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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


UMA VÉSPERA DE REIS / Artur Azevedo
UMA VÉSPERA DE REIS / Artur Azevedo

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                   

 

 

Artur Azevedo

 

 

 

 

COMÉDIA EM UM ATO
Representada pela primeira vez no Teatro de São João da Bahia, em 15 de julho de 1875.
PERSONAGENS: REIS (pai de família) BERMUDES (fazendeiro de Camamu) ALBERTO (estudante de medicina) JOSÉ (moleque) FRANCISCA (mulher de Reis) EMÍLIA (sua filha) UMA VIZINHA  Dois pretos minas, rancho dos Reis, povo, etc. 
A cena passa-se na capital da Bahia, em uma casa do Largo da Lapinha. Atualidade.
  
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ATO ÚNICO Em casa de Reis. Sala de visitas. Mobília velha: mesa, cadeiras, piano de mesa. Castiçais com grandes mangas de vidro. Registros do Senhor do Bonfim. Palha benta em um dos cantos da sala. Ao fundo, porta que deita para o corredor; à direita, duas janelas; à esquerda porta comunicando com o interior da habitação. É dia. 
 
CENA I  José e Alberto.
 
(José está à janela, conversando com Alberto, que se acha da parte de fora) 
 
JOSÉ Então, vossa senhoria me acha um cara de pau-de-cabeleira; não é assim, seu Doutor? 
 
ALBERTO Fecho-te já a boca... (Dando-lhe dinheiro) Toma lá dois mil reis. 
 
JOSÉ (examinando)  Aqui só estão dez tostões... (Guarda o dinheiro) 
 
ALBERTO Logo dar-te-ei os outros dez. Anda! vê um momento em que ela esteja sozinha. 
 
JOSÉ Não se incomode! Venha de lá um charutinho para o moleque... 
 
ALBERTO Eu fico à espera do assobio ali, (Aponta) encostado ao chafariz... 
 
JOSÉ Faça favor de seu fogo. (Acende seu charuto no de Alberto) Pode ir descansado que a cabra é onça. 
 
ALBERTO Vê lá o que fazes, hein? Até logo... (Desaparece) 
 
  CENA II José desce à cena e canta, findando o trêmulo que a orquestra tem conservado desde a introdução. 
 
COPLAS
 
I Sou vivo como um azougue, para dinheiro arranjar; hoje não pude, no açougue, o carniceiro enganar. Apesar de ser moleque, sou vivo como um senhor doutor; pra num bolso dar um cheque. Como eu ninguém há por cá. Olá! Como eu ninguém há! Olé! Como eu ninguém é! Oli! Como eu ninguém vi! Olô! Ninguém como eu sou! Olu! Ninguém é como tu!
 
II Que me importa que se diga qu’estes meus medos são maus; que sou doido de uma figa e ando feito um dois-de-paus? Se me vêm nas algibeiras moedas a tinir, cair! Dou-me bem co’estas maneiras, pois é isso que dá  (Esfrega os dedos) pra cá!  (Aponta para as algibeiras) Olá! etc.
 
 
CENA III José e Emília.
 
EMÍLIA (vendo José a fumar)  Muito bonito! Parece um dono de casa! 
 
JOSÉ (apaga o charuto com saliva e guarda-o atrás da orelha)  A bênção, iaiazinha? 
 
EMÍLIA Adeus. (Senta-se) Já viste passar o Alberto, José? 
 
JOSÉ Já sim, iaiazinha. 
 
EMÍLIA Ora! Por que não me chamaste? 
 
JOSÉ Coisa melhor, iaiazinha! Não se amofine! (Mostra-lhe a carta e cantarola) Trá lá rá lá lá... 
 
EMÍLIA (ergue-se vivamente) Deixa ver! deixa ver! 
 
JOSÉ (arremeda-a)  Deixa ver! deixa ver! (Esquiva-se ao alcance das mãos da moça, negandolhe a carta; afinal trepa sobre uma cadeira e entrega a carta, depois de levála à maior altura em que possam tocá-la as mãos de Emília) 
 
EMÍLIA Deixa-te de confianças, moleque! (Toma a carta) 
 
JOSÉ Eu é que devo levar a resposta, iaiazinha! 
 
EMÍLIA (abre e lê a carta) “Milu. Peço-te que me deixes entrar hoje para a sala. O José ficará à porta e nos avisará quando avistar teu pai. À janela sempre podemos dar que falar a Vizinhança. Teu — Alberto”. (Guarda a carta) Ora! seu Alberto não se enxerga! 
 
JOSÉ O que diz, iaiazinha? 
 
EMÍLIA Digo o que deve dizer uma menina de juízo: não consinto que ele transponha aquela porta sem o consentimento de papai e mamãe. Quando for meu noivo, sim... 
 
JOSÉ Se a iaiazinha soubesse o empenho que seu doutor mostra! Olhe, não diga nada a ele... mas... ele pediu-me que dissesse a iaiazinha que me entregou a carta com lágrimas nos olhos... (Pausa) Mas uma vez que a iaiazinha não quer... (Vai a sair pelo fundo) 
 
EMÍLIA José? 
 
JOSÉ (voltando ligeiro)  Mando entrar o moço? 
 
EMÍLIA (depois de hesitar)  Está bom, manda. (José vai a sair) Mas espera: é preciso que lhe afirmes que só consenti depois de muitas instâncias tua. Será bom que não me julgue fácil. Manda-o entrar. Onde está ele? 
 
JOSÉ Olhe. (Aponta para a rua, pela janela) Não vê aquele tipo encostado ao chafariz? Fumando? 
 
EMÍLIA Sim. Isso há de ser já, enquanto papai não volta e mamãe está ocupada com o doce de araçá... (Vai saindo) 
 
JOSÉ Então iaiazinha não fica para recebê-lo? 
 
EMÍLIA
Eu devo vir lá de dentro como quem não sabe da coisa. Já te disse: quero que ele se persuada que eu não aprovo... 
 
JOSÉ Se sinhô velho descobre... 
 
EMÍLIA Anda! Não estejas aí a papaguear! Avia-te! (Sai) 
 
 
CENA IV José, depois Alberto
 
JOSÉ O que eu quero é não ficar mal no negócio. Tenho medo destas coisas que me pelo. (Vai a janela e assobia: responde-lhe da rua um outro assobio) Moleque está fino no namoro! 
 
DUETINO
 
JOSÉ (à janela)  Entre depressa, meu ioiozinho!  (Correndo ao corredor)  Não faça bulha! Devagarinho!   (Alberto entra)  Faça de conta que a casa é sua,  pois sinhô velho está na rua. 
 
