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Ela tinha sonhado muitas vezes com a irmã mais nova a flutuar morta sob a superfície do gelo, mas naquela noite viu pela primeira vez Hannah a usar as unhas para tentar escapar. Conseguia ver os olhos dela, arregalados e leitosos, e conseguia sentir as suas unhas a raspar. Nessa altura, acordou em sobressalto. Não era inverno, estavam em julho. Não havia gelo debaixo das palmas das suas mãos, apenas os lençóis da cama, todos enrolados. Mas, uma vez mais, havia alguém do outro lado, a lutar para se libertar.
Quando o punho na sua barriga se cerrou com mais força, mordeu o lábio inferior. Ignorando a dor que vinha em ondas e retrocedia, saiu descalça, em bicos de pés, e embrenhou-se na noite escura.
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O gato do celeiro miou ao ouvi-la entrar. Por esta altura, arfava e as pernas tremiam-lhe como varas verdes. Deitando-se sobre o feno no canto mais afastado da maternidade, puxou os joelhos para cima. As vacas prenhas reviraram os olhos de lua cheia na sua direção e depois afastaram-se rapidamente, como se não quisessem ser testemunhas.
Ela concentrou-se na pelagem das Holsteins até as suas manchas negras começarem a bailar. Enterrou os dentes na bainha enrolada da camisa de noite. Sentiu um funil de pressão, como se a estivessem a virar do avesso, e lembrou-se de como ela e Hannah costumavam passar pelo buraco na rede de arame farpado junto à margem do ribeiro, encolhidas em ângulos oblíquos, só joelhos, resmungos e cotovelos, até que por algum milagre conseguiam sair do outro lado.
Acabou tão subitamente quanto começou. E, deitado no feno acachapado e manchado, havia um bebé entre as suas pernas.
Aaron Fisher virou-se para o outro lado, debaixo da colcha de cores vivas, para olhar para o relógio ao lado da cama. Não tinha havido nenhum som que o despertasse, mas, ao fim de quarenta e cinco anos de agricultura e ordenha, acordava com as mais pequenas coisas: o ruído de passos no milho, uma alteração no padrão do vento, o som áspero de uma língua materna a limpar um vitelo recém-nascido.
Sentiu o colchão ceder quando Sarah se levantou sobre um cotovelo atrás dele, com a longa trança de cabelo caída sobre o ombro como a corda de um marinheiro. «Was ist letz?» O que se passa?
Não eram os animais; ainda faltava um mês para a primeira vaca parir. Não era um ladrão, pois não havia barulho suficiente. Sentiu o braço da sua mulher a envolvê-lo, abraçando a parte da frente do seu corpo às costas dele. «Nix», murmurou. Nada. Mas não sabia se estava a tentar convencer Sarah ou a si mesmo.
Ela sabia o suficiente para cortar o cordão que seguia numa espiral púrpura até à barriga do bebé. Com mãos trémulas, conseguiu chegar à tesoura velha pendurada numa cavilha perto da porta do recinto. Estava enferrujada e coberta de pedaços de feno. O cordão ficou dividido em dois bocados grossos e, depois, começou a esguichar sangue. Horrorizada, fez pressão com os dedos na extremidade, comprimindo-a, ao mesmo tempo que lançava olhares desvairados, à procura de alguma coisa com que a atar.
Remexeu o feno e encontrou um bocadinho de fio de enfardar, que atou rapidamente à volta do cordão. O sangramento abrandou e depois parou. Aliviada, deixou-se cair para trás sobre os cotovelos e a seguir o recém-nascido começou a chorar.
Pegou no bebé e embalou-o com firmeza. Pontapeou o feno, tentando tapar o sangue com uma camada limpa. A boca do bebé abriu-se e fechou-se sobre o algodão da camisa de noite, à procura.
Ela sabia o que o bebé queria e do que precisava, mas não podia fazê-lo. Isso tornaria as coisas reais.
Por isso, deu antes o seu dedo mindinho ao bebé. Deixou as pequenas e poderosas maxilas mamarem enquanto fazia o que lhe tinham ensinado a fazer em alturas de tensão extrema; o que andava a fazer desde há meses.
— Meu Deus — rezou —, faz com que isto desapareça, por favor.
O barulho de correntes despertou-a. Ainda estava escuro lá fora, mas o horário interno das vacas leiteiras fazia com que se levantassem nos seus estábulos individuais, com os úberes redondos cheios de veias azuis e de leite, como se tivessem luas cheias presas entre as pernas. Estava dorida e cansada, mas sabia que tinha de sair do celeiro antes que os homens chegassem para fazer a ordenha. Olhando para baixo, apercebeu-se de que tinha acontecido um milagre: o feno empapado de sangue estava agora limpo, à exceção de uma pequena mancha por baixo do seu próprio rabo. E as duas coisas que segurava quando adormecera — a tesoura e o recém-nascido — tinham desaparecido.
Levantou-se a custo e olhou para o teto, intimidada e reverente. «Denke», sussurrou, e depois saiu do celeiro a correr, rumo às sombras.
Como todos os outros rapazes amish de dezasseis anos, Levi Esch já não frequentava a escola. Tinha estudado até ao oitavo ano e estava agora naquele limbo entre ser criança e ter idade suficiente para ser batizado na fé amish. Entretanto, trabalhava para Aaron Fisher, que já não tinha um filho que o ajudasse na sua exploração leiteira. Levi tinha conseguido o trabalho por recomendação do primo mais velho, Samuel, que trabalhava para os Fisher há cinco anos. E, como toda a gente sabia que o mais provável era Samuel casar-se em breve com a filha dos Fisher e montar a sua própria exploração, isso significava que Levi ia ser promovido.
O seu dia de trabalho começava às quatro da manhã, tal como em todas as outras explorações leiteiras. Ainda estava escuro como breu e Levi não conseguiu ver a carroça de Samuel a aproximar-se, mas ouviu o tilintar desmaiado dos arreios e tirantes. Agarrou no chapéu de palha de aba larga, saiu a correr porta fora e saltou para o lugar ao lado de Samuel.
— Olá — disse, sem fôlego.
Samuel acenou com a cabeça, mas não se virou nem falou.
— O que se passa? — troçou Levi. — Ontem, a Katie não te deu o beijo de boa-noite?
Samuel fez cara feia e simulou um tabefe a Levi, fazendo o chapéu deste voar para a parte de trás da carroça.
— Porque é que não te calas, simplesmente?
O vento sussurrava no bordo irregular do milheiral enquanto eles seguiam o seu caminho, em silêncio. Passado um bocado, Samuel parou a carroça no jardim da entrada dos Fisher. Levi esfregou a ponta da bota na terra macia e esperou que Samuel levasse o cavalo para pastar antes de se dirigirem ao celeiro.
As luzes usadas para a ordenha eram alimentadas por um gerador, tal como as bombas de vácuo presas às tetas das vacas. Aaron Fisher estava ajoelhado ao lado de uma, a aspergir as tetas com uma solução de iodo e secando-as em seguida com uma página arrancada de uma lista telefónica antiga.
— Samuel, Levi — disse, à laia de cumprimento.
Não lhes disse o que fazer, pois por esta altura eles já sabiam. Samuel manobrou o carrinho de mão debaixo de um silo e começou a misturar a ração. Com a ajuda de uma pá, Levi deitou fora o estrume que se encontrava atrás de cada vaca, olhando periodicamente para Samuel e ansiando por ser o trabalhador mais antigo.
A porta do celeiro abriu-se e o pai de Aaron entrou vagarosamente. Elam Fisher morava na grossdawdi haus, um pequeno apartamento anexo ao edifício principal. Embora Elam ajudasse na ordenha, Levi conhecia as regras não escritas: certificar-se de que o velhote não transportava nada pesado; impedi-lo de se esforçar demasiado; e fazê-lo crer que Aaron não podia passar um dia que fosse sem ele, embora não fosse bem assim.
— Rapazes! — rugiu Elam; depois, estacou com o nariz franzido sobre a longa barba branca. — Olha, tivemos um vitelo!
Perplexo, Aaron pôs-se em pé.
— Não. Já fui à maternidade.
Elam abanou a cabeça.
— Mas o cheiro é o mesmo...
— Isso deve ser o Levi, a precisar de um banho — brincou Samuel, despejando uma pá de ração em frente da primeira vaca.
Quando Samuel passou por Levi com o carrinho de mão, este desequilibrou-se e escorregou num mar de estrume. Caiu de rabo no fosso construído para despejar os resíduos e crispou o rosto diante das gargalhadas de Samuel.
— Vá lá! — interveio Aaron, apesar de ter um sorriso a bailar-lhe nos lábios. — Samuel, deixa-o em paz! Levi, creio que a Sarah deixou as tuas roupas de reserva na sala dos arreios.
Levi levantou-se com dificuldade, com as faces a arder. Passou por Aaron, passou pelo quadro preto onde estavam anotadas as estatísticas sobre as vacas que iam parir e virou para o pequeno cubículo onde se encontravam os cobertores e as rédeas utilizados nos burros de carga e mulas da exploração leiteira. Tal como o resto do celeiro, estava num brinquinho. Rédeas de couro entrançado cruzavam a parede como teias de aranha, e as prateleiras estavam cheias de ferraduras sobresselentes e de frascos de linimento.
Levi olhou à sua volta, mas não viu roupa nenhuma. Depois, reparou em qualquer coisa de cor viva na pilha de cobertores. Bem, fazia sentido. Se Sarah Fisher tinha lavado as coisas dele, provavelmente fizera-o juntamente com a outra roupa suja. Levantou o pesado cobertor às riscas e reconheceu as suas calças e a sua camisa verde-esmeralda de reserva enroladas numa bola. Levi avançou, tencionando sacudi-la e deu por si a olhar para o rosto minúsculo e imóvel de um recém-nascido.
— Aaron! — Levi derrapou até parar, ofegante. — Aaron, tem de vir comigo — disse, correndo em direção à sala de arreios. Aaron trocou um olhar com o pai e ambos foram atrás do rapaz, com Samuel no seu encalço.
Levi parou em frente de um banco onde havia um monte de cobertores de cavalo, em cima do qual estava um bebé adormecido embrulhado numa camisa de rapaz.
— Eu... acho que não está a respirar.
Aaron aproximou-se mais. Há muito tempo que não se via perto de um bebé tão pequenino. A pele suave do seu rosto estava fria. Ajoelhou-se e inclinou a cabeça, esperando sentir a respiração do bebé no ouvido. Pôs-lhe a mão no peito.
A seguir, virou-se para Levi.
— Corre até à casa dos Schuyler e pede para usar o telefone — disse. — Liga à polícia.
— Nem pensar — disse Lizzie Munro ao chefe da esquadra. — Não vou ver um bebé que não reage. Mandem uma ambulância.
— Esses já lá estão e querem um detetive.
Lizzie revirou os olhos. A cada ano que passava desde que era sargento-detetive na polícia de East Paradise, os paramédicos pareciam ser cada vez mais novos. E mais estúpidos.
— É uma chamada médica, Frank.
— Pois, mas alguma coisa não está bem. — O tenente entregou-lhe uma tira de papel com uma morada.
— Fisher? — leu Lizzie, franzindo o sobrolho ao ver o apelido e a rua. — São amish?
— Acho que sim.
Lizzie suspirou e agarrou na sua grande mala preta e no distintivo.
— Sabes que isto é uma perda de tempo.
Lizzie já lidara, ocasionalmente, com adolescentes amish da Velha Ordem que resolviam juntar-se no celeiro de um tipo qualquer para beber e dançar e perturbar a paz de uma forma geral. Fora chamada uma ou duas vezes para recolher o depoimento de um homem de negócios amish que tinha sido assaltado. Mas, na generalidade, os Amish pouco contactavam com a polícia. A sua comunidade mantinha uma existência discreta no mundo dito normal, como uma pequena bolha de ar impermeável ao líquido que a rodeia.
— Recolhe apenas os depoimentos deles, que eu depois compenso-te. — Frank abriu-lhe a porta quando a viu pronta para sair do gabinete. — Vou descobrir um belo de um crime a que te possas dedicar.
— Não me faças favores — disse Lizzie, mas sorria ao entrar no carro para ir à quinta dos Fisher.
A entrada dos Fisher estava muito concorrida, com um carro da polícia, uma ambulância e uma carroça. Lizzie caminhou para a casa e bateu à porta.
Ninguém veio abrir, mas uma voz feminina atrás de Lizzie gritou uma saudação, com a cadência do dialeto a suavizar-lhe as consoantes. Uma mulher amish de meia-idade com um vestido alfazema e um avental preto apressou-se a ir ao encontro de Lizzie.
— Sou Sarah Fisher. Em que posso ajudá-la?
— Eu sou a sargento-detetive Lizzie Munro.
Sarah acenou solenemente e conduziu Lizzie à sala de arreios no celeiro, onde dois paramédicos estavam ajoelhados junto de um bebé. Lizzie baixou-se ao lado de um dos técnicos de emergência médica.
— O que é que temos aqui?
— Recém-nascido, com ênfase no «recém». Sem pulsação nem respiração quando aqui chegámos, e não conseguimos reanimá-lo. Um dos trabalhadores encontrou-o enrolado naquela camisa verde, debaixo de um cobertor de cavalo. Não sei dizer se é ou não um nado-morto, mas, seja como for, alguém tentou esconder o corpo. Creio que um dos vossos homens está nas instalações da ordenha. Pode ser que ele saiba dizer-lhe mais alguma coisa.
— Espere um segundo. Quer dizer que alguém deu à luz este bebé e depois tentou escondê-lo?
— Sim. Há cerca de três horas — murmurou o paramédico.
De repente, a simples chamada médica era mais complicada do que Lizzie esperava, e a suspeita mais provável encontrava a quatro passos dela. Lizzie olhou de relance para Sarah Fisher, que estava abraçada a si própria, a tremer.
— O bebé... está morto?
— Receio bem que sim, senhora Fisher.
Lizzie abriu a boca para fazer outra pergunta mas foi distraída pelo som distante de equipamento a mudar de lugar.
— O que é isto?
— São os homens a acabar a ordenha.
As sobrancelhas de Lizzie arquearam-se.
— A ordenha?
— Estas coisas... têm de se fazer na mesma — disse a mulher, em voz baixa.
De repente, Lizzie sentiu uma enorme pena dela. A vida nunca parava para a morte; ela devia saber isso melhor do que ninguém. Suavizou o tom da sua voz e pôs uma mão no ombro da senhora Fisher, sem ter a certeza do estado psicológico em que ela se encontrava.
— Eu sei que isto deve ser muito difícil para si, mas vou ter de lhe fazer algumas perguntas sobre o seu bebé.
Sarah Fisher olhou Lizzie nos olhos.
— O bebé não é meu — disse ela. — Não faço ideia de onde veio.
Meia hora mais tarde, Lizzie baixou-se ao lado do fotógrafo do local do crime.
— Cinja-se ao celeiro. Os Amish não gostam que lhes tirem fotografias. — O homem anuiu, gastando um rolo na sala de arreios, com vários grandes planos do cadáver do bebé.
Pelo menos, agora compreendia por que motivo a tinham chamado. Um bebé morto e não identificado, uma mãe desconhecida que o abandonara. E tudo isto no meio de uma quinta amish.
Interrogara os vizinhos, um casal luterano que jurou nunca ter sequer ouvido vozes mais exaltadas por parte dos Fisher e que não fazia ideia de onde viera o bebé. Tinham duas filhas adolescentes, uma das quais exibia uma argola no nariz e outra no umbigo, e ambas tinham álibis para a noite anterior. Ainda assim, concordaram em fazer exames ginecológicos para serem excluídas como suspeitas.
Sarah Fisher, por seu lado, não tinha qualquer álibi.
Lizzie pensou nisto enquanto estava na sala do leite, a ver Aaron Fisher despejar um pequeno tanque de leite portátil para dentro de um muito maior. Era alto e moreno, tinha os braços fortes, com músculos desenvolvidos pelo trabalho agrícola. A barba chegava-lhe ao segundo botão da camisa. Quando terminou, pousou o tanque e virou-se para dar toda a atenção a Lizzie.
— A minha mulher não estava grávida, detetive — disse Aaron.
— Tem a certeza?
— A Sarah não pode ter mais filhos. Foram os médicos que trataram disso, depois de ela quase ter morrido a dar à luz a nossa filha mais nova.
— E onde é que estavam os seus outros filhos, senhor Fisher, quando o bebé foi encontrado?
Uma sombra perpassou o rosto do homem, desaparecendo tão rapidamente quanto Lizzie a notara.
— A minha filha estava a dormir no primeiro andar. A minha outra filha... já partiu.
— Partiu, quer dizer que se foi embora para a sua própria casa?
— Morreu.
— A filha que estava a dormir, que idade tem?
— Dezoito.
Perante esta resposta, Lizzie levantou os olhos. Nem Sarah Fisher nem os paramédicos tinham mencionado que havia outra mulher em idade fértil a viver na quinta.
— Será possível que estivesse grávida, senhor Fisher?
O rosto do homem fez-se tão vermelho que Lizzie ficou preocupada.
— Ela nem sequer é casada.
— O senhor deve saber que isso não é um pré-requisito.
Aaron Fisher olhou para a detetive com ar frio e determinado.
— Para nós, é.
Ordenhar as quarenta vacas pareceu levar uma eternidade, e não teve nada a ver com a chegada de um segundo batalhão de agentes policiais. Samuel fechou o portão da pastagem depois de deixar sair as bezerras e dirigiu-se à casa principal. Tinha de ajudar Levi a varrer o celeiro uma última vez da parte da manhã, mas desta feita isso ia ter de esperar.
Não se deu ao trabalho de bater à porta. Limitou-se a abri-la, como se a casa já fosse sua e a jovem que estava lá dentro ao fogão também lhe pertencesse. Parou por um momento, a ver o sol adornar-lhe o perfil e dourar-lhe o cabelo cor de mel enquanto ela preparava o pequeno-almoço com movimentos rápidos e eficientes.
— Katie — disse Samuel, entrando.
Ela virou-se rapidamente, sobressaltada, largando a colher na tigela da massa.
— Oh, Samuel! Não te esperava ainda. — Espreitou por cima do ombro dele, como se viesse um exército atrás. — A minha mãe disse que eu tinha de fazer comida suficiente para todos.
Samuel avançou e tirou-lhe a tigela, pousando-a sobre a bancada. Pegou-lhe nas mãos.
— Não estás com muito bom aspeto!
Ela fez uma careta.
— Obrigada pelo elogio.
Ele puxou-a mais para si.
— Estás bem?
Quando os olhos dela fitaram os dele tinham o azul de um oceano que ele vira uma vez na capa de uma revista de viagens e que imaginava igualmente profundo. Tinham sido o que primeiro o atraíra em Katie, no meio de um serviço religioso apinhado de gente. Tinham-no feito acreditar que, mesmo daí a muitos anos, faria tudo por aquela mulher.
Ela afastou-se dele e começou a virar as panquecas.
— Tu conheces-me — disse ela, ofegante. — Fico enervada ao pé destes Englischers.
— Não são assim tantos. Apenas um punhado de polícias. — Samuel franziu o sobrolho, preocupado, enquanto ela estava de costas para si. — Mas são capazes de querer falar contigo. Parece que querem falar com toda a gente.
Ela pousou a espátula e virou-se lentamente.
— O que é que eles lá encontraram?
— A tua mãe não te contou?
Katie abanou lentamente a cabeça e Samuel hesitou, dividido entre o facto de ela confiar que ele lhe diria a verdade e o desejo de a manter ditosamente ignorante o maior tempo possível. Passou as mãos pelo cabelo louro quase branco, deixando-o todo espetado. — Bem, encontraram um bebé. Morto.
Ele viu os olhos dela arregalarem-se, aqueles olhos incríveis, e depois viu-a deixar-se cair numa das cadeiras da cozinha.
— Oh! — murmurou, aturdida.
Ele estava ao lado dela numa fração de segundo, a estreitá-la e a sussurrar que a ia tirar dali, a polícia que fosse para o diabo. Sentiu-a abandonar-se contra si e, por um instante, Samuel sentiu-se triunfante — ao fim de tantos dias a ser rejeitado, voltar finalmente àquela proximidade. Mas Katie retesou-se e afastou-se.
— Não creio que seja altura para isto — ralhou. Levantou-se e desligou os bicos do fogão, a seguir cruzou os braços sobre o tronco. — Samuel, gostava que me levasses a um sítio.
— Onde quiseres — prometeu ele.
— Quero que me leves a ver o bebé.
— É sangue — confirmou o médico-legista, ajoelhando-se na maternidade, em frente de uma pequena mancha escura. — E placenta. Pelo tamanho, não é de vaca. Alguém teve um bebé recentemente.
— Nado-morto?
Ele hesitou.
— Não sei dizer sem fazer a autópsia, mas palpita-me que não.
— Então, morreu simplesmente?
— Também não disse isso.
Lizzie ficou chocada.
— Está a dizer-me que alguém matou intencionalmente este bebé?
O homem encolheu os ombros.
— Suponho que lhe caiba a si descobrir.
Lizzie pensou rapidamente. Com uma janela de tempo tão pequena entre o nascimento e a morte do bebé, o mais provável era que o autor do crime fosse a mãe do recém-nascido.
— Estamos a falar de quê? Estrangulamento?
— É mais provável que tenha sido asfixia. Amanhã, já devo ter o relatório preliminar da autópsia.
Lizzie agradeceu-lhe e afastou-se do local agora protegido pelos polícias. De repente, já não se tratava de um caso de abandono, mas de um potencial homicídio. Havia causa provável suficiente para conseguir um mandado de um juiz de comarca para obter análises sanguíneas, provas que podiam identificar a mulher que tinha feito aquilo.
Parou de andar quando a porta do celeiro se abriu. Um homem louro e alto, um dos trabalhadores da quinta, entrou no espaço mal iluminado acompanhado de uma jovem. Acenou a Lizzie.
— Esta é Katie Fisher.
Ela era encantadora, dentro do estilo robusto tipicamente germânico que fazia Lizzie pensar em nata fresca e primavera. Usava o traje tradicional da Velha Ordem amish: vestido de manga comprida, coberto por um avental preto que lhe dava por baixo dos joelhos. Estava descalça e tinha os pés calejados. Sempre espantara Lizzie ver os jovens amish a correr por estradas de gravilha sem sapatos, mas era assim que passavam o verão. A rapariga estava tão nervosa que Lizzie quase sentia o cheiro a medo.
— Ainda bem que aqui está, Katie — disse Lizzie, docemente. — Andava à sua procura para lhe fazer umas perguntas.
Perante isto, Katie aproximou-se mais do gigante louro a seu lado.
— A Katie estava a dormir ontem à noite — disse ele. — Nem sequer sabia do que aconteceu até eu lhe ter contado.
Lizzie tentou avaliar a reação da rapariga, mas alguma coisa a distraíra. Estava a olhar por cima do ombro de Lizzie em direção à sala dos arreios, onde o médico-legista supervisionava a remoção do corpo do bebé.
De repente, a rapariga afastou-se de Samuel e saiu do celeiro a correr, com Lizzie a segui-la até ao alpendre da casa.
Em termos de reações a uma morte, esta era das violentas. Lizzie viu a rapariga tentar recompor-se e perguntou-se o que teria desencadeado aquilo. Caso se tratasse de uma vulgar adolescente, Lizzie teria interpretado tal comportamento como um indício de culpa. Mas Katie Fisher era amish, o que a obrigava a filtrar os seus pensamentos. Sendo amish, era possível crescer no condado de Lancaster sem noticiários televisivos e filmes para maiores de 18 anos, sem violações, violência doméstica e homicídios. Era possível ver um bebé morto e ficar genuinamente horrorizada e chocada com essa visão.
Pensando bem, houvera casos nos últimos anos; mães adolescentes que tinham escondido a sua gravidez e, após o nascimento, resolvido a questão livrando-se do recém-nascido. Mães adolescentes sem a menor consciência do que tinham feito. Mães adolescentes de todas as formas, tamanhos e religiões.
Katie encostou-se a uma coluna e soluçou com as mãos sobre o rosto.
— Desculpe — disse a rapariga. — Ver aquele corpo fez-me pensar na minha irmã.
— Aquela que morreu?
Katie acenou afirmativamente.
— Afogou-se quando tinha sete anos.
Lizzie olhou para os campos, um mar verde que ondulava com a brisa. Ao longe, um cavalo relinchou e outro respondeu.
— Sabe o que acontece quando se tem um bebé? — perguntou Lizzie, baixinho.
Katie semicerrou os olhos.
— Eu vivo numa quinta!
— Eu sei. Mas os animais são diferentes das mulheres. E, se as mulheres derem à luz e não receberem cuidados médicos a seguir, podem correr um grande perigo. — Lizzie hesitou. — Katie, há alguma coisa que me queira contar?
— Eu não tive um bebé — respondeu Katie, olhando diretamente para a detetive. — Não tive.
Mas Lizzie estava a olhar para o chão do alpendre. Havia uma pequena mancha avermelhada nas tábuas pintadas de branco. E um fiozinho de sangue a escorrer pela perna nua de Katie.
2
Ellie
Os meus pesadelos estavam cheios de crianças. Mais especificamente, seis meninas: duas de cabelo escuro e quatro louras, com os joelhos a sair debaixo do uniforme axadrezado da escola de St. Ambrose e a retorcer as mãos no colo. Vi-as crescer a todas num instante, no preciso momento em que o porta-voz do júri absolveu o meu cliente, o diretor da escola primária que as havia molestado.
Foi o meu maior triunfo como advogada de defesa em Filadélfia; o veredito que me pôs no mapa e que fez com que o meu telefone não parasse de tocar com chamadas de outros distintos membros da comunidade que esperavam poder aproveitar as lacunas da lei para esconder os seus próprios rabos de palha. Na noite a seguir ao veredito, o Stephen levou-me ao Victor’s Café para uma refeição tão cara que podíamos ter comprado antes um carro usado. Apresentou-me ao chefe de sala como «Jeannie Cochran». Disse-me que os dois sócios principais da sua firma, a mais prestigiada da cidade, me tinham convidado para ir falar com eles.
— Stephen — disse eu, espantada — quando lá fui há cinco anos, para uma entrevista, disseste-me que não podias ter uma relação com uma mulher que trabalhasse na tua firma.
Ele encolheu os ombros.
— Há cinco anos, Ellie — respondeu —, as coisas eram diferentes.
Tinha razão. Há cinco anos, ainda estava a construir a minha carreira. Há cinco anos, acreditava que o principal beneficiário de uma absolvição era o meu cliente, não eu. Há cinco anos, não podia senão sonhar com uma oportunidade como a que Stephen me estava a oferecer.
Sorri para ele.
— E a que horas é a reunião?
Mais tarde, pedi licença e fui à casa de banho. Estava lá uma funcionária, à espera pacientemente ao lado de um tabuleiro com maquilhagem, laca e perfume de cortesia. Entrei num dos compartimentos e comecei a chorar. Chorei por aquelas seis meninas, pelas provas que eu tinha ocultado com sucesso, pela advogada que queria ser anos antes, quando terminara a Faculdade de Direito, uma advogada tão cheia de princípios que nunca teria aceitado aquele caso, muito menos trabalhado com tanto afinco para o ganhar.
Saí do compartimento e abri a água para lavar as mãos. Arregacei as mangas de seda do casaco do fato e comecei a esfregar, fazendo espuma entre os dedos e nas unhas. Ao sentir um toque no ombro, virei-me e vi que a funcionária me estendia uma toalha de linho. Os seus olhos eram duros e escuros como castanhas.
— Minha querida — disse ela —, há manchas que nunca se conseguem tirar.
Havia mais uma criança nos meus pesadelos, mas nunca lhe vi o rosto. Era o bebé que eu não tivera e, pelo andar da carruagem, nunca viria a ter. As pessoas faziam pouco dos relógios biológicos, mas eles estavam dentro de mulheres como eu, embora nunca tivesse visto a passagem do tempo como um grito de alerta, mas antes como o prelúdio de uma bomba. Hesitações sucessivas e depois: Bum! Lá se iam as nossas hipóteses.
Não sei se disse que eu e o Stephen vivíamos juntos há oito anos.
No dia a seguir à absolvição, o diretor da St. Ambrose enviou-me duas dúzias de rosas vermelhas. O Stephen entrou na cozinha quando eu estava a enfiá-las no caixote do lixo.
— Porque é que fizeste isso?
Virei-me lentamente para ele.
— Alguma vez te incomoda o facto de teres pisado o risco e já não poderes voltar atrás?
— Valha-me Deus! Estás outra vez a falar como o Confúcio. Diz simplesmente o que queres, Ellie.
— É o que estou a fazer. Só queria saber se te afeta. Aqui. — Apontei para o meu coração, ainda a sofrer. — Alguma vez olhas para as pessoas sentadas do outro lado da sala de audiências, aquelas cujas vidas foram arruinadas por uma pessoa que sabes ser culpada como tudo?
Stephen pegou na sua caneca de café.
— Alguém tem de as defender. É assim que funciona o nosso sistema jurídico. Se tens um coração assim tão mole, então vai trabalhar para o Ministério Público. — Tirou uma rosa do lixo, partiu-lhe o pé e enfiou-ma atrás da orelha. — Tens de tirar isso da cabeça. O que me dizes de irmos até à praia de Rehoboth, para fazer bodysurf? — Aproximando-se mais, acrescentou: — Nus.
— O sexo não é um penso rápido, Stephen.
Ele recuou um passo.
— Desculpa se me esqueci. É que já foi há tanto tempo...
— Não quero ter esta discussão agora.
— Não há nada para discutir, El. Já tenho uma filha de vinte anos.
— Mas eu não. — As palavras ficaram a pairar no ar, tão delicadas e chamativas como uma bola de sabão antes de rebentar. — Escuta, consigo perceber porque é que não queres reverter a vasectomia. Mas há outras formas...
— Não, não há. Não te quero ver a analisar cuidadosamente um catálogo de dadores de esperma à noite. E não quero uma assistente social a passar revista a tudo, desde as minhas declarações de impostos à gaveta da minha roupa interior, para tentar decidir se sou suficientemente respeitável para criar um miúdo chinês que foi abandonado no cume de uma montanha para morrer de hipotermia...
— Stephen, para com isso!
Estás descontrolado!
Para minha surpresa, calou-se de imediato. Sentou-se, carrancudo e furioso.
— Isso era desnecessário — disse, por fim. — Isso magoou-me mesmo, Ellie!
— O quê?
— O que acabaste de dizer. Caramba, chamaste-me troll marado!
Olhei-o nos olhos.
— Eu disse que estás descontrolado.
Stephen pestanejou e depois desatou a rir.
— Oh, meu Deus! Não ouvi bem o que disseste.
E quando é que alguma vez ouviste?, pensei, mas consegui refrear as palavras antes de pronunciá-las.
O escritório de advogados Pfister, Crown e DuPres ficava na baixa de Filadélfia, espraiando-se por três pisos de um moderno arranha-céus em vidro e aço. Perdi horas a vestir-me para a minha reunião com os sócios, rejeitando quatro conjuntos antes de encontrar aquele que eu acreditava dar-me um ar mais confiante. Usei uma dose extra de antitranspirante. Bebi uma chávena de descafeinado, com medo de que o café a sério me deixasse as mãos trémulas. Tracei mentalmente o trajeto até ao edifício e dei praticamente uma hora para o tempo de viagem, embora ficasse apenas a vinte e cinco quilómetros.
Às onze horas em ponto, sentei-me ao volante do meu Honda.
— Sócia principal — murmurei para o espelho retrovisor. — E tudo o que seja menos de trezentos mil dólares por ano é inaceitável. — Pondo os óculos de sol, dirigi-me para a autoestrada.
Stephen tinha deixado uma cassete no meu carro, uma mistura daquilo a que ele gostava de chamar a sua música «mexida», que ouvia quando ia a caminho do tribunal. Com um pequeno sorriso, introduzi-a para a pôr a tocar, deixando a bateria e a batida ecoarem pelo carro. Aumentei o volume de tal forma que, ao mudar precipitadamente de faixa, mal consegui ouvir a buzina zangada da camioneta de caixa aberta quando me atravessei à sua frente.
— Ups — murmurei, dobrando as mãos sobre o volante. Quase de imediato, senti-o fugir. Agarrei-o com mais força, mas isso apenas fez o carro saltar como um cavalo selvagem. Uma nítida sensação de medo percorreu-me a garganta até à barriga, o tipo de pânico que surge quando percebemos que alguma coisa correu horrivelmente mal, alguma coisa que é tarde demais para corrigir. Pelo espelho retrovisor, vi a silhueta ameaçadora da camioneta a aproximar-se, buzinando furiosamente, ao mesmo tempo que o meu carro dava um grande estremeção e ficava imobilizado no meio do trânsito que circulava a uns cem quilómetros por hora.
Fechei os olhos e preparei-me para uma colisão que não chegou a acontecer.
Ainda tremia trinta minutos depois, ao lado de Bob, homónimo do Bob’s Auto Service, enquanto ele tentava explicar o que tinha acontecido ao meu carro.
— Basicamente, derreteu — disse ele, limpando as mãos ao fato-macaco. — O cárter rachou, o motor gripou e os componentes internos aderiram uns aos outros.
— Aderiram uns aos outros — repeti lentamente. — Então, como é que os vamos separar?
— Não vamos. Tem de comprar um motor novo. Estamos a falar de uns cinco ou seis mil dólares.
— Cinco ou seis... — O mecânico começou a afastar-se de mim. — Olhe lá! E como é que faço até lá?
Bob olhou para o meu fato, para a minha pasta e para os meus sapatos de salto alto.
— Compre uns Reebok.
Um telefone começou a tocar.
— Não será melhor atender? — perguntou o mecânico, e eu apercebi-me de que o som vinha das profundezas da minha própria pasta. Soltei um gemido ao lembrar-me da reunião no escritório de advogados. Já tinha quinze minutos de atraso.
— Onde diabo estás? — berrou Stephen quando atendi o telefone.
— O meu carro morreu no meio da autoestrada. À frente de uma camioneta.
— Por amor de Deus, Ellie! É para isso que servem os táxis!
Emudeci com o choque. Nem «Meu Deus, estás bem?», nem «Precisas que te vá ajudar?». Vi Bob abanar a cabeça sobre as entranhas retorcidas do que havia sido o meu motor e senti uma estranha paz apoderar-se de mim.
— Não vou conseguir ir aí hoje — disse.
Stephen soltou um grande suspiro.
— Bem, creio que consigo convencer o John e o Stanley a reagendar a reunião. Já te ligo.
A linha emudeceu na minha mão. Distraidamente, desliguei o telefone e depois fui outra vez até ao meu carro.
— A boa notícia — disse Bob — é que, depois de substituir o motor, vai ficar com um carro praticamente novo.
— Eu gostava do meu carro velho.
Ele encolheu os ombros.
— Nesse caso, faça de conta que é o velho. Com um coração novinho em folha.
De repente, vi a camioneta que vinha atrás de mim na autoestrada, a guinar e a buzinar; os outros carros que se tinham desviado à volta do meu, que parecia uma pedra atirada a um rio. Senti o cheiro do asfalto quente e enrugado a enterrar-se nos meus saltos enquanto eu atravessava a autoestrada em bicos de pés, a tremer como varas verdes. Não era pessoa de acreditar no destino, mas tinha escapado por um triz e isso não podia deixar de ser um sinal; como se precisasse literalmente que me fizessem parar para perceber que tinha andado a correr na direção errada. Depois de o meu carro se ter avariado, tinha ligado para a polícia estadual e para várias estações de serviço, mas nunca me passara pela cabeça ligar a Stephen. Sabia de alguma forma que, se precisasse de socorro, teria de ser eu a tratar disso.
O telefone começou outra vez a tocar.
— Boas notícias! — disse Stephen ainda antes de eu ter falado. — Os figurões estão dispostos a receber-te hoje, às seis da tarde.
Foi nesse momento que soube que ia deixá-lo.
Stephen ajudou-me a carregar as minhas coisas para a parte de trás do meu carro.
— Percebo perfeitamente — disse ele, embora não percebesse. — Queres tirar um tempo antes de escolheres o teu próximo caso.
Eu queria tirar um tempo para decidir se alguma vez iria aceitar outro caso, ponto final, mas isso transcendia o reino do credível para Stephen. Não se fazia um curso de Direito, não se colaborava com a Law Review, nem se trabalhava nas trincheiras para se ganhar o julgamento de uma vida e, depois, se começava a questionar a escolha de carreira. Mas, por outro lado, Stephen não conseguia aceitar que eu estava a ir embora para sempre. Eu sabia disso porque sentia o mesmo. Nos oito anos que tínhamos passado juntos, não nos tínhamos casado, mas também não nos tínhamos separado.
— Telefonas-me quando chegares? — perguntou Stephen, mas, antes que eu pudesse responder, beijou-me. Os nossos lábios separaram-se como uma costura a ser rasgada, e depois entrei no carro e fui embora.
Suponho que outras mulheres na minha situação — ou seja, com o coração destroçado, desavinda e tendo recebido recentemente uma bela maquia — eram capazes de ter escolhido um destino diferente. Grande Caimão, Paris, ou até uma caminhada introspetiva pelas montanhas Rochosas. Para mim, nunca tive dúvidas de que, se precisasse de lamber as minhas feridas, iria parar a Paradise, na Pensilvânia. Em criança, passava lá uma semana todos os verões. O meu tio-avô tinha lá uma quinta e, gradualmente, foi vendendo ao desbarato lotes e parcelas de terra até morrer, altura em que o filho Frank se mudou para a casa grande, plantou relva onde antes ficava o milheiral e abriu uma carpintaria. Frank era da idade do meu pai e já era casado com Leda muito antes de eu ter nascido.
Seria impossível dizer-vos tudo o que fiz durante esses verões em Paradise, mas aquilo que gravei na memória durante todos estes anos foi a calma que dominava a casa e a constante eficiência com que as coisas eram feitas. Inicialmente, pensara que era por causa de Leda e Frank nunca terem tido filhos. Mais tarde, acabei por perceber que tinha a ver com a própria Leda, com o facto de ter sido criada como amish.
Era impossível passar o verão em Paradise e não entrar em contacto com a Velha Ordem amish, que era uma parte intrínseca da região de Lancaster. As Pessoas Simples, como elas próprias se intitulavam, deslocavam-se nas suas carroças por entre o intenso trânsito automóvel; punham-se na fila da mercearia com a sua roupa antiquada; sorriam timidamente por detrás das suas bancas, quando lhes íamos comprar legumes frescos. Na verdade, foi assim que fiquei a saber do passado de Leda. Estávamos à espera para comprar braçadas de milho-doce quando Leda iniciou uma conversa — em holandês da Pensilvânia! — com a mulher que o estava a vender. Eu tinha onze anos, e ouvir Leda, tão americana quanto eu, passar rapidamente para o dialeto germânico foi o suficiente para me deixar perplexa. Mas depois ela deu-me uma nota de dez dólares e disse: «Dá isto à senhora, Ellie», embora estivesse mesmo ali e pudesse ter sido ela a fazê-lo.
Durante a viagem de regresso a casa, Leda explicou que fazia parte da comunidade das Pessoas Simples até se ter casado com Frank, que não era um deles. De acordo com as regras da sua religião, foi alvo de bann — privada de determinados contactos sociais com pessoas que continuavam a ser amish. Podia falar com amigos amish e com a família, mas não podia comer à mesma mesa que eles. Podia sentar-se ao lado deles no autocarro, mas não oferecer-lhes boleia no seu carro. Podia comprar-lhes o que quisesse, mas precisava de uma terceira pessoa — eu — para concluir a transação.
Os pais e os irmãos viviam a quinze quilómetros.
— E pode ir visitá-los? — perguntara.
— Sim, mas raramente o faço — respondeu-me Leda. — Um dia, vais compreender, Ellie. Não mantenho as distâncias por ser desconfortável para mim; faço-o porque é desconfortável para eles.
Leda estava à espera quando o comboio parou na estação de Strasburg. Quando desembarquei, carregando as minhas duas malas, ela estendeu-me os braços.
— Ellie, Ellie!
Cheirava a laranja e a limpa-vidros; o seu ombro largo era o lugar perfeito para eu descansar a cabeça. Eu tinha trinta e nove anos, mas nos braços de Leda voltei a sentir-me com onze.
Ela levou-me até ao pequeno parque de estacionamento.
— E agora, vais dizer-me o que se passa?
— Não se passa nada. Só queria fazer-lhe uma visita.
Leda resmungou:
— Tu só me vens visitar quando estás à beira de um esgotamento nervoso. Passou-se alguma coisa com o Stephen?
Como não respondi, ela semicerrou os olhos.
— Ou será que não se passou nada com o Stephen e é esse o problema?
Suspirei.
— Não é o Stephen. Terminei um caso muito complicado e... bem, precisava de relaxar.
— Mas tu ganhaste o caso! Eu vi nas notícias!
— Pois, mas ganhar não é tudo.
Para minha surpresa, ela não respondeu. Adormeci assim que Leda entrou na autoestrada e acordei sobressaltada quando ela parou na entrada da casa.
— Desculpe — disse, envergonhada. — Não contava adormecer desta maneira.
Leda sorriu e deu-me umas palmadinhas na mão.
— Podes passar aqui o tempo que quiseres, para relaxares.
— Oh, não ficarei por muito tempo!
Tirei as malas do banco de trás e subi rapidamente os degraus do alpendre, atrás de Leda.
— Bem, nós ficamos muito satisfeitos por te ter cá, seja por duas noites ou por uma data delas. — Inclinou a cabeça. — O telefone está a tocar — disse, abrindo a porta e apressando-se a ir atender. — Estou?
Pousei as malas e estiquei-me para desfazer os nós que sentia nas costas. A cozinha de Leda estava num brinquinho, como sempre, e era exatamente como eu me lembrava: o bordado emoldurado na parede, o pote dos biscoitos com formato de porco, os quadrados pretos e brancos do linóleo. Fechando os olhos, era fácil fingir que nunca tinha saído dali, acreditar que a escolha mais difícil que eu teria de fazer naquele dia era se me havia de enroscar numa cadeira Adirondack no jardim das traseiras ou no baloiço rangente do alpendre abrigado. Do outro lado da cozinha, Leda estava claramente surpreendida por ouvir a voz de quem quer que tivesse telefonado.
— Sarah, Sarah, tem calma — tranquilizou ela. — Was ist letz? — Eu só conseguia perceber pequenos fragmentos de palavras desconhecidas: an Kind ... er hat an Kind gfuna ... es Kind va dodt. Deixando-me cair numa banqueta alta, esperei que Leda terminasse a chamada.
Quando ela desligou, a sua mão continuou no auscultador durante um longo momento. A seguir, virou-se para mim, pálida e abalada.
— Ellie, lamento imenso, mas tenho de ir a um sítio.
— Precisa que eu...
— Tu ficas aqui — insistiu Leda. — Estás aqui para descansar.
Vi-a arrancar no carro. Fosse qual fosse o problema, Leda ia resolvê-lo. Resolvia sempre. Pondo os pés em cima de uma segunda banqueta, sorri. Estava em Paradise há quinze minutos, e já me sentia melhor.
3
— Neh! — gritou Katie, esperneando para afastar o paramédico que tentava levá-la para a ambulância. — Ich will net gay!
Lizzie viu a rapariga a debater-se. A parte de baixo do vestido, de um verde vivo, estava agora manchada de preto, com o sangue. Chocados, os Fisher, Samuel e Levi formavam agora um semicírculo apertado. O homenzarrão louro deu um passo em frente, de maxilares cerrados.
— Ponha-a no chão — disse, num inglês perfeito.
O paramédico virou-se.
— Amigo, eu só estou a tentar ajudá-la. — Conseguiu içar Katie para a parte de trás da ambulância. — Os pais podem acompanhá-la.
Sarah Fisher soluçou agarrada à camisa do marido, enchendo-o de súplicas numa língua que Lizzie não entendia. Ele abanou a cabeça e depois deu meia-volta e afastou-se, gritando para que os homens se juntassem a ele. Sarah subiu cautelosamente para a ambulância e segurou a mão da filha, sussurrando até Katie se acalmar. Os paramédicos fecharam as portas duplas; a ambulância começou a percorrer o longo caminho da entrada, levantando pedrinhas e nuvens de pó à sua passagem.
Lizzie sabia que tinha de ir ao hospital para falar com os médicos que iam examinar Katie, mas não o fez de imediato. Em vez disso, observou Samuel, que não tinha seguido Aaron Fisher e estava pregado ao chão, a ver a ambulância desaparecer de vista.
O mundo passava a toda a velocidade. Por cima dela, a fila de luzes fluorescentes fazia lembrar o tracejado no meio de uma estrada, a passar rapidamente, como quando visto da parte de trás de uma carroça. A maca onde ela ia parou de repente e uma voz junto à sua cabeça gritou:
— Vou contar... um, dois, três!
A seguir, Katie sentiu-se levantada no ar e depois pousada numa mesa fria e reluzente.
O paramédico estava a dizer o nome dela a toda a gente e, valha-nos Deus, também estava a dizer que ela estava a sangrar lá em baixo. O rosto de uma mulher debruçou-se sobre ela, para a avaliar.
— Katie? Fala inglês?
— Ja — murmurou.
— Katie, está grávida?
— Não!
— Pode dizer-nos quando teve o seu último período?
Katie enrubesceu e virou a cabeça, sem dizer nada.
Não conseguia abstrair-se das luzes e dos barulhos daquele estranho hospital. Ecrãs luminosos cheios de ondas; bipes e zunidos vindos de todos os lados; vozes dispersas a gritarem numa curiosa sincronia que lhe fazia lembrar os hinos da igreja entoados em conjunto.
— A tensão arterial é de oitenta por quarenta — disse uma enfermeira.
— Frequência cardíaca cento e trinta.
— Frequência respiratória?
— Vinte e oito.
O médico virou-se para a mãe de Katie.
— Senhora Fisher? A sua filha estava grávida? — Aturdida pelo choque, Sarah fitou o homem, em silêncio. — Santo Deus! — murmurou o médico. — Tirem-lhe a saia e pronto!
Katie sentiu as mãos deles a puxar-lhe a roupa, a invadir a sua privacidade.
— Faz parte de um vestido e não consigo encontrar os botões — queixou-se uma enfermeira.
— Não tem botões, tem alfinetes. Mas o que...
— Cortem-no, se for preciso. Quero análises ao sangue e à urina, hCG na urina, um hemograma completo, e enviem a tipagem para o banco de sangue, tudo com a máxima urgência. — O rosto do médico pairou novamente diante de Katie. — Katie, agora vou examinar-lhe o útero. Compreende o que digo? Descontraia, vou tocar entre as suas pernas...
Ao primeiro toque suave, Katie atacou com o pé.
— Segurem-na — ordenou o médico, e duas enfermeiras mantiveram-lhe os tornozelos nos estribos. — Agora, descontraia. Não vou magoá-la. — As lágrimas começaram a rolar pelas faces de Katie, enquanto o médico ditava para uma enfermeira que segurava um bloco com mola. — Para além da lochia rubra, temos um útero flácido, não contraído, com uma dimensão de cerca de vinte e quatro semanas. Parece um colo do útero aberto. Vamos fazer uma ecografia, para ver com o que estamos a lidar. Como está a hemorragia?
— O fluxo continua constante.
— Chamem imediatamente um obstetra.
Uma enfermeira embrulhou uma compressa de gelo em algodão e colocou-a entre as pernas de Katie.
— Isto vai fazer com que te sintas melhor, querida — sussurrou.
Katie tentou concentrar-se no rosto da enfermeira, mas por esta altura a sua visão estava tão trémula quanto os seus braços e pernas, que pareciam feitos de gelatina. Notando o que se passava, a enfermeira pôs-lhe mais um cobertor. Katie gostava de ter palavras para lhe dizer que o que realmente precisava era de alguém que a amparasse, antes que ela se fosse abaixo ali mesmo, naquela marquesa, mas os pensamentos ocorriam-lhe na língua com que crescera.
— Vais ficar bem — tranquilizou-a a enfermeira.
Depois de lançar um olhar de viés à mãe, Katie fechou os olhos e perdeu os sentidos, acreditando que podia ser que assim fosse.
Na plataforma do comboio, a mãe enfiou-lhe cinco notas de vinte dólares na mão.
— Lembras-te de qual é a estação em que mudas? — Katie acenou afirmativamente. — E se ele não estiver lá à tua espera, telefonas-lhe. — A mãe afagou a face de Katie. — Desta vez, não faz mal usares o telefone, se for preciso.
Escusado será dizer que usar um telefone seria o menor dos seus pecados. Katie ia visitar pela primeira vez o seu irmão Jacob desde que ele saíra de casa para ir para a universidade, quando ela tinha apenas doze anos.
A mãe olhou nervosamente para os outros passageiros à espera de embarcar, esperando manter-se longe da vista de outras Pessoas Simples, que pudessem contar a Aaron que a mulher e a filha lhe tinham mentido.
O Amtrak comprido e lustroso entrou na estação e Katie abraçou a mãe com força.
— Podia vir comigo — sussurrou, de forma acalorada.
— Não precisas de mim. És uma rapariga crescida.
Katie não tinha falado com essa intenção, e ambas sabiam disso. Se fosse com a filha até State College, Sarah estaria a desobedecer ao marido, e isso não se fazia. Mesmo assim, mandar Katie como enviada do seu amor já era caminhar sobre a corda bamba da insubordinação. Além disso, Katie ainda não tinha sido batizada na igreja. Pelas regras da Ordnung, Sarah não poderia andar de carro com o filho excomungado, nem poderia comer à mesma mesa que ele.
— Vais tu — disse, sorrindo para a filha. — Depois voltas e contas-me tudo sobre ele.
Katie sentou-se sozinha no comboio, fazendo vista grossa aos olhares curiosos e às pessoas que apontavam para a sua roupa e touca. Entrelaçou as mãos no regaço e pensou na última vez que tinha visto Jacob, com o sol a brilhar como um halo no seu cabelo cor de cobre, quando saiu de casa para sempre.
Quando o comboio parou em State College, Katie encostou a cara à janela, à procura do irmão naquele mar de rostos ingleses. É claro que estava habituada a gente que não pertencia à comunidade das Pessoas Simples, mas, mesmo nas vias públicas mais concorridas de East Paradise, via sempre pelo menos uma ou duas pessoas vestidas como ela e que falavam a sua língua. As pessoas que esperavam na plataforma estavam vestidas com uma enorme e vertiginosa paleta de cores. Algumas das mulheres usavam tops e calções minúsculos que deixavam grande parte dos seus corpos desnudados. Horrorizada, reparou num jovem que tinha uma argola no nariz e outra na orelha, ligadas por uma corrente.
Não viu Jacob.
Quando saiu do comboio, rodou lentamente, com medo de ser engolida por tanto movimento. De repente, sentiu baterem-lhe no ombro.
— Katie?
Virou-se para o irmão e corou de surpresa. Como é que havia de o ter visto? Estava à espera de ver Jacob com o seu chapéu de palha de aba larga e as suas calças pretas com suspensórios. Este Jacob tinha a barba feita, usava uma camisa de xadrez de manga curta e calças de caqui.
Caiu-lhe nos braços, estreitando-o com tanta força que só agora percebia a solidão que sentia em casa, sem ele.
— A mãe tem saudades tuas — disse Katie, ofegante. — Diz que tenho de lhe contar tudo.
— Também tenho saudades dela. — Jacob pôs o braço sobre os ombros dela e conduziu Katie por entre a multidão. — Acho que deves ter crescido uns trinta centímetros. — Levou a irmã até um pequeno carro azul que estava num parque de estacionamento. Katie parou atrás do carro e ficou a olhar. — É meu — disse Jacob, baixinho. — Katie, de que é que estavas à espera?
A verdade é que não estava à espera de nada. A não ser que o irmão que ela amava e que tinha virado as costas à sua religião para poder frequentar a faculdade vivesse a mesma vida que abandonara... só que num lugar diferente de East Paradise. Isto — a roupa estranha e o veículo minúsculo — fazia-a perguntar-se se o pai não teria razão em acreditar que Jacob não podia continuar os estudos e manter o coração de uma Pessoa Simples.
Jacob abriu-lhe a porta e depois entrou ele próprio no carro.
— Onde é que o pai julga que estás hoje?
O dia em que Jacob tinha sido excomungado da Igreja Amish fora o mesmo dia em que tinha morrido aos olhos implacáveis do pai.
Aaron Fisher aprovaria tanto as visitas de Katie a Jacob como as cartas que a mãe escrevia a este e pedia à filha para pôr às escondidas no correio.
— Em casa da tia Leda.
— Muito esperta. Ele não aguenta falar com ela tempo suficiente para descobrir que é mentira. — Jacob sorriu sarcasticamente. — Nós, os banidos, temos de nos manter unidos, suponho.
Katie entrelaçou as mãos no regaço.
— Vale a pena? — perguntou, baixinho. — A faculdade é tudo o que querias?
Jacob analisou-a longamente.
— Não é tudo, porque vocês não estão aqui.
— Podias voltar, sabes? Podias voltar quando quisesses e fazer uma confissão...
— Podia, mas não o farei. — Ao ver Katie franzir o sobrolho, Jacob esticou-se sobre a consola e puxou-lhe pelas longas fitas da sua kapp. — Eh, continuo a ser o tipo que te empurrou para o lago quando fomos pescar. E que pôs uma rã na tua cama.
Katie sorriu.
— Agora que penso nisso, não me importo que tenhas mudado.
— É assim mesmo, miúda! — riu-se Jacob. — Tenho uma coisa para ti. — Esticou-se para chegar ao banco de trás e tirou uma trouxa embrulhada em papel pardo e atada com fita vermelha. — Não quero que interpretes isto mal, mas quando cá vens quero que sejam férias para ti. Um escape. Para que talvez não tenhas de fazer a mesma escolha de tudo ou nada que me coube em sorte. — Ele viu os dedos dela desfazerem o laço e abrir o embrulho, deixando à mostra um par de leggings macias, uma t-shirt amarelo-vivo e um casaco de malha de algodão com um festival de flores bordadas.
— Oh! — disse Katie, atraída mesmo sem querer. Os seus dedos passaram pelo bordado na gola do casaco. — Mas eu...
— É para usares enquanto cá estás. Se andares por aí com a tua roupa habitual, isso só vai dificultar-te a vida. Se usares antes essa roupa... bem, nunca ninguém vai saber, Katie. Pensei que talvez pudesses fazer de conta durante algum tempo, quando vens visitar-me. Ser como eu. Aqui. — Ele baixou a pala diante de Katie, para lhe mostrar um pequeno espelho, e depois pôs-lhe o casaco à frente para ela poder ver o reflexo.
Katie corou.
— Jacob, é lindo!
Até Jacob ficou perplexo ao ver como aquela confissão deslumbrada fazia a irmã parecer outra pessoa, o tipo de pessoa de quem lhe tinham ensinado a guardar distância.
— Sim — disse ele. — Tu é que és linda!
Lizzie ligou do telefone do carro para o gabinete do procurador do condado, enquanto ia a caminho do hospital.
— George Callahan — anunciou bruscamente a voz do outro lado.
— Ora, vejam só! Saiu-me o mandachuva em pessoa. Onde está a tua secretária?
George riu-se ao reconhecer a voz dela.
— Não sei, Lizzie. Raspou-se, acho eu. Queres vir tomar o lugar dela?
— Não posso. Estou demasiado ocupada a prender pessoas para o MP levar a tribunal.
— Ah, tenho de te agradecer por isso. És a minha fonte de alimentação para garantir a segurança do emprego.
— Bem, o teu lugar está garantido: encontrámos um bebé morto num celeiro amish, aqui mesmo, e as coisas não estão a fazer sentido. Vou a caminho do hospital para verificar um possível suspeito, mas queria dizer-te que é capaz de haver uma acusação no teu futuro próximo.
— Que idade tinha e onde é que foi encontrado? — perguntou George, já em tom sério.
— Horas de vida, um recém-nascido. Estava debaixo de um monte de cobertores — disse Lizzie. — E, segundo toda a gente que inquirimos no local, ninguém deu à luz recentemente.
— Era um nado-morto?
— O médico-legista pensa que não.
— Nesse caso, presumo que a mãe largou o miúdo e se foi embora — deduziu George. — Disseste que tinha uma pista?
Lizzie hesitou.
— Isto vai parecer-te um disparate, George, mas a rapariga amish de dezoito anos que vive na quinta e que jurou que não estava grávida está neste momento no hospital, com uma hemorragia vaginal.
Seguiu-se um silêncio atónito.
— Lizzie, quando é que foi a última vez que acusaste um amish de um crime?
— Eu sei, mas as provas materiais apontam para ela.
— Então, tens provas?
— Bem, ter não tenho...
— Arranja-as — disse George, terminantemente. — E depois volta a ligar-me.
O médico estava próximo da sala de triagem a explicar à recém-chegada obstetra o que ia encontrar nas Urgências.
— Parece-me atonia uterina e possível retenção da placenta — disse a obstetra, olhando para a ficha da paciente. — Vou fazer o exame e depois levamo-la lá acima para a sala de operações, para uma dilatação e curetagem. Qual é o estado do bebé?
O médico das Urgências baixou a voz.
— Segundo os paramédicos que a trouxeram, não sobreviveu.
A obstetra acenou com a cabeça e depois desapareceu atrás da cortina, onde Katie Fisher ainda se encontrava deitada.
Lizzie levantou-se da posição estratégica que detinha numa fiada de cadeiras de plástico baço. Se George queria provas, então ela ia arranjá-las. Agradeceu a Deus pelo facto de os detetives se vestirem à paisana — nenhum agente fardado teria a mínima hipótese de arrancar informação confidencial a um médico sem exibir um mandado — e aproximou-se do médico.
— Desculpe — disse, com as mãos a compor as pregas da camisa. — Sabe dizer-me como está Katie Fisher?
O médico levantou os olhos.
— E quem é a senhora?
— Eu estava lá em casa quando ela começou a sangrar. — Não era mentira. — Só queria saber se ela vai ficar bem.
O médico acenou afirmativamente, franzindo o sobrolho.
— Imagino que vá ficar bem, mas teria sido muito mais seguro para ela ter tido o bebé no hospital.
— Senhor doutor — disse Lizzie, a sorrir —, nem imagina o que significa para mim ouvi-lo dizer isso.
Leda abriu a porta do quarto de hospital onde a sobrinha se encontrava. Katie dormia serenamente na cama articulada. Sarah estava sentada a um canto, muda e queda. Quando viu a irmã entrar no quarto, correu para os braços de Leda.
— Ainda bem que vieste — disse, abraçando Leda com força.
Leda baixou os olhos para o alto da cabeça de Sarah. Anos a fio a fazer a risca ao meio no cabelo e a esticá-lo com força antes de prender a kapp com um alfinete tinham deixado uma linha que ia ficando mais larga a cada ano que passava, um rego tão rosado e vulnerável quanto o couro cabeludo de um recém-nascido. Leda beijou-lhe a zona calva e depois afastou-se de Sarah.
Sarah falou rapidamente, como se as palavras se tivessem levantado dentro dela como vapor.
— Os médicos pensam que a Katie teve um bebé. Precisaram de lhe dar medicamentos que parassem a hemorragia. Levaram-na para cima, para a operar.
Leda tapou a boca com a mão.
— Tal como tu, depois de teres tido a Hannah.
— Ja, mas a Katie teve imensa sorte. Ainda poderá ter filhos, ao contrário de mim.
— Falaste ao médico da tua histerectomia?
Sarah abanou a cabeça.
— Não gostei da médica. Não acreditou na Katie quando ela disse que não teve um bebé.
— Sarah, estes médicos ingleses... têm testes científicos para a gravidez. Os testes científicos não mentem, mas a Katie pode ter mentido. — Leda hesitou, sondando-a com toda a cautela. — Nunca notaste a figura dela mudar?
— Não!
Mas Leda sabia que isso não queria dizer grande coisa. Algumas mulheres, sobretudo altas como Katie, sofriam alterações tão graduais que podiam passar-se meses até a gravidez se notar. Katie despia-se com toda a privacidade e a barriga dilatada era difícil de ver sob os franzidos do avental. Qualquer perda de cintura passaria despercebida, uma vez que as roupas das mulheres da Velha Ordem amish eram presas com alfinetes facilmente ajustáveis.
— Se ela se tivesse metido em sarilhos, tinha-me contado — insistiu Sarah.
— E o que achas que teria acontecido nesse preciso minuto?
Sarah desviou o olhar.
— Isso teria matado o Aaron.
— Confia em mim. O Aaron não se vai abaixo assim tão facilmente. E é melhor que comece já a lidar com o assunto, pois isto é apenas o começo.
Sarah suspirou.
— Quando a Katie for para casa, vamos ter o bispo à perna, isso é mais que certo. — Olhando para Leda, acrescentou: — Talvez pudesses falar com ela. Sobre o Meidung.
Estupefacta, Leda deixou-se cair numa cadeira ao lado da cama de hospital.
— O banimento? Sarah, não estou a falar de punição no seio da Igreja. A polícia encontrou um bebé morto hoje de manhã, um bebé morto sobre o qual a Katie já mentiu ao negar tê-lo tido. Eles vão pensar que ela também mentiu sobre outras coisas.
— Será que é crime, para estes ingleses, ter um filho sem se ser casado? — perguntou Sarah, indignada.
— É se o deixarmos morrer. Se a polícia provar que o bebé nasceu com vida, a Katie vai arranjar um monte de problemas.
Sarah empertigou-se.
— O Senhor fará com que tudo se resolva. E, se não o fizer, aceitaremos a Sua vontade.
— Estás a falar da vontade de Deus ou da do Aaron? Se a Katie for presa, se deres ouvidos ao Aaron, virares a outra face e não arranjares alguém que a defenda em tribunal, eles vão mandá-la para a prisão. Durante anos. Talvez para sempre. — Leda tocou no braço da irmã. — Quantos filhos vais deixar que te tirem?
Sarah sentou-se na borda da cama. Entrelaçou os dedos inertes de Katie nos seus e apertou. Assim, com a camisa do hospital e o cabelo solto sobre os ombros, Katie não parecia uma das Pessoas Simples. Assim, tinha tão-só o mesmo aspeto que qualquer outra rapariga.
— Leda — sussurrou Sarah —, eu não sei movimentar-me neste mundo.
Leda pôs a mão no ombro da irmã.
— Mas eu sei.
— Detetive Munro, tem um minuto?
Não tinha, mas acenou afirmativamente para o agente da Unidade de Crimes Graves da polícia estadual, que tinha esquadrinhado a propriedade durante toda a tarde. Assim que apurara que Katie Fisher ia ficar hospitalizada pelo menos durante aquela noite, Lizzie tinha ido ter com o juiz de comarca para obter mandados de busca para a casa e os terrenos, assim como para uma colheita do sangue de Katie, para uma comparação de ADN. Com a cabeça em turbilhão com as mil e uma coisas que ainda tinha para fazer, Lizzie tentou concentrar a sua atenção no agente.
— O que conseguiu?
— Na verdade, o local está completamente limpo — disse ele.
— Escusa de parecer tão surpreendido — respondeu Lizzie, secamente. — Podemos ser polícias municipais, mas todos fizemos o liceu. — Não tinha ficado nada contente com o facto de chamar a UCG, pois tendiam a olhar com nariz empinado para a polícia local e tinham o péssimo hábito de tirar o controlo da investigação ao detetive encarregado dela. Contudo, as capacidades de investigação da polícia estadual eram muito mais avançadas do que as da polícia de East Paradise, simplesmente porque já tinham lidado mais vezes com aquele tipo de situação. — O pai causou-vos algum problema?
O agente encolheu os ombros.
— Na verdade, não o vi. Levou as mulas para os campos há cerca de duas horas. — Entregou a Lizzie uma camisa de noite branca, manchada de sangue na parte de baixo, fechada num saco de provas. — Estava debaixo da cama da rapariga, toda enrolada. Também encontrámos vestígios de sangue junto ao lago atrás da casa.
— Ela teve o bebé, lavou-se no lago, escondeu a camisa de noite e voltou para a cama.
— Vocês são mesmo espertos! Venha cá, quero que veja isto. — Levou Lizzie até à sala dos arreios onde tinha sido encontrado o cadáver do bebé. Agachando-se, apontou para o que parecia ser uma pequena onda no chão, mas que, analisando melhor, era o contorno de uma pegada. — O estrume é fresco, o que significa que a pegada não foi feita há muito tempo.
— É possível descobrir de quem é, da mesma forma que fazemos com as impressões digitais?
O agente abanou a cabeça.
— Não, mas podemos determinar o tamanho do pé. É um trinta e sete, biqueira larga. — Fez um gesto a um colega, que entregou outro saco de provas contendo um par de ténis pouco atraentes. Calçando luvas, o agente retirou o esquerdo. Levantou a lingueta para Lizzie poder ler a etiqueta. — Ténis de mulher, tamanho trinta e sete, largura extra — disse. — Encontrados no roupeiro da Katie.
Levi foi calado durante a viagem de regresso a casa, na carroça, algo que Samuel sabia resultar de um enorme poder de contenção. Por fim, incapaz de aguentar por mais tempo, Levi virou-se quando os cavalos pararam.
— O que achas que vai acontecer?
Samuel encolheu os ombros.
— Não sei.
— Espero que ela esteja bem — disse Levi, com sinceridade.
— Também eu. — Ouviu a própria voz embargada e tossiu, para que Levi não notasse. O rapaz olhou por um instante para o primo mais velho e depois saltou da carroça e correu para casa.
Samuel continuou estrada fora, mas não fez a curva que o levaria a casa dos pais. Por esta altura, já deviam saber o que tinha acontecido a Katie e é claro que o crivariam de perguntas. Foi até à vila e amarrou o cavalo à Casa de Ferragens Zimmermann. Em vez de entrar na loja, foi para trás do edifício e entrou no milheiral que se estendia para norte. Tirou o chapéu e segurou-o na mão enquanto corria, com as espigas a esfolar-lhe o rosto e o tronco. Correu até conseguir ouvir a música ensurdecedora do seu próprio coração; até ser impossível recobrar o fôlego, quanto mais dominar as emoções.
A seguir, deixou-se cair no meio do campo, deitado de costas, a arquejar. Olhou fixamente para o azul arroxeado do céu noturno e deixou as lágrimas correr.
Ellie estava a folhear a Good Housekeeping quando a tia voltou para casa.
— Está tudo bem? Saiu daqui como se tivesse fogo no rabo. — Depois, levantou os olhos e viu Leda macilenta, pálida, distraída. — Parece que não está tudo bem.
Leda deixou-se cair numa cadeira e a sua bolsa deslizou-lhe do ombro e caiu no chão. Fechou os olhos, em silêncio.
— Está a assustar-me — disse Ellie, com uma risada nervosa. — O que se passa?
Endireitando-se de forma visível, Leda levantou-se e começou a remexer no frigorífico. Tirou pepinos, alface e cenouras e pousou-os na bancada. Lavou as mãos, pegou numa faca e começou a cortar os legumes em pedaços do mesmo tamanho.
— Vamos comer salada com o jantar — disse ela. — O que achas disso?
— Acho que ainda são três da tarde. — Ellie foi ter com Leda, tirou-lhe a faca da mão e esperou até que a mulher mais velha a olhasse nos olhos. — Conte lá o que se passa.
— A minha sobrinha está no hospital.
— Não tem mais nenhuma... oh! — Fez-se luz quando Ellie percebeu que se tratava da família de que Leda não falava; a família que deixara para trás. — Ela... está doente?
— Quase morreu a ter um bebé.
Ellie não soube o que dizer. Não lhe ocorria nada mais trágico do que dar à luz e depois não poder desfrutar desse milagre.
— Só tem dezoito anos, Ellie. — Leda hesitou, esticando os dedos sobre a tábua de cortar. — Não é casada.
Na cabeça de Ellie, surgiu lentamente a imagem de uma rapariga jovem e solteira, a tentar livrar-se de um feto.
— Nesse caso, foi um aborto?
— Não, foi um bebé.
— Ah, claro que sim — apressou-se Ellie a acrescentar, pensando que as origens de Leda não permitiam que fosse a favor do aborto. — De quanto tempo estava?
— Quase oito meses — disse Leda.
Ellie pestanejou.
— Oito meses?
— Acontece que o corpo do bebé foi descoberto antes que alguém soubesse sequer que a Katie estava grávida.
Ellie sentiu um pequeno arrepio na base da espinha, mas obrigou-se a ignorá-lo. No fim de contas, não estavam em Filadélfia e a jovem mãe não era uma viciada em crack, mas sim uma rapariga amish. — Nado-morto, então — disse Ellie, com compaixão. — Que pena!
Leda virou as costas a Ellie, calada por um instante.
— No caminho para cá, disse a mim mesma que não ia fazer isto, mas amo tanto a Katie como te amo a ti. — Respirou fundo. — Há hipótese de o bebé não ter nascido morto, Ellie.
— Não! — A palavra saltou da boca de Ellie, grave e acalorada. — Não posso. Não me peça para fazer isto, Leda.
— Não há mais ninguém. Não estamos a falar de pessoas que estejam à vontade com a lei. Se dependesse da minha irmã, a Katie ia para a prisão, quer fosse culpada ou não, pois não é da natureza dela ripostar. — Leda fitou-a, com os olhos a faiscar. — Elas confiam em mim, e eu confio em ti.
— Primeiro que tudo, ela não foi formalmente acusada. Em segundo lugar, mesmo que fosse, Leda, eu não podia defendê-la. Não sei nada sobre ela nem sobre o seu modo de vida.
— Acaso vives nas ruas, como os narcotraficantes que defendeste? Ou numa grande mansão em Main Line, como aquele diretor de escola que conseguiste absolver?
— Isso é diferente, e a Leda sabe disso. — Não interessava se a sobrinha de Leda tinha direito a um bom aconselhamento jurídico. Não interessava que Ellie já tivesse defendido outras pessoas acusadas de crimes igualmente repugnantes. Droga, pedofilia e assalto à mão armada não lhe diziam tanto.
— Mas ela é inocente, Ellie!
Há muito tempo, tinha sido essa a razão para Ellie se ter tornado advogada de defesa: as almas que iria salvar. No entanto, Ellie conseguia contar pelos dedos de uma mão o número de clientes que conseguira absolver e que de facto tinham sido indevidamente acusados. Sabia agora que a maior parte dos seus clientes eram culpados dos crimes de que os acusavam, embora todos eles tivessem uma desculpa que gritariam até morrer. Ela podia não concordar com as ações criminosas dos seus clientes, mas, de alguma forma, sempre compreendera o que os levara a fazê-las. Porém, neste momento da sua vida, não havia nada que a pudesse fazer compreender uma mulher que matava o próprio filho.
Não quando havia outras mulheres que queriam tão desesperadamente ter um.
— Não posso aceitar o caso da sua sobrinha — disse Ellie, baixinho. — Estaria a prejudicá-la.
— Promete-me apenas que vais pensar no assunto.
— Não vou pensar no assunto. E vou fazer de conta que não mo pediu. — Ellie saiu da cozinha, tentando libertar-se da deceção de Leda.
O corpanzil de Samuel enchia a porta do quarto do hospital, lembrando a Katie como por vezes ficava ao lado dele num campo aberto e mesmo assim sentia que tinha pouco espaço. Sorriu de forma hesitante.
— Entra.
Ele aproximou-se da cama, passando a orla do seu chapéu de palha entre os dedos, como uma costura. A seguir, baixou a cabeça, sentindo a cor assomar-lhe às faces.
— Estás bem?
— Estou ótima — respondeu Katie. Mordeu o lábio enquanto Samuel puxava uma cadeira e se sentava ao lado dela.
— Onde está a tua mãe?
— Foi para casa. A tia Leda chamou-lhe um táxi, já que ela não se sentia à vontade para voltar no carro dela.
Samuel assentiu, percebendo a situação. Os serviços de táxi amish, dirigidos por menonitas locais, transportavam as ditas Pessoas Simples quando as distâncias eram grandes ou nas autoestradas, onde não podiam circular carroças. Quanto a ir no carro de Leda, também percebia. Leda tinha sido alvo de bann, e ele também não se teria sentido à vontade para aceitar boleia dela.
— Como... como estão as coisas em casa?
— Atarefadas — disse Samuel, escolhendo cuidadosamente as suas palavras. — Fizemos hoje o terceiro corte do feno. — Hesitando, acrescentou: — A polícia ainda anda por lá. — Olhou para o punho cerrado de Katie, pequeno e rosado contra o cobertor de poliéster. Tomou-o gentilmente nas suas mãos e depois ergueu-o lentamente até ao queixo.
Katie curvou a palma da mão contra a face dele; Samuel abandonou-se à carícia. De olhos brilhantes, ela abriu a boca para voltar a falar, mas Samuel impediu-a, pondo-lhe um dedo nos lábios.
— Chiu — disse. — Agora não.
— Mas deves ter ouvido coisas — sussurrou Katie. — Eu quero...
— Não dou ouvidos ao que dizem. Só darei ouvidos ao que tu tens a dizer.
Katie engoliu em seco.
— Samuel, eu não tive um bebé.
Ele olhou-a durante um longo momento, e depois apertou-lhe a mão.
— Então, está tudo bem.
Os olhos de Katie voaram para os dele.
— Acreditas em mim?
Samuel alisou-lhe o cobertor sobre as pernas, aconchegando-a como uma criança. Olhou para a cascata cintilante do cabelo dela e apercebeu-se de que não o tinha visto assim, brilhante e solto, desde que eram pequenos.
— Tenho de acreditar — disse ele.
O bispo da igreja de Elam Fisher era seu primo. O velho Ephram Stoltzfus fazia de tal forma parte da vida quotidiana que, mesmo quando atuava como líder da congregação, era extraordinariamente acessível — parando a sua carroça à beira da estrada para uma conversa ou saltando do seu arado no meio do campo para fazer uma sugestão. Quando Elam estivera com ele nesse dia e lhe contara o que tinha acontecido na quinta, Ephram escutou atentamente e depois disse que precisava de falar com outras pessoas. Elam presumira que Ephram estava a falar do diácono da Igreja ou de dois pastores, mas o bispo abanara a cabeça.
— Com os homens de negócios — dissera ele. — Eles é que sabem como é que a polícia inglesa trabalha.
Depois de jantar, quando Sarah estava a levantar a mesa, a carroça do bispo Ephram parou à porta. Elam e Aaron entreolharam-se e depois saíram para ir ao seu encontro.
— Ephram — cumprimentou Aaron, apertando-lhe a mão depois de ele ter amarrado o seu cavalo.
— Aaron. Como está a Katie?
Aaron ficou visivelmente mais rígido, ainda que de forma ligeira.
— Disseram-me que vai ficar bem.
— Não foste ao hospital? — perguntou Ephram.
Aaron desviou o olhar.
— Neh.
O bispo inclinou a cabeça, e a sua barba branca brilhou.
— Querem ir dar uma volta comigo?
Os três homens dirigiram-se à horta de Sarah. Elam sentou-se num banco de pedra e fez sinal a Ephram para fazer o mesmo. Mas o bispo abanou a cabeça e olhou por cima das cabeças altas dos tomateiros e das hastes dos feijoeiros, à volta dos quais dançava uma chuva de pirilampos. Brilhavam e faziam piruetas como um punhado de estrelas que tivessem sido arremessadas.
— Lembro-me de ter vindo aqui uma vez, há uns bons anos, e de ter visto o Jacob e a Katie caçarem pirilampos — disse Ephram. — De os fecharem num frasco. — Riu-se. — O Jacob disse que estava a fazer uma lanterna amish. Tens tido notícias do Jacob?
— Não, e é assim que quero que seja — respondeu Aaron, baixinho.
Ephram abanou a cabeça.
— Ele foi banido da Igreja, Aaron. Não da tua vida.
— Para mim, é a mesma coisa.
— É isso que não compreendo, sabes? O perdão é a nossa primeira regra.
Aaron olhou o bispo nos olhos.
— Veio cá para falar sobre o Jacob?
— Bem, não — admitiu Ephram. — Depois de teres passado por lá esta manhã, Elam, fui ver o John Zimmermann e o Martin Lapp. Eles entendem que, se a polícia esteve aqui o dia todo, é porque devem considerar a Katie como suspeita. Certamente, tudo dependerá de saber se o bebé nasceu com vida. Se assim for, será responsabilizada pela sua morte. — Mostrou um semblante severo a Aaron. — Sugeriram que falassem com um advogado, para não serem apanhados desprevenidos.
— A minha Katie não precisa de advogado.
— Assim espero — disse o bispo. — Mas, se precisar, a comunidade irá apoiá-la. — Hesitou, e depois acrescentou: — Durante este tempo, terá de voltar atrás, compreendes?
Elam olhou para ele.
— Deixar de comungar, apenas? Não será alvo de bann?
— Vou ter de falar com o Samuel, como é óbvio, antes de pensar no assunto. — Ephram pôs a mão no ombro de Aaron. — Não é a primeira vez que um casal jovem antecipa a noite de núpcias. É uma tragédia o bebé ter morrido. Mas a dor é capaz de cimentar um casamento tão bem quanto a felicidade. E, no que toca a Katie poder ser responsabilizada pelo sucedido, bem, nenhum de nós acredita nisso.
Aaron virou-se, libertando-se da mão do bispo.
— Obrigado. Mas não vamos contratar um advogado para a Katie e passar pelos tribunais Englischer. Não é essa a nossa maneira de estar.
— O que é que te leva sempre a traçar uma linha e a desafiar as pessoas a atravessá-la, Aaron? — suspirou Ephram. — Não é essa a nossa maneira de estar.
— Se me dá licença, tenho trabalho para fazer — disse Aaron, fazendo um aceno de cabeça ao bispo e ao pai e dirigindo-se para o celeiro.
Os dois homens mais velhos observaram-no em silêncio.
— Já tiveste esta conversa com ele, uma vez — observou Elam Fisher.
O bispo sorriu tristemente.
— Ja. E também falei para uma parede, dessa vez.
Katie sonhou que estava a cair do céu, como um pássaro com uma asa ferida, com a terra a aproximar-se a toda a velocidade. O seu coração alojou-se na garganta, reprimindo o grito, e ela apercebeu-se no último segundo de que estava a dirigir-se para o celeiro, para os campos, para a sua casa. Fechou os olhos e embateu na terra, fazendo o cenário fragmentar-se com o impacto, como uma casca de ovo, de tal forma que, quando olhou à sua volta, não conseguiu reconhecer o que quer que fosse.
Pestanejando na escuridão, Katie tentou sentar-se na cama. Havia fios elétricos e tubos a sair do seu corpo como raízes. Sentia a barriga dorida e os braços e as pernas pesados.
A Lua em forma de vírgula riscava o céu estrelado. Katie fez deslizar as mãos sob as mantas e pousou-as na barriga. «Ich hab ken Kind kaht», sussurrou. Eu não tive um bebé.
As lágrimas caíam-lhe sobre o cobertor. «Ich hab ken Kind kaht. Ich hab ken Kind kaht», murmurou sem parar, até as palavras se tornarem um fluido que lhe corria pelas veias, uma canção de embalar.
O aparelho de fax em casa de Lizzie apitou, pouco passava da meia-noite, enquanto ela corria na passadeira. De qualquer forma, a adrenalina não a deixava dormir e era boa para um exercício capaz de a deixar suficientemente cansada para adormecer durante umas horas. Desligou a passadeira e foi até ao fax, a transpirar enquanto esperava que as páginas saíssem. Ao ver a página de rosto do relatório do médico-legista, o seu coração desatou a bater ainda com mais força.
As palavras começaram a chegar-lhe, fazendo-a puxar pela cabeça.
Sexo masculino, 32 semanas. Comprimento total: 39,2 cm. Comprimento crânio-caudal: 26 cm. Teste hidrostático... ductos alveolares dilatados... aspeto rosado com manchas vermelho-escuras... pulmão esquerdo e direito flutuaram, excluindo ventilação parcial e irregular. Ar presente no ouvido médio. Hematomas no lábio superior; fibras de algodão nas gengivas.
— Santo Deus! — sussurrou, a tremer. Já deparara várias vezes com homicidas: o homem que tinha esfaqueado o proprietário de uma loja de conveniência por causa de um maço de Camels; um rapaz que tinha violado estudantes universitárias e as deixara a esvair-se em sangue no chão do dormitório; uma vez, uma mulher que tinha dado um tiro no rosto do marido abusador enquanto ele dormia. Havia alguma coisa nessas pessoas que sempre fizera Lizzie sentir que, se fosse possível abri-las como matrioskas russas, encontraria um carvão incandescente e fumegante no seu centro.
Algo que não se aplicava a esta rapariga amish.
Lizzie despiu a roupa de treino e foi para o duche. Antes que a rapariga fosse detida, lhe lessem os direitos e fosse formalmente acusada, Lizzie queria olhar Katie Fisher nos olhos e ver o que ela tinha no seu íntimo.
Eram quatro da manhã quando Lizzie entrou no quarto de hospital, mas Katie estava acordada e sozinha. Arregalou os seus olhos azuis, surpreendida por ver a detetive.
— Olá.
Lizzie sorriu e sentou-se ao lado da cama.
— Como se sente?
— Melhor — disse Katie, baixinho. — Mais forte.
Lizzie olhou para o colo de Katie e viu a Bíblia que ela tinha estado a ler.
— Foi o Samuel que ma trouxe — disse a rapariga, confusa com a expressão severa da outra mulher. — Não é permitido aqui dentro?
— Oh, sim, é! — respondeu Lizzie. Sentiu o monte de provas que andara a empilhar tão bem durante vinte e quatro horas começar agora vacilar: ela é amish. Seria aquela única justificação, aquela única inconsistência manifesta, a derrubá-lo? — Katie, o médico contou-lhe o que aconteceu consigo?
Katie olhou para ela. Pousou o dedo na Bíblia, fechou o livro sobre ele com um roçagar de páginas e acenou afirmativamente.
— Quando a vi ontem, disse-me que não tinha tido um bebé. — Lizzie respirou fundo. — Pergunto-me por que razão disse isso.
— Porque não tive um bebé.
Lizzie abanou a cabeça, incrédula.
— Nesse caso, porque está a sangrar?
O rubor afluiu ao rosto de Katie, subindo a partir do decote da camisa hospitalar.
— Estou naquela altura do mês — respondeu, em voz sumida. Desviou o olhar, para se recompor. — Posso fazer parte da comunidade das Pessoas Simples, detetive, mas não sou estúpida. Não acha que eu saberia se tivesse tido um bebé?
A resposta foi tão sincera e desarmante que Lizzie recuou mentalmente. O que estou a fazer mal? Tinha interrogado centenas de pessoas, centenas de mentirosos, mas Katie Fisher era a única que mexera com ela. Espreitou pela janela para o vermelho incandescente do horizonte e percebeu qual era a diferença: isto não era fingimento. Katie Fisher acreditava completamente no que estava a dizer.
Lizzie pigarreou e enveredou por uma abordagem diferente.
— Vou fazer-lhe uma pergunta inconveniente, Katie... Alguma vez teve relações sexuais?
Se possível, as faces de Katie ainda se fizeram mais vermelhas.
— Não.
— Será que o seu amigo louro me vai dizer a mesma coisa?
— Vá perguntar-lhe — desafiou ela.
— A Katie viu aquele bebé ontem de manhã — disse Lizzie, com a voz carregada de frustração. — Como é que ele lá foi parar?
— Não faço ideia.
— Certo. — Lizzie esfregou as têmporas. — Não é seu.
O rosto de Katie abriu-se num sorriso.
— É isso que tenho estado a tentar dizer-lhe!
— Ela é a única suspeita — disse Lizzie, vendo George enfiar uma garfada de batata palha na boca. Tinham-se encontrado num restaurante a meio caminho entre o gabinete do procurador e East Paradise, um local cuja única recomendação, pelo que lhe era dado ver, consistia em servir comida que duplicava garantidamente os valores do colesterol. — Ainda vais ter um ataque cardíaco, se continuares a comer essas coisas — disse ela, fazendo uma careta.
George afastou as suas preocupações.
— Ao primeiro sinal de arritmia, peço a Deus uma moratória.
Partindo um bocadinho do muffin, Lizzie olhou para as suas notas.
— Temos uma camisa de noite ensanguentada, uma pegada que corresponde ao tamanho de pé dela, a declaração de um médico a dizer que foi primípara, um médico-legista que afirma que o bebé chegou a respirar... além de que o sangue dela é igual ao encontrado na pele do bebé. — Pôs o bocadinho na boca. — Aposto quinhentos dólares em como o resultado do teste de ADN também vai ligá-la ao bebé.
George limpou a boca com um guardanapo.
— São provas substanciais, Lizzie, mas não sei se chegam para homicídio involuntário.
— Ainda não cheguei à prova decisiva — disse Lizzie. — O médico-legista encontrou hematomas nos lábios do bebé e fibras nas gengivas e garganta.
— Fibras de quê?
— Condiziam com a camisola em que estava embrulhado. Ele acha que as duas coisas juntas são sugestivas de asfixia.
— Asfixia? Não estamos a falar de uma rapariga de Jérsia que dá à luz na casa de banho do Paramus Mall e depois vai acabar de fazer as suas compras, Lizzie. Aposto que os Amish nem sequer moscas matam.
— No ano passado, saltámos para os jornais nacionais quando dois miúdos amish foram apanhados a traficar cocaína — contrapôs Lizzie. — O que é que o 60 Minutos irá dizer de um homicídio? — Viu uma centelha nos olhos de George enquanto ele confrontava os seus sentimentos pessoais relativamente a acusar uma rapariga amish com a promessa de um caso de homicídio mediático. — Há um bebé morto num celeiro amish e uma miúda amish que deu à luz — disse ela gentilmente. — Basta somar dois mais dois, George. Não pedi para isto acontecer, mas até eu consigo ver que temos de a acusar, e temos de o fazer sem demora. Ela vai ter alta hoje.
Ele cortou meticulosamente os seus ovos estrelados em pequenos quadrados e, depois, pousou a faca e o garfo na borda do prato sem comer um que fosse.
— Se conseguirmos provar que houve asfixia, poderemos acusá-la de homicídio qualificado. É intencional, premeditado e deliberado. Ela escondeu a gravidez, teve o bebé e livrou-se dele. — George levantou os olhos. — Já a interrogaste?
— Sim.
— E?
Lizzie fez uma careta.
— Continua a achar que não teve um bebé.
— Que diabo significa isso?
— Está a manter a sua história.
George franziu o sobrolho.
— Pareceu-te louca?
Havia uma grande diferença entre ser considerada louca em termos legais e em termos coloquiais, mas, neste caso, não parecia a Lizzie que George fizesse a distinção.
— Parece uma rapariga normalíssima. Acontece apenas que lê a Bíblia, em vez de V. C. Andrews.
— Oh, sim — suspirou George. — Esta vai mesmo a tribunal.
Sarah Fisher prendeu a kapp da filha no lugar.
— Pronto. Agora, já estás pronta.
Katie sentou-se na cama, à espera que aparecesse a voluntária com a cadeira de rodas para a levar até ao átrio. O médico tinha-lhe dado alta minutos antes, dando alguns comprimidos à mãe, para o caso de Katie ter dores. Ela mudou de posição, cruzando os braços sobre a barriga.
A tia Leda pôs um braço à volta dela.
— Podes ficar comigo, se não estiveres preparada para voltar para casa.
Katie abanou a cabeça.
— Denke. Mas tenho de voltar. Quero voltar. — Sorriu gentilmente. — Eu sei que não faz sentido.
Leda apertou-lhe os ombros.
— Provavelmente, faz mais sentido para mim do que para qualquer outra pessoa.
Quando a porta se abriu, Katie pôs-se em pé, desejosa de se pôr a caminho. Mas em vez da jovem voluntária que esperava, entraram dois polícias fardados. Sarah recuou, pondo-se ao lado de Leda e Katie, formando uma frente assustada e unida.
— Katie Fisher?
Ela sentiu os joelhos a tremer debaixo das saias.
— Sou eu.
Um polícia agarrou-a gentilmente pelo braço.
— Temos um mandado de detenção contra si. Foi acusada do homicídio do bebé encontrado no celeiro do seu pai.
O segundo polícia veio colocar-se a seu lado. Katie olhou freneticamente para trás, tentando ver os olhos da mãe.
— Tem o direito de permanecer calada — disse ele. — Tudo o que disser poderá ser usado contra si em tribunal. Tem direito a ser representada por um advogado...
— Não! — gritou Sarah, esticando os braços para a filha, quando o polícia começou a conduzir Katie até à porta. Correu atrás deles, ignorando os olhares curiosos do pessoal médico e os gritos da própria irmã.
Leda conseguiu finalmente alcançar Sarah à entrada do hospital. Katie chorava, de braços estendidos para a mãe, enquanto o polícia lhe punha uma mão em cima da kapp e a fazia baixar a cabeça para entrar no carro.
— Pode ir ter connosco ao tribunal da comarca, minha senhora — disse ele educadamente para Sarah, e depois entrou para o banco da frente.
Quando o carro se afastou, Leda pôs os braços à volta da irmã.
— Levaram a minha menina — soluçou Sarah. — Levaram a minha menina.
Leda sabia quão desconfortável Sarah ia no seu carro, mas circunstâncias prementes pediam cedências. Andar de carro com alguém alvo de bann era consideravelmente menos ameaçador do que estar em tribunal enquanto a própria filha era acusada de homicídio, e era isso que Sarah teria de enfrentar a seguir.
— Espera aqui — disse ela, parando no caminho da entrada de sua casa. — Deixou Sarah sentada no lugar do passageiro e correu para dentro de casa.
Frank estava na sala de estar, a assistir à reposição de uma série cómica. Bastou ver a expressão da mulher para saltar da cadeira e passar-lhe as mãos pelos braços.
— Estás bem?
— É a Katie. Estão a levá-la para o tribunal da comarca. Acusaram-na de homicídio. — Leda só conseguiu pronunciar estas palavras antes de se ir abaixo, abandonando-se ao abraço do marido, uma vez que não o tinha querido fazer à frente de Sarah. — O Ephram Stoltzfus conseguiu angariar vinte mil dólares junto dos homens de negócios amish para a defesa da Katie, mas o Aaron não quer aceitar um cêntimo que seja.
— Vai ter um advogado nomeado pelo Estado, querida.
— Não! O Aaron espera que ela dê a outra face. E, depois do que ele fez ao Jacob, a Katie não vai entrar em desacordo com ele. — Enterrou a cara na camisa do marido. — Ela não vai ganhar o processo. Não foi ela a autora do crime e vai presa, de qualquer forma.
— Pensa em David e Golias — disse Frank, limpando as lágrimas de Leda com o polegar. — Onde está a Sarah?
— No carro. À espera.
Ele pôs-lhe um braço à volta da cintura.
— Vamos, então.
Passado um instante de terem saído, Ellie entrou na sala, envergando uns calções de jogging e uma camisola de alças. Estava no espaço contíguo a calçar os ténis para ir dar uma corrida quando Leda chegara a casa, e tinha ouvido tudo. Com ar impassível, Ellie foi até à janela panorâmica e ficou a ver o carro de Leda até este desaparecer de vista.
Katie teve de esconder as mãos debaixo da mesa para que ninguém visse como tremiam. Tinha perdido o alfinete que lhe segurava a kapp no carro da polícia e esta estava em equilíbrio instável na sua cabeça, escorregando sempre que ela mudava de posição. Mas não ia tirá-la, sobretudo agora, uma vez que devia ter a cabeça coberta sempre que rezava, e não tinha feito outra coisa desde que o carro arrancara da entrada do hospital.
Havia um homem sentado a uma mesa como a dela, um pouco mais afastado. Fitou-a com ar severo, embora Katie não fizesse ideia do que poderia ter feito para o deixar tão zangado. Havia outro homem sentado à frente dela, atrás de uma mesa alta. Usava uma capa preta e segurava um martelo de madeira na mão, com que bateu na secretária na mesma altura em que Katie viu a mãe e os tios entrarem na sala de audiências.
O homem que tinha o martelo semicerrou os olhos e perguntou-lhe:
— Fala inglês?
— Ja — disse Katie, e depois corou. — Sim.
— Foi acusada de homicídio qualificado pelo estado da Pensilvânia, acusação essa segundo a qual a menina, Katie Fisher, a 11 de julho de 1998, contra as armas e a força do estado da Pensilvânia, provocou de forma intencional, deliberada e premeditada a morte do bebé Fisher na quinta dos Fisher, no município de East Paradise, condado de Lancaster. É igualmente acusada do crime menos grave de homicídio de terceiro grau, acusação essa segundo a qual...
As palavras escorriam sobre ela como um aguaceiro, demasiado inglês ao mesmo tempo, com as sílabas todas misturadas. Katie fechou os olhos e vacilou ligeiramente.
— Compreende estas acusações?
Ela não tinha compreendido a primeira frase. Mas o homem parecia estar à espera de uma resposta e ela tinha aprendido em criança que os Englischers gostavam que concordassem com eles.
— Sim.
— Tem advogado?
Katie sabia que os pais, como todos os Amish, não acreditavam em fomentar ações judiciais. Em casos raros, havia um ou outro amish que era intimado e ia depor... mas nunca por escolha sua. Olhou de relance para a mãe, entortando a kapp.
— Não desejo tê-lo — disse, brandamente.
— Sabe o que isso significa, menina Fisher? Está a tomar essa atitude a conselho dos seus pais? — Katie baixou os olhos. — Trata-se de uma acusação muito grave, minha jovem, e eu acho que devia ter advogado. Se se candidatar a apoio judiciário...
— Não será necessário.
Tal como toda a gente que se encontrava na sala de audiências, Katie virou-se para a voz confiante que vinha da entrada. Uma mulher com o cabelo tão curto como um homem, ostentando um fato azul de bom corte e saltos altos, caminhou com ar decidido até à sua mesa. Sem sequer olhar para Katie, a mulher pousou a sua pasta e cumprimentou o juiz com um aceno de cabeça.
— Sou Eleanor Hathaway, advogada da arguida. Katie Fisher não necessita de apoio judiciário. Peço desculpa pelo atraso, meritíssimo Gorman. Será que pode dar-me cinco minutos com a minha cliente?
O juiz assentiu e, antes que Katie conseguisse perceber o que se estava a passar, aquela desconhecida, a tal Eleanor Hathaway, fê-la levantar-se. Segurando a kapp, Katie percorreu apressadamente o corredor central da sala, ao lado da advogada. Viu a tia Leda a chorar e a dizer-lhe adeus, e ainda ergueu a mão para responder antes de perceber que aquela saudação se destinava a Eleanor Hathaway, e não a si.
A advogada encaminhou Katie para uma pequena sala cheia de material de escritório. Fechou a porta atrás de si, encostou-se a ela e cruzou os braços.
— Peço desculpa pela apresentação improvisada, mas eu sou a Ellie Hathaway e tenho a certeza de que és a Katie. Vamos ter muito tempo para falar, mais tarde, mas neste momento preciso de saber porque é que recusaste um advogado.
A boca de Katie abriu-se e fechou-se algumas vezes antes de ela conseguir encontrar a sua voz.
— O meu pai não ia querer que eu tivesse advogado.
Ellie revirou os olhos, pouco impressionada.
— Hoje, vais declarar-te inocente, e depois logo conversamos. Mas olhando para estas acusações, não vais obter fiança, a menos que possamos contornar o artigo «prova e presunção».
— Eu... eu não compreendo.
Sem levantar os olhos do monte de papéis que estava a analisar, Ellie respondeu:
— Significa que, se fores acusada de homicídio e a prova for evidente ou for grande a presunção da culpa, não vais obter fiança. Vais ficar na prisão durante um ano até ao teu julgamento. Percebes? — Katie engoliu em seco e disse que sim com a cabeça. — Por isso, temos de encontrar uma escapatória.
Katie olhou para a mulher que tinha vindo com palavras afiadas como a ponta de uma espada, planeando salvá-la.
— Eu não tive um bebé.
— Ah, estou a ver. Mesmo que dois médicos e um hospital inteiro, já para não falar na polícia local, digam o contrário...
— Eu não tive um bebé.
Ellie levantou os olhos lentamente.
— Estou a ver que tenho de ser eu a encontrar a tal escapatória.
O juiz Gorman estava a cortar as unhas quando Ellie e Katie voltaram à sala de audiências. Ele varreu as aparas para o chão.
— Creio que estávamos a chegar à parte do «Como se declara?».
Ellie levantou-se.
— A minha cliente declara-se inocente, meritíssimo.
O juiz virou-se.
— Doutor Callahan, há alguma recomendação de fiança do MP?
George levantou-se rapidamente.
— Creio, meritíssimo, que a lei da Pensilvânia exige a recusa de fiança a arguidos acusados de homicídio qualificado. Neste caso, é também essa a recomendação do MP.
— Meritíssimo — argumentou Ellie —, com o devido respeito, se ler a lei tal como está redigida, ela exige que a fiança seja recusada apenas nos casos em que «a prova seja evidente ou a presunção grande». Por conseguinte, esta disposição não é assim tão abrangente. Neste caso particular, a prova não é evidente e a presunção não é grande de que tenha sido praticado um homicídio qualificado. Há algumas provas circunstanciais que o procurador do condado reuniu, nomeadamente testemunhos médicos, de que Katie Fisher deu à luz, e também o facto de ter sido encontrado um bebé morto na sua quinta, mas não há testemunhas oculares do que aconteceu entre o nascimento e a morte do bebé. Até a minha cliente ter um julgamento justo, não vamos saber como ou porque é que essa morte ocorreu.
Esboçou um sorriso tenso para o juiz.
— Na verdade, meritíssimo, há quatro razões fundamentais neste caso para que a fiança seja concedida. Em primeiro lugar, a rapariga é amish e está a ser acusada de um crime violento, embora não haja história de violência na comunidade amish. Em segundo lugar, como é amish, ela tem uma ligação muito mais forte a esta comunidade do que a maior parte dos outros arguidos. A sua religião e educação excluem qualquer risco de fuga. Em terceiro lugar, tem dezoito anos feitos há pouco tempo e não tem recursos financeiros próprios para tentar a fuga. E, por último, não tem cadastro. Não só se trata da primeira vez que é acusada, como também se trata primeira vez que entra em contacto com o sistema jurídico, seja de que forma for. Por isso, meritíssimo, proponho que seja libertada sob condições de fiança rigorosas.
O juiz Gorman acenou pensativamente.
— Gostaria de partilhar connosco essas condições?
Ellie respirou fundo. Adoraria fazê-lo, mas ainda não tinha pensado nelas. Olhou rapidamente para Leda e Frank, e para a mulher amish sentada entre eles, e de repente tudo ficou claro.
— Solicitamos respeitosamente a fiança, meritíssimo, com as seguintes condições: Katie Fisher não poderá sair do município de East Paradise, mas poderá ficar em sua casa, na quinta dos pais. Em troca, deverá estar sob supervisão permanente de um membro da família. Quanto ao valor da fiança, creio que vinte mil dólares seriam um valor justo.
O procurador riu-se.
— Meritíssimo, isto é ridículo! Lei de fiança é lei de fiança, e homicídio qualificado é homicídio qualificado. Também acontece o mesmo em Filadélfia, no caso de crimes graves, por isso a cara colega não pode invocar ignorância. Se a prova não fosse evidente, não teríamos formulado a acusação desta forma. É óbvio que Katie Fisher não deve ser libertada seja em que termos for.
O juiz olhou para o procurador, para a advogada de defesa, e depois para Katie.
— Sabem? Quando vinha para aqui esta manhã, não tinha intenção de fazer o que vou fazer. Mas, se quer que eu considere sequer as suas condições, senhora advogada, preciso de saber que há alguém disposto a responsabilizar-se por Katie Fisher. Quero a palavra do pai dela em como será supervisionada vinte e quatro horas sobre vinte e quatro horas. — Virou-se para a galeria. — Senhor Fisher, quer fazer o favor de se dar a conhecer?
Leda levantou-se e pigarreou.
— Ele não está aqui, meritíssimo. — Puxou com força pelo braço da irmã, obrigando-a a levantar-se. — Esta é a mãe da Katie.
— Muito bem, senhora Fisher. Está disposta a aceitar responsabilidade jurídica total pela sua filha?
Sarah pregou os olhos no chão e falou tão baixinho que o juiz teve de se esforçar para a ouvir.
— Não — confessou ela.
O juiz Gorman pestanejou.
— Como diz?
Sarah levantou o rosto, com lágrimas nos olhos.
— Não posso.
— Mas eu posso, meritíssimo — disse Leda.
— Vive com a família?
Ela hesitou.
— Posso mudar-me para lá.
Sarah voltou a abanar a cabeça, sussurrando furiosamente:
— O Aaron não te vai deixar fazer isso!
O juiz tamborilou impacientemente os dedos na secretária.
— Há algum familiar da arguida hoje aqui presente disposto a responsabilizar-se por ela de forma contínua e que não tenha problemas com a Igreja ou com o pai dela?
— Eu faço isso.
O juiz Gorman virou-se para Ellie, que parecia tão surpreendida por ter pronunciado aquelas palavras como ele por as ter ouvido.
— É um gesto muito abnegado, senhora advogada, mas estamos a falar de um membro da família.
— Eu sei — disse Ellie, engolindo em seco. — Eu sou prima dela.
4
Ellie
Quando George Callahan se levantou para dar voz ao seu protesto, tive de me refrear para não apoiar a moção dele. Santo Deus, mas onde é que eu estava com a cabeça? Tinha chegado a East Paradise completamente esgotada; aceitar o caso daquela rapariga era a última coisa que eu queria fazer, e agora tinha-me oferecido para ser guarda de Katie. Através de uma névoa de incredulidade, ouvi o juiz decidir contra o procurador; fixou a fiança em vinte mil dólares, com condições, e enfiou-me numa prisão que eu própria tinha criado.
Num ápice, Frank e Leda estavam à minha frente. Leda sorria por entre lágrimas e Frank fitava-me com os seus olhos escuros e solenes.
— Tens a certeza de que te sentes à vontade com esta situação, Ellie? — perguntou ele.
Leda respondeu por mim:
— Claro que sim. Ela está a salvar a Katie, por nós!
Olhei para baixo, para a rapariga ao meu lado, ainda acabrunhada na sua cadeira. Não pronunciara uma palavra desde o nosso breve interlúdio na sala do economato. Olhou para mim, e eu vi uma centelha de ressentimento. Fiquei imediatamente com os cabelos em pé. Será que ela pensava que eu estava a fazer aquilo para meu bem?
Semicerrei os olhos, preparada para dar largas à minha fúria, mas fui detida por um toque suave no braço. Uma versão mais velha e gasta de Katie, com traje amish completo, estava à espera que eu lhe desse atenção.
— A minha filha agradece-lhe — disse ela, de forma hesitante. — Eu agradeço-lhe. Mas o meu marido não vai querer uma Englischer a morar connosco.
Leda virou-se para ela.
— Se o bispo Ephram disse que não fazia mal falar com um advogado inglês, também vai dizer que não faz mal esse mesmo advogado responsabilizar-se pelo cumprimento das condições da fiança. E já agora, Sarah, se toda a comunidade está disposta a contornar as regras para bem da Katie, será que não podes solidarizar-te por uma vez com eles, em vez de ficares ao lado do teimoso do teu marido?
Em toda a minha vida, nunca tinha ouvido Leda levantar a voz. E, no entanto, ali estava ela, praticamente aos gritos com a irmã, até esta se encolher perante as suas palavras. Leda enfiou o braço no meu.
— Anda, Ellie — disse. — Precisas de fazer a mala. — Começou a andar para sair do tribunal, parando uma vez para olhar para trás, para Sarah e para a filha. — Vocês ouviram o juiz. A Katie tem de estar o tempo todo com a Ellie. Portanto, vamos embora.
Deixei Leda arrastar-me para fora do tribunal e senti o olhar de Katie Fisher a queimar-me as costas.
A estrada para a quinta dos Fisher corria paralela a um ribeiro, que depois virava por trás das suas terras, formando o limite posterior dos seus quarenta hectares. Aquele mundo era um caleidoscópio de cor: milho verde, silos vermelhos e, por cima daquilo tudo, um céu tão vasto e tão azul quanto um ovo de pisco. Mas o que mais me impressionou foi o cheiro, um misto de notas tão características quanto as de qualquer perfume citadino: o suor dos cavalos, madressilva, o cheiro intenso a terra revolvida. Se fechasse os olhos e respirasse profundamente, acontecia magia: voltava a ter onze anos e estava ali para passar o verão.
Tínhamos deixado Frank em casa e trazido as minhas malas, e agora, uma hora depois, Leda estava a subir o longo caminho da entrada que levava a casa dos Fisher. Espreitando pela janela, vi dois homens a levar uma parelha de mulas através de um campo. Os animais puxavam um equipamento impressionante e antiquado... só Deus sabia o que era aquilo. Parecia projetar tufos de feno que já estavam no chão. Ao ouvir o som do carro na gravilha, o homem mais alto levantou os olhos, puxou as rédeas e depois tirou o chapéu para limpar o suor da testa. Pôs a mão em pala para seguir o carro de Leda, depois entregou as rédeas ao companheiro mais baixo, a seu lado, e desatou a correr em direção à casa.
Chegou lá dez segundos depois de o carro ter parado. Eu e Leda saímos primeiro, e depois deixámos Katie e Sarah sair do banco de trás. O homem, entroncado e louro, começou a pronunciar palavras que não faziam sentido para mim. Foi a primeira vez que me ocorreu que o inglês que Katie usara tão cuidadosamente diante do juiz não era a sua primeira língua, nem a primeira língua das pessoas com quem eu ia morar. Sarah respondeu, de forma igualmente ininteligível.
Os meus saltos altos oscilaram na gravilha. Despi o casaco do fato, desconfortável com aquele calor, e estudei o homem que tinha vindo ao nosso encontro.
Era demasiado jovem para ser o pai infernal apresentado à revelia na sala de audiências. Talvez fosse um irmão. Mas depois apanhei-o a fitar Katie com um olhar que era tudo menos fraternal. Olhei de relance para Katie e reparei que ela não o olhava da mesma maneira.
De repente, naquela linguagem corrida, surgiu uma palavra que eu conhecia: o meu próprio nome. Sarah apontou para mim, sorriu pouco à vontade e depois fez sinal ao homem louro. Este tirou a minha mala do porta-bagagem, pousou-a ao lado dele e depois estendeu-me a mão.
— Sou Samuel Stoltzfus — disse. — Obrigado por cuidar da minha Katie.
Teria ele reparado na forma como Katie se retesou ao ouvir aquela afirmação de posse? Mais alguém teria reparado sem ser eu?
Ao ouvir o som metálico de cascos e de um arnês atrás de mim, virei-me e vi alguém levar um cavalo para dentro do celeiro. Seco e musculado, o homem tinha uma barba ruiva cerrada que começava a exibir fios grisalhos. Debaixo das calças pretas, vestia uma camisa azul-bebé, com as mangas enroladas até aos cotovelos. Olhou para nós, franzindo o sobrolho por alguns instantes ao ver o carro de Leda. A seguir, entrou no celeiro e só voltou a aparecer alguns instantes depois.
Ignorando todas as outras pessoas, foi direito a Sarah e começou a falar com ela em voz baixa mas firme, na sua língua. Sarah baixou a cabeça, como um ramo de salgueiro fustigado pelo vento. Mas Leda deu um passo em frente e começou a responder-lhe. Apontou para Katie e para mim, e sacudiu os punhos. Com os olhos a rebentar de frustração, pôs as mãos nos meus ombros e empurrou-me para a frente, submetendo-me ao escrutínio de Aaron Fisher.
Já tinha visto homens saírem dos seus próprios corpos no momento em que eram sentenciados a prisão perpétua; já tinha visto a inexpressividade do olhar de uma testemunha enquanto falava da noite em que tinha sido atacada; mas nunca tinha visto um distanciamento como o que vi no rosto daquele homem. Estava a conter-se, como se o simples facto de admitir a sua dor pudesse estilhaçá-lo em mil pedaços; como se fôssemos adversários ancestrais; como se soubesse, lá no fundo, que já tinha sido vencido.
Estendi a mão.
— Muito prazer.
Aaron afastou-se sem me tocar. Aproximou-se da filha e o mundo desabou, de tal forma que, quando encostou a testa à de Katie e lhe sussurrou alguma coisa com lágrimas nos olhos, baixei a cabeça para lhes dar privacidade. Katie disse que sim com a cabeça, dirigindo-se para dentro de casa com o braço do pai à volta dos seus ombros.
Seguiram-se Samuel, Sarah e Leda, numa frente unida, a falar acaloradamente no seu dialeto. Eu fiquei sozinha no caminho da entrada, com a brisa a colar-me a blusa de seda às costas e o sol a dar-me novas sardas nos ombros. Do celeiro, vinham o som dos cascos e o relinchar de um cavalo.
Sentei-me em cima de uma mala e olhei em direção à casa.
— Sim — disse, baixinho. — Também tenho muito prazer em conhecê-los.
Para minha surpresa, a casa dos Fisher não era muito diferente daquela em que eu crescera. Tapetes de trapos espalhados pelo soalho de madeira, uma colcha de cores vivas dobrada sobre as costas de uma cadeira de baloiço, um louceiro entalhado com uma grande variedade de tigelas e chávenas de porcelana. Creio que, de certa forma, estava à espera de voltar a Uma Casa na Pradaria. No fim de contas, estávamos a falar de pessoas que tinham posto voluntariamente de lado todo o tipo de comodidades modernas. Mas havia um forno, um frigorífico e até uma máquina de lavar parecida com a que a minha avó tinha nos anos 50. Devo ter deixado transparecer a minha perplexidade, pois Leda materializou-se a meu lado.
— Trabalham todos a gás. Eles não rejeitam os eletrodomésticos, mas sim a eletricidade. Receber energia de redes públicas significaria que estavam ligados ao mundo exterior. — Apontou para um candeeiro, mostrando-me o fino tubo por onde chegava o gás propano, vindo de um reservatório escondido por baixo da sua base. — O Aaron vai deixar-te ficar aqui. Não gosta da situação, mas vai aceitá-la.
— Maravilhoso — disse eu, com uma careta.
— E vai ser — disse Leda, a sorrir. — Creio que vais ficar surpreendida.
Os outros tinham ficado na cozinha, deixando-me sozinha com Leda numa espécie de sala de estar. As prateleiras para livros estavam cheias de títulos que eu não conseguia perceber... Alemães, presumi pelos dizeres. Na parede, havia uma árvore genealógica estampada com todo o cuidado, com o nome de Leda logo acima do de Sarah.
Não havia televisor, telefone ou vídeo. Nem um Wall Street Journal aberto sobre o sofá ou a música de fundo de um CD de jazz. A casa cheirava a cera de limão e estava tão quente que até sufocava. O coração começou a bater com força no meu peito. Em que é que eu me tinha metido?
— Leda — disse eu, finalmente —, não consigo fazer isto.
Sem responder, ela sentou-se no sofá, em bombazina de um castanho indefinível, com proteções em renda nas costas. Há quanto tempo é que não via aquilo?
— Tem de me levar consigo. Havemos de arranjar uma solução. Posso vir de sua casa para aqui todas as manhãs. Ou posso ter uma reunião ex parte com o juiz, para encontrar uma alternativa.
Leda entrelaçou as mãos no colo.
— Tens assim tanto medo deles — perguntou ela — ou será que tens medo de ti mesma?
— Não seja ridícula.
— Será? Ellie, tu uma perfeccionista. Estás habituada a assumir o comando e a virar as coisas a teu favor. Mas, de repente, vês-te presa num lugar que te é tão estranho como um mercado em Calcutá.
Leda deu-me umas palmadinhas nas costas.
— Querida, já lidaste com chefes da Máfia, embora não faças parte dessa organização.
— Não fui morar com Jimmy «Javali» Pisano enquanto o estava a defender, Leda.
Bem, ela não teve resposta para aquilo. Passado um instante, suspirou.
— É só um caso, Ellie. E tu sempre estiveste disposta a tudo para ganhar um caso.
Ambas olhámos para a cozinha, onde Katie e Sarah — minhas parentes, antes afastadas — estavam lado a lado junto ao lava-louça.
