Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
UMA VIDA PRÓPRIA
O telefone da sua mesa tocou, porém, Sallie não levantou o olhar do teclado nem fez nenhum outro gesto que indicasse que o ouvira. Suspirando, Brom levantou-se, inclinou-se sobre a sua própria secretária para chegar até à de Sallie e atendeu o telefone. Sallie continuava a escrever no computador com o sobrolho franzido, totalmente absorta.
- Sal, é para ti! - exclamou Brom secamente.
Sallie levantou o olhar e viu o seu colega esticado por cima da mesa e com o braço estendido a passar-lhe o seu próprio telefone.
- Ai, desculpa! Não ouvi - desculpou-se e sorriu enquanto agarrava no auscultador. Brom brincava com ela com frequência dizendo-lhe que vivia noutro mundo e era verdade. De facto, ele tinha de se levantar várias vezes para atender o seu telefone porque ela estava tão concentrada que não o ouvia.
Brom devolveu-lhe o sorriso enquanto voltava a sentar-se.
- É Greg.
- Sou eu, Sallie - disse ela em jeito de saudação.
E Greg Downey, o redactor-chefe das notícias, indicou pausadamente.
- Sobe para conversarmos, menina.
- Vou já - respondeu ela com entusiasmo e desligou.
- Vão mandar-te para fora outra vez, passarinho? - perguntou Brom.
- Espero que sim - respondeu Sallie ao mesmo tempo que punha para trás a sua longa trança. Adorava as missões no estrangeiro, eram um presente. Entusiasmavam-na. Os outros repórteres detestavam a mudança horária, no entanto, ela adorava-as. A sua energia e o seu bom humor pareciam inesgotáveis e, enquanto corria para o escritório de Greg, sentiu a subida de adrenalina. O seu coração batia mais depressa e sentia um formigueiro pelo corpo todo.
Greg levantou o olhar quando ela bateu com os nós dos dedos à porta aberta do escritório e um sorriso suavizou as duras feições do seu rosto.
- Vieste a correr? - perguntou, enquanto se levantava e fechava a porta. - Acabei de desligar...
- À velocidade do costume - disse Sallie rindo-se de si mesma com ele. Os seus olhos azuis brilhavam com regozijo e formaram-se covinhas nas suas faces.
Greg olhou para o seu pequeno rosto radiante e passou-lhe um braço pelos ombros para lhe dar um abraço. Depois, soltou-a.
- Tens alguma coisa para mim? - perguntou ela, ansiosa.
- Nada urgente - replicou ele enquanto regressava ao seu lugar. Riu-se ao ver o rosto de Sallie perder o seu entusiasmo. - Anima-te. Tenho uma coisa boa para ti de qualquer modo. Já ouviste falar da Fundação Olivetti?
- Não - respondeu Sallie sem rodeios. Franziu o sobrolho. - Ou talvez sim? Que Olivetti?
- É uma organização de beneficência europeia - começou a dizer Greg e Sallie interrompeu-o com um gesto triunfante.
- Ah, já sei! Aqueles aristocratas que patrocinam um grande baile todos os Verões, não é verdade?
- Exacto - confirmou Greg.
- Interessa-me? - perguntou Sallie em voz alta. - Nos Estados Unidos não temos famílias de sangue azul, só de vulgar sangue vermelho.
- Interessa-te - garantiu Greg arrastando as palavras. - Este ano a festa vai ser celebrada em Sakarya.
A cara de Sallie resplandeceu.
- Greg! Marina Delchamp?
- Sim - sorriu. - O que te parece, eh? Estou praticamente a oferecer-te umas férias. Entrevistar a magnífica mulher do Ministro da Economia, ir à festa mais luxuosa com que alguma vez sonhaste... e, além disso, com tudo pago. O que mais podias pedir?
- Óptimo! - exclamou ela com entusiasmo. Quando é?
- No final do próximo mês - respondeu com um suspiro e acendeu um cigarro. - O que te dá tempo de sobra para comprares um vestido, no caso de não teres nada apropriado no teu guarda-roupa para ir a um baile com fins beneficentes.
- Muito engraçado - respondeu ela, enrugando o nariz. - Aposto que pensas que só tenho calças no meu armário. Pois, para a tua informação, tenho muitos vestidos.
- Então porque é que nunca te vimos com um? - quis saber.
- Porque, meu querido chefe, tens o costume de me mandar cobrir qualquer notícia sem aviso prévio, portanto aprendi a estar preparada.
- E receias tanto perder a oportunidade de cobrir uma história fora do país que tens uma mala de viagem cheia de roupa debaixo da tua mesa - replicou ele sem se intimidar. - No entanto, desta vez quero que te vistas bem, Sallie. Sakarya pode chegar a ser um aliado importante, especialmente agora que os campos petrolíferos do norte começaram a produzir rendimentos. Sabemos que Marina Delchamp é americana e o seu marido tem uma grande influência sobre o rei, mas de qualquer forma temos de nos comportar.
- Hum, sim. o Departamento de Estado sentir-se-á aliviado ao saber que estou do lado deles - disse ela com uma expressão muito séria. Teve de se esforçar para não desatar a rir-se.
Greg ameaçou-a com o punho.
- Não te rias - avisou. - Os rapazes de Washington vão todos. O rei sabe que aqueles campos lhe dão um poder enorme. Graças à influência de Marina sobre o seu marido, Sakarya tornou-se mais pró-ocidental, mas a mudança ainda é recente. Este baile de beneficência... Será a primeira vez que um acontecimento deste tipo se celebra num país árabe e todas as agências de notícias vão cobri-lo. As televisões também vão estar presentes, claro. De facto, ouvi dizer que Rhydon Baines vai entrevistar o rei, mas ainda não está confirmado - Greg apoiou-se novamente nas costas da cadeira e cruzou as mãos atrás da nuca. - Diz-se que Baines vai deixar a televisão.
Os olhos de Sallie brilharam por um instante.
- A sério? - perguntou. - Nunca pensei que Rhy Baines pudesse deixar o jornalismo.
Greg olhou para ela com interesse. O tom de Sallie chamara a sua atenção.
- Conhece-lo? - perguntou com incredulidade. Não parecia provável, já que Rhydon Baines era um jornalista importante e famoso pelas suas reportagens críticas e as suas entrevistas e Sallie não estava há muito tempo no jornalismo de elite, no entanto, a rapariga movimentava-se muito e conhecia muita gente...
- Crescemos juntos - respondeu com naturalidade. - Bom, não exactamente juntos, ele é mais velho do que eu, mas somos da mesma cidade.
- Então tenho de te dar outra boa notícia disse Greg, recostando-se na sua cadeira e olhando para ela fixamente. - Mas não digas nada, porque ainda não é público. Venderam a revista e temos um novo editor.
- E quem é o novo patrão? - perguntou com atrevimento.
- Não imaginas? - Greg parecia surpreendido. - Rhydon Baines. Por isso não é verdade o que se diz da entrevista ao rei de Sakarya. Contaram-me que na televisão lhe ofereceram o lugar de director de informação para o impedir de sair, mas ele não aceitou.
Sallie abriu muito os olhos.
- Rhy! - repetiu com voz estrangulada. Meu Deus, nunca pensei que ele deixasse a televisão. Tens a certeza? Mas Rhy adorava ser jornalista, gostava mais... mais do que tudo no mundo - completou a frase. O seu coração quase parou de susto ao perceber que estivera prestes a dizer: ”Rhy gostava mais do jornalismo do que de mim”. O que teria dito Greg se
ela o tivesse confessado? Em qualquer caso, já sabia que o seu trabalho na revista estava em perigo, sem necessidade de acrescentar problemas.
- Pelo que percebi - continuou a comentar Greg, que não reparara na hesitação da voz de Sallie, enquanto fumava o seu cigarro, - combinou com a televisão que faria alguns documentários durante os próximos cinco anos, mas à parte disso, acho que pendurou o microfone. Se calhar aborreceu-se.
- Aborreceu-se? - murmurou Sallie, como se a ideia fosse incompreensível. - Do jornalismo?
- Está há demasiado tempo na crista da onda
- replicou Greg. - Talvez queira casar-se, assentar. Já não é novo.
- Tem trinta e seis anos - disse Sallie, esforçando-se para controlar o seu nervosismo. Mas a ideia de Rhy querer formar uma família é absurda.
- Francamente, eu fico contente por ele se juntar a nós. Estou desejoso de trabalhar com ele. O homem é um génio na sua área. Pensei que ficarias contente com a notícia, mas estás com uma cara... como se te tivessem dito que o Pai Natal não existe.
- Estou... espantada - admitiu ela. - Nunca pensei que veria este dia. Quando vai tornar-se público?
- Na próxima semana. Vou tentar organizar as datas para que estejas aqui quando Baines começar a trabalhar connosco, se quiseres.
- Não, obrigada - recusou com um sorriso triste. - Vejo-o quando tiver de o ver.
Alguns minutos mais tarde, novamente na sua mesa, Sallie sentia-se como se lhe tivessem dado um pontapé no estômago. Para não ter de responder às perguntas de Brom, refugiou-se na casa de banho das senhoras e desabou sobre o pequeno sofá que havia no toucador. Rhy! De todas as revistas existentes, por que razão tivera de escolher a World in Review? Para ela seria praticamente impossível encontrar outro emprego de que gostasse tanto como aquele. Não receava que Rhy fosse despedi-la, no entanto sabia muito bem que não queria trabalhar com ele. Rhy já não fazia parte da sua vida e não havia lugar para ele. Não queria tê-lo perto nem sequer por motivos profissionais.
O que dissera Greg? Que talvez Rhy quisesse casar-se e.formar uma família? Quase desatara a rir-se. Rhy já era casado... com ela. Estavam há sete anos separados, durante os quais apenas o vira no pequeno ecrã. O seu casamento desfizera-se precisamente porque Rhy era incapaz de assentar.
Sallie respirou fundo, levantou-se e suavizou a expressão do seu rosto. Receava que tudo aquilo interferisse no seu trabalho e ela era demasiado profissional para o permitir. Mais tarde teria tempo de sobra para planear o que ia fazer.
Naquela noite, enquanto comia com desinteresse a metade da laranja que constituía o seu jantar, o seu rosto iluminou-se. Era muito possível que Rhy nem sequer a reconhecesse. Mudara muito em sete anos; estava mais magra, tinha o cabelo comprido... Até mudara de nome. E o editor não trabalhava de perto com os jornalistas. De facto, talvez passasse semanas sem o ver. Depois, havia o facto de ela viajar muito e se ausentar do país durante longas temporadas.
Além disso, mesmo que Rhy descobrisse que uma das suas jornalistas era a sua esquecida esposa, o que importaria? Sete anos era muito tempo e não tinham tido nenhum contacto. A sua ruptura fora definitiva, terminante. Nenhum deles pedira o divórcio, mas porque realmente não era necessário. Tinham ido cada um para o seu lado, tinham começado vidas diferentes... Era quase como se o ano em que tinham sido casados não tivesse existido. O único resultado daquele ano fora que ela mudara drasticamente. Porque não poderia continuar a trabalhar na revista, mesmo no caso de Rhy a reconhecer?
Quanto mais pensava no assunto, mais lógico lhe parecia. Ela fazia bem o seu trabalho e Rhy não era um homem que deixasse que a sua vida pessoal interferisse na profissional, como ela sabia melhor do que ninguém. Se se limitasse a trabalhar e se mantivesse fora do caminho do seu ainda marido, a sua antiga relação pessoal não teria a menor importância. Afinal de contas, tanto para Rhy como para ela, aquilo eram águas passadas.
Normalmente nunca pensava em Rhy, a não ser que o visse na televisão, contudo, agora que ele voltava a ser uma presença na sua vida, as lembranças reapareceram. Tentou concentrar-se noutra coisa e fê-lo com relativo sucesso até que foi para a cama. Quando se deitou, as lembranças daquele ano em comum invadiram-na.
Rhy. Na escuridão, Sallie olhava para o tecto com os olhos abertos, recordando os seus traços e compondo a imagem do seu rosto. Como o vira inúmeras vezes na televisão durante aqueles sete anos, não foi difícil. Ao princípio, ficava doente e começava a tremer cada vez que a sua cara aparecia no ecrã, apressando-se a desligar a televisão, porém, aquela reacção foi-se transformando gradualmente e o que lhe acontecia era que ficava paralisada. Protegera-se daquela dor intensa e isso permitira-lhe apanhar os cacos e tentar refazer a sua vida. A paralisia inicial transformou-se em resolução e a resolução em indiferença à medida que aprendia a viver sem Rhy.
Quando se lembrava da rapariga tímida e insegura que era noutra época, Sallie tinha a impressão de que essa rapariga era uma desconhecida, alguém de quem ter pena mas por quem não valia a pena entristecer-se. Na verdade, o estranho não era que Rhy a tivesse deixado, mas que alguma vez se tivesse sentido atraído por ela. Por muitas vezes que pensasse, não conseguia encontrar uma razão para que um homem tão dinâmico como Rhy Baines tivesse desejado casar-se com um ratinho assustado como Sarah Jerome. Não com Sallie, uma rapariga alegre e atrevida, mas com Sarah. A calma, rechonchuda e dócil Sarah.
A menos que Rhy se tivesse casado com ela justamente porque era dócil, uma mulher que podia dominar e que ficaria num segundo plano discreto quando lhe conviesse. Queria simplesmente alguém que se ocupasse do lar para quando ele se lembrasse de voltar? Se fora essa a razão, Rhy devia ter sofrido uma decepção, porque ela era flexível em tudo excepto no que tinha a ver com o trabalho do seu marido. Sarah queria que ele voltasse para casa todas as noites, não que entrasse no primeiro avião para cobrir guerras, revoluções e casos de tráfico de droga, justamente o tipo de coisas que, para Rhy Baines, era a razão da sua existência. Ela amuava, queixava-se e chorava. Cada vez que ele partia, aterrorizava-a pensar que podia ser a última, que talvez o devolvessem num caixão. Queria reter aquele homem forte ao seu lado porque toda a sua vida girava à sua volta.
No final, fora demasiado para Rhy e este deixara-a depois de um ano de casamento e nunca mais tivera notícias dele. Sabia que não telefonaria. As suas últimas palavras foram: ”Quando acreditares que és mulher para mim, telefona-me”.
Palavras dolorosas, repletas de cinismo, que lhe tinham revelado o conceito que tinha dela. No entanto, aquelas palavras tinham transformado a sua vida.
Suspirando pelo sono que se mostrava tão esquivo, Sallie virou-se na cama e abraçou a almofada contra o seu peito. Talvez aquela noite fosse um bom momento para desenterrar aquelas lembranças e arejá-las um pouco. Afinal de contas, talvez dentro de pouco tempo tivesse de ver aquele marido ausente.
Rhy e ela conheciam-se desde crianças. A tia de Rhy vivia na casa ao lado dos Jerome e, como Rhy era o seu sobrinho preferido, não era estranho que este passasse por lá pelo menos uma vez por semana quando eram pequenos. As visitas tinham reduzido quando ele saíra da cidade, porém, nunca deixava passar muito tempo sem ir visitar a casa da sua tia. Naquela época, começava a ser um jornalista conhecido e tinha sido contratado por uma estação de Nova Iorque. De vez em quando, atravessava a cerca branca que separava as duas casas e conversava com o pai de Sallie e, se ela ou a sua mãe andavam por ali, também falava com elas. Por vezes, para brincar com Sallie, fingia assustar-se com a rapidez com que ela estava a crescer.
Pouco depois de Sallie ter feito dezoito anos, os seus pais morreram num acidente de viação e ela ficou sozinha na casinha limpa e ordenada que herdara. O dinheiro do seguro permitir-lhe-ia viver até que se recuperasse da tragédia e pudesse procurar um emprego, portanto deixara passar os dias, receando que chegasse a hora de ter de seguir em frente por si mesma. Dado que tanto a tia de Rhy como ela viviam sozinhas, a relação entre ambas tornara-se mais estreita, porém, a tia Tessie morrera apenas dois meses depois dos pais de Sallie e Rhy voltara para casa para o enterro.
Tinha vinte e oito anos e era extremamente atraente; tinha um ar um pouco canalha que deixava Sallie sem respiração. Vivia da sua arte e da sua coragem e desfrutava do seu estilo de vida. Uma das televisões mais importantes do país acabava de o contratar como enviado especial no estrangeiro. Eles encontraram-se no funeral e combinaram encontrar-se no dia seguinte. Naquela altura, Sallie pensara que ele devia estar aborrecido naquela cidade tão pequena, habituado como estava às emoções fortes e ao glamour, contudo, ao olhar para o espelho, dissera para si mesma que não havia nela nem um pingo de nenhuma dessas duas coisas. Era baixa e podia dizer-se que era bonita, mas um pouco rechonchuda. Tinha o cabelo de um castanho bonito, porém, o seu corte não tinha um estilo moderno e não favorecia o seu rosto. No entanto, como Rhy Baines a convidara para sair, ela aceitara, embora o coração quase lhe tivesse saltado do peito com medo e emoção diante da perspectiva de estar sozinha com um homem tão sexy e tão atraente.
Rhy vinha da grande cidade, era um tipo sofisticado. Sallie dissera para si que o mais provável era que o beijo que lhe dera nos lábios ao despedir-se depois do seu primeiro encontro não tivesse significado nada para ele. Nem sequer a abraçara, limitara-se a pôr-lhe um dedo debaixo do queixo para que levantasse a cara. Sallie, no entanto, sentira um arrepio de sensualidade que não fazia ideia de como controlar ou disfarçar. Simplesmente, derretera-se agarrada a ele e a sua boca fundira-se com a de Rhy. Alguns segundos depois, ele afastara a sua boca da dela. Respirava entrecortadamente e Sallie ficara surpreendida quando lhe dissera que voltariam a ver-se.
No seu terceiro encontro, estiveram prestes a fazer amor e, se as coisas não tinham chegado mais longe fora porque Rhy sabia dominar-se. Sallie era incapaz de resistir à atracção que sentia e apaixonara-se perdidamente, mas mesmo assim apanhara-a de surpresa quando de repente sugerira que se casassem. Esperara que sugerisse que fossem para a cama, mas não que se casassem. Aceitara humildemente e uma semana depois estavam unidos pelo casamento.
Nos seis dias que se tinham seguido Sallie vivera numa nuvem. Rhy era um amante maravilhoso, mostrava-se paciente com a sua inexperiência e apaixonadamente terno. Sentira-se assombrado com a paixão feroz que despertara na sua dócil mulherzinha e tinham dedicado os primeiros dias da sua vida em comum a fazer amor. Depois, chegara aquele telefonema e, antes que ela se desse conta, Rhy já arrumara alguma roupa numa mala de viagem e desaparecera pela porta depois de um beijo apressado e uma despedida com um breve ”depois telefono, querida”.
Estivera ausente durante duas semanas e Sallie descobrira, pelas notícias, que se encontrava na América do Sul, onde uma revolução sangrenta se desenrolava. Chorara durante o tempo todo em que Rhy estivera fora e, cada vez que tentava comer alguma coisa, vomitava. Só de pensar que podia acontecer-lhe alguma coisa fazia com que se encolhesse. Encontrara-o justamente depois do pesadelo da morte dos seus pais e adorava-o. Se alguma coisa lhe acontecesse, não suportaria.
Regressara bronzeado e em plena forma e Sallie descarregara todo o seu medo e a sua raiva aos gritos. Ele respondera na mesma moeda e estiveram dois dias sem falar um com o outro depois daquela discussão. O sexo aproximara-os novamente, assim como o desejo crescente de Rhy por comprovar de que forma o frágil corpo da sua esposa respondia e como se rendia às suas carícias. Aquele fora o padrão da sua vida em comum. Ele começara a ausentar-se durante temporadas cada vez mais longas e ela engravidou em seguida.
Na verdade, tinham discutido por causa da gravidez, pois Rhy acusara-a de ter engravidado para tentar fazer com que ele acabasse com as viagens. Também dissera que ela sabia perfeitamente que ele ainda não queria ter filhos e que não tinha intenção de deixar o seu trabalho. Sallie nem sequer tentara defender-se, porque quase pior do que ser acusada de ter engravidado para conseguir retê-lo ao seu lado era reconhecer que fora tão ignorante que não tomara precauções. A verdade era que nem sequer pensara nisso e sabia que o seu marido se teria zangado com ela se lhe tivesse dito a verdade.
Quando estava no sexto mês de gravidez, Rhy fora ferido na fronteira entre dois países africanos e regressara a casa numa maca. Ela pensara que aquele contacto tão directo com a morte faria com que ele reduzisse as viagens e, por uma vez, não o recriminou nem repreendeu quando voltou; estava demasiado deslumbrada com a ideia de o ter em casa definitivamente. No entanto, um mês depois partira novamente para o estrangeiro, apesar de não estar completamente recuperado da sua ferida. Ainda não tinha regressado quando ela sofreu um parto prematuro. A televisão permitira-lhe voltar para casa, porém, quando chegara, ela já tinha saído do hospital e tinham enterrado a criança.
Rhy ficara ao seu lado até que ela se recuperou fisicamente do parto, porém, Sallie estava emocionalmente destruída e sentia uma grande amargura pelo facto de ele não ter estado ao seu lado nos momentos difíceis. Quando Rhy partira novamente, a sua relação continuava fria. Talvez devesse ter-se apercebido naquele momento de como o seu marido se mostrava indiferente com ela, contudo, apesar de tudo, fora um golpe tremendo que ele a abandonasse para sempre com a facilidade com que o fizera ao regressar da sua reportagem seguinte. Ela tinha acabado de voltar do mercado e encontrara-o no sofá. A mala estava ainda junto à porta, onde a deixara ao entrar. O rosto de Rhy mostrava cansaço, contudo, os seus olhos cinzentos não tinham perdido a sua habitual perspicácia. Percorrera-a com o olhar de cima a baixo, como se estivesse à espera de alguma coisa.
Ela fora incapaz de se conter e reprovou-lhe a sua desconsideração e a sua falta de amor ao deixá-la sozinha depois de tudo o que sofrera. Se realmente a amava, trocaria de trabalho e dedicar-se-ia a alguma coisa que lhe permitisse estar ao seu lado quando ela precisasse. Em determinado momento, Rhy levantara-se e agarrara na mala. Saíra pela porta depois de lhe dedicar um comentário sarcástico: ”Quando fores mulher para mim, telefona-me”.
Sallie nunca mais voltara a vê-lo.
Ao princípio ficara destruída. Chorara durante dias e atirava-se sobre o telefone cada vez que este tocava. Todas as semanas recebia um cheque de Rhy, mas nunca foram acompanhados de um bilhete. Era como se ele estivesse a cumprir com o seu dever mas não tivesse nenhum interesse em vê-la ou falar com ela. Não era mulher para ele.
Finalmente, consciente de que a sua vida não fazia sentido sem Rhy, Sallie, desesperada, decidiu transformar-se numa mulher suficientemente ”mulher” para ele. Com uma resolução febril, matriculou-se na universidade da sua cidade, decidida a aprender e a acumular os conhecimentos que fariam dela uma pessoa mais sofisticada. Inscreveu-se no curso de redacção e nos cursos intensivos de todo o tipo de artesanato, obrigando-se a superar a sua timidez. Conseguiu um emprego de administrativa no jornal local; era um trabalho mal pago mas teria de começar por algum lado. O cheque semanal com o seu salário, o seu próprio salário, proporcionou-lhe algo mais do que dinheiro, algo que ao princípio lhe custou reconhecer, mas que foi aumentando à medida que o tempo passava, com cada cheque: um sentimento de confiança em si mesma.
