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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


UMA QUESTÃO DE CONFIANÇA / Tiago Rebelo
UMA QUESTÃO DE CONFIANÇA / Tiago Rebelo

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

  

As vidas de Teresa e Guilherme cruzaram-se nos inicios dos anos oitenta, naquela época áurea em que o mundo parecia pertencer-lhes, e eles seguiam juntos, numa festa perpétua, um rumo que acreditavam ser o de ambos como o de um só ser. Mas as ilusões tarde ou cedo se desvanecem e aquela ligação quebrou-se pelo elo mais fraco. Cego pelo sucesso e os êxitos fáceis, Guilherme entra por um caminho de autodestruição para o qual procura arrastar Teresa, mas ela criara objectivos próprios e bem definidos e estava cansada de tentar que Guilherme acordasse. Ficou com ele por amor. Um dia, porém, Teresa é obrigada a escolher entre Guilherme e Sofia, a menina que nascera deles. Depois, prossegue a sua vida, os seus sonhos de mulher inteira, cuida da criança. Seguem agora em paralelo. Sem se tocarem. Ou quase. Durante essa fase de afastamento, de dolorosa distanciação Teresa começa a escrever as suas primeiras obras de ficção e a afirmar-se como uma escritora de sucesso. É então que, no lançamento de um livro, Teresa conhece

um cirurgião, um homem em tudo diferente do seu ex-marido.

Brilhante, magnífica, com seu lado sombrio, redentora contudo, será boa a nova experiência por que Teresa irá passar?

 

Pousou ansiosamente no colo uma mão-cheia de comprimidos, enquanto os seus olhos inexpressivos se fixavam algures na imensidão do mar ameaçado por uma tempestade que se aproximava. Estava sentada frente à janela panorâmica da sala com o oceano inteiro como espectáculo, mas demasiado perturbada para se inteirar do tecto de nuvens cinzentas que traziam as primeiras chuvas do ano. Segurava na mão transpirada os comprimidos, como se fosse uma pistola, ciente da inevitabilidade do passo que estava prestes a dar.

Um lume acolhedor ardia na lareira. A sala espaçosa era um modelo de bom gosto, com os seus cinquenta metros quadrados cobertos por tapetes persas, a mobília clássica e muitos quadros a óleo, marinhos na sua maioria.

Estava tudo em ordem. Em cima da mesa de jogo de pau-santo ficava uma última carta, escrita pelo seu punho, devidamente fechada num envelope. Tomou os comprimidos que tinha na mão suada e trémula, um a um, sem se apressar. Limpou com a manga do casaco de malha um círculo de água deixado pelo copo para que não manchasse a mesa. Levantou-se, acertou a cadeira pombalina com a mesa e foi deitar-se no sofá de quatro lugares mais perto da lareira. Tirou os sapatos e cruzou as pernas, esticadas do modo mais confortável possível.

Adormeceu, caindo depois num coma profundo, a que se seguiu uma paragem cardíaca provocada pelo relaxamento dos músculos arteriais, levando-a a uma morte sem dor.

 

Teresa Dória esmagou furiosamente no cinzeiro o cigarro quase intacto, desligou o computador e levantou-se, exasperada por não conseguir escrever uma linha, tal era o estado de nervos que a impedia de se concentrar no trabalho.

Enfiou o maço de tabaco na carteira, pegou nas chaves e bateu com a porta de casa. Carregou no botão do elevador, mudou de ideias e voltou a entrar em casa. Foi à casa de banho e lavou os dentes num instantinho. Detestava andar por aí com o hálito do tabaco, incomodava-a pensar que as pessoas pudessem apontar-lhe qualquer defeito, quanto mais uma pequena falha perfeitamente corrigível. Borrifou-se com um pouco de perfume Nina Ricci, apanhou o telemóvel esquecido na secretária do escritório e voltou a sair.

Era a segunda vez que isto acontecia, e a primeira havia sido extremamente traumática.

Demorou uns segundos a recordar-se de onde tinha estacionado o seu Mercedes, Classe A, na noite anterior, mas logo deu com ele arrumado de qualquer maneira ali perto de casa. Teresa não ligava particularmente a carros e não era, em definitivo, muito cuidadosa com o dela. Como a maioria das mulheres, supunha.

Sentou-se ao volante, enfiou a chave na ignição mas não pôs o carro a trabalhar. Primeiro ligou o rádio. Esperou um ou dois minutos que a música terminasse. Analyse, dos The Cranberries, reconheceu. Adorava aquela música. Pouco depois ouviu a voz de Guilherme a apresentar a música seguinte. Filho-da-mãe, rosnou entredentes, furiosa.

Saiu do carro, bateu com a porta e voltou para casa.

Guilherme Viana acabou a sua hora de rádio anunciando alegremente o animador de serviço que o vinha substituir. Enfiou os CDs todos numa caixa de cartão e deixou o estúdio.

- Vamos embora, que a mãe já deve estar furiosa - disse, em tom brincalhão, à pequena Sofia, que o esperava do lado de fora do estúdio na companhia do técnico de som.

Trinta minutos depois estava a tocar à campainha do apartamento de Teresa.

Quando abriu a porta do elevador e deparou com uma cara de poucos amigos, Guilherme percebeu logo que Teresa não o ia poupar.

- Estive na rádio do pai, mãe - anunciou logo Sofia, toda satisfeita. - Foi muita giro!

- Foi, querida? - respondeu Teresa, disfarçando a sua irritação para que a filha não percebesse.

- Foi - disse - e assisti ao programa todo.

- Olá - cumprimentou-a Guilherme, com um sorriso comprometido.

- Leve a sua mochila para o quarto, Sofia - ordenou Teresa, ignorando ostensivamente o ex-marido.

- Adeus, pai. - Sofia atirou um aceno de longe e virou costas em direcção ao quarto.

- Eh, eh, eh! - reclamou ele. Para ganhar tempo, pensou Teresa. - Então e não tenho direito a um abracinho, nem nada?

A miúda largou a mochila no chão, voltou atrás com uns passinhos engraçados e atirou-se ao pai. Ele recebeu-a com ternura, demorando-se num abraço caloroso.

- Depois o pai telefona, filha - prometeu, colocando-a no chão. - Agora vá lá arrumar as suas coisas.

-Devias entregá-la às nove em ponto - disparou Teresa, assim que a criança desapareceu. - São quase onze da noite!

- Eu sei, Teresa. Desculpa. É que...

- Se não és capaz de respeitar os teus compromissos, respeita pelo menos as decisões do tribunal.

- Teresa. - procurou apaziguá-la, enquanto pensava se aquilo de não respeitar os seus compromissos seria uma vaga alusão ao casamento deles. - Teresa.

- A miúda tem escola amanhã de manhã, Guilherme - continuou ela, ríspida, sem o escutar. - Já devia estar a dormir!

- Teresa, ouve, tens razão - concedeu. - É que eu tive de substituir um colega à última da hora e não consegui trazê-la mais cedo.

- Tens sempre uma desculpa para tudo, não tens?

- Não volta a acontecer - disse Guilherme, erguendo as mãos em sinal de paz. - Prometo.

Foi-se embora sem passar da entrada da sua antiga casa. Teresa ainda estava demasiado magoada para o convidar a entrar. Talvez nunca o viesse a fazer e, se o fizesse, decerto que não seria naquele dia.

 

Na segunda-feira de manhã, Leonardo foi o primeiro a chegar ao café, como sempre aliás. Guilherme Viana sorriu- lhe de longe e foi directo ao balcão pedir duas bicas. Cumpria-se o ritual matinal: dois perfeitos estranhos encontravam-se num daqueles cafezinhos de esplanada aberta no Centro Comercial Colombo. Tomavam uma bica juntos, trocavam dois dedos de conversa e iam, cada um, à sua vida. Leonardo, o velho Leonardo, Guilherme só lhe sabia o nome próprio.

Haviam-se encontrado ali pela primeira vez há três meses. Leonardo pedira licença para se sentar na mesa de Guilherme por não haver lugares livres. Tinham começado a falar e, depois desse dia, continuaram a fazê-lo rotineiramente.

Guilherme não saberia explicar por que razão é que era ele sempre a pagar a conta, mas tinha qualquer coisa a ver com a aparência orgulhosamente modesta de Leonardo, um homem de idade indefinida, mas que certamente já passara a barreira dos setenta havia uns bons anos. Usava um sobretudo de qualidade, mas a pedir a reforma, camisa branca com os colarinhos demasiado gastos, gravata escura com um nó impecável e calças de flanela cinzentas. Penteava o cabelo - surpreendentemente preto para a sua idade - todo para trás, sem risco, com um produto qualquer que o mantinha no lugar, e cheirava sempre a colónia.

Guilherme sabia que Leonardo tinha a sua rotina matinal pelos corredores do Colombo. Passava por uma perfumaria, procurava a sua marca favorita e borrifava-se com um dos frascos de amostra disponíveis nas prateleiras. Em seguida entrava numa papelaria para passar os olhos pelos jornais, onde se demorava a ler as notícias da manhã. Preferia o Diário de Notícias. Mas às vezes também ia a uma livraria. Andava a ler uma aventura de Agatha Christie, empolgadíssimo com as investigações do detective belga, Hercule Poirot, muito embora sentisse uma enorme frustração com o labirinto em que se tornara a sua memória, mais sinuosa que o enredo do livro. Como não podia marcar o livro, Leonardo recorria a um expediente simples: anotava o número da página num cartãozinho da livraria com uma esferográfica que pedia emprestada ao empregado. Contudo, no dia seguinte, ao retomar a leitura, descobria que os personagens se tinham tornado absolutos estranhos. Não os reconhecia, os nomes já não lhe diziam nada, via-se obrigado a recuar na intriga e a reler as páginas do dia anterior.

- Bom dia - disse Guilherme, pousando os cafés na mesa e esticando a mão para o cumprimentar. - Então, o que é que dizem os jornais?

- O mesmo de sempre - respondeu Leonardo, que não era de grandes falas. Normalmente, era Guilherme quem fazia as despesas da conversa. Mas Leonardo ouvia-o atentamente e via-se que simpatizava muito com o homem mais novo.

Quem os visse, pensaria que se tratava de pai e filho. O velho, enfiado no seu perpétuo sobretudo, um pouco encurvado, de modos ponderados e elegantes, mexendo o café como quem tem todo o tempo do mundo. Guilherme, enérgico, bebendo o seu de um só trago. Usava uma camisola de lã, jeans e sapatos de ténis. Atirava para cima de uma cadeira um blusão de cabedal comprido, castanho. Tinha aquele tique de pentear o cabelo para trás, talvez um pouco comprido de mais para os seus quarenta anos.

Estava divorciado ia fazer cinco, depois de um casamento tumultuoso de que não se orgulhava particularmente. Embora soubesse que a sobrevivência de um casamento dependia sempre dos dois, Guilherme tinha consciência de que, no seu caso, lhe cabia a maior parte da responsabilidade do fracasso. Afinal de contas, estar presente era um requisito mínimo para manter a saúde do casamento, e ele passara a maior parte do tempo demasiado entretido para ir a casa.

Nos últimos meses, os dois homens haviam encontrado formas de comunicar entre eles. Com Guilherme não havia problema. Afinal, comunicar era o que ele fazia profissionalmente. Mas não se podia dizer o mesmo de Leonardo. O homem mais velho era reservado e não gostava de falar muito de si. Chegava a ser misterioso.

Guilherme compreendera desde o início que não devia pressioná-lo. Aprendera a ser paciente, a deixar que Leonardo escolhesse o momento para revelar algo de si próprio. Mas, a verdade é que continuava bastante longe de saber quem era aquele estranho com quem partilhava a mesa do café todas as manhãs. E, sinceramente, acreditava que talvez nunca viesse a saber. Percebia-se facilmente que Leonardo era uma pessoa educada e experiente, que devia ter tido uma vida cheia. O palpite de Guilherme era que Leonardo fora em tempos um empreendedor, fizera algo de grande que, por algum motivo que lhe escapava, se desmoronara.

Apesar de falar correctamente português, por vezes Leonardo traía-se com uma ou outra expressão brasileira, pelo que Guilherme desconfiava que, algures no seu passado nebuloso, tinha passado uma longa temporada no Brasil.

O que Guilherme não precisava de perguntar para saber era que Leonardo encerrava em si uma mágoa arrasadora, e que se tratava de algo devastador de que, provavelmente, nunca se libertaria.

Obviamente, Leonardo era uma pessoa solitária. Ele nunca o exprimira por palavras, mas Guilherme percebia que se sentia agradecido por aqueles minutos que passavam juntos, de manhã.

Todos os dias se perguntava, que misterioso segredo encerrava aquele homem. E isso, tinha de o admitir, fascinava-o.

Tinham-se conhecido numa festa. Teresa estava então com vinte anos e andava a estudar Publicidade. Guilherme já se deixara disso, o curso de Economia ficara-se por algumas visitas ao bar da faculdade no primeiro ano, a favor de uma carreira na rádio.

Ele era o género de pessoa que enchia uma sala quando entrava, espaventoso com o seu cabelo comprido e os seus modos de estrela de cinema. As raparigas atropelavam-se para o impressionar e os dias não tinham horas suficientes para que conseguisse dar atenção a todas. Mas esforçava-se.

Guilherme não temia nada, Guilherme estava deslumbrado com o sucesso fácil, a popularidade da rádio, o desfile de raparigas à sua volta, as drogas e as festas. Guilherme tinha o mundo na mão e não podia prever que um dia se iria afundar nos destroços desse seu mundo quimérico.

Teresa também não era tímida nem ficava pelos cantos das salas na esperança de que não reparassem nela. Bem pelo contrário, gostava de ser o centro das atenções e sabia-se suficientemente bonita para não se contentar nunca com menos do que o rapaz mais popular da ocasião. Teresa era uma jovem mimada, habituada a só ter o melhor que a vida lhe podia dar. Nos anos vindouros, contudo, aprenderia à sua custa que o dinheiro do pai e a sua própria beleza não eram garantia de felicidade, e que não estava imune a desilusões, desgostos e sofrimento.

Mas por agora Teresa ainda não tinha consciência disso. Embora não fosse uma pessoa intrinsecamente má, havia alturas em que conseguia ser genuinamente detestável. Teresa tinha tanto de egoísta como de manipuladora, e essas eram as suas piores características.

A festa passava-se numa mansão despojada de mobília e com anúncio no jornal para ser vendida, no Estoril. O filho do proprietário lembrara-se de gastar os últimos cartuchos enquanto isso não acontecia e reunira um grupo de amigos para se despedir em grande da casa onde morara desde que nascera.

Havia porta aberta para quem quisesse aparecer. Ninguém era convidado e todos pagavam à entrada. Os que tinham ouvido falar da festa haviam passado a palavra e isso fora suficiente para encher a mansão na data marcada.

As pessoas iam chegando e encontravam um salão transformado em pista de dança e uma sala com um bar improvisado. Podiam circular à vontade pelas divisões vazias da casa, bem como por um espaçoso jardim a pedir os diligentes cuidados de outrora. Pouco discreto e bastante acessível, o haxixe impregnava o ambiente interior com o seu perfume inconfundível.

Quando Teresa entrou, na companhia da sua amiga Concha, gastou um momento a estudar o ambiente. A pista de dança estava cheia. Havia holofotes no tecto que se acendiam e apagavam ao ritmo da música, com luzes que iluminavam os rostos dos que dançavam com flashes coloridos. Teresa passou à sala seguinte e descobriu o bar. Era uma tábua colocada em cima de grades de cerveja vazias, com uma toalha branca, garrafas e copos. Dois tipos, que não reconheceu, serviam as bebidas a uma multidão que se acotovelava à volta da mesa improvisada. Espreitou a sala seguinte e descobriu que era aí que começava a parte mais obscura da festa. Um casal, alheio ao que se passava, acendia um isqueiro por baixo de uma colher, fazendo fervilhar uma mistura mortal que, depois de injectada, o levaria ao paraíso. Outros deixavam-se escorregar encostados às paredes, partindo em viagens solitárias para outras dimensões.

Teresa deu meia volta e regressou à sala da pista de dança. Não consumia drogas porque preferia ter os sentidos em alerta e receava perder o controlo. Conhecia-se demasiado bem para saber que, se enveredasse por esse caminho, dificilmente conseguiria voltar atrás. Tinha medo e gostava de pensar que era suficientemente inteligente para não se iludir com a ideia de que seria capaz de se drogar ocasionalmente sem acabar viciada.

Juntou-se a Concha e a alguns amigos que entretanto tinham chegado. Na sala da pista de dança falava-se aos gritos e, mesmo assim, bem perto do ouvido do parceiro, porque a música tocava demasiado alta para permitir grandes conversas.

Pouco depois chegou Guilherme e deu-se um acontecimento extraordinário que atraiu a atenção de Teresa e que a levou a decidir que tinha de o conhecer, ainda que, nessa altura, nem sequer soubesse o nome dele.

 

Era sábado, fazia um calor inverosímil mesmo para os finais de Junho - Teresa lembrar-se-ia desse facto para sempre porque esse dia, apesar de vir a ser decisivo para a sua vida, começou muito mal. De manhã, sofreu uma quebra de tensão e esteve à beira de perder os sentidos. Quase desmaiou ao acordar e voltou a estender-se na cama durante alguns minutos, até se sentir segura para fazer o percurso até à casa de banho e enfiar a cabeça debaixo de água fria.

Nessa época, ela morava em casa dos pais, um apartamento espaçoso com uma vista deslumbrante sobre a baía de Cascais. O pai era advogado, a mãe dividia o tempo entre o cabeleireiro e a ronda habitual pelas lojas de roupa mais badaladas da "Linha". Teresa era filha única. Não tinha irmãos porque a mãe decretara, ainda antes do casamento, que não iria gerar um bando de bebés ranhosos que a impedissem de levar uma vida divertida e, pior do que isso, lhe arruinassem o seu corpo perfeito.

Como sempre, nesse sábado, os pais já estavam para os lados da marina, zarpando a bordo de um magnífico veleiro para passarem o dia ao largo com um casal amigo. Teresa não punha os pés no barco. Desculpava-se com uma propensão para a náusea, embora o que na realidade a enjoasse fosse a ideia de passar uma tarde inteira num barquinho acanhado de doze metros na companhia dos pais e dos seus ridículos amigos.

Teresa não odiava os pais, apenas achava que eram pessoas supérfluas, que só se preocupavam com as aparências, o dinheiro e as festas. Teresa não dava muita importância ao facto de o pai ser um dos advogados mais talentosos da sua geração e, quando lhe censurava o estilo de vida, preferia ignorar olimpicamente todas as comodidades que o dinheiro dele pagava e que ela, definitivamente não dispensava.

Por volta das onze da manhã, já recuperada e bem-disposta, Teresa decidiu-se pela praia, no Guincho. Enfiou um vestido de algodão muito ligeiro, muito curtinho e muito decotado, por cima de um biquíni pequenino e florido, amarelo e laranja, a dar com os sapatos de ténis também amarelos. Saiu com o BNW directamente da garagem, a salvo do calor graças ao ar condicionado. Colocou os óculos escuros de marca para proteger os olhos da claridade excessiva. Os seus olhos verde-claros haviam dado origem a inúmeras paixões e Teresa considerava que eram a sua melhor característica. Actualmente não tinha namorado, talvez por se fartar rapidamente deles, ou talvez porque as suas escolhas amorosas recaíam invariavelmente sobre rapazes demasiado subservientes à sua beleza, que ela tratava mal até os expulsar definitivamente da sua vida.

Passou a apanhar Concha. A amiga era filha de um advogado brilhante, bem conhecido do pai de Teresa, e vivia numa casa que rivalizava em luxo e dimensão com a de Teresa.

- Hoje à noite há uma festa fantástica no Estoril! - disparou Concha, com uma voz esganiçada, assim que entrou no carro.

- Olá, Concha - saudou Teresa, a revirar os olhos.

- Olá, ouviste o que eu te disse?

- Ouvi, Concha.

- É num casarão, no Estoril, que está vazio e foi aproveitado para a festa. Não é o máximo? !

- Quem é que dá a festa?

- Oh, filha, não sei - encolheu os ombros -, mas vai toda a gente.

Concha vivia em excitação permanente. Às vezes tornava-se cansativa, mas andava sempre atrás de Teresa, como se fosse um cãozinho amoroso que ela tinha de pôr na ordem de vez em quando. E isso agradava- lhe.

Ligaram o rádio, acenderam uns cigarros extralongos muito chiques e foram a tagarelar até à praia, onde se reuniram a um grupo de amigos e ficaram a saber mais pormenores dessa festa imperdível.

 

Conduzir um Porche aos vinte e um anos não era para qualquer um. Estava-se na década de oitenta e o país ainda se debatia para recuperar das políticas económicas ruinosas que tinham dominado os anos pós- revolução. Mas Guilherme Viana orgulhava-se de ser dono de um Porche, um belíssimo 911 S, branco, desportivo, incómodo com quinze anos de rodagem, que já perdera a conta à quilometragem. Comprara-o em terceira mão e custara-lhe todo o dinheiro que tinha e mais algum emprestado. Quando se avariava, ficava parado até haver fundos para o mandar arranjar. Mas tinha um Porche.

O dinheiro do ordenado raramente acabava o mês, mas Guilherme era cheio de expedientes e arranjava maneira de o fazer esticar. Morava sozinho num apartamento minúsculo, alugado, na Graça. Era uma salinha de dois passos e meio por cinco, um quarto onde praticamente entrava saltando para a cama, uma cozinha por estrear e uma casa de banho com poliban onde, mesmo que se quisesse, não caberia uma banheira. Em compensação, tinha uma vista luxuosa sobre o Tejo que lhe dava uma ilusão de desafogo.

Os pais de Guilherme eram um casal à moda antiga. Aturavam-se com gosto há mais de trinta anos e conheciam-se tão bem que já não havia forma de um deles fazer inadvertidamente qualquer coisa que aborrecesse o outro. Se rabujavam era mais por hábito do que por outra razão qualquer. Guilherme aparecia frequentemente para jantar, especialmente a partir do meio do mês, quando o dinheiro começava a escassear para ir a restaurantes.

Normalmente jantava apenas na companhia do pai, funcionário público de horários rígidos. A mãe era enfermeira e passava muitas noites de serviço na Maternidade Alfredo da Costa onde, como ela dizia, já fazia parte da mobília.

Um dos maiores desgostos da mãe era não ter tido mais filhos. Os primeiros anos de casados, tinham-nos passado com o dinheiro contado e, só muito depois de ter dado à luz um bebé perfeito, é que tiveram condições financeiras para poderem pensar num segundo filho. Mas então era demasiado tarde para voltarem atrás e já não se sentiram com coragem para enfrentar os perigos de uma gravidez fora do tempo, além de que lhes faltou a determinação para educar outro filho numa altura em que já estavam mais próximos de gozar as delícias de serem avôs. Para aplacar esse desgosto, ela passava os dias rodeada dos bebés de mamãs inexperientes, a quem ensinava os primeiros passos da maternidade, depois de as ter orientado nas dificuldades do parto.

Quando tiver um neto, reformo-me, costumava dizer a Guilherme, na esperança de que ele se decidisse a constituir família. Ele, porém, pensava que isso ainda estava tão distante que lhe era difícil imaginar-se casado, quanto mais com filhos.

Guilherme foi contratado para ser o DJ da festa do Estoril através de um amigo comum aos organizadores. Era o tipo de trabalho que aceitava regularmente. Fazia-se pagar bem e ajudava-o a equilibrar as contas. Mas impunha as suas condições. Tal como acontecia nos concertos de roc, exigia que um segundo DJ se encarregasse de abrir a festa e de aquecer o ambiente, para não correr o risco de se ver a pôr música para meia dúzia de pessoas.

Quando a sala já estivesse cheia, começaria a tocar Roadhouse blues, dos Doors, ao vivo, as luzes apagar-se-iam e haveria um único foco de luz branca apontada para a porta por onde Guilherme entraria, e que o acompanharia até à mesa do som.

E foi isso mesmo que aconteceu. À meia- noite fez a sua entrada apoteótica. Ergueu as mãos, triunfal, e progrediu por entre as palmas ritmadas da sala até ao estrado onde estava instalada a aparelhagem de som.

- Ele é lindo! - gritou Concha ao ouvido de Teresa, para se fazer ouvir.

Ele é um espanto, pensou Teresa.

-É um parvalhão a exibir-se, é o que ele é - disse, no entanto, fazendo uma careta de vómito.

- É - admitiu Concha, para não dar o braço a torcer -, tens razão. - Mas a pensar, quem me dera que fosse o meu parvalhão.

- Estou cheia de sede, vamos até ao bar?

- Não me apetece, está cheio de gente.

- Anda lá - insistiu Concha. - Se não bebo qualquer coisa forte, perco a pedalada toda.

- Vai lá tu, que eu espero-te aqui.

- Tá beeem - disse Concha, com uma voz arrastada e revirando os olhos, ligeiramente irritada. Se fosse ao contrário, acompanharia Teresa ao bar, de bom grado. Às vezes, sentia-se um capacho nas mãos da amiga. Normalmente, engolia a ofensa e ficava momentaneamente ressentida.

Concha encolheu os ombros e furou por entre as pessoas na direcção da sala do bar. Teresa deixou-a afastar-se e, quando ela desapareceu entre a multidão, dirigiu-se para a mesa de som.

A rapariga usava uma saia de pregas acima dos joelhos e uma camisa azul, lisa, com demasiados botões abertos. Parecia uma colegial, coisa que não era, definitivamente. Falava ao ouvido de Guilherme, inclinando- se à frente dos seus olhos mais do que seria necessário e ria-se ingenuamente das piadas dele. Guilherme parecia fascinado com ela.

Teresa só tomou consciência da presença da rapariga no estrado quando ultrapassou a confusão humana que se acumulava na pista e surgiu defronte da mesa de som. Ainda ponderou a hipótese de dar meia volta e esperar por melhor oportunidade, mas era tarde de mais, porque ele já a tinha visto. De modo que teve de ficar ali, com um sorriso idiota, à espera de que eles acabassem com os segredinhos e que Guilherme se dignasse prestar-lhe atenção. Ele apercebeu-se do embaraço de Teresa, mas decidiu deixá-la sofrer mais um bocadinho. Disse qualquer coisa ao ouvido da colegial, esta piscou-lhe um olho e foi-se embora a abotoar um botão da camisa.

Depois Guilherme lançou um sorriso rápido a Teresa e virou-lhe as costas para preparar o disco seguinte, deixando-a novamente pendurada. Fê-lo sem pressa, consciente de que ela estava ali a solicitar a sua atenção. Esperou que a música acabasse, para fazer a mistura com a seguinte, e só então se debruçou sobre a mesa de som para saber o que ela queria.

- Tens o In my life, dos Beatles? - perguntou Teresa.

- Quem são esses? - respondeu-lhe, com um sorriso desconcertante.

- Ah, ah, ah, engraçadinho - irritou- se Teresa, a pensar que talvez não tivesse sido boa ideia ir meter conversa com ele.

- Como é que te chamas? - perguntou Guilherme, passando por cima do sarcasmo dela. Quiseste impressionar-me e estampaste-te, pensou, divertido.

- Teresa. E tu?

- Guilherme. Ouve, Teresa, essa não tenho. Se quiseres outra...

- Não, deixa lá - disse, e virou-lhe as costas antes que ele pudesse dizer mais alguma coisa. Que vergonha, pensou.

Mas Guilherme gostou dela e ficou a cismar no seu pedido. Onde é que iria desencantar um disco dos Beatles àquela hora da noite?

Voltariam a falar mais tarde, mas, se Teresa tivesse sabido o que Guilherme fizera entretanto, ter-se-ia sentido tão humilhada que nunca mais na vida seria capaz de olhar para a cara dele.

Dali a pouco Guilherme desculpou-se com a necessidade de ir à casa de banho e pediu para ser substituído na mesa de som. Contornou a confusão da pista de dança, seguiu pelo corredor interior da casa e foi ao encontro da colegial, que o esperava junto a uma das portas da sala do bar. Deu-lhe a mão e foi com ela à procura de um quarto vazio.

No primeiro onde entraram estavam uns tipos sentados no chão, formando uma roda, por baixo de uma nuvem celestial. Passavam um charro de mão em mão, como se fossem índios a fumar o cachimbo da paz, e olharam para a porta com uma vaga expressão de inteligência.

- Querem entrar nesta cena? - perguntou um deles.

- Não, obrigado - respondeu Guilherme, voltando a fechar a porta.

Abriu uma segunda porta e viu, no chão, um rabo muito branco a investir por entre umas pernas erguidas para o tecto. Fechou a porta sem dizer nada. A terceira porta estava trancada e a quarta revelou um tipo de aspecto agressivo a receber dinheiro doutro, em troca de um saquinho de pó branco.

- O que é que foi? - rosnou o tipo mal-encarado.

- Nada, nada - escusou-se Guilherme, recuando rapidamente. No fim do corredor havia uma escada que conduzia ao primeiro andar. Subiram. Aí as coisas estavam bem mais calmas.

- Com que então, era só um parvalhão a exibir-se. - disse Concha, com uns olhos pequeninos de fúria contida.

- E era - replicou Teresa, sentindo-se apanhada em flagrante.

- Fui só perguntar-lhe se tinha uma música.

- Pois, pois, só uma música. Estou mesmo a ver.

- Não sejas parva. Ele não me interessa nada.

- Como é que se chama o parvalhão?

- Sei lá.

- Teresa. - advertiu-a. Conhecia-a bem de mais para se deixar enganar.

- Guilherme - disse Teresa.

- E o que é que ele te disse? Teresa rolou os olhos e bufou.

- Nada - respondeu. - Só lhe perguntei se tinha uma música e ele disse que não.

- Qual música?

- Uma música dos Beatles.

- Dos Beatles? ! ! - guinchou Concha, incrédula. - Não...

- O que é que tem?

- Nada, nada. - Encolheu os ombros, carregadinha de ironia.

- Pediste-lhe aquela que está nos tops, não foi?

- Foi essa, foi - disse Teresa, exasperada. Concha começava a mexer-lhe com os nervos.

No primeiro andar, Guilherme e a rapariga fecharam-se à chave num quarto. À falta de mobília, deitaram-se no soalho. Ele apoiou-se no cotovelo e começou a beijá-la, enquanto explorava o corpo dela com a mão direita.

-Onde é que estão as tuas cuecas? ! - espantou-se, quando enfiou a mão por baixo da saia dela e descobriu que não havia nada.

- Pedi a uma amiga minha para as guardar - respondeu a rapariga, falando-lhe ao ouvido com uma voz sensual e mordiscando-lhe a orelha.

- Malandrinha... - gracejou Guilherme, pouco à vontade. A rapariga rolou para cima dele e começou a desapertar- lhe o cinto. Guilherme levou a mão à cintura, instintivamente, mas ela afastou-a com um gesto delicado.

- Deixa-me ser eu a fazer isto - pediu ela.

Em seguida soltou-lhe o botão, abriu o fecho, enfiou a mão dentro das calças e fez tudo o que Guilherme estava habituado a fazer, mas ao contrário. Cavalgou-o a seu bel-prazer, impedindo-o de controlar a situação, levando-o até ao fim segundo as suas próprias regras.

Dali a pouco já estavam a fumar cigarros, estendidos lado a lado no chão a olhar para o tecto.

- Foi bom? - perguntou ela.

- Foi - respondeu Guilherme, desconcertado.

Quinze minutos depois abriram a porta do quarto e desceram a escada de volta ao andar debaixo.

- Gostei muito - segredou-lhe a rapariga. - Beijou-o no rosto e foi à sua vida.

- Eu também. gostei muito - disse Guilherme, a falar sozinho.

Por volta das quatro da manhã a festa abrandara um pouco. Já não havia tanta gente como algumas horas antes, muitas pessoas começavam a sair e era possível dançar na pista sem levar cotoveladas. Alguém foi entregar um CD a Guilherme, uma colectânea dos Beatles.

Aos primeiros acordes da música, as pessoas começaram a dispersar e abriu-se uma clareira na pista de dança. Teresa parou de conversar com os amigos e virou-se quando se apercebeu de que era In my life, que estava a ouvir. Viu Guilherme atravessar a pista na sua direcção. Vinha com um sorriso encantador e, ao reparar como ele era bonito, Teresa sentiu um sobressalto e pensou que o coração lhe ia saltar do peito.

- Queres dançar? - perguntou-lhe Guilherme.

- Quero - disse Teresa, engolindo em seco.

Foram para o centro da pista. Guilherme envolveu-a pela cintura, delicadamente, sem a apertar demasiado. Teresa passou os braços em volta do pescoço dele e deixou-se ir. A música era maravilhosa, falava de lugares e amores inesquecíveis. Teresa conhecia-a tão bem. Deitou a cabeça no ombro dele, a pensar que era perfeita para a primeira dança deles.

Guilherme encostou o rosto à cabeça de Teresa e sentiu o perfume sedutor que o seu cabelo lavado exalava e que se sobrepunha ao ambiente impregnado de fumo do tabaco e do haxixe. Fez as mãos subirem pelas costas de Teresa e apertou-a um pouco mais, desejando sentir os seios dela contra o seu peito. Teresa percebeu a intenção de Guilherme e correspondeu ao gesto, chegando-se a ele, estreitando o abraço em volta do seu pescoço.

Foi um momento mágico. Nenhum dos dois precisou de falar para transmitir o que estava a pensar. A música durou três minutos, mas ambos desejaram que durasse uma eternidade. Em todo o caso, aquela dança foi o princípio de uma relação para toda a vida.

A noite já ia longa e o álcool começou a despertar os espíritos guerreiros dos jovens ébrios. Levantou-se um burburinho na zona do bar. Alguém achou por bem partir uma garrafa na cabeça do parceiro. Ironicamente, tocava Message in a Bottle", dos Police. Depois de dançar com Teresa, Guilherme retomara o seu posto na mesa de som e agora assistia indiferente ao que se passava. Era frequente aquelas festas acabarem assim e estava demasiado habituado para se incomodar.

Gerou-se um caos de murros e pontapés a que não escapou o bar, destruído num festival de estilhaços de vidro quando um tipo desamparado fez uma aterragem espectacular em cima da tábua que servia de mesa. Voaram copos e garrafas, num tremendo espalhafato de batalha sem quartel.

Guilherme aproveitou aquilo para dar como terminada a sua prestação. Deixou a tocar Paloma Blanca, de Julio Iglesias, só para gozar um bocado, e foi ao encontro de Teresa.

- Isto está a ficar engraçado, não está? - disse-lhe, fazendo uma careta cómica.

- Está, está - conseguiu dizer Teresa, pálida de medo.

- Eu vou-me embora. Queres que te leve?

- Quero! - aceitou de imediato. Na realidade, estava aterrada e, ainda que o seu plano inicial tivesse sido deixar a festa na companhia de Guilherme, naquele instante ela só queria mesmo era sair dali para fora o mais depressa possível, fosse com quem fosse.

- Cuidado - avisou-a Guilherme, afastando-a delicadamente da trajectória perigosa de dois tipos que vinham do outro lado da sala a tentarem matar-se ao soco.

- Selvagens! - vociferou Teresa. Ele, benevolente, encolheu os ombros, como se a batalha final fizesse parte do programa.

- Vamos!

- Vamos. Mas eu estou com uma amiga.

- Não há problema.

Levaram Concha, apertadinha no banco traseiro do Porce e largaram-na em casa a reclamar que se iam divertir sem ela. Depois Guilherme sugeriu um passeio a pé, perto de casa de Teresa, só para não a deixar ir-se embora.

Foram dar à pequena praia da baía de Cascais. Tiraram os sapatos e caminharam pela areia. O mar estava tranquilo e não resistiram a molhar os pés na água fria. Teresa levantou ligeiramente o vestido com uma graciosidade feminina e Guilherme sentiu-se encantado com esse pequeno gesto. Quis dar-lhe a mão, mas ela retirou a sua delicadamente, proibindo-o assim de avançar mais do que lhe parecia apropriado num primeiro encontro.

Sentaram-se a conversar na areia e ali ficaram, enfeitiçados um com o outro, a contar tudo o que se lembraram das suas vidas para que não perdessem mais tempo e se conhecessem como se estivessem juntos há anos. Falaram, falaram, falaram, com um entusiasmo de namorados impacientes, queimando etapas até serem surpreendidos pelo nascer do Sol.