ALBERTO E sinhá velha? 
 
JOSÉ Lá na cozinha 
 
Fazendo doce com iaiazinha. 
 
ALBERTO (à boca da cena) 
 
Eu sou Alberto Ribeiro estudante mais pimpão! 
 
JOSÉ Na bolsa pouco dinheiro muito amor no coração. 
 
JUNTOS Quando me lembro que a namorada Quando se lembra que a namorada nesta casinha vive isolada  deixo pro lado a Anatomia, deixa pro lado a Anatomia, e sem saudades da Cirurgia, deito a correr pro seu lado! deita a correr pro seu lado!  Sou ligeiro namorado! É ligeiro namorado! Olaré! Olaré! Vida boa isto é que é! 
 
JOSÉ Não se demore muito, é que é; hoje, véspera de Reis, sinhô velho deve entrar cedo... 
 
ALBERTO E Milu? Onde está ela?... 
 
JOSÉ Iaiazinha não tarda. Está contente como quê! Mas não diga nada a ela, porque ela me disse que lhe dissesse que ela não aprova a entrada de vossa senhoria aqui e que só a muitas instâncias minhas... 
 
ALBERTO Bem. Toma lá dois mil reis... (Dá-lhe dinheiro) 
 
JOSÉ Aqui só estão dez tostões... 
 
ALBERTO Anda... Mexe-te... Logo terá os outros dez. 
 
JOSÉ Olhe; aí vem iaiazinha. (Sai pelo fundo) 
 
  CENA V Alberto e Emília.
 
EMÍLIA (fingindo surpresa)  Ui! 
 
ALBERTO Não se assuste... não se assuste... Sou eu... 
 
EMÍLIA Quem foi que o autorizou?... 
 
ALBERTO (interrompendo-a)  Quando se ama, meu bem, não se quer saber de autorizações; o coração tudo autoriza e às leis que ele dita, não há desobediência possível. 
 
EMÍLIA Você tem lábias, tem... 
 
ALBERTO E lábios... para dizer que te amo, que te adoro, que és o sol de minha vida, a estrela da minha existência! (Ajoelha-se) 
 
EMÍLIA Ó gentes! Eu não sou santa, seu Alberto. Se alevante. (Alberto erguese) Mas estes estudantes são mesmo muito atrevidos. Ora se papai... 
 
ALBERTO Descansa; o José está à porta da rua para prevenir-nos... 
 
EMÍLIA Hei de contar a mamãe o desaforo de José. Você acha muito bonito andar de comunicações com o moleque, não? 
 
ALBERTO O que eu acho é que foi com o teu consentimento que... 
 
EMÍLIA (depois de fechar a porta da esquerda)  Vamos ao que importa: o que me quer? 
 
ALBERTO O que te quero? Quero ver-te; falar-te; pintar-te ao vivo este amor; ouvir de ti mais uma vez que me amas. 
 
EMÍLIA Mesmo por você saber que o amo; mesmo por esperá-lo à janela para vê-lo passar e apertar-lhe a mão ou oferecer-lhe uma flor, é que você abusa! Ingrato! Fazer consentir em que tenha entrada aqui, sem papai e mamãe saberem! 
 
ALBERTO És injusta, Milu, és muito injusta. (Emília faz-lhe má cara) Está bem! Já não digo nada! Adeus! não quero comprometê-la... (Dirige-se para a porta do fundo) Não quero abusar... 
 
EMÍLIA Alberto? 
 
ALBERTO (quase a sair)  Adeus. 
 
EMÍLIA (bate o pé)  Alberto! 
 
ALBERTO (volta à cena)  Milu? 
 
EMÍLIA (toma-lhe as mãos)  Você não é homem; você é o diabo! 
 
ALBERTO Queres dizer que sou mulher? 
 
EMÍLIA Por que não me pede a papai? 
 
ALBERTO Já te disse que isso tem seus quês: teu pai, disseste-me, quer casar-te com o filho de um seu compadre... 
 
EMÍLIA Meu pai não é homem que obrigue a filha a casar-se à força! 
 
ALBERTO Ainda há outra coisa: eu tenho um tio... 
 
EMÍLIA Ah! você tem um tio? Ainda não me havia dito... 
 
ALBERTO Pois de onde me vem a mesada? De meu tio... É preciso que me entenda com ele... Se faz-me as vezes de pai, não é muito natural que eu, que faço as vezes de filho, case-me sem ao menos dizer: Água vai. 
 
EMÍLIA E se ele puser alguma objeção?... 
 
ALBERTO Não põe, não. Meu tio é muito meu amigo. É capaz de trepar ao céu, para ir buscar a lua, se eu lha pedir. O mais que pode haver é alguma demorazinha... Já estou no quinto ano... Logo que me formar... 
 
EMÍLIA Logo que se formar, adeus... Ora, eu bem conheço estes estudantes! Mentem por quantas juntas têm! 
 
ALBERTO Então já gostaste de algum, antes de mim? 
 
EMÍLIA Ó gentes! quem foi que disse?... (À parte) Só de três... (Alto) As minhas amigas é que me contam... 
 
ALBERTO Histórias! Se elas os merecessem, como me mereces, não havia motivo de queixa... (Toma-lhe as mãos) Sossega: prometo que hei de ser teu marido, a menos que te esqueças de mim. 
 
EMÍLIA E posso contar com a mesma firmeza de sua parte? 
 
ALBERTO Ainda me perguntas? 
 
EMÍLIA Jure... 
 
ALBERTO (estende solenemente a mão)  Juro... (Outro tom) pelo que queres que eu jure? 
 
EMÍLIA Por tudo quanto há de mais sagrado... 
 
ALBERTO (estende solenemente a mão)  Por tudo quanto há de mais sagrado... Estás satisfeita? 
 
EMÍLIA Estou, sim; é impossível que você quebre um juramento tão bonito! 
 
ALBERTO Se já estivesse formado, jurava-te à fé de meu grau! 
 
  CENA VI Emília, Alberto e José.
 
JOSÉ (entra a correr)  Iaiazinha! Seu doutor! Fujam! Fujam!... 
 
(Toda a cena é rápida e de movimento) 
 
ALBERTO e EMÍLIA  O que é? O que é? 
 
JOSÉ Quando dei por mim, sinhô velho já vinha por trás da igreja!... Fujam! Fujam!... 
 
ALBERTO Logo que ele entrar para o corredor, eu pulo pela janela. (Coloca-se atrás da janela) 
 
EMÍLIA (vai à janela e volta)  É impossível! 
 