O curso de redacção estava a correr bem e era a melhor da turma. Era dotada para tudo o que tinha a ver com letras e inscreveu-se em aulas de escrita criativa, o que a obrigou a deixar as de artesanato, contudo, o seu interesse crescente pela escrita era mais forte e não se importou de deixar os pincéis e o vime.
Tal como uma bola de neve, as suas actividades foram aumentando em número e ambição até que chegou a uma altura em que não tinha nenhuma hora livre. Depois de começar a fazer amigos, descobriu que era fácil e que gostava de estar rodeada de pessoas. Lentamente, começou a sair da carapaça sob a qual se escondera durante a sua vida toda.
Com tantas actividades, não parava quieta nem um momento e muitas vezes esquecia-se de comer. Começou a perder peso e teve de renovar o seu guarda-roupa. De um pouco rechonchuda passou a quase demasiado magra e no seu rosto surgiram os traços muito exóticos. Os seus olhos, de uma cor azul-escura, pareciam cada vez maiores e as maçãs do rosto bem demarcadas davam à sua cara um toque quase oriental. Já antes era bonita, no entanto, transformou-se numa jovem de aspecto sensual e pouco habitual. Destacava-se sobre a média. Deixou crescer o cabelo porque não tinha tempo de ir cortá-lo e rapidamente desenvolveu uma cabeleira castanha que lhe caía pelas costas.
A mudança no seu físico foi acompanhada de uma transformação da sua personalidade. A sua confiança em si mesma aumentou. Tornou-se extrovertida e apercebeu-se de que a sua inteligência fazia com que as pessoas procurassem a sua companhia. Gostava de si mesma e cada vez pensava menos em Rhy.
Quando estavam separados há um ano, percebeu que tinha amadurecido e era independente. O cheque que Rhy enviava semanalmente foi como uma revelação. Ficou assombrada quando reparou que já não sentia dor ao olhar para a assinatura estampada na parte inferior. E não era apenas isso, já que se apercebeu de que, se Rhy regressasse para ela, limitaria a sua nova vida e não desejava tal coisa. Fizera-se a si mesma, transformara-se numa mulher que era suficientemente mulher para Rhy Baines... e, de repente, percebeu que já não precisava dele. Já não precisava de viver através dele; tinha a sua própria vida.
Era como sair da prisão. Saber que era auto-suficiente e independente era como um vinho embriagador, provocava-lhe vertigens. Já podia entender por que razão Rhy colocava o trabalho à frente da sua relação, pois ela também experimentava prazer ao sentir-se emocionada e contente com a vida que tinha e perguntava-se como ele conseguira ficar um ano inteiro ao seu lado.
Com uma grande sensação de alívio, devolvera a Rhy o seu cheque juntamente com um bilhete em que lhe explicava que tinha um emprego e que conseguia manter-se sozinha, de modo que já não precisava da sua ajuda, apesar de lhe agradecer a intenção. Enviara o envelope para a estação de televisão. E essa fora a última vez em que comunicaram, ou melhor, que ela comunicou com ele, já que Rhy nunca respondera ao seu bilhete. Os cheques simplesmente deixaram de chegar.
Então, o destino atravessou-se na vida de Sallie. Quando estava a atravessar uma ponte no seu carro, esta desabou e, apesar de ela já se encontrar suficientemente perto da margem para que o seu veículo caísse ao rio, vários dos carros que iam atrás não tiveram a mesma sorte.
Sem parar para pensar no que fazia, ajudou a salvar os que tinham sobrevivido à queda e conseguiu entrevistar os feridos. Depois, foi para o seu escritório, no jornal onde trabalhava, e escreveu uma crónica do acidente da sua posição de testemunha ocular, cheia de vivacidade e precisão, e entregou-a ao redactor-chefe. Publicaram-na e contrataram-na como jornalista.
Agora, com vinte e seis anos, finalmente era licenciada em Jornalismo e trabalhava para uma das melhores revistas de actualidade semanais e o seu entusiasmo pelas experiências novas não diminuíra. Compreendia perfeitamente por que motivo o perigo não permitira que Rhy deixasse o seu trabalho, já que também ela desfrutava do risco: aquela sensação de que o coração ia rebentar dentro do peito quando o helicóptero levantava enquanto os soldados em terra abriam fogo contra o aparelho; a euforia de aterrar num prado com um único motor em funcionamento; a satisfação de um trabalho difícil bem feito... Arrendou a casa que herdara dos seus pais e vivia num apartamento em Nova Iorque, onde ficava entre viagens. Não tinha plantas nem animais... Quem ia cuidar deles enquanto ela andava pelo mundo? Não estava interessada em relações, já que nunca ficava tempo suficiente em lado nenhum, no entanto, tinha uma série de amigos e conhecidos.
Não, reflectiu sonolenta quando finalmente reparou que o sono surgia, não queria que Rhy aparecesse novamente na sua vida. A única coisa que faria seria interferir nas coisas de que ela gostava, embora, pensando bem, não acreditasse que estivesse minimamente interessado no seu modo de vida. Isso no caso de a reconhecer, o que não era provável. Afinal de contas, estava há sete anos sem pensar nela. Porque haveria de começar a fazê-lo?
De pé, à frente do espelho, Sallie estudava a fotografia que tinha na mão: ela com dezoito anos. Depois, olhou para a imagem que o espelho lhe devolvia e reparou nas diferenças. A mudança mais óbvia era que agora tinha as maçãs do rosto bem definidas em vez de bochechas. Também o cabelo; antes, uns fios que mal lhe tapavam as orelhas, enquanto agora o tinha preso numa trança enorme que lhe chegava à cintura. A única coisa que não mudara era os olhos, azuis-escuros. No entanto, sempre podia usar óculos de sol quando pensasse que havia a possibilidade de se cruzar com Rhy e, desse modo, ocultar indefinidamente a sua identidade.
Considerara o assunto de todos os pontos de vista possíveis e decidira que não podia confiar na boa disposição de Rhy. Ele era imprevisível e volátil, portanto o melhor seria evitá-lo sempre que fosse possível e tentar fazer com que Greg não a apresentasse ao seu próprio marido como ”uma antiga amiga da tua cidade”.
Aparentemente, Rhy ia à revista naquela manhã. No dia anterior, tinham deixado escapar a notícia da venda da revista: Rhydon Baines deixara o seu trabalho de enviado especial e a partir daquele momento dedicaria o seu tempo e o seu talento à imprensa escrita de actualidade, embora ocasionalmente ainda elaborasse algumas reportagens para a televisão. Os jornalistas veteranos sentiam-se de repente incomodados, folheavam o seu currículo, reviam os seus trabalhos e comparavam-nos com o estilo jornalístico de Rhy, directo e mordaz. E Sallie perdera a conta das mulheres da redacção que ouvira a comentar sobre a beleza de Rhydon Baines. Até colegas casadas e felizes se sentiam emocionadas com a ideia de trabalhar com Rhy. Ele era mais do que um bom jornalista: era uma celebridade.
Sallie já estava cansada de todo aquele rebuliço. A primeira coisa que faria naquela manhã seria ir ter com Greg para que a mandasse cobrir uma notícia, qualquer notícia, até que as coisas se acalmassem. Estava há três semanas sem que lhe atribuíssem uma reportagem, portanto ninguém acharia estranho que estivesse impaciente por partir. Faltava mais de um mês para o baile de beneficência em Sakarya e não seria capaz de ficar calmamente sentada à sua mesa durante tanto tempo.
De repente, apercebeu-se de que estava atrasada. Deu uma vista de olhos à sua imagem no espelho: uma figura magra, de aspecto competente, com calças azuis e uma camisa de seda da mesma cor. Tinha o cabelo preso num rabo-de-cavalo e, como toque final, pôs uns óculos de sol. Responderia a quem lhe perguntasse que lhe doía a cabeça e que a luz lhe magoava os olhos, já que os óculos não eram assim tão escuros que não conseguisse trabalhar com eles postos se fosse necessário.
Tinha de se despachar. Como o elevador do seu edifício era bastante lento, desceu as escadas de dois em dois e chegou à paragem justamente quando o autocarro acabava de fechar as suas portas. Começou a vociferar e a bater no vidro e o condutor sorriu.
- Perguntava-me onde estava - brincou. Era verdade, já que era das que esmurram as portas dos autocarros constantemente.
Conseguiu chegar à revista a horas e deixou-se cair na sua cadeira, surpreendida por estar viva. Ao atravessar a rua, tinham estado prestes a atropelá-la pelo menos seis vezes. O seu coração batia a toda a velocidade e sorriu; se o seu método habitual para chegar ao trabalho a horas começava a parecer-lhe emocionante, era porque precisava de um pouco de acção!
- Olá! - cumprimentou Brom. - Desejosa de conhecer o Homem?
- Desejosa de que me mandem para algum lugar - replicou. - Estou há demasiado tempo agarrada à cadeira e já estou a criar teias de aranha. Vou ao escritório de Greg para ver se ele me dá alguma coisa para fazer.
- Estás louca - disse Brom com franqueza. Hoje Greg está acelerado, portanto é melhor esperares até amanhã.
- Vou arriscar - respondeu ela alegremente.
- Não é isso que fazes sempre? Ouve, e esses óculos? Queres esconder um olho negro? - inquiriu Brom, curioso. Não descartava a possibilidade de Sallie se ter envolvido numa discussão em algum sítio.
- Nada disso - para o convencer, tirou os óculos por um momento e voltou a pô-los. Dói-me a cabeça e a luz incomoda-me.
- Tens enxaquecas? - perguntou ele com preocupação. - A minha irmã costuma ter umas dores horríveis e não suporta a luz.
- Não acho que seja uma enxaqueca! - protestou. - Deve ser uma reacção nervosa por estar tanto tempo sem sair à rua.
Brom riu-se e ela aproveitou para se levantar e dirigir-se ao escritório de Greg antes que Rhy chegasse.
À medida que se aproximava da porta aberta do escritório, ouviu Greg a falar ao telefone. O seu tom era cortante e impaciente e Sallie arqueou o sobrolho ao ouvi-lo. Greg era impaciente por natureza, mas quase sempre se mostrava razoável. No entanto, a sua atitude naquele momento não era precisamente razoável. Brom tinha razão, Greg estava mais acelerado do que era habitual. De facto, estava nervoso e irascível e não tinha a menor dúvida de que se devia à chegada iminente de Rhy.
Quando o ouviu a terminar a conversa bruscamente, espreitou pela porta.
- Um café ajudaria?
Greg levantou a cabeça ao ouvir a voz de Sallie e fez uma careta.
- Já estou a nadar em café - resmungou. Não sabia que nesta revista trabalhavam tantos idiotas. Juro-te que se recebo outra chamada de um destes estúpidos...
- Estão todos muito nervosos - disse, tentando acalmar a situação.
- Tu não - apontou ele. - E esses óculos? Já és assim tão famosa que tens de andar incógnita?
- Tenho as minhas razões - replicou Sallie. Mas já que és tão esperto não tas vou revelar.
- Como queiras - resmungou. - Vá, vai-te embora.
- Preciso que me mandes cobrir alguma notícia - apontou ela. - Eu também estou prestes a esbofetear a próxima pessoa que cruzar o meu caminho.
- Pensei que querias estar presente para cumprimentar o teu antigo vizinho – respondeu Greg. - Além disso, agora não tenho nada para ti.
- Não sejas assim - suplicou ela. - Tem de haver alguma coisa. Não há manifestações, desastres naturais, sequestros? Em algum canto do planeta deve haver uma história para mim!
- Amanhã talvez - replicou ele. - Não tenhas tanta pressa. Por amor de Deus, Sal, talvez precise de ti aqui se o Homem ficar difícil. É sempre agradável ter uma velha amiga à mão...
- Para a atirar aos leões? - interrompeu-o ela secamente.
Contra todos os prognósticos, Greg sorriu.
- Não te preocupes, querida, ele não vai fazer-te em pedaços, só deve querer brincar um pouco contigo.
- Greg, não estás a ouvir-me - ela gemeu. Estou aqui fechada há três semanas. Preciso de sair.
- Não estás a ser sensata - assinalou ele.
- E tu não tens compaixão - replicou ela. Greg, por favor...
- Porquê tanta pressa?! - gritou de repente.
- Bolas, Sal, o novo patrão está prestes a chegar e não é precisamente um cordeirinho. Hoje não vai ser um dia divertido, portanto pára de me chatear, está bem? Além disso, talvez queira ver-te e, nesse caso, quero que estejas aqui.
Sallie deixou-se cair numa cadeira e gemeu” ao dar-se conta de que teria de contar a verdade a Greg. Só desse modo a enviaria para fora da redacção e talvez não fosse assim tão mau que estivesse ao corrente da situação. Pelo menos assim deixaria de pensar em usá-la para acalmar Rhy. E a verdade era que Greg tinha o direito de saber quais eram as circunstâncias e as complicações que a sua presença podia criar naquele dia.
- Greg, acho que devias saber que talvez Rhy não fique assim tão contente por me ver - disse com voz tranquila.
Ele ficou imediatamente alerta.
- Porquê? Pensava que eram amigos... Ela suspirou.
- A verdade é que não posso dizer se somos amigos ou não. Há sete anos que não o vejo, excluindo na televisão, claro. E há mais uma coisa. Não ia contar-te mas acho que deves saber. Sabes que continuo casada, apesar de estar separada do meu marido há muitos anos, não é verdade?
Greg assentiu e ficou repentinamente rígido.
- Sim, mas nunca disseste quem é o teu marido. Usas o teu apelido de solteira, não é?
- Sim, não queria dever nada a ninguém nem aproveitar-me do apelido dele. É um homem muito conhecido. Bom, já deves ter adivinhado... É Rhydon Baines.
Greg engoliu em seco e abriu muito os olhos. Voltou a engolir. Sallie nunca mentia, sabia que era brutalmente sincera, mas... Rhydon Baines? Aquele homem tão duro e implacável e a sua repórter de aspecto frágil e olhar risonho?
- Por Deus, Sallie, aquele homem podia ser teu pai! - exclamou com brusquidão.
Sallie soltou uma gargalhada.
- Claro que não! Só tem mais dez anos do que eu. Eu tenho vinte e seis anos, não dezoito. Enfim, queria que soubesses por que razão preciso que me mandes para fora. Quanto mais longe estiver de Rhy, melhor. Estamos há sete anos separados, mas a verdade é que continua a ser o meu marido e as relações pessoais no trabalho podem ser problemáticas.
Greg olhava para ela com incredulidade, apesar de saber que dizia a verdade. Era-lhe difícil de acreditar. Sallie? A pequena Sallie Jerome com aquele homem? Tinha o aspecto de uma criança, vestida toda de azul e com a sua trança pela cintura.
- O que aconteceu? - perguntou. Ela encolheu os ombros.
- Aborreceu-se de mim.
- Aborreceu-se de ti? - agora é que não conseguia acreditar. - Vá lá!
Ela voltou a rir-se.
- Naquela época, eu não era a mulher que sou agora. Era um ratinho com medo, portanto não é de estranhar que Rhy se tenha ido embora. Eu não suportava que o trabalho dele o obrigasse a ausentar-se tantas vezes. Angustiava-me muitíssimo e depois atirava-lhe tudo à cara. E no final ele acabou por se ir embora. Não o culpo. De facto, o estranho é que ele me tenha aguentado tanto tempo.
Greg abanou a cabeça. Era-lhe impossível imaginar Sallie tímida. Por vezes, chegava mesmo a pensar que era demasiado temerária. Estava sempre disposta a embarcar em qualquer aventura e, quanto maior era o perigo, mais ela gostava e ela não fingia aquele prazer, já que quando as coisas ficavam difíceis, a sua cara iluminava-se e os seus olhos brilhavam.
- Vamos pensar - murmurou. - Rhy sabe que trabalhas aqui?
- Não me parece - respondeu alegremente.
- Há seis anos que não temos nenhum contacto.
- Mas continuam casados, portanto deve mandar-te o dinheiro da pensão... - calou-se ao reparar no olhar ofendido de Sallie e suspirou. Renunciaste à pensão, não é verdade?
- Assim que consegui sustentar-me sozinha. Quando Rhy partiu, tive de começar a lutar pela minha vida e gostei. E continuo a gostar de ser independente.
- Mas não lhe pediste o divórcio?
- Bom... não - admitiu, enrugando o nariz, um pouco confusa. - Nunca quis voltar a casar-me e suponho que com ele se passa o mesmo, portanto nunca oficializámos a separação. Provavelmente é benéfico para ele estar casado, porque assim sempre terá uma desculpa para se livrar das admiradoras.
- E incomoda-te teres de te encontrar com ele? - perguntou Greg sem rodeios, mais preocupado do que estava disposto a admitir com a ideia de Sallie ser mulher de Baines.
- Com Rhy? Já o superei há muito tempo reconheceu com toda a sinceridade. - Não tive outro remédio, tinha de sobreviver. Às vezes, até me parece irreal ter sido... bom, ter sido casada com ele.
- E ele? Achas que ficará incomodado se voltar a ver-te? - insistiu Greg.
- Pelo lado emocional, certamente não. Para ele, também deve estar tudo esquecido. Afinal de contas, foi ele que se foi embora. Mas Rhy tem o seu carácter e provavelmente não vai achar muito engraçado que a sua mulher trabalhe para ele, nem sequer com um apelido diferente. E talvez não goste de me ter por perto, com receio de se coibir. Não tenho intenção de me intrometer na vida pessoal dele, mas ele não sabe disso. Portanto, como vês, seria uma boa ideia que me mandasses cobrir algum acontecimento para não me encontrar com Rhy, pelo menos ao princípio. Não quero perder o meu emprego - coroou o seu discurso com um sorriso e Greg abanou a cabeça.
- Está bem - murmurou. - Vou ver se encontro alguma coisa para fazeres. Mas se ele descobrir que és a mulher dele, eu não sei nada sobre o assunto.
- Qual assunto? - perguntou ela e Greg não conseguiu conter a gargalhada.
Sallie sabia que era melhor não esgotar a paciência do seu chefe, portanto despediu-se.
- Obrigada - disse, pondo uma mão no coração e voltou para a sua mesa.
Brom desaparecera e estava relativamente sozinha, apesar de existir apenas um biombo a separar o seu cubículo dos outros e conseguir ouvir o ruído dos teclados e o murmúrio de vozes com uma nitidez espantosa.
Quando Brom regressou com uma chávena de café, já se sentia mais tranquila. A promessa de Greg de a ajudar a desaparecer do mapa acalmara a sua ansiedade. Acabou de escrever o artigo em que estava a trabalhar e sentiu-se satisfeita com o resultado. Gostava de redigir e organizar ideias. Sentia uma satisfação quase sensual quando rematava uma frase ao seu gosto.
Às dez em ponto, o murmúrio de conversas terminou de repente e ouviram-se apenas alguns sussurros. Sem necessidade de levantar o olhar, Sallie compreendeu que Rhy tinha chegado.
Com precaução, baixou a cabeça e fingiu que procurava alguma coisa na gaveta da sua mesa. Alguns segundos depois, o murmúrio recuperou o seu volume do costume, o que significava que Rhy saíra depois de dar uma rápida vista de olhos.
- Deus santo! - uma voz de mulher levantou-se por cima das outras. - Viram? Semelhante pedaço de homem... Solteiro!
Sallie sorriu levemente ao reconhecer a voz de Lindsey Wallis, uma exuberante e sexy administrativa com mais boca do que cérebro. Mesmo assim, não havia dúvida de que Lindsey tinha razão no que dizia respeito ao físico de Rhy. Sallie conhecia perfeitamente o efeito que o seu marido causava nas mulheres.
Quinze minutos mais tarde, o seu telefone tocou e ela esticou-se para o atender, um gesto que fez com que Brom olhasse para ela com espanto.
- Vai-te embora, sai do edifício - murmurou Greg. - Ele vai dar uma volta para cumprimentar toda a gente. Vai-te embora para casa e eu tentarei mandar-te para algum sítio esta noite.
- Obrigada - respondeu e desligou. Levantou-se e agarrou na mala. - Até mais tarde disse a Brom.
- Vais voar, passarinho? - perguntou, como sempre fazia.
- Parece que sim. Greg disse-me para ir preparando a bagagem - agitou a mão em sinal de despedida. Não queria perder tempo, pois Rhy estava a caminho.
Dirigiu-se para o corredor e o seu coração quase parou quando as portas do elevador se abriram e Rhy apareceu acompanhado por três homens que não conhecia e pelo antigo proprietário da revista, o senhor Owen. Em vez de avançar para eles, dirigiu-se para as escadas, tentando manter o olhar baixo e a cabeça ligeiramente inclinada para a frente, contudo, reparou que Rhy parava, olhando para ela. O seu pulso acelerou e desceu as escadas sem hesitar. Foi por pouco!
Fechada no seu apartamento, à espera que Greg lhe telefonasse, quase enlouqueceu com a impaciência. Caminhou durante um momento para trás e para a frente e depois tentou queimar energias limpando o frigorífico e ordenando os armários. Nenhuma das duas coisas lhe levou muito tempo, já que não tinha nem demasiada comida nem muitos tachos para ordenar. Finalmente, encontrou a forma perfeita de passar o tempo: fazer a mala. Adorava preparar a bagagem, seleccionar o fundamental e arrumar tudo na mala de viagem: o caderno de notas, lápis e canetas, um gravador, um dicionário muito usado, vários livros de bolso, uma calculadora, pilhas e uma lanterna. Aqueles objectos indispensáveis acompanhavam-na para qualquer lugar que fosse.
Acabava de arrumar tudo na mala quando o telefone tocou e, ao atender, ouviu a voz de Greg, anunciando-lhe que já tinha uma reportagem para ela.
- Foi o melhor que consegui encontrar, mas pelo menos poderás sair de Nova Iorque - resmungou. - Tens uma reserva num voo para Washington amanhã de manhã. A mulher de um senador está a fazer muito barulho. Um assunto de informação confidencial numa festa em que todos tinham bebido demasiado.
- Parece-me bem - comentou Sallie.
- Vou mandar Chris Maker contigo - continuou Greg. - Fala com a mulher do senador. É o mais perto que conseguirás aproximar-te do general. Darei a.Chris um resumo sobre o assunto para que o folheies. Ele vai ter contigo ao JFK às cinco e meia.
Agora que sabia para onde se dirigia, Sallie podia acabar de fazer a mala. Colocou vários vestidos de corte convencional e um fato. Não era a sua roupa preferida, porém, tinha a sensação de que um traje discreto faria com que a mulher do senador se sentisse mais confortável durante a entrevista e confiasse nela.
Como de costume, custou-lhe a adormecer. Acontecia-lhe sempre o mesmo na noite anterior a uma viagem. Preferia ter de sair a correr da redacção para o aeroporto, sem tempo para pensar nem se preocupar com que tudo corresse bem, sem tempo para se perguntar o que aconteceria se Rhy a reconhecesse...
Chris Maker, o fotógrafo, estava à sua espera no aeroporto na manhã seguinte e, enquanto se aproximava sorridente e o cumprimentava com a mão, ele levantou-se como se lhe custasse. Devolveu-lhe um sorriso sonolento e inclinou-se para lhe dar um beijo na testa.
- Olá, linda!
A voz, preguiçosa e grave, fez com que Sallie sorrisse ainda mais. Gostava de Chris. Não se alterava por nada e nunca tinha pressa. Era tão tranquilo e relaxado como um lago. O mero acto de olhar para ele relaxava. Tinha os olhos castanhos e o cabelo castanho e uma boca firme mas não obstinada. A sua expressão era serena. E, o mais importante de tudo, não tentava ter nada com ela. Tratava-a com carinho, como a uma irmã mais nova, e era protector ao seu modo, mas nunca lhe fizera uma insinuação nem lhe dera a entender que se sentia atraído por ela. Era um alívio, porque Sallie não tinha tempo para histórias românticas.
