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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


UMA ÚLTIMA AVENTURA / Eloisa James
UMA ÚLTIMA AVENTURA / Eloisa James

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

Seminário da Menina Stevenson para Jovens Damas
Queen Square, Londres
14 de setembro de 1776
Quando fez 14 anos, havia já muitas semanas que, ao ver surgir a primeira estrela no céu, Lady Boadicea Wilde exprimia o desejo de arranjar uma melhor amiga. Criara uma pedra dos desejos que mergulhava em leite sob o luar da meia-noite. Não tendo resultado, concluíra que talvez as fadas preferissem bebidas de adultos, por isso invadira o escritório do pai e mergulhara a pedra num decantador de brandy. Escrevera o desejo num papel, que depois queimara na lareira do quarto das crianças, para que voasse até ao céu.
Infelizmente, esquecera-se de abrir o tubo da chaminé, e o quarto das crianças enchera-se de fumo. Como castigo, ficara confinada à cama, de onde observava a irmã mais nova, Joan, e a filha da madrasta, Viola, aninhadas no sofá a sussurrar segredinhos.
Era tudo culpa do pai.
As filhas de duques, sobretudo as que viviam em castelos enormes, não tinham perspetivas de encontrar amigas. Ficavam presas no campo como violetas envasadas, aguardando o momento de desfilarem diante do mundo para rapidamente serem casadas.
Pelo que Betsy percebia, o pai era o melhor amigo da madrasta. Só uma rapariga que tivesse oito irmãos poderia compreender a repugnância de Betsy ao pensar nisso.
Ser amiga de um rapaz.
Nunca.
Os rapazes cheiravam mal e gritavam. Não se coibiam de atirar água por cima da cabeça de alguém, de puxarem cabelos e de exibirem as suas flatulências.

 


 


Que hipóteses teria um rapaz de compreender como ela se sentia acerca da vida? Ela ansiava por uma alma gémea, uma rapariga que se identificasse com a injustiça de ser obrigada a montar de lado na sela e de não ter permissão para disparar com arco e flecha sobre o dorso de um cavalo.

Alguns anos antes, quando os seus irmãos Alaric e Parth anunciaram o desejo de visitar a China, os olhos do pai haviam-se iluminado, e uma refeição completa fora passada a falar de escunas de três mastros e plantações de chá nas montanhas. Era verdade que o duque proibira a viagem até os rapazes serem mais velhos, mas rira-se ao descobrir que eles tinham partido na mesma.

E se fosse ela a fugir numa viagem marítima? A ideia era inconcebível.

Se a sua pedra dos desejos tivesse funcionado, ela estaria a viver num sítio onde as raparigas podiam vestir calças e viajar para onde quisessem.

Deitada na cama após a sua festa dos 14 anos — à qual tinham assistido cinco irmãos, visto que Viola e Joan estavam a recuperar da varicela —, Betsy percebeu que, se queria uma amiga, tinha de ser ela a tratar do assunto. Desejara uma amiga antes de soprar as velas do bolo, mas, no seu íntimo, já não tinha fé.

A magia revelara-se ineficaz, se não mesmo irrelevante.

Contudo, há várias maneiras de esfolar uma cabra, como dizia o cocheiro da família. Foram três meses de persuasão, súplicas e autênticas birras, mas finalmente Betsy, Joan e Viola foram levadas para o melhor colégio interno de Inglaterra, um estabelecimento gerido pela menina Stevenson, que usufruía da distinção de ser filha de um visconde.

Enquanto entravam no imponente edifício, Betsy esforçava-se por manter um comportamento senhoril. Não conseguia dissimular o sorriso tonto que lhe curvava os lábios. Quando uma criada veio para a acompanhar à ala das raparigas mais velhas, deu um abraço de despedida ao pai e à madrasta, e quase avançou a dançar através da porta, deixando-os a limpar as lágrimas de Viola.

Viola era tímida e tinha medo de viver longe de casa, mas o coração de Betsy, ao ouvir gargalhadas de meninas atrás de uma porta fechada, inchou de pura alegria. Estava finalmente — finalmente! — onde devia estar.

— A menina vai partilhar um salão com a Lady Octavia Taymor e a menina Clementine Clarke — disse a criada que a acompanhava. — Cada uma de vocês tem o seu próprio quarto, claro, e a vossa criada ajudar-vos-á de manhã e à noite. Conhecerá a Lady Octavia e a menina Clarke durante o chá.

O coração de Betsy batia tão depressa que até ficou ligeiramente nauseada. Clementine era um nome tão bonito... e Octavius não tinha sido um general? Octavia tinha o nome de um guerreiro, exatamente como ela!

O salão parecia uma versão mais pequena dos que havia em Lindow, decorado com bom gosto, com um tapete de seda e cortinados de veludo rosado. Em frente da lareira, estava posta uma mesa com um serviço de chá em prata.

Os olhos de Betsy voaram imediatamente para as duas raparigas que se levantavam. Dirigiu-se a elas. Clementine tinha caracóis loiros e um beicinho que parecia um botão de rosa; Octavia tinha sobrancelhas baixas e espessas, e um rosto magro.

— O seu nome é tão bonito — disse Betsy a Clementine depois de a criada sair.

— Gostava de poder dizer o mesmo do seu — retorquiu a rapariga, sentando-se com um sorrisinho, como se estivesse a brincar.

Betsy pestanejou.

— Sem dúvida que Boadicea é invulgar — apressou-se ela a dizer. — Prefiro Betsy.

Clementine franziu o nariz.

— Tivemos uma criada lá em casa que se chamava Betsy. A minha mãe mudou-lhe o nome para Perkins.

Betsy não sabia o que dizer.

— Percebo — foi o que lhe saiu, com uma voz monótona e estranha.

— Por favor, não se quer sentar, Lady Betsy? — perguntou Octavia, apontando para uma cadeira.

Betsy sentou-se.

— Já está há muito tempo no seminário, Lady Octavia? — perguntou.

— Eu e a Clementine temos sido as únicas internas na suite desde... — começou Octavia.

— Tenho muita esperança de que a minha mãe me venha buscar dentro de uma semana — interrompeu Clementine.

— Percebo — repetiu Betsy, esforçando-se por manter um tom cordial. Era ridículo sentir-se trémula e um pouco assustada. Não fora assim que imaginara o seu primeiro encontro com possíveis amigas, mas Clementine era apenas uma pessoa, e havia uma escola cheia de raparigas para conhecer.

— Percebe? — perguntou Clementine.

— É boa a matemática? — perguntou Octavia, num tom bastante desesperado.

— Não, não sou — respondeu Betsy. — Lamento que parta, menina Clarke. A suite é muito pequena para as três?

Clementine riu desdenhosamente.

— As refeições aqui são incrivelmente boas — comentou Octavia, elevando a voz.

— A minha mãe viajará do campo para me vir buscar assim que souber da sua chegada — disse Clementine, ignorando Octavia. — Enviei-lhe uma mensagem ontem.

Betsy teve a terrível sensação de que, sem saber como, entrara num pesadelo. Respirou fundo.

— Porque é tão indelicada, menina Clarke?

Clementine cerrou os lábios, ainda mais do que a natureza lhos cerrara, e depois abriu-os apenas o suficiente para falar.

— Ninguém pode culpar uma criança pela natureza lasciva da mãe, mas teria sido melhor se Sua Graça tivesse pensado como seria desagradável para as jovens bem-nascidas partilharem um aposento com alguém que...

— Que...? — incentivou Betsy.

— Que pode muito bem ter herdado as inclinações pecaminosas da mãe — disse Clementine, com os olhos a brilharem como mirtilos.

Betsy fitou-a com horror. Claro que Clementine sabia que a segunda duquesa do duque — a sua mãe — fugira com um conde prussiano quando Betsy era bebé. Mas nunca ninguém se referira à sua mãe de forma tão humilhante, nem insinuara que ela, Betsy, teria herdado uma inclinação para a devassidão.

— Clementine! — protestou Octavia. — Estás a ser terrivelmente mal-educada!

Clementine virou-se para ela.

— Estou só a repetir o que os cientistas já provaram, Octavia. Atributos fortes são sempre herdados, por isso se criam cavalos para as corridas. Podes chamar-lhe destino; na verdade, é ciência.

— Não acredito nisso — retorquiu Octavia firmemente.

North, um dos irmãos de Betsy, era fascinado pela criação de cavalos, e quase todas as noites lhe dava grandes explicações sobre as caraterísticas que os destacavam nos estábulos ducais. Betsy sabia, melhor do que a maioria das senhoras, que traços eram verdadeiramente herdados.

Um estranho formigueiro percorreu-lhe o corpo, como se uma parede se tivesse aberto, revelando algo de assustador por trás, algo que ela nunca imaginara. A sua tia Knowe nunca permitira que os filhos da segunda duquesa se tornassem amargos pela ausência da mãe.

«A tua mãe não nasceu para casar com o teu pai», dizia muitas vezes a tia Knowe. «Felizmente que o reconheceu, pois isso permitiu ao duque encontrar a Ophelia.»

Segundo se contava na família, ainda a tinta do decreto de divórcio não tinha secado e já a tia Knowe mandara o irmão para Londres em busca da terceira duquesa. Visto que Betsy adorava o seu querido pai, a sua amorosa madrasta e até aqueles irmãos irritantes, nunca pensara demasiado no assunto. Contudo, parecia que outras pessoas — toda a alta sociedade, como afirmava estridentemente Clementine — dedicara muito tempo a pensar nas circunstâncias da sua mãe.

— Não precisas de ser rude — disse Octavia.

— É o que toda a gente pensa — retorquiu Clementine, desviando o olhar para Betsy, com o nariz franzido como se esta fosse um pedaço de carne de carneiro estragada.

— Está a dizer que todas as meninas desta escola pensarão que sou lasciva porque a minha mãe foi infiel? — perguntou Betsy, tentando entender o alcance das palavras de Clementine.

Octavia ficou escarlate e cerrou os lábios.

— Pensarão? — retorquiu Clementine. — Pensam, assim como todas as pessoas importantes.

Betsy tentou não ouvir o eco da sua respiração áspera. O pai era importante, mas devia desconhecer este facto; caso contrário, nunca a teria deixado no covil de uma leoa.

Quase saltou da cadeira e correu em direção à porta. Talvez a carruagem ducal ainda estivesse parada à entrada. Ou talvez a menina Stevenson pudesse mandar um rapaz à casa na cidade e eles voltassem para a levar, assim como às suas irmãs, daquele sítio.

— Toda a gente diz que a segunda duquesa nunca foi, digamos assim, pura — disse Clementine. — A sua mãe deu um filho ao duque... embora a minha mãe diga que a sua linhagem é questionável... e já estava ligada ao prussiano muito antes do seu nascimento.

— O meu irmão Leo não é ilegítimo — disse Betsy, a sua voz rouca de incredulidade e horror. — E eu também não!

Com uma mãe adúltera ou não, Betsy vinha de uma longa linhagem de duques, e recebera o nome de uma guerreira. Ouviu Clementine até não aguentar mais. Depois pôs-se de pé.

— A menina é completamente desprezível — disse, controlando o mau génio como a tia Knowe lhe ensinara. — Mesquinha e preconceituosa. Não irei partilhar uma suite consigo.

Clementine riu estridentemente.

— E devia ficar grata se a pusessem a dormir no sótão! Não passa de uma bastarda, que terá muita sorte se casar com um fidalguinho rural. Seria um milagre conseguir um marido de linhagem.

Betsy pegou num copo de água do tabuleiro do chá e atirou-o à cara de Clementine.

— Sou filha de um duque — afirmou ela, desfrutando da forma como os caracóis definidos murcharam sobre os ombros da rapariga, como algas amarelas. — Nunca ouvi falar da sua família. Clarke? — Curvou o lábio e disse a primeira coisa conscientemente malévola de toda a sua vida. — Suponho que teve um antepassado que era escriturário? Que divertido conhecê-la.

Soluçando sonoramente, Clementine fugiu porta fora.

— Também me vai atirar água? — perguntou Octavia, de olhos arregalados.

— Se disser alguma coisa desagradável acerca da minha mãe, despejo-lhe o jarro de água na cabeça — retorquiu Betsy. — A meio da noite. Estou bem treinada na arte da guerra.

— Não direi uma palavra — apressou-se a dizer Octavia. — Não gosto de água fria.

Betsy fitou-a. O rosto de Octavia não era desagradável como o de Clementine.

— Peço perdão pela indelicadeza da Clementine — disse Octavia. Fitou os próprios dedos, retorcidos sobre o regaço, e olhou novamente para Betsy. — Ela é terrivelmente mal-humorada e acha que todos lhe são inferiores. Só me deixou partilhar estes aposentos com ela porque a menina Stevenson disse que, caso contrário, ela teria de abandonar a escola. Gosto do seu nome.

— Boadicea era uma rainha guerreira — explicou Betsy, tremendo um pouco.

Octavia mordeu o lábio.

— Vai precisar disso aqui — disse lentamente. — As meninas nem sempre são muito simpáticas.

Betsy sentou-se.

— Devíamos estar a estudar História, e essas coisas — explicou Octavia. — Mas, na verdade, tudo se centra no casamento. Por vezes, ao jantar, só se fala no número de pedidos que cada uma vai receber quando debutar. Os pais da Clementine têm três casas, mas isso não basta, claro.

— Ela receia não ter qualquer pretendente.

Octavia confirmou.

— Se estas raparigas pensam que não terei pretendentes — retorquiu Betsy —, irei provar-lhes que estão enganadas. — A sensação de mal-estar que tinha no estômago foi substituída por um impulso quente de fúria. — Terei mais propostas de casamento do que qualquer outra.

— Não duvido disso — disse Octavia, parecendo bastante impressionada.

Boadicea estivera surpreendentemente perto de vencer a sua rebelião contra os invasores romanos, segundo o especialista em História Militar que o duque contratara para ensinar todos os seus filhos, incluindo as raparigas.

Em junho, três anos mais tarde, quando chegou o momento de Betsy debutar...

Ela venceu.

Chegou, viu e conquistou.

Veni, vidi, vici, para citar outro guerreiro, César.

Chegado o mês de outubro de 1780, Betsy recebera — e recusara — propostas de casamento, na presença e na ausência de dama de companhia, no escritório do pai, num pavilhão de jardim, numa reentrância da Catedral de Westminster.

Rejeitara quatro pares do reino e catorze cavalheiros sem título, o que dizia muito acerca da escassez de títulos ingleses, ou sobre os padrões relativamente flexíveis da pequena nobreza, comparados com os da aristocracia.

O melhor partido de todos — um futuro duque — esquivara-se-lhe até agora, mas tinha a sensação de que essa falha estava prestes a ser corrigida.

Estava imóvel no meio do salão onde decorria um baile de máscaras no castelo de Lindow, durante as celebrações do casamento do seu irmão North, quando a sua tia Knowe surgiu de repente atrás dela.

— Ah, Betsy! Será que a minha querida sobrinha pode acompanhar o Lorde Greywick para ele ver a mesa de bilhar que acabou de chegar de Paris?

Betsy olhou para cima — e mais para cima. O futuro Duque de Eversley baixava o olhar para ela.

Ela dissera que ganhara a batalha?

As batalhas só se ganham quando o maior peixe de todos cai na nossa rede.

Sorriu.


Capítulo 2

Castelo de Lindow

Um Baile de Máscaras em Honra do Casamento de Lorde Roland Northbridge Wilde com a Menina Diana Belgrave

31 de outubro de 1780

Só um cavalheiro encontrara o caminho para a sala de bilhar a partir do salão de baile do castelo de Lindow: a maioria dos foliões estava demasiado ocupada a exibir os seus encantos ou as suas máscaras para procurar uma sala que continha pouco mais do que uma mesa de jogo em nogueira e algumas poltronas.

Visto que o castelo era maior do que a maioria das guarnições militares, não se ouvia música no recanto onde Lorde Jeremy Roden — que deixara recentemente o serviço da Artilharia Real de Sua Majestade — se sentava com as pernas abertas e estendidas, e um copo de whisky na mão.

O que deixava a outra mão livre para, com irritação, ajeitar o halo sobre a cabeça.

Uma estrutura feita de arame rígido devia ser capaz de suster um aro coberto de lantejoulas e brilhantes, mas, neste caso, o arame não estava a cumprir a sua função, e a maldita coisa entortava para o lado como um marinheiro despreparado para uma licença em terra.

Lady Knowe decretara que todos os convidados sem máscara — o que incluía a maioria dos seus sobrinhos — usariam um halo, ou sofreriam as consequências. Como resultado da profusão de anjos barulhentos que pululavam no salão de baile, nenhum olhar curioso tinha notado que o seu halo estava preso a uma ligadura que lhe envolvia a cabeça.

Se ele fosse do género de sentir gratidão, estaria grato.

Caramba, ele estava grato.

Não lhe apetecia muito explicar que a ligadura escondia um ferimento de bala quase sarado — disparado pela mãe da noiva, ainda por cima. A pobre mulher fora internada num asilo, e a ferida estava quase boa.

Infelizmente, a ligadura estava a fazer um péssimo trabalho na manutenção do halo sobre a sua cabeça: dançar passara de cansativo a mortificante, com um aro mole a balançar junto da sua orelha.

Além disso, o simples facto de estar num salão de baile repleto de anjos fazia um homem pensar na guerra e nas suas infelizes inconveniências. Se ele tivesse morrido nas colónias americanas, teria um anjo sobrevoado o campo de batalha para levar a sua desventurada alma?

Era muito improvável.

Bebeu mais um gole de whisky, dizendo a si próprio que não era o único homem do recinto que não merecia o seu adorno santo.

Os Wildes haviam sido abençoados com beleza, espírito e brilho, mas de angélicos não tinham nada.

Não mais do que ele.

A culpa vibrou no vazio onde costumava estar a sua alma, e ele emborcou o líquido, tentando afastar os remorsos que se tinham tornado a sua companhia constante. O whisky queimou-lhe a garganta, embora (infelizmente) o cérebro continuasse lúcido e os seus dedos não exibissem o mais ligeiro tremor.

O álcool deixara de cumprir a sua função há muito tempo, mas acabara por se revelar um excelente escudo contra a alta sociedade. Voltou a pegar no copo, apreciando a forma como as últimas gotas lhe queimavam a língua. Talvez fosse melhor...

A porta abriu-se e ele ouviu um homem dizer:

— Primeiro as senhoras.

Jeremy arrastou a cadeira mais para trás no seu recanto escuro. Ninguém iria àquela sala para jogar bilhar; o mais provável era estar prestes a assistir da primeira fila a um encontro amoroso realizado na preciosa mesa de bilhar do duque. E quem era ele para lhes negar uma audiência?

Com o copo vazio, Jeremy preparava-se para pegar na garrafa quando a senhora em questão respondeu:

— As minhas saias ficaram presas na dobradiça, meu senhor; teria a gentileza de as libertar?

Jeremy recostou-se na cadeira, semicerrando os olhos.

Lady Boadicea Wilde.

A mais selvagem dos Wildes, a filha mais velha do duque, que curiosamente exigia que toda a gente lhe chamasse Betsy. Um nome ridículo para uma mulher que podia arrancar a rolha de uma garrafa com um tiro disparado de um cavalo a galope... pelo menos, era o que os irmãos dela diziam.

Do outro lado da porta, um restolhar de seda indicou-lhe que o seu acompanhante fazia o possível para a libertar. Ela devia ter-se esquecido de se virar de lado. As saias de Betsy eram mais amplas do que a maioria das portas, e as suas perucas eram sempre altíssimas. Naquela noite a peruca estava adornada com um halo que a tornava mais alta do que a maioria dos homens.

Esta última parte era intencional, pensou Jeremy. Ela gostava de ser mais alta do que os seus desprezíveis pretendentes.

Betsy era a única Wilde que Jeremy não tolerava. Infelizmente, dado que ela sofria de uma obsessão doentia pelo bilhar e esta sala se tornara o refúgio dele, já a vira demasiadas vezes durante a sua estadia de dois meses no castelo de Lindow.

Que mulher tão audaz, a afastar-se tanto do salão de baile na companhia de um homem! Como uma autêntica Wilde, na verdade: excessivamente arrogante, mas de uma forma natural, como se simplesmente esperasse que os meros mortais se inclinassem perante o seu estatuto.

Ele apostaria uma montanha de moedas em como não vinham acompanhados de uma dama de companhia.

Ela não compreendia a forma como os homens pensavam acerca das mulheres. O «cavalheiro» que a acompanhava podia tencionar comprometer a sua reputação.

Ou pior.

O sangue rugiu através do seu corpo, com uma vaga de pura ira a ocupar o lugar da culpa, sua companheira habitual. Não era a primeira vez que Betsy lhe inspirava aquela reação. Junto dela, tendia a estar demasiado irritado para pensar no destino do seu pelotão.

Ele podia não ser realmente um Wilde, mas o irmão mais velho dela, North, era o melhor amigo que tinha no mundo. Protegeria a sua reputação e pessoa em nome de North.

Fletiu os dedos, vendo o tecido distender-se sobre o músculo invulgar que se salientava no seu braço. A primitiva solução de North para o mal-estar de Jeremy — para dar um título decente à sua existência lamentável — fora forçá-lo a andar a cavalo todos os dias. Por mais que tivesse bebido na noite anterior, North montava-o num corcel indomável. Consequentemente, tinha o dobro do músculo de três anos antes, quando ostentava uma elegante figura de oficial.

— Já está! — exclamou Betsy. — Oh, muito obrigada!

Ela nunca se mostrara tão efusiva e encantadora junto dele; tinham concordado, pouco depois de se conhecerem, que eram como o azeite e a água, e que ela não lhe arrancaria nenhuma proposta de casamento por mais deliciosamente que sorrisse.

Ela murmurou mais alguma coisa e, de repente, ele percebeu que aquele encontro podia ter sido planeado por ela. Talvez um amante tivesse chegado de Londres com o grupo de convidados para o baile.

Cerrou os maxilares.

Nem pensar.

Boadicea Wilde não perderia a virtude durante a sua vigilância.

— As suas saias estão livres, Lady Boadicea.

Quem quer que ele fosse — a voz soava-lhe vagamente familiar —, o homem não era seu amante. Nem a conhecia o suficiente para saber que Betsy odiava o seu nome de batismo.

Espera.

Ele conhecia aquela voz. Tinham frequentado a escola juntos, numa outra vida.

Betsy entrou na sala. Do canto escuro onde Jeremy se encontrava, ela parecia brilhar sob a luz que pendia sobre a mesa de bilhar.

Era escandalosamente bela, como todos os Wildes: olhos grandes, dentes brancos, cabelo espesso. Havia raparigas bonitas por todo o lado, mas a sensualidade inconsciente de Betsy não tinha par. Ela amava a vida, e isso era visível.

Uns dias antes, um idiota qualquer descrevera-a como aprumada e decente. Jeremy tivera dificuldade em não se rir.

Será que não viam quem ela realmente era?

Ela aumentou a luz por cima da mesa até iluminar uma extensão de lã verde imaculada, emoldurada por madeira brilhante.

Jeremy não conseguia ver o seu pretendente, que permanecia sob a ombreira da porta.

Com um sorriso malicioso, Betsy abriu os braços.

— Aqui temos a mesa de bilhar do meu pai, acabada de chegar de Paris. Corpo em nogueira e motivos em bronze, representando o escudo de Lindow, repetidos oito vezes. A minha madrasta repreendeu o meu pai pela extravagante ornamentação, mas Sua Graça aprecia ornamentos.

O cavalheiro riu-se e entrou na zona iluminada.

— A mesa é linda, mas não tanto como a mulher ao seu lado.

Jeremy suspirou. O seu velho colega de escola devia ter vergonha de um elogio tão desajeitado.

Provavelmente concordando com ele, Betsy ignorou-o.

— Eu gostava muito da nossa mesa de bilhar antiga, mas esta é mais apropriada para um castelo.

— A menina joga bilhar? — Parecia mais surpreendido do que crítico, o que era um bom augúrio para a futura relação.

— Desde sempre — respondeu Betsy. — Os meus irmãos passavam aqui muito do seu tempo. Eu punha-me em cima de uma caixa para ver o jogo. A mesa parecia um oceano verde.

— Falei com o seu pai, Lady Boadicea, e ele concordou que eu lhe pedisse a honra da sua mão em casamento.

Aquilo era fantástico. Jeremy assistia a um pedido de casamento na fila da frente e podia passar semanas a troçar de Betsy por causa disso.

O pretendente dela não se ajoelhou.

Thaddeus nunca se ajoelharia.

O homem que neste momento pedia Betsy em casamento era Thaddeus Erskine Shaw, Visconde de Greywick.

Duque de um maldito sítio qualquer, um dia.

Algo golpeou fundo no peito de Jeremy e ele semicerrou os olhos. Oh, raios, não! Não lhe agradava aquela emoção, fosse ela qual fosse.

Não a aceitaria.

Sua Graça Betsy, a Duquesa.

Soava bem.


Capítulo 3

— Lorde Greywick, a honra é minha — disse Betsy, permitindo que a sua mão enluvada repousasse sobre a dele.

— Isso soa ao prefácio de uma recusa — respondeu o visconde, provando ser mais observador do que a maioria dos seus pretendentes, que geralmente se mostravam perplexos, parecendo nunca ter considerado a possibilidade de rejeição.

Afinal, eles tinham sopesado o comportamento escandaloso da sua mãe e a sua possível ilegitimidade, comparando-o com a sua beleza, dote e excelentes maneiras. Como homens, julgavam-se prescientes, até liberais, pelo mero facto de pedirem a sua mão. Achavam que ela tinha sorte por receber uma proposta.

Não conseguiam acreditar quando ela recusava.

Ela fez uma breve pausa, considerando aquela decisão em particular. O Visconde de Greywick era alto e muito bonito, com olhos cor de avelã e maçãs do rosto herdadas diretamente de um antepassado nobre.

O pai gostava dele.

Os irmãos gostavam dele.

A tia Knowe confiava nele. Acenara com a mão, mandando Betsy sozinha com ele sem a menor preocupação. Na verdade, visto tê-los mandado para a sala de bilhar sem acompanhante, provavelmente queria que Betsy casasse com ele.

Pondo a aprovação da família de lado, o visconde não tinha necessidade de casar com ela devido ao seu dote nem ao seu estatuto, por isso, provavelmente, desejava-a. Não era propriamente lascivo, mas os seus olhos eram calorosos e apreciadores.

Betsy tentou sentir-se empolgada com isso, mas simplesmente não foi capaz.

— É, de facto, uma recusa — disse ela, retirando a mão. — Lamento dizer que não serviríamos um para o outro, meu senhor. A minha resposta é não.

— Porquê?

Aquela pergunta desconcertou-a. Ninguém tinha nada de mal a dizer acerca do Visconde de Greywick. Ele era, decididamente, o solteiro mais cobiçado de Londres, e também o mais esquivo. Ela nem sequer tentara atraí-lo e, contudo, ali estava ele.

O que podia dizer?

O senhor é um modelo de excelência, mas eu tenho um fraquinho por velhacos?

Ou, pior: Estou tão entediada neste momento.

— Nós não nos conhecemos — respondeu, percebendo, assim que as palavras lhe saíram dos lábios, que o seu argumento era fraco. Acabava de lhe dar uma oportunidade para ele lhe falar de si ou, pior, sugerir que passassem tempo juntos.

— Há outra pessoa? — perguntou o visconde. — Porque, se não houver, e com a sua permissão, gostaria de tentar persuadi-la do contrário.

Os convidados do casamento sabiam que ela deixara o salão de baile com um futuro duque. Lorde Greywick era um exemplo de integridade. Nunca ficaria sozinho com uma jovem senhora a não ser que tivesse permissão para a pedir em casamento.

A alta sociedade ficaria surpreendida quando soubesse que ela o recusara, mas não duvidaria de que o pedido fora feito.

A batalha estava terminada.

Vencida. Acabada.

Uma voz baixa e rouca respondeu antes dela.

— Devia aceitar.

Betsy quase soltou um palavrão, que teria chocado o seu pretendente. Ao invés, gritou:

— Por amor de Deus! Eu devia ter adivinhado que estava escondido aqui.

Virou-se de lado para poder ver em torno dos ombros de Greywick. Claro, a tormenta da sua vida olhava-a ansiosamente de um canto da sala.

— Não estou escondido — protestou Jeremy Roden, conseguindo parecer relativamente sóbrio e, o que era ainda mais surpreendente, quase convincente. — Voltando ao que é importante, o Greywick é um bom homem, e era o mais inteligente de todos, em Eton. Isso inclui os seus irmãos, já agora. Não me inclui a mim, pois eu insiro-me noutra categoria.

O visconde, que se virara para ele, riu-se.

— Garanto-lhe que nós também o púnhamos numa categoria diferente, Lorde Jeremy.

— Na categoria dos inúteis? — sugeriu Betsy. — Ou talvez o Lorde Jeremy já tivesse o rabo encharcado em álcool nessa tenra idade...

— Tsk, tsk — censurou Jeremy, com uma expressão que conseguia sempre irritá-la. — As senhoras decentes não usam palavras como «rabo». Tenho a certeza de que os anjos também não, e permita-me recordar-lhe que neste momento está a usar um halo.

O que a enfurecia era que tudo nela ganhava vida no momento em que Jeremy Roden lhe lançava uma das suas provocações. Ele era um homem ébrio e perturbado e, no entanto, ela...

O visconde interveio antes de lhe ocorrer uma resposta apropriadamente mordaz.

— Julguei tê-lo visto do outro lado do salão de baile, Lorde Jeremy. Fiquei contente por saber que tinha voltado do Exército são e salvo.

Talvez Greywick não tivesse ideia do que Jeremy sofrera em batalha, embora ela também não soubesse, propriamente. Mas o visconde estava prestes a dizer uma das banalidades que fazia a escuridão cobrir o rosto de Jeremy como uma tempestade sobre o oceano.

— Espanta-me que tenha perdido o espetáculo quando o Lorde Jeremy desapareceu e deixou a pobre menina Peters sozinha no extremo do salão de baile — disse Betsy.

Os olhos negros de Jeremy moveram-se para o rosto dela e, para seu alívio, a exasperação suavizou a outra expressão, fosse ela qual fosse.

Bem, exasperação ou, talvez, puro desapreço. Ela deixou que o seu sorriso se abrisse, só para o irritar ainda mais. Decidira semanas antes que ele era melhor irritado do que desesperado, e, felizmente para Jeremy Roden, ao ter crescido com tantos irmãos, ela tinha jeito para irritar os homens.

O seu irmão adotado, Parth, fora o primeiro a pôr-lhe um sapo debaixo dos cobertores, provavelmente em conluio com Alaric. Da segunda vez fora definitivamente Alaric, embora North também não estivesse inocente.

A tia Knowe ajudara-a a arranjar girinos lamacentos que, misteriosamente, apareciam nas camas deles.

— O meu halo deixou-me ficar mal — disse Jeremy, sem qualquer ressentimento na voz. — Para não atingir a cara da menina Peters com a prova da minha santidade, tive de sair do baile. Ela não se queixou. Acho que não estava a gostar que eu estivesse sempre a virar para o lado errado.

Betsy teve de admitir que o visconde possuía uma gargalhada interessante.

— Todas aquelas horas com um professor de dança não deram em nada? — perguntou o visconde, virando-se para Betsy. — No nosso tempo, os professores de Eton acreditavam que dançar era um talento fundamental, apesar de nós estarmos muito mais interessados na esgrima.

Jeremy Roden tinha ombros largos, que as senhoras comentavam por entre risinhos no salão feminino. Desde que lhes prestasse atenção, pouco lhes interessava para onde ele virava no recinto de dança.

— As lições não surtiram efeito — respondeu Jeremy com indiferença.

— Ele é uma desgraça para os vossos professores — disse Betsy ao visconde. — Parece uma vaca a caminhar no gelo.

Como era seu hábito, Jeremy limitou-se a encolher os ombros, fazendo o halo, que agora repousava sobre um ombro, brilhar nas sombras. Era enfurecedor perceber que a sua pulsação acelerava devido à forma como a luz fraca incidia nas maçãs do rosto dele. O seu cabelo preto tinha um toque de prata, apesar de ele não poder ser mais velho do que North, visto terem estado juntos em Eton.

Irritada, obrigou-se a rir.

— A tia Knowe viu o que aconteceu ao seu toucado, Lorde Jeremy, e declarou-o um anjo caído. «Caído» pode não ser o termo correto. Talvez «Murcho»? «Frouxo»? — Parou por um momento e depois disse: — Ou será que o termo que procuro é... «flácido»? — Trocou o sorriso por um falso ar de inocência.

Era divertidíssimo fazer uma brincadeira diante de um dos seus pretendentes. Parecia sentir-se livre para ser ela própria pela primeira vez num ano.

Jeremy tirou o halo e examinou a forma como este se dobrava, como uma flor a precisar de água. Depois atirou-o para o lado.

— Se quer que o Greywick, ou qualquer outro cavalheiro, case consigo, terá de se esforçar mais por se comportar como uma senhora.

Se o visconde tinha ficado incomodado com a sua piada brejeira, tanto melhor. Obviamente, ele quereria uma senhora exemplar para ser a sua duquesa, visto ser tão perfeito.

Ela não era essa mulher.

Para sua surpresa, Greywick sorria.

— Considero Lady Boadicea uma senhora perfeita.

Hum.

O homem que ela via como alguém tão solene como um juiz aparentemente não se ofendera com o seu jogo de palavras.

— Retiro o que disse — declarou Jeremy, com os olhos semicerrados. — Não deve casar-se com esse puritano inútil.

— Não sou puritano — ripostou o visconde. — O senhor devia estar a fazer o papel de um dos meus mais antigos colegas de escola e ajudar-me a lutar pela minha causa. A não ser que pretenda a senhora em questão para si próprio...

A pergunta ficou suspensa no ar tanto tempo que Betsy susteve a respiração.

Então, Jeremy Roden riu desdenhosamente.

Sim, riu com desdém.

E emborcou a garrafa de whisky que segurava, como se a sua reação não fosse já suficientemente humilhante.


Capítulo 4

Jeremy pensou rapidamente enquanto o licor lhe queimava as entranhas. Tinha de inventar uma razão para não se casar com Betsy que não fosse demasiado insultuosa.

Esta noite ela estava toda vestida de branco, o que não era invulgar para uma jovem. Naturalmente, o halo dela não pendia para o lado: erguia-se do topo da sua peruca, perfeitamente posicionado para anunciar a sua virtude.

Com halo ou sem halo, Betsy estava longe de ser angélica.

Um diabinho tempestuoso, opinativo e sedutor, talvez.

Ele não queria casar com ela, nem com qualquer outra mulher. Mal conseguia dar conta da sua própria vida. De facto, era bastante evidente que não conseguia gerir a sua própria vida, já que ainda vivia no castelo de Lindow, e não na sua própria casa.

— Eu nunca casaria com alguém que se chamasse Betsy — disse, baixando a garrafa. — Toda a gente sabe que uma Betsy tem de ser uma menina adorável, que colhe rosas, adora gatinhos e escrevinha notas de amor no seu diário. A disposição doce e modesta da Lady Betsy seria desperdiçada num energúmeno como eu.

— Não há mal nenhum em relação aos gatinhos — interveio Greywick.

O seu tom indicava que não só achava Betsy encantadora — o palerma — como lhe encheria a sua casa de felinos se ela o desejasse. O homem estava seduzido.

Não, essa não era a palavra correta.

Deslumbrado.

Fascinado. Era um pouco surpreendente, dado Greywick ser tão inteligente. Porém, Betsy tinha eficientemente enfeitiçado todos os cavalheiros solteiros de visita ao castelo desde que Jeremy chegara, no início de setembro.

Inteligentes ou não, pareciam não conseguir evitar cair sob o feitiço dos seus sorrisos melosos e dos seus olhos azuis. Aos olhos cínicos de Jeremy, isto provava que a humanidade era infinitamente otimista.

Que mulher era tão simples como aparentava?

Sobretudo uma que se parecesse tanto com uma jovem decente. A perfeição era sempre uma máscara.

— Para esclarecer o meu argumento — disse Jeremy a Greywick —, com gatinhos ou sem eles, não sou seu concorrente. Não sou homem para casar, além de que um simples marquês nunca teria precedência sobre um duque.

— Um título não determina com quem uma senhora casa — retorquiu Betsy com azedume. — Pode parecer-lhe estranho, mas há inúmeras razões pelas quais uma senhora escolheria outro homem e não a si.

Um homem menos observador poderia ser bastante tolo para acreditar no retrato encantador que Betsy oferecia neste momento: lábios e bochechas rosados, um queixo suavemente pontiagudo, grandes olhos azuis que escureciam quando estava pensativa.

Parecia angelical.

Mais ou menos... Só se se ignorasse a independência que o seu olhar transmitia, e inacreditavelmente a maioria dos homens parecia ignorá-la.

— Então, já respondeu ao Greywick? — perguntou Jeremy, ignorando o comentário dela. Considerando as mulheres que tinham tentado seduzi-lo ou comprometê-lo só na última semana, Jeremy não teria qualquer dificuldade em desposar alguém... se estivesse para aí inclinado. — Acho que devia aceitar. Tenho-a visto trucidar inúmeros pretendentes nos últimos dois meses, e ele é o melhor do grupo.

Jeremy conseguia ler a resposta nos olhos dela.

Pobre Greywick. Ser rotundamente rejeitado era, sem dúvida, uma experiência nova.

— Já está no castelo de Lindow há muito tempo? — perguntou Greywick, parecendo de certa forma desagradado. Aparentemente, não acreditava muito que Jeremy não estivesse inclinado a cortejar aquela filha de um duque... ou qualquer filha de um duque.

Betsy interveio.

— O Lorde Jeremy tem estado a ajudar o meu irmão North a ampliar os seus estábulos.

Era simpático da parte dela não lhe dizer a verdade.

Claro que ela não sabia toda a verdade.

Uma noite, ele partira para se encontrar com Parth em Vauxhall Gardens e deparara-se com alguns idiotas a largarem fogos de artifício, cujo som era notavelmente parecido com o de canhões. Não teve consciência de mais nada até acordar em casa de Parth — perdera a memória de uma semana inteira.

Ainda não conseguira ultrapassar isso.

Greywick assentiu.

— Sempre foi muito bom com os cavalos. Lembro-me da égua negra que levou para a universidade.

— A Dolly — disse Jeremy, a sua boca cedendo a um esboço de sorriso.

— Ainda a tem?

— Eu... não — respondeu, tentando afastar a memória do que acontecera a Dolly. Apesar do seu coração de leão, não se conseguira salvar no campo de batalha, e ele não pudera ajudá-la.

Greywick não estava interessado no destino de Dolly. E porque estaria? Apenas tinha olhos para Betsy. Sem dúvida que ela representava bem o papel de uma duquesa dócil.

Contudo, era feroz como os irmãos — e também um pouco louca, como todos os Wildes. Deus era testemunha de que, quando ele e North haviam estado juntos em batalha, North fora muitas vezes um guerreiro empedernido.

Lembrou-se de uma ocasião em que North se atirara de um penhasco e nadara no rio até ao HMS Vulture para os avisar... Contudo, esta linha de pensamento conduzia às trevas, e Jeremy esforçou-se por interrompê-la e devolver a sua atenção à farsa que se desenrolava diante de si.

Betsy viu a desolação perpassar os olhos de Jeremy à menção da sua égua e concluiu que conversar com um velho amigo não era bom para ele.

— Agora que esclarecemos o desinteresse do Lorde Jeremy pelo casamento — disse ela —, talvez fosse melhor voltarmos ao salão de baile, Lorde Greywick.

Dirigiu ao seu pretendente um sorriso feliz, enfatizando que não se importava nada que Jeremy Roden fosse tão veementemente rude acerca da possibilidade de casar com ela.

Claro que ela não queria um pedido de casamento de Jeremy Roden.

Mas ele tinha mesmo de tornar tão óbvio o que pensava dela?

Gatinhos? Notas de amor? Ela nem sequer tinha um diário. Desde os 14 anos, nunca se permitira ter paixonetas como as outras raparigas. Metade da sua classe no seminário desmaiava à simples menção do seu irmão mais velho, Alaric. Colecionavam gravuras em que ele, supostamente, empreendia explorações heroicas.

Eram as únicas gravuras que Betsy também comprava. A atenção a qualquer homem que não fosse seu familiar seria interpretada como interesse erótico. Os vestidos dela eram um pouco mais modestos do que a moda exigia: as suas mãos estavam sempre enluvadas, os tornozelos cobertos, os lábios sem cor. Ninguém podia acusá-la de exibir os seus recursos, com os seios tapados por um corpete, e talvez um xaile de renda para ajudar. As matronas altivas procuravam em vão qualquer sinal da fraqueza da sua mãe: Betsy não os tinha.

— Não é que eu esteja propriamente desinteressado do casamento — disse Jeremy.

— Devo corrigir-me — retorquiu ela. — Esqueci-me de dizer que não está interessado numa mulher que tenha o arrojo de se chamar Betsy ou de ter um gatinho.

— Uma excelente demonstração de afronta — disse Jeremy, apreciador. — Discurso bem elaborado. Ela dará uma duquesa perfeita, Greywick. Polida até ao limite. Sem se deixar tentar por um excelente espécimen físico como eu.

Betsy semicerrou os olhos. Estaria ele, subtilmente, a referir-se à sua mãe? Era do conhecimento geral que Yvette elogiara as coxas musculosas do seu prussiano.

Não.

Lorde Jeremy Roden era desagradável, mas não era vil. Quando muito, era demasiado frontal. Os seus insultos eram ditos de forma que todos ouvissem.

— Felizmente, tenho consolo nestes tempos de mágoa — disse Jeremy, acenando com a garrafa, com um sorriso estouvado.

— Não imagina como estou devastada por sabê-lo casado com uma garrafa de whisky — retorquiu Betsy. — Sempre planeei casar com um homem com um apêndice flácido. — Virou-se para Greywick. — Voltamos para o salão de baile, meu senhor?

— Ainda não, porque vocês deviam estar a conhecer-se — disse Jeremy. — Eu, um sortudo imprestável, conheço-vos a ambos, por isso posso fazer de casamenteiro. Atestar o facto de que fazem um casal maravilhoso. Mesmo maravilhoso. — Deteve-se e bebeu um gole de whisky. O cheiro inundou a sala, feroz e quente, o mais diferente possível do perfume de pétalas de rosa que ela usava. Ficava-lhe bem: o whisky era áspero, arrojado e verdadeiro.

— Lady Boadicea — disse o visconde, estendendo o braço.

— Oh, por amor de Deus, chame-lhe Betsy — retorquiu Jeremy antes de ela poder responder. — Ela gosta, apesar de a fazer parecer uma leiteira. O que não é. Neste momento, não consigo recordar-me das suas virtudes, por isso começo por si, Greywick. Thaddeus, visto que nos tratávamos pelo primeiro nome em crianças.

Jeremy apontou com um dedo na direção deles, e até se endireitou na cadeira, como se a sua opinião tivesse alguma importância. Betsy mal conseguia controlar o desejo de lhe atirar uma bola de bilhar à cabeça arrogante.

Em vez disso, aproximou-se de Greywick e pôs-lhe uma mão no braço.

— Thaddeus? Gosto desse nome. — Só não ronronou porque um Wilde nunca é óbvio. Mas lançou-lhe um olhar sedutor que nem o diabo no seu recanto obteria um dia dela.

— O meu nome é, de facto, Thaddeus — respondeu o visconde. — Sentir-me-ia muito honrado se me chamasse por ele.

Ele era um bocado rígido, mas, por outro lado, tinha pestanas maravilhosamente espessas, o que era positivo. Não havia nada menos atraente do que pestanas curtas e cor de areia. Era o problema com que se deparava sempre nos homens louros que a cortejavam. Os cabelos podiam ser maravilhosos, mas os olhos tinham uma expressão nua.

Mas não Thaddeus. As suas pestanas eram espessas e negras como amoras.

— Onde está o seu halo? — perguntou Betsy, abrindo um sorriso verdadeiro. — Não me diga que o deitou fora, como este depravado. A minha tia adorou a ironia de transformar convidados em anjos.

Um dos cantos da boca dele voltou a curvar-se. Era uma caraterística muito atraente que ele tinha: sorrir só com um lado da boca.

— Educaram-me para pensar que as honras não devem ser exibidas se não forem conquistadas.

— Que bem — ressoou uma voz.

— Ele vai conquistá-las, Betsola, não se preocupe com isso. O homem tem um cantinho do céu bem guardado para ele. Reservado. Herdado, na verdade.

— Betsola? — repetiu Betsy. — Não, não se incomode a explicar. Thaddeus, voltamos para o salão de baile? A minha tia deve estar a perguntar-se onde estou.

— Duvido — ripostou o diabo de olhos negros, no canto. — Acredito que a Lady Knowe deve estar a contar os minutos, esperando que a Betsy esteja a comportar-se impropriamente, se não pior. Vai casá-la antes da Páscoa. Talvez antes do Natal, se pensar que aqui o Thaddeus é tão despachado como os seus sobrinhos. Se ela não tiver cuidado, a próxima geração de Wildes nascerá toda daqui a seis ou sete meses.

— A minha tia não está a contar minutos nem meses — retorquiu Betsy, olhando-o com censura. — Está a ser muito ofensivo, Lorde Jeremy.

No entanto, tinha de concordar com ele acerca da chegada dos seus sobrinhos.

— Ai — disse Jeremy, sorrindo. — Então, creio que vale a pena dizer que o Thaddeus foi, de longe, o mais inteligente dos tipos do nosso ano. Claro que não tínhamos lá o Alaric. E ouvi dizer que o Horatius era...

— Não mencione o Horatius — atalhou Betsy bruscamente. O irmão mais velho morrera no dia em que ela fazia 11 anos. Até hoje, mantinha na mesa de cabeceira um passarinho de cerâmica que ele lhe dera.

Jeremy estava outra vez refastelado na cadeira, mas baixou a garrafa e fez-lhe um pequeno aceno.

— Peço desculpa, Bess.

— Bess? — repetiu Betsy, desesperada por mudar de assunto. — Suponho que é melhor do que Betsola.

— Visto que o seu pai batizou todos os filhos com nomes de guerreiros — disse Jeremy —, podia ter escolhido a boa Rainha Bess, em vez de Boadicea. Sua Majestade, a Rainha Isabel, usou uma armadura e montou um cavalo até Tilbury. Consigo imaginá-la a si num cavalo branco. A sua dama é uma boa cavaleira — acrescentou, apontando a garrafa para o visconde. — Afinal, consegui pensar numa boa razão para casar com ela.

Ela devia sair dali. Mas, francamente... Aquela era a conversa mais divertida que tivera em toda a noite. E decerto que era boa ideia ouvir mais informações acerca do visconde.

Além disso, doíam-lhe os dedos dos pés. Estava a usar uns sapatos de salto alto da Joan, que não lhe serviam. Soltou a mão do braço de Lorde Greywick e recuou para poder saltar e sentar-se na berma da mesa de bilhar, o que fez as almofadas laterais do vestido levantarem num restolhar de seda, obrigando-a a ajeitá-las.

— É como se estivesse a ver alguém a tentar apanhar porcos ensebados nos jogos de feira — disse Jeremy com a voz arrastada. — Thaddeus, espero que seja observador, porque a sua futura noiva tem tornozelos muito bonitos.

Lorde Greywick ficou rígido, mas Betsy deu-lhe uma palmadinha no braço.

— Ignore-o. Ele não consegue ver os meus tornozelos. A porta aberta bloqueia-lhe a vista.

— Conseguia, se me desse ao trabalho de me inclinar para a frente — contrariou Jeremy. — Seja como for, estava só a cumprir um dever de casamenteiro. Tenho a certeza de que a Rainha Isabel tinha tornozelos finos.

— Tenho de o corrigir: a Rainha Isabel não usou uma armadura — disse o visconde, encostando-se à mesa e ficando com a anca ao lado da de Betsy. Ela não se importou. Ele cheirava bastante bem, como uma flor. Muito diferente de Jeremy, que cheirava sempre a charutos e a whisky. — Sua Majestade usou um corselete de prata — continuou Thaddeus. — Contudo, há quem diga que era de aço. Não usava um capacete com plumas.

— Sei que tenho o corpo de uma mulher fraca e frágil; mas tenho o coração e o estômago de um rei, e de um rei de Inglaterra — interveio Betsy, citando a Rainha Isabel. Encolheu os ombros quando ambos os homens a fitaram, surpreendidos. — Certamente não pensam que o meu pai nos daria nomes de guerreiros e deixaria as coisas assim. Obrigou-nos a memorizar todos os discursos audazes proferidos em campos de batalha.

Então estremeceu, arrependendo-se de ter falado em campos de batalha. Jeremy cerrou os lábios. Talvez o problema não fosse o campo de batalha, mas o que se devia dizer lá. Agora era tarde.

Ao lado dela, Thaddeus mexeu-se ligeiramente, o seu ombro roçando o dela.

— Conte à Rainha Bess como eu era inteligente, Jeremy — pediu ele, como se desse uma ordem; gentil, mas uma ordem. — Preciso de ajuda, ou esta rainha procurará um consorte noutro sítio.

Durante um segundo de suspense, ela e Thaddeus viram Jeremy lutar com as trevas. O seu queixo era quadrado, mas parecia ainda mais quadrado quando ele cerrava os dentes.

— Certo — disse ele, ainda que um segundo tarde demais, num tom de voz tenso. — Preciso de apregoar a mercadoria, já que a mercadoria não consegue fazê-lo sozinha.

— Exatamente — retorquiu Thaddeus. — A senhora diz que não me conhece; quem melhor para explicar as minhas qualidades do que o homem mais eloquente do nosso ano?

— Está a falar do Lorde Jeremy? — perguntou Betsy, sobressaltada.

— Eloquente? — desdenhou Jeremy. — Não me parece.

Thaddeus virou-se para Betsy.

— De facto, ele era o melhor orador de Eton, não só do nosso ano, mas também dos mais avançados, mesmo no nosso primeiro ano. Era capaz de persuadir as estrelas a saírem do céu.

— Aborreciam-se de ficar nos seus lugares assim que eu começava a balbuciar — disse Jeremy, com a voz a voltar à habitual indiferença rouca. Tinha o cabelo despenteado por causa da ligadura enrolada sobre as orelhas. O laço do pescoço estava meio desfeito, como se ele o tivesse soltado.

Betsy olhou de relance para o visconde, que era uma amostra de contrastes: peruca com a brancura da neve, nenhum halo, e as roupas magnificamente confecionadas e usadas com excelência. Era algo em que ela reparava ultimamente: a forma como as roupas de um homem eram feitas não era tão importante, mas sim o modo como ele as usava.

Thaddeus parecia um rei pronto para ser pintado por Holbein.

— Tem de nos imaginar a todos, um grupo de inúteis sentados numa sala de aula em Eton, obcecados com os seios das mulheres e a brincar incessantemente connosco próprios; duas coisas, aliás, que estão interligadas — disse Jeremy, dando mais um gole da garrafa.

— Há uma senhora presente — retorquiu Thaddeus calmamente. De imediato se percebeu que nunca mencionaria semelhante tópico na presença de mulheres. Tinha uma bela voz rouca. Não tão rouca como a de Jeremy, mas Betsy achava que isso se devia a whisky e exaustão.

— Ela tem irmãos — disse Jeremy com indiferença. — Quanto ao mito de que as mulheres não dão prazer a si próprias, Thaddeus... É isso mesmo, um mito. Não vamos pedir à Boa Rainha Bess que o confirme, pois podemos ficar embaraçados.

Thaddeus olhou para ela.

— Quer que a acompanhe ao salão de baile, Betsy? — Era a primeira vez que se lhe dirigia pelo nome que ela escolhera, e foi um momento muito apropriado para o fazer.

Infelizmente, ela não sentiu o mais pequeno impulso para corar. Continuava interessada em ouvir como era o visconde enquanto menino da escola.

Sorriu-lhe.

— Gostaria de ouvir o que o Lorde Jeremy tem a dizer das suas proezas na sala de aula.

— Se está a usar o primeiro nome do Greywick, tem de fazer o mesmo comigo. Sobretudo porque eu lhe chamo Betsy há dois meses — disse o diabo do canto. — Mas não voltarei a fazê-lo. De agora em diante, será a Rainha Bess.

— Ao tratá-lo formalmente, a senhora está a dirigir os seus comentários para um nível educado — disse Thaddeus. A sua voz mudara: ele estava a exigir que Jeremy parasse de a chocar.

Precisava de repensar a questão de casar com o visconde. Tinha mesmo, mesmo, de repensar. O casamento não era assim tão horrível.

O casamento com um homem como Thaddeus seria... maravilhoso. Verdadeiramente. Ele governaria o país, ou lá o que fosse que os duques faziam se não fossem como o seu pai, que só com relutância comparecia no Parlamento.

Ela tinha a sensação de que Thaddeus gostaria de falar na Câmara dos Lordes.

Ela teria filhas bonitas com pestanas espessas. Isso era importante. Ficaria de coração partido se os seus bebés nascessem com escassez de pestanas. Poderia ensiná-las a dançar e a disparar, mas nenhuma filha sua colaria pelos de coelho às pálpebras no sítio das pestanas.

— Voltando ao assunto — disse Jeremy, apenas com um vestígio de sarcasmo na voz —, as salas de aula estavam apinhadas de rapazes que apenas pensavam em temas indizíveis. Exceto o Thaddeus.

Betsy quase disse «Excelente», mas então percebeu a armadilha que ele lhe montara, aquela em que ela devia confirmar o desinteresse de Thaddeus em fazer aquilo. O seu irmão Alaric explicara-lho recorrendo a uma série de sinónimos para masturbação. «Bater a manteiga», de início, confundira-a, mas depois Alaric mostrara-lhe uma ilustração numa balada erótica, dizendo que não permitiria que nenhuma das suas irmãs fosse surpreendida pela anatomia masculina.

Havia momentos em que Betsy sentia falta da mãe, de quem não se lembrava. Mas os irmãos, o pai, a madrasta, Ophelia, e sobretudo a tia Knowe tinham compensado dez vezes a perda da mãe.

— Devia casar com ele, Bess. A primeira Bess cometeu um erro ao não casar, sabe?

— Tenho de voltar para o salão de baile — disse Betsy, decidindo não defender o estado de solteira da Rainha Isabel. Tinha a desconfortável consciência de que, se ficasse muito tempo, mexeriqueiras como Lady Tallow podiam dar início ao boato de que ela se desgraçara para forçar o visconde a propor-lhe casamento.

— Espere! Fui bem-sucedido? — perguntou Jeremy, semicerrando os olhos para ela. — Está avassalada pelos prodígios do encantador rapaz ao seu lado?

Thaddeus franziu uma sobrancelha.

— Rapaz?

— Eu e o North envelhecemos antes de tempo, e você ainda tem o brilho da juventude — disse Jeremy sem ênfase.

Betsy partiu do princípio de que Thaddeus seria capaz de traduzir aquela frase como «envelhecemos devido ao tempo perdido nas colónias americanas, numa guerra infrutífera». Com sorte, ele não se sentiria insultado. Ouvira muitas vezes Jeremy dividir a humanidade entre aqueles que tinham visto um campo de batalha e os que não o haviam feito.

— Muito bem — disse ela, deslizando da beira da mesa para ficar de novo sobre os pés doridos. — Está na hora de ir. Não quero faltar à ceia.

— Posso acompanhá-la até à refeição? — perguntou Thaddeus.

Ela hesitou. Se jantasse com ele, a sociedade julgaria que aceitara a sua proposta.

— A Lady Knowe ficará desapontada consigo, Bess — disse Jeremy. — Mais um pretendente despachado.

— Ainda não estou despachado — retorquiu Thaddeus, sorrindo para Betsy. Era uma afirmação... e uma pergunta.

Betsy foi subitamente acometida pela intensa consciência de que Jeremy os observava.

— Talvez não esteja — disse, puxando as saias para poder sair de lado para o corredor. As portas do castelo de Lindow eram irremediavelmente estreitas, atendendo à moda atual de saias da largura de três mulheres.

Atrás dela, o visconde despediu-se de Jeremy. A afeição conferira à sua voz uma rouquidão que o tornava muito mais atraente do que o seu título ou a sua propriedade. Um homem que permanecia amigo de um inútil como Jeremy talvez não tivesse muito bom senso, mas tinha lealdade.

Os Wildes valorizavam a lealdade acima de tudo. Lealdade à família, obviamente, mas também aos amigos.

— Agradeço-lhe por me mostrar a mesa de bilhar — disse-lhe Thaddeus quando saíram da sala.

— Não seria a gratidão mais apropriada se eu tivesse aceitado a sua proposta? — perguntou Betsy, começando a descer o corredor. — Ainda não estou convencida de que façamos um bom par.

— Nunca esperei que aceitasse a minha proposta esta noite — disse Thaddeus, com o riso a brilhar-lhe nos olhos. — Uma senhora da sua importância deve ser conquistada com uma longa campanha.

Betsy pestanejou para ele, bastante surpreendida. Aparentemente, Thaddeus não tinha intenção de se retirar, como outros pretendentes faziam. Por vezes, um homem olhava-a com tristeza de um canto do salão de baile depois de ela lhe recusar uma proposta, mas geralmente aceitavam a sua decisão e não voltavam a abordar o assunto.

— Não sou muito bom a aceitar um «não» como resposta — acrescentou o visconde. O seu sorriso não era demasiado aberto, nem excessivamente confiante, nem arrogante. — Eu e o Jeremy éramos parecidos nesse aspeto. Ele não suportava perder, tal como eu. Competimos um com o outro durante a adolescência.

— Não sou o prémio de nenhuma competição escolar — disse ela.

— Claro que não — retorquiu o visconde. — Só estou a dizer que refinei a arte de nunca desistir quando discuto com o Jeremy. — Caminharam durante algum tempo antes de ele acrescentar: — Contudo, creio que a obstinação está a causar grande dor ao meu amigo hoje em dia. As pessoas teimosas têm mais probabilidade de amaldiçoar o destino do que de o aceitar.

— Acredito que o... o desconforto dele deriva de experiências infelizes durante a guerra. Sei que o meu irmão North, por vezes, também não consegue dormir.

No seu íntimo, ela estava convencida de que, ainda antes do casamento de hoje, a noiva de North, Diana, aprendera a artimanha de o deixar exausto.

Por assim dizer.

North parecia muito menos cansado nos últimos meses, enquanto Jeremy tinha olheiras negras sob os olhos.

— Quando estávamos na escola, o Lorde Jeremy era o homem mais cegamente leal de todos nós. Um homem assim teria dificuldade em tolerar perdas entre os seus companheiros, e mais ainda entre aqueles que serviam às suas ordens. — Betsy assentiu com a cabeça. — Eu incluiria a sua montada nesse aspeto — prosseguiu Thaddeus. — Ele adorava aquela égua. Levou-a para a escola, obviamente, mas a maioria dos rapazes deixava o cuidado dos seus cavalos nas mãos dos moços de estrebaria. O Lorde Jeremy visitava a Dolly todos os dias. A comida que nos davam era horrível, mas ele gastava a sua mesada em cenouras e num ou outro torrão de açúcar.

— Oh, meu Deus — exclamou Betsy.

— Ele foi bastante indelicado consigo — disse Thaddeus. — Pode parecer-lhe absurdo, mas, se conseguir, leve isso como um sinal da sua estima.

— Não retribuo essa estima — retorquiu ela com azedume.

Não era exatamente verdade. Mas era mais seguro afirmar que não gostava de Jeremy. Mais confortável.

Não conseguia imaginar pior destino do que ter um aris-tocrata com uma língua viperina, uma alma sombria e tendência para a bebida a precipitar-se na conclusão de que ela tinha uma paixoneta por ele. De certeza que ele nunca mais se calaria.

— Compreendo perfeitamente. Qualquer jovem senhora se sentiria afrontada pelas suas terríveis maneiras. Peço desculpa por não a ter tirado dali imediatamente.

Betsy fitou-o e ergueu uma sobrancelha.

— Eu não queria sair.

Thaddeus pestanejou, absorvendo visivelmente o facto de ela não ser uma mulher que precisasse de ser resgatada do desconforto que a sociedade decretara que ela devia estar a sentir.

— Julgo ter percebido, pelos elogios do Lorde Jeremy, que é uma estupenda amazona — disse ele, recuperando rapidamente.

— Sou — admitiu Betsy. — Fomos criados em parte no quarto das crianças, em parte nos estábulos. O North sempre foi fascinado por cavalos, e nós, os mais pequenos, costumávamos andar atrás dos mais velhos como se fôssemos patinhos. Gosta de montar?

— Gosto. As horas mais felizes da minha infância foram passadas com o mestre dos nossos estábulos, o Barnes. Ele ensinou-me muito acerca da vida. Eton foi muito bom, à sua maneira, mas as lições mais importantes são aprendidas em casa.

— Eu e as minhas irmãs tínhamos precetoras, mas depois fomos enviadas para um seminário de raparigas — disse Betsy. — É uma escolha invulgar para as filhas de um duque, mas adorei estar lá, após algumas dores de crescimento. Como diz, as lições que aprendi não têm preço.

A verdade era que, se ela tivesse ficado em casa, teria debutado numa abençoada ignorância da opinião da sociedade. Teria tentando ser ela própria e sido prontamente relegada para um canto do salão de baile, se não mesmo totalmente ostracizada.

A posição do seu pai nada podia fazer para impedir os julgamentos das matronas que regiam a alta sociedade.

— Vai mandar as suas filhas para a escola?

— Isso dependerá dos desejos delas — disse Betsy. — A minha irmã Viola é extremamente tímida. Teria sido muito mais feliz em casa. Mas a minha irmã mais pequena, a Artemisia, vai adorar uma sala de aula cheia de meninas.

Thaddeus fitou-a, de olhos brilhantes.

— Quanto mais a conheço, mais perfeita me parece.

Betsy pigarreou.

— Garanto-lhe que estou longe de ser perfeita.

— Naturalmente, esforço-me pela perfeição, devido à minha posição e responsabilidades — disse Thaddeus. — Contudo, quando não atinjo os meus próprios padrões, sou reconfortado pelo facto de que uma reputação excelente pode derrotar as bisbilhotices. A sua reputação é impecável. — Betsy acenou um agradecimento, consciente de uma sensação desagradável. — As pequenas falhas morais são permitidas sob um disfarce de retidão — acrescentou Thaddeus, enterrando-se um pouco mais.

Afinal, talvez as pestanas espessas não fossem suficientes para contrabalançar um moralismo tão empedernido.


Capítulo 5

Depois da meia-noite os convidados começaram a abandonar a festa. Os recém-casados haviam desaparecido há muito. O duque e a duquesa tinham-se despedido depois de uma ceia leve, retirando-se para a Torre Norte, onde a família estava alojada. Os convidados que viviam perto partiram nas suas carruagens; os de longe foram para as suas camas no castelo, sozinhos ou aos pares.

Ainda assim, o baile continuou para os que gostavam de dançar ou adoravam mexericos, que não se retirariam antes de Prism servir outra refeição ligeira.

Os convidados que usavam máscaras tinham-nas retirado à meia-noite; os que traziam halos haviam-se livrado deles muito antes. O chão do salão de baile estava juncado de lantejoulas esmagadas, caídas de toucados angélicos. A extensão de soalho envernizado sob os candelabros parecia um lago a brilhar ao luar, com as saias das senhoras a dançar a varrerem as lantejoulas em ondas que seguiam no seu rasto.

Betsy suspirou.

Sentia-se sozinha.

Tinha dançado com Thaddeus duas vezes.

Sem qualquer surpresa, o visconde dançava com um controlo perfeito, mantendo o cotovelo exatamente no nível certo enquanto rodavam na direção um do outro e depois se afastavam. Já muito tarde, tinham dançado uma coreografia nova, chamada cotilhão. Cada movimento dele fora perfeito.

Tal como os dela, claro.

As pessoas recuavam para os observar, um burburinho perpassando pelos convidados reunidos como vento a soprar nas árvores. O rosto de Thaddeus não denunciava qualquer reconhecimento da atenção que recebiam.

Ele estava acostumado àquilo.

Ela também, mas isso não significava que lhe agradasse.

Aquela seria a sua vida se casasse com ele; para um duque e uma duquesa, a privacidade era um luxo, e o escrutínio uma certeza. As papelarias de Londres emitiam gravuras dos Wildes, por mais espúrias que fossem as suas representações: o seu irmão Alaric a combater um monstro marinho; North como um vilão de Shakespeare.

Sem dúvida que alguém naquele baile ia reportar as suas duas danças, já para não mencionar o facto de ela e Thaddeus se terem ausentado juntos do salão de baile. Na semana seguinte, os dois estariam na montra de todas as papelarias, provavelmente com um anel de noivado a emoldurá-los, para dar mais efeito.

Neste momento, os únicos Wildes que permaneciam no salão de baile eram Betsy e a tia Knowe. Betsy continuava a dançar, ignorando os pés doridos, sempre alegre.