- Tenho de ir - anunciou Teresa, sentindo uma certa desilusão por a noite ter terminado. Levantou-se lentamente e sacudiu a areia do vestido.

- Vai estar um dia lindo - comentou Guilherme, casualmente, deitado na areia com as mãos debaixo da cabeça, a fazerem de almofada.

- Pois vai - disse ela. Está a enrolar conversa, pensou.

- Seria uma pena irmos dormir agora e perdermos o dia todo.

- Pois seria - concordou ela, a sorrir. Qual é a tua ideia agora?

- E se fôssemos para o Guincho? - sugeriu. - Também se pode dormir na praia.

- Tá bem. - Boa, Teresa, deste muita luta, pensou, surpreendida consigo própria.

Teresa foi a casa enfiar-se no biquíni mais pequenino da sua inesgotável colecção de tanguinhas coloridas. Lavou a cara, penteou-se e perdeu um ou dois minutos frente ao espelho da casa de banho para confirmar que se mantinha tudo no seu lugar, e de que maneira, disse de si para si, orgulhosa. Levantou os seios com as mãos como se lhes tomasse o peso, puxando-os para lhes dar imponência. vocês bem que podiam ser um bocadinho maiores, pensou, com uma careta bem-disposta, mas, enfim, safam-se.

Guilherme não tinha fato-de-banho e não podia ir buscá-lo a casa porque morava em Lisboa.

- Há uma boutique aqui perto. Podemos ir lá comprar um - propôs Teresa.

Foram sentar-se à porta da loja a fazer horas. Esperaram mais de uma hora, satisfeitos como miúdos, a devorar pão quente que, de passagem, compraram numa padaria.

Quando a loja abriu, Guilherme escolheu um fato-de-banho a que Teresa torceu o nariz, a pensar que havia muito a fazer quanto ao gosto daquele rapaz. Normalmente, ele não permitiria que lhe dissessem o que devia vestir mas, como era uma ocasião especial e não queria causar-lhe má impressão, permitiu que o ajudasse na escolha.

- O fato-de-banho fica muito bem ao seu namorado - comentou a empregada, enquanto fazia o troco. Teresa olhou para Guilherme com um sorriso e disse:

- Pois fica.

 

Atravessaram felizes a década de oitenta. Mas a partir daí foi sempre a descer. O que os perdeu foi uma longa e lenta queda para um abismo de infidelidades e mentiras, numa vertigem alucinante de festas desbragadas e drogas sem tino que os foi afastando, à medida que Guilherme se ia atolando numa ilusão muito perigosa. Ele consumia cocaína com uma naturalidade aterradora e levava uma vida de fogo-de- artifício, para a qual insistia em arrastar Teresa.

Ela foi suficientemente forte para resistir a esse apelo destrutivo, que incluía hábeis pressões emocionais que se desvaneciam sempre em fumos de promessas falsas. Teresa resistiu até não ter outra solução senão cortar os já ténues laços de uma paixão que outrora a arrebatara, ao ponto de definir todo o seu ser de mulher adulta e de a fortalecer o suficiente para enfrentar sem nunca vacilar todas as adversidades daquele amor condenado. Mas isso foi só quando teve de optar entre Guilherme e a filha de ambos.

Guilherme recordava cada etapa da sua autodestruição com total clareza, com uma clareza arrepiante, mas também com um arrependimento genuíno. Hoje em dia, passava noites inteiras acordado. Torturava-se pela carreira que podia ter tido e deitara para o lixo e, acima de tudo, pela família que perdera e tanta falta lhe fazia, e pelos amigos que se tinham afastado, um a um, irremediavelmente. Dez anos, a década de noventa inteirinha consumida em linhas de coca, comprimidos de ecstasy e chutos de heroína.

Olhando agora para trás, compreendia que tinha sido demasiado arrogante e leviano com a vida. Sabia que havia caído no erro de acreditar que tinha o mundo na mão e podia fazer o que bem entendesse com ele. No auge da sua carreira chegara a apresentar semanalmente um programa de música na televisão. Fora famoso, as pessoas reconheciam-no na rua, as raparigas adoravam-no e não havia lugar neste país que não tivesse as portas abertas para ele.

Começara a fazer publicidade na rádio e depois também na televisão. Convidaram-no para protagonizar um anúncio a um refrigerante, onde aparecia a fazer de si próprio, dando a cara pela bebida enquanto jovem de sucesso. Ganhara mais dinheiro do que alguma vez julgara possível. A determinada altura, trocara o Porche por outro mais recente e fora então, quando tudo lhe parecia fácil e que já nada lhe poderia escapar, que Guilherme entrara num descalabro que por pouco não lhe custara a vida.

Não tinha sido nada radical, nada que tivesse acontecido de um momento para o outro, fora progressivo, algo assim como se fosse a deslizar lentamente por uma encosta abaixo. No início era apenas uma brincadeira, umas passas de haxixe que não lhe podiam fazer mal nenhum - só para curtir, dizia ele a Teresa -, mas depois, bem, depois... só de pensar nisso ficava deprimido, engolia em seco e dava-lhe vontade de chorar.

De certa forma, conhecer Leonardo havia sido uma bênção. Os encontros matinais dos últimos meses tinham-se tornado numa espécie de psicanálise para Guilherme. Leonardo cumpria o seu papel na perfeição, ouvindo-o atentamente mas evitando comentários desnecessários. Para dizer a verdade, Leonardo não dizia praticamente nada. Mas Guilherme percebia que o homem mais velho o escutava com interesse. Por vezes, quando lhe contava algum momento mais doloroso do passado, os seus olhos brilhavam com uma intensidade invulgar, como se estivesse à beira das lágrimas, sinceramente comovido. Nessas alturas, Leonardo fazia-o parar com uma frase simples, aclarava a garganta embargada e levantava-se com esforço, dizendo que estava na hora de se ir embora.

Não sabia dizer exactamente quando nem como é que começara a abrir-se com o velho. Acontecera, eventualmente, a propósito de algo que não conseguia precisar, falar-lhe um pouco de si, da sua vida. Talvez se tivesse referido à época em que era famoso ou até ao casamento falhado, não sabia; o certo é que, a partir de certa altura, vira-se a contar-lhe fragmentos do passado, acrescentando todos os dias mais um desabafo redentor.

 

Decidiram casar-se numa altura em que melhor seria se se tivessem separado definitivamente. Era o início dos anos noventa e a carreira de Guilherme não podia ir melhor. Teresa estava a trabalhar em publicidade e, embora começasse a perceber que não era aquilo que gostaria de fazer a vida inteira, era bastante competente nessa área. Teresa começara a ensaiar os primeiros passos no romance e sentia-se verdadeiramente entusiasmada com a ideia de editar um livro. Sonhava com a perspectiva de ver nos escaparates das livrarias um livro com o seu nome impresso na capa. Sabia que tinha jeito para escrever e tinha a certeza de que era só uma questão de tempo para evoluir o suficiente na escrita e conseguir convencer uma editora a aceitar publicá-la. Teresa pretendia iniciar uma carreira de escritora e libertar-se gradualmente da publicidade.

Ao contrário de Guilherme, que em muitos aspectos parecia não ter crescido, Teresa amadurecera e tornara- se uma pessoa adulta, com objectivos de vida muito concretos. Poderia ter continuado a menina mimada de outrora, a viver à custa do pai e sem se preocupar em construir nada de positivo na vida, mas escolhera ser independente. E, em grande medida, isso acontecera por causa de Guilherme. A mãe dela não o aceitava de bom grado, e o pai tão pouco. Achavam que a filha estava a apostar no cavalo errado, se assim se podia dizer. Afinal de contas, Teresa tinha tudo para realizar o sonho do conto de fadas. Era bonita, educada, filha das melhores famílias e futura herdeira de uma fortuna considerável.

Os pais não entendiam o que empurrava a filha para os braços de um tipo da classe média, consumidor de drogas, arrogante e de educação duvidosa. Não o fazia por capricho ou para os arreliar. O que eles não compreendiam é que Teresa amava Guilherme, apesar de todos os defeitos e de todas as fraquezas que ele pudesse ter. Nestas circunstâncias, ela não estava em condições de prever as nuvens negras que pairavam sobre o seu futuro próximo ou, se as previa, dificilmente avaliaria correctamente as suas consequências. Sabia do problema de Guilherme com as drogas, mas queria acreditar que não era tão grave como se viria a revelar. Pensava que, com o casamento - e com o nascimento de um primeiro filho - Guilherme seria levado a moderar-se. Confiava em que a estabilidade tenderia a refrear o estilo de vida boémio que ele levava e que o ajudaria a tornar-se mais responsável.

Mas, embora planeasse casar, Teresa receava a instabilidade emo cional do namorado. Não que duvidasse do seu amor, não tinha era a certeza se o casamento, para ele, não seria ainda um passo maior do que as próprias pernas.

Estava assim encalhada neste dilema, entre o optimismo e a apreensão, quando se viu confrontada com um imprevisto assustador.

Agora Teresa morava num pequeno apartamento oferecido pelo pai, em Cascais. Trabalhava em Lisboa e, por vezes, ficava a dormir em casa de Guilherme. Naquele dia, ligou-lhe durante a tarde e disse-lhe que gostaria de jantar com ele para poderem conversar. Como Guilherme tinha a emissão da rádio por sua conta até tarde e Teresa estava com uma campanha importante entre mãos, combinaram irem ter directamente ao restaurante e encontrarem-se lá.

Ao chegar, Teresa deparou com uma mesa de amigos, onde havia cerca de quinze pessoas. Guilherme já estava sentado, e, como sempre, era o centro das atenções. Ao ver aquilo, não pôde deixar de pensar que Guilherme juntara aquela gente toda propositadamente para evitar a conversa que ela ansiava ter com ele. Teresa fora bem específica ao telefone quando lhe dissera que precisava de falar com ele. Sugerira-lhe um jantar a dois para que não fossem interrompidos.

Guilherme levantou-se de imediato, aproximou-se de Teresa com um copo de vinho na mão, passou um braço pelas costas dela e, voltando-se para a mesa, propôs à mesa um brinde de boas-vindas.

- Um brinde à miúda mais querida do mundo - disse, erguendo o copo. Uma recepção festiva para amainar a tempestade. Em seguida abraçou-a.

- Chamas a isto um jantar a dois? - perguntou-lhe ela em segredo, sem desarmar o sorriso de circunstância.

- Não, Teresa - admitiu -, mas eles telefonaram-me e eu achei que não havia problema.

- Mas eu disse-te que precisava de falar contigo, Guilherme.

- Temos muito tempo para falar, mais logo - disse, para a sossegar. - Não te preocupes.

Ajudou-a a desembaraçar-se do casaco e puxou uma cadeira para ela se sentar. Serviu-lhe um copo de vinho e perguntou-lhe o que desejava comer. Guilherme sabia ser um autêntico cavalheiro, especialmente quando pressentia animosidade no ar.

Por mais de uma vez, durante o jantar, Teresa pediu-lhe que não abusasse do álcool.

- Preciso de ti sóbrio, hoje - insistiu -, para falarmos.

- Sim, querida - assentiu, ao café, agarrando num copo de uísque e fazendo rodar o líquido com ar de entendido. - Sóbrio, puro e com duas pedras de gelo - riu-se.

De modo que Teresa teve de se resignar. Passou a noite calada, vendo Guilherme embebedar-se e sentindo uma angústia terrível a tolher-lhe a alma.

A determinada altura, ele levantou-se, foi à casa de banho e voltou de lá com os olhos brilhantes e num estado de alerta que só podia ser de uma coisa. Teresa observou-o, desanimada, e nesse momento pensou que não sabia se iria ser capaz de ultrapassar aquela situação. Teve vontade de chorar.

À saída do restaurante, Teresa conseguiu dissuadir Guilherme de acompanharem os outros numa ronda pelas discotecas das Docas. Queria ficar a sós com ele, apesar de já não ter esperanças de que ele ainda estivesse em condições de a ouvir. Seguiram a pé até ao carro dela. Teresa foi andando, com os braços cruzados e em silêncio. Guilherme caminhou a seu lado, cantarolando uma musiquinha alegre, muito bem-disposto e, aparentemente, sem se aperceber da tristeza dela. Para ele estava tudo bem, como sempre, mas Teresa sentia-se à beira do pânico.

Pararam no passeio junto ao carro, à beira de um jardim. Tinha acabado de chover, a rua estava molhada, deserta e fria.

- Vamos para minha casa? - perguntou ele.

- Não, Guilherme, hoje não vou dormir contigo.

- Porquê? - espantou-se.

- Porque estás bêbado, drogado e eu estou cansada de te ver permanentemente nesse estado.

-Oh, Teresa... - tentou beijá-la, mas ela repeliu-o com energia.

- Deixa-me!

- Teresa, eu estou óptimo - insistiu, fazendo menção de a abraçar.

- Deixa-me, já te disse.

Guilherme levantou os braços, com as mãos abertas, e recuou um passo.

- Pronto - acedeu. - Eu não te toco.

Depois esboçou uma expressão amuada, e olhou-a com a cabeça de lado e um sorriso trocista ao canto da boca. Teresa compreendeu que ele não a estava a levar a sério e sentiu uma vontade irreprimível de o abanar e de lhe bater. Foi um gesto desesperado, como se quisesse despertá-lo para a realidade. Atirou-se a ele, segurando-o pelos ombros.

- Tu não vês que estás a dar cabo de ti? - gritou-lhe. - E de mim? !

Guilherme observou-a espantado, sem dizer nada. Os seus olhos pareciam ausentes. Assustada, Teresa esbofeteou-o.

- Acorda, estúpido!

Voltou a bater-lhe, uma e duas vezes, até Guilherme a impedir de continuar, imobilizando-a pelos pulsos. Teresa lutou para se libertar das mãos dele, a chorar. Rodopiaram, Guilherme teve dificuldade em equilibrar-se e acabaram por cair os dois por cima dos arbustos que circundavam o jardim e, então, ele largou-a.

Teresa levantou-se, encharcada pelos arbustos molhados da chuva, sacudiu o casaco, e olhou para ele com os olhos cheios de lágrimas.

- O que é que te deu? - perguntou Guilherme, surpreendido com a atitude dela.

- Tu não vais mudar a tua vida nunca, pois não?

- O que é que tem a minha vida? - admirou-se. - A minha vida está óptima.

Teresa abanou a cabeça, desanimada.

- Eu desisto - disse. - Vou para casa.

- Teresa, não te vás embora assim. vamos conversar.

- Conversar o quê? , se tu não vês um palmo à frente do nariz.

- O que é que eu fiz de tão grave, para tu estares nesse estado?

- Eu disse-te que precisava de falar contigo hoje, mas tu tens de te embebedar todas as noites, tens de rebentar com os miolos com a merda da coca, não és capaz de assumir as tuas responsabilidades. Tens tanto medo do que eu te quero dizer, que trazes os teus amigos todos só para te esquivares.

- Não foi nada disso.

- Foi, Guilherme, foi exactamente isso. E não tentes enganar-me porque eu não sou idiota!

- Pronto, Teresa, acalma-te.

- Qual é o teu problema? - continuou ela, sem querer acalmar-se. - Tens medo de que eu fale em casamento, é isso?

- Casamento?

- Até quando é que pensas que eu vou ficar contigo, nesta situação?

- Casamento? - repetiu Guilherme, um pouco aparvalhado.

- Olha, esquece - disse Teresa, metendo a chave na porta do

carro.

- Teresa, espera. Era disso que querias falar comigo? Ela olhou para ele, angustiada e a lutar contra as lágrimas, engoliu em seco, assustada e sem coragem para continuar a discutir.

-Não, Guilherme - disse, sentindo-se psicologicamente exausta. - Eu queria dizer-te que estou grávida.

 

O computador portátil estava em cima de uma requintada mesa de mogno, uma peça de antiquário oferecida pela mãe quando Teresa fizera trinta e cinco anos. Há quatro, portanto. O escritório era a quarta divisão do apartamento. Havia ainda uma sala espaçosa, o quarto dela e o de Sofia. Mas era no escritório que Teresa passava a maior parte do seu tempo, a escrever. Sentia-se bem ali. Era uma divisão confortável, com uma alcatifa bege, um armário branco repleto de livros, os seus CDs e a aparelhagem mini Hi-Fi.

Conduziu a setinha do computador até ao ícone da impressora e clicou no botão esquerdo do rato. A impressora deu sinal de vida, começando a escrever o discurso que Teresa concluíra há momentos. Teria de o ler na festa de logo à noite. Seria o lançamento do seu quinto romance. Hoje em dia já não se enervava muito com estas ocasiões. O primeiro ultrapassara todas as suas expectativas de vendas e os outros três tinham-se limitado a fazer uma carreira semelhante. Os críticos continuariam a arrasá-la com ataques impiedosos às suas histórias de amor. Chamar-lhe-iam literatura light, de cordel, vazia; diriam que Teresa Dória não tinha nada para dizer aos leitores e que, portanto, não valia a pena perder tempo a ler o seu livro. Mas isso era o que os críticos diziam de todos os escritores recentes que conseguiam bons resultados de vendas. Em contrapartida, as pessoas iriam ignorar os conselhos dos jornais e comprar o livro, esgotando a primeira edição numa semana. E a verdade é que ela sentia que tinha muito a dizer aos seus leitores. Procurava escrever com grande honestidade, até porque os seus livros se tinham tornado uma espécie de escape psicanalítico.

Teresa consultou o relógio digital no canto inferior do computador. Marcava meio-dia. Levantara-se cedo para levar Sofia à escola e já estava despachada do discurso. Recostou-se na cadeira e fechou os olhos, a pensar que não tinha nada para fazer até à noite.

Depois do divórcio, voltara a viver no seu apartamento de solteira, em Cascais. Inicialmente, mantivera-o pensando que era bom terem uma segunda casa disponível, para o caso de não quererem passar os fins-de-semana em Lisboa. E usaram-no bastante. No final, quando a sua relação já estava muito deteriorada, o apartamento servira-lhe de refúgio. Guilherme ficava em Lisboa e Teresa passava temporadas em Cascais, com Sofia. Essas temporadas tinham-se tornado cada vez mais prolongadas e, por fim, acabara por ficar em Cascais definitivamente.

Haviam passado quatro anos desde o divórcio. Sofia estava com dez e, actualmente, Teresa era considerada pela opinião pública uma mulher de sucesso, uma espécie de heroína romântica dos tempos modernos, capaz de ultrapassar as partidas sujas de um marido irresponsável e de ganhar o seu lugar entre os melhores. Teresa era, para muitas mulheres, uma bandeira viva contra todos os homens infiéis que as tinham abandonado.

Mas, apesar do pedestal onde a colocavam, a realidade do seu dia-a-dia era bastante diferente. Teresa ainda se sentia magoada e frustrada com o fracasso do seu casamento. Uma coisa eram as entrevistas que se via obrigada a dar para promover os livros, e que passavam uma imagem dela como se fosse o espelho da felicidade e da alegria, e outra era a sua história privada.

Depois do divórcio tivera alguns casos amorosos, romances esporádicos que não tinham dado em nada. Gostaria de apontar o dedo aos homens que conhecera e com quem se envolvera, seria porventura mais reconfortante dizer que a culpa fora toda deles, que não estavam preparados para assumir uma relação séria com uma mulher na casa dos trinta e uma filha de seis anos. Contudo, se Teresa quisesse ser honesta, teria de reconhecer que não havia sido uma época fácil porque não se encontrava bem. Sentia-se muito susceptível e insegura e explodia à menor contrariedade.

Entretanto concluíra o seu primeiro livro. Era uma história escrita com raiva, onde descarregava todas as frustrações que a incomodavam. A personagem principal era uma mulher com problemas semelhantes aos seus, e Teresa nem se dera ao trabalho de esconder que havia naquelas linhas muito de autobiográfico. De alguma forma, o livro batera em cheio nos corações de uma legião de mulheres traídas e com o sonho de um casamento feliz desfeito em pedaços. De modo que se tornara num êxito instantâneo. Levada pelos resultados espectaculares do livro, Teresa vira-se obrigada a seguir a mesma linha nos romances seguintes, o que aliás não lhe custara nada, porque ainda se sentia com muita vontade de desancar os homens em geral.

A impressora acabou de imprimir o discurso para a festa de lançamento do livro. Teresa abriu os olhos e retirou as folhas da máquina, enfiando-as em seguida numa pasta de pele genuína, um presente que o pai lhe oferecera para sublinhar o seu orgulho por ver a filha publicar com sucesso o primeiro romance.

Teresa pôs a pasta no colo e empurrou o fecho metálico de mola. Descansou as mãos em cima da pasta e esboçou um sorriso que lhe acompanhou o pensamento. Hoje em dia dava muito mais valor à sabedoria dos pais. Claro que eles estavam carregadinhos de razão quando a alertaram para a asneira que ia cometer ao decidir casar-se com Guilherme. Agora, depois da travessia pantanosa que tinham sido os últimos anos da sua vida, Teresa via-se obrigada a reconhecer que teria sido mais sensato seguir os conselhos paternos para que se limitasse a ir viver com Guilherme e não se precipitasse com o casamento. Mas o que mais apreciava nos pais era eles nunca terem deixado de a apoiar. Em nenhum momento a culparam de nada. Quando Teresa lhes ia pedir consolo, destroçada porque Guilherme não dormira em casa e aparecera no dia seguinte ressacado e a exigir-lhe dinheiro para comprar mais droga, não era obrigada a ouvi-los dizer nós bem te avisámos, ou outra frase no género. E Teresa estava-lhes profundamente reconhecida por isso.

 

Pela primeira vez naqueles meses todos, Guilherme chegou ao café de manhã e não encontrou Leonardo já sentado à sua espera. Procurou entre os clientes, interrogou o empregado no balcão e nada. Pediu uma bica e escolheu uma mesa. Olhou para o relógio: dez horas. Estranho, Leonardo nunca falhara um encontro matinal. Estaria doente? , pensou. Mas não lhe pareceu que fosse o caso. Estivera com ele no dia anterior e achara-o de perfeita saúde.

Acendeu um cigarro, preocupado com a ausência do velho amigo. Guilherme perdera os pais há anos, pouco tempo depois de ter casado. A mãe adoecera subitamente, não tendo sobrevivido a um derrame cerebral. Depois da morte da mulher, o pai ficara extrema mente deprimido e, no espaço de seis meses, envelhecera a olhos vistos. Guilherme encontrara-o morto na sua cama. Um ataque cardíaco levara-o no sossego da noite.

Apesar da tristeza de já não os ter, e de lamentar que a mãe não tivesse chegado a conhecer a neta que tanto desejara, Guilherme sentia-se grato por os pais terem sido poupados aos anos seguintes, em que ele mergulhou no mais puro dos infernos por causa da droga. De certa forma, fora melhor assim.

Depois do divórcio, a vida dele foi- se complicando progressivamente. Deixou de ser convidado para fazer anúncios e perdeu o emprego na televisão devido ao seu comportamento cada vez mais irresponsável. Falhava constantemente compromissos profissionais e, quando aparecia, vinha drogado, intratável e incapaz de se concentrar.

Finalmente, foi dispensado da rádio e viu-se desempregado, sem amigos e num estado de decadência que parecia não ter retorno. Sem rendimentos e com necessidade de muito dinheiro para satisfazer o vício, Guilherme vendeu o Porche, passando depois às poucas jóias herdadas da mãe, e acabando por se desfazer da mobília toda e da casa onde os pais haviam morado os últimos quarenta anos das suas vidas.

Nos piores momentos desta espiral diabólica, houve um acontecimento decisivo que marcou a viragem, levando Guilherme a compenetrar- se de que não poderia continuar pelo caminho que seguia. Embora não revelasse grande interesse pela filha, de tempos a tempos Guilherme passava algumas horas com ela. Costumava ir a Cascais e levava-a a dar um passeio que, em geral, não ia além de uma, duas horas.

Teresa preferiria que ele desaparecesse para sempre, mas compreendia que Sofia sentia a falta do pai e, por isso, aceitava que ele estivesse esse tempo com a miúda. Até que um dia ele a colocou em perigo e, a partir daí, Teresa não o deixou aproximar-se mais de Sofia.

Era-lhe penoso admitir que descera tão baixo. Agora vivia um dia de cada vez. Não estava curado da droga, nunca estaria, mas dava graças a Deus por já não consumir há quase três anos e por ter um emprego estável. Não era feliz, mas sentia-se em paz e isso, actualmente, era, pelo menos, reconfortante.

Leonardo não apareceu e Guilherme decidiu ir procurá-lo. O amigo tornara-se uma companhia muito especial para ele e, apesar de nunca lhe ter revelado muito do que lhe ia na alma, Guilherme conhecia-o o suficiente para saber que era um homem de hábitos, o que o levou a pensar que só por um motivo bastante forte é que faltaria ao encontro no café. Sabendo que ele costumava deambular pelo centro comercial, Guilherme achou que o poderia encontrar algures numa das lojas que frequentava.

Leonardo tinha entrado no hipermercado, por onde andou provando a fruta, aceitando uma torradinha com queijo oferecida por uma promotora de vendas, surripiando um pãozinho acabado de fazer. Por fim, quis sair mas foi incapaz de encontrar a saída e percebeu que estava perdido. Alguém o ajudou até ao exterior do hipermercado mas, mesmo aí, os corredores pareceram-lhe todos iguais. Teve um ataque de pânico.

Guilherme foi encontrá-lo à porta do supermercado, rodeado de dois seguranças do centro comercial, num estado de confusão lamentável, a tremer e a suar.

- Leonardo - chamou-o. - O que é que se passa? Ao vê-lo, os olhos do velho iluminaram-se como os de uma criança desamparada que localiza o pai.

- Conhece este senhor? - perguntou-lhe um dos seguranças.

- Conheço. Há algum problema?

- O senhor parece estar perdido.

- Perdido? Ele vem cá todos os dias.

- Pois, mas...

- Leonardo - encarou-o, preocupado -, está tudo bem consigo?

- Está, claro que está - respondeu ele, de forma brusca, afastando com um gesto vago a preocupação de Guilherme, como se aqueles jovens robustos uniformizados o quisessem fazer passar por velho demente, sendo eles próprios uns idiotas que não sabiam o que diziam. - Vamos embora - disse.

Mas por mais que Leonardo pretendesse exorcizar o susto e esconder o embaraço por detrás de uma atitude enérgica que nem sequer era a sua, Guilherme percebeu que ele fora apanhado nas teias da velhice e que aquilo poderia ser apenas o prenúncio da decadência natural a que Leonardo não estava imune.

Contudo, na manhã seguinte ele apareceu tão lúcido como sempre e não houve, entre os dois, qualquer referência ao incidente. Mas Guilherme reparou que Leonardo passou a andar com um pequeno bloco, onde apontava os nomes dos corredores do centro comercial como se fossem ruas e, embora não tivesse voltado a precisar de ajuda, apalpava frequentemente o bolso do sobretudo à procura do bloquinho para se sentir seguro.

Naquele dia estranho dispensaram o café e Guilherme acompanhou-o à porta do Colombo onde, para seu espanto, encontraram um homem fardado de motorista que esperava Leonardo dentro de um Mercedes castanho. Quando o viu, o homem saltou do lugar do condutor, contornou o carro, abriu a porta de trás e aguardou que ele atravessasse o passeio largo e entrasse.

-Tenho de me ir embora, Guilherme - disse Leonardo, apertando-lhe a mão -, mas amanhã cá estarei, à hora do costume. Peço desculpa pelo incómodo que lhe causei hoje.

- Não foi incómodo nenhum.

- Não volta a acontecer. Até amanhã.

- Até amanhã.

Guilherme ficou a vê-lo entrar no carro. O motorista amparou-o, fechou a porta, voltou para o seu lugar e arrancou. O Mercedes não era um modelo recente, mas via-se que conservava a aparência faustosa dos automóveis de luxo. Quem era aquele homem afinal? , perguntou-se Guilherme, intrigado.

 

A festa de lançamento do livro teve lugar numa discoteca da moda, junto ao rio. O BBC recebia habitualmente uma clientela sofisticada, uma mistura dos filhos - e pais - das melhores famílias de Lisboa com as personagens do jet-7 nacional. Nessa noite havia ainda mais caras conhecidas por metro quadrado do que nos melhores dias da casa. A decoração era moderna e o espaço generoso. As paredes brancas e a varanda a toda a largura da sala e aberta para o Tejo davam-lhe uma sensação de ser ainda mais amplo. Podia-se tomar uma bebida num dos dois bares disponíveis, dançar e até jantar na zona das mesas. Ao fundo da sala, em cima de um palco, tinha sido colocada uma mesa de honra com uma toalha e uma pilha de livros e, por trás, estava projectada uma grande imagem da capa do romance do momento. Perdida por ti, era o título do livro.

Assim que chegou, Teresa foi solicitada pelos muitos repórteres que a aguardavam, choveram flashes dos fotógrafos e a intensa luz branca das câmaras de televisão colocaram-na no centro das atenções. Era uma sensação curiosa, ao mesmo tempo agradável e embaraçosa. Teresa respirou fundo e preparou-se para enfrentar a noite.

Guilherme entrou na sala e deixou-se ficar discretamente afastado da azáfama dos repórteres e dos convidados que rodeavam Teresa. Sofia viu-o e correu para ele.

- Olá, pai - exclamou, feliz, saltando-lhe para os braços.

- Olá, minha querida.

Apesar de todas as mágoas, as feridas começavam a sarar com o tempo. Guilherme acreditava que o pior já havia passado. Teresa e ele tinham percorrido um longo caminho e, depois de todas as recriminações, ela optara por uma atitude adulta e tolerante, que lhe era reconfortante e lhe deu a abertura suficiente para se aventurar a aparecer numa ocasião como esta, mesmo sem ter sido convidado.

Ao contrário da neta, os pais de Teresa preferiram manter-se à distância, deixando claro que não estavam interessados em ter qualquer tipo de relação com o genro. Os seus olhares cruzaram-se ao longe e ele fez-lhes uma pequena vénia com a cabeça, a que eles corresponderam educadamente. Guilherme sabia que eles tinham desaprovado logo de início a relação da filha com um tipo sem pedigree; lembrava-se bem de como Teresa tivera de se impor para que os pais não interferissem no namoro e da resistência deles quando lhes anunciou o casamento. Mas era obrigado a reconhecer que, apesar de tudo, os pais de Teresa tinham respeitado a vontade dela e, não só lhe haviam oferecido uma maravilhosa festa de casamento com trezentas pessoas, como tinham acabado por receber Guilherme na família com toda a simpatia. Um sacrifício pela filha. Mas a simpatia cessara há muito, por culpa do comportamento miserável de Guilherme. Não os podia censurar. Olhando agora para a sua própria filha, só conseguia pensar que, se lhe acontecesse o mesmo, não seria tão civilizado com o genro como eles tinham sido com ele.

Uns meses atrás, Guilherme batera-lhes inesperadamente à porta da sua casa de Cascais para lhes pedir desculpa pelo sofrimento que lhes havia infligido naqueles anos todos. Dissera-lhes que não vinha pedir uma absolvição por todas as asneiras de que era responsável, mas que queria que soubessem que não lhe era indiferente os desgostos que lhes causara e que se sentia envergonhado e arrependido por lhes ter feito tanto mal. O encontro não acabara propriamente aos beijos e abraços, mas eles souberam perdoá-lo e desejaram-lhe que endireitasse a vida e fosse feliz dali por diante.

Embora não tivesse sido um gesto calculado para conquistar a simpatia de Teresa, quando ela soube da visita dele aos pais, ficou profundamente emocionada e chorou uma tarde inteira, frustrada com o desperdício que tinha sido o casamento deles e a terrível infelicidade de que ainda não se conseguira livrar.

Gastou quase trinta minutos a falar com os jornalistas. Depois de concluídas as entrevistas e de os flashes terem cessado, Teresa lançou um olhar pela sala à procura de Sofia. Localizou-a junto a Guilherme e dirigiu-se para eles num impulso, admirada com a presença dele.

- Não sabia que vinhas - disse, não num tom de censura, mas de surpresa.

- Quis dar-te os parabéns - explicou ele - e dizer-te que estou feliz por ti.

- Obrigada - agradeceu Teresa, fazendo uma festa na cabeça de Sofia, que estava encostada ao pai com as mãos dele a ampararem-lhe o peito.

Guilherme não disse nada, mas inclinou- se ligeiramente por cima da filha e deu-lhe um beijo no rosto.

- Bem - disse Teresa, forçando um sorriso e apontando para a mesa no palco -, o dever chama-me.

- Vai lá, que nós ficamos aqui a torcer por ti.

Depois dos discursos e de um brinde com champanhe, Teresa voltou a juntar-se aos convidados. Os pais foram despedir-se dela e saíram com Sofia. Teresa procurou Guilherme entre a multidão e ele acenou-lhe. Sorriu-lhe. Foi a última vez que o viu durante o resto da noite. Guilherme foi-se embora tão discretamente como chegara.

Mais tarde, ao reparar nisso, Teresa não pôde deixar de pensar como ele estava diferente. Uma década atrás, Guilherme teria sido tão espalhafatoso que pareceria ser ele o dono da festa.

Os seus pensamentos foram interrompidos por uma convidada tardia.

- Concha! - exclamou Teresa, feliz por ver a velha amiga.

Vieste?

- Então, eu ia lá perder uma festa tão badalada como esta - disse Concha, nos seus modos exuberantes de sempre.

Teresa soltou uma gargalhada, logo abafada por um abraço impulsivo da amiga.

- Apresento-te o Luís Miguel Trindade.

Há muitos anos, quando eram jovens e ainda nem pensavam em casar, Teresa era tão segura de si que, quando via um rapaz que lhe interessava, dizia de si para si: este vai ser meu. Está marcado. E, desse lá por onde desse, conseguia sempre concretizar o seu desejo. Con cha não era tão bonita e não podia limitar-se a estalar os dedos para ter um rapaz a seus pés, tinha de se esforçar bastante mais e, mesmo assim, não era garantido que tivesse sucesso. Morria de inveja de Teresa e ficava furiosa quando ela se atrevia a passar-lhe à frente e roubar- lhe, numa noite, aquele que andava a seduzir há um mês. Tinham tido as suas zangas, mas Concha acabava por voltar para a amiga de braços abertos, porque não era capaz de ficar amuada durante muito tempo.

De modo que, ao ver como Teresa se concentrou em Luís Miguel, quando lho apresentou, Concha soltou um longo suspiro e rolou os olhos a pensar: lá vamos nós outra vez.

- Estou a ver aquele olhar - segredou-lhe, puxando-a de lado. Teresa virou-se para Concha, genuinamente espantada, a pensar no que ela queria dizer, e, percebendo o sentido das suas palavras, abriu a boca num escândalo divertido.

- Não sejas parva!

- Não sou? Ora, minha querida, conheço-te como às palmas das minhas mãos.

Teresa riu-se. Aquela conversa lembrou-lhe os bons velhos tempos.

- É teu namorado? - perguntou.

- Nããã - disse Concha, com um gesto desprendido. - Apenas um amigo que desencantei para não aparecer sozinha.

Sentaram-se para jantar. Na mesa principal ficou Teresa, os dois directores da sua editora e a responsável pelas relações públicas, Concha e Luís Miguel. Concha tomou logo conta da conversa, com o espalhafato que lhe era peculiar, avançando com algumas tiradas divertidas que puseram toda a gente a rir. Teresa olhou discretamente para o seu lado esquerdo e reparou nos modos contidos e elegantes de Luís Miguel.

Surpreendera-se a observá-lo, pouco antes de se sentarem. Era um homem alto e andaria perto dos cinquenta, talvez, mas via-se que devia passar algumas horas no ginásio, pois mantinha um porte atlético, sem barriga, e as costas direitas. Reparou nas rugas bem vincadas na testa e no cabelo grisalho, sem entradas e correctamente penteado. Viu- se a pensar que essas duas características o tornavam atraente, provavelmente, mais ainda do que fora há uns anos atrás. Aprovou o blaser desportivo, azul marinho com botões de latão dourados, a camisa de marca, amarela, sem gravata, as calças de fazenda cinzentas e os mocassins impecavelmente engraxados.