— Se fosse só um caso, não estaria aqui.
Leda assentiu, admitindo que eu me tinha desviado do meu caminho e apercebendo-se de que também se devia desviar do dela.
— Está bem. Vou dar-te algumas regras básicas. Ajuda sem que to peçam; as Pessoas Simples dão muito valor ao que fazes e menos ao que dizes. Para eles, não importa que não saibas nada sobre explorações agrícolas ou leiteiras; o que interessa é que tentes ajudar.
— Esqueça as explorações. Eu não sei nada sobre ser amish.
— Eles também não esperam que saibas. E não há nada que precises de saber. São pessoas como tu e eu. Boas e más, pacatas e de má catadura, umas desejosas de ajudar e outras que arrepiam caminho assim que te veem. Os turistas veem os amish como santos ou como uma atração secundária. Se queres que esta família te aceite, trata-os simplesmente como pessoas normais.
Levantou-se de repente, como se as recordações a tivessem magoado.
— Vou ter de ir embora — disse Leda. — Por muito que Aaron Fisher não goste de te ter cá, ainda gosta menos de me ter a mim.
— Não se pode ir já embora!
— Ellie — disse Leda docemente —, vais ficar bem. Eu sobrevivi, não foi?
Semicerrei os olhos.
— Foi-se embora, melhor dizendo.
— Bem, tu também hás de ir, um dia. Não te esqueças disso, e esse dia chegará mais depressa do que pensas. — Puxou-me para a cozinha, onde a conversa parou abruptamente. Todos olharam, ligeiramente desconcertados, ao que parecia, por verem que eu continuava ali.
— Eu vou-me embora — disse Leda. — Katie, talvez pudesses mostrar o teu quarto à Ellie...
Fiquei surpreendida: aquilo era o que as crianças faziam. Quando os parentes iam visitá-los ou quando chegavam os amigos, levavam-nos para o seu próprio território. Mostravam a casa das bonecas, a coleção de cromos de basebol. Katie forçou um sorriso relutante.
— Por aqui — disse ela, dirigindo-se à escada.
Dei um abraço rápido e apertado a Leda e depois virei-me para Katie. Endireitei os ombros e segui-a. E, por mais que me apetecesse, não olhei para trás.
Enquanto caminhava atrás de Katie, notei que se apoiava pesadamente no corrimão. No fim de contas, tinha acabado de ter um filho. A maior parte das mulheres ainda estaria no hospital e, no entanto, ali estava Katie a fazer de anfitriã. Ao cimo do patamar, toquei-lhe no ombro.
— Sentes-te... bem?
Ela olhou-me com ar inexpressivo.
— Estou bem, obrigada. — Virando-se, conduziu-me ao seu quarto. Era limpo e arrumado, mas não parecia o quarto de uma adolescente. Não havia posters do Leonardo Dicaprio, nem peluches espalhados, nem a cómoda estava juncada de frasquinhos de brilho labial. Na verdade, as paredes estavam nuas; a única marca de individualidade presente no quarto vinha do arco-íris de colchas que cobriam as duas camas individuais.
— Podes ficar com aquela — disse Katie, e eu fui sentar-me nela antes de processar as suas palavras. Ela esperava que eu ficasse naquele quarto, no quarto dela, enquanto estivesse na quinta.
Caramba, nem pensar! Já era suficientemente mau ter de ficar ali; se nem sequer podia ter a minha privacidade à noite, o acordo ficava sem efeito. Respirei fundo, procurando uma forma educada de dizer a Katie que não iria, em circunstância alguma, partilhar um quarto com ela. Mas Katie estava a deambular pelo quarto, a tocar nas costas altas e cheias de travessas da cadeira, a alisar a colcha, e depois a pôr-se de gatas para espreitar debaixo da cama. Por fim, mostrou-se desconcertada.
— Levaram as minhas coisas — disse, em voz sumida.
— Quem?
— Não sei. Alguém veio aqui e levou as minhas coisas. A minha camisa de noite. Os meus sapatos.
— Tenho a certeza de que...
Virou-se contra mim.
— Não tens a certeza de nada — desafiou.
De repente, percebi que, se ficasse naquele quarto, a dormir ao lado de Katie, não seria a única incapaz de guardar segredos.
— Eu ia dizer que tenho a certeza de que a polícia revistou o teu quarto. Devem ter encontrado alguma coisa que os deixou suficientemente confiantes para te acusarem. — Katie sentou-se na própria cama, de ombros caídos. — Escuta, porque é que não começas por me contar o que aconteceu ontem de manhã?
— Eu não matei nenhum bebé. Nem sequer tive um bebé!
— Já me tinhas dito. — Suspirei. — Está bem. Podes não gostar de me ter aqui e eu preferia estar a fazer mil e uma outras coisas, mas, graças ao juiz Gorman, não nos vamos livrar uma da outra durante uns tempos. Eu tenho um acordo com os meus clientes: não lhes pergunto se cometeram o crime. Em troca, eles contam-me a verdade sempre que lhes pergunto outra coisa qualquer. — Inclinando-me para a frente, olhei-a nos olhos. — Queres dizer-me que não mataste aquele bebé? Força! Quero lá saber se o mataste ou não, porque vou defender-te em tribunal em qualquer dos casos e não farei juízos pessoais. Mas mentir acerca de ter o bebé, algo que é um facto comprovado, bem, Katie, isso deixa-me zangada.
— Não estou a mentir.
— Há pelo menos três especialistas médicos que já prestaram depoimento e disseram que o teu corpo mostra sinais de parto recente. Posso pôr-te à frente uma análise ao sangue que prova a mesma coisa. Por isso, como é que podes sentar-te aqui e dizer-me que não tiveste um bebé?
Enquanto advogada de defesa, eu já sabia a resposta. Ela podia sentar-se ali e dizer-me aquilo porque acreditava nisso, a cem por cento. Mas, antes de eu pensar sequer na hipótese de alegar insanidade mental, precisava de ter a certeza de que Katie Fisher não me estava a enganar. Katie não agia como louca e comportava-se normalmente. Se aquela miúda era alienada, então eu era Marcia Clark!
— Como é que podes sentar-te aí — perguntou a Katie — e dizer que não me estás a julgar?
As palavras dela foram como uma bofetada de surpresa. Eu, a afável advogada de defesa com um registo de vitórias e uma lista de credenciais do tamanho do meu braço, tinha cometido o erro de condenar mentalmente uma cliente antes de esta ter direito a um julgamento justo. Um julgamento justo em que eu devia representá-la. Ela tinha mentido acerca de ter o bebé e eu não podia descartar isso sem me interrogar sobre o que mais estaria ela a mentir... Uma forma de pensar que me punha mais em linha com um procurador do que com um advogado de defesa.
Defendera friamente os direitos de violadores, assassinos e pedófilos. Mas, como aquela rapariga tinha matado o seu próprio recém-nascido, um ato que eu não conseguia simplesmente compreender, queria vê-la presa.
Fechei os olhos. Alegadamente matado, recordei a mim mesma.
— Dizes isso porque não te consegues lembrar? — perguntei, suavizando deliberadamente a voz.
Katie fitou-me com os olhos azuis arregalados.
— Fui-me deitar na quinta-feira à noite. Acordei na sexta-feira de manhã e desci para fazer o pequeno-almoço. E é tudo.
— Não te lembras de teres entrado em trabalho de parto. Não te lembras de teres ido ao celeiro.
— Não.
— Há alguém que te tenha visto a dormir toda a noite? — pressionei.
— Não sei. Não estava acordada para ver.
Suspirando, bati com as mãos no colchão em que estava sentada.
— E a pessoa que aqui dorme?
Katie ficou lívida; parecia mais transtornada com aquela pergunta do que com qualquer outra coisa que lhe perguntara.
— Aí não dorme ninguém.
— Não te lembras de ter sentido aquele bebé a sair de ti — disse eu, numa voz marcada pela frustração. — Não te lembras de o segurar junto a ti e de o embrulhares naquela camisa. — Ambas olhámos para baixo, onde eu estava a embalar um bebé imaginário.
Katie olhou-me durante um longo minuto.
— Já teve um bebé?
— Isto não tem a ver comigo — repliquei. Mas bastou olhar para o seu rosto para perceber que ela sabia que eu também não estava a dizer a verdade.
Havia cabides nas paredes, mas não havia armários. Os vestidos de Katie ocupavam três deles, e havia outros três vazios na parede em frente. A minha mala estava aberta sobre a cama, cheia até mais não com calças de ganga e blusas. Após pensar um pouco, tirei um único vestido, pendurei-o no cabide, e voltei a correr o fecho da mala.
Ouvi bater à porta quando estava a levar a minha bagagem para o canto do quarto, para a pôr atrás de uma cadeira de baloiço.
— Entre.
Sarah Fisher entrou, trazendo um monte de toalhas que quase lhe tapavam o rosto. Pousou-as em cima de uma cómoda.
— Encontrou tudo o que precisava?
— Sim, obrigada. A Katie mostrou-me tudo.
Sarah acenou rigidamente.
— O jantar é às seis — disse ela, e virou-me as costas.
— Senhora Fisher — chamei, antes que pudesse evitar. — Sei que isto não é fácil para si.
A mulher parou à porta, com a mão apoiada na ombreira.
— O meu nome é Sarah.
— Seja — disse eu com um sorriso forçado, mas pelo menos uma de nós estava a fazer um esforço. — Se há alguma coisa que me queira perguntar acerca do caso da sua filha, esteja à vontade.
— Tenho uma pergunta. — Cruzou os braços e olhou para mim. — Está segura na sua fé?
— Se estou o quê?
— É da Igreja Episcopal? Católica?
Abanei a cabeça, incapaz de falar.
— O que é que a minha religião tem a ver com o facto de eu representar a Katie?
— Há muita gente que vem cá porque pensa que quer viver como as Pessoas Simples. Como se fosse essa a resposta para todos os problemas que têm na vida — escarneceu Sarah.
Espantada com a sua audácia, repliquei:
— Não estou aqui para me tornar amish. Na verdade, não estaria aqui se não fosse para manter a sua filha longe da cadeia.
Entreolhámo-nos, num impasse. Por fim, Sarah afastou-se, pegando numa colcha que estava aos pés de uma das camas e voltando a dobrá-la.
— Se não é da Igreja Episcopal nem da Católica, em que é que acredita?
— Em nada — redargui, encolhendo os ombros.
Sarah encostou a colcha ao peito, surpreendida com a minha resposta. Não disse uma palavra, mas não foi preciso: estava a interrogar-se como é que era possível eu pensar que era Katie quem precisava de ajuda.
Depois do meu confronto com Sarah, mudei de roupa. Vesti uns calções e uma t-shirt, e depois Katie subiu para descansar, coisa que percebi ser inédita naquela casa. Para lhe dar privacidade, decidi explorar os terrenos adjacentes. Parei na cozinha, onde Sarah já começava a preparar o jantar, para lhe dar conta dos meus planos.
A mulher não deve ter ouvido uma palavra do que eu disse. Estava a olhar fixamente para os meus braços e pernas, como se eu andasse por ali nua. E, para ela, suponho que andava. Corando, virou-se para a bancada.
— Sim — disse ela. — Vá lá.
Caminhei ao longo do canteiro de framboesas, por trás do silo, e rumei aos campos. Aventurei-me a entrar no celeiro e a fitar os olhos indolentes das vacas presas nos seus compartimentos de ordenha. Toquei cautelosamente na fita garrida que isolava o local do crime, à procura de pistas. E depois vagueei por ali, até encontrar o ribeiro, onde nunca mais tinha estado.
Quando costumava ficar em casa de Leda e Frank, em miúda, passava horas deitada de barriga para baixo nas margens do seu ribeiro, a ver os bichos-pau à superfície da água, enquanto pares de libelinhas conversavam entre si. Mergulhava o dedo e via a água esculpir um caminho à volta dele, que se encontrava do outro lado. O tempo esticava como açúcar, de tal forma que eu pensava que tinha acabado de chegar e, num esfregar de olhos, o Sol já se estava a pôr.
O ribeiro dos Fisher era mais estreito do que aquele a que me habituara. Numa ponta, era uma cascata minúscula, com o fundo de tal forma atolado de esporos e hastes de feno que percebi que tinha sido uma fonte de fascínio para os filhos. A outra ponta do ribeiro alargava-se num lago natural, protegido pela sombra de salgueiros e carvalhos.
Balancei um ramo bifurcado sobre a água, como se fosse um vedor à procura de estratégias de defesa. Havia sempre a hipótese do sonambulismo — Katie confessava não saber o que se tinha passado entre a hora em que fora para a cama e a hora a que acordara. Era uma defesa criativa, é claro, mas estas tinham tido sucesso nos últimos anos e, num caso tão sensacionalista como este seria, talvez fosse a minha melhor hipótese.
Além disso, havia duas opções. Ou Katie tinha feito aquilo ou não. Embora ainda não tivesse visto as provas do procurador, sabia que não a teriam acusado sem elas. O que significava que eu precisava de determinar se ela estava no seu perfeito juízo no momento em que matara o bebé. Se não estava, teria de fazer uma defesa baseada em insanidade mental, mas no estado da Pensilvânia contavam-se pelos dedos os casos em que o arguido fora absolvido.
Suspirei. Teria melhores hipóteses se provasse que o bebé tinha morrido sem intervenção de terceiros.
Refleti sobre isso, deixando cair o ramo. Por cada médico-legista que o MP levasse a tribunal para dizer que o bebé tinha sido assassinado, provavelmente conseguiria encontrar um especialista disposto a afirmar que ele tinha morrido de hipotermia, prematuridade ou de quaisquer outras desculpas médicas que houvesse para casos como aquele. Era uma tragédia que podia ser atribuída à inexperiência e ao desleixo de Katie, mas que não ocorrera de forma intencional. Um envolvimento passivo na morte do recém-nascido. Ora aí estava algo que até eu podia perdoar.
Palpei os calções, amaldiçoando silenciosamente a minha falta de previdência por não ter trazido um papel e uma caneta comigo. Primeiro, teria de contactar um patologista e ver até que ponto o relatório do médico-legista seria fiável. Talvez até pudesse chamar um bom obstetra a depor — havia um tipo que tinha feito maravilhas por uma cliente minha durante um julgamento anterior. Por fim, teria de chamar Katie à barra das testemunhas e ela teria de se mostrar devidamente perturbada com o que acontecera acidentalmente.
Mas é claro que, para tal, era preciso que ela admitisse que aquilo tinha acontecido.
Resmungando, virei-me de costas e fechei os olhos contra o sol. Talvez fosse melhor esperar pela produção de prova e ver qual a melhor opção.
Ouvi um ligeiro roçagar ao longe e o fragmento de uma canção trazido pelo vento. Franzindo o sobrolho, pus-me em pé e comecei a andar ao longo do ribeiro. Vinha do lago ou de algum lugar próximo dele.
— Eh — gritei, contornando a curva. — Quem está aí?
Vislumbrei algo preto que desapareceu no milheiral atrás do lago antes que eu conseguisse ver quem era. Corri até às espigas, afastando-as com as mãos, na esperança de encontrar o culpado. Mas a única coisa que consegui foi desinquietar os ratos do campo, que passaram a correr junto aos meus ténis, em direção aos juncos que orlavam o lago.
Encolhi os ombros. De qualquer forma, não andava à procura de companhia. Resolvi voltar para casa, mas parei ao ver um punhado de flores silvestres abandonado no extremo norte do lago. Pousadas fora do alcance dos braços graciosos de um salgueiro, estavam muito bem atadas num ramalhete. Ajoelhando-me, toquei nas flores de cenoura-silvestre, nos sapatinhos, nas margaridas-amarelas. Depois, olhei para o milheiral, perguntando-me para quem as teriam deixado.
— Enquanto cá estiver — disse Sarah, entregando-me uma bacia com ervilhas —, vai ter de ajudar.
Levantei os olhos da mesa da cozinha e mordi os lábios para não retorquir que já estava a ajudar pelo simples facto de ali estar. Graças ao meu sacrifício, Katie estava ali com a sua própria bacia de ervilhas, que descascava com um desembaraço notável. Observei-a por um momento, depois enfiei a unha do polegar na vagem, vendo-a abrir-se como uma noz, tal como acontecera com ela.
— Neh... Englische Leit... Lus mich gay!
A voz de Aaron, baixa mas firme, entrou pela janela aberta da cozinha. Limpando as mãos ao avental, Sarah espreitou lá para fora. Sustendo a respiração, dirigiu-se rapidamente para a porta.
A seguir, ouvi falar inglês.
Virei-me imediatamente para Katie.
— Tu ficas aqui — ordenei, e saí. Aaron e Sarah tapavam a cara com as mãos, tentando evitar a pequena multidão de operadores de câmara e repórteres que tinham ido até à quinta. Um carro de reportagem teve a audácia de estacionar mesmo ao lado da carroça dos Fisher. Ouviam-se dúzias de perguntas, que iam desde questões relativas à gravidez de Katie até ao sexo do bebé morto.
Embalada pela calma e tranquilidade de uma quinta bucólica, tinha-me esquecido da voracidade com que os media iriam pegar no caso de uma rapariga amish acusada de homicídio qualificado.
De repente, lembrei-me do verão em que me achava fotógrafa e da forma como apontara a minha Kodak a um homem amish numa carroça. Leda tinha tapado a lente da máquina e explicado que os amish acreditavam que a Bíblia proibia ídolos e não gostavam que lhes tirassem fotografias.
— Mas eu podia tirar-lha, na mesma — replicara eu, magoada, e para minha surpresa Leda assentiu, mas com tanta tristeza que eu tinha guardado a máquina no estojo.
Aaron tinha desistido de tentar pedir aos repórteres que se fossem embora. Não era da sua natureza fazer uma cena e presumira sensatamente que, ao oferecer-se como alvo, protegeria Katie de olhares indiscretos. Pigarreando, avancei para a frente de combate.
— Desculpem, mas estão a invadir propriedade privada.
Um dos repórteres olhou para os meus calções e top, que contrastavam com as roupas de Aaron e Sarah.
— Quem é a senhora?
— A assessora de imprensa da família — repliquei, secamente. — Creio que incorrem todos no crime de invasão de propriedade privada, que, enquanto delito, é punível com pena de prisão até um ano e multa de dois mil e quinhentos dólares.
Uma mulher com um fato cor-de-rosa de corte justo franziu o sobrolho, tentando lembrar-se de onde me conhecia.
— É a advogada! A que veio de Filadélfia!
Olhei de relance para o nome da estação no microfone dela; é claro que era de uma filial local com sede na cidade.
— Nesta altura, nem a minha cliente nem os pais da minha cliente têm quaisquer comentários a fazer — esclareci. — Quanto à natureza incendiária da acusação, bem — sorri pretensiosamente, abarcando o celeiro, a casa e o calmo terreno envolvente com um gesto —, a única coisa que posso dizer é que uma quinta amish não é nenhum ponto de venda de drogas em Filadélfia, e uma rapariga amish não é uma criminosa empedernida. O resto só irão saber nos degraus do tribunal, numa data posterior. — Lancei um olhar calculado à multidão. — Bem, agora vou dar-vos aconselhamento jurídico gratuito. Recomendo fortemente que se vão todos embora.
Com relutância, bateram em retirada como o bando de lobos que sempre imaginei serem. Fui até ao final do caminho de acesso, vigiando-os até ver o último carro arrancar. A seguir, voltei a subir a rampa de gravilha e dei com Aaron e Sarah lado a lado, à minha espera.
Aaron pregou os olhos no chão e falou bruscamente.
— Talvez gostasse de ver a ordenha, um dia destes.
Foi o mais próximo que esteve de expressar gratidão.
— Sim — respondi. — Gostava.
Sarah fez comida suficiente para alimentar toda a comunidade amish, quanto mais a sua pequena família acrescida de um hóspede. Trouxe tigelas atrás de tigelas para a mesa: frango com bolinhos de massa e legumes a nadar em molho; carne que tinha sido cozinhada até se desfazer com o toque de um garfo. Havia petiscos, pães e compota de pera. Ao centro da mesa, um jarro azul cheio de leite fresco. Perguntei-me como é que aquela gente conseguia comer daquela maneira três vezes ao dia e não ficar obesa.
Para além dos três Fisher que tinha conhecido, havia um homem mais velho, que não se deu ao trabalho de se apresentar, mas que parecia saber quem eu era. Pelas suas feições, presumi que fosse o pai de Aaron e que morasse no pequeno apartamento anexo às traseiras da casa. Ele baixou a cabeça, o que fez com que toda a gente baixasse a cabeça numa estranha reação cinética, e começou a rezar em silêncio sobre a comida. Inquieta — quando é que eu tinha dado graças pela última vez? —, esperei até levantarem a cabeça e começarem a pôr comida nos pratos. Katie levantou o jarro de leite e despejou algum no seu copo; depois, passou-o para mim, à sua direita.
Nunca tinha sido grande fã de leite, mas calculei que não fosse a coisa mais inteligente admitir isso numa exploração de laticínios. Servi-me de um pouco e entreguei o jarro a Aaron Fisher.
Os Fisher riam e conversavam no seu dialeto, servindo-se de comida quando os pratos ficavam vazios. No final, Aaron recostou-se na cadeira e soltou um arroto fenomenal. Arregalei os olhos diante da falta de etiqueta, mas a mulher sorriu para ele, como se fosse o maior elogio que ele lhe pudesse ter feito.
De repente, vi uma série de refeições como aquela a prolongarem-se durante meses, comigo a ocupar sempre o papel da intrusa. Levei algum tempo a perceber que Aaron me estava a pedir qualquer coisa. Em holandês da Pensilvânia.
— A conserva de legumes — disse eu lentamente, num inglês cuidado, seguindo o seu olhar até àquela tigela em particular. — É isso que quer?
O queixo dele subiu um pouco.
— Ja — respondeu.
Assentei as mãos na mesa.
— De futuro, preferia que falasse comigo na minha língua, senhor Fisher.
— Nós não falamos inglês à mesa — respondeu Katie.
— Agora falam — disse eu, sem nunca desviar o olhar do rosto de Aaron Fisher.
Às nove da noite, já subia pelas paredes. Não podia ir a correr buscar um vídeo à Blockbuster e, mesmo que pudesse, não havia televisor nem gravador de vídeo para o poder ver. Havia uma prateleira cujos livros estavam todos escritos em alemão — uma cartilha, uma coisa chamada Martyr’s Mirror e uma série de outros títulos que eu não conseguia pronunciar sem chacinar a língua. Finalmente, descobri um jornal escrito em inglês — Die Botschaft — e instalei-me para ler sobre leilões de cavalos e debulha de cereais.
Os Fisher entraram na sala, um por um, como que atraídos por uma sineta silenciosa. Sentaram-se e baixaram a cabeça. Aaron olhou para mim com ar inquiridor. Como não respondi, começou a ler em voz alta passagens de uma Bíblia alemã.
Eu nunca tinha sido muito religiosa; e, completamente de surpresa, tinha sido atirada para uma casa literalmente alicerçada no cristianismo. Sustendo a respiração, olhei para o jornal e deixei as letras bailar, tentando não me sentir uma herege.
Menos de dois minutos depois, Katie levantou-se e veio ter comigo.
— Vou deitar-me — anunciou.
Pus o jornal de lado.
— Nesse caso, também vou.
Depois de sair da casa de banho com o meu pijama de seda, vi Katie sentada na cama com a sua camisa de noite branca e comprida, a pentear o cabelo. Solto, dava-lhe quase pela cintura e fazia pequenas ondas a cada escovadela. Sentei-me de pernas cruzadas na minha cama, com a mão a apoiar o rosto.
— A minha mãe costumava fazer-me isso.
— A sério? — disse Katie, levantando os olhos.
— Sim. Todas as noites, para desembaraçar os nós que eu tinha no cabelo. Eu detestava. Achava que era uma forma de tortura. — Toquei no meu cabelo curto. — Como podes ver, vinguei-me.
Katie sorriu.
— Nós não temos escolha. Não cortamos o cabelo.
— Nunca?
— Nunca.
O dela era lindo, é verdade, mas e se tivesse tendência, tal como o meu, para ficar cheio de nós?
— E se quisesses cortá-lo?
— Porque havia de querer cortá-lo? Assim, seria diferente de todas as outras. — Katie pousou a escova, pondo fim à conversa, e enfiou-se na cama. Inclinando-se, apagou o candeeiro a gás, mergulhando o quarto numa escuridão total.
— Ellie?
— Hum?
— Como é que são as coisas no sítio onde vives?
Pensei na pergunta por um instante.
— Barulhentas. Há mais carros, e parecem passar junto à janela durante toda a noite, a buzinar e a travar. Também há mais gente, e seria difícil encontrar uma vaca ou uma galinha, quanto mais milho-doce, a menos que o que há nas secções de congelados também conte. Mas eu já não moro em Filadélfia. Estou mais ou menos entre residências, neste momento.
Katie ficou calada por tanto tempo que julguei que ela tinha adormecido.
— Não, não estás — disse ela. — Agora, estás connosco.
Quando acordei, sobressaltada, pensei que tinha tido outra vez o pesadelo com as rapariguinhas do meu último julgamento, mas os meus lençóis continuavam muito bem aconchegados e o meu coração batia lento e compassado. Olhei para a cama de Katie, para a colcha puxada para trás revelando a sua ausência, e levantei-me imediatamente. Descendo a escada descalça, fui ver à cozinha e à sala, antes de ouvir o suave clique de uma porta e passos no alpendre.
Ela foi até ao lago onde eu já tinha estado naquele dia. Fiquei para trás, escondida, mas suficientemente próxima para a ver e ouvir. Ela sentou-se num pequeno banco de ferro forjado à frente do enorme carvalho e fechou os olhos.
Estaria outra vez a ter um ataque de sonambulismo? Ou iria encontrar-se com alguém ali?
Seria ali que Katie e Samuel se encontravam? Teria sido ali que o bebé tinha sido concebido?
— Onde estás? — O sussurro de Katie chegou-me aos ouvidos e percebi duas coisas em simultâneo: que ela estava demasiado lúcida para estar a dormir e que eu percebia as suas palavras. — Porque é que te estás a esconder?
Era óbvio que ela sabia que eu a seguira. Com quem mais poderia estar a falar em inglês?
Saí de trás do salgueiro e parei à frente dela.
— Eu digo-te porque é que me estou a esconder, se me disseres primeiro porque é que vieste aqui.
Katie levantou-se com dificuldade, com as faces ruborizadas. Parecia tão surpreendida que recuei um passo e fiquei mesmo à borda do lago, molhando a bainha das calças do pijama.
— Surpresa — disse eu, sem entoação.
— Ellie! O que estás a fazer levantada?
— Na verdade, essa era a pergunta que eu te ia fazer. Para além desta: com quem esperavas encontrar-te aqui? Com o Samuel, talvez? Iam acertar a vossa história, antes de eu o conseguir apanhar a jeito para uma pequena entrevista?
— Não há história nenhuma...
— Por amor de Deus, Katie! Desiste! Tiveste um bebé. Foste acusada de homicídio. Fui nomeada tua advogada de defesa e, mesmo assim, esgueiras-te nas minhas costas, a meio da noite. Sabes uma coisa? Faço isto há muito mais tempo do que tu, e as pessoas não agem assim, a não ser que tenham alguma coisa a esconder. Por acaso, também não mentem, a não ser que tenham alguma coisa a esconder. Adivinha qual de nós prevarica em ambas as frentes. — As lágrimas rolavam agora pelas faces de Katie. Enchendo-me de coragem, cruzei os braços. — É melhor começares a falar.
Ela abanou a cabeça.
— Não é o Samuel. Não vim encontrar-me com ele.
— Porque hei de acreditar em ti?
— Porque estou a dizer a verdade!
Suspirei.
— Claro que sim! Não vieste encontrar-te com o Samuel; simplesmente decidiste que precisavas de apanhar ar fresco. Ou será que é algum costume amish que eu precise de aprender?
— Não vim até aqui por causa do Samuel — disse ela, olhando para mim. — Não conseguia dormir.
— Estavas a falar com alguém. Pensaste que ele estava escondido.
Katie baixou a cabeça.
— Ela.
— O quê?
— Ela. A pessoa que eu procurava era uma rapariga.
— Boa tentativa, Katie, mas estás com azar. Não vejo rapariga nenhuma. E também não vejo nenhum rapaz, mas algo me diz que, se esperar mais cinco minutos, vai aparecer um tipo alto e louro.
— Eu estava à procura da minha irmã, da Hannah. — Hesitou. — Tu estás a dormir na cama dela.
Contei mentalmente toda a gente que tinha conhecido naquele dia. Não havia mais nenhuma jovem, e custava-me a acreditar que Leda nunca tivesse mencionado que Katie tinha irmãs.
— E porque é que a Hannah não veio jantar? Nem rezou convosco esta noite?
— Porque... ela morreu.
Desta vez, quando recuei, enfiei ambos os pés no lago.
— Morreu.
— Ja. — Katie olhou para mim. — Afogou-se aqui quando tinha sete anos. Eu tinha onze e devia estar a tomar conta dela enquanto patinávamos, mas ela caiu através do gelo. — Enxugou os olhos e o nariz à manga da camisa de noite. — Querias... querias que te contasse tudo, que te contasse a verdade. Vim aqui para conversar com a Hannah. Às vezes, até a vejo. Não falei a ninguém sobre ela, porque a Mam e o Dat iam pensar que estou ferhoodled se soubessem que vejo fantasmas. Mas ela está aqui, Ellie. A sério, juro!
— Tal como juras que não tiveste aquele bebé? — murmurei.
Katie afastou-se de mim.
— Eu sabia que não ias compreender. A única pessoa que compreendeu foi...
— Foi quem?
— Ninguém — disse ela, teimosamente.
Abri os braços.
— Bem, nesse caso, chama por ela. Eh, Hannah! — gritei. — Anda brincar. — Esperei um instante para jogar pelo seguro e, depois, encolhi os ombros. — É curioso, não vejo nada. Imagina.
— Ela não vem contigo aqui.
— Mas que conveniente — retorqui.
Os olhos de Katie eram escuros e combativos, cheios de convicção.
— Estou a dizer-te que vejo a Hannah desde que ela morreu. Ouço-a falar, quando o vento vem. E vejo-a a patinar em cima do lago. Ela é real!
— Esperas que eu caia nessa? Que pense que vieste aqui porque acreditas em fantasmas?
— Acredito na Hannah — clarificou Katie.
Eu suspirei.
— Parece-me que acreditas em muitas coisas que podem não ser necessariamente verdade. Volta para a cama, Katie — disse eu por cima do ombro, e saí dali sem esperar para ver se ela vinha atrás de mim.
Depois de Katie adormecer, saí do quarto em bicos de pés, com a minha mala. Lá fora, no alpendre, puxei do telemóvel. Ironicamente, o sinal era bastante bom no condado de Lancaster, já que os agricultores amish mais progressistas tinham concordado com a instalação de torres de telecomunicações nas suas terras em troca de uma taxa que anulava a necessidade de cultivar no inverno. Premindo vários números, esperei pela voz atordoada que me era familiar.
— Sim?
— Coop, sou eu.
Quase o conseguia ver a sentar-se na cama, com os lençóis a escorregar.
— Ellie? Meu Deus! Ao fim de... quanto tempo? Dois anos?... Ligas-me às... santo Deus, são três da manhã?
— Duas e meia. — Conhecia John Joseph Cooper IV há quase vinte anos, quando frequentámos a Universidade da Pensilvânia. Ele resmungava fosse a que horas fosse, mas perdoava-me. — Escuta, preciso da tua ajuda.
— Ah, então não se trata apenas de um telefonema social às três da manhã?
— Não vais acreditar, mas estou em casa de uma família amish.
— Ah, eu sabia! Nunca conseguiste esquecer-me e abandonaste tudo em prol da vida simples.
Ri-me.
— Coop, já ultrapassei isso há uma década. Mais ou menos na altura em que te casaste. Estou aqui como parte de uma condição para a libertação sob fiança de uma cliente que foi acusada de assassinar o filho recém-nascido. Queria que a avaliasses.
Ele expirou lentamente.
— Eu não sou psiquiatra forense, Ellie. Sou apenas um vulgar psicólogo suburbano.
— Eu sei, mas... bem, confio em ti. E preciso que isto seja feito de forma oficiosa. É só um pressentimento, antes de decidir como é que vou safá-la.
— Confias em mim?
Inspirei, lembrando-me.
— Bem, mais ou menos. Mais, quando o assunto em questão não envolve a minha pessoa.
Coop hesitou.
— Podes trazê-la na segunda-feira?
— Hum, não. Ela não pode sair da quinta.
— Vou fazer um domicílio?
— Vais deslocar-te a uma quinta, se te faz sentir melhor.
Consegui imaginá-lo a fechar os olhos, a recostar-se novamente nas suas almofadas. Diz só que sim, incitei em silêncio.
— Não consigo arranjar espaço na agenda antes de quarta-feira — disse Coop.
— Serve perfeitamente.
— Achas que eles me deixam ordenhar uma vaca?
— Verei o que posso fazer.
Consegui senti-lo a sorrir, mesmo a tantos quilómetros de distância.
— Sendo assim, Ellie — disse ele —, está combinado.
5
Aaron entrou apressadamente na cozinha e sentou-se à mesa. Sarah virou-se numa coreografia perfeita para pôr uma chávena de café à frente dele.
— Onde está a Katie? — perguntou ele, franzindo o sobrolho.
— Ainda a dormir — disse Sarah. — Achei que era melhor não a acordar ainda.
— Ainda? É Gemeesunndaag. Temos de ir embora, senão chegamos atrasados.
Sarah pousou as mãos na bancada, como se pudesse alisar ainda mais a fórmica. Endireitou os ombros e preparou-se para contradizer Aaron, algo que tinha feito tão raramente depois de casada que podia contar as ocasiões pelos dedos de uma mão.
— Não creio que a Katie deva ir hoje à igreja.
Aaron pousou a sua caneca.
— Claro que vai à igreja.
— Ela sente-se grenklich, Aaron. Tu viste como é que ela esteve ontem todo o dia.
— Ela não está doente.
Sarah deixou-se cair na cadeira em frente dele.
— Por esta altura, as pessoas já ouviram falar no bebé. E na Englischer.
— O bispo sabe o que a Katie disse e acredita nela. Se o Ephram decidir que a Katie precisa de fazer uma confissão, ele virá primeiro falar com ela.
Sarah mordeu o lábio.
— O Ephram acredita na Katie quando ela diz que não matou aquele bebé. Mas será que acredita quando diz que não é dela? — Como Aaron não respondeu, ela esticou-se sobre a mesa e tocou-lhe na mão. — Tu acreditas?
Ele ficou calado por um momento.
— Eu vi-o, Sarah, e toquei-lhe. Não sei como apareceu ali. — Fazendo um esgar, confessou: — Também sei que a Katie e o Samuel não seriam os primeiros a antecipar-se aos votos de casamento.
Reprimindo as lágrimas, Sarah abanou a cabeça.
— Isso vai significar o Meidung, com toda a certeza! Mesmo que ela confesse e diga que se arrepende, ainda será objeto do bann durante algum tempo.
— Sim, mas depois será perdoada e recebida de volta.
— Às vezes — disse Sarah, cerrando os lábios —, não é assim que as coisas correm. — A memória do filho mais velho, Jacob, surgiu subitamente entre eles, enchendo a mesa de tal forma que Aaron empurrou a cadeira para trás. Ela não tinha pronunciado o nome de Jacob, mas evocara o seu espetro numa casa onde ele já devia estar morto há muito tempo. Com medo da reação de Aaron, Sarah virou a cara, ficando surpreendida ao ouvir a voz branda e destroçada do marido.
— Se a Katie ficar em casa, hoje — disse ele —, se fingir que está doente e não der a cara, as pessoas vão falar. As pessoas vão pensar que ela não vai porque tem alguma coisa a esconder. Será melhor para ela agir como em qualquer outro domingo.
Aliviada, Sarah acenou afirmativamente, retesando-se quando ouviu Aaron voltar a falar calmamente.
— Mas, se ela for objeto de bann, apoiarei a minha Igreja em detrimento da minha filha.
Pouco antes das oito horas, Aaron atrelou o cavalo à carroça. Katie subiu para a parte de trás, e depois a sua mulher sentou-se no banco largo, ao lado dele. Aaron pegou nas rédeas precisamente quando a Englischer saiu de casa a correr.
Era uma visão e tanto. Tinha o cabelo espetado em pequenos tufos à volta da cabeça e a pele da bochecha ainda estava marcada com os vincos de uma fronha. Pelo menos, tinha um vestido de algodão comprido, pensou Aaron, em vez da roupa reveladora que usara no dia anterior, à tarde.
— Eh! — berrou ela, agitando freneticamente os braços para o impedir de partir. — Onde pensam que vão?
— À igreja — disse Aaron, sem rodeios.
Ellie cruzou os braços.
— Não podem. Bem, isto é, vocês podem, mas a vossa filha não.
— A minha filha vai, tal como fez toda a vida.
— Segundo o estado da Pensilvânia, a Katie foi libertada à minha guarda. E não vai a lado nenhum sem mim.
Aaron olhou para a mulher e encolheu os ombros.
Ellie tinha muitas ideias erradas em relação às carroças amish, a principal das quais era serem desconfortáveis. O cavalo tinha um gingar doce e suave que lhe embalava os sentidos e o calor do sol de julho era mitigado pelo vento que entrava pela frente aberta e pela janela de trás. Os turistas nos seus carros abrandavam junto à traseira da carroça e depois ultrapassavam-na com um rugido de mudanças e motor acelerado.
Um cavalo andava a menos de vinte quilómetros por hora — marcha suficientemente lenta para Ellie poder contar o número de vitelos a pastar no campo e para ver as cenouras-silvestres que floriam à beira da estrada. O mundo não passava a toda a velocidade; desenrolava-se diante dos nossos olhos. Ellie, que tinha passado a maior parte da sua vida a correr, deu por si a observá-lo maravilhada.
Estava à espera de ver uma igreja. Para sua surpresa, Aaron virou a carroça no caminho de acesso a uma residência. De repente, faziam parte de uma longa fila de carroças, uma parada melancólica. Não havia capela, campanário ou espira, apenas um celeiro e uma casa. Ele parou e Sarah desmontou. Katie tocou-lhe no ombro.
— Vamos — sussurrou.
Ellie saiu da carroça e depois estacou.
Estava completamente rodeada pelos Amish. Seguramente para cima de uma centena, saíam das suas carroças, atravessavam o pátio e juntavam-se para falar baixinho e trocar apertos de mão. As crianças corriam atrás das saias das mães e à volta das pernas dos pais; uma carroça grande cheia de feno tornou-se um comedouro temporário para os muitos cavalos que tinham transportado as famílias até à igreja. Assim que ficou visível, Ellie foi alvo de olhares curiosos. As pessoas segredavam, apontavam e riam.
Ellie lembrava-se de já se ter sentido assim uma vez. Há anos, quando passara o verão em África, a construir uma aldeia como parte de um projeto universitário, nunca tinha tido tanta consciência das diferenças entre si e os outros. Sobressaltou-se quando alguém enfiou o braço no dela.
— Anda — disse Katie, arrastando-a pelo pátio como se estivesse tudo bem, como se andasse todos os dias com uma Englischer ao lado.
Foi detida por um homem alto de barba branca cerrada e olhos tão brilhantes quanto os de um falcão.
— Katie — disse ele, segurando-lhe as mãos.
— Bispo Ephram.
Ellie estava suficientemente perto para notar que Katie tremia.
— Deve ser a advogada — disse ele em inglês, em voz suficientemente alta para chegar a todos quantos se esforçavam por ouvir. — A que nos trouxe a Katie de volta. — Estendeu a mão a Ellie. — Wilkom. — A seguir, afastou-se em direção ao celeiro, onde os homens se estavam a reunir.
— Ele fez uma coisa maravilhosa — sussurrou Katie. — Agora, as pessoas não vão ficar todas a especular sobre ti enquanto prestamos culto.
— Onde é que vocês prestam culto? — perguntou Ellie, desconcertada. — Cá fora?
— Dentro de casa. O serviço religioso realiza-se domingo sim, domingo não, em casa de uma família diferente.
Ellie olhou com ar de dúvida para a pequena casa de ripas de madeira.
— Não acredito que esta gente toda caiba dentro de uma casa tão minúscula!
Antes que pudesse responder, Katie foi abordada por duas raparigas que lhe deram a mão e falaram de forma insistente, preocupadas com os rumores que tinham ouvido. Katie abanou a cabeça e tranquilizou-as, e depois viu Ellie posta de lado, com ar nitidamente deslocado.
— Quero que conheçam uma pessoa — disse. — Mary Esch, Rebecca Lapp, esta é Ellie Hathaway, minha...
Ellie sorriu secamente perante a hesitação de Katie.
— Advogada — disse. — Muito prazer.
— Advogada? — Rebecca pronunciou a palavra como se Ellie tivesse dito um palavrão, em vez de ter anunciado simplesmente a sua profissão. — Para que precisas de uma advogada?
Por esta altura, as mulheres organizavam-se numa fila informal para entrar em casa. As jovens solteiras seguiam na frente, mas era óbvio que ter Ellie ali era um problema para elas.
— Não sabem o que fazer contigo — explicou Katie. — És visita, por isso devias ir atrás da pessoa que vai à frente. Mas não és batizada.
— Deixa-me resolver isto. — Ellie interpôs-se com firmeza entre Katie e Rebecca. — Pronto. — Uma mulher mais velha franziu o sobrolho e agitou o dedo em direção a Ellie, aborrecida por ter uma pessoa que não era membro da Igreja colocada tão à frente na procissão. — Calma — murmurou Ellie. — As regras foram feitas para ser infringidas.
Levantou os olhos e deparou com Katie a olhá-la solenemente.
— Aqui não.
Só quando começou a visitar Jacob de forma regular é que Katie percebeu realmente como é que as pessoas podiam ser seduzidas pelo diabo. Era muito fácil, quando Lúcifer acenava com coisas como leitores de CD e Levi’s 501. Não era que considerasse o irmão um caso perdido, mas de repente começou a ver como um arcanjo caído do céu podia ter esticado facilmente a mão e arrastado outro, e outro, e outro.
Um dia, tinha ela quinze anos, Jacob disse-lhe que tinha uma surpresa para ela. Trouxe-lhe a muda de roupa para a estação de comboio, esperou que ela a vestisse nos lavabos e depois levou-a até ao parque de estacionamento. Mas, em vez de se aproximar do seu carro, levou-a para uma grande carrinha, cheia de universitários. «Eh, Jake!», gritou um dos rapazes, descendo o vidro da janela. «Não nos tinhas dito que a tua irmã era uma brasa!»
Katie palpou automaticamente a camisola. Quentinha, talvez... Jacob interrompeu-lhe os pensamentos. «Ela tem quinze anos», disse, com firmeza.
«Menor de idade dá cadeia», gritou outra rapariga. Depois, puxou o rapaz para trás e beijou-o na boca.
Katie nunca estivera tão perto de pessoas a beijar-se em público; ficou a olhar até Jacob a puxar pela mão. Ele subiu para o carro e empurrou os outros, para arranjar espaço para a irmã. A seguir, atirou-lhe com um furacão de nomes, que ela esqueceu assim que tentou lembrá-los. E depois arrancaram, com o carro a trepidar com a batida forte de uma cassete dos Stones e os movimentos abafados de duas pessoas a curtir lá atrás.
Pouco tempo depois, o carro parou num parque de estacionamento e Katie olhou para a montanha e para a estância de esqui na sua base.
— Surpreendida? — perguntou Jacob. — O que achas?
Katie engoliu em seco.
— Que vou ter muita dificuldade em explicar uma perna partida à Mam e ao Dat.
— Não vais partir perna nenhuma. Eu ensino-te.
E ensinou durante cerca de dez minutos. A seguir, deixou Katie na pista de iniciados, com uma aula de esqui cheia de miúdos de sete anos, e correu até ao topo da montanha com os seus amigos da faculdade. Katie firmou os esquis num triângulo e desceu lentamente a suave encosta, a seguir deixou o telesqui levá-la lá acima, para começar tudo de novo. Sempre que chegava lá abaixo, punha a mão em pala sobre os olhos e procurava Jacob, mas nunca o viu. Tudo aquilo lhe era estranho — escorregadio e branco, pintalgado de pessoas que tentavam evitá-la. Pensou que aquilo era como ser objeto de bann para sempre. Perdíamos toda a gente que era importante para nós e ficávamos completamente sozinhos.
Olhou para cima, para o teleférico. A menos, é claro, que conseguíssemos fazer o que Jacob tinha feito: transformar-se numa pessoa completamente diferente. Ela não sabia como é que ele conseguia fazer aquilo tão facilmente, como se nunca tivesse tido outra vida noutro lugar.
Como se aquela nova vida fosse a única que importava.
Sentiu-se subitamente cheia de raiva pelo facto de ela e a mãe se esforçarem tanto por manter Jacob nos seus corações, enquanto ele andava a beber cerveja e a descer pistas de esqui. Tirou os seus esquis de aluguer, deixando-os na neve, e regressou à estância.
Katie não sabia quanto tempo tinha estado ali, a espreitar pelas janelas. O Sol já ia baixo no céu quando Jacob voltou, segurando os esquis que ela abandonara.
— Himmel, Katie! — gritou, voltando a falar em Dietsch. — Não podes deixar os esquis de qualquer maneira! Sabes quanto é que custam, se os perderes?
Katie virou-se lentamente.
— Não, Jacob, não sei. E não sei quanto custam se só os alugares para um dia. Também não sei quanto custa uma caixa de cerveja, agora que penso nisso. E podes ter a certeza de que não sei porque é que fiz esta viagem tão longa de comboio para te visitar!
Tentou passar por ele, mas as botas eram demasiado grandes e pesadas para lhe conseguir escapar.
— Tens razão — disse ele, com suavidade. — Estou com eles todos os dias e a ti é que nunca te vejo.
Katie sentou-se novamente no banco da mesa de piquenique e apoiou o queixo nas mãos.
— Porque é que me trouxeste aqui hoje?
— Queria mostrar-te uma coisa. — Como Katie continuava cabisbaixa, ele pegou-lhe na mão. — Experimenta mais uma vez. Comigo. Vamos no teleférico.
— Oh, não!
— Eu fico ao teu lado. Prometo!
Ela deixou-o levá-la lá para fora, onde lhe apertou os esquis e depois a puxou para a fila para o teleférico. Ele fez piadas, meteu-se com ela e comportou-se de forma tão parecida com o irmão das suas memórias que ela se perguntou qual das suas personalidades seria agora a verdadeira e qual a fictícia. A seguir, o teleférico subiu tão alto que Katie conseguia ver o topo de todas as árvores, as estradas que saíam da montanha onde ficava a estância, e até o extremo da universidade.
— É lindo! — exclamou.
— Era isto que eu queria que visses — disse Jacob, baixinho. — Que o Paraíso é apenas um pontinho minúsculo num mapa.
Katie não respondeu. Deixou Jacob ajudá-la a sair do teleférico e seguiu as suas indicações para descer lentamente pela pista, mas não conseguia tirar da cabeça a imagem do mundo visto do topo da montanha, nem afastar a sensação de que se sentiria muito mais segura quando estivesse novamente na sua base, sem ver nada.
Se aquele domingo fosse como outro qualquer, pensou Ellie, ela e Stephen estariam a ler o New York Times na cama, a comer bagels e a deixar cair migalhas sobre as mantas, talvez até a pôr um CD de jazz a tocar e a fazer amor. Em vez disso, estava ensanduichada entre duas raparigas amish, sentada a assistir ao seu primeiro serviço religioso amish.
Katie tinha razão; conseguiram enfiar toda a gente lá dentro. A mobília tinha sido afastada para arranjar espaço para os longos bancos de igreja sem costas, que chegavam de carroça e podiam ser transportados de casa em casa. As portas largas e divisórias amovíveis faziam com que praticamente toda a gente conseguisse ver o centro da casa a partir do seu lugar — sendo o centro o local onde estariam os homens ordenados. Mulheres e homens sentavam-se na mesma sala, mas em lados diferentes, com os mais velhos e os casados à frente. Na cozinha, havia mães que mimavam bebés, alguns com poucas semanas de vida; as crianças pequenas sentavam-se pacientemente ao lado do progenitor do mesmo sexo. Ellie retraiu-se quando Rebecca se mexeu no lugar, empurrando-a para cima de Katie. Sentia o cheiro a suor, a sabão e leves vestígios de gado.
Finalmente, o espaço ficou tão cheio que dava ideia de não caber mais ninguém. Ellie esperou no meio daquele silêncio propositado que o serviço religioso começasse. E esperou. Não havia pressa; ao que parecia, ela era a única pessoa remotamente preocupada com o facto de nada estar a acontecer. Olhou à sua volta no meio de uma torrente de sussurros: «Faz tu.» «Tu... não, tu.» Por fim, um homem mais velho levantou-se e anunciou um número. Centenas de livros abriram-se em uníssono. Katie, que segurava o Ausband no colo, deslocou-o ligeiramente, para que Ellie pudesse ver as palavras impressas do hinário.
Ellie suspirou. Em Roma, sê romano, devia ter sido o que ela pensara. Não queria brincar com o assunto, mas não tinha uma oração de leitura à primeira vista de uma partitura que não estava impressa na folha. Só lá estava a letra, e ela não sabia a melodia de hinos amish. Na verdade, não sabia a melodia de nenhum hino. Um velhote começou a cantar num falsete lento e cadenciado, e outras pessoas seguiram-lhe o exemplo. Ellie viu os homens ordenados — o bispo Ephram, os dois pastores e outro tipo que ela ainda não tinha visto — a deixarem os seus lugares para subir ao andar de cima. Filhos da mãe sortudos, pensou.
E continuava a pensar assim trinta minutos mais tarde, quando acabaram o primeiro hino, ficaram em silêncio durante vários minutos e depois atacaram o segundo hino, o Loblied. Ellie fechou os olhos, maravilhada com a resistência daquelas pessoas, que conseguiam manter-se direitas nos bancos sem costas. Não se conseguia lembrar da última vez que assistira a um serviço religioso, mas com certeza que esse teria acabado muito antes de aqueles pregadores e de o bispo amish voltarem a descer a escada para o sermão introdutório.
— Liebe Bruder und Schwestern... — Queridos irmãos e irmãs.
— Gelobet sei Gott und der Vater unssers Herrn Jesu Christi... — Abençoado seja Deus e o Pai de Nosso Senhor, Jesus Cristo.
Ellie estava a passar pelas brasas quando sentiu a explicação de Katie junto ao ouvido.
— Ele está a pedir desculpa pela sua debilidade enquanto pregador. Não quer tirar tempo ao irmão que vai pronunciar o sermão principal.
— Se é tão mau nisto — sussurrou Ellie —, como é que é pregador?
— Ele não é assim tão mau. Está apenas a mostrar que não é orgulhoso.
Ellie acenou com a cabeça, fitando o homem mais velho com outros olhos.
— Und wann dir einig sin lasset uns bede — disse ele, e todas as pessoas que estavam na sala, à exceção de Ellie, se puseram de joelhos.
Olhou para a cabeça baixa de Katie, para as cabeças baixas dos homens ordenados e para o mar de kapps e cabelos bem arranjados e ajoelhou-se lentamente no chão.
A meio da noite, o quarto de Katie encheu-se de luz. Com um frémito de expectativa, sentou-se na cama e depois vestiu-se rapidamente. A maior parte dos rapazes tinha lanternas potentes nas suas carroças para fazer a corte, que apontavam à janela de uma rapariga quando queriam que ela se esgueirasse para ir ter com eles lá abaixo num sábado à noite. Pôs um xaile sobre os ombros — era fevereiro e estava um gelo lá fora — e desceu a escada em bicos de pés, pensando nos olhos de John Beiler, que tinham o mesmo tom dourado e quente que as folhas de uma faia no outono.
Ia repreendê-lo, pensou, por fazê-la sair de casa numa noite tão fria como aquela, mas depois ia passear com ele e talvez deixasse o seu ombro roçar no dele de vez em quando, para que ele soubesse que não estava a falar a sério. A sua melhor amiga, Mary Esch, já tinha deixado Curly Joe Yoder beijá-la na face. Abriu a porta lateral e saiu para o patamar. Os olhos de Katie estavam brilhantes e as palmas das mãos, húmidas. Virou-se com um sorriso nos lábios, e deu de caras com o irmão.
— Jacob! — exclamou. — O que estás a fazer aqui? — perguntou, olhando imediatamente para a janela do quarto dos pais. Ser encontrada com um pretendente já seria suficientemente mau; mas, se o pai descobrisse Jacob de volta àquela casa, não sabia o que podia acontecer. Levando um dedo aos lábios, Jacob pegou na mão da irmã e puxou-a para fora do alpendre, correndo silenciosamente em direção ao ribeiro.
Ele parou à beira do lago e usou a manga do seu blusão para limpar a neve do pequeno banco que lá se encontrava. Depois, ao ver Katie tremer de frio, despiu o blusão e pôs-lho à volta dos ombros. Ambos olharam para o gelo negro, liso como seda, tão transparente que era possível ver os tufos de erva lodosa congelados por baixo dele.
— Já cá tinhas estado hoje? — perguntou ele — O que achas? — Ela tinha ido de manhã cedo, para assinalar os cinco anos que se tinham passado. Katie levou as mãos às faces, corando ao aperceber-se de que estava tão cheia de si a pensar em John Beiler, quando o seu pensamento devia estar centrado em Hannah. — Não posso acreditar que vieste.
Ele franziu o sobrolho.
— Venho todos os anos. Só nunca te chamei antes.
Espantada, Katie virou-se para ele.
— Tu voltas? Todos os anos?
— No dia em que ela morreu. — Ambos olharam novamente para o lago, vendo os ramos dos salgueiros roçar a sua superfície a cada rajada de vento. — E a mãe? Como está ela?
— Como nos outros anos. Sentia-se um bocadinho grenklich, foi para a cama cedo.
Jacob recostou-se e olhou para o céu, escancarado e cheio de estrelas.
— Costumava ouvi-la chorar lá fora no baloiço do alpendre, por baixo da minha janela. E ficava a pensar que, se fosse mais dado a atividades de ar livre, aquilo não teria acontecido.
— A mãe disse que foi a vontade de Deus. Teria acontecido, estivesses ou não a ler os teus livros, em vez de patinares connosco.
— Foi a única vez em que pensei duas vezes acerca de querer tão desesperadamente prosseguir os estudos, sabes? Como se o afogamento da Hannah tivesse sido uma espécie de castigo por isso.
— E porque é que havias de ser castigado? — Katie engoliu em seco. — Foi a mim que a mãe pediu para tomar conta dela, naquele dia.
— Tinhas onze anos. Não tinhas como saber o que fazer.
Katie fechou os olhos e ouviu o grande gemido que veio do gelo há tantos anos, o som das placas tectónicas a deslocar-se e os monstros das profundezas a bramir diante da invasão do seu espaço. Viu Hannah, tão orgulhosa por ter atado os patins sozinha pela primeira vez, a deslizar sobre o lago, com as lâminas prateadas a brilhar por baixo das suas saias verdes. Olha para mim, olha para mim!, gritara Hannah, mas Katie não a ouvira, demasiado ocupada a sonhar com o fato elegante e cheio de brilho de uma patinadora olímpica que tinha visto no jornal, na prateleira junto à caixa do mercado. Houve um grito e um estrondo. Quando Katie se virou, Hannah já estava a escorregar debaixo do gelo.
— Ela estava a tentar agarrar-se — disse Katie, baixinho. — Eu não parava de lhe dizer para se agarrar enquanto eu ia buscar um ramo comprido, como o Dat nos ensinou a fazer. Mas não consegui chegar ao ramo para o partir e ela continuava a chorar e, de cada vez que eu virava as costas, as luvas dela escorregavam mais um bocadinho. E depois desapareceu. Assim, num ápice. — Levantou o rosto para encarar Jacob, demasiado envergonhada para confessar ao irmão que os seus pensamentos naquele dia tinham sido mundanos e tão dignos de censura quanto qualquer coisa que ele tivesse feito. — Ela seria agora mais velha do que eu era quando ela morreu.
— Também tenho saudades dela, Katie.
— Não é a mesma coisa. — Lutando contra as lágrimas, pregou os olhos no colo. — Primeiro a Hannah e depois tu. Porque é que as pessoas que eu mais amo estão sempre a abandonar-me?
A mão de Jacob deslizou sobre o banco para cobrir a dela e Katie pensou que, pela primeira vez em muitos meses, reconhecia o irmão. Conseguia olhar para ele com o seu blusão vermelho almofadado, com o rosto barbeado e o cabelo ruivo cortado curto e ver antes Jacob de camisa e suspensórios, o chapéu atirado para o lado e a cabeça inclinada sobre um manual escolar de Inglês, no palheiro, a tentar esconder os seus sonhos mais loucos. Nessa altura, sentiu uma agitação no peito e os pelinhos da nuca ficaram todos em pé. Levantando os olhos para o lago, viu uma figura esguia a deslizar sobre ele, a assobiar no gelo e a levantar pequenas nuvens de neve. Uma patinadora, o que não teria nada de extraordinário, não fosse o facto de Katie conseguir ver o milheiral e os braços ávidos do salgueiro através do xaile, da saia e do rosto da rapariga.
Ela não acreditava em fantasmas. Tal como o resto do seu povo, acreditava que trabalhar duramente nesta vida podia valer-lhe a sua maior recompensa — uma política do tipo aguardar e esperar que tudo corra pelo melhor, que não deixava margem para espíritos errantes e almas torturadas. Com o coração a bater descompassado, Katie levantou-se e avançou através do gelo até ao lugar onde Hannah estava a patinar. Jacob gritou, mas ela mal o ouviu. Ela, que tinha sido ensinada a acreditar que Deus atendia às nossas preces, apercebeu-se de que era verdade: naquele momento, tanto o irmão como a irmã tinham voltado para ela.
Esticou o braço e sussurrou:
— Hannah?
Mas estava a agarrar o ar, a tiritar quando as saias transparentes de Hannah rodopiaram em torno dos seus próprios pés, enfiados numas botas.
Um braço forte puxou-a do gelo para a segurança da margem do lago.
— Que diabo estás tu a fazer? — sibilou Jacob. — Estás louca?
— Não vês? — Rezou para que ele visse, rezou para não estar a perder o juízo.
— Não vejo nada — disse Jacob, semicerrando os olhos. — O que é?
No lago, Hannah levantou os braços para o céu noturno.
— Nada — disse Katie, com os olhos a brilhar. — Não é nada.
Dizer que o serviço religioso durou uma eternidade não seria exagero. Ellie estava espantada com o comportamento das crianças, que, tendo ficado sentadas durante as leituras da Bíblia e as duas horas que levou o sermão principal, mal davam um pio. Uma pequena taça com bolachas de água e sal e um copo de água tinham sido passados de divisão em divisão, para os pais que tinham crianças pequenas aninhadas a seu lado. Ellie entreteve-se a contar o número de vezes que o pregador levantava o seu lenço branco para enxugar a testa. No corredor em frente de Ellie, outro lenço servia de entretenimento para uma menina de tenra idade, enquanto a irmã mais velha o dobrava para fazer ratos ou bonecas de trapos.
Soube que a celebração estava a chegar ao fim porque o nível de energia geral da sala voltou a recrudescer. A congregação levantou-se para a bênção e, quando o bispo mencionou o nome de Jesus, todos se puseram novamente de joelhos, deixando Ellie sozinha em pé. Sentando-se outra vez ao lado de Katie, sentiu a rapariga ficar subitamente tão hirta quanto uma prancha.
— O que foi? — segredou, mas Katie abanou a cabeça, de lábios cerrados.
O diácono estava a falar. Katie chegou-se para a frente, esforçando-se por ouvir, e depois fechou os olhos, aliviada. Várias filas mais à frente, onde Sarah estava sentada, Ellie viu-a deixar descair o queixo contra o peito. Ellie pôs a mão no joelho de Katie e traçou um ponto de interrogação.
— Não haverá reunião de membros — murmurou Katie, com alegria. — Não há castigos a aplicar.
Ellie olhou-a pensativamente. Ela devia ter nove vidas, para ter escapado ao sistema jurídico inglês e também aos trâmites punitivos do seu próprio povo. Depois de outro hino, chegou a altura de dispersar, três horas e meia depois de o serviço religioso ter começado. Katie correu para a cozinha, para pôr as mesas para uma refeição leve, com Ellie a tentar segui-la e a ficar presa entre os cumprimentos de outras pessoas. Alguém a empurrou para uma mesa onde os homens ordenados comiam, e estes convidaram-na a sentar-se.
— Não — disse Ellie, abanando a cabeça. Até para ela era evidente que havia uma hierarquia e que ela não devia comer em primeiro lugar.
— É nossa visita — disse o bispo Ephram, apontando para o banco.
— Tenho de encontrar a Katie.
Sentiu umas mãos fortes nos ombros e deparou com Aaron Fisher a encaminhá-la de volta à mesa.
— É uma honra — disse ele, olhando-a nos olhos, e Ellie afundou-se no banco sem dizer palavra.
O dia da formatura na Universidade da Pensilvânia foi algo nunca visto para Katie: um festival de cor, pontuado pelos clarões prateados das máquinas fotográficas que a faziam estremecer, instintivamente. Quando Jacob foi receber o seu diploma, com o seu imponente chapéu e capa pretos, ela bateu palmas mais alto do que qualquer outra pessoa à sua volta. Estava orgulhosa dele, um sentimento estranhamente pouco amish, mas que era válido naquele mundo universitário Englischer. Era um feito impressionante, que só lhe tinha levado cinco anos, incluindo o que passara a dominar as matérias escolares que nunca aprendera. E embora Katie não percebesse o objetivo de prosseguir os estudos para além do oitavo ano quando se ia acabar, de qualquer das formas, a administrar uma casa, não podia negar que Jacob precisava daquilo. Deitara-se no chão do apartamento dele, a ouvi-lo ler os seus livros em voz alta e, antes que pudesse evitar, tinha-se deixado arrebatar pelas dúvidas de Hamlet; pela visão de Holden Caulfield da sua irmã naquele carrossel; pelo farol verde e solitário do senhor Gatsby.
De repente, os recém-licenciados atiraram os chapéus ao ar, como estorninhos a sair das árvores quando os martelos da comunidade se faziam ouvir para construir um celeiro. Katie sorriu quando Jacob se apressou a ir ter com ela.
— Saíste-te maravilhosamente gut — disse ela, e abraçou-o.
— Obrigado por teres vindo. — Levantando a cabeça, Jacob gritou de repente uma saudação a alguém do outro lado do campo. — Quero que conheças uma pessoa.
Arrastou-a em direção a um homem ainda mais alto do que ele, que usava a mesma capa preta, mas tinha uma faixa azul sobre os ombros.
— Adam!
O homem virou-se e sorriu.
— Ei, para ti, é doutor Sinclair.
Era ligeiramente mais velho do que Jacob, dava para perceber pelas rugas à volta dos olhos, que a levaram a pensar que ria com frequência, e muito. Tinha o cabelo cor de favos de mel e olhos praticamente a condizer. Mas o que fez com que Katie não conseguisse desviar os olhos dele foi a paz absoluta que sentiu quando o olhou nos olhos, como se aquele Englischer tivesse uma alma simples.
— O Adam acabou de se doutorar — explicou Jacob. — Foi a ele que aluguei a casa.
Katie assentiu. Sabia que Jacob se tinha mudado da residência universitária para uma pequena casa na vila, uma vez que ia ficar como professor assistente na Universidade Estadual da Pensilvânia. Sabia que o dono da casa estava de partida, para fazer investigação. Sabia que ainda iam dividir a casa durante duas semanas, antes de ele ir de viagem. Mas não sabia o seu nome. Não sabia que era possível estar àquela distância de uma pessoa e sentir-se como se ela a estivesse a estreitar com toda a força e ela se visse aflita para respirar.
— Wie bist du heit? — disse ela, e depois corou, perturbada por o ter cumprimentado em Dietsch.
— Deves ser a Katie — replicou. — O Jacob falou-me de ti. — E depois estendeu a mão, num convite.
Katie pensou subitamente nas histórias de Jacob que falavam sobre Hamlet, Holden Caulfield e o senhor Gatsby, e compreendeu com total clareza como é que o estudo daqueles enigmas emocionais podia ser tão útil quanto aprender a plantar uma horta ou a estender a roupa lavada. Perguntou-se em que se teria especializado aquele homem, para fazer o seu doutoramento. Com grande ponderação, Katie apertou a mão de Adam Sinclair e retribuiu o sorriso.
Depois de chegar a casa e almoçar, Aaron e Sarah foram fazer o que a maior parte dos Amish fazia nas tardes de domingo: visitar parentes e vizinhos. Ellie, tendo desencantado uma coleção completa dos livros de Uma Casa na Pradaria, de Laura Ingalls, sentou-se a ler. Estava cansada e quezilenta devido à longa manhã, e o barulho ritmado dos cascos dos cavalos que puxavam as carroças ao longo da rua principal começava a fazer-lhe doer a cabeça.
Katie, que tinha estado a limpar a louça, entrou na sala e enroscou-se na cadeira ao lado de Ellie. De olhos fechados, começou a trautear baixinho.
Ellie fulminou-a com o olhar.
— Importas-te?
— Com o quê?
— Importas-te de não cantar enquanto eu estou a ler?
Katie franziu o sobrolho.
— Eu não estou a cantar. Se te incomoda, vai para outro lado.
— Eu já cá estava — disse Ellie, sentindo-se uma miúda de escola. Levantou-se e dirigiu-se para a porta, mas apercebeu-se de que Katie ia atrás dela.
— Por amor de Deus! Agora, tens a sala inteira para ti!
— Posso fazer-te uma pergunta? A mãe disse que tu costumavas vir para Paradise no verão, para ficar numa quinta como a nossa. Foi a tia Leda que lhe contou. É verdade?
— Sim — disse Ellie lentamente, perguntando-se onde é que ela queria chegar. — Porquê?
Katie encolheu os ombros.
— É só porque não pareces gostar muito disto. Da quinta, quero eu dizer.
— Eu gosto da quinta! Só não estou acostumada a ter de tomar conta dos meus clientes... — Diante da expressão magoada que perpassou o rosto de Katie, Ellie suspirou interiormente. — Desculpa. Isto era escusado.
Katie olhou para cima.
— Não gostas de mim.
Ellie não sabia o que dizer àquilo.
— Não te conheço.
— Eu também não te conheço — disse Katie, roçando a ponta da bota no soalho de madeira. — Ao domingo, fazemos as coisas de forma diferente, aqui.
— Já reparei. Não há tarefas domésticas.
— Bem, continuamos a ter tarefas a cumprir, mas também temos tempo para relaxar. — Katie olhou para ela. — Pensei que, sendo domingo, talvez também pudéssemos fazer as coisas de outra forma.
Ellie sentiu um aperto dentro de si. Iria Katie sugerir que saíssem da vila? Que fossem comprar um maço de cigarros? Que se dessem mutuamente algumas horas de privacidade sem restrições?
— Pensei que talvez pudéssemos ser amigas. Só durante esta tarde. Podias fingir que me conheceste quando vieste visitar a quinta para onde vinhas quando eras miúda, e não da forma como realmente aconteceu.
Ellie pousou o livro. Se ganhasse a amizade de Katie e conseguisse que a rapariga se abrisse o suficiente para dizer a verdade, podia ser que não precisasse que Coop viesse avaliá-la.
— Quando era miúda — disse Ellie lentamente —, costumava conseguir atirar pedras mais longe do que qualquer dos meus primos.
Um sorriso desabrochou no rosto de Katie.
— Achas que ainda consegues?
Atropelaram-se uma à outra, saíram porta fora e correram através do campo. Quando chegaram à borda do lago, Ellie pegou numa pedra achatada e lisa e atirou-a, contando as cinco vezes que ela saltou sobre a água. Agitou os dedos e disse:
— Ainda não perdi o jeito.
Katie escolheu a sua pedra. Quatro, cinco, seis, sete saltos. Com um sorriso rasgado, virou-se para Ellie.
— Tens cá um jeito — troçou.
Ellie semicerrou os olhos, concentrou-se e tentou novamente. Passado um momento, Katie fez o mesmo.
— Ah! — gabou-se Ellie. — Ganhei!
— Não ganhaste nada!
— Ganhei-te por um metro, sem batota!
— Não foi isso que eu vi — protestou Katie.
— Ah, certo. E o teu testemunho ocular anda tão exato, por estes dias... — Quando Katie se empertigou a seu lado, Ellie suspirou. — Desculpa. Tenho dificuldade em abstrair-me da razão por que estou aqui.
— Devias estar aqui porque acreditas em mim.
— Não necessariamente. Um advogado de defesa é pago para fazer com que o júri acredite naquilo que ele diz. E o que diz pode ser, ou não, aquilo que o cliente lhe contou. — Ellie sorriu diante da expressão desconcertada de Katie. — Provavelmente, isto parece-te muito estranho.
— Não compreendo porque é que o juiz não escolhe simplesmente a pessoa que está a dizer a verdade.
Agarrando num bocadinho de erva-dos-prados, Ellie pô-la entre os dentes.
— Não é tão simples quanto isso. Trata-se de defender os direitos das pessoas. E às vezes, mesmo para um juiz, as coisas não são a preto e branco.
— São a preto e branco se pertenceres à comunidade das Pessoas Simples — disse Katie. — Se seguires a Ordnung, estás certa. Se infringires as regras, és banida.
— Bem, no mundo inglês, isso é comunismo. — Ellie hesitou. — E se não o tivesses feito? E se fosses acusada de violar uma regra, mas fosses perfeitamente inocente?
Katie corou.
— Quando há uma reunião de membros para aplicar medidas disciplinares, o membro acusado também tem oportunidade de contar a sua versão.
— Sim, mas alguém acredita nele? — Ellie encolheu os ombros. — É aí que entra o advogado de defesa... Convencemos o júri de que o nosso cliente pode não ter cometido o crime.
— E se o tiver cometido?
— Será, ainda assim, absolvido. Às vezes, acontece.
Katie ficou boquiaberta.
— Isso seria mentir.
— Não, seria atuar como spin doctor. Há muitas, muitas maneiras diferentes de olhar para o acontecimento que trouxe alguém a tribunal. Só é considerado mentir se o cliente não contar a verdade. Os advogados... bem, podemos dizer praticamente o que quisermos em jeito de explicação.
— Nesse caso... mentirias por mim?
Ellie olhou-a nos olhos.
— Teria de o fazer?
— Tudo o que te contei é verdade.
Sentando-se, Ellie cruzou as pernas.
— Bem, nesse caso, o que é que não me contaste?
Um pardal levantou voo, lançando uma sombra no rosto de Katie.
— Não é da nossa índole mentir — disse ela, rigidamente. — É por isso que uma Pessoa Simples pode defender-se em frente da congregação. É por isso que os advogados de defesa não têm lugar no nosso mundo.
Para sua surpresa, Ellie riu-se.
— Nem me digas nada. Nunca na minha vida me senti tão deslocada.
O olhar de Katie foi dos ténis de Ellie para o seu vestido sem mangas e para os pequenos brincos pendentes que ela usava. Mesmo a forma como Ellie se sentava — como se a relva fosse demasiado áspera para deixar a parte de trás das pernas pousar sobre ela — era ligeiramente desconfortável. Ao contrário das hordas de pessoas que afluíam ao condado de Lancaster para verem os Amish, Ellie nunca pedira nada disto. Tinha feito um favor à tia Leda e este transformara-se numa obrigação.
Katie sabia como ela se sentira, devido às visitas que fizera a Jacob. Vestir o traje de uma adolescente mundana não a transformara numa. Ellie podia pensar que gostava da individualidade, mas sermos nós próprios numa cultura onde outros Englischers estavam ocupados a serem eles próprios era muito diferente de sermos nós próprios numa cultura onde as pessoas estavam todas apostadas em serem iguais, mas diferentes de nós.
Um mundo cheio de gente podia, ainda assim, ser um lugar muito solitário.
— Eu posso remediar isso — disse Katie, em voz alta. Com um grande sorriso, esticou as mãos para o lago, apanhou alguma água e atirou-a a Ellie.
Cuspindo, Ellie pôs-se em pé de um salto.
— Porque é que fizeste isso?
— Wasser — disse Katie, salpicando-a novamente.
Ellie escudou-se com as mãos.
— O que é isso?
— Wasser. É Dietsch para «água».
Passado um momento, Ellie compreendeu. Aceitou aquela pequena dádiva e deixou-a instalar-se dentro de si.
— Wasser — repetiu. A seguir, apontou para o campo. — Tabaco?
— Duvach.
Katie sorriu quando Ellie experimentou repetir a palavra.
— Gut! Die Koo — disse ela, apontando para uma vaca a pastar.
— Die Koo.
Katie estendeu-lhe a mão.
— Wie bist du heit? Prazer em conhecer-te.
Ellie estendeu lentamente a sua própria mão. Olhou bem fundo nos olhos de Katie pela primeira vez desde que chegara ao tribunal de comarca, no dia anterior. A leveza da tarde e da lição de Dietsch desvaneceu-se até sentirem unicamente a pressão das palmas das suas mãos contra as da outra, o insistente cantar dos grilos e a consciência de que estavam a começar de novo.
— Ich bin die Katie Fisher — disse Katie, baixinho.
— Ich bin die Ellie Hathaway — replicou Ellie. — Wie bist du heit?
— Vou buscar as pipocas antes que o filme comece — disse Jacob, levantando-se. Quando Katie começou a remexer os bolsos, à procura do dinheiro que a mãe mandava sempre, Jacob abanou a cabeça.
— Quem paga sou eu. Adam, fica de olho nela.
Katie encolheu-se no seu lugar, aborrecida com o facto de o irmão a tratar como uma criança.
— Tenho dezassete anos. Será que ele acha que me vou perder?
Ao lado dela, Adam sorriu.
— Provavelmente, está apenas com medo que alguém lhe roube a sua linda irmã mais nova.
Katie corou até à raiz dos cabelos.
— Duvido — disse. Não estava habituada a que elogiassem a sua beleza, em vez de elogiarem um trabalho bem feito. E sentia-se pouco à vontade por estar sozinha com Adam, que Jacob convidara para ir com eles.
Katie não tinha relógio e perguntou-se quanto tempo faltaria para o filme começar. Aquele seria o quarto filme que via na vida. Supostamente, era uma história de amor... Um conceito estranho para um filme de duas horas. O amor não tinha a ver com um momento em que olhávamos um rapaz nos olhos e sentíamos o mundo fugir debaixo dos pés; em que víamos na alma dele todas as coisas que faltavam na nossa. O amor vinha lentamente e de forma segura e era feito de iguais doses de conforto e respeito. Uma Rapariga Simples não se apaixonava; a modos que ficava atolada no amor. Uma Rapariga Simples sabia que amava alguém quando olhava para daí a dez anos e via o mesmo rapaz a seu lado, com a mão pousada sobre as suas costas.
Foi arrancada aos seus pensamentos pelo som da voz de Adam:
— Então — disse ele educadamente —, moras em Lancaster?
— Em Paradise. Bem, na ponta de Paradise.
Os olhos de Adam iluminaram-se.
— Na ponta de Paradise — disse ele a sorrir. — Quase dá ideia de que estás prestes a dar uma queda feia.
Katie mordeu o lábio inferior. Não entendia as piadas de Adam. Tentando mudar de conversa, perguntou-lhe se era licenciado em Inglês, como Jacob.
— Na verdade, não — respondeu Adam. Ele estava mesmo a corar? — Trabalho em ciência paranormal.
— Para...
— Fantasmas. Estudo fantasmas.
Se ele tivesse tirado a roupa toda naquele momento, não teria deixado Katie mais chocada.
— Estuda-los?
— Observo-os. Escrevo sobre eles. — Abanou a cabeça. — Não precisas de dizer, tenho a certeza de que não acreditas em fantasmas, como a maior parte do mundo livre. Quando digo às pessoas qual é o meu doutoramento, elas pensam que foi tirado num curso de correspondência para televisão, como complemento de um curso de reparação de aparelhos de ar condicionado. Mas cheguei lá honestamente. Comecei como licenciado em Física, a teorizar sobre energia. Pensa comigo: a energia não pode ser destruída, apenas convertida em algo diferente. Por isso, quando uma pessoa morre, para onde vai essa energia?
Katie pestanejou.
— Não sei.
— Exatamente. Tem de ir para algum lado. E, de vez em quando, essa energia residual aparece na forma de um fantasma.
Ela teve de pregar os olhos no colo, caso contrário ainda acabava a confessar àquele homem que sabia de uma coisa que não confessara a ninguém.
— Ah — disse Adam, baixinho. — Agora, achas que sou doido.
— Não — retorquiu Katie, de imediato. — A sério que não.
— Faz sentido, se pensares nisso — disse ele, na defensiva. — A energia emocional que vem de uma tragédia imprime-se num cenário, por exemplo um rochedo, uma casa, uma árvore, como se lá deixasse uma memória. Ao nível atómico, todas essas coisas se mexem, por isso podem armazenar energia. E, quando as pessoas vivas veem fantasmas, estão a ver a energia residual que ainda está retida. — Encolheu os ombros. — Aí tens a minha teoria, em poucas palavras.
De repente, Jacob voltou a aparecer, trazendo um balde de pipocas. Pousou-o no colo de Katie.
— Estás a falar-lhe sobre a tua investigação pseudoacadémica?
— Eh — disse Adam, sorrindo. — A tua irmã é uma crente.
— A minha irmã é ingénua — corrigiu Jacob.
— Isso é outra coisa — disse Adam, ignorando-o e virando-se para Katie. — Não vale a pena darmo-nos ao trabalho de convencer os que não acreditam, pois eles nunca irão compreender. Por outro lado, se as pessoas já tiveram uma experiência paranormal, bem, nesse caso são capazes de se desviar do seu caminho só para encontrarem alguém como eu, disposto a escutá-las. — Olhou-a nos olhos. — Todos nós temos coisas que voltam para nos assombrar. O que se passa é que algumas pessoas as veem mais claramente do que outras.
Ellie acordou a meio da noite com um gemido abafado. Sacudindo o sono, sentou-se e virou-se para Katie, que se agitava debaixo das mantas. Ellie aproximou-se e tocou na testa da rapariga.
— Es dut weh? — murmurou Katie. De repente, atirou as mantas para trás, revelando duas manchas circulares que alastravam na parte da frente da sua camisa de noite branca. — Dói! — gritou, passando as mãos por cima das manchas húmidas da camisa e da roupa de cama. — Há alguma coisa de errado comigo!
Ellie tinha amigas — cada vez mais, ultimamente — que tinham sido mães. Haviam brincado acerca do dia em que o leite subira, transformando-as em personagens de banda desenhada com seios que pareciam torpedos.
— Não há nada de errado. Isso é perfeitamente natural, depois de ter um bebé.
— Eu não tive um bebé! — guinchou Katie. — Neh! — Empurrou Ellie, fazendo-a esparramar-se no chão. — Ich hab ken Kind kaht... mein Hatz ist fol!
— Não te compreendo — retorquiu Ellie.
— Mein Hatz ist fol!
Para ela, era óbvio que Katie nem sequer estava realmente acordada, apenas aterrorizada. Decidindo não lidar com o assunto sozinha, ia para sair do quarto, mas esbarrou em Sarah.
Foi um choque ver a mãe de Katie em camisa de dormir, com o seu cabelo louro e sedoso a chegar-lhe abaixo das ancas.
— O que se passa? — perguntou, ajoelhando-se à cabeceira da filha. As mãos de Katie estavam fechadas sobre os seus seios; Sarah afastou-as gentilmente e desabotoou-lhe a camisa de noite.
Ellie estremeceu. Katie tinha o peito inchado, tão duro que se via um fino mapa de veias azuis, com minúsculos rios de leite a saírem-lhe dos mamilos. Por insistência de Sarah, Katie seguiu-a passivamente até à casa de banho. Ellie viu Sarah, com espírito prático, a massajar os seios doridos da filha, fazendo correr o leite para o lavatório.
— Aqui está a prova — disse Ellie por fim, em tom neutro. — Katie, olha para o teu corpo. Tiveste mesmo um bebé. Isto é o leite para o bebé.
— Neh, lus mich gay! — gritou Katie, agora sentada a chorar na tampa da sanita.
Ellie pôs um ar resoluto e agachou-se à frente dela.
— Tu moras numa exploração leiteira, por amor de Deus! Sabes o que te está a acontecer neste momento! Tu... tiveste... um bebé.
Katie abanou a cabeça.
— Mein Hatz ist fol.
Ellie virou-se para Sarah.
— O que está ela a dizer?
A mulher mais velha afagou o cabelo da filha.
— Que não há leite e que não houve bebé. A Katie diz que isto está a acontecer — traduziu Sarah — porque o coração dela está demasiado cheio.
6
Ellie
Permitam-me que afirme com toda a clareza: não sei coser. Deem-me uma agulha e linha e umas calças para fazer uma bainha, e o mais provável é eu coser o tecido ao meu polegar. Deito fora as meias que ficam com buracos no calcanhar. Preferia fazer dieta a alargar uma costura, e isso diz tudo.
Isto é uma forma de anunciar que, quando Sarah me convidou para uma sessão de acolchoamento que estava a realizar na sala, eu não fiquei lá muito entusiasmada. As coisas entre nós estavam um pouco tensas desde a noite anterior. Naquela manhã, ela tinha entregado a Katie uma longa tira de musselina branca, sem dizer uma palavra, para que ela envolvesse o peito. Um convite para costurar era uma espécie de concessão, umas boas-vindas ao seu mundo que não tinham sido dadas anteriormente. Era também uma súplica para deixar passar em branco a noite anterior.
— Não precisas de coser — disse-me Katie, puxando-me pelo pulso para a outra sala. — Podes ficar apenas a ver.
Havia quatro mulheres, além das Fisher: a mãe de Levi, Anna Esch; a mãe de Samuel, Martha Stoltzfus; e duas primas de Sarah, Rachel e Louise Lapp. Estas mulheres eram mais jovens e tinham trazido os filhos mais pequenos consigo: um deles ainda enfaixado, o outro uma criança de colo que se sentou no chão aos pés de Rachel, a brincar com retalhos de tecido.
A colcha foi estendida em cima da mesa, com carrinhos de linha branca espalhados por cima. As mulheres levantaram os olhos quando entrei na sala.
— Esta é Ellie Hathaway — anunciou Katie.
— Sie schelt an shook mit uns wohne — acrescentou Sarah.
Por deferência para comigo, Anna respondeu em inglês.
— Quanto tempo é que vai cá ficar?
— O tempo que for preciso, até o caso da Katie chegar a tribunal — repliquei. Quando me sentei, a pequenina de Louise Lapp conseguiu pôr-se em pé e atirou-se aos botões brilhantes da minha blusa. Para que ela não caísse, tomei-a nos braços e embalei-a no meu colo, passando os dedos pela sua barriguinha para a fazer sorrir, deliciada com o peso doce e húmido de uma criança. As suas mãos peganhentas agarraram os meus pulsos e ela deitou a cabeça para trás, expondo a prega alva e macia no seu pescoço. Apercebi-me tarde demais de que estava a ser excessivamente amigável com o bebé de uma mulher que, provavelmente, não confiava em mim para tomar conta da filha. Levantei a cabeça, preparada para pedir desculpa, e deparei com todas as mulheres a olhar para mim com uma estima considerável.
Bem, não ia desperdiçar a oportunidade. Enquanto as mulheres baixavam a cabeça para a costura, brinquei com a menina.
— Quer coser? — perguntou Sarah, educadamente, e eu ri-me.
— Vocês preferem que eu não o faça, acredite.
Os olhos de Anna brilharam.
— Conta-lhe daquela vez que coseste a colcha da Martha ao teu avental, Rachel.
— Para quê dar-me a esse trabalho? — abespinhou-se Rachel. — Tu já fazes um trabalho maravilhoso a contá-la.
Katie enfiou preguiçosamente uma agulha e baixou a cabeça sobre um quadrado de algodão branco, dando pequenos pontos sem a ajuda de régua nem máquina.
— É espantoso — comentei, sinceramente impressionada. — São tão minúsculos que quase parecem desaparecer.
— São iguais aos de qualquer outra pessoa — disse Katie, corada com o elogio.
A costura continuou calmamente por alguns momentos, com as mulheres a inclinar e a levantar graciosamente a cabeça sobre a colcha, como gazelas a beber numa poça de água.
— Então, Ellie — perguntou Rachel. — É de Filadélfia?
— Sim. Era até há pouco tempo.
Martha cortou a ponta da linha com os dentes.
— Já lá estive, uma vez. Fui de comboio. Imensa gente a correr de um lado para o outro, sem chegar a lado nenhum, se querem a minha opinião.
Eu ri-me.
— É mais ou menos isso.
De repente, um carrinho de linha caiu da mesa e bateu na cabeça do bebé, que estava a dormir num cestinho. Ele agitou-se e começou a chorar, com soluços altos e imparáveis. Katie, que estava mais próxima, esticou os braços para o acalmar.
— Não toques nele!
As palavras de Rachel caíram como uma pedra na sala, imobilizando as mãos das mulheres de tal forma que as suas palmas flutuavam sobre a colcha como mãos de curandeiros. Rachel prendeu a agulha, enfiando-a no tecido, e depois levantou o filho contra o peito.
— Rachel Lapp! — ralhou Martha. — O que se passa contigo?
Ela não olhou para Sarah nem para Katie.
— Eu não quero a Katie de roda do pequeno Joseph neste momento, só isso. Por mais que goste da Katie, ele é meu filho.
— E a Katie é minha filha — disse Sarah, lentamente.
Martha pousou o braço na cadeira de Katie.
— Também é praticamente minha filha.
Rachel levantou ligeiramente o queixo.
— Se não sou bem-vinda aqui...
— És bem-vinda, Rachel — disse Sarah, calmamente. — Mas não podes fazer com que a minha Katie se sinta a mais na sua própria casa.
Sentei-me ansiosa na borda da minha cadeira, com o peso húmido da filha adormecida de Louise no meu peito, à espera para ver quem sairia vencedora.
— Sabes o que penso, Sarah Fisher? — começou Rachel, com os olhos coruscantes, mas, antes que pudesse terminar a frase, foi interrompida por um toque barulhento.
As mulheres, sobressaltadas, começaram a olhar à sua volta. Com um mau pressentimento, mudei a criança para o meu braço esquerdo e tirei o telemóvel do bolso com a mão livre. As mulheres assistiram de olhos arregalados quando eu carreguei num botão e levei o telefone ao ouvido.
— Estou?
— Santo Deus, Ellie! Ando a tentar contactar-te há dias. Não tens essa coisa sempre ligada?
Fiquei espantada por a bateria ainda estar a funcionar, passado tanto tempo. E algo esperançada de que acabasse naquele momento, para não ter de falar com Stephen. As mulheres amish ficaram a olhar, esquecendo temporariamente a contenda.
— Tenho de atender este telefonema — disse eu, em jeito de desculpa, e depositei a criança adormecida nos braços da mãe.
— Um telefone? — ofegou Louise, quando eu saía da sala. — Dentro de casa?
Não ouvi a explicação de Sarah. Mas, quando estava a falar com Stephen na cozinha, ouvi as rodas da carroça das irmãs Lapp a descer o caminho da entrada.
— Stephen, não é a melhor altura para falar contigo.
— Ótimo, não leva muito tempo. Só preciso de saber uma coisa, Ellie. Corre por aqui o boato ridículo de que és advogada de defesa de uma miúda amish. E que o juiz te pôs a viver numa quinta.
Hesitei. Stephen nunca se teria metido numa situação daquelas.
— Não me intitularia advogada de defesa — disse. — Ainda não combinámos os honorários.
— Mas e o resto? Meu Deus, mas onde é que tu estás, afinal?
— Lancaster. Bem, nos arredores de Lancaster, no município de Paradise.
Consegui imaginar a grande veia azul na testa de Stephen a dilatar-se de forma visível naquele momento.
— Então, é a isto que chamas fazer uma pausa?
— Foi completamente inesperado, Stephen, uma obrigação familiar que eu tinha de tratar.
Ele riu-se.
— Uma obrigação familiar? Os Amish são teus primos em segundo grau ou estarei a confundi-los com os Hare Krishnas do lado da tua mãe? Vá lá, Ellie! Podes contar-me a verdade.
— É o que estou a fazer — retorqui. — Isto não é um estratagema para chamar a atenção; não podias estar mais longe da verdade. De uma forma longa e rebuscada, estou a defender uma parente minha. Estou na quinta porque faz parte do acordo de fiança. Só isso.
Seguiu-se um momento de silêncio.
— Devo dizer, Ellie, que me magoa o facto de teres sentido que tinhas de fazer segredo deste caso, em vez de me contares o que estavas a fazer. Quer dizer, se estavas a tentar firmar a tua reputação como advogada de casos sensacionalistas, podia ter-te dado conselhos e sugestões. Talvez até dar-te uma mãozinha para entrares na minha firma.
— Eu não quero uma mãozinha para entrar na tua firma — redargui. — Eu não quero casos sensacionalistas. E, sinceramente, nem quero crer que transformaste tudo isto numa afronta pessoal contra ti. — Olhando para baixo, reparei que a minha mão se tinha dobrado num punho cerrado. Relaxei, dedo por dedo.
— Se vier a ser o caso que estou a pensar, vais precisar de ajuda. Podia ir até aí como assessor jurídico; pôr a firma a tratar do caso.
— Obrigada, Stephen, mas não. Os pais da minha cliente já tiveram relutância em aceitar um advogado, quanto mais um edifício cheio deles.
— Eu podia ir, de qualquer forma, para trocarmos umas ideias. Ou podíamos ficar simplesmente sentados no baloiço do alpendre, a beber limonada.
Por um momento, vacilei. Consegui ver as sardas na nuca do Stephen e o ângulo em que ele inclinava o pulso quando escovava os dentes. Quase consegui sentir-lhe o cheiro, a vir dos roupeiros, cómodas e roupa de cama. Havia qualquer coisa de tão confortável e familiar nisso, ao passo que o mundo para onde me mudara era desconhecido a todos os níveis. Parar no final do dia para ver algo que eu reconhecia, alguém que amara, poria a minha relação com Katie no devido lugar: no meu trabalho, e não na minha vida.
Cerrei a mão em torno do pequeno telefone e fechei os olhos.
— Talvez devêssemos esperar e ver o que acontece — ouvi-me sussurrar.
Encontrei Sarah sentada sozinha na sala, com a cabeça inclinada sobre a colcha.
— Desculpe aquilo do telefone.
Ela não fez caso.
— Não faz mal. O marido da Martha Stoltzfus tem um no seu celeiro, para o negócio. A Rachel estava apenas a armar-se. — Com um suspiro, levantou-se e começou a reunir os carrinhos de linhas. — O melhor é arrumar isto tudo.
Agarrei em dois cantos do tecido, para a ajudar a dobrá-lo.
— A sessão de acolchoamento pareceu-me extremamente curta. Espero que não tenha sido por minha causa.
— Creio que hoje teria sido curta, de qualquer forma — replicou Sarah, bruscamente. — Mandei a Katie estender a roupa, se veio à procura dela.
Eu sabia reconhecer uma dica para me ir embora quando a ouvia. Dirigi-me à porta, mas hesitei na passagem para a cozinha.
— Porque é que a Rachel Lapp duvida da Katie?
— Acho que deve ser capaz de perceber porquê.
— Bem, eu estava a falar para além do óbvio. Sobretudo quando o vosso bispo ficou do lado dela...
Sarah pôs a colcha numa prateleira e virou-se para mim. Embora estivesse a fazer um belíssimo trabalho a esconder os seus sentimentos, os olhos brilhavam-lhe de vergonha pelo facto de as amigas terem humilhado a sua própria filha.
— Parecemos iguais. Rezamos da mesma forma. Vivemos da mesma forma — disse ela. — Mas nada disso significa que pensemos todas da mesma forma.
As grandes velas brancas agitavam-se ao vento enquanto eram presas à corda da roupa. Os lençóis envolviam Katie nos seus braços largos enquanto ela tentava pendurá-los com o avental a voar atrás dela, ao mesmo tempo que murmurava com uma série de molas na boca e os tentava repelir. Quando me viu, afastou-se da corda da roupa, atirando as restantes molas para um balde.
— É claro que tinhas de chegar quando já acabei — queixou-se, sentando-se no muro de pedra ao meu lado.
— Saíste-te bem sem mim. — Numa corda, estava um arco-íris de camisas e vestidos: verde-escuro, cor de vinho, alfazema, verde-limão. Ao lado destes, dançavam as pernas pretas de calças de homem. Os lençóis estavam estendidos na terceira corda, exibindo as suas barrigas inchadas. — Era a minha mãe que costumava pendurar a nossa roupa — disse eu, sorrindo. — Lembro-me de espetar os lençóis com um pau, a fingir que era um cavaleiro.
— Não uma princesa?
— Claro que não! Elas não se divertem nada — resmunguei. — Não ia ficar à espera de um príncipe quando podia muito bem salvar-me sozinha.
— Eu e a Hannah costumávamos brincar às escondidas nos lençóis. Mas levantávamos poeira e eles ficavam sujos e tínhamos de voltar a lavá-los.
Inclinando a cabeça para trás, deixei o vento bater-me no rosto.
— Eu costumava acreditar que era possível cheirar o sol nos lençóis, quando os levávamos para dentro e fazíamos as camas.
— Oh, e podes! — disse Katie. — O tecido absorve-o, expulsando a humidade. Cada ação tem uma reação igual e oposta.
As leis da física de Newton pareciam um pouco avançadas para o oitavo ano, que era quando Katie, tal como a maior parte das crianças amish, deixara de ir à escola.
— Não sabia que a Física fazia parte do currículo, aqui.
— Não faz. É apenas algo que ouvi dizer.
Ouvir dizer? A quem? Ao cientista amish da zona? Antes que lhe pudesse perguntar, ela disse:
— Preciso de tratar da horta.
Segui-a, e depois instalei-me a vê-la cortar o feijão e juntá-lo dentro do avental. Parecia totalmente embrenhada no seu trabalho, de tal forma que deu um salto quando eu falei:
— Katie, tu e a Rachel dão-se bem normalmente?
— Ja. Estou sempre a tomar conta do pequeno Joseph. Quando fazemos colchas e, às vezes, mesmo durante os serviços religiosos.
— Bem, ela hoje não te tratou como a babysitter preferida da família, isso é certo! — observei.
— Não, mas a Rachel dá sempre ouvidos ao que as outras pessoas dizem, em vez de descobrir por si mesma. — Katie fez uma pausa, com os dedos fechados à volta de um pé de feijão. — Não me importa o que a Rachel diz, porque a verdade, mais cedo ou mais tarde, vem sempre ao de cima. Mas sinto-me mal por saber que posso ter alguma coisa a ver com o facto de a minha mãe chorar.
— O que queres dizer?
— Bem, as palavras da Rachel magoam-na mais a ela do que a mim. Eu sou tudo o que a minha mãe tem, agora. Cabe-me a mim ser perfeita.
Katie levantou-se, com a colheita no seu avental a descair com o peso. Virou-se em direção à casa e viu o Samuel caminhar a passos largos ao seu encontro.
Ele tirou o chapéu, deixando à mostra o cabelo acachapado pelo suor.
— Olá, Katie. Como estás hoje?
— Maravilhosamente gut, Samuel — respondeu ela. — Estou a apanhar o feijão para o almoço.
— Tens aí uma boa colheita.
Eu ouvi, mantendo a distância. Onde estava a intimidade da conversa? Ou mesmo um pequeno toque no cotovelo ou costas? Com certeza que Samuel tinha sabido da discussão durante a sessão de costura; com certeza que estava ali para reconfortar Katie. Eu não sabia se era assim que se fazia a corte naquele mundo; se Samuel se estava a retrair pelo facto de eu estar presente, ou se aqueles dois jovens não tinham mesmo nada a dizer um ao outro, o que me parecia estranho, tendo em conta que tinham feito um bebé juntos.
— Chegou uma coisa para si — disse ele. — Se quiser ir dar uma olhada.
— Chegou uma coisa para mim? Ninguém sabe que estou aqui.
Samuel encolheu os ombros.
— Está no pátio da entrada.
— Pronto, está bem. — Sorri para Katie. — Vamos lá ver o que o meu admirador secreto me mandou, desta vez. — Samuel virou-se, segurando o braço de Katie para a levar até à parte da frente da casa. Caminhando atrás deles, vi a forma como Katie se desenvencilhou de forma muito lenta e gentil do seu contacto.
Na terra batida em frente do celeiro, estava uma caixa achatada de cartão canelado.
— Foi a polícia que a trouxe — disse Samuel, olhando para a caixa como se tivesse uma cascavel.
Levantei-a. A documentação facultada pelo procurador não tinha nem de longe o volume de outros casos em que eu trabalhara no passado. Aquela pequena caixa continha tudo o que a polícia reunira até ao momento. Mas a verdade é que não eram precisas muitas provas para um caso simples como aquele.
— O que é? — perguntou Katie.
Ela estava ao lado de Samuel, com a mesma expressão doce e perplexa no rosto.
— É da acusação — disse-lhe. — São todas as provas que dizem que mataste o teu bebé.
Passadas duas horas, estava rodeada de depoimentos, documentos e relatórios, nenhum dos quais abonava a favor da minha cliente. Havia lacunas no caso — por exemplo, o teste de ADN ainda tinha de provar que Katie era mesmo a mãe da criança e a prematuridade do feto lançava dúvidas sobre a capacidade de sobrevivência fora do útero —, mas, na sua maioria, as provas esmagadoras apontavam para ela. Tinha sido colocada no local do crime; tinha sido identificada como alguém que dera à luz recentemente; o seu sangue tinha sido encontrado no cadáver do bebé. O secretismo com que tentara dar à luz tornava ridícula a perspetiva de outra pessoa ter aparecido e matado o bebé. Por outro lado, dava um motivo à acusação: quando se tenta tão diligentemente esconder um parto, provavelmente há também um grande empenho em esconder o produto desse parto. O que deixava a questão de saber se Katie estava ou não no seu perfeito juízo quando cometera o homicídio.
A primeira coisa que eu precisava de fazer era apresentar um requerimento a pedir outros serviços, para além do apoio jurídico. O tribunal podia pagar a um psiquiatra, alguém que muito mais dificilmente do que eu aceitaria a Katie pro bono; e quanto mais depressa fizesse o requerimento, mais depressa teria esse cheque na minha mão.
Saindo da cama, ajoelhei-me para tirar o meu computador portátil lá de baixo. A mala preta deslizou sobre o chão de madeira polido, tão maravilhosamente cheio de tecnologia e tecido sintético que me deu vontade de chorar. Pousei-o sobre a cama, corri o fecho, abriu o computador e premi o botão para o ligar.
Não aconteceu nada.
Praguejando em voz baixa, remexi as bolsas à procura da bateria e liguei-a ao equipamento. O computador arrancou, fez um bipe para me alertar de que a bateria precisava de ser recarregada e depois deu lugar a um ecrã negro.
Bem, não era o fim do mundo. Podia trabalhar ao pé de uma tomada até a bateria estar carregada. Uma tomada... que não existia em lado nenhum em casa de Katie.
De repente, percebi o que significa para mim, advogada, trabalhar numa quinta amish. Tinha de criar uma defesa para a minha cliente sem nenhuma das comodidades normais e correntes acessíveis aos advogados. Furiosa, comigo e com o juiz Gorman, agarrei no meu telemóvel para lhe ligar. Consegui marcar os primeiros três dígitos antes de o telefone se desligar.
— Santo Deus! — Atirei o telefone, de tal forma que saltou para fora da cama. Nem sequer tinha bateria para ele; tinha de o carregar através do isqueiro, num carro. É claro que o carro mais próximo era o de Leda, a mais de trinta quilómetros.
Leda. Bem, era uma solução; podia fazer todo o meu trabalho de contencioso em casa dela. Mas era uma solução difícil, uma vez que a Katie não podia sair da quinta. Talvez se eu fizesse o requerimento à mão...
De repente, estaquei. Se fizesse o requerimento à mão ou se conseguisse pôr o telefone a funcionar novamente e ligasse ao juiz, ele dir-me-ia que as condições de fiança não estavam a resultar e a Katie podia ter de esperar na cadeia até ao julgamento. Cabia-me encontrar uma saída.
Com determinação, levantei-me e desci a escada, em direção ao celeiro.
Tinha aprendido com Katie que as vacas não saíam todos os dias no verão, por fazer demasiado calor. Por isso, quando entrei no celeiro, as Holsteins acorrentadas aos seus postes mugiram. Uma recuou um pouco, com o úbere enorme e dolorosamente rosado, fazendo-me pensar em Katie, na noite anterior. Virei-lhe as costas e caminhei entre as duas filas de vacas, esperando encontrar uma forma de fazer o meu computador funcionar.
Tinha notado que, sempre que havia um afrouxar de regras numa quinta amish, era devido à necessidade económica. Por exemplo, na imaculada sala de ordenha, havia um motor de doze volts que mexia o leite no depósito refrigerado; e as máquinas de ordenha a vácuo eram alimentadas por um motor a gasóleo que era ligado duas vezes por dia. Estas «comodidades modernas» eram mais práticas do que mundanas; permitiam que os Amish concorressem com outros produtores de leite. Eu não entendia grande coisa sobre gasóleo ou motores, mas quem sabe? Talvez um deles pudesse ser adaptado a um portátil.
— O que está a fazer?
Ao ouvir a voz de Aaron, saltei, quase batendo com a cabeça num dos braços metálicos do depósito principal.
— Oh! Assustou-me.
— Perdeu alguma coisa? — perguntou, fazendo uma careta para o canto onde eu tinha estado a espreitar.
— Não, na verdade, estou à procura de uma coisa. Preciso de carregar uma bateria.
Aaron tirou o chapéu e esfregou a testa no tecido da camisa.
— Uma bateria?
— Sim, para o meu computador. Se quer que represente a sua filha como deve ser em tribunal, vou ter de me preparar para o julgamento. Isso inclui fazer vários requerimentos antes disso.
— Eu escrevo sem computador — respondeu Aaron, afastando-se.
Acertei o passo por ele.
— É possível, mas não é do que o juiz está à espera. — Hesitando, acrescentei: — Não estou a pedir uma tomada em casa, nem mesmo acesso à Internet ou um fax, coisas que uso imenso antes de um julgamento. Mas tem de compreender que não é justo pedir-me para me preparar à maneira amish, quando o embate que me espera é inglês.
Aaron ficou a olhar para mim durante muito tempo, de olhos escuros e insondáveis.
— Vamos falar com o bispo sobre isso. Ele vem cá hoje.
Os meus olhos arregalaram-se.
— Vem? Por causa disto?
Aaron desviou o olhar.
— Por causa de outras coisas — disse.
Sem uma palavra, Aaron encaminhou-me para a carroça. Katie já estava à espera na parte de trás, e a sua expressão era um sinal de que também não compreendia o que se passava. Aaron sentou-se à direita de Sarah e pegou nas rédeas, dando estalidos com a boca para o pôr a trotar.
Atrás de nós, arrancou outra carroça: a carroça aberta que Samuel e Levi levavam para trabalhar. Em caravana, enveredámos por estradas por onde eu nunca tinha viajado. Serpenteavam por campos e quintas onde os homens ainda trabalhavam e, finalmente, parámos num pequeno cruzamento onde estavam várias outras carroças.
O cemitério era ordenado e pequeno, com lápides aproximadamente do mesmo tamanho, de forma que as antigas só se diferenciavam das mais recentes pelas datas gravadas. Havia um pequeno grupo de amish no canto mais afastado, com os seus vestidos e calças pretas a roçar a terra como asas de corvos. Quando Sarah e Aaron desceram da carroça, moveram-se em simultâneo, a saudá-los.
Apercebi-me demasiado tarde de que os Fisher eram apenas a sua primeira paragem. Rodearam-me, a mim e à Katie, tocando-lhe na face e no braço e dando-lhe palmadinhas no ombro. Murmuraram palavras de tristeza e pesar, que soam da mesma forma em qualquer língua. Ao longe, Samuel e Levi tiraram qualquer coisa da carroça; a forma inconfundível de um pequeno caixão.
Espantada, afastei-me do pequeno grupo de parentes para me pôr ao lado de Samuel. Com os pés à beira da sepultura, estava de olhos postos lá em baixo, na minúscula caixa de madeira. Pigarreei e ele olhou-me nos olhos. Porque é que ninguém compartilha os seus sentimentos?, era o que eu queria perguntar, mas as palavras não saíram.
Um carro parou lentamente atrás das carroças e Leda e Frank saíram, vestidos de preto. Olhei para as minhas calças de ganga e t-shirt. Se alguém me tivesse dito que íamos a um funeral, podia ter trocado de roupa. Mas, ao que parecia, também ninguém se dera ao trabalho de o dizer a Katie.
Ela aceitou as condolências dos familiares, retraindo-se ligeiramente sempre que alguém lhe dirigia a palavra, como se sofresse um abalo físico. O bispo e o diácono, homens que reconheci da cerimónia religiosa, vieram postar-se ao lado da sepultura aberta, e o pequeno grupo reuniu-se à volta.
Perguntei-me que sentido de responsabilidade teria levado Sarah e Aaron a recuperar o corpo de um bebé que não admitiam de viva-voz ser seu neto. Perguntei-me o que sentiria Samuel por ser mantido à margem. Perguntei-me o que pensaria Katie daquilo tudo, dado negar terminantemente a gravidez.
Com a mãe a segurar-lhe a mão com firmeza, Katie deu um passo em frente. O bispo começou a rezar e toda a gente baixou a cabeça. Toda a gente, exceto Katie. Ela olhou em frente, depois para mim, a seguir para as carroças... Para todo o lado; menos para a sepultura. Por fim, virou o rosto para o céu e sorriu docemente, de maneira imprópria, enquanto o sol lhe banhava a pele.
Mas quando o bispo convidou toda a gente a recitar em silêncio o pai-nosso, Katie soltou-se subitamente da mãe e correu para a carroça, subindo lá para dentro e desaparecendo da nossa vista.
Fui atrás dela. Independentemente do que Katie dissera até agora, alguma coisa naquele funeral tinha mexido com ela. Tinha dado um passo, quando Leda me agarrou a mão e me fez parar, abanando ligeiramente a cabeça. Para minha surpresa, fiquei em pé, ao lado dela. Dei por mim a pronunciar as palavras da oração; palavras que não dizia havia anos; palavras que me tinha esquecido que sabia. Depois, antes que Leda me pudesse voltar a impedir, corri para a carroça e subi. Katie estava enrolada como um trapo no banco, com a cabeça enterrada nas mãos. Hesitantemente, afaguei-lhe as costas.
— Posso imaginar como isto é difícil para ti.
Katie sentou-se lentamente, direita como um garfo. Tinha os olhos secos e os lábios ligeiramente descaídos.
— Ele não é meu, se é isso que estás a pensar — repetiu. — Ele não é meu!
— Está bem — admiti. — Ele não é teu. — Senti Aaron e Sarah subirem para a carroça e virar o cavalo em direção a casa. E a cada passo ritmado, perguntava a mim mesma como é que Katie, que professava ignorância, sabia que o bebé era um rapaz.
Sarah preparara uma refeição para os familiares que tinham ido ao funeral. Pôs travessas de comida e cestos de pão numa mesa assente em suportes que tinha sido levada para o alpendre. Mulheres desconhecidas entravam e saíam da cozinha, sorrindo-me timidamente sempre que passavam.
Katie tinha-se eclipsado e o mais estranho é que ninguém parecia achar isso inquietante. Instalei-me num banco com um prato, a comer, mas sem saborear nada. Estava a pensar em Coop, e quanto tempo levaria a chegar. Primeiro, a subida do leite, e agora o enterro de um corpo minúsculo... Por quanto mais tempo é que Katie conseguiria negar o nascimento de um bebé antes de se ir abaixo?
O banco rangeu quando uma mulher forte e já de idade se sentou ao meu lado. Tinha o rosto enrugado como os anéis internos de uma grande sequoia, as mãos pesadonas e inchadas nas articulações dos dedos. Usava os mesmos óculos com aros de massa pretos que eu me lembrava de ver o meu avô usar na década de 1950.
— Então — disse ela. — É você a rapariga advogada simpática.
Contavam-se pelos dedos de uma mão as vezes que ouvira na minha carreira as palavras simpática e advogada na mesma frase, muito menos referirem-se à minha pessoa de trinta e nove anos como rapariga. Sorri.
— Sim, sou eu.
Ela esticou o braço por cima do seu prato e deu-me umas palmadinhas na mão.
— Sabe uma coisa? É muito especial para nós. Defender a nossa Katie desta maneira.
— Bem, obrigada. Mas é o meu trabalho.
— Não, não. — A mulher abanou a cabeça. — É o seu coração.
Bom, não soube o que responder. O que importava aqui era conseguir que Katie fosse absolvida, o que não tinha praticamente nada a ver com a opinião que eu tinha dela.
— Se me dá licença — disse eu, pondo-me em pé, planeando uma fuga rápida. Mas, mal me virei, esbarrei em Aaron.
— Se vier connosco — disse ele, indicando o bispo a seu lado. — Podemos falar sobre aquele assunto de há pouco.
Fomos até um sítio calmo, à sombra do celeiro.
— O Aaron disse-me que está a ter problemas com o caso — começou Ephram.
— Eu não lhe chamaria problemas com o caso. É mais uma dificuldade logística. Não sei se sabe, mas parte do meu trabalho exige que esteja ligada a tecnologia. Preciso das ferramentas do meu ofício para preparar os requerimentos que vou enviar ao juiz, assim como os depoimentos que virão mais tarde. Se entregar ao juiz um texto jurídico manuscrito, perco a minha credibilidade e ele ainda põe a Katie na cadeia, dizendo que as condições de fiança não estão a ser cumpridas.
— Está a falar de usar um computador?
— Sim, especificamente. O meu trabalha a bateria, mas está descarregada.
— Não pode comprar mais baterias dessas?
— Não no Turkey Hill local — repliquei. — São caras. Podia recarregá-las, mas preciso de uma tomada elétrica.
— Eu não quero uma tomada na minha propriedade — interrompeu Aaron.
— Bem, eu também não posso ir à vila, para carregar a bateria durante oito horas, e deixar a Katie aqui sozinha.
O bispo afagou a barba comprida e grisalha.
— Aaron, lembras-te quando o filho da Polly e do Joseph Zook teve asma? Lembras-te como foi muito mais importante para a criança ter oxigénio do que levar a Ordnung à letra? Creio que estamos numa situação idêntica.
— A situação não é idêntica — contrapôs Aaron. — Isto não é uma questão de vida ou morte.
— Pergunte isso à sua filha — ripostei.
O bispo levantou as mãos. Naquele momento, parecia exatamente como qualquer juiz que eu enfrentara numa sala de audiências.
— O computador não é teu, Aaron, e eu não duvido do teu empenho pessoal nos nossos costumes. Mas, como eu disse aos Zook, os fins justificam os meios, neste caso. Enquanto a advogada precisar dele, vou permitir um inversor nesta quinta, que será usado apenas pela menina Hathaway, para conseguir corrente elétrica.
— Um inversor?
Ele virou-se para mim.
— Os inversores convertem corrente de doze volts em cento e dez volts. Os nossos homens de negócios usam-nos para alimentar as caixas registadoras. Não podemos usar a corrente elétrica vinda diretamente de um gerador, mas um inversor trabalha a bateria, coisa que é permitida pela Ordnung. A maior parte das famílias não pode ter inversores porque isso constituiria uma grande tentação. É que a corrente elétrica passa do gasóleo para o gerador para uma bateria de doze volts para o inversor para qualquer equipamento, como por exemplo o seu computador.
Aaron pareceu chocado.
— Os computadores são proibidos pela Ordnung. E os inversores estão à experiência — disse ele. — É possível usá-lo para ligar uma lâmpada!
Ephram sorriu.