As pessoas faziam-lhe perguntas astutas acerca do visconde, que ela contornava habilmente. «Sim, é muitíssimo atraente. Sim, dança extremamente bem.»

Exatamente quando ela decidira que devia entreter outro pretendente, ainda que só para calar os mexericos, um candidato apresentou-se-lhe. Esguio e elegante, inclinou-se diante dela. A sua peruca era ambiciosa, mas não tão alta como a dela. Ela conhecia-o, claro... mas quem era ele?

Ela fez-lhe uma vénia pronunciada e, ao endireitar-se, conseguiu estabelecer a ligação. Tratava-se de Grégoire Bisset-Caron, que era, curiosamente, primo direito de Jeremy. Não pareciam, de todo, ter caído da mesma árvore genealógica.

— Espero que esteja a passar uma noite agradável — disse o Sr. Bisset-Caron. — Não tive a sorte de dançar consigo, mas, dadas as circunstâncias, julgo que devíamos pelo menos passar algum tempo juntos.

Betsy ergueu uma sobrancelha.

O Sr. Bisset-Caron apontou para o seu fato preto. Vestia uma casaca preta com um brilhante colarinho de veludo cosido a vermelho.

— Mefistófeles ao seu serviço. Perdoe-me a presunção, mas a sua beleza celestial seria capaz de transformar o mais negro dos diabos.

— Mefistófeles não foi aquele que vendeu a alma ao diabo? — perguntou Betsy. — Creio que ele próprio não era nenhum diabo.

— Não sou grande leitor — respondeu o Sr. Bisset-Caron. — Mas o veludo preto fica-me bem.

Talvez ele se referisse à forma como empoara o rosto até ficar com uma cor anormalmente pálida; sem dúvida que todo aquele veludo brilhante realçava a sua palidez.

— Lady Boadicea, gostaria de lhe rexitar um poema que escrevi em sua homenagem esta manhã.

Betsy deu um pulo, sobressaltada. O Honorável Adrian Parswallow chegara sorrateiramente por trás dela. A casa de campo da sua família ficava apenas a alguns quilómetros de distância, e eles costumavam brincar juntos em criança — o que significava que os Wildes tinham reparado quando ele começara a trocar o som «s» pelo «x», por volta dos seus 18 anos.

Adrian tinha uma testa muito alta, acentuada por uma peruca que fora empoada com um infeliz tom de cor de laranja. Talvez fosse um bom poeta, e, sem dúvida, mostrava originalidade ao aparecer num baile de casamento com casaca e calções laranja-vivos.

— Boa noite — disse ela, fazendo uma vénia. O homem devia estar mascarado de cenoura. — Que máscara invulgar.

Adrian fez uma vénia tão profunda que quase se arriscava a rasgar os calções extremamente justos.

— Eu sou imprevisível em todos os aspetos. Trajar de preto é para os velhos.

— Que coisa horrivelmente rude da sua parte — retorquiu o Sr. Bisset-Caron, num tom gélido.

— Sr. Bisset-Caron — exclamou Adrian, avistando o Mefistófeles. — Eu nunca o incluiria na minha xenxura.

Tinha uma forma extraordinária de falar; a sua entoação era tão superior que parecia bocejar entre palavras.

Betsy conseguiu esboçar um sorriso.

— Vou rexitar o meu poema — propôs Adrian.

Para Betsy, a poesia era como desenhar, bordar, fazer arranjos de flores e contar roupas de cama.

Um tédio.

Quando debutara, oito meses antes, Betsy manifestara grande deleite perante o primeiro poema escrito acerca dela. Em consequência, versos infindáveis haviam sido compostos em sua honra.

Se ao menos tivesse sido honesta quando lhe deixaram o primeiro poema aos pés!

— Nós, os diabos, não temos interesse em literatura — disse o Sr. Bisset-Caron. — Prefiro a arte do lápis. — E então, respondendo ao ar confuso de Betsy, acrescentou: — Tenho um dom para desenhar. Teria muito gosto em mostrar-lhe o meu caderno, Lady Boadicea. — Dirigiu-lhe um sorriso malicioso. — Levei-o comigo para a capela esta manhã e julgo que criei um lindo perfil de si.

Betsy conseguiu mostrar um sorriso. Tal como os poemas, achava muito desinteressantes os retratos que a representavam.

O sorriso do Sr. Bisset-Caron alargou-se.

— Os meus desenhos não são como os outros — disse ele suavemente. — Rivalizam com qualquer um que possa ter visto nas montras das papelarias.

— Um desenho nunca poderia descrever o seu objeto tão bem como um poema — disse Parswallow.

— Permita-me que discorde — retorquiu o Sr. Bisset-Caron. — As minhas imagens da família real são reconhecidas por toda a gente da cidade de Londres, enquanto o poema que o ouvi a recitar hoje, acerca da voz da sua mãe, podia aplicar-se praticamente a todas as mulheres que escolhessem ser frutíferas e multiplicar-se.

Adrian recebeu o insulto com o olhar furioso com que rece-beria Mefistófeles em pessoa.

— O meu poema, Lady Boadicea — incentivou Adrian, virando o ombro a Bisset-Caron.

O artista sorriu.

— Nós, diabos, não temos tempo para versejar — proferiu, antes de partir.

— Receio não poder acompanhá-lo a um recanto sossegado — disse Betsy a Adrian.

— O xilênxio e a privaxidade são os melhores companheiros da poesia — afirmou Adrian. — Alegra-me poder ler-lhe o poema em público. Não quero que alguém questione a sua honra.

Ninguém queria ver a sua honra questionada por alguém com um problema de fala.

— Uma Ode ao Nome Betsy — começou Adrian. — O terno e compaxivo tom da sua voz pode curar um coraxão magoado... Ahhh, Betsy! — Fez uma pausa.

— Que interessante primeiro verso — observou ela.

— Há mais — disse o poeta, o que não era uma surpresa.

Felizmente, antes de ele poder recitar mais de oito ou nove linhas, a tia Knowe apareceu. Betsy segurou-lhe a mão.

— Querida tia, ouça este maravilhoso poema.

— Achei muito interessante o poema que recitou esta manhã: a ode à voz suave e compassiva de uma mãe — disse a tia Knowe a Parswallow. — Apesar de eu própria não ser mãe, consegui identificar-me completamente.

— Mas todos nós tivemos mãe — disse o poeta. Depois deteve-se, confuso, ficando vermelho como uma beterraba. — Perdoe-me, Lady Boadicea, se eu...

Betsy esboçou-lhe o sorriso inocente que era a sua imagem de marca e aninhou-se mais perto da tia.

— Considero-me muito afortunada por ter tido como mãe a tia Knowe, na ausência da minha própria mãe. — Lançou à tia um olhar maroto. — Embora não me lembre de ter ouvido a sua voz suave e compassiva muitas vezes. — Virou-se novamente para Adrian. — Sabe, havia imensos Wildes no quarto das crianças. Ela tinha de nos gritar todos os dias.

A tia Knowe desatou a rir, fechou o leque e deu palmadinhas no ombro de Betsy.

— Que menina malvada! Eu exibo sempre a imagem de uma senhora suave e terna. — Acenando bruscamente para Adrian, puxou Betsy para longe dele. — Tens noção de que és o único anjo que durou o baile inteiro com um halo perfeitamente erguido? Posso sempre contar contigo para superares as tuas rivais.

— Usar chapéus não é uma arte, tia Knowe — observou Betsy. — É absurdo elogiar-me por uma razão tão tola.

— Que disparate! — retorquiu a tia. — Já percebi que não estás muito bem-disposta. Reconheço esse olhar da tua infância. A partir do momento em que tiveres um marido que te proteja das opiniões do mundo, podes criar todos os escândalos que quiseres.

— Não preciso de um marido — protestou Betsy. — Tenho um pai e um milhão de irmãos, e a tia. É suficiente.

A tia Knowe ignorou o comentário.

— O teu pai pensa que o Greywick seria um bom marido para ti. Eu concordo, como terás percebido, visto que vos mandei sair daqui juntos. Escusado será dizer que o salão de baile ficou hipnotizado pela vossa ausência. Jogaste uma partida de bilhar? Ou, mais concretamente, ganhaste?

— Não jogámos bilhar — respondeu Betsy, surpreendida. — Pensei que me tinha mandado com ele para ouvir a sua proposta de casamento.

— Naturalmente, sabia que o Greywick a faria, mas a questão mais importante é se ele te consegue vencer no bilhar, não é? Pensei que ficarias ali toda a noite, se ele tivesse de tentar mais de uma vez. Apenas esperava que o rapaz tivesse jeito com o taco. E isto não é um trocadilho!

— Não joguei bilhar com o visconde — disse Betsy. — Desde quando é que esse é um bom padrão para escolher um marido, tia Knowe? Se isso fosse um costume, teria casado com o Parth, apesar de a Lavinia me assassinar. Foi o único homem fora da família que me derrotou sem apelo nem agravo.

— O padrão seria apenas para o teu casamento — disse a tia. — O bilhar é tão importante para ti, minha querida, se bem que o Parth teria sido um péssimo marido para ti. Para começar, é teu irmão por laços de família, ainda que não por sangue. E, em segundo lugar, é demasiado alegre.

Prism, o mordomo do castelo, estava a acompanhar a saída dos músicos do salão de baile. Chegara realmente a hora de partir; uma jovem ficar até ao fim de uma festa dava a impressão de que estava desesperada.

— Gosto de pessoas alegres — disse Betsy, virando-se para a porta do salão de baile. — Não quero aturar um homem carrancudo à mesa do jantar todas as noites para o resto da minha vida.

Não o disse, mas uma imagem de olhos rabugentos ocorreu-lhe, seguida imediatamente pela do abdómen liso de Jeremy. Um dia ela entrara no estábulo no momento em que ele apanhava uma camisa limpa que um moço lhe atirara.

Não que isso fosse relevante, mas o abdómen dele tinha músculos esculpidos, e o peito parecia duro e levemente penugento.

A tia Knowe deu-lhe uma palmadinha no ombro.

— Claro que sim, querida. Mas também se poderia dizer que tu já fazes piruetas suficientes para uma casa inteira.

Betsy semicerrou os olhos para a sua adorada tia.

— Eu não faço piruetas!

— Usei a expressão errada — retorquiu a tia. — Escapou-me. Queria dizer que borbulhas de alegria.

Betsy abanou a cabeça. Não havia nada de errado em ser alegre. Era uma defesa perfeita contra as indignidades do mundo.

A tia Knowe não disse nada, apenas abraçou Betsy. Depois de a mãe dela, Yvette, ter saído do país, a tia Knowe tornara-se de muito boa vontade uma mãe para os filhos de Sua Graça.

Era robusta como um velho carvalho. Cheirava a camomila e a gengibre doce, e era acolhedora como um lar.

— Não quero casar com nenhum deles — sussurrou Betsy.

— Nem precisas, querida — disse a tia, embalando-a. — Podes ficar comigo. Ensino-te a secar ervas, e nunca precisaremos de sair do Cheshire. — Depois desatou a rir às gargalhadas. Betsy recuou, horrorizada com a ideia de envelhecer no castelo de Lindow. — Sempre achei que eras mais parecida com o Alaric do que as outras crianças — observou a tia Knowe.

— Ansiosa por aventuras, é isso?

— Sim.

Era verdade. Betsy dominava as regras da alta sociedade porque era obrigada. Mas queria... mais. Mais do que jogos de bilhar pela noite fora, normalmente sozinha.

Mais das coisas que os homens podiam fazer, e as mulheres não.

Ela gostava de ser mulher. Mas não lhe parecia que querer montar com uma perna para cada lado, licitar num leilão ou comprar um cavalo fosse pedir demasiado.

Ir a clubes e jogar bilhar. Ir a sítios onde os homens se reuniam, conversavam e faziam negócios. Fazer algo arriscado, como os homens que apostavam fortunas lançando uma moeda ao ar e faziam curvas deixando um milímetro entre a roda da carruagem e a berma do passeio.

Estava tão cansada de se sentar no meio de grupos de mulheres e ouvi-las coscuvilhar acerca de quem casaria com quem, quem estava para morrer e quem era infiel. Relativamente ao último aspeto, ela nem sequer podia dar a sua opinião — as meninas não deviam conceber o adultério, mesmo que o ato fosse discutido na sua presença.

Ela parecia ser a única pessoa que compreendia quão prejudiciais podiam ser aquelas conversas. Precisava de todas as suas forças para conter uma reprimenda. Um mexerico casual acerca da infidelidade de uma mulher podia arruinar o futuro dos seus filhos. Podia destruir vidas.

No entanto, quem podia censurar as senhoras por coscuvilharem? Todas as mulheres que conhecia negariam categoricamente alguma vez ter dado origem a um escândalo. Contudo, pouco mais faziam durante o dia, porque não havia mais nada para fazer.

A fuga da mãe de Betsy para a Prússia arruinara qualquer interesse que ela pudesse ter na vida íntima das outras pessoas. No seu mundo perfeito, um homem e uma mulher ficariam juntos enquanto quisessem e depois separar-se-iam, se tivesse de ser. Ninguém prestaria atenção às suas vidas privadas.

A tia Knowe resmungou.

— Conheço essa expressão.

— Qual expressão?

— Neste momento, és a imagem perfeita do teu irmão Alaric. Quando ele punha essa expressão, era sinal de rebelião pura. Sabes, o teu pai proibiu-o de ir à China quando era jovem, e ele não só foi, como também levou o Parth.

— Sim — respondeu Betsy. — Mas, se bem me lembro, o pai acolheu bem a ideia.

— O que quero dizer é que, se eu tivesse sugerido ao Alaric que ficasse em casa e aprendesse a fazer um herbário, ele teria ficado com um ar tão trágico como tu.

— O Alaric teve tanta sorte — disse Betsy, nostálgica. — Quem me dera virar as costas à sociedade e partir.

— Casa-te, e depois viaja — aconselhou a tia.

Ela não queria ser uma esposa. Queria ser ela própria, mas sem uma mãe infame e um pai famoso. Apenas uma pessoa no meio de estranhos. Não uma esposa.

A tia Knowe estalou a língua e pôs um braço em volta dos ombros de Betsy.

— Parece que o meu irmão gémeo concebeu não um, mas dois aventureiros. Tu comportas-te na perfeição e eu nem me tinha apercebido, Betsy. Sinto-me uma tia horrível por não ter compreendido o que te ia no coração.

— A tia é a melhor das tias — afirmou Betsy, encostando a cabeça ao ombro de Lady Knowe. — Mas eu estou cansada de ser perfeita.

— Foste a belle deste baile e de todos os outros esta temporada — disse a tia, dando-lhe um abraço apertado. — Já se espalhou a notícia de que rejeitaste o visconde, e todas as jovens estão verdes de inveja.

— Elas adivinharam?

— Ele foi logo contar à mãe, a duquesa, que o tinhas recusado. Tens a certeza de que não queres o Thaddeus, minha querida? Conheço-o desde criança, e que rapazinho amoroso era! Não acredito que desista facilmente. Quando muito diria que, depois de o teres rejeitado, o interesse dele redobrou.

— Foi o que ele me disse — contou Betsy, tentando encontrar um pedacinho de si que se importasse com isso. Não encontrou.

— Seria agradável ser uma duquesa — disse a tia, começando a encaminhar-se para a porta e levando Betsy consigo. — Vamos, minha querida. Está na hora de nos retirarmos.

— Tenho observado a minha madrasta a desempenhar esse papel — comentou Betsy. — Gostaria de viver uma vida mais privada. Além disso, a minha nova cunhada acredita que ser duquesa seria mais horrível do que trabalhar como precetora. Ou criada de taberna.

— Esperemos que não tenhas oportunidade de testar essa teoria no que diz respeito à taberna — disse a tia Knowe. — Ainda estou abalada pelo facto de o meu sobrinho mais velho, ainda vivo, ter casado com uma mulher que frequentou a ala dos criados.

Betsy beijou-lhe a bochecha.

— É demasiado tarde para fingir que não adora a Diana, minha querida tia.

— Eu adoro-a. Mas espero que nunca contemples a hipótese de entrar para o serviço doméstico, Betsy. Não estás fadada para acatar ordens.

— Eu poderia acatar ordens! — exclamou Betsy com indignação.

A tia Knowe abanou a cabeça.

— Já és praticamente uma duquesa, o que é uma das razões para qualquer solteiro de linhagem em Londres querer casar contigo. Sabem que as suas casas estariam numa ordem perfeita.

Betsy desdenhou.

— Não sei do que fala.

— Dizendo da maneira mais simpática possível, esperas que o mundo dance ao teu ritmo, e o mundo dança.

— A tia não compreende — disse Betsy, acenando polidamente a Lady Tallow, que espreitava da porta. — Não tem sido fácil cultivar a perfeita Lady Betsy que todos eles veem e na qual acreditam.

A tia sorriu-lhe.

— Vejo a tua fachada e admiro-a, como te admiro a ti. Betsy, minha querida, as pessoas reagem instintivamente aos outros, como animais numa matilha. Tu és como o teu pai: és a líder da matilha, quer queiras quer não.

Betsy desatou a rir.

— Está louca, tia Knowe. No melhor dos sentidos, claro.

Prism, o mordomo do castelo, esperava na entrada com um grande grupo de lacaios atrás de si, prontos a acompanharem as pessoas aos seus quartos. A família aprendera, através de experiências tristes, que o castelo era tão grande que frequentemente os cavalheiros se perdiam no caminho e conseguiam invadir os aposentos das senhoras nos momentos errados.

— Presumo que te vais retirar para a sala de bilhar antes de te deitares, visto que não ofereceste um jogo ao Thaddeus — disse a tia Knowe.

Betsy abriu a boca para dizer que ia para a cama, mas, ao invés, disse:

— Gostaria de jogar uma partida.

— Talvez encontres lá o Jeremy — disse a tia. — Ele desapareceu há algum tempo.

— Não conseguia dançar com o halo a balançar no ombro — explicou Betsy, surpreendendo-se por defender Jeremy.

— Não foi essa a razão — disse a tia Knowe, fazendo uma pausa. — Ele estava cheio de boa vontade a rodopiar pelo recinto, e estava a sair-se muito bem, por causa do North, na farsa de não se importar de frequentar a sociedade. Mas o Erskine Gedding, aquela criatura desprezível, pôs-se a lamentar a perda de todo o pelotão do Jeremy.

— Morreram todos os soldados? — perguntou Betsy, engolindo em seco. — Não sabia... Perguntava-me o que teria acontecido.

— Não sou eu que devo contar a história — murmurou a tia. — Mas foi sem dúvida um comentário desprezível, principalmente vindo de alguém que claramente conhecia os pormenores. O Gedding não voltará a ser convidado para Lindow, nem que case com uma princesa real. Jamais!

— Tia Knowe — exclamou Betsy, sorrindo-lhe. — De repente parece o lobo mau num conto de fadas.

— Era capaz de arrancar a cabeça do Gedding à dentada, com todo o gosto — disse a tia Knowe. — O Jeremy está a sarar. Está muito melhor do que há dois meses. Mas é uma crueldade provocar assim um homem em recuperação.

— Ele está em recuperação? — perguntou Betsy, desconfiada. — Estava na sala de bilhar acompanhado de uma garrafa de whisky quando cheguei com o Greywick.

A tia Knowe deu uma gargalhada.

— Quer dizer que ele fez de coro grego durante o pedido de casamento?

— Incentivou-me a aceitar o visconde — contou Betsy, sentindo-se novamente irritada. — Parece que o Greywick era o rapaz mais esperto de Eton, o que quer que isso valha.

— Vale muito — disse a tia. — Não estou minimamente surpreendida.

— O que eu quero dizer é que o Lorde Jeremy estava a beber whisky diretamente da garrafa. Havia um copo vazio no chão, ao lado da cadeira, mas ele deve ter decidido que bebendo da garrafa absorvia o álcool mais depressa. Embebedava-se, por outras palavras.

A tia Knowe tinha uma mão na maçaneta polida ao fundo da enorme escadaria que levava aos quartos do castelo, mas virou-se.

— Surpreendes-me, Betsy. Sempre te julguei bastante observadora. Tu achas que o Jeremy se embebeda?

— Claro que sim. A tia não estava na sala quando ele deslizou para debaixo da mesa de bilhar e o Parth teve de o arrastar de lá?

A tia sorriu.

— Devia estar muito entediado.

— Disparate — retorquiu Betsy com azedume. — O homem parece sempre de cabeça perdida. Tem um parafuso a menos.

— Não é uma má descrição — disse a tia Knowe. — Mas acho que interpretaste mal. Alguma vez o ouviste a arrastar a fala?

— Tenho a certeza de que ouvi.

— Eu tenho a certeza absoluta de que não ouviste.

— Ele desmaiou no chão, tia Knowe. No chão!

— O tédio é poderoso — disse a tia. — Querida, levas um lacaio contigo para a sala de bilhar, não levas? Ele pode esperar cá fora enquanto jogas uma ou duas partidas e depois acompanhar-te ao teu quarto. — Betsy abriu a boca para protestar, mas a tia interrompeu-a. — Há demasiados estranhos no castelo. Aquele horrendo Gedding, por exemplo. Considero-o capaz de tudo.

Betsy revirou os olhos.

— Ele tem uns 60 anos, tia.

— A crueldade não tem limite de idade. A propósito, quero ver-te ao pequeno-almoço amanhã de manhã, por muito tempo que fiques na sala de bilhar.

— Lá estarei — disse Betsy, suspirando. «Lady Betsy» era quase sempre uma das primeiras a chegar para o pequeno-almoço, de rosto brilhante, fitas no cabelo, um sorriso alegre nos lábios.

Raramente via Jeremy a essa hora. Não que o facto fosse relevante. Apesar do que a tia Knowe pensava, o mais certo era ele passar as manhãs a curar ressacas.

Provavelmente encontrá-lo-ia na sala de bilhar, mais uma vez desmaiado debaixo da mesa.

Fez uma vénia e despediu-se da tia. Se Jeremy estivesse estendido no chão, ela dar-lhe-ia um toque com a ponta do pé para provar que ele estava inerte devido à bebida.

A um aceno de Betsy, o mordomo da família apressou-se a chegar junto dela.

— Consegue arranjar um lacaio que me acompanhe à sala de bilhar, Prism? — perguntou Betsy. — A minha tia acha que devo estar acompanhada, dado o número de convidados no castelo.

— E tem toda a razão — respondeu ele. — Carper — chamou. Um lacaio alto apareceu por trás dele. — Espera que Sua Senhoria termine um jogo de bilhar e depois acompanha-a à porta do seu quarto. — Virou-se para Betsy. — Informarei a sua criada de quarto de que só chegará dentro de uma hora, aproximadamente.

— Por favor, peça-lhe desculpa por mim — disse Betsy, desconfortavelmente consciente de que Winnie não poderia ir para o seu quarto enquanto ela não voltasse.

— É muito generoso da sua parte, Lady Betsy — comentou Prism. — A Winnie não se importará de descansar na cama dobrável até a senhora voltar.

Betsy acenou-lhe e percorreu o corredor seguida por um jovem silencioso de cabelo louro. Quando era mais nova, achava que preferia os homens louros aos de cabelo escuro. Mas havia algo de errado nos homens de cabelo louro.

Retirava-lhes... masculinidade.

Afastou o pensamento.


Capítulo 6

Pelo caminho, Betsy decidiu que, se Jeremy Roden ainda estivesse na sala de bilhar, recolheria ao seu quarto.

Claro que, em vez disso, podia simplesmente ordenar-lhe que saísse.

Ela era filha da casa e, se quisesse jogar uma partida de bilhar sozinha — como fazia muitas noites, já tarde —, tinha direito à sala.

O triste facto era que os homens malandros eram interessantes, e os bonzinhos, aborrecidos. Thaddeus, com os seus olhos simpáticos e boca bondosa, com o seu título e a sua excelente propriedade, era demasiado enfadonho.

E Jeremy... não era.

Sabia-se lá por que motivo estava tantas vezes na sala de bilhar se se recusava a jogar com ela ou com qualquer outra pessoa. Talvez fosse por a sala ser tão sossegada.

O seu irmão mais velho, North, também costumava frequentar a sala, mas agora estava apaixonado, e isso impelia-o para outros jogos.

Betsy entrou na sala, deixando Carper no corredor. A candeia ardia, brilhante, sobre a mesa, tal como ela a deixara. Olhou imediatamente para o canto onde Jeremy estivera.

A cadeira estava vazia e a garrafa encontrava-se no chão, ao lado do copo vazio.

Ela ficou contente, claro. Jeremy era escandalosamente mal- educado e, pior ainda, recusava-se a jogar bilhar com ela.

Por vezes, pensava que o bilhar era a única coisa que conferia algum interesse à sua vida. Ao contrário dos bailes que tinham constituído a temporada social, cada novo jogo era um desafio. Dirigiu-se à prateleira e pegou no seu taco favorito.

Ia jogar uma partida e a seguir retirar-se-ia para a cama. Um sorriso formou-se-lhe involuntariamente nos lábios ao pegar no taco. Era em pau-rosa, com borboletas em madrepérola embutidas. O mais importante, contudo, era ter o peso perfeito e deslizar como seda pelos seus dedos. E, o melhor de tudo, o seu irmão Alaric trouxera-o da China para ela, apesar de nessa altura ela ainda ser muito pequena e de as meninas não deverem jogar.

No entanto, Alaric e North nunca a tinham excluído da sala. Por um momento, sentiu solidão, mas ignorou o sentimento. Era absurdo sentir-se sozinha quando o castelo estava cheio até às costuras de convidados, para não falar nos seus familiares. Além disso, se o sangue do seu sangue não fosse suficiente, tanto North como Parth tinham conseguido arranjar mulheres divertidas e encantadoras que teriam todo o gosto em conversar.

Contudo, já passava bastante da meia-noite, e essas mulheres estariam aninhadas com os seus irmãos. North e Diana já se tinham casado, mas Parth e Lavinia eram apenas noivos.

Todavia, Betsy não tinha ilusões acerca dos níveis de moralidade no castelo: abundavam os casais que acasalavam.

Era uma conclusão muito inteligente, mas não tinha com quem partilhá-la.

Um momento depois, a porta abriu-se e Jeremy entrou.

Era um absurdo, mas o seu coração retumbou, e ela sentiu-se imediatamente mais feliz. Antes de pensar melhor, saiu-lhe:

— Porque é que não está na cama? Onde estava?

— Isso é pergunta que se faça a um homem viril? — ripostou ele, dirigindo-se para o seu canto e deixando-se cair na cadeira. — Poderia estar na cama da Lady Tallow. Não tenho problemas em dizer-lhe que ela me fez uma proposta muito indiscreta, ouvida por várias pessoas, que felizmente não incluíam o marido.

Betsy esforçou-se por não semicerrar os olhos, mas foi por pouco. Ela não se importava que ele estivesse na cama com mulheres. Só estava irritada porque Jeremy se tornara uma espécie de amigo. Pigarreou e posicionou com precisão a bola vermelha.

— Sentiu-se tentado?

— Gostaria de arrancar com os dentes a camisa de noite da Lady Tallow? — contrapôs ele. Procurou a garrafa de whisky.

Betsy sentiu um alívio no peito.

— Não. — Não conseguiu pensar em mais nada para dizer. Jeremy não estava a prestar-lhe atenção, vertendo whisky no copo como se fosse ouro derretido. — Podia ser uma aventura — acrescentou, pensando melhor.

— Não, não poderia — retorquiu Jeremy, voltando a pôr a garrafa no chão. — Aposto o que quiser que ela usa flanela grossa à noite. Morder esse tecido destruiria os maxilares de um homem.

— Há outras maneiras de despir uma camisa de dormir — disse Betsy, inclinando-se para dar a primeira tacada. Decidiu começar com um ângulo fácil. — O Lorde Tallow parece dominar a arte de despir uma mulher de flanela.

— De facto, têm um quarto de crianças cheio — admitiu Jeremy. — Seja como for, sendo eu do género antiquado, prefiro não dormir com mulheres casadas. Fui urinar, se quer saber. Tive de percorrer uma grande parte do corredor até encontrar um quarto com um penico.

— Grosseiro — comentou Betsy. — Profano e indecente. Admira-me que não seja expulso da alta sociedade.

— Disparate! Não vê como tenho boas maneiras? Estou a usar um copo só por causa de si. — Sorveu um grande gole de whisky, engolindo-o tão facilmente como se fosse chá. — E, a propósito, achar-me-ia insuportavelmente enfadonho se eu me regenerasse.

Aquilo era tão semelhante ao que Betsy acabara de pensar que ficou calada, dando a tacada seguinte sem a preparação adequada. A bola fez ricochete na parede lateral da mesa no sítio errado e falhou o alvo.

— Aconteceu alguma coisa interessante depois de voltar para o salão de baile? — perguntou Jeremy, refastelando-se melhor na cadeira.

— Não.

— Decerto rejeitou mais dois pedidos de casamento antes da meia-noite?

Betsy tinha de arranjar algo que rivalizasse com a atitude de Lady Tallow. Mas nunca ninguém fizera uma proposta indecente à perfeita Lady Betsy. Para ser honesta, qualquer homem que tivesse essa intenção recearia que o pai dela lhe arrancasse os membros um por um. De facto, era bom que nos últimos tempos Sua Graça raramente entrasse na sala de bilhar. O pai não aprovaria a conversa grosseira, já para não dizer profana, que estava a ter com Jeremy. De repente, lembrou-se de que tinha recebido algo parecido com uma proposta indecente.

— Sabia que aquele seu primo, o Sr. Bisset-Caron, é artista?

— Isso não me surpreende — disse Jeremy. — Era uma criança insuportável.

— Parece que levou um caderno de desenho às escondidas para a capela durante o casamento, algo que a tia Knowe consideraria uma grave falta de maneiras, e ofereceu-se para me mostrar os seus desenhos, o que, deve admitir, significa que está muito perto de me querer mostrar algo mais. — Jeremy riu desdenhosamente. — Está a insinuar que eu não devia acompanhar o seu primo ao quarto para ver o seu caderno de desenho? — perguntou Betsy, pondo um ar inocente. Ele limitou-se a revirar os olhos. — Em vez de arte privada — continuou Betsy —, ouvi uma recitação pública de um poema que um vizinho escreveu acerca de mim.

— Partilhe — pediu Jeremy.

— Era acerca do meu nome. Não o meu nome verdadeiro, mas Betsy. — Ela levantou a cabeça e os seus olhares cruzaram-se, um sorriso perpassando entre ambos. Sim, eles brigavam, mas tinham um sentido de humor semelhante.

— Claro que sim — concordou Jeremy. — Ele conseguiu rimar? Vejamos: Bet-sy. Não é difícil.

Ela franziu o nariz para ele.

— Deve estar a brincar. O meu nome é uma melodia líquida, apropriado a uma vida gentil como a minha. Além disso, havia algo acerca das lágrimas da minha tenra juventude. Depois apareceu a tia Knowe e pôs fim ao momento artístico da minha noite.

Riram-se ao mesmo tempo.

— O meu primo tem sorte por a Lady Knowe não o ter ouvido falar dos seus desenhos — disse Jeremy.

Betsy pegou na bola de bilhar vermelha e substituiu-a no centro da mesa.

— Tenho uma pergunta para si. Embebeda-se mesmo, ou é só a fingir?

— Quem poderia beber quase uma garrafa de whisky e não ficar pelo menos com um grão na asa, ou mesmo podre de bêbedo, na pior das hipóteses?

— Quer dizer que está bêbedo? Porque eu acho que não está. O seu discurso é muito claro.

— Estudei em Eton e Cambridge — explicou ele. — O sotaque disfarça qualquer embriaguez.

— Isso não é verdade — retorquiu Betsy. — Quando fez 15 anos, o Alaric bebeu duas taças de ponche sozinho. Quase não conseguia falar. Levámo-lo às escondidas para o quarto das crianças, para que a tia Knowe não o pusesse sóbrio, e ele teve vários ataques de riso.

— Pelo que sei do seu irmão Alaric — disse Jeremy —, apostava um guinéu que a intenção dele era divertir os mais jovens e que gostou de fazer o papel de bêbedo, tanto quanto vocês gostaram de assistir.

Betsy deu mais uma tacada e voltou a falhar o ângulo.

— Não me lembro bem. — Encontrou o olhar dele. — Não me lembro se ele deslizou para debaixo da mesa e adormeceu, por exemplo, mas sem dúvida que me lembro de si a ser resgatado do chão como um bebé adormecido.

Jeremy ergueu uma sobrancelha.

— Provavelmente o quarto das crianças era um sítio cheio de vida e os vossos guinchos mantiveram-no acordado.

— A tia Knowe tinha razão! — exclamou ela, endireitando-se e pondo o taco no chão. — Da outra vez, não desmaiou. Estava só entediado!

— Qual vez? — perguntou ele afavelmente. — Acha que, se eu tocar a sineta, o Prism manda aqui um lacaio? Dava-me jeito outra garrafa de whisky.

— O Carper está já do outro lado da porta — disse Betsy. — Pode mandá-lo ir buscar, se quiser. Mas porque se dá ao trabalho de beber whisky se não lhe faz efeito? Provoca acumulação de líquidos e tremores, e o seu nariz vai ficar vermelho.

Jeremy ergueu as sobrancelhas.

— Isso parece estranhamente específico.

— A tia Knowe obrigou-nos a ler Um Inquérito aos Efeitos das Bebidas Espirituosas na Mente e no Corpo Humanos. Ou talvez fosse Corpo e Mente Humanos. Deseja que o licor o ponha a dormir se beber o suficiente?

— Não tenho essa sorte.

Ela suspirou. Não havia nada pior do que uma pessoa que criticava os maus hábitos de um amigo. Por exemplo, a sua irmã Viola estava sempre a incentivar Betsy a «ser ela própria», agora que Betsy se revelara tão popular no mercado matrimonial. Que vencera a guerra das debutantes. Ou o que quer que se lhe quisesse chamar.

— Devia parar de beber — aconselhou ela, porque Jeremy Roden era tão feroz que provavelmente as pessoas sentiam que não podiam dizer-lhe a verdade. — Se não for para o bem do seu fígado, que seja porque Shakespeare disse que destrói o «desempenho». Não há de querer dar por si nas proximidades de uma camisa de dormir, de flanela ou outro pano, e não ser capaz de cumprir a sua parte.

— Acha que estou a perder os dentes, tão jovem? Garanto-lhe que sou capaz de rasgar seda com um incisivo.

— Disse ao Thaddeus que tinha envelhecido. — Ela reorganizou a mesa, preparando um ângulo reto a partir do lado esquerdo.

— A menina é bizarramente parecida com a sua tia — observou Jeremy.

— Não consigo imaginar um elogio melhor — retorquiu Betsy. — Recorde-me, por favor, por que motivo não quer jogar comigo?

Silêncio. Depois ouviu-se uma voz baixa e arrastada.

— Aborrecer-me-ia.

— O senhor é um bruto — ripostou ela por cima do ombro.

Jeremy não viu qualquer razão para lhe responder porque, obviamente, ela tinha razão.

— Porque é que gosta tanto de bilhar? — perguntou ele.

Aquilo fez Betsy virar-se de frente para ele, com o seu precioso taco — ele notara que ela o adorava — aninhado nos braços.

— É necessária muita concentração para estar de pé em cima de um cavalo em movimento — anunciou ela.

— O North gabava a sua capacidade para fazer isso. Pense assim: se todos os cavalheiros aos seus pés a desapontarem, pode ir para o circo.

— É necessária ainda mais concentração para jogar bilhar.

— As tacadas difíceis — disse Jeremy, assentindo. — Tenho um amigo que gosta de mover a bola para trás. — Ele ensinara-lhe esse truque, mas Jeremy não o disse.

Betsy fez um som de desdém.

— O bilhar não tem que ver com exibicionismo; esses jogadores perdem com aqueles que conseguem fazer seis ou sete tacadas simples sem cometer um erro. Eu poderia derrotar o seu amigo.

Ele não duvidava, por isso, em vez de responder, levantou-se e espreitou pela porta. Um lacaio estava encostado à parede, de olhos meio fechados.

— Um bule de chá, por favor — pediu ele. — É melhor tomares também uma chávena antes de voltares, porque a Lady Boadicea vai ficar aqui pelo menos uma hora ou duas. Não lhe serás útil se estiveres a dormir em pé.

— Com certeza, meu senhor — disse o lacaio, afastando-se.

Era surpreendente como toda a gente no castelo, desde Lady Knowe ao lacaio mais insignificante, parecia ter concluído que ele não constituía perigo para Betsy. O lacaio partiu sem qualquer hesitação.

Jeremy poderia violá-la. Ninguém ponderara isso? Estavam a dar demasiado valor ao peso da lealdade à família Wilde, se era esse o seu raciocínio.

Talvez o pessoal da casa o considerasse um Wilde, mas isso era um absurdo.

Jeremy conhecia Betsy há uns meros dois meses. Ele não era como Parth, por amor de Deus, que não estava ligado aos Wildes pelo sangue, mas era um membro da família de todas as formas que importavam.

Ele era apenas um amigo de North.

Jeremy voltou à sua cadeira. Se ele tentasse algo impróprio, ela cravar-lhe-ia o taco de bilhar na barriga.

Talvez fosse isso. Talvez eles soubessem que Betsy defenderia a sua honra até à morte e confiassem que ela saberia proteger-se.

Ela estava dobrada sobre a mesa, alinhando o taco e a bola, os dentes superiores cravados no lábio inferior, como fazia sempre que se concentrava. Era uma excelente jogadora.

Se alguma vez jogassem e ele quisesse ganhar — porque das duas vezes que ela o convencera a fazê-lo, ele estivera-se nas tintas —, poderia conceder-lhe uma verdadeira partida. Ele e o pai não se davam bem, mas nunca tinham sido tão civilizados um com o outro como em redor de uma mesa de bilhar.

Agora que pensava nisso, talvez fosse esse o motivo para não jogar com ela. Demasiados ecos da sua infância.

Claro que os Wildes tinham razão, qualquer que fosse o seu raciocínio: ele nunca devassaria uma mulher. Mas isso não significava que não pudesse apreciar o que via do seu canto. Sempre que Betsy se dobrava sobre a mesa, ele tinha uma visão deliciosa, ora dos seus seios, ora do seu traseiro.

O facto de as suas saias se distenderem para os lados, enfatizava a protuberância redonda do seu traseiro. Os seios espreitavam pelo decote do seu corpete com espartilho, lindas mãos-cheias que ficavam rosadas quando ela se zangava.

Um homem com a sorte de a ter na cama provavelmente pensaria em formas de a irritar, só para ver aquela deliciosa onda de cor a inundá-la do busto até às bochechas.

Talvez quando ela estivesse excitada...

Provando que ela não fazia ideia da direção lasciva que os pensamentos dele tinham seguido, Betsy inclinou-se, avançou o taco e alinhou uma tacada que pretendia ir da esquerda para a direita e daí para a bolsa.

Os seus olhos traíam o ângulo que ela desejava, mas o braço estava à altura errada. Não ia resultar. E não resultou.

Uma coisa se podia dizer de Betsy Wilde: ela não desistia. Nem sequer suspirou; apenas pegou na bola, devolvendo-a ao seu lugar.

— Tem o cotovelo direito demasiado alto — rosnou ele.

Ela baixou imediatamente o cotovelo, num dos raros momentos em que lhe dera ouvidos. Depois recolocou a bola e tentou uma nova tacada. Resultou.

— Agora, tente deste lado, mas mais dobrada sobre a mesa — ordenou ele.

Ela rodeou obedientemente a mesa, ficando de costas para ele, e dobrou-se para pôr a bola no seu lugar. Depois, imobilizou-se, depositou o taco na mesa e virou-se, cruzando os braços diante do peito.

— Porquê?

— Para eu lhe ver melhor o rabo, obviamente — disse ele.

— Eu devia dar-lhe uma tacada na cabeça e acabar com a sua infelicidade — resmungou Betsy, voltando para o outro lado da mesa.

— Esse ângulo também não é mau — comentou ele alguns minutos depois, quando ela já tinha conseguido a tacada duas vezes.

Começava a sentir-se ligeiramente culpado pela forma como lhe mirava o busto, mas não o suficiente para obrigar os seus pés a levarem-no para fora da sala.

Um vestígio do cavalheiro que ele fora começava a deixar-se reconhecer, indicando-lhe que ele não devia olhar assim para as curvas de uma senhora sem permissão.

Betsy nunca lhe daria permissão, obviamente. Ela não era como Lady Tallow, que bamboleava o traseiro diante dele como uma taça de geleia, fazendo-o pensar nos dois pavões do castelo.

Na falta de uma fêmea, passavam o tempo a abrir as penas em exibições coloridas, mas inúteis.

Quando Lady Tallow fazia o mesmo, ele não sentia sequer uma vibração nos genitais, um fracasso que ela lera nos seus olhos, pois virara costas antes de ele ter tempo de recusar a sua oferta.

Contudo, essa vibração existia sempre que Betsy se aproximava dele. E agora, com ela inclinada como se lhe oferecesse os seios para seu prazer, era muito mais do que uma vibração.

Sabia-lhe muito bem voltar a ter um pénis duro depois de meses de inércia.

Aquilo não tinha nada que ver com ela. Apenas significava que o seu corpo voltava a ser ele próprio. Estava a sarar, tal como Lady Knowe prometia sempre que lhe enfiava chávenas de mistelas horríveis pela garganta abaixo.

Betsy ergueu o olhar para ele e, aparentemente, percebeu que tinha os seios completamente expostos.

— Deve estar desesperado — disse ela, endireitando e levantando o corpete.

— Pois estou — concordou ele, virando o copo. — Estas velhas paredes de pedra estão repletas de Wildes, cada uma mais lasciva do que a outra. Refiro-me às Wildes, obviamente, não às paredes.

— Está desesperado e cego — ripostou Betsy, voltando a organizar a mesa.

Podia dizer-se o que quer que fosse acerca dela, mas não se podia dizer que era uma desistente. Ele nunca vira ninguém trabalhar tão esforçadamente para dominar os ângulos do bilhar.

Cego?

Sem dúvida que ela sabia o quanto era bonita. Uma das coisas que lhe agradava em Boadicea Wilde era não se preocupar acerca da sua aparência. Não era uma daquelas mulheres que estava sempre a ver-se ao espelho e a ajeitar o cabelo ou a colorir os lábios.

Entrava em qualquer sala com a confiança de uma mulher bonita a pairar à sua volta como se fosse um casaco de arminho. Por outras palavras, era digna de um rei.

Ou de um duque.

— Eu não tenho seios fartos — disse ela, surpreendendo-o. — Não são como os da Lady Tallow, por exemplo.

Ele pestanejou, mas conseguiu manter-se impávido.

— Posso assegurar-lhe que, do ponto de vista de um homem, todos os seios são bonitos.

— Eu até podia vestir roupas de rapaz que ninguém notaria a diferença.

Provavelmente, ela tinha razão. Outras mulheres transbordavam de partes carnudas, seios luxuriantes tão rechonchudos que se erguiam dos seus peitos como abóboras.

Betsy era perfeitamente proporcionada. Nada crescera demasiado.

Caramba.

— Isso não é verdade.

Conseguiu imprimir às palavras um toque de desdém, embora o desdém fosse realmente acerca do seu desejo indomável por ela. Pousou o copo no chão. Talvez o whisky estivesse finalmente a afetá-lo.

— A Betsy não anda como um rapaz.

Além disso, ele não podia estar sequer perto dela sem reparar nos seios dela. Mesmo achatados pelos malditos espartilhos que as mulheres usavam, podia-se ver...

Conseguiu conter-se mesmo no momento em que ia dizer algo estúpido, e recorreu de novo à honestidade brutal.

— Se um homem ainda não tivesse reparado nos seus seios, podia sair-se bem na parte de cima. Mas bamboleia-se quando anda. Deixa um homem com vontade de lhe olhar para o rabo.

Era provável que aquilo a chocasse. Ele estava farto de eufemismos. Falar de homens que «passaram para uma vida melhor», por exemplo. Tinham morrido. Estavam enterrados. Já não existiam.

Após um momento, conseguiu trazer a sua mente de volta à sala. A boca de Betsy estava mais relaxada. Não estava chocada; sentira-se elogiada.

— Magoou os meus sentimentos — disse Betsy, com um tom de queixume obviamente falso. Cerrou os lábios, simulando um beicinho que fez o pénis de Jeremy vibrar de encontro às suas calças de seda.

Recostou-se na cadeira para esconder a sua situação, não fosse ela olhar para ele.

— Não magoei nada. Dá para perceber que não — disse ele, tomando mais um gole de whisky.

— Tem de jogar uma partida de bilhar comigo, ou conto ao meu pai que elogiou o meu rabo, e adivinhe quem será convidado a deixar o castelo? — A voz dela era triunfante.

Ele caíra que nem um patinho na sua armadilha. Ele não queria ir-se embora. Aquela sala obscurecida era um lugar perfeito para combater os seus demónios. E agora recuperara o seu pénis...

Muito bem.

Levantou-se.

— Não jogo sem apostar.

Betsy encolheu os ombros.

— O que quer apostar? — A voz dela era confiante. Claro que esperava ganhar. Há semanas que ele frequentava a sala de bilhar, para ruminar, não para jogar. Ou para sarar, na opinião de Lady Knowe.

Para isso, e para discutir com Betsy. E vê-la jogar.

Os seus seios e o seu traseiro eram prazeres simples. Privados. Ela não fazia ideia de que ele seria capaz de desenhar o contorno do seu corpo a carvão. Caramba, conseguiria fazê-lo no escuro, traçando as suas curvas com os dedos.

Não que alguma vez o fizesse, nem sequer na privacidade do seu quarto. Gabara-se a Thaddeus de dar prazer a si próprio, mas não se lembrava da última vez que se tocara.

Durante meses sentira o seu corpo como um mero recipiente para as emoções que não queria, mas de que não conseguia livrar-se. O prazer feroz que conseguia sentir com o exercício correto da sua parte do corpo favorita... desaparecera.

Em vez de sentir um desejo avassalador, daqueles que recordava a um homem que era um homem, Jeremy arrastava os seus dias com uma silenciosa e passiva falta de interesse em tudo o que se relacionasse com o corpo feminino.

Talvez todos os soldados se sentissem assim.

Mas uma memória veio contrariar esse pensamento. Há algumas semanas, ele dobrara silenciosamente uma esquina e deparara com North no ato, a sua noiva levantada de encontro a uma parede, as saias espalhadas nos braços dele, as pernas enroladas na sua cintura.

North rira-se hesitantemente enquanto Diana atirava a cabeça para trás e gritava como se...

Jeremy não era um porco. Retirara-se tão silenciosamente quanto chegara, de olhos bem fechados. Mas aquela imagem ficara-lhe gravada na memória.

Contudo, não sentira sequer uma vibração nos genitais.

Até agora.

— O que é que deseja, se ganhar? — perguntou ele.

Obviamente, Betsy partia do princípio de que ele era um péssimo jogador de bilhar.

— Uma aventura — disse ela prontamente, encostando a anca à mesa e fitando-o.

Aquilo era surpreendente. Talvez fosse essa a atração de Betsy Wilde: era surpreendente, quando mais nada na vida o era.

— Aventura — repetiu ele, tentando imaginar o que uma jovem senhora consideraria uma aventura. Ir ao teatro? Betsy passara uma grande parte da sua vida em Londres; caramba, o pai dela trouxera ao castelo uma companhia de teatro para interpretar o escandalosamente bem-sucedido drama A Paixão de Wilde, acerca de Alaric.

— Quatro sílabas não deveriam ser tão difíceis de entender, nem para um bêbedo como o senhor.

Jeremy ignorou a provocação. Ela insistia no facto de ele não se conseguir embebedar. Talvez Lady Knowe lhe tivesse contado. A irmã do duque era uma das pessoas mais observadoras que já conhecera. Teria dado um excelente general.

— Que espécie de aventura? — perguntou ele.

Betsy lançou-lhe um olhar feroz, bem diferente da expressão gentil e doce com que recusava os pretendentes.

— Do género que os homens podem ter — declarou ela. — Quero vestir calças e ser um rapaz por um dia.

Jeremy ficou boquiaberto.

— O quê?!

A sua mente apresentou-lhe imediatamente uma imagem de Betsy a usar um par de calções apertados. O que tinha sido desejo tornou-se um fogo florestal. Respirou fundo.

Era muito desconfortável descobrir que a desejava mais do que alguma vez desejara uma mulher.

Ela não era a mulher certa.

Aquele não era o momento certo.

— Quero que me leve a Londres e me mostre coisas que só os homens podem ver — acrescentou Betsy. Ele olhou-a com censura. — Não é um bordel — explicou ela, obviamente repugnada. — Um clube de cavalheiros, como o White’s ou o Brook’s, onde eu possa jogar bilhar.

— Só bilhar? — tentou ele esclarecer.

Ela confirmou.

Na verdade, fazia sentido. Ela era obcecada por bilhar.

— Só isso? É essa a sua aventura? Ir a Londres e jogar bilhar? É provável que ganhe a quase toda a gente — comentou Jeremy.

— Se chegou a essa conclusão, é porque não está tão bêbedo como eu pensava — disse Betsy.

— Com grande pena minha, nunca estou.

— Também gostava de ir a um leilão na Christie’s, e licitar qualquer coisa. Irrita-me que as mulheres não possam licitar em leilões.

— Porquê tanto interesse?

Ela fitou-o.

— Enquanto mulher, não me é permitido ter o meu próprio dinheiro. Exigem-me que compre frivolidades, mas nada de valor, o que se reflete em não poder licitar num leilão. E pergunta-me porque é que isto é tão importante?

Jeremy estremeceu.

— Peço desculpa pelo meu sexo.

Ela sorriu-lhe de esguelha.

— Então, está preparado para me levar numa aventura?

— Impossível. — Ele usou a arma que sabia que a aterrorizaria. — Pode ficar comprometida. Ser obrigada a casar comigo.

— Disparate. Uma mulher não pode ser comprometida, a não ser que um homem queira dormir com ela.

Jeremy semicerrou os olhos. Era quase como se ela soubesse que ele não tivera uma ereção em meses, até esta noite. Estava a tratá-lo como um velho cão desdentado.

Levantou-se e avançou para ela. O facto de ela trazer um lacaio para a proteger das atenções masculinas fazia-lhe confusão, juntamente com o facto de nem ter hesitado quando ele o mandara embora. De facto, fora ela que sugerira que o homem se fosse embora.

Caramba, ela julgava-o impotente.

— O que se passa? — perguntou ela. — O meu pai não permitiria que passássemos tanto tempo juntos se o Jeremy fosse um homem que sentisse... — Interrompeu-se.

Jeremy fitou-a, incrédulo.

— Desejo? — O próprio duque o declarara castrado?

Betsy franziu o sobrolho.

— Vai ser purista comigo? Sim, desejo.

— Eu sinto desejo. — As palavras vinham-lhe do fundo do peito.

— Oh, por amor de Deus! — exclamou Betsy. — Por mim, seu imbecil! Não me refiro a olhar-me para o traseiro. Falo de desejo a sério, do género que faz as pessoas comportarem-se como tolas.

— Eu posso ser esse género de tolo.

Ele ainda estava duro, e sentiu-se extremamente divertido. Sentia-se novamente vivo, como se o seu corpo e mente se tivessem unido, como duas grandes peças de um puzzle.

Betsy semicerrou os olhos, os seus instintos levando-a finalmente a vê-lo como um homem. Mudou o peso de um pé para o outro, pensando.

— Claro — disse ela num tom de voz cauteloso. Não hesitante, mas cauteloso.

— Se eu ganhar, quero uma noite consigo — disse Jeremy, olhando-a de cima. — Uma noite, sem anel a seguir.

Betsy ficou boquiaberta.

— Mas que raio...

A alegria cresceu dentro dele. Ela não o aceitaria, mas sabia-lhe tão bem desejar.

— O senhor não me quer, e, mesmo que quisesse, é um cavalheiro — disse ela.

Ele ergueu uma sobrancelha.

Betsy soltou um suspiro teatral, mas ele percebia que ela não estava inteiramente certa da sua afirmação. A partir de agora, não voltaria a vê-lo como um velho cão desdentado. Manteria o maldito lacaio por perto.

— Se ganhar, nunca poderá cobrar a sua aposta — comentou.

— A guerra arranca o cavalheirismo de um homem.

Era verdade. Betsy olhou-o com censura.

— Não acredito nisso.

Oh, diabos.

Era por isso que os homens iam lutar em campos de batalha distantes, se pudessem. Ninguém queria que uma mulher visse o que acontecia ali. O que custava a um homem sobreviver, para não falar no que acontecia aos que não sobreviviam.

Ele nunca tiraria a virtude de uma mulher, mas isso não significava que não estivesse a divertir-se.

— Acredite — disse, baixando a voz quase até um gemido. O desejo queimava-lhe as entranhas e descia-lhe pelas pernas. Ele não desejara nada desde que deixara o serviço. Mas agora?

Desejava-a.

Desejava aquela rapariga complicada e louca que conseguira levar a alta sociedade a considerá-la dócil e recatada.

Betsy não mostrou o mais leve sinal de perturbação; na verdade, a sua boca abriu-se num sorriso genuíno.

— Já bebeu quase uma garrafa de whisky esta noite, e até hoje nunca me derrotou, nem uma vez. — Ele nunca tentara derrotá-la. Sem uma palavra, limitou-se a fitá-la e a aguardar, deixando que os seus olhos falassem. — As senhoras jogam primeiro — disse Betsy. Planeava pô-lo completamente fora de jogo. A aposta resumia-se a ele ter uma hipótese de jogar ou não.

Ela falhara algumas tacadas nas últimas horas, provavelmente cansada pelo dia longo, por isso ele tinha uma hipótese.

Ele assentiu.

Betsy abriu um sorriso, um sorriso malévolo, mesmo para um Wilde.

— Vai mesmo levar-me à cidade? Terá de me ensinar a caminhar como um homem.

Caramba.

Levaria?

Teria de falar com o pai dela. Ou com os irmãos. Mas, só de a olhar, percebia que ela era uma bomba prestes a explodir. Se ele recusasse, seria capaz de cometer uma loucura e arruinar verdadeiramente a sua reputação. Ou casar com o homem errado.

Nenhuma dama que ele conhecesse sonharia em viajar para Londres vestida de homem. Mas ele percebia. Os irmãos mais velhos de Betsy tinham partido para o mundo e ela ficara em casa a fazer arranjos florais. A ouvir poesia. As senhoras não podiam ter aventuras. Nem propriedades. Não era justo.

Assentiu.

— Muito bem — disse Betsy, virando-se.

Jeremy estendeu a mão para ela, e os seus dedos deslizaram pela pele sedosa do seu braço.

— A aposta está de pé?

— Sim, e o senhor vai perdê-la — disse-lhe ela. A ligeira nostalgia que a envolvera toda a noite desaparecera. Estava feliz.

— Não pode viajar sozinha comigo — notou ele, só para ser justo. Ela abriu a boca, mas ele abanou a cabeça. — Atribua isso ao medo da minha reputação perdida, não da sua. A sua tia deve vir também. Ou um dos seus irmãos.

— Suponho que sim — concordou ela com relutância.

Ele passou para o outro lado da mesa e ficou ali, de braços cruzados, observando como um falcão. Algumas jogadas depois, ele estremeceu e ela baixou rapidamente o cotovelo.

— Está melhor?

— Sim.

— Não está a beneficiar-se, ao corrigir a minha posição — disse ela, erguendo os olhos.

Na verdade, Jeremy estava mais a observar os seus seios do que a sua posição.

Sentia-se surpreendentemente vivo. Além disso, percebê-lo não o atirara para um caldeirão de mágoa, como era habitual. Esta noite, na sala escura e tranquila, parecia-lhe que estar vivo era uma coisa boa. Fazer uma aposta tola e desejar os seios de uma mulher, e, de um modo geral, comportar-se como um membro da raça humana.

Ela apanhou-o novamente a olhar para os seus seios. Ele arqueou uma sobrancelha.

— Última tacada — disse Betsy, fitando-o, carrancuda. Se não falhasse aquela, tinha vencido o jogo.

Manteve o cotovelo baixo. Ele observava os seus olhos, percebendo que ela planeava uma tacada simples: da parede esquerda para a bolsa direita.

O taco bateu na bola, a bola bateu na parede...

A boca de Jeremy curvou-se num sorriso.

Lentamente, Betsy endireitou-se e olhou-o nos olhos.


Capítulo 7

— O jogo está feito — disse Betsy, sentindo-se invadida por uma onda de alívio que a deixou ligeiramente desequilibrada.

Ganhara uma aventura.

Iria para Londres com um par de calças.

Jogaria bilhar com os melhores jogadores de Inglaterra.

Respirou fundo.

Jeremy contornara a mesa e estava diante dela.

— Ganhou mesmo, Bess.

No momento, ela ignorou a adulteração do seu nome.

— Vou usar um par de calças — disse ela, sorrindo. — Quando era pequena, costumava usar um par de calças do Leonidas por baixo do vestido. Adorava.

— Isso explica porque é que se senta tão bem num cavalo.

— Sim. — O coração de Betsy iluminou-se com a alegria pura de partilhar um segredo. — Quando chegava ao prado, cavalgava sem sela.

— Que indecente! — observou ele, mas os seus olhos riam.

— Também pratiquei tiro com arco — confessou ela. — Tinha um alvo. E de pé sobre o cavalo, como já lhe disse. Era uma velha égua com dorso largo. Era tão divertido.

— Porque é que parou?

— Só o consegui fazer porque um rapaz dos estábulos, o Peter, nunca contou a ninguém. Ajudava-me com a sela e o resto. Eu tinha apenas 10 anos a primeira vez que lhe mostrei as minhas calças.

— Ele deve ter ficado horrorizado!

Ela encolheu os ombros.

— Ele tinha 12. Cavalgávamos juntos sempre que tínhamos oportunidade, mas dois anos depois ele decidiu tornar-se aprendiz de ferreiro.

— Surpreende-me que os seus irmãos não a tenham impedido.

— O Alaric e o North são bastante mais velhos do que eu — comentou ela. — O Leonidas estava sempre na escola. Sou muito próxima da Joan e da Viola, mas elas são muito mais senhoris do que eu, e a Viola tem medo de cavalos.

Jeremy riu às gargalhadas.

— Qual é a graça?

— A Betsy é vista por toda a gente como a mais senhoril donzela do mercado matrimonial.

— E sou... em público. — A felicidade inchava dentro de Betsy. — Acha que podemos partir na segunda-feira?

— Só com um acompanhante. — Jeremy deu um passo atrás. — Lamento, Bess. Venceu-me, e eu concordei, mas duvido muito que alguém concorde em acompanhar-nos. Sou amigo do North e do Parth, e nenhum deles aprovará.

— Para que precisamos de um acompanhante? Estarei vestida de rapaz! Ninguém saberá quem sou, e confio implicitamente em si.

— Como tenciona explicar a sua ausência do castelo? Comigo? A família terá razões para acreditar que a raptei e que planeio casar consigo em Gretna Green, ou algo igualmente absurdo.

— Eles nunca acreditariam nisso — disse Betsy, franzindo o nariz.

— Porque não?

Ela deu-lhe um pequeno empurrão.

— A sua falta de interesse em mim é óbvia, e já toda a gente a viu.

Ou era isso, ou todos tinham chegado à conclusão de que ele era tão frágil como um octogenário.

— A sua reputação será prejudicada — disse ele, anunciando o óbvio. — E a sua queda será ainda maior porque demasiados tolos a colocam num pedestal. Seríamos obrigados a casar.

— Quem é que poderia descobrir? — Betsy sorriu-lhe, a malícia brilhando no fundo dos seus olhos. — Não está a compreender, Jeremy. Eu fico bem com um par de calças. Ninguém adivinhará que não sou um rapaz.

Como é que ela tinha conseguido esconder que era a mais louca dos Wildes?

— Não o farei, a menos que diga a um membro da sua família, e essa pessoa nos acompanhe — disse Jeremy, pondo as cartas na mesa. — Se tiver de me casar com alguém, prefiro ser eu a escolher a mulher do que enfrentar a ponta da pistola de duelos de Sua Graça.

— Estou tão farta de ser tratada como uma peça de porcelana que se pode quebrar ao primeiro safanão — protestou Betsy. — Sou uma mulher adulta.

Jeremy voltou a avançar, os olhos fixos nos dela. De repente, ela estava intensamente consciente do tamanho dele. A sua mente forneceu-lhe uma imagem nítida dos músculos bem definidos do seu peito.

Se o empurrasse outra vez, poderia sentir aqueles músculos sob as pontas dos seus dedos.

Lentamente, ergueu os olhos do seu poderoso pescoço, que uma gravata meio aberta não conseguia esconder, para o seu queixo quadrado e malares definidos.

Jeremy parecia um guerreiro. Podia ter estado entre as legiões de anjos que guardavam as portas do céu. Até à sua queda.

Um anjo negro, depois disso.

Ergueu os olhos até aos dele, porque a sala ficara particularmente silenciosa. Conseguia ouvir a respiração de ambos.

Durante a maior parte da noite, ele estivera sentado nas sombras. Mas agora estavam ambos iluminados pelo candeeiro suspenso sobre a mesa de bilhar. A luz era forte e brilhante, visto que uma sombra poderia prejudicar os cálculos de um jogador.

Os olhos de Jeremy não eram pretos, como ela sempre pensara, mas sarapintados de cinzento. Cinzento-escuro com um aro mais claro por fora.

Ela imobilizou-se ao ver a expressão deles.

Nos últimos dois meses, desde que ele chegara ao castelo, vira-o desdenhoso, amargo, magoado, desolado. Enterrado em culpa. Dorido como se tivesse sido esfaqueado no peito. Transmitindo sarcasmo contundente, sobretudo dirigido a ela, mas por vezes também noutras direções, incluindo a tia Knowe.

Indecentemente arrogante.

Mas aquilo ela nunca tinha visto.

Necessidade.

O que havia nos olhos dele era pura necessidade física. Por ela?

Betsy entreabriu os lábios, e a sua mão começou a subir para o peito dele, antes de a recolher.

— Muito bem, Bess — disse ele, a sua voz cordial, mas ainda baixa, um gemido oculto nas profundidades. — Eu não sou um companheiro seguro. Especialmente se vestir calças e eu puder ver cada contorno do seu lascivo rabo.

— Jeremy! — exclamou ela muito baixinho. — Não faça isso.

— Não faço o quê? Não a desejo? Todos a desejam, princesa, não compreende? Todos esses homens que a pediram em casamento.

— Não, não desejam — retorquiu ela com determinação.

— Certamente não acredita que se apaixonaram por si, com ou sem poesia.

— O amor não entra na equação. Eu representei o papel da senhora com quem eles desejam casar: obediente, recatada, calma. — A voz dela tinha um toque de irritação. — De boa linhagem por um lado, ainda que não pelo outro.

Ele emitiu um ruído, algo entre uma gargalhada e um ronco.

— Está enganada, Bess. Eles não estão apaixonados por si, caramba, eles desejam-na. A Bess atravessa o salão de baile como a materialização perfeita de uma futura duquesa... e, ao mesmo tempo, a mulher mais sensual de Inglaterra.

Betsy arquejou, e o gelo desceu-lhe pela espinha. Perdera toda a vontade de lhe dar palmadinhas no peito e fitou-o, recuando até colidir com a mesa.

— Não, não é verdade! Está absolutamente errado.

Ele franziu a testa.

— Era uma espécie de elogio, Bess. Posso garantir que os cavalheiros olham para si com os seus ares de duquesa, a sua inocência «não-me-toques», e a principal coisa que lhes vem à cabeça é um desejo brutal de a possuir. De serem aquele que vai quebrar o gelo e libertar o fogo que tem dentro de si.

Betsy deu um gritinho, com o peito a inchar-lhe com o horror. Se ele tinha razão, todos aqueles pedidos de casamento que recebera eram por causa da sua mãe, e não apesar dela.

E se aqueles homens tinham julgado ver nela a sombra do comportamento depravado da sua mãe? O género de luxúria que levava uma mulher a deitar fora o melhor partido da terra? A deixar os seus filhos?

Um sabor ácido queimou-a da garganta ao estômago e, por um momento, ela julgou que ia vomitar.

Os olhos de Jeremy ficaram mais atentos e perplexos, e ele envolveu os braços dela com as suas mãos grandes.

— Era um elogio.

Ele não imaginava como lhe estava a queimar o coração de desgosto, e ela também não iria explicar-lhe.

A sua mãe, Yvette, era o seu fardo, e a última coisa que ela queria fazer era revelar essa fraqueza a um dos poucos homens no mundo que sempre lhe dissera a verdade. Um arrepio percorreu-lhe o corpo, e as mãos de Jeremy apertaram-lhe os braços com mais força.

— O que se passa, Bess? Não faz sentido acreditar que os homens veem as mulheres como anjos delicados. A Bess não franze o nariz a uma anedota picante. Caramba, até me chamou «flácido»!