Ele olhou para ela de cima a baixo e levantou o sobrolho.
- Eh... Tu com vestido? - perguntou com uma voz ligeiramente assombrada, o que queria dizer que estava perplexo. - A que se deve tanta elegância?
Sallie sorriu novamente.
- Nada, é uma questão formal - afirmou. Greg deu-te o envelope que me prometeu?
- Sim, não te preocupes. Já fizeste o check-in?
- Sim - assentiu. Naquele momento, anunciaram a saída do seu voo e dirigiram-se para o detector de metais para entrar na zona de embarque.
Durante o voo, Sallie leu com atenção o relatório que Greg lhe preparara. Tendo em conta o pouco tempo que tivera para o redigir, incluíra muitos detalhes e Sallie concentrou-se em analisar as diferentes possibilidades. Não era o tipo de reportagem que fazia habitualmente, contudo, Greg dera-lhe o que tinha e tencionava devolver-lhe o favor fazendo o seu trabalho da melhor forma possível.
Quando chegaram a Washington e se instalaram no hotel, fazê-lo da ”melhor forma possível” já não lhe parecia suficiente. Enquanto Chris se sentava numa poltrona e começava a folhear uma revista, Sallie telefonou à mulher do senador para confirmar a entrevista daquela tarde. Disseram-lhe que a senhora Bailey lamentava, mas que não podia ver nenhum jornalista naquele dia. Era um modo educado de a despachar e Sallie zangou-se. Não tinha a menor intenção de fracassar na reportagem que Greg lhe atribuíra.
Passou uma hora ao telefone e utilizou todos os seus contactos, porém, depois desse tempo, conseguiu entrevistar a anfitriã da ”festa dos bêbados” na qual se dizia que o general revelara informação confidencial. Negou tudo com veemência, excepto que tanto o general como a senhora Bailey estavam presentes na noite em questão, contudo, quando a indignada anfitriã murmurou que ”cá se fazem cá se pagam”, Sallie começou a pensar na hipótese de a senhora Bailey ser uma mulher despeitada.
Era uma possibilidade. O general era um homem elegante, distinto, de cabelo grisalho e olhos vivazes. Depois de conversar com Chris, que concordou com a sua teoria, decidiram explorar aquele ponto de vista.
Quarenta e oito horas mais tarde, cansados mas satisfeitos, voaram de regresso a Nova Iorque. Embora nenhum dos protagonistas, nem o general nem a senhora Bailey, é claro, tivessem confirmado a sua teoria, tinha a certeza de que o despeito era a razão pela qual a mulher acusara o seu marido de cometer uma indiscrição. Tinham percorrido a cidade, encontrando vários restaurantes aos quais o general costumava ir acompanhado de uma mulher atraente que coincidia com a descrição da senhora Bailey. O marido cancelara inesperadamente uma viagem ao estrangeiro para ficar com a sua mulher. Por sua vez, a mulher do general, que emagrecera dez quilogramas e pintara o cabelo grisalho de loiro, aparecia de repente junto do seu marido mais do que era habitual. Também havia o facto de mais ninguém ter corroborado a acusação da senhora Bailey e, sobretudo, o facto de o general não ter sido destituído do seu cargo apesar do escândalo na imprensa.
Na noite anterior, Sallie contara tudo o que descobrira a Greg por telefone e ele concordara com ela, como tal, o artigo tinha de ser publicado no número daquela semana, portanto tinha pouco tempo para o escrever e entregar.
Greg não fizera nenhum comentário sobre o assunto Rhy, dissera apenas que ele ”gostava de mudar as coisas de sítio” e ela deduziu que estava a fazer mudanças. Teria preferido que a mandassem investigar outra notícia imediatamente, porém, não havia nada e ela tinha de voltar para escrever o relatório e preencher a folha de despesas. Felizmente, já era fim-de-semana e ainda tinha dois dias antes de ter de voltar para o escritório.
Na segunda-feira de manhã, chegou à redacção com os nervos em franja, porém, para seu alívio e espanto, o dia passou sem que o seu marido aparecesse, embora circulassem muitos rumores sobre as mudanças que ia fazer no formato da revista. Ela evitou subir aos andares superiores, mesmo quando teve uma ideia que tinha de partilhar com Greg. Assim, em vez de ir ao seu escritório, telefonou-lhe e Brom comentou que nunca a vira ficar tanto tempo no mesmo sítio.
Na terça-feira, agiu da mesma forma. Era o dia em que a revista chegava aos quiosques e Greg telefonou-lhe para a felicitar.
- Acabei de falar com Rhy - afirmou. Agora referia-se a ele daquele modo. - O senador Bailey telefonou-lhe para casa esta manhã.
- Estou despedida? - perguntou Sallie.
- Não. O senador contou-lhe tudo e vai fazer uma declaração em que a sua esposa se retracta das acusações ao general. Acertaste no alvo, linda.
- Eu sabia! - exclamou alegremente. - Posso fazer mais alguma coisa?
- Só ter cuidado. Conheço vários editores furiosos por tu teres sido a única a perceber o que qualquer pessoa podia ver.
Ela riu-se e desligou, mas saber que a sua intuição funcionara deixou-a a flutuar para o resto do dia. Chris foi ter com ela à hora do almoço e propôs-lhe que fossem comer uma sandes. Havia um pequeno café no edifício que tinha sopas, sandes, café e refrigerantes para aqueles que não podiam ir comer fora, contudo, a pouca oferta era mais do que suficiente para ela. Sentou-se com Chris numa mesinha e falaram de trabalho enquanto bebiam dois cafés bem fortes.
Justamente quando estavam a acabar, surgiu um murmúrio nas outras mesas e Sallie ficou tensa.
- É o chefe - informou Chris com naturalidade. - Com a sua rapariga.
Sallie mal conseguia reprimir o desejo de virar a cabeça. Pelo canto do olho, viu que as duas figuras percorriam o balcão do café e escolhiam o seu almoço.
- Pergunto-me o que fazem aqui - murmurou Sallie.
- Estão a testar o serviço do café - respondeu Chris e virou-se para olhar directamente para a acompanhante de Rhy. - Viu e testou tudo o resto, não sei porque haveria de se esquecer da comida. Ela parece conhecida, Sal. Conheces?
Sallie abriu muito os olhos e concentrou-se em examinar a mulher, aliviada por não ter de olhar para Rhy.
- Tens razão, é conhecida. Não é Coral Williams, a modelo? - estava quase certa de que era ela. Não havia muitas loiras perfeitas.
- É ela - resmungou Chris.
Então, Rhy virou-se. A sua bandeja balançava enquanto ele se dirigia para uma mesa e Sallie apressou-se a baixar o olhar, mas quase ficou sem respiração. Não mudara. Continuava ágil e em forma; o mesmo cabelo, igualmente preto, e a mesma expressão sardónica no seu rosto de feições marcadas, bronzeado pelo sol. A mulher que o acompanhava era exactamente o contrário: muito loira e pálida.
- Vamos - disse em voz baixa a Chris enquanto se levantava. Reparou que Rhy virava a cabeça para ela por isso virou-se cuidadosamente sem que parecesse que estava a fugir. Chris seguiu-a, porém, ela sentia que Rhy a observava enquanto saíam do café. Era a segunda vez que ficava a olhar para ela fixamente. Tê-la-ia reconhecido? Pela forma de andar? Pelo cabelo? A trança era muito chamativa, mas não queria cortar o cabelo, porque, aí sim, seria reconhecível...
Quando voltou para a sua mesa, ainda estava alterada devido, sobretudo, ao modo como reagira ao aparecimento de Rhy. Nunca se sentira tão atraída por nenhum homem como por ele e, para sua consternação, parecia que a situação continuava a ser a mesma. Rhy era muito masculino, irradiava uma sensação de força que fazia com que a sua pulsação acelerasse e, indevidamente, levava-a a recordar as noites que passara nos seus braços. Talvez emocionalmente o tivesse superado, no entanto, a atracção física entre eles continuava a ser tão forte como antigamente, e isso fazia com que se sentisse vulnerável.
Contra o seu costume, telefonou a Greg, contudo ele saíra para almoçar e ela desligou com um suspiro. Não podia ficar ali sentada, a sua natureza pedia-lhe para agir. Finalmente, rabiscou um bilhete para Brom em que lhe pedia que dissesse a Greg que lhe doía muito a cabeça e que ia para casa. Greg entenderia que era uma desculpa; Brom, não.
Detestava fugir, porém, sabia que precisava de reflectir sobre o modo como reagira ao ver Rhy e foi o que fez quando chegou a casa. Seria apenas porque era o seu marido, porque era o único homem com quem fora para a cama? Só se sentira atraída por aquele homem. Seria o costume? Esperava que fosse apenas o hábito e, quando percebeu que não sentira ciúmes ao ver Coral Williams, respirou aliviada. Era a prova de que tinha superado Rhy. O que sentia era a pura e simples atracção física entre um homem e uma mulher que se consideravam mutuamente desejáveis. Era suficientemente madura para controlar essa sensação, como os sete anos anteriores confirmavam.
O telefone tocou a meio da tarde.
- O que aconteceu? - inquiriu Greg sem preâmbulos.
- Rhy e Coral Williams apareceram no café quando Chris e eu estávamos lá - explicou sem hesitar. - Não me parece que Rhy me tenha reconhecido, mas ficou a olhar para mim. É a segunda vez que faz o mesmo, observar-me fixamente, portanto pensei que era melhor vir-me embora - aquela não era exactamente a razão, mas era uma boa desculpa. Porque haveria de contar a Greg que ver Rhy de perto a alterara?
- Fizeste bem - Greg suspirou. - Veio ao meu escritório pouco depois de Brom me ter trazido o teu bilhete. Quer conhecer-te porque és a única jornalista que não conhece pessoalmente.
Depois pediu-me que lhe fizesse uma descrição de ti e fez uma cara muito estranha.
- Ai, não! - gemeu. - Se acha que alguma coisa não está bem, não parará até descobrir o que é - disse com uma expressão de desgosto. É rápido como uma cobra. Perguntou-te de onde sou?
- É melhor estares preparada, querida. Não, não me perguntou de onde és, mas pediu-me o teu número de telefone.
- Raios! - voltou a gemer. - Obrigada por tudo. Se Rhy descobrir tudo, apagarei os rastos, não te preocupes.
Greg desligou e ela começou a andar de um lado para o outro na sala, à espera que o telefone tocasse novamente. O que lhe diria? Devia tentar disfarçar a sua voz? Escureceu e a tão esperada chamada não aconteceu, portanto tomou um banho e deitou-se. No entanto, foi uma noite inquieta e só conseguiu adormecer já de madrugada.
Acordou com o toque insistente do telefone. Ao princípio, pensou que era o despertador e tentou desligá-lo, contudo, o ruído continuava. Quando finalmente se apercebeu de onde procedia, atirou-se sobre o telefone e, com a pressa, o aparelho caiu ao chão. Levantou-o puxando o fio e finalmente conseguiu pôr o auscultador na orelha.
- Sim? - murmurou.
- Menina Jerome? - perguntou uma voz grave e profunda. Havia um ponto de rouquidão naquela voz que a fez sentir um formigueiro, mas estava demasiado adormecida para se aperceber disso.
- Sou eu - respondeu, abafando um bocejo. Quem fala?
- Sou Rhydon Baines - disse a voz e ela abriu os olhos de repente. - Acordei-a?
- Sim - respondeu, incapaz de pensar em alguma frase educada para o tranquilizar. Uma gargalhada sonora do outro lado da linha fez com que tremesse. - Aconteceu alguma coisa, senhor Baines?
- Não. Só queria felicitá-la pelo trabalho de Washington. É uma boa reportagem. Um destes dias, quando estiver livre, passe pelo meu escritório para conversarmos um pouco. Acho que é a única jornalista que ainda não conheço e é das melhores.
- Eu... eh... Passarei... - gaguejou. - Obrigada, senhor Baines.
- Rhy - corrigiu ele. - Prefiro que os empregados me chamem pelo meu primeiro nome e me tratem por tu. E lamento ter-te acordado, mas devias estar levantada se pretendes chegar ao trabalho a horas - soltou outra gargalhada, despediu-se e desligou.
Sallie deu um salto e olhou para o relógio. Como era possível que fosse tão tarde? Ia chegar atrasada se não se despachasse, mas Rhy podia esperar sentado se esperava que fosse vê-lo ao seu escritório!
A manhã correu sem que nada acontecesse e Sallie mantinha-se atenta para o caso de Rhy aparecer na redacção. Tinha de confiar em que Greg a avisaria quando devia desaparecer para a casa de banho das senhoras, contudo, o telefone permanecia em silêncio. Brom fora cobrir uma notícia a Los Angeles e desde a sua partida o cubículo parecia um túmulo. A tensão começava a prejudicar os seus nervos. À hora do almoço, comeu uma maçã na sua mesa, pois não se atrevia a correr o risco de descer ao café ou sair do edifício, já que receava encontrar-se com Rhy. Na verdade, começava a sentir-se presa!
Greg telefonou-lhe pouco depois do almoço.
- Sobe, Sal. Não quero falar disto por telefone.
Ela foi escada acima. A porta de Greg estava aberta e, como sempre, entrou. Greg levantou o olhar dos papéis que estava a ler com uma expressão solene.
- A secretária de Rhy acabou de me telefonar. Queria a tua ficha e tive de a mandar, não tinha alternativa. Ainda não voltou do almoço, portanto tens uns minutos de paz. Pensei que devia avisar-te.
Ela engoliu em seco, tentando desfazer o nó que tinha na garganta.
- Obrigada - disse e conseguiu esboçar uma espécie de sorriso. - De qualquer forma, era uma ideia absurda tentar esconder-me. Provavelmente é-lhe indiferente.
Greg também sorriu, contudo, nos seus olhos havia preocupação enquanto via Sallie a abandonar o seu escritório.
Abstraída nos seus pensamentos, enquanto dizia a si mesma que Rhy ia descobrir quem era na verdade, esperou pelo elevador em vez de descer pelas escadas. Respirou fundo e rodeou a cintura com os braços.
De repente, percebeu que estava à espera do elevador e de que este subia. Reprovou-se pela sua falta de atenção, deu meia volta e dirigiu-se para a escada, contudo, justamente quando estava a chegar, as portas do elevador abriram-se e ouviu o seu nome.
- Sallie Jerome! Espera um momento! Virou a cabeça e olhou fixamente para Rhy durante vários segundos, paralisada pelo horror. Abriu a porta que dava acesso à escada com intenção de fugir, mas percebeu imediatamente a futilidade de fazer algo do género. Rhy vira-a perfeitamente daquela vez e, pela expressão da sua cara, Sallie sabia que a reconhecera. Não podia continuar a evitá-lo, agora que sabia quem ela era e não deixaria passar aquilo de qualquer forma. Sallie soltou a porta e virou-se para olhar para ele, com o queixo levantado num gesto desafiante.
- Querias ver-me?
Ele atravessou com grande rapidez a distância que os separava. Parecia tenso, com os lábios apertados.
- Sarah - sussurrou e os seus olhos cinzentos relampejaram ferozmente.
- Sallie - corrigiu-o ela e pôs a trança para trás das costas. - Agora chamo-me Sallie.
Ele estendeu um braço e agarrou-a pela cintura, fazendo com que os seus dedos lhe comprimissem as costelas.
- Não só te chamas Sallie em vez de Sarah, como Jerome em vez de Baines! - exclamou e ela tremeu, alarmada.
Conhecia todos os tons de voz de Rhy, pois a sua rouquidão tornava-a especial. Podia ser ameaçadora quando estava zangado, áspera quando queria alertar para algo em televisão, ou grave e sedutora quando fazia amor. Um arrepio percorreu Sallie ao ouvir o tom que estava a empregar, que indicava que estava com um humor perigoso e mais valia estar alerta quando Rhydon Baines se zangava.
- Parece-me que é melhor acompanhares-me
- murmurou. Agarrou-a pelo cotovelo e arrastou-a para o elevador. - Temos muitas coisas para falar e não quero fazê-lo no corredor.
Não a soltou enquanto esperavam que o elevador voltasse a parar naquele piso e um estagiário que passava por ali ficou a olhar para eles até que desapareceu por uma porta.
- Solta-me - murmurou ela.
- Nem pensar, senhora Baines - recusou ele sem levantar a voz.
Quando o elevador parou no seu andar, as portas abriram-se. Entraram e estas voltaram a fechar-se. Sallie estava sozinha com ele num espaço muito reduzido. Ele carregou no botão do andar da administração e o elevador começou a subir.
Sallie reuniu toda a sua coragem e sorriu educadamente, decidida a esconder o repentino medo que lhe revolvia o estômago.
- Temos de falar sobre quê? Afinal de contas, passaram sete anos.
Ele também sorriu, contudo, o seu sorriso não era de cortesia, era o sorriso de um lobo.
- Então falaremos dos velhos tempos - disse entredentes.
- Não pode esperar?
- Não - respondeu ele sem levantar a voz. Agora. Tenho muitas perguntas e quero respostas.
-Tenho trabalho...
- Cala-te! - ordenou e ela obedeceu.
O elevador parou com um estrondo e o estômago de Sallie sofreu um movimento semelhante. O comportamento de Rhy incomodava-a e não queria estar a sós com ele e menos ainda passar pelo processo inquisitório a que sabia que ele ia submetê-la.
Ele tirou-a do elevador e levou-a para o seu escritório. A sua secretária viu-os a entrar e sorriu, porém, interrompeu o que começara a dizer quando Rhy passou à frente da sua mesa.
- Não quero interrupções - anunciou. Entrou depois de Sallie no escritório e fechou a porta com firmeza.
Sallie ficou de pé a apenas alguns centímetros dele e pestanejou enquanto tentava habituar-se à sua presença. Vira-se obrigada a aceitar a sua ausência quando a abandonara e agora não era capaz de aceitar a sua presença. Era uma miragem, um fruto da sua imaginação, demasiado viril e enérgico para ser real.
No entanto, ele ficou junto à porta, observando-a com os seus imperturbáveis olhos cinzentos... E era totalmente real. Em vez de olhar para ele nos olhos, Sallie deixou que os seus olhos passeassem pelo corpo de Rhy e reparou imediatamente em como o casaco castanho lhe assentava bem, assim como as calças. O seu coração começou a bater acelerado e mordeu o lábio inferior.
- Rhy... - a sua voz tremeu e teve de pigarrear. - Porque estás a fazer isto?
- O que queres dizer? - perguntou ele e os seus olhos brilharam perigosamente. - És minha mulher e quero saber o que se passa aqui. Está claro que estiveste a evitar-me. Devo agir como se não existisses, como parece que tu querias fazer comigo? Desculpa se estou um pouco lento, querida, mas não esperava ver-te e apanhaste-me desprevenido. Não pensava fingir que não te conhecia. Ela suspirou, aliviada.
- Ah, isso - disse com um suspiro, sentindo-se fraca agora que sabia o que Rhy queria.
- Sim, a verdade é que estava a evitar que nos encontrássemos. Não sabia como encararias o facto de eu trabalhar para ti e não queria arriscar-me a perder o emprego.
- Contaste a alguém que somos casados? perguntou.
Ela abanou a cabeça.
- Todos me conhecem como Sallie Jerome. Voltei a adoptar o meu apelido de solteira porque não queria aproveitar-me do teu.
- Muito louvável da sua parte, senhora Baines - murmurou sarcasticamente e dirigiu-se para a sua mesa. - Senta-te, não vou morder-te.
Ela fez o que ele lhe dizia, preparada para continuar a responder a perguntas. Se fosse despedi-la, já o teria feito, portanto o seu posto de trabalho parecia estar a salvo e isso ajudou-a a relaxar.
Rhy não se sentou e, apoiando-se na beira da mesa, cruzou as pernas à altura dos tornozelos e os braços sobre o peito. Ficou em silêncio enquanto os seus olhos cinzentos a examinavam de cima a baixo. Sallie ficou novamente em tensão. Não sabia porquê, mas sentia-se ameaçada, apesar de ele não ter saído do sítio onde estava. Aquele silêncio acabou por se tornar demasiado irritante.
- De que queres falar? - perguntou com aspereza.
- Mudaste, Sarah... Sallie - corrigiu-se. Uma mudança drástica, e não me refiro apenas ao nome. Deixaste crescer o cabelo e emagreceste muito. E, sobretudo, és realmente boa numa profissão que eu teria jurado que nunca te interessaria. Como te tornaste jornalista?
- Por acaso - respondeu com voz animada. Acabava de passar por uma ponte justamente quando desabou e escrevi uma crónica que depois dei ao redactor-chefe do jornal onde trabalhava. Publicaram-na e ofereceram-me um trabalho como jornalista. Até então era administrativa.
- Dize-lo como se fosse a coisa mais normal do mundo trabalhares para uma das revistas de actualidade mais importantes do momento - limitou-se a responder. - Suponho que gostes do teu trabalho, não?
- Claro que sim! - exclamou, inclinando-se com avidez para a frente. Os seus olhos brilhavam e falava com entusiasmo. - Adoro! Antes não entendia porque tinhas sempre tanta vontade de ir trabalhar pelo mundo fora, mas fui mordida pelo mesmo bichinho. Entra no sangue, prende-te, não é verdade? Creio que me tornei uma viciada em emoções fortes. Quando passo demasiado tempo na redacção fico murcha.
- Os teus olhos não mudaram - murmurou quase para si com o olhar cravado no rosto de Sallie. - Continuam a ser enormes e azuis corno o mar, como se um homem pudesse afogar-se neles. Porque é que mudaste de nome? - perguntou bruscamente.
- Já te expliquei que não queria aproveitar-me da tua fama - explicou pacientemente. Queria crescer por mim mesma, para variar, e percebi que adorava aquela sensação. É como o nome Sallie. Na universidade, Sarah transformou-se em Sallie em algum momento e agora sou apenas Sallie.
- Universidade? - perguntou com os olhos repletos de curiosidade.
- Sim, finalmente consegui licenciar-me respondeu, a rir-se. - Quando te foste embora, inscrevi-me em muitos cursos: de redacção, de escrita criativa... Mas depois comecei a trabalhar como jornalista e o trabalho absorvia-me totalmente, portanto acabei o curso com muita dificuldade.
- E fizeste dieta? Se tinhas mudado tantas coisas na tua vida, porque não a figura?
Parecia quase que estava ressentido e Sallie olhou para ele com desconcerto. Era impossível que o incomodasse o facto de ter emagrecido, disse para si. Além disso, também não emagrecera assim tanto...
- Não, não fiz dieta. Fui emagrecendo sem querer - respondeu e o seu tom reflectia que não entendia bem o porquê da pergunta. - Estava tão ocupada que não fazia todas as refeições. De facto, continua a acontecer-me.
- Porquê? Porque decidiste mudar tão drasticamente?
Um formigueiro repentino disse a Sallie que aquela conversa não era inocente. Era um retorno aos velhos tempos e Rhy conduzira-a deliberadamente até àquele ponto. Ele não podia saber a verdade, porém, em qualquer caso, não faria diferença. Levantou o olhar para ele.
- Quando te foste embora, disseste-me que te telefonasse quando fosse mulher para ti. Quase morri... Queria morrer. Depois, decidi recuperar-te, transformar-me na mulher que tu querias e inscrevi-me em mil cursos, onde aprendi uma série de coisas, entre outras, a viver sem ti. É tudo.
