nunca foram ditas se comunicaram entre nós. Ela sabia. De algum modo, tinha sabido todo o tempo e por isso é que tivera medo. Estendeu os braços para Vickie.
E eu me dirigi lentamente para a cama a fim de entregar-lhe nossa filha.
4
Os degraus rangiam sob os nossos pés enquanto subíamos a escada. Era um som conhecido, que nos havíamos habituado a ouvir durante longo tempo, mas nele não havia mais alegria. Já fazia pouco mais de três anos que havíamos subido aquela escada pela primeira vez.
Éramos felizes naquela ocasião. Éramos jovens e a vida se estendia risonha à nossa frente. Lembrei-me de como a havia carregado nos braços através da porta. Mas logo a lembrança se dissipou. Tinha sido há muito tempo e nós não éramos mais jovens.
Olhei-a, aprumada e firme, subindo a escada à minha frente. Ela se mostrara forte como sempre fora. Não tinha havido lágrimas, nem manifestações violentas da sua dor. Só a mágoa que lhe enchia os olhos escuros, o sofrimento que lhe torcia os cantos da boca davamme uma indicação dos seus sentimentos.
Parou quando chegou ao nosso andar e vacilou um pouco antes de encaminhar-se para a porta. Corri imediatamente para junto dela, com receio de que fosse cair. Ela encontrou minha mão e segurou-a com força.
Não falamos até chegar à porta. Tirei a chave e encostei-a na fechadura, mas só com isso a porta se abriu.
- Acho que me esqueci de trancar a porta - disse eu, surpreso.
- Não faz mal, - murmurou ela. - Não temos mais nada a perder.
281
Entramos para o pequeno vestíbulo e ficamos ali parados, com medo de olhar um para o outro, com medo até de falar. Quebrei afinal o silêncio.
- Tire o casaco que vou pendurá-lo, querida.
Ela tirou o casaco e eu fui guardá-lo no armário, ao lado do meu. Quando voltei, encontrei-a parada no mesmo lugar.
- Entre e sente-se, - disse eu, tomando-a pelo braço. - Vou fazer-lhe uma xícara de café.
- Não quero nada - disse ela com voz cansada.
- Mas de qualquer maneira venha-se sentar.
Ela me deixou levá-la para a sala e fazê-la sentar-se no sofá. Sentei-me ao lado dela e acendi um cigarro. Ela estava com o olhar vazio e parado. Havia silêncio no apartamento, um silêncio pesado, opressivo, que me enchia os ouvidos e no qual eu procurava angustiadamente distinguir o choro de minha filha, que em outros tempos me havia às vezes irritado e que naquele momento seria música para a minha alma.
Fechei os olhos por um momento. Estava começando a sentir neles a ardência das longas horas daquele dia. Tinha sido um dia para ser esquecido, um dia para ficar escondido em algum canto secreto do espírito para que não se repetisse a dilacerante dor que ele havia trazido. Era preciso esquecê-la, esquecer as solenes cerimônias da missa, o caixãozinho branco entre as luzes amarelas das velas, esquecer o barulho da terra caindo sobre o caixão, esquecer, esquecer, esquecer.
Mas esquecer como? Seria possível esquecer a bondade dos vizinhos, a solidariedade e a gentileza de que nos haviam cercado? Batia-se à porta dos outros com lágrimas nos olhos. Não tínhamos dinheiro e nossa filhinha iria dormir num túmulo de indigente se não fossem eles. Cinco dólares aqui, dois dólares ali, dez dólares, seis dólares. Setenta ao todo. Para pagar uma missa, um caixãozinho branco, uma sepultura para repouso de uma parte do coração que nos fora arrancada e não existia mais. Setenta dólares tirados da pobreza de todos eles para minorar a tortura de um deles que era ainda mais pobre.
Era preciso esquecer, mas um dia como aquele não era possível esquecer. Algum dia ficará bem enterrado no fundo do coração, mas não será esquecido, como ela também nunca será esquecida.
Era estranho, mas havia resistência íntima a pronunciar-lhe o nome. Em vez disso, dizia-se "ela". Sacudi violentamente a cabeça e ordenei a mim mesmo: "Diga o nome dela! Diga!"
Tomei uma respiração profunda e o nome me explodiu na cabeça. "Vickie!" Era um nome de glória, um nome de vida, mas não pertencia mais à vida.
282
Compreendi no meu desespero que o nome desaparecera com minha filha. Seria apenas "ela" até ao fim das nossas vidas.
Tirei a última fumaça do cigarro e apaguei-o.
- Não acha melhor você ir deitar-se, Nellie?
- Não estou cansada.
Tomei-lhe a mão que estava fria como gelo.
- De qualquer maneira, é melhor ir deitar-se.
- Danny, não posso entrar lá e ver o berço, os brinquedos...
Compreendia perfeitamente o que ela estava sentindo. Mas tinha de convencê-la.
- Nada mais podemos fazer, querida. E temos de continuar vivendo. Você tem de reagir.
- Por que, Danny? Por quê? - exclamou ela, desvairadamente, agarrando-me as mãos.
Tinha de responder, embora não soubesse ao certo o que ia dizer.
- É preciso, querida. Era assim que ela haveria de querer.
- Era tão pequena minha filha, Danny! - exclamou ela e então pela primeira vez naquele dia começou a chorar. - Era minha filha e só queria uma coisa - viver. E fui eu que a matei, fui eu que lhe falhei.
- Não diga isso, Nellie. Não foi sua a culpa, não foi a culpa de ninguém. Foi tudo a vontade de Deus.
Não, Danny! - exclamou ela desesperadamente. - A culpada fui eu, desde o princípio. Cometi um pecado e envolvi minha filha nele. Foi ela que pagou pelo meu pecado e não eu. Eu devia saber que não podia levantar-me contra Deus.
Havia nos olhos dela um brilho de fanatismo que era coisa inteiramente nova para mim.
- Pequei e vivi no pecado, - continuou ela. - Nunca pedi as bênçãos de Deus para o meu casamento. Como podia esperar que file abençoasse minha filha? O Padre Brennan me disse isso há muito tempo.
- O Padre Brennan não disse nada disso! - exclamei desesperadamente. - O que ele disse hoje na igreja é que Deus acolheria com carinho nossa filha. Nós nos amamos. Nellie, sempre nos amamos. É só isso que Deus nos pede.
- Pobre Danny, - murmurou ela, acariciando-me ligeiramente o rosto. - Você não compreende.
283
Ela tinha razão, eu não compreendia mesmo aquela atitude dela. O amor que unia duas pessoas, desde que fosse leal e sincero, não podia deixar de ser uma coisa abençoada.
- Amo-a, Nellie.
- Acha que o seu amor é tudo o que é preciso? Não pode ver que isso não basta a Deus?
- Mas basta para nós, - disse eu, beijando-lhe a mão.
- É justamente aí que está o nosso erro, Danny. Eu pensei também que bastasse para nós, mas vejo agora que estava enganada. Temos de viver com Deus também e não apenas conosco.
Depois, ela foi para o quarto e deitou-se. Acendi outro cigarro e fui até à janela. Havia começado a chover. Um dia que era preciso esquecer. O silêncio penetrou-me até aos ossos.
Um curioso torpor me invadia, deixando-me num estado em que eu não estava nem adormecido, nem acordado. Era quase como se o corpo estivesse adormecido e o espírito houvesse permanecido acordado, tendo perdido qualquer noção do tempo. Só os pensamentos me acompanhavam. Eram restos indistintos e informes de lembranças, enquanto o corpo se mantinha indiferente à dor que elas traziam.
Foi por isso que não ouvi a campainha a primeira vez que tocaram. Ouvi o som, é verdade, mas não o identifiquei. O segundo toque foi mais estridente e demorado. Compreendi então que estavam tocando a campainha e tentei imaginar quem seria.
Levantei-me e olhei para o relógio. Fiquei surpreso de que fossem apenas três horas. A impressão que eu tinha era de que um ano pelo menos se passara desde aquela manhã.
Abri a porta e vi um homem a quem não conhecia.
- Que é? - perguntei, pensando que se tratasse de algum vendedor e que ele não poderia ter escolhido hora mais inoportuna.
O desconhecido tirou do bolso e me mostrou uma carteira do Serviço de Socorro da Prefeitura de Nova York.
284
- Sr. Fisher? - perguntou ele. - Sou Jonh Morgan, do Serviço de Socorro. Podemos conversar um momento? Tenho algumas perguntas para fazer-lhe.
Não era ocasião para eu responder a perguntas.
- Não pode deixar para outro dia, Sr. Morgan?
- Infelizmente não posso. A Srta. Snyder recebeu a respeito do seu caso algumas informações que devem ser apuradas. Seria do seu interesse responder às perguntas agora.
- Onde está a Srta. Snyder? - perguntei, desconfiado.
-- Isso não é coisa do seu interesse, Sr. Fisher, - disse ele com uma nota não disfarçada de hostilidade. - Só quero do senhor é que me responda a algumas perguntas.
Comecei a antipatizar com o sujeito. Uma carteira do Serviço de Socorro não o transformava em super-homem. Plantei-me firmemente na porta. Não ia deixá-lo entrar em minha casa.
- Está bem. Pode fazer as suas perguntas.
ele hesitou um momento, mas acabou tirando um caderninho do bolso.
- Sua filha foi enterrada hoje de manhã?
Bati com a cabeça em silêncio. Senti-me ofendido pela maneira fria e impessoal com que ele aludia ao fato. Era uma profanação.
ele rabiscou alguma coisa no caderninho. Todos aqueles investigadores eram a mesma coisa. Mal se viam com um caderninho nas mãos começavam logo a rabiscá-lo. Se perdessem o caderninho, ficariam atarantados, sem poder mais nem falar.
- Os serviços da casa funerária custaram quarenta dólares e o cemitério cobrou vinte dólares pela sepultura. Total: sessenta dólares. Certo?
- Não. Deixou mais uma despesa de fora.
- Que foi?
-- Demos dez dólares para uma missa de corpo presente na igreja da Ascensão. Gastamos ao todo setenta dólares.
ele tomou nota de tudo no caderninho e, depois, levantou a vista e me perguntou:
- Onde conseguiu o dinheiro, Sr. Fisher?
- Isso não é absolutamente da sua conta, sabe?
- É, sim, Sr. Fisher, - replicou ele com um leve sorriso. - O senhor está sendo mantido pelo Socorro, na suposição de que esteja desempregado e sem meios de subsistência. Isso quer dizer que não tem dinheiro e é por isso que o ajudamos. De repente, o senhor aparece com setenta dólares para gastar nas mãos. Temos o direito de lhe perguntar como conseguiu esse dinheiro.
285
E eu tinha de responder mesmo, senão eles me cortariam o auxílio mensal. Mas sentia relutância em dizer-lhe onde havia conseguido o dinheiro. Aquilo era uma coisa pessoal entre nós e Vickie. Ninguém mais tinha o direito de saber como havíamos enterrado nossa filha. Não lhe dei resposta.
- Quem sabe se não conseguiu o dinheiro trabalhando à noite sem nos dizer nada, como era da sua obrigação? - murmurou ele com uma nota de triunfo na voz. - Não está nos enganando, está, Sr. Fisher ?
Pensei que talvez tivessem descoberto alguma coisa e respondi prontamente:
- Que relação tem uma coisa com outra?
- Temos meios de descobrir as coisas, - disse ele misteriosamente, como se não tivesse ouvido a minha pergunta. - Não dá resultado querer enganar-nos. Sabe que poderia ir para a prisão por uma coisa assim ? Estaria fraudando a Prefeitura de Nova York.
Perdi a paciência. Era demais para uma pessoa só.
- Desde quando um homem tem de ir para a cadeia por querer trabalhar ? E afinal de contas, que diabo pretende o senhor comigo?
- Nada, nada, Sr. Fisher. Estou apenas procurando saber a verdade.
- Quer saber da verdade, pois eu vou lhe dizer! A verdade é que três pessoas não podem viver com setenta e dois dólares por mês. É preciso ganhar alguns dólares a mais para não morrer de fome!
- Confessa então que trabalhava à noite ao mesmo tempo que nos mentia dizendo que estava desempregado?
- Não confesso nada!
- Mas tinha setenta dólares para fazer o enterro de sua filha!
- Sim, fiz o enterro de minha filha, - disse eu, sentindo um aperto na garganta. - Foi o mínimo que pude fazer por ela. Acha então que se tivesse algum dinheiro na mão iria ficar esperando por aquele maldito médico que vocês do Socorro dão? Se eu tivesse dinheiro, teria chamado outro médico e talvez minha filhinha ainda estivesse viva!
ele me olhou friamente. Nunca havia encontrado um ser humano mais privado de sentimento.
- Estava trabalhando à noite, sim!
De repente, tudo o que estava acumulado dentro de mim explodiu. Agarrei-o pela gola do paletó e gritei com o rosto junto ao dele:
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-Estava trabalhando à noite, sim! ele ficou muito pálido e balbuciou:
- Largue-me, Sr. Fisher. A violência não lhe vai adiantar de nada. Já está numa situação bastante difícil.
ele tinha toda a razão, mas não refletia que para mim um pouco a mais de dificuldade já não tinha nenhuma importância. Dei-lhe um soco no rosto e ele foi arremessado contra a parede do outro lado do estreito corredor. Vi uma gota de sangue correr-lhe do nariz quando avancei para ele.
Mas o homem estava com os olhos cheios de medo e correu prontamente para a escada. Fiquei parado, vendo-o fugir. Quando chegou ao patamar, voltou-se para mim e gritou:
- Vai arrepender-se do que fêz! Será cortado do Socorro! Vai morrer de fome! Fique certo de que vou tratar disso!
Curvei-me sobre os balaústres e gritei:
- Se me aparecer ainda por aqui, cachorro, eu o matarei! Desapareça das minhas vistas!
Voltei para o apartamento, sentindo-me mal. Estava principalmente envergonhado. Eu não deveria ter agido daquela maneira. Em outra ocasião talvez, mas não naquele dia.
- Que foi, Danny? - perguntou Nellie da porta do quarto.
- Um idiota do Socorro, - respondi, esforçando-me por parecer calmo. - Metido a esperto. Mandei-o embora.
- Que era que ele queria?
O que ela passara naquele dia já chegava. Para que agravar a situação ?
- Nada de especial. Queria apenas fazer algumas perguntas. Agora, volte para a cama e descanse, meu bem.
- Descobriram que você trabalha à noite, não foi? Ela devia ter ouvido. Procurei fugir à pergunta.
- Por que não procura dormir um pouco, Nellie?
- Não minta, Danny. O que eu disse é verdade, não é?
- Ainda que seja, que importância tem isso? Nós nos arranjaremos. O patrão me prometeu um aumento.
- Nada dá certo conosco, Danny, - disse ela, com voz triste. - Nem mesmo num dia como o de hoje. Só problemas e mais porblemas.
- Tudo isso já passou, meu bem. De agora em diante, as coisas vão melhorar.
- Não, Danny. Nada vai ser diferente. É assim mesmo que vai ser toda a nossa vida. Não lhe trouxe senão azar.
Abracei-a e beijei-lhe o rosto.
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- Tire essa idéia maluca da cabeça, Nellie! Ninguém pode viver pensando sempre que nada vai dar certo. É preciso ter esperança !
- Que esperança pode haver para nós? Como sabe até se ainda está empregado? Há quatro dias já que falta ao trabalho.
- Isso não me preocupa, - disse eu, lembrando-me com um aperto no coração que de fato me havia esquecido de telefonar para meu patrão. - Jack compreenderá quando eu lhe disser o que aconteceu.
Ela me olhou cheia de dúvida e eu não pude deixar de sentir o impacto dessa dúvida. Mas aconteceu que nós ambos estávamos certos.
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Jack levantou os olhos para mim quando entrei. Não havia a menor cordialidade na sua atitude. Olhei para o balcão e vi que havia outro homem trabalhando no meu lugar.
- Alô, Jack.
- Alô, Danny, - respondeu ele sem o menor entusiasmo. Esperei que ele me perguntasse o que havia acontecido, mas ele
não disse nada. Estava visivelmente aborrecido e eu tive de dar-lhe as explicações.
- Aconteceu alguma coisa, Jack, e eu não pude vir.
- Será que não pôde nem telefonar?
- Desculpe, Jack. Sei que devia ter telefonado, mas estava tão aflito que nem pensei nisso.
- Conversa fiada! - exclamou ele, explodindo. - Passei duas noites aqui sozinho, fazendo todo o serviço, e você não teve tempo nem de telefonar!
- Não tive outro jeito, Jack. Aconteceu uma coisa e eu não pude nem telefonar.
- Em momento algum ? Acha então que vou acreditar nisso ? Baixei os olhos e murmurei:
- Sabe o que foi que houve, Jack? Minha filhinha morreu.
- É sério mesmo, Danny? Olhei-o bem nos olhos.
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- Claro que é. Ninguém brinca com coisas assim. ele baixou o olhar.
- Sinto muito, Danny. Sinto mesmo.
Olhei para o balcão. O novo empregado nos observava pelo canto dos olhos, procurando dar a impressão de que não se interessava pelo que nós dizíamos, mas eu sabia que ele estava preocupado com o seu emprego. Já estivera muitas vezes em situação semelhante para não compreender o que ele sentia.
Olhei para Jack.
- Estou vendo que tem outro no meu lugar.
ele confirmou contrafeito com um gesto da cabeça, mas nada disse.
Tentei falar com displicência mas isso é difícil quando o que se está dizendo representa a diferença entre comer e passar fome.
- Precisa ainda dos meus serviços?
ele não respondeu logo. Olhou para o novo empregado que imediatamente começou a passar o pano no balcão.
- No momento não, Danny. Sinto muito.
- Está bem, Jack - disse eu, com a voz entrecortada. -• Compreendo.
- Talvez haja alguma oportunidade em breve, - disse ele com um toque de compreensão e interesse que me foi muito grato. - Eu lhe telefonarei. Se você me tivesse telefonado ...
- Mas não telefonei. De qualquer maneira, muito obrigado, Jack, - disse eu, saindo.
Eram seis horas. Fiquei pensando no que iria dizer a Nellie, especialmente depois do que havia acontecido naquela tarde.
Resolvi voltar para casa a pé. Era uma longa caminhada mas todo o dinheiro é dinheiro quando se está desempregado. Da Rua Dyckman para a Rua Quatro Leste, levei quase três horas. Não fazia mal. Era mais tempo em que eu ficaria sem ter de dar a notícia a Nellie.
Eram nove horas quando voltei para casa. A noite havia esfriado, mas eu sentia o suor correr-me pela camisa enquanto subia a escada. Fiquei parado em frente à porta, sem coragem de abri-la. Que é que eu iria dizer? Abri a porta. A sala estava acesa, mais havia silêncio no apartamento.
- Nellie, - disse eu, enquanto ia pendurar o casaco no armário.
Houve um rumor de passos e eu ouvi a voz de um homem.
- É ele!
Voltei-me. Nellie estava na porta da cozinha ao lado de dois homens, com o rosto pálido e abatido. Reconheci um dos homens.
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Estava com o rosto machucado e tinha num ponto uma tira de esparadrapo. Era o investigador do Socorro que eu havia feito correr naquela manhã.
O outro homem se aproximou de mim e me mostrou uma placa de metal, um distintivo da polícia.
- Daniel Fisher ?
- Sou eu.
- O Sr. Morgan apresentou queixa contra o senhor por desacato e agressão. Tenho de levá-lo.
Era precisamente aquilo que era preciso para completar o dia: cadeia.
- Posso falar um instante com minha mulher? - perguntei ao detetive.
- Claro, - disse ele gentilmente. - Iremos esperá-lo lá fora, no corredor.
Tomou o braço de Morgan e saiu com ele do apartamento, fechando a porta. Nellie voltou-se para mim, deu um suspiro profundo e perguntou:
- Perdeu o emprego?
- Não respondi. Ela então me caiu nos braços, soluçando desesperadamente de encontro ao meu peito.
- Danny, Danny, que vamos fazer agora?
Afaguei-lhe a cabeça delicadamente, sem saber o que dizer, pois não sabia também o que iríamos fazer. Estávamos ficando encurralados.
- Que é que acha que vão fazer agora com você? - perguntou ela.
- Sei lá, - respondi, encolhendo os ombros. Estava tão cansado que aquilo de fato não me interessava. Se não fosse ela, eu deixaria de me interessar por qualquer coisa no mundo. -- Com certeza, terei de prestar declarações e ficarei em liberdade até o dia do julgamento.
- E se o prenderem?
- Não farão isso - murmurei, com um sorriso, sem convicção. - O caso não é tão importante assim. Daqui a uma ou duas horas estarei de volta.
- Mas o homem, o tal Morgan, está furioso. Disse que ia metê-lo na cadeia.
- Aquilo é um patife! Mas há uma porção de coisas que ele não sabe. Quando eu disser na polícia o que nos aconteceu, me mandarão embora. Não se preocupe.
Ela encostou a cabeça no meu ombro.
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- Nada está dando certo, Danny. Eu não lhe estou dando sorte. Você nunca deveria ter voltado.
Beijei-a e disse:
- Se eu não tivesse voltado, meu bem, perderia a única coisa importante para mim neste mundo. Você não teve culpa, ninguém teve culpa. O que aconteceu foi que não tivemos oportunidade.
Nesse momento, bateram na porta.
- Já vou! •- gritei. Depois, disse a Nellie: - Vá deitar-se. Daqui a pouco, estarei de volta.
Morgan olhou para mim quando chegamos à rua e disse com ar vitorioso:
- Não lhe disse que voltaria?
Não respondi. Quem falou foi o detetive que ia entre nós dois.
- Cale essa boca, Morgan. O que ele está passando já chega. Não há necessidade de você dizer mais nada.
Olhei para o detetive. Era evidente que não simpatizava com Morgan. Era um desses irlandeses de olhos mansos e particularmente bondosos. Como era que um homem assim conseguia trabalhar na polícia?
Ao fim de algum tempo, perguntei-lhe:
- Que é que costumam fazer num caso assim?
- Bem, será indiciado e ficará esperando o julgamento.
- Ficarei em liberdade até o dia do julgamento, não é assim?
- Ficará desde que pague a fiança arbitrada.
- Fiança? Quanto poderá ser?
- Em geral, a fiança é arbitrada num caso como o seu em quinhentos dólares.
- E se eu não tiver o dinheiro? Que é que farão comigo? Foi Morgan quem respondeu antes do detetive:
- Ficará na cadeia até ao julgamento.
- Mas isso não é possível! - exclamei, alarmado. - Minha mulher está doente. O dia de hoje foi terrível para ela e eu não posso deixá-la passar a noite sozinha!
- Desculpe, rapaz, - disse o detetive, segurando-me o braço, - mas eu nada posso fazer. A minha única obrigação é levá-lo para a delegacia.
- Mas Nellie... minha mulher.. . não está passando bem. Não posso deixá-la sozinha!
- Acalme-se, rapaz. O melhor é vir andando.
Senti a pressão aumentar em meu braço e continuei a marcha. Eu sabia que às vezes passavam semanas até as pessoas serem julgadas. Comecei a ferver. Olhei para Morgan.