— É possível... mas, Aaron, tu nunca farias uma coisa dessas. Vou pedir a alguém que traga um inversor à menina Hathaway ainda hoje.
Claramente aborrecido, Aaron desviou o olhar do bispo. Eu estava completamente perplexa com o acordo alcançado, mas ainda assim grata.
— Tenho a certeza de que isso fará toda a diferença.
As mãos calorosas do bispo envolveram as minhas e, por um momento, senti-me tranquila.
— Sujeitou-se a grandes mudanças por nossa causa, menina Hathaway — disse Ephram. — Achava que não faríamos a mesma coisa por si?
Não sei porque é que o pensamento de levar eletricidade para a terra dos Fisher me fazia sentir pouco à vontade, como se eu fosse Eva a segurar aquela maçã com um sorriso sedutor. Não era que fosse encontrar Katie no celeiro a jogar Nintendo, por amor de Deus! O mais provável era o inversor encher-se de poeira entre as alturas em que ligava o meu portátil para trabalhar. Mesmo assim, dei por mim a vaguear sem destino para longe do celeiro e da casa, depois da decisão do bispo.
Ouvi a voz de Katie antes mesmo de ter percebido que tinha ido até ao lago. Estava sentada entre um grande braçado de juncos, quase escondida, com os pés descalços imersos na água.
— Estou a ver — disse ela, de olhos fixos num lugar a meio do lago, onde não havia absolutamente nada. Sorriu e bateu palmas, sendo a única pessoa que assistia a um espetáculo que ela própria criara.
Bem, talvez fosse mesmo maluca.
— Katie — disse eu baixinho, sobressaltando-a. Ela levantou-se de um salto, esparrinhando água para cima de mim.
— Oh, desculpa!
— Está calor. Um borrifozinho até sabe bem. — Sentei-me na margem. — Com quem estavas a falar?
O rosto dela ficou em brasa.
— Com ninguém. Era só eu.
— Outra vez a tua irmã?
Katie suspirou e depois assentiu.
— Está a patinar.
— Está a patinar — repeti, sem emoção.
— Ja, uns quinze centímetros acima do nível da água.
— Estou a ver. Não estará a ter alguma dificuldade, sem gelo?
— Não. Ela não sabe que é verão; está apenas a fazer o que fazia antes de morrer. — A voz dela transformou-se num murmúrio. — Também não me parece ouvir.
Olhei para a Katie durante um longo momento. A sua kapp estava ligeiramente de lado, com duas madeixas encaracoladas soltas sobre as orelhas. Tinha os joelhos puxados para cima e os braços cruzados à volta deles. Não estava agitada nem confusa. Estava apenas a olhar para o lago, para aquela alegada visão.
Apanhei um junco e torci o caule.
— O que não compreendo é como é que acreditas em algo que não vês, mas te recusas terminantemente a acreditar naquilo que outras pessoas, nomeadamente médicos, médicos-legistas, e até mesmo os teus pais, sabem que aconteceu.
Katie levantou o rosto.
— Mas eu vejo a Hannah, clara como água, com o seu xaile e o seu vestido verde e os patins que passaram de mim para ela. E nunca vi aquele bebé até ele já estar no celeiro, embrulhado e morto. — Franziu o sobrolho. — Em quem é que tu acreditas?
Antes que eu pudesse responder, Ephram apareceu com o diácono.
— Menina Hathaway — disse o bispo —, eu e o Lucas temos de falar com a nossa jovem irmã, por um instante.
Mesmo afastada, senti Katie tremer e o cheiro penetrante do medo a emanar-lhe da pele. Estava a tremer como nunca a vira, nem mesmo quando a tinham acusado de homicídio. A sua mão deslocou-se sobre os juncos acachapados até encontrar a minha e enfiar-se debaixo dela.
— Nesse caso, gostava que a minha advogada estivesse presente — disse ela, num fio de voz.
O bispo pareceu surpreendido.
— Bem, Katie, para quê?
Ela nem sequer conseguiu levantar os olhos para o ancião.
— Por favor — murmurou, e depois engoliu em seco.
O diácono e o bispo entreolharam-se, e Ephram acenou afirmativamente. A criatura trémula e submissa ao meu lado não era nada como a rapariga que me tinha olhado nos olhos e dito que não havia bebé. Não era nada como a rapariga que tinha falado comigo minutos antes sobre o que era visível para uma pessoa não ser evidente para outra. Mas tinha uma semelhança impressionante com a criança que eu vira em tribunal quando cheguei, a criança que estava pronta a deixar o sistema jurídico trucidá-la em vez de preparar uma defesa.
— É assim — disse Ephram, constrangido. — Sabemos que as coisas são muito difíceis, neste momento, e que tenderão a complicar-se ainda mais. Mas havia um bebé, Katie, e sem seres casada... bem, precisas de ir à igreja e compor as coisas.
Katie inclinou ligeiramente a cabeça.
Despedindo-se de mim com um aceno de cabeça, os dois homens voltaram pelo mesmo caminho. Katie ainda levou uns trinta segundos a recompor-se e, quando o fez, o seu rosto estava tão pálido quanto uma lua nova.
— Eles estavam a falar de quê? — perguntei.
— Querem que confesse o meu pecado.
— Qual pecado?
— Ter um bebé sem ser casada.
Começou a andar, e eu estuguei o passo para a acompanhar.
— O que vais fazer?
— Confessar — disse Katie, baixinho. — Que mais posso fazer?
Surpreendida, virei-me e cortei-lhe o caminho.
— Podias começar por lhes dizer aquilo que me disseste a mim. Que não tiveste nenhum bebé.
Os olhos dela encheram-se de lágrimas.
— Não posso dizer-lhes isso! Não posso!
— Porquê?
A Katie abanou a cabeça, com as faces coradas. Correu para o mar de milho ondulante.
— Porquê? — gritei-lhe, com a frustração a deixar-me pregada ao chão.
Os homens que trouxeram o inversor montaram-no para mim, no celeiro. Ligado ao gerador ao lado da maternidade, proporcionava-me uma boa vista da fita que continuava a vedar o local do crime, caso eu precisasse de inspiração para refutar as acusações de que Katie era alvo. Pouco depois das quatro horas, levei os meus dossiês e o meu portátil para o celeiro e comecei a comportar-me como uma advogada.
Levi, Samuel e Aaron estavam a ordenhar as vacas presas aos seus postes. Levi parecia resignado com o equivalente amish de trabalho subalterno, retirando o estrume com uma pá e carregando os cereais, enquanto os dois homens mais velhos limpavam os úberes das vacas com o que pareciam ser páginas de uma lista telefónica e depois os ligavam aos pares a uma bomba de sucção alimentada pelo mesmo gerador que fazia indiretamente funcionar o meu computador. De vez em quando, Aaron levava o recipiente para a sala do leite e despejava-o na cisterna com um chape audível.
Observei-os durante algum tempo, atraída pela graciosa rotina e pela gentileza das suas mãos, ao afagarem o lado da barriga de uma vaca ou ao coçarem-na atrás das orelhas. Sorrindo, liguei cautelosamente o meu portátil, fiz uma prece rápida e fervorosa para que aquilo não destruísse o disco rígido e iniciei-o.
O ecrã abriu-se numa onda de cor, pintalgada de ícones e barras de ferramentas. A seguir, veio o protetor de ecrã, uma imagem digital de tubarões no fundo do oceano. Peguei num dos dossiês que tinha recebido do procurador e abri-o sobre o feno. Folheando o conteúdo, tentei formular mentalmente um requerimento a solicitar outros serviços para além do apoio jurídico.
Quando levantei os olhos, Levi estava boquiaberto a olhar para o computador do outro lado do celeiro, com a pá esquecida de lado até Samuel ir ter com ele e lhe chamar a atenção. Mas, depois, Samuel também espreitou, arregalando os olhos diante da explosão de cor e do realismo dos tubarões. A sua mão contorceu-se, como se estivesse a esforçar-se muito por não esticar o braço e tocar no que via.
Aaron Fisher nem sequer virou a cabeça.
Uma vaca mugiu na outra ponta. O feno doce e a ração ainda mais doce faziam-me cócegas no nariz. O som da bomba de ordenha tornou-se uma batida rítmica. Fechando aquele mundo, concentrei-me e comecei a escrever.
7
O feixe de luz passou-lhe por cima das pernas e depois moveu-se em arco pela parede acima até ao teto, antes de repetir todo o circuito. Katie levantou-se sobre os cotovelos, com o coração a bater descompassado. Ellie ainda estava a dormir; isso era bom. Saiu da cama e ajoelhou-se junto à janela. A princípio, não conseguiu ver nada; depois, Samuel tirou o chapéu e a lua refletiu-se no seu cabelo louro. Respirando fundo, Katie vestiu-se e apressou-se a ir ter com ele.
Ele estava à espera com a lanterna, que desligou assim que a viu aparecer à porta. Depois de Katie sair, ele tomou-a nos braços e encostou os lábios aos dela, com força. Isso deixou Katie paralisada — ele nunca tinha avançado tão depressa — fê-la interpor as mãos entre eles, para manter a distância.
— Samuel! — disse, e ele recuou de imediato.
— Desculpa — murmurou Samuel. — A sério. É só porque te sinto a escapar-me entre os dedos.
Katie levantou os olhos. Conhecia o rosto de Samuel tão bem quanto o seu, tinham crescido como família, como amigos. Ele tinha-a perseguido uma vez até uma árvore, quando ela tinha onze anos. Ele tinha-a beijado pela primeira vez quando ela tinha dezasseis, atrás do alpendre para o gado de Joseph Yoder. Sentia as mãos de Samuel desassossegadas ao fundo das suas costas.
Às vezes, quando imaginava a sua vida, era como os postes telefónicos ao longo de toda a estrada 340: ano após ano, prolongando-se até ao horizonte. E, quando se via assim, era sempre com Samuel ao seu lado. Ele era tudo o que era certo para ela; tudo o que esperavam dela. Ele era a sua rede de segurança. O problema era que a maior parte das Pessoas Simples nunca tirava os olhos do caminho direito e estreito, para saber que lá em cima estava a corda bamba mais incrível em que podiam ter a oportunidade de andar.
Samuel encostou a testa à de Katie. Ela conseguia sentir o seu hálito e as suas palavras a cair sobre ela, e abriu os lábios para os receber.
— Aquele bebé não era teu — disse ele, com urgência.
— Não — sussurrou ela.
Ele inclinou o rosto de tal forma que as suas bocas se uniram, vastas e doces como o mar. O beijo dele sabia a sal, e Katie soube que havia lágrimas nas faces de ambos, mas não se lembrava de qual deles tinha passado a dor ao outro. Abriu-se a Samuel como nunca fizera, compreendendo que aquilo era uma dívida que ele viera cobrar.
A seguir, Samuel afastou-se dela e beijou-lhe as pálpebras. Segurou-lhe o rosto entre as mãos e murmurou:
— Eu pequei.
Ela ergueu as mãos e pô-las em cima das dele.
— Não pecaste nada — insistiu.
— Sim. Deixa-me acabar. — Samuel engoliu em seco. — Aquele bebé. Aquele bebé não era nosso. — Puxou Katie mais para si, enterrando o rosto no seu cabelo. — Não era nosso, Katie, mas eu tenho desejado que fosse.
— Alguma vez tocaste num?
Adam levantou os olhos da secretária, sorrindo ao ver Katie debruçada sobre um dos seus cadernos de investigação.
— Sim — disse ele. — Bem, mais ou menos. Não é possível agarrá-los, apenas os sentimos passarem por nós.
— Como um vento?
Adam pousou a caneta.
— Mais como um calafrio.
Katie acenou afirmativamente, e voltou à sua leitura com toda a seriedade. Era a segunda vez que visitava Jacob naquela semana — um acontecimento sem precedentes, ao que parecia — e tinha agendado a visita para um dia em que sabia que Jacob estava a trabalhar na faculdade até à tarde. Quando Adam se sentou ao lado dela, Katie sorriu.
— Conta-me como foi.
— Eu estava num hotel antigo, em Nantucket. Acordei a meio da noite e encontrei uma mulher a espreitar pela janela. Tinha um vestido fora de moda e o ar estava impregnado de perfume... Uma fragrância que eu nunca tinha cheirado e que não voltei a cheirar. Sentei-me na cama e perguntei quem era, mas ela não respondeu. E depois percebi que conseguia ver o peitoril e os caixilhos de madeira através do seu corpo. Ela ignorou-me completamente, e depois passou pela janela e através de mim. Senti... arrepios. Fez-me eriçar os pelos da nuca.
— Ficaste assustado?
— Nem por isso. Ela não parecia saber que eu estava ali. Na manhã seguinte, perguntei ao proprietário, que me contou que o hotel tinha sido a casa de um comandante de navio que tinha morrido afogado. Era alegadamente assombrada pela sua mulher, que continuava à espera que o marido voltasse para casa.
— Isso é tão triste — disse Katie.
— Tal como a maior parte das histórias de fantasmas.
Por um momento, Adam pensou que ela ia chorar. Esticou a mão e tocou na cabeça de Katie.
— O cabelo dela era como o teu. Forte e liso e o mais comprido que eu alguma vez vi. — Como ela corou, ele recostou-se e cruzou os braços sobre os joelhos dobrados. — Agora, posso fazer-te uma pergunta?
— Está bem.
— Não é que eu não me sinta incrivelmente lisonjeado por estares tão fascinada pela minha investigação... mas és a última pessoa que eu esperava que a achasse interessante.
— Porque sou Simples, é isso que queres dizer?
— Bem, sim.
Katie tocou com os dedos nas palavras que Adam tinha escrito.
— Eu conheço estes fantasmas — disse ela. — Eu sei como é andar pelo mundo, mas não fazer realmente parte dele. E sei como é ter pessoas a olharem para nós e não acreditarem no que estão a ver. — Pondo de lado o caderno de investigação, Katie olhou para Adam. — Se eu existo, porque é que eles não hão de existir?
Em tempos, Adam entrevistara um autocarro cheio de turistas que tinham visto um campo de batalha em Gettysburg, onde havia surgido um batalhão de soldados que não estava lá. Tinha gravado com câmaras de infravermelhos as bolsas de energia mais fria que rodeavam um fantasma. Já ouvira fantasmas arrastar caixas em sótãos, bater com portas, pôr telefones a tocar. Porém, ao longo de todos os anos em que fizera a investigação para o seu doutoramento, sempre fora obrigado a bater-se pela credibilidade.
Com humildade, Adam pegou na mão de Katie. Apertou-a suavemente e depois levou-a aos lábios para beijar a parte de dentro do pulso dela.
— Tu não és um fantasma — disse ele.
George Callahan franziu o sobrolho ao ver o prato de Lizzie.
— Mas será que nunca comes nada? Qualquer dia, vem uma ventania e leva-te.
A detetive deu uma dentada no pão à sua frente.
— Porque é que só ficas feliz quando toda a gente à tua volta está a devorar alguma coisa?
— Deve ter que ver com o facto de ser advogado. — Limpou a boca ao guardanapo e, depois, recostou-se na cadeira. — Hoje, vais precisar de toda a tua energia. Alguma vez tentaste obter informação dada de forma espontânea pelos Amish?
Lizzie deixou a mente recuar no tempo.
— Uma vez. No caso do doido do Charlie Lapp.
— Ah, sim! Aquele miúdo esquizofrénico que deixou de tomar os medicamentos e guiou um carro roubado até à Georgia. Bem, pega nesse caso e multiplica o grau de dificuldade por cem.
— George, porque não me deixas fazer o meu trabalho? Eu não te digo como julgar os casos.
— Claro que dizes. Só que eu não te dou ouvidos. Inclinou-se para a frente, apoiando os cotovelos na mesa. — A maior parte dos neonaticídios nem sequer chegam a julgamento: são objeto de acordo judicial. Se a mãe for condenada, é de uma acusação menor. Sabes porquê?
— Porque nenhum jurado quer crer que uma mãe seja capaz de matar o seu bebé?
— Em parte. Mas o mais frequente é a acusação não conseguir identificar uma motivação para o crime, o que faz com que não pareça homicídio.
Lizzie mexeu o café.
— A Ellie Hathaway é capaz de apresentar uma defesa alegando insanidade mental.
— Ainda não o fez. — George encolheu os ombros. — Escuta. Acho que este caso vai ter um grande impacto, por causa da vertente amish. É a oportunidade de fazeres a procuradoria do condado brilhar.
— É claro que isso também te ia ajudar em ano de eleições — disse Lizzie.
George semicerrou os olhos.
— Não tem nada a ver comigo. Não estamos a falar de Maria a entrar num celeiro para dar à luz o Menino Jesus. A Katie Fisher foi lá com a intenção de ter um bebé, matá-lo e escondê-lo. — Sorriu para a detetive. — Trata de provar que tenho razão.
Ellie, Sarah e Katie estavam na cozinha a fazer pepinos de conserva quando o carro entrou na propriedade.
— Oh! — disse Sarah, afastando a cortina para o lado, para ver melhor. — Vem lá outra vez aquela detetive.
As mãos de Ellie pararam a meio de tirar a casca a um pepino.
— Ela veio cá para vos interrogar a todos. Katie, sobe para o teu quarto e não desças até eu te dizer.
— Porquê?
— Porque ela é o inimigo, está bem?
Enquanto Katie se apressava a subir a escada, Ellie virou-se para Sarah.
— Tem de falar com ela. Diga-lhe simplesmente o que se sentir à vontade para dizer.
— Não vai estar aqui?
— Vou mantê-la afastada da Katie. Isso é mais importante.
Sarah assentiu precisamente na altura em que bateram à porta. Esperou que Ellie saísse dali, atravessou a cozinha e abriu.
— Olá, senhora Fisher. Não sei se se lembra de mim. Sou...
— Eu lembro-me — atalhou Sarah. — Quer entrar?
Lizzie acenou afirmativamente.
— Sim, gostava de lhe fazer algumas perguntas. — Examinou a cozinha, com os frascos a esterilizar no fogão e os pepinos amontoados sobre a mesa. — Não se importa? — Quando Sarah anuiu, pouco à vontade, Lizzie tirou o bloco de notas do bolso do casaco. — Pode falar-me um pouco sobre a sua filha?
— A Katie é uma boa rapariga. É humilde, generosa e bondosa e serve o Senhor.
Lizzie bateu com o lápis no papel, sem escrever nada.
— Parece um anjo, senhora Fisher.
— Não, apenas uma rapariga boa e Simples.
— Tem namorado?
Sarah torceu as mãos por baixo do avental.
— Já teve uns quantos desde a adolescência. Mas o mais sério foi o Samuel. Ele trabalha na quinta com o meu marido.
— Sim, já nos conhecemos. Sério a que ponto?
— Não me cabe a mim dizê-lo — arriscou Sarah, sorrindo timidamente. — Isso são assuntos privados da Katie. E, se estavam a pensar casar, o Samuel tinha de ir ter com o Schtecklimann, o intermediário, que viria cá perguntar à Katie quais os seus desejos.
Lizzie inclinou-se para a frente.
— Nesse caso, a Katie não lhe conta tudo sobre a sua vida pessoal.
— Claro que não.
— Ela contou-lhe que estava grávida?
Sarah pregou os olhos no chão.
— Não sei.
— Correndo o risco de ser indelicada, senhora Fisher, ou bem que lhe contou ou bem que não lhe contou.
— Ela não me contou, mas também nunca me daria essa informação. É uma coisa muito pessoal.
Lizzie conteve a réplica.
— Nunca reparou que os vestidos dela estavam a ficar maiores? Que não tinha menstruação?
— Eu tive filhos, detetive. Conheço os sinais de uma gravidez.
— Mas tê-los-ia reconhecido se estivessem a ser intencionalmente escondidos?
— Suponho que a resposta seja não — admitiu Sarah com brandura. — Mesmo assim, é possível que a própria Katie não soubesse o que estava a acontecer.
— Ela cresceu numa quinta. E acompanhou-a a si durante a sua outra gravidez, certo? — Quando Sarah inclinou a cabeça em sinal de assentimento, Lizzie teve uma ideia súbita. — A Katie alguma vez mostrou tendências violentas?
— Não. Muito pelo contrário. Estava sempre a trazer para casa esquilos e pássaros perdidos e a dar de comer a vitelos cujas mães morreram no parto. A cuidar de quem precisava.
— Ela tomava muitas vezes conta da irmã mais nova?
— Sim. A Hannah era a sombra dela.
— Lembre-me como é que a sua filha mais nova morreu...
Os olhos de Sarah fecharam-se enquanto se distanciava de si própria.
— Afogou-se num acidente quando estava a patinar, aos sete anos.
— Lamento imenso. Estava presente na altura?
— Não, ela e a Katie foram sozinhas até ao lago. — Quando Lizzie não lhe fez nova pergunta, Sarah olhou para a detetive e para a conclusão estampada no seu rosto. — Não pode estar a pensar que a Katie teve alguma coisa a ver com a morte da própria irmã!
Lizzie ergueu as sobrancelhas.
— Senhora Fisher — murmurou. — Eu não disse que teve.
Num mundo perfeito, pensou Lizzie, Samuel Stoltzfus estaria a embelezar páginas de revistas vestido apenas com roupa interior da Calvin Klein. Alto, forte e louro, tinha uma beleza tão clássica que qualquer mulher, fosse qual fosse a sua religião, teria tido dificuldade em rejeitá-lo, mas Lizzie estava a interrogar o jovem há vinte minutos e sabia que, embora parecesse um deus grego, ele não tinha propriamente a inteligência de Sócrates. Até agora, embora ela tivesse apresentado verbalmente todas as provas médicas da gravidez da namorada, Samuel não parava de dizer que Katie não tinha tido um bebé.
Talvez a negação fosse contagiosa, como a gripe.
Respirando fundo, Lizzie não insistiu.
— Vamos tentar outra estratégia. Fale-me do seu patrão.
— Aaron? — Samuel pareceu surpreendido, e com razão para isso; todas as outras perguntas tinham sido sobre a sua relação com Katie. — É um bom homem. Um homem muito simples.
— A mim, pareceu-me bastante teimoso.
Samuel encolheu os ombros.
— Está habituado a fazer as coisas à maneira dele — disse, e depois apressou-se a acrescentar —, mas não é de estranhar, já que a quinta é dele.
— E quando o Samuel for membro da família? A quinta não será igualmente sua?
Samuel baixou a cabeça, claramente desconfortável.
— Essa decisão é dele.
— Quem mais irá tomar conta da quinta, sobretudo quando a Katie se casar? A menos que ele tenha um filho à espera nos bastidores, que ninguém se lembrou de mencionar.
Sem olhar para ela, Samuel disse:
— Ele já não tem filhos.
Lizzie virou-se.
— Morreu mais alguma criança? Fiquei com a sensação de que era uma menina.
— Sim, a Hannah. — Samuel engoliu em seco. — Não morreu mais ninguém. Eu queria dizer que ele não tem filhos. Às vezes, quando falo inglês, esqueço-me de como se diz.
Lizzie olhou para o homem louro. Samuel ia herdar a quinta, desde que conseguisse ficar com Katie Fisher. Ter um neto de Aaron Fisher cimentaria esse trato. Teria Katie matado o bebé porque não queria ficar amarrada a Samuel? Porque não queria que ele herdasse?
— Antes de o bebé ter sido descoberto — perguntou Lizzie —, o Samuel e a Katie andavam a brigar?
Ele hesitou.
— Não creio que tenha de lhe dizer isso.
— Na verdade, Samuel, até tem. Porque a sua namorada vai ser julgada por homicídio e, caso tenha tido alguma participação nisso, pode ser acusado de cumplicidade. Portanto... as brigas?
Samuel corou. Isso fez com que Lizzie ficasse a olhar para ele; nunca tinha visto a vergonha espelhada no rosto de um homem tão grande.
— Apenas coisas sem importância.
— Tais como?
— Às vezes, ela não me queria dar um beijo de boa-noite...
Lizzie sorriu.
— Isso é mais ou menos como trancar a porta depois da casa roubada.
Samuel pestanejou.
— Não compreendo.
Agora, foi a vez de Lizzie corar.
— Só queria dizer que um beijo parece bastante inconsequente depois de a ter engravidado...
Ele ficou com as faces ainda mais coradas.
— A Katie não teve um bebé.
De volta à estaca zero.
— Samuel, já falámos sobre isto. Ela teve um bebé. Há provas médicas.
— Eu não conheço esses médicos ingleses, mas conheço a minha Katie — disse ele. — Ela diz que não teve um bebé e é verdade. Não podia ter tido.
— Porquê?
— Porque sim — respondeu Samuel, afastando-se.
— «Porque sim» não é resposta, Samuel — replicou Lizzie.
Ele virou-se, com a voz alterada:
— Porque nós nunca fizemos amor!
Lizzie ficou calada por um momento.
— Lá porque ela nunca dormiu consigo — observou a detetive com brandura —, isso não significa que não tenha dormido com outra pessoa.
Esperou que ele assimilasse as suas palavras, que foram como um horrível aríete que derrubou as últimas defesas de Samuel. Aquele homenzarrão enrolou-se sobre si mesmo, com a aba do chapéu a tocar nos joelhos e os braços cruzados com força sobre o tronco.
Lizzie lembrou-se de um caso em que trabalhara há uns anos, em que a namorada do gerente de uma joalharia tinha enganado o namorado e engravidado. Em vez de admitir o sucedido, salvou a face afirmando que o homem a violara e levando o caso a tribunal. O homicídio daquele recém-nascido podia não radicar numa zanga entre Katie e Samuel, mas sim numa situação oposta. Em vez de admitir que tinha dormido com outro homem, indo contra os seus princípios religiosos, magoando a família e destruindo o seu futuro com Samuel, Katie tinha-se livrado simplesmente da prova da sua transgressão. Literalmente.
Lizzie viu os ombros de Samuel tremer com emoção. Dando-lhe uma palmadinha nas costas, deixou-o conformar-se com a verdade: não era que ele não acreditasse que Katie tivera um bebé; a questão é que ele não queria acreditar.
— Ela faria uma coisa dessas? — sussurrou Samuel, segurando as mãos de Ellie como se fossem uma corda de salvação. — Ela far-me-ia uma coisa dessas?
Ellie nunca pensara que fosse possível ver um coração partir-se e, no entanto, ali estava ela a assistir a isso mesmo. E a sensação era muito parecida com o momento em que assistira à demolição de um arranha-céus em Filadélfia, com os pisos a desmoronar sucessivamente uns sobre os outros, até já não restar mais do que uma memória suspensa no ar.
— Samuel, lamento. Eu nem sequer a conheço suficientemente bem para ajuizar uma coisa dessas.
— Mas ela disse-lhe alguma coisa? Disse-lhe o nome dele?
— Não sabemos se houve outro «ele» — disse Ellie. — A detetive quis obrigá-lo a tirar conclusões precipitadas, na esperança de que deixasse escapar alguma coisa que a acusação pudesse usar.
— Eu não disse nada — insistiu Samuel.
— Claro que não — retorquiu Ellie, secamente. — Tenho a certeza de que eles já têm muito com que trabalhar, neste momento.
Na verdade, só de pensar nisso ficava com a cabeça num turbilhão: Katie cometeu homicídio para encobrir uma leviandade.
Samuel olhou para Ellie, muito sério.
— Eu faria qualquer coisa pela Katie.
— Eu sei. — E Ellie sabia. A questão era saber até que ponto ia a promessa de Samuel... Seria simplesmente um bom ator, que sempre soubera da gravidez da namorada? Mesmo que Sarah não tivesse notado, Samuel teria descoberto facilmente mudanças físicas em Katie durante um simples abraço, e naturalmente que teria sabido se não fosse o pai. Uma vez que os Fisher não tinham filhos homens, Samuel iria herdar a quinta, desde que conseguisse casar com Katie. Uma quinta no condado de Lancaster era uma bênção tremenda, pois o valor imobiliário de algumas daquelas propriedades atingia milhões. Se Katie tivesse dado à luz e depois casado com o pai da criança, Samuel ficaria sem nada. Era um móbil claro para homicídio, mas apontava para um suspeito muito diferente.
— Acho que o Samuel precisa de falar com a Katie — disse Ellie com suavidade. — Não sou eu que lhe posso dar respostas.
— Nós íamos ficar juntos. Foi o que ela me disse. — Samuel tinha a voz trémula; as lágrimas bailavam-lhe nos olhos, embora não tivessem rolado. Outra coisa sobre estes desgostos que partem o coração: não é possível assistir a uma coisa dessas sem que o nosso próprio coração fique igualmente abalado. Samuel afastou-se de Ellie, de ombros descaídos. — Eu sei que devia perdoar-lhe, à maneira do Senhor, mas não consigo fazer isso neste momento. De momento, a única coisa que quero saber é com quem é que ela esteve.
Ellie assentiu e pensou para consigo: não é o único...
As trepadeiras enrolavam-se na base da ponte ferroviária, subindo em direção à marca do nível máximo de maré cheia e aos rebites que prendiam o aço ao betão. Katie enrolou as pernas das calças de ganga e descalçou os sapatos e as meias, seguindo Adam até à água pouco profunda. Os seixos magoavam-lhe os arcos dos pés e os seus calcanhares escorregavam nas pedras mais lisas e polidas. Ao esticar as mãos para o pilar, para se equilibrar, sentiu as mãos de Adam agarrar-lhe os ombros.
— Estamos em dezembro de 1878 — sussurrou ele. — Há uma tempestade de gelo. A Pennsylvania Line transporta duzentos e três passageiros com destino a Nova Iorque, para passar o Natal. O comboio descarrila aqui, mesmo no extremo da ponte, e as composições caem na água gelada. Morrem cento e oitenta e seis pessoas.
Sentiu-o respirar junto ao seu pescoço e, depois, afastar-se dela com igual rapidez.
— Nesse caso, porque é que não há cento e oitenta e seis fantasmas? — perguntou Katie.
— Haverá, tanto quanto sabemos. Mas o único que tem sido visto por uma série de pessoas tem sido o de Edye Fitzgerald. — Adam voltou para a margem do rio e sentou-se, brincando com uma caixa de mogno comprida e achatada. — Edye e John Fitzgerald eram recém-casados e iam passar a lua de mel a Nova Iorque. John sobreviveu ao acidente e terá andado pelos destroços, juntamente com os socorristas, a chamar pela mulher. Depois de ter identificado o corpo dela, foi para Nova Iorque sozinho, ocupou a suíte da lua de mel num hotel luxuoso e suicidou-se.
— Isso é pecado — disse Katie, categoricamente.
— Será? Talvez estivesse apenas a tentar voltar para a Edye. — Adam sorriu timidamente. — Mas eu gostava de dar uma olhadela à suíte e ver se ele a está a assombrar. — Abriu a tampa da caixa de madeira. — Seja como for, há mais de vinte relatos de pessoas que viram a Edye a andar na água por aqui, pessoas que a ouviram a chamar pelo John.
Ele retirou da caixa duas varinhas compridas e em forma de L e fê-las girar nas suas mãos como se fosse um atirador especial. Katie observava, de olhos arregalados.
— O que consegues fazer com isso?
— Apanhar um fantasma — disse ele, sorrindo diante da sua expressão chocada. — Vocês não usam varinhas de vedor? Suponho que não. As pessoas usam-nas para encontrar água, ou mesmo ouro. Mas elas também captam a energia, só que, em vez de apontarem para baixo, começam a tremer.
Ele começou a andar à volta do pilar de betão tão silenciosamente que a água mal se ouvia nas suas pernas. Com as mãos fechadas sobre as varinhas e a cabeça baixa, concentrado na sua tarefa.
Ela não conseguia imaginar os seus pais a chegar àqueles extremos e a fazer o que John e Edye tinham feito. Não. Se o cônjuge morria, era a ordem natural das coisas e a viúva ou viúvo continuavam a sua vida. Pensando bem, nunca tinha visto sequer o pai dar um beijo fugaz à mãe. Mas lembrava-se da forma como ele mantivera o braço à volta dela o dia inteiro, quando Hannah fora a sepultar; da forma como ele às vezes terminava a refeição e sorria para a mãe, como se ela tivesse pendurado a Lua no céu. Katie tinha sido ensinada a acreditar que eram os valores semelhantes e a vida simples que mantinham um casal unido e, depois disso, a paixão aparecia em privado. Mas quem dizia que não podia aparecer antes? Aquele suspiro que nos comprimia o peito; a bola de fogo ao fundo da barriga quando ele roçava o nosso braço; o som da sua voz a enroscar-se no nosso coração... Será que essas coisas não podiam unir igualmente um homem e uma mulher para sempre?
De repente, Adam parou. As suas mãos tremiam ligeiramente e as varinhas saltavam para cima e para baixo.
— Há alguma coisa... mesmo aqui.
Katie sorriu.
— Um pilar de cimento.
Uma sombra de desilusão perpassou o rosto de Adam tão rapidamente que ela se perguntou se a teria imaginado. As varinhas começaram a saltar com mais energia. Adam afastou-se do local.
— Achas que eu estou a inventar isto.
— Eu não...
— Não precisas de mentir. Consigo vê-lo no teu rosto.
— Tu não compreendes — disse Katie.
Adam atirou-lhe as varinhas.
— Segura nelas — desafiou. — Sente!
Katie cerrou as mãos nos pontos que as mãos dele haviam deixado quentes. Caminhou cautelosamente em direção ao lugar onde Adam tinha estado.
A princípio, sentiu um calafrio percorrer-lhe a espinha. A seguir, veio uma dor indizível, que a envolveu como a rede de um pescador. Katie sentiu as varinhas a puxar, como se alguém estivesse do outro lado a agarrar-se a elas, como a uma corda salva-vidas. Mordeu o lábio inferior, esforçando-se por continuar a segurá-las e compreendendo que aquela inquietude, aquela energia invisível, aquela dor... era um fantasma.
Adam tocou-lhe no ombro e Katie desatou a chorar. Tinha sido demasiado para ela saber que os mortos podiam continuar na terra e que, durante todos aqueles anos em que vira Hannah, não tinha perdido o juízo. Sentiu os braços de Adam fecharem-se à sua volta e tentou manter a distância, envergonhada por estar a soluçar junto à camisa dele.
— Chiu — disse ele, como fazemos quando nos aproximamos de um animal selvagem e assustadiço. — Está tudo bem.
Mas não estava tudo bem. Será que Hannah carregava consigo o mesmo desespero que Katie sentira em Edye Fitzgerald? Continuaria a gritar para Katie a salvar?
Os lábios de Adam eram cálidos junto à orelha de Katie.
— Sentiste-a — sussurrou ele com espanto, e Katie assentiu contra a palma da sua mão.
Katie voltou a sentir o tremor, mas desta vez vinha de dentro dela. Os olhos de Adam estavam brilhantes, do azul que vemos quando rodopiamos num campo de milho e caímos tontas no chão, a olhar para o céu. Com o coração descompassado e a cabeça a andar à roda, pensou em Edye e John Fitzgerald. Pensou em alguém que a amasse tanto, a ponto de passar a eternidade a chamar por ela.
— Katie — sussurrou Adam, e baixou a cabeça.
Já a tinham beijado antes; beijos secos e vigorosos que lhe deixavam a sensação de uma pisadura. Adam roçou a boca suavemente na sua, de tal forma que ficou com um formigueiro nos lábios e a garganta a doer. Deu por si a inclinar-se para ele. Adam sabia a café e a pastilha de hortelã-pimenta; ele segurou-a como se ela se fosse quebrar.
Adam recuou subitamente.
— Meu Deus! — disse ele, dando um passo atrás. — Oh, meu Deus!
Katie enfiou o cabelo atrás da orelha e corou, pregando os olhos no chão. O que é que lhe tinha dado? Aquilo não era forma de uma Rapariga Simples se comportar. Mas a verdade é que, naquele momento, não era Simples, pois não? Com as roupas que Jacob lhe arranjara e com o cabelo solto, ao estilo inglês, sentia-se alguém completamente diferente. Alguém que conseguia acreditar em fantasmas. Alguém que conseguia acreditar em amor à primeira vista, em amor eterno.
Por fim, arranjando coragem, Katie levantou os olhos.
— Peço desculpa.
Adam abanou a cabeça, lentamente. A sua boca, a sua linda boca, curvou-se aos cantos. Levantou-lhe a palma da mão e beijou-a bem no meio, um gesto para segurar e enfiar no bolso como recordação.
— Não peças — disse ele, e voltou a tomá-la nos braços.
Ellie entrou de rompante no quarto que partilhava com Katie, batendo com a porta atrás de si.
— Ela já se foi embora?
A pergunta fez com que Ellie estacasse.
— Quem?
— A detetive. A mulher que já cá tinha vindo.
Santo Deus! Tinha-se esquecido completamente de que Lizzie Munro andava pela quinta.
— Tanto quanto sei, anda a inquirir as malditas vacas — retorquiu Ellie. — Senta-te. Tu e eu, Katie Fisher, temos de ter uma conversa.
Surpreendida, Katie ergueu-se na cama até ficar sentada.
— O que é que... O que é que se passa?
— O que se passa é isto: a investigadora do Ministério Público está lá em baixo, a obter um bem precioso dos teus amigos e familiares: factos. E eu estou aqui enfiada há uma semana e nem sequer consigo uma resposta franca da tua parte. — Katie abriu a boca, mas Ellie silenciou-a levantando a mão. — Nem penses! Nem penses em dizer que já me contaste a verdade. Sabes aquele bebé que não tiveste? O teu namorado Samuel acabou de me contar que não dormiste com ele para o conceber.
Os olhos de Katie arregalaram-se, de tal forma que surgiu um anel branco e brilhante à volta das íris azuis.
— Bem, e não dormi. Não faria uma coisa dessas antes de me casar.
— Claro que não — disse Ellie, sarcasticamente. — Nesse caso, agora temos uma virgem que deu à luz.
— Eu não...
— Tu não tiveste um bebé! Tu não fizeste sexo! — A voz de Ellie começou a subir de tom e a ficar trémula. — Meu Deus, Katie, como é que esperas que eu te defenda? — Perfilou-se sobre Katie, despejando a sua raiva sobre a rapariga, como uma onda de calor. — Tens um tipo lá fora completamente arrasado por descobrir que não é o teu único amor. Tu baixas a cabeça e dás o ámen ao bispo quando ele sugere que podes ter tido relações sexuais. Mas ficas aí sentada como um maldito bloco de cimento, reticente em ceder um bocadinho que seja para me dares algo com que trabalhar!
Katie dobrou-se para trás sob a força da ira de Ellie. Cruzou os braços sobre a barriga e afastou-se dela.
— Eu amo o Samuel, a sério que sim.
— E quem mais, Katie? Quem mais?
— Não sei. — Por esta altura, já estava a soluçar. Tapou o rosto com as mãos; a kapp soltou-se e caiu no chão. — Não sei. Não sei quem foi!
— Estamos a falar de um parceiro sexual, por amor de Deus! Não estamos a falar dos cereais que comeste ao pequeno-almoço há uma semana! Não é coisa que normalmente se esqueça!
Katie enroscou-se sobre a cama em posição fetal, a chorar e a balouçar o corpo para a frente e para trás.
— O que é que tu não me estás a contar? — perguntou Ellie. — Estavas embriagada?
— Não.
— Drogada?
— Não! — Katie enterrou o rosto na almofada. — Não me lembro de quem me tocou!
Os gritos de Katie agarraram-se ao peito de Ellie, comprimindo-o de tal forma que ela mal conseguiu encontrar força para respirar. Com um gemido de rendição, sentou-se no colchão e puxou a rapariga para junto de si, afagando-lhe o cabelo e sussurrando palavras de conforto.
Katie sentiu-se como uma criança nos seus braços. Uma menina imatura que tinha derrubado uma jarra com uma bola, sem saber que tinha feito algo que ia deixar o resto do mundo em polvorosa. Uma criança grande, mas igualmente desorientada, carente e desesperada por perdão.
Uma terrível suspeita começou a formar-se em Ellie, enchendo-lhe o coração, os pulmões e o pensamento de uma raiva súbita e poderosa. Refreou-a, acalmando-se antes de levantar o queixo de Katie.
— Alguém te violou?
Katie olhou para ela, com os olhos inchados a vaguear sob as pálpebras cerradas.
— Não me lembro — sussurrou.
Pela primeira vez desde que conhecera Katie, Ellie acreditou no que ela estava a dizer.
— Oh, valha-me Deus! — Lizzie levantou o mocassim e olhou para o esterco e estrume presos à sola. Não lhe pagavam o suficiente para fazer aquele interrogatório e, pela sua parte, Aaron Fisher bem podia ir para o diabo. Levantou a cabeça e suspirou, depois prosseguiu através do campo. Ao vê-la aproximar-se, Fisher fez parar a sua parelha de mulas.
— Se está à procura do caminho para casa — disse Fisher num inglês com sotaque —, fica para ali. — E apontou para a estrada principal.
Lizzie arreganhou os dentes. Que sorte a dela encontrar um amish que se achava um comediante de stand-up.
— Obrigada, mas já encontrei o que procurava.
Isso silenciou-o. Lizzie deixou-o fumegar um minuto, a imaginar todas as provas macabras que poderiam surgir numa investigação de homicídio.
— Ai, sim? E o que foi, detetive?
— O senhor. — Lizzie pôs a mão em pala sobre os olhos. — Será que tem um minuto?
— Tenho muitos minutos, todos eles usados para uma finalidade comum. — Estalou os lábios para fazer os cavalos andar e Lizzie correu ao lado deles até o agricultor voltar a parar.
— Importa-se de a partilhar comigo?
— Gerir a minha quinta — disse Aaron. — Se me der licença...
— Pensei que podia perder um ou dois desses preciosos segundos para salvar a sua filha da cadeia, senhor Fisher.
— A minha filha não vai para a cadeia — disse ele, teimosamente.
— Não lhe cabe a si decidir isso.
O agricultor tirou o chapéu. De repente, parecia cansado e muito mais velho do que Lizzie originalmente pensara.
— Também não é a si que cabe decidir, mas sim ao Senhor. Eu confio no Seu julgamento, tal como a minha filha. Agora, bom dia. Bateu com as rédeas e as mulas saltaram para a frente em uníssono, com o arado a rasgar a terra.
Lizzie viu-o afastar-se.
— É uma pena Deus não estar sentado no júri — murmurou, e depois começou a longa caminhada de volta à casa da quinta.
Ellie acabou de limpar a última das especiarias usadas nos picles, que também salpicara a mesa da cozinha. Estava um calor infernal naquela divisão. Santo Deus! O que ela não daria por ar condicionado ou por uma ventoinha elétrica, mas prometera a Sarah tratar da limpeza, já que perdera grande parte do trabalho de preparação da conserva, enquanto estava a consolar Katie.
E o que havia de pensar daquele último confronto? Os mistérios começavam a encaixar na sua mente, tão claramente quanto as ganchetas de uma fechadura: a amnésia seletiva de Katie, a negação da gravidez e do parto, a expressão chocada de Samuel da última vez que tinham falado. Pela primeira vez desde que chegara à quinta, Ellie não sentia repulsa pelo neonaticídio que Katie cometera, mas sim dó.
Enquanto advogada de defesa, apoiara muitos clientes que tinham cometido crimes hediondos, mas, instintivamente, conseguia trabalhar melhor quando conseguia perceber o que os levara a esse ponto. A mulher que tinha assassinado o marido durante o sono tornava-se menos monstruosa quando tínhamos em linha de conta o facto de o homem a ter espancado ao longo de trinta anos. O violador com a tatuagem de uma suástica na ponte do nariz era menos ameaçador quando o víamos como rapazinho vítima dos abusos do padrasto. E a rapariga amish que tinha matado o seu recém-nascido não podia ser perdoada, mas seguramente que podia ser entendida, se o pai da criança a tivesse agredido sexualmente.
Por outro lado, era o derradeiro prego no caixão de Katie. Em termos de motivação, fazia muito sentido uma jovem querer matar o bebé concebido num ato de violação. O que significava que, por mais que Ellie simpatizasse com Katie, por mais que esperasse arranjar-lhe ajuda psicológica, a violação nunca seria mencionada durante a sua defesa.
Ellie torceu a esponja no lava-louça. Perguntou-se se Katie começaria agora a fazer-lhe confidências. Perguntou-se se deveria ir lá acima outra vez, para que Katie não estivesse sozinha quando acordasse.
Ao ouvir a porta abrir-se por trás dela, Ellie fechou a torneira e enxugou as mãos no volumoso avental que Sarah lhe emprestara.
— Ainda bem que voltou — disse ela, sem se virar para a porta.
— Devo dizer que isso me surpreende!
Ellie virou-se e deu de caras com Lizzie Munro, em vez de Sarah. O olhar da investigadora foi do cabelo empapado em suor de Ellie até à bainha do seu avental.
Cruzando os braços sobre a cintura, Ellie empertigou-se, tentando parecer o mais autoritária possível, dado o seu traje.
— Devia retirar a fita que está a isolar o local do crime. Há aqui gente a tentar levar a sua vida para a frente.
— A fita não é minha. Chame a polícia estadual.
— Poupe-me, detetive.
Lizzie encolheu os ombros.
— Pelo que me toca, já a deviam ter retirado há uns dias. Temos tudo aquilo de que precisamos.
— Pensam que têm.
— Este caso será ganho com base nas provas forenses, doutora Hathaway. Afastem-se o fumo e os espelhos, e há um bebé morto que ficou para trás.
Ellie fez um sorriso afetado.
— Fala como uma procuradora.
— Ossos do ofício.
— Nesse caso, se o caso é assim tão óbvio, é interessante que tenha sentido necessidade de interrogar os Fisher...
— Mas, longe de Filadélfia, sabemos como nos proteger durante uma investigação.
Ellie recuou um passo.
— Escute, se pensa que isto se trata de opor uma operação jurídica de uma grande cidade a um procurador de um pequeno município, pode dizer ao George...
— Diga-lhe você. Eu não sou mensageira. — Lizzie olhou para a escada. — Gostava de falar com a Katie.
Ellie soltou uma gargalhada.
— Aposto que sim. Pessoalmente, gostava de uma margarita e de ar condicionado. — Encolheu os ombros. — Quando cá veio, já sabia que não ia deixá-la chegar perto da minha cliente. E tenho a certeza de que o George vai compreender quando lhe disser que não conseguiu obter um depoimento da arguida nem do pai dela.
Lizzie arregalou os olhos.
— Como é que...?
— Vantagem interna — disse Ellie, presunçosamente.
A detetive começou a dirigir-se para a porta.
— Dá para ver que este lugar começa a influenciá-la — disse, apontando para o avental de Ellie. — Desculpe interromper a sua... hum, operação jurídica à maneira de uma grande cidade.
Ellie olhou para a porta quando esta se fechou atrás de Lizzie. A seguir, tirou o avental, dobrou-o muito bem sobre uma cadeira e foi ver como estava a sua cliente.
Levi esticou o pescoço uma vez mais, para se certificar de que Aaron e Samuel ainda estavam ocupados nos campos, depois passou a mão pelo capô curvo do carro de Lizzie Munro. Era tão vermelho quanto as maçãs que cresciam ao lado da casa da sua tia Frieda e tão liso quanto a minúscula queda de água da represa no ribeiro dos Fisher. O metal era quente ao toque. Levi fechou os olhos e imaginou-se sentado ao volante, a acelerar e a voar estrada fora.
— Já tinha visto algum destes?
A voz sobressaltou-o. Levi virou-se, com um pedido de desculpa a bailar nos lábios, e deu por si a olhar para a detetive que aparecera no dia em que tinham encontrado o bebé morto.
— Um Mustang descapotável de 1966, um dos últimos de uma raça em extinção. — Ela pôs a mão onde Levi tinha a sua segundos antes, fazendo festinhas ao carro como se este tivesse sentimentos, como se fosse um dos cavalos da quinta. — Quer ver o motor?
Ela esticou-se para dentro do carro, ligou a ignição e o capô entreabriu-se de repente. A detetive rodou o trinco e levantou-o para mostrar as suas entranhas em funcionamento.
— Um motor V8 bloco pequeno, com transmissão manual de três velocidades. Este queridinho consegue voar. — Sorriu para Levi. — Alguma vez viajou a mais de cento e sessenta quilómetros à hora?
De olhos arregalados, Levi abanou a cabeça.
— Bem, se vir algum polícia, eu também não. — Piscou-lhe o olho, e depois esticou-se novamente para dentro do carro. Este parou de imediato, deixando um ligeiríssimo vestígio de gás de escape.
A detetive sorriu para Levi.
— Sei que não é motorista... Portanto, o que é que faz por aqui?
Levi acenou em direção aos campos.
— Trabalho com o Samuel.
— Ah, sim?
— Ele é meu primo.
A detetive ergueu as sobrancelhas.
— Nesse caso, suponho que também conheça a Katie bastante bem.
— Bem, ja. Toda a gente sabe que eles se iam casar em breve. Namoram há um ano.
— Porque é que ele está a levar tanto tempo a pedi-la em casamento?
Levi encolheu os ombros.
— Por um lado, ainda não estamos na época dos casamentos. Isso é em novembro, depois da colheita. Mas, mesmo assim, só vai acontecer se o Samuel a conseguir impedir de provocar brigas.
— A Katie?
— Às vezes, deixa o Samuel completamente furioso. — Levi esticou o polegar, esperando que a detetive não visse, e tocou novamente na parte lateral do carro.
— Talvez devessem namorar com outras pessoas — sugeriu a detetive.
— Isso ainda seria pior para o Samuel. Ele anda atrás da Katie desde sempre.
A detetive acenou solenemente.
— Suponho que os pais dela também estejam à espera de ter o Samuel como genro.
— Claro.
— Ficariam desiludidos se o Samuel e a Katie acabassem?
Levi olhou-a de soslaio.
— Acabassem?
— Se eles se separassem e começassem a andar com outras pessoas. — A detetive suspirou. — Encontrassem outras pessoas a quem fazer a corte.
— Bem, a Sarah está a contar com um casamento no próximo outono. E o Aaron ia ter muita pena, com certeza.
— Mais do que ficar com pena, era capaz de se zangar. Parece um pai muito rígido.
— Não o conhece — disse Levi. — Mesmo que a Katie não se casasse com o Samuel, o Aaron nunca cortaria relações com ela, como fez com o Jacob.
— Jacob — repetiu a detetive.
— Ja, o irmão da Katie.
— Jacob. É claro. — Sorriu para Levi, abriu a porta do lado do condutor e depois embalou o motor. Para surpresa de Levi, estendeu-lhe a mão. — Meu jovem, foi um prazer inesperado. — Trocaram um aperto de mão, e depois ficou a vê-la afastar-se no seu Mustang V8, a ganhar gradualmente velocidade.
A meio da noite, Katie sentiu uma mão tapar-lhe o nariz e a boca. Batendo nas almofadas e esquecendo-se por um momento de onde estava, agarrou aquele braço e mordeu-lhe os dedos. Ouviu uma imprecação abafada e depois a mão desapareceu, para ser substituída pela pressão suave e insistente de uma boca contra a sua.
Naquele instante, o sono que a envolvia dissipou-se e ela estava no apartamento de Jacob, no seu sofá, com o corpo de Adam sobre o dela, como uma colcha. Ele afastou-se, tocando com a testa na de Katie.
— Não acredito que me mordeste desta maneira.
Ela sorriu, no escuro.
— Não acredito que me assustaste desta maneira. — Katie esfregou a mão na face dele, áspera com a barba de uma noite. — Fico contente por teres decidido ficar.
Ela viu os dentes dele a brilhar.
— E eu também — disse Adam.
Tinha adiado a ida a Nova Orleães por mais uma semana. E Katie tinha inventado uma história elaborada para ter de passar a noite em casa de Mary Esch, quando na verdade planeava ir antes para State College. Desta vez, nem mesmo a mãe sabia que ela estava em casa de Jacob.
O dedo de Adam traçou um caminho desde a sua garganta até à clavícula.
— Estive todo o dia com vontade de fazer isto. Reparaste que o teu irmão nem sequer foi à casa de banho entre as quatro e as nove da noite?
Katie deu uma risadinha.
— Tenho a certeza de que foi.
— Não. Eu sei porque a última vez que te toquei foi logo a seguir ao almoço. — Ele deitou-se de lado, dividindo a almofada com ela, tão próximo que a sua respiração entrava na boca dela.
Katie inclinou-se para a frente, apenas o suficiente para o beijar. Tomar a iniciativa era novidade para ela. Continuava a sentir-se envergonhada sempre que beijava Adam, em vez de o deixar beijá-la. Mas uma vez, depois de o ter feito, ele levara a mão dela ao peito e ela sentira o rufar rápido do seu coração. Era estranho pensar que tinha esse poder sobre ele.
Ele segurou-a contra a cama e inclinou-se sobre ela, com o cabelo caído a emaranhar-se no dela. Katie deixou o seu pensamento correr como um rio, deixou os seus braços esticarem-se e agarrarem. Sentiu as mãos de Adam a mover-se sobre os seus ombros e a descer pelos lados.
E logo a seguir estavam debaixo da sua t-shirt. A mão dele queimava como um ferro em brasa na pele dos seus seios. Abriu os olhos e começou a abanar a cabeça.
— Adam — sussurrou, puxando-lhe o cabelo. — Adam! Não podes!
Agora, tinha o coração a bater descompassado e o estômago embrulhado com medo. Os Rapazes Simples não faziam aquilo, pelo menos aqueles que ela conhecera. Pensou em Samuel Stoltzfus, com os seus olhos sérios e sorriso lento... Samuel, que a levara a casa no último domingo e corara quando lhe dera a mão para a ajudar a sair da carroça onde lhe fazia a corte.
Adam falou, e ela sentiu um tremor contra a sua própria garganta.
— Por favor, Katie. Se me deixares olhar simplesmente para ti, faço o que tu quiseres.
Demasiado assustada para se mexer, hesitou e depois cedeu. Adam levantou-lhe a t-shirt, expondo-lhe o umbigo, as costelas e as pérolas rosa dos mamilos.
— Sabes? — sussurrou ele. — Não há nada de simples em ti.
Ele voltou a puxar o tecido para baixo e tomou-a nos braços.
— Estás a tremer!
Katie enterrou o rosto no pescoço dele.
— Eu... eu nunca fiz isto.
Adam beijou-lhe a mão calejada. Isso fê-la sentir-se apreciada, como se fosse uma princesa, em vez de uma rapariga do campo. A seguir, sentou-se, libertando-a dos seus braços.
Katie franziu o sobrolho, a pensar que tinha feito alguma coisa de errado; a pensar que não tinha feito o suficiente.
— Onde vais?
— Fiz-te uma promessa. Disse que faria o que quisesses se me deixasses ver-te. Suponho que, neste momento, queiras que me vá embora.
Ela sentou-se, cruzou as pernas e esticou os braços para ele.
— Não é isso que eu quero — disse.
Tinha sido um dia longo e extenuante para Samuel, a trabalhar ao lado de Aaron nos campos. No caminho de regresso a casa, tinha visto Silver arrastar-se penosamente e não prestara atenção à conversa de Levi. Não conseguia parar de pensar em Katie, no que ela poderia ter feito. O que ele queria era uma refeição quente, um duche ainda mais quente e o doce esquecimento que o sono lhe trazia.
Em casa dos pais, desatrelou a carroça e levou o cavalo para o celeiro. Estava outra carroça no pátio; talvez alguém de visita à mãe. Cerrando os dentes ao pensar que tinha de ser educado, Samuel caminhou pesadamente até ao alpendre da entrada, onde parou por um instante, para pôr os pensamentos em ordem antes de entrar.
Estava a olhar para a estrada principal, a ver os carros cruzarem-se com os seus faróis brilhantes e motores guturais, quando a porta se abriu atrás dele. A mãe estava ali, rodeada pela suave luz amarela que vinha do interior da casa.
— Samuel! O que estás a fazer aqui? — Pegou-lhe no braço e arrastou-o para a cozinha, onde o bispo Ephram e Lucas, o diácono, estavam sentados com chávenas de café fumegante.
— Estávamos à tua espera — ralhou a mãe de Samuel. — Às vezes, acho que vens por Filadélfia para vir para casa.
Samuel sorriu, um sorriso lento e revelador.
— Ja, não consigo afastar o Silver das rampas de acesso àquelas autoestradas catitas.
Sentou-se, acenando aos dois homens, que pareciam não conseguir olhá-lo nos olhos. A mãe pediu licença e, passado um momento, Samuel ouviu os passos dela a subir a escada. Entrelaçando os dedos à sua frente, tentou agir de forma calma, mas por dentro tinha o estômago às voltas como a máquina de cultivo nos campos. Tinha ouvido contar como era ser chamado a prestar contas dos seus pecados, mas nunca vivera pessoalmente essa experiência. Pelo que via, o bispo e o diácono gostavam tanto disso como ele próprio.
O bispo pigarreou.
— Nós sabemos como é ser jovem — começou Ephram. — Há certas tentações... — A voz sumiu-se, desemaranhando-se, como os novelos de lã da mãe de Samuel.
Samuel olhou de Lucas para Ephram. Perguntou-se o que Katie lhes contara. Perguntou-se se Katie lhes teria contado alguma coisa.
Katie, por quem teria dado a vida; por quem teria sido alegremente banido por seis semanas; com quem gostaria de passar o resto dos seus dias, enchendo uma casa de crianças e servindo a Deus. Katie, que tinha tido um bebé.
Samuel baixou a cabeça. A qualquer momento, iam pedir-lhe para ir à igreja e compor as coisas e, se lho pedissem, ele iria, como esperado. Não se refutava quando o bispo nos acusava de um pecado; isso não se fazia. Mas, de repente, Samuel percebeu que aquela hesitação embaraçosa de Ephram era uma dádiva. Se Samuel falasse primeiro, se Samuel falasse agora... era possível que nunca o viessem a acusar desse pecado.
— Lucas, Ephram — disse, numa voz tão firme que não podia ser a sua. — Quero casar-me com Katie Fisher. Dir-lhes-ei isso mesmo, como direi aos pregadores e a todos os nossos irmãos, no próximo Gemeesunndaag, se assim o desejarem.
Um sorriso rasgado dividiu o aglomerado branco da barba de Ephram. Virou-se para o diácono e acenou, satisfeito.
Samuel cravou os dedos nos joelhos, até quase sentir dor.
— Quero casar-me com a Katie Fisher — repetiu. — E hei de casar. Mas têm de saber mais uma coisa, neste momento: eu não era o pai do bebé dela.
8
Ellie
O meu lugar favorito na quinta era a sala do leite. Graças à cisterna de refrigeração, mantinha-se fresca, mesmo nas alturas mais quentes do dia. Cheirava a gelado e a inverno, e as paredes brancas e o chão imaculado tornavam-na um belo sítio para uma pessoa se sentar e pensar. Depois de o inversor recarregar as baterias do meu portátil, agarrava no computador e ia para lá trabalhar.
Foi aí que Leda me encontrou quando decidiu honrar-me com uma visita, dez dias depois de eu me ter tornado residente oficial da quinta Fisher. Enquanto estava sentada a digitar, com a cabeça baixa, as primeiras coisas que entraram no meu campo de visão foram as suas sandálias Clark, coisa que não via há bastante tempo. As mulheres amish que não usavam botas calçavam os ténis mais feios que eu alguma vez vira, sem dúvida algum lote que nem mesmo o Kmart podia expor nas suas prateleiras.
— Já não era sem tempo — disse, sem me dar ao trabalho de levantar a cabeça.
— Bem, não podia ter vindo antes, e tu sabes disso — replicou Leda.
— O Aaron teria ultrapassado isso.
— Não foi por causa do Aaron, foi por tua causa. Se não te tivesse dado oportunidade de te ambientares, terias rastejado para a mala do meu carro e saído daqui clandestinamente, como uma fugitiva.
Eu resfoleguei.
— Bem, vai ficar encantada por saber que não só me ambientei, como já andei com os pés enfiados na lama, quase fui atropelada por uma carroça e estive a ponto de levar com a urina de uma novilha.
Leda encostou-se à pia em aço inoxidável, a rir.
— Aposto que a Marcia Clark não tinha pormenores desses no seu livro.
— Fabuloso. O bestseller que eu vier a escrever vai ser distribuído com o Almanaque do Agricultor apenso.
Leda sorriu.
— Ouvi dizer que a Katie está bem de saúde.
Assenti. Tínhamos ido no dia anterior ao médico, para fazer um check-up, e o obstetra tinha dito que a Katie estava a recuperar bem. Fisicamente, estava ótima. Mentalmente, bem, isso ainda estava por apurar.
Fechei o dossiê em que tinha estado a trabalhar e tirei o disco da drive.
— Não podia ter vindo em melhor altura. Adivinhe quem está prestes a tornar-se minha assistente jurídica?
Ela levantou as mãos para me dissuadir.
— Nem sequer penses nisso, minha querida! O máximo que sei sobre a lei é que a posse é nove décimos dela.
— Mas sabe usar um computador. Costumava enviar-me e-mails. — Suspirei, pensando quanto tempo levaria até poder aceder à minha conta. — Preciso que imprima um ficheiro e o entregue no Tribunal de Última Instância. Escusado será dizer que a minha impressora a laser não está a funcionar.
— Até estou surpreendida por teres um computador aqui. O Aaron ficou muito incomodado?
— O bispo tirou-lhe a decisão das mãos. Ele apoia muito a Katie.
— O Ephram é um bom homem — disse Leda baixinho, com o pensamento longe dali. — Foi muito afável comigo quando fui excomungada. O facto de ter ido ao funeral do bebé significou muito para o Aaron e a Sarah.
Desliguei o computador, tirei a ficha do inversor e pus-me em pé.
— E porque é que eles fizeram isso? Um funeral, quero eu dizer.
Leda encolheu os ombros.
— Porque o bebé era responsabilidade deles.
— Era responsabilidade da Katie.
— Há muitos amish que fazem uma cerimónia religiosa por um bebé nado-morto. — Hesitou e depois olhou para mim. — É o que diz a lápide: nado-morto. Suponho que tenha sido a única maneira de o Aaron e a Sarah conseguirem suportar o que aconteceu.
Pensei numa rapariga que podia ter sido alvo de violência sexual e que, depois disso, bloqueado completamente o incidente e as suas consequências, incluindo uma gravidez.
— Segundo o médico-legista, aquele bebé não nasceu morto, Leda.
— Segundo o procurador, a Katie matou o bebé. Também não acredito nisso.
Arrastei os ténis pelo chão de cimento da sala do leite, pensando até que ponto devia confiar nela.
— Pode tê-lo feito — disse eu, com toda a cautela. — Pedi a um psiquiatra que venha cá falar com ela.
— Um psiquiatra? — disse Leda, surpreendida.
— A Katie nega não apenas a gravidez e o parto, mas também a conceção. Começo a perguntar-me se terá sido violada.
— O Samuel é tão bom rapaz, ele...
— O bebé não era do Samuel. Ele nunca fez sexo com a Katie. — Avancei um passo. — Escute, isto não tem nada a ver com a defesa. Na verdade, se a Katie foi violada, isso dá-lhe uma motivação emocional para se querer livrar do recém-nascido. Acho apenas que a Katie pode precisar de alguém com quem falar, alguém mais qualificado do que eu. Tanto quanto sei, a Katie pode estar em contacto com o tipo todos os dias, e só Deus sabe como isso a estará a afetar.
Leda ficou calada por um instante.
— Talvez o homem não fosse amish — disse, finalmente.
Revirei os olhos.
— Porque é que não havia de ser? O Samuel pode ser diferente, mas isso não significa que não haja por aí um rapaz amish que se tenha deixado levar pelo calor do momento e obrigado a Katie a fazer algo que ela não queria. Além disso, contam-se pelos dedos da mão os ingleses com que a Katie falou desde que aqui estou.
— Desde que aqui estás — repetiu Leda.
Leda estava a mexer-se desconfortavelmente na cadeira, com as faces ruborizadas, às manchas. Claramente, o facto de estar na quinta tinha-me turvado o pensamento, caso contrário teria percebido que, com uma tia excomungada, Katie teria provavelmente mais acesso a pessoas mundanas do que a maioria das raparigas amish.
— O que é que não me contou? — indaguei calmamente.
— Ela vai uma vez por mês a State College, de comboio. À universidade. A Sarah sabe disso, mas elas dizem ao Aaron que a Katie me vai visitar. Sou o pretexto e, como o Aaron não vai aparecer em minha casa à procura da filha, sou um bom pretexto.
— O que há na universidade?
Leda expirou devagarinho.
— O irmão.
— Como é que espera que eu defenda a Katie quando ninguém está disposto a cooperar? — explodi. — Meu Deus, Leda! Estou aqui há quase duas semanas e ninguém se deu ao trabalho de mencionar que a Katie tem um irmão que visita uma vez por mês?
— Tenho a certeza de que não foi intencional — apressou-se Leda a explicar. — o Jacob foi excomungado, como eu, porque quis prosseguir os estudos. O Aaron optou pela via mais ética e disse que, se o Jacob abandonasse a Igreja, deixava de ser seu filho. O nome dele não é mencionado nesta casa.
— E a Sarah?
— A Sarah é uma esposa amish. Submete-se aos desejos do marido. Não vê o Jacob desde que ele se foi embora, há seis anos, mas envia a Katie em segredo como sua emissária, uma vez por mês. — Leda deu um salto quando a misturadora automática começou a trabalhar, mexendo o leite na cisterna. Falou mais alto para se sobrepor ao zunido da bateria que a alimentava. — Depois da Hannah, não pôde ter mais filhos. E já tinha tido uma série de abortos entre o Jacob e a Katie. Por isso, não suportou a ideia de perder o Jacob, como perdeu a Hannah. Portanto, indiretamente, não perdeu.
Pensei em Katie a apanhar o comboio sozinha até State College, com a sua kapp, o vestido preso com alfinetes e o avental, atraindo os olhares. Imaginei a sua inocência inexperiente a iluminar a sala numa festa de estudantes. Imaginei-a a tentar livrar-se das mãos ávidas de um universitário, que aos dezanove anos sabia mais sobre o comportamento humano do que Katie aprenderia em toda a sua vida. Perguntei-me se Jacob saberia que Katie tinha estado grávida; se saberia dizer-me quem era o pai.
— Preciso de falar com ele — disse, pensando se seria mais rápido ir de carro ou apanhar o comboio.
A seguir, gemi. Não podia ir, pois Coop ia chegar naquela tarde para falar com Katie.
Se tinha aprendido alguma coisa em dez dias, era que o mundo amish era lento. O trabalho era meticuloso, viajar levava uma eternidade, e até os cânticos religiosos eram criteriosos e lúgubres. As Pessoas Simples não olhavam para o relógio vinte vezes por dia. As Pessoas Simples não tinham pressa; levavam o tempo que fosse preciso para fazer as suas tarefas.
Jacob Fisher teria de esperar.
— Porque não me disseste que tinhas um irmão?
As mãos de Katie imobilizaram-se sobre a mangueira que estava a ligar à torneira lá de fora. Desviou o olhar e, se não a conhecesse, teria pensado que ela estava a decidir se havia de me mentir ou não.
— Eu tive um irmão — disse.
— Corre o rumor de que está vivo e bem de saúde, a morar em State College. — Atei as fitas do avental que pedira a Sarah, tirei os ténis e calcei as botas de borracha que ela também me emprestara. Não ia ganhar nenhum prémio de moda, mas também estava a preparar-me para lavar novilhas à mangueirada. — Também corre o rumor de que o visitas de vez em quando.
Katie abriu a torneira, depois testou a agulheta da mangueira.
— Já não falamos do Jacob aqui em casa. O meu pai não gosta disso.
— Eu não sou o teu pai. — Katie começou a caminhar pelo campo com a mangueira, e eu fui atrás dela, a enxotar um bando de mosquitos que andavam à volta da minha cara.
— Não te custa visitar o Jacob às escondidas?
— Ele leva-me ao cinema. E comprou-me umas calças de ganga para eu usar. Não custa porque, quando estou com ele, não sou a Katie Fisher.
Parei de andar.
— E quem és tu?
Ela encolheu os ombros.
— Uma pessoa qualquer. Uma rapariga como todas as outras que há no mundo.
— Deve ter sido muito desagradável quando o teu pai o expulsou de casa.
Katie parou novamente a mangueira.
— Já era desagradável antes disso, quando o Jacob mentia sobre os seus estudos. Devia ter confessado na igreja.
— Ah! — disse eu. — Tal como tu vais fazer. Mesmo estando inocente.
Os mosquitos pairaram em arco sobre Katie, como um halo.
— Tu não nos compreendes — acusou. — Lá porque vives aqui há dez dias, não significa que saibas como é ser Simples.
— Então, faz-me compreender — disse eu, virando-me de modo que ela tivesse de parar ou contornar-me.
— Para vocês, tem tudo a ver com quem sobressai mais. Quem é o mais inteligente, o mais rico, o melhor. Para nós, tem tudo a ver com passar despercebido. Como os retalhos que compõem uma colcha. Vistos um por um, não somos grande coisa, mas, se nos puserem todos juntos, somos uma maravilha.
— E o Jacob?
Ela sorriu nostalgicamente.
— O Jacob era como uma linha preta num fundo branco. Tomou a decisão de se ir embora.
— Sentes saudades dele?
Katie acenou afirmativamente.
— Muitas. Não o vejo há algum tempo.
Perante isso, virei-me.
— Porquê?
— O verão aqui é muito atarefado. Precisavam de mim em casa.
O mais provável, pensei, era ela não ser capaz de esconder a barriga de grávida num par de Levi’s.
— O Jacob sabia do bebé?
Katie continuou a andar, puxando pela mangueira.
— Foi alguém que lá conheceste, Katie? Algum universitário, algum amigo do Jacob?
Ela cerrou teimosamente os maxilares e, por fim, chegámos ao cercado onde estavam as vacas de um ano. Em dias assim tão quentes, eram borrifadas com água para ficarem mais confortáveis. Katie girou a agulheta, deixando a água cair sobre os seus pés nus.
— Posso perguntar-te uma coisa, Ellie?
— Claro.
— Porque é que não falas sobre a tua família? Como é que te mudaste para aqui e nem lhes fizeste um telefonema a dizer onde estás?
Vi as vacas a deambular pelos campos, baixando a cabeça para a erva fresca.
— A minha mãe morreu, e há anos que não falo com o meu pai. — Não desde que me tornei advogada de defesa e ele me acusou de vender os meus princípios morais por dinheiro. — Nunca me casei, e eu e o meu namorado terminámos recentemente a nossa relação.
— Porquê?
— Desinteressámo-nos um do outro — disse eu, testando a resposta nos meus lábios. — Não é de estranhar, ao fim de oito anos.
— Como é que é possível namorarem há oito anos e não se terem casado?
Como descrever as complexidades do namoro na década de 1990 a uma rapariga amish?
— Bem, começámos por pensar que estávamos bem um para o outro. Levámos este tempo todo para descobrir que não era assim.
— Oito anos — escarneceu. — Já podiam ter um rancho de filhos, por esta altura.
Ao pensar em todo o tempo desperdiçado, senti a garganta fechar-se com lágrimas. Katie enfiou o dedo do pé na pequena poça de lama que se estava a formar debaixo da agulheta da mangueira, claramente embaraçada por me ter perturbado.
— Deves sentir saudades dele.
— Não tanto do Stephen — redargui suavemente. — Só do rancho de filhos.
Esperei que Katie fizesse a ligação, para dizer alguma coisa sobre as suas próprias circunstâncias em relação às minhas, mas ela voltou a surpreender-me.
— Sabes no que reparei quando estava com o Jacob? No vosso mundo, as pessoas conseguem contactar umas com as outras num instante. Têm o telefone, o fax, e pelo computador conseguem falar com alguém pelo mundo fora. Têm pessoas a contar os seus segredos em programas de televisão, e revistas que publicam fotografias de estrelas de cinema a tentarem esconder-se em suas casas. Têm todas essas ligações, mas toda a gente parece tão sozinha...
Precisamente quando eu ia protestar, Katie entregou-me a mangueira e saltou a vedação. Pegando novamente na agulheta, virou a água para cima das vacas, que mugiram e tentaram fugir-lhe. A seguir, com um sorriso, virou a mangueira para mim.
— Ora, sua pequena...! — Ensopada da cabeça aos pés, passei a vedação e comecei a correr atrás dela. As vacas meteram-se entre nós, andando em círculos. Katie guinchou quando eu agarrei finalmente na mangueira e a deixei encharcada.
— Toma lá! — disse eu a rir, e depois escorreguei na erva molhada e caí de rabo numa maré de lama.
— Desculpem, estou à procura de Ellie Hathaway.
Ao ouvir a voz grave, Katie e eu virámo-nos, com a agulheta que eu segurava a molhar os pés de quem falara, antes que ele pudesse desviar-se.
Levantei-me, limpando a lama das mãos, e sorri timidamente para o homem que estava do outro lado da cerca, um homem que olhava para as minhas botas e avental, e para o esterco que me cobria.
— Coop! — exclamei. — Há quanto tempo...
Passados dez minutos, quando desci fresca, depois de um duche, encontrei Coop sentado no alpendre com Katie e Sarah. Havia um prato de bolachas em cima da mesa de vime e Coop tinha um copo de água gelada na mão. Levantou-se assim que me viu.
— Continuas um cavalheiro — disse eu, sorrindo.
Ele inclinou-se para a frente, beijou-me na face e, para minha surpresa, veio-me à cabeça uma centena de memórias: a forma como o seu cabelo cheirava sempre a fumo de lenha e a maçãs, a curva do seu queixo, a marca dos seus dedos sobre as minhas costas. Desorientada, recuei e fiz o possível por não parecer desconfortável.
— Estas senhoras tiveram a amabilidade de me fazer companhia — disse ele, e Katie e Sarah juntaram as cabeças, a segredar como meninas de escola.
Sarah levantou-se.
— Deixamo-la com a sua visita — disse, acenando em direção ao Coop enquanto voltava para dentro de casa. Katie foi para a horta, e eu sentei-me. Passados vinte anos, Coop amadurecera. As suas feições — um tudo-nada afiladas demais na universidade — tinham arredondado com o tempo, burilando-lhe a pele com uma cicatriz aqui, uma ruga de expressão ali. O seu cabelo preto, que outrora lhe dava pelos ombros, estava muito bem aparado e salpicado de grisalho. Os olhos continuavam daquele verde claro que só tinha visto duas vezes na vida: em Coop, e uma vez da janela de um avião, quando estava a viajar para as Caraíbas com Stephen.
— Envelheceste bem — disse.
Ele riu-se.
— Até parece que sou uma garrafa de vinho! — Recostando-se na cadeira, sorriu para mim. — Tu também estás muito bem. Sobretudo em comparação com o que estavas há uns quinze minutos. Já tinha ouvido dizer que a advocacia de defesa era um negócio sujo, mas nunca tinha levado isso à letra.
— Bem, é uma espécie de técnica de representação. Os Amish não confiam muito nos forasteiros. Quando me pareço com eles e trabalho com eles, abrem-se mais.
— Deve ser difícil estar aqui retida, longe de casa.
— Quem pergunta? John Joseph Cooper, o psiquiatra?
Ele ia dizer qualquer coisa, mas depois abanou a cabeça.
— Não. Apenas Coop, o amigo.
Encolhi os ombros, desviando deliberadamente o olhar da sua expressão cautelosa.
— Sinto falta de algumas coisas: da minha máquina de café, por exemplo. De meter uma velocidade mais baixa no carro. Dos Ficheiros Secretos, do Serviço de Urgência.
— E não sentes falta do Stephen?
Tinha-me esquecido que, da última vez que vira Coop, estávamos com os nossos companheiros. Encontrámo-nos num átrio, durante o intervalo de um espetáculo dado pela Orquestra Sinfónica de Filadélfia. Embora tivéssemos contactado ocasionalmente por razões profissionais, nunca tinha conhecido a mulher dele, que era pequena e delicada, para além de loura, e encaixava tão bem ao lado dele quanto a peça de um puzzle. Mesmo ao fim de todos aqueles anos, o simples facto de a ver foi como um murro inesperado.
— O Stephen já não faz parte da minha vida — confessei.
Coop olhou-me por um momento antes de dizer:
— Lamento saber disso.
Eu era adulta; conseguia ultrapassar aquilo. Respirando fundo, esbocei um sorriso e bati com as mãos nos joelhos.
— Bem, não vieste de tão longe para falar comigo...
— Mas teria vindo, Ellie — respondeu, em voz suave. — Perdoei-te há muito tempo.
Teria sido fácil fingir que não o tinha ouvido e lançar-me simplesmente numa discussão sobre Katie. Mas não podemos falar com alguém que é em parte responsável por fazer de nós a pessoa que hoje somos sem desenterrar um pouco dessa história. Coop podia ter-me perdoado, mas eu não.
Ele pigarreou.
— Deixa-me dizer-te o que descobri sobre a Katie. — Procurou dentro da pasta e tirou um bloco de notas coberto com a sua letra praticamente ilegível. — Há dois tipos de explicações psiquiátricas para o neonaticídio. A atitude minoritária é que as mulheres que matam os seus recém-nascidos entraram num estado dissociativo que perdura ao longo da gravidez.
— Estado dissociativo?
— Um estado de intensa concentração em que uma pessoa bloqueia tudo, menos aquilo que está a fazer. Nesses casos, as mulheres fraturam uma parte da sua consciência, de forma a viverem num mundo de fantasia em que não estão grávidas. Quando o parto ocorre finalmente, as mulheres não estão minimamente preparadas. Dissociaram-se da realidade do acontecimento, sofrendo lapsos de memória. Algumas mulheres até se tornam temporariamente psicóticas, quando o choque do parto destrói a barreira da negação. Em qualquer dos casos, a desculpa é que não estão mentalmente presentes no momento do crime, por isso não podem ser legalmente responsabilizadas pelos seus atos.
— Isso parece-me muito Sybil.
Coop sorriu e entregou-me uma lista de nomes.
— Aqui tens alguns psiquiatras que testemunharam nos últimos anos, utilizando essa abordagem mais favorável. Verás que são psiquiatras clínicos, e não forenses. Isso é porque a maior parte dos psiquiatras forenses que lidam com neonaticídios diz que as mulheres não estão num estado dissociativo, mas apenas alheadas da gravidez. Eles pensam que a dissociação pode ocorrer no momento do parto. Além disso, até eu te diria que algum grau de dissociação é inteiramente normal, dada a dor do trabalho de parto. É como quando te cortas a preparar legumes e ficas a olhar por um segundo e dizes: «Eh lá, este é bem fundo!» Mas não vais cortar a mão para eliminar o problema.
Assenti e perguntei:
— Nesse caso, porque é que matam os bebés?
— Porque não têm ligação emocional com eles. É como expulsar um cálculo renal. No momento do homicídio, não perdem o contacto com a realidade; estão apenas assustadas, envergonhadas e não são capazes de enfrentar um parto ilegítimo.
— Por outras palavras, são claramente culpadas — disse eu, terminantemente.
Coop encolheu os ombros.
— Não preciso de te dizer como é que as defesas que alegam insanidade mental são recebidas pelo júri. — Entregou-me outra lista, esta três vezes maior do que a primeira. — Estes psiquiatras defenderam a opinião dominante. Mas cada caso é um caso. Se a Katie continua a recusar admitir o que aconteceu face a uma acusação de homicídio e às provas clínicas da gravidez, pode haver aí mais alguma coisa que está a contribuir para criar esse mecanismo de defesa.
— Queria falar contigo sobre isso. Há alguma maneira de descobrir se foi violada?
Coop assobiou.
— Essa seria uma razão muito forte para se querer livrar do recém-nascido.
— Pois. Só que gostava de ser eu a descobrir, em vez do procurador.
— Vai ser difícil, tantos meses depois do sucedido, mas terei isso em conta quando falar com ela. — Franziu o sobrolho. — Há também outra possibilidade, que é a de ela estar a mentir desde o início...
— Coop, sou advogada de defesa. O meu detetor de petas é calibrado diariamente. Eu saberia, se ela estivesse a mentir.
— Podes não saber, El. Tens de admitir que estás demasiado envolvida, vivendo aqui, como vives.
— Mentir não é característico dos Amish.
— O neonaticídio também não.
Pensei na forma como Katie corava e gaguejava quando era confrontada com alguma coisa de que não queria falar. E depois pensei na sua atitude sempre que negava ter tido um bebé: o queixo espetado, os olhos brilhantes e fixos em mim.
— Na cabeça dela, aquele bebé nunca aconteceu — disse eu, calmamente.
Coop ficou a pensar naquilo.
— Talvez não na cabeça dela — replicou —, mas o bebé esteve aqui.
Katie cerrou os punhos no colo, como se tivesse sido condenada a uma execução.
— O doutor Cooper só te quer fazer algumas perguntas — expliquei. — Podes ficar tranquila.
Coop sorriu-lhe. Estávamos todos sentados junto ao ribeiro, suficientemente longe de casa para termos privacidade. Ele tirou um gravador do bolso e eu apressei-me a chamar-lhe a atenção e a abanar a cabeça. Imperturbável, Coop pegou no seu bloco de notas.
— Katie, quero que saibas que nada do que disseres sairá daqui. Não estou cá para alimentar boatos a teu respeito, mas sim para te ajudar a perceber alguns dos sentimentos que deves estar a experienciar.
Ela olhou para mim e, depois, novamente para Coop.
Ele sorriu.
— Então, como te sentes?
— Sinto-me bem — disse ela, cautelosa. — Suficientemente bem para não ter de falar consigo.
— Percebo porque é que reages assim — respondeu o Coop em tom amável. — Há muita gente que faz o mesmo, porque nunca falou com um psiquiatra. Mas depois descobrem que, às vezes, é mais fácil conversar sobre assuntos pessoais com um desconhecido do que com um familiar.
Eu sabia que Coop estava a ver o mesmo que eu: a forma como a espinha de Katie deixara de estar tão rígida e como os seus punhos se haviam descerrado no seu colo. Enquanto a voz dele continuava a envolvê-la, olhos nos olhos, perguntei-me como é que alguém tinha hipótese de esconder-lhe fosse o que fosse. Coop tinha uma afabilidade, um encanto natural, que nos fazia sentir de imediato que tínhamos uma ligação íntima com ele.
Mas a verdade é que eu a tinha tido.
Centrando novamente a atenção na minha cliente, escutei a pergunta de Coop:
— Podes falar-me sobre a tua relação com os teus pais?
Katie olhou para mim como se não compreendesse. Aquilo que era uma pergunta perfeitamente normal para uma entrevista clínica parecia uma tolice para os Amish.
— São meus pais — disse ela com alguma hesitação.
— Passas muito tempo com eles?
— Ja, no campo ou na cozinha, às refeições, durante as orações. — Ela pestanejou a olhar para Coop. — Estou com eles o tempo todo.
— Tens uma relação próxima com a tua mãe?
Katie acenou afirmativamente.
— Ela só me tem a mim.
— Alguma vez tiveste convulsões, Katie, ou sofreste algum traumatismo craniano?
— Não.
— E dores de barriga muito fortes?
— Uma vez. — Katie sorriu. — Depois de o meu irmão me ter desafiado a comer dez maçãs que não estavam maduras.
— Mas não... recentemente? — Ela abanou a cabeça. — E perderes a noção do tempo? Aperceberes-te, de repente, que se passaram horas, sem que te consigas lembrar de onde estiveste ou do que fizeste?
Perante isto, inexplicavelmente, Katie voltou a corar e disse que não.
— Alguma vez tiveste alucinações? Viste coisas que não estavam realmente ali?
— Às vezes, vejo a minha irmã...
— Que morreu — interrompi.
— Ela afogou-se no lago — explicou Katie. — Quando vou lá, ela também aparece.
Coop nem sequer pestanejou, como se ver fantasmas fosse a coisa mais natural da vida.
— E ela fala contigo? Diz-te para fazer alguma coisa?
— Não. Limita-se a patinar.
— Incomoda-te o facto de a veres?
— Oh, não!
— Já estiveste muito doente? A ponto de teres de ir para o hospital?
— Não. Pelo menos, até esta última vez.
— Vamos falar sobre isso — disse Coop. — Sabes por que razão foste internada?
As faces de Katie fizeram-se vermelhas e ela cravou os olhos no colo.
— Foi por causa de uma doença de mulher.
— Os médicos disseram que tiveste um bebé.
— Estão enganados — disse Katie. — Não tive.
Coop deixou passar a negação.
— Que idade tinhas quando ficaste menstruada, Katie?
— Doze.
— A tua mãe explicou-te o que estava a acontecer?
— Bem, um pouco. Mas eu sabia. Já tinha visto os animais e essas coisas.
— Tu e os teus pais falam sobre sexo?
Katie arregalou os olhos, absolutamente escandalizada.
— Claro que não! Não está certo, pelo menos até a filha estar casada.
— Quem diz que não está certo?
— O Senhor — respondeu ela, prontamente. — A Igreja. Os meus pais.
— Achas que os teus pais iam ficar aborrecidos se fosses sexualmente ativa?
— Mas não sou.
— Compreendo. Mas, se fosses, o que achas que aconteceria?
— Ficariam muito desiludidos — replicou Katie baixinho. — E eu seria alvo de bann.
— O que é isso?
— É quando se viola uma regra e o bispo descobre. Temos de confessar e depois somos banidos, pelo menos durante um tempo. — A sua voz transformou-se num sussurro. — Somos isolados, só isso.
Pela primeira vez, vi aquilo pelos olhos de Katie: o estigma de ser marginalizado numa comunidade em que a uniformidade era tão valorizada.
— Se estivesses em apuros, Katie, pedirias ajuda à tua mãe ou ao teu pai?
— Rezava — disse ela. — E o que acontecesse seria a vontade do Senhor.
— Alguma vez bebeste álcool ou tomaste drogas?
Para meu espanto, Katie acenou afirmativamente.
— Bebi duas cervejas e schnaps de hortelã-pimenta quando estava com o meu gangue.
— O teu gangue?
— Outros jovens que são meus amigos. Chamam-nos os «Sparkies». A maior parte dos Miúdos Simples da minha idade juntam-se a um grupo quando entram nos seus Rumspringa.
— Rumspringa?
— Os anos da adolescência. Quando temos catorze ou quinze anos.
Coop olhou para mim, mas eu ergui as sobrancelhas. Era a primeira vez que ouvia falar naquilo.
— E, então, o que é que te levou a juntares-te aos «Sparkies»?
— Eram o grupo certo para mim. Não eram demasiado doidos, mas conseguiam ser divertidos. Temos uns quantos tipos que compram cerveja no Turkey Hill e fazem corridas de carroça depois da meia-noite na estrada 340, mas a maioria desses miúdos mais rebeldes junta-se antes aos «Shotguns» ou aos «Happy Jacks». Fazem festas, conduzem carros à vista de toda a gente e tornam-se verdadeiramente Sod, isto é, mundanos. Juntamo-nos nas noites de domingo e cantamos sobretudo hinos. Mas, às vezes — confessou ela timidamente —, fazemos outras coisas.
— Por exemplo?
— Bebemos. Dançamos ao som de música. Bem, eu costumava fazer isso, mas agora venho-me embora depois dos cânticos, quando as coisas começam a ficar um bocadinho descontroladas.
— Porquê?
Katie cerrou os punhos na relva.
— Agora, sou batizada.
Coop ergueu as sobrancelhas.
— Não foste batizada em bebé?
— Não, nós somos batizados mais velhos. Para mim, foi no ano passado. Fazemos a escolha de estar diante de Deus e concordamos em viver segundo a Ordnung, as tais regras de que eu estava a falar.
— Quando participavas nesses cantares, e bebias e dançavas, os teus pais sabiam disso?
Katie olhou em direção à casa.
— Todos os pais sabem que os filhos andam a tramar alguma; mas fazem vista grossa e só esperam que não seja demasiado perigoso.
— Porque é que hão de aceitar esse tipo de comportamento, mas ficar desiludidos se houver atividade sexual?
— Porque é pecado. As cantorias são como uma breve incursão no mundo dos ingleses. As pessoas acreditam que, se os filhos tiverem oportunidade de experimentar isso uma vez ou duas, acabarão por desistir das coisas mundanas e por assumir a responsabilidade de viverem como Gente Simples.
— E é o que acontece com a maioria?
— Ja.
— Porquê?
— Todos os nossos amigos são Simples. Assim como a nossa família. Se não se juntarem à Igreja, não serão como as outras pessoas. Além disso, têm de ser batizados, se quiserem casar-se.
— E tu queres casar?
— Quem não quer? — replicou Katie.
Coop sorriu.
— Bem, a Ellie, por exemplo — brincou baixinho, mas suficientemente alto para eu ouvir. Fiquei tão absorta, a ponderar naquelas palavras e no seu significado, que quase não ouvi a pergunta que ele fez a seguir.
— Alguma vez beijaste um rapaz, Katie?
— Ja — disse ela, voltando a corar. — Samuel. E antes dele, John Beiler.
— O Samuel é o teu namorado?
Era, pensei.
— Tu e o teu namorado alguma vez tiveram relações sexuais?
— Não!
Coop hesitou.
— Ele beija-te em mais algum lado, além dos lábios?
— No pescoço — murmurou ela. — Na testa.
— E nos seios, Katie? Na barriga?
Katie tirou os dedos dos pés de debaixo da saia e mergulhou-os um por um na água do ribeiro.
— O Samuel não faria uma coisa dessas.
— Alguma vez deixaste outra pessoa beijar-te ou tocar-te? — insistiu Coop, gentilmente. Como ela não respondeu, suavizou ainda mais a voz. — Queres ter filhos um dia, Katie?
Ela levantou o rosto, com o sol a brilhar-lhe nas faces e nos olhos.
— Oh, sim! — murmurou. — Mais do que tudo.
Assim que Katie ficou suficientemente longe para não nos ouvir, apertei com Coop.
— O que achas?
Ele deitou-se de costas na margem relvada.
— Que já não estou no Kansas. Preciso de um curso intensivo na vida amish antes de prosseguir com a minha avaliação.
— Quando encontrares uma universidade com horário pós-laboral, importas-te de me inscrever? — Suspirei. — Ela disse que quer ter filhos.
— Tal como a maior parte das mulheres que cometem neonaticídio. Só não queria nesta altura. — Hesitou. — Mas também é possível que, para ela, aquele bebé nunca tenha existido.
— Então, não acreditas que esteja a mentir. Pensas que ela bloqueou a memória de ter tido um bebé.
Coop ficou calado por um instante.
— Quem me dera poder dar-te a certeza. O público em geral parece acreditar que os psiquiatras sabem dizer melhor do que qualquer outra pessoa se alguém está a mentir com quantos dentes tem, mas sabes que mais, El? É um mito. É demasiado cedo para formar uma opinião. Se está a mentir, é muito boa a fazê-lo, e não creio que tenha feito parte da sua educação.
— Bem, chegaste a alguma conclusão?
Ele encolheu os ombros.
— Creio que é seguro dizer que não está psicótica neste momento.
— Apesar dos fantasmas?
— Há uma grande diferença entre um produto da imaginação e um delírio psicótico. Se a irmã aparecesse e lhe dissesse para matar o bebé ou que o Diabo morava debaixo do silo, isso seria outra história.
— Não quero saber se ela está psicótica, agora. E quando deu à luz?
Coop apertou a cana do nariz entre o polegar e o indicador.
— É óbvio que está a bloquear a gravidez e o ato que a produziu, mas não precisavas de mim para te dizer isso.
— E quanto a uma eventual violação? — perguntei.
— Isso também é difícil de dizer. Ela fica tão enervada quando falamos de sexo que eu não consigo perceber se isso se deve à sua formação religiosa ou ao facto de ter sido violentada. O simples facto de ter feito sexo consensual com alguém não amish pode ser suficiente para erguer uma barreira na cabeça da Katie. Tu viste o medo que ela tem de ser banida. Se tivesse um relacionamento com um forasteiro, bem podia dizer adeus à sua vida amish.
Já ali estava há tempo suficiente para saber que não era bem assim. A pessoa era sempre recebida de volta, desde que admitisse os seus pecados.
— Na verdade, ela podia confessar e voltar para a Igreja.
— Infelizmente, o simples facto de os outros a perdoarem não significa que ela esquecesse o sucedido. Carregaria isso consigo para o resto da vida. — Coop virou-se para mim. — Dada a forma como foi educada, não é de estranhar que a mente dela faça o possível por bloquear a memória do que aconteceu.
Deitei-me de costas, ao lado dele.
— Ela diz-me que não matou o bebé. Diz-me que não teve o bebé. Mas há provas de que o teve...
— E se mentiu em relação a uma coisa — concluiu Coop por mim —, provavelmente mentiu em relação à outra. No entanto, mentir pressupõe conhecimento consciente. Se ela estiver a dissociar, não pode ser responsabilizada por não saber a verdade.
Soerguendo-me num cotovelo, sorri tristemente.
— Mas pode ser responsabilizada por ter cometido homicídio?
— Isso — disse Cooper — depende de um júri. — Puxou-me para cima. — Gostava de continuar a falar com ela. Fazê-la recordar a noite anterior ao parto.
— Oh, não tens de fazer isso! Quer dizer, é tremendamente gentil da tua parte e vai muito para além das tuas obrigações, mas deves ter coisas mais importantes para fazer.
— Eu disse que te ajudava, El, e ainda não fiz propriamente um trabalho assim tão bom. Meto-me no carro à tardinha e venho falar com ela, depois de sair do consultório.
— E, entretanto, a tua mulher fica em casa sentada, a jantar sozinha. Não foste tu que me disseste que são os próprios psiquiatras que não conseguem manter os seus relacionamentos?
Coop acenou.
— Pois. Provavelmente, foi por isso que me divorciei há cerca de um ano.
Virei-me para ele, com a boca seca.
— Ai, sim?
Ele olhou para os sapatos e para o ribeiro, e eu perguntei-me por que razão era tão fácil falar sobre Katie e tão difícil falar de nós mesmos.
— Coop, lamento.
Ele esticou o braço para a casca de uma árvore e tirou de lá uma lagarta néon, que se lhe enroscou na palma da mão.
— Todos nós cometemos erros — disse Coop docemente. Pegou-me na mão e levantou-a ao lado da sua, precisamente quando a lagarta se começou a mexer: a andar, a esticar-se, como uma pequena ponte brilhante entre nós.
Levei meia hora a convencer Sarah de que, se me ausentasse durante a manhã, deixando Katie à sua guarda, não estaria a violar nenhuma lei e que era extremamente improvável que algum representante do tribunal aparecesse por lá e desse conta de que eu não estava por perto.
— Escute — disse eu finalmente —, se quer que monte uma estratégia de defesa da Katie, preciso de flexibilidade.
— O doutor Cooper veio de carro até cá — resmungou Sarah.
— O doutor Cooper não tem de trazer consigo equipamento de laboratório no valor de meio milhão de dólares — expliquei. Na verdade, tinha-me esforçado tanto por conseguir as duas horas de que precisava para me encontrar com o doutor Owen Zeigler, que me senti ligeiramente desapontada ao perceber que não me apetecia nada estar no laboratório de patologia neonatal do Centro Médico da Universidade de Pensilvânia. Não parava de pensar em crianças doentes, crianças mortas, crianças de risco nascidas de mães com mais de quarenta anos, e a única coisa que queria era voltar a correr para a quinta dos Fisher.
Owen, um homem com quem eu já trabalhara uma vez, tinha cara de lua cheia, cabeça calva e reluzente e um tronco redondo que equilibrava sobre os joelhos sempre que subia a um dos bancos altos em frente dos microscópios.
— A cultura da placenta mostrou flora mista, incluindo difteroides — disse ele. — O que basicamente quer dizer que havia excrementos por perto.
— Está a dizer que isso pode ter afetado os resultados?
— Não. É perfeitamente normal, considerando que a placenta estava num celeiro.
Semicerrei os olhos.
— Então, diga-me alguma coisa que não seja normal.
— Bem, a morte do neonato. Parece-me que nasceu com vida — disse ele, e as minhas esperanças caíram a pique. — Com base no teste hidrostático, o ar chegou aos alvéolos.
— Fale inglês, Owen.
O patologista suspirou.
— O bebé respirou.
— Nesse caso, é uma conclusão definitiva?
— É possível dizer se um recém-nascido, mesmo prematuro, respirou ar ou apenas inalou fluido, quando olhamos para os alvéolos pulmonares. Estes ficam arredondados. É mais conclusivo do que o próprio teste hidrostático, porque os pulmões podem flutuar se tiver sido tentada respiração artificial.
— Sim, claro! — murmurei. — Ela fez-lhe respiração boca a boca e a seguir matou-o.
— Nunca se sabe — disse Owen.
— Nesse caso, o que o fez parar de respirar?
— O médico-legista diz que foi sufocado. Mas não é conclusivo.
Subi para um banco, ao lado do patologista.
— Conte-me mais.
— Há petéquias nos pulmões, o que sugere asfixia, mas podem ter-se formado antes ou depois da morte. Quanto às pisaduras nos lábios do neonato, isso significa apenas que foram comprimidos com força contra alguma coisa. Tanto quanto sabemos, essa coisa pode ter sido a clavícula da mãe. Na verdade, se o recém-nascido tiver sido sufocado com algo macio, como a camisa em que estava embrulhado ou a mão da mãe, os achados são praticamente impossíveis de distinguir da síndrome de morte súbita.
Esticou-se e tirou-me da mão a lamela com que eu estava distraidamente a brincar.
— Resumindo: o bebé pode muito bem ter morrido sem ninguém lhe pôr a mão em cima. Com trinta e duas semanas, é um neonato viável, mas por pouco.
Franzi o sobrolho.
— A mãe teria sabido se o bebé estivesse a morrer mesmo à sua frente?
— Depende. Se estivesse a asfixiar com o muco, podia ter ouvido. Se estivesse a sufocar, tê-lo-ia visto a ofegar e a ficar azul. — Desligou o microscópio e enfiou a lamela, claramente identificada como BEBÉ FISHER, numa pequena caixa que continha outras.
Tentei imaginar Katie paralisada pelo medo e pela consciência daquele bebé prematuro e minúsculo a esforçar-se por respirar. Imaginei-a a observá-lo, de olhos arregalados, demasiado espantada para intervir, e depois a aperceber-se tarde demais do que tinha acontecido. Vi-a a embrulhá-lo numa camisa e a tentar escondê-lo, antes que alguém conseguisse descobrir o que tinha corrido mal.
Imaginei-a especada num tribunal, a ser julgada por não ter procurado cuidados médicos adequados depois de dar à luz o bebé. Homicídio por negligência e não homicídio qualificado. Mas, mesmo assim, um crime; um crime que acarretava uma pena de prisão.
Estendendo a mão a Owen, sorri.
— De qualquer forma, obrigada — disse.
No sábado à noite, subi para o quarto por volta das dez horas e corri os estores verdes do lado leste. Tomei um duche e pensei no Coop, perguntei-me o que estaria a fazer... A ver um filme? A comer num restaurante de cinco estrelas? Estava a pensar se ele ainda teria o hábito de dormir de boxers e t-shirt quando a Katie entrou no quarto.
— O que é que se passa contigo? — perguntou ela, perscrutando-me o rosto.
— Nada.
Katie encolheu os ombros e depois bocejou.
— Caramba, estou cansada — disse, mas o brilho dos seus olhos e o seu passo sacudido contradiziam completamente as palavras. Quando ela entrou na casa de banho, desliguei o candeeiro e enfiei-me na cama, deixando os meus olhos adaptar-se à escuridão. Katie voltou, sentou-se na borda da cama e descalçou as botas. A seguir, enfiou-se entre os lençóis, completamente vestida.
Soergui-me num cotovelo, divertida.
— Não te estás a esquecer de nada?
— Tenho frio; é só isso.
— Há outra colcha no armário, na parte de cima.
Imaginei-a a virar-se para o outro lado a meio da noite e a espetar no peito um dos alfinetes que lhe prendiam o vestido.
— Estou bem assim.
— Como queiras. — Virei-me para o outro lado, a olhar para a parede, e de repente lembrei-me de ter dezasseis anos e de ir dormir vestida, para me poder esgueirar de casa quando visse os faróis do carro da minha melhor amiga e ir à festa dada por um rapaz da equipa de futebol enquanto os pais estavam fora. Sentando-me na cama, olhei para o corpo de Katie.
— Onde estás a pensar ir?
Ela ficou de queixo caído, com a culpa estampada no rosto.
— Correção — disse eu. — Onde é que estamos a pensar ir?
Ela sentou-se na cama.
— O Samuel vem cá nas noites de sábado — confessou Katie. — Visita-me no alpendre ou na sala de estar. Às vezes, ficamos acordados até de manhã.
Bem, o que quer que aquelas «visitas» englobassem, já sabia que não incluíam sexo. O embaraço de Katie provinha de um princípio amish básico sobre o namoro: era um assunto estritamente pessoal e, por alguma razão que eu não compreendia, os Adolescentes Simples esforçavam-se imenso por fingir que estavam a fazer tudo menos a encontrar-se com o namorado ou namorada.
Os olhos de Katie brilharam no escuro, virados para a janela. Por um instante, parecia-se tanto com qualquer outra adolescente apaixonada que senti vontade de lhe tocar; de pôr a minha mão em concha na curva da sua face e dizer-lhe para fazer aquele momento perdurar, pois, quando desse por si, seria como eu, testemunha do momento de outra pessoa. Não sabia como lhe dizer que, dadas as circunstâncias, o Samuel poderia não aparecer. Que o bebé que ela não conseguia admitir ter dado à luz tinha mudado as regras.
— Ele atira pedrinhas? Ou usa uma escada? — perguntei, baixinho.
Compreendendo que eu não ia denunciar o seu segredo, Katie sorriu lentamente.
— Uma lanterna.
— Bem. — Sentia que era meu dever dar alguns conselhos para o encontro, mas o que podia eu dizer a uma rapariga que já tinha tido um bebé e estava acusada de o matar? — Tem cuidado — disse finalmente, voltando a aninhar-me debaixo das mantas.
Dormi aos bocados, à espera de ver o feixe da lanterna. À meia-noite, Katie ainda estava acordada, na cama. Às duas e um quarto, levantou-se e sentou-se na cadeira de baloiço ao lado da janela. Às três e meia, ajoelhei-me ao lado dela.
— Ele não vem ter contigo, minha querida — sussurrei. — Daqui a menos de uma hora, vai ter de começar a ordenha.
— Mas ele sempre...
Virei-lhe a cara para que olhasse para mim e abanei a cabeça.
Hirta, Katie levantou-se e foi até à cama. Sentou-se e passou o dedo pelo padrão da colcha, perdida nos seus próprios pensamentos.
Tinha visto aquela expressão no rosto de clientes no momento em que eram condenados a cinco ou dez anos de prisão. Na maior parte dos casos, mesmo quando sabiam que o mais provável era isso acontecer, a verdade atingia-os como uma bola de demolição. Essa condenação seria canja para Katie, comparada com isto: o entendimento de que a sua vida não voltaria a ser como era.
Ficou calada durante muito tempo, passando o dedo pelas costuras do seu trabalho manual. A seguir, falou, com uma voz sumida como um rasto de fumo.
— Quando estamos a fazer uma colcha, um ponto em falso dá cabo de tudo. — Com um roçagar de mantas, virou-se para mim. — Puxamo-lo — sussurrou — e todos os outros se desfazem.
Aaron e Sarah passaram o domingo longe da igreja, a visitar amigos e parentes, mas eu e Katie declinámos o convite para ir com eles. Em vez disso, depois de terminarmos os nossos trabalhos domésticos, fomos pescar para o ribeiro. Encontrei as canas no sítio onde ela disse que estariam, no barracão, e fui ter com ela ao campo, onde estava a remexer a terra à procura de minhocas para servirem de isco.
— Não sei — disse eu, ao ver os vermes rosados a contorcer-se na palma da sua mão. — Estou a reconsiderar.
Katie deixou cair alguns dentro de um pequeno frasco de compota.
— Disseste que costumavas pescar quando eras miúda, aqui na quinta.
— Sim — disse eu. — Mas isso foi há mil anos.
Ela sorriu para mim.
— Fazes sempre isso. Falas como se fosses uma velha.
— Vem falar comigo quando tiveres trinta e nove anos e diz-me como te sentes. — Caminhei ao lado dela, com as canas sobre o meu ombro.
O ribeiro estava a correr com força graças a alguns dias de chuva. A água saltava sobre as pedras e bifurcava-se à volta dos paus. Katie sentou-se à beira da água e tirou uma minhoca do frasco. A seguir, pegou numa das canas.
— Quando eu e o Jacob fazíamos concursos de pesca, eu apanhava sempre o maior... Au! — Retirando a mão, enfiou o polegar na boca para chupar o sangue. — Mas que estúpida que sou! — disse, passado um instante.
— Estás cansada. — Ela baixou os olhos. — Todos nós fazemos loucuras quando gostamos de alguém — disse eu, cuidadosamente. — Ficaste toda a noite acordada à espera dele. E depois? — Peguei numa minhoca, engoli em seco e espetei-a no meu anzol. — Quando tinha a tua idade, levei uma tampa antes do baile de finalistas. Comprei um vestido sem alças de cento e cinquenta dólares que não era bege nem creme, note-se, mas sim cru, e sentei-me na sala à espera que o Eddie Bernstein me fosse buscar. Acontece que ele tinha convidado duas raparigas para o baile e decidiu que tinha mais probabilidades de curtir com a Mary Sue LeClare.
— Curtir?
Pigarreei.
— Hum, é uma expressão que significa fazer sexo.
Katie ergueu as sobrancelhas.
— Ah, estou a ver.
Desconfortável, mergulhei a linha na água.
— Talvez devêssemos falar de outra coisa.
— E tu amavas esse tal Eddie Bernstein?
— Não. Nós os dois estávamos sempre a competir pela melhor média, por isso acabámos por nos conhecer bastante bem. Só me apaixonei quando já estava na faculdade.
— Porque é que não te casaste nessa altura?
— Com vinte e um anos, uma pessoa é demasiado jovem para se casar. A maior parte das mulheres gostam de ter alguns anos para se conhecerem a si mesmas, antes de travar conhecimento com o casamento e os filhos.
— Mas, depois de constituir família, aprendemos muito mais sobre nós mesmos — observou Katie.
— Infelizmente, só comecei a pensar dessa maneira quando as minhas perspetivas já eram pouco promissoras.
— E o doutor Cooper?
Larguei a cana de pesca e depois voltei a agarrá-la.
— O que é que tem?
— Ele gosta de ti e tu gostas dele.
— Claro que sim. Somos colegas.
Katie riu-se.
— O meu pai tem colegas, mas não se senta quase em cima deles no baloiço do alpendre nem sorri durante muito tempo com alguma coisa que eles disseram.
Olhei-a com cara de poucos amigos.
— Pensava que tu, mais do que qualquer pessoa, saberias respeitar o meu direito à privacidade relativamente aos meus assuntos pessoais.
— Ele vem cá hoje?
Sobressaltei-me.
— Como é que sabes?
— Porque não paras de olhar para o caminho da entrada, tal como eu fazia ontem à noite.
Suspirando, decidi ser franca.
— O Coop foi o rapaz da faculdade. Aquele com quem não me casei quando tinha vinte e um anos.
Ela inclinou-se para trás, de repente, para tirar um peixe-lua do ribeiro. As suas escamas brilhavam ao sol; a cauda sacudia-se entre mim e Katie. Ela levantou-o com o polegar enfiado na boca dele e pô-lo na água para uma segunda oportunidade.
— Qual dos dois desistiu? — perguntou.
Não fingi não perceber.
— Fui eu — repliquei docemente.
— Não me estava a sentir bem ao jantar — disse-nos Katie, de olhos fixos num ponto algures por trás do ombro de Cooper. — A minha mãe disse-me para subir e para me deitar, que ela lavava a loiça.
Coop assentiu, incitando-a. Estava ali há duas horas a entrevistar Katie sobre a noite do alegado homicídio. Para minha grande surpresa, ela estava a ser cooperante, se não mesmo comunicativa.
— Sentias-te doente — instigou Coop. — Era uma dor de cabeça? Dores de barriga?
— Arrepios por todo o corpo e dor de cabeça. Como na gripe.
Eu não tinha tido filhos, mas aqueles sintomas pareciam mais sugestivos de um vírus do que de trabalho de parto iminente.
— Adormeceste? — perguntou Coop.
— Ja, passado um bocado. E depois acordei de manhã.
— Não te lembras de nada entre a altura em que te foste deitar, indisposta, e a altura em que acordaste de manhã?
— Não — disse Katie. — Mas o que é que isso tem de estranho? Normalmente, não me lembro de nada desde que adormeço até que acordo, a não ser de algum sonho, de vez em quando.
— Sentias-te doente quando acordaste?
Katie corou até à raiz dos cabelos.
— Um bocadinho.
— Ainda era a dor de cabeça e os arrepios?
— Não, era a minha altura do mês — disse, baixando a cabeça.
— Katie, o fluxo era mais intenso do que o habitual? — perguntei, e ela disse que sim com a cabeça. — Sentias cãibras?
— Algumas — admitiu. — Mas não eram suficientemente violentas para me impedir de fazer as minhas tarefas.
— Sentias-te dorida?
— Nos músculos, é disso que estás a falar?
— Não, entre as pernas.
Depois de olhar de soslaio para Coop, respondeu-me num murmúrio:
— Ardia um bocadinho. Mas pensei que fosse por causa da gripe.
— Então — disse Coop, pigarreando —, levantaste-te e fizeste as tuas tarefas, certo?
— Comecei a fazer o pequeno-almoço — respondeu Katie. — Passava-se alguma coisa de importante no celeiro, e depois veio a polícia Englischer e a minha mãe enfiou a cabeça na cozinha e disse-me para fazer comida também para eles. — Levantou-se e começou a andar de um lado para o outro no alpendre. — Só fui ao celeiro quando o Samuel me veio dizer o que se estava a passar.
— O que é que viste?
Os olhos dela estavam marejados de lágrimas.
— Um bebé minúsculo — sussurrou. — Oh, o bebé mais pequenino que alguma vez vi.
— Katie — disse Coop, docemente. — Já tinhas visto esse bebé?
Ela abanou a cabeça rapidamente, como se estivesse a tentar desanuviá-la.
— Tocaste no bebé?
— Não.
— Estava embrulhado?
— Numa camisa — murmurou. — De maneira que só se via o rosto, e o menino dava ideia de estar a dormir, com a mesma expressão que a Hannah tinha quando estava no berço.
— Se o bebé estava embrulhado e se nunca lhe tocaste... como é que sabias que era um menino?
Katie pestanejou.
— Não sei.
— Esforça-te, Katie. Tenta lembrar-te do momento em que soubeste que era um menino.
Ela abanou a cabeça, chorando agora a bom chorar.
— Vocês não podem fazer-me isto — soluçou, e depois deu meia-volta e fugiu.
— Ela volta — disse eu, olhando na direção em que Katie tinha fugido. — Mas é gentil da tua parte estares preocupado.
Coop suspirou e recostou-se no baloiço do alpendre.
— Levei-a ao limite — disse. — Levei-a a enfrentar aquele mundo em que tem vivido na sua cabeça. Ela tinha de parar, ou então admitir que a sua lógica não funciona. — Virou-se para mim. — Acreditas que ela é culpada, não é?
Era a primeira vez desde que ali estava que alguém me fazia aquela pergunta. A família Fisher, os seus amigos e parentes amish, isto é, toda a gente na comunidade parecia tratar a acusação de homicídio de Katie como uma coisa bizarra que tinham simplesmente de aceitar, mas em que não tinham de acreditar. No entanto, eu não estava a olhar para uma rapariga que conhecia desde sempre, mas apenas para uma montanha de provas que pareciam incriminatórias. Desde os relatórios policiais à minha conversa recente com o patologista neonatal, tudo o que vira até agora sugeria que Katie tinha causado a morte do filho, de forma ativa ou passiva. O encobrimento da gravidez indiciava premeditação. A ameaça de perder Samuel, assim como o respeito dos pais, e o medo de ser excomungada eram os seus motivos. A negação contínua de factos concretos... bem, a minha intuição dizia-me que, com uma educação como a de Katie, essa era a única forma de lidar com uma coisa que ela sabia bem que estava errada.