— Desculpe — disse Betsy, reunindo todas as suas forças para permanecer calma. — Mas qualquer homem que pense isso de mim está muito enganado. Não sou uma mulher fácil, com ou sem anedotas, e nada em mim pode sugerir que cairia facilmente na cama de um homem.

Isso incluía o seu futuro marido, mas ela não o disse.

Decidira há muitos anos que devia suportar a parte carnal do casamento sem dar ao marido a mais leve suspeita de que desfrutava do ato — se, de facto, desfrutasse. Divertir-se seria fatal.

Se ela demonstrasse prazer, ele vigiá-la-ia como um falcão. E com toda a razão. Bastava ver a sua mãe, dando à luz quatro filhos em cinco anos, antes de fugir com o conde. A prova de que desfrutava dos favores masculinos estava escrita no corpo de -Yvette numa linguagem que todos compreendiam.

— É exatamente por isso que nós os dois não podemos fazer uma viagem de cinco dias consigo vestida de rapaz — disse Jeremy com uma voz paciente, como se estivesse a ensinar um aluno lento.

Betsy abriu a boca e hesitou, confusa. Ele tinha razão, claro. Ela raramente acompanhara um homem para fora de um salão de baile sem um acompanhante. Preservava zelosamente a sua reputação. E, contudo...

— Não seria eu — disse, voltando a olhá-lo nos olhos. — Podia chamar-me um nome de rapaz. Fred ou Pete. Não percebe, Jeremy? Não sendo eu, como poderia perder a minha reputação?

— Tenciona dormir nos estábulos com os moços de estrebaria e outros criados? — Os olhos dele eram compassivos, mas a sua voz era implacável. — Continuaria a ser a Bess, apesar das calças, e, se fosse descoberta, o que é provável, as consequências seriam terríveis.

— Como é que seria descoberta?

— Londres fica a cinco dias de viagem daqui. Qualquer coisa poderia denunciá-la. Sabe que os homens sacodem o pénis e urinam para as paredes?

Ela pestanejou.

— Quer mascarar-se de homem — prosseguiu ele —, mas o que vai fazer se alguém quiser apostar que urina mais longe que a menina?

— Isso é provável?

— Não é improvável. Os homens gostam de medir as suas proezas de formas que envolvam as suas partes privadas, por mais ridículo que pareça.

— Não preciso de ir disfarçada de moço de cavalariça — lembrou ela. — Posso passar por um jovem parente seu.

— Se eu partir do castelo de Lindow com um jovem bem vestido, todos vão perguntar-se se é um dos Wildes. Todos sabem que o duque tem 13 ou 14 filhos. Vão observá-la.

— Oh.

— Por outro lado, se eu apenas fizer parte de um grupo que inclua a Lady Knowe, ou o North, ou mesmo um dos seus irmãos mais novos, passa a ser simplesmente um jovem Wilde, viajando com um familiar mais velho. Não haverá nada de interessante para ver... Circular, circular.

— O quê?

— É o que os polícias dizem durante os distúrbios nas ruas — explicou Jeremy. — O meu problema é que, se viajar consigo para Londres, a Bess será motivo de interesse. Mas, se levarmos um dos Wildes mais velhos, será ele a absorver as atenções. As pessoas têm fascínio pela sua família, caso não tenha reparado.

Ela clareou a garganta.

— Vivi com a atenção delas toda a minha vida, por isso, sim, já reparei.

— Vão concentrar-se na Lady Knowe, ou no North, ou no Leonidas, não num simples rapaz.

— Parece-me um fraco argumento, Lorde Jeremy.

— Que tal tratarmo-nos informalmente?

— Não me parece conveniente.

— Já o fizeste. E eu até te chamo Bess, ou, in extremis, Boadicea. Francamente, essa história das calças que sugeres parece a da rainha guerreira que combateu os romanos. Acho que ela não usava saias, e muito menos anquinhas, quando dirigiu a carga.

— Continuo a achar que não precisamos de acompanhante.

— Sugiro a Lady Knowe.

— Isto é ridículo! — As palavras irromperam-lhe dos lábios. — Sim, eu vejo os perigos de fingir ser um moço de estrebaria se estiver sozinha com um grupo de homens. Mas posso ser um qualquer jovem primo que tu acompanhas a Londres.

Ele abanou a cabeça.

— Tens o perfil e as sobrancelhas dos Wildes, Bess. A tua aparência não engana. Todos os Wildes são assim, menos...

— Menos a minha irmã Joan — disse Betsy resignadamente. — Não precisas de desenvolver. Todos sabemos que o cabelo da Joan é do tom exato do daquele infame prussiano.

— Os Wildes são muito conhecidos pelas sobrancelhas, maçãs do rosto altas, olhos azuis curvados nas pontas... Toda a gente do Sul de Inglaterra e a maioria das pessoas do Norte é capaz de identificar um Wilde, mesmo nos desenhos mais mal feitos.

Betsy gemeu. Odiava admitir que ele tinha razão. Ela era parecida com o pai e a tia. Joan destacava-se no meio deles como uma rosa num ramo de lilases. Até os três mais jovens, filhos de Ophelia, tinham as sobrancelhas dos Wildes. E as maçãs do rosto.

— Está bem — disse, e a sua boca curvou para baixo. — Parece que foi uma ideia estúpida.

— Sim, foi — declarou Jeremy, sem suavizar o golpe.

Ela endireitou-se e forçou um sorriso beatífico.

— Foi um sonho feliz enquanto durou; obrigada por mo permitires.

Ele estremeceu.

— Esse sorriso é horrível.

— Como assim? — perguntou ela.

— Alguém já percebeu quanto desespero se encontra por detrás desse teu sorriso em particular, o da alegria postiça? — perguntou Jeremy.

Ele mantinha-a encostada à mesa de bilhar. Num esforço para ganhar um pouco de espaço, ela esticou-se tanto que ficou sentada na mesa, assegurando-se que as suas anquinhas estavam presas dos lados.

— Eu nunca estou desesperada — disse-lhe. — O desespero é uma emoção que não assenta bem aos Wildes.

— Acredita em mim, o meu pai disse a mesma coisa em relação ao meu estado quando voltei da guerra. E, contudo... quando o desespero se torna nosso companheiro, nenhum apelo ao bom senso parece afastá-lo.

Betsy abanou a cabeça.

— Eu não estou desesperada. Estou simplesmente cansada, depois de uma longa temporada social. — Teve uma ideia. — Podemos ir antes a Wilmslow uma tarde? Estou tão...

— Entediada — concluiu Jeremy, com uma voz sólida e firme. — Estás farta de fingir ser uma mulher que não és. Estás farta de te rir de anedotas sem piada e de ouvir má poesia. Estás farta de receber e rejeitar propostas de casamento de estranhos.

— Sim.

— Levo-te a Wilmslow se levarmos um acompanhante. — A voz dele era taxativa.

— Acabaste de tentar ganhar uma noite na minha cama! — exclamou ela, frustrada. — Onde é que estavam esses princípios todos há meia hora?

— Acreditaste em mim? — Um sorriso radiante espalhou-se-lhe na cara. — Pensava que me tinhas posto na categoria de um legume murcho, Bess.

— O quê? — Ela fitou-o. — Sabes perfeitamente o que pareces, Jeremy. Não sejas absurdo.

— És tu que estás aqui comigo, noite fora, sem um lacaio por perto, apesar de ele poder voltar com o chá a qualquer momento, agora me lembro.

— Porque tu és... tu — disse ela, exasperada. — Podemos ir a Wilmslow só por uma tarde? — Um verdadeiro desespero começava a notar-se na sua voz, mas ela não conseguia evitá-lo. — Não precisamos de um acompanhante se apenas passearmos pela cidade.

— A tia Knowe — disse Jeremy com firmeza. Betsy resmungou. — Se ela nos acompanhar, eu concordo. Sendo uma mulher mais velha, pode entrar em qualquer sítio que queiramos visitar. As atenções vão concentrar-se nela e não em ti.

— Eu peço-lhe — retorquiu Betsy com relutância.

— Então, está combinado.

— Continuo a não perceber porque não podemos ir sozinhos — resmungou Betsy.

— Tens aqui uma razão — disse Jeremy. Havia algo na sua voz que a fez levantar a cabeça. Ele apoiou um braço de cada lado dela sobre a mesa de bilhar.

Ficou com o rosto tão perto que ela conseguia ver os olhos dele ainda mais distintamente. O cinzento, salpicado de uma cor mais forte, fazia lembrar granito. Mesmo àquela distância, a sua expressão continuava enigmática.

Mas não os olhos. Os olhos de Jeremy ardiam de luxúria. Ela arregalou os seus de surpresa, mas ele não se mexeu. Apenas a observou, com a respiração a tocar-lhe no rosto.


Capítulo 8

Betsy nunca tinha sido beijada.

Deixara claro aos seus pretendentes, de centenas de maneiras, que não aceitaria qualquer manifestação física de afeto. Se os cavalheiros queriam pôr-se de joelhos, podiam ficar a uma distância razoável e apresentar o seu caso lá de baixo.

Mas isto era diferente.

Jeremy não estava a beijá-la. Estava só à espera, e, de repente, o mundo mirrou até ficarem só eles os dois. Um arrepio de aventura percorreu-a. Ela nunca quisera beijar os seus pretendentes, mas e Jeremy?

Betsy inclinou-se para a frente e, hesitante, pousou os lábios nos dele.

Para sua surpresa, a língua dele percorreu-lhe os lábios e mergulhou na sua boca.

Jeremy sabia tão bem que lhe roubava todo o bom senso. A língua dele enrolou-se na dela, e a sensação desceu-lhe até aos joelhos.

O beijo era pouco higiénico, mas Jeremy sabia demasiado bem. Como cerejas no verão, quando não se consegue parar de comê-las até termos os dedos e os lábios tingidos de vermelho. Um beijo quente, lascivo e carnal.

A língua de Betsy rodou em torno da dele. Ela não tinha percebido que comer cerejas era carnal, pelo menos até esse momento, quando tentava decifrar o sabor dele, que era melhor do que fruta no verão. O coração dela batia com o ritmo frenético de um pica-pau. E ela estava...

Mole.

Os joelhos estavam moles, e os braços pareciam não ter ossos, e a boca estava aberta de encontro à dele, e ela sentia...

Aquilo era, provavelmente, luxúria. A tal coisa a que jurara jamais sucumbir.

Deu um salto para trás.

Felizmente, porque pela porta aberta ouviu passos que se aproximavam.

— Carper... o chá! — sussurrou ela.

Jeremy desviou-se para o lado exatamente quando Carper entrou. O lacaio equilibrava um pesado tabuleiro de prata com um bule de chá fumegante.

— Apresento as minhas desculpas e as do cozinheiro, Lady Boadicea — disse ele, procurando à sua volta um sítio para pousar o tabuleiro. — Muitos convidados decidiram que queriam um tabuleiro de chá antes de dormir, e a água a ferver acabou.

— O nosso jogo terminou — informou Jeremy. — Lady Boadicea, gostaria que o tabuleiro do chá fosse levado para o seu quarto?

— Não, obrigada — disse Betsy, dirigindo um sorriso apologético a Carper.

— Eu gostaria de uma chávena antes de ir para a cama — retorquiu Jeremy. — Diz ao meu homem que vou imediatamente.

Carper foi-se embora, o som dos seus passos desvanecendo-se no silêncio do castelo.

Jeremy voltou a colocar-se entre as suas pernas e baixou a cabeça, os seus lábios roçando os dela com um prazer vagaroso.

Palavras e pensamentos debateram-se na cabeça de Betsy, mas o seu corpo reclamava-lhe a maior parte da atenção. Sem saber como, envolveu o pescoço dele com os braços. Um tendão fletiu sob as pontas dos seus dedos, e ela agradeceu o facto de o bilhar exigir que tirasse as luvas.

Não seria apropriado descer-lhe os dedos pelas costas.

As mãos dele não se mexeram, agarradas à mesa. Os lábios pairaram sobre os dela, a língua arrastando-se no lábio inferior. Sentia-o mais cheio, e pôs a língua de fora, entre os dentes, aguardando a dele.

Sempre que os lábios dele acariciavam os seus, Betsy sentia uma espécie de ganância a crescer dentro de si, por mais, mais do seu toque, mais do seu sabor.

Mais.

A ideia fê-la recuar tanto que resvalou, e teria caído sobre a mesa se ele não a segurasse.

— Basta — exclamou Betsy tremulamente enquanto ele a endireitava.

— Basta de beijos? — Jeremy franziu uma sobrancelha.

Ela nunca percebera o quanto as sobrancelhas dele se assemelhavam a asas. Subiam como lâminas curvas, condizendo com as feições bem definidas.

— Eu não beijo assim — retorquiu ela, a sua voz embaraçosamente enrouquecida. — De facto, não beijo, ponto final.

Ele ainda a segurava, inclinado sobre ela, o que, de certa forma, era ainda mais sensual do que quando as suas bocas estavam unidas.

— Sem dúvida, este foi um primeiro beijo desajeitado — disse Jeremy, endireitando-se e recuando. — De certeza que as tuas hordas de pretendentes te ofereceram beijos mais graciosos. — Ela não respondeu. Um sorrisinho malicioso brilhava nos lábios dele. — Eu nem sequer sabia que queria um beijo — prosseguiu ele muito cordialmente, como se nada tivesse acontecido. — Mas acredito que tu me curaste, Bess.

— Curei-te?

Ela sentia que o seu cérebro se afogava num rio de mel. Percebia agora porque é que a lascívia era viciante. Uma voz ansiosa surgira no fundo do seu cérebro, recordando-a de que a lascívia tinha de ser viciante. De outro modo, a mãe nunca teria abandonado os seus bebés, pois não? Não se podia dizer que o pai de Betsy fosse abusivo, ou mesmo intrusivo. Pelo que a tia Knowe lhe dissera, o duque permanecia no castelo enquanto a sua mãe estava em Londres, a ter um affaire.

A irmã mais nova, Joan, fora concebida nesse ano: nascida no castelo, mas concebida em Londres.

— Curei-te de quê? — procurou ela esclarecer.

— Do desinteresse — respondeu ele. O seu sorriso alargou. — A guerra tirou-mo todo; porém, juro por Deus, um beijo teu... Não admira que tenhas todos aqueles pretendentes em fila para pedir a tua mão em casamento!

— Não creio que te juntes a eles — disse ela, com uma nota de malícia na voz porque... francamente... aquele beijo abalara-a até aos ossos. Tinha-lhe causado qualquer coisa. Tinha adorado.

Jeremy andava pela sala, sorrindo com a espécie de alegria com que ela se cobria, como se fosse um cobertor, quando estava em sociedade.

Nele, porém, era verdadeira.

Betsy levou uma mão aos lábios, e estes pulsaram ao toque. Ela queria deslizar da mesa e saltar-lhe para os braços. Colar os lábios aos dele e acolher todos os beijos que ele lhe desse. Apenas a sua certeza de que a luxúria era irracional, maléfica, a impedia.

— Tenho de ir para a cama — disse, descendo da mesa. Sentia os joelhos fracos.

Felizmente Jeremy era bastante cavalheiro para não fazer uma piada ou mesmo olhá-la com lascívia. Beijos não eram nada; outras raparigas já lho tinham dito. Mas ela não conhecia nenhuma que tivesse beijado um homem a meio da noite numa sala deserta.

Fez uma vénia.

— Lorde Jeremy.

— Estou aqui — disse ele, visivelmente alarmado. — Estás zangada? Não querias beijar-me?

Ela olhou-o nos olhos e fez um esgar parecido com um sorriso.

— Claro que queria.

— Nesse caso, porque me olhas de maneira tão estranha? — perguntou ele. — É um daqueles sorrisos que não são sinceros, em que a tua boca se curva para cima, mas os teus olhos não têm emoção. Olha, se não querias que eu te beijasse, peço muita desculpa. Interpretei-te mal.

— Eu beijei-te primeiro, lembras-te? Foi uma experiência surpreendente, mais nada. — Ajeitou as saias para não ter de o encarar. — Já fui beijada antes, como supuseste. Este foi um de muitos.

— Eu sei. Hoje em dia nenhum homem propõe casamento sem reclamar primeiro, no mínimo, os lábios da mulher. E se descobrisse que ela usava dentadura?

— Chocante — retorquiu Betsy, encaminhando-se para a porta. — Também te vais retirar?

— Sabes, acho que tenho de o fazer — disse ele, parecendo absurdamente divertido. — Não tenho dormido mais do que algumas horas por noite, mas neste momento sinto que sou capaz de me deitar e adormecer.

— Era isso que querias dizer com «curado»? Por um beijo, como um sapo que era um príncipe?

— Não. Mas aprendi a ser grato pelas pequenas dádivas. Tu deste-me alguma coisa, mas não posso desenvolver porque és uma jovem senhora.

Ela deteve-se.

O castelo vibrava de silêncio em volta deles. O som dos seus pés no chão de pedra era engolido pelos longos corredores que se estendiam para a frente e para trás deles.

— Quero saber. Afinal, foi o meu beijo.

— Deste-me uma ereção — respondeu ele, inclinando a cabeça e observando-a como se ela fosse um problema de xadrez. — A primeira em meses.

— Ah... Oh... — Bem, aquilo fazia sentido. Mulheres perdidas, mulheres libertinas, inspiravam esse género de coisas nos homens. A sua mãe sem dúvida que o fazia. Fazia sentido que Betsy tivesse herdado a habilidade.

— Nunca mais devemos fazer isto — disse ela, encontrando os olhos dele para garantir que ele compreendia.

— Claro que não. Calculo que tenhas uma quota.

— Uma quê?!

— Um beijo por homem? Um, para lhe confundir os sentidos, após o qual ele deverá tombar de joelhos e balbuciar um pedido de casamento? Já sabes que não o farei, pelo que vou pegar no beijo que me foi atribuído e fugir para Londres antes que perca a cabeça e te peça em casamento.

— Faz como entenderes — disse Betsy, sentindo-se nauseada. Pôs uma mão na barriga para se equilibrar e apressou o passo.

Uma mão grande segurou-lhe o ombro.

— Bess.

Ela afastou-se.

— Tenho de me levantar cedo.

— O que se passa? — Ela não disse nada até chegarem ao fim do corredor. — Não foi uma pergunta metafísica profunda — observou Jeremy.

— Porque haveria de se passar alguma coisa comigo? — Fitou-o, certa de estar a controlar a sua expressão.

— Não faço ideia.

Subiram meio lanço de escadas e dirigiram-se para a ala da família, na Torre Norte, por um atalho que, esperavam eles, evitaria os criados.

Jeremy teve uma certeza súbita de que, fosse o que fosse que Bess estivesse a sentir, não devia deixá-la retirar-se para o seu quarto sem o abordarem. Não estaria tudo sanado na manhã seguinte, como quando haviam tido uma briga e se tinham visto no outro dia com um acordo tácito de que passado era passado.

Isto era diferente.

O beijo podia ter arruinado a única conexão que ele tivera em meses e que o divertira.

— Tu dizes-me — sugeriu ele —, e eu digo-te.

— De que falas? — A voz dela era firme. Mas ele sentiu um laivo de tensão. Algo estava errado.

Caramba, não devia tê-la beijado. Mas não fora ela que o beijara? Não se lembrava claramente, devido à explosão de puro desejo que lhe descera pela espinha no momento em que os seus lábios se tinham encontrado.

— Vou responder à tua pergunta — disse ele. — Aquela que me fizeste na sala de bilhar, e depois tu respondes à minha.

Ele apelava à curiosidade dela. Ao longo dos últimos dois meses, percebera que os mistérios eram um anátema para aquela Wilde em particular. Ela queria saber onde as pessoas estavam e o que pensavam.

— Não tenho nada para te dizer. Só estou cansada. E não me lembro do que te perguntei.

Ele comeria o seu chapéu se aquilo fosse verdade. Já a vira guardar uma pergunta e fazê-la semanas depois a um dos irmãos.

— Há meses que não tinha uma ereção — disse ele casualmente. — Nenhum interesse. Nem na Lady Tallow, nem em ninguém. Mas tu, pela maneira como olhaste para mim e depois mordeste o lábio inferior, trouxeste-me de volta à vida, ou pelo menos a parte abaixo da cintura. O teu lábio de baixo é delicioso, Bess. — Ela estremeceu visivelmente. Ele viu. — Muito bem, já te disse o que significava aquele comentário sobre estar curado. Fiz algo errado no nosso beijo? Tens de me dizer, Bess.

— Não houve nada de errado — respondeu ela friamente.

Ele sentiu uma ponta de raiva, por isso pôs-se à frente dela.

— Estávamos os dois naquela sala. Beijámo-nos, e agora estás com uma expressão desesperada, como se eu te tivesse beijado à força, ou te tivesse atraído para algo de indecente, e ambos sabemos que isso não aconteceu. Então, que diabo se passa? — O seu estômago apertou-se ao ver uma lágrima rolar na face dela. — Foi só um beijo — disse ele, prestes a estender uma mão para a segurar, mas contendo-se.

Ela encostou-se à parede do corredor. Ele encostou-se à parede do outro lado. Tentou uma voz doce, algo que não lhe era fácil.

— Aconteceu-te alguma coisa que a Ophelia ou a Lady Knowe precisem de saber? Ou o teu pai?

Betsy franziu a testa.

De que diabo falava ele?

Depois encolheu-se, os ombros batendo na parede de pedra atrás de si.

— Não. Não, graças a Deus! — Ele aliviou a pressão dos maxilares. — Aquele foi o meu primeiro beijo — balbuciou ela.

— A sério? Não foi assim tão mau. — Jeremy enrugou a testa. — Podia fazer melhor, se me desses outra oportunidade, mas, francamente, Bess, não foi um beijo horrível. Não teve demasiada saliva, os nossos dentes não colidiram e tu tens muito bom hálito. Como rosas, na verdade. Delicioso.

— Tu também — retorquiu Betsy mecanicamente, tendo sido treinada a retribuir elogios. — Tu não compreendes.

— Devia ter-te dado um gole de whisky — disse ele. — Quem diria que os meus beijos eram tão poderosos? Queres sentar-te? Estás branca como a cal. Acho melhor chamar a Lady Knowe.

— Não! — exclamou Betsy.

— Nesse caso, sugiro que tentemos novamente. — Jeremy fitou-a, com olhos sombrios. Falava a sério. — Não posso deixar-te com a experiência de um beijo terrível. Sabe Deus o que isso pode fazer à tua futura vida conjugal.

Betsy desencostou-se da parede e recomeçou a andar.

— Percebeste tudo mal — disse ela, por cima do ombro. — Estou só extremamente cansada. Foi um longo dia, com o casamento e o baile.

— E o nosso beijo — acrescentou ele, acompanhando-a. — Preferes que eu acredite que ficaste avassalada pela sensação maravilhosa de me beijar em vez de reconhecer que fiz um péssimo trabalho e te afastei dos homens para sempre?

— Foi uma sensação maravilhosa — disse Betsy, desejando que ele não estivesse tão perto da verdade. — Absolutamente. Não há necessidade de repetir.

O problema era exatamente esse: tinha sido maravilhoso. Por um momento, ela fora inundada com a espécie de prazer inebriante que era como veneno para uma mulher como ela. Como um futuro alcoólico após o seu primeiro copo de cerveja.

— O meu quarto é aqui — disse ela.

Os olhos de Jeremy estavam terrivelmente curiosos. Como podia ter pensado que ele estava bêbedo?

Nenhum ébrio poderia decifrar os sorrisos que tinham encantado a alta sociedade, nem franzir o sobrolho e parecer planear uma conversa com a tia Knowe. Ou, pior ainda, com a sua madrasta, Ophelia.

Ela hesitou, com a mão na porta.

— Então, quando vamos a Wilmslow?

— Ainda vamos? — Ele parecia surpreendido.

— Claro que vamos. — Abriu a porta e virou-se, pondo na voz toda a autoridade que aprendera sendo a filha mais velha do duque. — Decerto não pensas que um beijo de segunda categoria me faria desistir de uma aposta ganha honestamente?

— Segunda categoria, foi isso? Eu achei maravilhoso. — Um brilho nos seus olhos mostrava que queria tentar de novo, mas Betsy nunca permitiria que ele voltasse a beijá-la. Nem qualquer outro homem. — Vou deixar-te — disse Jeremy, aparentemente lendo os olhos dela tão facilmente quanto ela lia os seus.

— Sim, faz isso — concordou ela. — Podemos discutir os nossos planos amanhã.

— Esses planos incluem-te com um par de calças? — perguntou, sorrindo. — Estou ansioso.

— Chiu!

— Não podes deixar a tua criada na ignorância. Tens de confiar nela. Beijei-te por uma razão, Bess: para te convencer da necessidade de uma acompanhante. Acho que percebeste... Porque, se estivermos sozinhos, e tu de calças, é muito provável que eu tente convencer-te a desfrutar de uns beijos.

Betsy cerrou os dentes.

— Percebo — disse com frieza. — Vou pedir à tia Knowe que nos acompanhe.

— Ótimo. Assim posso dormir esta noite — comentou ele, parecendo surpreendido.

— Eu sabia — disse Betsy, sem se conseguir conter.

— O quê?

— Imaginei como é que a Diana tinha curado o North das insónias.

Ele riu-se.

— Com beijos?

As bochechas de Betsy ardiam.

— Nós só partilhámos um beijo. Imagina o que ela terá conseguido com quatro ou cinco.

Ele inclinou-se para ela.

— Devo mesmo imaginar isso, então?

— És terrível — disse, entrando no quarto, mas, quando ia fechar a porta, espreitou para fora. Ele ainda estava ali, à espera dela, como se soubesse que ela voltaria.

— Quero ir a Wilmslow em breve. Se calhar, podemos ir com as nossas roupas normais e descobrir se há um leilão a que possamos assistir.

— Boa ideia. Preciso de reunir coragem.

Ela franziu a testa.

— Tu... de calças. Sem beijos. Até lá, talvez tenha de arranjar uma mulher. — Um sorriso vagaroso abriu-se-lhe no rosto. — Tu não te importarás de saber, Bess, porque não tens interesse em mim, nem nos meus beijos.

Ela recolheu a cabeça e fechou a porta.

Winnie dormia profundamente na cama dobrável e nem sequer se mexeu. Betsy encostou-se à porta, olhando para o teto. Teria de acordar a criada para se despir, mas podia esperar.

Porque estaria tão perturbada? Sempre soubera que podia ter herdado o gosto da mãe pelos prazeres da cama. Isso não tinha de significar que cedesse à fraqueza.

Contudo, que raio de forma de o descobrir: com um homem que não lhe mostrava respeito. Se um beijo dele destruía a sua resolução e lhe punha os joelhos bambos, imagine-se como se sentiria ao beijar um homem de quem realmente gostasse.

O legado da mãe, por assim dizer, era aquele vulcão de desejo erótico rodopiando em torno dela, à espera de a dominar e a forçar a abandonar o seu marido e os seus bebés. A luxúria era como um vendaval capaz de lhe arrebatar a prudência. O bom senso.

Deslizou encostada à porta até ficar sentada no chão. Ela era capaz de lidar com aquilo. Sabia que era uma possibilidade. De facto, no seu íntimo, sentira que era uma certeza. Era só ver com que facilidade olhara embasbacada para o peito nu de Jeremy.

Se Thaddeus a beijasse, será que ela saltaria sobre ele como um cão selvagem? Parecia-lhe que não. Mas e se casasse com Thaddeus e alguns anos mais tarde encontrasse um prussiano de cabelos dourados?

Era realmente capaz de imaginar a luxúria a levá-la a extremos.

Depois de 20 minutos de choro intenso, parou e assoou o nariz.

O destino oferecera-lhe uma oportunidade de compensar a vergonha da mãe. A mãe deixara para trás um duque e os seus próprios filhos. Ela, Betsy, seria uma boa duquesa. Uma duquesa perfeita. E uma boa mãe.

Seria tudo o que a sua mãe não tinha sido. Nunca namoriscaria outro homem depois de casar, ou ponderaria sequer tal abominação. Seria uma esposa leal, verdadeira e perfeita.

Ninguém, jamais, segredaria sobre o sangue corrompido das suas filhas.

Casaria com Thaddeus.


Capítulo 9

Era ridículo esperar que um beijo o ajudasse a adormecer. Em vez disso, Jeremy fitava o escuro, como lhe acontecia noite após noite.

Porém, de alguma forma, esta noite a escuridão era um pouco menos lúgubre. E uma das razões era o facto de ele continuar a não compreender o que teria corrido mal com aquele beijo.

Betsy — Bess — tinha posto os braços à volta do seu pescoço e encostara-se a ele como se sentisse o mesmo impulso de prazer que ele. Por um momento, a intensidade do momento cegara-o por completo.

Aquele entusiasmo só se podia ficar a dever à sua seca de dois anos: era o desejo a regressar, numa onda que o deixara perto de gemer ao sentir o sabor dela, com cada um dos seus sentidos a ganhar uma vida indomável.

Ele podia jurar que ela sentira o mesmo.

Apesar de ela ter enrolado timidamente a língua na dele, Jeremy sentira-lhe a respiração suspensa no fundo da garganta. Mantivera as mãos quietas, mas sentira-a a vibrar de desejo.

Depois, tudo mudara, e isso era um enigma. Ele não fizera nada de extraordinário. Não lhe mordiscara o lábio, apesar de ser carnudo e delicioso.

A memória desceu-lhe, ardente, pelo corpo, e o pénis saltou-lhe novamente de encontro à barriga. Uma hora depois ainda estava duro. Lutando por estar...

Perto dela.

O calor fervilhava-lhe na pele, e ele quase baixou a mão para se tocar, mas não lhe parecia certo. Betsy não gostara do seu beijo; não seria justo aliviar-se pensando nela.

Então ocorreu-lhe outro pensamento, que o obrigou a cruzar os braços atrás da cabeça, prendendo bem as mãos para garantir que não as punha em redor do pénis.

E se fosse ele? E se ela tivesse gostado do beijo — afinal, era o seu primeiro —, mas depois se tivesse apercebido de que o beijava a ele?

Talvez ela soubesse daquela sua semana perdida após os malditos fogos de artifício. Os pormenores que Parth prometera manter em segredo.

Não.

Ele confiava em Parth, tal como confiava em North e em Betsy — em todos os Wildes. Ele e Betsy podiam trocar insultos o dia inteiro, mas ela nunca apunhalaria um homem pelas costas.

Jeremy tinha fé em todos os Wildes, uma fé entranhada, do género da que alguns homens tinham em Deus, e outros no rei e na pátria.

Provavelmente Betsy formara a sua própria opinião acerca das suas razões para passar as noites a um canto, ruminando sobre oportunidades e homens perdidos.

Ocorreu-lhe um pensamento pior, e ele ficou rígido.

Talvez ela soubesse o que acontecera em Massachusetts. Nenhum Wilde perderia todo o seu pelotão. O seu irmão North conduzira os seus homens, sãos e salvos, através de vários empreendimentos, à exceção de uns poucos infelizes.

Ele, não.

Todos os seus homens tinham morrido; apenas ele saíra do campo de batalha sem um ferimento.

O seu membro afrouxou-lhe na barriga; já não havia necessidade de prender as mãos.

Talvez alguém lhe tivesse contado. O Ministério da Guerra investigara-o e declarara-o herói, mas quem se importava com isso? Eles não estavam lá, no meio do fumo, do suor e do sangue.

Tanto sangue.

Levara os seus homens para a barriga da besta, como lhe haviam ordenado, incentivara-os vez após vez, andara para trás e para diante naquele campo de batalha ensanguentado — aquele em que, nos seus sonhos, ainda caminhava —, e cada bala de mosquete voara-lhe rente à orelha ou sobre o ombro, nunca lhe tocando, atingindo sempre um dos seus homens.

Na altura ele não percebera o que estava a acontecer, demasiado desesperado para manter os seus homens juntos, para pôr os feridos em segurança. Aguardando apenas o sinal para retirar, porque a sangrenta batalha estava perdida desde o início.

A ordem nunca chegou, e ele descobriu mais tarde que o seu coronel fugira em vez de levar para lá o seu batalhão, como lhe fora ordenado.

Os seus homens, os seus bravos homens, continuaram a lutar porque ele os incentivara. E tinham perecido porque ele não os salvara.

O pénis repousava-lhe agora sobre a coxa, tão morto para o mundo como tudo o resto em si.

Com esforço, Jeremy afastou as memórias, apesar de serem tão vivas que podia jurar que sentia um cheiro acre a pólvora.

Em breve a manhã despontaria.

Ele aguentaria aquela semana e manteria a promessa feita a Betsy. Depois partiria. O que andava ele a fazer no castelo, no meio de boas pessoas, como se tivesse algum direito de ali estar? Beijando uma mulher que merecia alguém muito melhor do que ele, e que parecera realmente nauseada ao aperceber-se de quem beijara?

Levaria Betsy a Wilmslow, deixá-la-ia licitar uma tolice qualquer e depois partiria. Para qualquer sítio. Talvez para a sua casa de Londres.

Levantou-se uns instantes depois e aproximou a cadeira da janela aberta. Acendeu um charuto e ficou sentado no escuro, esperando que o céu se iluminasse; a única luz da divisão era a ponta brilhante do seu charuto.

Horas depois, os piscos acordaram e começaram a trinar. Deviam ter feito os ninhos nas reentrâncias das pedras, porque, assim que o céu assumiu um tom rosado e frio, saíram do castelo para os céus, como setas disparadas de um arco.

A garganta ardia-lhe por causa do tabaco; fumara três dos quatro charutos que ainda tinha, importados de Madras. E prometera a si próprio não comprar mais.

Enquanto os piscos baixavam as asas no nascer do Sol, ele surpreendeu-se ao perceber que nem sequer ia fumar o que lhe restava. Tomara também o seu último copo de whisky.

A garganta a arder — devido ao whisky ou ao tabaco — fazia-o recordar-se de que estava vivo. Mas não era mais do que isso; apenas a consciência de que o corpo que respirava e tossia e urinava ainda estava sobre a terra.


Capítulo 10

Quando acordou na manhã seguinte, Betsy libertou-se dos resquícios da sua disposição lamentável. O seu receio concretizara-se: herdara a natureza lasciva da mãe. Não tinha desculpa para ter pena de si própria.

Em vez disso, continuaria a comportar-se como habitualmente, mas manter-se-ia alerta em relação a tudo o que pudesse pôr a sua racionalidade e o seu bom senso em risco. Tudo o que a envolvesse numa névoa de desejo.

Em resumo: Jeremy.

Era de facto uma sorte ela agora ter experiência com um homem de má reputação, que só a beijara depois de deixar claro que não pretendia casar-se. Tinha de evitar situações em que pudesse perder a cabeça e acabar casada com o homem errado, pelas razões erradas.

Hoje era o dia em que os restantes convidados do casamento regressariam a casa. Parth e Lavinia iam voltar para Londres. Diana e North também partiriam, planeando levar Godfrey, o sobrinho de Diana, à Escócia, para visitar o clã que o menino um dia governaria. Na noite anterior, a madrasta, Ophelia, decidira acompanhá-los, pois Artie, a irmã mais nova de Betsy, não gostava de estar longe de Godfrey.

Dos familiares, ficaria apenas a tia Knowe para dama de companhia de Betsy, Viola e Joan. E isso significava que só restava a tia para pôr fim ao plano de Betsy de se fazer passar por rapaz. Com beijos ou não, Betsy não podia ignorar o anseio íntimo de fazer algo que não fosse próprio de uma senhora.

No momento em que saiu da banheira, o seu bom humor estava restaurado. Com o pai e a madrasta a caminho da Escócia, ser-lhe-ia fácil escapar do castelo por um dia. Só tinha de convencer a tia Knowe a acompanhá-la a Wilmslow.

Estava muito confiante em obter a concordância da parte da sua tia. Todas as ideias marotas que ela tivera na adolescência haviam sido apoiadas pela tia Knowe, que até a ajudara a apanhar girinos para pôr nas camas dos rapazes.

— Está toda a gente a falar de si e do Lorde Greywick — comentou Winnie, a criada de quarto, enquanto ajudava Betsy a enxugar os seus longos cabelos.

— Do pedido de casamento que me fez?

Winnie confirmou.

— De certeza que não quer aceitá-lo? Um dia será duque. É mais bonito do que todos os lacaios que já conheci, isso garanto-lho. E a voz dele, a forma como ribomba: sinto-a até às pontas dos dedos dos pés.

Betsy endireitou-se, atirando os cabelos molhados por cima do ombro, e sorriu a Winnie.

— Ribomba?

— É uma voz rouca e sombria — explicou Winnie, sacudindo uma camisa. — Eu casava com ele, mesmo que não tivesse meia moeda em seu nome, essa é que é a verdade.

— Talvez case com ele — disse Betsy com prudência.

— A criada de quarto da mãe dele diz que Sua Graça é muito rigorosa. E aprova a menina.

Betsy já estivera algumas vezes com Sua Graça, a Duquesa de Eversley. Era uma senhora rechonchuda, com a bonita estrutura óssea do filho, mas os olhos eram muito diferentes. Os dele eram solenes. Os dela eram brilhantes. Confiantes. Ela era... Betsy procurou a palavra certa. Caprichosa.

Era isso: a Duquesa de Eversley era o oposto de si. Betsy controlava cada gesto e cada expressão facial para ter a certeza de que ninguém poderia julgá-la pelos erros da mãe. Ao contrário, a Duquesa de Eversley exprimia-se livremente, e o «eu» que exprimia era único.

Para dizer o mínimo.

— Oh! — guinchou Winnie. Atirou para cima da cama o vestido que segurava, correu para o roupeiro e abriu a porta. — Tenho uma ideia do que deve usar esta manhã. Este vestido!

Era um vestido de seda rosa-claro com uma anágua violeta, encomendado por Lavinia, a noiva de Parth, em Londres.

— Estava a guardá-lo para um dia especial — recordou-lhe Betsy.

— Hoje é um dia especial — disse Winnie, com os dedos a voarem sobre os colchetes do vestido. — Na noite passada, a menina recusou o pedido de casamento do Lorde Greywick. Hoje a mãe dele há de procurá-la para exigir saber porque rejeitou o seu filho.

— Decerto não o fará — retorquiu Betsy, um tanto horrorizada. — Nenhuma outra mãe fez tal coisa.

— O filho dela vai ser duque — disse Winnie, como se isso explicasse tudo. — Sabe que Sua Graça usa sempre cor-de-rosa? — Virou Betsy com destreza e começou a atar as fitas do espartilho. — Tudo, incluindo os sapatos, tem de ser cor-de-rosa. Exceto a roupa interior, claro. O Carper perguntou à criada de Sua Graça sobre as suas peças íntimas e levou uma valente reprimenda do Sr. Prism. Mas só depois de ela responder. São brancas.

Betsy não se conseguia lembrar da cor que ela própria usara no jantar de há uma semana, e decerto não notara a preferência de Sua Graça pelo cor-de-rosa.

— Porquê? — perguntou simplesmente.

— A duquesa acredita no poder curativo da cor — respondeu Winnie.

— Oh.

— O Lorde Greywick foi sempre um filho muito bom. Tem um casaco cor-de-rosa, e também calças, que encomendou só para usar quando a mãe está preocupada com a sua saúde.

— Um excelente ponto a favor de casar com ele — afirmou Betsy, embora no seu íntimo não sentisse entusiasmo por um homem em calças cor-de-rosa.

— Eu poria em primeiro lugar o título — disse Winnie, acrescentando com um risinho: — E depois as suas coxas. Tem pernas muito finas para um homem da sua estatura.

— Nunca reparei — comentou Betsy.

Era verdade. Isso sugeria que Thaddeus daria um bom marido. Ela não tinha o menor interesse em dormir com ele. Provavelmente, devia mesmo casar.

— Já está — disse Winnie algum tempo depois.

Em honra de Sua Graça, Betsy levaria o vestido cor-de-rosa, com fitas da mesma cor no cabelo, em vez de pó.

— Isto não significa que eu aceite casar com o Thaddeus — alertou Betsy, mirando-se no espelho.

— Thaddeus?! — Winnie ficou com uma expressão curiosa. — A menina nunca se referiu a outro pretendente pelo primeiro nome, Lady Betsy.

O corpete de Betsy estava um pouco mais baixo do que ela gostava.

— Por favor, dá-me um xaile — pediu a Winnie.

— Esse corpete está absurdamente alto! Está praticamente nos ombros, quando mal lhe devia tapar os mamilos.

Betsy abanou a cabeça.

— Um xaile, Winnie.

A criada suspirou e entregou-lhe um quadrado de renda prateada.

Betsy dobrou-o num triângulo, pô-lo em volta do pescoço e entalou as pontas no corpete. Abriu a porta e quase colidiu com uma das irmãs, que corria pelo corredor.

— Viola! — gritou. — Aonde vais?

Viola virou-se e correu na sua direção.

— A Joan precisa de ser vista por um dentista — disse, arquejando. — Tocámos para chamar o Prism, mas não apareceu ninguém, porque os lacaios devem estar ocupados a instalar pessoas nas carruagens. O pátio está cheio de veículos.

— Dói-lhe um dente?

— A tia Knowe diz que tem de ser arrancado. É mesmo lá atrás, e está a fazer com que os outros dentes também doam. A Joan passou a noite toda a gemer e a cerrar os maxilares. As flanelas quentes não estão a funcionar, e cebola cortada também não.

— Coitada, que chatice! — Betsy virou-se para ir ao quarto das crianças, mas Viola segurou-lhe o braço.

— A mãe disse para não ir lá ninguém. Sabes como é a Joan; detesta que a vejam chorar. Até me pediu para sair.

— Oh, mas...

— Não — exclamou Viola firmemente, empurrando-a na direção oposta. — Temos de pedir ao Prism que arranje um dentista, e depois tens de ir tomar o pequeno-almoço. Calculo que o Lorde Greywick esteja à tua espera.

Betsy fitou o rosto sincero da irmã e sentiu uma onda de amor. Os Wildes eram criaturas altas e imponentes, mas Viola era pequenina e delicada, com caracolinhos castanhos e uma cara em forma de coração.

— És uma querida — disse, abraçando-a. — A Joan tem muita sorte por te ter como melhor amiga e irmã.

Assim que chegaram ao grande vestíbulo de mármore, um moço foi enviado para trazer o dentista.

— Por favor, vens comigo tomar o pequeno-almoço? — pediu Betsy à irmã adotiva.

Viola abanou imediatamente a cabeça e deu um passo atrás.

— Não consigo.

— Prometeste à tua mãe que tentarias juntar-te a nós de manhã.

— Não quando o castelo está cheio de visitas! — sussurrou Viola. — Não consigo, Betsy. Por favor, não mo peças. — Recuou mais dois passos.

Por sua vontade, Viola permaneceria sempre na segurança do seu quarto ou da biblioteca, e nunca se encontraria com estranhos. Especialmente estranhos do sexo masculino e solteiros.

Após o choque inicial, o seminário da menina Stevenson fora uma experiência feliz para Viola; passara de uma criança tímida, que não queria conhecer ninguém, a uma que se sentia confortável na companhia feminina.

Mas não com homens, a não ser que fossem da família.

— Por favor? — pediu Betsy, pegando na mão de Viola. — Não quero encontrar-me sozinha com a mãe do Lorde Greywick. A Winnie acha que Sua Graça vai querer saber porque é que recusei a proposta do filho.

Viola mostrou-se abalada.

— Nenhuma de nós devia ir ao pequeno-almoço.

— Meninas! — Olharam para cima e viram a tia Knowe descer apressadamente a escadaria. — Eu ouvi essa tolice — disse a tia alegremente quando chegou ao fundo das escadas, pondo um braço em volta de Viola. — Minha querida, já te disse que a única forma de exorcizares a tua timidez é obrigares-te a estares em salas cheias de estranhos.

Viola engoliu em seco.

— Eu sento-me ao pé de ti — prometeu Betsy.

— Vim cá abaixo buscar o meu xarope de dente-de-leão para medicar a pobre Joan, senão juntava-me a vocês — disse a tia Knowe. — Ninguém naquela sala te vai morder.

— Se algum homem começar a falar comigo, tens de me salvar — disse Viola a Betsy.

— Claro. Na noite passada vi-te a falar sem problemas com o vigário.

— Oh, bem, o Padre Duddleston — disse Viola. — É diferente.

Viola era capaz de conversar com um homem de 80 anos como o vigário, mas se a pusessem perante um jovem sedutor ela vomitaria num vaso de plantas.

— O Padre Duddleston contou-te que se vai reformar? — perguntou a tia Knowe. — A posição estará vaga em breve. Em circunstâncias normais, seria um membro mais jovem da família a assumir o cargo.

— Escusado será dizer que os meus irmãos não são adequados para a posição — disse Betsy.

— Os Wildes são manifestamente inadequados para funções sagradas — concordou a tia Knowe. — Tenho de ir à despensa buscar o xarope de dente-de-leão. Viola, se tiveres de vomitar, evita o limoeiro. Ainda não recuperou desde a última vez.

— Não quero fazer isto — gemeu Viola. Mas, obedientemente, começou a percorrer o corredor até à sala do pequeno-almoço.

— É como atuar numa pantomima — explicou Betsy. — Não é real.

— Não é real para ti! —- retorquiu Viola, levantando um pouco a voz. — Para ti é tudo fácil, Betsy. Queres mostrar a Londres uma debutante ideal, e mostras. Consegues fazê-lo, apesar de toda a família saber que a única pessoa mais mazinha do que tu é o Parth. Mas todos os outros acham que tu és doce. Doce!

— Eu sou... Eu não sou doce? — perguntou Betsy, um pouco desconcertada.

— De certa forma — respondeu Viola, encolhendo os ombros. — Mas, na maioria dos sentidos, não és. Quer dizer, tu nem sequer vomitas quando conheces um estranho, pois não?

— Não. Mas tenho medo deste encontro com a duquesa — lembrou. — A vida está cheia de acontecimentos desconfortáveis.

Viola lançou-lhe um olhar triste.

— Eu sei.

Tinham chegado à sala do pequeno-almoço, onde Prism vigiava a porta para guiar os convidados às respetivas mesas.

— Bom dia, menina Astley, Lady Boadicea — disse ele. — Menina Astley, posso dizer-lhe que é um prazer que tome o pequeno-almoço com os nossos hóspedes esta manhã?

— Não é prazer nenhum — retorquiu Viola taciturnamente. Depois acrescentou: — Ontem à noite fiquei na salinha de repouso das senhoras durante o baile, Prism, e só ouvi elogios à organização da casa.

O sorriso de Prism rasgou-se, cobrindo-lhe a cara toda.

— De nós as duas, tu é que és a verdadeira dama — disse Betsy à irmã quando um lacaio lhes abria a porta para a sala do pequeno-almoço. — Tu é que devias casar com o Lorde Greywick.

Viola fitou-a, horrorizada.

— Não faças esse género de piadas.

A sala do pequeno-almoço era uma das divisões favoritas de Betsy no castelo de Lindow. O seu avô tinha-a visto num palazzo decadente em Veneza e enviara tudo de barco para Inglaterra. Os painéis de madeira estavam pintados de azul-arroxeado com elaboradas volutas destacando-se em branco.

Os armários a condizer estavam cheios de magníficas jarras de vidro soprado. Nunca eram usadas, porque o falecido duque comprara-as juntamente com os armários, e, para ele, eram como papel de parede. «Se não se consegue substituí-las, mais vale deixá-las estar», segundo se dizia.

Esta manhã Prism reorganizara a mesa do pequeno-almoço devido à quantidade de visitas no castelo. Em vez de uma única mesa grande, havia mesas pequenas espalhadas pela sala, com toalhas brancas bordadas com miosótis.

A mão de Viola apertou-se em torno do pulso de Betsy, como uma pulseira.

— Cuidado com as vossas saias — disse Prism, com a familiaridade de um mordomo que vira ambas crescerem desde bebés. — As mesas estão muito próximas.

Betsy colocou um sorriso inocente no rosto enquanto atravessava a sala. Cerca de 50 pessoas importantes ergueram os olhos e acenaram as suas saudações. Felizmente, não havia sinal de uma duquesa vestida de cor-de-rosa. Ao seu lado, ouviu um gemido quase inaudível.

Prism deteve-se. Betsy ouviu um murmúrio espalhar-se pela sala quando os presentes perceberam que as irmãs Wilde tinham sido colocadas na mesa de um futuro duque e de um futuro marquês, para não mencionar Adrian Parswallow.

Prism puxou uma cadeira.

— Lady Betsy.

— Viola, tu primeiro — determinou Betsy, mantendo um tom de voz despreocupado enquanto ajudava a sua trémula irmã a sentar-se. Aquilo era uma quebra de etiqueta, visto ela ser a mais velha, mas tinha a forte impressão de que Viola estava a pensar em fugir da sala. — Eu sento-me ao lado da minha irmã — disse Betsy a Prism, antes de ele tentar colocar um cavalheiro entre ambas.

Só depois de estar sentada é que Betsy percebeu que Prism tentara pô-la ao lado de Thaddeus, mas agora era Viola quem ocupava essa cadeira. O que significava que Betsy tinha Jeremy à sua esquerda. Naturalmente, ambos os homens estavam de pé.

Betsy lançou um olhar rápido a Jeremy, dissimuladamente. Este tinha um ar terrível, com olheiras. Afinal, o beijo não o ajudara a adormecer. Depois lembrou-se das outras coisas rudes que ele dissera.

Talvez ele tivesse estado acordado toda a noite a fazer sexo com Lady Tallow.

Fez-lhe uma carranca. Ele vacilou um pouco.

— Desculpem, não dormi nada — murmurou enquanto um lacaio servia ovos com manteiga no prato de Betsy. — Acabaste de me fazer uma careta? Em público? Tu nunca fazes isso. Em público, normalmente, pareces uma boneca de porcelana com um sorriso pintado.

— Isso é terrivelmente indelicado — disse Betsy, embora tivesse de admitir que ele tinha alguma razão. O sorriso dela era uma arma poderosa, e ela não hesitava em utilizá-lo.

Virou-se para a mesa e sorriu radiosamente.

— Como estão todos hoje? Sr. Parswallow, espero ouvir o resto do seu poema antes de o senhor partir.

— Posso ficar no castelo mais um dia ou dois — disse logo o cavalheiro. — Na noite passada escrevi uma ode aos pavões. — Fez uma pose, o que não era fácil, uma vez que estava sentado. — Uma grandeza obscena e uma pena decadente, com olhos verdes curiosos...

Deteve-se. Havia um silêncio ensurdecedor.

— Um verso muito evocativo — apressou-se Betsy a dizer, pegando na mão fria da irmã para lhe dar um apertão. Ninguém imaginava a coragem que Viola tinha de reunir para fazer algo tão simples como estar presente no pequeno-almoço.

— Como se chamam os pavões da família, menina Astley? — perguntou Thaddeus a Viola.

Betsy comeu uma garfada de ovo e fez-lhe um aceno aprovador. A maioria das pessoas não percebia que a timidez de Viola a tolhia, e, quando percebiam, não adivinhavam que ela podia ser distraída falando de animais.

— Fitzy e Floyd — respondeu Viola, animando-se um pouco.

— Os pavões são gloriosas bestas emplumadas — interveio Parswallow. — Pertencem aos terrenos de um castelo.

— Parecem extremamente conflituosos — disse Jeremy, abanando o garfo. — Assisti a uma batalha real durante a qual foram arrancados montes de terra do chão. O ar estava denso de imprecações.

— Os pavões são territoriais — explicou Thaddeus no seu tom plácido. — Sua Graça alguma vez ponderou comprar uma ou duas fêmeas, menina Astley?

— Receámos que isso lhes desse mais razões para lutarem — respondeu Viola.

Na mesa atrás deles, Betsy ouviu alguém sussurrar.

— A menina Astley raramente é vista em público.

Felizmente, Viola não ouvira; Thaddeus estava a inquiri-la sobre as batalhas entre o velhote Fitzy e o jovem arrivista Floyd.

A mulher atrás deles parecia acreditar não poder ser ouvida, apesar de estar sentada tão perto de Betsy que as suas saias quase se sobrepunham.

— Não, não, ela não é uma Wilde autêntica. A sua mãe é a terceira duquesa, mas ela é filha do primeiro casamento de Sua Graça. É bastante peculiar, pelo que ouço dizer.

A resposta a este comentário extraordinariamente rude veio num murmúrio, enquanto Betsy comia os ovos com a ira a agitar-se-lhe no estômago. Como é que alguém se atrevia a apelidar Viola de «peculiar» só porque ela era tímida?

— Sim, a que está a falar com o Greywick — disse claramente a primeira mulher. — Claro que não pode tê-lo. Toda a gente sabe que ele se ajoelhou ontem à noite.

— Estás à escuta, Bess? — perguntou uma voz rouca.

Ela lançou a Jeremy um olhar de censura.

Ele olhou para trás dela.

— Ah, a pouco amada Lady Tallow — murmurou ele. — Eu avisei-te acerca dela na noite passada, não avisei?

— Não disseste nada acerca da sua voz sonora.

— Algumas pessoas são como os pavões — declarou ele. — Oferecem os seus bustos e as suas opiniões em momentos inoportunos.

Betsy conteve um sorriso. Lady Tallow continuou, de modo despreocupado.

— Claro que ela terá um excelente dote, mas sabe-se lá qual é o valor de uma rapariga tão acanhada.

Exatamente quando Betsy estava prestes a virar-se e dizer alguma coisa — qualquer coisa! —, Lady Tallow aparentemente notou que um dos seus comensais estava envolvido numa conversa diferente.

— Disparate! — exclamou ela sonoramente. — Esse príncipe norueguês é um sujeito janota!

— Não há... — começou Betsy, mas parou. Ela nunca dava opiniões negativas em público. Às jovens senhoras não era permitido nada tão controverso como uma opinião.

— Não há o quê? — perguntou Jeremy. — Come os teus ovos. Estás demasiado magra.

Ela semicerrou os olhos para ele.

— Esse teu nível de consideração não é habitual. Deves desejar alguma coisa.

Jeremy sentiu o início de uma gargalhada muito pouco habitual formar-se-lhe no peito.

— E o que poderá ser? — perguntou, num tom de voz que simulava inocência.

Betsy pestanejou e depois percebeu. Uma expressão de horror perpassou-lhe o rosto.

— Não era isso que eu queria dizer.

— Por isso é que foi tão engraçado — concordou ele.

O curioso era que ele sentia mesmo desejo, embora fosse por uma rapariga irritante que o achava um idiota incorrigível.

O bom senso dizia-lhe que não havia nada de especial nos seus sentimentos. Uma boa parte do castelo estava apaixonada ou cheia de luxúria pela filha mais velha do duque. Ela não empoara o cabelo naquela manhã, e a sua pele parecia especialmente cremosa em contraste com os caracolinhos negros.

Caracolinhos? Finalmente, estava a perder a cabeça por completo.

Caracolinhos. Sentiu a boca torcer-se num esgar.

— Essa expressão já é mais parecida contigo — disse Betsy, cordialmente. — Obrigada. Começava a recear que te tivesses transformado na espécie de homem que distribui elogios e poesia à mesa do pequeno-almoço, quando a única coisa que se quer é torradas com manteiga e silêncio.

— Não gostas de poesia ao pequeno-almoço? — perguntou Jeremy. — Valha-me Deus, Sr. Parswallow, parece que quebrou uma das regras fundamentais da Lady Betsy.

O poeta mostrou-se ressentido, mas Betsy abriu-lhe um sorriso e ele derreteu-se numa embaraçosa poça de adoração.

— Descobri a minha vocação em Eton — anunciou Parswallow —, e, enquanto poeta, asseguro-lhe que a poesia é adequada a todas as refeições.

Quando ninguém demonstrou entusiasmo pela informação, Parswallow caiu num silêncio amuado.

— Não me lembro de me terem ensinado a escrever poesia em Eton — disse Jeremy. — E você? — perguntou a Thaddeus.

— Eu estava mais empenhado nas ciências — respondeu Thaddeus.

— Ele era brilhante — afirmou Jeremy. — Nunca me esquecerei de quando o Professor Swinkler se irritou e disse que, se o Thaddeus queria ensinar em Eton, tinha de esperar até se licenciar em Cambridge.

— Frequentou Cambridge? — perguntou Betsy a Thaddeus.

— Claro que sim — respondeu Jeremy. — Contornando a tradição, porque geralmente os filhos de duques frequentam Oxford, como provam os seus irmãos. Mas os rapazes brilhantes iam todos para Cambridge.

— Eu e o Lorde Jeremy estivemos em Cambridge ao mesmo tempo — disse Thaddeus. — Vivemos quase juntos por um ano.

— Eu meti-me em sarilhos e fui expulso — confessou Jeremy sem qualquer arrependimento. — Mas esqueçamos a minha desonrosa carreira em Cambridge e voltemos a Eton. O Thaddeus apropriou-se de um livro de um tipo chamado Kant, onde se afirmava que as estrelas não são estrelas, mas sim que cada brilho é um conjunto delas. Costumava enfurecer o Swinkler ao fazer citações desse livro.

Thaddeus interveio.

— O Professor Swinkler ensinava-nos Teologia e tinha um apego irracional à ideia de que Deus criou o universo e nos colocou no centro dele, as estrelas existindo como um mero ornamento para aprazer os nossos passeios noturnos.

— E não é assim? — perguntou Betsy com curiosidade. Nunca ninguém lhe dissera o contrário. Deu uma cotovelada à irmã. — Sabias disto, Viola?

Viola estava a fitar o prato e limitou-se a abanar a cabeça.

— Os astrónomos, Kant incluído, admitem que o que vemos é uma galáxia, ou melhor, universos delas, tão distantes de nós que quase não as vemos — disse Jeremy.

Betsy fitou-o, atónita.

— Cada estrela é uma dessas galáxias? Universos?

— As estrelas singulares estão perto de nós e aquelas que parecem mais distantes são, na verdade, grupos — interveio Thaddeus. — É uma ideia interessante e, desde que Kant apresentou a teoria, alguns astrónomos têm-na confirmado, na medida do que lhes tem sido possível.

Jeremy deu uma gargalhada.

— O Thaddeus estava uma galáxia acima de todos nós.

Depois observou Betsy a barrar manteiga numa torrada e a dá-la à sua tímida irmã, que parecia ter vontade de se enfiar debaixo da mesa. Jeremy semicerrou os olhos. A pobre rapariga engolia em seco convulsivamente, uma sensação que ele viera a conhecer demasiado bem.

Um conjunto de cheiros podia levá-lo a vomitar uma refeição — os óbvios, como sangue e pólvora, mas também folhas apodrecidas no outono, feno molhado, fumo de lenha...

Afastou a sua mente dos campos de batalha da América porque, caramba, a irmã mais nova de Betsy estava prestes a fazer uma cena que as pessoas não esqueceriam facilmente. Ser a Viola dos Vómitos não era uma boa recomendação no mercado matrimonial.

Atrás de Betsy, Lady Tallow voltara ao seu tema original.

— A rapariga é muito peculiar, na minha opinião — sussurrou. — Claro, não tem aquele mau sangue, pelo contrário... — Baixou finalmente a voz para um nível discreto, aparentemente percebendo que insultar as filhas do seu anfitrião podia não ser uma boa ideia.

Betsy estava virada para Viola.

— Oh, não — ouviu Jeremy. — Viola, por favor, não!

Jeremy teria rido desdenhosamente, mas não era o momento. «Por favor» não impediria o seu estômago de se esvaziar se sentisse o cheiro certo. O seu corpo aprendera o truque de expelir as emoções juntamente com o pequeno-almoço, e teve a sensação de que Viola era igual.

Afastou a cadeira e lançou-se no seu desempenho favorito e muito praticado: o número do bêbedo. Tropeçou, segurou as costas da cadeira de Betsy e soltou um arroto sonoro, seguido de um palavrão e um atrasado «Com a vossa licença, minhas senhoras».

Quando andava na escola, especializara-se em arrotos a pedido. Quem imaginaria que seriam tão úteis anos depois?

Toda a gente nas proximidades se virou para ele com surpresa. Bem, nem todos. Thaddeus ergueu o olhar e depois continuou a comer arenque fumado. Claro, assistira a muitos arrotos autoinduzidos quando andavam na escola.

Viola fitava o seu prato, com os lábios cerrados. Não bastaria.

Ele pegou na sua chávena de chá frio e levantou-a.

— Vamos beber à saúde do duque! Nada melhor do que um cheirinho logo de manhã!

Percebeu de repente que a maior parte dos presentes eram homens — visto que as senhoras casadas podiam tomar o pequeno-almoço num tabuleiro nas suas camas —, que concordavam com ele. Uma série de olhares de censura para os lacaios sugeria que se sentiam ofendidos por não lhes ter sido oferecida uma bebida mais forte do que chá.

— Que fraude! — murmurou Betsy baixinho, mas ele ouviu-a.

Por um momento, considerou despejar o chá em cima dela, e não em cima da sua irmã. Mas não. Viola precisava de um choque, por muito que lhe apetecesse ver Betsy com o peito encharcado. Outras mulheres punham os seus dotes em evidência, mas Betsy escondia os seus. Sem perceber, obviamente, que isso a tornava ainda mais atraente.

— Devíamos fazer um brinde — disse ele, cambaleando e caindo de encontro à cadeira de Betsy, na esperança de a exasperar. Ergueu a chávena de chá e berrou: — À Lady Tallow e ao seu talento para... — deixou o silêncio suspender-se no ar apenas o tempo suficiente para assustar todos os homens que tinham sucumbido aos seus encantos — a coscuvilhice!

Levando a chávena aos lábios, fingiu escorregar para o lado, virando o chá num ângulo gracioso de modo que este escorresse diretamente pelo pescoço de Viola, e depois completou o arco, despejando o resto sobre Lady Tallow.

Viola reagiu ao chá frio no pescoço com um guincho e pôs-se de pé, empurrando Jeremy para o lado... o que lhe permitiu cair no regaço de Betsy.

— Oh, olá — cumprimentou ele, apoiando o cotovelo na mesa para não a esmagar. Tinha as pernas estendidas no chão. — Já nos conhecemos?

Lady Tallow estava histérica; atrás deles havia uma algazarra, como se uma raposa tivesse entrado num galinheiro.

— Nem sequer cheiras a bebida — notou Betsy, não parecendo zangada. — Porque é que estás a agir assim?

Jeremy encolheu os ombros.

— Isso foi muito desastrado, Lorde Jeremy — disse Viola, com as bochechas vermelhas de indignação. Virou-se e saiu da sala, e ele gostou de ver que ela nem sequer corria, mesmo sendo saudada por uma série de convidados no seu caminho para a porta.

Aparentemente, a água fria a escorrer-lhe pelas costas era tão eficaz com ela como com ele, quando se tratava de evitar o vómito.

— Tenho de me levantar? — perguntou ele a Betsy. — O teu colo é incrivelmente macio.

— Estou prestes a despejar o meu chá em cima de ti, e o meu está quente.

A expressão dela era bastante estranha; se ele tivesse de adivinhar, diria que ela não se importava que ele estivesse esparramado em cima dela.

A maioria dos Wildes tinha olhos azuis. Fazia parte do seu encanto: eram um grupo de pessoas bonitas, altas e atléticas, com rostos aristocráticos. Os olhos de Betsy eram de um azul mais escuro do que os dos irmãos.

— Muito bem — disse Jeremy, voltando a pôr-se de pé. — Tenho de apresentar as minhas desculpas à Lady Tallow.

— Não se incomode — disse a senhora com azedume. Estava a dar palmadinhas no peito com um guardanapo de linho, e um lacaio perto dela segurava um molho deles na mão. — O senhor é um depravado sem lugar na alta sociedade! Até agora, temos desculpado o seu comportamento repreensível devido ao seu nascimento e às tristes circunstâncias da sua vida, mas nenhum cavalheiro se comporta como um bêbedo ao pequeno-almoço.

— Só à noite? — perguntou Jeremy com curiosidade.

— O quê?

— Será que nós, cavalheiros, temos permissão para nos comportarmos como bêbedos à noite? — esclareceu ele. — Parece-me que abre exceções para mim a uma hora do dia, mas não noutras.

— Em circunstâncias normais, não. Apenas aos homens que sacrificaram o seu pelotão inteiro é permitido esse lenitivo — retorquiu, levantando a voz. — Fazemos exceções para... para esses homens, embora, felizmente, não sejam muitos. A maioria dos cavalheiros ingleses põe a segurança dos seus homens acima da sua.

As palavras atingiram-no como um golpe e, por um segundo, o mundo girou em torno dele. De repente, pelo canto do olho, viu que o grande brasão de prata no aparador começou a refulgir como se estivesse a arder.

Jeremy cerrou os dentes e concentrou-se em Lady Tallow, esforçando-se por ignorar as luzes que invadiam o seu campo de visão. Recusava-se a mostrar qualquer reação às suas palavras.

De uma forma doentia, não conseguia controlar nem o seu corpo nem o seu cérebro, tal como acontecera a Viola alguns minutos antes. Ela, prestes a vomitar; ele, à beira do colapso.

O peito de Lady Tallow arfava sob o guardanapo, como se um animal estivesse ali escondido.

