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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


UMA QUESTÃO DE FE / Jodi Picoult
UMA QUESTÃO DE FE / Jodi Picoult

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                   

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Pela segunda vez no seu casamento, Mariah White apanha o marido com outra mulher, e Faith, a filha de ambos, assiste a cada doloroso momento. Após o inevitável divórcio, Mariah luta contra a depressão e Faith começa a conversar com um amigo imaginário.
A princípio, Mariah desvaloriza o comportamento da filha, atribuíndo-o à imaginação infantil. Mas quando Faith começa a recitar passagens da Bíblia, a apresentar estigmas e a fazer milagres, Mariah interroga-se se a filha não estará a falar com Deus. Quase sem se aperceberem, mãe e filha vêem-se no centro de polémicas, perseguidas por crentes e não-crentes e apanhadas num circo mediático que ameaça a pouca estabilidade que lhes resta.

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Em circunstâncias normais, a Faith e eu não deveríamos estar em casa quando a minha mãe telefona para nos convidar para ver o seu novo caixão.
- Mariah! - exclama a minha mãe, visivelmente surpreendida quando atendo o telefone. - O que estás aí a fazer?
- A mercearia estava fechada - suspiro. - Os extintores de incêndios na secção das frutas e legumes provocaram uma inundação. E morreu um familiar do dono da lavandaria.
Não gosto de surpresas. Vivo a seguir listas. Na realidade, muitas vezes imagino a minha vida como um dossier de folhas soltas do mês de Setembro - bem arrumado e etiquetado, com tudo ainda no seu devido lugar. Atribuo este facto ao meu diploma em arquitectura e ao meu desejo ardente de não me transformar na minha mãe ao envelhecer. Para isso, cada dia da semana tem a sua rotina. Às segundas-feiras trabalho nas estruturas das pequenas casas de bonecas que construo. Às terças-feiras faço as mobílias. As quartas-feiras são para outras tarefas, as quintas-feiras para limpezas e as sextas-feiras para tratar de emergências que se acumulam ao longo da semana. Hoje, uma quarta-feira, costumo ir buscar as camisas do Colin, ir ao banco e comprar comida. Sobra-me tempo para voltar a casa, descarregar a mercearia e chegar à aula de bailei da Faith à uma hora da tarde. Mas hoje, devido a circunstâncias fora do meu controlo, tenho demasiado tempo disponível.
- Bem - continua a minha mãe, daquela sua maneira - parece-me que estás destinada a fazer-me uma visita.
Faith aparece de repente aos saltos à minha frente.
- É a avó? Ela recebeu?
- Recebeu o quê?
São dez horas, e já tenho dores de cabeça.
- Diz-lhe que sim - diz a minha mãe do outro lado da linha telefónica.
Olho em volta, para a casa. A carpete precisa de ser aspirada, mas depois o que é que vou fazer na quinta-feira? Uma forte chuvada de Agosto bate nas janelas. Faith põe a sua mão suave e quente no meu joelho.
- Está bem - digo à minha mãe. - Vamos já para aí.
A minha mãe vive a quatro quilómetros de distância, numa velha casa de pedra que toda a gente em New Canaan chama de Gingerbread Cape. Faith vê-a quase todos os dias; fica com ela depois das aulas nos dias em que estou a trabalhar. Podíamos ir a pé, se não fosse o mau tempo. Assim, a Faith e eu tínhamos acabado de entrar no carro quando me lembro da minha mala, em cima do balcão da cozinha.
- Espera aí - digo-lhe, saindo do carro e encolhendo-me por entre os pingos de chuva como se eles me pudessem queimar.
O telefone está a tocar quando entro em casa. Levanto o auscultador.
- Está?
- Oh, estás em casa - diz Colin. Ao ouvir a voz do meu marido o meu coração sobressalta-se. O Colin é director de vendas de uma pequena empresa que fabrica sinais de saída em LED, e esteve em Washington, D.C. durante dois dias para dar formação a um novo vendedor. Está a telefonar-me porque connosco é assim - tão unidos como o nó dos atacadores de uma bota alta, não conseguimos estar separados.
- Estás no aeroporto?
- Sim. Estou preso em Dulles - enrolo o fio do telefone em volta do braço, lendo por entre as vogais redondas das suas palavras todas as outras coisas que ele tem vergonha de dizer num local público: "Amo-te. Tenho saudades tuas. És minha." Ao fundo, uma voz sem corpo anuncia a chegada de um voo da United. - A Faith não foi à natação hoje?
- Tem bailei à uma - fico um momento à espera e depois acrescento num tom suave: - Quando chegas a casa?
- Assim que puder.
Fecho os olhos, pensando que não há nada como um abraço depois de uma ausência, nada como encostar o rosto à curva do ombro dele e encher os pulmões com o seu cheiro.
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Desliga sem se despedir, o que me faz sorrir. O Colin é assim, em poucas palavras: já está ansioso por voltar para o pé de mim.
Pára de chover a caminho de casa da minha mãe. Quando passamos pelo longo campo de futebol nos limites da cidade, os veículos começam a encostar à berma estreita da estrada. Um arco-íris perfeito e arqueado adorna a relva luxuriante do campo de jogos. Continuo a conduzir.
- Parece que nunca viram um - digo, acelerando.
Faith abre a janela e estende a mão. Depois abana os dedos à minha frente.
- Mamã! - grita ela. - Toquei-lhe!
Devido ao hábito, olho para baixo. Tem os dedos abertos manchados de vermelho, azul e verde-lima. Por um momento, fico sem fôlego. E depois lembro-me de que esteve sentada no chão da sala de estar há apenas uma hora, com as mãos cheias de marcadores Magic Markers.
A sala de estar da minha mãe é dominada por um feio sofá de canto de napa cor de pele. Tentei convencê-la a. comprar um de cabedal, uma ou duas poltronas bonitas, mas ela riu-se.
- Cabedal - disse ela - é para gentios com apelidos do Mayflower.
Depois disso desisti. Em primeiro lugar, tenho um sofá de cabedal. Em segundo lugar, casei com um gentio com um apelido do Mayflower. Pelo menos ela não tapou a napa com uma protecção de plástico como fazia a minha avó Fanny quando eu era pequena.
Mas hoje, ao entrar na sala de estar, nem sequer reparo no sofá.
- Uau, avó - sussurra Faith, visivelmente espantada. - Está alguém lá dentro? - Ajoelha-se, batendo no rectângulo de mogno muito envernizado.
Se as coisas tivessem corrido conforme o plano, neste momento provavelmente estaria a escolher meloas, levando-as ao nariz para testar a sua suavidade e doçura, ou a pagar treze dólares e quarenta cêntimos à Sr.a Li, recebendo em troca sete camisas Brooks Brothers, tão engomadas que jaziam como troncos de homens caídos na parte de trás da minha carrinha.
- Mãe, por que é que tens um caixão na sala de estar? pergunto.
- Não é um caixão, Mariah, Vês o vidro que tem por cima? É uma mesa.
- Uma mesa.
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A minha mãe coloca a caneca de café em cima da placa de vidro para provar que tem razão.
- Estás a ver?
- Tens um caixão na sala de estar - não sou capaz de ultrapassar aquela evidência.
Ela senta-se no sofá e coloca os pés calçados com sandálias em cima do tampo de vidro.
- Bem, eu sei, querida. Fui eu que o escolhi. Apoio a cabeça nas mãos.
- Acabaste de ir ao Dr. Feldman para fazer exames de rotina. Sabes o que ele te disse: se tomares os remédios para a tensão arterial religiosamente, não há razão para pensar que não vais viver mais do que qualquer um de nós.
Ela encolhe os ombros.
- É menos uma coisa que tens de fazer, quando chegar a hora.
- Oh, por amor de Deus. É por causa daquele lar de que o Colin falou? Porque juro-te, ele só achou que tu...
- Querida, acalma-te. Não planeio bater a bota nos próximos tempos; só precisava de uma mesa aqui. Gostei da cor da madeira. E vi uma reportagem no Twenty Twenty sobre um homem no Kentucky que os fazia.
Faith deita-se de barriga para cima ao lado do caixão.
- Podias dormir lá dentro, avó - sugere ela. - Podias ser como o Drácula.
- Tens de admitir, os acabamentos são de morrer - diz a minha mãe.
De várias maneiras. O mogno é magnífico, um mar suave e brilhante. As juntas e a chanfradura são bem acabadas e definidas, as dobradiças são luzentes como um farol.
- Foi uma verdadeira pechincha - acrescenta a minha mãe.
- Por favor, não me digas que compraste um em segunda mão. A minha mãe funga e olha para a Faith.
- A tua mamã precisa de se descontrair.
Há anos que a minha mãe anda a dizer isto de uma maneira ou de outra. Mas não consigo esquecer-me de que da última vez que me descontraí, quase perdi o controlo
A minha mãe deita-se no chão como a Faith, e juntas puxam as pegas de bronze. As suas cabeças loiras - a da minha mãe, pintada, a da minha filha, branca como a de uma fada - estão tão próximas que não consigo perceber onde acaba uma e começa a outra. A brincadeira delas consegue mover o caixão alguns centímetros na sua direcção. Fico a olhar para a depressão achatada que deixa atrás
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de si na carpete, e depois tento disfarçá-la o melhor que posso com a biqueira do sapato.
O Colin e eu temos mais sorte do que a maioria das pessoas. Casámos cedo, mas permanecemos casados - apesar de alguns percalços bastante grandes.
Mas também existe uma química. Quando o Colin olha para mim, sei que não está a ver-me com cinco quilos a mais por causa da gravidez, ou com as finas madeixas grisalhas nos meus cabelos. Vê a minha pele cremosa e firme, os cabelos soltos pelas costas, o corpo como o de uma estudante universitária. Lembra-se de mim no meu melhor, porque - como diz de vez em quando - sou a melhor coisa de que se lembra.
Quando vamos jantar fora ocasionalmente com os colegas dele - aqueles que coleccionaram mulheres como trofeus - apercebo-me da sorte que tenho em ter uma pessoa como o Colin. Põe a mão ao fundo das minhas costas, que não são tão bronzeadas ou esbeltas como as de algumas modelos mais novas. Apresenta-me com orgulho.
- Esta é a minha mulher - diz ele.
Eu sorrio. É tudo o que sempre quis ser.
- Mamã.
Começou novamente a chover; a estrada está a esbater-se à minha frente, e eu nunca fui uma condutora muito confiante.
- Chiu. Tenho de me concentrar.
- Mas, mamã - insiste ela. - Isto é mesmo, mesmo muito importante.
- O que é mesmo, mesmo muito importante é chegarmos vivas à tua aula de ballet.
Por um momento abençoado faz-se silêncio. Então Faith começa a dar pontapés nas costas do meu assento.
- Mas eu não tenho o meu fato de ballet - lamuria-se. Encosto à berma da estrada e volto-me para olhar para ela.
- Não tens?
- Não. Não sabia que íamos de casa da avó directamente para lá. Sinto o meu pescoço ficar vermelho. Estamos a menos de quatro quilómetros do estúdio de dança.
- Por amor de Deus, Faith. Porque é que não disseste nada antes?
Os olhos dela enchem-se de lágrimas.
- Só agora é que percebi que íamos a caminho do ballet.
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Bato no volante com a mão. Não sei se estou zangada com a Faith, com o clima, com a minha mãe, ou com os malditos extintores de incêndio da mercearia que, em conjunto, conseguiram estragar-me o dia.
- Vamos para o ballet todas as terças-feiras a seguir ao almoço!
Volto a entrar na estrada e faço inversão de marcha, ignorando o espinho de culpa que me diz que estou a ser demasiado severa com ela, que ela só tem sete anos. A Faith começa a guinchar por entre as lágrimas.
- Não quero ir para casa! Quero ir ao ballet
- Nós não vamos para casa - digo com os dentes cerrados. Vamos só buscar o teu fato, e depois vamos para o ballet.
Vamos chegar vinte minutos atrasadas. Imagino os olhos das outras mães, observando-me entrar com a Faith pelas portas a meio de uma aula que já começou. Mães que conseguiram levar as filhas à aula a horas no meio desta inundação repentina, mães que não têm de se esforçar para que tudo pareça tão fácil.
Vivemos numa casa rural centenária, rodeada por uma floresta de um dos lados, e do outro por um meticuloso muro de pedra. Os nossos três hectares são sobretudo bosque, nas traseiras da casa; estamos suficientemente perto da estrada para que à noite as luzes dos carros passem por cima das nossas cabeças como luzes de um farol. A própria casa está cheia de opostos que ainda se atraem: um alpendre pendurado com janelas Pella novas por trás, uma banheira com pés de patas de animais com uma coluna de massagem, o Colin e eu. O caminho de acesso à casa desce, subindo no fim, junto à estrada e de novo, junto à casa. Quando viramos, Faith suspira de contentamento.
- O papá está em casa! Quero vê-lo.
Eu também, mas por outro lado, quero sempre. Não há dúvida de que apanhou um voo mais cedo e veio almoçar a casa antes de regressar ao escritório. Penso nas outras mães que já estão no parque de estacionamento do estúdio de dança, e depois penso em ver o Colin, e de repente parece valer mesmo a pena estarmos vinte minutos atrasadas.
- Vamos dizer olá ao papá. Depois vais buscar o teu fato, e temos de ir embora.
Faith entra pela porta como uma maratonista a cortar a meta.
- Papá! - grita ela, mas não está ninguém na cozinha nem na sala de estar, apenas a pasta de Colin colocada ao centro da mesa para provar que ele está ali. Ouço a água correr pelos velhos canos.
- Está a tomar um duche - digo eu, e a Faith dirige-se imediatamente lá para cima.
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- Espera! - grito, certa de que a última coisa que Colin desejaria era ser surpreendido por Faith se estivesse a andar nu pelo quarto. Corro atrás dela, conseguindo chegar à porta fechada antes que Faith pudesse girar a maçaneta.
- Deixa-me entrar primeiro.
O Colin está junto à cama, a enrolar uma toalha em volta das ancas. Quando me vê à entrada da porta, fica petrificado.
- Olá - sorrio, abraçando-o. - Que bela surpresa, não é? com a cabeça aconchegada debaixo do queixo dele e as suas
mãos a envolverem frouxamente a minha cintura, faço sinal a Faith.
- Podes entrar. O papá está vestido.
- Papá! - grita ela, correndo directamente para Colin ao nível das suas virilhas, algo de que nos rimos muitas vezes e que o faz agachar-se para se proteger, mesmo abraçado a mim.
- Olá, fofinha - diz ele, mas continua a olhar por cima da cabeça de Faith, como se esperasse ver outra criança à espera atrás dela. O vapor sai pela frincha da porta fechada da casa de banho.
- Podemos pôr um vídeo para ela ver - sussurro, aproximando-me de Colin. - Isto é, partindo do princípio que estás à procura de alguém para te ajudar a lavar as costas.
Mas em vez de responder, Colin afasta desajeitadamente os braços de Faith da sua cintura.
- Querida, talvez devesses...
- Devesse o quê?
Todos nos viramos para a voz que vem da casa de banho. A porta abre-se para revelar uma mulher molhada, a pingar, meio enrolada numa toalha, uma mulher que achou que as palavras de Colin se dirigiam a ela.
- Oh, meu Deus - diz ela, corando, retirando-se e fechando a porta com força.
Apercebo-me de que a Faith sai do quarto a correr, de que o Colin vai atrás dela, da água do duche a ser fechada. Os meus joelhos cedem, e de repente estou sentada na cama, na colcha com padrão de alianças que o Colin me comprou em Lancaster, na Pensilvânia, depois de a mulher menonita que a fez lhe ter dito que o símbolo de um casamento perfeito era um círculo infinito.
Escondo o rosto nas mãos e penso: "Oh, meu Deus. Está a acontecer outra vez."
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Livro 1
Antigo Testamento
Um
Milhões de criaturas espirituais caminham sobre a terra sem serem vistas, quer quando estamos acordados quer quando dormimos.
John Milton, Paraíso Perdido
Há certas coisas de que não falo.
Como quando tinha treze anos, e tive de levar a minha cadela para a mandar abater. Ou daquela vez no liceu em que estava vestida para o baile de finalistas e fiquei sentada à janela, à espera de um rapaz que nunca chegou a aparecer. Ou do que senti quando conheci o Colin.
Bem, falo um pouco sobre isso, mas não admito que sabia desde o início que não estávamos destinados a ficar juntos. O Colin era uma estrela do futebol americano da universidade; eu tinha sido contratada pelo treinador dele para lhe dar explicações para que ele passasse a francês. Ele beijou-me - de forma tímida, simples, académica - por causa de uma aposta que tinha feito com os colegas de equipa, e ainda que confusa de embaraço, fiquei a sentir-me radiosa.
Para mim, a razão pela qual me apaixonei por Colin é absolutamente evidente. Mas nunca entendi o que o fez apaixonar-se por mim.
Disse-me que quando estava comigo, se tornava uma pessoa diferente - uma pessoa de que gostava mais do que o atleta indolente, o típico rapaz das associações de estudantes universitárias. Disse-me que isso o fazia sentir-se admirado pelo que era em vez de pelo que tinha feito. Eu argumentei que não era o seu par ideal, não era suficientemente alta, nem deslumbrante, nem sofisticada. E quando ele discordou, obriguei-me a acreditar nele.
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Não falo sobre aquilo que aconteceu passados cinco anos, quando se provou que eu tinha razão.
Não falo sobre a forma como ele era incapaz de me olhar nos olhos enquanto combinava internar-me.
Abrir os olhos é um esforço hercúleo. Inchados e desfocados, parecem determinados a ficar cerrados, preferindo não arriscar avistar outra coisa que possa virar o mundo de cabeça para baixo. Mas uma mão agarra-me o braço, e tanto quanto sei pode ser o Colin, portanto arranjo maneira de os entreabrir o suficiente para que a luz, aguçada como uma farpa, consiga entrar.
- Mariah - conforta-me a minha mãe, afastando-me os cabelos da testa. - Sentes-te melhor?
- Não - não sinto nada. O que quer que fosse que o Dr. Johansen me tivesse receitado pelo telefone faz-me parecer que tenho uma almofada de espuma de sete centímetros e meio de espessura à minha volta, uma barreira que se move comigo, dobra-se e consegue afastar o pior.
- Bem, é altura de saíres daí - diz a minha mãe, friamente. Inclina-se para a frente e tenta puxar-me para fora da cama.
- Não quero tomar um duche - tento enrolar-me numa bola.
- Eu também não - resmunga a minha mãe. Da última vez que entrou no quarto, foi para me arrastar para a casa de banho para me pôr debaixo de um jacto de água fria. - Vais sentar-te, que raio, nem que isso dê cabo de mim.
Isso faz-me pensar na sua mesa-caixão, e na aula de ballet a que a Faith e eu acabámos por não chegar a ir há três dias. Afasto-me dela e tapo o rosto, com novas lágrimas a escorrerem
como cera.
- O que se passa comigo?
- Absolutamente nada, apesar do que aquele cretino quer dar-te a entender - a minha mãe coloca a mão nas minhas faces ardentes. - A culpa não é tua, Mariah. Não se trata de algo que pudesses ter evitado que acontecesse. O Colin não merece o chão que pisa cospe na carpete, para prová-lo. - Agora senta-te para que eu possa trazer a Faith.
Isso prende-me a atenção.
- Ela não pode ver-me assim.
- Então, veste-te.
- Não é assim tão fácil...
-É, sim - insiste a minha mãe. - Desta vez não és só tu, Mariah. Queres perder o controlo? Muito bem, então perde o controlo depois
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de veres a Faith. Sabes que eu tenho razão, senão não me tinhas telefonado para que eu viesse para aqui para tomar conta dela há três dias! - olhando para mim, suaviza a voz: - Ela tem um pai que é um idiota, e tem-te a ti. Tira as tuas conclusões.
Por um segundo, deixo que a esperança espreite pelas fendas da minha armadura.
- Ela perguntou por mim? A minha mãe hesita.
- Não... mas isso é irrelevante.
Enquanto vai buscar Faith, ajeito as almofadas atrás das costas e limpo o rosto com uma ponta da colcha. A minha filha entra no quarto, impelida pela mão da minha mãe. Pára a meio metro da cama.
- Olá - digo eu, alegre como qualquer actriz.
Por um momento, limito-me a deleitar-me ao vê-la - o risco torto nos cabelos, o espaço onde costumava estar o dente da frente, o verniz cor-de-rosa lascado da Fada Sininho nas unhas. Cruza os braços, mantém firmes as suas pernas de potro e cerra obstinadamente a sua bonita boca arqueada numa linha recta.
- Queres sentar-te? - dou palmadinhas no colchão ao meu lado.
Ela não responde; mal respira. com uma dor aguda apercebo-me de que sei exactamente o que ela está a fazer, porque eu própria já o fiz: convencemo-nos de que se nos mantivermos absolutamente imóveis, se não fizermos movimentos bruscos, mais ninguém os fará.
- Faith... - estendo a mão, mas ela vira-se e sai do quarto. Uma parte de mim deseja ir atrás dela, mas uma parte maior
não consegue arranjar coragem.
- Ela ainda não fala. Porquê?
- Tu é que és mãe dela. Descobre tu.
Mas eu não posso. Se é que apreendi alguma coisa, foram os meus próprios limites. Viro-me de lado e fecho os olhos, na esperança de que a minha mãe perceba que quero que ela se vá embora.
- Vais ver - diz ela numa voz suave, pousando a mão na minha cabeça. - A Faith vai ajudar-te a ultrapassar isto.
Faço-a pensar que estou a dormir. Não deixo de fingir quando a ouço suspirar. Nem quando a observo, com os olhos semicerrados, enquanto ela tira da minha mesa-de-cabeceira um X-acto, uma lima das unhas e uma tesoura de costura.
Há alguns anos quando encontrei o Colin na cama com outra mulher, fiquei três noites à espera e depois tentei suicidar-me. O
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Colin descobriu-me e levou-me ao hospital. Os médicos do serviço de urgências disseram-lhe que tinham conseguido salvar-me, mas isso não é verdade. De alguma forma, naquela noite, perdi-me. Tornei-me outra pessoa, uma pessoa de que não gosto de ouvir falar, uma pessoa que de certeza não reconheceria. Não conseguia comer, não conseguia falar, não conseguia reunir forças suficientes para atirar os cobertores para trás e sair da cama. A minha mente estava cristalizada num único pensamento: se o Colin já não me queria, porque haveria eu de me querer?
Quando o Colin me disse que ia internar-me em Greenhaven, chorou. Pediu desculpas. Mesmo assim, nunca me deu a mão, nunca me perguntou o que eu queria, nunca me olhou nos olhos. Disse que eu precisava de ser hospitalizada para que não ficasse sozinha.
Ao contrário do que ele pensava, eu não estava sozinha. Estava grávida de várias semanas da Faith. Eu sabia da existência dela, sabia-o antes de receber os resultados dos exames e de os médicos alterarem o tratamento para que este se adequasse às necessidades de uma mulher grávida e suicida. Não contei nada sobre a gravidez a ninguém ali, limitei-me a deixá-los descobrir por si próprios - e demorei anos a admitir que estava à espera de abortar. Tinha-me convencido a mim própria de que fora a Faith, uma pequena bola de células dentro de mim, que fizera o Colin procurar outra mulher.
No entanto, quando a minha própria mãe diz que a Faith vai impedir que eu fique tão deprimida que não consiga encontrar de novo o meu caminho, pode não estar muito longe da verdade. Afinal, a Faith já o fez antes. De alguma forma, durante aqueles meses em Greenhaven, estar grávida tornou-se um benefício em vez de uma obrigação.
As pessoas que não prestavam atenção ao que eu tinha para dizer quando fui internada, paravam para comentar a minha barriga que crescia, as minhas faces radiosas. O Colin soube da existência do bebé e voltou para mim. Dei-lhe o nome de Faith, um nome mesmo gentio segundo a minha mãe, porque precisava desesperadamente de acreditar em alguma coisa.
Estou sentada com a mão em cima do telefone. A qualquer minuto, digo para mim própria, o Colin vai telefonar-me para me dizer que foi um episódio de insanidade. Vai suplicar para que eu não o culpe por este pequeno rasgo de loucura. Se eu não compreender uma coisa destas, quem compreenderá?
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Mas o telefone não toca, e depois das duas da manhã ouço um barulho lá fora. É o Colin, penso. Ele veio.
Corro para a casa de banho e tento desembaraçar os cabelos, com os braços rígidos e doridos da inacção. Engulo uma tampa cheia de elixir. Depois corro para o corredor com o coração aos pulos.
Está escuro. Não há ninguém a andar de um lado para o outro; nada. Desço as escadas sorrateiramente e espreito pelo vidro da porta de entrada. Abro a porta com cuidado - range - e saio para o velho alpendre da casa rural.
O barulho que eu pensava ser o meu marido a voltar para casa, para mim, é um par de guaxinins, a assaltar o caixote do lixo.
- Saiam! - digo-lhes num tom sibilante, agitando as mãos. O Colin costumava apanhá-los numa armadilha Hav-A-Heart, uma gaiola rectangular com uma porta de alavanca que não magoava o animal. Ouvia um guinchar depois de ficar preso e levava-o para o bosque nas traseiras da casa. Depois regressava, com a gaiola vazia e limpa, sem nenhum vestígio de que o guaxinim lá estivesse estado.
- Abracadabra - dizia. - Agora estás a vê-lo, agora já não estás. Volto a entrar em casa, mas em vez de me dirigir lá para cima,
vejo a Lua reflectir-se na mesa envernizada da sala de jantar. Ao centro do tampo oval há uma réplica em miniatura desta casa rural. Fui eu que a fiz; é o que eu faço para ganhar dinheiro. Construo casas de sonho - não de cimento, paredes falsas e traves de aço. mas com eixos não muito maiores do que um palito, quadrados de cetim que me cabem na palma da mão, massa feita à base de cola para madeira Elmer s. Embora algumas pessoas peçam uma réplica exacta da sua casa, também já criei mansões anteriores à Guerra Civil, mesquitas árabes, palácios de mármore.
Construí a minha primeira casa de bonecas há sete anos, em Greenhaven, com pauzinhos de gelado e cartolina, enquanto os outros pacientes faziam "olhos de Deus" e origami. Mesmo naquela primeira tentativa havia um sítio para cada peça de mobiliário, um quarto para agradar a cada personalidade. Desde essa altura, já construí quase mais cinquenta. Tornei-me famosa depois de a Hilary Rodham Clinton me ter pedido para fazer a Casa Branca para o décimo sexto aniversário da Chelsea - completa, com a Sala Oval, porcelana nas vitrinas e uma bandeira dos Estados Unidos feita à mão no Gabinete Executivo. Os clientes pediram, mas eu não faço bonecas para fazer conjunto com as casas. Um piano, por muito pequeno que seja, é sempre um piano. Mas uma boneca com um
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rosto maravilhosamente pintado e membros bem delineados não deixa de ser, no seu coração, feita de madeira.
Puxo uma cadeira e sento-me, tocando suavemente com os dedos no telhado inclinado da casa rural em miniatura, nos pilares que sustentam o alpendre, nas pequenas begónias de seda nos seus vasos de terracota. Lá dentro, há uma mesa de cerejeira igual àquela sobre a qual esta casa de bonecas está colocada. E nessa mesa de cerejeira em miniatura, está uma réplica ainda mais pequena desta casa de bonecas.
com um dedo, fecho a porta de entrada da casa de bonecas. Passo o polegar pelas janelas do tamanho de selos, fechando-as. Tranco as portadas com as suas trancas minúsculas; abrigo as begónias por baixo do baloiço liliputiano do alpendre. Tranco muito bem a casa, como se ela precisasse de aguentar uma tempestade.
O Colin telefona quatro dias depois de ter ido embora.
- Não era assim que devia ser.
Supostamente, quer dizer que a Faith e eu não o devíamos ter interrompido. Supostamente, obrigámo-lo a agir antes do tempo. Mas como é óbvio, não digo nada.
- A nossa relação não vai resultar, Mariah., Tu sabes. Desligo o telefone enquanto ele ainda está a falar, e tapo a
cabeça com os cobertores.
Cinco dias depois de o Colin ter partido, a Faith ainda não fala. Anda pela casa como uma gata silenciosa, brincando com brinquedos e escolhendo vídeos, observando-me sempre com desconfiança.
A minha mãe é que consegue descortinar através da mudez que a Faith quer papas de aveia para o pequeno-almoço, ou que não chega à aldeia Playmobil na prateleira de cima, ou que precisa de beber água antes de se deitar. Interrogo-me se não terão uma linguagem secreta. Não a entendo; ela recusa-se a comunicar, e isso faz-me lembrar o Colin.
- Tens de fazer alguma coisa - repete a minha mãe. - Ela é tua filha.
Biologicamente, sim. Mas a Faith e eu temos pouco em comum. Na realidade, era como se tivesse saltado uma geração e tivesse vindo directamente da avó, de tão próximas que as duas são. Têm a mesma tendência para a impulsividade, a mesma capacidade de recuperação, e é por isso que é tão estranho ver a Faith assim tão cabisbaixa.
- O que devo fazer?
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A minha mãe abana a cabeça.
- Brinca com ela. Vai dar um passeio. Pelo menos, podias dizer-lhe que gostas muito dela.
Viro-me para a minha mãe, desejando que tudo fosse assim tão simples. Adoro a Faith desde que ela nasceu, mas não da forma que seria de pensar. Ela foi um alívio. Depois de inicialmente ter desejado abortar e depois de meses a tomar Prozac, tinha a certeza de que ela ia aparecer com três olhos ou lábio leporino. Mas o parto normal e fácil abriu caminho para a realidade de um bebé que eu não era capaz de fazer feliz, como se o meu castigo por pensar o pior acerca dela fosse ficarmos as duas separadas mesmo antes de termos a oportunidade de estabelecer uma ligação. A Faith tinha cólicas; mantinha-me acordada a noite toda e mamava com tal violência que a minha barriga se contorcia de dor a cada mamada. Sem dormir e inquieta, por vezes deitava-a na cama, ficava a olhar para o seu rosto sério e redondo e pensava: "Mas que hei-de eu fazer contigo?"
Achei que a maternidade era algo que surgia naturalmente, da mesma forma que o leite aparecia - de forma um pouco dolorosa, um pouco atemorizadora, mas que a partir de agora seria uma parte de mim, para o bem ou para o mal. Esperei pacientemente. Não sabia usar um termómetro rectal na minha filha, e depois? Tentava embrulhá-la e a manta nunca se segurava, e depois? Qualquer dia destes, dizia para comigo própria, vou acordar e saber o que estou a fazer.
Foi a dada altura após o terceiro aniversário da Faith que eu deixei de ter esperança. Por qualquer razão, ser mãe nunca será fácil para mim. Observo mães com vários filhos que colocam todos nos seus lugares sem esforço nas suas carrinhas, enquanto eu tenho de verificar o cinto de segurança da Faith três vezes, só para me certificar de que está mesmo bem preso. Vejo mães inclinarem-se para falar com os filhos, e tento memorizar as coisas que dizem.
A ideia de ter de chegar ao fundo do silêncio obstinado de Faith dá-me um aperto no estômago. E se eu não for capaz? Em que tipo de mãe é que isso me transforma?
- Não estou preparada - esquivo-me.
- Por amor de Deus, Mariah, controla-te. Veste-te, escova o cabelo, comporta-te como uma mulher normal, e quando deres por isso, já não vais estar a fingir - a minha mãe abana a cabeça. - O Colin disse-te que eras um bicho-do-mato durante dez anos, e tu foste suficientemente estúpida para acreditar nele. O que é que ele sabe de esgotamentos nervosos?
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Pousa uma chávena de café à minha frente, sei que ela considera um triunfo o facto de eu estar sentada à mesa da cozinha, em vez de enfiada na cama. Quando fui internada, a minha mãe vivia em Scottsdale, no Arizona - para onde se tinha mudado após a morte do meu pai. Veio de avião depois da minha tentativa de suicídio e regressou a casa depois de ter a certeza de que já não havia perigo. É claro, não estava a contar que o Colin me tivesse internado. Quando descobriu o que ele tinha feito, vendeu o apartamento, regressou, e passou quatro meses a dar a volta ao acto judicial para que eu pudesse sair de minha livre vontade. Nunca acreditou que o Colin tinha feito bem em mandar-me para Greenhaven, e nunca o perdoou por isso. Quanto a mim, bem, não sei. Por vezes, como a minha mãe, acho que ele não devia ter decidido o que eu sentia, por muito apática que estivesse na altura. E, por vezes, lembro-me de que Greenhaven era o único lugar em que eu me sentia à-vontade, porque lá não se esperava que ninguém fosse perfeito.
- O Colin - diz a minha mãe sucintamente -, é um idiota. Graças a Deus que a Faith sai a ti - dá-me palmadinhas no ombro.
- Lembras-te daquela vez em que chegaste a casa, no quinto ano, com um bom menos no teu teste de matemática? E choravas como se achasses que nós te íamos torturar, mas não ligámos absolutamente nada? Fizeste o melhor que sabias; isso é que era importante. Tentaste. E não posso dizer o mesmo de ti hoje - olha através da porta aberta, para o chão da sala de estar, onde a Faith está a colorir com lápis de cera. - Ainda não sabes que criar uma criança é sempre uma tarefa inacabada?
A Faith agarra no lápis de cera cor de laranja e rabisca violentamente a cartolina. Lembro-me de como no ano passado, quando ela estava a aprender as letras, rabiscava uma longa fileira de consoantes e perguntava-me o que tinha escrito.
- Frzwwlkg - dizia eu, e para minha surpresa fazia-a rir.
- Então vai lá - a minha mãe empurra-me em direcção à sala de estar.
A primeira coisa que faço é tropeçar na caixa dos lápis de cera.
- Desculpa - apanho os lápis e volto a colocá-los na lata de Oreos que usamos para os guardar. Quando acabo, dou meia volta sobre os calcanhares, para ver a Faith olhar friamente para mim.
- Desculpa - volto a dizer, mas não estou a referir-me aos lápis de cera.
Visto que Faith não responde, olho para o papel onde ela esteve a desenhar. Um morcego e uma bruxa, a dançar junto a uma fogueira.
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- Uau, está mesmo giro - a inspiração surge; agarro no desenho e seguro-o junto a mim. - Posso ficar com ele? Para pendurá-lo lá em baixo na minha oficina?
A Faith inclina a cabeça, estende a mão para o desenho e rasga-o ao meio. Depois corre escadas acima e bate com a porta do quarto.
A minha mãe entra na sala, limpando as mãos a um pano da loiça.
- Correu bem - digo secamente. Ela encolhe os ombros.
- Não podes mudar o mundo de um dia para o outro. Agarrando numa metade do desenho da Faith, passo os dedos
pela superfície encerada da bruxa.
- Acho que ela estava a desenhar-me a mim.
A minha mãe atira-me o pano da loiça; acerta-me inesperadamente frio no meu pescoço.
- Pensas de mais - diz ela.
Nessa noite, enquanto estou a lavar os dentes, vejo a minha imagem ao espelho. Não sou feia, ou pelo menos foi isso que fiquei a saber em Greenhaven. As auxiliares, as enfermeiras e os psiquiatras olham-nos sem nos ver quando estamos desmazeladas e a queixar-nos; por outro lado, um rosto bonito é notado, e comentado, e atendido. Em Greenhaven, cortei os cabelos curtos, em ondas cor de mel; usava maquilhagem para realçar o verde dos meus olhos. Gastei mais tempo a cuidar da minha aparência nesses poucos meses do que na minha vida inteira.
Suspirando, aproximo-me do espelho e limpo uma mancha de pasta do canto da boca. Quando o Colin e eu nos mudámos para esta casa rural, substituímos este espelho da casa de banho. O antigo estava rachado ao canto - azar, disse eu. Não sabíamos onde havíamos de pendurar o espelho novo. com um metro e sessenta e cinco, o nível dos olhos para mim não era o nível dos olhos para o Colin. com mais trinta centímetros do que eu e esbelto, ele riu-se quando segurei no espelho pela primeira vez.
- Ei - disse ele -, mal consigo ver o meu peito.
Portanto colocámos o espelho onde o Colin conseguisse ver. Eu punha-me em bicos de pés para ver o meu rosto inteiro. Nunca estive à altura.
A meio da noite sinto um restolhar nos cobertores. Uma corrente de ar, uma solidez macia encostada a mim. Virando-me, coloco os braços em volta da Faith.
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- É assim que seria - sussurro comigo própria, e deixo que a minha garganta se feche mesmo antes de concluir o meu pensamento. Os braços dela envolvem-me como uma trepadeira. Os seus cabelos, debaixo do meu queixo, cheiram a infância.
A minha mãe costumava dizer-me que em momentos difíceis, sabíamos sempre a quem recorrer. Que ser uma família não é uma construção social, mas sim um instinto.
A flanela das nossas camisas de noite prende-se uma na outra. Esfrego as costas da Faith em silêncio, com medo de dizer qualquer coisa que possa estragar esta graça, e fico à espera que a respiração dela se torne regular antes de me deixar adormecer. Isto, sou capaz de fazer.
A cidade onde vivemos, New Canaan, é suficientemente grande para ter a sua própria montanha, e suficientemente pequena para reter os rumores nos recantos e frinchas das tábuas das fachadas das lojas gastas pelo tempo. É uma cidade de quintas e campo, de pessoas simples lado a lado com profissionais de Hanôver e New London que desejam investir um pouco mais longe em valores imobiliários. Temos uma bomba de gasolina, um velho parque infantil e uma banda de jazz. Também temos um -advogado, J. Evers Standish, por cuja placa do escritório já passei um milhão de vezes ao percorrer a Route 4 para cima e para baixo.
Seis dias após o Colin ter partido, abro a porta de entrada e vejo um delegado do xerife no alpendre, a perguntar-me se eu sou realmente a Sr.a Mariah White. O meu primeiro pensamento vai para Colin - será que ele sofreu algum acidente de viação? O xerife mete a mão no bolso e tira um envelope.
- Desculpe, minha senhora - diz ele, e vai-se embora antes que eu possa perguntar-lhe o que me entregou.
O primeiro acto concreto de divórcio chama-se libelo. É um pequeno papel que, na nossa mão, tem o poder de mudar toda a nossa vida. Só meses depois é que saberei que o New Hampshire é o único Estado que ainda utiliza a designação de libelo, em vez de denúncia ou petição, como se parte do processo, embora amigável, implique um insulto ao nosso carácter. Preso ao bilhete há uma folha de papel que diz que está a ser movido um divórcio contra mim.
Passados trinta minutos estou sentada na sala de espera do escritório de J. Evers Standish, com a Faith enroscada a um canto com uma velha pista de comboio Brio. Não a teria trazido, mas a minha mãe esteve fora a manhã toda - disse que saiu para nos
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trazer uma surpresa. Uma porta atrás da recepcionista abre-se e uma mulher morena, alta e bem arranjada sai lá de dentro, estendendo a mão.
- Chamo-me Joan Standish. Fico de boca aberta.
- A sério? - durante anos, ao passar pelo edifício, imaginei J. Evers Standish como um homem mais velho de suíças.
A advogada ri.
- Da última vez que verifiquei, era esse o meu nome - olha para Faith, absorta a construir um túnel para o comboio.
- Nan - pede à recepcionista -, pode tomar conta da filha da Sr.a White?
E como se fosse puxada por um fio, sigo a advogada para dentro do seu gabinete.
O mais estranho é que não estou perturbada. Nada que se compare à tarde em que o Colin se foi embora. Ha algo neste libelo que me parece absolutamente exagerado, como uma anedota a anunciar a sua graça. Algo de que eu e o Colin nos vamos rir quando apagarmos as luzes e estivermos abraçados daqui a alguns meses.
Joan Standish explica-me o libelo. Pergunta-me se eu quero consultar um terapeuta ou informar-me sobre programas de incentivo. Pergunta-me o que aconteceu. Fala sobre decretos de divórcio, e certidões financeiras, e custódia, enquanto eu deixo que a sala rodopie à minha volta Parece impossível que um casamento demore um ano a planear, mas que um divórcio esteja terminado em seis semanas - como se no intervalo entre ambos, os sentimentos fossem diminuindo ao ponto de poderem ser dissipados com um único sopro zangado.
- Acha que o Colin vai querer partilhar a custódia da vossa filha?
Fico a olhar para a advogada.
- Não sei - não imagino o Colin a viver sem a Faith. Mas por outro lado, não me imagino a viver sem o Colin.
Joan Standish semicerra os olhos e senta-se à sua secretária, à minha frente.
- Se me permite, Sr.a White - começa ela a dizer -, parece-me um pouco... desligada de tudo isto. É uma reacção muito comum, negar o que acabou de ser accionado legalmente e, portanto, deixar que tudo isso a melindre. Mas eu asseguro-lhe que o seu marido, na realidade, accionou os instrumentos legais para dissolver o vosso casamento.
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Abro a boca, e depois volto a fechá-la bruscamente.
- O que se passa? - pergunta ela. - Se quer que eu a represente, vai ter de confiar em mim.
Olho para o colo.
- É que... bem. Já passámos por isto, mais ou menos, uma vez. O que é que vai acontecer a tudo... isto... se ele decidir voltar?
A advogada inclina-se para a frente, com os cotovelos apoiados nos joelhos.
- Sr.a White, não vê realmente nenhuma diferença entre essa vez e agora? Ele magoou-a da outra vez?
Aceno com a cabeça.
- Prometeu-lhe que ia mudar? Voltou para si? - perguntou a advogada, sorrindo gentilmente. - Pediu o divórcio da outra vez?
- Não - murmuro.
- A diferença entre aquela vez e agora - diz Joan Standish -, é que desta vez ele fez-lhe um favor.
Os nossos lugares para o circo são na primeira fila.
- Mãe - pergunto eu -, como é que arranjaste bilhetes nestes lugares?
A minha mãe encolhe os ombros.
- Dormi com o director do circo - sussurra ela, e depois ri-se da sua própria piada.
A sua surpresa de ontem envolvia uma ida ao TicketMaster de Concord, para arranjar lugares para todas no Ringling Brothers Circus, que dava espectáculos em Boston. Achou que a Faith precisava de algo que a entusiasmasse o suficiente para a pôr novamente a tagarelar. E assim que ouviu falar do libelo, disse que eu devia considerar a viagem a Boston como uma comemoração.
A minha mãe acena a um homem que vende cones de gelado e compra um para a Faith. Os palhaços estão a animar as bancadas. Vejo alguns que reconheço - seria possível que fossem os mesmos passados todos estes anos? Um de cabeça branca e sorriso azul debruça-se por cima da divisória baixa à nossa frente. Aponta para os seus suspensórios, às bolas, e depois para a camisa da Faith, às pintinhas, e bate palmas. Quando a Faith cora, ele pronuncia silenciosamente a palavra "Olá". Faith abre muito os olhos, e depois responde-lhe, igualmente silenciosa.
O palhaço mete a mão no bolso de trás e tira um lápis de maquilhagem. Coloca uma mão em volta do queixo de Faith e com a outra desenha um grande sorriso rasgado por cima dos seus lábios. Pinta notas musicais na garganta dela e pisca-lhe o olho.
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Afasta-se da divisória com um salto, pronto para divertir outra criança, e depois volta no último minuto. Antes que eu consiga baixar-me, toca-me no rosto. A sua mão é fresca na minha face enquanto ele pinta uma lágrima por baixo do meu olho esquerdo, azul-escura e cheia de mágoa.
Embora eu não me lembre, quando era pequena tentei juntar-me ao circo.
Os meus pais levavam-me ao Boston Garden todos os anos quando os Ringling Brothers chegavam à cidade, e dizer que eu adorava era pouco. Nas semanas anteriores ao espectáculo acordava a meio da noite, com o peito oprimido com as piruetas e os olhos ofuscados pelas lantejoulas, com os lençóis a cheirar a tigres, e a póneis, e a ursos. Quando estava realmente no circo, treinava os olhos para não pestanejar, sabendo que tudo ia acabar tão depressa como o algodão-doce que se desfazia em nada com o calor da minha boca.
No ano em que fiz sete anos fiquei fascinada pela Rapariga Elefante. Filha do director do circo, cintilante e segura, subia para cima da tromba de um enorme elefante e trepava por ela acima, da mesma maneira que às vezes eu trepava pelo escorrega no parque infantil. Sentava-se com as coxas apertadas junto do grosso pescoço peludo do elefante e ficava a olhar para mim o tempo todo que percorria o centro da arena. "Não gostavas de ser como eu?", perguntava ela silenciosamente.
Nesse ano, tal como em todos os outros, a minha mãe fez-me levantar dez minutos antes do intervalo, para podermos evitar as filas para ir à casa de banho. Arrastou-me para a casa de banho das senhoras, entrando ambas para o minúsculo cubículo, e ela erguia-se por cima de mim como um génio, de braços cruzados enquanto eu me agachava para fazer chichi. Quando acabei, ela disse:
- Agora fica à espera que eu acabe.
A minha mãe diz-me que eu nunca tinha atravessado a rua sem lhe dar a mão, nunca me tinha aproximado de um fogão quente; mesmo quando era muito pequenina, nunca metia objectos pequenos na boca. Mas nesse dia, enquanto ela estava na casa de banho, passei por baixo da porta e desapareci.
Não me lembro disso. Também não me lembro de como passei pelos seguranças de casacos verdes, saí pela porta, e cheguei ao enorme recinto onde o circo tinha colocado os seus atrelados. É claro, não me lembro de como o próprio director do circo anunciou o meu nome, na esperança de me encontrar, como os rumores de que uma menina estava perdida se espalharam como um incêndio,
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de como os meus pais passaram o espectáculo à procura nos corredores. Não consigo recordar-me do rosto pálido do trabalhador do circo que me encontrou, que declarou ser espantoso que eu não tivesse sido pisada ou retalhada. E não consigo imaginar o que os meus pais pensaram, ao descobrir-me aninhada entre as presas letais de um elefante adormecido, com o cabelo coberto de palha e saliva, com a sua tromba enrolada por cima dos meus ombros como o braço de um antigo amor.
Não sei porque é que estou a contar isto, a não ser para que vejam que talvez, tal como a cor dos olhos ou a estrutura óssea, os milagres sejam uma herança genética.
A Rapariga Elefante cresceu. É claro, não posso ter a certeza de que se trata da mesma pessoa, mas há uma mulher com um fato cintilante e com o mesmo cabelo loiro-arruivado e olhos sensatos da rapariga de que me lembro. Conduz um elefante bebé em volta da arena e atira-lhe uma bola roxa; faz uma vénia majestosa ao público e deixa que o elefante acene por cima do seu ombro. Nesse momento, dos bastidores sai uma criança, uma menina tão parecida com a do meu passado que me interrogo se o tempo não passará debaixo de uma grande tenda de circo. Mas, então, vejo a Mulher Elefante ajudar a rapariga a montar o elefante bebé em volta da arena, e percebo que são mãe e filha.
O olhar que elas cruzam faz-me olhar para a Faith. Os olhos dela estão tão brilhantes que consigo ver as lantejoulas da Rapariga Elefante reflectidas neles. De repente, o palhaço que aqui esteve antes está debruçado por cima da divisória, gesticulando descontroladamente para a Faith, que acena com a cabeça e passa por cima da divisória para os braços dele. Acena-nos, de rosto expressivo ao afastar-se para integrar o desfile antes do intervalo. A minha mãe passa para o lugar da Faith.
- Viste aquilo? Oh, eu sabia que devíamos ter trazido a máquina fotográfica.
E então, num espectáculo de luz e voz sonante, os artistas do circo e os animais desfilaram em volta do trio de arenas. Olho em volta, tentando encontrar a Faith.
- Ali! - grita a minha mãe. - lu-hu! Faith! - aponta para lá do director do circo e dos tigres enjaulados para a minha filha, que está montada em frente à Mulher Elefante numa tremenda fera com presas.
Interrogo-me se as outras mães sentem um aperto nas entranhas, ao ver os seus filhos crescer para se tornarem nas pessoas que elas próprias tinham desejado tanto ser. Os holofotes pairam por
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cima da multidão, e apesar dos aplausos e da fanfarra ainda consigo ouvir a minha mãe desembrulhar sub-repticiamente um caramelo Brach s dentro da mala.
Um cão treinado, assustado por alguma coisa, salta dos braços de um palhaço com uma saia armada. O cão passa por entre as pernas do director do circo, por cima da cauda de cetim de uma trapezista, e mesmo à frente do elefante de Faith, fazendo com que este bramisse e se erguesse nas patas traseiras.
Mesmo que eu viva até aos cem anos, nunca esquecerei o tempo que demorou para ver a Faith cair na serradura, como o pânico se acumulou nos meus tímpanos e bloqueou todos os outros sons, como o palhaço que travara amizade com ela correu para lá, chocando com um malabarista e fazendo as facas caírem-lhe das mãos, de forma que as três lâminas brilhantes caíssem e cortassem as costas da minha filha.
A Faith jaz inconsciente de barriga para baixo numa cama de hospital no Mass General, tão pequena que mal ocupa metade do comprimento do colchão. O soro pinga-lhe para o braço para prevenir infecções, diz o médico, embora esteja confiante porque as lacerações não foram profundas. Mesmo assim, foram suficientemente profundas para precisarem de vinte pontos. O meu maxilar está tão tenso por estar cerrado que sinto um arrepio na espinha, e a minha mãe deve saber como estou prestes a perder o controlo, porque troca algumas palavras em voz baixa com uma enfermeira, toca nos cabelos de Faith e faz-me sair do quarto.
Só falamos quando chegamos a uma pequena arrecadação de roupas de que a minha mãe se apropria para nosso uso. Empurrando-me contra uma parede de lençóis e toalhas, obriga-me a olhá-la nos olhos.
- Mariah, a Faith está bem. A Faith vai ficar bem. De um momento para o outro, soçobro.
- A culpa é minha - soluço. - Não fui capaz de o impedir.
Não digo aquilo que tenho a certeza de que a minha mãe também está a pensar, que não estou a chorar apenas por causa das facas que feriram a Faith, mas por cair na depressão depois de o Colin ter ido embora, talvez mesmo por ter escolhido o Colin para marido antes de tudo.
- Se alguém teve culpa, fui eu. Eu é que comprei os bilhetes abraça-me com força. - Isto não é uma espécie de castigo. Não é olho por olho, Mariah. Vais ultrapassar isto. Ambas vão - depois segura-me à distância de um braço. - Alguma vez te contei como
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quase te matei? Fomos fazer esqui, e tu devias ter uns sete anos. e escorregaste da cadeira do teleférico quando eu estava a ajustar os bastões. Ficaste ali pendurada, a seis metros de altura, enquanto eu agarrava a manga do teu casaquinho. Tudo por não estar a prestar atenção.
- Não é a mesma coisa. Isso foi um acidente.
- E isto também - insiste a minha mãe.
Saímos do armário das roupas e entramos novamente no quarto da Faith. As palavras que os psiquiatras utilizaram para me descrever em Greenhaven andam às voltas na minha cabeça: "compulsiva e idealista, sensível à rejeição, com falta de autoconfiança, com tendência a compensar em exagero e a exagerar os acontecimentos negativos."
- Ela devia ter outra pessoa como mãe. Uma pessoa que fizesse bem estas coisas.
A minha mãe ri.
- Ela tem-te a ti por alguma razão, querida. Espera e verás anunciando que vai buscar café para nós, dirige-se para a porta. Lá porque os outros pais conseguem ser flexíveis perante uma adversidade, não quer dizer que isso esteja certo. Aqueles que se sentem mais nervosos por poderem fazer asneiras, Mariah, são aqueles que se preocupam o suficiente para desejar que as coisas sejam perfeitas.
A porta fecha-se atrás dela com um suspiro. Sento-me na cama da Faith e percorro a borda do cobertor dela com a mão. "Se não posso ter o Colin, por favor, deixe-me ficar com ela", penso.
Não me apercebo de que falei em voz alta até a minha mãe entrar com o café.
- com quem estavas a falar? - coro, envergonhada por ser apanhada a negociar com um poder superior. Não se trata de acreditar em Deus. Quando era criança, a minha família não era muito religiosa; enquanto adulta, tudo o que tenho é uma dose saudável de cepticismo - e, aparentemente, o impulso de suplicar, apesar disso, quando preciso mesmo, mesmo de ajuda.
- com ninguém. Só com a Faith.
A minha mãe põe-me o café na mão. A chávena está tão quente que me queima a palma, e mesmo depois de a colocar em cima da mesa-de-cabeceira, a minha pele ainda me dói. Nesse momento, a Faith olha para mim e pestaneja.
- Mamã - diz ela numa voz rouca, e o meu coração pára: a sua primeira palavra em semanas é toda minha.
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Dois
Claro, há muita gente que acredita em Deus. Também havia muita gente que acreditava que o mundo era plano.
Ian Fletcher
in The New York Times, 14 de Junho de 1998
17 de Agosto de 1999
O Ian Flectcher está no meio do Inferno. Anda à volta do novo pano de fundo do cenário, passando a mão pelos canos do gás que produzirão as chamas e pelos cumes escarpados das rochas. Raspa um pouco com o polegar, pensando que o enxofre deixava muito a desejar.
- Está demasiado amarelo. Parece um círculo de druidas New Age.
O seu cenógrafo olha para o produtor associado.
- Sr. Fletcher, achava que isso do enxofre e das chamas estava relacionado com o olfacto.
- Olfacto? - repreende Fletcher. - O que quer isso dizer?
- É enxofre, Sr. Fletcher. Sabe, quando é queimado, tresanda, Ian lança um olhar ameaçador ao cenógrafo.
- Diga-me - diz ele num tom calmo, ameaçador -, para que serve um efeito especial relacionado com o olfacto num meio visual como a televisão?
O homem encolhe-se.
- Não sei, Sr. Fletcher, mas o senhor...
- Mas eu o quê?
- Queria chamas e enxofre, Ian - a voz vem da confusão de câmaras e microfones mesmo à esquerda. - Não culpe esse homem pelos seus próprios erros.
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Ao ouvir a voz do produtor executivo, Ian suspira e passa uma mão pelos seus espessos cabelos negros.
- Sabe, James, a única coisa que me pode levar a crer que afinal existe um poder superior é a forma como você consegue sempre aparecer no pior momento possível.
- Isso não se deve a Deus, deve-se à Lei de Murphy - James Wilton entra no círculo de enxofre e olha em volta. - É claro, se você redescobrisse a religião, isso seria uma forma de aumentar as audiências - entrega um fax a Ian com os últimos números das audiências.
- Bolas - diz Ian entre dentes. - Eu disse-lhe que a CBS não era a melhor escolha. Devíamos reiniciar as negociações com a HBO.
- A HBO não vai chegar-se a três metros de distância de si se continuar no último terço da tabela de audiências - James parte um pedaço de enxofre e leva-o ao nariz. - Então isto é que é enxofre, ha? Acho que sempre o imaginei como uma grande lareira negra.
Ian olha distraidamente para o novo cenário.
- Pois, bem. Vamos fazer um novo.
- Oh? - diz James secamente. - Será que devemos pagá-lo com o enorme bónus do seu patrocínio pendente- da Nike? Ou com a futura doação da Liga Cristã?
Ian semicerra os olhos.
- Não precisa de ser tão cínico. Sabe que há seis meses, quando fizemos os especiais, tivemos um share incrível para aquele horário.
James afasta-se do cenário, fazendo Ian segui-lo.
- Eram especiais. Talvez a atracção fosse essa. Talvez um programa semanal deixe de ser uma novidade - volta-se para Ian, com uma expressão séria. - Adoro aquilo que você faz, Ian. Mas os executivos da rede só estão a prestar atenção durante períodos de tempo excepcionalmente curtos. Tenho de lhes levar um sucesso tirando o fax da mão de Ian, James amachuca-o numa bola. - Sei que isso vai contra a sua natureza... mas agora seria uma boa altura para começar a rezar.
Embora inúmeros jornalistas já lhe tivessem perguntado, Ian Fletcher recusou-se a isolar os incidentes da sua vida que o levaram a deixar de acreditar em Deus. Na realidade, não só admitiu ter nascido não crente, como passou a ganhar a vida tentando convencer toda a gente de que todos nasciam não crentes e de que a fé era algo subtilmente ensinado a ser aceite - como o leite de vaca, ou ir
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à casa de banho - por ser socialmente aceitável. A religião, argumentava ele, era uma panaceia maravilhosa. A comparação extemporânea que Ian fazia dos católicos devotos com crianças pequenas que acreditavam que os Band-Aid só por si curavam as feridas foi calorosamente discutida nas páginas do The New York Times, da Newsweek e em Meet the Press. Perguntou por que razão os Judeus eram o Povo Eleito e, no entanto continuavam a ser alvo de perseguição. Perguntou por que razão os católicos eram os únicos que viam a Virgem Maria em fontes e brumas matinais. Perguntou como é que podia existir um Deus quando crianças inocentes eram violadas, mutiladas e mortas. Quanto mais abertamente falava, mais as pessoas desejavam ouvi-lo. Em 1997, o seu livro, Deus Quem?, ficou vinte semanas no primeiro lugar da lista de bestsellers do The New York Times na categoria de não ficção. Tornou-se um convidado habitual na casa de Steven Spielberg e foi convidado para participar nas mesas redondas da Casa Branca e nos grupos formados para abordar uma variedade de assuntos culturais. Naquele Julho, um número da revista People com Ian Fletcher na capa esgotou-se em vinte e quatro horas. Um discurso no Central Park atraiu mais de cem mil espectadores. E em Setembro de 1998, Ian Fletcher reuniu-se com executivos da televisão, tornando-se no primeiro ateu mediatizado do mundo.
Formou uma empresa - Pagan Productions - inspirou-se nos Reverendos Billy Graham e Jerry Falwell e depois criou um programa de televisão. Enormes ecrãs de televisão atrás dele transmitiam imagens de destruição em massa - bombas, minas, guerras civis enquanto o sotaque sulista inconfundível e enérgico de Ian desafiava o conceito de uma entidade superior, plena de amor, que deixava que as coisas chegassem a este ponto. Atraiu muitos seguidores e cultivou uma reputação de Porta-Voz da Geração do Milénio - aqueles americanos cínicos que não tinham tempo nem vontade de confiar o seu futuro a Deus. Ian era firme nas suas convicções, impetuoso e obstinado, o que o fez conquistar o sector da população entre os dezoito e os vinte e quatro anos de idade. Tinha formação universitária - um doutoramento em Teologia de Harvard - o que captava as atenções das pessoas na faixa dos quarenta aos sessenta anos. Mas o maior atributo de Ian Flatcher - aquele que o tornava estimado pelas mulheres de todas as idades e fazia com que fosse naturalmente dotado para o pequeno ecrã - era sem dúvida o facto de ser belo como o pecado.
Passadas duas horas, Ian entra intempestivamente no gabinete do seu produtor executivo.
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- Já sei! - diz ele numa voz rouca, ignorando a forma como James lhe faz sinal para estar calado, visto estar a falar ao telefone.
- É perfeito. Vai fazer de si um homem muito rico.
Ao ouvir isso, James volta-se para Ian.
- Já volto a ligar-lhe - diz ele para o auscultador e desliga o telefone. - Está bem, sou todo ouvidos. Qual é o grande plano?
Os olhos intensamente azuis de Ian brilham, e as mãos estão ocupadas a traçar e a pontuar o seu entusiasmo. Parece exactamente o tipo de orador irado e apaixonado que atraiu a atenção de James antes de tudo, como a voz de um país espiritualmente perdido.
- O que faria você se fosse um tele-evangelista dos estados do sul e as suas audiências caíssem a pique?
James pondera sobre isto.
- Dormia com a minha secretária ou extorquia dinheiro, Ian revira os olhos.
- Errado. Fazia uma digressão com o seu programa.
- Numa caravana?
- Porque não? - diz Ian. - Pense nisso, James. Os pregadores no início do século passado construíram congregações através de reuniões para fazer reviver o espírito de comunidade. Montavam uma tenda no meio do nada e fizeram milagres.
James semicerra os olhos.
- Não consigo imaginá-lo numa tenda, Ian. A sua ideia de "tornar as coisas mais rudes" é instalar-se no The Four Seasons em vez de no The Plaza.
Ian encolhe os ombros.
- Alturas de desespero requerem medidas desesperadas. Vamos misturar-nos com as massas, meu amigo. Vamos dar origem ao primeiro movimento anti-revivalismo religioso do mundo.
- Se os espectadores não o sintonizam em casa, Ian, porque haveriam de sintonizá-lo no Cu de Judas, no Kansas?
- Não está a perceber? Essa é a questão. Em vez de fazer os aleijados largarem as muletas e devolver a visão aos cegos, vou desmascarar embustes. vou desfazer em bocados todos estes pretensos milagres. Você sabe, vou a Lourdes acompanhado por cientistas para provar que aquela estátua não está a chorar lágrimas, é apenas condensação. Ou descobrir a razão médica para explicar por que razão é que um tipo que esteve em coma durante dezanove anos de repente acorda de boa saúde - inclina-se para a frente, com um sorriso de orelha a orelha. - As pessoas acreditam em Deus por não terem outra explicação para as coisas que acontecem. Eu posso mudar isso.
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James sorri, devagar.
- Sabe - admite ele -, isso de facto não é uma má ideia.
Ian agarra no jornal que está no canto da secretária de James. Atira uma secção ao seu produtor e depois tira uma para si próprio e abre as páginas, como as asas de uma grande ave.
- Telefone à sua secretária e mande-a ir ao quiosque dos jornais. Precisamos do Globe, do Post, do L.A. Times - ordena Ian. Alguém viu o rosto de Jesus na sua pizza ontem à noite ao jantar. Agora só nos resta encontrá-lo.
30 de Agosto de 1999
Colin White está sentado de fato e gravata num banco do parque infantil, a observar as mães e as avós perseguirem crianças pequenas por baixo da estrutura de ferro. A sua sanduíche de salada de ovo permanece embrulhada na película aderente, intacta. Sem sequer dar uma dentada, amachuca-a numa bola e volta a metê-la no saco de papel castanho do pronto-a-comer. v
Aquela menina, que está nas barras de ferro, parece-se um pouco com a Faith. Os mesmos cabelos encaracolados, embora num tom mais escuro. Está sempre a chegar ao terceiro ferro, e depois larga-se e cai no chão. Colin lembra-se de Faith fazer o mesmo: treinando e treinando até conseguir atravessar. Deseja aproximar-se, mas sabe que não pode fazê-lo. Actualmente, isso apenas faria com que parecesse um pedófilo, e não um homem que simplesmente tem saudades da filha.
Passa as mãos pelos cabelos. Onde estaria ele com a cabeça? A resposta era em lado nenhum, fora inconsciente ao trazer a Jessica para casa naquela tarde. Uma aula de ballet não é um dado adquirido-, já devia saber que a Faith e a Mariah podiam chegar a casa inesperadamente. Três semanas depois, ainda consegue lembrar-se de cada pormenor das expressões estampadas nos rostos de Faith e Mariah quando a Jessica saiu da casa de banho. Ainda se lembra de como a Faith olhou para ele como se lhe lesse os pensamentos quando finalmente a apanhou no quarto, como se tivesse idade suficiente para saber que as desculpas que ele estava a arranjar eram transparentes.
Também tinha magoado a Mariah, mas por outro lado, viver com uma mulher que se recusava a aceitar que o casamento deles tinha algum problema faria perder a paciência a um santo. De cada vez que ele tentava obrigar Mariah a enfrentar os factos, saía
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abalado, receando chegar a casa e encontrá-la a tentar suicidar-se. De início, tinha começado a sair com a Jessica apenas para ter alguém com quem desabafar.
E agora ama-a.
Colin fecha os olhos. É uma enorme confusão.
A menina nas barras de ferro acaba de se balançar na última barra e aterra a poucos metros de Colin, levantando uma nuvem de poeira com os pés.
- Oh - diz ela, sorrindo para ele. - Desculpe.
- Não faz mal.
- Pode apertar-me os atacadores?
Colin sorri. Pelo menos uma coisa ele aprendeu sobre as crianças pequenas: para elas, os adultos são permutáveis. Qualquer pessoa com idade para ser pai pode ser abordada para tratar destes assuntos. Debruça-se sobre os atacadores das sapatilhas dela, apercebendo-se mais de perto que ela é mais nova do que a Faith, mais pesada, inegavelmente diferente.
A menina sobe a curta escada na ponta das barras de ferro.
- Veja lá - grita ela, ingenuamente orgulhosa. - Desta vez vou fazer bem.
Colin dá por si a suster a respiração enquanto a criança se balança com o braço esquerdo e depois com o direito, agarrando nas barras de ferro e cerrando os dedos sobre elas, apesar de ser uma distância improvável, apesar de ser certo que ficará magoada. Ele continua a ver, até ter a certeza de que a criança atravessou em segurança para o outro lado.
Para uma criança de sete anos, ela sabe muitas coisas. Sabe que as lagartas da borboleta-monarca vivem nas pregas das folhas das asclépias, que as calças justas nunca são tão justas como as leggings, que "Vamos ver" significa sempre "Não". Aprendeu o suficiente sobre o mundo para saber que é um sítio de adultos, e que a única forma de deixar a sua marca é falar no final das frases deles e agir de forma tão semelhante à deles que eles reparem. Sabe que assim que adormecer, os olhos cosidos do seu ursinho de peluche abrem-se. Sabe que a verdade pode causar uma dor aguda por trás dos olhos e que o amor às vezes parece um punho em volta da garganta.
Também sabe, embora todos tenham o cuidado de lhe ocultar esse facto, que ainda se fala dela. Faith já veio do hospital para casa há três dias, embora não se sinta confortável para vestir uma camisola. De cada vez que o faz, sente que os golpes se abrem e
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sangram e fica preocupada porque no Inverno ou morrerá congelada ou então esvair-se-á em sangue.
Durante o dia, a avó vem para jogar ao peixinho, e não se rala nada que a Faith esteja só de calções. A mãe fica sentada no sofá a olhar para as costas da Faith quando pensa que ninguém está a ver, como se ela não conseguisse sentir o peso do seu olhar. Quando a avó se vai embora depois do jantar, por vezes têm conversas com grandes espaços em branco, de forma que parece que se passam horas entre as frases que Faith e a mãe dizem.
Esta noite, a Faith está a debicar as ervilhas que tem no prato ao jantar quando soa a campainha da porta. A avó ergue as sobrancelhas, e a mãe encolhe os ombros. Elas são assim, são capazes de falar sem dizer uma palavra, por se conhecerem tão bem uma à outra. Porém, com a Faith e a mãe há um tipo diferente de silêncio, que surge por não se conhecerem uma à outra. Faith observa a mãe dirigir-se para a porta de entrada, e assim que deixa de a ver, pega numa garfada de ervilhas e esconde-as debaixo da coxa.
- Oh - a voz da mãe está cheia de ar e de luz. - Chegaste mesmo a tempo para jantar.
- Não posso ficar - Faith ouve o pai responder. Fica tensa, sente as ervilhas estalar debaixo da perna. Viu o pai apenas uma vez desde Aquele Dia. Apareceu no hospital com um grande urso de peluche que era o mais feio que ela já tinha visto, e durante todo o tempo em que lhe segurava na mão e falava com ela imaginava aquela senhora que tinha saído da casa de banho como se lá vivesse. Ela não sabe por que é que a mulher estava a tomar um duche a meio da tarde, ou porque é que isso fez a sua mãe chorar. Sabe apenas que tudo aquilo tinha uma cor, como os rabiscos de um lápis de cera que se descontrolaram numa folha de papel - o mesmo azul-escuro que por vezes imaginava quando estava deitada na cama e conseguia ouvir, através das paredes, os pais discutir.
O pai entra na cozinha e beija-a na testa.
- Olá, docinho! - finge não estar a olhar para as costas dela, da mesma maneira que a mãe. - Como é que está a minha coisa doce? - Faith fica a olhar para ele e interroga-se porque é que ele só lhe chama nomes relacionados com comida.
- Por amor de Deus, Mariah! - a avó levanta-se. - Como é que foste capaz de o deixar entrar?
- Tive de o fazer, pela Faith. A avó assopra.
- Pela Faith. Pois - aproxima-se do pai de Faith e por uns segundos ela interroga-se se a avó não irá dar-lhe um soco naquele
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preciso momento. Mas limita-se a espetar-lhe um dedo de lado. Adeus, Colin. Não precisamos de ti aqui.
- Não se meta, está bem, Millie?
A mãe aparece novamente com um prato.
- Toma - diz ela animada. - Não há problema nenhum.
- Mariah, não posso ficar. Já te tinha dito.
- É apenas um jantar...
- Tenho outros planos.
- Podias cancelá-los. Seria bom para a Fait...
- A Jessica está à espera no carro - diz o pai numa voz tensa.
- Está bem?
Faith afasta-se rapidamente da voz do pai, abrigando-se debaixo do braço da avó. A mãe deixa-se cair numa cadeira, o prato cai ruidosamente de forma que as ervilhas se espalham sobre a mesa como bolinhas. O maxilar do pai move-se de forma estranha, sem sair nenhuma palavra. Por fim diz:
- Só queria ver a minha filha. Desculpa - depois toca no ombro de Faith e vai embora.
- Meu Deus, mãe! Tinhas de dizer aquilo?
- Tinha! Já que tu não dizias!
- Não preciso da tua ajuda - diz a mãe-de Faith, levando as mãos à cabeça. - Vai-te embora.
Faith começa a entrar em pânico. Também não queria que o pai estivesse ali, mas era só porque sabia que ia acabar numa cena daquelas. Uma vez na escola a professora tinha enchido uma tigela com água e deitado pimenta em cima. Depois colocou detergente para lavar a loiça de um lado, e a pimenta voou pelos ares. Por alguma razão, quando Faith se lembra da mãe e do pai, ocorre-lhe sempre isso também.
- Faith - diz a avó -, talvez fosse melhor dormires em minha casa esta noite.
A mãe abana a cabeça.
- Nem pensar. Ela fica aqui.
- Óptimo!
Faith tenta perceber o que tem aquilo de óptimo. Ela quer ir para casa da avó. A mãe vai limitar-se a deambular tristemente pela casa e meter uma cassete no vídeo para ela ver. Em casa da avó, pode dormir no quarto dos hóspedes, com a enorme máquina de costura preta ao canto, a caixa de botões e a pequena caixa de torrões de açúcar em cima da mesa-de-cabeceira.
Mas a avó já está a despedir-se e a mãe está a falar entre dentes sobre isso ser contraproducente e ficam apenas as duas, com os
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pratos todos em cima da mesa. Durante bastante tempo, Faith observa a mãe. Está sentada com a cabeça apoiada nas mãos, tão imóvel que Faith acha que adormeceu. Sem saber o que dizer ou fazer, Faith espeta-lhe um dedo.
- Queres jogar um jogo?
Quando a mãe olha para cima, Faith pensa que nunca viu nada tão triste na sua vida. A não ser talvez uma tartaruga no zoo de San Diego há dois Verões, que tinha erguido a sua enorme cabeça e ficado a olhar directamente para Faith, desejando que ela a ajudasse a regressar ao sítio de onde viera.
A voz da mãe é débil e insegura.
- Não posso - sai da sala, deixando Faith para trás interrogando-se, mais uma vez, que palavras mágicas seriam capazes de manter a sua mãe por perto.
Mariah sempre acreditou que devia haver uma estrutura de apoio para os infelizes no amor, à semelhança dos Alcoólicos Anónimos, dedicada a ajudar aqueles que ficam diminuídos por terem corações despedaçados. "De certeza que somos suficientes", pensa ela, pessoas que podiam beneficiar de um sistema de apoio nos momentos em que apanhamos o nosso amor com o braço em volta de outra mulher, ou quando ele telefona mas não deseja falar connosco, ou quando vemos nos seus olhos que já começou a esquecer-nos. Imagina ter o nome de um bom Samaritano que está disposto a falar ao telefone como uma amiga do sétimo ano, a desenhar um alvo com o rosto dele ao meio, a fazer passar a dor.
Mas em vez disso, fica a olhar para o pequeno cartão com o número do pager do psiquiatra. Não deve telefonar a menos que se trate de uma emergência, o que no caso dela provavelmente significaria um desejo profundo de cortar os pulsos ou enforcar-se no varão do roupeiro. Deseja falar com alguém, mas não sabe com quem. A mãe é a sua melhor amiga, mas acabou de mandar Millie embora. As outras mulheres que conhece têm maridos que trabalham com Colin; são casais que provavelmente vão jantar fora com o Colin e a Jessica. Sente alguma coisa amarga subir por trás da garganta. Não lhe parece justo que aquela mulher fique com o seu marido, com as suas amigas, com a sua antiga vida.
Mariah tem muito que fazer. Devia ver como a Faith está, dar-lhe os antibióticos, mudar o penso por cima dos pontos antes de ela ir para a cama. Devia telefonar à mãe para pedir desculpa. No mínimo, devia levantar a mesa do jantar.
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Em vez disso dá por si a olhar para a cama. Durante toda a noite imagina que cai nas depressões e vales do colchão, como se o Colin e a Jessica tivessem literalmente deixado as suas marcas. Deita a colcha para trás e faz um ninho no chão. Amontoa os lençóis por cima e deita-se, imaginando o rosto de Colin como outrora o fizera na sua cama no dormitório da universidade. Fica absolutamente imóvel, ignorando as lágrimas que chegam sem aviso, como um géiser, uma nascente quente com o poder de curar.
A mãe está a chorar, Faith sabe, tanto que não consegue respirar. É um som baixo, mas mesmo assim tão difícil de bloquear com uma almofada como as discussões dos pais costumavam ser. Também a faz ter vontade de chorar. Faith pensa em telefonar à avó mas lembra-se de que a avó desliga o telefone às sete da tarde para evitar os operadores de telemarketing. Enrosca-se em cima da cama, sem camisola, abraçada ao velho urso que cheira a champô Johnson s para bebé.
Permanece assim durante muito tempo, e depois sonha com uma pessoa com uma camisa de noite branca que está sentada à sua frente. Imediatamente - avisaram-na acerca dos estranhos - retrai-se.
- Faith - diz a pessoa. - Não precisas de ter medo. Longos cabelos escuros, olhos escuros e tristes.
- Eu conheço-a?
- Queres conhecer?
- Não sei - Faith deseja desesperadamente tocar na camisa de noite daquela estranha. Nunca viu nada assim. Parece tão macia que podíamos cair nela e nunca mais encontrar o caminho de volta. - É amiga da minha mãe?
- Sou a tua guardiã.
Faith fica a pensar nisso por um momento, reflectindo se alguém que nunca viu poderá ou não entrar na sua vida sem que ela se apercebesse.
- com quem estás a falar? - de repente a mãe de Faith está à entrada da porta, com os olhos vermelhos e inchados e segurando um tubo de Bacitracina na mão.
Sobressaltando-se, Faith olha em volta para o quarto, mas a estranha e o sonho desapareceram.
- com ninguém - diz ela, e depois vira-se para que a mãe possa tratar dos pontos.
Passadas duas noites, Mariah acorda sobressaltada. Caminha descalça pelo corredor, sabendo que a Faith desapareceu mesmo antes de lá chegar.
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- Faith? - sussurra. - Faith! - Arranca a colcha da cama vazia e procura dentro do roupeiro. Espreita para dentro da casa de banho e depois desce as escadas ruidosamente para ver na sala dos brinquedos e na cozinha. Nessa altura já tinha a cabeça a latejar e as palmas das mãos húmidas. - Faith - grita ela -, onde estás?
Mariah lembra-se das histórias que leu no jornal, de crianças que foram raptadas nas suas próprias casas a meio da noite. Imagina cem terrores diferentes que estão mesmo ao fundo da via de acesso à casa. Depois vê um clarão prateado pela janela.
Lá fora, no quintal, Faith rasteja cuidadosamente pela trave que forma a parte de cima dos baloiços, a três metros de altura. Já tinha feito aquilo, como uma gata, e tinha aterrorizado Mariah, que tinha a certeza de que ela ia cair.
- Importas-te de me dizer o que estás a fazer aqui fora a meio da noite? - diz Mariah num tom suave, para não a assustar.
Faith olha para baixo, sem ficar surpreendida por ter sido apanhada.
- A minha guardiã disse-me para vir.
Entre todas as coisas que Mariah estava à espera de ouvir, não se encontrava aquela.
- A tua quê .
- A minha guardiã.
- Que guardiã?
- A minha amiga - Faith sorri, tonta com a verdade daquela afirmação. - Ela é minha amiga.
Mariah tenta lembrar-se dos rostos das coleguinhas da Faith. Mas nenhuma delas as veio visitar desde que o Colin se foi embora, visto que as famílias aderiram à tradição da Nova Inglaterra de não se meterem nos problemas dos outros, por poderem ser contagiosos.
- Ela vive aqui perto?
- Não sei - diz Faith. - Pergunta-lhe.
De repente, Mariah sente uma picada no peito. Desde que esteve em Greenhaven visualiza a sua mente como uma sucessão de peças de dominó de vidro, susceptíveis de serem derrubadas com uma lufada de ar na direcção certa. Interroga-se se a dissociação da realidade será transmitida geneticamente, como a cor dos cabelos ou a tendência para engordar.
- A... a tua amiga está aqui agora? Faith assopra.
- O que é que achas? Uma pergunta com rasteira.
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- Sim?
Faith ri-se e senta-se, montada na trave e balançando os pés.
- Desce antes que te magoes - repreende Mariah.
- Não vou magoar-me, a minha guardiã disse-me.
- Que bom - diz Mariah entre dentes, subindo para um dos baloiços para poder segurar na filha. Ao aproximar-se, consegue ouvir Faith cantarolar baixinho a canção "Pop Góes the Weasel":
- "But the fruit o-of the tree... which is in the mid-dle of the garden..."1
- Lá para dentro - diz Mariah num tom autoritário. - Já.
Só quando a filha está deitada na cama é que Mariah se apercebe, pela primeira vez desde o acidente no circo, de que as costas de Faith já estão suficientemente saradas para vestir uma camisa de noite.
Tirando a Barbie careca, Faith gosta de brincar com os brinquedos que estão no consultório da Dr.a Keller. Há luvas de basebol Koosh, e uma casa de bonecas, e lápis de cera em forma de patinhos, porquinhos e estrelas. A Barbie, porém, causa-lhe arrepios. Tem pequenos buracos onde o cabelo devia estar, e não parece bater certo. Faz lembrar a Faith aquela vez em ,que deixou cair uma boneca Baby Go Potty e o peito dela se abriu para revelar uma engrenagem e pilhas em vez do livro de histórias no lugar do coração que ela tinha imaginado.
No entanto, Faith gosta de ir às consultas da Dr.a Keller. Pensava que talvez tivesse de levar injecções ou até mesmo de fazer aquele exame em que nos enfiam aquele cotonete mesmo comprido pela garganta abaixo, mas a Dr.a Keller limita-se a ficar a observá-la brincar, e às vezes faz-lhe perguntas. Depois Faith vai para a sala onde a mãe está à espera, e até pode brincar ainda mais tempo sozinha.
Hoje, a Dr.a Keller está sentada numa cadeira, escrevendo no seu bloco de notas. Faith agarra num fantoche, com uma coroa de rainha, e depois deixa que lhe escorregue da mão. Enfia as mãos dentro da caixa cheia de lápis de cera e deixa que as cores lhe escorreguem pelos dedos. Depois atravessa a sala e fica a olhar para a Barbie careca. Agarra nela e leva-a para a casa de bonecas.
Não é uma casa de bonecas requintada, como as que a mãe faz, mas isso não é assim tão mau. Sempre que Faith se aproxima demasiado de uma das casas de bonecas da mãe, gritam com ela, e
1 "Mas a fruta da árvore... que está no meio do jardim..." (N. da T.)
  
se consegue tirar cá para fora uma cadeira minúscula ou tocar com um dedo num tapete entrançado em miniatura, acha sempre que vai parti-lo só de respirar de maneira errada. Esta casa de bonecas de plástico da Dr.a Keller foi sem dúvida feita para crianças, sem dúvida para alguém brincar. E não apenas para se ver.
O Ken e outra Barbie, com cabelo, estão amontoados na casa de banho minúscula da casa de bonecas. O Ken está com a cabeça virada para a sanita. Faith agarra nele e leva-o para o quarto. Junta-o à Barbie com cabelo, segurando-a com força. Depois agarra na Barbie careca e encosta-a à parede do quarto, a observar.
A Dr.a Keller arrasta a cadeira para junto da casa de bonecas.
- Há muita gente nesse quarto. Faith olha para cima.
- É um pai e uma mãe e outra mãe.
- Duas mães?
- Pois. Esta - toca na boneca que está nos braços do Ken - é a que beija.
- Então e a outra?
Faith acaricia suavemente a cabeça careca da segunda Barbie.
- Esta é a que chora.
- Estás o quê?
Jessica fica desanimada, e imediatamente Colin sabe que cometeu outro erro.
- Achei que ias ficar contente - diz ela, e depois começa a chorar. Por mais que se esforce, Colin não sabe o que há-de fazer. Tem
a certeza de que Jessica está à espera que ele faça ou diga alguma coisa apropriada, mas só consegue lembrar-se de um momento há anos, quando os médicos em Greenhaven lhe disseram que o teste de gravidez de Mariah tinha dado um resultado positivo. Passado um momento, envolve Jessica nos braços.
- Desculpa. Eu estou contente. Jessica ergue o rosto.
- A sério? - tem a voz trémula. Colin acena com a cabeça.
- Juro.
Ela vira-se nos seus braços e enrosca-se em volta dele como uma liana.
- Eu sabia que ias dizer isso. Sabia que ias encarar isto como uma segunda oportunidade.
"Para quê?", pensa ele, e então apercebe-se de que ela está a referir-se a uma família. Sorri-lhe, através da constrição súbita da
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garganta. Os olhos de Jessica brilham enquanto agarra na sua mão e a coloca sobre a sua barriga plana.
- Imagino com quem se parecerá - diz ela num tom suave. Colin tenta visualizar o rosto da criança que eles podem ter
gerado. Fecha os olhos, mas só consegue ver Faith.
Mariah endireita-se com um gemido, depois de ter acabado de apertar os atacadores das sapatilhas de Faith com dois nós. É quinta-feira, dia de aspirar, entregar livros na biblioteca, comprar milho fresco no mercado e, ultimamente, para desilusão de Faith, da consulta com a Dr.a Keller.
- Pronto. Vamos embora.
- Mamã - diz Faith -, também tens de apertar os dela. Suspirando, Mariah volta a agachar-se e finge apertar os sapatos da amiga imaginária de Faith.
- Mamã... ela tem fivelas.
Passado um momento, Mariah levanta-se.
- Já estamos prontas? - passa à frente da filha, agarra na mala e abre a porta de entrada. Quando Faith sai lá para fora, Mariah espera um momento, para que a guardiã dela também possa sair pela porta.
Um sorriso assoma no rosto de Faith, e ela dá a mão a Mariah a caminho do carro.
- Ela diz obrigada.
Mariah nunca teria escolhido a Dr.a Keller para ser a sua psiquiatra. Em primeiro lugar, é tão organizada que Mariah dá sempre por si a verificar se terá deixado alguma coisa no carro - as chaves, a carteira, a confiança. E a Dr.a Keller também é bonita - jovem, com cabelos do tom intenso do dorso de uma raposa e pernas que se lembra sempre de cruzar. Mariah aprendeu há anos que não desejava falar com alguém assim. O Dr. Johansen era mais apropriado para ela - baixo, com um ar cansado, suficientemente humano para que Mariah não se importasse de lhe revelar as suas falhas. Mas fora o Dr. Johansen que sugerira que Faith consultasse alguém para a ajudar a compreender o divórcio. Mariah queria que Faith consultasse o Dr. Johansen, mas ele não tratava de crianças. Recomendou a Dr.a Keller, e até tinha telefonado para o consultório para ajudar Mariah a marcar uma consulta rapidamente.
Mariah não quer admitir, nem mesmo para si própria, que é responsável pelas alucinações de Faith. Afinal, os médicos em Greenhaven disseram que não podiam ter a certeza de que o bebé
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que estava dentro dela não teria sido afectado pelo Prozac. E não eram capazes de dizer como.
Mariah obriga-se a olhar para a Dr.a Keller.
- Estou preocupada com esta amiga imaginária.
- Não esteja. É absolutamente normal. Saudável, até. Mariah ergue as sobrancelhas.
- É saudável e normal falar com uma pessoa que não está ali?
- Sem dúvida. A Faith criou uma pessoa para lhe dar apoio emocional vinte e quatro horas por dia - a Dr.a Keller tira uma folha de papel de desenho do ficheiro de Faith. - Ela chama guardiã a esta amiga, o que apenas reforça o comportamento: agora tem alguém que a protege, para que isto não volte a acontecer.
Mariah agarra na folha e sorri com o desenho simples de uma menina loira. É Faith - percebe pelo vestido roxo com flores amarelas, que Faith vestiria todos os dias se lhe dessem oportunidade. Desenhou tranças no cabelo como cobras cheias de sol, e dá a mão a outra pessoa.
- Esta é a amiga dela - diz a Dr.a Keller. Mariah fica a olhar para a figura.
- Parece o Casper, o Fantasma Amigo.
- É bem possível que seja. Se a Faith estiver a invocar uma imagem mental desta pessoa, provavelmente será algo que já viu num sítio qualquer.
- O Casper com cabelos - corrige Mariah, percorrendo com o dedo o corpo branco flutuante e o capacete castanho em volta do rosto. - Que guardiã!
- O que é importante é que está a resultar, para a Faith. Mariah respira fundo e salta para o abismo.
- Como é que sabe que está a resultar? - pergunta com voz suave. - Como é que sabe que esta amiga não é uma pessoa que ela ouve dentro da cabeça?
A Dr.a Keller reflecte por um momento. Mariah interroga-se o que saberá ela sobre a sua própria hospitalização, o que lhe terá revelado o Dr. Johansen.
- Em primeiro lugar, eu não diria que se trata de uma alucinação. Isso sugeria que a sua filha estava a ter episódios psicóticos, e a senhora não indicou nenhumas alterações comportamentais que me levem a acreditar nisso.
- Que tipo de alterações? - pergunta Mariah, embora saiba muito bem quais são.
- Alterações radicais. Dificuldades em adormecer. Períodos de apatia. Agressividade. Alterações nos hábitos alimentares. Andar
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pela casa às três da manhã dizendo que a amiga lhe disse para trepar para o telhado da casa.
Mariah lembra-se de Faith rastejando por cima dos baloiços a meio da noite.
- Não - mente Mariah -, não houve nada do género. A Dr.a Keller encolhe os ombros.
- Então não se preocupe com isso.
- Mas... e se ela quiser que a amiga se deite na cama dela? Ou coma à mesa?
- Entre no jogo. Não dê importância e a Faith acabará por se sentir suficientemente segura para se deixar disso.
"Baixar a guarda", pensa Mariah, e quase sorri.
- vou falar com ela novamente acerca desta amiga, Sr.a White. Mas francamente, já vi cem casos destes. Noventa e nove dessas crianças ficaram completamente recuperadas.
Mariah acena com a cabeça, mas está a imaginar o que terá acontecido à outra.
Colin sorri para o vice-presidente executivo de uma cadeia de lares.
- Isto só demora um minuto - diz ele, e sai do gabinete descontraidamente para procurar no porta-bagagem do carro. É difícil enumerar as qualidades de um maldito sinal de saída quando lança faíscas assim que é ligado à corrente. Felizmente, Colin tem um sobresselente no porta-bagagem; pode atribuir o defeito do outro às ligações eléctricas deficientes feitas na fábrica de Taiwan.
A amostra está enfiada dentro de uma caixa. Rangendo os dentes, Colin mete a mão de lado, tentando sentir um fio eléctrico denunciador, e depois sobressalta-se ao retirar o que afinal é um pequeno gancho de cabelo.
Não imagina como é que ele foi parar dentro da sua caixa de amostras. Lembra-se da última vez que viu Faith usá-lo, com reflexos prateados nos seus cabelos claros. Ela guarda os ganchos e os elásticos para prender o cabelo numa velha caixa de charutos que o avô de Colin uma vez lhe tinha dado.
Esquecendo o Vice-Presidente do lar, esquecendo o sinal de saída que está agora pendurado da caixa como um andróide avariado, Colin passa com o polegar pela borda do gancho.
Foi ao obstetra com a Jessica. Ouviu o bater do coração do novo bebé. Mas é muito difícil fingir que está entusiasmado com esta criança por nascer, quando complicou de tal forma as coisas com aquela que já tem.
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Tentou telefonar-lhe, e uma vez até a observou no recreio da escola à distância, mas afasta-se antes de estabelecer contacto. A verdade é que não sabe o que há-de dizer. De cada vez que acha que tem uma boa desculpa, lembra-se de como Faith ficou a olhar para ele no hospital depois do acidente no circo - silenciosa e acusadora, como se mesmo com a sua pouca experiência soubesse que ele não estava à altura. Colin sabe que ser pai não é nenhum anúncio da AT T, nenhum acto simples de lançar uma bola através de um relvado ou fazer uma trança no cabelo. É saber a letra toda de Goodnight Moon. É chegar junto dela a meio da noite numa fracção de segundo antes de a ouvir cair da cama. É vê-la rodopiar de tutu e deixar os pensamentos saltar ao longo dos anos para a imaginar a dançar no seu casamento.
É mantermos a ilusão de ter a vantagem, embora tivéssemos ficado impotentes desde a primeira vez em que ela nos sorriu do ninho formado pela curva do nosso braço.
Ultimamente tem pensado tanto em Faith que não consegue imaginar como é que ela lhe saiu da cabeça o tempo suficiente para o deixar cometer o erro monumental de levar Jessica para a sua própria casa.
Colin suspira profundamente. Ama Jessica, e ela tem razão - é altura de se reinventar a si próprio. Portanto, faz uma promessa silenciosa: desta vez será um pai melhor, para se assegurar de que Faith receba os benefícios deste novo começo. Diz para consigo próprio que assim que endireitar a sua própria vida, voltará para ir buscar Faith. Irá recompensá-la.
- Sr. White - diz o vice-presidente do lar impaciente à soleira da porta. - Podemos continuar?
Colin vira-se, enfia o gancho no bolso. Agarra na nova amostra e lança-se com naturalidade numa diatribe sobre a sua energia e poupanças monetárias, interrogando-se sempre como é que uma pessoa que ganha a vida a ajudar as pessoas a escaparem em segurança não consegue, por muito que tente, encontrar uma saída.
6 de Setembro de 1999
Millie Epstein agarra na sua Coca-Cola Diet e instala-se ao lado da filha no sofá da sala.
- Bem, considera isso uma bênção. Ela podia ter imaginado um soldado britânico com um grande capacete peludo como seu
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guardião, e depois queixar-se de que ele não cabia no banco de trás do carro.
Mariah gira a sua lata de refrigerante por cima da testa.
- Ela deve começar as aulas na semana que vem, E se os outros miúdos fizerem troça dela?
- É com isso que te preocupas? Sinceramente, Mariah. Ela tem sete anos. Na semana que vem já nem sequer se vai lembrar disto.
Mariah passa o lábio pela aresta aguçada da lata de refrigerante.
- Eu lembrava-me - diz em voz baixa. A mãe ergueu-se prontamente.
- Tu não tinhas nenhum problema. O Colin fez-te acreditar que estavas alienada quando estavas apenas um pouco adoentada.
- Foi uma depressão clínica, mãe.
- O que não é a mesma coisa que pensar que um extraterrestre está a transmitir mensagens de rádio para o teu cérebro.
Mariah remexe-se no sofá.
- Nunca disse que era esquizofrénica.
- Querida - Milhe toca no ombro da filha. - Também tiveste um amigo imaginário quando tinhas cinco anos. Um rapaz chamado Wolf, que dizias que dormia aos pés da tua cama e que te tinha dito para evitar os legumes a todo o custo.
- E isso deve fazer com que me sinta melhor? - a cabeça de Mariah está a começar a latejar. Agarrando no comando, liga a televisão da mãe. Só está a dar telenovelas, que ela não suporta, um filme comercial e um programa da Martha Stewart. Passa pelos canais menos vistos da parabólica e fica numa comédia vendida directamente às estações de televisão independentes.
- Não, volta atrás - Millie agarra no comando. - Gosto de ouvir o sotaque dele.
Mariah franze o sobrolho diante do programa antievangélico de Ian Fletcher, observando-o pavonear-se como um cínico convencido. Sotaque, ha! Provavelmente aprendeu-o com um treinador vocal. Nunca compreendeu a atracção filosófica que este homem exercia nas massas, mas por outro lado, nunca esteve suficientemente interessada em religião para desejar considerar a alternativa dele.
- Penso que as pessoas o ouvem porque acham que se ele continuar a falar impudentemente. Deus vai lançar um raio durante a transmissão em directo e deixar que o mundo assista enquanto ele arde.
- Isso é um comentário muito ao estilo do Antigo Testamento
- Millie carrega no botão para tirar o som. - Talvez te lembres mais da escola hebraica do que eu pensava.
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Mariah pestaneja.
- Eu frequentei a escola hebraica?
- Durante um dia. O teu pai e eu pensámos em tentar ser convencionais no teu caso. Os teus amigos iam à catequese, por isso...
- Millie ri-se. - Chegaste a casa e disseste que preferias ir ao ballet.
Isso não surpreende Mariah. Quando era criança as suas crenças religiosas eram puramente sociais, era o tipo de judia cuja família frequentava o templo apenas nos Dias Santos, e mesmo assim era só para ver como as outras pessoas estavam vestidas. Mariah lembra-se de ver o Pai Natal no centro comercial e desejar poder sentar-se ao colo dele. Lembra-se de como no dia de Natal, quando o resto do mundo estava a celebrar, a sua família ia jantar ao restaurante chinês e depois ia ver um filme, onde eram as únicas pessoas no cinema.
Não foi nenhuma surpresa para ninguém quando ela se casou com um membro da comunidade episcopal.
Mariah não se lembra das aulas de ballet, mas apercebe-se de que embora ainda consiga posicionar os pés nas cinco posições básicas, teria bastantes dificuldades em recitar os Dez Mandamentos.
- Não sabia...
- Oh! - exclama Millie. - Isto é a grande digressão dele! A que vai fazer por toda a América! Na terça-feira esteve em New Paltz.
Mariah ri-se.
- New Paltz tem um grande número de ateus?
- Pelo contrário. Esteve lá porque uma igreja alegou ter uma estátua que sangrava. Afinal era um depósito calcário ou algo do género.
Uma fileira de caracteres surge no fundo do ecrã: HOULTON, MAINE, AO VIVO! A câmara dá um efeito panorâmico, mostrando T-shirts estampadas com O RAMO DA VIDA: a ÁRVORE DE JESUS. Depois fecha-se num primeiro plano de Ian Fletcher enquadrado na porta de uma caravana.
- Que homem lindíssimo - suspira Millie. - Olha para aquele sorriso.
Mariah não levanta os olhos do Guia de TV que está a ver.
- Pois, claro - diz ela. - Provavelmente está a divertir-se à grande.
Ian nunca esteve tão infeliz em toda a sua vida. Tem calor e está a suar, tem uma terrível dor de cabeça e está a prestes a detestar o Maine, senão toda a Nova Inglaterra. E o pior de tudo é que receia não ter um intervalo de descanso quando a emissão terminar. O produtor recusou-se a marcar-lhe uma reserva num hotel decente, dizendo que um homem que deseja fazer uma
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digressão junto das comunidades deverá estar disposto a deixar que os seus sapatos italianos toquem no chão. Portanto - para salvar as aparências - a equipa de produção de Ian pode ficar hospedada no Holliday Inn de Houlton, enquanto Ian acampa numa lata glorificada.
Não está disposto a revelar que o alojamento é crucial para um homem que não consegue dormir à noite, limitando-se a andar de um lado para o outro, exausto. A sua insónia só lhe diz respeito a ele, e a mais ninguém. Apesar disso, Ian nem sequer é capaz de começar a descrever a sua ansiedade perante a perspectiva de desmascarar toda aquela encenação de Cristo. Qualquer que seja o embuste que ele escolha a seguir para desmascarar, é bom que fique situado junto de um Ritz-Carlton.
A um sinal de James sai da maldita caravana, com vários jornalistas a cercarem-no. Abre caminho através deles e sobe para uma grade de garrafas de leite vazia que alguém deixou ali ficar.
- Como todos já devem saber - diz Ian, indicando o pequeno aglomerado de devotos que se juntara em volta da grande macieira dos McKinney -, têm surgido algumas dúvidas relativamente ao facto de Houlton, no Maine, ser ou não o verdadeiro local de um milagre religioso. Segundo William e Bootsie McKinney, na manhã do dia vinte de Agosto, a seguir a uma grande tempestade, Jesus apareceu diante deles num ramo partido desta macieira.
Ian volta-se para ela. Na verdade, a forma como os anéis da árvore cresceram e as linhas delicadas de seiva seca assemelham-se um pouco a um rosto comprido, de olhos escuros. Tal como as imagens convencionais de Jesus, se acreditarmos nessas coisas. Ian bate deliberadamente com a palma da mão aberta na imagem, tapando-a.
- Haverá aqui algum rosto? Talvez. Mas se os McKinney não fossem católicos devotos que fossem regularmente à missa, teriam visto Jesus? Ou teriam dito que era parecido com Orville Redenbacher2, ou com o tio-avô Samuel? - espera que a sugestão assente antes de acrescentar: - Será um milagre religioso verdadeiramente inexplicável e divino? Ou será uma junção casual daquilo que foi programado nas nossas cabeças com aquilo que desejamos ver?
Ao pressentir o rápido sobressalto de uma das freiras, o pároco de Houlton avança.
2 Industrial americano ligado à produção da marca de pipocas com o seu nome. (N. da T.)
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- Ora bem, Sr. Fletcher - diz o padre Reynolds - há casos documentados de milagres religiosos que foram mesmo aprovados pela Santa Sé.
- Como aquela aparição da Virgem Maria numa poça numa estação de metropolitano no México há alguns anos?
- Creio que ainda não tenha chegado à fase de aprovação, Ian assopra.
- Vá lá, se o senhor padre fosse a Virgem Maria e quisesse um sítio para aparecer, escolheria uma mancha de óleo numa plataforma do metro? Não é capaz de aceitar a possibilidade de isto não ser aquilo que parece?
O padre bate com o dedo no queixo.
- Posso - diz ele devagar. - E o senhor?
Diante dos risos abafados que percorrem a multidão, Ian apercebe-se de que perdeu o balanço. Maldita emissão em directo.
- Senhoras e senhores, gostaria de vos apresentar o Dr. Irwin Nagel, do departamento Florestal da Universidade de Princeton. Doutor?
- A madeira - diz o professor -, é constituída por vários tipos de células do xilema, incluindo vasos que conduzem substâncias e fortalecem o tronco da árvore. A suposta imagem que se encontra lá dentro é apenas um processo natural do xilema. À medida que a árvore envelhece, as camadas mais interiores deixam de conduzir nutrientes e ficam bloqueadas por resina, goma e taninos, que endurecem e ficam escuros. O rosto que os McKinney viram é na realidade apenas um aglomerado de depósitos no cerne da árvore.
Ian acena com a cabeça quando o seu produtor se aproxima dele.
- O que acha?
- Não sei se eles estão a acreditar - sussurra James. - No entanto, gostei daquilo do metro.
O Dr. Nagel ergue subitamente uma grande tesoura de poda com aspecto perigoso.
- Ora bem, tenho permissão dos McKinney para fazer isto - diz ele, ao escolher ao acaso um ramo para cortar. A pálida madeira cheia de seiva parece corar, e depois, em apenas alguns momentos, as demarcações dos anéis da árvore são claramente visíveis. - Bem, aí têm. Parece-se um pouco com o Rato Mickey.
Ian avança.
- O professor quer dizer que a aparição do rosto de Cristo é, literalmente, um capricho da natureza, O facto de ter acontecido não é extraordinário numa árvore deste porte e desta idade -
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impulsivamente, Ian tira um marcador preto do bolso e desenha uma forma no interior exposto da árvore. - Roddy - pergunta a um jornalista conhecido -, o que é isto? O homem semicerra os olhos.
- É a lua.
Ian aponta para o padre Reynolds.
- Uma taça.
- Um semicírculo - diz o Professor Nagel.
Ian coloca a tampa no marcador com um estalido audível.
- A percepção é uma coisa muito poderosa. Eu digo que isto não é o rosto de Jesus. É essa a minha opinião. Pode ser verdadeira ou não, não posso prová-lo, e vocês têm o direito de duvidar das minhas palavras. Mas da mesma forma, quando o Bill McKinney e o padre Reynolds dizem, "Sim, este é o rosto de Jesus", bem, isso também é só uma opinião, que não pode ser provada. Não interessa que o papa concorde com eles, ou o presidente, ou a maioria das pessoas no mundo. Trata-se sem dúvida do que vêem. Mas pode ou não ser urn facto. E se não acreditarem em mim, como podem acreditar neles?
- Sabem, metade do tempo nem sequer percebo o que ele está a dizer, e apesar disso acho-o fantástico - anuncia Millie. - Olha para aquele padre. Está praticamente roxo.
Mariah ri.
- Podemos desligar isto, mãe? Ou vai dar o Jerry Springer a seguir?
- Que graça. Ele é um poeta, Mariah. Basta ouvires o que ele diz.
- Está a seguir o guião escrito por outra pessoa qualquer - diz Mariah. enquanto Ian Fletcher ergue uma Bíblia e começa a ler sarcasticamente.
- "Podemos comer o fruto das árvores do jardim; mas, quanto ao fruto da árvore que está no meio do jardim, Deus disse: Nunca o deveis comer, nem sequer tocar nele, pois, se o fizerdes, morrereis. "
Faith entra na sala e sobe para o sofá.
- Eu sei esse poema.
O mais estranho é que a passagem bíblica também parece familiar a Mariah. embora ela não consiga perceber porquê. Já estudou a Bíblia há anos e, tanto quanto sabe, a Faith nunca viu uma sequer. Ela e Colin adiaram a educação religiosa da filha indefinidamente, visto que nenhum dos dois era capaz de pensar nela sem se sentir hipócrita.
- "A serpente retorquiu à mulher"...
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Faith murmura algo em voz baixa. Pensando no pior, Mariah cruza os braços.
- O que é que disseste, minha menina?
- "Não, morrereis."
À medida que as palavras saem da boca de Faith, Ian Fletcher repete-as na televisão, e depois colhe uma maçã da árvore dos McKinney para lhe dar uma grande dentada provocante. É nessa altura que Mariah se recorda de onde ouviu os versos de Ian Fletcher, há apenas alguns dias, quando Faith estava a brincar nos baloiços a meio da noite, a cantarolá-los suavemente. Há apenas alguns dias, quando Faith, que nunca foi à igreja nem ao templo na sua curta vida, que nunca frequentou a catequese nem a escola hebraica, estava a recitá-los do Génesis como se fizessem parte de qualquer outra lengalenga infantil.
Os homens e as mulheres que trabalham na Pagan Productions em Los Angeles mantêm uma distância saudável de Ian Fletcher, assustados pelos seus ataques de mau génio, pela sua capacidade de voltar as palavras das pessoas contra elas próprias e pelo seu instinto de autopreservação - no caso de o Sr. Fletcher estar enganado acerca de Deus, não desejam ser lançados no lago de fogo juntamente com ele no Dia do Julgamento Final. São bem pagos para respeitar a privacidade do patrão e para negar com firmeza os pedidos para entrevistas. É por esta razão que ninguém fora da Pagan Productions sabe que Ian sai todas as terças-feiras de manhã, e que ninguém faz ideia de aonde vai.
É claro, as pessoas que trabalham para Ian estão constantemente a fazer suposições. Tem um encontro marcado com uma amante. Frequenta um concílio de bruxas. Telefona para o papa, que é, sem que os seus seguidores o saibam, um sócio-sombra da Pagan Productions. Várias vezes, quando desafiados, os empregados mais corajosos tentam seguir Ian quando ele desaparece no seu Jeep negro. Consegue despistá-los a todos andando às voltas na Los Angeles Freeway. Alguém jurou que seguiu Ian até ao Aeroporto Internacional de Los Angeles, mas ninguém acreditou. Afinal, aonde se pode ir e voltar de avião a tempo de chegar a uma sessão de edição de vídeo nessa mesma noite?
Na manhã de terça-feira na semana em que Ian começou a sua digressão contra o espírito religioso junto das comunidades ao lado da Árvore de Jesus, uma limusina preta encosta ao lado da caravana. Ian está a discutir as reacções que os seus mais recentes comentários suscitaram na imprensa com James e com vários produtores associados.
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- Tenho de ir embora - diz Ian, aliviado por ver o carro aproximar-se. Teve de contar o tempo e fazer concessões, visto que desta vez parte do Maine e não de Los Angeles.
- Tem de ir embora? - pergunta James. - Para onde? Ian encolhe os ombros.
- Para uns sítios. Desculpe, achei que tinha dito que hoje acabava mais cedo.
- Não disse.
- Bem, estarei de volta esta noite. Podemos acabar nessa altura
- agarra na pasta e no casaco de cabedal e bate com a porta.
Precisamente duas horas e meia depois entra num pequeno edifício de tijolo. Percorre os corredores com a confiança de alguém que já lá esteve. Algumas das pessoas por quem passa cumprimentam-no com um aceno enquanto ele segue o seu caminho até ao centro recreativo, equipado com mesas de carvalho, televisões e sofás de chita. Ian dirige-se para uma mesa no canto lá ao fundo ocupada por um homem. Embora esteja calor na sala, Michael veste uma camisola de decote redondo e uma camisa branca. As suas mãos movem-se por cima de um baralho de cartas, que ele vira uma de cada vez.
- Rainha de ouros - murmura ele. - Seis de espadas, Ian senta-se na cadeira ao lado dele.
- Olá - diz numa voz suave.
- Rei de copas. Dois de espadas. Sete de copas.
- Como tens passado, Michael? - Ian aproxima-se um pouco. Os ombros do homem balançam de um lado para o outro.
- Seis de paus! - diz num tom firme, Ian suspira, acena com a cabeça.
- Seis de paus, amigo - afasta-se mais. Observa as cartas virarem-se sucessivamente: vermelho, preto, vermelho, preto. Michael vira um ás.
- Oh, não - diz ele. - Ás...
- Na manga - termina Ian.
Pela primeira vez, Michael estabelece um breve contacto visual com Ian.
- Ás na manga - repete, depois continua a contar as cartas, Ian fica sentado em silêncio até se ter passado exactamente
uma hora desde a sua chegada - não por Michael se ter apercebido da sua presença, mas porque ele sabe que Michael repararia na sua ausência mesmo que se desviasse apenas alguns minutos da rotina.
- Até para a semana, amigo - murmura Ian.
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- Rainha de paus. Oito de copas.
- Então está bem - diz Ian, engolindo em seco. Sai do edifício e inicia a sua jornada de regresso ao Maine.
Uma coisa que Faith descobriu recentemente é que se cerrarmos os olhos com muita força e os esfregarmos com os polegares, vemos coisas: pequenas estrelas e círculos azul-esverdeados que ela imagina que sejam as suas íris, como se houvesse uma espécie de espelho no interior das pálpebras que torne esta visão possível. Puxa as bordas das pálpebras e vê uma explosão de vermelho, a cor que ela acha que a raiva deve ter. Tem feito isto muitas vezes, embora ontem, quando as aulas começaram, não tivesse resultado tão bem. O "Willie Mercer disse que só os bebés pequenos é que andavam com lancheiras da Pequena Sereia, e quando Faith sussurrou para a sua guardiã, tentando ignorá-lo, o Willie riu-se e disse que ela era maluquinha. Por isso, fechou os olhos para deixar de o ouvir, e uma coisa conduziu à outra, e quando deu por si a enfermeira da escola estava a telefonar para sua casa a dizer que Faith não parava de esfregar os olhos; devia ser conjuntivite.
- Doem-te os olhos, Faith? - pergunta a Dr.a Keller agora.
- Não, só que toda a gente pensa que sim.
- Pois. A tua mãe contou-me o que aconteceu na escola ontem. Faith pestaneja, semicerrando os olhos diante das lâmpadas
fluorescentes.
- Eu não estava doente. Gosto só de fazer isso. Vejo coisas inclina o queixo. - Experimente - desafia ela.
Para sua surpresa, a Dr.a Keller tira realmente os óculos e esfrega os olhos como Faith tem estado a fazer.
- Vejo uma coisa branca. Parece a lua.
- É o interior do seu olho.
- A sério? - a Dr.a Keller volta a colocar os óculos. - Tens a certeza?
- Bem, não - admite Faith. - Mas não acha que talvez os seus olhos ainda estejam a olhar em volta mesmo quando tem as pálpebras fechadas?
- Não vejo razão para que isso não aconteça. Vês a tua amiga quando tens os olhos assim fechados?
Faith não gosta de falar sobre a sua guardiã. Mas por outro lado, a Dr.a Keller tirou os óculos e esfregou os olhos, algo que Faith nunca imaginou que ela fizesse.
- Às vezes - diz Faith no mais fino fio de voz.
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A Dr.a Keller olha para ela cuidadosamente, o que quase mais ninguém se dá ao trabalho de fazer. Normalmente, quando Faith fala, a mãe límita-se a dizer "Hum, hum" e "A sério?" mas na verdade está a pensar em milhares de outras coisas enquanto Faith tenta dizer-lhe algo. E a Sr.a Grenaldi, a sua professora, não olha directamente para ninguém. Fica a olhar por cima das cabeças dos alunos, como se todos tivessem insectos a rastejar pelos riscos do cabelo.
- Já tens essa amiga há muito tempo?
- Que amiga? - pergunta Faith, embora saiba que não consegue enganar a Dr.a Keller.
A psiquiatra inclina-se para a frente.
- Tens outros amigos, Faith?
- Claro. Brinco com a Elsa, a Sarah e o Gary, quando a minha mãe me obriga, mas o Gary limpa o ranho às minhas roupas quando acha que eu não estou a ver.
- Quero dizer outros amigos como a tua guardiã.
- Não - Faith reflecte. - Não conheço mais ninguém como ela.
- Ela está aqui connosco agora? Faith olha em volta, pouco à-vontade.
- Não.
- A tua guardiã fala contigo? -Sim.
-Já te disse alguma coisa assustadora? Faith abana a cabeça.
- Ela faz-me sentir melhor.
- Ela toca-te?
- Às vezes - Faith fecha os olhos e coloca os polegares neles. Abana-me durante a noite para me acordar. E abraça-me muitas vezes.
- Isso parece bom - diz a Dr.a Keller. - Aposto que gostas. Envergonhada, Faith acena com a cabeça.
- Ela diz que sou a pessoa de quem mais gosta.
- Então ela só é tua amiga? De mais ninguém?
- Oh, não - diz Faith. - Ela tem outros amigos. Só que agora não costuma vê-los tantas vezes. É como quando eu costumava ir sempre a casa da Brianna, mas agora ela está noutra escola e eu não costumo brincar com ela muitas vezes.
- A tua guardiã fala-te dos outros amigos dela? Faith repete vários nomes.
- Ela brincou com eles há muito tempo, agora já não.
A Dr.a Keller fica muito calada. É estranho; normalmente faz perguntas, perguntas, perguntas até que Faith tenha vontade de
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tapar os ouvidos. Faith observa as mãos da médica, que estão a premer muito ligeiramente, como as da mãe tremiam quando estava a tomar comprimidos.
- Faith... - diz por fim a Dr.a Keller -, é... gostas... - respira fundo e prossegue: - Alguma vez rezaste para ter uma amiga assim?
Faith franze o nariz.
- O que é rezar?
Pela luz nos seus olhos, Mariah percebe que a Dr.a Keller está prestes a fazer uma descoberta importante. Ou talvez isso já tenha acontecido; é difícil de dizer, visto que a Faith está a brincar tão bem do outro lado da janela de observação. A Dr.a Keller senta-se à sua secretária e faz sinal para que Mariah faça o mesmo.
- A Faith referiu-me hoje alguns nomes: Herman Joseph, de Steinfeld. Elizabeth, de Schonau. Juliana Falconieri - a Dr.a Keller olha para cima.
Mariah encolhe os ombros.
- Acho que não conhecemos nenhum Herman. E Schonau fica perto daqui?
- Não, Sr.a White - diz a Dr.a Keller num tom suave. - Não fica. Mariah ri-se nervosamente.
- Bem, talvez ela tenha inventado esses nomes. Quero dizer, se conseguiu criar uma amiga imaginária...? - deixa que a sua voz se desvaneça, e sente as palmas das mãos começarem a suar, embora não saiba porque é que está nervosa.
A Dr.a Keller massaja as têmporas.
- São nomes muito complicados para uma menina de sete anos inventar espontaneamente. São, ou foram, pessoas reais.
Mais confusa, Mariah acena com a cabeça.
- Talvez seja alguma coisa que estejam a aprender na escola. No ano passado a Faith era especialista na floresta húmida.
- Ela frequenta a escola paroquial?
- Oh, não. Não somos católicas. - Mariah sorri hesitantemente.
- Porquê?
A Dr.a Keller senta-se à beira da secretária, em frente a Mariah.
- Antes de me casar e de ser psiquiatra, o meu nome era Mary Margaret O Sullivan, de Evanston, no Illinois. Comungava todos os domingos, fiz uma grande festa no dia do meu crisma e frequentei a escola paroquial até ser aceite em Yale. Na minha escola, aprendi de facto sobre o Herman Joseph. E a Elisabeth. E a Juliana. São santos católicos, Sr.a White,
Mariah está sem palavras.
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- Bem - diz ela, porque não sabe o que há-de dizer. A Dr.a Keller começa a andar de um lado para o outro.
- Acho que não temos estado a escutar a sua filha com atenção. A sua guardiã ... as palavras... soam de forma igual.
- O que quer dizer?
- A sua filha - diz a Dr.a Keller sem rodeios. - Acho que ela vê Deus.
3 Na versão original em inglês guard, guardiã, é foneticamente semelhante a God, Deus. CN. da T.)
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Três
A mente é um lugar em si mesma, e pode fazer do Inferno um Céu, e do próprio Céu um Inferno.
John Milton Paraíso Perdido
20 de Setembro de 1999
Em Greenhaven havia uma mulher que acreditava que a Virgem Maria vivia na sua cóclea.
- Assim é melhor - disse-nos ela -, para segredar profecias.
De vez em quando convidava os médicos e os outros pacientes a espreitar. Quando chegou a minha vez, aproximei-me tanto que, por um breve momento, reparei numa membrana interior cor-de-rosa a latejar.
- Viu-a? - perguntou ela, e eu acenei com a cabeça, sem ter a certeza de qual de nós era mais louca.
Faith tanto tem ido às aulas como tem faltado, e eu não trabalho em nenhuma das minhas casas de bonecas há mais de duas semanas. Passamos mais tempo no hospital do que em casa. Agora sabemos, graças a uma ressonância magnética, a uma TAC e a uma série de análises ao sangue que a Faith não tem nenhum tumor cerebral nem nenhum problema de tiróide. A Dr.a Keller também fez perguntas aos colegas acerca do comportamento da Faith.
- Por um lado - disse-me ela -, quase todas as alucinações psicóticas dos adultos estão relacionadas com a religião, o governo ou o diabo. Por outro lado, a Faith está a agir de uma forma absolutamente normal, sem mais nenhum comportamento psicótico.
A Dr.a Keller queria receitar Risperdal à Faith, um medicamento antipsicótico. Se a amiga imaginária desaparecesse, estava tudo
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resolvido. E se não desaparecesse, bem, eu lidaria com o assunto se e quando isso acontecesse.
A Faith não pode estar a falar com Deus; isso eu sei. Mas no momento seguinte interrogo-me "Porque não?" Já aconteceram coisas sem precedentes. E uma boa mãe ficaria do lado da filha, por muito bizarra que a história fosse. Mas por outro lado, se eu começar a dizer que a Faith vê Deus, que ela não é doida - bem, todos vão pensar que eu é que sou. Outra vez.
Para dar o Risperdal à Faith tenho de esmagar o comprimido num almofariz e misturá-lo com pudim de chocolate para disfarçar o sabor. A Dr.a Keller diz que os antipsicóticos actuam rapidamente; que, ao contrário do Prozac e do Zoloft, não temos de esperar oito semanas para ver se resultaram. Entretanto, resta-nos apenas esperar para ver.
A Faith agora está a dormir, deitada de lado, enroscada debaixo da sua colcha da Pequena Sereia. Parece-se com qualquer outra criança. Deve saber que eu estou aqui, porque se estica, vira-se e abre os olhos. Estão vidrados e distantes por causa do Risperdal. Ela sempre foi parecida com o Colin, mas começo a aperceber-me de que agora se parece comigo.
Por um momento, lembro-me dos meses que passei em Greenhaven - ver a porta fechar-se atrás de mim e trancar-se, sentir a picada do sedativo no braço, e interrogar-me por que razão o Colin, e um psiquiatra do serviço de urgências, e até mesmo um juiz falavam em meu nome, quando eu tinha tanto para dizer.
Sinceramente não sei o que seria pior descobrir neste caso: que a Faith está mentalmente doente ou que não está.
- Dormir - papagueia Faith. - D-O-R-M-I-R.
- Excelente - a segunda classe trouxe palavras para soletrar. Guardar.
- G-U-A-R-D-A-R.
Coloco a lista em cima da mesa da cozinha.
- Acertaste em todas. Talvez tu é que devesses ser a professora.
- Podia ser - diz ela num tom confiante. - A minha guardiã diz que toda a gente tem coisas para ensinar aos outros.
De um momento para o outro, fico petrificada. Faith já não falava da sua companheira de brincadeiras imaginária há dois dias, e eu estava a a começar a acreditar que se devia ao medicamento antipsicótico.
- Sim? - interrogo-me se poderei contactar a Dr.a Keller através do seu pager. Se ela interromperá a medicação apenas devido às minhas próprias observações. - A tua amiga ainda anda por aí?
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Faith semicerra os olhos, e apercebo-me de que ela não tem falado da sua guardiã por uma razão muito importante: sabe que isso lhe arranjou problemas.
- Para que queres saber?
Penso na resposta que a Dr.a Keller daria: "Porque quero ajudar-te." E depois penso na resposta que a minha mãe daria: "Porque se ela é importante para ti, quero conhecê-la." Mas para minha surpresa, as palavras que me saem da boca são totalmente minhas:
- Porque te adoro.
Parece chocar a Faith tanto como me chocou a mim.
- Oh... está bem. Agarro-lhe nas mãos.
- Faith, quero clizer-te uma coisa - os olhos dela ficam redondos, expectantes. - Há muito tempo, antes de nasceres, eu estive muito perturbada com uma coisa. Em vez de dizer às pessoas como me sentia, comecei a comportar-me de maneira diferente. Irracional. Fiz uma coisa que assustou muita gente, e por causa dela mandaram-me para um sítio onde não queria realmente estar.
- Queres dizer, como... a prisão?
- Mais ou menos. Agora não interessa. Mas queria que soubesses que não faz mal estarmos tristes. Eu compreendo. Não precisas de agir de maneira diferente para me fazeres ver que estás perturbada.
O queixo de Faith começa a tremer.
- Eu não estou perturbada. Não estou a agir de maneira diferente.
- Bem, nem sempre tiveste essa tua guardiã.
As lágrimas que estiveram a acumular-se nos olhos dela transbordam.
- Achas que a inventei, não achas? Tal como a Dr.a Keller, e os meus colegas na escola, e a Sr.a Grenaldi. Achas que estou a fazer isto só para chamar a atenção - de repente inspira dolorosamente.
- E agora vou ter de ir para esse lugar parecido com a prisão por causa disso?
- Não - insisto, abraçando-a com força. - Não vais a lado nenhum. E não estou a dizer que a tenhas inventado, Faith, não estou. Só que já estive tão triste uma vez que a minha cabeça fez-me acreditar numa coisa que não era verdade, é só isso que estou a dizer.
Faith enterra o rosto no meu ombro ao abanar a cabeça.
- Ela é real. É mesmo.