— Tenho três opções de defesa, Coop — disse. — Número um: ela cometeu o crime e está arrependida, e eu deixo-a à mercê do tribunal. Mas isso significaria chamá-la à barra das testemunhas e, se o fizesse, eles iam perceber que ela não está nada arrependida. Caramba, nem sequer acredita que cometeu o crime! Número dois: não foi ela, foi outra pessoa. Uma bela defesa, mas extremamente improvável, dado ter-se tratado de um parto prematuro que ocorreu em segredo às duas da manhã. E número três: foi ela, mas estava a dissociar na altura, e não pode ser condenada por um crime quando não estava mentalmente presente.
— Acreditas que ela é culpada — repetiu Coop.
Não consegui olhá-lo nos olhos.
— Acredito que esta é a minha única hipótese de conseguir safá-la.
Ao final da tarde, eu e Aaron fomos até ao celeiro. Eu para o computador, e Aaron para dar de comer às vacas. De repente, ele estacou ao meu lado. O celeiro estava impregnado do odor de alguma coisa prestes a acontecer. Na maternidade, uma das vacas prenhas mugia, com um casco minúsculo a sair de entre as patas traseiras. Aaron agarrou rapidamente num par de luvas compridas de borracha, como as que se usam na cozinha, e entrou no recinto, puxando pelo casco até aparecer um focinho branco em miniatura ao lado de um segundo casco. Aaron continuou a puxar, e eu assisti, maravilhada, ao nascimento do vitelo ensanguentado, ao som de uma membrana a rebentar.
Caiu esparramado sobre o feno. Aaron ajoelhou-se e roçou-lhe uma palhinha pelo focinho. O narizinho enrugou-se, espirrou, e a seguir o vitelo estava a respirar, a pôr-se em pé e a encostar o focinho ao corpo da mãe. Espreitando por baixo da perna, Aaron sorriu.
— É uma vaca — anunciou.
Bem, claro que sim. De que é que ele estava à espera? De uma baleia?
Como se conseguisse ler-me o pensamento, desatou a rir.
— Uma vaca — repetiu — e não um boi.
Descalçando as luvas, levantou-se.
— Que tal, para milagre?
A mãe passou a língua pelas espirais molhadas do pelo do filhote. Fiquei a olhar, hipnotizada.
— Serve perfeitamente — murmurei.
Quando soube que Mary Esch ia reunir as pessoas lá em casa para cantar, Katie pôs-se de joelhos e implorou-me que a deixasse ir.
— Podes ir comigo — disse ela, para o caso de isso me poder influenciar. — Por favor, Ellie!
Pelo que ela me tinha contado a mim e a Coop, eu sabia que aquilo era um acontecimento social. Dar-me-ia a oportunidade de ver como Katie reagia perto de outros rapazes amish, rapazes que podiam ter sido o pai do seu bebé. Por isso, cinco horas depois, estava sentada ao lado de Katie, no banco da frente de uma carroça, a caminho de cantar hinos. Já tinha andado na carroça dos Fisher, mas não me tinha parecido tão precária no banco de trás. Agarrando-me de lado, perguntei:
— Há quanto tempo conduzes?
— Desde que tinha treze anos. — Olhou para mim e sorriu. — Porquê? Queres que te dê as rédeas?
Naquela noite, havia qualquer coisa em Katie — uma centelha, uma esperança — que fazia com que estivesse constantemente a olhar para ela. Depois de chegarmos, ela amarrou o cavalo ao lado de uma série de carroças e entrámos no celeiro. Mary beijou Katie na face e segredou-lhe qualquer coisa que fez Katie tapar a boca e rir. Tentei passar despercebida e fiquei a olhar para as raparigas, com a sua tez aveludada e os vestidos coloridos, e para os rapazes, com as suas franjas e olhares furtivos. Senti-me um pau-de-cabeleira num baile do liceu: arrogante, crítica e desconfortavelmente velha. E depois vi um rosto familiar.
Samuel estava com um grupo de rapazes ligeiramente mais velhos; presumi que fossem os que se tinham batizado, como ele, mas que continuavam solteiros. Encontrava-se de costas para Katie e estava atento às palavras de outro rapaz: ao que parecia, uma história grosseira sobre uma mulher gorda ou um cavalo. Quando o grupo desatou a rir, Samuel sorriu ligeiramente e depois afastou-se.
Os adolescentes começaram a dirigir-se a duas longas mesas de piquenique. A primeira tinha um banco de raparigas sentadas em frente de um banco de rapazes. A segunda estava reservada aos casais: raparigas e rapazes sentados lado a lado, com as mãos dadas escondidas nas pregas da saia da rapariga. Uma jovem que eu nunca tinha visto veio ter comigo.
— Menina Hathaway, posso acompanhá-la ao seu lugar?
Estava à espera de uma chuva de perguntas sobre a minha identidade, mas já devia saber que o poder da viva-voz era muito grande na comunidade amish; aqueles jovens ouviam falar de mim há quase duas semanas.
— Na verdade — disse eu —, sou capaz de ficar antes por aqui, a ver.
A rapariga sorriu e sentou-se na mesa dos solteiros, segredando qualquer coisa à amiga, que depois olhou para mim por entre as suas pestanas. Katie sentou-se ao fundo da mesa dos casais, deixando um lugar vazio ao lado dela. Como se não tivesse acontecido nada na noite anterior, sorriu para Samuel quando este se dirigiu à mesa.
Mas ele continuou a andar.
Com Katie a vigiar-lhe cada passo, Samuel sentou-se à mesa dos solteiros. Praticamente todos os olhares seguiram o seu trajeto e, depois, viraram-se para Katie, mas ninguém disse uma palavra. Ela baixou a cabeça, com as bochechas coradas, e o seu pescoço pendeu como o de um cisne.
Quando as notas agudas de um hino se ergueram em direção ao teto, quando as bocas das raparigas ganharam vida e as vozes dos rapazes se tornaram magicamente mais graves, avancei lentamente em direção à mesa dos casais. Passei por cima do banco e deixei-me cair ao lado de Katie, que não olhou para mim. Pousei a mão com a palma para cima no seu joelho e contei: uma semínima, uma mínima, um compasso completo, antes de ela aceitar o que eu estava a oferecer.
De costas viradas, nunca teria conseguido identificá-los como adolescentes amish. O burburinho e o falatório, os risos, o tinir dos copos e pratos à medida que a comida era servida, tudo parecia familiar e inglês. Até as formas escuras e inquietas aos cantos — casais à procura de um lugar para maior intimidade — e o par que deambulava lá fora, com os rostos tomados por uma febre interior, pareciam ter mais a ver com o meu mundo do que com o de Katie.
Ela estava sentada como uma abelha-mestra num banco, rodeada por amigas leais que especulavam sobre os motivos que tinham levado Samuel a deixá-la. Se o objetivo era tentar reconfortá-la, não estava a funcionar. Ela parecia ter sofrido um choque traumático, como se duas noites de rejeição consecutivas fossem difíceis de aceitar.
E a verdade é que, nos últimos tempos, andava a ter dificuldade em aceitar a realidade.
De repente, o grupo de raparigas dividiu-se em dois. De chapéu na mão, Samuel avançou em direção a Katie.
— Olá — disse ele.
— Olá.
— Posso levar-te a casa?
Algumas raparigas deram palmadinhas nas costas de Katie, como que a dizer que já sabiam que ia ficar tudo bem. Ela continuou sem o olhar nos olhos.
— Vim na minha carroça. E a Ellie veio comigo.
— Talvez a Ellie possa levá-la para casa.
Aquela foi a deixa para eu falar. Avancei do sítio onde estava a espiar sem rebuço e sorri.
— Desculpem, meninos. Katie, podes ter um momento em privado, mas só se isso não envolver a minha pessoa, uma égua arqueada e um par de rédeas.
Samuel olhou para mim.
— A minha prima Susie disse que a levava de volta a casa dos Fisher, se quiser. E eu posso levá-la a ela para casa, depois.
Katie esperou, submetendo-se aos meus desejos.
— Está bem — suspirei. Perguntei-me se Susie teria sequer idade suficiente para ter autorização de aprendizagem de condução no meu mundo.
Vi Katie subir para a carroça aberta que Samuel trouxera. Eu icei-me para a carroça da família em que havíamos chegado, sentando-me ao lado de uma rapariguinha com óculos cujas lentes pareciam o fundo de uma garrafa e que se propunha levar-me a casa. Antes de partirem, Katie disse-me adeus e sorriu nervosamente.
A viagem até casa durou uns longos e silenciosos quinze minutos. Susie não era nada conversadora; parecia ter emudecido por estar ao lado de uma pessoa que não era amish. Quando ela pediu para ir à casa de banho assim que chegámos a casa dos Fisher, dei um salto ao ouvir o som da sua voz.
— Claro — respondi. — Vai lá dentro.
Não fui uma anfitriã muito amável, mas não ia levantar-me dali até Katie chegar. Para prevenir qualquer eventualidade.
Fiquei sentada na carroça, pois não fazia ideia de como desatrelar o cavalo. Passado um instante, o som dos cascos na terra batida anunciou a chegada do cavalo de Samuel.
Devia ter-lhes mostrado que estava ali. Em vez disso, afundei-me nos recantos escuros da carroça, à espera de ouvir o que Katie e Samuel tinham a dizer.
— Diz-me. — A voz de Samuel era tão suave que nem a teria ouvido se não fosse o vento que a trouxe até mim. — Diz lá quem foi. — Diante do silêncio de Katie, começou a ficar frustrado. — Foi o John Lapp? Eu vi-o a olhar para ti. Ou foi o Karl Mueller?
— Não foi ninguém — insistiu Katie. — Para com isso!
— Alguém foi! Alguém te tocou. Alguém te possuiu. Alguém fez aquele bebé!
— Não houve bebé nenhum! Não houve bebé nenhum! — A voz de Katie subiu de tom e volume, e depois ouvi um baque, quando ela saltou da carroça e correu para dentro de casa.
Saí do meu esconderijo e olhei timidamente para Samuel e Susie, que tinha chocado com Katie à porta da casa dos Fisher.
— Houve um bebé — disse-me Samuel, em voz sumida.
Eu assenti.
— Lamento.
E. Trumbull Tewksbury chegou pouco depois do almoço, com os seus óculos de aviador, corte de cabelo à escovinha e fato preto. Olhou à volta da quinta como se estivesse à procura de assassinos ou terroristas e depois perguntou onde podia assentar arraiais.
— Na cozinha — disse eu, levando-o lá para dentro, onde Katie já o esperava.
Antigo funcionário do FBI, Bull fazia agora testes com um detetor de mentiras no setor privado. Basicamente, era uma mala de aluguer. Já não era a primeira vez que o contratava para ir a casa de clientes meus com o seu equipamento portátil. Ele deixava transparecer o suficiente das suas anteriores funções para ostentar simultaneamente o ar de solenidade que a ocasião exigia e o ar de ameaça velada que sugeriam ao cliente, criminoso ou não, que era melhor dizer a verdade.
É claro que esta era provavelmente a primeira vez em que tinha precisado da aprovação de um bispo amish para fazer o teste, tendo em conta que o gravador, o microfone e as baterias faziam parte integrante de um detetor de mentiras. Mas, como a Igreja autorizara, até Aaron nos deixara sozinhos. Era só eu, Katie e Sarah, para dar apoio moral, a segurar a mão da filha com firmeza.
— Respira profundamente — disse eu, inclinando-me mais para Katie. Ela estava absolutamente aterrorizada, como vários dos meus antigos clientes. É claro que eu não sabia se isso se devia à culpa ou ao facto de nunca ter visto tantas campainhas e apitos num só lugar. No entanto, como a máquina reagia aos nervos, o medo de Katie tinha de ser cortado pela raiz, independentemente do que o causava.
— Vou apenas fazer-lhe algumas perguntas — disse Bull. — Está a ver isto aqui? Isto é apenas um pequeno gravador. E esta parte é um microfone. — Bateu nele com a unha. — E esta coisa é muito parecida com aqueles sismógrafos que registam tremores de terra.
Os dedos de Katie estavam brancos nos sítios onde se agarravam à mão de Sarah. Murmurava baixinho no seu dialeto, palavras que já me eram familiares depois de muitas noites com os Fisher: «Unser Vater, in dem Himmel. Dein Name werde geheiliget. Dein Reich komme. Dein Wille geschehe auf Erden wie im Himmel.»
Em todos os anos que tinha de exercício da profissão, nunca tivera um cliente a dizer o pai-nosso antes de um teste com um polígrafo.
— Descontrai — disse eu, dando-lhe umas palmadinhas no braço. — A única coisa que tens de fazer é dizer sim ou não.
Acabei por não ser eu a conseguir acalmá-la, mas sim o próprio Bull, que, graças à sua experiência, iniciou uma conversa sobre as vacas da Jérsia e o teor de gordura do seu leite. Ao ver a mãe a conversar com um estranho sobre um assunto familiar, os ombros de Katie descaíram, seguidos da sua espinha e, finalmente, da sua determinação.
A fita começou a rodar gradualmente.
— Como se chama? — perguntou Bull.
— Katie Fisher.
— Tem dezoito anos?
— Sim.
— Vive em Lancaster?
— Sim.
— Foi batizada amish?
— Sim.
Ouvi as perguntas preliminares que tinha redigido do meu lugar ao lado de Bull, um lugar de onde podia ver o ponteiro do detetor de mentiras e a impressão das respostas. Até agora, nada fora do vulgar. Mas a verdade é que nenhuma das perguntas que ele fizera até agora podia ser considerada provocadora. Isto continuou durante alguns minutos, soltando a língua a Katie, e depois começámos a abordar a verdadeira razão para estarmos todos ali.
— Conhece Samuel Stoltzfus?
— Sim — disse Katie, com a voz um pouco mais aflautada.
— Teve relações sexuais com Samuel Stoltzfus?
— Não.
— Alguma vez esteve grávida?
Katie olhou para a mãe.
— Não — disse.
O ponteiro manteve-se estável.
— Alguma vez teve um bebé?
— Não.
— Matou o seu bebé?
— Não — disse Katie.
Trumbull desligou a máquina e rasgou a longa impressão. Assinalou dois sítios em que o ponteiro tinha tremido ligeiramente, mas tanto eu como ele sabíamos que nenhuma das respostas indiciava uma mentira descarada.
— Passou — disse ele.
Os olhos de Katie arregalaram-se de prazer, a seguir deu um pequeno grito e abraçou Sarah com força. Quando a largou, virou-se para mim, a sorrir.
— Isto é bom? Podes dizer isto ao júri?
Acenei afirmativamente.
— É decididamente um passo na direção certa. Mas, normalmente, fazemos dois testes. É uma prova mais sólida. — Fiz sinal a Bull, pedindo para preparar tudo novamente. — Além disso, já superaste a parte difícil.
Muito mais tranquila, Katie sentou-se no seu lugar e esperou pacientemente que Bull ajustasse o microfone à sua boca. Ouvi-a dar as mesmas respostas à mesma bateria de perguntas.
Katie terminou, de faces rosadas, e sorriu para a mãe. Bull retirou o papel impresso e fez um círculo em vários sítios onde o ponteiro tinha disparado brutalmente, chegando num dos casos à margem superior do papel. Desta vez, Katie tinha mentido em relação a três perguntas: acerca de ter estado grávida, de ter tido um bebé e de o ter matado.
— Surpreendente — disse-me Bull baixinho —, tendo em conta que estava muito mais à vontade desta vez. — Encolheu os ombros e começou a desligar os fios. — Mas também pode ter sido por isso.
Isto significava que eu não podia usar o teste anterior como prova... não sem apresentar à acusação igualmente este último teste, que Katie falhara redondamente. Isto significava que o resultado do exame do polígrafo era inconclusivo.
De olhos brilhantes e ditosamente inconsciente desse facto, Katie olhou para mim.
— Acabámos?
— Sim — respondi, brandamente. — Podes crer.
Era tarefa de Katie dar de comer aos bezerros. Passados dois dias, eram tirados às mães e alojados em pequenos iglus de plástico alinhados do lado de fora do celeiro como uma fila de casotas de cães. Cada uma de nós levava um biberão, pois eles bebiam leite em pó, para não tirarem às mães leite que podia render dinheiro.
— Podes ficar com a Sadie — disse ela, referindo-se à bezerrinha que eu vira nascer dias antes. — Eu fico com o Gideon.
Sadie tinha-se transformado numa linda bezerra. Sem o sangue do parto, fazia-me lembrar um mapa a preto e branco, com enormes continentes espalhados pelos quadris ossudos e lombo nodoso. O seu focinho contraiu-se ao sentir o cheiro do leite.
— Olá, minha menina — disse eu, dando-lhe umas palmadinhas na cabeça. — Tens fome?
Mas Sadie já tinha encontrado o bico do biberão e estava a tentar tirá-lo das minhas mãos. Inclinei-o para cima, franzindo o sobrolho à corrente que a prendia ao barracão pré-fabricado. Eu sabia que as vacas leiteiras não se importavam muito de estar presas aos seus postes, mas esta ainda era bebé. Em que sarilhos poderia meter-se?
Enquanto Katie estava de costas para mim, desprendi a bezerra da corrente que a prendia. Tal como eu calculava, Sadie nem sequer reparou. A sua garganta andava para cima e para baixo enquanto bebia o biberão até à última gota, e depois enfiou a cabeça debaixo do meu braço.
— Desculpa, mas já acabou — disse eu.
Katie sorriu-me por cima do ombro, onde Gideon, um pouco mais velho e um pouco menos ávido, ainda sorvia ruidosamente o seu biberão. E foi nessa altura que a Sadie saltou por cima de mim, escoiceando-me com força na barriga, rumo à liberdade.
— Ellie! — gritou Katie. — O que é que fizeste?
Não consegui responder, muito menos respirar. Rebolei na terra à frente do pequeno iglu, agarrada à barriga.
Katie correu atrás da bezerra, que parecia ter ganho molas nos cascos. Sadie correu em semicírculo e depois começou a curvar na minha direção.
— Agarra-lhe as patas dianteiras! — berrou Katie, e eu mergulhei sobre os joelhos de Sadie, fazendo-a cair com uma bela placagem.
A ofegar, Katie arrastou a corrente para onde eu estava a manietar a bezerra e voltou a prendê-la. A seguir, sentou-se ao meu lado a recuperar o fôlego.
— Desculpa — disse eu. — Não sabia. — Vi a Sadie voltar para a sombra do seu iglu. — Mas foi uma placagem dos diabos! Talvez devesse fazer testes para os Eagles.
— Eagles?
— Futebol americano.
Katie olhou para mim, confusa.
— O que é isso?
— Tu sabes, o jogo. Que dá na televisão. — Percebi que assim não ia a lado nenhum. — É como o basebol — disse eu finalmente, lembrando-me das crianças em idade escolar que tinha visto com luvas e bolas. — Mas é diferente. Os Eagles são uma equipa profissional, o que significa que os jogadores ganham uma data de dinheiro para jogar.
— Ganham dinheiro para se divertirem a jogar?
Dito daquela maneira, parecia extremamente estúpido.
— Bem, sim.
— Nesse caso, em que é que trabalham?
— É esse o trabalho deles — expliquei. Mas até a mim me parecia estranho, agora. Em comparação com a vida quotidiana de alguém como Aaron Fisher, cujo trabalho envolvia diretamente pôr comida na boca da família, qual era o valor de atirar uma bola através da end zone? Já agora, qual era o valor da minha própria carreira, ganhar a vida com palavras em vez de o fazer com as mãos?
— Não compreendo — disse Katie com sinceridade.
E, sentada na quinta dos Fisher, naquele momento, eu também não compreendia.
Virei-me para Coop, divertida.
— Divorciaste-te por causa de uma disputa bancária?
— Bem, não exatamente. — Os dentes dele brilharam à luz da Lua. — Isso talvez tenha sido a gota de água.
Estávamos sentados na parte de trás de uma engenhoca que eu tinha visto Elam, Samuel e Aaron arrastar atrás de uma parelha de mulas, e fazíamos o possível por não cortar os pés. Tinha dentes malvados espetados como presas que saíam de três carretos mortíferos presos à base, e parecia-me um instrumento de tortura, embora Katie me tivesse dito que era um equipamento usado para afofar o feno cortado, para este poder secar melhor antes de ser enfardado.
— Deixa-me adivinhar. Dívida do cartão de crédito. Tinha um fraquinho pela Neiman Marcus.
Coop abanou a cabeça.
— Foi por causa do código do multibanco.
Eu ri-me.
— Porquê? Era alguma alcunha embaraçosa que ela tinha para ti?
— Não sei. Foi essa a razão da disputa. — Ele suspirou. — Eu tinha deixado a minha carteira em casa, e tínhamos ido jantar fora. Precisávamos de ir levantar dinheiro a um multibanco, por isso tirei-lhe o cartão da mala e disse que ia lá eu. Mas, quando lhe pedi o código, ela fechou-se em copas.
— Para sermos justos — observei —, a verdade é que não devemos dar o nosso código a ninguém.
— Provavelmente, tiveste uma cliente cujo marido a deixou depenada e fugiu para o México, certo? O problema, Ellie, é que eu não sou um desses tipos. Nunca fui. E ela não voltou atrás. Não me quis confiar o código, e isso fez-me pensar o que mais me andaria a esconder.
Mexi num botão do meu casaco de malha, sem saber muito bem o que dizer.
— Uma vez, quando eu e o Stephen estávamos juntos para aí há uns seis anos, apanhei uma gripe. Ele trouxe-me o pequeno-almoço à cama: ovos, torrada e café. Foi muito querido da parte dele, mas tinha-me trazido o café com natas e açúcar. E há seis anos que eu me sentava todos os dias à frente dele, e o bebia simples.
— O que fizeste?
Sorri timidamente.
— Agradeci-lhe imenso e fiquei com ele mais dois anos — brinquei. — Que escolha é que eu tinha?
— Há sempre escolha, Ellie. Tu só não gostas de pensar nisso.
Fingi que não tinha ouvido. Olhando para o campo de tabaco, vi pirilampos a decorar a verdura como luzes de Natal em julho.
— São duvach — disse eu, recordando a palavra Dietsch que Katie me ensinara.
— Isso, muda de assunto — comentou Coop. — Continuas a mesma Ellie de sempre.
— O que queres dizer com isso?
— Tu ouviste — respondeu ele encolhendo os ombros. — Fazes isso há anos.
Semicerrando os olhos, virei-me para ele.
— Não fazes ideia do que tenho feito...
— Isso — interrompeu — não foi escolha minha.
Cruzei os braços, aborrecida.
— Compreendo que isto, para ti, seja deformação profissional, mas há pessoas que preferem não desenterrar o passado.
— Continuas suscetível em relação ao que aconteceu?
— Eu? — ri-me, incrédula. — Para alguém que diz que me perdoou, estás sempre a repisar a nossa história.
— Perdoar e esquecer são duas coisas completamente diferentes.
— Bem, tiveste vinte anos para tirar isso da cabeça. Talvez consigas enquanto estiveres a trabalhar com a minha cliente.
— Achas mesmo que faço a viagem de carro até aqui duas vezes por semana para me encontrar pro bono com uma rapariga amish? — Coop esticou o braço e envolveu-me a face com a palma da mão, e a minha raiva esfumou-se no tempo que levei a respirar, sobressaltada. — Queria ver-te, Ellie. Queria saber se tinhas conseguido o que querias há tantos anos.
Ele estava agora tão próximo que eu conseguia ver as chispas douradas nos seus olhos verdes. Conseguia sentir as palavras dele na minha pele.
— Tomas o teu café simples — sussurrou. — Escovas o cabelo cem vezes antes de te deitares. Ficas com urticária se comeres framboesas. Gostas de tomar duche depois de fazeres amor. Sabes a letra toda de «Paradise by the Dashboard Light» e guardas moedas de vinte e cinco cêntimos nos bolsos na altura do Natal, para dar aos Pais Natais do Exército de Salvação. — A mão do Coop deslizou até à minha nuca. — O que é que deixei de fora?
— A-T-T-Y — sussurrei. — O meu código de multibanco.
Inclinei-me para ele, sentindo-lhe já o gosto. Os dedos de Coop cerraram-se, massajando, e quando fechei os olhos pensei em quantas estrelas haveria ali, em quão vasto era o céu noturno e que aquele era um lugar onde nos podíamos perder.
Os nossos lábios mal se haviam tocado quando nos voltámos a separar, sobressaltados pelo som de passos a correr no caminho da entrada.
Tínhamos seguido Katie a pé durante cerca de quilómetro e meio, caminhando em passo pouco firme e sem fazer barulho, para que não nos visse. Mas era ela que levava a lanterna, por isso estávamos em desvantagem. Coop segurava-me a mão, apertando-a para me avisar quando via um ramo no nosso caminho, uma pedra, um pequeno sulco na estrada.
Nenhum de nós pronunciara uma palavra, mas tinha a certeza de que Coop estava a pensar o mesmo que eu: Katie tinha saído para ir ter com alguém com quem não se queria encontrar comigo por perto. O que deixava Samuel fora da corrida e apontava claramente para o pai ausente e desconhecido do seu bebé.
Vi a casa que se erguia numa montanha cinzenta mesmo à nossa frente e perguntei-me se seria ali que morava o amante de Katie. Mas antes que eu pudesse entregar-me a mais especulações, Coop puxou-me para a esquerda, para um pequeno recinto vedado onde Katie entrara. Levei uns momentos a perceber que as pequenas pedras brancas eram na verdade lápides: estávamos no cemitério onde Sarah e Aaron tinham sepultado o corpo do bebé morto.
— Oh, meu Deus! — exclamei, e a mão de Cooper levantou-se para me tapar a boca.
— Limita-te a observá-la — disse ele suavemente ao meu ouvido. — Isto pode ser a parede a desmoronar-se.
Agachámo-nos bem longe, mas Katie parecia estar noutro mundo. Tinha os olhos arregalados e ligeiramente vítreos. Apoiou a lanterna noutra lápide, de maneira a fazer de projetor, enquanto se ajoelhava na sepultura recente e tocava na lápide.
NADO-MORTO era a inscrição, tal como Leda dissera. Vi o dedo de Katie percorrer cada letra. Inclinou-se... estaria a chorar? Fiz menção de ir ao seu encontro, mas Coop reteve-me.
Katie levantou o que parecia ser um pequeno martelo e um escopro e encostou-o à pedra. Bateu uma, duas vezes.
Desta vez, Coop não me conseguiu impedir.
— Katie! — chamei, correndo na sua direção, mas ela não se virou. Agachei-me ao lado dela e agarrei-lhe os ombros, a seguir tirei-lhe o escopro e o martelo das mãos. As lágrimas rolavam-lhe pelas faces, mas não se lia qualquer expressão no seu rosto. — O que estás a fazer?
Ela olhou para mim com aquele olhar vago e depois, de repente, a razão despontou por trás dele.
— Oh! — gemeu ela, tapando o rosto com as mãos. O seu corpo começou a tremer de forma descontrolada.
Coop tomou-a nos braços.
— Vamos levá-la para casa — disse. E começou a andar em direção ao portão do cemitério, com Katie a soluçar contra o seu peito.
Eu ajoelhei-me junto à sepultura, pegando no escopro e no martelo. Katie tinha conseguido lascar uma parte da gravação na pedra. Era uma pena para Aaron e Sarah, que tinham pago bom dinheiro por aquela lápide. Passei os dedos pelas letras que restavam: MORTO.
— Talvez fosse um ataque de sonambulismo — disse Coop. — Já tive pacientes cujos distúrbios de sono lhes deram cabo das vidas.
— Durmo com ela no mesmo quarto há duas semanas e nunca a vi levantar-se uma vez que fosse, nem sequer para ir à casa de banho. — Tremi de frio e ele pôs o braço à minha volta. No pequeno banco de madeira à beira do lago dos Fisher, aproximei-me dele de forma quase impercetível.
— Também pode acontecer que se comece a aperceber do que aconteceu — aventou Coop.
— Não estou a perceber a lógica disso. Porque é que reconhecer que esteve grávida havia de levá-la a estragar uma lápide?
— Eu não disse que ela reconheceu o sucedido. Disse que ela começa a interiorizar algumas das provas que lhe temos apresentado e está a tentar saná-las, de alguma forma. Inconscientemente.
— Ah! Se a lápide do bebé não estiver lá, o bebé não existiu.
— Vês como percebeste? — Ele expirou devagarinho e depois disse pensativamente: — Tens o suficiente, Ellie. Vais conseguir encontrar um psiquiatra forense que te apoie na alegação de insanidade mental.
Acenei, perguntando-me por que razão o apoio de Cooper não me fazia sentir melhor.
— Vais continuar a falar com ela, certo?
— Sim. Farei o que puder para atenuar o efeito, quando ela cair na realidade. E está a começar a acontecer. — Sorriu gentilmente, acrescentando — Como teu psiquiatra, devo dizer-te que estás demasiado envolvida neste caso.
Aquilo fez-me sorrir.
— Meu psiquiatra?
— Com todo o prazer, minha senhora. Não há ninguém que gostasse mais de tratar.
— Desculpa, mas não estou doida.
Ele beijou um ponto atrás da minha orelha, encostando o nariz contra mim.
— Ainda não — murmurou. Fez-me girar nos seus braços, deixando a boca passar sobre o meu queixo e face, antes de pousar ao de leve nos meus lábios. Algo chocada, dei-me conta de que, ao fim de tantos anos, continuava a conhecê-lo — o padrão de código Morse dos nossos beijos, os lugares que as mãos dele tocavam nas minhas costas e cintura, a sensação do seu cabelo quando eu passava os dedos por ele.
O toque dele trouxe recordações e deixou imensas novas. O meu coração bateu com força contra o peito de Coop; as minhas pernas entrelaçaram-se nas dele. Ali, voltei a ter vinte anos e o mundo estendido à minha frente como um banquete.
Pestanejei e, de repente, o lago e Coop voltaram a ficar nítidos.
— Tens os olhos abertos — sussurrei-lhe junto à boca.
Ele acariciou-me as costas.
— Da última vez que os fechei, desapareceste.
Por isso, fiquei também de olhos abertos e espantei-me ao ver duas coisas que nunca pensei ver: eu própria, a completar o círculo, e o fantasma de uma rapariga que andava sobre a água.
Libertei-me dos braços de Coop. Seria o fantasma de Hannah? Não, era impossível.
— O que foi? — murmurou Coop.
Voltei a inclinar-me para ele.
— Foste tu — disse. — Apenas tu.
9
Às vezes, quando Jacob Fisher estava sentado no minúsculo gabinete que partilhava com outro estudante de pós-graduação no Departamento de Inglês, tinha de se beliscar. Ainda não há muito tempo, tinha de esconder as peças de Shakespeare debaixo dos sacos de ração, no celeiro, ou de ficar acordado toda a noite a ler à luz de uma lanterna, para enfrentar as tarefas quotidianas na manhã seguinte, ébrio com o que aprendera. E agora ali estava ele, rodeado de livros, pago para analisar e ensinar jovens homens e mulheres com as mesmas estrelas nos olhos que ele tivera.
Instalou-se com um sorriso, feliz por voltar ao trabalho após duas semanas fora da cidade, a ajudar um professor emérito que andava a fazer um circuito de palestras durante o verão. Ao ouvir bater à porta, levantou os olhos da antologia que estava a sublinhar.
— Entre.
O rosto desconhecido de uma mulher espreitou à porta.
— Estou à procura de Jacob Fisher.
— Encontrou-o.
Demasiado velha para ser uma das suas alunas; além disso, as alunas não costumavam vestir fatos tão formais. A mulher brandiu uma pequena carteira, que tinha a sua identidade.
— Sou a sargento-detetive Lizzie Munro. Polícia do município de East Paradise.
Jacob agarrou-se aos braços da cadeira, a pensar em todos os acidentes com carroças cujo número vira aumentar no condado de Lancaster, e em toda a maquinaria usada nas quintas que provocara mortes acidentais.
— A minha família... — lá conseguiu dizer, com a boca seca como o deserto. — Aconteceu alguma coisa?
A detetive olhou para ele.
— A sua família está bem de saúde — disse ela, passado um momento. — Importa-se que lhe faça umas perguntas?
Jacob assentiu e fez-lhe sinal para se sentar na cadeira da secretária do outro estudante de pós-graduação. Não tinha notícias da família há quase três meses, ainda para mais com um verão tão ocupado e com Katie sem poder lá ir. Fizera tenção de telefonar à tia Leda, para se manter em contacto, mas depois embrenhara-se no seu trabalho e partira na ronda de palestras.
— Segundo sei, foi criado como amish, em East Paradise? — indagou a detetive.
Jacob sentiu a primeira pontada de inquietude na coluna. Ser inglês há tanto tempo tornara-o cauteloso.
— Importa-se que pergunte a que se deve isto?
— Terá sido cometido um crime na sua terra natal.
Jacob fechou a antologia que estava a ler.
— Escute, vocês também vieram falar comigo depois do incidente com a cocaína. Posso já não ser amish, mas isso não significa que ande a fornecer droga aos meus antigos amigos.
— Na verdade, isto não tem nada a ver com os casos de narcóticos. A sua irmã foi acusada de homicídio qualificado.
— O quê? — Recuperando a compostura, acrescentou: — É óbvio que deve haver um engano.
Munro encolheu os ombros.
— Não mate o mensageiro. Estava ao corrente da gravidez da sua irmã?
Jacob não conseguiu evitar a expressão chocada.
— Ela... teve um bebé?
— Aparentemente. E depois tê-lo-á morto, alegadamente.
Ele abanou a cabeça.
— Isso é a coisa mais disparatada que alguma vez ouvi.
— Ah, sim? Devia experimentar trabalhar na minha área. Há quanto tempo não vê a sua irmã?
Fazendo cálculos rapidamente, disse:
— Três, quatro meses.
— Antes disso, ela visitava-o com regularidade?
— Não diria com regularidade — precaveu-se Jacob.
— Estou a ver. Senhor Fisher, ela travou alguma amizade ou desenvolveu algum interesse amoroso durante as visitas que lhe fazia?
— Ela não se encontrava com ninguém aqui — replicou Jacob.
— Ora — sorriu a detetive. — Não a apresentou à sua namorada? Ou ao rapaz em cuja cadeira estou sentada?
— Ela era muito tímida e passava o tempo todo comigo.
— Nunca esteve longe dela? Nunca a deixou ir à biblioteca, às compras ou ao clube de vídeo sozinha?
A cabeça de Jacob estava a mil. Pensou em todas as vezes, no último outono, em que deixara Katie em casa enquanto ia para as aulas. Em que a deixara na casa que tinha subarrendado a um tipo que adiara a sua viagem de investigação não uma, mas três vezes. Olhou impassível para a detetive.
— Tem de compreender que eu e a minha irmã somos dois animais diferentes. Ela é amish dos pés à cabeça, isto é, vive, dorme e respira nessa cultura. Vir visitar-me aqui era uma provação para ela. Mesmo quando entrava em contacto com desconhecidos aqui, eles tinham tanto efeito sobre ela como o azeite na água.
A detetive virou o bloco de notas para uma página em branco.
— Porque é que já não é amish?
Isto, pelo menos, era território seguro.
— Queria continuar os meus estudos. Isso vai contra a maneira de viver da Gente Simples. Estava a trabalhar como aprendiz de carpinteiro quando conheci um professor de Inglês no liceu que me mandou para casa com uma montanha de livros que, para mim, valiam ouro. E, quando tomei a decisão de ir para a faculdade, sabia que seria excomungado da Igreja.
— Tanto quanto sei, isso causou alguma tensão no relacionamento com os seus pais.
— Pode dizer-se que sim — admitiu Jacob.
— Disseram-me que, para o seu pai, é como se estivesse morto.
Ele respondeu de forma tensa:
— Não estamos de acordo, simplesmente.
— Se o seu pai o expulsou de casa por querer um diploma, o que acha que teria feito se a sua irmã tivesse tido um filho antes de se casar?
Ele já fazia parte deste mundo há tempo suficiente para entender o sistema jurídico. Inclinando-se para a frente, perguntou com suavidade:
— Qual dos meus familiares está a acusar?
— A Katie — disse Munro, terminantemente. — Se ela é tão amish como diz, então é possível que estivesse disposta a fazer qualquer coisa, incluindo cometer homicídio, para continuar amish e para impedir que o seu pai descobrisse a existência do bebé. O que inclui esconder a gravidez e livrar-se do bebé quando ele nasceu.
— Se ela é tão amish como digo, isso nunca aconteceria. — Jacob pôs-se abruptamente em pé e abriu a porta.
— Se me dá licença, detetive, tenho trabalho para fazer.
Fechou a porta e ficou atrás dela, a ouvir a detetive bater em retirada. A seguir, sentou-se à secretária e pegou no telefone.
— Tia Leda — disse ele passado um momento —, mas que diabo se passa?
Quando o serviço religioso estava prestes a chegar ao fim naquele domingo, Katie sentiu-se tonta, e não era apenas por causa do calor sufocante do verão, intensificado por tantos corpos aglomerados numa casa pequena. O bispo convocou uma reunião de membros e, enquanto os que ainda não eram batizados saíam para se juntar no celeiro, Ellie aproximou-se dela.
— O que estão eles a fazer?
— Têm de se ir embora. Assim como tu. — Katie viu Ellie olhar para as suas mãos trémulas e escondeu-as debaixo das coxas.
— Daqui não saio.
— Tens de ir — incitou Katie. — Será mais fácil assim.
Ellie olhou para ela com aqueles olhos arregalados de coruja que às vezes faziam Katie sorrir e abanou a cabeça.
— Temos pena. Diz-lhes que comecem comigo aqui.
Por fim, o bispo Ephram pareceu aceitar o facto de Ellie ficar a assistir à reunião dos membros.
— Katie Fisher — disse um dos pastores, chamando-a.
Ela achava que não ia conseguir ficar em pé, de tal forma lhe tremiam os joelhos. Sentia os olhos postos nela: os de Ellie, de Mary Esch, da mãe desta, e até os de Samuel. Aquelas pessoas iam ser testemunhas da sua vergonha.
Quando se analisavam bem as coisas, não importava se tinha tido, ou não, um bebé. Não fazia tenção de discutir os seus assuntos particulares em frente da congregação, apesar do que Ellie lhe tentara explicar sobre a Carta de Direitos e pseudotribunais. Katie tinha sido educada para acreditar que, em vez de se defender, o melhor era aproximar-se e tomar o remédio. Respirando fundo, foi até ao ponto onde os pastores estavam sentados.
Quando se ajoelhou no chão, conseguiu sentir as farpas das tábuas de carvalho a enterrar-se-lhe na pele e exultou com essa dor, porque lhe mantinha a cabeça longe do que estava prestes a acontecer. Quando baixou a cabeça, o bispo Ephram começou a falar:
— Chegou ao nosso conhecimento que a jovem irmã incorreu num pecado carnal.
Katie sentiu o corpo todo a arder, do rosto ao peito, passando pelas palmas das mãos. O bispo tinha os olhos cravados nela.
— Esse crime é real?
— Sim — sussurrou ela, e até podia ser imaginação sua, mas podia jurar que no meio do silêncio tinha ouvido o suspiro derrotado de Ellie.
O bispo virou-se para a congregação.
— Concordam em que Katie seja alvo de bann por um tempo, enquanto pensa no seu pecado e se arrepende?
Cada uma das pessoas presentes tinha um voto e, com ele, a responsabilidade de sancionar o seu castigo. Em casos como este, era raro alguém não concordar. No fim de contas, era um alívio ver um pecador confessar e iniciar o processo de cura.
— Ich bin einig — ouviu ela: concordo; e cada um dos membros ia repetindo sucessivamente as mesmas palavras.
Ia ser banida esta noite. Teria de comer a uma mesa separada da família. Ia passar seis semanas de bann; continuariam a falar com ela e a amá-la, mas, apesar disso, seria mantida à parte e sozinha. De cabeça baixa, Katie conseguiu identificar as vozes das suas amigas batizadas, o suspiro relutante da própria mãe, a forte determinação do pai. A seguir, ouviu a voz que melhor conhecia, o linguajar profundo e inarmónico de Samuel.
— Ich bin... — disse ele, hesitando. — Ich bin... — Iria discordar? Iria defendê-la, depois de tudo o que se tinha passado? — Ich bin einig — disse Samuel, ao mesmo tempo que Katie fechava os olhos.
O serviço religioso tinha-se realizado numa quinta vizinha, por isso Ellie e Katie optaram por regressar a pé. Ellie pôs o braço por cima dos ombros da rapariga, tentando animá-la.
— Não tens propriamente um «A» escarlate no peito — brincou.
— Um quê?
— Nada. — Juntando os lábios, Ellie disse gentilmente — Eu como contigo.
Katie lançou-lhe um olhar grato.
— Eu sei.
Caminharam em silêncio durante alguns momentos, com Ellie a bater com os pés nas pedras do caminho. Por fim, virou-se para Katie:
— Tenho de te perguntar uma coisa que te vai deixar zangada. Porque é que estás disposta a admitir em frente de toda a congregação que tiveste um bebé e não consegues fazer o mesmo apenas diante de mim?
— Porque era o que esperavam de mim — disse Katie, simplesmente.
— Eu também espero isso de ti.
Ela abanou a cabeça.
— Se o diácono viesse ter comigo e dissesse que queria que eu me redimisse por ter tomado banho nua no lago, eu anuiria, mesmo que não o tivesse feito.
— Como? — explodiu Ellie. — Como é que podes deixá-los condenar-te desta maneira?
— Não o fazem. Podia levantar-me e dizer que não era eu que estava a mergulhar nua no lago, pois tenho um sinal de nascença na anca que ninguém viu, mas nunca o faria. Viste como são as coisas ali. É muito mais embaraçoso falar sobre o pecado do que confessar, simplesmente.
— Mas isso é deixar o sistema espezinhar-te!
— Não — explicou Katie. — É deixar o sistema funcionar. Não quero ter razão, nem ser forte nem a primeira. Só quero fazer parte deles outra vez, assim que puder. — Sorriu gentilmente. — Eu sei que é difícil de compreender.
Ellie obrigou-se a ter presente que o sistema de justiça amish não era o sistema de justiça americano, mas que ambos funcionavam bastante bem desde há séculos.
— Eu compreendo muito bem — disse. — A questão é que esse não é o mundo real.
— Talvez não. — Katie desviou-se de um carro com um turista pendurado na janela que tentava fotografá-la de trás. — Mas é o mundo em que vivo.
Katie esperava ansiosamente ao fundo do caminho estreito, segurando uma lanterna. Já tinha corrido riscos, sobretudo no que tocava a Adam, mas esta seria a jogada mais arriscada da sua vida. Se alguém a encontrasse com aquele Englischer, ia ver-se metida num grande sarilho, mas Adam estava de partida e ela não podia deixá-lo ir sem aproveitar esta oportunidade.
Adam tinha acabado por não ir para Nova Orleães, à procura dos seus fantasmas. Transferiu o dinheiro da bolsa para um local totalmente diferente, na Escócia, e reorganizou os seus planos para partir apenas em novembro. Se Jacob notou alguma coisa de estranho nesta mudança de planos, foi na generosa oferta de Adam para o deixar continuar a dividir a casa com ele, apesar da alteração das circunstâncias. Jacob ficou tão grato por não ter de se mudar que não se deu ao trabalho de ver mais nada — como, por exemplo, o à-vontade com que a irmã e o companheiro de quarto conversavam, a forma como Adam a amparava por vezes com uma mão nas costas quando atravessavam o campus ou o facto de Adam não ter saído com uma única rapariga durante todos aqueles meses.
Um carro aproximou-se, abrandando a cada caminho de entrada. Katie teve vontade de acenar ou gritar, para que Adam a visse, mas em vez disso esperou na sombra dos arbustos e só saiu para a frente dos faróis quando ele se aproximou. Adam desligou o carro e saiu, examinando silenciosamente a roupa de Katie. Foi ter com ela e tocou no organdi da sua kapp, e depois pressionou suavemente a ponta do polegar no alfinete que lhe segurava o vestido, junto ao pescoço. Ela sentiu-se tola, de repente, vestida à maneira da Gente Simples, quando ele estava habituado a vê-la de calças de ganga e camisola.
— Deves estar com frio — murmurou Adam.
Ela abanou a cabeça.
— Nem por isso.
Ele começou a despir o casaco para lho dar, mas ela esquivou-se. Por um instante, nenhum dos dois falou. Adam olhou por cima da cabeça de Katie, para a silhueta prateada do silo recortada na imensidão do céu.
— Eu podia ir embora — disse ele baixinho. — Podia ir embora e nós podíamos fingir que não cheguei a vir aqui.
Como resposta, Katie pegou-lhe na mão. Levantou-a, fitando os dedos compridos e esguios e acariciando a pele macia da sua palma. Não era mão de quem puxava rédeas e acartava ração. Levou-a aos lábios e beijou-lhe os nós dos dedos.
— Não, estou à tua espera há anos.
Ela não estava a dizer aquilo à maneira das raparigas Englischer, como exagero manifesto acompanhado de beicinho e de um bater do pé. As palavras de Katie eram literais, ponderadas, verdadeiras. Adam apertou-lhe a mão e deixou-a levá-lo para o mundo em que crescera.
Sarah viu a filha a cortar legumes para o jantar e depois concentrou-se em pôr a mesa. Naquela noite, e durante muitas mais a partir de agora, Katie não podia comer ali, pois isso fazia parte da sanção de ser banida. Durante as próximas seis semanas, Sarah teria de viver separada dela na mesma casa: fingir que Katie já não era uma grande parte da sua vida, abdicar de rezar por ela, limitar as conversas. Ora, era como perder um filho. Outra vez.
Sarah franziu o sobrolho ao olhar para o seu espaço de refeições: na verdade, era uma mesa comprida, com um banco corrido de cada lado. Como não podia ter mais filhos, não havia necessidade de ter um espaço maior. Olhou para as costas de Katie, dolorosamente direitas, como se estivesse a tentar impedir Sarah de notar como aquilo a magoava.
Sarah foi à sala de estar e tirou um candeeiro a gás de uma mesa de jogos, uma mesa que às vezes usava quando os primos iam lá a casa jogar às cartas. Arrastou-a pelas pernas dianteiras até à cozinha e dispôs as mesas de maneira a que ficassem a pouco mais de dois centímetros uma da outra. Tirou uma toalha branca e comprida das gavetas do louceiro e estendeu-a sobre as duas mesas, de tal forma que, depois de assente, era impossível perceber que não era apenas um grande retângulo.
— Pronto — disse, alisando-a e passando os talheres que estavam postos no lugar habitual de Katie para um lugar na mesa de jogo. Hesitou, e depois deslocou os seus próprios talheres para mais perto da ponta da mesa normal, para mais perto do sítio onde Katie se ia sentar a comer. — Pronto — repetiu, e foi novamente trabalhar ao lado da filha.
Uma das tarefas que tinham sido atribuídas a Ellie era dar cereais e água a Nugget. O grande cavalo quarto de milha tinha-a assustado ao princípio, mas pareciam ter chegado a um entendimento.
— Olá, cavalo — disse ela, entrando no estábulo com a pá de cereais doces. Nugget relinchou e bateu com a pata no chão, à espera que Ellie saísse do caminho para ele começar a comer. — Não te censuro — murmurou ela ao ver a sua pesada cabeça inclinar-se para a deliciosa aveia com mel. — A comida deve ser a melhor coisa que este lugar tem.
Por esta altura, já sabia que os Amish tratavam muito bem os cavalos que lhes puxavam as carroças. No fim de contas, se um cavalo se fosse abaixo, não era possível levá-lo ao concessionário local da Ford para afinar o motor. Mesmo Aaron, cujo estoicismo silencioso ainda a conseguia apanhar desprevenida, era amável e paciente com Nugget. Aparentemente, era um bom avaliador de cavalos, e por isso recebia de vez em quando solicitações de vizinhos para os acompanhar aos leilões de cavalos que se realizavam às segundas-feiras à tarde, simplesmente para dar a sua opinião.
Ellie esticou a mão timidamente para afagar o cavalo. Ainda tinha um bocadinho de medo de que aqueles grandes dentes quadrados e amarelos se fechassem sobre o seu pulso e nunca mais a largassem. Cheirava a pó e a relva, um odor limpo e a ração. Nugget arrebitou as orelhas e resfolegou, e a seguir tentou enfiar o focinho debaixo do sovaco de Ellie. Surpreendida, esta riu-se e fez-lhe festinhas na cabeça como se ele fosse um cão.
— Para com isso! — disse, mas estava a sorrir quando tirou o balde de água quase vazio do gancho na parede e o levou lá fora até à mangueira.
Tinha acabado de dobrar a esquina do celeiro quando alguém apareceu à má fila, agarrando-a por trás e tapando-lhe a boca com a mão. O balde caiu e ressaltou. Lutando contra a rápida onda de pânico, Ellie mordeu os dedos que lhe tapavam a boca e, passado um instante, bateu com o cotovelo na barriga do seu atacante, ao mesmo tempo que agradecia a Deus o facto de Stephen lhe ter oferecido aulas de autodefesa no Natal de há dois anos.
Girou sobre si mesma, com as mãos em posição de prontidão, e olhou furiosa para o homem dobrado de dor. Havia nele qualquer coisa de vagamente familiar: o cabelo brilhante e as linhas esguias do seu corpo... e Ellie ficou aborrecida por não conseguir dar um nome àquele rosto.
— Quem diabo é você?
Com um braço a esfregar a barriga, o homem olhou para ela:
— Jacob Fisher.
— Bem, não me devia ter agarrado — disse Ellie alguns minutos depois, parada em frente do irmão de Katie, no palheiro. — É uma boa forma de se matar.
— Já saí de cá há algum tempo, mas é raro encontrar cinturões negros a deambular por quintas amish. — O sorriso de Jacob ensombrou-se. — E também é raro encontrar bebés assassinados.
Ela sentou-se num fardo de feno, a tentar ler-lhe o rosto.
— Tentei ligar-lhe.
— Tenho estado fora.
— Eu percebi. Presumo que por esta altura já saiba que há acusações pendentes contra a sua irmã. — Jacob assentiu. — A detetive da procuradoria já falou consigo?
— Ontem.
— O que é que o Jacob lhe disse?
Jacob encolheu os ombros. Perante o seu silêncio relutante, Ellie apoiou os cotovelos nos joelhos.
— Vamos lá esclarecer uma coisa, desde já — disse. — Eu não pedi este caso; digamos que foi ele que me adotou. Não sei que opinião tem dos advogados em geral, mas, como vive fora daqui há algum tempo, suponho que presuma que somos todos tubarões, como o resto do mundo livre. Sinceramente, Jacob, não me importa se pensa que sou Átila, o Huno, pois continuo a ser a melhor hipótese que a sua irmã tem de se safar. Deve compreender melhor do que os seus familiares amish a gravidade do crime de que é acusada. Tudo aquilo que me possa dizer para ajudar no caso da sua irmã será mantido no mais rigoroso sigilo e ajudar-me-á a decidir o que fazer para a defender, mas, independentemente daquilo que me diga, eu irei defendê-la na mesma. Mesmo que abra a boca neste momento e me diga que ela matou aquele bebé a sangue-frio, vou tentar safá-la de todas as formas que puder, e depois arranjar-lhe a ajuda psiquiátrica de que ela precisa. No entanto, prefiro pensar que me vai dar informação que pinta um cenário ligeiramente diferente.
Jacob foi até à janela alta do palheiro.
— Isto está lindo! Sabe que não vinha aqui há seis anos?
— Sei como isto lhe deve custar — disse Ellie. — Mas a Katie nunca teria sido acusada se não houvesse provas suficientes para levar a polícia a acreditar que ela matou o bebé.
— Ela não me disse que estava grávida — confessou Jacob.
— Acho que nem ela admitiu esse facto. Sabe de alguém com quem ela possa ter tido intimidades?
— Bem, o Samuel Stoltzfus...
— Não estou a dizer aqui — interrompeu Ellie. — Em State College.
Jacob abanou a cabeça.
— Ela alguma vez mostrou inclinação para deixar a Igreja amish, assim como o Jacob fez?
— Não. Ela não conseguiria suportar tal coisa, deixar de ter contacto com a nossa Mam e o nosso Dat. A Katie não é... como poderei dizer isto? Ela costumava ir visitar-me, sabe? Ir a festas, comer comida chinesa e vestir calças de ganga. Mas nós podemos tirar um peixe do lago e vestir-lhe uma pele de ovelha, que isso nunca fará dele um cordeiro. E, mais cedo ou mais tarde, sem água, ele vai acabar por morrer.
— O Jacob não morreu — disse Ellie.
— Eu não sou a Katie. Tomei a decisão de deixar a Igreja e, depois de a tomar, isso levou a outras escolhas. Fui educado nesta comunidade de Gente Simples, doutora Hathaway, mas rebelei-me. Frequentei cursos de Teologia que questionam a Bíblia. Comprei um carro. Tudo coisas que nunca teria acreditado poder fazer.
— E o mesmo não se aplicará à Katie? Talvez ela tenha tomado a decisão de continuar amish e, por esse motivo, se tenha visto obrigada a fazer coisas que nunca teria acreditado poder fazer.
— Não, por causa de um facto fundamental. Quando somos ingleses, tomamos decisões. Quando somos Simples, submetemo-nos a uma decisão que já foi tomada. Essa submissão a uma autoridade superior chama-se gelassenheit. Submetemo-nos à vontade de Deus. Submetemo-nos aos nossos pais, à nossa comunidade, à forma como sempre se fizeram as coisas.
— Isso é interessante, mas não faz frente ao relatório de autópsia de uma criança morta.
— Faz, sim! — disse Jacob, com firmeza. — Cometer um homicídio é o ato mais arrogante que há! É decidir que temos o poder divino de tirar a vida a outra pessoa. — Olhou para Ellie, com os olhos a brilhar como faróis. — Os outros pensam que as Pessoas Simples são estúpidas, que deixam o mundo espezinhá-las, mas as Pessoas Simples são espertas; não sabem ser egoístas. Não são suficientemente egoístas para serem gananciosas, arrogantes ou orgulhosas. E, com toda a certeza, não são suficientemente egoístas para matar intencionalmente outro ser humano.
— Não é a fé amish que está a ser julgada.
— Mas devia ser — contrapôs Jacob. — A minha irmã não poderia cometer homicídio, doutora Hathaway, pelo simples facto de ser amish dos pés à cabeça.
Lizzie Munro semicerrou os olhos por trás dos seus óculos de proteção, levantou os braços e disparou dez balas da sua Glock de 9 milímetros no coração do alvo de tamanho real que estava na outra ponta da carreira de tiro. Ao recolhê-lo para avaliar a sua pontaria, George Callahan assobiou e retirou os protetores auriculares.
— Ainda bem que estás do nosso lado, Lizzie! Tens um verdadeiro dom!
Ela passou o dedo elogiosamente sobre o buraco que fizera no peito de papel do alvo.
— Pois. E pensar que a minha avó só queria que eu aprendesse a bordar. — Enfiou a arma no coldre e depois tirou as cintas dos ombros.
— Devo dizer que estou um bocadinho surpreendido por te ver aqui.
Lizzie ergueu uma sobrancelha.
— Porquê?
— Bem, quantos amish armados e perigosos pensas encontrar?
— Nenhum, espero eu — respondeu Lizzie, vestindo o casaco. — Faço isto para descontrair, George. É melhor do que fazer recortes.
Ele riu-se.
— Temos a audiência prévia ao julgamento na próxima semana.
— Cinco semanas passam a voar quando nos andamos a divertir, hum?
— Eu não diria propriamente a divertir — disse George. Saíram da carreira de tiro e começaram a atravessar os campos verdejantes da academia da polícia. — Na verdade, é por isso que aqui estou. Só queria ter a certeza de que o MP está devidamente protegido, antes de entrar em ação.
Lizzie encolheu os ombros.
— Não consegui arrancar nada ao irmão, mas posso voltar e ver se ele fala outra vez. As provas são inequívocas. A única coisa que falta é o dador do esperma, mas isso nem sequer importa, uma vez que o móbil do crime existe de qualquer das maneiras. Se foi um rapaz amish, ela matou o bebé para não dar cabo das suas hipóteses com o namorado grande e louro. Se foi um miúdo normal fora da comunidade, ela matou o bebé para não ter de admitir um relacionamento com um forasteiro.
— Fomos muito rápidos a considerar Katie Fisher como principal suspeita — disse George com ar pensativo. — Pergunto-me se não teremos descurado alguém.
— Ela estava a sangrar como um porco na matança, foi por isso que a considerámos suspeita — respondeu Lizzie. — Ela teve aquele bebé e ele nasceu dois meses antes do tempo, por isso quem mais podia saber que tinha chegado a altura? Já sabemos que ela o escondeu dos pais, portanto eles estão fora da equação. Não ia contar ao Samuel, uma vez que o bebé não era dele. Mesmo que quisesse contar ao irmão ou à tia que as contrações tinham começado, não podia propriamente sacar de um telemóvel às duas da manhã.
— Podemos ligá-la de forma conclusiva ao nascimento, mas não ao homicídio.
— Temos a motivação e a lógica do nosso lado. Sabes que noventa por cento dos homicídios são cometidos por alguém que tem uma relação pessoal com a vítima. Tens a noção de que esse número sobe quase para cem por cento quando há um recém-nascido envolvido?
George parou e desatou a rir.
— Estás a candidatar-te a minha assistente, Lizzie?
— Conflito de interesses. Já vou depor pelo MP.
— Bem, é uma pena, porque acho que, mesmo sozinha, conseguias convencer o júri de que Katie Fisher é culpada.
Lizzie sorriu para ele.
— Tens razão — disse. — Mas tudo o que sei aprendi contigo.
Uma das vacas tinha parido às primeiras horas da madrugada. Aaron passara a maior parte da noite levantado, pois o bezerro não dera bem a volta. Sentia os braços doridos de estarem dentro da vaca, cujas contrações os tinham trilhado e pisado. Mas agora via ali aquela pequena maravilha preta, malhada de branco, a vacilar sobre as patinhas finas, ao lado da parede de apoio da mãe.
Começou a espalhar feno fresco no recinto, enquanto o bezerro mamava na mãe. Passado um dia, a cria seria levada e alimentada a biberão.
Estás a ver?, azucrinou-o uma vozinha. Os bebés estão sempre a ser tirados às mães!
Conseguiu afastar o pensamento precisamente na altura em que Katie transpôs a porta do celeiro. O fumo aromático saía da caneca de café que ela lhe estendia.
— Oh, outro bezerro — disse ela, com os olhos a brilhar. — É tão querido...
Aaron conseguia lembrar-se da filha com quase todos os bezerros que tinham nascido na quinta, e era um número considerável. Ela dava o biberão aos bebés desde uma altura em que era quase tão pequena quanto os bezerros de que cuidava. Aaron conseguia lembrar-se da primeira vez que lhe mostrara como se enfiava um dedo na boca do bezerro, onde não havia dentes superiores para morder. Conseguia lembrar-se de lhe explicar como é que a língua de um bezerro se enrolava à nossa volta e nos puxava, com a aspereza de uma folha de lixa e imensa força. E conseguia lembrar-se da forma como os olhos dela se tinham arregalado quando, da primeira vez, fora exatamente como ele dissera.
Enquanto chefe da família, cabia-lhe a responsabilidade de ensinar aos descendentes os costumes da Gente Simples: como se entregarem a Deus, como navegar o caminho entre o que estava errado e o que estava certo. Viu Katie ajoelhar-se no feno fresco, a esfregar os caracóis de pelo que continuavam colados em espirais molhadas ao dorso do bezerro. Fez-lhe lembrar demasiado o que tinha acontecido há poucas semanas. Fechando os olhos, afastou-se dela.
Katie levantou-se lentamente e falou, com uma voz tão trémula quanto um animal recém-nascido.
— Já passaram cinco dias desde a confissão de joelhos. Nunca mais vai voltar a falar comigo, Dat ?
Aaron amava a filha; o que ele mais queria era sentá-la no colo, como quando ela era pequenina e o mundo se limitava à envergadura dos seus braços. Mas era ele o culpado do pecado e da vergonha de Katie, simplesmente porque não os conseguira impedir. E também lhe cabia arcar com as consequências, por mais dolorosas que fossem.
— Dat ? — sussurrou Katie.
Aaron levantou uma mão, como que para a repelir. A seguir, pegou na caneca de café e deu meia-volta, saindo do celeiro com os ombros descaídos e o andar pesado de um homem muito mais velho e sensato.
— Já te fartaste? — perguntou Coop do outro lado da mesa juncada de pratos, e Ellie não conseguiu responder de imediato. Não conseguia comer nem mais uma garfada, mas ainda não estava farta. E achava que nunca se iria fartar do rebuliço e do falatório, da mistura inebriante dos perfumes, do som dos carros a passar lá em baixo na rua e que chegava ao restaurante na cobertura.
Ellie viu a luz do lustre fazer saltar um arco-íris do seu copo de Chardonnay e sorriu.
— Qual é a graça? — perguntou Coop.
— Eu — disse Ellie, com uma gargalhada a assomar-lhe aos lábios. — Sinto-me como se tivesse de continuar a inspecionar os sapatos para ver se têm esterco agarrado.
— Cinco semanas numa quinta não são o suficiente para fazer de ti uma Daisy Mae. Além disso, o teu vestido favorece-te muito mais do que umas jardineiras.
Ellie passou as mãos pela cintura e ancas, deliciando-se com a sensação do shantung de seda contra a sua pele. Nunca teria pensado que Leda fosse capaz de escolher algo tão simples e sexy no expositor do Macy’s, mas a verdade é que muita coisa a surpreendera, ultimamente. Incluindo os olhares discretos que Sarah e Katie tinham trocado ao almoço, claramente partilhando um segredo que não tinham confiado a Ellie. E incluindo a chegada inesperada de Coop, cortando-lhe a respiração com o seu fato escuro, a gravata de seda e o pequeno bouquet; suficientemente atencioso para ter trazido Leda como conspiradora, que apareceu com roupa formal e sapatos altos, decidida a guardar Katie enquanto Coop levava Ellie a jantar em Filadélfia.
O vinho deixava-lhe as pernas bambas e fazia-a sentir que tinha um colibri no lugar do coração.
— Não posso crer que fizemos uma viagem de duas horas para vir a um restaurante — murmurou Ellie. Era um restaurante maravilhoso, com orquestra ao sábado à noite e as luzes da cidade refletidas nas janelas do chão ao teto, mas pensar que Cooper tinha feito a viagem até casa dos Fisher para voltar em seguida a Filadélfia fazia Ellie sentir coisas que não estava pronta para sentir.
— Hora e meia, na verdade — corrigiu Coop. — E olha que levei algum tempo a encontrar um lugar que servisse uma conserva de legumes decente.
Ellie resmungou.
— Oh, por favor, não fales nesse prato!
— Talvez umas tripinhas de conserva fossem mais adequadas...
— Não — disse ela, rindo. — E, se pensares sequer em pronunciar as palavras «bolinho de massa», não me responsabilizo pelas minhas ações.
Coop olhou de relance para o prato vazio de Ellie, que tinha vindo com uma posta de peixe-espada grelhado.
— Parece que os frutos do mar não são grande coisa em casa dos Fisher?
— Tudo aquilo a que a Sarah não puder juntar um molho rico e espesso, não vem para a mesa. Vou ganhar tanto peso enquanto lá estou que não vou caber nos meus fatos quando chegar a altura do julgamento.
— Ah, mas o objetivo é esse. Tens de engordar o suficiente para o juiz acreditar que nunca te escapuliste daquela quinta, nem mesmo para um almoço com poucas calorias.
Ellie espreguiçou-se no seu lugar, como um gato.
— Eu gosto de me escapulir da quinta — disse. — Precisava de me escapulir. Obrigada.
— Obrigado eu — disse ele. — A minha companhia para jantar nunca é assim tão divertida. És sem dúvida a primeira pessoa a falar em esterco.
— Estás a ver? Já perdi a minha vantagem. Talvez devesse fazer o que a Katie sugeriu.
— O que é que a Katie sugeriu?
— Ela disse... deixa ver se me consigo lembrar das palavras exatas... que, se eu quisesse um beijo de boa-noite, devia ir para cima de ti nas curvas e tecer comentários sobre o teu cavalo.
Coop desatou a rir.
— É sobre isso que vocês falam?
— Nós somos apenas duas raparigas numa festa de pijama. — Ellie fez um grande sorriso. — Já te disse que tens um lindo cavalo?
— Acho que não.
Ellie inclinou-se para a frente.
— Um belo garanhão.
— Tenho de te pôr a beber mais vezes. — Coop levantou-se e puxou-lhe pela mão. — Quero dançar contigo.
Ellie deixou-o arrastá-la até ficar de pé.
— Mas isso significa que o baile vai chegar ao fim — lamuriou-se. — Vou transformar-me numa abóbora.
— Só se continuares a comer os bolinhos de massa da Sarah. — Coop puxou-a para si e começou a fazê-la rodar lentamente pela pista de dança.
Ellie descansou a cabeça por baixo do queixo dele. Tinham as mãos entrelaçadas como hera, a crescer entre os seus corações; e o polegar dele roçou a pele nua do ombro dela. Ellie fechou os olhos quando os lábios dele lhe afloraram a têmpora e deixou-se conduzir em suaves círculos. Por instantes, deixou de pensar em Katie, no julgamento, na sua defesa, no que quer que fosse para além do calor incrível da mão de Coop nas suas costas. A melodia parou e, quando os músicos pousaram os seus instrumentos para uma pausa e os pares abandonaram a pista, Ellie e Coop continuaram nos braços um do outro, a entreolharem-se simplesmente.
— Acho que gostava de ver o estábulo onde guardas o cavalo — murmurou Ellie.
Coop olhou-a atentamente.
— O celeiro não é grande coisa.
— Não me importo.
E ele sorriu tão intensamente que ela rejubilou com isso e não notou que a temperatura tinha descido, nem mesmo depois de já estarem lá fora, a caminho do apartamento dele, com as janelas abertas. Sentou-se tão perto dele quanto a consola permitia, com as mãos entrelaçadas na alavanca das mudanças. Quando chegaram a casa, Coop fez rodar a chave na fechadura e abriu a porta, pedindo desculpa desde o primeiro momento.
— Está um bocado desarrumado. Eu não sabia...
— Não faz mal. — Ellie entrou cautelosamente, como se um passo demasiado pesado pudesse quebrar a magia. Tomou consciência do copo de Coca-Cola que deixara um círculo de transpiração na mesa de centro; das revistas de psiquiatria que juncavam o chão como canteiros de lírios; dos ténis de corrida unidos pelos atacadores e pendurados nas travessas de uma cadeira. A mobília não combinava entre si.
— A Kelly ficou com a maior parte das coisas — disse ele baixinho, lendo-lhe o pensamento. — Isto foi o que ela não quis.
— Creio que me lembro da mesa de centro, do tempo da faculdade.
Ellie foi até à estante dos livros, até à aparelhagem de último modelo.
— Dizem que se pode saber muito sobre uma pessoa a partir da sua coleção de CDs — disse Coop. — Estás a tentar entender a minha maneira de ser?
— Na verdade, estou só a olhar para os fios elétricos. Há muito tempo que não via assim tantos. — Levou o dedo a uma pequena fotografia, que a mostrava a ela pendurada de cabeça para baixo no ramo de uma macieira, uma pernada acima daquela em que Coop se sentara para tirar a foto. — Também me lembro disto, do tempo da faculdade — disse ela, baixinho. — Ainda a tens?
— Desencantei-a recentemente.
— Não paravas de dizer para não me rir — murmurou Ellie. — E eu não parava de te dizer para tirares a porcaria da fotografia antes que a minha camisola descesse outra vez até ao pescoço e eu mostrasse o que não devia.
Coop sorriu.
— E eu disse...
— «Qual é o problema?» — interrompeu Ellie. — Qual foi o problema, Coop?
— Pensei sobre isso — disse ele, unindo os braços por trás dela. — E juro que não me consigo lembrar, El. — Deslizou as mãos pelo corpo dela acima. O seu beijo, de boca aberta, ateou o fogo dentro dela. Ellie tirou-lhe a camisa de dentro das calças e passou as mãos pelos músculos das suas costas, puxando-o cada vez mais para si até sentir o coração dele equilibrado sobre o seu.
Caíram juntos no sofá, espalhando um monte de papéis. As mãos dele prenderam-se no cabelo dela, puxando-a para baixo, enquanto ela lhe abria o cinto e o fecho de correr. Coop estreitou-a ainda mais.
— Consegues sentir? — sussurrou. — O meu corpo lembra-se de ti.
E, de repente, Ellie tinha outra vez dezoito anos e estava presa como uma borboleta sob a confiança de Coop. Nessa altura, amava-o tanto que levou meses a perceber que o que Coop a fazia sentir não era necessariamente o que ela queria. Nessa altura, tinha-lhe dito uma mentira para o poupar, uma mentira que magoava ainda mais por estar tão longe da verdade: tinha-lhe dito que não o amava o suficiente.
— Não posso fazer isto — disse ela em voz alta, as palavras que não tivera coragem para pronunciar quando estava na faculdade. Empurrou o peito e as pernas de Coop, sentando-se na ponta do sofá, a agarrar o corpete do vestido.
Ele recuperou o sangue-frio aos poucos.
— O que se passa? — perguntou.
— Não posso. — Ellie nem conseguiu olhar para ele. — Desculpa. É melhor... ir embora.
Ele cerrou os maxilares.
— Qual é a desculpa, desta vez?
— Tenho de voltar para junto da Katie.
— Não é de mim que precisas de manter a distância, mas sim da tua pequena cliente amish. És advogada dela, Ellie, não mãe dela — resmungou Coop. — Tu não estás com medo de um juiz qualquer ou de uma condição de fiança. Estás aterrorizada pelo facto de, uma vez na vida, estares prestes a começar uma coisa e poderes não a fazer bem.
— Tu não sabes nada sobre...
— Por amor de Deus, Ellie! Sei mais sobre ti do que tu própria. Notas altas, quadro de honra, Phi Betta Kappa. Fizeste o possível por conseguir os casos mais difíceis e ganhaste praticamente todos, mesmo aqueles que te repugnam só de pensar neles. Nunca te casaste, mantiveste uma relação da qual devias ter saído há anos porque não te importavas o suficiente com ela para te ralares se fosse para as urtigas. Estás perfeitamente disposta a deixar-me com os tomates inchados desde que isso signifique que não corres o risco de te envolver, pois nesse caso terias um interesse particular no desfecho e, para falar com franqueza, o nosso historial não é assim tão bom. És a perfeccionista típica e não gostas de te aventurar porque as coisas podem correr mal.
Quando Coop terminou, as suas palavras já eram gritos. Ellie pôs-se em pé e tentou encontrar os sapatos. A cabeça doía-lhe quase tanto como o coração.
— Chega de psicanálise!
— Sabes qual é o teu problema? Se nunca te aventurares, nunca saberás o que estás a perder.
Ellie conseguiu enfiar os pés nos sapatos e encontrar a mala.
— Tens-te em grande conta — disse ela, calmamente.
— É impressão minha, Ellie, ou dás falsas esperanças a todos e depois dás uma volta de cento e oitenta graus? Que poder é que o Stephen tinha sobre ti para te impedir de fugir durante estes anos todos?
— Ele não me amava! — Ao mesmo tempo que as palavras explodiam na sala silenciosa, virou as costas a Coop. Tinha sido muitas coisas para Stephen: colega de quarto, interlocutora jurídica, parceira sexual... Mas nunca a pessoa com quem partilhar a vida. E, por causa disso, nunca se sentira sufocada. Nunca se sentira como vinte anos antes, com Coop. — Pronto — disse ela, em voz trémula. — Era isso que querias ouvir? — Destroçada, Ellie encaminhou-se para a porta. — Não vale a pena levantares-te. Eu volto pelos meus meios.
Coop olhou para ela, para a dor que parecia fluir de um manancial inexplorado, uma dor que continuou a encher os confins do seu pequeno apartamento muito depois de ela se ter ido embora.
Uma vez, antes de Samuel ter sido batizado na igreja, tinha conduzido um automóvel. Um dos seus amigos, Lefty King, comprara um em segunda mão e tinha-o escondido atrás do barracão de tabaco do pai, onde o velhote fingia não o ver sempre que deparava com ele. Samuel tinha ficado maravilhado com a condução fluida, com o facto espantoso de poder andar em ponto morto sem que o carro corresse para a beira da estrada, para pastar.
Esta noite, estava a pensar naquele carro enquanto levava Mary Esch a casa na carroça que costumava usar para fazer a corte. A Lua estava reduzida a uma tirinha, o tipo de Lua que a sua mãe costumava dizer que parecia uma bolacha quase toda comida, o que lhe dava a cobertura perfeita para o que tinha em mente.
O problema de Mary é que não parava de falar. Era sua prima em terceiro grau, por isso não causara estranheza o facto de a convidar para comer um gelado. E Samuel achava-a suficientemente bonita, com cabelo escuro e farto como um campo recém-lavrado e boca em forma de lacinho. Mas Samuel escolhera-a entre todas as outras por ser a melhor amiga de Katie, e isto era o mais próximo que conseguia chegar dela.
Himmel, agora estava a falar sobre o irmão mais novo, Seth, que tinha caído essa tarde na pocilga quando tentava equilibrar-se na vedação do recinto. Samuel estalou a língua no céu da boca e puxou as rédeas devagarinho, de forma que a carroça parou numa pequena curva no topo da colina.
Mary falava com tanto empenho que levou um minuto a perceber que não estavam a andar.
— Porque é que paraste? — perguntou.
Samuel encolheu os ombros.
— Achei que estava uma noite bonita.
Ela olhou para ele com alguma estranheza, e com razão. O céu estava escuro e nublado e a única luz visível vinha do pedacinho de Lua.
— Samuel — disse ela, com os olhos a tornarem-se leitosos, daquela forma que só as raparigas conseguiam —, precisas de alguém com quem falar, é isso?
Ele sentiu o coração inchar como o fole do ferreiro, pronto para lhe sair do peito. É agora ou nunca, disse para consigo.
— Mary — disse ele, e depois puxou-a para os seus braços, encostando a boca com força contra a dela.
Ela não era Katie, foi o seu único pensamento. Não sabia a baunilha como Katie, o corpo dela não se ajustava nos seus braços e, quando ele pressionou um pouco mais, rasparam os dentes um no outro. Apalpou-lhe o seio, ciente de que ela estava a tentar repeli-lo e a ficar assustada, mas também ciente de que, pelo menos uma vez, alguém fizera aquilo e mais ainda à sua Katie.
— Samuel! — Mary afastou-se dele com grande esforço e foi para a outra ponta da carroça. — O que é que te deu?
Ela tinha a cara manchada, os olhos arregalados e aterrorizados. Santo Deus, ele tinha-lhe mesmo feito aquilo? Era àquilo que estava reduzido?
— Desculpa... desculpa. — Samuel vergou-se sob o peso da vergonha e cruzou os braços sobre o peito. — Eu não queria... — Enterrou o rosto na camisa e tentou reprimir as lágrimas. Ele não era um bom cristão, de maneira nenhuma. Não só acabara de atacar a pobre Mary Esch, como não conseguia aceitar a confissão de Katie. Perdoá-la? Ele nem sequer era capaz de ultrapassar a realidade nua e crua.
Sentiu a mão suave de Mary pousar no seu ombro.
— Samuel, vamos para casa e pronto. — Ele sentiu a carroça dar um solavanco quando ela desceu e trocou de lugar com ele, para poder tomar as rédeas.
Samuel enxugou rapidamente os olhos.
— Não me estou a sentir muito gut — admitiu.
— Não me digas — respondeu Mary, com um leve sorriso. Esticou o braço e deu-lhe umas palmadinhas na mão. — Vais ver que vai ficar tudo bem — disse ela compreensivamente.
O juiz Phil Ledbetter do Tribunal de Última Instância era, afinal, uma mulher.
Ellie levou quase trinta segundos a digerir esse facto, enquanto se sentava no gabinete da juíza com George Callahan, para uma audiência prévia ao julgamento. Phil, ou Philomena, como dizia a placa com o seu nome, era uma mulher pequena, de cabelo ruivo e permanente apertada, trejeito de pragmatismo na boca e voz chilreante. A sua grande secretária estava juncada de fotografias dos filhos, que tinham herdado os quatro a sua cor de cabelo. De uma maneira geral, isto não era bom para Katie. Ellie estava a apostar num juiz do sexo masculino, um juiz que não soubesse nada sobre dar à luz, um juiz que se sentisse vagamente desconfortável a crucificar uma jovem que estava a ser julgada por neonaticídio. Por outro lado, uma juíza, que sabia o que era carregar uma criança e segurá-la nos braços quando vinha ao mundo, tinha mais probabilidades de odiar Katie à primeira vista.
— Doutora Hathaway, doutor Callahan, porque é que não começamos? — A juíza abriu o processo que tinha à sua frente, sobre a secretária. — A investigação está concluída?
— Sim, meritíssima — disse George.
— Algum dos dois tem requerimentos a apresentar? Ah, aqui está um seu, doutora Hathaway, a pedir que seja proibida a presença de jornalistas na sala de audiências. Porque é que não tratamos já deste?
Ellie pigarreou.
— Estar em tribunal é contrário à religião da minha cliente, meritíssima. Mas mesmo fora da sala de audiências os Amish são avessos à fotografia. É pelo facto de levarem a Bíblia à letra — explicou. — «Não farás para ti imagem de escultura, nem figura alguma de tudo o que existe.» Êxodo 20, 4.
George interrompeu:
— Meritíssima, não separámos a Igreja do Estado há cerca de duzentos anos?
— É mais do que isso — prosseguiu Ellie. — Os Amish pensam que, se lhes tirarem uma fotografia, podem começar a levar-se demasiado a sério ou a tentar ganhar notoriedade, o que vai contra o seu espírito de humildade. — Olhou insistentemente para a juíza. — A minha cliente já está a comprometer os seus princípios religiosos para ir a julgamento, meritíssima. Se temos de levar esta farsa para a frente, ao menos podemos torná-la mais confortável para ela.
A juíza virou-se:
— Doutor Callahan?
George encolheu os ombros.
— Está bem, que diabo! Vamos tornar as coisas confortáveis para a arguida. E já agora, que estamos com a mão na massa, porque é que não aproveitamos para dar colchões de penas e um chef gourmet aos prisioneiros que estão na penitenciária estadual? Com todo o respeito que a doutora Hathaway e a religião da sua cliente me merecem, isto é um julgamento público, um homicídio público. A imprensa tem o direito de fazer a sua cobertura. E Katie Fisher abdicou de determinados direitos constitucionais quando violou alguns dos mais importantes. — Virou-se para Ellie. — Esqueça as imagens de esculturas... E que tal o mandamento «Não matarás!»? Se ela não queria notoriedade, não devia ter cometido homicídio.
— Ninguém provou que o cometeu — redarguiu Ellie. — Sinceramente, meritíssima, isto é uma questão religiosa e o doutor Callahan está a oscilar perigosamente entre a ironia e a difamação. Penso...
— Eu sei o que pensa; já nos deixou perfeitamente esclarecidos. A imprensa terá autorização para estar na sala de audiências, mas as câmaras e o equipamento de vídeo serão proibidos. — A juíza virou uma página do processo. — Há outra coisa que me salta à vista, doutora Hathaway. Devido à natureza do crime, especula-se sobre uma eventual alegação de insanidade mental. Como com certeza saberá, já expirou o prazo para notificar o tribunal de tal facto.
— Meritíssima, esses prazos podem ser prorrogados desde que haja fundamento para isso, e eu preciso que a minha cliente seja vista por um psiquiatra forense antes de pensar em qualquer teoria de defesa. No entanto, ainda não decidiu sobre o meu requerimento a pedir outros serviços para além de apoio jurídico.
— Ah, sim. — A juíza levantou uma folha orlada de botões de rosa nas margens, papel de carta para impressora de jato de tinta que Leda aparentemente usara para imprimir o ficheiro gravado no disco de Ellie. — Devo dizer que é o requerimento mais bonito que alguma vez me apresentaram.
Ellie resmungou de si para si.
— Peço desculpa, meritíssima. As minhas atuais condições de trabalho estão longe de ser as ideais. — Perante o riso à socapa de George, virou-se resolutamente para a juíza. — Preciso que o MP pague uma avaliação, antes de notificar o que quer que seja.
— Bem — disse George —, se conseguires um psiquiatra forense, também peço um psiquiatra forense. Quero que a rapariga seja avaliada para o MP.
— Porquê? Só estou a pedir dinheiro para pagar um psiquiatra para poder chegar a uma conclusão sobre a linha de defesa da minha cliente. Ainda não estou a dizer que vou alegar insanidade mental. A única coisa que reconheço é que sou advogada, e não psiquiatra. Se decidir avançar com a alegação de insanidade mental, entrego os relatórios e vocês podem pedir ao vosso psiquiatra para avaliar a minha cliente, mas no pé em que estão as coisas não deixarei que seja examinada por nenhum psiquiatra vosso até optar por essa linha de defesa.
— Pode ter o seu psiquiatra — disse a juíza. — De quanto dinheiro precisa?
Ellie esforçou-se por recordar quais os honorários habituais.
— Entre mil e duzentos e dois mil dólares.
— Está bem. Considere-se financiada com um plafond de dois mil dólares, a menos que me apresentem razões para um valor superior. Se quiserem apresentar outros requerimentos, têm trinta dias para o fazer. Teremos a nossa última audiência prévia dentro de seis semanas. Será que é tempo suficiente para os dois?
Ellie e George murmuraram a sua anuência e a juíza levantou-se.
— Se me dão licença, esperam-me no tribunal. — Passou por eles como um furacão, deixando-os sozinhos no seu gabinete.
Ellie juntou os seus papéis, enquanto George premia o botão da sua esferográfica e voltava a guardá-la no bolso interior do casaco.
— Então... — disse, sorrindo. — Como é que vai a ordenha?
— Tu lá deves saber, meu campónio.
— Posso ser um advogado rural, Ellie, mas licenciei-me em Filadélfia, tal como tu.
Ellie pôs-se em pé.
— George, faz-me um favor e vai ver se chove. Já vi burros suficientes nas últimas semanas.
George riu-se e agarrou no seu portfólio, a seguir segurou a porta para Ellie sair.
— Se tivesse um caso tão desprezível como tu, acho que também estaria de mau humor.
Ellie passou por ele.
— Não te deites a adivinhar — disse ela. — És capaz de estar enganado.
Coop tinha pedido a Katie que lhe falasse dos dias anteriores ao nascimento, esperando suscitar uma recordação, embora ao fim de uma hora não tivesse havido grandes avanços. Inclinou-se para a frente.
— Então, estavas a estender a roupa. Conta-me o que sentiste quando te dobraste para chegar ao cesto da roupa molhada.
Katie fechou os olhos.
— Senti-me bem. Fresca. Peguei numa das camisas do meu Dat e esfreguei-a no rosto, que estava muito quente.
— Foi difícil dobrares-te?
Ela franziu a testa.
— Fez-me doer as costas. Senti a coluna presa, como às vezes acontece quando estou naquela altura do mês.
— Há quanto tempo é que tinhas tido a última menstruação?
— Há muito — admitiu Katie. — Pensei nisso quando estendi as minhas cuecas para secar.
— Sabes que a ausência de menstruação é sinal de gravidez? — perguntou Coop, gentilmente.
— Ja, mas não era a primeira vez que tinha atrasos. — Katie brincou com a bainha do avental. — Estava sempre a dizer isso a mim mesma.
Os olhos de Coop semicerraram-se.
— Porquê?
— Porque... porque eu... — O rosto de Katie contorceu-se, ruborizado.
— Conta-me — incitou ele.
— Da primeira vez que me faltou — disse Katie, com as lágrimas a correr pelas faces —, disse a mim mesma para não me preocupar com isso. E depois deixei de me preocupar durante um tempo. Mas andava tão cansada que tinha muita dificuldade em manter-me acordada a seguir ao jantar. E, quando punha o avental, tinha de me esforçar bastante para fazer os alfinetes entrar nos mesmos buracos que antes. — Respirou, trémula. — Pensei... pensei que podia estar, mas não fiquei tão grande como a minha mãe quando estava grávida da Hannah. — Levou as mãos à barriga. — Aqui não tinha nada.
— Alguma vez sentiste alguma coisa a mexer dentro de ti? A dar pontapés?
Katie ficou calada durante tanto tempo que Coop já estava a preparar-se para lhe fazer outra pergunta. Depois, de repente, a sua voz fez-se ouvir, baixa e triste.
— Às vezes, acordava-me durante a noite — confessou.
Coop levantou-lhe o queixo, obrigando-a a olhá-lo nos olhos.
— Katie, naquele dia em que estavas a estender a roupa, naquele dia em que as costas te doeram, o que é que sabias?
Ela pregou os olhos no colo.
— Que estava grávida.
Coop ficou petrificado diante da confissão.
— Contaste à tua mãe?
— Não podia.
— Contaste a alguém?
Ela abanou a cabeça.
— Ao Senhor. E pedi-Lhe que me ajudasse.
— Nessa noite, a que horas acordaste com dores?
— Não acordei.
— Está bem — disse Coop. — Nesse caso, quando é que foste para o celeiro?
— Não fui.
Ele esfregou a cana do nariz.
— Katie, sabias que estavas grávida quando te foste deitar nessa noite.
— Sim.
— Continuavas a pensar que estavas grávida na manhã seguinte?
— Não — respondeu Katie. — Tinha desaparecido. Percebi isso de repente.
— Nesse caso, alguma coisa deve ter acontecido entre essa noite e a manhã seguinte. O que aconteceu?
Katie reprimiu as lágrimas.
— Deus atendeu as minhas preces.
Por acordo tácito, nem Ellie nem Coop falaram do fiasco ocorrido umas noites antes, no apartamento dele. Eram colegas, corteses e profissionais, e enquanto ouvia Coop falar sobre a sua sessão com Katie, Ellie esforçou-se por não sentir que faltava alguma coisa.
Na privacidade do celeiro, Coop viu Ellie puxar pela cabeça enquanto analisava a confissão de gravidez de Katie.
— Ela chorou?
— Sim — respondeu Coop.
— Isso pode ser prova de remorso.
— Ela chorou, mas não foi por causa do bebé; foi por causa da confusão em que se meteu. Além disso, continua amnésica em relação a como ficou grávida. E, em vez de um nascimento, temos intervenção divina.
Ellie sorriu ligeiramente.
— Bem, isso seria novidade, em termos de defesa.
— O que estou a dizer, Ellie, é que ainda não deves festejar a vitória. Ela escondeu a gravidez, e hoje admitiu tê-lo feito. Em primeiro lugar, isso é duvidoso. Muitas vezes, as vítimas de amnésia apresentam memórias falsas: a história que ouviram da imprensa e da família. O pior é que, depois de a contarem, passam a acreditar piamente nela, quando na realidade as coisas podem não se ter passado assim. Mas vamos supor que a Katie está a dizer a verdade e talvez se tenha acabado de lembrar que estava grávida. Talvez venham a existir outras confissões, à medida que os mecanismos de defesa dela forem cedendo. Ou talvez não. O que aconteceu tem valor terapêutico para a Katie, mas não para ti nem para a tua defesa: nunca ninguém duvidou de que ela teve um bebé, a não ser a própria Katie. E esconder uma gravidez não é normal, mas também não é ilegal.
— Eu sei qual o crime por que ela vai ser julgada! — retorquiu, desabridamente.
— Eu sei que sim — disse Coop. — Mas será que ela sabe?
Adam estava em pé, por trás de Katie, com as mãos cerradas sobre as dela, que segurava as varinhas.
— Estás pronta? — sussurrou ele, ao mesmo tempo que uma coruja do celeiro piou. Avançaram, andando à volta do lago, com os sapatos a pisar a relva seca. Katie conseguia sentir o coração de Adam a bater com força, e perguntou-se porque é que também ele parecia nervoso; perguntou-se que diabo tinha ele a perder.
As varinhas começaram a tremer e a saltar e Katie recuou instintivamente, colando-se a Adam. Ele murmurou qualquer coisa que ela não ouviu e, juntos, lutaram para continuar a segurar as varinhas.
— Leva-me lá — disse ele, e Katie fechou os olhos.
Imaginou o frio daquele dia, a forma como apertavam as narinas e as sentiam pegar, a forma como, quando tiravam as luvas para apertar os patins, os dedos ficavam inchados e vermelhos como salsichas. Imaginou o grito de prazer que Hannah soltara quando patinara até ao centro do lago, com o xaile a voar atrás dela. Imaginou o cabelo louro e brilhante da irmã a espreitar por baixo da sua kapp. Acima de tudo, lembrava-se da sensação da mão de Hannah na dela quando iam a descer a ladeira escorregadia até ao lago, pequena, quente e totalmente confiante na capacidade de Katie de não a deixar cair.
A pressão nas varinhas de vedor parou e Katie abriu os olhos quando Adam susteve a respiração.
— É igual a ti — sussurrou.
Hannah patinou para longe deles, a fazer figuras cerca de quinze centímetros acima da superfície da água.
— O lago estava mais alto nessa altura — disse Adam. — É por isso que ela parece flutuar.
— Tu vê-la! — murmurou Katie, mais animada. Deixou cair as varinhas e abraçou Adam. — Consegues ver a minha irmã! — Desconfiada, recuou para o interrogar. — De que cor são os patins?
— Pretos. E têm ar de ser em segunda mão.
— E o vestido?
— Esverdeado. Clarinho, como limonada.
Adam levou-a até ao banco, à beira do lago.
— Conta-me o que aconteceu naquela noite.
Katie pintou a cena com palavras: a escapadela de Jacob para o celeiro, as lantejoulas da campeã de patinagem artística com que andava a sonhar, as lâminas dos patins de Hannah a raspar nas finas placas de gelo.
— Eu devia estar a tomar conta dela e, em vez disso, só conseguia pensar em mim — disse ela finalmente, extremamente infeliz. — A culpa foi minha.
— Não podes pensar assim. Foi apenas uma coisa terrível que aconteceu. — Tocou na face de Katie. — Olha para ela. Está feliz. Consegues senti-lo.
Katie olhou para ele.
— Já me disseste que aqueles que voltam, aqueles que se tornam fantasmas, deixaram para trás algo que os atormenta. Se ela está tão feliz, Adam, porque é que continua aqui?
— O que eu te disse — corrigiu Adam gentilmente — é que aqueles que voltam têm uma ligação emocional com o mundo. Às vezes é angústia, outras vezes é raiva... mas, Katie, às vezes é apenas amor. — As palavras ergueram-se docemente entre eles. — Às vezes, ficam porque não querem deixar alguém para trás.
Ela continuou completamente imóvel enquanto Adam se inclinava para ela. Esperou que ele a beijasse, mas não o fez. Parou a escassos centímetros, esforçando-se por encontrar a força de vontade para não lhe tocar.
Katie sabia que ele ia partir no dia seguinte, sabia que ele se movia num mundo que nunca seria o seu. Pôs as mãos nas faces dele.
— Virás assombrar-me? — sussurrou, e encontrou os seus lábios a meio caminho.
Katie estava a limpar os arreios usados pelas mulas e por Nugget quando uma voz a sobressaltou.
— Fizeram-te ficar com as minhas tarefas — disse Jacob, com tristeza. — Nunca pensei sequer em perguntar-te sobre isso.
Ela deu meia-volta, com a mão na garganta.
— Jacob!
Ele abriu os braços e ela voou para eles.
— A mãe sabe...
— Não — disse ele, cortando-lhe a palavra. — E vamos deixar as coisas assim. — Abraçou-a com força e depois afastou-a um pouco.
— Katie, o que aconteceu?
Ela enterrou novamente o rosto no seu peito. Ele cheirava a pinheiro e a tinta e era tão sólido, tão forte para ela.
— Não sei — murmurou. — Pensava que sabia, mas agora já não tenho a certeza.
Sentiu Jacob voltar a afastar-se para fixar os olhos no seu avental.
— Tu tiveste... um bebé — disse ele, pouco à vontade, e depois engoliu em seco. — Estavas grávida da última vez que me viste.
Ela assentiu e mordeu o lábio inferior.
— Estás muito zangado por causa disso?
Ele deslizou a mão pelo braço dela e apertou-lhe a mão.
— Não estou zangado — disse, sentando-se na borda de uma carroça. — Estou arrependido.
Katie sentou-se ao lado dele e encostou a cabeça ao seu ombro.
— Também eu — murmurou.
Mary Esch veio fazer uma visita no domingo. Trazia patins em linha e um disco voador. Ellie sentiu vontade de ir a correr ter com ela para lhe dar um abraço. É que, à luz das memórias recentemente recuperadas sobre o bebé, Katie precisava de uns momentos para voltar a ser apenas uma adolescente, sem quaisquer responsabilidades. Enquanto Ellie lavava a louça do almoço, Mary e Katie andavam a correr de um lado para o outro no pátio, com as saias enfunadas quando saltavam no ar para apanhar o disco néon.
Cheias de calor e atordoadas, as raparigas deixaram-se cair sobre a relva junto à janela da cozinha, que Ellie abrira para deixar entrar uma leve brisa. Conseguia ouvir fragmentos de conversa que se sobrepunham ao jato da torneira: «... ter visto a mosca que pousou no nariz do bispo Ephram», «... perguntou por ti», «... não estou assim tão sozinha, a sério».
Mary fechou os olhos e esfregou o vidro frio de uma garrafa de refrigerante na testa.
— Acho que este é o verão mais quente de que me lembro — disse ela.
— Não. — Katie sorriu. — Apenas tiramos as coisas da cabeça quando não estão à nossa frente, é só isso.
— Mesmo assim, está um calor horrível. — Pousou a garrafa e ajeitou a saia sobre os dedos dos pés, sem saber o que mais havia de dizer.
— Mary, será que as coisas ficaram tão más que já só conseguimos falar sobre o tempo? — disse Katie, baixinho. — Porque é que não me perguntas aquilo que realmente queres perguntar?
Mary pregou os olhos no colo.
— É horrível ser banido?
Katie encolheu os ombros.
— Não é assim tão mau. À hora das refeições, custa mais, mas tenho a Ellie comigo e a minha Mam tenta fazer com que tudo corra bem.
— E o teu Dat?
— O meu Dat não é tão bom a tentar fazer com que tudo corra bem — admitiu. — Mas é a maneira de ser dele. — Pegou na mão da amiga. — Daqui a seis semanas, vai voltar tudo a ser como era.
Quando muito, isto deixou Mary ainda mais perturbada.
— Não sei se será assim, Katie.
— Claro que sabes. Eu já me retratei. Mesmo que o bispo Ephram me peça para me retirar na altura da comunhão, já não serei alvo do bann.
— Não era disso que eu estava a falar — murmurou Mary —, mas sim da forma como os outros poderão agir.
Katie virou-se lentamente.
— Se não conseguirem perdoar o meu pecado, não deviam ser meus amigos.
— Para algumas pessoas, vai ser difícil fingir que não aconteceu nada.
— É a atitude certa de um cristão — disse Katie.
— Ja, mas é difícil ser cristão quando aconteceu com a nossa namorada — respondeu Mary, baixinho. Brincou com as fitas da sua kapp. — Katie, acho que o Samuel é capaz de querer andar com outra pessoa.
Katie sentiu o ar sair de dentro dela, como uma almofada socada bem no meio.
— Quem te disse isso?
Mary não respondeu. Mas o rubor nas faces da amiga, o desconforto óbvio ao mencionar algo tão íntimo quanto a ideia de um namorado, fez com que Katie percebesse exatamente o que tinha acontecido.
— Mary Esch — sussurrou. — Tu não fazias uma coisa dessas!
— Eu não queria! Empurrei-o depois de ele me tentar beijar!
Katie levantou-se, tão zangada que até tremia.
— Mas que grande amiga me saíste!
— Sou tua amiga, Katie. Vim cá para que não tivesses de saber por outra pessoa.
— Quem me dera que não tivesses vindo.
Mary acenou lenta e tristemente. Tirou as meias de dentro dos patins e calçou-os. Deslizando suavemente pelo caminho da entrada, não olhou para trás.
Katie apertou os cotovelos contra o corpo. Um movimento, pensou, e era capaz de se fazer em mil bocadinhos. Ouviu a porta abrir e fechar-se, mas continuou a olhar para os campos, onde Samuel trabalhava com o seu pai.
— Eu ouvi — disse Ellie, tocando-lhe no ombro, por trás. — Lamento.
Katie tentou manter os olhos bem abertos, tão abertos que as lágrimas nem conseguiam correr livremente. Mas depois virou-se e lançou-se nos braços de Ellie. — Não devia ser assim! — gritou. — As coisas não deviam passar-se desta maneira.
— Chiu. Eu sei.
— Não sabes, não — soluçou Katie.
Ellie pousou-lhe a mão fria na nuca.
— Ficarias surpreendida.
Katie queria desesperadamente que a doutora Polacci gostasse dela. Ellie tinha dito que a psiquiatra estava a receber muito dinheiro para ir à quinta encontrar-se com ela. Sabia que Ellie acreditava que aquilo que a doutora Polacci dissesse seria extremamente útil quando chegasse a altura do julgamento. Também sabia que, desde que contara ao doutor Cooper sobre a gravidez, ele e Ellie andavam demasiado frios um com o outro, e Katie achava que, de alguma forma, estava tudo relacionado.
A psiquiatra tinha cabelo preto e macio, cara de lua e o corpo de um grande oceano. Tudo nela incitava Katie a saltar, sabendo que, caísse onde caísse, estaria em segurança.
Sorriu com nervosismo para a doutora Polacci. Estavam sentadas na sala, sozinhas. Ellie tinha querido estar presente, mas a doutora Polacci insinuara que a sua presença podia fazer com que Katie ficasse calada.
— Ela confia em mim — argumentara Ellie.
— É mais uma pessoa diante da qual ela terá de se confessar — replicou a psiquiatra.
Falaram à sua frente, como se ela fosse estúpida ou um cão de companhia, como se não tivesse opinião sobre o que lhe estava a acontecer. Por fim, Ellie fora-se embora. A doutora Polacci tinha deixado claro que estava ali para ajudar Katie a ser absolvida. Tinha dito que Katie devia contar-lhe a verdade, pois com certeza que não queria ir parar à prisão. Bem, lá nisso, a doutora Polacci tinha razão. Por isso, Katie passara a última hora a contar-lhe tudo o que já contara ao doutor Cooper. Foi cuidadosa com a escolha de palavras, pois queria que a evocação fosse o mais exata possível. Queria que a doutora Polacci fosse ter com Ellie e dissesse: «A Katie não é louca; o juiz pode soltá-la.»
— Katie — disse a doutora Polacci, chamando-a à realidade —, em que é que estavas a pensar quando te foste deitar?
— Que me sentia indisposta. E queria ir dormir para ver se acordava melhor.
A psiquiatra escreveu qualquer coisa no seu bloco de notas.
— E o que aconteceu depois?
Ela estava à espera disto, do momento em que os pequenos flashes que lhe tinham vindo à cabeça nos últimos dias lhe voariam da boca, como um bando de estorninhos disperso. Katie quase conseguia sentir novamente a dor aguda que a atravessava como uma foice das costas até à barriga, com uma pressão interna tão violenta que, quando conseguiu respirar outra vez, deu por si enrolada numa bola.
— Fiquei com dores — murmurou. — Acordei e as dores eram horríveis.
A doutora Polacci franziu o sobrolho.
— O doutor Cooper contou-me que não te tinhas conseguido lembrar das dores do parto nem do nascimento do bebé.
— E não tinha — admitiu Katie. — A primeira coisa que me veio à memória foi que estava grávida. Contei ao doutor Cooper que me lembrava de tentar dobrar-me para a frente e de sentir alguma coisa presa no meio, de tal forma que tinha de me desviar. E, desde então, vou recordando cada vez mais coisas.
— Por exemplo?
— A luz do celeiro já estava acesa, embora fosse demasiado cedo para a ordenha. — Estremeceu. — E o quanto me esforcei por mantê-lo lá dentro, mas não consegui.
— Tiveste consciência de que estavas a dar à luz?
— Não sei. Estava apavorada, porque as dores eram muito fortes. Só sabia que tinha de ficar calada, que, se berrasse ou gritasse, alguém podia ouvir.
— As tuas águas romperam-se?
— Não de uma vez, como as da minha prima Frieda quando teve o pequeno Joshua, mesmo no meio do almoço comunitário, durante a construção de um celeiro. As senhoras que estavam sentadas no banco ao lado dela ficaram molhadas. Comigo foi mais um fiozinho, de cada vez que me sentava na cama.
— Houve sangue?
— Um bocadinho, na parte de dentro das pernas. Foi por isso que fui lá para fora; não queria sujar os lençóis.
— Porquê?
— Porque sou eu que os lavo, mas é a minha mãe que os tira das camas. E não queria que ela soubesse o que estava a acontecer.
— Sabias que ias para o celeiro?
— Não planeei propriamente ir para lá. Nunca cheguei a pensar realmente no que iria acontecer... quando chegasse a altura. Só sabia que tinha de sair de casa.
— Alguém acordou lá em casa quando saíste?
— Não. E não havia ninguém lá fora, nem no celeiro. Fui para a maternidade, porque sabia que o feno mais limpo ia para as vacas prenhas. E depois... bem, foi como se não tivesse estado ali durante um tempo. Como se estivesse noutro lugar, a ver simplesmente o que estava a acontecer. E a seguir olhei para baixo e tinha saído.
— Estás a falar do bebé.
Katie levantou os olhos, um bocadinho atordoada ao pensar no resultado daquela noite nesses termos.
— Sim — disse, num fio de voz.
— Todos os anos ocorrem aproximadamente duzentos a duzentos e cinquenta neonaticídios, doutora Hathaway. E estamos a falar apenas dos que são comunicados. — Teresa Polacci caminhava ao lado de Ellie, ao longo do ribeiro junto à quinta. — Na nossa cultura, é repreensível. Mas em determinadas culturas, como no Extremo Oriente, o neonaticídio continua a ser aceitável.
Ellie suspirou.
— Mas que tipo de mulher mata o próprio filho? — perguntou de forma retórica.
— Uma mulher solteira, grávida pela primeira vez de um bebé indesejado, concebido fora do casamento. São normalmente jovens, com idades entre os dezasseis e os dezanove anos. Não consomem drogas nem álcool, nem têm problemas com a lei. Não! São as raparigas que fazem o favor de passear o cão dos vizinhos quando eles estão de férias, aquelas que mais estudam para ter boas notas. Muitas vezes, são pessoas que superam as expectativas, orientadas para agradar aos pais. São passivas e ingénuas, receiam a vergonha e a rejeição e, às vezes, vêm de meios religiosos em que o sexo não é abordado.
— Depreendo, pelos seus comentários, que a Katie encaixa nesse perfil.
— Em termos de perfil e de educação religiosa, raramente vi um caso tão claro — disse a doutora Polacci. — Ela tinha seguramente mais razões do que a maior parte das raparigas de hoje em dia para recear enfrentar a vergonha e a perseguição, tanto no seio da família como fora dela, se admitisse ter tido sexo pré-matrimonial e uma gravidez. Escondê-lo tornou-se o caminho mais fácil.
Ellie olhou para ela.
— Escondê-lo sugere uma decisão consciente de encobrimento.
— Sim. A dada altura, soube que estava grávida e negou-o intencionalmente. O mais curioso é que não foi a única. Há uma conspiração de silêncio, pois, normalmente, as pessoas que rodeiam a rapariga também não querem que ela esteja grávida, pelo que ignoram as mudanças físicas ou fingem ignorá-las, o que faz parte do sistema de negação.
— Nesse caso, não acredita que Katie entrou num estado dissociativo.
— Eu não disse isso. Acredito que é psicologicamente impossível permanecer num estado dissociativo durante toda a gravidez. A Katie, como muitas outras mulheres que entrevistei e que cometeram neonaticídio, negou conscientemente a sua gravidez, mas depois dissociou de forma inconsciente na altura do parto.
— O que quer dizer com isso? — perguntou Ellie.
— É quando chega o momento da verdade. Estas mulheres estão extremamente tensas. O mecanismo de defesa que tinham, a negação, é destruído pela chegada da criança. Elas têm de se distanciar do que está a acontecer, e a maior parte destas mulheres, incluindo a Katie, dir-lhe-ão que parecia que aquilo não estava a acontecer com elas ou que estavam a ver-se a si próprias, mas não podiam intervir. Uma verdadeira experiência de dissociação do corpo. Às vezes, o aparecimento do bebé até desencadeia uma psicose temporária. E quanto mais longe da realidade as mulheres estiverem nesse momento, mais probabilidades têm de fazer mal aos recém-nascidos.
»Olhemos especificamente para o caso da Katie. Graças à experiência do irmão, tem vivido com um guião de sobrevivência muito primitivo na cabeça, acreditando que, se a mãe e o pai descobrissem o seu segredo, seria excomungada e obrigada a sair de casa. Por isso, tem esta ideia encapotada de que não faz mal uma pessoa livrar-se dos filhos. A seguir, entra em trabalho de parto. Já não pode negar a existência do bebé, por isso faz-lhe aquilo que tem medo que aconteça a si própria: deita-o fora. O estado dissociativo dura tempo suficiente para o parto e para o homicídio, e depois volta a usar a negação como mecanismo de defesa, de tal forma que, quando é confrontada pela polícia, diz imediatamente que não teve um bebé.
— E como é que sabe que houve dissociação?
— Quando ela fala sobre dar à luz, fecha-se um pouco. Não confia noutros mecanismos de defesa, por exemplo na negação ou em algo mais primitivo.
— Espere aí — disse Ellie, estacando. — A Katie admitiu ter dado à luz?
— Sim, tenho isso gravado.
Ellie abanou a cabeça, sentindo-se inesperadamente traída.
— Não cedeu quando o Coop a pressionou.
— Não é invulgar um cliente admitir algo crucial a um psiquiatra forense que não admitiu a um psiquiatra clínico. No fim de contas, não estou a falar com ela para a fazer sentir-se bem, mas sim para a impedir de ir parar à prisão. Se ela me mentir, estará a fazer mal a si própria. O meu trabalho é abrir a caixa de Pandora; o trabalho do psiquiatra clínico é ajudar a fechá-la novamente.
Ellie olhou para cima.
— Ela também lhe contou que tinha matado a criança?
A psiquiatra hesitou.
— Na verdade, não. Diz que ainda não se lembra de dois pontos específicos: da conceção do bebé e do homicídio.
— Poderia estar em estado dissociativo em ambas as alturas?
— É inteiramente possível que tenha entrado num estado dissociativo durante o nascimento do bebé e durante o homicídio. Na verdade, como as memórias dela não condizem totalmente com os registos forenses que me facultou, a discrepância aponta exatamente para isso. Mas quanto ao sexo... bem, normalmente não é algo que estas mulheres esqueçam assim.
— E se tiver sido traumático para ela? — perguntou Ellie.
— Está a falar de uma violação? É possível, mas as mulheres costumam admitir que foram violadas, a menos que estejam a proteger alguém. A minha intuição é que a história da Katie tem mais que se lhe diga nesse ponto em particular.
Ellie acenou com a cabeça.
— E quanto ao homicídio?
— A Katie relatou pormenorizadamente a noite anterior ao parto, o nascimento e o facto de ter adormecido com o bebé nos braços. Diz que, quando acordou, o bebé tinha desaparecido, juntamente com a tesoura que ela tinha usado para cortar o cordão umbilical.
— Ela procurou o bebé?
— Não. Voltou para o quarto e foi dormir, o que é perfeitamente consistente com as mulheres que cometem neonaticídio: o que os olhos não veem, o coração não sente.
Ellie tinha a cabeça num turbilhão.
— Quanto tempo esteve ela inconsciente no celeiro?
— Disse que não sabe.
— Não pode ter sido muito, com base nos relatórios policiais — refletiu Ellie em voz alta. — E se...
— Doutora Hathaway, eu sei o que está a pensar. Mas lembre-se: até agora, a Katie não conseguiu recordar o nascimento do bebé. Amanhã, quem sabe? Poderá lembrar-se com um detalhe excruciante de como o sufocou. Por mais que queiramos pensar que não matou o bebé, temos de encarar as memórias dela com alguma reserva. A própria definição de dissociação implica a existência de lacunas e falta de lógica na Katie. Há boas hipóteses de ela ter mesmo matado o bebé, mesmo que nunca venha a admiti-lo verbalmente.
— Nesse caso, acredita que ela é culpada — disse Ellie.
— Acredito que encaixa no perfil de muitas outras mulheres que entrevistei e que mataram os seus recém-nascidos enquanto estavam num estado dissociativo — corrigiu a psiquiatra. — Acredito que o padrão de comportamento dela é consistente com o que sabemos sobre o fenómeno do neonaticídio.
Ellie parou de andar ao longo do ribeiro.
— A minha cliente é mentalmente sã, doutora Polacci?
A psiquiatra suspirou pesadamente.
— Essa é uma pergunta controversa. Está a falar em termos médicos ou em termos jurídicos? A insanidade médica sugere que uma pessoa não tem contacto com a realidade, mas uma pessoa num estado dissociativo está em contacto com a realidade. Tem um aspeto normal e parece normal, apesar de se encontrar num estado completamente anormal. Contudo, a insanidade jurídica não tem nada a ver com realidade, está dependente de testes cognitivos. E, se uma mulher cometer homicídio enquanto está num estado dissociativo, o mais provável é não compreender a natureza e a qualidade do ato, nem saber que o que está a fazer é errado.
— Então, posso usar uma defesa que alegue insanidade mental.
— Pode usar o que quiser — respondeu Polacci, terminantemente. — Na verdade, está a perguntar se essa defesa poderá safar a sua cliente. Sinceramente, doutora Hathaway, não sei. Posso dizer-lhe que, normalmente, os jurados estão mais interessados em questões de ordem prática: se a mulher está bem e se aquilo não se voltará a repetir. E sim, a mulher está bem e o sucedido não voltará a repetir-se para a maior parte das mulheres que cometem neonaticídio. Na melhor das hipóteses, o meu depoimento pode dar ao júri alguma coisa em que acreditar. Se quiserem absolvê-la, fá-lo-ão, desde que haja alguma coisa que possam invocar para racionalizar as ações dela.
— E na pior das hipóteses?
A doutora Polacci encolheu os ombros.
— O júri fica a saber mais sobre neonaticídio do que queria.
— E a Katie?
A psiquiatra olhou fixamente para Ellie.
— E a Katie vai para a prisão.
Katie sentia-se como a vara verde que estava a deformar com as próprias mãos, dobrada ao meio para trás, prestes a partir-se. Lutou contra o impulso de se levantar e começar a andar de um lado para o outro, espreitar pela janela do palheiro, fazer alguma coisa sem ser falar com a sua advogada naquele momento.
Compreendia o objetivo do exercício: Ellie estava a tentar prepará-la para aquilo que seria, sem dúvida, um interrogatório desagradável por parte do psiquiatra forense contratado pelo MP. Ellie tinha dito que a doutora Polacci achava que Katie estava a sonegar informação sobre a conceção do bebé. E terminara, dizendo: «Diabos me levem se fores contar isso ao especialista contratado pela acusação!»
Por isso, estavam agora as duas no palheiro, e Ellie tornara-se tão implacável e dura que, de vez em quando, Katie tinha de se virar para se certificar de que o seu rosto lhe era familiar.
— Não te lembras de fazer sexo — disse Ellie.
— Não.
— Não acredito em ti. Disseste que não te lembravas da gravidez nem do parto e eis que, três dias depois, és um verdadeiro manancial de informação.
— Mas é verdade! — Katie sentiu as mãos a transpirar e limpou-as ao avental.
— Tiveste um bebé. Explica lá isso.
— Já expliquei à doutora...
— Explica como foi concebido. — Perante o silêncio prolongado de Katie, Ellie pôs a cabeça entre as mãos. — Escuta — disse. — Estás a fazer bluff. A psiquiatra sabe disso e eu sei disso, e, Katie, tu também sabes. Estamos todos do mesmo lado, caramba, mas tu estás a fazer com que seja duas vezes mais difícil para nós defender-te. Eu conheço uma Imaculada Conceição, mas não és tu.