- Não, não é tudo - disse ele sarcasticamente. - O patife do teu marido reapareceu e começa outro capítulo e o facto de ser teu chefe torna tudo mais interessante. Vejamos - murmurou, - a empresa tem alguma regra que estipule que é proibido contratar familiares?
- Se tem - respondeu ela, - recordo-te que eu estava aqui antes.
- Mas eu sou o chefe - recordou-lhe ele com um sorriso. - Não tens de te preocupar, querida, não tenho intenção de te despedir. És demasiado boa para deixar que passes para a concorrência - levantou-se e ela fez o mesmo. Senta-te, não acabei.
Sallie voltou a sentar-se obedientemente e ele rodeou a secretária e sentou-se na sua cadeira, pegando numa pasta enquanto se recostava.
Ela viu que era uma ficha do departamento de pessoal e percebeu que devia ser a sua, porém, não tinha nenhum motivo para desejar que Rhy não a lesse, portanto olhou para ele enquanto a folheava.
- Tenho curiosidade em ver a ficha que preencheste - disse. - Dizes que ninguém sabe que somos casados, então o que puseste em ”estado civil”? - perguntou. - Ah, aqui está. Muito sincera. Admites que és casada e o apelido do teu marido é... ”Separada. Informação confidencial”.
- Já te disse que ninguém sabe - replicou. Ele deu uma vista de olhos à ficha e levantou bruscamente o sobrolho.
- ”Parente mais próximo: Nenhum”? - leu com voz zangada. - E se te acontecer alguma coisa? Imagina que morres. Essas coisas acontecem, sabes perfeitamente. Como ia descobrir?
- Na verdade, não pensei que te importasses
- defendeu-se ela. - Nem sequer pensei nessa possibilidade, mas agora apercebo-me de que era capaz de te interessar. Provavelmente, um dia podes querer voltar a casar-te. Lamento muito, não foi muito delicado da minha parte omitir-te.
Uma veia latejou na testa de Rhy e Sallie olhou para ele, fascinada. Isso significava que estava furioso, como muito bem recordava, porém, não conseguia imaginar o motivo do seu aborrecimento. Afinal de contas, não morrera, portanto não tinha com que se preocupar.
Ele fechou a pasta e deixou-a novamente sobre a mesa, com os lábios apertados.
- Voltar a casar-me! - exclamou de repente.
- Porque haveria de fazer semelhante tolice? Uma vez é mais do que suficiente!
- Certamente - ela corroborou aquela afirmação com toda a sinceridade.
Rhy semicerrou os olhos e obrigou-se a dominar o seu génio.
- E tu, não queres voltar a casar-te?
- Um marido interferiria no meu trabalho disse e abanou a cabeça. - Não, prefiro viver sozinha.
- Não tens... eh... nenhum amigo íntimo que proteste quando te ausentas durante vários dias ou várias semanas? - perguntou.
- Tenho muitos amigos, sim, mas a maioria é da mesma profissão, portanto entende o que é viajar para cobrir uma notícia - respondeu com calma, sem lhe dizer o que ele queria saber. Não lhe dizia respeito se tinha amantes e, de repente, pareceu-lhe importante para o seu orgulho que Rhy não descobrisse que era o único homem com quem fora para a cama. Afinal de contas, ele não vivia precisamente como um monge. A imponente Coral Williams era uma prova evidente.
- Li muitos dos teus artigos - comentou ele, mudando de táctica. - Estiveste em alguns sítios ”quentes”, como o Líbano, a América do Sul, a África do Sul... Os teus ”amigos” não se importam que possa acontecer alguma coisa?
- Como já te disse, são jornalistas. Qualquer um pode voltar para casa cadáver - respondeu com crueldade. - A situação era igual para ti e continuavas a ir. Porque é que deixaste a televisão? Acho que podias escolher as tuas reportagens e diz-se que te ofereceram um trabalho muito bom...
- Talvez seja um sinal de que estou a ficar velho, mas cansei-me de andar sempre a espreitar o perigo - disse bruscamente. - E começava a aborrecer-me, queria uma mudança. Tinha algum dinheiro para investir, lucros de outros investimentos que fui fazendo nestes anos e quando colocaram a revista à venda, decidi que chegara a hora e comprei-a. Ainda tenho de fazer quatro reportagens para a televisão no próximo ano e isso é sempre interessante. Terei tempo para me documentar melhor sobre todos os assuntos.
Sallie não parecia convencida.
- Pois eu preferiria ser enviada especial em algum canto do mundo.
Ele começou a dizer alguma coisa, no entanto, o telefone da sua mesa começou a tocar.
Com uma irritação repentina, levantou o auscultador, carregou no botão do intercomunicador e falou com brusquidão:
- Disse que não quero interrupções!
Ao mesmo tempo, a porta abriu-se e uma voz disse:
- Mas eu sei que não me consideras uma interrupção, querido. E se estás a fazer gato-sapato de um dos teus pobres jornalistas, tenho a certeza de que já disseste tudo o que tinhas para dizer.
Sallie virou a cabeça e olhou para Coral Williams que, com um vestido preto apertado que realçava a perfeição das suas curvas, estava espantosa. A modelo era a personificação da mulher elegante e olhava para Rhy como se esperasse que a recebesse de braços abertos. Ele finalmente falou.
- Estou a ver qual era o seu problema, menina Meade - disse e voltou a pousar o auscultador. Falou com Coral no mesmo tom terminante. - Espero que seja importante, Coral, porque neste momento tenho muitas coisas na cabeça.
”Porque acabo de me encontrar com a minha mulher”, completou Sallie para si e sorriu involuntariamente enquanto se levantava.
- Já acabámos, senhor Baines?
Ele parecia frustrado e de mau humor.
- Continuaremos a falar depois - respondeu com brusquidão e ela entendeu que podia ir-se embora. Saiu com um sorriso triunfante, que intrigou visivelmente Coral, e continuava a sorrir quando passou à frente da secretária de Rhy.
A primeira coisa que devia fazer era tranquilizar Greg, de modo que fez uma paragem no seu escritório a caminho do seu cubículo.
- Ele já sabe - disse prosaicamente, espreitando pela porta. - Tudo bem, não vai despedir-me.
Greg passou os dedos pelo cabelo e despenteou alguns fios grisalhos.
- Fizeste-me envelhecer dez anos, linda suspirou. - Fico contente por ele finalmente saber. Tira-me um peso de cima. Achas que ele vai contar a alguém?
- Não me parece - respondeu. - Não me disse nada a esse respeito. Coral está agora no escritório dele e não acredito que queira que alguém estrague a relação.
- Que esposa tão compreensiva - gozou, fazendo uma careta.
Com toda a tensão pela qual acabava de passar, Sallie enfrentou o artigo que estava a escrever com uma vontade renovada e acabou-o naquela mesma tarde. Chris passou novamente pela sua mesa, daquela vez para lhe dizer que partia à noite para Miami.
- Queres ir comigo até ao aeroporto? - propôs e ela aceitou, encantada.
Por vezes era agradável ver uma cara conhecida entre a multidão quando se viajava de noite, quando a maioria das pessoas estava calmamente em sua casa a ver televisão, portanto não lhe pareceu nada estranho que Chris lhe pedisse que fosse com ele. Apenas quando estavam a caminho do aeroporto se apercebeu de que ultimamente ele procurava a sua companhia com mais frequência. Gostava de Chris, era um amigo leal, contudo, sabia que as coisas nunca iriam mais longe.
- Posso perguntar porque é que ultimamente me convidas para almoçar, para me despedir de ti no aeroporto...? Há alguma coisa que deva saber?
- Estou a usar-te - admitiu ele com toda a franqueza. - És uma boa companhia e não esperas nada de mim além da amizade. E o meu ego agradece ter uma mulher tão atraente como tu ao meu lado.
Ela não teve outro remédio senão desatar a rir-se. Na sua opinião, as mulheres atraentes não eram como ela, pequenas figuras com mais energia do que noções de moda. No entanto, não deixava de ser agradável ouvir um homem a dizer-lhe aquelas palavras.
- Obrigada - disse alegremente, - mas ainda não respondeste à minha pergunta.
Ele franziu o sobrolho,
- Há uma mulher. O que mais podia ser?
- Conheço-a?
- Não, não é jornalista. Vive no meu edifício e é do estilo caseiro. Quer um marido que trabalhe das nove às cinco, que esteja em casa todas as noites e que ao fim-de-semana se encarregue do jardim. E eu não me vejo a viver essa vida. Estamos num impasse, porque nenhum de nós quer dar o braço a torcer.
- E o que vais fazer?
- Esperar. Tenho muita paciência. Ou aceita o que há ou não aceita nada, é muito simples.
- E porque é que ela tem de ceder em tudo e tu em nada? - inquiriu Sallie, indignada, espantada com o facto de Chris, que parecia tão razoável, esperar que fosse a mulher a adaptar-se à sua vida.
- Porque eu sei muito bem que não consigo afirmou e sorriu. - Conheço as minhas limitações, Sal. Só espero que ela seja mais forte do que eu e consiga adaptar-se.
Depois mudou de assunto e Sallie compreendeu que aquilo era tudo o que estava disposto a contar. Durante o tempo restante estiveram a conversar sobre assuntos profissionais e ela ficou até que chamaram o seu voo, pois reparou que Chris se sentia vulnerável. Partir de viagem de noite sem ninguém para se despedir dele era muito deprimente e estava desejosa de lhe proporcionar, pelo menos, uma cara conhecida a quem dizer ”adeus”.
Já passava das dez horas quando chegou ao seu apartamento. Tomou um duche rápido e preparou-se para se deitar. Justamente quando estava a apagar a luz, o telefone tocou e acendeu-a novamente para o atender.
- Sallie? Posso saber onde te meteste? - perguntou Rhy com impaciência e, como sempre, a sua voz rouca fez com que Sallie tremesse.
- No aeroporto - respondeu mecanicamente, sem se aperceber.
- Foste buscar alguém? - quis saber e a sua voz era mais grave.
- Não, fui levar alguém - recuperou do susto e apressou-se a perguntar: - Porque estás a telefonar?
- Esta tarde saíste sem resolvermos as coisas. Desconcertada, repetiu:
- ”Resolvermos”? O que precisa de ser resolvido?
- O assunto do nosso casamento, por exemplo - respondeu com sarcasmo.
Ela compreendeu de repente e lembrou-se de que devia tranquilizá-lo. De facto, facilitaria o processo, não levantando nenhum impedimento.
- Tenho a certeza de que não teremos nenhum problema para nos divorciarmos, tendo em conta o tempo que estivemos separados. E parece-me uma boa ideia que nos divorciemos. Na verdade, devíamos tê-lo feito antes. Sete anos é muito tempo e é óbvio que já não há nada entre nós, além do compromisso burocrático.
- Falas demasiado - assinalou ele. A sua voz era áspera, o que significava que estava a zangar-se.
Confusa, Sallie ficou calada. O que dissera para que se zangasse? Por que razão puxava o assunto se depois não queria falar sobre ele?
- Não quero o divórcio - disse Rhy, alguns segundos depois. - Foi-me muito útil ter uma mulherzinha em algum lugar.
Ela riu-se e sentou-se na cama. Acomodou a almofada contra a cabeceira e encostou-se.
- Entendo que possa ser útil - atreveu-se a irritá-lo. - Assim podes manter as mulheres que andam à caça de marido afastadas, não é verdade? De qualquer modo, chegámos ao ponto em que continuar casados é uma estupidez. Queres que eu dê entrada do processo ou preferes fazê-lo tu?
- Estás a fazer-te de tola de propósito? - perguntou. - Disse-te que não quero divorciar-me!
Sallie voltou a ficar calada, espantada com a sua insistência.
- Mas... Rhy! - protestou finalmente com incredulidade. - E posso saber porquê?
- Já te disse - respondeu, como se fosse óbvio. - É-me útil continuar casado.
- Podes continuar a dizer que és!
- E porque haveria de mentir? Além disso, a verdade acaba sempre por se saber. Não, obrigado pela tua oferta, mas parece-me que fico contigo, independentemente de tu teres um substituto ou não.
De repente, ela zangou-se. Porque estava a telefonar-lhe se não queria o divórcio e quem era ele para fazer comentários sarcásticos sobre um ”substituto”.
- Estás a ser detestável! - reprovou. - Qual é o problema, Rhy? Coral está a pressionar-te? Precisas de te refugiar atrás de uma esposa? Pois podes refugiar-te atrás de outra, porque não preciso do teu acordo para que me dêem o divórcio.
Abandonaste-me e não soube nada de ti durante sete anos, portanto qualquer juiz me concederá o divórcio!
- Achas? - desafiou-a ele e riu-se sonoramente. - Tenta. Tenho amigos em todo o lado e o divórcio pode ser mais difícil do que pensas. É melhor que tenhas muito dinheiro, muito tempo disponível e um trabalho mais seguro. Estás numa posição vulnerável, sabes? Não podes arriscar-te a que o teu chefe se zangue contigo...
- O meu chefe pode ir dar uma volta! - gritou, furiosa, e desligou o telefone. O telefone voltou a tocar imediatamente depois. Ela olhou para ele por um momento e, como continuava a tocar, desligou-o, algo que raramente fazia, pois receava que Greg tivesse de a localizar para alguma emergência.
Depois, apagou a luz da mesinha e deu alguns murros à almofada para conseguir adoptar a forma exacta, embora a possibilidade de adormecer fosse remota. Deitada na escuridão, bufava de cólera e desejava poder vingar-se na cara de Rhy. Por que razão lhe telefonava se não queria falar sobre divórcio? Se queria usá-la para manter Coral à distância, que usasse outra.
Na sua opinião, Coral era exactamente o seu tipo, uma pessoa sofisticada e elegante que certamente não se importaria que o seu marido estivesse mais interessado no seu trabalho do que nela.
Então, de repente, acendeu-se uma luz no seu cérebro. Já sabia por que motivo Rhy se opunha ao divórcio e porque lhe fizera aquelas perguntas tão indiscretas sobre os seus ”amigos”. Se aprendera alguma coisa a respeito de Rhy no ano em que tinham estado casados fora que era um homem possessivo. Não queria desprender-se de nada do que lhe pertencia, e isso incluía a sua mulher. Estava claro que o facto de estar separado dela e a milhares de quilómetros e de não se terem visto durante anos era indiferente. A sua atitude era a de um marido: a sua mulher seria sempre a sua mulher. Apesar de já não estar interessado nela, era demasiado obstinado para a deixar livre se pensasse que outro podia querer casar-se com ela. Não se dava conta de que ela pensava tal como ele: um casamento fora suficiente.
Reconheceu para si mesma que nunca amaria ninguém como amara Rhy e, apesar de se ter recuperado da dor emocional que lhe infligira, não achava que fosse capaz de voltar a amar com tanta paixão, com tanta entrega. E também não estava disposta a conformar-se com uma relação morna e confortável depois de saber o que era o amor.
É claro que nunca conseguiria convencê-lo de que a razão por que queria divorciar-se não era para se casar com outro homem. Nunca entenderia que precisava de se sentir livre. Com o passar dos anos, ele transformara-se numa figura longínqua, contudo, agora que estaria sempre à sua volta, sentia-se asfixiada. A personalidade de Rhy era demasiado possessiva, demasiado dominante e, se ele achava que conservava algum tipo de direito legal sobre ela, não hesitaria em usá-lo.
Pela primeira vez, Sallie considerou seriamente a possibilidade de mudar de emprego. Gostava da sua revista, a World in Review, mas havia outras. E se Rhy começasse a ameaçar despedi-la se tentasse obter o divórcio, o melhor que podia fazer era frustrar os seus planos antes que ele pudesse levá-los a cabo.
Sallie olhava várias vezes para o seu teclado, tentando fazer com que as palavras formassem uma frase razoável, porém, tinha a mente em branco. Sempre fora muito entusiasta na hora de trabalhar e as palavras surgiam de forma natural, as frases fluíam sem esforço, portanto aquele bloqueio estava a enervá-la ainda mais. Nunca antes lhe acontecera nada parecido e sentia-se perdida. Como poderia escrever sobre algo que a motivava tão pouco? E que era mortalmente aborrecido!
Brom acabava de voltar do escritório de Greg.
- Mandaram-me para Munique - anunciou enquanto limpava a sua mesa.
Sallie virou a sua cadeira para olhar para ele. - Alguma coisa interessante?
- Uma reunião da União Europeia que pode fracassar. Vemo-nos quando voltar.
- Sim, está bem - disse Sallie e tentou sorrir. Brom parou junto a ela e pôs-lhe uma mão no ombro.
- Aconteceu alguma coisa, Sal? Há duas semanas que andas estranha. Foste ao médico?
- Não é nada - garantiu ela e Brom foi-se embora.
Quando ficou novamente sozinha, virou-se para o teclado e franziu o sobrolho. Não, não fora ao médico porque não havia nada que curasse o aborrecimento. Porque não lhe atribuíam nenhuma missão? Greg sabia que o seu trabalho era melhor como repórter do que como redactora de notícias, contudo, desde que voltara de Washington, há três semanas, não a tinham mandado cobrir nenhuma notícia, nem sequer um pequeno acontecimento. De facto, não paravam de lhe ”sugerir” que escrevesse artigos que qualquer pessoa podia escrever. Fazia o que podia, contudo deparara-se com um muro de pedra e, de repente, estava zangada. Se Greg não tencionava voltar a atribuir-lhe uma reportagem, queria saber a razão.
Levantou-se com muita resolução e subiu para falar com Greg. Ele não estava no seu escritório, portanto sentou-se à sua espera e enquanto o fazia o seu aborrecimento moderou, mas continuava decidida a obter algumas respostas. A tenacidade que a fazia seguir em frente quando perseguia uma história impulsionava-a também a manter-se firme na sua decisão de chegar ao fundo daquela questão e descobrir por que motivo Greg a relegava para segundo plano. A sua relação laboral sempre fora boa, de respeito e afecto, e de repente parecia que Greg não confiava na sua capacidade como repórter.
Esperou durante quarenta minutos até que Greg voltou e, quando abriu a porta e a viu ali sentada, uma expressão de preocupação e consternação apareceu no seu rosto antes que tivesse tempo de a ocultar.
- Olá, linda! Como está a correr o artigo? perguntou em jeito de saudação.
- Não está a correr. Não consigo escrever nada.
Ele suspirou como resposta à franqueza da sua resposta e sentou-se à sua mesa, onde brincou um pouco com o lápis antes de falar.
- Essas coisas acontecem com todos de vez em quando. Qual é o problema? Alguma coisa em concreto?
- É chato - afirmou ela e Greg pestanejou. Não sei porque me atribuis todas as notícias sem importância. Porquê? Sou uma boa repórter, mas não me deixas demonstrá-lo. Queres que me demita? Rhy decidiu que não quer que a sua mulher trabalhe para ele, mas não quer despedir-me porque ficaria mal na fotografia?
Greg passou a mão pelo cabelo e suspirou. Tinha a cara em tensão.
- Estás a pôr-me numa posição delicada murmurou. - Porque não deixas passar um pouco de tempo para que a situação acalme?
- Não! - exclamou ela. Depois acalmou-se. Desculpa, acho que sei que a culpa não é tua. Sempre me deste as reportagens que achavas que podia fazer. É Rhy, não é verdade?
- Tirou-te da lista de repórteres internacionais - revelou Greg.
Embora Sallie esperasse algo parecido, ouvir em voz alta as palavras que confirmavam as suas suspeitas foi um golpe mais duro do que previra. Ficou pálida e tremeu visivelmente. Fora da lista de repórteres internacionais! Era um golpe mortal. Transferira toda a paixão que sentira por Rhy para o seu trabalho e, com os anos, percebera que um trabalho satisfatório enriquecia a sua vida. Não duvidava que um psicólogo lhe diria que o seu trabalho era um mero substituto do que realmente queria, um homem, e talvez tivesse sido assim ao princípio. Contudo, ela já não era a mesma pessoa de há sete anos, era madura, independente, adulta e sentia-se como um músico a quem acabavam de tirar as mãos, como se lhe tivessem arruinado a vida.
O espanto deixou-lhe a garganta seca.
- Porquê? - murmurou.
- Não sei - respondeu Greg. - Olha, querida, tudo o que sei é que te tirou da lista de reportagens internacionais. Continuas na lista de reportagens nacionais e houve vários temas dentro dos Estados Unidos, mas não te mandei cobri-los porque eram assuntos fáceis, que qualquer pessoa podia cobrir, e queria que estivesses disponível para o caso de surgir algo importante. Talvez tenha errado. Tentava fazer o melhor para a revista, mas sei que te sentes mal quando tens de ficar na redacção demasiado tempo. Se surgir alguma coisa, independentemente do que for, queres que te mande para a rua? Só tens de o dizer.
- Não importa - respondeu com fadiga e ele enrugou o sobrolho. Não esperava uma atitude derrotista de Sallie. Contudo, quando ela levantou o olhar, os seus olhos brilhavam com aborrecimento. - Pensando bem, sim. Pode ser qualquer coisa. Se quiseres enviar-me durante seis meses para algum lugar, também aceito. A única forma de não acabar por matar Rhy é que não me atravesse no seu caminho. É suposto ser um segredo o facto de eu já não estar na lista de reportagens internacionais?
- Não me parece - respondeu Greg. - Não te tinha dito porque pensei que podia encontrar-te outras coisas de que gostasses, mas não surgiu nada. Porquê?
- Porque quero falar com Rhy sobre isso disse e esboçou um sorriso felino ao pensar em enfrentar o arrogante do seu marido.
Greg chegou-se para trás e estudou a cara repentinamente animada de Sallie. Por um momento, sentira-se preocupado com ela, receando que tivesse perdido a sua energia transbordante, mas não, ali estava. Sorriu. Sallie crescia com as dificuldades e por isso era tão boa repórter.
- Faz o que puderes - disse bruscamente. Preciso de poder contar contigo.
Amanda Meade, a secretária de Rhy, sorriu a Sallie quando esta entrou. Amanda fora também a secretária do anterior editor e conhecia todos os empregados. Uma das suas principais características era a sua discrição, prova disso era o facto de não ter circulado nenhum rumor sobre a conversa que Rhy e Sallie tinham mantido à porta fechada quinze dias antes. Sallie agradecia-o, pois não queria que começassem a circular rumores sobre eles, porque Rhy podia pensar em despedi-la apenas para os desmentir.
- Olá, Sallie! - cumprimentou Amanda. Posso ajudar-te em alguma coisa ou queres falar com o chefe?
- O chefe, se for possível - respondeu.
- Ele pode receber-te daqui a pouco - informou Amanda. - Mas ao meio-dia vai almoçar com a menina Williams, portanto não poderá conceder-te muito tempo.
- Eu não demoro - prometeu Sallie. Amanda carregou num botão do intercomunicador e Sallie ouviu-a a explicar a Rhy que ela queria vê-lo. Alguns segundos depois, sorriu novamente.
- Entra, ele vai receber-te agora mesmo. E ultimamente está de muito bom humor!
Sallie teve de se rir.
- Obrigada pela informação, mas não vou pedir um aumento de salário.
Entrou no escritório de Rhy e fechou a porta. Queria ter a certeza de que ninguém ouviria sequer um fragmento da conversa que iam ter. Rhy estava de pé junto à enorme janela, a contemplar as pessoas que passavam pela rua. Despira o casaco e arregaçara a camisa, deixando a descoberto uns antebraços musculados. Quando se virou, Sallie viu que também se desfizera da gravata. De facto, parecia mais um repórter do que um editor e emanava um ar masculino que nenhum outro homem podia igualar.
- Olá, linda! - cumprimentou, arrastando as palavras. A sua voz aveludada tinha um tom íntimo que contribuiu para que o pulso de Sallie acelerasse. - Demoraste muito tempo para me vires ver. Estava a começar a pensar que te tinhas rendido.