Fecho os olhos, massajo a cana do nariz com o polegar para afastar as dores de cabeça. Bem, Roma não se fez num dia. Levanto-me e agarro numa travessa vazia, que ficou do lanche de biscoitos.
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Estou a meio caminho da cozinha quando a Faith me puxa a ponta da camisola.
- Ela quer dizer-te uma coisa.
- Sim?
- Ela sabe tudo sobre a Priscilla. E perdoa-te. A travessa que tenho nas mãos cai ao chão.
Quando tinha oito anos, queria tanto ter um animal de estimação que comecei a recolher pequenas criaturas - rãs, cágados e, uma vez, um esquilo - e a levá-las para casa em segredo. Foi o cágado a rastejar por cima da bancada da cozinha que finalmente fez com que as coisas mudassem. Em vez de arriscar uma intoxicação alimentar por salmonelas, a minha mãe chegou um dia a casa com uma gatinha, mas eu tive de prometer que deixaria as outras criaturas fora de casa.
Chamei Priscilla à gatinha, porque era o nome de uma princesa no meu livro preferido da biblioteca naquela semana. Dormia com ela na almofada, com a cauda dela enrolada por cima da minha testa como um chapéu de feltro. Dava-lhe o leite da minha taça de cereais. Vestia-lhe roupas de boneca, toucas e meias de algodão.
Um dia resolvi dar-lhe banho. A minha mãe explicou-me que os gatos detestam molhar-se e que se lambiam para se limparem em vez de se aproximarem da água para se lavar. Mas por outro lado. ela tinha dito que a Priscilla não ia gostar de ser embrulhada numa manta e passear num carrinho de bebé de brincar, e tinha-se enganado. Portanto numa tarde soalheira quando estava a brincar no quintal, enchi um balde de água e chamei a gata. Fiquei à espera até a minha mãe ter desaparecido de vista e então meti a Priscilla dentro de água.
Ela debateu-se. Arranhou-me e contorceu-se, mas, apesar disso, consegui mantê-la dentro de água, convencida de que eu é que sabia. Esfreguei-lhe o pêlo com uma barra de sabonete Ivory que tinha roubado da casa de banho dos meus pais. Tive muito cuidado para lavar todos aqueles sítios escondidos que a minha mãe me tinha dito. Tive tanto cuidado que, na verdade, me esqueci de a deixar respirar.
Disse à minha mãe que a Priscilla devia ter caído dentro do balde e, visto que eu estava a chorar tanto, ela acreditou em mim. Mas durante anos conseguia sentir os ossos dela mexerem-se debaixo da pele mole. Às vezes, sinto um ligeiro peso na palma da mão e fecho-a sobre ele ao dormir.
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Nunca mais tive outro gato. E nunca contei a ninguém.
- Mariah - a minha mãe está a olhar para mim sem perceber. Porque é que estás a contar-me isso agora?
Olho para o quarto de hóspedes da minha mãe, para onde a Faith foi brincar com uma lata de botões. - Sabias?
- Sabia o quê?
- Sobre a Priscilla? Que eu a afoguei? A minha mãe revira os olhos.
- Bem, é claro que não. Pelo menos até há cinco minutos.
- E o pai, sabia? - faço contas de cabeça: a Faith tinha apenas dois anos quando o meu pai morreu; de que se lembraria ela dessa altura?
A minha mãe pousa-me a mão no braço.
- Mariah, sentes-te bem?
- Não, mãe, não sinto. Estou a tentar perceber como é que a minha filha sabe um segredo que nunca contei a ninguém na minha vida. Estou a tentar perceber se estou com algum problema ou se a Faith está a enlouquecer, ou se... - interrompo a frase a meio, envergonhada com o que estou prestes a admitir.
- O quê?
Olho para a minha mãe e depois para o corredor, onde o som da voz de Faith perdura. Não é algo que eu possa apenas dizer, da mesma maneira que as mães se gabam da capacidade dos filhos para resolver problemas de matemática ou nadar de costas. Isto estabelece uma lista de prioridades. Traça um limite, e obriga a pessoa com quem estou a falar a aproximar-se dele.
- Ou se a Faith está a dizer a verdade - sussurro.
- Oh, por amor de Deus! - exclama a minha mãe, em tom de censura. - Estás mesmo com algum problema.
- Porquê? Porque é que é tão difícil aceitar que a Faith possa falar com Deus?
- Pergunta à mãe de Moisés. Precisamente nessa altura, ocorre-me algo.
- Não acreditas nela! Na tua própria neta!
A minha mãe espreita para o fundo do corredor para se certificar de que a Faith ainda está ocupada.
- És capaz de baixar a voz? - diz ela num tom sibilante. - Não disse que não acreditava na Faith. Estou apenas a manter algum discernimento.
- Acreditaste em mim. Mesmo quando tentei suicidar-me, quando o Colin e um juiz e toda a equipa médica em Greenhaven disseram que tinha de ser internada, ficaste do meu lado.
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- Isso foi diferente. Foi um caso isolado, e estava contra o Colin
- ergue as mãos. - Ainda há pessoas que estão a ser mortas em nome da religião, Mariah.
- Então se ela visse o Abraham Lincoln, ou a Cleópatra, faria diferença? Deus não é uma palavra que não se possa dizer, mãe.
- Mesmo assim - diz a minha mãe. - É como se fosse.
23 de Setembro de 1999
No correio, naquela tarde recebo a conta da electricidade, do telefone e o divórcio.
O envelope parece oficial, selado com o endereço do Tribunal do condado de Grafton e é grosso, com um monte de papéis. Abro-o com o polegar e corto-me no papel. De um momento para o outro, em seis semanas, o meu casamento está acabado. Lembro-me de tradições de outras partes do mundo de que ouvi falar - os nativos americanos que deixam sapatos de homem fora da tenda; os árabes que dizem "Divorcio-me de ti" três vezes - e de repente não me parecem tão tolas. Tento imaginar o Colin e o seu advogado, diante do juiz numa reunião de que nem sequer tenho conhecimento. Interrogo-me se deverei guardar este papel no meu cofre no banco, aninhado junto à minha certidão de casamento e ao meu passaporte, mas é difícil imaginar tantos anos a caberem num espaço tão apertado.
Subitamente o meu coração fica demasiado grande para me caber no peito. Durante anos fiz aquilo que o Colin queria que eu fizesse. Comportei-me como as mulheres que tinha outrora observado à distância: vestindo casacos de fazenda e padrões da Lilly Pulitzer, convidando os filhos dos colegas dele para lanchar, colocando grinaldas na lareira pelo Natal. Transformei-me num invólucro de que ele pudesse ter orgulho. Era a sua mulher, e se já não sou, não tenho a certeza do que serei.
Tento visualizar o Colin no seu equipamento de futebol americano da universidade. Tento vê-lo agarrar-me na mão no nosso casamento. Tento, mas não sou capaz - as imagens estão demasiado turvas ou demasiado distantes para poderem fazer justiça à lembrança. Talvez seja assim que funcionem os falhanços sentimentais. Talvez editemos a nossa história, para que as histórias que contamos a nós próprios se tornem lendas, para que os acidentes nunca tenham acontecido. Mas, por outro lado, basta-me olhar para a Faith para saber que estou só a enganar-me a mim própria.
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Atiro a correspondência para cima da mesa da cozinha como uma manopla. A pior coisa nos finais é sabermos que mesmo à nossa frente se encontra a tarefa esmagadora de começar de novo.
- Deus me ajude - digo, escondendo o rosto nas mãos, e choro.
- Mamã - grita a Faith, entrando a correr na cozinha -, há um livro sobre mim! - Dança à minha volta enquanto corto cenouras para o jantar. - Podemos ir buscá-lo? Podemos?
Olho para baixo, porque já não a vejo assim tão animada há algum tempo. No início o Risperdal deixou-a zonza e lenta. Só desde ontem é que o corpo dela parece ter ultrapassado estes efeitos secundários.
- Não sei. Onde é que ouviste falar dele?
- Foi a minha guardiã - responde ela, e sinto aquela volta familiar nas entranhas. Faith puxa o banco que está por baixo do quadro de recados e com grande concentração escreve "I. I. Suerbeh".
- Foi este o homem que o escreveu. Por favor?
Olho para as cenouras, espalhadas como paus de Mikado em cima da tábua de cortar. Para o frango, nu e corado com paprica, à espera em cima do forno. A biblioteca da cidade fica apenas a dez minutos de carro.
- Está bem. Vai buscar o teu cartão da biblioteca.
A Faith está tão entusiasmada que subitamente me sinto culpada, visto que estou a planear utilizar isto como prova de que a cabeça dela anda a pregar-lhe partidas. Quando se verificar que não existe nenhum . . Suerbeh, talvez ela acredite que não existe nenhuma guardiã.
É claro, não existe nenhum registo deste autor nem no catálogo informatizado no computador, nem naquele outro poeirento que se encontra na prateleira.
- Não sei, Faith. Isto não está com um ar prometedor.
- Na escola, a bibliotecária diz que por a nossa cidade ser pequena, às vezes temos de pedir livros emprestados a outras bibliotecas de outras escolas. E podemos fazê-lo se preenchermos um papel. Por isso, talvez baste perguntar aqui à bibliotecária.
Faz-lhe a vontade, penso. Dando a mão a Faith, aproximo-me da bibliotecária da biblioteca infantil.
- Estamos à procura de um livro de um L I. Suerbeh.
- Um livro infantil?
Faith acena com a cabeça.
- É sobre mim.
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A bibliotecária sorri.
- Bem, suponho que já verificaste os catálogos. Não é um autor com o qual esteja familiarizada... - faz uma pausa, batendo com um dedo no queixo. - Que idade tens?
- vou fazer oito anos daqui a dez meses e meio.
A bibliotecária agacha-se para ficar ao nível de Faith.
- Como é que descobriste este livro?
Os olhos de Faith movem-se na minha direcção.
- Uma pessoa disse-me o nome. Anotou-o.
- Ah - a bibliotecária tira uma folha de papel da secretária.
- Costumava dar aulas à primeira classe. Faz parte do desenvolvimento normal que as crianças desta idade invertam as letras escreve o nome do autor ao contrário. - Pronto. Faz um bocado mais de sentido.
Faith semicerra os olhos ao olhar para a palavra, sonda-a.
- O que quer dizer HEBREUS?
- Acho que o livro de que estás à procura está aqui mesmo diz a bibliotecária, tirando uma Bíblia da prateleira de referência. Abre-a na Carta aos Hebreus, Capítulo 11, e pisca o olho.
- E é mesmo! - diz Faith com voz rouca, identificando as letras do seu nome. - É sobre mim!
Fico a olhar para a página. Quarenta versos, sobre tudo aquilo que já foi atingido pela fé4.
Faith começa a ler, tropeçando nas palavras.
- "Ora a fé é a ga... ga..."
- Garantia.
- ..."garantia das coisas que se esperam e certeza daquelas que não se vêem" - continuou ela.
À medida que Faith prossegue, fecho os olhos e tento arranjar uma explicação válida. A Faith pode já ter visto isto antes, pode ter reparado no seu nome metido entre outras palavras não familiares. Mas nem sequer temos uma Bíblia!
Sempre tive inveja das pessoas que acreditam convictamente na religião, pessoas que são capazes de enfrentar a tragédia rezando e sabendo que tudo correrá bem. Por muito pouco científico que pareça, bem, seria bom colocar a dor e as responsabilidades nos ombros mais largos de outra pessoa.
Se me tivessem perguntado há um mês se gostaria ou não que a minha filha crescesse com essa mesma crença, teria dito que sim. Só que não estava disposta a ensiná-la.
4 Em inglês, Faith significa fé. (N. da T.)
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Não a tinha ensinado.
- Diz ao teu Deus - sussurro. - Diz-lhe que acredito.
Tanto quanto sei, antes de tudo isto ter acontecido a Faith tinha-me feito perguntas sobre Deus apenas uma vez. Tinha cinco anos, e tinha acabado de aprender o Juramento de Fidelidade na escola.
- "Em obediência a Deus" - recitou-me ela, e depois logo a seguir: - O que é Deus? - hesitei por um momento, tentando encontrar uma maneira de explicar-lhe sem arrastar opiniões religiosas, nem Jesus, para o assunto.
- Bem - disse eu, pensando em palavras que ela conhecesse -, Deus é mais ou menos o anjo maior de todos. Está lá em cima no céu, e vive num sítio chamado Paraíso. O trabalho dele é tomar conta de nós, para ter a certeza de que estamos todos bem.
Faith ficou a pensar nisso por um momento.
- É como uma grande ama.
- Exactamente.
- Mas disseste que era Ele - fez notar Faith. - Todas as minhas amas são raparigas.
Por muito difícil que seja ouvir a Dr.a Keller dizer que a Faith está a ter alucinações psicóticas com Deus, é ainda mais difícil ter em conta a alternativa. Coisas assim não acontecem a meninas, digo para comigo numa noite de insónia, até me aperceber de que não tenho o direito de fazer essa afirmação. Talvez seja apenas uma fase típica dos sete anos, como procurar monstros debaixo da cama ou ter um fraquinho pelos Hanson. Na manhã seguinte deixo a Faith com a minha mãe e vou à Biblioteca Baker da Universidade de Dartmouth. Aí, faço a uma bibliotecária algumas perguntas sobre percepções infantis de Deus e em seguida percorro o escuro labirinto de prateleiras até encontrar o livro que ela recomendou. Estou à espera do Dr. Spock, de algum tratado sobre educação infantil, mas, em vez disso, ela orientou-me para Vidas dos Santos de Butler.
Só por piada, abro o velho livro, achando que posso dar uma boa gargalhada antes de ir à procura do Dr. Spock. Mas quando dou por mim, passei o dia inteiro a ler sobre a jovem Bernadette Soubirous de Lourdes, em França, que em 1858 falou com a Virgem Maria várias vezes. Sobre a pequena Juliana Falconieri, do século XIV, que viu Cristo e deixou-o oferecer-lhe grinaldas de flores. Sobre outras crianças videntes em Fátima. Sobre todas estas crianças, algumas tão pequenas como a Faith, algumas que também não eram religiosas e que, apesar disso, foram escolhidas.
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Começo a tomar notas num bloco que guardo na carteira. De todos os videntes do século XIII, XIV e até mesmo XIX, aqueles que viram uma senhora descrita como uma Virgem Maria de manto azul. Aqueles que tiveram uma visão de vestes brancas, sandálias e longos cabelos escuros - aqueles que lhe chamaram Deus - todos se referiam a um homem.
Todos excepto a Faith.
- Então? - sussurro, quando regresso a casa da minha mãe. Como é que ela está?
- Bem - explode a minha mãe. - Não está a dormir.
-O que eu quero dizer é se ela esteve... tu sabes. A ver coisas.
- Oh, é verdade. Deus.
Passo por ela e dirijo-me para a cozinha, onde tiro uma banana do cacho e começo a descascá-la.
- Sim. Isso.
A minha mãe encolhe os ombros.
- É uma fase. Vais ver.
Dou uma grande dentada no fruto, que se aloja na minha garganta.
- E se não for, mãe? - pergunto, engolindo com dificuldade. E se isto não passar?
A minha mãe sorri gentilmente.
- A Dr.a Keller vai arranjar outro remédio qualquer que resulte.
- Não, não estou a referir-me a isso. Quero dizer... e se for verdade?
A minha mãe pára de limpar a bancada.
- Mariah, que estás tu a dizer?
-Já aconteceu. Houve outras crianças que viram... coisas. E os padres católicos, e o papa, ou alguém autenticaram o fenómeno.
- A Faith não é católica.
- Bem, eu sei. Sei que nunca fomos religiosas. Mas tenho algumas dúvidas se isso será algo que possamos escolher - respiro fundo. - Só não tenho a certeza de que tu e eu e uma psiquiatra sejamos as pessoas que devessem estar a avaliar isto.
- E quem deveria ser? - pergunta a minha mãe, e em seguida revira os olhos. - Oh, Mariah. Não vais levá-la a um padre.
- Porque não? Eles é que têm experiência com aparições.
- Vão querer provas. Uma estátua a chorar lágrimas, ou algum paraplégico a levantar-se e andar.
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- Isso não é verdade. Às vezes limitam-se a confiar na força da palavra da criança.
A minha mãe esboça um sorriso afectado.
- E desde quando é que te tornaste numa especialista em gentios?
- A questão não é a religião.
- Não? Então qual é?
- A minha filha - digo numa voz pastosa, enquanto me vêm as lágrimas aos olhos. - Há algo diferente nela, mãe. Algo que as pessoas vão começar a comentar. Não se trata de ter um sinal de nascença que eu possa esconder debaixo de uma gola alta e fingir que não está lá.
- De que servirá falar com um padre?
Não sei. Não faço ideia do que estou à espera - alguma espécie de exorcismo? Alguma justificação? De repente lembro-me claramente de estar de pé na esquina da rua num sinal vermelho há anos, certa de que toda a gente conseguia ver as cicatrizes escondidas debaixo das minhas mangas. Que toda a gente sabia que eu era subtilmente, irrevogavelmente diferente. Não quero isto para a minha filha.
- Só quero que a Faith volte a ser normal - digo. A minha mãe olha directamente para mim.
- Está bem. Faz o que tens a fazer. Mas talvez não devesses começar por uma igreja - procurando no seu velho e atafulhado ficheiro de números de telefone Rolodex, tira um cartão. Está amarelado e tem os cantos dobrados, por ser muito usado ou por estar há demasiado tempo esquecido.
- Este é o nome do rabi da cidade. Mesmo que não o queiras admitir, a tua filha é judia.
Rabi Marvin Weissman.
- Não sabia que frequentavas o templo.
- E não frequento - ela encolhe os ombros. - Acho que mo deram.
Meto o cartão no bolso.
- Está bem, telefono-lhe primeiro. Não que ele vá acreditar em mim. Em todos os livros que li hoje, não encontrei um único judeu que tivesse tido uma visão religiosa.
A minha mãe passa com a unha do polegar na borda da bancada.
- E depois?
Embora já tivesse passado pelo templo de New Canaan muitas vezes, nunca entrei lá dentro. Está escuro, abafado. Longas e
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finas colagens de vitral ladeiam as paredes a intervalos regulares, e um quadro para afixar boletins da escola hebraica está alegremente decorado com os nomes dos alunos. Faith estremece junto a mim.
- Não gosto disto aqui, é sinistro.
Em segredo, concordo, mas aperto a mão dela.
- Não é sinistro. Olha para as janelas tão bonitas. Faith observa os painéis e olha novamente para mim.
- Mesmo assim é sinistro.
Ao fundo de um corredor, ouvem-se passos aproximarem-se. Um homem e uma mulher passam pela entrada de acesso, ainda a discutir.
- Não és capaz de dizer nada agradável? - grita a mulher. - Ou será que te esforças para que eu faça figura de parva?
- Achas que estou a tentar irritar-te? - diz o homem num tom zangado. - Achas? - Ignorando Faith e a mim, tiram os casacos dos cabides no bengaleiro. Faith não tira os olhos do casal.
- Não faças isso - sussurro. - Não é bonito ficar a olhar.
Mas apesar disso continua a observá-los, de olhos muito abertos e tristes, de forma estranha, como se estivesse em transe. Interrogo-me se estará a lembrar-se do Colin-e de mim, se as discussões que tentámos abafar por trás da porta fechada do quarto conseguissem chegar até ela. O casal sai porta fora, com a sua fúria a ligá-los de maneira palpável, como se dessem firmemente as mãos ao seu único filho.
De repente, surge o rabi Weissman, vestindo uma camisa de xadrez de tons diferentes da mesma cor e calças de ganga. Não é mais velho do que eu.
- Sr.a White, Faith. Desculpem por ter chegado atrasado. Tive uma consulta antes.
O casal zangado. Será que vieram em busca de uma espécie de aconselhamento? Era isso o que as outras pessoas faziam quando os casamentos estavam a desfazer-se?
Visto que eu continuo sem dizer nada, ele sorri de forma inquiridora.
- Há algum problema?
- Não - abano a cabeça, apanhada em flagrante. - É que estou sempre à espera que os rabis tenham longas barbas cinzentas.
Ele acaricia as faces bem barbeadas.
- Ah, viu o Violino no Telhado demasiadas vezes. O que eu sou está à vista - mete um rebuçado na mão de Faith e pisca-lhe o olho.
- Porque é que não vamos todos para o santuário?
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Santuário. Sim. por favor.
A sala principal do templo tem traves altas e um tecto em abóbada, bancos cuidadosamente colocados, como dentes, e uma tribuna coberta com um rectângulo de veludo azul. O rabi tira uma pequena caixa de lápis de cera do bolso da camisa e entrega-a a Faith, juntamente com algumas folhas de papel.
- vou mostrar uma coisa à tua mãe. Está bem?
Faith acena com a cabeça, já a escolher algumas cores. O rabi conduz-me para o fundo da sala, onde conseguimos ver Faith perfeitamente e, ao mesmo tempo, temos privacidade.
- Então a sua filha fala com Deus.
Dito de forma assim tão directa, faz-me corar.
- Pois, acho que sim.
- E porque é que queria falar comigo? Não devia ser evidente?
- Bem, eu era judia. Quero dizer, fui educada dessa forma.
- Então converteu-se.
- Não. Simplesmente afastei-me, e depois casei-me com um membro da comunidade da igreja episcopal.
- Ainda é judia - diz o rabi. - Pode ser uma judia agnóstica, uma judia não praticante, mas ainda é judia. É como pertencer a uma família. Temos de fazer uma asneira muito grande para ser expulsos.
- A minha mãe diz que a Faith também é judia. Em teoria. É por isso que estou aqui. E a Faith fala com Deus - trata-se apenas de um movimento quase imperceptível, mas inclino a cabeça.
- Sr.a White - diz o rabi -, isso não é nada de extraordinário.
- Não é nada de extraordinário!?!
- Muitos judeus falam com Deus. O Judaísmo pressupõe uma relação directa com Ele. A questão não é o facto de a Faith falar com Deus... mas sim se Deus fala com ela.
Refiro a citação do Génesis que a Faith cantarolou como se fosse uma canção infantil e o capítulo da Carta aos Hebreus. Conto-lhe o caso da minha gatinha afogada, a história que mais ninguém sabia. Quando acabo, o rabi Weissman pergunta:
- Deus transmitiu alguma mensagem à sua filha? Alguma sugestão para arrancar o mal que existe no mundo pela raíz?
- Não, ela não transmitiu mensagens. O rabi faz uma pausa.
-EM
- É o que a Faith me diz.
- Gostava de falar com ela - diz o rabi Weissman.
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Meia hora depois de ter deixado o rabi sentado ao lado da Faith no santuário, ele vem ter comigo à entrada do templo.
- Maimónides - diz ele, como se estivéssemos a meio de uma conversa -, tentou explicar a "face" de Deus. Não se trata de um verdadeiro rosto, porque isso igualaria de facto Deus ao homem. É uma presença, a ideia de que Deus está atento. Tal como Deus nos criou à Sua imagem, nós também O fazemos à nossa imagem - para que faça sentido nas nossas cabeças. Segundo o Midrasb, ocorreram vários incidentes quando Deus se revelou na Sua forma. Numa das ocasiões, na travessia do Mar Vermelho, Deus surgiu como um jovem guerreiro, um herói. No Monte Sinai, Deus apareceu como um juiz idoso. Porque é que Deus parecia um juiz no Monte Sinai e não no Mar Vermelho? Porque no Mar Vermelho as pessoas precisavam de um herói. Um homem idoso não teria resultado - vira-se para mim. - É claro, isto é algo com que está familiarizada.
- Não. Nunca tinha ouvido falar disso.
- A sério? - o rabi Weissman examina-me. - Perguntei à Faith se ela era capaz de fazer um desenho do Deus que ela vê.
Entrega-me uma folha de papel, desenhada a lápis de cera de um dos lados. Preparo-me para não ficar impressionada: afinal, já vi a Faith desenhar esta amiga imaginária. Mas este desenho é diferente. Uma mulher vestida de branco está sentada numa cadeira, embalando dez bebés nos braços, bebés negros, brancos, vermelhos e amarelos. E embora o traço seja cru, o rosto desta mãe parece-se um pouco com o meu.
- Está a dizer que ela acha que Deus é parecido comigo? - pergunto por fim.
O rabi Weissman encolhe os ombros.
- Não estou a dizer nada. Mas outras pessoas poderão dizer.
Vestido daquela maneira, com um elegante fato italiano, com os seus cabelos bem penteados e os seus modos bruscos, o Dr. Grady De Vries, perito em esquizofrenia infantil, não parece ser o tipo de homem que passaria a maior parte das três horas sentado no chão ao lado da Faith, a brincar com a Barbie careca. E, no entanto, tenho estado sentada junto à janela de observação a vê-lo fazer precisamente isso. Passado algum tempo, ele e a Dr.a Keller entram pela porta adjacente ao consultório da psiquiatra.
- Sr.a White - diz a Dr.a Keller -, o Dr. De Vries gostaria de falar consigo.
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Ele senta-se numa cadeira à minha frente.
- Quer ouvir as boas notícias ou as más notícias?
- As boas.
- Vamos suspender o Risperdal. A sua filha não é psicótica. Já estudo a psicose em crianças há vinte anos. Publiquei livros e ensaios sobre o assunto, e já fui testemunha especialista em julgamentos, bem, já faz uma ideia. A Faith é, de todas as formas excepto uma, uma menina de sete anos mentalmente saudável e razoavelmente satisfeita.
- E as más notícias?
O Dr. De Vries esfrega os olhos com o polegar e o indicador.
- A Faith está a ouvir algo, e a falar com alguém. Há demasiados conhecimentos que não são apropriados para a sua idade nem para as suas circunstâncias, e que não podem ser produto da sua imaginação. Mas não se trata de uma doença física, e também não me parece ser uma doença mental - olha para a Dr.a Keller. - com a sua licença, vou pedir à Dr.a Keller que apresente este caso na próxima semana num simpósio psiquiátrico, para ver se os nossos colegas têm algumas respostas.
Através do vidro de observação, vejo Faith a lançar um Sky Dancer ao ar. Quando ele bate nas luzes fluorescentes, ela ri e tenta fazê-lo de novo.
- Não sei... não quero que ela se torne numa espécie de espectáculo.
- Ela não estará presente, Sr.a White. E o caso será apresentado anonimamente.
- Se fizer isso, vai descobrir qual é o problema? O Dr. De Vries e a Dr.a Keller trocam um olhar.
- Esperemos que sim, Sr.a White - diz ele. - Mas pode não ser algo que possamos tratar.
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Quatro
Há mais fé numa dúvida sincera, Acreditem, do que em metade dos credos. Alfred, Lorde Tennyson
27 de Setembro de 1999
Quando Allen McManus é nomeado para fazer a cobertura de simpósios, encara o assunto como mais seis horas de sono. De vez em quando, alguns médicos intelectuais reúnem-se no Harbor Hotel em Boston para garantir que é enviado um correspondente do The Boston Globe. Independentemente do facto de que durante a maior parte do tempo Allen McManus escreve obituários - é ele que é enviado. É claro que o seu coordenador editorial se apercebe da ligação: a maioria destas horríveis conferências é suficiente para nos matar de tédio.
Allen está refastelado na fila de trás do auditório. Já escreveu o nome do simpósio, o que ele acha que é o suficiente para as duas linhas de texto que merece. Está pronto para tapar o rosto com o chapéu e fazer uma sesta. Mas então uma mulher atraente sobe ao pódio. Isso desperta a curiosidade de Allen. Afinal, apesar da sua profissão, ainda não está morto. A maioria dos oradores nestes simpósios são velhos jarretas que lhe fazem lembrar alternadamente o pai e o padre da sua infância em Southie que costumava bater-lhe nos nós dos dedos quando ele não se comportava adequadamente enquanto acólito. Endireita-se, interessado naquilo que o rodeia pela primeira vez naquele dia.
A mulher é esbelta e esguia, com o cabelo preso atrás das orelhas enquanto coloca as suas notas no pódio.
- bom dia, eu sou a Dr.a Mary Keller - Allen observa os olhos
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dela percorrerem as notas, hesitando. - Senhoras e senhores - diz ela -, dado o assunto não ortodoxo que vou apresentar, não vou ler o trabalho que tinha preparado. Em vez disso, gostaria de referir dois casos de estudo. O primeiro é de uma paciente actual, de sete anos de idade, cuja mãe a trouxe para receber tratamento. A paciente criou uma amiga imaginária, a que se refere como Deus. O segundo caso de estudo ocorreu há mais de trinta anos
A Dr.a Keller fala sobre uma criança na escola paroquial, obrigada a permanecer ajoelhada durante longos períodos como penitência. Fala sobre um dia em que esta criança de cinco anos sentiu algo mover-se ao seu lado, algo quente e sólido, e quando se voltou não viu absolutamente nada.
- A questão que eu coloco aqui perante vós é a seguinte - diz a Dr.a Keller. - Se não houver componente físico numa alucinação, se não houver diagnóstico onde os comportamentos possam ser enquadrados como uma doença mental geralmente aceite, o que nos resta como diagnóstico?
Allen sente os médicos na fila à sua frente mexerem-se subtilmente. "Caramba! Esta mulher está a cometer suicídio profissional", pensa ele, adivinhando o rumo que ela está a tomar.
- Se a doença mental e física for posta de parte, estará de facto ao alcance de um psiquiatra autenticar o comportamento? Dizer que é possível que a alucinação seja realmente uma visão? - percorre devagar toda a assistência incrédula com os olhos. - A razão por que estou a perguntar-vos isto é o facto de eu ter a certeza de que um, se não os dois pacientes, está a dizer a verdade. Sei-o porque a criança que ficava ajoelhada na capela, que sentia... algo indescritível... era eu. E porque passados trinta anos, no meu próprio consultório, com outra criança como paciente, voltei a sentir o mesmo.
Allen McManus desvia os olhos da Dr.a Keller, sai discretamente pela parte de trás do auditório e faz um telefonema ao seu editor.
Na porta de embarque, Colin observa Jessica verificar os bilhetes deles pela centésima vez. Ela parece-se com qualquer outra executiva em viagem, com o seu fato de bom corte e o seu computador portátil - parece-se com o próprio Colin. Ao vê-la, ninguém se aperceberia de que no final desta conferência de vendas em Las Vegas, planeia casar-se numa igreja drive-in e passar o fim-de-semana da lua-de-mel a jogar.
- Estás entusiasmado? - ronrona ela, encostando-se a ele. - É que eu estou.
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- Eu, hum, preciso de ir à casa de banho - Colin sorri-lhe e afasta-se, aparentemente na direcção da casa de banho dos homens. Não tem a certeza do que acha acerca de se casar em Las Vegas. Realizado por um juiz de paz falso, com um sósia do Elvis a fazer-lhes uma serenata e bouquets baratos à venda por cinco dólares cada, este casamento será bastante diferente do seu casamento com Mariah.
A ideia tinha sido de Jessica. De qualquer forma tinham de ir a Las Vegas por causa da conferência.
- Para além disso - tinha rido ela, esfregando a barriga - imagina as histórias que vamos poder contar-lhe.
Agora interroga-se se o seu casamento com Mariah teria resultado se ele se tivesse casado com ela na capela da Lua em Lãs Vegas em vez de na de St. Thomas, na Virgínia, com mais pompa e circunstância do que num casamento real. Se estivesse disposto a dançar - como é que se chama? Na roda! - ou a partir um copo debaixo do pé, se não tivesse pura e simplesmente presumido que aquela era a maneira certa, talvez as diferenças entre eles não tivessem sido tão pronunciadas. Assim, Colin culpa-se por aquilo que aconteceu à sua ex-mulher. Pediu-lhe que se vergasse tanto aos seus desejos que ela acabou por ceder.
Em vez de entrar na casa de banho dos homens, Colin senta-se numa exígua cabina telefónica e telefona para a sua antiga casa.
- Mariah - diz ele quando ela atende. Há um momento de pausa.
- Colin - embora ele tente não o fazer, consegue ouvir a nota de alegria na sua voz. Fa-lo sentir-se desconfortável; sempre fez. Quem é que no seu juízo perfeito deseja ser o salvador de alguém?
Colin encosta a testa à parede de metal da cabina e tenta encontrar palavras para o que tem a dizer.
- Como é que estão as costas da Faith? - pergunta em vez disso.
- Muito melhor. Agora já usa camisolas.
- Ainda bem.
No silêncio que se segue, Colin lembra-se de repente como antigamente a Mariah costumava ficar incomodada com as pausas na conversa. Precipitava-se nas frases, tagarelava sobre nada, em vez de aguentar a demora. Aqui está ela, de boca fechada, como se estivesse a tentar guardar um segredo tal como ele.
- Estás bem? - pergunta ela por fim.
- Estou. vou para Las Vegas por causa de uma conferência.
- Oh - diz ela num tom suave, monocórdico, e ele sabe o que ela quer dizer com aquela única palavra: "Como é possível que a tua
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vida tenha continuado?" - Então suponho que estejas a telefonar para falar com a Faith.
- Será... não há problema?
- Tu és pai dela, Colin. É claro que não há problema. Ouve-se um ruído de estática, e antes que Colin possa dizer
mais alguma coisa a Mariah, Faith está na linha.
- Olá, papá.
- Olá, fofinha - enrola a serpente de metal do fio do telefone em volta do braço. - Queria dizer-te que vou estar algumas semanas fora.
- Tu estás sempre a viajar.
Colin apercebe-se de que ela tem razão. com a quantidade de viagens que faz por causa do seu trabalho, as suas recordações de Faith - e provavelmente as que ela tem dele - envolvem quase sempre despedidas ou regressos.
- Mas tenho sempre saudades tuas.
- Eu também - Faith funga e passa o telefone de novo a Mariah.
- Desculpa - diz ela. - Ultimamente tem andado um bocado imprevisível.
- Bem. É compreensível.
- Claro.
- É apenas uma criança.
- Eu sei. Tenho a certeza de que ela gostou que tivesses telefonado.
Colin admira-se por parecerem ambos tão estranhos: as palavras de Mariah antigamente passavam por cima dele como ondas numa praia, um tagarelar contínuo sobre talões de lavandaria, e reuniões na escola, e promoções na mercearia a que ele nunca prestava verdadeiramente atenção, em que nunca reparava, até cessar e ele se aperceber com espanto de que estava enterrado até ao pescoço nas areias do seu casamento. Interroga-se como é possível passar-se num abrir e fechar de olhos de dizer palavras lançadas tão irreflectidamente como moedas que temos no bolso a isto, quando até a conversa mais inofensiva nos deixa esgotados.
- Então... é tudo? - Mariah hesita por uma fracção de segundo antes de perguntar: - Ou querias falar comigo?
Há tantos assuntos para discutir: o casamento, como Mariah tem passado, como parece estranho estar a quilómetros de distância e mesmo assim sentir-se como se estivesse a espreitar à volta de um grande muro alto.
- É tudo - diz Colin.
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29 de Setembro de 1999
Ian paga apenas a três pessoas para lerem jornais das cidades mais importantes dos Estados Unidos e da Europa. Todas as manhãs, às oito horas, estes assistentes devem apresentar-se no seu gabinete com dois eventos duvidosos de carácter místico. Numa manhã, depois da sua Campanha Contra o Espírito Religioso Junto das Comunidades decorrer há duas semanas, estão sentados nos aposentos exíguos da caravana.
- Muito bem - Ian volta-se para David, o seu empregado mais novo. - O que é que encontraste?
- Um frango com duas cabeças e uma mulher de setenta e cinco anos que deu à luz.
- Não brinques - disse Yvonne com desprezo. - O recorde é daquela mulher da Florida.
A história também não entusiasma Ian particularmente.
- O que é que têm que seja melhor?
- Círculos nas searas no lowa.
- Não quero meter-me nisso. Acreditar em Deus e acreditar em extraterrestres são duas coisas completamente diferentes. Wanda?
- Há uma estranha fonte de luz no fundo de um poço no Montana.
- Parecem-me resíduos radioactivos. Mais alguma coisa?
- Sim, por acaso, há. Em Boston houve uma agitação num simpósio de psiquiatria.
Ian sorri.
- Ora isso é que é um oximoro.
- Pois, eu sei. Parece que uma médica qualquer referiu que se uma alucinação não puder ser refutada, é possível que seja real.
- É o tipo de psiquiatra que me agrada. Que alucinação, concretamente?
- A psiquiatra tem uma paciente, uma menina, que ela acha que talvez veja Deus.
O corpo de Ian começa a vibrar.
- Ah sim? Quem é a miúda?
- Não sei. Os psiquiatras não revelam nomes nestes simpósios. São apenas "pacientes" - Wanda procura dentro do bolso das calças de ganga. - Mas tenho o nome da psiquiatra - diz ela, entregando um pedaço de papel a Ian.
- A Dr.a Mary Margaret Keller - lê Ian. - Não conseguiu refutar uma alucinação, ha? Provavelmente fez a criança ser examinada
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por cinquenta pessoas como ela. O que ela precisa é de uma pessoa como eu.
Quando alguém bate à porta, o rabi Weissman olha por cima dos seus livros. Gemendo, apercebe-se de que são dez horas. Altura de outra sessão de aconselhamento com os Rothman.
Por uma fracção de segundo, põe a hipótese de fingir que não está ali. Não há nada de que goste menos do que ficar sentado enquanto os Rothman lançam insultos um ao outro com uma tal virulência que ele receia ser apanhado no meio do fogo cruzado. Tem consciência do papel de um rabi no que diz respeito a ajudar os membros da sua congregação, mas isto? Terapia conjugal? O rabi abana a cabeça. Parece-se mais com tiro ao alvo.
com um suspiro, o rabi Weissman cola um sorriso no rosto e abre a porta do seu gabinete, momentaneamente espantado ao ver Eve e Herb Rothman beijarem-se no corredor.
Eles afastam-se com uma catadupa de desculpas embaraçadas. O rabi Weissman observa incrédulo o casal puxar duas poltronas para as aproximar mais antes de se sentarem. com certeza que este não é o mesmo homem que na semana passada tinha chamado à mulher vaca intriguista determinada a tirar-lhe todo o dinheiro que tanto trabalho lhe tinha dado a ganhar. De certo que esta não é a mesma mulher que na semana passada tinha dito que da próxima vez que o marido chegasse a casa a cheirar a harém ia cortar-lhe o baytsim a meio da noite.
- Bem - diz ele, erguendo uma sobrancelha inquiridora. Os dedos de Eve apertam-se entre os do seu marido.
- Eu sei - diz ela timidamente. - Não é maravilhoso?
- É mais que maravilhoso - diz Herb entusiasticamente. - Não é que não gostemos de si, rabi, mas a Evie e eu já não vamos precisar dos seus serviços.
O rabi Weissman sorri.
- Esse é o tipo de rejeição que me agrada. O que motivou isto?
- Não foi nada em concreto - admite Eve. - Apenas comecei a sentir-me diferente.
- Eu também - diz Herb.
Se o rabi se lembra correctamente, teve de separar o casal como se fossem dois lutadores na última consulta, para impedir que se agredissem fisicamente um ao outro. Os Rothman conversam durante mais alguns minutos, e depois desejam felicidades ao rabi e saem do gabinete. O rabi Weissman fica a olhar para eles quando se vão embora, abanando a cabeça. Deus interveio de certeza. Até
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Ele teria apostado que o casamento dos Rothman estava demasiado desfeito para ser reatado.
Não tinha com certeza sido devido a alguma coisa que ele tivesse dito - era evidente que ia lembrar-se de um grande sucesso neste caso. Tê-lo-ia assinalado num Post-it, deixado uma nota para si próprio no calendário. Mas não há nenhum registo da semana passada na agenda, absolutamente nada.
Tinha apenas a hora da consulta deles, e registado em baixo, às onze da manhã, o nome da pequena Faith White.
A meio da noite, Faith acorda e cerra as mãos em punhos. Doem-lhe o suficiente para a fazer choramingar, como daquela vez em que a Betsy Corcoran a tinha desafiado a agarrar-se ao mastro da bandeira no dia mais frio do Inverno e a sua pele quase tinha gelado ficando presa ao metal. Vira-se para o outro lado e mete as mãos debaixo da almofada, onde os lençóis ainda estão frios.
Mas isso também não ajuda. Remexe-se um pouco mais, interrogando-se se não deveria levantar-se para ir fazer chichi agora que esta acordada ou ficar ali à espera que as mãos deixassem de lhe doer. Uma vez tinha-se levantado a meio da noite e o pé parecia estar do tamanho de uma melancia e com picadas, mas a mãe tinha dito que estava só com formigueiro e que devia voltar para a cama. Embora não houvesse formigas no chão, e quando Faith verificara, também não estava nenhuma a picar-lhe a planta do pé.
Vira-se novamente e vê a sua guardiã sentada na beira da cama.
- Doem-me as mãos - queixa-se ela, e ergue-as para que as examine.
A sua guardiã inclina-se para a frente para ver.
- Não vai doer por muito tempo.
Isso faz Faith sentir-se melhor. É como quando às vezes está quente e doente e a mãe lhe dá pequenos comprimidos que ela sabe que vão fazer passar a dor de cabeça. Faith observa a sua guardiã levantar-lhe a mão esquerda primeiro, e depois a direita, e dar um beijo mesmo no meio de cada palma. Os lábios dela estão tão quentes que Faith primeiro dá um salto e tira as mãos. Quando olha para baixo, vê: o beijo da sua guardiã impresso na sua pele num círculo vermelho. Pensando ser bâton, Faith tenta esfregá-lo com o polegar, mas não sai.
A sua guardiã fecha-lhe cuidadosamente os dedos, cerrando-lhe os punhos. Faith ri; gosta da ideia de -agarrar num beijo.
- Vês como te amo? - diz a sua guardiã, e Faith continua a sorrir até adormecer.
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30 de Setembro de 1999
Seria bom que Ian pudesse afirmar que o seu sexto sentido para desmascarar os embustes foi o que o conduziu directamente à Faith White, mas isso não é verdade. Tal como qualquer outro mestre em fazer planos, sabe que a melhor maneira de se manter informado é ter muitos recursos. Portanto, depois de a Dr.a Keller recusar reunir-se com ele, põe o plano B em acção.
Demora meia hora a encontrar um roupeiro no hospital local e a localizar umas calças e uma bata limpas. Dez minutos para transmitir a Ivonne as informações necessárias e vê-la entrar pelas portas deslizantes de vidro do hospital, vestida para passar despercebida.
Ela regressa passados quinze minutos, radiante.
- Dirigi-me à enfermeira que marcava as ressonâncias magnéticas e disse-lhe que a Dr.a Keller não tinha recebido os relatórios daquela paciente de sete anos. Portanto ela disse, "Oh, a Faith White?" vai procurar no computador e diz que foram enviados há uma semana. Faith White - repete. - Assim.
Mas Ian já avançou. Já está a percorrer a longa lista de Whites com o dedo na lista telefónica. Tirando o telemóvel do bolso, telefona para o primeiro nome da lista.
- Está. Queria falar com a mãe da Faith White? Oh! Peço desculpa.
Faz o mesmo mais duas vezes, sem sucesso, e depois chega a um atendedor de chamadas:
- Contactou o Colin a Mariah e a Faith. Por favor, deixe a sua mensagem.
Ian faz um círculo em volta do endereço e olha para os seus empregados.
- Bingo.
New Canaan não é uma cidade fácil de percorrer. À excepção da Main Street, que conduz à mais robusta e funcional Route 4 em ambos os extremos, não há muitas coisas que se destaquem. A escola, a esquadra da polícia, o cabeleireiro, o edifício profissional e o Donut King são as sentinelas que nos informam de que estamos a passar por New Canaan. Mas se não conhecermos o caminho pelas estradas estreitas que atravessam os campos de milho ou pelos trilhos sinuosos que passam pela Bear Mountain, arriscamo-nos a perder as casas rurais e as casas antigas onde os residentes de New Canaan realmente vivem.
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Os membros da Ordem da Grande Paixão reúnem-se dentro e em volta do Donut King. Cansados e irritáveis devido à sua viagem a pé pelo país desde Sedona, parecem mais empenhados em encontrar a casa de banho mais próxima do que um novo Messias - o objectivo original que os trouxera a New Canaan. O irmão Heywood, o seu líder, atravessa a Main Street, olhando para a extensão de terreno que pertence a uma quinta registada de criação de gado Holstein. New Canaan, pensa ele. Terra de leite e mel. Mas para dizer a verdade, não faz ideia se terá conduzido o seu rebanho ao sítio certo. O Messias podia estar em Nova Inglaterra, Nova Iorque, New Brunswick. Tira do bolso um conjunto de runas e lança-as para a terra aos seus pés. Está a esfregar uma das pedras gravadas com o polegar quando quase sufoca numa nuvem de poeira e terra.
A caravana que vira demasiado depressa faz o irmão Heywood recuar, tropeçando. Levanta-se e protege os olhos do sol, tentando ver o número da matrícula - não é que esteja a pensar em apresentar queixa, visto ter aderido a uma filosofia não intervencionista há alguns anos, mas os velhos hábitos são difíceis de abandonar. Contudo, os seus olhos são atraídos do azul da matrícula para a bola de fogo em tons vivos que adorna a porta de trás da caravana.
O irmão Heywood volta a meter as runas no bolso da sua longa túnica e tira rapidamente um par de binóculos dobráveis de um segundo bolso.
IAN FLETCHER, lê. EM BUSCA DA VERDADE.
Bem, era preciso estar isolado do mundo para não conhecer o nome de Ian Fletcher. O seu rosto está num cartaz mesmo nos arredores de Sedona, e o seu espectáculo é vendido às televisões independentes até ao fim dos tempos. De uma certa forma, Heywood imagina-se como o ateu mediatizado - disposto a ir contra o sistema e enfrentar a humilhação pública, tudo em nome da religião. Só que as expectativas do irmão Heywood em relação ao resultado final são consideravelmente diferentes das de Ian Fletcher.
Apesar disso, sabe o que Fletcher faz para ganhar a vida, e já ouviu falar da sua digressão antievangélica através do país. Encontra apenas uma razão que faria Ian Fletcher vir a New Canaan, no New Hampshire - e isso significa que afinal a Ordem não veio até ali em vão. Assegurando-se de que ninguém está a ver, o irmão Heywood ergue os binóculos e segue mentalmente o caminho que conduz à distante casa rural, o lugar onde a caravana acaba finalmente por parar.
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Na quinta-feira, Mariah passa a manhã a ver o vídeo de Agnes de Deus e, por isso, atrasa-se para ir às compras na mercearia. Quando estaciona junto à escola primária, preparada para ir buscar a Faith depois de terem acabado as aulas, o porta-bagagem está cheio de mercearias. A campainha toca, e Mariah posiciona-se no lugar habitual, ao lado de um grande ácer junto às salas de aula do primeiro ano, mas a Faith não aparece. Espera até que a última criança tivesse saído da escola, e depois dirige-se à secretaria.
Faith está sentada no sofá roxo demasiado rígido ao lado da secretária, a chorar, com as leggings rasgadas nos joelhos e os cabelos a saírem-lhe da trança, colando-se às suas faces molhadas. Puxou as mangas e escondeu os punhos dentro delas. Limpa o nariz ao tecido.
- Mamã, posso nunca mais ir à escola? Mariah sente o coração apertado.
- Tu adoras a escola - diz ela, ajoelhando-se, para confortar Faith e para bloquear o olhar curioso da secretária da escola.
- O que aconteceu?
- Eles troçam de mim. Dizem que sou doida.
"Doida." Enchendo-se de uma fúria justa, Mariah coloca um braço em volta da filha.
- Porque é que haveriam de dizer isso? Faith curva os ombros.
- Porque ouviram-me falar com... ela.
Mariah fecha os olhos e faz um apelo silencioso - a quem? - para que isto se resolva, rapidamente. Faz Faith endireitar-se e segura-lhe na mão calçada com uma luva, puxando-a para fora da secretaria.
- Sabes uma coisa? Talvez possas não ir à escola, só amanhã. Podemos fazer umas coisas, tu e eu, o dia todo.
Faith ergue o rosto para o da mãe.
- A sério?
Mariah acena com a cabeça.
- Às vezes fazia feriados especiais com a avó - o seu maxilar contrai-se ao lembrar-se de como a mãe costumava chamar-lhes: um dia de saúde mental.
Percorrem as estradas sinuosas de New Canaan, e Faith começa lentamente, aos poucos, a contar o seu dia na escola a Mariah. Quando viram para a via de acesso a casa, Mariah abre a janela e, no momento em que vai pegar na correspondência, repara no número de carros estacionados de cada lado da estrada. Caminhantes ou pessoas que vêm observar as aves, no campo do outro lado da rua. Vêm muitas vezes até ali. Continua a conduzir, e então vê a multidão em volta da casa.
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Há furgonetas e carros e, por amor de Deus, uma grande caravana pintada.
- Uau - diz Faith sem fôlego. - O que se passa?
- Não sei - diz Mariah, tensa.
Desliga o carro e sai para junto de uma multidão de quase vinte pessoas. Imediatamente as câmaras começam a disparar flashes e as perguntas são-lhe lançadas como dardos.
- A sua filha está no carro?
- Deus está junto dela?
- A senhora também vê Deus?
Quando a porta de Faith se entreabre, as perguntas cessam. Mariah observa a filha sair do carro e pôr-se nervosamente de pé no caminho de xisto que conduz à casa. Junto a ele, de ambos os lados, está uma dúzia de homens e mulheres de longas túnicas que baixam a cabeça quando Faith olha para eles. Atrás, e ligeiramente distanciado, está um homem a fumar um fino charuto. O rosto parece familiar a Mariah. Sobressaltando-se, apercebe-se de que o viu na televisão - o próprio Ian Fletcher está encostado à sua macieira.
De repente, Mariah percebe exactamente o que está a acontecer. De alguma maneira, as pessoas estão a começar a ouvir falar de Faith. Sentindo-se agoniada, coloca um braço em volta dos ombros da filha e leva-a para o alpendre. Puxa Faith para dentro de casa consigo e tranca a porta.
- Porque é que estão aqui? - Faith espreita pelo vidro da porta e é afastada pela mãe antes que a possam ver.
Mariah massaja as têmporas.
- Vai para o teu quarto. Faz os trabalhos de casa.
- Não tenho.
- Então arranja! - diz Mariah num tom brusco. Dirige-se para a cozinha e agarra no telefone, com as lágrimas já a acumularem-se na garganta. Precisa de chamar a polícia, mas primeiro marca outro número. Quando a mãe atende ao segundo toque, Mariah solta o primeiro soluço.
- Vem, por favor - diz ela, e desliga.
Senta-se junto à bancada da cozinha, com as palmas das mãos abertas na fórmica fria. Conta até dez. Pensa no leite, nos pêssegos e nos brócolos que estão dentro do porta-bagagem, a começar a apodrecer.
Ian Fletcher é muito bom no seu trabalho. É implacável, motivado, obcecado. Então fixa os olhos na menina, o seu próximo objecto de estudo, e observa-a sair do carro.
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Mas a sua atenção é desviada para a mulher que está ao lado de Faith White. A expressão de medo no seu rosto, a sua graça inconsciente, a forma instintiva como coloca o braço em volta da filha - tudo isso chamou a atenção de Ian. É pequena e delicada, com cabelos da cor do ouro velho. Estão afastados do rosto, que é pálido e sem maquilhagem, e é provável que seja a coisa naturalmente mais bonita que Ian viu desde que subiu às cataratas da América do Sul. Não tem uma beleza clássica, não é perfeita, mas de alguma forma isso apenas a torna mais interessante. Ian abana a cabeça para afastar estes pensamentos. Costuma divertir-se com modelos e estrelas de cinema não devia ser arrebatado por uma mulher com rosto de anjo.
Anjo? A própria ideia é traiçoeira, ridícula. É da maldita caravana, decide. Passar a noite num catre de espuma, em vez de num colchão luxuoso de hotel, agrava a sua insónia ao ponto de não conseguir raciocinar correctamente, ao ponto de qualquer pessoa com um par de cromossomas X se tornar atraente.
Ian concentra-se em Faith White, caminhando sob o braço da mãe. Mas então comete o erro de olhar para cima - e cruza o olhar com o de Mariah White. Frio, verde, zangado. "Que comece a batalha", pensa Ian, relutante e incapaz de desviar o olhar até ela fechar firmemente a porta.
- Digam uma coisa, para além da existência de Deus, em que acreditemos cegamente - desafia Ian, erguendo a voz como um apelo às armas para o pequeno grupo de pessoas reunidas para o escutar. A notícia da presença de Ian já atraiu alguns espectadores, para além dos vários jornalistas. - Não há nada! Nem uma única coisa. Nem mesmo o nascer do Sol todos os dias. Sei que vai acontecer, mas é algo que posso provar cientificamente.
Encosta-se à vedação de uma plataforma de madeira erguida à pressa ao lado da caravana para momentos mediáticos como este.
- Posso provar que Deus existe? Não.
Observa as pessoas pelo canto do olho segredarem umas às outras, talvez até criticando a razão que os fez ir até ali para ver a miraculosa Faith White em primeiro lugar.
- Sabem o que é a fé, o que é a religião? - olha propositadamente para os membros da Ordem da Grande Paixão de vestes vermelhas, reunidos junto uns dos outros de sobrolho franzido. - É uma seita. Quem é que nos dá a religião? Os nossos pais fazem-nos uma lavagem ao cérebro quando temos quatro ou cinco anos e somos mais receptivos a ideias fantasiosas. Dizem-nos que temos de acreditar em Deus e, por isso, acreditamos.
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Ian ergue uma mão em direcção à casa rural branca.
- E agora a palavra de uma menina que, devo acrescentar, tem precisamente a idade certa para acreditar em fadas, e duendes, e no Coelho da Páscoa também, é suficiente para vos convencer? - percorre a multidão com um olhar calculado. - vou fazer-vos outra vez a mesma pergunta: Em que mais acreditamos cegamente?
Diante do silêncio absoluto, Ian sorri.
- Bem, deixem-me dar-vos uma ajuda. A última coisa em que acreditaram com uma convicção absoluta e inabalável foi... no Pai Natal - ergue as sobrancelhas. - Por muito impossível que pareça, por muitas provas em contrário que houvesse, quando eram crianças queriam acreditar, e por isso acreditavam. E por muito rude que a comparação pareça, não é assim tão diferente de acreditar na existência de Deus. Ambos nos dão um bónus baseando-se no facto de nos termos portado bem ou mal. Ambos fazem o seu trabalho sem serem vistos. Dependem muito da ajuda de criaturas míticas: elfos, num dos casos, anjos, no outro.
Ian deixa que os seus olhos se fixem num dos membros da seita, num jornalista local, numa mãe com uma criança ao colo.
- Então porque é que não acreditam todos no Pai Natal hoje em dia? Bem, porque cresceram, e aperceberam-se de como tudo aquilo era impossível. O Pai Natal passou de facto a excelente história, que devemos contar aos nossos filhos. Da mesma maneira que os vossos pais vos falaram de Deus quando eram pequenos - hesita por um momento, deixando o silêncio adensar-se. - Não vêem que Deus também é um mito?
Millie Epstein bate violentamente com a porta do carro. Pelo que está a ver, a linda e antiga casa rural de Mariah está rodeada de lunáticos. Pelo menos vinte pessoas estão reunidas na longa via de acesso, algumas até se atrevem a pisar a relva que rodeia o alpendre. Entre estas encontram-se algumas pessoas com bizarras camisas de noite vermelhas, alguns habitantes locais curiosos, e duas furgonetas com letras identificando as estações de televisão de lado, cheias de jornalistas. Millie afasta-os a todos do seu caminho até chegar ao alpendre, onde encontra o chefe da polícia.
- Thomas - diz ela. - Que raio de circo é este? O chefe da polícia encolhe os ombros.
- Acabei de chegar, Sr.a Epstein. Pelo que sei, baseando-me no que dizem os jornalistas aqui, há um grupo que diz que a sua neta é Jesus, ou algo do género. E depois há um outro tipo que não só diz que a Faith não é Jesus, como também que Jesus não existe.
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- Não podemos tirá-los do relvado da Mariah?
- Ia fazer precisamente isso agora - admite. - É claro que só posso levá-los até à estrada. É um local público. Mille examina o grupo.
- Podemos falar com a Faith? - grita um jornalista. - Traga-a cá para fora!
- Pois!
- Traga a mãe também!
As vozes elevam-se e, horrorizada, Millie apenas pode ficar a ouvir. Então cruza os braços por cima do peito e fica a olhar para a multidão.
- Isto é propriedade privada; não podem estar aqui. E estão a referir-se a uma criança. Uma criança. Será que acreditam na palavra de uma criança de sete anos?
Da frente da multidão ouve-se alguém bater palmas, devagar, deliberadamente.
- Parabéns, minha senhora - Ian Fletcher diz no seu sotaque sulista. - Uma afirmação racional, mesmo no meio da confusão. Imagine-se.
Entra no campo de visão de Millie, continuando a avançar até ela conseguir ver que se trata de Ian Fletcher, aquele do programa de televisão, e que por muito belo que seja e por muito melíflua que seja a sua voz, sabe que cometeu um erro terrível por alguma vez o ter achado atraente. Millie lançou uma migalha de dúvida à multidão, para terem qualquer coisa para devorar para além da sua neta. Mas este homem... este homem semeia a dúvida para que fossem todos comer-lhe à mão.
- Aconselho-o a ir-se embora - diz Millie numa voz tensa. - A minha neta não tem qualquer interesse para si.
Ian exibe um sorriso radioso.
- A sério? Então não acredita na sua própria neta? Suponho que saiba que uma criança que diz que fala com Deus é apenas isso... uma criança que diz que fala com Deus. Nada mais, nem milagres sequer. Apenas um grupo de aduladores, membros de uma seita, que já deixam muito a desejar em termos de respeitabilidade. Mas isso não é certamente o suficiente para se gerar um frenesim em volta do assunto, pois não?
As suas palavras são doces como o mel; percorrem Millie e deixam-na imóvel junto ao alpendre.
- Minha senhora, simpatizo consigo.
Millie semicerra os olhos, abre a boca e, em seguida, agarrada ao peito, cai no chão aos pés de Ian.
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Mariah abre a porta de entrada e ajoelha-se junto da mãe,
- Mãe! - grita ela, abanando os ombros flácidos de Millie. Chamem uma ambulância!
Vêem-se alguns flashes das câmaras aqui e ali. Ignorando-os, Mariah debruça-se por cima de Millie, aproximando o ouvido da boca da mãe. Mas não sente respiração, nenhum movimento denunciador dos seus cabelos. É o coração, é o coração, tem a certeza. Aperta a mão da mãe, certa de que se a largar, mesmo que muito ligeiramente, irá perdê-la.
Passados alguns momentos, a ambulância sobe a via de acesso uivando, levantando a gravilha, aproximando-se o máximo que pode devido à mistura de furgonetas, camionetas da comunicação social e a caravana. Os paramédicos correm pelas escadas do alpendre acima. Um deles afasta suavemente Mariah da frente e o outro começa a fazer a reanimação cardio-respiratória.
- Oh, meu Deus - sussurra Mariah, num fio de voz. - Oh, meu Deus. Deus. Oh, meu Deus.
"Oh, minha guardiã. Guardiã. Oh, minha guardiã." Do esconderijo onde tem estado aninhada desde que tinha saído sorrateiramente de casa, a cabeça de Faith ergue-se. E ela invoca sons tão semelhantes aos da mãe que pela primeira vez se apercebe do que tem estado a dizer desde o início.
Ian observa Mariah White discutindo por entre as lágrimas com os paramédicos, que se recusam a deixar Faith entrar na ambulância. O chefe da polícia intercede, prometendo levar a sua filha para o hospital assim que cheguem reforços para tirar toda a gente da sua propriedade. De mãos nos bolsos, observa a ambulância uivar pela via de acesso.
- Lindo serviço.
Ian sobressalta-se ao ouvir a voz e encontra o seu produtor executivo com as chaves de um carro na mão.
- Tome. Hoje à noite vai ter cobertura televisiva de certeza. Por provocar um ataque cardíaco numa mulher idosa.
- Ora bem - diz Ian. - Não posso pedir mais.
- Então do que está à espera? Ian agarra nas chaves.
- Certo - diz ele, elevando-se rapidamente à altura das expectativas de James e olhando em volta à procura do BMW do produtor. Nem sequer se dá ao trabalho de chamar um operador de câmara, sabendo que nunca os deixarão entrar no hospital. - Não faça corridas com a minha caravana - grita ele, e depois acelera.
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Na sala de espera do Serviço de Urgências olha para o televisor a transmitir desenhos animados numa imagem pouco nítida. Não há sinal de Mariah White. Faith chega passados dez minutos acompanhada por um jovem polícia. Sentam-se a algumas filas de distância e, de vez em quando, ela vira-se no seu assento para olhar para Ian.
É simplesmente desconcertante. Ian não tem grande consciência, por isso o seu trabalho raramente o deixa num estado de espírito contemplativo. Afinal, as pessoas que normalmente incomoda mais são os malditos Baptistas do Sul, dos quais outrora já fizera parte e que, na opinião de Ian, se encontram tão ocupados em tomar as suas doses diárias de Jesus que precisam de se engasgar com o seu moralismo de vez em quando. Uma vez uma mulher desmaiou mesmo a meio de um dos seus discursos no Central Park, mas não é a mesma coisa. A avó da Faith White - Ian nem sequer sabe o nome dela - bem, o que aconteceu deveu-se em parte a algo que Ian tinha dito, algo que tinha feito.
"É uma história. Não a conheces, e a história é tua!", diz para consigo próprio.
O pager do polícia começa a tocar. Verifica-o, e depois vira-se para Faith e pede-lhe que não saia dali. Dirigindo-se para um conjunto de telefones, o polícia pára junto da secretária da enfermeira da triagem e fala em voz baixa, sem dúvida pedindo à mulher que tome conta da criança por um minuto.
Quando Faith se vira para olhar para ele novamente, Ian fecha os olhos. Depois ouve a sua vozinha aguda.
- Senhor?
De repente está sentada ao seu lado.
- Olá - diz ele, passado um momento.
- A minha avó morreu?
- Não sei - admite Ian. Ela não reage e, curioso, ele olha para ela. Faith está aninhada junto ao braço da cadeira, meditando. Não vê uma pessoa tocada por Deus. Vê uma menina assustada.
- Então - diz ele, tentando desconfortavelmente distraí-la. Aposto que gostas das Spice Girls. Eu conheço as Spice Girls - confidencia.
Faith olha para ele pestanejando.
- Foi por causa de si que a minha avó caiu? Ian sente o estômago às voltas.
- Acho que sim, Faith. E lamento muito. Ela desvia o rosto.
- Não gosto de si.
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- Estás em boa companhia - espera que ela se vá embora, ou que o polícia a venha buscar, mas antes que isto aconteça, Mariah White sai do serviço de Urgências, de olhos vermelhos, à procura. Os seus olhos encontram Faith, e a rapariga salta da cadeira para os braços da mãe. Mariah observa Ian friamente.
- O polícia... ele estava... - Ian tropeça nas palavras, fazendo gestos indicando o corredor.
- Afaste-se da minha filha - diz ela rispidamente. com o braço em volta de Faith, volta a desaparecer por trás da porta giratória do Serviço de Urgências.
Ian observa-as ir e depois aproxima-se da enfermeira de triagem.
- Suponho que a mãe da Sr.a White não tenha resistido. A enfermeira não tira os olhos do que está a fazer.
- A sua suposição está certa.
A questão acerca da tragédia é que esta nos atinge de repente, com toda a força e fúria de um furacão. Mariah aperta a mão de Faith enquanto estão ao lado do corpo da sua própria mãe. Já não está nenhum profissional de saúde no cubículo do Serviço de Urgências, e uma enfermeira bondosa retirou os tubos e agulhas do corpo de Millie para a despedida familiar em privado. Mariah decide deixar Faith entrar. Não quer fazê-lo, mas sabe que é a única forma de fazer Faith acreditar nela ao dizer que a avó faleceu.
- Sabes - diz Mariah, numa voz pastosa -, o que significa a avó estar morta?
Antes que Faith possa responder, Mariah começa a chorar. Senta-se numa cadeira ao lado do corpo de Millie, com o rosto nas mãos. De início não presta atenção ao som agudo do outro lado da maca. Quando olha para cima, a Faith arranjou maneira de arrastar a outra cadeira dobrável. Está de pé em cima do assento, com a face encostada ao peito de Millie, envolvendo desajeitadamente o corpo da avó com os braços.
Por um momento. Mariah sente os cabelos eriçarem-se na nuca, e toca-lhes com a palma da mão. Mas o seu olhar nunca se desvia de Faith - nem quando ela se apoia nos cotovelos, nem quando ela coloca as mãos de cada um dos lados do rosto de Millie e a beija directamente na boca, nem quando os braços de Millie se erguem, rígidos e vagarosos, e se agarram desesperadamente à neta.
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Cinco
Uma simples criança
Que inspira suavemente,
E sente a vida em cada membro,
Que sabe ela sobre a morte?
William Wordsworth
30 de Setembro de 1999
Durante várias horas após a minha mãe ter voltado à vida, não consigo parar de tremer. Fico sentada no Serviço de Urgências enquanto o mesmo médico que assinou a certidão de óbito dela agora lhe faz uma série de exames e a declara saudável. Meto as mãos debaixo das coxas e finjo que é absolutamente normal que uma mulher que foi declarada morta percorra agora os corredores do hospital.
O médico quer que a minha mãe passe a noite no hospital em observação.
- Nem pensar - insiste ela. - Estou a correr. Estou a saltar. E nem sequer fico cansada. Devia estar sempre assim tão saudável.
- Mãe, provavelmente não é má ideia. Tiveste uma paragem cardíaca.
- Esteve morta - sublinha o médico. - Há pessoas na escola de medicina que sabem histórias de cadáveres que se sentam na morgue mesmo quando o saco para os envolver estava a ser fechado. Sempre quis ter uma história destas. - Enquanto a minha mãe e eu trocamos um olhar, ele pigarreia. - De qualquer forma, queremos fazer um cardiograma, uma TAC, alguns outros exames, e verificar a sua medicação para o coração.
A minha mãe assopra.
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- Certificar-se de que não sou um vegetal, quer o doutor dizer.
- Certificar-me de que não vai ter uma recaída - corrige o médico. - vou chamar uma enfermeira para a levar de cadeira de rodas para um piso dos pacientes.
- Muito obrigada, eu consigo andar - diz a minha mãe, saltando de cima da maca.
O médico começa a sair do cubículo, ainda abanando a cabeça. Apresso-me a chegar junto dele e puxo-lhe a manga, saindo de dentro das cortinas.
- Ela está mesmo bem? É algum problema no seu sistema nervoso, sabe, e daqui a uma hora vai estar em coma?
O médico olha para mim pensativo.
- Não lhe sei dizer - admite ele. - Já vi pacientes que entram em paragem cardio-respiratória na sala de operações e que recuperam. Já vi pessoas em coma durante meses que acordam e começam a falar como se nada tivesse acontecido. Digo-lhe que a sua mãe esteve clinicamente morta, Sr.a White. Os paramédicos disseram o mesmo no seu relatório, caramba, eu próprio o disse no meu relatório. Trata-se de uma recuperação temporária? Não sei. Nunca tinha visto nada assim.
- Compreendo - disse, embora não compreendesse.
- O coração dela não mostra quaisquer sinais de trauma. É claro, queremos fazer mais exames, mas neste momento parece tão forte como o de uma adolescente. Não consigo explicar, Sr.a White, por isso nem sequer vou tentar.
- És capaz de parar com isso? - a minha mãe afasta o meu braço solícito. - Eu estou bem.
Ela sai do Serviço de Urgências, passando à minha frente e à frente da Faith. A enfermeira da triagem benze-se. O paramédico que conduzia a ambulância, que agora tagarelava com a enfermeira da recepção enquanto comia uma torta, deixa cair o copo de café de Styrofoam no chão.
- Desculpe - diz a minha mãe, fazendo uma médica internista parar. - Onde ficam os elevadores? - A mulher aponta, e a minha mãe olha novamente para mim. - Então? Vais ficar aí parada?
Percorre o corredor, passando por Ian Fletcher, que está a olhar para nós com tal incredulidade que, pela primeira vez em horas, rio à gargalhada.
Enquanto os médicos examinam a minha mãe, a Faith e eu ficamos sentadas na sala de espera do piso dos pacientes. Parece pálida
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e cansada; há manchas violeta do tamanho de impressões digitais de polegares mesmo debaixo dos seus olhos. Só me apercebo de que fiz a pergunta em voz alta quando o pequeno rosto da Faith se ergue.
- Eu fiz aquilo que desejavas - sussurra ela. Engulo em seco.
- Não tiveste nada a ver com o facto de a avó ficar melhor. Percebeste?
- Tu pediste-lhe - murmura Faith. - Eu ouvi-te.
- Eu pedi a quem?
- A Deus. Tu disseste, "Oh, meu Deus. Deus. Oh, meu Deus."
- Faith esfrega o nariz no ombro da camisola.
- E ela ouviu-te. Ela disse-me o que havia de fazer para que te sentisses melhor.
Baixo a cabeça e fico a olhar para as sapatilhas da minha filha. Uma está desapertada, com os atacadores por cima do linóleo como os de qualquer outra criança. Mas a minha filha fala com Deus. A minha filha aparentemente acabou de fazer um milagre.
Combato a vontade de começar a chorar. Todo este assunto tem sido um pesadelo prolongado, e quando der por isso, o Colin vai abanar-me e dizer-me para me virar para o outro lado e voltar a dormir. As crianças devem ir para a escola, andar de baloiço, esfolar os joelhos. Isto é um enredo de filme, de romance. Não é a vida quotidiana normal.
Os meus polegares esfregam distraidamente um calo no interior da palma da mão de Faith.
- O que é isto?
Faith esconde as mãos no colo.
- É das barras de ferro.
- Não é de... - como é que hei-de dizer isto? - Não é de teres tocado na avó? Não te... fez doer?
Faith abana a cabeça.
- Foi como se estivesse no cimo de uma montanha-russa, a descer - ela fica a olhar para mim, confusa. - Mamã, não querias que a avó ficasse boa?
Abraço-a, desejando poder levá-la novamente para dentro de mim e protegê-la do que agora com certeza se avizinha.
- Oh, Faith. É claro que queria. Quero. Só que me assusta um bocadinho que tivesses sido tu a fazer com que isso acontecesse afago-lhe os cabelos, os ombros.
- A mim também me assusta um bocadinho - sussurra Faith.
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Mulher Morre e Regressa à Vida
1 de Outubro de 1999; New Canaan, NH - Ontem, aproximadamente às 15h34, Mildred Epstein faleceu. Às I6h45, sentou-se e perguntou o que estava a fazer no hospital.
Mildred Epstein, 56, estava em casa da filha em New Canaan, de visita, quando, afirmam as testemunhas, agarrou-se ao peito e caiu no chão. Os técnicos de emergência médica no local fizeram reanimação cardio-respiratória durante mais de 20 minutos, mas não chegaram a conseguir reanimá-la. Foi declarada morta à chegada no Centro Médico do Connecticut Valley pelo Dr. Peter Weaver. "Nunca vi nada igual", disse Weaver aos jornalistas ontem à noite. "Apesar das histórias corrohorativas de muitas testemunhas e de pessoal médico de emergências treinado, os exames provam que o coração da Sr.a Epstein não revela sinais de trauma, e muito menos de ter estado parado durante mais de uma hora."
Algumas fontes indicam que a Sr.a Epstein entrou em paragem cardíaca depois de uma altercação com Ian Fletcher, o ateu mediatizado conhecido por negar a existência de Deus. Estava a preparar um apontamento sobre a sua neta, devido à alegação controversa de que a criança comunica com Deus. Não conseguimos contactar nem a Sr.a Epstein, nem o Sr. Fletcher para obter um comentário.
- Sabe, isto não conta - diz Ian, recostando-se na cadeira. Quando eu disse marisco fresco, não estava a referir-me a guisado de atum.
- Era isto ou o Donut King - James sorri. - Donuts ou atum em lata Chicken of the Sea.
Ian estremece.
- Sabe o que eu daria por um bom naco de carne Angus neste preciso momento?
- Provavelmente era capaz de roubar uma vaca inteira da quinta de produção de lacticínios do outro lado da rua. Há tantas que aposto que ninguém as conta - James leva o guardanapo à boca, dando pancadinhas ligeiras. - Pelo menos está num restaurante.
- Isso é o mesmo que dizer que viajar numa caravana se assemelha a fazer um safari.
- Não, assemelha-se a fazer uma digressão junto das comunidades. Pelo menos foi o que me disse há algumas semanas - o produtor inclina-se para a frente. - Vá lá, Ian, estamos apenas a começar. O NBC Nightly News transmitiu o seu segmento com a avó a
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bater a bota e repetiu-o de hora a hora nas edições da noite. -James ergue a chávena de café. - Tenho um bom pressentimento em relação a este caso. A miúda é o anzol: as pessoas não estão à espera que ela esteja a inventar tudo aquilo. O que só vai tornar tudo mais espectacular quando você expuser o caso. Ian sorri debilmente.
- No mínimo justifica as acomodações de terceira classe.
- Encare as coisas desta maneira: se a história voltar a trazê-lo às luzes da ribalta, nunca mais vai ter de olhar para uma caravana na sua vida - James estende a mão para a conta, ri, e tira o cartão de crédito. - Antigamente gostava de facto de acampar, quando era miúdo. Nunca acampou?
Ian não responde. A infância de James provavelmente foi um pouco diferente das suas próprias recordações.
- Oh, é verdade. Você nunca foi uma criança.
- Não - Ian sorri. - Saí completamente formado da testa do meu produtor executivo.
- A sério. Ian. Quero dizer, já nos conhecemos há quê, sete anos? E tudo o que sei sobre si antes de ter começado a trabalhar na rádio é que fez o doutoramento naquela universidade inferior em Boston.
- Aquela universidade inferior em Boston teve o bom senso superior de o ter deixado a si para as da laia de Yale - diz Ian. Sentindo a picada do desconforto, finge bocejar. - Estou esgotado, James. É melhor regressar a casa.
James franze a testa.
- Você? com sono? Nem pensar.
Por um momento, Ian fica tenso. Como é que James podia saber das suas insónias? Como é que ele sabia que a última vez que Ian se lembra de ter dormido mais do que algumas horas foi há anos? Será que James o viu sair da caravana à noite para caminhar pelos bosques ou pelas planícies, ou pela pradaria, ou por qualquer inferno em particular em que ele estivesse enfiado?
- Sente-se apenas encurralado - deduz James -, e está a tentar mudar de assunto. - Ian acalma-se, seguro na sua privacidade. Estou a falar a sério, Ian. Estou a perguntar como amigo. Como eram os seus pais? Como é que cresceu?
"De um dia para o outro", pensa Ian, mas não o diz. Afasta-se da mesa.
- Tive um forte desejo de comer um donut agora mesmo responde, recolocando a sua fachada com um sorriso. - Acompanha-me?
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3 de Outubro de 1999
Felizmente a Polícia obrigou Ian Fletcher, os membros daquela estranha seita e os outros cerca de cinquenta mirones que tinham aparecido a sair da nossa propriedade. Infelizmente, isso não os mantém suficientemente afastados. A estrada - um local público fica apenas a alguns metros da nossa casa, por isso conseguimos vê-los pelas janelas. E isso significa que eles também nos conseguem ver.
Não deixei a Faith ir brincar lá para fora, embora ela esteja irrequieta e a choramingar. Eles gritam por mim quando saio de casa por um minuto; o que lhe fariam a elcfí Fico à espera até depois da meía-noite para me esgueirar lá para fora com o lixo, tentando colocá-lo para ser recolhido sem ser abordada pelos jornalistas. Passo pelos baloiços e por debaixo da fileira de carvalhos.
- Em que está a pensar?
Dou um salto. Por trás da ponta luminosa de um fósforo está Ian Fletcher. Ele acende o charuto e prende-o entre os dentes, inalando o fumo.
- Podia fazer com que fosse detido - digo eu. - Está a invadir propriedade privada.
- Eu sei. Mas não acho que vá fazer isso.
- Engana-se - dirijo-me imediatamente para casa, preparada para chamar a polícia.
- Não faça isso - diz ele numa voz suave. - Vi-a lá dentro de um lado para o outro, a preparar-se para vir até aqui, e só queria perguntar-lhe como está a sua mãe. - Faz um gesto indicando o conjunto de carros à beira da estrada. - Sem que ninguém estivesse a ouvir.
- O que é que ela tem?
- Ela está bem?
Sem tirar os olhos dele, aceno com a cabeça.
- Não graças a si.
Será a minha imaginação, ou o Ian Fletcher realmente corou?
- Pois, lamento. Não devia... - hesita, e depois abana a cabeça.
- Não devia o que?
Os olhos dele são brilhantes e ardentes; prendem-me.
- Não devia. Só isso.
- Um pedido de desculpas do Ian Fletcher? Devia gravar isto numa cassete - mas no minuto seguinte ele já tinha desaparecido, e o único sinal de que tinha estado ali são as cinzas vermelhas do seu charuto aos meus pés.
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4 de Outubro de 1999
No dia seguinte vou ao hospital, onde o Dr. Weaver quer fazer exames ao coração da minha mãe outra vez. Para minha surpresa, encontro-a à espera na sala do piso dos pacientes com Ian Fletcher.
- Mariah - diz ela, como se fôssemos todos tomar chá. - Este é o Sr. Fletcher.
Aperto tanto a mão da Faith que ela se queixa.
- Já nos conhecemos. Dá-nos licença por um momento? - puxo a minha mãe, afastando-a, com a Faith a reboque. - Queres explicar-me porque é que ele está aqui?
- Acalma-te, Mariah. Juro-te, tu própria estás a preparar-te para ter um ataque cardíaco. Convidei o Sr. Fletcher... - faz uma pausa, sorri para ele e acena com a cabeça - para que ele possa fazer a história dele e depois desaparecer das nossas vidas. Ele que filme o que quiser; não tenho nada a esconder.
Aperto a cana do nariz.
- O que te leva a crer que ele não irá apresentar-te como uma espécie de morta-viva ou vampira e depois ficar na mesma por aqui?
- Porque sei.
- Oh, óptimo. Bem, fiquei completamente esclarecida - aperto mais a mão de Faith. - A Faith também não o quer aqui.
- Ela está a reagir às tuas vibrações, querida.
- Não tenho vibrações. As vibrações não existem.
- Deus também não existe, pois não? - a minha mãe sorri inocentemente.
- Pronto - digo eu. - O espectáculo é teu. Se queres que o Ian Fletcher fique aqui, é contigo. Mas ele não vai falar comigo nem com a Faith, e eu não vou pôr os pés naquela sala de exames a menos que lhe deixes isso bem claro.
Ian Fletcher amontoa-se com a sua equipa de filmagens e o seu produtor executivo a um canto da sala de exames. Promete limitar a sua investigação à minha mãe e mostra de forma complacente o formulário de consentimento assinado por ela, bem como um do hospital autorizando as filmagens, quando o desafio. Manda que mudem as macas de sítio e que corrijam a iluminação e franze o sobrolho quando tiro a Faith do alcance da câmara. Eu fico ao lado de um administrador do hospital que está ali para supervisionar as filmagens, e fazemos ambos de cães de guarda. Quando Fletcher muda o seu operador de câmara de posição para se inclinar por cima do ombro do médico para obter um primeiro plano da tabela médica, interrompo.
- Isso é confidencial.
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- Tal como todo este procedimento, Sr.a White. A sua mãe de facto assinou um contrato que dizia que podíamos filmar à vontade com uma câmara manual.
- Não me interessa a sua vontade.
Ian Fletcher olha para mim e sorri devagar.
- É pena - diz ele.
Afasto-me, interrogando-me sobre o que teria acontecido ao homem que ontem à noite fora tão solícito. Será a personagem televisiva, em oposição à personalidade privada?
De braços cruzados, observo o operador de câmara de Ian Fletcher fazer um zoom no cardiograma da minha mãe e na prova de esforço.
- Sr.a Epstein - diz por fim o Dr. Weaver - a senhora tem a constituição de uma rapariga de dezoito anos. Até pode viver mais do que eu. - Vira-se para Ian, visivelmente satisfeito com aqueles quinze minutos de fama. - Sabe, sou um homem das ciências, Sr. Fletcher. Mas não há explicação científica, excepto um transplante cardíaco, para justificar uma mudança tão radical entre os resultados das medições de tensão arterial e provas de esforço de rotina da Sr.a Epstein realizadas na consulta há um mês e os de hoje. Para não falar, como é óbvio, do fenómeno da... ressuscitação.
Uma satisfação lenta espalha-se por mim, em parte devido ao facto de a saúde da minha mãe ter sido confirmada, em parte porque é bom derrotar Ian Fletcher. Olho para ele triunfante, mesmo a tempo de o ver segredar ao operador de câmara, que vira o corpo para que a câmara de vídeo deixe de estar focada na minha mãe mas atrás dela - na Faith.
Faith está sentada a um canto, a colorir um bloco de receitas.
- Não - sussurro, e depois entro em acção. - Ela não é o seu objecto de estudo! - grito, colocando-me entre o operador de câmara e a minha filha, enchendo o seu campo de visão, de forma que ele recua, tropeçando. - Dê-me essa cassete! Dê-ma já!
Estendo a mão para alcançar a câmara, mas o homem segura-a por cima da cabeça.
- Meu Deus, Sr. Fletcher - diz ele, pedindo ajuda. - Afaste-a de mim!
Ian Fletcher avança, erguendo as palmas das mãos.
- Sr.a White - tranquiliza ele -, acalme-se. Volto-me para ele.
- Não me diga o que devo fazer - pelo canto do olho, vejo que o operador de câmara ainda está a gravar. - Faça-o desligar aquela maldita coisa!
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Ian acena ligeiramente com a cabeça, e o operador baixa a câmara. A tensão abandona o meu corpo, deixando-me mole. Afasto-me com a Faith, a tremer, e olho para cima para ver a minha mãe, o administrador do hospital e o médico olharem para mim, sem palavras.
- Não - consigo dizer, e depois pigarreio. - Eu disse que não.
Depois de Fletcher se ir embora, uma enfermeira leva a Faith para ir buscar um autocolante, deixando-me sozinha com a minha mãe enquanto ela se veste.
- A culpa é minha - diz ela. - Achei que se convidasse o Fletcher íamos ver-nos livres dele mais depressa.
- Não temos essa sorte - murmuro.
Esperamos em silêncio que a Faith volte, com os pensamentos a traçar os nossos próprios círculos de culpa.
- Mariah, sabes aquilo que costumam dizer sobre quando morremos?
Olho para ela.
- O quê?
- Sobre a luz brilhante e isso. O túnel - entretém-se com uma cutícula do polegar, subitamente incapaz de olhar para mirn. - Não é assim.
Engulo, com a boca seca como um deserto. -Não?
- Não vi uma luz. Não vi anjos. Vi a minha mãe - ela vira-se para mim, com os olhos brilhantes. - Oh, Mariah. Sabes há quanto tempo não a via? Há vinte e sete anos. Foi uma dádiva, sabes, poder olhar para todas aquelas coisas de que já me tinha esquecido: a forma como as suas unhas estavam roídas, e a cor das raízes do cabelo que cresceram depois da tinta... até mesmo as linhas no seu rosto. Ela sorriu para mim e disse-me que eu ainda não podia ir.
A minha mãe entrelaça inesperadamente os seus dedos nos meus. À medida que os anos foram passando, fomo-nos tocando cada vez menos. Quando era criança subia para o colo dela; quando era adolescente afastava-me da sua mão ao tentar endireitar-me uma gola ou arranjar-me os cabelos; em adulta achava até um breve abraço demasiado sentimental, demasiado carregado de coisas que ainda não queríamos dizer.
- Sempre me interroguei por que razão Deus devia ser um pai
- sussurra ela. - Os pais querem sempre que nós estejamos à altura de qualquer coisa. São as mães que nos amam incondicionalmente, não achas?
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Faith volta com quatro autocolantes colados na camisola. Fica decidido que ela vai ficar à espera com a minha mãe na recepção do hospital enquanto eu tiro o carro do parque de estacionamento mais afastado para o levar para o parque de estacionamento de curta duração.
Estou nos limites do parque quando ouço passos.
- Estou sempre a pedir-lhe desculpa - diz Ian Fletcher, surgindo ao meu lado.
- Isso é porque está sempre a fazer coisas repreensíveis - respondo. - Quero aquela cassete.
- Sabe que não posso dar-lha. Mas tem a minha palavra em como não usarei imagens que mostrem a Faith.
- A sua palavra - digo desdenhosamente. - Tal como me deu a sua palavra de que não ia filmá-la.
- Olhe, não devia tê-la filmado sem a sua autorização. Já disse isso.
Começo a andar.
- Espere. Espere! - agarra-me no braço enquanto começo a afastar-me. - Não pode esperar um segundo? - libertando-me rapidamente, como se se tivesse queimado, enfia as mãos nos bolsos das calças de ganga. - Quero dizer-lhe uma coisa. Não acredito naquilo que diz sobre a sua filha, incluindo a alegada ressuscitação, e ainda vou provar que está enganada. Mas respeito o que fez ali dentro - pigarreia. - É boa mãe.
Fico de boca aberta. Apercebo-me de que ultimamente tenho andado tão ocupada em seguir os meus instintos e em proteger a Faith, que não tive tempo para pensar se estou ou não a fazer isso bem. Este homem, este homem horrível que entrou nas nossas vidas sem ser convidado, este homem que não me conhece de lado nenhum, imaginou-me como a pessoa que sempre desejei ser: uma leoa furiosamente leal, uma mãe nata.
Não sei se hei-de rir ou chorar. É certo que sei melhor do que a maioria das pessoas que as circunstâncias podem transformar-nos em pessoas que nunca fomos antes. Lembro-me de mulheres vulgares que afastaram carros de duas toneladas para salvar crianças pequenas, de mães que se põem à frente de uma bala destinada a um filho num movimento tão natural como respirar. Talvez agora eu seja uma delas. Mas voltaria de boa vontade a censurar-me se isso implicasse que a Faith voltasse ao normal.
- Sr. Fletcher? - espero até ele estar a olhar directamente para mim, à espera de um agradecimento, e depois dou-lhe uma bofetada na face, com toda a minha força.
104
Seis
Aquele que não está do meu lado está contra mim.
Lucas 11,23
6 de Outubro de 1999
A avó de Ian tinha sido uma beldade sulista convicta que usava a sua religião como um colete de Kevlar.
- Graças a Deus que sou uma mulher cristã - dizia ela, arrastando a sua ladainha para manter as aparências quando descobriu que o marido tinha fugido com a empregada do Jolly Donut, ou quando soube que a propriedade tinha sido vendida para se construir uma loja J. C. Penney. E, então, quando Deus não vinha propriamente em seu auxílio, ia buscar às escondidas a garrafa de bourbon que guardava no reservatório do autoclismo da casa de banho de baixo e aproveitava a indiferença Dele.
O miasma baptista do Sul em que Ian tinha sido criado estava muito longe do cepticismo ianque. Nos Estados do Sul, as comunidades formavam-se em torno das suas igrejas. Em alguns lugares, a religião ainda controlava os Sulistas, e o valor de um homem era avaliado pela casa de Deus que frequentava. Verdade seja dita, Ian sente-se consideravelmente mais à vontade entre os ianques, para quem a religião é uma coisa secundária, em vez de a parte mais importante da vida. No Norte há lugar para a dúvida... pelo menos era o que Ian pensava, até ter visto a reacção à morte de Millie Epstein e ao seu subsequente regresso à vida.
Através de uma fonte no hospital, Ian conseguiu rever os exames de Millie Eptsein. Três médicos diferentes declararam a mulher como morta. E, no entanto, o próprio Ian viu-a de perfeita saúde apenas há alguns dias.
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As audiências dele estão outra vez a subir, o que se manterá aproximadamente durante o mesmo tempo que um cubo de gelo em Julho, a não ser que ele arranje maneira de deitar achas na fogueira. O que não parece surgir através da perspectiva de Millie Epstein. Esconde a cabeça nas mãos e reflecte sobre o seu próximo passo. Uma das coisas que aprendeu é que toda a gente tem segredos obscuros, coisas que ninguém quer que as pessoas descubram. Ele sabe isso melhor do que ninguém.
Allen McManus tinha acabado de desembrulhar o seu Twinkie quando o telefone da sua linha pessoal começou a tocar.
- Está? - resmunga ele, atendendo o telefone. Tinha dito à mulher para não lhe telefonar para o escritório. Por amor de Deus, é o único lugar em que tem um pouco de sossego.
- Já ouviu falar de Lázaro?
A voz é grave, disfarçada. Não há dúvida de que não se trata da sua mulher.
- Quem fala?
- Já ouviu falar de Lázaro? - repete a voz. - Quem mais é que tinha algo a ganhar?
- Olhe, amigo, não sei o que... - ouve um clique distinto e o sinal da linha. - Lázaro. Que raio!
Deve ser uma partida do Dia das Bruxas, visto que o Dia das Bruxas está para breve e que toda a gente sabe, através da sua crónica no jornal, que ele escreve o obituário. Decerto que se algum engraçadinho tiver a ideia de ressuscitar os mortos, a chamada telefónica será dirigida a Allen. Tinha acabado de esquecer o assunto quando começa a receber um fax na linha da secção do Obituário. com um suspiro, aproxima-se da máquina - provavelmente trata-se de alguma celebridade cuja morte foi comunicada à Associated Press
- e semicerra os olhos ao ver a fotografia pouco nítida de uma mulher publicada pelo The New Canaan Cbronicle, onde quer que isso fosse.
MULHER MORRE E REGRESSA À VIDA.
Lázaro.
Allen volta a sentar-se. Deseja conseguir lembrar-se do que a Bíblia dizia, exactamente, sobre Lázaro. Por outro lado, não sabe se alguma vez leu aquela história na Bíblia. Inclina-se para o outro lado do corredor, para uma colega.
- Barb, tens uma Bíblia? Ela ri.
- Claro, mesmo ao lado do meu corrector Wite-Out. Porquê? Viste Deus?
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- Esquece - diz Allen zangado.
New Canaan Chronicle. Um jornal insignificante, com certeza. No entanto, ali está aquela história sobre uma mulher que regressou à vida mesmo naquela pequena cidade insignificante.
Aquela psiquiatra também era de New Canaan.
Allen examina o artigo uma segunda vez. Escondido no quarto parágrafo - ali está - "a sua neta... comunica com Deus."
Bem, caramba. Quantas outras crianças naquela cidade corresponderiam à descrição da Dr.a Keller? Allen pondera sobre o significado daquilo - uma menina que vê e fala com Deus - que de repente é capaz de fazer milagres. Isso dá direito à primeira página da secção do New Hampshire de certeza.
"Quem mais é que tinha algo a ganhar?"
Foi isso que disse a pessoa ao telefone. A ressurreição é sem dúvida do interesse de Millie Epstein... a não ser que não tenha havido nenhuma ressurreição. Allen volta a olhar para o artigo. Aquele Ian Fletcher anda a rondar, o que só pode significar que também ele pressente que algo não bate certo. Quem, então, é que poderia beneficiar com um falso milagre? A miúda, por exemplo. Mas"os miúdos daquela idade têm sempre gestores para promoverem as suas actividades.
Neste caso, provavelmente seria a sua mãe.
7 de Outubro de 1999
Pouco depois das cinco da manhã, Mariah ouve a porta da entrada abrir-se. Salta para fora da cama e corre pelas escadas abaixo. Tirando um guarda-chuva do suporte no vestíbulo, empunha-o como se fosse um bastão, e perscruta as sombras em busca de um intruso.
- Vá lá! - grita ela, com o coração aos pulos. - Quer fotografias? Quer um exclusivo? Mostre-se, seu sacana!
Mas nada se move, ninguém se mexe. Praguejando, larga o guarda-chuva e através do vidro da porta tem um vislumbre de Faith, descalça e de camisa de noite, a empurrar um carrinho de bonecas pelo relvado.
Mariah olha para o pequeno grupo à beira da estrada. A seita do Arizona mantém-se ditosamente adormecida do lado mais distante do muro de pedra; os jornalistas que esperaram que a Faith aparecesse durante o dia estão visivelmente ausentes. Na verdade, a única pessoa que observa Faith é Ian Fletcher, cansado e triste, de pé à porta da caravana.
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- Olá, mamã - Faith acena. - Queres brincar comigo? Mariah engole o protesto que está preparada para fazer.
- Os teus pés... não tens frio?
- Não, cá fora está-se bem - Faith debruça-se para o carrinho.
- Não está? - diz ela numa voz carinhosa, e aconchega a boneca no cobertor.
Só que a boneca está a mexer-se. Os seus pequenos punhos castanhos agitam-se contra o nevoeiro matinal, e por baixo dos seus cabelos encaracolados há uma grande ferida circular. Faith pega no bebé e aconchega-o à face.
- Que lindo menino.
É nessa altura que Mariah repara numa mulher franzina escondida por trás de um freixo à beira da via de acesso. Tem um lenço enrolado em volta da cabeça, e nunca tira os olhos do bebé, embora não faça nada para o tirar de Faith.
Faith volta a colocar o bebé no carrinho de brincar e leva-o para a cadeirinha de bebé de bonecas para lhe dar pequenos pedaços de fruta a fingir. O bebé sorri e dá pontapés nas pernas da cadeirinha. Ri-se tão alto que um fotógrafo acorda e aponta a câmara para Faith, tirando fotografias a uma velocidade alarmante.
Mariah, saindo de repente do seu estado de estupor, sai do alpendre e dirige-se para a sua filha.
- Querida, acho que agora temos de entrar.
Faith semicerra os olhos para o sol a erguer-se no horizonte.
- Oh. Estava a começar a ser divertido. Mariah toca-lhe nos cabelos.
- Eu sei. Talvez possamos voltar a vir cá para fora mais tarde ao dizer isto, o seu olhar percorre a escassa multidão e fixa-se no rosto impassível de Ian Fletcher. Durante todo este tempo, não se moveu, não fez nada mais insidioso do que observar. Mariah volta a concentrar-se em Faith.
- Acho que agora devias devolvê-lo à mãe.
Faith pega cuidadosamente no bebé e beija-lhe a ferida que tem na testa. Dirige-se para o freixo e entrega o bebé à mãe chorosa. É evidente que a mulher deseja dizer alguma coisa a Faith, mas não consegue recuperar o fôlego para o fazer. Faith toca-lhe suavemente na mão, onde os seus dedos apoiam a cabeça do bebé.
- Volte a trazê-lo para brincar, está bem?
A mulher acena com a cabeça e limpa os olhos. Faith dá a mão à mãe, e Mariah está abismada pela sensação de estar a dar a mão a alguém que não conhece. Como é possível que tenha gerado a
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Faith dentro de si, sentindo-a abrir caminho para o mundo, sem saber que isto ia acontecer?
Está prestes a chegar ao alpendre com a filha quando vê Ian Fletcher subir a via de acesso descaradamente. Trouxe o carrinho de bonecas e a cadeirinha de comer, juntamente com o pequeno cesto cheio de frutas e legumes de brincar. Mariah tira-lhe os brinquedos.
- Dê-nos licença - diz num tom áspero. Ele recua, olhando para Faith.
- Quem me dera poder fazê-lo.
Após Faith White ter aparecido inesperadamente, Ian regressa à caravana. Está ainda mais seguro das suas suposições, agora que a observou brincar como qualquer outra criança de sete anos. É evidente, a mãe é que dirige o espectáculo. Assim que ela apareceu, a miúda parou - a curandeira começou a exercer os seus poderes. Por alguma razão, Mariah White é o cérebro por trás desta encenação.
Já viu charlatães anteriormente, homens e mulheres que têm o dom de perpetuar um embuste. Normalmente, fazem-no por dinheiro, ou pela fama. E isso é a única coisa que não se encaixa muito bem, para Ian. Há algo nos olhos de Mariah que lhe faz lembrar uma vítima, em vez de uma golpista. Como se ela preferisse que tudo aquilo não estivesse a acontecer.
Caramba, ela é uma boa actriz. A beleza pode ser um óptimo disfarce, devido ao seu poder para desviar as atenções. A pureza das feições dela, mesmo que marcadas pelo sono - aquelas pernas fantásticas a percorrer o pátio ao aproximar-se da filha - ora, não passam de uma armadilha. Mais ilusões, como os milagres da filha. Faith White vê Deus e faz os mortos regressar à vida tanto como o próprio Ian.
8 de Outubro de 1999
- Este - diz o rabi Weissman a Mariah -, é o rabi Daniel Solomon.
O homem com a camisola tingida estende a mão e sorri.
- Gosto de pensar que tenho o nome do rei sábio por alguma razão - Mariah não esboça um sorriso. Estende a mão para trás de si, onde Faith se esconde junto da sua anca a espreitar para os desconhecidos.
- Sou o líder espiritual da Congregação Beit Am Hadash de Boulder - diz Solomon.
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Mariah olha para a camisola dele, os longos cabelos presos num rabo-de-cavalo.
"Pois! Se tu és um rabi, eu sou a rainha de Inglaterra", pensa.
- Beit Am Hadash - explica o rabi -, significa "casa de um novo povo". A minha congregação faz parte do movimento de renovação judaico. Inspiramo-nos na Cabala, mas também em tradições budistas, sufis e nativas americanas - olha para o rabi Weissman. Gostávamos de saber mais sobre a Faith.
- Olhe - diz Mariah -, acho que não tenho nada para lhe dizer
- nem sequer teria deixado os rabis entrar, só que deixá-los ali no alpendre parecia desumano. Mariah manda Faith para a sala dos brinquedos para que não possa escutar a conversa. - Da última vez que o vi, rabi Weissman, fiquei com a nítida impressão de que não tinha ficado muito impressionado com a Faith. Achou que isto era uma encenação que eu estava a obrigá-la a fazer.
- Pois, eu sei - diz o rabi Weissman. - Ainda não estou convencido. Mas decidi chamar o rabi Solomon. Sabe, Sr.a White, é que quando saiu da sinagoga aconteceu uma coisa verdadeiramente estranha: um casal com problemas matrimoniais reconciliou-se.
- Que tem isso de estranho? - diz Mariah, com uma dor familiar no peito ao deixar o Colin aflorar nos seus pensamentos.
- Acredite - diz Weissman. - Eles eram irreconciliáveis, até ao dia em que apareceu com a sua filha - abre as palmas das mãos. Não estou a explicar isto muito bem. Só que depois de ter lido o artigo no jornal sobre a sua mãe, ocorreu-me a hipótese de que, na cabeça de algumas pessoas, pudesse surgir uma ligação entre a reconciliação deste casal e a Faith. Fez-me lembrar uma coisa que o rabi Solomon tinha dito num concílio rabínico há alguns anos. Levantámos a questão do que diria Deus a um profeta hoje em dia. Eu disse que teria de haver uma mensagem, sabe, que a paz vai chegar a Israel, ou que há uma forma de derrotar os palestinianos, alguma coisa que a sua filha não está a ouvir nas suas conversas com Deus. No entanto, o rabi Solomon achava que a mensagem divina não deveria ser sobre expor o mal, mas sim sobre como os homens estão a tratar-se uns aos outros. Divórcio, abuso de crianças, alcoolismo. Doenças sociais. Era isso que Ele desejaria solucionar.
Mariah fica a olhar para ele com um olhar vago. O rabi Solomon pigarreia.
- Sr.a White, posso falar com a Faith? Ela avalia o homem.
- Durante alguns minutos - autoriza relutantemente Mariah. Desde que não a perturbe.
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Entram todos na sala dos brinquedos. O rabi Solomon ajoelha-se, para ficar ao nível de Faith.
- O meu nome é Daniel. Posso contar-te uma história?
Faith esgueira-se para junto da anca de Mariah acenando timidamente com a cabeça.
- As pessoas que frequentam o meu templo acreditam que antes de existir tudo o resto, havia Deus. E Deus estava tão... bem... cheio que criar o mundo significava encolher-se um bocadinho para deixar espaço para ele.
- Deus não fez o mundo - diz Faith. - Foi uma grande explosão. Aprendi na escola.
O rabi Solomon sorri.
- Ah, eu também aprendi isso. E mesmo assim gosto de pensar que talvez tivesse sido Deus que causou essa explosão, que Deus estava a assistir em algum lugar longínquo, enquanto ela ocorria. Achas que podia ter sido assim?
- Acho que sim.
- Bem, como eu estava a dizer. Lá estava Deus, a encolher-se para dar espaço ao mundo, a encher recipientes com energia e luz e a colocá-los no novo espaço. Mas durante a Criação, os recipientes não conseguiram conter toda aquela energia, e partiram-se. E todas as centelhas da luz de Deus que estavam nesses recipientes espalharam-se pelo universo. Também caíram pedaços dos recipientes partidos, tornando-se nas coisas más que há no mundo: chamamos-lhes clipot. Os meus amigos e eu acreditamos que a nossa missão é recolher todos os clipot e livrarmo-nos deles, e reunir todos os pedaços de luz que estão espalhados e devolvê-los a Deus. Então quando dizes uma bênção e comes um frango kosher no Sabat, talvez as centelhas divinas que estão no frango sejam libertadas. Se fizeres um mitzvah por alguém, se ajudares essa pessoa um bocadinho, talvez sejam libertadas mais centelhas.
- Não nós não seguimos a orientação kosher - diz Mariah ao rabi Solomon. - Não somos judias tradicionais.
Ele puxa a camisola e sorri ironicamente.
- Eu também não sou, Sr.a White. Mas a Cabala, o misticismo judaico, até explica por que razão uma menina que nunca foi ao templo nem rezou pode estar mais perto de Deus do que qualquer outra pessoa. Ninguém pode erguer todas essas centelhas sozinho. Na realidade, a capacidade de as encontrar pode estar enterrada tão profundamente dentro de nós que deixamos de acreditar que Deus existe. Até aparecer alguém, com tanta luz dentro de si que seja
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impossível não ver a nossa própria luz, e quando estamos juntos essa luz fica ainda mais brilhante - toca na parte de cima da cabeça de Faith. - Deus pode estar a falar com Faith devido a todas as pessoas que ela vai contactar.
- Acredita? - diz Mariah numa voz abafada, quase receando dizê-lo em voz alta. - Nem sequer falou com ela, e acha que ela está a dizer a verdade?
- Sou um pouco mais receptivo do que o rabi Weissman. O casal a quem ele estava a prestar aconselhamento... bem, pode ser apenas uma coincidência com a visita da sua filha. Mas por outro lado, pode não ser, e a Faith pode ter as respostas. Se Deus aparecesse em 1999, acho que não ia dar nas vistas nem pregar. Seria tão discreto como a sua filha sugeriu.
Faith puxa a manga do rabi.
- Ele é uma Ela. Deus é uma rapariga.
- Uma rapariga - repete Solomon cautelosamente. Mariah cruza os braços.
- Sim, segundo a Faith, Deus é uma mulher. O misticismo judaico consegue explicar isso?
- De facto, a Cabala baseia-se no princípio de que Deus é masculino e feminino. A parte feminina, a Shekbinab,, é a presença de Deus. Foi o que se partiu quando todos aqueles recipientes se estilhaçaram. Se a Faith vê uma mulher, isso faz todo o sentido. A presença de Deus é precisamente o que lhe daria a capacidade de curar e de reunir as pessoas à sua volta. Ela pode estar a ver um reflexo de si própria.
Mariah observa Faith coçar o joelho, desinteressada, e então faz a pergunta que tem estado a guardar dentro de si.
- Boulder é muito longe, rabi Solomon. Porque é que está aqui?
- Gostaria de levar a Faith comigo para o Colorado, para ficar a saber mais sobre as suas visões.
- Nem pensar. A minha filha não é nenhum espectáculo.
O rabi olha para as janelas que dão para a frente da casa e olha para Faith. -Não?
- Não os convidei para virem até aqui - cerra os punhos e olha para Faith. - Não pedi que isto acontecesse.
- Que acontecesse o quê, Sr.a White? Deus? - ele abana a cabeça. - A Sbekhinah não vai onde não é desejada. Tem de estar aberta à presença de Deus antes que esta permaneça. Talvez seja por isso que isto está a ser tão difícil para si - os olhos dele são como âmbar, guardando o passado preservado. - O que é que lhe
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aconteceu, Mariah - pergunta ele num tom suave -, para que se esforce tanto para não ser judia?
Recorda-se de como da única vez que foi à igreja quando era pequena, com uma amiga, tinha ficado surpreendida pelo facto de Jesus amar toda a gente, mesmo as pessoas que cometiam erros. Para o Deus judaico, tínhamos de nos tornar merecedores dele. Mariah interroga-se, não pela primeira vez, por que razão uma religião que se orgulha em ser receptiva nos obriga a fazer tanta coisa para agradar.
De repente é dominada pela ideia de que estão dois rabis em
sua casa.
- Eu não sou judia. Não sou nada - olha para Faith. - Nós não somos nada. Acho que deviam ir embora.
O rabi Solomon estende a mão.
- Vai reflectir sobre algumas das coisas que eu disse? Mariah encolhe os ombros.
- Não sei. Quando olho para a minha filha não vejo a presença de Deus, rabi Solomon. Quando olho para ela não penso que ela está cheia de luz divina. Vejo apenas uma pessoa cada vez mais perturbada com o que está acontecer à sua volta.
O rabi Solomon endireita-se.
- É engraçado. Foi o que muitos judeus disseram há dois mil anos sobre Jesus.
10 de Outubro de 1999
A última coisa que o padre Joseph McReady faz antes de envergar as suas vestes é trocar as suas velhas botas de cowboy pelos sapatos pretos de sola macia de padre. Está à espera que a igreja esteja lotada. A missa da manhã de domingo em New Canaan normalmente é muito frequentada, visto que a maioria dos habitantes católicos da cidade prefere perder algumas horas de sono no fim-de-semana se isso implicar poderem tirar o resto do dia para ficar a descansar nos seus jardins ou nos campos de golfe das cidades vizinhas. "Hoje pode ser o grande dia", pensa ele. Apoia as mãos na mesa cheia de marcas e ergue os olhos para o friso da crucificação. Lembra-se da altura, há vários anos, quando estava a deambular pelo país, em que de repente se apercebeu de que podia levar a sua Harley até Pacífico e mesmo assim não ir a lado nenhum.
Agora, mesmo depois de ter passado décadas a dizer a missa, reza antes de cada uma delas para receber um sinal de que tomou
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a decisão certa, um sinal de que Deus está com ele. Fica a olhar para o crucifixo durante mais um segundo, esperançoso. Mas, tal como tem sucedido nos últimos vinte anos, não acontece nada.
O padre McReady fecha os olhos por um momento, tentando reunir o Espírito Santo antes de entrar na igreja para junto da sua congregação.
Estão lá oito pessoas.
Visivelmente espantado, sobe ao altar e começa a dizer a missa, com a cabeça num turbilhão. Não há uma única razão que lhe ocorra para fazer com que o seu rebanho se veja reduzido de oitenta para oito em apenas uma semana. Apressa-se a celebrar a Santa Eucaristia e a fazer a homilia, chocando o seu acólito, que em geral começa a ficar inquieto apenas dez minutos após começar o serviço religioso. Depois do "Ámen" final, despacha-se a despir as vestes e a colocar-se junto da porta de trás da igreja para se despedir dos poucos fiéis. Quando chega lá, metade deles já se encontra no parque de estacionamento.
- Marjorie - grita a uma senhora de idade cujo marido morreu no ano passado. - Para onde vai com tanta pressa?
- Oh, padre - diz ela, fazendo covinhas. - vou para casa dos White.
Bem, isso só o deixa ainda mais confuso.
- Vai para Washington?5
- Não, não. A menina. A Faith White. Aquela que vê Deus. Achei que não compensava perder a missa.
- O que tem essa menina?
- Não leu o Chronicle esta semana? As pessoas dizem que Deus fala com ela. Até já ocorreram alguns milagres. Ouvi dizer que fez uma mulher regressar à vida.
- Sabe - diz o padre Joseph, reflectindo. - Se calhar vou consigo.
Mariah faz girar o cilindro de cerejeira no torno, observando as fitas de madeira voar como serpentinas quando toca no bloco sumptuoso com a ferramenta de esculpir. Será a quarta perna de uma mesa para a sala de jantar em estilo Queen Anne, para a sua actual casa de bonecas. Os seus olhos percorrem a mesa de trabalho, onde o intrincado trio de pernas se encontra ao lado da ilha oval de um tampo de mesa em miniatura.
Na versão original em inglês, White s house, a. casa dos White, assemelha-se foneticamente a White House, Casa Branca, que se situa em Washington. (N. da T.)
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Hoje não é o dia de fazer mobília. Na verdade, ela nem sequer devia estar a trabalhar, pelo menos segundo o horário que impusera a si própria. Ontem passou o dia à espera que a mãe tivesse alta do hospital, após quase uma semana a fazer testes e a ser examinada por cardiologistas. Mariah queria que a mãe ficasse na casa rural, mas Millie não estava disposta a isso.
- Estás a cinco minutos - disse a Mariah. - O que pode acontecer? - Mariah tinha acabado por desistir, sabendo que ia convencer a mãe pelo menos a passar os dias na casa rural, dizendo que a Faith precisava de companhia. Tinha ajudado a mãe a instalar-se de novo em casa, enfrentando apenas um momento incómodo quando ambas se detiveram de repente junto da mesa caixão. Sem uma queixa da mãe, arrastou-o para a garagem, para longe da vista e do pensamento.
Mariah hoje está dedicada a compensar o tempo perdido. Tira uma régua do bolso da frente da camisa e examina a perna no torno. Faltam-lhe dois milímetros; terá de começar de novo. Suspirando, deita fora a madeira e depois ouve a campainha da porta.
É um som inesperado - ultimamente ninguém se aventurou a ultrapassar a barreira da polícia ao fundo da via de acesso à casa. Talvez seja o carteiro com uma encomenda, ou a carrinha de entrega de combustível.
Abre a porta de entrada e dá por si a olhar para um padre. A boca contrai-se.
- Como é que a polícia o deixou passar?
- Uma vantagem profissional - admite o padre Joseph, imperturbável. - Quando Deus fecha uma porta, abre sempre uma janela. Ou pelo menos coloca um bom polícia católico ao fundo da sua via de acesso.
- Padre - diz Mariah cautelosamente. - Agradeço-lhe ter vindo até aqui. Até compreendo o que o trouxe. Mas...
- Compreende? É que eu não tenho a certeza de que compreendo - ri. - A igreja de St. Elizabeth estava vazia hoje de manhã. Aparentemente a sua filha representa uma concorrência feroz.
- Não intencionalmente. Acho que não estamos preparadas para outro ataque religioso - diz Mariah. - Estiveram aqui uns rabis na sexta-feira, a falar de misticismo judeu...
- Sabe o que dizem sobre o misticismo: começa em névoa, acaba em discórdia.
Um sorriso repuxa o rosto de Mariah.
- Nem sequer somos católicas.
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- Já ouvi dizer. Da Igreja Episcopal e judias. Mariah encosta-se à ombreira da porta.
- Pois. Então porque haveria sequer de estar interessado? Joseph encolhe os ombros.
- Sabe, quando fui capelão no Vietname, conheci o Dalai Lama. Éramos um grupo, e passámos muito tempo antes a falar sobre o que havíamos de lhe dar para beber, para comer, como devíamos tratá-lo. "Sua Santidade", foi o que alguém sugeriu, embora também fosse assim que tratávamos o papa, e deixe-me que lhe diga, discutimos muito sobre isso. Mas sabe uma coisa, Sr.a White? O Dalai Lama tinha esta... esta energia à sua volta, como nunca tinha sentido antes. Ora, ele não é católico, mas não descarto a possibilidade de que seja uma figura com um profundo saber espiritual.
Uma covinha surge na face de Mariah.
- Cuidado, padre Joseph. Provavelmente isso dá direito à excomunhão.
Ele sorri.
- Sua Santidade tem mais que fazer do que acompanhar as minhas transgressões.
Há algo tão secular nele que Mariah pensa que - em circunstâncias diferentes - convidaria este estranho para se sentar e tomar um café.
- Padre...
-Joseph. Joseph MacReady6 - sorri. - Disposto e capaz, também. Mariah ri às gargalhadas.
- Simpatizo consigo.
- Eu também simpatizo consigo, Sr.a White.
- No entanto, agora acho que devia ir - aperta-lhe a mão, consciente de que ele não pediu nem uma única vez para falar com Faith. - Se eu precisar de si, vou à igreja. Mas ninguém provou realmente que tivesse ocorrido algum milagre.
- Sim, são apenas rumores. Por outro lado, São Mateus, São Marcos, São Lucas e São João também estavam só a contar aquilo que viram.
Mariah cruza os braços.
- Acredita realmente que Deus falaria através de uma criança? Ainda para mais, na prática, uma criança judia?
- Tanto quanto sei, Sr.a White, já o fez antes.
6 Ready significa pronto. (N. da T.)
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11 de Outubro de 1999
- Coloquem essa folha meio milímetro mais para a direita - diz o produtor, inclinando a cabeça para a imagem alinhada no monitor. As luzes que o electricista e o director de iluminação colocaram fazem Teresa Civernos franzir os olhos e tapar instintivamente os olhos do pequeno Rafael com a mão. Ele enxota-a, e pela centésima vez naquele dia, ela maravilha-se com a sua força e coordenação. Abraçando-o junto a si, leva os lábios à pele suave e intacta da sua testa.
- Estamos prontos, Sr.a Civernos - a voz é voluptuosa como o mel e pertence a Petra Saganoff, a célebre jornalista do Hollywood Tonightf.
Ao fundo, o produtor olha para cima.
- Pode aproximar um pouco mais o bebé? Oh, está perfeito faz um sinal positivo com a mão.
Petra Saganoff espera que a maquilhadora lhe faça os últimos retoques no rosto.
- Lembra-se do que vou perguntar-lhe agora?
Teresa acena com a cabeça e olha nervosamente para a segunda câmara, fixa nela e no bebé. Obriga-se a lembrar-se de que a ideia tinha sido sua, e não deles. Ia rezar uma novena em St Jude no Globe, mas apercebeu-se de que havia uma forma de chegar a um número muito maior de pessoas. O seu primo Luis trabalhava em Los Angeles, no parque de estacionamento da Warner Brothers, onde se situava o estúdio do Hollywood Tonight!. Namorava a rapariga que tratava do guarda-roupa de Petra Saganoff. Teresa tinha-lhe pedido para perguntar, E vinte e quatro horas depois de o Rafael ter tido alta do Mass General, perfeitamente saudável, Petra Saganoff encontrava-se no minúsculo apartamento de Teresa em Southie, a fazer a pré-gravação de um segmento para ser posteriormente transmitido.
- Três - diz o operador de câmara. - Dois. Um... e... - aponta para Petra.
- O seu bebé nem sempre teve um aspecto assim tão saudável, pois não?
Teresa sente-se corar. Petra dissera-lhe para não corar. Não pode esquecer-se.
- Não. Há apenas alguns dias o Rafael era um doente pediátrico de SIDA no Massachusetts General Hospital - diz Teresa. Contraiu o vírus devido a uma transfusão sanguínea à nascença. Na semana passada estava pálido e letárgico; lutava contra a candidíase oral, a pneumocistose e a esofagite. A sua contagem celular infantil
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era de quinze. - Aperta mais o bebé. - O médico dele disse que ia morrer dentro de um mês.
- O que aconteceu, Sr.a Civernos?
- Ouvi falar numa coisa. Quero dizer, numa pessoa. Há uma menina no New Hampshire que as pessoas dizem que fala com Deus. A minha vizinha, que visita santuários e lugares desse género, perguntou-me se eu queria ir com ela. Achei que não tinha nada a perder - Teresa ajeita os cabelos na parte de cima da cabeça de Rafael. - O Rafael estava com febre quando lá chegámos, portanto eu estava a passear com ele mesmo antes do nascer do Sol quando esta menina, o nome dela é Faith, saiu cá para fora. Trouxe um carrinho de bebé, e perguntou-me se podia brincar com o meu filho. Passeou com ele, riu com ele e fingiu dar-lhe de comer durante cerca de uma hora - Teresa olha para cima, de lágrimas nos olhos
- Ela tocou-lhe. Beijou-o aqui, onde ele tinha uma chaga aberta. E depois voltámos para Boston. Os médicos, fomos lá no dia seguinte, não o reconheceram. De um dia para o outro, as feridas do Rafael ficaram curadas. As infecções desapareceram. A sua contagem de linfócitos T era de vinte e dois mil - sorri para Petra. - Dizem-me que é medicamente impossível. E depois dizem-me que o Rafael já não é um doente com SIDA.
- Está a dizer que o seu filho ficou curado da SIDA, Sr.a Civernos?
- Acho que sim - diz Teresa. - Deus tocou nesta menina, nesta Faith. É um milagre. Não há nada que eu possa dizer para que ela perceba o quanto lhe agradeço. - Esfrega a face na cabeça de Rafael.
O produtor faz sinal ao operador de câmara, que pára de filmar. Petra tira um cigarro de uma cigarreira de prata e conferencia com o produtor, de costas virada para Teresa.
- Pois - diz ele, rindo de alguma coisa que Petra disse. - Fazes colecção de alucinados.
Teresa ouve.
- Isto não é nenhuma piada. Aconteceu realmente.
- Claro - sorri Petra. - E eu sou a Virgem Maria.
- É verdade. Ela fez a própria avó regressar à vida - furiosa, Teresa levanta-se e agarra na grande mala de cabedal. Procura as indicações para chegar a New Canaan, que traçou cuidadosamente com a vizinha num mapa do New Hampshire intrincadamente dobrado, e atirou-o à apresentadora famosa. - Vá perguntar-lhe diz ela e, dando meia volta, foge para a casa de banho com Rafael e tranca-se lá dentro até ouvir Petra Saganoff e o seu séquito irem-se embora.
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12 de Outubro de 1999
No avião, Ian sintoniza os auscultadores no canal que transmite o noticiário a bordo. com um suspiro satisfeito, concentra-se no ecrã ao centro da cabina da classe executiva.
Mas, em vez de ver a CNN, Ian dá por si a olhar para Petra Saganoff, o talento de algum programa de entretenimento superficial.
- Oh, por amor de Deus - diz ele, fazendo sinal a uma assistente de bordo. - Não têm outra coisa?
Ela abana a cabeça.
- Lamento, senhor. Passamos a cassete que nos dão.
De sobrolho franzido, Ian arranca os auscultadores e enfia-os na bolsa do assento que está à sua frente. Inclina-se para a frente para ir buscar a pasta, achando que pelo menos poderá dar uma olhada para os números das últimas audiências e ver em que zona do país era mais reconhecido. Quando volta a endireitar-se, repara na mulher que Petra Saganoff estava a entrevistar.
Parece-lhe vagamente familiar.
Procura na pilha de papéis que tem na mão e - o bebé. Ian olha para o pequeno ecrã e vê a criança que está ao colo da mulher dar pontapés e contorcer-se. Alcança os auscultadores que pusera de lado.
- ... as feridas dele estavam curadas. As infecções tinham desaparecido... - ouve Ian, e de repente lembra-se onde é que vira a mulher. No relvado em frente à casa rural em New Canaan, a observar o filho ser empurrado de um lado para o outro aos encontrões no carrinho de bonecas de Faith White.
Um músculo lateja no maxilar de Ian. Agora ressuscitava os mortos e curava a SIDA?
- Deus tocou nesta menina... - ouve a mulher dizer.
- Oh, merda - murmura Ian. Ele devia apanhar o próximo voo de regresso. Devia fazer uma campanha, devia redobrar os esforços. Devia desmascarar imediatamente esta ridícula sucessão de curas milagrosas para os incuráveis.
Também sabe que não o fará - que, tal como tinha planeado, vai continuar e vai visitar Michael antes de regressar a New Canaan.
Volta a concentrar-se nos papéis que tem no colo, mas visualiza um par de mãos a virar cartas; vermelho, preto, vermelho, preto. No ecrã, o bebé com SIDA, que há dois dias estava mole como um trapo, ri e mostra-se animado ao colo da mãe.