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Ia junto ao detetive, do outro lado, com um ar de profunda satisfação no rosto. Canalha! Se não fosse ele, tudo estaria melhor. As coisas já eram bem ruins, mas ele as tornara ainda piores.
Eu tinha de fazer alguma coisa, não sabia bem o quê. Não podia deixar que me conservassem na cadeia até que estivessem dispostos a julgar-me. Não podia deixar Nellie sozinha tanto tempo, tinha receio do que ela pudesse fazer durante esse tempo.
Descemos do passeio pouco antes de fechar-se o sinal. Os automóveis começaram a passar velozmente em torno de nós no meio da rua. Senti a mão do guarda largar-me o braço e instintivamente dei um pulo para a frente. Ouvi um grito e o ranger dos freios de um carro. Nem virei a cabeça para ver o que tinha acontecido.
- Pare! Pare! - gritava o detetive. Outra voz se juntou ao grito e eu reconheci o tom estridente de Morgan.
Ouvi o apito de um guarda. Quando cheguei à esquina do outro lado, olhei para trás.
Morgan estava caído no chão e o detetive estava ao lado dele, olhando para mim. Acenava-me com a mão, na qual eu via brilhar alguma coisa metálica. Ainda estava gritando para que eu parasse mas a mão dele me estava dizendo que fugisse.
Respirei fundo e dobrei a esquina.
Fiz uma porção de rodeios para voltar para casa. Tinha de falar com Nellie e explicar-lhe tudo. Tinha de dizer-lhe o que havia feito e recomendar-lhe que não se preocupasse. Quando cheguei à esquina, vi um carro da radiopatrulha parado em frente ao edifício. Parei imediatamente e só então compreendi o que havia feito. A polícia estava no meu encalço e eu não podia entrar em casa. Tinha conseguido apenas piorar a situação.
Atravessei a rua e subi lentamente o quarteirão, sentindo-me oprimido pelo desespero. Eu havia estragado tudo. Olhei para o relógio e vi que passava um pouco das dez. Eu tinha sido um perfeito idiota. Não tinha outro recurso senão voltar e entregar-me.
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Se eu continuasse a fugir, não teria mais descanso e nunca poderia voltar para casa.
Logo que tomei a decisão de voltar para casa e entregar-me, comecei a refletir melhor no caso. Tudo começara quando descobri que teria de pagar fiança para ficar em liberdade.
Parei e fiquei pensando. Não tinha ainda fiança, mas talvez pudesse arranjar o dinheiro em algum lugar. O pessoal de Nellie não tinha tanto dinheiro, ainda que tivesse boa vontade em ajudar-me. A única pessoa do meu conhecimento que poderia dispor de uma importância assim era Sam.
Ainda me lembrava da última vez em que falara com ele. Tinha sido logo depois do nascimento de Vickie. ele tinha pensado que fora pedir-lhe dinheiro e eu jurara a mim mesmo que jamais o procuraria para isso. Mas naquele momento eu estava numa situação realmente difícil. Não tinha outro recurso: ou iria falar com Sam ou marcharia para a cadeia.
Entrei numa confeitaria da esquina e procurei o número na lista. Liguei para a casa dele. De onde estava, via o carro da polícia parado em frente ao prédio. Uma voz de mulher atendeu.
- Quero falar com o Sr. Gordon ou com a senhora dele.
- A Sra. Gordon está para fora. O Sr. Gordon ainda está no escritório dele.
- Qual é o telefone do escritório? Preciso falar imediatamente com ele.
- Vou dar-lhe o número neste instante. Faça o favor de esperar um pouco.
Tomei nota do número e meti a mão no bolso à procura de outra moeda para falar ao telefone. Mas foi inútil. Eu acabara de gastar o meu último níquel.
O escritório de Sam ficava no centro, no Edifício Empire State. Com um pouco de sorte, poderia chegar lá dentro de meia hora. Esperava ainda encontrá-lo lá.
Vi o nome dele no cartaz do lado da Rua 34. Vigésimo segundo andar. Entrei num dos elevadores e o ascensorista me perguntou, meio desconfiado:
- Aonde vai?
- Vigésimo segundo andar. Tenho de falar com o Sr. Gordon. ele olhou para o livro de registro e disse:
- O Sr. Gordon ainda está lá em cima. Não assinou o registro de saída desde que voltou do jantar. Assine isto aqui.
Assinei o livro de registro no lugar que ele me indicava. Corri os olhos pela folha e umas quatro linhas acima vi a assinatura tão minha conhecida de Sam.
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Ao lado do nome dele havia um círculo com o número 2.
- O Sr. Gordon não está sozinho? - perguntei ao ascensorista.
- Não, - respondeu ele com um leve sorriso. - A secretária voltou com ele.
Aquele sorriso era muito eloqüente. Se eu não estava enganado, a secretária de Sam devia ser bem bonita e Sam não havia mudado em nada.
Saí do elevador e fui pelo corredor à procura do escritório de Sam. O nome dele estava escrito em letras douradas em duas grandes portas de vidro, que não estavam trancadas.
Havia uma porta perto da mesa da recepcionista na sala de espera luxuosamente mobiliada. Abri-a e vi-me num grande escritório geral. Havia bem umas vinte mesas espalhadas pela grande sala. Nos fundos, havia outra porta. Encaminhei-me para lá.
Levei a mão à maçaneta da porta e torci-a. A porta se abriu sem esforço. O escritório estava às escuras. Estendi a mão e encontrei o interruptor da luz do lado direito da parede. Liguei-o e a sala ficou subitamente iluminada. Ouvi uma exclamação colérica enquanto piscava os olhos para adaptá-los à luz. Ouvi então um grito assustado de mulher. Voltei os olhos para o sofá do escritório. Sam estavase levantando, olhando-me com raiva e a pequena procurava inutilmente esconder a nudez com as mãos.
Olhei-os com um sorriso malicioso. Sam estava com o rosto vermelho, quase arroxeado, enquanto procurava vestir as calças. Nada disse. Limitei-me a sair e fechar a porta. Sentei-me numa cadeira perto da porta e acendi um cigarro, ficando à espera de que ele saísse. Era isso mesmo. Sam não tinha mudado em nada.
Esperei uns quinze minutos até a porta voltar a abrir-se. Levantei os olhos e fiquei desapontado. Não era Sam; era a pequena. Do jeito que ela estava era difícil crer que pouco antes a surpreendera na prática do mais íntimo dos esportes.
Olhou-me toda formalizada e disse:
- O Sr. Gordon vai recebê-lo agora.
- Muito obrigado, -- disse eu, levantando-me e entrando no escritório. Ouvi logo o barulho de uma máquina de escrever mal fechei a porta.
Sam estava sentado à sua mesa e eu lhe perguntei sorrindo:
- Acha que elas trabalham melhor depois que você lhes acalma os nervos?
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Não tomou conhecimento do que eu tinha dito e riscou um fósforo para acender o charuto. Afinal, apagou o fósforo e olhou para mim.
- Que é que você quer?
Senti contra a vontade admiração por ele. Não havia dúvida de que aquele camarada era mesmo forte. Não dissera uma palavra sobre o fato de eu o haver surpreendido. Agia diretamente. Olhei para ele e disse simplesmente:
- Preciso de sua ajuda. Estou em dificuldades.
- E por que veio procurar-me? - disse com os olhos firmes.
- Por que não tenho ninguém mais a quem procurar. ele colocou o charuto no cinzeiro e levantou-se.
- Vá saindo, vagabundo. De mim não vai receber esmolas.
- Não estou pedindo esmolas. Estou em dificuldades e preciso de ajuda.
Fiquei ali obstinadamente, enfrentando-o. Dessa vez, ele não iria botar-me para fora.
- Saia daqui!
- Pelo amor de Deus, ouça-me, Sam! Tudo saiu errado. A polícia está atrás de mim e.. .
ele me interompeu como se eu não tivesse falado.
- Você não presta! Nunca prestou e nunca prestará! Já basta o que fiz por você. Saia antes que eu o bote para fora!
A minha reação foi imediata. Só havia uma linguagem que aquele sujeito era capaz de compreender.
- Se eu fosse você, não tentaria isso, Sam, - disse eu com frieza. - Você não tem condições físicas para isso.
- Vou-lhe mostrar se tenho ou não tenho condições, - disse ele, atacando.
Aparei-lhe o golpe com o braço.
- Lembra-se das suas lições, Sam? Acha que vou deixar que você me atinja?
Recuei sem tentar retribuir o soco. ele continuou a atacar-me com os punhos, mas estava muito pesado e eu me livrei com a maior facilidade de todos os seus golpes. Uma coisa era preciso dizer em favor da vida que eu levava, nunca tivera meios de criar gordura como Sam. Durante alguns minutos, ele manteve o ataque. Depois, só houve no escritório o ruído da sua respiração ofegante, afinal, deixou-se cair no sofá, exausto.
Olhei-o do outro lado da mesa. Estava com o rosto muito vermelho e o suor lhe escorria pelo rosto.
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- Quer-me ouvir agora, Sam?
ele pegou o charuto e meteu-o na boca.
- Fale, - disse ele, sem olhar para mim.
- Não tenho mais a quem recorrer e você tem de me ajudar.
- Para mim chega de você, - disse ele, olhando-me cansadamente. - Desde garoto que você me tem passado a perna. Primeiro, naquele hotel com Ceil, depois nas Luvas de Ouro quando você fêz aquele trato com Maxie Fields. Quantas vezes acha você que tenho de permitir isso?
- Não quero o seu dinheiro. Só quero é um pouco de ajuda e um emprego até que eu possa acertar a vida.
- Não tenho emprego para você. Você não sabe fazer nada.
- Posso ainda lutar.
- Nada feito. Você não tem mais idade para recomeçar. Está há muito tempo fora do ringue. Não valeria um tostão como profissional.
Tinha razão nisso. Vinte e três anos já eram velhice para um pugilista principalmente depois de seis anos de paralisação.
- Que tal então um emprego aqui ? A sua organização é grande.
- Não, - disse ele categoricamente.
- Nem mesmo se eu lhe prometer não dizer nada a Mimi do que vi hoje?
A expressão no rosto dele me mostrou que eu havia acertado em cheio.
Ficou fumando em silêncio o seu charuto e eu esperei pacientemente. Era uma linguagem que ele podia compreender. Resolvi naquele instante que não pediria mais nada a ninguém. A única maneira de conseguir alguma coisa neste mundo era agarrar o que se queria. Era assim que Sam tinha feito na vida e se isso tinha dado resultado com ele, daria também comigo.
- Quer dizer que você continua o mesmo, achando que o mundo tem uma dívida com você, não é, Danny?
- O mesmo não, Sam. Você está olhando para um novo Danny Fisher. Já passei por muita coisa e não posso continuar a ser o mesmo que era. Passei um ano e meio recebendo socorro da Prefeitura, rastejando com a barriga no chão a fim de ter o que comer. Hoje à tarde, dei um soco num agente do Socorro porque ele queria saber onde era que eu tinha achado dinheiro para enterrar minha filha e ele me apareceu depois com a polícia. Minha mulher
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está em casa doente e sem saber do que me aconteceu. Não sou mais o mesmo, Sam. E não voltarei a ser...
- Que foi que houve, Danny?
- Não ouviu o que eu disse? Nunca mais serei o mesmo. Vaime ajudar ou quer que eu conte tudo a Mimi?
- Está bem, garoto, - disse ele com voz muito delicada, mas sem olhar para mim. - Você ganhou.
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Logo que passei pelas portas de vidro, a recepcionista olhou para mim e sorriu.
- Bom dia, Danny, - disse ela, passando para o outro canto da boca a goma que mascava. - O patrão está à sua procura.
- Obrigado, menina, - disse eu, sorrindo para ela.
Passei para o escritório geral, onde todo o mundo já estava trabalhando. Encaminhei-me para a minha mesa, num canto da eala, perto da janela. Sentei-me e comecei a examinar os papéis que estavam à minha espera.
Pouco depois, senti alguém junto à minha mesa e levantei os olhos.
- Danny... - começou a dizer Kate.
- Já sei, - disse-lhe eu. - O patrão quer falar comigo, não é?
- Exatamente.
- Bem, estou aqui.
- E que é que está esperando? Um convite impresso? Depois de dizer isso, rodou nos calcanhares e foi para a mesa
dela. Kate era uma boa moça embora eu gostasse de implicar com ela. Acho que não era a primeira secretária que se tinha deitado com o patrão e não seria a última. Mas andava de ponta comigo desde que nos havíamos conhecido.
Sorri intimamente pensando nisso. Fazia três anos e meio desde aquela ocasião. Muitas coisas tinham acontecido durante esse tempo. O país estava em guerra. Muita gente havia ido para as fileiras. Eu tivera sorte, porém. Na inspeção médica, fui considerado inabilitado para o serviço militar por uma deficiência que eu nem sabia que tinha - ruptura dos tímpanos.
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Depois de olhar os papéis em cima de minha mesa, encontrei o que eu queria. Quando me ia levantando, o telefone tocou em minha mesa e eu atendi. Era Nellie, que me telefonava da fábrica de guerra onde trabalhava em Long Island.
- Esqueci-me de lhe dizer que levasse a roupa para a lavandaria.
- Mas eu me lembrei, querida, - disse eu. Nellie saía de casa bem cedo - às seis horas, antes de eu acordar. - Como vão as coisas por aí ?
- Bem, Danny, mas que calor! Mais de 35 graus dentro da fábrica.
- Por que não larga isso, Nellie? Não precisamos do dinheiro. O que eu estou ganhando já nos dá para viver.
Respondeu-me com paciência, mas com firmeza. Não era a primeira vez que tratávamos do assunto.
- E que é que eu vou ficar fazendo? Se passar o dia inteiro em casa, acabo ficando maluca. É melhor assim, pois ao menos eu me distraio.
Eu não podia discutir com ela. Desde a morte de Vickie, ela estava mudada. Quase não falava e o velho brilho lhe havia desaparecido dos olhos.
- Vamos jantar fora ou em casa? - perguntei.
- Fora. Os nossos talões de racionamento de carne estão quase no fim.
- Está bem. Passarei para pegar você em casa às seis horas. Sorri para Kate ao abrir a porta de Sam. Ela me fêz uma
careta e se voltou para a sua máquina de escrever. Apesar de tudo, tinha a impressão de que aquela pequena gostava de mim.
- Chegou finalmente, hem? - resmungou Sam ao ver-me entrar.
Não estava preocupado com o que ele dissesse. Nos poucos anos que ali trabalhava, adquirira confiança em mim e no meu valor para o negócio. Era um negócio muito complexo, mas que estava ao meu jeito. Era feito de uma porção de coisas intangíveis que só algumas pessoas, como Sam e eu, poderiam transformar em dinheiro. Sam sabia disso também.
- Se não fosse o ar condicionado, eu nem entraria aqui, - disse eu, sentando-me. - Você nem sabe a sorte que tem.
O rosto de Sam estava muito vermelho. Não me parecia bem assim, estava muito gordo. Tinha uma papada dupla embaixo do queixo. Parecia um velho chefe de família de Central Park South, pai de três filhos, e era exatamente isso.
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- Mimi me pediu que convidasse você e Nellie para irem jantar conosco esta noite.
- Está bem. Mas que é que queria comigo com tanto interesse? Era só para fazer o convite?
- Não. O que eu quero é que desista daquele negócio com as máquinas de vender.
- Por que, Sam ? Pensei que estivesse muito interessado nisso.
- Mudei de idéia. A conservação dessas máquinas é proibitiva. Enquanto funcionarem, está tudo muito bem. Mas quando se quebrarem, não será possível, com esta guerra, conseguir peças novas.
- É por isso mesmo, Sam, ou porque Maxie Fields está interessado nelas também?
O rosto ficou mais vermelho ainda. Sam devia andar com a pressão muito alta. Estava numa idade muito perigosa.
- Que é que eu tenho com Maxie Fields? O que acontece é que esse ramo não me agrada. Uma boa concessão num hotel ou num clube noturno, isso sim. Chapeleira, pequenas lembranças, fotografias - alguma coisa que seja feita por gente. Compreendo gente e sei dirigi-la. Mas não me dou bem com máquinas.
- Mas acabo de passar uma semana investigando o negócio, Sam. Por 15 mil dólares é um furto que nós fazemos.
- Mas vamos deixar o furto para Maxie Fields. Não me interessa. Não me vou meter num negócio de que não entendo. Quinze mil é dinheiro à beça.
Eu achava que Sam estava perdendo uma boa oportunidade. Era a primeira vez de fato que eu discordava dele.
- Você vai perder o ônibus, Sam. Estudei bem todo o negócio e lhe digo que não há limite para o que se pode fazer com essas máquinas. Depois da guerra, vão vender tudo nelas, de café quente a camisinhas de borracha.
- Pouco me importa. Até agora, só servem para vender cigarros e refrigerantes e não me interessam. Mudando de assunto, tenho uma viagem para você fazer. Querem vender as concessões no Trask em Atlantic City. Quero que você vá até lá e dê uma espiada.
- Escute, Sam. Está falando a sério sobre as máquinas de vender ?
- Claro que estou! Não ouviu o que eu disse? Agora, não pense mais nisso e...
- Pois a minha opinião é diferente da sua, - disse eu, com uma idéia começando a tomar forma dentro de mim.
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- Você é mesmo assim, - disse ele ironicamente. - Mas o dinheiro é meu e eu não estou interessado. Fique bonzinho, portanto, e tire isso da cabeça. Eu...
- Eu gostaria de comprar o negócio, Sam.
- Tem dinheiro? - perguntou éle, depois de dar um suspiro. Encarei-o com firmeza. ele sabia tão bem quanto eu que eu não tinha o dinheiro.
- Sabe muito bem que eu não poderia dispor de uma quantia dessa com o ordenado que você me paga.
ele sorriu.
- Não é só o ordenado. E as suas contas de despesas nas viagens? Pensa que eu não sei que todas as vezes você fica com alguns dólares no bolso?
- Claro que fico, Sam. Mas são, como você diz, alguns dólares apenas. Você nunca me dá dinheiro suficiente para mais.
- Onde é então que vai arranjar dinheiro? Pensei um minuto e disse:
- Tenho mil e quinhentos dólares no banco. Esse mesmo banco me daria metade do dinheiro de que preciso numa operação de penhor mercantil. O resto vou conseguir de você.
- De mim? - gritou ele, zangado. - Acha então que eu sou trouxa? Que chance tenho eu de receber dinheiro de sua mão?
- Terá a minha palavra, - disse eu calmamente.
- Já enterrei uma vez cinco mil dólares em você, fiado na sua paJavra. Acha que vou cair nessa outra vez?
- Eu era um garoto quando isso aconteceu, Sam. E não foi em mim que você investiu o dinheiro, foi na sua chance de conseguir a glória, como manager de um campeão do mundo. Nunca vi e não ia ver um tostão desse dinheiro!
- Está bem. Mas não vou comprar.
- Você não vai, mas eu vou e sei que você me ajudará.
- Por que diz isso?
- Lembra-se de como consegui o meu emprego aqui? Desde então, tenho continuado de olhos abertos. E só compreendi realmente a extensão das suas atividades desse gênero quando conheci uma certa dançarina loura que mora num hotel do outro lado da cidade, hotel que é você quem paga.
Pensei que ele ia estourar uma veia de tão vermelho que ficou. Conseguiu afinal falar.
- Como foi que soube disse?
- Ando por aí, Sam - disse eu, sorrindo. - E hoje em dia sei ver as coisas.
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- Bem, você sabe como são essas coisas, garoto - disse ele, sem olhar para mim. - Sou louco por sua irmã mas ela tem a idéia absurda de que vai ficar grávida todas as vezes que me aproximo dela. E você bem sabe que um homem não pode viver sem isso.
- Entenda bem, Sam, que não o estou criticando. Acho até que tenho um pouco de inveja de você. Mas não creio que Mimi fosse gostar se soubesse. Ela tem muito amor próprio, como você sabe.
Sam sentou-se mais à vontade na cadeira. O rancor havia desaparecido da sua voz.
- Escute, garoto, não acha que foi bastante eu lhe haver dado a mão quando você estava em dificuldade e não tinha ninguém a quem recorrer? Não acha que foi bastante eu tirá-lo da cadeia, pagar a sua fiança e conseguir que o caso contra você fosse arquivado? Não está satisfeito ainda?
- Devo mais a você do que a qualquer outra pessoa no mundo, Sam, - disse-lhe com absoluta sinceridade. - E sou muito grato por tudo o que você fêz por mim. Não gosto de forçá-lo a essa despesa tanto quanto você não gosta de fazê-la. Mas neste mundo não se pode viver só de ordenado. Todo o mundo gosta de ter um dinheiro que possa chamar só seu. Isso nunca se pode conseguir com um emprego. Só há uma maneira de consegui-lo, Sam. É ir buscar esse dinheiro por si mesmo. Você descobriu isso bem cedo e teve ótimos resultados. Agora, quem quer experimentar o mesmo sou eu. Estou satisfeito, mas agora quero uma oportunidade de ganhar para mim.
ele me olhou durante algum tempo. Depois, um sorriso lhe apareceu no rosto. Sabia quando estava derrotado. Mas isso não o impediu de fazer ainda uma tentativa.
- E se Fields resolver meter-se no negócio?
- Isso não vai acontecer. Tive certeza disso quando estive fazendo as investigações para você. O negócio não é suficientemente grande para ele.
Sam tirou um talão de cheques do bolso.
- Está bem, Danny. De quanto é que você precisa?
- Seis mil dólares.
- Por quanto tempo?
- Até doze meses depois da guerra. Não vou me arriscar.
- Mas esta guerra pode durar ainda uns dez anos.
- Se fôr assim, você ficará todo esse tempo sem o seu dinheiro. Calculo que essas máquinas ainda se agüentem uns três anos em funcionamento.
301
Depois disso, terei de substituí-las por máquinas novas.
- Os juros de praxe, Danny?
- Suavize um pouco, Sam. Afinal de contas, trata-se de um negócio em família.
- Dez por cento ao ano numa promissória sem data de vencimento. Que é que você quer mais ?
- Mais nada, Sam. Ainda quer que eu vá a Atlantic City?
- Claro que não! Você agora está por conta própria.
9
Saí do escritório de Sam e fui setar-me à minha mesa. Olhei para o cheque em minha mão ainda sem acreditar que eu tivesse conseguido aquilo. A idéia nem me passara pela cabeça até o momento em que eu entrara no escritório de Sam. Seis mil dólares! Nunca tivera tanto dinheiro nas mãos em toda a minha vida.
Tive o impulso de devolver o cheque a Sam e dizer-lhe que havia mudado de idéia. Era tolice minha pensar que poderia levar avante um negócio tão grande quanto aquele. Sam era muito esperto. Se ele não via uma oportunidade de ganhar dinheiro no negócio era porque não havia mesmo. Eu tinha já bastante experiência com ele para saber que ele quase sempre acertava. Não se ganha dinheiro como Sam ganhava sem ter uma boa cabeça para negócios. E quem era eu para dizer que ele estava errado?