Olhou para si própria, num reflexo instintivo, subitamente preocupada em confirmar se a saia e as botas, uma e outras de camurça castanha, e a camisola de lã de riscas grossas coloridas, que escolhera para a ocasião, estariam à altura, quer dizer, se a tornavam suficientemente atraente para... O que é que eu estou a pensar? perguntou-se.

Luís Miguel voltou a cabeça e os seus olhos encontraram-se. Ele sorriu-lhe e ela sentiu-se atrapalhada, por ter sido apanhada em falso, a espiá-lo. Retribuiu o sorriso e desviou o olhar, um pouco depressa de mais, pensou.

Concha apaixonou-se pelo seu parceiro da esquerda, um dos sócios da editora, um jovem de quarenta e poucos anos, com um bigode fora de moda, cabelo meio despenteado e vestido com uma T-shirt barata de feira e umas calças de bombazina russas, assim a dar para o género desmazelado. De forma que se esqueceu de Luís Miguel, à sua direita, e de Teresa, no lugar imediatamente a seguir.

-Então, Luís Miguel - começou Teresa, para meter conversa -, o que é que você faz?

- Sou médico.

- Ah, especialista?

- Hum-hum.

- Qual é a sua especialidade? - insistiu, a prever que a conversa não ia ser fácil. É timido, pensou.

- Cirurgião - disse. E ela olhou de imediato para as mãos dele, bem tratadas.

- São o meu ganha-pão - comentou, à laia de desculpa, reparando na reacção dela.

- Não há nada de mal numas mãos bem tratadas. - Fez um trejeito aprovador, para o sossegar, não fosse começar a pensar coisas.

- Aliás, é daquelas pequenas coisas que aprecio num homem.

- Mãos?

-Não as mãos em geral, mas sim as mãos bem tratadas. A maioria dos homens tem preconceitos com essas coisas.

- O quê? - exclamou, divertido. - Tipo ir ao cabeleireiro de homens arranjar as unhas?

- Exacto, tipo isso.

- Eu também não faço isso!

Riram-se e, então, a conversa seguiu um rumo muito mais fluido do que ela previra. Luís Miguel revelou-se uma pessoa tímida, de facto, mas ao mesmo tempo agradável, culta, interessante e divertida. Teresa pediu- lhe que lhe falasse um pouco da sua profissão e ele fê-lo com gosto, mas não se alongou demasiado.

- Se estiver a aborrecê-la, diga-me - referiu, a certa altura, tentando avaliar até que ponto ela estava interessada em prosseguir com o assunto.

- Não, não! Continue, estou fascinada. Deve levar uma vida bem agitada.

- Nem por isso. Sabe, todas as profissões têm as suas rotinas, e a minha não foge à regra.

Teresa esqueceu-se de comer e concentrou-se nos olhos escuros dele, pensando que já não passava um momento genuinamente agradável com um homem há uma eternidade. Sentiu-se bem, quase feliz.

- Bem, agora - disse Luís Miguel - chega de falar de mim. É a sua vez de me contar o que é que faz.

- Escrevo - respondeu ela, com um sorriso de gozo.

- Ah, não, não. - Abanou a cabeça a rir-se. - De certeza que faz mais coisas.

Teresa contou-lhe um bocadinho daquilo a que chamou a sua pequenina vida, tendo o cuidado de deixar de fora as partes menos atraentes. Sobre o passado, disse apenas que se divorciara e que, apesar de tudo, valera a pena, porque tinha uma filha maravilhosa. Reparou que ele também fora algo calculista ao evitar falar-lhe dessa parte da sua vida. Mas, como viu que não usava aliança, presumiu que fosse um daqueles solteirões inveterados, demasiado empenhados na carreira para perderem tempo com as ninharias que preocupavam os comuns dos mortais, como o casamento. Depois repreendeu-se por estar a julgá-lo com tanta severidade. Ele não merece isso. É uma simpatia e eu não sei nada da sua vida.

Decidiu comer alguma coisa, pois começava a sentir os efeitos do vinho branco que Luís Miguel ia, atenciosamente, servindo, tendo o cuidado de não deixar que o copo dela ficasse vazio.

Antes dos cafés, Teresa levantou-se para ir fazer uma ronda pelas outras mesas.

- Tem de ser - desculpou-se. - Tenho de dar atenção aos outros convidados.

- Claro - disse Luís Miguel, compreensivo. - Não era minha intenção monopolizar o seu tempo.

- Mas, deixe-me que lhe diga, que teria muito prazer nisso.

- Muito obrigado - agradeceu, levantando-se quando ela o fez - e igualmente.

Tipo educado, menina atrevida, pensou Teresa, com um sorriso inspirado, enquanto se dirigia à mesa seguinte, verdadeiramente bem-disposta. E não era do vinho, de certeza que não. É que, já se tinha esquecido de como se fazia o jogo da sedução, e foi um prazer recordá-lo. A Concha conhece-me melhor do que eu, reconheceu, deliciosamente horrorizada com a clarividência da amiga.

Demorou-se cerca de vinte minutos. Quando voltou à mesa, Luís Miguel tinha desaparecido.

- O Luís Miguel teve de se ir embora - explicou-lhe Concha

- mas pediu-me para te transmitir que adorou todos os segundos contigo.

A cara de desilusão de Teresa deveria ter sido de tal forma evidente, que Concha acrescentou:

- Ooooh! - Fez um beicinho de bebé triste. - Não fiques assim. Ele não queria ir-se embora, teve mesmo de ir. Foi uma emergência. Ele é médico, não sei se sabes. Oh, onde é que eu estou com a cabeça, claro que sabes. Até já deves saber a cor das cuecas dele. - Soltou uma gargalhada.

- Concha! - advertiu-a, a rir-se. - Tens uma mente muito porca.

 

No final da noite, Teresa levou Concha a casa, e acabou por ceder ao convite insistente da amiga para que entrasse um bocadinho.

- Ele disse isso mesmo? - quis saber Teresa. Concha abriu a porta do frigorífico e retirou de lá uma garrafa de vinho branco meio vazia.

-O quê? - perguntou, voltando-se para Teresa, que estava sentada com os cotovelos em cima da mesa da cozinha, com o queixo apoiado na mão esquerda e uma expressão sonhadora.

- Que adorou todos os segundos comigo?

-Foram as palavras exactas dele - garantiu-lhe. Abriu o armário da loiça, donde retirou dois copos e sugeriu: - Vamos lá para fora?

Estavam sentadas no varandim a fumar cigarros e a beber vinho. Concha vivia numas águas-furtadas na Lapa, com vista para o Tejo. Ao longe, na escuridão do rio, luzes deslizavam em direcção ao mar. Era Fevereiro e fazia frio.

- Simpático, o teu editor - comentou Concha, apertando-se no seu casaco.

- É - concordou Teresa -, é um tipo especial.

- Eu tenho queda para tipos especiais.

- Intelectuais?

- Malucos, é o que eles são.

Teresa permaneceu calada, com os seus pensamentos, a ver o barco afastar-se ao longo da língua escura que era o rio e a bebericar o seu vinho. Concha bufou.

- O que foi? - perguntou Teresa.

- Estava a pensar. - parou. Deu uma passa furiosa no cigarro, inspirou profundamente e soltou para a noite uma longa nuvem de fumo.

- Estavas a pensar o quê?

- Estava a pensar - voltou-se para Teresa - que, quando éramos miúdas e tínhamos aqueles namorados todos (bem, mais tu do que eu), costumávamos dizer que havíamos de casar com o tipo perfeito.

Teresa abanou a cabeça, com um sorriso desencorajador.

-Não, a sério Teresa, não achas que escolhemos de mais? , quer dizer, que nos preocupámos demasiado em escolher um tipo que preenchesse os requisitos todos e deixámos de fora o fundamental?

- Aonde é que tu queres chegar?

- Quero dizer que, se calhar (e agora estou a falar só de mim) preocupei-me muito em encontrar o tipo bonito, inteligente, de boas famílias, rico - sublinhou a palavra rico -, mas nem parei para pensar se estávamos mesmo apaixonados, percebes?

- Percebo.

-E?.

- E comigo não foi assim. O Guilherme não era rico nem de boas famílias, como sabes.

- Sim, mas era bonito e era o tipo mais popular da sua altura.

Já imaginaste Teresa? , eu caí na mesma asneira três vezes! Caramba, sou mesmo estúpida.

-Não és nada. De certeza que não casaste três vezes sem gostares deles. As coisas não correram bem, foi só isso.

- Não sei. - hesitou Concha. Teresa reparou que ela tinha os olhos a brilhar, de lágrimas prontas a saltar. - Tenho andado um bocado desesperada.

- Oh, querida. - disse Teresa, passando o braço direito por cima dos seus ombros, para a confortar. - Por que é que não me telefonaste?

-Tive vontade de o fazer, mas... - encolheu os ombros e fungou - pensei que tu já tinhas problemas suficientes, para te estar a chatear com os meus.

- Que disparate! Sabes que podes ligar-me sempre que quiseres. Faz- nos bem ouvir os problemas dos outros, de vez em quando, para descansarmos dos nossos - disse, a brincar.

Riram-se as duas.

- Então, por que é que tens andado desesperada?

- Oh, sabes como é, tenho quase quarenta anos, três divórcios nunca trabalhei, vivo à conta do meu pai, nada de especial - ironizou.

- E que tal procurares um emprego?

- A fazer o quê?

- Sei lá. Podes fazer tanta coisa. Pede ao teu pai para te ajudar. Tu tens um curso superior, és advogada, podes trabalhar no escritório dele.

-Vou pensar nisso. E o Guilherme? - mudou de assunto.

- Como é que vão as coisas com ele?

- Vão bem. - Encolheu os ombros. - Pelo menos, já não o odeio.

- Não tivemos mesmo sorte, pois não?

- Não acho que seja só uma questão de sorte - disse Teresa.

- Também tivemos as nossas responsabilidades. Eu antes pensava que tinha feito tudo certo e não merecia passar pelo que passei, mas agora admito que fui suficientemente avisada, que tive bastantes sinais para me afastar dele enquanto era tempo, e não o fiz. Portanto, não me posso queixar.

- Teresa, estás a ser muito dura contigo.

-Não, estou finalmente a enfrentar a realidade. Deixei de andar a chorar pelos cantos e estou a tentar refazer a minha vida. Já chega de olhar para o passado, embora, nem sempre o consiga.

Concha limpou as lágrimas dos olhos com a manga do casaco e levantou o copo com um sorriso.

- Brindo a isso.

Teresa acompanhou-a.

- Ao futuro - sugeriu Concha.

- Ao futuro.

Esvaziaram os copos.

- O álcool faz-me ficar sentimental - disse Concha, e riu-se.

- Bem - suspirou Teresa -, são horas de me pôr a caminho.

- Nem penses nisso. Já bebeste de mais para ires a guiar para Cascais. Hoje dormes em minha casa.

- Não é preciso - protestou.

- É preciso, é. Hoje dormes aqui e não há discussão.

 

Acordaram tarde, depois das dez, tomaram banho e reuniram-se na cozinha. Concha fez torradas, em que quase não tocaram, e muito sumo de laranja, de que beberam um jarro inteiro.

- Que ressaca, meu Deus - queixou-se Teresa.

- Toma um café para arrebitares - sugeriu Concha, servindo-lhe uma chávena.

- Obrigada.

- Estás mesmo mal.

- Hoje em dia, praticamente não bebo.

Concha acendeu um cigarro.

- Eu não posso dizer o mesmo - disse. - Quer dizer, não costumo embebedar-me, mas mantenho-me em forma.

O telefone começou a tocar. Concha foi à procura dele.

- Onde é que está a porcaria do telefone?

Era um aparelho portátil. Foi à sala e voltou de lá a falar.

- Não, não, ela não ficou nada chateada - disse Concha, ao telefone, a olhar para Teresa, divertida. Percebeu logo com quem falava. - Ela também gostou muito de ti. - Teresa arregalou os olhos, furiosa. Concha respondeu-lhe com uma expressão de gozo, enquanto ouvia. - Queres o telefone dela? - disse, com voz de caso. - Vais convidá-la para sair, é? - Nova pausa. Teresa escondeu a cara entre as mãos. - Ah, está bem, eu dou-te o número, mas olha, ela está mesmo aqui à minha frente. Podes pedir-lhe directamente. - Estendeu a mão para Teresa. - O Luís Miguel quer convidar-te para sair.

Teresa recebeu o telefone, embaraçada, tapou o bocal e protestou em segredo:

- Sacana!

Depois atendeu a chamada.

Percebeu que Luís Miguel também estava atrapalhado, por ter sido apanhado de surpresa. Ele pediu-lhe desculpa por ter tido que sair repentinamente na noite anterior.

-Não faz mal - disse Teresa. - A Concha explicou-me que você teve uma chamada de urgência.

- Pois foi - confirmou ele.

- Correu tudo bem?

- Correu, correu.

Fez-se um silêncio. Teresa ouviu-o respirar fundo do outro lado.

- Confesso que não estava à espera disto - disse ele.

- De quê? - perguntou Teresa, com um sorriso nervoso.

- De a apanhar aí. A Concha pregou-me uma partida, não me avisou. Bem... - aclarou a voz - mas eu estava a dizer-lhe que gostei muito de conversar consigo ontem...

- Eu também - disse ela, encorajando- o a continuar.

- E pedi-lhe o seu número de telefone...

- Sim.

- Porque queria convidá-la para sair.

Nova pausa.

- Estou à espera - disse Teresa, a brincar com ele.

- Ah - riu-se. - E se fôssemos jantar hoje?

- Eu gostava muito, Luís Miguel, mas tenho um problema.

- Qual é?

- Tenho a minha filha.

- Hum, e se for amanhã? - sugeriu ele. - Dá tempo para resolver o problema?

- Não me parece.

- Eu fico com a Sofia - ofereceu-se Concha, interrompendo-a.

Teresa abriu-lhe os olhos, num sinal para a calar.

- Então - disse Luís Miguel, desanimado -, pronto, fica para outra altura. Tenho pena.

- Mas - acrescentou Teresa - posso fazer o jantar, se você quiser ir lá a casa.

Concha levantou os punhos no ar e gritou em voz baixa: - Yes!

- Em sua casa? - repetiu ele, apreciando a ideia. - Claro que quero. Gosto imenso.

- Então, está combinado.

 

Fazia um daqueles maravilhosos dias de sol de Inverno, frios mas com o ar extraordinariamente limpo. Teresa tinha o dia todo livre e, como não estava com pressa, optou pela marginal no caminho para Cascais. Guiou devagar, apreciando o passeio.

Antes de deixar Concha, espremeu-a o mais que pôde para ficar a saber o máximo possível sobre Luís Miguel. Infelizmente, descobriu que Concha também não o conhecia muito bem. Explicou-lhe que era uma amizade recente e que só sabia que Luís Miguel era um médico conceituado e que vinha de uma família de muitos irmãos. Um tipo sério, disse, mas que não fala muito. É um bocadinho tímido, mas simpático.

A novidade mais importante que Concha lhe deu foi que Luís Miguel era viúvo. Teresa ficou chocada. E eu a achar que ele era um solteirão que só se interessava pela carreira, pensou imediatamente, envergonhada por ter sido tão injusta. Ficou aparvalhada, sem saber o que pensar. Quis saber do que morrera a mulher dele. De cancro, acho eu, disse Concha, mas ele não fala disso.

Foi obrigada a parar num semáforo. O rio, à esquerda, resplandecia. Teresa sentiu-se nostálgica. Por algum motivo, foi levada a lembrar-se de Guilherme. Apreciara o gesto dele, na noite passada, de aparecer para a felicitar. Achara-o muito contido, radicalmente diferente de quando eram casados. E também já não era o mesmo Guilherme com quem ela vira nascer o Sol, na praia, numa manhã mágica de um Verão distante.

Guilherme estava outro, em todos os aspectos. A difícil travessia pelos anos do vício tinha deixado as suas marcas, era certo, parecia prematuramente envelhecido, com rugas na testa e o cabelo a ficar grisalho, mas, apesar de tudo, Teresa achou-o bem.

A viragem definitiva na vida dele tinha acontecido após um dia trágico, que nenhum deles esqueceria para o resto dos seus dias. E, em grande medida, Guilherme devia a sua vida a Teresa, pois sem ela talvez não se tivesse salvo.

Guilherme tinha ido buscar Sofia para ficar com a filha algumas horas, como acontecia ocasionalmente. Nestas alturas, Teresa ficava preocupada, pois há muito que deixara de ter confiança em Guilherme. Mas sabia como Sofia se sentia feliz por ver o pai e como era importante para ela passar algum tempo com ele. Por isso, obrigava-se a dominar o seu medo e dizia a si própria que ele também a amava e que nada de mal lhe poderia acontecer.

Depois de eles saírem, Teresa aproveitou para ir ao supermercado fazer algumas compras de que necessitava. Demorou três horas. Regressada a casa e terminada a tarefa de arrumar os artigos na despensa, olhou para o relógio. Tinham passado quatro horas. Começou a ficar preocupada. Normalmente, aqueles passeios não demoravam mais de três horas, e Guilherme dissera-lhe que não iria muito longe. Passou mais uma hora e eles não regressaram. E não havia forma de contactar Guilherme, porque nessa época ele deixara de usar telemóvel por não ter dinheiro para pagar a conta.

Teresa foi invadida por uma onda de ansiedade. Deixou passar ainda trinta minutos e, então, não aguentou mais e telefonou para a polícia. O agente que atendeu a chamada fez-lhe algumas perguntas. Quis saber a idade da criança e com quem é que ela se encontrava da última vez que fora vista. Em seguida explicou-lhe que, estando a miúda com o pai, não podia ser dada como desaparecida, e acrescentou que mesmo para os casos de pessoas desaparecidas de facto, só decorrido um período mínimo de tempo após a ocorrência é que a polícia dava início às buscas. E, no caso de Sofia, ainda estavam bem longe de esse prazo ter expirado. Na maioria das vezes, acrescentou o agente, as pessoas acabavam por aparecer pelos seus próprios meios antes mesmo de haver necessidade de as procurar.

Desligou o telefone aflita, dominada por ondas de pânico e de frustração por não poder fazer nada. Telefonou ainda para o Hospital de Cascais, mas aí não lhe confirmaram a entrada de ninguém com os nomes deles. Essa informação sossegou-a um pouco. Teve vontade de sair para os procurar, mas não quis deixar o apartamento porque eles poderiam regressar entretanto.

Ligou para a mãe, que tinha o telemóvel desligado. Deixou-lhe uma mensagem e nem sequer tentou o pai, pois sabia que ele se encontrava em viagem de negócios no estrangeiro.

Esperou sentada ao lado do telefone. Por essa altura, passaram-lhe milhares de coisas pela cabeça. E se eles tiveram um acidente? E se o Guilherme se passou de vez e resolveu raptar a Sofia? Ele pode desaparecer com ela durante anos, pode levá-la sabe-se lá para onde. pensou em tudo.

Finalmente, decidiu sair à procura deles. Agora já era de noite e Teresa convencera-se de que não voltariam. Seria, portanto, inútil continuar ali à espera, até porque não aguentava mais ficar parada e sem ajuda. Foi buscar a carteira, as chaves do carro e o casaco.

Ia precisamente a sair quando ouviu a campainha de casa. Abriu a porta num sufoco e deparou-se com dois polícias uniformizados. Sofia estava ali de pé, entre eles.

-Boa noite, minha senhora - cumprimentou um deles:

- Esta menina é sua filha?

Em vez de responder ao polícia, Teresa lançou-se nos braços da filha. Sofia começou a chorar.

Passou o Estoril e continuou pela marginal em direcção a Cascais, onde foi embrenhar-se no trânsito caótico do costume. Hoje em dia, circular de carro em Cascais transformara-se num terrível martírio para as pessoas que ali moravam e que tinham visto suas pacatas ruas de outrora tornarem-se quase intransitáveis com o aumento demográfico, a construção desenfreada e sem regras, falta de bom senso da autarquia e as alterações de sentidos e de sinalização das ruas, que faziam de uma pequena deslocação um autêntico quebra-cabeças. Mas como não estava com pressa, Teresa deixou-se andar no pára-arranca sem se irritar com a lentidão da marcha, entregue aos seus pensamentos. Ia buscar Sofia a casa dos pais e depois passariam num supermercado para comprar os ingredientes para o jantar que ela própria iria cozinhar, para receber Luís Miguel.

Pensou na filha e no que ela tinha passado por causa de Guilherme. Agora, Sofia estava completamente recuperada do trauma, mas durante meses apresentara sinais de ansiedade preocupantes. Teresa chegara a consultar um psicólogo, que seguira Sofia por algum tempo.

Ainda que, após o incidente, Teresa nem sequer deixasse Guilherme aproximar-se da filha, era frequente Sofia agarrar-se a ela em pânico, rogando-lhe que não a obrigasse a sair com o pai.

Guilherme só lhe apareceu três dias depois de os polícias terem levado Sofia a casa. Felizmente, a criança encontrava-se na escola. Teresa chamou-lhe todos os nomes que lhe vieram à cabeça, antes mesmo de ele ter oportunidade de explicar o que havia acontecido e, quando o fez, ela ainda ficou mais horrorizada. Guilherme tinha-a deixado num café sozinha a lanchar e saíra para ir comprar droga.

- Depois - continuou - tomei a dose e esqueci-me completamente dela. Só hoje é que me lembrei. Fui a correr ao café e lá disseram-me que tinham chamado a polícia.

- Ao que tu chegaste - desabafou Teresa, estupefacta. - A tua própria filha.

- Eu sei, Teresa, eu sei - reconheceu, desolado.

- Sai desta casa e nunca mais, na tua vida, apareças aqui.

- Teresa - disse, em lágrimas -, eu preciso de ajuda. Em resposta, ela fechou-lhe a porta na cara.

A fúria de Teresa demorou um mês a dissipar-se. Passou semanas perturbada, a batalhar com uma confusa mistura de sentimentos, a navegar entre a revolta total e o desespero. Estava chocada e deprimida. Por vezes afundava-se numa profunda tristeza e ficava tardes inteiras sentada na sala a chorar, enquanto a filha estava na escola. Nessa época, só mesmo a necessidade de proporcionar um ambiente normal a Sofia é que a fazia reagir. Cumpria as tarefas caseiras e mostrava-se razoavelmente alegre na presença dela. Mas deixou de trabalhar, pois não tinha cabeça para fazer nada que lhe exigisse mais do que um labor mecânico e rotineiro.

Sofia acordava aos gritos a meio da noite e Teresa levava-a para a sua cama, abraçava-a e embalava-a com palavras reconfortantes para a sossegar. Mas ela própria tinha dificuldade em dormir. Passava as noites em claro, preocupada com o futuro e com o mal que Guilherme poderia fazer à filha, à medida que a sua condição se fosse degradando. Temia que ele lhe fosse bater mais vezes à porta para ver Sofia ou, simplesmente, para lhe pedir dinheiro. Receava que ela visse o pai num estado deplorável, como um pedinte, ou que ele fizesse cenas para a pressionar por qualquer razão e que isso afectasse Sofia psicologicamente, ainda mais do que já estava.

As palavras de Guilherme, na última vez que tinham falado, ainda lhe ressoavam na cabeça. Teresa", dissera ele, eu preciso de ajuda. " Nesse momento estava tão zangada que lhe negara qualquer auxílio. Lembrava-se de se ter sentido indignada com o atrevimento dele. Nem sequer o levara a sério, pois entendera aquela frase como um estratagema habilidoso e reles para lhe apaziguar a fúria.

Agora, porém, ultrapassado o choque inicial, Teresa começava a raciocinar com mais clareza. Antes de tomar qualquer decisão, foi falar com o pai e pediu-lhe que a aconselhasse sobre a atitude mais acertada a tomar nestas circunstâncias.

- Faz isso - encorajou-a o pai, depois de ouvir demoradamente o plano que ela andara a arquitectar. Durante dias a fio conseguira pensar no que fazer para pôr um ponto final no pesadelo que estava a viver. - Faz isso, e não te preocupes com as despesas, porque eu pago tudo o que for necessário.

Teresa saiu de casa dos pais comovida. Apesar de todos os seus erros, no passado, os pais nunca deixaram de confiar nela e o amor deles não esmoreceu em nenhum momento, nem sequer quando as piores expectativas que eles tinham sobre o casamento dela se confirmaram. Pelo contrário, dando-lhe uma prova de amor incondicional, o pai dispunha-se agora a ajudar no que fosse necessário para a salvar da situação dramática em que se encontrava.

Chegou a casa dos pais às quatro e trinta da tarde. Estacionou o Mercedes na garagem e foi ao encontro da mãe, na sala. O motorista tinha ido buscar Sofia à escola e Teresa aproveitou para pôr a conversa em dia com a mãe. A sua melhor qualidade era a forma positiva como encarava a vida, e Teresa reconhecia-lhe isso, tal como reconhecia o optimismo que ela soubera transmitir-lhe nos piores momentos. Agora era passado, mas Teresa lembrava-se bem de como a mãe havia sido incansável nas visitas diárias que lhe fizera, como fora habilidosa nos seus argumentos sensatos, como a arrastara para fora do apartamento dela e a obrigara a seguir a sua vida numa altura em que Teresa dava sinais de ceder à depressão.

Fora a mãe que a incentivara a procurar Guilherme e a comprometê-lo com o seu plano, porque, mesmo depois de ter as ideias arrumadas na cabeça e de ter conversado com o pai, Teresa ainda hesitava em dar o passo decisivo. A verdade é que não se sentia com coragem para o encarar. Culpava-o por ter feito da vida dela um tormento e de ter sido egoísta e irresponsável ao ponto de colocar a filha em perigo.

- Se for falar com ele agora - desabafou com a mãe -, o mais certo é atirar-lhe com um vaso à cabeça. Acho que vou começar a disparatar com ele, em vez de o convencer a fazer seja o que for.

- Eu percebo o que estás a dizer - disse a mãe. - Percebo que te sintas demasiado revoltada para quereres ir ter com ele. Mas, filha, vais ter de ser corajosa e dominar os teus sentimentos.

- Porquê, mãe? Por que é que eu não hei-de deixá-lo apodrecer no buraco onde está e esquecê-lo simplesmente? Por que é que eu tenho de continuar a andar com ele às costas? O Guilherme não merece que eu perca nem cinco minutos a pensar nele.

- Não é por ele, nem por ti - respondeu a mãe -, é pela tua filha.

- Eu sei mãe, eu sei... - reconheceu.

 

O cenário era bem pior do que Teresa imaginara. Guilherme abriu-lhe a porta e deixou-a entrar com um gesto de cabeça e um sorriso de desalento. Eram quase cinco da tarde mas ele estava em pijama. Arrastou os pés pelo corredor, à frente dela, até ao quarto. Levava as mãos junto ao peito, encolhido, como se tivesse frio. Sentou-se na beira da cama e levantou os olhos para ela. Tinha olheiras tão negras que parecia ter sido esmurrado.

Os arrepios e as contracções violentas vinham em ondas e Guilherme contorcia-se de dores. Teresa reconheceu os sintomas da falta de droga. Guilherme chegara ao estágio em que precisava de se injectar regularmente para evitar o sofrimento. A droga deixara de ser sua arrziga para se tornar uma tirana incontrolável. O organismo exigia uma nova dose e, se isso não acontecia, reagia violentamente. Quando se chegava a este ponto, a tortura era tal, que uma pessoa era capaz de fazer qualquer coisa para arranjar mais droga. Os dias deixavam de ser medidos em horas para se dividirem entre o momento da última dose e o da próxima. Nada mais importava senão garantir um pouco de heroína que apaziguasse o sofrimento.

Teresa olhou em redor. O quarto - o antigo quarto deles - parecia uma lixeira. No chão havia seringas, colheres e isqueiros, misturados com roupa suja e pratos com bocados de comida seca. A cama já não tinha lençóis, apenas o colchão todo manchado de nódoas, tal como a alcatifa e o pijama dele. O cheiro era insuportável e Teresa foi abrir a janela para arejar o ambiente e deixar entrar a luz:

Os pés de Guilherme eram uma chaga, assim como as pernas, os braços e o pescoço, lacerados pelas picadas sistemáticas das agulhas. Os dentes tinham-lhe apodrecido no processo inexorável da degradação. O homem orgulhoso de outrora desaparecera e ali, na presença de Teresa, só havia um destroço da pessoa que ela conhecera intimamente, que amara, e de quem tivera uma filha.

Ao contrário do que esperara, não teve vontade de o insultar, de lhe bater ou de o tratar mal fosse de que forma fosse. Guilherme, ele próprio, era a imagem da humilhação e ninguém, no seu perfeito juízo, teria a coragem de rebaixar um ser humano que já se encontrava no mais baixo patamar da dignidade. Teresa tapou a boca com a mão, num reflexo do que lhe ia na cabeça. Sentiu-se chocada. Mas sabia que, para o ajudar, não podia ceder à emoção que aquele cenário terrível lhe provocava.

-Guilherme - disse, sem ter a certeza de conseguir a sua atenção. - Estás a ouvir-me?

Ele embalava-se, sentado na cama, com os braços cruzados.

- Guilherme - chamou-o de novo.

- Sim - respondeu ele, sem tirar os olhos do chão.

- Eu só vou oferecer-te isto uma vez. Se quiseres tratar-te, vens comigo e eu levo-te para uma clínica. Está tudo tratado, só tens de ir para lá.

Guilherme continuou a embalar-se sem dizer nada.

- Ouviste o que eu disse, Guilherme?

- Ouvi - disse ele, mas só respondeu depois de um longo silêncio.

- Então, vens?

Silêncio. Guilherme parecia autista, como se estivesse isolado num mundo só seu.

- Guilherme?

Teresa ajoelhou-se para o encarar e percebeu que ele tinha lágrimas nos olhos.

- Guilherme - falou-lhe com ternura -, tens de te tratar, percebes isso, não percebes? Se ficares aqui sozinho, morres. Tens de ser forte e vir comigo. Vais ver que ficas melhor, na clínica.

Ele parou de se embalar e começou a chorar como um menino arrependido.

- Oh, Teresa, desculpa, desculpa, desculpa - repetiu-se, abanando a cabeça em sinal de desespero. - Eu não consigo...

-Consegues, Guilherme. - Pôs-lhe as mãos nos ombros.

- Basta quereres, basta teres força de vontade.

Ele parou um pouco para pensar e depois pôs-se a pedinchar.

- Eu vou Teresa, eu vou - disse -, mas preciso de tomar uma dose antes de ir. Teresa, tens de me ajudar, tu não sabes o que isto é. Dói tanto, tens de me ajudar.

- Não Guilherme, acabaram-se as doses.

- Só uma Teresa, é a última. Eu preciso, eu preciso, eu preciso.

Nesse momento Teresa percebeu que ele não ia com ela. Só queria mais droga. Tirou as mãos dos seus ombros, ergueu-se e suspirou, desanimada.

- És um caso perdido - lamentou-o -, és um caso perdido e eu já não posso fazer nada por ti.

Guilherme remeteu-se novamente ao silêncio, recomeçando a embalar-se. Teresa saiu do quarto e dirigiu-se para a porta da rua sem dizer mais nada.

Quando chegou ao carro, agarrou-se ao volante e começou a chorar descontroladamente. Sentiu uma frustração terrível. Tinha sido derrotada, a droga vencera o último combate. Não voltaria a tentar ajudá-lo e ele acabaria por morrer. Agora, a morte seria só uma questão de tempo.

Chorou até não ter mais lágrimas. Exausta, meteu a chave na ignição e pôs o carro a trabalhar. Foi nesse instante que as palavras da mãe lhe assomaram à memória: Não é por ele, nem por ti, dissera-lhe ela, é pela tua filha. Desligou novamente o motor, saltou do seu lugar e bateu com a porta. Não vens a bem, vens a mal, pensou.

Voltou a subir ao apartamento de Guilherme e colou o dedo à campainha até ele lhe abrir a porta.

- Vamos fazer o seguinte, Guilherme - disse-lhe, quando ele abriu -, vais tomar um duche, vestir-te e vens comigo para a clínica.

- Mas eu não consigo, Teresa - começou a protestar. - Eu estou muito mal.

-Já vamos ver se consegues ou não consegues.

Agarrou-o por um braço e arrastou-o para a casa de banho. Despiu- lhe o pijama, ignorando os protestos dele, enfiou-o na banheira e abriu a água fria. Guilherme gritou.

- Estás a matar-me!

Teresa fechou a água, mas manteve a mão na torneira.

- Vais tomar banho e portar-te como um homenzinho?

- Está bem, eu tomo, mas abre a água quente.

Deixou-o no duche e foi para o quarto procurar alguma coisa que ele pudesse vestir. Abriu o roupeiro e descobriu um monte de roupa amarrotada empilhada de qualquer maneira. As gavetas estavam vazias e tudo o que havia era calças e camisas que já não viam água e detergente há muito tempo. Escolheu uns jeans razoavelmente limpos e uma camisola de lã.

Guilherme regressou ao quarto com a toalha pela cintura e só então é que ela tomou consciência do estado de desnutrição em que ele se encontrava.

- Há quanto tempo é que não comes? - Era só pele e osso.

- Não sei - disse. - Não me lembro.

Ajudou-o a vestir-se, enfiou-lhe um casaco, levou-o para o carro e só parou na clínica. Foram recebidos pelo director, que teve uma longa conversa com Guilherme para o elucidar sobre o tipo de tratamento que teria de seguir. No final, perguntou-lhe se percebera tudo o que lhe fora exposto, se concordava com as condições da clínica e se se comprometia a empenhar-se no tratamento.

- Sim - disse Guilherme, simplesmente.

Durante o tempo em que durou a conversa, Teresa manteve-se em silêncio, compreendendo que não deveria interferir. No final abraçou Guilherme, despedindo-se.

- Agora é contigo - disse. - Estás por tua conta.

 

Preparou um jantar simples, propositadamente, para não parecer pretensiosa, e porque não quis criar uma atmosfera cerimoniosa, mas sim um ambiente caseiro e acolhedor. Esparguete à bolonhesa. Afinal de contas, pensou, a melhor comida não era, necessariamente, a mais sofisticada. Além de que, não sendo má cozinheira, Teresa ficava-se pelos pratos habituais. Nunca sentira especial interesse pela cozinha e nunca tivera necessidade de con feccionar mais do que as refeições rotineiras para ela e para Sofia. No tempo de Guilherme, jantavam fora frequentemente. Aliás, Teresa tinha a impressão de que só começara a ter um verdadeiro lar quando se divorciou, porque antes disso passava muito pouco tempo em casa. Guilherme arranjava programas todos os dias e Sofia, ainda bebé, ficava demasiadas noites entregue aos cuidados de babysitters ou em casa dos avós.

Era a primeira vez que Teresa recebia um homem em sua casa. Uma experiência nova, portanto, o que, estranhamente, a deixou um pouco ansiosa. Mas, felizmente, como se manteve ocupada com as compras, com o banho e o jantar de Sofia e com os preparativos para receber Luís Miguel, não teve muito tempo livre para se preocupar demasiado com a forma como decorreria o serão.

Gastou quase uma hora a tomar banho, a pentear-se e a vestir-se. Optou por umas calças pretas e por uma camisola azul-clara de gola alta, de lã, suficientemente justa para lhe realçar as formas. Pôs um pouco de perfume no pescoço e atrás das orelhas, mas dispensou pinturas.

Fizera de propósito para que ele conhecesse Sofia logo no primeiro encontro. Dissera a si própria que não quereria perder tempo com um homem que não estivesse preparado para a aceitar de acordo com as contingências da sua vida. Para Teresa, Sofia estava em primeiro lugar, o bem-estar da filha era mais importante do que qualquer outra coisa, e nenhum homem no mundo a faria colocar a sua filha em segundo plano.

Ao pensar nisto, Teresa deu consigo a sorrir sozinha, cogitando se não estaria a pôr o carro à frente dos bois. Afinal de contas, era só um jantar. Ela mal conhecia o homem, não sabia quais eram as intenções dele e, acima de tudo, não estava segura de quais eram as intenções dela. Claro que era fácil presumir que um médico, viúvo, na casa dos cinquenta, seria uma pessoa ponderada e não andaria à procura de aventuras inconsequentes. Tudo o que ela sabia de Luís Miguel lhe sugeria que era um homem sério, em quem se podia confiar. Quanto a ela, bem, Teresa já tivera a sua dose de loucuras na vida e já sofrera o suficiente para andar a brincar aos namorados. Só não tinha a certeza era se já estava preparada para se entregar novamente a alguém. Em todo o caso, admitia que a solidão começava a pesar-lhe e era tempo de correr alguns riscos. Teresa estava a pensar, quando a campainha da porta anunciou a chegada dele.