JOSÉ Depressa! 
 
ALBERTO (a Emília)  Por quê?... 
 
JOSÉ Depressa! 
 
ALBERTO (a Emília)  Mas por que, por quê? 
 
EMÍLIA Seu Antônio está na porta. 
 
ALBERTO Quem é seu Antônio nesta vida? 
 
EMÍLIA É o maroto da venda... 
 
JOSÉ Chi! Uma língua danada! Quando não tem de quem falar, fala de si... Depressa! Sinhô velho já deve estar na porta... (Vai à porta e volta aflito com as mãos na cabeça) 
 
EMÍLIA Estou perdida! 
 
ALBERTO Ah! esta mesa... (Esconde-se debaixo da mesa) 
 
REIS (fora)  Vamos entrando... 
 
EMÍLIA E vem acompanhado... Meu Deus! O que sairá daqui?... 
 
JOSÉ Salve-se quem puder! (Vai saindo e Reis, que entra com Bermudes, agarra-o pelo braço) 
 
REIS (a José, no fundo)  Ó José, logo que vires o Manuel, aquele negro que foi capitão do canto da Soledade (tu o conheces...) com outro, carregando os baús do compadre, levá-os lá para o sótão... O carreto já está pago... Vai... 
 
(José sai; durante a cena que se segue vêm-se passar pelos fundos dois negros, carregando os baús; depois tornam a passar em sentido contrário, com as mãos vazias; Alberto de vez em quando espia por baixo do pano que deve cobrir a mesa e mostra que está impaciente e mal acomodado) 
 
 
CENA VII Emília, Alberto, Reis e Bermudês.
 
BERMUDES (sem reparar em Emília, bem como Reis)  Você está num casão, compadre. Quanto paga por isto? 
 
REIS Trinta mil reis. 
 
BERMUDES Tem purrões? (Senta-se junto à mesa) 
 
REIS Não, mas aqui a Vizinha da esquerda tem, e é quanto basta. (Outro tom) Compadre, você vai para o sótão... para o quarto do Antonico, seu afilhado...Aquilo por lá é fresco... há de gostar... 
 
BERMUDES E onde está ele? 
 
REIS O sótão? É lá em cima... É só subir... 
 
BERMUDES Não; o Antonico. 
 
REIS Pois não lhe mandei dizer que foi para a Corte? Lá está na escola... escola... Ora diabo! esquece-me sempre o nome da tal escola... (Repara em Emília) Ó Milu! estavas aí? Antes de me tomares a benção, dize cá: como é o nome da escola em que está teu irmão, lá no Rio de Janeiro? 
 
EMÍLIA Politécnica. 
 
REIS É isso... é isso... Poli... 
 
BERMUDES  ...técnica. O nome é danado. 
 
REIS (dá a benção a Emília, abraça-a e beija-a na testa)  Deus te faça santa! (A Bermudes) Aqui está minha filha, compadre; você não a conhece; quando veio da última vez à cidade, ela estava na Providência. Milu, tome a benção ao compadre de papai... 
 
BERMUDES Qual a benção! Venha de lá um abraço ao velho amigo de papai e mamãe. (Ergue-se) A Iaiá não faz ideia como éramos camaradas quando papai morava em Camamu. (Abraça-a) Éramos a corda e o caldeirão... já lá vão uns bons vinte anos. 
 
EMÍLIA Papai fala-me muitas vezes em vossemecê. 
 
BERMUDES Pois não havia de falar? Entendíamo-nos perfeitamente! Camaradas em tudo: chapas combinadas para as eleições, gostos iguais, etc.; etc.! Que bons tempos! O que diz, compadre? 
 
REIS Mas ainda você não me disse nada da pequena. 
 
BERMUDES Pois que lhe hei de dizer? (Graceja) É muito feia... muito desajeitada... (Abraça-a de novo) Eh, eh! Mentira, Iaiá! É um anjinho de Nossa Senhora. (A Reis) Está satisfeito? 
 
EMÍLIA (enquanto Bermudes a abraça, a Reis) 
 
Isso é debique de seu compadre, não é, papai? 
 
REIS O que eu sei é que és uma rapariga de muito juízo... 
 
EMÍLIA (á parte, olhando com intenção, para o esconderijo de Alberto)  Se ele soubesse... 
 
BERMUDES Mas onde está encantada esta comadre?... 
 
REIS Vais chamar mamãe, Milu, dize-lhe quem está cá... 
 
EMÍLIA É já, papai. (Vai saindo) 
 
REIS Olha: leva isto lá fora. (Entrega-lhe chapéus e guarda-sóis seus e de Bermudes; Emília sai, olhando para o esconderijo de Alberto) 
 
BERMUDES (vendo-a sair) Ora quem havia de dizer? Está uma moça, hein? Isto é que me faz velho... (Senta-se) 
 
 
CENA VIII Reis e Bermudês.
 
BERMUDES Está mesmo que parece talhadinha para o rapaz! Que bonito casal! Estou certo que, em se vendo, ambos os dois hão de ficar de beiço caído... 
 
REIS (senta-se ao lado de Bermudes)  Eu também estou certo disso. (Um pouco embaraçado) Mas olhe, compadre, eu toquei nisso à pequena... 
 
BERMUDES Ah! Tocou? 
 
REIS Toquei, sim, compadre, toquei... 
 
BERMUDES Então, toque... (Apresenta a mão a Reis que a aperta) A pequena (já se sabe!) pulou de contente; não pulou, não? 
 
REIS Pelo contrário, compadre; torceu o focinho... 
 
BERMUDES Torceu? 
 
REIS Torceu, compadre, torceu... 
 
BERMUDES Aqui é que a porca torce o rabo... Mas ora adeus! Eu não quero que os pequenos casem sem se conhecerem. Eles que namorem primeiro um ano, dois... e depois amarrem-se! Falem-se, estudem-se! Se gostar um do outro, muito que bem; se não, já cá não está quem falou. Isso não vai a matar, nem vale a pena contrariá-los! 
 
REIS É que Milu... se não me engano... 
 
BERMUDES Se não se engana... 
 
REIS (com mistério)  Tem aí o seu namorico... 
 
BERMUDES Então está tudo acabado! (Erguem-se) Dê-se o dito por não dito e deixe-se correr o barco! O que você não deve, compadre, é constrangê-la: olha que desses constrangimentos nasce muita coisa feia... 
 
REIS Aí vem sua comadre. 
 
 
CENA IX  Alberto, Reis, Bermudes, Francisca e José.
 