— Escondeu-se atrás de uma árvore, segundo ouvi dizer, sem sobreviventes que o contradissessem! — cuspiu ela.

O London Times reportara a perda do pelotão inteiro, saudando-o como herói. Ele pensava nos seus homens todos os dias — todas as horas —, mas enganara-se a si mesmo ao acreditar que talvez a sociedade não pensasse nele nos mesmos termos cruéis em que ele próprio pensava.

— De facto, sei de fonte segura que o Thomas Cromie afirmou no seu leito de morte que ninguém sabia onde estava o senhor. O Thomas merecia melhor do que isso; era filho de um barão!

— Na verdade, o Thomas não morreu num leito — disse Jeremy, sentindo o seu rosto retorcer-se numa horrível semelhança com um sorriso. — Morreu nos meus braços. E quer saber o que ele disse? As suas últimas palavras? — Lady Tallow entreabriu a boca e começou a pestanejar rapidamente, mas ele estava preso ao horror daquela memória. — Pediu-me desculpa. Disse que lamentava não poder continuar. «Desculpa falhar-te.» — Jeremy pigarreou. — Foi o que disse. «Desculpa falhar-te.»

Ao seu lado, Betsy entrou no seu campo de visão. Ele estava acostumado a vê-la parecer uma boneca de porcelana, mas naquele momento parecia uma guerreira. O seu rosto fazia lembrar o céu quando havia tempestade no horizonte. Ela estava prestes a destruir a sua reputação de senhora plácida e bem-comportada. Por nada. Por ele, que merecia todas as palavras desagradáveis.

Antes de ele poder dizer algo que interrompesse Betsy, uma voz calma e rouca interveio. Todas as cabeças da sala se viraram para Thaddeus, que estava agora ao lado de Betsy.

Pareciam um casal dourado, ligados pela beleza refulgente que provinha de nobres árvores familiares e camadas de seda.

— Lady Tallow, a senhora está a exceder-se — disse Thaddeus. — Uma inglesa autêntica nunca censuraria aqueles que serviram o nosso país. Os aristocratas de entre nós que ficaram em casa, meros inúteis, devem tudo aos que tudo arriscaram para defender as nossas costas. E eu conto-me entre eles.

Betsy abriu os lábios, mas Thaddeus pôs-lhe uma mão no braço.

Jeremy percebeu com um golpe no coração que todos os presentes julgaram que eles tinham um compromisso. Talvez tivessem. Talvez Thaddeus se tivesse encontrado com Betsy antes do pequeno-almoço e voltado a ajoelhar-se.

Sem se aperceber, Jeremy respirou fundo.

— Tenho vergonha de não ter servido nas Américas — continuou Thaddeus. — Quem falhou ao Tommy Cromie não foi o Lorde Jeremy, mas eu. Todos os homens fisicamente capazes nesta sala que ficaram em casa partilham do meu sentimento. — Jeremy tinha grandes dúvidas, mas pouco importava. — Quem quer que difame o nome de um dos homens do rei, tenha ele morrido ao serviço da pátria ou sobrevivido com o fardo de chorar os falecidos... essa pessoa nunca fará parte das minhas relações. Nunca!

Um momento de silêncio pairou sobre a sala.

Betsy clareou a garganta.

— Falo pela minha família. — A sua voz era tão calma quanto a de Thaddeus, mas mais determinada. — Lady Tallow, a senhora já não faz parte das minhas relações, nem das de qualquer um dos Wildes.

Um homem levantou-se na mesa ao lado.

— Nem das minhas.

— Nem das minhas, nem das minhas, nem das minhas... — O som foi como um staccato, caindo nos ouvidos de Jeremy como... como uma bênção.

O que era ridículo. Retorceu os lábios num esgar. Lady Tallow olhava em seu redor, muito vermelha, com um trejeito de incerteza no seu comprido lábio superior. Presumivelmente, conseguia ler a atmosfera de uma sala.

A atmosfera ou as declarações que agora vinham de cada canto.

Thaddeus mantinha-se calmo, passando os olhos de pessoa para pessoa à medida que falavam, com o ar de um homem que não esperaria outra coisa dos seus congéneres mortais. Jeremy podia ter-lhe contado quantos aristocratas haviam tentado confortá-lo subestimando os homens perdidos, como se estes fossem carne para canhão.

Contudo, Thaddeus era um líder, e, naquele exato momento, todos os homens da sala o seguiam. Se Lady Tallow tivesse o cuidado de contar, poderia ver as suas hipóteses de ser acolhida na alta sociedade a diminuírem, voz a voz, casa a casa.

Thaddeus ainda tinha a mão no braço esquerdo de Betsy. Mas, por trás das suas costas, escondida pelas suas volumosas saias, a mão direita dela segurava a de Jeremy.

Dedos quentes e fortes enrolavam-se nos seus.

Enquanto «Nem das minhas» continuava a ecoar na sala, ele encostou-se à mesa, totalmente exausto, deixando que a mão dela o ancorasse a este momento, a este país.

A esta vida.


Capítulo 11

Jeremy, Thaddeus e Betsy deixaram juntos a sala do pequeno-almoço. No corredor depararam-se com Prism, que fez uma vénia e disse:

— Sua Graça, a Duquesa de Eversley, pede que se junte a ela na biblioteca, Lady Betsy.

Jeremy desatou a rir e desejou-lhe sorte. Depois convidou Thaddeus para um jogo de bilhar.

Betsy tentou não se importar que Jeremy quisesse defrontar Thaddeus, apesar de nunca querer jogar com ela. Encaminhou-se para a biblioteca, sentindo a curiosidade a suplantar o terror. Se ela se casasse com Thaddeus, teria de passar tempo com a mãe dele.

A biblioteca de Lindow era uma sala grande, com um número confortável de cadeirões e sofás puídos espalhados entre estantes com portas de vidro, contendo livros bolorentos, e outras abertas, cheias de volumes que as pessoas podiam mesmo querer ler.

Visto que a tia Knowe era a maior leitora da família, quase todas as mesas tinham uma pilha de livros relacionados com medicina, biologia ou ervas. Um busto de Shakespeare, com um ar alegre devido ao tricórnio caído sobre um dos olhos, fazia as honras do local sobre a pedra da lareira.

Ao princípio, Betsy pensou que a sala estava vazia. Depois, ao encaminhar-se para a lareira, uma mulher baixinha levantou-se de uma cadeira de encosto alto.

— Aí está a menina! — exclamou a duquesa, aproximando-se de Betsy e prendendo-lhe ambas as mãos. — Sei que já nos conhecemos, mas não tinha reparado bem em si. A menina é incrivelmente alta e muito bonita. E parece tão saudável! Isso é importante, não é?

Sua Graça tinha um sorriso contagiante plantado no rosto rechonchudo, com uma covinha em cada bochecha. Tinha o ar de uma senhora que envelhecera sem dar por isso e que não via agora a utilidade de se preocupar com o assunto. Tinha um brilho nos olhos e sacudia as mãos de Betsy com grande vigor.

— Bom dia, Sua Graça — cumprimentou Betsy. Era muito embaraçoso, mas não podia fazer uma cortesia porque a duquesa não lhe largava as mãos.

— O Thaddeus disse-me que a menina o recusou — revelou Sua Graça, arrastando Betsy para junto de um sofá.

Em vez de a questionar, como a sua criada esperava, a duquesa parecia extremamente satisfeita com a rejeição de Betsy.

— Não estou convencida de que estejamos talhados um para o outro — disse Betsy, sentando-se.

— Desconfio que não estão — concordou prontamente a mãe de Thaddeus. — Mas a questão é: será que isso importa? É muito mais importante que eu e a menina nos demos bem. A menina foi a primeira que chamou a atenção do Thaddeus, pelo menos de forma oficial.

— Percebo — disse Betsy.

— Os homens geralmente não estão em casa, pelo menos o meu marido, mas nós ficaremos lá juntas — esclareceu a duquesa. — Então, quando o Thaddeus me informou de que tencionava pedir a sua mão, decidi vir com ele para Lindow. Por favor, minha querida, não pense que sou egoísta, mas, se me encontrar in extremis, não será o meu marido quem virá em meu auxílio.

— Encontra-se frequentemente in extremis? — inquiriu Betsy.

— Muito frequentemente, durante o chá — respondeu prontamente a duquesa. — Acho os chás insuportavelmente entediantes; contudo, serve-se chá com uma regularidade constrangedora. Não suportarei que o Thaddeus case com uma mulher que goste mais de chá do que de cerveja. — Olhou para Betsy, na expetativa.

— Cerveja — disse Betsy, escolhendo dizer a verdade.

— Outubro ou março? — perguntou a duquesa.

— Outubro, de longe — respondeu Betsy. — Em março está enfraquecida pelo lúpulo e pelo malte do ano anterior.

— Excelente. Já teve alguma convulsão, ou ambiciona essa espécie de comportamento feminino?

— Não — respondeu Betsy.

— A minha última pergunta — prosseguiu a duquesa — e mais importante. O meu marido chama-se Marmaduke e pretende que o seu nome seja dado ao seu primeiro neto. — Fez uma pausa.

— Nenhum filho meu se chamará Marmaduke — assegurou-lhe Betsy. O rosto da duquesa abriu-se num sorriso radiante. — Vossa Graça, não tenho intenção de casar com o seu filho — disse Betsy, sentindo-se particularmente apologética, agora que parecia ter passado num exame.

— Talvez a menina comece a gostar dele — retorquiu a duquesa. — Gosto muito do Thaddeus, claro, mas percebo que estou a ser parcial. Vou tentar pensar em algumas boas histórias para a convencer de que ele é elegível. — Levantou-se, e Betsy imitou-a. — Não devo retê-la, Lady Boadicea. Pelo que me diz a minha querida amiga Lady Knowe, vários cavalheiros acotovelam-se lá fora na ânsia de conquistar a sua mão.

Betsy fez uma vénia profunda.

— A Lady Knowe disse-me que é uma brilhante jogadora de bilhar — contou a duquesa. Depois sorriu. — O meu filho também. Devia desafiá-lo para uma partida.

Naturalmente, Betsy dirigiu-se de imediato para a sala de bilhar.

— Não acredito nisto! — exclamou ela, detendo-se à porta. — O senhor é um verme misógino, Jeremy. Como se atreve a jogar com o Lorde Greywick quando tão frequentemente se recusa a jogar comigo?

— Thaddeus — corrigiu o visconde, erguendo a cabeça e acenando-lhe. — Nada de Lorde Greywick, pelo menos em privado. Ah, e eu nunca lhe recusaria um jogo.

Oh, caramba. Os olhos dele eram mesmo calorosos. Betsy tivera muito cuidado em nunca permitir que os seus pretendentes fossem além da afeição; não queria quebrar corações. Uma das lições mais surpreendentes da sua apresentação à sociedade fora o número de homens que vinham pedi-la em casamento, apesar de não passarem de vagos conhecidos.

— Eu acho que prefiro ser Lorde Jeremy — disse Jeremy —, se a alternativa for verme.

— Sabes o que quero dizer — ripostou ela, abanando uma mão diante dele. — Jogo com o vencedor.

Eram ambos espantosamente bonitos, sobretudo Thaddeus. Tinha um ar nobre, com um nariz direito e um queixo forte. Qualquer mulher quereria casar com ele. Até cheirava bem.

Jeremy, não.

— Porque é que cheiras a cavalo pela manhã? — perguntou-lhe.

Jeremy ergueu uma sobrancelha.

— Não gostas de cavalos?

Ela preferia morrer a ter de admitir que adorava o cheiro dele, a couro de sela e graxa, com um toque do vento que soprava sobre o pântano. Era excitante.

Não.

Recompôs-se.

— Claro que gosto de cavalos. Mas têm a sua hora e o seu lugar.

— Essa hora e esse lugar é às 5 horas da manhã, ao romper da aurora — disse Jeremy. — Não concordas, Thaddeus?

— Normalmente as senhoras montam à tarde — respondeu Thaddeus. — Não estou tão enamorado pelos estábulos como tu.

— Não precisas de estar — disse Jeremy.

— O teu entusiasmo equestre deve-se às insónias? — perguntou Betsy.

Jeremy encolheu os ombros.

Thaddeus inclinou-se, apontou o taco, jogou uma bola às duas paredes e fê-la embater na bola vermelha, que entrou na bolsa.

Betsy engoliu em seco. Ele sabia mesmo jogar.

Era um sinal de que devia casar com ele. A tia Knowe mandara-a para a sala de bilhar na noite anterior por uma razão. Era assim tão cobarde para o pânico lhe inundar o corpo todo?

— Ele está a exibir-se — disse Jeremy, com um toque de malícia. — É impressionante o que os homens fazem quando há uma mulher bonita a observar.

Betsy sentia as bochechas a corarem, mas manteve os olhos na mesa. Jeremy achava-a bonita? Nunca mostrara um pingo de...

Não era verdade.

Ele beijara-a. Mas beijar era um passatempo.

Aparentemente, Jeremy não tinha desejo de se exibir, porque falhou por completo a bola na sua vez.

— Oh, olha para isto — disse sem emoção. — Terás de jogar com o Thaddeus.

Virou-se e sentou-se na sua cadeira habitual. Thaddeus olhou-a nos olhos; uma centelha da preocupação que ela sentia refletia-se nele.

— Peço perdão, Lady Betsy...

— Betsy — corrigiu ela.

— Bess — interveio Jeremy. — Não deves confundir a tua mulher com uma ama de crianças. — Viraram-se ambos para o fitar. — O que foi? — perguntou ele. — Assisti ao teu primeiro pedido de casamento, mas suponho que podes fazer melhor do que isso, Thaddeus.

— A minha próxima tentativa será sem a tua presença — afirmou Thaddeus.

Betsy sentiu-se a corar ainda mais.

— Um rubor de donzela — comentou Jeremy, aprovando. — -Julgar-se-ia que já os tinhas esgotado depois de todos os pedidos de casamento que recebeste. As mulheres inglesas são infinitamente inventivas, pelo que se vê.

— Infinitamente pacientes, diria antes — murmurou Betsy baixinho, mas ele ouviu-a.

— Não tenho culpa que os teus pretendentes sejam uns chatos — notou ele.

— Gostava de ir dar um passeio — disse Thaddeus. — Preciso de ar fresco. Betsy, teria a gentileza de me acompanhar?

Jeremy levantou-se abruptamente da cadeira.

— Boa tentativa, Thaddeus, mas terás de agendar o teu próximo pedido para outra altura. Eu e a Betsy temos planos para ir a Wilmslow.

— Temos? — perguntou Betsy. Tinha a cabeça a andar à roda. Jeremy não estava errado. Depois de ter passado uma temporada social a receber propostas de casamento, conhecia a linguagem oculta por detrás de um convite para um passeio.

— Precisamos de investigar umas coisas na cidade — esclareceu Jeremy.

Foi a vez de Thaddeus perguntar:

— Porquê? — A sua postura era polida, mas confusa. E um bocadinho, só um bocadinho, contrariada.

Betsy virou-se para Thaddeus.

— Temos uma brincadeira em mente, uma tolice.

— Talvez nós pudéssemos arranjar um grupo — sugeriu Thaddeus.

Betsy respondeu antes que Jeremy piorasse as coisas.

— A tia Knowe acabou de me dizer que o senhor e a sua mãe vão ficar connosco mais alguns dias — disse. — Acha que Sua Graça gostaria de visitar Wilmslow?

Thaddeus abriu um sorriso.

— Acho que é muito provável.

— Excelente — exclamou Betsy com o coração a retumbar no peito. Tendo endereçado um convite à duquesa, tinha praticamente aceitado o pedido de casamento de Thaddeus. Pela primeira vez, que se lembrasse, sentiu um grau de pânico semelhante ao de Viola.

Jeremy saiu da sala e, sem olhar para trás, disse:

— Muito vem, vou transmitir o convite a Sua Graça, Betsy. Encontramo-nos à entrada daqui a uma hora, com a mamã a reboque, Thaddeus.

Afastou-se antes de Betsy ter oportunidade de responder.

— Ele não está em si — disse Thaddeus, tocando-lhe no cotovelo para indicar que ela devia sair da sala antes dele.

— Está a tentar convencer-me de que o Jeremy Roden costumava ser um jovem cortês? — perguntou Betsy, forçando-se a sorrir a Thaddeus.

O visconde fechou a porta e estendeu o braço para a acompanhar. Ela deslizou-lhe a mão pelo cotovelo.

— O Jeremy sempre possuiu uma boca ordinária e uma mente brilhante, numa combinação estranha que fazia dele o líder de qualquer classe.

— Não supunha que os alunos praguejassem diante de professores — comentou Betsy.

— A maior parte da aprendizagem universitária é feita fora das salas de aula — esclareceu Thaddeus. — Nas sociedades de debate, por exemplo. Creio poder defender-se que o futuro de Inglaterra é definido nos debates de Eton e aprimorado nos de Oxford e Cambridge.

— Compreendo — disse Betsy, perguntando-se o que faria a Câmara dos Comuns nesse caso, para não falar do próprio rei.

— A fragilidade do Jeremy é uma coisa nova — acrescentou Thaddeus.

— O que o senhor disse ao pequeno-almoço foi maravilhoso — disse Betsy, erguendo o olhar para ele com um sorriso genuíno. — Eu estava prestes a gritar com a Lady Tallow, o que não teria sido nada positivo.

— Falei antes de a Betsy conseguir organizar os seus pensamentos, mas tenho a certeza de que teria sido mais eloquente do que eu. — Os seus olhos eram distantes, mas calorosos.

Raios.

Ela tinha de se decidir antes de ele ficar mais apaixonado. Mas, se calhar, já se tinha decidido... Se fosse esse o caso, devia ser honesta com ele.

— Thaddeus, na noite passada pediu a minha mão em casamento.

Ele fê-la parar.

— Poderei ter esperança de que tenha mudado de ideias?

— Não — apressou-se ela a dizer. — Isto é, ainda não. Ou... não.

Ele sorriu.

— Compreendo.

Compreendia? Que bom para ele, porque ela não compreendia.

— Queria dizer-lhe que eu apresento ao mundo uma fachada de duquesa — disse Betsy, forçando-se a concentrar-se. — Na verdade, não sou tão doce quanto aparento ser. Posso assemelhar-me a uma duquesa, mas de facto sou mais... — interrompeu-se, incapaz de explicar.

— Selvagem? — sugeriu Thaddeus. — Não esperaria outra coisa. Eu considero-a honesta, leal, honrada e inteligente. Estas qualidades são muito mais importantes para mim do que ser requintada e ter maneiras requintadas.

Betsy pigarreou.

— Devo também acrescentar que há pessoas que acreditam que a minha mãe foi infiel ao meu pai antes de eu nascer.

Ele riu-se.

— Não acredita nisso mais do que eu, nem do que qualquer pessoa de bom senso. Tem as sobrancelhas do seu pai. — Tocou-lhe ligeiramente na sobrancelha direita. — É linda, Betsy, mas o que admirei primeiro em si foram as suas sobrancelhas.

— Santo Deus, porquê? — perguntou ela, confusa, impedindo-se por pouco de tocar ela própria na sua sobrancelha. Esta arqueava, como qualquer outra sobrancelha.

— Tem umas sobrancelhas maliciosas — respondeu Thaddeus. — As sobrancelhas de uma mulher que nunca se contentará com a paz doméstica, mas que será uma verdadeira companheira.

Betsy engoliu em seco. Era demasiado tarde. Ele dera-lhe o seu coração antes de ela se aperceber.

— Faz-me parecer um exemplo — disse Betsy debilmente. — Asseguro-lhe que sou muito humana.

— É exatamente isso que estou a dizer — esclareceu Thaddeus, erguendo a mão dela até aos lábios e beijando-a.

— As sobrancelhas não são indicadores de parentesco — disse-lhe Betsy.

— Mas é uma Wilde, sem tirar nem pôr.

— Cortejar-me-ia se eu não tivesse as sobrancelhas do meu pai? — perguntou Betsy, pensando nas sobrancelhas da sua irmã Joan, direitas e loiras.

— Teria de pensar cuidadosamente — respondeu Thaddeus. — Tenho nas mãos a honra da minha linhagem familiar. O meu irmão mais novo morreu, e não tenho primos direitos. Por isso, a mulher com quem me casar será a mãe dos filhos que darão futuro ao ducado.

— Não creio que a ancestralidade importe — retorquiu Betsy, sem acreditar inteiramente. — Se eu fosse filha daquele prussiano com quem a minha mãe fugiu, continuaria a ser eu própria.

Thaddeus parecia embaraçado.

— Fui educado a acreditar que a minha terra e o meu título são sagrados. Tão sagrados quanto a própria Inglaterra.

— Apenas casará com uma mulher cuja linhagem reverencie? — perguntou Betsy. Começava a desgostar dele, só um bocadinho.

— O que digo é que não me importo que pessoas como a Lady Tallow digam coisas desagradáveis acerca da sua mãe. Tenho a certeza absoluta de que é filha do seu pai.

Betsy continuou a andar, tentando escolher as melhores palavras. As mais bondosas.

— O que está a dizer é que tem bastante coragem para confrontar a sociedade em relação à ilegitimidade da sua esposa apenas se estiver convencido da sua legitimidade. Não o faria se suspeitasse de que ela era ilegítima.

— Faz-me parecer um cobarde — retorquiu Thaddeus após um momento. — A minha linhagem é importante para mim, Betsy. Não tão importante quanto era para o meu pai, que se apaixonou pela filha de um comerciante local, mas abdicou dela em prol da família. Fui educado a pensar que o meu sangue normando é importante.

Betsy teria argumentado... mas seria aquilo muito diferente da sua própria visão? Ela sabia que tinha herdado traços indesejáveis da sua mãe. Devia sentir-se grata por Thaddeus estar disposto a ignorá-los, e não desejar que ele negligenciasse os antepassados.

— Fui educada para pensar que as pessoas eram todas importantes — disse ela. — Os corações generosos são mais do que coroas, etc. — Ele ergueu uma sobrancelha. — Corações generosos são mais do que coroas, e a pura fé vale mais que o sangue normando — continuou ela, alterando a frase para se coadunar com o seu objetivo.

— A família deve ser mais importante do que coroas — disse Thaddeus. — Os Wildes são muito importantes uns para os outros, toda a gente consegue ver isso. — Betsy teve de ficar calada. — Faz parte do charme da família — acrescentou ele após alguns segundos. — Vocês obtêm muito prazer uns com os outros.

— Está a dizer isso de uma forma negativa? — perguntou Betsy.

Ele fitou-a, obviamente surpreendido.

— Nem pensar. Quando muito, com inveja. O meu pai cumpriu o seu dever ao casar com a minha mãe, mas o casamento não é feliz. Não somos uma família feliz.

— Pensa que o seu pai está arrependido de não ter casado com a filha do comerciante?

Thaddeus abanou a cabeça.

— Ele... — Interrompeu-se quando se aproximavam do lanço de escadas que levava ao andar de cima.

Betsy parou.

— Sim?

— Não é uma história para uma jovem senhora — explicou Thaddeus, em tom de desculpa.

— Consigo adivinhar — disse Betsy. — O seu pai estava apaixonado. Imagino que tenha transformado a sua amada em amante, e que tenha muitos filhos com ela, e apenas dois com a sua esposa nobre, mas não desejada. A segunda família cresceu como uma ninhada feliz de cachorrinhos, o que deve ter levado o senhor a sentir-se sozinho. Estou certa?

— Não totalmente, mas perturbadoramente próxima.

Betsy ia responder, mas foi interrompida por um grito no cimo das escadas.

— Louisa, és uma ratazana!

— É a minha mãe — disse Thaddeus.

— Chamou ratazana à tia Knowe — exclamou Betsy, perplexa.

Thaddeus sorriu, com os olhos a brilhar de uma forma muito atraente.

— Se eu sou um roedor, tu és um arganaz. — A voz da tia Knowe ecoou pelas escadas. — Quanto mais velha ficas, mais o teu nariz treme, Emily.

— Uma ratazana cruel — afirmou a duquesa.

— Tenho de me ir trocar. Preciso de um fato de passeio — disse Betsy.

Estava quase a fazer uma vénia, pensando que era boa ideia criar distância entre si e o seu nobre pretendente, mas viu o olhar de Thaddeus e mudou de ideias.

— Um arganaz cor-de-rosa — disse a tia Knowe, rindo.

— Posso acompanhá-la lá acima? — perguntou Thaddeus.

— Não — respondeu Betsy, e pigarreou.

— Posso acompanhá-la à cidade?

— Pode acompanhar a sua mãe — sugeriu Betsy.

Os olhos dele entristeceram.

— É então o Jeremy que a acompanhará?

— Oh, por amor de Deus! — exclamou Betsy, e partiu sem mais conversas.

Correu por uma das muitas escadarias traseiras do castelo de Lindow.

O normal seria que ela gostasse loucamente de Thaddeus. Que o amasse, até.

— Um dos mistérios da vida — disse em voz alta quando chegou ao corredor para o seu quarto.

A tia Knowe surgiu-lhe à frente, esbaforida.

— Oh, minha querida, estás aí! Sua Graça está terrivelmente contente por a teres convidado a ir a Wilmslow. — Baixou a voz. — A Duquesa de Eversley será uma boa sogra.

— Já é tarde para se referir a ela tão delicadamente — disse Betsy, caminhando bruscamente para o seu quarto. — Ouvi-a chamar-lhe Emily e arganaz, e o filho dela também ouviu.

— Ela é um arganaz: o nariz dela é do mais delicioso tom rosado. Chamo-lhe arganaz regularmente desde que éramos crianças. Não que tivéssemos frequentado a escola juntas, mas as nossas mães gostavam da companhia uma da outra.

— Acho que vou usar o meu vestido de passeio às riscas — disse Betsy, ignorando a conversa sobre a duquesa.

— Muito bem — concordou a tia Knowe amavelmente. Pararam junto da porta de Betsy.

Então, a tia Knowe inclinou-se, como fazia muitas vezes — era exatamente da mesma altura que o seu gémeo, o que a tornava notavelmente alta para uma mulher —, e envolveu Betsy num abraço caloroso.

— Não tens de casar com ele, minha querida.

— Esse perfume é novo? — perguntou Betsy, que tinha muita habilidade para mudar de assunto.

— Veio de Paris! — exclamou a tia, imediatamente distraída. — Après Não Sei Quê.

Betsy pôs-se em bicos de pés e beijou a bochecha da tia.

— Tenho de mudar de roupa.

A tia Knowe arregalou os olhos.

— Acabo de ter uma ideia terrível, Betsy! As tuas filhas poderão ser parecidas com arganazes. Caraterísticas como narizes e dentes são hereditárias.

Como se Betsy pudesse esquecer esse facto saliente. O sangue pecaminoso da mãe corria no seu corpo. Sabia-o porque, assim que vislumbrara os ombros de Jeremy na sala de bilhar, o seu coração disparara, e ela sentira os joelhos a fraquejar embaraçosamente. Apesar de o filho da arganaz ter um nariz nobre que não tremia como o da sua mãe, e cabelo espesso que parecia estar sempre penteado, uma voz rouca que, por direito, devia fazer vacilar o coração de uma donzela.

Ele era «O Tal», obviamente.

Ela nunca o horrorizaria no quarto. A diretora da escola fora muito franca acerca de noites de núpcias, durante um chá especial que a menina Stevenson fizera com as raparigas que iam debutar.

«Um bom acolhimento no quarto é apreciado», dissera a menina Stevenson. «Entusiasmo será um grave erro; vulgaridades, mesmo em segredo, destroem o amor de um homem pela sua esposa.»

Betsy sentira as faces a arder de vergonha, mas não dissera nada. E ninguém falara com ela.

Mas ela não esquecera.

No seu quarto, Betsy encostou-se à porta e tentou reforçar a sua determinação. A sua fraqueza por Jeremy colocava-a perante um desafio, através do qual ela podia provar a si mesma que um prussiano de cabelos dourados nunca a levaria a abandonar o seu marido e os seus filhos.

Ela tinha a linhagem de que Thaddeus precisava.

Mas, se quisesse um casamento feliz, nunca poderia deixá-lo saber que herdara a natureza apaixonada da sua mãe.


Capítulo 12

Uma hora mais tarde Jeremy dirigia-se para a entrada, sentindo-se extremamente irritado consigo mesmo.

Betsy era um par perfeito para Thaddeus. Ele devia estar a celebrar o facto, mas, em vez disso, combatia um sentimento crescente de posse, como se de alguma forma a jogadora de bilhar com mau génio e desejo de usar calças fosse dele.

Pensamento ridículo.

Ele mal a conhecia.

A sensação era tão estranha e conflituosa como a vergonha e a culpa que sentia por ter sobrevivido à guerra. Estava a pensar como seria útil se uma pessoa pudesse simplesmente extrair as emoções desconfortáveis da cabeça quando percebeu que a futura sogra de Betsy tinha chegado à entrada antes dele.

Tinha a forma de um pequeno barril de cerveja. Os barris não eram pintados de cor-de-rosa nem ornamentados com uma série de plumas, mas a duquesa obviamente ignorava esses ditames. Decerto, quando era jovem, tinham-lhe dito que ficava encantadora de cor-de-rosa, e ela apoderara-se da cor e fizera dela regra, nunca se interessando em experimentar verde ou azul.

Jeremy gostava dela. Descobrira que os excêntricos não se davam ao trabalho de fazer comentários desagradáveis ou impiedosos; em geral, não se interessavam por ele.

— Vi-o sair do salão de baile na noite passada — disse Sua Graça, sem preâmbulos. — O seu halo estava em péssimo estado, mas agora vejo que tem uma ligadura na cabeça. Foi ferido num conflito de honra?

— Não — disse Jeremy. — Fui atingido a tiro por uma louca, se quer saber.

— É um mundo triste, aquele em que não podemos dar tiros em quem quisermos — afirmou a duquesa.

— Sim — concordou Jeremy, empurrando imagens de pistolas e fumo de canhão para o fundo do seu cérebro.

— Não concordo com a guerra — declarou a duquesa.

— Nem eu — disse Lady Knowe.

Ambos se viraram e perceberam que ela saíra do estúdio, calçando um par de longas luvas lilases.

— Onde está o Prism, por amor de Deus? Ou um lacaio? Isto é um castelo ou uma leitaria?

— Porquê uma leitaria? — perguntou a duquesa.

— Porque vocês os dois estão tão sérios como se fossem ordenhar uma vaca. É um assunto muito sério, a ordenha. Experimentei quando era rapariga.

— Aí está ela! — disse a duquesa com satisfação, olhando para trás de Jeremy.

Betsy descia as escadas usando riscas azuis, uma cor que ficava bem com a sua farta cabeleira preta. Jeremy não era bom nesse género de coisas, mas o vestido tinha uma pequena gola que levantava na parte de trás do pescoço e namoriscava com o cabelo.

Ela seria uma esposa terrivelmente cara.

Afastou a vozinha no fundo da sua cabeça que o recordava de quanto dinheiro tinha. Mesmo sem contar com a sua futura herança como marquês, a mãe deixara-lhe uma fortuna. Ele podia comprar vestidos às riscas e tudo o mais que uma mulher pudesse querer.

Não que tencionasse fazê-lo, claro.

Thaddeus chegou a seguir, muito bem vestido, com a aparência perfeita de um futuro duque. Lady Knowe pôs-se ao lado dele, e a sua mãe segurou-lhe o outro braço, o que deixou Jeremy com Betsy. Este estendeu-lhe o cotovelo sem falar.

Ela pôs a mão em volta do seu braço e atravessaram juntos a grande porta do castelo, para o dia claro e frio. Jeremy pestanejou.

— A luz hoje é verde — disse Betsy de repente.

— De que falas? — Ele olhou-a de relance e depois pensou que era melhor não o fazer muitas vezes, porque a cara dela era perturbadoramente querida.

— Pestaneja outra vez — sugeriu ela. Obedecendo, ele percebeu que havia mesmo um tom verde na luz do Sol. — Ao fim da tarde, a luz será púrpura.

— Venham daí, vocês os dois — gritou Lady Knowe da porta da carruagem. — Despachem-se! Há uma excelente casa de chá em Wilmslow.

— Estamos a ir! — respondeu Betsy.

Na carruagem, Jeremy sentou-se ao lado de Betsy, que tinha Thaddeus do outro lado. Diante deles, as senhoras mais velhas ocupavam todo o banco com as suas saias volumosas.

— Vem um veículo a descer o caminho — disse Lady Knowe ao fechar a porta. Bateu com força no teto. — Devia ficar e receber quem quer que seja, mas estou farta de convidados.

Jeremy olhou pela janela e conteve uma imprecação.

— Deves estar muito orgulhosa do casamento — disse a duquesa, dando uma palmadinha no joelho de Lady Knowe. — Correu sem qualquer contratempo.

Jeremy sentiu os olhos de Betsy em si. A carruagem arrancou.

— Quanto à pessoa que acabou de chegar, acredito firmemente que as visitas deviam mandar um cartão no dia anterior, ou não ser recebidas — prosseguiu a duquesa com ar de quem estava acostumada a que lhe suplicassem uma audiência.

Jeremy respirou fundo.

— Quem estava naquela carruagem? — perguntou Betsy em voz baixa quando já se encontravam perto de Wilmslow. Lady Knowe estava ocupada a interrogar Thaddeus acerca da altura adequada para as sebes, e a duquesa intervinha de vez em quando. — Reconheceste-a, não foi?

— Era a carruagem do meu pai — disse ele.

— Estás de relações cortadas com a família?

— Isso é uma expressão demasiado forte. — Mas, por dentro, ele sabia que não tinha força suficiente. — Raramente falamos.

— Agora não poderás evitá-lo — comentou Betsy.

— A não ser que parta para Londres — retorquiu Jeremy, o que era verdade. Mas ele não era homem para fugir como um cobarde. Se assim fosse, já teria fugido das emoções cada vez mais irritantes que sentia quando estava perto de Betsy. Sobretudo quando estava sentado ao seu lado, como agora.

Ela cheirava como uma mulher linda, o que era uma observação tola, mas verdadeira. Tinha um cheiro delicioso e inglês, como todas as coisas boas e limpas a que ele virara as costas quando partira para a guerra.

— Ainda não podes sair do castelo — disse Betsy, com um visível tom de satisfação na voz. As duas senhoras sentadas do outro lado tinham-se calado. — Tia Knowe, vai gostar de saber que o Lorde Jeremy reconheceu a carruagem que chegou ao castelo: é a do pai dele.

A duquesa bateu as palmas.

— O marquês é um dos melhores amigos do meu marido.

— Estive com ele uma vez — disse Lady Knowe, franzindo a testa. — Há anos.

Jeremy segurou a língua. Não falara com o pai desde que voltara da guerra transformado num farrapo trémulo, sabendo que não merecia tornar-se marquês. Felizmente, o seu primo Grégoire apreciaria muito o título. Dissera isso mesmo ao seu pai, partira para Londres e não o vira desde então.

— Quer voltar ao castelo? — perguntou Lady Knowe.

— Eu e o meu pai estamos de relações cortadas — respondeu ele, usando a expressão de Betsy.

A reação do pai à sua fraqueza causara-lhe uma fúria trémula. Tinha saído de casa desembestado.

— Suspeito que o marquês não tenha vindo ver os Wildes, mas a si, meu querido — disse Lady Knowe a Jeremy.

Quando é que ele se tinha tornado o seu «querido»? Algures, durante os últimos meses de chá de dente-de-leão e bebidas para dormir feitas de consolda e hortelã-pimenta?

— Fiz uma aposta de cavalheiros com Lady Boadicea relativamente a Wilmslow, e não posso voltar atrás — disse ele. — O meu pai decerto precisará de descansar da viagem e passar algum tempo com o meu primo, o Sr. Bisset-Caron.

Não era verdade, porque o pai não gostava de Grégoire, filho do lamentável casamento do seu irmão mais novo com uma francesa. Também desprezava a forma como o irmão adaptara o nome de família da mulher, cumprindo uma exigência para herdar uma propriedade considerável.

— É verdade que o Lorde Jeremy me deu a sua palavra de honra — disse Betsy.

A duquesa franziu o nariz.

— Não gosto de apostas.

— Oh, por amor de Deus, Emily! — exclamou Lady Knowe. — Não sejas pudica. Ainda tenho um ramo de violetas secas de quando me desafiaste a perguntar ao padre o que ele pensava sobre a dança.

— Éramos crianças — desdenhou a duquesa, abanando uma mão enluvada cor-de-rosa.

— Também estes três — retorquiu Lady Knowe. — Uma aposta alegre é um prazer. Então, o que é que apostaste, Betsy?

— O Lorde Jeremy prometeu acompanhar-me numa visita a Wilmslow. Eu estarei disfarçada — disse Betsy, acrescentando: — A ideia ocorreu-me a meio do baile de máscaras. Ele concordou em fazê-lo apenas se nos acompanhar, tia Knowe.

— Por que diabo... — começou a duquesa.

Thaddeus falou ao mesmo tempo.

— Disfarçada de quê?

Jeremy percebeu, não pela primeira vez, que devia ser uma pessoa muito frívola, pois estava a desfrutar do choque no rosto de Thaddeus.

— O disfarce foi escolhido pela senhora — disse ele, dando tempo a Betsy para mudar de ideias acerca das calças. — Quanto ao «porquê», Vossa Graça, Lady Boadicea exprimiu o desejo de assistir a um leilão.

— Um leilão? — perguntou a duquesa, curiosa. — Refere-se àquela espécie de coisa onde homens infames vendem as mulheres?

— Vendem as mulheres? Surpreende-me, mamã — disse Thaddeus.

Jeremy ficou a pensar se chamaria mamã à sua mãe se ela ainda estivesse viva. A resposta era um categórico «não». Nunca. Nem que ela fosse duquesa, em vez de marquesa.

— Os leilões em Wilmslow são um acontecimento importante — interveio Lady Knowe. — Obras de arte e coisas assim. Mandei o feitor licitar aquele maravilhoso Rembrandt que está pendurado no salão das traseiras.

Jeremy achava melhor Betsy dizer qualquer coisa rapidamente se queria assegurar o seu ilustre futuro como duquesa. Corria o risco de virar a mãe de Thaddeus contra ela.

— Lady Boadicea coleciona miniaturas — disse ele, algo inventado naquele preciso momento. — Ela gostaria de licitar pessoalmente uma peça.

Lady Knowe pestanejou para Betsy.

— Minha querida, pensei que eu era a única pessoa nesta família interessada em miniaturas. Se te interessar alguma peça do leilão, o Prism manda alguém licitar por ti.

— Quero ser eu própria a licitar no leilão — declarou Betsy, endireitando-se no assento. Decerto não ia informar Thaddeus, muito menos a sua mãe... Aliás, iria informá-los, sim. — Planeio ir ao leilão disfarçada de rapaz e licitar uma obra de arte — disse Betsy, olhando diretamente para a duquesa. — Gostaria de jogar bilhar num estabelecimento onde as senhoras não têm permissão para pegar num taco, mas o Lorde Jeremy não acha aconselhável. — Houve um silêncio intenso na carruagem. — Jogar bilhar vestida de rapaz — clarificou Betsy. Afinal, porquê pôr só um prego no caixão, quando podia pôr dois?

Mais silêncio. Jeremy tentava decidir se queria exacerbar a situação perguntando se Betsy planeava usar calças curtas ou compridas, quando a duquesa desatou a rir. Thaddeus tinha a testa franzida, decerto preocupado com a decência, mas ergueu o queixo e fitou a mãe.

— Uma das minhas amigas aconselhou-me a vir a Lindow porque acreditava que a Lady Boadicea seria uma duquesa perfeita — disse Sua Graça, mal conseguindo respirar de tanto rir. — E aqui está ela, uma duquesa perfeita, de facto. — Inclinou-se para a frente e deu uma palmadinha no joelho de Betsy. — Nós não seguimos modas nem padrões, minha querida. Pelo contrário, definimo-los. Se decidir vestir-se de rapaz, não será nada que as mulheres da minha família não tenham feito antes.

— Surpreende-me saber isso — disse Thaddeus.

Jeremy achava que, se Thaddeus queria a «duquesa perfeita» que escolhera, seria melhor começar a defender as ideias de Betsy, por mais bizarras que fossem.

— A minha tia-avó era uma rapariga corajosa — contou a duquesa. — Diz-se que o pai tentou casá-la com um homem muito mais velho, e ela não concordou. Vestiu umas calças e fugiu de casa, com a intenção de chegar a Itália, ou algo assim.

— Que romântico! — exclamou Lady Knowe. — Calculo que não tenha conseguido apanhar um barco?

— Foi apanhada no cais — respondeu Sua Graça. — Arrastada de volta e casada na manhã seguinte. Diz-se que ficou toda a noite amarrada a um poste da cama para garantir que não voltava a fugir, mas a minha mãe dizia que não era verdade. Porém, ela nunca gostou do meu tio-bisavô, e nós, as crianças, pensávamos que era um ogre, bem capaz de aprisionar a filha, ainda que temporariamente.

— Imagino que o seu casamento não tenha sido muito feliz — disse Betsy, demonstrando que não frequentava le monde há muito tempo.

— Oh, não, foi muito feliz — retorquiu a duquesa, parecendo tão surpreendida quanto Betsy estava preocupada. — Mas se a minha tia-avó tivesse fugido para Itália com um qualquer príncipe de cabelos negros, teria sido uma desgraçada. Não há uma única cerveja boa em todo o país.

Betsy sorriu, e Jeremy praticamente conseguia ver a felicidade da duquesa a florescer enquanto correspondia ao sorriso.

Gostavam uma da outra; Thaddeus e Betsy eram um casal feito no céu.

— É a cerveja que salva um casamento — prosseguiu a duquesa, revelando todos os seus segredos ainda antes de o filho ter posto um anel no dedo de Betsy. — Uma boa cerveja tem frequentemente livrado este país da desgraça e da ruína às mãos dos idiotas da Câmara dos Lordes. Os maridos vão para casa à noite e as suas mulheres explicam-lhes o que devem fazer, depois de entorpecidos por uma excelente caneca de cerveja.

— Apetecia-me uma cerveja — disse Jeremy, mais para disfarçar o facto de Thaddeus ainda não ter dito uma palavra.

Nesse exato momento começaram a balançar, pois as molas da carruagem do duque encontraram as pedras irregulares que forravam a rua principal de Wilmslow.

— Gostava de poder contribuir mais para uma discussão acerca de casamentos bem-sucedidos — disse Lady Knowe —, mas, dada a minha ignorância e a nossa iminente chegada à casa de chá, acho que temos de adiar a conversa.

— Vamos todos — anunciou a duquesa.

— Tomar chá? Era o que eu esperava — respondeu Lady Knowe. Tinha, claramente, notado o silêncio de Thaddeus. De facto, Jeremy tinha a sensação de que Lady Knowe não deixava escapar muita coisa. — Gosto de cerveja, mas tem o seu tempo e o seu lugar.

— Não, ao leilão — retorquiu Sua Graça. Sorria para Betsy como se tivesse reencontrado uma filha há muito perdida. Talvez fosse isso que sentia.

Jeremy percebeu subitamente que aquela forma de barril coberta de cor-de-rosa escondia um coração que teria adorado passear-se de calças.

— Vamos todos ao leilão — continuou ela. — A Lady Boadicea pode fazer-se passar por um dos meus sobrinhos afastados. Tenho centenas deles.

— Infelizmente, nem as duquesas podem frequentar a leiloeira de Wilmslow — disse Lady Knowe. — Têm a regra antiquada de interditar a entrada a mulheres.

— Eu podia usar calças — sugeriu a duquesa.

— Não, não podias — retorquiu Lady Knowe. — A tua figura não é apropriada.

A duquesa olhou pensativamente para as suas ancas redondas.

— Conheço um excelente alfaiate em Londres.

— Poucos homens têm a forma de uma colmeia — disse Lady Knowe, sem ser desagradável. — A minha figura também não ficaria favorecida de calças. Somos como as raparigas naquela peça de Shakespeare: uma delas era um pau de feijão e a outra era uma maçaroca.

— Sonho de uma Noite de Verão — disse Betsy.

Thaddeus continuava sem dizer uma palavra.

A porta da carruagem abriu-se. Sua Graça levantou-se para sair, aceitando a mão de um lacaio, seguida por Lady Knowe e, finalmente, por Betsy.

Jeremy franziu a testa para Thaddeus, que lhe devolveu o olhar com a calma imperturbável que afetava desde Eton. Contudo, Jeremy detetava-lhe um tique no olho.

Thaddeus não queria uma mulher que quisesse usar calças.

Que tolo.

Jeremy não queria uma mulher, mas, só para ver Betsy de calças, era capaz de casar com a filha do padeiro.

— Não faças figura de tolo — disse-lhe. Não percebia, porém, porque tentava ajudar Thaddeus.

— Não farei — declarou Thaddeus.

Talvez outros acreditassem nele, mas Jeremy tinha as suas dúvidas. Thaddeus sempre fora obcecado pela linhagem. O seu pai metera-lhe isso na cabeça, a melhor desculpa para não casar com a mulher do seu coração.

Grande parvo.

Quando Jeremy saiu da carruagem, já Lady Knowe seguia de braço dado com a duquesa para a casa de chá. Betsy, por seu lado, sorria para Thaddeus com aquela expressão docemente humilde — e profundamente desonesta, agora que pensava nisso — com a qual conquistara a alta sociedade.

— Betsy — disse Thaddeus hesitantemente.

Jeremy devia permitir-lhes terem aquela conversa desconfortável em privado, mas deixou-se ficar onde estava. A sua vida fora dolorosamente desprovida de divertimento nos últimos tempos.

— Sim? — perguntou Betsy.

— Creio que brincava, acerca de usar calças em público?

— Não, não estava a brincar — respondeu Betsy, com o seu sorriso sedutor a aumentar.

Thaddeus parecia desconcertado.

— Não foi uma brincadeira?

— Usava frequentemente calças quando era mais jovem, para montar a cavalo como os homens — informou Betsy, piorando as coisas.

— Eu convenci-a a ir a Wilmslow. Ela queria ir a Londres e jogar bilhar no White’s — disse Jeremy, sentindo que era melhor intervir. Betsy estava a testar o seu futuro marido, e ele estava a falhar. Não era justo, porque Thaddeus era um tipo decente. — Vá lá, Betsy — instou ele. — Conta-lhe a verdade: trata-se apenas de uma brincadeira. Não tencionas andar de calças todos os dias.

Betsy tinha o olhar preso ao rosto de Thaddeus.

— Talvez ande — declarou ela. — Na privacidade da minha casa.

Ela era uma descarada, e merecia perder um ducado.

— Venham daí! — gritou Lady Knowe da porta da casa de chá. Tinha tendência para agir como se as pessoas fossem um rebanho de ovelhas, provavelmente porque estivera ao comando do quarto dos filhos do irmão. Havia oito descendentes Wilde. Ou seriam doze?

A duquesa surgiu junto do seu ombro, como um patinho gordo aninhado ao lado da mãe.

— Temos de elaborar planos! — exclamou Sua Graça, com uma gargalhada surpreendentemente jovial.

Thaddeus aproximou-se da mãe, por isso Jeremy estendeu o cotovelo a Betsy. Desta vez, concluiu que o cabelo dela cheirava como o sol da manhã, com um toque de água do rio.

— As calças foram um toque de génio, não achas? — sussurrou Betsy.

Jeremy capturou os olhos risonhos e maliciosos dela, e sentiu o mundo tremer à sua volta e assumir uma forma diferente; como acontece a meio da batalha, quando de repente percebemos que está perdida.

Esta batalha, provavelmente, estava perdida desde o início. Ele começava a suspeitar de que a humanidade simplesmente acreditava que governava os seus assuntos. Mas estes eram controlados por uma qualquer encarnação do destino, uma divindade com um humor sardónico.

Betsy deu-lhe uma pancadinha no flanco.

— Não percebeste o que aconteceu?

— O que é que aconteceu? — perguntou Jeremy.

— A duquesa seria capaz de casar comigo agora mesmo, apesar de não termos a idade e o género adequado.

— Há alguns obstáculos sérios a essa união — comentou ele.

— Vamos — disse Betsy, encaminhando-o para a casa de chá.

Quem quer que casasse com ela ia ser claramente dominado, visto Betsy ter adquirido as suas capacidades com Lady Knowe.

Não era o pior dos destinos.

De facto, quando Betsy lhe dirigiu um sorriso genuíno e disse não acreditar que Thaddeus concordasse com a mãe, Jeremy pensou que talvez o destino...

Bem.

A casa de chá era pequena, com algumas mesas dispostas diante de montras feitas de triângulos de vitral. Candeeiros brilhavam em todas as mesas, e um lume vivo ardia na lareira. O ar cheirava a gengibre e a chá forte. A anfitriã era uma mulher alegre que usava uma touca ornamentada com quatro camadas de folhos.

— Sinto-me tão honrada! — exclamou de excitação, fazendo os folhos tremerem. Provavelmente, colecionava gravuras da família Wilde, como a maior parte de Inglaterra, visto que contemplava Betsy com admiração.

— Estou muito contente por estar aqui — declarou Betsy com um sorriso caloroso. — O seu pão de gengibre cheira divinalmente.

Jeremy franziu a testa quando lhe ocorreu um pensamento. Ele podia entrar em qualquer estalagem do país e ninguém teria a menor ideia de quem ele era. Talvez o desejo de Betsy de usar calças fosse para além do que ele imaginara.

— Lady Boadicea, deve sentar-se ao meu lado — disse a duquesa a Betsy. Guardara um lugar entre ela e o filho. Jeremy sentou-se ao lado de Lady Knowe.

— Que encantadores são estes guardanapos cor-de-rosa — exclamou Sua Graça, sacudindo o seu.

— Não te atrevas a tornar as tuas roupas de casa tão cor-de-rosa como os teus vestidos — exclamou Lady Knowe. — Minha querida, quando tencionas abandonar todo esse cor-de-rosa? Chega um momento em que uma afetação se torna um fardo.

— Simplifica-me a vida — respondeu a duquesa, impávida. — Se eu usasse calças, teriam de ser cor-de-rosa.

— Já concordámos que as calças não são para ti — retorquiu Lady Knowe.

Sua Graça riu desdenhosamente.

— Tu disseste-o, mas eu discordo. O meu cocheiro é um homem tremendamente inteligente; vai arranjar-me um par de calças e a minha criada vai ajustá-las à minha forma.

Thaddeus cerrou os lábios, mas a mãe mudou de assunto. Começou a falar da sua casa em Bordéus e iniciou uma discussão sobre o vestíbulo de Falconleigh, a residência principal do condado. O chão de mármore tinha sido recentemente assentado.

— Sua Graça insiste em levar uma matilha de cães para o escritório, e eles arranham o chão — afirmou a duquesa, com uma distinta frieza na voz.

— Calculo que não tenhas um cão — disse Jeremy a Thaddeus, dando o seu pequeno contributo para imprimir em Betsy os prazeres da vida ducal.

— Tenciono ter uma matilha, um dia — disse Thaddeus, mostrando a primeira centelha de rebelião que Jeremy alguma vez lhe vira.

— Ele teve um spaniel quando era pequeno — contou a duquesa. — Conseguiu entrar na despensa e roeu todos os trapos de engraxar. Claro que, com crianças na casa, temos de reconsiderar a situação. Um menino deve ter um cão.

Betsy ouvia tudo aquilo com um sorriso encantador, e Jeremy tinha a distinta impressão de que Sua Graça não era a primeira mãe a achar que Lady Boadicea seria uma mãe perfeita para os seus netos por nascer.

Após meia hora, Thaddeus ainda tinha uma expressão cautelosa, mas a duquesa parecia considerar o seu trabalho acabado. Chamou um criado e ficou a saber que haveria um leilão na tarde seguinte.

— Alguém olhou lá para fora? — perguntou. — Está a nevar. Sugiro que passemos a noite na estalagem e assistamos ao leilão amanhã.

— Concordo — disse Lady Knowe. — Vou mandar o lacaio de volta a Lindow para nos trazer o que precisarmos, bem como as criadas.

— Aquelas de nós que quiserem usar roupas de homem amanhã podem tentar — disse a duquesa, ignorando a questão dos bens necessários. Era manifestamente desinteressada das coisas práticas. — Sou capaz de ir sem disfarce.

— As mulheres não são admitidas nesta casa leiloeira — recordou Betsy.

— Disparate. Já estive várias vezes na Christie’s. É muito provável que eles tivessem preferido o duque, mas não me barraram a entrada — disse Sua Graça com algum sarcasmo. — Nunca acredite na palavra «não», a menos que seja dita por si, minha querida. Torna a vida muito mais agradável.

— Embora as senhoras possam frequentar leiloeiras em Londres, aqui na província é diferente — interveio Lady Knowe. — Creio que o Sr. Phillips tem uma política estrita contra as mulheres. Fiquei muito aborrecida quando soube disso.

Estava decidido; Sua Graça estava determinada a visitar a leiloeira do Sr. Phillips vestindo umas calças.

— Se julgarem que sou uma mulher, que se atrevam a dizer-mo! — declarou.

A partir daí a conversa girou em torno da roupa feminina.

Jeremy contribuía ocasionalmente para a conversa e permanecia de olho em Thaddeus, que respondia cortesmente a qualquer pergunta que lhe fosse dirigida, mas passava a maior parte do tempo a ruminar. Este era um comportamento familiar desde Eton; mesmo quando era mais novo, Thaddeus precisava de considerar bem um problema ético antes de tomar uma decisão.

A certa altura, Thaddeus devia ter decidido casar com uma lady perfeita, e Betsy mostrava agora ter algumas arestas desconfortáveis. Ao que parecia, ele não se importava de fazer vista grossa à mãe adúltera, mas as calças já eram demais.

Jeremy sentiu uma ponta de desdém. O seu amigo desejava uma felicidade bucólica, com uma mulher desinteressante e um punhado de filhos e de cães.

A duquesa, entretanto, parecia inocentemente convencida de que a única questão a resolver era como facilitar a visita de Betsy a um leilão.

— Uma peruca cobrirá o cabelo dela. Será melhor instruíres o teu mordomo para trazer uma variedade delas — sugeriu a Lady Knowe. — Os lacaios têm cabeças com as formas mais estranhas.

— Isso não vai resultar — objetou Jeremy.

— Porquê? — perguntou Betsy.

— Tens demasiado cabelo para uma peruca pequena.

Era um simples facto. Esta manhã os caracóis estavam todos apanhados num coque. Sobressaía da cabeça dela uma tal profusão que um homem podia imaginá-lo a cair-lhe até à cintura se ela tirasse os ganchos todos. Remexeu-se discretamente na cadeira, ajeitando as calças para arranjar espaço para a sua reação a essa imagem.

— Fazemos-lhe tranças apertadas — sugeriu Lady Knowe. — Há maneiras de manter uma peruca agarrada à cabeça.

— Quando estávamos na casa da Escócia — disse a duquesa a Betsy —, eu entrançava o meu cabelo e mandava as criadas fazerem o mesmo. A Escócia está infestada de piolhos.

Felizmente, as sanduíches de pepino e os bolinhos chegaram antes que este assunto merecesse mais atenção.

Jeremy comeu uma quantidade surpreendente, dada a sua habitual falta de apetite, enquanto se esforçava muito por não olhar para a pele pálida dos pulsos de Betsy. Afinal, desde quando é que um pulso era erótico?

E, no entanto, era.

Se ele pudesse, passaria a língua por aquela pele branca e cobri-la-ia de dentadinhas, lamberia até à palma, envolveria um dedo com os lábios...

Voltou a si com um sobressalto, percebendo que todos o fitavam, expectantes.

— Sim?

— O Thaddeus vai acompanhar-nos, a mim e à Lady Knowe, à leiloeira, para investigarmos os arredores — disse-lhe a duquesa. — Achamos que a Lady Boadicea não deve ser vista na vizinhança, por isso vocês os dois devem esperar por nós. Se ela for vista na nossa companhia amanhã, quando voltarmos, poderão suspeitar de quem é.

Se ele fosse Thaddeus, não deixaria a sua noiva aos cuidados de outro homem. Mas não era, e Thaddeus parecia perfeitamente tranquilo em relação à perspetiva de perder a companhia da sua suposta amada.

— Ele já não quer casar comigo — comentou Betsy alguns minutos depois. Não parecia desapontada.

— Podias ter sido duquesa — disse Jeremy. — Provavelmente, ainda serás uma duquesa, porque a mãe do Thaddeus te quer, mesmo que ele não queira. Vai permitir-te, se não mesmo incentivar, todas as brincadeiras que ela não pôde fazer quando era nova.

— Ninguém vai incentivar-me a nada — ripostou Betsy, terminando a sua última dentada de bolo. — A propósito, vamos embora? Não é que não me agrade a tua companhia, mas detesto estar sentada em frente de pratos com migalhas. É tão deprimente.

— Sugeria uma visita à igreja de São Bartolomeu — disse a anfitriã, aparecendo com a peliça de Betsy no braço. — Vossa Senhoria vai gostar. Tem um campanário com ameias e uma cripta antiga que data de 1600.

Jeremy manteve para si mesmo o seu profundo desinteresse por campanários com ameias, tirou a peliça das mãos da mulher e ajudou Betsy a colocá-la.

— Achas que a tua futura sogra pensou no facto de te deixar sem dama de companhia? — perguntou.

— Devia ter pensado? — retorquiu Betsy, fitando-o.

— Claro que não — respondeu Jeremy. — Sou tão inofensivo como um cão desdentado, e eles sabem.

Um sorriso brilhou no fundo dos olhos de Betsy.

Ele não o era... e ela sabia-o. Por um momento, o ar entre eles vibrou com a promessa de deleites puramente terrenos. Do género dos que mantêm uma mulher e um homem no seu quarto durante horas, contemplando o esforço de se levantarem e voltando a tombar na cama.

Havia razões para as jovens não poderem estar sozinhas com homens, a não ser que estivessem noivos ou casados.

— Eu gosto dela por isso — disse Betsy, inesperadamente. — Muitas outras esperam que eu seja tão imoral como a minha mãe. A ideia nem sequer lhe passou pela cabeça, pois não?

— Não — respondeu Jeremy. — A duquesa chegou a uma conclusão acerca de ti e do filho, e não concebe que possas preferir outro homem. — Fez-se um silêncio estranho. — Vamos visitar a igreja de São Bartolomeu?

— Sim — respondeu Betsy, dando-lhe o braço.

Na ombreira da porta, parou e pôs o capuz da sua peliça. A neve era mais espessa do que parecia através das montras da casa de chá. Sob um véu branco, a cidade parecia sombria e escura. Wilmslow era uma cidadezinha antiga, com ruas estreitas e ziguezagueantes, as pedras da rua arredondando em torno de um enorme carvalho.

— De certeza que não queres voltar à casa de chá? — perguntou ele a Betsy. — Podemos pedir para retirarem os pratos. Pedimos mais bolos e chá.

— Peço desculpa por te arrastar para a neve — disse ela —, mas não conseguia aguentar nem mais um minuto. Não viste a anfitriã a observar-me de um canto da sala?

— Ocorreu-me que ela possa ter uma ou duas gravuras dos Wildes — admitiu Jeremy prudentemente.

— Se eu casar com o Thaddeus, começará a colecionar gravuras de duquesas — disse Betsy, franzindo o nariz.

— Talvez eu esteja a ser obtuso, mas porque é que te incomoda que ela gaste dinheiro em gravuras que te representam num salão de baile?

— Obviamente, não fizeste um estudo das gravuras dos Wildes.

— É verdade.

— Os vendedores espiam e investigam, para criar gravuras diferentes que sejam uma tentação para os seus clientes. É frequente inventarem os temas de raiz. Já fui representada numa relação romântica com o Lorde Merland, por exemplo. E ele é casado! Além disso, mal o conheço.

— Desagradável — admitiu Jeremy.

— São, de facto, muitas vezes desagradáveis — concordou Betsy. — A minha mãe, por exemplo. Sabes a história do prussiano, não sabes? — Jeremy pestanejou para ela. — O amante da minha mãe — prosseguiu Betsy, franzindo a testa para ele. — Cabelos louros, bons dentes, muito parecido... — Interrompeu a frase.

— Muito parecido?

Ela fitou-o.

— Não irei terminar essa frase, e espero que esqueças que alguma vez a iniciei.

— Muito parecido com a tua irmã Joan — percebeu Jeremy. — Falaste nisso ontem, mas esqueci-me. Não dou ouvidos a esse género de mexericos, por isso não fazia ideia de que cor era o cabelo do homem, ou as suas origens, ou fosse o que fosse.

— Nesse aspeto és invulgar — disse Betsy. — Os repórteres seguem os meus passos, esperando ver gestos iguais aos da minha mãe. Se estivéssemos em Londres, eu nunca teria a imprudência de passear ao ar livre contigo, mesmo com uma criada atrás de nós.

Caminharam sem falar por alguns minutos, os seus passos amortecidos pela neve. À volta deles, os parapeitos e ombreiras de portas embranqueciam. Alguns caracóis de Betsy tinham-lhe escorregado para a testa, e a neve caía suavemente sobre eles.

Jeremy percebeu, desconcertado, que não se importava que a igreja para onde se dirigiam fosse terreno sagrado ou consagrado, da cripta ao campanário: tencionava voltar a beijar Betsy. Com intenções extremamente profanas.

Simples luxúria.

Mas com um toque de frivolidade.

Um vento forte contornava as esquinas da rua estreita e assobiava nos ouvidos de Jeremy, trazendo um bafo a fumo de carvão.

— Está a ficar horrivelmente frio — disse Betsy, com palavras entrecortadas por cima do ombro.

— O vento parece uma bala de mosquete a passar-nos nos ouvidos — retorquiu Jeremy, sem pensar. — Mas o vento não é perigoso, claro. — Betsy deu-lhe um apertão no braço, que era a reação perfeita. — Gostarias de voltar para a casa de chá? — perguntou Jeremy novamente.

Ela abanou a cabeça.

— Gosto de combater o vento.

Continuaram a caminhar até uma carruagem ruidosa parar junto deles. Jeremy olhou para o lado e o seu coração afundou-se. A janela estava aberta, e uma face magra, encimada por uma cabeleira fofa e grisalha espreitou para fora. Tinha um nariz majestoso, do género do que devia estar na cara de um homem de pé na proa de um navio ou na Câmara dos Lordes.

— Oh, raios! — exclamou Jeremy, parando abruptamente. Não via o pai desde muito antes dos fogos de artifício de Vauxhall e subsequente visita a Lindow.

Betsy tropeçou. Iam a andar depressa, os seus corpos percorriam o passeio empurrados pelo vento.

— O meu pai — disse Jeremy, abanando a mão. — Não pode ter estado no castelo mais de uma hora antes de nos seguir até aqui.

— Acho que tenho as pestanas congeladas — comentou Betsy, esfregando um olho. — Disseste que era o teu pai? — Espreitou por cima do ombro dele. — Na carruagem?

— Infelizmente. — Jeremy desenrolou rapidamente a ligadura da cabeça, enfiou-a no bolso e voltou a pôr o chapéu. O pai não gostaria de saber que o filho tinha escapado à guerra para quase ser abatido por uma louca.

O Marquês de Thurrock saía do veículo. Quando era criança, Jeremy achava-o incrivelmente alto e magro, com uma sensação de competência quase visível sobre os seus ombros. Ainda era alto, obviamente. E competente, decerto.

— Boa tarde, Lorde Thurrock — disse Jeremy, fazendo uma vénia.

O marquês estava buliçosa e atarefadamente entretido a ajeitar o sobretudo, como um aristocrata inglês a tentar evitar uma reunião embaraçosa. Era também assim que Jeremy se sentia.

Finalmente, o marquês deu um passo em frente, como se tencionasse enlaçar Jeremy no género de abraços com que sempre o saudava quando ele voltava de Eton. Mas conteve-se.

— Filho — disse. — Quem é? — A sua voz era rica e animada, como a de um vendedor na banca, e os seus olhos... caramba... estavam cheios de esperança.

— Lady Boadicea, posso apresentar-lhe o meu pai, o Marquês de Thurrock? — perguntou Jeremy.

Betsy inclinou ligeiramente a cabeça para o lado e sorriu.

Jeremy esperou que o seu sorriso inocente o deslumbrasse, como deslumbrara a maior parte da alta sociedade, mas o pai apenas pestanejou e disse:

— Reconheço as sobrancelhas, claro. Não vejo o seu pai há alguns anos.

A vénia de Betsy era particularmente graciosa, considerando que o vento se esforçava para os varrer do passeio.

— Lorde Thurrock, é um prazer conhecê-lo.

A porta da carruagem voltou a abrir-se e Grégoire Bisset-Caron saiu para o passeio. O primo de Jeremy usava uma capa de pelo e um chapéu em vez do tricórnio.

— Aqui estou — disse. — Peço desculpa por o ter feito esperar.

— Lady Boadicea, posso apresentar-lhe o meu sobrinho, o Sr. Bisset-Caron? — perguntou o pai de Jeremy, não demonstrando o menor entusiasmo.