A pergunta permanece apenas na sua cabeça por um momento antes de ser reprimida. E, no entanto, Ian ainda
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consegue ouvi-la ressoar nos seus ouvidos, tão alegre e sonora como uma longa nota que um coro acabou de cantar: "E se, desta vez, estiver enganado?"
13 de Outubro de 1999
com a grande concentração de uma criança de sete anos, Faith arruma no grande saco de lona que a mãe normalmente leva para a biblioteca as coisas de que precisa para fugir de casa. Entre estas encontram-se o seu ursinho de peluche, uma muda de cuecas e uma caixa de bolachas Ritz que roubou da despensa. Também o seu Cartão de Sócia do Clube das Superamigas da Supermulher e um anel de plástico brilhante que encontrou na caixa de areia do parque e que sempre achou que era um bocadinho mágico. Fica à espera até ouvir a mãe abrir a água do duche da casa de banho principal, e depois esgueira-se para fora do seu quarto.
Veste um casaco polar verde-escuro, leggings cor de ferrugem e uma camisola de gola alta roxa. Um par de luvas vermelhas, para esconder as mãos.
Faith desce as escadas em bicos de pés. Não está a fugir de casa, pelo menos a sério, visto que vai telefonar à mãe assim que descobrir um telefone. Sabe o número de cor. No caso de alguém estar a ouvir, vai disfarçar a voz como o Inspector Gadget às vezes faz e dizer à mãe para ir ao cinema onde viram o Tarzan, porque quem é que poderá estar à espera disso? E vão fugir para longe, só as duas e talvez também a Avó, e deixar todas aquelas pessoas estúpidas sentadas no relvado.
É silenciosa como um pirilampo ao sair sorrateiramente pela porta de correr.
- Mas aonde é que ela vai agora?
Por uma vez, a insónia de Ian é vantajosa. Olhando pela janela da caravana, vê uma luz brilhante que desaparece nos bosques em volta da propriedade dos White. Abrindo cautelosamente a porta da caravana, sai lá para fora. À medida que se aproxima dos bosques, começa a correr, tentando apurar os sentidos para ouvir o som dos pequenos passos cair como neve.
Pronto - vê novamente a luz que o atraiu em primeiro lugar, e reconhece-a como a luz a reflectir-se em alguma coisa. Um triângulo. A lua está a reflectir-se no casaco ou na camisola dela, algum dispositivo de segurança da L. L. Bean.
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- Hei! - chama ele numa voz suave, e Faith imobiliza-se. Vira-se, vê-o e volta a fugir. Num salto rápido, Ian derruba-a e rebola, para que o corpo dela aterre amortizado pelo seu, deixando-o sem fôlego. Agarra com mais força a rapariga que lhe dá pontapés nas canelas. - Pára com isso! - diz ele, abanando-a. - Estás a magoar-me.
- O senhor também me está a magoar! - grita Faith. Suaviza o aperto.
- Se eu te largar, vais fugir? - visto que ela abana a cabeça de forma solene, ele solta os braços. Imediatamente, Faith põe-se de pé e começa a correr em direcção à floresta.
- Bolas! - segue-a e agarra na manga da sua camisola polar, arrastando Faith como um peixe zangado a debater-se. - Mentiste.
- Não - diz Faith, abandonando a luta. - Nunca menti.
Ian apercebe-se de que estão a falar sobre algo completamente diferente.
- Não é um bocadinho tarde para estares a brincar aqui fora?
- vou fugir de casa. Já não gosto de estar aqui.
Ian sente um aperto no peito. Os fins, relembra a si próprio, justificam os meios.
- Suponho que a tua mãe esteja de acordo que te vás embora assim?
Faith baixa a cabeça.
- Eu vou contar-lhe. Prometo - olha em volta para as árvores.
- Sabe onde é que há um telefone?
- No meu bolso. Porquê?
Ela olha para Ian como se ele fosse muito, muito estúpido.
- Para telefonar à minha mãe quando chegar.
Ian põe a mão por cima do casaco, sentindo o ligeiro volume do telemóvel. Finalmente tem algo para negociar.
- Se quiseres telefonar à tua mãe quando chegares aonde quer que vás, então tens de levar o meu telefone contigo. E eu não vou a lado nenhum sem o meu telefone.- faz uma pausa, assegurando-se de que ela está a seguir o seu raciocínio. - Para além disso, provavelmente não devias estar aqui a andar de um lado para o outro sozinha no escuro.
Faith olha para baixo.
- Não devo ir a lado nenhum com estranhos, Ian ri.
- Ainda não ando por aqui há tempo suficiente para deixar de ser considerado um estranho?
Faith pensa sobre isto.
- A minha mãe diz que o senhor é uma ameaça.
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- Ah, estás a ver. Não disse que eu era um estranho. - Mostra-lhe o telemóvel, e depois volta a metê-lo no bolso. - Combinado?
- Acho que sim - diz Faith entre dentes. Começa a andar, e Ian segue ao lado dela. Pensa em tudo aquilo que lhe falta: som, equipa de filmagens, estar a comandá-lo, mas não há dúvida de que uma entrevista não oficial é melhor do que nenhuma. Se ele descobrir uma falha nesta história, poderá expô-la publicamente no dia seguinte.
Caminhavam apenas há alguns momentos quando Faith, sem fôlego, se senta num tronco apodrecido. Isto surpreende-o; achava que as crianças tinham mais resistência. Tenta ver o rosto dela ao luar filtrado pelas árvores, mas ela parece pálida e etérea.
- Estás bem?
- Estou - diz ela, num fio de voz. - Estou só cansada.
- Já passou da tua hora de deitar. Como é que saíste sem que a tua mãe desse por isso?
- Ela está a tomar um duche, Ian está impressionado.
- Uma vez fugi de casa, quando tinha cinco anos. Estive escondido debaixo da coberta de lona da churrasqueira durante três horas sem que ninguém me encontrasse.
- Isso não é bem fugir.
A voz dela está tão esgotada, tão rouca de sabedoria, que Ian sente novamente um acesso de culpa.
- Não gostas de ser... importante para tanta gente? Faith olha para ele como se fosse doido.
- E o senhor, gostava?
Bem, na verdade, sim... esse é o objectivo de aumentar a sua audiência. Mas, como se sabe, nem toda a gente subscreve esse fim. Muito menos uma criança que é um peão involuntário nas maquinações de outra pessoa. Interroga-se se será capaz de fazer de Faith White uma aliada.
- Olha, podes ajudar-me numa coisa? - Ian tira um baralho de cartas do bolso, as paciências por vezes ajudam-no a passar uma noite longa. - Estou a treinar este truque, e não tenho a certeza se estou a fazê-lo bem - baralha as cartas, e depois pede-lhe que escolha uma. Faith fá-la deslizar do baralho, com os dedos das luvas a escorregar. - Agora, lembras-te da carta que tiraste? Tens a certeza? Volta a colocá-la no meio das outras.
Dando pequenas gargalhadas, Faith faz o que ele pediu. Ian agradece silenciosamente ao tio Beauregard por ter-lhe ensinado o único truque de magia que ele teve vontade de aprender. Baralha
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as cartas para impressionar, fazendo-as saltar de uma mão para a outra, e em seguida diz a Faith para bater na parte de cima do baralho.
- É o sete de ouros - anuncia ele. - A tua carta. Ela levanta-se e arqueja.
- Como é que fez isso?
- Conto-te o segredo da minha magia. - diz ele -, se me contares o segredo da tua.
Faith fica desanimada.
- Não sei nenhuma magia.
- Oh, não tenho a certeza disso - Ian senta-se ao lado de Faith, metendo as mãos entre os joelhos. - Em primeiro lugar, como é que curaste a tua avó?
Consegue sentir Faith ficar zangada ao seu lado.
- De qualquer forma também não quero aprender a fazer o seu estúpido truque de cartas.
- Sabes, já conheci outras pessoas que achavam que eram capazes de curar. Alguns eram apenas hipnotizadores. Convenciam as pessoas doentes de que se sentiam melhores, quando na realidade os seus corpos não estavam. E alguns deles conseguiam mesmo fazer as pessoas sentirem-se melhor, através de uma espécie de electricidade que por acaso se transmitia através da sua pele.
- Electricidade?
- Uma descarga. Como o choque que às vezes apanhamos quando tocamos num televisor. Bzzt. Sabes.
Faith levanta-se e estende as mãos.
- Toque-me - desafia ela.
Devagar, sem nunca tirar os olhos do rosto dela, Ian estende a mão.
- Tens de tirar as luvas.
Imediatamente, Faith esconde as mãos atrás das costas.
- Não posso.
Ian encolhe os ombros: "Eu bem te disse."
- Não posso mesmo - diz Faith num tom suplicante.
Já se passou muito tempo desde que Ian tinha sete anos. Ele tenta recordar-se do que resultava no recreio.
- Mentirosa.
- Não sou nada! - insiste Faith, agitada. - Peça-me outra coisa!
- Está bem - Ian não está a ser justo, por amor de Deus, está a ludibriar uma criança de sete anos, mas por outro lado, nunca foi conhecido pelo seu desportivismo. Fez Faith ficar exactamente
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como ele queria: de rosto erguido e ansioso, tão desesperada por ter uma hipótese para provar que tem razão que é inevitável que se descaia e revele o estratagema.
- Peça-me - implora.
Ian pensa em tudo aquilo que deseja saber: Quem está metido naquilo, quem lucrará, como é que conseguiram enganar uma equipa médica? Mas quando abre a boca, o que diz surpreende-o.
- Como é Deus?
Os lábios de Faith entreabrem-se para dar uma resposta.
- Deus... - começa ela a dizer, e depois desmaia.
Reflexos rápidos levam Ian a estender os braços e apanhar a menina antes que ela batesse com a cabeça no tronco, numa pedra ou numa raíz de uma árvore.
- Faith - diz ele, abanando-a suavemente. - Acorda! - deita-a no chão cuidadosamente e verifica a sua pulsação. Afasta-lhe as folhas do rosto.
Então limpa as mãos à gabardina e apercebe-se de que está manchada de sangue.
com o coração aos pulos, Ian verifica o seu próprio peito e flanco. Mas ele está bem, e um exame superficial de Faith não revela nenhum ferimento. O seu olhar fixa-se nas luvas vermelhas, contrastando com a terra musgosa e as folhas espalhadas.
com cuidado, descalça-lhe uma.
- Caramba - diz numa voz abafada.. Em seguida pega em Faith ao colo e corre o mais depressa que pode para junto de Mariah White.
A campainha da porta está a tocar enquanto ela enrola uma toalha em volta dos cabelos molhados, aperta o roupão na cintura, e desce as escadas a correr. São dez e meia da noite, por amor de Deus. Ela tem uma criança a dormir. Quem é que teria a coragem de as incomodar agora?
Quando agarra na maçaneta da porta, a pessoa que está do outro lado começa a bater com mais força. com o maxilar cerrado, Mariah abre a porta e dá por si a olhar para Ian Fletcher. Mas toda a sua fúria se desvanece no momento em que repara que Faith jaz inconsciente nos braços dele.
- Oh... - a voz de Mariah treme, e ela recua para deixar Ian entrar em casa.
- Ela estava no bosque - Ian observa Mariah tocar nas têmporas de Faith, nas suas faces. - Está a sangrar. Temos de levá-la para o hospital.
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Mariah tapa a boca, reprimindo um soluço. Levanta a manga de Faith, esperando ver um corte no pulso, mas Fletcher em vez disso arranca-lhe a luva.
- Vá lá! - diz ele. - De que está à espera?
- De nada... - Mariah corre lá para cima e veste as roupas que já tinha atirado para o cesto da roupa suja. Depois arranca as chaves do carro e a mala do bengaleiro Shaker ao lado da porta de entrada.
Os limites do jardim fervilham de curiosidade, visto que a maioria dos jornalistas saiu da sua vigia entediante ao reparar que Ian Fletcher, logo ele, levava a menina ao colo para dentro de casa. As câmaras de vídeo começaram a zumbir, lâmpadas de flash disparam como foguetes e, acima de tudo isto, ouve-se o ténue refrão das pessoas clamando ajuda a Faith, que se encontra neste momento inconsciente.
Mariah abre a porta de trás do carro para Ian, e sem dizer uma palavra, ele entra com Faith, aninhando-a no seu colo. Mariah senta-se no lugar do condutor, de mãos trémulas no volante, e tenta sair de marcha atrás pela via de acesso sem atropelar nenhum dos espectadores que insistem em tocar no carro ao passar.
Mariah cruza o seu olhar com o de Ian pelo espelho retrovisor.
- Como é que isto aconteceu?
- Não sei - Ian afasta os cabelos de Faith da testa; este gesto não passa despercebido a Mariah. - Acho que ela já estava ferida quando a encontrei.
Mariah abranda ao entrar na longa curva de uma colina. Terá Faith tentado suicidar-se de forma errada? Não faz a Ian Fletcher a pergunta que quer: Porque é que ele estava com ela? Porque é que a minha própria filha não veio ter comigo;
Vira para a entrada de emergência do Centro Médico do Connecticut Valley. Ali, deixa o carro no passeio e entra à frente de Ian no edifício, dirigindo-se para a enfermeira de triagem. Mariah está preparada para lutar pela prioridade do caso de Faith, mas a enfermeira lança um olhar à criança inconsciente e para o sangue no casaco de Ian e pede imediatamente uma maca e um médico. Mariah mal consegue acompanhar a rapidez com que tudo acontece quando Faith é levada dali rapidamente.
Não pensa em pedir a Ian para ir com ela, mas não fica surpreendida ao ver que ele também vem. E mal se apercebe de como o seu corpo balança quando cortam a outra luva dos dedos de Faith, de como a mão de Ian se estende para a equilibrar.
- Sinais vitais?
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- Tensão arterial cem, cinquenta, pulso fraco.
- Vamos fazer uma ligação intravenosa e análises ao sangue. Quero uma transfusão, uma contagem sanguínea completa, análise toxicológica, electrólitos - o médico olha por cima do corpo inerte de Faith. - Como é que ela se chama?
Mariah tenta usar a voz, mas não consegue falar.
- Faith - diz Ian.
- Muito bem, Faith - diz o médico, com o rosto a centímetros do dela. - Acorda, querida - olha para uma enfermeira. - Vá buscar ligaduras de pressão - ordena, e olha para Mariah. - Ela tomou alguns comprimidos? Bebeu alguma coisa que estivesse debaixo do lava-loiça?
- Não - sussurra Mariah, chocada. - Nada disso, Ian pigarreia.
- Ela estava a sangrar quando a encontrei. Tinha as luvas calçadas, por isso, de início, não reparei. E depois desmaiou - olha para o relógio. - Há cerca de meia hora.
- Não me parecem perfurações - diz uma enfermeira, e o médico responsável posiciona-se atrás dela e começa a pressionar o braço de Faith. K
- A hemorragia não está a abrandar. Quero a opinião de um cirurgião da mão - olha para Ian. - O senhor é o pai?
Ian abana a cabeça.
- Sou um amigo.
Para Mariah, eles parecem grandes abutres, a debruçarem-se sobre o pequeno corpo de Faith para agarrar nos sítios que permanecem intocados. Uma enfermeira ergue a mão direita de Faith, carregando com força no braço, na artéria braquiSl, e por um momento, Mariah consegue ver uma minúscula centelha de luz através da ferida - um pequeno túnel perfeito, atravessando-lhe a palma.
De repente, Faith dá um pontapé, atingindo um médico residente no queixo.
- Naaaão! - grita ela, tentando libertar os braços das enfermeiras que estão a segurá-la. - Não! Dói!
Mariah dá um passo em frente, e sente a mão de Ian no ombro.
- Eles sabem o que estão a fazer - murmura ele, enquanto o médico tranquiliza Faith com a sua voz.
- Como é que magoaste as mãos, Faith? - pergunta ele.
- Não magoei. Não magoei as minhas... Au Elas começaram a sangrar e os pensos rápidos não se seguravam e... Parem! Mamã, fá-los parar!
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Afastando-se de Ian, Mariah corre em direcção à maca, e a sua mão pousa na coxa da filha antes de ser afastada.
- Tirem-na daqui! - grita o médico, quase inaudível devido aos guinchos de Faith. Mas quanto mais a afastam de Faith, mais os seus soluços se intensificam, e demora algum tempo nos braços de Ian até Mariah se aperceber de que quem está a chorar é ela.
Há uma paz insular nos hospitais a meio da noite, como se por cima dos gemidos, dos suspiros e dos pagers silenciosos aquelas pessoas que ainda andassem a deambular pelos corredores ou sentadas ao lado das camas estivessem unidas pelo mesmo propósito. Podemos encontrar uma mulher no elevador e, de um momento para o outro, saber qual é o seu sofrimento. Podemos estar ao lado de um homem junto da máquina que vende café e saber que está no rescaldo do entusiasmo de ser pai. Damos por nós a perguntar a um desconhecido a sua história; sentimo-nos ligados a pessoas por quem normalmente passaríamos na rua sem olhar.
Mariah e Ian estão de pé como sentinelas aos pés da cama de Faith na enfermaria pediátrica. Agora dorme descansada, com as mãos ligadas a esbaterem-se no branco dos lençóis.
- Cotonetes - murmura Ian.
- Desculpe?
- Os braços dela parecem cotonetes. É por causa daquela coisa almofadada na ponta.
Mariah sorri, num movimento tão improvável após aquelas últimas horas que ela sente o rosto franzir-se quando isso acontece. Faith vira-se e aconchega-se novamente na cama, e Ian aponta para a porta, com as sobrancelhas levantadas numa pergunta. Mariah segue-o lá para fora e começa a percorrer o corredor, passando pela conversa silenciosa da sala das enfermeiras e pela porta dos elevadores.
- Ainda não lhe agradeci por a ter trazido - cruza os braços, de repente com frio. - Por não ter agarrado numa câmara e tirado fotografias da Faith quando aquilo aconteceu.
Ian olha-a nos olhos.
- Como é que sabe que não o fiz?
Ela tem a boca e a garganta secas. Imagina Ian no banco de trás do carro, a segurar na Faith.
- Simplesmente sei - diz Mariah.
Pararam em frente ao berçário, onde os recém-nascidos, embrulhados em mantas, estão deitados lado a lado como os
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produtos na prateleira de uma mercearia. Um recém-nascido tira uma mão de dentro da manta e abre as pétalas dos seus dedos. Mariah não consegue deixar de reparar que a palma da mão dele é cor-de-rosa, nova, intacta.
- Acredita?
Ian está a olhar para os recém-nascidos, mas a falar com ela. Não é uma pergunta a que ela deva responder; não é assunto para se discutir com Ian Fletcher, que - apesar do seu comportamento cavalheiresco desta noite - ainda será seu inimigo amanhã. Mas estabeleceu-se uma ligação naquelas últimas horas, algo que faz Mariah lembrar-se das aranhas a lançar o seu fio a distâncias incríveis, algo que a faz pensar se não deverá uma resposta a Ian.
- Sim. Não sei o que Faith vê, não sei por que razão o vê, mas acredito que esteja a dizer a verdade.
Ele abana a cabeça quase imperceptivelmente.
- O que eu queria dizer era, acredita em Deus?
- Não sei. Quem me dera poder simplesmente dizer-lhe "Oh, sim". Quem me dera que fosse assim tão fácil.
- Porém tem as suas dúvidas. Mariah olha para ele.
- E você também.
- Pois. Mas a diferença é que se pudesse escolher você acreditava. E eu não - encosta a palma da mão ao vidro à sua frente, observando os bebés. - "Criou-os homem e mulher e abençoou-os." Mas podemos observar ao microscópio um ovo ser fertilizado. Podemos agarrar numa câmara minúscula e observar as células a dividir-se, ou um coração formar-se. Podemos ver isso acontecer. Então, onde é que está Deus no meio disso?
Mariah lembra-se do rabi Solomon com a sua camisola hippie a negociar um caminho entre a Bíblia e a teoria do Big Bang junto da Faith.
- Talvez esteja no facto de isso acontecer, Ian vira-se.
- Mas estamos a falar de provas científicas.
Mariah reflecte sobre as circunstâncias que conduziram ao seu internamento em Greenhaven.
- Às vezes podemos ver as coisas acontecer em frente aos nossos olhos e mesmo assim tirar as conclusões erradas.
Os seus olhares fixam-se um no outro por um momento. Mariah pestaneja primeiro.
- Provavelmente quer ir para casa. Dormir um pouco. Ele massaja a parte de trás do pescoço.
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- É verdade - concorda ele, mas não faz nada para ir embora. Mariah dá por si a catalogar Ian Fletcher da mesma forma que
qualquer outra mulher faria: os cabelos negros sedosos, tão lisos que espetam em volta da testa; o alcance dos seus dedos abertos no vidro; a luz dentro dos seus pálidos olhos azuis.
- O que era você? - diz abruptamente. Ele ri.
- Antes de reincarnar como idiota, é isso que quer dizer?
- Não - Mariah cora. - Antes de ser ateu. Quero dizer, provavelmente nasceu alguma coisa. Da Igreja Episcopal, Metodista, ou Católica.
- Baptista. Baptista do Sul.
- Tem voz disso - diz Mariah, antes de poder censurar-se a si própria.
- Só não tenho o estômago - Ian encosta o ombro ao vidro do berçário e cruza os braços. - Não absorvi a ideia de Cristo.
- Talvez devesse ter tentado o Judaísmo ou o Islamismo.
- Não, não se trata da questão do Messias. É a ideia de que qualquer pai, incluindo Deus, poder fazer o seu filho sofrer intencionalmente - fica a olhar para os bebés, aninhados em fila. - Não posso adorar alguém que deixe que isso aconteça.
Mariah está tão surpreendida que fica sem palavras. Dito daquela maneira, como é que ela pode não concordar? Ainda está a tentar encontrar uma resposta quando Ian lhe sorri, dispersando todos os seus pensamentos.
- vou dizer-lhe uma coisa em que acredito - diz ele numa voz suave. - Acredito que a Faith vai ficar bem - inclina-se para a frente, beija a face de Mariah e começa a dirigir-se para o fundo do corredor.
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Sete
Gerou-se o caos.
John Milton,
Paraíso Perdido
15 de Outubro de 1999
Dois dias depois Faith ainda continua no hospital. Em minha opinião, ela está bem, à excepção das feridas abertas que tem nas mãos. Mas até -mesmo estas, diz ela, já não lhe doem. O Dr. Blumberg, o cirurgião da mão, trouxe consigo uma profusão de médicos para conferenciarem sobre o diagnóstico da Faith. Não nos dá uma resposta directa sobre isso, e não dá alta à Faith antes de o fazer.
Tentei contactar o Colin, mas o seu correio de voz dizia apenas que ele estava fora da cidade, sem especificar onde. Tentei telefonar-lhe com o intervalo de algumas horas, mas nada se alterou.
A minha mãe acha que eu devia preocupar-me com a Faith, e não com o Colin. Tem passado os dias todos aqui connosco e quer saber porque é que eu estou com tanta pressa para voltar para casa. No hospital, pelo menos, nenhum dos jornalistas ou dos fanáticos religiosos pode aproximar-se da Faith.
Eu já estive em casa, claro; para tomar duche e mudar de roupa. O número de pessoas não se alterou - a seita ainda se encontra ali, e a caravana - embora não tenha visto sinais do Ian Fletcher. Isso não me surpreende. O que me surpreende é que ele tenha feito uma emissão em directo depois de a Faith ter sido internada no hospital e, apesar disso, não ter referido os ferimentos dela.
- Mãe - queixa-se Faith - é a terceira vez que te chamo! Sorrio-lhe.
- Desculpa, querida. Não ouvi.
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- Não, estavas demasiado ocupada a meditar - resmunga a minha mãe.
Ignoro-a.
- De que precisas, Faith?
- De um daqueles sorvetes. Dos vermelhos.
- Claro - em vez de incomodar uma enfermeira, vou buscá-lo ao frigorífico ao fundo do corredor. Abro a porta e encontro Ian Fletcher do outro lado, a discutir com um polícia que foi atenciosamente colocado ali para impedir que Faith fosse assediada por algum membro da comunicação social que podia passar pela segurança do hospital sem aviso.
- Estou a dizer-lhe - exige Fletcher. - Pergunte-lhe que ela vai deixar-me entrar.
- Perguntar o quê?
Sorri para mim e mostra um ramo de rosas.
- Queria ver a paciente.
- Neste momento, a minha filha não está disponível. Mesmo nesse instante, a voz da Faith ouve-se através da porta
aberta.
- Mãe, quem é que está aí? - apressa-se a chegar aos pés da cama, vê Ian Fletcher e cora. - Acho que devo agradecer-lhe por me ter levado para casa naquela noite.
Fletcher abre caminho para entrar no quarto e estende as rosas para Faith.
- Não é preciso. Os Cavaleiros Andantes como eu estão sempre à procura de donzelas em apuros.
Faith ri, e a minha mãe agarra nas rosas.
- Não são lindas! - exclama ela. - Faith, onde é que as vamos pôr?
Encolhendo os ombros num pedido de desculpas ao polícia, volto a entrar no quarto de hospital e fecho a porta.
- Nunca conheci uma senhora que não gostasse de flores diz Ian.
- Elas fazem a minha mãe espirrar - responde a Faith.
- Então não posso esquecer-me disso - Fletcher vira-se para mim. - Então, como é que ela está?
- Muito melhor.
Os olhos dele permanecem fixos nos meus.
- Sim - diz ele. - Está com um óptimo aspecto.
Somos interrompidos pela minha mãe, que passa atarefadamente entre nós com um jarro de água cheio de rosas. Enquanto as coloca em cima da mesa-de-cabeceira, Ian senta-se na beira da cama.
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- Alguém te disse quando é que podes ir para casa?
- Ainda não - respondo.
- Eu quero ir agora - diz Faith. - Aqui cheira mal.
- Cheira a hospital - concorda Ian. - Como se alguém estivesse sempre a limpar casas de banho.
- Já esteve alguma vez no hospital? Uma sombra desce sobre o rosto de Ian.
- Não por mim - olha para mim. - Posso falar consigo durante um segundo?
Faz novamente sinal para o corredor. Acenando em silêncio para a minha mãe, sigo-o para fora do quarto. É agora que as coisas vão descambar, digo para comigo. É agora que ele vai dizer-me que, apesar do seu comportamento exemplar e das rosas amarelas, posso contar com uma equipa de filmagens pronta a gravar a saída de Faith do hospital.
- Queria conversar?
Ele está a menos de meio metro de distância, os nossos ombros estão encostados em lados opostos da ombreira da porta, Ian pigarreia.
- Na realidade...
- Sr.a White - o som da voz do Dr. Blumberg faz-me sobressaltar. - Ainda bem que está aqui. Queria falar consigo sobre a Faith. Acompanha-me até à sala ao fundo do corredor?
Embora estivesse à espera, começo a tremer. De alguma maneira sei que se trata de más notícias; os médicos querem sempre falar das más notícias quando nos convidam para nos sentarmos. Se a Faith estivesse bem, ele teria entrado logo no quarto. Vai dizer-me que a Faith tem cancro, que tem três semanas de vida, de de alguma forma a culpa é minha. Se eu tivesse sido uma mãe mais competente, teria reparado em alguma coisa antes - um alto atrás da orelha, um corte no joelho que custava a sarar.
- Posso, Mariah? - pergunta Ian em voz baixa.
Ian olha para o fundo do corredor, para onde o médico já começou a dirigir-se, e depois volta a olhar para mim. Está a fazer-me mil perguntas, apanhando-me quando estou mais debilitada e, ao mesmo tempo, oferecendo-me o braço para que as minhas pernas não tremam tanto. Ele não devia presenciar isto e, contudo, estava com a Faith quando tudo aconteceu; já viu tudo o que havia para ver. A minha necessidade de apoio ultrapassa o meu bom senso.
- Está bem - sussurro, tonta, e juntos começamos a andar.
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Ao meu lado, Ian está a mexer em alguma coisa, mas eu não olho. Se se tratar de um gravador ou de um bloco de notas, não quero ver. Faço um esforço para olhar em frente, mas quando o Dr. Blumberg pede a Ian que lhe empreste a caneta, desperta-me o interesse. Tira alguma coisa embalada em plástico do bolso.
- Está a ver este bolo?
É um bolo com recheio de cereja e queijo. O Dr. Blumberg Sigam na caneta de Ian e perfura o bolo, mesmo através do plástico e dos recheios, para sair pelo outro lado do plástico.
- É um exemplo bastante bom de um trauma penetrante. Uma ferida perfurante - devolve a caneta a Ian, agora a pingar e pegajosa, e aponta para o buraco a meio do bolo.
- Vê como o bolo está irregular? Como a camada de queijo escorre para a camada de cereja? E a cereja está escorrer para fora. Um trauma penetrante da mão rasga e distorce os tecidos. Há pele rasgada em volta da ferida ou empurrada para dentro dela. Coágulos de sangue e tecidos mutilados de áreas adjacentes enchem a ferida. O mais frequente é haver hematomas ou ossos despedaçados - o Dr. Blumberg ergue os olhos para olhar para mim. - As feridas da sua filha não são nada parecidas com isto.
- Talvez não tenham sido... traumas penetrantes - sugiro.
- Oh, foram sim. As mãos foram atravessadas completamente, de forma limpa. A palavra-chave aqui é "limpo". As radiografias, tenho-as no meu consultório, mostram estas pequenas feridas perfeitamente redondas, com aberturas perfeitamente redondas nos tecidos e nos ossos... mas não há verdadeiro trauma.
Agora estou completamente perdida.
- E isso é bom?
- É inexplicável, Sr.a White. Passei os últimos dois dias, como sabe, a conferenciar com os meus colegas sobre o diagnóstico da Faith. Todos concordámos: é impossível que um objecto possa entrar na palma da mão e sair pelo outro lado sem provocar lesões consideráveis, ou no mínimo sem rasgar alguns tecidos.
- Mas ela estava a sangrar. Desmaiou por causa disso.
- Tenho consciência disso - diz o Dr. Blumberg. - No entanto, as mãos dela estavam a perder sangue lentamente. Ao contrário de uma laceração, ela não perdeu o sangue suficiente para causar a sua perda de consciência. As feridas da sua filha comportam-se como perfurações... mas não parecem perfurações.
- Não compreendo.
- Já alguma vez leu alguma coisa sobre pessoas que sofrem traumas e de repente conseguem falar fluentemente japonês ou
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francês? - pergunta o médico. - Batem com a cabeça em postes telefónicos e por alguma razão são capazes de entender uma língua que não entendiam antes. Não é algo que aconteça todos os dias, mas acontece. Clinicamente, é muito difícil de explicar - respira fundo.
- Depois de uma cuidadosa reflexão, vários médicos e eu próprio levantaram a questão se a Faith teria ferido realmente as mãos com alguma coisa, ou se estas simplesmente começaram a sangrar. Fletcher assobia suavemente ao meu lado.
- Está a autenticar estigmas.
- Não estou a fazer este diagnóstico de forma conclusiva neste momento - insiste o médico ardentemente; e ao mesmo tempo digo:
- Estigmas?
O Dr. Blumberg hesita, visivelmente embaraçado.
- Como sabe, os estigmas são supostamente réplicas das chagas de Cristo durante a crucificação, Sr.a White, instâncias clinicamente inexplicáveis em que as pessoas sangram das mãos, pés e flanco sem que o corpo sofra nenhum trauma verdadeiro. Por vezes, acompanham o êxtase religioso. Às vezes, estas feridas desaparecem e voltam a aparecer, às vezes são crónicas. Quase sempre são descritas como dolorosas. Aparentemente, existem várias circunstâncias históricas em que os médicos chegaram mesmo a registá-las como diagnóstico.
- Está a dizer-me que a minha filha... Não. A Faith não está em êxtase religioso, o que quer que isso seja. E porque haveria de ter as chagas da crucificação quando nem sequer sabe o que é a crucificação? - Curvo os ombros. - Essas circunstâncias históricas... ocorreram quando?
- Há centenas de anos - admite o Dr. Blumberg.
- Estamos em 1999 - digo. - Essas coisas já não acontecem. Esses fenómenos são radiografados, é feito o teste do carbono e fica cientificamente provado que são falsos - viro-me para Ian Fletcher.
- Certo?
Mas desta vez ele não diz uma palavra.
- Quero ver as mãos dela - anuncio. Concordando, o Dr. Blumberg levanta-se e dirige-se novamente para o quarto da Faith.
- Querida - digo eu numa voz animada entrando atrás dele pela porta de mola -, o doutor quer examinar-te.
- Depois posso ir para casa?
- Vamos ver - fico de pé ao lado do Dr. Blumberg enquanto ele desenrola as grossas ligaduras. Têm sido mudadas diariamente, mas depois do espectáculo que a Faith deu no Serviço de Urgências, o pessoal médico tem muito cuidado para que ela não vislumbre as feridas. Puxando suavemente a gaze com pinças, o
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doutor liga um candeeiro flexível ao lado da cama e posiciona-se de forma a tapar a vista a Faith. Retira o resto das ligaduras da mão direita de Faith.
Tem apenas alguns milímetros de diâmetro, o buraco, mas está lá. A pele que rodeia as bordas está roxa e macerada; há raios de sangue seco que irradiam para o exterior. Faith dobra os dedos e, lá dentro, consigo vislumbrar um osso fino como uma agulha. No entanto, a ferida não volta a sangrar.
O Dr. Blumberg sonda as bordas da ferida. De vez em quando, a Faith retrai-se, e a dada altura ele afasta-se inadvertidamente o bastante para que ela possa olhar para a sua própria mão. Aproxima-a do rosto, espreitando para a centelha de luz que vinha do outro lado, enquanto todos nós sustemos a respiração.
Então começa a gritar.
O Dr. Blumberg chama uma enfermeira, e Ian Fletcher e a minha mãe esforçam-se por segurar na Faith.
- Faith - tranquilizo. - Está tudo bem. O doutor vai fazer com que tudo fique bem.
- Mamã, tenho um buraco na mão! - guincha ela. Uma enfermeira entra no quarto de hospital com uma bandeja de Styrofoam que contém uma seringa. O Dr. Blumberg agarra o braço de Faith com firmeza e enfia a agulha no seu fino bicepite. Após um momento de luta, Faith fica mole.
- Desculpe - murmura o Dr. Blumberg. - Acho que devemos continuar a mantê-la aqui. A minha sugestão de tratamento é marcar-lhe uma consulta de psiquiatria.
- Acha que ela é doida? - digo, levantando a voz histericamente. - O doutor viu a mão dela. Ela não está a inventar.
- Não disse que ela era doida. É que a mente é um órgão poderoso. Pode fazer uma pessoa ficar doente tão facilmente como um vírus. E, sinceramente, não conheço o protocolo para este tipo de situação. Não sei se a mente pode fazer o corpo sangrar.
As lágrimas enchem-me os olhos.
- Ela tem sete anos. Porque é que haveria ela de querer fazer isso? Sento-me ao lado da Faith na cama de hospital, afagando-lhe
os cabelos enquanto o rosto dela se relaxa com o sono. A boca entreabre-se, surgindo-lhe uma bolha entre os lábios. Atrás de mim, ouço o médico falar num tom suave com a minha mãe. Ouço o médico abrir e fechar a porta duas vezes.
As meninas sonham em ser princesas. Em ter póneis. Em usar jóias e vestidos de baile. E não em sangrar sem nenhuma razão, apenas para ser como Jesus.
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A voz de Ian Fletcher pousa-me suavemente na têmpora.
- Uma vez entrevistei uma freira - diz ele. - De setenta e seis anos, uma carmelita. Estava enclausurada desde os onze anos. Segundo a madre superiora, a Irmã Mary Amélia tinha sido abençoada com estigmas - viro-me lentamente para poder olhá-lo nos olhos. - Toda a gente pensava que se tratava de um milagre. Até eu encontrar um gancho de coser utilizado para arrancar pontos enfiado na bainha do hábito da Irmã Mary Amélia Afinal havia uma fronteira muito ténue entre o êxtase religioso e a insanidade religiosa.
"Acha que ela fez isto a si própria." Não tenho de pronunciar as palavras; ele sabe o que estou a pensar.
- As mãos dela, da irmã, não se pareciam nada com as da Faith.
- O que está a tentar dizer? Ele encolhe os ombros.
- Que isto é diferente. Só isso.
No total, Allen McManus acha que é um bom negócio. Uma pizza de pepperoni e uma embalagem de seis cervejas para o jovem Henry, que trabalha em tempo parcial para o Globe, e em troca o rapaz senta-se em frente ao computador e pirateia até conseguir chegar às informações confidenciais da família White.
- Porque é que está a demorar tanto tempo? - pergunta Allen, afastando cautelosamente uma peça de roupa desportiva suada para poder sentar-se na beira da cama, no quarto de Henry.
- O meu modern é só de vinte e oito ponto oito - diz Henry.
- Tenha calma.
Mas Allen não é capaz. Quanto mais sabe, mais ansioso fica. Ultimamente, Allen tem-se lembrado de citações do Apocalipse, histórias horrendas contadas pela Irmã Thalomena no quinto ano sobre pecadores que foram para o Inferno. Já se passaram anos desde que se confessou e comungou pela última vez, e a religião para Allen ficará para sempre marcada pela brutalidade das freiras que davam as aulas na escola paroquial. Mas o catolicismo ficou profundamente enraizado, e esta menina fê-lo repensar as suas escolhas. E se, durante todos estes anos, estivesse enganado? Quantas ave-marias e pais-nossos constituirão a penitência por virar as costas a Deus?
De repente, o ecrã do computador começa a ser percorrido por uma torrente de informação.
- Compras feitas com o cartão de crédito. Este é o cartão da senhora.
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Allen inclina-se para a frente. Muitas mercearias, lojas de roupa para crianças, algumas compras feitas no catálogo do L. L. Bean. Nada suspeito.
- Caramba, até pagam a conta toda ao fim de cada mês.
- Ela pagou. Vamos ver o marido - os dedos de Henry voam por cima do teclado, descobrindo um cartão American Express. Ele assobia devagar. - Parece que o Sr. White andou a conviver um pouco durante as viagens de negócios. Veja lá isto: Palácio da Dança de Lilly.
Allen resmunga.
- Então ele andava a trair a mulher. Que grande coisa - a infidelidade não o leva necessariamente a fazer com que a filha passe por Messias. Faz-se uma coisa dessas para melhorar a reputação, para chamar as atenções. Ou então por se ser simplesmente louco.
- Bingo! - grita Henry. - Surgiu um nome na busca legal. É do departamento de registos do estado do New Hampshire. Os tribunais têm de arquivar as sentenças e essas tretas, praticamente tudo aquilo que é levado diante de um juiz. Parece que o Sr. White tentou encarcerar a patroa. Não, corrijo: parece que conseguiu.
- Deixa-me ver - Allen senta-se e percorre a página. Caramba! Internou-a numa instituição mental - olha para o mandado original que mandou a mulher para Greenhaven, para as sucessivas audiências que Millie Epstein instigou para que a sua filha pudesse sair de lá.
Henry estende-se na cama, palitando o pepperoni dos dentes.
- Há muita gente doida no mundo, meu.
Mas Allen não está a ouvir. Uma instituição mental. Agora faz sentido. As crianças de sete anos não começam a falar com Deus sem mais nem menos; alguém as leva a fazê-lo. E uma pessoa que já ultrapassou os limites uma vez, supõe ele, o mais provável será que volte a fazê-lo.
Levantando-se da cadeira, Allen enfia a mão num saco de papel para tirar uma cerveja Rolling Rock e atira uma a Henry.
- Fixe - diz Henry. - O que estamos a celebrar? Allen sorri devagar.
- O ateísmo.
De alguma forma espalhou-se a palavra pelo hospital sobre a Faith. As enfermeiras vêm sob o pretexto de ver como é que ela está e acabam por se sentar ao lado dela para conversar e, num caso, para lhe dar uma medalha de São Judas para ela segurar nas mãos ligadas por um momento.
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Faith parece não saber o que fazer. Quando está acordada, responde educadamente às perguntas sobre a escola e sobre os seus filmes preferidos da Disney; quando está a dormir, estas desconhecidas tocam-lhe nos cabelos e na face como se até aquele ligeiro contacto as pudesse preservar.
A minha mãe tem estado agitada, todo o dia.
- Isto não significa nada - diz a qualquer pessoa que esteja a ouvir. - Estigmas, que disparate. Os Judeus já estão há cinco mil e setecentos anos à espera de um Messias; não vamos começar a acreditar em Jesus agora - a dada altura, quando a Faith está a dormir, ela afasta-me para conversar comigo. - Incomoda-te? Isto da Faith?
- Bem, é claro que sim - sussurro acaloradamente. - Achas que quero que ela passe por isto?
- Quero dizer a parte católica. Católica, por amor de Deus! Toda esta gente a desfilar, a entrar e a sair como se a Faith fosse uma espécie de santa.
- Sangrar das mãos não a torna católica.
A minha mãe acena com a cabeça enfaticamente.
- Espero que não.
A única coisa boa que acontece é o seguinte: a minha mãe está na cantina, à procura de gelatina Jell-O para a Faith, quando o padre MacReady entra no quarto naquela tarde.
- Olá, Charlotte - diz ele à enfermeira que está a escovar os cabelos da Faith, e a meter alguns fios no bolso quando acha que eu não estou a ver. - Como está? E as crianças?
- Estamos bem, padre - diz a enfermeira. - Suponho que já ouviu falar do que está a acontecer?
- Um dos voluntários do hospital trabalha na secretaria da igreja
- o padre fica à espera até a enfermeira se ir embora, e depois senta-se na cadeira que ela desocupou. - Olá, eu sou o padre MacReady.
- Porque é que usa essa coisa branca à volta do pescoço? - pergunta Faith.
- É uma camisa especial que nos diz que trabalha na igreja explico.
- Achei que ele era o pai de alguém7 - diz Faith, franzindo a testa.
O padre sorri.
- Realmente, essa é a parte mais confusa de todas - levanta suavemente a mão ligada de Faith. - Ouvi dizer que falas com Deus. Eu também gostava de falar.
7 Na versão original em inglês, father, que significa padre e pai. (N. da T.)
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- Ela também fez com que as suas mãos doessem?
Fico a olhar para Faith. Até agora não sabia que este Deus dela lhe tinha dito que isso ia acontecer. Não me tinha lembrado de perguntar.
- Não, Faith - responde o padre. - Deus não fez com que as minhas mãos doessem.
Será mágoa, aquilo que ouço na voz dele? Nesse momento, a minha mãe entra com um tabuleiro de Jell-O de limão.
- Hoje não há da vermelha, Faithe, mas... Ob - examina o padre com os olhos. - Já está a começar - diz num tom azedo.
- A senhora deve ser a Sr.a Epstein - cumprimenta-a o padre MacReady. - Tênho muito gosto em conhecê-la.
A minha mãe franze os lábios.
- Quem me dera poder dizer o mesmo. -Mãe!
- Bem, é verdade. Agora estou a viver a minha vida um dia de cada vez, sabes, e não vou receber bem um homem que está a tentar converter a minha neta.
- Acredite, não tenho nenhuma intenção de converter a sua neta...
- Claro que não! Acha que isso já está meio feito, com as mãos a sangrar. Estigmas, pois sim!
Reviro os olhos e agarro no cotovelo do padre.
- Mãe, talvez pudesse ficar a tomar conta da Faith e ajudá-la com o Jello.
- Óptimo - anuncia a minha mãe. - Entretanto, livra-te dele.
Assim que o padre MacReady e eu vamos para o corredor, peço desculpa.
- Peço-lhe imensas desculpas. A minha mãe não está propriamente a aceitar isto bem.
- E você?
- Ainda estou a habituar-me à ideia de que a Faith fala com Deus. Dar o passo seguinte, bem, nem sequer consigo pensar nisso.
O padre MacReady sorri.
- Os estigmas, se é disso que se trata, são uma dádiva.
- Que dádiva. Deixar-nos num sofrimento constante e tornar-nos um espectáculo de feira - eu sei que existe uma razão para que a palavra "estigma" caracterize este fenómeno.
- Milhões de pessoas diriam que a sua filha é abençoada.
- Ela não acha que é abençoada - para meu embaraço, a minha voz mostra-se hesitante. - Sabe que ela calçou luvas escuras quando
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aconteceu pela primeira vez? Estava demasiado envergonhada para me mostrar que estava a sangrar.
O padre MacReady parece ficar interessado ao ouvir isto.
- Do pouco que sei sobre os estigmatizados, eles não mostram as suas feridas a toda a gente. Escondem-nas.
Após um momento de silêncio, paro de caminhar. Deambulámos até ao fim da enfermaria pediátrica, até chegarmos ao berçário, onde estive com Ian Fletcher.
- Tenho uma confissão a fazer-lhe.
- Parece que tenho esse efeito nas pessoas.
- Uma vez entrei às escondidas num confessionário.
- Uma confissão sobre a confissão? - o padre MacReady ri.
- Tinha apenas dez anos. Queria ver como era. Mas achei que ia soar algum alarme, sabe, algum detector que mostrasse que eu não era católica.
- Não, são os protestantes que gostam da tecnologia - encostando-se à parede, ele sorri. - Na verdade, sempre admirei os Judeus pela ausência de confissão. Já agora, pode dizer isso à sua mãe.
- Sou capaz de dizer.
- Está a ver, um pecador católico confessa-se, diz algumas orações e a vergonha desaparece com a penitência. A mim parece-me que os Judeus carregam a culpa como camelos, para sempre. O que acha que dissuade mais eficazmente? - ficando sério, o padre MacReady vira-se. - Não sei se Deus fala com a Faith, Sr.a White. No entanto, gostava de acreditar que sim. Não me interessa o que digam outros sacerdotes; nunca acreditei que o espírito viesse da religião. Vem de dentro de cada um de nós; atrai as pessoas para nós. E a sua filha tem muito. Pronto, não é o Dia do Julgamento Final. Não há nenhum Lago de Fogo em frente do relvado da câmara municipal. Não há nenhum Livro da Vida com uma lista de nomes. Ela é uma criança judia com feridas que podem ser estigmas; por acaso vê um Deus feminino. Devo dizer-lhe que, embora os meus superiores provavelmente discordem, não acho que isso seja assim tão chocante. Talvez esta seja a ideia de Deus de um bilhete premiado, uma forma de fazer com que muitas personalidades diferentes o adorem. Que o adorem simplesmente.
- Mas ela nunca concordou com isso - digo. Ela não é salvadora de ninguém, nem mártir de ninguém. É apenas uma menina assustada.
O padre MacReady fica a olhar para mim durante bastante tempo.
- Ela também é filha de Deus, Mariah.
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Cruzo os braços para esconder os tremores.
- Sabe, aí é que o senhor se engana.
O padre MacReady tranca a porta que conduz da parte administrativa da igreja aos seus aposentos privados. Entra na cozinha devagar, senta-se à mesa e fica a ver o sol brincar por entre os grãos de pó num débil raio incidente. Pensando melhor, levanta-se e tira uma garrafa de cerveja Sam Adams do frigorífico. Não é pessoa que beba em demasia, mas sente que a sua cerveja do jantar lhe saberá melhor agora, a meio da tarde.
O pior de tudo é que o padre MacReady simpatiza verdadeiramente com Mariah White.
Mas ao mesmo tempo adora verdadeiramente a sua Igreja.
- Não estou a fazer-lhes isto - murmura para consigo próprio. Estou a fazê-lopelo resto das pessoas. - E depois bebe a cerveja toda.
Ao longo da sua vida como padre, já aconselhou dois casos de visões. A primeira vez foi no Vietname, um soldado que disse que a Virgem Maria lhe tinha aparecido na selva. A segunda vez foi muito mais perturbante - uma rapariga de dezasseis anos, da parte antiga da cidade, que disse que o Espírito Santo a tinha engravidado. Dessa vez, o padre MacReady tinha chamado as autoridades, que tinham ficado à espera sustendo a respiração que a rapariga desse à luz um bebé perfeitamente normal com um DNA correspondente ao director do coro que fora recentemente contratado.
Nunca se tinha deparado com um caso de estigmas.
com um suspiro, tira um velho livro de uma prateleira por trás do telefone e procura o número da Chancelaria em Manchester.
Do The Boston Globe de 17 de Outubro de 1999
Mãe de Visionária "Mentalmente Desequilibrada "
New Canaan, NH - se virmos, eles vêm.
Poderia ser este o slogan da menina de sete anos em New Canaan que alegadamente tem visões de Deus. Os devotos e os curiosos acorreram à pequena cidade no New Hampshire para terem um vislumbre da criança que faz milagres.
Mas a base destas visões celestiais pode ser mais terrena do que estes espectadores poderiam imaginar. Fontes revelaram que a mãe da menina foi internada devido a doença mental há alguns anos. Um psiquiatra que na altura trabalhava na instituição psiquiátrica privada de Greenhaven, que deseja permanecer
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anônimo, confirmou que Maríah White foi uma paciente da instituição de Burlington, no Vermont, durante quatro meses em 1991. Quando lhe perguntaram a natureza da doença dela, o psiquiatra negou-se a comentar.
Segundo o Dr. Josiah Herbert, presidente do departamento de psiquiatria da Universidade de Harvard, algumas das alucinações psicóticas mais comuns nos adultos envolvem a religião. "Se a doença da Sr.a White envolvia alucinações sobre Deus, isso não implica necessariamente que a filha tenha o mesmo tipo de experiência", disse Herbert. "Contudo, numa relação normal entre mãe e filha, a aprovação da mãe é fundamental, e os comportamentos que a motivam são muito variados. O que temos aqui pode não ser um caso de uma vidente, mas sim de uma menina a tentar desesperadamente chamar a atenção da mãe." Quando lhe foram feitas perguntas sobre os alegados milagres que a menina realizou, o Dr. Herbert mostrou-se desinteressado, afirmando que esses fenómenos se encontravam para além do alcance da lógica e da ciência.
Quanto ao mediatismo que rodeia as visões da menina, Herbert aconselha prudência. "Acho que não podemos aceitar seriamente as afirmações de uma criança sem examinar as influências formativas exercidas sobre ela. Que neste caso podem ser mais anormais do que paranormais."
Quando menos espero, o rabi Daniel Solomon passa pelas minhas defesas.
Chegámos a casa há pouco tempo, visto que o Dr. Blumberg deu alta à Faith esta tarde. Acabei de meter a Faith na cama e de lavar a louça do jantar quando ouço alguém bater à porta. Fico tão espantada pelo facto de o rabi Solomon ter conseguido passar por toda a gente lá fora que recuo para o deixar passar sem me aperceber do que estou a fazer.
Ele tem um olhar desvairado e está desmazelado, com o seu longo rabo-de-cavalo despenteado e a sua túnica africana torcida na cintura. Mexe nervosamente num colar de contas de âmbar que tem em volta do pescoço.
- Desculpe - diz ele. - Sei que deve ser uma má altura...
- Não, não - murmuro, indicando as suas roupas. - É o mínimo que posso fazer por uma pessoa que acabou de passar pelo quinto dos Infernos.
Olha para a camisa e calças de ganga enlameadas como se estivesse surpreendido por vê-las naquele estado.
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- Por alguma razão nos chamam o Povo Eleito - graceja ele sarcasticamente, e olha para o cimo das escadas.
O meu rosto contrai-se de imediato,
- Ela está a dormir.
- Na verdade, vim para falar consigo. Costuma comprar o The Boston Globe?
- O jornal? - pergunto estupidamente. Interrogo-me se ele terá tido a coragem de falar oficialmente sobre a Faith. Quase zangada, agarro no exemplar que ele me estende. Na página quatro há um título que me salta aos olhos: MÃE DE VISIONÁRIA "MENTALMENTE DESEQUILIBRADA".
O que acontece quando temos algum segredo oculto do passado é que passamos cada minuto do futuro a construir um muro que torne o monstro difícil de ver. Convencemo-nos de que o muro é resistente e grosso e, um dia, quando acordamos e aquela coisa horrível não nos vem imediatamente à cabeça, damo-nos a liberdade de fingir que desapareceu de vez. O que apenas torna tudo mais doloroso quando alguma coisa destas acontece, e ficamos a saber que o muro de betão é na verdade tão transparente como o vidro, e duas vezes mais frágil.
Sento-me nas escadas.
- Porque é que me trouxe isto?
- Sabia que ia acabar por ver. Na altura, achei que trazer a notícia em pessoa seria um mitzvah. Pensei que seria mais fácil receber más notícias de um amigo.
"Um amigo?"
- Fui internada - ouço-me a mim própria admitir. - O meu marido fez com que eu fosse internada depois de ter tentado suicidar-me. Mas não estava psicótica como este... este idiota deste Herbert diz. E nunca tive alucinações com Deus. E muito menos as transmiti à Faith.
- Nunca achei que o tivesse feito, Sr.a White.
- O que o faz ter tanta certeza? - pergunto num tom amargo. O rabi Solomon encolhe os ombros.
- Há uma teoria de que há trinta e seis pessoas realmente justas em cada geração. Chamam-lhes os lamed vavniks: lamed para "trinta" e vav para "seis". Normalmente são pessoas sossegadas, gentis, por vezes até sem conhecimentos, como a sua filha. Eles não se evidenciam. A maioria das pessoas não tem conhecimento da sua existência. Mas eles existem, Sr.a White. Eles mantêm o mundo a girar.
- Tem a certeza disto. E sabe que a Faith é um deles.
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- Sei que o mundo já existe há muito tempo. E sim, gostaria de acreditar que a Faith é um deles - por cima de nós, o relógio do vestíbulo dá as horas. - E a Sr.a White, não gostava?
Monsenhor Theodore O Shaughnessy só tem oportunidade de responder ao telefonema do padre MacReady na noite seguinte. Tem estado ocupado a desenredar os pesadelos burocráticos da sua pequena diocese - a supervisionar as calamidades fiscais das escolas paroquiais e dos hospitais católicos, a investigar prémios de seguro competitivos e, ao longo de um intervalo de tempo particularmente longo, a tratar de um julgamento complicado envolvendo um padre de Manchester e um grupo de rapazes pré-adolescentes num retiro no Verão de 1987. Senta-se na sua poltrona preferida de cabedal castanho gretado, agarra no papel com a mensagem do padre MacReady e marca o número.
- Joseph! - diz ele num tom jovial quando o padre atende do outro lado da linha. - Fala monsenhor O Shaughnessy. Há quanto tempo, não é verdade? - de facto, tinha-se passado bastante tempo. O monsenhor consegue visualizar um rosto na sua cabeça, mas não tem a certeza se pertence ao padre MacReady de New Canaan, ou ao Padre MacDougal de New London. - Queria falar sobre uma missão de jovens?
- Não - diz o padre MacReady. - Uma visão de uma jovem.
- Ah, receio que a Betty já esteja um pouco velha para desempenhar funções de secretária. Na verdade, perdeu quase toda a audição, mas não ia aguentar vê-la ir embora. Então, trata-se de uma visão? Uma aparição? - Uma missão de jovens, digamos, construir casas para Habitações para a Humanidade, é uma coisa. Podia até compensar a imagem negativa que a diocese está a ter devido ao julgamento por abuso sexual. Isto... bem, isto apenas agravará a sua imagem. - Que tipo de visão?
- Há aqui uma criança, uma menina de sete anos, que aparentemente vê Deus - MacReady hesita, e depois acrescenta: - Teoricamente, ela é judia.
- Então o problema não é nosso - diz o monsenhor, bastante aliviado.
- Ela pode também ter estigmas.
Monsenhor O Shaughnessy pensa que, em termos globais, esta semana tem sido difícil.
- Sabe o que eu vou fazer? vou telefonar ao bispo Andrews. Isto sai de facto da minha área de especialidade.
- Mas...
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- Sem mas - diz o monsenhor num tom magnânimo. - Tenho todo o gosto em fazê-lo.
Desliga antes que o padre MacReady possa dizer-lhe que Deus, para Faith White, é uma mulher. Expirando pesadamente, Joseph volta a colocar o telefone no descanso e pensa que talvez a sua omissão, afinal, não tenha sido uma coisa assim tão má.
17 de Outubro de 1999
Colin White gosta de Las Vegas porque esta cidade nunca pára. Como vendedor, já passou algum tempo em Washington, Seattle, St. Paul, San Diego - todas estas cidades encerram portas à meia-noite. Las Vegas pulsa como uma artéria, puxa-nos, seduz-nos.
Mas, ao mesmo tempo, Colin não gosta de Las Vegas porque não consegue dormir bem à noite. Não sabe se devido ao bulício da cidade fora da janela do hotel, aos sinais de néon dos casinos, suficientemente brilhantes para criar um dia artificial. Ou porque não consegue habituar-se ao facto de ter a sua nova mulher a mexer-se na cama a noite toda. Ou talvez esteja a pensar em Faith, de como a tinha deixado desamparada, em que tipo de pai isso o transforma.
Deixa Jessica imersa na espiral do sono e dirige-se para a sala adjacente da suite, deixando que os seus olhos se adaptem à escuridão. Há uma maçã meio comida tirada do cesto de fruta de boas-vindas no braço do sofá. com um suspiro, Colin afunda-se nas almofadas e agarra no caroço, roendo enquanto aponta o comando para o televisor.
Há um anúncio a promover as férias no New Hampshire. Colin fica a olhar para as cores de Outono e para o perfil de Man in the Mountain", das íngremes pistas de esqui. Num acesso de saudades, pousa a maçã e inclina-se para a frente, de cotovelos apoiados nos joelhos.
Se não tivesse a certeza de que isso ia aborrecer a Jessica, encurtaria a lua-de-mel. Tem muito que resolver na sua antiga vida antes de prosseguir com a nova. Gostava de pedir desculpa a Mariah pelo simples facto de não estarem destinados a viver juntos. Gostava de sentir o peso do corpo da Faith nos braços, o doce aroma dos seus cabelos quando se debruça sobre ela para lhe aconchegar os cobertores ao deitar. Gostava de poder dizer a palavra
s Formação rochosa formada por glaciares semelhante ao perfil de um homem, emblema do New Hampshire. (N. da T.)
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"família" sem que as suas entranhas se contorcessem como um nó de marinheiro.
Na televisão, vê-se uma vista aérea do Hotel Mount Washington.
Tirando de repente o telefone do descanso, Colin marca quase todos os algarismos do seu antigo número de telefone sem se aperceber de que no New Hampshire são quatro e meia da manhã. Pousa o telefone. De certeza que a Faith agora está a dormir.
O tema familiar do genérico de Hollywood Tonigbt! enche a pequena sala. Era de esperar que transmitissem aquela porcaria a meio da noite. Estende-se no sofá e fecha os olhos, abrindo-os só uma nesga quando ouve a voz de Petra Saganoff. Pode estar cansado, mas não está morto.
A sua voz rouca desliza sobre ele como um cobertor, enquanto uma faixa azul-vivo enche o ecrã. A SANTA MAIS PEQUENA?
- Como podem ver - diz Saganoff -, estamos no exterior, a fazer a cobertura da história que teve início na semana passada com Rafael Civernos, o bebé doente com SIDA que ficou milagrosamente curado depois de brincar com a menina no relvado que se encontra mesmo atrás de mim.
Semicerrando os olhos, Colin tenta descobrir o que Petra Saganoff tem assim de tão familiar, alguma coisa que ele não consegue identificar.
- Hollywood Tonigbt descobriu agora que a própria menina milagrosa de sete anos foi hospitalizada, devido a um padecimento misterioso - as imagens mudam para fotografias de janelas de vitrais.
- Durante séculos, os santos cristãos têm manifestado o êxtase religioso recebendo estigmas: ferimentos clinicamente impossíveis nas mãos, tronco e pés que reproduzem as chagas de Jesus na cruz - a voz offde Saganoff começa a embalar Colin, quase a dormir. - Para uma criança do New Hampshire, trata-se apenas da última numa lista crescente de provas que Deus de alguma forma a ungiu.
Petra Saganoff está novamente de volta, de pé em frente a um muro de pedra ladeado por pessoas com cobertores e sacos-cama, trazendo flores, e rosários, e câmaras na mão.
- Como podes ver, Jim, a aceitação pública das afirmações da menina está a aumentar de hora para hora. Agora já se encontram mais de duzentas pessoas aqui que ouviram falar das visões e dos milagres da menina e que, de alguma forma, desejam contactar com ela.
O ecrã volta a mostrar o apresentador de Hollywood Tonight!
- Há alguma informação sobre o estado de saúde da menina até à data?
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- Sabemos que já saiu do hospital e foi para casa, Jim. Resta saber se esta curandeira de palmo e meio agora será capaz de se curar a si própria. Petra Saganoff, no exterior para Hollywood Tonight! Colin senta-se, apercebendo-se de repente da razão por que tudo aquilo lhe parece tão familiar: Petra Saganoff está a leste da via de acesso da sua própria casa.
18 de Outubro de 1999
- Sabes uma coisa? - interrompe Ian, deixando David de boca aberta. - Não quero saber disso para nada. Só sei que a tua função é dizeres-me o que se passa entre as páginas do The Boston Globe, e conseguiste ignorar este único bocadinho crucial - a sua voz subiu de tom a cada palavra, ao ponto de encurralar o jovem David contra a estreita porta da caravana. Tirando o jornal de ontem da mão trémula do assistente para a comunicação social, mal lhe tinha mostrado o sobrolho franzido quando David sai a correr da caravana.
Ian senta-se no sofá desconfortável e examina novamente o pequeno artigo, à procura de algo que lhe tivesse passado despercebido. Trata-se de um artigo que devia levá-lo à lua de felicidade - um ataque indirecto à credibilidade de Faith que não coloca o próprio Ian na posição de investigador. Allen McManus tinha feito um trabalho melhor do que ele esperava, não só por ter acedido aos registos da sentença do tribunal que fez Mariah ser internada mas também por ter obtido confirmação de um psiquiatra de quem ela fora de facto paciente. Se se tratasse de outro caso qualquer, Ian estaria ao telemóvel, a convidar McManus para dar uma conferência de imprensa de improviso. Estaria a sugerir subtilmente outros meios que o jornalista poderia usar para difamar a família White em geral.
Em vez disso, Ian apenas consegue interrogar-se por que raio teria telefonado para o escritório de McManus em primeiro lugar.
Ian fecha os olhos e bate com a cabeça na parede da caravana, tentando lembrar-se de quando teria dado início a esse processo em particular. Ah, é verdade - o regresso à vida de Millie Epstein. Bem, Ian quase se desculpa a si próprio por isso; é difícil de suplantar. E para ser sincero, já fez este género de coisa centenas de vezes. O problema aqui não foi ter colocado o jornalista no trilho certo, é tê-lo feito ir atrás de Mariah White.
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O pior de tudo é que gosta dela. Sabe que não devia; sabe que isso interfere com o seu bom senso - mas apesar disso, continua. Podia ignorar uma atracção física, mas é mais do que isso. Há alturas em que dá por si a desejar que ela não estivesse envolvida neste caso, para que no fim não acabasse por ficar magoada. E esse sentimento estranho assusta-o de morte.
Os seus pensamentos são interrompidos por alguém a bater à porta. Ian abre-a, esperando ver um David penitente a implorar pelo seu emprego, mas em vez disso, está ali alguém que nunca viu na sua vida. É um homem de meia-idade, com uma ligeira barriga e escassos cabelos louros. Tem um casaco de basebol com nódoas junto ao fecho.
- Olá! Vejo que já é meu admirador - diz o desconhecido.
Ian olha para o punho, ainda segurando o artigo do Globe.
- Allen McManus - diz o homem, estendendo a mão. - É uma honra conhecê-lo. Vim até aqui para continuar a série, vi a caravana, e... que hei-de dizer? Acho que estamos todos atrás da mesma história. Grandes cérebros pensam da mesma maneira.
Ian ignora a mão do homem.
- E o senhor não é um deles.
- Mas...
Aperta os dedos de McManus com força, no que a um transeunte poderia parecer ser um aperto de mão, mas, na verdade, estava a causar uma dor intensa.
- Eu trabalho sozinho - diz Ian de dentes cerrados. - E se alguma vez sugerir que eu estou de alguma forma associado às porcarias que escreve, vou descobrir-lhe tantos segredos comprometedores que o seu chefe não o deixará escrever o alfabeto, quanto mais os obituários - depois, com grande satisfação, bate com a porta na cara do jornalista.
Aos sete anos, Constantine Christopher Andrews coseu pedaços de arame farpado nas costuras das roupas, achando que a única maneira de sair do bairro onde tinha nascido e onde provavelmente morreria era penitenciar-se o bastante para que Deus reparasse nele. A mãe, que nunca se deu ao trabalho de aprender inglês depois de chegar de barco vinda da Sicília, sempre achara que ele ia ser padre - a premonição tinha algo a ver com um angioma em forma de cruz que marcava visivelmente a sua barriga ao nascer. Constantine cresceu a ouvir falar tão frequentemente da sua iminente ordenação que ele próprio também começou a aceitá-la como facto consumado.
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Amava o Catolicismo. Era uma dose semanal de cor, brilho e grandiosidade num gueto de imigrantes miserável. A sua dedicação foi devidamente recompensada, e ele subiu na hierarquia católica ao ponto de, ao longo dos últimos quinze anos, ter chegado a bispo. Queria reformar-se há cinco anos, mas o papa não o deixou. Já se passara tanto tempo desde que lidara com os católicos das comunidades - tanto tempo desde que a religião significava realmente algo mais para além de olear o mecanismo nas campanhas mais importantes para a recolha de fundos - que, quando monsenhor O Shaughnessy lhe telefona com a história de uma alegada estigmatizada, fica momentaneamente atónito.
- De que estamos a falar? - pergunta, desesperado, porque atender esta chamada implicava chegar atrasado ao Pequeno-Almoço do Legado Cultural no Centro Italiano, com os mais ricos empresários católicos de Manchester.
- Mãos, pés, tronco?
- Tanto quanto sei - diz o monsenhor -, são apenas as mãos. Parece que a criança é judia.
- Pronto, o assunto está resolvido. Os rabis que tratem dela.
- Podiam. Só que o caso já foi alvo das atenções da imprensa. Segundo o padre MacReady, cerca de trezentos católicos praticantes jã visitaram o local - pigarreia. - Também há a questão secundária da alegada ressurreição.
- Atenções da imprensa, foi o que disse? - o bispo Andrews pondera. Um dos fenómenos em que reparou enquanto membro da hierarquia católica foi que os donativos à Igreja tornam-se mais frequentes quando a fé é promovida em resultado de uma boa acção de relações públicas. Se atingir o seu objectivo na angariação de fundos em Dezembro, talvez possa tirar algum tempo para jogar um pouco de golfe em Scottsdale.
Deseja, não pela primeira vez, ser bispo de uma grande cidade como Boston, em vez de uma pequena e pobre diocese no Sul do New Hampshire.
- Enviei três candidatos para St. John este ano. Devem bastar para podermos colocar um padre seminarista a investigar o assunto.
- Muito bem, Excelência. vou informar o padre MacReady.
O bispo desliga o telefone e em seguida faz uma chamada para o prior do Seminário de St. John, em Boston, falando sobre o jogo dos Celtics por uns minutos antes de chegar ao assunto com o mesmo encanto calculado que habitualmente guarda para as recepções calorosas. O prior demora menos de dez minutos a cuspir um nome, que Andrews escreve num pedaço de papel e envia ao seu
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assistente. Quando saiu do seu gabinete, já só pensava se havia de comer os waffles ou o pão frito, tendo afastado completamente a menina estigmatizada dos seus pensamentos.
Faith sabe que o dia não vai correr bem quando vê que a mãe fez panquecas de banana para o pequeno-almoço. No geral gosta de panquecas, mas quando as bananas entram em contacto com a grelha cheiram a chulé, e enquanto está a tentar engolir, está sempre a pensar em meias suadas, o que ao pequeno-almoço é o suficiente para nos fazer vomitar. Deve ter dito à mãe milhões de vezes que não gosta de panquecas de banana, mas, como a maior parte das coisas que diz, o pedido não é atendido, o que leva Faith a pensar se fará mesmo barulho ao falar, ou se o som será apenas audível dentro da sua cabeça.
- Mãe - diz ela, sentando-se à mesa -, quero outra coisa. Sem falar, a mãe aproxima-se e tira as panquecas de banana.
Faith fica de boca aberta. Sempre que a mãe se dá ao trabalho de fazer algo mais do que tirar uma caixa de cereais do armário para o pequeno-almoço isso significa que ela se esforçou e perdeu tempo a preparar a refeição para que Faith coma o que quer que seja que esteja no seu prato, muito obrigada. Faith observa a mãe deitar as panquecas para o triturador de lixo e ligar distraidamente o interruptor.
- O que é que eu vou comer?
A mãe olha para ela, pestanejando.
- Oh - diz ela, voltando à terra. - Não sei. Papas de aveia? Sem esperar pela aprovação de Faith, abre um pacote, deita o conteúdo numa taça e em seguida junta água da torneira Insta-Hot. Faith ouve a taça tilintar quando a mãe a pousa, e cheira. Banana.
- Aposto que o papá não me obrigava a comer coisas absolutamente nojentas como isto - resmunga ela. A mãe volta-se bruscamente.
- O que disseste? Faith ergue o queixo.
- Aposto que se vivesse com o papá, ele não me obrigava a comer isto.
Os olhos da mãe estão inchados e vermelhos, e a voz dela é tão suave que faz Faith sofrer só de a ouvir. Imediatamente sente-se como se tivesse levado um pontapé no estômago. Observa a mãe engolir em seco, como se as papas de aveia de banana estivessem entaladas na sua garganta.
- Querias viver com o papá?
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Faith morde o lábio. Adora o pai, isso é verdade, mas há algo diferente na mãe - mais acessível e mais envolvida - e depois de ter passado todos aqueles anos a viver na margem da vida da mãe, Faith não está disposta a abdicar de um só segundo precioso.
- O que eu quero - diz Faith cautelosamente -, é ficar aqui. Vale a pena, a forma como a mãe se apressa a encurtar o
espaço entre elas para envolver Faith nos braços. O que é ainda melhor é que a mãe enfia o cotovelo nas papas de aveia de banana.
- Bolas - diz ela, e depois cora. - Acho que o melhor é preparar-te outra coisa.
- Acho que sim.
Observa a mãe lavar a manga e a agarrar numa esponja molhada.
- Não sou muito boa nisto - diz ela quando começa a limpar
a mesa.
Pedaços de papa de aveia saltam da borda da mesa, caindo no colo de Faith e no chão. Observa como o cabelo da mãe lhe esconde metade do rosto, a covinha na sua face. Quando era pequena, Faith tocava naquele sítio na face da mãe e depois ficava à espera que se afundasse quando ela sorria. Adorava a forma como cabia no sorriso da mãe.
- Estás a sair-te muito bem - diz Faith, e levanta-se timidamente da cadeira para beijar a curva do pescoço da mãe.
O padre MacReady lança um olhar de soslaio ao padre que se encontra no lugar do passageiro do seu velho Chevy e pensa que ter uma licenciatura em psicologia pastoral não nos torna especialistas. O padre Rourke, acabado de sair do Seminário de St. John, ainda é inexperiente. É tão jovem que provavelmente nem sequer era nascido quando o padre MacReady estava fora do país, no Vietname. E estar enfiado em Boston, no seminário, apenas o faz alhear-se do mundo. Não saberia como aconselhar um paroquiano se lhe aparecesse um à frente.
Mas é claro que o padre MacReady não diz nada disto.
- Psicologia pastoral - diz ele cordialmente, virando para a estrada que conduz à casa de Mariah White. - O que o fez escolher isso?
O padre Rourke cruza a perna, com uma meia polar e uma sandália Birkenstock a aparecer debaixo das calças pretas.
- Oh, trata-se de um dom para lidar com as pessoas, acho eu. Penso que teria sido psiquiatra, se não tivesse ouvido um outro chamamento.
E a necessidade intensa de dizer isso a toda a gente.
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- Bem, não sei o que é que o prior lhe contou sobre a Faith White.
- Não muito - diz Rourke. - Apenas que estou aqui para avaliar o seu estado mental.
- Para que saiba, isso já foi feito. Por psiquiatras leigos. Rourke remexe-se no assento.
- Tem consciência de que as hipóteses de esta criança ser realmente uma vidente são praticamente inexistentes?
O padre MacReady sorri.
- Nunca acha que um copo está meio cheio?
- Se estamos a falar de uma mente, metade não se compara com a totalidade.
O padre MacReady estaciona no campo em frente à via de acesso dos White, entre um campista e um grupo de idosas sentadas em cadeiras dobráveis. O padre seminarista olha em volta, de boca aberta.
- Uau! Ela já tem bastantes seguidores.
Conversam um pouco com o polícia ao fundo da via de acesso, outro paroquiano, graças a Deus, que deixa logo o padre MacReady passar quando ele diz que têm uma reunião marcada com a Sr.a White.
- Temos? - pergunta Rourke enquanto sobem a via de acesso.
- Uma reunião marcada?
- Não propriamente - o padre MacReady aproxima-se da porta de entrada e bate, para ver um pequeno rosto semelhante ao de um elfo espreitar para eles pelo vidro da porta. Ouve-se o som da fechadura abrir-se quando a chave dá a volta, e então a porta abre-se.
- Estão melhores - diz Faith, estendendo as mãos para os padres as examinarem. - Olhem, já só preciso de pensos-rápidos.
O padre MacReady assobia.
- E são pensos-rápidos dos Flinstones. Muito fixe.
Faith olha para o segundo padre e esconde as mãos atrás das costas.
- Não devo falar consigo - lembra-se de repente.
- Então talvez possamos falar com a tua mãe.
- Está lá em cima, a tomar duche. Rourke recua.
- Aqui o padre MacReady estava a dizer-me que gostava muito de falar contigo quando estavas no hospital, e eu também gostava muito de fazer o mesmo.
O padre MacReady apercebe-se de que Faith hesita. Talvez a psicologia pastoral afinal resulte.
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- Faith, a tua mãe conhece-me. De certeza que não vai importar-se.
- Talvez seja melhor ficarem aqui à espera até ela descer. Rourke vira-se para o padre MacReady.
- Bem, agora não sei o que vou fazer com todos aqueles jogos que trouxe.
Faith esfrega a manga na maçaneta da porta, pondo-a a brilhar.
- Jogos? - interessou-se ela.
Cá em cima, acabei de secar os cabelos com a toalha quando ouço o som de vozes masculinas.
- Faith! - visto-me rapidamente, com o estômago às voltas enquanto desço as escadas a correr.
Encontro-a sentada no chão com o padre MacReady e outro padre desconhecido, a usar um lápis de cera verde para assinalar as respostas daquilo que é sem dúvida um teste de avaliação psicológica. Rangendo os dentes, tento não me esquecer de telefonar ao chefe da polícia para que me envie um guarda protestante.
- Faith, não devias abrir a porta.
- A culpa é minha - responde o padre MacReady numa voz suave. - Eu disse-lhe que não se importava. - Hesita, e depois faz um gesto indicando o segundo padre. - Este é o padre Rourke, do Seminário de St. John em Boston. Veio até aqui para conhecer a Faith.
As minhas faces ardem de desilusão.
- Como foi capaz! Devia estar do nosso lado - o padre MacReady abre a boca para se desculpar, mas eu não o deixo fazê-lo. - Não. Não pense que pode dizer alguma coisa para melhorar a situação, porque não pode.
- Mariah, não tive escolha. Há um procedimento que temos de seguir na Igreja Católica, e...
- Nós não somos católicas!
O padre Rourke levanta-se silenciosamente.
- Não, não são. Mas a sua filha chamou a atenção de vários católicos. E a Igreja quer certificar-se de que eles não estão a ser induzidos em erro.
Tenho visões de crucificações, de mártires a serem queimados vivos.
- Mariah, não estamos a tirar fotografias - diz o padre MacReady.
- Não vamos dizer qual é a marca de cereais que a Faith come ao pequeno-almoço no noticiário da noite. Só queremos falar com ela um bocadinho.
A Faith levanta-se e enfia a sua mão na minha.
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- Não faz mal, mãe. A sério.
Olho para o rosto da minha filha, e depois para os padres.
- Trinta minutos - digo num tom firme. E depois cruzo os braços por cima do peito, sento-me ao lado dela, e preparo-me para presenciar tudo.
O padre Rourke bem que podia agarrar nos seus testes de diagnóstico e nas suas manchas de tinta e regressar a casa no próximo comboio. Não precisa da análise de computador para ver que a Faith White não é uma criança que tivesse perdido o contacto com a realidade, que o seu comportamento não é o comportamento de uma psicótica.
Olha para o padre MacReady, a escolher numa taça decorativa de M M s em cima da mesa de café e a tirar os amarelos para meter na boca. A mãe mal moveu um músculo em mais de vinte minutos. Rourke está perplexo. A rapariga não tem nenhuma doença mental, mas também não parece ser particularmente problemática de um ponto de vista religioso. Não está sempre a falar daquilo que Deus lhe disse, como a mulher que ele tinha sido enviado para Plymouth para examinar. Na verdade, Faith basicamente não diz nada.
Tentando descobrir o que fazer em seguida, tira o rosário do bolso e percorre-o com os dedos distraidamente.
- Oh - diz Faith numa voz abafada. - Que bonito. Ele fica a olhar para as contas envernizadas.
- Queres vê-lo?
Faith acena com a cabeça, enfiando o rosário pela cabeça como se fosse um colar.
- É assim que se põe?
- Não. É para rezar a Deus - perante o olhar vago de Faith, Rourke acrescenta: - Pai-nosso, que estais no Céu, santificado seja o vosso nome... - É interrompido pela gargalhada de Faith.
- Enganou-se.
- Enganei-me no quê? Faith revira os olhos.
- Deus é uma mãe.
- Desculpa?
- Uma senhora. Deus é uma senhora.
O rosto de Rourke ruboriza-se. Um Deus feminino? Está fora de questão. A sua cabeça vira-se na direcção da Sr.a White, que ergue as sobrancelhas e encolhe os ombros. O padre MacReady, por outro lado, é a verdadeira imagem da inocência.
- Oh - diz MacReady. - Esqueci-me de dizer-lhe isso?
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Pouco depois das dez da noite, toca a campainha da porta. Esperando que a Faith não acorde, apresso-me a descer as escadas e a abrir a porta para dar por mim em frente ao Colin.
Está com um péssimo aspecto. Tem o cabelo achatado de um dos lados, como se tivesse estado a dormir em cima dele, a sua gabardina está amarrotada; tem os olhos raiados de sangue devido à falta de sono. A boca é uma linha fina, apertada de reprovação.
Olha por cima do ombro para as furgonetas e para os carros estacionados no milharal do outro lado da rua, iluminados pela lua cheia. A Faith desce desajeitadamente as escadas, ensonada, e pára ao meu lado, com os braços a envolverem-me a cintura.
Quando Colin a vê, agacha-se e estende uma mão. A Faith hesita, e depois esconde-se atrás de mim.
- Por amor de Deus - diz ele numa voz tensa -, o que fizeste à minha filha?
-Por acaso - é engraçado que tenhas dito isso dessa maneira.
Colin recorre a todo o seu autocontrole para não a empurrar para o lado para poder agarrar a filha. Até chegar ali, não tinha a certeza do que iria encontrar.
É certo que aqueles programas de televisão de terceira categoria distorciam a verdade, da mesma forma que o National Enquirer supostamente meteu a cabeça da Elizabeth Taylor no corpo da Heather Locklear. Colin achou que talvez viesse a descobrir que Faith tinha queimado as palmas das mãos no fogão. Talvez tivesse caído da bicicleta e tivesse precisado de levar pontos. Havia uma multiplicidade de maneiras de explicar uma má fotografia das mãos de uma menina a sangrar.
Mas Colin tinha reservado um bilhete no primeiro voo que partia de Las Vegas, tinha discutido com Jessica por causa da sua decisão, tinha viajado o dia todo de avião e carro alugado, para chegar à via de acesso da sua antiga casa e ver que estava bloqueada pela polícia, ladeada de altares, e tendas, e hordas de curiosos.
- vou entrar - diz ele numa voz tensa, e Faith larga a mãe e corre lá para cima.
- Não me parece. Agora esta casa é minha.
Colin demora um minuto a recompor-se. A Mariah, a dizer-lhe que não? Avança, e ela impede-o, segurando-o com a mão.
- Estou a falar a sério, Colin. Se for preciso, chamo a polícia.
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- Então chama! - grita ele, frustrado. - Estão mesmo ao fundo da via de acesso!
Está cansado, de mau humor e confuso. Quando deu início ao processo de divórcio, não tinha pensado duas vezes em dar a custódia da Faith a Mariah. Nunca tinha pensado que ela recuasse quando ele estivesse pronto para inserir a filha na sua nova vida. Ela era justa, e quando não era, era fácil de convencer.
"Era."
- Olha - diz ele num tom calmo. - Podes só dizer-me o que se passa com as mãos da Faith?
Mariah olha para os seus pés descalços.
- Não é assim tão fácil.
- Faz com que seja fácil.
Ela hesita, e depois abre mais a porta para ele poder entrar.
Depois de deitar novamente a Faith, explico tudo ao Colin - a amiga imaginária, os remédios para a psicose, o contínuo desfile de padres e rabis, a ressurreição da minha mãe. Durante um momento, ele limita-se a olhar para mim; e depois começa a rir.
- Enganaste-me durante um bocado.
- Não estou a brincar, Colin.
- Pois. Achas mesmo que a Faith tem alguma espécie de linha telefónica directa para falar com Deus - ri outra vez. - Ela sempre teve muita imaginação, Rye, sabes perfeitamente. Lembras-te daquela vez em que ela fez a turma toda do infantário acreditar que quando fossem para o recreio, estariam no Disney World?
Tenho dificuldade em concentrar-me. Sinto uma raiva fervilhar mesmo debaixo da superfície do meu ser, um ressentimento por Colin achar que pode chegar aqui e dar ordens, quando é evidente que renunciou a esse direito há meses. Mas também há outras emoções. Só o facto de estar na mesma sala do que Colin já parece um regresso a casa, como se o meu corpo soubesse disso e estivesse a aproximar-se dele antes que eu consiga convencer a minha cabeça a fazer o mesmo. Um tornado forma-se na minha barriga - rodopia com a presunção de que ele voltou de vez e suga o meu bom senso mesmo para o seu âmago.
Olho para os movimentos da boca de Colin, ouço-o chamar-me pelo meu diminutivo, e interrogo-me se sobreviverei a estar tão perto dele sabendo que ele já não me quer.
- O que quer que tenha acontecido está fora de controlo. Achas normal que ela não consiga ir à escola? Que haja um grupo de pessoas a dormir debaixo dos rododendros que pensa que a
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nossa filha... - estala os dedos debaixo do meu nariz. - Então... estás a ouvir o que eu estou a dizer?
Fico a olhar para os seus dedos longos. Embora tenha sido decretado o divórcio, o Colin ainda usa aliança.
Então apercebo-me de que não é aquela que eu lhe dei.
- Oh - diz Colin, ruborizando. - Isso. - Tapa a aliança com a palma da outra mão. - Eu, hum, casei-me. com a Jessica
Ao abanar a cabeça, a minha visão de Colin reconfigura-se. Ele não é nenhum deus, nenhuma recordação terna, mas apenas uma pessoa que nunca compreenderei.
- Casaste-te com a Jessica - repito devagar.
- Sim.
- Casaste-te com a Jessica
- Rye, nós nunca conseguiríamos fazer com que a nossa relação resultasse. Lamento, lamento mesmo muito.
A minha raiva volta com toda a sua intensidade.
- Nós nunca conseguiríamos fazer com que a nossa relação resultasse? Como é que podes saber, Colin, quando eu era a única que estava disposta a tentar?
- Pois estavas. Mas, Rye: eu não estava.
Ele agarra-me na mão, mas eu tiro-a e meto-a entre os joelhos.
- Tu estavas disposto a tentar de novo, Colin. Só que não era comigo.
- Não, contigo não - ele desvia o olhar, embaraçado. - Mas isso agora não é importante.
- Não é? Meu Deus, o que poderá ser mais importante?
- A Faith. Desta vez o assunto não és tu. Distorces sempre as coisas para se transformarem no teu problema, no teu assunto.
- Mas era um assunto meu! - grito. - Como é que podes dizer que Greenhaven não era um assunto meu?
- Porque não estamos a falar de Greenhaven! Meu Deus, estamos a falar da nossa filha! - ergue a mão, fazendo um gesto no ar. - Já se passaram oito anos, por amor de Deus. Fiz aquilo que achei que tinha de fazer. Será que nunca me vais perdoar por isso?
- Parece que não - sussurro.
- Eu sei - diz Colin passado um momento. - Lamento.
- Eu também.
Abre os braços, e eu lanço-me neles. com desprendimento, espanto-me com a forma como podemos conhecer tão bem o corpo de outra pessoa, mesmo depois de uma separação, como uma terra que visitámos em crianças e à qual regressamos anos mais tarde,
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reparando naquilo que não é familiar, mas sentindo-nos confiantes ao pisá-la.
- Nunca tive intenção de te magoar - murmura ele para os meus cabelos.
Planeio dizer-lhe o mesmo, mas sai da forma errada.
- Nunca tive intenção de te amar.
Surpreendido, Colin afasta-se, com um sorriso triste no rosto.
- Isso é o pior, ha? - toca-me na face. - Sabes que eu tenho razão, Rye. A Faith não merece isto.
Nessa altura apercebo-me do que o fez vir: não foi para fazer as pazes comigo, mas para levar a minha filha.
De repente lembro-me de como, há anos, às vezes acordava-o a meio da noite para lhe fazer uma pergunta ridícula: "De que é que gostas mais da Cracker Jacks, dos amendoins ou das pipocas?" "Se fosses um dia da semana, qual deles escolhias?" E outras, como se estivesse a espera de concorrer ao Newlywed Game. Colin colocava a almofada por cima da cabeça, perguntando porque é que eu precisava de saber aquilo. Agora vejo que estava a armazenar as respostas, como um esquilo. Para ter algum crédito: não sabia que o Colin dormia com outra mulher, mas sabia que gosta dos ovos com as gemas desmanchadas. Que o cheiro da cola do papel de parede o deixa tonto. Que se pudesse aprender uma outra língua, escolheria o japonês.
Agora a Jessica vai ficar a saber essas coisas. A Jessica vai ficar com o meu marido, a minha filha.
A Faith não merecia isto, disse o Colin.
E eu penso: "Eu também não."
Este pensamento dá-me um aperto no coração - e se eu não puder ficar com a Faith?
De repente, sinto-me suficientemente forte para mover uma montanha. Para afastar sozinha toda a gente que me roubou a privacidade. Para levar a Faith para onde ninguém possa tocar-lhe ao passar, nem arrancar borbotos de lã das suas camisolas, nem vasculhar o seu lixo.
Sou suficientemente forte para admitir que talvez esteja a sair-me bem como mãe, tendo em conta as circunstâncias. E sem dúvida que sou suficientemente forte para admitir que, pela primeira vez na minha vida, desejo que o Colin se vá embora.
- Sabes uma coisa - digo -, se a Faith me dissesse, sem a mínima dúvida, que o céu é cor de laranja, eu ficaria a reflectir sobre isso. Se ela o disse, é porque há alguma razão para isso, e eu vou prestar atenção.
Colin fica imóvel.
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- Tu acreditas que ela fala com Deus, e ressuscita os mortos e todas essas tretas? Isso é um disparate.
- Não, não é. E eu também não era - levanto-me. - Tomaste a decisão de me dar a custódia da Faith. Tens uma visita no Dia de Acção de Graças. Mas até lá não quero que entres em contacto comigo, Colin.
Dirijo-me para a porta de entrada e abro-a, embora o Colin demore um momento a recuperar do choque de ser mandado embora. Dirige-se energicamente para a porta.
- Não vou entrar em contacto contigo - diz ele numa voz suave. - O meu advogado é que vai.
Apesar da minha coragem recente, fico a tremer durante duas horas depois de o Colin se ter ido embora. Ligo as luzes todas lá em baixo e sigo de uma divisão para a outra, tentando encontrar um sítio confortável. Por fim, sento-me à mesa da sala de jantar, brincando cautelosamente com as portadas do modelo da casa rural que fiz há anos. Agora já não está correcto. O papel de parede da casa de banho principal foi mudado, e a Faith tem uma cama em vez de um berço e, é claro, agora é a residência de duas pessoas e não de três.
Estou furiosa com o Colin por causa daquilo que ele fez, da sua ameaça. A minha raiva impulsiona-me a subir as escadas, a percorrer o corredor, até à porta do quarto da Faith, onde pairo como um fantasma. Estaria a falar a sério? Lutaria para me tirar a Faith?
Ia ganhar; isso eu sei. Não tenho hipóteses. E se não for o Colin a tirar-me a Faith, vai ser outra pessoa qualquer: outro membro da Igreja Católica... a jornalista da televisão cuja cobertura nacional trouxe o Colin até aqui... ou os milhares que também viram a emissão e querem um pedaço dela.
Entro no quarto em bicos de pés e estendo-me ao lado da Faith na cama estreita, observando a curva da sua face e a espiral da sua orelha. Porque será que nunca nos apercebemos de como algo é precioso até estarmos prestes a perdê-lo?
A Faith mexe-se, vira-se e olha para mim, pestanejando.
- Cheira-me a laranjas - diz numa voz ensonada.
- É o meu champô - ajeito os cobertores por cima dela. - Dorme.
- O papá ainda está aqui?
- Não.
- Ele volta amanhã?
Fico a olhar para a Faith e tomo uma decisão. Não é o que eu queria fazer, mas não tenho propriamente escolha.
- Não pode - digo. - Porque eu e tu vamos embora.
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Oito
Ian Fletcher é um homem destinado ao Inferno, não há dúvida - a menos que consiga provar que este não existe antes de lá chegar.
Página de crónicas, The New York Times, 10 de Agosto de 1999
19 de Outubro de 1999
- Para que se saiba - diz Millie -, sou contra isto.
- Eu .não - anuncia Faith enquanto Mariah lhe aperta o casaco.
- Acho que é fixe ser espiã.
- Tu não és espiã. És sorrateira - Mariah alisa a carcela do fecho de correr. - Estás pronta?
Ela sabe que sim; a Faith está pronta desde as seis da manhã, quando Mariah lhe contou o que ia acontecer. É claro, tinha usado o vocabulário da emoção e da aventura, para que a Faith se sentisse mais como uma pequena Indiana Jones do que como uma criança a ser levada às escondidas. E até agora a fuga mostrou estar à altura das expectativas de Faith - meterem-se dentro do carro com pouco mais do que uma mochila cada uma, andar de carro durante quarenta e cinco minutos até ao centro comercial, misturar-se com a multidão para despistar os dois jornalistas obstinados que as tinham seguido até ali. Os jornalistas de certeza que iam ficar de vigia ao Honda delas, à espera que as três aparecem. Mas quando Millie chegar ao parque de estacionamento para levar o carro para casa, Mariah e Faith já terão mudado de roupa e apanhado um táxi na saída mais afastada do centro comercial, dirigindo-se para o aeroporto.
Agora resta-lhe dizer adeus.
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Mariah olha para o espelho da casa de banho no Filenes e cruza o olhar com o da mãe. Millie avança e coloca o braço em volta da cintura de Mariah.
- Não tens de deixar que eles te obriguem a partir - diz ela num tom suave.
- Não deixo, mãe - Mariah engole o nó que tem na garganta.
- vou só ganhar avanço - não consegue suportar a ideia de deixar a mãe para trás, não só por causa dos seus recentes problemas cardíacos, mas também pelo simples facto de Millie ser a melhor amiga de Mariah, para além de ser sua mãe. Por outro lado, até Millie concordaria: fará o que for preciso para ficar com a Faith. Dito assim de forma tão simples, Mariah não pode deixar-se dominar, de novo, por pessoas e circunstâncias para além do seu controlo.
Não contou a Millie a ameaça que Colin lhe fez em relação à custódia, nem lhe disse para onde planeava ir. Assim, quando os advogados a contactarem... ou os jornalistas, ou o Ian Fletcher - a mãe não será obrigada a mentir. Mariah vira-se e lança os braços em volta do pescoço da mãe.
- Eu telefono-te. Quando puder, quando souber que não há problema.
Faith mete-se entre elas.
- Veste-te, avó! Vamos perder o táxi. Mariah toca nos cabelos de Faith.
- Querida, a avó tem de ficar aqui.
- Aqui?
- Bem, aqui não. Mas em nossa casa, para tomar conta... das coisas.
As palavras não são assimiladas.
- A avó tem de vir connosco - insiste Faith.
Mariah não contou a Faith esta parte do plano, precisamente por esta razão; é a única coisa que a fará vacilar.
- Faithe - diz Millie, agachando-se -, não há nada que eu gostasse mais de fazer do que entrar naquele táxi contigo, viajar convosco. Mas não posso.
- Porque alguém tem de levar o nosso carro para casa - diz ela passado um momento. - Mas vens depois?
Millie olha para Mariah.
- Claro - mete o resto das roupas de Faith na mochila, e depois coloca as alças nos ombros da neta. - Porta-te bem -, acrescenta, e depois beija Faith na testa. Observa Mariah dar a mão a Faith e levá-la para fora da casa de banho, Faith vira-se no último minuto para lhe lançar um beijo. Então Millie senta-se numa casa de banho vazia,
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a imaginar mil coisas que podem correr mal, agora que Mariah e Faith fugiram, imaginando mil coisas que podiam correr mal mesmo que não o tivessem feito.
Malcolm Metz abre as suas mãos capazes na superfície da sua secretária muito polida.
- Deixe-me ver se percebi bem, Sr. White. O senhor abdicou voluntariamente da custódia da sua filha há dez semanas. E agora quer que ela vá viver consigo e com a sua nova mulher.
Colin acena com a cabeça. Tenta não se sentir intimidado pelos escritórios de Walloughby, Krieger e Metz, mas eles eram muito menos intimidantes há seis meses, quando equipou todo o espaço com sinais luminosos a indicar as saídas. É óbvio que nessa altura estava apenas a tratar de negócios. Esta visita é muito mais pessoal, e há muito mais em jogo.
- Exactamente - avalia Metz devagar, desde os cabelos grisalhos curtos aos sapatos italianos. Conhecido pela sua vontade esmagadora de vencer, Metz é uma lenda judicial do New Hampshire.
O advogado junta as pontas dos dedos.
- A que se deve a mudança de opinião? Colin sente o início de uma fúria lenta. -
- Porque a minha ex-mulher é doida? Porque viraram a minha filha contra mim? Porque estou preocupado com o seu bem-estar? É só escolher.
Metz já ouviu tudo aquilo antes. Na verdade, tem de comparecer em tribunal dali a menos de duas horas para tratar de um caso de divórcio de uma reputada esposa de um membro da Máfia, e preferia muito mais estar na casa de banho executiva a aperfeiçoar a sua aparência para as câmaras que certamente lá estarão. Um caso de custódia como este - bem, deve ser capaz de vencer a dormir.
- O que fez a sua ex-mulher para pôr a sua filha em risco?
- O que é que sabe sobre a menina que vê Deus? Malcolm pára de tamborilar com os dedos na secretária.
- É a sua filha?
- É. Não - Colin suspira. - Oh, merda. Já nem sequer sei. Estão umas duzentas pessoas ao fundo da via de acesso da minha casa, e todas acreditam que a Faith se transformou numa espécie de profeta, e as mãos dela sangram e... meu Deus - olha para o advogado.
- Não foi esta menina que eu deixei ali.
Malcolm tira silenciosamente um bloco amarelo de uma gaveta da secretária. O potencial deste caso para ser alvo das atenções da
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comunicação social é extraordinário - muito para além do pequeno alcance do New Hampshire. Tira a tampa de uma caneta e decide deitar mãos à obra.
- O senhor acha que serviria melhor os interesses desta criança. Acha que viver com a mãe, nestas circunstâncias, está a afectar negativamente a sua filha - Colin acena com a cabeça. - É capaz de me dizer por que razão não tinha a mesma opinião há apenas quatro meses?
- Olhe, se vou pagar-lhe vinte e dois mil dólares para contratar os seus serviços, e mais quinhentos dólares por hora, então não tenho de lhe dar nenhumas explicações. Quero a minha filha. Quero-a agora. Ouvi dizer que pode ajudar-me. Ponto final.
- Malcolm olha o seu cliente nos olhos durante um momento.
- Quer a custódia completa?
- Sim.
- A qualquer custo?
Colin não precisa de perguntar a que Metz se refere. Sabe que a melhor forma de provar que é melhor pai é fazer Mariah parecer pior mãe. Quando tudo estiver terminado, Mariah não terá perdido apenas a Faith. Também terá perdido o respeito por si própria.
Remexe-se desconfortavelmente na cadeira. Não quer fazer isso, mas não tem outra escolha. Tal como quando tomou a decisão de internar Mariah, aqui os fins justificam os meios. Tal como naquela altura, apenas está preocupado com a segurança de urna pessoa que ama.
Tem uma recordação dolorosa da noite em que Mariah tentou suicidar-se - o sangue por todo lado, o nome dele ainda a borbulhar nos seus lábios. Obriga-se a imaginar Faith a esconder-se quando ontem apareceu à porta.
- Quero a minha filha de volta - repete Colin num tom firme, convencendo-se a si próprio. - Faça aquilo que for preciso.
Na terça-feira passada, Ian Fletcher saiu de Manchester de avião, um pequeno aeroporto a fingir ser um pouco mais cosmopolita do que na realidade era. Numa só palavra, um pesadelo. Não só o seu voo para Kansas City estava a atrasado, como também não havia um AdmiraTs Club onde pudesse esperar pelo voo, o que significa que passou quase uma hora numa casa de banho para evitar ser reconhecido. Esta semana ia sair de Boston. Isso implicava uma viagem mais longa de limusina até ao aeroporto, mas uma viagem bastante mais calma.
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- Senhor? Em que companhia aérea vai viajar?
Ao ouvir a voz do motorista, Ian inclina-se para a frente.
- Na American - agarra na pasta quando a limusina estaciona num lugar junto ao passeio, assina o recibo do pagamento com o cartão de crédito e entrega o bloco de mola de novo ao motorista sem dizer uma palavra. Mantendo a cabeça baixa, dirige-se para a direita, para o conjunto de elevadores que sabe que o levarão ao clube privado para os passageiros da primeira classe, onde pode ficar à espera numa sala isolada até o seu voo ser anunciado.
Mariah está em frente ao quadro das partidas, examinando a lista de destinos. Tantos lugares; como há-de escolher? Nenhum destino tem vantagem sobre outro - forem para onde forem, terão de começar tudo do início.
- Mamã? - pergunta Faith, puxando-lhe o braço. - Podemos ir para Las Vegas?
Um sorriso repuxa a boca de Mariah.
- O que sabes tu sobre Las Vegas?
- O papá foi lá uma vez. Podes carregar em botões, e o dinheiro é lançado para cima de nós. Vi isso na televisão.
- Bem, não é bem assim. Tens de ter muita, muita sorte. E de qualquer forma, nem sequer vejo nenhum voo para Las Vegas aqui.
- Então para onde vamos?
Boa pergunta. Mariah coloca a mão por cima da sua mala, pensando no dinheiro que tem lá dentro. Dois mil dólares em dinheiro
- meu Deus, sente-se como um alvo em movimento. Mas sabe que não pode deixar rasto, e foi o dinheiro que conseguiu levantar no banco ao pé da sua casa com tão pouca antecedência. Se forem frugais, ela e Faith poderão não ser detectadas, pelo menos durante um breve período de tempo. E se conseguirem manter-se afastadas da comunicação social, talvez o interesse em Faith se desvaneça.
Sem passaporte, está limitada aos Estados Unidos. O Havai sempre quis ir ao Havai, mas de certeza que os bilhetes são muitíssimo caros e irão diminuir-lhes o orçamento. Os olhos de Mariah percorrem novamente as colunas. Há um voo para Los Angeles ao meio-dia. Um para Kansas City, no Missouri, às onze e quinze.
Leva Faith para a fila onde podem comprar bilhetes sem hora marcada, decidindo que o seu destino seria, pura e simplesmente o do primeiro avião a sair do aeroporto.
Ao embarcarem, Mariah dá por si a agradecer a Deus por a história de Faith se ter tornado conhecida a nível nacional apenas
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agora, o que significa que a maioria das pessoas com quem contactam - a assistente de bordo, o senhor simpático que se oferece para colocar as suas mochilas no compartimento superior - olha para elas e vê uma mãe com a sua filha, em vez de um par de fugitivas a escapar à comunicação social.
Faith só andou de avião duas vezes, uma vez em bebé, quando o avô morreu, e uma vez quando foram todos a Washington D.C., para umas férias em família. Salta no assento, esticando o pescoço para poder espreitar melhor para a cabina da primeira classe, de que estão sentadas logo atrás.
- O que é que há lá dentro? Porque é que os assentos têm uma cor diferente?
- É onde os executivos e as pessoas que têm muito dinheiro se sentam. Pagam mais por esses assentos.
- Porque é que nós não pagámos por eles?
- Porque sim... - Mariah lança um olhar desesperado à filha. Só porque sim - diz ela quando a assistente de bordo desaperta uma cortina azul para ocultar a cabina.
- Última chamada para o embarque no Voo 5456 para Kansas City...
Ian dirige-se à porta e mostra o cartão de embarque.
- Sr. Fletcher - diz a representante da companhia aérea - gosto do seu programa.
Ele acena bruscamente com a cabeça e apressa-se a dirigir-se para o avião, entregando o casaco à assistente de bordo e instalando-se no seu lugar.
- bom dia, Sr. Fletcher. Gostaria de beber alguma coisa antes da descolagem?
- Um bourbon, puro.
Há outros três passageiros na primeira classe, uma chatice, mas não uma tragédia. Seria pior se um deles estivesse sentado ao seu lado. A assistente de bordo regressa com a sua bebida. Este voo semanal, tal como tudo o resto nas suas visitas a Michael, é uma rotina. Pousa o copo e fecha os olhos, imergindo num sonho em que as cartas caem vermelhas e pretas, vermelhas e pretas, numa sucessão interminável.
- Tenho de fazer chichi - anuncia Faith.
Mariah suspira. O carrinho das bebidas está mesmo atrás delas, a bloquear o caminho para as casas de banho ao fundo; a Faith não vai de certeza aguentar até que as assistentes de bordo terminem de
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servir as bebidas. Olha para a cortina azul que conduz à cabina da primeira classe.
- Vem cá.
Leva Faith pelo curto corredor rapidamente, esperando conseguir metê-la na pequena casa de banho antes que uma assistente de bordo as impeça de passar.
- Pronto - diz ela quase arrastando Faith para dentro do cubículo. Não te esqueças de trancar a porta para as luzes se acenderem. - Depois encosta-se à parede vibrante do avião, e olha em volta, para a primeira classe.
E dá por si a olhar para Ian.
Oh, meu Deus. Não há nenhum sítio para onde ir num avião. Mariah opta por fazer como os cobardes, acompanhando Faith de volta aos seus lugares depois de ela sair da casa de banho, evitando sempre o olhar de Ian Fletcher. Fecha os olhos desanimada. Devia haver - o quê, cinquenta voos? - que saíam do Aeroporto Logan àquela hora. E ela conseguiu escolher às cegas aquele onde viajava Ian Fletcher. A pessoa que tinha mais a ganhar ao comunicar o paradeiro delas.
Depois apercebe-se: Não se tratou de um encontro casual. De alguma forma, Ian Fletcher conseguiu segui-las até ao aeroporto. Não sabe porque é que ele não acaba com aquilo, porque é que não se limita a ir até ali à classe turística para lhe dizer que sabe o que ela está a fazer. Talvez esteja a usar um daqueles telefones AirPhones neste momento para que o produtor e a equipa de filmagens venham ter com eles a Kansas City.
Sente as lágrimas contraírem-lhe a garganta. O seu grande plano acabou mesmo antes de ter começado.
Durante um minuto inteiro, após Mariah ter fugido como um coelho assustado para a parte de trás do avião, Ian pondera telefonar a James Wilton e lançar os cães no rasto da raposa; chega até a tirar o cartão de crédito e a ler as instruções do AirPhone, mas depois lembra-se de que não pode. A última coisa que deseja é trazer a comunicação social para menos de cem quilómetros de distância de Michael.
Mariah White não sabe, mas tem tanto controlo sobre Ian como ele sobre ela.
Ian termina o seu bourbon e faz sinal à assistente de bordo para lhe servir outro. A maneira mais fácil de sair disto é agir de acordo com o que Mariah está a pensar: que as seguiu desde New
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Canaan até ao aeroporto de Boston. De outra forma ela vai interrogar-se por que razão é que ele está num avião com destino a Kansas City. Uma coisa é ele descobrir os segredos dela, outra coisa completamente diferente é ela descobrir os dele. Agora toda a sua viagem terá de ser alterada.
Um pensamento fixa-se na cabeça de Ian. E se ele pudesse observar a Faith montar o seu próprio espectáculo privado de curandeira de perto? E se ele escolhesse a dedo o alvo dos seus milagres, para que fosse certo que ela falhasse? A avó e a mulher com o bebé com SIDA, podiam estar de alguma forma a representar. Mas o Michael - bem, ninguém sabe melhor do que o próprio Ian que Michael não faz parte da charada delas... e que Michael não pode ser curado.
Basta-lhe apelar à compaixão delas, para que concordem tentar solucionar o caso de Michael, como favor pessoal a Ian. E enquanto Faith White estiver a tentar concretizar a sua farsa, ele olhará pessoalmente de perto para a forma como está a ser elaborada. Até o anonimato de Michael será preservado; Mariah White não abrirá a boca se isso implicar revelar a sua localização.
A imagem ridícula de Faith a colocar as mãos sobre Michael numa representação impostora coreografada pela mãe dá lugar na cabeça de Ian à imagem que ele manteve escondida tão lá no fundo que o magoa trazê-la à superfície: Michael a olhar para ele nos olhos, Michael a aproximar-se dele de livre vontade, Michael a dar-lhe pancadinhas nas costas ao abraçá-lo.
Ah! O mais provável é que Mariah White se esforce por explicar que a Lua não estava alinhada ou outra treta semelhante para desculpar o facto de a sua filha milagrosa não conseguir curar um autista.
Se Ian acreditasse no destino, pensaria que tinha sido este que levara as White a este avião em particular. Em vez disso, considera o facto como uma oportunidade caída do céu, uma oportunidade com o potencial para se tornar na história mais importante da sua vida. Basta-lhe convencer Faith e a mãe de que um cínico como ele afinal pode não ser o inimigo, que pode de facto depositar as suas esperanças numa criança com o alegado poder de curar, pode ficar com um ar devastado quando Faith acabar por falhar.
Mas isso será realmente uma encenação?
Mariah não fica surpreendida quando ao sair do avião encontra Ian Fletcher à sua espera, nem fica surpreendida quando ele a ignora - completamente - para falar com a Faith.
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- Olá - diz ele no seu sotaque sulista, baixando-se para ficar ao nível dela. - Vocês também vieram neste avião?
Faith abre muito os olhos.
- Sr. Fletcher!
- O próprio - levanta-se e acena com a cabeça. - Minha senhora.
Mariah aperta a mão de Faith, num aviso.
- Estamos aqui para assistir a um casamento. Ao casamento da minha prima. Esta noite - a sua voz está demasiado aguda, entrecortada, e assim que fornece informações a Fletcher que este nem sequer lhe pediu, tem vontade de se censurar.
- A sério? Acho que nunca ouvi falar de um casamento que se realizasse numa terça-feira à noite.
Mariah levanta um pouco mais o queixo.
- Faz... parte da religião deles.
- Parece que anda muito disso por aí - sorri para Faith. - Já que nos encontramos, o que dizes de irmos comer um gelado?
Faith, visivelmente entusiasmada com a ideia, volta-se para Mariah.
- Não temos tempo - diz Mariah.
- Mas não temos nada...
- Faith! - interrompe Mariah, e depois solta um suspiro. - Está bem. Podemos comer um gelado.
Ian condu-las a um café do aeroporto. Pede um cone para a Faith e Coca-Colas para si próprio e para Mariah.
- Faith, a tua mamã e eu queremos conversar. E se fosses comer o teu gelado ali, à mesa?
Quando Faith dá meia volta, Mariah tenta chamá-la, mas a mão de Ian no seu braço detém-na. Durante um momento, não consegue respirar, não consegue mover-se, até ele a tirar.
- Deixe-a ir. Daqui vemo-la perfeitamente, e está a dois mil e quatrocentos quilómetros das pessoas que querem aproximar-se dela.
Mariah volta-se, em desafio.
- Nós podíamos pura e simplesmente afastar-nos de si. Não pode impedir-nos.
- Vai chamar a polícia? Duvido. Em primeiro lugar, isso vai deixar rasto. E algo me diz que a Mariah não quer deixar rasto - sorri tristemente. - Acreditava se eu lhe dissesse que estou aqui por outra razão, e não por causa de si e da Faith? Logo vi que não. O pior de tudo, Sr.a White, é que a admiro por isto. E gostaria de lhe dar alguns conselhos.
Lo
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- Disse o lobo ao cordeiro - diz Mariah entre dentes.
- O que disse?
- Nada.
- Hum. Bem, o que eu ia dizer era que todo o cuidado é pouco. Já pensou onde você e a Faith vão ficar?
Recusando-se a partilhar os seus planos com ele, Mariah cerra os lábios.
- Num motel, aposto - continua Ian animadamente. - Mas mais tarde ou mais cedo vai aperceber-se de que uma senhora hospedada com uma menina num motel rasca vai chamar as atenções de toda a gente. Por outro lado, andar de motel em motel será muito duro para uma criança. Por isso fica à mercê de um amigo que more aqui - e eu aposto que não tem muitos - ou resta-lhe alugar um apartamento barato. A questão é, Sr.a White, qualquer senhorio que se preze vai querer referências. E isso é difícil de arranjar quando se quer manter o anonimato. Para além disso, nem sequer estamos a pensar no problema de como irá alugar um carro, visto que certamente não deseja que a sua carta de condução e cartão de crédito fiquem registados para a posteridade.
Tendo ouvido o bastante, Mariah começa a afastar-se. Que se dane o Ian Fletcher. Que se dane Kansas City. Ha pelo menos cem voos de ligação que partem esta tarde; basta-lhe escapar dele mais uma vez. Vira-se para Faith, mas ele agarra-a.
- vou encontrá-las - sussurra, lendo-lhe os pensamentos. Sabe que vou.
Imóvel, os seus olhos movem-se na direcção do corredor, das casas de banho, de todas as saídas possíveis.
- Disse que ia dar-me alguns conselhos.
- É verdade. Acho que devia procurar alguém conhecido enquanto está na cidade.
Mariah abafa uma gargalhada.
- Espere. Deixe-me ver que amigas da faculdade é que eu tenho aqui em Kansas City.
- Estava a referir-me a mim - diz Ian numa voz suave. - Acho que devia ficar comigo.
Durante um longo momento, Mariah limita-se a fitá-lo.
- Está doido?
Os olhos dele são azuis como uma piscina, igualmente convidativos.
- Talvez esteja, Sr.a White - admite. - Porque se não estivesse, teria certamente falado ao meu produtor sobre as mãos da menina na semana passada. Teria uma série de câmaras à sua espera
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quando saiu do avião, em vez de estar apenas eu. Teria passado o voo a pensar que ia mostrá-la ao mundo, em vez de pensar que talvez, desta vez, podia fazer o que está certo e ajudá-la a esconder-se.
- Olha para Faith. - É o melhor disfarce. O último lugar onde toda a gente espera que se esconda... é ao pé de mim.
- A não ser que o Ian lhes diga - o olhar de Mariah é resoluto. É-lhe impossível confiar neste homem, que nem sequer teria conhecido se não fosse o seu interesse em Faith, por constituir uma excelente história. Mas por outro lado, nada a leva a crer que as afirmações dele sejam falsas. Por muito tempestuoso e vingativo que Ian Fletcher seja em público, em privado já se mostrou muitas vezes compreensivo. Mas fugir dos olhos dos jornalistas para ir para a residência de Ian Fletcher é ir de mal a pior.
Ele não lhe largou o pulso, e o seu polegar roça na pele ao longo da cicatriz.
- Dou-lhe a minha palavra de que não vou revelar o seu esconderijo. E terá a sua privacidade - depois sorri. - O que é pior, Mariah? O diabo que não conhecemos... ou o diabo que conhecemos?
Estão a acreditar. Ian quase está estonteado de alívio quando Mariah se dirige a Faith e fala à filha sobre a mudança de planos. Ainda está desconfiada, mas não faz mal. Ela que pense que ele tem algum motivo oculto. Afinal, é verdade. Não se trata apenas do que Mariah White pensa. Para conseguir convencer Faith a encontrar-se com Michael de livre vontade - e conseguir convencer a mãe a permitir que isso aconteça - serão necessárias as imensas capacidades dramáticas de Ian.
Quando regressa com a filha pela mão, Ian fica novamente impressionado com as feições dela. São as contradições que o atraem: os espantosos olhos verdes, inchados e cansados; a boca suave ladeada por rugas gravadas pela dor.
- Então - diz ela, hesitando -, tem alguma casa aqui?
Ao ouvir isso, Ian quase solta uma gargalhada. Não viveria neste Estado nem que fosse o último lugar da terra.
- Dê-me uma hora e vou ter.
Leva-as a um balcão da Avis e aluga um carro, pagando com um cartão de crédito da empresa Pagan Productions. Mariah permanece afastada, junto a um conjunto de telefones públicos, não estando disposta a arriscar ser vista por alguém que mais tarde a pudesse identificar, ou à Faith. Quando volta de chaves na mão, Ian olha para o relógio e franze o sobrolho. Tem menos de uma hora para ir ter com Michael.
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- Sabe para onde vai? - pergunta Mariah quando viram para a estrada interestadual.
- Para oeste. Achei que era melhor sair da cidade - e mais perto de Lockwood.
- Está a conduzir como se soubesse o caminho.
- Venho aqui várias vezes em negócios - mente Ian. - Há um lugar em Ozawkie que aluga chalés junto ao Lago Perry. Nunca lá fiquei, mas já devo ter passado pelo letreiro cem vezes. Achei que podíamos parar lá para a primeira tentativa.
- Podemos nadar?
Ian sorri para Faith pelo espelho retrovisor.
- Acho que a tua mãe não te vai deixar nadar com este frio. Mas penso que não ia ficar zangada por irmos à pesca.
Dali a um bocado, saem da estrada e percorrem as planícies do Missouri para o Kansas. Mariah olha pela janela, observando campos ceifados onde o milho foi recentemente colhido. Faith tem o nariz encostado ao vidro.
- Onde estão as montanhas?
- Em casa - murmura Mariah.
Quando Mariah olha para as velhas cabanas que constituem Camp Perry, dizendo para consigo própria que a cavalo dado não se olha o dente. Ela e Faith podiam ter arranjado alojamento mais luxuoso mas, como Fletcher disse, também seriam mais fáceis de localizar. Observa-o rodear o gabinete da gerência, bater à porta, e depois sair e espreitar por uma janela. Visto que ninguém atende, ele encolhe os ombros e dirige-se para o carro.
- Parece que...
- Posso ajudar?
Uma velhota com aspecto de carriça abre a porta do gabinete da gerência.
- Ora, pode sim minha senhora - diz Fletcher, numa voz dengosa. - A minha mulher e eu queríamos alugar uma das suas instalações encantadoras.
"Mulher?"
- Já estamos encerrados - diz a mulher. - Lamento. Fletcher fica a olhar para ela por um momento.
- De certeza que uma boa cristã como a senhora estaria disposta a abrir uma excepção para contribuir para a obra de Nosso Senhor.
Mariah quase se engasga.
- Mamã - sussurra Faith do banco de trás -, porque é que ele está a falar de uma maneira esquisita?
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Estica o pescoço para trás.
- Chiu. Está a representar. Como se fosse uma peça de teatro para nós assistirmos.
- Jesus disse-me para encerrar tudo no dia um de Outubro diz a mulher.
- É mesmo uma pena, minha senhora - Ian abana a cabeça.- Porque Ele disse-me para ouvir a Sua voz precisamente aqui, em Camp Perry. - Avança, estendendo a mão. - Perdoe-me por não me ter apresentado antes. Sou Harry Walters, um pregador de LouVille. Aquela ali é a minha linda mulher, Maybelle e a minha filha Francês.
- Francês é um lindo nome - diz a mulher. - O nome da minha tia solteira.
- Nós também gostamos. A mulher inclina a cabeça.
- Diz que é pregador?
- Sou sim. E também sou músico. Sou director do Geater Kentucky Hymn Sing, e este ano o Senhor chamou-me para fazer umas canções novas em Seu nome.
- Eu própria já pertenci a esses coros de hinos. Sempre achei que devíamos fazer um som alegre.
- Ámen, minha senhora - diz Fletcher. A mulher ergue as mãos.
- Bem, quem sou eu para me meter no caminho do Senhor? Não posso prometer-lhe limpezas regulares, mas suponho que se procurar bem ainda hei-de encontrar uns lençóis - dirige-se novamente para a casa da gerência, presumivelmente para ir buscar uma chave.
Ian Fletcher vira-se para Mariah e Faith e faz uma vénia quase imperceptível. Mariah solta uma gargalhada sobressaltada. A ousadia do homem! Aproxima-se do carro e abre a porta.
- Maybelle, querida - diz ele, com um enorme sorriso -, parece que arranjei uma casa temporária para nós.
- Maybelle? Não podia ter escolhido Melissa, ou Marion, ou...
- Gosto de Maybelle. Parece... bovino.
Mariah lança-lhe um olhar zangado, e depois volta-se para o banco de trás.
- Anda, Faith...
- Francês - interrompe Ian.
- Como queira - ajuda Faith a tirar a mochila do carro quando a velhota sai da casa da gerência.
- Ficam com o chalé número sete. Deito-me às nove horas, e não me interessa que esteja a cantar para Jesus, certifique-se de que
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não faz barulho a partir dessa altura - dá meia volta e leva-os para o chalé.
Ao entrar pela porta, Ian transforma-se noutra pessoa completamente diferente.
- Meu Deus. Terá morrido aqui alguém no Verão passado?
Mariah, à entrada da porta, não pode censurar a sua observação. Dizer que a cabana é rústica seria um grande elogio. Um tapete entrançado muito usado com inúmeras nódoas embeleza o chão. Na sala há duas portas, uma que conduz a uma casa de banho do tamanho de um armário e uma que conduz para o único quarto. Há uma mesa de café, um sofá de xadrez esfarrapado e uma mesa de cozinha muito usada, sobre a qual se encontra um sortido de peças Tupperware poeirentas e desirmanadas.
- Isto é nojento - censura Faith. - Não quero ficar aqui. Mariah força imediatamente um sorriso.
- É uma aventura. Como acampar, só que temos uma cama ela espreita para dentro do quarto. - Bem, um de nós tem uma cama.
Ian assopra.
- Você e a Faith podem dormir riela. Eu vou arriscar apanhar as doenças transmissíveis que se desenvolvem no sofá - senta-se pesadamente e baixa a cabeça, os ombros a estremecer em silêncio. Durante um momento de espanto, Mariah pensa que ele possa estar a chorar, mas depois solta uma gargalhada sonora ao inclinar a cabeça para trás. - Meu Deus, se o meu produtor pudesse ver-me agora - diz ele, limpando os olhos. - A caravana é um palácio comparado com isto.
É quando ele menciona o produtor que Mariah se apercebe do que tem estado a incomodá-la sem que ela desse por isso. Está aterrorizada por poder ser reconhecida, embora ela e Faith ainda estejam longe de serem conhecidas. No entanto, Ian Fletcher é um nome conhecido, uma celebridade. E apesar disso pode chegar a um balcão da Avis sem provocar um corrupio de fãs; pode fingir ser o pregador Harry Walters sem que ninguém o reconheça.
- Como é possível? - pergunta num tom suave. - Como é possível que ela não o tenha reconhecido?
Ian sorri.
- Estamos na zona do fundamentalismo protestante, minha querida. Temos coros de hinos e velhotas que desejam agradar a Jesus, mas não temos um grande número de ateus. Aqui tenho um disfarce permanente, porque não me encontro muito bem colocado na lista dos programas preferidos desta gente religiosa.