(Francisca entra da esquerda com as mãos lambuzadas de doce e as mangas arregaçadas e José, do fundo) 
 
FRANCISCA (expansiva)  Ora viva o seu compadre! 
 
BERMUDES Ora viva a sinhá comadre! (Quer apertar-lhe a mão) 
 
FRANCISCA (foge com as mãos)  Estou com as mãos sujas! Estava dando ponto a um doce de araçá, de que o compadre há de gostar e lamber os beiços. Mas venha de lá esse abraço!... Cuidado! não se suje... 
 
BERMUDES (antes de abraçar Francisca, a Reis)  Com sua licença, compadre... 
 
JOSÉ (enquanto Bermudes e Francisca abraçam-se e depois conversam baixinho, aproxima-se de Reis)  Sinhô velho? 
 
REIS O que é que me queres, moleque? 
 
JOSÉ Sinhô dá licença para eu hoje vir tarde para casa? 
 
REIS O que é que tens de fazer na rua, vadio?... 
 
JOSÉ Hoje é véspera de Reis... e eu sou do rancho... 
 
REIS O que tu és sei eu! Vá lá... vá lá... 
 
JOSÉ Sinhô velho faz bilhete? 
 
REIS Não é preciso; é véspera de Reis: podes andar sem bilhete. (Dá-lhe dinheiro) Não vá beber de cachaça, hein? (A Bermudes, mostrando José) Ó compadre, conhece esta peça? 
 
BERMUDES É um bonito moleque! 
 
JOSÉ Muito obrigado. 
 
REIS (a José)  Cala a boca, moleque! 
 
FRANCISCA Já não se alembra dele, compadre? 
 
REIS O José... cria de nossa casa?... 
 
JOSÉ José Filomeno dos Reis, um criado de vossa senhoria... 
 
FRANCISCA (a José)  Cala a boca, apresentado! 
 
BERMUDES (recordando-se)  Ah! agora me lembro! Mas como está crescido este moleque! 
 
FRANCISCA É muito vadio, compadre! Quando era pequenino... 
 
BERMUDES A comadre estimava-o muito... 
 
REIS Chegava mesmo a fazer-lhe a cama; agora, não vale o que come! 
 
(Bermudes e Francisca continuam a conversar baixinho) 
 
JOSÉ (a Reis)  Posso ir, sinhô velho? 
 
REIS Vai (José vai saindo) Ó que ideia! (Chama) José! 
 
JOSÉ (voltando)  Sinhô? 
 
REIS (a Bermudes)  Vou festejar a sua chegada, compadre! (A José) Uma vez que tu és do rancho, quero que faças com que ele venha a dançar aqui esta noite, ouviste? 
 
JOSÉ Sim, sinhô: eu faço de burrinha... 
 
FRANCISCA Você deita-me este moleque a perder, seu Reis! (A Bermudes) Todo dia santo este moleque leva todo o santo dia na vadiação. 
 
REIS (sem dar ouvidos a Francisca; a José)  Está bom! Se vierem, dou uma gorjeta; se não vierem, levas uma dúzia de bolos! 
 
JOSÉ Antes quero a gorjeta, sinhô! (Sai correndo e cantarolando) 
 
BERMUDES (a Reis) Então, para festejar a minha chegada, manda você dançar os Reis hoje aqui... (A Francisca) O compadre é o mesmo: não mudou mesmo nada... 
 
FRANCISCA Deixa ele falar: aquilo é porque ele se chama seu Reis. 
 
BERMUDES Ah! ah! ah! A comadre teve graça! (A Reis) Também não mudou nada mesmo nada... 
 
REIS (a Bermudes)  Mas ainda você não disse a Dona Francisca... 
 
FRANCISCA (interrompe-o)  Lá vem seu Reis com Dona Francisca! O cabeçudo ao pé de gente não é capaz de me tratar por Dona Chiquinha... 
 
BERMUDES É costume antigo! Andavam sempre brigando por via disso em Camamu! 
 
FRANCISCA Aqui tem sido a mesma coisa! Veja lá, compadre! Com tantos anos de casados! E eu que embirro com semelhante nome de Francisca! 
 
REIS (maçado)  Pois vá lá, Dona Chiquinha... (Estala a língua) 
 
FRANCISCA Mas vamos a saber... (A Reis) O que ia você dizendo? 
 
REIS É que ainda o compadre não lhe disse o motivo que o trouxe à cidade... Mas você interrompe a gente... 
 
BERMUDES Venho à cidade por via daquela questãozinha de terras... A comadre lembra-se? 
 
FRANCISCA Não me lembro eu de outra coisa! Questãozinha diz o compadre? Questãozona, digo eu! que muitos cabelos brancos lhe fez criar! 
 
BERMUDES Ora! as terras eram minhas! A legitimação estava feita... (Sinal de assentimento de Reis e de Francisca. Pausa) Mas eu dormi no negócio... 
 
REIS Foi todo o seu mal, compadre! 
 
BERMUDES Mas agora o coronel Casimiro... 
 
FRANCISCA Grandessíssimo cão! Não me hei de esquecer do dia em que ele me veio convidar para substituir a professora pública, que vinha doente para a cidade! 
 
REIS Ora! Aquilo é um vira-casaca muito desavergonhado! 
 
FRANCISCA Quando o bruto sabia perfeitamente que eu não sei ler! 
 
BERMUDES Não se admire, comadre, não se admire, porque aí por esse interior velho muita gente ensina aquilo que não sabe!... 
 
REIS Mas vamos à questão... 
 
BERMUDES O coronel Casimiro apresenta documentos de que as terras são dele! “Oh! digo eu cá comigo, esta agora fia mais fino!” Entreguei a minha causa na mão do Secundino Barbosa... 
 
FRANCISCA Quem? Aquele rábule que brigou a soco com seu Reis nas eleições de 54? 
 
REIS E por sinal me partiu dois dentes. (Mostra a falta dos dentes e fala com a boca aberta) que nunca mais tornaram a nascer! 
 
BERMUDES Esse mesmo! (Em tom lamentoso) Ah! compadre! (Toma a mão de Reis) Ah! comadre! (Toma a de Francisca, esquecendo-se que está suja) Aquele homem foi a morte de minha causa! 
 
FRANCISCA e REIS Sim? deveras? 
 
BERMUDES (abandona-lhes as mãos com desânimo)  E talvez seja a causa de minha morte! (Limpa a mão que pegou na de Francisca) 
 
REIS Ora não pense nisso! 
 