O que queria dizer?, perguntou-se Sallie. Será que Greg lhe telefonara para o avisar da sua visita? Impossível. Acabava de sair do seu escritório e, além disso, ele queria poder voltar a dispor dela para as reportagens internacionais. Nas veias de Greg corria tinta, não sangue.
- Não entendo - limitou-se a dizer. - O que queres dizer?
- Quero dizer que demoraste muito tempo para perceber que eu te tinha deixado em terra respondeu e sorriu enquanto se aproximava dela.
Antes que Sallie tivesse oportunidade de se afastar, ele colocou-se à frente dela e as suas mãos quentes agarraram-na pelos cotovelos. Ela tremeu quando ele lhe tocou. Tentou afastar-se, contudo, ele não a soltou.
- Ia informar-te das mudanças na noite em que te telefonei, mas desligaste - continuou a explicar, sem deixar de sorrir. - Portanto já estava à espera que subisses para falarmos.
Sallie tinha os sentidos muito apurados e naquele momento desejou que não fossem assim tão receptivos, porque conseguia distinguir o cheiro quente masculino da sua pele sob o da loção de barbear. Estava suficientemente perto dela para perceber que, tantos anos depois, continuava sem usar t-shirt, já que os pêlos encaracolados que cobriam o seu peito apareciam por debaixo do tecido da camisa. Desviou o olhar do seu peito e levantou-o para a cara perfeitamente barbeada, os lábios relaxados e sorridentes e, ainda mais acima, até ao olhar directo dos seus olhos cinzentos.
Reuniu toda a sua força de vontade e obrigou-se a não prestar atenção ao físico de Rhy.
- Porquê? Sabes o quanto gosto das reportagens internacionais, porque me impedes de as fazer? - quase sussurrou.
- Porque a notícia não me interessa até esse ponto - respondeu laconicamente.
Ela olhou para ele, confusa. Ele soltou-lhe os cotovelos, contudo, deslizou as mãos para cima, pelos seus braços, e arrastou-a com ele até à mesa. Sentou-se na borda e atraiu-a para si até que Sallie ficou situada entre as suas pernas. Naquela posição, as suas cabeças estavam quase ao mesmo nível e os olhos cinzentos de Rhy hipnotizaram-na e dissuadiram-na de protestar pela intimidade daquela posição.
- O que queres dizer? - conseguiu ela dizer com o mesmo tom de voz. Os dedos de Rhy acariciavam a pele nua dos seus braços e começou a tremer de forma involuntária.
- Que não podia suportar a ideia de ter de te mandar para lugares potencialmente perigosos - explicou calmamente. - A América do Sul, a África e o Médio Oriente são bombas relógio e não quero que estejas em algum desses sítios quando explodirem. A Europa... mesmo na Europa há sequestros, grupos terroristas, bombas em aeroportos e nas ruas. Pela minha própria tranquilidade, retirei-te das reportagens internacionais, apesar de Downey quase ter tido um enfarte quando lhe disse. Acha que és das melhores, linda. Era capaz de lhe torcer o pescoço quando penso nos sítios para onde ele te enviou.
- Greg é um profissional - afirmou Sallie. E eu também. Não sou uma rapariga indefesa, Rhy. Levei armas e fiz cursos de defesa pessoal. Sei cuidar de mim. Se ficar aqui, vou enlouquecer. Sinto-me como se andasse a pastar!
Ele riu-se e agarrou na trança que lhe dava pelas costas, passou-a por cima do ombro e colocou-a sobre o peito. Começou a brincar com ela, acariciando os cabelos escuros e esboçou um sorriso.
- Bela cabeleira - murmurou. - Eu adoraria vê-la livre desta trança, estendida sobre a almofada enquanto fazemos amor.
Sallie ficou gelada e as suas faces empalideceram. Não esperava aquele comentário. Levantou os olhos para ele e viu que tinha as pupilas dilatadas de desejo. Então, Rhy puxou-a e Sallie encontrou-se encostada sobre o seu peito. Retinha-a ali com a força das suas pernas e dos seus braços, que deslizaram à volta dela.
Ofegou ao sentir o contacto do corpo duro e quente de Rhy e, como acontecia sempre, os seus sentidos começaram a vibrar assim que ele lhe tocou. Tentando dominar-se, virou a cara para ele para lhe pedir que a soltasse, porém, Rhy aproveitou a oportunidade para a ajustar ainda mais à curva do seu corpo e inclinou a cabeça. A sua boca era quente, poderosa e absorvente e ela começou a lutar, tentando fugir tanto dele como dos seus próprios sentidos. Reuniu toda a sua força de vontade e conseguiu resistir ao assalto da língua de Rhy mantendo os dentes firmemente unidos. Depois de um momento, ele levantou a cabeça. A sua respiração estava agitada e os seus olhos, ávidos.
- Abre a boca! - ordenou com severidade. Sabes que quero beijar-te. Deixa-me tocar novamente na tua língua com a minha.
Voltou a inclinar a cabeça e, daquela vez, a força de vontade de Sallie não respondeu como ela desejava. Os seus sentidos transbordaram de prazer quando os lábios de Rhy pousaram sobre os seus e, quando a língua dele lhe pediu passagem, ela afastou os dentes e deixou que ele tomasse posse do interior da sua boca. Ele gemeu, apertando-a com mais força e ela deslizou as mãos pelos seus braços e ombros até lhe rodear o pescoço. O seu corpo magro tremia e, de modo completamente involuntário, arqueou-se contra ele, ofegando de desejo quando sentiu a intensidade da excitação de Rhy.
Sempre fora assim. Desde o primeiro beijo que tinham dado até à última vez em que tinham feito amor, a resposta física de ambos diante da proximidade um do outro era poderosa e imediata. Não desejara outro amante porque sabia instintivamente que nenhum homem a excitaria tanto como Rhy. Mesmo naquele instante, apesar de todas as boas razões que tinha para que o seu corpo não respondesse do modo como estava a fazer. Alguns segundos depois, deixou de protestar. Sentia-se ferozmente viva e, ao mesmo tempo, como se estivesse a afogar-se; agarrava-se a ele como se os seus sentidos fossem atraídos pelos incontáveis sinais de prazer que as suas terminações nervosas emitiam
Quando ele afastou a sua boca da dela, Sallie estava tão fraca e trémula que teve de se apoiar nele para não cair. Nos olhos de Rhy havia um brilho triunfante enquanto com um braço lhe rodeava a cintura e com a outra mão a obrigava a levantar o queixo e lhe depositava uma série de beijos leves sobre o seu rosto e os seus lábios.
- Hum - disse com um gemido profundo. Continua tudo igual. Pura dinamite.
Aquelas palavras ajudaram Sallie a recuperar alguma prudência e tentou afastar-se um pouco. Efectivamente, aquilo continuava a ser dinamite e quase lhe rebentara na cara! Seria uma parva se deixasse que Rhy usasse a atracção física que havia entre ambos para fazer com que esquecesse a razão que a levara até ao seu escritório.
- Já chega, Rhy! - protestou, enquanto afastava a cara. - Solta-me. Subi para falar contigo sobre...
- Já falámos - interrompeu-a asperamente e a sua voz era ainda mais profunda e rouca, sinal de que não tinha intenção de parar. - Agora preferia fazer amor. Já passou muito tempo, mas não o suficiente para me ter esquecido de como eram as coisas entre nós.
- Pois eu esqueci-me - mentiu ela e voltou a esquivar-se de um beijo. - Pára com essa atitude idiota! Levo o meu trabalho muito a sério e não quero que me deixes em terra porque pensas que uma mulher não consegue defender-se numa crise.
Ele parou de tentar beijá-la e olhou para ela com impaciência.
- Está bem, falaremos do teu trabalho e depois resolveremos o assunto. Eu não digo que uma mulher não saiba cuidar de si, digo que não quero que ”tu” te vejas envolvida numa situação de perigo, porque acho que não conseguiria suportá-lo.
- E porque haverias de te importar? - perguntou Sallie, surpreendida. - Não é que o meu bem-estar te tenha preocupado muito até agora, portanto não perturbes o meu trabalho armando-te em protector.
De repente, ele soltou-a e ela afastou-se alguns centímetros. Agradecia a distância, pois precisava de se concentrar para conseguir enfrentar Rhy e a sua proximidade toldava a sua mente com impulsos eróticos.
- É uma decisão irrevogável - anunciou concisamente. - Tirei-te para sempre das reportagens internacionais.
Ela ficou a olhar para ele fixamente e reparou que o seu estômago se contraía. ”Para sempre”? Seria mais fácil para ela deixar de comer do que renunciar às emoções que o seu trabalho lhe proporcionava! Nem que o tivesse planeado durante anos Rhy teria conseguido encontrar uma coisa capaz de a magoar mais.
- Odeias-me assim tanto? - murmurou. Os seus olhos azuis obscureceram-se até se tornarem quase negros de tristeza. - O que te fiz para que me trates desta forma?
- Claro que não te odeio - garantiu ele com impaciência, acariciando-lhe a cabeça com uma mão. - Estou a tentar proteger-te. És minha mulher e não quero que te aconteça nada.
- Tolices! - gritou. Tinha os punhos apertados. - Cortares as minhas asas é pior do que qualquer coisa que possa acontecer-me durante uma missão! O trabalho na redacção rouba-me vida. Enlouqueço quando passo horas à frente do teclado sem conseguir escrever uma linha. E não me venhas com a desculpa de que sou a tua mulher! A nossa relação consistia em irmos para a cama entre viagens. Depois, tu seguiste um caminho e eu segui outro e agora sou muito mais feliz do que alguma vez fui contigo.
Calou-se para respirar fundo. Tremia e tentava controlar a vontade de partir alguma coisa e de lhe dar um murro. Embora fosse teimosa, nunca chegava a esses extremos. Apercebeu-se de que a frustração que sentia era ainda mais enervante.
- Gostes ou não, és minha mulher e vais continuar a sê-lo - afirmou com frieza. As palavras eram como pedras que caíam sobre a cabeça de Sallie. - E não quero que a minha mulher ande pelo mundo fora.
- Nesse caso, porque é que não me dás um tiro? - perguntou, furiosa, levantando a voz. Seria mais piedoso do que deixares que eu morra de aborrecimento. Maldito sejas, Rhy! Além disso, nem sequer sei porque é que te casaste comigo - concluiu com frustração.
- Casei-me contigo porque tinha pena de ti afirmou sem rodeios. Ela ficou a olhar para ele boquiaberta e, depois, com uma expressão ofendida.
- Tinhas pena de mim?! - gritou e pensou que ia rebentar de raiva. Não podia ter-lhe dito nada mais humilhante!
- Parecias tão sozinha, tão necessitada... explicou ele com calma, como se cada palavra que acrescentava não fosse uma nova ofensa. E tão precisada de carinho, de carícias... Portanto pensei: porque não? Tinha vinte e oito anos e já estava na hora de me casar. E, além disso, havia um incentivo.
- Claro - disse. Foi até à janela e olhou para a rua, para não ter de ver a expressão brincalhona de Rhy. - Protege-te de todas as amiguinhas que te perseguem! - esteve tentada a dar-lhe um murro na boca, contudo, sabia que Rhy procuraria vingança.
Ele sorriu ao vê-la zangada e aproximou-se dela. Estava tão perto que Sallie sentia o seu fôlego na nuca.
- Não, linda. O incentivo era a forma como te excitavas quando eu te tocava. Parecias tão ingénua... Uma gordinha carinhosa, mas na cama transformavas-te numa pantera. O contraste era fascinante.
- Estou a ver que te riste muito à minha custa! - exclamou. Tinha a cara vermelha devido à humilhação que sentia.
- Não, não, nada disso - replicou e a sua voz tornou-se melosa. - O sexo entre nós era demasiado bom. Depois de ti, nenhuma mulher conseguiu dar-me o prazer que me davas. Mudaste muito, mas não na forma como reages quando te toco.
Aquela afirmação feriu o orgulho de Sallie.
- Esquece o que aconteceu. Não significou nada - respondeu.
- Pois eu acho que sim. Significa que recuperei a minha mulher. Quero que voltes para mim, Sallie - disse com voz doce.
O espanto obrigou-a a virar-se para ele. Olhou para ele com os olhos cheios de incredulidade.
- Estás a brincar! - acusou-o e a sua voz tremia. - Não pode ser!
- E porque não? - murmurou ele. Abraçou-a e inclinou a cabeça sobre o seu cabelo. - Nunca quis que te separasses de mim - continuou com a voz cada vez mais sedutora.
Sallie tinha consciência de que ele estava deliberadamente a usar o poder erótico da sua voz para a desarmar, contudo, reconhecer as armas que o adversário usava não lhe dava automaticamente a força para resistir a elas. Tremeu e tentou afastar-se, porém, ele impediu-a.
- Pensava que reflectirias e que me telefonarias. Estava farto das tuas recriminações e queria dar-te uma lição - disse, enquanto levantava a cabeça e olhava para a sua cara de espanto. Mas tu não me telefonaste e, bom, eu tinha de me concentrar na minha carreira... E o tempo foi passando. Sete anos é muito tempo, mas nós amadurecemos e eu penso aproveitar-me da atracção que ainda nos une.
- Não sejas tonto! - exclamou. Abanou a cabeça para negar a realidade implícita de que ela não tinha escolha, de que deixaria que a dominasse. Rhy tinha de aprender muitas coisas sobre ela! - Não funcionaria, Rhy. Somos duas pessoas diferentes daquela época. Eu já não me conformo ficando em casa. Há tantas coisas que quero fazer que talvez nunca chegue a fazê-las todas. Preciso de movimento.
- Eu vou ter de viajar muito por causa dos documentários que me comprometi a fazer. Podias deixar o teu emprego e viajar comigo - assinalou e ela recuou ao ouvir as suas palavras como se lhe tivessem posto uma cobra à sua frente.
- Deixar o meu emprego? - repetiu, espantada. - Estás louco? Não quero passar o resto dos meus dias a correr atrás de ti! Isto não é apenas um trabalho, é a minha vocação. Se desejas tanto que estejamos juntos, deixa tu o teu trabalho - a sua boca formava uma linha fina e olhou para ele com um ar desafiante.
- Eu ganho mais do que tu - replicou com voz lenta. - Seria uma estupidez. Além disso, a revista é minha.
- A ideia de vivermos juntos é uma estupidez - afirmou. - Porque não te conformas com um divórcio de comum acordo? Não tens de te preocupar, não te pedirei que me dês uma pensão. Eu gosto de ser independente.
- Não - interrompeu-a ele. Começava a ficar de mau humor e tinha o queixo tenso. - Nada de divórcio, sob nenhum conceito.
- Muito bem, podes dificultar-me o divórcio - admitiu ela. - Mas não sou obrigada a viver contigo nem a trabalhar para ti. Há mais revistas, jornais e agências de comunicação e sou uma boa jornalista. Não preciso de ti nem da tua revista.
- Sim? Como já te disse, tenho muitos amigos e se eu lhes pedir que não sejas contratada, não serás, acredita. Talvez encontres um emprego como empregada de balcão ou taxista, mas é só isso e, se eu quisesse, também isso conseguiria evitar - semicerrou os olhos e um sorriso surgiu no seu rosto moreno. - E enquanto isso continuas a ser a minha mulher, como tal, tenciono cuidar de ti.
Estava a ameaçá-la e ela conteve a respiração. Todos os alarmes começaram a tocar quando se deu conta de que Rhy tinha intenção de exercer os seus direitos maritais.
- Conseguirei uma ordem judicial de afastamento - afirmou, demasiado zangada para voltar atrás, apesar de saber que, se se empenhasse, Rhy iria tão longe quanto necessário para conseguir o que queria.
- Se telefonar para as pessoas certas, talvez não te concedam essa ordem - disse. Desfrutava do poder que tinha sobre ela. - E, dentro de algum tempo, talvez gostes de me ter por perto, como há pouco. Se bem me lembro, essa era a tua queixa principal; que nunca estava em casa. O que achas de voltarmos a tentar, hum? - murmurou. - E querias filhos, portanto teremos filhos, todos os que tu quiseres. A verdade é que estou desejoso de começar a tratar disso agora mesmo.
Sallie chiou os dentes de raiva, mais magoada do que ele podia imaginar por aquela referência aos filhos. Que besta!
- Já tive um filho, obrigada - resmungou.
Sentia raiva e queria magoá-lo tal como ele estava a magoá-la. - E ”se bem me lembro”, senhor Baines, você não o desejava. Passei a gravidez sozinha, dei à luz sozinha e enterrei o bebé sozinha. Não preciso de ti, nem de nada do que achas que podes dar-me.
- Não quero saber se precisas de mim - disse. Ao ouvir a recriminação que Sallie acabava de lhe atirar à cara, apertou os lábios. - Posso fazer com que me desejes, e é isso que conta. Podes chamar-me o que quiseres, mas tu e eu sabemos que se eu quiser, posso ter-te. Vai-te habituando à ideia de que és minha e de que não vou deixar-te partir. Chegou a hora de eu assentar. A sério, desta vez. És a minha mulher e não me importaria de ter alguns pirralhos antes de sermos demasiado velhos.
Sallie conteve os insultos que ecoavam na sua mente e afastou-se dele.
- Não - recusou ferozmente. - Não a tudo, a ti e aos teus pirralhos. Que a honra seja para outra! Tenho a certeza de que Coral está desejosa de ocupar esse lugar. E dado que neste momento deve estar à tua espera, não te entretenho mais.
A gargalhada que Rhy soltou acompanhou Sallie enquanto saía do seu escritório quase a correr, sob o olhar espantado de Amanda Meade. Sem dizer uma palavra, fechou a porta com força e dirigiu-se para o corredor a tremer de raiva.
O mais mortificante era a impotência que sentia. Rhy tinha poder para destruir a carreira que com tanto cuidado e carinho construíra e fá-lo-ia sem hesitar.
Sallie voltou para a sua mesa e afundou-se na cadeira. Tremia por dentro. Por que razão Rhy estava a fazer tudo aquilo? Não podia estar a falar a sério... Ou sim? A lembrança dos beijos apaixonados no escritório surgiu na sua mente e Sallie corou. As sensações não tinham mudado. Seria apenas sexo que Rhy queria? Ela representava um desafio para o seu ego masculino, pois fora sua noutra época e devia ter previsto que Rhy seria incapaz de suportar a ideia de que ela já não o desejava.
O pior era que não tinha assim tanta certeza de não continuar a desejá-lo. Fazer amor com ele era fabuloso e nunca esqueceria a magia ar- dente das suas carícias. Durante um minuto, fantasiou sobre como seria voltar a fazer amor com Rhy, dormir e viver com ele. Depois, a cruel realidade impôs-se. Se voltasse para ele, o que aconteceria depois? Já a retirara da lista de repórteres internacionais. Obrigá-la-ia a deixar o seu trabalho e talvez voltasse a engravidar. Sallie pensou com desejo em como seria ter um filho, porém, conhecia Rhy o suficiente para pensar mais além. Via-se com um filho e Rhy tão aborrecido e inquieto como da primeira vez, ressentido com a gravidez. Naquela altura, não lhe demonstrara lealdade. Agora, também não. Portanto, porque haveria de ser leal no futuro?
Acabaria por se cansar dela e ela estaria sem trabalho e com um filho. Para chegar ao nível mais alto do jornalismo, era necessário mais do que dedicação. O jornalista devia entregar-se por completo à sua carreira. Se desistisse agora, seria difícil voltar mais tarde e abrir caminho novamente. E, com um filho, o que faria?
A ideia do que podia acontecer se voltasse para Rhy assustava-a e sabia que, se pudesse escolher, ficaria com o seu emprego, pois nunca a desiludira e não podia dizer o mesmo de Rhy. E gostava do seu trabalho. Sabia muito bem como a sua independência era preciosa e não ia sacrificá-la em troca de uma satisfação meramente física.
Não sabia o que fazer. A sua natureza impulsionava-a a agir, contudo, na sua situação não podia fazer nada. Rhy anularia qualquer esforço da sua parte para encontrar outro emprego, a menos que desaparecesse e mudasse de nome, que fosse viver para outra parte do país. A ideia animou-a. Podia parecer demasiado drástica, contudo, podia começar a fazer planos. Por que razão um passo tão simples como mudar de identidade ia pará-la? Não aprendera que podia enfrentar quase tudo? Odiaria ter de deixar o seu emprego, mas encontraria outro se se visse obrigada a isso. O importante era manter-se longe de Rhy.
Ainda faltavam alguns minutos para a hora do almoço, porém, agarrou na sua mala e pô-la ao ombro. Conhecia Rhy e sabia que começaria a agir imediatamente para a encurralar. Tinha de tomar medidas para se proteger.
Apanhou um táxi e foi ao banco. Fechou a sua conta corrente e a de poupanças. Não sabia se Rhy podia impedi-la de levantar dinheiro, no caso de precisar de o fazer, no entanto, o mais sensato era não arriscar. Ao longo dos anos, conseguira poupar alguns milhares de dólares, o suficiente para viver durante algum tempo enquanto procurava outro trabalho. Sentia-se mais segura com o cheque na sua carteira. Rhy ia descobrir que já não era um ratinho assustado que podia intimidar.
Raramente tinha fome, porém, queimara muitas calorias naquela manhã e o seu estômago começou a protestar. Guiada por um impulso, entrou no café ao lado da World in Review e encontrou uma mesa num canto pouco iluminado. Era como entrar numa cova, até que os seus olhos se adaptaram à luz e reconheceu vários colegas da revista sentados ao balcão ou nas mesas. Pediu uma sandes de queijo e um café e estava à espera que trouxessem o seu pedido quando, de repente, Chris apareceu e se sentou na cadeira que estava vazia, à sua frente. Era a primeira vez que o via desde que regressara da Florida e reparou que estava muito bronzeado, apesar da escassa luz do bar.
- A Florida fez-te bem - comentou. - Como correu?
Ele encolheu os ombros e fez uma careta.
- O impasse continua se é isso que estás a perguntar. E tu, linda, como estás? Ouvi por aí que te tiraram das reportagens internacionais.
- É verdade - admitiu Sallie, franzindo o sobrolho. - Ordens lá de cima.
- Baines em pessoa? O que fizeste?
- Eu não fiz nada. Pensa que as internacionais são demasiado perigosas para mim.
Chris soltou um suspiro de incredulidade.
- Não! Baines é demasiado bom jornalista para fazer algo tão idiota. Olha para mim, Sal. O que se passa? No outro dia, na cantina, vi que ficou a olhar para ti.
- Bom, é verdade que pensa que as reportagens internacionais são perigosas para mim insistiu. - Mas é apenas uma das razões. Também acha que pode acrescentar-me à sua colecção, não sei se me entendes. Infelizmente, eu não concordo nesse ponto.
Chris deixou escapar um assobio.
- O chefe anda atrás de ti, eh? Bom, tenho de dizer que concordo com ele. De facto, és muito atraente. A diferença é que eu nunca teria coragem de avançar.
Sallie desatou a rir-se. Sabia que, embora Chris gostasse dela, não se sentia atraído por ela sentimentalmente. Era do tipo aventureiro, contudo, sentia-se atraído pelas mulheres caseiras. Queria alguém que lhe desse estabilidade enquanto não estava a percorrer o mundo. Sallie era demasiado temerária para lhe interessar.
Quando ela desatou a rir-se, ele não se alterou, mas nos seus olhos havia um brilho risonho.