Sofia correu para a porta. Na sua deliciosa inocência infantil, deixou-se contagiar pela excitação de receberem uma visita. Para ela também era a primeira vez. Andou o tempo todo de roda da mãe, enquanto ela fazia o jantar, punha a mesa com duas velas ao centro, arrumava a casa e acendia as luzes todas da sala, criando um ambiente festivo que quebrava alegremente a tranquilidade da rotina habitual.

- Ora bem - disse Luís Miguel, quando ela abriu a porta -, esta menina deve ser a Sofia.

Ele ficou parado do lado de fora da porta, com as mãos atrás das costas e concentrado exclusivamente em Sofia. Ela sorriu-lhe, envergonhada, fazendo que sim com a cabeça, e Teresa sentiu um enorme alívio por ver que ele tivera a atenção de não ignorar a filha.

- A tua mãe - continuou - disse-me que tu gostas muito de ler. É verdade?

- É - respondeu Sofia.

- Então, vê lá o que eu tenho aqui para ti. - Tirou a mão de trás das costas e entregou-lhe um presente embrulhado.

- O que é que se diz, Sofia? - disse Teresa.

- Obrigada.

- Nada - respondeu Luís Miguel. - E para a mãe - continuou, revelando a outra mão - tenho outro presente.

Era uma caixa de chocolates. Teresa agradeceu, apreciando sinceramente a simpatia dele.

- Não era preciso trazer nada - disse.

- Eu sei - retorquiu ele, com boa disposição -, mas apeteceu-me. Hoje em dia só dou presentes à família, naquelas épocas obrigatórias, em que temos de inventar coisas para comprar. É óptimo dar um presente só pelo prazer de dar, não é?

- É - reconheceu. - Só que eu não estava à espera disto e não tenho nada para lhe dar em troca.

- Tem um jantar, espero? - brincou ele.

- Ah, isso tenho.

Se houve coisa que Teresa descobriu nessa noite, foi que Luís Miguel era dono de um sentido de oportunidade a toda a prova. Ele percebera exactamente o espírito daquele convite para jantar e não falhou em nada. Ela reparou que ele vinha, muito apropriadamente, vestido de maneira informal. Trazia jeans de marca, novos e bem vincados, mas que não deixavam de ser calças de ganga, uma camisa desportiva e um pulôver azul-escuro. Em suma, viera preparado para uma noite caseira e sem cerimónias.

Luís Miguel declinou a oferta de um uísque, mas aceitou um pouco do vinho tinto que ela escolhera para acompanhar a refeição. Um bom vinho, por sinal. Para contrabalançar a simplicidade do jantar, Teresa comprara um excelente tinto do Douro, guiandopela segurança da região de origem e pelo preço algo exorbitante.

- Pareceu-me que era bom - disse, confessando a sua ignorância - mas eu, de vinhos, não percebo nada.

- Garanto-lhe que é muito bom - confirmou ele, conhecedor.

- Tenho de ir à cozinha, ver se não deixo queimar o jantar - desculpou- se Teresa.

- Não precisa de ajuda?

- Não, obrigada. Está tudo sob controlo.

- Então, eu espero aqui.

-Não me desapareça, como ontem - apontou-lhe o dedo, numa advertência alegre.

Ele cerrou os olhos, fazendo uma careta de culpado.

- Não - disse. - Prometo que hoje não há surpresas. Ela saiu, pela porta da cozinha, deixando-o a sós com Sofia compenetrada no livro novo, o que permitiu a Luís Miguel estudar a sala, enquanto apreciava o vinho.

Havia um conjunto de sofás brancos, direccionados para uma lareira onde crepitava um fogo vivo e acolhedor. A sala era espaçosa, alcatifada, com uma decoração moderna. Reparou, aprovadoramente, que ela tinha muito bom gosto. Sendo Luís Miguel apreciador de arte, não lhe escaparam os quadros abstractos de pintores contemporâneos, em especial três deles, que eram de muito boa qualidade. Quando Teresa regressou, ele elogiou-lhe os quadros.

- São ofertas do meu pai - explicou ela.

A mesa de jantar ficava ao canto da sala. Teresa não tinha sala de jantar e só usava a mesa muito raramente. Mas hoje cobrira-a com uma bonita toalha branca e fora desenterrar o seu melhor serviço de loiça do esquecimento dos armários.

Antes de irem para a mesa, Teresa foi deitar Sofia, com a promessa de uns minutos de tolerância para que pudesse adormecer a ler o livro novo. Depois serviu o jantar. Luís Miguel acendeu as velas e ela baixou a luminosidade da sala, rodando um interruptor de parede que controlava toda a instalação eléctrica.

- Música? - lembrou-se, quando se ia a sentar.

- Por que não? - respondeu ele.

O jantar decorreu agradavelmente e sem sobressaltos. Luís Miguel teve oportunidade de explicar a sua saída intempestiva na noite anterior e Teresa contou-lhe o que a levara a ficar a dormir em casa de Concha. Falou-lhe da sua juventude e de como elas as duas eram inseparáveis nessa altura.

Como sobremesa, serviu uma mousse de chocolate caseira, feita por ela, que ele comeu e repetiu, absolutamente maravilhado.

- Hum, fabulosa - elogiou, juntando o polegar e o indicador a sublinhar o que pensava da mousse dela.

- Posso ir fazer outra - disse Teresa, fingindo-se escandalizada com a quantidade que ele comeu -, se quiser.

- Não é necessário - retorquiu Luís Miguel, a limpar a boca com o guardanapo. - Os doces são o meu maior vício, confesso.

- Como é que não está gordo?

- Na minha idade, quer você dizer? Tenho um trabalho agitado e faço longas caminhadas na época da caça, no Alentejo.

-Que idade é que você tem? - perguntou- lhe, enquanto servia o café.

Ele não respondeu logo. Acendeu uma cigarrilha com um isqueiro de ouro e espreitou-a através das espirais do fumo do tabaco, com uma expressão enigmática.

- Estou a ver que a minha idade está a preocupá-la - brincou.

- De modo nenhum - retorquiu Teresa, divertida. - É apenas curiosidade.

- Quarenta e nove. E você?

- Não se pergunta a idade a uma senhora.

Ele sorriu. Ela fixou-se nos seus olhos, desafiando-o, e ele não os desviou. Eram claros, quase cinzentos, raros, pensou Teresa.

- Como é que vamos sair deste impasse? - perguntou Luís Miguel, quebrando aqueles segundos de silêncio cúmplice.

- Trinta e nove - acabou por confessar.

- Temos o nove em comum.

- Espero que tenhamos mais alguma coisa em comum.

-Já é um princípio.

- Já. - concordou Teresa, pensativa. Os seus dedos puseram

-se a brincar com a argola do guardanapo. - A Concha contouque você é viúvo.

A frase atingiu-o de surpresa e ele deixou de sorrir. Ficou visi velmente incomodado. Por momentos, Teresa receou ter ido longe de mais. Não queria que ele a achasse intrometida e se afastasse dela, mas não foi por leviandade que puxou o assunto. Precisava de saber o que podia esperar de Luís Miguel, e um assunto tão sensível como a morte da mulher não poderia ser ignorado.

- É verdade - confirmou ele.

- Esqueça o que eu disse, não deve ser o seu assunto preferido.

- Fez um sorriso comprometido, mas ficou na expectativa, vendo se ele aproveitava a deixa para não continuar a conversa.

- Não, não é, de facto - admitiu Luís Miguel -, mas, se vamos ser amigos, acho que você tem o direito de conhecer o meu passado.

Teresa ficou-lhe reconhecida por estas palavras.

-Julguei que já éramos amigos - brincou, para aligeirar o ambiente.

- Tem razão - concedeu ele, com um sorriso triste. - Esta saiu-me mal. Ela... a Mafalda morreu de cancro.

- Foi há quanto tempo?

- Um ano e meio.

- Tem sido muito difícil, imagino.

- Bastante.

- Durante este tempo todo, você não teve mais ninguém? Ele abanou negativamente a cabeça.

- Dediquei-me demasiado ao trabalho.

- E agora, o que é que aconteceu?

- Agora - olhou-a nos olhos, recuperando o sorriso jovial que ela já lhe vira -, encontrei uma escritora famosa que me despertou o interesse e decidi sair das catacumbas outra vez, para ver como é que anda a vida cá fora.

- Ah, que querido. - reagiu Teresa, desarmada. Esticou o braço por cima da mesa, num impulso, e fez-lhe uma festa demorada nas costas da mão, sentindo um desejo irreprimível de o consolar. Ele correspondeu-lhe, segurando-lhe a mão e afagando-a com o polegar direito. Um gesto terno, que ambos adoraram.

- E você - perguntou ele em seguida -, o que é que aconteceu com o seu casamento?

Foi a vez de Teresa ficar apreensiva. Retirou a mão e deixou passar um bocadinho enquanto acendia um cigarro. Quis ganhar tempo, não para fugir ao assunto, mas por não saber muito bem por onde começar.

- Bem... - Deitou fora o fumo que inspirara profundamente.

- Por onde é que hei-de começar?

-Talvez pelo princípio - sugeriu-lhe ele, recostando-se na cadeira e cruzando os braços, prazenteiramente.

Teresa fez que sim com a cabeça, em silêncio.

- Está bem - concordou. E depois iniciou a sua história a partir do momento em que conhecera Guilherme, há muitos anos, numa célebre festa no Estoril. Contou-lhe tudo: a paixão que sentira por ele, a guerra que travou com os pais para que o aceitassem, a gravidez acidental, as drogas, o terrível declínio dele, o sofrimento dela, o susto que apanhou quando ele abandonou Sofia num café e o estado deplorável em que o encontrou no dia em que o levou para a clínica de desintoxicação. Não deixou nada de fora.

Quando acabou, as velas estavam no fim, a música calara-se há muito sem que dessem por isso e na lareira já só restavam cinzas incandescentes e um fumo de fim de noite. Luís Miguel respirou fundo, como que a recuperar o fôlego.

- Caramba - desabafou -, não há dúvida que você passou por muito.

- É verdade, mas sobrevivi - disse, num tom optimista.

- Mulher corajosa.

- Nem por isso. - Encolheu os ombros. - Acho que não tive outra alternativa senão fazer o que tinha de fazer e seguir em frente. Como se costuma dizer, o que tem de ser tem muita força!

- Pois, lá isso é verdade.

Luís Miguel olhou para o relógio. Eram quase três da manhã. A noite tinha passado tão depressa, pensou.

- Bem - disse -, está na hora.

Teresa acompanhou-o à porta. Luís Miguel agradeceu-lhe o jantar, abriu o trinco e virou-se para lhe dar um beijo de despedida. As suas bocas juntaram-se num beijo furtivo, não planeado, mas desejado. Teresa sentiu os lábios dele, que logo se afastaram, como se Luís Miguel não estivesse tão seguro como parecera durante a noite inteira.

Nenhum deles fez qualquer comentário.

- Eu depois telefono - prometeu Luís Miguel, quebrando o embaraço.

Ela aquiesceu com um sorriso.

- Ah! - disse ainda Luís Miguel, antes de abrir a porta do elevador - Há bocado, eu não quis interrompê-la, mas eu também estive naquela festa do Estoril de que você falou.

- A sério? ! - espantou-se Teresa.

- A sério.

- Não acredito!

-Lembro-me perfeitamente, foi uma festa espectacular, mas acabou tudo ao estalo.

- Pois foi - recordou-se Teresa, com uma certa nostalgia na voz. - Nem imagina o susto que eu apanhei.

Ele riu-se.

- Adeus - disse. Abriu a porta do elevador e partiu. Teresa deu duas voltas à chave e encostou-se à porta, enlevada. Sorriu sozinha, feliz, tapando a boca com a mão para conter uma excitação arrebatadora e deliciosamente juvenil. Não há dúvida, pensou, ainda incrédula, que a minha vida ficou marcada por aquela festa.

 

Depois de Luís Miguel sair, Teresa levantou a mesa, colocou a loiça na máquina de lavar, apagou as luzes da sala e dirigiu-se para a casa de banho. Despiu-se e entrou para a banheira. Enfiou-se debaixo do duche para se aquecer antes de se deitar. Tomou um banho demorado, relaxando com o prazer de sentir a água em contacto com a pele, pelo corpo todo. Fechou os olhos, a pensar em Luís Miguel. Seria um sonho? Seria que finalmente tinha encontrado o homem que a faria feliz?

Desde o divórcio, Teresa nunca pensara nestes termos. Tivera uma ou outra relação - todas elas demasiado superficiais para serem levadas a sério - e, em nenhum dos casos, se preocupara em descobrir se era o homem certo. Para ser sincera, soubera sempre que não eram a pessoa certa. Teresa envolvera-se ocasionalmente com alguém porque precisava de sentir alguma coisa, de saber que ainda estava viva. No entanto, nessa época, as recordações terríveis do seu casamento ainda estavam bem presentes, a tristeza e a revolta incomodavam-na tanto que Teresa preferia pensar que nunca mais na vida se entregaria a alguém. Sentia-se mais segura sozinha, a ideia de se arriscar numa relação honesta e duradoura era-lhe simplesmente intolerável. Achava que não poderia voltara confiar em ninguém, que não aguentaria outra desilusão.

Costumava dizer-se que o tempo curava todas as feridas, até da alma, e Teresa perguntava-se agora se isso seria mesmo verdad se seria capaz de ultrapassar todos os receios e de se entregar à pessoa que estivesse determinada a fazê-la feliz.

Saiu da banheira, enxugou-se sem pressa, deixou cair a toalha, deitou um pouco de creme hidratante na palma da mão e aplicou-o no corpo, a começar pelas pernas, enquanto pensava em Luís Miguel. Sentiu-se agradavelmente sensual. A sua pele mantinha a mesma textura suave de sempre, não havia celulite nem rugas à vista. Felizmente, continuava a ser atraente e não tinha que se preocupar com dietas. Perdeu um minuto a apalpar o seio esquerdo. Sentia-o dorido, o que a incomodava um bocadinho. Mas não lhe detectou nada de anormal. Vestiu uma camisa de noite, sem nada por baixo, e foi enfiar-se na cama.

Apagou a luz, mas não conseguiu adormecer imediatamente, por causa de Luís Miguel. Disse a si mesma que não podia estar apaixonada. Afinal de contas, acabei de o conhecer e duas noites não são suficientes para saber como uma pessoa é, realmente. Achou que estava a ser ridiculamente imatura e que já não tinha idade para se deixar ir atrás de entusiasmos. E, no entanto, havia uma alegria que lhe iluminava o espírito e isso sabia-lhe bem.

Passou em revista a noite, minuto a minuto, recordando todos os momentos, todas as palavras e todas as reacções dele. Tinha de reconhecer que Luís Miguel lhe transmitira a sensação de que gostava dela com sinceridade. Essas coisas não se inventavam, sentiam- se.

Contudo, havia algo que a intrigava. A forma como ele a beijara, timidamente, afastando-se dela sem esboçar qualquer tentativa de a abraçar ou de ir mais longe, quase como se estivesse a fazer apenas o que se esperava que fizesse no final da noite, fora algo que a deixara confusa. Que diabo, os outros homens que Teresa conhecera no passado teriam entendido a reacção dela ao seu beijo como um sinal para avançarem e, se ela não quisesse ir com eles para a cama, ter-se-iam ido embora profundamente desiludidos. Para dizer a verdade, Teresa não sabia se estaria preparada para fazer amor com Luís Miguel naquela noite, provavelmente não, mas ele também não fizera qualquer tentativa para que isso acontecesse. E isso não era um bom sinal, pois não?

Tentou encontrar uma explicação para a atitude dele, disse a si própria que podia ser só timidez - embora lhe parecesse que timidez em excesso não encaixasse no perfil de um homem de quarenta e nove anos e experiente, que passara por demasiadas coisas na vida para se deixar intimidar na presença de uma mulher. Não, pensou, a timidez, por si só, não justificava a atitude dele.

Poderia ter sido um gesto de respeito - para lhe mostrar que não estava apenas interessado em sexo -, ou poderia ter sido um reflexo de algo mais profundo, mais inquietante, que tivesse a ver com a memória da mulher dele. Pode ter sido um milhão de coisas, pensou, não adianta matar a cabeç a tentar perceber o que acontecer. Mas não pôde deixar de cismar na possibilidade mais simples de todas: que ele lhe estivesse a querer mostrar que não estava interessado em ser mais do que amigo dela. Mas, por outro lado, se assim fosse, que necessidade teria Luís Miguel de a beijar na boca? Um amigo - mesmo um bom amigo - ter-se-ia limitado a um simples beijo no rosto, um abraço, um sorriso, sabia lá! Tudo, menos um beijo na boca.

 

Era sexta-feira. Teresa aceitara dar uma entrevista a uma revista feminina que tencionava dedicar-lhe quatro páginas da edição seguinte. Marcara o encontro com a jornalista para depois do almoço e concordara que se fizesse a entrevista no seu apartamento por uma questão prática. Normalmente, Teresa não gostava de receber jornalistas em casa, nem tão pouco de se deixar fotografar num ambiente menos neutro do que um local público ou um exterior impessoal, que não revelasse nada da sua vida privada. A última coisa que pretendia era que a imprensa começasse a revelar o que fazia ou deixava de fazer, a falar do seu divórcio ou a perguntar-lhe quem era o homem da sua vida e coisas desse género. Contudo, desta vez abriu uma excepção, porque precisava de ir buscar Sofia à escola, dar-lhe o almoço, levá-la outra vez e regressar a tempo de se encontrar com a jornalista. De forma que o seu apartamento lhe pareceu mesmo a solução mais fácil para encaixar os compromissos todos. Antes porém, negociou a entrevista, de forma a salvaguardar-se de perguntas indiscretas e de fotografias demasiado reveladoras. As primeiras deveriam limitar-se ao seu novo romance e a questões relacionadas com a literatura em geral; as segundas teriam de focá-la a ela e ignorar o apartamento tanto quanto possível.

De manhã, Teresa acordou cedo para levar Sofia à escola e, apesar de se sentir zonza de sono devido à hora tardia a que se deitara, resistiu ao apelo da cama. Em vez de voltar a dormir, ocupou-se a arrumar a casa. Muito ciosa da sua imagem, não gostaria que as visitas ficassem com a ideia de que era uma desmazelada. Abriu as janelas da sala para arejá-la do cheiro a fumo do tabaco que persistia desde a noite anterior. Limpou as cinzas da lareira e certificou-se de que estava tudo no seu lugar. Depois fez as camas e foi para a cozinha fazer uma sopa e um empadão para o almoço. Quando deu por isso já estava na hora de ir buscar Sofia.

O telemóvel tocou no momento em que entrava no carro.

- Olá, Teresa. É o Luís Miguel - anunciou-se. - Espero não estar a incomodá-la cedo de mais.

- Nããão - gracejou. - Já fiz muitas coisas hoje de manhã. Estou a pé desde as oito e meia.

- Que coragem. Se soubesse que tinha de se levantar tão cedo, não tinha saído tão tarde.

Mentiroso, pensou Teresa, divertida.

- Não faz mal - disse. - Eu, de qualquer maneira, também não costumo dormir muitas horas.

- É como eu. Olhe, estou a ligar-lhe para dizer que gostei muito do jantar e para lhe agradecer.

- Foi um prazer.

- E ainda.

- E ainda. - repetiu ela, em alegre expectativa.

- para lhe dizer que gostei tanto que queria desafiá-la para um fim-de-semana na minha casa, no Alentejo. A Sofia também está convidada, naturalmente - acrescentou.

- Este fim-de-semana?... - disse Teresa, pensativa.

- Íamos amanhã, dormíamos lá e voltávamos no domingo à noite. O que é que lhe parece?

- Ia fazer-me bem, um fim-de-semana fora - respondeu ela

subtilmente, sem querer dizer que a sua vontade era estar com ele no Alentejo ou noutro lado qualquer.

- Então, óptimo. Está combinado. Passo por sua casa às nove

e meia. Está bem para si?

- Está perfeito.

Ao regressar da escola, Teresa encontrou a jornalista e o repórter fotográfico já à sua espera, à porta do prédio. Não foi uma entrevista fácil. A jornalista era uma rapariga jovem - Teresa deu-lhe uns vinte e cinco anos -, pouco afável e com uns modos arrogantes que começaram logo a mexer com os nervos de Teresa. O encontro entre as duas não foi uma experiência agradável e, com o desenrolar da conversa, tornou-se consideravelmente tenso, com uma sucessão de perguntas e respostas secas que a jornalista foi anotando num caderninho.

Apesar de respeitar o desejo de Teresa de não falarem da sua vida pessoal, a rapariga tentou levar a conversa para terrenos polémicos, provocando-a com perguntas sobre a alegada falta de qualidade dos seus romances, sugerindo que era uma autora de livros comerciais condicionada pelas vendas e pouco interessada em produzir autênticas obras literárias. Quis saber se Teresa se considerava uma verdadeira escritora, ou apenas uma dona de casa com jeito para escrever e com acesso às páginas cor-de-rosa das revistas que a promoviam. Teresa retorquiu-lhe com uma série de argumentos que já tinha na ponta da língua, de tantas vezes responder ao mesmo tipo de questões. Estava habituada a ser desconsiderada pelos puristas, que a acusavam de escrever sobre assuntos mundanos e supérfluos e desvalorizavam ostensivamente os espectaculares resultados de vendas dos seus livros. Mas, para ser sincera, começava a irritar-se com a insistência de jornalistas e críticos em atacá-la por ter sucesso.

 

O jipe BM imobilizou-se à porta do prédio exactamente às nove e meia da manhã. Luís Miguel desligou o motor, saiu e foi em passo ligeiro tocar à campainha do apartamento de Teresa. Nessa manhã, sentia-se particularmente bem-disposto. Encostou-se ao jipe e acendeu uma cigarrilha, enquanto esperava que Teresa descesse.

Ela não demorou nem cinco minutos a aparecer. Fechou a porta do prédio e aproximou-se com um saco de viagem pequeno. Luís Miguel abriu os braços e pôs uma expressão admirada por detrás de uns óculos escuros desportivos.

- Então, e a Sofia? - perguntou.

-A Sofia fica com os avós - comunicou Teresa. - Este fim-de-semana é só da mãe.

E qual é a ideia da mãe? , pensou Luís Miguel. Baixou os braços e espreitou por cima dos óculos com uma cara de caso.

- O que foi? - perguntou Teresa, parada à frente dele e agarrando na pega do saco com as duas mãos, embaraçada.

- Nada, nada - disse ele, divertido, e estendendo a mão.

- O saco.

Ela passou-lho e ele foi abrir a porta traseira e atirou-o lá para dentro.

Entraram no jipe. Luís Miguel inclinou-se para ela e beijou-a

no rosto.

- Bom dia - cumprimentou-a, com um sorriso simpático.

- Bom dia - retorquiu Teresa.

- Pronta para a viagem?

- Prontíssima.

- Então, vamos lá.

Pôs o carro a trabalhar e partiram.

A viagem não demorou mais de hora e meia. A casa ficava num monte alentejano, perto de Évora. Embora não houvesse muito movimento na estrada, Luís Miguel guiou prudentemente, a uma velocidade moderada, quase em ritmo de passeio. Não tinham pressa e, de qualquer maneira, foram o caminho todo à conversa e nem deram pelo tempo a passar. Ele contou-lhe que estivera a operar um paciente até bastante tarde, na noite anterior, e Teresa falou-lhe da fúria que lhe ficara da entrevista com a jornalista empertigada. Ainda se riram um bom bocado com a irritação momentânea dela, ao recordar-se do episódio.

- Aaah - rosnou. - Que raiva!

Em vez de seguirem directamente para o monte, Luís Miguel sugeriu que fossem a Évora almoçar, pois não havia nada para comer em casa.

- Vamos - concordou ela -, que estou esfomeada.

- Évora tem alguns dos melhores restaurantes do país - informou-a Luís Miguel.

-Já ouvi dizer.

Estacionaram perto da Praça do Giraldo.

- Um passeio a pé, para abrir o apetite?

Teresa olhou para o relógio.

- Seria muito indecente irmos almoçar ao meio-dia? - perguntou, com uma vozinha mimada.

- Não, mas não sei se os restaurantes já estão abertos.

- Vamos ao passeio, então.

Deambularam pela parte antiga de Évora, entrando e saindo das lojas, explorando as ruas estreitas e admirando a beleza centenária da cidade.

Traziam os dois roupa informal, ele de calças de veludo cotelê, camisa de flanela aos quadrados, parka verde-garrafa e sapatos de camurça; ela de jeans, casaco roxo de lã grossa por cima de uma camisa de algodão vermelha e sapatos de ténis. Foram a uma papelaria e Teresa deixou-se ficar à entrada a observar Luís Miguel enquanto se dirigia ao balcão. Já tinha reparado como ele caminhava com movimentos ágeis, dono de uma elegância que a impressionou. E também tinha reparado em como, por vezes, ele se remetia a silêncios momentâneos, pondo uma expressão triste, como se caísse numa qualquer recordação dolorosa, para recuperar o ânimo logo a seguir sem mencionar a nuvem negra que lhe passara pela mente. Detectara-lhe essas ausências em três ocasiões no decorrer da manhã e isso deixara-a um pouco perplexa, sem saber muito bem o que pensar ou se deveria fazer algum comentário. Optara por fingir que não dera por nada e deixar o dia correr para o conhecer um pouco melhor.

- Comprei o Expresso - disse Luís Miguel, à saída. - Provavelmente nem o tiro do saco, mas nunca resisto.

- Faz parte.

- É, você não costuma ler o jornal?

- Sempre. Nem imagina as ideias e a informação que se podem tirar dos jornais para escrever uma história de ficção.

Almoçaram no Fialho, o restaurante mais famoso da cidade, conhecido pela sua cozinha tradicional e pelas excelentes entradas, que devoraram com um entusiasmo imprudente e os deixaram quase sem apetite para o resto da refeição.

Fartaram-se de falar, trocando pequenas informações sobre os seus gostos, as suas ideias, as suas pequeninas manias, enfim, sobre coisas simples que iam acrescentando deliciosos pormenores à maneira de ser de cada um e que ambos absorviam com a concen tração de quem não tinha olhos para mais ninguém. Dedicaram-se à fascinante tarefa de se descobrirem, sentindo crescer dentro deles, a cada minuto que passava, um entusiasmo mútuo e uma ternura inexcedível. Ela adorou aquela forma cómica de ele franzir a sobrancelha para se fingir desconfiado; ele apaixonou-se pelas covinhas que ela fazia quando se ria. Tinham os sentidosalerta e foram tomando notas de cabeça das características do de outro. Beberam uma garrafa de vinho tinto, mas isso não teria sido necessário para estarem de bom humor, porque hoje nada precisariam mais pela felicidade deles do que estarem juntos, ali, naquele restaurante, a partilharem as suas almas sem se deixarem assombrar por fantasmas do passado. Mais tarde poderiam ter de se debater com as suas inseguranças, agora, tudo o que queriam era gozar o momento.

-Que horror - comentou Teresa, bem-disposta, ao café.

- Não estou habituada a comer estas barbaridades.

- Ainda temos uma missão - comunicou ele -, antes de irmos para casa.

-Que é?. .

- Que é, uma passagem pelo supermercado, para nos abastecermos para o jantar.

- Não sei se consigo jantar hoje - desabafou Teresa -, depois do que comi.

O supermercado ficava nos limites da cidade, a caminho do monte. Fizeram uma paragem de meia hora. Luís Miguel teve oportunidade para revelar os seus dotes para as compras. Teresa constatou, maravilhada, que ele sabia exactamente o que escolher para garantir que tivessem refeições excelentes. Não se esqueceu de nada, desde os bifes de lombo e o arroz, até à alface, os temperos e o café. Comprou ainda quatro garrafas de vinho tinto, e alguns produtos indispensáveis para a casa.

Entretiveram-se a discutir as marcas e a trocar confidências sobre aqueles artigos supérfluos a que não resistiam habitualmente e que os levavam a gastar dinheiro inutilmente. Fizeram da ida ao supermercado um programa divertido. Só à saída é que Teresa sentiu uma sensação estranha, ao tomar consciência de como era esquisito ir às compras com um homem, como se fossem um casal a aproveitar o fim-de-semana para abastecer o lar. Mas, de certa forma, a tarefa ajudou-os a sentirem-se mais próximos um do outro, talvez por terem feito algo que, normalmente, era reservado à cumplicidade dos casais. Tanto Teresa, como Luís Miguel, estavam habituados a decidir as suas compras sozinhos, mecanicamente e a despachar, sem terem de discutir com ninguém as opções a tomar. Era apenas um trabalho solitário e aborrecido a que não podiam furtar-se.

 

Ele estacionou o jipe ao fundo do pátio exterior, junto à porta da serviço. Desligou o motor e apagou as luzes. Uma escuridão prateada preencheu a noite.

- Eis o meu humilde palácio - disse em voz baixa, numa reverência inconsciente ao plácido silêncio que rodeava aquele local isolado do mundo.

Entraram pela cozinha, transportando os sacos das compras, que depositaram em cima duma robusta mesa de madeira no centro da divisão. Luís Miguel acendeu a luz do tecto.

- Uáu! - exclamou Teresa, impressionada. - Isto é o que eu chamo uma cozinha a sério.

- Tinha de ser - explicou ele. - É onde eu passo uma boa parte do tempo. Preciso de espaço e de material de qualidade.

- Sim, senhor - continuou ela a elogiar. - Espaço é o que não falta aqui. Não o sabia tão prendado.

-Eu tenho qualidades que você nem sonha - disse Luís Miguel, erguendo as mãos numa imitação de um santo a gabar- se dos seus talentos.

Teresa abanou a cabeça, rendida.

- Estou a ver que sim.

Luís Miguel tirou a parka, pendurou-a nas costas de uma cadeira e arregaçou as mangas.

- Bem - disse -, mãos à obra. - E começou a despejar

sacos.

Teresa fez menção de o ajudar mas ele interrompeu-a.

- Hã-hã. - Abanou negativamente um dedo indicador. - A cozinha é o meu reino. Você não precisa de fazer nada. Eu é que sei onde ficam as coisas.

- Luís Miguel - protestou. - Então e eu, o que é que faço?

- Nada. Você pode sentar-se a descansar enquanto eu trato de tudo.

Teresa cerrou os olhos, a fingir que estava furiosa.

-Nesse caso - comunicou -, vou explorar a casa. Posso?

- Claro, vá. Eu arrumo as compras todas num instantinho.

Teresa saiu da cozinha e foi avançando por um corredor estreito com portas à esquerda e à direita. Abriu todas e espreitou, descobrindo quartos, casas de banho e um escritório com aspecto de não sér usado nunca. Eram divisões típicas de uma casa de campo, com chão de tijoleira e paredes pintadas de branco. Teresa gostou do que viu, constatando que houvera ali o bom senso de fazer uma decoração com bom gosto, mas de forma alguma presunçosa. Os móveis eram bonitos e sentia-se que se podia passar uma temporada confortável naquela casa, mas sem os luxos da cidade. Havia aquecedores vulgares, obviamente desligados, e ela pensou que os quartos estavam gelados como frigoríficos.

O corredor desembocava na sala de estar. Teresa tacteou à procura de um interruptor na parede, que não encontrou. Aproveitou a claridade que vinha do corredor para se aproximar cautelosamente de uma mesa de apoio, ao lado de um sofá, onde viu um candeeiro de luz fraca. Depois foi acender outro candeeiro em cima de uma cómoda e um terceiro de pé alto. Considerou-se satisfeita com a iluminação. Reparou que era uma sala mais pelo comprido, dividida numa primeira ala com os sofás dispostos em redor de uma lareira com espaço suficiente para uma pessoa poder ficar de pé debaixo da chaminé; e uma segunda ala, ao fundo, onde havia uma mesa redonda que Teresa presumiu fazer as vezes da casa de jantar. Curiosamente, também não havia vestíbulo e a porta da rua dava directamente para esse canto da sala.

A sala era um exemplo de contenção, bem arranjada, com os seus móveis robustos de madeira escura e os seus sofás de couro, gastos pelo uso, e alguns quadros de bonitas paisagens alentejanas mas de artistas desconhecidos. O único luxo, digno desse nome, seriam os dois tapetes de Arraiolos que cobriam o chão de tijoleira.

Sentou-se confortavelmente no sofá maior, cruzou os braços com frio, lamentando que a lareira estivesse apagada, e dedicou-se a dar atenção aos pormenores. Foi então que reparou pela primeira vez na quantidade invulgar de molduras espalhadas pelas mesas de apoio e a prateleira formada pelo rebordo da chaminé. Boa! , exclamou em voz baixa, contente com a oportunidade de espreitar um pouco da vida familiar de Luís Miguel. Saltou do sofá e aproximou-se para ver melhor.

Os olhos abriram-se de espanto. A primeira moldura tinha a fotografia de uma mulher na casa dos quarenta, elegante, clássica na forma de vestir e no penteado correcto. Era invulgarmente bela. Olhos verdes, cabelo castanho-claro, quase louro, dentes brancos, perfeitos, um sorriso bonito com duas covinhas. Embora diferente, Teresa viu que a mulher tinha, definitivamente, características físicas em tudo semelhantes às suas. Percebeu logo quem era, Mafalda, pensou, sobressaltada.

Passou às restantes molduras, constatando que não havia fotografias de mais ninguém, senão da mulher de Luís Miguel. Angustiada, voltou-se para as mesas de apoio e foi confirmar que era ela que estava em todos os retratos. Atravessou a sala e viu mais uma série de molduras, também e sempre com fotografias de Mafalda.

Rodou lentamente no centro da sala, incrédula, a contar molduras. Trinta e duas, ao todo. A vida da mulher de Luís Miguel, desaparecida há um ano e meio, estava retratada em trinta e duas ocasiões e exposta pela sala toda. Na realidade, teve a estra sensação de que podia conhecer a vida inteira de Mafalda através das molduras, pois havia fotografias dela desde criança até à idade em que presumivelmente morrera.

Estava ali, paralisada no meio da sala, perturbada e com dificuldade em interpretar o significado daquela... nem sabia bem como classificar aquela colecção de retratos. Sentiu-se a mais ali, como se estivesse a invadir a privacidade de Luís Miguel ou a trair a mulher dele. Atravessou a sala, abriu a porta da rua e saiu para o pequeno alpendre que havia na parte da frente da casa.

Levou uma mão trémula ao bolso do casaco, donde tirou um maço de tabaco e um isqueiro. Retirou um cigarro e acendeu-o. Inspirou profundamente o fumo e cruzou os braços, assustada com o que lhe estava a acontecer, olhando para uma paisagem obscurecida pela noite, ponteada por manchas negras que deveriam ser as copas das árvores, lá em baixo, no campo.

 

Assim que terminou a tarefa de despejar os sacos das compras e de arrumar todos os artigos nos devidos lugares, Luís Miguel foi ao encontro de Teresa. Pela primeira vez, no último ano e meio, sentia-se feliz por estar na companhia de uma mulher. Era um sentimento que ele próprio não acreditava que voltasse a ter, até há pouco tempo, pelo menos. Teresa surgira-lhe subitamente, quando menos esperava. Tinha sido convidado por Concha a acompanhá-la ao lançamento do livro dela, um telefonema de última hora, e dissera que sim, por que não? Era o tipo de programa a que ele, simplesmente, não ia nunca. No entanto, não sabia explicar porquê, daquela vez aceitou. Acedera ao convite talvez por estar aborrecido em casa, ou talvez por ser difícil dizer que não a Concha: Havia pessoas assim, que nos venciam pela persistência. Ao pensar nisso, no dia seguinte, Luís Miguel deu consigo a sorrir para o espelho da casa de banho, enquanto fazia a barba e pensava em telefonar a Concha para lhe pedir o número de Teresa.