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Mariah ergue uma sobrancelha.
- Não podia saber só de olhar para ela que aquela velhota nunca viu o seu programa.
- Era capaz de apostar que não.
Irritada com a certeza dele, cruza os braços.
- Porque é idosa? Porque não percebeu a sua encenação?
- Não, Sr.a White - Fletcher inclina-se para a frente e liga o velho televisor, revelando um ecrã cheio de estática.
- Porque não tem televisão por cabo.
Quando Ian chega a Lockwood está uma hora e dezassete minutos atrasado. Deixou Mariah e Faith no chalé com a desculpa de ir comprar comida ao mercado. Agora corre para a sala de convívio, onde normalmente encontra Michael. Espreitando pela porta, vê Michael ainda sentado no seu canto habitual, a deitar cartas.
Misturada com a vaga de alívio ao verificar que Michael esperou por si está a certeza amarga de que ele não tem nenhum outro sítio para onde ir.
- Olá - Ian entra e puxa uma cadeira. O suor escorre-lhe pela têmpora, mas ainda não tira o casaco. Conhece a rotina; primeiro Michael tem de reconhecer a sua presença. -
Cai uma carta vermelha. E depois uma preta. Ian esfrega a têmpora na gola.
- Três e trinta - diz Michael calmamente.
- Eu sei, amigo. Estou uma hora e... vinte minutos atrasado.
- São quatro e cinquenta e um. Vinte segundos. Vinte e dois segundos. Vinte quatro...
- Eu sei que horas são, Michael - irritado, Ian despe o casaco.
- Três e trinta. Três e trinta à terça-feira. É a essa hora que chega o Ian - Michael começa a balançar-se suavemente na sua cadeira.
- Chiu, Michael. Desculpa. Não vai acontecer outra vez - reconhecendo os sinais de aviso, movimenta-se devagar, erguendo as mãos à medida que se vai aproximando.
- Três e trinta! - grita Michael. - Três e trinta à terça-feira. Não à segunda-feira. Não à quarta-feira quinta-feira sexta-feira sábado domingo! Terça-feira terça-feira terça-feira! - o ataque cessa tão depressa como surgiu. Afasta a cadeira de Ian, para o canto da sala, com os ombros curvados por cima do baralho de cartas.
- Chegou atrasado.
Ian vira-se e depara-se com um dos psiquiatras que se deslocam diariamente a Lockwood a alguns metros de distância. O seu sorriso contorce-se.
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- Já me disseram.
- O Michael tem um dom para isso, não tem? - o médico ri. O seu voo atrasou-se?
- Não. Fiquei detido pelo caminho.
- Bem, no mundo dele não há lugar para erros. Não leve isso a peito.
Ian chama o homem quando ele se vira para ir embora.
- O que acha que aconteceria se eu voltasse amanhã? Ou alguns dias depois?
- Quer dizer sem ser à terça-feira às três e trinta? - o psiquiatra olha para Michael, ao canto. - Acho que isso ia provocar um novo ataque.
Ian acena com a cabeça e desvia o olhar. Ele também achou o mesmo. Isso significa que tem precisamente sete dias para trazer a Faith White ali.
Suspira e puxa uma cadeira colocando-a directamente atrás de Michael. Ian consegue ver-lhe o topo da cabeça, agora salpicado de cinzento, e isso deprime-o. Que tipo de vida tem tido ele aqui, há tanto tempo?
"Uma vida melhor do que a que quase esteve para ter." A voz dentro da sua cabeça é uma absolvição. Lockwood é um estabelecimento que proporciona cuidados supervisionados, a um passo de ser uma residência de grupo, e consideravelmente melhor do que uma instituição. Talvez um dia Michael esteja preparado para viver sozinho. Até essa altura, tem os melhores cuidados disponíveis.
Fatigado, Ian olha para o relógio e fica sentado em silêncio ao longo do resto da hora, porque mesmo que Michael não fale directamente com ele, tem perfeita consciência de quanto tempo Ian permanece ali. Observa Michael balançar-se como um metrónomo, e interroga-se como é que um homem que não vê nenhuma utilidade na Bíblia, se tornou na pessoa responsável pelo seu irmão.
Quando Ian regressa ao chalé, o Sol já se pôs. Ainda abalado pelo ataque de Michael, percorre distraidamente o trilho de graviIha, entra, e fica petrificado. A pequena sala do chalé está iluminada por velas, a mesa de cozinha cheia de marcas está coberta por um naperon aos quadrados. Há talheres limpos e pratos lascados dispostos em individuais. Mariah mudou alguns dos móveis para esconder manchas de água no chão de madeira e manchas suspeitas nas paredes. Ainda não é o tipo de sala a que ele está habituado, mas parece... quase acolhedor.
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Mariah e Faith ficam imóveis no sofá como dois veados apanhados pelos faróis de um carro. Passado um momento, Mariah levanta-se e limpa as mãos às coxas.
- Achei que se íamos passar algum tempo aqui... - diz ela, deixando a voz desvanecer-se.
O olhar de Ian cai sobre Faith e sobre o velho jogo de Yatzee espalhado em cima da mesa de café à sua frente. A rapariga puxa os joelhos para cima, escondendo o rosto, e agita os dados na mão em concha. Ele reprime o impulso de se sentar ao lado dela, tirar os sapatos e colocar os pés calçados com meias ao lado dos copos do Yahtzee.
- ... no carro?
Só passado um momento é que Ian se apercebe de que Mariah está a falar consigo. Que coisas dentro do carro? Gemendo, lembra-se da desculpa que tinha dado para ir embora: as mercearias.
- Hum, ainda não tratei disso - diz ele, recuando em direcção à porta. - vou sair agora. - Corre lá para fora, antes que Mariah consiga perguntar-lhe onde é que ele esteve durante todo aquele tempo, antes que ceda e simplesmente lhe diga.
Começa a chover ao afastar-se do chalé. Pelo espelho retrovisor, vê Mariah à entrada da porta, a sua silhueta a destacar-se à luz das velas. Onde é que ela encontrou aquelas velas? Ou o jogo? Ou qualquer uma daquelas outras coisas? As mãos de Ian tremem no volante enquanto tenta lembrar-se do caminho para o supermercado Piggly Wiggly mais próximo. Os tapetes esfarrapados, os jogos usados, a mulher à sua espera... rodopiam na sua cabeça. Obriga-se a fazer uma lista mental daquilo que vai comprar: leite, sumo, ovos, cereais, refrigerante, macarrão, artigo a seguir a artigo, a amontoarem-se na ideia perturbadora de que a vida que tem vivido, apesar de todos os luxos, não é de forma nenhuma tão boa.
A mãe está sempre a saltar as partes melhores. Já é suficientemente mau para Faith não ter livros para ler uma história ao deitar
- apesar do que a mãe disse, o Reader s Digest não conta - mas agora a mãe nem sequer consegue contar uma versão do Capuchinho Vermelho sem se enganar na história.
- O cesto com a comida - instiga Faith. - Para a avó. Lembras-te?
- Pois - a mãe está sempre a olhar para a porta. Faith acha que é por estar com fome. O Ian Fletcher devia ter trazido o jantar, mas desorientou-se, e por isso Faith só comeu uma mão-cheia de Tic-Tacs que estavam na mala da mãe. Se fechar os olhos e alhear-se
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da voz da mãe, consegue ouvir o estômago gorgolejar, como as quedas-dágua na barragem de New Canaan.
- Então o Capuchinho Vermelho chega ao pé da porta e bate e o lobo...
- Ainda nem sequer falaste sobre o lobo - queixa-se Faith. Ele tem de comer a avó.
- Por amor de Deus, Faith, se sabes a história assim tão bem, porque é que não a contas a ti própria!
Quando estava a vestir a camisa de noite, Faith tinha dito que esperava que Deus a encontrasse ali no Kansas, e a mãe tinha-se virado para ela e dito que ela não podia de forma nenhuma falar sobre Deus em frente do Ian Fletcher. Agora a mãe nem sequer quer deitá-la. Faith vira-se de lado. Se chorar agora, não quer que ninguém veja.
- Está bem - diz entre dentes. Sente a mão da mãe no braço.
- Desculpa. Não devia ter sido brusca contigo.
- Como queiras.
- Não, eu fiz mal. Estou com fome e estou cansada, mas a culpa não é tua - a mãe esfrega os olhos com as mãos e suspira. Não me apetece contar-te uma história agora, está bem, Faith?
- Está bem - murmura ela.
A mãe sorri e beija-lhe os cabelos.
- Obrigada.
Quando se levanta, Faith agarra-lhe na manga.
- Não gosto de estar aqui - a voz dela fica presa na garganta, o que a deixa embaraçada, mas não sabe como há-de evitar isso. E mesmo antes que ela tenha oportunidade de tentar impedi-las, as lágrimas surgem.
- Tem um cheiro esquisito e não tenho o Disney Channel e não há nada para comer.
- Eu sei, querida. Mas o Sr. Fletcher vai tratar disso.
- Porque é que ele está aqui? Porque é que temos de ficar com ele?
A mãe de repente parece tão perturbada que Faith deseja nunca ter feito aquela estúpida pergunta.
- Vamos viver um dia de cada vez - diz a mãe. - Se viver com o Sr. Fletcher não resultar, apanhamos um avião para outro sítio qualquer. Talvez para Las Vegas.
Isso tranquiliza Faith. Sente a mãe enroscar-se atrás dela. Faz lembrar a Faith a rede que têm no quintal, uma rede feita de corda que ela pensava que ia desfazer-se assim que se deitasse nela, mas que apesar disso conseguia aguentar o seu peso.
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- Talvez tenhamos sorte - responde Faith, bocejando.
A mãe coloca os braços em volta dela, abraçando-a com força.
- Talvez sim.
A primeira coisa que sente é o cheiro do fumo. As torres gémeas de fogo erguem-se até onde a sua vista alcança, fazendo aparecer manchas negras diante dos seus olhos, mas ele sabe que tem de passar por elas. Os pais, meu Deus, estão a arder- lança-se de cabeça para o calor, ignorando a dor que lhe percorre os braços e as pernas e lhe dilacera apele das costas. Os olhos incham com o calor e a fuligem, mas consegue ver cinco dedos, os contornos de uma mão, e tenta alcançá-la, coloca a palma sobre palma, e cerra o punho em volta de um pulso. Um puxão - agora estão livres, e ele aterra em segurança, para ver que está a agarrar com força no irmão. O irmão, que não pode ser tocado, que não suporta que lhe toquem, que fica a olhar para as mãos de Ian nos seus ombros e grita alto, alto, alto...
- Sr. Fletcher - ele afasta-se, agitado, a suar, com os cobertores amontoados no chão. Mariah White está ajoelhada junto ao sofá horrendo, a tocar-lhe no braço. - Estava a ter um pesadelo.
- Não era um pesadelo - insiste Ian, embora ainda tenha a voz rouca. Não era um pesadelo, porque isso significaria que ele estava a dormir há algum tempo, e as hipóteses de isso acontecer são quase nulas. Afasta-se dela e aninha-se no outro lado do sofá, limpando o rosto suado à ponta da T-shirt.
Já devia saber que não devia tentar ficar em Kansas City e fingir que não havia problema. A cidade apenas tem péssimas recordações para lhe oferecer. Mesmo que o seu estratagema para juntar Faith e Michael resulte, é inevitável que ele sinta alguns dos efeitos secundários.
Mariah oferece-lhe um copo de água da torneira. com as mãos a tremer, aceita-o e bebe avidamente. Os seus olhos seguem-na até à bancada, onde colocou a mercearia não perecível. Quando tinha chegado a casa, na noite anterior, a porta que conduz ao minúsculo quarto estava fechada e havia uma pilha de lençóis e cobertores em cima do sofá. Tinha pensado para consigo que em vez de andar a bater com as portas dos armários e acordar as White, arrumaria tudo de manhã. Tinha então tirado um bloco e escrito umas notas para a emissão da próxima semana. É a última coisa de que se lembra, antes de encontrar Mariah White ao seu lado.
- Estava a dizer alguma coisa acerca de um incêndio - diz ela hesitantemente.
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- Tenho a certeza de que estava a dizer muitas coisas.
- Isso não sei. Acabei de sair do quarto.
- Não acordei a sua filha, pois não? Mariah abana a cabeça.
- A Faith dorme como uma pedra.
- Então peço-lhe desculpa por tê-la acordado.
- Bem, não me acordou propriamente - um sorriso paira-lhe nos lábios. - Aquele colchão foi um instrumento de tortura numa vida anterior.
Ian ri.
- Provavelmente usaram-no para acabar com os prisioneiros que não sucumbiam a este sofá.
Os olhos dele cruzam-se com os dela.
- vou ver como está a Faith - diz Mariah num tom suave.
- Claro. Vá lá. E desculpe.
Ela agarra nos lençóis, amarfanhados no chão, e lança-os ao ar para que fiquem enfunados sobre Ian e lhe caiam como um sussurro no colo. Depois dá um puxão rápido e suave na borda de cetim do cobertor, erguendo-o para o cobrir. Um gesto simples e instintivo, uma rotina que todas as mães sabem de cor, e apesar disso Ian dá por si a suster a respiração até ela se afastar, com medo de quebrar o encanto.
- Boa noite, Ian - diz Mariah.
Ian acena-lhe com a cabeça, incapaz de falar. Observa as pequenas curvas suaves dos calcanhares nus dela pousar no chão, observa-a fechar a porta do quarto atrás de si. Depois volta a agarrar na caneta e sorri, apercebendo-se de que, pela primeira vez, Mariah usou o seu nome próprio.
New Canaan, New Hampshire
Millie está a enlouquecer. Teria sido assim tão difícil para Mariah telefonar pelo menos de uma cabina telefónica para dizer que estavam bem? Ela cumpriu a sua parte do acordo - ir buscar o carro ao centro comercial, e tomar conta da casa durante a sua ausência, mas está apenas a adiar, e tem consciência disso. Toda a gente a viu sair do carro sozinha. Mais tarde ou mais cedo, quando Faith e Mariah não aparecerem, vão começar a fazer perguntas.
Millie sai da cama e afasta as cortinas, reparando nos pequenos fogões de campismo Sterno e luzes portáteis nas câmaras dos jornalistas da televisão.
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Millie sabe que o Hollywood Tonight! ainda se encontra ali; ao contrário da maioria dos jornalistas da televisão, que tem três ou quatro pessoas à sua volta quando fazem as suas emissões diárias, Petra Saganoff parece precisar de oito ou dez. Tem técnicos de luz, e maquilhadoras, e homens a transportarem máquinas que fazem Deus sabe o quê. Pessoalmente, Millie dispensava a Petra Saganoff. Se vai haver jornalistas, preferia ver aquele simpático Peter Jennings, com o colete com bolsos que usa quando faz exteriores.
Ainda bem que a Faith e a Mariah se foram embora. Ao que parece pelo aspecto das coisas ao fundo da via de acesso, em breve precisarão de um segundo polícia, para manter a ordem. Mariah ficou incomodada com um grupo de pessoas; como é que reagiria a isto? com um suspiro, Millie volta para a cama. Desliga a luz, e depois volta a acendê-la e agarra no telefone que está ao lado da cama para se certificar de que está a funcionar, só para ter a certeza.
Lago Perry, Kansas - 20 de Outubro de 1999
Para surpresa de Mariah, Ian sai pouco depois do pequeno-almoço,
- Tenho de ganhar a vida - diz ele, agarrando nas chaves do carro e saindo porta fora como se passar mais um momento na companhia delas fosse demasiado doloroso para ele suportar. Não mencionou o seu pesadelo, e Mariah decide que deve ser essa a razão pela qual está a fugir-, a vergonha não deve ser uma coisa fácil de carregar para um homem como ele.
- Porque é que ele pode sair? - resmunga Faith. - E nós temos de ficar neste sítio horrível onde não há nada para fazer?
- Talvez possamos dar um passeio a pé. Descobrir um telefone para telefonar à avó.
Isto desperta o interesse de Faith.
- Depois ela vem para aqui?
- Talvez, daqui a algum tempo. Agora precisamos que ela fique a olhar pela nossa casa.
Faith coloca mais cereais na sua taça.
- Há muitas pessoas a olhar para a nossa casa agora. Ela não tem de fazer isso.
Mariah fica à janela enquanto Ian se vai embora no carro. Ele leva o carro, é certo, mas isso não impede que elas vão a pé até à
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cidade para apanhar um táxi, regressando ao aeroporto para apanhar outro voo. Mariah tinha presumido, quando ele lhes oferecera a sua protecção, que as suas boas intenções fossem realmente muito mais egoístas - haverá melhor maneira para observar a Faith do que viver na mesma casa que ela? Apesar disso, tinha achado que Ian apenas veria aquilo que Faith o deixasse ver - por isso tinha aceitado. No entanto, estava à espera que ele se colasse a si e a Faith.
Em vez disso, ele quase parece... confiar nelas.
Observa Faith levar a taça de cereais à boca para beber o leite que restava e começa a avisá-la acerca dos seus modos, mas depois pára. com tantas regras para cumprir agora que estão escondidas, deixar passar esta pequenina coisa não pode fazer mal.
Pensou nos perigos que Faith podia correr ao viver com Ian, mas não nos perigos que ela própria corria. Não se lembrou que era muito mais fácil não gostar de uma personagem da televisão do que de um homem vulgar. Ver os sapatos de Ian enfiados por baixo do sofá, ou os seus papéis espalhados por cima da mesa de café - até mesmo entrar na casa de banho e sentir o aroma da mistura suave de cedro e sabonete que está entranhado na sua pele - bem, isso torna-o real. Transforma-o de ícone cultural a duas dimensões com um desejo determinado de expor Faith, numa pessoa com sentimentos, dúvidas e até pesadelos.
Se Ian Fletcher for capaz de confiar nelas o suficiente para as deixar sozinhas, será que Mariah não poderá confiar nele o suficiente para acreditar que alugar aquele chalé para elas não foi um acto egoísta, mas sim generoso?
Vira-se para Faith.
- Vamos vestir-nos. Vamos sair.
Ian quase fica com o coração despedaçado por comprar roupa no Kmart. Um homem que possui fatos Armani e sapatos Bruno Magli não devia ver-se reduzido a aproveitar as promoções para comprar umas calças de ganga e umas sapatilhas, mas sabe que ali será mais dificilmente reconhecido por um empregado de olhos baços do que por um vendedor numa boutique mais exclusiva. Está na fila para pagar, atrás de uma mãe com três crianças a gritarem por doces, e examina a colecção de artigos dentro do seu cesto.
- Encontrou tudo o que precisava? - pergunta o empregado.
Faz-se um silêncio maravilhoso; a mãe sucumbiu e leva as crianças dali, com os dedos enfiados em pacotes de M M s. Por impulso, Ian tira outro da prateleira e atira-o para cima do balcão, para a Faith.
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- Acho que sim.
Ao ouvir a sua voz, a mulher olha para cima. Semicerra um pouco os olhos, tentando relacionar o sotaque sulista com o rosto. Por um momento, Ian pensa que a ilusão pode ter sido desmascarada... mas depois ela volta a examinar os artigos. Deve ter decidido que ele era apenas parecido. Afinal, o que é que o ilustre Ian Fletcher estaria a fazer num Kmart?
- Oh, adoro isto - diz a mulher, agarrando num conjunto de camisola e leggings com o Piu-Piu impresso à frente.
- Comprei um para a minha filha.
Ian tirou-o para Faith. Ontem à noite tinha-se apercebido de que elas não podiam ter muita coisa dentro daquelas mochilas, e precisariam de roupas para esta estadia inesperada tanto quanto ele. Infelizmente, confunde-se com os tamanhos infantis. Qual será a diferença entre um 7 e um 7X?
Era mais fácil encontrar roupas para Mariah. Bastava-lhe imaginar a que altura ela chegava no seu peito, qual a largura das ancas e da cintura estreita, e era fácil fazer corresponder o seu corpo ao de uma das muitas mulheres com quem ele tinha namorado. Tem uma bela figura, na verdade, mas deu por si a deitar para dentro do carrinho de compras calças de ganga largas e camisas de flanela, camisolas demasiado grandes - coisas que a mantivessem tapada, que não lhe chamassem a atenção.
- Tudo são cento e vinte e três dólares e trinta e nove cêntimos - Ian abre a carteira e tira um maço de notas de vinte. Leva os sacos para o carro alugado, entra e depois tira o telemóvel para telefonar ao produtor.
- Daqui fala Wilton.
- Bem, ainda bem que um de nós está aí - graceja Ian.
- Ian? Caramba, tenho andado a dar em doido. É capaz de me dizer onde raio está?
- Desculpe, James. Eu sei que disse que estaria de volta ontem à noite, mas houve... uma emergência familiar.
- Pensei que não tivesse família.
- Mesmo assim, vou ficar aqui retido durante algum tempo Ian tamborila com os dedos no volante, sabendo que James não pode fazer nada. Sem Ian, não há programa.
- Quanto tempo é algum tempo? - diz James passado um momento.
- Ainda não sei. De certeza que vou faltar à emissão de sexta-feira. Terá de fazer uma reposição.
Quase consegue ver James ferver.
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- Bem, isso é mesmo fabuloso, Ian, porque já transmitimos as apresentações do programa em directo. Para além disso, estão aqui cerca de noventa jornalistas, incluindo alguns de redes nacionais, que estão mortos por deitar as mãos na história. Talvez devesse pedir a um deles que te substituísse
Ian ri.
- com certeza, tente o Dan Rather. Ele fez uma imitação excelente no Saturday Night Live, uma vez.
- Ainda bem que hoje está tão bem-disposto. Porque não lhe vai restar nada a não ser um sorriso para vender quando o seu programa for por água abaixo.
- Ora, James, acalme-se antes que se mate a trabalhar. A Faith White nem sequer está aí, pois não?
Faz um momento de silêncio.
- Como é que sabe?
- Tenho as minhas fontes. E estou apenas a fazer o que lhe disse que faria: a seguir uma história na estrada.
James inspira.
- Está a dizer que está com ela?
- Estou a dizer que lá por não estar a um metro de distância de si, isso não significa que já não esteja a controlar a situação olha para o relógio. Meu Deus, a esta hora Mariah e Faith podiam já estar a meio do Missouri, mas isso era um risco que ele tinha de correr. Aprendera há muito tempo que a melhor maneira de apanhar uma borboleta não era perseguindo-a, mas ficando tão quieto que ela decidisse pousar no ombro. - Tenho de ir, James. Entrarei em contacto consigo.
Antes que o seu produtor tenha hipótese de protestar, Ian desliga o telemóvel e volta a enfiá-lo no bolso do casaco. Depois volta para Camp Perry, suficientemente devagar para poder estar atento a alguma mulher acompanhada de uma criança que pudessem ter decidido ir embora sozinhas.
Mariah está a suar. Embora esteja bastante fresco ao ar livre, Faith tinha recuado perante a ideia de caminhar pela estrada ao longo de um quilómetro e meio, portanto teve de carregar a filha às cavalitas até à bomba de gasolina. Aí telefonou para casa, fazendo uma chamada a pagar no destino para falar com a mãe, enquanto Faith se lamuriava pedindo doces.
- Estás com quenú - tinha dito a mãe.
- Eu sei, eu sei. Mas vamos embora - nessa altura, Mariah vira o número de um serviço de táxis local, gravado na parede da cabina
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telefónica. - Telefono-te quando encontrar um sítio para nos instalarmos.
Ao falar com o operador do serviço de táxis, sente o laço da culpa a apertar-se. Ian Fletcher até esta altura tem-se mostrado no mínimo solícito. Por alguma razão, é possível que a desumanidade desta figura da televisão não passe de uma encenação.
Mesmo assim, não vai ficar para descobrir.
Faith está sentada no chão, a mexer em insectos mortos, quando Mariah desliga o telefone. O táxi chegará dali a dez minutos.
- O que estás a fazer? Vais ficar toda suja. - Quero doces. Tenho fome.
Mariah mete a mão no bolso para tirar cinquenta cêntimos.
- Pronto. Compra o que puderes com este dinheiro - limpa o suor da testa e observa Faith escolher M£M s de amendoim e entregá-los ao homem que está atrás do balcão. Ele sorri para Mariah; ela devolve-lhe o sorriso.
- A senhora não é daqui - diz o homem. Mariah acha que vai vomitar.
- Porque diz isso? Ele ri.
- Conheço toda a gente da cidade, e a senhora não é uma dessas pessoas. Conseguiu chamar o seu táxi?
Deve ter ouvido a conversa. Mariah sente a cabeça fervilhar de actividade.
- Sim... o meu, hum, marido teve de resolver um assunto, e devia vir buscar-nos aqui depois de fazer um telefonema. Mas acho que a minha filha está com febre, e quero levá-la outra vez para o motel... por isso vamos apanhar um táxi.
- Não me custa nada dizer-lhe para onde a senhora foi, quando ele vier à sua procura.
- Seria óptimo - diz Mariah, dirigindo-se para a porta, desejando apenas cortar a conversa.
- Querida, porque é que não vamos esperar lá para fora?
- Boa ideia - diz o homem, embora ela não o tivesse incluído no convite. - Não me importava de apanhar um pouco de ar.
Resignada, Mariah sai pela porta de vidro da bomba de gasolina e posiciona-se ao lado da bomba, protegendo os olhos do sol com a mão para ver ao fundo da estrada qualquer coisa que se parecesse remotamente com um táxi. Mas vindo da direcção oposta, um carro entra na bomba de gasolina, parando a alguns metros deles.
Ian sai do carro, entusiasmado por ter visto Mariah e Faith.
- Olá - sorri para Mariah. - Queres uma boleia para casa?
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- Espero que tenha trazido umas rosas, amigo - diz o empregado da bomba de gasolina. - Está metido em sarilhos.
Ian continua a sorrir, perplexo, mas apenas se lembra que Faith uma vez disse, que as rosas fazem a mãe espirrar. Antes que Mariah possa impedi-la, Faith entra para o banco de trás do carro e vê um monte de sacos no chão.
- O que é isto?
- Presentes. Para ti e para a tua mãe.
Faith tira o conjunto do Piu-Piu e a embalagem de ganchos para o cabelo, e uma camisola com corações em volta do decote. Depois tira uma camisola que é visivelmente do tamanho certo para Mariah.
Foi isso que foi fazer de manhã? Comprar-lhes roupas?
- Suponho que não vá precisar do táxi - diz o empregado. vou telefonar ao operador.
- Isso... seria óptimo - consegue Mariah dizer.
Ian acena para o homem, e em seguida entra no carro. Mariah também se senta no assento da frente.
- Suponho que quisessem dar um passeio na cidade - diz ele pausadamente. - Por acaso vi-vos quando estava a passar.
Faith diz numa voz aguda do banco de trás:
- Ainda bem, porque estava cansada de andar.
Mariah tenta ler uma acusação nas palavras dele, tenta transformá-lo no tipo de homem que naturalmente tinha achado que ele fosse. Ele volta-se para ela.
- É claro, posso levar a Faith para casa, se ainda quiser andar um bocado.
- Não - diz ela, para ele e para si própria. - Assim está óptimo.
New Ccmaan, New Hampshire- 22 de Outubro de 1999
Algumas pessoas culparam o motorista do táxi que levou o jovem padre Rourke até à estação de comboios. Outros disseram que era evidente que tinha sido um jornalista a bisbilhotar. Passados meses, ninguém se lembrava bem de como as pessoas que estavam reunidas em volta da casa de Mariah White ficaram a saber de que constavam os ficheiros do padre que a tinha visitado, mas de repente, todos sabiam que o Deus que Faith via era uma mulher.
O artigo de três parágrafos do jornalista da Associated Press apareceu nos jornais de Los Angeles a Nova Iorque. O Jay Leno fez um monólogo irreverente sobre um Jesus no feminino preocupado com a afirmação de moda transmitida pela coroa de
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espinhos. Um novo grupo de devotas tinha chegado aos limites da propriedade dos White, deixando que o desânimo ao constatarem a ausência de Faith apenas afectasse ligeiramente o seu entusiasmo. Rondando a centena, eram provenientes de universidades católicas e ligas femininas, e ensinavam em escolas paroquiais. Algumas tinham lutado para serem ordenadas padres, mas sem sucesso. Munidas de Bíblias e textos de Naomi Wolf, desenrolaram uma faixa pintada à pressa com as palavras SOCIEDADE DE DEUS MÃE e entoaram muito alto em uníssono o Pai-Nosso, alterando os pronomes onde necessário. Exibiram posters com fotografias retocadas para parecerem imagens religiosas e outros onde estava escrito FORÇA, RAPARIGA!
Eram coesas e ruidosas, como uma equipa de hóquei feminina, embora a maioria dos outros seguidores que estavam acampados ao ar livre não as considerasse perigosas.
Mas por outro lado, não sabiam que a Sociedade de Deus Mãe tinha deixado outra centena de membros espalhar-se por outras cidades na Costa Leste, entregando panfletos com o seu Pai-Nosso corrigido e com o nome e morada de Faith White.
Manchester, NH 22 de Outubro de 1999
- Em nome de São Francisco, o que é isto? - pergunta o bispo Andrews, recuando perante o panfleto cor-de-rosa como se fosse uma cascavel. - "Mãe nossa, que estais no Céu?" Quem escreveu esta porcaria?
- É um novo grupo católico, excelência - diz o padre DeSotto. Estão a promover uma alegada vidente do New Hampshire.
- Porque será que isto me soa familiar?
- Porque falou com o monsenhor O Shaughnessy sobre ela há uma semana. O padre Rourke, o psicólogo pastoral de St. John, enviou-lhe o seu relatório por fax.
O bispo Andrews não leu o relatório. Passara a manhã a marchar no desfile da Escola Paroquial Papa Pio XII, num Ford antigo à frente de uma grande banda de percussionistas que lhe provocara uma dor de cabeça que ainda não tinha passado. O padre DeSotto entrega-lhe um papel.
- "Ausência evidente de comportamento psicótico..." Ele tem uma mente demasiado aberta para seu próprio bem - diz Andrews entre dentes, e em seguida agarra no telefone e liga para o seminário de Boston.
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Um Deus feminino. Por favor!
Porquê enviar um psicólogo pastoral, quando é evidente que se trata de um caso para um teólogo?
Lago Perry, Kansas - 22 de Outubro de 1999
Naquela tarde, Ian e Faith estão a jogar às copas quando Mariah adormece no sofá. Num momento, está a falar com eles, no momento seguinte, sem mais nem menos, está a ressonar. Ian observa o pescoço dela curvar-se para o lado, como o de um cisne, ouve o suave ressonar vindo da sua garganta. Meu Deus, como a inveja. Ser simplesmente capaz de adormecer daquela maneira... a meio do dia...
Faith baralha as cartas e consegue fazê-las voar por todo o lado.
- Olhe, Sr. Fletcher - diz ela, levantando-se para as apanhar, numa voz estridente.
- Chiu! - Ian faz um gesto indicando o sofá. - A tua mãe está a dormir - ele sabe que ao manter Faith junto de Mariah, naquele espaço exíguo, o mais provável é que aquele seja um descanso breve. - E que tal irmos lá para fora? - sussurra ele.
Faith faz uma careta.
- Não quero brincar nas ervas outra vez. Já fiz isso hoje de manhã.
- Lembro-me de te prometer uma pescaria - Ian recorda-se de ver uma velha cana de pesca e um carreto a acumular pó na cabana ao lado do escritório da gerência. - Podíamos tentar.
Faith olha para Ian e depois para Mariah.
- Acho que ela não haveria de querer que eu fosse.
"Claro que não", pensa Ian. Faith poderia descair-se inadvertidamente.
- Então uma pescaria rápida. O que a tua mãe não souber não a vai incomodar - ele levanta-se e espreguiça-se. - Bem, eu vou pescar na mesma.
- Espere! vou só buscar os meus sapatos.
Ele encolhe os ombros, fingindo não se importar por ter companhia ou não. Mas esta é a primeira vez que fica sozinho com Faith White, sem contar com aquela noite em que ela fugiu de casa a sangrar. Há tantas coisas que deseja saber sobre ela, que nem sequer sabe por onde há-de começar.
Está um ar fresco e revigorante lá fora e o sol está forte no céu. Caminha de mãos nos bolsos, assobiando suavemente, fingindo não reparar em como Faith se esfalfa por o acompanhar. Depois de
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pegar na cana de pesca e numa pequena pá de jardinagem, Ian encaminha-se para o lago.
Agacha-se na margem, junto a um maciço de canas e dá a pequena pá a Faith.
- Queres cavar, ou cavo eu?
- Quer dizer, à procura de minhocas?
- Não, de um tesouro escondido. O que achas que vamos usar como isco?
Faith agarra na pá e faz uma tentativa pouco entusiasmada para desenterrar a espessa erva do pântano. Ian fica a olhar para os pensos-rápidos que ela ainda tem nas mãos, um do lado de fora e um do lado de dentro de cada palma. É claro que ele estudou casos históricos de alegados estigmatizados - na sua profissão, tem de se conhecer bem a concorrência. Lembra-se de ler como as feridas deveriam ser dolorosas, não que alguma vez tivesse acreditado. Apesar disso, arranca a pá das mãos de Faith.
- Deixa-me fazer isso - diz bruscamente.
Desenterra um pedaço de erva, puxando-a para trás como um escalpe, para revelar várias minhocas púrpura a pulsar através da terra. Faith torce o nariz.
- Que nojo.
- Para um achigã, não - reúne algumas dentro de um pequeno saco de plástico e dirige Faith para o fundo do cais.
- Vai andando para ali. Leva a cana de pesca. Encontra-a com os pés descalços a balançar na água.
- Se a tua mãe te visse assim, tinha um ataque. Faith olha para trás, por cima do ombro.
- A única maneira de ela descobrir é se lhe contar que eu vim para aqui consigo, e então ela ficaria demasiado zangada consigo, para gritar comigo.
- Acho que então somos sócios no crime - Ian estende uma mão para ajudá-la a pôr-se de pé. - Então, sabes fazer lançamentos? O teu papá alguma vez te levou à pesca?
- Não. E o seu?
De repente, a sua mão imobilizou-se na de Faith. Ela semicerra os olhos para olhar para ele, com o rosto parcialmente oculto pelas sombras.
- Não - diz ele. - Não me lembro de me levar - coloca os braços em volta de Faith, atrás dela e fecha as mãos por cima das dela. A pele dela é morna e incrivelmente suave; consegue sentir as suas omoplatas baterem-lhe no peito. - É assim - inclina a cana para trás e deixa a linha voar.
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- E agora?
- Agora ficamos à espera.
Senta-se ao lado de Faith enquanto ela enfia a unha do polegar nas rachas das tábuas de madeira do cais. Ela ergue o rosto em direcção ao sol poente e fecha os olhos, e Ian dá por si a ficar hipnotizado pela débil pulsação na depressão da garganta dela. Há um silêncio entre eles que Ian quase se mostra relutante em quebrar, mas a sua curiosidade leva a melhor.
- "Vinde comigo e Eu farei de vós pescadores de homens." diz ele num tom suave, observando a reacção dela.
Faith volta a cabeça na direcção dele. -Ha?
- É um ditado. Um velho ditado.
- É estúpido. Não se pescam homens.
- Devias falar nisso a Deus - sugere Ian, deitando-se e tapando os olhos com o antebraço, o suficiente para ainda poder espreitar para ela.
Faith franze o sobrolho, prestes a dizer qualquer coisa, mas depois pára e volta a brincar com a madeira do cais. Ian dá por si a inclinar-se para a frente, à espera de uma confissão, mas o que quer que fosse que Faith ia dizer perde-se com o súbito puxão da cana de pesca e o seu guincho de satisfação. Mostra-lhe como puxar a linha para apanhar o seu peixe, uma beleza que pesa bem quilo e meio. Depois retira o achigã do anzol e a abre-lhe a boca, para que Faith possa pegar-lhe.
- Oh - diz ela numa voz abafada, com a cauda do peixe junto ao estômago.
"Ela é linda", pensa Ian, sorrindo. com os cabelos ao sol poente e a face suja de terra, olha para ela e realmente não a vê como uma história, mas simplesmente como uma menina.
O peixe começa a bater com a cauda, lutando pela liberdade.
- Olhe como... Oh - grita Faith, e deixa cair o achigà, a última coisa que Ian vê antes de Faith perder o equilíbrio e cair do cais para a água gelada.
Mariah desperta para o seu pior pesadelo: Ian Fletcher desapareceu com Faith. Erguendo-se no sofá como um relâmpago, grita pela filha, sabendo pelo silêncio que se faz sentir no pequeno chalé que eles não estão ali. Há um baralho de cartas espalhado em cima do tapete, como se ele a tivesse levado a meio de alguma coisa, como se a tivesse levado à força.
Terá de chamar a polícia, mas isso parece um sacrifício insignificante, se for para trazer a Faith de volta em segurança. com o
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coração aos pulos, Mariah corre lá para fora, tão perturbada que nem sequer repara que o carro ainda está estacionado em frente ao chalé. Corre para o escritório da gerência, o telefone mais próximo, amaldiçoando-se por colocar Faith ao alcance de Ian Fletcher. Quando dobra a esquina, duas silhuetas estão recortadas junto ao lago, uma alta e uma pequena. com um grande alívio, Mariah detém-se, com os joelhos a fraquejar. Coloca as mãos em concha à volta da boca para os chamar, mas então, diante dos seus próprios olhos, Faith cai ao lago.
"Oh, merda!" É só o que Ian tem tempo de pensar antes que a água engula a Faith, e o eco dos gritos de Mariah. Está gelada, e ele não faz ideia se a miúda sabe nadar, e o pior de tudo é que não pode limitar-se a mergulhar e agarrá-la, porque o mais provável seria cair em cima dela, empurrando-a ainda mais para o fundo. Tem alguma consciência de Mariah a correr descontroladamente pela encosta abaixo, aos gritos, mas concentrando-se profundamente, observa a água turva até que uma pálida mancha prateada se revele à superfície. Mergulha um pouco mais para a esquerda do sítio onde viu os cabelos de Faith, abrindo os olhos para o turvo mundo subaquático e prende os dedos numa madeixa sedosa.
Consegue vê-la, de olhos muito abertos e aterrorizados, de boca aberta, empurrando a parte de baixo do cais onde ficou presa com as mãos. Arrastando-a pelo rabo-de-cavalo, puxa Faith, libertando-a, içando-a para a superfície. Ela rasteja para cima da madeira, tossindo e cuspindo, com a face encostada às tábuas enquanto cospe água.
Ian também sobe para o cais, mesmo quando Mariah chega junto deles e toma Faith nos braços, acalmando-a e acarinhando-a. Só agora é que consegue respirar, consegue pensar no que podia ter acontecido. Repara que está encharcado e a tremer; as suas roupas molhadas devem pesar mais de vinte quilos, e para complementar estão geladas. Lançando um olhar em direcção a Faith para se certificar de que ela está bem, levanta-se e começa a deslocar-se lentamente para o chalé.
- Não se mexa!
A voz de Mariah, vibrando de raiva, fá-lo parar. Ian volta-se e pigarreia para falar.
- Ela vai ficar bem - consegue dizer. - Não esteve mais do que alguns segundos debaixo de água.
Mas Mariah não está disposta a desistir.
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- Como é que se atreve a trazê-la para aqui sem a minha autorização?
- Bem, eu...
- Esteve à espera que eu adormecesse para poder esgueirar-se com ela para aqui, com uma... uma barra de chocolate para lhe fazer perguntas duvidosas? Conseguiu a sua preciosa gravação? Ou esqueceu-se de tirar o gravador do bolso antes de mergulhar?
Ian sente os lábios afastarem-se dos dentes, num esgar involuntário.
- Para sua informação, a única coisa que perguntei à sua filha foi se o pai dela alguma vez a ensinou a fazer um lançamento com uma cana de pesca. Não gravei nem uma maldita palavra da nossa conversa. Ela caiu ao lago por acidente, e ficou presa debaixo do cais. Eu limitei-me a mergulhar atrás dela.
Os olhos de Ian faíscam de raiva. É isto que recebe por salvar a vida da criança? Recua um passo, respirando pesadamente.
- Tanto quanto sei - diz com desdém -, ela podia ter caminhado sobre as águas.
Muito depois de Mariah ter dado uma sopa quente a Faith, ter-lhe dado banho e tê-la metido na cama, Ian ainda não regressara ao chalé. Dá por si a andar de um lado para o outro, a olhar cegamente para a estática no ecrã de televisão. Quer pedir desculpas. com certeza de que agora, que tiveram ambos tempo para se acalmarem, ele compreende que era o medo a falar em vez dela, mas gostaria de lhe dizer isso pessoalmente. Afinal, se Faith tivesse ido para o cais sozinha, poderia ter caído com a mesma facilidade - e afogar-se.
Fica à espera até a filha estar a dormir profundamente, e depois senta-se na beira da cama. Mariah toca na curva da face de Faith, morna como um pêssego maduro. Como é que as outras mães guardam os filhos? Como é que fecham os olhos com a certeza de que naquele momento, não haverá algo que corra mal? Estar numa água tão fria poderia ter consequências muito mais graves, e apesar disso, Faith parece estar perfeitamente bem.
Ao que parece, não foi o Deus de Faith que a tirou das águas; foi o próprio Ian que o fez. Pelo menos por isto, Mariah deve-lhe a sua gratidão.
Vê o raio oscilante dos faróis passar pela pequena sala. Saindo do quarto para se dirigir para a porta de entrada do chalé, fica à espera que Ian entre. Mas passa-se um minuto, e depois outro, e finalmente já se passaram cinco minutos. Espreita pela janela - sim, o carro está ali - e depois abre a porta.
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Ian está sentado aos seus pés. Estava encostado à porta.
- Desculpe - diz Mariah, ruborizando.
- Não. É um sítio estúpido para se estar sentado.
Olham para o céu nocturno, para o alpendre a apodrecer, para a tinta lascada da porta - para todo o lado menos um para o outro.
- Queria pedir-lhe mesmo desculpa.
- Bem, eu também. Não foi a primeira vez que fiz algo com a Faith sem pedir primeiro a sua autorização - Ian esfrega a parte de trás do pescoço. - Mas ela gostou de pescar. Até àquela parte final.
Cada um deles visualiza uma imagem de Faith com aquele achigã, e isso forma uma ponte entre eles. Então Mariah senta-se ao lado de Ian, traçando distraidamente um círculo na terra do chão do alpendre.
- Não estou habituada a perdê-la de vista - admite. - Para mim é difícil.
- É uma óptima mãe. Mariah abana, a cabeça.
- Deve ser a única pessoa que acha isso.
- Duvido. Aposto que há uma menina ali dentro que acha o mesmo - encosta-se à parede do chalé. - Acho que também lhe devo um pedido de desculpas. Fez-me ficar furioso, senão não teria dito aquilo sobre a Faith caminhar sobre as águas.
Mariah fica a pensar nas palavras dele.
- Sabe uma coisa - diz ela por fim -, não quero que ela seja uma espécie de... figura messiânica... tal como você.
- E o que é que quer? Ela respira fundo.
- Quero que ela fique em segurança. Quero que ela seja minha. Nenhum deles fala em voz alta sobre aquilo que lhes passa
pela cabeça: que estes dois desejos possam não se concretizar em simultâneo.
- Ela está a dormir?
- Sim - Mariah olha para a porta do chalé. - Foi para a cama sem nenhum problema. - Observa Ian puxar um joelho para cima e colocar o pulso dobrado por cima dele, e deixa-se imaginar como seria este momento se não tivesse conhecido Ian numa guerra de convicções religiosas, mas ao deixar cair a mala na mercearia, ou ao ceder-lhe o lugar dele no autocarro. A sua mente percorre um território que ela deixara deliberadamente intacto, observando o negro asa de corvo dos seus cabelos e o azul-vivo dos
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seus olhos, lembrando-se da noite no hospital em que a tinha beijado na face.
- Sabe uma coisa - diz ele numa voz suave. - Mesmo durante as guerras mundiais houve um cessar-fogo no Natal.
- O quê?
- Tréguas, Mariah - diz Ian, com a voz a correr sobre o seu nome como uma queda-d água. - Estou a dizer que só aqui, só por agora, talvez pudéssemos dar um ao outro o benefício da dúvida ele sorri para ela. - Provavelmente não sou nem metade do monstro que acha que sou.
Mariah devolve-lhe o sorriso.
- Não se subestime.
Ele ri alto, e nesse momento, Mariah apercebe-se de que se Ian Fletcher é intimidante quando franze o sobrolho, é absolutamente ameaçador quando baixa a guarda.
A meio da noite, quando Faith e Mariah já dormem ha muito, Ian esgueira-se para o quarto delas. Fica de pé à beira da cama com toda a seriedade de um homem à beira de um precipício. Mariah abraça Faith como um ingrediente para tender suavemente numa massa. Os cabelos delas estão juntos em cima da almofada. De onde está, quase parece que não são duas pessoas, mas incarnações diferentes da mesma.
Esta noite tinha corrido melhor do que estava à espera, tendo em conta a sua explosão no lago. As tréguas vão dar-lhe mais algum tempo, farão com que Mariah se mostre predisposta a confiar nele. E, claro, ele terá de se comportar como se confiasse nela. O que, de certa forma, será quase demasiado fácil. Às vezes, ela parece-se com qualquer outra mãe, e Faith parece-se com qualquer outra menina. Até juntarmos Deus à mistura.
Lago Perry, Kansas - 23 de Outubro de 1999
Faith senta-se ao lado do Sr. Fletcher à mesa do pequeno-almoço e observa a mãe na bancada.
- Esta manhã temos uma selecção de Cheerios, ou Cheerios... ou, se preferirem, Cheerios - diz a mãe numa voz animada.
- Então quero Cheerios - o Sr. Fletcher sorri para a mãe, e Faith percebe de imediato que há algo diferente. Como se o ar fosse mais fácil de respirar.
- Como te sentes? - pergunta-lhe o Sr. Fletcher.
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- Bem - mas então espirra.
- Não me surpreenderia se ela tivesse apanhado uma constipação - diz a mãe ao Sr. Fletcher, que acena com a cabeça. Coloca uma taça de cereais em frente a Faith.
- Dê-lhe vitamina C. Podemos evitar as constipações se tomarmos bastante.
- Isso são superstições. Como usar alho num cordel em volta do pescoço.
Faith olha para um e depois para o outro e interroga-se como é que conseguiu dormir ontem à noite e acordar esta manhã e de alguma forma, naquele curto período de tempo, não notar que o mundo inteiro tivesse ficado virado de pernas para o ar. Da última vez que tinha visto o Sr. Fletcher e a mãe juntos, gritavam tão alto que a sua cabeça latejava.
Ainda estão a falar sobre remédios e adoecer, como se Faith nem sequer estivesse ali. Silenciosamente, levanta-se e atravessa a pequena cozinha, arrastando um escadote para junto da bancada.. Alcança as taças na prateleira do meio do armário e tira outra. Enche-a com Cheerios e coloca-a em frente a um lugar vazio à mesa.
- Bem - diz o Sr. Fletcher. - Pelo menos ainda não perdeste o apetite.
Faith fica a olhar para ele, com um ar de desafio.
- Não é para mim. É para Deus.
A colher da mãe tilinta na sua taça de cereais. Faith observa os dois adultos olharem um para o outro durante bastante tempo, um concurso para ver quem desviava primeiro os olhos. A mãe, sobretudo, parece estar agarrada à borda da mesa, à espera que o Sr. Fletcher fale.
Passado um momento, ele alcança o jarro de leite e passa-o para o outro lado da mesa.
- Toma - diz ele, comendo calmamente outra colher dos seus próprios Cheerios. - No caso de Ela não gostar deles secos.
24 de Outubro de 1999
Na noite seguinte, Ian está refastelado no sofá, a escrever num bloco, enquanto Mariah está sentada à mesa da cozinha. O cheiro intenso dos vapores de cola de borracha espalha-se pela sala, e embora ele não consiga ver-lhe as mãos, sabe que está ocupada a colar alguma coisa. Um trabalho ingrato, pensa ele. Tudo neste maldito chalé está a cair aos bocados.
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De repente, Mariah espreguiça-se, com os seios a arredondarem-se numa das camisas de flanela sem forma. Volta-se para Ian e sorri de forma hesitante.
- Em que está a trabalhar?
- Notas gerais para uma emissão.
- Oh. Não sabia que ainda estava a fazê-las - cora devido às suas próprias palavras, a mensagem nas entrelinhas era evidente: não sabia que podia ser generoso e trair-nos ao mesmo tempo.
- Tenho de ganhar a vida.
Ao ouvir falar de emprego, Mariah geme.
- Provavelmente perdi todos os meus clientes. Surpreendido por descobrir que ela é mais do que uma mãe
doméstica, Ian ergue as sobrancelhas.
- Clientes? O que é que faz?
Mariah parece agitada por um momento, e depois faz um gesto indicando a mesa.
- Faço isto.
Ele aproxima-se e fica atrás da cadeira dela. Espalhado em cima de uma toalha de papel, está um leque de palitos, colados lado a lado. Ao lado deles está uma minúscula estrutura, e enquanto ele observa, Mariah enrola o leque para fazer um telhado de colmo em cima de uma cabana diminuta. Mas em vez de parecer tolo, como se fosse feito por uma criança, é extraordinariamente realista. Partindo estrategicamente pedaços de madeira aqui e ali, criou uma porta, uma janela, a sensação de uma casa nativa.
- É espantoso - diz Ian, surpreendido pela dimensão do talento dela. - É escultora?
- Não, faço casas de bonecas - enrola uma bola de cola de borracha nos dedos.
- Para que serve a cabana?
- Para mim - Mariah ri. - Estava aborrecida. Os palitos foram a primeira coisa que encontrei.
Ian sorri.
- Lembre-me de esconder as colheres de pau. Mariah recosta-se na cadeira e olha para Ian.
- As suas emissões: quem é que as está a fazer no seu lugar?
- Eu. Ao vivo e a cores. Estamos a fazer reposições enquanto eu estou aqui.
- E as que está a escrever...?
- Para quando regressar - diz Ian numa voz suave. - Quando quer que isso seja.
- São sobre a Faith?
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- Algumas partes - mesmo ao dizer as palavras, interroga-se por que raio lhe terá dito a verdade. Não seria mais fácil, mais inteligente, dizer que deixou completamente de se concentrar na Faith?
Mas não é capaz. Porque a dada altura durante esta última semana, Mariah White tinha deixado de ser uma história e de alguma forma tinha-se transformado numa pessoa tal como ele. É claro, houve alguns momentos estranhos - a Faith a ir buscar cereais para que a sua alucinação pudesse tomar o pequeno-almoço; a Faith sentada no alpendre, a ter uma conversa com ninguém. Mas Mariah tinha tentado esconder de Ian a maior parte destes incidentes, aparentemente embaraçada, em vez de os exibir como prova. Diz para si próprio que ela está a representar exactamente como ele, que está a fazer-se de tola na esperança de que Ian se converta, como o resto dos pobres idiotas que foram enganados pela Faith. Diz isto para consigo próprio porque a alternativa - impensável! - é que o seu palpite em relação a Mariah não é correcto. E se ele não a avaliou bem, então em que mais poderia estar enganado?
- Se eu lhe perguntasse o que vai dizer sobre ela - pergunta Mariah -, dir-me-ia a verdade?
Ian pensa em Michael, na história que terá quando tudo estiver terminado. Mas ele disciplina o rosto, enrugando a testa em perplexidade, e desvia o olhar.
- Dir-lhe-ia se pudesse, Mariah. Mas a verdade é que, neste momento, não sei o que vou dizer.
New Canaan, New Hampshire
Joan Standish ouviu o noticiário e a cobertura crescente da ausência misteriosa de Faith White de New Canaan. Petra Saganoff inicia cada intervenção para o Hollywood Tonight! com uma contagem: Terceiro Dia Sem Faith, Quarto Dia. A delegação local da NBC, um canal respeitável, até transmitiu uma emissão em directo durante a qual um espectador participante tinha dito que vira Faith numa fila de um cinema em San José, na Califórnia - e depois tinha arruinado a sua credibilidade gritando algo sobre como o Howard Stern é o maior. Afinal, ela não tinha tomado muita atenção à história, apenas tinha pena da menina que tinha sido apanhada no meio daquilo tudo.
Mas depois telefonaram do escritório de advogados muito conhecido de Malcolm Metz, em Manchester, para dizer que estavam a tentar enviar documentos à sua cliente desde terça-feira, uma
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moção para alterar a custódia para Colin White. A sua cliente? Quem sabia se Mariah White queria ser representada por Joan? Não falava com a mulher desde que tinha sido pedido o divórcio.
Mas, por razões que não percebe totalmente nem deseja analisar, dá por si a dirigir-se a casa dos White na sua hora de almoço. Nenhum dos programas que viu a prepara para percorrer a longa estrada cheia de elevações, ladeada de ambos os lados por carros e carrinhos com os porta-bagagens e as portas de carga abertos e com piqueniques espalhados pelo seu interior. As pessoas juntam-se em pequenos grupos - os representantes da comunicação social e os outros, aqueles que acham que Faith os pode ajudar. Rodeiam o muro de pedra que separa a propriedade dos White da estrada, os responsáveis debruçam-se sobre os seus dependentes de cadeira de rodas, cegos com cães-guia, cristãos curiosos de máquinas fotográficas ao pescoço que se enredam nos fios das suas cruzes de tamanho desmesurado.
Meu Deus, devem ali estar pelo menos duzentas pessoas. Joan carrega nos travões do seu Jeep num pequeno bloqueio de estrada erigido ao fundo da via de acesso. Dois polícias locais estão a guardá-lo; reconhecem-na como uma das poucas advogadas da cidade.
- Paul - cumprimenta ela. - Isto é impressionante.
- Não tem passado por aqui recentemente, ha? - pergunta o polícia. - Devia vir depois do almoço, quando a seita começa a cantar. Joan abana a cabeça.
- Então, afinal, a Mariah White não está mesmo em casa?
- Não tem essa sorte. É claro, se estivesse então haveria mais uma centena de doidos.
- Está aqui alguém?
- A mãe dela, a guardar o forte, suponho - recua para que Joan possa passar com o carro.
Joan estaciona junto ao relvado e dirige-se para os degraus do alpendre para bater à porta. O rosto de uma mulher mais velha aparece no vidro, sem dúvida a reflectir se haveria de abrir a porta ou não.
- Sou a Joan Standish - grita ela. - A advogada da sua filha. A porta abre-se.
- Millie Epstein. Entre - a mulher anda em volta de Joan quando esta entra em casa.
- Aconteceu-lhes alguma coisa?
- A quem?
- À Mariah e à Faith - Millie torce ansiosamente as mãos. - Não estão aqui, sabe.
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- Tanto quanto sei, estão bem. Mas preciso de entrar em contacto com a sua filha - Joan é uma profissional no que diz respeito a interpretar as expressões do rosto de uma pessoa, e é evidente que Millie Epstein está a esconder algo. - Sr.a Epstein, isto é incrivelmente importante.
- Não sei onde elas estão. Juro.
Joan reflecte sobre isto durante um momento.
- Mas já teve notícias delas - adivinha ela.
- Não.
- Então o melhor é ter esperança que a Mariah telefone em breve, porque eu tenho um recado. Diga-lhe que o ex-marido dela está a pedir a custódia da filha. E que por muito nobres que as intenções dela sejam ao levar a Faith para longe disto tudo, um juiz vai achar que ela contrariou o sistema ao esconder-se quando os documentos estavam a -ser enviados. E sinceramente, Sr.a Epstein, isso deixa os juizes furiosos. Quanto mais tempo permanecer escondida, maiores as hipóteses de a custódia ser atribuída a Colin White - o rosto da mulher mais velha está branco, os lábios cerrados. - Diga-lhe que me telefone - diz Joan numa voz suave.
Millie acena com a cabeça.
- Eu digo-lhe.
Lago Perry, Kansas - 24 de Outubro de 1999
Mariah apercebe-se de que é incapaz de dormir. Vira-se de lado e observa o céu nocturno através da janela do chalé, com a Lua a erguer-se e as estrelas tridimensionais, como se pudesse estender a mão e deixá-las pousar na palma. Marca o tempo através da respiração regular de Faith e deixa as perguntas rodopiar na sua cabeça: "Durante quanto tempo podemos ficar aqui?" "Para onde iremos a seguir?" "Como é que a minha mãe estará a lidar com a situação?" "Será que vai aparecer aqui um jornalista amanhã, ou no dia a seguir, ou no dia a seguir a esse?"
Senta-se, puxando para baixo a camisola que tem usado para dormir. Ian tinha comprado uma camisa de noite para Faith, mas para ela não. Pensa nele a procurar entre as flanelas práticas, e as sedas mais elegantes, interrogando-se o que deveria escolher para ela. Então, sentindo as faces arder, levanta-se e começa a andar de um lado para o outro. Não há razão para sonhar com coisas que nunca irão acontecer.
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Adorava dar um passeio agora, mas isso significava passar pela sala, onde Ian está a dormir. Em vez disso, vai para a janela e olha lá para fora. Ian esta encostado ao capo do carro. O brilho acobreado de um charuto pinta o seu rosto de perfil, de olhos tão abertos e tão preocupado como Mariah. Observa-o directamente, interrogando-se o que o manterá acordado à noite, desejando que ele se virasse.
Quando o faz, quando os olhos deles se cruzam, o coração de Mariah sobressalta-se. Encosta as mãos ao painel da janela, apanhada em flagrante. Não se mexem, não falam, simplesmente deixam que a noite os una num laço apertado. Então Ian pisa o charuto com o tacão do sapato, e Mariah volta para a cama, cada um deles a remoer na ideia de que não é o único a contar os minutos até ser de manhã.
Atlanta - Estúdios da CNN
Larry King ajeita a gravata vermelha e olha para o seu convidado.
- Está preparado? - pergunta ele, sem estar à espera de uma resposta, e depois a pequena luz do lado da câmara pisca, ganhando vida. - Estamos de volta com o rabi Daniel Solomon, líder espiritual de Bait Am Hadash, associado a ALEPH, a Renovação Judaica.
- Sim - diz o rabi Solomon, ainda pouco à vontade depois de estar há dez minutos no ar. - Olá.
Veste um casaco preto roído pelas traças, o único que tem com lapelas, em vez de gola à mandarim, e a sua T-shirt tingida, a sua imagem de marca, mas era como se estivesse nu. Estão milhões de pessoas a ouvi-lo, milhões! Ao fim de todos aqueles anos a lutar para ser ouvido. Está sempre a tentar não se esquecer de que deve a sua entrevista fortuita a Faith White. bem como à sua própria congregação. Portanto, que importa que King tenha trazido um professor católico arrogante para refutar tudo aquilo que Solomon diz? Até David conseguiu arranjar maneira de vencer Golias, com Deus do seu lado.
- Rabi - diz King, chamando a atenção de Daniel. - Faith White é o Messias?
- Bem, não é de certeza o Messias judaico - diz o rabi Solomon, rodando os ombros com a sensação familiar de estar na sua área teológica. - Um dos critérios para um Messias judaico envolve a criação de um estado soberano judaico, segundo a Tora. E nada daquilo que
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Faith ouviu Deus dizer indica isso - cruza as pernas. - O que é mais interessante acerca do Messias é que este difere muito do Judaísmo para o Cristianismo. Para os Judeus, o Messias não aparecerá até conseguirmos livrar o mundo de todo o mal e prepará-lo para um ser divino. Para os Cristãos, tanto quanto sei, o Messias proclama a era da redenção. Trá-la consigo. Os Judeus têm de se esforçar para terem uma era messiânica; os Cristãos têm de esperar.
- Posso objectar?
Viram-se ao ouvir o som de uma voz num monitor de televisão lá em cima.
- Sim, faça favor - diz King. - O padre Cuillen Mulrooney, presidente do departamento de teologia da Universidade de Boston. Estava a dizer, padre?
- Acho irresponsável que um rabi me diga o que os Cristãos devem fazer.
- Falemos sobre isso, padre - pede Larry King, batendo com uma caneta no monitor do computador. - Porque é que a Igreja Católica está a investigar as alegações da menina judia?
Mulrooney sorri.
- Porque ela está a afectar um grande número de católicos.
- O facto de ter apenas sete anos não é importante?
- Não. Já houve videntes mais jovens do que a Faith White que foram acreditados pela Igreja Católica. E, na verdade, os sete anos costumavam ser designados pela idade da razão, quando uma pessoa já tinha maturidade suficiente para ser moralmente responsável pelos seus próprios actos. É por isso que é nessa altura que se faz a primeira confissão.
Larry King franze os lábios.
- Pelo que a mãe diz, não se trata de uma rapariga que tenha tido uma educação religiosa formal: em qualquer religião. Vamos ouvir um espectador ao telefone. - Carrega num botão - Está?
- Está? Tenho uma pergunta para o rabi. Se ela não é um Messias judaico, então é o quê?
O rabi Solomon ri.
- Uma menina excepcionalmente espiritual, talvez com maiores capacidades para se abrir a Deus do que nós.
A voz de um segundo telespectador ao telefone enche o estúdio.
- Se ela é judia, porque é que tem as chagas de Cristo?
- Posso responder a essa pergunta? - pede o padre Mulrooney.
- Acho que é importante relembrar que o bispo ainda não fez nenhuma declaração oficial sobre os alegados estigmas. Pode levar
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anos... décadas... para que as hemorragias sejam autenticadas pelo Vaticano.
- Mas é uma boa questão - diz Larry King. - Não estamos a falar de uma freira carmelita, apenas de uma criança, e para mais uma criança que não é cristã - volta-se para o rabi Solomon. Como é que uma menina judia pode ter as chagas de um salvador em que não acredita?
- A Faith White é uma folha em branco - intervém o padre Mulrooney. - Se uma inocente religiosa, que não é cristã, sofrer as chagas de Cristo, decerto que isso prova que Jesus é o único Deus verdadeiro.
O rabi Solomon sorri.
- Não encaro isso assim de maneira nenhuma. Acho que Deus escolheu uma menina judia e lançou os estigmas na mistura por ser essa a forma de reunir muitas pessoas diferentes. Cristãos, judeus: todos nós estamos a observá-la agora.
- Mas porquê agora? Porquê esperar milhares de anos, para depois aparecer assim? Estará relacionado com o milénio?
- Certamente - diz o padre. - Durante anos, o virar do século tem sido encarado como o apocalipse, e as pessoas estão à procura de redenção.
O rabi ri.
- Esqueçam o milénio. Segundo o calendário judaico, ainda faltam quarenta e três anos para chegarmos ao virar do século.
- Telespectador? - diz King, carregando noutro botão.
- Ela é obra do diabo. Ela...
- Obrigado - diz King, desligando. - Olá, está em directo.
- Eu dou os parabéns à Faith White. Mesmo que ela esteja a inventar isto tudo, já era altura de alguém sugerir que Deus pudesse ser uma mulher.
- Senhores? Deus é masculino?
- Não - dizem o rabi e o padre, em simultâneo.
- Deus não é nenhuma das coisas, e ao mesmo tempo é ambas
- diz Mulrooney. - Mas uma visão tem muito mais do que apenas atributos físicos. Há o sinal concreto e verificável das provas para além da visão, e a devoção e a virtude cristã do vidente...
- Sempre levei isso a mal - murmura o rabi Solomon. - A ideia de que só os Cristãos é que têm virtude.
- Não foi isso que...
- Sabe qual é o seu problema? - acusa o rabi. - Diz que tem abertura de espírito. Mas só enquanto a sua vidente aparenta ser algo de que todos vocês gostem. O senhor dirige uma faculdade.
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Nem sequer conhece a menina, mas ela não se encaixa bem, por isso está a desacreditá-la com a sua teologia.
- Ora, espere um momento - diz o padre Mulrooney, furioso.
- Pelo menos eu tenho uma teologia. Que tipo de movimento hippie radical se autoproclama judaico mas usa cânticos, budismo e imagens nativas americanas?
- Olhe, na teologia judaica há lugar para um Deus feminino. O padre abana a cabeça.
- Corrija-me se estiver enganado, mas as orações hebraicas não são dirigidas a "adonai eloheinu", o Senhor nosso Deus?
- Sim - diz o rabi Solomon. - Mas existem muitos nomes hebraicos para designar Deus. Hashem, por exemplo, que significa "o nome", muito unissexo. Há a presença de Deus, Sbekhinah, que é tradicionalmente considerado um termo feminino. A minha palavra preferida para designar Deus é Shaddai. É sempre conjugada no masculino, e durante anos os rabis traduziram-na como "o Deus do Monte" ou o "Deus da Montanha". Mas Shaddai é extraordinariamente semelhante à palavra shaddaim... que significa "seios".
- Oh, por favor - diz o padre Mulrooney desdenhosamente. E "Inverno" sem v e com f fica "Inferno".
- Ora... - o rabi Solomon quase se levanta da cadeira, até Larry King o impedir com um toque da sua mão.
- Faith White, curandeira ou impostora? - diz King numa voz suave. - Voltamos dentro de momentos. - Quando a luz da câmara se desliga, o padre Mulrooney está de um tom alarmante de vermelho e os olhos do rabi Solomon faíscam de raiva. - Reparem, estão os dois a contribuir com um material fantástico, mas tentem não se matar um ao outro, está bem? Ainda tenho de preencher mais vinte minutos de emissão.
Lago Perry, Kansas - 25 de Outubro de 1999
Uma lua cheia no Kansas é um cenário notável, luminosa e a rebentar ao roçar as planícies. É o tipo de lua que incita os animais a saírem dos seus esconderijos, que faz os gatos dançar em cima das vedações e as corujas dos celeiros piar. Altera-nos, nem que seja apenas enquanto estamos a olhar para ela, fazendo o sangue pulsar, espesso, e a cabeça andar à roda ao som de uma canção tocada nos ramos despidos e nos juncos dos pântanos. É o tipo de lua que empurra a sua barriga para cima de Ian e Mariah na segunda-feira à noite, apenas algumas horas antes de ele ir visitar Michael.
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Isto tornou-se num hábito para eles, um momento de descontracção antes de Mariah ir lá para dentro, para se deitar e Ian regressar ao trabalho. No alpendre, falam de coisas fáceis: gansos que viram voar para sul, a extraordinária quantidade de estrelas, a forma como o Inverno já paira no ar. Embrulham-se em cobertores aos quadrados e sentam-se lado a lado até as suas faces ficarem rosadas e os narizes a pingar, e se renderem ao frio. Esta noite, Ian tem estado invulgarmente calado. Sabe o que tem a fazer - a representação da sua vida, essencialmente - mas tem estado a adiar. De cada vez que inspira, preparando-se para começar, olha para Mariah e apercebe-se de que não quer dar início ao princípio do fim.
Mariah boceja.
- Bem, acho que é melhor ir lá para dentro - olha em volta, para o alpendre, à procura de coisas que Faith pudesse ter deixado lá fora abandonadas e agarra num par de sapatos.
- Aquela rapariga deixa tudo por todo o lado - murmura ela, e depois apanha uma Bíblia usada com encadernação de cabedal. Obviamente presumiu que Faith a tivesse encontrado dentro do chalé, e tenta metê-la nas pregas do seu cobertor antes que Ian repare.
- Por acaso é minha.
- A Bíblia?
Ele encolhe os ombros.
- Serve de ponto de partida para os meus discursos. É uma excelente leitura. Claro, encaro-a como ficção e não como facto fecha os olhos, inclinando a cabeça para trás. - Ah, que inferno. Estou a mentir-lhe, Mariah.
Consegue sentir o momento em que ela fica tensa, recuando mentalmente.
- Desculpe?
- Menti. Estava a ler a Bíblia esta noite porque... bem, porque quis. E não foi só sobre isso que menti. Deixei que pensasse que estava naquele avião por a ter seguido até Kansas City, mas tinha feito uma reserva naquele voo provavelmente antes de ter sequer pensado em fugir para o aeroporto. Venho aqui muitas vezes, na verdade, para visitar uma pessoa.
- Uma pessoa - a voz dela é fria, e embora Ian estivesse à espera, dói na mesma.
Está a antever um produtor, um realizador de documentários, qualquer outra pessoa que ande à sua volta e que possa expor Faith.
- Um familiar que é autista. O Michael vive aqui num local onde se prestam cuidados assistidos, porque não é capaz de viver
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sozinho no mundo normal. Isto é um assunto muito privado, e é por isso que ninguém sabe da existência dele, nem o meu produtor, nem a minha equipa. Quando a vi a si e à Faith naquele avião, percebi que tinha depreendido que estava a segui-la. Não estava, mas não queria que soubesse porque é que estava ali. Por isso fiz aquilo que estava a espera: segui-a.
Passa as mãos pelos cabelos.
- O que eu não percebi foi o que poderia acontecer por causa disso - Ian desvia o olhar. - A Faith, tenho-a visto todos os dias, agora. E quanto mais tempo passo com ela, mais me interrogo se não haverá algo na sua história, se talvez eu não possa estar enganado - engole em seco. - Saio durante o dia para visitar o Michael e depois volto para casa e vejo a Faith, e... Meu Deus, os dois ficam baralhados na minha cabeça e depois ela começa a andar à roda: "E se? E se ela estiver a dizer a verdade? E se ela fosse capaz de curar o Michael?" E depois, subitamente, fico envergonhado comigo próprio, eu o grande céptico! Só de pensar em tal coisa - Ian vira-se para Mariah, de olhos brilhantes, voz entrecortada. - Ela é capaz? Ela consegue fazer milagres?
Consegue ler os sentimentos de Mariah nos olhos dela; ela vê-o como um homem em sofrimento. Agarra-lhe na mão.
- Claro que iremos visitar o seu parente, Ian - murmura ela. E se a Faith conseguir fazer alguma coisa, então muito bem. Se não. não será diferente daquilo que tem estado a dizer desde o início.
Sem dizer uma palavra, Ian leva-lhe a mão aos lábios, a própria imagem da gratidão, mesmo quando o minúsculo microfone do gravador de cassetes escondido nas suas roupas grava a promessa de Mariah.
26 de Outubro de 1999
Lockwood é um sítio feio. Os corredores e o chão são da cor de gelado de pistácio. Há portas alinhadas como peças de dominó e cada uma delas tem uma pequena caixa do lado de fora com uma tabela lá enfiada. O Sr. Fletcher leva-as até ao fundo do corredor, onde entram numa sala muito mais bonita do que qualquer outra coisa que Faith tivesse visto. Há livros nas paredes e algumas mesas com jogos e até se ouve música clássica. Faz-lhe um pouco lembrar a biblioteca de New Canaan, só que na biblioteca não há enfermeiras a andar de um lado para o outro com as suas sapatilhas brancas macias.
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A mãe não lhe disse grande coisa, só que o Sr. Fletcher tem um familiar doente que hoje vão visitar. Por ela não há problema; aquele chalé é tão aborrecido. Para além disso, alguns dos quartos por que passaram têm televisão. Talvez esta pessoa tenha o Disney Channel, e Faith possa ver televisão enquanto os adultos conversam.
O Sr. Fletcher dirige-se para o canto da sala, onde um homem está sentado com um baralho de cartas. O homem nem sequer se vira quando eles se aproximam, limita-se a dizer.
- O Ian está aqui. Três e trinta de terça-feira. Como sempre.
- Como sempre - responde o Sr. Fletcher, e a voz dele parece estranha a Faith, tensa e alterada.
Então o homem vira-se, e Faith abre muito os olhos. Ora, se ela não soubesse, diria que era o próprio Sr. Fletcher.
Mariah fica de boca aberta. Um gémeo? As peças começam a encaixar-se: a razão pela qual Ian tinha mantido isto em segredo, porque é que o visitava regularmente, porque tinha tanto interesse em que Faith se encontrasse com este tal Michael. Recua para a periferia, onde Ian lhe pedira para ficar com Faith enquanto ele se aproximava lentamente do irmão.
- Olá, amigo - diz Ian.
- Dez de ouros. Oito de paus - as cartas caem num monte, espalhando-se pela mesa.
Ian dissera-lhe que Michael tinha sido diagnosticado como um caso grave de autismo. A sua estratégia de sobrevivência no mundo real é viver segundo uma rotina. Quebrar a rotina fá-lo descontrolar-se. Pode ser algo tão simples como alguém alterar a ordem dos talheres em cima do guardanapo, ou o Ian ficar mais dois minutos para além da sua visita de uma hora. E não suporta que lhe toquem.
Ian tinha-lhe dito que Michael seria sempre assim.
Faith puxa-lhe a mão.
- Larga-me - sussurra ela.
Michael vira um ás.
- Oh, não.
- Ás na manga - dizem os irmãos em uníssono.
Há algo nesta cena que deixa Mariah muito comovida: Ian sentado a centímetros de um homem que podia ser a sua imagem no espelho, a tentar estabelecer uma ligação com palavras que não significam nada. Levanta a mão para limpar os olhos e apercebe-se de que já não está a dar a mão a Faith.
A filha dirige-se para a mesa de jogo.
- Também posso jogar?
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Petrificado, Ian fica à espera da reacção de Michael. Este olha para Ian e depois para Faith, e novamente para Ian, começando a gritar em plenos pulmões.
- O Ian vem sozinho! Às três e trinta de terça-feira. Não à segunda-feira quarta-feíra quinta-feira sexta-feira sábado domingo; sozinho sozinho sozinho! - com a mão, bate nas cartas espalhando-as no colo e pelo chão.
- Faith - Mariah tenta afastá-la enquanto uma funcionária chega para acalmar Michael. Mas Faith rasteja pelo chão, apanhando as cartas que caíram. Michael está a balançar-se, ignorando as palavras tranquilizadoras de uma enfermeira que sabe que não pode tocar-lhe nem com uma mão. Faith coloca desajeitadamente o baralho de cartas em cima da mesa, observando com curiosidade o homem adulto com a mente de uma criança.
- Talvez fosse melhor que o senhor e os seus amigos se fossem embora - diz a enfermeira num tom suave.
- Mas...
- Por favor.
Ian levanta-se da cadeira e sai da sala. Mariah dá a mão a Faith e vai atrás dele, olhando por cima do ombro uma vez para ver Michael agarrar no baralho de cartas, encostando-o bem junto ao peito.
Mesmo à porta da biblioteca, Ian fecha os olhos e inspira grandes lufadas de ar. Sempre que Michael tem um acesso, dá por si a tremer. Mas de alguma forma, este parece pior.
Mariah e Faith saem lá para fora e ficam à espera em silêncio ao lado dele. Mal consegue aguentar olhar para elas.
- Aquilo foi o teu milagre?
Há uma raiva fenomenal a percorrê-lo, como um veneno a espalhar-se pelo seu organismo. Não sabe porquê, ou de onde vem. Afinal, era isto que ele estava à espera que acontecesse.
Mas não aquilo que tinha esperança que acontecesse.
O pensamento apanha-o desprevenido, tira-lhe o chão debaixo dos pés. Sente-se rodopiar e tem de se encostar à parede. Todas aquelas tretas que tinha impingido a Mariah na noite anterior, todas as pequenas concessões que tinha feito durante a semana para as fazer crer que tinha começado a acreditar em Faith... não eram propriamente mentiras. Profissionalmente, Ian podia ter desejado que Faith falhasse hoje. Mas, pessoalmente, desejara que ela fosse bem-sucedida.
O autismo não é algo que se possa curar com um piscar de olhos ou um toque da mão; sempre teve consciência disso. A Faith White, apesar de todas as suas alegações, é uma fraude. Ter razão,
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desta vez, não lhe traz nenhuma satisfação. Esta menina, que tem andado a enganar toda a gente, mostrou a Ian que ele apenas tinha andado a enganar-se a si próprio.
Mariah toca-lhe no braço, e ele afasta-a. "Tal como Michael", pensa ele, e interroga-se se o irmão não suporta que lhe toquem por não aguentar uma pena tão evidente, tão sincera.
- Vá-se embora - diz entre dentes, e dá por si a sair dali. Quando chega junto das portas, está quase a correr. Dirige-se para as traseiras de Lockwood, para o pequeno lago com o seu casal de cisnes. Então arranca o microfone de baixo da lapela. Tira o gravador de microcassetes do bolso, com a fita ainda a correr. Atira-os a ambos com toda a força que tem para dentro de água.
São quase três e meia da manhã quando Ian regressa ao chalé. Mariah sabe exactamente que horas são; tem estado a noite toda à espera, preocupada. Depois de fugir de Lockwood, Ian tinha levado o carro, deixando-a a ela e a Faith com a tarefa de encontrarem um transporte que as levasse de volta a casa. E mesmo depois de o táxi as ter deixado em casa sem que o carro lá estivesse, Mariah tinha presumido que Ian regressasse à hora de jantar. Às nove horas. À meia-noite.
Tem estado a imaginar o carro numa vala, retorcido em volta de uma árvore - é evidente que ele estava demasiado perturbado para conduzir. Aliviada por ele estar bem, dirige-se do quarto para a sala. Os vapores do álcool chegam a Mariah mesmo antes de ver Ian sentado no sofá de camisa desabotoada, agarrando uma garrafa de Canadian Club pelo gargalo.
- Por favor, vá-se embora. Mariah humedece os lábios.
- Lamento tanto, Ian. Não sei porque é que a Faith conseguiu ajudar a minha mãe mas o Michael não.
- Eu digo-lhe porquê - diz ele, tenso. - Porque é uma impostora. Não era capaz de curar uma porcaria de um golpe de papel, Mariah! Acabe com a encenação, está bem?
- Não é uma encenação.
- É sim. É tudo uma encenação - agita a garrafa, entornando a bebida nas almofadas do sofá. - Eu tenho estado a representar desde o momento em que vos vi no avião, e Deus sabe que a sua filha está a ver se ganha um maldito Oscar, e você... você...
Aproxima-se tanto de Mariah que ela consegue sentir o sabor do Canadian Club no hálito dele. Ela hesita, e depois inclina-se para a frente e beija-o.
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De início, lentamente, um leve roçar dos lábios dele nos dela. Envolve-lhe a cabeça e puxa-o para mais perto, beijando-o profundamente, retirando o que quer que seja que o está a fazer sofrer tanto.
A garganta de Ian move-se por um momento antes que ele consiga falar.
- Porque fez isso?
- Não estou a representar, Ian.
Colocando as palmas das mãos nas faces dela, Ian inclina a testa encostando-a à de Mariah.
- Não está a perceber.
Mariah observa as suas feições atormentadas, mas em vez disso vê Ian sentado ao lado do seu irmão gémeo, tentando seguir as estranhas regras do compromisso porque isso é melhor do que nada. Ian está enganado. Mariah conhece-o melhor do que ele poderia pensar.
- Gostava de perceber - diz ela.
Ian Fletcher nasceu dois minutos e meio antes do seu irmão Michael: era maior, mais forte e mais activo do que o irmão gémeo, uma circunstância pela qual pagam para o resto, da vida. Não restam dúvidas de que Ian consumiu a maior parte dos nutrientes e ocupou a maior parte do espaço no útero, e embora nenhum médico alguma vez o tivesse dito, sentia-se responsável pela saúde débil e pouca reactividade do irmão, talvez até pelo autismo que fora diagnosticado a Michael quando ele era ainda muito pequeno.
Os pais deles eram ricos, figuras da sociedade de Atlanta que casaram tarde e que prezavam mais o seu jacto particular Learjet, a sua mansão colonial restaurada e o seu apartamento num condomínio na ilha Grande Caimão do que os seus filhos gémeos. Ian e Michael tinham sido um erro, e sem dúvida um erro do qual não falavam, visto que era óbvio que havia algo de estranho num dos rapazes. Eles levavam uma vida de luxos, viajando à volta do mundo durante meses a fio e deixando Ian e Michael ao cuidado do tutor ou da ama que tivesse sido contratada para se encarregar deles. Ian sabia que era responsável por Michael; percebeu isso assim que tomou consciência das diferenças entre eles. Educado em privado, Ian não tinha amigos nem companheiros de brincadeira. O que ele tinha, o que sempre tinha tido, era o seu irmão.
Quando Ian tinha doze anos, o advogado do pai apareceu a meio da noite com o xerife local. O avião dos pais tinha-se despenhado nos Alpes, e não havia sobreviventes.
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De um dia para o outro, o mundo mudou. Ian ficou a saber que o estilo de vida a que estavam habituados era proporcionado por uma enorme dívida do cartão de crédito, que deixou os rapazes na falência antes que se pudesse sequer pensar na herança. Ian e Michael foram colocados sob a custódia relutante da irmã da mãe e do seu marido, um fundamentalista cristão, e foram erradicados para o Kansas. Mas a tia e o tio não faziam intenções de tentar compreender os problemas psicológicos de Michael, e não tinham recursos para contratar outra pessoa que o fizesse. O sistema de educação pública teria pago para enviar Michael para qualquer lado no Kansas, mas ninguém investigou as hipóteses, e por isso Michael foi enviado para a instituição mais próxima com uma cama vaga, um lugar que tresandava a fezes e urina, um lugar onde Michael era o único paciente que conseguia falar.
Ian visitava-o, mesmo quando a tia e o tio deixaram de o fazer. Foi à biblioteca e descobriu quais eram os lares com melhor reputação, mas ninguém lhe dava ouvidos. Passou seis anos a interrogar-se que horrores teria Michael sofrido para o fazerem regredir, para que não quisesse vestir-se de manhã e se balançasse em silêncio com maior frequência e se recusasse terminantemente a ser tocado.
No dia em que Ian e Michael fizeram dezoito anos, Ian vestiu-se com um fato usado comprado numa loja de artigos em segunda mão e apresentou uma petição num tribunal de Kansas City para obter a custódia do irmão. Recebeu uma bolsa de estudo para a Universidade do Estado do Kansas e trabalhou sem parar para pagar os livros e poupar dinheiro. Ficou a saber tudo sobre lares para adultos autistas e falou com médicos que lhe disseram que Michael ainda não estava apto para ter tanta independência. Tomou conhecimento das instalações de cuidados assistidos - de como recebiam apoio federal e estadual, e de como aceitavam alguns casos de indigentes, mas muito poucos. Aprendeu como era necessário conhecer a pessoa certa na altura certa, senão dir-lhe-iam que não havia camas disponíveis. Como então se pagava por uma qualidade de tratamento, e se continuava a pagar, para que aquela preciosa cama não fosse dada a outra pessoa.
A ambição de Ian de ser bem-sucedido era alimentada pelo
? irmão. Era naturalmente acompanhada pelo facto de ter deixado de acreditar em Deus há muito tempo. Que Deus lhe teria levado
os pais, a infância? E mais importante do que tudo, que Deus teria
feito isto ao irmão? Ian estava zangado e, para sua surpresa, as
pessoas queriam ouvi-lo: de início, os professores de inglês da
escola primária, depois os professores de teologia, depois os
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ouvintes da rádio e depois os produtores de televisão e os espectadores. Quanto mais famoso se tornava, mais fácil era pagar o alojamento de Michael em Lockwood. Quanto mais francamente falava, mais rapidamente abria caminho para um estilo de vida de que já mal se lembrava.
Quando Michael tinha vinte e dois anos, começou a comer sozinho novamente. Aos vinte e seis, era capaz de abotoar a sua própria camisa. Aos trinta e sete ainda se recusa a ser tocado.
De repente, Mariah compreende o que moldou um homem como Ian Fletcher. Ele passou anos a tornar-se numa pessoa diferente do rapazinho perdido - a tornar-se numa pessoa cujo ponto fulcral é a sua descrença em Deus - e por uma boa razão. Como deveria ter sido doloroso ter esperança - rezar - que afinal acontecesse um milagre.
Também se apercebe de que Ian pode ter conseguido internar o irmão em Lockwood. e pode ter conseguido atingir a situação financeira que tinha ambicionado para pagar os cuidados do irmão, mas a sua intuição diz-lhe que Ian não conseguiu obter aquilo de que mais necessita. Tem tomado conta de Michael ao longo de toda a sua vida - mas já se passaram anos desde -que alguém tivesse tomado conta de Ian.
Mariah começa devagar, passando a mão pelos cabelos dele, e em seguida virando-a, para que os nós dos seus dedos lhe rocem a garganta e o maxilar. Leva as palmas das mãos às faces dele e fá-las deslizar pelos seus ombros, observando-o fechar os olhos como um gato ao sol. Então abraça-o com força, enfia o rosto na curva do pescoço dele, sentindo-o estremecer.
Os braços dele fecham-se em volta dela com tanta força que não consegue respirar, não consegue fazer mais nada a não ser render-se ao seu desejo. As mãos dele percorrem-lhe as costas e os ombros, os lábios encostam-se à sua orelha.
- Obrigado - sussurra ele. Mariah afasta-se e beija-o.
- O prazer é todo meu. Ian sorri.
- Esperemos que sim - beija-a e deixa que os seus lábios lhe cubram a pele. Despe-a, tira um preservativo da carteira e usa as mãos e a língua para percorrer o corpo dela.
Será imaginação sua, ou será que ele se demora nos seus pulsos, os sítios que ainda a envergonham? Mariah imagina-se a encolher, pequena e maleável debaixo das mãos de Ian, até sentir que
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certamente caberia dentro de uma das suas casas de bonecas, caminhando pelos seus chãos imaculados e olhando-se nos seus espelhos impecáveis. Abre os olhos enquanto Ian se move em cima dela, dentro dela.
Demorou anos a perceber, pensa ela, mas esta é a sensação de terem sido feitos um para o outro.
O ritmo de Ian torna-se mais intenso. Mariah puxa-o para mais junto de si, com os dedos cerrados sobre os ombros dele, a boca arredondada no sal da sua pele. Deixa de pensar no passado de Ian, no futuro de Faith, não pensa em absolutamente nada. E mesmo antes de Mariah explodir nele, ouve a voz de Ian roçar-lhe a têmpora.
- Oh - grita ele, perdido nela. - Oh, Deus!
- Não disse nada - diz Ian, soltando um riso abafado.
- Disseste.
- Porque será? Quero dizer, está sempre a acontecer, mas se estamos só nós os dois na cama, porque é que eu haveria de invocar Deus?
Mariah ri.
- É a força do hábito.
- Talvez para ti - envolve-a nos seus braços, ainda maravilhado pela tranquilidade e paz dentro de si agora, constantes como uma linha plana. - Acho que tem mais a ver com divindade.
Mariah vira-se, nos braços dele.
- A sério? - diz ela, desviando o olhar. - Foi... bom? Ian ergue as sobrancelhas.
- Precisas de perguntar?
Os ombros dela erguem-se e voltam a baixar-se, e o corpo.dele contrai-se instintivamente.
- É que... bem, sempre me interroguei o que teria acontecido se eu tivesse menos treze quilos, ou fosse loura platinada, ou mais sensual. Achei que talvez assim tivesse conseguido manter o interesse do Colin.
Ian fica em silêncio por um momento.
- Se tivesses menos treze quilos, serias levada pelo vento. Se fosses loura platinada, não te reconheceria. E se fosses mais sensual, provavelmente matavas-me - beija-lhe a testa. -Já vi o teu trabalho. Disseste-me como fazias aquelas casas em miniatura. Fizeste uma filha extraordinária. Então porque é que há-de ser assim tão difícil de acreditar que tudo o que fazes... incluindo amor... possa ser menos requintado?
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Ian envolve o rosto de Mariah com as mãos, deslizando sem esforço de novo para entre as suas pernas.
- Não és perfeita. Tens uma sarda aqui - aponta-lhe para a clavícula. - Consegues ser absolutamente teimosa. E as tuas ancas são...
- Eu tive um bebé! Ian ri.
- Eu sei. Estou só a tentar mostrar-te que se quiseres ser exaustiva em relação à perfeição, nenhum de nós cumpriria os padrões. Muito menos eu - afaga-lhe o cabelo. - O Colin é um idiota. E desta vez é mesmo isto que quero dizer: Graças a Deus.
Mariah sorri e aconchega-se mais a ele no ninho de cobertores que fizeram em cima do tapete.
- Sabes qual é a palavra mais bonita na nossa língua?
- Deixa-me pensar um momento - Ian franze a testa, concentrando-se. - Melífluo.
Mariah abana a cabeça.
- Uxório9 - diz ela numa voz abafada. - Excessivamente apaixonado pela sua mulher.
Em toda a sua vida, Ian não se lembra de ter esta sensação de paz, precisamente ali, naquele chalé horrível no Kansas. Sabe que é um alívio temporário. As suas tréguas. Amanhã, terá de dizer a Mariah que esteve a mentir desde o início, que tinha cultivado a simpatia dela desde o momento em que saíram do avião apenas para poder apanhar Faith a dar um passo em falso. Amanhã, terá de lhe dizer que gravou intencionalmente o encontro desastroso de Faith com Michael, apesar de já não possuir a cassete. Amanhã, terá de decidir o que irá revelar ao seu produtor.
Amanhã, virá em breve para que ela o odeie.
- Em que estás a pensar - pergunta ela, bocejando.
- Acho que não temos oportunidade de escolher por quem nos apaixonamos - sussurra Ian. - Acho que acontece, e é tudo.
Mas a respiração de Mariah é uniforme e regular, e Ian apercebe-se de que ela já adormeceu. Delicia-se com o peso do corpo dela a fazer-lhe o braço dormente e a aquecer-lhe a pele, e passados momentos - pela primeira vez em anos - Ian cai num sono profundo e descansado.
9 Na versão original em inglês, uxorious que significa excessivamente apaixonado pela sua mulher, embora em português, o significado de uxório seja apenas relativo à esposa. (N. da T.)
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Pouco passa das cinco da manhã quando Ian se afasta de Mariah. Tapa-a com um cobertor, sem ter a certeza se ela costuma ou não dormir nua, e não desejando que Faith chegasse ali e a encontrasse exposta daquela maneira. Veste-se depressa e escreve um bilhete rápido a Mariah a dizer quando regressará, aonde vai e nada de importante.
Dirige-se para Lockwood. Não sabe por que razão volta de novo. Obviamente, se o irmão ficou perturbado com a presença de Mariah e Faith interrompendo as disposições habituais, então uma visita às seis da manhã não irá correr bem. Só que ficou tudo tão inacabado. O Michael a gritar, e Ian a sair de repente... Não deixar passar uma semana antes de voltar a vê-lo. Se Michael estiver a dormir, Ian pode limitar-se a espreitar, para se certificar de que ele está bem, e seguir o seu caminho.
Os funcionários dão espaço para que Ian se dirija para o quarto do irmão e abra a porta. Michael está a ressonar ligeiramente, com o rosto tranquilo, o grande corpo deitado debaixo dos cobertores.
- Olá. amigo - sussurra Ian, e depois hesita antes de tocar nos cabelos do irmão.
Os olhos de Michael abrem-se num sobressalto.
- Ian?
- É verdade - retira rapidamente a mão e olha para o relógio em cima da porta, certo de que Michael está prestes a começar a gritar, mas em vez disso, o irmão boceja e espreguiça-se.
- Porque é que estás aqui tão cedo? - diz Michael. Ian olha para ele, pestanejando. - Então, não tens sítio melhor para onde ir?
O irmão, que não fala sobre nada a não ser cartas nos últimos três anos, está a gozar com ele. Ian semicerra os olhos, vislumbrando a centelha do entendimento, da ligação, nos olhos do irmão.
- Meu Deus, Ian. E dizem que tu és o mais inteligente Michael abre os braços, um convite.
- Michael - diz Ian numa voz abafada, abraçando o irmão gémeo. Quando a mão de Michael lhe dá umas pancadinhas desajeitadas nas costas, fica sem palavras.
Recuperando o controlo, afasta-se para conversar - conversar a sério! - com o irmão, mas vê que Michael está distante. Ian observa-o tirar o baralho de cartas de cima da mesa-de-cabeceira.
- Quatro de ouros. Sete de ouros. O Ian vem às três e trinta na terça-feira. Não na segunda-feira quarta-feira quinta-feira...
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Estupefacto, Ian afasta-se da cama. Sai do quarto de Michael antes que o acesso atinja plena força, certo de ter imaginado todo aquele encontro surreal, de que o irmão na verdade esteve a dormir o tempo todo. com um suspiro, Ian mete a mão para tirar as chaves do carro, e tira algo inesperado do bolso de dentro do casaco o valete de copas, colocado ali minutos antes por alguém que se encontrava suficientemente perto para lhe tocar.
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Nove
Os espíritos, quando querem Podem assumir um dos sexos, ou ambos
John Milton, Paraíso Perdido
Da primeira vez que Colin me beijou, eu era uma aluna universitária do terceiro ano, sentada num ginásio vazio, a conjugar o verbo vouloir.
Querer - disse eu, um teste, e tentei concentrar-me na superfície plana e rígida das bancadas por baixo de mim, e não na luz que se reflectia no rosto de Colin.
Ele era, pura e simplesmente, o rapaz mais bonito que alguma vez vira. Era do Sul, um membro do grupo dos rapazes de boas famílias; eu era uma rapariga judia dos subúrbios. O avô dele tinha feito uma doação ao departamento de História; eu estava na faculdade por causa de uma bolsa de estudo. Tinha ficado a saber o nome dele na lista de nomes dos jogos de futebol americano ao sábado: COLIN WHITE, DEFESA 1,80 m, 84 kg, CIDADE: VIENNA,VA. Enfrentei o frio e a minha própria ignorância relativamente ao futebol americano para o ver percorrer o campo intensamente verde como a agulha de uma bordadeira experimentada.
Mas para mim ele era apenas um devaneio; os nossos mundos eram tão distantes que encontrar pontos comuns parecia ser não só improvável, mas ridículo. Mas quando o treinador da equipa telefonou para o Serviço de Explicações dos Estudantes a pedir alguém para ajudar o Colin a passar a francês, eu açambarquei o trabalho. E depois passei três dias a arranjar coragem para telefonar e marcar um horário para as explicações.
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O Colin revelou-se irrepreensivelmente educado, puxando sempre a cadeira para eu me sentar e segurando as portas. Também era o pior aluno de francês que alguma vez conhecera. Arruinava a melodia daquela língua com o seu sotaque da Virgínia e tropeçava nas formas mais simples da gramática. Não estava a servir-lhe para nada, embora não me importasse. Isso significava que tinha de continuar.
- Vouloir - dissera naquele dia. - É irregular. Colin abanou a cabeça.
- Não consigo. Não consigo dizer como tu dizes.
Foi uma das coisas mais bonitas que alguma vez alguém me disse. Embora me sentisse completamente deslocada no contexto desportivo ou social de Colin, aqui estava no meu elemento.
-Je veux - suspirei. - Eu quero - apontei para o livro, para lhe mostrar.
A mão dele pousou em cima da minha, e eu fiquei completamente imóvel. Receando olhá-lo nos olhos, encontrei algo fascinante na página do livro de estudo. Mas não consegui evitar sentir o calor do seu corpo quando se aproximou, ouvir o barulho das calças de ganga, ao esticar as pernas, aprisionando-me. E então só conseguia ver o seu rosto.
-Je veux - murmurou ele.
A boca dele era mais macia do que eu sonhei, e em seguida afastou-se, à espera para ver o que eu faria.
Fiquei a olhar para ele o tempo suficiente para me aperceber de que o invencível Colin White, o Grande Defesa, estava nervoso. O meu coração batia como timbales, tão alto nos meus ouvidos que por um momento, não ouvi o som distante de assobios, de alguém a bater palmas.
Levantei-me e saí do ginásio a correr.
27 de Outubro de 1999
Na noite a seguir a Ian e eu termos feito amor, sonhei que íamos casar. Uso o vestido do meu casamento com o Colin e levo um bouquet de flores silvestres. Entro sozinha na igreja e sorrio para Ian, e depois viramo-nos ambos para a pessoa que vai realizar a cerimónia. Por alguma razão, estou à espera que seja o rabi Solomon, mas quando abro os olhos, estou em frente a Jesus na cruz.
A Faith está aninhada ao meu lado.
- Porque é que estás nua? - pergunta ela. - E porque é que dormiste aqui?
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Num sobressalto, olho em volta na sala, à procura de Ian. Quando percebo que ele não está, surgem todas as minhas dúvidas: ele está habituado a encontros de uma noite. Ganha a vida a seduzir pessoas de uma forma ou de outra. Eu sou uma dessas pessoas, por várias razões. Lembro-me da nossa discussão sobre tréguas; será que a noite passada foi uma maneira de dizer que terminaram?
- Mãe! Mãe! - lamenta-se Faith, puxando-me os cabelos.
- Então! - esfrego o couro cabeludo e tento concentrar-me nela. - Tive calor, por isso tirei a minha camisa de noite. E tu estavas a ressonar.
Faith parece aceitar esta explicação.
- Quero o meu pequeno-almoço - anuncia ela.
- Veste-te e vamos arranjar alguma coisa para comer.
Sem a Faith por perto, ocorrem-me mil pensamentos, nenhum deles com um final feliz. Não sou suficientemente sofisticada para uma pessoa como o Ian. Ele foi embora porque não consegue encarar-me. Voltou para o New Hampshire, e vai contar a toda a gente tudo aquilo que ficou a saber sobre a Faith, desde o número dos sapatos que calça à sua experiência desajeitada com Michael. Nem sequer se lembra do que aconteceu ontem à noite. Fecho os olhos, repugnada. Já vivi esta história. Já me apaixonei por um homem que a minha mente elevou a tais proporções míticas que podia olhar directamente para ele sem o ver com clareza.
- Não queria que isso acontecesse - disse-me o Colin há anos, depois do nosso primeiro beijo. Admitiu que dois dos jogadores laterais tinham apostado vinte dólares em como ele não seria capaz de me seduzir antes do fim daquela primeira sessão de explicações. Depois abanou a cabeça. - Não, retiro o que disse. Eu queria beijar-te. De início, pelo dinheiro, mas depois quando aconteceu, deixou de ser por causa disso. Gostava muito - disse ele -, se saísses comigo uma vez.
Fomos ao cinema três noites depois. E depois a outro cinema. E jantar fora. E, pouco depois, por muito improvável que parecesse, quando o Colin atravessava o campus, eu estava enfiada debaixo do seu braço. Para uma pessoa pequena, escanzelada e intelectual, uma pessoa que nunca se tinha movimentado nos círculos populares, era uma sensação estonteante. Fingia não ouvir as chefes da claque soltar risinhos abafados, companheiros de equipa perguntaremlhe quando é que ele tinha começado a dormir com rapazinhos.
O Colin gostava de mim, dizia ele, porque eu era amorosa e era capaz de falar sobre quase tudo com conhecimento e convicção
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- ao contrário da maior parte das debutantes sulistas que sempre tinham desfilado à sua frente. Mas, apesar disso, o Colin estava habituado a esse tipo de rapariga. E, fosse inconsciente ou intencionalmente, transformou-me numa delas aos poucos - trazendo-me fitas para o cabelo, para os manter afastados do rosto, iniciando-me nos bloody marys aos domingos de manhã, e até comprando-me um colar barato de pérolas falsas, para usar com tudo, desde as camisolas de lã Izod que eu tirava da sua gaveta aos meus próprios vestidos de bombazina. Fazia tudo o que ele me pedia para fazer, e mais, determinada a ser tão boa aluna em aprender a ser uma WASP10 como tinha sido em qualquer disciplina académica. Nunca me ocorreu que o Colin estivesse interessado na pessoa em que poderia transformar-me, em vez de naquela que eu já era. O que na altura me impressionou, foi o simples facto de ele estar interessado. Na noite do Baile de Gala de Inverno vesti um vestido preto simples e enfiei o meu colar de pérolas e até usei um sutiã especial que fazia parecer que tinha alguma coisa para sustentar, íamos à associação de estudantes do Colin, e eu estava determinada a obter aprovação. Mas quinze minutos antes da hora a que o Colin devia ir buscar-me, telefonou.
- Estou doente. Passei esta última hora a vomitar.
- vou já para aí - disse eu.
- Não venhas. Só quero dormir um bocado - hesitou e depois disse -, Mariah, lamento.
Eu não lamentava. Não estava confiante por ir a um baile na associação de estudantes, mas sabia tratar de uma pessoa doente. Vesti de novo as minhas calças de ganga desbotadas e fui à cidade, onde comprei canja de galinha na mercearia, flores e um livro de palavras-cruzadas. Em seguida dirigi-me para o dormitório do Colin.
Que estava vazio.
Deixei a canja de galinha ainda a fumegar na soleira da porta e vagueei pelo campus sem rumo. Não estaria já à espera daquilo, bem lá no fundo? Não tinha dito para mim mesma que aquilo ia acontecer? A neve começou a acumular-se nos ombros do meu casaco enquanto me dirigia à Zona das Associações de Estudantes. As festas eram barulhentas, com vapor, gargalhadas e exalações de álcool a transbordar das janelas abertas. Fui até às traseiras da associação de estudantes do Colin, subi para uma grade de garrafas de leite e olhei lá para dentro.
10 Wbite anglo-saxon protestam, ou seja, branca, anglo-saxónica, protestante. (N. da T.)
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Um grupo de jogadores de futebol americano e os seus pares formavam um nó górdio - com os smokings pretos entrelaçados com manchas de cetim colorido no colo ou em volta do pescoço. O Colin estava virado para mim, a rir de uma piada que eu não tinha ouvido. Tinha o braço em volta da cintura de uma linda ruiva. Fiquei tanto tempo a olhar que demorei um momento a aperceber-me de que o Colin também estava a olhar para mim.
Foi atrás de mim atravessando o campus até chegar ao meu quarto.
- Mariah! Tens de me deixar explicar! Abri a porta bruscamente.
- Estavas doente - disse eu.
- E estava! Juro! - baixou o tom da voz que ficou suave. Quando acordei, tentei telefonar-te, mas não estavas aqui. Os rapazes apareceram e convenceram-me a ir à Casa por um bocado. A Annette... bem, ela não significa nada. Era uma pessoa que estava por ali.
E eu não seria nada? E eu seria alguém que não estava por ali?
Os dedos do Colin envolveram-me o rosto.
- Mas eu deixei-a para estar aqui contigo - disse ele, lendo os meus pensamentos. A respiração pousou-me na boca, uma mistura curiosa de mentol e whisky escocês, e lembrei-me de como o Colin tinha descrito que domava os cavalos com que tinha trabalhado na Virgínia: soprando-lhes para as narinas, para que não receassem o seu cheiro.
- Colin - sussurrei -, porquê eu?
- Porque és diferente deles. És mais inteligente, e melhor, e, não sei, estou sempre a pensar que talvez se estiver contigo, isso desapareça e eu também fique diferente.
Era um conceito surpreendente - que de alguma forma o Colin tivesse uma explicação nova para que eu tivesse de permanecer sempre à margem: não era por não ser suficientemente boa para os outros, mas porque estava à espera que os outros se reunissem à minha volta. Inclinei-me para a frente e beijei-o.
Mais tarde, quando estávamos despidos e o Colin se erguia por cima de mim como uma grande ave a tapar o sol, perguntou:
- Tens a certeza de que queres fazer isto?
Não só tinha a certeza, como tinha estado toda a minha vida à espera desta primeira vez com um homem que me conhecesse melhor do que eu me conhecia a mim própria. Acenei com a cabeça e aproximei-me dele, à espera de algo mágico.
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Quando Ian entra no chalé, ambos ficamos imóveis. com grande precisão, pouso a minha colher ao lado da taça de cereais; ele fecha a porta atrás de si metodicamente.
"Desta vez não vou deixar que aconteça", digo para mim própria. Cruzo as mãos no colo para que Ian não veja que estão a tremer. Ele não é o Colin, mas sinto-me tão impotente agora como naquela altura.
De repente, apercebo-me de que não teria conseguido afastar Colin há anos. Apercebo-me da razão pela qual estou a envolver-me com um homem que está destinado a fazer-me sofrer. Segundo a minha experiência, apaixonar-me tem pouco a ver com desejar alguém. Para mim é muito mais aliciante que alguém me deseje.
Sem dizer uma palavra, Ian cruza-se comigo a meio da cozinha e abraça-me. No seu abraço, estou a andar à roda. Ele não me beija, nem me afaga, nem faz nada para além de me abraçar, até que cedo ao impulso de fechar os olhos e deixá-lo conduzir-me.
Ian entrega o seu telemóvel a Mariah e observa-a entrar no quarto para ter privacidade enquanto telefona à mãe. Não pode censurá-la. Por muito maravilhoso que seja tocar-lhe, ainda são estranhos um para o outro. Não lhe falou da sua visita matinal a Michael; ela prefere estar sozinha enquanto fala com Millie.
- Então - diz ele a Faith num tom amigável - que tal jogarmos à bisca?
Ela olha por cima do seu livro de colorir, desconfiada. Bem, ele também compreende. Da última vez que esteve com ela - em Lockwood - praticamente tinha-lhe rosnado. Sorri um pouco mais, determinado em ser encantador, nem que fosse apenas por Mariah.
De repente, Mariah está à porta da sala, com o rosto pálido.
- Temos de ir para casa - diz ela.
Boston, Massachusetts
No Vaticano há um funcionário cuja única responsabilidade é encontrar inconsistências em cada caso proposto de santidade. Examina cada acto, cada texto escrito, cada palavra dita pelo alegado virtuoso num esforço de encontrar algum deslize, alguma praga, algum lapso de fé que possa impedir a canonização. Por exemplo, pode desenterrar o facto de a Madre Teresa de Calcutá ter
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faltado às vésperas no dia 9 de Julho de 1947. Ou que ela invocou o nome do Senhor em vão enquanto delirava com febre. A Igreja Católica até tem um certo nome para este cargo: Promotor da Fé, ou de forma mais irreverente, Advogado do Diabo.
É um cargo que o padre Rampini acha que desempenharia na perfeição.
Não vive em Roma, contudo. E não é de modo nenhum suficientemente importante para ser escolhido para um cargo tão fulcral, visto que lecciona no seminário em Boston há apenas dezasseis anos. Mesmo assim, o padre Rampini já teve a sua dose de falsamente venerados. Sendo um dos teólogos mais conceituados do Nordeste, foi chamado para dar a sua opinião em diversas ocasiões em que videntes começaram a debitar alegações. Dos quarenta e seis casos que examinou, nem um só recebeu um parecer favorável do padre Rampini ao bispo. E a maioria limitava-se a tagarelar sobre o habitual: imagens cintilantes de Maria, um crucifixo a aparecer na névoa por cima de um vale, Jesus a dizer às pessoas que a hora do ajuste de contas estava a chegar.
A ideia de um Deus feminino não parece bem ao padre Rampini.
Desliga o motor do seu Honda e abre a pasta. O panfleto cor-de-rosa da Sociedade de Deus Mãe está à superfície. O padre Rampini mal consegue olhar para ele. Para alguém como ele - um sacerdote que lecciona no seminário, um homem que dedicou a sua vida à teologia - reconsiderar a procissão de pessoas na Santíssima Trindade é uma coisa. Uma menina de sete anos - e ainda por cima judia! - começar a proclamar que Deus é uma mãe, é outra coisa completamente diferente.
Dizem que é uma curandeira. Bem, isso ele até era capaz de aceitar, mediante provas adequadas. E que tem estigmas - novamente, gostaria de os ver com os seus próprios olhos. Mas dizer que Deus a visita sob uma forma visivelmente feminina... decerto é uma heresia.
O padre Rampini verifica a sua imagem no espelho retrovisor antes de abrir a porta do carro. Enfia a pasta de cabedal debaixo do braço e sai do carro, alisando a carcela da sua camisa preta e ajeitando o colarinho branco.
A porta para a habitação do padre abre-se, e o padre MacReady surge à entrada. Pelo mais breve momento, avaliam-se mutuamente: padre de paróquia a padre de seminário, confessor a investigador, irlandês a italiano. O padre MacReady avança, obstruindo a porta, impossibilitando a entrada ao padre visitante.
Recua, igualmente rápido.
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- Padre - acena com a cabeça. - Espero que tenha feito boa viagem?
- Um pouco de chuva perto de Brattleboro - diz Paul, e o mútuo antagonismo desfaz-se em gentileza profissional como fumo.
- Entre - diz o padre MacReady, olhando em volta. - Posso levar-lhe o saco?
- Deixe estar. Imagino que não vou ficar aqui.
Isto é uma novidade para o padre MacReady. Embora não esteja propriamente entusiasmado por partilhar a sua casa com um possidónio pomposo com obra publicada de St. Joseph, sabe que isso irá dar uma má imagem de si próprio, por não ser suficientemente hospitaleiro.
- Não me incomoda nada.
- Não, claro que não. Só que acho que vou conseguir resolver este caso numa questão de horas.
Ao ouvir isto, o padre MacReady ri.
- Acha? Talvez seja melhor entrar.
No voo de regresso de Kansas City, Ian senta-se longe de Faith e de mim, visto não querermos chamar a atenção ao sermos vistos juntos. Quando já estávamos no avião há uma hora, enquanto Faith estava ocupada a ver o filme, esgueiro-me hesitantemente para a cabina escurecida da primeira classe e sento-me ao lado dele. Ele estende a mão por cima da divisória entre os assentos e aperta a minha.
-Olá.
-Olá.
- Como estão as coisas lá atrás?
- Bem. Comemos cereais ao pequeno-almoço. E tu?
- Waffles.
- Oh - respondo educadamente, a pensar que este não é o tipo de conversa que duas pessoas que tinham feito amor de forma tão mágica na noite anterior deveriam estar a ter.
- Pensaste na audiência?
Contei tudo o que a minha mãe me disse ao lan: que a Joan Standish tinha tomado conhecimento de que o Colin me vai processar para obter a custódia da Faith.
- O que posso eu fazer? Ele vai dizer que a Faith não devia ter de viver com centenas de pessoas a empurrarem-se para lhe tirar uma fotografia e fazer-lhe perguntas de cada vez que sai de casa. Quem é que vai discordar disso?
- Sabes, farei tudo o que puder para ajudar - diz Ian.
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Mas eu não tenho certeza disso, não tenho mesmo. Agora que vamos a caminho de casa, as diferenças entre nós evidenciaram-se, um campo minado que torna impossível recordar a paisagem perfeita da noite anterior. Quando saírmos deste avião, por necessidade, o Ian e eu estaremos em lados muito diferentes de um assunto controverso.
Ficamos ambos sentados em silêncio, a meditar. Então Ian agarra-me na mão, virando-a na sua antes de começar a falar.
- Tenho de contar-te uma coisa, Mariah. Queria que a Faith falhasse. Achei que estavas a fazê-la encenar este... número de profeta para chamar a atenção. Agi deliberadamente de forma a conquistar a tua simpatia, para que a levasses até ao Michael.
-Já me disseste isto no outro...
- Ouve-me, está bem? Fiz e disse tudo aquilo que podia para vos levar até lá, incluindo quando te disse que estava a começar a acreditar na Faith. Isso era mentira, apenas mais uma coisa para garantir que fossem a Lockwood. Nessa noite tinha um gravador comigo. Gravei-te a dizer que a Faith tentaria usar os seus poderes curativos. E quando chegámos a Lockwood, gravei todo aquele maldito fiasco. Ia mostrar como vocês as duas actuavam.
Estupefacta, tenho de forçar os meus lábios a moverem-se.
- Então, aí tens a tua prova.
- Não. Depois de o Michael ter tido aquele acesso e eu me ter apercebido de que a Faith não tinha conseguido fazer um milagre, fiquei furioso. Tinha a minha história e isso não fazia diferença nenhuma porque o Michael ainda estava a balançar-se para trás e para a frente. Menti-te, Mariah, mas também menti a mim próprio. Não queria que a Faith fosse uma fraude, não no que dizia respeito ao meu irmão - olha para mim. - Atirei o gravador para o lago no jardim em Lockwood.
Olho para o colo, com uma pergunta às voltas na minha cabeça. Tenho de saber, tenho.
- Ontem à noite... Também me mentiste? Ian levanta-me o queixo.
- Não. Se não acreditares em mais nada do que te disse, acredita nisso.
Expiro o ar que estava a suster e afasto-me dele.
- Só vou pedir-te um favor: se pudesses suspender o teu programa até à audiência preliminar...
- Não direi que a Faith não foi capaz de fazer um milagre.
A voz dele é tão suave que me apercebo do que descurei: qualquer referência a Faith vai conduzir ao próprio irmão de Ian.
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- Não queres que ninguém saiba do Michael.
- Não se trata disso. É porque a Faith de facto fez um milagre. Sento-me para trás, atónita.
- Não fez nada.. Eu estava lá. Vi-te sair da sala.
- Quando lá regressei esta manhã, o Michael e eu tivemos uma conversa a sério. Ele fez troça de mim. E aproximou-se a abraçou-me.
- Oh, Ian.
- Não durou muito tempo, e de início pensei que tinha apenas sonhado. Mas não sonhei. Tive mesmo aquele minuto com ele, Mariah. Um minuto em vinte e cinco anos - sorri tristemente. - Um grande minuto - a sua expressão desanuvia-se ao voltar-se para mim. - O autismo... não é assim. Não se abre e fecha como uma torneira. Mesmo nos dias bons do Michael, ele sempre se mostrou... alheado. Mas esta manhã ele foi o irmão que eu sempre quis ter: e isso está para além do poder da ciência. Não posso dizer-te que acredito em Deus. Mas, Mariah... acredito de facto que a Faith tem a capacidade de curar.
A minha cabeça fervilha. Imagino o Ian a dirigir-se para o relvado do jardim e a convocar uma conferência de imprensa. Imagino os jornalistas a beberem as suas palavras. Imagino o furor que se seguirá, quando Ian, mais céptico do que São Tomé, anunciar que encontrou um caso genuíno
Nunca mais deixarão a Faith em paz.
- Mente - digo eu rapidamente. - Diz a toda a gente que a Faith não foi capaz de o fazer.
- Não minto. Esse é o propósito do programa. Por esta altura, estou à beira das lágrimas.
- Tens de mentir. Tens.
O Ian agarra-me na mão e leva-a aos lábios, beijando cada dedo.
- Acalma-te. Nós vamos arranjar uma maneira.
- Nós? - abano a cabeça. - Ian, não existe um "nós". És tu e o teu programa, e sou eu e a custódia. Se um de nós ganhar, o outro perde.
Põe a minha cabeça no seu ombro, a sua voz a tranquilizar-me.
- Chiu. Vamos fingir que já se passaram seis meses. E eu já sei o nome do liceu que frequentaste, e o teu anão preferido da Disney e como gostas de beber o teu café.
Sorrio hesitantemente.
- E ficamos sentados a ver vídeos aos sábados à noite.
- E" eu tomo o pequeno-almoço de boxers. E tu deixas-me ver-te sem maquilhagem.
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- Já viste.
- Estás a ver? - Ian roça os lábios na minha testa, apagando a preocupação. -Já estamos quase lá.
No. Haverhill, New Hampshire
A. Warren Rothbottam gosta dos seus musicais. Gosta tanto deles que, na verdade, pagou pessoalmente para que o seu gabinete de juiz no Tribunal Superior do condado de Grafton fosse equipado com uma aparelhagem estéreo com a tecnologia mais avançada e colunas Bose ardilosamente escondidas, o que fazia parecer que Carol Channing estivesse a cantar em plenos pulmões por trás da fileira de livros de Direito Processual do New Hampshire. No entanto, a música é demasiado grande para a sala e, por vezes, transborda para o corredor ou através das paredes. A maioria das pessoas não se importa. Pelo menos, confere uma certa personalidade ao tribunal, algo que o edifício baixo e incaracterístico no meio de nenhures não consegue ter por si próprio.
Hoje, antes de se sentar à secretária, o juiz Rothbottam escolheu Evita. Fecha os olhos e agita as mãos no ar, cantarolando suficientemente alto para que o ouçam no corredor.
- Meritíssimo.
A tímida voz interrompe a sua orquestração, e Rothbottam franze o sobrolho. Carregando num botão do seu intercomunicador, a música desvanece-se.
- O que foi, McCarthy? É bom que seja importante.
O oficial de justiça do tribunal está a tremer. Toda a gente sabe que quando o juiz Rothbottam põe uma versão original a tocar, não deve ser incomodado. Algo relacionado com a santidade da música. Mas por outro lado, um pedido de emergência é um pedido de emergência. E Malcolm Metz é um advogado demasiado conhecido para ser afastado por um oficial de justiça do condado.
- Lamento, Meritíssimo, a sério. É que o Dr. Metz telefonou pela terceira vez por causa do seu pedido de emergência.
- Sabe o que pode dizer-lhe para fazer com o seu pedido de emergência?
McCarthy engole em seco.
- Posso adivinhar, Meritíssimo. Isso seria uma recusa, então? Franzindo o sobrolho, Rothbottam estende a mão debaixo da
secretária e a voz gloriosa de Patti LuPone é interrompida a meio de uma sétima oitava. O juiz não conhece Malcolm Metz pessoalmente,
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mas era preciso ser cego, surdo e idiota para se movimentar nos círculos do sistema legal do New Hampshire sem nunca ter ouvido falar dele. Um manda-chuva muito bem pago de uma firma de advogados prestigiada de Manchester, Metz conseguiu acumular caso após caso recebendo bastante cobertura mediática: a batalha pela custódia de Baby J que resultou numa guerra intensa nos tribunais entre uma mãe barriga de aluguer e uma família adoptiva, o processo por assédio sexual ganho por uma secretária contra o seu patrão senador, o presente fiasco que envolveu a separação entre um patrão da Máfia e a sua mulher superficial. Rothbottam não se interessa por grandes audiências: deixa isso para o verdadeiro teatro. Se a sua sala de audiências tiver de ser violada por algum idiota como o Metz, o advogado reger-se-á sem dúvida pelas regras do juiz.
- Espere um segundo - diz Rothbottam ao oficial de justiça. Folheia o pedido para alterar a custódia que Metz entregou naquela manhã e a nota adjacente requerendo uma audiência ex parte11. Segundo Metz, a criança encontra-se em grande perigo e precisa de ser afastada da influência da mãe imediatamente; o pedido ex parte é necessário antes que a arguida tenha sequer conhecimento do pedido para alterar a custódia.
Mesmo o tipo de tretas dramáticas que ele esperava de Malcolm Metz.
Rothbottam examina a nota. White contra White. Tinha acabado de assistir ao processo de divórcio há um mês e nessa altura não tinha surgido nenhum problema relativamente à custódia. Que raio se passa?
Só percebe que falou em voz alta quando ouve McCarthy pelo intercomunicador.
- Bem, Meritíssimo, é a tal menina. Aquela que tem aparecido nas notícias.
- Quem é?
- Aquela de que o pai quer a custódia, a Faith White.
A menina de sete anos que anda a ressuscitar os mortos, e a falar com Deus e a exibir estigmas. Rothbottam geme. Não é de surpreender que o Metz se digne a vir a New Canaan, no New Hampshire.
- Sabe uma coisa, não conheço o Metz. Nem sequer quero conhecê-lo, embora me pareça que não vá ter essa sorte. Mas conheço a Joan Standish, que representou a mãe no divórcio. Telefone ao Metz e diga-lhe para estar aqui às três horas. vou ouvir
11 Unilateral. (N. da T.)
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os seus argumentos sobre o facto de a criança estar em perigo, e marcaremos uma data para a audiência relativa à custódia.
- Está bem, Meritíssimo - o oficial de justiça desliga o intercomunicador depois de aceitar procurar os últimos artigos dos jornais sobre Faith White. Rothbottam fica sentado à secretária por um momento e, em seguida, dirige-se às prateleiras da estante e retira uma outra gravação original das inúmeras pilhas de discos.
A música de Jesus Cristo Superstar enche o seu gabinete, e Rothbottam sorri. Não faz nenhum mal, absolutamente nenhum, em entrar no espírito do que se avizinha.
Manchester, New Hampsbire
Malcolm Metz movimenta-se com tanta graciosidade na cadeira giratória de cabedal que parece uma versão do século XX de um centauro ao gesticular para os seus três subordinados enquanto termina de contar a anedota.