Betsy fez outra vénia.

— Prazer em vê-lo, senhor. Julguei que regressara a Londres.

— Era a minha intenção, mas o meu tio surpreendeu-me — retorquiu Grégoire, com um lânguido aceno para Jeremy. — Decidi acompanhá-lo a esta cidade... Como é que se chama?

— Wilmslow — respondeu Jeremy, perguntando-se se Grégoire tinha planos de cortejar Betsy. Julgar-se-ia capaz de competir com um futuro duque? Grégoire podia ser considerado herdeiro de um marquês, mas só se Jeremy morresse sem filhos. Por vezes, isso parecia bastante possível. Talvez o primo contasse com isso.

— É um prazer e uma surpresa — disse o marquês para Betsy. — Não sabia que o meu filho acompanhava uma jovem senhora, para falar francamente.

Grégoire riu desdenhosamente.

— A sua franqueza está enganada, tio. A Lady Boadicea está praticamente noiva do futuro Duque de Eversley.

— Não estou acompanhada pelo Lorde Jeremy — confirmou Betsy.

— Ah, bom — disse o pai. — O rapaz não é fácil de apanhar.

— Já não sou um rapaz — retorquiu Jeremy.

O pai sorria para Betsy. O charme dela era alegre e quente, se bem que falso. O do pai assentava numa base de prata antiga, título antigo e magotes de rendeiros.

O marquês, pelo menos, pagava aos seus agricultores, o que era mais do que o seu bisavô tinha feito. Jeremy nunca se esquecera de um velho parente encarquilhado lhe dizer que a nova maneira de fazer as coisas — que incluía pagar salários — era um disparate.

O marquês dispôs-se do outro lado de Betsy, apoiando-se ligeiramente numa bengala de punho de prata. Quando passou diante deles, o vento soprou um bafo de charuto e linho engomado para o rosto de Jeremy, que o fez recordar a sua infância.

— Para onde vamos? — perguntou o marquês.

— Para a igreja de São Bartolomeu — respondeu Betsy.

— Um destino invulgar para um membro da nossa família — observou o pai de Jeremy. — Lembrei-me no caminho de que o meu velho amigo Samuel Finney é de Wilmslow. Pinta miniaturas. Tem um estrabismo terrível. Da última vez que ouvi falar dele, tornara-se juiz de paz. Expôs uma miniatura da Rainha Carlota, e o dinheiro permitiu-lhe pagar todas as dívidas de família. A que distância fica essa igreja?

— Fica ao fundo da rua — respondeu Betsy.

— Está demasiado frio, mesmo para uma distância tão curta — declarou Grégoire. — É sem dúvida bárbara a forma como o vento me atravessa a capa. — Acenou com a bengala para o cocheiro. — Espero por vocês.

— Está mesmo muito interessada em ver essa igreja, Lady Boadicea? — perguntou o marquês.

Um lacaio saltou da carruagem e abriu a porta.

— O Grégoire tem razão — disse Jeremy, encaminhando Betsy para o veículo.

Quando estavam todos instalados, no súbito silêncio que se sucede a uma fuga a uma tempestade, o marquês perguntou:

— Lady Boadicea, poderemos fazê-la mudar de ideias em relação à igreja? Receio que o edifício esteja gelado.

— Admito ter frio — disse Betsy, com os dentes a baterem. — Seria melhor que nos juntássemos à Duquesa de Eversley, ao Lorde Greywick e à minha tia, a Lady Knowe, na leiloeira, em vez de seguirmos para a igreja.

Jeremy pôs um braço em torno dos ombros dela. Então, ao ver a surpresa do pai, disse:

— Somos apenas amigos. Como disse o Grégoire, a Lady Boadicea está quase noiva do Greywick. De facto, a duquesa já a trata como sua nora.

— Quase — repetiu o pai. Sorriu, e uma chama acendeu-se na região do coração gelado de Jeremy. Dantes ele amava aquele sorriso: este raramente aparecia, e, em menino, Jeremy era capaz de fazer tudo por ele. Aprender três declinações de Latim antes de se deitar, levar para casa notas máximas a História, debater com os seus professores até chegar a um impasse... sabendo que o pai fazia o mesmo na Câmara dos Lordes.

— Não quero ser indelicado, mas duvido que o Duque de Lindow aceite o meu primo como genro — disse Grégoire com o seu tom mais viperino.

O marquês dirigiu-lhe um olhar duro.

— Como assim?

— Visto que a Lady Boadicea chegou muito perto de um entendimento com o Lorde Greywick, posso dizer sem problemas, entre familiares que somos, que os nervos do Jeremy não estão na melhor forma.

— De que diabo falas? — troou o marquês.

— Tive um episódio infeliz depois dos fogos de artifício em Vauxhall Gardens — explicou Jeremy. Não era assim que tencionava informar o pai, e muito menos Betsy. — Perdi o juízo por algum tempo.

Sem uma palavra, Betsy aproximou-se mais, encostando-se a ele.

— Os pormenores são desagradáveis — concordou Grégoire, fungando. — Não quero que o tio tenha expetativas irrealistas. Até agora a doença do Jeremy não chegou aos jornais, mas não podemos contar com isso para sempre.

O marquês fitou Grégoire com um desprezo humilhante e virou-lhe ostensivamente as costas.

— Aconselho-a a visitar São Bartolomeu num dia de verão, Lady Boadicea. O meu cocheiro conhece esta zona. Sugeriu que fôssemos ao Honeypot beber alguma coisa quente. É a melhor estalagem dos arredores.

Quando Betsy assentiu, o pai de Jeremy abriu a janela, deu um berro ao cocheiro e o veículo pôs-se em movimento.

— Dieu soit loué! — disse Grégoire baixinho.

— Lady Boadicea, é particularmente interessada em igrejas? — perguntou o marquês.

Jeremy observou pela janela os flocos de neve a acumularem-se enquanto o pai e Betsy conversavam sobre as igrejas que tinham visitado. Ele decidira não voltar a ver o pai. Em retrospetiva, isso parecia infantil, e não obstante...

O facto de possuir uma alma negra não era infantil. Ao seu lado, a anca quente de Betsy — ou, pelo menos, todas as saias ao lado da sua anca — encostava-se ao seu sobretudo.

Esse ligeiro toque inspirou-lhe um impulso de desejo intenso, juntamente com um inexplicável conforto.

As rodas da carruagem, avançando sobre o caminho empedrado, eram amortecidas pela neve. A certa altura, a primavera voltaria. Piscos e pombos-torcazes voltariam a trinar. O pilriteiro floresceria.

— Se continuar a nevar, teremos de passar a noite em Wilmslow — disse o pai, afastando as cortinas. — Esperemos que a Honeypot tenha quartos suficientes. Mas parece que há outra estalagem. Não é a Fox & Hound, é uma com um nome mais interessante.

— A minha tia gosta da Gherkin & Cheese — disse Betsy.

— É mesmo essa — confirmou o marquês. Virou-se para Grégoire. — Deixamos-te na Honeypot; se a duquesa e os seus acompanhantes estiverem lá, manda-os ir ter connosco à Gherkin. Senão, apanhas uma carruagem e vais ter connosco.

— Bastaria deixar lá um lacaio — disse Grégoire, amuado. — Ou podiam simplesmente esperar por mim enquanto pergunto se Sua Graça está lá.

O marquês olhou para o sobrinho com sobranceria.

— Não se deixa uma senhora à espera numa carruagem gelada.

Betsy irrompeu numa torrente de conversa frívola, como se subitamente tivesse borboletas a esvoaçar em torno da cabeça. Mimou o marquês com o seu charme, mas Jeremy conhecera-o toda a vida. Viu um brilho de confusão ao fundo dos seus olhos. Betsy escondia-se tão bem que o pai estava confuso.

Pararam à porta da Honeypot. Grégoire saiu da carruagem e desapareceu na neve soprada pelo vento.

— Aquele rapaz azedou enquanto estavas na guerra — disse o marquês, batendo com uma mão no joelho. — Talvez tenha começado a pensar que o título era dele.

— Reparaste que, quando se referiu a uma história sobre Vauxhall nos jornais, parecia quase uma ameaça, Jeremy? — perguntou Betsy quando a carruagem avançou para a Gherkin & Cheese.

Tratara-o informalmente diante do pai, e o marquês notara. Com um esforço, Jeremy voltou a concentrar-se em Betsy, que explicava como por vezes os seus conhecidos vendiam desenhos, ou apenas ideias, aos jornais de Londres.

— As gravuras viajam por todo o país em carroças de funileiro — dizia ela. — Têm sido uma praga para os meus irmãos.

— O Grégoire estava contigo em Vauxhall quando adoeceste? — perguntou o pai.

— Não — respondeu Jeremy. — Não falávamos há meses — acrescentou. — O pai tem estado bem?

O marquês parecia mais velho, o seu nariz mais pontiagudo e os seus olhos mais azuis do que há um ano.

— Sim. Tirando o facto de me ter preocupado contigo. — Virou-se para Betsy. — Espero não a ter deixado embaraçada por ter respondido tão francamente. Consigo ver que é uma boa amiga do meu filho.

— Sinto-me honrada — disse Betsy.

A carruagem ficou em silêncio por um momento. Jeremy e o pai não falavam desde que ele cambaleara para fora de um barco vindo da América, estremecendo ao menor som, com ondas de vergonha e dor a atingi-lo profundamente todos os dias. Tinham discutido alguns dias depois de ele desembarcar em Inglaterra. Depois disso, Jeremy não conseguira encará-lo.

— O pai é tão terrivelmente eficaz — disse Jeremy, obrigando-se a pronunciar as palavras. — Se tivesse estado lá, nas colónias, tudo teria corrido bem. Teria trazido os seus homens para casa.

O marquês abanou a cabeça, os seus olhos indecifráveis na luz fraca da carruagem.

— Nada corre bem na guerra. As coisas acontecem e pronto.

— Eu cumpri ordens — disse Jeremy, sentindo um sabor amargo na boca. — O pai não teria cumprido as ordens. Não foi justo da minha parte culpá-lo por isso. — O marquês franziu a testa. — Oh, por amor de Deus! — exclamou Jeremy. — O pai teria tirado os seus homens dali para fora e descoberto que o coronel responsável fugira. Os seus homens estariam agora em casa com as suas mulheres. Eu apenas continuei a correr por aquele campo, de um lado para o outro.

— Se eu tivesse feito o juramento de servir no Exército de Sua Majestade, teria seguido ordens — declarou o pai. — O facto de o Ministério da Guerra ter decidido não levar a tribunal marcial esse maldito coronel é um ultraje, uma afronta a todos os homens que caíram no campo.

Jeremy ergueu um canto da boca, numa tentativa falhada de sorrir.

— Seja como for, eu não devia ter culpado o pai pelos meus fracassos.

— Pensaste que eu teria sido bem-sucedido onde tu falhaste... mas tu não falhaste.

— Falhou — disse Betsy subitamente.

A carruagem voltou a cair no silêncio, tirando o ruído das rodas na neve.

Os olhos do marquês semicerraram-se, e, se ele parecia confuso antes, agora olhava para Betsy com um desprezo cortante.

— Asseguro-lhe, Lady Boadicea, que li pessoalmente os relatórios de serviço do meu filho. Ele manteve os seus homens juntos na batalha, perante obstáculos inultrapassáveis. Se o batalhão do cobarde se lhes tivesse juntado, como planeado, as ações do Jeremy teriam mudado o destino dessa batalha.

— Eu sei — disse Betsy.

— O meu filho recebeu uma menção honrosa do Exército — exclamou o marquês.

A carruagem parava, mas Betsy inclinou-se para a frente como um gladiador prestes a chicotear o seu corcel.

— Um verdadeiro líder sente que falha a cada homem que perde — disse ela, contendo na voz uma ira igual à do marquês. — O meu irmão North é um líder desse género. E o seu filho também.

A boca de Jeremy estremeceu num movimento involuntário.

— Se lho perguntar, o Jeremy negá-lo-á.

Jeremy abriu a boca.

— Porque...

— Ele dirá que o North é um homem melhor — atalhou Betsy. — A culpa é intolerável. O senhor não consegue compreender. Se diz que a experiência dele não é um fracasso, está a ignorar os seus sentimentos.

— Que despautério! — vociferou o marquês. Virou-se para Jeremy, com as sobrancelhas quase unidas. — Pensas que eu não sei nada acerca de culpa?

O vento tinha aumentado e fazia balançar a carruagem.

— Perdeu-se um pelotão inteiro — prosseguiu Betsy. — Com o devido respeito, Lorde Thurrock, nenhuma culpa que o senhor sinta pode igualar a que o seu filho viveu.

A boca de Jeremy curvou-se num sorriso genuíno.

— Eu consigo travar esta batalha — disse ele a Betsy. — Ainda que não tenha conseguido travar a outra.

— Mas travaste — retorquiu Betsy. — Apenas não a venceste. Mas tentaste. Para mim, todas as batalhas são um fracasso.

— Nesse aspeto tens razão. — A consciência disso instalou-se-lhe nos ossos com um calor surpreendente.

— Eu conheço a culpa — disse o pai, obstinadamente.

Sem que nenhum dos três tivesse reparado, a carruagem parara. Agora a porta abria-se, deixando entrar uma corrente de ar gélido. Do outro lado da porta, um criado de libré vermelha estava rigidamente ao lado das escadas portáteis, já embranquecidas pela neve.

Betsy inclinou-se para a frente e saiu da carruagem sem uma palavra para Jeremy ou para o marquês, estendendo a mão enluvada para o criado a ajudar.

O pai não fez qualquer movimento para sair.

— Não sei porque pensaste que eu te culpava, Jeremy, mas nunca o fiz. E Deus sabe que nunca o farei.

— Eu não pensava realmente isso — disse Jeremy, comovido contra a sua vontade. — Fui um idiota, só isso. Sempre pensei no pai como um dos homens mais competentes que já conheci. — A boca do pai estremeceu. — Não consegui deixar de fazer a comparação. Eu não consegui olhar para fora do campo de batalha, percebe? Num sentido, cumpri ordens. Mas devia ter percebido que algo tinha corrido mal. Devia ter mandado alguém investigar. Em vez disso, andei a correr por aquele maldito campo.

— E corrias em direção a quê?

— Os meus homens caíam, um após o outro — contou Jeremy, engolindo em seco.

— Se tivesses abandonado o campo, os teus homens teriam caído sem que se soubesse porquê — disse o pai. — Um general observa a batalha como um todo, mas mandaram-te ficar com os teus homens. Foi o que fizeste, Jeremy. O facto de o teu coronel desertar vergonhosamente do seu posto não é responsabilidade tua.

Jeremy cerrou os maxilares; a língua inglesa parecia não ter palavras para exprimir o que ele sentia. Ou para o que ele queria dizer.

— Não podemos deixar a tua rainha guerreira sozinha na neve. — A mão do marquês fechou-se firmemente no joelho de Jeremy por um segundo antes de ele se inclinar para a frente e sair da carruagem.

Jeremy ficou sentado, imprimindo o cheiro a linho e a tabaco na sua memória. Finalmente saltou da carruagem e deu um xelim ao criado, que tiritava.

Quando entrou na estalagem, o marquês e Betsy estavam sentados em lados opostos de uma sala privada, o que não era tão embaraçoso quanto podia ter sido porque Lady Knowe, Thaddeus e a duquesa estavam em torno da lareira com eles.

Aparentemente, tinham-se apropriado da estalagem inteira.

— Não é maravilhoso? — perguntou Lady Knowe, correndo ao encontro deles. — Estamos a aquecer-nos e depois vamos para o andar de cima, para os banhos. Estamos tão confortáveis como no castelo de Lindow. Só havia um hóspede esta noite, e não se importou nada de ir para o Honeypot. Vou pagar a sua estadia, naturalmente.

Lady Knowe continuou a falar, mas Jeremy olhava para Betsy. Ela devolveu-lhe o olhar, com a boca solene e uma sobrancelha arqueada, tão deliciosa que Jeremy avançou diretamente para ela.

Uma mão no ombro fê-lo parar.

— Lorde Jeremy — disse a duquesa. — Queria pedir-lhe desculpa.

— Não há necessidade — retorquiu Jeremy mecanicamente, fazendo uma vénia. Não fazia ideia de que falava ela.

— Deixei-o com a Lady Boadicea numa casa de chá sem uma acompanhante. Naturalmente, sentiram-se ambos desconfortáveis, o que vos forçou a sair para uma tempestade de inverno. Que sorte fantástica ter encontrado a carruagem do seu pai quando fazia falta! — Jeremy obrigou-se a assentir com a cabeça. — A Lady Knowe enviou a carruagem do duque de volta para trazer os criados — prosseguiu. — Devem estar aqui dentro de uma hora. Não poderia sentar-me para jantar com este vestido.

— Não, de facto — murmurou Jeremy.

Thaddeus estava sentado ao lado de Betsy. Ela seria uma duquesa maravilhosa. Bastava pensar na conversa que tivera com o seu pai na carruagem. Só uma futura duquesa podia dar um sermão a um marquês e virar-lhe as costas sem uma palavra de despedida.

Sua Graça continuava a tagarelar acerca da sua criada de quarto — porque pensaria ela que o assunto lhe interessava? —, e Betsy dirigia a Thaddeus um sorriso, aquele que provavelmente lhe daria a volta à cabeça e o faria esquecer-se de que ela era um escândalo de calças em formação. Caramba.

— Se me dá licença, Vossa Graça — disse ele para a duquesa, e atravessou a sala.

Betsy e Thaddeus pareciam um lorde e uma lady de cerâmica, um par de namorados esculpido em França por um homem que nunca tinha visto uma rainha, mas representava aristocratas com rostos doces e queixos fortes.

— Olá — cumprimentou Jeremy, puxando uma cadeira do outro lado de Betsy. — Como foi na leiloeira?

— A Lady Knowe decidiu que o mau tempo impossibilitava a viagem — respondeu Thaddeus, muito amigável e cavalheiro. — Viemos para aqui, e ela mandou a carruagem de volta ao castelo.

Havia algo nos seus olhos. Thaddeus tomara uma decisão.

Talvez porque o próprio leilão seria adiado devido ao mau tempo.

Contudo, se ele pensava que Betsy se esqueceria da ideia das calças, teria uma surpresa.

— A Lady Knowe ficou a saber que o leilão será realizado amanhã — continuou Thaddeus. — Todas as senhoras tencionam assistir, vestidas de homem.

— Pensei que considerava desonroso uma senhora aparecer de calças em público — observou Jeremy.

— A minha mãe incutiu-me que deve ser ela a guiar-me nessas questões — retorquiu Thaddeus. — Já pedi desculpa à Betsy por qualquer embaraço que lhe tenha causado devido à minha reação inepta e ingénua.

— Não há nada que torne um aristocrata mais parecido com um merceeiro do que um amor desmedido à respeitabilidade — observou Jeremy. — O meu pai é o primeiro da nossa família a importar-se com a reputação.

— A tia Knowe afirma que a aristocracia é como um lago de cisnes — disse Betsy, com os olhos brilhantes. — Por cima, parecemos elegantes, ou mesmo majestosos. Mas, sob a superfície, estamos todos a nadar como loucos, muito mais parecidos com patos.

— Uma observação perspicaz — retorquiu Thaddeus.

— A neve, esta noite, faz lembrar cisnes — disse Jeremy ociosamente. — Como as penas de um pássaro inimaginável.

A duquesa chamou o filho. Este levantou-se e acompanhou-a para fora da sala.

— Não podes casar com ele — disse Jeremy. — Vais passar a tua vida adulta a ver um homem a transportar a mãe de um lado para o outro.

Betsy levantou-se com uma expressão inescrutável no rosto.

— Eu teria acompanhado a minha mãe se ela tivesse querido a minha companhia.

— As nossas criadas chegaram, graças a Deus — anunciou a tia Knowe de junto da porta. — Venham daí os dois. Sem demoras, Jeremy. O seu primo está num estado lastimável; o Sr. Bisset-Caron receia ter apanhado uma constipação. Vai jantar na cama.

— Mais uma vez, sem acompanhante — disse Jeremy, atravessando a sala. — Até se podia pensar que a Lady Knowe não está a promover o Thaddeus como teu futuro marido.

Era uma loucura discutir o matrimónio com Jeremy, mas Betsy achava isso irresistível.

— Se eu me tornasse duquesa, teria o mundo aos meus pés.

— Tu não queres o mundo aos teus pés — disse Jeremy, encolhendo os ombros. — Certamente não queres que todo o mundo tenha a tua imagem na parede. O que queres tu, Bess?

Quero-te a ti, pensou ela involuntariamente.

Mas era uma loucura. Não havia dúvida de que Jeremy despertava o pior dela, os impulsos carnais que herdara da mãe.

— Quero ser uma duquesa — respondeu ela, dando eco ao seu ser de 14 anos, a rapariga que ansiava profundamente vencer o jogo matrimonial. — O Thaddeus é um verdadeiro cavalheiro.

Jeremy inclinou-se para a frente e acariciou-lhe a bochecha com os nós dos dedos.

— Mas, e tu? És uma lady? — Ela estremeceu. — O que se passa? — perguntou ele, franzindo o sobrolho. — Não era um insulto, Bess.

— Porque concordaste em acompanhar-me à igreja?

Os olhos deles procuraram os dela, e Betsy viu o momento em que ele decidiu ser honesto.

— Tinha esperança de te beijar novamente.

Ela fora sempre tão cuidadosa, tão segura de poder evitar os erros da mãe. No entanto, saíra da casa de chá sem pensar num acompanhante, ao lado de um homem que sentia desejo por ela.

— Betsy — disse Jeremy docemente. Os seus olhos pareciam quase ternos. — Não. Não penses nada do que estás a pensar.

— Não estava a pensar em nada — retorquiu ela, avançando e deixando-o para trás.

Ele confundia-a; era amargo, sombrio. Por muito que desejasse aliviar-lhe a angústia que ele, por vezes, deixava escapar, não podia.

Aproximou-se da tia Knowe em silêncio. Depois de subirem um lanço de escadas, a tia parou.

— Terás de escolher entre os dois.

— Não há nada a escolher — retorquiu Betsy imediatamente. — A duquesa é maravilhosa. É divertida e bondosa.

— Não é entre a duquesa e o filho. Não vais casar com a Emily — exclamou a tia Knowe secamente. — A escolha é entre o Jeremy e o Thaddeus.

— A mãe de um homem é o espelho do seu filho — disse Betsy com ligeireza. — Como é que eu podia ser mais afortunada? Toda a gente adora o Thaddeus.

A tia Knowe abriu a porta de um quarto e Betsy viu Winnie a fazer a cama com lençóis trazidos do castelo de Lindow. A tia Knowe tinha a crença firme de que dormir em lençóis estranhos, mesmo que só uma vez, era um convite aos vermes, ou mesmo à doença.

— Toma um banho quente — sugeriu a tia, com os olhos a adoçarem. — Lembra-te de que tens mais escolhas, além dessas duas. Há inúmeros homens interessados em ti.

Betsy pôs-se em bicos de pés e beijou a bochecha da tia.

— A tia é maravilhosa.

— Tenho sorte — disse a tia. — Vocês, meninos, são tão divertidos!

Enquanto Winnie perfumava o seu banho com verbena, Betsy sentou-se perto da lareira e tentou organizar os pensamentos. Para ser honesta consigo mesma, adorava namoriscar com Jeremy. Queria beijá-lo num canto escuro. Queria-o, com a sua alma negra e os seus olhos furiosos, o seu hábito de beber e o seu sarcasmo seco. O seu peito largo, mãos curtidas e belos lábios. Que outro homem tinha lábios como os dele? Estava fascinada pelo seu lábio inferior, pelo pequeno vinco bem no meio.

E a forma como a língua dele passara além dos seus lábios. A forma como falava ociosamente, e o tempo que os olhos dele pairavam sobre os seus lábios... o seu peito, o seu pescoço.

Ele parecia gostar dos pulsos dela. Seria possível? Apanhara-o a mirá-los, com os olhos sonolentos.

Ela seria capaz de jurar...

Mas o que sabia ela acerca de luxúria? Apenas que lhe dançava nos membros e lhe inundava a mente de pensamentos escandalosos.

E se ela provocasse Jeremy com beijos, com uma passagem da língua, ou mesmo com uma dentadinha? E se o beijasse tão apaixonadamente que ele...

Que ele, o quê?

Ela não sabia nada.

Oh, ela conhecia a mecânica. Mas isso não era nada.


Capítulo 13

Reuniram-se na sala de jantar da estalagem, e até Grégoire Bisset-Caron se lhes juntou, queixando-se do frio, mas sem nunca fungar.

A duquesa fez as despesas da conversa durante o primeiro prato, pois aparentemente decidira persuadir Betsy a casar com Thaddeus descrevendo a inaptidão do filho para ser duque, que este exibia desde os dois meses de idade.

Betsy escutava atentamente a história da generosidade de Thaddeus em relação a um ouriço órfão, mas permitiu à sua mente divagar quando a mãe de Thaddeus descreveu a sua coragem depois de ter sido atacado pela tinha.

— Os seus lindos caracóis caíram aos molhos de toda a cabeça — lamentou a duquesa.

— Oh, por amor de Deus! — gemeu Thaddeus baixinho.

Betsy gostava dele por isso, porque estava irritado, mas não interrompeu a mãe.

A conversa da tinha finalmente esgotou-se e o marquês interveio, brindando a mesa com a perturbadora história da papeira de Jeremy.

— Esqueceu-se do aspeto mais importante — observou Jeremy quando a história das glândulas inchadas terminou. — Esqueceu-se de dizer como fui tremendamente corajoso perante a morte iminente.

— Morte? — O pai riu-se desdenhosamente. — Eras uma criança extremamente malvada, mas a tua desobediência não era fatal, nem nada que se parecesse.

— Noto que o tio não está a mencionar o serviço do meu primo nas colónias — disse Grégoire.

Jeremy sorriu debilmente.

— A papeira é mais fácil de desculpar.

— Disparate! — exclamou o marquês, franzindo fortemente a testa para o filho. — O teu serviço militar granjeou-te uma rara menção nos relatórios oficiais, mesmo que tenhas escolhido ignorá-la.

Neste ponto a duquesa saltou agilmente e lançou-se numa história acerca do notável talento de Thaddeus para o bilhar.

— Tal como o meu filho — disse o marquês obstinadamente.

Cada história da duquesa era seguida por outra idêntica. Thaddeus era corajoso, Jeremy também.

Ambos os homens ouviram as histórias em silêncio, mas Betsy reparou que Grégoire se tornava mais irritadiço a cada minuto que passava.

— Acho as histórias dos heroísmos infantis terrivelmente entediantes — disse ele após o terceiro copo de vinho.

— A sério? — perguntou a duquesa, com uma voz perigosamente tranquila.

Porém, Grégoire tinha aparentemente chegado ao ponto de embriaguez em que uma pessoa já não presta atenção à censura, mesmo quando esta vinha das posições mais elevadas da sociedade.

— Quem é que se importa que um rapaz tenha sido corajoso ao cair num charco? — perguntou ele, abanando o copo de vinho. — O verdadeiro teste para um homem é o modo como ele se comporta como adulto.

— Presumo que estás a acusar-me de falta de coragem — disse Jeremy com completa indiferença. — Admito desde já que estava aterrorizado no campo de batalha.

— Isso diz muito acerca de ti, não diz? — respondeu Grégoire com um esgar. — Na escola, fui obrigado a memorizar um discurso proferido pela sua homónima, Lady Boadicea. O Jeremy podia tê-lo utilizado para incentivar os seus homens, em vez de os deixar morrer.

Ele pôs-se de pé e fez uma pose.

— Não temais mal algum dos romanos; pois não são superiores a nós em números ou bravura.

A tia Knowe virou-se para o marquês.

— Alguma vez suspeitou de que pode haver loucura na sua família?

— Somos todos loucos como as lebres de março — respondeu Grégoire, sentando-se. — Pior, só um louco casaria na nossa família.

— Permite-me que discorde — disse o marquês gelidamente.

Grégoire encolheu os ombros.

— Gostava que não fosse o caso, mas receio que o Jeremy não seja um bom exemplo da nossa linhagem.

— Completamente verdade — concordou Jeremy, suspirando. Os seus olhos, refulgindo de riso, encontraram os de Betsy. — Se ao menos eu tivesse brilhado no campo de batalha, talvez tivesse arranjado uma mulher numa trupe de vaudeville capaz de dar aos meus filhos a capacidade de cintilarem à mesa do jantar.

— A minha família não aprova o teatro — disse a duquesa. Obviamente, decidira ignorar Grégoire, que, também obviamente, não se importava.

Betsy estava cheia de curiosidade. Que motivo poderia ter Grégoire para a desencorajar de casar com o primo, apesar de Jeremy não parecer interessado em pedi-la em casamento?

Acreditaria mesmo que Jeremy ia morrer sem filhos, permitindo que fosse ele o herdeiro?

Era um absurdo.

Mas Grégoire lançou-se numa supostamente divertida referência a uma gravura vendida em Londres, que mostrava Jeremy escondido atrás de uma árvore. A tia Knowe fitava-o com os olhos semicerrados e o marquês estava apoplético.

— O senhor é um jovem bastante malcriado — decretou Sua Graça, antes de se lançar no relato de um período em que Thaddeus quase abatera um veado escocês com uma flecha.

Betsy viu Thaddeus estremecer com a descrição do veado a saltar sobre o seu corpo de 8 anos e a desaparecer nas Terras Altas com uma flecha a abanar no flanco.

Só à sobremesa é que a mente de Betsy lhe lançou um dilema. E se ela se casasse com Thaddeus e depois Jeremy aceitasse um convite para a residência de campo deles?

Teria a mãe dela sentido o insistente desejo que corria nas veias de Betsy e a incentivava a olhar Jeremy sub-repticiamente? Pensando em lhe lamber o lábio? Pensando na sensação dos seus braços em torno dela? Pensando em qual seria a sensação das suas mãos...

Um dos aspetos mais irritantes de ter frequentado a escola de raparigas era o facto de a voz de Clementine ser uma memória viva. Se Clementine soubesse da luxúria fervente que Betsy sentia por um homem sarcástico e irritante, um pretendente completamente inadequado, certamente troçaria dela.

Betsy suspirou. A menina Clementine Clarke casara-se com um homem rico, que podia, um dia, vir a ser o Lorde Mayor de Londres. Era improvável que voltassem a encontrar-se. Então, por que motivo não conseguia simplesmente esquecer os insultos de Clementine? Vira Octavia frequentemente durante a temporada social; porque não recordava o riso de Octavia, em vez das humilhações de Clementine?

O lenço de pescoço branco de Jeremy realçava-lhe as olheiras e fazia-o parecer um demónio, mas não do género que começara como um anjo e depois caíra. Ele era o Rei Demónio de uma peça de Ben Jonson, folgando enquanto tramava como condenar toda a gente às profundezas do Inferno.

— Vamos tomar uma bebida no salão, junto da lareira — anunciou a tia Knowe. — Recomendo bebidas fortes para todos, já que os quartos prometem estar frios esta noite.

— Eu pedi mais um edredão — disse Grégoire. — O que tinha era completamente insuficiente. Também exigi ao estalajadeiro que mudasse os lençóis. Sugiro que façam todos o mesmo; pode ser fatal dormir em lençóis húmidos.

Aparentemente, a tia Knowe não mandara as criadas de Lindow mudar a cama de Grégoire. Betsy tinha a certeza de que os lençóis das camas de Jeremy e do marquês tinham sido trocados por lençóis com o brasão de Lindow bordado.

Depois da refeição, Grégoire dirigiu-se para o quarto para cuidar do seu frio, e os restantes foram para a divisão que a tia Knowe designara como salão. Betsy deu por si a caminhar ao lado de Jeremy, que percorria o corredor de cenho franzido, sem se dar ao trabalho de falar depois de lhe lançar um olhar ardente.

Quando já estavam todos no salão, a duquesa pediu um jogo de picket, sentindo-se traída por Betsy quando esta confessou não gostar do jogo. O marquês fez par com Thaddeus, e Lady Knowe reclamou a duquesa.

O que deixou Betsy sentada com o Rei Demónio. Jeremy fitava o lume como se cada chama fosse um combatente inimigo. Ela aceitara brandy; ele bebia uma chávena de chá. De facto, parecia ter deixado em Lindow a sua omnipresente garrafa de whisky.

Nenhum membro da família do Duque de Lindow tinha permissão para ser cobarde em relação ao álcool, por isso Betsy saboreou cada gota e tentou não sentir que estava sentada ao lado de um vulcão a fumegar.

— O que se passa? — perguntou ela finalmente, sem baixar a voz porque a tia Knowe estava numa ruidosa batalha com a sua amiga de infância devido a uma má aposta.

— Quê? — rugiu ele.

Rugiu.

Ela não gostava de homens que rugiam. Gostava de homens que guardavam o mau humor para si próprios.

— O teu amuo — disse ela, sem tentar disfarçar a irritação na voz. — Provavelmente, deve-se à chegada do teu pai, mas com miúdos de 2 anos nunca se sabe; é tão difícil que sejam coerentes. — Jeremy fitou-a, atónito. — Sim? — insistiu ela ao não obter resposta, e sentiu-se desconcertada quando ele desatou a rir.

Viu pelo canto do olho que os quatro jogadores levantaram os olhos das cartas. Visto que Thaddeus os observava, Betsy sorriu a Jeremy, que se encolheu.

— Caramba! — murmurou ele. — Para que é isso?! Num momento estás a repreender-me como uma ama depois de uma noite sem dormir, e no seguinte ofereces-me um sorriso social?

Thaddeus voltou às suas cartas.

— Bem, em que é que estás a ruminar? — perguntou ela.

— Eu não estava melancólico. O meu rosto em repouso fica com linhas detestáveis. Deve ser uma herança.

— O teu pai parece perfeitamente alegre — disse ela, tomando mais um gole de brandy. — Sobretudo quando contou a história da tua adoração por aquele pónei feioso. Brilhava de orgulho.

— Que golpe foi aplicado ali! — recitou Jeremy.

— Estás a armar-te em esperto? Graças ao teu pai, conheço a tua excelência nas declinações latinas. Apesar de a minha educação ter sido notável para uma rapariga, não abrangeu a memorização dos clássicos.

— É uma citação de A Tempestade — esclareceu Jeremy. — Estava a ser um tolo vaidoso, ainda que instruído. — A luz da lareira incidia-lhe no cabelo e fazia-o brilhar como bronze escuro envernizado.

— O teu primo também foi mesquinho ao jantar — comentou ela, pensativa. — Talvez o teu mau feitio seja herdado.

— A minha mãe tinha uma mentalidade otimista — disse ele.

— Mas tu tens tendência a deixar-te dominar pelo mau feitio?

— Dou comigo preso numa emoção forte. — Os seus olhos encontraram-se. — Estou a pensar em arranjar uma esposa. — Betsy ficou com um nó na garganta e engasgou-se, tossindo quando o brandy desceu pelo canal errado. — Se pareço estar a fitar o lume, isso é o efeito de pensamentos profundos — acrescentou ele.

Parecia impossível. Ele tolerava-a. Regularmente, fazia pouco dela.

No entanto, tinha havido um beijo.

— Não há necessidade de um pedido de casamento só por causa de um beijo — sussurrou ela, aproveitando mais uma explosão de indignação entre os jogadores.

Ele ergueu uma sobrancelha.

— Não tencionava fazê-lo.

Betsy sentiu um rubor subir-lhe pelo pescoço.

— Ainda bem — disse, tomando mais um gole de brandy. Queria tocar-lhe. Pôr-lhe uma mão no braço e ver se conseguia fazê-lo estremecer. Percorrer com um dedo as costas da sua mão e ver se ela estremecia por dentro.

Estremeceria. Ela sabia que sim.

— Na verdade, estava a meditar sobre os atributos que se devem procurar numa mulher — admitiu Jeremy. — É quase impossível não pensar nisso, dado o dilúvio de informações que emanam de Sua Graça acerca dos atributos que recomendam Thaddeus para marido.

— O teu pai também esteve à altura do desafio — notou Betsy.

— Um empreendimento falhado — retorquiu Jeremy. — Eu era uma criança demasiado enfadonha. A papeira não é nada em comparação com os horrores descabelados da tinha.

Betsy riu-se. O brandy espalhava-se-lhe no estômago de uma forma agradável, fazendo-a sentir que o mundo era um lugar amigável e iluminado.

— Não te embebedes — aconselhou-a Jeremy, olhando-a penetrantemente.

— Porquê? — perguntou Betsy. Baixou a voz. — É assustadoramente déclassé ficar careca em tenra idade.

— Pelo contrário — disse Jeremy, servindo-se de mais um pouco de chá. — Só uma duquesa alardeia algo tão desagradável como a tinha. Manifesta uma enorme negligência pelos costumes cautelosos dos socialmente ansiosos. Mas eu não devia dizer-te isto.

— Porquê?

— Porque tu és muito ansiosa — respondeu ele, fitando-a. — Encantadora, snobe, ansiosa.

O primeiro instinto de Betsy foi atirar-lhe o resto do brandy, mas, em vez disso, bebeu-o. Ele tinha razão. Porque haveria de ofender-se? Ela vivia presa num profundo medo que lhe fora instilado por Clementine e outras colegas da escola.

— Não respondes? — perguntou Jeremy.

— Tens razão — disse ela, estendendo o copo. — Mais brandy, por favor.

Ele levantou-se, dirigiu-se aos decantadores dispostos num aparador e serviu-lhe uma boa porção.

— Disse-me que não beberia depois do almoço — repreendeu- o a tia Knowe. — Assim nunca dormirá, Jeremy.

— É para a Betsy — respondeu ele.

— Oh, então está bem — disse, voltando às suas cartas.

Betsy olhou e viu Thaddeus a observá-la, por isso ergueu o copo que Jeremy acabara de lhe entregar.

— Felizmente, eu não tenho problemas de sono — informou-o.

— Ensinei todas as minhas raparigas a tolerarem a bebida — disse a tia Knowe. — Não tem de recear que a sua futura mulher fique com um grão na asa e se ponha a namoriscar o vigário. — Depois pousou as suas cartas com um grito de triunfo. — Acho que isto arruinou as vossas possibilidades.

— Estás ansiosa por causa da tua mãe, não é? — perguntou Jeremy em voz baixa.

Betsy fitou-o. Apesar do orgulho da tia Knowe, ela sentia-se definitivamente com um grão na asa.

— Tu não estarias, no meu lugar? — Viu-o ponderar, fitando o fogo de olhos semicerrados. — Então?

— Estou a tentar imaginar a minha mãe a fugir com um lacaio, em vez de ter morrido quando eu estava nas colónias. Preferia que ela estivesse viva e neste mundo, mesmo que vivesse num país diferente com o lacaio. É cruel da minha parte dizer-te isto?

Betsy bebeu um grande gole.

— É, bastante. A morte da tua mãe não te formou enquanto adulto, e os outros apenas sentem compaixão por ti. Fizeste-me sentir frívola, embora o adultério da minha mãe tenha tido um significativo efeito em mim.

— Só porque o permites — disse ele sem hesitar.

— Não sabes nada — retorquiu Betsy. — Nada de nada. De todas as coisas insultuosas que me disseste, esta é provavelmente a pior.

Ela percebia pela sua expressão que ele estava surpreendido e, o que era enternecedor, abalado.

— Não pretendi ser insultuoso.

— Essa desculpa só funciona uma ou duas vezes.

Contudo, quando encontrou os seus olhos negros, o desejo incendiou-se entre eles. Ela mordeu o lábio, combatendo instintos que sugeriam — que loucura! — que se mudasse da cadeira para o colo dele. Que inclinasse a cabeça para trás e o convidasse a beijá-la. Que ele a beijasse e as mãos dela lhe agarrassem os ombros.

Afastou o olhar e pousou uma mão na bochecha quente.

— Acabaste de observar dois nobres a desfilarem as virtudes dos respetivos filhos diante de ti, e ainda achas que tens uma reputação manchada? — perguntou Jeremy. — És filha de um duque. O sangue da tua mãe é tão nobre como o meu, embora a sua moral fosse um tanto flexível. A moral não é herdada.

— Todas as caraterísticas são herdadas — disse Betsy. — Ignoraste todas as diatribes do North em relação aos cavalos?

— Podes ter herdado as pernas da tua mãe, mas a moral é ensinada — retorquiu Jeremy. — A tua moral, aprendeste-a com a Lady Knowe. Ficaria muito surpreendido se qualquer criança supervisionada por ela não se comportasse de uma resoluta maneira inglesa — e com isso refiro-me a um comportamento adequado a um nobre inglês.

— O Horatius atravessou o pântano a cavalo quando estava embriagado — disse Betsy. O seu irmão mais velho perecera nesse pântano.

— Ele alguma vez fez batota a jogar às cartas?

— Claro que não!

— Ser imprudente com a própria vida é praticamente um passatempo britânico — disse Jeremy. Estendeu a mão e pegou no copo de brandy que ela colocara no chão ao lado da sua cadeira.

— Não é bom para o seu sono! — berrou a tia Knowe da sua mesa.

Jeremy suspirou e voltou a pousar o copo.

— A tua mãe não teve um verdadeiro efeito na tua moral, Bess. Foi a Lady Knowe que te formou, sem tirar nem pôr.

— Não consigo pensar em ninguém melhor — disse Betsy resolutamente, consciente de que a tia devia estar a ouvir.

Exatamente nesse momento, a duquesa lançou-se numa diatribe que implicava que a tia Knowe tinha cartas escondidas na manga. Isto fez os outros três jogadores rirem às gargalhadas e levou à dissolução dos jogos.

— Se eu tivesse a habilidade de esconder cartas na manga, não estaríamos a jogar a feijões — declarou a tia Knowe. — Apostava contigo o teu conjunto de diamantes, Emily. Ias ver se não!

Thaddeus instalou o seu longo corpo na cadeira ao lado da de Betsy e apontou para o seu copo meio cheio.

— Posso? — perguntou. Os olhos claros de Thaddeus não faziam exigências. O casamento com ele seria pacífico.

Betsy concedeu-lhe um sorriso genuíno e entregou-lhe o copo.

— É uma gentileza que me faz, não estou habituada a grandes quantidades de brandy.

— Gosto de uma mulher que consiga tolerar o álcool — disse o pai de Jeremy, sentando-se ao lado do filho.

Betsy sentiu que uma garça-real cinzenta tinha subitamente dobrado os joelhos de uma forma desconhecida no reino das aves, e se empoleirara no extremo de um assento.

— Beber pode levar a indiscrições — interveio Sua Graça. — Lembram-se da mulher do embaixador francês? Atribuí aquele escândalo à sua paixão pelo brandy. Ela própria me confessou ter levado para casa três caixas, disfarçadas de utensílios domésticos.

O casaco de Thaddeus repuxava nos ombros enquanto ele bebia. A beleza de Jeremy era de um género brutal, como uma onda de desejo que nos embatesse na cara. Thaddeus era mais calmo, com a confiança que os nobres tinham de ser bem acolhidos em qualquer companhia. Betsy deixou os olhos vaguearem pelo seu peito, perguntando-se se ele também teria um estômago musculado. Provavelmente, sim. As suas pernas esticavam a seda preta das calças...

Isto era terrível.

Ela estava a perder as convicções que tivera durante a maior parte da sua vida. O lado bom era não sentir um desejo furioso de se arrastar para o colo de Thaddeus, o que era um bom augúrio para a sua futura vida de casados, caso esta se concretizasse.

Thaddeus sorriu, os olhos calorosos, e tocou-lhe fugazmente na bochecha.

— Se houvesse uma mesa de bilhar na estalagem, adorava jogar consigo.

Do outro lado, Jeremy resmungou qualquer coisa, felizmente demasiado baixo para Thaddeus ouvir.

A noite estava a ficar demasiado confusa.

— Vossa Graça, tia Knowe, creio que vou para a cama, se me dão licença — anunciou Betsy. Depois de se despedir de toda a gente, dirigiu-se para a porta.

— Planeio discutir com o marquês a sua abordagem errada à política dos cereais — disse a tia atrás dela, o que fez o pai de Jeremy gemer. — O Thaddeus vai, decerto, apoiar o meu ponto de vista. De certeza que é mais liberal do que o seu inflexível pai.

Quando Betsy se aproximava da porta, Jeremy correu a abri-la.

— Não deves acompanhar-me. Não é decente — sussurrou ela.

— Não quero que andes sozinha pela estalagem à noite — disse Jeremy. — Os olhos de Thaddeus estão a furar-me as costas; parece o cão da vinha.

— O que é que queres dizer com isso? — Betsy fitou-o furiosa. — Que ele não me quer, mas também não quer que tu me tenhas? Na tua perspetiva, não sou mais do que uma vinha?

— Exatamente — respondeu ele, segurando-lhe a porta.

— Se eu fosse uma uva — disse ela altivamente —, acredito que o Thaddeus me... — Demasiado tarde, percebeu o erro de usar o verbo «comer».

Jeremy riu-se.

Ela passou por ele e avançou para as escadas.

— Uma vinha com outro nome — disse Jeremy por trás dela. — Um refúgio na tempestade, um centro calmo num mundo atribulado, uma mulher divertida, apaixonada e letal num jogo de bilhar. — Involuntariamente, ela começou a andar mais depressa. — Amada e amando, claro.

Ela virou-se. O corredor apainelado tinha tetos muito altos, e havia candeeiros afixados nas paredes, mesmo acima da cabeça dela. Nas sombras, o rosto de Jeremy parecia o de um juiz.

— É por isso que o Thaddeus quer casar contigo — terminou ele.

— Tens estado a fazer uma lista de prós e contras — disse ela. — Faz parte dos teus planos de casamento. — Ele assentiu. — Posso saber quais são os contras?

— Excêntrica. Alta probabilidade de vencer no bilhar, podendo conduzir a úlceras. — Os olhos dele brilhavam com aquele olhar especial que parecia reservar para ela: malícia, um toque de desejo... Não, muito desejo. Misturado com autocensura, como se considerasse abaixo do seu nível desejá-la. — Inclinada à falsidade — acrescentou ele.

— Não sou nada!

— És. Criaste uma expressão e um sorriso e usa-los como uma armadura. Quem quer casar com uma armadura? Toda a tua vida é um baile de máscaras.

— Não é! — protestou Betsy.

Ele continuou, implacável.

— Vais ensinar os teus filhos a colarem sorrisos nos rostos e a proferirem insanidades com voz trinada? As raparigas vão colecionar propostas de casamento, como se os cavalheiros fossem malmequeres numa invisível grinalda de flores a murchar?

Betsy sentia-se mal. O que podia responder?

— És cruel — disse.

— Gosto do teu eu verdadeiro: espirituosa, encantadora e inteligente. Sensual e profundamente amorosa. És uma delícia, Bess. Uma verdadeira delícia. Se eu fosse do género de casar, estaria na fila, atirando o Thaddeus para fora do caminho na pressa de conquistar a tua mão.

— Encantador — disse Betsy. A sua mente disparava em várias direções. A fúria subia-lhe pela espinha, e palavras zangadas sobre o comportamento dele tremiam-lhe nos lábios. — Tens alguma coisa a acrescentar? — perguntou. — Não te quero interromper. — Conseguiu dominar perfeitamente a voz. Tão calma como se ele estivesse a comentar o tempo.

Os olhos dele procuraram os dela.

— Bess...

Ela estava a aceitar a sua opinião acerca dela. Recusava-se a debatê-la, porque ele tinha razão, apesar de não compreender os motivos dela. Ela fez um movimento brusco.

— Não!

— Podias ter-te rido de mim, como fazes sempre.

— Rio-me quando embirras comigo ou quando troças do meu halo. Mas tu não estás a brincar.

Palavras doridas e zangadas borbulhavam-lhe no peito. De que serviria dizer «pensava que éramos amigos»? Ou, especialmente, «pensava que estavas a cortejar-me»?

Porque ela pensara-o. Em algumas pequenas partes do seu coração, começara a nutrir afeição por um destroço mal-humorado.

— Boa noite — disse, virando as costas e partindo.

Que tola era. Não podia haver nada pior do que estar ligada a um homem cruel. Ela não merecia as suas críticas. Não fora indelicada. Apenas tentara ser amiga dele. Começou a andar mais depressa, sabendo que ele a seguia. O corredor alargava para um lanço de escadas que curvava à direita em redor de uma varanda interior. Subiu os degraus o mais depressa que conseguiu sem ter de correr.

Contornara metade da varanda, a porta do seu quarto já estava à vista, quando Jeremy lhe segurou o braço.

— Não — rugiu ela, a sua voz quase falhando apesar do esforço.

— Fala comigo, por favor.

Betsy respirou fundo e encarou-o.

— Imagino que estejas perturbado pela minha reação ao resumo que fizeste do meu caráter. Não precisas de estar. O meu comportamento na alta sociedade foi elaborado desde os meus 14 anos; tenho tanta consciência como tu de que criei uma fachada para apresentar em público.

— O meu quarto é já aqui. Por favor, fala comigo um momento.

— No teu quarto?! — A pergunta destruíra qualquer hipótese de ela se controlar. — Não me parece. De facto, acho que perdeste a cabeça. Tudo o que me disseste é verdade. És um hóspede em casa do meu pai e convidas-me para ir ao teu quarto? Faço-te a cortesia de acreditar que não estás a tentar destruir a minha reputação ou a comprometer-me. Afinal, não és um homem interessado em casamento.

— Magoei-te. Peço desculpa.

Para Betsy, não eram necessárias explicações. Um pedido de desculpa pouco faria, e, em qualquer caso, a voz dele não era particularmente apologética. Havia ali um tom de comando, como se o Jeremy que dominava o campo de batalha estivesse a fazer uma aparição.

— Aceito as tuas desculpas. — Com um puxão, libertou o braço e encaminhou-se para o quarto. Abriu a porta e entrou sem olhar para trás.


Capítulo 14

Jeremy permaneceu no corredor, sentindo-se destroçado. Acostumara-se a trocar comentários ácidos com Betsy. Com Bess. Tinham brigado e discordado, e era o ardor dela que o mantinha preso à sala onde se encontravam, e não de volta a um campo de batalha cheio de fumo.

Porém, ele transformara as disputas num ataque maldoso, motivado por puro ciúme.

Ela era amiga dele e ele vira-a empalidecer. Maldoso? Fora mais do que maldoso.

Fora cruel.

Por uma razão. Por uma maldita razão. Porque ela sorrira a Thaddeus e este a tocara na face.

Por causa disso, Jeremy trucidara o comportamento dela, apesar de começar a compreender o seu sorriso fingido e a forma como ela colecionava pedidos de casamento como alguns estranhos colecionavam gravuras dos Wildes.

Entrou no quarto, mas não conseguia acalmar-se. Uma coisa era ser um fracasso no campo de batalha. Betsy tinha razão: qualquer homem que fosse para a guerra, seria um fracasso se perdesse um só homem, um companheiro. Reconhecer isso, de certa forma, fizera-o sentir-se melhor.

Ela fizera-o sentir-se melhor, e ele, em contrapartida, fizera-a sentir-se horrível. Era um canalha imperdoável.

A imensa hipocrisia de ele criticar alguém — fosse pelo que fosse — também não lhe passava despercebida. Betsy não fazia mal a ninguém com o seu teatro. Thaddeus olhava para ela com genuíno afeto e admiração. Raios. E ele era um homem bom. O melhor.

Melhor, de longe, do que Jeremy e a sua alma negra.

Começou a andar sem cessar de um lado para o outro do quarto. A neve ainda caía lá fora, por isso ficou à janela, observando a forma como os flocos se acumulavam nos cantos do pátio, com uma aparência enganadoramente macia e quente.

Reparou num embrulho que encontrara antes. Lady Knowe devia tê-lo mandado trazer de Lindow. Vendo que continha roupa de homem, um lacaio entregara-o no seu quarto, mas as roupas eram demasiado pequenas: roupas de rapaz para uma rapariga demasiado exuberante para ficar confinada dentro de saias, por mais largas que fossem. Ele podia descer o corredor e ir bater à porta de Betsy. Era só duas portas a seguir à dele; é óbvio que ele tinha fixado o número do quarto dela.

Não.

Provavelmente a criada de Betsy estava no quarto, a ajudá-la a despir-se.

Afastou essa visão da sua mente, porque ela não lhe pertencia.

O seu quarto ficava virado para a frente da estalagem, tal como o de Betsy. Talvez ela estivesse também a olhar pela janela. Cerrou as mãos em punhos só de pensar que ela podia estar a chorar.

O seu comentário cortante acerca de ele ser um hóspede no castelo era um sinal. Ele poderia partir de manhã em grande estilo, na carruagem do pai. Ninguém adivinharia que fugia de uma cena de crime.

Descobriu que estava a ranger os dentes quando os maxilares lhe começaram a doer.

A neve acumulava-se cada vez mais de encontro às paredes de pedra do pátio. As grades de ferro forjado no exterior da sua janela estavam ornamentadas com lanças de metal, cada uma delas com o seu barrete de neve, como uma fila de velhotes magros.

Grades de ferro forjado.

Uma varanda...

Recuperou uma imagem da estalagem. Um varandim estreito percorria toda a fachada do edifício, encurvando em ambas as pontas.

Vista da janela, a varanda parecia ter largura suficiente. Um homem podia caminhar para a esquerda, passar uma janela e parar na seguinte.

Esperou até ter deixado de ouvir passos durante uma boa meia hora. Então abriu a porta de correr e saiu para a neve, que já lhe dava pelos tornozelos. Esta caía de uma forma irresoluta, surgindo da escuridão para flutuar através do círculo de luz que incidia nas suas costas.

Passou o quarto ao lado do seu. Estava iluminado, de cortinas bem fechadas contra o frio. Com um sobressalto, percebeu que o seu pai estava lá dentro, cantando Sublime Graça, o que significava que estava na banheira. O marquês cantava sempre no banho.

O som transportou-o para o banco que a família ocupava na igreja em Thurrock, ele um rapazinho ao lado do pai, escutando a sua voz rouca a cantar a letra.

— Já estive perdido, mas agora encontrei-me — cantava o pai agora. — Era cego, mas agora vejo.

Jeremy continuou a olhar, o frio mordendo-lhe a nuca. A janela seguinte era a de Betsy. Apenas uma luz amortecida escoava pela fenda das cortinas. Com sorte, ela estava na cama, a criada...

O que diria se a criada viesse à janela? Podia entregar-lhe o embrulho e voltar silenciosamente para o seu quarto. Talvez a criada de quarto não destruísse a reputação da sua senhora, contando que um homem a visitara durante a noite.

Antes que mudasse de ideias, pôs a mão no vidro da esquerda e empurrou. A janela abriu ligeiramente, sustida por veludo espesso.

Ouviu uma exclamação abafada e aquietou-se na varanda, deixando a neve acumular-se nos seus ombros e gelar-lhe os dedos.

O reposteiro afastou-se com um chocalhar de ferro e...

Ali estava ela.

Caramba, era linda. O lume que ardia na lareira banhava-a de uma luz dourada. Tinha o cabelo solto, caindo-lhe sobre um ombro. As suas sobrancelhas negras destacavam-se-lhe no rosto; felizmente, apesar de sombrios, os olhos não mostravam sinais de estar inchados pelas lágrimas.

Ele pigarreou.

— Sou eu.

— Não percebo como é que o teu discurso sobre o meu caráter te fez pensar que tinhas o direito de entrar no meu quarto.

Havia apenas um vestígio de rouquidão na sua voz. As entranhas de Jeremy apertaram-se. Se ele a tivesse reduzido às lágrimas, partiria de manhã e não voltaria a vê-la.

— Posso entrar? — Estendeu-lhe o embrulho coberto de neve. — Para entregar calças.

Os olhos dela baixaram e depois voltaram ao rosto dele.

— Não me parece. — Recuou.

— Errei — disse ele. — Tive ciúmes porque o Thaddeus te acariciou a face. — Ela franziu a testa. Aparentemente nem tinha reparado. — Lá em baixo — esclareceu ele.

— Ele tocou-me apenas ao de leve, e tu tomaste isso como um convite para me desprezares a mim e à minha vida? — Um dos cantos da boca de Jeremy levantou involuntariamente, porque ela era simplesmente deliciosa quando se esquecia de ser uma senhora. — Não — exclamou ela rispidamente. — Não te farei sentir melhor. Os amigos não se falam assim, e eu fui bastante estúpida ao pensar que éramos amigos. Não voltarei a cometer esse erro.

— Tu és minha amiga — afirmou ele.

— Posso ter sido uma amiga para ti, mas tu não o foste para mim.

Ele ficou calado.

Ela estendeu a mão para o embrulho.

— Estou a aprender — disse ele, ouvindo a sua própria rouquidão. — Não voltarei a fazê-lo. Nunca. Não tenho outros amigos como tu, e eu... reagi mal.

— Tu tens amigos. O meu irmão North é um deles. O Parth, que te trouxe para o castelo, se bem te lembras. O Thaddeus. A minha tia. E, acima de todos, o teu pai, que adoraria ser teu amigo e é digno do teu respeito.

— Eu estava a tentar convencer-me a casar contigo.

— Isto está a ficar cada vez melhor — resmungou ela. — Peço perdão, Lorde Jeremy, está demasiado frio para permanecer diante de uma janela aberta.

— Quero casar contigo.

Betsy ficou imóvel. O lume da lareira atrás dela projetava uma luz rósea na cara de Jeremy. Se lá em baixo, no corredor, ele agira como um juiz; agora parecia um rapazinho sinceramente arrependido.

— Queres casar comigo — disse ela lentamente. — Porquê?

A neve caíra-lhe para os ombros.

— Por amor, acho eu. Não sei bem como reconhecê-lo. Mas não posso casar contigo, Bess. Não posso.

— Tens uma mulher louca escondida no sótão? — O coração dela batia erraticamente.

— Não — respondeu ele, com algum atraso.

— Uma mulher sã?

— Não. — Sem querer, ela suspirou. — Eu é que sou o louco. Devia estar no sótão. É lá que vou acabar.

Ele encurvou os ombros.

Ela deu um passo atrás, depois outro.

— É melhor entrares.


Capítulo 15

De repente, o quarto encolheu para as dimensões de uma toca de rato, tudo por causa de um homem grande, a escorrer neve derretida, com as mãos estendidas para o lume.

— Porque não puseste um sobretudo e luvas? Ou pelo menos um chapéu?

— Não podia pedir o meu casaco, ou ficariam a pensar aonde é que eu ia. Tive mesmo de esperar que as pessoas parassem de subir aquelas malditas escadas. A cada 15 minutos, um idiota qualquer fazia novamente ranger os degraus.

Os seus ombros largos estavam rígidos, e não era por estar a tremer. Aparentemente, ele era demasiado másculo para tremer, apesar de ela estar gelada depois da breve conversa à janela.

Ela retirou do fundo da cama um cobertor que lhe entregou, com maus modos. Depois tirou o edredão e embrulhou-se nele. Sentou-se junto da lareira e pôs de fora um pé nu para fazer a cadeira baloiçar, antes de esconder as pernas debaixo da coberta.

E esperou.

Entretanto, ele olhava para o lume, sombrio como só ele, com a expressão severa e uma veia a palpitar-lhe na testa.

— Loucura — recordou ela. — A tua, em oposição à dos homens loucos da minha família, ou mesmo à da mulher louca que se apaixonou pelo Alaric, ou à da mãe da Diana, que te deu um tiro e vai provavelmente passar o resto da vida no sanatório.

Ele ergueu a cabeça e os cantos da sua boca relaxaram.

— Tentas dizer-me que sou apenas mais um entre uma multidão de loucos em Cheshire?

— Pode ser do pântano — sugeriu Betsy. — Contágio causado pela turfa.

— A minha foi apanhada nas colónias americanas.

— No campo de batalha, suponho — disse Betsy, enrolando os dedos dos pés. Pensou em informá-lo de que decidira não casar com nenhum deles, mas pensou melhor. Jeremy tinha de fazer aquele pedido de desculpas desconfortável. Porque haveria de lhe facilitar a vida?

— Brincadeiras à parte, o Parth encontrou-me em Bedlam depois do incidente de Vauxhall. — A voz dele ecoava estranhamente no quarto.

Betsy não conteve um gritinho.

— O que fazias tu num hospital psiquiátrico?

— Estava enfiado num colete de forças, pelo que sei. Drogado com láudano. Ao que dizem, incoerente e violento, embora não me lembre.

A respiração de Betsy ficou presa na garganta. Apesar do choque, percebeu que a pior coisa que podia fazer era ter pena dele. Ele fitava o lume como se as chamas fossem responsáveis pela sua fraqueza, pois era assim que descrevia essa experiência terrível.

— Mataste alguém? — perguntou, tentando conferir à voz um tom interessado.

— Não, que eu saiba.

Aquele não era o caminho certo. Ela tentou de novo.

— O que é que causou a crise?

— Os fogos de artifício. Soavam como canhões, e é só disso que me lembro.

— Isso faz sentido — disse Betsy. — O Dia das Fogueiras não é para ti. Terás de te limitar a uma fogueira pacífica no teu jardim.

Isso fê-lo rodar a cabeça, ainda que fosse só para fazer dela o alvo da sua expressão carrancuda, em vez dos inocentes troncos na lareira.

— Perdi a consciência, Bess. Caí como um tronco. Os criados do Parth levaram mais de um dia a conseguir levantar-me.

Ela assentiu com a cabeça. Por dentro estava horrorizada e preocupada com ele, mas estava acostumada a interpretar um papel.

— Como é que te acordaram? — A boca dele tremeu. — Vá lá — instou ela. — Agora que despachaste o anúncio dramático, vamos lá saber tudo.

— Salsichas — disse ele com um sorriso malicioso.

Sorria tão poucas vezes que o gesto sobressaltou Betsy como um golpe. Teve de se impedir de se lançar a ele como uma donzela que reencontra o seu príncipe numa peça de teatro medíocre.

— Salsichas?!

— Fritaram-nas e meteram-mas debaixo do nariz, e eu acordei.

Betsy não conseguiu deixar de rir com a expressão da cara dele.

— Podia ter sido pior.

— Podia ter sido melhor — contrapôs ele, balançando sobre os calcanhares e enfiando as mãos nos bolsos.

— É verdade. O whisky dá um ar másculo. Por outro lado, o sal volatile é dado às donzelas que desmaiam. Dizem que a minha tia-avó Genevieve estava tão aterrorizada na sua noite de núpcias que desmaiou e só acordou quando o indignado noivo lhe despejou um penico na cabeça. — Ao ver o riso nos olhos dele, acrescentou: — O meu tio-avô afirmou sempre que tinha sido um acidente.

— Importas-te que tire o casaco? Está frio e molhado. Juro que não é um primeiro passo para me despir no teu quarto.

— Podes tirar.

A sua camisa branca também estava encharcada e colava-se-lhe aos vales e reentrâncias do peito. Se eles se casassem, ela tinha o direito de se sentar todas as noites a vê-lo despir-se.

Só que não o faria, porque se fossem casados ela arrancar-lhe-ia a camisa pela cabeça, massajá-lo-ia junto ao calor da lareira e salpicar-lhe-ia o peito de beijos...

— Ajudava se tu não olhasses para mim com essa expressão — disse ele.

Betsy sentiu as bochechas ruborizarem.

— Qual expressão? — Seria horrível se toda a gente percebesse quando ela estava dominada pelo desejo. Tinha de aprender a disfarçá-lo.

Ele levantou o cobertor, enrolou-o em torno dos ombros e sentou-se na cadeira ao lado dela. Aparentemente, recusava-se a responder a perguntas parvas, porque esticou as pernas e contemplou as calças ensopadas.

Betsy observou apenas o tempo suficiente para registar as suas coxas musculosas e depois desviou o olhar.

— Eu vi isso — disse Jeremy.

— Agora que me contaste o teu segredo negro, devias voltar para o teu quarto. A não ser que haja mais para contar...

— Não é suficiente?

— Loucura, e essas coisas? Sou uma Wilde. Uma grande parte do país considera-nos loucos, e já tivemos muitos loucos em casa. Tu és uma versão mal-humorada, mas pelo menos não andas a escrever uma peça de teatro.

— Como sabes?

Betsy revirou os olhos.

— Nesse caso, boa sorte. A louca do Alaric fez imenso dinheiro com A Paixão de Wilde.

— Não preciso de dinheiro — disse Jeremy.

— Sentes necessidade de elaborar sobre a tua loucura? És sonâmbulo, como a Lady Macbeth?

— Não.

— Comes durante o sono? Tivemos um lacaio que comeu mais de metade de um bolo que estava reservado para a visita da rainha.

— Não.

O coração de Betsy doía por ele, mas estava determinada a não lhe mostrar piedade. Sentia instintivamente que ele a odiaria por isso. Era o género de homem que passara a vida a resolver problemas. Ela apostava que imitava o pai desde os 5 anos, mostrando-se tão competente quanto um menino dessa idade pode ser. Até dar por si naquele campo de batalha infernal.