FRANCISCA Ponha o coração à larga, compadre... 
 
BERMUDES Tem razão, compadre; tem razão, comadre; ambos os dois tem razão. (Alegra-se aos poucos) Principalmente hoje, véspera de Reis e dia de alegria, porque vi a vossemecês, a menina e amanhã verei também meu sobrinho. O tratante anda sempre a mudar-se e então agora está em férias: não posso procurá-lo na Academia, Olhem que aquele rapaz é o meu pecado! Mas, graças às cabaças, está quase senhor doutor e pronto para mandar gente para o outro mundo... Pouco se me dá dos cobritos que tenho gasto com ele neste! 
 
FRANCISCA E o que me diz a respeito de umas certas cartinhas trocadas entre seu Reis e o compadre? 
 
BERMUDES Já não se fala nisso! A moça gosta de outro e amor não é imposto pessoal. 
 
FRANCISCA Eu já não penso assim! Bem podíamos mostrar a Milu o verdadeiro caminho da felicidade... 
 
REIS Asneira no caso! 
 
BERMUDES (sentencioso)  Comadre, o verdadeiro caminho da felicidade é aquele em que a gente anda por seu gosto e não aquele para onde nos empurram. 
 
REIS Apoiado! Casem-se à vontade as moças e depois lá se avenham! 
 
FRANCISCA O Compadre já sabe que o seu afilhado... 
 
BERMUDES Já. Já sei que está na escola... na escola... (A Reis) Como é o nome da escola, compadre? 
 
REIS Escola... escola... Como é, Dona Francisca? 
 
FRANCISCA (zangada)  Dona Francisca, hein?... 
 
REIS (emenda)  Como é, Dona Chiquinha? 
 
FRANCISCA Ora! Eu tenho o nome debaixo da língua... 
 
BERMUDES Eu também... 
 
REIS Eu também... (Chama) Milu, ó Milu! 
 
(Emília responde de dentro com um grito) 
 
REIS e FRANCISCA Vem cá... 
 
OS TRÊS Escola... escola... Ora! 
 
CORO Ó que diabo de nome! Ó que nome do diabo! A paciência consome e da pachorra dá cabo!
 
 
CENA X
 
Os mesmos e Emília.
 
EMÍLIA O que querem? 
 
OS TRÊS Como é o nome da escola em que está o Antonico? 
 
EMÍLIA Como? Não entendi! 
 
OS TRÊS Como é o nome... (Calam-se e entreolham-se) 
 
EMÍLIA Fale só um. 
 
(Tornam a falar todos a um tempo) 
 
BERMUDES Fale você compadre. 
 
REIS Fale você, Dona Fran... Chiquinha. 
 
FRANCISCA Fale você, compadre. 
 
BERMUDES Como é o nome da escola em que está o Antonico? 
 
EMÍLIA Escola po-li-téc-ni-ca 
 
OS TRÊS Ahn...
 
REPETIÇÃO DO CORO Ó que diabo de nome! Ó que nome do diabo! A paciência consome e da pachorra dá cabo!
 
EMÍLIA Com licença. O tacho ainda está no fogo. (Sai, olhando furtivamente para o esconderijo de Alberto) 
 
BERMUDES (vendo-a sair)  Que boa dona de casa esta ali se formando, hein, comadre? 
 
FRANCISCA Veremos, compadre, veremos... 
 
REIS Temos trabalhado para fazer dela não só uma boa dona de casa, como diz você; mas também uma senhora que saiba entrar numa sala... 
 
FRANCISCA Lá isso é verdade! 
 
BERMUDES Nunca lhe doam as mãos, compadre! 
 
REIS Já aprendeu francês, inglês, um bocadinho de italiano... 
 
BERMUDES Deveras? 
 
FRANCISCA Sim, senhor; e está agora arrecordando o português... 
 
REIS Olhe! (Aponta para o piano) 
 
BERMUDES Piano, hein?! 
 
REIS É como vê! 
 
BERMUDES Muito bem! (Outro tom. A Francisca,) Ora, comadre! Vim encontrar esta heroica cidade de São Salvador muito mudada! 
 
FRANCISCA É verdade! Ainda não me falou a esse respeito! O que me diz do parafuso?... Seu Reis já me fez trepar naquela geringonça! Mas não é mais a filha de meu pai... O compadre subiu pelo parafuso?... 
 
BERMUDES Subi, comadre, subi; mas também não é mais o filho de minha mãe... Eu estava só vendo desgrudar-se aquela futrica, e zás catrapus, era uma vez um Bermudes! (Benze-se) Nada! 
 
FRANCISCA E o chupão que se recebe? (Imita) Fuuu... Agora, os bondes, sim... 
 
BERMUDES Sim, senhora! Para aí vou eu! Falem-me dos bondes! Mas que mudanças, compadre, que invenções, comadre!   
 
TANGO
 
BERMUDES  Tanta mudança me faz confuso!  Pois se o progresso anda tão fino,  que temos bondes e parafuso,  temos o cabo submarino! 
 
— E até é uso  lindas modinhas tocar o sino!  Se o que se passa cá na Bahia,  dizer-se quer mandar à França!  vem a resposta no mesmo dia,  e na viagem ninguém se cansa!...  Virgem Maria!  Me faz confuso tanta mudança. 
 
OS TRÊS Virgem Maria! Etc., 
 
BERMUDÊS Não há mais o que se invente!  Que invenções encontrar vim!  Por três tostões vai a gente  até o fim do Bonfim!  A libra chama-se quilo,  segundo os novos padrões!  O que nos falta é aquilo  com que se compram melões... 
 
OS TRÊS O que nos falta, etc. 
 
REIS Dona Francisca, vá... 
 
FRANCISCA Chame-me Dona Chiquinha, seu Reis! Jesus! que teima de homem! 
 
REIS (com resignação) Dona Chiquinha, vá aprontar o sótão... Já sabe que compadre vem morar conosco? 
 
FRANCISCA Nem a gente consentia que morasse em outra parte! 
 
REIS As bagagens já lá estão. 
 
FRANCISCA Então, com licença, seu compadre. Quando quiser, nada de cerimônias, que a casa é sua. (Vai saindo e retrocede) Ah! deixe-me acender estas velas. 
 
(A cena tem escurecido gradualmente. Francisca acende duas velas dos castiçais) 
 
REIS (enquanto Francisca prepara a luz)  Você não quer mudar de roupa compadre? 
 
BERMUDES Daqui a bocadinho... Se você tem um cachimbo, traga-me... Eu ainda fico por cá. Está agradável esta viração. 
 