Na altura não estava muito certo do que pretendia ao telefonar a Teresa para a convidar para sair. Provavelmente, não seria mais do que isso: uma simples saída para um jantar agradável num restaurante qualquer. Luís Miguel não tinha muitas ilusões sobre a sua diminuída capacidade para amar e a verdade é que não esperava que um único serão pudesse mudar o seu lúgubre estado de espírito. Mas, se havia milagres neste mundo, Teresa conseguiu fazer um. Ou, no mínimo, acertou em cheio ao rejeitar a ida a um restaurante e ao proporcionar-lhe um jantar informal na intimidade do seu apartamento, onde puderam conversar despreocupadamente. Não sabia explicar porquê, mas Luís Miguel ainda se atormentava com um sentimento de culpa quando saía para se divertir. O facto de ser em casa dela atenuara esse sentimento, ao ponto de ter passado quase a noite inteira sem pensar em Mafalda.

Não estava curado, sabia que não. Nessa noite, um impulso levara-o a beijar Teresa. Mas um mecanismo qualquer no seu cérebro impedira-o de continuar, inibindo-o como se estivesse a fazer algo errado. Por isso recuara. Luís Miguel passara a noite acordado lutando contra si próprio, obrigando-se a aceitar o facto de que não poderia continuar a negar-se a possibilidade de voltar a ser feliz. A verdade é que, fizesse ele o que fizesse, nada traria Mafalda de volta, nunca mais.

Durante a viagem para o Alentejo ponderara se seria sensato levar Teresa para um lugar que ele havia erguido, pedra a pedra, com a cumplicidade de Mafalda; que eles consideravam o seu refúgio e onde tinham passado alguns dos melhores momentos das suas vidas. A nuvem negra que lhe obscurecera a alma ao pensar nisso, levara-o a retardar o momento de irem para o monte. Desculpara-se com a falta de mantimentos e sugerira o passeio em Évora, o almoço e a ida ao supermercado. Mas a noite tinha caído e Luís Miguel não pudera adiar mais o momento da verdade. Finalmente não permitira que Teresa o ajudasse a arrumar as compras para que ela não descobrisse que tinha a despensa suficientemente abastecida para mais do que um fim-de-semana.

Levá-la ao Alentejo constituía uma espécie de teste que Luís Miguel decidira impor a si mesmo. Compreendia agora que não tinha o direito de sujeitar Teresa a tamanha empresa, pois, se falhasse, se se deixasse abater pela nostalgia do passado, seria uma crueldade para ela. E a última coisa que Luís Miguel queria era magoar Teresa. Mas era tarde de mais para voltar atrás e, de qualquer maneira, achava que não se estava a sair nada mal.

Deixou a cozinha, passou o corredor todo animado e entrou na sala desejoso de voltar à companhia de Teresa.

- Então o que é que acha da casa? - vinha a perguntar. - É muito... - Parou, perplexo por não a encontrar ali. Reparou que a porta da rua estava aberta. A, estás aí; pensou, satisfeito. Atravessou a sala ligeiro, a perguntar-se se ela estaria com vontade de apanhar uma constipação. Ia a chegar à porta quando uma súbita evidência lhe trespassou a alma e o fez parar. Fechou os olhos, a pensar no erro estúpido que tinha cometido, e depois voltou-se lentamente só para confirmar o óbvio. Lá estavam as molduras todas com as fotografias de Mafalda, como que a gritar à pobre Teresa que aquele lugar não lhe pertencia e que não tinha o direito de estar naquela casa.

Merda, - pensou Luís Miguel - merda, merda! Esquecera-se das molduras. Suspirou e dirigiu-se para o exterior.

Foi encontrar Teresa a fumar, contemplando o campo. Parecia serena. Aproximou-se por trás, cautelosamente.

- Não está um bocadinho frio de mais para estar aqui fora?

Teresa recebeu as suas palavras com um sobressalto. Não o ouvira chegar e assustou-se. Luís Miguel viu os ombros dela retesarem-se num reflexo instintivo e percebeu que Teresa respirava fundo, voltando a descontrair-se.

- Desculpe - disse ele. - Não queria assustá-la. Ainda assim, Teresa não se voltou nem disse nada. Tapou a boca com a mão e, em seguida, limpou os olhos disfarçadamente com o polegar e o indicador.

Teresa não queria que Luís Miguel a visse a chorar. Queria ser forte e poder discutir com ele o assunto sem se deixar arrastar pelas emoções. Só que... só que, bolas, não consigo!

- Teresa - disse ele, preocupado. - O que é que se passa? Ela inclinou a cabeça para trás e levantou os olhos para o céu límpido.

- Nada - acabou por responder. - Isto já passa. Dê-me um minuto.

Luís Miguel teve vontade de morder a língua. Enfiou as mãos nos bolsos, atrapalhado, deu dois passos em frente e foi-se pôr ao lado dela. Distraiu-se momentaneamente com o espectáculo maravilhoso do céu do Alentejo, estrelado até aonde a vista alcançava.

- Se é por causa das fotografias - disse, quebrando o silêncio -, não precisa de ficar assim. Foi uma estupidez minha, não me lembrei... - Abanou a cabeça. - Peço desculpa, Teresa, não queria nada que você se sentisse desconfortável.

Teresa voltou-se para ele, estupefacta.

- Desconfortável, Luís Miguel? - reclamou, apontando para a casa. - Aquilo, ali dentro, parece um santuário!

- Eu sei. - Luís Miguel coçou a cabeça atrapalhado, sentindo-se culpado. - Eu devia ter-me lembrado de as tirar.

- Luís Miguel, não é essa a questão, pois não?

- Não - admitiu -, acho que não.

- Ainda bem que não as guardou.

- Como assim?

- Pelo menos, fiquei mais elucidada sobre aquilo que vai na sua cabeça.

- Não, não ficou, Teresa. Não é bem o que você está a pensar.

- Não? Então, o que é?

- Eu explico - disse. - A seguir ao funeral, eu fiquei com a casa cheia de coisas da minha mulher. Era horrível, porque tudo me lembrava a Mafalda. Cheguei até a pensar em mudar de casa, veja lá. Só que depois acabei por não o fazer. Tratei só de me desfazer das coisas dela e fiquei com as molduras. Havia uma data delas, havia montes de molduras, porque eu adorava fotografar e tirei-lhe centenas ao longo dos anos. E as fotografias foram a única recordação que eu guardei dela. Não podia deitá-las fora. Bem, para ser sincero, nem sequer quis deitá-las fora. Era uma estupidez fazer

isso, não era? Mas, mesmo assim, trouxe-as quase todas para esta casa. Pareceu-me mais saudável. É por isso que elas estão ali, na sala, não é por nenhum motivo macabro nem nada assim esquisito.

Teresa olhou para Luís Miguel. Ele estava a dizer a verdade, percebeu também, pela sua expressão carregada, como lhe era penoso recordar aquele período difícil e que ainda não era capaz de falar da mulher sem sentir uma imensa tristeza.

- Eu já volto - disse Luís Miguel, e desapareceu no interior da casa antes que ela tivesse oportunidade de fazer qualquer comentário.

Foi direito à despensa, despejou um caixote de cartão cheio de latas de conservas, voltou à sala e começou a guardar as molduras no caixote. Começou pelas da lareira, depois foi à cómoda, onde encontrou uma que lhe lembrou um dia especial, passado na praia, havia cerca de dois anos. Nessa altura já sabiam da doença de Mafalda, mas ela tinha iniciado os tratamentos, estava a reagir bem e ele, mesmo sendo médico e estando a par da gravidade do estado dela, queria acreditar com todas as suas forças de que era possível ultrapassarem mais essa dificuldade. Anos antes, depois do casamento, Mafalda descobrira que não poderia ter filhos e isso fora um golpe terrível para ambos. Durante muito tempo, tinham seguido em frente com as suas vidas, optando por não falar muito do assunto. Naquele dia, porém, conversaram sobre tudo o que se lembraram. Estavam felizes e cheios de esperança. Mafalda perguntou-lhe o que achava da possibilidade de adoptarem uma criança. Luís Miguel respondeu-lhe que achava excelente e incentivou-a muito para lá do que seria razoável naquelas circunstâncias. Abraçaram-se, beijaram-se e selaram um compromisso com lágrimas nos olhos. Assim que ela fosse dada como curada pelos médicos, iniciariam o processo de adopção.

Luís Miguel seguiu o tratamento dela passo a passo, levou-a aos melhores especialistas do país e, conquanto todos lhe dessem um prognóstico pessimista e lhe dissessem que, no final, a doença acabaria por ganhar, ele recusou-se pura e simplesmente a aceitar o veredicto e sujeitou-a a todo o tipo de terapêuticas disponíveis.

Houve momentos em que Mafalda lhe pediu para desistir, Luís Miguel insistiu sempre em continuar, teimando em que nada estava perdido, e ela confiava nele. A quimioterapia provocava-lhe vómitos constantes, desfalecia de fraqueza e perdia o cabelo. Afinal, tornou-se óbvio que os médicos tinham razão. Mafalda não conseguiria derrotar o cancro que a estava a minar cada vez mais depressa, progredindo para além da capacidade da ciência para o combater. Ela compreendeu que já não havia nada a fazer e, num gesto de grande coragem, declarou que não se sujeitaria a suplícios inúteis.

Na altura, Luís Miguel reagiu mal à decisão de Mafalda. Entendeu o gesto dela como um baixar de braços, uma rendição que seria fatal, quando na verdade Mafalda só estava a ser sensata. E isso foi algo que Luís Miguel só conseguiu aceitar gradualmente, num processo que se prolongou por meses, já depois do desaparecimento dela. E a seguir veio o sentimento de culpa. Hoje em dia, Luís Miguel continuava a recriminar-se por tê-la feito passar por tantos sofrimentos, levando a que os últimos meses da vida dela se tivessem transformado num verdadeiro inferno. A sua recusa em aceitar a realidade, a sua conduta inflexível, privaram Mafalda de gozar um quotidiano quase normal até ao fim.

Ao ver agora a fotografia daquele dia na praia, veio tudo novamente ao de cima. Luís Miguel esqueceu-se de Teresa, do motivo que o levara à casa do Alentejo e da ânsia de ultrapassar o complexo de culpa que o impedia de recomeçar a sua vida. Como tantas outras vezes, sentiu crescer dentro de si uma raiva que lhe vinha do lugar mais profundo da alma. Atirou violentamente a moldura para dentro do caixote, estilhaçando-a, como se quisesse esmagar a frustração que o atormentava. Depois varreu a superfície da cómoda com o braço, despejando de uma só vez todas as molduras no fundo do caixote. Foi de mesa em mesa e repetiu o gesto. Agachou-se frente à última mesa de apoio, ao lado do sofá que ficava ao lado da lareira, e começou a atirar as molduras para dentro do caixote, partindo-as uma a uma.

Teresa aproximou-se de Luís Miguel e abraçou-o por trás, obrigando-o carinhosamente a parar.

- Luís Miguel, não precisa de fazer isso - disse, num tom de voz sereno, que o levou a deixar cair os braços e os ombros.

Ficaram assim durante alguns minutos, em silêncio, dando-lhe tempo para recuperar a serenidade.

-Desculpe, Teresa - pediu finalmente. - Eu queria que fosse um fim- de-semana perfeito e acabei por estragar tudo.

- Não - disse ela, resoluta. Libertou-o do abraço e encostou-se ao outro sofá, sentada no chão, como ele. Luís Miguel virou-se para a encarar e mantiveram-se de mãos dadas, afagando-se com ternura. - Não estragou nada. Eu sei que nada disto é fácil para si. Só posso imaginar o que você passou, mas também preciso de saber se você está preparado para deixar de viver no passado.

Luís Miguel fechou os olhos por um segundo, antes de lhe responder.

- Estou - disse. - Eu tinha a certeza que sim. Senão não a tinha convidado.

- É que a minha vida também não tem sido fácil, como você sabe, e eu não quero, e não posso, ter outra desilusão. Acho que não aguentaria. Luís Miguel, você sabe que eu não posso substituir a Mafalda, eu sou outra pessoa, completamente diferente dela.

- Eu sei disso. E não tenha medo, que eu não a vou fazer sofrer.

- Luís Miguel - insistiu Teresa, escolhendo o melhor possível as palavras -, não foram só as molduras que me deixaram preocupada.

- Não?

- Não.

- Então?

- Ao ver as fotografias, eu reparei que a Mafalda era muito parecida comigo. Não era igual a mim, de cara, nem nada disso, mas não há dúvida de que era o mesmo tipo de mulher.

Ele fez uma expressão de assentimento.

- É verdade - reconheceu.

- Pois é - disse Teresa, mas essa resposta é curta, pensou, dando-lhe a entender que esperava mais dele, tendo em conta as implicações de tal constatação.

Luís Miguel inclinou a cabeça para trás, deitando-a na almofada do sofá, e começou a falar com os olhos postos no tecto.

- Não foi isso que me fez gostar de si. Não nego que essa semelhança física pudesse ter exercido alguma atracção, no início, mas foi pura coincidência. Eu não andava à procura de uma mulher igual à Mafalda. - Levantou novamente a cabeça e olhou para ela. - Eu gosto mesmo de si, Teresa.

- Eu também gosto mesmo de si - murmurou Teresa, com uma voz rouca de emoção.

Aproximaram-se um do outro e beijaram- se pela primeira vez com paixão. A língua dele penetrou na boca dela e Teresa recebeu-a com um prazer e uma excitação que já não podia conter. Tal como ele, Teresa ansiara por aquele momento durante o dia intteiro.

Queria tanto que ele a abraçasse e a beijasse que a ideia de se amarem foi-lhe alimentando uma fantasia sensual sobre como seria aquela noite de amor. Agora que finalmente podia tê-lo, afastou deliberadamente as pernas, deixando que ele escorregasse para cima dela, deitados no chão, sedentos um do outro. Luís Miguel ajudou-a a abrir o casaco de lã, desapertou-lhe os botões da camisa, afastou o sutiã do seu caminho e beijou-lhe os seios, fazendo-a sentir a língua molhada e quente em contacto com a sua pele macia, enquanto a sua mão procurava o fecho das calças dela.

Teresa deixou-o fazer tudo como ele quis fazer, feliz por se entregar incondicionalmente, sentindo-lhe a boca húmida a descer ao longo do corpo, demorando-se nos seus seios, passando à barriga e ao umbigo, levando-a a arfar de desejo, ao mesmo tempo que as mãos dele forçavam delicadamente os jeans apertados para que deslizassem pelas coxas dela.

Teresa libertou-se dos sapatos de ténis e ergueu as pernas para que ele acabasse de lhe tirar as calças e o resto. Depois ele voltou a descer sobre Teresa, passou a mão pelas costas dela e soltou o fecho do sutiã, que ela atirou para o lado. Luís Miguel voltou a beijar-lhe a boca, as orelhas e o pescoço, sem se apressar, enquanto lhe explorava o corpo com as mãos até ao último detalhe, encantado com a reacção sensível de Teresa ao seu toque e com a textura da pele dela. Teresa passou as suas mãos pelas costas de Luís Miguel, agarrou-lhe a camisa com força, como se quisesse arrancá-la, impaciente, para logo se cingir a ele, num sinal do que era a sua deliciosa angústia, desejosa de o ter dentro de si, mas permitindo também que aquele momento se prolongasse, numa maravilhosa expectativa que mal podia aguentar.

Luís Miguel desembaraçou-se da roupa e finalmente ela pôde sentir o calor do seu corpo forte e passar os braços e as pernas à volta dele, apertando-se contra Luís Miguel tanto quanto possível, ao mesmo tempo que se sentia invadida por um prazer único, que tanto esperara e que se iria prolongar pela noite fora.

Foram para o quarto, nus, de mãos dadas e felizes por estarem juntos. Luís Miguel retirou a colcha da cama de um só golpe, Teresa deitou-se de costas e mais uma vez recebeu-o para se unirem com a ternura de uma paixão recente. Fizeram amor ao longo da madrugada, descobrindo-se aos poucos, procurando às cegas o entendimento dos seus corpos, orientando-se um ao outro com gestos pacientes e palavras confiantes.

Mais tarde, quando o dia começava a nascer lá fora e os seus olhos se encontraram, ele afastou-lhe com a mão os cabelos da cara para a ver melhor, mal conseguindo acreditar na beleza dela, e disse-lhe que a amava. Adormeceram nos braços um do outro, embrulhados na confusão feliz dos lençóis e sem repararem no frio que fazia àquela hora, porque lhes bastava o calor dos seus corpos suados e cansados.

 

Teresa foi a primeira a acordar. Deslizou da cama sem nada para se tapar e foi nua até à sala, pescar do chão a roupa da véspera, espalhada por entre os sofás. Deu com o caixote das molduras, esquecido ao lado da mesinha de apoio e, num impulso, resgatou as que restavam intactas e voltou a colocá-las nos seus lugares, em cima da lareira, nas mesas e na cómoda.

Descobriu que já passava do meio-dia e decidiu tomar um duche rápido e preparar um pequeno-almoço tardio. Vestiu-se no quarto que lhe estivera destinado, porque era aí que tinha deixado o saco com as suas coisas. Escolheu umas calças brancas de algodão e uma camisa leve. Arregaçou as mangas e dispensou a camisola de lã por achar que ficava bem assim. Espreitou pela janela, descobrindo com agrado a vista fabulosa que não pudera apreciar devidamente na noite anterior. Lá fora fazia um dia de sol convidativo e ela não resistiu. Saiu para caminhar um pouco, curiosa como uma criança, excitada com tantas novidades, sorrindo à medida que o seu espírito voltava à noite anterior para recordar o que havia feito e a felicidade que Luís Miguel lhe dera. Finalmente, disse para si, triunfante, finalmente! Estava a pensar que Finalmente encontrara alguém em quem poderia confiar e amar sem reservas.

Voltou para dentro. Entrou pela porta da cozinha e percebeu imediatamente, pelo barulho do esquentador, que Luís Miguel também já se levantara e estava a tomar banho.

Abriu alguns armários e foi à despensa investigar o que havia para preparar o pequeno-almoço. Descobriu, com espanto, que tinham comprado tudo, ou quase tudo, o que já havia a triplicar lá em casa. Mas decidiu que, naquela manhã, se sentia demasiado feliz para começar a estragar o dia com perplexidades. Encolheu os ombros, indiferente, preferindo atribuir o comportamento bizarro dele à desorientação típica dos homens em questões de logística para o lar.

Quando Luís Miguel apareceu na cozinha, vestido, com o cabelo molhado e barbeado, Teresa tinha à espera dele uma mesa posta com ovos mexidos, torradas, sumo de laranja e café acabado de fazer. Tudo isto sobre uma toalha azul aos quadrados que encontrara numa gaveta.

- Que grande banquete.

- Também sei cozinhar, o que é que julgas? - interpelou-o Teresa, divertida, com as mãos nas ancas numa pose de desafio.

- Eu sei, eu sei. Já jantei em tua casa.

- Sim, mas em minha casa tiveste que fazer cerimónia e dizer que estava tudo óptimo.

-Nã, nã, nã. - Acenou negativamente com o indicador.

- Estava mesmo tudo óptimo. - Rodeou a mesa, passou-lhe o braço pela cintura e beijou-a com ternura. - Bom dia - sorriu-lhe.

- Bom dia.

Durante a tarde, foram passear de jipe. Luís Miguel levou-a a conhecer as suas terras e mostrou-lhe uma pequena barragem que fornecia a água para a rega dos campos das redondezas. Caminharam pela margem e sentaram-se a contemplar a paisagem, belíssima, uma planície matizada de amarelos e ponteada por sobreiros até onde a vista alcançava. Em seguida foram tomar uma bica ao café central da vila mais próxima.

Eram quatro da tarde quando regressaram ao monte. Luís Mi guel guiou devagar e ela deitou a cabeça no ombro dele durante todo o caminho. Sentiam-se enfeitiçados um pelo o outro e comportavam-se como dois adolescentes apaixonados. Falavam muito e riam-se perdidamente das graças que diziam, sabendo que pareciam uns perfeitos palermas mas nada preocupados com isso. Agora estavam juntos, tinham deixado cair todas as defesas e já não sentiam necessidade de agir cautelosamente. Podiam descontrair-se e gozar a companhia um do outro.

Chegados a casa, foram directos para o quarto, despiram-se mutuamente, caíram em cima dos lençóis desfeitos da noite anterior e repetiram tudo o que já tinham feito, num turbilhão de amor ainda mais feliz do que na primeira vez.

 

Já de pé, após quatro horas sentado, Guilherme acabou de arrumar os CDs na sua caixa de cartão enquanto ia controlando o tempo da música que estava a tocar através do monitor do computador na mesa do estúdio. Era Don't stop", dos Stones. Trocou umas palavras de circunstância com o colega que o vinha substituir, en quanto esperava que o outro se instalasse e pegasse na emissão. Final mente este mudou a música e deu o CD dos Stones a Guilherme.

- É toda tua - disse, referindo-se à emissão. Pegou na caixa de cartão com as duas mãos, encostou-se à porta pesada do estúdio e empurrou-a.

Foi à sala dos animadores, abriu o seu armário e guardou lá dentro a caixa dos CDs. Dirigiu-se à máquina do café em cima de uma mesa junto à janela e carregou no botão. Ficou a olhar fixamente através da janela para o mar enfurecido, ao longe, abstraindo-se do barulho da máquina a moer o café. Piscou os olhos para iludir o estado hipnótico que o agarrara à vista e ocupou-se a colocar o açúcar e a mexê-lo.

Os estúdios da Onda Rádio ficavam no sétimo andar de um prédio recente em Oeiras. As instalações eram modernas e o equipamento de última geração. O chão alcatifado e as paredes em branc ofereciam uma tranquilidade reconfortante. Havia no máximo vinte funcionários e não trabalhavam todos ao mesmo tempo, dado que a rádio emitia vinte e quatro horas e era necessário fazer turnos. De modo que pairava uma espécie de paz benevolente que proporcionava um bom ambiente entre as pessoas. Mesmo nos piores momentos noticiosos, não havia aquela agitação típica das redacções a correrem contra o tempo como se a casa estivesse a pegar fogo, porque a Onda limitava-se a retransmitir os noticiários de uma rádio nacional. O único local agitado era o estúdio de emissão, mas esse estava para lá das paredes insonorizadas. Guilherme adorava trabalhar naquela rádio porque lhe permitia que fizesse o que gostava sem ter de se sujeitar ao ambiente frenético de antigamente. Agora já não vivia obcecado pela fama e o dinheiro. O que tinha chegava-lhe, e quanto à fama, a recordação desses tempos era mais do que suficiente para perder a vontade de voltar a ser popular.

Percorreu um corredor labiríntico em direcção ao gabinete do director. O director era um tipo muito pouco elegante, que vestia fatos castanhos de segunda qualidade e gravatas incrivelmente pirosas. Guilherme dava-se bem com ele, embora achasse um mistério como é que aquele homem podia estar à frente de uma rádio, por ser óbvio que não percebia nada do assunto. De qualquer forma, o director pusera a gestão da rádio literalmente nas mãos de Guilherme logo que este entrara ao serviço. E não fizera segredo disso, pelo contrário, dissera-se aliviado por poder contar com um verdadeiro profissional. Estes tipos, dissera-lhe, são muito boas pessoas, mas uma cambada de amadores que não sabem o que andam a fazer. E eu também não, confessara com uma franqueza desconcertante.

Depois de terminar a cura de desintoxicação, Guilherme tinha começado a procurar emprego, mas não demorou muito a perceber que não havia nenhuma rádio nacional interessada nos seus serviços. O passado de Guilherme fizera demasiados estragos na sua carreira, tinha perdido todo o crédito num meio pequeno onde tudo se sabia. Era considerado um tipo irresponsável, capaz de pôr em perigo os projectos em que participava, nada viável, portanto. Apesar de Guilherme ser outra pessoa hoje em dia, não havia director de uma grande estação que lhe confiasse um microfone nem por cinco minutos. Estava banido.

De modo que se virou para as rádios locais. Para uma estação como a Onda, alguém com o currículo profissional de Guilherme podia ser muito útil. Foi contratado imediatamente e quando deu por isso já estava encarregado de reestruturar a estação. Introduziu as play limitando a antena à passagem de música de bandas de sucesso internacional, suprimiu os gingles promocionais com efeitos de eco e mensagens de gosto duvidoso, deu indicações precisas aos animadores sobre o estilo de linguagem que deveriam usar, criou espaços alargados de emissão sem anúncios e obrigou a administração a gastar dinheiro em sondagens periódicas para saber exactamente a música que os ouvintes queriam escutar. A audiência cresceu, a publicidade duplicou e Guilherme tornou-se indispensável para a estação. Actualmente ocupava-se da formação de novos animadores de rádio, jovens recrutados nas universidades, que ele próprio estava a ensinar para se assegurar de que em breve teria uma rádio à sua imagem.

Foi encontrar o director muito nervoso no seu gabinete, a bufar de impaciência. Entrou-lhe pela porta adentro sem se dar ao trabalho de bater, sentou-se em frente à secretária dele e passou descontraidamente a perna esquerda por cima do braço da cadeira. Tinham uma relação informal. O próprio director era pouco dado a formalismos. Digamos que não era exactamente um tipo polido.

- Então, director, queria falar comigo?

- Aquele assunto de que falámos?

- Qual?

- Sobre a venda da rádio, homem!

- Ah, sim. O que é que tem?

- Concretizou-se.

- Foi?

- Foi.

- E então, quem é o nosso novo patrão?

- Não sei.

- Como, não sabe?

O director chegou-se à frente na cadeira e colocou os cotovelos em cima da mesa. Era um homem enorme com uma barriga descomunal, mas mexia-se com energia contrariando o aspecto de animal sedentário. Os funcionários chamavam-lhe o "lontra", á socapa.

- Não sei, foda-se! - Atirou as mãos para o ar, exasperado.

- Essa é boa. Quer dizer que temos um patrão fantasma?

- Exactamente, a rádio foi comprada por um cabrão de um fantasma que nos atira com os advogados para nos dizer o que devemos fazer.

- E o que é que os advogados dizem que devemos fazer?

- Para já, nada. Almocei hoje com o representante do nosso fantasma, que me disse que o seu cliente estava muito contente com o nosso trabalho e que, apesar de não querer apresentar-se por enquanto, nos enviava uma mensagem de apoio para continuarmos a fazer um bom trabalho. Ah, e em breve vamos ter um novo administrador. Mais nada. Dá para acreditar nesta porra? !

- É estranho, de facto - comentou Guilherme, intrigado com o mistério. - Mas, por outro lado - encolheu os ombros -, se ele nos deixa trabalhar em paz, sem interferências, o que é que se pode pedir mais?

- Nada - rendeu-se o director, com os cotovelos na mesa e apoiando a sua cara bonacheirona nas palmas das mãos. - Eu só queria que o tipo nos mostrasse a fronha, mais nada.

 

É prova defogo, pensou Teresa. Passadas três semanas depois do fim-de-semana no Alentejo, havia sido convidada para um jantar em casa de uma das irmãs de Luís Miguel, mas fora avisada de que estariam lá todos os outros irmãos e respectivos maridos e mulheres. Embora Luís Miguel não lhe tivesse colocado a coisa nestes termos, Teresa desconfiava de que o jantar tinha sido combinado propositadamente para que ela fosse apresentada à família. Não se importou com isso, sentia-se um pouco nervosa, claro, mas nada que não pudesse aguentar. A timidez não era uma das suas características, pelo contrário, e tinha de admitir que estava curiosa. Queria conhecê-los, porque isso significava conhecer Luís Miguel um pouco melhor.

Entrar na intimidade da família de Luís Miguel seria uma maneira de aprofundar a relação deles. E, de certo modo, criar novos laços com as pessoas mais chegadas e mais importantes da vida de Luís Miguel representava uma carga de responsabilidade acrescida para Teresa. Até agora, tinham sido só eles os dois e Sofia. E Luís Miguel fora sempre de uma atenção inexcedível com a miúda. Teresa ficou a saber que ele só não tivera filhos porque Mafalda não podia. Luís Miguel contou-lhe dos planos deles adoptarem uma criança e confessou- lhe que encher a casa de filhos era um dos seus maiores sonhos. Ele próprio provin de uma família numerosa e fazia-lhe falta a agitação a que se habituara desde a infância.

Luís Miguel não tentara usurpar a Guilherme o papel de pai de Sofia, parecia entender perfeitamente qual devia ser o seu lugar na família, mas, em contrapartida, revelava uma amizade genuína por ela.

Não fossem os frequentes silêncios momentâneos de Luís Miguel e a tendência dele para esconder os seus sentimentos mais sombrios, e Teresa pensaria que a relação deles não poderia ser mais perfeita. Mas - e isto era mais um sentimento do que uma constatação - Teresa estava cada vez mais convencida de que havia algo de terrível no passado de Luís Miguel, além do desaparecimento de Mafalda, que continuava a perturbá-lo. Era frequente surpreendê-lo pendente de um olhar triste, mergulhado em pensamentos sigilosos, que só a ele pertenciam, e que não parecia ter a menor vontade de partilhar com Teresa.

Chegaram para jantar por volta das nove da noite. Foram recebidos pela anfitriã, Lúcia, a irmã mais nova de Luís Miguel, que teve a amabilidade de passar o braço pelo de Teresa e conduzi-la à sala onde já se encontrava o resto da família, apresentando-a a todos.

Era uma sala clássica, decorada sem imaginação, onde sobressaía um enorme sofá de linhas geométricas, com sete almofadas, que fazia um ângulo recto acompanhando a parede lateral e a do fundo. O sofá encaixava-se no canto esquerdo do extremo da sala. Era aí que estavam sentados quase todos os convidados. O marido de Lúcia tomou a iniciativa de dar uns passos na sua direcção com as duas mãos estendidas para agarrar a dela. Eu sou o João", anunciou-lhe. Depois seguiu-se um desfile de apresentações - mais seis nomes, ao todo - que Teresa não teve capacidade para memorizar. Luís Miguel era o segundo mais velho de sete irmãos, todos casados. Na tabela das idades havia desde a casa dos trinta até à dos cinquenta, numa curiosa hierarquia de sexos que deixava as duas irmãs para o fim. Elas as mais novas, eles os mais velhos. Isto Teresa conseguiu reter, o resto iria com o tempo, pensou.

Era um daqueles prédios do princípio do século, em Lisboa numa perpendicular à Avenida da República, com apartamentos de pé direito alto, assoalhadas espaçosas, tectos trabalhados e um corredor que se estendia por uns assombrosos vinte metros. Teresa reparou que era uma casa boa mas a precisar de uma intervençãozinha. Contudo, também reparou que o melhor da noite foram as pessoas, dado que tanto os irmãos como os cunhados foram genuinamente pródigos em gentilezas para com ela.

Reuniram-se à volta de uma mesa que ia de uma ponta à outra da sala de jantar e transformaram a refeição numa autêntica festa. Falavam alto e, por vezes, todos ao mesmo tempo, o que criava um ambiente frenético mas divertido. Havia três crianças, os filhos dos donos da casa, que andavam por ali, à roda da mesa, ajudando a servir o jantar. Foi uma noite alegre e prolongou-se despreocupadamente até depois das três da manhã. Teresa achou aquilo tudo uma agradável surpresa e em breve já se sentia perfeitamente integrada, a acompanhar o ritmo das conversas cruzadas e a participar sem qualquer problema.

Na companhia dos irmãos, Luís Miguel parecia outro, descontraído, talvez por se sentir seguro e por poder desligar um pouco das preocupações habituais. Teresa foi vendo pelo canto do olho como ele se comportava e percebeu que era dos mais empenhados entre todos na acalorada discussão sobre política, que acompanhou o bacalhau espiritual. Mas o mais curioso é que os irmãos atribuíram a transformação de Luís Miguel à única novidade na vida dele; Teresa.

- Há muito tempo que não o via assim, tão animado - comentou Lúcia. - Olhe, Teresa, estamos todos muito contentes por ele ter uma nova namorada. Já era tempo de o Luís Miguel seguir a vida dele. O meu irmão é um bocadinho duro com ele próprio, sabe?

- Sei - concordou Teresa, acenando lentamente com a cabeça

e fazendo um daqueles sorrisos que dizem tudo. Quase podia ouvir um suspiro de alívio colectivo naquela mesa, mas sabia que eles se enganavam ao pensarem que ela tinha conseguido um milagre. Provavelmente, Luís Miguel estava só bem-disposto naquela noite, mais nada.

Os irmãos pareciam depositar uma grande esperança em Teresa e ela duvidava de que estivesse à altura das expectativas deles. Em todo o caso, na altura achou que havia um clima de preocupação na família um pouco exagerado. Não era algo que se dissesse, mas que se sentia. O que ela não sabia era que eles tinham um bom motivo para se preocuparem. Luís Miguel escondia um terrível segredo no seu passado, que eles conheciam mas Teresa não, porque ele ainda não conseguira reunir a coragem suficiente para lhe contar.

 

Teresa regressou aos livros. Havia três meses que não se sentava à frente do computador, simplesmente porque não sentira necessidade. Era assim que funcionava. Depois de acabar um livro, de o lançar e de fazer todo o trabalho de promoção, caía numa inactividade modorrenta. Nessas alturas dedicava-se em exclusivo à sua qualidade de mãe e às tarefas de dona de casa. Como não conseguia arranjar tempo para ler enquanto escrevia, aproveitava os intervalos entre dois romances para devorar tudo o que podia. Fazia incursões às livrarias e passava horas agarrada aos livros, gastando com a leitura todo o tempo livre. Era o seu passatempo favorito.

Naquele dia Teresa ficou a escrever até às quatro e meia da tarde. Em seguida saiu para ir buscar Sofia à escola. Planeara levá-la a lanchar ao Guincho para a compensar por não passar essa noite com ela. Foram a uma esplanada que ficava no interior de um recinto murado, que antes fora o jardim de uma mansão particular. A casa grande ainda lá estava, mas havia sido reconvertida para albergar alguns comerciantes que agora ocupavam as suas secções para vender produtos de artesanato num ambiente original. No jardim havia quiosques, lojas de roupa, cafés e restaurantes, estes últimos com esplanadas no topo de uma falésia por cima do oceano. Dali, e até onde a vista alcançava, podia-se abarcar o deslumbrante azul do mar, assistir às movimentações dos barcos de recreio ao longo da costa e à passagem dos navios de grande porte ao longo de Cascais.

Pediram torradas e Coca Cola. Sofia deliciava-se com o palito do meio da sua torrada e bebia a cola por uma palhinha.

- Mãe!

- Sim, filha.

- A mãe vai casar com o Luís Miguel?

A pergunta apanhou-a de surpresa. Até agora, este tipo de questão não se pusera. Desde o divórcio, Teresa nunca tivera qualquer relação estável que levasse Sofia a encarar um namorado da mãe como um novo factor a ter em conta. Com Guilherme as coisas eram diferentes, uma vez que Sofia já aceitara o facto de que a separação dos pais se tornara definitiva e aprendera a viver com essa realidade. Contudo, no passado a mãe nunca lhe roubara tempo para o dedicar a outra pessoa, e agora isso estava a acontecer. Luís Miguel era uma visita bastante frequente da casa delas e era raro o fim-de-semana que não passavam juntos. De modo que a pergunta tinha todo o cabimento na cabeça de Sofia.

- Não, filha! - reagiu Teresa, com um espanto genuíno e uma expressão algo incrédula. - Por que é que perguntas isso?

- Por nada - disse Sofia, encolhendo os ombros como se não tivesse acabado de perguntar nada de importante. - Era só para saber.

- Não, Sofia, não estou a pensar em casar com o Luís Miguel. De facto, casar com Luís Miguel não era coisa que estivesse entre as prioridades de Teresa. Já ponderara a possibilidade de viverem juntos, um dia, mas mesmo isso não seria tão cedo, certamente. Teresa não sabia o seu futuro, mas o que sabia, de certeza absoluta, era que desta vez não se precipitaria em aventuras amorosas como fizera no caso de Guilherme, com tão maus resultados. Passava muito tempo com Luís Miguel e até já tinha uma cópia da chave da sua casa, porque ele insistira muito nisso, mas era tudo. Aliás, nem sequer tencionava usar a chave a não ser, eventualmente, por algum motivo de força maior. Assim como queria continuar a preservar o seu espaço, Teresa achava importante não invadir demasiado a privacidade de Luís Miguel. Talvez estivesse a ser cautelosa de mais e a agir com uma frieza desconcertante, mas antes assim do que atirar-se de cabeça para uma relação e descobrir depois que andava a lavrar num equívoco.