O olhar de Katie cravou-se resignadamente no seu colo. O que significaria dizer a verdade? Confessar, como fizera diante do bispo e da congregação?
— Está bem — disse finalmente, baixinho. Engoliu em seco. — Fui visitar o meu irmão e fomos a uma festa de formatura numa das residências para estudantes. Eu não queria ir, mas o Jacob sim, e eu não queria que ele se sentisse mal por me ter ali como... como é que vocês dizem? Como um pneu sobressalente. Fomos à festa e estava muita gente e muito calor. O Jacob foi buscar alguma coisa para comermos e levou algum tempo até voltar. Entretanto, um rapaz veio ter comigo. Deu-me um copo de ponche e disse que eu tinha ar de estar a precisar daquilo. Disse-lhe que estava à espera de uma pessoa, mas ele riu-se e disse: «Achei, ganhei.» E depois começou a falar comigo.
Katie foi até ao fundo do palheiro, tocando nos dentes de um ancinho encostado à parede.
— Devo ter bebido algum ponche enquanto ele falava, mesmo sem me dar conta. E isso fez-me ficar tão maldisposta, nauseada e com a cabeça a andar à roda como um pião. Levantei-me para tentar ver o Jacob no meio da multidão, e toda a sala se inclinou. — Mordeu o lábio. — A seguir, só me lembro de estar deitada numa cama que não conhecia, com as roupas todas... e ele estava... — Katie fechou os olhos. — Eu... eu nem sequer sei o nome dele.
Encostou a cabeça à parede de madeira, sentindo a rugosidade da tábua contra a testa. Todo o seu corpo tremia, e tinha medo de se virar e ver a expressão de Ellie.
Não precisou de o fazer. Ellie abraçou-a por trás.
— Oh, Katie! — disse ela, tentando acalmá-la. — Lamento imenso.
Katie virou-se nos seus braços, o seu porto seguro, e desatou a chorar.
Desta vez, quando Katie acabou de contar a história, estava a segurar a mão de Ellie para lhe dar força. Se tinha consciência das lágrimas que lhe rolavam pelas faces, não o mencionou. Ellie estava ansiosa por limpá-las, por olhar Katie nos olhos, sorrir e dizer que ela tinha feito um bom trabalho.
A doutora Polacci, que tinha sido chamada de novo para a confissão, olhou de Katie para Ellie e depois novamente para Katie. A seguir, levantou as mãos e começou a bater palmas com uma expressão impassível.
— Bela história — disse. — Arranja outra.
— Ela está a mentir — disse a doutora Polacci. — Ela sabe exatamente onde e quando concebeu aquele bebé, e aquela historiazinha fascinante sobre ter sido violada não pega.
Ellie indignou-se ao pensar que Katie estava a mentir; ao pensar que Katie lhe mentira deliberadamente.
— Não estamos a falar de uma adolescente normal que inventa desculpas para os pais e passa a noite na horizontal nas traseiras do jipe do namorado.
— Exatamente. Esta história era demasiado boa. Demasiado calculada, demasiado ensaiada. Ela estava a contar-lhe aquilo que a Ellie queria ouvir. Se tivesse sido violada, já o teria admitido nas suas sessões com o psiquiatra clínico, a menos que estivesse a proteger o violador, coisa que a sua narrativa não contempla. E depois ainda há o pormenor de a festa de formatura se ter realizado três meses depois de uma formatura concluída em junho... Presumo que tenha ficado grávida em outubro, com base no relatório do médico-legista.
Foi essa contradição óbvia que derrubou finalmente as defesas de Ellie.
— Merda — murmurou. Assaltada por um pensamento súbito, Ellie olhou para cima. — Se ela está a mentir quando diz que não se lembra de ter tido relações sexuais, também estará a mentir quando diz que não se lembra do homicídio?
A psiquiatra suspirou.
— A minha intuição continua a dizer-me que não. Quando a pressionei em relação à conceção, mostrou-se confusa e disse que não se conseguia lembrar de nada. Quando a pressionei em relação ao crime de homicídio, recebi uma negativa categórica e a descrição daquele interregno: adormeceu a segurar o bebé; acordou e ele tinha desaparecido. Os dois episódios amnésicos são diferentes, o que me leva a crer que está a negar conscientemente um deles e a dissociar inconscientemente relativamente ao outro.
A doutora Polacci deu uma palmadinha no ombro de Ellie.
— Eu não levaria isto demasiado a peito. Na verdade, até é uma espécie de elogio. A Katie sente-se tão próxima de si que quer estar à altura das suas expectativas, mesmo que isso signifique desencantar uma falsa recordação. De certa forma, tornou-se uma figura parental.
— Estar à altura das expectativas parentais — abespinhou-se Ellie. — Mas não foi isso que a deixou nesta situação?
A doutora Polacci riu-se.
— Em parte. Isso e um rapaz. Um rapaz que tem um ascendente sobre ela como nunca vi.
A noite estava tão quente que Ellie tinha saído de debaixo da colcha e estava agora deitada em cima dela, com a camisa de noite arregaçada até às coxas. Estava completamente imóvel, a tentar ouvir a respiração de Katie e a perguntar-se quanto tempo levariam as duas a adormecer.
Não fazia sentido para Ellie esta nova obsessão que tinha com a verdade. Enquanto advogada de defesa, normalmente tinha de enfiar os dedos nos ouvidos por causa das confissões que, juridicamente, preferia não ouvir. Mas teria trocado o seu inversor de doze volts por dez minutos dentro da cabeça de Katie Fisher.
A seguir, ouviu um suspiro desmaiado.
— Desculpa — disse Katie, baixinho.
Ellie não se deu ao trabalho de olhar para ela.
— Estás a pedir desculpa pelo quê, exatamente? Pelo homicídio do bebé? Ou pelo crime mais prosaico de me fazer passar por idiota em frente da minha própria testemunha?
— Tu sabes pelo que estou a pedir desculpa.
Seguiu-se um longo silêncio.
— Porque é que fizeste isso? — perguntou Ellie, finalmente.
Ouviu Katie virar-se para o lado dela.
— Porque precisavas desesperadamente de o ouvir.
— O que eu preciso é que pares de me mentir, Katie! Sobre isso e sobre o que aconteceu depois de o bebé nascer. — Passou uma mão pelo rosto. — O que eu preciso é de fazer o relógio andar para trás, para poder recusar o teu caso.
— Só menti porque tu e a doutora Polacci tinham a certeza de que eu sabia alguma coisa — disse Katie, com voz embargada. — Eu não minto, Ellie! Prometo que não. Não sou doida, como tu pensas... Só não me consigo lembrar. Nem como o bebé foi feito nem como morreu.
Ellie não disse uma palavra. Ouviu o suave ranger da cama, quando Katie se virou para o outro lado, a chorar. Cerrou os punhos para não ir ter com ela, e depois enfiou-se debaixo da sua própria manta e contou os minutos que Katie levou a adormecer.
Samuel enxugou o suor da testa e deitou outro bezerro ao chão. Ao fim destes anos todos a ajudar Aaron, tinha transformado a castração numa ciência. Esperou até o animal ter o impulso de o escoicear e depois enfiou o anel de borracha do alicate especial à volta do escroto e deixou-o apertar. Passados segundos, o bezerro de duas semanas estava outra vez em pé, a olhar de viés para Samuel, antes de voltar para a pastagem.
— Esse é bem constituído! — disse uma voz, sobressaltando Samuel.
Virou-se e deu com o bispo Ephram do outro lado da vedação.
— Ja, vai dar muita carne ao Aaron. — Sorrindo para o ancião, Samuel saiu pelo portão. — Se está à procura do Aaron, acho que ele está no celeiro.
— Na verdade, andava à tua procura.
Samuel hesitou, perguntando-se qual seria a acusação que o bispo tinha contra ele, desta vez, e depois censurando-se por pensar sequer tal coisa. Tinha recebido muitas visitas do bispo na sua vida, e nunca associara uma que fosse à vergonha de não se ter comportado como devia. Até tudo ter corrido mal com Katie.
— Komm — disse Ephram. — Vamos dar uma volta. — Samuel acertou o passo por ele. — Ainda me lembro de quando o teu pai te comprou o primeiro bezerro.
Não era uma prenda fora do vulgar de um homem amish para o filho: o lucro da venda da carne era depositado numa conta bancária para o rapaz usar mais tarde, quando queria comprar a sua própria casa ou quinta. Samuel sorriu, recordando o bezerro que tinha engordado quatrocentos e cinquenta quilos num ano.
Ainda tinha o dinheiro que a carne lhe rendera, assim como o dos outros bezerros que se seguiram. Tinha-o andado a guardar para a sua vida com Katie, pelo menos era o que pensava.
— A tua técnica é bastante melhor, hoje em dia — disse Ephram. — Se bem me lembro, aquele primeiro boi deu-te uns valentes coices, num sítio nada bom para isso. — Sorriu através da barba branca como a neve. — Durante um tempo, não se percebeu exatamente quem é que ia ser castrado.
Samuel corou ao lembrar-se disso, mas riu-se.
— Eu tinha nove anos — replicou. — O boi pesava mais do que eu.
Ephram parou de andar.
— De quem foi a culpa?
— Culpa?
— Dos coices. Do facto de te teres magoado.
Franzindo o sobrolho, Samuel encolheu os ombros.
— Do touro, suponho. Eu não fiz aquilo a mim próprio.
— Não. Mas, se o tivesses segurado com mais força, o que pensas que podia ter acontecido?
— Ele não teria conseguido atingir-me, o senhor sabe disso. Mas aprendi a lição. Não voltei a ser escoiceado. — Samuel suspirou. Tinha trabalho para fazer para Aaron. Hoje, não tinha paciência para as divagações de Ephram. — Mas o bispo não veio cá para falar comigo sobre esse boi.
— Ah, não?
Samuel enfiou o chapéu na cabeça.
— O Aaron está a precisar de mim.
O bispo Ephram pôs a mão no braço de Samuel.
— Tens razão, Irmão. Porque é que havemos de falar sobre história antiga? Mal o boi te escoiceou, livraste-te logo dele.
— Não, não livrei. Lembra-se de como ele cresceu? Era um belo novilho! — Samuel franziu o sobrolho. — Quando fui depositar o dinheiro no banco, já mal me lembrava do que tinha acontecido.
O ancião perscrutou-lhe o rosto.
— Pois, mas naquele dia, quando estavas deitado de costas na erva, a berrar e agarrado às tuas partes pudendas, aposto que nunca imaginaste que as coisas pudessem acabar tão bem!
Samuel rodou lentamente a cabeça em direção ao bispo.
— Não veio cá para falar daquele boi — repetiu, baixinho.
O bispo Ephram ergueu as sobrancelhas.
— Ah, não?
O doutor Brian Riordan viajou de jato privado, acompanhado de dois homens que pareciam antigos defesas do futebol americano e de uma rapariguinha que dava um salto sempre que ele lhe fazia sinal para levar a cabo alguma tarefa em seu nome. Era muito conhecido nos círculos da psiquiatria forense como um dos críticos mais acérrimos da defesa baseada em incidente de insanidade mental, sobretudo quando usada para absolver homicidas. Tinha dado a conhecer as suas fortes convicções em julgamentos realizados por todo o país e, na verdade, tinha um mapa no gabinete coberto de alfinetes de cores vivas, que assinalavam os círculos judiciais onde tinha contribuído para a prisão de um criminoso que, de outra forma, poderia ter sido absolvido por pura simpatia.
Também parecia manifestamente deslocado, numa quinta.
Comparado com a doutora Polacci, o doutor Riordan era um espécime formidável. Mesmo da soleira da cozinha, de onde podia assistir à entrevista, Ellie conseguia ver Katie a tremer.
— Menina Fischer — disse Riordan, depois de se apresentar. — Fui contratado pela acusação. O que isso significa é que tudo o que me disser será revelado em tribunal. Não pode dizer nada a título confidencial, pois não existe confidencialidade. Compreende?
Ellie ouviu Riordan fazer Katie recordar o nascimento, pedindo-lhe para contar os acontecimentos usando o presente.
— Está ali deitado — disse Katie baixinho —, mesmo entre as minhas pernas.
— É um rapaz ou uma rapariga?
— Um rapaz. Um rapaz minúsculo. — Hesitou. — Está a mexer-se.
Ellie sentiu o calor subir-lhe ao rosto. Afastou-se, abanando-se com uma mão.
— Está a chorar? — perguntou Riordan.
— Não. Só depois de eu cortar o cordão.
— Como é que o corta?
— O meu Dat tem uma tesoura pendurada num gancho à entrada da maternidade. E eu uso-a. A seguir, há sangue por todo o lado e eu só penso que nunca vou conseguir limpar aquilo. Faço pressão na ponta do cordão e ato-a... com cordel, acho eu. Depois, começa a chorar.
— O bebé?
— Ja. Começa a chorar muito alto e eu tento segurá-lo junto a mim para o sossegar, mas não adianta. Embalo-o e dou-lhe o nó do dedo para chuchar.
Ellie encostou-se à parede. Imaginou aquele ser frágil a procurar o seio junto ao corpete da camisa de dormir de Katie. Imaginou o rostinho, as pálpebras translúcidas e, de repente, sentiu um peso nos braços, tão esmagador quanto uma oportunidade perdida. Como é que era possível defender as ações fosse de quem fosse, num caso como este?
— Desculpem — anunciou, irrompendo pela cozinha. — Preciso de um copo de água. Mais alguém quer?
Riordan lançou-lhe um olhar reprovador pela interrupção. Ellie concentrou-se em encher o copo sem que a mão lhe tremesse e em bebê-lo um pouco antes de ter de ouvir a sua cliente contar a morte do bebé.
— O que acontece a seguir, Katie? — perguntou Riordan.
Katie piscou os olhos, abanou a cabeça, e depois suspirou.
— Não sei. Quem me dera saber, nem imagina como. Mas num minuto estou a rezar para que o Senhor me ajude, e no minuto seguinte estou a acordar. O bebé desapareceu. — Ellie baixou a cabeça sobre o lava-louça. — Um milagre — acrescentou Katie.
Riordan olhou-a fixamente.
— Está a brincar, certo?
— Não.
— Quanto tempo esteve desacordada no celeiro?
— Não sei. Suponho que tenham sido uns dez ou quinze minutos.
O psiquiatra entrelaçou as mãos no colo.
— Matou o bebé durante esse tempo?
— Não!
— Tem a certeza? — Ela acenou enfaticamente. — Nesse caso, o que aconteceu ao bebé?
Nunca ninguém perguntara aquilo a Katie; ao ver a rapariga em dificuldade para encontrar uma resposta, Ellie percebeu que isso tinha sido um erro.
— Eu... não sei.
— Deve ter uma ideia, já que alguém matou o bebé, e não foi a Katie.
— T-t-talvez tenha morrido simplesmente — balbuciou Katie. — E alguém o tenha escondido.
Ellie resmungou de si para si. E talvez aquilo fosse o subconsciente de Katie a fazer voluntariamente uma confissão.
— Acha que foi isso que aconteceu? — perguntou Riordan.
— Pode ter aparecido alguém que o matou.
— Isso parece-lhe provável?
— N... não tenho a certeza. Ainda era muito cedo...
— A meio da noite, suponho — interrompeu Riordan. — Quem poderia saber que estava ali, a dar à luz? — Viu-a debater-se com a pergunta. — Katie — disse ele com firmeza —, o que aconteceu ao bebé?
Ellie viu a rapariga desmoronar: o lábio inferior a tremer, os olhos marejados de lágrimas, a coluna aos estremeções, ao mesmo tempo que Katie abanava a cabeça e negava repetidamente a responsabilidade criminal. Esperou que Riordan fizesse alguma coisa para a reconfortar, mas depois percebeu que ele já tinha as suas simpatias alinhadas noutro lado. Tinha sido contratado pela acusação; portanto, não seria ético da parte dele reconfortar Katie, quando tinha sido chamado com o objetivo expresso de ajudar a prendê-la.
Ellie aproximou-se da sua cliente e ajoelhou-se.
— Acha que nos pode dar um minuto?
Não esperou pela resposta de Riordan. Em vez disso, passou um braço à volta dos ombros de Katie, tentando ignorar a forma como a rapariga amarfanhara o avental e estava agora curvada sobre ele, aninhando-o nos braços como se fosse um bebé.
Riordan pestanejou e adotou um falsete emocionado.
— Katie Fisher não estava lá na altura da morte do bebé. O corpo talvez estivesse, mas não a mente. Na altura em que a criança morreu, estava numa fortaleza mental construída pela sua própria culpa. — Baixou a voz para o seu tom natural e sorriu para o procurador do condado. — Ou qualquer coisa do género.
George riu-se.
— Será que essas tretas psicanalíticas resultam nos tribunais?
Riordan tirou um rebuçado de menta de um frasco em cima da secretária.
— Não, se eu tiver uma palavra a dizer sobre o assunto.
— Tem a certeza de que, quando a doutora Hathaway alegou insanidade mental, estava a pensar em dissociação?
— Confie em mim. É a defesa típica do neonaticídio. Psicologicamente, as discrepâncias entre a história da Katie e as provas forenses podem ser explicadas ou por dissociação ou por mentira descarada. Por isso, está-se mesmo a ver qual das duas hipóteses a defesa vai escolher. Mas breves episódios de dissociação não constituem insanidade.
Riordan encolheu os ombros, enfiando um rebuçado na boca.
— Outra coisa interessante em relação aos estados dissociativos é que, se der corda suficiente à doutora Hathaway, ela vai acabar por se enforcar. Não há maneira de a perita da defesa conseguir provar que a dissociação foi provocada pela tensão psicológica de dar à luz, e não pela tensão psicológica de cometer homicídio. É o velho dilema do ovo ou da galinha.
— Sou capaz de chegar a algum lado com isso. — George sorriu e recostou-se na sua cadeira.
— Direitinho à prisão estadual.
George assentiu.
— Precisamos de precaver alguma das consequências psicológicas de ser amish?
Riordan pôs-se em pé e abotoou o casaco.
— Porquê? — disse. — Homicídio é homicídio.
Quando a beijou, as folhas choveram sobre eles, salpicando-lhe as costas com as tonalidades vermelhas e quentes dos áceres e o dourado dos carvalhos. O xaile dela estava estendido sobre as ervas como a asa de um grande falcão negro, proporcionando um cobertor improvisado. Katie fez deslizar as mãos do cabelo de Adam para os seus ombros quando ele começou a desapertar-lhe o vestido. Espetou delicadamente cada alfinete na casca da árvore atrás deles e ela amou-o por isso, por ser suficientemente atencioso para pensar em como isso seria importante para ela, depois.
O avental saiu e o vestido abriu-se. Katie fechou os olhos, envergonhada, mas depois sentiu Adam inclinar-se sobre o seu peito, explorando-a através do algodão fino da sua roupa interior. Ela segurou-lhe a cabeça ali e imaginou que ele estava a beber da taça do seu coração.
Ele não tinha dito que a amava, mas isso não importava. A forma como agia e como a tratava era uma bitola mais verdadeira do que quaisquer palavras que pudesse dizer... Para o seu povo, as ações eram uma prova de afeto muito maior do que três pequenas sílabas que nada significavam. Adam dir-lho-ia quando acabasse, quando isso não diminuísse o que estava a acontecer entre eles.
A seguir, ele despiu a própria roupa. Olhando agora, era impossível dizer que um era Simples e o outro não. Esse foi o último pensamento consciente que Katie teve. A seguir Adam encostou o seu corpo ao dela e o calor da sua pele fê-la perder a fala e os receios.
Sentia-o pesado e cheio no meio das suas pernas. Com uma mão, ele levantou-lhe o joelho, para que o corpo dela lhe servisse de berço. Depois, Adam olhou para ela, muito sério.
— Podemos parar — sussurrou. — Imediatamente, se quiseres.
Katie engoliu em seco.
— Queres parar?
— Tanto como gostaria de ser arrastado daqui e esquartejado.
Ela levantou as ancas num convite e sentiu-o perder-se dentro dela, distendendo-a de tal forma que lhe fez arder os olhos. Pensou em todos os turistas que paravam debaixo da placa no cruzamento que ficava a cerca de oito quilómetros para leste, a placa que dizia INTERCOURSE, PA, e em como eles se riam e apontavam para ela enquanto alguém tirava uma fotografia. Pensou na sua carne a ceder à de Adam, a rendição mais doce de todas. E depois Adam esticou os braços entre os dois e tocou-lhe.
— Vem comigo — sussurrou ele.
Ela pensou que ele estava a falar no dia seguinte, quando partisse para a Escócia. Pensou que ele estava a dizer para sempre. Mas a seguir sentiu o seu corpo a dar voltas cada vez mais apertadas e a espalhar-se como as sementes brancas e brilhantes de uma asclépia. Quando recuperou o fôlego, caíram mais folhas sobre eles, como uma bênção. Adam deitou-se ao lado dela, a sorrir e a acariciar-lhe a anca.
— Estás bem?
Katie disse que sim com a cabeça. Se falasse, teria de lhe dizer a verdade: não estava nada bem, sentia-se horrivelmente vazia, agora que sabia como era estar preenchida.
Ele envolveu-a no seu xaile e isso fê-la sentir-se fisicamente doente.
— Não! — Ela empurrou-lhe as mãos, afastando a lã leve. — Não quero isso!
Sentindo a mudança nela, Adam puxou-a mais para si.
— Escuta — disse ele com firmeza. — Não fizemos nada de mal.
Mas Katie sabia que era um pecado, soubera desde o momento que tomara a decisão de se deitar com Adam. Porém, a transgressão não era fazer amor sem a sanção do casamento, mas sim o facto de, pela primeira vez na vida, Katie se ter posto em primeiro lugar. Ter posto os seus próprios desejos e necessidades acima de tudo e todos.
— Katie — disse Adam, em voz rouca —, fala comigo.
Mas ela queria que fosse ele a falar. Queria que ele a levasse para longe dali e que a voltasse a estreitar, que lhe dissesse que dois mundos diferentes podiam ser ligados por um olhar, por um toque. Queria que ele dissesse que ela lhe pertencia, e que ele lhe pertencia a ela, e que no grande esquema das coisas isso era realmente o que importava.
Queria que ele lhe dissesse que, quando se amava alguém com tanta intensidade, não fazia mal fazer coisas que sabíamos serem erradas.
Adam continuou calado, a perscrutar-lhe o rosto. Katie sentiu o calor dele, dos dois, a gotejar entre as coxas. Não iriam para a Escócia juntos. Não iriam para lado nenhum. Pegou no xaile e pô-lo à volta dos ombros, atando-o exatamente por baixo do sítio onde o seu coração se estava a despedaçar.
— Acho que é melhor ires-te embora — disse ela delicadamente.
Katie tinha cada vez mais dificuldade em adormecer. Naqueles breves momentos antes de cair no sono, sentia o feno a arranhá-la debaixo das coxas, ou sentia o cheiro do medo, ou via a Lua a brilhar na pele retesada da sua barriga. Pensava nas coisas que tinha contado ao doutor Polacci e ao doutor Riordan e sentia-se doente. E depois virava-se de lado para ver Ellie a dormir e sentia-se ainda pior.
Não estava à espera de gostar de Ellie. A princípio, Katie tinha ficado furiosa por se ver à guarda de uma pessoa que, ainda por cima, não confiava nela. Mas, por mais desconfortável que Katie se tivesse sentido, Ellie devia ter-se sentido ainda mais desconfortável. Esta não era a casa dela; esta não era a sua família e, como ela já referira por várias vezes, normalmente durante acessos de cólera, não tinha sido ela a criar aquela situação.
Bem, a culpa também não é minha, pensou Katie. E, no entanto, ela tinha visto aquele bebé embrulhado nos cobertores dos cavalos. Tinha visto o seu caixão baixar à terra. Alguém tinha de ser culpado.
Katie não tinha matado o bebé, e tinha tanta certeza disso como de que o Sol nasceria na manhã seguinte. Mas, então, quem o fizera?
Em tempos, tinha havido um sem-abrigo que se refugiara dentro do barracão do tabaco de Isaiah King. Mas, mesmo que um vagabundo estivesse naquela manhã no celeiro, não teria motivo para tirar um recém-nascido dos braços de Katie, matá-lo e escondê-lo. A menos que fosse louco, como Ellie queria fazê-la passar por ser.
Katie sabia que teria pressentido se houvesse mais alguém no celeiro naquela manhã. E, mesmo que não tivesse, os animais ter-se-iam apercebido. Nugget teria relinchado a pedir uma recompensa, como fazia sempre que aparecia alguém e as vacas teriam mugido na expectativa da ordenha. Dos fragmentos que Katie recordava, estava tudo calmo.
O que significava que alguém tinha lá entrado à socapa depois dela.
Tinha dado tratos à cabeça, ansiosa por descobrir alguma coisa que pudesse entregar a Ellie numa bandeja de prata, alguma prova tão forte que esclarecesse tudo. Mas quem teria motivo para estar levantado àquela hora?
O pai. Esse simples pensamento envergonhou Katie. Às vezes, o seu Dat vinha ver as vacas que estavam quase a parir, mas ia lá para ajudar a dar vida, e não para a tirar. Se tivesse encontrado Katie ali deitada com um recém-nascido... bem, teria ficado chocado e até zangado. Mas, para ele, a justiça vinha da Igreja e não das próprias mãos.
Samuel. Se tivesse vindo cedo para a ordenha, podia tê-la encontrado adormecida no celeiro com o recém-nascido. Com certeza que tinha todo o direito de ficar transtornado. Poderia ter feito mal ao bebé antes de perceber o que tinha feito? Impossível, pensou Katie, o Samuel não. O Samuel não tirava conclusões precipitadas, até porque pensava devagar. E era demasiado honesto para mentir à polícia. De repente, Katie animou-se, lembrando-se de outro álibi para Samuel: ele andava sempre com Levi. Não estaria sozinho no celeiro tempo suficiente para cometer um crime.
Mas isso não deixava mais ninguém, a não ser a própria Katie. E ali, na parte mais insondável da noite, aconchegou a colcha à sua volta e ficou a pensar se a doutora Polacci e Ellie poderiam afinal ter razão. Se uma pessoa não se lembrava de uma coisa, era porque nunca tinha acontecido? Ou porque desejava que não tivesse acontecido?
Katie esfregou as têmporas. Acabou por adormecer, embalada pela recordação do choro agudo e fino de um bebé.
Ellie acordou com a luz da lanterna a incidir-lhe nos olhos.
— Por amor de Deus — murmurou. Olhou para Katie, a dormir profundamente, e depois foi até à janela. Se Samuel tinha vindo pedir desculpa, teria sido simpático da sua parte ter escolhido outra altura, em vez da uma da manhã. Ellie espreitou pela janela, pronta para o pôr a andar dali para fora, mas depois percebeu que o homem que estava em frente da casa era Coop.
Depois de vestir rapidamente a camisola e os calções que tinha usado no dia anterior, Ellie desceu a correr para ir ter com ele. Levou o dedo aos lábios quando saiu para o alpendre e caminhou para longe da casa. Cruzando os braços sobre o peito, fez sinal para a lanterna.
— Foi o Samuel que te ensinou esse truque?
— O Levi — disse Coop. — O miúdo é mesmo porreiro!
— Vieste mostrar-me que és entendido nos rituais amish para fazer a corte? — Mal acabou de dizer isto, arrependeu-se. Como se, depois da forma como as coisas tinham corrido na outra noite, Coop pudesse querer incluí-la em qualquer coisa que se parecesse remotamente com um ritual de corte.
Ele suspirou.
— Vim para te pedir desculpa.
— A meio da noite?
— Eu tinha telefonado, mas diabos me levem se consegui encontrar os Fisher na lista. Tive de ir à procura da minha lanterna e tratar do assunto pessoalmente.
Ellie sentiu um sorriso aflorar-lhe aos lábios.
— Estou a ver.
— Não, não estás. — Pegou-lhe na mão, puxando-a pelo caminho fora em direção ao lago. — Lamento imenso que as coisas não tenham resultado entre ti e o Stephen. Nunca tive a intenção de te humilhar.
— Ninguém diria.
— Magoaste-me uma vez, Ellie. Muito. Suponho que, de alguma maneira, queria fazer-te sentir tão miserável como eu me senti na altura. — Fez uma careta. — Não foi muito inteligente da minha parte.
Ellie olhou para ele.
— Não te teria pedido para me ajudares com o caso da Katie se soubesse que continuavas ressentido, Coop. Pensei que, ao fim de vinte anos, já tinhas esquecido o assunto.
— Mas, se eu tivesse esquecido o assunto — raciocinou Coop —, isso significava que te tinha esquecido.
Ellie sentiu a noite fechar-se à volta dela. Que loucura, pensou, com a pulsação a bater com força na garganta. Isto é uma loucura.
— Aleguei insanidade mental — disse, de repente.
Coop assentiu, aceitando a rápida mudança de assunto e a necessidade que Ellie tinha disso.
— Ah!
— O que significa isso?
Ele enfiou a lanterna debaixo do braço e as mãos nos bolsos, começando novamente a andar, com Ellie no seu encalço.
— Tu sabes o que significa porque, provavelmente, também pensaste nisso. A Katie não está louca. Mas suponho que, como sua advogada, podes dizer ao júri que ela é a rainha Isabel se isso lhe garantir a absolvição, e todos nós sabemos que ela também não tem uma gota de sangue real.
— O que é mais difícil de engolir, Coop? Que uma rapariga jovem e assustada se tenha passado e sufocado o seu bebé sem se aperceber do que estava a fazer ou que um desconhecido tenha entrado no celeiro às duas da manhã, depois de uma rapariga ter dado à luz dois meses antes da data do parto, e assassinado o bebé enquanto ela estava a dormir?
— As defesas que alegam insanidade mental raramente ganham, El.
— Nem a dúvida razoável, quando parece absolutamente irrazoável. — Tinham chegado ao lago e Ellie deixou-se cair no banco de ferro e puxou os joelhos para cima. — Mesmo que ela não tenha matado aquele bebé, a melhor forma de conseguir safá-la é convencer o júri de que o fez, sem ter consciência do que estava a fazer. É a defesa mais favorável que consigo arranjar.
— Ora, os advogados estão sempre a mentir — disse Coop.
Ela resmungou:
— Não precisas de me dizer isso a mim. Meu Deus, nem sei quantas vezes já o fiz!
— E também és muito boa nisso.
— Sim — disse Ellie. — Pois sou.
Coop pegou-lhe na mão.
— Nesse caso, porque é que isso te está a consumir?
Ela deixou cair a fachada que mantinha desde que explicara a Katie que iam usar a defesa da insanidade para tentar safá-la, mesmo não sendo louca.
— Queres que eu te diga por que razão te está a consumir? — disse Coop, tranquilamente. — Porque alegar insanidade significa que Katie o fez, mesmo que em termos cognitivos estivesse em Marte, na altura. E, lá no fundo, gostas demasiado da Katie para querer admitir isso.
Ellie desdenhou.
— Estás muito enganado. Tu sabes como é a relação com um cliente: os sentimentos pessoais não entram. Consegui fazer cara séria enquanto dizia a um júri que um pedófilo era um pilar da comunidade. Fiz com que um violador em série parecesse um menino de coro. É isso que eu faço. Os meus sentimentos pelos meus clientes não têm nada a ver com o que digo para os defender.
— Tens toda a razão.
Isso fez Ellie parar de repente.
— Tenho?
— Sim. Sim. O problema aqui é que há muito tempo que a Katie deixou de ser uma cliente. Talvez até desde o início. Ela é tua parente, embora distante. É uma jovem simpática e confusa, e tu assumiste o papel de mãe substituta. Mas os sentimentos que nutres por ela são um mistério, pois, para todos os efeitos, a Katie descartou algo que tu matarias para ter: um filho.
Ellie endireitou os ombros, pronta para se rir da observação, mas não lhe ocorreu nenhum comentário mordaz.
— Sou assim tão fácil de ler?
— Não preciso de te ler — murmurou Coop. — Já te conheço de cor.
— Nesse caso, como é que remedeio isto? Se não separar a relação pessoal que tenho com ela da relação profissional, nunca conseguirei ganhar o caso.
Coop sorriu.
— Quando é que vais aprender que há muitas maneiras de ganhar?
— O que queres dizer? — perguntou ela, cautelosa.
— Às vezes, quando pensas que perdeste, acabas por sair por cima. — Agarrou-lhe o queixo e beijou-a ao de leve. — Basta olhares para mim.
E foi o que Ellie fez. Viu o extraordinário verde-mar dos olhos dele, mas, mais importante ainda, a história que eles continham. Viu a pequena cicatriz por baixo do queixo, de quando ele tinha caído da bicicleta, com seis anos. E a ruga na face que se transformava numa covinha ao mais pequeno sorriso.
— Desculpa o que te disse na outra noite — disse Coop. — E acho que até me vou precaver e desculpar-me também pelo que acabei de dizer.
— Provavelmente, precisava de ouvir isso. E também de levar um estalo na cara, de vez em quando.
— Aviso-te desde já que não sou esse tipo de homem.
Ela inclinou-se para ele.
— Eu sei.
Os seus beijos foram descontrolados e íntimos, como se estivessem decididos a entrar na pele um do outro. As mãos de Coop percorreram-lhe as costas e os seios.
— Meu Deus, como senti a tua falta — disse ele.
— Só passaram cinco dias.
Coop parou abruptamente e depois tocou-lhe no rosto.
— Foi uma eternidade — disse.
De olhos fechados, ela acreditou nele. Conseguia imaginar a música dos Grateful Dead a ecoar no pátio e a entrar pela janela aberta do quarto do dormitório, onde ela e Coop estavam enlaçados sobre a cama estreita. Ainda conseguia ver a cortina de contas suspensa à entrada do quarto, um arco-íris cristalino, e os olhinhos brilhantes do esquilo que se empoleirava no peitoril, a observá-los.
Sentiu-o tirar-lhe a camisola e desapertar-lhe os calções.
— Coop — disse, subitamente nervosa. — Já não tenho vinte anos.
— Bolas! — respondeu ele, continuando a puxar-lhe os calções para baixo. — Suponho que isso significa que eu também não!
— Não, a sério! — Tirou-lhe a mão do cós dos calções e levou-a à boca. — Não tenho o aspeto que tinha.
Ele acenou, compreensivo.
— É por causa da cicatriz, não é? De quando fizeste a cirurgia para colocar o pacemaker?
— Não fiz nada disso.
— Nesse caso, com que é que estás preocupada? — Beijou-a ao de leve. — El, se pesasses noventa quilos e tivesses pelos no peito, eu não me importava. Quando olho para ti, independentemente do que vejo, estou a imaginar uma rapariga que ainda anda na faculdade, pois, assim que me apaixonei por ti, o tempo parou.
— Eu não peso noventa quilos!
— Não pesas mais de oitenta — concordou Coop, e ela bateu-lhe no braço. — Vais continuar a distrair-me ou vais deixar-me fazer amor contigo?
Ellie sorriu.
— Não sei. Deixa-me pensar.
Sorrindo, ele beijou-a. Os braços dela entrelaçaram-se à volta do pescoço dele e ela puxou-o mais para si.
— Sabes? — disse ele, e ela sentiu as palavras quentes contra a sua pele — Também não tinhas vinte anos quando te despi na outra noite.
— Não, mas estava embriagada.
Coop riu-se.
— Talvez devesse experimentar isso. Porque este maldito banco é suficientemente duro para me fazer sentir cada um dos meus decrépitos trinta e nove anos. — Com um movimento rápido, puxou-a para fora do banco, rolando de forma a amparar-lhe a queda quando caíram na relva.
Ellie aterrou em cima dele, com as pernas abertas e o rosto a dois centímetros do de Coop.
— Vais continuar a distrair-me — murmurou ela — ou vais deixar-me fazer amor contigo?
Os braços de Coop pressionaram-lhe o fundo das costas.
— Estava a ver que nunca mais perguntavas — respondeu, e colou os lábios aos dela.
Katie estava sentada à mesa a segurar um copo de leite fresco que tirara do jarro que estava sempre no frigorífico, quando Ellie entrou à socapa em casa como uma adolescente. Ao ver a luz, espreitou para a cozinha.
— Oh! — disse, surpreendida por encontrar Katie ali. — Porque é que estás levantada?
— Não conseguia dormir — respondeu Katie. — E tu? — Mas, assim que vira Ellie, percebera onde é que ela tinha estado e o que andara a fazer. Tinha erva no cabelo e estava muito corada. E cheirava a sexo.
Por momentos, Katie sentiu a inveja subir dentro de si como uma maré. Não conseguia desviar os olhos de Ellie, porque tudo o que queria era sentir a mesma coisa que ela sentia agora. Estava marcado nela, tão certo como se o toque dele tivesse deixado um brilho fluorescente na sua pele.
— Fui dar um passeio — disse Ellie, lentamente.
— E caíste.
— Não... porquê?
Katie encolheu os ombros.
— De que outra maneira terias ficado com folhas no cabelo?
Constrangida, Ellie levou as mãos ao cabelo.
— Mas quem é que tu pensas que és? — respondeu com um sorriso. — Minha mãe?
Katie pensou em Ellie, a ser tocada, abraçada e beijada. Pensou em Adam e, em vez do suave intumescimento que normalmente sentia no baixo-ventre, havia apenas uma bola amarga.
— Não, e tu também não és minha mãe!
— Isso é verdade — disse Ellie, retesando-se.
— Mas pensas que és! Queres que suba para o teu colo e chore até mais não, para poderes consolar-me. Mas sabes que mais, Ellie? As mães não têm o poder de nos consolar, independentemente do que tu julgas.
Ferida, Ellie semicerrou os olhos.
— Isto dito por uma verdadeira especialista em maternidade!
— Sei mais do que tu — ripostou Katie.
— A diferença entre ti e mim — disse Ellie calmamente — é que eu dava tudo para ter um bebé e tu estavas ansiosa por te ver livre dele.
Katie arregalou os olhos, como se Ellie a tivesse esbofeteado. Logo a seguir, estes ficaram marejados de lágrimas, que ela limpou às costas das mãos.
— Oh, meu Deus! — disse, num lamento, com os braços cruzados sobre o tronco. — Oh, meu Deus, tens razão!
Ellie olhou-a fixamente.
— Mataste o bebé, Katie?
Ela abanou a cabeça.
— Adormeci. Juro diante de ti e diante de Deus que adormeci a segurá-lo. — O seu rosto contorceu-se de dor. — Mas é como se o tivesse matado, Ellie. Eu desejei que ele desaparecesse. Desejei durante meses e meses que ele desaparecesse simplesmente.
Estava agora dobrada em duas, a soluçar de tal forma que não conseguia recuperar o fôlego. Ellie praguejou em voz baixa e abraçou Katie com força.
— Isso é apenas um desejo — tranquilizou-a, afagando-lhe a cascata de cabelo brilhante. — Desejar uma coisa não a faz acontecer.
Katie encostou a face a arder ao peito de Ellie.
— Não és minha mãe... mas às vezes desejava que fosses. — Katie sentiu aquilo que esperava: os braços de Ellie a estreitá-la ainda com mais força. Fechou os olhos e imaginou-se a ser abraçada não só por Ellie, mas também por Adam, vendo o próprio sorriso nos olhos dele, ouvindo o seu nome nos lábios dele e sentindo o coração apertado por saber que era amada, acontecesse o que acontecesse.
10
Ellie
OUTUBRO
Após três meses com os Fisher, às vezes tinha dificuldade em acreditar que, ainda não há muito tempo, pensava que alfaias tinham alguma coisa a ver com joias e que medas eram montes de tudo menos de feixes de trigo. Infelizmente, os preparativos para o julgamento de Katie caíram bem no meio da época da colheita, e quaisquer esperanças que eu acalentasse de conseguir o apoio da família na criação da nossa defesa baseada na insanidade depressa se esfumaram. Na cabeça de Aaron Fisher, recolher o tabaco no devido tempo e encher os silos eram as prioridades da família.
E gostasse ou não, eu fazia parte da família.
Caminhava atrás de Katie pelo campo de tabaco, mais de um hectare tão luxuriante que podia ser um arrozal.
— Esta — disse ela, ensinando-me quais as folhas prontas para apanhar.
— A mim parecem-me todas iguais — queixei-me. — São todas verdes. Não devíamos esperar até começarem a ficar castanhas, para as apanhar?
— Com o tabaco, não é assim. Vê o tamanho, aqui. — Arrancou uma folha e pô-la com cuidado no cesto.
— Pensa em todos os cancros de pulmão que estão aqui, neste campo — murmurei.
Mas Katie não se deixou perturbar.
— É uma cultura lucrativa — disse ela simplesmente. — Com a exploração leiteira, é difícil conseguir lucro.
Inclinei-me, pronta para arrancar a minha primeira folha.
— Não! — gritou Katie. — Essa é demasiado pequena. — Agarrou noutra, maior.
— Talvez eu devesse passar já à fase seguinte. Enfiá-lo em cachimbos ou colar na caixa a advertência geral sobre os malefícios para a saúde.
Katie revirou os olhos.
— O próximo passo é pendurá-lo e, se não sabes apanhá-lo, não vou deixar que te aproximes de um pau afiado com metro e meio de comprimento.
Ri-me e inclinei-me novamente sobre as plantas. Por mais que detestasse admiti-lo, estava na minha melhor forma de sempre. O meu trabalho como advogada sempre me exercitara a mente, mas não o corpo; ao morar com os Fisher, estava a forçar os limites de ambos. Os Amish acreditavam que o trabalho físico duro era um princípio básico da vida e quase nunca contratavam pessoas de fora como ajudantes, pois elas não aguentavam um dia de trabalho normal. Embora Aaron nunca mo tivesse dito, eu sabia que ele estava à espera de ver esta menina da cidade feita num frangalho soluçante ou a esgueirar-se dos campos para ir buscar uma limonada antes de a colheita terminar, coisas que apontariam para o facto óbvio de que eu não era um deles. Ora, tudo isso me deixava ainda mais determinada a fazer a minha parte, quanto mais não fosse para provar que ele estava enganado. Com esse objetivo, tinha passado uma semana no início de agosto a colocar feixes de trigo em pé, à medida que o cortador o cuspia, até ficar com as costas cheias de nós e a pele coberta de palha. Tinha estado à altura do resto da família naqueles campos, minuto por minuto. Na minha cabeça, pensava que, se conseguisse conquistar o respeito de Aaron naquele terreno familiar, talvez conseguisse conquistar esse respeito também no meu próprio território.
— Ellie, vens ou não?
Katie estava de mãos nas ancas, com o cesto cheio entre os pés. Eu tinha andado a apanhar folhas enquanto divagava, pois o meu cesto também estava quase cheio. Só Deus sabia se o tabaco que eu tinha escolhido estava bom para ser apanhado. Agarrei em algumas das folhas maiores e pu-las por cima, para que Katie não notasse. Depois, segui-a até ao barracão comprido que tinha estado vazio durante os poucos meses em que eu já vivera na quinta.
Havia grandes aberturas nas paredes de ripas, por isso o ar entrava numa brisa ligeira. Sentei-me ao lado de Katie, num fardo de feno, e vi-a pegar num espeto da altura dela.
— Espetas as folhas pelo caule — explicou. — Da mesma forma que se enfiam as bagas para enfeitar as vossas árvores de Natal.
Bem, aquilo eu conseguia fazer. Equilibrando o meu próprio pau contra o fardo de feno, comecei a alinhar as folhas com alguns centímetros entre si, para poderem secar. Sabia que, quando acabássemos, o pequeno campo de tabaco ficaria nu, com as folhas todas espetadas penduradas em paus empilhados até às traves do telhado do barracão. No inverno, muito depois de eu ter partido, a família separaria o tabaco do talo, para o vender no Sul.
Estaria Katie lá para ajudar?
— Quando acabarmos isto, talvez pudéssemos falar sobre o julgamento.
— Porquê? — perguntou Katie, concentrada em furar os caules das suas folhas. — Tu vais dizer o que queres, de qualquer forma.
Deixei passar o comentário. Nos meses a seguir a Katie ter sido entrevistada pelos psiquiatras forenses, eu tinha avançado com a defesa baseada na insanidade mental, embora soubesse que isso a aborrecia. Na sua cabeça, ela não tinha matado o bebé, por isso a incapacidade de recordar o homicídio não tinha nada a ver com insanidade. Sempre que lhe pedia ajuda, fosse com as linhas de interrogatório ou com a sequência dos acontecimentos daquela noite terrível, ela virava costas. O seu nervosismo em relação à defesa transformara-a num fator imprevisível, o que ainda me deixava mais grata por não ter decidido avançar com a dúvida razoável. Alegando insanidade mental, Katie nunca seria chamada a depor.
— Katie — disse eu pacientemente. — Já estive em muito mais tribunais do que tu. Vais ter de acreditar em mim.
Ela espetou uma folha na ponta do pau.
— Não acreditas em mim.
Como poderia? A história dela tinha mudado várias vezes desde o início daquela farsa. Ou levava o júri a pensar que isso se devia a dissociação, ou os jurados presumiriam simplesmente que ela tinha mentido. Espetei uma folha de propósito pelo meio, em vez de o fazer pelo caule.
— Não — disse Katie, esticando o braço. — Estás a fazer mal. Observa.
Aliviada, deixei-a ser a perita. Com alguma sorte, mesmo sem a ajuda de Katie, o testemunho da doutora Polacci seria suficiente para conseguir a absolvição. Trabalhámos lado a lado, em silêncio, com as partículas de pó a levantar-se na luz que entrava pelas paredes do barracão. Quando tínhamos os cestos quase vazios, levantei os olhos.
— Queres ir apanhar mais?
— Só se tu quiseres — respondeu Katie, submetendo-se à opinião de outra pessoa, como os Amish faziam sempre.
A porta do barracão abriu-se, com o sol a recortar a figura de um homem alto, de fato. Tinha de ser Coop; embora usasse normalmente roupa informal quando visitava Katie, de vez em quando vinha diretamente do consultório e, de qualquer forma, era o único homem que me ocorria capaz de vestir outra coisa sem ser calças com suspensórios. Levantei-me com um sorriso no rosto quando ele entrou.
— És uma mulher difícil de encontrar — disse Stephen, a sorrir.
Fiquei petrificada, por um instante. A seguir, pousei o pau e consegui recuperar a voz.
— O que estás a fazer aqui?
Ele riu-se.
— Bem, não é propriamente a receção que eu tinha em mente enquanto vinha no carro, mas vejo que estás em reunião com uma cliente. — E estendeu a mão a Katie. — Olá — disse. — Stephen Chatham. — Olhando em torno do barracão, enfiou as mãos nos bolsos. — Isto é algum tipo de terapia ocupacional?
Eu mal conseguia digerir o facto de Stephen estar ali.
— É uma cultura lucrativa — respondi, por fim.
Durante todo este tempo, Katie olhava-me de relance, mantendo-se sensatamente calada. Não conseguia olhar para Stephen sem imaginar Coop ao lado dele. Stephen não tinha os olhos verde-claros de Coop. Stephen tinha um ar demasiado polido. O sorriso do Stephen parecia treinado, em vez de uma bandeira desfraldada.
— Sabes, estou muito ocupada — disse.
— O único caso em que te vejo a trabalhar envolve maços de Marlboro Lights. E é por isso que me devias agradecer. Suponho que o acesso a bibliotecas jurídicas em território amish seja, na melhor das hipóteses, bastante limitado, por isso tomei a liberdade de trazer alguns vereditos para analisares. — Pegou num portfólio e tirou um maço de papéis para fora. — Três neonaticídios que foram julgados segundo a lei da Pensilvânia, um dos quais, acredites ou não, recorreu ao incidente de insanidade mental.
— Como é que sabes que aleguei insanidade mental?
Stephen encolheu os ombros.
— Este caso está a gerar muito burburinho, Ellie. A notícia vai-se espalhando.
Preparava-me para responder quando Katie passou de repente entre nós, saindo a correr do barracão, sem sequer olhar para trás.
Sarah convidou Stephen para jantar, mas ele não quis aceitar o convite.
— Deixa-me levar-te a comer fora — sugeriu. — Podemos ir a um desses restaurantezinhos amish da vila, se quiseres.
Como se, ao sair daquela casa, a primeira coisa que eu quisesse fazer fosse comer outra vez o mesmo...
— Eles não são amish — repliquei, só para contrariar. — Qualquer pessoa que pertencesse realmente a essa comunidade nunca iria publicitar a sua religião numa tabuleta!
— Bem, então temos sempre o McDonald’s.
Olhei para a cozinha, onde Sarah e Katie trabalhavam, a preparar o jantar, tarefa em que estaria a ajudá-las, caso Stephen não tivesse aparecido. Sarah espreitou-nos por cima do ombro, viu-me a olhar, e virou-se rapidamente, envergonhada.
Cruzando os braços sobre o peito, disse:
— Porque é que não podes comer aqui?
— Pensei apenas que tu...
— Bem, pensaste mal, Stephen. Na verdade, prefiro jantar com os Fisher. — Não sabia dizer porquê, mas era importante para mim que Sarah e Katie soubessem que eu preferia estar com elas a estar com Stephen. Que elas percebessem que não estava desejosa de me escapar o mais rapidamente possível.
De alguma forma, ao longo dos meses, aquelas pessoas tinham-se tornado minhas amigas.
Stephen levantou as mãos, em sinal de rendição.
— Como queiras, Ellie. Posso perfeitamente jantar com os Ma and Pa Kettle.
— Oh, por amor de Deus, Stephen! Talvez eles se vistam de forma diferente e rezem com mais frequência do que tu, mas isso não significa que não consigam ouvir as tuas idiotices.
Stephen respondeu rapidamente.
— Não queria ofender ninguém. Só pensei que, ao fim de quatro meses, estivesses ansiosa por estas brincadeiras pseudointelectuais. — Pegou-me na mão, puxando-me para longe da porta, para que Sarah e Katie não nos pudessem ver.
— Senti a tua falta — disse ele. — A verdade é que te queria só para mim.
Vi-o aproximar-se para me beijar e fiquei petrificada, como um veado encadeado por faróis, incapaz de parar o que estava prestes a acontecer. Senti a boca cálida de Stephen sobre a minha, e as suas mãos a atravessar o mapa das minhas costas, mas o meu pensamento estava longe. Ao fim de oito anos, como é que estar nos braços de Stephen podia ser menos confortável do que estar nos de Coop?
Com um sorrisinho tenso, pus as mãos no peito de Stephen.
— Agora não — sussurrei. — Porque é que não vais dar uma volta pela quinta enquanto eu ajudo com o jantar?
Passada uma hora, quando a família se reuniu à mesa, todas as minhas dúvidas acerca de Stephen se desfizeram. Baixou a cabeça solenemente durante a oração silenciosa; usou o seu charme com Sarah até ela não lhe conseguir passar uma travessa sem ficar vermelha como um tomate; falou sobre ensilagem, como se o assunto lhe interessasse ainda mais do que Direito. Eu devia saber que tudo ia correr bem, pois os Fisher eram generosos e cordiais, e Stephen era um ator consumado. Quando Sarah serviu o prato principal — um estufado, empada de galinha e strogonoff de peru —, eu já tinha descontraído o suficiente para comer a primeira garfada.
Katie estava a contar uma história hilariante sobre a altura em que as vacas tinham saído do celeiro no meio de uma tempestade de neve quando se ouviu bater à porta. Elam foi abrir, mas a visita entrou antes de o velhote lá chegar.
— Olá — disse Coop, tirando o casaco. — Cheguei tarde demais para a sobremesa?
Tal como eu, tornara-se um membro adotado da família Fisher. Passado o primeiro mês, até Aaron deixou de se opor com o seu silêncio obstinado quando Sarah lhe oferecia jantar nos dias em que vinha conversar com Katie ou visitar-me. Os seus olhos encontraram os meus e encheram-se de afeto. Era o único contacto que nos permitíamos à frente de outras pessoas. A seguir, viu Stephen sentado ao meu lado.
Stephen já estava a levantar-se, com uma mão no meu ombro e a outra estendida.
— Stephen Chatham — disse, sorrindo com ar perplexo. — Já nos conhecemos?
— John Cooper. E sim, creio que sim — disse Coop, tão calmamente que me apeteceu beijá-lo naquele momento. — Na ópera.
— Orquestra sinfónica — murmurei.
Ambos olharam para mim.
— O Coop aceitou a Katie como paciente — expliquei.
— Coop — repetiu Stephen lentamente, e vi-o fazer as ligações sinápticas: o diminutivo, as fotos enfiadas na contracapa do meu livro de curso, as conversas que havíamos tido debaixo de uma manta de escuridão sobre os nossos antigos amores, quando ainda nos sentíamos seguros nos braços um do outro. — Já sei. Conheceu a Ellie na faculdade.
Coop olhou para mim com relutância, como se não confiasse em si para controlar as emoções que pudesse deixar transparecer.
— Sim. Já foi há muito tempo.
Nunca me senti tão grata pela convicção amish de que as relações íntimas eram assuntos que só interessavam às duas pessoas envolvidas. Katie estava a cortar meticulosamente a carne que tinha no prato; Sarah descobriu alguma coisa que tinha de fazer na cozinha; os outros homens começaram a falar sobre quando planeavam encher os silos. Respirando fundo, sentei-me.
— Bem — disse, em voz alta e animada. — Quem tem fome?
Lá fora, uma ligeira brisa soprava entre as árvores, fazendo-as tocar como se fossem flautas. Eu e Stephen caminhávamos sob a tigela virada do céu, suficientemente próximos para sentir o calor do corpo um do outro, mas sem nos tocarmos.
— O caso está todo nas mãos da psiquiatra forense — disse-lhe. — Se o júri não acreditar nela, a Katie está tramada.
— Nesse caso, esperemos que o júri acredite nela — respondeu o Stephen amavelmente, quando eu sabia que ele estava a pensar que não tínhamos a menor hipótese.
— Talvez não chegue a esse ponto. Talvez eu consiga a nulidade do processo.
Stephen virou as lapelas do casaco para cima.
— Como assim?
— Pedi a nulidade do processo com o fundamento de que a Katie não será julgada por um júri de pares.
Ele sorriu maliciosamente.
— Ou seja, que não haverá um único amish entre os doze jurados?
— Sim.
— Pensava que a participação no sistema judicial era contra a religião dela...
— Não interessa. Tal como disse, não será julgada por um júri de pares.
Stephen desatou a rir.
— Meu Deus, El! Nunca vais ganhar, mas é um argumento dos diabos e passível de recurso! A juíza desta parvónia nem vai perceber o que tem pela frente. — Pôs-se à minha frente com uma manobra graciosa, de tal forma que fui parar aos braços abertos dele. — Tu és mesmo especial — murmurou-me ao ouvido.
Talvez tenha sido a forma como não correspondi ao abraço ou o milissegundo que o meu corpo levou a descontrair junto ao dele, mas alguma coisa fez Stephen recuar. Pôs a mão na minha face, curvando o polegar ao longo do meu queixo. — Então — disse, suavemente. — Vai ser assim?
Hesitei por um momento, urdindo uma teia no meu pensamento que pudesse utilizar para lhe amparar a queda, da mesma forma que tinha mentido a Coop quando terminara tudo com ele, há muitos anos. Sempre acreditara que havia mentiras que faziam mais bem do que mal, e era essa a justificação para as usar: Não sou suficientemente boa para ti; estou demasiado ocupada para me concentrar numa relação; preciso de um tempo só para mim.
A seguir, pensei em Katie, a ajoelhar-se em frente da congregação e a dizer-lhes o que queriam ouvir.
Pus a mão sobre a dele.
— Sim, vai ser assim.
Ele puxou os nossos dedos entrelaçados para baixo, balouçando-os como um pêndulo. Stephen, que sempre parecera tão seguro de si, de repente parecia oco e frágil, como as cascas das sementes de ácer que voavam das árvores.
Levantou-me a mão, de forma que os meus dedos se abriram como uma rosa.
— Ele ama-te?
— Sim — repliquei, engolindo em seco e enfiando a mão no bolso.
— Tu ama-lo?
Não respondi de imediato. Virei a cabeça, para poder ver o retângulo amarelo da luz que vinha da janela da cozinha e as silhuetas de Sarah e Coop dobradas sobre o lava-louça. Coop tinha-se oferecido para a ajudar a levantar a mesa, para que eu e Stephen pudéssemos dar uma volta sozinhos. Perguntei-me se estaria a pensar em mim; se teria dúvidas sobre o que eu diria.
Stephen tinha um sorriso desmaiado nos lábios quando voltei a olhar para ele. Levou um dedo aos meus lábios e disse:
— Pergunta feita, resposta dada. — A seguir, beijou-me a face e afastou-se em direção ao carro.
Deambulei sozinha durante algum tempo ao longo do ribeiro, até chegar ao lago, onde me sentei no pequeno banco. Esta rutura com Stephen era o que queria quando saíra de Filadélfia, mas mesmo assim não deixava de me sentir como se tivesse levado um soco inesperado. Puxei os joelhos para cima e vi a lua rabiscar a superfície da água, ouvi as chiadeiras e os trinados em terra a aquietarem-se para a noite.
Quando ele veio, a única coisa que fez foi estender-me a mão. Sem uma palavra, levantei-me e lancei-me nos braços de Coop, estreitando-o com força.
Sarah estava encostada à sua pá e levantou o rosto para o céu.
— Sempre que enchemos os silos — devaneou —, já sei que o tempo vai mudar.
Limpei o suor da testa pela centésima vez nesse dia.
— Se nos concentrarmos, pode ser que mude nos próximos cinco minutos.
Katie riu-se.
— No ano passado, quando enchemos os silos, estavam vinte e sete graus. Verão fora de tempo.
Sarah pôs a mão em pala sobre os olhos, perscrutando os campos.
— Oh, eles vêm lá!
A imagem cortou-me a respiração. Aaron e Samuel conduziam uma parelha de mulas, que puxava uma ceifeira-atadeira que trabalhava a gasolina. A engenhoca tinha mais de um metro e oitenta de altura, com lâminas na parte da frente para cortar o milho e um mecanismo que o enfeixava. Ao lado, Levi conduzia outra parelha que puxava uma carroça. Coop estava em pé, lá atrás, e atirava os feixes de milho que saíam da atadeira para a plataforma da carroça.
Coop sorriu e acenou quando me viu. Estava de calças de ganga e polo, e tinha um dos chapéus de aba larga de Aaron para proteger o rosto do sol. Estava tão orgulhoso que até parecia que tinha sido ele a cortar cada espiga.
— Olha só para ti — disse Katie, batendo-me com o cotovelo. — Ficaste toda ferhoodled.
Não fazia a menor ideia do que significava, mas soava exatamente como me sentia. Retribuí o sorriso a Coop e esperei que ele saltasse da carroça. Levi, com a arrogância de um pré-adolescente, pavoneou-se em direção à correia transportadora por baixo do silo e ligou-a, para que o motor a gás pudesse acionar a correia, o cortador e a grande ventoinha que soprava o milho através de um cano inclinado até ao silo.
Sarah subiu para a plataforma da carroça para atirar o primeiro feixe de milho cá para baixo; eu segui-a. Senti bocadinhos de casca e espiga a picarem-me as faces e a nuca. O milho cortado era húmido e doce, com um cheiro que me fazia lembrar álcool. O que não era de estranhar, já que a forragem com que se alimentava o gado durante o inverno não estava muito longe de ser massa de milho fermentada. Talvez fosse por isso que as vacas tinham sempre um ar tão plácido: passavam o inverno bêbedas.
Enquanto Aaron tratava dos cavalos e Coop e Levi atiravam o milho sobre o rebordo da carroça, Samuel saltou para o chão. Com grande curiosidade, vi-o aproximar-se de Katie. Tinha de ser desconfortável para ela vê-lo todos os dias na quinta, quando a sua relação se deteriorara daquela forma, mas ultimamente Katie mostrava-se ainda mais perturbada. Sempre que Samuel estava a três metros dela, fazia o que podia por escapar. Eu tinha atribuído o facto ao nervosismo por causa do julgamento iminente, até Sarah mencionar causalmente que novembro era o mês dos casamentos; em breve, os casais que tencionavam unir-se pelo matrimónio seriam anunciados na igreja.
Se as coisas tivessem corrido de forma ligeiramente diferente, Katie e Samuel seriam um deles.
— Espera — disse Samuel. — Deixa que eu faço isso. — Pôs a mão no ombro de Katie e tirou-lhe o feixe de milho das mãos. Com movimentos seguros e fortes, depositou o pesado molho na correia transportadora enquanto Katie recuava e observava.
— Samuel!
Ao ouvir o grito de Aaron, Samuel esboçou um sorriso contrito e voltou a ceder o seu lugar a Katie.
Ela pegou de imediato noutro feixe de milho. As espigas eriçadas gemiam até ao cimo da correia. As mulas, agora desatreladas, batiam com as patas no chão e caminhavam lentamente. E, embora não dissesse uma palavra, enquanto trabalhava com a filha, Sarah sorria.
Teresa Polacci vinha rever o testemunho para o interrogatório direto num dia em que grandes nuvens cinzentas enchiam o céu há horas, ameaçando uma carga de água. Na sala do leite, onde eu estava sentada à frente do meu computador, o vento embatia nas janelas e assobiava por baixo das frinchas das portas.
— Então, depois de discutirmos o conceito de dissociação — meditei em voz alta —, vamos... — Parei quando um gatinho começou a usar a minha perna como poste arranhador. — Olha, Katie, importas-te?
Deitada de barriga no chão de linóleo, com o resto da ninhada sobre as costas e pernas, Katie suspirou. Pôs-se de gatas, livrando-se dos filhotes todos, menos de um, que veio no seu ombro, e tirou o gatinho das minhas calças de ganga.
— Pronto. Então, analisamos o perfil básico de uma mulher que comete neonaticídio, falamos sobre dissociação e, depois, sobre a tua entrevista com a doutora Polacci.
Katie virou-se.
— Vou ter de estar ali sentada a ouvir-vos dizer todas estas coisas?
— Estás a falar da sala de audiências? Sim. És a arguida.
— Nesse caso, porque não me deixas ser eu a fazê-lo?
— Testemunhar, queres tu dizer? Porque o procurador fazia-te em bocadinhos. Se a doutora Polacci contar a tua história, é mais provável que o júri simpatize contigo.
Katie pestanejou.
— O que é que adormecer tem de antipático?
— Em primeiro lugar, se chegasses lá e dissesses que adormeceste e não mataste o bebé, isso ia contra a nossa defesa. Em segundo lugar, o júri teria mais dificuldade em acreditar na tua história.
— Mas é a verdade!
A psiquiatra tinha-me avisado em relação a isto, dizendo que Katie podia continuar durante algum tempo a insistir teimosamente na sua amnésia para explicar os acontecimentos.
— Bem, a doutora Polacci já testemunhou em dúzias de casos como este. Se fosses chamada a depor, seria a primeira vez que isso acontecia. Não te sentes um pouco mais segura apoiada por uma perita?
Katie rolou um dos gatinhos numa bola na palma da mão.
— Quantos casos já defendeste em tribunal, Ellie?
— Centenas.
— Ganhas sempre?
Franzi o sobrolho.
— Nem sempre — admiti. — A maior parte das vezes.
— Queres ganhar este, não queres?
— Claro. É por isso que estou a usar esta defesa. E tu devias alinhar porque também queres ganhar.
Katie levantou a mão no ar, para que um dos gatinhos saltasse sobre ela. A seguir, olhou-me nos olhos.
— Mas, se tu ganhares — disse ela —, eu perco na mesma.
O cheiro a serradura pairava no ar e o gemido agudo das serras acionadas por via hidráulica cortava o céu à medida que quase sessenta homens amish erguiam a estrutura em madeira da parede de um celeiro enorme. De todas as formas, tamanhos e idades, os homens usavam bolsas de carpinteiro à cintura, cheias de pregos e um martelo. Os rapazes mais novos, que tinham saído mais cedo da escola para o acontecimento, andavam por ali, esforçando-se por ser úteis.
Eu estava na colina com as outras mulheres, de braços cruzados, enquanto observava a magia da construção de um celeiro. As quatro paredes estavam deitadas no chão, montadas inicialmente de forma bidimensional. Um punhado de homens posicionou-se ao longo do que seria a parede virada a ocidente, distando poucos passos entre si. Martin Zook, o homem a quem o celeiro se destinava, ocupou um lugar mais afastado. Ao sinal de contagem dado por ele no dialeto, os outros agarraram na estrutura da parede e começaram a pô-la em pé. Martin apareceu por trás deles, segurando a parede no lugar com um pau comprido, enquanto Aaron pegava num pau para a estabilizar do lado contrário. Outros dez homens foram até à base da parede, pregando-a no sítio com uma série de batimentos em staccato. Um homem começou a percorrer a fundação de betão, apontando os pregos a espaços com uma única martelada ao longo da base de madeira acoplada, enquanto um par de rapazinhos ansiosos iam atrás dele, desferindo três ou quatro marteladas com força, para cravar os pregos até ao fundo.
Misturado com o perfume doce e penetrante da nova construção, sentia-se o cheiro acre do suor dos homens à medida que içavam as paredes no sítio certo, as escoravam e trepavam pelas estruturas de madeira como macacos, para fixar as tábuas do telhado. Pensei nos operários que tinham posto um telhado novo na nossa casa quando eu tinha dezasseis anos e admirava o peito dos homens: a pavonear-se na tela de alcatrão preta, com os pés afastados em ângulo, as cabeças enroladas em bandanas e os troncos nus, com as aparelhagens portáteis a bombar. Estes homens pareciam trabalhar duas vezes mais do que aquela equipa de outros tempos; porém, nem um cedera ao calor, enrolando as mangas das suas camisas claras.
— Está um belo dia para isto — disse Sarah, por trás de mim, a outra mulher, enquanto dispunham os pratos nas mesas de piquenique compridas.
— Não está demasiado calor nem demasiado frio — concordou a mulher. Era a esposa de Martin Zook, e tinham-ma apresentado, mas não me conseguia lembrar do seu nome. Ela passou por Sarah e pousou uma travessa de frango frito na mesa. A seguir, pôs as mãos à volta da boca e gritou:
— Komm esse!
Quase em uníssono, toda a gente pousou o martelo e os pregos e tirou a bolsa de lona da cintura. Os rapazes, ainda cheios de energia, desataram a correr até uma banheira velha, à porta da cozinha, que estava cheia de água. Havia uma barra de sabão a boiar à superfície. Lado a lado, os rapazes passaram o sabão de mão em mão com barulhos de peidos abafados e muitos sorrisos. Enxugaram os antebraços com toalhas azul-claras, cedendo o lugar junto à banheira aos homens afogueados e transpirados.
Martin Zook sentou-se, com os filhos à direita e à esquerda. Os homens sentaram-se nos lugares vazios à mesa. Martin baixou a cabeça e, por momentos, o único som que se ouviu foi o ranger dos bancos sob o peso dos homens e o ritmo compassado da sua respiração. A seguir, Martin levantou a cabeça e esticou o braço para o frango.
Eu estava à espera de conversa exuberante, no mínimo que discutissem quanto tempo precisavam para terminar a construção do celeiro. Mas quase ninguém falou. Os homens enfiavam a comida na boca, demasiado famintos para delicadezas.
— Guardem um espacinho — disse a mulher de Martin, inclinando-se sobre a mesa com a travessa novamente cheia de frango. — A Sarah fez a sua tarte de abóbora.
Quando Samuel falou, ainda foi mais admirável devido à ausência de conversa à mesa.
— Katie — disse ele, surpreendendo-a de tal forma que ela deu um salto —, é a tua salada de batata?
— Ora, tu sabes que sim — respondeu Sarah. — A Katie é a única que lhe põe tomates.
Samuel serviu-se outra vez.
— Ainda bem, pois aprendi a gostar dela assim.
As outras pessoas sentadas à mesa continuaram a devorar o seu almoço, como se não tivessem testemunhado o rubor intenso que cobria o rosto de Katie, ou o sorriso lento de Samuel, ou aquela defesa pública tão fora do comum. E, passados alguns minutos, quando os homens se levantaram, deixando-nos a tarefa de limpar e arrumar, Katie continuava a olhar na direção do celeiro.
Os Tupperwares foram lavados e entregues às mulheres que tinham trazido a comida. Os pregos foram guardados em sacos de papel pardo e os martelos enfiados debaixo dos bancos das carroças. O celeiro perfilava-se orgulhoso e amarelo, uma nova silhueta recortada num céu tão púrpura quanto uma equimose.
— Ellie?
Virei-me, surpreendida pela voz.
— Samuel.
Segurava o chapéu nas mãos, fazendo-o rodar pela aba, como uma roda de exercício.
— Achei que talvez gostasse de ver o interior.
— Do celeiro? — Ao longo de todas as horas que tínhamos passado ali, a ver erguer o celeiro, não tinha visto uma única mulher dirigir-se ao local. — Adorava.
Caminhei ao lado dele, sem saber o que dizer. A última conversa privada que tínhamos tido terminara com Samuel a chorar por causa da gravidez de Katie. Acabei por optar pela saída amish: não disse nada e, em vez disso, caminhei amigavelmente ao lado dele.
As traves grossas cruzavam-se sobre a minha cabeça, pinho perfumado que ali ficaria durante décadas. O telhado alto com tacaniça cortada, como um céu artificial e pálido; e, quando toquei nos postes que suportavam as baias dos animais, caiu sobre mim uma chuva de serradura.
— Isto é mesmo incrível! — exclamei. — Construir um celeiro num único dia.
— Só seria assim tão incrível se fosse um homem sozinho a fazê-lo.
Não era assim tão diferente da filosofia que eu tinha para com os meus clientes, embora ter um advogado ao nosso lado para nos ajudar a safar de um imbróglio não fosse nada em comparação com ter cinquenta amigos e familiares prontos num instante.
— Preciso de falar consigo — disse Samuel, claramente pouco à vontade.
Eu sorri-lhe.
— Desembucha.
Ele franziu a testa, decifrando o meu inglês, e depois abanou a cabeça.
— A Katie... ela está bem?
— Sim. E foi muito bonito da tua parte o que fizeste por ela hoje ao almoço.
Samuel encolheu os ombros.
— Foi uma coisa sem importância. — Virou-se, roendo a unha do polegar. — Tenho andado a pensar sobre o tal tribunal.
— Estás a falar do julgamento?
— Ja. O julgamento. E, quanto mais penso nisso, mais me convenço de que não é assim tão diferente de tudo o resto. O Martin Zook não teve de tratar daquele monte de madeira sozinho.
Se aquilo era algum raciocínio indireto próprio dos Amish, eu não conseguia atingi-lo.
— Samuel, não sei muito bem...
— Quero ajudar — interrompeu. — Quero acompanhar a Katie no tribunal, para que ela não tenha de estar sozinha.
A expressão de Samuel era sombria e determinada; tinha pensado maduramente no assunto.
— Construir um celeiro não é proibido pela Ordnung — disse eu com brandura. — Mas não sei como é que o bispo iria reagir se estivesses disposto a assumir o papel de testemunha de abonação num julgamento por homicídio.
— Eu falo com o bispo Ephram — disse Samuel.
— E se ele disser que não?
Samuel cerrou os lábios.
— Um juiz inglês não vai querer saber da Meidung.
Não, um juiz do Tribunal de Última Instância não se importava com o facto de uma testemunha poder ser banida pela sua comunidade religiosa. Mas Samuel podia importar-se. E Katie.
Olhei por cima do ombro dele para as paredes robustas, para os ângulos retos, para o telhado que não deixaria entrar a chuva.
— Veremos — repliquei.
— E agora?
Katie cortou uma linha com os dentes e olhou para mim.
— Agora, acabaste.
— Estás a brincar — disse eu, de queixo caído.
— Não.
Katie passou as mãos por cima da pequena colcha, com um padrão de uma cabana de madeira em tonalidades de amarelo, roxo, azul-escuro e laivos de rosa. Quando cheguei a casa dos Fisher sem saber coser um botão, Sarah e Katie decidiram que eu era uma boa causa. Com a sua ajuda, tinha aprendido a alinhavar, a prender com alfinetes e a coser. Todas as noites, quando a família se reunia depois do jantar para ler o jornal, jogar gamão ou Yahtzee ou, como Elam, apenas para passar pelas brasas e ressonar, eu e Katie debruçávamo-nos sobre a minha pequena colcha e íamo-la fazendo aos poucos. E agora estava terminada.
Sarah levantou o rosto da roupa que estava a remendar.
— A Ellie já acabou?
Acenei afirmativamente, com um sorriso rasgado.
— Quer ver?
Até Aaron pousou o jornal.
— Claro — gracejou. — Isto é o acontecimento mais importante desde que o Omar Lapp vendeu os seus nove hectares de terra àquele promotor imobiliário de Harrisburg. — Baixou a voz. — E igualmente improvável. — Mas também estava a sorrir, enquanto Katie me ajudava a tirar a colcha da armação e a levantá-la junto ao peito, com orgulho.
Eu sabia que, se tivesse sido Katie a terminar uma colcha, não a teria exibido daquela forma, apesar de ser muito mais merecedora de elogios. Eu sabia que os pontos do lado da colcha que ela fizera eram bonitos e regulares como dentes de bebé, ao passo que os meus corriam ebriamente ao longo das linhas marcadas a lápis.
— Bem, está ótimo, Ellie — disse Sarah.
Elam, na poltrona, abriu um olho.
— Nem sequer chega para lhe manter os pés quentes no inverno.
— É mesmo para ser pequena — ripostei, e depois virei-me para Katie. — Não é?
— Ja. É como uma colcha de bebé. Para os filhos que hão de vir — disse ela com um sorriso.
Revirei os olhos.
— Bem podes esperar...
— A maior parte das Mulheres Simples da tua idade ainda só tiveram metade dos filhos.
— A maior parte das Mulheres Simples da minha idade são casadas há vinte anos — observei.
— Katie — admoestou Sarah —, deixa a Ellie em paz.
Dobrei a minha colcha com tanto cuidado como a bandeira de um soldado morto em combate e abracei-a.
— Estás a ver? Até a tua mãe concorda comigo.
Abateu-se um terrível silêncio sobre a sala e, quase de imediato, apercebi-me do meu erro. Sarah Fisher não concordava comigo — com quarenta e três anos, teria dado o braço direito para ainda poder dar à luz, mas essa decisão tinha-lhe sido tirada das mãos.
Virei-me para ela.
— Peço desculpa. Foi uma indelicadeza da minha parte.
Sarah ficou imóvel por um instante, depois encolheu os ombros e pegou na colcha.
— Quer que a passe a ferro? — perguntou, saindo precipitadamente da sala antes de eu lhe poder dizer que preferia que ela se sentasse a descansar.
Olhei em volta, mas Katie, Aaron e Elam estavam de volta aos seus lugares, entregues em silêncio às suas tarefas, como se eu não tivesse falado irrefletidamente.
No instante seguinte, bateram à porta e eu levantei-me para ir abrir. Percebi pelo olhar que Aaron e Elam trocaram que, na sua cabeça, alguém que os visitava a uma hora tão tardia num dia de semana era seguramente um mensageiro de desgraça. Tinha acabado de pôr a mão na maçaneta quando a porta se abriu, empurrada do lado de fora. Jacob Fisher estava ali especado. Olhou primeiro para a minha expressão de espanto, com um sorriso forçado e nervoso a brincar-lhe nos lábios.
— Olá, mãe, cheguei! — disse ele alegremente, numa paródia às séries televisivas que só nós dois podíamos compreender. — O que é o jantar?
Sarah apareceu a correr, atraída pelo som de um filho que não via há anos. Com a mão a tapar a boca e os olhos a sorrir por entre lágrimas, estava a um metro de Jacob quando Aaron a deteve levantando simplesmente o braço no ar e dizendo:
— Não.
Ele avançou em direção ao filho e, por respeito, Sarah fundiu-se contra a parede.
— Já não és bem-vindo aqui.
— Porquê, pai? — perguntou Jacob. — Não é porque o bispo o tenha dito. E quem é o senhor para fazer uma regra ainda mais rigorosa do que a Ordnung? — Avançou um pouco mais. — Sinto falta da minha família.
Sarah ofegou.
— Vais voltar para a Igreja?
— Não, mãe, não posso. Mas quero desesperadamente voltar para minha casa.
Aaron estava junto do filho, com a maçã de Adão a andar para cima e para baixo. Depois, sem dizer uma palavra, virou-se e saiu da sala. Passados alguns segundos, ouviu-se uma porta a bater nas traseiras da casa.
Elam deu umas palmadinhas no ombro de Jacob e, depois, tomou lentamente a direção que o próprio filho tomara. Sarah, com as lágrimas a rolar-lhe pelas faces, estendeu os braços para o filho mais velho.
— Oh! Não acredito! Nem acredito que és tu!
Ao observá-la, compreendi porque é que uma mãe era capaz de morrer à fome para dar de comer a um filho; como havia sempre tempo e espaço para um filho se enroscar a seu lado; como podia ser suficientemente suave para servir de almofada e suficientemente forte para mover o Céu e a Terra. Os dedos de Sarah traçaram as encostas e planícies do rosto de Jacob: sem barba, mais velho, diferente.
— O meu menino — sussurrou. — O meu menino lindo.
Naquele momento, consegui ver a rapariga que ela tinha sido aos dezoito anos: mais esbelta e forte, entregando timidamente aquele bebé recém-nascido ao seu jovem marido. Apertou as mãos de Jacob, querendo-o só para si, mesmo quando Katie saltou como um cachorrinho para receber o seu abraço. Jacob olhou para mim por cima da cabeça das duas mulheres.
— Ellie, que bom voltar a vê-la.
Jacob tinha concordado rapidamente em servir de testemunha de abonação para Katie. Era o melhor que eu conseguia, já que não havia forma de convencer a mãe nem o pai a sentarem-se no banco das testemunhas. Tinha estado a trabalhar precisamente naquele dia nas perguntas do seu interrogatório direto. Porém, planeara ensaiá-las com ele em State College, pois calculei que fosse demasiado difícil levá-lo para perto da quinta sem levantar suspeitas a Aaron. Mas agora parecia que Jacob agia de acordo com as suas próprias regras.
Deixou Sarah levá-lo para a cozinha para beber um chocolate quente — continuava a ser a sua bebida preferida? — e um dos muffins que ela tinha feito nessa manhã. Reparei, e tenho a certeza de que Jacob também reparou, que, quando ele se sentou para comer, os membros batizados da família se levantaram, radiantes com a reconciliação, mas ainda assim incapazes de se sentar à mesa com um amish excomungado.
— Porque é que voltaste? — perguntou Katie.
— Já era tempo — respondeu Jacob. — Bem, já era tempo de tu e a mãe me verem, pelo menos.
Sarah desviou o olhar.
— O teu pai ficou furioso quando descobriu que a Katie tinha ido visitar-te. Desobedecemos-lhe, e ele está a sofrer. — E acrescentou: — Não é que ele não te queira ver ou que não te ame. Ele é um bom homem, duro com os outros, mas ainda mais duro consigo mesmo. Quando tomaste a decisão de deixar a Igreja, ele não te censurou.
Jacob riu desdenhosamente.
— Não é assim que me lembro das coisas.
— É verdade. Censurou-se a si mesmo, por ser teu pai e não te ter educado de forma a fazer-te querer ficar.
— Aquilo que aprendi nos livros não tem nada a ver com ele.
— Talvez para ti — disse Sarah. — Mas não para o teu pai. — Deu uma palmadinha no ombro de Jacob e deixou lá a mão, como se não quisesse largá-lo. — Durante todos estes anos, ele tem-se castigado por isso.
— Banindo-me?
— Abdicando da única coisa que ele queria mais do que tudo — respondeu Sarah, baixinho. — Do filho.
Jacob levantou-se abruptamente e olhou para Katie.
— Queres dar uma volta?
Ela assentiu, radiante por ter sido a escolhida. Já estavam quase ao pé da porta das traseiras quando Sarah gritou para Jacob:
— Vais passar cá a noite?
Ele abanou a cabeça.
— Não lhe ia fazer uma coisa dessas — respondeu, suavemente. — Mas quer ele goste, quer não, mãe, vou continuar a vir cá.
Às vezes, quando estava deitada na minha cama em casa dos Fisher, perguntava-me se alguma vez me conseguiria adaptar novamente à vida na cidade. Como seria adormecer ao som dos autocarros aos soluços, em vez dos pios das corujas? Fechar os olhos num quarto que nunca ficava completamente às escuras, graças às placas em neón e aos projetores nas ruas? Trabalhar num edifício tão alto que não conseguia sentir o cheiro a trevo e dentes-de-leão sob os meus pés?
Naquela noite, a Lua ergueu-se amarela como o olho de um lobo, retribuindo-me o piscar de olhos enquanto estava deitada na cama, à espera de que Katie voltasse do seu passeio com Jacob. Esperou falar um bocadinho com ele sobre o seu testemunho, mas ele e Katie tinham desaparecido e ainda não tinham voltado na altura em que Elam regressou à sua grossdawdi haus, nem quando Aaron regressou de uma última ronda pelo gado e subiu a escada em silêncio, nem mesmo quando Sarah foi de divisão em divisão, a desligar as lanternas de gás para irem dormir.
Na verdade, já passava das duas da manhã quando Katie entrou finalmente no quarto.
— Estou acordada — anunciei. — Por isso, não te preocupes em não fazer barulho.
Katie parou de tirar o avental, depois acenou afirmativamente e continuou. Mantendo-se recatadamente de costas para mim, despiu o vestido e pendurou-o num dos cabides de madeira espalhados pelas paredes, e a seguir enfiou a camisa de noite pela cabeça.
— Deve ter sido bom teres o Jacob só para ti.
— Ja — murmurou Katie, sem o entusiasmo que eu esperava.
Preocupada, soergui-me num cotovelo.
— Estás bem?
Ela conseguiu esboçar um sorriso.
— Estou apenas cansada. Falámos um bocadinho sobre o julgamento e isso deixou-me esgotada. — Passado um instante, acrescentou: — Eu contei-lhe que tu ias dizer a toda a gente que eu era maluca.
Não era bem a terminologia que eu teria usado, mas a ideia era essa.
— O que é que o Jacob acha?
— Disse que eras uma boa advogada e que sabias o que estavas a fazer.
— É um rapaz inteligente. E que mais disse ele?
Katie encolheu os ombros.
— Coisas — respondeu ela, baixinho. — Coisas sobre ele.
Voltando a deitar-me, pus os braços debaixo da cabeça.
— Aposto que deixou o teu pai aborrecido, esta noite.
Como não obtive resposta, presumi que Katie tinha adormecido. Dei um salto quando ela saiu da cama com um movimento rápido e puxou as persianas para baixo.
— É a lua — murmurou. — Está demasiada luz para conseguir dormir.
As persianas do quarto eram verde-caçador, como todas as outras persianas da casa. Era uma das formas de distinguir uma casa amish de uma inglesa: a cor das persianas. Isso e a ausência de fios elétricos a serpentear em direção à casa.
— Porque é que as persianas são verdes? — perguntei, certa de que havia uma explicação para aquilo, como para todas as outras excentricidades da vida amish.
Katie não se virou para mim e a sua voz estava pastosa. Se a pergunta não fosse perfeitamente banal, diria que estava a chorar.
— Porque foi sempre assim — replicou.
Tinha ganhado o hábito de só beber café de manhã, certa de que a minha saída de casa dos Fisher coincidiria com uma angioplastia se não tivesse mais cuidado comigo. Mas, no dia da última audiência pré-julgamento, quando desci para a cozinha com o meu fato vermelho de arrasar, Sarah estendeu-me um prato de ovos e bacon, panquecas, torrada e mel. Até insistiu para me servir outra vez. Estava a alimentar-me como fazia com Aaron e Samuel, homens que trabalhavam arduamente durante muitas horas, para preservarem o seu modo de vida.
Depois de pensar apenas por um instante nos meus triglicéridos, comi tudo o que ela me pôs no prato.
Katie estava junto ao lava-louça enquanto eu comia, a lavar as tigelas e frigideiras usadas para cozinhar. Envergava o seu vestido cor de alfazema e o seu melhor avental — a roupa de domingo — para a viagem até ao Tribunal de Última Instância. Embora não fosse estar presente na audiência, eu queria que a juíza soubesse que ela continuava firmemente à minha guarda.
Katie virou-se para pousar uma tigela acabada de lavar na bancada, mas esta escorregou-lhe da mão.
— Oh! — exclamou, tentando agarrá-la, numa série de tentativas hilariantes para que não caísse no chão. Por pura sorte, conseguiu segurá-la e encostou-a ao tronco, mas mexeu-se demasiado depressa e derrubou um jarro da bancada com o cotovelo, fazendo saltar pedaços de barro e sumo de laranja pelo chão da cozinha.
Bastou olhar para aquela confusão e Katie desatou a chorar. Sarah repreendeu-a gentilmente no dialeto alemão, enquanto Katie se ajoelhava para apanhar os cacos maiores do jarro partido. Pousei o guardanapo na mesa e baixei-me para a ajudar.
— Estás muito nervosa.
Katie rodou sobre os calcanhares.
— É só porque... de repente, Ellie, isto é tudo muito real.
Sarah meteu-se entre nós, apanhando o sumo de laranja com um pano da louça. Olhei para Katie por cima das costas de Sarah e sorri.
— Confia em mim. Eu sei o que estou a fazer.
Eu sabia que George Callahan tinha ficado perturbado ao passar por Katie, sentada serenamente e com ar doce num banco, à porta do gabinete da juíza. Estava sempre a espreitar para a porta aberta atrás da estenógrafa que tinha vindo para a audiência privada, onde Katie era visível.
— O que está a tua cliente aqui a fazer? — sibilou, finalmente.
Fiz um grande gesto teatral, esticando o pescoço para observar Katie.
— A rezar, acho eu.
— Tu sabes o que quero dizer.
— Ah, porque é que a trouxe ao tribunal? Bem, George, devias saber isso melhor do que ninguém. Faz parte das condições de fiança.
A juíza Ledbetter entrou, com ar atarefado.
— Desculpem o atraso — disse, sentando-se à secretária. Abriu um processo e analisou-o rapidamente. — Permita-me que lhe diga, doutora Hathaway, que fico contente por ter finalmente notificado este tribunal da intenção de alegar insanidade mental. — Virou uma página. — Algum dos dois pensa apresentar mais algum requerimento?
— Eu apresentei um pedido de nulidade do processo, meritíssima — disse.
— Sim, eu sei. Porquê?
— Porque está a ser negado à minha cliente um direito constitucional: um julgamento justo entre os seus pares. Não haverá um único homem ou mulher amish sentados naquele júri. Na nossa sociedade, no nosso sistema, os seus pares não existem. Respirei fundo enquanto a juíza semicerrava ligeiramente os olhos. — Eu consideraria a hipótese de pedir um julgamento em frente de um juiz, ou mesmo pedir alteração do local de julgamento, mas nenhuma das duas se aplica neste caso, pois qualquer dessas opções continuaria a comprometer o seu direito a um julgamento justo. Um júri típico, que é uma amostra representativa da América, não é uma amostra representativa de uma comunidade amish, meritíssima. E se a minha cliente não for julgada por pessoas que compreendam a sua fé e a forma como foi criada e, genericamente, o seu mundo, estará em grande desvantagem.
A juíza virou-se para o procurador.
— Doutor Callahan?
— Meritíssima, o facto é que a menina Fisher violou uma lei do governo dos Estados Unidos e vai ser julgada num tribunal dos Estados Unidos. Não importa se é amish, budista ou zulu: brincou com o fogo, e agora tem de lidar com as consequências das suas ações.
— Oh, por favor! Ela não é uma terrorista internacional que fez explodir uma bomba no World Trade Center. É uma cidadã americana, e isso dá-lhe direito a ser tratada de forma objetiva e de acordo com a lei.
George virou-se e disse baixinho:
— Os cidadãos americanos pagam impostos.
— Desculpe, não creio que a estenógrafa tenha entendido o que disse — comentou a juíza.
Eu sorri para ela.
— O procurador do condado estava apenas a fazer suposições erradas sobre a responsabilidade fiscal da minha cliente. Os Amish pagam impostos, George. Se trabalharem por conta própria, não pagam a Segurança Social, porque não usam a Medicare nem a Medicaid, nem nenhum dos outros serviços que ela financia, uma vez que acreditam em cuidar dos seus próprios velhos. Se trabalharem por conta de outrem, a parcela relativa à Segurança Social é diretamente descontada do cheque do seu salário e nunca usam um cêntimo que seja. Os Amish não pagam impostos sobre a gasolina, mas pagam impostos sobre imóveis, que financiam escolas públicas que eles nem sequer utilizam. Também não beneficiam dos subsídios federais à agricultura, nem dos serviços de previdência social e dos empréstimos a estudantes. — Virando-me para a juíza, disse: — E é precisamente esse o meu argumento, juíza Ledbetter. Se o procurador deste caso já vem para o julgamento com ideias preconcebidas e erradas sobre os Amish, esse preconceito será multiplicado por doze num júri tradicional.
A juíza apertou a cana do nariz.
— Sabe, doutora Hathaway, pensei muito neste seu pedido. É extremamente preocupante para mim pensar que uma cidadã dos Estados Unidos pode não ter um julgamento justo simplesmente por causa da sua filiação religiosa. O que disse no seu resumo é perfeitamente válido.
— Obrigada, meritíssima.
— Infelizmente para si e para a sua cliente, o que o doutor Callahan acabou de responder também é absolutamente válido. Temos aqui uma arguida que está a ser julgada por homicídio e não por ter furtado uma caixa de pastilhas. Seria irresponsável anular um julgamento dessa magnitude. E embora pense que não haverá garantidamente uma única pessoa amish no júri, a verdade, Miss Hathaway, é que a sua cliente nunca conseguiria um júri de pares seus, independentemente do tribunal onde este caso fosse parar. Pelo menos, em Lancaster, ela terá a segunda melhor opção: doze pessoas que vivem e trabalham nesta comunidade com os Amish numa base diária. Doze pessoas que se espera que estejam ligeiramente mais informadas acerca dos seus vizinhos amish do que a amostra média representativa da América. — Olhou diretamente para mim. — Vou negar o seu pedido para declarar a nulidade do processo, doutora Hathaway, mas agradeço-lhe por ter suscitado uma questão tão interessante. — A juíza pôs as mãos em cima da secretária. — Agora, se não houver mais nada a tratar, gostaria de marcar a data para a seleção do júri.
— Daqui a três semanas e meia — disse eu, deixando a folha voar sobre a cama, na grossdawdi haus de Elam. — É quando o julgamento começa.
Sarah entalou a roupa do outro lado da cama e suspirou de alívio.
— Mal posso esperar por que isto acabe — disse. Lançando um olhar preocupado a Katie, perguntou: — Foi muito perturbador estar lá?
— A Katie passou a audiência sentada num banco à porta do gabinete da juíza. No julgamento, estará sentada ao meu lado, na mesa da defesa. O procurador nunca terá hipótese de a perturbar, pois ela não irá depor. Em parte, foi por isso que decidimos usar a alegação de insanidade mental.
Katie acabou de enfiar a última almofada numa fronha nova. Ao ouvir aquela última frase, replicou tão baixinho que até me surpreendeu o facto de eu e Sarah a termos ouvido.
— Importas-te de parar? Por favor?
E, com um gemido angustiado, deu meia-volta e foi-se embora.
Sarah levantou um pouco as saias e preparou-se para correr atrás de Katie, mas eu retive-a pondo-lhe uma mão no braço.
— Por favor — disse-lhe, com brandura. — Deixe-me ir eu.
Inicialmente, não a vi, enroscada numa bola na cadeira de baloiço. Fechei a porta e sentei-me na minha cama, e depois usei uma estratégia que tinha aprendido com o Coop: calei-me e esperei.
— Não posso fazer isto — disse ela, ainda com o rosto enterrado nos joelhos. — Não posso viver desta maneira.
Todos os nervos do meu corpo ficaram alerta. Enquanto advogada de defesa tinha ouvido aquelas palavras dúzias de vezes, normalmente antes de uma confissão dolorosa. Nesta altura, mesmo que Katie me dissesse que tinha assassinado aquele bebé a sangue-frio, continuaria a usar a defesa da insanidade mental para a conseguir safar, mas também sabia que lutaria muito mais por ela se acreditasse que ela não sabia mesmo o que tinha feito na altura.
— Katie — disse eu. — Não me contes nada.
Isto chamou-lhe a atenção.
— Ao fim de meses a pressionar-me, dizes isso?
— Conta ao Coop, se quiseres. Mas eu vou montar uma defesa muito mais convincente se não tivermos a conversa que queres ter.
Ela abanou a cabeça.
— Não posso deixar-te chegar lá e mentir sobre mim.
— Não é mentira, Katie. Nem mesmo tu sabes o que aconteceu ao certo. Disseste ao Coop e à doutora Polacci que há coisas de que não te consegues lembrar.
Katie inclinou-se para a frente.
— Eu lembro-me.
A pulsação começou a bater mais forte atrás das minhas têmporas.
— A tua memória está sempre a mudar, Katie. Mudou pelo menos três vezes desde que te conheci.
— O pai do bebé é um homem chamado Adam Sinclair. É dono do apartamento que o Jacob alugou em State College. Foi-se embora antes de descobrir... que eu ia ter um bebé. — As suas palavras eram suaves e a sua expressão ainda mais suave. — De início, bloqueei esse pensamento. E, na altura em que podia admitir o que tinha acontecido, já era tarde demais. Por isso, continuei a fingir que as coisas eram como sempre tinham sido.
»Adormeci depois de ter tido o bebé no celeiro. Eu ia voltar para casa e levá-lo à minha mãe, Ellie, mas as minhas pernas estavam demasiado trémulas para me pôr em pé. Só queria descansar um minuto. E, depois, aquilo de que me lembro a seguir é de ter acordado. — Piscou os olhos. — O bebé tinha desaparecido.
— Porque é que não foste à procura dele?
— Estava tão assustada. Mais assustada do que em relação aos meus pais poderem descobrir, porque durante todo o tempo que dizia para comigo que era aquela a vontade do Senhor, creio que sabia o que iria descobrir. E não queria.
Olhei-a fixamente.
— Mesmo assim, podes ter matado o bebé, Katie. Podes ter tido um ataque de sonambulismo. Podes tê-lo sufocado sem saber o que estavas a fazer.
— Não. — Por esta altura, estava novamente a chorar, com o rosto vermelho e às manchas. — Não posso tê-lo feito, Ellie. Assim que vi o bebé, quis ficar com ele. Queria-o tanto! — A voz dela transformou-se num sussurro. — Na minha vida, aquele bebé foi a melhor coisa, e a pior coisa, que alguma vez fiz.
— O bebé estava vivo quando adormeceste?
Ela acenou afirmativamente.
— Nesse caso, quem o matou? — Levantei-me, zangada. Confissões de última hora não eram matéria para grandes defesas. — Eram duas da manhã, dois meses antes da data do parto, e ninguém sabia que estavas grávida. Quem diabo entrou ali e matou o bebé?
— Não sei — soluçou Katie. — Não sei, mas não fui eu, e não podes ir ao julgamento dizer-lhes que o fiz. — Olhou para mim. — Não vês o que aconteceu desde que comecei a mentir? Todo o meu mundo desabou, Ellie. Morreu um bebé. Tudo correu mal. — Cerrou os punhos e escondeu-os no avental. — Eu quero compor as coisas.
O simples pensamento deixou-me atordoada.
— Não estamos a falar de uma confissão em frente de um grupo de pastores, Katie. Isso pode valer-te a redenção na Igreja amish, mas num tribunal vale de quinze anos a perpétua.
— Não compreendo...
— Pois não. Foi por isso que contrataste uma advogada, eu, para te orientar no sistema judicial. A única forma de conseguires ser absolvida é eu chegar lá e usar uma boa defesa. E a melhor que temos é a insanidade. Nenhum júri no mundo vai acreditar em ti, quando te vir no banco das testemunhas a dizer que adormeceste e acordaste e, vejam só, o bebé tinha desaparecido. E também morrido, muito convenientemente.
Katie cerrou os maxilares.
— Mas é a verdade!
— O único lugar em que a verdade te vai salvar de uma acusação de homicídio qualificado é num mundo perfeito. Um tribunal está longe de ser um mundo perfeito. A partir do momento em que lá entrarmos, não interessa o que realmente aconteceu, mas sim quem tem a melhor história para impingir ao júri.
— Não quero saber se é um mundo perfeito ou não — disse Katie. — Não é o meu mundo.
— Diz a verdade no banco das testemunhas e o único mundo que vais conhecer é a penitenciária estadual.
— Se for essa a vontade do Senhor, aceito-a.
Lancei-lhe um olhar furibundo.
— Queres armar-te em mártir? Força. Mas não vou ficar sentada ao teu lado enquanto cometes suicídio jurídico.
Katie ficou calada durante algum tempo. A seguir, virou-se para mim, de olhos muito abertos e límpidos.
— Tens de o fazer, Ellie, porque eu preciso de ti. — Sentou-se ao meu lado na cama, tão perto que conseguia sentir o calor do seu corpo. — Eu não vou passar despercebida naquela sala de audiências inglesa. Vou dar nas vistas pela forma como me visto e penso, porque não sou inglesa. Não sei nada sobre homicídio, testemunhas e júris, mas sei como consertar as coisas na minha vida quando estão mal. Se cometeres um erro e te arrependeres, és perdoada. És recebida de braços abertos. Se mentires e continuares a mentir, não haverá lugar para ti.
— A tua comunidade fez vista grossa quando se tratou de me contratar — repliquei. — Também vão compreender por que razão precisas de fazer isto.
— Mas eu não! — Juntou as mãos, como se estivesse a rezar. — Talvez essas mentiras me garantam a liberdade, como dizes, e eu não tenha de ir para a prisão inglesa. Mas nesse caso, Ellie, para onde vou? Porque, se mentir lá para me salvar, não poderei regressar aqui.
Fechei os olhos e pensei no serviço religioso em que Katie se ajoelhara para confessar. Pensei nos rostos das outras pessoas que estavam sentadas naquela sala quente e apinhada enquanto a julgavam. As suas expressões não eram vingativas nem rancorosas, mas aliviadas, como se a humildade de Katie os tornasse a todos um bocadinho mais fortes. Pensei na tarde em que tínhamos trabalhado todos para guardar o milho e no que sentira por fazer parte de algo maior do que eu. Pensei no rosto de Sarah quando pôs a vista em cima de Jacob, pela primeira vez em anos.
De que servia uma vitória pessoal para alguém que tinha passado a vida a perder-se em benefício dos outros?
A mão de Katie, pequena e calejada, introduziu-se na minha.
— Está bem — suspirei. — Vamos ver o que podemos fazer.
II
Não deixes a tua mão esquerda saber
o que faz a direita.
Mateus 6, 3
11
A juíza Philomena Ledbetter viu a advogada remexer desajeitadamente na caneta pela terceira vez desde que tinha entrado no seu gabinete. Para uma advogada experiente de uma grande cidade, Ellie Hathaway parecia tão nervosa como se estivesse envolvida na sua primeira litigância, e o facto tornava-se mais bizarro porque ainda no dia anterior se tinha mostrado confiante e competente.
— Senhora advogada — disse a juíza —, convocou-nos para discutir um assunto?
— Sim, meritíssima. Senti que havia necessidade de discussão adicional antes do julgamento. Houve determinadas... circunstâncias que chegaram ao meu conhecimento.
Sentado à sua direita, George Callahan resmungou:
— Nas dez horas que passaram desde a última vez que nos reunimos?
A juíza Ledbetter ignorou o comentário. Também ela não se sentia particularmente satisfeita por ter sido convocada a tão breve trecho e obrigada a mudar a sua agenda.
— Doutora Hathaway, importa-se de explicar melhor?
Ellie engoliu em seco.
— Quero dizer desde já que, em circunstâncias normais, não faria isto. E a decisão não é minha. Por razões de confidencialidade, não posso dizer tudo, mas a minha cliente acredita, quer dizer, eu acredito... — Pigarreou. — Preciso de retirar a confissão de culpa, com incidente de insanidade mental.
— Como? — disse George.
Ellie endireitou as costas.
— Em vez disso, vamos fazer uma declaração de inocência.
A juíza Ledbetter franziu o sobrolho.
— Com certeza que sabe que nesta altura...
— Sei tudo, acredite! Não tenho escolha, meritíssima. Para cumprir as minhas obrigações éticas para com o tribunal e para com a minha cliente, tenho de fazer isto. Só estou a tentar dar-vos o mesmo tempo de aviso que eu tive.
Previsivelmente, George explodiu.
— Não podes fazer isto três semanas e meia antes do julgamento!
— Que diferença é que isso te faz? — retorquiu Ellie. — Ias tentar provar que ela não estava louca, e agora estou a dizer que tens razão. Isto não sou eu a dar cabo da tua acusação, George, mas sim a dar cabo da minha própria defesa. — Respirando fundo, virou-se para a juíza. — Gostava de ter mais tempo para me preparar, meritíssima.
A juíza ergueu as sobrancelhas.
— Quem não gostava, doutora Hathaway — disse ela, secamente. — Bem, lamento, mas o julgamento está marcado para daqui a três semanas e meia, e a decisão é sua.
Com um sóbrio aceno de cabeça, Ellie reuniu as suas coisas e saiu do gabinete furiosa, deixando o procurador e a juíza a magicar o que teria acontecido.
Ellie saiu apressadamente do gabinete e assim continuou ao longo dos corredores do tribunal até transpor precipitadamente a porta principal do edifício. Aí, estacou, olhando fixamente para os braços lúgubres e nus das árvores e para o céu carregado de nuvens. Não tinha a menor ideia do que fazer a seguir. Estava a pensar num milhão de coisas em simultâneo, e ainda bem, pois tinha menos de um mês para montar uma defesa que representava uma volta de 180 graus relativamente à que planeara.
Pousou a pasta, encostando-a ao tornozelo, e sentou-se lentamente nos degraus do tribunal. A seguir, desperdiçando tempo que não podia perder, perguntou-se como conseguiria ganhar quando partira tão atrás.
Ellie levou meia hora a localizar Jacob, que tinha passado a noite em Lancaster, mas não em casa dos pais. Quando Ellie bateu, Leda abriu a porta com um sorriso no rosto, mas Ellie passou por ela como um furacão, de olhos postos no jovem que bebia leite diretamente da embalagem, em frente ao frigorífico aberto.
— Seu idiota! — grunhiu.
Jacob sobressaltou-se, entornando leite sobre a camisa de flanela.
— O que foi?
— Devias estar a ajudar-me, caramba! Devias contar-me tudo o que pudesses para ajudar no caso da tua irmã.
— E contei!
— E será que o nome Adam Sinclair se inclui nessa categoria?
Leda avançou para impedir Ellie de voltar a investir contra Jacob, mas não antes de esta ter visto o olhar embaçado de quando se é apanhado em falta. Ele reteve a tia, dizendo-lhe que não fazia mal, e depois virou-se para Ellie.
— O que é que tem o Adam?
— Era teu companheiro de casa?
— E meu senhorio.
— E pai do filho da Katie — disse Ellie, cruzando os braços.
Jacob ignorou o sobressalto de Leda.
— Eu não tinha a certeza, Ellie. Apenas desconfiava.
— Teria sido bom saber dessa desconfiança... ora vejamos... para aí há uns três meses. Meu Deus, será que alguém vai ser sincero comigo antes de irmos a julgamento?
— Pensava que ias alegar insanidade mental — disse Leda.
— Sobre isso, fale com a sua sobrinha. — Ellie virou-se para Jacob. — A única coisa que sei é que ela saiu contigo ontem à noite durante duas horas e, quando volta, recusa-se a deixar-me defendê-la como quero. Que diabo lhe disseste?
Jacob fechou os olhos.
— Eu não estava a falar sobre ela — gemeu. — Estava a falar sobre mim.
Ellie sentiu uma dor de cabeça a aproximar-se.
— Continua.
— Disse à Katie que a razão de ter voltado era a mesma por que me fui embora: não conseguia viver uma mentira. Não podia deixar as pessoas fingir que eu era uma coisa que na realidade não era. Há seis anos, a única coisa que queria era aprender com os livros, mas deixei as pessoas pensar que era feliz sendo uma Pessoa Simples. E agora, sou professor assistente, mas aquilo de que sinto mais falta é da minha família. — Olhou para Ellie, destroçado. — Quando a Hannah se afogou, achei que a culpa era minha. Devia estar lá a olhar pelas duas, mas estava escondido no celeiro a tentar ler. Disse à Katie que, pela segunda vez na minha vida, estava a ver uma irmã submergir, mas desta vez a irmã era ela e desta vez estava a esconder o que tinha acontecido quando ela me foi visitar.
— Então sabias que ela tinha ficado grávida quando...
— Não sabia. Desconfiava, depois de ter falado consigo e com a investigadora da acusação. — Abanou a cabeça. — Não queria que a Katie me interpretasse literalmente. Só queria que ela visse as coisas à minha maneira.
— Bem, conseguiste — respondeu Ellie, de forma categórica. — Ela agora quer tomar o seu honesto irmão como modelo. Quer confessar no banco das testemunhas e fingir que o júri é a sua congregação.
— Mas eu disse-lhe que a defesa de insanidade mental era boa!
— Aparentemente, essa parte da conversa não deixou uma impressão tão forte! — Ellie juntou as mãos à sua frente. — Preciso de saber onde encontrar Adam Sinclair.
— Não tenho tido contacto com ele, até os cheques da renda vão para uma agência imobiliária. O Sinclair está fora do país desde outubro do ano passado — disse Jacob. — E não tem tido contacto com a Katie, para saber sequer da gravidez.
— Se não tens tido contacto com ele, como é que sabes que ele continua fora? Ou que a Katie não lhe tem escrito durante este tempo?
Sem dizer palavra, Jacob levantou-se da cadeira e foi ao andar de cima. Regressou passado um minuto, com um maço de cartas na mão, unidas por um elástico.
— Chegam a minha casa de duas em duas semanas, com toda a regularidade — disse. — Para a Katie, ao meu cuidado. O remetente não mudou. O carimbo postal é da Escócia. E sei que a Katie não lhe tem escrito porque nunca lhe entreguei nenhuma destas cartas.
Dividida entre a curiosidade profissional e a afronta pessoal em nome de Katie, Ellie indignou-se.
— Isso é um crime federal, sabias?
— Ótimo. Pode defender-me depois de terminar o caso da Katie. — Jacob passou as mãos pelo cabelo e voltou a sentar-se. — Não fiz isto para me armar em parvo. Na verdade, estava a tentar ser um herói. Só não queria que a Katie tivesse de enfrentar o mesmo que eu quando decidi ser inglês: virar as costas ao nosso povo e encontrar o seu caminho num lugar tão grande e desconhecido que nos pode manter acordados toda a noite. Eu não sabia que a Katie estava grávida, mas até eu conseguia ver que se sentia atraída pelo Adam, pois andava sempre de roda dele como um cachorrinho, e sabia que, se esse sentimento fosse alimentado, a Katie acabaria por ter de escolher entre dois mundos. Pensei que, se houvesse uma rutura definitiva quando ele partiu, ela acabaria por esquecê-lo e tudo correria pelo melhor.
— A tua irmã sabe que tens essas cartas?
Jacob abanou a cabeça.
— Ia dizer-lhe ontem à noite. Mas ela já estava tão transtornada por causa da proximidade do julgamento que não quis dar-lhe mais dores de cabeça. — Fez uma careta e fletiu as mãos na borda da mesa. — Suponho que deva dar-lhas hoje.
Ellie olhou para a letra de imprensa bonita que formava o nome de Katie e para o papel de carta por via aérea, azul e fino, dobrado, selado e fechado.
— Não necessariamente — disse.
Tecnicamente, Ellie devia ter levado Katie consigo para Filadélfia, mas nesta altura já tinha lixado o processo judicial de tal maneira que infringir as condições para a fiança de Katie não podia trazer-lhe problemas de maior. Na verdade, nem sequer sabia porque é que ia a conduzir em direção a Filadélfia, até ter parado no parque de estacionamento da clínica médica onde ficava o consultório de Coop.
A morada era familiar, mas Ellie nunca lá tinha estado. Deu por si em frente do diretório, a pôr o dedo na placa de metal gravada com o nome de Coop. Já no seu consultório, quando uma secretária jovem e bonita perguntou se podia ajudá-la, uma pontada de ciúme cortou-lhe a respiração.
— Ele está com um paciente — disse a mulher. — Quer aguardar?
— Sim, por favor. — Ellie sentou-se e começou a folhear uma revista que tinha seis meses, sem ver uma única página.
Passados alguns minutos, ouviu-se um besouro no intercomunicador da secretária, uma conversa em voz baixa e, depois, Coop abriu a porta do seu santuário.
— Olá — disse ele, com os olhos a bailar. — Ouvi dizer que é uma emergência.
— E é — replicou Ellie, sentindo-se pela primeira vez melhor desde que Katie virara o mundo do avesso. Seguiu Coop lá para dentro e deixou-o fechar a porta. — Preciso de cuidados médicos urgentes.
Ele tomou-a nos braços.
— Bem, não sei se sabes, mas sou psiquiatra. Trato da mente.
— Tratas de mim toda — disse Ellie. — Não sejas modesto.
Quando Coop a beijou, Ellie agarrou-se a ele, esfregando a face contra o tecido engomado da sua camisa. Ele puxou-a para o colo, numa das poltronas estofadas.
— Eh lá, o que é que o doutor Freud tem a dizer sobre isto? — disse ela num murmúrio.
Coop mudou de posição, a ereção forte debaixo das pernas dela.
— Que um charuto nem sempre é um charuto. — Gemeu e, depois, depô-la na cadeira, enquanto se levantava para andar de um lado para o outro. — Só tenho dez minutos até chegar o próximo paciente, e prefiro não tentar o destino. — Enfiou as mãos nos bolsos. — A que devo esta visita?
— Estava à espera de uma borla — confessou Ellie.
— Bem, terei todo o gosto em dar-ta mais tarde...
— Estava a falar de uma consulta clínica, Coop. Tenho a cabeça numa confusão. — Enterrou o rosto nas mãos. — Já não vou alegar insanidade mental para a Katie.
— Porquê?
— Porque vai contra o código de moralidade dela — disse Ellie sarcasticamente. — Estou tão satisfeita por ir defender a primeira alegada homicida da história com um sentido inabalável de ética... — Levantou-se e foi até à janela. — A Katie disse-me quem era o pai do bebé: um professor amigo do Jacob, que nunca chegou a saber da gravidez. E agora que ela virou esta nova página de honestidade, não me deixa ir a tribunal dizer que entrou num estado dissociativo e matou o bebé, porque jura que não é verdade.
— Não conseguiste convencê-la...
— Não consegui dizer nada. Não estou a lidar com uma cliente que compreenda a forma como os tribunais operam. A Katie acredita de todo o coração que pode contar a sua história e que será perdoada. E porque não? É assim que as coisas funcionam na igreja dela.
— Vamos supor que é verdade e que ela não matou o bebé — disse Coop.
— Bem, também há outras verdades inalienáveis. Como o facto de o bebé ter nascido vivo e ter sido encontrado morto e escondido.
— Está bem. Sendo assim, quais são as opções que isso te deixa?
Ellie suspirou.
— Foi outra pessoa que o matou, o que, como já falámos, é praticamente impossível de usar como defesa.
— Ou então o bebé morreu sozinho.
— E caminhou, pós-parto, até à sala de arreios para se enfiar debaixo de um monte de cobertores?
Coop esboçou um sorriso desmaiado.
— Se a Katie queria aquele bebé e quando acordou ele estava morto, talvez tenha sido nessa altura que perdeu o contacto com a realidade. Talvez se tenha livrado do corpo num estado dissociativo e agora não se consiga lembrar.
— O encobrimento de uma morte continua a ser crime, Coop.
— Mas não da mesma proporção — observou ele. — Há um pathos em tentar não admitir conscientemente a morte de um ente querido que não entra em ação se a pessoa também tiver causado essa morte. — Encolheu os ombros. — Eu não sou advogado, El, mas parece-me que tens uma alternativa viável: o bebé morreu por si e foi isso que a mente da Katie tentou encobrir. E tens de ter um perito qualquer que possas tirar do chapéu e que dê a volta ao relatório da autópsia, certo? Isto é, ela deu à luz antes de tempo. Que bebé prematuro conseguiria sobreviver sem uma incubadora, luzes e os serviços de uma UCI neonatal?