REIS É já. (Sai com Francisca)   
 
CENA XI Alberto e Bermudes.
 
(Bermudes senta-se junto à mesa: pega num álbum, deita os óculos e começa a folheá-lo. Alberto sai do esconderijo) 
 
BERMUDES (examinas as fotografias)  Este é Sua majestade... É um imperador bem bonito! Está acabado... Pois olhem que é mais moço do que eu... (Folheia) Aqui estão o compadre, a comadre, a Milu e o meu afilhado... Está muito bom este grupo... A comadre é que não está muito parecida, não. O Antonico, está um homem! Deus queira que faça alguma coisa lá pela tal escola lipotécnica... 
 
ALBERTO (aproxima-se pé ante pé de Bermudes, tapa-lhe os olhos e disfarça a voz)  Quem sou eu? 
 
BERMUDES Oh! Oh! não aperte tanto! Sei lá quem é! Veja que o senhor está enganado: eu não sou o compadre; isto é: sou o compadre, sim, mas o compadre do compadre! Largue-me, senhor! e esta! Será algum maluco? 
 
ALBERTO (com voz natural)  Então já adivinha? 
 
BERMUDES Que ouço!... Que vejo!... (Ergue-se admirado e contente) Pois tu... mas tu... oh! tu... 
 
DUETINO
 
BERMUDES Corre a meus braços! 
 
ALBERTO (abraça-o)  Aqui me tem! 
 
BERMUDES Oh! meu Deus, isto faz tanto bem! (Abre de novo os braços) Novos abraços! 
 
ALBERTO Aqui me tem! 
 
BERMUDES Como estou satisfeito! 
 
ALBERTO E eu também! 
 
BERMUDES Mais um abracinho! 
 
(Mesmo jogo de cena) 
 
ALBERTO Aqui estou eu! 
 
BERMUDES Oh! meu Deus, que de bens isto faz!  Oh! meu sobrinho! 
 
ALBERTO Oh! tio meu! 
 
BERMUDES Quanto estou satisfeito! 
 
ALBERTO Eu ‘stou mais! 
 
BERMUDES Mas como diabo achas-te aqui? 
 
ALBERTO Vim seguindo-o: vossemecê vinha adiante; eu vinha atrás; até que afinal vi-o entrar para cá; esperei-o, a ver se saía; mas como vi entrarem as bagagens, disse: Bem, ao que parece, vai o homem hospedar-se ali... 
 
BERMUDES Bem mostras que tens cabeça; sais a teu pai que, para ir a qualquer parte, bastava que lhe ensinassem o caminho. Eu ia para o hotel, para de lá procurar-te e morar contigo... Onde moras tu agora? 
 
ALBERTO No beco do Tira-chapéu... numa república. 
 
BERMUDES República?! 
 
ALBERTO É uma espécie de Boêmia... 
 
BERMUDES Boêmia?... 
 
ALBERTO É uma espécie de república... 
 
BERMUDES Ahn... (À parte) A explicação foi bem dada, mas eu fiquei na mesma... 
 
ALBERTO Mas, afinal de contas, por que não foi morar comigo? 
 
BERMUDES Encontrei o compadre, que obrigou-me a vir para cá. Mesmo porque, em casa do compadre estou melhor do que numa... como chama? 
 
ALBERTO República. 
 
BERMUDES Mas que diabo quer dizer uma república? 
 
ALBERTO É uma espécie de... 
 
BERMUDES  ...de Boêmia. Estou ciente. Cá recebi, não havia pressa! (À parte) Isto é por força nome de mezinha... 
 
 
CENA XII Os mesmos e Reis.
 
REIS (traz um cachimbo aceso e um cálice de aguardente que oferece a Bermudes)  Aqui tem, compadre, o cachimbo e um golinho de aguardente para refrescar. (Cumprimenta Alberto) 
 
BERMUDES (fumando)  Meu sobrinho, de quem tantas vezes falamos. 
 
REIS Ah! Sim?... Como está, senhor doutor? Sinto que nunca nos viesse ver... 
 
BERMUDES Quem teve a culpa foi esse seu criado. Não lho apresentei, porque disse lá comigo: Quanto menos conhecimento tiver, mais depressa andará em seus estudos... 
 
REIS (amável)  E como soube que estava aqui o senhor seu tio, doutor? 
 
BERMUDES Seguiu-nos... 
 
REIS Oh! e por que não falou logo?... 
 
ALBERTO É que a princípio duvidei que fosse meu tio; mas depois que vi entrarem as malas... 
 
REIS Então foi pelas malas que o conheceu? 
 
BERMUDES É que elas trazem o meu nome... 
 
REIS Ahn... 
 
ALBERTO (à parte) Feliz acaso... 
 
BERMUDES Compadre, vamos para o tal sótão... Quero conversar com este rapaz sobre seus estudos, sua vida na cidade. (A Alberto) Quero dizer-te também o que me fez sair do meu sossego... 
 
ALBERTO (à parte)  Bis. 
 
BERMUDES E mostrar-te uma ferida que tenho... mas não te mostro, não. Tu já tens tempo de sobra para saber... 
 
ALBERTO (com importância)  Ora! 
 
BERMUDES Talvez seja alguma... Boêmia, hein?... 
 
ALBERTO Que disparate, meu tio! 
 
REIS Vamos, compadre. Passemos pelo corredor! 
 
(Saem pelo fundo)   
 
CENA XIII Emília depois Francisca.
 
EMÍLIA (entra pressurosa e, depois de certificar-ser que está só, ergue o pano da mesa sob que estava escondido Alberto; tristemente)  Foi-se! 
 
FRANCISCA (entra)  Quem?... 
 
EMÍLIA Senhora? 
 
FRANCISCA Quem é que — foi-se —? 
 
EMÍLIA (perturbada)  Donde? 
 
FRANCISCA Ó Milu! Pois não arribaste o pano da mesa e não disseste — Foi-se? Foi-se quem?... 
 
EMÍLIA Ah! era um camundongo... 
 
FRANCISCA Pois aqui em casa não havia ratos... 
 
EMÍLIA Não era rato; era camundongo... 
 
FRANCISCA Vem a dar certo: eles hão de crescer por força... Vou mandar pôr pelos cantos das casas bananas espetadas com fosques. 
 
EMÍLIA Isso não é bom; vossemecê já o fez, e em vez dos ratos, foi o gato que comeu as bananas e morreu. 
 
FRANCISCA Pobre Rocambole! 
 
EMÍLIA Para onde foi seu compadre, mamãe? 
 