Mais tarde, regressaram juntos para o escritório. Quando entraram no edifício, Chris rodeava carinhosamente a sua cintura com um braço. A primeira pessoa que Sallie viu foi Rhy, que estava à espera do elevador e, quando este levantou o olhar e reparou neles, os seus olhos flamejaram.
- Oh, oh, problemas - murmurou Chris e sorriu para Sallie. Enquanto as portas do elevador se abriam e Rhy entrava, Chris abraçou-a com mais força e beijou-a na testa. Na última visão que Sallie teve de Rhy antes de as portas se fecharem, este parecia prestes a cometer um assassinato.
- És mesmo parvo - murmurou Sallie, entre divertida e preocupada.
Rhy era perigoso quando se zangava. Era suficientemente forte, feroz e ardiloso para vencer qualquer adversário. Sob os seus impecáveis fatos feitos à medida, escondia-se um perito no corpo a corpo e podia deixar Chris gravemente ferido.
- Queres que ele te mate? Rhy tem muito mau feitio!
- Não quero que ele pense que já és dele explicou Chris com uma expressão atrevida e sorriu. - Eu aproveito-me de ti quando não quero estar sozinho. O mínimo que posso fazer por ti é devolver-te os favores que me fizeste. Eu uso-te, portanto aproveita e usa-me também.
Sallie conteve a respiração. A ideia de fingir que estava loucamente apaixonada por Chris era tentadora. O pior era que não acreditava que conseguisse enganar Rhy e também não queria que este se enervasse e prejudicasse Chris.
- Obrigada pela oferta, mas não me parece que seja muito inteligente fazer este tipo de brincadeiras à frente dele - disse. - Eu gosto da tua cara, não quero que a destrua. Mas se não te importas utilizarei o teu nome como uma cortina de fumo.
- Por mim, tudo bem - olhou para ela com seriedade. - Porque queres fugir dele? Tem tudo o que um homem, ou uma mulher, pode desejar.
- Eu já conhecia Rhy - explicou Sallie com cautela, pois não queria contar-lhe tudo. - Quer que retomemos a nossa antiga relação e eu não quero. É só isso.
- Apesar de ter a sensação de que estás a esconder muitas coisas, acredito em ti - murmurou Chris quase para si e foi-se embora a sorrir.
Sallie regressou ao seu cubículo e esteve a tarde toda à espera de uma chamada de Rhy a ordenar-lhe que fosse ao seu escritório, contudo, não a recebeu. Finalmente, apercebeu-se de que Rhy era mais subtil. Ia deixar que se angustiasse, que a preocupação a tornasse mais vulnerável. Mas estava muito enganado!
Com um movimento decidido, guardou o artigo que estava a escrever e começou uma nova página. Se Rhy queria jogar sujo, ela não teria problemas em não fazer o seu trabalho. Em vez de se concentrar naquele artigo estúpido, começaria a escrever as suas memórias! Se começasse a escrever a história da sua vida a partir daquele momento à medida que ia acontecendo, quando fosse velha estaria acabada e não teria de se preocupar com a possibilidade de não conseguir recordar tantos detalhes.
Teve um aumento de adrenalina e os seus dedos começaram a voar sobre o teclado. Pela primeira vez em semanas, as palavras surgiam na sua mente e mal tinha tempo para as ordenar. Sentia-se viva outra vez e o seu corpo vibrava de entusiasmo.
De repente, deixou cair as mãos sobre o teclado e olhou fixamente para o que escrevera. Porquê escrever as suas memórias? Porque não reunir as suas experiências e dar-lhes forma dentro de um romance? Sempre quisera escrever um livro, mas nunca tivera tempo. Agora, finalmente dispunha de tempo. Desatou a rir-se ao pensar na forma como ia usar o tempo e o dinheiro de Rhy para começar uma nova carreira.
Parou alguns minutos para considerar o nome que daria à sua heroína. E se deixasse um espaço em branco para pensar nisso depois? Então, disse para si que precisava de um nome para poder visualizar a personalidade da protagonista e isso levou-a a considerar qual seria a descrição física da personagem. Depois, havia o argumento, o que ia acontecer. Ao contrário do que acontecia na realidade, na ficção seria ela que teria de inventar os detalhes. Com excepção daquele primeiro curso de escrita criativa, sempre escrevera a crónica dos factos reais. Aquilo era mais difícil do que pensara ao princípio.
No entanto, ainda antes de o dia ter acabado, conseguiu extrair oito páginas da sua imaginação e olhava para o relógio, que dizia que estava na hora de ir para casa. Guardou as oito páginas numa pasta e pô-las debaixo do braço para as corrigir em casa.
Era estranho que algo monopolizasse a sua atenção com tanta força e, quando finalmente se deitou naquela noite, o argumento e as cenas continuavam às voltas na sua cabeça. Aquilo era um desafio quase tão emocionante como a reportagem mais perigosa e sentia o mesmo entusiasmo e a mesma pressa para o acabar. Quase lamentava ter de gastar várias horas a dormir, mas finalmente conseguiu perder-se num sono profundo e descansou como não fazia há semanas.
Durante uma semana, dedicou todos os seus momentos livres ao manuscrito. Levava-o para o trabalho, ficava levantada até tarde e escrevia até que o cansaço a arrastava para a cama. Rhy não lhe telefonou e ela estava tão absorvida no seu projecto que já não desejava que a situação mudasse. Apenas de vez em quando tinha consciência do silêncio de Rhy mas não a preocupava absolutamente. Enquanto não queria retomar a sua relação, ela preferia deixar passar o tempo e, a julgar pela quantidade de vezes que viu Coral Williams a entrar e sair do edifício, ele também não tinha pressa.
Uma tarde, quando estava prestes a sair, o seu telefone tocou e assustou-se. Como Brom ainda não voltara, há muito tempo que não recebiam telefonemas no seu cubículo. Atendeu e ouviu a voz de Rhy.
- Sobe, Sallie. Temos um problema.
Ela ficou a olhar para o telefone, apesar de ele já ter desligado, e perguntou-se qual seria a natureza do problema. Queria dizer que eles dois tinham um problema ou que a revista em geral tinha um problema? Surgira alguma coisa e precisava dela em particular? Estaria disposto a voltar atrás se não houvesse outro remédio senão recorrer a ela para não perder uma notícia? Pensou naquela ideia enquanto subia, perguntando-se como ele encararia semelhante situação.
Amanda indicou-lhe com a mão que entrasse no escritório.
- Estão à tua espera.
Quando entrou, viu que Greg também estava presente e dava voltas pela sala, enquanto Rhy, sentado na sua cadeira e com os pés em cima da mesa, parecia fisicamente relaxado, embora um brilho nos olhos indicasse que estava alerta.
Sem cumprimentar Rhy, Sallie perguntou a Greg à queima-roupa:
- O que se passa? Alguém foi ferido?
Dois anos atrás, um dos seus melhores amigos morrera na América do Sul enquanto cobria uma revolução e essa tragédia fizera com que se apercebesse dos riscos que um repórter corria. Rodeou a cintura com os braços para receber a má notícia de que tinham ferido ou matado algum colega. Greg captou imediatamente a sua preocupação no tom de voz baixo que empregou.
- Não, ninguém está ferido - garantiu com delicadeza. Recordava bem que a única vez que vira Sallie descontrolada fora quando lhe anunciara que Artie Hendricks tinha morrido.
Ela suspirou aliviada e afundou-se numa cadeira. Olhou para Rhy e viu que continuava com a cara relaxada e os olhos em alerta.
Confusa, olhou novamente para Greg.
- Então o que se passa?
- O baile de beneficência de Sakarya é na próxima semana - informou-a Greg e atravessou a sala para se ir sentar ao seu lado.
- Sim, eu sei. Era suposto eu ter de cobrir essa notícia - disse secamente e dirigiu um olhar acusador para Rhy. - Quem vais mandar no meu lugar?
- ”Ia” mandar Andy Wallace e Patrícia King
- respondeu Greg. - Mas Marina Delchamp recusou-se a conceder-lhes uma entrevista pessoal. Bolas! - a sua frustração rebentou e deu um murro no braço da poltrona. - Estava tudo combinado e agora diz-nos que não!
- Não é o estilo de Marina! - protestou Sallie. - Não é uma snobe. Deve haver uma razão.
- E há - interveio Rhy da sua posição relaxada. - Diz que só fala contigo. Porque é que tens de ser tu? Conhece-la pessoalmente?
Sallie sorriu ao dar-se conta de que o que tanto desejava se tornava realidade: Marina pusera Rhy entre a espada e a parede e ele não estava nada contente com a situação.
- Sim, é uma amiga minha - admitiu, e se Rhy achou estranho que conhecesse a maravilhosa ex-modelo, não fez qualquer comentário. Marina era casada com um dos homens mais poderosos de Sakarya e organizava o baile de beneficência, portanto podia escolher com que jornalistas queria falar.
- Fala com ela, convence-a a ser entrevistada por Patrícia! - ordenou Rhy. - Ou faz a entrevista por telefone - a satisfação do seu tom de voz indicava que pensava ter resolvido o problema.
Sallie sentiu que a raiva a invadia, mas conseguiu conter-se.
- Imagino que sendo a esposa do Ministro da Economia, conceda entrevistas a quem quer deixou cair.
- Sallie, estou a dar-te uma ordem. Entrevista-a por telefone.
- Não vai aceitar! - ela abriu os olhos com ingenuidade. - Marina pode falar comigo ao telefone quando quiser. O que quer neste momento é ver-me. E, além disso, tenho um convite para o baile - disse. Tinha intenção de tirar alguns dias na próxima semana e viajar para Sakarya por sua conta, mas agora via um modo de derrotar Rhy e tinha de se conter para não desatar a rir-se às gargalhadas.
- Não vai funcionar - avisou Rhy. - Disse que não farias internacionais e disse-o a sério, portanto, não irás.
Sentado junto a Sallie, Greg controlava a sua frustração até que, finalmente, se levantou com os punhos dentro dos bolsos.
- É a nossa melhor repórter! - exclamou, contendo o seu aborrecimento. - Estás a desperdiçá-la.
- Não estou a desperdiçá-la - resmungou Rhy e levantou-se da cadeira com um movimento ágil que o deixou em posição de ataque, pronto para reagir. Naquele instante, Sallie leu uma advertência nos seus olhos. - Já te disse, Downey, está afastada de qualquer reportagem que possa ser remotamente perigosa e isso inclui as festas de beneficência num deserto repleto de petróleo cujo controlo é disputado por todas as potências!
- Estás cego?! - gritou Greg. - Sallie vive com o perigo, leva-o com ela onde quer que vá. Bolas! Se nem sequer consegue apanhar um autocarro como uma pessoa normal! Se eu vivesse como ela, envelheceria dez anos por dia!
Habilmente, Sallie interpôs-se entre Greg e Rhy e olhou para este último.
- Se Marina se recusar a receber Patrícia, vão perder a entrevista - disse, para devolver a conversa ao ponto de partida. Havia um brilho de triunfo nos seus olhos azuis. - Ou comigo ou com ninguém, é essa a questão. Ainda tens alguma coisa de jornalista em ti?
Rhy apertou o queixo, zangado, e lançou um olhar para Greg.
- Fora daqui! - ordenou com brusquidão e os seus olhos concentraram-se em Sallie. - A minha resposta continua a ser não.
- Como queiras.
Sallie saiu do escritório com mais elegância do que ela se achava capaz. Pegou nas suas coisas e saiu da redacção a rir-se entredentes.
Na manhã seguinte, não a surpreendeu que, assim que entrou no edifício, a mandassem subir ao escritório de Rhy. Demorou algum tempo a dirigir-se para lá, pois desfrutava da ideia de o fazer esperar. Deixou a mala no seu cubículo e guardou o manuscrito na gaveta da sua mesa. Depois, apagou da sua expressão todos os sinais de regozijo e dirigiu-se ao escritório de Rhy.
Em vez da frustração e do aborrecimento que esperava encontrar, Rhy parecia muito satisfeito, o que fez com que ficasse em alerta.
- Resolvi o problema - disse ele, quase ronronando. Aproximou-se dela e acariciou-lhe o cabelo.
Ela afastou-lhe a mão, irritada.
- Vou cortar o cabelo! - exclamou secamente. - Talvez assim consigas ficar com as mãos quietas.
- Não o cortes - avisou ele. - Não gostarias das consequências.
- Cortarei o cabelo se tiver vontade de o fazer. Não te diz respeito!
- Agora não vamos discutir esse assunto, mas aviso-te: não cortes o cabelo ou terei de te dar umas palmadas - ameaçou. Arqueou o sobrolho e disse, mudando de assunto: - Não queres que te diga qual foi a solução que encontrei?
- Não. Se estás tão satisfeito, tenho a certeza de que não vou gostar - disse. Reconhecia implicitamente que era óbvio que encontrara uma forma de ganhar.
- Eu não diria tanto - murmurou. - Vais gostar. Podes ir a Sakarya, querida - fez uma pausa e viu que os olhos de Sallie brilhavam com entusiasmo. Então, deixou cair a bomba. - E eu irei contigo.
Ela olhou para ele espantada. A sua mente era um redemoinho, tentando encontrar uma forma de fugir de semelhante situação.
- Não podes fazer isso! - protestou fracamente. Foi a única coisa que conseguiu dizer.
- Claro que posso - disse ele. O seu sorriso de predador fez com que Sallie tremesse. - Sou o dono da revista e sou jornalista. Além disso, sou o teu marido. São todos excelentes motivos para te acompanhar a Sakarya.
- Mas eu não quero que vás comigo! Não preciso de ti.
- Pobrezinha - disse com falsa compaixão e depois continuou a falar no seu tom normal. Não tens outra saída. Se fores, vou contigo. Quero certificar-me de que a tua pele de veludo não sofre nenhum arranhão.
- Não sou uma criança, nem sou tonta. Sei cuidar de mim.
- Isso dizes tu, mas não vais fazer com que eu mude de ideias. Lamento se compliquei os teus planos. Tinhas planeado que o teu amigo fosse contigo? Este... Como se chama? O fotógrafo...
Sallie sentiu um arrepio ao ouvir o tom ameaçador de Rhy. Não esquecera o dia em que os vira junto ao elevador e Chris a abraçara.
- Deixa Chris em paz! - exclamou. - É um bom amigo.
- Imagino. Foram juntos a Washington, não é verdade? - os lábios de Rhy apertaram-se e, de repente, agarrou-a pelo pulso e puxou-a. - E é o amigo de quem foste despedir-te ao aeroporto, não é?
- Sim, o mesmo - admitiu, surpreendida por ele se lembrar daquilo. Tentou afastar-se e Rhy rodeou-lhe a cintura com o outro braço.
- Tenho de te avisar de outra coisa - disse. Continuas a ser minha mulher e não tolerarei que vás para a cama com outro. Não me importa quanto tempo tenhamos estado separados. Se o apanho contigo outra vez, parto-lhe a cara. É isso que queres? Vais obrigar-me a demonstrar-te o quanto te desejo? - sem esperar por uma resposta, inclinou a cabeça e pousou a sua boca sobre a de Sallie. Obrigou-a a reagir e a afastar os lábios para aprofundar o beijo.
O gosto familiar da boca de Rhy apagou de repente os anos que tinham estado separados. Sallie ofegou com a onda de desejo que a impulsionou a agarrá-lo pelos ombros e apertar-se contra ele. Era novamente como a primeira vez em que se tinham beijado. Sallie derretia-se e a realidade que os rodeava esfumou-se. No entanto, enquanto lhe devolvia o beijo, no seu interior envergonhava-se de ser tão vulnerável aos encantos de Rhy e reprovava a sua falta de dignidade. Ele admitira que nunca gostara dela realmente e que gostava apenas de ir para a cama com ela. E ela era demasiado fraca para resistir. Era estranho que nunca se tivesse sentido tão atraída por nenhum homem como por Rhy, claro que também não conhecera outros homens como o seu marido. Era duro, brutal e a força da sua personalidade sobrepunha-se aos mais fracos.
No entanto, a atracção entre eles não era apenas da sua parte, disse Sallie para si, um pouco enjoada, alguns minutos depois, enquanto as mãos de Rhy rodeavam a sua cintura. Ele apertou-a ainda mais contra si e deixou escapar um gemido contra a sua boca e um tremor percorreu o seu corpo todo.
- Sallie - murmurou. A sua boca estava apenas a um centímetro da dela. - Vamos para o meu apartamento. Não podemos fazer amor aqui - sussurrou. A paixão tornava a sua voz rouca e a sensualidade daquela voz estremeceu Sallie.
- Deixa-me! - protestou ela. De repente, as suas mãos recuperaram a força e ela empurrou-o. O pânico invadiu-a quando percebeu que talvez fosse demasiado tarde para que ele recuperasse a razão. O seu breve casamento proporcionara-lhe um conhecimento profundo da forma de reagir de Rhy. O rubor que cobria as maçãs do rosto deste, o tom da sua voz, as pupilas dilatadas... Tudo indicava que o desejo o enlouqueceria e que estava perto do ponto em que quereria ir para a cama com ela sem se importar com o sítio onde estavam.
- Não - negou Rhy. - Disse-te que não vou deixar que te afastes de mim.
Ela conseguiu escapar, contudo, teve a incómoda sensação de que ele o permitira e as suas faces tingiram-se de vermelho. Olhou para ele fixamente.
- Não terás outro remédio - disse indignada.
- Já não gosto de ti!
- Acabei de te demonstrar que estás enganada - respondeu ele e deixou escapar uma breve gargalhada.
- Não me refiro ao sexo! Não quero viver contigo, não quero ser a tua mulher. Não posso impedir-te que vás para Sakarya porque és o meu chefe, mas não tenciono ir para a cama contigo.
- Ah, não? - murmurou. - És a minha mulher e quero que voltes para o meu lado.
Falava com determinação e nos seus olhos cinzentos brilhava uma resolução imbatível. Ela assustou-se e recuou. Desesperada, recorreu a Chris. Mencionou o seu nome como se fosse um escudo atrás do qual pudesse esconder-se.
- Olha, Rhy, és um adulto, portanto tenho a certeza de que consegues entendê-lo. Chris é uma pessoa especial...
No queixo de Rhy, um pequeno músculo latejou e ela ficou a olhar para ele, fascinada e esqueceu-se do que ia dizer. As mãos de Rhy voltaram a fechar-se sobre a sua cintura.
- Já te disse o que acontecerá se te apanhar com ele e estava a falar a sério.
- Sê razoável - rogou ela enquanto em vão puxava as suas mãos para que a soltasse. - Por amor de Deus, eu não te pedi que termines a tua relação com Coral!
Uma expressão estranha cruzou o rosto de Rhy.
- Não, não pediste, pois não? - desceu o olhar para ela e, para fugir à ameaça que representava aquela bomba que cada vez estava mais perto de rebentar, Sallie tentou rir-se como se não se passasse nada.
- Eu sabia que não ias viver como um monge durante estes anos todos - disse, para tentar acalmá-lo. - Não tenho nada a objectar.
Em vez de o apaziguar, aquelas palavras indignaram-no ainda mais e agarrou-a com mais força.
- Eu não sou assim tão moderno - disse em voz muito baixa, quase sem mexer os lábios. Não quero que outro homem te toque.
- Não achas que essa atitude de ”não como nem deixo comer” é um pouco egoísta? - os dedos de Rhy apertavam-na cada vez com mais força. - Rhy, por favor! Estás a magoar-me!
Ele disse alguns palavrões e soltou-a como se estivesse a libertar um pássaro. Ela recuou alguns passos e esfregou a pele dorida da cintura. Como ele não se mexia nem falava, ela decidiu que o melhor era sair dali. Não conseguia lidar com Rhy quando estava zangado e, se chegasse a perder as estribeiras, a situação apenas pioraria. E conhecia-o o suficiente para se dar conta de que aquilo estava prestes a acontecer.
Dirigiu-se para a porta, porém, ele interpôs-se entre ela e a saída.
- Não lutes contra mim - avisou Rhy, resmungando em voz muito baixa. - Não podes ganhar e não quero magoar-te. És a minha mulher, Sallie.
Ela teve medo. Já vira Rhy de mau humor, mas nunca antes vira tanta ferocidade nos seus olhos.
- Tenho de ir trabalhar - murmurou com precaução.
- Trabalhas para mim, portanto irás quando eu disser - balbuciou sem deixar de olhar para ela fixamente e ela não conseguia afastar os olhos dele, sentindo-se como um pássaro paralisado por uma cobra.
Desesperada, Sallie tentou pensar em alguma coisa que pudesse distraí-lo, fazer com que desviasse a sua atenção, contudo, não se lembrava de nada. Todo o orgulho e a dignidade que ganhara ao longo daqueles anos transpareciam no seu queixo quando o levantou.
- Não me ameaces - avisou finalmente. - Se és metade do homem que foste, devias perceber que não te desejo.
- Mas irás desejar-me - replicou Rhy com uma sinceridade brutal.
Sallie nem sequer pestanejou. Não ia deixar que ele visse como o golpe que acabava de lhe infligir com as suas palavras a afectava.
- Não confundas o passado com o futuro. Os dias em que eu pensava que eras o rei do mundo já acabaram.
- Ainda bem - respondeu. - Nunca quis ser um ídolo, mas também não me transformes num vilão.
Sallie sentiu um grande alívio ao reparar que o perigo passara, pelo menos por enquanto. Esteve tentada a falar novamente sobre a viagem a Sakarya, porém, sabia que isso faria com que Rhy voltasse a zangar-se.
- Tenho realmente de ir trabalhar - insistiu. Alguns segundos depois, ele afastou-se do seu caminho.
- Está bem - autorizou-a a sair. A sua voz era ao mesmo tempo terna e ameaçadora. - Mas não acabámos, querida, e não tenciono afastar-me de ti durante toda a viagem a Sakarya.
Sallie saiu e regressou à sua mesa sem deixar de pensar nas palavras de Rhy. Começou a tremer e era-lhe difícil concentrar-se no que estava a escrever. Estava num ponto delicado e não sabia como continuar a trama e a sua mente voltava várias vezes a Rhy.
Alguns anos antes, teria delirado de alegria se ele tivesse anunciado que a queria novamente ao seu lado e que queria ter filhos, contudo, agora ela era outra pessoa. Por que motivo Rhy não o aceitava? Porquê a insistência para que voltassem a viver como marido e mulher?
Não podia acreditar que eram os ciúmes que o impulsionavam a agir daquela forma. Devia ser o seu carácter possessivo. Os ciúmes teriam indicado que se importava com ela e sabia que Rhy nunca a amara, nem sequer ao princípio. O único laço de união entre eles era o sexo e ele queria recuperar esse laço, porém, ela estava decidida a superar a sua vulnerabilidade nesse aspecto.
Então, pensou que, para Rhy, uma coisa era que a sua mulher fosse uma dona de casa gordinha e caseira e, outra muito diferente, era que fosse uma jornalista com sucesso que percorrera o mundo. Naquele momento, representava um trofeu para mostrar. Antes, não tinha glamour suficiente! Seria por isso que estava tão repentinamente interessado nela, depois de anos sem se interessar minimamente? Sentiu uma imensa raiva, contudo, depois lembrou-se de uma ideia inquietante: se fosse esse o caso, então não a teria tirado das reportagens internacionais, pelo contrário, deixaria que continuasse sob os olhos da opinião pública.
Não entendia Rhy, nunca o entendera. Porque não a deixava em paz?
Atribuiu a intensa dor de cabeça que sentiu à tarde, ao voltar para casa, à tensão causada pela cena com Rhy. A única coisa que desejava era paz e tranquilidade, portanto tomou um banho quente e depois, em vez de se vestir, limitou-se a vestir o seu robe cor-de-rosa e sentou-se a trabalhar no manuscrito.