- Então São Pedro abre os portões do céu e deixa entrar um papa e um advogado. "Entrem", diz-lhes ele. "vou mostrar-vos os vossos novos aposentos" - Metz olha em seu redor. Um advogado experimentado, afinal, é no mínimo um excelente actor. - São Pedro pára em frente de uma enorme penthouse dourada, construída em cima de uma nuvem. Ele leva-os lá para dentro e mostra-lhes as torneiras de ouro nas casas de banho, e os lençóis de seda na cama, e os tapetes caros nos corredores. Depois vira-se para o advogado e diz, "Esta é a tua nova casa." Vai-se embora com o papa, e leva-o para uma cela minúscula com uma pequena cama e uma bacia. "E é aqui", diz ele, "que vais passar a viver a partir de agora"
- Metz adopta um sotaque italiano cantado: - "Ora, espere um segundo!" grita o papa. "Vivi uma vida devota e presidi à Igreja Católica, mas tenho de viver aqui enquanto aquele advogado fica com uma penthouse?" São Pedro abana a cabeça. "Sim", diz ele. "Vês, temos muitos papas aqui. Mas é a primeira vez que temos um advogado!"
A sala de conferências irrompe em gargalhadas - ninguém gosta mais de anedotas de advogados do que os advogados. Mas Metz também tem consciência de que poderia ter lido uma lei absolutamente entediante em voz alta, porque se estivesse à espera que os seus associados a achassem engraçada, estariam a rebolar pelo chão. Ao ouvir o som do intercomunicador, ergue uma mão, e os advogados mais novos ficam em silêncio.
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- Peggy - diz Metz à sua secretária -, passe-o. Observam-no com rostos expectantes.
- Está bem. Sim, compreendo - Metz desliga o telefone e cruza as mãos em cima da mesa envernizada. - Senhores e senhora - diz ele -, o pedido exparte foi recusado.
Volta-se para Hunstead, o seu primeiro associado.
- Telefone ao Colin White. Diga-lhe para vestir um bom fato e encontrar-se comigo no Tribunal do Condado de Grafton às duas e meia da tarde, Lee - diz a um segundo homem -, informe a comunicação social. Quero que saibam que o pai acha que a filha corre perigo.
Os dois associados saem a correr, deixando Metz sozinho com a terceira.
- Lamento, Dr. Metz - diz Elkland. - Um golpe de sorte teria sido bom.
Metz encolhe os ombros, reunindo os seus documentos e ficheiros.
- Na verdade, nunca esperei que o juiz deliberasse a meu favor
- bate ligeiramente nas bordas dos blocos legais para os alinhar. Só apresentei o pedido para que o juiz o recusasse, e tirasse isso da cabeça. Sejamos realistas: nenhum juiz de uma.cidade pequena quer ter um advogado como eu a passear pela sua sala de audiências. Prefiro muito mais que o Rothbottam use este pedido numa competição de força para me mostrar quem manda, em vez de outra coisa intrínseca ao caso.
A associada mostra-se surpreendida.
- Então foi só uma estratégia? A miúda não está em perigo?
- Que raio, quem sabe? Apresentar um pedido ex parte mantém o pai satisfeito. Recusá-lo mantém o juiz satisfeito. E você sabe o que me faz ficar satisfeito?
- Saber que vai ganhar?
Metz dá-lhe pancadinhas no ombro.
- Eu sabia que a tinha contratado por alguma razão.
New Canaan, New Hampshire
- A mãe não vai deixá-lo chegar perto da Faith - diz o padre MacReady, observando o padre visitante movimentar-se no minúsculo quarto de hóspedes da habitação do padre. - Não posso censurá-la.
O padre Rampini volta-se suavemente.
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- Porque não?
- É judia. Não temos o direito de estar ali.
- Ela está a proferir heresias - corrige o padre Rampini. - Se não temos jurisdição sobre a pessoa que faz as alegações, pelo menos podemos controlar o que ela disser que possa iludir os bons católicos - agarra num casaco e pendura-o no roupeiro. - com certeza que discorda de uma aparição feminina?
- Não. A Igreja já acreditou muitas visões de Maria.
- Estamos a falar de Maria? Não. De Deus de vestido, de Deus como mãe - Rampini franze o sobrolho. - Isto não o incomoda?
O padre MacReady desvia o rosto. Fez votos que o comprometem a ajudar os outros para o resto da sua vida, mas isso não faz desaparecer o impulso ocasional de aplicar um golpe. Senta-se à pequena mesa e tamborila com os dedos no tampo, olhando distraidamente para a pilha de livros que o padre Rampini colocou ali e para o calendário de secretária com os dias dos santos assinalados, aberto no dia 7 de Novembro. Santo Albino, lê. Se não está enganado, Santo Albino matou um homem cruel ao respirar-lhe para cima do rosto.
- Talvez Deus apenas pareça diferente para uma criança de sete anos - diz o padre MacReady pensativo.
- Diga isso às crianças de Fátima - diz Rampini. - Três crianças que, ao contrário de Faith White, tiveram a mesma visão de Maria. Não disseram que ela usava calças nem que fumava cachimbo de água. Viram a Virgem como é tradicionalmente descrita.
- Mas nem toda a gente tem visões tradicionais. Santa Bernadette disse que a Virgem lhe falou num dialecto francês.
- A ressonância cultural não é uma parte essencial da visão. A Virgem falou em francês com Bernadette, e depois? Ela continuava a ser demasiado ignorante para perceber o que Maria queria dizer quando se referiu a si própria como a Imaculada Conceição Rampini fecha o seu saco de viagem e enfia-o debaixo da cama. Tudo aquilo que me disse e tudo aquilo que li sugere que isto se trata de um disparate. É uma alucinação, uma alucinação que a menina conseguiu transmitir numa ligeira histeria. Se a Faith White vê realmente Deus, não é possível que Ele aparecesse na forma de mulher. Ou uma aparição é Jesus Cristo, ou não é - encolhe os ombros. - Sinto-me mais inclinado a considerar que as visões são mais satânicas do que divinas.
MacReady passa o dedo pelo tampo da mesa, dispersando uma fina camada de pó.
- Há provas concretas, objectivas.
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- Pois. As ressurreições e as curas. vou contar-lhe um pequeno segredo profissional: li sobre Lourdes, e Guadalupe, e centenas de outros casos, mas em toda a minha vida nunca vi uma pessoa que fizesse mesmo milagres.
Joseph MacReady olha-o nos olhos.
- Para um bom católico, padre, parece-se muito com um fariseu.
Ainda estou meia a dormir quando ouço Ian falar do assento do avião ao lado da Faith.
- Não cheguei a agradecer-te - obrigo as minhas pálpebras a manterem-se entreabertas, e limito-me a ouvir.
A Faith não lhe responde.
- Foste tu, não foste? - insiste Ian. - Deste aqueles minutos ao Michael.
- Eu não fiz nada. Ian abana, a cabeça.
- Não acredito.
- Não acredita em muitas coisas. Ele sorri.
- Chama-me Ian.
- Está bem - ficam a olhar um para o outro. Faith alisa a parte da frente da camisola, e Ian descruza as pernas. - Ian? Pode segurar na mão à minha mãe, se quiser.
Ian acena com a cabeça, com um ar sério.
- Obrigado - hesita por um momento. - Posso segurar na tua? Faith estende a mão devagar, com o penso rápido ao centro.
Ian faz deslizar os dedos em volta dos seus cuidadosamente. Não examina o penso rápido, nem sequer olha duas vezes para os supostos estigmas.
É apenas uma suposição, mas talvez Faith tenha feito um milagre afinal.
Millie Epstein abre a porta de entrada, à espera de ver Mariah e Faith de volta do seu voo, mas em vez disso dá de caras com mais outro homem de camisa preta e colarinho virado ao contrário.
- O que andam a fazer em Roma? A clonar-vos?
O padre Rampini endireita-se em todo o seu metro e oitenta.
- Minha senhora, estou aqui para falar com a Faith White a pedido de Sua Excelência o bispo Andrews de Manchester.
- Quem lhe pediu? - diz Millie. - Não quero parecer mal-educada, mas acho altamente improvável que a minha filha ou a minha neta tivessem telefonado para Sua Alteza...
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- Sua Excelência...
- Como queira - interrompe Millie. - Olhe. Já estiveram cá mais padres do que no desfile do dia de St. Patrick em Nova Iorque, Tenho a certeza de que um deles deve dispor das informações que procura. Passe bem.
Começa a fechar a porta, mas é impedida pelo pé do padre.
- Sr.a...?
- Epstein.
- Sr.a Epstein, está a interferir com o processo da Igreja Católica. Millie fica a olhar para ele durante um momento.
- E o que quer dizer com isso?
Por esta altura o padre Rampini já está a suar. Interroga-se se não deveria ter aceitado a oferta do insuportável padre MacReady para o acompanhar a casa da Faith White. Na altura, a ideia de passar vinte minutos a percorrer estradas secundárias com o padre ridiculamente liberal tinha-lhe parecido uma penitência demasiado pesada para qualquer homem de Deus ter de enfrentar. É claro, não sabia que a entrada era guardada por aquela megera.
- Pronto - diz ele -, porque é que não acabamos com isto de uma vez?
- Desculpe?
- A senhora não gosta de mim, Sr.a Epstein. A senhora não gosta de padres. Já agora diga-me porquê.
- Está a ver? O senhor ouve o meu nome, sabe que sou judia e presume que sou preconceituosa.
O padre Rampini range os dentes.
- As minhas desculpas. A Faith está?
- Não.
- Que surpresa - diz ele secamente. Millie cruza os braços.
- Agora sou mentirosa? A seguir vai deduzir que sou uma espécie de agiota, suponho?
- Tanto quanto eu sou um sósia do Bing Crosby que bebe de mais e seduz acólitos - diz Rampini, tenso. - Ora, posso sempre pedir a colaboração daquele capitão da polícia que está ao fundo da via de acesso.
- Felizmente, já travámos uma guerra para separar a Igreja do Estado - diz Millie. - A minha neta não está em casa, graças a todos vocês.
Rampini sente um músculo contrair-se na base do maxilar. Esta é a avó ressuscitada? E o que quis ela dizer com "todos vocês"? Quem tinha feito a menina ir embora?
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Olha para o seu rosto enérgico e marcado e vê, num movimento dos seus olhos, uma tristeza monumental por as coisas terem chegado àquele ponto. Por um momento, até se sente culpado.
- Sr.a Epstein, talvez se me der algumas orientações eu possa levá-las ao bispo, para podermos encontrar a melhor maneira de examinar a Faith sem a perturbar... nem à senhora.
A mulher assopra.
- Acha que nasci ontem?
- Na realidade, pelo que ouvi, isso não anda assim tão longe da verdade.
- Onde é que está o outro? O padre simpático? - Millie olha em volta, para o jardim, à procura de um sinal do padre MacReady. - A Mariah gosta dele - depois semicerra os olhos. - Andam os dois a fazer o número do polícia bom e do polícia mau?
Agora o padre Rampini já tem uma dor de cabeça. Acha que esta mulher era capaz de ter feito muito boa figura do lado deles, durante a Inquisição.
- Não somos parceiros. Juro por Deus.
- A sério? - diz Millie. - O seu ou o meu?
Foi uma viagem de carro de duas horas desde Boston, mas o aquecimento do carro alugado metalizado não me aqueceu absolutamente nada. Pelo espelho retrovisor, vejo o carro alugado do Ian, um Taurus preto, atrás de mim. Decidimos que seria melhor se chegássemos separados. De outra forma, como poderíamos explicar porque chegávamos a casa juntos?
- Mentiras - digo entre dentes. - Mais e mais mentiras.
- Mãe? - ouço a voz da Faith, ensonada e sonora.
- Fizeste uma boa sesta? - chamo a atenção dela pelo espelho retrovisor e sorrio. - Temos de conversar sobre uma coisa. Quando chegar a casa, vou ter de deixar-te com a avó para ir visitar a advogada.
Faith endireita-se.
- É outra vez por causa do papá?
- De certa forma. Ele quer que tu vivas com ele. E eu quero que tu vivas comigo. Por isso um juiz simpático vai decidir onde deverás ficar.
- Porque é que ninguém quer saber o que eu acho?
- Eu quero - digo.
Mas agora que está sob pressão, a Faith recua.
- Tenho de escolher só um de vocês para sempre?
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- Espero que não, Faith - hesitando, pondero sobre a melhor forma de formular a próxima frase. - Visto que muita gente vai estar a ver-nos quando o juiz deliberar, talvez fosse melhor que tu... dissesses a Deus... que precisavas de A manter em segredo durante um bocado.
- Como quando estávamos no chalé.
"Não é bem isso", penso. A Faith falhou miseravelmente a guardar o seu segredo.
- Deus diz que não interessa a ninguém.
Mas não é verdade. É um negócio, um negócio florescente de doações, e salvação, e até mesmo de ateísmo.
- Faz isto por mim, Faith - digo, cansada. - Por favor.
Ela fica calada por um momento. E então sinto a sua mão a deslizar pela estreita fenda do apoio da cabeça, a tocar-me nos cabelos, para massajar os músculos do meu pescoço.
Ian chega a casa meia hora antes de Mariah, tendo continuado a conduzir quando ela parou no McDonawds para comprar alguma coisa para a Faith comer. Vira para a rua, estupefacto ao ver como a multidão cresceu. Todas as redes de televisão têm furgonetas ali, há um grupo com uma faixa, e a seita não abandonou o seu posto junto à caixa do correio. E isso sem sequer considerar o mar de rostos ávidos que vieram para serem curados, ou tocados, ou abençoados.
Junta-se ao seu pequeno grupo da produção sem chamar a atenção, simplesmente por haver tanta gente. James não está em lado nenhum. Os seus assistentes fazem fila atrás dele, mas enxota-os ao chegar à caravana.
- Agora não. Deixem-me recuperar o fôlego.
Mas lá dentro, limita-se a andar de um lado para o outro. Fica à espera até o burburinho lá de fora chegar até ele como uma corrente de ar, e depois sai da caravana e observa, à distância, Faith e Mariah sair do carro.
Ela está estonteada, consegue ver dali. Leva Faith para dentro de casa, protegendo-a dos olhares, embora seja impossível bloquear o rugido da multidão que estava à espera da criança há uma semana. Mas logo que entrega a filha a Millie, uma mulher desconhecida - a advogada? - volta a conduzir Mariah para a via de acesso, entrando dentro de um Jeep.
Ian abre caminho para a frente da multidão, um mar de gente que toca nos guarda-lamas e nas portas do Jeep enquanto este abranda até parar ao fundo da via de acesso. A polícia afasta-os do
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caminho, e o SUV avança a custo. Ian fica a olhar para a janela do lugar do passageiro, desejando que Mariah olhasse para cima. Quando o Jeep sai da via de acesso, olha. Ele sorri-lhe para lhe dar coragem, e ela estica o pescoço enquanto o carro continua a andar, vira-se no assento, toca no vidro com os dedos como se fosse tocar-lhe.
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Livro II
O Novo Testamento
Dez
Quando o amor começa a adoecer e a decair, Precisa de uma cerimónia obrigatória. Não há truques na fé pura e simples.
William Shakespeare Júlio César
27 de Outubro de 1999
Mariah está de pé ao lado de Joan no meio do gabinete do juiz, aterrorizada por poder dar um passo em falso. Está penosamente consciente de que veste leggings e uma camisola demasiado larga, enquanto Joan veste um fato verde-azeitona e tanto o Colin como o seu advogado vestem Armani. Está de pé, direita como uma vara, como se a postura pudesse contar no que diz respeito a decidir quem ficará com a custódia de Faith.
- Mariah - sussurra Colin nas costas do advogado, mas o homem manda-o calar.
O juiz tem estado diligentemente a escrever na sua secretária, e embora já passe das três horas, nem Joan nem o outro advogado fizeram alguma coisa para lhe lembrar de que a audiência devia começar. Mariah apercebe-se de que o juiz tem auscultadores. Muito pequenos, como os que os apresentadores dos noticiários usam - daqueles que serpenteiam pela orelha como aparelhos auditivos. Põe a mão de baixo da secretária, carrega em algum botão, e em seguida retira os minúsculos auscultadores dos ouvidos.
- Muito bem - diz ele, virando-se para o advogado de Colin, que Mariah pensa ter visto no noticiário regional. - Dr. Metz, o que tem a dizer?
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O homem alisa a gravata com um cuidado felino que faz lembrar a Mariah um furão.
- É um caso de vida ou morte, Meritíssimo. Mariah White está a pôr a filha do meu cliente em risco.
Mariah sente os olhares de todos fixarem-se nela. Um rubor sobe-lhe pelo pescoço.
- Meritíssimo, o meu cliente só recentemente teve conhecimento do espectáculo público em que a vida da filha se tornou, e das constantes ameaças à sua integridade física. Agora encontra-se em posição de lhe proporcionar a segurança de que ela necessita, e acha que sair da casa da mãe é um assunto da máxima importância. É por isso que achámos necessária uma audiência ex pane, e é por isso que nos sentimos confiantes de que deliberará que o meu cliente deverá ter a custódia completa. Mas em prol da segurança, queremos que ela seja retirada de casa imediatamente, antes que ocorram mais danos irreparáveis.
O juiz Rothbottam franze os lábios.
- Há seis semanas o seu cliente cedeu legalmente a custódia à ex-mulher, o que me leva a crer que não a considerou uma ameaça ao bem-estar da criança nessa altura. Tanto quanto percebo, a única coisa que se alterou foi alguma actividade da-imprensa no relvado em frente a casa. Como é que isso pode implicar risco de vida?
- Para além do stress psicológico por ter de desfilar em frente aos meios de comunicação social todos os dias, a filha do meu cliente foi hospitalizada por ter sofrido graves lesões traumáticas das mãos.
- Lesões traumáticas? - profere Joan. - Meritíssimo, não existe absolutamente nenhuma prova médica de que os ferimentos da Faith fossem causados por trauma. Na verdade, vários médicos declararam isso oficialmente, e, como tenho a certeza de que todos sabem, há aqui uma questão que, como lhe é conveniente, o Dr. Metz está a ignorar, que é o facto de a criança aparentemente fazer milagres e falar com Deus. E quanto à comunicação social, bem, o facto de terem acorrido à sua casa não tem nada a ver com a minha cliente. Ela fez tudo o que era humanamente possível para proporcionar uma vida normal à filha apesar da sua presença. A acusação do Dr. Metz de risco de integridade física não é nada mais do que uma tentativa mal velada de transformar um caso pouco consistente no tipo de espectáculo exageradamente dramático no qual prefere ver-se envolvido.
Mariah não consegue tirar os olhos de Joan Standish. Nunca tinha ouvido a mulher encadear tantas palavras, e de forma tão convincente.
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O juiz Rothbottam assopra.
- Bem, Dr.a Standish, a senhora também acabou de montar um espectáculo bastante histriónico.
Metz chega-se para a frente, sentado na borda da cadeira, como um pit bull pronto a saltar.
- Meritíssimo, a questão que a Dr.a Standish está a tentar ocultar é que a criança está em risco. Há três meses, quando o meu cliente se foi embora, a filha era uma menina equilibrada. Agora é vítima de alucinações psicóticas e graves lesões corporais. Apelo que delibere a favor da segurança neste caso e que atribua ao meu cliente a custódia temporária da criança até à audiência.
Joan ignora completamente Metz.
- Senhor Doutor Juiz, o divórcio já foi suficientemente difícil para a Faith. Da última vez que viu o pai, estava meio nu a divertir-se com outra mulher.
- Peço desculpa! - diz Metz, lívido.
- Não me peça a mim. O último lugar para onde a Faith White deveria ir é para a casa do pai, Meritíssimo. Por favor, deixe-a ficar com a minha cliente.
O juiz Rothbottam agarra no auscultador e começa a enrolar os fios num apertado laço de marinheiro.
- Acho que já ouvi o bastante esta tarde. Não me parece que a criança esteja numa crise imediata, Dr. Metz. Realizaremos uma audiência para determinar a custódia daqui a cinco semanas. Penso que seja o tempo suficiente?
- Quanto mais cedo melhor, Meritíssimo - diz Metz. - Pela Faith. O juiz não se dá ao trabalho de olhar por cima da sua agenda.
- vou nomear um psiquiatra, o Dr. Orlitz, que quero que avalie
quer a sua cliente, Dr.a Standish, quer o seu cliente, Dr. Metz; assim como a filha deles, a Faith. É uma decisão do tribunal, o que significa que todos irão colaborar. Podem escolher os vossos próprios psiquiatras, claro, mas também falarão com o Dr. Orlitz. Também vou nomear a Kenzie van der Hoven como tutora ad litem, e espero que lhe forneçam todas as informações de que ela necessite. Se alguém tiver alguma objecção em relação à Dr.a Van der Hoven, que diga agora. Joan sussurra a Mariah.
- Ela é boa.
Metz sente que os olhos do seu cliente estão fixos nele, e encolhe os ombros. Não sabe absolutamente nada sobre os tutores ad litem de New Canaan, no New Hampshire. Manchester é uma coisa, mas tanto quanto sabe a Kenzie van der Qualquer Coisa pode ser a irmã da Standish.
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- Achamos bem, Meritíssimo - anuncia Metz numa voz forte e clara.
- Nós também - acrescenta Joan.
- Óptimo. A audiência para determinar a custódia começará na sexta-feira, dia 3 de Dezembro.
- Tenho um compromisso - diz Metz, examinando a sua agenda. - Tenho de ouvir o depoimento de um rapaz cujos pais estão a divorciar-se.
- E isso deveria impressionar-me, Dr. Metz? - pergunta o juiz Rothbottam. - Porque não impressiona, de facto. Arranje outra pessoa para o fazer. O senhor é que quer que este caso seja julgado rapidamente.
Metz fecha a capa de cabedal do seu Filofax.
- Lá estarei. -Joan?
- Não tenho nenhum compromisso.
- Excelente - o juiz coloca os auscultadores. - Mal posso esperar.
Joan vira para a via de acesso e toca no braço de Mariah.
- Lembre-se do que eu lhe disse. Isto não é o fim do mundo. O sorriso de Mariah não lhe chega aos olhos.
- Obrigada. Por tudo - cruza as mãos no colo. - Fiquei impressionada.
- E você ainda não viu nada - Joan ri. - Até era capaz de aceitar este caso de graça, só para defrontar o Malcolm Metz. Agora, entre e vá brincar com a sua filha.
Mariah acena com a cabeça e sai do Jeep, retraindo-se ao ouvir as perguntas que lhe são lançadas por jornalistas à distância, e ao ver um enorme póster com a cara de Faith que um grande grupo de mulheres segurava. Sente-se frágil, um ornamento feito de algodão doce, mas reforça a sua compostura enquanto sobe os degraus do alpendre. Assim que abre a porta, a mãe e Faith vêm a correr para a sala. Após lançar um olhar inquisidor ao rosto de Mariah, Millie vira-se para a neta.
- Querida, deixei os meus óculos de ler no braço do sofá. Podias ir buscá-los?
Assim que Faith sai do alcance, Millie cerca-a.
- Então?
- Temos de ir a tribunal daqui a cinco semanas.
- Aquele filho da mãe. Eu sabia que tu...
- Mãe - interrompe Mariah. - Não faças isso agora. - Senta-se nas escadas e esfrega o rosto com as mãos.
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- A questão aqui não é o Colin.
- Também não és tu, Mariah, mas aposto que daqui a cinco
semanas serás.
- E o que é que queres dizer com isso?
- Que o teu calcanhar de Aquiles, infelizmente, é um alvo tão erande como um celeiro. E que o Colin e o seu advogado chique de certeza que vão atacá-lo.
- Nessa altura a Joan já deve ter pensado em alguma coisa diz Mariah, mas sabe que está a tentar convencer-se a si própria e a Millie. Que tribunal a haveria de escolher a ela como a melhor progenitora?
Talvez o Colin tenha razão - talvez a culpa seja mesmo sua. Já tomou decisões pouco acertadas em relação a Faith antes; isto poderia ser mais uma prova da sua incapacidade enquanto mãe: uma decisão precipitada, um acto egoísta, uma conversa que tenha ficado gravada na imaginação de Faith e que a tenha levado àquele ponto. Afinal, já houve vezes em que Colin questionara o bom senso de Mariah com boas razões.
- Oh, não, nem penses - diz Millie entre dentes, endireitando Mariah. - Vai já lá para cima e tira essa expressão da cara.
- O quê...
- Vai um tomar um duche quente. Desanuvia a cabeça. Já te vi assim antes, cheia de dúvidas sobre se tens o bom senso que Deus deu a um escaravelho, quanto mais se és uma mãe competente. Juro, não sei como é que o Colin faz isso, mas o homem é um hipnotizador no que te diz respeito - empurra Mariah para que suba as escadas quando Faith entra na sala com os óculos da avó. - Oh, óptimo - diz ela à menina. - Vamos lá ver se encontramos as tiras de banda desenhada.
Apercebendo-se de que os olhos de Faith a seguem, Mariah sorri a cada degrau. Afasta deliberadamente os pensamentos que a atormentam: o que Joan dirá no tribunal, o que depreenderá o juiz da fuga apressada de Mariah para Kansas City, o que o Ian dirá e fará agora que regressaram. Despe-se, liga a água do duche e uma névoa branca enche a casa de banho. No duche, a água corre forte e quente, mas Mariah não consegue parar de tremer. Como alguém que sobreviveu a um acidente, o facto de ter escapado por pouco atinge-a subitamente, e fica assustada e atónita alternadamente. E se, daqui a cinco semanas, a filha lhe for legalmente retirada? E se, mais uma vez, o Colin levar a melhor? Mariah desliza para o chão ladrilhado, de braços cruzados com força, e sucumbe.
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Depois de Faith ter tomado banho e ter ido para a cama, Mariah entra na sala de estar e encontra Millie a espreitar pela beira das cortinas.
- Parece a Quinta de Yasgur - murmura ela, ouvindo Mariah surgir atrás de si. - Olha lá para o campo. Vêem-se todas aquelas luzes tremeluzir... O que é que eles tinham na mão naquela altura, velas?
- Isqueiros. E o que é que tu sabes sobre o Woodstock? Millie vira-se e sorri.
- Não subestimes a tua mãe - agarra na mão de Mariah e aperta-a. - Já te sentes melhor?
Perante a preocupação simples e carinhosa, Mariah quase volta a soçobrar. Deixa que a mãe a leve para o sofá e lhe deite a cabeça no colo. Enquanto Millie começa a afastar-lhe os cabelos da testa, sente alguma da tensão desvanecer-se, alguns dos problemas desaparecer.
- Não posso dizer que me sinto melhor. Dormente seria mais correcto.
Millie continua a acariciar os cabelos da filha.
- A Faith parece estar a aguentar-se bem.
- Não sei se ela compreenderá o que está a acontecer. Há um momento de silêncio.
- Não é a única.
Mariah endireita-se, o rosto inundando-se de cor.
- O que queres dizer com isso?
- Quando é que vais contar-me o resto?
- Já te contei tudo o que aconteceu no tribunal.
Millie mete uma madeixa do cabelo de Mariah por trás da sua orelha.
- Sabes, estás com a mesma cara de quando ficaste na rua com o Billy Flaherty e vieste para casa duas horas depois da hora combinada.
- Foi um pneu furado. Disse-te isso há quase vinte anos.
- E eu ainda não acredito. Meu Deus, lembro-me de me sentar na cama, olhar para o relógio e pensar: "Que será que a Mariah vê nele, com aquele ar melancólico e aquelas alterações de humor?"
- Ele só tinha dezasseis anos, e o pai era um alcoólico, e os pais estavam a divorciar-se. Ele precisava de alguém com quem falar.
- A questão é que - continua Millie, como se Mariah não tivesse falado -, na noite passada eu estava na cama a olhar para o
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relógio e a pensar: "Porque será que a Mariah está com o Ian Fletcher?" E tu voltaste para casa outra vez com a mesma cara. Mariah faz um ar de desdém e desvia o olhar.
- Não tenho nenhuma cara especial.
- Tens sim. É aquela que me diz que já é tarde de mais para que eu te impeça de te lançares no abismo - espera que Mariah volte a olhar para ela, devagar, e com grandes reservas. - Então diz-me, diz Millie numa voz suave. - Foi muito grande a queda?
Mariah fica imóvel ao aperceber-se de que a mãe não é mais precognitiva do que ela própria. Todas as alturas em que acordou a meio da noite uma fracção de segundo antes dos gritos de Faith encherem a escuridão, todas as vezes em que olhou para o rosto da filha e cerceou uma mentira a meio com um só olhar. É o apêndice da maternidade: gostemos ou não, adquirimos um sexto sentido no que diz respeito aos nossos filhos - sentindo visceralmente a alegria deles, a frustração e uma pontada aguda no coração quando alguém os faz sofrer.
- Rápida - Mariah suspira. - E de olhos bem abertos.
Quando Millie abre os braços, Mariah aproxima-se dela, sentindo o conforto da infância junto a si com grande alívio. Fala à mãe sobre Ian, que não estava a segui-la quando ela pensava que estava, que não era a pessoa que pretendia ser. Descreveu a maneira como se sentavam no alpendre depois de a Faith ir dormir, e de como às vezes conversavam e outras limitavam-se a deixar que a noite lhes pousasse nos ombros. Não fala do irmão de Ian a Millie, daquilo que a Faith poderá ou não ter feito por ele. Não contou a Millie qual era a sensação de ter o corpo de Ian encostado ao seu, sentir o calor dos pés à cabeça, como mesmo depois de estar a dormir há horas, ele segurava a sua mão como se não suportasse largá-la.
Para seu mérito, Millie não se mostra surpreendida nem pergunta se estarão a falar do mesmo Ian Fletcher. Em vez disso, abraça Mariah com força e deixa que as explicações surjam naturalmente.
- Se aconteceu isso entre vocês - diz ela cautelosamente -, como é que ficaram as coisas?
Mariah olha através das cortinas translúcidas, para as luzes dispersas que atraíram a mãe.
- com ele ali fora e eu aqui - responde, sorrindo tristemente.
- Exactamente como dantes.
As vezes, a meio da noite, Faith acha que consegue ouvir algo rastejar debaixo da sua cama, uma serpente ou um monstro marinho fora de água, ou talvez as pequenas patas de garras agudas das
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ratazanas. Quer deitar os cobertores para trás e correr para o quarto da mãe, mas isso implicaria tocar no chão, e há grandes hipóteses do que quer que fosse que estivesse a fazer aquele barulho se enrolasse em volta do seu tornozelo e a comesse com as fiadas de dentes aguçados antes sequer de chegar ao corredor.
Esta noite Faith acorda, certa de que vem atrás dela, e grita.
A mãe apressa-se a entrar no quarto.
- O que foi?
- Estão a morder-me! - grita ela. - As coisas que vivem debaixo da cama! - Mas assim que fala, o mundo regressa à sua volta, e os estranhos vultos negros transformam-se em candeeiros, cómodas e outras coisas vulgares. Olha para as mãos, ainda agarradas aos cobertores, com pensos rápidos a cobrir os pequenos buracos abaixo dos nós dos dedos. Agora já não lhe doem nada. Também não sangram. Picam um bocadinho, como se um cão estivesse a empurrá-los com o seu focinho molhado.
- Estás bem?
Faith acena com a cabeça.
- Então acho que vou voltar a dormir.
Mas Faith não quer que a mãe se vá embora. Quer que ela fique ali sentada, na beira da cama, a pensar apenas em Faith.
- Au! - grita ela impulsivamente, cerrando a mão esquerda. A mãe vira-se rapidamente.
- O que foi? O que aconteceu?
- Dói-me a mão - mente Faith. - Uma grande dor aguda, como uma picada de agulha.
- Aqui? - pergunta a mãe, pressionando.
Não dói absolutamente nada. Na verdade, até sabe bem.
- Sim - geme Faith. - Au!
A mãe sobe para a cama, envolvendo Faith nos braços.
- Tenta descansar - diz, fechando ela própria os olhos. No escuro, Faith adormece a sorrir.
28 de Outubro de 1999
Não há dúvida, a mãe tem andado a comer como um abade.
É a única explicação que Mariah consegue arranjar para justificar a absoluta escassez de comida em casa. Tendo estado ausente durante uma semana, estava à espera que a fruta e o leite se tivessem estragado, mas já não há pão, e até o frasco de manteiga de amendoim está vazio.
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- Meu Deus, mãe - diz ela, observando a Faith debicar uma taça de Rice Krispies sem leite. - Deste alguma festa?
Afrontada, Millie funga.
- É essa a gratidão que me mostras por ter tomado conta da
casa?
- Estava à espera que reabastecesses a despensa, só isso. Para teu próprio conforto.
Millie revira os olhos.
- Oh, e é claro que os abutres lá fora ter-se-iam limitado a acenar com gentileza enquanto eu fosse, feliz da vida.
- Se te incomodassem, podias incomodá-los também - agarrando na mala, Mariah encaminha-se para a porta. - Volto daqui a bocado.
Mas fugir aos jornalistas não é tão simples como Mariah tinha pensado. Saindo muito lentamente da via de acesso, quase atropela um homem que empurra a cadeira de rodas da filha em frente ao carro. Apesar da presença da polícia, centenas de mãos batem nas suas janelas, nos pára-choques, no porta-bagagem.
- Meu Deus - diz numa voz abafada, abismada com o número de pessoas, acelerando com satisfação a quatrocentos metros da via de acesso a sua casa.
Achava que sem a Faith haveria menos hipóteses de ser perseguida, mas três carros seguem-na enquanto se dirige para a mercearia de uma cidade vizinha. Vigiando-os com cuidado pelo espelho retrovisor, segue deliberadamente por ruas estreitas, em vez de estradas principais, na esperança de os despistar antes de chegar ao seu destino. Dois dos carros já desapareceram quando chega aos arredores de New Canaan. O terceiro segue-a até ao parque de estacionamento, mas segue noutra direcção, e Mariah apercebe-se, envergonhada, de que deveria tratar-se de um vizinho ou um cidadão vulgar, em vez de um jornalista a segui-la.
Na mercearia, mantém a cabeça baixa, escolhendo melões, alface e bolos lêvedos, sem estabelecer contacto visual com os outros clientes. Percorre os corredores com uma determinação firme, decidida a passar despercebida na fila do pagamento. Mas acabara de chegar a um armário frigorífico quando uma mão se fecha em volta do seu pulso, puxando-a para trás de um alto expositor de cones de gelado.
- Ian.
Veste calças de ganga e uma camisa de flanela aos quadrados, um boné de basebol puxado para cima do rosto. Não se barbeou. Mariah toca-lhe na face.
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- Este é o teu disfarce?
A mão dele desliza-lhe do pulso para o ombro.
- Queria saber o que se passou no tribunal. Uma pequena luz apaga-se dentro de Mariah. -Oh.
- E queria ver-te - os dedos de Ian fecham-se em volta da pele macia da parte de dentro do braço dela. - Precisava de te ver.
Olha para ele.
- Voltamos a falar com o juiz daqui a cinco semanas - consegue ver os olhos dele debaixo da pala do boné, de um azul árctico puro e fixos com invulgar intensidade, trespassando-a como uma borboleta presa com um alfinete.
Outra cliente dobra a esquina, com dois gémeos pequenos, um de cada lado do seu carrinho, como bóias de protecção. Olha para eles com indiferença e continua até ao fundo do corredor.
- Não podemos estar aqui assim - diz Ian. - Um de nós vai ser reconhecido - mas não faz nada para ir embora, e em vez disso acaricia-lhe o queixo com os dedos, fazendo-a arquear-se como uma gata.
Tão rápido como surgiu, afasta-se.
- vou fazer tudo o que puder para garantir que a Faith fique contigo.
- A única forma de o juiz me deixar ficar com ela é se achar que a vida dela é absolutamente normal - diz ela de uma forma pausada. - Por isso, o melhor que podes fazer, Ian, é ires embora permite-se olhar para ele mais uma vez, mais um toque da sua mão.
- O melhor para a Faith, e o pior para mim - depois agarra na pega do seu carrinho de compras e continua até ao fundo do corredor, com o coração acelerado, mas o rosto tão sereno como se nem tivesse chegado a vê-lo.
O telefone toca quando Mariah está quase a dormir. Cambaleante e estonteada, agarra nele presumindo que Ian está do outro lado da linha, mas apercebe-se demasiado tarde que mesmo antes que os sonhos surgissem, ele já tinha reclamado a sua participação neles.
- Fico muito satisfeito por ainda atender o telefone.
- Padre MacReady - diz Mariah, sentando-se na cama. - Não é um pouco tarde?
Ele ri-se.
- Para quê, concretamente?
- Para telefonar.
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Faz um momento de silêncio.
- Fui levado a crer que nunca é tarde de mais para telefonar. Às vezes, as situações surgem-nos pelas costas e derrubam-nos como um jogador de defesa.
Ela balança as pernas na borda da cama, faz dobras no lençol de cima.
- Está a distorcer as minhas palavras outra vez.
- Por acaso, rezei por si - admite tranquilamente o padre MacReady. - Rezei para que conseguisse agarrar na Faith e ir embora.
- Parece que a sua linha telefónica directa para falar com Deus está um pouco ferrugenta.
- É possível, sabe. Por isso é que queria falar consigo. A sua mãe hoje teve o prazer de mandar embora um colega meu que queria ver a Faith.
- A minha filha não é uma cobaia da Igreja Católica, padre diz Mariah num tom amargo. - Diga ao seu colega para voltar para casa.
- Isso não está nas minhas mãos. É o trabalho dele. Quando a Faith começa a dizer coisas que não coincidem com dois mil anos de ensinamentos, têm de vir avaliá-las.
Faz Mariah lembrar-se daquele velho ditado - se uma árvore cair na floresta e não estiver lá ninguém para ouvir, será que faz algum barulho? Se não quisermos a religião, teremos o direito de a rejeitar?
- Sei que não quer ouvir isto - diz o padre MacReady -, mas encarava isso como um favor pessoal, se deixasse a Faith falar com o padre Rampini.
Agora há pessoas a rodear a sua propriedade que se reuniram em nome da cristandade. Não pediu que viessem; sem dúvida gostaria que se fossem embora.
O juiz consideraria um ponto a seu favor se ela conseguisse fazê-los partir.
A forma mais simples de o fazer é ouvirem, directamente da Igreja Católica, que a Faith não é quem gostariam que ela fosse.
Mas por outro lado, isso implicaria explorar a Faith, e Mariah não tem a certeza se quer fazer isso mesmo que para um bem maior.
- A Faith e eu não lhe devemos nenhum favor. Não somos católicas.
- Teoricamente - diz o padre MacReady -, Jesus também não. Mariah volta a deitar-se na almofada, sentindo-a roçar-lhe nas
faces. Pensa naquelas árvores a caírem na floresta, em silêncio e
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sem serem observadas, até que um dia chegue alguém e repare sobressaltado que toda a floresta desapareceu.
29 de Outubro de 1999
O padre Rampini sabe muitas maneiras de fazer uma estátua chorar, e nenhuma delas está de alguma forma relacionada com Jesus. Podemos esfregar o rosto de mármore com cloreto de cálcio, que faz a água contida no ar condensar-se em falsas lágrimas. Podemos meter pequenas bolas de banha nos olhos, que derreterão quando aquecerem até atingir a temperatura ambiente. Até podemos recorrer a um truque de mãos, molhando a estátua com uma esponja quando o público estiver distraído. Já viu sangue falso escondido na manga, fazendo os estigmas rebentar espontaneamente com um movimento do pulso. Já viu rosários de prata transformarem-se em ouro, um facto cientificamente explicável através de reacções metalúrgicas
O seu instinto? A pequena Faith White é uma impostora.
De início, achou que seria fácil desacreditar a criança. Algumas indagações discretas, uma confissão lacrimosa e estaria de regresso ao seminário antes da ceia. Mas quanto mais fica a saber sobre Faith White, mais difícil se torna rejeitá-la sem hesitar.
Ontem entrevistou muitos dos jornalistas que se encontravam no relvado em frente à casa, tentando descobrir algum acordo secreto que a mãe pudesse ter feito ou ouvir algo sobre um exclusivo para a televisão. Ao longo da história, os profetas não lucram em dinheiro, reconhecimento ou conforto. Se encontrasse o mais leve indício de autopromoção, nessa tarde estaria a caminho de Boston.
É verdade que Faith não estava a tentar tornar-se rica e famosa ao fazer-se de vidente. Mas também não havia provas para além das alegadas visões de Faith White - como a fonte de Lourdes que cura padecimentos, ou a imagem da Virgem que não foi feita por mãos humanas, oferecida ao Abençoado Juan Diego e que ainda hoje está pendurada num santuário da Cidade do México, quatrocentos anos depois. Disse exactamente isso ao padre MacReady que - de forma desconcertante - mal tirara os olhos do sermão que estava a escrever no seu escritório.
- Esquece-se - disse MacReady -, que ela é uma curandeira.
Nessa manhã o padre MacReady acompanhara-o ao centro médico. Enquanto o pároco visitava membros da sua congregação
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que estavam a recuperar nas enfermarias, o padre Rampini passou horas a ler relatórios sobre Millie Epstein, sem chegar a nenhuma conclusão definitiva. Clinicamente, a mulher tinha morrido. Agora não havia dúvidas de que estava viva e de saúde. Mas havia rumores de que Faith lhe tinha tocado para a fazer voltar à vida - um toque com as mãos parecia-lhe um pouco suspeito.
A única forma de provar que Faith White era completamente mentirosa seria entrevistá-la. Foi isso que planeou fazer hoje. O padre Rampini resolveu actuar em três fases: em primeiro lugar, apurará a verdade acerca desta aparição feminina - Maria, talvez, mas Deus não, certamente. Em segundo lugar, provará que a aparição não é autêntica. Por fim, examinará os alegados estigmas e enumerará as razões pelas quais não são verdadeiros.
O padre MacReady pede-lhe que permaneça calado enquanto o apresenta a Mariah White e, por cortesia profissional, o padre Rampini aceita.
- Espere um pouco - diz a mulher -, eu vou buscar a Faith para falar consigo.
O padre MacReady pede licença para ir à casa de banho Deus sabe que ao pequeno-almoço come uma quantidade de salsichas suficiente para matar um cavalo, quanto mais para lhe dar volta à barriga - enquanto Rampini olha ociosamente em volta. Para uma casa rural, está extraordinariamente bem conservada, as traves expostas no tecto estão direitas e polidas, o chão foi afagado até ficar brilhante, a tinta resistente e o papel de parede texturado impecáveis. Parece uma residência tirada das páginas da revista Country Home, tirando as provas flagrantes de que é habitada por pessoas verdadeiras: uma Barbie metida entre as bananas de uma taça de frutas decorativas, uma luva de criança enfiada na extremidade do corrimão. Não vê nenhuma cruz feita de folha de palmeira entalada atrás de espelhos, nenhuma vela de sabat em cima da mesa da sala de jantar, absolutamente nenhuma evidência religiosa.
Ouve passos nas escadas e endireita-se, pronto a olhar de cima para essa herege.
Faith White pára a um metro de distância dele e sorri. Falta-lhe um dos dentes da frente.
- Olá - diz ela. - O senhor é o padre Rampénis? O rosto de Mariah White fica escarlate.
- Faith!
- Rampini - corrige ele. - Padre Rampini. O padre MacReady aparece à porta, a rir.
- Talvez seja melhor tratá-lo só por padre.
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- Está bem - Faith agarra na mão de Rampini, puxando-o para as escadas.
Rampini apercebe-se de duas coisas em simultâneo: os pensos rápidos a roçarem-lhe na palma da mão, e o magnetismo extraordinário que sente quando os seus olhares se cruzam. Faz-lhe lembrar-se de quando era criança e via o primeiro grande nevão a estender-se sobre a quinta da sua família no lowa, tão brilhante como diamantes e tão pura que era incapaz de desviar o olhar.
- Venha - diz ela. - Pensei que queria brincar. MacReady cruza os braços por cima do peito.
- Eu fico aqui. A tomar um café com a tua mãe.
Rampini percebe pela expressão do rosto da mulher que ela achava que estaria presente durante a entrevista. Ora, ainda bem. Será mais fácil apurar a verdade na sua ausência.
Faith leva-o para o quarto e senta-se no meio do chão com uma boneca Madeline e uma colecção de roupas para vestir e despir. Tirando o seu bloco de notas, Rampini assenta várias ideias. Se bem se lembra, Madeline vivia numa escola paroquial. Por isso é provável que esta suposta inocente religiosa saiba mais do que as pessoas pensam.
- Quer as roupas de patinagem - pergunta Faith -, ou o vestido de festa?
Já há tanto tempo que não brinca com uma criança - que não faz outra coisa a não ser examinar fraudes, e hereges, e escrever longas dissertações sobre as suas conclusões - que por um momento fica confuso. Antigamente teria sido uma coisa natural. Agora é um homem diferente.
- O que eu queria mesmo era brincar com a tua outra amiga. A boca de Faith cerra-se.
- Não quero falar sobre ela.
- Porque não?
- Porque não - diz ela, e enfia a perna da Madeline nuns collants.
"Bem", pensa Rampini, surpreendido. A vidente que anda sempre a falar daquilo que viu normalmente está a mentir. Os verdadeiros videntes, de facto, têm muitas vezes de ser coagidos a falar sobre as suas visões.
- Aposto que é muito bonita - insiste ele. Faith espreita por debaixo das pestanas.
- Conhece-A?
- Trabalho num sítio onde muitas pessoas estudam e aprendem coisas sobre Deus. É por isso que queria tanto falar contigo, para podermos comparar aquilo que sabemos. A tua amiga tem um nome?
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Faith assopra.
- Dah. É Deus.
- A tua amiga disse-te isso. Disse: "Sou Deus."
- Não - Faith enfia um sapato no pé da boneca. - Ela disse sou teu Deus.
Também assenta isso.
- Ela aparece sempre que precisas?
- Acho que sim.
- Podia aparecer agora?
Faith olha por cima do ombro.
- Não quer.
Ignorando o seu bom senso, Rampini olha para o mesmo sítio.
Nada.
- Ela tem um vestido azul? - debate-se para encontrar um termo para designar o manto de Maria que fosse familiar para uma criança de sete anos. - com, um capuz?
- Como uma gabardina?
- Exactamente!
- Não. Veste sempre a mesma coisa. É uma saia castanha e uma camisola castanha, mas numa peça só, e parece-se com as coisas que as pessoas dos tempos antigos vestem na televisão. Os cabelos dela são castanhos e dão-lhe por aqui - Faith toca nos ombros. - E tem daqueles sapatos que podemos usar na praia, e mesmo dentro de água e tudo, sem que a mãe se zangue. Aqueles com velcro.
O padre Rampini franze a testa. - Usa sandálias Teva?
- Sim, só que as dela não têm o velcro e são cor de vómito. - Aposto que querias ver esta tua amiga há já algum tempo, antes de ela aparecer.
Mas Faith não responde. Procura dentro do armário, regressando com a caixa Lite-Brite. O padre Rampini fica comovido - lembra-se de dar este brinquedo ao seu próprio filho, muito antes de ser ordenado. Já existe há tantos anos?
Faith está a observá-lo com curiosidade.
- Eu deixo-o fazer os amarelos.
Rampini volta a ordenar os seus pensamentos, concentrando-se.
- Então... pediste para vê-la?
- Todas as noites.
O padre Rampini já viu suficientes supostos videntes para fazer comparações. Os devotos religiosos que rezam para ver Jesus durante anos e que, de repente, Ele lhes aparece são sempre
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aqueles que pura e simplesmente perderam o juízo. Infelizmente, até mesmo no caso daquela freira idosa de Medford que ele tinha sido enviado para avaliar no Inverno passado. Comparemos isso às crianças de Fátima, que apenas estavam a guardar ovelhas quando Maria lhes apareceu, inesperadamente. Ou Santa Bernadette, que estava a apanhar lenha junto a uma lixeira quando Nossa Senhora se materializou.
As visões celestiais vêm do céu, mas inesperadamente. No entanto, segundo Faith, ela tinha pedido uma - poder-se-ia dizer que de uma forma religiosa.
- Queria muito ter uma amiga - continua Faith. - Por isso, todas as noites pedia esse desejo a uma estrela. E então ela apareceu.
Hesita antes de escrever no seu bloco. Desejar uma amiga não era bem a mesma coisa do que rezar por uma aparição milagrosa, mas havia casos de crianças videntes que brincavam, por assim dizer, nos campos do Senhor. São Herman-Joseph brincou com Maria e com o Menino Jesus; Santa Juliana Falconieri tinha visões onde o Menino Jesus lhe fez uma grinalda de flores.
Os olhos dele fixam-se nas mãos de Faith, agarrando nos minúsculos pinos e enfiando-os nos buracos da grelha do Lite-Brite.
- Ouvi dizer que te magoaste.
Ela esconde rapidamente as mãos atrás das costas.
- Já não quero conversar mais.
- Porquê? É por eu te ter feito uma pergunta sobre as tuas mãos?
- Vai gozar comigo - sussurra ela.
- Por acaso - diz o padre Rampini num tom suave -, já vi outras pessoas com o mesmo tipo de cortes que tens.
Isto chama a atenção de Faith.
- A sério?
- Se me deixares ver, posso dizer-te se o teu é igual ou diferente.
Ela coloca uma mão no chão entre eles, abrindo os dedos como pétalas de uma rosa. com a outra mão tira o penso rápido. No meio da palma há um pequeno buraco. A carne à sua volta não apresenta lesões de nenhum dos lados da mão, nem há protuberâncias como tinha São Francisco de Assis, como se os pregos estivessem a esticar a pele debaixo da sua superfície.
- Doem-te? - pergunta Rampini.
- Agora não.
- Quando as tuas mãos estão a sangrar - pergunta ele lentamente -, às vezes pensas em Jesus?
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Faith franze a testa.
- Não conheço ninguém chamado Jesus.
- É o nome de Deus - explica o padre.
- Não, não é.
Uma criança de sete anos pode ser bastante literal. Faith estará a dizer isto porque Deus lhe disse especificamente que não é Jesus? Ou porque simplesmente Ele não disse o Seu nome? Ou será porque esta visão, longe de ser celestial, é satânica?
Rampini deseja fazer-lhe mais perguntas sobre o nome de Deus
- como a história de Rumpelstiltskin, adivinhando até acertar. Não se trata de Maria, nem de Jesus. Mas será Belzebu? lave? Alá? No entanto, ouve-se a si próprio dizer:
- Podes dizer-me o que sentes quando Deus fala contigo? Faith olha para o colo, sem falar. O padre Rampini fica a
observá-la e lembra-se de quando viu o filho pela primeira vez. Lembra-se de ver os dedos do bebé percorrerem o seio de Anna enquanto o embalava. Embora tivesse aprendido, na sua formação teológica ascética, que os sentimentos não são importantes, e que celebrar a missa e administrar os sacramentos são "os momentos em que se está mais próximo de Deus, agora não está a pensar nisso. Aquela sensação de plenitude, de transbordar de divindade, só a sentiu duas vezes nos seus cinquenta e três anos de vida. Uma vez ao observar a mulher após dar à luz. E depois, seis anos mais tarde, quando o Espírito Santo se abateu sobre ele como uma daquelas tempestades de neve do Midwest, amortecendo-lhe a dor do acidente de viação que lhe levara toda a sua família, deixando em seu lugar o perdão.
O padre Rampini demora um pouco a reparar que Faith agarrou num dos pequenos pinos do Lite-Brite e o enfiou na mão direita. O pino fica a meio. Mas porém a ferida não volta a abrir, e quando Faith flecte os músculos da mão, acaba por cair. Então ela liga o Lite-Brite, e o Padre Rampini fica espantado com o brilho incandescente da flor.
- Quando Ela fala, sinto aqui - diz Faith, cerrando um punho e levando-o ao coração dele.
O padre Rampini já sabe há muito tempo que se movimenta num mundo que os cépticos consideram impossível mas, para ele, o Catolicismo - especificamente, a sua teologia - tem sido um refúgio de lógica. O mundo é que não faz sentido - que outra razão poderá haver para que o condutor embriagado escolhesse embater na carrinha da sua família, em vez de qualquer outro dos trezentos
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carros com que se cruzou naquela noite? A religião, com a sua divindade, a sua ordem e a sua salvação, foi literalmente a graça redentora de Rampini.
Abre a torneira da água fria no lavatório da casa de banho e molha o rosto. Enquanto se limpa e olha para o espelho do armário dos medicamentos, hesita por um momento. O que dirá sobre a Faith White? Por um lado, ela tem a humildade dos abençoados, e não ganha nada com isso excepto uma notoriedade que não parece desejar. Por outro lado, profere heresias.
Começa a enumerar mentalmente os prós e os contras. Rampini ainda não se deparou com um caso comprovado, mas Faith pode realmente sofrer de estigmas.
No entanto, também vê algo que nunca ninguém viu. Teoricamente, Deus não é um homem. Mas isso não significa que seja uma mulher.
Senta-se no tampo da sanita e fica a olhar distraidamente para a colecção de bonecas Barbie nuas dentro da banheira. A Faith White é, para todos os efeitos, uma menina mundana perfeitamente normal. Não organiza a sua vida em torno da oração; provavelmente não seria capaz de distinguir uma Ave-Maria do Credo. Joga a seu favor o facto de videntes comprovados como as crianças de Fátima e Santa Bernadette também não serem candidatos prováveis para terem visões.
Mas ao menos eram cristãos.
Rampini suspira. O padre MacReady tinha razão - há muitas coisas interessantes acerca de Faith. Mas, em último caso, a sua visão não é uma delas. Diz coisas que muito simplesmente estão fora de todos os limites.
O padre Rampini abre a porta da casa de banho e começa a percorrer o corredor, com a sua decisão tomada. No entanto, a cada passo lembra-se dos santos do século XVI, que foram desprezados e difamados pelas suas crenças radicais. Santos cujas autópsias, realizadas anos após as perseguições, revelaram estranhas cicatrizes gravadas nas paredes dos seus corações que se assemelhavam às letras do nome de Jesus.
Malcolm Metz olha para o velho Honda que pertence a Lacey Rodriguez, uma de um batalhão de excelentes detectives privados a que a sua firma tem recorrido ao longo dos anos. Aponta para uma pequena imagem de Maria colada ao tablier com um pedaço de fita adesiva de dupla face.
- Gosto do pormenor.
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- Pois, bem - Lacey encolhe os ombros. - Não sabia se alguém podia ver o carro.
- Ao que parece, provavelmente terá de estacionar a quilómetro e meio de distância. Entra em contacto comigo depois?
- Esta tarde, quando chegar lá. E depois disso, duas vezes
por dia.
Metz encosta-se ao capot ferrugento do carro.
- Não preciso de lhe dizer como é importante que descubra segredos comprometedores que envolvam a mãe.
Lacey acende um cigarro e oferece um a Metz, mas ele abana a cabeça.
- Não deve ser assim tão difícil - diz ela, expirando. - A mulher esteve numa instituição mental.
- Infelizmente, a posse representa nove décimos da lei, e a criança ainda vive com a mãe. Quero saber se ela deixa que a criança esteja acordada até tarde ou se lhe dá alguma coisa para comer com o Corante Vermelho Número Dois ou fala com alguém com o telefone portátil demasiado próximo da banheira enquanto a miúda está lá dentro. Quero saber que raio anda ela a dizer àqueles padres e àqueles rabis que estão sempre a ir lá a casa.
- Está feito.
- Não faça nada que não seja admissível em tribunal. Nada de se vestir como ajudante de canalizador e ir verificar a canalização, para arranjar provas apreendidas sem um mandado.
- Só fiz isso uma vez - diz Lacy, envergonhada. - Vai estar sempre a falar nesse assunto?
- Talvez - Metz bate-lhe suavemente no ombro. - Vá trabalhar
- observa o Honda descer a rua e em seguida dirige-se para o edifício onde se situa o escritório de advogados. Os olhos fixam o seu nome, gravado na placa de pedra à porta. As portas de vidro e metal abrem-se accionadas por um sensor, como se tivessem estado à sua espera.
Mariah refugia-se na sua oficina na cave. com determinação, agarra num fino bloco de ácer, decidida a transformá-lo numa mesa de cozinha em miniatura, mas está demasiado distraída para fazê-lo bem. Frustrada, senta-se ao lado da sua casa de bonecas inacabada e apoia a cabeça na mão.
Consegue ver as minúsculas instalações da casa de banho, e o chão de pinho nodoso nos quartos, e o armário da cozinha que ainda está entreaberto. Consegue espreitar para as partes mais íntimas desta casa sem o mínimo esforço.
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"É esta a sensação de se ser Deus", pensa ela.
Reflecte sobre isto por um momento, pensando em todas as raparigas que brincam com tanta naturalidade fingindo ser uma entidade divina - capazes de fazer as suas famílias de bonecas executar o que quiserem. Mariah olha para o tecto e interroga-se se Deus estará a fazer o mesmo a ela e a Faith.
Lembra-se, de repente, de por que razão em criança nunca punha pessoas nas suas casas de bonecas. O cão da família chocava contra a casa e o bebé em miniatura caía pelas escadas abaixo antes que Mariah tivesse oportunidade de o apanhar. Ou a mãe ficava deitada de barriga para baixo na cama e Mariah achava que ela tinha estado a chorar toda a noite enquanto ela própria dormia. Fazia-a sentir-se culpada - não era capaz de brincar com todas as bonecas ao mesmo tempo, não era capaz de satisfazer todas as suas necessidades. Não era assim tão bom ser-se como Deus, ter o poder de ajudar, tranquilizar e confortar e saber que não podia salvar toda a gente sempre.
Então cresceu e começou a construir casas de bonecas sem bonecas, lugares onde a mobília estava aparafusada e colada no seu sítio, casas onde nada era deixado ao acaso. E, no entanto, Mariah apercebe-se de que mesmo assim não escapara completamente.
Manipulação, responsabilidade, cuidado. Não é assim tão diferente de ser mãe.
Da Diocese de Manchester da Igreja Católica
Manchester, NH, 29 de Outubro de 1999 - Sua Excelência o Bispo de Manchester emitiu uma circular em resposta às dúvidas de padres, religiosos e laicos em relação à actividade de Faith White, residente em New Canaan, NH, que proclama alegadamente ouvir e ver revelações celestiais.
A diocese examinou tranquila e atentamente o assunto, e as alegadas visões de Faith White foram declaradas falsas. É nosso dever colocar em evidência um grave erro doutrinal: a linguagem errónea alusiva a Cristo, que não é nem deve ser referido como uma mulher ou mãe de qualquer tipo.
A Sociedade de Deus Mãe, que foi a principal responsável por transmitir a mensagem de Faith White através de um panfleto e de pregações, está a espalhar ensinamentos que não são considerados dogmas católicos e que devem ser ignorados.
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Nessa noite, quando a Sociedade de Deus Mãe ouve pela primeira vez falar da denúncia oficial de Faith White feita pelo bispo Andrews distribui maçãs. Dão mais de trezentas Jonagolds de um pomar da região e convidam as pessoas a dar uma dentada no mito da religião masculina.
- O Jardim do Éden foi apenas o início - gritam. - Eva não foi a culpada por terem caído em desgraça.
A mulher que se tornou sua líder, Mary Anne Knight, passa pela multidão apertando as mãos às pessoas. Sabe que este movimento não é tão recente nem tão radical como as pessoas pensam. Há vinte anos, estudava na Universidade de Boston com Mary Daly, que abandonou a Igreja Católica dizendo que esta estava radicada em sexismo. Mary Anne adorava demasiado o Catolicismo para renunciar a ele. "Um dia, haverá lugar para mim na Igreja", rezava.
Então ouviu falar na Faith White.
Põe-se de pé em cima de um caixote de maçãs virado ao contrário, com as suas companheiras reunidas à sua volta a mostrar caroços de maçã meio comidos. Apertando mais o seu casaco polar, tapa uma T-sbirt provocadora que diz A MINHA DEUSA DEU À LUZ O VOSSO DEUS.
- Senhoras - grita ela -, temos aqui a carta pastoral do bispo Andrews - tira um isqueiro Zippo do bolso. - E isto é o que eu tenho a dizer em resposta a ela - com um floreado, incendeia o canto da missiva e deixa que arda até chegar às pontas dos dedos.
Enquanto a multidão de mulheres entusiásticas aplaude, Mary Ann sorri. A diocese de Manchester que pense que há um bando de mulheres que está apenas a dar um ar da sua graça; o velho bispo enfadonho que escreva circulares até ficar azul - há algumas coisas que Sua Excelência não tomou em consideração. A Sociedade de Deus Mãe ainda tem a Faith White. E as duas representantes que vão a caminho do Vaticano, planeando lançar um protesto formal.
Mariah está a lavar os dentes e a passar pelos canais de televisão que têm programas ao fim da noite quando vê o rosto de Petra Saganoff, e a sua própria casa como plano de fundo.
- Hollywood Tonight! descobriu um novo desenvolvimento no caso de Faith White. Num acto inesperado, o pai da criança, Colin White, voltou a aparecer em New Canaan para obter a custódia completa da filha.
Millie, com creme no rosto e uma camisa de noite de flanela, entra na sala a correr.
- Estás a ver isto?
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O ecrã muda para imagens do tribunal, onde Colin e o seu advogado parecem estar a falar para vários microfones ao mesmo tempo, com os ombros curvados para se protegerem do vento cortante.
- É uma tragédia - diz Colin para as câmaras. - Nenhuma menina devia ser criada daquela maneira... - a sua voz fica entrecortada, aparentemente não é capaz de continuar.
- Oh, por amor de Deus - diz Millie. - Será que ele contratou um advogado ou um professor de representação?
O rosto de Petra Saganoff reaparece.
- Malcolm Metz, o advogado do Sr. White alega que ser colocada sob a custódia de Mariah White representa um perigo para a integridade física e psicológica de Faith. Claro, o caso da atribuição da custódia é agora um assunto público. Teremos mais informações acerca deste assunto à medida que se for desenrolando. Petra Saganoff, para Hollywood Tonight!
Millie dirige-se energicamente para o televisor e desliga-o.
- É um disparate. Ninguém no seu juízo perfeito vai acreditar em alguma coisa do que o Colin diz.
Mas Mariah abana a cabeça e cospe pasta de dentes para o lavatório.
- Não é verdade. Vão vê-lo chorar por causa da filha, e é disso que se vão lembrar.
- A única pessoa com quem te devias preocupar é o juiz. E os juizes não vêem este lixo televisivo - Mariah, passando a boca por água, finge não ouvir. Interroga-se se Joan terá visto, se Ian terá visto, se a Dr.a Keller terá visto. A mãe está enganada. Podemos chegar a muita gente, sem fazer o mínimo esforço - a Faith é uma prova disso. Mantém a água a correr, até ouvir Millie sair do quarto.
Ele sabe quando deve telefonar-lhe, uma vez que mudou a caravana de posição para que ficasse virado para o quarto de Mariah. Depois de a luz se apagar, Ian fecha os olhos, tentando imaginar o que ela vestirá para dormir, se as pernas dela se cruzam debaixo dos lençóis frios. Depois agarra, no telemóvel e marca o número, com os olhos fixos no par de pequenas janelas.
- Acende a luz - diz ele. - Ian?
- Por favor - ele ouve-a mexer-se, e então vê-se o brilho dourado no quarto. Não consegue vê-la, mas finge que consegue; imagina-a sentada a agarrar no telefone e a pensar nele.
- Estive à tua espera.
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Mariah ajeita-se na cama, percebe pelo suave suspiro dos tecidos.
- Quanto tempo?
- Demasiado - responde Ian, e as palavras contêm algo mais do que uma corte descontraída. Para vê-la afastar-se dele na mercearia sem poder ir atrás dela foi necessário todo o seu autocontrole. Imagina os cabelos dela, espalhados cobrindo a almofada como uma nuvem de ouro, a curva do seu pescoço e ombro como a peça de um quebra-cabeças feita para se encaixar perfeitamente nele. Aproximando o telefone, sussurra:
- Então, Sr.a White. Vai contar-me uma história antes de dormir? Espera ouvir um sorriso na voz dela, mas em vez disso, está
pastosa com as lágrimas.
- Oh, Ian. Para mim já não há finais felizes.
- Não digas isso. Ainda tens um longo caminho a percorrer daqui até àquela guerra pela custódia - levanta-se, desejando que ela fosse à janela. - Não chores, querida, quando eu não posso aí estar.
- Desculpa. Eu... Oh, meu Deus, o que deves pensar de mim! É isto tudo, Ian. Um pesadelo a seguir ao outro.
Ele respira fundo.
- Não vou fazer um programa sobre a Faith, Mariah. Até posso sair daqui por completo, para parecer que estou interessado noutra coisa. Pelo menos até à audiência.
- Isso não vai resolver o problema. Há aqui muita gente para transformar a Faith numa espécie de mártir. Viste o Hollywood Tonightfí
- Não... porquê?
- Apareceu o Colin, de rastos, a dizer que a Faith não pode viver assim.
- Ele está a servir-se da comunicação social, Mariah. O advogado dele é suficientemente perspicaz para colocar o seu cliente diante do público, para ganhar simpatia - hesita por um momento.
- Não é uma má ideia, de facto. Devias contactar o Hollywood Tonight! e convidá-los a ouvir o outro lado da história. Davas um exclusivo à Petra.
Mariah fica em completo silêncio.
- Não posso fazer isso, Ian.
- Ora, claro que podes. Eu posso preparar-te, como o advogado fez ao teu ex-marido.
- Não é isso - a voz dela é fraca e subitamente distante. - Não posso deixar que um jornalista me faça todo o tipo de perguntas,
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porque há coisas que me aconteceram e que eu não quero que se saiba. Coisas que nem sequer ainda te contei.
Ele aprendera há muito que por vezes a atitude mais sensata é ficar calado. Ian está sentado à beira do sofá da caravana a espera que Mariah lhe conte o que tinha ficado a saber há semanas atrás.
- Há sete anos tentei suicidar-me, e o Colin enviou-me para uma instituição.
- Eu sei - Ian lembra-se do The Boston Globe, e sente as entranhas contorcerem-se.
-Tu... tu sabes?
- Bem, claro - diz ele, tentando aligeirar. - Antes de ser atingido pelos teus consideráveis encantos, estava a fazer um programa sobre ti e a tua filha.
- Mas... mas não disseste nada.
- Em público não. E em privado também não, porque para mim isso era indiferente. Mariah, és a pessoa mais lúcida que eu conheço. E quanto a não ter mais nada que nos prenda à vida, bem, ultimamente tenho feito os possíveis para evitar que penses isso.
Então ouve, a alegria a irromper nela
- Obrigada. Agradeço-te tanto por isso.
- Vivo para agradar.
- Se bem me lembro, acertaste em cheio - diz Mariah, e ambos riem.
Então faz-se um silêncio confortável entre eles, pontuado pelos pios distantes das corujas e o ladrar dos cães.
- Mas devias fazer isso - acrescenta Ian passado um momento.
- Convidar a Petra Saganoff a ir aí. É a melhor maneira de mostrar a um grande número de pessoas que a tua filha é apenas uma menina. Diz à Petra que pode filmar e fazer uma locução onde achar conveniente, mas nada de entrevistas - sorri para o telefone. - Dá-lhes luta, Mariah.
- Talvez dê - diz ela.
- Assim é que é - vê um vulto surgir à janela do quarto. - És tu?
- Sou. Onde estás?
Ele observa-a virar-se, examinar a escuridão à procura de um rosto que não consegue ver. Ian liga e desliga as luzes da caravana.
- Aqui. Vês? - As mãos dela erguem-se para se encostarem ao vidro, e Ian lembra-se delas encostadas ao seu peito, frias e curiosas. - Quem me dera estar contigo agora.
- Eu sei.
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- Sabes o que eu fazia se estivesse agora contigo?
- O quê? - pergunta Mariah sem fôlego, Ian sorri.
- Adormecia.
- Oh. Não era nisso que eu estava a pensar.
- Talvez isso também, então. Mas não tinha uma noite tão descansada como quando estive contigo desde... Meu Deus, há anos.
- Acho... acho que gostava de acordar contigo - diz Mariah timidamente.
- Isso também seria bom - concorda Ian. - Agora, afasta-te dessa janela. Não quero que toda a gente fique de olhos postos em ti - fica à espera até ouvir os cobertores restolhar, Mariah puxar os lençóis para se tapar. - Boa noite.
- Ian?
- Hmm?
- Sobre aquilo que disseste há bocado... não te vais embora agora, pois não?
- Fico o tempo que quiseres - diz ele, e depois vê o pequeno quadrado de luz no quarto dela ficar escuro.
Assim que Mariah coloca o telefone no descanso apercebe-se de que a mãe está à porta ligeiramente entreaberta. Não sabe o que Millie ouviu, há quanto tempo está ali de pé.
- Quem estava a telefonar tão tarde? - pergunta a mãe.
- Ninguém. Era engano - com o peso do olhar de Millie lançado sobre ela como outra colcha, Mariah vira-se de lado, para a janela, para Ian.
Por razões que o padre MacReady não compreende, o padre Rampini não partiu o mais rápido possível para Boston depois de enviar o seu parecer ao bispo Andrews naquela tarde. Passou várias horas no quarto de hóspedes da residência do padre, sem fazer as malas e a ocupar a linha telefónica com faxes que envia pelo seu computador portátil. Por isso, quando o padre MacReady desce para tomar um copo de leite antes de se deitar, fica surpreendido ao encontrar o padre visitante sentado à mesa da cozinha com uma garrafa de vinho.
- Chiantfí - diz o padre Rampini, levantando um canto da boca. - Ora, Joseph - graceja num sotaque irlandês -, onde é que você anda a esconder o bom whisky de malte?
O padre MacReady sorri.
- Acho vantajoso quebrar barreiras culturais de vez em quando.
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- Quer? - Rampini dá ao outro padre um copo cheio de vinho até às bordas e, em seguida, ergue o seu e esvazia-o num movimento rápido.
Bem, não é leite, mas fá-lo-á dormir na mesma. O padre MacReady inclina o seu próprio copo e bebe até à última gota. Rampini ri.
- Agora quer fazer um concurso para ver quem cospe mais longe?
- Não, obrigado. Já me sinto enjoado. Mas ensinaram-me que não é bem-educado deixarmo-nos ficar para trás na nossa própria casa.
O outro padre sorri.
- vou ser um bom hóspede. Prometo desmaiar sem confusões na minha cadeira.
MacReady tamborila com os dedos no tampo da mesa.
- Quanto tempo acha que vai ser um hóspede?
- Se precisar...
- Não, não - diz ele em tom conciliador. - Fique o tempo que quiser.
Rampini assopra.
- Está a tentar arranjar uma forma simpática de me perguntar porque é que ainda estou aqui.
- Essa ideia passou-me de facto pela cabeça.
- Mmm - o padre visitante esfrega o rosto com as mãos. Também tenho feito essa pergunta a mim próprio. Sabe o que estive a fazer durante toda a tarde?
- A arranjar-me uma tremenda conta de telefone?
- Sim, mas a diocese irá pagá-la. Na verdade, estive a ler o trabalho de uma psiquiatra que fala sobre a imagem de Deus que uma criança pequena tem. Há uma teoria de que as primeiras ideias de Deus estão relacionadas com o bebé a olhar para a mãe, sabendo que pode fechar os olhos e imaginá-la, porque quando os abrir ela ainda lá estará.
O padre MacReady acena com a cabeça devagar, sem ter a certeza de onde ele quer chegar.
- Então a criança chega aos seis, sete anos. Ouve falar de Deus na televisão, vê imagens de anjos. Não sabe verdadeiramente quem é Deus, mas sabe através do contexto que Deus é grande, poderoso e vê tudo. Há duas pessoas que a criança conhece que correspondem a essa descrição: a mãe e o pai. Utiliza-os como matéria-prima. Se foi muito acarinhada, pode ter uma representação de um Deus afectuoso. Se teve uma educação severa, Deus pode ser mais
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restritivo - o padre Rampini volta a inclinar a garrafa de chianti sobre o
seu copo. - De outra forma, a criança pode atribuir a Deus aquilo
que gostaria de ter num progenitor: amor incondicional, protecção,
o que for.
Esfrega um pequeno círculo de condensação no tampo da mesa.
- Então agora consideremos a Faith White, cuja mãe, tal como ela própria admitiu, nem sempre foi a mãe mais dedicada. O que acontece a uma criança que sempre quis ter a atenção da mãe? E que depois acaba, milagre dos milagres, por apenas ter a mãe na sua vida? Quem é mais provável que imagine que Deus
seja?
- Uma mãe dedicada - murmura o padre MacReady, e em seguida agarra no chianti e bebe directamente da garrafa. Limpa a boca com as costas da mão. - Pensava que já tinha escrito o seu parecer ao bispo.
- E escrevi - Rampini retrai-se. - Só que... há alguma coisa recosta-se na cadeira, percorrendo com o olhar as paredes gastas da cozinha do padre. - Se ao menos conseguisse perceber porque é que ela vê uma mulher. Porquê. Isso faria toda a diferença, sabe? Quero dizer, aquela treta que eu acabei de lhe contar, é psicologia. E não teologia. Posso lê-la, mas não consigo acreditar nela de todo o meu coração.
- Talvez não seja isso que ela vê - diz o padre MacReady devagar. - Talvez seja a forma como ela o interpreta.
- Em que é que isso difere daquilo que acabei de dizer?
- Difere. Alguma vez viu aquele desenho, aquele que se olhar para ele de uma maneira vê uma garrafa, e se olhar de maneira diferente, vê duas pessoas beijarem-se?
O padre Rampini afasta o vinho.
- Acho que é altura de parar.
- Estou completamente sóbrio. Sabe o que é... como se diz... ilusões de óptica! Bem, pode ser a referência da Faith que está errada, e não a sua visão - perante o olhar vago do padre Rampini, MacReady prossegue: - Digamos que é uma menina que não sabe nada de religião. Qualquer religião. E vive nos anos noventa, numa cidade bastante conservadora, onde a maioria das pessoas tem um aspecto semelhante. Então um dia aparece alguém sem mais nem menos. A pessoa tem mais ou menos esta altura, longos cabelos castanhos e usa um vestido e sandálias como a nossa mãe. O que depreende que está a ver?
- Uma mulher - murmura o padre Rampini. - Mas é Cristo, talvez jovem, sem barba, nas suas vestes tradicionais.
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- Não há razão para achar que uma menina de New Canaan saiba o que os homens vestiam na Galileia há dois mil anos - o padre MacReady exibe um sorriso tão rasgado que chega a pensar que o seu rosto pode dividir-se em dois. Sente-se ser puxado até ficar de pé enquanto o padre Rampini lhe dá um grande abraço.
- Sabe o que isso significa? Sabe?
- Que vai fazer outra chamada de longa distância no meu telefone - diz o padre MacReady, rindo. - Esteja à vontade. Telefone para o bispo Andrews por minha conta.
Segue o padre Rampini para o quarto de hóspedes, onde o outro padre procura na secretária atafulhada o número de telefone de Manchester.
- Claro - diz Rampini entre dentes - a Conferência do Bispo dirá que Cristo se faria anunciar como o Senhor bastante rápido, apesar das roupas... mas pelo menos chegará à conferência. Ah, aqui está. Passa-me o telefone?
O padre MacReady não está a ouvir. Tem o telefone portátil numa mão e o calendário com os dias dos santos do padre Rampini na outra. Rasgou a página, por isso o dia de amanhã está visível. Sem palavras, entrega-o ao padre visitante.
Santa Elizabeth de Schonau. Morte 1146. Santa Elizabeth teve uma visão de uma jovem mulher sentada ao sol e pediu a um anjo que lhe dissesse o que significava. O anjo disse: "A jovem mulher é a sagrada natureza humana de Nosso Senhor Jesus Cristo."
O padre Rampini marca o número.
- Eu sei - diz ele para o telefone passado um momento. Acorde-o.
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Onze
A quem, pois, ireis comparar Deus? com que imagem o podeis confrontar? Isaías 40,18
Quando tinha a idade da Faith, soube que ia para o Inferno.
A Ursula Padrewski estava sentada atrás de mim na escola nesse ano. Era alta para sete anos, com longas tranças que a mãe enrolava no cimo da cabeça como uma cascavel adormecida. O pai era um prior adjunto da Igreja Episcopal. Um dia no recreio, agarrou na Barbie de cada uma das raparigas e mergulhou-as, de cabeça, numa poça de água da chuva. Veio ter comigo de mãos nas ancas e disse que a Barbie Malibu tinha de ser baptizada.
- O que é ser baptizada? - perguntei.
Ela soltou uma expressão abafada, como se se tratasse de uma palavra que eu devesse saber.
- Tu sabes. Quando te mergulham na água por causa de Deus.
- Deus não me mergulhou na água - disse-lhe.
- Fazem isso na igreja quando somos bebés - disse ela, mas não antes de recuar um passo. - Se não fores baptizada - confessou Ursula -, és lançada para um fosso em chamas e vais para o Inferno.
Já tinha idade suficiente para compreender que a minha família não frequentava a igreja, o que significava que provavelmente eu não tinha sido baptizada, afinal. Isso deixou-me na cabeça a imagem do chão a abrir-se e das chamas a chegarem-me à garganta.
Comecei a gritar tão alto que mesmo depois de a auxiliar me ter levado à força para o gabinete da enfermeira, ninguém era capaz de me acalmar o suficiente para perceber o que se passava. A minha mãe, que tinha sido chamada com um telefonema, chegou passados
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dez minutos. Chegou a correr parando de repente no linóleo, colocando as mãos no meu corpo à procura de ossos partidos.
- Mariah, o que se passa?
Fez sinal à enfermeira para que se fosse embora.
- Mamã - perguntei eu, com a respiração acelerada -, fui baptizada?
- Os judeus não são baptizados. Começo novamente a chorar.
- vou para o Inferno!
A minha mãe envolveu-me nos seus braços, e resmungou algo sobre a oração em escolas públicas e sobre o reverendo Louis Padrewski. Depois tentou falar-me de os Judeus serem o Povo Eleito, e que eu não tinha absolutamente nada a recear, e que não havia nenhum fosso em chamas.
Mas eu sabia que a minha família não tinha nada a ver com a do Joshua Simki, que também era judia, mas que levava isso muito a sério. O Joshua, no terceiro ano, não podia beber leite sempre que serviam hambúrgueres na cantina. E usava um pequeno yarmulke feito de croché na escola, preso ao cabelo com um gancho. A minha família, bem, não frequentava a igreja - mas também não frequentava o templo. Não tinha sido baptizada, mas não achava que íamos ser Eleitos.
Pouco depois, fiquei pronta para ir para casa. Mas enquanto nos dirigíamos para o carro, tive o cuidado de saltar por cima das rachas do passeio, a pensar que a qualquer momento se abririam para revelar o fosso em chamas da Ursula. E nessa noite, quando os meus pais já estavam a dormir há muito, enchi a banheira de água e mergulhei a Barbie Jalibu. Depois enfiei lá a cabeça e repeti uma oração antes de deitar que tinha ouvido a Laura Ingalls dizer no programa de televisão Uma Casa na Pradaria. Para prevenir.
30 de Outubro de 1999
De manhã, Joan telefona-me.
- Queria apenas ter a certeza de que ainda estava viva - diz ela, e embora esteja a dizer uma piada, nenhuma de nós se ri. Achei que devia passar por aí esta tarde, para falar sobre uma estratégia de defesa.
O próprio conceito faz-me pensar naquilo que o Ian disse ontem à noite, sobre dar luta. A autodefesa, por definição, envolve colocarmo-nos em risco.
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- Joan, por acaso viu o Hollywood Tonightí?
- Preferia depilar as virilhas com cera do que assistir a esse programa.
Não pela primeira vez, interrogo-me sobre quem será responsável pelo seu enorme número de espectadores.
- Apareceu o Colin. com o Malcolm Metz. Ontem falaram à porta do tribunal, e o Colin referiu como a Faith se encontra em perigo e depois começou a chorar.
- Bem, não tem de se preocupar com o facto de a comunicação social distorcer o seu caso. Graças a Deus, a única pessoa que vai presidir à audiência será o juiz, e...
- Acho que devia deixar que o Hollywood Tonigbt! viesse a minha casa para filmar a Faith.
- O queí - Joan demora um minuto para se recompor da surpresa, e quase consigo ouvi-la ficar tensa. - Como sua advogada, recomendo-lhe vivamente que não tome essa atitude.
- Sei que não tem nada a ver com a audiência, Joan. Mas o juiz precisa de ver a Faith como uma menina normal, a brincar com bonecas e Legos e o que for. E falando nisso, as outras pessoas que pensam que ela é alguma espécie de santa também. Não quero parecer que tenho alguma coisa a esconder.
- Nunca devia misturar a comunicação social com o tribunal, Mariah.
- Também não devia ficar aqui sentada enquanto o Colin leva a minha filha. Não quero que ele ponha ideias na cabeça das pessoas sobre mim e sobre a Faith, quando nós somos perfeitamente capazes de falar por nós próprias - hesitando, acrescento -, já me encontrei nesta situação antes, por causa do Colin. E não vou deixar que ele me faça outra vez o mesmo.
Ouço-a bater com qualquer coisa - um dedo? Um lápis? - no telefone.
- Nada de entrevistas, nem consigo nem com a Faith - diz por fim, começando a enumerar uma lista de condições. - Quinze minutos de filme, no máximo, e apenas em divisões que tenham sido previamente designadas contratualmente. E não vai assinar absolutamente nada sem eu ver.
- Está bem.
- Sabe que isto significa que vou ter de assistir ao maldito programa?
- Lamento.
Joan suspira pesadamente.
- Pois - diz ela. - Eu também.
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Lacey Rodriguez acha que se deve começar pelo princípio. E em sua opinião, o furor que rodeia a Faith White surgiu após o incidente com a ressurreição da avó. Tira um pequeno caderno da sua grande mala e sorri para o Dr. Peter Weaver, o cardiologista responsável pelo caso de Millie Epstein.
Apesar de ser um homem atraente, é enfadonho. Coloca as mãos abertas no tampo da secretária e lança um olhar zangado a Lacey.
- Compreendo que esteja a fazer o seu trabalho, Sr.a Rodriguez. E é por isso que tem de perceber que não posso divulgar informações sobre a minha paciente.
Redobra a intensidade do sorriso.
- E também não lhe pediria que o fizesse. Na verdade, o advogado para quem estou a trabalhar está mais interessado naquilo que sabe sobre a Faith e a Mariah White.
O Dr. Weaver pestaneja.
- Não as conheço. A não ser, como é óbvio, através dos rumores que todos ouvimos sobre a criança. Mas, clinicamente, não posso confirmar nenhuma alegação de cura. Para mim a questão não foi como a Sr.a Epstein ressuscitou, mas pura e simplesmente que isso tenha acontecido.
- Entendo - diz Lacey, fingindo registar cada palavra numa página do seu caderno, quando na realidade o homem não disse absolutamente nada que interessasse.
- As únicas vezes que contactei com a Sr.a White foram à cabeceira da cama da mãe dela e nos exames subsequentes.
- Ela pareceu-lhe... frágil na altura? Emotiva?
- Como qualquer outra pessoa estaria, dadas as circunstâncias. Devo dizer que, no geral, a impressão que tive dela foi de preocupação e protecção em relação à mãe - abana a cabeça, com os pensamentos a retroceder. - E em relação à filha.
- Podia dar-me um exemplo?
- Bem - diz o Dr. Weaver -, houve uma altura durante a prova de esforço da Sr.a Epstein, quando o operador de câmara deve ter apanhado a menina no enquadramento e...
- Desculpe... o doutor filmou a prova de esforço?
- Não, eu não. O Ian Fletcher. Aquele tipo da televisão. A Sr.a Epstein e o hospital assinaram documentos para permitir as filmagens. Tenho a certeza de que isso já foi transmitido. Mas a questão era que a Sr.a White não queria de forma nenhuma que a filha fosse filmada, e fez tudo o que podia para o impedir. Foi atrás do
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operador de câmara, aos gritos e aos empurrões. A própria imagem do instinto maternal feroz - sorri apologeticamente. - Então, está a ver, não tenho de facto muito a dizer que possa ajudar no seu caso.
Lacey devolve-lhe o sorriso. "Não tenha assim tanta certeza", pensa ela.
2 de Novembro de 1999
Kenzie Van der Hoven provém de uma longa linhagem de homens de leis.
O seu bisavô tinha fundado a Van der Hoven Weiss, um dos primeiros escritórios de advocacia em Boston. O pai, a mãe e os seus cinco irmãos mais velhos eram actualmente todos sócios. Quando ela nasceu, a última da prole, os pais tinham tanta certeza de que era outro rapaz que simplesmente lhe deram o nome que já tinham escolhido.
Cresceu como Kenneth, confundindo todos- os professores da escola e fazendo todos os possíveis para encurtar o nome para um diminutivo, embora os pais nunca tivessem cedido aos seus desejos. Seguindo os passos marcados de toda a gente da família, frequentou a Faculdade de Direito da Universidade de Harvard e entrou para a ordem dos advogados e levou precisamente cinco casos a tribunal antes de resolver que estava cansada de ser o que as outras pessoas queriam que ela fosse. Mudou legalmente o seu nome para Kenzie. e iniciou uma carreira de tutora ad litem, a defensora da criança nos casos de disputa de custódia.
Já trabalhou para o juiz Rothbottam antes, e considera-o um homem justo - embora um pouco parcial em relação aos musicais da Broadway com a Shirley Jones. Portanto, quando lhe telefonou ontem devido ao caso White, aceitou imediatamente.
- Devo avisá-la - disse o juiz. - Este caso vai ser bizarro.
Agora, enquanto Kenzie percorre a propriedade dos White de olhos muito abertos, compreende o que ele quis dizer. Na altura não tinha relacionado o nome com o revivalismo religioso que ocorria em New Canaan - a maioria dos jornais que lia referia-se a Faith simplesmente como "a criança", numa espécie de tentativa de proteger a privacidade da menina. Mas isto - bem, isto é indescritível. Há pequenos grupos de pessoas acampadas em tendas, a aquecer o almoço com fogões de campismo Sterno. Os doentes nas suas cadeiras de rodas são pontos no meio da multidão, alguns
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contorcidos devido à esclerose múltipla, alguns a arrastarem cateteres, alguns de olhos muito abertos e vazios. Freiras de hábitos negros caminhavam pelas folhas caídas como um bando de pinguins, rezando ou assistindo os doentes. E depois há os jornalistas, completamente diferentes dos outros, com as suas furgonetas baixas e operadores de câmara, os seus fatos chiques tão deslocados como flores no chão gelado de Novembro.
Por onde é que há-de começar?
Começa a abrir caminho por entre a massa compacta de corpos, determinada a chegar à porta de entrada para poder falar com Mariah White. Após cinco minutos a tropeçar em sacos-cama e cordas das tendas, acaba por desistir. Algures ali deverá haver um polícia; viu o carro marcado nos limites da propriedade. Não seria a primeira vez que teria o seu estatuto de tutora ad litem reforçado por um agente da autoridade, mas a razão nunca tinha sido o controlo da multidão.
Virando-se para uma mulher ao seu lado, Kenzie ri-se, sem fôlego.
- Isto é impressionante, não é? Deve ter chegado aqui há bastante tempo para ter arranjado um lugar tão bom. Está à espera da Faith?
Os lábios finos da mulher retraem-se.
- Não inglês - diz ela. - Sprechen Sie Deutscb?
"Óptimo", pensa Kenzie, "com centenas de pessoas aqui e eu escolho aquela que não me compreende." Fecha os olhos por um momento, relembrando a agenda do juiz. A audiência para determinar a custódia será daqui a cinco semanas. Nessa altura, terá de entrevistar toda a gente que contactou com a Faith desde Agosto, possivelmente antes, tem de chegar ao fundo da questão da ressurreição da avó, e tem de conquistar a Faith e convencê-la de que é uma aliada.
Basicamente, precisa de um milagre.
Enquanto meto os sapatos da Faith no armário, apercebo-me de que alguém está a tirar fotografias através do vidro da porta de entrada.
- Desculpe - digo eu, abrindo a porta bruscamente. - Importa-se? O homem levanta a sua Leica e tira-me uma fotografia.
- Obrigado - diz ele, e vai-se embora a correr.
- Meu Deus - resmungo para comigo junto à porta aberta. O carro da minha mãe sobe vagarosamente e com dificuldade a via de acesso, estacionando finalmente a meio caminho, quando as pessoas já estavam a aproximar-se tanto que não era seguro continuar. Ela foi a casa fazer uma mala e regressou, decidindo mudar-se para
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cá por uns tempos. É mais fácil do que tentar afastar os repórteres que a perseguem no breve percurso para sua casa. O homem da Leica também está mesmo à sua frente, quando sai do carro. Alguns seguidores entoam o nome de Faith. Por alguma razão, hoje estão muito mais perto de minha casa do que deveriam.
A minha mãe sobe desajeitadamente os degraus do alpendre com a mala e vira-se para trás.
- Vão embora - diz ela, agitando as mãos para as massas. - Xô!
- passa por mim irritada, fecha e tranca a porta. - O que se passa com estas pessoas? Não têm mais nada que fazer?
Espreito pelo vidro da porta de entrada.
- Como é que estão aqui ao pé do alpendre?
- Houve um acidente na cidade. Passei por ele quando vinha para aqui. Um camião de transporte de madeira capotou à saída da auto-estrada, por isso não está nenhum polícia ao fundo da via de acesso.
- Óptimo - murmuro. - Suponho que devo agradecer por não estarem a bater à porta.
A minha mãe assopra.
- Ainda é cedo.
Profeticamente, soa a campainha. À porta, com mais ousadia do que alguma vez imaginei, encontra-se Petra Saganoff. Tem um operador de câmara atrás de si. Antes que consiga fechar-lhe a porta na cara, ela consegue meter um sapato de salto alto vermelho cá dentro.
- Sr.a White - diz ela, com o operador de câmara a gravar as palavras -, tem alguma resposta às alegações do seu marido de que a Faith se encontra em perigo por viver consigo?
Penso na ideia de Ian de convidar esta cabra para minha casa, sobre a minha aceitação relutante e quase me engasgo. Esta não é a altura própria para a deixar entrar - tem de ser sob as minhas condições, a Joan deixou isso bem claro. Viro-me para a minha mãe, com quem posso sempre contar para pôr alguém no seu lugar, mas ela desapareceu.
- Está em propriedade privada.
- Sr.a White - repete Saganoff, mas antes de poder terminar, a minha mãe regressa, empunhando a espingarda antiga da guerra da independência que está pendurada por cima da lareira da sala de estar.
- Mariah - diz ela, apontando cuidadosamente o cano da espingarda para Petra Saganoff -, quem está aí?
Tenho a satisfação de ver o operador de câmara empalidecer e Petra Saganoff recuar.
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- Oh - diz a minha mãe, irritada. - É ela. O que estavas a dizer à Sr.a Saganoff sobre a propriedade privada?
Fecho a porta e volto a trancá-la.
- Meu Deus, mãe - gemo. - Para que fizeste isto? Provavelmente ela vai levar a gravação ao juiz e dizer-lhe que a doida da mãe da Faith lhe apontou uma arma.
- Não foi a doida da mãe da Faith que fez isso, foi a doida da avó. E se a levar ao juiz, aposto que ele irá perguntar-lhe porque é que ela estava a violar um mandado de restrição reforçado pelas forças policiais - dá-me palmadinhas no ombro. - Só quis pregar um susto à rapariga da cidade.
Faço uma careta.
- É uma espingarda de pólvora preta que não funciona há uns duzentos anos.
- Sim, mas ela não sabia disso.
A campainha da porta volta a tocar. A minha mãe olha para mim.
- Não atendas.
Mas quem está a tocar é insistente; a campainha toca vezes sem conta.
- Mãe! - grita a Faith, entrando na sala a correr. - Alguém está a fazer aquilo à campainha que tu me disseste para não fazer...
- Caramba! - digo à minha mãe para telefonar para a esquadra da polícia para pedir um agente para guardar a via de acesso. Digo à Faith para ir brincar para o quarto, onde não conseguem vê-la. Depois abro a porta com tanta força que bate na parede.
A mulher veste um fato conservador e traz um bloco de notas e um gravador de microcassetes. Não faço ideia para que que jornal ou revista ela trabalha, mas já vi o número suficiente de pessoas como ela para reconhecer o tipo.
- Vocês não têm respeito absolutamente nenhum. Gostavam que eu aparecesse em vossa casa sem ser convidada quando... quando estivessem a tomar um banho? Ou a festejar o aniversário do vosso filho? Ou... meu Deus, porque é que eu estou sequer a falar consigo? - fecho a porta com força.
A campainha volta a tocar.
Conto até dez. Respiro fundo três vezes. E depois entreabro a porta.
- Daqui a sessenta segundos - ameaço -, vai estar aqui um polícia para a arrastar para a prisão por invasão de propriedade privada.
- Não me parece - diz ela friamente, mudando o gravador e o bloco de posição para poder estender a mão. - Sou Kenzie van der Hoven. A tutora aã litem nomeada pelo tribunal.
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a esperança de que quando os abrir isto não tenha acontecido, que Kenzie van der Hoven já não esteja à minha porta ofendida com os insultos que acabei de lhe atirar
à cara.
- Gostava de falar consigo, Sr.a White. Sorrio debilmente.
- Porque é que não me chama Mariah? - sugiro e, o mais graciosamente que consigo, convido-a a entrar.
- A Faith está aqui - digo, conduzindo a tutora ad litem para a sala de estar, onde a minha filha está a ver televisão, uma recompensa por ter terminado as folhas de exercícios de matemática que fiz para ela. A minha mãe está sentada ao lado dela, no sofá, afagando ociosamente os cabelos de Faith. - Faith - digo num tom animado -, esta é a Dr.a Van der Hoven. Ela vai passar algum tempo connosco - os olhos da minha mãe cruzam-se com os meus. Dr.a Van der Hoven, esta é a minha mãe, Millie Epstein.
- Prazer em conhecer-vos. Por favor, chamem-me Kenzie.
- E esta - acrescento -, é a Faith.
Kenzie van der Hoven sobe na minha consideração quando se agacha ao lado da Faith e fica a olhar para a televisão.
- Adoro o Artbur. A D. W. é a minha preferida.
A Faith enfia cautelosamente as mãos com os pensos debaixo das coxas.
- Eu também gosto da D. W.
- Alguma vez viste aquele em que ela vai à praia?
- Vi - diz a Faith, subitamente animada. - E ela pensa que está um tubarão na água!
Ambas riem, e depois Kenzie levanta-se novamente.
- Tenho muito gosto em conhecer-te, Faith. Talvez tu e eu pudéssemos conversar um bocadinho mais tarde.
- Talvez - diz Faith.
Levo Kenzie para a cozinha, onde ela recusa uma chávena de café.
- A Faith não costuma ver televisão. Duas horas por dia, e pronto. O Disney Channel ou o PBS.
- Mariah, quero deixar uma coisa absolutamente clara. Não sou o inimigo. Estou aqui só para garantir que a Faith acabe por ficar no melhor sítio possível.
- Eu sei. E eu não costumo agir... como agi quando lhe abri a porta. Só que devia haver um polícia aqui para manter toda a gente afastada, e...
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- Estava a ser cuidadosa. É compreensível - olha para mim durante um momento, mostra-me o gravador. - Importa-se? Tenho de escrever um relatório, e isto ajuda a reconstruir as conversas que tenho com as pessoas.
- Esteja à vontade - sento-me à frente dela à mesa da cozinha.
- O que acha que o juiz devia saber?
Fico em silêncio por um momento, lembrando-me de como tinha tanto para dizer há anos e não havia ninguém que me quisesse ouvir.
- Ele vai prestar atenção a isso?
Kenzie parece um pouco sobressaltada por ouvir isto.
- Gostaria de pensar que sim, Mariah. Conheço o juiz Rothbottam há algum tempo, e ele tem sido muito justo.
Puxo uma cutícula da unha.
- É que não tenho tido muita sorte com o sistema legal - digo cautelosamente. - É difícil para mim contar-lhe isto, porque a Kenzie faz parte do sistema legal, e provavelmente isto vai soar-lhe a despeito. Mas a situação assemelha-se: a palavra do Colin contra a minha. O Colin é desembaraçado; tem um raciocínio mais rápido. Há sete anos conseguiu convencer toda a gente de que sabia o que era melhor para mim. Agora diz que sabe o que é melhor para a Faith.
- Mas a Mariah acha que sabe?
- Não - corrijo. - A Faith é que sabe. Kenzie toma uma nota no seu bloco.
- Então deixa que a Faith tome decisões por si própria? De imediato, percebo que disse o que não devia.
- Bem, não. Ela tem sete anos. Não pode comer M M s ao pequeno-almoço, independentemente do que diga, e não pode ir de tutu para a escola quando está a nevar. Não tem idade suficiente para saber tudo, mas tem idade suficiente para intuir - olho para o colo. - Estou preocupada por o Colin ter tanta certeza de que conhece a Faith melhor do que ela se conhece a si própria, que possa convencê-la de que tem razão, antes que alguém o impeça.
- É por isso que eu estou aqui - diz Kenzie num tom firme.
- Oh... Não quis dizer-lhe como fazer o seu trabalho...
- Fique tranquila, Mariah. Tudo o que disser não vai ser usado contra si.
Baixo os olhos e aceno com a cabeça. Mas também não acredito muito nisso.
- O que quer que aconteça?
Passados todos estes anos, há alguém que finalmente pergunta. E passados todos estes anos, a resposta ainda é a mesma. O que eu
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quero é uma segunda oportunidade. Mas desta vez, quero uma segunda oportunidade com a Faith.
Sem mais nem menos, recordo-me de algo que o rabi Weissman disse no dia em que levei a Faith para o ver: podemos ser judeus agnósticos, judeus não praticantes... mas não deixamos de ser judeus. Tal como podemos ser pais inseguros, pais egocêntricos... mas não deixamos de ser pais.
Fico a olhar para Kenzie van der Hoven. Podia transformar-me na Mãe do Ano. Podia dizer-lhe aquilo que sei que ela quer ouvir. Ou podia dizer-lhe a verdade.
- Tentei suicidar-me há sete anos, depois de descobrir o meu marido na cama com outra mulher. Só conseguia pensar que não era uma esposa suficientemente boa, não era uma mulher suficientemente bonita, simplesmente... não era. O Colin fez com que eu fosse internada em Greenhaven, dizendo ao juiz que era a única maneira de impedir que eu voltasse a tentar suicidar-me. Mas sabe, ele não sabia que eu estava grávida quando me mandou para longe. Tirou-me quatro meses da minha vida, e a minha casa, e a minha confiança, mas eu ainda tinha a Faith - respiro" fundo. - Já não tenho tendências suicidas. Já não sou mulher do Colin. E certamente não sou a mulher que estava tão enfeitiçada por ele que o deixe encerrar-me numa instituição. Sou a mãe da Faith. É isso que sou há sete anos. Mas é impossível ser-se mãe quando nos tiram a nossa filha, não é?
Kenzie não anotou uma única palavra daquilo que eu disse, e não sei se isso é bom ou mau. Fecha o caderno, a sua expressão não revelando nada.
- Obrigada, Mariah. Será que agora seria uma boa altura para falar com a Faith?
Quando a tutora ad litem entra na sala de estar, a minha mãe vem ter comigo à cozinha. Tento não observá-las através da porta, mesmo quando Kenzie se senta no sofá ao lado da Faith e diz algo que a faz rir.
- Então?
- Então - encolho os ombros. - Sei lá.
- Bem, o que disseste à mulher, por exemplo. Deves ter ficado com alguma impressão do que ela pensa de ti.
Claro que tenho, mas não vou dizer à minha mãe. Mesmo que não tivesse falado de Greenhaven à tutora ad litem, o assunto seria abordado durante a audiência. Nessa altura, porém, talvez a mulher tivesse encontrado alguma coisa que admirasse em mim, algo para
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equilibrar o facto de ter sido enviada para uma instituição. A verdade nem sempre nos liberta; as pessoas preferem acreditar em mentiras mais atractivas, num embrulho mais bonito. Kenzie van der Hoven pode ter pena de mim, mas isso não vai fazer com que me deixe ficar com a Faith.
- vou perdê-la, mãe - digo, escondendo o rosto nas mãos. Sinto-a tocar-me nas costas. E em seguida estou nos seus braços, onde sempre coube, a ouvir aquele seu incrível coração debaixo da minha face. De repente, sinto a sua força, como se a resistência fosse algo que se pudesse oferecer.
- Quem disse? - murmura a minha mãe, e beija-me o alto da cabeça.
Kenzie tem apenas uma regra firme enquanto tutora ad litem-. não estar à espera de nada. Assim, não pode ficar desiludida. Rara é a criança que se sente à vontade logo no primeiro encontro; já teve muitos casos onde se passam dias antes que o seu protegido murmure sequer um olá. Até uma criança se ter apercebido das boas intenções de Kenzie e as ter escrutinado, raramente acredita que se trata de uma amiga.
Por outro lado, uma criança que acredita que Deus a visita devia ser capaz de aceitar que Kenzie esteja a ser sincera.
Kenzie é suficientemente prática para perceber que as hipóteses de Faith ser aquela mística que as pessoas pensam são diminutas. As crianças da idade de Faith adoram dinossauros e baleias por serem tão grandes e poderosos, enquanto as crianças de sete anos não são. Fazer de Deus tem as mesmas bases psicológicas.
Faith está sentada ao lado dela como um cordeirinho a ser levado para o matadouro, de cabeça baixa e mãos cuidadosamente escondidas na sombra do seu colo. É óbvio que a criança já foi observada, interrogada, ou estudada antes.
- Faith, sabes porque é que eu estou aqui?
- Hmm-hmm. A senhora não? Kenzie sorri.
- Por acaso sei. Houve alguém que me explicou. Resignada, Faith vira-se de frente para ela.
- Suponho que queira fazer-me algumas perguntas.
- Sabes uma coisa... aposto que há algumas coisas que gostavas de me perguntar.
Faith abre muito os olhos.
- A sério?
Kenzie acena com a cabeça.
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- Bem, vou continuar a viver aqui?
- Queres?
- Disse que eu podia fazer as perguntas.
- Tens razão, desculpa. Não sei a resposta, Faith. Vai depender de muitas coisas, incluindo do que quiseres que aconteça.
- Não quero magoar a minha mãe - sussurra Faith, numa voz tão suave que Kenzie tem de aproximar-se. - E não quero magoar o meu pai - desvia o rosto. - Quero...
Kenzie respira fundo, à espera. Mas em vez de falar, Faith cerra os punhos e enfia-os debaixo dos braços. Kenzie observa os pulsos finos dela, interrogando-se se as mãos da criança lhe doerão, se devia chamar Mariah, se devia simplesmente voltar noutra altura.
Kenzie não sabe nada sobre estigmas - alegados ou reais. Mas uma coisa que sabe de trás para a frente é a sensação de ser uma menina desajustada.
- Sabes uma coisa - diz Kenzie num tom casual -, já não me apetece conversar mais.
Faith põe-se de pé num salto.
- Isso significa que eu posso ir embora?
- Acho que sim. A não ser que gostasses de sair lá para fora.
- Lá... para fora? - a voz de Faith transborda de satisfação.
- Lá fora está um dia lindo. Suficientemente frio para nos fazer cócegas na garganta quando respiramos fundo - inclina a cabeça. vou dizer à tua mãe onde vamos. O que dizes?
Faith fica a olhar para Kenzie durante vários segundos, tentando perceber se se trata de alguma piada cruel. Depois sai da sala
a correr.
- Tenho de ir calçar as sapatilhas. Espere por mim! Sorrindo, Kenzie agarra no casaco. O facto de Faith recear
magoar os pais podia ter muitos significados, mas Kenzie sabe que no mínimo sugere que a rapariga sente uma grande responsabilidade - e porque não haveria de sentir? A família desfez-se, o seu jardim está cheio de pessoas que acham que ela é o Messias. Defender uma criança neste caso implica aligeirar-lhe a carga, permitir que Faith tenha liberdade para ser uma criança de sete anos. Para intuição espontânea, esta não é má. Kenzie terá oportunidade de ver Faith reagir ao bloqueio da imprensa que de certeza as seguirá à distância. Espreita para a cozinha e comunica a Mariah as suas intenções, depois entra na sala de estar antes que Mariah possa proferir qualquer objecção.
- Estás pronta? - pergunta ela quando Faith regressa, e em seguida destranca a porta e sai para o alpendre.
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Faith atravessa a soleira da porta hesitantemente. com as mãos enfiadas nos bolsos do seu casaco polar, dá pontapés indecisos num monte de folhas. Depois estica os braços e gira num círculo, de rosto erguido para o céu.
Os jornalistas não demoram muito a chegar à beira do muro de pedra, novamente regulados pela chegada fortuita da polícia local. Mas mesmo a uma grande distância, as lentes de longo alcance permitem-lhes fotografar Faith, e colocam as mãos em concha em volta da boca para a chamar. Faith está a meio caminho dos baloiços ao lado da casa rural quando ouve as primeiras perguntas, lançadas como bolas de borracha para a apanhar desprevenida:
- O mundo vai acabar?
- Deus quer alguma coisa de nós?
- Porque é que Deus te escolheu?
Tropeça numa toca de marmota, e teria caído se Kenzie não estivesse lá para a amparar. Baixando a cabeça, Faith murmura:
- Podemos voltar a entrar?
- Não tens de lhes responder - diz Kenzie num tom suave.
- Mas mesmo assim tenho de ouvir.
- Ignora-os - dá a mão a Faith e leva-a para os baloiços. Brinca - incita Kenzie. - Não deixo que te façam nada.
A comunicação social começou a reagir em massa - tirando fotografias e filmando e gritando perguntas.
- Fecha os olhos - grita Kenzie por cima das vozes deles. Inclina a cabeça para trás.
Para ilustrar, Kenzie fá-lo primeiro no baloiço ao lado de Faith. Observa Faith olhar para ela, e por fim vê a menina balançar-se hesitantemente para trás e para a frente, com um sorriso a embelezar-lhe o rosto.
A imprensa continua a gritar, e um contralto sonoro e vibrante começa a cantar "Amazing Grace" à distância, e Faith ainda está a andar de baloiço. E então, subitamente, os seus olhos estão abertos enquanto se balança para trás e para a frente, para trás e para a frente.
- Kenzie! - grita Faith. - Veja o que eu sou capaz de fazer! num momento de fazer parar o coração, ela larga as correntes do baloiço e lança-se no ar.
As perguntas cessam, colectivamente. Todos sustém a respiração, incluindo Kenzie. Uma centena de câmaras captam a imagem da menina com os braços abertos, o corpo como uma seta, a voar.
E então, com um baque, uma gargalhada e um joelho esfolado, Faith cai, como toda a gente.
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Observo-as da sala de estar, espreitando por entre as faixas horizontais dos estores. Sinto-o desenvolver-se dentro de mim como um tumor, algo que não sentia desde que voltei para casa para encontrar outra pessoa ao lado do Colin, no sítio onde eu devia estar.
Tenho tanta inveja de Kenzie Van der Hoven que tenho dificuldade em respirar.
A minha mãe surge atrás de mim.
- Algumas pessoas usam um espanador para limpar os estores. Recuo imediatamente.
- Vês o que ela está a fazer? Vês?
- Vejo, e está a tirar-te do sério - a minha mãe sorri. - Querias ter tido a ideia. Então porque é que não tiveste?
Ela vai-se embora antes que eu consiga arranjar uma desculpa. Porque é que eu não levei a Faith lá para fora para brincar? Há a razão óbvia, claro - a enchente de jornalistas à espera como barracudas pela mais pequena parcela de engodo - mas por outro lado, e depois? Têm arranjado maneira de transmitir na televisão histórias sobre a Faith quer ela apareça quer não para alimentar o frenesim. Transmitiram quando ela estava tão longe em Kansas City. Como é que as imagens de uma menina poderiam ser transformadas em algo mais insidioso?
Passados alguns minutos, Faith está de pé em frente à porta de correr. Tem as faces rosadas do frio, e as leggings estão enlameadas nos joelhos. Mostra-me com orgulho a nova esfoladela no cotovelo.
- Trouxe-a outra vez para casa - diz Kenzie van der Hoven. Tenho de ir andando.
Tenho de recorrer a todas as minhas forças para olhá-la nos olhos.
- Obrigada. A Faith precisava disto.
- Não há problema. O tribunal...
- Ambas sabemos - interrompo -, que o que fez hoje não teve nada a ver com as ordens do juiz.
Por um momento, vejo uma luz nos olhos de Kenzie, e sei que a surpreendi. O rosto suaviza-se.
- Não foi nada.
A Faith puxa-me a camisola.
- Viste-me? Viste como fui tão alto?
- Vi. Fiquei impressionada. Vira-se para Kenzie.
- Não pode ficar só mais uns minutos?
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- A Dr.a Van der Hoven precisa de ir a outros sítios - ajeito o rabo-de-cavalo da Faith. - Mas aposto que eu consigo chegar tão alto como tu.
O ar de surpresa no rosto da Faith é quase cómico. -Mas...
- Vais discutir comigo, ou vais aceitar o desafio?
Mal tenho tempo de ver o grande sorriso rasgar o rosto de Kenzie van der Hoven antes de ser puxada para o jardim, seguindo os passos da minha filha.
Ian está à porta da sua caravana, atraído pelo clamor subsequente quando Faith sai cá para fora para brincar. Observa-a balançar os calcanhares no baloiço e reprime um sorriso - quem quer que seja a mulher que está com ela, está a fazer uma boa acção pela Faith.
- Estou surpreendida por não estar na linha da frente.
Ian volta-se ao ouvir uma voz. Uma mulher está ao seu lado.
- E quem é a senhora? - pergunta secamente.
- Lacey Rodriguez - estende a mão. - Apenas mais alguém a venerar à distância.
- Pertence a um grupo - especula Ian. - Qual deles?
- O que o faz pensar que pertenço a um grupo?
- Digamos que é um palpite, Sr.a... Rodriguez, não é? Mas a maioria dos fanáticos religiosos, tal como fez notar, encontram-se demasiado ocupados a cantar hossanas para estar aqui atrás a conversar. Ora, não me diga onde trabalha... deve ser no Hard Copy. Ou no Hollywood Tonight!, eles têm alguns subordinados inspirados.
- Ora, Sr. Fletcher - diz Lacey num sotaque sulista. - Ainda me vai dar volta à cabeça com tantos elogios.
Ao ouvir isso, Ian ri.
- Gosto de si, Sr.a Rodriguez. Sem dúvida Hollywood Tonight! Você defende a sua opinião, e um dia ainda vai tirar a Saganoff do trono.
- Não pertenço ao mundo do espectáculo - diz Lacey numa voz calma. - O meu negócio é a informação.
Observa-o semicerrar os olhos enquanto enumera as opções: FBI, CIA, Máfia. Depois ergue as sobrancelhas.
- Foi o Metz que a enviou. Ele deve saber que não tenho tendência para partilhar.
Lacey aproxima-se um pouco.
- Não estou a pedir-lhe para desempenhar um papel secundário em algum programa informativo da televisão. Estou a referir-me à justiça...
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- Obrigado, Lois Lane. Dispenso. Se e quando tiver vontade de desmascarar a Faith White, isso vai decorrer sob as minhas condições e segundo a minha agenda.
- A sua palavra terá alguma vez mais credibilidade do que dentro de um tribunal?
- O que você quer dizer - corrige Ian -, é que o Metz não é capaz de descobrir absolutamente nada, e quer que eu prove que ela é uma fraude.
- Você tem provas - diz Lacey numa voz abafada.
- Ainda estaria aqui se não tivesse?
Passado algum tempo, Ian mete a mão no bolso e tira um cartão, depois escreve um número de telefone.
- Diga ao Metz que eu talvez esteja disposto a falar.
Assim que Lacey Rodriguez se foi embora, James Wilton aproxima-se de Ian.
- Há uma razão para não estarmos a filmar isto - diz ele devagar. - Há, não há?
Os olhos dele, como os de toda a gente, estão fixos na porta de entrada, onde Faith está de pé com a mãe e a mulher que Ian não reconhece. Ian sente que está a começar a suar. O seu produtor, é claro, está à espera que ele continue a investigar Faith, independentemente do que ele sinta a nível pessoal. E, para ser sincero, não quer sacrificar o seu programa e a sua reputação. Vira-se para James e sorri.
- É claro que há uma razão. Estou à espera... disto.
A desconhecida entra no carro, e Mariah e Faith começam a descer os degraus do alpendre.
- Tony! Já estás pronto? - grita Ian, assustando o operador de câmara que ele sabe que nunca terá coragem para mencionar a Ian que não tinha sido chamado. Colocando a câmara ao ombro, segue Ian através da multidão, acenando com a cabeça enquanto Ian lhe dá as orientações para filmar. Ian olha para trás, mais uma vez, para ter a certeza de que James está a ver, e em seguida, para surpresa audível da multidão, salta a barricada da polícia e dirige-se a Mariah e a Faith.
Atrás dele, sente o polícia que está de guarda a abrir caminho por entre a massa de corpos numa tentativa de chegar junto dele. Ouve outros jornalistas murmurar elogios pelo seu estilo de jornalismo irreverente, e alguns ponderam a hipótese de o seguir. Mas ele mantém os olhos fixos em Mariah, de pé ao lado dos baloiços, a vê-lo aproximar-se.
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Sobressaltada, os seus olhos fitam o rosto dele e depois a multidão lá atrás.
- O que estás a fazer?
Ian chega junto dela e agarra-lhe no braço. Sabe que vão pensar que está a impedi-la de fugir. Mas, neste momento, é uma sensação maravilhosa tê-la suficientemente perto para poder tocar-lhe, suficientemente perto para sentir o cheiro do sabonete na sua pele.
- Está toda a gente a ver - diz ele num tom suave. - Finge que queres que eu me vá embora.
O polícia, que na verdade não passava de um rapaz, pára a alguns metros deles.
- Sr.a White - diz ele sem fôlego -, se quiser posso detê-lo por invasão de propriedade privada.
- Não - diz ela, numa voz trémula antes de ficar mais forte e prosseguir. - Acabei de pedir ao Sr. Fletcher para sair da minha propriedade, visto que a minha filha e eu não desejamos ser incomodadas.
O polícia agarra no outro braço de Ian.
- Ouviu a senhora.
Os olhos de Ian ardem com lágrimas.
- Isto ainda não terminou - diz ele, palavras para a câmara que para Mariah têm um significado diferente. - Nem por sombras. - O polegar dele, escondido, acaricia a pele macia do braço dela, deixando Mariah a tremer com o que mais tarde será descrito pelos jornalistas de inúmeras transmissões televisivas como indignação justa.
O telefone desperta-me de um sono profundo, e eu sussurro o nome do Ian.
- Bem, claro que sou eu - diz ele irritado. - Quantos mais homens te telefonam a meio da noite?
Abraço-me a mim própria.
- Centenas - digo, sorrindo. - Milhares.
- A sério? Tenho de te fazer esquecer a concorrência.
- Que concorrência? - sussurro, e estou só meio a brincar. Quando Ian está à minha volta, não penso em mais nada; nem na imprensa mesmo à porta de casa, nem no Colin e na luta pela custódia, nem mesmo na Faith. Quando amava o Colin, era por ele me servir de apoio. Mas o Ian - bem, ele faz por mim o que a Kenzie van der Hoven fez pela Faith. Leva-me para longe.
O meu sangue começa a circular mais depressa, tornando-me inquieta.
- Já não tenho idade para me sentir assim.
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- Como te sentes? Fecho os olhos.
- Como se estivesse numa montanha-russa.
Durante um momento apenas consigo ouvir a sua respiração do outro lado da linha. Quando fala, a sua voz está mais aguda, tensa.
- Mariah, acerca desta tarde.
- Sim. O que foi aquilo?
- O meu produtor. Ele está à espera que aconteça alguma coisa, algo que leve a crer que ainda estou a seguir esta história.
- E estás? - pergunto, subitamente fria.
- Estou do teu lado - responde Ian. - Também sabia que se saltasse a barreira policial, teria oportunidade de te tocar.
Viro-me de lado, na esperança de ver as luzes da caravana ligadas, e depois solto um grito abafado ao cair da cama, largando o telefone.
- Desculpa - explico passado um momento. - Perdi o contacto contigo.
- Nunca - diz Ian, e baixando todas as defesas, acredito nele.
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Doze
Desde há muito tempo que guardo silêncio, que permaneço calado e me contenho. Agora grito como a parturiente, estou ofegante e oprimido.
Isaías 42,14
8 de Novembro de 1999
Jessica White move a jarra de vidro- verde-pálido uns centímetros para a direita; fazendo as tulipas lilases agitarem-se. Ao seu lado, Colin White descansa encostado às almofadas do sofá em tons de púrpura progressivamente mais escuros.
"Vim parar a um catálogo e não consigo sair", pensa Kenzie.
- Dr.a Van der Hoven - diz Jessica - posso trazer-lhe um pouco mais de água com gás?
- Não, obrigada. E trate-me por Kenzie - sorri para o casal. Ouvi dizer que vão ter um bebé - será imaginação sua, ou Colin afasta-se ligeiramente da mulher?
A mão de Jessica pousa na barriga.
- Em Maio.
- Temos esperança que a irmã mais velha esteja aqui quando nascer - acrescenta Colin.
Sabe perfeitamente qual é a mensagem que ele está a tentar transmitir.
- Pois. Bem. Talvez possa dizer-me, Sr. White, porque é que desenvolveu um súbito interesse na custódia da sua filha.
- Sempre quis ter a custódia da Faith - diz ele numa voz calma.
- Estava apenas a tentar recompor-me de novo primeiro. Não achei que arrancar a Faith de casa fosse inteligente, logo a seguir ao abalo do divórcio.
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- Então estava a pensar nos interesses dela?
Colin exibe um sorriso notável, e os pensamentos espalham-se na cabeça de Kenzie - aquele era um homem que seria capaz de vender areia no deserto, que faria qualquer um render-se aos seus encantos.
- Exactamente! - inclina-se para a frente, largando a mão da mulher para cruzar as suas. - Olhe. Esta é uma situação difícil, e não vou fazer-me de santo. Não estava à espera que a Mariah voltasse para casa com a Faith naquele dia, e sei que isso não é desculpa, mas com certeza compreende que não se tratou apenas de um... de um caso passageiro. Eu amo a Jessica; casei-me com ela. Os problemas que estava a ter na minha relação com a Mariah, quaisquer que fossem, não tinham nada a ver com a Faith. Sou pai dela, serei sempre pai dela, e quero dar-lhe o lar que ela merece.
Kenzie bate com o lápis.
- O que tem de mal o lar em que ela agora vive? Parece ficar sobressaltado por um momento.
- Bem, esteve lá! Será normal para uma menina ter um batalhão inteiro de jornalistas atrás dela quando abre a porta? Será normal que ela acredite que conversa com Deus?
- Tenho informações de que a sua ex-mulher fez uma tentativa para retirar Faith do escrutínio da comunicação social.
- Foi isso que ela lhe disse? - os maxilares de Colin cerram-se.
- Ela fez uma tentativa para contornar o sistema legal. No dia a seguir a ter-lhe comunicado que ia pedir a custódia da Faith, ela desapareceu.
Kenzie endireita-se ao ouvir isto.
- Ela sabia que ia receber uma notificação?
- Eu disse-lhe, "O meu advogado vai contactar-te." E pronto, escondeu-se.
Kenzie toma uma nota no seu bloco. Visto que era uma mulher que tinha sido criada com o valor da lei, a própria ideia de se desviar do sistema levanta de imediato as suas suspeitas.
- Mas a Mariah regressou - diz ela.
- Porque a advogada dela a assustou. Percebe agora porque é que eu quero tirar a Faith do alcance dela? Se as coisas começarem a correr mal para a Mariah durante a audiência, ela vai fazer as malas e voltar a fugir com a Faith. A Mariah não fica para enfrentar uma luta; não faz parte da natureza dela. Na verdade, esteve a fazer psicoterapia por causa disso durante anos.
- É um defensor da psicoterapia?
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- Claro - diz ele. - Quando se justifica.
- E apesar disso a sua ex-mulher diz que não considerou essa hipótese depois da tentativa de suicídio dela.
A boca de Colin cerra-se.
- Peço desculpa, Dr.a Van der Hoven, mas não me parece estar a ser muito objectiva.
Kenzie cruza o olhar com o dele.
- Faz parte do meu trabalho aprofundar os assuntos. Jessica interrompe, levantando-se de repente e pigarreando.