FRANCISCA É provável que para o sótão, que é o quarto que está marcado para ele. E por falar no compadre, menina: se te casasses com o sobrinho... 
 
EMÍLIA Havia de ser muito infeliz... 
 
FRANCISCA Pelo contrário: havias de ser muito feliz. O compadre é homem endinheirado e o tal sobrinho vem a ficar com aquilo tudo... 
 
REIS (fora, do sótão)  Dona Francisca... ó Dona Francisca! 
 
FRANCISCA Lá está teu pai a chamar-me de Dona Francisca. Olhem que é forte teima! Pois não respondo não! 
 
REIS (fora)  Dona Francisca... 
 
FRANCISCA Grita para aí. 
 
REIS (no mesmo)  Dona Francisca... 
 
FRANCISCA (a Emília)  Vê se ajudas a Maximiniana a passar aquele doce de araçá para as compoteiras. 
 
REIS (no mesmo) Dona Francisca... 
 
FRANCISCA Grita! 
 
REIS (no mesmo)  Dona Chiquinha! ó Dona Chiquinha! 
 
FRANCISCA Ah! isso é outro cantar... (Muito terna) O que é, seu Reis, o que é? Aí vou eu... (Sai pelo corredor) 
 
  CENA XIV  Emília.
 
EMÍLIA “Havias de ser muito feliz”, disse mamãe. Moço... rico... Ora quem dirá que o Alberto há de ser sempre constante?... Este é certo e sempre ouvi dizer que não deixes o certo pelo duvidoso... Mas não! Não! Isso seria muito feio! Um moço que nunca vi, nunca conheci... (Cai numa cadeira) E não tenho uma amiga, uma confidente... uma conselheira... que me ouça... que me atenda... que me aconselhe... (Olha para a rua) Ah! ali vem a nossa Vizinha Dona Emília... uma viúva traquejada nestas coisas de namoro... Foi Deus que me mandou!... (Vai à janela e fala para fora) Ó Vizinha, antes de entrar em casa, podia dar-me uma palavrinha? 
 
VIZINHA (fora)  Duas ou três, se quiser... 
 
  CENA XV Emília à janela e uma vizinha na rua.
 
VIZINHA (modos hipócritas; vestida a passeio) 
 
Como está, meu nome?... 
 
EMÍLIA Assim-assim. E a senhora?... 
 
VIZINHA Muito constipada; mas agora vou melhorzinha. Vim agora da Lapinha; fui levar uma velinha ao menino Jesus... 
 
EMÍLIA Para ficar boa?... 
 
VIZINHA Então? Ah! meu nome! a senhora não faz ideia! Desde que fiquei viúva, nunca mais tive um dia de saúde! Parece história! De mais a mais hoje acabei de engomar e pisei n’água fria! 
 
EMÍLIA Que loucura, meu nome! Não faça mais semelhante cousa... 
 
VIZINHA Não foi por querer. Meu sobrinho Vitor (aquele que é tipógrafo) não pode lavar as mãos sem deixar o lugar do lavatório todo molhado. Ai! Ai! enquanto não me casar não tenho sossego! 
 
EMÍLIA Ora, meu nome! O que tem seu sobrinho e o lavatório com o seu casamento? 
 
VIZINHA Não é só isso, meu nome: os ataques histéricos não me largam... 
 
EMÍLIA Então a senhora acha que é muito bom o casamento?... 
 
VIZINHA Ó gentes! o que pode haver melhor do que a gente ter seu maridinho? Meu nome, por que não se casa?... 
 
EMÍLIA Isso é bom de dizer... A senhora bem sabe que o Alberto... 
 
VIZINHA Quem?... O doutor Alberto?... Se a senhora vai atrás dele, está bem aviada, meu nome... Aquilo é um empata... 
 
EMÍLIA Como é que sabe disso?... 
 
VIZINHA Gosta de todo o mundo... feminino. Ainda outro dia... era um dia santo. (Como lembrando-se) Que dia santo era, Emília? (Recordando-se) Creio que foi no dia de Natal... vinha ele no bonde piscando o olho... Adivinhe a quem, meu nome?... 
 
EMÍLIA A quem, meu nome?... 
 
VIZINHA A uma irmã de caridade... 
 
EMÍLIA O que é que diz?... 
 
VIZINHA Ele passa aqui todos os dias por minha causa... 
 
EMÍLIA Por sua causa?... 
 
VIZINHA Por minha causa... E lança-me sorrisos ternos e diz amabilidades... 
 
EMÍLIA O que está dizendo, minha rica senhora?... 
 
VIZINHA Menina, eu tenho muita prática de homens, sei o que são essas coisas... 
 
EMÍLIA Pois olhe, Vizinha, há um moço rico com quem me desejam casar... 
 
VIZINHA Deveras?... 
 
EMÍLIA Deveras: é o sobrinho do padrinho do meu irmão... 
 
VIZINHA E o que vem a ser da senhora?... 
 
EMÍLIA Uma vez que papai é compadre do tio dele e ele é sobrinho do compadre do papai, é por conseguinte de mamãe também... e como sou filha do compadre e da comadre do tio dele, creio que vem a ser meu primo... 
 
VIZINHA Um primo, e ainda em cima rico, não é moleque de tio Chico... Agarre-o com unhas e dentes, meu nome. Acredite que isto de maridos, qualquer serve, contanto que seja homem... 
 
EMÍLIA Mas sempre supus que o Alberto fosse de outra marca... 
 
VIZINHA Não é capaz! Agora eu?... Eu talvez me case com ele... 
 
EMÍLIA (vivamente) 
 
Como?... 
 
VIZINHA Tenho muito jeito para endireitar homens...A senhora verá como ele há de andar direitinho como um fuso! Adeus, meu nome: Nossa Senhora a faça feliz... 
 
EMÍLIA A senhora quer vir dançar os Reis aqui?... 
 
VIZINHA O moleque já me deu essa novidade... Quando eles vierem, eu passarei pela cerca e cá virei também... Até logo... (Some-se) 
 
EMÍLIA Até logo, meu nome... (Sai da janela) 
 
 
CENA XVI Francisca e Emília.
 
FRANCISCA (entra muito contente)  Menina... Iaiá... aposto que há de casar-te com o sobrinho do compadre... 
 
EMÍLIA (à parte)  Ouviu tudo... (Alto) Sim, senhora: estou deliberada a isso... 
 
FRANCISCA (à parte)  Já sabe quem é. (Alto) E nada me dizias, hein, minha disfarçada? Hoje mesmo fica combinado o casamento. Agora, vai ajudar a Maximiniana que são horas de acabar com aquele doce de araçá... 
 