Senti-me subitamente cansado e fechei os olhos. Que era que me tinha dado? Por que aquelas manias de grandeza? Eu estava ganhando bem a minha vida e estava contente. Anos atrás, eu teria dado um braço ou uma perna por uma chance como a do emprego que tinha. De repente, não me sentira mais satisfeito. Por quê? Devia haver uma explicação para isso, escondida em algum canto de minha cabeça como um nome de que a gente se esquece e que não sobe à consciência apesar de todos os nossos esforços. Tinha de haver razão. Não podia acreditar que isso só me ocorrera depois de saber que Sam não queria mais o negócio.
Talvez houvesse no próprio negócio alguma circunstância especial que me atraísse. Havia poucas semanas que Sam me encarregara de fazer uma investigação sobre o negócio das máquinas.
302
Até então, só me encarregara das concessões que Sam tinha.
No primeiro dia em que fora trabalhar no escritório, ele me ciiamara ao seu gabinete.
- Se acha que lhe dei esse emprego para você não trabalhar, Danny, pode sair agora mesmo daqui.
Conservei-me calado.
- Se pensa que conseguiu o emprego pela ameaça que me fêz, tire isso da cabeça. Vou-lhe pagar trinta dólares por semana porque espero qw o trabalho que vai fazer aqui valha trinta dólares por semana.
Esperou por um momento para ver se eu dizia alguma coisa, mas eu nada disse e ele continuou:
- Você não vai receber favores de espécie alguma pelo fato de ser irmão de Mimi. Portanto, tire isso também da sua cabeça. Você fará o trabalho que tem de fazer aqui ou irá para a rua. Não há outra maneira de entender-se comigo e nada senão isso tem valor para mim. Aconteça o que acontecer, se você não fizer o trabalho que é da sua obrigação, será despedido antes de saber o que foi que houve. Compreendeu?
- Compreendi. E é assim mesmo que eu quero. Estou cansado de favores e esmolas.
- Ótimo! Então, creio que nos entenderemos. Agora, vá trabalhar.
Quando saí, a secretária dele me olhou e ficou vermelha. Sorri para ela e fui para a minha mesa que ficava naquele tempo na frente, juntamente com os outros escriturários das receitas. O meu serviço era registrar a arrecadação de cada uma das concessões e manter rigorosamente em dia o movimento.
Pouco falei com Sam depois disso. ele me tratava exatamente como aos outros empregados, nem melhor, nem pior. Já estava no emprego havia mais de um ano quando um dos inspetores foi convocado para o serviço militar e Sam me promoveu ao lugar dele. Passei a ganhar 45 dólares por semana e tinha um carro à minha disposição. O meu serviço era visitar as concessões e ver como tudo estava correndo, apurando se os interesses da companhia estavam bem defendidos. Não era possível evitar uma certa dose de desvio de dinheiro num negócio tão vago e nebuloso quanto aquele, mas procurávamos reduzi-lo ao mínimo.
Fiquei perito nesse serviço. Cheguei ao ponto em que me bastava entrar numa concessão, ficar algum tempo por ali e sabia instintivamente quanto era que estávamos fazendo. Fiquei sabendo qual
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era a margem de que dispúnhamos e o que tínhamos de receber para que o negócio desse um lucro compensador. Sam não tardou muito e perceber que eu estava senhor do negócio. Começou a encarregar-me de missões de mais confiança. Antes de fazer algum negócio, mandava-me fazer uma investigação. Eu ia, gastava o tempo que fosse necessário, e na volta fazia o meu relatório a Sam. Em geral, os meus cálculos tinham uma margem de erro de poucos dólares.
Tive alguns aumentos de ordenado e ele começou a me utilizar apenas em investigações. Sentia-me bem por muitos motivos, especialmente porque ambos sabíamos que eu estava dando boa conta de mim. Não havia favores, quer de um lado, quer do outro. Eu era a única pessoa em cuja palavra ele acreditava a respeito de uma concessão. Até então, ele sempre é que fora investigar os lugares novos.
Eu nunca havia pensado em fazer outra coisa que não fosse aquele trabalho até o momento em que Sam me mandou fazer a investigação sobre o negócio das máquinas de vender. Alguma coisa no negócio me impressionou desde o instante em que entrei no escritório do Sr. Christenson. Não era pelo dinheiro. Sam tinha muitos negócios que eu lhe havia recomendado nos quais girava muito mais dinheiro. Era a idéia do negócio. Eu podia ver aquelas máquinas espalhadas por toda a cidade, nos melhores pontos - restaurantes, estações, aeroportos, todos os lugares por onde o povo passasse, parasse, se reunisse, fosse passar o tempo. Eram máquinas de metal que ficavam ali paradas, mas com as mãos nos bolsos de todo o mundo, satisfazendo a todas as preferências, atendendo a todas as necessidades. Refrigerantes, café, goma de mascar, bombons, cigarros.
Talvez fosse a maneira pela qual o Sr. Christenson me havia falado. Era fácil de ver que ele realmente não queria vender o negócio. Mas que é que se pode fazer quando o médico diz que o coração está fraquejando e que é preciso parar de trabalhar ou estourar ?
Nunca soube como Sam tivera conhecimento do negócio. Mas quando cheguei lá e soube que só havia necessidade de cinco homens para cuidar de todas as máquinas e que a arrecadação andava pela casa dos três mil dólares por semana, a idéia me seduziu, ainda mais quando fiquei a par de todas as circunstâncias do negócio.
Christenson tinha 141 máquinas de vender cigarros e 92 para vender refrigerantes. Havia na oficina quatorze máquinas para as quais ele não podia encontrar peças, mas se estivessem trabalhando dar-lhe-iam mais trezentos dólares por semana. Por outro lado,
40% dos pontos não prestavam, mas Christenson já estava muito doente para procurar outros.
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Uma redistribuição das máquinas poderia elevar a arrecadação semanal a quatro mil dólares.
Christenson calculava que desse total bruto ele apurava 10% líquidos, ou seja, 300 dólares por semana. Calculei que se tudo o que eu pensava fosse feito, o lucro líquido poderia chegar a ser de
15%. Isso significaria 600 dólares numa arrecadação de quatro mil dólares. Era um bom lucro e foi por isso que recomendei o negócio a Sam.
ele poderia administrar um negócio daquele com as mãos nas costas e, com as relações que tinha, poderia conseguir mais máquinas. Completei as investigaçqões, com a idéia de que, se Sam não quisesse incomodar-se com isso, eu poderia fazer um trato com ele e encarregar-me da administração do negócio. Fui procurar os fabricantes das máquinas a fim de colher informações sobre peças. É claro que no momento não havia qualquer possibilidade, pois estavam todos muito ocupados com as indústrias de guerra. Mas houve um fabricante que me mostrou os projetos que tinha para depois da guerra.
Fiquei verdadeiramente estarrecido. Ali estava um campo que não podíamos perder. Havia naqueles modelos máquinas que valiam quase o seu peso em ouro. Havia máquinas que preparavam um cachorro-quente na hora e o entregavam quente e com um pão torrado, tudo embrulhado num guardanapo de papel; máquinas que vendiam café quente num copo de papel que depois podia ser jogado fora; máquinas que vendiam sanduíches ou quase tudo em que se pudesse pensar. Havia até máquinas que podiam vender uma apólice de seguro no aeroporto antes de se tomar o avião. Tinham calculado tudo menos os pontos onde teriam de ficar as máquinas.
Era a oportunidade que nos piscava os olhos da esquina como uma mulher barata. Não era que o negócio de Christenson estivesse rendendo muito. O importante eram as suas possibilidades, o impacto que teria no mundo do pós-guerra, quando todo o mundo dos negócios ficasse sem saber ao certo o que ia fazer. Era coisa para se desenvolver em segredo, procurando os melhores pontos, enquanto todo o mundo estivesse tratando de outras coisas. Depois da guerra, aquilo seria realmente um grande negócio.
Mas Sam era como todo o mundo. Estava ganhando bem e não queria estender-se mais. Por que meter-se em especulações quando o dinheiro estava entrando como a água de uma represa rebentada?
Olhei para o cheque na minha mão e soube que ainda não havia encontrado uma explicação para o impulso que me fizera querer aquele negócio. Não era só o negócio e o dinheiro, era mais alguma coisa.
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Mas foi só quando cheguei em casa naquela noite e vi Nellie que tive uma explicação.
Cheguei ao apartamento, pensando na maneira pela qual ela iria receber a notícia. Esperava que não ficasse preocupada, porque era muito esquisita a respeito dessas coisas. Dava muita importância à necessidade de ganhar e economizar dinheiro e o trabalho era o único meio que via para conseguir isso.
Eu havia falado várias vezes em nos mudarmos daquele apartamento, mas ela não havia concordado.
- Para que aumentar o dinheiro do aluguel, Danny! Estamos vivendo tão bem aqui.
- Mas, querida, temos um pouco mais de dinheiro e poderíamos viver bem melhor.
- Não. É melhor continuarmos assim mesmo e guardarmos o dinheiro que fôr possível. Ninguém sabe quando é que o dinheiro vai parar de entrar. Precisaremos então de tudo o que tivermos conseguido guardar.
Deixe de falar em mudança. Compreendia perfeitamente de que era que ela tinha medo e achava que tinha boas razões para isso. Tudo o que tínhamos conhecido até então era a pobreza. Que direito tínhamos a pensar que as coisas mudariam? Era a mentalidade da depressão que deixara raízes profundas em todos.
Entrei no apartamento e chamei-a pelo nome, mas não tive resposta. Às vezes, quando eu voltava para casa, encontrava-a dormindo. Trabalhava o dia inteiro na moldagem de grandes peças de plástico e isso lhe esgotava as energias.
Encaminhei-me na ponta dos pés para o quarto mas vi-a na sala, encolhida num canto do sofá, já vestida para ir jantar fora e mergulhada num sono profundo.
Uma das mãos pousava no sofá, enquanto a outra estava sobre o seio, fechada, como se ela estivesse segurando alguma coisa. Procurei ver o que era. Era um retrato de Vickie, que havíamos tirado no terraço no breve verão que ela passara viva. Nellie a segurava enquanto eu batia o instantâneo numa máquina que me tinham emprestado. Lembrei-me da ansiedade com que havíamos levado o filme para revelar, reservando cuidadosamente o dinheiro para pagar a fotografia quando estivesse pronta. Nellie a suspendia no ar rindo e parecia na fotografia tão menina quanto a filha.
Olhei para ela. Os olhos estavam fechados e a respiração era leve e tranqüila. Os longos cílios negros se curvavam sobre a brancura puríssima do rosto. Dos seus olhos desciam finas linhas sobre a maquilagem. Ela havia chorado. Olhara para a fotografia e chorara.
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De repente, encontrei a explicação que estava procurando. Para o negócio e para muitas outras coisas.
Sabia por que nunca teríamos outro filho, porque Nellie tinha medo de gastar um tostão a mais, porque não queria mudar-se. Tinha medo. Julgava-se culpada pelo que acontecera a Vickie e não queria que isso voltasse a acontecer - nem o medo, nem a pobreza nem o sofrimento.
E fiquei sabendo por que era que estava disposto a arriscar-me, para ganhar muito dinheiro. Tínhamos de deixar de viver dentro das sombras do medo o resto das nossas vidas. Tínhamos de libertar-nos para viver normalmente e ter todas as coisas que queríamos. Tudo era isso. Era preciso deixarmos de pensar com apreensão no dia de amanhã, com receio de que fosse igual ao dia de ontem.
Tínhamos de pensar de novo em nós mesmos. Como as outras pessoas, tínhamos de querer, sentir e esperar de novo. Era isso.
Enquanto não se morre, é preciso lutar pela vida, aconteça o que acontecer. Não se pode desligar a vida como se faz num interruptor de luz, enquanto o sangue estiver correndo, o coração batendo e o espírito pensando. Era isso. Tínhamos de continuar vivendo.
Tirei-lhe a fotografia dos dedos descontraídos e sentei-me diante dela a fim de esperar que acordasse e eu lhe pudesse contar o que havia descoberto.
10
Sentei-me com algum constrangimento na sala de estar de Mimi e olhei para meu pai. Seria melhor que ela não tivesse feito isso. Um dos seus maiores desejos na vida era promover a nossa reconciliação, mas sem dúvida era tudo inútil. Muitas coisas haviam acontecido entre nós para separar-nos. Estávamos ali naquela sala como se fôssemos estranhos e pouco havia para dizer, pois tínhamos consciência da presença um do outro e nenhum de nós queria dirigir-se inicialmente ao outro.
Nellie e Mamãe tinham ido ao quarto das crianças com Mimi para vê-las ir para a cama e Sam, Papai e eu tínhamos ficado na mesa depois do jantar. Só havia conversa quando Sam se dirigia a um de nós.
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Dávamos então respostas lacônicas, monossilábicas até, com receio de que as nossas palavras provocassem uma conversa mais longa.
Afinal, Sam não teve mais o que dizer e ficou calado também. Depois, pegou o jornal e passou os olhos pela seção de esportes.
Fiquei olhando pela janela para o Parque. As luzes brilhavam como topázios no veludo bem distinto da folhagem.
- Lembra-se daquele rapaz com quem você lutou nas finais das Luvas, Danny? - perguntou de repente Sam. - Lembra de Joey Passo?
- Não foi nas finais, Sam. Foi nas semifinais. Quase me venceu. Era muito bom pugilista.
- É verdade. Eu sabia que você havia lutado com ele. O jornal está dizendo que ele é um dos candidatos mais sérios ao título mundial dos meio-pesados.
- Espero que vença - disse eu, consciente do olhar de meu pai para mim. - É um bom rapaz, cheio de fibra e precisa de dinheiro.
- Você poderia estar no lugar dele, - disse Sam. - Você era ótimo. Nunca vi ninguém com mais possibilidades.
- Não sei não. Talvez a coisa estivesse acima de minhas forças.
- A única coisa que lhe faltava, Danny, era instinto assassino. Talvez com mais algumas lutas você percebesse a idéia.
Meu pai falou antes que eu pudesse dizer alguma coisa.
- Uma profissão em que é preciso ser um assassino para ter êxito não é uma profissão que eu desejasse para um filho meu.
Sam e eu olhamo-lo com surpresa. Era a primeira vez que ele intervinha numa conversa entre nós.
- Isso é apenas força de expressão, - explicou-lhe Sam. - Quer dizer que quando se vê que o adversário está em situação de desvantagem, procura-se derrotá-lo o mais depressa possível.
- Uma justificação apenas com palavras não é para mim uma justificação, - insistiu Papai. - E talvez não seja apenas força de expressão, como você diz. Tenho lido muitas notícias nos jornais sobre lutadores que são mortos mesmo.
- Simples acidentes, - respondeu Sam. - Todos os dias morre gente em desastres de automóveis. Nem por isso toda a pessoa que dirige um carro é assassina.
- É uma coisa muito diferente.
- Não tem nada de diferente, - replicou Sam. - O boxe é um esporte que exige grande perícia. Há muito pouca gente que reúna todas as qualidades necessárias, que são a coordenação mental e muscular e a vontade de vencer.
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Todas essas coisas são qualidades naturais e quando se encontra uma pessoa que as possua em elevado grau trata-se de uma pessoa excepcional. Seu filho Danny era uma dessas pessoas, que. só aparecem de raro em raro. - Continuou a falar com indisfarçável emoção. - A primeira vez que o vi era um garoto desajeitado, que crescera demais, que se metera numa briga na escola. Até então, fora para mim um garoto igual aos outros. Daquele dia em diante, passou a ser uma coisa muito especial, um ser a quem Deus tinha dado aquelas qualidades fora do comum.
-- Deus, não. O diabo, - disse meu pai.
- Está errado em pensar assim, como está errado em outras coisas, como todo o mundo sempre está errado nisso ou naquilo, - retrucou Sam. - Quando compreender que há no mundo muito poucas pessoas cujos músculos obedecem pronta e exatamente ao comando do cérebro, saberá o que eu estou querendo dizer.
- Não quero ouvir mais nada a esse respeito, - disse meu pai, levantando-se. - Não me interessa. Para mim, o boxe é uma ocupação criminosa.
- Se pensa assim - perguntou Sam, já visivelmente com raiva, - por que consentiu no meu casamento com Mimi? Eu fui pugilista.
- Mas não era mais quando se casou com ela.
- Seria ainda se não tivesse fraturado a rótula! Papai encolheu os ombros.
- Mimi quis casar-se com você. Não me cabia dizer a ela o que devia fazer. Não tinha o direito de interferir.
- Quando é então que se acha no direito de interferir? Quando lhe convém? Não foi assim que agiu em relação a Danny!
- Pare com isso, Sam, - disse-lhe eu então. Aquilo era entre meu pai e mim. Não havia cabimento para ele meter-se na briga.
- Parar por quê? Tive parte nisso também. Perdi muito dinheiro com isso. - Olhou para Papai. - Tudo estava muito bem enquanto o garoto fizesse o que o senhor mandava, mas deixou de estar bem quando ele não quis mais escutá-lo. Entretanto, o senhor nunca recusou o dinheiro que ele levava para casa com as lutas. Os quinhentos dólares que ele lhe deixou na noite em que o senhor o expulsou de casa me custaram cinco mil dólares e quase custaram a vida de seu filho. Não sabia disso, sabia?
Papai ficou muito pálido e me olhou quase envergonhado.
- Um filho tem de ouvir o que o pai lhe diz - afirmou ele.
- Tem de ouvir, sim - replicou Sam - mas não tem obrigação de fazer o que o pai diz. É assim que agirei com meus filhos, procedam bem ou mal.
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Não me pediram que os trouxessem ao mundo. E desde que os quis, tenho de ajudá-los, quer concorde com eles, quer não.
Papai gesticulou nervosamente.
- Não quero mais falar sobre isso. Quanto a você, veremos como vai proceder junto a seus filhos.
- Uma coisa lhe digo: nunca baterei a porta para deixar um filho meu na rua.
Papai olhou-o demoradamente, ficando ainda mais pálido. Em seguida, saiu em silêncio da sala. Olhei para Sam e perguntei:
- Por que fêz isso? Está apenas perdendo seu tempo.
- Já estou ficando cansado de ouvir seu pai. Tem sempre razão em tudo. Creio que me cansei de ouvir as referências dele a você e as esperanças que tinha e a decepção que você lhe deu.
- E isso o aborrece? Não é nada com você. É de mim que ele está falando.
- ele sabe que eu queria que você fosse um lutador e essa é a maneira que tem de vingar-se de você ter escutado a mim e não a ele. Algum dia, ainda vou fazê-lo compreender que está errado a respeito de uma porção de coisas.
- Isso você nunca vai conseguir, Sam - disse eu, acendendo um cigarro. - Você nunca o fará mudar de opinião seja lá sobre o que fôr. Estou-lhe dizendo isso porque sei. Afinal de contas, ele é meu pai.
11
Quando cheguei à oficina de consertos, o mecânico estava trabalhando numa das máquinas de vender cigarros.
- Isto aqui estará funcionando dentro de umas duas horas, Sr. Fisher, - disse-me ele.
- Não há pressa, rapaz. Não adianta colocá-la no ponto.
- Não há cigarros?
- Nem para remédio!
E era verdade. Fazia já seis meses que era mais difícil conseguir cigarros do que dinheiro e havia filas enormes que se formavam mal alguém dizia que em certo lugar estavam vendendo cigarros.
310
Se eu não tivesse pressentido que alguma coisa assim ia acontecer, já estaria fora do comércio. Mas eu havia calculado bem as coisas e com a ajuda de alguns homens que não relutavam em ganhar um dólar a mais havia conseguido fazer um bom estoque. Sabia que não podia perder, pois de qualquer maneira venderia os cigarros todos por meio das máquinas. Mas a escassez havia chegado e naquele momento eu era um dos poucos que tinham algum estoque. Era a minha oportunidade de ganhar algum dinheiro.
Perguntei à moça que trabalhava na saleta dos fundos da oficina, servindo de escritório:
- Sr. Gordon já telefonou?
- Ainda não, Sr. Fisher.
- Chame-me quando ele telefonar, - disse eu, voltando para a oficina.
Sam ia telefonar para mim, quisesse ou não quisesse. Eu estava satisfeito comigo mesmo. Se a falta de cigarros continuasse, eu iria ganhar um bom dinheiro. Poderia então estabelecer-me como queria depois da guerra. Poderia levantar dinheiro bastante para conseguir os melhores pontos da cidade.
Peguei um jornal que estava ao lado do mecânico e perguntei:
- Como vai a guerra?
- Muito difícil. Os nazistas são um bocado duros.
- Mas acabarão perdendo, - disse eu, mas pensando em outra coisa. Tentava calcular se Sam aceitaria o preço que eu tinha em mente. Tinha de aceitar, pois, do contrário, não teria cigarros para vender nas suas concessões.
Olhei para os títulos do jornal. Os alemães estavam batendo em retirada através da França e o Terceiro Exército de Patton ia no encalço deles.
Continuei a ler e vi uma pequena notícia com o título: "As Autoridades Desmentem que Haja Falta de Cigarros". Achei graça. O jornal dizia que toda a culpa cabia aos açambarcadores. Algumas pessoas inescrupulosas estavam retendo os cigarros nos armazéns, em lugar de deixá-los correr pelos canais normais do abastecimento.
Gostaria de saber o que era que aquela gente faria se tivesse a mesma oportunidade de ganhar dinheiro que eu tinha. Deixariam os cigarros correrem pelos "canais normais"? Uma conversa! Fariam exatamente o que eu tinha feito. Comprariam os cigarros e, depois de armazená-los, tratariam de vendê-los pelo máximo que conseguissem. Não era sempre que aparecia uma oportunidade assim e eu não era idiota de vendê-los normalmente quando poderia ganhar o dobro ou ainda mais.
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- A máquina está pronta, Sr. Fisher, - disse o mecânico.
- Está bem, Gus. Se não tem mais nada para fazer, pode ir para casa.
- Obrigado, Sr. Fisher. É uma pena não termos cigarros para fazê-la funcionar.
- De fato, - disse eu, sorrindo. - Mas talvez a gente esteja se preocupando à toa. As autoridades dizem que não há falta de cigarros.
- Também li a notícia. A culpa toda é desses malditos açambarcadores que atrapalham a vida de gente honesta como nós.
Concordei com ele. Disse-lhe que tinha absoluta razão. Fiquei olhando-o enquanto tirava o macacão e pensando no que ele diria se soubesse dos cigarros que eu tinha guardado. Com toda a certeza, me denunciaria. Felizmente, eu tivera a boa idéia de guardar os cigarros em depósitos particulares bem longe da oficina. Desse modo, ninguém sabia de nada.
Ouvi a voz da moça.
- O Sr. Gordon está ao telefone. Corri para o telefone e disse:
- Alô, Sam!
- Como vai o mercado negro de cigarros hoje, Danny?
- Vamos com mais calma, Sam, - disse eu, rindo. - Você está ofendendo os meus sentimentos.
- Conversa! A única coisa capaz de ofender os seus sentimentos é perder dinheiro!
- Isso é maneira de um cunhado falar com outro? Especialmente quando estou procurando fazer-lhe um favor?