- Não seria uma boa altura para comer um pouco de bolo? Ambos observam Jessica ir para a cozinha. Assim que ela deixa
de poder ouvir, Colin começa a falar, visivelmente agitado.
- Acha que não fiquei perturbado por ter mandado a Mariah para Greenhaven? Meu Deus, ela era minha mulher. Eu amava-a. Mas ela estava... estava... Bem, transformou-se numa pessoa que eu não reconhecia quase de um dia para o outro. Não sabia como havia de falar com ela, nem como tomar conta dela. Por isso fiz aquilo que achei que devia fazer, para ajudá-la. E agora parece que a história se repete. A minha filha já não se comporta como a minha filha. E não suporto ver isto acontecer de novo.
Kenzie aprendeu há muito tempo que-às vezes o mais sensato é não dizer absolutamente nada. Recosta-se e fica à espera que Colin White continue.
- Logo após a Faith ter nascido, costumava andar pela casa à noite com ela quando chorava. Era uma coisinha minúscula, perfeita, e, por vezes, ela parava de chorar e ficava só a olhar para mim como se já me conhecesse - Colin olha para o colo. - Adoro-a. Aconteça o que acontecer, isso não me podem tirar - Kenzi deixou de tomar notas. - Nunca cometeu um erro na sua vida, Dr.a Van der Hoven? - pergunta ele num tom suave.
Ela desvia o olhar e repara numa grande caixa escondida atrás da mesa da sala de jantar. Pelo rótulo, vê que é um cavalete de plástico. É evidente que não se trata de um brinquedo para o bebé mas é evidente que é novo. Colin segue o olhar dela e cora.
- Sou um optimista - diz ele, e sorri timidamente.
Kenzie apercebe-se de que - por simpatia para com Mariah White - estava à espera de encontrar um monstro. Mas este homem tem as suas razões para iniciar uma batalha. E não são vingativas nem rancorosas - simplesmente viu algo que o assusta, e quer solucionar o problema.
Por outro lado, Colin White pode ser um actor consumado.
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9 de Novembro de 1999
O padre Rampini encontra-se num gabinete bem mobilado na Chancelaria da Diocese com as mãos atrás das costas, a olhar para uma prateleira da estante e a interrogar-se ociosamente porque é que o bispo de Manchester teria dezasseis exemplares da biografia de Santa Teresinha do Menino Jesus. Quando a porta se abre, ele vira-se, limpando sub-repticiamente o suor das palmas das mãos antes de acenar ao bispo Andrews.
- Padre - resmunga o bispo, instalando-se numa poltrona de cabedal cor de vinho.
- Excelência.
- Por favor - indica Andrews com um gesto, e Rampini senta-se numa cadeira mais pequena e fixa os olhos na corrente da cruz peitoral a balançar, enfiada no bolso do bispo.
Rampini já examinou alegadas visões antes, certificando-se de que não havia nada nelas que fosse contrário à fé. Em todos os casos até à data, mesmo nos casos prometedores, recomendou uma política de prudência, esperar para ver. Teve o cuidado de não tirar conclusões precipitadas, para não se comprometer.
E é por isso, resumindo, que as suas mãos não param de tremer. Aqui está a entrar num limbo. Porque acredita verdadeiramente que Faith White pode estar a ter visões de Deus.
O bispo Andrews tira os óculos e limpa-os antes de voltar a colocá-los.
- Segundo o reitor de St. John, o padre é o teólogo mais prezado do Nordeste.
- Se assim o diz, Excelência.
- Em nome da diocese, gostaria de agradecer-lhe por ter vindo.
- Por nada - diz Rampini.
O bispo acena graciosamente.
- Tenho apenas algumas perguntas, padre.
- com o devido respeito, Excelência, já entreguei o meu relatório.
- Sim, na verdade... dois relatórios. O parecer original e, como lhe chamou? Ah, a actualização revista. Sabe uma coisa, não consigo compreender bem porque é que um teólogo, isto é, o teólogo mais prezado do Nordeste, entregaria dois relatórios completamente contraditórios no intervalo de algumas horas, relativamente aos milagres genuínos de Faith White - diante do silêncio ofendido do padre Rampini, Andrews fica impaciente. Mete a mão no bolso e mexe no rosário, é um conjunto de contas útil para aliviar a
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tensão. - Tenho a certeza de que um homem com as suas credenciais já foi chamado para dar a sua opinião num vasto número de aparições religiosas.
- Muitas vezes.
- E, no entanto, nunca comprovou nenhum caso pessoalmente. O padre Rampini cerra os lábios.
- É verdade. E sim, o relatório revisto indica que desta vez comprovo.
O bispo decide fazer-se desentendido. Coça a cabeça.
- Estou um pouco confuso, padre. Ora, não tenho pretensões de ser um teólogo tão entendido como o padre é, naturalmente, mas parece-me que o facto de uma criança judia ver um Deus feminino contraria o dogma católico tradicional.
O padre Rampini cruza os braços.
- Está a pedir-me para justificar as minhas conclusões?
- Não, não. Mas para minha própria... edificação... gostaria imenso de conhecer o seu raciocínio.
Rampini pigarreia.
- Há uma variedade de critérios que apoiam as minhas conclusões. O facto de a Faith White não ser católica não é ortodoxo. Excelência, mas não quer dizer que seja falso. Podíamos suspeitar mais das senhoras de idade que rezam durante dezasseis horas por dia e depois confessam que Jesus lhes apareceu à mesa da cozinha. Faith não estava a pedir esta visão, mas ela ocorreu. Ela também se mostra muito reservada em relação às suas conversas com Deus, e tenta esconder os estigmas.
- Estigmas - diz o bispo. - Viu-os?
- Vi. Não estou pessoalmente familiarizado com as Santas Chagas, claro, mas o consenso geral entre a comunidade médica é de que não foram auto-infligidas.
- Ela podia ser histérica.
- Totalmente possível - concorda Rampini. - Só que para além das chagas, há outras provas exteriores à vidente. Neste caso, curas.
- O padre é que é o especialista, como é óbvio, mas tenho de admitir, incomoda-me um pouco saber que ela anda por aí a dizer que Deus é uma mulher.
- Na verdade, não anda. A Sociedade de Deus Mãe está a espalhar a propaganda. A Faith não fala muito sobre nada. Para além do facto de que, tal como eu disse no meu segundo relatório, ela não vê Deus como uma mulher. Vê Nosso Senhor Jesus Cristo com a Sua forma e roupas tradicionais, mas interpreta-O como uma figura feminina.
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O bispo Andrews ergue uma sobrancelha.
- Isso é muito rebuscado, meu filho.
- com certeza Excelência não está a dizer-me como devo fazer o meu trabalho - diz o padre Rampini numa voz suave. - Encontre-se com ela. E depois venha falar comigo.
Ficam a olhar um para o outro em silêncio.
- Está muito certo - diz por fim o bispo.
- Estou.
- Acha que devo levar este caso à Conferência de Bispos dos Estados Unidos.
- Não teria a presunção de lhe dizer o que deve fazer. O bispo Andrews bate com os indicadores, um no outro.
- Sabe, isto não é um caso dos Ficheiros Secretos, padre. Independentemente do que o público queira, uma exibição fantástica não é a maneira certa de voltar a conduzir o rebanho para a Igreja. Mesmo que eu aceitasse o seu parecer, ficaria desconfiado da rapidez com que o elaborou. A última coisa que desejo é ser retratado como algum lunático em busca do sobrenatural, imagina que consequências isso traria à diocese? Ao Catolicismo em geral? Há uma razão para estas avaliações demorarem anos, padre. É para que no caso de a Faith White ser uma impostora, o senhor e eu já estarmos mortos e enterrados e ditosamente alheios às consequências o bispo Andrews inclina a cabeça. - Esta criança alguma vez esteve numa igreja católica?
- Que eu saiba, não, Excelência.
- Foi educada segundo a fé judaica?
- Não. Visto que a mãe é uma judia não praticante, achou que levar a criança ao templo seria uma hipocrisia. No entanto, confirmei com um rabi que, se a mãe é judia, a criança também será. Independentemente do resto.
- E esse - diz o bispo -, é que é o obstáculo. Não temos nenhum poder sobre uma criança que não seja católica.
Um músculo contrai-se no maxilar de Rampini.
- Então porque me pediu para vir aqui?
Observa o bispo dirigir-se para a sua secretária e apercebe-se de repente que Andrews vai minimizar as suas perdas. Não utilizará a comprovação de Rampini relativamente a Faith White - a não ser que a situação se inverta e precise de o fazer. Vai guardar os dois relatórios contraditórios, para estar preparado para qualquer eventualidade; e o padre Rampini não poderá dizer nada sobre o assunto sem parecer indeciso. O calor invade o rosto do padre, subindo pelo colarinho branco.
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- Irá ignorar o primeiro relatório - ordena Rampini. - Estou a entregar oficialmente o segundo, e apenas o segundo, para sua apreciação.
Sem tirar os olhos do rosto do homem mais novo, o bispo Andrews enfia o papel que tem na mão numa gaveta da secretária.
- Qual deles será? - pergunta.
10 de Novembro de 1999
Quando Ian entra no gabinete de Malcolm Metz, o advogado não se levanta da cadeira.
- Bem - diz ele, recostando-se. - É sem dúvida um prazer. Sou um grande fã.
Ian olha directamente para ele.
- Os meus honorários são noventa mil dólares. É o que pagam por um anúncio durante os meus programas. Encaro o seu julgamento de uma forma muito semelhante: uma interrupção, fazendo um parêntesis naquilo que de qualquer forma planeio dizer.
Para seu mérito, Metz nem sequer pestaneja.
- Não me parece que isso constitua um problema - diz ele. Na verdade, não faz a menor ideia se o seu cliente poderá despender esse dinheiro, mas não está disposto a terminar com as negociações antes de estas terem sequer começado. - Desde que se lembre que isto não é nenhum programa de televisão. A vida de uma menina está em jogo.
- Guarde essas tretas para o tribunal - diz Ian. - Sei o que quer.
- Que é?
- Provas de que a Faith White é uma impostora. E pistas que indiquem que a mãe está a orquestrar tudo.
Metz sorri.
- E o senhor, como é óbvio, dispõe de todas essas informações.
- Ter-me-ia mandado chamar se não dispusesse? Metz reflecte sobre isto durante um momento.
- Não sei, só com as suas audiências, provavelmente conseguiria convencer um juiz de que o Sol não vai erguer-se amanhã.
Ao ouvir isso, Ian ri.
- Talvez seja um fã, afinal.
- Porque é que não me diz o que possui?
- Algumas imagens com uma qualidade decente captadas com uma câmara oculta de Mariah White a dar orientações à filha antes de se mostrar deferente perante a multidão. O testemunho de uma
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mulher que foi à televisão nacional dizendo que o seu bebé tinha sido curado de SIDA pela Faith, admitindo que a Mariah White lhe pagou três mil dólares para inventar a história. Alguns especialistas que assinaram uma explicação científica por escrito para o facto de o cadáver de Millie Epstein ter voltado à vida: é algo relacionado com correntes eléctricas e tecidos corporais, ou qualquer coisa do género.
- E as mãos?
- Os alegados estigmas? É uma ilusão de óptica.
- Uma ilusão de óptica?
- Ora, com certeza que já viu os engolidores de fogo no circo, ou os ilusionistas passarem objectos pelos punhos.
- Como é que enganaram um grupo de médicos?
- Bem, ainda estou a averiguar isso. A minha teoria é que não enganaram. Que quando os médicos foram examiná-la, a Faith de facto espetou-se com qualquer coisa.
Metz parece céptico.
- Porquê? Qual era o objectivo? Ian recosta-se na cadeira.
- Fico surpreendido por ter sequer de fazer essa pergunta, Dr. Metz. Para chamar a atenção, claro.
Metz semicerra os olhos.
- Se não se importa que lhe pergunte, como é que não chegou a aparecer nada disto no seu programa recentemente?
- Porque existe algo ainda mais importante que eu vou utilizar para desmascarar este caso, e antes que diga alguma coisa, não é negociável - Ian coloca os dedos em pirâmide. - Segundo a minha opinião, o seu tribunal serve tão bem como qualquer uma das minhas emissões provocatórias para chegar ao grande final. com os honorários que mencionei, partilharei de bom grado consigo as informações e os depoimentos assinados que acabei de descrever, bem como a minha considerável reputação em campo e a minha presença de palco. Mas não vai ter mais nada.
Devagar, Metz acena com a cabeça.
- Compreendo.
- Outra coisa que tem de compreender é que sou um homem muito ocupado. Apresentarei o meu testemunho de boa vontade relativamente às informações que acabei de lhe revelar... mas vamos fazer isso aqui, e vamos fazer isso agora.
- Certamente que não. Não estou preparado. Tenho de...
- Tem apenas metade do trabalho que teria com qualquer outra testemunha. Já sei representar. Apenas terá de apresentar os factos pela ordem que desejar.
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Por um momento, faz-se silêncio, dois homens de tão grande envergadura enclausurados num espaço tão exíguo.
- Ensaiaremos mais uma vez no dia antes de apresentar o seu testemunho - negoceia Metz.
Ian sorri.
- Doutor - diz ele -, negócio fechado.
Mariah entreabre a porta e encontra Kenzie van der Hoven à porta.
- A Faith pode sair para brincar? Contra o seu bom senso, Mariah ri.
- Está um pouco de frio lá fora. Talvez pudessem ficar dentro de casa - este encontro marcado com a tutora ad litem é um alívio. Mariah tem estado o dia todo a ralhar com Faith por esta andar atrás dela, algo que é totalmente compreensível, visto estarem todas enfiadas dentro de casa.
Faith entra na sala de patins. Mariah observa as rodas deixarem marcas negras nos ladrilhos e morde a língua para não gritar com a filha pela vigésima vez naquele dia, sobretudo em frente à tutora ad litem. Cruzando o olhar com o de Faith, em vez disso, Mariah ergue uma sobrancelha e em seguida olha para os patins, visivelmente irritada.
- Ups - diz Faith, caindo de rabo e abrindo o velcro dos fechos dos patins. - Kenzie, veio para falar comigo?
- Vim. Pode ser?
- É fantástico. Mariah sorri.
- Se precisar de mim, estou a fazer o jantar. Kenzie observa-a entrar na cozinha, e depois sente cinco dedinhos apertarem-lhe a mão.
- Venha ver o meu quarto - diz Faith. - É mesmo fixe.
- Sim? - Kenzie deixa-se conduzir lá para cima. - De que cor é?
- Amarelo - Faith abre a porta para revelar paredes soalheiras e uma cama de dossel branca. Salta para cima dela e começa aos pulos, com os cabelos a voarem num arco atrás de si. Depois cai de rabo e sai de cima da cama para fazer de anfitriã. - Estes são os meus Legos. E o meu conjunto de desenho que o Pai Natal me trouxe no ano passado, e esta fotografia foi tirada só duas horas depois de eu nascer.
Kenzie espreita diligentemente para a fotografia de um bebé minúsculo com um rosto semelhante a um tomate.
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- Passas muito tempo no teu quarto?
- Depende. A minha mãe não me deixa ter uma televisão aqui, por isso não posso ver vídeos nem nada. Às vezes apetece-me desenhar na mesa da cozinha, por isso levo o meu conjunto de desenho lá para baixo. E às vezes pinto em cima do chão - ergue os braços por cima da cabeça. - Costumava ter aulas de ballet.
Kenzie observa-a rodopiar num círculo lento, de braços erguidos numa pirueta.
- E já não tens? Porquê?
- Aconteceram umas coisas - Faith brinca com os frocos de uma manta e encolhe os ombros. - A mãe ficou doente.
- E depois?
- Depois apareceu Deus. Kenzie fica imóvel.
- Estou a perceber. E isso foi bom?
Faith dobra-se para trás e estica os braços, enrolando a manta à sua volta.
- Olhe, sou um casulo.
- Fala-me de Deus - incita Kenzie.
Faith aproxima-se dela. Embrulhada na manta como a crisálida que referiu, o rosto é a única parte visível do seu corpo.
- Ela faz-me sentir bem, quente, como quando me sento no monte de roupas acabadas de sair da máquina de secar. Mas não gosto quando ela me magoa.
Kenzie inclina-se para a frente.
- Ela magoa-te?
- Diz que tem de ser, e eu sei que não quer, porque depois me pede desculpa.
Kenzie fica a olhar para a menina, para as mãos dela com aquelas marcas definitivas. Como tutora ad litem, já viu muitas coisas, a maioria delas não muito agradáveis.
- Deus vem falar contigo quando esta escuro no teu quarto? pergunta ela, e Faith acena com a cabeça. - Podes tocar-lhe? Ou ver-lhe o rosto?
- Às vezes. E outras, apenas sei que é ela.
- Porque ela te magoa?
- Não... porque cheira a laranjas.
Ao ouvir isto, Kenzie solta uma gargalhada sobressaltada.
- A sério?
- Hmm-hmm - Faith agarra, numa figurinha da sua casa de bonecas. - Quer brincar?
Kenzie olha para a réplica da casa rural.
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- Isto é lindo - diz ela, percorrendo a curva delicada do corrimão de carvalho com o indicador. - Também foi o Pai Natal que te trouxe isto?
- Não, foi a minha mãe que a fez. É o trabalho dela.
Kenzie sabe através dos seus anos de experiência que a explicação mais provável para os ferimentos de Faith é terem sido auto-inflingidos ou que alguém próximo dela os tenha infligido. Alguém que a tivesse convencido de que está a fazer a Faith sofrer por a amar muito. Kenzie fica a olhar para a casa de bonecas, precisa e perfeita, reflectindo intensamente. Mesmo depois de ter visto isso acontecer tantas vezes, é difícil acreditar que os pais que parecem em tudo o resto normais possam ser monstruosos para uma criança.
- Querida - diz Kenzie -, a tua mamã está a fazer-te estas coisas?
- A fazer o quê?
Kenzie suspira. É quase sempre impossível conseguir fazer uma criança vítima de maus-tratos admitir quem é o autor dos mesmos. Em primeiro lugar, vive com medo da retaliação prometida por quebrar o silêncio. Em segundo lugar, há um sistema de recompensas distorcido - a criança percebe, infelizmente, que os episódios são alturas em que recebe atenção.
Por outro lado, por vezes as crianças não apontam o dedo porque não há nada para apontar. Algumas crianças vão mesmo contra as portas e ficam com olhos negros, ou caem de cima de uma mesa e ficam com hematomas... ou talvez até sangrem espontaneamente. Mariah sem dúvida que não magoa a filha à vista de toda a gente; Faith não mostra aversão quando está perto da mãe. Talvez a exposição à imprensa não seja a melhor coisa do mundo para uma menina, talvez Faith pudesse conviver mais - mas estas coisas por si só não constituem um abuso.
A porta abre-se de repente. Mariah está ali de pé com um monte de lençóis nas mãos, surpreendida por ver Kenzie e Faith.
- Desculpem - diz embaraçada. - Pensei que estavam na sala dos brinquedos.
- Não faz mal. Estava apenas a admirar a sua casa de bonecas. Nunca vi nada igual.
Mariah acena com a cabeça, corando. Colocando os lençóis na cómoda, dirige-se para a porta.
- vou dar-vos alguma privacidade.
- A sério, não há problema se...
- Não - interrompe Mariah. - Não faz mal. - E sai, deixando no ar um leve aroma cítrico.
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O último caso de Kenzie envolveu uma menina de nove anos que vivia com os avós porque a mãe a tinha abandonado. Era um casal que frequentava a igreja todos os domingos e certificava-se de que ela tinha boas roupas para ir para a escola e de que tomava um bom pequeno-almoço todas as manhãs. E mais ou menos uma vez por semana a menina acordava a meio da noite com o avô a violá-la. Ele disse-lhe que se contasse a alguém, era posta na rua.
Isto passa-lhe pela cabeça enquanto vira para a auto-estrada, afastando-se de casa dos White. Embora não haja provas de que este seu novo caso se assemelhe minimamente com o anterior, há algumas ressonâncias que Kenzie não consegue tirar da cabeça.
Há aqui algo que está a ser ocultado. Está escrito no rosto de Mariah White; é por isso que ela insistiu em não ficar na mesma divisão que Kenzie por mais de cinco minutos. Suspirando, Kenzie puxa a pala para tapar o sol poente. Talvez seja vergonha por ter sido internada na instituição. Talvez seja apenas o que Colin lhe disse - que Mariah fugiu intencionalmente para evitar o processo legal. Mas se assim fosse, teria regressado? E será que há algo mais do que isso?
Nas suas duas sessões com Faith, Kenzie tem a sensação de que a criança preferia ficar com a mãe. Mas não sabe se isso se deve ao facto de não gostar de Jessica White ou porque Mariah a chantageou para que ficasse com ela.
Por outro lado, talvez Mariah White tivesse deixado New Canaan ignorando os planos de Colin para alterar a custódia. Talvez estivesse a fugir para bem da filha. Não houve nenhuma dica de nenhum médico que tivesse entrevistado insinuando que Mariah White fosse possivelmente a responsável por algum dos danos físicos ou psicológicos de Faith. Talvez Faith fosse apenas uma menina com uma imaginação particularmente activa.
Um carro passa por Kenzie, fazendo com que ela guine para a berma. Carregando a fundo nos travões, acaba por parar e passa a mão pelos olhos. Concentração, concentração. Tantas vezes em que as coisas lhe escapam por pouco.
Volta a entrar na estrada cuidadosamente, interrogando-se se a pior coisa que Mariah terá feito não terá sido simplesmente acreditar cegamente que a filha está a dizer a verdade.
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14 de Novembro de 1999
Foi James quem teve a ideia, inicialmente, de transmitir um programa aos domingos de manhã - baseando-se no princípio de que transmitir as opiniões de um ateu no dia dedicado à devoção pelos cristãos de certeza que iria gerar controvérsia. E embora Ian já tivesse sete guiões prontos, já nenhum deles parecia ser apropriado. Está a falar de improviso, sem preparação. É tudo o que pode dizer antes que seja usado contra Faith, e Mariah. E por outro lado, é tudo o que há de neutro para dizer, antes de levantar as suspeitas do seu produtor executivo.
As luzes agora são quentes ao incidirem-lhe no rosto, e a grande boca da câmara um gira à sua frente enquanto ele atira - deliberadamente - uma Bíblia para as ervas atrás de si. Ao contrário da maior parte das suas gravações em estúdio, esta - no exterior - é feita diante de uma audiência. É uma audiência pequena, visto que as pessoas que estão reunidas em volta da casa de Mariah são crentes, na sua maior parte, fervorosas, e não ateias. Mas foi precisamente por isso que escolheu um texto bíblico para ser o objecto da sua diatribe.
- "Pega no teu filho, no teu único filho, a quem tanto amas, Isaac, e vai à região de Moriá, onde o oferecerás em holocausto, num dos montes que Eu te indicar." - Ian olha em volta, para aqueles que o ouvem. - Pois, ouviram bem. Abraão deve matar o filho, só para provar que quando Deus diz "Salta!" ele pergunta "De que altura?" E o que acontece? Abraão fá-lo. Encosta uma faca à garganta de Isaac, mas, no último minuto, Deus aparece e basicamente diz que estava a brincar - Ian assopra: - E este o Deus que adoram? Um Ser Supremo que encara os seus súbditos como peões? Perguntem a algum daqueles homens de hábito que estão ali ao fundo e eles dir-vos-ão que esta é uma história sobre a fé, sobre colocarmo-nos nas mãos do Senhor e deixá-lo fazer com que tudo corra bem. Mas esta não é uma história sobre a fé. Nem sequer é uma história sobre Abraão. É uma história sobre Isaac. O que eu quero que saibam, o que a Bíblia não se dá ao trabalho de me dizer, é o que Isaac terá pensado quando o pai o colocou naquele altar no meio de nenhures. O que ele sentiu quando o pai lhe encostou uma lâmina ao pescoço. Se chorou, se molhou as calças. A pessoa que se viu perdida nesta história é uma criança. Ora, como bons cristãos devem respeitar Abraão por ter feito aquilo que lhe mandaram. Mas eu digo-vos uma coisa. Como ser humano, não tenho o mínimo respeito por aquele homem. Sinto desprezo por um Deus que se serve de uma criança daquela maneira. E seria muito mais provável que
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ficasse do lado de um pai que enfrentasse um déspota, mesmo que alegadamente divino, para impedir que se aproximasse de uma criança - ergue as sobrancelhas enquanto a câmara se aproxima para fazer um primeiro plano dele. - Só espero que a Sr.a White, a mãe da Faith, preste atenção a isto.
Alguém grita "Corta!" e Ian volta-se de costas, agarrando numa toalha que um assistente lhe traz e limpando a maquilhagem e o suor do rosto. Agarra nas suas notas, trazidas por outro assistente e volta a dirigir-se para a caravana, alheio aos murmúrios da multidão que estava a ouvir.
Ou perceberam, ou não.
Há duas maneiras de interpretar o seu programa, e Ian sabe isso muito bem. Ou as pessoas acreditam que a sua tirada final se destinava a acusar Mariah de ser como Abraão, prostituindo a sua filha só porque Deus e a comunicação social assim o desejavam. Ou então as pessoas ouviriam Ian a elogiar Mariah por não ser como Abraão, por afastar a filha, embora que por breves momentos, dos mesmos ávidos poderes.
Não se interessa muito pela forma como os seus fãs o interpretaram, na verdade. As únicas reacções que lhe interessam são a de Mariah e a de James. Quer que Mariah tenha entendido de uma maneira, e James da outra.
A porta abre-se e fecha-se atrás do seu produtor executivo. James senta-se à mesa e põe os pés para cima.
- Belo programa - diz ele descontraidamente. - Mas pensei que ia falar mais sobre a criança.
- O Isaac?
- A Faith White - James encolhe os ombros. - Por estarmos aqui há já algumas semanas. Acho que os espectadores estão à espera de mais.
- Mais quê?
- Mais... não sei. Mais alma. Mais coragem. Mais provas do que teatro.
Ian sente um músculo contrair-se no maxilar.
- Diga de uma vez o que quer dizer, James. O produtor ergue a mão.
- Caramba, não é preciso atacar-me dessa maneira.
- Conhece aquele boato de que sou um idiota temperamental? Gostaria de usufruir dele neste preciso momento.
- Só estou a dizer-lhe, Ian, que me telefonou quando estava na estrada a insinuar que estava atrás de alguma pista relacionada com o caso White. E depois voltou para aqui, fez dois programas
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em directo e mal mencionou o assunto. A Faith White é que é a fonte de rendimentos aqui, Ian. O filão principal. Isaac e Abraão? Pois, não estão mal, mas pode guardá-los para quando renovar o contrato com a rede de televisão - olha para o rosto de Ian. - É bom que haja alguma coisa. Alguma coisa que suba aos píncaros como um foguete, consigo atrás - visto que Ian se mantém impassível, James franze o sobrolho. - Está a ouvir o que eu estou a dizer?
A cabeça de Ian vira-se devagar, e os seus olhos fixam-se nos de James.
- Bum - diz ele.
- É a Betelgeuse - diz Faith, apontando. - Aquela vermelha que faz parte de Orion - pela sua posição no tapete de futebol americano, Kenzie pestaneja para o céu nocturno. Aperta mais o casaco de Inverno em volta do corpo - é Taurus - acrescenta Faith. - Está tão perto porque Orion está a tentar disparar sobre ela.
- Sabes muito acerca das estrelas.
- Estudámo-las na escola antes de ter deixado de ir. E, às vezes o meu pai também costumava mostrar-me as constelações.
É a primeira vez que Faith referiu Colin de livre vontade.
- Gostavas de olhar para as estrelas com o teu pai?
- Sim - murmura Faith.
Kenzie ergue os joelhos e tenta uma nova abordagem.
- O meu pai costumava jogar hóquei comigo. Mais precisamente, hóquei no gelo.
Faith ri, surpreendida. -Jogava hóquei?
- Pois, eu sei. Jogava bastante mal. Mas tinha cinco irmãos mais velhos, e acho que o meu pai nunca chegou a reparar que eu era uma rapariga - quando Faith soltou uma gargalhada, ficou satisfeita por ter dito aquilo, mas isso não impede Kenzie de recordar a dor de não ser bem-vinda na sua família.
- Era guarda-redes? Kenzie sorri.
- A maior parte das vezes era o disco.
Faith vira-se de lado, apoiando-se num cotovelo.
- O seu pai ainda vive perto daqui?
- Vive em Boston. Não o vejo muitas vezes - hesita apenas um momento antes de acrescentar -, tenho saudades dele.
- Eu também tenho saudades do meu pai - as palavras são tão silenciosas como a noite, absorvidas pelo balançar das árvores
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em seu redor. - Não quero, mas isso não impede que ele vá embora.
- Porque é que não queres?
- Porque ele fez uma coisa horrível - diz ela, num tom grave.
- Uma coisa que fez a minha mãe chorar.
- E o que foi?
Faith não fala. Passado um momento, Kenzie apercebe-se de que está a chorar em silêncio.
- Faith?
A rapariga desvia o rosto, escondendo-o no próprio ombro.
- Não sei - soluça. - Estava a falar com ele e estava outra senhora na casa de banho, e depois ele foi-se embora. Foi-se embora, e eu acho que foi por causa de alguma coisa que eu disse.
- Tu não disseste nada, querida. Foi um problema entre a tua mãe e o teu pai.
- Não, ele não quer viver comigo.
- O teu pai quer viver contigo - explica Kenzie. - E a tua mãe também. Os dois gostam muito de ti. É por isso que um juiz e eu temos de ajudar a decidir com quem deves ficar. - Involuntariamente, lembra-se da lenda do Rei Salomão, da catequese. Quando duas mulheres alegaram ser ambas mães de um bebé, ele sugeriu cortar a criança ao meio com uma espada, para descobrir que mãe preferiria abdicar da criança a vê-la sofrer. Sabedoria livresca: problema resolvido, sem se derramar uma gota de sangue. Mas era apenas uma história. Na vida real, muitas vezes ambos os pais eram totalmente merecedores, ou totalmente imerecedores. Na vida real, havia circunstâncias atenuantes. Na vida real, muitas vezes eram as crianças que ordenavam o caos que os pais deixavam atrás deles.
15 de Novembro de 1999
Malcolm Metz entra na sala de conferências onde disseram a Lacey Rodriguez para ficar à espera e encosta a anca à borda da mesa.
- Traz-me alguma coisa? - pergunta.
Lacey faz uma pausa, com a sua sande de peru e salada de couve com maionese em pão de centeio a pairar em frente à boca.
- Não.
Malcolm resmunga.
- O que é preto e castanho-dourado e fica bem num advogado?
- Não sei. O quê?
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- Um doberman - sorri, tira-lhe a sande da mão, e enfia uma das pontas na boca. - Muito bom. Nunca me lembraria da salada de couve com maionese. - Limpa os lábios ao guardanapo dela e devolve-lhe a sande. - Então, não me trouxe nada?
- O que é que sabe acerca de Kansas City?
- É tudo moderno. Que raio, não sei. É para isto que estou a pagar-lhe?
Lacey sorri.
- Não é de maneira nenhuma o suficiente, Malcolm. O meu contacto nas companhias aéreas foi bem-sucedido. Adivinhe para onde a Mariah White fugiu na semana passada?
Metz agarra na lista que ela lhe entrega, examinando a lista de nomes.
- Que grande coisa - diz ele. - Toda a gente sabe que ela fugiu com a rapariga.
Lacey levanta-se e vira para a primeira página da lista, para os passageiros da primeira classe.
- Também toda a gente saberá que o Ian Fletcher estava no mesmo avião?
- O Fletcher? - Metz reflecte sobre a sua anterior reunião com o homem, sobre a afirmação do ateu mediático de que algo importante, algo de que Metz não tinha conhecimento, seria utilizado para desmascarar Faith como uma fraude. Tinham preparado o seu testemunho, e Fletcher nunca tinha chegado a mencionar aquele pequeno pormenor. É evidente que esta viagem estava relacionada com o seu grande plano.
Metz sorri, acariciando mentalmente o seu trunfo. O Fletcher podia pensar que o seu segredo estava bem guardado, mas não estava a pensar na perspectiva do Direito. Assim que Fletcher estivesse no banco das testemunhas, Metz poderia perguntar-lhe tudo o que quisesse. Assim que Fletcher estivesse sob juramento, não teria outra alternativa a não ser dizer a verdade.
Mariah esforça-se por não atrapalhar Kenzie enquanto esta visita Faith. Se Kenzie está na cozinha, Mariah arranja algo para fazer na sala de estar. Se elas se dirigem lá para cima, Mariah vai para a cave. Fica demasiado nervosa quando está ao pé da tutora ad litem, com a certeza absoluta de que dirá alguma coisa de que mais tarde se arrependerá.
Hoje, Kenzie prometeu entrançar os cabelos de Faith.
- Hoje vamos a brincar aos salões de beleza - diz ela a Mariah.
- Se quiser pode juntar-se a nós.
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- Oh, deixe estar.
- Não... a sério. Gostava que o fizesse. Parte da minha avaliação envolve observá-la interagir com a Faith.
Mariah baixa a cabeça. Será apenas por pouco tempo. E de certeza que será pior se recusar.
- Está bem - diz ela, e depois sorri. - Desde que não me faça uma permanente.
Kenzie sobe as escadas atrás dela até chegarem ao quarto de Faith. Assim que bate à porta, esta abre-se subitamente.
- Estou pronta! - grita Faith. - Lavei o cabelo e pus amaciador e tudo - Kenzie senta-se em cima da cama e começa a afagar os cabelos de Faith. Deslizam-lhe nas mãos como prata.
- Queres uma trança por fora ou uma trança por dentro? Faith olha para a mãe e ambas encolhem os ombros.
- Estamos na fase do rabo-de-cavalo - confessa Mariah. - Qualquer coisa seria uma maravilha.
Kenzie separa os cabelos no alto da cabeça de Faith em três partes.
- Quando tinha a idade da Faith, o meu cabelo tinha três milímetros de comprimento a toda a volta da cabeça.
- O pai dela queria que ela fosse um rapaz - sussurra Faith a Mariah.
Kenzie acena com a cabeça.
- É verdade. Como é óbvio, a primeira coisa que fiz quando tinha idade suficiente foi deixar crescer o cabelo até chegar abaixo do eu.
Faith ri.
- Mãe - diz ela num sussurro audível. - A Kenzie disse eu.
- Ups - entrança as partes do cabelo, acrescentando uma madeixa tirada do lado da cabeça de Faith. Mariah observa atentamente, como se depois fosse chamada para repetir o procedimento de cor.
- Cresci em Boston - diz Kenzie, animada. - Alguma vez foste a Boston, Faith?
- Não - Faith contorce-se apoiada nos calcanhares. - Mas já fui a Kansas City.
"Kansas City." As palavras atingem-na como um golpe, de tal forma que Mariah dá por si com falta de ar. Mariah não mentiu a Kenzie, mas também não lhe forneceu nenhuma informação sobre a sua tentativa de fuga com Faith. Tem a certeza de que tem estampado no rosto tudo aquilo que não quer revelar a Kenzie - o seu envolvimento com Ian, o irmão de Ian, o efeito que Faith teve em Michael.
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- Foste a Boston quando eras pequenina, querida - diz ela, desesperada por mudar de assunto. - Só que já não te lembras.
- Mas lembro-me de Kansas City - diz Faith.
- Querida... não precisamos de aborrecer a Kenzie com isso.
- Oh, eu estou apenas a fazer as tranças. Estejam à vontade. Quando foste a Kansas City?
- Na semana passada - diz Faith. Kenzie levanta a cabeça.
- Levei-a para longe daqui. Disto tudo - acrescenta Mariah
numa voz suave.
- O que a levou a decidir ir embora nessa altura, e não antes?
- pergunta Kenzie.
Mariah desvia o rosto.
- Já estava a arrastar-se há demasiado tempo. Estava na altura de ir.
- Não teve nada a ver com o facto de o seu ex-marido ter dito que ia pedir a alteração da custódia?
Mariah esforça-se por pensar no que poderá dizer à tutora ad litem sem parecer que estava a contornar a lei. O que, como é óbvio, seria a verdade. Olha para Faith, determinada a mudar de assunto antes que a filha diga que ficaram com Ian.
- Não foi intencional - responde Mariah. - Só queria tornar tudo mais fácil.
- Porquê Kansas City?
- Foi o primeiro avião a sair do aeroporto. Faith saltita em cima da cama.
- Pois, e adivinhe quem estava na primeira classe...
- Faith - a palavra, dita num tom firme, faz a menina interromper-se bruscamente. Mariah cerra os lábios, totalmente consciente do olhar de Kenzie fixo nela, da confusão de Faith. Regressámos; é isso que interessa. Quando soube que os documentos tinham sido entregues, regressámos.
Kenzie não pestaneja. Mariah sente gotas de suor acumularem-se debaixo do decote da camisola; consegue ler o que está estampado nos olhos da tutora ad litem tão claramente como se estivesse escrito neles: "Esta mulher está a mentir." Mas dizer mais a Kenzie significa admitir ter fugido da ameaça de Colin, do processo legal. Tornar pública a sua relação com Ian. Violar a privacidade dele. Fica a olhar para Kenzie, desta vez decidida a não recuar.
Para sua surpresa, Kenzie é que o faz. Não tira o bloco de notas, nem faz mais perguntas, nem critica Mariah, mas em vez
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disso afasta-se um pouco mais de Mariah em cima da cama de Faith. Depois volta à sua tarefa, cantarolando baixinho, dando voltas aos cabelos de Faith nos seus dedos, como um fio num tear. E Mariah apenas pode observar Kenzie juntar todas as pontas soltas.
- Ian, meu Deus, estou tão contente por teres telefonado. Ele fecha a mão em volta do auscultador, sorrindo.
- Que bela recepção, querida.
- Acho que ela sabe. A tutora ad litem. Esteve a fazer perguntas hoje e a Faith deixou escapar qualquer coisa sobre Kansas City e...
- Mariah, acalma-te. Respira fundo... Pronto. Agora, o que é que aconteceu? - ele fica a ouvir, franzindo a testa enquanto ela conta a conversa com Kenzie van der Hoven. - Bem, acho que não há nada de conclusivo. Ela apenas sabe que alguém que chamou a atenção da Faith estava no avião. Podia ser um dos Backstreet Boys, ou o príncipe William.
- Mas ela sabe em que dia partimos, e quando o Colin entregou os documentos.
Ian suaviza a voz.
- Ela ia descobrir isso de qualquer maneira. A melhor defesa que tens é o facto de teres regressado com a Faith - hesita, lembrando-se do seu encontro com Metz. -Já te disse para não te preocupares, Mariah. Disse-te que ia resolver este assunto. Não confias em mim?
Durante um momento terrível, ela não responde. E depois Ian consegue sentir um súbito calor que chega até ele através da ligação telefónica antes da voz dela.
- Confio, Ian.
Ele tenta responder, e descobre que não há palavras para o fazer.
- Desculpa-me por te ter metido nisto - acrescenta Mariah. Ian fecha os olhos.
- Querida - diz ele -, não há outro sítio onde preferisse estar.
16 de Novembro de 1999
No dia em que Kenzie se encontra com Mille Epstein, o prato do dia no café do centro de New Canaan é filetes com batatas fritas.
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- Muito mau - diz Millie, torcendo o nariz ao olhar para o menu. - Nem sequer sabemos se é feito em óleo de colza.
Parece ser a introdução perfeita, por isso Kenzie inclina-se para a frente com os cotovelos apoiados na mesa cheia de marcas.
- Suponho que ultimamente tenha muito cuidado com o que come.
Millie olha para cima.
- Porque haveria de ter? Se bater outra vez a bota, mando chamar a Faith em vez de um paramédico - ao ver a mulher mais nova ficar de boca aberta, Millie sorri. - Estou a brincar. É claro que tenho cuidado. Mas também tinha cuidado antes do ataque cardíaco. Comia bem, tomava os remédios religiosamente. Deixe-me fazer-lhe uma pergunta: Viu os meus ficheiros clínicos no hospital?
-Vi.
- Acredita que fui ressuscitada? Kenzie cora.
- Não sei se "ressuscitada" será o termo correcto, precisamente...
- Então qual é o termo correcto? Um milagre?
- Estava a pensar mais na perspectiva de uma reacção muito invulgar do sistema nervoso.
- Aha - murmura Millie. - Acredita em Deus, Dr.a Van der Hoven?
- A questão não é essa. E acho que eu é que devia estar a fazer as perguntas, Sr.a Epstein.
A mulher mais velha continua, de ânimo leve.
- Também me deixa um pouco apreensiva. Não sou muito de louvar a Deus, e provavelmente também não seria mesmo que fosse cristã.
- O mais importante nesta audiência para determinar a custódia é qual é o melhor lar para a Faith, minha senhora. com o devido respeito, isso não deixa muito lugar para Deus.
- Está a ver, não concordo consigo - Millie palita os dentes com a unha do polegar e abana a cabeça. - Uma mulher mais religiosa diria que há sempre lugar para Deus, mas isso é irrelevante. Para mim, a senhora não poderá fazer o seu trabalho sem se perguntar se acredita ou não. Porque se não acreditar, então a Faith tem de estar a mentir, e isso irá afectar a sua decisão relativamente ao sítio onde ela deve estar.
- Sr.a Epstein, a senhora não é uma tutora ad Htem. Millie olha directamente para Kenzie.
- Não. Mas a senhora não é avó dela.
Antes que Kenzie consiga responder, chega a empregada de mesa.
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- Como está, Millie? - diz ela, com a familiaridade de uma cidade onde podemos descer uma rua e reconhecer de facto as pessoas.
- Irene, os filetes e as batatas são fritos em óleo de colza? A empregada de mesa ri.
- Acha que isto é o Four Seasons? Tanto quanto sei, vêm de uma arca congeladora da Mrs. Paul s12.
Millie estende a mão por cima da mesa e dá palmadinhas na de Kenzie.
- Fique-se pela sopa. Não vai ficar enjoada mais tarde. Mas Kenzie pede uma Coca-Cola.
- Precisamos aqui é de uma charcutaria" - diz Millie, pensativa.
- Faz ideia de há quanto tempo não como uma boa carne fumada?
Os lábios de Kenzie contorcem-se.
- Há uma vida inteira? Millie ri.
- Bem observado - diz ela, e depois passa o polegar por um pacote de adoçante Equal.
- Costumava tomar chá com a Faith quando ela tinha cerca de três anos. Ela vinha a minha casa e tirávamos as toalhas da minha avó cá para fora, e vestíamos uns robes velhos que eu tinha dos anos quarenta, aqueles com as penas cor-de-rosa nos punhos e na gola, como é que isso se chama?
- Marabu.
- É isso. Marabu. Isso não é uma espécie de rena?
- Isso é um caribu - Kenzie sorri. - Sr.a Epstein, compreendo a sua preocupação com a sua neta. Pode ficar descansada que estou apenas a tentar tomar uma decisão tendo em conta o bem-estar dela.
- Bem, se acha que a Faith está a mentir, então isso deve ser patológico e contagioso. Porque a mãe acredita nela, e também umas quinhentas pessoas que estão acampadas à porta de casa, para não falar nos médicos que viram o meu coração parar de bater.
Kenzie fica em silêncio por um momento.
- Lembra-se da emissão da Guerra dos Mundos?
- Claro. O meu marido e eu ficámos tão assustados como qualquer outra pessoa.
12 Marca de produtos congelados pré-embalados. (N. da T.)
13 No original inglês, o termo usado foi "deli", que designa um estabelecimento que vende carnes fumadas e uma grande variedade de pratos confeccionados. (N. da T.)
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- É apenas isso que eu estou a dizer, Sr.a Epstein. As pessoas ouvem o que querem ouvir. Acreditam no que querem acreditar.
Millie pousa o copo de água devagar e massajea inconscientemente o lugar do coração com a mão.
- Em que deseja acreditar, Dr.a Van der Hoven? Kenzie não hesita.
- Que aquilo que recomendar seja o melhor para a Faith. E a senhora, Sr.a Epstein? Em que deseja acreditar?
"Que o tempo possa voltar atrás. Que os pesadelos cessem. Que o Colin nunca tivesse entrado na vida da minha filha."
- Desejo acreditar que existe um Deus - diz Millie claramente.
- Porque tenho a certeza absoluta de que o diabo existe.
- Hunstead - chama Metz do seu trono à cabeceira da mesa de conferências -, você e o Lee vão confirmar a informação. Quero uma cópia do bilhete que a levou para Kansas City...
- Doutor? - pergunta um dos associados. - Estamos a referir-nos a Kansas City no Missouri, ou a Kansas City no Kansas?
- Onde raio é que você esteve nesta última hora, Lee? - pergunta Metz. - Hunstead, informe o seu colega com dificuldades de memória do que estivemos a discutir enquanto ele esteve a sonhar com as Marés Vivas.
- Então e as agências de aluguer de automóveis? - sugere Hunstead. - Se foi o Fletcher que arranjou o transporte, deve estar no nome dele, ou da sua produtora. De outra forma a Mariah White teria simplesmente usado um cartão de crédito.
- Muito bem - diz Metz. - Avance com isso. Também quero cópias dos registos dos hotéis da zona.
Dois associados sentados à direita de Metz na mesa de conferências de vidro e metal assentam a ordem nos seus blocos de notas.
- Lee, quero saber quais foram os casos nos últimos dez anos em que a custódia foi invalidada e atribuída ao pai. E quero saber porquê. Elkland, comece a estudar a nossa lista de especialistas em psiquiatria. Precisamos de encontrar um que esteja disposto a afirmar que um doido nunca deixa de ser um doido. - Olha para cima, agarrando numa maçã que estava à sua frente. - Como chamamos a um advogado encerrado num bloco de betão no fundo do oceano?
Os jovens advogados olham uns para os outros. Por fim, Lee levanta a mão.
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- Um bom começo?
- Excelente! Ganhou o depoimento desta tarde, com o psiquiatra do tribunal que avaliou o Colin White.
- O que vai fazer? Metz ri-se.
- vou ajoelhar-me e rezar a Alá - toma várias notas enquanto os jovens advogados se dispersam para cumprir as suas ordens, e depois carrega no botão do intercomunicador.
- Janie, não quero ser incomodado.
Antes costumava dizer: "Não quero que me incomodem a menos que Deus telefone." Era uma piada que tinha ainda mais graça pelo facto de a maior parte das pessoas na firma não descartar isso como uma impossibilidade. Mas desde que tinha aceitado o caso White, Metz deixou de recorrer a essa frase.
Não gosta de Colin White, mas por outro lado, não gosta particularmente de nenhum dos clientes que defende. No entanto, admira White pelo desafio que o homem lhe apresentou. Metz terá a oportunidade de mostrar o direito no seu melhor - algo que pouco tem a ver com a justiça, e mais com a sedução.
Daí a umas duas semanas entrará numa sala de audiências, tomará a vida de um desgraçado como o Colin White e virá-la-á completamente do avesso. Fará um trabalho tão bom ao recrear o seu cliente que o juiz e a imprensa e talvez até mesmo a promotora de justiça acreditarão naquilo que ele diz.
Metz ri-se sozinho. E dizem que os cirurgiões têm um complexo de Deus.
Não é um homem religioso. Na verdade, o último contacto que teve com o culto organizado de que se lembra foi no seu próprio bar mitzvah. Metz lembra-se do vestido vermelho que a mãe usou, o fato demasiado largo que ficava pendurado no seu corpo como num cabide, o som surpreendente da sua voz ao entoar as palavras da Tora. Estava tão assustado que quase urinou nas calças, e depois, mais tarde, na recepção, quando as tias se debruçavam sobre ele em nuvens de perfume para lhe darem beijos e receberem nachas, tinha estado quase a desmaiar. Mas tinha valido a pena quando o pai tinha ido com ele à casa de banho, ficado de pé ao seu lado no urinol e dito sem olhar directamente para ele: "Agora já és um homem."
Foi a primeira vez que Metz usou as palavras dele para reconstruir uma pessoa. Naquele caso, ele próprio.
Volta a concentrar-se no ficheiro que tem diante de si. Colin White, Mariah White, Faith White. São estes os nomes no
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documento legal; "Deus" não aparece em lado nenhum, e segundo a interpretação da lei de Malcolm Metz, assim é que deve ser.
18 de Novembro de 1999
Em toda a sua vida, Kenzie nunca entrou num templo. Sabe que está a embasbacar para a Arca ricamente decorada, para os livros de oração hebraicos pouco familiares, para o bema, o altar.
- Parece mesmo uma igreja - diz ela, e depois tapa a boca, embaraçada.
O rabi Weissman sorri.
- Deixámos de dançar nus à volta de uma fogueira há cerca de
um ano.
- Desculpe - Kenzie cruza o seu olhar com o dele. - Não estou muito familiarizada com o Judaísmo.
- Parece que ainda poderá vir a ser uma especialista - faz um gesto em direcção a um banco. - Então quer saber se a Faith White conversa realmente com Deus. Dr.a Van der Hoven, eu converso com Deus. Mas não vê o Hollywood Tonight! à porta do meu escritório.
- Então está a dizer...
- Estou a dizer que Deus, na Sua infinita sabedoria, não me apareceu em travesti para jogar às damas - tira os óculos e limpa-os à camisola. - Não ficaria um pouco desconfiada se uma menina sem formação legal absolutamente nenhuma anunciasse de repente que podia ser juíza e desempenhasse tais funções?
- E isso é a mesma coisa?
- Diga-me você. Então ela conversa com Deus. E depois? Não estou a ver Deus dizer-lhe que os Israelitas vão desancar a OLP. Não estou a ver Deus dizer-lhe para se manter kosher. Nem sequer estou a ver Deus inspirá-la para assistir aos serviços religiosos de sexta-feira à noite. E custa-me bastante acreditar que se Deus de facto decidiu manifestar-Se sob a forma humana diante de uma judia, tivesse escolhido uma que não seguisse os padrões de vida da fé judaica.
- Tanto quanto sei, as aparições religiosas não surgem apenas aos devotos.
- Ah, esteve a falar com padres! Olhe para a Bíblia. As pessoas que tiveram a sorte de falar com Deus ou são extremamente religiosas ou colocadas de forma a beneficiar o mais possível a religião. Dou-lhe um exemplo: Moisés não foi criado como judeu, mas
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abraçou a sua religião depois de falar com Deus. Não vejo isso acontecer aqui - sorri. - Por muito reconfortante que seja para nós acalentar a fantasia de que Deus pode ser simpático para o tipo normal que não vai à igreja nem ao templo e reza apenas para garantir as apostas na Supertaça, não é realista. Deus é misericordioso, mas também tem uma boa memória, e há uma razão para que os Judeus sigam um padrão de vida há cinco mil anos. Kenzie olha por cima do seu caderno.
- Mas já me encontrei com a Faith, e não me parece que ela esteja a tentar enganar as pessoas intencionalmente.
- A mim também não. Não fique tão surpreendida. Também já me encontrei com ela, sabe; é uma criança encantadora. O que me leva a crer que alguém está a mandá-la fazer isto.
Kenzie pensa na altura em que se encontrava no quarto de Faith, quando Mariah silenciou a filha com um único olhar.
- A mãe.
- Essa foi a minha conclusão, sim - encosta-se ao banco. - Sei que a Sr.a White não é uma judia praticante, mas há coisas que ficam dentro de nós. Se os traumas de infância reprimidos podem voltar para nos atormentar, porque não haveria de acontecer o mesmo com a prática religiosa? Talvez tivesse ficado gravado na Sr.a White em tenra idade, até mesmo quando ainda não sabia falar, e de alguma forma ela tenha comunicado isso à filha.
Kenzie coça o queixo com a parte de cima do lápis.
- Porquê?
O rabi Weissman encolhe os ombros.
- Pergunte àquele sujeito, o Ian Fletcher. Deus pode ser um parceiro silencioso muito lucrativo. A questão não é porquê, Dr.a van der Hoven. É porque não?
19 de Novembro de 1999
- Sem dúvida que levanta uma boa questão - diz o padre MacReady. Caminha ao lado de Kenzie nos terrenos da igreja, levantando pequenos tornados de folhas secas com a biqueira da sua bota de cowboy. - Mas eu também posso levantar uma boa. Por que razão uma criança, ou a mãe, como sugere, haveriam de escolher os estigmas?
- Para chamar a atenção?
- Bem, há isso. Mas ver Deus não é tão fascinante como, digamos, ver o Elvis. E se quiser ficar pelo Catolicismo, devo dizer que
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as visões de Maria sempre atraíram uma multidão maior e mais emotiva do que as aparições de Jesus - vira-se para Kenzie, com o vento a sacudir-lhe os cabelos. - Os estigmatizados são objecto de um grande escrutínio por parte da Igreja Católica. Tanto quanto sei, se estivermos em comunhão com o Elvis, só temos de dar explicações a alguém como a Petra Saganoff.
- Não lhe parece estranho que uma menina judia tenha visões de Jesus?
- A religião não é nenhuma competição, Dr.a Van der Hoven olha cautelosamente para Kenzie. - O que a perturba realmente neste caso?
Kenzie cruza os braços, sentindo frio de repente.
- Estou convencida de que a Faith não está a mentir. O que significa que não posso deixar de acreditar que talvez outra pessoa esteja a mandá-la fazer isto...
- A Mariah.
- Sim - Kenzie suspira. - Ou então... ela vê mesmo Deus.
- E tem problemas em relação a isso. Ela acena com a cabeça.
- Sou uma cínica.
- Eu também - diz o padre MacReady. - De vez em quando, mesmo aqui, aparece-nos uma imagem que chora ou um cego que volta de repente a ver, mas estas coisas não acontecem normalmente, a não ser ao David Copperfield. Sou o primeiro a dizer-lhe que a fé pode mudar uma pessoa. Mas fazer milagres? Nem pensar. Curar? Hmm-hmm. E a verdade é que a única devoção que a Faith mostra está no seu nome. Ela não cresceu a acreditar em Deus. Nem sequer se interessa realmente, nem mesmo agora, em saber quem Deus é. Para além do facto de Deus ser um amigo.
O padre MacReady fica a olhar para os limites do terreno da igreja. O sol rompeu por entre as nuvens, reflectindo-se em raios azuis e dourados como uma fotografia de um banco de imagens em parafernália religiosa. Lembra-se da mãe a encostar o carro para suspirar perante a beleza de um momento como aquele.
- Olha para aquilo, Joseph - diria ela. - É um céu de Jesus.
- Dr.a Van der Hoven - diz ele pensativamente, ainda fitando a distância -, alguma vez viu o pôr do sol no Nepal?
Kenzie segue o olhar dele para a paleta deslumbrante do céu.
- Não, nunca vi.
- Eu também não - admite o Padre MacReady. - Mas isso não significa que não aconteça.
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Cidade do Vaticano, Roma
O predecessor da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé foi instituída em 1231 pelo papa Gregório IX e, ocasionalmente cumpria a sua missão esticando suspeitos na roda, queimando-os com carvões em brasa, açoitando-os e queimando-os na fogueira. Já se passou muito, muito tempo desde a época da Inquisição, e agora o gabinete dedica-se a corrigir a doutrina católica em vez de censurar a heresia. No entanto, o cardeal Sciorro por vezes percorre os corredores e sente o odor das cinzas; por vezes acorda de noite por ter ouvido pessoas gritar.
O cardeal prefeito, gosta de se descrever como um homem simples, um homem santo - mas um homem justo. Desde que a Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé funciona como um tribunal de recurso, sabe que está bem preparado para desempenhar o seu cargo. Carrega a responsabilidade com a mesma facilidade com que usa a mozeta, colocando-lhe o mesmo peso nos ombros.
Está no seu gabinete, bebericando o chocolate da manhã e lendo os papéis que se foram amontoando, quando o vê pela primeira vez.
- A Sociedade de Deus Mãe - diz ele devagar, experimentando as palavras na língua, deixam um gosto amargo. Lê brevemente o sumário: um grupo de mulheres católicas de número significativo desejam recorrer da censura de Sua Excelência o Bispo de Manchester, alegando que as palavras de uma tal Faith White, que não é católica, não são heréticas.
O cardeal prefeito telefona ao secretário, um monsenhor atencioso chamado Reggie com aspecto de beagle.
- Sim, Eminência?
- O que sabe sobre esta Sociedade de Deus Mãe?
- Bem - diz Reggie -, estavam a fazer uma manifestação na Praça de São Marcos, ontem.
Estas mulheres católicas militantes estão a ganhar cada vez mais força. Por um momento, o cardeal sente uma vaga de nostalgia, pela forma como o mundo era antes do Vaticano II.
- O que é que o bispo Andrews considera heresia?
- Pelo que apurei, a vidente judia diz que Deus é feminino.
- Estou a ver - o cardeal prefeito expira devagar, lembrando-se de Galileu, Joana D Arc, de outras vítimas de alegada heresia. Interroga-se de que servirá a Sociedade de Deus Mãe permanecer censurada após este recurso. Pode impedir estas mulheres de
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imprimir heresias, de espalhar falsos dogmas, por serem seguidoras do Catolicismo.
Mas a Faith White - ela ainda andará por aí, a dizer tudo aquilo que quiser.
Lacey Rodriguez descalça os sapatos e enfia a cassete no leitor de vídeo. Não é a primeira vez desde que é detective privada que fica a pensar em como os patrões podem ser tão descuidados. Mais alguns incentivos, melhores benefícios - que raio, talvez até algum cumprimento pessoal de vez em quando... qualquer uma destas coisas poderia ter contribuído bastante para que o operador de câmara de Ian Fletcher não vendesse uma cópia da cassete de vídeo da prova de esforço de Millie Epstein por uns miseráveis dez mil dólares.
Carrega no botão do fast-forward no comando, sem revelar o menor interesse nos ritmos cardíacos da idosa, nem na sua respiração ofegante na passadeira. Depois chega-se para a frente, imóvel, cobrindo o seu sorriso a espalhar-se lentamente no rosto com as pontas dos dedos.
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Treze
Sede sóbrios e vigiai, pois o vosso adversário, o diabo, como um leão a rugir, anda a rondar-vos, procurando a quem devorar.
Pedro 5,8
23 de Novembro de 1999
- O homem - anuncia Joan, atirando a pasta para cima da nossa mesa da cozinha - é um idiota.
Nem eu nem a minha mãe pestanejamos. Já vimos a Joan referir-se a Malcolm Metz desta maneira antes. Sento-me à sua frente enquanto ela remexe nos papéis.
- A boa notícia - digo eu num tom falsamente animado -, é que daqui a algumas semanas nunca mais terá de ver o Malcolm Metz.
Joan olha para cima, surpreendida.
- Quem está a falar do Metz? - recosta-se na cadeira, massajando as têmporas. - Não, hoje tive o prazer singular de ouvir o depoimento do Ian Fletcher. O tipo chegou vinte minutos atrasado e não quis responder a nada para além do seu nome e endereço. No terceiro ano deve ter aprendido a dizer a frase, "invoco a quinta emenda", e deve ter estado à espera para poder utilizá-la desde essa altura - abanando a cabeça, entrega uma lista a Mariah.
- Dele só fiquei a saber que vai ser um problema no contra-interrogatório.
Mariah aceita o papel, tentando assimilar o comentário de Joan. O Ian, testemunha do Malcolm Metz? Do Co m?
- Para além do Fletcher, há mais alguém na lista de testemunhas sobre quem possa dar-me algumas informações?
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Tento responder, mas a minha boca está demasiado seca para conseguir articular mais do que um sopro de surpresa. Tenho uma vaga consciência da presença da minha mãe, de olhos semicerrados fixos no meu rosto; do mar de letras que se formam e se dissolvem em nomes: Colin, o Dr. Orlitz, a Dr.a DeSantis.
- Mariah - chama Joan, numa voz muito, muito distante -, sente-se bem?
Ele sempre disse que ia ajudar-me. Disse que ia fazer tudo o que estivesse ao seu alcance para garantir que eu ficasse com a Faith. E, porém, aqui está ele, aliado ao Malcolm Metz, a mentir-me.
Sobre que mais ter-me-ia mentido?
com uma grande descarga de adrenalina, levanto-me, afastando a minha cadeira da mesa. Joan e a minha mãe observam-me sair da cozinha, seguindo-me até à sala. Quando se torna evidente para elas o que tenciono fazer, Joan apressa-se a intervir.
- Mariah - avisa ela -, não perca a cabeça.
Mas eu não estou a pensar com clareza; não quero pensar com clareza. Não me interessa quem me vê atravessar o jardim com uma velocidade originada pela dor e pela fúria. Mal presto atenção à descarga que electriza a comunicação social enquanto me aproximo da caravana com um único objectivo em mente.
Nem sequer me dou ao trabalho de bater à porta. com o peito a arfar, fico de pé à porta a olhar para Ian e para os seus empregados, reunidos em volta de uma mesa minúscula cheia de papéis. Por um instante, os olhos de Ian falam comigo: surpresa, prazer, confusão e desconfiança a sucederem-se uns a seguir aos outros.
- Sr.a White - diz ele no seu sotaque sulista. - Mas que surpresa agradável. - Vira-se para as outras três pessoas e pede que o deixem sozinho por um momento; saem em fila da caravana lançando-me olhares curiosos.
Assim que a porta se fecha atrás deles, Ian contorna a mesa e agarra-me pelos ombros.
- O que aconteceu? Aconteceu alguma coisa à Faith?
- Ainda não - digo num tom mordaz.
Ele recua, afastado pela minha raiva.
- Bem, deve ter acontecido qualquer coisa. Nem imaginas o tipo de histórias que estão a formar-se nas cabeças dos jornalistas que te viram entrar aqui mesmo agora - depois a sua expressão altera-se, deslizando facilmente para um sorriso pueril. - Ou se calhar não foste capaz de passar nem mais um momento sem me ver.
Engulo em seco.
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- Porque é que não me disseste que vais testemunhar para o
Metz?
Não consigo evitar que a minha voz fique entrecortada a meio já frase. Tenho a satisfação de ver Ian sobressaltar-se e, depois, para minha surpresa, começa a rir-se.
- A Joan disse-te - aceno com a cabeça. - Ela referiu como eu me mostrei pouco cooperante? - Em seguida, Ian aproxima-se. Mariah, vou testemunhar para ti.
Respiro junto à sua camisa. Até agora, quando devia odiá-lo, reparo no cheiro da sua pele. Endurecendo, afasto-me.
- Bem, podes não ter reparado, mas o Malcolm Metz não é meu advogado.
- Exactamente. Fui ter com ele, fi-lo pensar que lhe daria inúmeros exemplos de como não eras boa mãe. Quando chegar a minha vez de testemunhar em tribunal, porém, ele vai ter uma surpresa, visto que o meu discurso será radicalmente diferente.
- Mas a Joan...
- Não tive outra hipótese, Mariah. Posso preparar o meu testemunho diante do Metz e depois subir para o banco das testemunhas e começar a falar suaíli sem que isso seja nada de extraordinário. Afinal, sou sua testemunha, e isso apenas significa que não estou a comportar-me devidamente. Mas se mentir à Joan Standish ao apresentar o meu depoimento e depois comparecer em tribunal para dizer uma coisa completamente diferente, estarei a cometer perjúrio. Tive de invocar a quinta emenda hoje, repetidas vezes, porque isso impedirá que ela tenha problemas, e que o Metz desconfie de mim.
Quero acreditar nele; meu Deus, quero mesmo.
- Farias isso por mim? Ian inclina a cabeça.
- Faria qualquer coisa por ti.
Desta vez, quando me abraça, não ofereço resistência.
- Porque é que não me disseste que ias fazer isto? A sua mão acaricia-me as costas, tranquilizando-me.
- Quanto menos souberes, melhor. Assim, se isto se virar contra mim, não serás afectada - beija-me o canto da boca, a face, a testa. - Ainda não podes contar nada à Joan. Se ela descobrir tudo antes do julgamento, pode arranjar problemas graves.
Em resposta, ponho-me em bicos de pés e beijo-o. Timidamente, de início; depois abro a boca na sua, identificando café e algo mais doce, como rebuçados. com certeza que se Ian estivesse a mentir-me, isso seria evidente. com certeza que se ele estivesse a mentir, eu teria o bom senso de perceber.
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"Como percebi das outras vezes?" Fechando os olhos, afasto com firmeza a ideia de Colin e das suas indiscrições. Sinto o calor do Ian subir entre nós, as suas ancas encostarem-se às minhas.
Arquejando, ele afasta-se de mim.
- Querida, está uma multidão lá fora à espera para ver se consegues sair desta caravana com vida. Se continuarmos assim, não posso prometer-te nada - beija-me a testa castamente e afasta-se deliberadamente de mim, com um sorriso a puxar-lhe o canto da boca.
- O que foi?
- Não parece propriamente que estiveste a discutir comigo. Corando, passo as mãos pelos cabelos e levo as pontas dos
dedos aos lábios. Ian ri.
- Faz um ar zangado, e volta para casa depressa. Vão pensar que ainda estás furiosa.
Envolve-me a face com a mão, e eu viro os lábios para a sua palma.
- Ian... obrigada.
- Sr.a White - murmura ele -, disponha.
Joan e a minha mãe estão à porta e rodeiam-me imediatamente assim que entro em casa, fazendo-me lembrar os artistas de circo que ficam à espera na alta escada de corda para garantirem que o seu colega no trapézio regressa em segurança.
- Santo Deus, Mariah - repreende Joan. - Em que estava a pensar?
A minha mãe não diz uma palavra. Fica a olhar para a minha boca, vermelha e beijada, e ergue uma sobrancelha.
- Não estava a pensar - confessei, e isso pelo menos é verdade.
- O que lhe disse?
- Disse-lhe para ser educado com a minha advogada no futuro
- minto, olhando directamente para Joan -, senão terá de se justificar diante de mim.
Alguns minutos antes da hora de Petra Saganoff e a sua equipa de filmagem chegarem, puxo a Faith para uma alcova ao pé da casa de banho.
- Lembras-te do que combinámos?
Faith acena com a cabeça, com um ar solene.
- Nada de falar sobre Deus. De maneira nenhuma. E vai estar cá uma grande câmara - acrescenta Faith. - Como as que estão lá fora.
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- Exactamente.
- E não posso chamar à Petra Saganoff a palavra começada
por C.
- Faith!
- Bem, tu chamaste-lhe isso.
- Fiz mal - suspiro, pensando que se sobreviver a este dia, nunca mais na minha vida me queixarei de nada. Através da Joan, combinámos que a Petra Saganoff viria aqui para filmar aquilo que ela chama de "imagens da câmara B" - imagens em plano de fundo da Faith a brincar e de nós a sermos apenas nós próprias na nossa casa. que depois ela levará para introduzir a sua própria narrativa em locução antes de o segmento ser transmitido no Hollywood Tonigbt! A Joan certificou-se de que a Saganoff assinava um documento sobre o que poderia ou não filmar, mas mesmo assim estou preocupada com a visita dela. Embora ache que a Faith será capaz de se comportar normalmente durante meia hora, isto poderá virar-se contra mim... e foi algo que a Joan fez notar desde o início, desde que eu sugeri este exclusivo. As nossas vidas não têm sido propriamente previsíveis nos últimos tempos. E se a Faith começar a sangrar de novo? E se se esquecer e começar outra vez a falar com Deus? E se a Petra Saganoff fizer com que pareçamos idiotas?
- Mamã - diz Faith, tocando-me no braço. - Vai correr tudo bem. Deus está a tratar disso.
- Óptimo - murmuro. - Vamos garantir que ela fique com um bom lugar.
A campainha toca. Passo pela minha mãe quando vou atender.
- Isto ainda não me agrada. Nem um bocadinho.
- A mim também não - digo, franzindo o sobrolho. - Mas se não disser nada, as pessoas vão pensar o pior. Abro a porta e colo um sorriso no rosto. - Sr.a Saganoff, muito obrigada por ter vindo.
Petra Saganoff, no seu melhor e em pessoa, é ainda mais atraente do que na televisão.
- Obrigada pelo convite - diz ela. com ela vêm três homens, que apresenta como um operador de câmara, um técnico de som e um produtor. Não estabelece contacto visual comigo; em vez disso o seu olhar percorre o corredor, à procura da Faith.
- Ela está lá dentro - digo secamente. - Porque não me acompanha?
Concordámos em deixá-la entrar na sala dos brinquedos da Faith. Que melhor maneira haverá, acho eu, de mostrar que uma
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criança é apenas uma criança do que observá-la com as suas bonecas, quebra-cabeças e livros? Quando o operador de câmara e o produtor decidiram onde colocar a câmara e ajustaram as luzes para as filmagens, já se tinham passado quase trinta minutos. A Faith está a ficar impaciente; o operador de câmara até lhe dá um "gel", um pedaço de plástico colorido que prendeu às luzes com alfinetes. Ela agarra-o e espreita através dele, tornando o seu mundo amarelo, mas eu sei que chegou aos limites da paciência. Por este andar, a Faith estará pronta para agarrar nos seus brinquedos e ir para outro lado qualquer quando Petra estiver pronta para começar.
Lembro-me da vez em que o Ian filmou a Faith durante a prova de esforço da minha mãe, de como mesmo impondo limites, há tanta coisa que pode correr mal - quando subitamente salta um fusível.
- Ah, bolas - diz o operador de câmara. - Os circuitos estão sobrecarregados.
Passam-se mais dez minutos até arranjarem o fusível. Agora, a Faith está a lamuriar-se.
O operador de câmara vira-se para o produtor.
- Quer a marcação contínua do tempo ou a hora do dia? depois o técnico de som segura num cartão branco em frente ao rosto da Faith. - Dá-me tom - diz o operador de câmara, e passados alguns minutos. - Velocidade - o produtor olha para Petra Seganoff.
- Quando estiver pronta.
Quando as filmagens começam, estou sentada no chão a ajudar a Faith a brincar com o tabuleiro de feltro. Seguindo as instruções de Joan, não falo para Petra ou para a câmara; faço apenas o que faria normalmente com a Faith. Tento prender a atenção da Faith para que não olhe para a luzinha vermelha em cima da câmara, um lugar onde parece querer fixar o olhar. Petra observa ao canto.
- Tenho fome - diz Faith, e apercebo-me de que já é hora de almoço.
- Anda. Vamos para a cozinha.
Bem, isto levanta um problema. Na prática, não filmámos trinta minutos, mas a equipa não pode entrar nas outras divisões da casa. Sugiro que a equipa faça um intervalo e continue a filmar depois de a Faith ter comido. Educadamente, convido Petra a entrar na cozinha.
- Tem uma linda casa, Sr.a White - diz ela, as primeiras palavras que me dirige desde a sua chegada.
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- Obrigada - abro o frigorífico e tiro a manteiga de amendoim a geleia, e coloco-as em cima da mesa: a Faith gosta de fazer as
suas próprias sandes.
- Suponho que isto tenha sido difícil para si - diz Petra, e depois sorri ao ver a expressão no meu rosto. - Quer revistar-me? para ver se tenho algum microfone?
- Não, claro que não - a última instrução de Joan: manter a calma. Escolho as palavras com cuidado, certa de que a narrativa que Saganoff introduzirá na locução se reportará, de alguma forma, à conversa que estamos prestes a ter. - Como já deve ter reparado, independentemente do que as pessoas que estão lá fora pensam, a Faith é apenas uma menina. É apenas isso que ela quer ser.
Nas costas de Petra, vejo a Faith mostrar a palma da mão. Espalhou geleia em volta do penso rápido, para parecer que está a deitar sangue, e está a agitar a mão no ar e a fingir silenciosamente que está a gemer. A minha mãe, cruzando o olhar com o meu, apressa-se a chegar junto de Faith para lhe limpar a geleia com uma toalha de papel, agitando um dedo em frente ao rosto dela num aviso. Concentro-me de novo em Petra e sorrio alegremente.
- O que estava eu a dizer?
- Que a sua filha é como qualquer outra menina. Mas, Sr.a White, há muita gente que não concorda consigo.
Encolho os ombros.
- Não posso dizer-lhe o que devem pensar. Mas também não tenho de acreditar naquilo que acreditam. Em primeiro lugar, a Faith é minha filha. Pura e simplesmente, e tudo o resto que está a acontecer realmente não tem nada a ver connosco - orgulhosa de mim própria, paro enquanto ainda tenho a vantagem. Nem mesmo Joan poderia encontrar alguma falha nesta última declaração; quase desejo que a câmara estivesse a gravar.
Tiro uma alface do frigorífico.
- Quer almoçar, Sr.a Saganoff?
- Se não lhe der muito trabalho.
Durante anos, nunca fui capaz de perceber o que me levou a dizer o que vou dizer a seguir. Solta-se de dentro de mim como um arroto, e deixa-me igualmente embaraçada.
- Não me dá trabalho nenhum - gracejo. - Vai ser pães e peixes.
Por um único momento arrepiante, Petra Saganoff fica a olhar para mim como se eu tivesse duas cabeças. Depois começa a rir, aproxima-se da bancada e oferece-se para ajudar.
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24 de Novembro de 1999
Na quarta-feira, o Hollywood Tonight! anuncia o programa, prometendo uma visão do interior da casa dos White: "Em casa de um Anjo." Para minha surpresa, começo a ficar nervosa com a emissão. Afinal, não sei o que Saganoff dirá sobre nós. E milhões de pessoas vão ouvir, aconteça o que acontecer.
Às seis horas, jantamos. Às seis e meia, faço uma taça de pipocas no microondas. Às vinte para as sete, a minha mãe, a Faith e eu estamos sentadas no sofá, à espera que o Peter Jennings pare de falar para que comece o Hollywood Tonight!
- Oh, bolas - diz a minha mãe, batendo no peito. - Deixei os meus óculos em casa.
- Que óculos?
- Os meus óculos. Sabes, os de que preciso para ver. Ergo uma sobrancelha.
- Estavas com eles esta tarde. Provavelmente estão na cozinha.
- Não estava com eles; estás enganada. Lembro-me perfeitamente de os ter deixado em cima da bancada da cozinha em minha casa - vira-se para mim. - Mariah, sabes como detesto conduzir à noite. Tens de ir buscá-los.
- Agora? - pergunto, incrédula. - Não posso sair quando o programa está prestes a começar.
- Oh, por favor. A minha casa fica a cinco minutos, até menos. Estás de volta antes de acabar o noticiário. E se não estiveres, podes sempre ligar o meu televisor e ver, também.
- Porque é que não podes puxar uma cadeira para junto do televisor?
- Porque faz mal aos olhos - diz a Faith numa voz aguda. Estás sempre a dizer-me isso.
Frustrada, cerro os lábios.
- Nem acredito que estás a obrigar-me a fazer isto.
- Se não te tivesses queixado logo ao início, já estarias de volta. Lanço as mãos ao ar e agarro na minha mala, descendo a via
de acesso tão depressa que os jornalistas nem têm tempo para se enfiarem dentro dos seus carros e seguirem-me. Passo pelas ruas de New Canaan até chegar a casa da minha mãe.
Não só se esqueceu dos óculos, como deixou a luz da cozinha acesa também. Abro a porta, entro em casa e vejo o Ian.
- O que... o que é que estás aqui a fazer? Ele sorri, agarrando-me nas mãos.
- Foi um passarinho que me deu a chave.
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Abano a cabeça.
- Um passarinho mais ou menos desta altura, de cinquenta e tal anos, de cabelos louros? Não posso acreditar.
Ian coloca os braços em volta da minha cintura.
- Ela quis fazer de fada madrinha, Mariah. Não lhe tires esse
gosto.
Ando pela casa, a fechar cortinas, a trancar a porta, a verificar tudo para me certificar de que não há faróis denunciadores de algum carro lá fora à minha espera. O carro de Ian não está em lado nenhum.
- Mas tenho de voltar para casa... o programa...
- Está a dar na outra sala. A tua mãe foi à minha caravana e perguntou-me se eu me importava de vir até aqui, para o ver contigo. Suponho que ela tivesse achado que gostarias de ter algum apoio moral.
- Ela podia ter-me dado apoio moral - digo. Ian parece ofendido.
- Mas não seria tão divertido. Isso faz-me calar imediatamente.
- Estás a dizer-me que a minha mãe... Ele toca-me nos cabelos.
- Ela ouviu-te falar comigo naquela noite, ao telefone. E disse que merecias um pouco de felicidade agora - ele sorri para mim.
- Também me disse para te dizer que deitava a Faith, o que dá a entender que nos dá a sua bênção, para além da sua casa. Entrelaçando os dedos nos meus, leva-me para a sala de estar, onde os apresentadores do Hollywood Tonight! acabaram de aparecer no ecrã.
Mal me apercebo de Ian a sentar-se ao meu lado no sofá enquanto o televisor se enche de imagens da minha casa, da minha filha. A voz quente de Petra Saganoff parece estranhamente deslocada, sobreposta às imagens de Faith a dispor as figuras no seu tabuleiro de feltro.
- Há semanas que ouvimos falar dos milagres realizados por esta menina, a Faith White - a cena dá lugar a imagens do hospital, onde Petra menciona a ressurreição da minha mãe, e a um primeiro plano do bebé com SIDA que brincou no nosso jardim. Em seguida, a Faith está outra vez no chão da sala dos brinquedos, mas desta vez eu estou com ela.
- Ficas óptima no pequeno ecrã.
- Chiu.
Petra continua.
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- Talvez o maior milagre de todos, no entanto, seja a maneira como a mãe da Faith, Mariah White, se esforça por manter a compostura e dar um lar cheio de amor à filha apesar do caos que se encontra mesmo à sua porta.
- Oh - solto um grito abafado, com um sorriso a surgir-me no rosto mesmo enquanto me vêm lágrimas aos olhos. - Oh, Ian, ouviste?
Ian abre os braços, e eu lanço-me neles, a rir e a chorar e tão, tão aliviada. Já não estou a prestar atenção ao Hollywood Tonight!; desvanece-se no rasto das mãos de Ian sobre os meus ombros e costas, puxando-me ainda para mais perto. Envolvendo-lhe o rosto entre as palmas das minhas mãos, beijo-o profundamente, até estar deitada junto dele no sofá com a respiração tão acelerada quanto a dele.
Ele desabotoa-me a camisa e encosta os lábios à pele exposta na minha garganta.
- Gosto do efeito que este programa tem em ti.
Ele está a provocar-me, mas eu já passei desse ponto. Quero senti-lo, tomá-lo, celebrá-lo. Estou a tremer quando cruzo as mãos atrás do seu pescoço.
Sentindo a mudança em mim, Ian afasta-se o suficiente para olhar-me nos olhos.
- Tenho sentido tanto a tua falta - sussurra, e beija-me. com as mãos ateia um fogo dentro de mim. "Isto é amor", penso. Um lugar onde as pessoas que estiveram sozinhas podem entrelaçar-se, prendendo-se juntas como falcões a rodopiar pelo ar, estonteados pela surpresa desta ligação. Um lugar para onde vamos de livre vontade, e maravilhados.
Então as minhas mãos libertam-no e à medida que Ian se move dentro de mim, os nossos dedos entrelaçam-se, para que fiquemos ligados um ao outro. "Meu, meu, meu." Os cabelos dele caem-me sobre os olhos, e quando encosto o rosto ao seu ombro, apercebo-me de que tenho o cheiro dele, como se já estivesse entranhado debaixo da minha pele.
A televisão zune, com uma mira técnica caleidoscópica sobre o ecrã. Toco com a mão na base do pescoço de Ian, no pequeno alto da clavícula por baixo da sua camisa, em todos aqueles sítios que estou a começar a conhecer de cor.
- Ian... costumas pensar em ir para o Inferno? Ele afasta-se e sorri, perplexo.
- O que te fez pensar nesse assunto?
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- Costumas?
Passando uma mão pelos cabelos, encosta-se às costas do sofá.
- Acreditar no Inferno significaria acreditar em algum tipo de modelo religioso, por isso terei de responder que não.
- Terias de responder que não - concordo devagar -, mas mesmo assim não sei o que pensas.
Ele cobre-me com o seu corpo e respira no meu pescoço.
- O que te fez pensar no Inferno? Foi isto? - roça os dentes no meu ombro. - Ou isto?
Não, quero dizer-lhe. Isto é o Céu. Deve ser o Céu, por que nunca na minha vida imaginei que alguém como ele quisesse estar com alguém como eu, aqui, a fazer isto. E atrás deste pensamento, vem outro: que tal prazer, sem dúvida, tem de ter um preço.
Então Ian inclina a testa, encostando-a à minha e fecha os olhos.
- Sim - sussurra. - Penso em ir para o Inferno.
Metz franze o sobrolho para o televisor e desliga-o a meio da cassete de vídeo.
- Isto é uma porcaria - anuncia para uma sala vazia. - Porcaria! Mariah White ganhou-lhe vantagem ao dar ao Hollywood Tonight acesso a sua casa e, sinceramente, pelo que Colin White lhe disse acerca da mulher, isso surpreendeu-o. Por norma, costumava render-se aos primeiros sinais de confronto. Estar a fazer a corte aos meios de comunicação social, após passar semanas escondida, é claramente uma estratégia por ela assumida - uma estratégia que Metz infelizmente admite que está a dar frutos. com o julgamento a realizar-se daí a uma semana, a comunicação social apaixonada por Faith White e um cliente muito ansioso nos bastidores, tem um trabalho feito à medida. Ouve-se alguém bater à porta.
- Sim?
Elkland, uma das suas jovens associadas, espreita lá para dentro.
- Dr. Metz? Tem um minuto?
Se tem um minuto. Tem uma tarde inteira cheia deles, visto que parece que não anda a usá-los em seu favor no caso White.
- Claro - indica uma cadeira com um gesto e passa as mãos pelo rosto, cansado. - O que a preocupa?
- Bem, estava a ver aquele programa Nova no PBS ontem à noite.
- Parabéns! E em que é que isso me faz feliz?
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- É que era sobre uma doença. Chama-se Síndroma de Munchausen por Procuração. Basicamente, quando sofremos desta síndroma, fazemos outra pessoa parecer física ou mentalmente doente.
Metz endireita-se, intrigado.
- Diga-me que esses papéis que tem na mão são uma investigação preliminar - murmura.
Ela acena com a cabeça.
- É uma perturbação clínica. Normalmente, trata-se da mãe a fazer isso ao filho, em segredo. E fá-lo para obter atenção positiva: para parecer, ironicamente, uma boa mãe por estar a levar a criança para as urgências ou a um psiquiatra. É claro, visto que foi a mãe que fez a criança ficar doente em primeiro lugar, é um disparate.
Metz franze a testa.
- Como é que se provoca uma alucinação em alguém?
- Não sei - admite Elkland. - Mas descobri uma pessoa que sabe. Tomei a liberdade de entrevistar um especialista na Síndroma de Munchausen por Procuração pelo telefone. Ele quer falar consigo sobre o caso.
Metz tamborila com os dedos na secretária. As hipóteses de Mariah White sofrer desta doença de Munchausen provavelmente são bastante reduzidas, mas isso é indiferente. Os seus casos mais consistentes normalmente não têm nada a ver com a verdade, mas simplesmente com o facto de ser capaz de lançar uma cortina de fumo na direcção certa. A melhor estratégia para Colin White será fazer com que o juiz descubra falhas na mãe de Faith, para não ter outra hipótese a não ser atribuir a custódia ao pai. Metz podia insinuar que Mariah sofre de lepra, esquizofrenia, ou desta Síndroma de Munchausen por Procuração - qualquer coisa, desde que isso faça o Rothbottam recostar-se na cadeira para reconsiderar.
De certa forma, está apenas a fazer jogo limpo, usando a mesma táctica que Mariah White utilizou ao convidar o Hollywood Tonight! para sua casa. A questão, neste caso, é que a percepção é tudo. Os juizes não costumam atribuir a custódia aos pais, a menos que se prove que a mãe é uma heroinómana ou uma prostituta. Ou, talvez, completamente doida.
- Isto agrada-me - diz ele prudentemente. Elkland sorri.
- E ainda não lhe contei a parte melhor Estas mães... As que sofrem realmente da Síndroma de Munchausen por Procuração... São mentirosas compulsivas, é uma parte integrante de se sofrer
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desta síndroma. Se lhes perguntarmos directamente se prejudicam os filhos, negam, mostram-se chocadas, reagem de forma muito hostil. Metz sorri devagar.
- Tal como a Sr.a White vai reagir no contra-interrogatório.
- Tal e qual - diz Elkland.
25 de Novembro de 1999
A minha mãe decide que é altura de voltar para sua casa. Se é a aproximação da data do julgamento que motiva a sua decisão, ou o facto de estar farta de dormir no nosso quarto de hóspedes, não sei. Ajudo-a a arrumar as suas coisas na pequena mala que possui desde que eu era uma rapariguinha.
Dobro a sua camisa de noite em três, e depois novamente em três, em cima da cama. Ela está na casa de banho, a reunir os cremes, pastas e pós que constituem um aroma que sempre associarei a ela. Faz-me lembrar a noite que o Ian e eu passámos em casa dela. Achava que este aroma, tão familiar desde a infância, far-me-ia recuar perante a ideia de fazer amor com o Ian em casa da minha mãe, mas estava enganada. Era o aroma da segurança, do conforto, estranhamente sedutor para ambos.
- Ainda não te agradeci - digo, quando a minha mãe sai da casa de banho com uma mala de toilette.
- O quê? - agita uma mão na minha direcção. - Isto não foi nada.
- Não estava a referir-me a teres ficado aqui. Estava a referir-me... bem, a teres-me obrigado a ir.
A minha mãe levanta a cabeça.
- Ah. Estava pensar quando é que ias abordar o assunto. Sinto as minhas faces ficarem vermelhas. Passados todos estes
anos, ainda não consigo falar de rapazes com a minha mãe sem me sentir como se tivesse outra vez onze anos.
- Foi um gesto bonito - digo, diplomaticamente.
- Santo Deus, Mariah, chama as coisas pelos nomes, está bem? Foi um rendez-vous. Um compromisso romântico. Um encontro amoroso. Um ninho...
- Vamos acabar por aqui, está bem? - sorrio. - És minha mãe. Ela envolve-me a face com a mão. Causa-me formigueiro,
como se estivesse a segurar a minha infância na palma da sua mão.
- Mas algures pelo caminho, também me tornei tua amiga.
É um disparate, colocado nestes termos, mas é verdade. As mulheres da minha vida, as minhas duas melhores amigas, são a
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minha mãe e a minha filha. Há algumas semanas, quase perdi uma delas. Daqui a alguns dias, poderei perder a outra.
- Precisas de mim, não há dúvida. Mas também precisavas dele. E achei que eu era a melhor pessoa para tornar isso possível.
A minha mãe agrupa metodicamente os sapatos em pares, metendo-os dentro da mala. É linda, suave mas temperada com uma coluna vertebral de aço. Quero envelhecer e ficar igual a ela.
- A melhor pessoa - digo suavemente. - E és.
2 de Dezembro de 1999
Joan janta connosco na noite anterior à audiência. Depois, enquanto a minha mãe e a Faith levantam a mesa, descemos para a minha oficina, para termos privacidade. Voltamos a ensaiar o meu testemunho mais uma vez, até a Joan ter a certeza de que não vou vacilar no banco das testemunhas. Depois prende os calcanhares na trave de um banco e fica a olhar para mim.
- Sabe, não vai ser fácil para si.
Rio-me.
- Bem, era o que eu esperava. Sou capaz de me lembrar de mil outros sítios onde preferia estar.
- Não estou a referir-me a isso, Mariah. Estou a a referir-me ao que as pessoas vão dizer. O Colin vai ser totalmente indecente. E o Metz tem uma série de outras testemunhas que treinou para dizerem coisas que a façam parecer uma péssima mãe.
"O Ian não", penso, e interrogo-me se não estarei a convencer-me a mim própria.
- E nem sequer estou a contar com o que ele vai fazer-lhe no banco das testemunhas. Vai tentar pregar-lhe rasteiras e confundi-la, para que pareça o caso perdido em que ele terá estado a transformá-la durante os interrogatórios directos das testemunhas - ela inclina-se para a frente. - Não deixe que ele a perturbe. Quando for para casa ao fim de cada dia ao longo deste julgamento, saiba que o Malcolm Metz não a conhece. A Mariah não é uma pessoa para ele; é um meio para alcançar um fim.
Olho para Joan e tento espalhar um sorriso pelo rosto.
- Não se preocupe comigo. Ultimamente tenho criado algumas defesas - mas apesar disso, abraço-me como se de repente estivesse com frio; como se de repente me apercebesse de que estou a soçobrar.
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A campainha toca às dez e trinta. Quando vou abrir a porta, preparada para os flashes rápidos das câmaras, deparo-me com o Colin ali de pé, parecendo tão chocado por me ver como eu estou por vê-lo ali.
- Podemos conversar? - pergunta passado um momento.
Apesar de querer mandá-lo embora, ou dizer-lhe para contactar a minha advogada, aceno com a cabeça. Nós os dois temos uma história, e de certa forma acho que isso é mais forte do que a raiva, mais forte do que o sangue.
- Está bem. Mas a Faith está a dormir. Não faças barulho.
Ao seguir-me pelo corredor, interrogo-me sobre o que estará a pensar: "O que terá ela feito àquela fotografia dos Andes? Os ladrilhos terão sido sempre assim tão escuros?" Como será regressar à nossa própria casa e não a reconhecer?
Puxa uma cadeira da cozinha e senta-se com uma perna para cada lado. Imagino a Joan, a gritar em plenos pulmões que não devia estar aqui sem a presença da minha advogada. Mas sorrio com pouco entusiasmo e baixo a cabeça.
- Então diz.
Colin expira todo o ar numa grande lufada, como um furacão.
- Isto está a atormentar-me.
O quê? A cadeira? O facto de estar novamente em nossa casa? A Jessica? Eu?
- Sabes porque me apaixonei por ti, Rye?
A bancada da cozinha está mesmo por trás de mim. Enterro as unhas nela afincadamente.
- O teu advogado disse-te para vires aqui?
O choque estampado no rosto de Colin é genuíno.
- Meu Deus, não. Foi isso que pensaste? Fico a olhar para ele.
- Já não sei o que pensar, Colin.
Ele levanta-se e dirige-se ao suporte das especiarias, passando o dedo por cada frasco. Anis, manjericão, coentros. Sal com aipo, pimenta-vermelha moída e endro.
- Estavas sentada nos degraus da biblioteca na universidade
- diz ele. - E eu apareci com um grupo de rapazes da equipa. Estava um dia maravilhoso de Primavera, mas tu estavas a estudar. Estavas sempre a estudar. Disse que íamos comer uma sande, e perguntei-te se querias vir - olha para o chão e abana a cabeça. E tu vieste. Deixaste os teus livros ali num monte como se não te importasses nada se alguém os levasse ou qualquer outra coisa, e vieste atrás de mim.
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Sorrio. Nunca mais recuperei aquele livro de economia, mas fiquei com o Colin, e na altura achei que era uma troca mais do que justa. Agarro no pequeno frasco de folhas de louro que Colin tinha colocado em cima da bancada e volto a pô-lo no seu lugar.
- Devia ter continuado a estudar. Colin toca-me no braço.
- Achas mesmo que sim?
Tenho medo de olhar para ele. Fico a olhar para a sua mão até ele a retirar.
- Tu não querias alguém que fosse atrás de ti, Colin. Querias alguém de quem tivesses de ir atrás.
- Eu amava-te - diz ele convictamente. Não pestanejo.
- Durante quanto tempo? Ele recua um passo.
- Estás diferente - acusa. - Não estás como eras.
- Queres dizer que não estou encolhida a um canto, a chorar para um pano da louça. Lamento desiludir-te.
Ao dizer isto, sei que fui demasiado longe.
- Quanto tempo falta desta vez, Rye? - insiste Colin. - Quanto tempo falta até começares a procurar uma saída no armário dos medicamentos? Ou até ficares a olhar para uma lâmina de barbear durante as seis horas em que a Faith está na escola? Quanto tempo falta para que a deixes sozinha?
- E tu não deixaste?
- Não vou deixar - diz Colin. - Agora não. Olha, cometi um erro, Rye. Mas isso foi entre nós os dois. Nunca deixei de estar totalmente disponível para a Faith. Por isso agora fazes umas festas na cabeça da Faith todas as manhãs, dizes-lhe que gostas muito dela, e depois? Até àquele minuto em Agosto, não eras uma pessoa em quem se podia confiar: eu é que era. Achas que ela se esqueceu de como era quando era pequenina, de como a mãe passava tardes inteiras deitada com uma dor de cabeça, ou a dormir sob o efeito de Haldol, ou a ir a um maldito psiquiatra em vez de a levar para a pré-primária? - aponta um dedo trémulo. - Tu não és melhor do que eu.
- A diferença entre nós é que eu nunca disse que era.
O Colin olha para mim tão zangado que me interrogo se estarei em perigo.
- Tu não vais tirá-la de mim.
Espero que ele não repare em como estou a tremer.
- E tu não vais tirá-la de mim.
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Estamos ambos de tal forma furiosos que nenhum de nós repara que a Faith está ali até ela inspirar tremulamente.
- Querida. Acordámos-te?
- Amor - o rosto de Colin dissolve-se num sorriso. - Olá.
Há algo nos olhos dela que me detém alguns segundos antes de lhe tocar no ombro. A Faith está rígida, de olhos muito abertos, assustada, de punhos cerrados de cada lado do corpo, e o rosto sem cor.
- Mamã? - diz ela, com o lábio inferior a tremer. - Papá? Mas antes que algum de nós possa justificar-se ou ao seu
comportamento, vemos o sangue que se acumula entre os seus dedos.
Passados segundos a Faith contorce-se no chão e grita palavras que não compreendo.
- Eli! Eli! - chama ela e, embora não faça ideia de quem seja, digo-lhe que está a chegar. Tento não prestar atenção ao facto de que desta vez também está a sangrar de lado. Seguro-lhe nos ombros para que não se magoe a si própria, e as palmas das suas mãos estão sempre a deixar manchas de sangue nos ladrilhos.
Oiço a voz do Colin, aguda e em pânico, a falar ao telefone portátil.
- Oitenta e seis, Westvale Hill, a primeira casa à esquerda assim que desliga, lança-se para o chão, ao meu lado. - A ambulância vem a caminho - encosta o rosto ao de Faith, o que de facto a acalma por um momento.
- O papá está aqui. O papá vai tomar conta de ti.
Faith estremece, e depois contorce-se de dor. A sua voz parece um rio, sílabas e gemidos que se transformam em soluços.
Colin fica de boca aberta. E depois começa a reagir, tirando o casaco e colocando-o em volta de Faith, envolvendo-a nos seus braços como costumava fazer quando ela era bebé. Canta uma canção de embalar que eu não ouvia há anos, e para minha surpresa, a Faith fica mole e dócil.
Os paramédicos entram em casa de rompante. O Colin afasta-se e deixa-os tratar da Faith. Observo estas pessoas colocarem as mãos na minha filha e dizerem o que eu já suspeitava: que a tensão arterial dela está boa, que as pupilas estão reactivas, que a hemorragia não pára. Afinal, já vi isto antes. Sinto a mão do Colin deslizar sobre a minha como uma luva.
- Podemos ir na ambulância - diz ele.
- Colin...
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- Olha - anuncia ele num tom que não permite discussão -; não quero saber do que se está a passar no tribunal. Ambos somos pais dela. Vamos os dois.
Quero falar a sós com o Dr. Blumberg, mas quero que o Colin o ouça dizer aquilo que ele já me disse. Quero tirar a mão da do Colin e ficar totalmente por minha conta. Quero, desesperadamente, falar com o Ian. Mas o Colin sempre exerceu uma atracção sobre mim, como a Lua em relação às marés, e vejo que os meus pés o seguem por hábito para dentro da ambulância, onde me sento com o ombro do Colin a bater no meu e os meus olhos a adaptarem-se à escuridão, a observar as cobras sinuosas dos tubos intravenosos que entram na minha filha.
O Colin e eu estamos sentados um ao lado do outro nos feios sofás tubulares que se encontram na sala de espera do Serviço de Urgências. Nesta altura, a hemorragia da Faith já está estabilizada, e ela foi transportada para a radiologia. O médico das urgências, em referência aos resultados dos seus exames, convocou o Dr. Blumberg.
O Colin tem estado ocupado durante a última meia hora. Respondeu às perguntas dos paramédicos e dos médicos, andou incessantemente de um lado para o outro, fumou três cigarros do lado de fora das portas de vidro do Serviço de Urgências, com o perfil dourado pelo luar. Por fim, volta a entrar e agacha-se ao lado do meu assento, onde estou de cabeça apoiada nas mãos.
- Achas - sussurra ele, como se ao dar voz ao pensamento o fizesse desaparecer -, que ela está a fazer isto para chamar a atenção?
- A fazer o quê?
- A ferir-se a si própria.
Ao ouvir isto, ergo os olhos.
- Achas que a Faith era capaz de fazer isso?
- Não sei, Mariah. Não sei o que devo achar.
A chegada do Dr. Blumberg evita uma discussão.
- Sr.a White. O que é que aconteceu? Colin estende a mão.
- Sou Colin White. O pai da Faith.
- Boa noite.
- Sei que não é a primeira vez que examina a Faith- diz o Colin. - Gostaria que me pusesse ao corrente em relação aos antecedentes dela.
O Dr. Blumberg lança-me um olhar de soslaio.
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- Tenho a certeza de que a Sr.a White...
- A Sr.a White e eu estamos separados - diz o Colin bruscamente Gostava que fosse o doutor a fazê-lo.
- Está bem - senta-se à nossa frente e coloca as mãos sobre os joelhos. -Já fiz uma série de exames à Faith, mas não encontrei uma explicação médica para as suas hemorragias espontâneas.
- E trata-se mesmo de sangue?
- Oh, sim. Foi analisado em laboratório.
- Os ferimentos são auto-infligidos?
- Que eu saiba, não - diz o Dr. Blumberg.
- Então pode ser outra pessoa? - pergunta o Colin.
- Peço desculpa?
- Alguém magoou a Faith? Blumberg abana a cabeça.
- Creio que não, Sr. White. Não da forma a que se refere.
- Como é que sabe? - grita Colin. Tem lágrimas nos olhos. Como é que pode saber? Olhe, eu vi-a ter uma espécie de ataque e começar a sangrar sem nenhuma razão. Tenho um seguro. Não me diga que não tem nenhuma explicação médica para isto. Mande-a fazer uma maldita TAC, ou análises ao sangue, ou qualquer coisa. O senhor é médico. O senhor é que deve resolver este assunto, e quero que a minha filha fique aqui até conseguir fazê-lo. Porque se voltar a dar-lhe alta e ela tiver outro episódio, vou processá-lo por negligência médica.
Lembro-me de um trabalho de investigação de que o Dr. Blumberg me falou - de uns médicos que ao virar do século hospitalizaram um estigmatizado e soldaram uma bota de ferro por cima do seu pé a sangrar para se assegurarem de que o homem não estava ele próprio a provocar o ferimento. Interrogo-me sobre como o Colin é capaz de me acusar de arruinar a vida da Faith.
O Dr. Blumberg hesita.
- Não posso fazer-lhe exames sem o consentimento da mãe.
- Tem o consentimento do pai - diz Colin friamente.
- vou interná-la - admite o médico. - Mas não estou à espera de encontrar algo de novo.
Satisfeito, Colin levanta-se.
- Agora podemos vê-la?
- A Faith vai estar na enfermaria pediátrica daqui a alguns minutos. Vai estar um pouco tonta; dei-lhe um sedativo - olha para mim e depois para o Colin. - De manhã voltarei a examiná-la. As regras do hospital determinam que um dos senhores poderá passar a noite no quarto dela. - Acenando, vai-se embora.
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Endireito os ombros, preparando-me para uma discussão, mas para minha surpresa o Colin anuncia que se vai embora.
- A Faith vai estar à tua espera. Fica tu.
Caminhamos em silêncio em direcção ao elevador e dirigimo-nos ao piso da pediatria. A enfermeira da recepção diz-nos em que quarto é que está a Faith, embora ela ainda não tenha regressado da radiologia. O Colin e eu entramos no quarto, onde ele se senta na única cadeira e eu fico de pé ao lado da janela com vista para o local de aterragem do helicóptero.
Passados alguns minutos, uma enfermeira traz a Faith de cadeira de rodas e ajuda-a a meter-se na cama. As mãos envoltas em ligaduras brancas.
- Mamã?
-Estou aqui - sento-me na beira da cama e toco na face de Faith. - Como te sentes? Ela desvia o rosto.
- Quero ir para casa. Afasto-lhe a franja do rosto.
- O médico quer que durmas aqui esta noite. O Colin debruça-se do outro lado da cama.
- Olá, fofinha.
- Papá.
Agarra-lhe na mão ligada com cuidado e acaricia-lhe a pele por cima da gaze.
- Como é que isto aconteceu, querida? - pergunta ele. Podes dizer-me, que eu não fico zangado. Magoaste-te sozinha? Alguém te magoou? A avó, talvez? Ou aquele padre que vos visita?
- Oh, por amor de Deus... - interrompo. O Colin semicerra os olhos.
- Não estás sempre com ela. Nunca se sabe, Mariah.
- A seguir vais dizer que eu é que lhe fiz isto - digo bruscamente.
O Colin limita-se a erguer as sobrancelhas.
Depois de a Faith adormecer, Colin levanta-se.
- Olha, desculpa. É que vê-la assim neste estado sem saber como hei-de resolvê-lo está a consumir-me.
- Sabes, as desculpas não contam quando as justificamos. Colin fica a olhar para mim durante algum tempo.
- Tem de ser assim?
- Não - sussurro. - Não tem.
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E então estou nos braços do Colin, com o rosto encostado ao seu pescoço. Ele encosta a testa à minha num gesto que me traz uma fiada de memórias. Este homem, com quem eu devia passar o resto da minha vida, vou encontrá-lo em vez disso amanhã numa sala de audiências.
- Volto de manhã. Tenho a certeza de que o juiz nos vai conceder um adiamento.
- Tenho a certeza de que sim - repito encostada ao seu peito.
- Para que saibas - diz ele, tão suavemente que posso estar a imaginá-lo -, eu sei que não és tu.
Kenzie mete no microondas uma caixa de minipizzas e serve um grande copo de vinho tinto antes de se sentar para terminar de escrever o seu parecer para o juiz Rothbottam. Imagina-se a comer a caixa inteira de aperitivos e talvez outra, e depois a esvaziar metodicamente o frigorífico e o congelador, empanturrando-se até não conseguir mexer-se. Não conseguir levantar um dedo. Não conseguir escrever este relatório de uma tutora ad litem.
O juiz Rothbottam espera que este relatório se encontre em cima da sua secretária amanhã de manhã, antes de se iniciar a sessão da audiência para determinar a custódia. Kenzie - a observadora objectiva, a zona de calmaria - deve estabelecer uma base sobre a qual ele possa ponderar os argumentos do queixoso e da arguida.
Kenzie bebe um longo e lento gole de vinho. O caso White está tão cheio de tons de cinzento que por vezes Kenzie duvida da sua capacidade de ver as coisas com clareza.
De um lado, estão o Colin e a Jessica White, uma nova família com base num pai que ama visivelmente Faith. Mas Kenzie mal pode suportar a ideia de atribuir a custódia a um homem que foi tão gravemente infiel. Do outro lado, está Mariah White, carregando a sua bagagem emocional do passado e, mesmo agora Kenzie tem a certeza! - mentindo a si própria, ou a Faith, ou até mesmo a Kenzie. Se deixar Faith sob a custódia da mãe, fá-lo-á sem saber a história completa. No entanto, não pode evitar reparar que Mariah White, autoproclamada imagem da insegurança, começou verdadeiramente a dar uma volta completa à sua vida. Também é evidente que Faith se sente muito ligada à mãe. Mas será uma ligação saudável, ou a Faith simplesmente sente necessidade de tomar conta da mãe que não é suficientemente forte para tomar conta dela?
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Kenzie pousa o vinho e fica à espera que o cursor no ecrã do computador se foque na parte de cima do documento. Depois desliga-o, desejando um milagre.
Alguns familiares desgostosos estão de pé ao lado da cama de Mamie Richardson, de oitenta e dois anos de idade. Após o AVC da semana passada, tem estado em estado comatoso. Os médicos explicaram a dimensão dos graves danos cerebrais. A família reuniu-se para desligar a máquina.
A filha de Mamie está sentada de um lado da cama na Unidade de Cuidados Intensivos; o marido de Mamie, de há sessenta anos, está sentado do outro. Ele acaricia-lhe a mão mosqueada como um leopardo como se fosse um talismã, ignorando as lágrimas que deixaram uma pequena mancha molhada no cobertor com um padrão em relevo que cobre as pernas magras de Mamie.
A filha olha para o médico residente que se encontra junto ao aparelho que substitui as funções do coração e pulmões.
- Estás bem, paizinho? - o homem idoso limita-se a baixar a cabeça.
Ela acena ao médico e detém-se subitamente ao ouvir o som estridente da voz da mãe.
- Isabelle Louise! - grita Mamie, sentando-se na cama. - Santo Deus, o que é que pensas que vais fazer?
- Mãe? - diz a mulher numa voz abafada.
- Mamie! - grita o marido. - Oh, meu Deus! Mamie! A mulher idosa arranca o tubo do oxigénio do nariz.
- A que tipo de geringonça é que me ligaram, Albert?
- Deita-te, mãe. Tiveste um AVC - a filha olha para o médico, que de início se afasta, chocado, e depois se aproxima para examinar Mamie.
- Vá chamar uma enfermeira - ordena o médico a Albert. Mas ele demora um momento, porque não consegue tirar os olhos da mulher que o definiu durante meio século, a mulher cuja morte teria causado a morte da parte mais significativa do seu ser. Depois apressa-se a sair para o corredor com a energia de um homem com metade da sua idade, agitando os braços e gritando para que o pessoal médico viesse rapidamente, que se dirigisse à Unidade de Cuidados Intensivos, que por acaso se situa no piso directamente por cima do de Faith White.
A meio da noite o braço da Faith move-se e bate-me no rosto. A Unidade de Cuidados Intensivos da pediatria oferece um divã para
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os pais poderem dormir, mas eu preferi subir para cima da cama estreita com a Faith. Desta forma, podia protegê-la, estar ali se tivesse dores.
Faith remexe-se e vira-se, e eu encosto os lábios à sua testa. Afasto-me imediatamente - está a arder, mais quente do que alguma vez me lembro que tenha estado. Lanço-me em direcção à cabeceira da cama e carrego no botão para chamar as enfermeiras.
- Sim?
- A minha filha está com febre.
- Vamos já para aí.
Quando chegam as enfermeiras, a sondarem e a examinarem com termómetros e esponjas de álcool, a Faith nem se mexe. Há uma estranha banda sonora a acompanhar os movimentos delas; demoro um momento para reconhecê-la como um gemido débil e rítmico vindo de dentro da Faith.
- Não pode chamar o Dr. Blumberg?
- Sr.a White - diz uma enfermeira -, deixe-nos fazer o nosso trabalho, está bem?
Mas eu sou mãe dela, quero dizer. Não me deixam fazer o meu?
- Ela tem quarenta graus e meio - ouço uma enfermeira murmurar.
Quarenta graus e meio? Começo a pensar em infecções do sangue, meningite espinal, cancros com metástases. Se fosse grave, os exames desta tarde não teriam detectado - um elevado número de glóbulos brancos? Mas se não fosse grave, porque teria ela uma febre tão alta?
Não quero sair do lado dela, mas sei que tenho uma obrigação a cumprir. Saindo para o corredor, peço para usar o telefone da sala das enfermeiras. Estão demasiadas pessoas no quarto da Faith para poder usar aquele que está ao lado da cama. Procuro na minha mala e desdobro um pequeno papel verde com um número de telefone.
- Jessica, é a Mariah White - consigo dizer. - Pode dizer ao Colin que a Faith piorou?
Quando Malcolm Metz entra no escritório, chamado por uma extremamente apologética Elkland - que estava a fazer uma directa quando o Colin White entrou intempestivamente na sala como um tigre à solta -, tem os cabelos ainda molhados do duche e os olhos raiados de sangue. Está bastante irritado, sobretudo porque gosta de estar com bom aspecto nos dias em que litiga, no entanto, tem de estar no tribunal dali a menos de cinco horas, e vai estar com ar de
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quem andou na pândega durante toda a noite. Pára assim que vê o seu cliente - com os cabelos em pé em tufos à volta da cabeça, com ar de quem esteve a dormir com o casaco vestido... e será sangue ali na manga?
- Caramba - diz Metz. - Está com pior aspecto do que eu.
- Muito bem - começa Colín, sem sequer se dar ao trabalho de olhar para o seu advogado. - É o seguinte. Ela está com dores. Está naquele maldito hospital. E diga o que disser, as pessoas vêem televisão, e vai influenciar o juiz. Repare naquele julgamento da ama em Boston! Estou a pagar-lhe uma batelada de dinheiro para obter um veredicto favorável. E digo-lhe, aquilo está a acontecer-lhe na sua própria casa, Malcolm. Vi com os meus próprios olhos. Alguém ou alguma coisa ali está a fazê-la adoecer.
- Espere aí - diz Metz. - Quem é que está doente? Quem é que está no hospital?
Colin olha para Metz como se ele fosse doido.
- A Faith.
Metz abre mais os olhos.
- A Faith está no hospital?
- Começou a sangrar ontem à noite. Aconteceu mesmo à minha frente. Estava ali de pé, e de repente... - abana a cabeça. - Meu Deus, tenho de acreditar que eles podem fazer mais alguma coisa para além de lhe dar medicamentos para as dores. Quero dizer... tem de acontecer alguma coisa para que sangremos.
Metz ergue uma mão.
- A sua filha está no hospital - esclarece ele.
- Está.
- Está sob observação.
- Exactamente.
Um sorriso surge no rosto de Metz.
- Meu Deus, isso é perfeito - perante o olhar ameaçador de Colin, ele apressa-se a justificar-se. - Estivemos a estudar uma estratégia de aproximação para o seu caso, Colin, e por muito estranho que pareça, isto vem corroborá-la.
Enquanto Elkland explica resumidamente a Colin o que é a Síndroma de Munchausen por Procuração, Metz lembra-se do seu pedido ex parte original, pelo qual fez pressão junto do juiz por capricho, mas que agora era evidente que se revelava um golpe de génio inconsciente.
- Imagine o seguinte: entramos no gabinete do juiz esta manhã e entregamos um pedido de urgência, implorando ao Rothbottam que separe a Faith da mãe devido à sua vida correr um grave perigo.
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Na primeira vez que o fizemos, ele pensou que não estávamos a falar a sério, e deixou-a ficar com a mãe. Mas graças à sua má avaliação, a criança agora está no hospital. Explico-lhe a doença de Munchausen e digo-lhe que o nosso especialista apresentará provas de como precisamos desta provisão de emergência. Depois peço um mandado do tribunal para manter a Mariah afastada da Faith. O juiz sentir-se-á tão culpado por ter indeferido o primeiro pedido que desta vez vai fazer exactamente aquilo que eu quiser. Coiin fica a olhar para Metz, de sobrolho franzido.
- Nunca ouvi falar desta coisa de Munchausen. Metz sorri.
- Eu também não. Mas quando a audiência terminar, seremos peritos.
Ele abana a cabeça.
- Não sei, Malcolm. A Mariah... bem, pode estar um pouco preocupada consigo própria às vezes, mas nunca faria nada para magoar a Faith intencionalmente.
Elkland morde o lábio.
- Sr. White, pelo que li, isso faz parte da perturbação psicológica: parecer a mãe ideal, atenta e ao mesmo tempo mentir-se sobre o que se fez.
- Estava a meio metro da Faith ontem à noite e vi-a começar a sangrar - diz Colin devagar. - Ela não se picou nem nada; não tocou em absolutamente nada, de facto... e a Mariah estava ainda mais afastada do que eu. Mas está a dizer que acha... que acha...
Metz abana a cabeça.
- A questão não é o que eu acho, nem o que o você acha, Colin
- diz ele -, mas antes, o que você quer que o juiz ache?
Kenzie está a dormir ao lado do seu computador portátil quando o telefone toca.
- Dr.a Van der Hoven - diz uma voz de seda quando levanta o auscultador.
Seria impossível, mesmo no seu estado de confusão enevoada, não reconhecer a voz de Malcolm Metz.
- Levantou-se cedo.
- Cinco horas da manhã é a melhor altura do dia.
- Isso não sei. Metz ri-se.
- Suponho que já tenha enviado o seu relatório.
com uma sensação de desalento, Kenzie olha para o ecrã do computador, em branco como uma parede.
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- Presumo que o tenha enviado por fax ao meritíssimo ontem à noite para que ele o possa ler antes do julgamento desta manhã. Mas senti que era meu dever informá-la de uma coisa antes de se iniciar a sessão no tribunal.
- E de que se trata, Dr. Metz?
- A Faith White foi hospitalizada ontem à noite. Ao ouvir isto, Kenzie endireita-se bruscamente.
- Ela foi o qu
- Pelo que o meu cliente me disse, começou a sangrar novamente das mãos, e a situação agravou-se posteriormente.
- Oh, meu Deus. Quem é que está com ela agora?
- A mãe, suponho - há uma hesitação do outro lado da linha.
- Mas queria que soubesse que vou tentar corrigir isso. vou pedir um mandado ao juiz para manter a Mariah afastada da filha. Tenho razões para acreditar que é a Mariah que está a magoar a Faith.
- Tem provas disso? - pergunta ela.
- Cheguei à conclusão de que a Sr.a White sofre de uma determinada perturbação psicológica. Há um especialista que estudou o caso e que concorda comigo.
- Estou a ver.
- Bem, de qualquer forma depois verá. Apenas achei que talvez gostasse de saber isto com antecedência - diz Metz, e em seguida desliga o telefone.
Kenzie liga o computador e espera que o ecrã ganhe vida. Fá-la retraír-se - demasiada energia em simultâneo. Começa a dactilografar furiosamente, na esperança de ter hipóteses de visitar Faith antes da sessão no tribunal, na esperança de que se realmente existe um ser divino a tomar conta da Faith, possa segui-la dentro de uma ambulância, de um hospital, de um novo lar mais seguro.
"Recomendo que a custódia de Faith White", dactilografa, "seja atribuída ao pai."
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Catorze
Salvou os outros e não pode salvar-se a si mesmo.
Mateus 27,42
3 de Dezembro de 1999
Por vezes, quando Faith era bebé e Mariah ainda ficava ligeiramente espantada por ver um bebé dormir ao seu lado ou mamar no seu próprio seio, era assolada pelo terror. Os anos prolongavam-se à sua frente como estradas vermelhas num mapa, cheias de perigos e erros. A vida de Faith, naquela altura, estava intacta, sem nenhuma marca. Cabia a Mariah mantê-la assim.
Rapidamente se tornou claro para ela que esta era uma tarefa que nunca seria capaz de cumprir adequadamente, pelo menos sem sentir que lhe faltava algo. Como é que ela poderia ser minimamente qualificada para ser mãe, sabendo que era tão falível como aquele bebé era perfeito? Num abrir e fechar de olhos, algo podia correr mal - um tremor de terra, uma gripe, uma chucha caída na sarjeta. Olhava para o rosto da filha e via os potenciais acidentes prestes a acontecer. E depois a sua visão desanuviava-se e via apenas amor, um poço tão fundo que por muito que tentássemos nunca encontraríamos o seu fundo, apenas conseguiríamos suster a respiração diante das suas profundezas assustadoras.
Faith mexe-se durante o sono, e imediatamente Mariah vira-se. Por iniciativa própria, a mão ligada de Faith mexe-se através dos cobertores da cama de hospital e enfia-se debaixo da de Mariah. Ao sentir o contacto, Faith pára de se mexer e acalma-se novamente.
De repente, Mariah interroga-se se serão os momentos como este que nos definem como bons pais: apercebermo-nos de que por
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muito que tentemos, nunca conseguiremos proteger uma criança das tragédias, dos passos em falso, dos pesadelos. Talvez a função de uma mãe não seja proteger mas sim estar presente quando o filho embate com toda a força... e depois amparar a queda quando está tudo acabado.
Mariah tapa firmemente a boca com as mãos. Tem de as manter nessa posição, porque se não o fizer, vai com certeza começar a soltar soluços roucos e sonoros ou a gritar com alguma das enfermeiras bem-intencionadas, dizendo-lhe para se afastar da filha.
- Não compreendo - diz Millie suavemente, de pé ao lado de Mariah junto da cama de Faith. - Ela nunca esteve assim tão doente antes. Talvez seja alguma bactéria, alguma coisa que tenha apanhado para além das hemorragias.
- Não é nenhuma bactéria - sussurra Mariah. - Ela está a morrer.
Millie olha para cima, sobressaltada.
- Mas que diabo que te leva a dizer isso?
- Olha para ela.
Faith está pálida em contraste com os lençóis do hospital. As mãos, ainda a deitar sangue, estão cobertas por ligaduras que ainda não foram mudadas. A febre tem oscilado entre os 40 e os 41 graus, por muitos banhos tépidos, pachos de álcool e gramas de Tylenol e Advil administradas por via intravenosa. Observá-la deixa Mariah nervosa. Dá por si a olhar para o ligeiro tremor das narinas de Faith, a contar os ritmos subtis do seu peito.
Millie franze os lábios e sai do quarto de Faith para a calma comparativa da recepção.
- O Colin White telefonou? - pergunta ela, sabendo que foram desviadas as chamadas do quarto de Faith para permitirem que durma.
- Não, Sr.a Epstein - diz a enfermeira. - Assim que ele telefonar informo-a.
Em vez de voltar para junto de Faith, Millie dirige-se para o fundo do corredor. Ali, encosta-se à parede e tapa o rosto com as mãos.
- Sr.a Epstein?
Limpa rapidamente as lágrimas e vê o Dr. Blumberg de pé à sua frente.
- Não se incomode comigo - funga.
Caminham lado a lado, abrandando ao aproximarem-se da porta do quarto de Faith.
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- Houve alguma mudança desde ontem à noite?
- Que eu saiba não - diz Millie, parando à porta. - Estou preocupada com a Mariah. Talvez o doutor pudesse dizer alguma coisa.
O Dr. Blumberg acena com a cabeça e entra no quarto. Mariah ergue os olhos apenas o suficiente para ver as enfermeiras dispersarem. O médico puxa uma cadeira.
- Como se sente?
- Preferia falar da Faith - responde Mariah.
- Bem, não tenho a certeza do que poderei fazer por ela neste momento. No entanto, a senhora... a senhora quer alguma coisa para dormir?
- Quero que a Faith acorde e volte comigo para casa - diz num tom firme, olhando para a orelha de Faith. Por vezes, quando Faith era bebé, Mariah observava o sangue circular através da fina membrana de pele, pensando que de certeza conseguiria ver as plaquetas e os glóbulos, a energia percorrer aquele pequeno corpo.
O Dr. Blumberg prende as mãos entre os joelhos.
- Não sei o que se passa com ela, Mariah. Esta manhã vou fazer mais algumas análises laboratoriais. E farei tudo o que estiver ao meu alcance para mantê-la confortável; dou-lhe a minha palavra.
Mariah fica a olhar para o médico.
- Quer saber o que se passa com ela? Está a morrer. Como é que eu consigo perceber isso, mesmo não sendo médica?
- Ela não está a morrer. Se fosse esse o caso, eu dir-lhe-ia. Mariah concentra-se no rosto de Faith com paixão, olhando
para as manchas azuladas debaixo dos seus olhos, a pequena curva do seu nariz. Aproxima-se, tão perto que apenas Faith consegue ouvir as suas palavras.
- Não me deixes - sussurra ela. - Não te atrevas. Não o fizeste durante anos e anos. Não o faças agora.
- Mariah, querida, temos de ir para o tribunal - Millie bate ligeiramente com o dedo no relógio de pulso. - Dez horas.
- Não vou.
- Não tens escolha.
Mariah vira-se tão depressa que a mãe dá um passo atrás.
- Não vou. Não vou deixá-la - toca na face de Faith. - Sou livre de decidir.