Ellie tentou analisar mentalmente essa estratégia, mas os seus pensamentos continuaram a empeçar em algo que sobressaía tão afiado e teimoso como uma farpa. A partir do relatório da autópsia, tinha-se admitido que Katie dera à luz às trinta e duas semanas. E ninguém, incluindo Ellie, se dera ao trabalho de questionar esse dado.
— Porquê? — perguntou ela agora.
— Porquê o quê?
— Porque é que a Katie, uma rapariga saudável de dezoito anos, em melhor forma física do que a maior parte das mulheres da sua idade, entrou prematuramente em trabalho de parto?
O doutor Owen Zeigler olhou para cima quando Ellie o distraiu pela décima vez com o enorme barulho que fazia a mastigar torresmos.
— Se soubesse o que isso lhe faz ao corpo, não comia — disse ele.
— Se soubesse quando foi a última vez que os comi, não me aborrecia com isso. — Ellie viu-o debruçar-se novamente sobre o relatório da autópsia. — Então?
— Bem, por si só, a prematuridade não é um problema. O parto pré-termo é uma ocorrência relativamente frequente, não há um bom tratamento para isso e os obstetras não sabem, a maioria das vezes, o que o provoca. Contudo, no caso da sua cliente, o parto prematuro foi provavelmente causado pela corioamnionite. — Ellie olhou para ele, sem perceber. — É um diagnóstico patológico, e não bacteriológico. Basicamente, significa que havia uma inflamação acentuada das membranas e vilosidades amnióticas.
— Nesse caso, o que é que provocou a corioamnionite? O que diz o médico-legista?
— Não diz. Dá a entender que os tecidos fetais e a placenta estavam contaminados, por isso a causa não foi isolada e identificada.
— Normalmente, o que provoca a corioamnionite?
— As relações sexuais — disse Owen. — A maior parte dos agentes infecciosos que a provocam são bactérias que vivem na vagina de forma regular. Basta somar dois mais dois... — Encolheu os ombros.
— E se as relações sexuais não fossem uma opção viável?
— Então, teria sido provocada por um agente infeccioso que entrou por outra via, como a corrente sanguínea da mãe ou uma infeção do trato urinário. Mas haverá provas que fundamentem isso? — Owen bateu com os dedos numa página da autópsia. — Isto continua a chamar-me a atenção — admitiu. — As descobertas relativas ao fígado foram descuradas. Existe necrose, ou seja, morte celular, mas não há indícios de resposta inflamatória.
— Importa-se de traduzir, para quem não fala patologês?
— O médico-legista pensou que a necrose hepática se devia à asfixia, isto é, à falta de oxigénio, a presumível causa de morte por ele indicada. Mas não é. Aquelas lesões não fazem sentido; apontam para algo diferente da asfixia. Às vezes, vemos necrose hemorrágica devido a anoxia, mas necrose pura é fora do vulgar.
— Então, em que casos se vê isso?
— Em anomalias cardíacas congénitas, que este bebé não tinha, ou em casos de infeção. A necrose pode ocorrer várias horas antes de o corpo conseguir lançar uma resposta inflamatória a uma infeção que um patologista é capaz de ver, e é possível que o bebé tenha morrido antes de isso ter acontecido. Vou pedir as amostras de tecido ao médico-legista e fazer uma coloração de Gram para ver o que encontro.
A mão de Ellie parou a meio caminho da boca, esquecida do torresmo.
— Está a dizer que é possível que o bebé tenha morrido dessa infeção misteriosa e não de asfixia?
— Sim — respondeu o patologista. — Eu depois digo-lhe.
Nessa noite, ia cair geada. Sarah tinha sabido por Rachel Yoder, que tinha sabido por Alma Beiler, cuja artrite reumatoide lhe fazia inchar os joelhos todos os anos até ficarem do tamanho de melões, antes da primeira baixa de temperatura. Katie e Ellie foram mandadas à horta, para apanhar os legumes que restavam: tomates, abóbora e cenouras da grossura de um punho. Katie juntou-os no avental; Ellie tinha levado um cesto. Espreitou por baixo das folhas largas das curgetes, à procura de exemplares perdidos que tivessem sobrevivido até tão tarde.
— Quando era pequena — devaneou —, pensava que os bebés vinham de hortas como esta.
Katie sorriu.
— Eu pensava que os bebés vinham de sermos espetadas com agulhas.
— Vacinas?
— Hum-hum. É assim que as vacas ficam grávidas; já assisti. — Ellie também já tinha assistido; a inseminação artificial era a forma mais segura de fazer criação de vacas leiteiras. — Caramba, armei um escândalo quando a minha mãe me levou para tomar a vacina do sarampo.
Ellie riu-se, depois cortou o caule delgado de uma abóbora com uma faca.
— Quando descobri a verdade sobre os bebés, não acreditei. Em termos logísticos, não me parecia que fosse possível.
— Agora, já não me interessa de onde vêm os bebés — murmurou Katie. — O que eu gostava era de saber para onde vão.
Surpreendida, Ellie pousou cuidadosamente a faca.
— Não vais fazer outra confissão neste momento, pois não?
Sorrindo tristemente, Katie abanou a cabeça.
— Não. A tua estratégia de defesa está segura.
— Qual estratégia de defesa? — murmurou Ellie e, diante do olhar de pânico de Katie, esforçou-se por emendar o que dissera. — Desculpa. Ainda não sei bem o que vou fazer contigo, agora. — Ellie baixou-se entre as filas de feijoeiros, deixados nus há semanas. — Se nunca tivesse entrado naquela sala de audiências, se te tivesse deixado defender da maneira que querias, terias sido declarada incapaz de ser julgada. O mais provável era seres absolvida, com a promessa de cuidados psiquiátricos.
— Eu não sou incapaz, e tu sabes disso — replicou Katie, teimosamente.
— Sim, e não és louca. Já tivemos esta conversa.
— E também sou honesta.
— Amish? — perguntou Ellie, percebendo mal a palavra. — Creio que o júri vai perceber isso, pela tua roupa.
— Eu disse honesta. Mas também sou amish.
Ellie puxou pela cabeça encaracolada de uma cenoura.
— São capazes de ser sinónimos. — Puxou outra vez e, quando a raiz saiu do chão, apercebeu-se subitamente do que dissera. — Meu Deus, Katie, tu és amish!
Katie pestanejou.
— Se levaste estes meses todos para perceber isso, não...
— É essa a defesa. — O rosto de Ellie rasgou-se num sorriso. — Os rapazes amish vão para a guerra?
— Não. São objetores de consciência.
— Porquê?
— Porque não é da nossa natureza sermos violentos — replicou Katie.
— Exatamente. Os Amish vivem de acordo com os ensinamentos literais de Cristo. Isso significa dar a outra face, tal como Jesus, não só aos domingos, mas em todos os minutos do dia.
Desconcertada, Katie disse:
— Não percebo.
— Os jurados também só vão perceber quando eu acabar — disse Ellie. — Sabes por que razão és a primeira amish suspeita de homicídio em East Paradise, Katie? Porque, muito simplesmente, se fores amish, não cometes um homicídio.
O doutor Owen Zeigler gostava de Ellie Hathaway. Já tinha trabalhado uma vez com ela num caso que envolvia um marido abusivo que espancara a mulher grávida, fazendo-a perder o feto de vinte e quatro semanas. Gostava do seu estilo prático e eficiente, do seu corte de cabelo arrapazado e da forma como as suas pernas pareciam prolongar-se até ao pescoço, algo anatomicamente impossível, mas que não deixava de ser estimulante. Não fazia ideia de quem era a sua cliente desta vez, mas as coisas estavam a compor-se para que Ellie Hathaway viesse a conseguir a sua dúvida razoável, por mais diminuta que fosse.
Owen examinou os resultados da sua coloração de Gram através da lente do microscópio. Havia aglomerados de bastonetes curtos azul-escuros gram-positivos, de formato cocobacilar. Segundo os resultados de cultura da autópsia, tinham sido identificados como difteroides, contaminantes básicos. Mas havia uma quantidade impressionante, levando Owen a perguntar-se se seriam mesmo difteroides.
Na verdade, tinha sido Ellie que plantara a semente da dúvida. E se aqueles bastonetes gram-positivos fossem sinal de um agente infeccioso? Um organismo cocobacilar podia ser facilmente tomado por um difteroide em forma de bastonete, sobretudo porque o microbiólogo que efetuara o teste não tinha feito a coloração de Gram.
Tirou a lamela do microscópio, pô-la na palma da mão e percorreu o corredor do hospital até ao laboratório onde trabalhava Bono Gerhardt. Owen encontrou o microbiólogo debruçado sobre um catálogo de reagentes.
— Estás a escolher os teus bolbos primaveris?
O microbiólogo riu-se.
— Sim. Não me consigo decidir entre tulipas holandesas, herpes ou citoqueratina. — Acenou em direção à lamela que Owen levara. — O que é isso?
— Suponho que seja um estreptococo beta-hemolítico do Grupo B ou listeria — respondeu Owen. — Mas tinha esperança que me pudesses dizer com certeza.
Pouco depois das dez horas, os membros da família Fisher largavam o que quer que estivessem a fazer e gravitavam, como que atraídos por um íman, até ao centro da sala de estar. Elam dizia uma curta oração alemã e depois os outros baixavam a cabeça em silêncio por um momento, oferecendo o seu próprio tributo a Deus. Ellie vinha assistindo àquilo há meses, recordando sempre aquela primeira conversa que tivera com Sarah sobre a sua própria fé. O desconforto que sentira inicialmente dera lugar à curiosidade e depois à indiferença: acabava de ler o artigo que estivesse a ver na Reader’s Digest ou num dos seus próprios livros de Direito e, depois, quando os outros se levantavam, subia para se deitar.
Esta noite, ela, Sarah e Katie tinham estado a jogar Scrabble. Quase se tornara surreal, com Katie a insistir para que as palavras em Dietsch também contassem. Quando o relógio de cuco bateu dez vezes, Katie despejou o seu tabuleiro de letras na caixa, seguida da mãe. Aaron, que tinha ido ao celeiro, entrou, trazido por um turbilhão de ar gélido. Pendurou o casaco e foi ajoelhar-se ao lado da mulher.
Mas naquela noite, quando Elam disse o pai-nosso, disse-o em inglês. Surpreendida pela abertura, uma vez que os Amish rezavam em alemão ou, pelo menos, em Dietsch, Ellie deu por si a mexer os lábios ao som da oração. Sarah, que também sussurrava, levantou a cabeça. Olhou para Ellie e depois moveu-se ligeiramente para a direita, para arranjar espaço.
Há quanto tempo é que Ellie não rezava? Rezar a sério, e não aquele arremedo de última hora, quando o júri voltava à sala ou quando o polícia de trânsito a apanhara a conduzir a 135 quilómetros por hora. O que é que tinha a perder? Sem responder às suas próprias perguntas, Ellie saiu da sua cadeira e ajoelhou-se ao lado de Sarah como se pertencesse àquela comunidade, como se os seus pensamentos e expectativas pudessem ser atendidos.
— Bono Gerhardt — disse o homem, estendendo a mão. — Encantado.
Ellie sorriu para o microbiólogo que Owen Zeigler lhe apresentara. O homem media apenas um metro e sessenta e usava uma touca cirúrgica na cabeça, com zebras e macacos estampados. Tinha uma bonequinha típica da Guatemala presa à lapela e uns auscultadores à volta do pescoço, ligados a um Sony Discman que tinha no bolso direito.
— Faltou à incubação — disse ele — mas eu perdoo-lhe por ter chegado depois do primeiro ato.
Bono conduziu-a até uma mesa onde havia várias lamelas à espera.
— Basicamente, estamos a tentar identificar o organismo que o Owen descobriu ao usar uma coloração por imunoperoxidase. Cortei mais secções do tecido parafinado e incubei-as com um anticorpo que reage com a listeria, uma vez que é essa a bactéria que estamos a tentar identificar. Aqui, temos os nossos controlos positivos e negativos: amostras autênticas de listeria, cortesia da Faculdade de Veterinária, e difteroides. E agora, senhoras e senhores, o momento da verdade.
Ellie susteve a respiração enquanto Bono punha algumas gotas de solução no primeiro espécime.
— Isto é peroxidase de rábano-silvestre, uma enzima ligada a um anticorpo — explicou Bono. — Teoricamente, esta enzima só vai para onde está a listeria.
Ellie viu-o tratar todas as lamelas que estavam em cima da mesa. Por fim, brandiu um frasquinho.
— Iodo? — tentou adivinhar.
— Está lá perto. É apenas um corante. — Juntou gotas a cada amostra e depois fixou a primeira lamela debaixo de um microscópio. — Macacos me mordam se não é listeria — murmurou Bono.
Ellie olhou de um homem para o outro.
— O que é que se passa?
Owen espreitou pelo microscópio.
— Lembra-se de eu lhe ter dito que a necrose no fígado se devia provavelmente a uma infeção? Esta é a bactéria que a causou.
Ellie também espreitou pelo microscópio, mas tudo o que conseguiu ver foi umas coisas que pareciam bagos de arroz minúsculos, orlados de castanho.
— O bebé tinha listeriose — disse Owen.
— Então, não morreu de asfixia?
— Na verdade, morreu. Mas foi uma sucessão de acontecimentos. A asfixia deveu-se ao parto prematuro, que foi provocado pela corioamnionite, que por sua vez foi provocada por listeriose. O bebé foi contagiado pela mãe. É fatal em quase trinta por cento dos casos para os fetos, mas pode não ser detetada nas mães.
— Morte por causas naturais, nesse caso.
— Correto.
Ellie sorriu.
— Owen, isso é fabuloso! É precisamente o tipo de informação que eu esperava. E onde é que a mãe arranjou a infeção?
Owen olhou para Bono.
— Esta é a parte de que não vai gostar, Ellie. A listeriose não é como uma infeção na garganta, não é coisa que se contraia todos os dias. As probabilidades de infeção são aproximadamente de uma em cada vinte mil mulheres grávidas. A infeção materna ocorre normalmente depois do consumo de alimentos contaminados e, com a tecnologia atual, os contaminantes específicos já estão negativados quando os alimentos ficam disponíveis para consumo.
Ellie cruzou os braços, impaciente.
— Alimentos de que tipo?
O patologista deixou descair os ombros.
— Quais são as hipóteses de a sua cliente ter bebido leite não pasteurizado enquanto estava grávida?
12
Ellie
A pequena biblioteca do Tribunal de Última Instância ficava mesmo por cima dom gabinete da juíza Ledbetter. Embora eu devesse estar a investigar jurisprudência recente relativa a julgamentos de homicídios de crianças com menos de cinco anos, tinha passado consideravelmente mais tempo a olhar para o chão de madeira empenado, como se pudesse amolecer-lhe o coração através das tábuas.
— Consigo ouvir-te pensar em voz alta — disse uma voz grave. Virei-me no meu lugar e deparei com George Callahan especado atrás de mim. Ele puxou uma cadeira e escarranchou-se nela. — Estás a enviar vibrações à juíza, certo?
Sondei o rosto dele, à procura de sinais de rivalidade, mas vi apenas simpatia.
— Só um vudu ligeiro.
— Sim, eu faço a mesma coisa. E até resulta, cinquenta por cento das vezes. — George sorriu e eu, descontraindo, retribuí o sorriso. — Andava à tua procura. Devo dizer-te que não me sinto nada bem por condenar uma rapariguinha amish a prisão perpétua, Ellie. Mas homicídio é homicídio, e tenho tentado chegar a uma solução que possa ser boa para todos nós.
— Qual é a tua oferta?
— Sabes que ela enfrenta a possibilidade de prisão perpétua, neste caso. Posso dar-te dez anos, se ela se declarar culpada de homicídio involuntário. Olha, com bom comportamento, sairá dentro de cinco ou seis anos.
— Ela não sobrevive cinco ou seis anos na prisão, George — respondi, baixinho.
Ele baixou os olhos para as mãos entrelaçadas e retorquiu:
— Tem mais hipóteses de sobreviver durante cinco anos do que cinquenta.
Olhei fixamente para o chão sobre o gabinete da juíza Ledbetter.
— Eu depois digo qualquer coisa.
Eticamente, tinha de levar o acordo oferecido pela acusação à minha cliente. Já tinha estado naquela situação, em que tinha de transmitir uma proposta que não considerava ser do nosso interesse, mas desta vez estava nervosa com a resposta da minha cliente. Normalmente, conseguia convencer a pessoa de que arriscar o julgamento serviria melhor os seus interesses, mas Katie era uma história completamente diferente. Tinha sido educada para acreditar que se apresentava um pedido de desculpa e, em seguida, se aceitava a punição que fosse ordenada. O acordo oferecido por George permitiria a Katie levar esse fiasco até ao fim, de uma forma que fazia todo o sentido para ela.
Encontrei-a a passar a ferro na cozinha.
— Preciso de falar contigo.
— Está bem.
Ela alisou a manga de uma das camisas do pai, cor de alfazema, e passou-a com um ferro que tinha sido aquecido no fogão. Não era a primeira vez que notava que Katie daria uma esposa perfeita: na verdade, tinha sido preparada para isso. Se fosse condenada a prisão perpétua, nunca teria essa oportunidade.
— O procurador ofereceu-te um acordo judicial.
— O que é isso?
— É um acordo, basicamente. Ele reduz a acusação e a pena e, em troca, tens de dizer que estavas enganada.
Katie virou a camisa e franziu o sobrolho.
— E depois vamos na mesma a tribunal?
— Não. Depois, o processo termina.
O rosto de Katie iluminou-se.
— Isso seria maravilhoso!
— Ainda não ouviste os termos do acordo — disse eu, secamente. — Se te deres como culpada de homicídio involuntário, em vez de homicídio qualificado, apanhas uma pena de dez anos de prisão, em vez de perpétua. Mas, com a possibilidade de liberdade condicional, provavelmente só terás de ficar na cadeia metade desse tempo.
Katie pousou o ferro no descanso, sobre o fogão.
— Nesse caso, ia na mesma para a prisão.
Acenei afirmativamente.
— O risco de aceitar a oferta é que, se fores a julgamento e te absolverem, não terás de ir para a prisão. É como conformares-te com alguma coisa sem teres visto o que há noutros lados. — Mas, no preciso momento em que pronunciava estas palavras, percebi logo que era a explicação errada. Um amish aceitava o que lhe davam; não esperava pelo melhor, pois isso só aconteceria à custa de outra pessoa, de alguém que não conseguiria o melhor.
— Nesse caso, vais conseguir que me absolvam?
As coisas resumiam-se sempre a isto, com clientes a quem era oferecido um acordo. Antes de cederem aos meus conselhos, queriam ter a certeza de que as coisas resultariam a nosso favor. Na maior parte dos casos da minha carreira, tinha conseguido dizer que sim com fervor e convicção, e depois trabalhara para provar que tinha razão.
Mas este não se enquadrava na «maior parte dos casos» e Katie não era uma vulgar cliente.
— Não sei. Acredito que teria conseguido safar-te se alegasse insanidade temporária, mas com o curto período de tempo que tive para preparar esta nova defesa, não sei dizer. Penso que posso conseguir a tua absolvição. Tenho esperança de conseguir a tua absolvição. Mas, Katie, não te posso dar a minha palavra.
— A única coisa que tenho de fazer é dizer que estava enganada? — perguntou Katie. — E depois acaba tudo?
— Depois, vais para a prisão — clarifiquei.
Katie levantou o ferro e passou-o com tanta força no ombro da camisa do pai que o tecido assobiou.
— Acho que vou aceitar a oferta — disse.
Vi-a passar o ferro por cima e entre as casas dos botões, aquela rapariga que tinha acabado de decidir que ia passar uma década na prisão.
— Katie, posso dizer-te uma coisa como tua amiga e não como advogada? — Ela olhou para mim. — Tu não sabes como é a prisão. Não só está cheia de ingleses, como está cheia de gente má. Não creio que seja a atitude certa.
— Tu não pensas como eu — disse Katie, baixinho.
Engoli a minha resposta e contei até dez antes de voltar a falar.
— Queres que eu aceite o acordo? Está bem, mas primeiro gostava que fizesses uma coisa por mim.
Já tinha estado outras vezes no Estabelecimento Prisional de Muncy, cortesia de várias clientes minhas que ainda estavam a cumprir pena. Era um lugar ameaçador, mesmo para uma advogada acostumada à realidade da vida na prisão. Todas as mulheres condenadas na Pensilvânia iam para o centro de classificação diagnóstica em Muncy, e depois ou ficavam lá a cumprir pena ou eram transferidas para o estabelecimento prisional de segurança mínima em Cambridge Springs, Erie. Mas Katie teria de passar pelo menos quatro a seis semanas ali, e eu queria que ela visse aquilo em que se estava a meter.
O diretor da prisão, um homem com o nome infeliz de Duvall Shrimp e o hábito ainda mais infeliz de olhar fixamente para os meus seios, conduziu-nos alegremente até ao seu gabinete. Não expliquei a presença de Katie, por mais estranho que pudesse parecer ter uma rapariga amish sentada ao meu lado enquanto eu pedia uma visita guiada pelas instalações, e diga-se em abono de Duvall que ele também não perguntou. Fez-nos passar a cabina de controlo, onde a porta gradeada se fechou atrás de Katie e a fez suster a respiração.
O primeiro sítio onde ele nos levou foi ao refeitório, onde mesas compridas com bancos ladeavam um corredor central. Uma fila desalinhada de mulheres movia-se como uma serpente ao longo do balcão onde lhes serviam a comida, pegando em tabuleiros cheios de porções pouco apetitosas com várias tonalidades de cinzento.
— As reclusas comem no refeitório — disse ele —, a menos que estejam numa unidade de acesso restrito por mau comportamento ou tenham sido condenadas a pena de morte. Essas comem nas suas celas.
Vimos grupos de prisioneiras dividirem-se por diferentes mesas, olhando-nos com curiosidade indisfarçada. A seguir, Duvall fez-nos subir uma escada que levava ao bloco das celas. Um televisor montado na ponta do corredor fez incidir uma luz colorida no rosto de uma das mulheres, que enfiou os braços pelas grades da cela e assobiou para Katie.
— Fiu-fiu! Não é um bocadinho cedo para o Halloween?
Outras prisioneiras riram e resfolegaram, perfilando-se descaradamente nas suas jaulas minúsculas como animais expostos num espetáculo de circo, mas olharam para Katie como se fosse ela que estava em exposição. Quando ela passou pela última cela da fila, murmurando uma oração, uma prisioneira cuspiu e o pequeno escarro foi parar mesmo ao lado da sapatilha de Katie.
No pátio onde faziam exercício, Duvall tornou-se conversador.
— Não a tenho visto por cá. Tem defendido homens em vez de mulheres?
— Mais ou menos meio por meio. Não me tem visto por cá porque as minhas clientes são absolvidas.
Espetou o queixo em direção a Katie.
— Quem é ela?
Vi-a percorrer o perímetro do pátio vazio, parar ao canto e olhar para o céu, emoldurado pelos rolos de arame farpado. Na torre por cima da cabeça de Katie estavam dois guardas, segurando espingardas.
— Alguém que precisa de ver a propriedade antes de assinar o contrato de aluguer — repliquei.
Katie aproximou-se de nós, aconchegando o xaile com mais força à volta dos ombros.
— E é tudo — disse Duvall. — Espero que tenha achado tudo tão bom como se diz.
Agradeci-lhe e levei Katie de volta ao parque de estacionamento, onde ela entrou para o carro e aí permaneceu em silêncio absoluto durante a maior parte da viagem de duas horas. A dada altura, adormeceu, sonhou e gemeu baixinho. Mantendo uma mão no volante, usei a outra para lhe fazer festas na cabeça e acalmá-la.
Katie acordou quando saímos da estrada, em Lancaster. Encostou a testa à janela e disse:
— Por favor, diz a George Callahan que não aceito o acordo.
Terminei as últimas palavras das minhas alegações iniciais com um floreado e virei-me ao ouvir bater palmas.
— Excelente! Direta e persuasiva — disse Coop, saindo das sombras do celeiro. Fez um gesto em direção às vacas indolentes. — Mas é um júri difícil.
Senti o calor subir-me ao rosto.
— Não devias estar aqui.
— Era mesmo aqui que eu devia estar, acredita.
Afastei-me, empurrando-lhe o peito.
— A sério, Coop. Tenho um julgamento amanhã. Vou ser uma péssima companhia.
— Serei a tua assistência.
— Serás uma distração.
Coop sorriu.
— É a coisa mais bonita que alguma vez me disseste.
Suspirando, comecei a dirigir-me à sala do leite, onde o meu computador emitia uma luz verde.
— Porque é que não vais ter com a Sarah, para ela te dar uma fatia de tarte?
— E perder toda esta excitação? — Coop encostou-se à cisterna do leite. — Acho que não. Continua. Faz o que ias fazer antes de eu aparecer.
Com um olhar deliberado, sentei-me na grade de leite que me servia de cadeira e comecei a rever a lista de testemunhas para o julgamento do dia seguinte. Passado um momento, esfreguei os olhos e desliguei o computador.
— Eu não disse uma palavra — protestou Coop.
— Não foi preciso. — Levantei-me e estendi-lhe a mão. — Queres ir dar uma volta comigo?
Vagueámos indolentemente pelo pomar do lado norte da quinta, onde as macieiras se erguiam como uma assembleia de velhas com artrite. O perfume dos seus frutos envolveu-nos, vivo e doce como rebuçado.
— Na noite anterior a um julgamento, o Stephen fazia bife — disse eu, distraidamente. — Dizia que havia algo de primitivo em devorar carne fresca.
— E os advogados ainda se admiram que lhes chamem tubarões — riu-se Coop. — Também comias bife?
— Não. Vestia o pijama e fazia playback das músicas da Aretha Franklin.
— Estás a brincar...
Inclinei a cabeça para trás e deixei as notas encher-me a garganta.
— R-E-S-P-E-C-T!
— Um exercício de autoestima?
— Não. Gosto mesmo da Aretha.
Coop apertou-me o ombro.
— Se quiseres, posso fazer os coros.
— Meu Deus, tenho passado a vida inteira à espera de um homem como tu.
Ele tomou-me nos braços e levou os lábios aos meus.
— Assim espero — disse. — Para onde é que vais, El, quando tudo isto acabar?
— Bem, eu... — Na verdade, não sabia. Evitava pensar no facto de que, quando tropeçara no imbróglio judicial de Katie Fisher, estava em fuga. — Talvez possa voltar para Filadélfia ou ficar em casa da Leda.
— E eu?
— Tu também podes ficar em casa dela, suponho — respondi, sorrindo.
Mas Coop estava muito sério.
— Tu sabes do que estou a falar, Ellie. Porque é que não vais viver comigo?
O mundo começou imediatamente a fechar-se sobre mim.
— Não sei — retorqui, olhando-o nos olhos.
Coop enfiou as mãos nos bolsos; conseguia ver o seu esforço por não fazer um comentário desdenhoso sobre a forma como o tratara no passado. Queria tocar-lhe, pedir-lhe que me tocasse, mas não fui capaz. Já tínhamos estado à beira deste ponto uma vez, há muitos anos, mas apesar disso a falésia parecia a mesma e a queda igualmente abrupta; tinha a mesma sensação de não conseguir recuperar o fôlego.
Mas desta vez éramos mais velhos. Não lhe ia mentir e ele não se ia afastar. Apanhei uma maçã e entreguei-lha.
— Isto é para fazer as vezes de um ramo de oliveira ou estás a sentir-te bíblica?
— Depende — repliquei. — Estamos a falar de salmos ou de oferendas sacrificiais?
Coop sorriu, numa doce conciliação.
— Na verdade, estava a pensar no livro dos Números. Em toda aquela procriação. — Entrelaçou os dedos nos meus, encostou-se para trás sobre a relva macia e puxou-me para cima dele. Com as mãos a segurar-me a cabeça, beijou-me até eu mal conseguir albergar um pensamento, quanto mais o fio da minha estratégia de defesa. Isto era seguro. Isto, eu conhecia.
— Ellie — sussurrou Coop, ou talvez eu tenha imaginado —, leva o tempo que quiseres.
— Muito bem — disse eu, na minha melhor imitação de um procurador —, aqui está a minha oferta: deixas-me tirar o balde de água do gancho e levas duas ou três cenouras.
Nugget abanou a sua pesada cabeça e bateu com as patas, tão beligerante quanto qualquer advogado de defesa a recusar um péssimo acordo judicial.
— Parece que temos de ir a julgamento — suspirei, e baixei-me dentro da cocheira. O cavalo empurrou-me com o focinho e eu olhei-o com cara de poucos amigos. — Não há dúvida de que a teimosia corre no sangue desta família — murmurei.
Em resposta, o malvado animal mordiscou-me o ombro. Dei um berro, larguei o balde da água e recuei para fora da cocheira.
— Ótimo — disse. — Vai tu buscar a água. — Dei meia-volta, mas detive-me ao ouvir um som desmaiado lá em cima, como o miado de um gatinho.
— Eh! — chamei. — Está aí alguém?
Como não obtive resposta, comecei a subir a estreita escada de mão até ao palheiro, onde os fardos de feno e os cereais para os animais eram guardados. Sarah estava sentada a um canto, a chorar, com o rosto escondido no avental para abafar o ruído.
— Olá — disse eu docemente, tocando-lhe no ombro.
Ela deu um salto, enxugando apressadamente as lágrimas.
— Ach, Ellie. Só vim aqui para... para...
— Para poder chorar à vontade. Não faz mal, Sarah, eu compreendo.
— Não — disse ela, fungando. — Tenho de voltar para casa. O Aaron não tarda a vir almoçar.
Obriguei-a a olhar-me nos olhos.
— Vou fazer o possível por a salvar.
Sarah virou-se, olhando para os campos limpos e simétricos.
— Nunca a devia ter posto no comboio para ir visitar o Jacob... O Aaron tinha razão.
— A Sarah não tinha como saber que a Katie ia conhecer um rapaz inglês e ficar grávida.
— Não? — disse Sarah, baixinho. — Isto é tudo por minha culpa.
— Ela podia ter escolhido ir sozinha. Podia ter acontecido, de qualquer maneira.
Sarah abanou a cabeça.
— Eu amo os meus filhos. Amo-os, e veja só o que aconteceu.
Abracei-a sem hesitar. Conseguia ouvir as suas palavras quentes junto à minha clavícula. — Sou a mãe dela, Ellie. Devia consertar as coisas, mas não posso.
Respirei fundo.
— Então, terei de ser eu a fazê-lo.
Chegar ao julgamento foi um exercício político. Leda, Coop e Jacob chegaram todos à quinta por volta das seis e meia da manhã, cada um deles num carro. Katie, Samuel e Sarah foram encaminhados imediatamente para o carro de Coop, pois ele era o único condutor que não tinha sido excomungado. Nem Jacob nem Leda se sentiam à vontade para deixar o carro na propriedade de Aaron Fisher, por isso Leda teve de fazer o caminho de volta a casa atrás de Jacob, para ele poder lá deixar o seu Honda antes de voltarem para me vir buscar. Já quase tínhamos chegado ao ponto em que eu tinha a certeza de que íamos chegar atrasados, quando Aaron saiu do celeiro, de olhos fixos nos passageiros do carro de Coop.
Ele tinha deixado claro que não assistiria ao julgamento. Embora o bispo compreendesse seguramente o envolvimento de Aaron nesta ação judicial em particular, ele não conseguiria perdoar-se por isso. Mas talvez fosse melhor do que eu pensava. Mesmo que os seus princípios o impedissem de acompanhar a filha ao julgamento, não a ia deixar ir embora sem uma despedida condigna. Coop baixou o vidro da janela para que Aaron pudesse enfiar a cabeça lá dentro e falar com Katie.
Mas, quando ele se debruçou, a única coisa que disse baixinho foi:
— Sarah, komm!
Cabisbaixa, a mãe de Katie apertou-lhe a mão e depois saiu do carro. Pôs-se ao lado do marido, com os olhos rasos de lágrimas que não deixou rolar, nem mesmo quando o marido a virou pelos ombros e a conduziu de volta a casa.
Leda foi a primeira a reparar nas carrinhas. Espalhadas pelo parque de estacionamento do tribunal, eram encimadas por pratos de satélite e tinham uma sopa de letras que identificava os diversos canais noticiosos. Mais perto do tribunal, havia uma fila de repórteres que seguravam microfones e outra fila de operadores de câmara a filmar, virados uns para os outros como se estivessem a preparar-se para dançar folclore, e não para comentar o destino de uma jovem.
— Que diabo vem a ser isto? — perguntou Leda.
— Pois, tem razão, os repórteres não são uma forma de vida humana — murmurei.
De repente, o rosto de Coop apareceu à minha janela.
— Que estão eles aqui a fazer? Pensava que tinham deferido o teu requerimento.
— Consegui que retirassem as câmaras da sala de audiências — retorqui. — Cá fora, qualquer pessoa pode estar.
Desde o dia em que a juíza decidira, eu nunca mais tinha pensado na questão mediática; tinha estado demasiado ocupada a tentar criar uma nova defesa. Mas era uma ingenuidade pensar que, lá por as câmaras não estarem presentes, isso significava que o interesse na história estaria igualmente ausente. Peguei na pasta e saí do carro, sabendo que tinha cerca de dois minutos antes de toda a gente perceber quem eu era. Batendo na janela traseira do carro de Coop, desviei a atenção de Katie para longe dos jornalistas.
— Anda — disse. — É agora ou nunca.
— Mas...
— Não há outra forma, Katie. Vamos ter de abrir caminho entre eles de alguma forma para subir os degraus para o tribunal. Sei que não é o que queres, e podes ter a certeza de que não é o que eu quero, mas não temos escolha.
Katie fechou os olhos por breves instantes antes de sair do carro. Apercebi-me de que estava a rezar e desejei em vão que ela estivesse a pedir a Deus para os matar a todos com uma praga. A seguir, com uma graciosidade que desmentia a sua idade, Katie saiu e deu-me a mão.
O reconhecimento alastrou como um maremoto, à medida que um repórter atrás do outro foi avistando a kapp e o avental de Katie. As câmaras giraram e as perguntas caíram aos nossos pés como dardos. Conseguia senti-la a retrair-se a cada flash; e pensei no retrato de Dorian Gray, na vida a esvair-se. Desconcertada, ela manteve a cabeça baixa e confiou em mim para a ajudar a subir os degraus.
— Sem comentários! — gritei, abrindo caminho por entre os repórteres como a proa de um grande navio, e puxando Katie atrás de mim.
Eu conhecia o edifício bastante bem após várias visitas, por isso levei Katie imediatamente para o WC das senhoras mais próximo. Espreitando por baixo das portas dos compartimentos, para ter a certeza de que estavam vazios, encostei-me à porta para impedir que alguém entrasse.
— Estás bem?
Ela tremia e tinha os olhos arregalados de perplexidade, mas acenou afirmativamente.
— Ja. Só não estava à espera disto.
Eu também não, e tinha a obrigação de lhe dizer que as coisas ainda iam piorar significativamente antes de melhorarem, mas em vez disso respirei fundo e senti o travo do medo de Katie nos meus pulmões. Empurrando-a para a tirar do caminho, corri para o compartimento mais próximo e vomitei até já não ter nada no estômago.
De joelhos, com o rosto corado e quente, encostei a testa à fibra de vidro fria da parede do compartimento. Só respirando muito superficialmente é que consegui virar-me e rasgar uma folha de papel higiénico para limpar a boca.
A mão de Katie caiu como uma pergunta sobre o meu ombro.
— Ellie, e tu? Estás bem?
Nervos, pensei, mas não ia admitir isso junto da minha cliente.
— Deve ter sido alguma coisa que comi — disse, brindando Katie com o meu sorriso mais radiante e pondo-me em pé. — Bem, vamos?
Katie não parava de passar as mãos pela madeira macia e polida da mesa da defesa. Havia pontos em que o polimento tinha desaparecido, desgastado pelas mãos dos incontáveis arguidos que se tinham sentado naquele mesmo lugar. Perguntei-me quantos deles seriam realmente inocentes.
As salas de audiências antes de um julgamento não eram os bastiões de serenidade retratados em séries televisivas sobre a lei. Em vez disso, eram uma enorme azáfama: o escrivão à procura do processo certo, o oficial de diligências a assoar-se a um lenço manchado, as pessoas na galeria a discutir as manchetes dos jornais enquanto seguravam os seus copinhos de café. Hoje, ainda estava mais barulho do que o habitual, mas consegui captar diferentes frases no meio de toda aquela agitação. A maior parte tinha a ver com Katie, que estava em exibição como um animal do jardim zoológico, afastada do seu habitat natural para satisfazer a curiosidade dos outros.
— Katie — disse eu baixinho, e ela deu um salto.
— Porque é que ainda não começaram?
— Ainda é cedo. — Agora, tinha as mãos enfiadas por baixo do avental e os seus olhos acompanhavam a atividade na parte da frente da sala de audiências. O seu olhar iluminou-se quando viu George Callahan a menos de dois metros, na mesa do procurador.
— Tem um ar simpático — disse ela.
— Mas não vai sê-lo. O trabalho dele é fazer com que o júri acredite em todas as coisas más que ele vai dizer sobre ti. — Hesitei, e depois decidi que, no caso da Katie, era melhor saber o que a esperava. — Vai-te custar a ouvir, Katie.
— Porquê?
Pestanejei.
— Porque é que te vai custar?
— Não. Porque é que ele vai mentir sobre mim? Porque é que o júri há de acreditar nele, e não em mim?
Pensei nas regras das provas forenses, nas distinções entre fazer conjeturas sobre um móbil e tecer uma história falsa, nos perfis psicométricos que tinham sido feitos sobre jurados... em todas as idiossincrasias que a Katie não iria compreender. Como é que se explicava a uma rapariga amish que, num julgamento, as coisas se resumiam muitas vezes a quem contava a melhor história?
— É assim que o sistema judicial funciona no mundo inglês — expliquei. — Faz parte do jogo.
— Jogo — disse Katie lentamente, virando a palavra na boca até a amolecer. — Como no futebol americano! — Sorriu para mim, recordando a nossa conversa anterior. — Um jogo em que se ganha e perde, mas em que se recebe dinheiro para isso.
Senti-me outra vez nauseada.
— Sim — respondi. — Exatamente.
— Todos de pé. A meritíssima juíza Philomena Ledbetter preside à audiência!
Levantei-me e tratei de me certificar de que Katie fazia a mesma coisa quando a juíza entrou pela porta lateral da sala. Subiu os degraus, com a toga a ondear atrás dela.
— Sentem-se. — Os seus olhos vaguearam pela galeria, concentrando-se depois no grupo de representantes da comunicação social, à retaguarda. — Antes de começarmos, quero lembrar aos senhores jornalistas que a utilização de câmaras de vídeo é proibida nesta sala de audiências. Se eu vir uma violação que seja, ponho-vos a todos no átrio durante o resto do julgamento.
A seguir, virou a atenção para Katie, avaliando-a em silêncio antes de falar com o procurador.
— Se a acusação estiver pronta, faça favor de começar.
George Callahan avançou lentamente em direção à bancada do júri, como se fosse amigo de longa data de cada um dos jurados.
— Sei o que estão a pensar — disse. — Isto é um julgamento por homicídio. Sendo assim, onde está a acusada? Com certeza que aquela rapariguinha amish que está ali sentada, com o seu avental e a sua touca branca, não é capaz de matar uma mosca, quanto mais outro ser humano... — Abanou a cabeça. — Todos vocês vivem neste condado. Todos veem os Amish nas suas carroças e nas suas bancas de venda. Se não souberem mais nada sobre eles, pelo menos já se deram conta de que são um grupo extremamente religioso que se isola das outras pessoas e não faz ondas. Na verdade, qual foi a última vez que ouviram falar de um amish ter sido acusado de um crime grave?
»No ano passado, posso eu dizer-vos. Quando a bolha idílica da vida amish foi rebentada por dois dos seus jovens, que traficavam cocaína. E hoje, quando ouvirem como esta jovem matou o seu próprio recém-nascido a sangue-frio.
Passou a mão pelo corrimão da bancada do júri.
— É chocante, não é? Custa a acreditar que uma mãe possa mater o próprio filho, ainda mais uma rapariga com um ar tão inocente como aquela que está ali sentada. Bem, deixem-me sossegá-los. No decurso deste julgamento, ficarão a saber que a arguida não é inocente. Na verdade, é uma mentirosa comprovada. Há seis anos que se esgueira da quinta dos pais para passar noites e fins de semana num campus universitário, onde solta o cabelo, veste calças de ganga e camisolas justas e se diverte como qualquer outra adolescente. Mentiu sobre isso, tal como mentiu sobre o facto de ter engravidado durante um desses fins de semana frenéticos e sobre ter cometido homicídio.
Virou-se para Katie e trespassou-a com o olhar.
— Então, qual é a verdade? A verdade é que, pouco depois das duas da manhã do dia dez de julho, a arguida acordou com dores de parto. A verdade é que se levantou, foi em bicos de pés até ao celeiro e deu à luz, em silêncio, um menino vivo. A verdade é que ela sabia que, se o bebé fosse descoberto, a vida tal como a conhecia chegaria ao fim. Seria expulsa de sua casa, da sua igreja e da sua comunidade. Por isso, a verdade é que ela fez o que era preciso para manter a mentira intacta: matou intencional, deliberada e premeditadamente o seu próprio bebé.
George desviou os olhos de Katie e virou-se novamente para o júri.
— Quando olharem para a arguida, olhem para lá do traje pitoresco. Isso é o que ela quer que vejam. Vejam antes uma mulher a sufocar um bebé. Quando ouvirem a arguida, prestem atenção ao que ela tem a dizer. Mas lembrem-se de que não podem confiar no que sai da boca dela. Esta doce rapariguinha amish escondeu uma gravidez proibida, assassinou um recém-nascido com as próprias mãos e enganou toda a gente à sua volta enquanto isto acontecia. Não a deixem enganar-vos.
O júri era constituído por oito mulheres e quatro homens, e eu hesitei ao tentar decidir se isso funcionava a nosso favor ou contra nós. As mulheres eram capazes de sentir mais simpatia por uma adolescente solteira, mas também mais desprezo por alguém que matara o seu recém-nascido. É claro que tudo se resumia a saber até que ponto aquela mistura particular de pessoas estava disposta a encontrar uma escapatória.
Apertei a mão trémula de Katie por baixo da mesa da defesa e levantei-me.
— O doutor Callahan gostaria que acreditassem que determinada parte presente nesta sala de audiências é especialista no que toca a não dizer a verdade. E sabem que mais? Tem razão. O problema é que essa pessoa não é Katie Fisher, mas sim eu. — Levantei a mão e acenei alegremente com ela. — Sim, culpada da acusação. Sou mentirosa e bastante boa nesse campo, se me é permitido dizê-lo. Tão boa que isso fez de mim uma advogada bastante competente. E embora não queira pôr palavras na boca do procurador, aposto que ele próprio já terá deturpado os factos, uma vez ou duas. — Ergui as sobrancelhas para o júri. — Vocês ouvem todo o tipo de piadas, não preciso de vos dizer como são os advogados. Não só mentimos bem, como nos pagam principescamente para o fazer.
Encostei-me ao corrimão da bancada do júri.
— Já Katie Fisher não mente. Como é que tenho a certeza disso? Bem, porque eu queria usar uma defesa com base em insanidade mental temporária. Tinha peritos que iam depor e dizer-vos que a Katie não sabia o que estava a fazer na manhã em que deu à luz. Mas a Katie não me deixou fazê-lo. Disse que não era louca e que não tinha matado o seu bebé. E que, mesmo que isso significasse correr o risco de ser condenada, queria que os senhores jurados soubessem disso.
Encolhi os ombros.
— Por isso, aqui estou eu, uma advogada armada com uma nova arma: a verdade. É tudo o que tenho para contradizer as alegações da acusação: a verdade, e talvez uma visão mais lúcida. Nada do que o doutor Callahan vos irá mostrar é uma prova conclusiva, e há uma razão para isso: Katie Fisher não assassinou o seu recém-nascido. Tendo vivido com ela e com a sua família nos últimos meses, sei algo que o doutor Callahan não sabe: que Katie Fisher é amish dos pés à cabeça. Uma pessoa não se finge amish, como o doutor Callahan sugere. Vive-o. É-o. No decurso deste julgamento, acabarão por compreender este grupo complexo e pacífico, tal como aconteceu comigo. Talvez uma adolescente suburbana desse à luz e enfiasse o bebé na sanita, mas não uma mulher amish. Não Katie Fisher.
»Agora, vamos analisar alguns dos argumentos do doutor Callahan. A Katie esgueirou-se repetidamente para uma cidade universitária? Sim, fê-lo. Estão a ver? Estou a dizer-vos a verdade. Mas o que o senhor procurador não disse foi por que razão ela o fazia. O irmão da Katie, o seu único irmão vivo, decidiu abandonar a Igreja amish e estudar na faculdade. O pai, magoado com esta decisão, restringiu o contacto com o filho. Mas a família é tudo para a Katie, como para a maioria dos amish, e ela sentia tanto a falta dele que estava disposta a correr qualquer risco para o ver. Portanto, como veem, a Katie não estava a viver uma mentira. Estava a preservar um amor.
»O doutor Callahan também insinuou que a Katie precisava de esconder a gravidez ilegítima, caso contrário seria expulsa da sua fé. No entanto, ficarão a saber que os Amish são clementes. Mesmo uma gravidez ilegítima teria sido aceite pela Igreja, e o bebé teria crescido com mais amor e apoio do que os que encontramos em muitas casas nas nossas próprias comunidades.
Virei-me para Katie, que me fitava de olhos arregalados e brilhantes.
— O que me leva ao último argumento do doutor Callahan: nesse caso, porque é que Katie Fisher havia de matar o seu próprio bebé? A resposta é simples, senhoras e senhores. Ela não o fez.
»A juíza explicar-vos-á que, para condenar a Katie, têm de acreditar na acusação, sem margem para uma dúvida razoável. Quando este julgamento terminar, terão mais do que uma dúvida razoável; terão uma carrada delas. Hão de ver que a acusação não tem forma de provar que Katie matou o bebé. Não tem testemunhas físicas desse facto. Não tem nada, a não ser especulação e indícios duvidosos.
»Por outro lado, vou mostrar-vos que aquele bebé pode ter morrido por uma série de razões. — Caminhei em direção a Katie, para que o júri olhasse para ela ao mesmo tempo que olhava para mim. — Vou mostrar-vos porque é que os Amish não cometem homicídio. E, mais importante ainda — concluí —, vou deixar Katie Fisher contar-vos a verdade.
13
Lizzie Munro nunca teria apostado no facto de um dia vir a testemunhar contra uma amish suspeita de homicídio. A rapariga estava sentada na mesa da defesa, ao lado da sua enérgica advogada, de cabeça inclinada e mãos entrelaçadas como uma daquelas medonhas figurinhas da Precious Moments com que a mãe de Lizzie gostava de encher os peitoris. Lizzie detestava-as: os anjos eram demasiado adoráveis, os pastorinhos tinham olhos demasiado inocentes para serem levados a sério. Da mesma forma, olhar para Katie Fisher fê-la sentir a necessidade premente de virar a cara.
Centrou-se antes em George Callahan, elegante no seu fato escuro.
— Pode dizer o seu nome e morada? — pediu ele.
— Elizabeth Grace Munro, 1313 Grand Street, Ephrata.
— Onde trabalha?
— No Departamento da Polícia Municipal de East Paradise. Sou sargento-detetive.
George nem sequer precisava de lhe fazer as perguntas; tinham recapitulado tantas vezes este ato de abertura que ela já sabia o que se seguia.
— Há quanto tempo é detetive?
— Há seis anos. Antes disso, fiz serviço de patrulha durante cinco anos.
— Pode falar-nos um pouco sobre o seu trabalho, detetive Munro?
Lizzie recostou-se no banco das testemunhas, que, para ela, era um lugar confortável.
— De uma forma geral, investigo crimes graves no município de East Paradise.
— Quantos há, aproximadamente?
— Bem, no ano passado recebemos cerca de quinze mil chamadas. Dessas, havia apenas um punhado relacionado com crimes graves. A maioria tinha a ver com pequenos delitos.
— Quantos homicídios ocorreram no ano passado?
— Nenhum — respondeu Lizzie.
— Dessas quinze mil chamadas, há muitas que vos levem a casas amish?
— Não. Os Amish chamam a polícia em caso de roubo ou danos à propriedade e, de vez em quando, temos de deter um jovem amish por conduzir sob a influência do álcool ou por conduta desordeira, mas de uma maneira geral têm uma relação mínima com as autoridades locais.
— Detetive, pode contar-nos o que aconteceu na manhã de dez de julho?
Lizzie endireitou-se na cadeira.
— Eu estava na esquadra quando alguém ligou a reportar ter encontrado um bebé morto num celeiro. Foi enviada uma ambulância para o local e, a seguir, desloquei-me igualmente até lá.
— O que encontrou quando chegou?
— Eram sensivelmente cinco e vinte da manhã, o sol estava quase a nascer. O celeiro pertencia a um produtor de leite amish. Ele e os seus dois empregados ainda estavam no celeiro a ordenhar as vacas. Coloquei fita na porta da entrada e na porta das traseiras do celeiro, para isolar o local. Fui até à sala dos arreios, onde o corpo tinha sido encontrado, e falei com os técnicos da emergência médica. Eles disseram que o bebé era recém-nascido e prematuro, e não pôde ser reanimado. Anotei o nome dos quatro homens ali presentes: Aaron e Elam Fisher, Samuel Stoltzfus e Levi Esch. Perguntei se tinham visto alguma coisa suspeita ou se tinham mexido nalguma coisa no celeiro. Tinha sido o rapaz mais novo, Levi, a encontrar o bebé. Não tinha tocado em nada, a não ser nos cobertores de cavalo que estavam em cima do bebé morto, que estava embrulhado numa camisa de rapaz. Aaron Fisher, o proprietário da quinta, disse que tinha desaparecido uma tesoura usada para cortar o fio de enfardamento e que costumava estar pendurada num gancho próximo da maternidade. Todos os homens me disseram que não tinham encontrado ninguém no celeiro, e que não havia mulheres grávidas no agregado familiar.
»Depois disso, percorri os estábulos individuais, à procura de pistas. Foi igualmente chamada a Divisão de Investigação Criminal da polícia estadual. Foi praticamente impossível recolher impressões digitais das traves de madeira e do feno, e todas as impressões parciais que encontrámos correspondiam a membros da família com motivo para ter estado no celeiro.
— Nessa altura, suspeitava de crime?
— Não. Não suspeitava de nada, a não ser de abandono.
George acenou afirmativamente.
— Faça o favor de continuar.
— Por fim, encontrámos o local do nascimento. Num canto da maternidade, tinha sido espalhado feno fresco para ocultar o feno empapado de sangue. No sítio onde o corpo do bebé foi descoberto, encontrámos uma pegada no chão de terra batida.
— Conseguiu determinar alguma coisa em relação a essa pegada?
— Pertencia a uma mulher descalça, que calçava o número 37.
— O que fez a seguir?
— Tentei encontrar a mulher que tinha dado à luz. Primeiro, entrevistei a mulher de Aaron Fisher, Sarah. Descobri que ela tinha sido submetida a uma histerectomia há quase uma década e não podia ter filhos. Interroguei os vizinhos e as suas duas filhas adolescentes, e todos tinham álibis. Quando regressei à quinta, a filha dos Fisher, Katie, já tinha descido. Na verdade, entrou na sala de arreios, onde o médico-legista estava com o corpo do recém-nascido.
— Qual foi a reação dela?
— Ficou muito perturbada — disse Lizzie. — Saiu a correr do celeiro.
— Foi atrás dela?
— Sim. Alcancei-a no alpendre. Perguntei à menina se tinha estado grávida, e ela negou.
— Isso pareceu-lhe suspeito, na altura?
— De maneira nenhuma. Era a mesma coisa que os pais me tinham dito. Mas depois vi sangue a escorrer-lhe pelas pernas abaixo e a acumular-se no chão. Embora ela se mostrasse relutante, pedi aos técnicos de emergência médica que a levassem à força para o hospital, para sua própria segurança.
— Nessa altura, o que é que lhe passou pela cabeça?
— Que aquela rapariga precisava de cuidados médicos. Mas depois fiquei a pensar que talvez os pais da arguida não soubessem que ela estava grávida; ela podia ter-lhes escondido a verdade, tal como tentara escondê-la de mim.
— Como é que descobriu que ela tinha escondido a verdade? — perguntou George.
— Fui ao hospital e falei com o médico da arguida, que confirmou que ela tinha tido um bebé, estava em estado crítico, e precisava de tratamento de emergência para parar a hemorragia vaginal. Assim que soube que ela me tinha mentido acerca da gravidez, obtive mandados de busca para a casa e para a quinta, e para efetuar uma análise ao sangue e recolher ADN do bebé e da arguida. O seguinte passo foi comparar o sangue no feno da maternidade com o da arguida, o sangue no corpo do bebé com o da arguida e o tipo de sangue do bebé com o da arguida.
— O que resultou da informação que obteve a partir desses mandados?
— Debaixo da cama da arguida, foi encontrada uma camisa de noite ensanguentada. No seu roupeiro, estavam botas e sapatos de tamanho trinta e sete. Todas as análises laboratoriais ligaram inequivocamente o sangue presente no celeiro ao da arguida, e o sangue presente no exterior e interior do corpo do bebé ao da arguida.
— O que é que isso a levou a acreditar?
Lizzie deixou que o seu olhar se fixasse por um momento em Katie Fisher.
— Que, apesar de o negar, a arguida era a mãe daquele bebé.
— Nesta altura, pensava que a arguida tinha morto o bebé?
— Não. O homicídio é raro em East Paradise, e praticamente sem precedentes na comunidade amish. Nesta altura, pensava que o bebé era um nado-morto. Mas depois o médico-legista enviou-me o relatório da autópsia e tive de rever as minhas conclusões.
— Porquê?
— Bem, por um lado, porque o bebé tinha nascido com vida. Por outro, o cordão umbilical tinha sido cortado com uma tesoura, o que me fez pensar na tesoura que Adam Fisher dissera ter desaparecido; tesoura de onde poderíamos ter conseguido recolher uma impressão digital. O recém-nascido tinha morrido de asfixia, mas o médico-legista encontrou fibras no interior da boca do bebé que condiziam com a camisa em que havia sido embrulhado, sugerindo que tinha sido sufocado. Foi aí que percebi que a arguida era uma potencial suspeita.
Lizzie bebeu um gole de água de um copo empoleirado ao lado do banco das testemunhas.
— Depois disso, entrevistei toda a gente próxima da arguida e a própria arguida. A mãe dela confirmou que uma sua filha mais nova tinha morrido há muitos anos, e que não fazia ideia de que a filha estava grávida, nem tinha motivos para pensar que estivesse. O pai não quis falar comigo. Também entrevistei Samuel Stoltzfus, um dos trabalhadores contratados, que era simultaneamente namorado da arguida. Soube por ele que tencionava casar-se com a arguida neste outono. Ele também me contou que a arguida nunca tivera relações sexuais com ele.
— O que é que isso a levou a acreditar?
Lizzie ergueu as sobrancelhas.
— Ao princípio, perguntei-me se ele teria descoberto que Katie Fisher o enganara e se teria sufocado o bebé por vingança. Mas Samuel Stoltzfus mora a mais de quinze quilómetros da quinta dos Fisher com os pais, que confirmaram que ele estava a dormir lá durante a janela de tempo indicada pelo médico-legista para a ocorrência da morte. A seguir, comecei a pensar que talvez estivesse enganada e que a informação apontava antes para a arguida. Quer dizer, estava ali um motivo: rapariga amish, pais amish, namorado amish, e engravida de outra pessoa? É uma justificação para ocultar o nascimento e até para se livrar do bebé.
— Entrevistou mais alguém?
— Sim, Levi Esch, o segundo trabalhador da quinta. Ele disse que de há seis anos para cá que a arguida ia à socapa a Penn State, para se encontrar com o irmão. Jacob Fisher já não vivia como os Amish, mas sim como qualquer outro estudante universitário.
— Porque é que isso era relevante?
Lizzie sorriu.
— É muito mais fácil conhecer um rapaz diferente do namorado amish quando se tem um mundo novo pela frente, ainda por cima um mundo com álcool, festas estudantis e maquilhagem.
— Também falou com Jacob Fisher?
— Sim, falei. Ele confirmou as visitas secretas da arguida e disse que não tinha sabido da gravidez da irmã. Também me disse que a razão para a arguida ter de o visitar sem conhecimento do pai era ele já não ser bem-vindo na sua casa.
George fingiu-se confuso.
— Porquê?
— Os Amish não frequentam a escola para lá do oitavo ano, mas o Jacob quis continuar a estudar. Infringir essa regra fez com que fosse excomungado da Igreja amish. Aaron Fisher levou o castigo um pouco mais além e renegou o Jacob. Sarah Fisher vergou-se aos desejos do marido, mas mandava a filha visitar o Jacob às escondidas.
— Como é que isso afetou a sua maneira de ver o caso?
— De repente — disse Lizzie —, as coisas tornaram-se mais claras. Se eu fosse a arguida e soubesse que o meu próprio irmão tinha sido exilado por algo tão simples quanto estudar, teria muito cuidado em não infringir qualquer regra. Chamem-me louca, mas ter um bebé fora do casamento é uma infração mais grave do que ler Shakespeare às escondidas. Isto significa que, se ela não encontrasse uma forma de esconder o que acontecera, seria expulsa de sua casa e do seio da sua família, já para não falar da Igreja. Por isso, encobriu a gravidez durante sete meses. A seguir, teve o bebé e também escondeu esse facto.
— Determinou a identidade do pai?
— Não.
— Considerou mais algum suspeito, além da arguida?
Lizzie suspirou.
— Sabe que mais? Eu tentei, mas havia demasiadas coisas que não faziam sentido. O nascimento ocorreu dois meses e meio antes do tempo, num lugar sem telefone e sem eletricidade, o que significa que ninguém poderia ter sido contactado ou ter tido conhecimento do sucedido, a menos que vivesse na quinta e tivesse ouvido a arguida em trabalho de parto. Quanto à hipótese de ter passado por lá algum desconhecido, quais são as probabilidades de alguém aparecer às duas da manhã, sem aviso prévio, numa quinta amish? E mesmo que tivesse aparecido um desconhecido, porque é que havia de matar o bebé? E porque é que a arguida não o teria mencionado?
»Por isso, restavam-me os membros da família. Mas apenas um deles me mentira na cara acerca da gravidez e do nascimento. E apenas para um deles é que os riscos eram assustadoramente elevados, caso a notícia deste bebé transpirasse. E apenas para um deles tínhamos provas que o colocavam no local do crime. — Lizzie olhou de relance para a mesa onde estava a arguida. — Na minha opinião, os factos mostram claramente que Katie Fisher sufocou o bebé.
Quando Ellie Hathaway se levantou para a contra-interrogar, Lizzie endireitou os ombros. Tentou lembrar-se do que George dissera sobre o estilo implacável da advogada e sobre a sua capacidade de arrancar respostas às testemunhas mais teimosas. Pelo ar dela, Lizzie não duvidava nem um bocadinho. Lizzie conseguia afirmar-se junto dos homens do departamento, mas o cabelo cortado rente e o fato cheio de ângulos de Ellie Hathaway davam ideia de que os traços mais suaves da sua personalidade há muito que tinham sido obliterados.
E foi por isso que Lizzie quase caiu do banco quando a advogada a abordou com um sorriso franco e amigável.
— Sabia que eu costumava passar o verão aqui?
Lizzie pestanejou, sem perceber.
— No tribunal?
— Não — riu-se Ellie —, ao contrário do que se possa pensar. Estava a falar de East Paradise.
— Não sabia disso — replicou Lizzie com ar constrangido.
— Bem, a minha tia vive cá e nessa altura tinha uma pequena quinta. — Sorriu. — Mas isso foi antes de os impostos sobre imóveis subirem tanto quanto as torres de telecomunicações.
Perante isto, Lizzie riu-se baixinho.
— É por isso que eu prefiro arrendar a casa.
— Meritíssima — interrompeu George, lançando um olhar de aviso à sua testemunha —, tenho a certeza de que o júri não precisa de ouvir a doutora Hathaway desfiar as suas memórias.
A juíza assentiu.
— Isto tem algum objetivo?
— Sim, meritíssima. É que, ao crescer por estas bandas, temos oportunidade de observar bastante bem os Amish. Não concorda? — perguntou, virando-se para Lizzie.
— Sim.
— Disse que não tinha detido muitos amish. Quando é que foi a última vez que isso aconteceu?
Lizzie fez recuar o seu pensamento.
— Há cerca de cinco meses. Um jovem de dezassete anos que atirou a carroça para a valeta sob a influência do álcool.
— E antes disso? Há quanto tempo tinha sido?
Ela tentou, mas não se conseguiu lembrar.
— Não sei.
— Mas foi há bastante tempo?
— Diria que sim — admitiu Lizzie.
— Nas suas relações, tanto profissionais como pessoais, acha que os Amish são um povo bastante gentil?
— Sim.
— Sabe o que acontece quando uma rapariga amish tem um bebé sem ser casada?
— Ouvi dizer que cuidam dos seus — respondeu Lizzie.
— É verdade, e a Katie não teria sido excomungada, apenas banida durante um tempo. A seguir, seria perdoada e recebida novamente de braços abertos. Nesse caso, onde está o motivo para o homicídio?
— Nas ações do pai — explicou Lizzie. — Há maneira de contornar a excomunhão, caso se queira manter o contacto com os familiares que deixaram a Igreja, mas Aaron Fisher não permitiu tal coisa quando baniu o irmão da arguida. A severidade dessa atuação estava sempre presente na cabeça dela.
— Pensei que não tinha entrevistado o senhor Fisher.
— E não entrevistei.
— Ah — disse Ellie. — Então, agora é médium?
— Entrevistei o filho — contrapôs Lizzie.
— Conversar com o filho não lhe diz o que vai na cabeça do pai. Tal como olhar para um bebé morto não lhe diz que a mãe o matou, certo?
— Protesto!
— Retiro o que disse — replicou Ellie, suavemente. — Considera estranho o facto de uma mulher amish estar a ser acusada de homicídio?
Lizzie olhou para George.
— É uma aberração, mas o facto é que aconteceu.
— Será? As vossas provas científicas confirmam que a Katie teve aquele bebé. Isso é indiscutível. Mas será que isso a leva necessariamente a matar o bebé?
— Não.
— Também referiu que encontrou uma pegada na terra batida, perto do local onde o corpo do bebé foi encontrado. Na sua ideia, isso liga a Katie ao homicídio?
— Sim — disse Lizzie —, uma vez que sabemos que ela calça o trinta e sete. Não constitui uma prova condenatória por si só, mas ajuda seguramente a apoiar a nossa tese.
— Há alguma maneira de provar que essa pegada específica foi feita pelo pé da Katie?
Lizzie entrelaçou as mãos.
— Não de forma conclusiva.
— Eu calço o trinta e sete, detetive Munro. Por isso, teoricamente, pode ter sido o meu pé que deixou a pegada, correto?
— Não esteve no celeiro naquela manhã.
— Sabia que o número trinta e sete de uma mulher adulta é aproximadamente equivalente em termos de comprimento ao trinta e seis num sapato de criança?
— Não sabia.
— Sabia que Levi Stoltzfus calça o trinta e seis?
Lizzie esboçou um sorriso tenso.
— Sei agora.
— Quando chegou à quinta, o Levi estava descalço?
— Sim.
— E não é verdade que o Levi admitiu ter pisado o chão perto da pilha de cobertores para cavalos, para tirar um, quando descobriu por acaso o corpo do bebé?
— Sim.
— Nesse caso, não será possível que a pegada que estão a apresentar como prova de a Katie ter cometido o homicídio pertença na realidade a outra pessoa que estava no mesmo local por um motivo perfeitamente inocente?
— É possível.
— Muito bem — concluiu Ellie. — Disse que o cordão umbilical foi cortado com uma tesoura.
— Uma tesoura desaparecida — interpôs Lizzie.
— Se uma rapariga tencionasse matar o seu bebé, detetive, acha que se daria ao trabalho de cortar o cordão?
— Não faço ideia.
— E se eu lhe dissesse que grampear e cortar o cordão umbilical desencadeia o reflexo que faz com que o recém-nascido respire sozinho? Faria sentido fazer isso se o fosse sufocar passados alguns minutos?
— Suponho que não — respondeu Lizzie em voz neutra —, mas também duvido que a maioria das pessoas saiba que cortar o cordão leva a que o bebé respire. É mais provável que seja um passo no processo de nascimento que viram na televisão. Ou, neste caso, por ver o que faziam aos animais da quinta.
Ao ver desmontar o seu argumento, Ellie recuou para se reorganizar.
— Se uma rapariga tencionasse matar o seu bebé, não seria mais fácil cobri-lo de feno e deixá-lo morrer de hipotermia?
— Talvez.
— No entanto, este bebé foi encontrado limpo, ternamente embrulhado. Detetive, que jovem mãe homicida iria limpar e enfaixar o seu bebé?
— Não sei. Mas aconteceu — disse Lizzie, com firmeza.
— Isso leva-me a outra questão — prosseguiu Ellie. — Segundo a vossa teoria, a Katie escondeu a gravidez durante sete meses e esgueirou-se para o celeiro para ter o bebé em absoluto silêncio, fazendo tudo para impedir que alguém viesse a descobrir a existência desse bebé, tanto no útero como fora dele. Nesse caso, por que diabo havia de deixá-lo num lugar que, como ela bem sabia, se iria encher de gente para fazer a ordenha, poucas horas depois? Porque não deitar o bebé no lago, atrás do celeiro?
— Não sei.
— Ou no monte do estrume, onde não seria encontrado durante algum tempo?
— Não sei.
— Numa quinta amish, há muitos sítios onde seria muito mais inteligente livrar-se do corpo de um bebé do que um monte de cobertores.
Encolhendo os ombros, Lizzie replicou:
— Ninguém disse que a arguida era inteligente, apenas que cometeu homicídio.
— Homicídio? Estamos a falar de senso comum básico. Porquê cortar o cordão umbilical, pôr o bebé a respirar, enfaixá-lo, matá-lo e depois deixá-lo onde seria certamente descoberto?
Lizzie suspirou.
— Talvez não estivesse a pensar com clareza.
Ellie caiu em cima dela.
— E, no entanto, de acordo com os termos de uma acusação de homicídio, alega-se que ela estava consciente do que fez, que premeditou o ato e que o cometeu com intenção? Será que se pode agir deliberadamente e estar confusa em simultâneo?
— Não sou psiquiatra, doutora Hathaway. Não sei.
— Pois não, não sabe — disse Ellie, de forma eloquente.
Quando Katie e Jacob eram pequenos, brincavam juntos nos campos, ziguezagueando entre os milheirais como se fossem um labirinto. Era incrível a grossura que aquelas autênticas paredes verdes atingiam, de tal forma que podia estar a um passo do irmão, do outro lado, e não o saber.
Uma vez, quando tinha cerca de oito anos, perdeu-se. Estavam a brincar ao «Segue o Líder!», mas Jacob adiantou-se e desapareceu. Katie tinha chamado por ele, mas Jacob quis meter-se com ela naquele dia e não apareceu. Caminhou em círculos, ficou cansada e com sede e, por fim, deitou-se de costas no chão. Espreitou por entre os pés de milho e encontrou consolo no facto de ver o mesmo Sol de sempre, o mesmo céu de sempre e o mesmo mundo familiar em que acordara naquela manhã. E Jacob, sentindo-se culpado, lá acabou por procurá-la e encontrá-la.
Na mesa da defesa, com uma chuva de palavras a cair à sua volta como uma tempestade, Katie lembrou-se desse dia no milheiral.
As coisas corriam pelo melhor quando as deixávamos seguir o seu curso.
— A doente foi trazida para o Serviço de Urgências com hemorragia vaginal, e o teste de gravidez à urina deu positivo. Tinha um útero flácido, com uma dimensão de cerca de vinte e quatro semanas, e o colo do útero aberto — disse o doutor Seaborn Blair. — Administrámos-lhe pitocina por via intravenosa para parar a hemorragia. Uma análise hormonal confirmou que a doente esteve grávida.
— A arguida foi cooperante durante o tratamento? — perguntou George.
— Não, tanto quanto me lembro — respondeu o doutor Blair. — Ficou muito transtornada por lhe fazermos um exame pélvico, embora vejamos isso de tempos a tempos em mulheres jovens provenientes de áreas remotas.
— Depois de ter tratado a arguida, teve oportunidade de falar com ela?
— Sim. Naturalmente, a minha primeira pergunta foi acerca do bebé. Era óbvio que a menina Fisher tinha dado à luz recentemente, no entanto não tinha vindo acompanhada de qualquer neonato.
— Qual foi a explicação da arguida?
O doutor Blair olhou para Katie.
— Que não tinha tido um bebé.
— Ah! — disse George. — Coisa que, como médico, sabia ser incorreta.
— Exatamente.
— Fez-lhe mais perguntas?
— Sim, mas ela não admitia a gravidez. Nessa altura, sugeri uma consulta psiquiátrica.
— A arguida chegou a ser examinada por algum psiquiatra do hospital?
— Que eu saiba, não — disse o médico. — A doente não o permitiu.
— Obrigado — concluiu George. — A testemunha é sua.
Ellie tamborilou com os dedos na mesa da defesa por um instante, e depois pôs-se em pé.
— O útero flácido, a análise hormonal positiva, a hemorragia, o exame pélvico. Todas essas observações levaram-no a crer que a Katie tinha tido um bebé, certo?
— Sim.
— Essas observações também o levaram a crer que a Katie tinha matado esse bebé?
O doutor Blair olhou uma vez mais para Katie.
— Não.
O doutor Carl Edgerton era médico-legista do condado de Lancaster há mais de quinze anos e esse papel assentava-lhe que nem uma luva, com as suas sobrancelhas hirsutas e o cabelo branco e ondulado apartado ao meio e penteado para trás. Tinha participado em centenas de julgamentos e apresentava-se em todos eles com o mesmo ar ligeiramente irritado que dizia que preferia voltar para o seu laboratório.
— Doutor — disse o procurador —, pode pôr-nos a par dos resultados da autópsia efetuada ao bebé Fisher?
— Sim. Era um nado-vivo prematuro, do sexo masculino, sem anomalias congénitas. Havia sinais de corioamnionite aguda, assim como de aspiração de algum mecónio e pneumonia precoce. Havia vários indícios de asfixia perinatal. Além disso, havia equimoses periorais e fibras de algodão intraorais que condiziam com a camisa em que o bebé estava embrulhado.
— Vamos lá trocar isso por miúdos para quem não frequentou a Faculdade de Medicina — disse George, sorrindo para o júri. — Quando diz que era prematuro e nado-vivo, o que é que isso significa?
— Que o bebé não chegou ao termo da gravidez. A sua idade óssea era consistente com uma idade gestacional de trinta e duas semanas.
— E nado-vivo?
— O contrário de nado-morto. Os pulmões do bebé estavam rosados e com ar. Amostras representativas de cada lobo inferior, juntamente com uma amostra de controlo do fígado, foram suspensas em água. O tecido pulmonar flutuou, ao passo que o fígado se afundou, o que indica que o bebé nasceu e respirou ar.
— E qual a importância de não existirem anomalias congénitas?
— O bebé era viável, na altura do nascimento. Também não existiam defeitos cromossómicos nem indícios de abuso de substâncias, tudo achados negativos importantes.
— E a corioamnionite?
— Basicamente, é uma infeção da mãe que conduziu ao parto prematuro. O exame adicional da placenta excluiu outras causas habituais de parto prematuro. A causa da corioamnionite não foi identificada, porque os tecidos fetais e a placenta estavam contaminados.
— Como soube disso?
— Estudos microbiológicos revelaram difteroides, contaminantes comuns, nos tecidos fetais. A placenta raramente é estéril depois de um parto vaginal, mas esta tinha estado num estábulo durante algum tempo até ser recuperada.
George acenou afirmativamente.
— E o que é asfixia?
— Falta de oxigénio, que acaba por levar à morte. Eram visíveis petéquias, isto é, pequenas hemorragias, na superfície dos pulmões, timo e pericárdio. Foi encontrada no cérebro uma pequena hemorragia subaracnoide. No fígado, havia zonas de hepatócitos necrosados. Estes achados parecem muito exóticos, mas são vistos em situação de asfixia.
— E as equimoses e as fibras de algodão?
— Equimoses são pequenas nódoas negras, em termos leigos. Estas tinham aproximadamente um a um centímetro e meio de diâmetro, todas à volta da boca. A raspagem da cavidade oral revelou fibras que condiziam com a camisa.
— O que é que essas duas observações o levaram a crer?
— Que alguém tinha enfiado a camisa na boca do bebé e tentado cortar o fornecimento de ar.
George deixou a afirmação produzir efeitos por um momento.
— O cordão umbilical foi examinado?
— A parte do cordão umbilical presa ao bebé tinha vinte centímetros de comprimento, sem a presença de qualquer grampo, embora a extremidade estivesse pisada, como se tivesse havido ali alguma coisa a laqueá-lo a dada altura. As fibras presentes no coto do cordão foram analisadas pelo detetor de vestígios e eram compatíveis com o fio de enfardamento encontrado no celeiro. A superfície do corte do cordão era irregular e continha bocadinhos de fibra, e mostrava uma pequena marca ao centro.
— Isso é importante?
O médico encolheu os ombros.
— Significa que o que quer que tenha sido usado para cortar o cordão, mais provavelmente uma tesoura, tinha um entalhe numa das lâminas e tinha sido usada para cortar fio de enfardamento.
— Doutor, com base em tudo isso, determinou a causa de morte do bebé Fisher?
— Sim — disse Edgerton. — Asfixia, devida a sufocamento.
— Determinou o tipo de morte?
O médico-legista assentiu.
— Homicídio.
Ellie respirou fundo, levantou-se e aproximou-se do médico-legista.
— Doutor Edgerton, as equimoses à volta da boca são uma prova conclusiva de sufocamento?
— A prova de sufocamento está nos muitos órgãos que mostram sinais de asfixia.
Ellie assentiu.
— Está a falar, nomeadamente, das petéquias nos pulmões. Mas não é verdade que é impossível dizer exatamente a partir de uma autópsia quando é que essa asfixia ocorreu? Por exemplo, se houvesse um problema com o fluxo sanguíneo placentário antes ou durante o nascimento, isso não poderia provocar uma perda de oxigénio no feto, que apareceria na autópsia?
— Sim.
— E se houvesse um problema com o fluxo sanguíneo placentário logo a seguir ao nascimento? Poderia isso resultar em sinais de asfixia?
— Sim.
— E se a mãe tivesse uma hemorragia ou ela própria tivesse dificuldade em respirar durante o parto?
O médico-legista pigarreou.
— Também.
— E se os pulmões do bebé fossem imaturos, ou se ele sofresse de má circulação ou pneumonia? Isso resultaria em sinais de asfixia?
— Sim.
— E se o bebé tivesse sufocado no seu próprio muco?
— Sim.
— Portanto, a asfixia pode ser provocada por muitas coisas, para lá do sufocamento homicida, certo?
— Certíssimo, doutora Hathaway — disse o médico-legista. — Foi a asfixia, em conjunção com as equimoses à volta da cavidade oral e as fibras encontradas lá dentro, que conduziram ao meu diagnóstico específico.
Ellie sorriu.
— Vamos falar sobre isso. A existência de equimoses prova que alguém pôs a mão em cima da boca da bebé?
— As equimoses indicam que foi exercida pressão no local — disse o doutor Edgerton. — Agora, entenda como quiser.
— Bem, é mesmo isso que vou fazer. E se o bebé tiver nascido precipitadamente e batido com o rosto no chão do celeiro? Poderá ser esse o motivo das equimoses?
— É possível.
— E se a mãe tiver agarrado no bebé quando ele estava a cair, depois do parto?
— Talvez — admitiu o médico.
— E as fibras na cavidade oral — continuou Ellie. — Poderão estar presentes pelo facto de a mãe ter limpado o muco das vias aéreas do bebé para o ajudar a respirar?
Edgerton baixou a cabeça.
— Pode ser.
— Em qualquer desses cenários alternativos, a mãe do bebé está a fazer-lhe algum mal?
— Não, não está.
Ellie dirigiu-se à bancada do júri.
— Mencionou que as culturas estavam contaminadas, não foi?
— Sim. O lapso de tempo entre o nascimento e a recolha do tecido placentário transformou-o numa placa de cultura, ganhando bactérias.
— O tecido fetal também estava contaminado?
— Correto — disse o doutor Edgerton. — Por difteroides.
— Em que é que baseou a identificação desses... difteroides? — perguntou Ellie.
— Colónia e morfologia da coloração de Gram das culturas placentárias e fetais.
— Efetuou alguns estudos bioquímicos para ter a certeza de que eram difteroides?
— Não era preciso. — O médico encolheu os ombros. — Acaso relê os seus manuais antes de cada caso, doutora Hathaway? Faço isto há quinze anos. Pode crer que sei reconhecer difteroides quando os vejo!
— Tem cem por cento de certeza de que eram difteroides? — pressionou Ellie.
— Sim, tenho.
Ellie sorriu ligeiramente.
— Também mencionou que a placenta mostrava sinais de corioamnionite aguda. Não é verdade que a corioamnionite pode levar um feto a aspirar líquido amniótico infetado e a desenvolver pneumonia intrauterina, que, por sua vez, leva a septicemia e à morte?
— Muito, muito raramente.
— Mas acontece?
O médico-legista suspirou.
— Sim, mas isso é forçar muito a nota. É muito mais realista apontar para a corioamnionite como causa do parto prematuro do que como causa de morte.
— No entanto, como o próprio doutor admitiu — disse Ellie —, a autópsia revelou indícios de pneumonia precoce.
— É verdade, mas não suficientemente grave para levar à morte.
— De acordo com o relatório da autópsia, foi encontrado mecónio nos alvéolos pulmonares. Isso não é sinal de sofrimento fetal?
— Sim, na medida em que o mecónio, as fezes fetais, passou para o líquido amniótico e foi inspirado, chegando aos pulmões. Provoca irritação e pode comprometer a respiração.
Ellie aproximou-se da testemunha.
— Acabou de nos dar mais duas razões para esse bebé ter sofrido dificuldades respiratórias: pneumonia precoce, assim como a aspiração de fezes fetais.
— Sim.
— Não é verdade que a pneumonia e a aspiração de mecónio, ambos devidos a causas naturais, teriam levado à asfixia?
O doutor Edgerton parecia divertido, como se soubesse exatamente o que Ellie estava a tentar fazer.
— Talvez, doutora Hathaway. Se o sufocamento não tivesse tratado disso sozinho.
Ellie sempre achara o conceito de uma máquina de venda automática que disponibilizava sopa quente e café um bocadinho perturbador. Quanto tempo é que todo aquele líquido ficava depositado nas suas entranhas? Como é que a máquina sabia que devia dar-nos descafeinado, em vez de caldo de galinha? Estava especada diante de uma delas, na cave do tribunal, de mãos nas ancas, à espera de que o pequeno copo saísse e o vapor se elevasse no ar.
Nada.
— Vá lá! — murmurou, dando um pontapé na base da máquina. Ergueu o punho e desferiu um soco no acrílico, para jogar pelo seguro.
— Lá se foram cinquenta cêntimos — disse, agora mais alto.
Uma voz atrás dela fê-la parar a meio.
— Lembra-me para nunca te ficar a dever dinheiro — disse Coop, pondo-lhe as mãos nos ombros e baixando os lábios sobre a curva do seu pescoço.
— Devia haver alguém responsável pela manutenção das máquinas — zangou-se Ellie, virando costas à máquina. Foi quanto bastou para esta começar a esparrinhar café quente sem copo para o aparar, salpicando-lhe os sapatos e os tornozelos.
— Bolas! — gritou, saltando para o lado e inspecionando as manchas castanhas nos collants claros. — Oh, fantástico!
Coop sentou-se numa cadeira metálica.
— Quando era miúdo, a minha avó costumava tentar fazer com que acontecessem acidentes. Derrubar garrafas de leite de propósito, tropeçar nos próprios pés, deitar água por cima da blusa.
Enxugando os tornozelos, Ellie disse:
— Não admira que tenhas seguido saúde mental.
— Na verdade, faz todo o sentido, desde que sejas supersticiosa. Se tinha alguma coisa importante para fazer, tratava de livrar-se dos contratempos. Dessa forma, podia passar o resto do dia sem problemas.
— Sabes que não funciona assim.
— Tens a certeza? — Coop cruzou a perna. — Não seria bom saber que agora, que isto aconteceu, podes entrar naquela sala de audiências e nada de mal te acontecerá?
Ellie sentou-se ao lado dele e suspirou.
— Sabes que ela está a tremer? — Dobrando o guardanapo sujo ao meio e depois novamente ao meio, pousou-o no chão, ao lado da cadeira. — Consigo senti-la a tremer ao meu lado, como um diapasão.
— Queres que fale com ela?
— Não sei — disse Ellie. — Tenho medo de que tocar no assunto ainda a deixe mais aterrorizada.
— Falando em termos psicológicos...
— Mas não estamos a fazer isso, Coop. Estamos a falar em termos jurídicos. E o mais importante é conseguir que ela chegue ao fim deste julgamento sem perder o controlo.
— Até agora, estás a sair-te bem.
— Eu não fiz nada!
— Ah, agora percebo. Se a Katie está assim tão nervosa só de ouvir os testemunhos, como é que ela vai ficar quando a chamares como testemunha? — Esfregou suavemente as costas de Ellie. — Não deve ser a primeira vez que tens clientes nervosos.
— Claro que não.
— Tu... — Coop calou-se quando outro advogado entrou na sala, cumprimentando-os com um aceno de cabeça antes de enfiar umas quantas moedas de vinte e cinco cêntimos na máquina do café. — Cuidado — advertiu. — Essa ainda não aprendeu a ir à casa de banho.
Ao lado dele, Ellie reprimiu uma gargalhada. O advogado deu um pontapé na máquina defeituosa, praguejou baixinho e voltou a subir a escada. Ellie sorriu para Coop.
— Obrigada. Estava a precisar disso.
— E disto? — perguntou Coop, inclinando-se para a beijar.
— É melhor não me beijares — disse Ellie, sem o deixar aproximar-se. — Acho que estou a chocar alguma.
Os olhos dele fecharam-se.
— Estou com vontade de arriscar.
— Oh, estás aqui!
Ao ouvirem a voz de Leda, Ellie e Coop afastaram-se um do outro. A tia de Ellie estava na escada, com Katie a reboque.
— Eu disse-lhe que tu já voltavas — explicou Leda —, mas ela não quis saber disso.
Katie desceu os últimos degraus até ficar em frente de Ellie.
— Preciso de ir para casa, agora.
— Já não demora, Katie. Espera só mais um bocadinho.
— Precisamos de voltar para a ordenha da tarde e, se formos embora agora, ainda conseguimos. O meu Dat não consegue fazer tudo só com o Levi a ajudá-lo.
— Temos de ficar no tribunal até a sessão ser encerrada — explicou Katie.
— Olha, Katie — interveio Coop —, porque é que não vamos a um lado qualquer e conversamos durante uns minutos? — Lançou um olhar de viés a Ellie, incitando-a a mostrar mais empatia.
Mesmo de longe, era possível ver os tremores que percorriam o corpo de Katie. Esta ignorou Coop, olhando antes diretamente para Ellie.
— Não podes fazer com que o tribunal suspenda a sessão?
— Isso é da competência da juíza. — Ellie pousou a mão no ombro da rapariga. — Sei que isto é difícil para ti, e eu... onde é que vais?
— Falar com a juíza. Pedir-lhe que suspensa a sessão — disse Katie teimosamente. — Não posso faltar às minhas tarefas.
— Não podes ir simplesmente falar com a juíza. Não é assim que se faz.
— Bem, eu vou fazer.
— Enfurece a juíza — avisou Ellie — e vais faltar às tuas tarefas para sempre.
Katie caiu em cima dela:
— Então, pede tu.
— Essa é nova, doutora — disse a juíza Ledbetter. Inclinou-se sobre a secretária, franzindo o sobrolho. — Está a pedir para encerrarmos a sessão mais cedo hoje, para a sua cliente poder fazer tarefas domésticas?
Ellie endireitou as costas, mantendo um ar impassível.
— Na verdade, meritíssima, estou a pedir para suspender as sessões às três da tarde em todos os dias do julgamento. — Cerrando os dentes, acrescentou: — Acredite no que lhe digo, senhora juíza. Se isto não estivesse relacionado com o modo de vida da minha cliente, nunca sugeriria tal coisa.
— O tribunal encerra às quatro e meia, Miss Hathaway.
— Eu sei disso e expliquei esse facto à minha cliente.
— Estou em pulgas para saber o que é que ela disse.
— Que as vacas não esperavam até tão tarde. — Ellie arriscou um olhar em direção a George, que sorria como um gato que tivesse acabado de engolir um canário. E como não havia de sorrir? Ellie estava a fazer um ótimo trabalho a cavar a própria sepultura, sem que ele tivesse contribuído com uma única sílaba. — Em causa, meritíssima, está o facto de, para além da minha cliente, uma das testemunhas arroladas também trabalhar na quinta dos Fisher. O facto de faltarem os dois à ordenha da tarde vai prejudicar muito as finanças da família.
A juíza Ledbetter virou-se para o procurador.
— Doutor Callahan, presumo que tenha alguma coisa a dizer sobre isto.
— Sim, meritíssima. Pelo que entendo, os Amish não cumprem o horário de verão. Uma coisa é praticarem os seus próprios horários quando isso não afeta outras pessoas, mas num tribunal devem ser obrigados a respeitar as nossas normas. Tanto quanto sei, trata-se de alguma jogada da doutora Hathaway para mostrar as diferenças óbvias entre os Amish e o resto do mundo.
— Não é uma jogada, George — murmurou Ellie. — É apenas lactação, pura e simples.
— Além disso — continuou o procurador —, ainda tenho uma testemunha para interrogar, e adiar o seu depoimento seria nocivo para o meu caso. Como é sexta-feira, o júri só poderia ouvi-la na segunda-feira de manhã e, por essa altura, ter-se-ia perdido qualquer dinâmica entretanto criada.
— Correndo o risco de ser atrevida, meritíssima, permita-me que refira que, em muitos dos julgamentos em que participei, os horários foram reformulados à última hora, de acordo com os imponderáveis da assistência aos filhos, consultas médicas e outras emergências que surgem nas vidas dos advogados e até dos juízes. Porque não contornar igualmente as regras para a arguida?
— Oh, ela já fez um belo trabalho nesse campo, sozinha — disse George, secamente.
— Façam o favor de se calar, os dois! — disse a juíza Ledbetter. — Por mais tentador que seja sair daqui antes dos engarrafamentos de sexta-feira à tarde, vou negar o seu pedido, doutora Hathaway, pelo menos enquanto a acusação estiver a apresentar o caso. Quando for a sua vez, pode encerrar as sessões às três da tarde, se lhe convier. — Virou-se para George. — Doutor Callahan, pode chamar a sua testemunha.
— Imaginem-se na pele de uma jovem que se vê envolvida numa relação ilícita com um rapaz que os seus pais não conhecem — disse o doutor Brian Riordan, o psiquiatra forense ao serviço do MP. — Dorme com o rapaz, embora saiba que não devia. Umas semanas mais tarde, descobre que está grávida. Continua com a sua rotina diária, embora ande um pouco mais cansada. Pensa que o problema se resolverá por si. Sempre que o problema lhe passa pela cabeça, põe-no de lado, prometendo que tratará disso no dia seguinte. Entretanto, vai usando roupas um pouco mais largas e certifica-se de que ninguém a abraça demasiado próximo.
»Depois, uma noite, acorda cheia de dores. Sabe o que está a acontecer-lhe, mas a única coisa que lhe importa é manter o segredo. Sai à socapa de casa, para que ninguém se aperceba do parto. Sozinha e em silêncio, dá à luz um bebé que não significa nada para ela. A seguir, o bebé começa a chorar. Tapa-lhe a boca com a mão, para ele não acordar toda a gente. Aumenta a pressão até o bebé deixar de chorar, até deixar de se mexer. Depois, sabendo que tem de se ver livre dele, embrulha-o numa camisa que está ali à mão e enfia-o num sítio escondido. Está exausta, por isso volta para o quarto, para dormir, dizendo a si mesma que trata do resto no dia seguinte. Quando a polícia a aborda no dia seguinte e a interroga acerca de um bebé, diz que não sabe nada sobre isso, tal como tem dito a si mesma o tempo todo.
Hipnotizados, os jurados inclinaram-se para a frente, atraídos pelos contornos duros e afiados da cena que Riordan recriara com palavras.
— E os instintos maternais? — perguntou George.
— As mulheres que cometem neonaticídio estão completamente desligadas da gravidez — explicou Riordan. — Para elas, dar à luz tem a mesma carga emocional que expelir um cálculo biliar.
— As mulheres que cometem neonaticídio sentem-se mal por fazê-lo?
— Está a falar de remorso. — Riordan franziu os lábios. — Sim, sentem. Mas apenas porque lamentam que os pais as tenham visto a uma luz tão desfavorável e não por haver um bebé morto.
— Doutor Riordan, como é que conheceu a arguida?
— Foi-me pedido que a avaliasse para este julgamento.
— O que é que isso implica?
— Ler os resultados da investigação do caso, examinar as suas respostas a testes psicológicos projetivos, como o Rorschach, e a testes objetivos, como o MMPI, assim como encontrar-me pessoalmente com a arguida.
— Chegou a alguma conclusão relativamente a um grau razoável de certeza psiquiátrica?
— Sim, na altura em que matou o bebé, ela sabia distinguir o bem do mal e estava ciente das suas ações. — Os olhos de Riordan passaram sobre Katie. — Este foi um caso clássico de neonaticídio. Tudo na arguida encaixa no perfil de uma mulher capaz de matar o seu bebé: a forma como foi educada, as suas ações e as suas mentiras.
— Como é que sabe que ela mentiu? — perguntou George, fazendo de advogado do diabo. — Talvez não soubesse mesmo que estava grávida ou a ter um bebé.
— Segundo declarações da própria, a arguida sabia que estava grávida, mas tomou voluntariamente a decisão de manter isso em segredo. Se a pessoa escolhe agir de determinada maneira para se proteger, isso implica conhecimento consciente do que se está a fazer. Por conseguinte, a negação e a culpa estão ligadas. Além disso, quando se mente uma vez, é provável que se minta de novo, o que significa que qualquer das suas declarações sobre a gravidez e o parto é, na melhor das hipóteses, duvidosa. Contudo, as suas ações contam uma história sólida e consistente — disse Riordan. — Durante a nossa entrevista, a arguida admitiu ter acordado com as dores do parto e ter saído intencionalmente do quarto porque não queria que ninguém a ouvisse. Isto sugere encobrimento. Escolheu o celeiro e foi para uma área que sabia ter feno fresco. Isto sugere intenção. Depois do parto, tapou o feno ensanguentado, tentou impedir o recém-nascido de chorar, e o corpo do bebé foi encontrado enfiado por baixo de uma pilha de cobertores. Isto sugere que tinha algo a esconder. Livrou-se da camisa de noite ensanguentada que trazia vestida, levantou-se e agiu de forma perfeitamente normal na manhã seguinte em frente da família, tudo para dar continuidade ao embuste. Cada uma destas coisas, nomeadamente agir de forma isolada, esconder o parto, limpar o local, fingir que a vida continua o ramerrão de sempre, indica que a arguida sabia muito bem o que estava a fazer na altura em que o fez e, mais importante ainda, sabia que o que estava a fazer era errado.
— A arguida admitiu ter assassinado o recém-nascido durante a entrevista que lhe fez?
— Não, diz que não se lembra disso.
— Nesse caso, como pode ter a certeza de que ela o fez?
Riordan encolheu os ombros.
— Porque é fácil fingir amnésia. E porque, doutor Callahan, não é a primeira vez que estou nesta situação. Há um padrão específico nos neonaticídios e a arguida cumpre todos os critérios: negou a gravidez; afirma que, inicialmente, não se apercebeu de que estava em trabalho de parto; deu à luz sozinha; disse que não matou o bebé, apesar da verdade indesmentível do cadáver; com o passar do tempo, foi admitindo gradualmente a existência de certos buracos na sua história. Todas estas coisas são emblemáticas em qualquer dos casos de neonaticídio que já estudei e levam-me a acreditar que ela também cometeu neonaticídio, mesmo que haja partes da história de que aparentemente ainda não se consegue lembrar. — Inclinou-se para a frente no banco das testemunhas. — Se eu vir uma coisa com penas, bico e membrana interdigital a grasnar, não preciso de o ver nadar para saber que é um pato.
Para Ellie, a parte mais difícil de ter alterado a sua defesa tinha sido perder o testemunho da doutora Polacci. No entanto, não podia dar o relatório da psiquiatra ao MP, uma vez que afirmava que Katie tinha matado o recém-nascido, embora sem perceber a natureza e a qualidade desse ato. Isto significava que quaisquer buracos que Ellie quisesse fazer nos argumentos da acusação tinham de ser feitos agora, e de preferência suficientemente grandes para deixar passar um tanque.
— Quantas mulheres que cometeram neonaticídio entrevistou? — perguntou Ellie, avançando em direção ao doutor Riordan.
— Dez.
— Dez! — Os olhos de Ellie arregalaram-se. — Mas eu pensava que era um perito!
— E sou considerado como tal. Tudo é relativo.
— Então... entrevista uma por ano?
Riordan inclinou a cabeça.
— Sim, mais ou menos isso.
— Esse perfil que traçou e as afirmações sobre a Katie foram feitos com base na vasta experiência que adquiriu entrevistando essas... dez pessoas?
— Sim.
Ellie ergueu as sobrancelhas.
— Não foi o doutor Riordan que escreveu no Journal of Forensic Sciences que as mulheres que cometem neonaticídio não são maldosas? Que não querem necessariamente fazer mal?
— É verdade. Normalmente, não pensam nisso nesses termos. Veem o ato apenas como algo que irá ajudá-las, numa perspetiva egocêntrica.
— Contudo, nos casos em que esteve envolvido, recomendou que as mulheres que cometeram neonaticídio fossem encarceradas, não é verdade?
— Sim. Precisamos de enviar à sociedade a mensagem de que os assassinos não ficam em liberdade.
— Compreendo. Não é verdade, doutor, que as mulheres que cometem neonaticídio admitem ter matado os seus recém-nascidos?
— De início, não.
— Mas, quando confrontadas com provas ou pressionadas para explicar, acabam por ceder. Certo?
— Sim, é o que tenho visto.
— Durante a sua entrevista com a Katie, pediu-lhe para fazer conjeturas sobre o que teria acontecido ao bebé?
— Sim.
— Qual foi a resposta dela?
— Deu-me várias.
— Não é verdade que disse: «Talvez tenha morrido simplesmente e alguém o tenha escondido»?
— Sim, entre outras coisas.
— O senhor disse que, quando pressionadas, as mulheres que cometem neonaticídio acabam por confessar. Não é verdade que o facto de a Katie ter proposto este cenário hipotético, em vez de se ir abaixo e admitir o homicídio, significa que pode ter sido o que realmente aconteceu?
— Significa que ela mente bem.
— Mas a Katie alguma vez admitiu ter matado o bebé?
— Não. Mas, no início, também não admitiu a gravidez.
Ellie ignorou o comentário.
— O que é que a Katie admitiu, exatamente?
— Que adormeceu, acordou, e o bebé tinha desaparecido. Não se lembrava de mais nada.
— E a partir disso inferiu que ela tinha cometido homicídio?
— Era a explicação mais provável, dado o conjunto de comportamentos.
Era exatamente a resposta que Ellie pretendia.
— Como perito na matéria, deve saber o que é um estado dissociativo.
— Sim, sei.
— Pode explicar às pessoas que não sabem?
— Um estado dissociativo ocorre quando alguém fratura um pedaço da sua consciência para sobreviver a uma situação traumática.
— Como uma mulher maltratada que se ausenta mentalmente enquanto o marido a espanca?
— Isso mesmo — respondeu Riordan.
— É verdade que as pessoas que entram num estado dissociativo sofrem lapsos de memória, embora consigam parecer basicamente normais?
— Sim.
— Um estado dissociativo não é um comportamento voluntário e consciente?
— Correto.
— Não é verdade que o stresse psicológico extremo pode desencadear um estado dissociativo?
— Sim.
— Testemunhar a morte de um ente querido poderá causar stresse psicológico extremo?
— Talvez.
— Recuemos. Por um momento, vamos presumir que a Katie queria desesperadamente o seu bebé. Deu à luz e, tragicamente, viu-o morrer apesar de todos os seus esforços para o manter a respirar. Poderia o choque dessa morte provocar um estado dissociativo?
— É possível — concordou Riordan.
— Se depois não consegue lembrar-se de como o bebé morreu, será que o lapso de memória pode dever-se a essa dissociação?
Riordan sorriu indulgentemente.
— Podia, se estivéssemos a falar de um cenário razoável, doutora Hathaway, o que infelizmente não é o caso. Se quer alegar que a arguida entrou num estado dissociativo nessa manhã, e que ele conduziu subsequentemente aos seus lapsos de memória, não me custa nada entrar no seu jogo. Mas não há maneira de provar que foi o stresse da morte natural do bebé que a deixou nesse estado. É igualmente possível que tenha dissociado devido ao stresse do parto. Ou em resultado do ato extremamente stressante de cometer homicídio.
»Não sei se sabe, mas a dissociação não absolve Katie Fisher de ter cometido neonaticídio. Os seres humanos são capazes de efetuar ações meteóricas complexas, mesmo quando a capacidade de recordar essas ações está comprometida. Por exemplo, pode conduzir o seu carro enquanto está num estado dissociativo e percorrer centenas de quilómetros sem se lembrar de um único ponto de referência. Da mesma forma, num estado dissociativo, pode dar à luz um bebé, mesmo que não se consiga lembrar dos pormenores. Pode tentar reanimar um bebé moribundo e não se lembrar dos pormenores. Ou — disse ele numa voz carregada de intenção — pode matar um bebé e não se lembrar dos pormenores.
— Doutor Riordan — disse Ellie —, estamos a falar de uma jovem amish, e não de uma adolescente egocêntrica viciada em centros comerciais! Ponha-se no lugar dela. Não é possível que Katie Fisher quisesse o bebé, que ele tenha morrido nos seus braços e que ela tenha ficado tão transtornada com isso que a sua mente bloqueou inconscientemente o que aconteceu?
Mas Riordan já tinha sido chamado a depor demasiadas vezes para cair na armadilha da advogada.
— Se ela queria tanto esse bebé, doutora Hathaway, porque é que mentiu sobre ele durante sete meses?
George levantou-se antes mesmo de Ellie ter voltado à mesa da defesa.
— Gostava de voltar a interrogar a testemunha, meritíssima. Doutor Riordan, na sua opinião de perito, a arguida estava num estado dissociativo na manhã de dez de julho?
— Não.
— Isso é importante para este caso?
— Não.
— Porquê?
Riordan encolheu os ombros.
— O comportamento dela é suficientemente claro. Não há necessidade de invocar este arrazoado psicológico. As ações subversivas da arguida antes do parto sugerem que, mal o bebé nasceu, ela teria feito tudo o que estivesse ao seu alcance para se livrar dele.
— Incluindo homicídio?
O psiquiatra assentiu.
— Sobretudo homicídio.
— Quero contrainterrogar — disse Ellie. — Doutor Riordan, como psiquiatra forense, deve saber que, para uma condenação por homicídio qualificado, a pessoa tem de ser considerada culpada de matar com deliberação, intenção e premeditação.
— Sim, é verdade.
— As mulheres que cometem neonaticídio matam intencionalmente?
— Absolutamente.
— Deliberam sobre o ato?
— Às vezes, na forma como escolhem um local sossegado ou levam um cobertor ou saco para se desfazerem do bebé, tal como a arguida fez.
— Planeiam antecipadamente o homicídio do recém-nascido?
Riordan franziu o sobrolho.
— É um ato reflexivo, estimulado pela chegada do recém-nascido.
— Ato reflexivo — repetiu Ellie. — Quer dizer com isso um comportamento automático, instintivo e irrefletido?
— Sim.
— Nesse caso, o neonaticídio não é na realidade um homicídio qualificado, pois não?
— Protesto!
— Retiro o que disse — replicou Ellie. — Não tenho mais perguntas.
George virou-se para a juíza.
— A acusação não tem mais testemunhas, meritíssima.
Sarah tinha feito jantar para eles, um festim de comida reconfortante que não dizia nada a Ellie. Depenicou o prato e sentiu as paredes a fecharem-se sobre ela, perguntando-se porque é que não aceitara a sugestão de Coop para irem comer qualquer coisa a um restaurante, em Lancaster.
— Escovei o Nugget — disse Sarah —, mas ainda há arreios para limpar.
— Está bem, mãe — respondeu Katie. — Vou lá depois de jantar. E também lavo a louça; deve estar cansada depois de ter ajudado com a ordenha.
Na outra ponta da mesa, Aaron arrotou ruidosamente, sorrindo elogiosamente para a mulher.
— Gut — disse ele. Enfiou os dedos por baixo dos suspensórios e virou-se para o pai. — Estou a pensar em ir ao leilão da Lapp na segunda-feira.
— Precisas de cavalos novos? — perguntou Elam.
Aaron encolheu os ombros.
— Não faz mal ver o que lá há.
— Ouvi dizer que o Marcus King está decidido a vender aquele potro que nasceu da sua égua baia na primavera passada.
— Ja? É uma beleza.
Sarah suspirou alto.
— O que vais tu fazer com outro cavalo?
Ellie olhava de um membro da família para o outro, como se estivesse a seguir uma partida de ténis.
— Desculpem — disse ela baixinho e, um por um, todos se viraram para ela. — Têm consciência de que a vossa filha está envolvida num julgamento por homicídio?
— Ellie, não... — Katie esticou a mão, mas Ellie abanou a cabeça.
— Têm consciência de que, daqui a menos de uma semana, a vossa filha pode ser considerada culpada de homicídio e levada diretamente do tribunal para a prisão em Muncy? Estão aqui sentados, a falar de leilões de cavalos... Será que ninguém se importa sequer com a forma como o julgamento está a correr?
— Nós importamo-nos — disse Aaron, rigidamente.
— Mas que raio de maneira de o demonstrarem — murmurou Ellie, amachucando o guardanapo e atirando-o para cima da mesa antes de fugir lá para cima, para o quarto.
Quando Ellie voltou a abrir os olhos, estava completamente escuro e Katie encontrava-se sentada na borda da cama. Sentou-se de imediato, tirando o cabelo do rosto e espreitando o pequeno relógio a pilhas na mesa de cabeceira.
— Que horas são?
— Pouco passa das dez — sussurrou Katie. — Adormeceste.
— Sim. — Ellie passou a língua pelos dentes por lavar. — Parece que sim. — Recuperou rapidamente a consciência e depois esticou-se para ligar o candeeiro a gás. — E onde é que tu te meteste?
— Estive a lavar a louça e a limpar os arreios. — Katie andava de um lado para o outro no quarto. Primeiro, puxou as persianas e, depois, sentou-se para soltar o cabelo preso num rolo bem feito.
Ellie viu Katie passar uma escova pelo cabelo comprido cor de mel, com os olhos límpidos e muito abertos. Quando Ellie chegara e vira aquela expressão em todos os rostos que a rodeavam, tomara-a erradamente por ausência, por imbecilidade. Tinha levado meses a compreender que o olhar dos Amish não era vazio, mas cheio, transbordando uma paz silenciosa. Mesmo agora, depois do início difícil do julgamento que teria deixado a maior parte das pessoas nervosas e agitadas, Katie estava tranquila.
— Eu sei que eles se importam — ouviu-se Ellie murmurar.
Katie virou a cabeça.
— Estás a falar do julgamento.
— Sim. A minha família costumava gritar muito. Discutir e entrar em combustão espontânea e, em seguida, voltar a unir-se de alguma forma depois de a poeira assentar. Para mim, esta calma continua a ser um bocadinho estranha.
— A tua família gritava muito contigo, não era?
— Às vezes — admitiu Ellie. — Mas pelo menos aquele barulho todo fazia-me saber que estavam presentes. — Abanou a cabeça, afastando a lembrança. — De qualquer maneira, peço desculpa por ter explodido durante o jantar. — Suspirou. — Não sei o que se passa comigo.
A escova de Katie parou a meio de uma longa escovadela.
— Não sabes?
— Não. Quer dizer, estou um bocadinho ansiosa com o julgamento, mas se fosse a ti preferia ver-me nervosa a ver-me complacente. — Olhou para Katie e apercebeu-se de que a rapariga tinha as faces a arder. — O que estás tu a esconder? — perguntou Ellie com um nó no estômago.
— Nada! Não estou a esconder nada!
Ellie fechou os olhos.
— Estou demasiado cansada para isto, agora. Podes guardar a confissão até amanhã de manhã?
— Está bem — disse Katie com demasiada rapidez.
— Esquece. Diz-me agora.
— Tens andado a adormecer cedo, como ontem. E explodiste à mesa do jantar. — Os olhos de Katie brilharam ao lembrar-se de outra coisa. — E lembras-te desta manhã, na casa de banho do tribunal?
— Tens razão. A culpa disto tudo é o vírus que apanhei.
Katie pousou a escova e sorriu timidamente.
— Tu não estás doente, Ellie. Estás grávida.
14
Ellie
— É óbvio que está errado — disse eu a Katie, segurando o teste de gravidez.
Katie, lendo o verso da embalagem, abanou a cabeça.
— Esperaste cinco minutos e viste a linha aparecer na janela do teste...
Atirei o teste, com o seu sinal positivo cor-de-rosa, para cima da cama.
— Devia ter urinado durante trinta segundos seguidos, e só contei quinze. Por isso, aí tens. Erro humano.
Olhámos ambas para a embalagem, que continha um segundo teste. Na farmácia, a oferta tinha sido dois pelo preço de um. Para ter a certeza, bastava mais uma ida à casa de banho e mais cinco intermináveis minutos de destino. Mas tanto Katie como eu sabíamos qual seria o resultado.
Coisas como esta não aconteciam a mulheres de quarenta anos. Os acidentes eram para as adolescentes que se deixavam levar pela emoção do momento e rebolavam no banco de trás dos carros dos pais. Os acidentes eram para as mulheres que consideravam que os seus corpos ainda eram jovens e surpreendentes, em vez de velhos amigos íntimos. Os acidentes eram para aquelas que não tinham juízo!
Mas isto não parecia um acidente. Parecia algo duro e quente, uma pepita aninhada na palma da minha mão, como se eu já conseguisse sentir as ondas sonoras daquele coração minúsculo.
Katie baixou os olhos e murmurou:
— Parabéns.
Nos últimos cinco anos, tinha desejado tanto um bebé que até doía. Às vezes, acordava ao lado de Stephen e sentia os meus braços a latejar, como se tivesse estado a segurar um recém-nascido durante toda a noite. Via um bebé num carrinho e sentia o corpo todo a esticar-se para ele; marcava todos os meses o meu período no calendário, com a sensação de que a vida estava a passar por mim. Queria cultivar algo debaixo do meu coração. Queria respirar, comer e desabrochar por causa de outra pessoa.
Eu e Stephen discutíamos sobre filhos aproximadamente duas vezes por ano, como se a reprodução fosse um vulcão que entrava em erupção de vez em quando na ilha que tínhamos criado para nós mesmos. Uma vez, tinha conseguido vencê-lo pelo cansaço. «Está bem», disse ele. «Se acontecer, aconteceu.» Deitei fora as pílulas contracetivas durante seis meses consecutivos, mas não conseguimos fazer um bebé. Levei quase meio ano depois disso a compreender porquê: não se pode criar vida num lugar que está a morrer aos poucos.
Depois disso, tinha deixado de pedir a Stephen. Em vez disso, quando sentia instintos maternais, ia à biblioteca e fazia pesquisa. Aprendi quantas vezes as células de um zigoto se dividiam antes de serem classificadas como um embrião. Vi em microficha as imagens de um feto a chuchar no polegar, com as veias a correr como estradas por baixo do brilho alaranjado da sua pele. Aprendi que um feto de seis semanas tinha o tamanho de um morango. Li sobre alfa-fetoproteína, amniocentese e fatores Rh. Tornei-me uma erudita numa torre de marfim, uma perita sem experiência prática.
Portanto, como veem, sabia tudo sobre este bebé dentro de mim, exceto o porquê de não estar delirante por descobrir a sua existência.
Não queria que ninguém na quinta soubesse que estava grávida, pelo menos até contar a novidade a Coop. Na manhã seguinte, dormi até tarde. Consegui chegar a um lugar escondido, atrás da horta, antes de começar a passar mal. Como o cheiro da ração do cavalo me deixou tonta, Katie assumiu o meu lugar sem dizer palavra. Comecei a vê-la a uma nova luz, espantada por ela ter escondido o seu estado de tantas pessoas e durante tanto tempo.
Ela veio ter comigo ao exterior do celeiro.
— Então? — perguntou com vivacidade. — Continuas indisposta? — Sentou-se no chão, ao meu lado, ambas com as costas amparadas pela parede de madeira vermelha.
— Já não — menti. — Acho que vou ficar bem.
— Pelo menos, até amanhã de manhã. — Katie enfiou a mão debaixo do cós do avental e tirou duas saquetas de chá. — Calculo que vás precisar disto.
Cheirei-os.
— Vão acalmar-me o estômago?
Katie corou.
— É para os pores aqui — disse ela, tocando ao de leve nos próprios seios. — Quando não conseguires suportar as dores. — Avaliando a minha ingenuidade, acrescentou: — Primeiro, tens de os pôr de infusão.
— Graças a Deus que conheço alguém que já passou por isto... — Katie recuou como se eu a tivesse esbofeteado e eu apercebi-me tarde demais do que dissera. — Desculpa.
— Não faz mal — murmurou ela.
— Faz, sim. Eu sei que isto não pode ser fácil para ti, sobretudo a meio do julgamento. Podia dizer que hás de vir a ter outro bebé um dia, mas lembro-me como me sentia de cada vez que uma das minhas amigas casadas e grávidas me diziam algo do género.
— Como é que te sentias?
— Apetecia-me dar-lhes um murro.
Katie sorriu timidamente.
— Ja, é verdade. — Olhou para a minha barriga e depois desviou o olhar.
— Estou feliz por ti, Ellie, a sério. Mas isso não diminui o meu sofrimento. E estou sempre a dizer a mim mesma que a minha mãe perdeu três bebés, aliás quatro, se contarmos com a Hannah. — Encolheu os ombros. — Uma pessoa pode ficar contente com a sorte de outra pessoa, mas isso não significa que esqueça a sua má sorte.
Nunca estivera tão consciente como naquele momento de que Katie tinha querido o seu bebé. Podia ter adiado tê-lo, podia ter demorado a admitir a sua gravidez, mas, assim que o bebé nascera, nunca tivera qualquer dúvida do amor que sentia por ele. Fitei-a espantada, sentindo que a defesa que tinha preparado para o seu julgamento se encaixava na verdade.
Apertei-lhe a mão.
— Significa muito para mim — disse. — Poder partilhar este segredo com alguém.
— Em breve poderás contar ao Coop.
— Suponho que sim. — Não sabia se, e quando, ele passaria por lá naquele fim de semana. Não tínhamos combinado nada quando ele nos deixara na casa da quinta, na sexta-feira à noite. Ainda aborrecido por eu me recusar a ir viver com ele, estava a esforçar-se por manter a distância.
Katie pôs o xaile à volta dos ombros.
— Achas que ele vai ficar feliz?
— Eu sei que vai.