- Pensa que não o conheço? - disse Sam amistosamente. - Quanto é que está pedindo por eles hoje?
- Depende. Qual é a quantidade de que você precisa?
- Cinco mil cartões.
- É um bocado de cigarros. Acho que poderá consegui-los por três dólares e meio.
- Três dólares e meio por pacote? - exclamou Sam com uma voz que quase fêz o telefone partir-se.
- Que é que está reclamando, Sam? As suas vendedoras conseguem meio dólar por maço ou mais.
Eu sabia o que estava dizendo. Não trabalhava tanto tempo para ele à toa. As belas pequenas seminuas que vendiam cigarros para ele nos clubes e hotéis eram peritas em arrancar dinheiro dos fregueses.
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- Deixe por três e um quarto, Danny. Dê-me uma oportunidade. Afinal de contas, se não fosse eu, você não estaria nessa posição.
- Três e meio, Sam. Tenho a maior estima por você, ainda lhe devo seis mil dólares, mas negócio é negócio.
Era verdade. Eu ainda não havia pago a Sam, porque estava investindo todo o dinheiro que ganhava na compra de pontos para as minhas máquinas.
- Mas, Danny...
- Para onde você quer que eu mande a mercadoria? - perguntei para encerrar a questão. Eu sabia que ele podia pagar aquele preço. Estava ganhando dinheiro como nunca.
Houve um momento de silêncio e então ele disse:
- Para o lugar de costume.
- Pagamento à vista.
- Está bem - disse ele sem entusiasmo. - E espero que as autoridades o agarrem, seu patife. Adeus.
Desliguei o telefone, sorrindo. Aquilo me daria 10 mil dólares de lucro. Os cigarros me haviam custado apenas um dólar e meio o pacote. Apanhei o meu caderno e estudei-o cuidadosamente. Tinha feito uma lista de todos os pontos que eu queria pegar. Já havia conseguido quase tudo. Aquele dinheiro vinha bem na hora para completar a lista. Depois, trataria de fazer as encomendas das máquinas.
Estávamos quase nos fins de maio. Mais alguns dias e eu completaria vinte e sete anos. O tempo me estava fugindo e eu ia ficando velho.
Tinha de fazer logo as minhas encomendas para quando as fábricas reiniciassem a produção. Tudo aquilo de nada valeria sem as máquinas.
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Entrei no apartamento, sorrindo. Nellie estava ocupada diante do fogão. Virou o rosto para mim sem largar as panelas e eu lhe beijei a face.
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- Que é que vai ser o jantar hoje, menina?
- Bife de panela com cebolas e pimentão recheado.
- Está um bocado cheiroso! Como foi que conseguiu carne?
- O fim do mês já está tão perto que o açougueiro aceitou os talões do mês que vem.
- Não sei como é que você consegue isso, Nellie! Trabalha naquela fábrica infecta o dia todo e, quando chega em casa, ainda prepara um jantar desses!
- Quantos elogios! Você deve estar querendo alguma coisa...
- Nada disso. Estou falando com toda a sinceridade. Escute, já temos dinheiro de sobra. Por que não pára de trabalhar?
- Já pensei nisso também, mas os soldados precisam de nós, agora mais do que nunca.
- E eu preciso de você. Que será de mim se você se gastar assim ?
- Deixe de tolice, Danny!
- Não é tolice. Acontece que eu adoro bife de panela.
- Ande, vá lavar o rosto, - disse ela, rindo satisfeita e me empurrando para o banheiro. - O jantar já vai para a mesa.
Fui para o banheiro, sorrindo. Era um prazer vê-la satisfeita. Havia muito que ela não parecia tão feliz quanto naquele momento.
- Quer que a ajude a lavar os pratos? - perguntei sem levantar a vista do jornal.
- Agora é que você pergunta, não é? Depois que eu já lavei tudo ?
Ri e continuei a ler o jornal. Ela saiu da cozinha e se sentou no sofá diante de mim.
- Como correu tudo hoje? - perguntou com voz cansada.
- Muito bem, - disse eu sem poder ocultar a satisfação em minha voz. - Vendi cinco mil pacotes a Sam. Isso me deu 10 mil dólares de lucro líquido.
- Estou com medo, Danny. E se o agarrarem?
- Não se preocupe. Isso não vai acontecer...
- Mas, Danny, li no jornal hoje que...
- Não ligue ao que os jornais dizem. Estão apenas dando palpites. Depois, que é que podem fazer comigo? Não é crime nenhum vender cigarros.
- O dinheiro que você ganha não vale a pena. Não sei mais o que vale a pena. Ando tão nervosa que não consigo mais dormir direito.
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- Gostaria então de que ainda vivêssemos como vivíamos iintigamente? Gostava do tempo em que não tínhamos dinheiro para comer? Para mim, chegou o que já passamos.
- Nada disso tem importância para mim, Danny. O que eu não quero é ver você em dificuldades.
- Não se preocupe comigo, Nellie. Não vai acontecer nada. Dentro em pouco, você poderá usar capas de mink e colares de brilhantes.
- Posso viver sem isso. Para mim a sua presença tem muito mais valor. - Deu um suspiro e acrescentou, apertando as mãos com força: - Afinal de contas, não quero dizer ao garoto que o pai dele está na cadeia.
O jornal me caiu das mãos e eu perguntei, espantado:
- Que foi que você disse?
Ela me olhou calmamente com o secreto orgulho da mãe que espera um filho.
- Você ouviu muito bem. Vamos ter um filho. Corri imediatamente para ela, todo nervoso.
- Por que não me disse logo?
- Porque queria primeiro ter certeza.
- Já esteve no médico?
- Estive hoje de manhã, antes de ir para o trabalho. Abracei-a ternamente e beijei-lhe o rosto.
- E foi trabalhar apesar disso? Poderia, ao menos, ter-me telefonado para dar a grande notícia.
- Para quê? - perguntou ela, rindo. - Você não conseguiria mais trabalhar.
- E eu aqui sentado como um idiota deixando você fazer tudo sozinha! Para quando está esperando?
- Daqui a sete meses. Lá para fins de novembro, segundo acha o médico.
Sentei-me no sofá ao lado dela, sentindo-me muito satisfeito. Eu acertara numa porção de coisas. Sempre tinha sabido que logo que Nellie se sentisse em segurança, nós teríamos outro filho.
- Está contente, Danny?
- Muito, - disse eu, lembrando-me da outra vez em que aquilo havia acontecido. As coisas eram muito diferentes como estavam e era melhor assim. - Agora, podemos sair daqui.
- Para quê? Este lugar é bom.
- Mas não é um bairro bom para se criar um filho quando se pode morar num lugar melhor.
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Temos de encontrar um lugar onde haja muito ar e muito sol.
- Um lugar assim é muito caro, Danny, - disse ela, recostando-se no sofá. - Você sabe que é muito difícil agora conseguir um apartamento e estão cobrando um dinheirão.
- Quem foi que falou em apartamento? Quero comprar é uma casa!
- Uma casa? Não podemos nem pensar nisso. Custa muito dinheiro. Prefiro continuar aqui e guardar o dinheiro.
- Nada disso! Para que é que estou ganhando dinheiro, senão para você... e para o garoto ?
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O ardente sol de agosto me batia no pescoço e nos ombros, arrancando dentro de mim a última gota de suor, quando entrei no carro e liguei a chave. Depois, pisei no arranco. Percebi logo que havia alguma coisa errada. Fiz mais duas ou três tentativas e convenci-me de que havia. A bateria estava descarregada. Resignadamente, desliguei a chave e saltei. Olhei para o carro como se ele me houvesse traído. Eu havia prometido a Nellie que chegaria cedo.
Olhei para o relógio. Quatro e meia. Se mandasse recarregar ou mudar a bateria, perderia uma hora ou mais e Nellie ficaria furiosa. Fechei as portas do carro e dirigi-me para o subway. A estação mais próxima ficava a uns seis quarteirões de distância e eu estava suando em bicas quando cheguei lá. Depositei o níquel na borboleta e passei para a plataforma.
Logo que cheguei à plataforma, tive sede. Procurei uma banca de jornais, pois algumas delas vendiam refrigerantes. Havia uma banca de jornais no outro extremo da plataforma, mas quando me encaminhei para lá, vi que estava fechada. Parei, aborrecido. Nada tinha dado certo naquela tarde. Primeiro, o carro enguiçava, depois, estava com sede e nada encontrava para beber.
Procurei um cent no bolso e coloquei-o numa máquina de goma de mascar. Talvez isso me servisse até poder beber alguma coisa.
Tomei um trem que parou na estação e fiquei olhando os outros passageiros. Os rostos pareciam cansados e suarentos sob a luz amarela do trem.
316
Ao fim de algum tempo, senti-me aborrecido e lamentei não ter comprado um jornal. As caras dos outros estavam como deviam estar a minha. Com certeza, sofriam como eu o suplício da sede.
Olhei para os anúncios do trem e vi logo o de um refrigerante que uma moça fresca e risonha tomava num copo bem gelado. Senti a boca cheia de água. A goma me pareceu seca e insípida. Não, aquilo não servia para enganar a sede.
O trem parou e eu vi na plataforma um homem comprar um pacote de goma numa máquina. O rosto do homem estava suarento e vermelho de calor.
O trem prosseguiu e eu tornei a olhar o anúncio de refrigerante. Nada de máquinas de goma de mascar. O que era preciso nas estações do subway eram algumas das minhas máquinas de refrigerantes. Lembrei-me então de uma moça a quem servira na lanchonete onde eu trabalhara e que me dissera que devia haver no subway algum lugar onde se pudesse tomar um refrigerante quando se tivesse sede.
Senti então o estalo. Eu merecia mesmo o primeiro prêmio dos idiotas! A coisa estava ali todo o tempo no meu nariz, mas como eu custara a perceber! O melhor ponto do mundo: os trens subterrâneos de Nova York. Tudo o que me restava fazer era entrar em entendimento com a Prefeitura e todos os problemas estariam terminados para mim.
Todos os passageiros do trem pareciam suarentos e cansados. Podia vê-los formando fila diante das minhas máquinas para tomar um refrigerante. E não era só isso. No inverno, as máquinas venderiam café quente.
Senti-me entusiasmado. Não podia dormir sobre aquilo. Era aquilo que eu estava procurando - o melhor de todos os pontos. Tinha sido uma sorte a minha bateria ficar descarregada. Era preciso haver uma coisa assim para que a gente afinal abrisse os olhos. Para ganhar dinheiro era preciso ir procurar o povo onde ele estava, que era também onde estava o dinheiro. Woolworth, fundador das lojas "nada além", tivera a idéia justa: pegar os trocados. Quando se conseguia isso, tudo estava resolvido. E nos subways de Nova York havia mais trocados do que em todas as lojas da Quinta Avenida.
Toquei a campainha impacientemente. Olhei para Nellie à luz mortiça do corredor. Tornei a tocar a campainha e sorri para ela.
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Gostava do jeito como ela estava. A suave redondez do corpo tornava-a ainda mais bela.
- Não sei por que você teve de vir até aqui correndo para falar com Sam, - disse ela, muito aborrecida. - Podia muito bem ter deixado para amanhã.
- Talvez, Nellie. Mas tive a idéia hoje e me pareceu tão boa que achei que não devia esperar. Eu...
Ia dizer mais alguma coisa, mas a porta se abriu. Mimi apareceu e teve um olhar de surpresa ao ver-nos.
- Danny! Nellie! Não os estava esperando.
- Vim ver Sam, - disse eu, entrando. - Tenho de tratar com ele de um negócio importante.
Ouvi lá dentro a voz de Sam.
- Quem é, Mimi?
- Danny e Nellie. Danny veio falar com você. - Voltou-se para nós. - Venham sentar-se que Sam não demora a descer.
- Como vai passando? - perguntou Mimi a Nellie na sala.
- Muito bem. Se o médico não me tivesse dito que eu estava grávida, eu não teria acreditado nisso. Sinto-me tão bem.
- É uma sorte para você, - disse Mimi. - Eu sempre passo pessimamente.
E a sua voz baixou para esse tom confidencial que as mulheres usam quando conversam sobre esses assuntos.
- Que é que Sam está fazendo, Mimi? - perguntei.
- Está tomando um banho. É um homem daquele tamanho e não agüenta nem um pouquinho de calor.
Dirigi-me para a escada do apartamento duplex e disse:
- Fiquem aí conversando vocês duas que eu vou falar com Sam enquanto ele acaba de tomar o banho.
Sam estava diante do espelho, com uma toalha enrolada no corpo, penteando o cabelo.
- Alô, - disse ele ao ver-me. - Que é que você quer?
- Vim saber se você gostaria de ganhar um milhão de dólares, - disse eu, entusiàsticamente.
ele me olhou desconfiado e respondeu prontamente:
- Não estou interessado. Cada vez que você aparece com uma idéia nova, isso me custa dinheiro.
- Não venha com piadas. Tenho alguma realmente notável desta vez. Quer ouvir ou não quer?
- Está bem, - disse ele, acabando de pentear-se. - Diga lá. De qualquer maneira, vou ouvir mesmo.
- Já sentiu alguma vez sede dentro do subway ?
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- Que conversa é essa? Você sabe muito bem que eu há anos não entro num subway. Isso é coisa para o povo.
Desci a tábua do vaso e me sentei nela.
- É exatamente isso, Sam. Você devia andar de vez em quando no meio do povo para não se esquecer de onde foi que veio.
- Está bem. Onde está a sua idéia de um milhão de dólares?
- Eu já lhe disse, Sam. Mas você está há tanto tempo longe do povo que nem escuta mais. Eu poderia ter perdido também a idéia se o meu carro não tivesse enguiçado hoje.
- Muito bem, tenho vivido longe do povo. E daí? Deixe de rodeios e diga logo o que quer ou saia daí que eu preciso me vestir.
Acendi um cigarro, tirei uma fumaça e disse com voz calma.
- Lembre-se do seu passado, Sam. Lembre-se do tempo em que você era um dos seis milhões de homens do povo que não moram em Central Park South e voltava para casa, do trabalho. Você vinha suarento, cansado e com sede e quando chagava ao subway percebia isso com mais força. Estava louco para beber alguma coisa bem gelada, mas não havia nada e você tinha de esperar até desembarcar.
Fiz uma pausa e Sam exclamou:
- Que é que você está tentando fazer? Ganhar um prêmio pelo melhor desempenho teatral do ano?
- Ainda não percebeu, Sam? - Será possível?
- Não percebi nada. Afinal de contas eu sou obtuso como convém a um morador de Central Park. Não tenho a inteligência dos homens do povo.
- Você compraria alguma coisa para beber se encontrasse na plataforma uma das minhas máquinas de refrigerantes?
ele se voltou para mim com um brilho de interesse nos olhos.
- Repita isso, Danny! Devagar! Agora, estou escutando!
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Era de fato um grande negócio. O próprio Sam teve de reconhecer isso. Aderiu completamente à idéia. Formamos uma companhia separada para explorá-la. ele entraria com o dinheiro e se encarregaria das providências necessárias. Eu administraria o negócio.
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Havia muitas providências necessárias, muito mais do que eu julgara possível. Estava tão ocupado que pegara Giuseppe para tomar conta dos negócios comuns, enquanto eu me dedicava à nova companhia.
Refrigerantes no subway. Quem poderia pensar que uma coisa tão simples exigisse tanto tempo e esforço? Mas era preciso falar com uma porção de gente - diretores da Prefeitura, diretoria dos Transportes, engenheiros, pessoal do Departamento da Saúde. Era preciso a aprovação vir de tantos lugares que eu às vezes me sentia inteiramente tonto. E, como se isso não bastasse quando tudo estava mais ou menos assentado, surgiram em cena os políticos.
Era preciso ter relações para levar avante um projeto assim. Pôr isso é que eu fora procurar antes de tudo Sam. ele tinha muitas relações, mas, ainda assim, deparamos com um obstáculo na pessoa de Mario Lombardi, um homem tranqüilo que tinha a seu serviço um agente de publicidade para impedir que o nome dele saísse nos jornais, para que não fosse publicado. Mas de qualquer maneira o nome dele de vez em quando aparecia nos jornais. Um homem assim não podia viver secretamente. O poder de que dispunha era enorme. Descobri que nada se podia fazer na cidade de Nova York sem a aprovação de Mario Lombardi, fossem quais fossem as intenções e a honestidade do governo municipal.
Apuramos que só havia um caminho para Sam chagar a Mario Lombardi. Era por intermédio de Maxie Fields. Eu gostaria de que houvesse qualquer outro caminho, menos esse. Mas Sam me assegurou que não havia, pois do contrário ele também o preferiria. Tínhamos então falado com Maxie e estávamos naquele momento na sala do apartamento de Lombardi em Park Avenue e parecia que teríamos de admitir dois novos sócios a qualquer momento.
- Muito bem, - disse eu ao homem, - nós lhe daremos um interesse na companhia, Sr. Lombardi. Que garantias o senhor nos dá de que depois da guerra a nossa combinação será mantida? Afinal de contas, a política nesta cidade é uma coisa muito incerta e ninguém pode saber quando está de cima ou de baixo.
Lombardi bateu num gesto delicado a cinza do charuto no cinzeiro, com o seu grande anel de brilhante faiscando nos meus olhos.
- Mario Lombardi não faz promessas que não possa cumprir, Danny, - respondeu ele calmamente. - Pouco me interessa quem vai ser o prefeito depois da guerra. Esta é minha cidade e seja lá quem fôr terá de ouvir-me.
- ele tem toda a razão, Danny, - disse Maxie Fields, cujo vozeirão adquirira um tom de adulação e humildade que me dava náuseas. - Nada se faz nesta cidade sem a aprovação de Mario.
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Olhei friamente para Maxie. Continuava a não gostar dele. Era evidente que o meu sangue nunca havia combinado com o dele.
O rosto de Sam era impenetrável, mas notei nele um discreto sinal de aprovação. Desde que Sam estava de acordo, voltei-me para Lombardi. O homem parecia mais interessado nas suas unhas do que na nossa conversa. Suspirei intimamente. Até ali eu podia ir. O resto pertencia ao destino. Eu tinha conversado com muitos políticos e todos me haviam dito que Lombardi era o único homem com prestígio suficiente para apoiar um negócio daqueles. Aceitamos, pois, os dois sócios.
- OK, Mario, - disse eu. Nunca se chama um sócio senão pelo primeiro nome. -- Está fechado, receberá 10% dos lucros.
Lombardi se levantou e me estendeu a mão.
- Você não se arrependerá, Danny. Quando precisar de qualquer coisa, é só vir procurar-me.
- Qualquer coisa? - perguntei, sorrindo.
- Não foi o que disse?
- Consiga-me então um apartamento, Mario. Minha mulher quer ter o filho na casa nova e já está no sexto mês de gravidez.
Nellie não concordara ainda em me deixar comprar uma casa. O sorriso de Lombardi desapareceu. Perguntou-me:
- Qual é o aluguel que tem em vista?
- De 75 a 100 dólares por mês. Encolheu os ombros expressivamente e disse.
- Você me pede uma coisa fácil como essa, Danny, e eu nada posso fazer. Hoje de manhã, consegui nomear alguém juiz de Nova York. Falei com algumas pessoas e acertei um contrato de construção de alguns milhões de dólares. Fui almoçar com o Prefeito e consegui logo depois um empréstimo de um milhão de dólares para uma pessoa. Mas você a quem tenho tanto interesse em servir, me pede uma coisa que devia ser fácil como essa e eu estou de pés e mãos atados. Diga a sua mulher para desistir da idéia, Danny. Compre uma casa.
- Quer me dar uma carona, Danny? - perguntou Fields, quando chegamos à rua.
Disse que sim e despedi-me de Sam.
- Até amanhã, Danny - disse Sam, entrando no seu conversível Cadillac amarelo.
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Vimos Sam afastar-se e fomos para o meu carro. Eu estava em silêncio, pensando. íamos dar 10% a Lombardi e 5% a Maxie Fields por ter arranjado tudo.
- Aquele Sam é um bocado inteligente, - disse Maxie Fields, acomodando o corpanzil ao meu lado no carro.
Olhei-o surpreso. Era a primeira vez que eu via Maxie Fields elogiar alguém.
- É mesmo, - disse eu, dando partida no carro.
- Que negócio ele conseguiu construir! - continuou Fields.
- E não pára de crescer!
Não sabia aonde ele queria chegar e dei uma resposta evasiva.
- Mas também ele trabalha muito. Trabalha o tempo todo.
- Lá isso é verdade, - disse Fields com demasiada presteza.
- Você deve entender muito dos negócios dele, pois trabalhou muito tempo lá.
Olhei-o pelo canto do olho. ele estava com a cabeça voltada para a rua.
- Trabalhei, sim - disse eu.
- Se alguma coisa acontecesse a ele, quem iria tomar conta para zelar pelos interesses de sua irmã, seria você.
Por um momento, fiquei tão surpreso que não pude nem pensar direito.
- Bem... acho que sim...
Paramos num sinal e eu senti os olhos de Maxie cravados em mim, a olhar-me atentamente.
- Bem, Danny, se você algum dia tiver ambições nesse sentido, venha falar comigo. Quem sabe se não poderei ajudá-lo?
Senti um começo de náusea no estômago e segurei a direção com muita força para poder controlar-me. Procurei falar com voz tão calma quanto me foi possível.
- Estou satisfeito com o que eu tenho, Maxie. Vou indo muito bem.
- Bem, o mercado negro dos cigarros não durará para sempre, rapaz. E a guerra poderá durar ainda muito tempo. Não se esqueça de falar comigo se mudar de idéia.
Fizemos o resto da viagem em silêncio. Estava ansioso para que ele saísse do carro. Era uma infelicidade ter de fazer negócio com ele. Mas não queria vê-lo junto de mim mais do que fosse absolutamente necessário.
Quando entrei no apartamento, ouvi o barulho de um ventilador no quarto e fui até lá na ponta dos pés.
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Nellie estava deitada na cama dormindo, com a cabeça apoiada num braço. Olhei-a um momento e então comecei a sair do quarto sem fazer barulho.
- Danny? Voltei-me para ela.
- Estava tão cansada que me deitei um instante e peguei no sono.
- Desculpe, mas não quis acordá-la, - disse eu, sentando-me ao lado dela na cama.
- Não foi você que me acordou. E, de qualquer maneira, tenho de preparar o jantar. Passei o dia todo procurando apartamento sem encontrar. É por isso que estou tão cansada.
- Por que não desiste e não me deixa comprar uma casa? O próprio Mario Lombardi não nos pode conseguir um apartamento.
- Mas é tão caro, Danny, - disse ela, sentando-se na cama.
- Deixe de pensar em dinheiro, querida. Lombardi vai-nos conseguir o negócio do subway. Agora, podemos comprar.
- Tem certeza de que é isso mesmo que você quer, Danny?
- Toda a minha vida quis ter uma casa, - disse eu, compreendendo quanto eram verdadeiras aquelas palavras. - É o que eu quero, sim.
Ela me abraçou e me disse ao ouvido:
- Está certo, Danny. Se é o que você quer é o que nós vamos fazer.