Sentada ali defronte daquela paisagem perfeita, Teresa pensou que queria desesperadamente ser feliz, apesar das partidas que a vida já lhe pregara, contrariando-lhe obstinadamente essa vontade. Tinha medo. Cruzou os braços, temerosa. Perguntou-se se seria capaz de aguentar mais uma desilusão, se isso a poderia levar à loucura ou, quem sabia, a afundar-se numa depressão profunda e a matar-se. Mas foi um pensamento sinistro e Teresa afastou-o logo da cabeça, censurando-se por se estar a atormentar com ideias loucas. Nem sequer tinha nenhuma razão concreta para esperar o pior. E no entanto a sua intuição dizia-lhe o contrário. Só que naquela altura Teresa ignorou os sinais que a perturbavam e atribuiu a sua insegurança à má experiência do passado.

 

Depois do lanche, Teresa levou Sofia a casa dos avós, onde ficaria nessa noite. Por sua vez, Teresa combinara com Luís Miguel dormir em casa dele. Era sexta-feira e ele acertara a sua agenda para acabar de trabalhar a horas decentes. Teresa já conhecia bem a casa de Luís Miguel mas nunca passara lá uma noite inteira, de forma que seria uma experiência nova e ela sentia-se entusiasmada com o programa.

Encontraram-se à porta por volta das oito. Teresa foi a primeira a chegar e esperou no carro que ele chegasse, o que aconteceu dez minutos mais tarde. Luís Miguel censurou-a por não ter usado a chave, mas ela disfarçou, dizendo que também acabara de chegar e que queria entrar com ele. É mais romântico" disse, pondo um sorriso ingénuo.

Tiveram um serão tranquilo, só para eles, que incluiu um jantar - Luís Miguel surpreendeu-a com um prato de favas da sua autoria - e um DVD. Usaram a sala de jantar, porque ele recusou a sugestão prática de Teresa para que se ficassem pela cozinha e fez questão de pôr a mesa a preceito, com velas e tudo. Comeram sem pressa, entretidos a falar sobre assuntos mundanos.

A ideia daquela noite surgira de uma conversa em que Luís Miguel lhe revelara o seu fascínio pelo cinema, ao que ela retorquira que esse também era um dos seus passatempos favoritos e que, inclusivamente, costumava tirar muitas das ideias para os seus livros dos filmes que via. Então, Luís Miguel convidara-a para um serão pacato em casa dele, frente à televisão.

Acomodaram-se no sofá da sala a ver um DVD que ele alugara As Horas, com Nicole Kidman, Meryl Streep e Julianne Moore, um filme com três histórias de três mulheres em três períodos diferentes.

Fizeram amor pela madrugada dentro. Depois adormeceram abraçados e reconfortados com o calor dos seus corpos. Dormiram profundamente até às dez da manhã. O sábado chegou com a promessa de um dia agradável na companhia um do outro. Sentiam-se livres e felizes por terem todo o tempo do mundo para passearem abraçados pela Rua Direita de Cascais e investigarem as lojas de tudo e mais alguma coisa só pelo prazer diletante de observar as montras e darem a conhecer os seus gostos por isto e por aquilo. Luís Miguel aproveitou para comprar um disco antigo dos tenores José Carreras, Plácido Domingo e Luciano Pavarotti, que pretendia juntar à sua colecção há bastante tempo mas nunca calhara. Antes de conhecer Teresa, disse- lhe, não arranjava tempo - ou talvez vontade - para comprar fosse o que fosse. Mais à frente entraram numa loja de roupa e ele quis oferecer a Teresa uma camisola de caxemira que se prendeu aos olhos dela assim que a viu na montra. E de nada valeram os protestos dela para que a deixasse pagar pela sua própria extravagância.

Almoçaram numa esplanada por cima da praia, debaixo do sol complacente de um dia bonito de Inverno, tão embrenhados nas suas considerações que nem se incomodaram com as demoras dos empregados, a qualidade duvidosa da comida e a barulheira de fundo das outras mesas. Havia ali famílias inteiras à espera de serem servidas, crianças que choravam ou que corriam à volta das mesas, às vezes um pouco descontroladamente. Mas eles não ligaram a nada. Só lhes interessava estar juntos. Noutra altura, Miguel já se teria levantado e desaparecido dali para fora, mas sentia-se abençoado por uma tolerância invulgar.

Voltaram para casa a meio da tarde. Luís Miguel deixou-se cair no sofá grande da sala e declarou que comera de mais e precisava de um repouso apropriado para fazer a digestão. Teresa telefonou para casa dos pais para saber de Sofia e em seguida foi juntar-se a Luís Miguel no sofá. Deitou-se por cima dele, ignorando-lhe os protestos alegres de que estava de barriga cheia. Luís Miguel passou os braços à volta dela e apertou-a com força, num ataque de ternura.

- Uiii - gemeu Teresa. - Pára, pára, pára...

- O que foi? - espantou-se.

- É que tenho o peito dorido e, se me apertas, dói-me - explicou. Levou a mão ao seio esquerdo enquanto recuperava da dor e sentou-se ao lado dele na borda do sofá.

- Estás melhor?

- Estou. - Abanou a cabeça afirmativamente. - Acho que sim.

- Teresa. - Olhou-a com intensidade, preocupado. - Estás pálida.

- Isto já passa.

Ele endireitou-se no sofá, intrigado.

- Estás perto da menstruação? - perguntou-lhe.

- Luís Miguel, não te preocupes.

- Estás ou não estás?

- Não.

- E só te dói de um dos lados?

- Só.

- E não notaste nada de anormal?

- Acho que tenho um nódulo - confessou Teresa em voz baixa, como se tivesse sido apanhada em falta. Ele caiu num silêncio pesado e ficou a olhar para ela. Teresa imaginou o que lhe ia na cabeça. - Não te preocupes, Luís Miguel, eu já tenho uma consulta marcada. Não deve ser nada de especial.

- Para quando?

- A consulta? É daqui a uns dias.

- Deixa-me ver - pediu-lhe, mas num tom de voz resoluto.

- Tira a camisola.

Teresa sentiu-se um pouco assustada. Na realidade, andava a adiar a consulta apesar de ter consciência da sua inevitabilidade. Decidira esperar mais uns dias, na esperança de que as dores lhe passassem, o nódulo desaparecesse e tudo voltasse ao normal. Sabia que não estava a ser muito racional, mas tinha medo da notícia que poderia ouvir da boca do médico. E não dissera nada a Luís Miguel para não o preocupar. Uma coisa destas iria lembrar-lhe o passado, Mafalda, e perturbá-lo. Era o que estava a acontecer, apesar de ele se ter abstido de fazer qualquer comentário.

Teresa despiu a camisola e o sutiã, para que Luís Miguel a pudesse examinar. Ele carregou ao de leve na zona afectada e ela queixou-se.

- Dói-te?

- Dói, e não é pouco.

Em seguida ele fez-lhe uma série de perguntas práticas. Quis saber há quanto tempo é que aquilo lhe aparecera, se já tinha dores há muito tempo, como é que funcionava o seu relógio biológico.

- Tens aí um nódulo, de facto. Não há dúvida nenhumadisse, por fim. - Na segunda-feira vais ter comigo ao hospital para fazeres uma mamografia e uma ecografia.

-Mau - protestou Teresa. - Agora estás a assustar-me. É assim tão mau?

Luís Miguel ensaiou uma espécie de sorriso com o objectivo de a tranquilizar.

- Não se trata de ser assim tão mau - explicou. - O que tu tens é uma displasia fibroquística. É um nódulo muito frequente que aparece devido às alterações normais sofridas durante o ciclo menstrual. Vamos ter de fazer uma série de exames, incluindo, talvez, uma biópsia, para determinarmos se é benigno ou maligno. E só depois é que poderemos decidir a terapêutica adequada para resolver o problema.

 

- Não tenho muito boas notícias, Teresa - anunciou Luís Miguel.

- Não? - reagiu ela, meio aparvalhada.

- Não - confirmou, abanando a cabeça com uma expressão grave. Sentia- se destroçado, mas não quis que ela percebesse.

Teresa submetera-se a uma pequena intervenção no dia anterior. Tinha- lhe sido retirada uma pequeníssima parte do nódulo para se proceder à biópsia. Luís Miguel tratara de falar pessoalmente com o médico patologista para que o caso dela passasse à frente de todos os outros e conseguira obter o resultado da análise no dia seguinte. Agora estava ali sentado à beira do sofá, ao lado dela, a comunicar-lhe a notícia, dominando-se para não deixar que a emoção piorasse ainda mais o estado de nervos dela. Não era fácil ouvir o que ele tinha a dizer, nunca era.

- É maligno.

Teresa cruzou os braços e chegou-se para trás, recostando-se no sofá, num reflexo para ficar mais confortável, procurando instintivamente um apoio qualquer que a fizesse sentir-se mais segura. Não disse nada, enquanto absorvia o impacto das palavras dele. Luís Miguel respeitou essa pausa. Agarrou a mão dela e esperou um bocadinho para que ela se refizesse.

- E agora? - perguntou ela finalmente, com a voz por um fio. Sofia estava no quarto a brincar e, quanto a Teresa, só lhe apetecia chorar.

- Agora tens de ser observada por um oncologista. Eu já tratei de tudo. Vais a um que eu conheço muito bem e que é dos melhores que temos em Portugal.

Teresa assentiu com a cabeça.

- Mas quais são as alternativas de tratamento?

- Ele é que vai decidir isso - retorquiu Luís Miguel, evitando responder.

- Luís Miguel - insistiu. - O que é que pode acontecer? Ele respirou fundo. Preferiria não se precipitar com mais explicações para não a inquietar inutilmente, mas percebeu que não lhe seria possível rodear as perguntas de Teresa, se ela não desistisse de as fazer.

- Vamos esperar para ouvir o que o médico tem a dizer, está bem?

- Vão amputar-me, não vão? Teresa estava à beira do pânico.

- Não necessariamente, Teresa. É possível que te seja só extraído o nódulo.

Luís Miguel abraçou-a. Teresa tremia sem controlo, como se tivesse arrepios de febre.

- Vai correr tudo bem, vais ver - sussurrou-lhe, embalando-a nos braços carinhosamente. Mas a verdade é que ele próprio não estava tão certo disso. Nem queria acreditar que estivesse a passar pela mesma situação pela segunda vez.

Teresa foi atendida no Instituto Português de Oncologia sem necessidade de marcação, graças a um telefonema prévio de Luís Miguel. O médico recebeu-a com a simpatia reservada às pessoas conhecidas e observou-a demoradamente. Depois de terminar o exame na sala de observações disse a Teresa que podia voltar a vestir a camisa e que a esperava no gabinete ao lado. Ela ficou ali a sós com a sua angústia, pensando na má sorte que a perseguia enquanto apertava os botões.

Quando ela regressou ao gabinete foi encontrar o médico sentado à secretária a tomar notas. O oncologista conversara longamente ao telefone com Luís Miguel e estava a par dos resultados de todos os exames. Teresa sentou-se numa cadeira livre. Ele levantou os olhos do papel, tirou os óculos de ver ao perto e encarou-a com expressão bondosa.

- O que eu recomendo - disse -, é o chamado tratamento conservador do cancro da mama. Trata-se de uma intervenção cirúrgica para extrair o nódulo, seguido de radioterapia. No seu caso, como o tumor é pequeno e não apresenta sinais de infiltração, penso que vai ser possível conservar a mama. Quanto à radioterapia, veremos se será necessária para destruir as últimas células cancerígenas.

Teresa engoliu em seco.

- Vou ficar deformada? - perguntou, com medo da resposta.

 

Guilherme teve o seu último pequeno- almoço com Leonardo sem saber que dificilmente voltaria a estar com ele nos próximos tempos pois, a partir daquele dia, a sua rotina matinal seria radicalmente alterada.

O velho amigo não estava com bom aspecto. Pálido, com os olhos encovados, parecia fazer um grande esforço para se manter de pé. Guilherme achou que Leonardo talvez estivesse com um resfriado e que estaria melhor em casa. Aparentemente, ele não pen sava assim.

Sentaram-se à mesa a tomar um café e, inesperadamente, Leonardo decidiu abrir o livro sobre o seu passado.

- Sabe, Guilherme - começou -, eu tive um filho que já morreu há alguns anos. Se fosse vivo, ele teria mais ou menos a sua idade.

- Não me diga...

Guilherme olhou para ele, pasmado. Pelos vistos, hoje é dia de confissões, pensou.

- É verdade. O meu rapaz morreu de uma overdose - continuou o velho - e, olhe, eu nunca me perdoei por não ter conseguido evitá-lo. Nós vivíamos no Rio de Janeiro. Eu emigrei para o Brasil com a mãe dele ainda muito novo. Foi logo a seguir a casar. Arranjei lá um trabalho de motorista, de maneira que apanhei um avião e fui. Fazíamos transporte de mercadorias para todo o mundo. Quando lá cheguei, comecei a trabalhar para um senhor português que era o dono da empresa. Depois acabei por arranjar o meu próprio camião e estabeleci-me por conta própria. No princípio o negócio não era grande coisa, mas eu lá fui andando com a minha vida e consegui criar todas as condições para que o meu filho pudesse ir para a universidade. Acontece é que ele se meteu com más companhias e sabe como é que estas coisas são. Guilherme assentiu com a cabeça. - Pois é, foi uma tragédia. Eu só estou a dizer-lhe isto para que você entenda o valor que dou à coragem que você teve para levantar a cabeça e recuperar-se. - Estendeu o braço por cima da mesa. Apertaram as mãos. - Parabéns, meu caro - disse. - Sinceramente, estou muito contente por tê-lo conhecido.

- Eu também - retorquiu Guilherme.

- Você nem imagina como me faz lembrar o meu filho. Para mim - disse, emocionado - foi uma grande felicidade ter-me cruzado consigo.

- Igualmente, Leonardo. E, se isto valer de alguma coisaacrescentou -, deixe-me dizer-lhe que, pela experiência que tive destas coisas, tudo o que você tivesse feito para salvar o seu filho não serviria de muito se ele não quisesse mesmo ser ajudado. A força de vontade é decisiva para se sair da droga. Somos nós que temos a última palavra. Caso contrário, nem com toda a ajuda do mundo se consegue salvar uma pessoa.

- Eu sei, Guilherme, eu sei. Mas, sabe como é, um pai nunca se convence de que fez o suficiente.

Leonardo caiu numa expressão nostálgica.

- A minha mulher, coitadinha, nunca se recuperou do choque

- contou, como se estivesse a reviver o passado. - Depois da morte do meu filho, perdeu o interesse pela vida, completamente. Ficou doente, os médicos disseram que morreu com uma doença de coração, mas eu tenho a certeza de que morreu de desgosto. Eu próprio perdi o interesse pela vida.

- Não diga isso...

- É verdade, meu caro Guilherme. Deixei de trabalhar, abandonei tudo, vim-me embora. E, até há uns meses, limitava-me a esperar que a morte me levasse. Foi nessa altura que o conheci.

Guilherme voltou a assentir com a cabeça, sem saber muito bem o que dizer. Talvez nem fosse necessário dizer nada. Calculou que o velho não esperava que ele fizesse grandes comentários.

Provavelmente, queria apenas desabafar, dizer o que lhe ia na alma. Guilherme jamais imaginara que fosse tão importante para ele. Afinal, Leonardo nunca se mostrara especialmente afável, pelo contrário, fora sempre um velho carrancudo que vinha encontrar-se com Guilherme quase como se lhe fizesse o favor de o honrar com a sua companhia. Como estava enganado.

- Como é que se chamava o seu filho?

- Leonardo, como eu - sorriu, desalentado. - Bem, chega de confissões por hoje. - Ergueu-se da cadeira, denunciando alguma debilidade, e voltou a estender a mão a Guilherme. - Mais uma vez, foi muito bom conhecê-lo.

Guilherme levantou-se e estendeu-lhe a mão sem suspeitar de que aquilo era um adeus definitivo.

- O prazer foi todo meu - disse, tomando as palavras do velho como uma simples declaração de amizade e não como uma despedida.

Mais tarde, já na rádio, Guilherme preparava-se para iniciar as suas quatro horas de emissão quando recebeu um telefonema da mãe de Teresa, o que, por si só, já era bastante invulgar.

- Aconteceu alguma coisa? - perguntou- lhe, ansioso, antes que ela pudesse revelar-lhe o motivo do telefonema.

- Infelizmente, aconteceu - disse ela.

 

Há uma semana que Luís Miguel não dormia uma noite seguida. Transtornado com os acontecimentos dos últimos dias, voltara a cair num limbo deprimente que conhecia tão bem. Regressou ao velho hábito de fazer vários turnos seguidos, intercalados por algumas horas de sono nalgum quarto livre ou na sala de descanso dos médicos. De manhã fazia a ronda pelas enfermarias para ver os seus doentes, ia a casa tomar um duche e trocar de roupa e regressava ao trabalho com energias redobradas. O facto de ter de se deslocar mais de sessenta quilómetros entre ir e vir de Cascais parecia não constituir problema.

Luís Miguel deambulava pelos intermináveis corredores do Hospital de Santa Maria como um homem alucinado. Nestas alturas, tudo o que lhe restava era manter-se ocupado. De outra maneira, receava sucumbir ao desespero.

Optara por seguir o caso de Teresa sem se envolver directamente. Mesmo contra a vontade dela, entregara a responsabilidade da operação a um cirurgião da sua confiança. Providenciara todas as condições para que ela ficasse nas mãos dos melhores especialistas do país e para que recebesse o tratamento adequado sem delongas. Teresa não seria prejudicada pelos habituais obstáculos da burocracia, não se sujeitaria às listas de espera, não teria de recorrer aos hospitais privados nem seria obrigada a viajar para o estrangeiro em busca de um hospital que lhe proporcionasse o tratamento urgente de que necessitava. Enquanto cirurgião-chefe de Santa Maria, ele exerceria toda a sua influência para garantir que nenhuma dificuldade atrapalhasse a recuperação dela. Mas, por outro lado, estava decidido a não ter qualquer intervenção directa nas opções que viessem a ser tomadas pelos colegas. Quando Mafalda adoecera, Luís Miguel chamara a si toda a responsabilidade, e só ele sabia como perdera o discernimento e como fora contra os conselhos sensatos dos colegas que tentaram chamá-lo à razão, inutilmente. Não voltaria a cair no mesmo erro.

Teresa voltou a si lentamente. Foi como se estivesse a sair de uma longa hibernação, ainda zonza da anestesia. Se tivesse tentado levantar a cabeça, descobriria que lhe pesava toneladas e que seria uma proeza demasiado difícil para o estado debilitado em que se encontrava. Olhou em redor, fazendo um esforço de concentração para focar correctamente as paredes brancas do quarto. Havia sido levada do bloco operatório para o recobro e agora estava deitada numa cama confortável, com tubos finos e transparentes ligados aos braços e que subiam até uns sacos pendurados algures sobre a sua cabeça, por cima da cama. Não havia ninguém por perto, mas não teve de esperar muito para que aparecesse uma enfermeira simpática a perguntar-lhe como se sentia. A mulher informou-a de que ia avisar o doutor Trindade de que já estava acordada.

Ele chegou poucos minutos depois, fez-lhe uma carícia na testa e puxou uma cadeira para se sentar ao lado dela. Antes, Teresa levara a mão ao peito para se certificar de que não havia sido amputada, mas ficara bastante frustrada. Um penso enorme colado por cima da ferida impediu-a de acabar com a angústia que a torturava. Pelo menos, percebeu, ainda tinha a mama, mas até que ponto fora afectada pelo bisturi é que não sabia.

- Correu tudo muito bem - comunicou- lhe Luís Miguel.

E só então Teresa pôde sentir algum alívio. Ele vinha optimista com o resultado da operação e isso foi o suficiente para sossegá-la. - A intervenção foi muito localizada, com um resultado estético bom - disse ele. - Descansa, que ainda estás inteira - gracejou.

Passou as horas seguintes a navegar ao sabor de águas que tanto a traziam à superfície da consciência como a mergulhavam num sono profundo. Era o resultado das drogas que começavam a administrar-lhe para que não tivesse dores. Luís Miguel esteve no quarto dela em várias ocasiões ao longo do dia, mas Teresa só se apercebeu da sua presença na primeira visita.

Por vezes acordava durante um bocadinho e ficava atenta ao que se passava à sua volta, tentando registar qualquer coisa de que se pudesse lembrar mais tarde, num exercício de memória inglório, já que, em escassos minutos, acabava por ser vencida pelo peso da sonolência e todos os pormenores guardados com tanto esforço se desvaneciam como uma folha de papel rasgada em mil pedacinhos lançados ao vento.

Permaneceu assim, pairando nas nuvens durante quase vinte e quatro horas. Era um sono sem sonhos, mas mais tarde ficaria com a estranha certeza de que houve alturas em que o seu cérebro parecia perder-se pelas recordações mais recônditas do seu passado, recuperando acontecimentos de que ela já se esquecera há anos. Quando voltava a si durante a noite, dava consigo envolta na escuridão do quarto, sozinha, e precisava de se concentrar para perceber onde se encontrava e lembrar- se do que lhe acontecera. Nesses instantes sentia-se acometida por uma ansiedade momentânea, mas depois acalmava-se lentamente até voltar a adormecer. Outras vezes acordava aflita por não saber onde estava a filha. Gritava por ela, Sofia, Sofia, ou pelo menos pensava que gritava, pois não chegava a verbalizar a sua aflição, arrastada por um turbilhão de pensamentos confusos.

Uma enfermeira foi ao quarto de Teresa durante a sua ronda lá para o fim da madrugada e encontrou-a muito agitada. Ficou com ela alguns minutos, o tempo suficiente para se certificar de que estava tudo bem, e quando saiu deixou aceso um pequeno candeeiro fixado à grade da cama por cima da cabeça de Teresa. Aquela luz fraca funcionou como um farol, ajudando-a na desorientação em que se encontrava. Dali a pouco voltou a adormecer e, dessa vez, só acordou novamente de manhã.

Sofia foi visitá-la pela mão da avó. Chegaram às nove e meia. O médico de Teresa já estivera no quarto, vigiando-lhe a recuperação, assim como Luís Miguel, que entretanto partira para se ocupar dos seus pacientes. O pai dela chegou pouco depois e permaneceu cerca de uma hora. Quando todos saíram, entrou Guilherme.

Entretanto, Teresa havia sido mudada para um quarto onde havia mais camas, mas que de momento não estavam ocupadas. Era um quarto asséptico, nada havia ali que não tivesse um objectivo prático. Nada de móveis, televisões, peças de decoração ou jarras de flores. Em contrapartida, não faltavam os aparelhos electrónicos que lhe controlavam os sinais vitais, os sacos de soro, as bandejas metálicas com algodão, gaze e outros artigos e algumas cadeiras de ferro com um aspecto bastante desconfortável.

- Não foi fácil encontrar-te - gracejou Guilherme. - Este hospital é labiríntico.

- Não sabia que vinhas - comentou Teresa com uma voz hesitante. Tinham- lhe reduzido as drogas mas ainda lhe custava ordenar os pensamentos e falar sem inibições. Continuava com muito sono e só se mantinha acordada porque lutava contra os olhos pesados que insistiam em fechar-se. Por vezes sucumbia por alguns minutos.

- Então não havia de vir? - retorquiu Guilherme, segurando-lhe a mão. - A tua mãe telefonou-me a avisar-me. Devias ter-me dito que ias ser operada.

- Não quis incomodar-te.

- Teresa - censurou-a num tom brando. - Nada do que te diz respeito me incomoda.

- Obrigada, Guilherme.

-Já cá estive ontem, mas não me deixaram entrar. Agora que já cá estou, não me voltam a arrancar de ao pé de ti.

Teresa tentou rir-se, mas arrependeu- se logo.

- Não me faças rir - protestou -, que me faz doer.

Teresa teve alta no final da semana. Entretanto Guilherme cumpriu a promessa e praticamente acampou no quarto dela. O hospital tinha regras no que tocava ao número de visitas, mas graças às boas influências de Luís Miguel essas regras não se aplicaram a Teresa. Ainda assim, por uma questão de bom senso e para não a cansar demasiado, quando havia mais pessoas no quarto, Guilherme saía e aproveitava para ir lá fora fumar um cigarro.

Durante essa semana ninguém o viu na rádio. Ele pura e simplesmente recusou- se a trabalhar. Quis dedicar todo o seu tempo a Teresa. À medida que ela ia ficando mais animada, passavam mais tempo a conversar. A certa altura começaram a recordar os dias felizes que tinham passado juntos, numa época que já lá ia. Desde o divórcio, Teresa nunca mais voltara a ter um momento assim pacífico com Guilherme, quase que abençoado pela facilidade de entendimento que existia entre eles. Mas agora ele estava ali ao seu lado, era uma pessoa madura e ponderada, com uma atitude serena que ela nunca imaginara que viesse a conhecer- lhe, e Teresa surpreendeu-se a reparar em como ele estava mudado. Não havia dúvidas de que ultrapassara a instabilidade emocional da juven tude, que quase o tinha matado, e que se tornara num homem em paz consigo próprio.

Em nenhum momento, nas longas horas que passaram juntos naquele quarto inóspito, Guilherme regressou aos sonhos antigos, em que a massacrava com ideias mirabolantes de projectos megalómanos que - assegurava-lhe - lhe trariam uma fama e uma riqueza sem fronteiras. Lembrou-se dos tempos felizes, quando ainda eram muito jovens e sonhavam com um futuro glorioso. Guilherme era um rapaz cheio de vontade de vencer, voluntarioso e sem medo. Não conhecia barreiras que o impedissem de chegar onde acreditava que chegaria mas, ao mesmo tempo, também era ingénuo e vulnerável. Teresa divertia-se com as fantasias de Guilherme embora não as levasse a sério. Só quando viu que ele acreditava em tudo o que dizia, percebeu verdadeiramente que estavam metidos em apuros.

Alguns homens nunca deixavam de ser crianças, mas Guilherme havia percorrido um longo caminho solitário para a maturidade. Teresa quis saber como era o seu trabalho na rádio e ele respondeu-lhe apenas que se tratava de um projecto que lhe dava muito gozo. Ela perguntou-lhe se não tinha saudades de trabalhar numa rádio nacional e na televisão e ele encolheu os ombros. Nem por isso, disse. Teresa reparou, com agrado, que os olhos dele já não brilhavam como antigamente quando falava daquele mundo. E Guilherme percebeu que ela o estava a testar com aquelas perguntas. Mas não se importou.

Teresa não podia imaginar como ele ficara abalado com o telefonema da mãe dela. Correra imediatamente para o hospital, preocupadíssimo. Guilherme foi apanhado de surpresa, não sabia da doença de Teresa e o tom da mãe ao telefone denotou um nervosismo que não augurava nada de bom.

Ultimamente, Guilherme só via Teresa esporadicamente. As suas vidas não se cruzavam. Frequentavam mundos diferentes e as amizades de outrora tinham-se desvanecido com os anos. A maior parte dos amigos comuns haviam sido apresentados por ele a Teresa. Mas ela afastara-se desse meio e eles optaram por se afastar de Guilherme. De forma que Sofia era agora o único elo entre ambos.

A lembrança do amor deles que subsistia em Teresa, imaginava Guilherme, seria só das provações sucessivas que ele a fizera passar, num acumular de desgostos e infelicidades que se tinham prolongado até ao limite do que podia ser humanamente suportado. Contudo, para Guilherme, Teresa nunca deixara de ser a mulher mais importante da vida dele, a única que valia a pena recordar. Teresa enfrentara o seu meio social para ficar com Guilherme, e ele traíra-a dando-lhe uma vida miserável; Guilherme destruíra tudo o que tinham em comum por causa da droga, chegara a colocar a própria filha em perigo, e mesmo assim Teresa voltara para o salvar. Agora os papéis invertiam- se, de certo modo. Era ela quem lutava para se salvar e ele faria tudo o que estivesse ao seu alcance para a ajudar.

Apesar do momento difícil ele não deixou de pensar que, pelo menos, era bom poder voltar a estar junto de Teresa e acompanhá-la numa altura tão complicada da vida dela. Até onde lhe seria permitido ir, só a Teresa cabia decidir, mas ela parecia reconfortada com a companhia dele e Guilherme não lhe detectou qualquer sinal do velho ressentimento que tantas vezes viera ao de cima ainda recentemente, e que costumava ser decisivo para o manter afastado. Desta vez, percebeu, acontecera qualquer coisa e Teresa não lhe fechou a porta na cara.

 

A recuperação foi lenta. Quatro semanas, antes de poder iniciar o tratamento com radioterapia que se prolongaria por outras quatro semanas. Teresa regressou ao hospital para o médico lhe mudar o penso e certificar-se de que a ferida estava a sarar sem problemas.

- Você ainda não está curada - advertiu-a o médico antes de lhe retirar o penso - e o que vai ver não é nada bonito. Mas não se assuste, porque este aspecto é normal. Depois de a ferida fechar completamente, quase não se vai notar que foi operada.

Não era bonito, realmente, mas, como Luís Miguel lhe dissera, continuava inteira, e isso é que lhe interessava.

Regressou a casa bastante animada.

Luís Miguel telefonou mais tarde a saber dela e a desculpar-se por não aparecer.

- Estou de banco - disse - e nem imaginas a confusão que vai ser aqui logo à noite.

- Aconteceu alguma coisa?

- Os acidentes do costume. - Era sexta-feira, dia dos bêbados andarem à solta na estrada.

Logo a seguir telefonou Guilherme.

- Precisas de companhia? - perguntou-lhe.

- Obrigada - agradeceu Teresa, comovida com a preocupação dele -, mas hoje estou cansada. Vou ficar aqui com a minha filhota e deitar-me cedinho.

Depois de desligar, Teresa pôs-se a magicar na atitude dos dois homens da sua vida. Um está de volta, e o outro parece estar com vontade de partir, pensou, entristecida.

Com o quotidiano a regressar a uma certa normalidade, dentro do possível, e com tempo para absorver tranquilamente os acontecimentos dos últimos dias, Teresa deu consigo a ver coisas que até então lhe tinham passado ao lado. Lentamente, começara a tomar consciência de um certo afastamento de Luís Miguel. Não era nada que ele tivesse dito, mas a verdade é que havia invariavelmente uma razão para não a ir ver - quase sempre trabalho. E até ele descobrir que Teresa tinha um cancro, a sua disponibilidade não colidira com as solicitações do hospital.

Primeiro Luís Miguel recusara-se a tratá-la pessoalmente. Isso foi um choque, mas Teresa podia entender os motivos dele. No entanto, agora que tinha cabeça para pensar com objectividade, podia ver com toda a clareza que, ainda no hospital, as passagens de Luís Miguel pelo quarto dela pareciam mais as visitas de um médico interessado pela sua paciente, do que do homem que era suposto estar apaixonado por ela. Demasiado debilitada para reparar no seu distanciamento deliberado, Teresa não atribuíra nenhum significado especial ao comportamento de Luís Miguel, mas aquilo perdurara na mente dela e, sinceramente, Teresa não sabia como interpretá-lo. Será que ele já não gosta de mim? , perguntou-se, alarmada. Teresa ficaria eternamente agradecida por tudo o que Luís Miguel fizera por ela. Graças a ele, tinha sido tratada com uma rapidez impressionante e certamente que impossível de aconttecer com qualquer pessoa comum que se encontrasse nas mesmas circunstâncias e não tivesse uma conta bancária suficientemente recheada para recorrer à medicina privada. Claro, ela achava normal que Luís Miguel tivesse usado todas as suas influências para a ajudar, mas não gostaria de chegar à conclusão de que ele se limitara a fazer apenas o que achava ser a sua obrigação.

Depois de ponderar bastante no assunto, Teresa começou a encarar o problema de uma forma mais racional e construtiva.

obviamente, pensou, tudo aquilo havia sido um grande choque para Luís Miguel. Era natural que ele revivesse através de Teresa os tempos terríveis passados ao lado de Mafalda. Apesar de tudo, a morte dela, com todas as circunstâncias que a rodearam, ainda estava bem presente na memória de Luís Miguel. E, se para qualquer homem normal perder a mulher fosse uma tragédia difícil de imaginar, no caso de Luís Miguel havia sido muito pior, uma vez que ele tinha chamado a si a decisão de arcar sobre os seus ombros a responsabilidade exclusiva de a salvar, e falhara. Sendo assim, não custava perceber que Luís Miguel estivesse naquele momento a atravessar uma fase complicada. Teresa resolveu dar-lhe espaço e sossego para que ele pudesse ultrapassar aquilo à sua maneira. Não pretendia interferir com os sentimentos dele nem tão pouco forçá-lo a falar do assunto. Com o tempo, quis acreditar, Luís Miguel voltaria para ela e reatariam a relação com toda a normalidade.

Tudo se há-de resolver, pensou Teresa, fazendo um esforço para ser optimista. Agora, o que tinha a fazer era arranjar algo com que se ocupar, manter a cabeça ocupada para não pensar demasiado em Luís Miguel e não andar a arrastar-se pelos cantos como um animal ferido, a consumir-se em estados de alma depressivos. De qualquer modo, não precisou de procurar muito para encontrar um motivo digno de toda a sua atenção. Alguns dias depois de deixar o hospital, Teresa viu-se confrontada com uma situação inédita até para ela. E, mais do que chocada, sentiu uma imensa revolta.

 

Naqueles dias Guilherme decidiu que a rádio teria de passar sem ele pelo menos durante uma ou duas semanas, depois se veria, o que deixou o Morsa à beira de um ataque de nervos. O director não estava habituado a ser contrariado. Dirigia a rádio impondo um certo respeito e era assim que gostava que as coisas continuassem. Em boa verdade, a empresa não lhe dava grandes problemas, cada um tratava da sua parte e raramente surgiam conflitos que o obrigassem a intervir. Contudo, Guilherme trouxera para a rádio uma mentalidade mais profissional e, lentamente, começara a mudar os hábitos acomodados dos que ali trabalhavam. O grau de exigência tornara-se mais elevado. Dois colaboradores mais relutantes que se tinham recusado a aceitar as mudanças foram dispensados pelo director, que os despediu sumariamente sem pedir sequer a opinião a Guilherme.

O director foi recebê-lo à porta do seu gabinete a esfregar as mãos, orgulhoso.

- Está feito - declarou o Morsa.

- Está feito, o quê? - perguntou Guilherme, intrigado.

- Despedi os gajos.

- Despediu-os?

-Exactamente. - Fez uma careta firme. - Despachei-os e meti-os na rua.

- Assim, sem mais nem menos?

- Hum-hum.

- E eles aceitaram?

- Que remédio. Tive de os trabalhar um bocadinho, está a ver? Mas aceitaram.

Guilherme não estava a ver de todo, mas preferiu nem saber, para não ficar ainda mais horrorizado.

- Pronto - continuou o Morsa -, dei-lhes uma indemnizaçãozinha jeitosa e eles lá foram à vida deles. Não era o que você queria, homem?

- Que eles eram uns chatos do pior, eram, mas eu não estava bem a pensar em despedi-los.

- Uns chatos do pior? Eram mas é uns filhos da puta que só queriam encravar a máquina. Guilherme - deu-lhe uma vigorosa palmada nas costas, - então não é melhor assim?

Ele encolheu os ombros, rendido ao estilo desconcertante do director.

- É - respondeu. Já decidira que não gostava do Morsa nem dos seus métodos pouco ortodoxos, mas a verdade é que naquele momento não estava em posição de o afrontar. O que o homem fizera não merecia nenhuma consideração, contudo nada do que Guilherme fizesse iria devolver-lhes os empregos. De qualquer forma, serviu-lhe de lição. De futuro não comentaria com o tipo as suas dificuldades com terceiros. Trataria de resolver os problemas discretamente.