— Não posso dizer muito mais do que isto — disse Jeremy. — Não apanhei piolhos em Bedlam, o que o Parth considerou afortunado. Parece que os aposentos não eram higiénicos, embora eu nem me lembre do hospital.

— A tua falta de memória sugere que te deram ópio. Se voltares a cair num estupor, ninguém deve incomodar-se com um hospital. Os teus homens podem amarrar-te à sombra de uma árvore e fornecer-te salsichas.

Conseguiu pô-lo com melhor disposição.

— Ainda bem que decidi não casar contigo, não é? — disse ele, pensativamente. — Amarrar-me a uma árvore como um cachorrinho desobediente?

— Devo recordar-te — retorquiu ela, altivamente — que o casamento comigo apenas se seguirá à minha decisão de aceitar a tua mão.

— Quando te contei acerca de Bedlam, estava a tentar poupar-te ao trabalho de tomares uma decisão.

— Oh, isso. — Ela fez um gesto desdenhoso. Estaria a exagerar? Não, achava que não. Quando Jeremy chegara a Lindow, alguns meses antes, estava macilento e pálido. Agora tinha olheiras, mas a sua pele era saudável, pois passava a maior parte do dia nos estábulos.

— Sim, isso.

— Não deves pensar que uma temporada em Bedlam te deixa fora do mercado matrimonial. Digo-o no espírito da amizade, repara, não como alguém que quer arrancar-te um pedido de casamento para a coleção.

Silêncio. E depois:

— Peço desculpa por ter sido tão bruto.

— Se assim o dizes.

— Fui terrível ao dizer aquilo.

— Não estavas errado — disse Betsy, como se lhe atirasse um osso.

— Gosto de ti como és, como és verdadeiramente. Não és muito doce, graças a Deus. Não, não olhes para mim assim. É uma coisa boa. As pessoas doces andam pela superfície da vida. Por exemplo, dizes-lhes que estiveste em Bedlam e cacarejam como galinhas.

— A quem é que contaste? — perguntou Betsy.

— A ti.

— Não contaste ao teu pai?

— Não.

— Não podes dizer que o Parth se riu quando te encontrou no hospício. Ele nunca se riria.

— Depois de eu acordar, atirou-me para uma carruagem e chantageou-me para vir para Lindow, para poder perseguir a mulher dele.

— Vês? Não te deixou sozinho, mas não te arreliou.

— A tua tia arrancou-me a verdade.

— A tia Knowe também não é de se rir.

— Mas de arreliar, sim. — Ele estendeu a mão.

Betsy fitou-o pensativamente.

Um homem como Jeremy nunca pedia ajuda. As pessoas tinham de se intrometer na sua vida, enfiar-lhe chá pela garganta e atirá-lo para dentro de carruagens. Chantageá-lo por amor.

E, contudo, ali estava ele, a estender-lhe a mão. Betsy retirou a mão do aconchego quente do edredão e estendeu-a para ele. A palma e os dedos dele eram calosos, do trabalho com os cavalos.

A única coisa que ela estava a fazer era a confortá-lo, como qualquer pessoa faria. Era bondosa, apesar do que ele dissera, e «bondosa» era quase o mesmo que «doce».

Depois de fitar o lume e analisar as suas palavras, ela sentiu uma consciência intensa e descobriu que ele a fitava.

— Tenho o nariz sujo? — perguntou ela.

— Dou-te um aviso: vou ser brutalmente honesto.

— Já tive o suficiente do teu género de honestidade para um dia — disse ela, retirando a mão. — Em vez disso, porque não voltas para a neve?

— Nunca desejei uma mulher como te desejo a ti. É como estar nos dentes do cão do inferno.

Betsy deu por si a sorrir.

— Isso é horrivelmente assustador, e uma metáfora dissimulada, também.

— Pareces muito satisfeita.

— Oh, e estou. Gosto de ganhar, e, caso não te lembres, a Lady Tallow esforçou-se por ter a tua atenção, se não mesmo o teu afeto.

— Estás tentada a casar comigo e tirar-me do mercado?

Betsy riu-se.

— Acabaste de dizer que recusas pedir-me em casamento. E, para ser franca, não és um prémio tão bom que me faça desviar do meu caminho. Estares refastelado na sala de bilhar, fingires que estás bêbedo e escorregares para debaixo de mesas só por tédio, dizeres verdades extremamente indelicadas devido a um ataque de ciúmes... Despejares chá nas pessoas na sala do pequeno-almoço. Ora aí está um homem com o qual quero passar toda a minha vida!

Ele riu-se.

— Não estás a incluir Bedlam na lista?

— Bedlam? Não. São as diferenças do dia a dia que tornam o casamento intolerável, pelo que tenho percebido. É improvável que voltes a perder o juízo; porém, se isso acontecer, interno-te naquele hospício onde a assassina da mãe da Diana vive.

— Para ela poder dar-me outro tiro e tornar-te uma viúva alegre?

Ela sorriu-lhe.

— Exatamente. Sabes, há mulheres que nasceram para serem viúvas. E eu não teria de me preocupar... — Interrompeu-se.

— Com o quê?

— Com a minha reputação — respondeu ela. — Espera-se que as viúvas sejam lascivas e tenham imensos homens. Ninguém as exclui da sociedade por causa disso. Criam escândalo após escândalo com toda a gente, desde um rei canibal a um pirata, e as pessoas inundam-nas de convites para jantar.

— Isso far-te-ia feliz? O rei pirata? Deixo o rei canibal de fora, porque um convite para jantar com ele talvez não fosse muito desejável.

Betsy riu-se e depois percebeu que ele arrastara a sua cadeira para ficar mesmo ao lado da dela, o que lhe permitiu segurar-lhe a mão, pondo-a em seguida no seu colo.

— Mas que raio! — exclamou ela, pondo-se de pé e dando meia-volta com as mãos nas ancas. — Admiti-te no meu quarto partindo do princípio de que não me devassarias.

Jeremy pôs-se de pé, com os olhos presos nos dela.

— Desculpa, Bess.

— Não me chames Bess! — ripostou ela. — Ninguém diz coisas cruéis a alguém que... que ame.

— Onde raio foste buscar essa ideia da felicidade marital? — perguntou ele. — As pessoas casadas dizem toda a espécie de coisas uma à outra. É a natureza do animal. O teu marido é a pessoa que pode ser honesta contigo e, ainda assim, ser amada.

— Tens uma ideia estranha acerca do casamento — disse Betsy, tentando, sem grande sucesso, adotar um tom de voz frio.

Os olhos dele esforçaram-se por ser arrogantes. Eram profundos e negros, e, mesmo sem compreender aquela expressão, ela não se cansava de a contemplar.

Ela não o conhecera antes de Jeremy ir para a guerra, mas provavelmente ele tinha sido mais cortês. Agora era rude, indomado. Parecia um homem capaz de entrar no quarto de uma mulher e acabar com ela no seu colo.

— Mais precisamente — disse Betsy, tentando confinar a imaginação. — Nós não somos casados, nem nunca seremos. Sai. Agora.

— Um beijo. Por favor.

— Não. — E depois: — Porque haveria de te beijar outra vez? Não foi nada que valesse a pena repetir.

— Para mim, foi.

Todo o seu corpo reagiu à expressão dele. E à sua franqueza. Mas ela não gostava do seu género de honestidade. Ou gostava?

Ela podia virar a cabeça para a janela, e ele sairia. Sabia disso com todo o seu ser. Mesmo que perdesse a cabeça e seguisse os seus impulsos mais imprudentes... acreditava que ele pararia assim que ela desejasse.

O pensamento que lhe ocorreu em seguida era daqueles que mudam uma vida. Se um prussiano de cabelos loiros chegasse a uma festa numa residência no campo em que o anfitrião fosse Jeremy... ela nunca o deixaria. Nunca.

Talvez fugisse se estivesse casada com Thaddeus, mas nunca com Jeremy.

Por isso ficou onde estava. Ele deu aquele último passo e pôs os braços em volta dela. Seria normal que estivesse frio e húmido, mas, em vez disso, o seu peito estava quente. Ela avançou até os seus seios ficarem encostados a ele.

Ele murmurou algo e apertou mais o abraço. O calor inundou todo o corpo de Betsy, expandindo-se a partir de todos os pontos que ele tocava: os braços dele nas suas costas, a sua bochecha no ombro dele, o seu pé direito encostado a uma bota. A face dele no seu cabelo.

O fogo ateou-se em lugares impróprios. Ela gostaria que ele deslizasse uma das suas mãos calosas até ao seu rabo e a aproximasse mais.

— Posso beijar-te? — A voz dele parecia irritável, o mesmo tom com que proferia comentários do canto da sala. Aqueles olhos que pareciam implacavelmente maléficos estavam quentes e cheios de desejo.

Por ela.

Betsy inclinou-se para a frente e colou os lábios aos dele, porque, visto que ia seguir as pisadas da mãe, mais valia ir até ao fim. Os lábios de ambos roçaram-se suavemente por um momento, e a língua dele acariciou-lhe o lábio inferior.

Todo aquele fogo lento explodiu em chamas vivas. O corpo dela vibrou até a parte de trás dos joelhos estarem quentes e fracas. Envolveu o pescoço dele com os braços e encostou-se até os seus mamilos achatarem de encontro ao peito dele. Finalmente, uma das mãos nas suas costas deslizou e agarrou-lhe o traseiro.

Ela tremeu e mordeu-lhe o lábio inferior, fazendo-o gemer. Ela queria mais.

Contudo, Jeremy não parecia partilhar da sua inclinação para se dirigir para a cama, e ela não tinha coragem de tomar a iniciativa. De facto, ele afastou-se e ela cambaleou de encontro a ele antes de se equilibrar.

Os olhos dele continham uma emoção que ultrapassava muito a experiência da luxúria. Carência, talvez. Necessidade dela.

— Não é boa ideia? — perguntou ela com um arquejo.

— Não neste momento. — Os olhos dele percorreram-lhe o peito e voltaram à cara. Betsy também olhou para baixo e descobriu que os seus mamilos eram dois altinhos no tecido macio da camisa de noite. Endireitou os ombros e devolveu-lhe o olhar. — Esta é a minha Bess — disse ele com voz rouca.

Ela atravessara toda a temporada social como se de um baile de máscaras prolongado se tratasse, um jogo no qual o prémio era uma aliança de casamento. Ali, a meio da noite, enfrentando um homem com a barba a crescer no queixo e sem casaco, não mais parecido com um cavalheiro do que ela com uma rainha...

Aquilo era real.

Ele era real.

— Por favor, senta-te — disse ela, apontando para a cadeira junto da lareira. De sobrolho franzido, ele sentou-se. — Vou sentar-me ao teu colo. É melhor não nos beijarmos de novo. Acho que me sobe à cabeça.

— Nada de tão depravado — prometeu ele.

Betsy sentou-se no colo dele. Jeremy abraçou-a e ela encostou a cabeça ao seu peito. Parecia o final de um livro, a parte do casamento que os escritores deixam à imaginação do leitor: afeto e doçura quotidianos, uma camada de desejo a que a página nunca alude.

— Quer dizer que és outra vez minha amiga, apesar de eu ter sido um canalha? — perguntou ele.

— Se tiveres outro ataque de mau génio, deves guardá-lo para ti.

Jeremy pousou o queixo na cabeça dela.

— Ele tocou-te.

Não havia um vestígio de desculpa na sua voz.

— O que farás se eu casar com ele?

— Mudo-me para Itália, creio. Ou para a Rússia, que ainda é mais longe.

Não parecia brincar, e os seus braços apertaram-na possessivamente. Betsy sentiu um impulso de tão pura alegria que não se deu ao trabalho de procurar uma resposta, apenas se aninhou mais nele.

— A temporada social é um jogo — disse ela mais tarde, sonolenta. — O meu pai diz que eu deixo os homens andarem atrás de mim como as moscas dos cavalos em volta da manjedoura.

— Eu não devia ter sido tão rude.

— Antes de eu debutar, toda a gente me via como uma versão da minha mãe. Agora não. Acham que as mulheres podem ser criadas para a castidade e a obediência.

— És uma Wilde, e um magnífico exemplo da linhagem.

Betsy refletiu sobre aquelas palavras e considerou que eram um elogio. Estava sempre a fechar os olhos porque o bater do coração dele de encontro à sua orelha era hipnotizante. Quase não ouvia o que ele disse em seguida.

— És a melhor dos Wildes — murmurou ele. — A mais leal e verdadeira, uma brilhante jogadora no bilhar e na vida.

Ele tinha mesmo dito aquilo?

Betsy acordou na manhã seguinte quando a criada abriu os reposteiros. Estava na cama, sozinha.

— Não voltamos para Lindow hoje — disse Winnie. — Vem aí mais neve. — Abriu a porta, e uma fila de criados de Lindow entrou, carregando baldes de água quente. Lady Knowe nunca permitiria que criados estranhos entrassem num quarto de estalagem quando alguém da família estivesse na cama. Os estranhos eram muito facilmente subornáveis.

Betsy ficou deitada a observar e a tentar pensar através de uma névoa de felicidade. Nesse momento, ela não se interessava em usar calças num leilão nem em jogar bilhar num clube masculino. Estava a contemplar uma ação muito mais escandalosa, do ponto de vista da alta sociedade: rejeitar um futuro duque em favor de um homem apoquentado pela guerra e com um título inferior.

Estava fora do banho e vestida quando Winnie descobriu o embrulho de Jeremy atrás de uma cadeira.

— O que vem a ser isto? — perguntou a criada.

— Oh, devem ser as minhas calças — respondeu Betsy com ligeireza. — Há um leilão em Wilmslow esta tarde, e tenciono ir vestida de rapaz.

— Lady Boadicea! — exclamou Winnie, usando o nome com-pleto de Betsy como indicação da sua censura. — Depois de todo o trabalho que tivemos para a transformar numa verdadeira duquesa! Com o futuro duque e a mãe na estalagem... Não deve, não deve mesmo!

— A duquesa também planeia usar roupas de homem, se conseguir arranjá-las a tempo. A tia-avó dela tentou escapar de um casamento, fugindo de calças. Pensa nisto como um baile de máscaras.

— Que peculiar — observou Winnie. — Não tenho qualquer desejo de usar roupas de homem. — Retirou um par de calças de veludo verde do embrulho. — Suponho que se Sua Graça... Não consigo imaginá-la vestida de homem!

— A minha tia Knowe também vai usar calças.

— Eu é que não vestia a porcaria de umas calças velhas! — Winnie sacudiu o casaco a condizer. — Acho que lhe serve, mas este fato está terrivelmente fora de moda.

— Havia um retrato em que o meu irmão Alaric o estava a usar, num dos quartos da ala leste. Acho que tinha uns 12 anos. Ele ameaçou rasgá-lo em tiras e dá-lo a comer às cabras, por isso teve de ser guardado num quarto de hóspedes.

— Que selvagem era! — suspirou Winnie. Como o resto da nação, ela sucumbira aos livros que ilustravam as aventuras de Alaric. Ninguém chorara mais compulsivamente do que ela quando A Paixão de Wilde fora representada no castelo e a suposta noiva de Alaric fora comida por canibais. — Acho que com bastante vapor conseguirei deixá-las com um ar respeitável.

Enfiou-as debaixo do braço e partiu para a cave da estalagem.

Pouco depois, a tia Knowe espreitou pela porta.

— Pequeno-almoço, Betsy.

— Não posso antes ficar aqui a ler? — Betsy estava sentada com os pés muito perto de um tronco a queimar, lendo uma peça bastante indecente que encontrara na cornija da lareira.

— Mas, minha querida Betsy, estás com um vestido cor-de-rosa, que é o melhor para deslumbrar a Emily. Porquê desperdiçar a oportunidade?

Betsy baixou os olhos, desconcertada. Não reparara que Winnie a tinha vestido para corresponder ao gosto da duquesa.

— Não me sinto deslumbrante. — Aproximou um pouco mais os pés do lume. — Apetece-me ficar aqui até à hora de partir para o leilão.

— A Emily foi à igreja, mas não demora. Visto que ela não é uma praticante entusiasta, acho que queria rezar para que nós as três sejamos perdoadas pelos nossos pecados de calças. Devias comparecer ao pequeno-almoço e agradecer-lhe. Ela está tão feliz por tu seres perfeitamente comportada e, ao mesmo tempo, louca!

Betsy suspirou.

— Fizeste-a feliz como há muitos anos não era. Do ponto de vista da Emily, a cortina está a subir, revelando uma nova duquesa que promete desempenhar o papel com entusiasmo. Está ansiosa por te apoiar.

— Ela sabe que a minha pretensa perfeição é um desempenho?

A tia Knowe franziu o sobrolho.

— Toda a gente sabe. A maior parte da alta sociedade está curiosa, à espera de que tu arranques as grilhetas da decência e te ergas das cinzas, qual Fénix. Essa é a metade feminina, já que os homens são demasiado parvos para perceber que não és uma donzela recatada.

— Isso quer dizer que as senhoras esperam que um prussiano se atravesse no meu caminho — comentou Betsy. A previsão da sua desgraça ainda a magoava, mas perdera o poder de quando ela tinha 14 anos.

— És uma Wilde, minha querida. A tua mãe não o era. Esses são os únicos dois factos que importam: as minhas amigas estão intrigadas pelo facto de um Wilde parecer ser um modelo de decência.

— Está enganada — disse Betsy com convicção. — Esperam ver-me fazer figura de tola por causa de um homem de cabelos loiros.

Uma tremenda carranca franziu a testa da tia Knowe.

— Estás a brincar, Bodicea?

— Não, tia Knowe, garanto-lhe. Aprendi essa lição no primeiro dia em que fui para a escola.

A tia fechou a porta e sentou-se na cadeira onde Jeremy estivera sentado na noite anterior. Não que o facto fosse relevante.

— Minha querida — disse. — Tu estás aluada. Maluca. Louca como uma lebre de março. Fecha o livro. — Betsy obedeceu, porque estava habituada a obedecer à tia. — Tenho-me perguntado porque é que idealizaste um modelo tão medieval do comportamento de uma senhora em sociedade — prosseguiu a tia. — Percebo agora que fui uma tia muito má por ter achado que merecias privacidade. Considerei a tua perfeição uma consequência do nervosismo. Parecia improvável, mas nunca se sabe. Só que não era isso, pois não? — Betsy abanou a cabeça. — Sou uma tola — murmurou a tia.

— A história da minha mãe e do prussiano era um dragão que tinha de ser chacinado, para que eu entrasse na sociedade sem haver murmúrios nas minhas costas.

— Tu és uma Wilde, Betsy! Não tens nenhuma necessidade de fazer vénias diante de matronas tolas que coscuvilham nos cantos dos bailes.

— Porque as minhas sobrancelhas me marcam como uma Wilde?

— Entre outras coisas — disse a tia Knowe. — Não pode passar pela cabeça de ninguém que sejas ilegítima.

— A minha legitimidade não altera o facto de a minha mãe ter abandonado os filhos e fugido com um homem.

— A fuga da Yvette não implica que a filha dela deva colecionar pedidos de casamento como um menino coleciona borboletas. Espetando-as num alfinete e virando a página.

— A escola foi difícil...

— Pensas que eu não sei? — As faces da tia Knowe estavam tão vermelhas como o seu cabelo. — Soube dos mexericos desagradáveis; a diretora avisou-nos. Mas nunca pensei que prestasses atenção a essas tolices. És filha de um duque.

— Sim, mas... — começou Betsy.

— Olha só para a Joan — atalhou a tia, falando por cima dela. — Está ansiosa por debutar, e ela tem o cabelo do prussiano! Como podes pensar que mexericos invejosos possam definir um Wilde? Que tolice!

— Não é uma tolice — retorquiu Betsy, procurando defender-se. — Os cavalos herdam caraterísticas. Porque não as pessoas?

— Caraterísticas! — exclamou a tia Knowe, sacudindo as mãos no ar. — Tolices! Tolices a dobrar! A tua mãe apaixonou-se. Alguma vez perguntaste ao teu pai como era o casamento deles?

— Não é da minha conta.

— É, se te comportares como uma palerma por causa dele — retorquiu a tia. — O teu pai acreditou que a Yvette seria uma boa mãe para os seus filhos órfãos, mas estava enganado.

Betsy assentiu com a cabeça.

— As matronas acreditam que eu vou ser dominada pela luxúria e convidar um homem para a minha cama, como a minha mãe.

— A Yvette não fez nada de especial. Pensa no teu irmão Alaric a ter de fugir da Rússia para escapar a uma ordem de visita ao quarto real. Comporta-te como uma imperatriz, não como um rato, Betsy. No entanto — acrescentou —, se convidares um homem para o teu quarto, deves estar preparada para casar com ele.

— Não convidei ninguém para o meu quarto — disse Betsy com sinceridade.

— Porque não tens um noivo, e, enquanto não tiveres escolhido um, nada de convites. O casamento não é como um estábulo, onde podes tentar montar dois ou três garanhões antes de decidir qual comprar, por isso nem sonhes em comparar aqueles dois homens em noites alternadas.

— A Imperatriz Catarina não tem de se movimentar num salão de baile em Londres — disse Betsy.

A tia sorriu.

— Vou citar a Viola: sê apenas tu própria, Betsy. Não tens com que te preocupar. — Levantou-se. — Agora vamos. Estou cheia de fome. — Betsy pôs-se de pé, pensando afincadamente. — Mal posso esperar que tu tenhas o teu próprio quarto de crianças — disse a tia com prazer. — Farei visitas frequentes, assim que o destino te der os filhos que mereces.

— A julgar pelas histórias que a Duquesa de Eversley conta do Thaddeus, os seus descendentes ducais são muito mais bem-educados do que os que a tia criou — comentou Betsy enquanto desciam a escada rangente de madeira.

— A calma do Thaddeus pode equilibrar o sangue dos Wildes — reconheceu a tia. — Ou podes escolher o Jeremy, e acabar com diabinhos sem maneiras e cabelos de esfregona. A trepar para cima da mobília. A fazer chichi em cima dos móveis.

— Isso parece excessivamente crítico — disse Betsy.

— Com base em experiências árduas — retorquiu a tia Knowe. — Falando no diabo...

Jeremy apareceu à porta da sala do pequeno-almoço. Fez uma vénia e deu-lhes os bons-dias.

— O estalajadeiro tem uma pergunta acerca do salmão entregue a partir de Lindow, Lady Knowe.

Ela revirou os olhos.

— Devia ter trazido o nosso chef, mas ele detesta cozinhas estranhas. — Dito isto, marchou para as traseiras da estalagem.

Primeiro a mão de Jeremy fechou-se em torno do pulso de Betsy; a seguir ela foi envolvida por linho engomado e um beijo duro, de boca aberta.

Era como ser atingida por uma rajada de vento: ela derreteu-se de encontro a ele, agarrando-lhe a lapela com uma mão para o aproximar mais.

Um passo arrastado no corredor que dava para as cozinhas separou-os como a duas conchas de uma amêijoa. O coração de Betsy batia-lhe com força no peito. Ao fundo do corredor, à sua direita, Carper entrava na cozinha com um tabuleiro de chá.

— Caramba! — exclamou Jeremy baixinho.

Betsy ergueu um dedo trémulo para os lábios e respirou fundo.

— Essa é a tua saudação matinal?

— Não a ofereço a qualquer um — respondeu Jeremy.

O chocalhar na cozinha sugeria que o lacaio voltaria a surgir a qualquer momento.

— Estava à espera de arenque ou, pelo menos, de uma chávena de chá forte, e então apareceste tu. És muito beijável.

— Mais apelativa do que um arenque?

— Infinitamente. Fascinante, na verdade, como o peixe parece nunca ser. — Ela respirou fundo e olhou-o nos olhos. — Não uso a palavra com ligeireza — acrescentou ele.

Carper reapareceu e começou a percorrer o corredor transportando um tabuleiro sobre o ombro. Betsy e Jeremy permaneceram um de cada lado do corredor. Murmurando desculpas, Carper passou pelo meio deles e entrou na sala, com os olhos resolutamente fixos no ar.

— Cheira-me a salsichas — murmurou Jeremy.

— E a chá Pekoe — acrescentou Betsy. — A tia Knowe deve tê-lo mandado vir do castelo.

Nenhum deles se mexeu até Carper voltar e atravessar de novo o corredor. A porta da cozinha ainda não se tinha fechado e Betsy já caía nos braços de Jeremy. As suas bocas uniram-se como se há 20 anos se beijassem todas as manhãs.

Ela absorvia febrilmente todas as sensações. Ele cheirava a maçãs frescas, mais do que a cavalos e couro. Os ombros dele contraíram sob os seus dedos, e o desejo cresceu nela como uma tempestade. Perdeu o fio aos pensamentos, mas reagiu à carícia de uma mão nas suas costas, e a sua pele, antes uma mera cobertura, tornou-se algo sensível e ardente.

Outro som no corredor e Jeremy afastou-a, ajeitou o pequeno folho do seu corpete, ajustou a renda no seu pulso esquerdo e sorriu.

— Estás bem assim — disse ele. — És linda assim. — Ela ergueu uma sobrancelha. — Ainda mais bonita, com uma sobrancelha Wilde arqueada — murmurou ele. — Hora das salsichas. Não quero que a tua tia nos apanhe no corredor.

Os seus olhos tinham aquele calor que nunca o vira dirigir a mais ninguém. Normalmente ele observava o mundo com uma expressão sardónica.

Betsy entrou na sala de jantar sentindo-se nas nuvens. Jeremy pôs-lhe arenque no prato. Ela detestava peixe de manhã, mas comeu um bocadinho. Ele serviu-lhe chá e ela assentiu com a cabeça quando ele perguntou se queria leite, apesar de nunca beber leite, especialmente com chá Pekoe.

Conversaram e não se beijaram, apesar de os olhos dele estarem sempre presos aos lábios dela e de ela não parar de se remexer na cadeira em pequenos movimentos frustrados, porque o seu corpo parecia ter corda.

Após um momento, a tia Knowe entrou e abrandou o passo ao ver os dois sentados sozinhos, lançando-se depois num discurso sobre a constrangedora ignorância do estalajadeiro acerca de salmão fumado.

Betsy sentiu-se intensamente consciente do galope do seu coração. Baixou os olhos para o prato, pensando em todos os momentos e horas em que o coração batia sem que se desse por isso, e depois, após alguns beijos, se tornava um cavalo indomado, impossível de ignorar.

A tia Knowe abrandou no seu discurso acerca dos cuidados e confeção do salmão fumado, desperdiçado em duas pessoas que não diziam uma palavra em resposta.

— O estalajadeiro disse-me que o leilão se realizará hoje, com ou sem neve.

— A que horas? — perguntou Jeremy.

— Começa daqui a duas horas — respondeu a tia Knowe. — Betsy, entregaram-te o teu fato?

— Sim, entregaram — respondeu Betsy, sem se atrever a olhar para Jeremy.

— Mandei vir um fato do meu irmão — disse a tia. — Creio que me servirá perfeitamente. Felizmente, nenhum de nós engordou com a idade.

— Haverá três senhoras a assistir ao leilão vestidas de homem? — perguntou Jeremy.

— Assim será — confirmou a tia Knowe, terminando uma torrada com manteiga. — Não tenho medo por mim. Sou estranhamente parecida com o meu irmão e posso fazer o papel do duque sem problemas. Talvez até me apresente como sendo ele. Não tenho recebido todo o respeito que mereço ao longo da minha vida. Esta é a oportunidade de compensar o tempo perdido.

— Sinto o mesmo! — exclamou Betsy. — Tenciono compensar o tempo perdido a usar um espartilho.

Jeremy conteve uma gargalhada. A tia Knowe deu-lhe uma palmadinha na mão.

— Não brinque, meu querido. Até ter experimentado ossos de baleia, deve refrear a língua. Isto também é para ti, Betsy, quando entrarmos na leiloeira. A tua voz é demasiado aguda para um rapaz. Podes licitar acenando com o catálogo.

— Claro — disse Betsy, com a excitação a borbulhar-lhe no estômago.

— A voz da Emily ainda é mais aguda do que a tua — continuou a tia Knowe. — Além disso, passaste a temporada inteira a praticar uma tranquilidade de donzela, mas ela casou assim que saiu da escola, e manter-se em silêncio será uma tortura.

— Uma tranquilidade de donzela — repetiu Jeremy com os olhos a brilharem de riso. — Acho que eu devia ter passado mais tempo no salão de baile esta temporada. Não te importaste com essa caraterística na sala de bilhar.

— Tu fazias silêncio suficiente por nós os dois — retorquiu Betsy. — Sentado num canto, a ruminar sobre o teu whisky, fingindo estar embriagado.

— É melhor do que fingir ser uma donzela, não? — perguntou, erguendo uma sobrancelha demoníaca.

— Calem-se, vocês os dois! — ordenou a tia Knowe. — Voltando ao meu assunto, Betsy. Deves manter a boca fechada, ou arriscas-te a ser descoberta.

— Haverá consequências graves se formos descobertas? — perguntou ela.

A tia estava ocupada a barrar com manteiga a sua terceira torrada.

— Eu e a Emily estaremos contigo. Estando todas disfarçadas, o evento deixa de ser um escândalo e transforma-se numa brincadeira.

— Nesse caso, tu devias usar um vestido — disse Betsy a Jeremy. — Talvez um dos seus lhe sirva, tia.

Dois olhares consternados receberam esta ideia.

— Nem pensar! — gritou a tia Knowe. — O peito dele tem o dobro da largura do meu. Ia arruinar-me o corpete!

Jeremy parecia emudecido de horror.

— Acho que o Jeremy daria uma senhora deliciosa — disse Betsy com um risinho. — É verdade que o seu peito é um pouco peludo...

— Eu nem quero saber como tens conhecimento desse facto! — vociferou a tia Knowe.

— Ele mudou de camisa nos estábulos — esclareceu Betsy, ignorando a reação intrigada de Jeremy ao seu comentário.

— Acho que a nossa escapadinha resultará, provavelmente, em mais gravuras — disse a tia. — Perdoe-me a presunção, Jeremy, mas tenho a forte impressão de que o Sr. Bisset-Caron vai jantar à conta desta história durante semanas.

Os olhos de Jeremy estremeceram.

— Ele não fará nada disso.

A duquesa entrou na sala, as faces vermelhas do frio.

— Estivemos em São Bartolomeu — anunciou Sua Graça. — O açougueiro e o padeiro estão abertos, apesar da neve, e o leilão é daqui a duas horas!

Thaddeus seguiu-a para a sala, de sobrolho franzido.

— Não há qualquer sinal de um lacaio — disse ele, rispidamente. — A não ser que sobrecarregasse a criada da minha mãe, não tinha ninguém para recolher o meu casaco.

Tirou o sobretudo coberto de neve e pendurou-o numa cadeira, pôs o chapéu e as luvas num aparador e encostou a bengala à parede.

Aparentemente, não gostava de comer perto do seu vestuário de exterior, e estava visivelmente chateado. Embora fosse justo realçar que ele devia ter-se levantado às 6 da manhã para acompanhar a mãe à igreja.

Com isso em mente, Betsy concedeu-lhe um sorriso caloroso e passou-lhe um prato de ovos escalfados.

Depois de os ovos, as torradas, os arenques e as salsichas terem sido comidos, a duquesa soltou um gritinho de excitação.

— Meu Deus, esqueci-me completamente! Trouxemos o catálogo do leilão. — Virou-se para Thaddeus. — Onde está?

Ele levantou-se e tirou um molho de papéis enrolados do bolso do sobretudo.

A duquesa alisou-os sobre a mesa, pondo uma chávena sobre uma ponta e um açucareiro sobre a outra.

— Apresentamos um extenso e valioso conjunto de desenhos de todas as escolas, e vários especímenes das obras mais valiosas e raras do mestre da miniatura, Samuel Finney. Vou licitar uma miniatura — anunciou.

— Fomos todos pintados por Finney há alguns anos — revelou a tia Knowe casualmente. — Pergunto-me o que terá acontecido a esses trabalhos. É tão difícil manter o registo das coisas pequeninas, não é? De facto, fui pintada por ele várias vezes. Gosto de miniaturas.

— Se a sua imagem estiver a ser leiloada, não podemos permitir que vá para casa de um estranho — afirmou Betsy.

— Pensei que as miniaturas eram sobretudo trocadas entre amantes — observou Sua Graça, piscando o olho à sua velha amiga.

A tia Knowe abanou o garfo para a duquesa.

— Disparates! Sou um exemplo de decoro, como todos bem sabem.

Quando o chá arrefeceu, o estalajadeiro apareceu com um bule novo e uma mensagem. O marquês nunca comia antes do meio-dia, e o Sr. Bisset-Caron passaria o dia na cama.

— Isso facilitará a nossa escapadinha, embora saiba que o Bisset-Caron vai ficar a saber dela pelo seu criado — declarou a tia Knowe.

Thaddeus e Jeremy trocaram um olhar que sugeria que Grégoire arriscava a cabeça se as denunciasse.

Na opinião de Betsy, Jeremy parecia um homem pronto a apoiá-la numa escapadinha vestida de rapaz, um homem com um fardo na alma e demasiadas rugas nos cantos dos olhos.

Era como se fosse dela.


Capítulo 16

As calças de Betsy estavam demasiado justas no traseiro, e as meias faziam-lhe comichão. A camisa chegava-lhe aos joelhos e era difícil enfiá-la nas calças.

— Esperemos que ninguém preste muita atenção — disse a criada, olhando-a de cima a baixo.

Betsy virou-se para o espelho. Tinha o cabelo entrançado, preparado para receber a pequena peruca. As meias de lã tornavam-lhe as pernas mais grossas, como as de um rapaz. Espreitou por cima do ombro.

— Não tinha reparado que o meu rabo era tão redondo. E pensava que tinha os seios pequenos. — A camisa estava dentro das calças, mas os botões do colete não fechavam bem em cima.

— Os seios da menina não são pequenos — declarou Winnie. — Apertei a faixa de musselina o melhor que consegui. — Depois de Betsy vestir o casaco de veludo, Winnie acrescentou: — O seu perfil não é masculino.

Betsy virou-se de lado, observando as suas curvas no peito e no traseiro.

— Tenho uma figura muito melhor do que julgava — comentou, pensativa, passando as mãos pelo peito.

— O problema é que nenhum rapaz tem essa figura — disse Winnie.

— Usarei um sobretudo — retorquiu Betsy. — Pelo menos, tapa o traseiro.

— Tenho de ser eu a ir buscá-lo — disse Winnie. — Não pode sair para o corredor assim vestida, sobretudo tendo em conta a maneira como o Lorde Greywick e o Lorde Jeremy olham para si.

— E que maneira é essa?

— Como se a menina fosse um osso pelo qual eles lutam.

Betsy franziu o nariz e foi até à janela. Ainda havia neve acumulada no cimo do muro de pedra, mas o pátio da estalagem estava quase limpo, e viu carruagens a rolarem lentamente na estrada. Um pisco saltitava pelo muro, deixando marcas semelhantes a desenhos de uma civilização antiga.

Três lacaios limpavam o resto da neve no pátio. O da direita, de costas para ela, tinha cabelos negros, atados num rabo de cavalo. Brilhava sob a luz fria do Sol. Os seus ombros subiam e desciam, varrendo grandes quantidades de neve para uma pá e atirando-a para uma pilha.

— Com qual dos dois achas que devo casar? — perguntou a Winnie.

— Com o visconde, claro — respondeu Winnie nas costas dela. — Um dia será duque. Além disso, o Lorde Jeremy parece um demónio quando se zanga. Parece incrível — acrescentou —, mas o criado fala dele como se ele caminhasse sobre a água.

Betsy dava muito crédito ao que os criados pensavam dos seus amos. Dois dos criados foram-se embora, como se o terceiro os tivesse dispensado.

Este endireitou-se e limpou a testa com as costas da mão. A sua respiração soltou um bafo branco quando ele despiu o sobretudo e o atirou para um poste. Depois recomeçou a empurrar a neve. Ela conhecia aqueles ombros, mesmo de costas.

— Os criados da casa adoram o Lorde Jeremy — disse Winnie. — Note que o mesmo se pode dizer em relação ao visconde. Não ouvi uma única palavra má acerca dele, enquanto o Lorde Jeremy bebe até se entorpecer e se deixar escorregar para o chão. Não, não há qualquer dúvida quanto à melhor escolha para marido.

— Ele nunca está verdadeiramente embriagado — afirmou Betsy.

O pisco estava a arrancar um pauzinho preso na neve. Inclinava a cabecinha e puxava, as pequenas patas pisando um espaço plano na neve.

O varredor trabalhava tão arduamente que Betsy se admirou por a sua camisa de linho não se rasgar entre os ombros. Quando ele atirou a neve para o monte, ela viu o seu perfil.

Nariz. Queixo. Ombros.

Jeremy.

Winnie soltou um som exasperado.

— Isso é o que a Lady Knowe diz, mas as provas estão contra, não é verdade? O Lorde Jeremy bebe uma garrafa inteira e depois estatela-se no chão. E há aquela situação desagradável das colónias. — Betsy continuava a observá-lo. — Para onde está a olhar? — Winnie juntou-se a ela à janela. — Belas costas. Percebo porque é que está a comer o tipo com os olhos.

— Ele não é nenhum «tipo» — disse Betsy.

Estaria a «comê-lo com os olhos»? Sim, estava. Há um mês atrás, não se teria permitido fazer algo tão impróprio.

Winnie aproximou-se mais da janela.

— É o Lorde Jeremy! — Apreciaram em silêncio os movimentos ágeis com que Jeremy atirava pazadas de neve para um monte que já lhe chegava ao ombro. — Pelo menos não padece dos efeitos nefastos da embriaguez — admitiu Winnie.

Jeremy atacou a última porção de neve como se...

Bem, como se cada floco fosse um inimigo.

— Aconteceu-lhe alguma coisa nas colónias — comentou Winnie. — Algo horrível. Há rumores...

— Não deves dar-lhes ouvidos — disse Betsy rispidamente.

— O que quero dizer é que um homem com escuridão na alma não é fácil de domar. Os maridos precisam de ser domados, toda a gente sabe. Dá para perceber que o visconde nunca exibiria uma amante diante da menina.

— Nem o Jeremy!

Winnie riu desdenhosamente.

— Já ouvi histórias que a menina não acreditaria...

— Acerca dele?

Lá em baixo, Jeremy tinha-se endireitado, limpando a testa com o antebraço. Betsy ficou com pele de galinha.

O que diriam as colegas da escola se soubessem o que ela estava a pensar? Teriam alguma vez observado um homem a realizar um trabalho honesto perguntando-se se o sabor do seu suor era amargo ou doce?

Considerá-la-iam lasciva, e com razão.

Ele deu um puxão à fita de couro que lhe prendia o cabelo e soltou-o.

— Valha-me Deus, mas é um homem bonito — admitiu Winnie com um suspiro. — Os ombros são muito mais largos do que parecem com um casaco, não são? Ou talvez as ancas sejam mais estreitas.

Betsy reprimiu um comentário. Ele não era dela. Qualquer mulher podia admirá-lo. A neve emanava uma luz brilhante, realçando as feições esculpidas de Jeremy. Na escuridão da sala de bilhar, pareciam recortadas em linhas duras, mas ao sol claro da manhã o seu perfil parecia desenhado por um velho mestre.

— Pare de olhar embasbacada para ele — advertiu-a Winnie, virando as costas. — Não ouviu o que eu disse?

Betsy permaneceu colada à janela, irritantemente consciente de que a sua respiração era rápida e superficial, e que estava a enrolar os dedos dos pés. A camisa de Jeremy estava húmida de suor, colando-se-lhe aos braços e ao peito. Claro que ele não ia despi-la, como fizera no estábulo. Estava demasiado frio.

— Sim — disse ela distraidamente.

Ele agitou uma última vez o cabelo e espreguiçou-se. A camisa soltou-se-lhe das calças, e ela teve um vislumbre do seu estômago musculoso e da seta de pelos que desaparecia no interior do cós das calças.

Ficou com a respiração presa na garganta.

Sem consciência de estar a ser observado, ele encaminhou-se para a estalagem e desapareceu da vista dela.


Capítulo 17

Jeremy descobrira, para sua surpresa, que o exercício vigoroso matinal se tornara uma necessidade. Conseguira dormir algumas horas e acordara ao romper da manhã. Após fitar o teto em vão durante um longo momento, saiu para a rua e atacou a neve.

O trabalho físico arrancava-lhe a mente do campo de batalha e trazia-a para o presente. Ele não estava nas colónias. Estava numa pequena estalagem apinhada de pessoas excêntricas e barulhentas de quem começava a gostar de uma forma invulgar. Em particular de uma delas.

Depois de semicerrar os olhos perante pilhas de neve brilhantes, encontrou o corredor que conduzia à casa a partir do pátio escuro e bafiento. No entanto, a figura alta de Lady Knowe, que o aguardava, era inconfundível.

— A Betsy tem andado a refrear-se nestes últimos anos — disse ela, sem qualquer preâmbulo. Ele examinou-lhe a expressão. — Acredite ou não, ela era a mais selvagem das minhas crianças.

— Acredito — disse Jeremy.

— A sério? — perguntou ela.

Como podia responder?

— Calculo que aprove o desejo da Bess, perdão, da Betsy, de se vestir de homem, visto que a senhora vai fazer o mesmo.

— Está a criticar-nos? — perguntou Lady Knowe. — Nunca fica bem a um homem ser crítico. A vida é demasiado fácil para vocês, por isso devem refrear a tendência de censurar os outros.

A vida era demasiado fácil? Jeremy cerrou os maxilares, mas assentiu com a cabeça.

Os olhos de Lady Knowe adoçaram.

— Não em todos os sentidos, meu querido — disse ela com mais gentileza. — Mas, acredite, quando se trata das relações entre homens e mulheres, são os homens que têm as cartas todas. A Betsy está finalmente a permitir-se sair de uma caixa que ela própria criou.

— Percebo. — E era verdade.

— A Emily também. Tem sido uma excelente duquesa e uma excelente mãe, e vai finalmente fazer uma coisa que lhe apetece. — Jeremy assentiu com a cabeça. — O senhor e o seu pai devem vigiar a Betsy, e o Thaddeus fará o mesmo com a mãe.

Sua Graça emergiu da porta atrás de Lady Knowe, de lábios tensos.

— Eu e o Thaddeus chegámos à conclusão de que era melhor ele ficar na estalagem em vez de nos acompanhar ao leilão. — Lady Knowe murmurou qualquer coisa. — Eu vou — prosseguiu a duquesa, levantando a voz para ser ouvida na sala atrás dela. — Assistirei ao leilão, com ou sem ele, e, francamente, é melhor sem. Nem acredito que um filho meu seja uma moralista, arrogante e pudica...

— Nós compreendemos — atalhou Lady Knowe.

— ... bolha de ar! — terminou a duquesa triunfalmente.

Thaddeus surgiu sob a ombreira da porta com uma expressão imperturbável.

— Como decerto perceberam, eu e Sua Graça não estamos de acordo.

Lady Knowe abanou a cabeça.

— Não é o momento certo para se armar em duque altivo, Thaddeus.

— Apenas exprimi preocupação — disse ele.

— Eu terei todo o gosto em acompanhá-la, Vossa Graça — ofereceu-se Jeremy.

— Não, o Jeremy vai acompanhar a Betsy — disse Lady Knowe. — Caso o pior aconteça, quero que ela esteja com alguém talentoso com os punhos, o que eu, obviamente, não sou. O seu pai pode acompanhar a duquesa.

Thaddeus semicerrou os olhos.

— A sua preocupação faz aumentar a minha, Lady Knowe.

— Mas não tem qualquer razão para isso — desdenhou ela. — No caso improvável de um frequentador do leilão ter a temeridade de questionar o traje da Betsy, exigirei que seja posto fora do estabelecimento. — Lady Knowe olhou para Jeremy. — Compreendeu?

— Perfeitamente.

A simples ideia de alguém olhar para o traseiro de Betsy — alguém que não fosse ele — punha-lhe o sangue a ferver.

Thaddeus e a mãe tinham recomeçado a discutir.

— Vá tomar um banho — disse Lady Knowe para Jeremy. — Está suado que nem um porco, e a Betsy não tardará a estar lá em baixo, vestida de calças.

Jeremy subiu as escadas. Quando passava pelo quarto de Betsy, a porta abriu-se e uma mão esguia surgiu, enrolou-se em volta do seu pulso e puxou-o.

— Preciso de ti — sussurrou Betsy, puxando de novo.

Ele entrou, porque, apesar de ela não o saber, ele iria sempre que ela precisasse.

No interior do quarto, os seus olhos procuraram imediatamente o rosto de Betsy. Parecia tão magnífica como sempre: uma cabeleira de homem ficava-lhe bem. Geralmente ela usava umas criações altíssimas ou arranjava o próprio cabelo em montes empoados.

Uma pequena cabeleira branca concentrava a atenção no seu rosto, especialmente nas sobrancelhas negras e arqueadas. Era inegavelmente uma Wilde. Era diabolicamente bonita.

Mas, afinal, os homens Wilde eram bonitos. Era uma das caraterísticas deles que irritava Jeremy. North e Parth nem sequer tinham tido borbulhas na idade em que qualquer rapaz normal estava coberto delas.

— Tiveste borbulhas quando eras mais nova? — perguntou ele.

— O quê?! Jeremy, presta atenção! — Ele estava a prestar atenção. Cada pedacinho do seu corpo ansiava por olhá-la abaixo do queixo, mas ele era um cavalheiro. — Borbulhas?! — exclamou ela. — O que importa isso? Preciso de ajuda!

— Posso ver? — perguntou ele, olhando para a sua zona mais baixa.

— Claro que podes ver! — respondeu Betsy, levantando mais a voz. — Ninguém vai acreditar que sou um rapaz.

Os olhos dele desceram de uma gravata com um nó decente para o peito dela.

— Como raio te achataste dessa maneira? — perguntou ele, bastante estupefacto.

— Amarrei os seios — respondeu ela, impaciente. — Além disso, um espartilho... Oh, esquece! Este é um tema de conversa impróprio.

— A maior parte dos nossos temas de conversa são impróprios — notou Jeremy. — Costumas pôr chumaços no espartilho? Não que isso me interesse minimamente.

— Não precisas de partilhar a tua opinião acerca dos meus seios — ripostou ela.

— Os teus seios... — começou ele, mas interrompeu-se. Um homem melhor do que ele não a teria observado do canto da sala de bilhar até saber de cor os seus seios e quase sentir nas mãos a sua maciez. — Gosto dos teus seios — disse num tom monocórdico.

Ela vestia um casaco de veludo abotoado até à gravata. Saboreando o momento, ele olhou mais abaixo.

— Então? — perguntou ela, ao vê-lo em silêncio.

— As mulheres deviam andar sempre de calças — disse Jeremy, apercebendo-se, sem qualquer embaraço, da rouquidão na sua voz.

— Não devias olhar assim para mim — retorquiu Betsy, soando, no entanto, deliciada.

— Assim, como? — Ele não conseguia tirar os olhos das suas coxas redondas, apesar de todos os instintos cavalheirescos do seu corpo, que felizmente não eram muitos, exigirem que olhasse para outro sítio, talvez para o canto da sala.

— Entusiasmado — disse Betsy. Jeremy obrigou-se a olhar de novo para a cara dela. — Sou demasiado curvilínea, especialmente de perfil. Se todos os homens olharem para mim como tu, não posso ir ao leilão.

Jeremy respirou fundo e esfregou a cara com as mãos.

— Dá-me um momento. Vou tentar olhar para ti como se fosse um estranho.

Betsy virou-se e começou a mexer na peruca, baixando-a mais sobre a testa.

Por trás...

O casaco dela era bastante curto — concebido para um rapaz — com abas duplas nas costas, que não assentavam. Betsy tinha um rabo desenhado pelos deuses. O casaco expunha aquela curva em toda a sua magnificência. Agora percebia o que ela queria dizer.

— Esse casaco não serve — disse ele, com aço na voz.

— Eu sei! — gritou Betsy, virando-se. — Pareço uma tola, não é? É demasiado curto e fora de moda.

— Entre outros problemas.

Ela virou-se de novo para o espelho.

— Não posso ir ao leilão.

Para horror dele, o lábio inferior de Betsy tremia antes de ela o morder com dentes brancos e direitos.

— Foi uma ideia muito estúpida. Com esta aparência, vou ser descoberta. Terei de viver no campo como uma eremita, porque não serei recebida em parte alguma. — Inspirou tremulamente.

Uma parte do cérebro de Jeremy, uma parte antiga e cautelosa, instruía-o para que saísse do quarto. Mas a parte que observara Boadicea Wilde a praticar com um taco de bilhar dia após dia antes de ir para os salões de baile e desempenhar o papel de donzela recatada fê-lo abrir os braços e puxá-la para o seu peito.

Suado ou não.

— Tu consegues — murmurou ele. — Fá-lo-emos juntos.

Ela aninhou-se nele, encostando a face ao seu peito.

— Cheiras bem. — A sua voz tremia. — No meu íntimo, sabia que isto nunca resultaria.

Jeremy apertou-a com mais força e pousou o queixo na peruca áspera.

— Vai resultar. Vou levar-te ao leilão. Não te vou deixar ficar mal.

— E se formos apanhados? Teremos de casar, e depois também terás de te tornar um eremita.

— Eu já sou um eremita — declarou Jeremy, esquivando-se à questão do casamento. Se pedisse Betsy em casamento, seria ele a escolher o momento.

Se, não, quando pedisse Betsy em casamento! Ela tinha, de alguma forma, escavado um lugar no seu peito, e isso não ia mudar.

— Muito bem — disse ele, dando um relutante passo atrás. — Vou fingir que não te conheço.

Olhou-a de cima a baixo, tentando afastar a escaldante onda de desejo que se seguiu.

— Temos de te engordar. Era melhor se te arranjássemos um casaco diferente; porém, se não tivesses uma cintura tão estreita, o teu rabo não seria tão óbvio.

Betsy franziu o sobrolho.

— O meu rabo? — Ela espreitou por cima do ombro. — E as minhas pernas?

Jeremy baixou obedientemente o olhar. Coxas lindas. Rechonchudas em cima, delgadas em baixo.

— Os teus tornozelos são muito finos — disse ele.

— Tenho botas! — Betsy pôs à sua frente um par de botas velhas e enfiou-se dentro delas. — Costumava usá-las para montar quando era miúda, por isso pedi à tia Knowe que as mandasse trazer do sótão.

— Usavas botas de montar quando eras miúda?

Ela assentiu.

— Fica melhor assim, não fica? — perguntou ela, novamente diante do espelho. — As minhas pernas não parecem tão magras.

Não admirava que a luxúria fosse um dos sete pecados mortais. Era tão forte como o instinto de sobrevivência.

— Pois não. — A voz dele poderia ser classificada como um gemido.

Um sorriso atravessou o rosto de Betsy.

— Jeremy! Tens de olhar para mim como se eu fosse uma estranha, lembras-te?

— Tens mais daquele material com que amarraste os seios?

— Musselina? Tenho. A minha criada trouxe rolos de ligaduras.

— Enrola-a na cintura até pareceres um rapaz robusto. — Acenando, ela levou as mãos aos botões do casaco. — Só depois de eu sair. Onde está o teu instinto de autoproteção, Bess?

— Não preciso dele junto de ti — respondeu, mas baixou as mãos.

De repente, ele pôs as mãos em torno dos ombros dela, inclinou a cabeça e tomou-lhe os lábios num beijo duro. Ele não era nenhum gato domesticado e desdentado.

Ela riu-se e correspondeu ao beijo, a sua língua lambendo a dele até ficar com a cabeça enevoada. E quando ela fechou os dentes no seu lábio inferior... ele gemeu e desceu as mãos pelas costas dela, rodeando aquele traseiro lascivo.

— Estás suado — disse ela algum tempo depois.

Foi aí que Jeremy percebeu que Betsy tinha as mãos nas suas costas por baixo da camisa, traçando-lhe os músculos. Deu um salto.

— Com mil raios!

As mãos dela deslizaram das suas costas.

— Vi-te a varrer a neve no pátio. Não parava de pensar... — Para choque de Jeremy, ela ergueu um dedo esguio e lambeu-o. O seu instrumento latejou, pedindo atenção. Exigindo-a. — Mmmm — disse ela com um prazer rouco. — Sal.

O cérebro de Jeremy parara, e ele só conseguiu dar uma resposta:

— Tens de dizer «não» ao duque! Definitivamente.

Ela lambeu outro dedo.

— Duque? Qual duque?

— O Greywick.

— O Thaddeus não é duque, é visconde.

— Bess. Ele está a cortejar-te.

— Ah, muito bem. Tenho de dizer «não» a ser duquesa, é essa a tua ordem?

— Precisamente.

As mãos dela voltaram ao casaco.

— A não ser que queiras ajudar na minha transformação num rapazinho rechonchudo, é melhor saíres.

Por um momento, o tempo parou. O olhar de Jeremy deteve-se na curva risonha dos seus lábios vermelhos, no calor dos olhos dela ao encontrarem os seus.

— Quero isso — disse ele, num gemido entrecortado. — Da próxima vez?

Da próxima vez. A mente dele serviu-lhe obedientemente uma imagem de calças, a rir na garupa de um cavalo.

Só quando se enfiou dentro da banheira é que se apercebeu de que a imaginara no pátio da casa em que crescera.

A casa a que jurara nunca regressar depois de ter desgraçado o nome da família.

Quando voltara das colónias, tivera uma discussão amarga com o pai, de cujas palavras exatas não se lembrava. Mas partira com a sensação de que fora renegado.

Ao que parecia, estava completamente errado. O que não era de surpreender. Naqueles primeiros meses, a raiva rugia dentro dele a ponto de não lhe permitir dormir nem pensar. O único som nos seus ouvidos era o ricochete das balas e os gemidos dos homens moribundos.

A raiva ainda estava ali, assim como a mágoa e a culpa. Mas parecia que uma tempestade de neve lhe cobrira essas emoções. Estavam amortecidas por suaves montículos de neve. As vozes dos mortos estavam aquietadas.

Não silenciadas... mas amortecidas.

As vozes dos seus homens estariam sempre consigo.

A sua experiência no campo de batalha mudara-o para sempre. Mas ele podia viver naquela paisagem invernosa melhor do que no inferno que atravessara nos últimos meses.

Abanou o cabelo, e gotas de água salpicaram o quarto. Sentia-se limpo.


Capítulo 18

Enquanto Betsy esperava que Winnie voltasse com um sobretudo, despiu o casaco, o colete e a comprida camisa branca que tinha por baixo. Os seios estavam firmemente amarrados. Mais abaixo, a cintura curvava para dentro e as ancas arredondavam.

As calças apertavam-lhe as ancas, e, quando se virou para espreitar o espelho por cima do ombro, conseguiu mesmo ver os pontos da costura sobre a parte mais redonda do traseiro. Teria sorte se não as rasgasse ao meio. Deixou escapar uma gargalhada quando se lembrou da expressão de Jeremy. Pôs uma mão no traseiro e, lentamente, percorreu a curva. Havia algo de erótico numa mulher de calças. A mão escorregou-lhe do traseiro quando sentiu um arrepio de ansiedade. Esta excursão era uma loucura. Era como se ela tivesse refreado o seu amor pelas maldades e impulsos imprudentes, e estes agora estivessem a explodir.

Tinha sido um ano interessante. Concretizara as ambições dos seus 14 anos. Colecionara suficientes pedidos de casamento para provar que a desgraça da mãe não a definia.

Sempre que Betsy recusava uma proposta, conquistava uma pequena porção de poder sobre o seu próprio futuro. Mas o mundo não estava preparado para a perturbadora perspetiva de uma mulher que tomava as suas próprias decisões. Maldita sociedade. De facto...

Afundou-se numa cadeira, sentindo-se desconcertada.

A única mulher que conhecia que tomara as suas próprias decisões, enfrentando a desgraça social, era a mãe.

A infame segunda duquesa. Continuava a não concordar com a escolha de Yvette.

Mas agora compreendia-a.

A única decisão que Betsy tomara desafiando as normas sociais — ir a um leilão envergando umas calças — tinha tantas probabilidades de causar um escândalo como a fuga de Yvette com o prussiano. O escândalo não teria a mesma escala, mas ainda assim...

Talvez ela tivesse mesmo um legado da sua mãe. Olhara para Yvette através das lentes da repugnância de Clementine.

E se Betsy tivesse herdado da mãe a coragem e a determinação? Se tivesse herdado um desejo de criar o seu próprio futuro? Uma aversão a ser confinada pela sociedade?

E se tivesse herdado a capacidade e a vontade de surpreender as pessoas?

E se era isso que movia Yvette?

Até àquele momento Betsy não compreendera quanto lhe saía caro não gostar da mãe, mesmo não a conhecendo.

A porta abriu-se e Winnie entrou.

— Voltei! Oh, está outra vez despida.

— Tens de me engordar — disse Betsy, pondo-se de pé e tentando ignorar aquela sensação inebriante. Liberdade? Era esta a sensação da liberdade?

— Engordar? — Winnie não estava a gostar. — Porquê?

Betsy virou-se e apontou para o traseiro.

— É demasiado óbvio.

— Acho que vejo o seu traseiro todos os dias, mas não penso nisso — disse Winnie pegando no molho de tiras de musselina que Betsy lhe estendia.

— Se eu estiver redonda por igual, não será tão óbvio.

— Esperemos que seja verdade. — Winnie começou a enrolar Betsy como se fosse uma múmia do Museu Britânico.

— Vou encher atrás e à frente — disse Betsy um momento depois. — Ficará bastante bem. — Quando apertou o último botão, virou-se para o espelho e desataram as duas a rir.

— Parece um ganso recheado, pronto para o Natal!

— Pareço mais um ovo de ganso — exclamou Betsy, rindo. — Estou tão redonda no meio!

— Ninguém pensará que é uma mulher — disse Winnie.

— Pensarão que sou uma almofada que saiu para dar um passeio — retorquiu Betsy, puxando a bainha do casaco para baixo.

— São horas de irmos! — berrou a tia Knowe do fundo das escadas.

— Ainda bem que não há outros hóspedes na estalagem — comentou Betsy.

— Vai conseguir — disse Winnie, acrescentando o último gancho à peruca de Betsy. — Só não se dobre, porque o ovo pode rachar.

Betsy assentiu com a cabeça, saboreando a sensação de aventura que a inundava. Teve prazer em descer as escadas com as suas botas de montar, porque os botins batiam sempre no chão de uma forma muito senhoril, e as chinelas chiavam.

O corredor estava cheio de pessoas. Com um olhar rápido, ela viu que a duquesa parecia um prefeito de cara redonda. O pai de Jeremy tinha uma expressão de alegria contida e Lady Knowe parecia mesmo o seu irmão gémeo, o duque. Jeremy...

Ele aguardava-a. Procurava-a. Como se ela fosse a única pessoa que importava.

Mesmo assim, conseguiu continuar a descer as escadas, segurando-se ao corrimão.

A tia Knowe gritou:

— Eis o cavalheiro que aguardávamos! Não sabia se ficarias atraente como rapaz. Já tenho a minha resposta!

Betsy avançou para ela.

— Não?

— Pareces um nabo — comentou a tia. — Muito bem, meus amigos. As carruagens estão à espera.

O coração de Betsy batia muito depressa, mas não por estar prestes a dar o primeiro passo fora de casa com umas calças, e sim pela forma como Jeremy se aproximara dela, como se estivesse disposto a caminhar ao seu lado para sempre.

— Jeremy, Betsy e o marquês numa carruagem — ordenou a tia Knowe.

— Nós vamos na minha carruagem — disse a duquesa excitadamente, segurando o cotovelo da tia Knowe.

Betsy olhou para Jeremy e o seu coração acelerou ainda mais.

— Está pronto para levar um nabo a passear, Lorde Jeremy?

— É uma das minhas ambições mais antigas — respondeu ele seriamente. — Lady Knowe, acho que devemos reunir-nos primeiro na sala.

— Porquê? — perguntou ela. — Não quero perder nada!

— É necessária uma lição sobre masculinidade — disse ele, apontando para a duquesa. — Sua Graça é agora o duque, e provavelmente não devia estar de braço dado consigo.

— Oh, meu Deus! — exclamou a duquesa.

— Está bem — concordou Lady Knowe, rabugenta. — Pode dar-nos algumas lições breves. Não deve ser assim tão difícil ser um homem.

— Ser um cavalheiro — corrigiu Jeremy, os olhos brilhando com uma expressão de riso malicioso. — É difícil, muito difícil.

Lady Knowe tirou da cabeça o seu tricórnio e bateu-lhe com ele; ele riu-se como um gaiato, atravessando a porta para a sala de estar.

Betsy deu por si a observar o pai de Jeremy, cujos olhos eram límpidos e brilhantes.

Seguiu o grupo para a sala de estar, sentindo um complexo nó de emoções: a incerteza debatia-se com a excitação, o desejo, a felicidade, a imprudência...

— Gosto de usar estas calças — anunciou ela à sala.

— Gostas de parecer uma salsicha recheada? — perguntou Jeremy.

— Se pensas que a sensação é nova, é óbvio que nunca usaste um espartilho.

O que quer que estivesse a passar-se entre ambos parecia demasiado arriscado e emocionante, nada tendo que ver com a conversa ensaiada com que cativava os outros pretendentes.

— Um dia destes posso usar espartilho — disse Jeremy descontraidamente.

Ela ficou boquiaberta.

— Porquê?

— O meu avô costumava estalar quando se dobrava; aos 12 anos percebi que esse barulho eram os protestos dos ossos de baleia.

— Protestos dos ossos de baleia — repetiu ela, e depois riu-se.

— Planeias ficar com o diâmetro do teu avô? — Ela lançou um olhar rápido ao corpo dele. — Precisarás de comer mais regularmente.

— Vou registar o conselho.

Tinham chegado junto da duquesa. Caminhar como um homem não era fácil para quem tinha ancas largas, como a duquesa.

— Assim está melhor! — exclamou Lady Knowe, batendo as palmas. — Dá passos mais longos.

— Isso é fisicamente impossível — disse Sua Graça, um bocadinho irritada.

— Tenta tu agora, Betsy — instou Lady Knowe. — Vai da lareira até à poltrona.

Betsy dava passinhos curtos e baloiçava desajeitadamente, mas a imaginação de Jeremy removeu-lhe agilmente os chumaços da cintura e libertou-lhe os pobres seios confinados.

A tia semicerrou os olhos na direção dele.

Ele moveu o olhar para o pescoço de Betsy. Os caracóis da sua peruca branca escondiam-lhe a nuca, mas emolduravam o seu queixo orgulhosamente empinado. O pescoço dela era liso como cetim. Ele gostaria de lhe soltar o plastrão, lamber-lhe o pescoço e morder-lhe a orelha. Ela arquejaria. Permitiu-se pensar como soaria o seu arquejo, até perceber que as suas calças estavam agora tão apertadas como as dela.

Lady Knowe tinha as mãos nas ancas.

— A Betsy está razoável, mas, Emily, se não parares de balouçar as ancas, teremos de te deixar na estalagem. Precisas que eu ou o marquês te façamos mais uma demonstração?

Lady Knowe tinha uma passada longa e seca, sem qualquer traço de feminilidade.

— Já está bastante bom — rugiu a duquesa, ignorando o comentário. — Os cavalos vão morrer de frio se não nos apressarmos. Alguém viu o meu filho?

— Não — respondeu Lady Knowe.

— Também... estava com uma birra infantil — disse Sua Graça. — Quando as coisas não são à sua maneira, fica pior do que uma barata.

Jeremy viu os olhos de Betsy a iluminarem-se. Os seus lábios rosados formaram as palavras «pior do que uma barata».

Ele deixou que a duquesa saísse da sala, seguida por Lady Knowe e pelo seu pai, antes de dizer:

— Não seria confortável fazer par com uma barata, Betsy.

— E não sei o que pode ser pior do que uma barata — disse ela, de olhos brilhantes.

Ele estava meio enlouquecido, faminto pela curva do seu pescoço, por isso puxou-a para os seus braços e esperou que ela fechasse as pálpebras antes de unir os lábios aos dela. Ela suspirou, um som tão erótico que o corpo dele se incendiou.

As suas línguas eram despudoradas, mas Jeremy não permitiu que as suas mãos lhe descessem até ao traseiro e o agarrassem como lhe apetecia. Não puxou Betsy para si de maneira que as suas pernas naquelas calças escandalosas se enrolassem em torno das suas ancas e as melhores partes de cada um deles se roçassem num prazer feroz.

Ela tinha um sabor feliz, doce e lascivo.

— Quero devassar-te — disse ele, a voz áspera como a de um rapaz de 15 anos. — Por amor de Deus...

— Diz «não» ao duque?

— Exatamente.

— E depois devassas-me? — Ela tinha um brilho de feiticeira nos olhos.

— Não, não o farei — apressou-se ele a responder. Viu um lampejo de dor atravessar os lindos olhos dela. — Só depois de nos casarmos.

Ele dissera a palavra em voz alta.

— Um ultimato. — Ela olhou por cima do ombro enquanto saía da sala, lançando-lhe um sorriso diabólico e docemente feminino. Que ele não compreendeu imediatamente, porque ela estava a bambolear as ancas.