Ela olhou para mim.
— Nesse caso, suponho que se vão casar.
— Bem — repliquei —, isso já não sei.
— Aposto que ele vai querer casar-se contigo!
Virei-me para ela.
— Não é o Coop que está a hesitar.
Esperava que ela me olhasse sem perceber, perguntando-se por que diabo havia eu de me encolher diante do caminho fácil e óbvio. Tinha um homem que me amava, que era o pai desta criança e que queria esta criança. Nem eu entendia a minha relutância.
— Quando descobri que estava grávida — disse Katie baixinho —, pensei em contar ao Adam. Ele tinha-se ido embora, é verdade, mas calculava que podia descobri-lo, se quisesse. E depois percebi que, na realidade, não queria contar ao Adam. Não porque ele fosse ficar aborrecido, ach, não, muito pelo contrário! Não lhe queria contar porque, nesse caso, deixaria de ter escolha. Sabia o que tinha a fazer e tê-lo-ia feito, mas tinha medo de um dia olhar para o bebé e de não pensar «amo-te»...
A voz morreu-lhe nos lábios e eu virei-me para a olhar nos olhos e para terminar as suas palavras.
— E pensar antes «como é que cheguei aqui?».
Katie olhou para a enorme extensão do lago, ao longe.
— Exatamente — disse.
Sarah dirigiu-se para a capoeira das galinhas.
— Não tem de fazer isto — disse-me ela, pela terceira vez.
Mas eu sentia-me culpada por ter ficado a dormir de manhã.
— Não me custa nada — respondi. Os Fisher tinham vinte e quatro galinhas poedeiras. Tratar das galinhas era algo que eu e a Katie fazíamos de manhã; a tarefa envolvia dar-lhes de comer e recolher os ovos. De início, tinham-me bicado com força suficiente para me deixar a sangrar, mas acabara por aprender a deslizar a mão sob o rabo quente de uma galinha sem sofrer. Na verdade, estava desejosa de mostrar a Sarah que já sabia uma ou duas coisas.
Sarah, por seu lado, queria crivar-me de perguntas sobre o julgamento de Katie. Sem Aaron por perto, fez perguntas sobre o procurador, as testemunhas, a juíza. Perguntou se Katie teria de falar no tribunal. E se íamos ganhar.
Esta última pergunta foi feita à porta da capoeira.
— Não sei — admiti. — Estou a dar o meu máximo.
O rosto de Sarah abriu-se num sorriso.
— Sim — disse ela, baixinho. — Faz isso muito bem.
Abriu a porta de madeira, mandando penas pelo ar quando as aves se dispersaram, a cacarejar. Havia alguma coisa numa capoeira que me lembrava um grupo de senhoras a mexericar num salão de cabeleireiro, e sorri quando uma galinha nervosa bateu as asas à volta dos meus calcanhares. Dirigindo-me ao poleiro à direita, comecei a revistar os ninhos, à procura de ovos.
— Não — disse Sarah, quando eu peguei numa galinha castanho-avermelhada. — Ainda está gut. — Vi-a enfiar uma galinha debaixo do braço como se fosse uma bola de futebol e fazer pressão com os dedos entre os ossos salientes do seu rabo. — Ah, cá está uma que deixou de pôr — disse, estendendo-ma presa pelos pés. — Deixe-me só apanhar outra.
A galinha contorcia-se como se fosse o Houdini, decidida a fugir. Completamente estupefacta, apertei a mão com mais força à volta das suas patas ásperas enquanto Sarah procurava outra ave. Ela dirigiu-se para a porta da capoeira, enxotando as galinhas.
— E os ovos delas? — perguntei.
Sarah olhou para trás.
— Elas não vão pôr mais ovos. É por isso que as vamos comer ao jantar.
Estaquei, olhei para baixo para a galinha e quase a larguei.
— Venha comigo — disse Sarah, desaparecendo atrás da capoeira.
À sua espera, tinha uma tábua, um machado e um balde de água quente fumegante. Sarah levantou graciosamente o machado, pôs a ave em cima da tábua e cortou-lhe a cabeça. Ao largar-lhe as patas, a galinha decapitada deu uma cambalhota no ar e dançou na poça do seu próprio sangue. Horrorizada, vi Sarah esticar a mão para a galinha que eu estava a segurar; senti-a arrancar-ma da mão precisamente antes de eu cair de joelhos e vomitar.
Passado um instante, a mão de Sarah afagou-me o cabelo.
— Ach, Ellie, pensava que sabia — disse ela.
Abanei a cabeça, o que me fez sentir maldisposta outra vez.
— Se soubesse, não tinha vindo.
— A Katie também não tem estômago para isto — admitiu Sarah. — Pedi-lhe ajuda porque é muito mais fácil do que voltar outra vez lá dentro, depois de ter tratado da primeira. — Deu-me umas palmadinhas no braço. Tinha uma mancha de sangue na parte de trás do pulso. Fechei os olhos.
Conseguia ouvir Sarah a mexer-se atrás de mim, mergulhando os corpos inertes das galinhas em água quente.
— O estufado com bolinhos de massa — disse eu com alguma hesitação. — A canja...?
— Claro — respondeu Sarah. — De onde é que pensava que vinham as galinhas?
— Frank Perdue.
— Ele faz exatamente da mesma maneira, acredite.
Pus a cabeça entre as mãos, recusando-me a pensar em todos os bifes e hambúrgueres que tínhamos comido e nos pequenos bezerros que tinha visto nascer desde que estava na quinta. As pessoas só veem o que querem ver: Sarah a fazer vista grossa à gravidez de Katie; um júri a dar a absolvição com base no depoimento de uma testemunha simpática; ou mesmo a minha própria relutância em admitir que a ligação entre mim e Coop ia para além do facto físico de criar um bebé.
Olhei para Sarah a depenar uma das galinhas, de lábios cerrados. Tinha tufos de penugem branca no avental e saia e um rasto de sangue empapava a terra batida diante dela. Engoli a bílis que me subia na garganta.
— Como é que consegue fazer isso?
— Eu faço o que tenho de fazer — disse ela, terra a terra. — A Ellie devia ser a primeira a compreender.
Estava escondida na sala do leite quando Coop me encontrou nessa tarde.
— El, não vais acreditar nisto... — Os seus olhos arregalaram-se quando me viu e correu para o meu lado, passando as mãos para cima e para baixo nos meus braços. — Como é que isso aconteceu?
Ele sabia! Meu Deus, bastara olhar para mim e sabia do bebé! Engoli em seco e olhei-o nos olhos.
— Mais ou menos da forma habitual, suponho.
A mão de Coop deslizou do meu ombro até à minha cintura, e esperei que ele a baixasse ainda um pouco mais. Mas, em vez disso, os seus dedos pegaram na minha t-shirt, esfregando o fiozinho vermelho-vivo que a manchava.
— Quando é que foste vacinada contra o tétano pela última vez?
Ele não estava a falar do bebé. Ele não estava a falar do bebé.
— Bem, claro que estou — disse Coop, fazendo-me perceber que eu tinha falado em voz alta. — Mas, por amor de Deus, o estúpido do julgamento pode esperar. Primeiro, vamos suturar esse corte.
Afastei as mãos de Coop.
— Eu estou bem. O sangue não é meu.
Coop ergueu uma sobrancelha.
— Não me digas que voltaste a cometer homicídio...
— Que engraçadinho. Estive a ajudar a matar as galinhas.
— Eu deixava os rituais pagãos para depois de teres apresentado a tua defesa, mas...
— Fala-me sobre ele, Coop — pedi, com firmeza.
— Ele quer respostas. No fim de contas, o homem meteu-se num avião no dia a seguir a saber que era pai, mas quer ver a Katie e o bebé.
Fiquei boquiaberta.
— Não lhe contaste...?
— Não, não contei. Sou psiquiatra, Ellie. Não ia provocar angústia mental indevida a uma pessoa, a menos que estivesse lá, cara a cara, para a ajudar a lidar com isso.
Quando Coop se afastou, pus-lhe a mão no ombro.
— Eu teria feito a mesma coisa. Só que a minha motivação não teria sido a benevolência, mas sim o egoísmo. Quero que ele testemunhe e, se isso resultou para o fazer vir até cá, que assim seja.
— Isto não vai ser fácil para ele — murmurou Coop.
— Também não foi fácil para a Katie. — Endireitei-me. — Ele já esteve com o Jacob?
— Acabou de sair do avião. Fui buscá-lo a Filadélfia.
— Então, onde é que ele está agora?
— No carro, à espera.
— No carro? Aqui? Estás doido?
Coop sorriu.
— Creio que posso dizer-te com alguma autoridade que não estou.
Sem disposição para as suas brincadeiras, já estava a atravessar o celeiro.
— Temos de o tirar daqui, e depressa.
Coop veio pôr-se ao meu lado.
— És capaz de querer mudar de roupa, primeiro — disse. — É só uma sugestão, mas neste momento parece que saíste diretamente de um filme do Kevin Williamson, e tu sabes como as primeiras impressões são importantes.
Mal o ouvi. Estava demasiado ocupada a pensar quantas vezes nesse dia seria obrigada a dizer a um homem a coisa que ele menos esperava ouvir.
— Porque é que ela está em apuros? — perguntou Adam Sinclair, inclinando-se sobre a mesa, no restaurante. — É por não ser casada quando teve o bebé? Meu Deus, se ela me tivesse escrito, isto não tinha acontecido!
— Ela não lhe podia escrever — disse eu suavemente. — O Jacob nunca lhe remeteu as suas cartas.
— Não? Esse filho da mãe...
— ... fez o que pensou ser melhor para a irmã — concluí. — Ele achava que ela não ia conseguir suportar o estigma de ter de abandonar a sua fé, coisa que casar consigo teria implicado.
Adam empurrou o prato.
— Escute. Agradeço ter entrado em contacto comigo e ter-me dado a saber que a Katie está com problemas. Agradeço a boleia do aeroporto até East Paradise. Até agradeço a oferta do almoço. Mas tenho a certeza de que, por esta altura, a Katie já está em casa com o bebé, e eu preciso mesmo de falar com ela.
Vi as suas mãos inquietas sobre a mesa e imaginei-as a tocar em Katie, a abraçar Katie. E com uma enorme raiva repentina, detestei aquele homem que mal conhecia por ter levado Katie a este ponto, sem saber. Quem era ele para decidir que a sua afeição por ela se sobrepunha a tudo o que ela fora educada para acreditar? Quem era ele para levar uma rapariga de dezoito anos por um caminho de sedução, quando sabia claramente que não o devia fazer?
Devo ter deixado transparecer alguma coisa porque Coop, por baixo da mesa, pressionou-me a coxa com a mão, numa suave admoestação. Pestanejei, e vi Adam com nitidez: os olhos brilhantes, o pé impaciente, o olhar de relance de cada vez que a sineta tocava sobre a porta, como se estivesse à espera que Katie e o filho entrassem a qualquer momento.
— Adam — disse eu —, o bebé não sobreviveu.
Ele ficou petrificado. Entrelaçou as mãos sobre a mesa, com tanta força que as pontas dos dedos ficaram brancas, sem pinga de sangue.
— O que... — disse ele baixinho, com a voz a falhar a meio da frase. — O que aconteceu?
— Não sabemos. Ele nasceu prematuro e morreu pouco depois do parto.
Adam deixou descair a cabeça.
— Nos últimos três dias desde que me ligou, a única coisa em que tenho pensado é nesse bebé. Se teria os meus olhos ou o meu queixo. Se o reconheceria instantaneamente. Meu Deus! Se eu estivesse aqui, talvez pudesse ter feito alguma coisa.
Olhei para Coop.
— Não. Não, claro que não!
Adam levantou a cabeça, enxugando rapidamente os olhos.
— A Katie deve estar destroçada.
— Pois está — disse Coop.
— Era isso que queriam dizer quando me contaram que ela está em apuros? Precisavam que eu viesse por ela estar deprimida?
— Precisamos que deponha a favor dela em tribunal — disse eu calmamente. — A Katie foi acusada de ter matado o bebé.
Adam cambaleou para trás.
— Ela não o fez.
— Não, também penso que não.
Levantando-se, Adam pousou o guardanapo.
— Tenho de falar com ela. Agora.
— Eu preferia que esperasse. — Pus-me à frente dele, bloqueando-lhe a saída.
Adam agigantou-se sobre mim.
— Eu estou-me nas tintas para o que a senhora quer!
— A Katie nem sequer sabe que cá está.
— Então, está na altura de descobrir.
Pus-lhe a mão no braço.
— Como advogada da Katie, acredito que, se os jurados tiverem um lugar na primeira fila quando ela o voltar a ver, vão ficar comovidos com a emoção dela. Vão pensar que alguém que mostra os seus sentimentos de forma tão aberta não podia ter a frieza suficiente para matar o próprio filho. — Cheguei-me para o lado. — Se quiser ver a Katie agora, Adam, eu levo-o lá. Mas pense bem no assunto. Porque, da última vez que ela precisou de si, não estava cá para ajudar. Desta vez, pode fazê-lo.
Adam olhou para mim, depois para Coop, e voltou a sentar-se lentamente na cadeira.
Assim que Adam foi aos lavabos, disse a Coop que tínhamos de falar.
— Sou todo ouvidos. — Tirou uma batata frita do meu prato e enfiou-a na boca.
— Em privado.
— Com todo o gosto — disse Coop —, mas o que é que eu faço com a «encomenda» que me foi confiada?
— Mantém-na longe da minha. — Suspirei, e ainda pensei em guardar a notícia para mim até depois do julgamento; no fim de contas, este era um momento em que devia estar concentrada na Katie, e não em mim. Mas bastava olhar para Adam Sinclair para ver a dor que podia resultar de ficar calada, mesmo com a melhor das intenções.
Antes de conseguir arranjar uma solução, Adam fê-lo por mim. Ao voltar dos lavabos de olhos vermelhos e a cheirar a sabão, ficou desajeitadamente especado junto à mesa.
— Se não der muito trabalho — pediu —, podem levar-me à sepultura do meu filho?
Coop estacionou ao lado do cemitério amish.
— Leve o tempo que quiser — disse ele.
Adam saiu da parte de trás do carro, de ombros baixos para se proteger do vento, enquanto eu saía do meu banco e o acompanhava para lá do pequeno portão.
Enquanto nos dirigíamos à sepultura recente, os nossos pés levantavam pequenos tornados de folhas caídas. A lápide, lascada pelas mãos de Katie, era da cor do inverno. Adam enfiou as mãos nos bolsos e falou sem olhar para mim.
— O funeral... Esteve presente?
— Sim. Foi muito bonito.
— Houve missa? Flores?
Pensei na oração breve e desconfortável dita pelo bispo e nos costumes amish que não permitiam quaisquer adornos na sepultura, fossem flores ou lápides mais elaboradas.
— Foi muito bonito — repeti.
Adam assentiu, e depois sentou-se no chão, ao lado da sepultura. Esticou a mão, passando um dedo docemente pelo rebordo arredondado da lápide, da mesma forma que um pai recente tocaria de forma reverente na curva suave da bochecha de um recém-nascido. Com os olhos a arder, virei-me de repente e voltei para o carro de Coop.
Quando me sentei no lugar do passageiro, Coop observou Adam pela janela.
— Pobre homem. Nem consigo imaginar.
— Coop, estou grávida.
Ele virou-se.
— Estás o quê?
Pus as mãos sobre a barriga.
— Ouviste bem.
Este bebé tinha-me baralhado os pensamentos. Uma vez, tinha deixado Coop pelas razões erradas; também não queria ficar com ele pelas razões erradas. Fitei-o, à espera, dizendo para comigo que a reação dele não ia afetar minimamente a minha decisão relativamente ao futuro, mas perguntando-me porque é que, sendo assim, queria tão desesperadamente ouvir a resposta. Pela primeira vez desde que me lembrava, não tinha a certeza da sua dedicação por mim. É verdade que me tinha pedido para ir viver com ele, mas isto não era a mesma coisa. Talvez quisesse passar o resto da vida comigo, mas não estivesse à espera que essa vida começasse tão repentinamente ou com consequências tão duradouras. Ele nunca tinha falado em casamento. Nunca tinha falado em filhos.
Eu tinha dado a Coop a razão perfeita para sair da minha vida e deixar-me o espaço para respirar que eu tanto prezava. Mas agora apercebia-me de que não queria que ele se fosse embora.
Quando ele não sorriu nem me tocou, nem fez nada a não ser ficar imóvel ali à minha frente, comecei a entrar em pânico. Talvez Katie tivesse razão; talvez a melhor coisa tivesse sido esperar uns dias, se não mais.
— Então? — perguntei, em voz trémula. — Em que é que estás a pensar?
Ele esticou o braço e tirou-me a mão do lugar onde cobria a barriga. Levantou a parte de baixo da minha camisola, inclinou-se para a frente e, depois, senti o seu beijo na minha barriga.
A respiração que eu não me apercebera estar a suster saiu numa grande vaga de alívio. Passado um instante, segurei-lhe a cabeça e passei-lhe os dedos pelo cabelo, ao mesmo tempo que ele punha os braços à volta das minhas ancas e nos estreitava a ambos.
Insistiu em acompanhar-me à porta da casa dos Fisher.
— Não sou deficiente, Coop — protestei. — Estou apenas grávida. — Mas a feminista que havia em mim fez vista grossa, secretamente encantada por ser tratada como algodão-doce.
No alpendre, pegou-me nas mãos e fez-me virar para olhar para ele.
— Eu sei que esta parte costuma vir antes de fazer um bebé, mas quero que saibas que te amo. Amo-te há tanto tempo que nem me lembro quando começou.
— Eu lembro-me. Foi depois daquela festa da Kappa Alpha Theta, a «San Juan Night», algures entre teres mergulhado no álcool de cereais e o torneio de blow pong, em pelota.
Coop gemeu.
— Ele não vai saber como nos conhecemos, está bem?
— O que te faz ter tanta certeza de que é um ele?
De repente, Coop parou e levou a mão ao ouvido.
— Estás a ouvir isto?
Tentei ouvir alguma coisa, e depois abanei a cabeça.
— Não. O quê?
— Nós — disse ele, beijando-me ao de leve. — A falar como pais.
— Que pensamento assustador.
Sorriu, depois inclinou a cabeça para o lado e fitou-me.
— O que foi? — perguntei, constrangida. — Tenho espinafres nos dentes?
— Não. É porque só vou gozar este momento uma vez e quero lembrar-me dele.
— Creio que podemos arranjar as coisas para me acompanhares a casa mais algumas vezes, se é assim tão importante para ti.
— Meu Deus! Será que um tipo não pode ter um minuto de descanso? Todas as mulheres falam assim tanto, ou é só por seres advogada?
— Bem, se fosse a ti, dizia aquilo que ias a dizer, pois o Adam pode fartar-se de estar à tua espera no carro e voltar para Filadélfia sem ti.
Coop segurou o meu rosto entre as palmas das mãos.
— És uma chata, El, mas és a minha chata. — Os seus polegares afagaram-me as bochechas. — Casa comigo — sussurrou.
Levantei as mãos para lhe segurar os pulsos. Por cima do seu ombro, vi a Lua elevar-se no céu, como um fantasma. Percebi que Coop tinha razão: ia lembrar-me deste momento com o mesmo grau de pormenor e clareza com que me vinha à cabeça a última vez que Coop me pedira para partilhar a vida com ele; da última vez, tinha dito que não.
— Não me odeies — repliquei.
Ele deixou cair as mãos.
— Não me vais fazer isto outra vez. Eu não te deixo! — Vi um músculo retesar-se no seu maxilar enquanto ele tentava controlar-se.
— Não estou a dizer que não. Mas também não estou a dizer que sim. Coop, acabei de descobrir isto. Ainda estou a ver como me assenta a palavra mãe. Não posso experimentar esposa ao mesmo tempo.
— Há milhões de mulheres que conseguem fazê-lo.
— Não propriamente por esta ordem. — Passei-lhe a mão pelo peito, esperando acalmá-lo. — Disseste-me há pouco tempo que tinha algum tempo para pensar. Isso continua de pé?
Coop acenou afirmativamente e deixou a tensão sair-lhe lentamente dos ombros.
— Mas, desta vez, não vais conseguir ver-te livre de mim com tanta facilidade. — A seguir, pôs a mão aberta sobre a minha barriga, onde já estava uma parte dele, e deu-me um beijo de despedida.
— Estiveste fora tanto tempo — sussurrou Katie da sua cama. — Contaste-lhe?
Olhei para o teto, para a pequena mancha amarela que me fazia lembrar o perfil de Abraham Lincoln.
— Sim, contei.
Ela soergueu-se num cotovelo.
— E?
— E ele está feliz. Só isso. — Recusei-me a olhar para ela. Se o fizesse, ia lembrar-me da expressão de Adam quando soubera do bebé de ambos, da dor de Adam ao ajoelhar-se junto à sepultura. Não confiava em mim para esconder de Katie a notícia de que Adam Sinclair estava de volta.
— Aposto que ele não conseguiu parar de sorrir — disse Katie.
— Hum-hum.
— Aposto que te olhou nos olhos. — A sua voz tornou-se mais sonhadora. — Aposto que disse que te amava.
— Por acaso...
— E pôs os braços à tua volta — continuou Katie — e disse que, mesmo que toda a gente virasse as costas, mesmo que não voltasses a ver os amigos e a família, um mundo que só vos tivesse aos dois e ao bebé pareceria completamente preenchido, por causa de todo o amor que o envolvia.
Olhei para Katie, para os seus olhos a brilhar na escuridão, para a sua boca contorcida num meio sorriso algures entre o êxtase e o remorso.
— Sim — disse. — Foi exatamente assim.
15
Ellie talvez não tivesse conseguido sair de casa na segunda-feira de manhã se não fosse o chá de camomila. Conseguiu finalmente descer a escada após uma noite de insónia e o enjoo matinal, e encontrou a caneca fumegante no seu prato, juntamente com algumas bolachas de água e sal. Àquela hora, os outros já tinham saído da mesa; apenas Katie e Sarah continuavam na cozinha, a limpar a louça.
— Sabes que hoje temos de ir no carro da Leda — disse Ellie, enfrentando corajosamente o cheiro dos restos de comida. — O Coop vai ter connosco ao tribunal.
Katie assentiu, mas não se virou. Ellie olhou para as costas das mulheres, grata pelo facto de Katie ter sido suficientemente sensata para a poupar à visão de uma travessa cheia de ovos, bacon e salsichas. Bebericou um gole do chá, a medo, esperando sentir-se novamente enjoada, mas curiosamente a sensação de náusea esmoreceu. Quando terminou, sentia-se melhor do que se sentira em todo o fim de semana.
Não queria aludir à gravidez, sobretudo naquele dia, mas sentiu-se na obrigação de agradecer a atenção de Katie.
— O chá — segredou Ellie, enquanto subiam para o banco traseiro do carro de Leda, vinte minutos mais tarde — era mesmo do que eu precisava.
— Não me agradeças a mim — replicou Katie. — Foi a minha mãe que to fez.
Nos últimos meses, Sarah enchera-lhe o prato à hora das refeições, como se ela fosse uma porca na engorda para a matança; a súbita alteração da ementa pareceu-lhe suspeita.
— Contaste-lhe que estou grávida? — exigiu saber Ellie.
— Não. Fez-te o chá por estares preocupada com o julgamento. Ela pensa que a camomila acalma os nervos.
Descontraindo, Ellie recostou-se.
— E também acalma o estômago.
— Ja, eu sei — disse Katie. — Ela costumava fazer-mo.
— Quando pensava que estavas preocupada?
Katie encolheu os ombros.
— Quando eu estava grávida.
Antes que ela pudesse dizer mais alguma coisa, Leda entrou para o lugar do condutor e espreitou pelo retrovisor.
— Sentes-te bem comigo ao volante, Katie?
— Calculo que o bispo já esteja acostumado a abrir exceções às regras para mim.
— Mas o Samuel vem ou não vem? — murmurou Ellie, espreitando pela janela. — Chegar atrasado no primeiro dia em que se testemunha normalmente não cai bem junto dos juízes.
Como se o tivesse conjurado, Samuel apareceu a correr, vindo do campo atrás do celeiro. O casaco do fato domingueiro vinha aberto e trazia o chapéu preto todo torto na cabeça. Tirando-o, baixou-se para se sentar no lugar ao lado de Leda.
— Desculpem — murmurou, virando-se para trás quando Leda começou a conduzir. Entregou a Katie um trevo minúsculo e emurchecido, cujas quatro folhas tombaram moles na palma da sua mão. — É para te dar sorte — disse Samuel, sorrindo para ela.
— O fim de semana foi bom? — perguntou George, enquanto tomavam os seus lugares no tribunal.
— Ótimo — respondeu Ellie de forma brusca, arranjando as coisas na mesa da defesa à sua maneira.
— Parece que alguém está com mau humor. Deve ter-se deitado tarde ontem à noite. — George sorriu. — Suponho que tenhas andado na borga até as vacas voltarem para casa. A que horas é que elas voltam para casa, já agora?
— Já acabaste? — perguntou Ellie, olhando-o com indiferença.
— Todos de pé! A meritíssima juíza Philomena Ledbetter preside à audiência!
A juíza instalou-se na sua cadeira.
— Bom dia a todos — disse, pondo os seus óculos de meia-lua. — Creio que encerrámos a sessão de sexta-feira com a acusação a terminar as suas alegações, o que significa que hoje, doutora Hathaway, é a sua vez. Presumo que esteja pronta.
Ellie levantou-se.
— Sim, meritíssima.
— Excelente. Pode chamar a primeira testemunha.
— A defesa chama Jacob Fisher a depor.
Katie viu o irmão entrar na sala de audiências, vindo do átrio, onde tinha estado isolado na qualidade de próxima testemunha. Ele piscou-lhe o olho enquanto prestava juramento. Ellie sorriu-lhe, tranquilizadora.
— Pode dizer o seu nome e morada?
— Jacob Fisher. 255 North Street, em State College, Pensilvânia.
— Qual é a sua relação com a Katie?
— Sou o irmão mais velho.
— No entanto, não vive em casa, com os Fisher?
Jacob abanou a cabeça.
— Não, há vários anos. Cresci amish na quinta dos meus pais e fui batizado aos dezoito anos, mas depois abandonei a Igreja.
— Porquê?
Jacob olhou para o júri.
— Eu acreditava realmente que ia ser amish toda a vida, mas depois descobri algo que significava tanto para mim como a minha fé, senão mais.
— E o que foi?
— O conhecimento. Os Amish não acreditam na instrução para lá do oitavo ano. Vai contra a Ordnung, as regras da Igreja.
— Há regras?
— Sim. É o que a maior parte das pessoas associa aos Amish: o facto de não podermos conduzir carros ou usar tratores. A maneira como nos vestimos. A falta de eletricidade e telefones. Todas as coisas que nos tornam reconhecíveis enquanto grupo. Quando somos batizados, juramos viver de acordo com essas condições. — Pigarreou. — De qualquer forma, estava a trabalhar como aprendiz de carpinteiro, a construir estantes para um professor de Inglês do secundário, em Gap. Ele apanhou-me a folhear os seus livros e deixou-me levar alguns para casa. Pôs-me na cabeça a ideia de que talvez fosse bom prosseguir os estudos. Enquanto pude, escondi os livros da minha família, mas por fim, quando soube que me ia candidatar à universidade, percebi que não podia continuar a ser amish.
— Nessa altura, o que aconteceu?
— A Igreja amish deu-me a escolher: desistir da universidade ou abandonar a minha religião.
— Isso parece duro.
— Não é — disse Jacob. — A qualquer altura, mesmo hoje, se eu voltasse e confessasse em frente da congregação, seria novamente aceite de braços abertos.
— Mas não pode apagar as coisas que aprendeu na faculdade, pois não?
— Não é isso que está em causa, mas sim concordar em submeter-me a um conjunto de circunstâncias escolhidas pelo grupo, em vez de criar regras próprias.
— O que faz hoje, Jacob?
— Estou a fazer o mestrado em Inglês, em Penn State.
— Os seus pais devem ter muito orgulho em si — disse Ellie.
Jacob esboçou um sorriso desmaiado.
— Isso não sei. É que aquilo que é digno de elogio no mundo inglês é muito diferente do que é digno de elogio no mundo amish. Na verdade, se formos amish, não queremos suscitar elogios. Queremos passar despercebidos, viver uma boa vida cristã sem chamar a atenção sobre nós. Por isso, não, doutora Hathaway, não diria que os meus pais têm orgulho em mim. Sentem-se confusos com a escolha que fiz.
— Continua a vê-los?
Jacob olhou de relance para a irmã.
— Vi os meus pais pela primeira vez em seis anos, uma noite destas. Regressei à quinta deles, embora o meu pai me tivesse renegado depois de eu ter sido excomungado.
Ellie ergueu as sobrancelhas.
— Quando se abandona a Igreja amish, não se pode manter o contacto com pessoas amish?
— Isso é mais a exceção do que a regra. É claro que ter alguém que nos é próximo excomungado pode tornar as coisas desconfortáveis para todos os outros, sobretudo se vivermos todos na mesma casa, por causa do Meidung, ou seja, o banimento. Uma das regras da Igreja de que há pouco falava diz que os seus membros têm de evitar aqueles que violaram as regras. As pessoas que pecaram são objeto do bann por um tempo e, durante esse tempo, os outros amish não podem comer, fazer negócio ou ter relações sexuais com elas.
— Então, um marido teria de banir a mulher? Uma mãe teria de banir um filho?
— Tecnicamente, sim. Mas também é verdade que, quando eu era amish, conheci um marido que tinha um carro e foi objeto de bann. Continuava a viver com a mulher, que era membro da Igreja, e embora ela devesse bani-lo, conseguiram de alguma forma ter sete filhos que foram todos batizados amish quando chegou a altura. Por isso, basicamente, o distanciamento fica ao critério dos indivíduos envolvidos.
— Nesse caso, porque é que o seu pai o renegou? — perguntou Ellie.
— Pensei muito sobre isso, doutora Hathaway. Tenho de dizer que o fez por causa de um sentimento de fracasso pessoal, como se fosse culpa sua o facto de eu não querer seguir as suas pisadas. E penso que o aterrorizava a ideia de que, se a Katie continuasse exposta à minha influência com regularidade, eu a pudesse corromper iniciando-a no mundo inglês.
— Fale-nos da relação que tem com a sua irmã.
Jacob sorriu.
— Bem, imagino que não seja muito diferente da de qualquer pessoa que tenha um irmão. Às vezes, era a minha melhor amiga; outras, era a maior chata ao cimo da Terra. Tinha menos alguns anos do que eu, por isso cabia-me velar por ela e ensinar-lhe a fazer determinadas coisas na quinta.
— Eram próximos?
— Muito. Quando se é amish, a família é tudo. Não nos juntamos apenas à hora da refeição; trabalhamos lado a lado para ganhar a vida. — Sorriu para Katie. — Acabamos por conhecer muito bem uma pessoa quando nos levantamos ambos às quatro e meia da manhã para limpar o esterco das vacas.
— Tenho a certeza que sim — concordou Ellie. — Vocês são os únicos filhos?
Jacob cravou os olhos no colo.
— Tivemos uma irmã mais nova durante algum tempo. A Hannah morreu afogada quando tinha sete anos.
— Isso deve ter sido incrivelmente duro para todos vocês.
— Muito — assentiu Jacob. — Eu e a Katie estávamos a tomar conta dela na altura, por isso sempre sentimos que a culpa era nossa. E, quando muito, isso ainda nos tornou mais próximos.
Ellie acenou com a cabeça, solidária.
— O que aconteceu depois de ter sido excomungado?
— Foi como perder outra vez uma irmã — respondeu Jacob. — Um dia, podia falar com a Katie sempre que quisesse e, no dia seguinte, ela estava completamente fora do meu alcance. Durante as primeiras semanas que passei na faculdade, senti falta da quinta, dos meus pais, do meu cavalo e da minha carroça, mas acima de tudo senti falta da Katie. Antes, sempre que me acontecia alguma coisa, era com ela que a partilhava. E, de repente, estava num mundo novo, cheio de atrações, sons e costumes estranhos, e não podia falar com ela sobre isso.
— O que fez?
— Uma coisa muito pouco amish: ripostei. Contactei a minha tia, que tinha abandonado a Igreja quando se casou com um menonita. Eu sabia que ela conseguiria fazer chegar notícias minhas à minha mãe e a à Katie sem o meu pai saber. A minha mãe não me podia ir ver, pois para ela não estaria certo ir contra os desejos do marido, mas enviou a Katie como embaixadora de boa vontade cerca de uma vez por mês, durante vários anos.
— Está a dizer que ela se escapuliu de casa, mentiu ao pai e viajou centenas de quilómetros para ficar consigo num dormitório universitário?
Jacob assentiu.
— Sim.
— Essa agora! — zombou Ellie. — Ir para a faculdade é proibido pela Igreja, mas um comportamento como o da Katie é perdoado?
— Na altura, ela ainda não era batizada, por isso não estava a violar nenhuma das regras ao comer e socializar comigo ou a andar no meu carro. Estava apenas a manter a ligação com o irmão. Sim, escondeu as viagens do meu pai, mas a minha mãe sabia exatamente onde é que ela ia e apoiava-a. Nunca encarei isso como a Katie estar a mentir e a magoar a nossa família; para mim, estava a fazer o melhor que podia para nos manter juntos.
— Quando ela ia a State College para essas visitas, tornava-se... — Ellie sorriu para o júri. — Bem, à falta de melhor termo... foliona?
— Longe disso. Ao princípio, sentia-se como um peixe fora de água. Queria ficar enfiada no meu apartamento e pedia-me para lhe ler os livros que eu andasse a estudar. Via que ela se sentia desconfortável vestida à maneira da Gente Simples junto dos estudantes universitários, por isso uma das primeiras coisas que fiz foi comprar-lhe algumas roupas inglesas normais. Calças de ganga, duas camisas. Coisas desse género.
— Mas não disse que vestir-se de determinada forma é uma das regras da Igreja?
— Sim, mas volto a dizer que a Katie ainda não era batizada, por isso não estava a infringir nenhuma regra. Os Amish contam com um certo grau de experimentação por parte dos filhos antes de estes assentarem e receberem o sacramento do batismo. Uma amostra de como é a vida lá fora. Os adolescentes que foram educados como amish vestem calças de ganga, andam nos centros comerciais, vão ao cinema... talvez até bebam umas quantas cervejas.
— Os adolescentes amish fazem isso?
Jacob acenou afirmativamente.
— Quando têm cerca de quinze ou dezasseis anos, em plena adolescência, juntam-se a um gangue de pares com quem socializam. Acreditem no que vos digo: muitos desses miúdos amish dedicam-se a atividades muito mais arriscadas do que as poucas coisas que a Katie experimentou comigo em Penn State. Nós não tomávamos drogas nem nos embebedávamos, nem andávamos de festa em festa. Eu próprio não o fazia, portanto com certeza que não ia arrastar a minha irmã para isso. Trabalhei muito para entrar na faculdade e tomei algumas decisões dolorosas para poder ir para lá. A principal razão para estar em Penn State não era perder tempo com palermices, mas sim aprender. Basicamente, era isso que a Katie passava o tempo a fazer quando estava comigo. — Olhou para a irmã. — Quando ela me vinha ver, eu considerava isso um privilégio. Era um bocadinho do meu lar que se tinha deslocado para vir ao meu encontro. A última coisa que queria fazer era afugentá-la.
— Parece gostar muito dela.
— E gosto — disse Jacob. — É minha irmã.
— Fale-nos da Katie.
— É doce, amável e boa. Atenciosa. Altruísta. Faz o que é preciso. Não tenho dúvidas de que será uma ótima esposa e uma mãe maravilhosa.
— E, no entanto, está a ser julgada por assassinar um bebé.
Jacob abanou a cabeça.
— Isto é uma loucura. Se a conhecessem, se soubessem como foi educada, compreenderiam que o simples pensamento de a Katie matar outro ser vivo é ridículo. Ela costumava apanhar as aranhas que andavam pelas paredes, dentro de casa, e pô-las lá fora, em vez de as matar. — Suspirou. — Não tenho forma de vos fazer compreender o que significa ser Simples, porque a maior parte das pessoas não consegue ver para lá das carroças e das roupas esquisitas e perceber as crenças que identificam realmente os Amish. Mas uma acusação de homicídio... bem, é uma coisa inglesa. Na comunidade amish, não há homicídio nem violência, porque os Amish aprendem desde pequeninos que se dá a outra face, como Cristo fez, em vez de se vingar pelas próprias mãos.
Jacob inclinou-se para a frente.
— Há um pequeno acrónimo que me ensinaram na primária: JOT. Visa fazer com que as Crianças Simples se lembrem de que Jesus vem primeiro, a seguir os Outros e, por último, Tu. A primeira coisa que uma criança amish aprende é que há sempre uma autoridade superior a quem prestar contas, quer sejam os pais, o bem da comunidade ou Deus. — Jacob olhou para a irmã. — Se a Katie se visse a braços com uma dificuldade, tê-la-ia aceitado. Não teria tentado salvar-se à custa de outra pessoa. O pensamento da Katie não teria simplesmente passado por aí; não lhe teria sequer ocorrido matar esse bebé como possível solução, porque ela não sabe ser egoísta a esse ponto.
Ellie cruzou os braços.
— Jacob, reconhece o nome Adam Sinclair?
— Protesto — disse George. — Relevância?
— Meritíssima, permite que me aproxime? — perguntou Ellie. A juíza fez sinal para que os dois advogados se aproximassem. — Se me der alguma margem de manobra, meritíssima, esta linha de interrogatório acabará por se tornar clara.
— Vou permitir.
Ellie fez a pergunta uma segunda vez.
— É o meu senhorio, que se encontra ausente — respondeu Jacob. — Aluguei-lhe uma casa em State College.
— Tinha uma relação pessoal com ele antes dessa relação comercial?
— Éramos conhecidos.
— Qual era a sua impressão de Adam Sinclair?
— Gostava muito dele. Era mais velho do que a maior parte dos outros alunos porque já estava a fazer o doutoramento. É uma mente brilhante. Mas o que eu mais admirava nele era o facto de, tal como eu, estar em Penn State para trabalhar, e não para se divertir.
— O Adam alguma vez teve oportunidade de encontrar a sua irmã?
— Sim, várias vezes, antes de sair do país para fazer investigação.
— Ele sabia que a Katie é amish?
— Claro — disse Jacob.
— Quando foi a última vez que falou com Adam Sinclair?
— Há quase um ano. Envio os cheques do aluguer para uma agência imobiliária. Tanto quanto sei, o Adam continua na Escócia.
Ellie sorriu.
— Obrigada, Jacob. Não tenho mais perguntas.
George enfiou as mãos nos bolsos e franziu o sobrolho enquanto olhava para o processo aberto na mesa da acusação.
— Está aqui hoje para ajudar a sua irmã, certo?
— Sim — disse Jacob.
— De todas as formas que puder?
— Claro. Quero que os jurados saibam a verdade sobre ela.
— Mesmo que isso signifique mentir-lhes?
— Eu não minto, doutor Callahan.
— Claro que não — disse George com ênfase. — Pelo menos, não da forma como a sua irmã fez.
— Ela não mentiu!
George ergueu as sobrancelhas.
— A vossa família parece ter um padrão: o senhor não é amish, a sua irmã não se comporta como amish; o senhor mentiu, ela mentiu...
— Protesto — disse Ellie, calmamente. — Há aí alguma pergunta?
— Aceite.
— Mentiu ao seu pai antes de ser excomungado, não foi?
— Escondi o facto de querer continuar a estudar. Fi-lo para a sua própria paz de espírito...
— Disse ao seu pai que andava a ler Shakespeare no palheiro?
— Bem, não, eu...
— Vá lá, senhor Fisher. A que é que chama mentira? Esconder alguma coisa? Não ser verdadeiro? Mentir por omissão? Nada disto lhe é familiar?
— Protesto! — disse Ellie, pondo-se em pé. — Está a intimidar a testemunha.
— Aceite. Faça o favor de se conter, senhor advogado — advertiu a juíza Ledbetter.
— Se não foi uma mentira, o que foi? — reformulou George.
Um músculo retesou-se no maxilar de Jacob.
— Fiz o que era preciso para estudar.
Os olhos de George iluminaram-se.
— Fez o que era preciso. E disse recentemente que a sua irmã, a arguida, era boa a fazer o que era preciso. Diria que isso é uma característica amish?
Jacob hesitou, tentando encontrar a serpente por trás das palavras de George, a postos e pronta a atacar.
— Os Amish são pessoas muito práticas. Não se queixam, limitam-se a tratar daquilo que é preciso.
— Quer dizer que, por exemplo, se as vacas precisam de ser ordenhadas, vocês levantam-se antes do nascer do Sol para tratar disso?
— Sim.
— O feno precisa de ser cortado antes de chegar a chuva, por isso trabalham até mal se aguentarem em pé?
— Exatamente.
— O bebé é ilegítimo, por isso matam-no e livram-se dele antes que alguém saiba que cometeram um erro?
— Não! — disse Jacob, furioso. — Nada disso!
— Senhor Fisher, é ou não verdade que, na realidade, os santos Amish não são melhores do que qualquer de nós e incorrem nos mesmos erros?
— Os Amish não querem ser santos. São pessoas como quaisquer outras. A diferença é que tentam levar uma vida cristã tranquila e pacífica... quando a maior parte de nós — olhou de forma acutilante para o procurador — já está a meio caminho do Inferno.
— Espera mesmo que acreditemos que o simples facto de crescer entre os Amish pode tornar uma pessoa incapaz de albergar um pensamento de violência, vingança ou trapaça?
— Os Amish podem albergar esses pensamentos, mas muito raramente. E nunca agem com base neles. Vai contra a sua natureza.
— Um coelho rói a própria pata até a separar do corpo, quando é apanhado numa armadilha de caça, senhor Fisher. E ninguém o classificaria como carnívoro. E, embora o senhor tenha sido criado como amish, mentir tornou-se bastante natural para si quando decidiu prosseguir os seus estudos, certo?
— Escondi os meus estudos dos meus pais porque não tinha escolha — disse Jacob, tenso.
— Há sempre escolha. Podia ter continuado amish e não ter ido para a faculdade. Escolheu aceitar o facto de o seu pai o deixar sem família em troca de seguir os seus próprios desejos egoístas. Isto é verdade, não é, senhor Fisher?
Jacob baixou os olhos. Sentia a rolar sobre si a mesma onda de dúvida com que se debatera durante meses, depois de deixar East Paradise; a onda onde chegara a pensar ter-se afogado.
— É verdade — disse, baixinho.
Conseguia sentir os olhos de Ellie Hathaway postos nele, conseguia ouvir a sua voz recordando-lhe em silêncio que, o que quer que o procurador fizesse, tinha a ver com Katie e não com ele. Determinado, ergueu o queixo e olhou fixamente para George Callahan.
— A Katie anda a mentir ao seu pai há seis anos?
— Ela não anda a mentir.
— Contou ao seu pai que o ia visitar?
— Não.
— Disse ao seu pai que ia ficar em casa da tia?
— Sim.
— E ficou de facto em casa dela?
— Não.
— E isso não é uma mentira?
— É... informação errada.
George resfolegou.
— Informação errada? Essa é nova! Chame-lhe o que quiser, senhor Fisher. Então, a arguida deu informação errada ao pai. Presumo que também lhe tenha dado informação errada a si?
— Nunca.
— Não? Ela contou-lhe que estava envolvida numa relação sexual?
— Não era algo que ela...
— Contou-lhe que estava grávida?
— Nunca lhe perguntei. Nem tenho a certeza se ela terá admitido o facto a si mesma.
George ergueu as sobrancelhas.
— Agora é especialista em psiquiatria?
— Sou especialista na minha irmã.
O advogado encolheu os ombros, deixando claro o que pensava disso.
— Vamos falar sobre esses grupos amish destrutivos. A sua irmã pertenceu a um dos gangues mais libertinos?
Jacob riu-se.
— Escute, não estamos a falar dos «Sharks» e dos «Jets», com disputas e territórios. Tal como os adolescentes ingleses, a maior parte dos miúdos amish são bons miúdos. Um gangue amish é simplesmente um termo para um grupo de amigos. A Katie pertencia aos Sparkies.
— Aos «Sparkies»?
— Sim. Não são o grupo mais recatado do condado de Lancaster, esses são os «Kirkwooders», mas são provavelmente o segundo ou o terceiro. — Sorriu para o procurador. — Os «Amnies», os «Shotguns», os «Happy Jacks», esses são os gangues que, para usar as suas palavras, são mais destrutivos. Tendem a atrair miúdos que gostam de chamar a atenção pelo seu mau comportamento. Mas não creio que a Katie confraternizasse sequer com jovens de qualquer desses grupos.
— A sua irmã continua a fazer parte de um gangue?
— Tecnicamente, podia participar nos seus encontros até ser casada. Mas a maior parte dos jovens deixa de ir depois de ser batizada pela Igreja.
— Porque, nesse caso, não podem beber álcool, nem dançar, nem ir ao cinema?
— Exatamente. Antes do batismo, as regras podem ser contornadas, e não faz mal. Depois do batismo, a pessoa já escolheu o seu caminho e é melhor não se desviar dele.
— A Katie provou cerveja pela primeira vez quando foi visitá-lo?
Jacob acenou afirmativamente.
— Sim, numa festa estudantil, onde eu estava com ela. Mas não foi substancialmente diferente de uma experiência que ela pudesse ter tido com o seu grupo.
— Era aceitável, de acordo com as regras amish?
— Sim, porque ela ainda não era batizada.
— Ela também foi várias vezes consigo ao cinema, não foi? — perguntou George.
— Sim.
— O que, mais uma vez, era algo que podia ter feito com o seu grupo?
— Exatamente — respondeu Jacob.
— E era perfeitamente aceitável de acordo com as regras da Igreja.
— Sim, porque não era batizada.
— E dançar? Alguma vez a levou a dançar?
— Uma ou duas vezes.
— Mas alguns grupos também podiam ter organizado bailes, certo?
— Sim.
— E era perfeitamente aceitável de acordo com as regras da Igreja.
— Sim. Volto a dizer que ela ainda não era batizada.
— Dá ideia de que podem testar muitas águas antes de darem o mergulho final — disse George.
— É esse o objetivo.
— Então, quando é que a sua irmã foi batizada? — perguntou George.
— Em setembro do ano passado.
O procurador acenou pensativamente.
— Nesse caso, engravidou depois de ser batizada. Ter relações sexuais fora do casamento e um filho ilegítimo é perfeitamente aceitável de acordo com as regras da Igreja?
Jacob calou-se e corou.
— Gostava de ter uma resposta.
— Não, não é.
— Ah, pois! Porque ela já era batizada?
— Entre outras coisas — disse Jacob.
— Então, deixe-me resumir — concluiu George. — A arguida mentiu ao pai, mentiu-lhe a si, engravidou sem ser casada depois de batizada... Era essa a verdade que queria que os jurados entendessem acerca da sua irmã?
— Não!
— É essa a rapariga «doce, amável e boa» que descreveu no seu testemunho? Estamos a falar de uma verdadeira escuteira, não é verdade, senhor Fisher?
— Pois estamos — replicou Jacob de forma constrangida. — O senhor não compreende.
— Claro que compreendo. O senhor explicou tudo de forma muito mais eloquente do que eu alguma vez conseguiria. — George foi até à estenógrafa e apontou para um longo excerto da transcrição do julgamento. — Pode ler-me isto?
A mulher assentiu.
— Quando se é amish, a família é tudo.
George sorriu.
— Não tenho mais perguntas.
A juíza Ledbetter estabeleceu uma pausa para café depois do testemunho de Jacob. Os jurados saíram em fila indiana, segurando os seus blocos e lápis e evitando cuidadosamente o olhar de Ellie. Jacob saltou do banco de testemunhas, foi ter com Katie e deu-lhe as mãos. Inclinou-se, encostou a testa à dela e sussurrou em dialeto alemão, dizendo algo que a fez rir baixinho.
A seguir, levantou-se e virou-se para Ellie.
— E então?
— Saiu-se bem — disse ela com um sorriso colado no rosto.
Isto pareceu tranquilizá-lo.
— Será que o júri também pensa assim?
— Jacob, eu deixei de tentar perceber os jurados americanos mais ou menos na mesma altura em que os filmes de Adam Sandler começaram a render milhões nas bilheteiras. As pessoas não agem de forma previsível. A mulher com o cabelo azul não tirou os olhos de si durante todo o tempo. Mas o tipo de chinó estava a tentar arrancar um fio puxado da manga do blazer, e duvido que tenha ouvido uma palavra.
— Mas mesmo assim... correu bem?
— É a primeira testemunha — disse Ellie, gentilmente. — Que tal esperarmos para ver?
Ele acenou com a cabeça.
— Posso levar a Katie para tomar um café lá em baixo?
— Não. As câmaras deixam de ter limitações assim que ela sair desta sala de audiências. Se ela quer café, traga-lho aqui.
Assim que ele se foi embora, Ellie virou-se para Katie.
— Viste o que o George Callahan fez ao Jacob no banco das testemunhas?
— Tentou levá-lo a contradizer-se, mas...
— Percebes que vai ser bem pior contigo?
Katie cerrou os maxilares.
— Eu vou compor as coisas, custe o que custar.
— O meu caso fica mais forte se não te chamar a depor, Katie.
— Como? Depois daquela conversa toda sobre a verdade, não a deviam ouvir pela minha boca?
Ellie suspirou.
— Ninguém disse que eu lhes ia dizer a verdade!
— Disseste, durante aquela parte inicial...
— É uma encenação, Katie. Setenta e cinco por cento de ser advogado é ser ator digno de um Óscar. Vou contar-lhes uma história, só isso, e com sorte vão gostar mais da minha do que da do George.
— Disseste que me ias deixar contar a verdade.
— Eu disse que não ia usar a defesa da insanidade mental. Tu é que disseste que ias dizer a verdade. E, se bem te lembras, eu disse basicamente que logo se via. — Olhou Katie nos olhos. — Se fores até ali, George vai dar cabo de ti. E teremos sorte se ele não destruir a linha da defesa enquanto o faz. Estamos a falar de um mundo inglês, de um tribunal inglês, de uma acusação de homicídio inglesa. Não podes ganhar se jogares de acordo com as regras amish.
— Tens uma cliente amish, com uma educação amish e pensamentos amish. As regras inglesas não se aplicam — disse Katie calmamente. — Sendo assim, em que é que ficamos?
— Ouve com atenção o que o procurador faz e diz, Katie. Podes mudar de ideias até ao minuto em que fores chamada a testemunhar. — Ellie olhou para a sua cliente. — Mesmo que não digas uma palavra em tribunal, posso ganhar.
— Se não disser uma palavra em tribunal, Ellie, serei a mentirosa que o senhor Callahan diz que sou.
Frustrada, Ellie virou a cara. Era uma situação sem saída, com Katie a querer que ela sacrificasse o caso no altar da honestidade religiosa, e Ellie a saber que o último lugar onde a honestidade pertencia era no tribunal. Era como conduzir um carro debaixo de uma tempestade de gelo: mesmo que ela se sentisse absolutamente segura das suas capacidades, havia outras pessoas na estrada a passar a toda a velocidade por ela, a atravessar traços contínuos e a bater com o carro.
Mas, pensando bem, Katie nunca conduzira um carro.
— Não te estás a sentir bem, pois não?
Ao ouvir a voz de Coop, Ellie levantou o rosto.
— Estou ótima, obrigada.
— Estás com péssimo aspeto.
Ela esboçou um sorriso sarcástico.
— Caramba, aposto que tens tantas raparigas atrás de ti que tens de as espantar com um pau.
Ele baixou-se ao lado dela.
— Estou a falar a sério, Ellie — disse ele, baixando a voz. — Agora, tenho um interesse pessoal no teu bem-estar. E se este julgamento for demasiado para ti...
— Por amor de Deus, Coop! As mulheres costumavam dar à luz nos campos e continuar a apanhar o milho depois...
— Algodão.
— O quê?
Ele encolheu os ombros.
— Apanhavam algodão.
Ellie pestanejou.
— Estavas lá?
— Só esclareci a questão.
— Sim. Uma questão. A questão é que estou ótima. Completamente fina. Perfeita e a cem por cento. Consigo ganhar este julgamento; consigo ter este bebé; consigo fazer qualquer coisa! — Ellie apercebeu-se, horrorizada, de que as lágrimas lhe picavam o fundo dos olhos. — Agora, se me dás licença, vou só acabar com a guerra na Bósnia e com a fome nuns quantos países do Terceiro Mundo, antes que o tribunal se volte a reunir. — Levantando-se, empurrou Coop para passar por ele.
Ele ficou a olhar para Ellie e depois deixou-se cair na cadeira que ela deixara livre. Katie estava a esfregar a unha do polegar na primeira folha de um bloco de notas.
— É por causa do bebé — disse. — Pode deixar uma pessoa completamente ferhoodled.
— Bem — respondeu Coop, esfregando a nuca. — Estou preocupado com ela.
Fazendo mais pressão com a unha, Katie deixou uma marca no papel. — Eu também estou preocupada.
Ellie sentou-se ao lado de Katie precisamente quando a juíza estava a voltar à sala de audiências. O rosto de Ellie estava corado e ligeiramente húmido, como se o tivesse salpicado com água. Não olhou para Katie, nem mesmo quando ela lhe tocou ao de leve na mão, por baixo da mesa, só para ter a certeza de que estava tudo bem.
Ellie murmurou qualquer coisa nessa altura, algo que lhe pareceu «não te preocupes» ou «desculpa», embora esta última não fizesse sentido. A seguir, levantou-se com ligeireza, de uma forma elegante e dramática que fez Katie pensar em fumo a sair de uma chaminé.
— A defesa chama Adam Sinclair — disse Ellie.
Katie tinha ouvido mal, com certeza. Susteve a respiração.
— Protesto! — gritou o procurador. — Esta testemunha não estava na minha lista.
— Meritíssima, ele estava fora do país. Só há dias descobri o seu paradeiro — explicou Ellie.
— Isso não basta para explicar por que razão o senhor Sinclair não consta da sua lista de testemunhas — disse a juíza Ledbetter.
Ellie hesitou.
— Ele representa uma informação de última hora que descobri.
— Meritíssima, isto é inaceitável. A doutora Hathaway está a contornar os procedimentos legais de acordo com as suas necessidades.
— Peço desculpa, meritíssima — contrapôs Ellie —, e também peço desculpa ao doutor Callahan por saber disto com tão pouca antecedência. Esta testemunha não vai fazer-me ganhar o caso, mas poderá facultar algumas informações essenciais que nos faltavam.
— Quero tempo para recolher o seu depoimento, primeiro — disse George.
Katie não ouviu o resto. Só soube que, passados momentos, Adam estava na mesma sala que ela. Começou a respirar de forma entrecortada, e de cada vez que o fazia ouvia um ruge-ruge, como se pudesse desembrulhar o seu respirar e encontrar o rebuçado do nome dele. Adam pôs a mão sobre a Bíblia e Katie imaginou-a, em vez disso, espalmada sobre a sua barriga.
E depois ele olhou para ela. Havia uma dor no seu olhar que fez com que Katie pensasse que a angústia subira nele como um mar, deixando uma marca que lhe atravessava o azul dos olhos. Ele olhou para ela e continuou a olhar para ela até o ar se tornar sólido e ela sentir um baque no coração suficientemente forte para provocar um movimento de recuo.
Katie mordeu o lábio, puxando a vergonha sobre si como um xaile. Tinha sido ela que fizera aquilo, que os trouxera àquele ponto. Desculpa.
Não te preocupes.
Ela levantou as mãos trémulas para tapar o rosto, pensando como uma criança: se não conseguisse ver Adam, com certeza que também ela se tornaria invisível.
— Menina Hathaway — disse a juíza. — Precisa de uns minutos?
— Não — respondeu Ellie. — A minha cliente está ótima.
Mas Katie não estava ótima. Não conseguia parar de tremer, as lágrimas vinham agora com mais força e, por mais que quisesse, não era capaz de levantar o rosto para voltar a ver Adam. Conseguia sentir os olhares dos jurados cravados em si como alfinetes minúsculos e perguntou-se porque é que Ellie não era capaz de fazer aquilo por ela: deixá-la fugir dali, sem nunca olhar para trás.
— Por favor — murmurou para Ellie.
— Chiu. Confia em mim.
— Tem a certeza, senhora advogada? — perguntou a juíza Ledbetter.
Ellie olhou para os jurados e para as suas expressões boquiabertas.
— Absoluta.
Naquele momento, Katie pensou que odiava Ellie.
— Meritíssima — disse a voz dele. Oh, meu Deus, a sua voz doce e grave, como o zunido de uma carroça a rolar sobre o pavimento. — Posso? — perguntou, pegando na caixa de lenços de papel que estava no banco das testemunhas e acenando em direção a Katie.
— Não, senhor Sinclair. Fique onde está — ordenou a juíza.
— Tenho de protestar, meritíssima — insistiu o procurador. — A doutora Hathaway incluiu esta testemunha apenas pelo seu valor dramático e por nenhum motivo realmente importante.
— Ainda nem sequer o interroguei, George.
— Senhores advogados, façam o favor de se aproximarem — disse a juíza Ledbetter. Começou a falar baixinho em tom furioso com Ellie e com o procurador, com as suas vozes a elevarem-se em pequenos jatos. Adam olhou do seu lugar para Katie, que continuava a chorar. Agarrou na caixa de lenços de papel e abriu o portãozinho que dava para o banco das testemunhas.
O oficial de justiça avançou.
— O senhor desculpe, mas...
Adam empurrou-o e passou por ele, com as suas passadas a tornarem-se mais audíveis à medida que se aproximava da mesa da defesa. A juíza Ledbetter olhou para cima e chamou-o pelo nome. Como ele continuou a andar, bateu com o martelo na mesa.
— Senhor Sinclair! Pare agora, ou terei de acusá-lo de desrespeito ao tribunal!
Mas Adam não parou. Quando a voz do procurador se ergueu indignada, envolta nas admoestações iradas da juíza, Adam ajoelhou-se ao lado de Katie. Ela conseguia cheirá-lo, conseguia sentir o calor que emanava do seu corpo, e pensou: este é o meu Armagedão.
Sentiu a suave carícia de um lenço de papel ao longo da sua face.
As vozes da juíza e dos advogados desvaneceram-se, mas Katie não deu por isso. O polegar de Adam roçou-lhe a pele e ela fechou os olhos.
Ao fundo, George Callahan levantou as mãos e começou novamente a argumentar.
— Obrigada — sussurrou Katie, tirando o lenço da mão de Adam.
Ele acenou com a cabeça, em silêncio. O oficial de diligências, seguindo ordens, agarrou em Adam pelo braço e fê-lo levantar-se. Katie viu-o ser conduzido de volta ao banco das testemunhas, com cada passo lento a parecer um quilómetro de distância entre eles.
— Sou caçador de fantasmas — disse Adam, respondendo à pergunta de Ellie. — Procuro e registo fenómenos paranormais.
— Pode dizer-nos o que isso implica?
— Passar a noite em locais que se presumem assombrados; tentar detetar alguma alteração no campo de energia, quer com varinha de vedor, quer com um tipo de fotografia especializada.
— Além do seu doutoramento em Parapsicologia pela Penn State, tem mais alguma licenciatura?
— Sim. Uma licenciatura em Ciências e um mestrado no MIT.
— Em que área, senhor Sinclair?
— Física.
— Considera-se um homem de ciência, nesse caso?
— Absolutamente. É por isso que sei que os fenómenos paranormais existem. Qualquer físico lhe diria que a energia não desaparece, apenas se transforma.
— Como é que conheceu Jacob Fisher? — perguntou Ellie.
— Conhecemo-nos numa aula em Penn State. Eu era professor assistente e ele aluno. Senti-me imediatamente atraído pela sua determinação enquanto estudante.
— Importa-se de explicar melhor?
— Bem, obviamente, dada a área em que estou, não me posso dar ao luxo de encarar o meu trabalho com ligeireza. Descobri que a melhor maneira de fazer o que faço é trabalhar arduamente, fazer a minha investigação e não me preocupar com o que os outros pensam. Nesse aspeto, o Jacob era parecido comigo. Como aluno, estava muito menos interessado na parte social do campus do que na vida académica. Quando chegou a altura de subarrendar a minha casa, uma vez que ia viajar para fazer investigação, abordei-o como potencial inquilino.
— Quando é que conheceu a irmã do Jacob?
O olhar de Adam passou de Ellie para Katie e suavizou-se.
— A primeira vez que a vi foi no dia em que obtive o meu doutoramento. O irmão apresentou-nos.
— Pode falar-nos sobre isso?
— Ela era linda, inocente e tímida. Eu sabia que ela era amish, pois o Jacob tinha-me contado há algum tempo, mas não estava vestida como tal. — Hesitou, e depois levantou a palma da mão. — Demos um aperto de mão. Completamente normal. Mas lembro-me de pensar que não a queria largar.
— Teve oportunidade de estar novamente com a Katie?
— Sim, ela visitava o irmão uma vez por mês. O Jacob mudou-se para minha casa alguns meses antes de eu me mudar oficialmente, por isso via a Katie quando ela ia a State College.
— A vossa relação aprofundou-se?
— Tornámo-nos amigos muito depressa. Ela interessou-se pelo meu trabalho, não da mesma forma que qualquer jornalistazeco do National Enquirer, mas sim com verdadeiro respeito pelo que eu estava a tentar fazer. Tinha grande facilidade em conversar com ela, por ser tão aberta e sincera. Para mim, era como se ela não fosse deste mundo e, em muitos aspetos, creio que era verdade. — Mexeu-se desconfortavelmente no lugar. — Sentia-me atraído por ela. Eu tinha idade para ter juízo... Caramba, dez anos mais velho do que ela, experiente e obviamente não amish. Mas não conseguia parar de pensar nela.
— Tornaram-se amantes?
Ele viu o rubor afluir às faces de Katie.
— Sim.
— A Katie já tinha dormido com alguém antes?
— Não. — Adam pigarreou. — Era virgem.
— Amava-a, senhor Sinclair?
— Ainda a amo — disse ele baixinho.
— Nesse caso, porque é que não estava aqui para a apoiar quando ela ficou grávida?
Adam abanou a cabeça.
— Eu não sabia disso. Tinha adiado por duas vezes a minha viagem de investigação para ficar perto dela. Mas naquela noite, depois... depois da conceção, parti para a Escócia.
— Voltou aos Estados Unidos entre essa altura e agora?
— Não. Se tivesse voltado, teria ido ver a Katie. Mas tinha estado em aldeias remotas, áreas difíceis de alcançar. Este sábado foi a primeira vez que pisei solo americano desde há um ano.
— Se tivesse sabido do bebé, senhor Sinclair, o que teria feito?
— Teria casado com a Katie num abrir e fechar de olhos.
— Mas teria de ser amish. Podia converter-se?
— Sei que já aconteceu, mas provavelmente não podia. A minha fé não é suficientemente forte.
— Então, o casamento não teria sido uma opção. O que mais teria feito? — perguntou Ellie.
— Qualquer coisa. Tê-la-ia deixado entre família e amigos, mas na esperança de poder ter algum futuro com ela.
— Que tipo de futuro?
— Aquele que ela estivesse disposta ou conseguisse dar-me — disse Adam.
— Corrija-me se estiver enganada — continuou Ellie —, mas um futuro partilhado entre uma mulher amish e um homem mundano parece extremamente improvável.
— Um saguaro pode apaixonar-se por um boneco de neve — divagou Adam baixinho —, mas onde iriam morar? — Suspirou. — Não queria um amor amaldiçoado pelo destino. Teria ficado perfeitamente feliz se encontrasse um canto do universo onde eu e a Katie pudéssemos ser simplesmente eu e a Katie. Mas, se a amava, não podia pedir-lhe para virar as costas a tudo e a todos. Foi por isso que optei pela saída mais cobarde, no ano passado. Parti, na esperança de que, quando voltasse, as coisas tivessem mudado como que por magia.
— E mudaram?
Adam fez um esgar.
— Sim, mas não para melhor.
— Quando voltou, no sábado, o que é que ficou a saber?
Ele engoliu em seco.
— Que a Katie tinha dado à luz o meu filho. E que ele tinha morrido.
— Deve ter sido muito perturbador ouvir isso.
— E foi — disse Adam. — Ainda é.
— Qual foi a sua primeira reação?
— Quis ir ter com a Katie. Tinha a certeza de que ela devia estar tão devastada quanto eu, se não mais. Pensei que nos podíamos ajudar mutuamente.
— Na altura, sabia que a Katie tinha sido acusada de matar o bebé?
— Sim.
— Soube que o seu filho tinha morrido e que a Katie era a pessoa suspeita de o ter matado, mas no entanto queria ir ter com ela, para se reconfortarem um ao outro?
— Doutora Hathaway — disse Adam —, a Katie não matou aquele bebé.
— Como pode ter a certeza?
Adam baixou os olhos.
— Porque escrevi uma dissertação sobre isso. O amor é o tipo de energia mais forte que existe. Eu e a Katie amávamo-nos. Não nos podíamos amar no meu mundo e não nos podíamos amar no mundo dela. Mas todo esse amor, toda essa energia, tinha de ir para algum lado. Foi para o bebé. — A sua voz fraquejou. — Mesmo que não nos pudéssemos ter um ao outro, tê-lo-íamos os dois.
— Se a amava tanto — disse George a meio do seu contrainterrogatório —, porque é que não lhe escreveu de vez em quando?
— Escrevi, sim! Escrevi-lhe uma vez por semana — respondeu Adam. Olhou para Ellie Hathaway por entre as suas pestanas. Ela tinha-o avisado para não falar sobre as cartas que nunca tinham chegado à mão de Katie, porque assim ia tornar-se claro que Jacob não tinha querido que a irmã tivesse um futuro com Adam, um golpe para a defesa baseada no amor condenado à partida.
— Então, durante todo esse tempo em que trocaram correspondência, ela nunca lhe contou que estava grávida?
— Tanto quanto sei, nunca contou a ninguém.
George ergueu uma sobrancelha.
— Será que a razão de ela lhe esconder a gravidez foi não atribuir tanta importância à vossa relação como o senhor aparentemente fazia?
— Não, isso não era...
— Ou talvez tivesse dado uma voltinha consigo e agora tencionasse voltar para o namorado amish sem ninguém saber de nada.
— Está enganado.
— Talvez não lhe tenha contado porque planeava livrar-se do bebé.
— Ela não faria uma coisa dessas! — disse Adam, com convicção.
— Desculpe se percebi mal, mas o senhor por acaso estava no celeiro na noite em que ela deu à luz?
— O senhor sabe que não.
— Nesse caso, não pode dizer com certeza o que aconteceu ou deixou de acontecer.
— Por essa lógica, o senhor também não! — observou Adam. — Mas há uma coisa que eu sei e que o senhor não sabe. Eu sei como a Katie pensa e sente. Sei que ela nunca mataria o nosso filho. Não importa se estava lá para assistir ao nascimento, ou não.
— Ah, claro! O senhor é... como é que lhe chamou? Ah, sim, um caçador de fantasmas. Não precisa de ver as coisas para acreditar nelas.
Adam olhou o procurador nos olhos.
— Talvez tenha percebido tudo ao contrário — disse. — Talvez seja eu que acredito em coisas que o senhor não consegue ver.
Ellie fechou a porta da sala de reuniões devagarinho.
— Escuta — começou, ansiosa. — Sei o que vais dizer. Não tinha o direito de te surpreender com ele. Assim que soube onde estava o Adam, devia ter-te contado. Mas, Katie, o júri precisava de saber do pai do teu bebé, para compreender que a morte foi uma tragédia. Eles precisavam de ver quanto te magoou ver o Adam entrar na sala. Precisavam de sentir simpatia por ti para quererem absolver-te, seja lá qual for a razão. — Cruzou os braços. — Se servir de alguma coisa, peço desculpa.
Quando Katie virou a cara, Ellie tentou aliviar a tensão.
— Já disse que peço desculpa. Pensava que, quando a pessoa confessa, é perdoada e recebida de volta ao seio da Igreja.
Katie olhou para ela.
— Isto era meu — disse ela baixinho. — Esta memória era a única coisa que me restava. E tu revelaste-a.
— Fi-lo para te salvar.
— Quem disse que eu queria ser salva?
Sem mais uma palavra, Ellie foi novamente até à porta.
— Trouxe-te uma coisa — disse ela, e rodou a maçaneta.
Adam ficou ali especado, hesitante, com as mãos a abrir e a fechar-se junto ao corpo. Ellie fez-lhe sinal e depois saiu, fechando a porta atrás de si.
Katie levantou-se, reprimindo as lágrimas. Ele só precisava de abrir os braços e ela cairia neles. Ele só precisava de abrir os braços e estariam de volta ao ponto onde tinham ficado.
Ele deu um passo e Katie voou para ele. Sussurraram as suas perguntas junto à pele um do outro, deixando marcas tão visíveis quanto cicatrizes. Katie tentou aproximar-se mais, surpreendida por ver que já não encaixava bem nele, como se houvesse algum pequeno objeto entre os seus corpos. Olhou para baixo, para ver o que estava a interpor-se, mas não encontrou nada a não ser a realidade cruel e invisível do bebé de ambos.
Ela percebeu que Adam sentira o mesmo pela forma como se remexia e a mantinha a uma certa distância.
— Tentei escrever-te. O teu irmão não te entregou as minhas cartas.
— Eu tinha-te contado, se soubesse onde estavas — replicou ela.
— Tê-lo-íamos amado — disse Adam, acaloradamente, num tom que era mais uma declaração do que uma pergunta.
— É verdade.
A mão dele afagou-lhe o cabelo, parando no rebordo da kapp.
— O que aconteceu? — sussurrou.
Katie ficou imóvel.
— Não sei. Adormeci e, quando acordei, o bebé tinha desaparecido.
— Eu sei que foi isso que contaste à tua advogada. E à polícia. Mas agora sou eu, Katie. É o nosso filho.
— Estou a dizer-te a verdade. Não me lembro.
— Estavas lá! Tens de te lembrar!
— Mas não me lembro! — gritou Katie.
— Tens de te lembrar — disse Adam com voz pastosa —, porque eu não estava lá. E preciso de saber.
Adam pegou-lhe na mão e beijou-lhe os nós dos dedos.
— Nós vamos arranjar uma saída — disse ele. — Depois do julgamento, de alguma forma, tudo se vai resolver.
Ela deixou a voz dele envolvê-la com a mesma purificação espiritual que sentira no Grossgemee, a cerimónia da comunhão. Como ela gostava de acreditar nele! Levantando o rosto para Adam, começou a dizer que sim com a cabeça.
Mas viu um lampejo nos seus olhos, um pequeno bailado de dúvida, tão breve que, se Adam não tivesse desviado a cara tão depressa, Katie tê-lo-ia atribuído à sua imaginação. Ele tinha dito que a amava. Tinha dito a um júri. Podia não o admitir em tribunal, mas ali, em privado, permitia-se pensar se a razão para Katie não se conseguir lembrar do que tinha acontecido ao bebé seria um ato inconfessável.
Beijou-a suavemente, e ela perguntou-se como é que era possível estar tão próximo de uma pessoa que nem o ar passava entre eles e, mesmo assim, sentir que uma ravina rasgara a terra entre os seus pés.
— Vamos ter outros bebés — disse ele, a única coisa que Katie não suportava ouvir.
Ela tocou-lhe nas faces, no maxilar, na curva suave das orelhas.
— Desculpa — disse ela, sem saber bem por que coisa pedia desculpa.
— A culpa não foi tua — murmurou Adam.
— Adam...
Ele abanou a cabeça, levando-lhe um dedo aos lábios.
— Não digas. Ainda não.
Ela sentiu uma opressão no peito, de tal forma que mal conseguia respirar.
— Queria dizer-te que ele se parecia contigo — disse ela, e as suas palavras saíram brilhantes como um presente. — Queria dizer-te que ele era lindo.
Adam saiu do compartimento da casa de banho e começou a lavar as mãos. A sua cabeça continuava cheia de pensamentos de Katie, do julgamento, do bebé. Só estava vagamente consciente quando outro homem veio lavar as mãos no lavatório ao lado.
Os olhos de ambos encontraram-se no espelho. Adam olhou para o chapéu preto de aba larga, para as calças simples, suspensórios, camisa verde-clara. Adam nunca o tinha visto, mas soube. Soube, da mesma forma que o gigante louro que parecia não conseguir tirar os olhos de Adam sabia.
Foi com ele que ela esteve antes de mim, pensou Adam.
Ele não tinha estado na sala de audiências; Adam lembrar-se-ia dele. Talvez fosse contra isso por razões religiosas. Talvez estivesse isolado na qualidade de testemunha e fosse prestar depoimento mais tarde.
Talvez ele tivesse entrado em cena para cuidar de Katie depois de Adam se ir embora, tal como o procurador sugerira.
— Desculpe — disse o homem louro, num inglês carregado de sotaque. Esticou o braço à frente de Adam, para chegar ao distribuidor de sabão líquido.
Adam secou as mãos numa toalha de papel. Fez um aceno de cabeça, de forma territorial, ao outro homem e atirou o papel amachucado para o caixote do lixo.
Quando abriu a porta da casa de banho que dava para o corredor cheio de gente, Adam olhou para trás uma última vez. O homem amish estava agora a tirar a sua toalha de papel, ocupando exatamente o mesmo lugar onde Adam estivera um momento antes.
Os dedos de Samuel rodaram desajeitadamente a maçaneta da porta para entrar na minúscula sala de reuniões onde Ellie lhe dissera que encontraria Katie. Ela estava lá, sim, com a cabeça inclinada sobre a mesa de plástico horrível, como um dente-de-leão murcho, a pender sobre o seu caule. Sentou-se à frente dela e assentou os cotovelos na mesa.
— Estás bem?
— Ja. — Katie suspirou e esfregou os olhos. — Estou bem.
— Pelo menos um de nós que esteja.
Katie esboçou um sorriso desmaiado.
— Vais depor em breve?
— A Ellie diz que sim. — Hesitou. — A Ellie diz que sabe o que está a fazer. — Samuel levantou-se, sentindo-se demasiado grande e desconfortável naquelas instalações tão exíguas. — A Ellie diz que também tenho de te levar de volta.
— Bem, não queremos desapontar a Ellie — disse Katie, sarcasticamente.
Samuel franziu o sobrolho.
— Katie — disse ele, e foi quanto bastou para ela se sentir pequena e mesquinha.
— Não devia ter dito aquilo — admitiu. — Ultimamente, nem me conheço.
— Mas eu conheço-te — disse Samuel com um ar tão sério que a fez sorrir.
— Graças a Deus por isso! — Katie não gostava de estar naquele tribunal nem de estar tão longe da quinta dos pais, mas saber que Samuel se sentia tão deslocado como ela tornava as coisas um pouco melhores.
Ele estendeu a mão e sorriu.
— Agora, vamos.
Katie entrelaçou os dedos nos dele. Samuel puxou-a para fora da cadeira e levou-a para fora da sala de reuniões. Caminharam de mão dada ao longo do corredor, passaram as portas duplas da sala de audiências e avançaram em direção à mesa da defesa, sem que nunca nenhum deles pensasse que já podiam largar-se.
16
Ellie
Na noite antes de começarem os testemunhos para a defesa de Katie, tive um sonho sobre chamar Coop a depor. Eu estava à frente dele numa sala de audiências vazia à exceção de nós os dois, com a galeria a estender-se por trás de mim como um deserto escuro. Abri a boca para o inquirir sobre o tratamento de Katie e, em vez disso, escapou-me da boca uma pergunta diferente, como um pássaro que tivesse estado preso lá dentro: seremos felizes daqui a dez anos? Envergonhada, cerrei os lábios e esperei que a testemunha respondesse à pergunta, mas Coop limitou-se a olhar para o seu colo. «Preciso de uma resposta, doutor Cooper», insisti; aproximei-me do banco das testemunhas e deparou-se-me o bebé morto de Katie estendido no seu colo.
Interrogar Coop como testemunha situava-se bem alto na minha escala de desconforto: algures entre fazer uma depilação às virilhas e espetar uma lasca de bambu debaixo da unha. Havia qualquer coisa em ter um homem fechado à minha frente no banco das testemunhas, à minha mercê para responder a qualquer pergunta que lhe fizesse, e no entanto saber que as perguntas que ia fazer não eram aquelas para as quais precisava realmente de resposta. Além disso, havia um novo tema implícito entre nós, todas as coisas que ainda não tinham sido ditas depois de saber da gravidez. Rodeava-nos como um mar, claro e distorcendo a realidade, de tal forma que, quando eu via Coop ou o ouvia falar, não podia confiar na exatidão da minha perceção.
Ele veio ter comigo minutos antes da hora a que teria de depor. De mãos nos bolsos, dolorosamente profissional, levantou o queixo.
— Quero a Katie fora da sala de audiências enquanto eu estiver a prestar depoimento.
Katie não estava sentada ao meu lado; eu tinha pedido a Samuel que a fosse buscar.
— Porquê?
— Porque a minha primeira responsabilidade é para com a Katie enquanto paciente, e depois daquele último truque que fizeste com o Adam, creio que ela está demasiado frágil para me ouvir falar sobre o que aconteceu.
Endireitei os papéis à minha frente.
— É uma pena, porque preciso que o júri a veja transtornada.
O choque de Coop foi palpável. Ainda bem. Talvez fosse esta a forma de lhe mostrar que eu não era a mulher que ele esperava. Olhando-o friamente, acrescentei:
— O objetivo é granjear-lhe simpatias.
Estava à espera que ele discutisse comigo, mas Coop ficou apenas ali especado, a fitar-me por um instante até eu começar a mexer-me desconfortavelmente sob o seu olhar.
— Não és assim tão dura, Ellie — disse ele finalmente. — Podes parar de fingir.
— Isto não tem a ver comigo.
— Claro que tem.
— Porque é que me estás a fazer isto? — gritei, frustrada. — É a última coisa de que preciso, agora.
— É exatamente o que precisas, El. — Coop esticou as mãos e endireitou-me a lapela, alisando-a suavemente, um gesto que me deu de repente vontade de chorar.
Respirei fundo.
— A Katie fica, assunto arrumado. E agora, se me dás licença, preciso de uns minutos sozinha.
— Esses minutos estão a acumular-se — disse ele baixinho.
— Por amor de Deus, estou no meio de um julgamento! Estás à espera de quê?
Coop deixou que a mão se perdesse no meu ombro e deslizasse pelo braço.
— Que um dia olhes à tua volta e descubras que estás sozinha há anos.
— Porque é que foi chamado para observar a Katie?
Coop estava magnífico no banco das testemunhas. Não que eu tivesse o hábito de julgar as minhas testemunhas pela forma como o fato lhes assentava, mas estava descontraído e calmo e constantemente a sorrir para Katie, algo em que os jurados não podiam deixar de reparar.
— Para a tratar — disse — e não para a avaliar.
— Qual é a diferença?
— A maior parte dos psiquiatras profissionais que testemunharam em tribunal foram nomeados para avaliar a mente da Katie com vista ao julgamento. Eu não sou psiquiatra forense, sou apenas um vulgar psiquiatra. Pediram-me simplesmente que a ajudasse.
— Se não é psiquiatra forense, por que razão está aqui hoje?
— Porque desenvolvi uma relação com a Katie ao longo do seu tratamento. Ao contrário de um perito que só a terá entrevistado uma única vez, creio conhecer mais minuciosamente a forma como a mente dela funciona. Ela assinou uma declaração em que me autoriza a testemunhar, o que considero ser um sinal inequívoco da confiança que deposita em mim.
— O que envolveu o tratamento da Katie? — perguntei.
— Entrevistas clínicas que se foram aprofundando ao longo de um período de quatro meses. Comecei por inquiri-la sobre os pais, sobre a sua infância, sobre as expectativas da gravidez, historial de depressão ou trauma psicológico... Ou seja, a entrevista psiquiátrica básica.
— O que ficou a saber?
Ele sorriu.
— Que a Katie não é uma adolescente comum. Antes de conseguir entendê-la, precisei de dissecar o que significa ser amish. Como tenho a certeza de que todos saberão, a cultura em que uma criança é educada tem um impacto decisivo nas suas ações em adulta.
— Já ouvimos falar um pouco sobre a cultura amish. O que é que lhe interessou particularmente, enquanto psiquiatra da Katie?
— A nossa cultura promove a individualidade, ao passo que os Amish estão profundamente arreigados à sua comunidade. Para nós, se alguém se destaca, não é significativo, porque se espera que exista diversidade e essa diversidade é respeitada. Para os Amish, não há espaço para o desvio à norma. A integração é importante, pois é essa similaridade identitária que define a sociedade. Se a pessoa não se integrar, as consequências são trágicas em termos psicológicos: fica sozinha, depois de ter passado toda a sua vida a fazer parte do grupo.
— Como é que isso contribuiu para que entendesse a Katie?
— Bem — disse Coop —, na cabeça da Katie, a diferença é equiparada a vergonha, rejeição e fracasso. Para a Katie, o receio de ser banida está enraizado de forma ainda mais profunda. Viu isso acontecer com o irmão, num caso extremo, e não queria que o mesmo acontecesse consigo. Queria casar e ter filhos... mas sempre presumira que isso ia acontecer da mesma forma que acontecia com toda a gente no seu mundo. Descobriu que estava grávida de um homem inglês, sem ser casada, duas coisas absolutamente contra a norma amish, que levavam diretamente ao banimento, e a mente dela não estava preparada para lidar com isso.
Estava a ouvi-lo falar de Katie, mas a pensar em mim. A minha mão subiu sob o casaco do fato, descansando sobre a minha barriga.
— O que quer dizer com isso?
— Ela tinha sido educada para acreditar que só havia uma forma de ir do ponto A ao ponto B — disse. — Que, se a sua vida não seguisse esse caminho ou não resultasse tão perfeita como esperava, isso era inaceitável.
As palavras de Coop envolveram-me com tanta força que senti dificuldade em respirar.
— A culpa não é dela! — lá consegui dizer.
— Não — disse Coop, suavemente. — Ando a tentar fazer-lhe ver isso há algum tempo.
A sala tornou-se mais apertada, com as pessoas a desvanecerem-se e os sons a tornarem-se menos nítidos.
— É difícil mudar a maneira como sempre pensámos.
— Sim, e foi por isso que ela não o fez. Não podia. Aquela gravidez virou o mundo dela de pernas para o ar — murmurou Coop.
Engoli em seco.
— E o que é que ela fez?
— Fingiu que não importava, quando era a coisa mais importante do mundo. Quando isso tinha o poder de mudar a vida dela.
— Talvez... ela estivesse apenas com medo de dar esse primeiro passo.
Um profundo silêncio abatera-se sobre a sala de audiências. Vi os lábios de Coop apartarem-se e esperei que ele me absolvesse.
— Protesto! — disse George. — Isto é um interrogatório direto ou um episódio do As The World Turns?
Arrancada aos meus devaneios, senti-me corar.
— Aceite — disse a juíza Ledbetter. — Doutora Hathaway, pode mudar outra vez para o canal onde passa O Juiz Decide?
— Sim, meritíssima, peço desculpa. — Pigarreei e desviei propositadamente o olhar de Coop.
— Quando a Katie descobriu que estava grávida, o que fez?
— Nada. Afastou essa ideia do pensamento. Negou-a. Procrastinou. Sabem como é quando somos crianças, fechamos os olhos e pensamos que somos invisíveis? Bem, neste caso, o princípio foi o mesmo. Se não dissesse em voz alta «estou grávida», era porque não estava. Em última análise, se admitisse que estava grávida, também teria de admiti-lo perante a sua Igreja, isto é, teria de confessar publicamente os seus crimes e ser banida por um breve período, após o que seria perdoada.
— Ignorar a gravidez... Isso parece uma decisão deliberada.
— Não é, porque na realidade ela não tinha escolha. Na sua cabeça, era a única maneira de não ser excluída da sua comunidade.
— Não podia esconder esse facto quando entrou em trabalho de parto. O que aconteceu, nessa altura?
— Obviamente — disse Coop —, o mecanismo de negação cedeu e a mente dela esforçou-se por encontrar outra forma que a impedisse de admitir a gravidez. Quando conheci a Katie, ela disse-me que se tinha sentido doente ao jantar, que se tinha ido deitar cedo e que não se lembrava de nada até acordar. É claro que os factos indiciam que ela teve um bebé durante essas horas.
— Esse foi o novo mecanismo de lidar com a realidade? Uma perda de memória?
— Um lapso da memória, devido a dissociação.
— Como é que sabe que a Katie não entrou em estado de dissociação a partir do momento em que descobriu que estava grávida?
— Porque, nesse caso, teria provavelmente um distúrbio de personalidade múltipla. Alguém que fragmenta a sua consciência durante tantos meses acaba por desenvolver outra identidade. No entanto, é possível seccionar a consciência para sobreviver a breves períodos traumáticos, e isso é perfeitamente consistente com o caso da Katie. — Hesitou. — Não é tão importante assim compreender qual o mecanismo de defesa que ela usou e se o fez de forma consciente ou inconsciente. Para a Katie, o crucial é compreender porque é que sentiu a necessidade de se proteger do conhecimento da gravidez e do parto, ponto final.
Acenei afirmativamente.
— Ela acabou por se lembrar do que tinha acontecido durante e depois do nascimento?
— Até certo ponto — disse Cooper. — Lembra-se de ter receio de sujar os lençóis com sangue. Lembra-se de ir para o celeiro para dar à luz e de sentir imenso medo. Lembra-se de cortar o cordão umbilical e de o ter atado. Sabe que pegou no bebé e lhe fez festinhas. Que o acalmou. — Levantou o dedo mindinho. — Lembra-se de lhe ter dado o dedo para chuchar. Fechou os olhos, porque estava muito cansada, e quando acordou a criança tinha desaparecido.
— Com base no conhecimento que tem da Katie, o que pensa que aconteceu ao bebé?
— Protesto! — disse George. — Isto envolve especulação.
— Meritíssima, todas as testemunhas que o procurador chamou especularam sobre o assunto — observei. — Como psiquiatra da Katie, o doutor Cooper é mais qualificado do que qualquer outra pessoa para tecer comentários.
— Indeferido, doutor Callahan. Doutor Cooper, pode responder à pergunta.
— Penso que o bebé morreu nos braços dela, por qualquer uma das razões que levam à morte de prematuros. A seguir, ela escondeu o bebé, não muito bem, pois na altura estava a agir de forma mecânica.
— O que o leva a pensar isso?
— Mais uma vez, tem a ver com o facto de ser amish. Levar um bebé ilegítimo para a comunidade amish é perturbador, mas não trágico. A Katie teria sido banida durante um curto período e depois aceite de volta ao seio da Igreja, porque as crianças são uma preciosidade para os Amish. Depois da tensão do parto, a Katie teria tido finalmente de admitir que tinha dado à luz um filho ilegítimo, mas acredito que teria sido capaz de lidar com isso se o bebé estivesse vivo e fosse real para ela. A Katie adorava crianças, amava o pai do bebé, e podia ter racionalizado o banimento considerando que o seu erro tinha dado origem a algo maravilhoso.
Coop encolheu os ombros.
— No entanto, o bebé morreu nos seus braços enquanto ela estava a dormir, devido à exaustão. Acordou coberta de sangue do parto e a segurar o recém-nascido morto. Na sua cabeça, culpou-se pela morte do bebé: ele tinha morrido porque não tinha sido concebido no seio de um casamento, no seio da Igreja amish.
— Deixe-me esclarecer este ponto, doutor. O senhor não acredita que a Katie matou o bebé?
— Não, não acredito. Matar o próprio filho teria tornado praticamente impossível para a Katie voltar a ser aceite na comunidade, a longo prazo. Embora não seja especialista em sociedades pacifistas, creio que confessar voluntariamente um homicídio implicaria provavelmente essa consequência. Como a inclusão na comunidade era um pensamento omnipresente durante a gravidez, também estaria seguramente na sua cabeça no momento do parto. Se tivesse acordado com um bebé vivo, creio que teria confessado o seu pecado na Igreja, criado a criança com a ajuda dos pais e prosseguido a sua vida. Mas isso não aconteceu. Penso que acordou, viu o bebé morto e entrou em pânico, pois ia ser banida por ter tido um filho ilegítimo e nem sequer tinha a criança para mitigar essa reprovação. Por isso, a mente dela entrou, por reflexo, em modo de lidar com a realidade e tentou eliminar as provas de que tinha havido um nascimento ou morte. Basicamente, para que não houvesse motivo para a excluir da comunidade.
— Ela tinha consciência de que estava a esconder o corpo quando o fez?
— Presumo que a Katie tenha escondido o corpo do bebé enquanto estava num estado dissociativo, uma vez que ainda não consegue lembrar-se de o ter feito. Ela não se pode permitir lembrar-se de o ter feito, pois é a única forma de conseguir viver com a sua dor e vergonha.
Era aqui que eu e o Coop tínhamos planeado terminar o interrogatório direto. Mas, de repente, com base num palpite, cruzei os braços.
— Ela alguma vez lhe contou o que aconteceu ao bebé?
— Não — disse Coop, cautelosamente.
— Então, todo esse cenário que envolve a morte do bebé e o ataque de sonambulismo da Katie durante o qual escondeu o corpo é algo que congeminou inteiramente sozinho?
Coop pestanejou, confuso, e com boas razões para isso.
— Bem... não inteiramente. Baseei as minhas conclusões nas conversas que tive com a Katie.
— Sim, está bem — disse eu, sem ligar muito à resposta. — Mas, como ela não lhe contou efetivamente o que aconteceu naquela noite, não será possível a Katie ter matado o bebé a sangue-frio e tê-lo enfiado depois na sala dos arreios?
Era eu que estava a conduzir o interrogatório, mas sabia que George não teria protestado por nada deste mundo. Coop respondeu de forma atabalhoada, totalmente desconcertado.
— Possível é uma palavra muito forte — disse ele, lentamente. — Se está a falar da exequibilidade de determinado...
— Responda simplesmente à pergunta, doutor Cooper.
— Sim. É possível. Mas não provável.
— É possível que a Katie tenha dado à luz, embalado o seu menino, o tenha enfaixado e depois chorado quando descobriu que ele lhe tinha morrido nos braços?
— Sim — respondeu Coop. — Isso já é provável.
— É possível que a Katie tenha adormecido a segurar o seu bebé vivo e que um desconhecido lá tenha entrado, sufocando o bebé e escondendo-o enquanto ela estava inconsciente?
— Claro que é possível. Improvável, mas possível.
— Pode dizer com certeza que a Katie não matou o seu bebé?
Ele hesitou.
— Não.
— Pode dizer com certeza que a Katie matou o seu bebé?
— Não.
— Seria justo dizer que tem dúvidas sobre o que aconteceu naquela noite?
— Sim. Não temos todos?
Sorri-lhe.
— Não tenho mais perguntas.
— Corrija-me se estiver enganado, doutor Cooper, mas a arguida nunca disse realmente que o bebé morreu de causas naturais, pois não?
Coop, bendito seja, olhou fixamente para o procurador.
— Não, mas também nunca disse que o tinha matado.
George ficou a pensar no assunto.
— E, no entanto, o senhor parece pensar que isso é extremamente improvável.
— Se conhecesse a Katie, pensaria a mesma coisa.
— Segundo o seu próprio testemunho, o pensamento omnipresente na cabeça da Katie era a aceitação pela sua comunidade.
— Sim.
— Uma homicida seria banida pela comunidade amish, talvez para sempre?
— É o que depreendo.
— Bem, nesse caso, se a arguida matou o bebé, não faria sentido esconder a prova do homicídio, para não ser definitivamente excomungada?
— Caramba, eu costumava fazer isso em Matemática, quando andava no sétimo ano. Se x, então y. Se não x, então não y.
— Doutor Cooper... — pressionou George.
— Bem, só falei no assunto porque se o se dessa afirmação for falso, o então também não funciona. O que é apenas uma maneira indireta de dizer que a Katie não podia ter assassinado o seu bebé. Isso é um ato consciente, com ações reativas conscientes, e ela encontrava-se nessa altura num estado dissociativo.
— De acordo com a sua teoria, ela entrou em dissociação quando deu à luz e estava em dissociação quando escondeu o corpo, mas conseguiu estar consciente e mentalmente presente para compreender que o bebé tinha morrido de causas naturais nos poucos minutos entre esses dois momentos?
O rosto de Coop ficou paralisado.
— Não é bem assim — disse ele, recompondo-se. — Há uma distinção entre saber o que está a acontecer e compreendê-lo. É possível que estivesse em estado dissociativo durante toda essa sequência.
— Se ela estava a dissociar quando percebeu que o bebé tinha morrido nos seus braços, como o senhor sugere, nesse caso não estava realmente ciente do que estava a acontecer?
— Exatamente — disse Coop, acenando com a cabeça.
— Então, porque é que havia de ter sentido uma dor e vergonha tão grandes?
Ele tinha encostado Coop à parede, e todos sabíamos disso.
— A Katie empregou uma série de mecanismos de defesa para ultrapassar o parto. Qualquer deles pode ter entrado em ação no momento em que percebeu que o bebé tinha morrido.
— Mas que conveniente! — comentou George.
— Protesto! — gritei.
— Aceite.
— Doutor, disse que a primeira coisa de que a Katie se lembrou sobre o nascimento foi que não queria sujar os lençóis de sangue, daí ter ido ter o bebé para o celeiro?
— Sim.
— Não se lembrava do bebé em si.
— O bebé veio depois do trabalho de parto, doutor Callahan.
O procurador sorriu.
— Foi isso que o meu pai me ensinou há quarenta anos. O que eu queria dizer era que a arguida não se lembrava de segurar no bebé nem de estabelecer uma ligação afetiva com ele, não é verdade?
— Tudo isso teria acontecido depois do nascimento. Depois da dissociação — disse Coop.
— Bem, nesse caso, parece de uma grande insensibilidade preocupar-se com os lençóis quando se está aparentemente encantado com a ideia de ter um filho.
— Ela não estava encantada na altura. Estava aterrorizada e em dissociação.
— Então, não estava em si? — incitou George.
— Exatamente.
— Nesse caso, poder-se-ia dizer que era como se o corpo da arguida lá estivesse, a dar à luz e a sentir as dores, embora a sua mente estivesse noutro sítio?
— Correto. É possível funcionar do ponto de vista mecânico, mesmo em estado dissociativo.
George acenou com a cabeça.
— Não será possível que a parte de Katie Fisher que estava fisicamente presente e mecanicamente capaz de dar à luz e cortar o cordão também tivesse estado fisicamente presente e mecanicamente capaz de matar o bebé?
Coop ficou calado por um momento.
— Há uma série de possibilidades.
— Vou interpretar isso como um sim. — George começou a regressar à mesa da acusação. — Ah, uma última pergunta. Há quanto tempo conhece a doutora Hathaway?
Eu estava de pé antes mesmo de perceber que me tinha levantado.
— Protesto! — berrei. — Relevância? Fundamento?
Claro que todos podiam ver como eu ficara corada. Fez-se silêncio na sala de audiências. No banco das testemunhas, Coop dava ideia de querer enfiar-se pelo chão abaixo.
A juíza Ledbetter fitou-me de olhos semicerrados.
— Aproximem-se — disse. — O que é que isto tem a ver com o caso, doutor Callahan?
— Gostaria de demonstrar que a doutora Hathaway tem uma relação profissional com esta testemunha desde há muitos anos.
Espalmadas na superfície polida da mesa da juíza, as minhas mãos começaram a transpirar.
— Nós nunca tínhamos trabalhado juntos em tribunal — repliquei. — O doutor Callahan está a tentar influenciar o júri mostrando que eu e o doutor Cooper nos conhecemos pessoal e profissionalmente.
— Doutor Callahan? — inquiriu a juíza.
— Meritíssima, creio que há aqui um conflito de interesses e quero que o júri saiba disso.
Enquanto a juíza ponderava as nossas declarações, de repente lembrei-me da primeira vez que Katie admitira conhecer o pai do seu bebé. A Lua estava cheia e branca, encostada à janela para espiar; a voz de Katie tinha-se suavizado quando dissera o nome de Adam em voz alta. E ainda há dez minutos: Esta memória era a única coisa que me restava, e tu revelaste-a.
Se George Callahan fizesse isto, estaria a roubar-me.
— Está bem — acedeu a juíza. — Permito que prossiga o seu interrogatório.
Voltei para a mesa da defesa e tomei o meu lugar ao lado da Katie. Quase de imediato, ela estendeu a mão para agarrar na minha e apertou-a.
— Há quanto tempo conhece a advogada de defesa? — perguntou George.
— Vinte anos — respondeu Coop.
— É ou não é verdade que a vossa relação é mais do que profissional?
— Somos amigos há muito tempo. Tenho imenso respeito por ela.
George olhou-me dos pés à cabeça e, naquele momento, senti o impulso de lhe dar um pontapé nos dentes.
— Amigos? — insistiu ele. — Nada mais?
— Não é da sua conta — disse Coop.
O procurador encolheu os ombros.
— Isso foi o que a Katie também pensou, e veja só onde isso a levou.
— Protesto! — disse eu, levantando-me tão depressa que quase puxei Katie comigo.
— Aceite.
George sorriu para mim.
— Retiro o que disse.
— Vá lá — disse-me Coop um pouco mais tarde, quando foi dispensado como testemunha e a juíza ordenou uma pausa para café. — Precisas de dar um passeio.
— Preciso de ficar com a Katie.
— O Jacob toma conta dela, não tomas, Jacob? — perguntou Coop, batendo no ombro do irmão de Katie.
— Claro — disse Jacob, endireitando-se um pouco no lugar.
— Está bem. — Segui Coop para fora da sala de audiências, no meio de uma chuva de murmúrios dos representantes da imprensa que ainda estavam sentados na galeria.
Mal chegámos ao átrio, o flash de uma câmara explodiu-me no rosto.
— É verdade — perguntou a repórter que acompanhava o operador, com a cara a apenas centímetros da minha — que...
— Posso só dizer uma coisa? — interrompeu Coop com bons modos. — Sabe que altura tenho?
A repórter franziu o sobrolho.
— Um metro e oitenta e cinco, oitenta e sete?
— Por aí. Sabe quanto peso?
— Oitenta e cinco.
— Ótimo palpite. Sabe que estou a pensar seriamente em pegar nessa câmara e atirá-la ao chão?
A repórter fez um sorriso trocista.
— Suponho que seja um guarda-costas em todos os sentidos da palavra.
Apertei o braço de Coop e puxei-o para um corredor, onde encontrei uma sala de reuniões vazia. Ele ficou a olhar para a porta fechada, como que a pensar em ir atrás do repórter.
— Não vale a publicidade — disse eu.
— Mas pensa na satisfação psicológica.
Afundei-me na cadeira.
— Não posso acreditar que ninguém tentou tirar uma fotografia à Katie e que vieram antes atrás de mim.
Coop sorriu.
— Se fossem atrás da Katie, isso era mau para a imagem deles: estavam a violar a liberdade religiosa e essa treta toda. Mas precisam na mesma de alguma coisa que ilustre os seus artigos. Sobras tu e o Callahan, e acredita que a câmara gosta mais de ti do que dele. — Hesitou. — Foste fantástica ali dentro.
Encolhendo os ombros, descalcei os sapatos e contraí os dedos dos pés.
— Tu também foste muito bom. A melhor testemunha que tivemos até agora, acho eu...
— Bem, obrigado...
— ... até o George ter minado completamente a tua credibilidade.
Coop veio pôr-se atrás de mim.
— Merda! Ele não invalidou todo o testemunho com aquela treta, pois não?
— Depende do grau de sobranceria dos jurados e de até que ponto pensam que estamos a tentar enganá-los. Os júris não gostam de se sentir enganados. — Fiz uma careta. — É claro que agora eles vão pensar que durmo com toda a gente que chamar a depor.
— Podes voltar a chamar-me, para eu os desenganar em relação a isso.
— Obrigada, mas não. — Os dedos de Coop deslizaram pelo meu cabelo e começaram a massajar-me o couro cabeludo.
— Oh, meu Deus! Devia pagar-te por isso!
— Não. É uma das regalias de dormires comigo para garantir o meu testemunho.
— Bem, então vale a pena. — Inclinei a cabeça para o lado e sorri. — Olá — sussurrei.
Ele inclinou-se para a frente para me beijar de cabeça para baixo.
— Olá.
A sua boca mexeu-se sobre a minha, desajeitada num ângulo tão difícil, por isso dei por mim a virar-me e a ajoelhar na cadeira para me encaixar nos braços de Coop. Passado um momento, ele afastou-se de mim e encostou a testa à minha.
— Como está o nosso filho?
— Esplêndido — respondi, mas o meu sorriso esmoreceu.
— O que foi?
— Quem me dera que a Katie tivesse tido um pouco disto — repliquei. — Uns quantos momentos com o Adam que a fizessem acreditar que ia tudo acabar bem.
Coop inclinou a cabeça.
— E vai, El?
— Vai correr tudo bem com este bebé — disse eu, mais para mim do que para Coop.
— O bebé não era a parte interessada. — Respirou fundo. — O que disseste lá dentro durante o interrogatório, aquela deixa sobre dar o primeiro passo, estavas a falar a sério?
Podia ter-me armado em ingénua; podia ter-lhe dito que não fazia ideia do que ele estava a falar. Em vez disso, acenei afirmativamente.
Coop beijou-me intensamente, tirando-me a respiração com uma fita comprida e doce.
— Talvez não tenha mencionado isso, mas sou perito no que toca a primeiros passos.
— A sério? Então, diz-me como fazer.
— Fechas os olhos e saltas — respondeu ele.
Respirei fundo e pus-me em pé.
— A defesa chama Samuel Stoltzfus.
Houve risinhos abafados e olhares quando Samuel apareceu na parte de trás da sala de audiências com um oficial de diligências. Um elefante numa loja de porcelana, pensei, ao ver o homenzarrão avançar pesadamente para o banco das testemunhas, lívido de medo e as mãos a rodar nervosamente a aba do seu chapéu preto.
Eu sabia, por Katie e Sarah e também pelas conversas à mesa do jantar, aquilo que Samuel estava a sacrificar para ser testemunha no julgamento de Katie. Embora a comunidade amish cooperasse com a lei e os seus elementos pudessem estar presentes numa sala de audiências quando intimados, a verdade é que também proibia que eles interpusessem ações judiciais. Samuel, que tinha oferecido voluntariamente os seus serviços como testemunha de abonação de Katie, estava algures entre os dois extremos. Embora a sua decisão não tivesse sido posta em questão pelos representantes da Igreja, havia membros que o olhavam de forma menos favorável, certos de que este contacto deliberado com o mundo inglês não trazia nada de bom.
O escrivão do tribunal, um homem com cara de osga que cheirava a pastilha elástica, aproximou-se de Samuel com a habitual Bíblia.
— Faça o favor de levantar a mão direita. — Fez deslizar o livro gasto por baixo da palma da mão esquerda de Samuel. — Jura dizer a verdade, toda a verdade, e nada mais que a verdade, assim Deus o ajude?
Samuel afastou a mão da Bíblia como se o tivessem queimado.
— Não — disse ele, horrorizado. — Não juro.
Uma vaga de perturbação ondulou através da galeria. A juíza bateu duas vezes com o martelo.
— Senhor Stoltzfus — disse ela gentilmente —, vejo que não está familiarizado com os tribunais. Mas este é um procedimento muito usual.
Samuel abanou a cabeça de forma beligerante, com as madeixas louras a agitar-se. Olhou para mim com ar suplicante.
A juíza Ledbetter murmurou qualquer coisa do género «Porquê eu?». A seguir, fez-me sinal para me aproximar.
— Senhora advogada, talvez queira um minuto com a testemunha para lhe explicar o procedimento.
Fui ter com Samuel e pus-lhe a mão no braço, afastando-o dos olhares da galeria. Ele estava a tremer.
— Samuel, qual é o problema?
— Nós não rezamos em público — sussurrou.
— São apenas palavras. Na realidade, não significam nada.
Ele ficou boquiaberto, como se eu me tivesse acabado de transformar no diabo mesmo ali, à sua frente.
— É um juramento a Deus. Como é que pode dizer que não significa nada? Não posso jurar sobre a Bíblia, Ellie — disse ele. — Lamento, mas, se é mesmo preciso, não consigo fazê-lo.
Acenando de forma tensa, voltei para o pé da juíza.
— Jurar sobre a Bíblia vai contra a religião dele. Será possível abrir uma exceção?
George pôs-se em posição atrás de mim.
— Meritíssima, peço desculpa se pareço um disco riscado, mas é óbvio que a doutora Hathaway planeou esta cena para fazer o júri simpatizar com os Amish.
— Ele tem razão, é claro. E a qualquer momento deve estar a chegar ao palco principal a trupe de atrizes que contratei para reconstituir a dor da Katie.
— Sabem — disse a juíza Ledbetter pensativamente —, aqui há uns anos, tive um homem de negócios amish como testemunha num julgamento e deparámos com o mesmo problema.
Fiquei de boca aberta a olhar para a juíza, não por ela estar a propor uma solução, mas por já ter tido um amish na sua sala de audiências.
— Senhor Stoltzfus — chamou ela. — Estaria disposto a afirmar sobre a Bíblia?
Conseguia ver a cabeça de Samuel a trabalhar. E eu sabia que a tendência dos Amish para interpretar tudo de forma literal serviria os propósitos da juíza. Desde que a palavra que ela propunha não fosse jurar ou prometer, Samuel consideraria o compromisso aceitável.
Ele acenou afirmativamente. O escrivão voltou a enfiar-lhe a Bíblia debaixo da mão; sou capaz de ter sido a única pessoa que notou que a palma da mão de Samuel ficou a pairar alguns milímetros acima da capa encadernada a couro.
— Hum... Afirma dizer a verdade, toda a verdade e nada mais que a verdade, assim Deus o ajude?
Samuel sorriu para o homenzinho.
— Ja, está bem.
Sentou-se no banco das testemunhas, enchendo todo o espaço disponível, com as grandes mãos apoiadas nos joelhos e o chapéu enfiado debaixo do assento.
— Pode dizer o seu nome e morada?
Ele pigarreou.
— Samuel Stoltzfus. Blossom Hill Road, East Paradise. — Hesitou, e depois acrescentou: — Pensilvânia, EUA.
— Obrigada, senhor Stoltzfus.
— Ellie — sussurrou ele de forma audível —, pode tratar-me por Samuel.
Eu sorri.
— Está bem, Samuel. Sente-se um bocadinho nervoso?
— Sim. — A palavra saiu-lhe numa lufada de alívio.
— Aposto que sim. Alguma vez tinha estado num tribunal?
— Não.
— Alguma vez pensou que iria estar num tribunal, um dia?
Ele abanou a cabeça.
— Ach, não! Nós não acreditamos em ações judiciais, por isso nunca perdi um minuto a pensar nisso.
— Quando diz «nós» refere-se a quem?
— Ao povo — respondeu.
— Os Amish?
— Sim.
— Pediram-lhe que servisse hoje de testemunha?
— Não, fui eu que me ofereci.
— Pôs-se voluntariamente numa situação desconfortável? Porquê?
Os seus olhos azuis e límpidos fixaram-se em Katie.
— Porque ela não matou o bebé.
— Como é que sabe?
— Conheço-a desde sempre. Desde que éramos miúdos. Vi-a todos os dias durante anos. Agora, trabalho para o pai da Katie, na quinta.
— A sério? O que faz lá?
— Tudo o que o Aaron me diz para fazer, basicamente. Mas ajudo sobretudo na plantação e na colheita. Oh, ja, e na ordenha. É uma exploração leiteira.
— Quando é que fazem a ordenha, Samuel?
— Às quatro e meia da manhã e às quatro e meia da tarde.
— O que é que isso implica?
George ergueu uma sobrancelha.
— Protesto! Será que precisamos de uma aula sobre gestão agrícola?
— Estou a estabelecer um fundamento, meritíssima — argumentei.
— Indeferido. Senhor Stoltzfus, pode responder à pergunta.
Samuel disse que sim com a cabeça.
— Bem, começamos por misturar a ração. Depois limpamos com uma pá por trás das baias e isso vai para o poço do esterco. O Aaron tem vinte vacas, por isso demora um bocado. A seguir, limpamos-lhes as tetas e aplicamos a bomba de ordenha, que trabalha com um gerador. Já disse que dá para ligar a bomba a duas vacas de cada vez? O leite vai para uma vasilha, que é depois despejada na cisterna. E, normalmente, a meio, temos de parar e apanhar outra vez o esterco que está atrás delas.
— Quando é que o camião da empresa de laticínios vai recolher o leite?
— Dia sim, dia não, exceto no dia do Senhor. Quando calha a um domingo, vem a horas completamente estapafúrdias, tipo sábado à meia-noite.
— O leite é pasteurizado antes de o camião o levar?
— Não, isso é feito depois de sair da quinta.
— Os Fisher compram o leite no supermercado?
Samuel sorriu.
— Isso seria uma tolice, não é verdade? Como comprar bacon quando acabámos de matar um bom porco. Os Fisher bebem o seu leite fresco. Tenho de levar um jarro à mãe da Katie duas vezes ao dia.
— Nesse caso, o leite que os Fisher bebem ainda não foi pasteurizado?
— Não, mas sabe exatamente ao mesmo que o que se compra nas embalagens de plástico brancas. Já o experimentou. Não acha que sabe ao mesmo?
— Protesto! Será que alguém pode lembrar à testemunha que não deve fazer perguntas? — disse George.
A juíza inclinou-se de lado.
— Senhor Stoltzfus, receio que o senhor procurador tenha razão.
O homenzarrão corou e baixou os olhos.
— Samuel — disse eu rapidamente —, porque é que sente que conhece a Katie tão bem?
— Vi-a em tantas situações, que sei como ela age, tanto quando está triste como quando está feliz. Eu estava lá quando a irmã se afogou e quando o irmão foi banido da Igreja. Além disso, há dois anos começámos a andar juntos.
— Quer dizer a namorar?
— Ja.
— Namoravam quando a Katie teve o bebé?
— Sim.
— Estava lá quando ela deu à luz?
— Não, não estava — respondeu. — Descobri mais tarde.
— Pensou na altura que o bebé fosse seu?
— Não.
— Porquê?
Ele pigarreou.
— Nunca dormimos juntos.
— Sabia quem era o pai do bebé?
— Não. A Katie não me quis dizer.
Suavizei a voz.
— Como é que isso o fez sentir?
— Muito mal. Ela era a minha miúda, percebe? Não compreendi o que tinha acontecido.
Por um momento, deixei o júri olhar simplesmente para o Samuel. Um homem forte e bem-parecido com roupas um pouco estranhas, a falar de forma titubeante na sua segunda língua, a tentar manter-se à tona numa situação que era completamente nova para ele.
— Samuel — disse eu —, a sua namorada engravida de outro homem e o bebé é encontrado misteriosamente morto. Embora não estivesse lá para ver o que aconteceu, está nervoso por se ver numa sala de audiências como testemunha e, no entanto, veio aqui dizer-nos que ela não cometeu homicídio?
— Isso mesmo.
— Porque é que está a defender a Katie, quando ela o enganou de todas as formas possíveis?
— Tudo o que a Ellie disse é verdade. Devia estar muito zangado. E estive durante algum tempo, mas já não estou. Agora, ultrapassei o meu próprio egoísmo e estou num ponto em que tenho de a ajudar. Quando somos Simples, não nos pomos em primeiro lugar. Não o fazemos porque isso seria Hochmut, inchar de orgulho, e a verdade é que há sempre pessoas mais importantes do que nós. Por isso, a Katie, quando ouve outras pessoas a contar mentiras sobre ela e sobre o bebé, não tem vontade de ripostar nem de se defender. Eu estou aqui para o fazer em nome dela. — Passando à ação, levantou-se lentamente e olhou para o júri. — Ela não fez isto. Ela não podia fazer isto.
Todos os doze jurados ficaram cativados pela imagem do rosto do Samuel, onde se espelhava uma convicção calma e feroz.
— Samuel, ainda a ama?