E o certo é que depois disto não houve mais resistências à mudança. Todos entenderam a mensagem. Além disso, os que ficaram sentiam-se ameaçados pela chegada de reforços, jovens treinados por Guilherme, altamente motivados e dispostos a vencer na profissão. O ambiente na rádio não chegava a ser tenso, mas as pessoas perceberam que não poderiam continuar a dormir na forma, se não quisessem descobrir, de um dia para outro, que haviam sido substituídas por algum jovem voluntarioso sem nenhum problema em roubar o lugar aos mais velhos. Eles queriam dar o seu melhor porque iam a caminho de se tornarem uma rádio nacional e nada, nem ninguém, os poderia impedir de realizar o seu sonho. Guilherme sabia disso e contava com a ambição deles para resgatar a Onda Rádio do seu relativo anonimato.

O primeiro contratempo sério que surgiu durante este processo foi a doença de Teresa. Guilherme telefonou ao director e explicou-lhe, ou melhor, comunicou-lhe que teria de se ausentar por uns   dias porque a ex-mulher adoecera gravemente e precisava dele.

O Morsa, que nunca lhe ouvira falar de nenhuma ex-mulher e que tinha por princípio desconfiar de tudo e de todos, ficou possesso. Ao telefone, rosnou qualquer coisa, engolindo a explicação de Guilherme como um remédio amargo, mas depois passou o dia a fazer chamadas numa investigação desenfreada, convencido de que Guilherme se preparava para abandonar o barco a favor da concorrência. Mas, como não descobriu nada, ainda ficou mais frustrado.

Ao fim de três semanas enfiada em casa, Teresa habituou-se a ter Guilherme como companhia. Ele aparecia sempre, tendo o cuidado de lhe telefonar primeiro para auscultar a disposição dela, e levava-lhe pilhas de revistas, jornais, DVDs e CDs. Vinha de manhã, muito cedo, para apanhar Sofia e levá-la à escola, e fazia o mesmo à hora do almoço e ao fim da tarde. Sofia estava simplesmente maravilhada, e Teresa também. Guilherme nunca fizera aquilo. Aliás, Guilherme nunca soubera sequer onde era a escola da filha. Vê-lo no papel de pai extremoso era uma novidade absolutamente formidável. Ele estava mesmo mudado.

Ao contrário de Guilherme, Luís Miguel nunca estava presente; praticamente, evaporara-se, e já nem sequer lhe ligava todos os dias. Teresa sentia-se vexada mas decidida a não dar parte de fraca. Quando Luís Miguel telefonava, ela falava- lhe como se não houvesse qualquer problema e, se ele a visitava, recebia-o com um sorriso aberto, um abraço carinhoso e perguntava-lhe como iam as coisas no hospital. Ele punha aquela sua já habitual expressão de fatalismo resignado e respondia-lhe em meia dúzia de palavras.

- Oh, sabes como são os hospitais: uma loucura diária. Mas como Luís Miguel já limitara as suas visitas ao fim-de-semana, foi Guilherme quem trouxe a má notícia.

- Teresa - informou-a -, eles já sabem.

Ele acabara de cumprir a sua rotina matinal. Tocara à campainha, Sofia descera, levara-a à escola e no regresso passara no quiosque a comprar os jornais do dia e uma ou duas revistas. estava ali especado na soleira da porta de entrada com um ar enfiado, agarrado aos jornais e com muito pouca vontade de os entregar a Teresa.

- Deixa-me ver - pediu.

- Vamos sentar-nos primeiro - sugeriu - e pensar nisto com calma.

- Deixa-me ver - exigiu Teresa, num tom que não admitia discussão.

Entregou-lhe o Correio da Manhã. Teresa olhou para a primeira página e viu-se numa fotografia a sair do hospital. O instantâneo apanhara-a de relance, entre a porta do edifício e o carro que a aguardava. Ia de óculos escuros e um lenço na cabeça, mas via-se perfeitamente que era ela. Guilherme também lá estava, a abrir-lhe a porta do carro. O título em caixa alta proclamava: TERESA DÓRIA GRAVEMENTE DOENTE. E o texto interior explicava até aos mais ínfimos pormenores o estado clínico da escritora, o tipo de tratamento que estava a receber, os nomes da equipa médica que a assistia, o dia em que fora operada, como decorrera a intervenção. enfim, tudo.

- Meu Deus! - exclamou, horrorizada.

- Também não é nenhuma tragédia - disse Guilherme, numa tentativa pouco conseguida de desdramatizar a situação.

- Não é uma tragédia? É uma catástrofe!

Aquele fora um dos maiores receios de Teresa desde o início. Fizera todos os possíveis para que nada do seu estado de saúde chegasse aos ouvidos dos jornalistas. Exigira que os médicos se comprometessem com um pacto de silêncio e limitara o assunto ao estrito círculo familiar. A doença já era suficientemente penalizadora sem a imprensa a escarrapachar a sua dor nas primeiras páginas. Mas de nada lhe valeram as precauções. No fim, acabara por acontecer. Teresa nunca chegaria a saber quem dera a informação ao jornal. Eventualmente, alguém a reconhecera.

A operação e os dias que se lhe seguiram no hospital tinham sido relativamente discretos. Teresa tivera direito a um quarto só para ela e muito poucas pessoas souberam da sua presença. Mas o tratamento de radioterapia a que estava a ser submetida agora obrigava-a a ir diariamente ao hospital. Tratava-se de uma terapêutica complementar com base num modelo computorizado que consistia em aplicar altas doses de radiação para destruir a capacidade das células malignas de se regenerarem. A terapêutica teria a duração de quatro semanas e era feita de segunda a sexta-feira. De modo que não havia forma de evitar ser vista por centenas de pessoas. Qualquer uma podia ter tropeçado nela, eventualmente conhecia um jornalista com quem comentara a curiosidade e a partir daí a notícia seguira o seu percurso normal até ser impressa na primeira página do jornal. Só lhe apetecia chorar.

- Eles não tinham o direito de meter o nariz na minha vida - disse, desgostosa.

Por acaso, Guilherme até achava que tinham. Teresa recorria frequentemente à imprensa para divulgar o seu trabalho, dependia disso para influenciar as pessoas a comprarem os seus livros, era uma figura pública, aquilo era só o outro lado da moeda e ela devia aceitá-lo. Mas, claro, guardou para si a sua opinião.

- Nem sequer falaram comigo primeiro - queixou-se. Mas também isso não correspondia exactamente à realidade. Eles tinham tentado contactá-la e teriam falado com Teresa se ela não tivesse desligado o telefone de casa e substituído o telemóvel por um novo, cujo número só era do conhecimento de meia dúzia de pessoas muito próximas.

- Deixa lá - disse Guilherme para a animar. - Daqui a uns dias eles arranjam outro assunto para escrever e nunca mais se lembram de ti.

- Duvido - resmungou, certa de que tão cedo não seria deixada em paz.

E de facto nessa mesma tarde Teresa descobriu que tinha à espera à porta do hospital um pelotão de repórteres desejosos de conseguirem a sua foto e de lhe arrancarem algum comentário.

- Não pares! - gritou-lhe Teresa, aflita. - Continua, continua.

Guilherme seguiu em frente, sem abrandar a velocidade e foi esconder o carro no parque de estacionamento, enquanto Teresa ligava a Luís Miguel do telemóvel para que este lhe arranjasse forma discreta de entrar no hospital.

 

Teresa entrou na última semana do tratamento. As idas constantes ao hospital e o desgastante jogo do gato e do rato com os jornalistas estavam a levá-la muito rapidamente a uma saturação psicológica difícil de aguentar. Luís Miguel não a podia ajudar. Telefonara-lhe dois dias antes a comunicar-lhe que partia para um congresso em Londres.

A jornalista que lhe fizera a última entrevista fora bater-lhe à porta acompanhada de um fotógrafo, a pressioná-la para que falasse para a revista dela. Teresa tivera de lhes fechar a porta na cara e entrincheirara-se em casa à espera de que eles desistissem e se fossem embora. Curiosamente, nunca como agora sentira que fosse tão famosa. Não imaginara que a sua vida pudesse interessar tanto à imprensa. Nos últimos anos Teresa tinha sido crescentemente solicitada para entrevistas, à medida que os seus livros iam somando sucessos de vendas. Era convidada com frequência para participar em programas de televisão e de rádio e não se publicava um único artigo sobre livros que não contasse com a opinião dela, ou pelo menos que não a mencionasse. Mas, tirando a presença mais ou menos constante nos meios de comunicação, Teresa fazia uma vida absolutamente normal. Não frequentava as festas badaladas, raramente aparecia em acontecimentos sociais onde pudesse ser vista ao lado do beautiful people que circulava pelos desfiles de moda, os concertos, as inaugurações e todos os outros hapenings mundanos que atraíam os fotógrafos das revistas cor-de-rosa. De modo que não estava habituada a lidar com o frenesim que de repente se instalara à sua volta.

Desde a notícia do Correio da Manhã, a doença de Teresa estava a fazer as capas de jornais e revistas à média de uma por dia. Até a televisão já se interessara pelo assunto. Uma loucura.

Guilherme gastava os seus dias numa permanente correria entre

a casa de Teresa, a escola de Sofia e o hospital. Ainda que Teresa lhe tivesse assegurado de que podia perfeitamente ir sozinha à radioterapia, Guilherme fazia questão de a acompanhar. Para dizer a verdade, ela também preferia que fosse ele a levá-la. Guilherme sentia alguns remorsos por nunca mais ter ido ao encontro de Leonardo. Desde a operação de Teresa, não voltara a aparecer no Colombo para tomar o cafezinho da manhã com o velho amigo. Contudo, quisera deixar-lhe uma mensagem através dos empregados e tinha ficado a saber que Leonardo também já não ia ao café há muitos dias. Estranho, cismou na altura, mas andava tão atarefado que não se deteve a pensar no assunto mais do que uns segundos.

Hoje em dia ninguém lhe punha a vista em cima a não ser Teresa e Sofia. Nem mesmo na rádio. Guilherme adiara todos os compromissos profissionais e desligara o telemóvel para levar as pessoas a desistirem de lhe telefonar a toda a hora. À noite consultava a caixa de mensagens e ficava a saber de uma data de problemas e de uma quantidade de gente que lhe queria falar e que ele preferia ignorar por agora. Nem mesmo o Morsa ou o advogado representante do dono da rádio teriam o privilégio de lhe ouvir a voz. Sabia que ambos estavam desesperados para o contactar, não fazia ideia do que poderia ser assim tão urgente, mas também não estava nada interessado em descobrir. O mais certo era ser alguma coisa sem importância nenhuma e Guilherme não se sentia com cabeça para os aturar.

Festejaram o último dia da radioterapia com um jantarzinho frugal. Guilherme, Teresa e Sofia juntos à mesa num jantar de família tranquilo como nunca tinham tido. Foi agradável.

Tiveram direito a uma taça de champanhe que ele trouxe para celebrar a ocasião.

- Um brinde à saúde da mãe - propôs ele. Ergueram as tassas com sorrisos abertos. Sofia foi autorizada a beber uns golinhos para não ficar de fora da festa. Era capaz de me habituar a isto, surpreen deu-se Teresa a pensar, enquanto se riam de um divertido discurso que Guilherme decidiu improvisar.

Quando Sofia foi para a cama, Guilherme ficou na cozinha a ajudar Teresa a colocar a loiça na máquina de lavar. Terminaram as arrumações e foram sentar-se no chão da sala, confortavelmente instalados em cima de almofadas, a conversar frente à lareira. Teresa sentia-se bem. Aninhou-se nos braços dele e deixou-se ir atrás do ambiente reconfortante, do calor da lareira e do espírito desanuviado pelas duas taças de champanhe que bebera às escondidas dos médicos. Guilherme beijou-a e ela não fez nada para o impedir.

 

Não saberia dizer muito bem como tinham chegado àquele ponto, mas supunha que fora o evoluir dos acontecimentos nas últimas semanas que os levou aos braços um do outro. Teresa não se imaginara a voltar para Guilherme nem que caísse uma bomba atómica, mas agora ele apertava-a nos braços com o carinho de que ela necessitava e nem pensava em mandá-lo embora.

Chegara a altura de Teresa aceitar que Luís Miguel desistira dela. A sua passagem pela vida dela resultara numa grande desilusão. Ainda que ela fosse incapaz de pensar mal dele depois de tudo o que fizera para lhe salvar a vida, a verdade é que já encarava a relação deles como uma recordação do passado. Quanto a Guilherme, todos os dias a surpreendia com uma dedicação desinteressada que só provava que ele ainda lhe tinha, senão o amor de antigamente, pelo menos um enorme carinho que não se perdera pelo rumo atribulado que a sua relação outrora seguira e tantas vezes os deixara de costas voltadas. Guilherme largara tudo para a vir ajudar e em nenhum momento lhe pedira nada em troca. Ele sabia da existência de Luís Miguel na vida de Teresa mas nunca tocava nesse assunto. Não lhe fazia perguntas indiscretas, assim como não comentava as ausências dele. Mas como Luís Miguel costumava visitar Teresa aos fins-de-semana, Guilherme abstinha-se de aparecer nesses dias. Voltava na segunda-feira para levar Sofia à escola, acompanhar Teresa ao hospital e, se lhe perguntava como fora o fim-de-semana, era só para saber se ela não tivera qualquer dificuldade relacionada com a sua recuperação.

Guilherme não entrava em conversas sentimentais nem se insinuava para testar a receptividade de Teresa à ideia de voltar para ele. De facto, era tão discreto nesse campo que ela nem suspeitava de que ele a queria tanto agora como naquela primeira e distante noite na praia de Cascais.

Reconquistar Teresa era um sonho impossível que Guilherme já não alimentava há anos, ciente de que havia um preço muito alto a pagar pelas suas asneiras. Arruinara a vida deles, como poderia sequer atrever-se a sugerir-lhe que saltasse por cima do passado para reunirem a família que nunca devia ter-se separado?

Quando foi informado da doença de Teresa e da intervenção cirúrgica, Guilherme só quis que ela soubesse que poderia contar com a sua ajuda incondicional. Dominado pela preocupação, correu para o hospital. Teresa não sabia, mas na primeira noite que passara no hospital, Guilherme ficara a madrugada inteira sentado num banco da sala de espera das emergências, o único local de onde não o expulsaram. Inicialmente conseguira iludir a vigilância da segurança e andara a deambular pelos corredores de Santa Maria à procura dela, até se tornar notado e ser convidado a sair pelos enfermeiros de serviço.

Durante o último mês Guilherme limitara-se a estar presente e a revelar-se útil. Lentamente, renovara a esperança de reconquistar Teresa, mas não a sondou sobre essa hipótese, evitou mesmo o assunto. Desta vez não conseguiria transmitir-lhe confiança por palavras, apenas por actos. Queria que Teresa compreendesse que não era o mesmo Guilherme que ela resgatara da imundície em que ele transformara o antigo quarto de dormir que tinham partilhado. Já não era a mesma pessoa irresponsável e egoísta que dera cabo da sua felicidade. E queria que ela voltasse a respeitá-lo.

E então aconteceu. Os dois juntos, abraçados e a beijarem-se com a mesma paixão de sempre.

- Amo-te - declarou-lhe Guilherme.

Naquele momento Teresa queria-o. Ele beijava-a e ela aceitava-o como uma dádiva para a sua alma sofrida. Ainda que não lhe tenha dito que também o amava, continuou a beijá-lo e permitiu que a mão dele deslizasse pela sua perna, debaixo da saia, e encontrasse o caminho que parecia irreversível. Caíram sobre as almofadas e olharam-se com aquela expressão dedicada de outrora, quando eram só eles os dois. Guilherme deteve-se por um instante, com medo de se precipitar. Receou que fizessem alguma coisa de que ela viesse a arrepender-se mais tarde e deitasse por terra tudo o que conseguira conquistar nesses dias.

      - É melhor ficarmos por aqui - disse Teresa. Sentou-se ao lado dele. Ficaram um bocadinho em silêncio, de mãos dadas, a observar as achas incandescentes na lareira que começavam a morrer, apagando-se serenamente.

- Bem - declarou ele, resignado, fazendo menção de se levantar -, acho que está na hora de me retirar.

Teresa esticou a mão para o deter.

- Guilherme - disse -, eu ainda não sei o que vou fazer da minha vida -, como se ele estivesse à espera de uma explicação.

- Não tens de te justificar, Teresa. - Ofereceu-lhe um sorriso compreensivo.

- Eu sei, mas é que não quero que penses que sou uma ingrata. Eu percebi o esforço que tu fizeste para me ajudar e sei que estás mudado e que posso confiar em ti. Não penses que eu não vi tudo isso.

- Não fiz nada que tu não tivesses já feito por mim.

- É bom saber que podemos contar um com o outro sempre que precisamos, não é? Mas, Guilherme, na segunda-feira sou eu que levo a Sofia à escola. Tu tens que voltar ao teu trabalho e tens que retomar a tua vida, senão qualquer dia és despedido.

- Não te preocupes com isso. Eu posso levar a miúda à escola antes de ir para a rádio.

- Não, não precisas de fazer isso. Eu levo-a, está bem? Ele assentiu com a cabeça. Depois Teresa acompanhou-o à porta e despediram-se. Guilherme foi- se embora e ela deixou-se ficar na sala. Afundou-se no sofá, com as palavras dele ainda a ressoarem-lhe na cabeça. Guilherme dissera que a amava. Há quantos anos que ela não o ouvia dizer aquilo? Teresa reviveu o beijo de Guilherme e quase sentiu as mãos dele outra vez a explorarem o seu corpo. Fora tão bom, reconheceu para si mesma, que precisara de uma grande força de vontade para o deter e para impedir que fossem mais longe. Por algum motivo que não sabia explicar muito bem, sentia que continuava a dever lealdade a Luís Miguel, mesmo se ele optara por se afastar dela e ignorá-la ostensivamente.

Depois de um período de pura amizade, em que não houvera qualquer envolvimento físico ou sentimental com Guilherme, a partir dessa noite Teresa teria de ter em conta que acontecera algo entre eles que ela não poderia ignorar. Nem queria.

E agora, Teresa, E agora?

 

Concha foi passar o sábado a Cascais com Teresa e Sofia. Ficara mais furiosa por ter sabido de tudo pelos jornais do que preocupada com a doença de Teresa. Aquilo não se fazia a uma amiga, reclamou. Esconder-lhe um problema tão grave, francamente. Mas, já se sabia, os amuos de Concha não duravam muito.

Foram comer gelados ao Santini e passear a pé. Concha propôs uma terapia de compras, mas no final não compraram absolutamente nada porque Teresa não estava para aí virada.

Em parte para compensar Concha de não a ter avisado do seu problema, em parte por sentir necessidade de desabafar, enquanto caminhavam Teresa começou a contar-lhe como tinham sido as suas últimas semanas. Sofia, adiantada alguns metros, não podia ouvir a conversa. Teresa falou-lhe do afastamento gradual de Luís Miguel, da desilusão que sentia por ele não se mostrar interessado em estar com ela e por nem sequer ter sido suficientemente corajoso para lhe falar do que o levava a desistir dela. No mínimo, merecia uma explicação, ou não? Em contrapartida, continuou, Guilherme dera-lhe todo o apoio. Tinha sido um querido, foi a palavra que ela usou para descrever a ajuda maravilhosa que Guilherme lhe dera.

- Não sei como teriam sido as coisas sem ele - reconheceu. Concha lançou-lhe um olhar perscrutador, de sobrancelhas erguidas, subitamente alertada pelo tom suspirado das palavras da amiga.

- Teresa! - soltou, num gritinho abismado.

Teresa deteve-se com cara de enjoada. Concha via romance em tudo.

- O que foi?

- Não posso acreditar que estás outra vez caidinha pelo Guilherme.

- Eu sei lá por quem é que estou caidinha. O problema é esse. Eu estou a passar uma fase muito difícil, Concha, e sabes como é nestas alturas temos tendência para nos agarrarmos a quem nos estende a mão. Bem - acrescentou, deliciando-se com a frase atrevida -, a mão e não só.

Concha abriu muito os olhos, absolutamente extasiada com o rumo da conversa.

- Não me digas! - exclamou, como se Teresa lhe tivesse dito alguma coisa em concreto.

- Calma, foi só um entusiasmo, ontem à noite, mas não aconteceu nada de especial porque eu não deixei.

- Estás a ficar esperta, rapariga! - comentou Concha, numa referência implícita ao inferno que Teresa passara com Guilherme numa outra vida.

- Não, Concha, estás enganada. O Guilherme já não tem nada a ver com o que era. Está muito mudado.

- Teresa - apontou para trás, indicando o momento imediatamente anterior -, acabaste de me dizer que não estás nas melhores condições para fazeres escolhas racionais.

- Sim, mas agora é diferente.

- Será?

Pois... seria? Teresa queria acreditar que sim, que o verdadeiro Guilherme fosse realmente o que a cobria de atenções e tomava conta da filha, levando-a à escola sem se atrasar um minuto e ajudando-a nos trabalhos de casa. Queria muito poder confiar incondicionalmente em Guilherme. Mas Concha tinha razão, esta não era a melhor altura para tomar decisões racionais e serenas, ainda estava demasiado vulnerável psicologicamente para ter a certeza de que não era levada por entusiasmos que mais tarde se revelariam amargos.

Fora este receio que a fizera travar o envolvimento com Guilherme na noite anterior. Não se achava preparada para se entregar a Guilherme. Ainda não. E depois, ainda havia Luís Miguel... Valeria a pena lutar por ele?

Sentia-se dividida entre a incerteza de um amor antigo e a rejeição de um amor novo.

 

Na segunda-feira Guilherme teve a maior surpresa da vida dele. Chegou muito cedo à rádio e gastou a manhã toda a recuperar o tempo perdido. Parecia que tinha sido ontem, mas a verdade é que não punha os pés na rádio há quase dois meses. Estava admirado de não ter recebido uma carta de despedimento em casa. De certo modo, aquilo acabara por servir de teste para Guilherme saber até que ponto o director achava o seu trabalho importante. E, ao que parecia, o Morsa precisava desesperadamente dele. Caso contrário, o que o impedira de o pôr no olho da rua?

Assim que soube do regresso de Guilherme, o director ligou-lhe por uma linha interna. Em vez de se mostrar agastado com a ausência dele, começou por se interessar pelo estado de saúde de Teresa. Depois das notícias nos jornais, o director compreendera que havia realmente um problema e que Guilherme não andava a inventar desculpas para se pirar para a concorrência. Isso sossegara-o. Guilherme garantiu-lhe que agora já estava tudo bem e que tencionava retomar o trabalho em pleno. Por seu lado, o director disse-lhe que precisava muito de falar com ele, pois tinha grandes novidades, e convidou-o para almoçar.

Foram ao self service da Vela Latina, um restaurante muito em conta, ali ao pé do rio, onde se podia conversar à vontade na esplanada.

- O nosso patrão fantasma morreu - deixou cair o director assim que se sentaram à mesa.

- Morreu?

- Hum-hum. - Abanou a cabeça com um ar de fatalidade pondo um falso pesar que não o impediu de engolir um pastelinho

de bacalhau enquanto Guilherme interiorizava a informação.

- O que é que lhe aconteceu? - perguntou, abismado.

- Não faço a mínima ideia - resmungou. - O cabrão do advogado não me diz nada.

- E, afinal, quem é que era o nosso fantasma?

- Também não sei.

- E já há um novo fantasma?

- Que eu saiba, não.

- Que raio de coisa... - disse, intrigado.

- O advogado já falou consigo? - perguntou-lhe, sem conseguir evitar uma expressão que revelava a inquietação que lhe ia na cabeça.

-Não - respondeu Guilherme. - Porquê? Ele quer falar comigo? - Estava cansado de saber que sim. Lembrou-se das insistentes mensagens que o advogado lhe havia deixado no telemóvel e a que não respondera, mas achou preferível manter o director na ignorância até descobrir o que é que o outro tinha para lhe dizer. Talvez tivesse ali um trunfo para jogar mais tarde e não via qualquer razão para o partilhar com um director desesperado por informações.

- Pergunta-me por si todos os dias - disse o Morsa. Agora Guilherme percebia por que motivo o director se mostrara tão atencioso com a saúde de Teresa e se abstivera de lhe criticar a ausência invulgarmente prolongada, o atrevimento de ter desligado o telemóvel e o desprezo com que ignorara as mensagens dele. O tipo estava só a ser cauteloso. Por isso o convidara para almoçar, para lhe sacar informações. Mas não teria sorte nenhuma.

O escritório do advogado era um requinte de bom gosto. Agradavelmente luxuoso mas sem ostentações desnecessárias. Guilherme foi conduzido a um gabinete forrado com boas madeiras onde foi recebido pelo patrono, um homem elegante, de meia-idade, que irradiava uma simpatia contagiante.

- Doutor Guilherme - cumprimentou-o o advogado, visivelmente aliviado por o ver -, finalmente tenho o prazer de o conhecer.

- É verdade - disse Guilherme, estendendo-lhe a mão.

- Sente-se, doutor, sente-se.

- Obrigado, mas faça-me um favor: trate-me por Guilherme porque eu não sou doutor.

- Ah, muito bem. - Fez um gesto exuberante. - Sabe como é, hoje em dia as pessoas ficam muito ofendidas se não as tratamos pelos graus académicos. Toda a gente quer ser doutora. Cafezinho?

- Pode ser, obrigado.

O advogado carregou num botão em cima da secretária e pediu dois cafés enquanto Guilherme olhava de relance para o enorme gabinete. Lá estavam os armários de madeira rica com as prateleiras repletas de livros jurídicos, os quadros clássicos a óleo, o tapete de um gosto irrepreensível e, atrás de si na outra ponta do gabinete, um sofá e dois cadeirões de couro.

- Ora bem - começou o advogado, abrindo um dossier à sua frente -, imagino que já esteja a par do que aconteceu. - Ergueu os olhos à espera da resposta de Guilherme.

- O meu director disse-me que o dono desta rádio, que eu desconheço quem fosse, morreu.

- Certo - assentiu o outro, passando a um tom apropriadamente solene. - Em primeiro lugar, deixe-me informá-lo de que os senhores não foram postos a par da identidade do meu cliente por desejo expresso dele. Contudo, e tendo em conta esta infeliz ocorrência, as circunstâncias mudaram. O meu cliente nomeou-me seu testamenteiro e deixou instruções escritas muito concretas sobre a forma de como devo proceder. E aqui, deixe-me fazer um aparte para lhe explicar que, por vontade do meu cliente, o senhor será o primeiro a saber a identidade dele.

Guilherme mexeu-se na cadeira, cada vez mais intrigado. Que ele soubesse, não havia ninguém neste mundo que ele conhecesse de quem esperasse receber uma herança, muito menos do seu falecido patrão.

- O meu cliente chamava-se Leonardo dos Santos Veríssimo -, declarou o advogado, fazendo uma pausa para observar a reacção de Guilherme. Ele ficou de boca aberta, literalmente, e durante alguns segundos não foi capaz de articular uma única palavra.

- O Leonardo? ! - pasmou. Lentamente, começava a aperceber-se do que estava a acontecer-lhe.

O advogado confirmou a notícia com um pausado e significativo aceno de cabeça.

- Ele disse-me que o senhor compreenderia as razões dele.

- Eu nem sequer sabia que ele tinha morrido - desabafou Guilherme, algo desorientado com o rumo da conversa. Só lhe apetecia acender um cigarro, mas não havia cinzeiros à vista e surpreendeu-se a imaginar que o advogado deveria ser daqueles tipos que acordavam às sete da manhã para irem jogar ténis, seguido de um duche rápido para estarem às nove no escritório. Não lhe pareceu que o advogado aprovasse que lhe enchesse o gabinete de fumo.

- Morreu, faz agora um mês, de morte natural.

- Eu julgava que ele tinha perdido a fortuna toda, se é que alguma vez teve fortuna.

- Pelo contrário - corrigiu o advogado -, o senhor Veríssimo era dono de uma grande fortuna.

- Ele era rico?

- Consideravelmente - disse.

- E eu faço parte do testamento dele?

- Faz.

A porta do gabinete abriu-se, interrompendo a conversa. Uma secretária rechonchudinha entrou quase em bicos dos pés, parecendo levitar com uma bandeja de prata nas mãos. Atravessou o gabinete, trazendo consigo o perfume aromático do café acabado de fazer, depositou a bandeja em cima da secretária e serviu as duas chávenas com um sorriso cerimonioso.

- Obrigado, Mariana - agradeceu o patrão. - Açúcar? - perguntou a Guilherme.

- Uma colher, se faz favor. Deitou o açúcar na chávena.

- Faça favor - estendeu a mão com a chávena, fazendo uma pausa propositada, à espera de que a secretária saísse. - Faz parte do testamento, sim senhor - disse em seguida, retomando o fio à meada quando voltaram a ficar a sós.

 

Depois de ponderar muito no assunto, Teresa decidiu conceder uma entrevista. Como a perseguição da imprensa não abrandava, Teresa viu-se na contingência de fazer qualquer coisa para se livrar dos repórteres que insistiam em assediá-la. E achou que a medida mais acertada seria, precisamente, dar uma entrevista onde tivesse a oportunidade de responder a todas as questões que aguçavam a curiosidade dos jornalistas. Assim, pensava, talvez conseguisse esvaziar o ímpeto dos caçadores de notícias. Não havia nada como abrir o livro a um jornal para estragar o dia à concorrência. Tinha a certeza de que, depois de publicada a entrevista, o seu nome passaria imediatamente para o fim da lista das prioridades das outras redacções. Com a experiência, Teresa começava a perceber como funcionava a imprensa em geral. Ávida por novidades, muito pouco interessada em histórias antigas. E antigo para os editores era tudo aquilo que já tivesse sido dito, mesmo que fosse no dia anterior, e que perdesse o picante da primeira mão. Claro que Teresa sabia que continuaria a ser solicitada para dar entrevistas, afinal a simples referência ao seu nome já era suficiente para levar o público a comprar uma revista, especialmente quando o assunto era a sua vida privada, mas estava convencida de que, ainda assim, a pressão abrandaria o suficiente para a aliviar do sufoco em que vivia actualmente.

Queria voltar a ligar o telefone de casa sem ser incomodada a toda a hora e queria poder ir onde lhe apetecesse sem estar permanentemente preocupada com a possibilidade de ser assaltada por algum jornalista. Já era altura de voltar à normalidade e, bem vistas as coisas, não tinha nada a esconder.

A escolha foi criteriosa e recaiu sobre o Diário de Notícias, um jornal sério que lhe oferecia algumas garantias de que daria um tra tamento correcto às suas declarações. O seu maior receio era cair nas mãos de uma publicação sensacionalista que fizesse da sua vida um espectáculo para vender jornais.

Rejeitou a sugestão para que a entrevista fosse feita em casa dela. Preferiu o ambiente mais impessoal das instalações do jornal. Aceitou ser fotografada desde que não tivesse de se sujeitar a uma sessão demorada. Teria de ser tudo feito durante a entrevista.

No dia marcado, compareceu no jornal e respondeu a todas as questões sem reservas. Sim, sofria de cancro da mama, reconheceu, e sim, submetera-se a uma operação cirúrgica e a um tratamento de radioterapia. Perorou um pouco sobre as consequências psicológicas da doença e até admitiu que poderia vir a oferecer a sua imagem para dar um contributo às organizações que lutavam contra o cancro da mama. No final sentiu-se aliviada por deitar o assunto para trás das costas. Odiava entrevistas, mas era complicado confessar isso porque as pessoas achavam que ela adorava ser o centro das atenções e que só dizia o contrário para se armar em modesta. Ainda por cima, toda a gente sabia que Teresa não era propriamente uma personalidade tímida.

E não era, de facto, mas à medida que avançava na vida ia-se tornando crescentemente cautelosa. Hoje em dia pensava duas e três vezes antes de abrir a boca ou de tomar uma decisão importante. Já não se atirava de cabeça a qualquer projecto que a entusiasmasse. Isso era dantes, quando não havia nada neste mundo capaz de a intimidar. Sofrera demasiados dissabores para continuar a dar-se ao luxo de ignorar a prudência. Não era uma mulher totalmente livre, a não ser quando se fechava na privacidade do escritório e penetrava no mundo autónomo das palavras. Então, gozava o privilégio de fazer o papel de Deus, gizando no computador o destino das personagens dos seus romances, ora concedendo a felicidade a esta, ora levando a morte àquela. Era um mundo de palavras e de imaginação que Teresa podia manipular a seu bel-prazer. Mais tarde, depois de publicado o livro, talvez fosse chamada a dar algumas explicações, porque as palavras nunca eram indiferentes e quem as lia sentia-se no direito de as escalpelizar até à medula - os críticos literários amadores estavam para os livros como os treinadores de bancada para o futebol - mas isso seria mais tarde, que se lixasse!

Guilherme foi esperá-la à porta do edifício do jornal. Agora tinha um Golf a diesel, o Porche ficara para a história. Naquela altura Teresa preferiria não sair com ele. Luís Miguel regressaria de Londres lá para o fim da semana e, francamente, ela não sabia o que dizer a um e a outro. Em tempos, não muito longínquos, Teresa atormentava-se com a ideia de que perdera a capacidade de amar; faltava-lhe a força anímica para cativar um homem ao ponto de o seduzir; e eis que se via perante o dilema de escolher entre o amor declarado de Guilherme e o empenhamento para reconquistar Luís Miguel.

A última noite com Guilherme ainda estava em carne viva. Não era impunemente que uma mulher amava um homem quase até à loucura. Mais tarde, muito depois de terem ido cada um para o seu lado, a mesmíssima paixão poderia voltar a bater à porta e insinuar-se com uma intensidade tão devastadora como da primeira vez. Era uma armadilha para o coração, uma cilada que fazia tremer a alma. Teresa vacilava. Era tão óbvia a facilidade de entendimento entre os dois, o gosto pelas mesmas coisas, a forma como um acabava a frase do outro porque sabia exactamente o que queria dizer, o riso contagiante que os fazia sentirem-se bem quando se juntavam. O que mais a impressionava era aquela força invisível que os atraía, independentemente da vontade deles. Houvera sempre uma necessidade mútua de se protegerem. Mesmo nas piores alturas, quando já nem se falavam, tanto um como o outro voltaram atrás na vida para estender uma mão salvadora. Porquê? Porque se amavam, evidentemente.

Não, não, não, não, pensava Teresa, recusando-se a mergulhar mais fundo neste tipo de raciocínio. Continuava a resistir às divagações que só a empurravam para fantasias inebriantes. As fantasias podiam ser perigosas. Mas instantes depois já estava a ceder novamente aos pensamentos que a obcecavam. Lembrava-se como havia sido feliz com Guilherme, antes de ele ter descambado, e ponderava se esta não seria a oportunidade perfeita de recuperar essa felicidade. Concha tentara incutir-lhe algum bom senso ao dizer-lhe que não estava boa da cabeça se punha sequer a hipótese de voltar para Guilherme. Mas Concha já não o via há anos e não podia compreender como as circunstâncias se tinham alterado e que agora havia uma hipótese de Teresa poder confiar nele.

Por outro lado, Luís Miguel também não lhe saía do pensamento. O amor que ele lhe dera, tudo o que fizera por ela, não se podia apagar de um momento para o outro. Teresa devia-lhe tanto. Se ao menos pudesse falar com ele.

 

Era por não se sentir suficientemente segura da sua vontade e por se achar incapaz de definir a sua vida, que Teresa não queria ver Guilherme naquele dia. Porém, ele fora tão insistente ao telefone, mostrara-se de tal forma excitado com algo que lhe acontecera que ela não tivera outro remédio senão aceitar encontrar-se com ele.

Teresa lembrava-se de Guilherme se ter referido a uma coisa absolutamente inacreditável, sim, tinham sido essas as suas palavras: Aconteceu-me uma coisa absolutamente inacreditável que preciso de te contar.

Na altura, Teresa reparou que havia um tom de ansiedade invulgar na voz de Guilherme, mas como ela também estava nervosa com a entrevista que daria dali a uma hora, não chegou sequer a preocupar-se com o problema dele. De qualquer forma, seria difícil preocupar- se com um problema que desconhecia em absoluto.