O traseiro dela dentro de umas calças era suficiente para levar um homem à loucura.

Ou ao casamento.

— És o nabo mais erótico que eu já vi — disse ele.

Ela limitou-se a rir.


Capítulo 19

A leiloeira ficava num grande edifício com degraus baixos à frente e um letreiro dourado a anunciar a propriedade do Sr. Phillips, reputado leiloeiro de Londres, Stratford-upon-Avon e Wilmslow.

Um mordomo abriu a porta quando se aproximavam, fez uma vénia e perguntou-lhes os nomes.

— O Marquês de Thurrock e sua comitiva — respondeu o pai de Jeremy, tirando o seu tricórnio.

Um homem bem proporcionado, usando um fato excelente e uma peruca de qualidade superior, mas sem ser extravagante, surgiu junto deles.

— Vossa Senhoria — disse o Sr. Phillips ao marquês —, é uma honra recebê-lo na mais pequena das minhas casas leiloeiras.

— Conheci Finney quando era rapaz — informou o marquês. — Tenciono comprar uma das suas pequenas peças, desde que o preço seja justo. Trouxe alguns amigos comigo.

Os olhos perspicazes do leiloeiro detiveram-se por um momento em Betsy, que lhe fez uma minúscula saudação com o queixo. Por um breve momento, o homem mostrou-se confuso, mas depois, para satisfação de Betsy, desviou os olhos para Jeremy, a tia Knowe e a duquesa. Pestanejou, registando visivelmente as suas roupas e concluindo que a comitiva do Marquês de Thurrock não possuía o bom gosto que ele esperaria dos amigos de um nobre.

— São muito bem-vindos ao salão — disse o homem, apontando majestosamente para as grandes portas abertas. — Começaremos com desenhos que adquiri com grande esforço no continente e seguir-se-ão os magníficos exemplares das miniaturas de Samuel Finney.

O salão revelou-se um espaço de teto alto totalmente coberto por pinturas de um infindável número de cupidos, intervalados aqui e ali por uma nuvem.

— Olha para cima — murmurou Jeremy ao ouvido de Betsy, dando-lhe uma cotovelada quando se sentaram.

Obedientemente, ela inclinou a cabeça para trás e ficou de boca aberta. O teto era uma profusão de querubins, deitados em nuvens, tocando harpas, bebendo vinho e...

A gargalhada familiar da tia Knowe ecoou enquanto o resto da comitiva se sentava. Parecia razoavelmente masculina.

— Não levantes a voz — lembrou Jeremy a Betsy, mesmo a tempo.

— Os cupidos — sussurrou Betsy.

— Envolvidos em intimidades. — Os olhos dele tinham um brilho diabolicamente divertido. — Fico reconfortado por descobrir que o céu não é tão enfadonho quanto nos querem fazer crer. Eu nunca soube cantar, quanto mais tocar harpa.

— De facto — murmurou Betsy.

Não conseguia tirar os olhos dos cupidos eróticos e alegres. Alguns dos atos, reconheceu-os prontamente. Outros eram mais misteriosos. De facto, quanto mais olhava, mais curiosa ficava.

Com as duas cadeiras tão juntas, a perna e o braço de Jeremy encostavam-se aos dela. Em circunstâncias normais, ela não sentia a perna de um cavalheiro, mesmo que estivesse muito próxima; as saias impediam qualquer intimidade.

Mas agora...

Dois pares de calças criavam uma situação completamente diferente. O coração dela acelerara graças aos cupidos folgazões, mas isso não era nada em comparação com o que sentia ao ver as pernas de ambos encostadas.

— As tuas sensibilidades estão ofendidas com o teto? — perguntou Jeremy, com uma voz muito divertida.

— Não sou nenhuma menina — informou-o Betsy. — Gostaria... — Tossiu e engrossou a voz. — Gostaria de examinar melhor o par que está no canto esquerdo, lá adiante.

Jeremy olhou fugazmente nessa direção e riu-se.

— Delicias-me.

O marquês, a tia Knowe e a duquesa estavam sentados do outro lado. Lentamente, todos os lugares começaram a ser preenchidos. Alguns dos homens pareciam ser comerciantes; outros eram obviamente testas de ferro, prontos a licitar pelos seus mestres. Na fila mesmo atrás deles havia um cavalheiro sozinho.

Ela observou em silêncio enquanto os primeiros desenhos eram licitados, divertindo-se mais do que se divertira em meses. Nas filas atrás de si os homens gritavam, licitavam, aumentavam as paradas, diziam livremente palavrões.

Todas as coisas que não faziam num salão de baile.

Estava meio virada para ver as filas de homens atrás de si quando Jeremy se inclinou para ela e sussurrou:

— Tenho estado a examinar atentamente o teto.

— Sim?

— O casal que identificaste é particularmente aventureiro. Tens bom gosto.

Betsy estava a passar a melhor tarde de toda a sua vida. O braço de Jeremy tocava no dela, e a sua perna formigava como se ela estivesse imersa num banho quente.

— Nunca duvidei do meu gosto — disse-lhe. — A tia Knowe assegurou-nos muitas vezes de que moldou os nossos gostos à semelhança dos seus, por isso nunca duvidámos de que os nossos instintos estavam acima de qualquer crítica.

Jeremy riu baixinho.

— Gosto cada vez mais da Lady Knowe. Devo perguntar-lhe o que pensa daquele par de cupidos em particular?

Betsy semicerrou os olhos.

— Não te atrevas.

— Os cavalheiros discutem estas coisas uns com os outros — garantiu ele. Fez questão de olhar para cima. — Agrada-me particularmente o cupido de joelhos, alegremente dedicado ao seu trabalho. Seria desagradável ver relutância no seu rosto durante aquele ato em particular.

— Pois — disse Betsy debilmente.

O leiloeiro já tinha vendido alguns desenhos, e agora pigarreava com particular ênfase.

— Lote de cinco desenhos de Rubens e Rembrandt.

A tia Knowe brandiu de imediato o seu catálogo no ar.

— Fila da frente, 20 xelins.

Depois disso, as licitações foram rápidas e furiosas, mas a tia Knowe não se deixou derrotar, sacudindo o catálogo como se fosse um mordomo a mandar parar uma carruagem de aluguer.

— Queres licitar? — perguntou Jeremy.

— Contra a minha tia?

— Ou no próximo lote — sugeriu ele. — Afinal, foi para isso que viemos.

— Vendido! — vociferou o leiloeiro com um grande sorriso. — Vendido à comitiva do Marquês de Thurrock por 5 libras e 2 xelins.

— É a tua vez de licitar — disse Jeremy.

— Sim, se vir alguma coisa que adore — respondeu ela. — Pensei que queria licitar só por licitar, apenas para me fazer de homem.

Ele ergueu uma sobrancelha.

— E não?

— Ser um homem não tem que ver com o ato de comprar coisas. É a liberdade de me sentar aqui sob um teto cheio de cupidos sem vergonha e de abrir as pernas da forma mais indecente. Estou esparramada na cadeira! — Não conseguia conter o sorriso no seu rosto.

Jeremy franziu a testa.

— Nunca o fazes?

— Uso um espartilho e, muitas vezes, uma peruca alta — explicou ela. — Estar nesta posição não é aconselhável. Por vezes, ao fim de um longo serão, as minhas costas estão numa aflição.

Felizmente ninguém viu a mão grande de um cavalheiro introduzir-se sob o casaco do seu vizinho e acariciar-lhe as costas.

— Vais fazer-me corar! — sussurrou Betsy.

Jeremy retirou a mão com uma gargalhada baixa.

— Aviso-te que fazer-te corar pode tornar-se a ambição da minha vida.

O leiloeiro irrompera em mais um frenesi de atividade, apresentando desenhos do «jovem prodígio William Beechey».

— Como Rembrandt — disse a tia Knowe ao marquês num sussurro penetrante. — Disparate! Nem sequer os considero obra de um prodígio!

— O que me agrada mais nestes querubins — murmurou Jeremy — é o facto de não se importarem com a cor das suas faces, nem sequer com as suas expressões.

— Eu importar-me-ia — retorquiu Betsy, recostando-se na cadeira para não se tornar tão óbvio que estava a virar o pescoço. — Importo-me sempre.

— Não, não importas.

— Não fazes ideia do que é ser uma mulher — sussurrou ela, olhando para trás para se certificar de que o cavalheiro não estava a prestar atenção. Felizmente, ele parecia embrenhado no leilão. — Nenhuma mulher pode abandonar-se até... até àquele ponto! Tanta intemperança não é decente.

— A minha experiência com mulheres sugere o contrário — disse Jeremy, estendendo as longas pernas para poder cruzar os tornozelos. — Uma mulher pode dar por si tão envolvida no momento que se esquece inteiramente das aparências. Claro, as ladies têm de ser mais circunspetas. — Betsy estava a pensar tão afincadamente acerca de luxúria e ladies que não respondeu até ele lhe dar uma cotovelada. — Não te ofendi, pois não?

Betsy deu um salto.

— Não. Estava só a pensar no que é ser uma lady.

— Nós, os homens, não sabemos muito — disse Jeremy, obviamente a divertir-se. — Mas, a mim, parecem-me o diabo.

— Como assim?

— Concordámos que estes cupidos são uns sem vergonha — disse Jeremy.

— É verdade — assentiu Betsy.

— As senhoras inglesas recebem tantas lições acerca da vergonha que raramente são desavergonhadas. Casam-se com homens que são quase estranhos, o que também não ajuda, claro.

— A vergonha não é um problema apenas das senhoras — notou Betsy.

— Mas estas empunham-na umas contra as outras, como se fosse um taco.

— Acho que devemos ter vergonha de quebrar certas regras.

Ela pensava nas gravuras que as pessoas faziam dos Wildes, e na sua crescente suspeita de que Grégoire estava a suplementar os seus rendimentos expondo Jeremy nas mesmas.

— As pessoas deviam perder a vergonha em certos momentos — disse Jeremy.

— Apenas se outras pessoas não ficarem magoadas. — Betsy tentava compreender de que forma podia conciliar o prazer despudorado com bebés e um marido.

— Posso concordar com isso. A lealdade é mais importante do que o prazer sem vergonha.

— Todas as salas frequentadas por homens são decoradas desta maneira? — sussurrou Betsy para Jeremy. Tinha descoberto um par em que ainda não reparara. Gostaria de perguntar o que estavam a fazer, mas talvez pudesse mencioná-lo mais tarde, em privado.

— Só as boas — respondeu ele. — Este teto é particularmente criativo.

— Tenho muito pouco com que o comparar — disse Betsy.

— Bem dito — concordou Jeremy. — «Com que o comparar», de facto. Aprecio um homem que mantém a gramática perante a arte erótica.

Ela franziu-lhe o sobrolho.

— Os homens tornam-se incoerentes perante uma profusão de atividades eróticas.

Subitamente, uma cabeça espreitou entre os ombros de ambos.

— Uma profusão implica demasiado: uma extravagância, uma superabundância ou um excesso. Está a desencorajar o seu jovem amigo de se envolver nessas atividades celestiais?

Betsy deu um salto e soltou um gritinho. Depois, rapidamente, pigarreou.

— Boa pergunta — disse, usando o timbre mais grave que conseguia.

O homem que estava sentado atrás deles, e, aparentemente, a escutar, tinha cabelo grisalho e áspero, que espreitava sob uma peruca colocada sem cuidado. Usava um casaco às riscas e um plastrão debruado a renda. Os olhos eram muito brilhantes e as sobrancelhas muito espessas.

— Boa tarde — cumprimentou Jeremy.

— Peço desculpa por me intrometer — disse o cavalheiro. — Sou extremamente preciso por natureza. É praticamente uma agonia ouvir uma palavra mal utilizada.

— Não a utilizei mal — replicou Jeremy, e apontou para o teto. — Esta atividade é divertida, mas recorda-me preces matinais numa capela fria: o excesso de uma coisa boa.

— É muito inteligente contrastar uma atividade celestial com outra que afirma conduzir a nuvens, cupidos e quejandos — aprovou o cavalheiro.

O que quer que ele fosse dizer em seguida sobre o assunto perdeu-se quando o leiloeiro anunciou:

— E agora, as miniaturas do reputado Samuel Finney, retratista da nossa amada Rainha Carlota, membro da Academia Real das Artes.

A sala ficou em silêncio. Lady Knowe ficou em sentido quando o assistente do pregoeiro começou a desembrulhar a primeira miniatura de um pano de seda.

— Ah! — exclamou o cavalheiro, e refastelou-se na cadeira, fazendo-a chiar em protesto.

— Tenciona adquirir uma miniatura, senhor? — perguntou Jeremy, virando-se.

O homem riu desdenhosamente.

— Nem pensar! Só vim para ver por quanto se vendem.

— Possui algumas obras do Sr. Finney? — perguntou Betsy.

O homem fitou-a, e uma das suas sobrancelhas espessas elevou-se.

— Pode dizer-se que sim. — Ela virou-se rapidamente para a frente, certa de que ele a reconhecera como mulher. — Pintei-as — disse o homem, de uma forma mais desinteressada do que vaidosa.

Betsy não conseguiu impedir-se de se virar novamente para ele.

— Como está, Sr. Finney? Sempre admirei o seu trabalho. — E então, quando os olhos dele se enrugaram de divertimento, ela percebeu que se esquecera de baixar a voz.

O Sr. Finney inclinou-se para a frente e deu-lhe uma palmadinha no ombro.

— Já não pinto. Sou juiz de paz desta região, e isso mantém-me ocupado. Mas diabos me levem se não adorava pintá-la, minha querida!

O rosto de Jeremy perdeu subitamente a cor.

— O Sr. Peters não é «sua querida» — disse, conseguindo soar, ao mesmo tempo, agradável e ameaçador.

— Sr. Peters, é isso? — perguntou o Sr. Finney, parecendo radiante. — Tenho as melhores referências. Já pintei algumas pessoas desta sala, embora ainda não me tenham reconhecido. Envelhecer é um disfarce excelente; melhor do que calças.

Betsy conseguiu reprimir uma gargalhada.

— Hoje em dia, só ocasionalmente dou umas pinceladas, mas aceito-o, Sr. Peters.

O leiloeiro ergueu uma pequena pintura oval numa moldura dourada.

— Retrato de uma Senhora com Vestido Branco e Roupa Interior a Condizer — anunciou. — Começa em 20 xelins.

O pintor riu desdenhosamente, mas calou-se.

Betsy tinha esperança de comprar uma miniatura, mas percebeu rapidamente que as obras do Sr. Finney eram muito mais caras do que ela podia pagar. Jeremy olhou algumas vezes para ela, mas ela abanou a cabeça. A tia Knowe, por seu lado, licitava com energia e arrematou duas miniaturas, uma de um rapazinho e a outra intitulada A Virgem Maria, que causou grandes gargalhadas na fila de trás.

— É a mulher do padeiro — disse. — Oito filhos, se não for mais!

— Um Jovem — anunciou o leiloeiro. — No verso, lê-se: «Para P., com todo o meu amor.»

Betsy consultou o seu catálogo. Era a sua favorita; além de o rapaz ter uma expressão sonhadora, as suas sobrancelhas eram parecidas com as dos Wildes.

A tia deve ter pensado o mesmo, porque desatou a licitar num frenesi, e, quando percebeu que a duquesa licitara contra ela, apontou um dedo a Sua Graça e berrou:

— Pare imediatamente, senhor!

— A tua tia representa um excelente homem — murmurou Jeremy ao ouvido de Betsy. — Não queres licitar contra as duas?

Betsy viu que a duquesa estava a recuar, franzindo muito o sobrolho.

— Devíamos ter decidido entre nós que pinturas queríamos comprar. Obrigada, mas não. São demasiado caras.

— Concordo — disse uma voz rabugenta atrás dela. — Foram trabalhos iniciais e nem sequer estão esmaltados.

— O dinheiro não é problema — disse Jeremy a Betsy. Do outro lado, o pai dele inclinou-se para ela.

— Nenhum de nós tem alguém com quem o gastar. — Começou a erguer o catálogo.

— Fá-lo parar! — sussurrou Betsy, rindo. — Imagina como a minha tia vai ficar zangada se ele a arrematar.

— Pintarei o Sr. Peters com esmaltes — disse o Sr. Finney casualmente, chegando a cadeira para a frente. — Hoje em dia, é o que está em voga. Até posso criar mais algumas, entre acalmar motins e prender arruaceiros e essas coisas. Os esmaltes captam o brilho tenro das faces de uma mulher bonita de uma forma que as tintas normais nunca conseguirão.

Betsy sorriu-lhe.

— Pare — sussurrou.

Mas o velhote estava imparável.

— Pintá-la-ei de calças — sussurrou ele —, mas talvez com uma saia por cima... Num roseiral.

— Senhor — disse Jeremy, virando-se para ele com uma expressão zangada.

— Tem sorte por ter um acompanhante tão protetor — disse o Sr. Finney, estendendo o braço para dar uma palmadinha no ombro da tia Knowe. Esta sobressaltou-se ao vê-lo e sorriu. No momento em que arrematou a miniatura do rapaz, levantou-se e chamou o Sr. Finney. Saíram da sala juntos.

— Vais ser pintada por um famoso miniaturista — disse Jeremy. — O que achas disso?

— Ele quer pintar-me de calças — sussurrou-lhe Betsy ao ouvido.

— Também eu — retorquiu Jeremy. — Como não sei pintar, terás de posar durante horas. Dias.

Outra miniatura foi arrematada; porém, sem as exclamações do Sr. Finney ou a licitação excitada de Lady Knowe, o leilão ficou muito menos interessante. A duquesa conseguiu arrematar um retrato, Senhora de Castanho.

A tia Knowe aguardava-os na carruagem.

— Viva! — gritou ela abrindo a porta. — Tenho a notícia mais maravilhosa, queridos! Vamos jantar a Fulshaw Hall. É a residência do Samuel Finney, a sul daqui.

Os flocos de neve rodopiavam em torno dos ombros de Jeremy, flocos muito pequenos que projetavam a luz da porta aberta da leiloeira.

— Tenho uma adenda à nossa discussão sobre a vergonha — disse ele a Betsy.

— Sim?

— A vergonha não pode ser a minha companheira de todos os dias, se eu quiser que tu sejas a minha companheira de todos os dias.

A duquesa estava a ser içada para a carruagem. Aparentemente, as calças tolhiam-lhe os movimentos.

— O mesmo é verdade para ti — continuou Jeremy, os seus olhos procurando os dela: ternos, ferozes, ansiosos. Todo o género de emoções que ela nunca vira em nenhum dos homens que a pediram em casamento. Não havia nada de respeitador em Jeremy. Provocá-la-ia todos os dias. Toda a sua vida.

A tia estava a fazer tempo na carruagem, mas chamá-los-ia a qualquer momento.

— Ou podes dizer «sim» ao duque, em vez de «não» — continuou Jeremy. — Quando tiveres a certeza da tua escolha, avisa-me. Se decidires tornar-te duquesa, eu e o meu pai voltaremos amanhã para casa dele... para a nossa casa.


Capítulo 20

A temperatura baixara quando as carruagens deixaram os seus passageiros na estalagem para se vestirem para o jantar. Seguiram depois, incluindo Thaddeus, mas não Grégoire, que ainda estava na cama, para Fulshaw Hall. O ar tornara-se um cobertor espesso, pairando pouco acima do chão. Os flocos de neve vinham de todos os lados, pousando brevemente nos cílios e acamando-se no chão logo de seguida.

A mansão mal se avistava através da neve rodopiante, embora a luz jorrasse das suas janelas e da porta escancarada.

Jeremy examinou-a, de olhos semicerrados. Sete entradas, cor de ameixa, tijolo com padrões... O pintor tinha-se saído bem.

Ou talvez a tivesse herdado.

Lá dentro, procurou miniaturas, mas não encontrou nenhuma. De facto, era uma casa perfeitamente vulgar. O Sr. Finney vivia com uma prima viúva, a Sra. Grabell-Pitt, que quase desmaiou ao aperceber-se de que a sua casa fora honrada com a presença, não só de uma duquesa, mas também de duas Wildes. Depois disso não parou de sorrir, mostrando longas filas de dentes cor de açafrão.

Jeremy passou toda a refeição sem olhar para Betsy mais do que quatro ou cinco vezes. Ela estava sentada ao lado de Samuel Finney, o velhote astuto que rapidamente identificara quer o seu verdadeiro sexo quer a sua proveniência familiar.

Ele estava do outro lado da mesa, sentado ao lado da sua anfitriã, que falava de neve e de geleia de marmelo, e do seu medo de que as aves canoras congelassem nos galhos.

— Nem uma canção se ouvirá na primavera — previa ela, com os olhos muito abertos de alarme.

Ele e o pai estiveram quase sempre em silêncio, observando Thaddeus, Betsy e Lady Knowe a interrogar o Sr. Finney em relação à sua carreira, à experiência de pintar uma rainha, aos motivos que o tinham levado a abandonar o mundo da pintura.

Depois da refeição, Lady Knowe convenceu o Sr. Finney a exibir as miniaturas, mas nem Jeremy nem o pai se juntaram ao grupo em redor de um armário envidraçado.

— Sempre fomos assim tão calados quando estamos juntos? — perguntou Jeremy.

— Não tenho facilidade em verbalizar as coisas — respondeu o marquês, com arrependimento e amor nos olhos.

— Julguei que o pai me tinha condenado por cobardia — confessou Jeremy. — Ouvi mal as suas palavras, ou recordei-as mal. O senhor não me seguiu para Londres, e eu concluí que tinha sido excluído da família. Senti que já não merecia pertencer-lhe.

O pai passou as mãos pela cara e Jeremy percebeu com choque que o seu gesto favorito fora herdado.

— Falhei-te. — Os olhos do marquês estavam angustiados. — Estava a tentar explicar-te que compreendia a culpa, e pensaste que te culpava. Partiste antes de eu poder corrigir isso. Pensei... dei-te tempo.

— Exatamente um ano — percebeu Jeremy.

— Nem mais um dia — disse o pai. — Quanto a culpa... A tua mãe morreu de parto quando estavas na guerra. Isto não é do conhecimento geral. — Jeremy gelou. — Ficámos tão surpreendidos ao descobrir que estava grávida — continuou o pai. — Ela era demasiado velha. Por vezes penso que lhe devia ter implorado... implorado que tomasse um remédio. — Olhou Jeremy nos olhos. — Mas também queria a criança. E perdi ambos.

Cerrou os maxilares. Jeremy conhecia o gesto, a sensação de culpa que lhe fazia cerrar as mandíbulas para não deixar escapar a agonia.

Estava sentado no sofá ao lado do pai; virou-se para ele e, desajeitadamente, pôs um braço e depois o outro em redor dos seus ombros. O abraço foi breve e embaraçoso.

— Essa criança seria meu irmão ou minha irmã — disse ao pai, depois de se separarem. — A minha mãe nunca teria tomado o remédio. O pai fez o melhor que pôde com as cartas que o destino lhe deu.

— Tal como tu.

— Pois — disse Jeremy. — Eu sei. Agora sei.

E, finalmente, talvez começasse a acreditar nisso.


Capítulo 21

Betsy esperou até a tia Knowe dedicar toda a sua atenção às miniaturas do Sr. Finney para se afastar com Thaddeus, sob a pretensão de verem a neve.

Isto implicou ficarem lado a lado diante de uma janela que apenas mostrava o seu reflexo.

— Parecemos um casal, mas não o somos, pois não? — perguntou Thaddeus num tom de voz baixo.

Betsy fitava o seu reflexo, pensando exatamente o mesmo. Pareciam gravuras de aristocratas. Depois do seu dia de calças, Betsy sentia-se gloriosamente feminina. Usava um vestido muito coquete, cor de framboesa, pois Winnie apenas trouxera de Lindow vestidos de tons rosados. Não trazia xaile, o que recebera forte aprovação de Winnie, e tinha os seios à vista.

— Não somos um casal — confirmou Betsy, encontrando os olhos de Thaddeus no vidro espelhado.

Um sorriso malicioso revirou-lhe os cantos dos lábios.

— Eu não podia tê-la perdido para um homem melhor. Falo a sério.

— Nós os dois nunca combinaríamos — disse ela, pondo-lhe uma mão no braço e sorrindo. — Desaprovou mesmo a nossa saída de calças, não foi?

— Não apenas por um impulso puritano, mas porque os mexericos podem ser muito prejudiciais. Odeio escândalos. — Hesitou. — Ao longo dos anos, a minha mãe tem sido frequentemente magoada por ouvir mexericos acerca da segunda família do meu pai. — Betsy acenou com a cabeça. — Essa imundície afetou a minha mãe, nunca o meu pai. É perigoso para as mulheres ultrapassarem os limites da sociedade decente.

— Não me parece que «imundície» descrevesse os mexericos na sequência da revelação de que uma duquesa se vestira maliciosamente de calças para assistir a um leilão — disse Betsy. — Suponho que isso daria origem a uma vaga de loucura em que as senhoras começariam a aglomerar-se às portas do White’s e de outros clubes de cavalheiros.

A expressão consternada dele fê-la rir.

— Sinto-me grata por me ter pedido em casamento, apesar do escândalo associado ao nome da minha mãe.

— Ninguém deve menosprezá-la com base nas decisões da sua mãe — disse ele, franzindo a testa.

— Nem a si e à sua mãe, com base nas do seu pai — comentou ela gentilmente.

— Touché! — respondeu ele. — Tem a certeza absoluta de que não quer ser a minha duquesa? Eu acho que seríamos felizes. Gostaria muito de casar consigo, Betsy.

Ela podia ver nos seus olhos que era sincero.

— Não — disse ela, abanando a cabeça. — Escolherei um caminho menos decoroso.

— Tenho a sensação de que será um caminho mais feliz — disse Thaddeus. Levou a mão dela aos lábios e beijou-a, antes de lhe fazer uma vénia e se afastar dela.

Depois de todos se terem despedido do Sr. Finney e da prima e regressado à estalagem, Betsy retirou-se para o seu quarto muito consciente de uma coisa: não gostava de ser ignorada por Jeremy como fora durante a refeição.

Estava acostumada a cruzar os olhos com os dele quando alguém dizia alguma coisa tola. Ouvira a previsão de que todas as aves canoras de Inglaterra morreriam na tempestade, mas Jeremy apenas assentira, de cabeça gentilmente inclinada na direção da Sra. Grabell-Pitt. Estava acostumada a ser aquela para quem ele se virava e praticamente a única com quem falava.

Compreender isso incomodou-a, porque ela queria que Jeremy tivesse amigos, que conversasse com outras pessoas.

Só não queria que a ignorasse a ela.

Algum tempo depois sentou-se junto da lareira, secando o cabelo, enquanto Winnie andava pelo quarto, até finalmente se ir embora. Lentamente, a velha estalagem caiu no silêncio, estremecendo apenas de quando em vez sempre que uma rajada de neve batia nas vidraças com mais força. O que haviam sido lindos floquinhos de neve transformara-se numa tempestade que caía sobre o edifício com a força de pedrinhas atiradas à janela de uma amante.

A voz odiosa de Clementine continuava a ecoar nos ouvidos de Betsy. Mas ela já decidira fazer algo que a sociedade proibia.

Era a escolha dela.

Escolhera Jeremy naquele exato momento, e não apenas quando um anel a marcasse como propriedade dele. De facto, ele nem sequer a pedira em casamento; tinham apenas discutido o futuro matrimonial dela. Foi essa recordação que a fez levantar-se e sair para o corredor escuro e frio.

Deteve-se, com a mão aberta na porta dele, só para se certificar de que a sua disposição interior estava inteiramente de acordo com esta decisão.

Estava.

Jeremy era dela.

A porta abriu-se silenciosamente e ela avançou apenas o suficiente para que a porta se fechasse atrás de si. A lareira dele ainda estava bem viva, projetando uma luz rosada em todo o quarto: sobre a grande cama de quatro postes e o seu dossel alto, sobre a cómoda... sobre o homem que se levantara de uma cadeira junto do lume. A luz brilhava sobre ele como se o amasse, moldando as planícies do seu rosto como uma das obras de arte do Sr. Finney.

— Olá — disse Betsy, recordando-se de que não acreditava em nervos. Permitira-se essa emoção apenas uma vez, ao conhecer a rainha.

— Olá — respondeu Jeremy. O seu sorriso dizia muito mais.

Avançaram um para o outro como se estivessem a seguir os passos de uma lenta e majestosa dança folclórica. Dançada por reis e rainhas e camponeses.

Quando estavam junto um do outro, ela endireitou os ombros e olhou-o nos olhos.

— Decidi vir. Espero que concordes.

— Acho que és a mulher mais corajosa que já conheci — respondeu ele.

Era a mais perfeita das respostas; Betsy sentiu que começava a brilhar.

— Não tenho sido corajosa até aqui, mas tomei a decisão de mudar. Excluí a possibilidade de estar nervosa; agora preciso de excluir o medo. — Hesitou. — Escolhi a coragem, e agora escolho a felicidade.

— Amo-te como és — sussurrou ele, e a sua boca tombou sobre a dela.

A respiração dela ficou presa na garganta porque as suas línguas se encontraram como se eles se beijassem todos os dias, todas as noites. Ele tinha o sabor certo, que lhe arrepiou o corpo todo e a encostou gentilmente a ele, como uma pedra rola na praia quando chega a maré.

Não se luta contra a maré.

Todo o tempo que se beijaram, a língua de Betsy dançou ao ritmo da vibração que sentia na garganta. Tinha os braços em volta do pescoço dele, mas não era suficiente, por isso deixou que um descaísse pelo lado e depois em volta das suas costas, acariciando-o através do tecido fino da camisa.

Deliciava-se com a força pura que sentia sob os seus dedos quando ele se afastou.

— Não — murmurou ela num suspiro doloroso.

— Preciso de saber que me queres, não apenas isto — disse Jeremy. Os seus lábios pairaram sobre a garganta dela, e a ponta da sua língua traçou padrões na carne tenra sob a sua orelha.

— Quero-te — disse Betsy. E depois, não em resposta ao que ele dissera, mas porque era a verdade do seu coração, acrescentou: — Amo-te.

Ele ficou tenso e levantou a cabeça, conduzindo-a depois para junto da lareira.

— Preciso de ver a tua cara — murmurou ele.

Betsy sentia os lábios inchados dos beijos. O cabelo caía-lhe pelas costas. Os mamilos provocavam o tecido da camisa de dormir.

Sorriu-lhe, deixando cair um braço de cada lado do corpo. Desde os 14 anos que escondia o corpo em saiotes e espartilhos, xailes e anquinhas. Esta noite não seria assim.

Ele fitou-a, e o desejo nos seus olhos era como uma língua de fogo sobre o seu corpo.

— Tinhas alguma pergunta? — incentivou ela. O medo desaparecera.

— Amas-me?

Ela assentiu com a cabeça, sem um pingo de relutância, e depois abriu os braços, deslizando-os novamente nos seus flancos.

— Não está nenhuma futura duquesa neste quarto.

— Serás antes a minha futura marquesa, Bess? Não posso... Não permitirei que estejas aqui sem que haja casamento.

— Porque és um cavalheiro — disse ela, assentindo.

— Não. — Ela ergueu uma sobrancelha. — Porque me vais partir o coração. Já está rachado — assumiu ele num tom de voz firme. — Aqueles homens todos ajoelharam-se aos teus pés, Bess. Queres que me ajoelhe?

A imagem dos querubins foliões acorreu-lhe imediatamente à mente.

Ele percebeu, claro. Provavelmente, percebera sempre os seus pensamentos errantes.

— Da próxima vez — prosseguiu ele, com um brilho nos olhos. — Preciso de saber que não te limitaste a dizer «não» ao duque, mas que disseste «sim» ao marquês.

Betsy pegou-lhe nas mãos.

— Não quero que te ajoelhes aos meus pés. Quero que sejas o meu companheiro e que fiques de pé ao meu lado.

— Apaixonei-me por ti num daqueles dias que passei escondido no canto da sala de bilhar — disse Jeremy, pousando as mãos dela sobre o coração. — Por ti, Betsy, não pela mulher encantadora que exibias no salão de baile.

O coração de Betsy ressaltou, e ela engoliu em seco.

— A sério? — Sustinha a respiração, memorizando cada entoação, a força das suas mãos grandes enroladas nas dela, a maneira como os olhos dele procuravam os seus. A alegria inundou-a como se aquele gentil subir da maré se tivesse tornado uma onda maior do que o seu corpo. — Fugiria para a Prússia contigo, Jeremy — disse ela, a verdade ecoando em cada palavra. — Não deixaria os meus filhos, mas deixaria todos e tudo o resto.

— Perante a indignação da sociedade? — A voz dele era quase casual, curiosa. Contudo, ambos sabiam que a pergunta tinha uma enorme carga.

Betsy sorriu-lhe. E então soltou as mãos e atirou-se a ele, enlaçando os braços em volta do seu pescoço.

— Sim, fá-lo-ia — disse ela ferozmente, de encontro à sua boca. — És tu, e só tu, mesmo quando eras rude para mim, quando deslizavas para debaixo da mesa, quando te rias de mim. Quando eras a única pessoa que realmente me ouvia, e sabia do que eu gostava. Quando me vias realmente.

Jeremy gemeu quando o peso dela o atingiu, e beijou-a. Ou beijaram-se, porque as mãos dela estavam no seu cabelo, puxando-lhe a cabeça para baixo. Depois ela recuou, um passo, dois, três, até chegar junto da cama.

Ele pegou nela ao colo e depositou-a na cama, com os olhos cheios de sentimento. Recuou e tirou a camisa de dentro das calças.

— Estava ansiosa por te ver em camisa de dormir — disse ela baixinho.

— Não uso. — Ele puxou as calças e estas caíram ao chão.

Betsy virou-se de lado e apoiou a cabeça com o cotovelo. Os seus corpos não podiam ser mais diferentes. O dele era esculpido, dos ombros largos à cintura estreita, e abaixo...

— Os cupidos não eram desse tamanho — disse ela debilmente.

— Reparei que os pobrezinhos não eram particularmente dotados — retorquiu Jeremy alegremente. — Tão pequenos como as suas asas. — Passou uma mão pelos testículos e depois, lentamente, pela sua extensão. — Isto foi concebido para uma mulher, não para um querubim maroto.

Betsy sentou-se na cama, fascinada. Ela sabia como era um homem. Até sabia o que se preparavam para fazer — e não era graças àqueles cupidos foliões. Mas imaginara algo mais pequeno e menos viril.

Coragem, recordou-se.

— Vem aqui — disse, estendendo os braços. — Vem.

— Sempre. — Jeremy tinha um joelho na cama e ela virou-se novamente, as mãos abertas nos músculos grossos do seu peito. Deslizou-as para baixo, e o corpo dele ficou rígido.

— Sim? — sussurrou ele com voz rouca.

— Sim — disse ela. Depois, com a mão finalmente a envolver o membro duro e sedoso que ele acariciara um minuto antes, prosseguiu: — Não voltes a perguntar, Jeremy. Eu e tu estamos aqui, e é assim que as coisas vão ser. Seguir-te-ei para onde quer que vás. — Vendo uma centelha nos seus olhos, acrescentou: — Sim, até para Bedlam, mas não irás para lá. Vou abanar salsichas debaixo do teu nariz até acordares.

— Basta que me leves para o quarto e te dispas diante de mim, devagarinho — sugeriu ele. — Recuperarei logo os sentidos.

— E se, em vez disso, te despir a ti? — Sorriu-lhe maliciosamente e apertou a mão com mais força.

— Podias fazê-lo — respondeu ele com esforço.

— E que tal isto?

A resposta dele foi um gemido rouco. Depois disse:

— Basta, a não ser que me queiras inútil.

— É mais o contrário — retorquiu Betsy, rindo. Mas mudou as mãos para o seu peito. Ele tinha um conjunto de pelos pretos que desciam em seta em direção à barriga. — Isto sabe maravilhosamente de encontro aos meus seios — sussurrou, arqueando-se para pressionar os mamilos rijos contra ele.

Os gemidos entrelaçaram-se, o eco arquejante do prazer carnal.

— Tenho de ver os teus seios — disse ele, movendo-se para o lado e levantando-lhe devagar a camisa de dormir, até a tirar pela cabeça. — Não sabes quantas vezes tracei mentalmente as suas curvas, imaginando-os. — Moldou-a com os dedos. — És muito mais macia do que eu podia imaginar — sussurrou. Os dedos chegaram aos mamilos e a respiração dela acelerou. — Há um excerto lindo em Romeu e Julieta — murmurou ele. — Que os lábios façam o que fazem as mãos, ou algo do género.

Betsy fechou os olhos. A sua boca quente traçava-lhe um padrão no seio direito, aproximando-se do mamilo e afastando-se logo depois, até ela tremer de antecipação. Mesmo assim, a sua lambidela áspera surpreendeu-a a ponto de emitir um som gutural que se transformou num gemido.

Uma mão grande segurou-lhe os seios, e, como se os dedos dele fossem os dela, sentiu o peso da sua curva, a seda da sua pele. O calor percorreu-a como se as veias se tivessem dissolvido e o seu corpo se tivesse tornado uma conduta para as faíscas e o fogo.

Deu por si a arquear-se instintivamente, empurrando o peito mais firmemente de encontro à sua carícia, suplicando em silêncio por um toque mais duro. Ele reagiu de imediato, a sua boca apertando-se num puxão delicioso que a fez gritar, retorcendo as ancas e levantando um joelho. De olhos ainda fechados, as mãos cegamente cerradas nos seus ombros, os músculos retesados relaxando sob o seu toque.

Betsy arquejava no momento em que Jeremy levantou a cabeça, de olhos famintos, mas com um brilho de satisfação. Sentia o suor na sua testa e atrás dos joelhos, o que era desconcertante e ligeiramente embaraçoso.

Jeremy sorriu, um sorriso lento e feliz.

— Olá — disse com voz rouca.

Betsy conseguiu recuperar o fôlego, mas o sorriso dele ainda a fazia vibrar interiormente.

— Devíamos casar e ficar na cama o dia todo — sussurrou ela, traçando-lhe os lábios com o dedo. Ele lambeu-lhe as pontas dos dedos e ela estremeceu de novo.

— Mmm — gemeu ele, e rolou por cima dela outra vez, o polegar esfregando-lhe o mamilo e o pénis latejando nas pernas dela. Com um gemido gutural, ela esfregou-se nele.

Ele disse algo rouco e demasiado baixo para ser ouvido, e tomou-lhe a boca num beijo que a fez tremer e premir-se desesperadamente de encontro a ele.

No fundo da sua cabeça, a avidez que sentia acionou um alarme. Estaria a ser demasiado... demasiado direta? Parecia um pensamento ridículo para ter naquele exato momento, mas não era fácil livrar-se de tantos anos determinada a assegurar que o seu marido nunca pensasse que ela tinha prazer na cama.

O embaraço inundou-a e ela interrompeu o beijo. Sentiu-se subitamente suja e suada.

— Passaria a minha vida na cama contigo, se mo pedisses — disse Jeremy, fitando-a. Apoiou-se nos cotovelos, mordiscou-lhe a orelha e sussurrou: — Estou deslumbrado, Bess, caso não tenhas notado. Estou aos teus pés, ou estaria, se tu quisesses. Talvez queiras?

Ela mordeu o lábio, tentando pensar no que diria uma senhora. Ele não esperou, deslizou para baixo, beijou-lhe os dedos dos pés e depois chupou um, o que a fez gemer e perder a vergonha que lhe retesava os ombros.

— Magnífico — exclamou Jeremy, mordiscando-lhe os dedos do pé direito. — Se eu fosse um sapateiro, choraria de alegria ao fazer sapatos para este pé.

Betsy começou a rir, a alegria misturando-se com desejo ardente, que voltou como se não tivesse sido sufocado pela culpa.

Uma mão áspera circundou-lhe o tornozelo.

— Lembras-te de quando o Thaddeus te pediu em casamento e as tuas anquinhas subiram na mesa de bilhar?

— Sim — arquejou ela, porque a outra mão dele estava a traçar carícias no interior da sua coxa.

— Da minha cadeira no canto, via os teus tornozelos — prosseguiu Jeremy, pontuando as palavras com beijos nas pernas. — Quase saltei do meu canto para dar um murro no queixo do Thaddeus por também poder vê-los.

— A sério? — Ela ergueu a cabeça e fitou-o.

Ele curvou a boca maliciosamente.

— Nunca subestimes a natureza primitiva de um homem. Se o Thaddeus não tivesse virado imediatamente a cabeça, como o excelente cavalheiro que é, teria um olho negro no dia seguinte.

— Não fazia ideia — arquejou Betsy.

— Tentei persuadir-me de que o meu ultraje era em nome dos teus irmãos. Que eu era apenas um representante do North.

— O North não teria prestado atenção aos meus tornozelos — comentou Betsy.

— Eu não conseguia desviar os olhos. A ideia de que outro homem pudesse partilhar aquele prazer inundou-me de raiva. — Olhando-a nos olhos, ele percorreu as suas pernas com ambas as mãos. — Lembras-te de quando te disse que a guerra arrancava o cavalheirismo a um homem?

Ela deu uma gargalhada entrecortada por um arquejo.

— Não é verdade?

— É muito verdade. E a prova é que tu estás aqui comigo esta noite, nesta cama, prestes a ser devassada, o nosso casamento prestes a consumar-se apesar de ainda não estarmos noivos.

Ele baixou a cabeça e beijou-lhe o interior da coxa.

Betsy fechou os olhos, novamente atingida pela vergonha. Com a cara tão perto da sua perna, ele podia ver as suas partes mais íntimas. Deviam estar a fazer amor debaixo dos lençóis, no escuro. Ela devia ficar quieta em vez de estremecer a cada toque dos seus lábios. As suas pernas ficaram rígidas.

— Bess — disse ele num tom encorajador.

— Dá-me só um momento — pediu ela, com a mente a rolar em círculos de medo. — Só preciso de...

— Não é importante — disse ele. — Não entre nós, Bess. — Mas deslizou as mãos até aos tornozelos, em silêncio, numa aceitação tácita do que ela decidisse.

Betsy fechou os olhos, ouvindo-o respirar.

Se ele não era um cavalheiro, então ela não seria uma lady. Pelo menos, quando estivessem juntos.

Ela nunca o deixaria; sabia-o com todo o seu ser. Ele era o seu prussiano, não o seu duque. O prazer partilhado não mudaria o seu caráter nem a tornaria uma mulher infiel.

Mas precisava de dominar aquele medo insidioso, ou o prazer dele diminuiria.

— Como sabias o que eu estava a sentir? — Ela apoiou-se no cotovelo, a curiosidade vencendo a mortificação.

— Eu conheço-te — respondeu ele, beijando-lhe o joelho esquerdo. O cabelo dele deslizou-lhe sobre a pele nua, fazendo-a tremer. Ele levou as mãos até mais acima, acariciando-lhe a pele sensível do interior das coxas.

Betsy mergulhou num desejo irracional e cru. Queria que ele a acariciasse mais acima. Queria que os seus lábios lhe tocassem as coxas, e mais acima. Até queria que ele a olhasse.

Que a lambesse.

Homem e mulher prestavam esse serviço um ao outro, e, de acordo com o teto da leiloeira, os querubins ficavam inebriados com o ato.

— Estás a planear beijar-me, hum, intimamente? — sussurrou ela.

— Estava. — Ele encontrou os seus olhos, e a fome que viu neles deixou-a tonta. — Mas podemos esperar até estares mais acostumada à cama.

— Eu gostava de te beijar assim — disse Betsy, as palavras a escaparem-lhe da boca.

Ele ficou imóvel, os dedos apertando a curva cheia da parte de cima das coxas dela. Isto fê-la ganhar coragem, porque os olhos dele nem sequer pareciam escandalizados. Muito pelo contrário.

— Não temos nenhumas nuvens fofinhas — continuou ela. — Gostava de experimentar algumas posições angélicas. — Começou a sentar-se. — De facto...

— Não. — Ele deslizou as mãos e prendeu-lhe as pernas à cama.

Ela arqueou uma sobrancelha.

— Temos um ditador?

— No quarto, sempre. — Disse-o sem pedir desculpa, apesar de acrescentar: — Se eu fizer alguma coisa de que não gostes, diz-me.

— Essas duas afirmações são contraditórias — brincou ela.

Ele gemeu, pôs-se de gatas e beijou-a. Alguns arquejantes momentos mais tarde, Betsy recuperou a sanidade e descobriu que tremia de impaciência e murmurava preces baixinho.

Meia hora depois, Jeremy familiarizara-se com os seus seios e começara a deixar beijos na curva da sua barriga. As preces dela eram ofegantes.

— Não podemos fazer isso mais tarde? — implorou, baixando os olhos com algum embaraço para o homem que se colocara entre as suas pernas e fazia coisas com os polegares que lhe prendiam a respiração e a transformavam em gemidos. Provando a sua coragem, a si mesma e a ele, exprimiu-o por palavras. — Gostaria muito de ser desflorada.

Ele olhou para cima, os olhos cheios de um riso malicioso.

— Estás a precipitar-te, Bess. — Sem deixar de lhe fitar o rosto, inclinou-se para a frente apenas o suficiente para a lamber. Uma lambidela longa e lenta. Betsy tentou manter a boca fechada, mas um gemido carente escapou-se dela. — Tens um sabor maravilhoso — disse com uma voz gutural.

Ela tombou para trás, tremendo, e tapou os olhos com um braço. Ele abria-lhe as pernas para a poder lamber. Ela nunca, em toda a sua vida, sentira nada com tanta intensidade. Estremecimentos abalavam-lhe o corpo, e, quando um dedo deslizou para dentro de si, ela gritou o seu nome, apertando-se bem em redor do dedo, as suas pernas remexendo-se imparavelmente de encontro aos lençóis.

— O que disseste? — perguntou Jeremy.

Ela deixou cair o braço e arquejou:

— Mais.

— Assim?

Ele introduziu um segundo dedo e ela arqueou as costas, a respiração trémula no peito, premindo-se de encontro à sua mão, porque não era suficiente.

Jeremy disse algo num resmungo baixo e retirou os dedos. Ela gritou, estendendo os braços para ele, mas de repente ali estava ele, por cima dela, e num movimento suave penetrou-a.

Por um momento, Betsy ficou quieta em redor dele, os olhos arregalando-se de surpresa. Ele era muito mais largo do que os seus dedos.

— Não dói — disse ela, chocada. E repetiu. — Não dói.

Ousadamente, levantou as ancas, porque ele estava quieto, examinando-lhe os olhos.

— Não? — Outra vez aquele sorriso alegre, o que ela tão raramente via. — Está na hora de experimentar algo mais do que não doer — murmurou ele.

Em resposta, ela puxou-o novamente para si, o seu corpo ansiando por sentir mais. Ele reclamou-a de novo, com uma investida poderosa que deixou fogo à sua passagem.

Um gemido irrompeu-lhe dos lábios.

— Sentir-te... Bess, amor, nunca senti nada como tu.

Ela tentou responder, mas as palavras não pareciam caber num mundo que se estreitara para membros suados e respirações soluçadas. Ele retirou-se e investiu novamente. Betsy arqueou-se, segurando-lhe os ombros, inspirando, retorcendo-se numa tentativa de chegar mais perto. Sentia-se sem graça e desesperada, sem saber como cumprir a sua parte.

Ele segurou-lhe um joelho e encostou-o ao flanco, mostrando-lhe. Agora, ela estava completamente aberta para cada uma das suas investidas, e a cada uma era como se fosse lambida por uma língua de fogo.

Como podia ter pensado que ficaria quieta enquanto fizesse amor? Cada investida punha-lhe os nervos a dançar, e, quando ele caiu num ritmo suave, penetrando-a fundo e retirando-se, ela continuava a erguer as ancas, prendendo-se a ele.

Por trás dos seus olhos fechados, um prazer implacável acumulava-se como água contida numa represa, tão feroz que quase a assustava.

— Nunca senti nada assim — disse Jeremy com uma voz rouca, roçando-lhe os lábios. — Foste feita para mim. Fomos feitos para isto.

Betsy devolveu-lhe o beijo, as ancas erguendo-se ao encontro das suas investidas, gemidos entrecortados escapando-lhe dos lábios. Os movimentos dele eram suaves e imparáveis, enquanto as mãos dela lhe tocavam as partes do corpo aonde podiam chegar, acariciando-o, amando-o.

E o prazer continuava a acumular-se, até que chegou o momento em que a represa rachou e rebentou. Ele virou a cabeça mesmo a tempo, e os seus lábios cobriram os dela, as ancas movendo-se mais depressa e com mais força. Betsy enterrou os dedos nos ombros dele enquanto ondas de prazer lhe percorriam o corpo todo.

Recuperou os sentidos, percebendo que o suor lhe humedecia a parte de trás das pernas e que o seu corpo tremia.

Jeremy estava por cima dela, apoiado nos cotovelos, os ombros a brilharem de suor. Sorriu-lhe com olhos sonolentos, de pálpebras pesadas.

— Parece que foi divertido.

A voz dele soava como se ele mal se conseguisse controlar. Betsy percebeu subitamente que Jeremy nunca se abandonava. Talvez por isso se tivesse ido abaixo quando os fogos de artifício explodiram em redor dele.

Não, essa era uma explicação demasiado simples.

— Êxtase — murmurou ela. Virou a cabeça e esfregou a bochecha no ombro suado de Jeremy, porque as lágrimas lhe humedeciam os olhos. — Amo-te — sussurrou. Envolveu-o com os braços e depois, arrojada, com as pernas, e deixou a cabeça descair de modo que os seus olhares se encontrassem. — És tão duro e tão bom que dói. — Os olhos dele relampejaram. — No melhor dos sentidos — emendou ela roucamente.

Ele baixou a cabeça e deu-lhe um beijo ávido. A maravilhosa sensação de relaxamento que ela sentira desvaneceu-se enquanto um delicioso incêndio voltava.

Jeremy recomeçou a mexer-se cada vez mais depressa, de maxilares cerrados. Betsy tentou conter ruídos lascivos beijando-lhe os ombros e o pescoço, mas acabou a lamber-lhe o suor e a gemer. Ele conseguiu mover-se ainda mais depressa até ela se agarrar a ele com todas as suas forças.

Os seus corpos moviam-se como se fossem um, respirações entrecortadas, olhares presos.

— Caramba, amo-te — sussurrou Jeremy, com uma voz tensa e áspera.

Ela teria sorrido. Teria respondido da mesma forma, ou ter-lhe-ia agradecido, ou... qualquer coisa. Em vez disso, viu-o fechar os olhos, atirar a cabeça para trás, ficar com a respiração mais áspera. Algo feroz e delicioso a inundou.

Ele esperou, com o suor a luzir-lhe na cara, as faces tensas, até Betsy estar deslumbrada de prazer.

Depois segurou-lhe as ancas e puxou-as para si.

Abandonou-se com um grito rouco.


Capítulo 22

Jeremy acordou com uma sensação de alarme. A luz da madrugada insinuava-se no quarto, o que não era invulgar: estava acostumado a ver o céu tornar-se rosado ao nascer do dia.

Depois a sua memória clareou e as recordações voltaram: a forma como o cabelo de Betsy lhe caíra em redor das faces na segunda vez que tinham feito amor, quando ele a incentivara a sentar-se em cima dele; no momento em que ela decidira fazer o papel de um cupido maroto e lambê-lo até ele tremer incontrolavelmente, gemidos roucos irrompendo-lhe da garganta porque a dor nos genitais o dominava. Isso e a luz nos olhos de Betsy, que mostrava que ela o queria, fosse qual fosse o seu título ou a sua vergonha.

Deixou-se ficar alguns segundos a saborear essa memória, permitindo que a cura que lhe causara se lhe instalasse nos ossos. Ele tinha uma mulher (quase). E... pensando na noite, e na sua completa falta de cuidados, talvez crianças. Possivelmente, crianças. Provavelmente, crianças, visto que ela murmurara o seu nome e lhe dissera, arquejante, que queria passar todas as noites assim.

Sim, crianças.

Uma menina com as sobrancelhas de um Wilde e um riso maroto. Um menino... um futuro marquês.

Grégoire mal conseguira disfarçar o seu desapontamento quando Jeremy voltara da guerra incólume. Ele não gostaria das crianças. Talvez Grégoire, no seu ressentimento, tivesse espalhado boatos acerca da sua suposta cobardia no campo de batalha.

Conseguia imaginar a fúria ardente nos olhos de Betsy se alguma vez partilhasse com ela a sua suspeita. Ela já não gostava do seu primo. Grégoire não seria convidado para os natais em Lindow.

Mas Jeremy seria. Agora tinha uma família. E tinha também o seu pai.

Talvez conseguisse convencer Betsy a fugir para casarem em Gretna Green. Uma expressão carrancuda de Lady Knowe surgiu-lhe na mente, e ele rejeitou de imediato a ideia.

Nada de Gretna Green.

Mas diabos o levassem se mais do que uma noite passasse antes de ele voltar a ver aquela rendição abençoada no rosto de Betsy. Isso significava que as crianças viriam, mais cedo ou mais tarde. Que pena ela ter-se ido embora para o seu quarto, apesar de ser na porta ao lado.

Mas, afinal, quando virou a cabeça... ali estava ela. Uma pilha amarrotada de cabelo sedoso, um doce narizinho arrebitado, um braço em cima dos olhos, exatamente como quando se tentara esconder, ser a senhora recatada que não era.

Todo o seu corpo reagiu com uma onda de felicidade.

Ele nunca tencionara amar uma mulher, assim ou de qualquer outra maneira. Mas ali estava. E ali estava ela também. Virou-se de lado e deslizou-lhe uma mão pelo corpo. Ela vestira uma camisa de dormir antes de voltar para a sua cama.

— Betsy — disse ele, inclinando-se para lhe beijar a testa.

Ela fechou os olhos. Os seus lábios rosados e macios estavam inchados depois de uma noite de beijos.

— Mmm.

— Rainha Bess, tens de voltar para o teu quarto — disse ele, beijando-lhe o queixo. — As criadas estão quase a levantar-se, se não se tiverem levantado já.

Ela virou a cabeça para o outro lado com um protesto abafado e depois tentou afastar o corpo dele. O desejo recomeçava a dominá-lo, sentia um latejar faminto. Bastava-lhe olhar para ela para ter uma ereção. Tinha a certeza de que seria assim toda a vida.

— Rainha do meu coração — murmurou ele, mordendo o ponto vulnerável onde o pescoço encontrava o ombro.

— Porque me chamas rainha? — perguntou Betsy subitamente, virando-se para ele.

— Tu és uma rainha — disse Jeremy. — Vieste até à minha cama contra toda a decência, por isso claramente tencionas mudar as regras do teu reino.

Betsy riu-se.

— Lavei-me e fui para a cama, mas senti-me muito sozinha. Por isso voltei. Estavas a dormir.

Jeremy abanou a cabeça.

— Suponho que assumes a responsabilidade por isso.

Ela deslizou uma perna sedosa por cima da sua anca.

— Tenho de prová-lo?

Ele respirou fundo.

— Tenciono casar contigo, amanhã ou na próxima semana ou quando a tua família permitir, mas não quero casar no meio de um escândalo.

— Não me importo que haja um escândalo. — Betsy virou-se de lado, a cara sobre um braço, os olhos pacíficos.

Ele queria que ela explicasse melhor, mas o dia aguardava-os. Tomou-lhe a face na mão e disse:

— Hoje vou dizer ao meu pai e ao meu primo que tenciono casar contigo.

Betsy franziu o nariz.

— Não gosto do teu primo. Prometo esforçar-me mais no futuro para reverter isso.

— É difícil gostar do Grégoire — disse Jeremy. — Mas ele merece saber a notícia por mim.

Betsy franziu a testa.

— Porque é que ele partiu do princípio de que ia ser herdeiro? Era assim tão provável que morresses no campo de batalha?

— Acho que havia uma possibilidade de que eu não sobrevivesse. Eu próprio lhe disse que, mesmo que não morresse, não tencionava casar. Falava a sério... na altura.

A boca dela relaxou.

— Até eu aparecer?

— Arrumaste-me com a mesma competência com que embolsas bolas de bilhar — disse ele, os lábios pairando sobre os dela. Sentia as suas emoções tão cruas que tinha de as exprimir como brincadeiras.

Betsy conseguia decifrá-lo. Tinha os olhos húmidos e beijou-o docemente. Provavelmente, tinha-o decifrado sempre; os seus dias de comentários sardónicos haviam acabado.

— Então diz ao Grégoire que tem de desistir dos seus sonhos de um título, e eu informo a tia Knowe de que temos de organizar outro casamento — disse Betsy algum tempo depois. — Também tenho de escrever ao meu pai e à Ophelia. Não me lembro quanto tempo planeavam ficar na Escócia, mas é perfeitamente possível que fiquem cercados pela neve e permaneçam lá vários meses.

— O nosso casamento deve acontecer antes da primavera — declarou Jeremy, afastando-lhe o cabelo solto da testa. — Falta de cuidado significa bebés. — Felizmente, ela parecia feliz com a perspetiva. — Terás apenas uma temporada social — disse ele, sentindo alguns escrúpulos.

— Não gostei — retorquiu ela resolutamente. — Depois de ter aperfeiçoado a arte de ser uma donzela, tudo se tornou demasiado enfadonho. Se quiseres evitar os bailes, nunca me queixarei.

— Na definição original, «donzela» significava virgem — disse Jeremy. — Um ratinho dócil e virgem. — Viu a boca dela tremer de riso. — Tu és uma mulher selvagem, uma rainha selvagem. Deste-me isso, e foi o melhor presente que já me deram. — Deixou que a verdade das suas palavras lhe brilhasse nos olhos. Um sorriso abriu-se nos lábios dela, mas ele ainda não tinha acabado. — Vamos fazer amor até conhecermos de cor a pele do outro, como se fosse a nossa. Para nos podermos excitar com pouco mais do que um beijo. Para que eu conheça tão bem as curvas do teu corpo como tu conhecerás os ângulos do meu.

Ele viu então que ela era uma Wilde, verdadeira e orgulhosa. Para o provar, ela estendeu a mão e agarrou-lhe firmemente o pénis duro.

— Conhecerás também o toque dos meus dedos tão bem como o dos teus? Pelo que me disseste dos rapazes de Eton, terei de praticar dia e noite.

— Nunca me satisfarei com um prazer solitário — afirmou ele roucamente. — Não depois disto. Depois de ti.

— E eu sinto uma dor dentro de mim, onde tu pertences — murmurou Betsy, acariciando-o com um movimento lento e firme. As ancas dela balançaram, como se o simples facto de tocar nele a fizesse retorcer-se de prazer.

Jeremy enfiou uma mão debaixo da camisa de dormir de Betsy e pousou-a na curva doce da sua anca. As pernas dela abriram-se convidativamente. Ela era macia como cetim... acolhedora.

— Nunca fiz amor com uma mulher de manhã — murmurou ele.

A expressão dela escureceu.

— Nunca mais farás amor com outra mulher, de manhã ou de noite — afirmou ela com um toque de arrogância Wilde.

— É verdade — disse ele, apaziguador. Rolou para cima dela e posicionou-se tão rapidamente como uma seta num arco, preparada para voar. — De certeza que não estás dorida, Bess?

Ela mexeu-se debaixo dele, as ancas movendo-se numa linguagem ávida que ele começava a conhecer.

— Não — respondeu ela. — Talvez um pouco, mas quero-te...

Ele esfregou a ponta grossa no seu calor húmido e ouviu-a prender a respiração na garganta.

— Podemos fazer outras coisas — sugeriu ele, notando que a sua voz decaíra para um sussurro rouco.

— Dói-me, mas não é por estar dorida — disse Betsy com firmeza.

Mesmo assim, ele hesitou.

— Temos tempo... — Ela arqueou-se de encontro a ele, um arquejo involuntário fugindo-lhe dos pulmões. — Sabe tão bem.

— É mais fácil assim — disse Jeremy, rolando de maneira que ela ficasse por cima.

Silvou de prazer enquanto a penetrava lentamente. Beijaram-se, e a nuvem emaranhada que era o cabelo dela tombou novamente sobre ambos como uma cortina, mantendo o mundo lá fora. Ou moldando um novo mundo, só com eles os dois, trémulos, beijando-se, movendo-se ociosamente, estavelmente, como se escalassem uma montanha. Caindo da montanha juntos, por entre clarões.

No final, Betsy tombou no peito dele e ele susteve a respiração, acariciando-lhe o cabelo.

Pestanejou para limpar o brilho húmido nos seus olhos.


Capítulo 23

A tia Knowe olhou-a intensamente quando Betsy espreitou pela porta.

— Então? — perguntou.

Betsy sorriu.

— Vamos casar-nos. Isto é, se o pai concordar. E mesmo que não concorde — acrescentou.

A tia pôs-se de pé e enlaçou Betsy num abraço apertado.

— O teu pai vai ficar tão contente, minha querida!

— Vai? — perguntou Betsy. Afinal, Jeremy passara a maior parte do outono na sala de bilhar, supostamente insensível devido ao álcool, soltando comentários sardónicos quando se dava ao trabalho de falar.

— Sim — respondeu a tia Knowe. — O teu pai tem muito respeito pelo Jeremy. Lembra-te de que o North lutou lado a lado com ele em muitas batalhas.

— Tinha-me esquecido.

— Posso dizer-te quem é que não vai ficar satisfeito — prosseguiu a tia Knowe, com uma nota de satisfação na voz. — Aquele intolerável jovem, o Grégoire. É raro eu não gostar de alguém...

— Isso não é exatamente verdade — retorquiu Betsy, beijando a face da tia. — A tia tem padrões elevados.

— Desaprovo frequentemente — disse a tia Knowe. — Mas é raro não gostar. Não consigo gostar do Grégoire, apesar de todas as suas maneiras serem graciosas. Tem os olhos muito juntos...

— Sei algo acerca dele que pode ser considerado imoral — afirmou Betsy. — Não o mencionei ao Jeremy, mas talvez deva fazê-lo quando estivermos casados.

A tia Knowe recostou-se e voltou a pegar na sua malha.

— Francamente, de cada vez que olho para esta lã, ela está mais enredada.

— Acho que o Grégoire aceita dinheiro de vendedores pelos seus desenhos — disse Betsy. — Lembra-se das gravuras que apareceram praticamente do dia para a noite, por causa do noivado da Diana com o North? Foi alguns dias depois de o Grégoire ter visitado o Jeremy em Lindow pela primeira vez.

— Não é fácil ter provas — objetou a tia.

— Ele gabou-se de que toda a gente pode reconhecer os seus desenhos da família real — disse Betsy.

— Não há nada de ilegal em vender desenhos às papelarias. Acredita, o meu irmão já tentou abafar as piores gravuras, sem sucesso. A tua criada já emalou as tuas coisas? Estou ansiosa por voltar a Lindow, e, aparentemente, as estradas estão limpas esta manhã.

— A leiloeira já entregou as miniaturas?

— Claro que sim. — A tia Knowe sorriu.

— Posso ver aquela que parecia um jovem Wilde?

— Agora não, querida. Já estão embaladas. Vamos comer uma refeição leve e partimos para casa. — Animou-se. — Se o Jeremy informar imediatamente o Grégoire, talvez o homem parta à pressa e não nos acompanhe a Lindow.

Betsy abanou a cabeça.

— É um dia triste, aquele em que eu sou mais cínica do que a tia, mas, se ele estiver a fornecer imagens às papelarias, vai manter-se junto dos Wildes o máximo de tempo possível.

— Se o teu pai voltar da Escócia e desconfiar, castra-o — disse a tia Knowe, como se falasse em preparar uma chávena de chá.

Betsy engasgou-se.

— Sabemos o quanto és séria em relação à tua reputação — disse a tia com firmeza. — Outro dos meus sobrinhos rir-se-ia do assunto. O North nem se ralou quando foi comparado a um violador. Um violador ao género de Shakespeare, mas um violador. Tu és muito diferente do resto da família, e respeitamos isso.

Betsy ficou em silêncio por um momento, vendo a tia a fazer malha.

— Já não me importo — disse por fim. A tia levantou a cabeça. — Estou a falar a sério. Ele que me transforme num escândalo. Pode vender gravuras minhas por toda a Inglaterra, se quiser.

A tia Knowe inclinou a cabeça.

— E se ele te representar a entrar furtivamente no quarto de um homem?

— Como sabe isso? — perguntou Betsy, apenas ligeiramente surpreendida.

— Conheço os meus pintainhos — respondeu a tia. — E se ele te comparar com a tua mãe, Betsy?

— Eu não sou como a minha mãe — retorquiu Betsy resolutamente. — A seu tempo, toda a gente esquecerá porque, conforme a tia me disse, eu sou uma Wilde. A princípio pode haver muito barulho, mas depois de nos casarmos? E quando estivermos casados há uma década? Acho que não.

O sorriso da tia alargou-se.

— Estou tão feliz por ti, Betsy.

— Ele diz que me ama.

— Há meses que toda a gente sabe isso. O homem não consegue tirar os olhos de ti.