Era ainda cedo, apenas sete horas, quando ouviu a campainha da porta. Sallie franziu o sobrolho, irritada. Quando chegou à porta, pensou duas vezes antes de abrir, pois pensou que podia ser Rhy.
- Quem é? - perguntou com cautela.
- Coral Williams - foi a fria resposta e Sallie levantou as sobrancelhas com espanto enquanto abria a porta.
- Entra - convidou a espantosa loira. Depois, apontou para o robe. - Lamento muito, mas não esperava visitas.
- Pois, parece que não - admitiu Coral e entrou no apartamento com o passo decidido de uma modelo. Era fria e teatral ao mesmo tempo e tinha um vestido de noite amarelo. - Vou com Rhy a uma estreia na Broadway, portanto tenho a certeza de que não o esperavas esta noite.
”Claro”, disse Sallie para si. Era como se Coral tivesse vindo dizer-lhe que sabia que Rhy estava interessado nela. Quem lhe teria dito?
- Também não é provável que venha em nenhuma outra noite - afirmou e Coral reparou no regozijo que havia na sua voz, porque mordeu o lábio e corou.
- Não tentes negá-lo - disse, com um tom de voz mais rouco, como se fosse começar a chorar. - Foi o próprio Rhy que me contou.
- O quê? - a voz de Sallie exprimia o seu espanto. Rhy estava a anunciar por aí que eram casados? Talvez pensasse que isso enfraqueceria a sua resistência.
- Sei muito bem como é difícil resistir a Rhy quando ele decide que quer uma mulher - afirmou Coral. - Acredita, eu sei muito bem. Mas tu não jogas na mesma divisão dele e acabarás por sair magoada. Esteve com outras mulheres, mas volta sempre para mim e desta vez será igual. Pensei que devia dizer-to antes de te envolveres demasiado numa relação com ele.
- Obrigada por me avisares - disse Sallie e o seu regozijo interior transformou-se num sorriso que fez com que Coral olhasse para ela com incredulidade. Não conseguia evitá-lo, pois parecia-lhe divertido que a amante do seu marido estivesse a avisá-la sobre os riscos de uma relação com ele. - Mas não tens de te preocupar. Não estou interessada em ter aventuras com ninguém e estarias a fazer-me um grande favor se conseguisses desviar a atenção de Rhy de mim.
- Eu adoraria! - admitiu Coral e olhou para Sallie com uma sinceridade inquietante. - Mas, desde a primeira vez que te vi, soube que Rhy estava interessado em ti e ele não se rende facilmente. Porque é que achas que vai de viagem contigo a Sakarya? Eu, se estivesse no teu lugar, se é verdade que não queres ter uma aventura com ele, confirmaria as reservas do hotel. Conhecendo Rhy, tenho a certeza de que vai fazer tudo para que só haja um quarto livre em todo o hotel e tenham de o partilhar.
- Eu sei - Sallie sorriu. - E adiantei-me. Já pensei noutro sítio onde ficar; com uma amiga não acrescentou que a amiga era Marina Delchamp e que esperava que tivesse espaço para ela. Estava quase certa de que Marina lhe ofereceria a sua casa e de que a ajudaria a livrar-se de Rhy.
De repente, Coral riu-se.
- Se calhar estava a preocupar-me com uma tolice. Pareces muito capaz de cuidar de ti. Deve ser a trança que faz com que pareças tão jovem.
- Provavelmente - confirmou Sallie, pensando que Coral e ela deviam ter a mesma idade.
- Tiraste-me um peso de cima, portanto agora vou-me embora. Devia encontrar-me com Rhy dentro de meia hora e vou chegar atrasada.
Coral dirigiu-se para a porta e Sallie abriu-a, sentindo-se como a criada que estava a abrir a porta a uma rainha, contudo, nos seus olhos ainda havia um brilho de divertimento. Quando a inesperada visita saiu, ela voltou para o seu manuscrito. Valera a pena presenciar aquela cena: Coral a fingir que estava preocupada com outra mulher! Não acreditara nem por um segundo que a modelo pudesse estar preocupada com os sentimentos de outra mulher. O que realmente interessava a Coral era certificar-se de que tinha a atenção exclusiva de Rhy e todo o seu tempo. Sallíe abanou a cabeça, perguntando-se o que o tornava tão pecaminosamente atraente.
Talvez se conseguisse descobrir porque era tão vulnerável a Rhy, conseguisse lutar contra ele, no entanto, não lhe ocorria nenhuma razão. Sentia-se atraída por tudo o que tinha a ver com ele, mesmo as coisas que a irritavam. Era um homem verdadeiro, o único homem que alguma vez desejara.
Quando se apercebeu, foi como uma revelação, tão forte que uns suores frios cobriram todo o seu corpo e se viu obrigada a admitir a verdade. Ainda o amava. De facto, sempre o amara. Tentara desfazer-se daquele amor para se proteger da dor aguda que o abandono de Rhy lhe causara, contudo, não morrera dentro dela. Tinha florescido na escuridão do seu subconsciente e agora já não podia negar a sua existência. Sentou-se novamente à frente do computador, a olhar fixamente para as teclas, mas sem as ver realmente, e deixou que essa revelação fosse penetrando a pouco e pouco na sua consciência. Não conseguiu evitar que os seus olhos se enchessem de lágrimas, apesar de se recusar a chorar. Uma coisa era o amor e outra bem diferente era a compatibilidade e ela já não era uma criança sonhadora que pensava que o amor podia fazer qualquer milagre. Como casal, Rhy e ela eram o fiasco do século, no presente mais do que no passado. Há sete anos atrás, ela pensava que ele era o centro do universo e tê-lo-ia seguido até ao inferno se ele lhe tivesse pedido.
No entanto, não o fizera, partira sozinho, indiferente aos seus medos e à sua timidez. Quando se preocupara com o que ela podia sentir? Rhy tinha uma personalidade demasiado avassaladora, era demasiado seguro de si mesmo para pôr a opinião da sua mulher, ou os seus sentimentos, acima dos dele. Era assim naquela altura e era assim agora. O que ela desejava não era importante! A maior prova era a forma displicente como bloqueara a sua carreira para tentar que voltassem a ser marido e mulher.
E os seus planos e o que ela queria na vida?
Respirou fundo várias vezes e tentou pôr as suas ideias em ordem. Se voltasse para Rhy, o que teria? A resposta era simples: teria Rhy... enquanto ele continuasse interessado nela. Ou talvez nem sequer o tivesse de forma exclusiva, já que ele não abandonaria Coral Williams e não lhe prometera ser fiel. Não lhe prometera nada além de prazer físico. Portanto, se voltassem a ser um casal, obteria satisfação sexual e o prazer da sua companhia.
O outro lado da moeda era o que ele ganhava com a reconciliação. Mais uma vez, a primeira palavra que surgiu na mente de Sallie foi ”sexo”. Aquela atracção feroz era recíproca, infelizmente, já que transformava Rhy num ser com o qual não se podia racionalizar. Se Coral estava a pressioná-lo para que se casassem, a reconciliação poria um ponto final a essa exigência em concreto e, pelo que Coral acabava de dar a entender, Rhy não tinha nenhum receio de que a modelo o abandonasse. Não, Coral aguentaria enquanto ele a quisesse ao seu lado e, se ele pudesse ficar com as duas, provavelmente ficaria.
Sallie fez uma careta ao pensar naquela hipótese.
Não, Rhy não era assim. Não o achava capaz de ser fiel a nenhuma mulher, mas não brincava daquela forma. A mulher que estivesse ao seu lado devia aceitá-lo tal como era, e esse fora o problema entre eles. Ela quisera transformá-lo em algo que não era: um marido normal. Rhy recusara-se tanto a mudar como a assumir compromissos.
Portanto, no final fora ela que mudara, fugindo do fascínio que sentia por ele e Rhy não podia suportá-lo. Noutra época fora sua e não tolerava a ideia de que tivesse deixado de o ser. A sua possessividade não tinha limites. Fora sua e queria que voltasse a sê-lo e remexeria céu e terra para o conseguir, mesmo que para isso tivesse de destruir a sua carreira.
Simplesmente, não podia reatar a sua relação com ele, embora no fundo da sua alma o desejasse. A sua identidade estava em jogo, pois Rhy acabaria por a asfixiar. Depois, quando já não estivesse interessado, partiria e Sallie não acreditava que conseguisse sobreviver pela segunda vez ao seu abandono.
Não, ela tinha de seguir o seu próprio caminho e se esse caminho a afastasse de Rhy teria de o aceitar. Era estranho como podia amá-lo e, ao mesmo tempo, estar disposta a passar o resto da sua vida longe dele se fosse necessário. Sabia instintivamente que Rhy destruiria a sua confiança em si se voltasse a dar-lhe poder sobre as suas emoções.
Não havia dúvida; tinha de escolher o caminho que era melhor para ela e esse caminho não incluía Rhy. Talvez nenhum outro homem fizesse com que a sua pulsação acelerasse, como lhe acontecia quando Rhy lhe tocava, no entanto, aquele era o preço que teria de pagar. E pagaria.
Quando regressassem da viagem a Sakarya, apresentaria a sua demissão e deixaria Nova Iorque. Não podia continuar à espera, pois Rhy estava cada vez mais próximo e não podia baixar a guarda nem por um segundo.
Na noite anterior à sua partida rumo a Sakarya, Sallie deitou-se cedo com a esperança de adormecer rapidamente, já que a viagem seria longa e ela era incapaz de dormir nos aviões. Estava sempre demasiado acordada e demasiado inquieta e naquela noite também. A ideia de ter de viajar com Rhy, quando o seu instinto lhe ordenava que se afastasse dele o mais possível, mantinha-a perturbada, assustada e expectante. Era como ter um lindo tigre como animal de estimação: desejava profundamente acariciar aquele animal tão belo e, ao mesmo tempo, sabia que o tigre a devoraria.
Inquieta, dava voltas na cama e puxava os lençóis e, quando ouviu a campainha da porta, levantou-se imediatamente com uma sensação de alívio e vestiu o robe a caminho da porta, parando de repente.
- Quem é?
- Chris - disse uma voz que chegava abafada do outro lado da porta.
Sallie arqueou o sobrolho, confusa. O que fazia ali? Ultimamente, andava sempre de um lado para o outro, sem dúvida por ordem de Rhy, contudo, voltara para Nova Iorque no dia anterior e tinham falado na revista e ela achara que ele estava bem. Agora, no entanto, falava como se estivesse doente.
Abriu rapidamente todos os ferrolhos e abriu a porta. Chris, que estava recostado contra a parede, endireitou-se e ela viu a sua cara de cansaço.
- O que se passa? - perguntou ao mesmo tempo que o agarrava por uma manga, puxando-o para que entrasse. Fechou a porta e depois virou-se para ele.
Chris tinha as mãos nos bolsos e os seus olhos castanhos olhavam para ela com uma tristeza profunda e silenciosa.
Sallie conteve a respiração. Teria morrido alguém? Aquele era sempre o seu primeiro pensamento, o seu medo mais enraizado. Estendeu-lhe uma mão e ele agarrou-a e apertou-lhe os dedos com força.
- O que aconteceu? - insistiu e agarrou-lhe o braço com a mão que tinha livre. - Chris Meaker, se não me disseres...
Ele abanou a cabeça como se quisesse tranquilizá-la, como se tivesse percebido de repente o que ela estava a pensar.
- Não - disse. - Não morreu ninguém, a menos que me consideres morto, que é como me sinto. Ela deixou-me, Sallie.
Ela ficou com a boca aberta e lembrou-se de que estava apaixonado por uma vizinha que queria exactamente o mesmo que ela há sete anos atrás: um marido que voltasse para casa todas as noites, um pai para os seus filhos que estivesse por perto para os ver crescer. Era evidente que a mulher em questão decidira que não poderia viver com o trabalho de Chris, sabendo que cada viagem poderia ser a última. É claro, muitas das viagens não tinham qualquer perigo, contudo, era um trabalho exposto a riscos. Ela também não conseguira suportar estar constantemente preocupada com alguém que amava com toda a alma. Só fora capaz de seguir em frente quando Rhy desaparecera da sua vida.
- Como posso ajudar-te? - perguntou com uma preocupação sincera pelo seu amigo. Diz-me em que posso ajudar.
- Diz-me que vai passar - rogou ele com voz quebrada. - Abraça-me, por favor! Abraça-me!
Ela viu, angustiada, que ele começava a chorar. Os seus braços desesperados rodearam-na e apertaram-na com tanta força que quase não conseguia respirar. Ele começou a tremer e enterrou a cara no pescoço de Sallie e as suas lágrimas molharam a sua pele, o cabelo e a gola do robe. Não parava de soluçar e ela abraçou-o, como lhe pedira. Sabia o que Chris estava a sentir, sabia perfeitamente pelo que estava a passar. Experimentara o mesmo quando Rhy a deixara: era como se lhe tivessem arrancado uma parte de si.
- Vai passar - prometeu, também ela com vontade de chorar. - Eu sei, Chris, já passei pelo mesmo.
Chris não respondeu. Respirou fundo e engoliu em seco numa tentativa de não perder o controlo.
- Certamente, as coisas não podem piorar - murmurou e levantou a cabeça. Por um momento, os seus olhos castanhos, molhados e tristes, cravaram-se nos olhos azuis de Sallie. Depois, inclinou a cabeça e pousou a sua boca sobre a dela, beijando-a com um desespero silencioso. Sallie compreendeu e beijou-o também. Chris não estava a beijá-la com intenção sexual, procurava apenas um contacto humano, mendigava carinho. Sempre gostara de Chris e naquele momento chegou a amá-lo. Não era o amor profundo e dilacerador que sentia por Rhy, nem sequer o amor homem-mulher. Simplesmente, amava-o como se ama outro ser humano, uma criatura vulnerável que precisava dela. Nunca ninguém precisara dela, no entanto, ela fora dependente dos seus pais e dependente do seu marido. Obviamente, Rhy nunca precisara dela.
Chris levantou a cabeça e suspirou. Depois, apoiou a sua testa sobre a de Sallie.
- O que posso fazer? - perguntou, mas ela sabia que não esperava resposta. - Quanto tempo dura?
Àquela pergunta, sim, podia responder.
- Eu estive alguns meses mal até que consegui começar a viver outra vez - disse com sinceridade e ele fez uma expressão de dor, - mas foi muito difícil superá-lo, mais do que qualquer outra coisa em toda a minha vida.
- Ainda não acredito que me tenha deixado ele gemeu.
- Discutiram? - perguntou Sallie. Levou-o para o sofá e empurrou-o para que se sentasse.
Ele abanou a cabeça com um ar fatigado.
- Não houve discussão, nem ultimato... Nada. Se pelo menos me tivesse avisado! Se o que queria era desfazer-me por completo, conseguiu à primeira.
Sallie, sentada ao seu lado, agarrou-lhe uma mão. Com a perspicácia de quem já passara pela mesma situação, entendia muito bem os motivos da desconhecida namorada de Chris. Ele pensava que era perfeitamente lógico arriscar a vida todos os dias enquanto ela esperava por ele pacientemente em casa... Por acaso achava que a sua namorada seria avisada com tempo da sua morte? Que sofreria menos se um dia, de repente, lhe dissessem que não voltaria? Os homens eram tão arrogantes e egoístas... Incluindo Chris, que era uma das pessoas mais adoráveis que conhecia.
- Não podes esperar que ela ceda só porque tu não consegues ceder. Ter-se-iam feito infelizes um ao outro. Tens de aceitar que estarão melhor separados.
- Nunca amei tanto alguém! - protestou ele com desespero. - Não é assim tão fácil renunciar a uma pessoa que amas.
- Eu tive de o fazer e também não me deixaram alternativa. Abandonou-me à frente do meu nariz.
Chris suspirou e manteve o olhar fixo nos desenhos do tapete. Sallie conseguia ler a angústia reflectida no seu rosto. Chris sempre parecera mais jovem do que era na verdade, como se a vida passasse por ele sem deixar marca. Naquele momento, envelhecera de repente, perdera o seu ar infantil.
- Chama-se Amy - disse ele de repente. - É muito calma, um pouco tímida. Passámos um pelo outro na entrada do prédio durante um ano até que finalmente começou a fazer um pouco mais do que sorrir quando eu lhe falava. E custou-me outro ano para conseguir fazer com que fosse para a cama comigo... - calou-se e olhou para Sallie, fazendo um gesto de desgosto. - Esquece esta parte. Normalmente, não é que beije uma rapariga e lhe peça logo para ir para a cama comigo...
- Já esqueci - garantiu Sallie. - Alguma vez pensaste em pedi-la em casamento?
- Ao princípio não. Eu não queria casar-me, Sal, sou um lobo solitário, como tu - abanou a cabeça como se lhe custasse entender-se a si mesmo. - Mas comecei a pensar na ideia de me casar e um dia disse-lhe e ela desatou a chorar. Disse que me amava mas que não conseguia aguentar o meu trabalho e que só se casaria comigo se eu mudasse de emprego. Bolas! Eu adoro o meu trabalho! E ficámos neste impasse.
- E ela resolveu-o de uma vez - murmurou Sallie.
- E encontrou um plano B - esboçou um sorriso brincalhão. - Começou a sair com um tipo com um emprego normal e esta noite disse-me que vão casar-se no fim de ano.
- Estará a fazer bluff! Chris abanou a cabeça.
- Não acredito. Tinha um anel com um diamante.
Alguns segundos depois, Sallie falou com franqueza.
- Podes escolher. Ou ficas com Amy ou com o teu trabalho, mas não podes ficar com os dois.
Tens de decidir o que é mais importante para ti e esquecer o que deixares para trás.
- Tu esqueceste o homem que deixaste?
- Estás enganado. Eu estava no lugar de Amy, não no teu. Foi ele que preferiu ficar com o trabalho e não comigo - disse Sallie. - Não o esqueci, mas estou muito bem sem ele, obrigada.
Sallie apercebeu-se de que lhe dera muitas pistas, ou talvez tivesse sido a capacidade de Chris para intuir o que pensava e sentia, até sem nenhuma evidência concreta, que o levou a olhar para ela pensativamente.
- Foi Baines, não é verdade? Que te abandonou... - murmurou.
A expressão de perplexidade que se desenhou no rosto de Sallie deu-lhe a resposta. Um minuto depois, ela recuperou-se e admitiu-o.
- Sim, foi Baines. E garanto-te que, quando diz uma coisa, não volta atrás.
- É um idiota - disse Chris sem animosidade.
- Mas agora quer que voltes, não é?
- Não a sério - replicou Sallie com alguma amargura. - Só quer brincar um pouco.
Chris olhou para ela. Os seus olhos castanhos exploravam a cara pequena de Sallie, que se transformara para não revelar a sua própria dor. Quando foi evidente que não ia dizer mais nada, Chris inclinou-se e beijou-a suavemente, contudo, daquela vez era ele que dava consolo em vez de o pedir. Sallie fechou os olhos e deixou que a beijasse, sem o incentivar ou rejeitar. Nunca tinha sido beijada daquela forma, sem paixão; um beijo de amizade.
A campainha estridente do telefone irrompeu na divisão e Chris afastou-se. Ela desculpou-se e estendeu o braço para atender. Sentiu um formigueiro de alarme ao ouvir uma voz áspera que perguntava:
- Já fizeste a mala?
- Claro - respondeu. Parecia-lhe insultante que Rhy sentisse a necessidade de a controlar. O que pensava? Que ia esperar até ao último minuto e depois colocaria tudo na mala sem qualquer arrumação? Decidiu castigá-lo pela sua desconfiança e acrescentou com perversidade: - Estava agora mesmo a dizê-lo a Chris.
Sallie reparou no silêncio que se seguiu às suas palavras. Depois, na raiva de Rhy.
- Ele está aí? - balbuciou.
Ela conseguia imaginá-lo: furioso, a apertar os dentes, os olhos cinzentos brilhantes e vermelho de raiva. Daquela vez, o formigueiro que sentiu foi de prazer.
- Claro que está aqui - respondeu, sabendo que estava a brincar com o fogo. O que faria se Rhy perdesse as estribeiras? A última coisa que desejava era criar problemas a Chris, no entanto, Rhy incitava-a a provocá-lo. - Não abandono os meus amigos só porque tu estalas os dedos - ouviu-se a dizer a si mesma.
- Diz-lhe para se ir embora, Sallie. Agora mesmo! - ordenou com um grunhido quase imperceptível.
Ela arrepiou-se. -Não penso...
- Agora mesmo - murmurou. - Ou irei para aí. Não estou a brincar, querida. Diz-lhe para se ir embora e depois volta para me dizer que já foi.
Furiosa, Sallie deixou o auscultador em cima da mesa e levantou-se. Como não queria que Rhy ouvisse o que ia dizer, agarrou em Chris pela mão. Este levantou-se e ela arrastou-o até à porta, onde lhe deu um beijo.
- Desculpa - murmurou. - Pediu-me para te mandar embora e, se não o fizer, ele virá até cá e ficará violento.
Por um instante, Chris recuperou o seu olhar sereno de sempre e arqueou o sobrolho com uma expressão brincalhona.
- Isso parece muito sério, Sallie. Parece-me, menina, que há muitas coisas que não me contou sobre a sua história com Baines.
- Contei-te tudo. Não vale a pena falar mais sobre o assunto, está bem? - perguntou. A preocupação que sentia reflectia-se na voz e nos olhos de Sallie. Ele abraçou-a.
- Claro. Poder falar contigo já ajuda. E beijar-te, ainda mais - esboçou um sorriso. - Amy deixou-me confuso, mas não tenciono render-me. Quando me disse que ia casar-se com o outro estava a chorar, portanto talvez nem tudo esteja perdido, não achas?
Sallie sorriu também.
- É possível.
Chris acariciou-lhe uma face com um dedo.
- Diverte-te em Sakarya - brincou e fez-lhe uma careta.
Quando Chris saiu, Sallie voltou a fechar todos os ferrolhos e olhou para o telefone que repousava sobre a mesa. Esteve tentada a deixar Rhy à espera mais alguns minutos, mas aquilo era como engolir um xarope amargo: quanto antes, melhor, portanto voltou a pegar no auscultador.
- Já se foi embora - resmungou.
- Porque demoraste tanto tempo? - perguntou ele em jeito de resposta.
- Estava a dar-lhe um beijo de despedida replicou, furiosa. - E agora vou despedir-me de ti também.
- Não desligues - avisou ele. - Vou dar tempo suficiente para o senhor Meaker chegar a casa e depois vou telefonar-lhe para me certificar. Para teu bem, espero que volte directamente para casa.
- As tuas ameaças estão a começar a aborrecer-me - disse com brusquidão e desligou. Depois, desligou a ficha do telefone. Foi ao seu quarto e desligou também o aparelho que havia na mesinha, mas não antes de este começar a tocar novamente. Resmungando entredentes o que gostaria de fazer com Rhy Baines, percorreu rapidamente o apartamento apagando as luzes. Depois, deitou-se novamente e tentou adormecer. Antes já era difícil, mas naquele momento era impossível. Ardia de indignação e perguntava-se como é que alguém podia ser tão hipócrita. Ele podia passear com Coral à frente do seu nariz, mas não tinha intenção de permitir que ela fizesse o mesmo.
Não era que quisesse ter uma aventura com Chris, nem Chris com ela, mas essa não era a questão.