Ele virou-se, e os seus olhos passaram por cima de mim para se iluminarem diante de Katie.
— Sim — disse. — Sim, amo.
George bateu com o indicador nos lábios.
— Ela era sua namorada, mas andava a dormir com outro tipo?
Os olhos de Samuel semicerraram-se.
— Não acabou de ouvir o que eu disse?
O procurador levantou as mãos.
— Estava só a pensar nos seus sentimentos em relação a isso.
— Não vim aqui para falar dos meus sentimentos. Vim aqui para falar sobre a Katie. Ela não fez nada de mal.
Encobri a minha risada com tosse. Para alguém inexperiente, Samuel conseguia ser uma montanha bem difícil de mover.
— A sua religião pratica o perdão, senhor Stoltzfus? — perguntou George.
— Samuel.
— Está bem. Samuel, a sua religião pratica o perdão?
— Sim. Se uma pessoa se mostrar humilde e confessar o seu pecado, será sempre bem recebida de volta à Igreja.
— Depois de admitir o que fez.
— Depois de confessar, é verdade.
— Está bem. Agora, vamos esquecer a Igreja por um minuto. Não responda como amish, mas apenas como pessoa. Não existem coisas que simplesmente não consegue perdoar?
Os lábios de Samuel cerraram-se.
— Não posso responder sem pensar, como Pessoa Simples que sou. E se eu não pudesse perdoar alguém, o problema não seria da pessoa, mas sim meu, porque não estava a ser um verdadeiro cristão.
— Neste caso particular, perdoou pessoalmente a Katie.
— Sim.
— Mas acabou de dizer que o perdão implica que a outra parte tenha confessado um pecado.
— Bem... ja.
— Por isso, se perdoou a Katie, ela deve ter feito alguma coisa de mal, apesar de o Samuel nos ter dito o contrário ainda não há cinco minutos.
Samuel ficou calado por um momento. Sustive a respiração, à espera de que George desferisse o golpe fatal. Nessa altura, o jovem amish levantou os olhos.
— Não sou um homem inteligente, senhor Callahan. Não fui à universidade como o senhor. Na verdade, não entendo o que está a tentar perguntar-me. Sim, perdoei a Katie, mas não por ter matado o bebé. A única coisa que tinha de perdoar à Katie era por me ter partido o coração. — Hesitou. — E não creio que nem mesmo vocês, ingleses, a possam prender por isso.
Owen Zeigler era aparentemente alérgico à sala de audiências. Pela sexta vez em seis minutos, espirrou, tapando o nariz com um lenço de cornucópias coloridas.
— Peço desculpa. Dermatophagoides pteronyssinus.
— Como? — disse a juíza Ledbetter.
— Ácaros. Criaturinhas horrendas. Vivem nas almofadas, colchões e, aposto, debaixo dos tapetes desta sala. — Fungou. — Alimentam-se das escamas largadas pela pele humana e os seus resíduos provocam sintomas alérgicos. Se monitorizassem a humidade um bocadinho melhor aqui, podiam reduzir esses seres irritantes.
— Presumo que se esteja a referir aos ácaros e não aos advogados — disse a juíza, secamente.
Owen olhou com ar duvidoso para as saídas de ar condicionado por cima dele.
— Provavelmente, também é melhor darem uma vista de olhos aos esporos de fungos.
— Meritíssima, eu tenho alergias — disse George. — No entanto, tenho-me sentido perfeitamente confortável nesta sala.
Owen pareceu ofendido.
— Não posso evitar o meu elevado nível de sensibilidade.
— Doutor Zeigler, acha que consegue aguentar até ao fim do seu testemunho? Ou será melhor arranjar outra sala de audiências?
— Ou talvez uma bolha de plástico — murmurou George.
Owen voltou a espirrar.
— Vou fazer o possível.
A juíza massajou as têmporas.
— Pode continuar, doutora Hathaway.
— Doutor Zeigler — disse eu —, examinou as amostras de tecidos do bebé Fisher?
— Sim. A criança era um nado-vivo prematuro do sexo masculino, sem anomalias congénitas. Havia indícios de corioamnionite aguda e infeção no bebé. A causa de morte foi asfixia perinatal.
— Nesse caso, os seus resultados não diferem dos do médico-legista?
Owen sorriu.
— Estamos de acordo em relação à causa de morte. No entanto, no que toca às causas que levaram à morte, isto é, aos acontecimentos que conduziram à asfixia, as nossas análises são acentuadamente diferentes.
— Como assim?
— O médico-legista diz que a morte resultou de homicídio. Eu acredito que a asfixia do bebé se deveu a causas naturais.
Deixei o júri assimilar aquilo por um momento.
— Causas naturais? O que quer dizer com isso?
— Com base nos meus achados, Katie Fisher não teve intervenção na morte do seu bebé: ele deixou de respirar sozinho.
— Vamos falar de alguns desses achados, doutor.
— Bem, o mais desconcertante foi a necrose hepática.
— Importa-se de desenvolver?
Owen anuiu.
— Necrose significa morte celular. A necrose pura é provocada normalmente por anomalias cardíacas congénitas, que este recém-nascido não tinha, ou por infeção. Quando o médico-legista viu a necrose, presumiu que tinha a ver com a asfixia, mas o fígado tem dupla irrigação sanguínea e é menos suscetível a isquemia do que outros órgãos.
— Isquemia?
— Hipoxia dos tecidos, isto é, falta de oxigénio nos tecidos provocada pela perda de oxigénio no sangue. De qualquer forma, é muito invulgar encontrar esse tipo de lesão no fígado. Juntando a isso a corioamnionite, comecei a interrogar-me se teria havido ali obra de algum agente infeccioso.
— Porque é que o médico-legista não terá dado por isso?
— Por duas razões — explicou Owen. — Em primeiro lugar, o fígado não mostrava sinais de «polis», ou seja, leucócitos que reagem a uma infeção bacteriana. No entanto, se a infeção estivesse no início, ainda não haveria esse tipo de resposta. O médico-legista presumiu que não havia infeção porque não havia resposta inflamatória. Mas a morte celular pode ocorrer várias horas antes de o corpo lhe responder através de inflamação, e eu acredito que o bebé morreu antes que isso acontecesse. Em segundo lugar, as suas culturas não mostravam nenhum organismo suscetível de ser uma causa provável de infeção.
— O que é que o senhor fez?
— Agarrei nos blocos de parafina que continham os tecidos e fiz coloração de Gram no fígado. Foi assim que encontrei um grande número de bactérias cocobacilares no neonato. O médico-legista tinha-as atribuído a contaminantes, difteroides, que são bactérias em forma de bastonete. Mas os cocobacilos são muitas vezes mal identificados como bactérias em forma de bastonete, como os difteroides, ou como cocos, como os estafilococos ou estreptococos. Havia uma quantidade tão grande destes organismos que comecei a pensar se seriam mais do que meros contaminantes, por exemplo um agente infeccioso. Com a ajuda de um microbiologista, identifiquei o organismo como sendo Listeria monocytogenes, um bastonete gram-positivo pleomórfico móvel.
Conseguia ver os olhos do júri a ficar vidrados, atolados em termos científicos.
— Eu assino por baixo — brinquei.
Owen sorriu.
— Vamos chamar-lhe apenas listeriose. É essa a infeção provocada por estas bactérias.
— Pode falar-nos sobre a listeriose?
— É uma causa muitas vezes ignorada de parto prematuro e morte perinatal — disse Owen. — A infeção no segundo ou terceiro trimestre leva normalmente ao nascimento da criança já morta ou a nascimento prematuro seguido de pneumonia e sépsis neonatal.
— Espere um segundo — intervim. — Está a dizer que a Katie contraiu uma infeção que pode ter comprometido a saúde do seu bebé antes mesmo de ele nascer?
— É exatamente isso que estou a dizer. Além do mais, é extremamente difícil diagnosticar a tempo de iniciar a terapia. A mãe exibe sintomas parecidos com gripe, nomeadamente febre, dores no corpo e desconforto moderado, horas antes de o parto prematuro ter lugar.
— Qual é o efeito no recém-nascido?
— Depressão perinatal, febre e dificuldades respiratórias. — Fez uma pausa. — A taxa de mortalidade dos recém-nascidos, nos casos de estudo, situa-se entre os trinta e os cinquenta por cento, mesmo com o tratamento.
— Um bebé infetado com listeria tem cinquenta por cento de hipóteses de morrer, mesmo que seja tratado?
— Correto.
— Como é que se contrai listeriose? — perguntei.
— Pelos estudos que tenho visto, ingerir alimentos contaminados é o modo de transmissão mais frequente. Especialmente leite e queijo não pasteurizados.
— Leite não pasteurizado — repeti.
— Sim. E as pessoas que estão em contacto com animais parecem correr mais risco.
Pus a mão no ombro de Katie.
— Doutor Zeigler, se lhe desse o relatório da autópsia do recém-nascido da Katie e depois lhe dissesse que a Katie vivia numa exploração leiteira, bebeu leite não pasteurizado diariamente durante a gravidez e se encontrava ativamente envolvida na ordenha das vacas duas vezes por dia, o que é que inferia?
— Com base nas suas condições de vida e na potencial exposição a Listeria monocytogenes, diria que contraiu essa infeção quando estava grávida.
— O bebé Fisher exibia sintomas de uma criança infetada com listeriose?
— Sim. Nasceu prematuramente e sofreu insuficiência respiratória. Mostrava alguns sinais de granulomatose séptica infantil, incluindo necrose hepática e pneumonia.
— Pode ter sido fatal?
— Absolutamente. Quer devido às complicações da asfixia perinatal ou simplesmente devido à infeção.
— Em sua opinião, o que causou a morte do bebé Fisher? — perguntei.
— Asfixia devido a parto prematuro provocado pela corioamnionite, que surgiu na sequência de listeriose. — Sorriu. — Eu sei que isto são uma data de palavrões, mas basicamente significa que uma cadeia de acontecimentos levou à morte por causas naturais. O bebé estava a morrer a partir do momento em que nasceu.
— Em sua opinião, Katie Fisher foi responsável pela morte do seu bebé?
— Sim, se quiser responder de forma técnica sobre isso — disse Owen. — No fim de contas, foi o corpo dela que transmitiu a Listeria monocytogenes ao feto. Mas a infeção não foi seguramente intencional. A culpa de Katie Fisher é igual à de uma mãe que transmite o vírus da sida ao feto sem o saber. — Olhou para Katie, sentada com a cabeça baixa. — Isso não é homicídio. É simplesmente uma tristeza.
Para minha alegria, George ficou claramente abalado. Na verdade, era com isso mesmo que eu estava a contar. Nenhum procurador ia desencantar a listeriose sozinho e de certeza que não era um assunto sobre o qual George tivesse pensado em fazer perguntas durante o depoimento. Levantou-se, alisando a gravata, e caminhou em direção à minha testemunha.
— Listeria — disse ele. — Trata-se de uma bactéria comum?
— Na verdade, é muito comum — respondeu Owen. — Está em todo o lado.
— Nesse caso, como é que não andamos todos a morrer como tordos?
— É uma bactéria muito comum, mas a doença é bastante invulgar. Afecta uma em cada vinte mil mulheres grávidas.
— Uma em cada vinte mil. E atacou a arguida em força, segundo o senhor disse, por causa da tendência que ela tinha para beber leite não pasteurizado.
— É essa a minha suposição, sim.
— Tem a certeza de que a arguida bebia leite não pasteurizado?
— Bem, não lho perguntei pessoalmente, mas ela vive numa exploração leiteira.
George abanou a cabeça.
— Isso não prova nada, doutor Zeigler. Eu podia viver numa exploração avícola e ser alérgico a ovos. Tem a certeza de que, sempre que a arguida pegava num jarro ao jantar, este continha leite, e não sumo de laranja, água ou Coca-Cola?
— Não, não tenho.
— Mais alguém da família sofreu os efeitos da listeriose?
— Não me pediram para examinar blocos de parafina com amostras dos seus tecidos — ripostou Owen. — Não lhe posso dizer com certeza.
— Então, deixe-me ajudá-lo. Mais ninguém sofreu esses efeitos. Tirando a arguida, ninguém exibiu sinais dessa misteriosa doença. Não é estranho que uma família que bebe o mesmo leite contaminado não tenha toda a mesma reação física às bactérias?
— Nem por isso. A gravidez é um estado de imunossupressão e a listeriose aparece em pacientes imunocomprometidos. Se alguém na família tivesse cancro, infeção por VIH ou fosse muito velho ou muito novo, tudo situações que comprometem o sistema imunitário, poderia ter havido outra resposta semelhante à que Katie Fisher aparentemente teve.
— Aparentemente teve — repetiu George. — Está a sugerir, doutor, que ela pode não ter sofrido desta doença?
— Não, sofreu sem margem para dúvidas. A placenta e o bebé estavam infetados, e a única forma pela qual podiam ter contraído a bactéria era através da mãe.
— Há alguma forma de provar, de forma conclusiva, que o bebé sofria de listeriose?
Owen ficou a pensar na pergunta.
— Sabemos que ele estava infetado com listeria por causa da imunocoloração a que procedemos.
— Pode provar que o bebé morreu de complicações devidas à listeriose?
— É a listeria que é fatal — respondeu Owen. — Provoca a infeção no fígado, pulmões, cérebro, onde quer que seja. Consoante o padrão de envolvimento, o órgão que provoca a morte pode ser diferente de paciente para paciente. No caso do bebé Fisher, foi por insuficiência respiratória.
— A morte do bebé deveu-se a insuficiência respiratória?
— Sim — respondeu Owen. — Insuficiência respiratória como a provocada por uma infeção respiratória.
— Mas a infeção respiratória não é apenas uma das causas de insuficiência respiratória?
— Sim.
— A asfixia não é também outra das causas de insuficiência respiratória?
— Sim.
— Nesse caso, não será possível que o bebé possa ter sido infetado com listeria, possa apresentar evidências da bactéria no corpo e pulmões, mas que a sua morte tenha sido provocada pelo facto de a mãe o sufocar?
Owen franziu o sobrolho.
— É possível. Não haveria forma de saber com certeza.
— Não tenho mais perguntas.
Já me tinha levantado do lugar para voltar a interrogar a testemunha antes mesmo de George ter chegado à sua mesa.
— Doutor Zeigler, se o bebé da Katie não tivesse morrido de insuficiência respiratória naquela manhã, o que lhe teria acontecido?
— Bem, presumindo que, depois do parto em casa, o recém-nascido não fosse levado rapidamente para um hospital para diagnóstico e tratamento, a infeção teria progredido. Podia ter morrido de pneumonia com dois ou três dias de vida... se não acontecesse nessa altura, teria morrido de meningite passadas umas semanas. Assim que a meningite se desenvolve, a doença é fatal, mesmo que seja diagnosticada e o tratamento tenha sido iniciado.
— Então, a menos que o bebé fosse levado para uma unidade de cuidados neonatais, o mais provável era ter morrido pouco tempo depois?
— Exatamente.
— Obrigada, doutor.
Sentei-me precisamente quando George se voltou a levantar.
— Vou voltar a interrogar, meritíssima. Doutor Zeigler, disse que a taxa de mortalidade para a listeriose é elevada, mesmo com tratamento?
— Sim, praticamente cinquenta em cada cem bebés morrem das complicações.
— E acabou de formular a hipótese de o bebé Fisher vir a morrer dentro de algumas semanas, senão mesmo na primeira manhã da sua vida?
— Sim.
George ergueu as sobrancelhas.
— Como é que o doutor Zeigler sabe que ele não era um dos outros cinquenta?
Por razões que eu não compreendia, Katie retraía-se a cada palavra do testemunho de Owen, quando devia ter ficado tão satisfeita quanto eu. Até mesmo o pequeno remoque de George no final do contrainterrogatório não conseguira desvalorizar o facto de aquela bactéria fatal ter sido encontrada no corpo do bebé. O júri, agora, tinha de ter uma dúvida razoável, que era tudo o que precisávamos para uma absolvição.
— Katie — disse eu, aproximando-me mais dela —, sentes-te bem?
— Por favor, Ellie. Podemos voltar para casa, agora?
Estava com péssimo aspeto.
— Estás doente?
— Por favor.
Olhei para o relógio. Eram três e meia; um bocadinho cedo para a ordenha, mas a juíza Ledbetter não tinha como saber disso.
— Meritíssima — disse eu, levantando-me —, se o tribunal não vir inconveniente, gostaríamos de suspender a sessão até amanhã.
A juíza olhou-me por cima dos aros dos óculos.
— Ah, sim. A ordenha. — Olhou de relance para Owen Zeigler, agora sentado na galeria. — Bem, se fosse a vocês, tratava de lavar bem as mãos quando acabasse. Doutor Callahan, tem alguma coisa contra o facto de terminarmos mais cedo por causa das tarefas na quinta?
— Não, meritíssima. As minhas galinhas vão ficar radiantes por me verem. — Encolheu os ombros. — Ah, é verdade. Não tenho galinhas.
A juíza olhou-o com ar reprovador.
— Não há necessidade de se armar em snobe cosmopolita, senhor advogado. Muito bem, então. O tribunal volta a reunir amanhã, às dez. A sessão está encerrada.
De repente, fomos rodeadas por uma muralha de gente: Leda, Coop, Jacob, Samuel e Adam Sinclair. Coop deslizou o braço à volta da minha cintura e sussurrou:
— Espero que ela tenha a tua inteligência.
Eu não respondi. Vi Jacob tentar dizer piadas que fizessem Katie sorrir; Samuel especado e tenso como a corda de um arco, com o cuidado de não deixar o seu ombro roçar no de Adam. Por seu turno, Katie tentava mostrar boa cara, mas o seu sorriso estava repuxado como um lençol demasiado esticado. Seria eu a única que tinha notado que ela estava prestes a ir-se abaixo?
— Katie — disse Adam, dando um passo em frente —, queres ir dar uma volta?
— Não, não quer — respondeu Samuel.
Surpreendido, Adam virou-se.
— Acho que ela pode falar por si mesma.
Katie pressionou as têmporas com os dedos.
— Obrigada, Adam, mas tenho coisas planeadas com a Ellie.
Isto era novidade para mim, mas bastou ver a súplica desesperada no olhar dela e dei por mim a acenar afirmativamente.
— Precisamos de rever o testemunho — disse eu, embora, se levasse a minha avante, ela não chegasse a testemunhar. — A Leda leva-nos de volta a casa. Coop, consegues levar os outros todos?
Saímos de lá da mesma maneira que tínhamos saído na sexta-feira: Leda levou o carro até às traseiras do tribunal, para me apanhar a mim e a Katie junto à zona de carga dos serviços de restauração. A seguir, demos a volta até à saída, na parte da frente do edifício, passando por todos os repórteres que continuavam à espera que Katie aparecesse.
— Querida — disse Leda alguns minutos mais tarde. — Aquele médico que chamaste a depor foi fenomenal.
Eu estava a olhar para o espelhinho na pala do lugar do passageiro, tentando tirar os círculos de rímel que tinha debaixo dos olhos. Atrás de mim, no banco traseiro, Katie virou-se para olhar pela janela.
— O Owen é um bom homem. E um patologista ainda melhor.
— Aquela história da bactéria... era verdade?
Sorri para ela.
— Ele não podia inventar. Isso era perjúrio.
— Bem, aposto que podias ganhar o caso só com o testemunho daquele médico.
Voltei a olhar para o espelho, tentando chamar a atenção de Katie:
— Ouviste isto? — perguntei, com uma voz carregada de intenção.
Cerrou os lábios; fora isso, não deu qualquer indicação de ter ouvido. Continuou com a face encostada à janela, desviando o olhar.
De repente, Katie abriu a porta do carro, fazendo Leda guinar para fora da estrada e parar com uma chiadeira de pneus.
— Valha-me Deus! — gritou. — Katie, querida, não se faz isso quando estamos em movimento!
— Desculpe. Tia Leda, não se importa se eu e a Ellie fizermos o resto do caminho a pé?
— Mas ainda faltam uns bons cinco quilómetros!
— Faz-me bem apanhar ar. E eu e a Ellie temos de conversar. — Katie sorriu fugazmente. — Nós ficamos bem.
Leda olhou para mim, para ver se eu concordava. Eu tinha os sapatos rasos pretos calçados. Não estava de saltos altos, é verdade, mas mesmo assim não era a minha primeira escolha para sapatos de caminhada. Katie já estava fora do carro.
— Oh, está bem — resmunguei, atirando a minha pasta para o banco. — Importa-se de deixar isto na caixa do correio?
Vimos os faróis desaparecerem ao fundo da estrada e depois virei-me para ela, de braços cruzados.
— O que vem a ser isto?
Katie começou a andar.
— Só queria ficar sozinha durante um bocadinho.
— Bem, eu não te vou deixar...
— Queria dizer sozinha contigo. — Inclinou-se para apanhar um feto alto e revirado que crescera na berma da estrada. — É demasiado difícil, com os outros todos a quererem um bocadinho de mim.
— É porque se importam contigo. — Vi Katie agachar-se para passar debaixo de uma vedação eletrificada e entrar num campo cheio de bezerras. — Olha, estamos a invadir propriedade alheia.
— Isto é do velho John Lapp. Ele não se importa, se tomarmos um atalho.
Fui avançando por entre as poias das vacas, vendo os animais retorcerem as caudas e pestanejarem para nós com ar sonolento enquanto atravessávamos o seu território. Katie inclinou-se para apanhar dentes-de-leão brancos e asclépias secas.
— Devias casar com o Coop — disse ela.
Eu desatei a rir.
— Era por isso que querias falar comigo a sós? Porque é que não nos preocupamos primeiro contigo e tratamos dos meus problemas depois do julgamento?
— Tens de casar. Tens mesmo de casar.
— Katie, quer me case ou não, vou ter o bebé na mesma.
Ela retraiu-se.
— Não é isso que está em causa.
— Então, o que é?
— Quando ele se for embora — disse ela baixinho —, não o vais ter de volta.
Então, era isso que a tinha deixado tão transtornada: Adam. Caminhámos em silêncio durante um bocado, agachando-nos para sair do outro lado da vedação eletrificada da pastagem.
— Tu ainda podes ter uma vida com o Adam. Os teus pais não são as mesmas pessoas que eram há seis anos, quando o Jacob se foi embora. As coisas podem ser diferentes.
— Não, não podem. — Ela hesitou, tentando explicar. — Lá porque amamos alguém, isso não significa que esteja nos planos do Senhor ficarmos juntos. — De repente, parámos de andar e eu percebi duas coisas ao mesmo tempo: que Katie me tinha conduzido até ao pequeno cemitério amish; e que as suas emoções à flor da pele não tinham nada a ver com Adam. O seu rosto estava virado para a pequena lápide lascada do filho, as mãos agarradas às estacas da cerca. — Estão-me sempre a tirar as pessoas que amo — sussurrou.
Começou a chorar em silêncio, abraçada ao tronco. A seguir, inclinou-se para a frente, carpindo as mágoas como nunca a vira: nem quando tinha sido acusada de homicídio, nem no enterro do bebé, nem quando fora banida.
— Lamento — soluçou. — Lamento imenso.
— Não lamentes, Katie. — Toquei-lhe gentilmente no ombro e ela caiu nos meus braços.
Ficámos na viela, balouçando para trás e para diante naquele abraço, ao mesmo tempo que eu lhe afagava as costas para a reconfortar. As flores silvestres que Katie tinha colhido estavam espalhadas à volta dos nossos pés, como uma oferenda.
— Lamento imenso — repetiu ela, engasgando-se com as palavras. — Eu não queria fazer aquilo.
O sangue gelou-me nas veias e as mãos imobilizaram-se nas costas dela.
— Não querias fazer o quê?
Katie levantou o rosto.
— Matá-lo.
17
Quando Katie subiu pelo caminho da entrada a correr, com uma pontada de lado, os homens estavam a fazer a ordenha. Conseguia ouvir os sons a vir do celeiro e sentiu-se atraída por eles. Pela fresta da porta larga, conseguia ver Levi a empurrar um carrinho de mão; Samuel a inclinar-se para prender a bomba aos úberes de uma das vacas. Um som de sucção, um puxão e o líquido branco e ralo começou a passar pela mangueira que ia ter à vasilha do leite.
Katie pôs a mão sobre a boca e correu para o lado do celeiro, onde vomitou até já não ter nada no estômago.
Conseguia ouvir Ellie a chamá-la enquanto subia o caminho da entrada. Ellie não era capaz de correr tão depressa como ela, e Katie aproveitara-se descaradamente dessa vantagem para fugir.
Esgueirando-se pelo lado do celeiro, Katie dirigiu-se aos campos irregulares já ceifados. Agora, não serviam de muito em termos de camuflagem, mas aumentariam a distância entre ela e Ellie. Levantando as saias, correu até ao lago e escondeu-se atrás do grande carvalho.
Katie esticou a mão, examinando os dedos e o pulso. Onde estaria agora a tal bactéria? Ainda haveria algum resíduo no seu corpo ou tê-la-ia transmitido toda ao seu bebé?
Fechou os olhos para não ver a imagem do filho recém-nascido, deitado entre as suas pernas e a chorar a plenos pulmões. Mesmo nessa altura, percebera que alguma coisa estava mal. Não tinha querido dizê-lo em voz alta, mas vira o peito e a barriga do bebé a trabalhar com o esforço de inspirar.
Mas não tinha podido fazer nada em relação a isso, tal como não conseguira impedir Hannah de se afogar, Jacob de ser mandado para longe ou Adam de se ir embora.
Katie olhou para o céu, gravado com grande pormenor à volta dos ramos nus do carvalho. E compreendeu que essas tragédias iam continuar a acontecer até ela confessar.
Ellie já tinha defendido clientes culpados, até mesmo uns quantos que lhe tinham mentido sem pudor, mas não conseguia lembrar-se de alguma vez se ter sentido tão traída. Percorreu o caminho da entrada, furiosa com Katie por a ter enganado, com Leda por tê-las deixado a cinco quilómetros de casa, com a sua própria má forma física que a deixava ofegante após uma curta corrida.
Isto não é pessoal, recordou a si mesma. Isto é um problema estritamente profissional.
Encontrou Katie junto ao lago.
— Queres explicar-me o que quiseste dizer lá atrás? — perguntou Ellie, dobrando-se e respirando com dificuldade.
— Tu ouviste-me — disse Katie, com ar taciturno.
— Diz-me porque mataste o bebé, Katie.
Ela abanou a cabeça.
— Não quero arranjar mais desculpas. Só quero dizer ao júri o que te disse, para que isto acabe.
— Dizer ao júri? — retorquiu Ellie. — Só por cima do meu cadáver!
— Não — disse Katie, empalidecendo. — Tens de me deixar fazê-lo.
— Nem penses que te vou deixar subir ao banco das testemunhas para dizer ao tribunal que mataste o teu bebé!
— Antes, estavas disposta a deixar-me testemunhar!
— Por estranho que pareça, nessa altura a tua história era diferente. Disseste que querias dizer a verdade, contar a toda a gente que não tinhas cometido homicídio. Uma coisa é chamar-te como testemunha se não fores contradizer tudo aquilo em que a minha estratégia se baseou; outra bem diferente é chamar-te para te deixar cometer suicídio jurídico!
— Ellie — disse Katie, desesperada. — Tenho de confessar.
— Isto não é a tua Igreja! — gritou Ellie. — Quantas vezes precisas de ouvir isso? Aqui, não estamos a falar de seis semanas de suspensão. Estamos a falar de anos na prisão, até talvez de uma vida inteira. — Reprimiu a sua fúria e respirou fundo. — Uma coisa era deixar o júri ver-te e escutar a tua dor. Ouvir-te dizer que eras inocente. Mas o que acabaste de me contar... — A voz morreu-lhe nos lábios e desviou o olhar. — Deixar-te prestar depoimento seria profissionalmente irresponsável.
— Eles podem na mesma ver-me e escutar a minha dor.
— Sim, e vai tudo pelo cano abaixo quando te perguntar se mataste o bebé.
— Então, não me faças essa pergunta.
— Se não fizer, será o George a fazê-la. E, quando estiveres sentada no banco das testemunhas, não podes mentir. — Ellie suspirou. — Não podes mentir e também não podes dizer simplesmente que mataste aquele bebé, pois estarás a assinar a tua condenação.
Katie pregou os olhos no chão.
— O Jacob disse-me que, se eu quisesse falar em tribunal, tu não me podias impedir.
— Posso conseguir a absolvição sem o teu testemunho. Por favor, Katie! Não faças isto a ti própria!
Katie virou-se para ela com uma calma absoluta.
— Vou testemunhar amanhã. Podes não gostar, mas é o que eu quero.
— Quem é que tu queres que te perdoe? — explodiu Ellie. — O júri? A juíza? Porque eles não vão perdoar-te. Vão apenas ver-te como um monstro.
— Como tu, não é verdade?
Ellie abanou a cabeça, incapaz de responder.
— O que foi? — pressionou Katie. — Diz-me o que estás a pensar.
— Que uma coisa é mentir à advogada, outra bem diferente é mentir à amiga. — Ellie levantou-se e sacudiu o pó da saia. — Vou redigir um termo de isenção de responsabilidade para tu assinares, dizendo que te aconselhei a não seguir esta estratégia — disse ela friamente, e foi-se embora.
— Não acredito! — disse Coop, juntando os cantos da colcha que estava a dobrar com Ellie. Tinha um padrão de alianças de casamento, e a ironia não lhe tinha passado despercebida. Várias outras colchas recém-lavadas agitavam-se nas cordas da roupa esticadas entre árvores, com os seus enormes padrões caleidoscópicos de cor contra o céu cada vez mais escuro.
Ellie caminhou em direção a ele, entregando-lhe as extremidades opostas da colcha.
— Acredita.
— A Katie não é capaz de cometer homicídio.
Ela tirou-lhe a colcha dos braços e dobrou-a energicamente ao meio, formando um quadrado.
— Aparentemente, estás enganado.
— Eu conheço-a, Ellie! É minha cliente.
— Sim, e minha colega de quarto. Vá-se lá perceber.
Coop agarrou nas molas que prendiam a segunda colcha.
— Como é que ela o fez?
— Não perguntei.
Isto surpreendeu Coop.
— Não?
Os dedos de Ellie deslizaram sobre o seu abdómen.
— Não consegui — disse, e depois afastou-se bruscamente.
Naquele momento, Coop queria apenas tomá-la nos braços.
— A única explicação é ela estar a mentir.
— Não ouviste o que eu disse no tribunal? — Os lábios de Ellie contorceram-se. — Os Amish não mentem.
Coop ignorou-a.
— Ela está a mentir para ser castigada. Por qualquer razão, é disso que precisa em termos psicológicos.
— Claro, se considerares que a prisão perpétua pode ser terapêutica. — Ellie puxou a ponta oposta do tecido.
— Ela não está a mentir, Coop. Provavelmente, vi tantos mentirosos como tu no meu ramo profissional. A Katie olhou-me nos olhos e disse-me que tinha matado o bebé. Estava a falar a sério. — Com movimentos abruptos, arrancou a colcha a Coop e voltou a dobrá-la, depois bateu com ela em cima da primeira. — Katie Fisher vai afundar-se e vai levar-nos a todos com ela.
— Se assinou o termo de isenção de responsabilidade, ninguém te pode culpar por isso.
— Oh, não, claro que não! É só o meu nome e a minha responsabilidade que vão parar ao caixote do lixo, juntamente com o caso dela.
— Seja qual for a lógica dela, duvido muito que a Katie esteja a fazer isto agora para te magoar.
— Não importa o porquê, Coop. Ela vai subir ao banco das testemunhas e fazer uma confissão pública, e o júri vai-se estar nas tintas para a lógica subjacente. Vão condená-la mais depressa do que ela é capaz de dizer «fui eu».
— Estás zangada porque ela está a dar cabo do teu caso ou porque não estavas à espera disto?
— Não estou zangada. Se ela quer desperdiçar a vida, não tenho nada a ver com isso. — Ellie agarrou na colcha que Coop estava a segurar, mas atrapalhou-se e ela aterrou num monte de terra. — Bolas! Sabes quanto tempo é que leva a lavar uma coisa destas? Sabes? — Deixou-se cair no chão, a colcha como uma nuvem atrás dela, e escondeu o rosto entre as mãos.
Coop perguntou-se como é que uma mulher tão esguia e delicada como um salgueiro conseguia aguentar o peso da salvação de outra pessoa nos seus ombros. Sentou-se ao lado de Ellie e puxou-a para si, deixando-a enterrar os dedos no tecido da sua camisa.
— Eu podia tê-la salvado — sussurrou ela.
— Eu sei, querida. Mas talvez ela quisesse salvar-se sozinha.
— Que raio de maneira de o conseguir!
— Estás novamente a pensar como advogada — disse Coop, batendo-lhe com o dedo na têmpora. — Se tens medo que toda a gente te abandone, o que fazes?
— Obrigo-os a ficar.
— E se não conseguires fazer isso ou não souberes como fazê-lo?
Ellie encolheu os ombros.
— Não sei.
— Sabes, sim. Na verdade, já o fizeste. Vais embora primeiro — disse Coop —, para não teres de os ver afastar-se.
Quando Katie era pequena, adorava quando chovia, quando podia escapar-se para o fundo do caminho da entrada, onde as poças, com a sua fina camada de óleo, se transformavam em arco-íris. O céu ficava como agora, de um roxo marmoreado de laranja, vermelho e prateado, como o vestido de uma rainha num conto de fadas. Instalava-se sobre todas aquelas quintas de Gente Simples, com cada pedaço de terra encimado por algo luxuriante e rico que parecia prolongar-se indefinidamente.
Ficou no alpendre, na penumbra, à espera. Quando ouvia o motor de um carro vindo de oeste, sentia o coração na garganta e todos os músculos do seu corpo se esticavam para a frente para ver se o veículo virava no caminho da entrada. Mas segundos depois, por entre as árvores, via os faróis a passar na estrada sem se deterem.
— Ele não vem.
Katie virou-se ao som da voz, seguida dos passos pesados de botas nos degraus do alpendre.
— Quem?
Samuel engoliu em seco.
— Ach, Katie. Também me vais obrigar a dizer o nome dele?
Katie esfregou os braços com as mãos e virou-se novamente para a estrada.
— Ele foi para Filadélfia. Volta amanhã, para o julgamento.
— Vieste cá dizer-me isso?
— Não — respondeu Samuel. — Vim cá buscar-te para dar uma volta.
Ela baixou os olhos.
— Não me parece que vá ser uma boa companhia, neste momento.
Ele encolheu os ombros quando Katie não deu uma resposta concreta.
— Bem, eu vou, de qualquer forma — disse Samuel, e saiu do alpendre.
— Espera! — gritou Katie, e apressou-se a acompanhá-lo.
Caminharam ao som de uma sinfonia de vento que soprava por entre as árvores e os pássaros pousados nos seus ramos, de corujas que tentavam atrair ratos e do orvalho que deixava as teias de aranha cobertas de prata. As grandes passadas de Samuel faziam com que Katie fosse quase a correr para o acompanhar.
— Onde vamos? — perguntou ela passados uns minutos, quando tinham chegado ao pequeno pomar de macieiras.
Ele parou abruptamente e olhou à sua volta.
— Não faço ideia.
Isso fez Katie sorrir, e Samuel também sorriu, e depois desataram os dois a rir. Samuel sentou-se, apoiando os cotovelos nos joelhos, e Katie sentou-se ao lado dele, com as saias a roçagar sobre as folhas caídas. As maçãs, vermelhas como rubis, quase tocavam na kapp de Katie e no chapéu de abas largas de Samuel. Ele pensou de repente na forma como Katie descascara uma maçã de uma só vez em tempos, durante um ajuntamento para construir um celeiro, e atirara a casca por cima do ombro, como rezava a lenda, para ver com quem se iria casar; e como todos os seus amigos e família se tinham rido ao vê-la cair no chão na forma da letra S.
Samuel sentiu subitamente o peso do silêncio sobre os ombros.
— Tens aqui uma boa colheita — disse, tirando o chapéu. — Muita compota de maçã para conservar.
— Vai dar muito que fazer à minha mãe, isso é certo.
— E tu? — gracejou Samuel. — Vais estar connosco no celeiro, suponho?
— Não sei onde vou estar. — Katie olhou para ele e pigarreou. — Samuel, tenho de te dizer uma coisa...
Ele pôs-lhe os dedos nos lábios, naqueles lábios tão suaves, e permitiu-se fingir por um instante que aquilo podia ter sido um beijo.
— Nada de falar.
Katie acenou afirmativamente e cravou os olhos no colo.
— Estamos quase em novembro. A Mary Esch tem muito aipo cultivado — disse Samuel.
O coração de Katie caiu-lhe aos pés. Falar de novembro, o mês dos casamentos, e de aipo, que era usado na maioria dos pratos do jantar de casamento, era demasiada coisa para suportar. Ela sabia do beijo entre Mary e Samuel; mas ninguém lhe dissera mais nada no tempo que passara desde então. No fim de contas, isso era lá com Samuel, e ele tinha todo o direito de prosseguir com a sua vida e de se casar no mês seguinte com Mary Esch.
— Ela vai-se casar com o Owen King, tão certo como o sol nascer — continuou Samuel.
Katie pestanejou.
— Não se vai casar contigo?
— Não creio que a rapariga com quem me quero casar vá gostar dessa ideia. — Samuel corou e baixou os olhos. — Não gostas, pois não?
Por um momento, Katie imaginou que a sua vida era como a de qualquer outra jovem mulher amish, que o seu mundo não tinha descarrilado de tal forma que esta doce proposta era impensável.
— Samuel — disse ela em voz trémula —, não te posso prometer nada, agora.
Ele abanou a cabeça, mas não levantou os olhos.
— Se não for neste novembro, será no próximo. Ou no novembro a seguir.
— Se eu me for embora, será para sempre.
— Nunca se sabe. Olha para mim, por exemplo. — Samuel passou o dedo pela aba do chapéu, num círculo preto perfeito. — Ali estava eu, tão certo de que ia deixar-te de vez... e acontece que durante todo esse tempo estava apenas a voltar ao lugar de partida. — Apertou-lhe a mão. — Vais pensar nisso?
— Sim — disse Katie. — Vou.
Já passava da meia-noite quando Ellie subiu silenciosamente a escada até ao quarto. Katie estava a dormir de lado, com um raio de luar a serrá-la em duas, como a assistente de um mágico. Ellie puxou a colcha para os seus braços e depois avançou para a porta em bicos de pés.
— O que estás a fazer?
Virou-se para olhar para Katie.
— Vou dormir no sofá.
Katie sentou-se na cama, deixando as mantas descobrirem-lhe a camisa de noite branca e simples.
— Não precisas de fazer isso!
— Eu sei.
— É mau para o bebé.
Ellie sentiu um músculo retesar-se ao longo da garganta.
— Não me digas o que é mau para o bebé! — disse. — Não tens esse direito. — Deu meia-volta e desceu a escada, abraçada à roupa de cama como se fosse um escudo blindado, como se não fosse demasiado tarde para salvaguardar o seu coração.
Ellie estava no gabinete da juíza, a inspecionar as brochuras jurídicas e a madeira trabalhada, o tapete de pelo alto que cobria o chão... tudo menos a olhar diretamente para a juíza Ledbetter, ocupada a analisar o termo de isenção de responsabilidade que ela acabara de lhe dar.
— Doutora Hathaway — disse ela, passado um momento —, o que se passa?
— A minha cliente insiste em testemunhar, embora eu a tenha aconselhado a não o fazer.
A juíza ficou a olhar para Ellie, como se fosse capaz de discernir no seu rosto impassível toda a perturbação da noite anterior.
— Há alguma razão em particular para a ter aconselhado a não o fazer?
— Penso que isso acabará por se tornar evidente — respondeu Ellie.
George, com um ar encantado, endireitou-se um pouco mais.
— Pronto, está bem — suspirou a juíza. — Vamos lá acabar com isto.
Não era possível crescer amish sem saber que os olhos tinham peso, que os olhares fixos tinham substância, que às vezes podiam ser como um respirar junto ao nosso ombro e outras vezes como uma lança a atravessar-nos a coluna; mas, normalmente, em Lancaster, só sentia olhares individuais: um turista que esticava o pescoço para a ver melhor, uma criança espantada ao vê-la na loja de conveniência. Sentada no banco das testemunhas, Katie sentiu-se paralisada pelos olhos que a fitavam. Uma centena de pessoas boquiabertas de espanto, e porque não? Não era todos os dias que uma Pessoa Simples confessava um homicídio.
Limpou as palmas transpiradas ao avental e esperou que Ellie começasse a fazer as suas perguntas. Esperava que, quando chegassem àquele momento, Ellie lhe facilitasse a vida. Assim, talvez Katie pudesse fazer de conta que só ali estavam as duas, como se estivessem a conversar junto ao lago. Mas Ellie mal falara com ela toda a manhã. Tinha estado enjoada na casa de banho, tomara um chá de camomila e dissera a Katie que estava na altura de ir, sem sequer a olhar nos olhos. Não, Ellie não lhe ia dar tréguas.
Ellie abotoou o casaco do fato e levantou-se.
— Katie — disse ela com gentileza —, sabe porque está aqui hoje?
Katie pestanejou, surpreendida. A voz e a pergunta tinham sido ternas, cheias de simpatia. Sentiu uma vaga de alívio e começou a sorrir, mas depois olhou Ellie nos olhos. Continuavam tão duros e furiosos quanto na noite anterior. Aquela compaixão fazia parte de uma representação. Mesmo agora, Ellie estava apenas a tentar que ela fosse absolvida.
Katie respirou fundo.
— As pessoas pensam que eu matei o meu bebé.
— Como é que isso a faz sentir?
Viu uma vez mais o corpinho minúsculo deitado entre as suas pernas, pegajoso com o seu próprio sangue.
— Mal — sussurrou.
— Sabe que as provas contra si são fortes.
Katie acenou afirmativamente, olhando de relance para o júri.
— Tenho tentado acompanhar o que foi dito. Não sei se compreendi tudo.
— O que é que não compreende?
— A forma como vocês, ingleses, fazem as coisas é muito diferente daquela a que estou acostumada.
— Como assim?
Ela pensou um minuto sobre isto. A confissão era idêntica, caso contrário não estaria ali sentada, agora. Mas os ingleses julgavam uma pessoa para terem justificação para a expulsar. Os Amish julgavam uma pessoa para terem justificação para a receberem de volta.
— De onde venho, se alguém é acusado de pecar, não é para os outros poderem atribuir-lhe a culpa, mas sim para a pessoa poder reparar a situação e seguir em frente.
— Pecou quando concebeu o seu filho?
Instintivamente, Katie adotou uma postura humilde.
— Sim.
— Porquê?
— Não era casada.
— Amava o homem?
Por debaixo das pestanas, Katie perscrutou a galeria para encontrar Adam. Estava sentado na borda da cadeira, de cabeça baixa, como se isto também fosse a sua confissão.
— Muito — murmurou Katie.
— Foi acusada desse pecado pela sua comunidade?
— Sim. O diácono e o bispo pediram-me que fizesse uma confissão de joelhos, na igreja.
— Depois de ter confessado a conceção de uma criança fora do casamento, o que aconteceu?
— Fui objeto de bann durante um tempo, para pensar no que tinha feito. Passadas seis semanas, regressei e prometi trabalhar com a igreja. — Sorriu. — Eles aceitaram-me de volta.
— Katie, o diácono e o bispo pediram-lhe que confessasse o homicídio do seu bebé?
— Não.
— Porquê?
Katie entrelaçou as mãos no colo.
— Não me fizeram essa acusação.
— Então, as pessoas da sua própria comunidade não acreditaram que fosse culpada do pecado de homicídio? — Katie encolheu os ombros. — Preciso de uma resposta verbal — disse Ellie.
— Não, não acreditaram.
Ellie voltou à mesa da defesa, com os saltos a bater no chão de parquet.
— Lembra-se do que aconteceu na noite em que deu à luz, Katie?
— De fragmentos dispersos. Vão voltando aos poucos de cada vez.
— Porquê?
— O doutor Cooper diz que é porque a minha mente não consegue absorver tanta coisa tão depressa. — Franziu o lábio inferior. — Foi como se tivesse desligado depois de aquilo acontecer.
— Aquilo o quê?
— Depois de o bebé nascer.
Ellie acenou com a cabeça.
— Já ouvimos a história pela boca de uma série de pessoas, mas creio que o júri gostaria de ouvi-la contar-nos o que aconteceu nessa noite. Sabia que estava grávida?
De repente, Katie sentiu o pensamento recuar até sentir sob as palmas das suas mãos o inchaço pequeno e duro do bebé dentro de si.
— Não queria acreditar que estava — disse, baixinho. — Só acreditei quando tive de mudar o sítio dos alfinetes no avental por estar a ficar mais gorda.
— Contou a alguém?
— Não. Tirei isso da cabeça e concentrei-me noutras coisas.
— Porquê?
— Estava assustada. Não queria que os meus pais soubessem o que tinha acontecido. — Respirou fundo. — Rezei para estar enganada.
— Lembra-se do nascimento do bebé?
Katie pôs as mãos à volta da barriga, revivendo as dores excruciantes que vinham das costas para a barriga.
— De algumas coisas — replicou. — Da dor e da forma como o feno me picava a pele, nas costas... mas há blocos de tempo em que não me consigo lembrar de nada.
— Como é que se sentiu na altura?
— Assustada — sussurrou. — Muito assustada.
— Lembra-se do bebé? — perguntou Ellie.
Esta era a parte de que ela se lembrava tão bem como se tivesse ficado gravada na parte de trás das suas pálpebras. Aquele corpinho doce, pouco maior do que a sua mão, a espernear e a esticar os braços para ela.
— Era lindo. Agarrei nele e dei-lhe colo. Esfreguei-lhe as costas. Tinha uns ossinhos minúsculos. Lembro-me do seu coração, a bater contra a minha mão.
— O que planeava fazer com ele?
— Não sei. Suponho que o teria levado à minha mãe; teria encontrado alguma coisa para o embrulhar e mantê-lo quente... mas adormeci antes de poder fazê-lo.
— Perdeu os sentidos.
— Ja.
— Ainda estava a segurar o bebé?
— Oh, sim! — disse Katie.
— O que aconteceu depois disso?
— Acordei. O bebé tinha desaparecido.
Ellie ergueu as sobrancelhas.
— Desaparecido? O que pensou?
Katie torceu as mãos.
— Que aquilo tinha sido um sonho — confessou.
— Havia indícios do contrário?
— Havia sangue na minha camisa de dormir e um bocadinho no feno.
— O que fez?
— Fui até ao lago e lavei-a — disse Katie. — Depois, voltei para o meu quarto.
— Porque é que não acordou ninguém, não foi ao médico nem tentou encontrar o bebé?
Os olhos dela brilharam com lágrimas.
— Não sei. Devia tê-lo feito. Agora, sei disso.
— Quando acordou na manhã seguinte, o que aconteceu?
Katie limpou os olhos com a mão.
— Foi como se nada tivesse mudado — disse, com voz destroçada. — Se as pessoas me tivessem parecido diferentes, se eu me tivesse sentido mal, talvez eu não tivesse... — A voz morreu-lhe nos lábios e desviou o olhar. — Pensei que talvez fosse tudo produto da minha imaginação e não me tivesse acontecido nada. Eu queria acreditar nisso, porque nesse caso não tinha de me interrogar sobre onde estaria o bebé.
— Sabia onde estava o bebé?
— Não.
— Não se lembra de o ter levado para algum lado?
— Não.
— Não se lembra de acordar com o bebé nos braços, em nenhuma altura?
— Não. Depois de acordar, ele já tinha desaparecido.
Ellie acenou com a cabeça.
— Planeava livrar-se do bebé?
— Não.
— Queria livrar-se do bebé?
— Não depois de o ter visto — disse Katie, baixinho.
Ellie estava agora a uns meros trinta centímetros. Katie esperou que ela lhe fizesse a pergunta, esperou para pronunciar as palavras que tinha ido ali dizer. Mas abanando a cabeça de forma quase impercetível, Ellie virou-se para o júri.
— Obrigada — disse ela. — Não tenho mais perguntas.
Para dizer a verdade, George ficou desconcertado. Estava à espera de maiores rasgos de brilhantismo de Ellie Hathaway no interrogatório direto à sua cliente, mas ela não tinha feito nada fora do comum. E, mais importante ainda, a testemunha também não. Katie Fisher tinha dito aquilo que qualquer pessoa esperaria que dissesse. Nada disso se coadunava com o termo de isenção de responsabilidade que Ellie apresentara no gabinete da juíza, nessa manhã.
Ele sorriu para Katie.
— Bom dia, menina Fisher.
— Pode tratar-me por Katie.
— Seja, Katie. Vamos pegar no ponto onde ficou. Adormeceu a segurar o bebé e, quando acordou, ele tinha desaparecido. Foi a única testemunha ocular, nessa noite. Por isso, diga-nos: o que aconteceu àquele bebé?
Ela fechou os olhos com força, fazendo sair uma lágrima pelo canto.
— Matei-o.
George ficou petrificado. Na galeria, instalou-se a confusão e a juíza bateu com o martelo para que se fizesse silêncio. Virando-se para Ellie, George levantou as palmas das mãos, numa interrogação muda. Ela estava sentada à mesa da defesa, com um ar quase enfadado, e ele compreendeu que aquilo não tinha constituído surpresa para ela. Olhando-o nos olhos, Ellie encolheu os ombros.
— Matou o seu bebé?
— Sim — murmurou ela.
Ele olhou para a rapariga no banco das testemunhas, com um ar perfeitamente derrotado enquanto se fechava na sua concha de infelicidade.
— Como é que o fez?
Katie abanou a cabeça.
— Tem de responder à pergunta.
Ela firmou as mãos na barriga.
— Eu só quero compor as coisas.
— Espere aí. Acabou de confessar ter assassinado o bebé. Agora, estou a pedir-lhe que nos conte como o matou.
— Lamento — disse ela, em voz embargada. — Não posso.
George virou-se para a juíza Ledbetter.
— Podemos aproximar-nos?
A juíza anuiu, e Ellie foi até lá ao lado dele.
— Que raio se passa aqui? — exigiu ele saber.
— Doutora Hathaway?
Ellie ergueu uma sobrancelha.
— Alguma vez ouviste falar na Quinta Emenda, George?
— É um bocadinho tarde para isso — disse o procurador. — Ela já se incriminou.
— Não necessariamente — disse Ellie com frieza, embora tanto ela como George se apercebessem de que estava a mentir com quantos dentes tinha.
— Doutor Callahan, sabe muito bem que a testemunha pode invocar a Quinta Emenda sempre que quiser. — A juíza virou-se para Ellie. — No entanto, precisa de ser ela a invocá-la.
Ellie olhou para Katie.
— Ela não sabe como isso se chama, meritíssima! Só sabe que não quer dizer mais nada sobre isto.
— Meritíssima, a doutora Hathaway não pode falar pela testemunha. Se não ouvir a arguida invocar oficialmente a Quinta Emenda, não caio nessa.
Ellie revirou os olhos.
— Dão-me um momento com a minha cliente? — Foi até ao banco das testemunhas. Katie tremia como varas verdes e Ellie apercebeu-se, envergonhada, de que isso se devia em parte ao facto de estar à espera de uma longa diatribe. — Katie? — disse calmamente. — Se não queres falar sobre o crime, a única coisa que tens de fazer é dizer em inglês «Invoco a Quinta Emenda».
— O que significa isso?
— Faz parte da Constituição. Significa que tens o direito de ficar calada, mesmo que estejas a testemunhar, para que as tuas palavras não possam ser usadas contra ti. Compreendes?
Katie acenou afirmativamente e Ellie regressou à mesa da defesa para se sentar.
— Por favor, conte-nos como matou o seu bebé — repetiu George.
Katie olhou rapidamente para Ellie.
— Invoco a Quinta Emenda — disse ela, titubeante.
— Que surpresa! — murmurou George. — Então, está bem. Vamos voltar ao princípio. Mentiu ao seu pai para poder ir ver o seu irmão à universidade. Fez isso desde os doze anos?
— Sim.
— E agora tem dezoito.
— Sim, tenho.
— Nesses seis anos, o seu pai alguma vez descobriu que andava a visitar o seu irmão?
— Não.
— Teria continuado simplesmente a mentir, não é verdade?
— Eu não menti — disse Katie. — Ele nunca perguntou.
— Em seis anos, ele nunca perguntou como é que tinha corrido o fim de semana com a sua tia?
— O meu pai não fala da minha tia.
— Que sorte! Nesse caso, mentiu ao seu irmão sobre ter dormido com o companheiro de casa dele?
— Ele...
— Não, deixe-me adivinhar. Ele nunca perguntou, certo?
Confusa, Katie abanou a cabeça.
— Não, não perguntou.
— Nunca disse a Adam Sinclair que ele era pai de uma criança?
— Ele tinha ido para o estrangeiro.
— Nunca contou à sua mãe nem a ninguém, já agora, sobre a gravidez?
— Não.
— E quando a polícia lá foi na manhã a seguir a ter dado à luz, também lhes mentiu.
— Não sabia ao certo se aquilo tinha realmente acontecido — disse Katie, num fio de voz.
— Oh, por favor! Tem dezoito anos! Tinha tido relações sexuais. Sabia que estava grávida, mesmo que não quisesse admiti-lo. Tinha visto inúmeras mulheres da sua comunidade a ter filhos. Está a tentar dizer-me que não sabia o que lhe tinha acontecido naquela noite?
Katie estava outra vez a chorar baixinho.
— Não sou capaz de explicar como estava a minha cabeça, a não ser dizer que não estava a funcionar como era normal. Não sabia o que era real e o que não era. Não queria acreditar que podia não ter sido um sonho. — Torceu a ponta do avental nos punhos fechados. — Sei que fiz uma coisa errada. E sei que está na altura de assumir a responsabilidade pelo que aconteceu.
George chegou-se tão perto dela que as suas palavras lhe caíram no colo.
— Nesse caso, conte-nos como o fez.
— Não posso falar sobre isso.
— Ah, é verdade! Da mesma maneira como imaginou que, se não falasse sobre a gravidez, esta iria desaparecer. E da mesma maneira como não contou às pessoas que assassinou o seu bebé, presumindo que elas nunca iriam descobrir. Mas não é assim que as coisas funcionam, pois não, Katie? Mesmo que não nos conte como matou o seu bebé, ele continua morto, não é verdade?
— Protesto! — gritou Ellie. — Ele está a intimidar a testemunha.
Katie encolheu-se na cadeira, soluçando abertamente. Os olhos de George ainda brilharam uma vez ao olhar para ela, mas depois virou-se com desdém.
— Retiro o que disse. Não tenho mais perguntas.
A juíza Ledbetter suspirou.
— Vamos fazer uma pausa de quinze minutos. Doutora Hathaway, porque não leva a sua cliente a um lado qualquer para se recompor?
— Claro — disse Ellie, perguntando-se como havia de ajudar Katie a recompor-se quando ela própria estava a ir-se abaixo.
A sala de reuniões era escura e sombria, com lâmpadas fluorescentes que crepitavam e sibilavam sem emitir uma fonte de luz viável. Ellie sentou-se a uma mesa de madeira horrível, passando com o dedo numa mancha de café que provavelmente tinha a mesma idade que Katie. Quanto à sua cliente, estava em pé junto ao quadro preto, na parte da frente da sala, a chorar.
— Gostava de sentir alguma compaixão por ti, Katie, mas estavas mesmo a pedir isto! — Ellie afastou-se da mesa e virou-lhe as costas. Se não olhasse para Katie, talvez ela deixasse de soluçar tão alto. Ou de forma tão perturbadora.
— Eu queria acabar com isto — balbuciou Katie, com o rosto inchado e vermelho. — Mas não foi como eu esperava.
— Ah, não? De que é que estavas à espera? De algum filme da semana, em que tu te vais abaixo e o júri se vai abaixo juntamente contigo?
— Eu só queria ser perdoada.
— Bem, não me parece que isso vá acontecer neste momento. Acabaste de dizer adeus à tua liberdade, minha querida. Esquece o perdão da tua Igreja. Esquece ver os teus pais ou teres uma relação com o Adam.
— O Samuel pediu-me que casasse com ele — sussurrou Katie, extremamente infeliz.
Ellie escarneceu:
— Talvez seja melhor dizeres-lhe que as visitas conjugais são difíceis de conseguir na penitenciária estadual.
— Eu não quero visitas conjugais. Não quero ter outro bebé. E se eu... — Katie calou-se e virou a cara.
— E se tu o quê? — ripostou Ellie. — O sufocasses num momento de fraqueza?
— Não! — Os olhos de Katie voltaram a encher-se de lágrimas. — É aquela doença, aquela bactéria. E se ainda estiver em mim? E se a transmitir a todos os meus bebés?
Por cima da cabeça de Ellie, a lâmpada zumbiu e acendeu. Ela olhou lentamente para Katie, vendo o seu remorso óbvio e a forma como os seus dedos se fechavam agora sobre o tecido grosso do corpete, como se aquela doença fosse algo que pudesse ser-lhe arrancada do corpo. Pensou em como Katie lhe dissera uma vez que se confessava tudo aquilo de que o diácono os acusasse. Pensou em como uma rapariga habituada a ouvir outras pessoas acusá-la de pecar era capaz de ouvir o testemunho do psicólogo e assumir a culpa de algo que, na verdade, não passara de um acidente.
Olhou para Katie e viu a forma como a sua mente operava.
Ellie atravessou a sala e agarrou-a pelos ombros.
— Diz-me agora! — ordenou. — Diz-me como mataste o teu bebé.
— Meritíssima — começou Ellie —, gostava de voltar a interrogar a testemunha.
Conseguiu sentir George a olhar para ela e a perguntar-se se teria perdido o juízo, e com boas razões para isso: com uma confissão gravada pelo tribunal, não havia muito que Ellie pudesse fazer para reparar os estragos feitos. Ela viu Katie subir ao banco das testemunhas e mexer-se desconfortavelmente no lugar, nervosa e pálida.
— Quando o procurador lhe perguntou se tinha matado o bebé, disse que sim.
— Exatamente — respondeu Katie.
— Quando ele lhe pediu que explicasse o método do homicídio, não quis falar.
— Não.
— Por isso, pergunto-lhe agora: sufocou aquele bebé?
— Não — murmurou Katie, com a voz a abrir sobre a sílaba.
— Acabou intencionalmente com a vida do bebé?
— Não. Nunca o faria!
— Como matou o seu bebé, Katie?
Ela respirou fundo.
— Ouviram o médico. Ele disse que eu o matei por ter aquela infeção e lha ter transmitido. Se não fosse eu a mãe do bebé, ele teria sobrevivido.
— Assassinou o seu bebé transmitindo-lhe a listeria que tinha no corpo?
— Sim.
— Era isso que queria dizer quando disse ao doutor Callahan que tinha matado o bebé?
— Sim.
— Antes disso, tinha-nos dito que, na sua Igreja, se pecarem, têm de confessar o pecado em frente dos outros membros.
— Ja.
— Como é isso?
Katie engoliu em seco.
— Bem, é aterrador, é o que é. Primeiro, assistimos a todo o serviço religioso dominical. A seguir ao sermão, há um cântico e todos aqueles que ainda não são membros vão-se embora. O bispo chama pelo nosso nome e temos de nos levantar e ir sentar mesmo à frente dos pastores e responder às suas perguntas em voz suficientemente alta para toda a congregação nos ouvir. Durante esse tempo, toda a gente está a assistir, e o nosso coração bate com tanta força que mal conseguimos ouvir o bispo falar.
— E se não tiverem pecado?
Katie levantou a cabeça.
— Como assim?
— Se estiverem inocentes? — Ellie pensou na conversa que tinham tido há meses, rezando para que Katie também se lembrasse. — Se o diácono disser que foram tomar banho nus e isso não tiver acontecido?
Katie franziu o sobrolho.
— Confessamos na mesma.
— Mesmo que não o tenham feito?
— Sim. Se não mostrarmos que estamos arrependidos, se tentarmos arranjar desculpas, as coisas ainda se tornam mais embaraçosas. Já é suficientemente mau ir ter com os pastores com toda a nossa família e amigos a assistir. Só queremos acabar com aquilo e aceitar o castigo, para podermos ser perdoados e recebidos de volta.
— Então... na sua Igreja, têm de confessar para ser perdoados. Mesmo que não tenham feito aquilo de que são acusados?
— Bem, as pessoas também não são acusadas de ânimo leve. A maior parte das vezes, há uma razão para isso. Mesmo que a história não seja exatamente assim, normalmente as pessoas fizeram mesmo alguma coisa errada. E, depois de confessarmos, vem a cura.
— Responda à pergunta, Katie! — disse Ellie, esboçando um sorriso tenso. — Se o seu diácono viesse ter consigo e dissesse que tinha pecado, e isso não tivesse acontecido, confessaria na mesma?
— Sim.
— Compreendo. Agora diga-me: porque é que queria ser testemunha no seu julgamento?
Katie levantou os olhos.
— Para confessar o pecado de que tinha sido acusada.
— Mas é um homicídio! — observou Ellie. — Isso significa que matou intencionalmente o seu bebé, que o queria morto. Isso é verdade?
— Não — murmurou Katie.
— Devia saber que vir aqui hoje e dizer que tinha matado o seu bebé ia levar o júri a acreditar que era culpada, Katie. Porque faria uma coisa dessas?
— O bebé morreu por minha causa. Não importa se o sufoquei ou não, ele está morto por causa de algo que fiz. Devia ser castigada. — Levantou a ponta do avental para enxugar os olhos. — Queria que toda a gente visse como estou arrependida. Queria confessar — disse ela calmamente —, porque essa é a única forma de poder ser perdoada.
Ellie inclinou-se sobre o banco das testemunhas, tapando a vista a toda a gente por um momento.
— Eu perdoo-te — disse baixinho, para que só Katie a ouvisse —, se tu me perdoares. — A seguir, virou-se para a juíza. — Não tenho mais perguntas.
— Muito bem, então temos agora uma reviravolta — disse George. — Matou o bebé, mas não o assassinou. Quer ser castigada para poder ser perdoada por algo que não teve intenção de fazer.
— Sim — assentiu Katie.
George hesitou por um momento, como se estivesse a pensar naquilo tudo. A seguir, franziu o sobrolho.
— Nesse caso, o que aconteceu ao bebé?
— Fi-lo ficar doente e ele morreu.
— Sabe que o patologista disse que o bebé estava infetado, mas admitiu que podia ter morrido por uma série de razões. Viu o bebé deixar de respirar?
— Não. Estava a dormir. Não me lembro de nada até ter acordado.
— Não chegou a ver o bebé depois de acordar?
— Tinha desaparecido — disse Katie.
— E quer que acreditemos que não teve nada a ver com isso? — George avançou em direção a ela. — Embrulhou o corpo do bebé num cobertor e escondeu-o?
— Não.
— Hum, pensei que tinha dito que não se lembrava de nada depois de ter adormecido.
— E não me lembro!
— Então, tecnicamente, não me pode dizer com certeza que não escondeu o bebé!
— Suponho que não — disse Katie lentamente, desconcertada.
O rosto de George rasgou-se num sorriso.
— E, tecnicamente, não me pode dizer com certeza que não sufocou o bebé.
— Protesto!
— Retiro o que disse — replicou George. — Não tenho mais perguntas.
Ellie praguejou baixinho. A declaração de George era a última coisa que o júri ia ouvir como parte do testemunho.
— A defesa não tem mais perguntas, meritíssima — disse Ellie.
Viu Katie abrir o portãozinho do banco das testemunhas e descer, atravessando a sala com um cuidado deliberado, como se agora percebesse que algo tão estável quanto o chão podia ceder sob os seus pés a qualquer momento.
— Sabem que mais? — disse Ellie para o júri. — Quem me dera poder dizer-vos exatamente o que aconteceu às primeiras horas da madrugada de dez de julho, no celeiro dos Fisher, mas não posso. Não posso porque não estava lá. Tal como o doutor Callahan não estava, nem nenhum dos peritos que viram desfilar por aqui durante os últimos dias.
»Só há uma pessoa que esteve realmente lá, e que também falou para vós nesta sala de audiências, e essa pessoa é Katie Fisher. Katie, uma rapariga amish que não se consegue lembrar exatamente do que aconteceu nessa manhã. Katie, que se apresentou aqui alquebrada pela culpa e vergonha, convicta de que a transmissão acidental de uma doença intrauterina ao seu feto a torna responsável pela morte da bebé. Katie, que está tão transtornada por ter perdido o filho que pensa que merece ser punida, mesmo estando inocente. Katie, que quer ser perdoada por algo que não fez intencionalmente.
Ellie passou a mão pelo corrimão da bancada dos jurados.
— E essa ausência de intenção, senhoras e senhores, é muito importante. Porque, para que a Katie seja considerada culpada de homicídio qualificado, o Ministério Público tem de vos convencer para lá de qualquer dúvida razoável que a Katie matou o filho com premeditação, intenção e deliberação. Primeiro que tudo, isso significa que planeou este homicídio. No entanto, ouviram dizer que nenhum amish consideraria um tal grau de violência, nenhum amish optaria por uma ação que valorizava o orgulho em detrimento da humildade, ou uma decisão individual em detrimento das regras da sociedade. Em segundo lugar, isso significa que a Katie queria ver este bebé morto. Porém, puderam testemunhar a expressão da Katie quando voltou a ver o pai da criança, quando vos disse que o amava. Em terceiro lugar, isso significa que assassinou intencionalmente o seu bebé. E, no entanto, foram-vos apresentadas provas de que a morte do bebé pode muito bem ter sido provocada por uma infeção transmitida durante a gravidez. Uma tragédia, é verdade, mas não deixa de ser um acidente.
»Cabe ao Ministério Público provar-vos que o bebé de Katie Fisher foi assassinado. O meu trabalho é demonstrar que pode haver uma eventual razão viável e realista para a morte do bebé da Katie, sem ser o homicídio qualificado. Havendo mais de uma maneira de olhar para o que aconteceu naquela manhã, havendo a mais pequena dúvida nas vossas cabeças, não têm outra opção senão absolvê-la.
Ellie foi ter com Katie e parou atrás dela.
— Quem me dera poder dizer-vos o que aconteceu, ou não, na manhã de dez de julho — repetiu —, mas não posso. — E se eu não sei ao certo, como podem vocês saber?
— A doutora Hathaway tem razão, mas apenas numa coisa. Katie Fisher não sabe com certeza o que aconteceu na manhã em que deu à luz. — George inspecionou o rosto dos jurados. — Ela não sabe, e admitiu-o, assim como admitiu ter matado o bebé.
Levantou-se, de mãos unidas atrás das costas.
— No entanto, não precisamos das memórias da arguida para reconstituir a verdade porque, neste caso, os factos falam por si. Sabemos que Katie Fisher mentiu durante anos à família sobre as visitas clandestinas ao mundo exterior. Sabemos que encobriu a gravidez, deu à luz em segredo, tapou o feno ensanguentado e escondeu o corpo do seu bebé. Podemos olhar para o relatório da autópsia e ver equimoses à volta da boca do bebé devido ao sufocamento, as fibras de algodão alojadas no fundo da sua garganta, o diagnóstico de homicídio feito pelo médico-legista. Podemos ver as provas forenses, nomeadamente os testes de ADN que colocam a arguida, e somente a arguida, no local do crime. Podemos apontar um motivo psicológico: o receio que Katie Fisher sentia de ser banida da família para sempre, como o irmão, pela transgressão de ter dado à luz sem ser casada. Podemos até reproduzir a gravação do tribunal e ouvir a arguida confessar o homicídio do filho, uma confissão feita voluntariamente, que a defesa tentou depois desesperadamente reverter a seu favor.
George virou-se para Ellie.
— A doutora Hathaway quer que vocês pensem que, como a arguida é amish, este crime é impensável. Mas ser amish é uma religião, não uma desculpa. Já vi católicos piedosos, judeus devotos e fiéis muçulmanos condenados por crimes hediondos. A doutora Hathaway também gostaria de acreditar que o bebé morreu de causas naturais. Mas, nesse caso, porquê embrulhar o corpo e escondê-lo debaixo de um monte de cobertores, o que sugere encobrimento? A defesa não consegue explicar isso; só tem para oferecer um testemunho do tipo manobra de diversão, que alega a existência de uma obscura infeção bacteriana que pode ter levado a insuficiência respiratória do recém-nascido. Repito: pode ter levado. Mas também pode não tê-lo feito. Pode ser apenas uma forma de encobrir a verdade, ou seja, que, no dia dez de julho, Katie Fisher foi para o celeiro dos pais e sufocou de forma intencional, premeditada e deliberada o seu bebé.
Olhou de relance para Katie, e depois voltou a olhar para o júri.
— A doutora Hathaway também gostaria que acreditassem noutra falsidade: que Katie Fisher foi a única testemunha ocular nessa manhã. Mas isto não é verdade. Também lá estava um bebé; um bebé que não está aqui para falar por si, porque foi silenciado pela mãe. — Deixou o olhar vaguear pelos doze homens e mulheres que o observavam. — Falem por esse bebé, hoje — concluiu.
O pai de George Callahan, que tinha ganhado quatro mandatos consecutivos como procurador distrital no condado de Bucks, havia umas décadas, costumava dizer-lhe que havia sempre um caso na carreira jurídica de um homem que o acompanhava até morrer. Era o caso que era sempre mencionado em associação ao seu nome, sempre que fazia qualquer outra coisa digna de nota na vida. Para Wallace Callahan, tinha sido condenar três universitários brancos pela violação e homicídio de uma rapariguinha negra, mesmo no meio das manifestações pelos direitos civis. Para George, seria Katie Fisher.
Conseguia sentir isso da mesma forma que conseguia sentir que ia nevar um dia antes de a neve chegar, pelo retesar dos seus músculos. O júri ia considerá-la culpada. Ora, se ela própria se considerava culpada! Não ficaria surpreendido se o veredito voltasse antes do jantar.
Vestiu o seu impermeável, pegou na pasta e saiu pela porta do tribunal. Foi imediatamente engolido por repórteres e operadores de câmara de estações de televisão locais e de filiais de canais nacionais. George sorriu, virou o seu melhor lado para a maioria das câmaras e inclinou-se para o molho de microfones que estavam a enfiar-lhe debaixo do queixo.
— Algum comentário sobre o caso?
— Faz alguma ideia de qual será a votação do júri?
George sorriu e deixou a frase crucial e muito ensaiada rolar na sua língua.
— É óbvio que vai ser uma vitória para a acusação.
— Não tenho qualquer dúvida de que vai ser uma vitória para a defesa — disse Ellie ao pequeno grupo de representantes de órgãos da comunicação social aglomerados no parque de estacionamento do Tribunal de Última Instância.
— Não acha que a confissão da Katie pode fazer com que o júri tenha dificuldade em absolvê-la? — berrou um repórter.
— De modo algum. — Ellie sorriu. — A confissão da Katie teve mais a ver com as obrigações morais da sua religião do que com as ramificações legais do caso. — Abriu caminho educadamente, fazendo os jornalistas dispersar-se como berlindes.
Coop, que tinha estado à espera de que ela terminasse a sua conferência de imprensa improvisada, juntou-se-lhe quando ela se dirigiu ao sedan azul de Leda.
— Tenho de ficar por perto — disse ela. — É provável que o júri esteja de volta quando acabarmos de comer qualquer coisa.
— Se ficares por perto, a Katie vai ser bombardeada por pessoas. Não a podes manter fechada numa sala de reuniões.
Ellie acenou afirmativamente e destrancou a porta do carro. Por esta altura, Leda, Katie e Samuel já estariam à espera dela na entrada de serviço do tribunal.
— Bem — disse Coop. — Parabéns.
Ela resmungou:
— Não me dês ainda os parabéns.
— Mas acabaste de dizer que a defesa vai ganhar!
Ellie abanou a cabeça.
— Disse — admitiu. — Mas a verdade, Coop, é que não sei o que vai acontecer.
18
Ellie
Um dia depois, o júri ainda não tinha entregado o veredito.
Por eu não estar próxima de um telefone, a juíza Ledbetter deu ordem a George para me emprestar o seu pager. Quando o veredito chegasse, ela chamava-me por essa via. Entretanto, podíamos todos voltar para casa e continuar com a nossa vida.
Já tinha passado por situações em que o júri não conseguia chegar a uma decisão. Era desagradável, não só porque garantia automaticamente que teríamos de passar pela complicação de um segundo julgamento, mas também porque, até o veredito surgir, eu ficava obcecada em tecer críticas à minha defesa. Dantes, quando o júri levava algum tempo a regressar, tentava distrair-me com os outros casos em que estava a trabalhar. Ia ao ginásio e fazia exercício no Stairmaster até mal me conseguir mexer, quanto mais pensar. Sentava-me com Stephen, que me ajudava a rever o caso para ver o que podia ter feito de maneira diferente.
Agora, estava rodeada pelos Fisher, sendo que todos estavam diretamente interessados no veredito mas nenhum parecia notar que ainda não tinha sido entregue. Katie continuava a fazer as suas tarefas domésticas. Eu devia dar uma mão a Sarah na cozinha, ajudar no celeiro se Aaron precisasse de mim, seguir com a minha vida, embora estivéssemos à espera de uma decisão importante.
Vinte e oito horas depois de termos deixado o tribunal, eu e Katie estávamos a lavar as janelas de Annie King, uma mulher amish que tinha caído e fraturado a anca. Observei Katie por um instante, a embeber incansavelmente o seu pano numa solução de álcool e a esfregar o vidro, perguntando-me como é que ela arranjava força para ajudar outra pessoa quando as suas próprias emoções deviam assoberbá-la, naquele momento.
— Isto não te incomoda? — perguntei, finalmente.
— As costas? — perguntou Katie. — Ja, um pouco. Se tiveres muitas dores, podes descansar um bocadinho.
— Não estou a falar das tuas costas, mas sim de não saberes o resultado do julgamento.
Katie deixou o pano cair no balde e voltou a baixar-se.
— Preocupar-me não vai fazer com que aconteça mais depressa.
— Bem, eu não consigo parar de pensar nisso — admiti. — Se enfrentasse uma condenação por homicídio, não creio que andasse a lavar as janelas de outra pessoa.
Katie virou-se para mim, de olhos límpidos e cheios de uma paz que tornava quase impossível desviar a vista.
— Hoje, é a Annie que precisa de ajuda.
— Amanhã, podes ser tu a precisar.
Ela espreitou pela janela reluzente, onde se viam mulheres atarefadas a trazer produtos de limpeza das suas carroças.
— Nesse caso, amanhã todas estas pessoas estarão comigo.
Engoli as minhas dúvidas, esperando que ela estivesse certa, para seu próprio bem. A seguir, levantei-me deixando o meu trapo dobrado por cima do balde.
— Volto já.
Katie escondeu o seu sorriso; o número incrível de vezes que eu ia à casa de banho ultimamente tinha-se tornado objeto de piada. Mas não teve piada nenhuma quando, passados momentos, me sentei na sanita, olhei para baixo e percebi que estava a sangrar.
Sarah conduziu a sua carroça até ao hospital da comunidade, o mesmo para onde Katie fora levada de ambulância no dia em que dera à luz. Na parte de trás, sacolejada de um lado para o outro, tentava dizer a mim mesma que aquilo era normal; que estava sempre a acontecer às mulheres grávidas. Pressionei o punho fechado para me defender das cãibras que tinham começado a espraiar-se pelo meu abdómen, enquanto Katie e Sarah seguiam no banco da frente, a murmurar em dialeto alemão.
Levaram-me para as Urgências e fui matraqueada de perguntas vindas de todos os lados. Estava grávida? Sabia de quanto tempo estava? Uma enfermeira virou-se para Katie e Sarah, que pairavam desconfortavelmente junto à cortina.
— São familiares?
— Não. Amigas — respondeu Katie.
— Nesse caso, tenho de vos pedir para esperarem lá fora.
Sarah olhou para mim antes de se ir embora.
— Vai ficar bem.
— Por favor — sussurrei. — Chamem o Coop.
O médico tinha mãos de pianista, dedos brancos e compridos tão delicados que pareciam flores a passar sobre a minha pele.
— Vamos fazer algumas análises ao sangue para confirmar a sua gravidez — disse ele. — Depois disso, fazemos uma ecografia, para ver o que se passa.
Soergui-me nos cotovelos.
— O que se passa? — quis saber, com mais força do que supunha ter. — Deve ter uma ideia.
— Bem, a hemorragia é bastante forte. Com base na data da sua última menstruação, deve estar de cerca de dez semanas. É possível que se trate de uma gravidez ectópica, o que é muito perigoso. Se não for isso, o seu corpo pode ter começado a abortar espontaneamente. — Olhou para mim. — Pode perder o bebé.
— Tem de impedir isso — disse eu, calmamente.
— Não podemos. Se a hemorragia abrandar ou parar por si, será um bom sinal. Se não... bem. — Encolheu os ombros e pôs o estetoscópio à volta do pescoço. — Saberemos mais dentro de pouco tempo. Tente descansar.
Acenei afirmativamente, deitando-me de costas e concentrando-me em não chorar. Chorar não me faria bem nenhum. Mantive-me perfeitamente imóvel, a respirar superficialmente. Não podia perder aquele bebé. Não podia.
O rosto de Coop estava branco como um fantasma enquanto a técnica da ecografia me esfregava o gel na barriga e pressionava algo que parecia um microfone contra a minha pele. No ecrã do computador, a eletricidade estática começou a formar bolas redondas que se moviam e mudavam de forma.
— Ora cá está ele — disse a técnica, marcando com setas gráficas um círculo minúsculo.
— Bem, a gravidez não é numa trompa de Falópio — disse o médico. — Amplie isso, por favor.
A técnica ampliou a área. Não parecia um bebé. Aliás, não se parecia com nada: não passava de uma espiral branca e granulosa com um pontinho preto no meio. Virei-me para o médico e para a técnica, mas eles não diziam palavra. Estavam a olhar para o ecrã, para alguma coisa que estava aparentemente muito mal.
A técnica empurrou com mais força contra a minha barriga, fazendo rolar a sonda para trás e para diante.
— Ah! — disse ela, finalmente.
O pontinho preto estava a pulsar de forma ritmada.
— É o bater do coração — disse o médico.
Coop pegou-me na mão.
— Isso é bom, não é? Significa que está tudo bem?
— Nós não sabemos o que faz alguém abortar, doutor Cooper, mas é o que acontece a quase um terço das gestações iniciais. Normalmente, é porque o embrião não é viável, por isso é melhor assim. A sua esposa continua a perder muito sangue. A única coisa que podemos fazer agora é mandá-la para casa e esperar que as coisas se invertam nas próximas horas.
— Mandá-la para casa? Vai mandá-la para casa, e pronto?
— Sim. Ela tem de estar em repouso. Se a hemorragia não tiver abrandado pela manhã ou se as cãibras se intensificarem, volte cá.
Olhei para o ecrã, siderada por aquele pequeno círculo branco.
— Mas o bater do coração — insistiu Coop — é um sinal positivo.
— Sim. Infelizmente, a hemorragia é um mau sinal.
O médico e a técnica abandonaram o quarto. Coop afundou-se numa cadeira ao lado da marquesa e esticou os dedos sobre a minha barriga. Eu cobri a mão dele com a minha.
— Não vou perder este bebé — disse-lhe, com firmeza. E depois permiti-me chorar.
Coop queria levar-me para o apartamento dele, mas era demasiado longe. Em vez disso, Sarah insistiu em que voltássemos para a quinta, onde podia tomar conta de mim.
— É claro que também pode vir — disse ela a Coop, e foi por isso que ele permitiu tal decisão.
Coop carregou-me até ao quarto que eu partilhava com Katie e depositou-me gentilmente sobre a cama.
— Pronto — disse ele, dispondo as almofadas por trás da minha cabeça. — Que tal?
— Está ótimo. — Olhei para ele e tentei sorrir. Ele sentou-se na borda da cama e entrelaçou os dedos nos meus.
— Talvez isto não seja nada.
Acenei afirmativamente. Coop revirava a borda da colcha entre as mãos, olhando para a mesa de cabeceira, para a janela, para o soalho, para todo o lado menos para mim.
— Coop — disse eu —, faz-me um favor.
— Tudo o que quiseres.
— Quero que telefones à juíza Ledbetter. Informa-a do que se passa, para prevenir qualquer eventualidade.
— Por amor de Deus, Ellie! Nem sequer devias estar a pensar nisso agora!
— Pois, mas estou. E preciso que faças isso.
Coop abanou a cabeça.
— Não te vou deixar.
Toquei-lhe no braço, sussurrando as palavras que nenhum de nós dois queria ouvir.
— Não há nada que possas fazer.
Virei a cabeça e, passado um momento, ouvi os passos dele a sair do quarto. Mas a porta voltou a abrir-se pouco tempo depois. À espera de Coop, abri os olhos e vi Sarah a segurar um jarro de água e a encher-me um copo.
— Oh! — exclamei. — Obrigada.
Ela encolheu os ombros.
— Lamento que isto esteja a acontecer, Ellie.
Acenei com a cabeça. Apesar do que podia ter sentido por ter mais outra futura mãe não casada em sua casa, era suficientemente atenciosa para demonstrar compaixão naquele momento.
— Perdi três bebés entre a Katie e a Hannah — disse Sarah. — Nunca compreendi porque é que dizem isso dessa forma em inglês: perder um bebé. Sabe bem onde ele está, não sabe? E faria qualquer coisa para o manter aí dentro.
Olhei para ela, para aquela mulher que compreendia como era estar à mercê do nosso próprio corpo, como era não ter controlo sobre as nossas próprias falhas. Era tal qual como Katie tinha dito: não importava se tinha sido acidental; a pessoa sentia-se na mesma culpada.
— Ele já é real para mim — sussurrei.
— Bem, claro que sim — concordou Sarah. — E já está disposta a mover o céu e a terra por ele.
Sarah andava de um lado para o outro no quarto.
— Se precisar de alguma coisa, é só chamar, está a ouvir?
— Espere.
Sarah parou à porta.
— Como...? — Não fui capaz de fazer a pergunta, mas ela compreendeu-me na mesma.
— É a vontade de Deus — disse ela, baixinho. — A pessoa consegue enfrentar a situação. Só não consegue superá-la.
Devo ter adormecido, porque quando dei por mim o Sol estava quase a pôr-se e Coop estava esparramado na cama de Katie, do outro lado do quarto. Quando eu me mexi, ele levantou-se e ajoelhou-se ao meu lado.
— Como te sentes?
— Estou bem. As cãibras desapareceram.
Entreolhámo-nos, receosos do que isso poderia significar.
— Liguei à juíza — disse ele, mudando rapidamente de assunto. — Disse que o júri continua a deliberar e que, se for necessário, ela mantém-nos sequestrados até estares boa. — pigarreou. — Também disse que está a rezar por nós.
— Isso é bom — disse eu calmamente. — Aceitamos toda a ajuda que conseguirmos.
— Posso perguntar-te uma coisa? — Coop começou a brincar com uma linha da colcha. — Sei que não é a altura certa e sei que prometi não fazer isso, mas quero que te cases comigo. Eu não sou advogado, por isso não tenho argumentos elaborados para te convencer. Mas, quando a Katie me ligou hoje do hospital, nem conseguia respirar. Pensei que tinhas sofrido um acidente. E depois ela disse que era o bebé, e a única coisa que eu conseguia pensar era Graças a Deus! Graças a Deus que não foi a Ellie.
»Odeio-me por isso. Pergunto-me se serei merecedor disto, só por causa do que me veio à cabeça. E agora tenho estado a imaginar este bebé, esta dádiva de que eu não estava à espera, a ser-me tirado. Se acontecer, El, vou sofrer tanto, mas nada comparado com a forma como me sentiria se tivesses sido tu. Isso... — disse ele, com a voz a fraquejar — isso eu nunca conseguiria superar.
Levou a minha mão aos lábios e beijou-me os nós dos dedos.
— Havemos de ter mais bebés. Não será este, mas serão nossos. Podemos ter dez, um por cada divisão da nossa casa. — Coop levantou o rosto. — Basta dizeres-me que queres isso.
Uma vez, tinha deixado Coop porque queria ver se conseguia ser a melhor, se conseguia singrar neste mundo. Mas o facto de ter vivido durante meses com os Fisher fez-me ver o valor de saber intrinsecamente que havia alguém para me ajudar, se tropeçasse.
Tinha recusado Coop uma segunda vez porque tinha receio de estar a dizer que sim apenas pela responsabilidade que tinha para com o bebé. Mas agora podia não haver bebé. Havia só eu e Coop, e esta dor horrível que só ele podia compreender.
Quantas vezes ia desperdiçar aquela oportunidade, até perceber que era disso mesmo que andara à procura o tempo todo?
— Doze — respondi.
— Doze?
— Doze bebés. Estou a pensar ter uma casa muito grande.
Os olhos de Coop iluminaram-se.
— Uma mansão — prometeu, e beijou-me. — Meu Deus, como eu te amo!
— Eu também te amo. — Quando ele subiu para a cama, para junto de mim, desatei a rir.
— E ainda te amava mais se me ajudasses a ir à casa de banho.
Ele sorriu e pôs os braços à minha volta, carregando-me pelo corredor fora.
— Consegues fazer isto sozinha?
— Tornei-me muito boa nisto, ao fim de trinta e sete anos.
— Tu sabes que não era disso que eu estava a falar — disse ele suavemente.
— Eu sei. — Fitámo-nos por um instante, até eu ter de desviar o olhar da mágoa que os seus olhos espelhavam. — Eu consigo, Coop. — Fechei a porta atrás de mim e levantei a camisa de dormir, preparando-me para ver outro penso higiénico ensopado. Quando olhei para baixo, comecei a chorar.
Coop irrompeu pela casa de banho com estrépito, de olhos arregalados e assustado.
— O que foi? O que foi?
As lágrimas continuavam a correr, imparáveis, avassaladoras.
— Podes mudar para treze bebés — disse eu, com um sorriso a rasgar-me o rosto. — Parece-me que este é capaz de ficar cá dentro.
19
Só depois de ter tomado uma embalagem inteira de Zantac é que George Callahan percebeu que aquele caso estava literalmente a comê-lo vivo. Acontece que a sua certeza não era necessariamente assim tão certa. Perguntou-se qual dos jurados estaria a empatar os outros. Seria o tipo da tatuagem do Claddagh? A mãe de quatro filhos? Perguntou-se se teria tempo suficiente para ir à farmácia depois de almoço ou se seria chamado para ouvir o veredito assim que se fizesse à estrada. Perguntou-se se Ellie Hathaway também teria perdido três noites de sono.
— Bem — disse Lizzie Munro, empurrando o prato. — É a primeira vez que como mais do que tu.
George fez uma careta.
— Acontece que o meu estômago é mais delicado do que eu pensava.
— Bem, se tivesses perguntado, coisa que não fizeste, podia ter-te dito que as pessoas daqui iam ter dificuldade em condenar alguém amish.
— Porquê?
Lizzie levantou um ombro.
— São uma espécie de anjos residentes. Se admitires que um deles é um assassino, então não há esperança para ninguém.
— Mas também não vão absolvê-la assim tão depressa — replicou, limpando a boca ao guardanapo. — A juíza Ledbetter disse que o júri pediu as transcrições dos dois psiquiatras.
— Ora, isso é interessante. Se estão a debater o estado mental dela, significa que consideram que ela fez alguma coisa de errado.
George resmungou:
— Tenho a certeza de que a Ellie Hathaway interpretaria isso de forma diferente.
— A Ellie Hathaway não anda muito dada a interpretações, neste momento. Não soubeste?
— Soube o quê?
— Está doente. Tiveram de levá-la ao hospital. — Lizzie encolheu os ombros. — Os rumores que correm junto ao refrigerador de água é que teve alguma coisa a ver com complicações da gravidez.
— Grávida? A Ellie Hathaway está grávida? — Abanou a cabeça. — Meu Deus, ela é tão afetuosa quanto uma aranha viúva-negra.
— Pois — disse Lizzie. — Anda muito disso por aí.
Ellie tinha sido promovida de estar deitada no quarto a estar deitada no sofá da sala. Só a tinham deixado andar uma vez, quando Coop a levara à obstetra, que lhe deu um atestado de boa saúde, mas com reservas. Agora, Coop estava de volta ao consultório com um cliente suicida, tendo deixado Sarah encarregada de a vigiar como um falcão. Mas Sarah tinha saído para ir matar uma galinha para o jantar, deixando Ellie satisfeita pela primeira vez com o seu estatuto de inválida.
Ellie fechou os olhos, mas tinha a certeza de que, se dormisse mais uma hora, ia entrar em coma. Estava a tentar decidir que argumento usar para convencer Coop de que devia poder estar na vertical, com a circulação fetal a levar ligeiramente a melhor sobre as escaras, quando Katie passou junto à porta, tentando não ser vista.
— Oh, não, não vais fazer isso! Volta aqui! — ordenou Ellie.
Katie entrou no quarto.
— Precisas de alguma coisa?
— Sim. Preciso que me tires daqui.
Os olhos de Katie arregalaram-se.
— Mas o doutor Cooper...
— ... não faz a mínima ideia do que é estar deitado há dois dias. — Ellie pegou-lhe na mão e puxou-a, de maneira que Katie se sentasse ao lado dela. — Eu não quero ir escalar o Evereste — implorou. — Apenas dar um passeiozinho lá fora.
Katie olhou em direção à cozinha.
— A tua mãe está na capoeira. Por favor!
Ela acenou rapidamente, e depois ajudou Ellie a sair do sofá.
— Tens a certeza de que estás bem?
— Estou ótima. A sério. Podes ligar à minha médica e perguntar-lhe. — Sorrindo, Ellie acrescentou: — Quer dizer, podias se tivesses telefone.
Katie pôs o braço à volta da cintura de Ellie e deu uns passinhos tímidos com ela em direção à cozinha e à porta das traseiras. Ellie estugou o passo assim que passaram pela pequena horta, pisando as guias das abóboras que se estendiam como os tentáculos de um polvo. Junto ao lago, deixou-se cair no banco por baixo do carvalho, de faces coradas e olhos brilhantes, sentindo-se melhor do que se sentia há alguns dias.
— Podemos voltar, agora? — perguntou Katie, aflita.
— Acabei de chegar. Queres que descanse antes de fazer o caminho todo de volta a casa, não queres?
Ela olhou de relance para a casa.
— Quero que voltes antes que alguém dê pelo teu desaparecimento.
— Não te preocupes. Eu não digo a ninguém que me trouxeste aqui, se tu não disseres.
— Nem a uma alminha — disse Katie.
Ellie inclinou a cabeça para trás e fechou os olhos, deixando o sol inundar-lhe o rosto e o pescoço.
— Bem, nesse caso, aqui estamos nós, parceiras no crime.
— Parceiras no crime — repetiu Katie, baixinho.
Ao ouvir o tom triste da sua voz, Ellie sobressaltou-se.
— Oh, Katie! Eu não queria...
— Chiu! — Katie levantou a mão, erguendo-se lentamente do lugar enquanto olhava para o lago. Um bando de patos selvagens, escondidos entre os juncos secos da margem, assustou-se de repente e começou a voar, levantando um borrifo brumoso que iluminou a superfície da água. O sol da tarde infiltrou-se através dessa cortina e, por um momento, Katie conseguiu ver a irmã a fazer uma roda lá no meio, o holograma de uma bailarina alheada do seu público.
Era disto que ela ia ter saudades, se fosse presa. Desta casa, deste lago, desta ligação.
Hannah virou-se e tinha um embrulhinho nos braços. Tornou a virar-se e o embrulho mudou de posição... de forma que um bracinho rosado se escapou do envoltório.
A bruma dissipou-se e o grasnido nasalado dos patos foi-se afastando cada vez mais. Katie sentou-se ao lado de Ellie, que de repente lhe pareceu muito mais pálida do que antes.
— Por favor — sussurrou Katie. — Não deixes que eles me levem presa.
Por deferência com Aaron, Jacob estacionou o carro a quase um quilómetro da quinta do pai. Conhecia rapazes que tinham comprado carro durante os seus Rumspringa, tipos que os estacionavam atrás dos barracões do tabaco enquanto os pais fingiam não ver. Mas Jacob nunca tivera carro. Só depois de se ter ido embora de vez.
Também lhe causou estranheza percorrer o caminho da entrada a pé. Esfregou distraidamente a cicatriz que tinha no queixo, feita quando andava de patins e tinha caído por causa de um sulco no pavimento. O sulco continuava lá. E apostava que os patins também, no sótão, juntamente com a roupa e os chapéus velhos que não tinham passado para os primos mais novos.
Quando chegou à porta do celeiro, o coração batia-lhe com tanta força nos ouvidos que teve de parar e respirar bem fundo antes de ter coragem para ir mais além. O problema é que se tornara Sod há tanto tempo que tinha cada vez mais dificuldade em pensar como uma Pessoa Simples. Tinha sido preciso passar pelo julgamento de Katie, onde logo ele tinha sido apresentado como perito na vida amish, para perceber que o seu lado Simples estivera sempre presente. Embora vivesse num mundo diferente, continuava a vê-lo com os olhos de quem crescera num mundo à parte; avaliava-o com um conjunto de valores que lhe tinham sido incutidos há muito.
Uma das primeiras verdades que se aprendiam na comunidade da Gente Simples era que as ações falavam mais alto do que as palavras.
No mundo inglês, as pessoas enviavam condolências, escreviam e-mails e trocavam cartões de São Valentim. No mundo amish, a simpatia surgia na forma de uma visita, o amor era um olhar de satisfação lançado a alguém que estava do outro lado da mesa, a ajuda era efetiva. Durante este tempo todo, Jacob tinha estado à espera de um pedido de desculpa do pai, quando essa não era a sua moeda corrente.
Abriu a pesada porta do celeiro e entrou. As partículas de pó andavam pelo ar e o cheiro forte do feno e dos cereais era tão familiar que Jacob estacou por um momento e fechou simplesmente os olhos, a recordar. As vacas, acorrentadas aos seus postes, mexeram-se quando ele entrou e viraram as pesadas cabeçorras na sua direção.
Estava na hora da ordenha; Jacob tinha planeado as coisas para que assim fosse. Foi até ao corredor central do celeiro. Levi estava a retirar o esterco com uma pá e a pô-lo num carrinho de mão, não parecendo muito satisfeito com isso. Samuel estava na outra ponta, à espera de que a ração saísse pela calha do silo. Elam e Aaron andavam um atrás do outro entre os animais, a verificar as bombas e a limpar as tetas da vaca que se seguia.
Foi Elam quem o viu primeiro. Endireitando-se lentamente, o velhote olhou fixamente para Jacob e esboçou um sorriso. Jacob fez um aceno de cabeça e depois enfiou as mãos no balde que o avô segurava e rasgou uma folha da lista telefónica velha. Tirou o pulverizador da mão de Elam para desinfetar um úbere precisamente quando o pai saiu de trás do traseiro largo da vaca.
Aaron sobressaltou-se. Os seus ombros ficaram tensos e os músculos poderosos dos seus antebraços contraíram-se. Samuel e Levi observavam a cena em silêncio; até as vacas pareceram aquietar-se, à espera para verem o que ia acontecer.
Elam pôs uma mão no ombro do filho.
— Es ist nix — disse. Não é nada.
Sem dizer palavra, Jacob inclinou-se e retomou a sua tarefa. As palmas das mãos deslizaram sobre a pele macia da barriga da vaca. Passado um instante, sentiu o pai junto ao seu ombro. As mãos que lhe tinham ensinado a fazer quase tudo empurraram gentilmente as suas, para poder aplicar a bomba de ordenha.
Jacob levantou-se, frente a frente com o pai. Aaron acenou lentamente em direção à vaca seguinte.
— Bem — disse ele em inglês. — Estou à espera.
George subiu os degraus do alpendre dos Fisher, sem saber o que esperar. Até certo ponto, imaginara que um povo tão próximo de Deus conseguiria que ele fosse atingido por um raio assim que saísse do carro, mas, até agora, tudo bem. Endireitou o casaco e a gravata e bateu à porta com firmeza.
Foi a arguida que veio abrir. O seu sorriso amistoso esmoreceu e depois sumiu-se por completo.
— Sim?
— Hum, vim falar com a Ellie.
Katie cruzou os braços.
— Ela não pode receber visitas neste momento.
Por trás dela, uma voz berrou:
— É mentira! Recebo quem quer que seja. Se for o homem da UPS, manda-o entrar!
George ergueu as sobrancelhas e Katie abriu a porta interior para o deixar passar. Ele seguiu-a através de uma casa que se parecia surpreendentemente com a sua. Na sala, Ellie estava deitada num sofá com uma manta sobre as pernas.
— Bem — disse ele. — Ficas completamente diferente de pijama. Mais afável.
Ellie riu-se.
— É por isso que raramente uso pijama em tribunal. É uma visita social?
— Não propriamente. — George olhou para Katie de forma intencional. Esta olhou para Ellie e depois foi para outra divisão. — Tenho um acordo para te propor.
— Que surpresa! — disse Ellie, secamente. — Será que o júri te deixou assustado?
— Nada disso. Na verdade, calculei que estivesses a entrar em pânico e estou a sentir-me cavalheiresco, neste momento.
— És um verdadeiro Lancelot, George. Está bem, vamos lá ouvir.
— Ela declara-se culpada — disse George. — E nós concordamos com uma pena entre os quatro e os sete anos.
— Nem pensar — abespinhou-se Ellie, mas depois pensou em Katie, junto ao lago. — Estou disposta a considerar um nolo e uma pena arbitrada de dois a quatro anos, se me deixares apresentar argumentos para que seja mais leve.
George afastou-se, espreitando pela janela. Queria ganhar este caso mais do que qualquer outra coisa, pois seria isso que lhe permitiria manter-se à tona durante as próximas eleições. Não tinha grande desejo de ver Katie Fisher apodrecer na prisão para sempre e, pelo que Lizzie lhe dissera, isso também não devia cair bem junto da comunidade. Com um nolo contendere, como Ellie sugeria, a arguida não admitia a culpa, mas mesmo assim aceitava ser condenada. Basicamente, significava dizer que não tinha cometido o crime, mas que compreendia que havia provas suficientes para a condenar e, por esse motivo, aceitava o veredito.
Para Katie, significava salvar a face e aceitar a punição, ao mesmo tempo.
Para Ellie, significava apagar dos registos a confissão inesperada da sua cliente em tribunal.
Para George, continuava a ser um veredito de culpada.
Voltou para junto de Ellie.
— Preciso de pensar sobre isso. Se ela for condenada, pode enfrentar uma pena muito longa.
— Se, George. O júri está reunido há cinco dias. Se decidir a nosso favor, a Katie não cumpre um dia que seja.
Ele cruzou os braços.
— Nolo. Três a cinco, sujeitos a arbitragem.
— Dois e meio a cinco, e tens acordo. — Sorriu. — É claro que ainda tenho de explicar isto à minha cliente.
— Depois, diz qualquer coisa. — George ia a sair da sala, mas parou à porta. — Olha, Ellie — disse. — Fiquei triste quando soube o que te aconteceu.
Ela cerrou as mãos sobre a manta.
— Agora, vai correr tudo bem.
— Sim — disse George, acenando lentamente com a cabeça. — Também acho.
Katie estava sentada à porta do gabinete da juíza, a passar os dedos pelos suaves veios do banco de madeira. Assentava a palma da mão num sítio, polia-o com o avental, e depois voltava a fazer o mesmo. Embora estar ali hoje fosse consideravelmente menos perturbador do que estar ali para ser julgada, estava a contar os minutos para se poder ir embora.
— Tenho andado à tua procura.
Katie levantou os olhos ao mesmo tempo que Adam se sentava ao lado dela.
— O Jacob contou-me sobre o acordo.
— Sim. E agora vai acabar — disse ela baixinho, e ambos tomaram o peso das palavras, rolaram-nas como pedras e voltaram a pousá-las.
— Vou voltar para a Escócia. — Ele hesitou. — Katie, podias...
— Não, Adam. — Abanou a cabeça, interrompendo-o. — Não seria capaz.
Adam engoliu em seco e acenou afirmativamente.
— Suponho que sempre soube disso. — Tocou-lhe na curva da face. — Mas também sei que nestes últimos meses tens lá estado comigo. — Quando Katie olhou para ele, desconcertada, continuou: — Encontro-te às vezes aos pés da cama, quando acordo. Ou vejo o teu perfil nas amarras da muralha de um castelo. Às vezes, quando o vento está de feição, é como se estivesses a chamar pelo meu nome. — Pegou-lhe na mão, traçando o contorno dos seus dedos. — Vejo-te com mais clareza do que qualquer fantasma.
Levantou-lhe a palma da mão, beijou-a no centro, e fechou-lhe os dedos sobre o beijo. A seguir, encostou-lhe o punho cerrado à barriga.
— Lembra-te de mim — disse Adam, com voz embargada. E, pela segunda vez na vida de Katie, ele deixou-a para trás.
— Folgo em saber que chegaram a acordo — disse a juíza Ledbetter. — Agora, vamos falar sobre a pena.
George inclinou-se para a frente.
— Acordámos uma pena arbitrada, meritíssima, de dois e meio a cinco anos. Mas creio que é importante lembrar que a decisão a que chegarmos vai enviar uma mensagem à sociedade sobre o neonaticídio.
— Acordámos um nolo — especificou Ellie. — A minha cliente não está a admitir o crime. Declarou repetidas vezes que não sabe o que aconteceu naquela noite, mas por várias razões está disposta a aceitar o veredito de culpada. No entanto, não estamos a falar de um criminoso empedernido. A Katie tem um compromisso para com a comunidade e não vai reincidir. Não devia cumprir um dia de pena, nem sequer uma hora. Sentenciá-la a ficar presa numa cadeia envia a mensagem de que é igual a qualquer vulgar criminoso, quando não há comparação possível.
— Algo me diz, doutora Hathaway, que tem uma solução em mente.
— E tenho. Creio que Katie é uma candidata perfeita para o programa de monitorização eletrónica.
A juíza Ledbetter tirou os seus meios-óculos e esfregou os olhos.
— Doutor Callahan, demos um exemplo à sociedade ao levarmos este caso a julgamento e ao fazê-lo diante da imprensa. Não vejo razão para envergonhar a comunidade amish ainda mais do que a atenção mediática já fez, enviando um dos seus elementos para a cadeia de Muncy. A arguida cumprirá pena, mas em privado. O que até parece uma forma de justiça poética. — Rabiscou a sua assinatura nos papéis que tinha à frente. — Condeno Katie Fisher a um ano de pulseira eletrónica — disse a juíza Ledbetter. — Caso encerrado.
A pulseira de plástico foi colocada debaixo das meias, pois não a poderia tirar durante quase oito meses. Tinha sete centímetros e meio de largura e um dispositivo de localização integrado. Ellie explicou a Katie que, se ela saísse do condado de Lancaster, a pulseira emitiria um bip e o funcionário encarregado do seu acompanhamento encontrá-la-ia em dez minutos. De qualquer forma, este podia localizá-la sempre que quisesse, só para ter a certeza de que ela não se metia em problemas. Katie era oficialmente prisioneira do Estado, o que significava que não podia invocar quaisquer direitos.
Mas podia ficar na quinta, viver a sua vida e fazer as suas coisas. Claro que o pecado de usar uma pequena joia podia ser ignorado quando recebia tanta coisa em troca.
Ela e Ellie percorreram os corredores, com os sapatos a ecoar no silêncio.
— Obrigada — disse Katie, baixinho.
— De nada. — Ellie hesitou. — É um acordo justo.
— Eu sei.
— Mesmo que implique o veredito de culpada.
— Isso nunca me incomodou.
— Pois. — Ellie sorriu. — Creio que hei de conseguir ultrapassar isto daqui a uma década ou coisa parecida.
— O bispo Ephram diz que foi uma coisa boa para a comunidade.
— Como assim?
— Mantém-nos humildes — disse Katie. — Há demasiados ingleses a pensar que somos santos, e isto vai lembrar-lhes que somos apenas pessoas.
Saíram juntas e depararam com o relativo sossego da tarde. Não havia repórteres nem mirones. Só daí a algumas horas é que a imprensa saberia que o júri tinha sido dissolvido e o julgamento abortado de forma abrupta, devido a um acordo judicial. Katie parou no cimo dos degraus e olhou à sua volta.
— Não foi assim que imaginei isto.
— O quê?
— O depois. — Encolheu os ombros. — Pensava que tudo o que ias dizer no julgamento me ia ajudar a compreender um bocadinho melhor o que aconteceu.
Ellie sorriu.
— Se fizer bem o meu trabalho, a tendência é para deixar as coisas mais confusas.
Uma brisa invernosa fez esvoaçar as fitas da kapp de Katie à frente do seu rosto.
— Nunca vou saber exatamente como é que ele morreu, pois não? — perguntou, suavemente.
Ellie deu o braço a Katie.
— Sabes como é que ele não morreu — replicou. — És capaz de ter de te contentar com isso.
20
Ellie
É curioso como se pode acumular tanta coisa em tão pouco tempo. Tinha chegado a East Paradise com uma única mala, mas agora, que estava na altura de guardar as minhas coisas, mal conseguia enfiá-las lá. Agora, além da minha roupa, tinha a minha primeira e provavelmente última tentativa de fazer uma colcha, que havia um dia de adornar o berço do meu filho. Tinha o chapéu de palha que comprara na Zimmermann, um chapéu de abas largas, de miúdo, mas que me protegia o rosto do sol quando andava a trabalhar no campo. Tinha ainda coisas mais pequenas: uma pedra completamente lisa que encontrei num ribeiro, uma caixa de fósforos do restaurante onde jantei pela primeira vez com Cooper, o teste de gravidez extra do kit leve dois pelo preço de um. E, finalmente, tinha coisas demasiado grandiosas para caber em qualquer bagagem: espírito, humildade, paz.
Katie estava lá fora, a bater tapetes com o cabo comprido de uma vassoura. Tinha puxado as meias para baixo, para mostrar a pulseira a Sarah, e eu tratei de explicar as suas limitações. Coop devia estar a chegar com o carro a qualquer minuto, para me levar para casa.
Casa. Ia levar algum tempo a habituar-me. Perguntei-me quantas vezes iria acordar às quatro e meia da manhã, imaginando ouvir os sons dos homens a ir para o celeiro, para fazer a ordenha. Quantas noites me esqueceria de pôr o despertador, certa de que o galo faria o seu trabalho.
Também me perguntei como seria voltar a navegar por entre os canais da televisão. Dormir ao lado de Coop todas as noites, com o braço dele passado por cima de mim como uma âncora. Perguntei-me quem seria o meu próximo cliente e se pensaria muitas vezes na Katie.
Alguém bateu ao de leve na porta.
— Entre!
Sarah entrou no quarto, de mãos enfiadas debaixo do avental.
— Vim ver se precisava de ajuda. — Olhando para os cabides vazios nas paredes, sorriu. — Parece que já tratou de tudo sozinha.
— Fazer as malas não foi difícil. Ir embora vai ser muito mais.
Sarah deixou-se cair na cama de Katie, alisando a colcha com uma mão.
— Eu não a queria aqui — disse, baixinho. — Quando a Leda o sugeriu pela primeira vez naquele dia, na sala de audiências, eu disse-lhe que não. — Levantou o rosto e os seus olhos seguiram-me enquanto eu acabava de arrumar tudo. — E não era só por causa do Aaron. Pensei que fosse uma daquelas pessoas que conhecemos de vez em quando e fingem ser um de nós porque pensam que a paz é algo que o corpo pode aprender.
A sua mão parou numa pequena imperfeição da colcha.
— Percebi bastante depressa que não era nada como elas. E tenho de admitir que aprendemos mais consigo do que alguma vez podia ter aprendido connosco.
Sentando-me ao lado de Sarah, sorri.
— Isso é discutível.
— Conseguiu que a Katie ficasse aqui comigo. Só por isso, será sempre especial.
Ao ouvir aquela mulher calma e solene, senti uma rápida afinidade. Durante algum tempo, tinha-me confiado a sua filha. Mais do que nunca, compreendia aquele extraordinário salto de fé.
— Perdi o Jacob e a Hannah, percebe? Não podia perder a Katie. A Ellie sabe que uma mãe está disposta a fazer qualquer coisa para salvar um filho.
Passei a mão furtivamente pela barriga.
— Sim, sei. — Toquei-lhe no ombro. — Fez a coisa certa, deixando-me defender a Katie em tribunal. Independentemente do que o Aaron, o bispo ou qualquer outra pessoa lhe disserem, não duvide disso.
Sarah acenou com a cabeça, e depois tirou de debaixo do avental um pequeno volume embrulhado num lenço de papel.
— Queria dar-lhe isto.
— Não era preciso — repliquei, envergonhada por não me ter ocorrido dar-lhe uma prenda em troca da sua hospitalidade. Rasguei o papel e este deixou à mostra uma tesoura. Era pesada e prateada, com um entalhe visível numa das lâminas. Estava limpa, mas o bocadinho de fio atado à pega estava escuro e teso com sangue seco.
— Pensei que podia levar isto daqui — disse Sarah, simplesmente. — Não a posso devolver ao Aaron, agora.
O meu pensamento recuou até ao testemunho do médico-legista e às fotografias do umbigo do bebé morto anexas ao relatório da autópsia.
— Oh, Sarah! — murmurei.
Tinha baseado toda a minha defesa no facto de uma mulher amish não poder cometer um homicídio. E, no entanto, aqui estava uma mulher amish a entregar-me a prova que a incriminava.
A luz tinha ficado acesa no celeiro porque Sarah sempre soubera que a filha estava grávida. A tesoura usada para cortar o cordão umbilical, coberta de sangue, tinha sido escondida. O bebé tinha desaparecido quando Katie estava a dormir, e a razão para ela não se lembrar de ter embrulhado e escondido o seu corpo era porque não tinha sido ela a fazê-lo.
A minha boca abriu-se e fechou-se à volta de uma pergunta que não cheguei a fazer.
— O sol nasceu tão depressa naquela manhã. Eu tinha de estar em casa antes que o Aaron acordasse para a ordenha. Pensei que podia voltar lá mais tarde, mas tinha de ir para casa. Tinha mesmo de ir. — Os seus olhos brilharam com lágrimas. — Fui eu que a mandei para o mundo inglês, e vi como ela foi mudando. Mais ninguém notou, nem mesmo o Samuel, mas, quando ele desse por isso, eu sabia o que ia acontecer. Só queria que a Katie tivesse o tipo de vida que sempre imaginou: aqui, entre todos nós.
»Mas o Aaron expulsou o Jacob por muito menos do que isto. Nunca teria aceitado aquele bebé... e a Katie também teria sido mandada embora. — Os olhos de Sarah cravaram-se na minha barriga, onde o meu bebé estava em segurança. — Agora compreende, não compreende, Ellie? Não consegui salvar a Hannah e não consegui salvar o Jacob... Tinha uma derradeira oportunidade. Fosse como fosse, alguém me ia deixar. Por isso, escolhi. Fiz aquilo que pensei ter de fazer para ficar com a minha filha. — Baixou a cabeça. — E quase a perdi, na mesma.
Lá fora, ouviu-se a buzina de um carro. Ouvi a porta bater e a voz de Coop misturada com a da Katie, no jardim da entrada.
— Bem. — Sarah enxugou os olhos e levantou-se. — Não quero que carregue essa mala. Eu levo. — Sorriu ao levantá-la, testando o seu peso. — Traga cá esse bebé para o conhecermos, está bem? — disse. Pousou a mala e abraçou-me.
Eu fiquei siderada, incapaz de a abraçar. Era advogada; tinha obrigações perante a lei. O meu dever era chamar a polícia e comunicar ao procurador esta informação. Depois, Sarah seria julgada pelo mesmo crime pelo qual a filha fora condenada.
No entanto, de moto próprio, as minhas mãos levantaram-se e pousaram nas costas de Sarah, com o polegar a roçar a extremidade de um dos alfinetes que lhe mantinham o avental no lugar.
— Cuide bem de si — sussurrei, estreitando-a com força. Depois, desci a escada a correr e saí lá para fora, onde o mundo me esperava.
Jod Picoult
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