— Até ao casamento do North, julguei que ele nunca tinha reparado em mim — disse Betsy, e depois deu um gritinho. — A tia não fez isso!

— Não fiz o quê? — perguntou a tia inocentemente.

— Encaminhou o Thaddeus para me pedir em casamento na sala de bilhar porque sabia que o Jeremy estava lá!

A tia Knowe pousou a malha na mesa e levantou-se.

— Não sou a tua tia favorita?

— É a minha única tia — respondeu Betsy.

— Bem, tu és a minha sobrinha mais velha favorita — disse a tia Knowe, inclinando-se para lhe beijar a bochecha. — Não suportava ver-te a recusar prontamente mais um pedido de casamento. Começava a recear que um desses cavalheiros te persuadisse a cometer um erro.

— Mandou o Jeremy para lá antes de nós?

— Claro que sim — confirmou a tia com aprumo. — Ele estava desesperado para fugir do salão de baile. Foi uma atitude de boa anfitriã, mandá-lo retirar-se.

Betsy começou a rir.

— A tia é maléfica! Maléfica!

— Tento — disse a tia, pondo um braço em volta dos ombros de Betsy. — Agora vem daí, mulher quase casada. Estou esfomeada.

— Como soube que me juntei ao Jeremy na noite passada? Ele acompanhou-me muito decentemente à minha porta.

— Não conseguia dormir — explicou a tia. — Quero que saibas, minha querida, que não há nada de decente num cavalheiro escoltar uma jovem ao seu quarto no escuro da noite, sobretudo fazendo uma longa pausa junto da porta.

— É verdade — disse Betsy. No entanto, sorriu. — Fui eu que me senti demasiado sozinha na cama e voltei para o seu quarto.

— Sinto-me muito grata por estas paredes serem tão grossas. Agora que vocês já não são crianças... — esclareceu.

Betsy também se sentia grata, dado que parecia incapaz de ficar em silêncio quando as mãos de Jeremy, e sobretudo a sua boca, estavam sobre o seu corpo.

Já se encontravam instalados na carruagem, prontos para regressar a Lindow, quando voltou a vê-lo. Ele espreitou para dentro da carruagem e acenou, com os olhos no rosto de Betsy.

— Vou voltar para o castelo com a minha família.

— Isso responde à questão acerca de o Bisset-Caron regressar a Lindow — disse a tia Knowe com um suspiro, enquanto a carruagem se punha em movimento.

— O Jeremy tenciona dizer ao pai e ao primo que vamos casar-nos — explicou Betsy.

— Um golpe para o Grégoire, que aparentemente tinha a ambição de herdar o título do Jeremy.

— Um tolo é um tolo é um tolo — disse a tia Knowe. — Julgo que ele esperava que o Jeremy morresse em batalha, e isso meteu-se-lhe na cabeça. Suspeito que sabe da reação do Jeremy aos fogos de artifício, devido a um comentário irritante que fez uma vez.

— Fez um comentário desagradável acerca disso ontem. Ele não pode usar isso para retirar o título ao Jeremy, pois não?

— Oh, claro que não — respondeu a tia Knowe, reconfortando-a. — Isso só acontece nos melodramas. Por um lado, o pai do Jeremy ainda está vivo. Por outro, o Jeremy é manifestamente são, e nós podemos confirmá-lo. Uma simples palavra do teu pai esmagará qualquer petição tola que o Grégoire possa tentar.

— Suponho que o Grégoire não seja perigoso, que esteja apenas desapontado — disse Betsy.

— Exatamente. E chato.

Jeremy teria concordado com Lady Knowe se soubesse o que ela pensava. A viagem para Lindow demorou duas horas, devido à neve e ao gelo nas estradas. O tempo foi passado num monólogo sobre a incapacidade de Jeremy para se casar, proferido, naturalmente, pelo primo. O pai dele revirou os olhos e adormeceu num canto.

Jeremy nunca dera muita atenção a Grégoire. O primo frequentara Eton, mas dois anos depois dele. Jeremy conhecera o jovem quando Grégoire o apanhara no primeiro dia do trimestre e declarara ser o seu familiar mais próximo.

O facto não lhe interessara na altura, e não lhe interessava agora.

Grégoire crescera e tornara-se um homem que dava demasiada importância à cor das meias que usava.

— Não o digo para meu benefício, mas por preocupação com o nosso nome ancestral — dizia ele agora, com evidente falsidade. — Um homem que esteve internado em Bedlam não devia assumir o título.

— Como soubeste que estive internado em Bedlam? — perguntou Jeremy.

Grégoire encolheu os ombros.

— Alguém deve ter-me dito.

— Isso não basta — retorquiu Jeremy. Inclinou-se ligeiramente para a frente e deixou que a sua expressão dissesse o resto.

Grégoire era um filho único mimado, não um homem que alguma vez concebesse alistar-se na artilharia ou em qualquer outro ramo do Exército. Esquivou-se.

— O teu criado de quarto, se queres saber. Quando desapareceste, ele informou o teu clube, e eu por acaso estava lá. Receámos que estivesses mal.

— Percebo — disse Jeremy, tentando controlar a sua irritação. — Deve ter sido uma deceção quando eu apareci, animado e de saúde, no castelo de Lindow. Preferias que eu me tivesse atirado ao Tamisa?

— Claro que não! — exclamou Grégoire, parecendo tão indignado quanto era possível num tipo tão pouco fiável. — Tenho a minha própria fortuna e não preciso da tua. — Acariciou com gosto a grande safira que usava na mão esquerda, supostamente em honra da sua mãe francesa. — Como te disse, meu querido primo, a minha preocupação é com o sangue que partilhamos, e com a antiguidade do nosso ilustre nome.

— A tua mãe era francesa, caso te tenhas esquecido — comentou Jeremy. — E tu decidiste usar o nome dela, por isso já não partilhamos um nome.

Os olhos de Grégoire endureceram.

— Sou inglês até ao tutano.

— Então o meu valete informou-te de que eu estava desaparecido e mais tarde informou-te da minha experiência em Bedlam? — Aparentemente, era hora de mandar o seu valete para a reforma; o homem era demasiado velho para ser simplesmente despedido.

— Isso é irrelevante — retorquiu Grégoire. — Há gravuras que circulam em Londres, representando-te com uma bata branca, furioso e sem peruca. — Baixou a voz. — Não queria mencioná-las diante do marquês; sei que a vergonha lhe causaria uma dor tremenda.

Jeremy cerrou os maxilares.

— Também há gravuras que te mostram escondido atrás de uma árvore, enquanto os homens do teu pelotão soltam os seus últimos suspiros — disse Grégoire. — Como membro da família, essas parecem-me as mais repreensíveis.

— A sério? — perguntou Jeremy.

— É axiomático que o herdeiro do marquesado não seja objeto de censura pela sua cobardia, nem de piedade pela sua loucura — anunciou Grégoire.

Jeremy recostou-se, cruzou os braços diante do peito e disse:

— Grégoire, vou casar-me com a filha mais velha do Duque de Lindow. Não servirá de nada tentares internar-me como louco.

O primo deu um gritinho. Exagerado, na opinião de Jeremy.

— Que insinuação desprezível! Depende de ti, não de mim, assegurar o futuro do nome da família, mas se não te importas, não te importas.

— Não me importo — confirmou Jeremy.

— E se enlouqueceres outra vez? Ficaste violento e tiveste de ser amarrado.

Uma chama de raiva pura ateou-se no estômago de Jeremy.

— Deste-te ao trabalho de conhecer todos os pormenores.

— És o meu único primo — disse Grégoire.

— Talvez fosse mais confortável para ambos descartarmos a relação — sugeriu Jeremy.

Recebeu outro olhar atónito.

— A família não pode ser «descartada» — disse o primo num tom insípido. — Vou rezar à Virgem Maria para não teres mais episódios violentos.

Provavelmente, não contribuiria para a harmonia se Jeremy comentasse que a Virgem Maria desempenhava um papel insignificante nas preces inglesas, ao contrário das francesas, por isso encostou-se a um canto e fechou os olhos, imitando o pai.

O sono fingido acabou por se tornar real, e só acordou quando a carruagem começou a chocalhar sobre o empedrado do castelo de Lindow.

Diante dele, Grégoire encaracolava os cabelos da peruca.

Jeremy espreguiçou-se. Uma sensação invulgar de satisfação física inundou-o.

— Porque tens de usar essa peruca sem pó? — perguntou Grégoire com um toque de insolência. — Não nos fica bem a nós.

— Não há «nós» — declarou Jeremy.

A carruagem parou. Jeremy abriu a porta e saltou sem esperar por um lacaio. Precisava de Betsy, e mais Betsy.

Na noite anterior, o seu cabelo desalinhado, os seus olhos sonolentos, o seu brilho feliz, tinham-lhe feito doer o peito com uma emoção que ele mal conhecia. Ansiava por ela, como outrora ansiara por whisky.

Para ele, apenas existia Bess, ou Betsy, ou Boadicea.

A mulher privada, a donzela da sociedade, a rainha guerreira.

Ela não estava no quarto. Nem na sala de bilhar. O maldito castelo era tão grande que a procurou durante uma hora, suportando 60 minutos de um desejo ardente e frustrante.

Quando encontrou Lady Knowe, ela abanou a cabeça para ele e disse:

— Mandei-a à destilaria, para provar a cerveja de outubro. — Jeremy pestanejou. — O Jeremy está a roubar uma futura duquesa. A Betsy foi treinada para ser a Senhora do Castelo e supervisionar todas as suas divisões.

— Será uma futura marquesa magnífica — contrapôs ele. — Acha que devo escrever ao pai dela na Escócia e pedir-lhe a sua mão em casamento? Ou pedir-lhe que regressem a Lindow?

— Mandei um mensageiro hoje de manhã. Não creio que ele fique surpreendido.

— Mas eu estou surpreendido — retorquiu Jeremy.

O riso dela acompanhou-o até ao fundo do corredor. Seguindo as instruções de Prism, Jeremy saiu pela entrada oeste do castelo. Alguém abrira um trilho através da neve que cobria o campo de tiro com arco, e ele seguiu-o. Apesar do brilho do Sol, havia um tom amarelado no ar que sugeria mais queda de neve.

Os alvos no campo de flechas tinham adquirido chapéus de neve, todos inclinados para o mesmo lado, por causa do vento. Seguiu as pegadas até um velho edifício atarracado. O lintel era tão baixo que Jeremy teve de inclinar a cabeça para entrar.

O cheiro a cerveja no interior da destilaria tornava o ar espesso. O odor chegava-lhe numa rajada de lúpulos cítricos, com um cheiro mais ténue a malte e a levedura.

Betsy estava sentada no extremo da sala, a alguma distância de uma mesa de madeira tosca para que as saias de brocado azul-claras pudessem espalhar-se ao seu lado. Tinha o cabelo empoado e preso com borboletas cujas asas tremiam quando ela se mexia. Uma capa de pelo branco estava atirada sobre um barril.

Estava a conversar com um velhote com um grande bigode.

— Boa tarde — disse Jeremy, juntando-se a eles. Para seu deleite, ela refulgiu de prazer ao vê-lo.

— Lorde Jeremy — exclamou. — Apresento-lhe o nosso maravilhoso mestre cervejeiro, Herr Horn. Vamos agora provar a cerveja de outubro.

Jeremy apertou a mão ao Sr. Horn e depois sentou-se à frente de Betsy. O mestre foi buscar cerveja e um copo para Jeremy.

— Não esperava ver-te aqui — disse Betsy.

Jeremy sorriu.

— Vais habituar-te a ver-me seguir-te para todo o lado. Então, isto é uma destilaria? Acho que nunca fui à da propriedade do meu pai.

— Temos muita sorte por o Herr Horn estar connosco — disse ela. — Ele reúne-se com alguém da família três vezes por ano, para discutir cervejas. A cerveja de outubro aguarda dois anos, depois há a cerveja preta e a branca. Eu e as minhas irmãs fazemos turnos com a tia Knowe. Dantes eram os meus irmãos mais velhos que cumpriam este dever, e as crianças mais novas assistiam.

— O melhor para educar uma futura duquesa?

— Como podemos respeitar a nossa comida e bebida se não respeitarmos o seu fabrico?

— Acabaste de citar a Lady Knowe, não foi?

Betsy riu-se.

— Ela é minha mãe, em todos os sentidos.

O Sr. Horn voltou com três canecas e um jarro. Serviu lentamente e com reverência a de Betsy, permitindo apenas a quantidade correta de espuma amarga, cor de neve.

— A cerveja tem bastante lúpulo, como Sua Senhoria prefere — comentou ele.

— A tia Knowe acha que o lúpulo tem propriedades medicinais — acrescentou Betsy, enquanto o Sr. Horn servia mais cerveja.

— E assim deve ser — disse o mestre cervejeiro. — Os lúpulos fazem uma excelente cerveja amarga, mais leve e loira, como nós dizemos.

— Obrigada por partilhar a sua criação connosco, Herr Horn — agradeceu Betsy. Pegou na caneca e rodou-a, segurando-a de forma que a luz do candeeiro projetasse tons dourados através da cerveja.

— Está com uma linda cor — reconheceu o Sr. Horn.

Betsy cheirou delicadamente a bebida e depois bebeu um pouco. Jeremy imitou-a. Por um momento, ficaram os três em silêncio, deixando que o sabor agridoce lhes enchesse a boca. Betsy lambeu a espuma do lábio superior e Jeremy teve de tomar um gole para se impedir de ir lá lambê-la.

— O senhor superou-se, Herr Horn — elogiou ela, bebendo mais um pouco.

— Secámos o malte com carvão — explicou o Sr. Horn, pousando a sua caneca e fitando Betsy, expectante.

— É isso que lhe confere um sabor frutado, a algo como ginjas?

O velhote sorriu-lhe.

— Ach, a menina teria dado um excelente mestre cervejeiro, Lady Boadicea! O que está a saborear é o resultado de usar uma medida de leguminosas e meia medida de trigo. O que lhe parece, Lorde Jeremy?

— Sabe ao malte de verão — respondeu Jeremy. Levantou a sua caneca. — Um brinde, a um mágico e a um grande mestre, Herr Horn.

O bigode do cervejeiro subiu quase até ao cimo das suas bochechas rosadas.

— Tive bons lúpulos com os quais trabalhar.

— A Lady Knowe mandou perguntar se teria a gentileza de partilhar a primeira prova com ela — disse Betsy. — Ela teria vindo comigo, mas hoje está um pouco indisposta. Talvez uma cerveja bem produzida seja curativa.

Lady Knowe parecia perfeitamente bem quando Jeremy a vira, meia hora antes, mas Betsy tinha uma expressão de malícia, ostentando o prazer imprudente com que vestira calças de rapaz.

— Nenhum de nós está a ficar mais novo — comentou o Sr. Horn, apressando-se a voltar a encher o jarro num barril próximo. — Eu próprio lho levo. Acompanha-me, Lady Boadicea?

— Vou terminar esta cerveja maravilhosa — disse ela. E depois, com uma piscadela de olho discreta, acrescentou: — O Lorde Jeremy acompanha-me depois ao castelo.

Quando a porta se fechou atrás do Sr. Horn, inclinaram-se ao mesmo tempo, como que coreografados. Jeremy gemeu quando a língua de Betsy encontrou a sua. Ela sabia a cerveja doce e a Bess, uma combinação poderosa que punha o coração dele aos pulos.

Levantou-se tão depressa que o seu banco caiu. Betsy riu-se quando ele chegou as canecas para o lado.

— Quero-te. — A sua voz era rouca e baixa. Contornou a mesa e agachou-se diante dela, absorvendo a forma como os seus seios inchavam sobre o corpete, o rubor nas suas faces, o brilho vivo dos seus olhos. As suas clavículas eram tão magníficas como tudo o resto, contendo os seus seios como uma delicada moldura na janela de uma catedral. — És tão terrivelmente bonita — disse baixinho.

Ela examinou-lhe o rosto.

— Tu também.

Uma lascívia pura dominou-o, e ele estendeu a capa de pelo em cima da mesa.

— Uma cama apropriada para uma lady.

Ela começou a rir, um som que era pura alegria transformada numa canção.

— Não podemos fazê-lo aqui.

— Isso é que podemos. — Pegou em Betsy com um beijo e pousou-a sobre o pelo, mudando as mãos mesmo a tempo para lhe segurar as anquinhas antes de estas se agitarem no ar.

— A maioria dos homens não consegue fazer isso — disse ela, sorrindo-lhe.

— Há meses que te vejo manobrá-las para te sentares em cadeiras — confessou ele. Levantou-lhe a saia, mas encontrou outra por baixo. — Quantas camadas tens vestidas?

Os olhos dela tinham mudado de azul-celeste para algo mais tempestuoso.

— Pelo menos, barra a porta — disse ela.

Ele levantou a última camada, uma camisa fina, e depois atravessou a sala e colocou a barra na porta. Voltou e encontrou-a apoiada nos cotovelos, as pernas suspensas sobre a ponta da mesa, emergindo de uma espuma de saiotes brancos e azul-claros. Usava meias azul-claras, e, por cima das fitas que as seguravam, as suas coxas eram voluptuosas e brancas.

— Vem — disse ela, estendendo uma mão.

E num instante ele estava ali, agachando-se e abrindo-lhe as pernas.

Ela soltou um gemido e tentou sentar-se.

— Comportamento angélico — recordou Jeremy. A avidez enrouquecia-lhe a voz. — Sabes maravilhosamente.

— Estás a olhar para mim à luz do dia — exclamou Betsy —, e nem sequer estamos numa cama.

— És magnífica. — Ele inclinou-se para a frente e lambeu as delicadas pétalas estriadas entre as suas pernas. Segurava-lhe os joelhos com as mãos, por isso soube quando ela começou a tremer, com pequenos gritinhos de surpresa.

Lambeu-a com uma intensidade paciente, construindo o prazer dela até Betsy começar a implorar. Cada palavra dela penetrava na sua alma. Estava a aprender a conhecer a sua mulher, o que a fazia gritar, retorcer-se, levantar um joelho em êxtase. Sabia que esta era uma das lições mais importantes da sua vida.

Durante todo o tempo, o desejo acumulou exigências ferozes no seu próprio corpo, até ele tremer tanto como ela. Quando finalmente lhe soltou o joelho e lhe introduziu dois dedos grossos, ela explodiu num grito.

Manteve-se com ela, lambendo-a gentilmente, virando a cabeça para lhe beijar o interior do joelho e, quando ela se acalmou, continuando apenas a soltar pequenos gritinhos, a parte de dentro da coxa. Depois endireitou-se e puxou-a para a frente, apenas o suficiente para ir ao encontro do seu pénis.

Deteve-se o tempo suficiente para captar o sorriso nos seus olhos langorosos antes de se inclinar e a beijar, tomando-lhe a boca no momento em que lhe tomou o corpo. Ela enlaçou-o com os braços, pressionando-o contra ela, ancorando-o neste mundo. Os seus corações batiam ao mesmo ritmo frenético quando mergulhou nela.

— Dói? — sussurrou para dentro da boca dela, pronto a retirar-se.

Ela abriu os olhos, e ele viu alegria pura misturada com desejo.

— Não — murmurou ela em resposta. Retorceu-se e ele gemeu. — Um pouco desconfortável, mas, ao mesmo tempo... Importas-te de te mexer, Jeremy? Como fizeste na noite passada?

O cérebro dele ficou vazio e ele não conseguiu pensar numa resposta adequada: «com todo o prazer» seria absurdo. Mas era com todo o prazer, não só pelo ato em si, mas pela forma como a sua boca macia se prendia à dele e pelo modo como as mãos dela vagueavam, mais arrojadas do que na noite anterior. Ela conseguiu soltar-lhe a camisa e passou-lhe as mãos pelos mamilos, estimulando-lhe os sentidos.

Ele adorava cada sílaba alegre do seu riso, e adorava quando ela ficava em silêncio, emitindo apenas sons débeis, que se transformavam em gemidos.

Uma feroz satisfação masculina cresceu dentro dele quando ela enrolou as pernas nas suas ancas, arfando exigências com uma pura febre erótica. Com o pénis bem dentro dela, tomou-lhe as faces nas mãos e disse:

— Amo-te. És minha.

O coração dele apertou-se, encontrando os seus olhos brilhantes.

— Também te amo — sussurrou ela.

Depois levou-a ao colo para casa, embrulhada na capa branca.

— Ela caiu — disse a Prism, que parecia ligeiramente alarmado.

— Estou bem — assegurou Betsy, desencostando a cabeça do peito de Jeremy.

— Vou levá-la para cima — disse ele ao mordomo. — Pode ter torcido o tornozelo. Talvez tenha de repousar um dia na cama.

Ela conseguiu abafar uma gargalhada de encontro ao casaco dele.


Capítulo 24

Horas depois, quando Betsy chamou Winnie e pediu o jantar no quarto, Jeremy não se deu ao trabalho de se esconder atrás dos reposteiros, ou lá o que faziam os cavalheiros nos melodramas.

Ela era sua, e assunto encerrado.

Betsy tinha adormecido, com o cabelo a formar uma nuvem de meia-noite emaranhada à volta dos seus ombros — ele tirara-lhe o pó, mas tinham feito amor em vez de desembaraçarem os caracóis —, quando uma batida suave na porta trouxe uma carta.

Era de Grégoire: Estou na biblioteca. Quero despedir-me, pois voltarei para Londres de manhã bem cedo.

Jeremy franziu a testa. Não gostara da expressão de Grégoire quando mencionara Bedlam. Nem que o primo tivesse descrito a gravura que representava Jeremy escondido atrás de uma árvore com uma familiaridade que sugeria tê-la desenhado. A ira de Grégoire parecia esconder uma emoção diferente, um pensamento sugestivo e perturbador.

Puxou os cobertores até ao queixo de Betsy e deu-lhe um beijo no cabelo.

Quando chegou à biblioteca, Grégoire estava sentado a ler um livro. Jeremy franziu o sobrolho. A cena estava montada: mas para que fim? O primo fora sempre um incómodo, mas o seu instinto para o drama começava a passar de incomodativo para algo mais.

— Primo — disse Grégoire, levantando-se, pousando o livro e fazendo uma vénia. — Tenho um assunto grave que quero abordar contigo antes de partir para Londres.

Jeremy sentou-se na cadeira diante dele sem devolver a vénia.

— De que se trata?

— Aceito que tenhas chegado a um entendimento com a Lady Boadicea.

— Podes chamar-lhe isso. — Os olhos de Grégoire escureceram. — Mas, visto teres enviado a mensagem para o quarto dela, sabes que é muito mais do que um «entendimento».

— Seria moralmente errado casares com ela.

Jeremy não revirou os olhos, mas apenas porque decidira limitar os insultos a palavras.

— Podes explicar-te?

— Ficaste perturbado na guerra — disse Grégoire, inclinando-se para a frente. Os seus olhos eram tão sinceros que Jeremy quase não via o calculismo nas suas profundezas. — Não és o homem que costumavas ser. — Fez uma pausa, possivelmente para permitir a Jeremy absorver as terríveis notícias.

— É verdade — retorquiu Jeremy. Inclinou-se para a frente, examinando Grégoire tão cuidadosamente como faria com um soldado colonial. Sempre soubera que o primo queria herdar o título, mas agora a ambição parecia ter ido além do desejo. Era extremamente maçador. Betsy estava deitada numa cama lá em cima e ele podia estar com ela, passando uma mão pelos seus seios, saboreando-a novamente, pondo-a a arder até os seus olhos serenarem e ela começar a suplicar. — Continua — pediu ele, com irritação na voz.

Grégoire ordenou as suas feições numa expressão de profunda preocupação, mas algo nos seus olhos parecia feroz. Jeremy não mexeu um músculo, mas percebeu, de repente, que a sala era um campo de batalha, ainda que sem fogo de canhão.

— Estiveste em Bedlam mais de uma semana — disse Grégoire, pondo as cartas na mesa. — Enquanto lá estiveste, foste violento e tiveste de ser amarrado. Falei pessoalmente com os guardas. Precisaram de três homens para te dominar.

— Isso foi surpreendentemente solícito da tua parte — observou Jeremy com uma voz arrastada.

— Ao contrário de ti, eu preocupo-me — retorquiu Grégoire. — Se casares com a Lady Boadicea, vais magoá-la da próxima vez que tiveres um ataque. Magoarás a tua mulher e, muito possivelmente, os teus filhos. Podes matá-los.

Jeremy cerrou os dentes. Matar o primo não era solução, apesar de lhe apetecer muito.

— Só para esclarecer, não sabias que eu estava em Bedlam antes de o Parth me resgatar?

— Claro que não. Não gosto de interferir em assuntos do coração — disse Grégoire com um sorrisinho inocente —, mas sinto que o duque deve ser informado dos pormenores da tua estadia entre os loucos. Qualquer pai desejaria saber isso.

— Entre os loucos — repetiu Jeremy. — Bela frase. — Jeremy fitou-o inexpressivamente, como um aviso de soldado.

O primo empalideceu significativamente.

— Podia trazer os guardas do hospício ao castelo de Lindow, para falarem com Sua Graça — disse friamente. — Nenhum pai permitiria que a filha desposasse um homem com propensão para ataques violentos. Não te lembras do que aconteceu, pois não?

Jeremy não se lembrava. Incomodava-o aquele lapso na sua memória que ia desde o som dos fogos de artifício a explodirem até acordar em casa de Parth.

— Não podes correr esse risco — prosseguiu Grégoire, cheio de compaixão na voz, como se pensasse que a experiência era agonizante para Jeremy. — Ficarias destruído, primo, se magoasses a tua mulher ou os teus filhos. Os danos causados pela guerra são irreparáveis. — Pegou no livro que estivera a ler. — Este médico atribui esses efeitos a danos cardíacos. Os soldados podem ter visões súbitas de guerreiros a atacá-los. Fazem o mesmo aos seus entes queridos, sem terem consciência. — Grégoire decidiu demonstrar a sua habilidade para ler. — «Soltam um grito selvagem, como se a sua garganta estivesse a ser cortada. Lutam com a ferocidade de quem se encontra nas presas de panteras ou leões.»

Era uma preocupação válida, por isso Jeremy pensou no assunto enquanto Grégoire se divertia, lendo em voz alta mais descrições de soldados in extremis.

Jeremy não duvidava de que alguns homens experienciavam ilusões às quais reagiam violentamente. Contudo, fora surpreendido pela acusação de ter sido violento a ponto de necessitar de um colete de forças. Por outro lado, não se dera ao trabalho de investigar. Provavelmente, todos os pacientes eram manietados, e as queixas sobre violência facilitavam a vida aos guardas.

Ele não acreditava que tivesse sido esse o caso: não por ele ser incapaz de ser violento, mas porque não havia relatos de guardas mortos.

Se a sua experiência na guerra lhe ensinara alguma coisa, fora a matar em combate mano a mano. Era uma capacidade que preferia não ter, mas já era tarde. Se ele estivesse mesmo convencido de que estava a combater soldados inimigos, pelo menos um dos guardas teria morrido, se não fossem três ou quatro.

A astuta revelação de Grégoire de que os guardas tinham descrito lutas com ele sugeria que a verdade era diferente da que lhe tinham contado. Jeremy levantou a mão e o primo parou de ler a meio da frase.

Depois inclinou-se para a frente e sorriu, mostrando os dentes. Grégoire estremeceu literalmente, o que mostrava algum juízo.

— O que pretendes?

— Preservar a linhagem Thurrock! — respondeu Grégoire num tom agudo. — Tu... tu não estás bem. Nunca estiveste. Um futuro marquês não devia ir para a guerra, arriscando tudo. Podias ter morrido quando o teu coronel desertou... — Deteve-se.

— Como sabes disso? — perguntou Jeremy com uma voz áspera. — O general abafou a questão da deserção. A história oficial é que ordens em conflito deixaram o meu pelotão sozinho no campo de batalha, e eu só contei ao meu pai.

Grégoire encolheu os ombros.

— Acreditas realmente que os segredos permanecem mesmo secretos?

Era uma boa resposta. Teria sido muito fácil para Grégoire subornar alguém. A questão era irrelevante.

— Não lutei com os homens do hospício, e nunca magoarei a minha mulher — disse Jeremy, pontuando as palavras para que Grégoire percebesse a sua importância. — Nem os meus filhos. Não sei o que aconteceu em Bedlam, mas não acredito que eu tenha sido violento.

— A tua confiança em ti é comovente, mas não vale nada, visto não teres memórias do episódio — desdenhou Grégoire. — Não és uma testemunha fiável, e estou quase certo de que o duque concordará comigo.

Jeremy estava certo de que o duque consideraria que a falta de cadáveres era uma pista — além disso, um guarda subornado podia ser novamente subornado para dizer a verdade.

— Ainda por cima — continuou Grégoire —, não foi a única vez, pois não? Perdeste a consciência durante o episódio com a mãe da Lady Diana. Depois de levares o tiro, mostraste poucos sinais de saberes onde estavas. Os criados acham que terias atacado toda a gente se uma ordem oportuna do Lorde Northbridge não te tivesse feito recuperar o juízo.

Contudo, ele lembrava-se bem dessa tarde, desde o tiro ao barulho de água nos seus ouvidos, à sua reação — verbal — violenta.

— Eles nunca tinham ouvido tamanhas blasfémias — prosseguiu Grégoire. — Como uma besta, afirmaram. E diante de senhoras! Os teus olhos ficaram vazios e só voltaste a ti quando o Lorde Northbridge troou uma ordem. — Era verdade. Felizmente, Jeremy tinha a forte impressão de que nenhum género de linguagem perturbaria Betsy, se essa parte do episódio se repetisse. — Houve homens que mataram as esposas, estrangulando mesmo os seus bebés durante ataques semelhantes. Julgavam-se novamente no calor da batalha. Sentiam o cheiro a fumo da pólvora, quando este não existia. Pensavam estar no campo de batalha, rodeados de cadáveres e soldados hostis. Posso mostrar-te um livro, se quiseres.

— Não, obrigado — disse Jeremy. — Lamento a dor que esses homens experienciam, mas as minhas reações não são tão extremas.

— Se tens tanta certeza, devias demonstrá-lo — retorquiu Grégoire.

Tinham chegado ao cerne da questão, o motivo pelo qual Grégoire pedira aquele encontro.

— Como posso fazer isso?

— Posso provar que representas um perigo para a tua mulher e até para os teus filhos por nascer — disse Grégoire. Pegou numa caixa junto da sua cadeira e tirou uma pistola.

Antes de ter consciência de se ter levantado, Jeremy tinha a pistola na mão direita e o pulso de Grégoire na esquerda.

— O que fazes? — perguntou o primo.

Jeremy deu um passo atrás e soltou o pulso de Grégoire. Este começou a tremer como se lhe tivessem esmagado os ossos.

— Estou a olhar para um homem que quer o meu título. Porque te permitiria que empunhasses uma arma na minha presença?

— Estou a tentar ajudar! — exclamou Grégoire. — Não preciso do teu dinheiro, nunca precisei. Digo estas verdades pelo bem da família. Tu és uma ameaça para aqueles que amas, e eu só pretendo demonstrá-lo.

— Dando-me um tiro. — Não era uma pergunta.

— Claro que não! — Os olhos de Grégoire estavam arregalados de indignação.

Jeremy acreditou nele. Grégoire era um monstro, mas do género astuto. Não devia ser um assassino. Pelo menos, frente a frente. O homicídio deixava num homem uma marca que ele reconhecia, mesmo que a morte ocorresse num campo de batalha.

Baixou o olhar para a pistola.

— Por que diabo tens uma arma carregada no castelo?

— Este livro diz que esses homens perdem os sentidos quando ouvem um tiro — disse Grégoire, apontando. — Se eu disparar esta arma, tu terás um ataque. Provar-te-ei que é imoral que te cases.

Jeremy quase se riu dele, mas uma questão permanecia na sua mente...

— Se me tornar violento, posso ferir-te — comentou. Matá-lo-ia, mais provavelmente.

— Escondo-me atrás do biombo — disse Grégoire, apontando para um biombo alto junto da janela, cuja função era esconder um bacio. — Não saberás que estou aqui. Lembra-te, não serás tu próprio.

— Nesse caso, como saberei o que aconteceu?

— Podemos chamar uma testemunha.

— Teremos uma centena. Estás a falar de disparar uma pistola a meio da noite.

— Dispararei pela janela, obviamente — declarou Grégoire. — Ou podes disparar tu, se preferires.

— Prefiro! — exclamou Jeremy. Uma morte «acidental» podia estar dentro das capacidades de Grégoire.

— Se outros ouvirem e se juntarem a nós, isso apenas provará que tenho razão, não é? — Grégoire aproximou-se do aparador. — Preciso de algo para me acalmar os nervos. Whisky?

O homem pretendia confundi-lo. Jeremy ficava cada vez mais curioso em relação a esta demonstração. Homicídios tinham sido cometidos por títulos inferiores ao de marquês.

Grégoire deu-lhe um copo de whisky.

Jeremy bebeu-o com uma apologia silenciosa para Lady Knowe. Grégoire obviamente não sabia que ele não era afetado pelo whisky, enquanto Grégoire ficara conhecido em Oxford pela sua incapacidade de tolerar o álcool.

Serviu-se de outro copo e voltou a encher o de Grégoire.

— Bebemos ao meu casamento? — E, encontrando o olhar duro de Grégoire, acrescentou: — Não?

— Aos deuses da guerra — disse Grégoire, bebendo.

Jeremy não se juntou a ele, visto esses deuses em particular não serem seus amigos.

— Surpreendes-me — observou. — Esses deuses falharam-te, decerto, quando eu voltei da guerra são e salvo.

— Podes estar salvo... mas são? — O sorriso de Grégoire abriu-se como uma língua de serpente. — Bebamos à magnífica Lady Boadicea. — Um vestígio de sotaque francês suspendia-se nas vogais de Grégoire; o whisky já estava a afetá-lo. — A Rainha Boadicea foi uma guerreira falhada, tal como tu — disse Grégoire, erguendo o copo. — Isso deve criar um laço entre vocês.

Jeremy bebeu e pousou o copo.

Uma sensação gelada crescia-lhe no peito. Grégoire tinha razão em relação a uma coisa. A ideia de um vergão vermelho no rosto de Betsy fazia-lhe parar o coração. Ele levara-a da destilaria ao colo; os seus ossos eram delicados como os de um passarinho, em comparação com os dele.

Se ele a confundisse com um soldado e a lançasse contra uma parede...

Podia, de facto, matá-la. Um estilhaço de agonia golpeou-o ao pensar nisso, atirando-o de volta para o campo de batalha, onde as moscas voavam em torno dos rostos dos homens mortos, e cada uma das mortes era culpa sua. Se ele... se isso acontecesse a Betsy ou a alguém que amava, ficaria destroçado.

Durante meses sentara-se num canto da sala de bilhar e tremera em silêncio, tentando barricar a mente contra a memória da guerra, e falhando. O canto era escuro e tranquilo.

Sem sons, sem cheiros, nada que o arrancasse do frágil apego que tinha à realidade e o lançasse para o passado.

Tinha sido um cobarde.

— Achas que um tiro de pistola vai provocar isso? — perguntou roucamente.

— Lembra-te do que aconteceu em Vauxhall — disse Grégoire. — Podes simplesmente disparar a minha pistola pela janela. Diremos que foi um disparo acidental quando eu estava a limpar a arma para a viagem de amanhã.

Como se alguém acreditasse que Grégoire limpava as suas próprias armas.

Jeremy esfregou a cara com as mãos, pensando. Não tinha nada a perder, porque, na verdade, tinha confiança em si. Não confiança completa, nem por sombras, mas passara meses no escuro, ruminando no que acontecera.

A escuridão já não tinha domínio sobre ele.

— Está bem — disse. Abriu a janela e apontou a pistola de Grégoire para a escuridão.

— Aponta para o céu! — gritou Grégoire.

O som explodiu na pequena sala com a força de um canhão.


Capítulo 25

Betsy acordou ao som do tiro. Sentou-se na cama, chocada por descobrir que estava nua e sozinha.

O som de passos retumbou no corredor e parou.

— Se tiverem aí um homem, mandem-no para baixo — gritou a tia. — Há um ladrão no castelo!

Betsy pôs os pés fora da cama. O luar entrava pela janela, mas não conseguia ver a camisa de dormir. Vestiu a capa e fechou-a, bem apertada. Não tinha chinelas, mas as botas que levara ao leilão estavam num canto do quarto. Enfiou-as nos pés e saiu para o corredor.

Seguiu o barulho das vozes até à biblioteca e ficou à porta, paralisada.

Jeremy estava caído no chão, com a tia ajoelhada ao seu lado. O coração dela parou por um segundo. Lançou-se através da sala e tombou ao seu lado.

— Levou um tiro? Está...?

— Não — rugiu a tia Knowe. — Foi uma brincadeira estúpida. Quando ele acordar, eu própria o matarei.

— Não há sangue — disse Betsy num arquejo, pairando sobre o peito de Jeremy. Estava quente e o seu batimento cardíaco era reconfortantemente forte.

— Mas está sem sentidos — afirmou a tia, franzindo o sobrolho. Segurava-lhe o pulso, contando as pulsações.

— O Jeremy não entra em brincadeiras — disse Betsy.

Levantou-se, confiando-o aos cuidados da tia Knowe. Prism estava ali, e havia criados de um lado para o outro. O pai de Jeremy irrompeu pela porta. O cheiro de pólvora pairava no ar.

Grégoire estava exatamente onde ela esperava, desviado para um lado e com uma expressão de preocupação fingida. Betsy avançou para ele, passando rapidamente diante do mordomo.

— O que é que o senhor fez? — perguntou. Ao contrário dos outros, ele não vestia roupa de dormir. Tinha o colarinho rasgado e não usava peruca, expondo o cabelo despenteado.

Ficou sobressaltada ao ver verdadeiro desapreço nos olhos de Grégoire, apesar de a sua expressão preocupada se adensar.

— Eu e o meu primo estávamos a discutir a perturbação que ele sofreu na guerra.

Toda a gente se virou para olhar para ele.

— E...? — perguntou Betsy.

— O meu primo disparou a pistola pela janela, para provar a si mesmo que não tinha sequelas. Infelizmente, tinha. Atacou-me. — Apontou para o colarinho rasgado.

— Disparate! — retorquiu a tia Knowe categoricamente. — Se o Jeremy o tivesse atacado, o senhor estaria morto.

— E podia estar — disse Grégoire. — Felizmente o meu valete conseguiu dominá-lo.

O marquês, que estava agachado junto ao filho, levantou-se e pôs-se ao lado de Betsy. Ela ergueu o olhar, surpreendida ao perceber que Jeremy herdara mais do pai do que ela pensava. A atitude amigável do marquês tornara-se muito mais dura.

Grégoire remexeu-se bruscamente e esclareceu:

— O meu valete salvou-me a vida!

— Parece que o seu valete atingiu o Lorde Jeremy na cabeça com violência — disse a tia Knowe. — Ele que reze para Sua Senhoria recuperar rapidamente.

Betsy virou-se. A tia segurava gentilmente a cabeça de Jeremy.

— Está a ficar com um grande galo. Mesmo assim, admira-me que não acorde.

— Ele está fora de si — declarou Grégoire. — Sofre de uma maleita que não é invulgar entre os soldados. — Virou-se para Betsy. — Se a menina casar com ele, o Jeremy poderá matá-la sem ter consciência disso. Pode brutalizá-la, a si e aos vossos filhos.

— Seu verme patético! — cuspiu Betsy, dando um passo na direção dele.

Ele fitou-a com uma expressão de visível desprezo.

— Como se atreve a dizer-me isso? A menina? Lamentável seria o dia em que uma rameira se tornasse Marquesa de Thurrock! Tal mãe, tal filha. — Virou-se e levantou a voz. — Tive de arrancar o meu primo da cama desta meretriz esta noite!

Antes de Betsy poder responder, um poderoso estrondo cortou o ar. Grégoire levantara, literalmente, voo, antes de embater numa parede e deslizar para o chão.

— O meu filho está incapacitado — disse o marquês tristemente —, por isso, defendo a honra da família em nome dele.

Finalmente, acontecera: Betsy fora chamada de meretriz e comparada com a mãe em público. E o céu não tinha desabado.

— Escutem — disse Grégoire, conseguindo sentar-se no chão. — Acham que ainda não fui atacado o suficiente para uma noite?

Um homem corpulento fez a sua entrada na sala. Devia ser o valete de Grégoire.

— Detenham-no! — gritou a tia Knowe, que abanava sais sob o nariz de Jeremy. — Ele mexeu-se — anunciou, batendo-lhe na face. — Está na hora de acordar e chacinar o seu primo, Jeremy.

— Eu ouvi isso! — exclamou Grégoire do seu lugar no chão, limpando o lábio com um lenço.

Betsy dirigiu-se a ele, as botas matraqueando no chão.

— Exigiria um pedido de desculpas se o senhor não tivesse razão — disse. — O Jeremy estava no meu quarto porque tencionamos casar-nos e ter muitos, muitos filhos. O senhor nunca herdará o título.

— Creio que o seu pai discordará — retorquiu Grégoire com um risinho. — Pode ter concedido a sua mão ao meu primo, mas o seu pai concordará que a sua vida fique em perigo?

Por trás dela, a tia Knowe resmungou.

— Que imbecil!

— Concordo — disse Betsy.

Aproximou-se ainda mais de Grégoire. Ele ergueu o olhar e riu desdenhosamente.

— Tenciona esbofetear-me? Isso não vai alterar a verdade, e a verdade saber-se-á!

— Julgo que tem razão — disse Betsy. Foi uma satisfação enorme pontapeá-lo com a bota mesmo entre as pernas. Adorou o gritinho e o puro choque que viu nos seus olhos, antes de ele desatar aos berros e se enrolar numa bola, balouçando para trás e para a frente.

Um braço forte pousou nos seus ombros antes de ela poder repetir o ato.

— O Jeremy vai ter orgulho em nós, não vai? — perguntou uma voz rouca.

Betsy sorriu para o marquês.

— O Jeremy está acordado. Alguém que leve daqui o palerma do valete e o interrogue — disse a tia Knowe, pondo-se de pé.

Betsy voou de novo para junto de Jeremy e ajoelhou-se ao seu lado. Ele fitou-a, pestanejando; depois acariciou-lhe a face.

— Olá, linda — murmurou.

— Sabes quem eu sou?

— A minha mulher — respondeu ele, sorrindo e fechando as pálpebras.

— Mulher?! — Grégoire pôs-se de joelhos. — Isso é mentira!

— O senhor é que é parvo — exclamou a tia Knowe, fitando-o, com os braços cruzados sobre o peito. — Arranjar uma licença é a coisa mais fácil do mundo, seu imbecil.

Betsy apertou a mão de Jeremy. Talvez a tia Knowe tivesse razão; porém, tanto quanto sabia, Jeremy não tinha adquirido essa licença. Ainda.

— A não ser que queira que eu imite a minha sobrinha e, com um pontapé, dê cabo da sua descendência até à eternidade — ameaçou a tia Knowe —, diga-me o que fez ao marido dela.

— Não lhe fiz nada! O meu valete bateu-lhe na cabeça porque ele estava prestes a assassinar-me. Conta-lhes, Jardin.

O valete estava junto da porta com um lacaio a segurar-lhe cada braço.

— Defendi o meu amo.

Betsy beijou os lábios de Jeremy e ele abriu novamente os olhos.

— O que aconteceu? — perguntou, franzindo o sobrolho.

— Disparaste uma pistola — disse ela.

Ele sentou-se e levou de imediato a mão à nuca.

— Com mil raios!

— Enlouqueceste, tal como eu previa — exclamou Grégoire, agora de pé e a olhar em torno da sala. — Ele disparou a arma e começou a rugir como um animal selvagem, e atirou-se a mim. Julgo que pensou que eu era outro soldado.

— Não me lembro disso — disse Jeremy.

— Claro que não — retorquiu Grégoire, num tom de voz mais confiante. — Também não te lembras de Bedlam, pois não?

— Como é que ele sabe disso? — perguntou a tia Knowe.

O marquês foi colocar-se ao lado de Jeremy.

— Bedlam? — A voz do pai de Jeremy era angustiada.

Jeremy estendeu a mão e, depois de uma pausa muito breve, o pai ajudou-o a pôr-se de pé.

— Nada de importante. O Grégoire subornou os empregados do hospital para ter informações e assim poder fazer circular uma gravura alusiva — explicou Jeremy. Olhou para Betsy e ela correu para ele, aninhando-se no seu peito. — Estou bem — disse ele. — Mas tenho uma dor de cabeça horrível. Quem é que me bateu?

— O meu valete salvou a minha vida — repetiu Grégoire. — Casaste com esta mulher?

O braço de Jeremy apertou-se em torno de Betsy.

— Ainda não.

— Ignora as provas por tua conta e risco! Não me surpreenderei se daqui a um ano a tua mulher for encontrada morta a tiro e a tua única desculpa for não te lembrares.

— Nunca! — exclamou Betsy, virando-se para ficar de costas para Jeremy, como se quisesse defendê-lo com o seu corpo.

— Ele não pode casar consigo — afirmou Grégoire num tom lacónico. — Apesar de todos os atos animalescos praticados pelo meu primo, ele é um cavalheiro. Por acaso, surpreendentemente ético. — A sua voz era amarga. — Um herói no campo de batalha, segundo todos os relatos.

— Tu deves saber. — Jeremy olhou para o pai. — Ele conhece todos os pormenores do que aconteceu nas colónias.

O marquês assentiu com a cabeça.

— Eu trato disso.

De repente, Betsy sentiu pena de Grégoire. Mas não muita.

— Precisamos de falar — disse Jeremy a Betsy, virando-a gentilmente nos braços.

— Ele não pode casar consigo, porque gosta verdadeiramente de si — disse Grégoire. — Eu conheço-o. O medo de poder magoá-la a qualquer momento estaria entre vocês durante toda a vida. A menina...

— Basta! — exclamou Jeremy rispidamente.

O que quer que se visse no seu olhar fez as palavras secarem na boca de Grégoire.

Jeremy virou-se para a tia Knowe, que estava ao lado do marquês, ambos parecendo soldados a aguardar ordens.

— Obrigado.

Betsy respirou fundo.

Não lhe agradava a tensão na sua voz. Não lhe agradava a sensação de que ele tomaria uma decisão sem ela, uma decisão que podia mudar o curso da sua vida atual.

Mas não era uma briga que ela quisesse ter em público. Introduziu a mão na dele.

— Julgo que deves repousar.

— Nós tratamos da situação — disse a tia Knowe. Cruzou os braços diante do peito e fitou Jeremy. — Não me desaponte, comportando-se como um tolo.


Capítulo 26

Jeremy caminhava lado a lado com Betsy, e a sua terrível dor de cabeça piorava por causa do som estrepitoso das botas dela. Parecia que o valete de Grégoire lhe acertara com um tijolo.

Começava a perguntar-se quão longe Grégoire iria com o intuito de o colocar em situações em que podia morrer. Preso num colete de forças, drogado, sem ninguém saber? Era muito fácil morrer em Bedlam.

Afastou o pensamento. O pai e Lady Knowe descobririam a verdade. Noutros tempos ele teria exigido interrogar o primo e o valete, confiando apenas em si próprio.

Agora, porém, tinha família.

Betsy ajudou-o a sentar-se na ponta da cama; depois descalçou as botas e saltou para o lado dele.

— Dói-te muito a cabeça?

— É uma dor dos diabos. Betsy...

— Não me interessa que sejas um cavalheiro ou não — interrompeu ela. — Não tens o direito de me afastar. Tu nunca me magoarias. De facto, há algo de muito estranho nesta história toda. — Os olhos dela estavam muito abertos e tensos. Jeremy estendeu os braços, tencionando sentá-la ao colo, mas ela sacudiu-o. — Escuta-me — disse ferozmente. — Tu nunca me vais magoar. Não o permitirei. Se for preciso, atiro-te salsichas à cabeça, para te acordar. — Algo parecido com uma gargalhada surgiu no peito dele. — Tu ofereceste-me casamento e eu far-te-ei cumprir a promessa. — Apesar da confiança que aparentava, uma lágrima deslizou-lhe pela curva da bochecha.

— Bess — disse Jeremy, com a garganta apertada, mas ela não o deixou terminar. Em vez disso, atirou-se a ele, prendendo-lhe a boca na sua.

Ele devia...

O pensamento escapou-se-lhe. A língua dela mergulhou na sua boca. Ela beijou-o com uma ternura comovente.

Betsy pôs naquele beijo o seu amor, a sua fé e a sua lealdade. E a sua coragem, porque o seu coração batia a um ritmo assustado.

— Não te deixarei ir — arquejou, entre beijos. — Não me mandes embora. — As lágrimas picavam-lhe os olhos. — Não vais magoar-me. — Deteve-se, incapaz de encontrar as palavras certas. — Não vais — sussurrou, agora com a garganta a arder.

— Ficaria destroçado se te magoasse — disse Jeremy. Com uma mão, acariciou-lhe a curva da bochecha. — Compreendes, não compreendes?

— Nunca me magoarás se estiveres no teu juízo perfeito. Só se pensasses que eu era um soldado inimigo é que poderias tentar. Eu impedir-te-ia. — A sua voz falhou. — Prometo!

Ele inclinou-se para ela, beijando-a com uma intensidade tão apaixonada que ela sentiu uma centelha de esperança.

— Eu disse-te que o meu cavalheirismo tinha morrido na guerra — disse ele.

Ela não acreditara nele nessa altura, e não acreditava agora.

Ele mordeu-lhe o lábio.

— Por amor de Deus, Bess, estou no quarto de uma virgem que desflorei antes do casamento.

Não havia dúvida de que o homem que a fitava ardia com um desejo e um sentimento de posse cru e primitivo.

— Tenciono ficar contigo — disse ele roucamente. Um sorriso abriu-se no rosto dela. — Continuarei a beber as tisanas da Lady Knowe, evitarei o whisky e passarei a minha vida nos estábulos, mas não desistirei de ti.

Ela suspirou para dentro da boca dele, juntando a respiração dos dois.

— A sério?

— Até que a tua vida ou a minha chegue ao fim.

— Nem mesmo nesse momento — sussurrou ela. — Prometes?

Jeremy conseguiu sorrir-lhe. O amor inundou-o, mudando a sua própria essência, renovando-o.

— Prometo — respondeu ele roucamente. — Ainda para além disso.

Betsy recuou o suficiente para o olhar nos olhos.

— Temos de começar a ir à capela aos domingos — disse ela, e o amor na sua voz pousou como uma carícia na pele dele.

— Podíamos simplesmente agir como aqueles anjos que vimos — murmurou Jeremy, inclinando-a para trás. — Bess, eu acho que não te vou magoar. Nem acredito que rasguei a camisa do Grégoire.

Ela anuiu com a cabeça.

— Foi estranho, não foi? Rasgou pelo colarinho.

— Como se os pontos da costura tivessem sido soltos previamente — concordou ele. — Não acredito que me torne violento, mesmo que expludam fogos de artifício debaixo da minha cadeira. Conheço-me muito melhor agora do que antes de ir para a guerra. — Roçou-lhe os lábios num beijo.

— Se tivesses ficado violento, quem estaria imóvel no chão era o Grégoire, não era?

Jeremy assentiu. Os seus olhos não mostravam remorsos.

— Fui treinado como guerreiro e endureci sob condições infernais, Betsy. Se eu ficar violento, não será bonito.

— Mas isso significa...

— Isso põe em causa a história que me contaram acerca de Bedlam — concordou ele. — Não posso dizer que me importo muito, desde que tu não te importes.

— Eu importo-me — exclamou Betsy ferozmente. — O teu primo é... Não tenho palavras para descrever o que ele é!

— O meu primo está a ser interrogado pelo meu pai e pela tua tia — disse Jeremy com olhos risonhos. — «Em perigo de vida» pode descrever a situação do Grégoire.

— Ele merece — disse ela resolutamente.

— É um idiota — concordou Jeremy, tocando-lhe ligeiramente com a anca.

— E a tua cabeça? — perguntou Betsy.

— Dói — admitiu Jeremy. Voltou a rodar as ancas. — Era bom distrair-me.

Betsy sorriu.

— Vejamos o que posso fazer.


Capítulo 27

— O Grégoire subornou o coronel para fugir — declarou o marquês, quase a sufocar com a fúria. — O homem não era um cobarde, como o ministério pensava: era um criminoso que aceitou um suborno!

Jeremy semicerrou os olhos.

— Como foi isso possível?

— O Grégoire mandou um homem às colónias com dinheiro e um mandato para te colocar em perigo. O mesmo homem seguiu-o, Jeremy, depois de voltar a Londres — disse Lady Knowe. — Aproveitou-se do episódio dos fogos de artifício para o enfiar em Bedlam, completamente drogado e metido num colete de forças. Entretanto, o Grégoire manteve-se afastado, para o caso de a morte infeliz do Jeremy alguma vez ser questionada.

Jeremy abanou a cabeça.

— Como podes estar tão calmo? — perguntou a sua feroz rainha guerreira. Betsy tinha as mãos nas ancas enquanto olhava para ele, de cenho franzido. — Esse homem tentou matar-te! É praticamente um assassino.

— O Grégoire recusa-se a admiti-lo, mas é um assassino — interveio Lady Knowe. — O seu desejo de garantir que o Jeremy morria no campo de batalha conduziu diretamente à morte de muitos homens.

— Fiquei furioso quando me disseste que o general decidira desculpar o comportamento cobarde do coronel. Agora, vou mandar esse coronel para tribunal marcial — rugiu o marquês. — Esse homem não tem um pingo de honra.

Jeremy não se importava. Oh, importava-se com os seus homens; era como um golpe físico, saber que as suas vidas se tinham perdido devido à ganância de um homem por um título.

Mas não se importava com o que ia acontecer ao coronel. O que estava feito, feito estava.

O pai não concordava.

— Tratarei de que a tua reputação seja restaurada, nem que tenha de desmantelar o Ministério da Guerra tijolo a tijolo — silvou o marquês.

— Ótimo! — exclamou Betsy. — E o Grégoire?

— Será acusado de tentativa de homicídio — disse o marquês. Hesitou. — Se o meu irmão, pai dele, fosse vivo, pedir-me-ia que deixasse o Grégoire fugir do país, com a promessa de nunca mais regressar a Inglaterra.

— Sim — disse Jeremy com pouco interesse. Não havia justiça possível para as vidas perdidas. Nem Grégoire a apodrecer na prisão, nem o coronel a comparecer em tribunal marcial.

— Só se a sua safira e tudo o mais que ele possua for apreendido e dado às famílias dos homens mortos — sugeriu Betsy, cruzando os braços diante do peito.

O pai de Jeremy estava obviamente impressionado. Lady Knowe pôs um braço sobre os ombros dela.

— Treinei-a bem — disse, com um risinho.

— Onde está o Grégoire? — perguntou Jeremy.

— Trancado na capela — respondeu Lady Knowe. — Está fria, mas não gelada. Disse-lhe para refletir sobre seus pecados.

— E o valete?

— Fugiu... o que significa que o Prism considerou que não era culpado. O Prism tem sentimentos fortes pelos criados que são obrigados a obedecer a ordens — disse Lady Knowe. Fez uma careta. — Calculo que o homem irá direito a uma papelaria, Betsy, para vender uma descrição arrepiante dos acontecimentos desta noite para novas gravuras. Lamento.

— A minha reputação está completamente arruinada — declarou Betsy, impávida.

— A seu tempo, a sociedade irá esquecer — disse Jeremy, abraçando-a. — Pensei que gostarias de uma viagem de núpcias.

Os olhos dela iluminaram-se.

— Onde vamos?

— Onde quiseres — respondeu Jeremy. Pôs-lhe uma madeixa de cabelo atrás da orelha. — Podes usar calças quando te apetecer, e ser uma lady quando não te apetecer. — Ela abraçou-o com toda a força que tinha. — Desde que sejas sempre minha — disse Jeremy em voz baixa. — Minha guerreira, minha rainha e amor da minha vida.

Betsy ergueu o olhar, de olhos brilhantes, e Jeremy viu neles o seu futuro.


Capítulo 28

Um ano depois

— O novo vigário vem tomar chá — disse a tia Knowe, entrando de rompante no salão.

— Pobre Padre Duddleston — lamentou Viola. Estava sentada no sofá, a desenredar a malha da tia. — Só tinha mais algumas semanas antes de se reformar.

— Morreu a fazer o que mais amava — disse a tia. — Tenho a certeza de que o novo vigário... Como é que se chama? Sr. -Marlowe. Tenho a certeza de que será igualmente bom.

— É casado? — perguntou Joan. Agora que ela e Viola iam finalmente debutar, estava sempre a pensar em casamento.

Viola continuou a desemaranhar a malha. Não tinha qualquer interesse no casamento e, apesar de ter conseguido adiar o seu debute por um ano, este estava agora no seu horizonte.

— Está noivo de uma tal menina Pettigrew — respondeu a tia Knowe. — O avô dela é arcebispo, por isso é tudo muito conveniente. Convidei-a para ficar connosco durante algum tempo. — Levantou-se de repente. — É melhor avisar o Prism; acho que me esqueci de lhe falar nisso.

— Tenho muitas ideias para a escola paroquial — disse Viola. — O Padre Duddleston era tão resistente à mudança...

— Não terás tempo para isso — retorquiu Joan. Pôs-se aos saltos e a rodopiar, seguindo os passos de uma dança campestre. — Mal posso esperar, mal posso esperar!

Viola tentou afastar a náusea que se lhe formou no estômago.

— Quem me dera que me deixasses esperar pelo menos mais um ano.

— Arranjarás outra desculpa e nunca chegarás a debutar — disse Joan rispidamente. — Passarias a vida a tagarelar acerca da paróquia, a ensinar rimas tolas às crianças e a fazer obras de caridade.

— Mas pelo menos não iria vomitar nos limoeiros por causa dos nervos nem passaria as noites escondida na sala de repouso — retorquiu Viola.

— Tens de combater a tua timidez — incentivou Joan, e não era a primeira vez. — Preocupo-me contigo.

As grandes preocupações de Viola tinham que ver com os horrores da temporada social. Mal conseguia comer junto de estranhos.

— E se nunca encontrares um homem para amar porque vives confinada no campo? — perguntou Joan. — Serias feliz com a vida da tia Knowe?

— Porque não? Ela é amada por muita gente, e tem-nos a todos — respondeu Viola. — Acho que ela tem muita sorte.

— Não há um homem na sua vida! — exclamou a irmã, exasperada. — Nenhum marido! Lembras-te de como a Betsy olha sedutoramente para o Jeremy, ou de como o North olha para a Diana com adoração? Não queres sentir o mesmo?

— Não — respondeu Viola decididamente. — Parece extremamente desconfortável.

— Eu quero um homem que olhe para mim desesperadamente.

Viola sabia que era melhor não exprimir a sua opinião, porque, ao contrário dela, Joan tinha o dramatismo nos ossos. Além disso, Viola não era uma Wilde, apesar de ter sido criada com eles, e a diferença era evidente.

— Com quantos homens te cruzaste neste castelo no ano passado? — perguntou-lhe. — Jovens e solteiros, quero dizer.

— Decerto com mais de 30 — respondeu Joan, pensando no assunto. — Devia haver pelo menos outros tantos no casamento da Diana.

— Nunca conheci um único homem com quem gostasse de passar o meu tempo — declarou Viola. — Nem um.

Joan franziu o sobrolho.

— Estás a ser deliberadamente difícil, Viola. Pensa só em todos aqueles homens lindos que perseguiam a Betsy. Ela recusou-os a todos, mas havia pelo menos quatro que eu teria considerado.

— Eu não consideraria nenhum deles.

A tia Knowe voltou ao salão, parecendo ainda mais apressada.

— Minhas queridas, que coisa curiosa... O Sr. Marlowe e a menina Pettigrew chegaram um dia mais cedo. Não é uma surpresa maravilhosa?

Viola e Joan puseram-se imediatamente de pé.

— As minhas sobrinhas, Lady Joan e a menina Viola Astley — disse a tia Knowe. — A menina Pettigrew e o Sr. Marlowe.

Viola olhava sempre primeiro para as mulheres; tendo frequentado um seminário feminino, sentia-se confortável na companhia de senhoras. Infelizmente, percebeu imediatamente que a menina Pettigrew não era o género de mulher que a pusesse à vontade — era mais do tipo de a apoquentar com conselhos.

Ela podia tolerar sugestões vindas daqueles que amava, mas odiava as instruções de estranhos, que pareciam todos ter a solução para ela ultrapassar a sua timidez. A menina Pettigrew, obviamente, sabia o que era melhor para toda a gente na sala. Era uma coisa que se via nos seus olhos e na forma como erguia a cabeça.

Naquele momento inclinava a cabeça apenas o suficiente para deixar claro que reconhecia o poder secular da irmã e filhas de um duque, mas que a sua virtude importava mais do que a posição delas na sociedade.

Viola sorriu e virou-se para o novo vigário, esperando que ele tivesse olhos doces, como o Padre Huddleston.

Não tinha.


Epílogo

Belmain Manor,

Residência de campo do Marquês de Thurrock

Oito anos depois

A sala de bilhar em Belmain Manor era como uma sala de estar nas outras casas, ou assim pensava a filha mais velha da família, Lady Penny. As famílias das suas amigas juntavam-se em salas de estar ou bibliotecas confortavelmente cheias de cadeiras acolchoadas, cães e livros. A família Roden reunia-se na sala de bilhar, que era bastante grande para caberem duas mesas de jogo — mais as cadeiras acolchoadas, os cães e os livros.

Neste momento, Penny estava sentada num banco alto, com os cotovelos apoiados na mesa favorita da mãe, assistindo ao jogo dos pais.

Era o aniversário da mãe. O seu pai, o marquês, não gostava tanto de bilhar como a mãe, mas concordava sempre em jogar nas ocasiões especiais. Iam no terceiro jogo e, de momento, estavam empatados.

Jogavam com novas regras, o que significava que passavam o tempo a andar para trás e para a frente, e ambos tinham várias tentativas para embolsar bolas. Agora era a vez do pai, por isso ele rodeou a mesa, parando no caminho para beijar a mãe.

— Último jogo — anunciou.

A mãe resmungou, porque adorava jogar, quase tanto quanto adorava ser mãe de Penny e do seu irmão. Mas não tanto.

— Precisas de descansar — disse o pai. Ainda era o fim da tarde, mas a mãe estava redonda com outro bebé e o pai estava sempre a arrastá-la para fazer sestas. Na verdade, ele fazia isso mesmo quando a mãe não estava à espera de bebé. — Mas primeiro temos de te dar o teu presente — acrescentou.

O marquês inclinou-se sobre a mesa e apontou o taco. Penny observou cuidadosamente enquanto ele alinhava o taco com a nova ponta de couro que a mãe tanto adorava.

A bola bateu com um barulho agradável, fez ricochete numa parede, bateu na outra e falhou a bolsa por pouco.

Penny franziu a testa. O pai tinha-lhe ensinado aquela jogada ainda na semana passada, e repetira-a inúmeras vezes, até ela conseguir traçar mentalmente o caminho exato. Ele nunca falhara, nem uma vez.

Penny abriu a boca, mas, antes de ter tempo de falar, o pai levantou-a do banco.

— Vamos dar o presente à mãe?

— Sim — disse ela. — Mas, pai...

— É o nosso segredo — sussurrou ele, pondo-lhe um dedo nos lábios.

— Hum — disse Penny. Reconhecia uma discussão inútil quando a via, por isso foi buscar o presente. Estava embrulhado em seda. A mãe sentara-se numa das cadeiras mais largas, e claro que Peter lhe subira para o colo e começara a chuchar no dedo. — Aqui está — disse ela, entregando o presente. — É nosso. Meu também.

O pai sentou-se no braço da cadeira e pôs um braço em volta da mãe, por isso Penny empoleirou-se do outro lado.

— Tenho uma família tão maravilhosa — exclamou a mãe, comovida.

— Abre! — gritou Peter, tirando o polegar com baba da boca.

Dentro do embrulho estava um retrato minúsculo, pequeno demais para ser útil, na opinião de Penny. Mas tinha de admitir que era bonito. Fora pintado com tinta brilhante por um amigo da mãe. Era tão velho que o pincel lhe tremia na mão enquanto pintava, mas, de alguma forma, saíra bem.

A mãe ergueu-o.

Pouco maior que a palma da sua mão, o amado avô de Penny, o falecido marquês, sorria da moldura dourada, com Penny aninhada no colo.

— Foi terminado mesmo antes de ele morrer — comentou o filho do falecido marquês, tocando na face do pai. — Ele amava tanto a Penny.

— Eu sei que não devia chorar — disse a mãe, irrompendo em lágrimas. — Mas é só porque tenho tanta sorte!

Penny abraçou o pescoço da mãe, e Peter retorceu-se no seu colo e abraçou-a também.

O pai abraçou-os a todos.

— Feliz aniversário, Rainha Bess — sussurrou.

 

 

                                                                  Eloisa James

 

 

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