15
"As árvores estão bem crescidas agora", pensei quando entrei com o carro na rua. Nellie estava em silêncio olhando pela janela e eu não podia saber em que era que estava pensando.
Quase vinte anos haviam produzido muitas alterações. As casas tinham mais o ar de velhas moradias. Algumas precisavam muito de reparos. Mas apesar dessas diferenças, todas ainda se pareciam muito umas com as outras.
Parei o carro diante da nossa velha casa e desliguei o motor. Virei-me para Nellie. Ela continuava sentada e muito plácida, a olhar para a casa. Olhei-a também.
323
Senti a alegria invadir-me o coração como havia muito eu não sentia. A casa ia ser finalmente minha.
- O agente disse que nos esperaria lá dentro, disse eu.
- Danny, - murmurou ela, - quem sabe se não será melhor esperarmos mais um pouco? Não convém agir com precipitação nessascoisas. Pode aparecer coisa mais vantajosa.
- Como assim? Passamos um mês e meio procurando e não vimos nada que nos agradasse. Estamos em meados de setembro e se quisermos mudar-nos até 19 de outubro temos de tomar uma decisão agora.
-- Mas não é preciso correr. Poderemos esperar até a criança nascer.
- Nada disso. Quero ver tudo pronto. Vamos entrar.
Ela saiu do carro lentamente e ficou em pé no passeio. Estendeu a mão e se apoiou no meu braço. Havia preocupação nos seus olhos e o corpo tremia um pouco. Não havia motivo algum para que ela tremesse. Fazia quase calor e o sol batia em cheio em nós.
- Que é, Nellie? Está sentindo alguma coisa?
- Não. Estou bem.
- Por que então está tremendo. Está com frio?
- Não... Foi um pressentimento horrível que eu tive e fiquei com medo, Danny.
- Medo de quê? - perguntei, sorrindo.
- Medo por sua causa, Danny. Sinto que alguma coisa terrível vai acontecer.
- Mas que é que pode acontecer, Nellie? Tudo está resolvido e nada pode haver de anormal.
- Esta casa representa muito para você, não é?
- De fato. Devia ser minha casa desde o início e nunca foi. Mas agora vai ser.
- E você em toda a sua vida sempre desejou isso, mais do que qualquer outra coisa.
Pensei por um momento. Talvez ela tivesse razão. Mas não fazia mais qualquer diferença. Acontecera apenas que a minha velha casa estava disponível no momento em que estávamos à procura de uma casa. Talvez nem tudo fosse coincidência, mas assim é que as coisas tinham acontecido.
- Talvez fosse melhor não comprarmos a casa, Danny, - disse-me ela. - Talvez esteja escrito que não devemos morar aqui. Tenho a impressão de que estaremos desafiando o destino se você voltar para cá.
Sorri. As mulheres grávidas costumavam ter pressentimentos e fazer profecias sombrias. Isso era coisa sabida.
324
I
- Deixe de tolice, Nellie. Estamos apenas comprando uma casa.
Ela nada mais disse. Encaminhou-se para a porta da frente, mas eu a levei para o caminho entre as duas casas até chegarmos ao jardim nos fundos. Ali também tinha havido grande mudança. Quando morávamos na casa, o jardim era quase nu, mas estava naquela ocasião todo plantado com arbustos, canteiros e plantas. Olhei para o canto junto à cerca e me lembrei da noite em que levara Rexie para ali a fim de enterrá-la. Uma grande roseira cobria o lugar. Fiquei imaginando se lhe teriam perturbado o descanso.
- Sr. Fisher!
Era o corretor, que se aproximou de nós, cumprimentou-nos e perguntou:
- Está pronto a ver a casa agora, Sr. Fisher? Sim, eu estava mais do que pronto.
O assoalho rangia confortàvelmente sob os meus pés. Era como se a casa toda me dissesse: "Alô, Danny Fisher!"
Parei à porta do meu velho quarto. Nellie e o corretor estavam em outra parte da casa. Entrei e fechei a porta.
Uma vez, havia muito tempo, eu me jogara ao chão e encostara o rosto à madeira fria. Era muito grande para fazer isso naquele momento, embora tivesse vontade. Meu filho faria isso em meu lugar.
"Há quanto tempo, Danny!", parecia dizer-me o quarto.
Olhei para o chão. Não havia mais a marca do lugar onde Rexie costumava deitar-se, Tinham raspado e encerado muito o chão. O quarto parecia menor do que aquele de que eu me lembrava. Talvez fosse porque eu era muito pequeno naquela ocasião e via em tudo em relação a mim. Abri uma das janelas e instintivamente olhei para as janelas da casa vizinha.
Anos atrás, havia ali uma moça que morava naquele quarto. Fiz tudo para me lembrar do nome dela e não consegui. Lembrava-me apenas de que a luz elétrica do quarto brilhava sobre ela e ainda podia ouvir-lhe a voz que me chamava. Mas nas janelas não havia ninguém e as cortinas estavam fechadas.
O quarto parecia animado de vida própria e como que me dizia: "Tenho sentido saudades suas, Danny. Veio para ficar? Isto aqui tem sido muito vazio sem você".
Sentia-me também vazio e tivera mais saudades da casa do que havia imaginado. Compreendia naquele momento o que Nellie tinha dito. Havia ali uma promessa que eu sabia que seria cumprida.
325
Tudo ali me dizia: "Cuidarei de seu filho, Danny, como cuidei de você. Eu o ajudarei a crescer forte, feliz e contente, inteligente e compreensivo. Eu o amarei como amo a você, Danny, se você vier para ficar".
Nellie e o corretor chegaram à porta do quarto. Nellie me olhou e veio correndo para junto de mim.
- Você está bem, Danny?
- Estou sim. Por quê?
- Está tão pálido.
- Não é nada, - disse eu, rindo e começando a voltar ao normal. - É a luz aqui dentro que está um pouco escura.
- Tem certeza de que está fazendo o que deve, Danny? - perguntou ela, ansiosamente. - Não há fantasmas aqui dentro?
- Não, nenhum fantasma, - disse eu, surpreso, pois não acreditava em fantasmas.
- Sua senhora me disse que o senhor já morou aqui, - disse-me o corretor.
- Já, sim.
- Neste caso, não lhe preciso dizer nada sobre a casa. Não lhe preciso dizer que a construção é melhor do que tudo o que se faz hoje em dia. Que é que acha, Sra. Fisher?
- Que é que acha, Danny? - perguntou Nellie, voltando-se para mim.
Respirei fundo e corri os olhos em torno. Sabia o que ia dizer. Sempre tinha sabido. E parecia que a casa sabia também.
- Acho que vamos ficar com a casa. Poderia mandar os pintores amanhã mesmo para que nos possamos mudar no dia primeiro?
16
Levantei-me surpreso quando Sam entrou no meu escritório. Era a primeira vez que isso acontecia.
- Que é que há, Sam?
ele olhou significativamente para a moça que trabalhava numa mesa ao meu lado no pequeno escritório.
Mandei a moça sair e voltei-me para Sam.
- Houve alguma coisa?
326
- Não, - disse Sam, sentando-se na cadeira que a secretária deixara vaga. - Mas estou ficando cansado de lhe telefonar sempre que preciso de cigarros. Acho que poderíamos entrar num acordo permanente.
Sorri tranqüilizado. Tinha pensado que ele tivesse ido queixarse das encomendas que eu tinha feito para as máquinas de refrigerantes do subway. Estava gastando o capital dele como se fosse meu.
- Você devia saber que não é possível um acordo dessa ordem, Sam. Não pode haver garantia porque a mercadoria é difícil de conseguir. ,
- Você pode conseguir.
- Gostaria de poder sempre.
- Bem, Danny, quero duzentas caixas por semana. Trate de arranjá-las.
- E se eu não puder? - perguntei. Era claro que eu podia, mas estava curioso de saber por que Sam tinha tanta certeza.
ele tirou uma folha de papel do bolso e jogou-a em cima da minha mesa.
Peguei o papel. Era uma cópia de todas as faturas dos meus recebimentos de cigarros. Isso queria dizer que ele sabia onde estavam guardados todos os meus cigarros.
- Como conseguiu isso?
ele sorriu e respondeu evasivamente:
- Tenho meus recursos. Como é? Vai-me arranjar os cigarros ?
- E se eu disser não?
- Neste caso, acho que as autoridades federais gostarão de ver uma cópia dessa relação.
- Você não seria capaz de fazer uma coisa dessas, Sam!
- Não, Danny, - disse ele, sorrindo. - Do mesmo modo que você não seria capaz de contar a Mimi certas coisas que chegaram ao seu conhecimento.
- Nunca pensei que você fizesse uma coisa dessas comigo, Sam, - disse eu com voz grave, contendo o impulso que sentia de rir.
Houve uma expressão de triunfo na fisionomia de Sam.
- Você não gosta quando é no seu pé que o sapato aperta, não é, seu chantagista?
Não pude mais e abri na gargalhada. Sam me olhou, surpreso.
- Que é que há, Danny? Por que está rindo assim? Ficou maluco?
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Ri tanto que as lágrimas me chegaram aos olhos. Por fim, consegui falar.
- É que estava pensando, meu cunhado, que isso é uma bela maneira de dois sócios se tratarem.
ele percebeu então o que eu queria dizer e começou a rir também.
Depois de algum tempo, levei-o para a oficina, para que ele fizesse uma visita às nossas instalações. Sam não pôde dissimular o seu espanto. Nunca havia pensado que a minha empresa houvesse crescido tanto. Voltamos para o escritório e eu lhe mostrei a lista dos pontos que eu já havia conseguido sob contrato e notei que havia um brilho de admiração nos olhos dele.
- Você tem quase tanto aqui quanto nós temos no negócio do subway.
- Mais, Sam. Quando a coisa estiver em pleno funcionamento, será duas vezes maior do que a empresa do subway.
- Agora é que eu sei por que você está sempre sem dinheiro.
- É claro. Estou investindo no negócio tudo o que recebo. ele pensou um pouco, olhou para mim e disse:
- Que tal juntarmos as nossas empresas, garoto? Isso tornaria tudo mais fácil para você.
Fiz-me de desentendido.
- Está falando em todas as suas empresas, Sam?
- Claro. O que eu tenho em vista é o seguinte: eu lhe darei um bom preço pela metade do negócio e entrarei então com o dinheiro, como no caso do subway.
Era minha vez de dizer não.
- O negócio do subway era muito grande e eu não podia tratar dele sozinho. Mas este aqui é meu. Construí-o sozinho, tijolo por tijolo, e pretendo ficar com ele.
Ficou em silêncio, pensando. Eu o conhecia bem. Estava procurando um ângulo para ver se me convencia. Quando levantou os olhos, compreendi pela expressão dele que não havia encontrado nada e desistira.
- Está bem, Danny. Mas se algum dia mudar de idéia, basta me dizer. Por falar nisso, como vai a casa?
- Muito bem. Estaremos nela na semana que vem, na terçafeira, segundo esperamos.
- Você devia ter visto a cara de seu pai quando Mimi disse a ele.
- Que foi que ele disse? - perguntei, não podendo ocultar o meu interesse.
328
- Não acreditou a princípio, mas quando Mimi jurou que era verdade, não conseguiu dizer coisa alguma. Sua mãe começou a chorar.
- A chorar? Por quê?
- Disse a seu pai que era isso que você sempre tinha querido, mas que ele nunca havia acreditado. Seu pai continuou calado e em dado momento foi até à janela e ficou lá por muito tempo. Durante o jantar, não disse nada também, mas já no fim olhou para Mimi e disse uma coisa muito interessante.
Sam parou para tomar fôlego e olhou para mim. Não fiz qualquer comentário.
- ele disse: "Danny está então indo para a casa". E sua mãe disse: "Foi o que ele sempre quis, a casa. E você não deixou". Seu pai então disse: "Já estou velho e para mim isso não tem mais importância. Os meus erros irão para a sepultura comigo. Mas estou contente de que Danny tenha encontrado o seu caminho". Levantou-se, então, disse que estava muito cansado e voltou para casa com sua mãe.
O meu cigarro se queimara quase até ao fim entre os meus dedos e joguei-o no cinzeiro.
- Quer saber de uma coisa, garoto? - perguntou Sam. - Tenho a impressão de que o velho está para jogar a toalha se você o procurar.
Respirei fundo e sacudi a cabeça.
- Não, Sam, a coisa não é tão simples assim. ele tem primeiro de reabilitar-se pelo que fêz com Nellie. ele disse muitas coisas, fêz muitas coisas. Vai ter de consertar tudo.
- Éo que acontecerá se você lhe der uma oportunidade, Danny.
- Tem de fazer isso por si mesmo. Nada posso fazer por ele.
- Bem sabe como ele é, garoto. Orgulhoso, teimoso e velho. Só Deus sabe o tempo que ainda lhe resta...
- Sou filho dele, Sam, e não é preciso que você me diga nada sobre ele, pois eu sei de tudo. Conheço-o melhor do que você. E sou uma porção de coisas que ele é também. Também sou orgulhoso e teimoso. Em certo sentido, sou velho também, mais velho do que ele. Muitas coisas por que passei em virtude do procedimento dele comigo me tornaram mais velho. Enterrei uma filha, Sam. Ela morreu nos meus braços porque não tínhamos a quem pedir ajuda. Acha que uma coisa assim acontece sem envelhecer a gente? Acha que se esquece uma coisa assim? Não é possível. E não é possível esquecer que tudo começou quando nosso próprio pai bateu a porta na cara da gente e nos deixou na rua.
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ele terá de fazer tudo por si mesmo, como eu tive. Depois disso, talvez seja possível apagar tudo e vivermos em boa paz um com o outro.
Recostei-me numa cadeira e acendi outro cigarro. Estava cansado. Quando as exigências dos negócios serenassem um pouco e Nellie tivesse o filho, iríamos passar uns tempos fora. Nós ambos precisávamos de repouso. Não me lembrava de já haver sentido tanto cansaço quanto naquela ocasião.
Olhei para Sam e mudei de assunto.
- Para onde quer que lhe mande os cigarros?
- Para o lugar de costume.
- Estarão lá amanhã de manhã.
Depois que Sam saiu, levantei-me, cheguei à porta da oficina e chamei Giuseppe.
- Que é, Danny?
O tempo não havia parado para nenhum de nós. Giuseppe viera correndo da oficina. A distância era pequena mas ele estava quase sem fôlego.
- Vá para o outro telefone, Giuseppe, e procure ver se arranja outros depósitos para nós. Sam descobriu onde ficam todos os que temos.
ele bateu com a cabeça, sentou-se junto ao telefone e começou a discar. Olhei-o com afeição. Giuseppe era cem por cento. Não perdia tempo fazendo perguntas. As explicações, se fossem necessárias, viriam depois.
Peguei o meu telefone e liguei para Nellie. Não gostava de dizer a ela que ia chegar de novo tarde naquela noite, mas não tinha outro recurso. Ela estava muito nervosa com a gravidez e tudo parecia enervá-la. Mas acalmou-se um pouco quando lhe prometi que chegaria bem cedo todos os dias depois daquele e que ela não ficaria mais sozinha até o garoto chegar.
17
Acabei de tomar o café e levantei-me da mesa. Passei com cuidado ao lado de várias caixas de papelão cheias e fui até onde ela estava para beijar-lhe o rosto.
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- Até logo, meu bem. Vou trabalhar.
- Procure voltar cedo, Danny. Quero ver se acabo de arrumar tudo hoje para a mudança.
- Não se preocupe, querida. Podemos ainda deixar algumas coisas para amanhã. O caminhão da mudança só estará aqui às onze horas.
- Não gosto de deixar as coisas para a última hora. Sempre se esquece alguma coisa e é muito aborrecido. Quero aprontar tudo hoje.
Na realidade, a nossa mudança ia ser muito pequena. Não íamos levar conosco um só dos móveis. Tínhamos comprado tudo novo para a casa e isso já estava lá. Mas as mulheres são assim mesmo. Minha mãe havia procedido da mesma maneira quando nos mudamos. - Está bem, Nellie. Virei cedo.
Já estava na porta quando ela me chamou e veio correndo para mim. Abri os braços para ela. Ela me abraçou, descansou a cabeça no meu ombro e começou a tremer.
- Que é que há, meu bem?
- Não sei, Danny. Estou com medo. De repente, fiquei com medo.
Apertei-a bem nos meus braços. Os anos haviam também exigido o seu tributo dela. Já lhe apareciam alguns cabelos brancos e ela estava cada vez mais nervosa à medida que se aproximava a época do parto. Quando Vickie estava para nascer, ela não tinha ficado tão nervosa assim.
- Medo de que, meu amor? Tudo vai correr bem.
- Você não compreende, Danny. Não é por mim que tenho medo. É por você.
- Deixe de nervosismo, querida, que nada vai me acontecer.
- Danny, não vamos fazer a mudança amanhã. Não vamos nos mudar para aquela casa. Vamos procurar outra. Podemos esperar.
- Deixe de bobagem, querida. Você está apenas nervosa e deprimida. Vai adorar a casa quando nos mudarmos para lá.
- Não volte para lá, Danny, - disse ela, chorando. - Não volte, estou-lhe pedindo. Não se pode reconstituir o passado, não se pode mudar o que já aconteceu. A sua volta para lá me enche de medo!
- Não chore mais, Nellie, - disse eu com firmeza, pegando-lhe o queixo e fazendo-a olhar para mim. - Isso não lhe faz bem. Você está apenas nervosa sem motivo algum. Aquela casa é apenas um lugar para se viver como outro qualquer - nem mais, nem menos.
331
Portanto, tenha juízo e deixe de alarmar-se sem qualquer motivo.
- Talvez eu esteja errada, querido, mas tenho pressentimentos tão horríveis.
- Minha mãe sempre disse que esses pressentimentos eram um dos sintomas da gravidez. Isso acontece a todas as mães.
Ela sorriu incertamente por entre as lágrimas. Tirei o lenço e enxuguei-as cuidadosamente.
- Perdão, Danny. Não vou mais fazer isso. Beijei-a e disse:
- Não tenho nada que lhe perdoar. É assim que eu quero você.
Quando os homens entraram com outra máquina, saí do escritório onde Giuseppe e um mecânico já a estavam examinando. - Que foi que houve com essa?
- O que sempre acontece, Danny, - respondeu Giuseppe. •- Alguém ficou aborrecido porque não encontrou cigarros e se desforrou na máquina.
Já me estava habituado àquela coisa. Com aquela, eram quinze máquinas que tinham voltado danificadas em duas semanas. Era curioso como as pessoas descarregavam a raiva em cima de uma máquina. Aquela então estava quase imprestável.
- Leve-a para o depósito, Giuseppe. Não adianta tentar consertá-la agora. Será apenas perder tempo.
Quando voltei para o escritório, minha secretária disse:
- Um telefonema interurbano de Buffalo, Sr. Fisher. Estranhei isso. Quem poderia ser? Não conhecia ninguém por aquelas bandas.
- Disse quem é ?
- Não, senhor. Não quis dar o nome, mas disse que tem urgência em falar com o senhor.
- Está bem, vou atender, - disse a ela. - Enquanto isso, requeira pagamento à companhia de seguros por mais um ato de vandalismo. Pode pedir os dados a Giuseppe.
Cheguei ao telefone e disse:
- É Fisher quem fala.
- Danny, quem fala aqui é Steve Parrish, - disse a voz do outro lado do fio.
Já sabia por que aquele camarada não quisera dar o nome. Era vendedor de um dos maiores traficantes do mercado negro de cigarros.
332
Fora o primeiro com quem eu havia entrado em contato quando pensara em fazer o meu estoque.
- Steve! - exclamei cordialmente. - Por que está gastando o seu dinheiro em telefonemas interurbanos? Está jogando dinheiro fora ?
- Escute, - disse ele, falando muito baixo, - disponho de uma grande partida aqui e quis falar com você, antes de procurar qualquer outra pessoa.
Baixei a voz e perguntei:
- Quantas caixas?
- Mil caixas. Das marcas conhecidas. Está interessado?
Claro que eu estava interessado. Quem não estaria interessado em mil caixas de cigarros quando talvez não houvesse essa quantidade em toda a cidade de Nova York?
- Qual é a base, Steve?
- Dois dólares o pacote, 100 dólares a caixa.
Dei um assobio. Era uma porção de dinheiro - 100 mil dólares.
- É coisa clandestina? Steve riu.
- Não faça perguntas, Danny. Essas coisas hoje em dia não vêm com passaporte. Eu mesmo descobri a mercadoria por acaso porque o pessoal tinha de descarregar depressa e pegar o dinheiro. Pensei logo em você.
- Pagamento à vista?
- É claro. É por isso que lhe estou dando o preço de dois dólares. Se eles pudessem esperar, venderiam com facilidade a três dólares e meio.
- Onde é que eu vou achar tanto dinheiro?
- Se acha que a transação é grande demais para você é só dizer, Danny. Sam Gordon anda há muito tempo atrás de mim para que eu faça negócio com ele, mas eu já estou em entendimento com você e não quis fazer isso, sabendo que ele é um dos seus fregueses.
- Não disse que não queria, Steve. Estou apenas pensando onde é que vou conseguir tanto dinheiro. Quanto tempo tenho para isso?
- Não há tempo, Danny. O pessoal quer o dinheiro hoje à noite.
Eram 13h 30m. Os bancos ainda estavam abertos, mas tudo o que eu podia arranjar neles eram 19.000 dólares que eu guardara num cofre. Todo o resto do meu dinheiro estava investido no negócio. Eu precisava de tempo.
333
- Pode esperar meia hora até que eu faça alguns cálculos?
- Se não tem o dinheiro, desista, Danny. Vou telefonar para Sam.
Estalei os dedos. Já sabia o que ia fazer. ele me tinha dado a solução sem saber.
- Escute, Steve, não lhe disse que não tinha o dinheiro. Disse apenas que eu precisava de meia hora para consegui-lo. Depois telefonarei para você para combinarmos onde nos iremos encontrar. Tomarei um avião para aí e você terá o dinheiro esta noite.
Ouvi sussurros do outro lado do fio e Steve voltou ao telefone.
- Está bem, Danny. O pessoal concorda em esperar meia hora pelo seu telefonema.
- Ótimo. Dê-me o número do seu telefone e eu não tardarei a ligar para você.
Ia ganhar com aquilo 50 mil dólares líquidos. Se conseguisse fazer o negócio, seria ótimo porque tanto dinheiro assim não se encontra todos os dias. Peguei o telefone e disquei. Se Steve não falasse em outro comprador para os cigarros, eu talvez não tivesse tido aquela idéia. Devia agradecimentos que nunca seriam dados.
Uma telefonista atendeu.
- Empresa Sam Gordon.
- Quero falar com o Chefe, Mame. É Danny.
- OK, Danny.
Poucos segundos depois, ouvi a voz de Sam.
- Alô.
- Sam ? Quem fala é Danny.
- Que é que há, Danny?
- Se precisa de seiscentas caixas, tenho um negócio para você.
- Precisar, preciso, mas qual é a base?
- Três dólares por pacote, 150 a caixa. Dinheiro adiantado. Entrega amanhã.