A única concessão que Joan Standish fez devido ao facto de ter de enfrentar o infame Malcolm Metz numa sala de audiências são os quinze minutos adicionais de exercícios para as nádegas que acrescentou à sua rotina diária. Fá-los no intervalo entre lavar os
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dentes e beber café, uma sucessão brutal de agachamentos e projecções e levantamentos que a deixam com os músculos presos e a suar. Gosta de imaginar Metz enquanto os faz, imagina-o a olhar para o seu traseiro de boca aberta depois de ela ganhar este caso e sair a bambolear-se em direcção ao fundo do corredor do tribunal superior.
Por isso na manhã da audiência para determinar a custódia, ela faz os seus exercícios, toma um duche e depois tira um fato de lã vermelho do roupeiro. É conservador, mas é garrido, e ela está disposta a recorrer a todos os truques que puder para desviar as atenções de Malcolm Metz.
A dada altura, enquanto comia a sua taça de cereais Frosted Mini-Wheats, lembra-se de que precisa de pôr gasolina no carro. Joan congratula-se pela sua atenção aos pormenores; talvez mesmo agora, Metz esteja dez minutos atrasado por se ter esquecido de atestar o depósito. Lava cuidadosamente as mãos para não salpicar o fato e agarra na pasta que arrumou na noite anterior.
Sai vinte minutos adiantada, pensando que é bom chegar um pouco antes da hora, sem saber que o telefone de sua casa toca momentos depois de ter saído.
Joan sente que o cone perfeito de calma profissional que ela construiu à sua volta se desfaz assim que Millie Epstein vem ter com ela a correr, visivelmente agitada.
- Diga-me que a Mariah está na casa de banho - diz Joan desconfiada.
- Está no hospital. Tentei telefonar-lhe.
- O quê?
- Não é o que está a pensar - explica ela. - É a Faith. Está muito doente e a Mariah recusa-se a deixá-la.
- Bolas - resmunga Joan quando Malcolm Metz, Colin White e uma jovem associada se aproximam da mesa do queixoso na sala de audiências.
- Joan - diz Metz num tom animado - tenho uma para si: qual é a diferença entre um advogado e um peixe-gato?
- Agora não - Joan apercebe-se vagamente de que a galeria do tribunal, habitualmente vazia em audiências para determinar a custódia, está agora lotada ao ponto de causar desconforto com representantes da comunicação social.
- Um alimenta-se da porcaria que há no lodo - diz Metz, rindo -, e o outro é um peixe. Percebeu?
- Fale por si, Malcolm - diz Joan, tirando documentos.
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- Todos de pé para o Ilustre Juiz A. Warren Rothbottam! Joan levanta-se, erguendo o olhar no último minuto. O juiz
Rothbottam folheia brevemente o ficheiro que se encontra à sua frente e depois olha para o lugar do queixoso e para o lugar do arguido.
- Dr.a Standish. Falta-lhe alguma coisa?
- A minha cliente, meritíssimo. Posso aproximar-me? Rothbottam suspira.
- Eu sabia que este caso não podia correr bem. Venha. Metz coloca-se ao lado de Joan, com um ar convencido.
- Meritíssimo - diz Joan -, ocorreu uma emergência terrível. A filha da minha cliente foi hospitalizada ontem à noite, e ela não quer sair da beira da sua cama para comparecer em tribunal. Peço um adiamento até a menina ter alta do hospital.
- Hospitalizada? - para obter confirmação, Rothbottam olha para Metz, que encolhe os ombros. - Ela está a morrer?
- Penso que não - responde Joan. - Penso que a Faith sofre de hemorragias clinicamente inexplicáveis.
- Normalmente designadas por estigmas - intervém Metz.
- Os médicos ainda não chegaram a essa conclusão - diz Joan bruscamente.
- Oh, é verdade. Pode ser algo pior. Rothbottam franze-lhe o sobrolho.
- Acho que se precisar de um intérprete, Dr. Metz, o senhor será o primeiro a ser chamado - virando-se para Joan, diz -, presumo que a menina esteja num estado muito grave?
-Acho... acho que sim, meritíssimo.
- Estou a ver. No entanto, o pai da criança conseguiu estar presente na sala de audiências; espero que a mãe consiga fazer o mesmo. E não pensem que não consigo ver para além da imagem de "anjo misericordioso" que queiram transmitir. O meu registo de julgamentos é um pesadelo até ao Natal. Rejeito o pedido de adiamento. Tem vinte minutos para arranjar uma maneira de a sua cliente comparecer no tribunal, ou enviarei um xerife para a trazer algemada. Vamos continuar às dez e trinta.
- Antes que a doutora vá à procura da arguida, meritíssimo intervém Metz -, preciso de um mandado do tribunal.
- Precisa? - pergunta o juiz secamente.
- Meritíssimo, o tempo aqui é crucial, e preciso de uma deliberação esta manhã sobre um assunto que pode fazer a diferença entre a vida e a morte da menina.
- Mas o que é isto? - diz Joan. - Uma audiência de emergência? Agora?
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Metz mostra-lhe os dentes.
- É por isso que se chama emergência, Joan.
- Basta - anuncia Rothbottam. - Quero-vos a ambos no meu gabinete. Agora.
Joan dirige-se para a mesa da defesa para ir buscar o seu bloco. Ao ver o juiz sair, corre por entre os assentos até à porta e chama Millie. Visto que é uma testemunha, não pode estar na sala de audiências, mas também não pode afastar-se muito.
- Faça o que for preciso para trazer a Mariah para aqui - diz Joan num tom sibilante. - É bom que esteja no tribunal quando eu sair do gabinete do juiz, senão vai ser arrastada para aqui pela polícia.
Quando Joan entra no gabinete do juiz, Metz já ocupou a cadeira confortável. Rothbottam fica à espera que Joan também se sente.
- Malcolm, o que está a fazer? Não estamos em Manchester. Não estamos em Nova Iorque. Não estamos no circo onde gosta de montar o seu espectáculo. Estamos em New Canaan, meu rapaz. Dar nas vistas não vai servir-lhe de absolutamente nada.
- Meritíssimo, não se trata apenas de um estratagema para ganhar vantagem. Já fiquei bastante preocupado quando os danos físicos que a Faith apresentava se localizavam apenas nas mãos, mas a situação agravou-se: a criança encontra-se em estado crítico no Centro Médico de Connecticut Valley. Tomámos a liberdade de contactar um especialista, que vem a caminho da Costa Oeste para explicar por que razão Mariah White exibe os sintomas clássicos de uma pessoa que sofre da Síndroma de Munchausen por Procuração, uma doença mental que a faz prejudicar a sua própria filha.
Joan semicerra os olhos, suspeitando de alguma coisa. É suficientemente arguta para saber que Metz não ia tirar esta estratégia da manga de um dia para o outro. É algo que já estabeleceu há algum tempo, com certeza há tempo suficiente para que ela ouça o depoimento do seu especialista. Esta testemunha-surpresa afinal não é surpresa nenhuma - pelo menos para Metz.
Mas ele é a própria imagem da inocência e do fervor justiceiro.
- Trata-se de uma perturbação complexa. A mãe faz realmente com que o filho adoeça física ou psicologicamente para atrair as atenções para si própria. Se a criança for deixada ao cuidado da mãe, só Deus sabe o que poderá eventualmente acontecer. Paralisia, coma, até mesmo a morte. É evidente que este assunto vai influenciar a atribuição da custódia da criança a longo prazo, mas por agora, meritíssimo, imploro-lhe que proteja a Faith emitindo um
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mandado que mantenha a Sr. White afastada enquanto decorrer o julgamento.
Joan fica à espera que ele acabe de falar, e depois desata a rir.
- Vai deixá-lo seguir em frente com esta ideia, meritíssimo? Metz nem sequer se digna a lançar-lhe um olhar.
- Tome atenção às provas, meritíssimo. Isolar a criança da mãe é a forma através da qual a Síndroma de Munchausen por Procuração é normalmente detectada por profissionais de saúde mental. Se a mãe não puder aproximar-se da criança, a criança de repente deixa de estar sempre doente - inclina-se para a frente. - O que tem a perder, juiz? Trata-se de uma situação em que é impossível perder. Se Mariah White não sofrer da Síndroma de Munchausen por Procuração... bem, a Faith de qualquer forma está no hospital, e em boas mãos. Se a Sr.a White sofrer realmente desta doença, então terá salvo a vida da criança. Que mal pode fazer emitir um mandado temporário até ter ouvido o testemunho do meu especialista e tirado as suas próprias conclusões?
O juiz Rothbottam vira-se para Joan.
- Tem alguma coisa a dizer, Standish?
Ela olha para Metz, e em seguida para o juiz.
- Isto é um disparate, meritíssimo. Em primeiro lugar, ao contrário do cliente do Dr. Metz, que está visivelmente a colocar os seus interesses em primeiro lugar, a minha cliente não está aqui porque precisa de estar junto à cama da filha. Isso merece um cumprimento, e não um mandado para a manter afastada da filha. Em segundo lugar, o Dr. Metz está a tentar desviar a atenção da dedicação da minha cliente à filha com este estratagema da doença da semana. Não sei de que trata esta síndroma; nem sequer sei soletrar a maldita palavra. Este julgamento terá início daqui a menos de meia hora, e eu estou pronta para começar, mas sem mais nem menos o Dr. Metz introduz este diagnóstico obscuro, e se bem me lembro, não possui nenhum diploma em psicologia, já que falamos no assunto, e vou precisar de algum tempo para investigá-la e refutá-la.
- M-U-N - diz Metz devagar.
- Vá lançar-se a um poço.
Ele ergue as mãos fingindo estar ofendido.
- Estava só a tentar ajudá-la a soletrar a maldita palavra.
- Ainda não acabei, Metz - volta-se para o juiz. - Ele não pode apresentar uma testemunha sem mais nem menos no dia, não, corrijo, no minuto em que o julgamento se inicia. É absolutamente injusto.
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O juiz Rothbottam vira-se para Metz.
- Se acabarmos com os solilóquios, tenho a certeza de que planeou os seus interrogatórios, quanto tempo demorará a ouvir as suas outras testemunhas?
- Não sei. Possivelmente até amanhã. Rothbottam reflecte por um momento.
- Está bem. Por agora vou emitir o mandado. Vamos proceder conforme as circunstâncias. Iniciaremos o julgamento e, Dr. Metz, o senhor guardará o seu especialista na síndroma de Munchausen para o fim. Quando chegarmos a essa altura, reunir-nos-emos no meu gabinete para ver se a Dr.a Standish precisa de mais tempo para preparar o contra-interrogatório.
- Acho que seria benéfico se toda a gente pudesse ouvir o testemunho sobre a perturbação primeiro...
- Tem sorte em eu o deixar colocar o homem no banco das testemunhas, ponto final. É assim que fazemos. Gosto das coisas assim: a criança está em segurança, a Joan tem pelo menos um dia para se preparar e, sinceramente, Metz, não me interessa absolutamente nada o que pensa - o juiz estala os dedos e faz um gesto indicando a porta. - Vamos?
De manhã cedo, naquele dia, o padre MacReady entra no quarto de Faith. Fica parado à porta por um momento, abalado ao ver Faith, entubada e imóvel como um cadáver, ao ver Mariah segurar no braço da filha e dormitar. Talvez não fosse uma boa altura para as incomodar; tinha sabido por um dos membros da sua paróquia que a menina tinha sido levada numa ambulância na noite passada e queria fazer-lhe uma visita. Recua silenciosamente em direcção à porta, mas o som das suas botas no linóleo faz Mariah sobressaltar-se e acordar.
- Oh - diz ela com uma voz rouca, e depois pigarreia. Quando se apercebe de quem o visitante é, fica visivelmente perturbada.
- Porque é que está aqui?
O padre MacReady soma dois mais dois, apercebendo-se de que por alguma razão Mariah pensa que ele foi convocado para dar a extrema-unção. Isso não seria possível, visto que Faith não é católica, mas esse facto também não o impediu de interferir na vida dela antes. Senta-se numa cadeira ao lado de Mariah.
- Estou aqui como amigo, não como padre - diz ele.
Olha para o pequeno rosto encovado de Faith, tão pequena para ter causado tanta controvérsia.
- Foram outra vez as mãos?
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Mariah acena com a cabeça.
- Agora também tem febre. E está desidratada. E grita e tem ataques - esfrega o rosto com as mãos. - Foi pior do que da primeira vez, muito pior.
- Ataques? Ela estremece.
- O Colin e eu... mal conseguíamos segurá-la. Da primeira vez que isto aconteceu, ela estava inconsciente. Mas desta vez... desta vez sofreu.
O padre MacReady acaricia suavemente a face de Faith com a palma da mão.
- Eli, Eli, lama sabactháni - murmura ele. As palavras fazem Mariah ficar imóvel.
- O que disse? Surpreendido, vira-se.
- Na realidade, é hebraico.
Mariah lembra-se da noite anterior, quando Faith chamou por Eli. Não tem a certeza quanto às outras sílabas estranhas, mas podiam ter sido o que Faith estava a dizer, gemendo. Di-lo ao padre.
- É uma passagem bíblica - diz ele. - São Mateus capítulo vinte e sete, versículo quarenta e seis.
- A Faith não fala hebraico.
- Mas Jesus falava. Era essa a sua língua. As palavras podem ser traduzidas por "Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?" São Mateus diz-nos que Cristo não aceitou resignadamente o que aconteceu naquela noite. No último momento, quis saber por que Deus estava a fazê-lo passar por aquilo - hesita, e depois olha para Mariah.
- O sangue, a dor, aquela frase: parece que a Faith estava em êxtase.
- Em sofrimento, mais precisamente.
- Não se trata do significado que costumamos atribuir à palavra. A maioria dos estigmatizados acreditados atravessa períodos de êxtase religioso. Sem isto, trata-se apenas de hemorragias nas mãos
- nesse momento, a Faith mexe-se a dormir, e o cobertor afasta-se, revelando a ferida que tem de lado. O padre MacReady sustém a respiração. - Também isto?
Quando Mariah acena com a cabeça, sabe que está a corar justificadamente, que a sua reacção não é apropriada à gravidade da ocasião. Mas o ferimento do lado direito de Faith situa-se quase no sítio onde Jesus supostamente foi ferido com uma lança. Fica tonto, só de pensar.
Recuperando a compostura, invoca os seus conhecimentos de conselheiro pastoral.
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- Mariah, a Faith não está a sentir as suas próprias dores. Tendo em conta tudo aquilo que me contou, ela estava simplesmente a reviver a dor de Jesus, a representar o seu sofrimento na cruz.
- Porquê ela?
- Porquê Ele? - diz o padre MacReady suavemente. - Não sabemos por que razão Deus nos ofereceu o Seu próprio filho, para que morresse pelos nossos pecados. E não sabemos por que razão Deus deixa que algumas pessoas experimentem a Paixão de Cristo enquanto outras nem sequer a compreendem.
- Paixão - profere Mariah. - Êxtase. A pessoa que se lembrou destes nomes não passou por isso.
- Paixão vem do latim passio. Sofrer.
Mariah desvia-se das convicções sinceras do padre MacReady. Paixão. Repete a palavra suavemente para si própria, e pensa em Ian, em Colin, em Faith, interrogando-se se todo o amor - terreno ou divino - terá de fazer sofrer.
Quando as enfermeiras chegam para levar a Faith de novo para a radiologia, Mariah despede-se do padre. Não se interessa particularmente pelo que acontece ao padre MacReady. Não se interessa se a Faith está a viver o sofrimento de Cristo ou o seu próprio sofrimento. Apenas quer que esse sofrimento desapareça.
Faith está sentada numa cadeira de rodas, a dormitar. A mão de Mariah está apoiada no ombro dela enquanto uma enfermeira empurra a cadeira de rodas para dentro do elevador. Saem no terceiro piso e ficam à espera no corredor enquanto a enfermeira averigua para que quarto devem dirigir-se.
Enquanto ali estão, passa um homem a ser empurrado numa maca, rodeado por um grupo de médicos a trabalhar freneticamente enquanto se dirigem para o Serviço de Urgências. Mariah ouve-os gritar coisas sobre desfibrilação e sala de operações número três e estremece, lembrando-se do coração da mãe. A mão do homem está pendurada para fora da maca, roça no joelho de Faith enquanto o empurram.
Mas Faith, gemendo suavemente, nem sequer parece ter reparado.
- Mariah.
Visto que ela não responde, Millie agarra-a pelos ombros e abana-a.
- Ouviste alguma coisa do que te disse?
- Vai tu, mãe. Eu vou tentar ir mais tarde.
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- Não estás a perceber. Se não te levantas e sais por aquela porta, a polícia vai levar-te lá para fora à força - Millie debruça-se sobre ela. - Se não fores à audiência, o Colin vai ficar com a Faith.
Aquela frase atravessa a confusão de Mariah.
- Não pode - diz ela, levantando-se devagar. - Ele não pode.
Millie endireita-a, sentindo que começou a fazer alguns progressos. Veste o casaco a Mariah com os movimentos naturais de uma mãe.
- Então não o deixes - diz ela.
- Desistam - suspira o Dr. Urquhart. Na sala de operações número três, o cirurgião cardiologista descalça as luvas e amachuca-as numa bola viradas do avesso, mantendo o sangue do peito do seu paciente no interior. Ouve uma enfermeira dizer "nove e cinquenta e oito", e o leve ruído da sua caneta escrever na tabela do paciente. Os dedos de Urquhart estão a pulsar. Dez minutos de massagem cardíaca manual não tinham bastado para salvar o homem, mas por outro lado, depois de ter aberto o peito do sujeito, Urquhart sabe que mais algumas fatias de bacon teriam dado cabo dele. com um bloqueio de 75 e 80 por cento, respectivamente, é espantoso que o Sr. Eversly tenha durado tanto tempo.
Ouve uma das cirurgiãs residentes preparar-se para tratar o paciente de forma a estar pronto para a visita final da família. com um gemido, Urquhart apercebe-se de que o pior ainda está para vir. Não há nada pior do que dizer a um familiar que um paciente morreu na sala de operações, mesmo antes do Natal.
Agarra na tabela do paciente para registar o óbito, chega mesmo a carregar na ponta da sua caneta esferográfica, e então é impedido pela voz da médica residente.
- Dr. Urquhart. Veja isto.
Ele segue os olhos dela até ao monitor - onde já não há uma linha recta - e em seguida para a cavidade torácica aberta do paciente, dentro da qual um coração - saudável, sem coágulos bate furiosamente.
- Todos de pé! O ilustre A. Warren Rothbottam preside à sessão!
A sala de audiências reverbera com o som de pés a bater no chão e das moedas a tilintar nos bolsos quando todos se levantam. O juiz dirige-se para o seu assento, lançando um olhar ao grupo de espectadores que enchem a galeria. Rothbottam ouviu dizer que
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havia tanta gente a tentar entrar, que os oficiais de diligências tiveram de fazer um sorteio para os lugares vagos.
Olha para a mesa da arguida e vê Mariah White, graças a Deus, precisamente onde devia estar. Tem as mãos cruzadas, os olhos postos nelas como se a qualquer momento pudessem levantar-se e traí-la.
Rothbottam fixa os olhos na galeria.
- Agora vamos esclarecer um assunto. Não sou suficientemente tolo nem ingénuo para achar que este congestionamento de pessoas na sala de audiências está de alguma forma relacionado com a minha reputação enquanto juiz ou com um súbito interesse da comunicação social em audiências de rotina para determinar a custódia. Sei perfeitamente quem são os senhores e o que acham que estão aqui a fazer. Bem, esta não é a vossa estação noticiosa. É a minha sala de audiências. E nela, eu sou Deus - apoia as mãos na secretária. - Se vir uma câmara entrar aqui dentro com algum dos senhores, se ouvir alguém tossir demasiado alto, se alguém aplaudir ou vaiar uma testemunha, ao primeiro sinal de qualquer desordem, saem todos daqui para fora. E podem registar o que acabei de dizer.
Os jornalistas reviram os olhos uns para os outros.
- Doutores - diz Rothbottam para os advogados. - vou presumir que não surgiram mais pedidos de emergência na última meia hora?
- Não, meritíssimo - diz Metz. Joan abana a cabeça.
- Óptimo - acena a Metz. - Pode começar.
Malcolm põe-se de pé, aperta o ombro de Colin e ajeita o botão do casaco do fato. Depois dirige-se para o pódio ao lado do estenógrafo e muda-o ligeiramente de posição, virando-o para a galeria.
- Dr. Metz - diz o juiz. - O que está a fazer?
- Sei que vai contra as normas de uma audiência para determinar a custódia, mas preparei uma pequena declaração introdutória, meritíssimo.
- Está a ver algum júri aqui, doutor? É que eu não estou. E já sei tudo o que o senhor sabe sobre este caso.
Metz fica a olhar para ele equilibradamente.
- Tenho o direito de fazer uma declaração introdutória, e vou objectar para que fique registado, meritíssimo, se não me deixar fazê-la.
O juiz fica a pensar, por breves momentos, no que poderia estar a fazer se se tivesse reformado cinco anos mais cedo, como a sua mulher desejava: a observar as ondas enrolar na areia de uma praia da Florida, a conduzir uma caravana num parque nacional, a
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ouvir a Betty Buckley cantar de novo na Broadway. Em vez disso, está ali enfiado a observar o Malcolm Metz representar para um público, porque a última coisa que deseja é que o Metz tenha alguma razão para interpor um recurso.
- Dr.a Standish - diz o juiz, resignado -, tem algum problema
em relação a isto?
- Não, meritíssimo. Até gostaria de assistir. Rothbottam inclina a cabeça.
- Seja breve, doutor.
Malcolm Metz fica de pé em silêncio atrás do pódio por um momento, fingindo procurar as palavras que foram decoradas ao longo da última semana.
- Sabem - diz ele -, quando tinha sete anos costumava ir à pesca com o meu pai. Ele ensinou-me como escolher a melhor minhoca na terra revolvida... como a prender no anzol... como puxar um robalo, que era a coisa mais bonita do mundo. E depois de pescarmos, só os dois, íamos ao restaurante ao fundo da estrada, sentavamo-nos, ele oferecia-me um refrigerante e ficávamos a contar os carros que passavam na auto-estrada. Então o meu pai e eu íamos para casa, e a mãe tinha um grande almoço à nossa espera. Às vezes era sopa, outras vezes era uma sande de fiambre... e enquanto ela punha a mesa, eu ia lá para fora e procurava aranhas debaixo do alpendre, ou ficava deitado de barriga para cima a olhar para as nuvens. Sabem o que a Faith White faz aos sete anos? Está deitada numa cama de hospital, ligada a cateteres intravenosos, a tirarem-lhe sangue de uma dúzia de sítios diferentes no corpo. Está em grande sofrimento, mental e físico. Tem um batalhão de enfermeiras e médicos a observá-la vinte e quatro horas por dia, e pessoas reunidas à porta do hospital à espera de ouvir notícias sobre o seu estado de saúde. Pergunto-vos: isto é maneira de passar a infância? - abana a cabeça tristemente. - Acho que não. Na realidade, esta criança já não consegue ser uma criança há bastante tempo. E é por isso que o pai, o meu cliente, preparou um sítio para a filha, pronto a recebê-la de braços abertos e a protegê-la das influências doentias que a conduziram à situação em que agora se encontra... que continuam a colocar a sua própria vida em perigo.
- Muito bem - diz Rothbottam numa voz sonora. - Aproximem-se!
Metz e Joan dirigem-se ao assento do juiz. O juiz tapa o
microfone.
- Dr. Metz, deixe-me dar-lhe um conselho: não vou deliberar baseando-me no que o senhor diz aos representantes da comunicação
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social que se encontram aqui hoje. Recomendo-lhe vivamente que acabe isto agora, porque começa a aborrecer-me. Metz regressa para o seu pódio e pigarreia.
- Concluindo, vamos provar, sem margem de dúvida, que a custódia deve ser atribuída a Colin White. Obrigado - acena e vai sentar-se atrás de Colin.
- Dr.a Standish - diz o juiz -, também quer fazer uma declaração introdutória?
Joan levanta-se e abana com a mão.
- Pode dar-me um minuto, meritíssimo? Ainda estou um pouco emocionada devido ao discurso: a pesca e tudo isso - respira fundo e em seguida mostra um lindo sorriso ao juiz. - Ah. Agora estou melhor. Na verdade, acho que não tenho nada para dizer neste momento que pudesse superar o que foi dito. Vamos fazer o seguinte: se tiver necessidade de intervir, talvez pudesse fazê-lo no início do meu caso?
- Muito bem. Dr. Metz, pode chamar a sua primeira testemunha.
Lançando um olhar encorajador ao seu cliente, Metz chama Colin White para depor. Colin levanta-se, conseguindo parecer tímido e educado simultaneamente. Sobe para o banco das testemunhas e vira-se para o oficial de justiça do tribunal, que lhe estende uma Bíblia.
- Jura dizer a verdade, toda a verdade, e nada mais do que a verdade?
- Juro.
Malcolm aproxima-se do banco das testemunhas, e pede a Colin que diga o seu nome e morada.
- Sr. White - começa ele -, qual é a sua relação com a Faith?
- Sou pai dela.
- Para sabermos os antecedentes, pode explicar-nos as circunstâncias deste Verão passado?
- Estava a ter problemas com o meu casamento - admite Colin.
- Não sabia com quem havia de falar sobre isso.
Metz franze a testa.
- Porque não com a sua mulher?
- Bem, ela tem antecedentes de fragilidade emocional, e eu receava o que ela pudesse fazer se lhe dissesse que achava que o nosso casamento estava a atravessar dificuldades.
- O que quer dizer com isso?
- Ela foi internada numa instituição há sete anos devido a uma depressão, depois de ter tentado suicidar-se.
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- Se não a confrontou, então o que aconteceu para dar início ao processo de divórcio?
- Bem - diz Colin, corando -, procurei consolo noutra mulher. Ao seu lado, Mariah ouve Joan murmurar.
- Oh, por amor de Deus... - sente-se mais firmemente presa ao assento, com receio de respirar ou mexer um músculo, porque apesar da confissão envergonhada de Colin, ela apenas deseja enfiar-se num buraco no chão.
- E depois o que aconteceu? - sonda Metz cuidadosamente.
- Um dia esta mulher estava em minha casa, e a minha mulher descobriu-nos.
- Deve ter sido uma situação muito desconfortável para si, Colin.
- E foi - admite ele. - Meu Deus, senti-me mesmo mal por causa disso.
- O que fez naquela altura?
- Fui egoísta. Sabia que tinha de endireitar a minha vida. Acho que pensei que a Faith ficava bem com a Mariah enquanto eu o fazia... mas no fundo sabia que a dada altura ia querer que a minha filha fosse viver comigo.
- Pediu-lhe que fosse viver consigo?
- Nessa altura não - diz Colin, franzindo o rosto. - Achei que não estava certo desenraizá-la quando a família tinha acabado de se desfazer.
- Então o que fez?
- Pedi o divórcio. Tentei visitar a Faith sempre que podia. E deixei implicitamente claro à minha ex-mulher, pelo menos foi o que pensei, que ainda queria que a Faith fizesse parte da minha vida. Depois de... ter ido embora, tentei voltar para vê-la. Uma das vezes fui praticamente empurrado porta fora. Mas a Faith queria ver-me nessa altura; eu sei que ela queria.
- Colin, talvez possa partilhar connosco alguns momentos especiais que viveu com a Faith.
- Oh, nós éramos muito unidos. Há pequenas coisas que estão sempre comigo... como escovar-lhe os cabelos depois do banho, ou puxar-lhe os cobertores para cima enquanto dormia. Ela a enterrar-me os pés na areia.
- Qual é o seu estado civil actualmente?
Colin sorri para a galeria, onde Jessica lhe acena ligeiramente.
- Estou casado há dois meses e, na realidade, eu e a minha mulher vamos ter um bebé. A Faith vai adorar ter um irmãozinho ou uma irmãzinha.
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- Não acha que as pessoas poderão interrogar-se por que razão, em apenas dois meses, mudou de ideia sobre quem deveria ter a custódia da sua filha?
Colin acena com a cabeça.
- Não digo que tivesse agido sempre de forma perfeita. Não agi. Cometi erros que gostaria de não ter cometido. Mas nunca mudei de ideias em relação à Faith. Preciso dela. E pelo que vi, ela precisa igualmente de mim.
Metz passa em frente ao juiz.
- Colin, porque é que está agora aqui? Ele engole em seco.
- Bem, não há muito tempo liguei a televisão para ver o noticiário à noite e a minha filha era a história principal. Estava hospitalizada, e havia uma história incrível sobre ela ser uma vidente religiosa e as suas mãos sangrarem, por amor de Deus. Só pensava era que a Mariah já tinha cortado os pulsos, e que estava sozinha com a minha filha, e que de repente a Faith estava a sangrar. Sempre soube que a minha mulher era doida, mas...
- Objecção!
O juiz franze o sobrolho.
- Não vou prestar atenção ao que acabou de dizer, Sr. "White. Por favor, limite-se a responder às perguntas.
Metz vira-se para o seu cliente.
- O que o fez pedir uma alteração da custódia?
- Apercebi-me há várias semanas de que a Faith não estava tão segura como eu tinha pensado.
- Tinha razões prévias para acreditar que Mariah não era capaz de tomar conta de Faith adequadamente?
- Não, desde há anos, quando tinha acabado de ter alta de Greenhaven. Nessa altura encontrava-se bastante frágil, e tomar conta dela própria já era suficientemente difícil, quanto mais tomar conta de uma recém-nascida. Mas depois as coisas melhoraram, melhoraram muito, pelo menos era o que eu achava - diz Colin.
- Acha que pode proporcionar um lar mais seguro para a Faith?
- Meu Deus, sim. Vivemos num bairro maravilhoso, com um quintal magnífico onde ela pode brincar, e eu não deixaria que os jornalistas se aproximassem dela. Acabava todo este assunto de uma vez, para que ela pudesse ter a sua infância de volta.
- Como pai, como se sente relativamente à situação da Faith? Os olhos de Colin cruzam-se com os de Mariah. Os dele estão
bem abertos, sinceros e brilhantes.
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- Estou preocupado com ela - diz ele. - Acho que a vida dela corre perigo. E acho que a culpa é da mãe.
Mariah puxa a manga de Joan antes que ela se levantasse para o contra-interrogatório.
- Eles pensam que eu faço mal à Faith - sussurra ela, chocada.
- Eles pensam que eu estou a provocar isto?
Joan aperta a mão da sua cliente. Preparou Mariah para estar à espera do pior, mas, tal como Mariah, achou que isso significaria alguns comentários cortantes sobre a sua hospitalização, e não descrê-la como uma mãe abusiva. A chegada tardia de Mariah ao tribunal impediu que Joan a avisasse da estratégia de Metz, e não vai informar a sua cliente agora, a meio do testemunho, de que o juiz instruiu Mariah para não manter contacto com Faith enquanto durar o julgamento.
- Fique calma. Deixe-me fazer o meu trabalho - Joan levanta-se, olhando longa e intensamente para Colin, para que ele saiba o quanto ela o acha repreensível. - Sr. White - diz ela num tom frio -, diz que o seu casamento estava a atravessar dificuldades.
- Sim.
- No entanto, não falou sobre o assunto com a sua própria esposa, por ela ser frágil a nível emocional.
- Exactamente.
- É capaz de definir a expressão "frágil a nível emocional"?
- Objecção - diz Metz. - O meu cliente não é um profissional na área da psicologia.
- Então não devia ter utilizado o termo em primeiro lugar contrapõe Joan.
- vou permitir a pergunta - diz o juiz. Colin remexe-se na cadeira, desconfortável.
- Ela esteve internada numa instituição mental há sete anos por ter tendências suicidas.
- Ah, é verdade. Disse que ela tentou suicidar-se. Colin olha para Mariah.
- Sim.
- Tentou suicidar-se assim sem mais nem menos?
- Não, na altura estava muito deprimida.
- Estou a ver. Havia alguma razão para que estivesse deprimida?
Colin acena com a cabeça ligeiramente.
- Desculpe, Sr. White. Vai ter de falar em voz alta para o estenógrafo do tribunal.
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- Sim.
Joan movimenta-se ao lado de Mariah, para que os olhos do juiz, já para não falar no olhar voraz da imprensa na galeria, caiam sobre ela também.
- Talvez pudesse ajudar-nos a entender dizendo-nos a razão por que ela estava deprimida - ao ver a posição rebelde do maxilar cerrado de Colin, cruza os braços. - Posso perguntar-lhe, Sr. White, ou o senhor pode dizer-me.
- Eu estava a ter um caso, e ela descobriu.
- O senhor estava a ter um caso há sete anos, e isso fez a sua mulher ficar deprimida. E há quatro meses, quando estava a ter outro caso, ficou preocupado por o facto de ela o ter descoberto poder causar-lhe uma nova depressão?
- Correcto.
- Estas ligações com outras mulheres foram os únicos erros que cometeu no seu casamento?
- Acho que sim.
- Seria correcto afirmar que estes dois incidentes, há quatro meses e há sete anos, foram as duas únicas alturas ao longo do seu casamento em que o senhor, como é que disse? Em que o senhor sentiu necessidade de procurar consolo?
- Sim.
- Então suponho que os nomes Cynthia Snow-Harding e Helen Xavier não lhe digam nada.
Enquanto Colin fica tão branco como a sua camisa, Mariah enterra as unhas nas coxas. Joan tinha-a avisado que aquilo ia acontecer e, no entanto, tem vontade de sair da sala a correr, ou então de subir ao banco das testemunhas e arrancar-lhe os olhos. Como é que Joan podia ter descoberto tão depressa algo que Mariah não soube durante anos?
Porque, pensa Mariah, ela queria saber. E eu não.
- Não é verdade, Sr. White, que Cynthia Snow-Harding e Helen Xavier são mais duas mulheres com quem teve casos?
Colin olha para Metz, furioso atrás da mesa do queixoso.
- Não diria que foram casos - responde rapidamente. - Foram breves... ligações.
Joan assopra.
- Porque não avançamos? - sugere. - Quando a sua mulher, Mariah, ficou gravemente deprimida há sete anos, após ter descoberto que o senhor estava a ter um caso com outra mulher, diz que ela foi internada numa instituição.
- Sim. No Greenhaven Institute.
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- E os funcionários de Greenhaven limitaram-se a aparecer à porta de sua casa para irem buscá-la?
- Não - diz Colin. - Eu tratei de tudo para que ela fosse enviada para lá.
- A sério? - Joan finge-se chocada. - Tentou arranjar aconselhamento psiquiátrico para a Mariah primeiro?
- Bem, por um curto período de tempo. Parecia não estar a resultar.
- Pediu ao psiquiatra para dar medicação a Mariah?
- Estava mais preocupado com o que ela...
- Responda à pergunta, Sr. White - interrompe Joan.
- Não, não pedi isso ao psiquiatra.
- Tentou apoiá-la durante esta crise?
- Eu apoiei-a - diz Colin, tenso. - Sei que é fácil transformar-me no mau da fita, no tipo que trancou a mulher para poder convenientemente continuar a ter um caso. Mas fiz aquilo que achava ser melhor para a Mariah. amava minha mulher, mas ela era... uma pessoa diferente, e eu não era capaz de fazer com que a antiga Mariah voltasse. Não sabemos até vivermos com uma pessoa com tendências suicidas, como nos tornamos obsessivos com o facto de não nos termos apercebido de nada antes, como nos culpamos pelos dias realmente maus, como entramos em pânico, preocupados em mantê-la em segurança. Mal conseguia perdoar-me de cada vez que olhava para ela, porque, de alguma forma, eu é que a tinha transformado naquilo. Não teria sido capaz de lidar com a situação se ela se tentasse suicidar novamente - olha para o colo. - A culpa já era minha. Só queria agir correctamente, para variar.
Mariah sente algo a dar voltas dentro do seu peito. É a primeira vez que se apercebe verdadeiramente de que o facto de ter sido enviada para Greenhaven pode ter sido tão doloroso para Colin como foi para ela.
- Pediu férias para ficar em casa com a Mariah, para poder tomar conta dela, para sua segurança? - pergunta Joan.
- Por pouco tempo, mas fiquei muito assustado. Tinha medo que se virasse as costas durante um segundo, pudesse perdê-la.
- Pediu à mãe dela, que vivia no Arizona na altura, para vir para junto da Mariah?
- Não - admite Colin. - Sabia que a Míllie ia pensar o pior. Não queria que ela achasse que a Mariah não estava a melhorar.
- Por isso, muniu-se de uma decisão do tribunal e internou a Mariah contra a vontade dela?
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- Na altura ela não sabia o que queria. Não conseguia arrastar-se para fora da cama para ir à casa de banho, quanto mais dizer-me como devia ajudá-la. Fiz aquilo que fiz para a sua própria segurança. Segui o conselho dos médicos quando disseram que a vigilância vinte e quatro horas por dia era o melhor - o seu olhar perturbado cruza-se com o de Mariah. - Sou culpado de muitas coisas, incluindo estupidez e ingenuidade. Mas não de comportamento malicioso - abana a cabeça. - Já não sabia que mais havia de fazer.
- Humm - diz Joan. - Agora voltemos ao presente. Passaram-se sete anos e a sua mulher apanha-o de novo em flagrante.
- Objecção!
- Deferida.
- Após Mariah ter descoberto que estava a ter outro caso - diz Joan numa voz suave -, ficou preocupado por ela poder ficar novamente deprimida. Por isso em vez de perder algum tempo para falar sobre o assunto, limitou-se a fugir?
- Não foi assim. Não me orgulho do que fiz, mas precisava mesmo de me recompor antes de assumir as responsabilidades de outra pessoa.
- Não ficou preocupado por a Mariah poder ficar um pouco perturbada ao descobri-lo na cama com outra mulher, tal como tinha ficado há sete anos atrás?
- Claro que fiquei.
- Fez alguma tentativa para arranjar apoio psiquiátrico para a Mariah?
- Não.
- Mesmo que da última vez que isto aconteceu ela tenha ficado gravemente deprimida?
- Já lhe disse, nessa altura só estava a pensar em mim próprio.
- E apesar de tudo deixou a sua filha com ela - diz Joan.
- Sinceramente não pensei que a Mariah a pudesse magoar. Quero dizer, por amor de Deus, é mãe dela. Presumi que ela ia ficar bem.
- Presumiu que a Mariah se manteria emocionalmente estável apesar do seu comportamento.
-Sim.
- E presumiu que a Faith ficaria bem sob a custódia da sua mulher.
- Sim.
- Não pediu a ninguém que fosse lá a casa verificar; não chamou nenhum médico, a segurança social, nem mesmo um vizinho.
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- Não. Foi um erro de que me arrependo muito, e estou pronto para emendar os meus erros. Joan passa pelo banco das testemunhas energicamente.
- Tenho a certeza de que ficamos todos satisfeitos por estar pronto para isso. Agora, deixe-me ver se percebi bem. Pelo que disse, presumiu incorrectamente que a Faith ficaria melhor com a sua ex-mulher. Tal como presumiu, incorrectamente, que precisava de instalar-se antes de poder sequer pensar no bem-estar da sua filha. Tal como presumiu, incorrectamente, que a sua mulher estaria melhor numa instituição mental do que com uma forma diferente de tratamento para a depressão. Tal como hoje presume, incorrectamente, que é o progenitor mais indicado neste caso.
Antes de Colin poder responder, Joan volta-lhe as costas.
- Não tenho nada mais a acrescentar - diz ela.
O Dr. Newton Orlitz adora a sensação de estar no banco das testemunhas. Há algo na madeira macia debaixo das suas mãos e no cheiro do verniz para mobília que fica para sempre numa sala de audiências que o faz ditosamente feliz com o seu trabalho de há muito tempo como psiquiatra forense. Sabe que a maior parte das vezes a sua opinião de médico nomeado pelo tribunal é repudiada por um psiquiatra privado a quem pagam uma avultada quantia de dinheiro para dizer algo contraditório, mas isso não lhe tira o prazer. Não só acredita no sistema legal, como também se sente honrado por saber que ocupa um lugar nele.
Também gosta de jogar consigo próprio no banco das testemunhas. Por vezes observa os advogados e faz-lhes um diagnóstico na sua cabeça. Ao ver Malcolm Metz aproximar-se dele para ouvir o seu testemunho, pensa: megalomania, sem dúvida. Talvez até um complexo de Deus. Imagina Metz vestido com uma túnica branca, exibindo uma longa barba etérea e ri-se para consigo.
- Ainda bem que se sente satisfeito por estar aqui, Dr. Orlitz diz Metz. - Entrevistou Colin White?
- Sim - diz Orlitz, consultando o seu caderno cinzento mosqueado, no qual registou os seus comentários relativamente a este caso em particular. - Achei-o estável em termos emocionais e perfeitamente capaz de proporcionar um bom lar equilibrado para uma criança pequena.
Metz esboça um grande sorriso, e tem razões para isso. Orlitz sabe que a maior parte dos advogados não tem oportunidade de ouvir aquilo que desejam quando o psiquiatra nomeado pelo tribunal apresenta a sua avaliação.
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- Teve também oportunidade de entrevistar Mariah White?
- Tive.
- Pode falar-nos um pouco sobre os seus antecedentes psiquiátricos?
Orlitz folheia as suas notas.
- Esteve internada em Greenhaven durante quatro meses, devido a uma depressão suicida. Enquanto ali permaneceu, recebeu psicoterapia e medicação antidepressiva. No entanto, como tenho a certeza de que sabe, Dr. Metz - diz ele, com um sorriso brando -, os comportamentos dela ocorreram em reacção a uma situação de stress extremo. Foi assim que a mente dela lidou com o assunto. Achou que tinha perdido o marido e o casamento.
- Na sua opinião de especialista, doutor, acha que Mariah White pode estar a passar outra vez por esse tipo de crise psicológica neste momento?
Orlitz encolhe os ombros.
- É possível. É vulnerável a esse tipo de reacção.
- Entendo. A Mariah está a ser medicada neste momento, doutor?
Orlitz percorre a parte lateral de uma página com o dedo.
- Sim - diz ele, ao encontrar a sua nota. - Tem estado a tomar vinte miligramas de Prozac diariamente, ao longo dos últimos quatro meses.
Metz ergue as sobrancelhas.
- Quando foi receitado?
- No dia onze de Agosto. Por um Dr. Johansen.
- Onze de Agosto. Por acaso sabe em que dia Colin White saiu de casa?
- Penso que no dia dez de Agosto.
- Na sua opinião, Dr. Orlitz, Mariah White terá recebido esta medicação por não ser capaz de lidar com o stress da presente situação sem ela?
- É o mais provável, mas devia perguntar isso ao psiquiatra dela.
Metz lança-lhe um olhar reprovador.
- Doutor, teve oportunidade de entrevistar a Faith?
- Tive.
- Ela pareceu-lhe ser uma menina normal?
- Normal - diz o médico, rindo - é um termo muito relativo. Sobretudo quando estamos a definir uma criança que sofreu um divórcio traumático.
- A Faith parece procurar a aprovação da mãe?
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- Sim, mas trata-se de uma reacção muito comum após um divórcio. Uma criança tem tanto medo que o pai ou a mãe que lhe resta se vá embora também que fará tudo o que for necessário para manter o seu interesse.
- Talvez até imitar um comportamento?
- Sem dúvida - diz Orlitz. - Um pai ou uma mãe podem estar consciente ou inconscientemente a reforçar o comportamento, afastando a criança do outro progenitor ao forçá-la a agir de determinada maneira, de forma que a criança, efectivamente, se transforme num peão. Alguns especialistas referem-se a este padrão de comportamento pós-divórcio como "síndroma de alienação parental".
- Reforçar o comportamento da criança - repete Metz. Interessante. Não tenho nada a acrescentar.
Joan levanta-se e abotoa o casaco do fato. Conhece Metz suficientemente bem para se aperceber de que estabeleceu as bases para introduzir uma futura testemunha.
- Porque é que não começamos com esta questão do comportamento reforçado? - diz ela. - A entrevista da Faith sugeriu-lhe que os seus últimos comportamentos, digamos, mais extraordinários foram directamente provocados pela mãe?
-Não.
- Obrigada. Ora, doutor, teve oportunidade de entrevistar ambos os pais da Faith. E disse que tinha achado que Colin White era estável em termos emocionais e perfeitamente capaz de proporcionar um bom lar para uma criança pequena. Achou Mariah White emocionalmente estável?
- Sim, neste momento encontra-se bem.
- Achou que ela era uma boa mãe, actualmente?
- Sim. A Faith parece muito ligada a ela.
- Vamos mudar novamente de assunto, doutor. Quantas pessoas na América diria o senhor que se encontram sob medicação antidepressiva?
- Creio que - diz o Dr. Orlitz -, quase dezassete milhões.
- Em que percentagem dos casos os medicamentos funcionam?
- Bem, se os pacientes continuarem a medicação por um certo período de tempo e fizerem terapia, são eficazes em cerca de oitenta por cento dos casos.
- O Prozac afecta a vida do dia-a-dia?
- Não.
- Dr. Orlitz, falou com a Faith sobre a tarde em que o pai se foi embora?
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- Sim, falei.
- Isso afectou-a de alguma forma?
- Não percebeu a dinâmica das relações dos adultos, o que na realidade é bom, mas devido a esse facto, sentiu que podia ser culpada pela ausência subsequente do pai. Vai necessitar de fazer terapia relativamente a esse assunto.
- Que pena - diz Joan. - Então, apesar de, na sua opinião, Colin White ser um bom pai agora, de facto terá feito algo noutra ocasião que deixou a Faith magoada.
- Sim.
- Encontrou provas de algo que Mariah tenha alguma vez feito e que tenha de alguma forma deixado a Faith magoada?
- Não. Tem sido um fio condutor estável e contínuo a que a Faith se pode agarrar durante uma crise.
- Obrigada - diz Joan, e dá meia volta para se sentar ao lado da sua cliente.
O juiz Rothbottam anuncia que vai haver um curto intervalo, e os jornalistas correm para fora da sala de audiências para telefonar para os seus associados para dar as últimas notícias. Metz leva Colin lá para fora, e desaparecem ambos numa massa de corpos. Mariah não sai da cadeira, e apoia a cabeça nas mãos.
Joan toca-lhe no ombro.
- Chamam-nos a defesa - diz ela -, porque continuamos a lutar quando eles já estão arrumados. Não importa aquilo que eles dizem, Mariah, a sério. Vamos responder-lhes à letra.
- Eu sei - diz Mariah, massajando as têmporas. - Quanto tempo ainda falta?
Joan sorri gentilmente.
- O tempo suficiente para ir à casa de banho.
Mariah sai da cadeira num abrir e fechar de olhos; qualquer coisa serve para sair dali. Sai da sala de audiências e vê um mar de rostos. O seu olhar cai sobre Ian, que está sentado à porta, à espera da sua vez de apresentar testemunho, a fingir que não a conhece.
Tem de ser assim; já falaram sobre o assunto. Mas neste momento, com a sua mãe junto à cama de Faith, Mariah precisava de um aliado forte e estável.
Obriga-se a desviar os olhos de Ian. Tem de recorrer a todo o seu autocontrolo para passar por ele sem olhar para trás, apenas para ver se está a observá-la enquanto se afasta.
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A Dr.a DeSantis é uma mulher compacta com uma nuvem de cabelos negros que oscila enquanto ela fala. Recita o seu impressionante currículo perante o tribunal, e depois sorri para Malcolm Metz.
- Dr.a DeSantis - diz ele -, teve oportunidade de entrevistar Colin White?
- com certeza. O Sr. White é um homem maravilhoso, atencioso e absolutamente estável que deseja muito que a filha faça parte da sua vida.
- Entrevistou Mariah White?
- Não - diz a psiquiatra. - Ela recusou a oportunidade.
- Entendo. Teve oportunidade de examinar as conclusões do Dr. Johansen relativamente a Mariah White?
- Sim.
- O que pode dizer-nos sobre a sua saúde psicológica?
- Esta mulher tem antecedentes de depressão grave. Tais antecedentes colocam-na na lista de alto risco para futuros episódios significativos de instabilidade, e ninguém pode prever o que os poderá desencadear.
- Obrigada, doutora - Metz acena a Joan. - À testemunha é sua. Joan levanta-se, mas não se dá ao trabalho de avançar.
- Dr.a DeSantis, a senhora é a terapeuta de Colin White?
Por baixo da nuvem de cabelos, as faces da psiquiatra ficam rosadas de indignação.
- Fui chamada para dar a minha opinião sobre este caso.
- É verdade, Dr.a DeSantis, que a primeira e a última vez que se encontrou com Colin White foi no dia nove de Outubro, apenas dois dias a seguir à audiência relativa a este pedido de alteração da custódia?
- Suponho que sim.
- Ah! Doutora, em quantos julgamentos já testemunhou?
- Mais de cinquenta - diz orgulhosamente a psiquiatra.
- Em quantos desses cinquenta julgamentos o Dr. Metz lhe pediu para ser testemunha?
- Em vinte e sete.
Joan acena com a cabeça, pensativa.
- Doutora, achou em algum desses vinte e sete julgamentos que o cliente do Dr. Metz era mentalmente incapaz?
- Não - diz a Dr.a DeSantis.
- Então, apenas para recapitular: o Dr. Metz contratou-a mais uma vez, e, corrija-me se estiver enganada, Dr.a DeSantis, na sua opinião de especialista, achou que o cliente dele era absolutamente estável, e que a minha cliente era um caso perdido a nível emocional.
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- Eu não usaria esses termos...
- Sim ou não, doutora?
- Achei que o cliente do Dr. Metz era mais estável do que a sua cliente, sim.
- Bem - diz Joan secamente. - Mas que surpresa.
A capela do hospital é uma pequena sala triste que antigamente era uma arrecadação. Há seis bancos, três de cada lado de um pequeno pódio com uma cruz pendurada por cima. A capela não tem um culto definido, mas de alguma forma, aquele símbolo da cultura cristã passou despercebido. O padre MacReady está de joelhos, com os lábios movendo-se silenciosamente num pai-nosso, enquanto o seu coração se afunda cada vez mais no peito.
Tenta ignorar o som da porta a abrir-se, mas esta range incrivelmente alto, e enquanto sacerdote, sente-se na obrigação de dar apoio a uma alma angustiada, se isso for necessário. Levanta-se, sacode os joelhos das calças de ganga e vira-se para trás.
Para sua surpresa, o rabi Solomon está a olhar para a cruz como se esta fosse uma cascavel prestes a atacar.
- Ecumenismo, pois sim.
- Rabi - diz o padre MacReady.
Avaliam-se um ao outro, sem nunca se terem encontrado mas conscientes implicitamente de que se encontram ambos aqui para apoiar a Faith White.
O rabi Solomon acena com a cabeça.
- Soube alguma coisa?
- Fui ao departamento de pediatria. Não me deixaram entrar no quarto. Passa-se alguma coisa.
- Alguma coisa boa?
O rabi abana a cabeça.
- Não me parece.
Os dois homens ficam de pé em silêncio.
- Os judeus não precisam de um número mínimo de pessoas para rezar? - pergunta MacReady passado um momento.
Solomon sorri.
- Não se trata realmente de um mínimo. É um minyan, dez homens. É o grupo mais pequeno que podemos reunir se quisermos dizer determinadas orações.
- A força dos números, ha?
- Exactamente - diz o rabi. E sem dizerem mais uma palavra, o rabi e o padre sentam-se lado a lado num banco, e começam a rezar juntos em silêncio.
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- A situação é a seguinte - diz um jovem médico de rosto suave a Millie. - O sistema renal da Faith entrou em ruptura. Se não a colocarmos em diálise, é provável que envenene toda a corrente sanguínea.
Millie fica a olhar para aquele homem, sem compreender. Como é possível que este rapaz, mais novo do que a Mariah até, esteja a dizer-lhe o que terão de fazer? Ao longo da última meia hora, o quarto da Faith tem estado a fervilhar de enfermeiras e médicos e auxiliares a trazer equipamento estranho a brilhar, a colocar ganchos e tubos e máscaras na sua neta até ela parecer apenas um astronauta a preparar-se para fazer uma viagem a um mundo desconhecido.
Não é a primeira vez que Millie deseja que tivesse sido a sua mente, e não o coração, a ser limpa e ressuscitada. Fica a olhar para Faith, desejando que ela abrisse os olhos, que sorrisse, que lhes dissesse que não era tão grave como todos pensavam. "Onde está o teu Deus agora?", interroga-se.
Há apenas uma hora, Mariah tinha telefonado do tribunal, e Millie tinha podido dizer que estava tudo exactamente como estava quando ela tinha saído. Como é que tanta coisa podia ter corrido mal tão depressa?
- Não é a mim que devia estar a pedir - esquiva-se Millie. - A mãe dela...
- Não está aqui. Se não assinar o formulário de consentimento, esta menina vai morrer.
Millie passa a mão pelos olhos, e depois agarra na caneta que ele lhe estende como se fosse um cachimbo da paz, e dá a sua permissão.
Ian sobe ao banco das testemunhas, e há um momento de inusitada comicidade quando o oficial de justiça do tribunal se aproxima com a habitual Bíblia. Ele ri-se, e depois olha para o tecto com um ar divertido.
- Muito bem. Preparem-se para ser atingidos por um relâmpago. Metz pavoneia-se em direcção à sua testemunha.
- Por favor, diga o seu nome e morada para que fique registado.
- Ian Fletcher, Brentwood, Califórnia.
- Qual é a sua profissão, Sr. Fletcher?
- Como sinceramente espero que todos saibam, sou ateu profissional. Actualmente co-produzo e protagonizo um programa de televisão que expõe as minhas opiniões. Para além disso, sou
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autor de três bestsellers não ficcionais do New York Times. Pensando bem, também desempenhei um papel secundário num filme, uma vez.
- Pode explicar ao tribunal como é o seu programa de televisão, para aqueles que possam não estar familiarizados com ele?
- Bem, o meu programa já foi descrito como o antiBilly Granam14. Tenho um púlpito na televisão, mas utilizo-o para provar que Deus não existe, através de teorias e indagações científicas.
- Acredita em Deus, Sr. Fletcher?
- É um pouco difícil, quando se é ateu - ouvem-se risos abafados vindos da galeria.
- Ao longo dos últimos dois meses, que alegados milagres religiosos examinou?
Ian cruza uma perna por cima da outra.
- Uma imagem que sangrava no Massachusetts, uma árvore no Maine e, ultimamente, a Faith White.
- Porque é que acompanhava esse caso em particular? Ian encolhe os ombros.
- Ela supostamente via Deus, fazia milagres e apresentava estigmas. Estava decidido a provar que era uma fraude.
Metz aproxima-se para desferir o golpe final.
- Sr. Fletcher, pode dizer-nos o que descobriu?
Ian olha para o advogado por um momento, repetindo na sua cabeça o testemunho que ensaiara com Metz ainda ontem. Um longo sorriso vagaroso altera-lhe o rosto.
- Para lhe dizer a verdade, Dr. Metz - diz ele -, não descobri grande coisa.
Metz, pronto para lançar a pergunta seguinte como um dardo, vacila.
- Desculpe?
Ian aproxima-se do microfone.
- Eu disse: "não descobri grande coisa" - acena ao estenógrafo.
- Não foi assim?
Da galeria ergue-se um burburinho, motivado pelo desencontro entre o advogado do queixoso e a testemunha famosa.
- O que o senhor está a dizer - parafraseia Metz -, é que não tem visto muitos destes alegados milagres.
- Objecção - grita Joan. - Está a orientar a testemunha.
- Deferida.
14 Um dos evangelistas mais conhecidos do século XX nos Estados Unidos. (N. da T.)
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- Por acaso, Dr. Metz - responde Ian -, o que eu estou a dizer é que não descobri nada que apoiasse a teoria de que a Faith White é uma impostora.
Metz começa a tremer; interroga-se se isso será perceptível ao juiz ou à Joan Standish. Lembra-se do seu primeiro encontro com Fletcher, quando este tinha dito expressamente que havia uma informação importante sobre a Faith White que ele estava a manter em segredo. Lembra-se do depoimento de Fletcher - de como o homem tinha invocado a Quinta Emenda a cada pergunta. Na altura, Metz tinha achado aquilo divertido, pelo menos tinha enervado a Joan Standish. Mas agora vê que Ian tinha invocado a Quinta Emenda porque sabia, desde o início, que estaria a cometer perjúrio ao recusar-se a prestar o testemunho que tinha apresentado sob juramento quando Joan ouvira o seu depoimento. O que quer que fosse que tivesse prometido a Metz que diria dentro do seu escritório de advogados era mentira - e Metz não pode fazer absolutamente nada em relação a isso. Fletcher podia chegar aqui e cantar o hino nacional se quisesse porque desde que o seu testemunho não fosse questionado, isso não o prejudicaria, prejudicaria apenas Metz, que tinha subestimado a sua própria testemunha.
Embora isso o fizesse ficar desconfortável, Metz estava disposto a deixar que Fletcher mantivesse a sua grande revelação sobre a Faith White em segredo, desde que estivesse pronto para revelar outras informações menos importantes no tribunal. Mas esta recusa peremptória em cooperar não faz sentido nenhum.
- com certeza terá descoberto alguma coisa.
- Doutor, não seria capaz de me pedir que mentisse, pois não?
Metz sente a veia na têmpora latejar. Tenta fazer algumas perguntas diferentes, perguntas que ensaiaram, para ver se Fletcher volta a entrar na linha.
- Alguma vez viu a Faith White fazer um milagre? Ian hesita por uma fracção de segundo.
- Não propriamente - diz ele.
- Onde estava na noite de treze de Outubro?
- Estacionado na propriedade dos White.
- O que aconteceu nessa noite, por volta das dez horas?
- Encontrei a Faith. Literalmente. Estava no bosque, depois de anoitecer.
- A mãe dela sabia que ela estava fora de casa?
- Não - admite Ian.
- O que aconteceu?
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- Faith estava a sangrar. Desmaiou e eu levei-a para casa. Para junto da mãe.
- Deixe-me ver se percebi bem. A criança estava a andar por ali no escuro, a sangrar e quase inconsciente, e a mãe não sabia de nada?
Ian franze o sobrolho.
- Assim que levei a Faith para junto da Sr.a White, ela mostrou-se extremamente cuidadosa. Levou a Faith para o hospital para poder ter cuidados médicos de imediato.
- É possível que a Faith estivesse a fugir devido à sua própria mãe a ter magoado?
- Objecção!
- Indeferida - diz o juiz Rothbottam. Ian encolhe os ombros.
- Não vi a mãe dela fazer isso.
- Mas é possível?
- Também não vi o senhor magoar a Faith White ontem à noite, Dr. Metz, mas suponho que seja possível que o tivesse feito.
Metz hesita. Não consegue perceber qual é o jogo de Fletcher. estão ambos do mesmo lado - ambos precisam de demonstrar que a criança é uma fraude - embora desejem provar isso por razões muito diferentes.
- Pode dar-nos outros exemplos que atestem que a Sr.a White não é uma boa mãe?
Ian franze a testa, como se estivesse profundamente concentrado. Depois a sua expressão desanuvia-se e ele sorri para Metz.
- Não. Por acaso, apenas vi provas do contrário. Ao longo de todo o tempo em que tentei desacreditar a Faith, a Sr.a White pareceu-me estar a desempenhar as suas funções bastante bem.
O olhar de Ian paira sobre a galeria, acabando por pousar em Mariah. "Estás a ver?" Então Ian volta a concentrar-se em Metz, no brilho calculista dos olhos do advogado.
- Diz que passou dois meses a investigar a Faith e a mãe dela?
- Foi mais ou menos isso.
- Pode falar-nos sobre algumas dessas investigações? Ian junta as mãos em pirâmide.
- De momento, não me ocorre nada especificamente.
- Que interessante - diz Metz -, visto que estavam ambos na lista de passageiros de um avião com destino a Kansas City há cerca de um mês - apresenta como prova um pedaço de papel com o emblema de uma companhia aérea gravado em cima.
Ian tenta não deixar que o seu corpo o atraiçoe; sempre houve a possibilidade muito real de que os detectives privados de Metz
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descobrissem algum registo. Contudo, saber que se fez uma viagem está muito longe de saber a razão pela qual esta foi feita. A verdadeira questão aqui é o que descobriu Metz.
- Talvez possa dizer-nos o que apurou sobre Faith e Mariah White nessa viagem.
Metz fica a olhar para Ian, querendo que ele mostre o jogo, que admita que as seguiu até Kansas City no decurso de uma investigação - e que depois admita o que descobriu.
- Ha - diz Ian, fingindo surpresa. - Não sabia que elas iam nesse avião. Eu estava na primeira classe... nunca cheguei a ir à parte de trás do avião - sorri candidamente para Metz. - Que coincidência.
- Se não estava nesse avião especificamente para investigar a Faith White, mas estava, como o senhor mesmo disse, a meio de uma investigação aos seus alegados milagres, então o que estava a fazer nesse avião, Sr. Fletcher.
O rosto de Ian enverga uma máscara impenetrável.
- Visitar uns amigos.
Agora Metz está tão perto que as suas palavras chovem sobre Ian.
- Que amigos?
- Objecção, meritíssimo - diz Joan. - Não faço ideia por que razão o faz, mas o Dr. Metz está a pressionar a sua própria testemunha.
- Sim, Dr. Metz - concorda o juiz. - O Sr. Fletcher já respondeu à sua pergunta.
Metz não consegue voltar a olhar para Ian; não tem a certeza de ser capaz de não estrangular o filho da mãe.
- Nada mais a acrescentar - diz entre dentes, sentando-se ao lado de Colin White.
- Mas que raio foi aquilo? - sussurra Colin.
Metz observa Joan sussurrar furiosamente à sua cliente.
- Aquilo - diz ele -, foi uma emboscada.
- Mas que raio foi aquilo? - sussurra Joan.
Mariah não diz nada, limita-se a dobrar e a desdobrar o tecido da saia. Durante um momento, quando Ian se dirigiu ao banco das testemunhas, não conseguia respirar; interrogou-se se, apesar do que lhe tinha dito naquelas últimas semanas, não estaria a mentir, se ia fazê-la de idiota.
- Você sabia - diz a advogada numa voz abafada. - Meu Deus.
- Ele quer ajudar-me - diz Mariah suavemente. - Ele achou que a Joan não devia saber com antecedência.
Joan fica a olhar para ela por um instante.
- Então diga-me agora: até onde está ele disposto a ir?
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Quando Ian olha para Joan, uma corrente passa entre eles, uma ligação forjada por um objectivo comum.
- Disse que passou algum tempo a investigar Mariah? - pergunta ela.
- Sim.
- Viu Mariah ser uma boa mãe.
- Sim.
- Pode falar-me sobre isso?
Ian inclina-se para a frente no banco das testemunhas.
- Nunca vi uma mulher proteger tanto a filha, doutora. A Sr.a White fez os possíveis por proteger a Faith da comunicação social, dos fundamentalistas religiosos na sua propriedade e até de mim. Tal como o Dr. Metz referiu, ela tentou afastar a filha de toda esta situação aparentemente fugindo para Kansas City. Quando a acompanhei ao hospital com a filha, quando as mãos da Faith começaram a sangrar, não saiu do lado daquela criança nem por um minuto. Devo confessar que quando cheguei a New Canaan estava à espera de encontrar uma espécie de megera: uma mulher que estava a tentar chamar a atenção ao fazer a sua filha passar por uma espécie.de milagreira. Mas os factos não batiam certo. A Sr.a White é uma boa mulher, uma boa mãe.
- Objecção! - grita Metz.
- com que justificação? - pergunta o juiz.
- Bem... a testemunha é minha!
- Indeferida - Rothbottam acena a Ian. - Por favor, continue, Sr. Fletcher.
- Ia acrescentar que quando era criança, na Geórgia, disseram-me para nunca me meter entre uma mãe ursa e a sua cria, porque a mãe ia atacar qualquer coisa, incluindo eu, para chegar junto do seu bebé. É claro, mesmo nessa altura eu não ligava ao que devia ou não acreditar. E, naturalmente, quando tinha cerca de oito anos, meti-me entre uma mãe ursa e a sua cria, e passei três horas em cima de uma árvore até que ela perdesse o interesse em castigar-me. Mas nunca esqueci a expressão nos olhos daquele animal, havia algo neles que me fez perceber que era um idiota por tê-la feito zangar-se. E passados trinta anos, vi o mesmo tipo de convicção estampada no rosto de Mariah White.
Joan tenta sorrir. Acima de tudo, Ian Fletcher é um actor. Ele sabe como convencer as pessoas.
- Agradeço-lhe, Sr. Fletcher - e depois sorri. - E agradeço-lhe a si também, Dr. Metz. Nada mais a acrescentar.
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À uma e trinta e cinco, Faith abre os olhos pela primeira vez em doze horas. A enfermeira está virada de costas para ela, por isso demora algum tempo até se aperceber através dos monitores de que a rapariga está consciente.
- Não tenhas medo, querida - diz ela, enquanto Faith começa a tentar respirar. - Tens um tubo enfiado na garganta - contacta o Dr. Blumberg e o cirurgião pediátrico de serviço. - Respira - instrui ela. Mas Faith continua a arredondar e a esticar a boca, no que parece ser uma tentativa de respirar, mas que realmente é a palavra "mamã."
- Dr. Metz - continua o juiz. - A sua próxima testemunha? Metz levanta a cabeça.
- Meritíssimo, posso aproximar-me? - Joan caminha ao seu lado, preparando-se para a luta que sabe estar prestes a começar, a batalha por causa do especialista que Metz tinha anunciado naquela manhã.
- Preciso de chamar uma testemunha que não se encontra na lista.
- Já apresentei a minha objecção relativamente a essa lista, meritíssimo - diz Joan de imediato. - Não tinha conhecimento deste alegado especialista do Dr. Metz, e preciso de tempo para investigar esta ridícula síndroma do foro psicológico que ele encontrou na Enciclopédia Britânica.
- Não estou a referir-me ao especialista na Síndroma de Munchausen - responde Metz, impaciente. - Trata-se de outra pessoa. E por acaso, não se encontra isolado. Por acaso está presente nesta sala de audiências.
Joan fica de boca aberta.
- Para que é que se deu sequer ao trabalho de me entregar uma lista de testemunhas?
- Olhe, o Ian Fletcher foi uma testemunha inesperadamente hostil, e eu não abordei os assuntos que devia ter abordado ao longo do seu testemunho.
O juiz vira-se para Joan.
- O que acha disto?
- Nem pensar, meritíssimo.
Metz sorri-lhe, pronunciando silenciosamente com os lábios.
- Assunto de recurso.
Joan cerra os maxilares e encolhe os ombros.
- Então, muito bem. Prossiga.
Metz afasta-se, satisfeito. Esta próxima testemunha descreverá Fletcher como um mentiroso - questionando todo o seu testemunho
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e a sua inexplicável defesa de Mariah. Pelo menos, depois disto, Metz terá invalidado quaisquer danos inesperados que Fletcher tenha infligido ao seu caso.
- O queixoso gostaria de chamar Allen McManus a depor.
Há um tumulto na galeria enquanto os jornalistas se afastam para deixar um dos seus sair da sua cadeira e dirigir-se ao banco das testemunhas. Hesitante, McManus dirige-se para o oficial de justiça do tribunal, visivelmente surpreendido, enquanto se deixa conduzir ao longo do juramento.
Metz abençoa Lacey Rodriguez em silêncio por mais uma vez lhe fornecer mais informações do que as que esperava vir a utilizar
- informações de que a maioria das pessoas nem sequer tinha conhecimento, tais como registos de provedores de serviços de longa distância de chamadas telefónicas realizadas e recebidas em edifícios de escritórios.
- Pode dizer o seu nome e morada para que fique registado?
- Allen McManus - diz a testemunha. - Dois-quatro-sete-oito Massachusetts Avenue, Boston.
- Onde trabalha, Sr. McManus?
- Sou editor do obituário no Globe. Metz cruza as mãos atrás das costas.
- Quando é que ouviu falar da Faith White pela primeira vez?
- Eu, hum, fui destacado para fazer a cobertura de um simpósio de psiquiatria em Boston. E uma psiquiatra estava a falar sobre um dos seus casos, uma menina que falava com Deus. Nessa altura, porém, não sabia que essa menina era a Faith White.
- Como é que veio a descobrir?
- Estava no escritório e recebi um fax sobre uma mulher morta que tinha voltado à vida depois de a neta ter feito um milagre. Afinal, isso aconteceu na mesma cidade onde esta psiquiatra exerce a sua profissão. E depois o telefone tocou, recebi um telefonema anónimo que me dizia para pensar em quem beneficiaria por a miúda ser considerada uma espécie de curandeira.
- O que fez após receber esse telefonema? McManus ergue o queixo.
- Já tenho muitos anos de experiência em jornalismo de investigação, por isso resolvi aprofundar o assunto. Fiz uma pequena investigação sobre a mãe da miúda - mostra um sorriso rasgado. Fui eu que publiquei a história sobre Mariah White ter estado internada numa instituição durante quatro meses.
- Foi estranho para si receber aquele telefonema anónimo? Allen alarga o colarinho da camisa.
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- Bem, a trabalhar no obituário, não recebo telefonemas deste tipo com muita frequência. No Globe temos identificação de números telefónicos, por isso anotei-o, no caso de precisar de voltar a contactar com ele.
- Qual era o número, Sr. McManus?
- Não posso revelar uma fonte, doutor.
O juiz franze o sobrolho, enquanto os jornalistas na galeria murmuram em sinal de respeito.
- Pode e vai fazê-lo, Sr. McManus, ou vou detê-lo por desrespeito ao tribunal.
Allen fica em silêncio por um momento, ponderando as suas opções. Depois tira um pequeno caderno do bolso e folheia as páginas.
- Três-um-zero, dois-oito-oito, três-três-seis-seis.
- Chegou a localizá-lo?
- Sim.
Malcom Metz anda em frente à mesa da arguida e volta-se para Mariah.
- Sr. McManus, de quem era este número?
O juiz pigarreia, num aviso, mas não há necessidade. Neste momento, McManus está a olhar para um homem, de olhos semiçerrados enquanto se lembra de uma indignidade passada.
- Trata-se de um telemóvel pessoal - diz ele. - Registado em nome de Ian Fletcher.
Assim que Allen McManus sobe ao banco das testemunhas, Ian sente-se ficar preso à cadeira, incapaz de se mexer e igualmente certo de que ficar ali é a pior coisa que pode fazer. Como podia ter subestimado Metz? Agora Ian está sentado duas filas atrás de Mariah, observando os ombros dela a contraírem-se ao descobrir que Ian foi o responsável pelo artigo difamatório sobre ela que foi publicado. "Devia ter-lhe contado", pensa ele. "Se lhe tivesse contado, ela ter-me-ia perdoado."
Deseja que ela se volte para ele. Deseja poder ver o rosto dela.
Há apenas alguns momentos, quando saiu do banco das testemunhas, passou por ela e piscou-lhe o olho. Todo o seu rosto estava radiante, tão luminoso como a Lua. Agora está pálido, com os olhos em evidência, como equimoses, deliberadamente afastados dele.
Dá por si a observar Mariah da mesma forma que não podemos evitar olhar para um edifício a ruir ou um fogo a extinguir-se, presos à tragédia. Não pestaneja quando ela tapa o rosto com as mãos, quando o choro vem.
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Joan passa trinta segundos a tentar consolar a sua cliente, algo que nunca foi o seu forte. Depois levanta-se, vibrando de raiva. Se se tratasse de um julgamento por júri, seria completamente diferente. Poderia contra-interrogar McManus e de alguma maneira pôr em causa o facto de Ian estar na posse do seu telemóvel na altura em que fora feita a chamada. Podia ter sido alguém próximo, podia ter sido roubado - quem sabe que possibilidades existem? Um juiz, porém, já terá ponderado sobre a possibilidade de ter ou não sido de facto Ian Fletcher a usar o seu próprio telemóvel para telefonar a McManus. E - como toda a gente - teria concluído que Ian é culpado de várias traições.
- O senhor trabalha no Globe? - diz ela num tom cortante.
- Sim.
- Há quanto tempo trabalha lá?
- Há seis anos.
- Que formação tem?
- Frequentei a Escola de Jornalismo da Colúmbia e trabalhei no Miami Herald como correspondente antes de ir para o Globe.
- Quem o destacou para este caso em particular?
- O editor de eventos especiais, Uwe Terenbaum. Por vezes pede-me que faça a cobertura de simpósios e conferências, se não houver muitos óbitos.
Joan anda para trás e para a frente diante dele, como uma lançadeira de um tear. Os olhos de McManus seguem-na, estonteados. Não sabe o que poderá arrancar a este verme, mas tem um palpite de que o ego dele é o seu calcanhar de Aquiles. E quanto mais estúpido o fizer parecer, melhor.
- Acha que é um bom jornalista, Sr. McManus?
Por um momento, Allen fica orgulhoso de si próprio.
- Gosto de pensar que sim.
- Tem uma boa reputação entre os seus colegas?
- Claro.
- Foi destacado para este caso por ser um dos melhores jornalistas do Globe?
- Provavelmente - diz ele, parecendo ficar mais alto na sua cadeira.
- Deve ter-se sentido muito bem quando localizou aquele número de telefone, relacionando-o com Ian Fletcher.
- Bem, sim - admite Allen. - Quero dizer, é sem dúvida um nome muito conhecido.
374
Joan tamborila com os dedos na balaustrada do banco das testemunhas.
- Falou com o Sr. Fletcher depois de ter descoberto que aquele era o seu número de telefone?
- Tentei, mas...
- Sim ou não?
- Não - diz ele.
- Limitou-se a aceitar a informação dele.
- Sim.
- Dirigiu-se a Greenhaven?
- Sim - diz Allen.
- Onde conseguiu ver o ficheiro de Mariah White?
- Não. Um médico confirmou-me que ela tinha estado internada no hospital.
- Entendo. Era o médico de Mariah?
- Bem, não...
- Esse médico tratou alguma vez Mariah enquanto ela esteve em Greenhaven?
- Não.
- Tinha conhecimento de pormenores acerca do caso dela?
- Sabia o essencial.
- Não foi essa a minha pergunta, Sr. McManus - Joan franze o sobrolho. - Descobriu ao longo da sua metódica investigação que Mariah foi internada em Greenhaven involuntariamente pelo marido?
- Hum, não...
- Descobriu que ela não teve oportunidade para recorrer a outros tratamentos alternativos para a depressão antes de ser internada numa instituição?
- Não.
- Descobriu que devido ao facto de o marido andar com outras mulheres, Mariah White teve aquilo que coloquialmente designamos por esgotamento nervoso?
- Não - murmura o jornalista.
- Descobriu que essa foi a razão da sua tentativa de suicídio? Joan olha directamente para McManus. - Não descobriu os factos básicos, Sr. McManus. Não descobriu absolutamente nada. Então o que o faz pensar que é um jornalista de investigação assim tão bom?
- Objecção!
- Retiro o que disse - diz Joan, mas nessa altura já não se interessa.
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Quando se torna evidente que Mariah não consegue parar de chorar, o juiz sugere um intervalo de uma hora. Antes que os jornalistas sequer conseguissem sair dos seus lugares, Joan leva Mariah para fora da sala de audiências e condu-la à casa de banho. Assim que entram, Joan segura na porta para que ninguém interrompa.
- Mariah, o testemunho do Fletcher não foi assim tão prejudicial. Nem sequer o artigo no jornal. A sério. Quando apresentar o seu testemunho, já ninguém se vai lembrar - quando Mariah não responde, Joan de repente compreende. - Não se trata daquilo que ele disse - murmura ela. - É o próprio facto de ter dito. Foi assim que soube que ele ia opor-se a Metz ao apresentar o seu testemunho. Meu Deus, está apaixonada por ele.
- Não é assim tão simples...
- Quase nunca é!
Mariah manda-a embora com um gesto.
- Neste momento, acho que preciso de estar sozinha. A advogada olha-a com cautela
- Não sei se será uma boa ideia.
- Está com medo que eu tenha uma lâmina de barbear escondida na manga? - diz Mariah num tom amargo. - Os testemunhos da manhã estão a influenciá-la?
- Não quis dizer isso. Eu...
- Joan, não há problema. Por favor.
A advogada acena com a cabeça e sai da casa de banho. Mariah fica de pé em frente ao lavatório e olha para o espelho. Tem os olhos inchados e vermelhos; o nariz a pingar. Ao seu lado, no reflexo do dispensador de toalhas, há uma versão distorcida deste espelho, de forma que o seu rosto devastado se repete infinitamente.
Já devia saber. Talvez o que Metz tem estado a sugerir seja a verdade: que logo que tivermos experimentado a dor, ela fica a saber a nossa morada. Vem alimentar-se de nós a meio da noite, atacando de surpresa quando menos esperamos e neutralizando-nos antes que tenhamos oportunidade de lutar.
Ian deve ter-se rido dela, de ter encontrado um alvo tão fácil. Como podia ter acreditado que o interesse dele nela era algo mais do que um estratagema para se aproximar da Faith?
Aquelas noites extraordinárias com ele, aquelas palavras que lhe lançaram um feitiço e a transformaram numa pessoa que sempre quisera ser - para Ian, eram apenas palavras, apenas noites. Tudo no âmbito das suas responsabilidades.
com uma tremenda força de vontade obriga-se a olhar de novo para o espelho. Vai recompor-se e vai voltar para aquela sala de
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audiências. Vai dizer tudo aquilo que ela e Joan ensaiaram. Simplesmente tem de manter a custódia da filha.
Não lhe resta mais nada.
Quando sai da casa de banho, está à espera de uma multidão de jornalistas, ansiosos por vislumbrar algum sinal da sua perturbação numa área do tribunal onde as câmaras são proibidas. Mas a única pessoa que lá está é Ian.
- Mariah - começa ele a dizer, aproximando-se dela.
Passa por ele empurrando-o. O contacto do ombro dela com o braço dele quase a leva novamente às lágrimas.
- Nessa altura não sabia. Não sabia como eras. Mariah pára, vira-se e fixa os olhos no rosto dele.
- Já somos dois - diz ela.
Joan está prestes a entrar de novo na sala de audiências quando sente uma mão agarrar-lhe no ombro e puxá-la para o lado.
- Não diga nada - avisa Ian quando ela abre a boca imediatamente.
- Ah, é o James Bond. Se me tivesse dito que ia fazer-se passar por agente duplo, talvez tivéssemos sido capazes de evitar esta treta do McManus.
- As minhas desculpas. Joan cruza os braços.
- Não sou eu que estou lavada em lágrimas.
- Tentei fazê-la compreender que o artigo do Globe surgiu antes de nós... bem, antes. Mas ela não me dá ouvidos.
- Não posso censurá-la - olha para a sala de audiências, a começar a encher-se. - Olhe, mais tarde falo com a Mariah. Agora não posso ajudá-lo...
- Por acaso - interrompe Ian -, pode.
Joan e Metz aproximam-se do assento do juiz.
- Meritíssimo - diz ele -, já entrevistei todas as minhas testemunhas excepto o psiquiatra que mencionei na audiência de emergência desta manhã.
- Senhor Doutor Juiz - acrescenta Joan -, tal como mencionei hoje de manhã, não faço a mínima ideia do que é a Síndroma de Munchausen. Preciso de tempo para preparar a refutação da teoria ridícula do Dr. Metz acerca da minha cliente. Para além disso, é a segunda testemunha que o Dr. Metz apresenta sem mais nem menos; surpreendentemente, o nome de Allen McManus também não entrou na lista das testemunhas. - Olha para o outro advogado.
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- Se o Dr. Metz deseja colocar o seu psiquiatra no banco das testemunhas, eu desejo voltar a chamar Ian Fletcher.
- Nem pensar. O objectivo de nomear Allen McManus como testemunha foi ilustrar como Ian Fletcher estava a mentir enquanto o interrogava, meritíssimo. Fazê-lo ser novamente interrogado pela defesa apenas irá confundir a situação - diz Metz.
- Penso que serei capaz de manter as coisas claras na minha cabeça - diz o juiz secamente. Dirige-se à galeria. - Sr. Fletcher, importava-se de apresentar novamente o seu testemunho?
Ian sobe ao banco das testemunhas em silêncio. Joan observa-o cuidadosamente, esperando que isto tenha os resultados que Ian acha que terá. Na verdade não está a fazê-lo para aprofundar o caso. É como se fosse um presente para a sua cliente. E tal como Ian tinha feito notar acertadamente, visto que Mariah ainda não testemunhou, ajudá-la a recompor-se será sem dúvida benéfico para o caso.
Joan dirige-se a Mariah e aperta-lha o braço.
- Endireite-se e escute - sussurra, e depois aproxima-se do banco das testemunhas. - Sr. Fletcher, quando é que o senhor telefonou ao Sr. McManus?
- No início de Outubro.
- Porque é que lhe telefonou? - as perguntas dela são rápidas, tensas. Para os observadores, ela parece estar Zangada com Ian... e com razão.
- Queria refutar as alegações da Faith White. Isso significaria um grande êxito de audiências para o meu programa. Não conhecia a Faith, nem a mãe dela de lado nenhum - abre as mãos. - Já dei informações anónimas anteriormente. É melhor quando outras pessoas levantam a questão primeiro, e depois eu entro em acção para aprofundar o assunto e expor a fraude. McManus parecia ser um jornalista mais ou menos decente, e eu achei que ele talvez fosse capaz de ajudar.
- Parece muito dissimulado.
- Faz parte de se ser jornalista - diz Ian -, e o meu trabalho envolve isso de vez em quando. Por vezes recebo informações anónimas; outras vezes dou-as eu. Os jornalistas fazem-no uns pelos outros com frequência. - Olha para McManus. - Por vezes até somos aquelas fontes que os outros jornalistas se recusam a revelar. Não quis prejudicar a Sr.a White, porque nessa altura não estava a pensar nela. Estava apenas a pensar em desmascarar a filha, a qualquer custo.
- O que há agora de diferente? - pergunta Joan.
- Agora conheço-a - diz Ian suavemente.
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Joan olha para a sua cliente e depois para Ian, sustendo a respiração.
- Nada mais a acrescentar.
Metz já está de pé para fazer o contra-interrogatório.
- Não conseguiu encontrar nada? Nem um miserável grão de pó sobre a Faith White?
- Adiei as minhas buscas - responde Ian, de olhar de aço.
- Está a insinuar que as visões de Faith White são reais? Pensa na sua resposta com cuidado.
- Estou a insinuar que a Faith White é uma menina extraordinária, e acho que ela não está a mentir deliberadamente.
- Mas, Sr. Fletcher, disse repetidas vezes que é ateu. Isto significa que agora acredita em Deus?
Ian fica petrificado. Apercebe-se do que Metz lhe fez. Não pode cair novamente nas boas graças de Mariah a menos que fique completamente arruinado. Se admitir que Faith faz milagres, o advogado vai pressioná-lo para apresentar provas, e Ian não está disposto a divulgar informação sobre os momentos de alegria pessoal devido à breve lucidez do seu irmão gémeo. Olha para Mariah, que está a observá-lo, à espera da sua resposta.
"Desculpa", pensa ele.
- Sr. Fletcher? Acredita em Deus?
Ian ergue as sobrancelhas e enverga a máscara sedutora da sua personalidade televisiva.
- Ainda não foi tomada nenhuma decisão em relação a isso diz ele, para agradar aos espectadores, observando os seus rostos sorridentes, em vez daquele que é o mais importante.
Joan pede um curto intervalo. Mariah está extraordinariamente controlada, embora incrivelmente silenciosa, e por alguma razão isso assusta Joan ainda mais do que um simples ataque de mau génio.
- Posso tentar pedir um adiamento. Posso dizer ao juiz que não se sente bem.
- Quero apenas uma hora. Tenho de ver a Faith - explica ela.
- Estive aqui o dia todo.
Até àquele momento, Joan tinha-se esquecido do mandado para manter Mariah afastada de Faith assinado naquela manhã. Na confusão de testemunhos, ainda não teve oportunidade de falar nele a Mariah.
- Não pode.
- Mas se pedir ao juiz...
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- Não pode ir agora, e mais tarde também não. O juiz Rothbottam assinou um mandado para a manter afastada da Faith enquanto durar o julgamento.
Começa como uma lenta avalanche, a gradual desintegração da calma de Mariah.
- Porquê?
- Se ela melhorar enquanto estiver longe dela, o Metz vai utilizar isso como prova.
- Por eu não estar lá? Por me ter ido embora quando ela precisava mais de mim?
- Não, Mariah. Ele vai chamar um especialista a depor, que dirá que quando forem separadas através da força, a Mariah não pode provocar alucinações nem hemorragias na Faith.
Ela tapa a boca com a mão e vira-se de costas.
- O que pensam eles de mim?
Joan franze o sobrolho, não gostando do rumo que tomam os seus próprios pensamentos. Mariah tinha mantido em segredo o facto de Ian Fletcher ir testemunhar para Metz; que mais poderia ela estar a ocultar?
- Eles pensam - diz ela -, que eventualmente acabará por matá-la.
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Quinze
As crianças são a âncora que prende uma mãe à vida. Sófocles, Pedra
São precisos vários segundos para que as palavras de Joan sejam assimiladas.
- Está a brincar? - consigo por fim dizer. Na verdade é risível, só que todo este assunto me dá vontade de chorar. - Acham que vou matar a minha própria filha?
- O Malcolm Metz está a descrevê-la como uma mulher emocionalmente instável em crise. Supostamente tem um especialista qualquer que vai testemunhar sobre outras mães que fizeram o mesmo. Há um nome para isso: Síndroma de Munchausen por Procuração.
Em crise. Afinal, quanto devo aguentar? A minha filha está hospitalizada. O homem por quem me apaixonei tem estado a mentir-me. O homem que eu amava acha que sou capaz de matar a nossa filha.
- Não é verdade - digo com firmeza. - Não é capaz de fazer com que percebam isso?
- vou tentar. Mas o Metz pode dizer aquilo que quiser. Se lhe apetecer, pode construir um caso baseando-se na ideia de que anda a programar os comportamentos da Faith com bonecas de vudu. Se isso é ou não verdade, não interessa. O mais importante é que podemos levantar-nos quando ele acabar e fazer o juiz perceber a carrada de mentiras que ele esteve a dizer - suspira. - Olhe. Tem um ponto fraco. Esteve internada numa instituição mental. Se eu estivesse no lugar do Metz, provavelmente também estaria a fazer esse jogo.
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- Joan - digo tremulamente -, tenho de ver a minha filha. A pena nos olhos dela quase me faz perder o controlo.
- vou telefonar para o hospital para saber como é que ela está. Sei que ela está a tentar dar-me esperança, mas esta escorre-me
por entre os dedos como areia.
- Vamos levar a Faith para casa consigo.
Para seu bem, aceno com a cabeça e consigo esboçar um sorriso. Mas não digo o que verdadeiramente penso: que uma batalha pela custódia não significa absolutamente nada se a criança estiver morta.
Quando Joan volta a entrar na sala de audiências, sente-se como se tivesse acabado de escalar o Mount Washington. Não há nada como reduzir a nossa cliente a uma gelatina emocional antes de precisarmos que seja coerente no banco das testemunhas. Olha para Metz com todos aqueles pensamentos horríveis que estão dentro da sua cabeça, rezando por um breve momento de ligação psíquica. Ele está apoiado na balaustrada da galeria, a falar com uma fotocópia sua, mais pequena, mais esguia, que apenas poderia ser outro subordinado do seu escritório.
Vira-se quando o juiz entra e reúne .os advogados junto de si.
- Bem, Dr. Metz, se bem me lembro, combinámos reunir-nos mais ou menos por esta altura. Presumo que esteja preparado para convocar a sua testemunha especialista?
Antes que ele possa responder, Joan interrompe.
- Desculpe, meritíssimo, mas tenho de voltar a levantar uma objecção. A minha cliente foi informada agora mesmo de que não poderá ver a filha até ao fim do julgamento e, sinceramente, é um caso perdido. São três horas da tarde, e como não disponho do mesmo exército de recursos humanos de que o Dr. Metz dispõe na sua firma importante, ainda não tive oportunidade de investigar a Síndroma de Munchausen por Procuração. Não conheço este especialista, não sei quais são as suas credenciais, e certamente não sei nada sobre esta perturbação esotérica. Para bem da justiça, se vai permitir que o Dr. Metz chame a sua testemunha, acho que devo ter pelo menos o fim-de-semana para preparar o meu contra-interrogatório.
Metz acena com a cabeça.
- Concordo. Na realidade, recomendo que encerremos por hoje, se o meritíssimo estiver de acordo, para que a Dr.a Standish tenha o resto da tarde para iniciar a sua investigação.
- A sério? - diz Joan, surpreendida.
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O juiz Rothbottam franze a testa.
- Espere um segundo. O senhor estava demasiado entusiasmado para um volte-face. Qual é o problema, Dr. Metz?
- A minha testemunha aparentemente tentou várias vezes entrevistar a Faith White hoje, o que, como é óbvio, seria importante para o seu testemunho, mas ela não está em condições para falar com ele - sorri para Joan, conciliador. - Afinal parece que também vou precisar de um pouco mais de tempo.
- É pena - diz o juiz. - Lançou-se à água, vai ter de nadar. Como referiu, são três horas. Tenho uma grande fé em que conseguirá manter a sua testemunha a depor durante uma hora apenas a recitar as suas credenciais. Vamos prosseguir até onde for capaz, e retomamos os trabalhos na segunda-feira. O seu médico terá oportunidade de falar com a rapariga este fim-de-semana - vira-se para Joan. - E nessa altura, presumo que terá preparado o seu contra-interrogatório.
- Sim, Meritíssimo.
- Óptimo - olha para Metz. - Chame a sua testemunha.
O psicólogo especialista de Metz, o Dr. Celestine Birch15 parece-se com a árvore que partilha o nome com o seu apelido. Alto e escanzelado, pálido como a casca prateada, está sentado no banco das testemunhas hirto e com o ar de extrema confiança que acompanha o facto de sabermos que somos notáveis na nossa área.
- Que escola frequentou, doutor?
- Frequentei a Universidade de Harvard, e depois a Escola de Medicina de Yale. Fui médico residente no Centro Médico da UCLA e exerci a minha profissão durante dez anos no Mount Sinai em Nova Iorque antes de abrir o meu próprio consultório na Califórnia. Exerço lá a minha profissão há onze anos.
- Qual é a sua área principal de especialidade?
- Lido sobretudo com crianças. Metz acena com a cabeça.
- Doutor, está familiarizado com uma perturbação psiquiátrica designada por Perturbação Factícia por Procuração?
- Sim, na realidade sou considerado um dos três especialistas mais importantes do país relativamente a essa perturbação.
- Pode descrevê-la?
- com certeza - diz Birch. - Segundo o Manual de Estatística e Diagnóstico de Doenças Mentais da Associação Psiquiátrica
15 Birch significa bétula. (N. da T.)
383
Americana, a Perturbação Factícia por Procuração é uma perturbação rara em que uma pessoa provoca deliberadamente sintomas físicos ou psicológicos noutra pessoa que se encontra a seu cuidado o psiquiatra começa a entusiasmar-se. - Basicamente, envolve uma pessoa a fazer com que outra pareça ou se sinta doente. Muitas vezes é designado por Síndroma de Munchausen por Procuração ou SMP, devido ao barão de Munchausen, um mercenário do século XVIII que se tornou famoso por causa das suas histórias exageradas. As vítimas da Síndroma de Munchausen por Procuração são, na sua maioria crianças. Em grande parte dos casos, uma mãe provoca ou agrava os sintomas numa criança, e depois apresenta a criança para receber cuidados médicos, alegando não ter conhecimento da etiologia do problema. A teoria dos profissionais de saúde metal é que estas mulheres não desejam infligir dor na criança, mas assumem indirectamente o papel do doente, ganhando a simpatia dos médicos com quem se cruzam quando trazem a criança enferma.
- Uau - diz Metz. - Vamos prosseguir um pouco mais devagar. Está a dizer que a mãe faz o próprio filho ficar doente, só para chamar a atenção?
- Resumindo, é exactamente isso, Dr. Metz. E fazer uma criança ficar doente seria a forma mais simples de actuação. Algumas mães contaminam as amostras de urina com sangue, criam fugas num cateter intravenoso, ou sufocam recém-nascidos. A Síndroma de Munchausen por Procuração é considerada uma forma de abuso infantil, e a taxa de mortalidade é de nove por cento.
- Estas mães matam os filhos?
- Às vezes - diz o Dr. Birch. - A menos que as possam impedir.
- Quais são alguns dos sintomas provocados por estas mães?
- As hemorragias estão presentes em quarenta e quatro por cento dos casos de SMP. Depois há as convulsões, em quarenta e dois por cento. Seguidas pela depressão do sistema nervoso central, apneia e perturbações gastrointestinais. Para não falar nos sintomas psicológicos.
- Pode dizer-nos o que poderá dar origem a este comportamento numa mãe?
O médico mexe-se na cadeira.
- Lembre-se de que isto não vai acontecer a noventa e nove por cento das mães, não é como um vírus da gripe que possamos apanhar. Estas mulheres são perturbadas. É muitas vezes provocado por situação de stress da vida: conflitos matrimoniais, divórcio. As agressoras podem ter elas próprias antecedentes de sofrerem abusos, e muitas vezes estiveram em contacto com comunidades
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médicas. por isso conhecem os procedimentos e a linguagem. Precisam, não, anseiam, por apoio e atenção. Para elas, estar doente é uma forma de receber amor e cuidados.
- Disse que também podem ser provocados sintomas psicológicos numa criança? Pode explicar?
- Quando digo sintomas estou a referir-me a alucinações ou delírios; perda de memória ou amnésia; ou conversão de sintomas, como a pseudocegueira. É mais difícil de entender como é que uma mãe os pode "forjar" numa criança, mas basicamente envolve a mãe a reforçar em segredo comportamentos desadequados. Por exemplo, pode acarinhar a criança muitíssimo quando ela conta um sonho bastante real e ignorá-la ou fazer-lhe mal quando ela está a comportar-se de forma perfeitamente normal. Eventualmente, a criança aprenderá a dar à mãe o que ela quer, por assim dizer.
- Seria diferente se a criança vivesse apenas com um dos pais?
- Sem dúvida - diz Birch. - Na realidade, assim a aprovação parental torna-se muito mais integral.
- Portanto uma alegada visão é algo que pode ser reforçado pela SMP?
- Sim, embora seja mais provável encontrar delírios ou alucinações a serem reforçadas numa criança se a mãe tiver tido alguma experiência pessoal com delírios ou alucinações.
- Tal como uma mãe que tivesse passado algum tempo numa instituição mental?
O Dr. Birch acena com a cabeça.
- Adequa-se perfeitamente.
- Doutor, o que acontece se a mãe for confrontada com o seu comportamento?
- Bem, mentem e dizem que não estão a fazê-lo. Em casos raros, a mãe pode efectivamente não ter consciência do seu comportamento, por estar a prejudicar inconscientemente a criança durante uma dissociação que ocorre em resultado de um trauma anterior.
- Quer dizer que podíamos perguntar directamente a estas mulheres se estão a magoar os filhos, que elas diriam que não?
- Todas diriam que não - diz Birch. - Faz parte da sintomatologia desta perturbação.
- Por isso uma mulher que pareça chocada, confusa, até mesmo justamente zangada quando confrontada com este comportamento, uma mulher que não se lembre de ter magoado a filha, poderá ainda assim tê-lo feito?
- Exactamente.
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- Entendo - diz Metz devagar. - Como diagnostica a SMP, doutor?
O Dr. Birch suspira.
- com cautela, Dr. Metz, e não as vezes suficientes. Lembre-se de que quem apresenta os sintomas são as crianças, e elas não vão dizer-nos o que está a acontecer, porque é isso que lhes dá o amor das mães. Os pais são os principais informadores dos médicos, que presumem que a descrição da doença dos filhos que apresentam seja verdadeira. Mas muitos médicos não dão o salto mental para deixarem de tentar diagnosticar a criança e passarem a diagnosticar a mãe. Para além disso, estas mães não têm propriamente letras escarlates no peito. Negam ter feito mal às crianças e parecem ironicamente bastante cuidadosas para com elas. Uma maneira através da qual um profissional de saúde pode ficar alertado para a SMP é ver uma história clínica longa e complicada. Ou descrição de sintomas que são quase demasiado clássicos. Ou, no caso dos sintomas psicológicos, descobrir que administrar medicamentos não ajuda nada... visto que estas crianças não são verdadeiramente psicóticas - Birch recosta-se na cadeira. - Mas a única forma conclusiva de diagnosticar a SMP é apanhar a mãe em flagrante, com câmaras de vídeo instaladas nos quartos de hospital, ou retirar a criança dos cuidados da mãe. Supostamente, se se tratar da Síndroma de Munchausen por Procuração, a doença aguda irá entrar em remissão assim que a criança for afastada.
- Doutor, já viu a Faith White?
- Não, mas não foi por não ter tentado. Hoje tentei entrar no quarto dela no hospital por três vezes mas disseram-me que estava demasiado doente para poder falar comigo.
- Entrevistou Mariah White?
- Não, tive acesso a informações sobre o internamento dela numa instituição e sobre a sua presente saúde mental.
- Mariah White coincide com o perfil de doente de SMP?
- Sob muitos aspectos. Os comportamentos da filha dela ocorreram após um período de grande stress pessoal. A Sr.a White parece ser uma mãe atenta, a levar a filha para receber tratamento psiquiátrico, e reparem que não reagiu à terapia com medicamentos, e às urgências. E talvez o mais revelador, neste caso, seja escolher apresentar estigmas. As hemorragias são fáceis de induzir numa vítima, no entanto, a escolha de estigmas é genial. Tem de ser um sintoma descrito num manual, porque não existem casos registados. Que médico poderá afirmar que a criança não é estigmatizada, se nunca viu nenhuma na vida?
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- É tudo, doutor?
- Não. A Sr.a White também apresenta antecedentes de problemas de saúde mental. Devido a dificuldades matrimoniais, tentou suicidar-se e, de repente, uma centena de médicos e enfermeiras estava ali para a apoiar. De certa forma, ser amada e receber cuidados equivale, para ela, às atenções recebidas dos profissionais de saúde. O que poderia explicar a razão pela qual, quando ocorreu uma situação semelhante de dificuldades matrimoniais, começou a fazer a filha ficar doente. De cada vez que leva Faith para ser tratada, a própria Sr.a White, por procuração, obtém a atenção que recebeu há sete anos dos médicos e psiquiatras.
- Ela pode estar a magoar a filha sem o saber? - pergunta Metz. O médico encolhe os ombros.
- Sem a ter examinado, é difícil de dizer. Mas é possível. A Sr.a White já sofreu uma depressão grave anteriormente, e o choque de encontrar o marido envolvido noutro caso amoroso poderia bastar para provocar uma ruptura dissociativa. Em vez de voltar a enfrentar a dor, ela ausenta-se mentalmente. É durante estes episódios que se sente mais negligenciada e, portanto, é durante estes episódios que magoa a filha.
- O que acha que aconteceria se confrontasse a Sr.a White com este comportamento?
- Negá-lo-ia peremptoriamente. Ficaria muito perturbada por eu a ter acusado de algo tão odioso. Dir-me-ia que ama a filha e que só quer que ela seja saudável.
Metz detém-se em frente à mesa da defesa.
- Dr. Birch, como sabe, a Faith está no hospital. Se a mãe não pudesse ter contacto com ela durante um período de tempo, o que esperaria que acontecesse?
O psiquiatra suspira.
- Não ficaria nada surpreendido de ver a Faith White recuperar a saúde rapidamente.
3 de Dezembro de 1999 - Fim da Tarde
Após o tribunal ficar vazio, Joan e eu ficamos sentadas sozinhas.
- O que vai fazer agora? - pergunta-me ela.
- Não vou ao hospital, se é a isso que se refere.
- Não era. Apenas... bem, não sabia se tinha outros planos. Sorrio para ela.
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- Estava a pensar em ir para casa, tomar um banho quente e depois enfiar a cabeça no forno a gás.
- Não tem graça - toca-me no braço. - Quer que eu telefone ao Dr. Johansen? Tenho a certeza, dadas as circunstâncias, que ele podia arranjar maneira de a consultar, só para falar.
- Não. Obrigada.
- Então vamos beber qualquer coisa.
- Joan - digo eu -, agradeço-lhe por estar a fazer isto. Mas, neste momento, não me apetece ter companhia.
- Bem, vou ao hospital para ver como está a Faith. vou informar a sua mãe da decisão do tribunal e pedir-lhe que lhe telefone para casa.
Agradeço a Joan e digo-lhe que vou ficar sentada durante mais algum tempo, e depois ouço os calcanhares dela fazer ruído pelo longo corredor da sala de audiências. Apoiando a cabeça na mesa, fecho os olhos. Esforço-me muito por imaginar a Faith. Se conseguir, talvez ela fique a saber que estou aqui, a pensar nela.
Quando o contínuo entra com a máquina de polir o chão, vou-me embora, surpreendida por encontrar uma azáfama nos corredores e entrada do tribunal. A nossa audiência terminou, mas isso não significa que o dia tenha acabado para .toda a gente. Está uma mulher encostada à parede, a chorar, e um homem idoso com o braço por cima dos ombros dela. Três crianças pequenas andam à volta de uma fileira de cadeiras de plástico. Um adolescente está curvado como um ponto de interrogação por cima de um telefone público, a sussurrar furiosamente.
Embora não queira ver o Ian, é uma desilusão não o encontrar à minha espera.
Começou a nevar, a primeira neve do Inverno. Os flocos são espessos e grandes; derretem no pavimento como se eu os tivesse apenas imaginado. Estou tão absorta pela beleza do cenário que só reparo no Ian de pé ao lado do meu carro quando me encontro apenas a alguns metros de distância.
- Tenho de falar contigo - diz ele.
- Não, não tens.
Ele agarra-me no braço.
- Não vais falar comigo?
- Queres mesmo que fale contigo, Ian? Queres que te agradeça por teres telefonado àquele jornalista idiota do Globe e por o teres feito desenterrar Greenhaven, para que o Malcolm Metz pudesse distorcer o assunto e criar uma perturbação psicológica perversa que me faz mutilar a minha própria filha?
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- Se não lhe tivesse telefonado, o próprio Metz teria desenterrado esse assunto.
- Não te atrevas a arranjar desculpas - digo, numa voz grave. Entro no carro e tento fechar a porta, mas o Ian segura-a com
força.
- Acho que estou apaixonado por ti - diz ele.
- E porquê? Porque eu tive a sorte de dar à luz uma criança extraordinária que podes usar para aumentar as audiências do teu programa?
- O que queres que diga? Não te conhecia quando telefonei ao McManus. Depois, não quis contar-te porque achei que ias odiar-me por isso. E quanto ao que eu disse sobre a Faith, bem, caramba, tinha de ser vago. Achei que a última coisa que querias era que eu dissesse a toda a gente que acreditava que a Faith tinha capacidade de curar.
- De alguma forma, Ian, custa-me a acreditar que estavas a pensar na Faith enquanto estavas a apresentar o teu testemunho. Custa-me a acreditar que estavas a pensar noutra coisa para além da tua reputação televisiva.
Um músculo contrai-se ao longo do maxilar de Ian.
- Está bem, talvez estivesse. Mas também estava a pensar na Faith. E em ti. O que terei de fazer para te convencer? vou doar o dinheiro que o Metz me deu ao fundo para pagar a universidade da Faith... ou aos malditos Jesuítas. Direi o que quiseres em público. Cometi um erro, e estou arrependido. Porque é que não acreditas em mim?
Porque não, quero dizer. Por causa do que aconteceu à Faith. Ela acreditou, e repara aonde é que isso a levou.
- Mariah - suplica Ian, numa voz rouca -, quero ir contigo para casa.
com um tremendo puxão, consigo soltar a porta das suas mãos.
- Nem sempre podemos ter aquilo que queremos - digo eu. Nem mesmo tu podes.
Deixem-me explicar-vos a sensação de sabermos que estamos preparados para morrer.
Dormimos muito e, ao acordar, o primeiro pensamento que nos vem à cabeça é que desejamos voltar para a cama.
Passamos dias inteiros sem comer, porque a comida é um bem que nos mantém aqui.
Lemos a mesma página cem vezes.
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Rebobinamos como uma cassete de vídeo e vemos coisas que nos fazem chorar, coisas que nos fazem parar, mas nada que nos faça querer seguir em frente.
Esquecemo-nos de pentear o cabelo, de tomar duche, de nos vestirmos.
E, então, um dia, quando decidimos que temos energia suficiente para este derradeiro acto monumental, surge a paz. De repente, estamos a contar momentos, como não fazemos há meses. De repente, temos um segredo que nos faz sorrir, que faz as pessoas dizerem que estamos com óptimo aspecto, embora nos sintamos como uma concha - quebradiça e capaz de se partir em mil pedaços.
Estava ansiosa por morrer. Lembro-me de segurar na lâmina da barba na esperança de fazer um corte limpo e profundo. Lembro-me de calcular quanto tempo demoraria até ouvir as vozes dos anjos. Queria apenas ver-me livre de mim própria, deste corpo e desta pessoa que não tinha mais nada para além do sofrimento.
Resumindo, já estive nessa situação. Eu, melhor do que ninguém, devia perceber o que é querer desistir, quando a dor é demasiado grande. Mas em vez disso, vejo-me lutar furiosamente, recorrer a tudo para impedir que a Faith seja bem-sucedida onde eu uma vez falhei.
- A temperatura dela é de quarenta e um graus. Alguma coisa tem de ceder.
Como se as palavras do médico tivessem provocado isso, os membros de Faith ficam hirtos e ela começa a debater-se.
- Está a ter convulsões - grita o médico. Uma enfermeira afasta suavemente Millie da cama.
- Minha senhora, vou ter de me aproximar.
O médico segura num dos pulsos de Faith. A enfermeira segura no outro. O corpo de Faith continua a saltar e a levantar-se, com o ritmo sacudido de uma viagem num parque de diversões.
- Está a sangrar outra vez - murmura a enfermeira.
- Quero compressão e elevação - grita o médico, e a cama levita ao carregarem num botão enquanto as duas enfermeiras começam a comprimir as palmas das mãos de Faith.
De repente sons agudos ritmados quebram a azáfama e fazem Millie virar bruscamente a cabeça na direcção dos monitores por trás da cama de Faith.
- Paragem cardíaca. Tragam um carrinho! - o médico afasta-se para a parte lateral da cama e começa a fazer a reanimação cardio-respiratória manualmente.
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Passados minutos, o quarto está cheio de enfermeiras e médicos.
- Ressler, ponha-a a soro e entube-a. Massagens cardíacas, quinze por minuto - o médico verifica o ritmo da pulsação de Faith e continua a gritar ordens. - Wyatt, coloque um cateter central e solução glicosada o mais rápido possível, um litro. E Abby, quero que envie uma contagem completa de células sanguíneas, plaquetas e coagulação para o banco de sangue para verificar o grupo e testar a compatibilidade.
- Minha senhora, porque é que não me acompanha, para podermos ajudá-la? - a enfermeira puxa Millie para o corredor, onde ela permanece de rosto colado ao vidro da Unidade de Cuidados Intensivos de pediatria. Millie observa alguém rasgar a camisa de noite de hospital de Faith, e colocar as placas do desfibrilador no seu pequeno peito. Não se apercebe de que ergueu a mão para cobrir o seu próprio coração saudável.
Meia Hora. Mais Tarde
Joan está sentada ao lado de Millie, na sala de espera. Nunca gostou de hospitais; este não é diferente dos outros... mas há algo que não consegue identificar completamente e que parece ainda mais enervante do que o habitual. Sorri gentilmente para a mãe de Mariah, tentando encorajá-la.
- O médico - relata Millie, chorosa -, diz que ela tem um prognóstico excelente porque esteve menos de um minuto em paragem cardíaca. As vias respiratórias estão desobstruídas e o ritmo cardíaco tem-se mentido estável.
Joan olha para a rapariga, imóvel na cama de hospital.
- Não está com bom aspecto.
- Mas eles têm o coração dela sob controlo, e a febre baixou. A única coisa que não conseguem parar é a hemorragia - Millie respira fundo. - Então quanto tempo vai demorar a Mariah a chegar?
- Por acaso, é por isso que preciso de falar consigo. A Mariah não pode vir ao hospital.
- Aconteceu alguma coisa? Ela está bem?
- Está tudo bem. Está sob as ordens de um mandado que a impede de estar perto da Faith, graças ao juiz e ao Malcolm Metz. Eles acham que é ela que está a provocar os sintomas na Faith.
- Isso é... isso é ridículo! - profere Millie.
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- A senhora e eu sabemos isso, mas não podemos desrespeitar uma decisão do tribunal. Preciso que fique aqui com a Faith e que telefone para a Mariah para lhe dar notícias.
- Ela nem sequer pode telefonar? Joan abana a cabeça.
- Isto deve estar a atormentá-la - Millie massaja as têmporas, visivelmente dividida entre tomar conta da neta e ir ter com a sua própria filha para lhe dar apoio emocional.
Joan olha para o fundo do corredor. De repente apercebe-se: o mais estranho nesta Unidade de Cuidados Intensivos de pediatria é que a Faith é a única paciente. À excepção dos médicos e das enfermeiras que foram chamados para tratar dela, não está ali ninguém.
- Quando telefonar...
- Não vou fazer com que pareça assim tão mau - diz Millie. Não sou tola.
Colin entra no quarto obscurecido da Unidade de Cuidados Intensivos e fica aos pés da cama da filha.
Faith tem os braços abertos, lassamente atados à estrutura da cama para impedir que as feridas das palmas das mãos voltem a abrir. Os pés estão seguros pelo cobertor. Os olhos dele caem sobre os fios presos ao peito dela com fita adesiva, o tubo na garganta, os pensos de gaze das palmas das mãos.
Não sabe em que há-de acreditar. Ouve os médicos quando estes falam consigo. Ouviu aquele psiquiatra, o Birch. E ouve a Mariah jurar que nunca seria capaz de magoar a Faith. Colin senta-se suavemente na cama ao lado da de Faith.
- "Dorme sossegada pequenina. O papá vai comprar-te um passarinho" - encosta a face molhada à de Faith e ouve o ruído ritmado do monitor ligado ao peito dela. - "Se esse passarinho não cantar, um anel de diamantes o papá vai comprar."
Os médicos disseram-lhe que o coração da Faith cedeu. Que devido a toda aquela pressão que os outros sistemas do corpo que entraram em colapso colocaram nele, simplesmente parou.
Ele sabe como isso é. Desistiria do caso para atribuir a custódia naquele momento se isso significasse que a Faith ia sair daquele hospital tão saudável como qualquer criança de sete anos.
Debruça-se e abraça-a desajeitadamente.
- Abraça-me também - sussurra ele, e depois mais insistente: Vá lá - só um pequeno movimento e ele ficaria satisfeito. Abana-a
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ligeiramente, impelindo-a a recuperar a consciência, mas então uma enfermeira aproxima-se dele e afasta-o da cama.
- O senhor tem de a deixar descansar, Sr. White.
- Quero que ela me abrace. Só quero que ela faça isso.
- Ela não é capaz - diz a enfermeira. - Tem as mãos atadas e enquanto Colin ainda anda com essa frase às voltas na sua cabeça, ela acompanha-o para fora do quarto.
- Estás a contar-me tudo? - pergunto, agarrando o telefone portátil com tanta força que devo deixar lá as marcas das unhas.
- Achas que ia mentir-te? - responde a minha mãe. - Ela está lá dentro a dormir.
- Então não melhorou, mas também não piorou - com a estabilidade consigo lidar. É o facto de ter de ficar sentada sem fazer nada enquanto a Faith se encontra em dificuldades que me deixa desesperada.
- A Kenzie van der Hoven está aqui - diz a minha mãe. - Já está no hospital há uma hora.
- Aquele psiquiatra idiota apareceu aí?
- O que esteve sempre a aparecer durante todo o dia? Não. Ela hesita; consigo perceber pela sua voz.
- O que foi, mãe?
- Nada.
- Alguma coisa é - insisto. - O que é?
- Não é nada. Foi só o Colin que apareceu aqui também.
- Oh - respondo, numa voz muito fraca. - A Faith acordou?
- Não. Nem sequer se apercebeu de que ele esteve aqui. Tenho a certeza de que a minha mãe me diz isto para que
eu me sinta melhor, mas não me sinto. Desligo o telefone, apercebendo-me momentos mais tarde de que não cheguei a despedir-me.
Ian tem estado a percorrer as ruas de New Canaan ao longo das últimas três horas. A cidade é muito pequena e escura, e todas as lojas estão fechadas, à excepção do Donut King, e não pode voltar a entrar lá dentro sem parecer um idiota. O problema é que não há outro sítio para onde ir.
Senta-se no passeio. Não quer voltar para a caravana e enfrentar as pessoas que trabalham para ele, pessoas que de certeza ficaram confusas com o seu testemunho de hoje. Não quer chegar perto do hospital, onde de certeza seria abordado pela imprensa.
Quer estar com Mariah, mas ela não o deixa.
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Ian não sabe exactamente quando deixou de pensar que Mariah era uma espécie de "Mommie Dearest"16, fazendo a filha ficar exposta a este tipo de atenção, para pensar que Mariah era a vítima no meio deste caos. O mais provável era isso ter acontecido em Kansas City. Tinha feito um trabalho tão meticuloso, fingindo desejar ajudar Mariah que a dada altura isso transformou-se num sentimento sincero.
Mas, talvez não fosse Mariah que necessitasse de ajuda. Talvez fosse o próprio Ian.
Nunca se interrogou realmente por que razão é ateu, mas a resposta está lá para quem a quiser ouvir. Atingido pelo destino enquanto criança, não conseguia compreender o conceito de um Deus cheio de amor. Depois de lhe terem sido retiradas todas as pessoas que lhe eram próximas, não era capaz de compreender o conceito de amor, ponto final, por isso reinventou-se a si próprio, transformando-se numa pessoa que não precisava de o fazer. E, como o Feiticeiro de Oz, aprendeu que se nos escondermos atrás de uma cortina de bazófia e princípios o tempo suficiente, as pessoas deixam de tentar descobrir quem somos realmente.
Talvez uma pessoa seja mais do que um corpo e uma mente. Talvez haja outra coisa que entre na mistura - não propriamente uma alma, mas um espírito que sugira que um dia possamos ser maiores, mais fortes do que agora somos. Uma promessa; um potencial.
Mariah soçobrou e voltou a recompor-se. Pode vergar com o vento, mas fica no seu lugar, com as cicatrizes e tudo. E, ao contrário de Ian, levantou-se para enfrentar o mesmo relâmpago que a tinha anteriormente derrubado, disposta a arriscar mais uma vez. Para todos os efeitos, também ela devia afastar-se do amor. Mas não o faz - e ninguém sabe isso melhor do que o próprio Ian.
Mariah pode ter tentado o suicídio uma vez; pode ser a sua credibilidade e a sua saúde mental que está a ser debatida em tribunal; mas aos olhos de Ian ela é uma das pessoas mais fortes que já conheceu.
Ian levanta-se, sacode o rabo, e começa a descer a rua.
A última pessoa que espero encontrar ao abrir a porta é o Colin.
- Posso...? - faz um gesto indicando a entrada. Aceno com a
cabeça e afasto-me, para que ele possa entrar na casa que já foi sua.
16 Alusão ao livro de Christina Crawford, com o mesmo título, onde a autora conta o seu passado de abusos às mãos da sua mãe alcoólica, Joan Crawford. (N. da T.)
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Fecho a porta atrás dele e levo a mão à garganta para impedir que todas as coisas horríveis que quero dizer me venham aos lábios.
- Não devias estar aqui. Nenhum dos nossos advogados ia permitir.
- Estou-me nas tintas para o que o Metz acha neste momento
- Colin dirige-se para as escadas e senta-se, escondendo o rosto nas mãos. - Acabei de ver a Faith.
- Eu sei. A minha mãe disse-me que estiveste lá. Colin olha para cima.
- Ela está... Meu Deus, Rye. Ela está tão, tão doente.
Após o choque inicial do medo que me percorre o corpo, obrigo-me a recuperar a calma. Afinal, o Colin não esteve presente da primeira vez que as mãos dela sangraram. Não saberia o que esperar.
- Dizem que o coração dela vai recuperar...
- O coração dela? - digo, num tom seco como cinzas. - O que tem o coração dela?
Colin parece verdadeiramente surpreendido que eu não saiba.
- Parou. Esta tarde.
- Parou? Ela teve uma paragem cardíaca e ninguém me disse nada? vou para lá.
Colin põe-se de pé num único movimento ágil, agarrando-me no braço.
- Não podes. Não podes, e tenho tanta pena que seja assim. Fico a olhar para a mão dele no meu braço, a pele dele na
minha, e de repente ele agarra-me e eu choro encostada ao seu peito.
- Colin, conta-me.
- Ela foi entubada, para ajudar a respiração. E usaram um desfibrilador, tu sabes, aquelas coisas, para voltar a estabilizar o ritmo cardíaco. As mãos dela voltaram a sangrar depois de ter tido convulsões - ouço as lágrimas na garganta dele, e acaricio-lhe as costas. - Fomos nós que lhe fizemos isto?
Olho para ele, interrogando-me se me estará a acusar. Mas parece estar demasiado perturbado para o fazer; acho que está apenas verdadeiramente abalado.
- Não sei.
De repente, lembro-me da noite em que a Faith nasceu. Foi apenas um mês após ter saído de Greenhaven e, como ainda estava amortecida pelos medicamentos que me deram, muito pouco me parecia real. Nem o Colin, nem a minha casa, nem a minha vida. Só quando a dor de uma contracção me cortou ao meio é que me apercebi de que tinha voltado.
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Lembro-me das luzes que foram colocadas aos pés da cama na sala de partos, como se se tratasse de uma produção de Hollywood. Lembro-me da máscara de plástico que a médica usava, e do cheiro do látex quando ela calçou as luvas. Lembro-me do som da cabeça do Colin a bater na esquina da mesa-de-cabeceira ao desmaiar, e do reboliço que se gerou à sua volta enquanto eu abria as mãos por cima da barriga e esperava pela minha vez. Lembro-me de pensar no meu coração, mesmo junto aos pés do bebé, como uma bola por cima do focinho de uma foca treinada. E depois foi o impulso notável que ocorreu quando me apercebi de que a única forma de acabar com a dor era tirá-la de dentro de mim, fazendo força, fazendo força até ter a certeza de que ficaria virada do avesso, mesmo ao sentir a cabeça dela alargar-me e alterar-me e o pequeno alto do seu nariz, queixo e ombros deslizarem sucessivamente, jorrando por entre as minhas pernas numa súbita golfada de ar, sangue e beleza.
Mas do que me lembro melhor é da enfermeira que segurou na Faith antes de o cordão umbilical ter sido cortado.
- Que linda filha! - aproximou-a de mim, para que eu pudesse ver o seu rosto inchado, as pernas a mexer. E a bebé, por mero acaso, deu um pontapé no cordão umbilical. Senti bem fundo dentro de mim, um estranho puxão e um tremor que se prolongou até à barriga da minha filha, de maneira que os olhos da Faith também se abriram num sobressalto. E pensei pela primeira vez: "Estamos ligadas."
O Colin esconde um soluço junto do meu pescoço.
- Está tudo bem - digo eu, embora não esteja, nem por sombras. Viro-me nos braços dele e apercebo-me de que estou satisfeita por ele estar aqui; estou satisfeita por podermos fazer isto um pelo outro. - Chiu - tranquilizo-o, da mesma maneira que podia ter tranquilizado a Faith se estivesse ao lado dela.
4 de Dezembro de 1999
No sábado logo de manhã, Joan toma uma chávena de café sem leite no Donut King e compra tortas de geleia suficientes para a manterem alimentada durante um dia longo, e depois caminha durante vinte metros até chegar ao seu escritório de advocacia. Enfia a chave na porta de entrada e vê que esta já está destrancada. Pensando em vândalos, ladrões e também em Malcolm Metz, empurra a porta, abrindo-a.
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Ian Fletcher está debruçado por cima do computador na sua secretária. Olha por cima do ombro.