EMÍLIA Não conheço o meu noivo: mas estou certa de que havemos de ser ambos muito felizes... (Saindo, à parte) O que não dirá o Alberto?... (Sai) 
 
FRANCISCA (vai-lhes ao encontro)  Venham... venham...   
 
CENA XVII  Alberto, Reis, Bermudes e Francisca.
 
BERMUDES Então? Onde está a Milu, comadre?... 
 
FRANCISCA Está ocupada com o doce de araçá. 
 
ALBERTO A senhora disse-lhe quem era eu?... 
 
FRANCISCA Não; mas ela o sabe... 
 
ALBERTO Como assim? É impossível!!... 
 
FRANCISCA Pois quando vim do sótão e lhe disse: aposto que hás de casar com o sobrinho do compadre, ela disse-me logo que estava resolvida a isso... 
 
ALBERTO (admirado)  Oh! Então ela?... 
 
REIS Então? que cara é essa, senhor doutor?... 
 
BERMUDES Não gostas de Milu? 
 
ALBERTO Muito; mas muito! 
 
REIS Pois se ela quer... 
 
FRANCISCA  ...casar com vossa senhoria... 
 
ALBERTO Justamente por querer casar comigo, é que... Não! Ela não quer casar comigo... ela quer casar com o sobrinho do compadre! 
 
REIS (à parte)  Enlouqueceu... 
 
BERMUDES (à parte)  Está doido... 
 
FRANCISCA (à parte)  Enlouqueceu... 
 
REIS Mas então quem é o sobrinho do compadre?... 
 
BERMUDES Quem é o meu sobrinho?... 
 
ALBERTO Eu sei o que ou... A Senhora Dona Francisca... 
 
FRANCISCA Um favor, senhor doutor: trate-me por Dona Chiquinha... 
 
ALBERTO  ...sabe que o sou... (Aponta para o Reis) O senhor... (Aponta para o tio) Vossemecê — sabem; ela, porém, não o sabe... 
 
REIS (à parte)  Enlouqueceu... 
 
BERMUDES (à parte)  Está doido... 
 
FRANCISCA (à parte)  Enlouqueceu... 
 
REIS Endoideceu... 
 
BERMUDES Está doido... 
 
REIS O melhor é chamarmos a Milu; ela nos há depor isto em pratos limpos... 
 
BERMUDES Apoiado! 
 
FRANCISCA (chama)  Milu... ó Milu... 
 
(Milu responde de dentro com um grito) 
 
REIS e FRANCISCA Vem cá... 
 
TRIO
 
BERMUDES Se percebo... se percebo, sebo! (A Reis e Francisca) Perceberam a trapalhada? 
 
REIS e FRANCISCA 
 
Nada! 
 
BERMUDES Não entendo! 
 
FRANCISCA Não compr’endo! 
 
REIS Percebendo  quase estou... 
 
BERMUDÊS Pois dê graças  às cabaças:  o compadre adivinhou! 
 
BERMUDES, REIS e FRANCISCA  Que embrulhada!  que maçada!  É preciso adivinhar! A charada  complicada  ninguém pode decifrar!
 
 
CENA XVIII Francisca, Alberto, Reis, Emília e Bermudês.
 
EMÍLIA (de olhos baixos)  Senhora? 
 
FRANCISCA Vem cá, Milu: tu conheces aquele moço?... (Toma-lhe o braço e aponta para Alberto) 
 
EMÍLIA (sem levantar a vista) 
 
Não senhora... 
 
REIS Mas tu ainda não lhe viste o frontispício! (Toma-lhe também o outro braço) 
 
FRANCISCA Sim: não levantaste os olhos... 
 
BERMUDES (benze-se)  Cada vez isto se complica mais! 
 
REIS E não te queres casar com ele?... 
 
EMÍLIA (à parte, e ainda de olhos baixos)  Resolvi o contrário... Não posso esquecer-me do Alberto... 
 
FRANCISCA Então, não respondes?... 
 
EMÍLIA Não senhora. 
 
REIS Não respondes ou não queres casar? 
 
EMÍLIA Não quero... 
 
FRANCISCA Responder ou casar? 
 
BERMUDES (benze-se)  Jesus! 
 
EMÍLIA Casar... 
 
TODOS (menos Alberto e Emília)  Ora esta! 
 
ALBERTO Que satisfação! 
 
TODOS (espantados)  Satisfação! 
 
EMÍLIA (reconhece a voz de Alberto, levanta os olhos)  Ah!... (Corre para ele) — Quero! Quero!... 
 
TODOS (espantados)  Quer? 
 
EMÍLIA Pois este é que o sobrinho do compadre? 
 
TODOS  Este é que é o sobrinho do compadre. 
 
EMÍLIA Quero! quero! por que não hei de querer? (Conversa baixo com Alberto) 
 
REIS (a Bermudes)  Estão doidos, compadre! 
 
BERMUDES (a Francisca)  Estão doidos, comadre? 
 
BERMUDES, REIS e FRANCISCA Que embrulhada!  que maçada!  É preciso adivinhar! 
 
A charada  complicada  ninguém pode decifrar! 
 
(A orquestra une com essa música o canto popular dos Reis, tocado em surdina) 
 
REIS Doidos ou não, casem-se! 
 
FRANCISCA Apoiado! E lá vem os Reis. 
 
 
CENA XIX Francisca, Alberto, Reis, Bermudes e a Vizinha.
 
VIZINHA (entra da esquerda)  Aqui estou eu, Vizinhas... Os Reis já estão perto, meu nome... 
 
ALBERTO Senhora viuvinha da parte d’além, que quer se casar e não acha com quem, ponha-se ao fresco, senão... A senhora quando andou a intrigar-me, não se lembrou daquela célebre cartinha que me escreveu, bastante para perder a sua reputação se a tivesse... 
 
VIZINHA Ó que vergonha, meu nome!... (Vai saindo pelo fundo e esbarra com José, que entra em costume de burrinho) Ui! (Desaparece) 
 
 
CENA XX Francisca, Alberto, Reis, Bermudes, Emília e José; logo depois o Rancho dos Reis, Povo, etc.
 
JOSÉ Licença pro rancho, sinhô velho... 
 
REIS Entre o rancho... 
 
(Todos sentam-se, formando grupos. A música rompe forte; o Rancho dos Reis entra e começa a executar suas danças e cantigas; povo agrupa-se na janela e invade a casa)

 

 

                                                                  Artur Azevedo

 

 

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