- Bem, é interessante, - disse ele ao fim de um segundo de silêncio, com voz cautelosa. - Mas é um bocado de dinheiro. E se você não puder fazer a entrega?
- Entrega garantida.
- Mas se houver algum contratempo? Neste caso, eu ficarei no desembolso de 90 mil dólares.
Pensei rapidamente. Os 90 mil dólares de Sam resolveriam por si mesmo o negócio. Eu seria muito idiota se abrisse mão de uma oportunidade como aquela.
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- Escute, Sam. Você conhece bem os meus negócios. Tenho perto de 60 mil dólares investidos em cigarros. O movimento, aa opções dos pontos e as encomendas de novas máquinas valem mais
40 mil. Levar-lhe-ei os recibos dos depósitos e uma opção da minha empresa e você ficará com tudo em seu poder até que a mercadoria seja entregue. Depois, então, você me devolverá tudo.
- E se você não fizer a entrega? Dei uma risada.
- Tudo então passa a ser seu. Que tal? ele hesitou um momento.
- Posso utilizar os cigarros, e estou interessado no seu negócio, mas não para mim. Tenho trabalho aqui até ao pescoço e não posso tomar conta de mais nada.
- Você me dará então um emprego, - disse eu, rindo de novo, - e eu tomarei conta dele para você.
- É assim mesmo que você quer, garoto?
Cinqüenta mil dólares eram muito dinheiro para se perder.
- Claro que é, Sam. Estou disposto a me arriscar, se você estiver também.
- Está bem então, Danny. Pode passar por aqui, que o dinheiro estará a sua espera.
Desliguei, chamei a telefonista do interurbano e liguei para o número que Steve me tinha dado.
- Estou com o dinheiro, Steve. Onde me encontrarei com você?
- Hotel Royal, quarto 224. A que horas vai chegar?
- Tomarei o primeiro avião. Devo estar aí no máximo às sete da noite. Tudo está pronto?
- Claro que está. O caminhão está carregado e pronto para seguir viagem no momento em que você entregar o dinheiro.
- OK. Até à noite.
Olhei para o relógio. Duas horas. Tinha de andar depressa para ainda pegar o banco aberto. Chamei Giuseppe e disse:
- Providencie para o depósito de quatrocentas caixas.
- É muita coisa, Danny. Onde é que vai pegar isso? Falei-lhe da transação em poucas palavras.
- Você está-se arriscando muito, - disse Giuseppe, preocupado. - Muitas coisas podem acontecer. Acho que é melhor eu ir com você.
- Não. Alguém tem de ficar aqui olhando as coisas. Não vai acontecer nada. Fique aqui que eu vou lhe telefonar logo que chegar com a mercadoria.
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Já estava no aeroporto à espera do avião quando me lembrei de que não havia telefonado para Nellie. Corri para uma cabina e liguei para casa. Ela atendeu.
Falei apressadamente para não dar a Nellie oportunidade de dizer alguma coisa.
- Meu bem, aconteceu uma coisa imprevista e eu tenho de ir de avião a Buffalo agora mesmo a negócios. Não me espere para jantar. Amanhã de manhã estarei aí.
- Mas nós vamos nos mudar amanhã, Danny!
- Não se preocupe, que eu chegarei a tempo para a mudança.
- Não vá, Danny. Não vá. Estou com medo.
- Não há nada de que ter medo, querida. Estarei aí amanhã.
- Espere então, Danny. Espere até nos mudarmos.
- Não posso adiar o caso, minha filha. São cinqüenta mil dólares que vamos ganhar e se não fizer a viagem hoje perderemos esse dinheiro.
Ela começou a chorar pelo telefone.
- Eu sabia que ia acontecer alguma coisa. Eu sabia...
- Mas, Nellie, são cinqüenta mil dólares! Podemos fazer muita coisa com esse dinheiro.
- Pouco me importa! Há horas em que eu gostaria de não ouvir falar mais de dinheiro! Desde que você começou com essa febre de fazer negócios, nunca mais foi o mesmo.
- Quando isso acabar, Nellie, tudo voltará a ser como você quer.
- Você sempre diz isso, mas eu não acredito mais em você, Danny. Você não está sendo sincero. Não mudará mais. No momento em que há dinheiro em jogo, você passa a ser uma pessoa inteiramente diferente. Esquece tudo mais!
- Não seja boba - exclamei. - Nós vivemos num mundo prático. Sem dinheiro, não valemos nada. Talvez você pense de maneira contrária, mas eu não!
Ouvi a exclamação de surpresa que ela teve ante a maneira áspera pela qual eu falara. Depois de um momento de silêncio, bateume o telefone. Quis telefonar de novo para ela, mas nesse momento ouvi a voz pelo alto-falante:
- Vôo 54 para Buffalo, pista três. Partida dentro de cinco minutos.
Saí correndo da cabina. Ela estaria melhor quando eu voltasse com o dinheiro no dia seguinte. Cinqüenta mil dólares são uma cura infalível para muitos ressentimentos.
336
18
Corri os olhos pela portaria do hotel enquanto me dirigia para a recepção. O empregado me atendeu prontamente.
- Quero um quarto, - disse-lhe eu.
- Pois não. Tenha a bondade de assinar aqui o livro de registro. Com ou sem banheiro?
- Sem banheiro, - disse eu, assinando o registro.
- Três dólares, Sir, - disse ele, apanhando uma chave na tábua às suas costas.
Deixei o dinheiro em cima do balcão e, nesse momento, um boy se aproximou.
- Leve o Sr. Fisher ao quarto 419, - disse o homem, recolhendo o dinheiro e entregando a chave do quarto ao boy.
- Espere um pouco, - disse eu. - Posso deixar aqui um envelope para guardar?
- Sem dúvida, Sr. Fisher. Guardá-lo-ei no cofre do hotel para o senhor. Assine o seu nome no fecho.
Entregou-me um grande envelope grosso. Coloquei o envelope com dinheiro dentro, fechei cuidadosamente e escrevi o meu nome sobre o fecho, como ele havia recomendado. Vi-o guardar o envelope no cofre e fiquei pensando no que ele faria se soubesse que havia
100 mil dólares ali dentro.
- Pronto, - disse-me ele. - Ficará aí em segurança até que o senhor o peça.
Agradeci e olhei para o relógio. Eram quase sete horas.
- Acho que ainda não vou para o meu quarto, - disse eu, como se só então essa idéia me houvesse ocorrido. - Combinei encontrar-me aqui com um amigo chamado Steve Parrish. Será que ele já chegou?
O homem olhou para a tábua das chaves e disse:
- Está aí, sim. Quer que eu comunique a ele que o senhor está aqui?
- Faça o favor.
Murmurou algumas palavras ao telefone, esperou uma resposta e depois me disse:
- ele disse que o senhor pode subir. Quarto 224.
- Obrigado, - disse eu e me encaminhei para o elevador.
337
Bati na porta do quarto. O murmúrio de vozes que havia lá dentro cessou no mesmo instante. A porta foi entreaberta e eu vi Steve Parrish espiar cautelosamente para ver quem era.
- Danny! Chegou bem na hora. Vá entrando.
Havia no quarto três homens que me olharam. Steve estava um pouco pálido.
- Fico muito satisfeito de que tenha resolvido tudo, Danny, - disse ele.
Sorri, mas não respondi.
- Senhores, - disse ele, voltando-se para os outros homens que estavam no quarto. - Este aqui é Danny Fisher.
Fêz as apresentações e os três homens vieram apertar-me a mão, um por um. Mas não fizeram qualquer esforço para puxar conversa,
- Quer beber alguma coisa, Danny? -- perguntou Steve, com uma garrafa de uísque na mão.
- Não, Steve. Muito obrigado. Nunca bebo quando estou trabalhando.
- Faz muito bem, Danny, - disse ele, tomando um bom gole da bebida. - É uma coisa com que estou inteiramente de acordo.
Era evidente que aquele não era o seu primeiro uísque da noite. Acendi um cigarro e disse:
- Vamos tratar de negócios?
- Claro. Trouxe o dinheiro?
- Trouxe.
Um dos homens se levantou e disse:
- Quero ver a côr dele.
- Você a verá, - disse eu, sorrindo, - depois que me mostrar a mercadoria.
- Trouxe mesmo o dinheiro? - perguntou o homem com desconfiança.
- Tenho cara de irresponsável? Não se preocupem. Se a mercadoria estiver em ordem, receberão o dinheiro. Onde está o material ?
- Numa garagem perto daqui. Quer ir vê-lo?
- Claro que sim.
O homem pegou o chapéu em cima de uma cadeira e disse: - Então vamos.
O caminhão estava carregado, como Steve me tinha dito que estaria. Olhei cèpticamente para as caixas empilhadas. Tinha a impressão de que havia alguma coisa de anormal, mas não sabia o que era. Talvez fosse porque tudo estava correndo bem demais.
338
- Não leve a mal, - disse ao homem que viera comigo do hotel, - mas o dinheiro não é pouco e eu gostaria de conferir a carga.
- Isso importa em tirar todas as caixas do caminhão e tornar a embarcá-las.
- Como já disse, é muito dinheiro e eu gostaria de fazer uma verificação.
- Não tenho objeção, mas se fizer uma verificação assim, só poderá sair daqui lá para as duas horas da madrugada.
- Não faz mal, - disse eu.
Olhei para Steve e para os três homens. Pareciam todos muito cansados e suarentos.
- Parece que está tudo em ordem, - disse eu.
Era curioso, mas, apesar de tudo, aquele sentimento de que havia alguma anormalidade persistia. Acho que o meu nervosismo provinha apenas do que Nellie me dissera.
- Não lhe disse que estava em ordem, Danny? - perguntou Steve. - Não era preciso você verificar.
- Quando cem mil dólares estão em jogo, eu verifico tudo. Quem vai dirigir o caminhão?
- Eu, - disse um dos homens.
- Está bem. Então saia com o caminhão e leve-me até ao hotel. É de lá que vamos partir.
- Agora?
- Neste instante.
- Mas meu ajudante só deve aparecer de manhã.
- Não vamos esperar. Viajarei ao seu lado e servirei de ajudante, ísto tem de estar em Nova York amanhã de manhã.
O empregado da portaria me atendeu. - Pronto, Sr. Fisher.
- Mudei de planos. Não vou ficar com o quarto. E preciso do meu envelope.
- Pois não, Sr. Fisher.
Abriu o cofre, tirou o envelope e me entregou. Abri o envelope do hotel e tirei o outro que havia colocado dentro.
- Tudo em ordem, Sir? - perguntou o empregado.
- Tudo. Muito obrigado, - disse eu, colocando um dólar para ele em cima do balcão.
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O caminhão estava esperando sob um lampião. Os homens estavam parados no passeio. Entrei na boléia e entreguei o envelope a Steve. Este passou-o às mãos de um dos homens. ele abriu o envelope e contou rapidamente o dinheiro. Quando acabou, me fêz um gesto de cumprimento. Respondi e disse ao motorista.
- Está bem, amigo. Vamos e pé na tábua!
Lancei um olhar exasto ao relógio quando saímos de Newburgh. Passava um pouco das dez horas. Voltei os olhos para a estrada ao mesmo tempo que pisava o acelerador. O caminhão foi ganhando velocidade pouco a pouco. A estrada se estendia clara e larga à minha frente.
Olhei para o meu companheiro. Estava dormindo com a cabeça encostada de mau jeito à porta. Eu estava com fome. Não tinha comido desde a tarde do dia anterior, mas não queria parar. Aquela carga era perigosa demais. Além disso, se eu continuasse naquela marcha, poderia chegar a Nova York ao meio-dia.
Ouvi de repente a voz do motorista.
- Pode-me entregar a direção agora, Danny. Durma um pouco. Parece arrasado.
- Não me incomodo de dirigir mais um pouco. Este caminhão é uma beleza.
- Não, acho melhor descansar um pouco, - disse ele. - Os seus olhos estão muito vermelhos. Pode não sentir, mas está cansadíssimo.
- Está bem, - disse eu, pisando o freio. O grande caminhão parou. Puxei o freio de mão e saí da direção. O outro passou pela minha frente e tomou o meu lugar na direção.
- Procure dormir, - disse-me ele. - Você não pregou olho desde que saímos de Buffalo.
- Só vou dormir no fim da viagem. Estarei bem melhor então. Levei as mãos à nuca e recostei-me no banco.
O caminhão recomeçou a viagem e o barulho do motor encheu a boléia. Tentei desviar os olhos da linha branca que marcava o meio da estrada, mas sentia-me fascinado por ela. Sentia alguma coisa no fato de que ela se estendesse interminàvelmente diante de nós, até onde a vista alcançava. Uma linha branca no meio da estrada. À direita dela, há segurança. À esquerda, perigo e morte. À direita, segurança. À esquerda... À direita... Senti a cabeça pender sonolentamente. Sacudi violentamente a cabeça, tentando manter os olhos abertos, mas não adiantou. Estava muito cansado e mesmo sem querer mergulhei no sono.
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Acordei sobressaltado. O caminhão estava parado e o motor desligado. Pisquei os olhos rapidamente e virei para o motorista sentado ao meu lado.
- Por que parou? Houve alguma coisa?
ele me olhou com uma expressão sarcástica e não respondeu.
Ouvi uma voz do outro lado e me voltei. Arregalei os olhos. Estava bem acordado já. Um homem estava de pé no estribo do caminhão, com uma pistola apontada para mim.
- Muito bem, dorminhoco, - disse ele. - Está na hora de acordar.
Dobrei o corpo para a frente, estendendo o mão a fim de pegar a chave inglesa que via no chão.
- Não, Danny, levante essas mãos para que eu possa vê-las, - disse o homem, fazendo um gesto com a pistola.
Levantei lentamente as mãos. A minha cabeça estava trabalhando frenèticamente. Olhei para o motorista. Continuava sentado e imóvel, com os olhos voltados para a estrada. As coisas começaram a formar sentido.
- Você está metido nisso? - perguntei-lhe.
O motorista ficou calado. Foi o homem da pistola que respondeu por ele.
- Qual é sua opinião? - perguntou ironicamente. Voltei-me para ele e disse desesperadamente:
- Posso dar-lhe o que quiser se me deixar levar esta carga para Nova York.
O pistoleiro riu.
- Que é que você pode dar? Seu dinheiro nós já temos. - Abriu a porta e desceu do estribo, conservando a pistola apontada para mim. - Desça daí. A sua viagem acabou.
- Dez mil, - disse eu, olhando para ele.
- Mandei descer daí!
Desci lentamente do caminhão. O céu estava carregado de nuvens escuras. Ia chover. E eu sentia a raiva subir dentro de mim. Que idiota eu tinha sido! Eu devia ter desconfiado.
Sentia as pernas entorpecidas e fracas. Ouvi passos que vinham da traseira do caminhão e virei a cabeça. Um automóvel estava parado bem atrás do caminhão. Com certeza tinham-me seguido desde que eu saíra de Buffalo, à espera de um lugar favorável como aquele. A cólera me subiu à garganta e eu senti na boca o gosto amargo da bílis. Que imbecil eu fora em cair, assim, numa cilada como aquela! Devia mandar um médico examinar-me a cabeça.
O homem que vinha de trás do caminhão perguntou:
- Tudo em ordem?
341
Os olhos do pistoleiro se voltaram para o homem que falara. Ataquei-o no meu desespero, mas o meu soco apenas lhe roçou o rosto, pois ele pulara instintivamente para o lado. Não o acertando, perdi o equilíbrio e senti os pés escorregarem na terra ao lado da estrada. Procurei frenèticamente firmar-me para não cair.
Senti de repente uma explosão de dor na cabeça e fui estatelarme na estrada. Tentei levantar-me, mas houve outro foco de dor no mesmo lugar e toda a força me fugiu dos braços e das pernas. Estava com o rosto no chão e via uma nuvem de escuridão que avançava para mim. Procurei fazê-la recuar com a vontade, mas ela vinha inexoravelmente ao meu encontro. Já me estava envolvendo.
Ouvi vozes fracas, como se viessem de muito longe. Procurei compreender o que diziam, mas algumas palavras não eram claras. Um dos homens dizia que Gordon não ia gostar daquilo. Outro ria Ironicamente.
Fui escorregando para a escuridão. Então, num segundo de lucidez antes de mergulhar na inconsciência, compreendi tudo. Fora traído! Miseravelmente traído desde o início! Por isso é que Steve falara em Sam quando me havia telefonado. Para que eu pensasse nele e fosse procurá-lo!
Em seguida, a lucidez desapareceu e eu não pensei em mais nada. Ainda tentei atravessar a escuridão. Mas era inútil. Ela me envolvia por todos os cantos.
342
DIA DE MUDANÇA
3 DE OUTUBRO DE 1944
Senti que me puxavam pelos ombros. Movi um pouco o corpo procurando livrar-me. A cabeça me doía.
Continuaram a puxar-me. Encolhi-me todo como se fosse uma bola. Gostaria que fossem embora e me deixassem em paz. Justamente quando eu começava a me sentir bem. Tinha estado frio por muito tempo, mas estava começando a aquecer-me quando aquelas mãos me puxaram. Tentei desvencilhar-me e virei o corpo no chão.
Senti uma pontada de dor atingir-me o rosto e irradiar-se por todo o corpo. Abri os olhos. Um homem estava ajoelhado ao meu lado, olhando para mim.
- Como se está sentindo? - perguntou ele, ansiosamente. Movi um pouco a cabeça para ver se havia mais alguém com
ele. Não, estava sozinho. Tomei então conhecimento da chuva que caía sobre mim. Comecei a rir. Se eu me estava sentindo bem? Não podia deixar de rir. Era terrivelmente engraçado. Tentei sentar-me. Uma dor lancinante me percorreu a cabeça e eu gemi. Senti os braços do homem passados pelos meus ombros para firmar-me.
- Que foi que houve, moço? - perguntou ele, com voz assustada.
- Fui assaltado na estrada, - disse-lhe, pois não podia dizer o que realmente havia acontecido. - Levaram meu carro.
ele sorriu enquanto me ajudava a ficar de pé.
343
- Foi sorte a sua eu sofrer dos rins e ter de parar de vez em quando para aliviar a bexiga. Ouvi os seus gemidos na vala ao lado da estrada.
Fiquei ali parado, com o corpo a oscilar levemente. Ainda estava trêmulo, mas a força me voltava pouco a pouco.
- Podia ter apanhado uma pneumonia, - disse o homem.
- Claro. Tive muita sorte. - Olhei para o meu relógio, mas vi que estava todo quebrado. - Que horas são?
- Uma hora e cinco, - disse ele, olhando para o relógio. Fiquei surpreso. Estivera desacordado mais de duas horas. O
meu relógio ficara parado em um quarto para as onze.
- Tenho de voltar para a cidade, - murmurei. - Vamo-nos mudar hoje e minha mulher deve estar muito assustada. Não sabe onde é que eu estou.
- Vou para Nova York, - disse o homem. - Se lhe serve, estou à sua disposição.
Devia ser um anjo, com a chuva apagando-lhe a auréola.
- É para onde eu quero ir mesmo.
- Vamos então para o carro. Às duas e meia, estaremos na
cidade.
Fui até ao pequeno Chevrolet e me sentei no banco da frente ao lado dele. Logo que a porta se fechou, comecei a tremer. ele olhou
para mim e ligou o aquecedor.
- Recoste-se e procure descansar. Isso o aquecerá e secará um pouco as suas roupas. Está encharcado.
Recostei-me no banco e olhei-o. Não era moço, pois eu via claramente os cabelos grisalhos abaixo das abas do chapéu.
- Obrigado, amigo, - murmurei com toda a sinceridade.
- De nada, meu filho. Só fiz o que qualquer ser humano deve fazer por outro.
Fechei os olhos cansadamente. ele estava muito enganado. Havia seres humanos que não tinham o mais leve traço do que ele esperava que todos tivessem. O ruído monótono dos limpadores do párabrisa era confortável e tranqüilo. Sam, por exemplo, não era assim. Sam pouco se interessava pelos outros. Só pensava em si mesmo.
Eu estava crescendo muito e Sam não gostava disso. Afinal de contas, eu lhe tirara o pão da boca com o negócio das máquinas de vender. ele não o havia querido na ocasião, mas isso não tinha a menor importância. Agora, já sabia o que perdera e tinha resolvido recuperar tudo. E havia conseguido. Nada mais eu podia fazer.
344
Nada? Comecei a pensar, com a raiva crescendo dentro de mim. Nisso é que Sam estava errado. Eu havia trabalhado duramente e não ia abrir mão de tudo com tanta facilidade. Não teria mais contemplações com ele. Teria de me pagar pelo que tinha feito. Eu tinha sido utr "diota em cair numa armadilha daquelas, mas o jogo ainda não havia terminado. ele ia ver. A raiva me fêz correr pelo corpo um curioso calor e eu comecei a cochilar.
Senti tocarem-me no braço e acordei no mesmo instante. Olhei para a frente e vi que estávamos entrando na Estrada do West Side.
- Está melhor? - perguntou o homem ao meu lado.
Fiz um sinal afirmativo, sentindo que a cabeça já não doía.
- Onde quer que eu o deixe? Dei-lhe o meu endereço.
- Se não ficar muito fora do seu caminho, é claro.
- Não. Tenho de passar por lá mesmo, para ir para casa. Eram três e um quarto quando ele parou diante da minha casa.
Saltei do carro e virei-me para o homem.
- Mais uma vez, muito obrigado. Nunca me esquecerei disso.
- Não é preciso agradecer, meu filho. Isso é o que faria qualquer ser humano.
Em seguida, antes que eu conscientizasse o que ele ia fazer, o homem engrenou o carro e foi-se embora. Tinha-me esquecido até de perguntar o nome dele. O mundo é engraçado. Alguém que se conhece durante toda a vida tenta dar cabo da gente ao passo que uma pessoa inteiramente desconhecida e que nunca mais se verá aparece e salva a nossa vida.
Entrei no prédio. O encarregado estava passando a vassoura no vestíbulo. Olhou-me, muito espantado. Creio que estava mesmo uma figura, com o rosto todo machucado da surra que havia levado e as roupas sujas da vala.
- O caminhão da mudança já foi, Sr. Fisher, - disse ele. - Sua mulher esperou o mais que pôde. Estava muito preocupada, mas seu cunhado aconselhou-a a ir seguindo.
- Meu cunhado esteve aqui?
- Esteve, sim. Chegou porque sua mulher chamou-o pelo telefone. O irmão dela já estava aqui, mas ela se mostrava muito preocupada com o senhor. Seu cunhado me pediu até que lhe desse um recado se o senhor aparecesse.
- Qual foi o recado?
- Disse que o senhor fosse falar com ele, que ele estaria no escritório. Seu cunhado parece muito boa pessoa, sabe?
345
Era evidente que estava também inquieto pela sua demora. Pois eu tenho um cunhado que pouco se importa que eu viva ou morra.
- Obrigado, - disse eu apenas e saí. Sam estava inquieto por mim, sem dúvida. Uma inquietação que tinha o tamanho de 90 mil dólares, não, de 200 mil dólares, pois tudo o que eu possuía passara a ser dele. Não era de admirar que ele aparecesse logo que Nellie o chamara.