- Até que enfim. Imprimi tudo aquilo que consegui encontrar na Internet sobre a Síndroma de Munchausen por Procuração. Acho que o melhor será realçar a especificidade da perturbação. O ano passado registaram-se apenas duzentos casos a nível nacional. Quais são as hipóteses de a Mariah ser um deles? Para além disso, ela não apresenta os antecedentes típicos. Não sofreu abusos quando era criança, e se a Millie testemunhar...
- Espere. O que está aqui a fazer? Ian encolhe os ombros.
- O que lhe parece que estou a fazer? Sou o seu assistente legal.
- Nem pensar! A Mariah já não o quer ter por perto, muito menos a ajudar no caso. Tanto quanto sei, até pode estar a desempenhar o papel de agente duplo outra vez, a tentar aniquilar-nos antes mesmo de conseguirmos apresentar o nosso lado da história.
- Por favor - diz Ian num tom sério. - É isto que eu faço para ganhar a vida. Investigo coisas. Apresento provas em contrário. Se a Mariah não me deixar ajudá-la a ela, pelo menos deixe-me ajudá-la a si.
Realisticamente, Joan tem poucas hipóteses de descobrir o suficiente para contrariar o Dr. Birch - isto é, se estiver a trabalhar sozinha. Não tem o tempo nem os recursos de que Metz dispõe no seu escritório de advocacia topo de gama; para além disso, nem sequer sabe por onde começar.
Sentindo que ela está a enfraquecer, Ian estende-lhe uma resma de papéis.
- Precisa de uma defesa contra a Síndroma de Munchausen por Procuração. Por isso tenho estado a conversar online com um médico da UCLA que é especialista em doenças psicossomáticas que surgem nas crianças após um divórcio - ergue uma sobrancelha. O Dr. Fitzgerald diz que já ocorreram casos de hemorragia baseada em causas psicológicas.
Joan entrega-lhe a caixa com as tortas de geleia.
- Está contratado - diz ela.
Quando a minha mãe telefona logo de manhã, dou-lhe um sermão. Grito com ela durante tanto tempo e tão alto por me ter mentido sobre o estado de saúde da Faith que a faço chorar. Ela desliga o telefone, e sinto-me logo terrivelmente mal; nem sequer posso telefonar-lhe para pedir desculpa.
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O Colin ficou até às quatro da manhã. Passou-me pela cabeça que a sua nova esposa provavelmente estivesse a tentar localizá-lo. Por outro lado, talvez não estivesse. Talvez fosse por isso que ela era a sua nova esposa.
Antes de ir embora, deu-me um beijo de despedida. Não com paixão, mas com um pedido de desculpas que deslizou por entre os meus lábios como alcaçuz, com um gosto igualmente amargo.
A casa está silenciosa. Estou sentada no quarto da Faith, a olhar para a casa de bonecas dela e para o estojo de desenho, e para as suas Barbies, a tentar arranjar coragem para lhes tocar. Estou sentada tão hirta que me doem os maxilares, de mantê-los cerrados.
Devia estar com ela agora, como a minha mãe costumava ficar comigo quando estava doente, levando-me a caneca de sumo aos lábios, esfregando Vicks VapoRub no meu peito em círculos, ali sentada quando eu acordava, como se não tivesse mexido um músculo durante toda a noite.
É o que as mães fazem. Fazem vigílias; colocam os filhos em primeiro lugar. É precisamente o que não tenho feito.
O meu primeiro gesto de maternidade foi culpar a minha filha recém-nascida pela infidelidade do pai. O meu segundo gesto de maternidade foi engolir uma variedade de comprimidos coloridos como um arco-íris, embora os médicos não soubessem que consequências isso teria para o feto. Disseram-me que era mais importante curar a minha depressão do que preocupar-me com os riscos para o bebé. E eu - idiota - acreditei.
Passei meses a esperar que a Faith nascesse saudável, para me livrar desse peso. Então, quando isso aconteceu, fiquei à espera que o pior acontecesse. Mas agora vejo que isso foi uma perda de tempo. A maternidade não é um teste mas sim uma religião: uma aliança que se faz, uma promessa a cumprir. Vem em tamanho único, e esconde as falhas como nenhuma outra coisa. Como é possível que tenha sido necessário isso para que eu me apercebesse de que a Faith é a única coisa na minha vida em que acertei à primeira?
Olho para as minhas mãos. Sem me aperceber, tinha entrado na casa de banho, agarrado na lâmina de barbear que utilizo para rapar os pêlos das pernas e estava agora a segurar no fio letal da lâmina.
com cuidado, deito-a para o caixote do lixo.
- O que quer dizer com não podemos falar com ela? - grita Malcolm Metz. - Faz ideia do que tivemos de fazer para chegar aqui acima? A entrada está um maldito caos.
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Uma enfermeira vira-se para o Dr. Blumberg.
- O que se passa?
- Um grupo de doentes com SIDA. As contagens de glóbulos brancos deles de repente atingiram valores normais.
- A sério? - diz a enfermeira.
- Não me interessa que os corpos que estavam na morgue estejam agora a almoçar na cantina - rosna Metz. - Quero que o Dr. Birch tenha permissão para falar com a Faith White.
- Oh, ele tem a minha permissão - diz o Dr. Blumberg. - Mas não esteja à espera que ele vá muito longe.
Ao ouvir o som de vozes elevarem-se, Kenzie sai do quarto de Faith. Tem estado a ler para ela durante as últimas três horas, embora a Faith esteja inconsciente.
- O que se passa?
- Esta é a quinta vez que o Dr. Birch tentou entrevistar a Faith
- diz Metz. - O meu caso ficará gravemente comprometido se não entrarmos no tribunal na segunda-feira com esta informação.
- Lamento mas a Faith não poderá ajudá-los - diz Kenzie, tensa. - Está em estado comatoso.
Ao ouvir isto, Metz parece ficar surpreendido.
- Está? Achei que a Standish estava a exagerar para conquistar simpatia. Meu Deus, lamento - volta-se para Birch. - Talvez pudesse falar com os médicos dela.
- Tenho muito gosto em falar consigo - diz o Dr. Blumberg. Mas antes que ele e o Dr. Birch possam ir, Millie de repente
vacila. Malcolm Metz agarra-a antes de cair ao chão.
- Millie? - pergunta Kenzie. - Há quanto tempo não descansa?
- Não sei. Acho que há já bastante tempo.
- Vá deitar-se. Aqui há suficientes camas vazias. Não deixo que nada aconteça à Faith.
- Eu sei. Só não quero perder o momento em que ela recuperar a consciência.
- Tenha calma - responde Kenzie, mas não diz o que pensa: que a Faith pode nunca vir a acordar.
Nessa noite, sonho que estou a falar com o Deus da Faith.
É sem dúvida uma mulher. Vem sentar-se aos pés da minha cama, e fico a olhar para os contornos brilhantes dos Seus cabelos, no fulgor entre os Seus dedos, como uma criança envolvendo uma lanterna com a mão. A boca Dela está virada para baixo nos cantos, como se também Ela sentisse falta da Faith.
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Uma paz instala-se por cima da cama como mais um cobertor, mas eu sinto-me agitada e a suar.
- Você - digo, com a raiva a abrir caminho pelo meu peito acima.
- Ela não está em sofrimento.
- Acha que isso faz com que tudo fique bem? - grito.
- Acredita no que estou afazer.
Não consigo confiar em mim própria para responder a isso de imediato. Penso em Ian, naquilo que disse sobre Deus.
- Como posso acreditar em Si - sussurro - depois de ter feito isto a uma menina?
- Não estou afazê-lo a ela; estou afazê-lo por ela.
- A semântica não tem grande importância quando se está prestes a morrer.
Durante algum tempo, Deus limita-se a ficar sentado na beira da minha cama, alisando os cobertores com a mão, deixando para trás uma patina prateada, como o brilho dourado de grandes eras passadas.
- Alguma vez pensaste - diz Ela suavemente, por fim -, que eu sei como é perder um filho?
5 de Dezembro de 1999 - 02h
A Faith entra em paragem cardíaca de novo uma hora depois. Desta vez, Kenzie fica do lado de fora das janelas de vidro com Millíe, observando os médicos esforçarem-se por estabilizar a menina. Após vários minutos de confusão e intervenções brutais no corpo de Faith, o Dr. Blumberg aproxima-se delas. Tem conhecimento da decisão do tribunal, e discorda dela. Convida Millie a afastar-se para que possam falar em privado, mas ela não aceita a sugestão e diz-lhe para falar em frente a Kenzie.
- Ela está a aguentar-se, mas o coração ficou parado durante algum tempo, e ela deixou de receber oxigénio. Só sabemos se existem lesões cerebrais quando ela acordar.
- O que... - Kenzie tenta fazer uma pergunta, mas esta fica alojada na boca do estômago.
- Não posso dizer ao certo. As crianças são capazes de aguentar muito mais do que os adultos. Mas no caso da Faith, acontecem coisas que não seguem a lógica - o médico hesita. - Não há causa clínica aparente para as perturbações cardíacas da Faith, mas o corpo dela está a entrar em ruptura. Está em estado comatoso.
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Estamos a mantê-la viva através de máquinas. E não sei quanto tempo isso vai durar.
Millie tenta controlar a voz.
- Está a dizer-me... Blumberg inclina a cabeça.
- Estou a dizer-lhe que os amigos e a família deviam pensar em despedir-se - diz ele suavemente. Depois vira-se para Kenzie. E estou a dizer-lhe para pensar se um pedaço de papel assinado por um juiz será tão importante quanto isso.
Enquanto se afasta, Kenzie dá por si imóvel no sítio onde está. É domingo de manhã. Faltam apenas vinte e quatro horas para voltarem todos à sala de audiências. Se isso for sequer necessário.
Ao ouvir o som de um soluço abafado, volta-se. O rosto de Millie é estóico; mesmo agora, ela está a tentar manter-se forte.
Kenzie abraça-a. Ambas sabem o que tem de ser feito.
- Não telefone ao Colin - diz Millie bruscamente. - Ele é que está a manter a Mariah afastada. Não merece estar aqui.
Observa a mulher mais velha agarrar-se à sua raiva como se fosse uma corda de salvamento.
- Millie - diz ela num tom suave -, volto já. - Depois Kenzie percorre o corredor até chegar ao telefone público mais próximo. Metendo a mão no bolso, tira um pedaço de papel e marca o número de telefone que lá está escrito.
O telefone toca a meio da noite.
- Mariah - diz Kenzie van der Hoven -, quero que ouça com atenção.
Agora, passados quase vinte minutos, sinto-me idiota a entrar no hospital com os óculos de leitura da minha mãe e uma velha peruca que a Faith costumava usar para se mascarar. Comporto-me como se soubesse para onde vou e, fiel à sua palavra, Kenzie está à espera junto aos elevadores. Assim que as portas do elevador se fecham atrás de mim, abraço Kenzie em sinal de gratidão. Ela disse-me, ao telefone, que a Faith não estava a melhorar. Que o coração dela tinha voltado a parar. Que ela podia até morrer.
- Nesta altura, não quero saber do juiz - disse Kenzie. - Devia estar aqui.
Não referiu o óbvio - que manter-me afastada da Faith aparentemente não tinha surtido nenhum efeito positivo, que, na verdade, desde que estou afastada dela, o estado dela tem-se agravado mais rapidamente.
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Percorro os corredores do hospital silenciosamente atrás de Kenzie, aterrorizada por a qualquer momento alguém poder saltar e apontar-me um dedo, identificar-me, levar-me para a prisão. Em vez disso, concentro-me em manter um núcleo de calma, como uma pequena noz dura no meu peito, para que ao ver a Faith - por muito mau que seja - não perca o controlo.
No elevador apercebo-me de que há algo de estranho. Parece não haver ninguém neste hospital. Mesmo às duas da manhã, devia haver médicos de olhos vermelhos, familiares cansados, mulheres a terem bebés. Como se Kenzie conseguisse ler-me os pensamentos, vira-se para mim.
- Há quem diga que a Faith curou alguns pacientes - explica com simplicidade. - Só por estar aqui.
Apenas por um momento, interrogo-me se isso será verdade. Depois penso: a que custo? Após ter feito a minha mãe voltar à vida, as forças da Faith tinham-se esvaído. Quantos pacientes tinham entrado em contacto com ela ao longo dos últimos dois dias? E de repente percebo por que razão a Faith está muito mais doente desta vez.
Curar os outros está a matá-la.
Mesmo antes de as portas do elevador se abrirem, digo o que tem estado às voltas na minha cabeça desde que Kenzie me telefonou.
- Tem de telefonar ao Colin.
-Já telefonei. Ele disse-me para lhe telefonar a si.
- Mas...
- Ele também não se ralou com a decisão do tribunal. Disse que a Mariah também devia estar aqui.
Chegamos ao piso da Unidade de Cuidados Intensivos de pediatria. Sigo Kenzie até ao quarto da Faith - mudaram-na desde que eu a vi pela última vez. Junto à janela de vidro, fico surpreendida ao ver como parece tão velha de repente. A Faith... bem, não a teria reconhecido. Cheia de tubos e pensos e fios, parece tão pequena na cama estreita.
Uma enfermeira move-se como uma sombra quando entro. A minha mãe levanta-se, abraça-me. Sem falar, sento-me no lugar que ela deixou vago.
Neste momento, compreendo aquelas mães que conseguem levantar automóveis para tirar os filhos que estão presos lá por baixo, mulheres que se atravessam heroicamente à frente de balas. Daria tudo para ser o corpo que está deitado tão imóvel. Daria tudo para ficar no lugar dela.
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Debruço-me, e as minhas palavras caem-lhe sobre o rosto.
- Nunca te pedi desculpa - sussurro. - Durante muito tempo estive tão ocupada comigo própria que não tinha tempo para ti. Mas sabia que tu ias estar à minha espera, quando estivesse pronta toco-lhe na face com a mão. - Agora é a tua vez. Leva o tempo que quiseres. Quando olhares por cima do ombro, daqui a alguns dias, a alguns meses, bem, não vou a lado nenhum sem ti. - Fecho os olhos, a ouvir o breve zunido ocasional das máquinas ligadas à Faith. Um dos equipamentos ganha ritmo, fazendo um ruído rápido e regular. A enfermeira olha para cima, franze a testa.
- Passa-se alguma coisa - diz ela, ao ler o papel do electrocardiograma. - É melhor chamar o Dr. Blumberg.
Mal tinha saído do quarto quando os olhos da Faith se abrem de repente. Primeiro focam-se em Kenzie, depois na minha mãe, e por fim vêm pousar em mim. A Faith abre e fecha a boca, a tentar falar.
O médico entra apressadamente no quarto, tirando o estetoscópio do pescoço. Verifica os sinais vitais da Faith, murmurando-lhe baixinho enquanto move as mãos sobre o corpo dela.
- Não fales ainda, miúda - acena para uma enfermeira, e ela segura nos ombros da Faith, enquanto ele extrai o tubo endotraqueal. A Faith tosse e agoniza-se e, então, a sua voz regressa, áspera como lixa.
- Mamã - diz ela com voz rouca, sorrindo, com as mãos ligadas a erguerem-se para me envolver o rosto.
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DEZASSEIS
Era tão solitário que o próprio Deus Quase não parecia lá estar.
Samuel Taylor Coleridge, "A Rima do Velho Marinheiro"
6 de Dezembro de 1999
Por estar um frio cortante, a neve não se pega ao pavimento. Rodopia debaixo da carroçaria do carro de Mariah, cai por cima do seu caminho antes de se afastar dos pneus.
Mariah mantém os olhos fixos na estrada. Concentra-se no local para onde se dirige, no momento de lá chegar.
- Dr. Birch - diz Malcolm Metz -, entrevistou a Faith White este fim-de-semana?
- Dirigi-me ao hospital, e cheguei a vê-la, mas não falámos.
- Porquê, doutor?
- Ela não era capaz de manter uma conversa. Estava em estado comatoso.
- Conseguiu falar com alguém associado ao caso dela?
- Sim. Passei algum tempo com um médico responsável pelos cuidados médicos da Faith, que fez um resumo dos sintomas e dos resultados dos exames dela.
- Pode dizer-nos o que ficou a saber?
- Ela foi internada para observação devido a hemorragias inexplicáveis nas mãos. Assim que foi hospitalizada, desenvolveu uma febre alta, acompanhada de convulsões febris, falha do sistema renal e entrou em paragem cardíaca. Isto não foi provocado por problemas pulmonares, e também não parece ser um enfarte do miocárdio,
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miocardite, ou cardiomiopatia. Resumindo, os médicos estão a tratar os sintomas sem saberem necessariamente qual é a causa.
- Algum desses sintomas pode ser causado pela mãe?
- Suponho que sim, nas circunstâncias certas - diz Birch. - É claro que, neste caso, visto que a Sr.a White não tem estado junto da filha desde sexta-feira, devo dizer que as hemorragias e a febre são os sintomas que é mais provável que tenham sido provocados pela sua própria mão. Teria de deixar as conclusões finais para depois de entrevistar a Faith.
Metz faz uma pausa junto à barra das testemunhas.
- Na sua opinião de especialista, Dr. Birch, como resumiria o caso da Faith White?
- Mais uma vez, isto é hipotético, sem ter oportunidade para conversar com a própria criança. Mas se a entrevista corroborar os meus palpites, devo dizer que ela é vítima da Síndroma de Munchausen por Procuração. A criança está obviamente a entrar em ruptura, e precisa de uma separação imediata e a longo prazo da mãe para assegurar a sua saúde mental e física. O pai é a alternativa óbvia, será capaz de proporcionar um ambiente de apoio e carinho mentalmente saudável para a rapariga. É claro, tudo isto está dependente de os médicos conseguirem remediar o mal que já foi feito. Mas se a Faith for uma vítima de SMP, se sair do estado de coma e for separada da mãe e receber uma psicoterapia construtiva, acho que o prognóstico dela será excelente.
- Obrigado, doutor - Metz olha para Joan. - A testemunha é sua. Joan apoia as mãos na mesa da defesa. Veste o seu fato cor-de-
-rosa demolidor, como gosta de lhe chamar, e sente-se confiante.
- Dr. Birch, está aqui a pedido do Dr. Metz?
- Sim.
- Ele pagou-lhe para estar aqui?
- Objecção - diz Metz. - Foi perguntado e respondido.
- Retiro a pergunta. Há quantos anos exerce a sua profissão?
- Há vinte e três.
- Nesses vinte e três anos, quantos pacientes tratou?
- Oh... quinhentos? Seiscentos? Joan acena com a cabeça.
- Estou a ver. Desses quinhentos ou seiscentos pacientes, em quantos diagnosticou pessoalmente a Síndroma de Munchausen por Procuração?
- Em sessenta e oito.
- Em cada um desses sessenta e oito casos, fez uma entrevista psiquiátrica à mãe?
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- Sim.
- Em cada um desses sessenta e oito casos, fez uma entrevista psiquiátrica à criança?
-Sim.
- Fez alguma entrevista psiquiátrica a Mariah White? -Não.
- Fez alguma entrevista psiquiátrica à Faith White?
- Não. Ela está em coma, por amor de Deus.
- Então, neste caso, para fazer o diagnóstico desta doença incrivelmente rara, baseia-se em artigos de jornais que leu, em relatórios médicos e em registos de há sete anos de uma instituição psiquiátrica... oh, e em boatos?
- Não...
- Não pode diagnosticar verdadeiramente esta doença sem entrevistar a Faith e a Mariah, pois não?
As faces do psiquiatra destacam-se, ruborizando.
- Posso fazer um diagnóstico contingente. Apenas saltei um passo. Joan arqueia uma sobrancelha.
- Estou a ver. Então o doutor... fez um diagnóstico contingente da Síndroma de Munchausen por Procuração a Mariah White. Haverá outros diagnósticos que se enquadrem neste caso?
- Bem, há sempre qualquer coisa, Dr.a Standish. Mas depois de passar anos a estudar esta síndroma, diria que constitui um diagnóstico provável.
Joan olha para um bloco.
- Já ouviu falar de perturbação de somatização?
- Claro.
- Pode defini-la?
- É quando uma criança manifesta sintomas que são induzidos psicologicamente, por outras palavras, está doente, mas a sua mente é que está a fazê-la adoecer. Imaginem uma criança que aparece com urticária cada vez que o pai exerce os seus direitos de visita; a criança está a exprimir uma perturbação psicológica interna através de sintomas físicos. Muitas vezes trata-se de uma forma inconsciente de chamar a atenção.
- Já viu pacientes com perturbações de somatização?
- Muitas vezes.
- É bastante menos raro do que a Síndroma de Munchausen por Procuração, então.
- Exacto.
- É verdade, doutor, que muitas vezes a vítima de uma perturbação de somatização parece-se muito com uma vítima da SMP?
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- Sim. Em ambas as perturbações, os sintomas revelados não têm uma etiologia orgânica, na SMP porque são provocados, na perturbação de somatização porque têm uma motivação psicológica.
- Entendo. Como é que diagnostica a perturbação de somatização, doutor?
- Entrevisto os pais e a criança. E mando fazer exames médicos.
- A mesma estratégia que utiliza para diagnosticar a Síndroma de Munchausen por Procuração, então.
- Sim, contudo, no caso da SMP, a separação da mãe resulta no desaparecimento dos padecimentos. Se a criança sofrer de perturbação de somatização, estes manter-se-ão.
Joan sorri.
- Senhor Doutor Juiz, posso aproximar-me do banco? - o juiz Rothbottam chama os advogados com um gesto. - Meritíssimo, posso ter aqui alguma margem de manobra? Gostaria de apresentar uma prova viva.
Metz franze-lhe o sobrolho.
- Que raio trouxe? Um frango?
- Verá dentro de instantes meritíssimo, não há mesmo outra maneira de provar aquilo que estou a dizer.
- Dr. Metz? - pergunta o juiz.
- Porque não? Hoje sinto-me generoso.
Depois de Rothbottam concordar, Joan acena a Kenzie van der Hoven, que se dirige para as portas na parte de trás da sala de audiências. Chama um oficial de diligências, que entra com a Faith pela mão.
Faith veste um vestido cor-de-rosa num tom mais claro do que o fato de Joan. Os cabelos dela são brilhantes e prateados, o sorriso contagiante. Acena a Mariah ao aproximar-se, e parece não reparar nos jornalistas a fecharem a boca em conjunto. À excepção da palidez e dos pequenos pensos na garganta e nas palmas das mãos, não há vestígios de que há algumas horas a menina estivesse às portas da morte.
Malcolm Metz hesita. Volta-se para Colin, que de repente fica muito interessado no seu colo.
- Sabia alguma coisa sobre isto? Sabia?
Mas antes que Colin possa responder, Joan fala.
- Dr. Birch, conhece esta criança?
- Penso... presumo... que seja a Faith White - diz ele.
- Quando foi a última vez que a viu?
- Sábado à noite. Não parecia que fosse sobreviver para além do fim-de-semana - tem os olhos muito abertos de espanto, fascinado com a Faith.
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- Como é que ela lhe parece estar agora? Birch sorri, triunfante.
- Perfeitamente bem.
- Qual é a sua explicação para isto?
O psiquiatra olha orgulhoso para Malcolm Metz, e depois para Joan.
- É evidente que o meu palpite estava certo. Mariah White sofre da Síndroma de Munchausen por Procuração. Quando foi separada da mãe por decisão do tribunal, a doença da Faith, obviamente, cedeu - faz um gesto indicando Faith, sentada decorosamente ao lado da tutora ad litem. - Só espero que o tribunal continue a manter a mãe à distância.
Joan mostra um grande sorriso.
- Doutor - diz ela - não tenho palavras para lhe agradecer.
Um pouco confuso, Malcolm Metz anuncia que o queixoso não tem mais nada a dizer. Não confia em Joan Standish, mas é evidente que não vai questioná-la se ela quiser virar o caso a favor dele. Toca no ombro do cliente depois de o juiz anunciar um curto intervalo.
- Vamos tomar um café - diz ele a Colin. - Está a correr bem, não lhe parece?
- Joan - diz Mariah, assim que ficam sozinhas na pequena sala do tamanho de uma arrecadação -, o que está a fazer?
- Confie em mim - diz a advogada.
- Está a fazer parecer que eu a magoei! Porque é que não disse ao Birch que a vi no domingo?
- Bem, em primeiro lugar, porque a enfiavam já na prisão. Mariah semicerra os olhos.
- A Faith também não está a provocar a doença, sabe? - diz ela. Joan suspira.
- Mariah, há três vertentes na sua defesa: provar que é uma mãe capaz, provar que a Faith não é psicótica e mostrar ao juiz que poderá haver uma perturbação diferente, para além da Síndroma de Munchausen por Procuração, para explicar o que está a acontecer. É uma defesa de oportunidade, temos de arranjar uma alternativa à história do queixoso. E se a sua história for melhor do que a deles, ganhamos. É assim tão simples - olha directamente para Mariah. Não estou a tentar culpar a Faith em seu lugar. Estou apenas a tentar fazer com que fique com a sua filha.
Mariah olha para cima.
- Está bem - diz, resignada. - Faça o que for preciso.
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O juiz Rothbottam espreita para Joan por cima dos seus óculos de leitura.
- Dr.a Standish - diz ele -, creio que tem direito a fazer uma declaração introdutória, se desejar.
- Sabe, meritíssimo, não estava a pensar em fazer uma...
- Ah - diz o juiz entre dentes. - Talvez Deus tenha de facto interferido neste caso.
-... mas depois de tudo aquilo que tem acontecido, acho que na verdade gostaria de dizer algumas coisas - levanta-se e caminha em frente à mesa da defesa.
- Este é um caso confuso - diz ela sem rodeios. - É confuso por se tratar de um caso de atribuição de custódia, mas também há um assunto secundário. E não podemos deixar de reparar nesse assunto, nomeadamente, que há uma razão para esta menina ter aparecido nas notícias. Se tiverem ouvido os relatos, bem... a Faith White diz que viu Deus. Bastante radical, não acham? - Joan sorri, abana a cabeça. - O Dr. Metz diz que a culpa é toda da mãe. Que de alguma forma, Mariah White consegue provocar alucinações na Faith para que ela veja Deus, e também está a prejudicá-la fisicamente. E, na verdade, eu também acho que isso é bastante radical. -Joan vira-se para a janela, olhando para a neve a cair rapidamente.
- Sabem, li no outro dia que os esquimós têm mais de vinte palavras para designar a neve. Há a neve quebradiça, a neve em pingos gelados, em pó. Posso olhar pela janela e ver algo belo. O Dr. Metz pode olhar lá para fora e pensar que vai criar uma confusão nos transportes. E, o doutor juiz, pode olhar lá para fora e ver um dia fantástico. Há muitas maneiras de olhar para a mesma coisa. Viram o caso do Dr. Metz. vou apresentar-lhes os mesmos factos, mas encaro-os de forma um pouco diferente. Em primeiro lugar, ao contrário do Dr. Metz, acho que a questão aqui não é Mariah White. Acho que é a Faith White. Por isso vou provar que, em primeiro lugar, a Faith é uma menina feliz. Não é doente, não é psicótica e sem dúvida não está em estado comatoso. Não vou provar se vê ou não Deus, porque não é essa a minha função. A minha função é mostrar que ela é psicologicamente feliz, encontra-se bem fisicamente, e vai agir da mesma maneira independentemente de ir viver com a mãe ou com o pai. A questão é: com quem deverá ela viver?
Joan respira fundo.
- A resposta é Mariah White. E essa é a segunda coisa que vou provar. Independentemente do que aconteceu há sete anos, neste
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momento, o melhor para a Faith é a mãe - percorre a aresta da mesa da defesa com os dedos. - O Dr. Metz deu a sua interpretação às circunstâncias que rodeiam a Faith White. Mostrou aquilo que ele deseja ver. Não confiem nos olhos dele.
A Dr.a Margaret Keller parece nervosa no banco das testemunhas. Os olhos percorrem a sala de audiências como se estivessem a seguir um rato que mais ninguém consegue ver. Cruza e descruza as pernas. E quando Joan lhe pede pela primeira vez que enumere as suas credenciais, a voz dela é trémula.
- Há quanto tempo é psicóloga infantil, Dr.a Keller?
- Há sete anos.
- Quais são as suas especialidades, doutora?
- Trabalho muito com crianças mais pequenas que sofreram traumas familiares.
- Porque é que foi escolhida para ser psiquiatra da Faith?
- Fui recomendada à Sr.a White pelo seu próprio psiquiatra, o Dr. Johansen. Ele telefonou-me e pediu-me, como um favor, que aceitasse este caso.
- Quantas vezes viu a Faith?
A Dr.a Keller cruza as mãos no colo..
- Catorze - diz ela.
- Que tipo de coisas fez?
- Basicamente, observei-a brincar. É uma forma excelente de captar comportamentos perturbantes.
- Quais foram alguns dos comportamentos em que reparou?
- Bem, havia um mecanismo de defesa muito forte que ela desenvolveu, uma amiga imaginária que a mantinha em segurança. A Faith referia-se a ela usando um certo nome, a sua guardiã, pensei eu que ela dizia. Fazia todo o sentido a nível psicológico: uma menina que enfrentou algumas situações difíceis encontrou alguém para a proteger. Achei muito saudável.
- Depois o que aconteceu?
- A Sr.a White ficou preocupada porque a Faith começou a apresentar comportamentos que não correspondiam à sua educação. Citava passagens da Bíblia, embora nunca tivesse visto uma Bíblia na vida. E houve algumas ocasiões em que a Faith entrou em contacto com uma pessoa doente, e conseguiu fazer com que ficasse melhor.
- O que é que isso a levou a acreditar, doutora? A Dr.a Keller sorri tristemente.
- Não tirei conclusões precipitadas de início. Mas comecei a pensar que se em vez de chamar "guardiã" à sua amiga imaginária,
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a Fàith não estaria na verdade a dizer "Deus"17 - tira os óculos e limpa-os à ponta da camisola. - Ver Deus é normalmente um sinal de psicose - explica ela. - A mim não me parecia bem, porque a Faith era capaz de funcionar normalmente em todos os aspectos da sua vida, à excepção destas alucinações. Mas recomendei à Sr.a White que a Faith experimentasse tomar Risperdal.
- O que aconteceu quando ela estava a tomar o medicamento?
- Ficou sonolenta e cansada, mas as visões não cessaram. Experimentámos um novo medicamento antipsicótico, e ela continuou a apresentar este comportamento.
- Por fim, Dr.a Keller, o que decidiu fazer?
-Chamei um colega, um especialista em psicoses infantis. Observou a Faith e concordou que ela não parecia psicótica. Senti-me apoiada. Há muitas coisas que não compreendo neste mundo, mas sei o que é uma criança psicótica, e a Faith não é uma delas.
Metz levanta-se para fazer o contra-interrogatório e dirige-se à psicóloga.
- Dr.a Keller - diz ele -, sabe o que está a insinuar? Ela cora.
-Sei.
- Não é verdade que frequentou a escola paroquial durante doze anos?
-É.
- E não teve uma educação católica bastante marcada?
- Sim, tive.
- E num simpósio, não chegou mesmo a admitir que uma vez sentiu pessoalmente a presença de Deus ao seu lado enquanto rezava?
A Dr.a Keller olha para o colo.
- Era apenas uma criança, mas nunca mais me esqueci.
- Não acha que pode apresentar uma predisposição para acreditar que a Faith também esteja a ver Deus?
Ao ouvir isto, a psiquiatra ergue os olhos numa atitude calma e profissional.
- Independentemente das minhas crenças pessoais, Dr. Metz, realizei uma série de exames clínicos...
- Sim ou não, Dr.a Keller?
- Não - diz ela convictamente. Metz revira os olhos.
17 Como já foi referido em nota anterior, na versão original em inglês, a palavra guardiã Guard é foneticamente semelhante à palavra Deus God. (N. da T.)
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- Então, doutora. Não acredita em Deus?
- Acredito.
- Não vai à missa todas as semanas? -vou.
- E a conclusão que tirou foi que a Faith vê Deus. Acha que a sua conclusão teria sido diferente da de uma pessoa que seja... digamos... ateia? - Metz vira-se para trás, pousando os olhos em Ian, sentado na galeria.
- Mesmo que fosse ateia - diz ela -, seria uma psiquiatra muito metódica. E continuaria a dizer que esta criança não é psicótica.
Metz semicerra os olhos. As coisas não estão a correr como planeara. Aquela mulher frágil como uma cotovia devia ter cedido há cinco perguntas atrás.
- Dr.a Keller, não apresentou o caso da Faith num simpósio de psiquiatria?
- Sim, apresentei. Metz ataca-a.
- Não é verdade que abordou o caso no simpósio porque queria fazer boa figura, doutora?
- Não. Na realidade estava a colocar a minha reputação em jogo - sorri tristemente. - Na realidade quantos psiquiatras quererão dizer oficialmente que uma criança vê Deus?
- Mas atraiu de facto as atenções sobre si própria, às custas da confidencialidade da sua cliente - repete ele. - Não será de certa forma pouco ético?
Surpreendendo-o mais uma vez, a Dr.a Keller tira uma folha de papel do caderno que tem no colo.
- Tenho uma autorização assinada por Mariah White, que me permitia mencionar o caso da sua filha no simpósio, desde que o nome da Faith não fosse referido.
- A sério! - diz Metz. - Então temos provas de que a Sr.a White estava a tentar usar a filha para conquistar notoriedade,
- A Sr.a White e eu discutimos o assunto em profundidade diz a Dr.a Keller. - Tínhamos esperança de conseguir envolver um especialista mais experiente do que eu no caso, que nos pudesse ajudar a encontrar a origem das visões da Faith. Como sabe, vinte especialistas a trabalhar juntos num caso é consideravelmente melhor do que apenas um. Não estávamos à procura de notoriedade, Dr. Metz. Estávamos à procura de uma cura.
- Alguma vez entrevistou a Sr.a White no papel de terapeuta? pergunta Metz.
- Não, eu era psiquiatra da filha.
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- Então pode afirmar com certeza absoluta que algures na mente distorcida desta mãe ela não estava a tentar fazer com que colocasse a filha em exibição?
A Dr.a Keller olha para Mariah, depois para Faith, sentada algumas filas atrás dela.
- Não - diz ela, a palavra suave a pousar na mão estendida de Metz.
- Ela foi levada para a sala das urgências, a sangrar das palmas de ambas as mãos - diz o Dr. Blumberg em resposta à pergunta de Joan. - Os procedimentos médicos de emergência tradicionais não conseguiram estancar a hemorragia, e eu fui chamado para dar o meu parecer.
- O que fez, doutor?
Ele recosta-se na cadeira.
- Fiz uma radiografia às mãos dela.
- O que descobriu?
- Não havia sinais de trauma. Literalmente, era um buraco que ia de um lado ao outro. Não havia tecidos rasgados, ossos danificados, nada que indicasse que se tratava de qualquer tipo de perfuração, apesar do fluxo de sangue contínuo e lento.
- Alguma vez viu algo semelhante, Dr. Blumberg?
- Sem dúvida que não. Deixou-me perplexo. Chamei especialistas e colegas, especialistas em pediatria, cirurgia e ortopedia e excluímos as hipóteses clínicas uma por uma. Eventualmente, acabei por tratar apenas os sintomas e mandar a menina para casa, depois voltei para o meu gabinete e comecei a ler publicações médicas.
- O que descobriu?
- Que, como muita gente sabe, isto já tinha ocorrido no passado. E refiro-me a um passado muito distante. Hesitei em acreditar nisso, mas aparentemente vários santos católicos apresentaram estigmas, ou hemorragias espontâneas nas palmas das mãos, tronco ou pés clinicamente inexplicáveis, mas verificáveis. E não existe uma causa física para tal.
- Quando ocorreu o último caso documentado? - pergunta Joan.
- Objecção: o Dr. Blumberg não foi ordenado.
- vou permitir - diz o juiz. - Doutor?
- Havia um homem chamado padre Pio, que faleceu em 1968. Mas o estigmatizado mais famoso foi provavelmente São Francisco de Assis, que viveu no século XII. Segundo relatórios que li, as chagas são bastante reais, bastante dolorosas.
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- Quais são as principais características dos estigmas que encontrou nas publicações médicas?
- Não podem ser curadas com os procedimentos vulgares utilizados para controlar as hemorragias ou induzir a coagulação. Chegam a durar meses ou anos, mas, ao contrário dos ferimentos naturais crónicos, não gangrenam.
- Em que medida é que isso corresponde aos ferimentos da Faith?
- Em grande medida - diz o médico.
- Diagnosticou oficialmente estigmas na Faith? Blumberg faz um esgar.
- Não. Fui demasiado céptico. No ficheiro dela escrevi que depois de ponderar todas as hipóteses clínicas, tinha chegado à conclusão de que era possível que a Faith sofresse de estigmas. Mas sinceramente, ainda não me sinto à vontade com esse diagnóstico.
- No fim-de-semana passado, qual era a situação clínica da Faith?
- Estava em estado crítico. Tinha sido colocada em diálise e tinha entrado em paragem cardíaca por duas vezes, as mãos e o flanco estavam novamente a sangrar, e tinha entrado num estado comatoso. A minha opinião profissional era que não ia recuperar.
- Qual é a situação clínica da Faith agora? Blumberg sorri.
- Surpreendentemente saudável. As crianças têm tendência a recuperar muito depressa, mas isto é verdadeiramente notável. Quase todos os sistemas no corpo dela estão a funcionar a cem por cento, ou para lá caminham.
- Na sua opinião, doutor, o colapso do coração e dos rins da Faith terá sido intencionalmente provocado por alguém?
- Não. Tinha demasiados profissionais à sua volta na Unidade de Cuidados Intensivos para que isso pudesse acontecer. Para não falar que não foram encontrados vestígios de medicamentos que pudessem, por exemplo, provocar paragem cardíaca, no sangue da Faith.
- Os ferimentos nas mãos e flanco foram provocados por alguém? Ele abana a cabeça.
- Como disse, não havia sinais de trauma. Apenas um pequeno túnel... através da pele, músculos, ossos e tendões - mostra a palma da mão. - Existem mais ossos na mão do que em qualquer outra parte do corpo, Dr.a Standish. É quase impossível perfurá-la sem causar algum trauma. E, no entanto, foi isso que eu vi. A Faith estava apenas a... sangrar.
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- Doutor, é obrigado por lei a apresentar um relatório em casos de possível abuso infantil?
- Sim, qualquer médico tem de o fazer.
- Apresentou algum relatório depois de ver a Faith White há mês e meio?
- Não, não apresentei
- Apresentou algum relatório depois de internar a Faith White na quinta-feira à noite?
-Não.
- Havia alguma razão para entregar um relatório?
- Absolutamente nenhuma.
- Obrigada - diz Joan. - Nada mais a acrescentar.
- Dr. Blumberg - pergunta Metz -, quantos casos de estigmas tratou?
O médico sorri.
- Apenas este.
- Mas sente-se apto a dar-nos uma opinião de especialista neste caso? Não é verdade que por não ter conseguido diagnosticar os ferimentos da Faith, apresentou um palpite esclarecido?
- Primeiro deixe-me falar-lhe sobre as hipóteses que excluí, Dr. Metz. Ponderei trauma directo e indirecto da mão. Estudei a hipótese de secreções da pele, ou de os nervos adjacentes à pele produzirem alguma substância, mas as emissões foram analisadas em laboratório, e tratava-se mesmo de sangue. Os estigmas foram o único diagnóstico que consegui encontrar que chegava sequer perto de corresponder às observações clínicas que tinha realizado.
- Pode dizer sem margem de dúvida que se trata de estigmas?
- Claro que não, não é essa a minha função. Suponho que seja do papa. Apenas posso dizer que a Faith White estava a sangrar. E não há nenhuma explicação médica para esse facto.
- Existirá uma explicação psicológica? Blumberg encolhe os ombros.
- Nas publicações que li, fizeram-se tentativas de replicar os estigmas em pacientes hipnotizados. Em alguns casos muito raros, os psiquiatras conseguiram induzir uma espécie de suor colorido... mas não sangue. Não existem provas científicas de que a imaginação possa provocar estigmas, para além da ideia religiosa.
- Os ferimentos poderiam ter sido provocados durante um episódio de sonambulismo?
- Duvido. Como disse, não se pareciam nada com perfurações.
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- Pode dizer de forma conclusiva que os ferimentos da Faith não foram provocados pela própria Faith, ou por outra pessoa?
- Não era visível - diz Blumberg cautelosamente. - Sem dúvida que não poderia afirmar com absoluta certeza, mas era evidente que este caso não era um caso de abuso infantil. A Sr.a White recusava-se a afastar-se da filha, mostrava-se extremamente preocupada com o prognóstico da Faith, e ficou muito agitada quando sugeri hipoteticamente um diagnóstico de estigmas.
- Já se deparou com casos de abuso infantil, Dr. Blumberg?
- Infelizmente, sim.
- Em algum desses casos o pai ou a mãe magoaram a criança à sua frente?
- Não.
- Em algum desses casos o pai ou a mãe pareciam preocupados com o prognóstico da criança?
- Sim - admite o doutor.
- Em algum desses casos o pai ou a mãe abusadores levaram a criança para ser tratada?
Blumberg pigarreia.
- Sim.
Metz dá meia volta.
- Nada mais a acrescentar.
Faith inclina-se para a direita.
- Kenzie - sussurra -, tenho de fazer chichi.
- Agora? - pergunta a tutora ad litem.
- Pois. Agora já.
Kenzie dá a mão à menina e pede licença ao longo da fileira de pessoas sentadas. Fora da sala de audiências, vira à esquerda em direcção à casa de banho das senhoras. Fica à espera que a Faith se despache e saia para lavar as mãos. Então ajeita os cabelos da menina.
- Como te sentes?
- É aborrecido - lamenta-se Faith. - Podemos beber uma Coca-Cola?
- É importante que fiquemos lá dentro. Já não vai demorar muito mais tempo.
- Só uma Coca-Cola? Cinco minutos?
Kenzie endireita as costas para aliviar os músculos.
- Está bem. Cinco minutos - leva Faith até às máquinas na entrada principal do tribunal. As pessoas andam de um lado para o outro: testemunhas em isolamento à espera da sua vez, advogados
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a falar ao telemóvel, homens de farda a colocarem capachos novos no chão. Kenzie coloca setenta e cinco cêntimos e deixa Faith carregar nos botões para que a lata caia cá para fora.
- Mmm. Que bom - diz Faith depois de dar um gole. Faz uma pirueta, testando as pernas após ter estado tanto tempo sentada, e pára abruptamente quando olha pelas portas de vidro do tribunal. Nos degraus, no relvado coberto de neve, estão centenas de pessoas. Algumas empunham cartazes com o rosto de Faith; algumas agitam rosários no ar. Os seus gritos de apoio erguem-se como um maremoto ao vislumbrarem-na.
Não os tinha visto entrar; Kenzie tinha-a levado por uma entrada nas traseiras para poder simplesmente evitar isto.
- Segure na minha bebida, por favor - diz Faith -, entregando a lata de Coca-Cola a Kenzie.
- Faith, não... - grita ela, mas é demasiado tarde. A Faith já abriu as portas para ficar nos degraus de pedra que conduzem ao tribunal. Após uma saudação ensurdecedora dos seus apoiantes, ela ergue as mãos, e eles gritam ainda mais alto. Estupefacta, Kenzie fica imóvel.
- Olá - diz Faith, acenando. Sorri enquanto as orações deles caem sobre ela, aceitando-as como uma rainha.
- Trato Mariah White há sete anos - diz o Dr. Johansen. Desde que saiu de Greenhaven.
- Qual foi a sua opinião sobre o facto de ter sido internada numa instituição?
- Nunca devia ter ocorrido - diz o médico. - Há uma série de outros tratamentos que teriam sido igualmente eficazes.
- A própria Mariah podia ter de alguma forma impedido ser hospitalizada?
- Não. O marido achava que era a melhor opção. A mãe dela encontrava-se no Arizona na altura, alheia aos procedimentos. Mariah estava muito medicada e, por isso, estava tão afastada da realidade que não podia defender-se.
- Qual era, na sua opinião, o estado mental de Mariah quando saiu de Greenhaven?
O Dr. Johansen franze o sobrolho.
- Achei que estava emocionalmente frágil, mas receptiva a aprender formas de lidar com a questão. E, claro, estava muito preocupada com a gravidez.
- Apresentava sinais de psicose na altura?
- Não.
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- Ilusões ou alucinações?
- Nunca. Mesmo quando Mariah foi hospitalizada, isso deveu-se à depressão.
- Dr. Johansen, qual é, na sua opinião, o estado mental de Mariah hoje?
O psiquiatra fica a olhar para a cliente como se estivesse a adivinhar os seus pensamentos.
- Acho que está a ficar cada vez mais forte - diz ele num tom solene. - Como prova disso, apenas precisam de ter em conta que ela abdicou da confidencialidade entre médico e paciente aqui no tribunal, numa tentativa de manter a custódia da filha. E voltemos a Agosto: quando se deparou precisamente com a mesma situação que anteriormente a tinha levado a tentar o suicídio, desta vez reagiu de maneira muito mais saudável. Recompôs-se, cuidou da filha e prosseguiu com a sua vida.
- Doutor, acha que existe alguma possibilidade de esta mulher poder fazer mal à filha?
- Não.
- Ao longo da terapia, nos últimos sete anos, alguma vez admitiu, colocou a hipótese ou pensou sobre o facto de Mariah poder fazer mal à filha?
- Claro que não.
- Mariah falou consigo sobre as presentes circunstâncias envolvendo a Faith?
- Refere-se às visões e à comunicação social? Sim.
- Mariah acredita que a filha é de facto uma vidente?
O Dr. Johansen fica em silêncio durante tanto tempo que Joan começa a repetir a pergunta.
- Mariah acredita que a filha está a dizer a verdade - diz ele. Mesmo que seja irrelevante.
- Como é que se interna alguém numa instituição mental? começa Metz.
- É um processo do tribunal - diz Johansen. - Um psiquiatra avalia a pessoa, e o juiz examina os ficheiros.
- Portanto, várias pessoas estão envolvidas na decisão. -Sim.
- O sistema funciona?
- Na maioria das vezes - diz o psiquiatra. - Nos casos em que não podemos confiar no bom senso do próprio acerca da matéria fica a olhar para Metz intencionalmente. - Contudo, neste caso em particular o sistema não funcionou. Mariah White sofria de uma
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depressão grave e excessivamente medicada, e a sua própria vontade não foi respeitada.
- Se o juiz tivesse achado que a Sr.a White não precisava de ser internada, o tribunal teria tomado a mesma decisão?
- Não.
- Se o psiquiatra tivesse achado que a Sr.a White não precisava de ser internada, o tribunal teria tomado a mesma decisão?
- Não.
- Se o familiar mais próximo, Colin White, tivesse achado que a Sr.a White não precisava de ser internada, o tribunal teria tomado a mesma decisão?
- Não.
- Entendo. Então está a sugerir que todas estas pessoas diferentes deviam ter posto de lado as suas observações e aceitado a opinião de uma mulher que tinha cortado os pulsos há uma semana?
- Não foi isso...
- Sim ou não, doutor?
O psiquiatra acena com a cabeça firmemente.
- Sim, é isso que estou a afirmar.
- Avancemos. O que receitou a Mariah White quando ela saiu de Greenhaven?
O Dr. Johansen olha para as suas notas.
- Prozac.
- Foi um tratamento a longo prazo?
- Durante algum tempo. Mas passado um ano deixou de o tomar, e reagiu maravilhosamente.
- Considera-a emocionalmente estável?
- Não tenho dúvidas - responde Johansen.
- Mariah White pediu-lhe que voltasse a receitar-lhe o mesmo?
- Sim.
- Quando?
- Há três meses - diz o psiquiatra. - Em Agosto.
- Logo a seguir ao marido ter saído de casa? Então não estava tão estável como pensava... não é verdade, doutor?
O Dr. Johansen endireita-se.
- Voltou a acontecer precisamente a mesma situação que a tinha deixado de rastos há sete anos, Dr. Metz. Desta vez, em lugar de tentar suicidar-se, telefonou-me e disse: "Preciso de ajuda." Qualquer psiquiatra no país encarará isso como um sinal de estabilidade mental.
- O Prozac tem efeitos secundários?
- Ocasionalmente.
- Tais como?
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- Por vezes, a fluoxetina pode causar dores de cabeça, arrepios, agitação, insónia, sonolência, ansiedade, tonturas. Também hipertensão, exantema, náuseas, diarreia, perda de peso, dores no peito e zumbidos nos ouvidos.
- E alucinações?
- Sim - admite o Dr. Johansen. - Mas é bastante raro.
- E tendências suicidas?
- Ocasionalmente. Porém, não deve esquecer-se de que já tinha visto esta paciente ser medicada com este medicamento em particular na dosagem de vinte miligramas por via oral durante mais de um ano. Sei como o corpo dela reage. Se se tratasse de uma receita nova, Dr. Metz, talvez tivesse razão. Mas no caso da Sr.a White, não.
- Ela não tomou o medicamento durante vários anos?
- Não.
- Não existem efeitos adversos associados à interrupção do tratamento?
- Sim.
- Tais como tentativas de suicídio, psicose, delírios e alucinações?
- Mais uma vez - previne Johansen -, estamos a falar de uma percentagem mínima de pessoas.
- Mas seria possível apresentar alguns efeitos adversos à interrupção?
- Nenhum de que me tenha informado, Dr. Metz. O advogado volta-se.
- Dr. Johansen, qual é a probabilidade de uma pessoa que foi submetida com sucesso a um tratamento para uma depressão ter uma recaída da doença?
- Não disponho de dados estatísticos.
- Mas ocorre com bastante frequência, não ocorre?
- Sim. Mas normalmente as pessoas bem adaptadas sabem voltar a recorrer a um psiquiatra, nessa altura, para procurar ajuda.
- Entendo. Portanto, basicamente, está a dizer-nos que uma pessoa que já esteve doida tem boas hipóteses de voltar a ficar doida de novo.
- Objecção!
- Retiro a afirmação - diz Metz. - Nada mais a acrescentar, doutor.
Joan salta da cadeira antes de as palavras saírem da boca dele.
- Gostaria de interrogar a testemunha de novo - diz ela bruscamente. - Gostaria de definir os termos "perturbação mental" e "depressão". Significam o mesmo?
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- Claro que não.
- Qual foi o diagnóstico de Mariah?
- Depressão suicida - diz Johansen.
- Já ouviu falar na Síndroma de Munchausen por Procuração?
- Sim.
- É razoável que uma pessoa a quem foi diagnosticada uma depressão suicida que foi posteriormente tratada desenvolva a Síndroma de Munchausen por Procuração passados sete anos? Trata-se de uma relação directa?
O Dr. Johansen desata a rir.
- É o mesmo que dizer que por tomarmos o pequeno-almoço de manhã, é provável que usemos roupa interior.
- Obrigada, doutor - diz Joan. - Não tenho mais perguntas.
Quando se senta no banco das testemunhas, Millie decide que já esteve calada o tempo suficiente. Desde que Joan pretenda chamá-la como testemunha abonatória de Mariah, quer dar a sua opinião. Instala-se na cadeira e acena à advogada, pronta para começar.
- Sr.a Epstein, com que frequência vê a Faith?
- No mínimo dia sim, dia não.
- com que frequência vê a Faith interagir com Mariah?
- Mais uma vez, com a mesma frequência.
- Em sua opinião, Mariah é uma boa mãe?
Parecendo uma mãe orgulhosa dos pés à cabeça, Millie sorri.
- É uma mãe maravilhosa. Esforça-se o dobro dos outros pais por estar tão determinada a cumprir a sua função o melhor possível.
- Como é que Mariah lidou com o facto de a comunicação social rodear a Faith ultimamente?
- Como é que lidaria a senhora? - pergunta Millie. - Tirou a Faith da escola; mantém-na escondida das câmaras. Faz tudo o que pode para proporcionar-lhe uma vida normal - pronto. Era essa a sua obrigação para com Joan, a matéria que ensaiaram até aos limites. Mas continua a falar, fazendo Joan ficar petrificada e olhar para cima, surpreendida pela alteração no guião. - Todos vocês pensam que a Mariah é que tem de se mostrar à altura da situação. Mas de quem será a culpa, realmente? - com um dedo trémulo, ela aponta para Colin. - Foi ele que fez isto à minha filha no passado. Fez com que fosse internada. Bem, ele é que devia ser internado, por não conseguir manter a braguilha fechada...
- Sr.a Epstein - diz Joan com firmeza. - Por favor, pode limitar-se a responder apenas às perguntas? - pigarreia e lança um olhar muito determinado a Millie.
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- Não, acho que agora que estou aqui, gostaria de falar. Quem não ficaria deprimida se o marido começasse a dormir com todas as mulheres nas suas costas? Não sei porquê...
- Minha senhora - avisa o juiz Rothbottam -, tenho de pedir-lhe que se controle.
Joan aproxima-se do banco das testemunhas durante esta intervenção, com um sorriso tenso.
- Pare com isso - diz ela entre dentes e vira-se, resmungando algo sobre descontrolo. - Sr.a Epstein, há uma variedade de razões que apoiam legalmente a alteração da custódia. Tem conhecimento de Mariah alguma vez ter abusado sexualmente da Faith?
- Meu Deus, não.
- Alguma vez Mariah bateu na Faith?
- Nem sequer lhe dá uma palmada no rabo quando ela se porta mal.
- Alguma vez Mariah abusou emocionalmente da Faith?
- Claro que não! - diz Millie. - Ela apoia-a totalmente.
- Mariah trabalha fora de casa, ou por qualquer outra razão passa a maior parte do dia longe da filha?
- Está sempre com ela - Millie olha para o juiz com um ar zangado. - Quando lhe permitem.
- Obrigada - diz Joan, e depois senta-se antes que Millie tenha oportunidade de dizer mais alguma coisa.
Metz lança a Millie um olhar calculista. Sabe muito bem por que razão Joan foi tão rápida a terminar - a velha é doida. Tal como Joan, planeia manter-se afastado de perguntas que envolvam reincarnação e segundas oportunidades na vida, perguntas que apenas iriam torná-lo no alvo de chacota entre a comunidade legal. Sorri, apanhando Millie desprevenida. Pelo que Joan lhe disse a ela, tem a certeza de que foi descrito como uma piranha.
- Sr.a Epstein, gosta mesmo muito da Mariah, não gosta? O rosto de Millie suaviza-se.
- Oh, sim.
- Ela cresceu muito próxima de si, aposto. -Sim.
Metz apoia-se na barra das testemunhas.
- Assistiu à formatura dela, no liceu?
- A melhor da turma - diz Millie, orgulhosa.
- E a universidade? Magna cum laudé!
- Summa.
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- É espantoso. Eu mal consegui passar a inglês no primeiro ano
- graceja Metz. - E a senhora, como é óbvio, esteve presente no casamento dela.
A boca de Millie descai nos cantos.
- Sim.
- Aposto que lhe ensinou tudo o que ela sabe sobre ser uma boa mãe.
- Bem - diz Millie corando modestamente -, nunca se sabe.
- Aposto que a ensinou a ajudar a Faith a ultrapassar estes tempos difíceis. Não é verdade?
Millie ergue o queixo.
- Disse-lhe várias vezes: quando somos mães, defendemos os nossos filhos. E pronto.
- É isso que Mariah tem estado a fazer pela Faith?
- Sim!
Metz imobiliza-a com o olhar.
- E é isso que agora está a fazer por Mariah?
Millie olha para o juiz.
- Então? É tudo?
O juiz Rothbottam tamborila com os dedos na secretária.
- Sabe, Sr.a Epstein, por acaso tenho algumas perguntas para lhe fazer - olha para cada um dos advogados à vez. - Aparentemente os
: nossos prezados advogados foram um pouco tímidos.
Millie compõe-se debaixo do seu olhar.
- Faça favor, meritíssimo.
- Eu, hum, li em alguns jornais que a senhora foi... ressuscitada?
- Oh, sim. Na verdade - Millie procura dentro da sua grande mala -, tenho a certidão de óbito algures aqui dentro.
- Não preciso de vê-la - sorri para ela. - Pode falar-me sobre isso?
- Sobre a certidão de óbito?
- Bem, não. Sobre a ressurreição. Por exemplo, durante quanto tempo esteve clinicamente morta?
Millie encolhe os ombros.
- Durante cerca de uma hora. Facto comprovado.
- O que aconteceu?
- Entrei numa discussão acesa com Ian Fletcher. A última coisa de que me lembro é de estar deitada no chão e não conseguir respirar. Depois disso, não me lembro de nada - fazendo uma pausa dramática, aproxima-se do juiz. - E depois, de repente, estou num quarto de hospital com a Faith debruçada sobre mim.
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O juiz abana a cabeça, fascinado.
- Existe alguma explicação médica para o que aconteceu?
- Tanto quanto sei, senhor doutor juiz, os médicos não conseguem explicar o que aconteceu.
- Sr.a Epstein, o que acha a senhora que aconteceu? Ela olha para ele com um ar sério.
- Acho que a minha neta me fez regressar à vida.
- O que acha das visões da Faith?
- Acredito nela. Meu Deus, se não acreditasse nela agora, seria uma idiota, não seria? - sorri. - Ou pior, estaria morta.
- Obrigado, Sr.a Epstein. Dr. Metz, tem mais alguma pergunta?
- o advogado abana a cabeça. - Bem - diz Rothbottam. - Acho que preciso de um intervalo.
Mariah observa a filha sair da sala de audiências com Kenzie. Ainda não pode aproximar-se de Faith e, para sua surpresa, é mais difícil manter-se à distância agora, sabendo que a Faith já não está doente. Estica o pescoço, observando Faith desaparecer no corredor.
Espera que Kenzie esteja a cuidar dela.
Pelo canto do olho, vê Ian. Imediatamente desvia o olhar.
- Mariah - Joan chama-lhe a atenção. - É a seguir ao Dr. Fitzgerald.
-Já?
- Sim. Vai ficar bem?
Pressiona o estômago com um punho.
- Não sei. Não é por causa de si que estou preocupada; é por causa do Metz.
- Olhe - responde Joan. - Quando estiver ali, independentemente do que ele lhe diga, olhe para aqui - aponta para trás dela, para a fila onde estava sentada a Faith. - Ela vai ajudá-la a ultrapassar isto.
Assim que o Dr. Alvin Fitzgerald subiu para a barra das testemunhas, Metz levanta-se.
- Posso aproximar-me? - os advogados dirigem-se para junto do juiz. - Quero saber se este indivíduo entrevistou a Faith.
Joan mal se dá ao trabalho de olhar para ele.
- Não, porque sabia que ia queixar-se se o fizesse. Se houver necessidade de se realizar um entrevista mais tarde, ambos os especialistas terão oportunidade de o fazer. Contudo, consigo demonstrar o que preciso de demonstrar sem que o Dr. Fitzgerald entreviste a Faith.
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Ao ouvir isto, Metz perde um pouco de entusiasmo.
- Está bem - diz ele, tenso.
- Dr. Fitzgerald - começa Joan -, pode referir as suas credenciais para que fique registado?
- Sou licenciado pela Escola de Medicina da Universidade de Chicago, fui médico residente e especializei-me em psicologia infantil na Universidade da Califórnia, São Francisco, e recebi uma grande bolsa para ser o investigador principal num estudo sobre a Síndroma de Fadiga Crónica e Perturbações Somatoformes.
- Já ouvimos muitas coisas sobre a Síndroma de Munchausen por Procuração. Pode dizer-nos se este caso em particular preenche os critérios para essa perturbação?
O psiquiatra encolhe os ombros.
- Bem, há muitas coisas que preenchem os critérios básicos do Manual de Diagnóstico e Estatística de Doenças Mentais IV.
Joan observa Metz ficar de boca aberta de surpresa enquanto o médico repete os aspectos mais importantes do testemunho do Dr. Birch. Depois ela pergunta-lhe:
- Existem elementos neste caso que não se enquadram na SMP?
- Sim. Em primeiro lugar, os sintomas da Faith são reais, e estranhos. Quanto às alucinações, discordo do Dr. Birch. Apenas por Mariah White ter estado numa instituição com psicóticos isso não significa que conseguisse fazer com que Faith fingisse uma alucinação de forma convincente, é como dizer que andar na camioneta dos Bulis nos faz jogar como o Michael Jordan - sorri. - Outra discrepância é que a Síndroma de Munchausen por Procuração é crónica. Estes pais andam de serviço de urgências em serviço de urgências para que os médicos não se apercebam do que estão a fazer. No entanto, a Sr.a White levou a Faith ao mesmo médico, o Dr. Blumberg, repetidas vezes. Chegou até a pedir que ele examinasse a Faith numerosas vezes.
- É tudo, doutor?
- Oh, estou apenas a começar. Por norma, os agressores que sofrem de Síndroma de Munchausen por Procuração tiveram uma infância emocionalmente distante; Mariah White não teve. Mas o maior problema que tenho relativamente a um diagnóstico de SMP é o simples facto de existirem diagnósticos alternativos que explicam este caso igualmente bem.
Joan parece surpreendida.
- A sério? Tais como?
- Em primeiro lugar a perturbação somatoforme. Basicamente, ocorre quando um paciente vive uma perturbação emocional de
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forma física. Imaginem uma criança que apresenta cólicas gástricas graves de cada vez que tem de fazer um teste, por estar tão ansiosa com a escola. Está mesmo com dores, mas não consegue explicar porquê. Lembram-se das pacientes histéricas de Freud? Eram as bisavós dos pacientes actuais que sofrem de perturbação somatoforme. Ergue as mãos, numa espécie de escala.
- É útil pensar nestas perturbações imaginando um intervalo diz o psiquiatra. - Num dos extremos encontra-se o fingimento de doença, que todos nós já fizemos: fingimos estar com gripe para evitar sermos jurados, por exemplo, os sintomas são intencionalmente fingidos para atingir um determinado objectivo. No outro extremo encontra-se a perturbação somatoforme, em que um paciente produz um sintoma de forma não intencional que parece e manifesta-se como verdadeiro, sem ter consciência de estar a fazê-lo, e muito menos da razão por que o faz. Algures no meio encontra-se a Síndroma de Munchausen por Procuração, em que os sintomas podem ser intencionalmente forjados... mas por razões não intencionais.
- Então a diferença está na intenção, doutor.
- Precisamente. Em tudo o resto, estas duas perturbações parecem semelhantes. Tal como na Síndroma de Munchausen por Procuração, o médico examina a criança com perturbação somatoforme sem ser capaz de encontrar uma etiologia orgânica para o sintoma. Podem ser feitas TAC e ressonâncias magnéticas e dúzias de exames, para nada, porque o problema verificado não se enquadra na psicologia. Contudo, numa perturbação somatoforme, o sintoma é desencadeado pelo stress. Na SMP, o sintoma é desencadeado pela mãe. Nas perturbações somatoformes, o sintoma é real. Na SMP, é forjado. Muitas vezes, decidir qual deles é qual depende de uma avaliação que requer conhecimento do contexto da doença, das pessoas envolvidas e que ganhos auferiram.
- Então, parte do diagnóstico envolve quem está a tentar chamar a atenção: a mãe ou a criança.
- Precisamente.
- Em que medida os sintomas da Faith se enquadram numa perturbação somatoforme, doutor?
- Em primeiro lugar, o problema verificado não é orgânico. Apresenta hemorragias nas mãos, mas não há mutilação de tecidos dentro delas, é um pouco difícil forjar uma ferida dessas. Pode ter alucinações, mas não é psicótica. E pode argumentar-se que a doença foi originada pelo stress, que inconscientemente acredita que ao estar doente, a fonte de stress desaparecerá.
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- Um divórcio pode ser considerado uma fonte de stress? Fitzgerald sorri.
- Aprende depressa, Dr.a Standish. Na mente de uma criança há um pensamento inconsciente, "Se ficar doente, os meus pais ficarão juntos para cuidar de mim." Sem sequer saber que está a fazê-lo, a criança adoece e chama a atenção sobre si própria. Sem ter realmente falado com a Faith, claro, apenas posso considerar a hipótese de a mente dela estar a fazer o corpo adoecer, na esperança de que a família permaneça intacta. E repare, está a resultar. Os pais estão ambos aqui hoje, não estão?
- Se isso fosse verdade, a Sr.a White estaria de alguma forma envolvida nas doenças da filha?
- Oh, não. Passa-se tudo a nível psicogénico, através da mente de Faith.
Joan faz uma pausa.
- Como é que consegue determinar se as doenças da Faith foram causadas pela mãe ou pela sua própria mente?
- Por defeito. Eu afastaria a Sr.a White da Faith para verificar se os sintomas desapareciam.
- E se eu lhe dissesse que uma criança em estado comatoso, cujos sistemas estavam a entrar em perturbação aguda, recuperou no intervalo de uma hora para níveis completamente normais de funcionamento, assim que voltou a estar junto da mãe após uma separação prolongada?
- Bem - diz o Dr. Fitzgerald -, sem dúvida que isso excluiria a Síndroma de Munchausen por Procuração.
- Não tem a certeza absoluta, pois não? - pergunta Metz. - De que é uma perturbação somatoforme que afecta a Faith... ou de que é a Síndroma de Munchausen por Procuração que afecta a mãe dela.
- Bem...
- As crianças apresentam sempre perturbações somatoformes no seguimento de divórcios complicados?
- Não - diz o Dr. Fitzgerald. - Pode ocorrer uma série de comportamentos desadequados.
- Pode fazer-nos uma lista, doutor?
- Por vezes as crianças reagem a nível comportamental, ou sexual. As notas descem na escola. O apetite aumenta ou diminui. Há uma grande variedade, Dr. Metz.
- Entendo. Apenas uma pequena percentagem dos casos de Síndroma de Munchausen são comunicados?
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- É verdade.
- É verdade que a maioria dos pacientes a quem é diagnosticada a SMP são mulheres, com uma idade média de trinta e três anos?
- Sim.
- Que idade tem Mariah White, e de que sexo é?
- É uma mulher de trinta e três anos.
- É verdade que os agressores que sofrem de SMP são habitualmente as mães?
- Sim.
- Mariah White não é mãe?
- Sim.
- A maioria das pessoas afectadas pela SMP sofreu um evento de grande stress na sua vida, tal como um divórcio?
- Sim.
- Mariah White não acabou de se divorciar?
- Sim.
- A maioria dos agressores afectados pela SMP possui alguma experiência na área da saúde, como pacientes ou como profissionais, correcto?
- Sim.
- Mariah White não passou vários meses numa instituição mental? -Sim.
- É verdade que no caso da SMP, as mães parecem estar muito interessadas no tratamento da criança?
- Sim - diz o Dr. Fitzgerald secamente. - Mas a maioria das mães com uma criança doente, quer sofram quer não de SMP, tende a interessar-se pelo tratamento dos filhos.
Metz ignora a resposta.
- Mariah White não se tem mostrado muito interessada no tratamento da filha?
- Foi isso que ouvi dizer.
- É verdade que a maioria dos sintomas apresentados em casos de SMP não reage frequentemente aos tratamentos médicos convencionais?
- Sim.
- As feridas das mãos da Faith não reagiram aos medicamentos coagulantes tradicionais?
- Não.
- As alucinações da Faith White não persistiram apesar dos medicamentos antipsicóticos?
- Sim.
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- É verdade que os pacientes com SMP procuram inconscientemente chamar a atenção?
- Sim.
- O caso da Faith White não foi alvo de um grau inacreditável de atenção?
- Sim - suspira o médico.
- É verdade que os agressores afectados por SMP negam o que
estão a fazer, ou por serem mentirosos patológicos ou por se encontrarem dissociados desse comportamento?
- Sim.
- Mariah White admitiu ter magoado a Faith? - Que eu saiba não.
- E isso enquadra-se no perfil da SMP?
- Sim, enquadra-se - Fitzgerald ergue uma sobrancelha. - É
claro que também se enquadra no perfil de uma mãe que não tenha magoado a filha.
- Mesmo assim, doutor, o senhor acabou de me dar cerca de
dez razões específicas que fazem este caso parecer um caso de
Síndroma de Munchausen por Procuração. Se parece uma doninha,
tem o cheiro de uma doninha e reage como uma doninha... bem,
não pode afirmar com sinceridade que seja evidente que se trata de um caso de perturbação somatoforme, pois não?
A boca do Dr. Fitzgerald cerra-se numa linha. - Isso é completamente faccioso.
Metz abana a cabeça.
- Sim ou não.
- Não.
- E em que pé ficamos?
O psiquiatra cruza o olhar com o do advogado.
- Se não se trata de uma perturbação somatoforme - diz ele, sorrindo devagar -, suponho que possa tratar-se apenas de uma menina de sete anos que vê Deus.
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Dezassete
A mulher é no mínimo uma contradição. Alexandre Pope
6 de Dezembro de 1999
- Isso - entoo -, foi inacreditável! - Por dentro, sinto-me como se pequenas bolhas subissem à superfície, e que a qualquer momento pudessem transformar-se em gargalhadas. Dou um forte abraço a Joan. - Onde é que encontrou o Dr. Fitzgerald?
- Na Internet - diz ela, olhando cautelosamente para mim. Bem, por mim até podia tê-lo encontrado debaixo de uma
rocha. O psiquiatra não só estabeleceu as bases para uma explicação alternativa dos sintomas da Faith, como também se bateu de igual para igual com Metz e ganhou.
- Obrigada. Falou tanto em fazer esta surpresa na sexta-feira que eu não pensei que fosse capaz de arquitectar uma estratégia de defesa assim tão boa tão depressa.
- E não fui, por isso não me agradeça a mim. Sorrio hesitantemente.
- De que está a falar?
- Não disponho das pessoas nem dos recursos de que o Metz dispõe, Mariah. Em circunstâncias vulgares, não teria conseguido. Teria entrado aqui esta manhã e ia andar à deriva. Mas o Ian Fletcher passou o fim-de-semana inteiro no meu escritório, descobriu o Dr. Fitzgerald e correspondeu-se com ele online, reflectindo sobre esta defesa em particular.
- O Ian?
- Ele fez isto por si - responde Joan directamente. - Ele faria qualquer coisa por si.
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O banco das testemunhas é um sítio apertado. Estamos fechados por todos os lados. A nossa voz é transmitida por microfone. Sentamo-nos numa cadeira tão desconfortável que não podemos evitar endireitar a coluna e olhar directamente para a galeria. O meu coração começa a bater com força no peito como um pirilampo preso dentro de um frasco e, de repente, compreendo porque é que isto se chama julgamento.
Os calcanhares de Joan fazem ruído no chão de madeira.
- Pode dizer o seu nome para que fique registado? Aproximo o pescoço de cisne do meu microfone dos lábios.
- Mariah White.
- Qual é o seu parentesco com Faith White?
- Sou a mãe dela - a palavra é um bálsamo; desliza-me dos lábios, para a garganta, para a barriga.
- Pode dizer-nos como se sente hoje, Mariah? Ao ouvir isto, sorrio.
- Por acaso, sinto-me muitíssimo bem.
- Porquê?
- A minha filha saiu do hospital.
- Sei que a Faith esteve muito doente durante o fim-de-semana?
- pergunta Joan.
É claro que Joan sabe que a Faith esteve doente; viu-a várias vezes. Esta formalidade, este disparate, parece ridículo. Para quê deambular por teorias e hipóteses quando podia simplesmente subir à galeria, tomar a Faith nos meus braços e acabar com isto?
- Sim - respondo em vez disso. - Entrou em paragem cardíaca duas vezes, e esteve em estado comatoso.
- Mas já saiu do hospital?
- Teve alta no domingo à tarde, e tem-se sentido muito bem olho para a Faith e, mesmo sendo contra as regras, pisco-lhe o olho.
- O Dr. Metz alega que é uma agressora afectada pela Síndroma de Munchausen por Procuração. Compreende o significado disso?
Engulo em seco.
- Que estou a magoá-la. A fazê-la adoecer.
- Tem consciência, Mariah, de que dois especialistas afirmaram agora neste tribunal que a melhor maneira de determinar a Síndroma de Munchausen por Procuração é manter a mãe afastada da criança e procurar melhoras?
- Sim.
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- Este fim-de-semana conseguiu ver a Faith?
- Não - admito. - Estou impedida de o fazer por decisão do tribunal. Não me permitem ter qualquer contacto com ela.
- O que aconteceu à Faith entre quinta-feira e domingo?
- Ficou cada vez pior. Por volta da meia-noite de sábado, os médicos disseram que não sabiam se ela iria sobreviver.
Joan franze a testa.
- Como sabe, se não esteve lá?
- As pessoas telefonaram-me. A minha mãe. E a Kenzie van der Hoven. Estiveram ambas com a Faith durante longos períodos de tempo.
- Então desde quinta-feira à noite até domingo de manhã, a situação da Faith deteriorou-se, ao ponto de ficar em estado comatoso, à beira da morte. E, no entanto, está saudável e aqui presente hoje. Mariah, onde esteve das duas horas da manhã de domingo às quatro horas da tarde desse mesmo dia?
Olho directamente para Joan, como ensaiamos.
- Estive no hospital, com a Faith.
- Objecção! - Metz levanta-se a aponta para mim. - Está a desrespeitar o tribunal!
- Posso aproximar-me?
Não devia ser capaz de ouvir a conversa deles, mas estão suficientemente zangados para gritar.
- Está a violar directamente uma decisão do tribunal! - diz Metz. - Quero uma audiência para discutir este assunto hoje!
- Credo, Malcolm. A filha dela estava a morrer - Joan vira-se para o juiz. - Mas depois a Mariah apareceu, e ela não morreu, pois não? Meritíssimo. este testemunho prova a minha teoria.
O juiz olha para mim.
- Quero ver que rumo isto vai tomar - diz ele suavemente. Dr.a Standish, pode prosseguir, e lidaremos com a violação da decisão do tribunal mais tarde.
Joan dirige-se a mim.
- O que aconteceu quando chegou ao hospital? Lembro-me do momento em que vi a Faith pela primeira vez,
ligada a máquinas e tubos.
- Sentei-me ao lado dela e comecei a falar. A máquina a que ela estava ligada começou a apitar e uma enfermeira disse que precisava de chamar o médico. Quando saiu do quarto, a Faith abriu os olhos - visualizo o rubor rosado das suas faces enquanto o tubo estava a ser retirado da garganta, a voz dela como folhas quebradiças a chamar-me. - Os médicos começaram a fazer exames. Tudo:
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o coração, os rins, até as mãos, tudo voltou ao normal. Foi... bem, foi espantoso.
- Há alguma explicação clínica para isto?
- Objecção - diz Metz. - Quando é que Mariah White se formou em medicina?
- Indeferida.
- Os médicos disseram que por vezes a presença de um familiar é uma espécie de catalisador para os pacientes em estado comatoso - respondo. - Mas também disseram que só tinham visto uma recuperação tão radical quanto esta uma vez.
- Quando foi isso?
- Quando a minha mãe regressou à vida. Joan sorri.
- Deve ser de família. Todas as outras pessoas presenciaram esta recuperação extraordinária?
- Sim. Estavam lá dois médicos, seis enfermeiras. E também a minha mãe e a tutora ad litem.
- Que se encontram todas na minha lista de testemunhas, meritíssimo, caso o Dr. Metz tenha necessidade de falar com elas mas Joan explicou-me por que razão não o fará. Ter oito pessoas a anunciar que aconteceu um milagre não beneficiará em nada o caso dele.
- Mariah, foram ditas algumas coisas sobre si nesta sala de audiências, algumas coisas de que o juiz talvez quisesse ouvir a sua explicação também. Comecemos com a. sua hospitalização há sete anos. Pode falar-nos sobre isso?
Joan orientou-me. Ensaiámos estas perguntas até o Sol nascer. Sei o que devo dizer, o que ela está a tentar transmitir ao juiz. Resumindo, estou preparada para tudo o que está prestes a acontecer, excepto o que sinto ao contar a minha história em frente a todas estas pessoas.
- Estava muito apaixonada pelo meu marido - começo, tal como ensaiámos. - E apanhei-o na cama com outra mulher. Fiquei com o coração dilacerado, mas o Colin decidiu que era a minha cabeça que precisava de conserto.
Viro-me na cadeira, para ficar voltada para ele.
- Era evidente que o Colin não me desejava. Fiquei muito deprimida, e acreditava que não seria capaz de viver sem ele. Que não queria fazê-lo - respiro fundo. - Quando estamos deprimidos, não prestamos muita atenção ao mundo à nossa volta. Não queremos ver ninguém. Há coisas que queremos dizer, coisas verdadeiras, coisas sinceras, mas estão enterradas tão fundo dentro de nós
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que é um esforço arrastá-las para a superfície - o meu rosto suaviza-se. - Não acho que o Colin fosse um tirano por me ter internado. Provavelmente estava aterrorizado. Mas desejava que ele tivesse falado comigo primeiro. Talvez mesmo assim eu não tivesse conseguido dizer-lhe o que queria, mas teria sido bom saber que ele estava a tentar ouvir. Então, de repente, estava em Greenhaven, e estava grávida. Ainda não tinha dito ao Colin, e isso tornou-se no meu segredo - olho para o juiz. - Provavelmente não sabe como é estarmos num lugar onde pertencemos a todas as outras pessoas. As pessoas decidem o que devemos comer e beber, quando nos levantamos da cama, espetam-nos com agulhas e fazem-nos ficar sentados em sessões de terapia. Eram donos do meu corpo e da minha mente, mas, por um breve período de tempo, eu era dona deste bebé. É claro, a gravidez acabou por se revelar nas análises ao sangue, e os médicos disseram-me que mesmo assim tinha de continuar a ser medicada. Disseram-me que um bebé não serviria de muito se eu me matasse antes de dar à luz. Por isso deixei-os encherem-me de drogas, até deixar de me preocupar com o risco para o bebé. Até de deixar de me preocupar com o que quer que fosse. Depois de sair de Greenhaven, comecei a entrar em pânico pelo que tinha feito àquele bebé apenas por estar a tentar salvar-me. Fiz este pequeno acordo: não fazia mal que eu não fosse uma esposa perfeita, desde que me tornasse numa mãe perfeita.
Joan cruza o olhar com o meu.
- E tem sido uma mãe perfeita?
Sei o que devo dizer: Sim, a melhor possível. Isso fez-nos rir, porque parecia um velho slogan do exército, mas nem a Joan nem eu conseguimos arranjar uma resposta melhor. No entanto, agora que estou aqui, vejo que as palavras não saem. Estendo a mão, e a única coisa que alcanço é a verdade.
- Não - sussurro.
- O queí
Tento desviar os olhos da expressão zangada de Joan.
- Disse que não. Depois de a Faith ter nascido, costumava ir aos parques infantis para observar as outras mães. Elas eram capazes de agarrar nos biberões, nos carrinhos e nos bebés sem o mínimo esforço. Mas eu, esquecia-me do almoço dela quando ia para a escola. Ou deitava fora um pedaço de papel com uns rabiscos que deveria ser um cartão do Dia de São Valentim. Coisas que qualquer mãe provavelmente faria, mas que apesar disso me faziam sentir incompetente.
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Joan interrompe-me com uma pergunta suave.
- Porque é que é tão importante para si ser perfeita?
Dizem que há momentos que abrem a nossa vida como uma casca de noz, que alteram a nossa perspectiva de forma que nunca mais voltamos a olhar para as coisas da mesma maneira. Enquanto a resposta se forma na minha boca, apercebo-me de que isto é algo que eu sempre soube, mas que nunca tinha percebido.
- Porque sei o que é não ser suficientemente boa - digo num tom suave. - Foi por isso que perdi o Colin, e nunca mais quero passar por isso - torço os dedos, juntando-os no colo. - Percebe, se eu for a melhor mãe de todas, a Faith não vai desejar ter outra pessoa em vez de mim.
Pressentindo que preciso de me afastar dali, depressa, Joan lança-me uma bóia de salvação.
- Pode dizer-nos o que aconteceu na tarde do dia dez de Agosto?
- Estava em casa da minha mãe com a Faith - recito, satisfeita por estar novamente afundada em pormenores. - Ela tinha aulas de ballet, mas apercebeu-se de que se tinha esquecido do fato. Portanto fizemos um desvio para passar por casa e encontrámos o carro do Colin à entrada. Ele tinha estado fora numa viagem de negócios, por isso entrámos para o cumprimentar. A Faith correu lá para cima e encontrou o Colin no quarto, a preparar-se para tomar um duche. Eu entrei para dizer à Faith para se despachar a ir buscar o fato, e depois a porta da casa de banho abriu-se e... a Jessica saiu de lá de dentro embrulhada numa toalha.
- O que disse o Colin?
- Ele foi a correr atrás da Faith. Mais tarde disse-me que já andava com a Jessica há alguns meses.
- O que é que aconteceu a seguir?
- Ele foi-se embora. Telefonei à minha mãe. Estava desolada, estava a afundar-me rapidamente, mas desta vez não estava sozinha. Sabia que ela tomaria conta da Faith no meu lugar, enquanto eu tentava recompor-me.
- Portanto, embora estivesse perturbada, estava a funcionar suficientemente bem para assegurar o bem-estar da Faith?
- Sim - sorrio fugazmente.
- O que mais fez depois de o Colin sair de casa?
- Bem, telefonei ao Dr. Johansen. Para que me passasse uma nova receita de Prozac.
- Entendo - diz Joan. - A sua medicação continuou a fazer com que controlasse as suas emoções?
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- Sim, sem dúvida. É evidente que me ajudou a lidar com a situação.
- Como é que a Faith reagiu a toda esta reviravolta?
- Mostrou-se muito distante. Não falava. E, então, de repente, começou a ter uma amiga imaginária. Comecei a levá-la à Dr.a Keller.
- A amiga imaginária preocupou-a?
- Sim. Não se tratava apenas de uma companheira de brincadeira. A Faith subitamente começou a dizer coisas que não faziam sentido. Citava passagens da Bíblia. Mencionou um segredo da minha infância que eu nunca tinha revelado a ninguém. E depois, por muito estranho que pareça, fez a avó regressar à vida.
Na mesa do queixoso, Malcolm Metz tosse.
- E depois?
- Surgiram alguns artigos nos jornais locais - digo. - O Ian Fletcher apareceu, juntamente com uma seita e cerca de dez jornalistas da televisão. Após a Faith ter curado um bebé com SIDA, chegaram mais jornalistas, e mais pessoas que queriam tocar na Faith, ou rezar com ela.
- O que achou de tudo isto?
- Achei horrível - digo de imediato. - A Faith tem sete anos. Não podia sair de casa para brincar sem ser assediada. Na escola faziam troça dela, por isso tirei-a de lá e comecei a dar-lhe lições
em casa.
- Mariah, encorajou de alguma maneira a Faith a ter alucinações sobre Deus?
- Eu? O Colin e eu tivemos um casamento misto. Nem sequer possuo uma Bíblia. Não podia ter colocado esta ideia na cabeça dela; não sei metade das coisas que ela disse.
- Alguma vez magoou a sua filha de forma a provocar-lhe hemorragias nas mãos e tronco?
- Não. Nunca o faria.
- O que acha que aconteceria à Faith se ela fosse viver com o Colin?
- Bem - digo num tom suave -, ele adora-a. Nem sempre pensou nos interesses dela, mas adora-a. Não é por causa do Colin que fico preocupada... é por causa da Faith. Teria de lidar com um novo irmão, e com uma mãe que não é a sua mãe verdadeira, e neste momento, acho que não é justo pedir-lhe que volte a mudar o seu mundo - olhando para Colin, franzo o sobrolho. - A Faith faz milagres. Afastá-la de mim não vai alterar isso. E não vai alterar o facto de que para onde quer que vá, as pessoas irão segui-la, ou desejar um pedaço dela.
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Sinto o olhar da minha filha pousar em mim, como o sol que me bate no alto da cabeça quando saio para a rua.
- Não consigo explicar por que razão a Faith é assim - digo suavemente. - Mas é. E não consigo explicar por que razão mereço ficar com ela. Mas é verdade.
Metz gosta de lhe chamar a sua abordagem "cobra na selva." com uma testemunha como Mariah White, tem duas hipóteses: pode entrar a matar, aproveitando-se da confusão dela, ou pode aparecer tranquilamente e interrogá-la de forma gentil e então, quando ela menos esperar, desferir-lhe um golpe fatal. O mais importante é fazer Mariah duvidar de si própria. Ela própria admitir, é esse o seu calcanhar de Aquiles.
- Deve estar farta de falar sobre esta depressão que ocorreu há sete anos.
Mariah esboça um leve sorriso educado.
- Suponho que sim.
- Essa foi a primeira vez que esteve assim tão doente?
- Sim.
A voz dele está carregada de pena.
- Teve uma depressão recorrente muitas vezes desde essa altura, não é verdade?
- Não.
- Mas tem estado a ser medicada - Metz admoesta-a ligeiramente, como se tivesse dado a resposta errada.
Parece perplexa por um momento, e ele sorri por dentro.
- Bem, sim. Mas é isso que tem evitado que fique novamente deprimida.
- Que medicamento está a tomar?
- Prozac.
- Foi receitado especificamente para aliviar as bruscas alterações de humor?
- Não tenho bruscas alterações de humor. Sofro de depressão.
- Lembra-se da noite em que tentou suicidar-se, Sr.a White?
- Nem por isso. Em Greenhaven disseram-me que provavelmente tinha bloqueado esse evento na minha cabeça.
- Está deprimida neste momento?
- Não.
- Se não estivesse a tomar nenhum medicamento, provavelmente estaria muito deprimida.
- Não sei - recua Mariah.
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- Sabe, já li sobre casos em que as pessoas que estão a tomar Prozac ficaram descontroladas. Enlouqueceram, tentaram suicidar-se. Não fica preocupada por isso poder acontecer-lhe?
- Não - diz Mariah, olhando para Joan, um pouco nervosa.
- Lembra-se de alguma coisa relacionada com o facto de ter enlouquecido enquanto estava a tomar Prozac?
- Não
- E de magoar alguém enquanto estava a tomar Prozac?
- Não.
- Então e de apenas ter algumas reacções violentas? -Não.
Metz ergue as sobrancelhas.
- Não? Então considera-se uma pessoa emocionalmente estável? Mariah acena com a cabeça, firmemente.
- Sim.
Metz dirige-se para junto da mesa do queixoso e agarra numa pequena cassete de vídeo.
- Gostaria de apresentar a seguinte cassete como prova. Joan levantou-se da cadeira num instante, aproximando-se do
juiz.
- Não pode deixá-lo fazer isto, meritíssimo. Ele apresentou esta prova sem mais nem menos. Tenho direito à instrução.
- Meritíssimo - contrapõe Metz -, foi a Dr.a Standish que iniciou este tipo de procedimento durante o seu interrogatório, relativamente à forma como a Sr.a White é estável sob a influência de Prozac.
O juiz Rothbottam tira a cassete da mão de Metz.
- vou vê-la no meu gabinete e tomar a minha decisão. Vamos fazer um curto intervalo.
Os advogados regressam aos seus lugares. No banco das testemunhas, sem ter a certeza do que está a acontecer, Mariah permanece imóvel, até Joan se aperceber do seu problema e ajudá-la a descer de lá.
- O que está na cassete, Mariah? - pergunta Joan assim que nos sentamos à mesa da defesa.
- Não sei. A sério - embora esteja frio na sala de audiências pelos padrões de qualquer pessoa, o suor acumula-se entre os meus seios e escorre-me pelas costas.
O juiz entra por uma porta lateral, instala-se na sua cadeira e pede-me para voltar ao banco das testemunhas. Pelo canto do olho vejo um oficial de diligências trazer uma televisão com leitor de vídeo.
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- Merda - resmunga Joan.
- vou permitir que a cassete faça parte das provas apresentadas - diz Rothbottam. Metz cumpre os procedimentos legais e depois diz:
- Sr.a White, vou mostrar-lhe a seguinte cassete de vídeo. Quando carrega no botão, mordo o lábio. O pequeno ecrã
enche-se com uma imagem de mim própria a lançar-me em direcção à câmara de forma que as minhas feições aumentam e ficam desfocadas. Estou a gritar tão alto que as palavras não se distinguem e passado um momento ergo a mão numa tentativa evidente de atingir quem quer que fosse que estivesse a filmar.
Então a câmara oscila violentamente, fazendo uma panorâmica num arco de cor para pousar brevemente na Faith, encolhida a um canto; na minha mãe vestida com uma bata de hospital; no Ian e no seu produtor.
A cassete da prova de esforço, as imagens que o Ian disse que não ia utilizar.
Voltou a mentir-me. Volto-me para a galeria, escrutinando com os olhos até o encontrar, sentado tão imóvel e pálido como eu devo estar.
A única forma de esta cassete ter chegado às mãos do Metz é, de alguma forma, por meio do Ian. E apesar disso, ao olhar para ele, seríamos levados a acreditar que ele se encontra tão surpreendido por vê-la aparecer em tribunal quanto eu.
Antes que eu possa reflectir sobre isto, Metz começa a falar de novo.
- Sr.a White, lembra-se deste incidente?
- Sim.
- Pode falar-nos do dia em que este vídeo foi filmado?
- A minha mãe estava a fazer uma prova de esforço após a sua ressuscitação. O Sr. Fletcher tinha permissão para filmar.
- O que aconteceu?
- Ele prometeu não virar a câmara para a minha filha, eu apenas... reagi.
- Apenas... reagiu. Humm. Costuma fazer isso muitas vezes?
- Estava a tentar proteger a Faith e...
- Um simples sim ou não serve perfeitamente, Sr.a White.
- Não - engulo em seco. - Por acaso, costumo ficar a pensar nas coisas interminavelmente antes de agir.
Metz atravessa a sala de audiências.
- Diria que esta cassete mostra-a a ser "uma pessoa emocionalmente estável"?
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Hesito, escolhendo as palavras com cuidado.
- Não é um dos meus melhores momentos, Dr. Metz. Mas no geral sou emocionalmente estável.
- No geral? Então e durante aqueles outros estranhos ataques de fúria? É nessa altura que magoa a sua filha?
- Eu não magoo a Faith. Nunca magoei a Faith.
- Sr.a White, foi a senhora que disse que é uma mulher emocionalmente estável, mas, no entanto, esta cassete de vídeo refuta claramente essa afirmação. Por isso mentiu-nos sob juramento, não foi?
- Não...
- Ora, Sr.a White...
- Objecção! - grita Joan.
- Deferida. Já transmitiu a sua opinião, doutor. Metz sorri para mim.
- Disse que nunca magoaria a sua filha fisicamente?
- Claro que não.
- Também não a magoaria psicologicamente, pois não?
- Não.
- E é uma mulher inteligente. Seguiu os testemunhos apresentados nesta sala de audiências.
- Sim, segui.
- Por isso, se sofresse de Síndroma de Munchausen por Procuração, e eu a acusasse de magoar a sua filha, o que seria provável que dissesse?
Fico a olhar para ele, com a bílis a queimar-me o interior da garganta.
- Que não tinha feito nada.
- E estaria a mentir, tal como mentiu sobre ser emocionalmente estável. Tal como mentiu sobre proteger a Faith.
- Eu não minto, Dr. Metz - digo eu, esforçando-me por me controlar. - Não minto. E protegi a Faith. Foi isso que me viu fazer no vídeo, de forma primária, talvez, mas apesar disso a protegê-la. Foi por isso que a tirei da escola quando as outras crianças começaram a troçar dela. É por isso que a tirei daqui, em segredo, antes de esta audiência ter começado.
- Ah, sim. Para se esconder. Falemos sobre isso. Desapareceu na noite após o seu marido a ter informado que ia pedir uma alteração da custódia, não foi?
- Sim, mas...
- Depois teve a infelicidade de descobrir que a sua grande fuga, afinal, não era assim tão grande. O Ian Fletcher tinha arranjado
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maneira de segui-la. Já provámos que o Sr. Fletcher já foi pouco sincero ao apresentar o seu testemunho, e agora temos provas das suas próprias falsidades. Talvez gostasse de nos contar, dizendo a verdade, para variar, o que aconteceu em Kansas City?
O que aconteceu em Kansas City?
Ian sabe que este é o momento em que Mariah poderá saborear a vingança. Primeiro foi o incidente com o McManus, depois o vídeo - embora ele pessoalmente não tivesse tido nada a ver com este último, isso não vai fazer com que Mariah seja mais branda para com ele neste momento Para além disso, a forma mais simples de recuperar a credibilidade é apresentar provas de que a Faith tem realmente a capacidade de curar. Provas que estão entrelaçadas com a história do próprio irmão de Ian.
Olho por olho. Perante isto, Ian quase ri. É absolutamente irónico que ele seja derrubado pela justiça bíblica. Mas tal como ele explorou a privacidade de Mariah, ela agora tem oportunidade para expor a dele.
Ian apoia as mãos no assento de madeira e prepara-se para o Dia do Julgamento Final.
O que aconteceu em Kansas City?
Malcolm Metz está de pé mesmo à minha frente. À direita dele, sei que Joan está a tentar desesperadamente chamar-me a atenção para que eu não diga nenhuma estupidez. Mas a única pessoa que eu consigo ver é o Ian, escondido no meio da galeria da sala de audiências.
Penso no Dr. Fitzgerald e no seu testemunho. Em Joan a entrar no seu escritório e a encontrar Ian à sua espera, preparado para fazer de assistente legal. Na expressão do rosto de Ian quando Allen McManus subiu ao banco das testemunhas, quando aquela cassete de vídeo horrível começou a rodar.
Ele não é perfeito, mas por outro lado, eu também não sou.
Olho para o Ian,
interrogando-me se será capaz de perceber o que eu estou a pensar. Depois volto-me para Malcolm Metz.
- Absolutamente nada - digo.
A cabra está a mentir. Está-lhe escrito no rosto. Metz apostaria as suas poupanças em que, de alguma forma, a chegada de Fletcher a Kansas City conduziu a provas irrefutáveis de que todos aqueles disparates esotéricos que rodeavam a Faith são apenas isso, e que, consequentemente, as alucinações miraculosas e os ferimentos
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estão mesmo a ser provocados pela Mariah. O Fletcher tem estado calado porque não quer revelar a sua grande história; a Mariah está a manter o silêncio porque isso apenas arruina a sua credibilidade. Mas para além de acusá-la de fabricar o seu testemunho de novo, há pouco mais que possa fazer.
Demora um momento para se ajeitar.
- Adora a sua filha, não adora?
- Sim.
- Faria qualquer coisa pela sua filha?
- Sim.
- Daria a sua vida por ela?
Quase consegue vê-la imaginar a Faith naquela miserável cama de hospital.
- Daria.
- Abdicaria da custódia por ela? Mariah vacila.
- Não compreendo.
- O que eu quero dizer é o seguinte, Sr.a White: se fosse provado por uma série de especialistas que Colin é o melhor dos dois para a Faith, desejaria que ela fosse embora?
Mariah franze a testa, depois olha para Colin. Passado um momento vira-se novamente para o advogado.
- Sim.
- Nada mais a acrescentar.
Furiosa, Joan pede para voltar a interrogá-la.
- Mariah - diz ela -, primeiro quero referir-me àquelas imagens da cassete de vídeo. Pode dizer-nos o que aconteceu antes do acesso de fúria mostrado na cassete?
- O Ian Fletcher tinha-me jurado que não ia explorar a Faith. Foi essa a única forma de eu concordar em autorizá-lo a filmar a prova de esforço da minha mãe. Quando virei costas por um minuto, mandou o operador de câmara fazer um plano da Faith, e eu coloquei-me entre ela e a lente.
- Em que estava a pensar naquele momento?
- Que ele não filmasse a Faith. A última coisa que eu desejava era que o interesse da comunicação social por ela aumentasse. Ela é apenas uma menina; devia poder viver como uma menina.
- Acha que se mostrou emocionalmente instável naquele momento?
- Não. Estava firme como uma rocha. Estava completamente concentrada em manter a Faith em segurança.
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- Obrigada - diz Joan. - Agora gostaria que tivesse em conta a última pergunta do Dr. Metz. Naquele contexto, a Faith seria transferida para um ambiente novo. Estaria a viver com a mulher que tinha apanhado numa situação comprometedora com o pai. Estaria prestes a ter um irmão. Não se encontraria num espaço familiar. Para não referir o facto de que os seus apoiantes, que se encontram no relvado da sua casa, provavelmente atravessariam a cidade para se instalarem junto à nova casa. Isto parece-lhe uma descrição credível?
- Sim - diz Mariah.
- Óptimo. Ora, ao longo deste julgamento, Colin conseguiu convencê-la de que era o melhor dos dois para a Faith?
- Não - responde Mariah, confusa.
- O Dr. Orlitz, o psiquiatra nomeado pelo Estado, convenceu-a de que Colin é o melhor dos dois para a Faith?
- Não - diz ela, com a voz um pouco mais forte.
- A Dr.a DeSantis, a psiquiatra apresentada pelo queixoso, convenceu-a de que Colin é o melhor dos dois para a Faith?
- Não.
- Então e Allen McManus?
- Não.
- O Sr. Fletcher?
- Não.
- Então e o Dr. Birch? Ele convenceu-a de que Colin é o melhor dos dois para a Faith?
Mariah sorri para Joan e aproxima um pouco mais o microfone. A sua voz é forte e firme.
- Não. Não me convenceu.
Depois de a defesa terminar, o juiz faz um intervalo. Fico à espera na minúscula sala de conferências que a Joan e eu temos usado, e passados alguns minutos a porta abre-se e Ian entra.
- A Joan disse-me que estavas aqui - diz ele numa voz suave.
- Fui eu que lhe pedi.
Não sabe como há-de reagir.
- Obrigada por teres descoberto o Dr. Fitzgerald. Ian encolhe os ombros.
- Estava mais ou menos a dever-te isso.
- Não estavas a dever-me nada.
Afastando-me da mesa, levanto-me e aproximo-me dele. Tem as mãos enfiadas nos bolsos com firmeza, como se tivesse medo de
me tocar.
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- Talvez também te devesse agradecer - murmura ele. - Por aquilo que não disseste.
Abano a cabeça. Por vezes não existem palavras. O silêncio entre nós é vasto como um oceano, mas eu arranjo maneira de conseguir atravessá-lo, de o envolver nos meus braços.
As mãos dele fecham-se nas minhas costas; a sua respiração agita o ar na minha nuca. Ele vai ficar comigo. Neste momento, isso basta.
- Mariah - sussurra ele -, tu podes ser a minha religião.
O juiz chama a tutora ad litem a depor.
- Os advogados e eu lemos o seu relatório. Tem alguma coisa a acrescentar nesta altura?
Kenzie acena com a cabeça energicamente.
- Tenho. Acho que o tribunal precisa de saber que fui eu que deixei Mariah White entrar no Centro Médico às duas horas da manhã de domingo.
Na mesa do queixoso, Metz fica de boca aberta. Joan olha para o colo. O juiz pede explicações a Kenzie.
- Meritíssimo, sei que pode deter-me por desrespeito ao tribunal e enviar-me para a prisão. Mas antes de o fazer, gostaria que me ouvisse, porque eu fiquei muito ligada à criança neste caso em particular, e não quero que seja cometido nenhum erro.
O juiz olha para ela desconfiado.
- Prossiga.
- Como sabe, entreguei um relatório. Encontrei-me com muitas pessoas e originalmente concluí que a vida da criança se encontrava em perigo e retirá-la dessa situação seria o melhor. Por isso, no papel que tem na mão, recomendo que a custódia seja atribuída ao pai.
Metz bate no ombro do cliente e sorri.
- Contudo - diz Kenzie -, tomei uma decisão na noite de sábado, depois de um médico dizer à Sr.a Epstein que a Faith podia estar às portas da morte. Não pensei que o sistema legal dos Estados Unidos tivesse o direito de impedir uma mãe de se despedir. Por isso telefonei à Sr.a White e disse-lhe que viesse para o hospital. Pensei, meritíssimo, que estava simplesmente a ser generosa... e esperava que o meu relatório falasse por si. Mas então aconteceu algo - Kenzie abana a cabeça. - Gostaria realmente de poder explicar. Só sei aquilo que vi, com os meus próprios olhos: uma criança que estava em estado comatoso e em ruptura recuperar assim que a mãe se colocou ao lado dela - hesita. - A sala de audiências não é lugar para observações pessoais, meritíssimo, mas eu gostaria de
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partilhar uma história consigo porque foi relevante para tomar a minha decisão. A minha bisavó e o meu bisavô foram casados durante sessenta e dois anos. Quando o meu bisavô morreu com um AVC, a minha bisavó, que estava de perfeita saúde, faleceu passados dois dias. Na minha família, sempre dissemos que a bisavó morreu de desgosto. Pode não ser muito correcto clinicamente... mas por outro lado, os médicos concentram-se nos corpos das pessoas, e não nas suas emoções. E se é possível morrer de desgosto, juiz Rothbottam, então por que razão uma pessoa não poderá ser curada pela felicidade?
Kenzie inclina-se para a frente.
- Meritíssimo, passei de advogada a tutora adlitem há dez anos, e tenho uma mentalidade bastante treinada para funcionar a nível legal. Tentei abordar este assunto de uma perspectiva racional, e simplesmente não resulta. As pessoas falavam-me de visões e imagens que choram e na paixão e agonia de Cristo. Outras pessoas falavam-me de fraudes religiosas. Ouvi falar em pessoas que estavam muito doentes, e que depois ficaram absolutamente saudáveis após tocarem ao de leve na Faith no elevador do hospital. Testemunhei muitas coisas inexplicáveis ultimamente, mas nenhuma delas aponta para o facto de Mariah White estar a magoar a Faith. Na verdade, acho que ela lhe salvou a vida. E não vai ajudar em nada esta menina afastá-la da influência da mãe - pigarreia. - Por isso lamento, juiz. Mas gostaria que ignorasse por completo o meu relatório.
A sala de audiências fica num caos. Malcolm Metz segreda furiosamente a Colin. O juiz passa a mão pelo rosto.
- Meritíssimo - diz Metz, levantando-se -, gostaria de fazer um discurso de encerramento.
- Sabe uma coisa, Dr. Metz, aposto que sim - Rothbottam suspira. - Mas não é o senhor que eu gostaria de ouvir. Já o ouvi a si e à Dr.a Standish, e à Dr.a Van der Hoven, e não sei em quem hei-de acreditar. Preciso de um intervalo para almoço, e gostaria de o passar na companhia da Faith.
Mariah vira-se para a filha. Faith tem os olhos muito abertos, confusos.
- O que dizes? - pergunta o juiz Rothbottam. Sai do seu lugar e caminha em direcção à galeria. - Gostavas de almoçar comigo, Faith?
Faith olha para a mãe, que acena imperceptivelmente com a cabeça. O juiz estende a mão. Faith coloca a sua mão na dele, e sai da sala de audiências ao seu lado.
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Faith gosta da cadeira do juiz Rothbottam. Anda à volta, mais depressa do que a do escritório do pai. E gosta da música que ele ouve. Faith olha para a colecção de CD numa prateleira.
- Tem coisas da Disney?
O juiz Rothbottam tira um CD, enfia-o no leitor e os acordes da gravação da Broadway de O Rei Leão enchem a sala. Quando despe a sua toga, Faith solta uma exclamação abafada.
- O que foi? - pergunta ele.
Ela olha para baixo, sentindo as faces arder como quando é apanhada a roubar um queque de chocolate antes do jantar.
- Não sabia que tinha roupa por baixo disso. Ao ouvir isto, o juiz ri.
- Da última vez que verifiquei, tinha - senta-se à frente dela. Fico satisfeito por te sentires melhor.
Ela acena com a cabeça por cima da sande de peru que ele colocou em cima da enorme secretária para ela.
- Eu também.
Puxa a cadeira para mais perto.
- Faith, com quem queres viver?
- Quero que eles fiquem juntos - diz ela. - Mas isso não pode ser, não é?
- Não - o juiz Rothbottam olha para ela. - Deus fala contigo, Faith?
- Hmm-hmm.
- Sabes que muitas pessoas estão interessadas em ti por causa disso?
- Sim.
O juiz hesita.
- Como é que sei que estás a dizer a verdade? Faith ergue o rosto para o dele.
- Quando está no tribunal, como é que distingue?
- Bem, as pessoas juram. Por cima de uma Bíblia.
- Se eu não estivesse a dizer a verdade... então eles não estariam apenas a dizer umas palavras por cima de um livro qualquer?
Rothbottam sorri. Lá se vai a ideia de que não há lugar para Deus dentro de uma sala de audiências. Já se encontra lá.
Mas o Deus da Faith, segundo a comunicação social, é feminino.
- As pessoas imaginaram Deus como um homem ao longo de muitos anos - faz ele notar.
- A minha professora do primeiro ano disse que há muito tempo as pessoas costumavam acreditar em todo o tipo de coisas, porque desconheciam a verdade. Por exemplo acreditavam que não
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deviam tomar banho, porque podiam ficar doentes. Depois houve uma pessoa que viu micróbios ao microscópio e começou a pensar de maneira diferente. Podemos acreditar mesmo muito numa coisa
- diz Faith -, e apesar disso estarmos enganados.
Rothbottam fica a olhar para Faith, e interroga-se sobre se afinal esta menina não será mesmo profeta.
O juiz Rothbottam empurra os seus óculos de leitura mais para baixo no nariz e olha para o queixoso, a arguida e a galeria lotada, cheia de jornalistas.
- Há vários dias levantei-me e disse-vos que num julgamento, há apenas um Deus, que é o juiz. Uma menina muito inteligente lembrou-me que isso não é necessariamente assim - ergue a Bíblia.
- Como o Sr. Fletcher fez notar de forma tão eloquente ao longo do seu juramento, ainda nos apoiamos nas convenções no tribunal, independentemente das orientações religiosas individuais. Ora, não estou aqui para falar de orientações religiosas. Estou aqui para falar da Faith White. Os dois assuntos estão relacionados, mas não se excluem mutuamente. Na minha opinião, levantámos duas questões aqui: Deus fala com a Faith White? E Mariah White está a fazer mal à filha? - recosta-se na cadeira, cruzando as mãos por cima do estômago. - vou começar com a segunda questão. Percebo a preocupação do pai. Também eu estaria preocupado. Ouvi coisas espantosas da boca do Dr. Metz e da sua sucessão de especialistas, e da Dr.a Standish e dos seus especialistas, e até mesmo da tutora ad litem nomeada para este caso. Mas não acredito que Mariah White seja capaz de fazer mal à filha de forma intencional ou não intencional - ouve-se uma exclamação abafada à direita, vinda da galeria, e o juiz pigarreia. - Ora... quanto à primeira questão. Toda a gente entrou nesta sala de audiências, inclusivamente eu, a interrogar-se se esta criança era mesmo uma espécie de milagreira. Mas a função deste tribunal não é perguntar se as visões da Faith e os ferimentos nas suas mãos são de origem divina. Não devíamos perguntar se ela é judia, cristã ou muçulmana, se é o Messias ou o Anticristo. Não devíamos perguntar se Deus terá algo importante a dizer a uma menina de sete anos. O que este tribunal deve perguntar, e responder, é o seguinte: Quem escutou, quando esta menina de sete anos teve algo importante para dizer?
O juiz Rothbottam fecha o ficheiro legal que estava aberto à sua frente.
- Baseando-me em todos os testemunhos que ouvi, acho que Mariah White tem os ouvidos bem abertos.
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Dezoito
Pois, onde estiver o teu tesouro, aí estará também o teu coração.
Mateus 6,21
6 de Dezembro de 1999, Ao Anoitecer
- Quem sou eu - diz Ian -, para vos dizer o que devem ou não pensar?
A sua voz ergue-se até às traves no tecto do edifício da Câmara Municipal, perturbando o velho ninho de ave que já está ali desde sempre. Em frente ao pódio improvisado, dois operadores de câmara andam para trás e para a frente. Um conjunto de holofotes e reflectores decoram as partes laterais do palco onde as cabinas de voto são normalmente montadas em Novembro. E os representantes de mais de duzentas televisões e jornais estão numa amálgama, aos empurrões e encontrões.
O auditório da Câmara Municipal é o único local suficientemente grande em New Canaan para acomodar a conferência de imprensa sem restrições de Ian. Anunciada com duas horas de antecedência à entrada do tribunal, está lotada. A comunicação social quer ouvir o que Ian tem para dizer, agora que a custódia foi oficialmente mantida por Mariah.
Ian sorri.
- Por que razão estão todos aqui sequer? Que importa o que eu tenho para dizer?
Um jornalista ao fundo grita:
- Por causa do café grátis?
As gargalhadas contagiam-se entre os jornalistas, chegando a Ian.
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- Talvez - percorre a multidão com o olhar. - Durante anos construí uma reputação a condenar Deus, e as pessoas que acreditam em Deus. A tentar conquistar pessoas para o meu lado. Sei que estão todos à espera de ouvir o que eu tenho a dizer sobre a Faith White, e vão ficar desiludidos. Disse a verdade ao Dr. Metz enquanto estava a apresentar o meu testemunho: não aconteceu nada em Kansas City. Não vou dizer se essa menina tem ou não Deus no bolso. vou dizer que isso não me diz respeito, e não vos diz respeito - balança-se para trás apoiado nos calcanhares. - É um choque, não é? Que depois de ter construído um império lucrativo com base no ateísmo, vos diga que as crenças religiosas são um assunto pessoal? E mesmo agora consigo ver-vos abanar a cabeça, dizer que os jornalistas podem fazer com que todos os assuntos lhes digam respeito, mas isso não é verdade. Há uma diferença entre facto e opinião; qualquer jornalista sabe isso. E a religião, embora isso seja provocador, não se refere apenas ao que as pessoas acreditam, mas também ao simples acto de acreditar. Tal como eu tenho o direito de sair daqui e dizer que Deus é uma farsa, a Faith White tem o direito de gritar da janela do seu quarto que Deus está vivo e de saúde. É a minha opinião contra a opinião dela. Mas no meio desse labirinto não existe um facto comprovado. Então quem é que tem razão? A resposta é... não sei. E não devia preocupar-me com isso. A minha mãe costumava dizer-me que não podíamos mudar a maneira de pensar de uma pessoa em relação a Deus ou à política, embora eu tenha sem dúvida tentado arduamente fazer ambas as coisas. Mas sabem, posso acabar por ser vizinho do papa um dia. Ou por ir morar ao fundo da rua onde mora a Faith. Ou num quarto de hotel ao lado do Dalai Lama. E andar de porta em porta a tentar convencê-los de que eu é que estou certo vai ser uma perda de tempo. Não, corrijo: tem sido uma perda de tempo. Não temos de aceitar as crenças uns dos outros... mas temos de aceitar o direito de cada um a acreditar nelas - acena para o fundo do auditório. Ora, eu disse que estava preparado para responder a qualquer pergunta, e não deixo de cumprir as minhas promessas. Alguém quer fazer uma pergunta?
- Sim, Ian - diz um jornalista da Time. - Foi um discurso simpático e politicamente correcto, mas que tipo de prova conseguiu arranjar relativamente aos milagres da criança?
Ian cruza os braços.
- Suponho, Stuart, que queira perguntar-me se a Faith tem capacidade de curar - o jornalista acena com a cabeça. - Bem, vi coisas que nunca tinha visto antes, e que duvido que alguma vez
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volte a ver. Mas podemos dizer a mesma coisa relativamente ao facto de se sobreviver a uma guerra mundial, ou ver uma aurora boreal, ou assistir ao nascimento de gémeos siameses. Nenhuma destas coisas é, por definição, um milagre.
- Ela vê Deus?
Ian abana a cabeça.
- Acho que vamos todos ter de decidir isso sozinhos. Para algumas pessoas, a Faith é genuína. Para outras, nem sequer se aproxima disso - encolhe os ombros, acabando definitivamente com o seu comentário.
- Parece-me uma desculpa - diz uma jornalista na fila da frente.
Ian olha para ela.
- É pena. Estou aqui a dizer o que penso. Talvez apenas não queiram ouvir isso.
- A Pagan Productions será dissolvida? - diz uma voz.
- Espero bem que não - diz Ian. - Embora talvez tenhamos de voltar a traçar os nossos objectivos enquanto empresa.
- Tem uma relação com a Mariah White?
- Ora, Ellen - Ian admoesta a jornalista do Washington Post -, se estou aqui numa situação difícil para vos dizer que Deus é um assunto que apenas diz respeito a cada um e a mais ninguém, o que acha que vou dizer sobre uma relação pessoal? - olha para a multidão e aponta por fim para um jovem com um boné de basebol da CBS News. - Sim?
- Sr. Fletcher, se já não vai dizer às pessoas que Deus é um disparate, então o que é que vai fazer?
Ian sorri.
- Não sei, mas estou aberto a sugestões.
- Deixe-me convidá-la para jantar fora - digo impulsivamente, mas Joan abana a cabeça.
- Acho que tem de ir à sua própria festa.
Por acordo tácito, deixa-me acompanhá-la até ao carro enquanto a minha mãe leva a Faith à casa de banho.
- Também merece estar presente. Joan sorri.
- A minha ideia de comemorar uma vitória é muita espuma numa banheira e um grande copo de vinho.
- Então vou enviar-lhe uns sais de banho Calgon. Ela ri-se.
- Está bem.
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Chegámos ao carro dela. Joan enfia a pasta atrás e depois vira-se, de braços cruzados.
- Sabe uma coisa, ainda não acabou. Nem pensar.
- Acha que o Colin vai apresentar recurso?
Ela abana a cabeça, pensando nos milhares de pessoas que ouviram falar da Faith, que ainda querem um pedaço dela.
- Não estou a referir-me ao Colin - diz ela.
Na Cidade do Vaticano, o cardeal Sciorro passou a manhã a organizar a sua secretária na Sagrada Congregação para a Preservação da Fé. Coloca os decretos em ficheiros formais, folheia informações tiradas de depoimentos, empilha e ordena. Atira vários dos casos para o caixote do lixo.
Coloca o caso da Faith White no monte dos "activos", debaixo de uma grande pilha de outros assuntos em que o gabinete está a reflectir, e tem estado a reflectir há anos.
Acabei de entrar no tribunal à procura da Faith e da minha mãe quando sou interceptada por Colin.
- Rye! - agarra-me pelos ombros antes que esbarre contra ele com a minha pressa. - Olá.
De imediato, sinto uma vaga de triunfo e, a seguir, culpa.
- Colin - digo pausadamente.
- Eu, hum, queria despedir-me da Faith. Se não houver problema.
Está a olhar para os sapatos, e eu apenas consigo imaginar como isto deve ser difícil para ele. Interrogo-me onde estará a Jessica. Interrogo-me, injustamente, se irá para casa e acariciará a barriga da sua nova esposa e pensará em substituir a Faith.
- Está bem. Só tenho de encontrá-la.
Mas antes que tenha oportunidade, ela dobra a esquina, com o vestido puxado para cima no rabo. Puxo-o para baixo e sorrio, prendendo-lhe os cabelos atrás da orelha.
- O papá quer dizer adeus. O rosto dela franze-se.
- Para sempre?
- Não - diz Colin, ajoelhando-se. - Ouviste o que o juiz disse. Posso ver-te nos fins-de-semana. Fim-de-semana sim, fim-de-semana não.
- Então, por exemplo, este não, mas talvez o próximo sim? Encosta a testa à dela.
- Exactamente.
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Podia ser eu. O Colin podia estar a levar a Faith para casa e podia ser eu a implorar por um minuto da atenção dela. Podia estar apoiada num joelho, a esforçar-me muito para não chorar.
Nunca compreendi como é que as crianças nos conhecem melhor do que nos conhecemos a nós próprios, como nos tocam quando precisamos mais ou nos distraem quando a última coisa que desejamos é concentrar-nos nos nossos problemas. Faith acaricia a face do pai.
- vou estar contigo - diz ela, e mete a mão no bolso da camisa dele. - Aqui.
Inclina-se para a frente, fecha os olhos, e beija-lhe uma promessa nos lábios.
Malcolm Metz senta-se no parque de estacionamento do seu escritório de advocacia em Manchester e reflecte se há-de ir para casa, dar o dia por terminado. Sabe que nesta altura as pessoas já saberão. Nesta altura até pode ter sido subtilmente despromovido, condenado a negociar transacções imobiliárias ou controvérsias em relação à validade de testamentos.
- Bem, que merda - diz ele para o seu reflexo no espelho retrovisor. - vou ter de entrar mais cedo ou mais tarde.
Sobe as escadas curiosamente silenciosas e entra na recepção curiosamente silenciosa. Por norma, quando regressa - caramba, todas as vezes - há uma multidão de jornalistas à espera que ele faça um comentário espirituoso sobre como foi fácil vencer. Não recebe sequer um grunhido do segurança que está ao lado do elevador, e encara este facto como um presságio do que está para vir.
- Dr. Metz - diz a recepcionista quando ele entra pelas portas duplas de vidro. - Tem mensagens da Newsweek, The New York Times e da Barbara Walters. - Ao ouvir isto, quase fica imóvel. Será que também falam sempre com os que perderam?
- Obrigado - cumprimenta os associados com um gesto ao passar, tentando cultivar uma aura de alheamento. Ignora completamente a sua própria secretária e entra para o seu gabinete ao canto como um leão ferido à procura de refúgio no seu covil. Tranca a porta, algo que nunca faz. Depois fecha os olhos e deita a cabeça em cima da secretária.
Ma nish-tah-naw ha-lie-law ha-zeh me-call ha lay-los.
Porque é que esta noite é diferente de todas as noites do ano?
Metz pestaneja. São palavras do Seder da Páscoa Judaica. Palavras que disse quando tinha a idade da Faith White, o rapaz judeu mais novo da família. Palavras de que, até agora, não se lembrava.
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com movimentos lentos, levanta-se, destranca a porta do gabinete e abre-a.
A minha mãe é a primeira a reparar.
- Porque é que achei que tinham desaparecido todos?
Paro o carro mesmo em frente à via de acesso. A Faith está de volta, está saudável, é um novo começo. Mas os apoiantes e os jornalistas e os membros da seita permanecem, mais numerosos do que nunca. Os polícias não estão aqui; não há ninguém para ajudar a abrir caminho para podermos entrar em segurança. Enquanto percorro lentamente o caminho de gravilha, as pessoas tocam no carro, passando as palmas das mãos pela janela da Faith com ruídos leves de pancadas.
- Pára - diz a Faith suavemente do banco de trás.
- O quê? Magoaste-te?
O carro fica imóvel, as pessoas saltam para cima do capot. Batem no pára-brisas. Raspam a pintura, a tentar entrar. A Faith diz:
- vou a pé.
Ao ouvir isto, a minha mãe toma uma atitude firme.
- Não me parece, minha menina. Aqueles meshuggenahs provavelmente passam por cima de ti antes de reparar no que estão a fazer - mas antes que a minha mãe e eu consigamos impedi-la, a Faith abre a porta de trás do carro e desaparece no mar de gente.
Entro imediatamente em pânico. Arranco o cinto de segurança e saio do carro, afastando pessoas numa tentativa de salvar a Faith. Estou mais preocupada com ela agora do que estava quando ela estava no hospital, porque estas pessoas não querem que ela fique bem. Apenas querem que ela seja deles.
- Faith! - grito, a minha voz a perder-se no rugido da multidão.
- Faith!
Então a multidão afasta-se para cada um dos lados, dividida a meio para formar uma pequena passagem que conduz à nossa porta de entrada. A Faith está a meio caminho.
- Estás a ver? - diz ela, acenando.
O corpo dele está delineado pelo luar, e as estrelas colocam-se no seu lugar em seu redor.
- Uau - digo eu, quando o Ian
entra em casa. - Entraste mesmo pela porta.
- Subi mesmo os degraus da frente. E afastei mesmo cerca de dez pessoas do meu caminho - entrando na sala de estar, coloca os
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braços em volta da minha cintura de forma que as nossas pernas e as nossas testas estão encostadas. - Deves estar feliz.
- Muito.
- Ela está a dormir?
- Sim.
Faço deslizar a minha mão pelo seu braço e puxo-o para as escadas
- Vi a tua conferência de imprensa no noticiário. Estás mesmo a ser evasivo.
Ian ri-se.
- Meu Deus. com algumas pessoas, é impossível ganharmos. Entrelaço os meus dedos nos dele.
- Tu... deste a entender que se passava algo entre nós.
- E deve mesmo passar-se. Afinal, deixaste-me mesmo entrar por aquela porta.

 

 

                                                                  Jod Picoult

 

 

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