Depois da entrevista foi acompanhada à porta por uma rapariga das relações públicas do jornal, de modo que teve de prestar atenção à conversa de circunstância que a jovem foi fazendo. E, uma vez na rua, Guilherme já a esperava, surpreendendo-a novamente com este seu recente hábito de ser pontual. Antigamente não aparecia em nenhum lugar a horas, quase que se poderia dizer que fazia gala em chegar atrasado. Mas havia que contar com um Guilherme diferente, que não deixava as pessoas penduradas para depois lhes atirar com uma qualquer desculpa desconcertante, como se os outros tivessem de aceitar que ele era um tipo tão atarefado e tão importante que não havia nada de mais natural que falhasse compromissos. De modo que, entre sair de casa e encontrar-se com Guilherme, Teresa não teve um único momento livre para pensar sequer no intrigante telefonema dele.

Teresa entrou no carro, trocaram um beijo rápido no rosto e Guilherme arrancou em direcção a Cascais.

- Então - perguntou ela, finalmente com disponibilidade para se concentrar nele -, o que é que te aconteceu, afinal?

- Nem vais acreditar, Teresa. - Abanou a cabeça, revelando a sua própria incredulidade, sem, contudo, tirar os olhos do trânsito.

- Conta-me! - exclamou, mal contendo a sua curiosidade.

Guilherme lançou-lhe um olhar de soslaio e, vendo-a animada, percebeu que a entrevista correra bem e que ela estava aliviada. Por isso decidiu não a incomodar com o seu problema. Bem, Teresa não acharia que o problema dele fosse realmente um problema. Afinal, ela nunca ouvira falar de Leonardo e teria alguma dificuldade em sentir-se penalizada pelo desaparecimento de um homem que morrera de velho. Mas, mesmo assim, preferiu adiar o assunto. É que, para Guilherme aquilo não estava a ser uma questão pacífica e os sentimentos negros que lhe obscureciam a alma não iriam contribuir para a boa disposição de Teresa. E, hoje em dia, não havia nada mais importante para ele do que a boa disposição de Teresa.

-Já te conto - disse, como se, de repente, o que tinha para lhe dizer tivesse deixado de ser importante -, tem paciência. Primeiro, conta-me tu como foi a entrevista.

-Oh, nada de especial. - Encolheu os ombros. - Sabes como é, fazemos sempre um drama com estas coisas até acontecerem e, depois, não passa de uma conversa mais ou menos trivial. Quando dás por isso, já acabou. Foi uma coisa rápida - disse, percebendo-se pela entoação que só agora reparava nisso. - Tiraram-me umas fotografias e pronto.

- Sim, mas o que é que te perguntaram? Não foram demasiado indiscretos, não?

- Nem por isso.

Guilherme continuou a puxar por ela, conduzindo a conversa de modo a mantê-la afastada do assunto que o perturbava. Uma coisa levou a outra e a conversa foi fluindo até Cascais sem que ela voltasse a insistir para ele lhe contar a tal novidade.

Lá no fundo, Teresa receava que o motivo do telefonema ansioso de Guilherme tivesse algo a ver com o ponto em que tinha ficado a relação deles. Que era como quem diz, num impasse. E portanto também não teve muita pressa em entrar no assunto.

Foram sentar-se a comer deliciosos cachorros-quentes e a beber cerveja ao ar livre, servidos por uma roulotte estacionada à beira da falésia, por cima do mar de Cascais, ali a dois passos da marina.

- Bem - disse Teresa, traída pela curiosidade, sem deixar que ele protelasse mais a novidade -, vais contar o que tinhas para me dizer ou tenho que te arrancar tudo a saca-rolhas?

- Não - sorriu, complacente. - Eu conto-te. Mas aviso-te já que vai demorar um bocado.

Teresa olhou para o relógio, a pensar que mais tarde teria de ir buscar Sofia a casa dos pais.

- Não faz mal - disse. - Eu tenho tempo.

Então Guilherme começou a falar-lhe da primeira vez que encontrara Leonardo no café, no Centro Comercial Colombo, da circunstância fortuita que os reunira na mesma mesa e do modo quase natural, ainda que um pouco estranho, como haviam ficado amigos. Fez-lhe um retrato pormenorizado da personalidade bizarra de Leonardo; deixou-a saber da aversão do velho a gastar dinheiro, da impressão que lhe deixara desde o primeiro momento de que era um pobre coitado sem ter onde cair morto; contou-lhe os pormenores deliciosos da sua rotina diária sem passar por cima de alguns hábitos que ele tinha, como aquele de se perfumar com os frascos das amostras da perfumaria ou o outro de ler os livros aos bocadinhos nas livrarias para não ter de os comprar. Sobretudo, explicou-lhe que, com o andar do tempo, se havia afeiçoado ao velho quase como se voltasse a ter um pai com quem pudesse conversar livremente e desabafar os seus problemas sem recear ser censurado.

- Quando dei por isso - disse -, já lhe tinha contado toda a minha vida, o vício da droga, as merdas que fiz e que estragaram o nosso casamento. Também lhe falei muito de ti, a propósito. Enfim, ele sabia tudo de mim e eu não sabia nada dele. Guilherme continuou o seu relato, perante uma Teresa cada vez mais fascinada, dizendo-lhe que só muito recentemente, por sinal no último encontro deles, é que Leonardo se abrira um pouco com ele. Disse-lhe então o que levara o velho a sentir-se tão próximo dele, e Teresa reparou, comovida, como Guilherme ficava emocionado ao falar daquilo tudo.

- Incrível - murmurou ela, enquanto ele fazia uma pausa para dar um gole no copo de cerveja descartável.

- Mas, espera, ainda não ouviste o mais incrível.

- Ainda tens alguma coisa mais extraordinária do que isto?

- Muito mais. - Fez um gesto largo com o braço, como que a querer dizer que aquilo ainda não era nada.

Teresa estava pregada às palavras de Guilherme, com um bocado do cachorro esquecido na mão e os olhos vidrados nele. A história de Guilherme parecia saída de um romance, e ninguém melhor do que ela para perceber isso. Farejava uma boa história a milhas de distância. E, se aquilo não era uma boa história, então nada era uma boa história.

- Sabes o que me aconteceu hoje? - disse Guilherme fazendo aumentar a expectativa dela.

- Não.

-O advogado da minha rádio, aquele que eu te disse que andava a querer falar comigo?

- Sim - disse Teresa, lembrando-se de uma referência dele ao assunto.

- Fui hoje falar com ele. E sabes o que é que o tipo me queria dizer?

-Não, conta! - exclamou, impaciente, com vontade de o abanar para lhe fazer saltar as palavras mais depressa.

- Queria dizer-me que o Leonardo tinha morrido.

- Não! - Levou a mão à boca, espantada.

- E que me deixou uma herança.

- Uma herança? - intrigou-se. - Mas não me disseste que ele não tinha onde cair morto?

- Não, eu disse que achava que ele não tinha onde cair morto.

- E o que é que ele te deixou?

- A rádio.

- A rádio? ! - repetiu, sem perceber muito bem ao que ele se referia.

- Sim, a Onda Rádio, onde eu trabalho. O Leonardo comprou a minha rádio há pouco tempo. Não te lembras de eu te ter dito que havia um novo dono? Até te disse que lhe chamávamos o dono fantasma, porque não sabíamos quem era.

- Lembro-me.

- Então. Era ele. Comprou a rádio e deixou-ma em testamento.

 

O Morsa nem queria acreditar na partida que o destino lhe pregara. Graças a Deus, pensou, nunca me estiquei muito com este tipo. Se fosse a ver, o director até achava que tinha sido sempre um gajo porreiro com Guilherme. Afinal, entregara-lhe praticamente a rádio nas mãos assim que lhe dera o emprego. Sim, era preciso não esquecer que tinha sido ele quem o contratara. Até despedira os outros dois só para facilitar as mudanças que Guilherme estava a introduzir na casa. Carta branca. Dera-lhe todo o espaço para trabalhar da forma que achasse mais conveniente, e sem interferências. Do ponto de vista do director, Guilherme só tinha coisas boas a pensar dele. O único problema é que Guilherme sabia o mesmo que ele. Sabia que ele não percebia nada do negócio, sabia que ele lhe pusera o menino nos braços para não ter de se chatear muito; sabia, enfim, que ele era perfeitamente dispensável. Não, decididamente, aquele golpe de teatro não agradava nada ao Morsa. Estava tudo muito bem enquanto Guilherme era seu subordinado, mas agora os papéis tinham-se invertido e a coisa piava mais fino.

- Que grande surpresa que isto tudo foi! - Exclamou o director, escancarando aquele seu sorriso boçal. - Quem diria que você acabaria dono disto tudo? Mas ainda bem, porque agora sabemos quem manda e já não andamos às ordens de um fantasma.

- Pois é - concordou Guilherme, também sorridente, deliciado com o esforço do Morsa para lhe agradar. Estás à rasca, pensou, divertido com a atitude do outro, à rasca e a dar-me graxa para eu não te despedir.

Apesar de a vida lhe correr bastante acima das expectativas, Guilherme estava a ter alguma dificuldade em lidar com aquilo tudo. Não conseguia deixar de pensar que se tornara dono da rádio à custa da morte de um homem que, embora tivesse conhecido por pouco tempo, se tornara tão importante para ele. Era um exagero, claro, mas ele pensava assim. Naqueles meses de relacionamento ininterrupto, Leonardo fora o seu único amigo e custava-lhe não poder contar mais com a sua companhia para o café da manhã. Era uma nova etapa da sua vida, e uma pessoa resistia sempre às mudanças de hábitos.

Era estranho, encontrava-se diariamente com um velho a quem oferecia o café por imaginar que ele não o podia pagar, contava- lhe a sua vida porque o companheiro não gostava de falar mas não se importava de o ouvir, dizia-lhe tudo o que lhe ia na alma pela simples razão de que desabafar com ele o ajudava a enfrentar o resto do dia de cabeça erguida. E vinha a descobrir que Leonardo não só não era pobre como estivera a observá-lo cuidadosamente durante aquele tempo todo.

Mesmo limitando-se a estar presente, a beber o seu cafezinho e a resmungar ocasionalmente uma ou outra frase insignificante, a verdade é que Leonardo se disponibilizara a escutá-lo, coisa que mais ninguém neste mundo faria por ele. Agora sabia que Leonardo era um homem transtornado e desiludido com o que o destino lhe reservara, mas com uma dignidade impressionante.

Viera a descobrir que o velho nutria por ele uma estima que Guilherme não imaginava e que, sem saber, ajudara aquele pai destroçado a conhecer exactamente como fora o processo mental do filho durante a sua lenta morte, que então presenciara mas sem poder compreender. Remetendo-se ao silêncio a que se impusera durante as centenas de horas que dedicara a escutar Guilherme, escondendo deliberadamente - e sabia-se lá a que custo - a emoção terrível que as palavras dele lhe deveriam provocar, Leonardo deixara-se guiar, passo a passo, pelo caminho tortuoso percorrido pelo filho até à morte. Afinal, a única diferença entre a história do filho e a de Guilherme era o final. Tudo o resto, podia dizer-se com bastante segurança, tinha acontecido com uma semelhança arrepiante. A autoconfiança, a ilusão de que era ele quem controlava a droga e não o contrário, o mergulho no inferno, a deterioração física e mental, todos esses aspectos esmiuçados até ao mais ínfimo pormenor por Guilherme, podia ele transportar para o seu filho, revivendo assim o drama com uma clarividência a que era impossível aceder de outro modo.

De uma coisa Guilherme estava certo: Leonardo partira deste mundo com a consciência muito mais tranquila, pois acabara sabendo que não dependia dele a salvação do filho. Guilherme deixara bem claro que só o próprio filho poderia tomar a decisão de aceitar a ajuda do pai.

Durante meses, Guilherme ajudara tanto Leonardo como Leonardo o ajudara a ele. Só que não tinha consciência disso. Contudo, de alguma forma, o velho achara que lhe devia muito mais, e por isso tratara de tudo para que Guilherme recebesse a rádio. E planeara as coisas com uma precisão desconcertante, assegurando-se de que, quando fosse informado da oferta, já não a pudesse recusar. Sendo uma herança, Guilherme não tinha como não a aceitar. O velho não deixava descendentes e, tanto quanto Guilherme sabia, não havia mais ninguém apto a herdar a rádio. E mesmo que houvesse, aquela era a vontade de Leonardo e Guilherme sentia que a devia respeitar.

Assoberbado com trabalho, Guilherme passou os primeiros dias ocupado com as mudanças a introduzir na rádio. Tratou de arranjar um gabinete novo e de contratar uma secretária, teve de falar com todos os funcionários e iniciou um processo de renovação da antena, que implicava a reformulação total da programação. No fundo, a continuação do trabalho que Guilherme já vinha fazendo, mas que agora pretendia acelerar. Teve reuniões exaustivas com todos os departamentos da empresa, incluindo o marketing e a publicidade e, apesar de começar a trabalhar às nove da manhã e de só sair depois das dez da noite, os dias eram pequenos para tudo o que precisava fazer para colocar a casa em ordem.

Pensava muito em Teresa. Reservava algum tempo à tarde para lhe telefonar a saber dela. As chamadas assemelhavam-se a maravilhosas conversas de namorados, prolongando-se por quinze, vinte ou mesmo trinta longos minutos. Teresa não se mostrava interessada em falar de nada que sugerisse a possibilidade de um relacionamento para além da amizade, nem tão pouco entrava em fantasias sobre uma eventual vida em conjunto. Mas queria sempre saber como iam as coisas com a rádio e ouvia atentamente as novidades de Guilherme sobre o seu trabalho para melhorar a empresa.

Aquele serão em casa de Teresa com uma promessa de romance implícita, porém fugaz, os beijos trocados nos braços um do outro, sentados no chão, rodeados de almofadas frente à lareira, era algo que ambos mantinham bem vivo na memória, mas que nunca veio à conversa em encontros ou telefonemas posteriores. Guilherme não mencionara o assunto e Teresa sentia-se grata por isso.

Ela gostava de saber que ele se mantinha por perto. Apesar de já não a visitar tanto devido ao excesso de trabalho, Teresa podia contar com os telefonemas dele e de lhe ouvir a voz pelo menos uma vez por dia.

A história do benfeitor de Guilherme surpreendera Teresa positivamente. Saber que ele se dedicara durante meses a um velho de quem nada sabia e de quem nada esperava era extremamente revelador da nova faceta de Guilherme. Nos velhos tempos ele nem teria olhado duas vezes para a cara de um desconhecido, e muita sorte teria o homem se não fosse corrido com palavras menos edificantes logo ao primeiro contacto. Aonde teria Guilherme ido buscar tamanha abnegação para se interessar por um estranho, ao ponto de se levantar da cama de manhã para ir ao seu encontro, pontualmente, todos os dias? A generosidade de espírito que esse cuidado revelava era algo que tocara Teresa mais do que qualquer gesto dele a favor dela. De certa forma, Teresa sentia-se um pouco culpada. Por causa da sua doença, Guilherme havia-se afastado do amigo nos derradeiros dias deste. A dedicação incansável de Guilherme, rodeando-a de toda a atenção e carinho possíveis desde o primeiro momento do internamento hospitalar não deixara espaço para Leonardo, e Teresa lamentava que a amizade deles tivesse acabado daquela maneira.

Por outro lado, os acontecimentos que ele lhe relatara e que ela ouvira comovida até às lágrimas, não lhe saíam da cabeça. Era uma história que tinha tanto de trágico como de belo. Um dia, pensava, gostava de a escrever, para a dar a conhecer.

Luís Miguel ligou-lhe de Londres a dizer que regressava no dia seguinte e foi como se o sonho acabasse. Enquanto Luís Miguel não estava ela alimentava a fantasia de, num dia não muito longínquo, achar uma forma, encontrar um caminho que a levasse ao reencontro com Guilherme. Não pensava nele como o marido dedicado que regressava a casa ao fim da tarde e a encontrava à sua espera com o jantar pronto. Não se conseguia ver outra vez nesse papel. Tinham acontecido demasiadas coisas entre eles para Teresa aceitar pacificamente a hipótese de viver com ele. Mas, por outro lado, era-lhe estranhamente intolerável a ideia de Guilherme vir a refazer a vida com outra mulher e até ter outros filhos que não fossem seus. Se ao menos pudesse ultrapassar o trauma do casamento e aceitá-lo simplesmente, tal como ele era agora.

Nessa noite teve dificuldade em adormecer. Luís Miguel ia regressar e Teresa não podia deixar de sentir um certo nervosismo por antecipação. Luís Miguel tocava-lhe o coração, era um sentimento real e não podia negá-lo. Se Luís Miguel lhe pedisse para voltar para ele, o que faria Teresa?

 

Acordou com sono e maldisposta, irritada por abrir os olhos para um dia difícil, incapaz de prever como ia acabar. Levou Sofia à escola e aproveitou para despachar umas compras, fazendo por se manter ocupada, apesar de saber que nada do que fizesse hoje seria suficiente para a distrair daquilo que a perturbava.

Na fila para pagar na caixa do supermercado, um homem que seguia à frente dela atrapalhou-se com as compras, pediu desculpa e voltou atrás porque se esquecera de um artigo qualquer que a mulher lhe recomendara que comprasse, deixou toda a gente à espera e, ainda por cima, quando voltou o seu cartão multibanco não funcionou e ele insistiu com a empregada que o passasse novamente na máquina, até se resignar e pagar em dinheiro.

- Homens - disse a empregada a Teresa, com um encolher de ombros condescendente, quando ele se foi embora.

- Às vezes - ouviu-se ela a desabafar - tenho vontade que desaparecessem todos da face da terra. A nossa vida seria bem mais fácil.

A empregada riu-se, talvez por compreender o que Teresa queria dizer. Era esse o seu estado de espírito naquela manhã. De certo modo, Teresa levava uma existência mais tranquila antes de Luís Miguel ter aparecido na vida dela, oferecendo-lhe uma felicidade que ela quase já não esperava, e de Guilherme ter regressado do passado como um furacão de boa vontade, de atenções e amor inesperados.

Teresa pagou as compras, agarrou nos sacos e dirigiu-se para a saída do supermercado a pensar que às vezes apetecia-me mesmo que desaparecessem os dois da minha vida. Mas tinha consciência de que isso não aconteceria e que, afinal de contas, esse pensamento não a reconfortava porque a verdade é que ela não queria que eles desaparecessem.

Pediu à mãe que ficasse com Sofia da parte da tarde, depois do colégio. O avião de Luís Miguel chegaria por volta das três e Teresa queria estar disponível para se encontrar com ele. Como não estava certa de que ele a procuraria imediatamente assim que aterrasse em Lisboa, tomou a decisão inabalável de o procurar. Desse lá por onde desse, Teresa teria de falar com Luís Miguel e esclarecer de uma vez po todas o equívoco onde ficara estagnada a relação deles. Não aguentaria por muito mais tempo aquela indefinição. Não poderia continuar a atormentar-se com sentimentos de culpa por se encontrar - e por se sentir bem - com Guilherme, enquanto Luís Miguel se mantinha à distância mas sem assumir que já não a queria.

Deu consigo nervosa, à beira de um esgotamento. Apercebeu-se, pela primeira vez desde que Luís Miguel partira para Londres despedindo-se com um simples telefonema, de que andara a acumular uma tensão que agora lhe parecia impossível de suportar.

Entrou em casa a correr depois de bater violentamente com a porta, atirou de qualquer maneira com os sacos das compras para o chão e deixou-se sucumbir a uma crise de choro que durou quase uma hora. Eu não era assim, pensou, desiludida consigo própria, afundada no sofá da sala, desamparada na sua tristeza, recordando-se da rapariga segura e psicologicamente inabalável que fora outrora. Antigamente olhava para um homem e decidia sozinha se o iria conquistar, sem se preocupar sequer em saber se ele corresponderia às suas intenções; hoje tremia só de pensar que teria de confrontar Luís Miguel com o seu amor e que ele poderia bater-lhe com a porta na cara.

Teve um pensamento terrível: Será que vale a pena continuar a viver desta forma, com tanto sofrimento?

Agarrou na carteira e nas chaves do carro e voltou a sair para a rua. Levou com ela a chave de casa de Luís Miguel. Finalmente teria oportunidade de a utilizar. Guiou automaticamente, carregando no acelerador, metendo as mudanças e circulando por entre o trânsito sem dar realmente conta do que fazia. De algum modo, o seu cérebro encontrou o caminho para casa de Luís Miguel e tratou de evitar que se envolvesse num acidente, quase como se circulasse em piloto automático. As lágrimas corriam-lhe livremente pela cara abaixo e, quando deu por isso, já estava parada frente à porta dele. Uma névoa densa assombrava-lhe o espírito. Teresa saiu do carro, atravessou o passeio e entrou em casa. Luís Miguel ainda não chegara.

Quando fechou a porta atrás de si, Teresa notou o silêncio quase opressivo que reinava no interior desolado daquela casa sem vida. Não havia sons de espécie nenhuma. Desceu as escadas que conduziam à sala. Tirou o casaco, gastou alguns minutos a acender a lareira, já preparada com uma pilha de lenha e uma pequena acendalha por baixo, foi à cozinha buscar um copo de água e depois sentou-se com os cotovelos em cima da mesa de jogo de pau-santo que ficava diante da janela panorâmica da sala, afundando o rosto nas mãos.

Parecia-lhe que fazia parte de um sonho, agindo por impulsos e sem conseguir concentrar-se. Lá fora, através da janela, via-se a imensidão do mar começando a encapelar-se por uma tempestade que se avizinhava. As nuvens formavam um tecto cinzento, com pacto e impenetrável por cima do oceano. Teresa ergueu a cabeça. Já não chorava. Agora sabia o que deveria fazer.

Tomou os comprimidos que tinha na mão suada e trémula, empurrando-os com água. Calmantes. Pousou o copo em cima de uma revista e limpou com a manga do casaco de malha um círculo de água deixado na mesa, para que não ficasse manchada.

Levantou-se, acertou a cadeira pombalina com a mesa e foi deitar-se no sofá grande perto da lareira. Um calor acolhedor emanava do fogo acabado de atear e Teresa sentia-se tão cansada. Tirou os sapatos e deitou-se no sofá com as pernas esticadas do modo mais confortável possível.

Depois adormeceu.

 

Abril de 2005. Parecia impossível que já tivessem passado dois anos. Guilherme caminhou despreocupadamente pela Rua Direita de Cascais. Era sábado e não havia pressa para nada, graças a Deus. Sofia ia a seu lado, pela mão. Guilherme tinha de admitir que a filha se tornara uma faladora incansável, pois bombardeava-o a toda a hora com perguntas, opiniões e comentários. Mas, que diabo, havia alguma coisa neste mundo de que se pudesse orgulhar mais do que aquela filha?

Foram sentar-se na esplanada de um café. Uma bica para ele, uma cola para ela. Guilherme aproveitou uma folga de Sofia e entreteve-se a ler o jornal. Mas não conseguiu evitar o impulso de espreitar por cima da página para a observar. Estava com treze anos e ia rapidamente a caminho de se tornar uma mulher. Sofia gostava de ler a página das críticas cinematográficas. Era uma entusiasta incansável do cinema, adorava histórias, verdadeiras ou de ficção. Nisso saía à mãe, não havia dúvida.

Ficaram no café quase uma hora, após o que regressaram em ritmo de passeio ao local onde haviam deixado o carro.

- Que tal um passeio pelo Guincho? - sugeriu Guilherme.

- Vamos! - exclamou Sofia, entusiasmada.

Pararam no Bar do Guincho, o restaurante da praia, que era um local sempre animado onde se podia passar umas horas agradáveis a apanhar sol e a comer qualquer coisa. Antes, Sofia exigiu uma passagem pela praia. O dia estava bonito mas o mar não parecia para brincadeiras. Naquele dia as ondas ficavam reservadas aos surfistas, que evoluíam em cima das suas pranchas como nobres cavaleiros de fatos coloridos, dominando a bravura do mar numa luta desigual contra a fúria de autênticas paredes de água que se agigantavam na direcção da praia aonde iam morrer num espectáculo de espuma.

Regressaram ao restaurante e pediram tostas mistas e refrigerantes. Guilherme aproveitou para fazer um ou dois telefonemas.

Mesmo durante o fim-de-semana, não podia deixar de saber como iam as coisas na rádio. No carro, já se sabia, só ouvia a Onda, e ia percebendo se não havia novidades. Mas, mesmo assim, gostava de telefonar e falar com as pessoas que estavam de serviço.

A rádio tornara-se um caso de sucesso e Guilherme não podia estar mais satisfeito com o crescimento das audiências e, consequentemente, do volume de publicidade. O Morsa acabara por sair pelo seu próprio pé. Guilherme não o despedira, mas o homem rendera-se ao inevitável: não havia lugar para ele. Agora, Guilherme preparava-se para dar o próximo passo e criar uma redacção.

Queria que a rádio fosse autónoma também nesse sector e tivesse jornalistas que assegurassem os noticiários sem ter de retransmitir os de uma estação nacional. Era só o que lhe faltava para atingir a maioridade.

Voltaram a casa ao final da tarde.

 

Naquele dia, há cerca de dois anos, Luís Miguel apanhara um táxi no aeroporto e, ao chegar a casa, reparou imediatamente no carro de Teresa estacionado ali à porta. Como não a viu, presumiu que tivesse usado a chave que ele lhe dera. Largou as malas na entrada e chamou-a, mas não obteve resposta. Intrigado, desceu as escadas à procura dela. Foi encontrá-la inerte no sofá e, nesse instante, a alma caiu-lhe aos pés.

Assaltado por um pânico súbito, Luís Miguel gritou por ela e correu para o sofá. Quase caiu em cima de Teresa e sacudiu-a violentamente, repetindo o nome dela sem conseguir parar de a abanar. Teresa deu um salto, sentando-se, num susto de morte, encolhendo-se no canto do sofá e debatendo-se histericamente para que ele a soltasse. Gritou, gritou como uma louca, desvairada de medo, até ele cair em si e largá-la, sentando-se por sua vez no chão, ao lado do sofá. Luís Miguel levantou as mãos num sinal apaziguador e, quando tentou tocá-la para a acalmar, apanhou uma palmada que o levou a recuar rapidamente.

- O que é que estás a fazer? - gritou Teresa, fora de si.

- Desculpa, Teresinha, desculpa - pediu ele, deixando-se cair para trás, ficando sentado no chão sem saber o que fazer.

- Estás louco? - continuou ela a gritar.

- Não, Teresa, não estou louco. É que... tu não imaginas o que acabaste de me fazer.

- Eu? ! - exclamou, indignada. - Eu estava a dormir, estúpido! Eu não te fiz nada!

- Eu sei, eu sei. Desculpa. Eu não queria assustar-te.

- Não querias assustar-me? Tu pregaste-me o maior susto da minha vida, seu... seu cabrão de merda, Filho da puta, cretino!

- Calma, Teresa, acalma-te, por favor.

Mas ela precisou ainda de uns longos minutos, e de lhe chamar todos os nomes que conhecia, antes de se acalmar o suficiente para que fosse possível terem uma conversa minimamente coerente. - Desculpa, Teresa - pediu ele mais uma vez. - Quando te vi aí deitada entrei em pânico.

- Eu estava a dormir, Luís Miguel.

- Eu sei mas... - fez um gesto desolado, sem saber muito bem como dizer aquilo - mas eu pensei... eu pensei que fosse outra coisa.

- Tu pensaste o quê, Guilherme?

- Pensei que te tinha acontecido alguma coisa.

- O quê?

- Não pensei que estivesses a dormir.

- Então, estava morta, não?

- É uma estupidez, não é? - Fez um sorriso tolo, sentindo-se um perfeito idiota.

Teresa olhou fixamente para ele, tentando entender o que se estava a passar exactamente.

-Claro que é uma estupidez, Luís Miguel. Tu és médico, caramba, já deves ter visto milhares de mortos em toda a tua vida. Por que é que havias de pensar uma coisa dessas? Não sabes distinguir uma pessoa a dormir de um morto?

- Sei, claro que sei.

- Então - abriu os braços, incrédula - queres explicar-me o que é que te passou pela cabeça?

- Foi por causa da Mafalda, Teresa. Eu encontrei-a aqui, exactamente como tu estavas, já sem respirar.

Os ombros dela descaíram alguns centímetros, ao mesmo tempo que deixava escapar o ar todo que tinha nos pulmões, como um balão a esvaziar-se. Fechou os olhos e abanou a cabeça.

- Merda, merda, merda. - repetiu, sem forças para mais.

Levaram algum tempo a recompor-se. Luís Miguel despiu o casaco, tirou a gravata e arregaçou as mangas. Depois foi à cozinha buscar um copo de água para ela. Teresa calçou-se e acendeu um cigarro com as mãos ainda a tremerem.

Quando voltou da cozinha, Luís Miguel encontrou-a em frente à lareira, de costas para a sala. Teresa voltou-se e ele entregou-lhe o copo de água.

- Há mais alguma coisa desagradável que eu deva saber, já que estamos com a mão na massa? - Atirou-lhe a pergunta como se fosse uma pedra.

- Por acaso há - confessou Luís Miguel.

 

Apesar de tudo, Teresa não fora capaz de ficar magoada com Luís Miguel, ou de o odiar. E nem sequer deixara de ser amiga dele. Talvez fosse o facto de acreditar que lhe devia a vida, ou simplesmente porque gostava dele, não sabia explicar, mas, se se afastou de Luís Miguel foi apenas porque finalmente compreendeu que não o amava verdadeiramente. Sentia que estava em dívida com Luís Miguel, que estaria sempre, mas não podia ficar com ele só por causa disso. Não seria justo para nenhum deles.

Ainda hoje o via, de tempos a tempos, ou falavam ao telefone. Sabia que Luís Miguel tinha uma nova namorada, uma colega do hospital, médica como ele.

Às vezes Teresa pensava em Luís Miguel, sem nenhuma razão em especial. Ia na rua e via alguém que a fazia lembrá-lo, ou, se pensava em algo relacionado com a Medicina, a primeira coisa que lhe vinha à cabeça era o rosto dele, com aquele seu ar bondoso, que ficara indelevelmente marcado na alma dela. E sempre que se lembrava de Luís Miguel, Teresa sorria.

Por acaso há, respondera-lhe Luís Miguel. Teresa fizera a pergunta por fazer, foi uma maneira de voltar à carga, de ser desagradável com ele mais um bocadinho. Estava mais calma mas a fúria ainda não amainara totalmente. E ele tornou a surpreendê-la.

- O quê, Luís Miguel? - suspirou. - O que é que tens mais para me contar? - perguntou-lhe, com medo do que aí vinha.

E então ele despejou de uma só vez aquilo que andava para lhe contar há muito tempo, mas que não tivera coragem de o fazer.

- A Mafalda não morreu de cancro - confessou.

- Não?

- Quer dizer, ela acabaria por morrer disso, mas não foi exactamente por causa do cancro que morreu. Ela suicidou-se. Já estava muito mal nessa altura. Era uma questão de meses, ou talvez de semanas, não sei.

- Aqui, nesta sala?

- Hum-hum... - fez ele, abanando a cabeça numa confirmação grave.

- Como?

- Tomou comprimidos.

Teresa olhou para ele em silêncio e viu um homem derrotado. Luís Miguel cruzou os braços e baixou a cabeça, embaraçado. Tinha lágrimas nos olhos. Ela não conseguiu encontrar nada de apropriado para lhe dizer. Luís Miguel parecia destroçado e Teresa tinha acabado de o tratar mal, agredindo-o com palavras. Bom, agredir era uma maneira simpática de descrever a cena, ela massacrara-o sem piedade. Sentiu-se arrependida e envergonhada por ter sido tão dura com ele. Afinal, Luís Miguel tivera mesmo uma boa razão para entrar em pânico ao vê-la ali deitada. Pousou o copo em cima da lareira, deitou fora o cigarro e fez a única coisa que lhe pareceu acertada naquele momento: abraçou-o com força.

Agora percebia. O sentimento de culpa de Luís Miguel era muito mais profundo do que ela imaginara. Luís Miguel teria de carregar para sempre, não só o fardo de não ter conseguido salvar a mulher, como também o facto de ela se ter suicidado. Acreditava que fora responsável por lhe prolongar o sofrimento inutilmente, e acreditava também - ou melhor, sabia, porque ela deixara-o escrito no bilhete de despedida - que Mafalda se matara porque não aguentara mais viver assim. Mafalda escrevera que a vida se tinha tornado insuportável para ela e que não valeria a pena prolongá-la por mais algumas semanas uma vez que só continuaria a definhar vergada pelas dores, até à morte indigna.

Antes assim, dizia o bilhete, prefiro adormecer para semre na nossa casa, em paz. Por favor, não te sintas culpado de nada. Eu sei que fizeste tudo o que estava ao teu alcance para me ajudares, mas não foi possível. Pensa sempre em mim, que eu farei o mesmo por ti, onde quer que esteja. Amo-te, Mafalda.

 

Então, apertaram as mãos e o velho despediu-se com a certeza de que nunca mais se veriam. Ficou a vê-lo afastar-se, com uma inexplicável sensação de abandono a incomodá-lo. Tinha sido assim o seu último encontro, antes de ele vir a saber da morte do amigo e de descobrir a herança que este lhe deixara. De alguma forma, o velho projectara nele a vida desperdiçada do filho. E assegurara-se de que ele, ao receber a rádio, continuaria uma obra com o seu dinheiro, exactamente aquilo que sonhara para o filho, se este não tivesse morrido.

Teresa colocou um ponto final na última linha do ecrã branco e recostou-se na cadeira, olhando orgulhosamente para a obra terminada. Finalmente concluíra o romance. E estava convencida de que era o seu melhor de sempre. Pela primeira vez publicaria uma história que, embora sendo de ficção, se inspirava em factos reais. Guilherme acabara por ceder ao desejo dela de escrever a história de Leandro. Obrigara-a a prometer-lhe que mudaria os nomes e Teresa assim fizera. Vira-se obrigada a fazer algum trabalho de pesquisa e, no final, ficara a saber muito mais sobre a vida de Leonardo do que o próprio Guilherme. Descobrira que ele chegara a ter uma das maiores empresas de transportes do Brasil e que regressara a Portugal dono de uma fortuna incomensurável, a qual, tirando a rádio, doara inteiramente a diversas instituições de solidariedade social.

Teresa ouviu bater a porta de casa e Sofia gritar por ela.

- Estou aqui! - gritou por sua vez.

Sofia foi ao encontro da mãe, no escritório, e Guilherme surgiu atrás da filha.

- Então? - perguntou. - Como foi o vosso dia?

- Foi óptimo - disse Sofia. - Fomos à praia.

- E o teu dia? - quis saber Guilherme.

- Hum, nada de especial - disse Teresa, encolhendo os ombros. - Estive aqui a escrever.

- Nada de especial? - repetiu ele, decepcionado. - Ainda falta muito para lermos esse romance? - Guilherme andava morto de curiosidade por ler a história. Teresa sabia-o e quis divertir-se um bocadinho à conta da ansiedade dele.

- Assim que o imprimir - respondeu, com toda a naturalidade.

- Como?

- Já acabei - gritou Teresa, numa explosão de alegria que contagiou Guilherme e Sofia.

Tinham sido dois longos anos, uma espécie de travessia do

deserto para ambos, que Teresa impusera a Guilherme e ele aceitara sem pestanejar. Não fora exactamente algo que tivessem combinado depois de conversarem longamente sobre o assunto. Não, a decisão havia sido só dela.

Naquela época, dois anos antes, Teresa sentia-se terrivelmente insegura e incapaz de reatar com Guilherme incondicionalmente. O fim da sua relação com Luís Miguel fora um choque para ela. Não o fim em si, mas aquilo que ela descobriu que ele andava a esconder-lhe. Depois disso Teresa já não sabia em quem e no que devia acreditar. Achava que Guilherme a queria mais do que qualquer outra coisa no mundo, mas como já não restava nela o mais pequeno vestígio de confiança - ou de autoconfiança, ou fosse lá o que fosse - Teresa retraiu-se, fechando-se na sua concha, e só muito lentamente começou a deixar que ele fizesse parte da sua vida.

Dois anos. Agora achava que tinham valido a pena. Aqueles dois anos tinham acabado por ser uma espécie de teste ao amor dele.

Antes de o ter a viver em sua casa, de permitir que Guilherme dormisse todas as noites na cama dela, Teresa queria saber até que ponto ele gostava dela, até quando estaria disposto a esperar por ela.

Aparentemente, a vida inteira.

 

                                                                                Tiago Rebelo  

 

                      

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