Quando cheguei à esquina, tomei um táxi para o escritório dele.
Passei pela secretária de Sam sem esperar que ela fosse me anunciar. Abri a porta e entrei no escritório, fechando a porta.
ele estava acabando de falar ao telefone quando levantou os olhos e deu comigo.
- Onde era que você estava? Telefonei até para a polícia para ver se o descobria.
Alguma coisa na voz dele me impressionou contrariamente, fazendo-me os cabelos da nuca arrepiarem-se.
- Que é que há, Sam? - perguntei com voz rouca. - Não me esperava?
ele se levantou e veio para onde eu estava. Senti-lhe os passos pesados no assoalho debaixo dos meus pés.
- Entregam-se 90 mil dólares nas mãos de um camarada e ele não aparece na hora em que devia aparecer. Que é que se pode pensar? Que ele fugiu com o dinheiro, não é mesmo?
Se não fosse eu a pessoa a quem o calo estava doendo, podia até admirar a maneira de agir dele. Aquele sujeito era duro mesmo. Não tinha piedade. Atacava de rijo, juntando o insulto ao crime. Era tudo o que eu pensei que podia ser, mas agora via que me faltava muito para ser. Mas a mim ele não enganava mais. Já o conhecia de sobra.
- Você sabe que eu não faria isso, Sam. Você me conhece - disse sem alterar a voz.
- Como é que eu posso saber? Noventa mil dólares são muito dinheiro. Talvez você estivesse cansado de sua mulher e quisesse desaparecer. Você poderia ter uma dúzia de motivos de que eu nada saberia.
Olhei-o firmemente e fi-lo baixar os olhos.
- Você não confia em ninguém, não é, Sam?
- Não é confiando nos outros que se pode ganhar a vida - disse ele, com os olhos voltados para a mesa. Depois, levantou-os para mim. - Onde é que estão os cigarros?
- Não sei, - respondi, encolhendo os ombros. Estava fazendo a pergunta a quem não devia e era capaz de apostar que sabia da resposta.
346
Levantou-se de um pulo.
- Como é que não sabe? Que foi que aconteceu?
Eu podia admirar aquele sujeito. Não perdia uma vaza. Era mesmo o maior.
- Fui assaltado, - disse eu, olhando-lhe atentamente o rosto, à procurar qualquer sinal de conhecimento. - Atacaram-me no meio da estrada e me jogaram dentro de uma vala. Tive sorte em escapar com vida.
ele continuou com o seu número dramático, mas acho que exagerou um pouco e deixou uma nota falsa insinuar-se na sua cólera quando deu um soco na mesa e exclamou:
- Eu devia saber que não podia largar 90 mil dólares na sua mão!
- De que é que está reclamando, Sam? Você não perdeu nada. Quem ficou limpo fui eu. Tudo agora é seu.
- E quem é que queria o seu negócio? Preciso tanto dele quanto de uma bala na cabeça. Já tenho problemas de sobra. Preferia ter os 90 mil dólares!
Era o primeiro passo em falso que ele dava. Estava gritando demais para quem não tinha tido prejuízo algum.
- Tem certeza, Sam?
ele me olhou cautelosamente.
- Claro que tenho certeza. Agora, estou com o seu negócio nas minhas costas e você ainda por cima. Você terá de administrar tudo e eu não sei o que é que me causa maior preocupação. Não sei quanto você vai me custar nem quanto a danada coisa vai render. Eu devia fazer negócio era com Maxie Fields e não com um cabeça tonta como você. Maxie, ao menos, tem uma organização.
Olhei-o por um momento antes de responder. Alguma coisa começou a me crescer na cabeça. Mais alguém me fazia uma sugestão sobre o que eu devia fazer. Mas daquela vez era involuntário.
- É uma idéia, Sam, - disse eu. - Foi a melhor idéia que eu já ouvi hoje.
ele ficou a olhar-me cheio de espanto enquanto eu lhe dava as costas e saía do escritório. Quando passei pela secretária ouvi os gritos dele que me chamavam. Havia um elevador esperando e eu desci nele.
Quando cheguei à rua, tinha tudo delineado. Sam pensava que havia encontrado um jeito de ganhar de todos os lados. Mas estava errado. Eu ia mostrar a ele que naquele jogo era possível perder também.
347
Cheguei à porta de Maxie Fields. Nada havia mudado, nem mesmo a sujeira da rua. Nada ali mudaria nunca. Empurrei a porta e fui entrando.
- Que deseja? - perguntou-me um homem num dos guichês.
- Maxie Fields está aí?
- Quem quer falar com ele?
- Danny Fisher. Diga-lhe que tenho um negócio de 100 mil dólares. ele me receberá.
ele falou em voz baixa pelo telefone e depois me indicou a porta.
- Já sei o caminho, - disse eu.
Cheguei à escada e comecei a subi-la lentamente. ele estava de pé à porta quando cheguei lá em cima. Observava-me friamente e bloqueava com o corpo a porta do apartamento.
- Que é que você tem em vista, Danny?
- Ainda gosta de dinheiro, Maxie? ele fêz um lento gesto afirmativo.
- Tenho então um bom negócio para você. Mas vamos entrar. Não posso tratar de negócios no corredor.
ele entrou e eu o acompanhei. O apartamento não havia mudado também. Era ainda de um luxo espetacular. Gostaria de um drinque, Maxie, - disse eu. ele se voltou e gritou para a outra sala:
- Traga dois copos, Ronnie!
Sem esperar uma resposta, foi para a mesa e sentou-se diante dela. Olhou-me então e perguntou:
- Qual é o negócio, Danny?
Sentei-me na cadeira diante dele. Ouvi passos na sala e volteime. Ronnie vinha trazendo dois copos. No primeiro momento, não me viu, mas logo teve uma breve e contida expressão de surpresa. Colocou os copos em cima da mesa de Maxie e foi saindo da sala.
ele a chamou com os olhos faiscantes e perguntou:
- Lembra-se de nosso amigo Danny, não se lembra?
- Lembro-me, sim, - disse ela com voz indiferente. - Alô, Danny.
Os anos pouco a haviam mudado externamente. Parecia a mesma. Mas a animação tinha desaparecido, derrotada pela opressão do tempo.
- Alô, Ronnie, - disse eu calmamente, lembrando-me de que tinha sido assim também da última vez em que eu ali estivera.
Mas ele não se contentou com isso. Tinha ainda de espetar a ferida, para aproveitar ao máximo a sua vitória.
348
- Danny veio fazer um negócio comigo. Ninguém pode afastar-se de Maxie Fields, menina. Sempre lhe disse isso!
- É verdade, Maxie, - murmurou ela.
Já ia saindo de novo da sala, quando Maxie tornou a chamá-la.
- Sente-se Ronnie. Fique aqui fazendo-nos companhia.
Ela se sentou obedientemente numa cadeira perto dele, como se fosse um boneco, sem qualqeur expressão no rosto. ele pegou no seu copo, voltou-se para mim e disse:
- Pode falar, Danny.
Provei o uísque. Estava bom e me aqueceu todo por dentro. Olhei para Maxie e disse apenas:
- Cem mil dólares de cigarros.
ele largou o copo sem ter tomado um gole e dobrou o corpo para a frente.
- Sim, e o que é que há com eles?
- Serão seus se me fizer um favor.
- Pensa que não o conheço, Danny? Você não seria capaz nem de dar gelo a alguém no inverno. Além disso, onde iria conseguir tanto cigarro?
- Eu os tenho, Maxie. Escute.
Contei-lhe detalhadamente todos os fatos - como eu havia conseguido os cigarros, como os perdera. Quando acabei, vi que ele estava interessado.
- Como é que você vai reaver os cigarros?
- Vou tomar conta dos negócios de Sam.
- Como pretende fazer isso? - perguntou ele, com os olhos brilhando cautelosamente como sinais amarelos do tráfego.
- É simples, - disse eu friamente. - Lembra-se do que conversamos naquele dia em que eu o trouxe no meu carro da casa de Lombardi? Lembra-se do que me disse?
- Lembro-me, sim, Danny. Mas vai acontecer alguma coisa a Sam?
Encolhi os ombros, tomando outro gole de uísque e disse:
- Isso quem sabe é você.
- Não, Danny!
O grito aterrorizado partira de Ronnie. Voltei-me surpreso para olhá-la. O olhar estava novamente vivo no rosto dela.
- Você não pode fazer isso, Danny! Sam foi o único...
- Cale essa boca, Ronnie! - gritou Maxie, furioso. Ela o olhou com uma expressão de pavor no rosto.
- Maxie, você tem de dizer a ele...
349
Ouvi um movimento às minhas costas e vi Spit ao lado dela. Eu nem o ouvira entrar na sala.
- Leve-a daqui! - gritou Maxie.
Spit estendeu as mãos para ela, mas Ronnie se esquivou e saiu correndo da sala, com as mãos no rosto.
A respiração de Maxie estava pesada quando ele se voltou para mim. Fêz sinal a Spit para sentar-se na cadeira onde estivera Ronnie.
- Como é que eu posso saber se você pagará? - perguntou ele. - Você nem tem certeza de que os cigarros estão com ele.
- Se me deixar falar no seu telefone um minuto, ficaremos sabendo.
ele bateu com a cabeça. Peguei o telefone e disquei para o depósito de Sam. Eu havia trabalhado para ele e conhecia todo o mundo ali.
Reconheci a voz que atendeu o telefone.
- Joe?
- Sim. Quem é?
- Danny Fisher. Estou querendo saber se o meu caminhão já chegou aí. É um grande com reboque, do interior do Estado.
- Chegou, sim, Danny: Está sendo descarregado.
- Está bem, Joe. Muito obrigado.
Desliguei o telefone e voltei-me para Maxie. ele ouvira a conversa.
- Está satisfeito?
- Toda a carga será minha? - perguntou ele, com os olhos cintilantes de cobiça.
- Sem dúvida. Todinha.
- Ótimo, - disse ele. - Spit, o Cobrador e eu trataremos do caso. Antes que a noite acabe, tudo estará resolvido.
- Afaste-se desse sujeito, Chefe! ele é peçonhento! - gritou Spit, que se levantara e estava olhando para Maxie.
- Que é que há, Spit? - disse eu, friamente. - Está com medo?
ele se voltou para mim, com a boca torcida de ódio. - Não confio em você. Conheço você muito bem.
- Sente-se e cale a boca, Spit! - gritou Maxie, com autoridade. - Quem está mandando sou eu!
Spit voltou e sentou-se, com os olhos faiscando de raiva.
- Negócio fechado, Danny, - disse-me então Maxie. - Mas não vá recuar agora, como fêz da outra vez. Se fizer isso, não terá tempo nem de fugir!
350
Apesar de todo o meu esforço, estremeci quando me levantei Quando cheguei à porta, virei-me e disse:
- Apresente a conta e eu pagarei, Maxie. Saí, fechando a porta, e desci as escadas.
Faltavam poucos minutos para as seis quando saltei do táxi diante de minha casa. Parei no passeio e olhei para a casa. Sentia-me velho, cansado e vazio, mas apesar de tudo era bom voltar ao meu antigo lar.
Compreendi naquele instante que jamais considerara outra casa senão aquela como meu lar. Nenhum dos outros lugares onde eu havia vivido tinha significado coisa alguma para mim. Nenhuma dessas casas era minha, nenhuma me pertencia como aquela. De repente, lembrei-me do que acabava de fazer, e a satisfação da volta ao lar perdeu toda a força dentro de mim.
Eu havia passado por muita coisa, percorrera um longo caminho. Não era mais a mesma pessoa que havia saído daquela casa muitos anos antes. Perdera a minha fascinação pueril pela vida. A vida era sinistra. Tinha-se de lutar durante todo o tempo ou não se seria nada. Não havia paz, nem amigos, nem felicidade verdadeira. O mundo era uma guerra pela sobrevivência. Tinha-se de matar ou ser morto.
Eu tinha levado muito tempo para compreender isso. Não se podia ter muito sentimento quando se queria vencer na vida. Era preciso trancar o coração para os outros. Era preciso evitar o contato dos outros, porque se estava sozinho no dia em que se nascia e se estava sozinho no dia em que se morria.
Estendi a mão para abrir a porta da rua, mas ela se abriu antes que eu a tocasse.
- Alô Danny, - disse uma voz calma.
Não houve surpresa em mim. Eu já ouvira aquela voz. Era a voz da casa que me havia falado no dia em que eu e Nellie tínhamos ido comprá-la.
- Alô, Papai.
Meu pai me deu a mão e entramos juntos na casa como haviamos feito uma vez, havia muitos anos. Por um momento, nada dissemos. Não havia necessidade de palavras. Paramos na sala de estar e nos olhamos. Havia lágrimas nos olhos dele. Era a primeira vez que eu o via chorar. A voz dele era baixa, mas cheia de orgulho e eu compreendi que esse orgulho era de mim que ele o sentia.
351
- Todos nós voltamos a nossa casa, Danny, - disse ele humildemente. - Se pode perdoar os erros de um velho, nunca teremos de deixar o que aqui encontramos.
Sorri, começando a compreender muitas coisas. A voz dele era a voz da casa. A casa nunca tinha sido realmente minha, pois pertencera a ele. Quando eu dizia à casa do meu amor era a ele que eu falava, e quando a casa falava comigo, era ele que falava. Nunca seria a minha casa enquanto ele não a entregasse a mim, pouco importando quanto eu pagara por ela.
Olhei em torno da sala. Alguma coisa sempre faltara ali, mas desde que ele estava presente, a casa se mostrava de novo quente e cheia de vida. Eu estava contente de que ele tivesse vindo. E não era preciso dizer-lhe coisa alguma: ele sabia exatamente como eu me sentia.
- Foi o melhor presente de aniversário que eu já tive, Papai, - disse eu.
Foi então que ele percebeu o meu estado.
- Meu Deus! - exclamou. - Que foi que aconteceu, Danny?
- Sofri um desastre, Papai, - disse eu, voltando ao presente. - Onde está Nellie?
- Sua mãe levou-a lá para cima para descansar. Estava quase alucinada de preocupação por sua causa.
Ouvi rumor no alto da escada. Nellie estava ali, com o rosto branco voltado para mim. Ali, à luz crua das lâmpadas da escada ainda sem abajur, eu devia estar com um aspecto horrível. Os lábios dela se abriram num grito.
- Danny!
Subi a escada na carreira. Ela desceu um degrau na minha direção. Depois, virou os olhos e desmaiou.
- Nellie! - gritei, correndo para ela.
Mas ela caiu e rolou por metade da escada antes que eu pudesse alcançá-la. Ajoelhei-me ao lado dela e tomei-a desesperadamente nos braços.
O rosto dela tinha a branca transparência de uma garrafa de leite e os olhos estavam contraídos de dor. Percebi os seus lábios sem sangue murmurarem numa agonia:
- Estava tão preocupada com você, Danny! Voltei-me para Papai.
- Há um médico ali na esquina. Vá chamá-lo! Depressa! Nellie descansou a cabeça no meu ombro. Tinha os olhos fechados e estava muito quieta. Quase parecia não estar respirando.
Minha mãe desceu a escada, com os olhos cheios de pena e compreensão, e me apertou o ombro, sem dizer palavra.
352
Olhei para Nellie. Por que fora aprender tantas coisas tão tarde? Via tudo com muita clareza naquele momento. A culpa era minha. Nellie tinha razão. Aquilo não podia acontecer, não devia acontecer. Ela era todo o meu mundo. Fechei os olhos e rezei, com as lágrimas descendo por entre as pálpebras.
- Por favor, Deus... Por favor...
Andava nervosamente para cima e para baixo na pequena sala de espera do hospital. Parecia que tinham passado dias em vez de apenas algumas horas. Levei outro cigarro à boca e tentei acendê-lo. Quebrei três fósforos até que Giuseppe riscasse um fósforo para mim.
Olhei-o cheio de gratidão. Não sei o que teríamos feito sem ele naquele dia. Passara o dia todo com Nellie acalmando-a e ajudando-a e naquele momento estava ali comigo.
- Obrigado, Giuseppe, - murmurei. Joguei-me exausto na cadeira entre meu pai e ele. - O médico está demorando demais, - disse eu.
- Não se preocupe, Danny, - disse Giuseppe, batendo-me de leve no ombro. - Ela vai ficar boa. O médico disse que havia uma possibilidade e eu conheço minha irmã. Tem muita energia. Vai-se sair bem dessa.
Era isso mesmo. Havia uma possibilidade. O médico tinha dito isso. Eu tinha de acreditar nisso, de acreditar nisso e em nada mais, senão ficaria louco, inteiramente louco. Na viagem para o hospital dentro da ambulância, segurando-lhe a mão inerte, eu tivera de acreditar nisso.
Ela sofrera uma lesão interna. O médico dissera que a criança mudara de posição. Havia pressão dentro dela e ela estava dilacerada e perdia sangue. Tudo era interno e não se podia ver. Mas bastava olhar para o rosto dela, branco e sem sangue...
Com presteza e eficiência haviam-na levado numa maca para a sala de operação. Os olhos continuavam fechados e ela não me podia ver. Dos lábios pálidos vinha um leve gemido de dor. Depois, ela desaparecera por trás das portas brancas e eu ficara ali a esperar.
Já tinha passado mais de duas horas e eu ainda estava ali esperando. Estávamos todos ali esperando. Olhei para a mãe dela, sentada numa cadeira perto da janela, torcendo nervosamente um lenço. Os olhos estavam inchados de tanto chorar enquanto ela escutava minha mãe, que procurava consolá-la. Ela nada me dissera, mas eu sabia que ela me atribuía a culpa do que acontecera a Nellie. E de certo modo tinha razão.
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Contudo, se não fosse Sam, nada daquilo teria acontecido.
Ouvi passos no corredor e Mimi apareceu, correndo para mim com os olhos cheios de ansiedade:
- Que foi que aconteceu, Danny?
Não respondi. Estava com os olhos fitos em Sam, que vinha atrás dela.
- Que é que veio fazer aqui? - perguntei-lhe rispidamente.
- Seu pai telefonou e disse que Nellie havia sofrido um acidente. Mimi ficou tão aflita que não podia dirigir e eu a trouxe.
Levantei-me lentamente. Sentia as pernas trêmulas de raiva e a boca seca.
-- Está satisfeito agora? - perguntei-lhe. -- Não era assim que você queria?
Havia um toque de vergonha no seu olhar e ele respondeu em voz sumida:
- Não, não era assim que eu queria, Danny.
Nesse momento, a cólera represada estourou dentro de mim e eu avancei para ele, brandindo os punhos. Acertei-o no queixo e ele caiu de costas no chão.
Ia atacá-lo novamente quando me seguraram os braços. Ouvi Mimi gritar. Tentei livrar-me para continuar até matá-lo. Chorava de desespero e de raiva.
Ouvi então a voz do médico:
- Sr. Fisher!
Sam ficou esquecido e eu me voltei para o médico.
- Como está ela, Doutor? Está melhor?
- Está descansando sossegadamente, Sr. Fisher. Ainda sofre muito, mas vai ficar boa.
Senti o corpo bambo. Joguei-me numa cadeira e cobri o rosto com as mãos. As minhas preces tinham sido ouvidas. Ao fim de algum tempo, levantei os olhos.
- Posso vê-la, Doutor?
- Ainda não. Sr. Fisher, quero dizer-lhe que temos uma chance de salvar a vida de seu filho se conseguirmos o tipo de sangue necessário.
- Que quer dizer com isso, Doutor?
- Seu filho não sofreu um choque muito grande talvez porque é prematuro e, portanto, pequeno, mas perdeu algum sangue. Se pudermos substituir esse sangue com suficiente presteza, ele tem uma boa chance de escapar.
354
- Vamos então, - disse eu ansiosamente. - Tenho sangue de sobra.
- Não, infelizmente o seu sangue não serve, Sr. Fisher. Há a ocorrência de um fator Rh e o seu sangue seria incompatível. O tipo de que precisamos é muito raro. Só se encontra em um entre mil doadores. Já fizemos um apelo para ver se conseguimos um nessas condições. Tudo depende da hora em que ele chegar aqui.
O desânimo me invadiu violentamente e eu tive de sentar-me numa cadeira. O desespero me penetrava os ossos como um machado. Ouvi a voz de Giuseppe como se fosse música.
- Talvez meu sangue sirva, Doutor.
- Talvez, - disse o médico. - Venha comigo e eu examinarei o seu sangue. Se mais alguém quiser ser examinado, pode vir também.
Saímos com o médico. Mimi estava ajudando Sam a sentar-se quando entramos no corredor. Chegamos a um pequeno laboratório, onde uma enfermeira lia um jornal. Levantou-se logo que entramos.
- Verifique o tipo de sangue dessas pessoas, - disse-lhe O médico.
Vi-a preparar as lâminas e colocá-las perto do microscópio. Colocou a primeira sob a lente.
- Deixe que eu olho, - disse o médico.
O médico olhou pelo microscópio e sacudiu a cabeça. Olhou depois as outras, sempre sacudindo a cabeça.
- Nada, Doutor? - perguntei, desanimado.
Minha mãe e meu pai, Giuseppe e a mãe dele olhavam atentamente o médico. ele se voltou para mim.
- Sinto muito, Sr. Fisher, mas ninguém aqui tem o tipo de sangue conveniente. Temos de esperar que apareça um doador.
- Mas pode ser que seja muito tarde e meu filho...
Aquelas palavras me caíram no fundo da consciência e do coração. "Meu filho..." Era a primeira vez que as pronunciava e não pude concluir a frase.
- Só podemos esperar que não demore, - disse o médico. - Pode chegar a qualquer momento.
A porta se abriu e eu me voltei cheio de esperança. Senti então o coração cair. Era Sam.
Mostrava no rosto o sinal do murro que lhe dera. Mimi o acompanhava. Olhou para mim embaraçado e se voltou para o médico.
- Uma vez me disseram num banco de sangue que eu tinha um tipo muito raro de sangue, Doutor. Talvez seja o que o senhor está procurando.
355
- Isso vamos saber num minuto, - disse o médico, fazendo sinal à enfermeira.
Saí para o corredor. Não adiantava ficar ali. O sangue de Sam não podia prestar. Nada nele prestava e para mim sempre havia criado dificuldades.
- Danny! Danny! - exclamou de repente a voz exultante de Giuseppe atrás de mim. - O médico diz que o sangue de Sam é do tipo certo!
Quase não podia acreditar que fosse verdade.
Meia hora depois, o médico chegou à sala de espera onde estávamos sentados. Sorria e se aproximou de mim, de mão estendida.
- Pode ir comprar os seus charutos, Sr. Fisher! Parabéns!
- Obrigado, Doutor! Obrigado! - disse eu, mal conseguindo vê-lo porque as lágrimas não deixavam.
O médico sorriu.
-- Não me agradeça. Agradeça a Deus e a seu cunhado por estar aqui. É um milagre um prematuro de sete meses com Rh se salvar.
Minha sogra começou a chorar de alegria. Giuseppe estava abraçando-a. Mamãe, Papai e Mimi me rodeavam. Mimi me abraçou e beijou-me o rosto. Nada mais importava - só a alegria daquele momento.
Voltei-me para o médico.
- Já posso ver minha mulher, Doutor?
- Pode, mas só alguns minutos. Ela ainda está muito fraca. A enfermeira que estava sentada ao lado da cama levantou-se
assim que me viu e saiu em silêncio do quarto. Só o rosto branco e os cabelos de Nellie apareciam acima dos lençóis. Os olhos estavam fechados e ela parecia estar dormindo.
Sentei-me ao lado da cama, quase com receio de respirar para não perturbá-la. Mas ela percebeu que eu estava ali. Abriu os olhos e murmurou ao mesmo tempo que tentava sorrir:
- Danny.
Peguei-lhe a mão por cima dos lençóis.
- Não fale, meu bem. Tudo está bem.
- Até o menino?
- Também. É perfeito. Tudo é perfeito. Descanse e fique boa.
- Quase estraguei tudo, não foi?
- Você não, meu bem. Fui eu. Você tinha razão. Eu não devia ter saído de casa ontem.
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- Não, - disse ela, obstinadamente, - a culpada fui eu. Devia saber que você não tinha vindo para casa porque havia acontecido alguma coisa. Mas comecei a pensar no que passei daquela vez em que você foi-se embora e não pude suportar a idéia de viver sem você. Não sabe quanto eu sofria com a idéia de que lhe iria acontecer alguma coisa e eu ficaria sozinha.
- Você nunca mais ficará sozinha. Agora, aconteça o que acontecer, nosso filho sempre estará com você e conosco.
- Você já o viu, Danny? Como é ele?
Eu o vira de relance. Quando subia com o médico, ele me levou até o berçário e eu o olhei na incubadora.
Sorri para Nellie e disse:
- É pequeno e lindo igualzinho à mãe.
Quando voltei à sala de espera, havia ali uma algazarra feliz de conversas. Apertaram-me a mão entusiàsticamente no momento em que eu entrei.
- Mazoltov, Danny! - disse meu pai, com um sorriso de felicidade.
Todo mundo se reuniu em torno de mim, falando ao mesmo tempo.
Minha sogra me deu um grande beijo no rosto. Sorri-lhe agradecido. Meu pai apareceu com uma garrafa de uísque. Ficamos num pequeno semicírculo e a bebida foi servida em copinhos de papel. Meu pai fêz o brinde.
- A seu filho! Que Deus o faça feliz! E a sua mulher para que ele sempre dê alegria a ela! E a você, para que sempre tenha orgulho dele - como eu tenho de você!
As lágrimas me vieram aos olhos. Tinha esperado muito tempo para ouvir isso de meu pai. Talvez eu não o merecesse, mas era muito bom ouvir aquilo.
Papai levantou de novo o copo e voltou-se para Sam.
- E a meu outro filho, - disse ele, - que fêz um velho abrir os olhos para os seus erros e agora se tornou ainda mais credor da minha gratidão com o seu sangue!
- Que é que está dizendo, Papai? - perguntei.
- Foi Sam que batalhou comigo e me fêz compreender o que eu havia feito. Foi ele que me convenceu de que eu tinha sido um idiota e me fêz voltar para você.
Olhei para Sam. ele estava muito vermelho. A voz de Papai me parecia vir de muito longe.
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- E agora ele salvou a vida de seu filho com o sangue que deu. Devemos muito a ele, Danny. Eu porque ele me fêz voltar para você e você porque ele salvou a vida de seu filho. Antigamente, teríamos de pagar na mesma moeda. ele teria direito ao nosso sangue e até às nossas vidas, se precisasse.
Aproximei-me de Sam, cheio de gratidão. Meu pai ainda estava falando.
- Agora que você tem um filho, Danny, aprenderá a dor que podem causar certos atos. Até as pequenas coisas que parecem sem importância podem magoar seu filho e, por conseguinte, a você. Só desejo é que você nunca passe pelo que passei, pela dor de saber que um filho paga pelos erros do pai.
Papai tinha razão. Talvez eu não tivesse de pagar pelo que eu fazia, mas meu filho pagaria. Olhei para Sam e ele sorriu para mim. Foi então que me lembrei.
Fields devia estar à espera dele em algum lugar. Eu havia fechado o negócio. Os pensamentos se me atropelaram na cabeça. Tinha de haver um jeito de impedir aquilo.
Olhei para o relógio na parede da sala de espera. Já passava das dez horas. Tinha de alcançar Maxie e dizer-lhe que desistisse. Tinha de fazer isso!
- Preciso dar um telefonema, - disse eu de repente e saí da sala.
Havia uma cabina de telefone no corredor e eu liguei para a casa de Fields. O telefone chamou várias vezes até alguém atender. Era uma voz de mulher.
- Quero falar com Maxie Fields.
- Não está. Quem fala?
- Danny Fisher. Sabe onde é que ele está? Preciso falar urgentemente com ele!
- Danny! Precisa, sim. Quem está falando é Ronnie. Você não pode deixá-lo fazer isso. Sam foi o único amigo que você encontrou! Foi ele que fêz Maxie desistir quando você voltou. Jurou que se Maxie tocasse a mão em você, levaria um tiro dele!
- E eu pensei que tinha sido você.
- Não. ele não me ouviria. Voltei porque Ben estava doente e eu precisava de dinheiro para ele. Mas não adiantou nada porque ele morreu.
- Sinto muito, Sara.
Não sei se ela me ouviu porque continuou a falar sem parar.
- Você não pode deixar que ele faça isso com Sam, Danny! Foi Sam que impediu Maxie de tomar o seu negócio.
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Convenceu Lombardi a dizer a Maxie que não se metesse com você porque ele tinha interesse na sua empresa. Maxie ficou furioso. Você não sabe como ele é ruim. Tem de impedir que ele mate Sam!
- É o que eu quero, Sara. Tem alguma idéia do lugar onde poderei encontrá-lo?
- ele disse que ia para Brooklyn, pois provavelmente Sam apareceria em sua casa nova hoje à noite.
Fiquei ainda mais aflito. Isso significava que ele devia estar esperando Sam perto de minha casa e, quando voltássemos do hospital, iria atacá-lo. Só me restava fazer uma coisa - chegar em casa antes dos outros.
- Está bem, Sara, - disse eu desligando.
Voltei à sala de espera e disse a Sam com a maior calma que pude aparentar:
- Pode emprestar-me seu carro alguns minutos, Sam? Prometi a Nellie que iria buscar algumas coisas em casa para ela e meu carro ainda está no aeroporto.
- Venha que eu o levo, - disse ele.
- Não, Sam. Você deve ainda estar fraco da transfusão de sangue. Descanse aqui um pouco. Estarei de volta dentro de vinte minutos
ele tirou a chave do carro do bolso e entregou-a sorrindo.
- Pronto, Campeão!
Olhei-o. Havia muitos anos que ele não me chamava assim.
- Tudo bem, Campeão ? - perguntou ele.
Só nós dois sabíamos o que essas palavras significavam. Havia nelas um mundo de sentido.
- Tudo bem, Campeão, - disse eu, apertando-lhe a mão. Olhei para as nossas mãos. Era curioso como as nossas mãos
se pareciam - a mesma forma, os dedos do mesmo jeito. Compreendi então a amizade que tinha por ele. Sam era tudo o que eu sempre tinha querido ser. Sempre tinha sido assim. Eu procurava superá-lo em tudo.
- Tudo bem, Campeão, - tornei a dizer. - Obrigado por tudo. Peguei as chaves e me encaminhei para a porta. Papai me fêz
parar.
- Dirija com cuidado, Danny. Não queremos que lhe aconteça alguma coisa agora.
- Não vai acontecer, Papai. E se acontecer, que é que tem? Já tive tudo o que podia ter na vida. Não terei queixas, nem arrependimentos.
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- É muito bom você sentir-se assim, Danny - disse ele solenemente. - Mas, apesar de tudo, tenha cuidado. Você ainda está muito exaltado com seu filho.
O poderoso motor do Cadillac amarelo cantava enquanto eu me dirigia para casa. Era bom que eu tivesse pegado o carro de Sam.. Teria assim muito mais facilidade em encontrar Maxie, porque ele estaria à espera daquele carro. Com ele, não estava preocupado. Encontraria um meio de entender-me com ele.
Em Clarendon, virei à direita e tomei o caminho de minha rua. Olhei pelo espelho. Um carro vinha atrás de mim, piscando os faróis. Queria passar. Pisei no acelerador. Eu estava com pressa também.
O grande carro obedeceu prontamente e deu um pulo para a frente. Olhei de novo para o espelho. O outro carro continuava atrás de. mim. Compreendi então. Maxie devia ter acompanhado Sam até ao hospital.
Diminuí a marcha do carro. O outro veio ficar prontamente ao meu lado. Olhei para lá e vi que estava certo. Spit me olhava do outro carro. Ri para ele e dei adeus.
Vi então o cano da metralhadora portátil que descansava na janela entre as mãos de Spit, que a estava levantando.
- Spit! - gritei. - Sou eu, Danny! Isso está cancelado! O cano continuava a subir.
- Spit, pare com isso! Sou eu, Danny!
Vi-o hesitar um segundo e voltar-se para dentro do carro, dizendo alguma coisa. Lá dentro, eu via a brasa de um charuto. O cano continuou a subir. Lembrei-me de que Maxie dissera que dessa vez eu não poderia recuar. E era Maxie que ia com Spit no carro.
Só me restava fazer uma coisa. Pisei no acelerador quando a metralhadora começou a atirar. Senti uma súbita dor que me arrancava da direção. Lutei desesperadamente com a direção na minha ânsia de segurá-la.
Durante um breve segundo, nada vi. A vista então se limpou. O carro dançava alucinadamente na rua dentro da noite. Olhei para Spit e vi que ele estava rindo de mim. Fui tomado de uma terrível cólera. Um ódio dele e de tudo o que eu tinha sido se me espalhou pela garganta, quente e pegajoso como sangue. ele estava levantando de novo a metralhadora.
Olhei além do carro dele para a esquina. Era a minha esquina, a minha rua. Avistei minha casa, com uma luz acesa na janela que nos havíamos esquecido de desligar ao sair.
360
Eu estaria em segurança se conseguisse chegar a casa. Sabia disso.
O carro de Maxie estava na minha frente, mas eu continuei ainda assim, Vi o rosto de Spit contorcido de medo. Saíam fagulhas da metralhadora, mas eu não sentia nada. ele tinha de sair da minha frente senão eu passaria por cima dele. Senti as rodas presas, mas não me incomodei. Eu ia para casa.
Houve um clarão de fogo e eu vi o carro elevar-se no ar. Respirei fundo e me preparei para o choque, mas este nunca se produziu.
Em vez disso, passei a ser um garoto num caminhão que ia para uma casa nova. Sentia o cascalho estalar sob os pneus. Era dia, um dia cheio de sol e eu não podia compreender isso.
Acontecera alguma coisa. O tempo saíra dos eixos. Trabalhei com a idéia alucinadamente na cabeça. Não podia ser verdade. Coisas assim não acontecem. Eu estava de volta ao começo da memória.
Desapareceu então e eu senti a direção despedaçar-se. Num momento, eu estava olhando atônito os restos de um volante que não era mais um volante e, no momento seguinte, estava voando loucamente para uma enorme e vazia escuridão.
No fundo daquela escuridão silenciosa, estavam gritando meu nome. Este me ecoava metàlicamente, surdamente no espírito, com as sílabas rolando para mim como as ondas do mar.
"Dan-ny Fish-er... Dan-ny Fish-er!" Sempre e sempre ouvia a voz que me chamava. Sabia de algum modo que não devia escutar aquele canto de sereia. Era um som que eu tinha de não ouvir. Não devia ouvi-lo nem no meu espírito. Lutei desesperadamente, duramente, e fechei o espírito ao seu eco. Uma súbita dor me percorreu e eu me retorci na pungente agonia.
A dor foi aumentando, aumentando, mas não era coisa física o que eu estava sentindo. Era uma vaga dor incorpórea que flutuava por dentro de mim como o ar que eu costumava respirar.
O ar que eu costumava respirar. Costumava respirar. Por que eu havia pensado uma coisa dessas? A dor se infiltrou de novo em mim, envolveu-me a consciência e a dúvida foi esquecida. Ouvi minha voz que gritava a distância. Era um grito de agonia que me retinia nos ouvidos. Tornei a deslizar lentamente para a escuridão.
"Dan-ny Fish-er! Dan-ny Fish-er!" Ouvi de novo a voz estranhamente confortadora. Era suave, gentil e trazia uma promessa de descanso, de paz e de alívio daquela agonia, mas apesar disso eu resistia a ela com toda a minha força.
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Nunca usara de tanta energia contra qualquer outra coisa. De novo, a voz me desvaneceu do espírito e a dor voltou.
- Como é doce o gosto da dor quando tudo mais desapareceu do corpo! Como nos agarramos ansiosamente à agonia que nos liga à terra! Respira-se a dor como se fosse o mais doce ar, bebe-se a dor com todas as fibras ansiosas do ser. Deseja-se a dor que deixa viver.
Estava correndo doce e lancinante por dentro de mim. Amava aquela dor e apegava-me a ela. Ouvi de novo a voz distante protestar e me senti feliz com isso. Procurei ansiosamente agarrar a dor com as duas mãos, mas ela tornou a fugir de mim e eu mergulhei de novo na escuridão tranqüila e repousante.
A voz estava bem perto de mim. Podia senti-la em meu espírito como antes sentira a dor em meu corpo.
"Por que luta comigo, Danny Fisher? Só lhe vim dar descanso."
"Não quero descanso! Quero viver!"
"Mas viver é sofrer, Danny Fisher. Você já deve saber disso".
"Vá-se embora então e deixe-me sofrer. Tenho ainda tanto para fazer!"
"Que é que ainda lhe resta por fazer? Não disse ainda há pouco a seu pai que não teria motivos de queixas, pois já tivera na vida tudo o que queria?"
"Mas a gente diz coisas sem pensar. Tenho de viver. Nellie disse que não podia viver sem mim. E meu filho precisa de mim".
A voz era tão sábia e tolerante como o tempo. Ecoava no meu espírito.
"Acredita mesmo nisso, Danny Fisher? Deve saber que a vida não deixa de existir nos outros para qualquer pessoa."
"Quero então viver para mim mesmo. Quero sentir sob os pés a terra firme, quero gozar a doçura do corpo de minha mulher, quero ter o prazer de ver meu filho crescer."
"Mas se você viver, Danny Fisher, não fará nenhuma dessas coisas. O corpo que foi seu está irreparavelmente danificado. Você nada sentirá, nada verá. Será apenas uma casca que continuará a viver, constituindo um fardo e um sofrimento constante para aqueles que o amam."
"Mas eu quero viver!", gritei com toda a minha força. Senti pouco a pouco a dor voltar-me ao ser.
Acolhi-a como uma mulher pode acolher um amante há muito ausente. Estendi-lhe os braços e deixei que me dominasse.
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Senti a doce agonia circular através de mim como se fosse o sangue. Houve então um momento de luz pura e límpida e eu pude enxergar de novo.
Estava olhando para mim, dilacerado, retorcido, informe. Havia mãos que se estendiam para mim, mas paravam de horror ao ver-me. Aquele era meu corpo e era assim que as pessoas olhariam para mim daí por diante.
Senti as lágrimas da tristeza misturarem-se com a agonia que havia dentro de mim. Não restava então de mim nada que pudesse dar alegria ao coração de alguém? Olhei mais de perto para mim. O rosto estava limpo, calmo e imóvel. Havia mesmo o resto de um sorriso nos meus lábios. Olhei mais de perto.
As pálpebras estavam fechadas, mas eu podia ver além delas, As órbitas vazias se escancaravam e eu fugi com horror de mim mesmo. As lágrimas me corriam pelo espírito, lavando a dor daquele novo choque.
A dor começou a desaparecer, a luz decresceu e a escuridão voltou. A voz mais uma vez me chegou ao espírito.
"Então, Danny Fisher? já quer a minha ajuda?"
Afastei as lágrimas do espírito. Toda a minha vida tudo tinha sido uma questão de troca. Estava na hora de fazer mais uma.
"Quero a sua ajuda, sim. Só lhe peço é que reconstitua o meu corpo para que os que me amam não fujam de mim horrorizados."
"Isso é possível."
Percebi então que isso seria feito e que não havia necessidade de que eu pedisse.
"Ajude-me então e eu ficarei contente."
Senti de repente um amável calor em torno de mim.
"Descanse então, Danny Fisher. Entregue-se à escuridão tranqüila e repousante e não tenha medo. É como se estivesse adormecendo."
Procurei confiantemente chegar à escuridão. Era uma escuridão cordial e amiga e nela havia o calor e o amor de tudo o que eu havia conhecido. Era mesmo como se eu fosse dormir.
A escuridão me envolveu em nuvens suaves que giravam. A lembrança da dor era indistinta e remota e em breve até a lembrança desapareceu. Soube aí por que nunca havia tido paz até então.
Estava contente.
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UMA PRECE PARA DANNY FISHER
Você coloca a pedra rapidamente na sepultura e fica ali solenemente, com os olhos azuis bem abertos. No seu íntimo, há uma dúvida pequena mas persistente. Seu pai.
Não tenho forma, nem imagem definida em sua memória. Não passo de uma palavra, de uma fotografia na prateleira da lareira, de um som nos lábios dos outros. Você nunca me viu e eu só o vi uma vez.
Como posso então comunicar-me com você, meu filho, como posso fazê-lo ouvir-me se a minha voz é um eco desconhecido para os seus ouvidos? Choro, meu filho, choro toda a vida que lhe dei e da qual não farei parte. As alegrias e as tristezas não as conhecerei com você, como meu pai as conheceu comigo.
Mas embora eu lhe tivesse dado a vida, você me deu muito mais. Naquele breve momento em que estivemos juntos, aprendi muitas coisas. Aprendi a amar de novo meu pai, a compreender-lhe os sentimentos, a felicidade, as insuficiências. E todas as coisas que representei para ele, você naquele breve instante representou para mim.
Nunca o tive nos braços, nunca o abracei contra o coração, mas sinto tudo isso. Quando você se machuca, sinto a sua dor; quando você fica triste, choro com você, e quando você ri há alegria dentro de mim. Tudo o que você é, fêz parte outrora de mim, a carne, o sangue, os ossos.
Você é a parte que ainda resta do sonho que eu era. É a prova de que eu um dia andei sobre a terra. Você é o meu legado ao mundo, o mais precioso que eu podia dar. Todos os valores nada são em comparação com você.
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Haverá no seu tempo muitas maravilhas. Os cantos mais distantes da terra poderão ser alcançados em rápida jornada. O mar mais profundo, a montanha mais alta, talvez até as estrelas estarão ao alcance de suas mãos. Entretanto todos esses milagres nada serão comparados com o milagre que é você.
Porque você é o milagre da minha carne que continua. Você É o elo que me liga ao amanhã, e elo numa cadeia que se estende do começo do tempo ao tempo que nunca acaba.
Há, porém, uma coisa estranha em tudo isso, porque você, que vem das paixões tumultuosas do meu sangue e da minha força e que me liga com o dia de amanhã, nada sabe de mim.
Só vivemos juntos um momento, o momento do seu despertar e, por isso, você não me conhece. "Como é você, meu pai?", pergunta você no silêncio do seu coração. Feche os olhos, meu filho, que vou tentar dizer-lhe. Feche os olhos por um momento apenas ao esplêndido mundo verde que o cerca e procure ouvir-me.
Você está agora em silêncio, com, os olhos fechados e o rosto pálido, e está escutando. O som da minha voz lhe é estranho aos ouvidos e, contudo, no fundo do seu ser, você sabe quem sou eu.
As minhas feições nunca se fixarão em sua memória, mas você se lembrará. Algum dia, em algum tempo, você falará sobre mim. E haverá em sua voz a tristeza de nunca nos havermos conhecido. Mas nessa tristeza haverá também contentamento, nascido do conhecimento de que as coisas que você é vêm de mim. As coisas que você dará a seu filho começaram comigo e com o que meu pai me deu e o pai dele antes disso.
Escute-me, meu filho, e conheça seu pai.
Embora a memória de um homem seja uma coisa temporária, porque a vida dele é apenas um momento passageiro, há nele uma qualidade de imortalidade tão permanente quanto as estrelas.
Sou você, e você É eu e o homem que começou com Adão viverá para sempre na terra. Como eu vivi um dia.
Respirei um dia o ar que você respira e senti sob os pés a terra macia. As suas paixões se atropelaram um dia nas minhas veias e as tristezas que você sente são choradas pelos meus olhos.
Já fui um homem ao seu lado.
Também tive conta aberta em lojas e depósitos em meu nome nos bancos. Deve haver em algum arquivo papéis com a minha assinatura em que a tinta já se desbota. E durmo para sempre sepultado na massa das estatísticas numa ficha do seguro social em que tudo o que eu fui é representado por estas estranhas marcações numéricas: 052-09-8424.
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Tive essas coisas um dia, meu filho. E, por isso e por muitas outras razões, o meu nome não será de todo esquecido, êsses simples arquivos são prova da minha imortalidade.
Não fui um grande homem cuja vida é registrada para que as crianças a aprendam na escola. Os sinos não dobraram por mim, nem as bandeiras foram hasteadas a meio pau.
Fui um homem comum, meu filho, um entre muitos, com esperanças comuns, sonhos comuns e temores comuns.
Sonhei também com riqueza, saúde e poder. Temi também a fome e a pobreza, a guerra e a doença.
Fui o homem da casa vizinha, o homem que vai de pé no subway para o trabalho, que acende o cigarro de vez em quando e leva o cachorro para dar uma volta.
Fui o soldado que treme de medo, o espectador que insulta o juiz nos estádios, o cidadão que na cabina indevassável elege com satisfação o candidato indigno.
Fui o homem que viveu mil vidas e morreu mil mortes nos seis mil anos registrados da vida do homem. Fui o homem que navegou na arca junto com Noé, fiz parte da multidão que atravessou, o mar que Moisés fez abrir-se, fui o homem pregado na crus ao lado de Cristo.
Fui o homem comum sobre quem não se escrevem canções, não se contam histórias, não se formam lendas.
Mas sou o homem que viverá para sempre nos milhares de anos que ainda virão. Sou o homem que recolherá os poucos benefícios e pagará os muitos erros criados pelos grandes.
E os grandes são apenas meus servos, porque o meu número É legião. Os grandes repousam nas suas sepulturas debaixo de imponentes mausoléus porque não são lembrados por si mesmos mas pelo que fizeram.
Mas todos os que choram pelos seus entes queridos também choram por mim. E toda a vez que alguém sente a saudade de um morto, sente saudade de mim.
Os seus olhos se abrem em leve espanto e se fixam nas seis pedras sobre a minha sepultura. Agora você sabe, meu filho. Esse foi seu pai. Os braços de sua mãe o envolvem, mas você ainda olha para as pedras. Os seus dedos apontam as palavras escritas na sepultura. Sua mãe as lê para você.
Ouça-as com atenção, meu filho. Não são uma verdade?
"Viver nos corações que ficam não é morrer."

 

 

                                                                  Harold Robbins

 

 

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