Então, começou a pensar na viagem a Sakarya. A partir daquela noite, Rhy mostraria o seu lado mais sedutor, mais exigente e, para sua consternação, Sallie recordou que antigamente não lhe custava nada levá-la para a cama. Tivera sorte até àquela noite, porque desde que ele descobrira a sua verdadeira identidade, as únicas vezes que a beijara tinham sido no escritório, onde havia poucas oportunidades para as cenas de sedução. Ela tinha as suas dúvidas de que noutras circunstâncias tivesse conseguido parar. Era demasiado sincera para se enganar, mesmo que a verdade fosse dolorosa. Amava Rhy, porém, mesmo que não amasse, continuaria a desejá-lo fisicamente. Só o seu orgulho e o seu receio de que a magoasse a impulsionavam a não ceder. Adormeceu já depois da meia-noite e o avião para Paris, onde fariam escala a caminho de Sakarya, era logo de manhã.
Tinha a cara pálida de cansaço ainda antes de sair do seu apartamento para se encontrar com Rhy no aeroporto. Estava firmemente decidida a ser o mais profissional possível, tanto para manter a distância como para lhe mostrar que os seus ciúmes da noite anterior não a tinham afectado, no entanto, manter uma atitude distante seria mais difícil do que pensara. Quando a viu, Rhy levantou-se e aproximou-se dela. Tirou-lhe a mala de viagem mais pesada da mão e inclinou-se para lhe depositar um beijo nos lábios.
- Bom dia - murmurou e o seu olhar percorreu-a de cima a baixo. - Eu gosto de te ver de vestido. Devias vestir-te assim com mais frequência.
Portanto, não ia falar do que acontecera na noite anterior, pois não?, disse para si Sallie. Embora ela tivesse pensado em fazer o mesmo, o facto de Rhy se ter antecipado incomodou-a. Olhou para ele friamente.
- Pensei que em Sakarya era preferível usar um vestido.
Normalmente, usava sempre calças quando ia de viagem, pois eram mais confortáveis e mais adequadas, contudo, tendo em conta o tipo de país e de viagem, tinha apenas vestidos na mala. Para a viagem, escolhera um vestido bege sem mangas e com um decote favorável e um casaco a condizer porque, apesar do calor do Verão, de manhã estava sempre mais fresco e sabia por experiência que nos aviões costumava ter frio. Em vez da trança habitual, tinha o cabelo preso num rabo-de-cavalo. Tinha o cabelo tão comprido que usá-lo solto era incómodo. Nas ocasiões formais, apanhava-o num coque.
- Eu também prefiro os vestidos - comentou enquanto a guiava pelo aeroporto. - Tens umas pernas muito bonitas e eu gosto de as ver. Eu lembro-me de que antes usavas sempre vestidos.
Era verdade, recordou ela. Sallie conseguiu fazer com que a sua resposta soasse impessoal.
- Quando comecei a trabalhar, percebi que as calças eram mais adequadas para o meu tipo de trabalho - para mudar de assunto, perguntou: Tens os bilhetes?
- Está tudo sob controlo - garantiu ele. Queres beber um café antes de partirmos?
- Não, obrigada. Não bebo café quando viajo
- viu-se obrigada a explicar e sentou-se numa cadeira.
Ele sentou-se à frente dela. Havia um banco perto, contudo, Sallie escolhera deliberadamente a cadeira para manter Rhy à distância. Entreteve-se a observar os restantes viajantes que desfilavam àquela hora da manhã.
O voo estava cinco minutos atrasado e Rhy já estava inquieto quando anunciaram o embarque. Levantou-se e puxou-a pelo braço. De repente, sorriu.
- Grandes saltos - comentou. - Chegas quase ao meu queixo... Quase.
- Podem ser uma arma perigosa - disse Sallie, esboçando um sorriso.
- Ah, sim? E estás a planear usá-los contra mim? - perguntou e, antes que ela pudesse afastar a boca, ele capturou os seus lábios. Foi um beijo austero e exigente, que deixou Sallie sem respiração.
- Rhy, por favor! - protestou, decidida a esconder o formigueiro que percorria as suas costas cada vez que ele lhe tocava. - Estamos em público!
- Tenho mais possibilidades de te tocar em público do que em privado, portanto tenciono aproveitar-me - murmurou. Era uma advertência.
- Estamos a trabalhar! - exclamou ela. Tenta recordá-lo. Não seria positivo para a revista que uma das suas jornalistas fizesse um escândalo num lugar público.
- Aqui ninguém sabe que és jornalista - replicou com um sorriso. - Além disso, eu sou o teu chefe e digo que não há problema.
- Eu tenho os meus princípios, apesar de tu não os teres, e não gosto que me manipulem! Vais entrar no avião ou não?
- Não o perderia por nada deste mundo disse, arrastando as palavras, e ela compreendeu o que queria dar a entender.
Não havia dúvida de que Rhy planeava uma reconciliação durante aquela viagem e ela estava decidida a impedi-lo. Marina não a desiludiria, tinha a certeza, e fantasiou com a ideia de como Rhy ficaria furioso quando descobrisse que fora mais inteligente do que ele.
Contudo, no momento, tinha pela frente uma longa viagem na sua companhia e essa ideia não era muito engraçada. Não só porque ele a deixava nervosa, mas também porque as viagens a alteravam. Ainda não estavam há uma hora no ar quando já tinha folheado várias revistas e tentara concentrar-se no livro que trouxera, antes de o trocar por uma revista de palavras cruzadas. Quando se cansou dos passatempos e voltou a tentar ler o seu livro, Rhy inclinou-se para ela e pegou na sua mão.
- Relaxa - aconselhou e acariciou-lhe a palma da mão com o polegar, um gesto que certamente não a ajudava a relaxar. - É um voo longo e tu pareces uma pulga. Vais chegar a Paris esgotada, já para não falar de Sakarya.
- Não sou boa viajante - admitiu. - Não é o meu forte estar sentada sem fazer nada - já estava chateada. Suspirava pelo seu manuscrito, contudo, parecera-lhe arriscado trazê-lo com ela.
- Tenta dormir um pouco - recomendou Rhy.
- Mais tarde agradecerás.
- Também não consigo - disse com um sorriso pesaroso. - As alturas põem-me nervosa e não confio no piloto o suficiente para dormir e deixar que ele se ocupe de tudo.
- Não sabia que tinhas medo de voar - respondeu ele.
Sallie arrepiou-se.
- Não tenho medo! Põe-me nervosa, que não é o mesmo. Viajo com muita frequência, ou viajava, e passei por uma série de situações difíceis das quais saí com vida. Até desfrutei de algumas. Na verdade, numa época tive algumas aulas de voo, mas exigiam muito tempo, estudo e concentração e não podia continuar.
- Não perdeste tempo, certamente - comentou ele com um tom estranho. - Que mais fizeste desde que nos separámos?
Ele parecia chateado e, de repente, ela sentiu-se orgulhosa de ter feito tantas coisas. Pelo menos assim, Rhy saberia que não estivera a chorar a sua ausência.
- Falo seis idiomas, três deles fluentemente enumerou friamente. - Sei disparar muito bem e aprendi a montar a cavalo. Também aprendi a cozinhar e a costurar, mas parecia-me muito aborrecido e desisti. Mais alguma coisa?
- Espero que não - replicou ele, reprimindo um sorriso. - Não é de estranhar que Downey te mandasse para tantos sítios. Certamente pressionaste-o muito.
- Greg não admite pressões, é duro como uma rocha - defendeu com orgulho o redactor chefe. - E ele mesmo faria reportagens no terreno se pudesse.
- E porque é que não pode? Lembro-me de que era um dos melhores, mas de repente parou e não sei porquê.
- Foi ferido no Vietname - explicou Sallie. Escapou com vida por milagre. E quando ainda estava a recuperar-se, a mulher dele morreu com um enfarte. Foi um golpe tremendo, não sabiam que tinha problemas cardíacos e, de repente, morreu. Tinham dois filhos, um rapaz e uma rapariga, e a menina sofreu muito quando a mãe morreu, portanto Greg decidiu ficar em casa com os seus filhos.
- Que situação - comentou Rhy.
- Não fala muito do assunto. -Mas contou-te...
- Algumas partes. Eu fui reconstruindo a história. Como te disse, não fala muito do assunto.
- Para um enviado especial é melhor não ter família. O antigo Pony Express só contratava cavaleiros que fossem órfãos, que não tivessem parentes, e às vezes penso que devia ser igual para os enviados especiais.
- Concordo - disse com mordacidade, sem olhar para Rhy. - Por isso é que eu não quero compromissos.
- Mas tu já não és uma enviada especial murmurou e agarrou-lhe uma mão. - Considera esta viagem como uma despedida porque, quando regressarmos, o teu trabalho consistirá em ser a senhora Baines.
Sallie afastou a mão e permaneceu a olhar para a camada de nuvens que se estendia debaixo deles.
- Vais despedir-me? - perguntou zangada.
- Se me obrigares a fazê-lo, sim. Não me importo que trabalhes desde que voltes para casa à tarde. Claro, quando tivermos filhos, prefiro que fiques com eles enquanto forem pequenos. Os olhos azuis de Sallie, cheios de fúria, viraram-se para ele.
- Não vou viver contigo - disse amargamente. - Não posso viver contigo e estar apenas metade viva. A ideia de voltar a ser uma dona de casa enoja-me.
A boca de Rhy adquiriu uma expressão inflexível.
- Estás a mentir a ti mesma. Mudaste em muitas coisas, mas não podes ter mudado na vontade de ter filhos. Lembro-me de que quando estavas grávida do nosso filho...
- Cala-te! - gritou ela, apertando os punhos enquanto tentava controlar a dor causada pela lembrança do filho que perdera. - Não fales do meu menino - até sete anos depois, a dor de o ter perdido era ainda demasiado forte.
- Também era meu filho - afirmou Rhy concisamente.
- A sério? - respondeu ela com sarcasmo, baixando a voz para que ninguém a ouvisse. Não estiveste presente no parto e durante a gravidez quase nunca estavas em casa. O teu papel reduziu-se a ser o pai biológico. Eu estava completamente sozinha - virou a cara e engoliu em seco, fazendo um esforço para controlar as lágrimas enquanto recordava o seu filho.
Nunca o ouvira a chorar nem o vira a observar o estranho mundo a que chegara, contudo, durante vários meses sentira-o a mexer-se e a dar pontapés no seu interior. Para ela, era alguém real, uma pessoa que tinha um nome: David Rhydon Baines, o seu filho.
Os dedos de Rhy fecharam-se com tanta força sobre o seu pulso que Sallie fez uma expressão de dor.
- Eu também o desejava - disse e depois soltou-a.
Não falaram durante as horas seguintes.
A escala em Paris foi muito breve e Sallie disse para si que devia ter sido Greg a programar a viagem, porque procurava sempre ligações imediatas. Por vezes, se o primeiro voo tinha um pequeno atraso, perdiam o seguinte. Rhy e ela acabavam de chegar quando se anunciou o embarque dos passageiros para Sakarya. Tiveram de correr para chegar a tempo à porta atribuída. De Paris, foram outras sete horas de viagem até que aterraram no novo e ultramoderno aeroporto de Khalidia, a capital de Sakarya e a causa da mudança de fuso horário. Em vez de chegarem de noite, que era o que os seus corpos exigiam, era pleno dia quando saíram do avião.
A fadiga e as longas horas de voo atenuaram a tensão inicial que havia entre eles e Sallie não protestou quando ele a puxou pelo braço para irem buscar as bagagens.
- Espero que o hotel seja decente - murmurou Rhy. - Mas como me sinto neste momento, é indiferente. A única coisa que quero é dormir.
Ela conhecia muito bem aquela sensação. Os efeitos da falta de sono e a mudança horária eram cansativas. Não estava em condições de discutir com Rhy sobre onde ia dormir.
Ninguém falava inglês, porém, algumas pessoas podiam comunicar-se em francês e tanto Rhy como ela conheciam bem o idioma. O taxista que os conduziu ao hotel num Renault bastante amolgado arranhava o francês e das suas palavras conseguiram perceber que Khalidia estava cheia de ocidentais. Tinham chegado muitos europeus e muitos norte-americanos, incluindo um homem com uma grande câmara, e diziam que o rei ia falar na televisão dos Estados Unidos. O taxista informou-os de que não tinha televisor, mas achava que a câmara grande devia servir para gravar as imagens.
Era muito falador, como quase todos os taxistas, e apontava com orgulho os resplandecentes edifícios modernos que coexistiam com antigas casas caiadas castigadas sem piedade pelo sol. Sakarya tinha aquela mistura intrigante do tradicional e do moderno existente em muitos países do Terceiro Mundo. As limusinas de luxo circulavam pelas mesmas ruas pelas quais transitavam os burros. Os camelos ainda percorriam o deserto, contudo, no céu surgiam os rastos que aviões de combate das Forças Aéreas de Sakarya deixavam à sua passagem.
O rei estudara em Oxford, porém, apesar de ter absorvido a cultura europeia, era por natureza um homem cauteloso e resistente às mudanças. Os sakaryanos procediam da estirpe de Maomé e a família Al Mahdi ocupava o trono há quinhentos anos. Havia tradições profundamente enraizadas que não podiam omitir-se quando se abordava a modernização do país e, para a maioria, a vida em Sakarya continuava a ser a mesma. Os carros eram úteis, porém, os sakaryanos tinham vivido sem eles durante vários séculos e, se repentinamente desaparecessem, não representaria um problema. O aeroporto era ruidoso. O novo hospital, no entanto, era motivo de orgulho e as crianças estavam desejosas de ir às escolas novas.
O homem que conduzira a modernização do país era o marido de Marina Delchamp, Zain Abdul ibn Rasid, o Ministro da Economia, que tinha grande influência sobre o rei. Tinha o aspecto de um falcão e os olhos negros como o carvão, como a maioria dos homens do deserto. Durante os seus anos de estudante na Europa, tivera fama de playboy. Sallie perguntava-se se realmente amava Marina ou se apenas se sentia atraído pela sua beleza resplandecente e pela sua maravilhosa cabeleira loira. Apreciaria e amaria a sua dignidade natural, a sua coragem?
Aquilo preocupava-a. Não era fácil conjugar Oriente e Ocidente, pois as diferenças culturais eram demasiado grandes. Apesar de não comunicarem com regularidade e passarem muito tempo sem se ver, Sallie considerava Marina uma boa amiga e desejava que fosse feliz. Estava tão absorta nas suas preocupações que se assustou quando o condutor disse no seu francês rudimentar:
- O Hotel Khalidia. É novo e bonito. Gostam, sim?
Sallie olhou por cima do ombro de Rhy e admitiu que sim, que gostava. Era rodeado por uma fila de árvores muito bem cuidadas e protegido por um muro alto de pedra. A arquitectura não era ultramoderna, pelo contrário, eram visíveis os esforços feitos para que encaixasse no seu ambiente. No interior, talvez oferecesse todas as comodidades de um hotel moderno, contudo, a fachada respeitava a arquitectura tradicional, branca, lisa, sem enfeites, com janelas escondidas por persianas.
Sallie tentou explicar ao rapaz que estava a descarregar as malas quais eram as suas e quais eram as de Rhy, porém, era como se fosse invisível. O empregado de olhos pretos, vestido ao estilo ocidental, só seguia as instruções de Rhy e nem sequer se incomodava em olhar para ela. O mesmo aconteceu com o empregado da recepção. O arrumador desapareceu com a sua bagagem e Rhy guardou a chave do quarto no bolso.
Quando se afastaram do balcão da recepção, Sallie agarrou-o pelo braço.
- Quero um quarto só para mim - insistiu, olhando para ele nos olhos.
- Lamento muito. Fiz a reserva em nome do senhor e da senhora Baines e vai ser muito difícil convenceres um muçulmano a dar-te outro quarto - informou-a com uma satisfação evidente. - Já sabias o que esperar desta viagem.
- Como tenho de te dizer isto para que entendas? - começou a dizer, completamente frustrada, mas ele não a deixou continuar.
- Depois. Este não é o lugar certo para discutir e pára de ser tão chata. A única coisa que quero é tomar banho e dormir um pouco. Acredita, esta noite não corres nenhum perigo.
Ela não acreditava, contudo, tinha de recuperar as suas malas, portanto seguiu-o e entrou no elevador. Ele carregou no botão do quarto andar.
Apesar de estar muito cansada, Sallie ficou maravilhada quando entraram no quarto e nem reparou que Rhy deu uma gorjeta ao empregado que subira com as malas. Apesar de ser apenas uma divisão, uma grade de ferro forjado com desenhos intrincados delimitava duas áreas. À frente, uma pequena sala e, atrás, o quarto. Havia um terraço com duas cadeiras de vime pintadas de branco e um sofá também de vime com almofadas. Entre as duas cadeiras havia uma mesinha destinada a servir o chá. Sallie dirigiu-se para o terraço e viu uma enorme piscina rodeada de palmeiras. Perguntou-se se as mulheres poderiam usá-la.
Entrou novamente no quarto e inspeccionou a cama e sorriu ao ver a quantidade de almofadas de cores que a enfeitavam. O tapete aos pés da cama parecia turco, embora o mais provável fosse que se tratasse de uma cópia feita em série. Era indiferente, o efeito era o mesmo. De todos os hotéis onde estivera, aquele era sem dúvida o que mais gostava. Talvez a comida fosse horrível e o serviço, inexistente, pelo menos para uma mulher, mas adorava o quarto.
Levantou os olhos e deparou-se com o olhar penetrante de Rhy. Empalideceu. Ele tirou o casaco e Sallie viu os ombros desenhados sob o tecido da camisa branca. Algo lhe disse que estivera a observá-la durante o tempo todo.
- Porque não tomas banho? - sugeriu Rhy. Tenho de fazer algumas chamadas para me certificar de que está tudo preparado para a entrevista e demorarei algum tempo.
O que ela queria era agarrar nas suas malas e sair a correr, contudo, sabia que Rhy estava disposto a impedi-la. Teria de o enganar e ainda não tinha a certeza de como o conseguir. A palavra ”duche” soava a glória...
- Está bem - aceitou com voz cansada. Pegou na sua mala e levou-a para a casa de banho, que ficava à direita do quarto. Fechou a porta atrás dela e trancou a fechadura.
Apesar do cansaço, ficou algum tempo a admirar a divisão. Parecia saída de um harém turco, adornada com azulejos de cores vivas. A banheira era enorme, de azulejos pretos. Tirou o vestido e a roupa interior, que o suor fizera com que se pegasse ao seu corpo, e suspirou de alívio ao sentir o ar fresco na pele. Abriu as torneiras, deixou correr a água e colocou-se debaixo do jorro de água fresca. Depois, deleitou-se um pouco com a fantasia de que várias criadas estavam à espera que acabasse de tomar banho para perfumar o seu corpo com óleos aromáticos, pois naquela noite o sultão iria visitá-la...
A realidade impôs-se quando pensou que em circunstâncias semelhantes enlouqueceria. Já tinha problemas suficientes sem a existência de um sultão. Saiu da banheira e envolveu-se numa toalha. Depois, perguntou-se o que podia vestir. Não tinha intenção de passear em camisa de dormir à frente de Rhy, contudo, ele suspeitaria que pretendia fugir se se vestisse como se fosse sair, portanto no final vestiu uma túnica de cor azul safira e penteou vigorosamente o cabelo.
Estava demasiado cansada para fazer uma trança e deixou-o solto. Depois de apanhar a roupa suja e ordenar a casa de banho, abriu a porta e saiu com a sua mala.
Rhy estava ainda ao telefone e mal olhou para ela enquanto ela tirava algumas coisas da mala, como se pensasse ficar. Sallie passeou pelo quarto, tentando afugentar o sono enquanto ouvia Rhy a falar com várias pessoas.
Algum tempo depois, ele pôs a mão sobre o telefone para falar sem que o seu interlocutor o ouvisse.
- Porque não tentas descansar um pouco? Não sei quanto tempo demorarei para acabar.
Ela não queria dormir, pois o seu instinto dizia-lhe que não devia fazê-lo, porém, não podia sair enquanto ele estivesse acordado. Além disso, estava cansadíssima, doíam-lhe todos os músculos do corpo devido às horas que passara sentada no avião. Podia descansar um pouco até que Rhy desligasse. Tinha o sono leve, portanto acordaria quando ele entrasse na casa de banho.
Correu as cortinas da porta do terraço e o quarto ficou na penumbra. Depois, recostou-se na cama com um suspiro extasiado. Esticou as pernas doridas, pôs a cabeça na almofada e adormeceu imediatamente.
Acordou algum tempo depois quando alguém murmurou ”chega-te um pouco para lá” e virou-se para dar espaço ao corpo que deslizou para o seu lado. Era vagamente consciente de que devia acordar, contudo, sentia-se muito bem e o murmúrio monótono do ar condicionado embalou-a até que adormeceu novamente.
A mudança de hora confundira-a. Quando acordou era de noite. Ainda meio adormecida, fixou-se na sombra que saía da casa de banho.
- Quem é? - perguntou, incapaz de afastar a confusão que cobria o seu cérebro. Também não sabia bem onde estava.
- Sou eu, Rhy - respondeu uma voz rouca e aveludada. - Desculpa ter-te acordado. Fui beber água. Queres um copo?
Soou-lhe bem e sussurrou um ”sim” enquanto tentava sentar-se na cama. Alguns segundos depois, alguém lhe pôs um copo de água fria na mão. Bebeu o conteúdo e devolveu-o. Ele levou-o novamente para a casa de banho, enquanto ela voltava a deitar-se e pensava, sonolenta, que Rhy era como os gatos, que viam na escuridão, porque nem sequer acendera a luz.
Quando a cama se afundou sob o peso de Rhy, Sallie recordou que planeava escapulir-se, sair sem que ele se desse conta, e o seu coração começou a acelerar com receio.
- Espera... - ofegou com pânico e estendeu um braço para o empurrar. A sua mão tocou na pele nua de Rhy. Emocionada, esqueceu-se do que ia dizer e balbuciou: - Não tens roupa!
Na escuridão, Rhy soltou uma gargalhada e pôs-se de lado para olhar para ela. Agarrou-a pela cintura com o seu poderoso braço e venceu a sua inútil resistência, puxando-a para a aproximar do seu corpo.
- Durmo sempre nu, lembras-te? - brincou e esfregou os lábios contra a testa de Sallie.
A respiração dela acelerou e começou a tremer ao sentir a pressão do corpo de Rhy, forte, quente, junto a ela. O cheiro a homem invadiu o seu nariz; era embriagador para os seus sentidos. Lutou desesperadamente contra o desejo crescente de se aproximar mais e pôs as mãos no peito dele para o empurrar, contudo os seus dedos começaram a acariciar os pêlos que lhe cobriam o peito.
- Sallie - murmurou ele com voz rouca. Na escuridão, procurou os seus lábios e encontrou-os, enquanto lhe rodeou o pescoço com os braços.
Sallie sabia que devia resistir, no entanto, nunca conseguira fazê-lo, nem sequer naquele momento, quando tinha tão boas razões para rejeitar Rhy. A tentação de voltar a experimentar as satisfações físicas que ele podia oferecer-lhe dissuadia-a.
Não era que a situação não o afectasse, já que o seu corpo tremia, junto do de Sallie, quando afastou a sua boca da dela e lhe cobriu a cara e os olhos de beijos. Ela reparou que lhe desapertava os botões da túnica e a deslizava até à cintura. Em seguida, as suas mãos exploraram os seios que acabava de despir. Derrotada, Sallie enterrou a cabeça no seu ombro, tremendo com a força do desejo que ele despertara. Não queria que ele parasse, pois sabia que enlouqueceria de frustração.
Ele acabou de lhe tirar a túnica e desfez-se dela. Ela recuperou a prudência por um momento quando ele se afastou ligeiramente para atirar a roupa para fora da cama e agarrou-o pelos ombros.
- Rhy... não. Não podemos - gemeu fracamente.
- És minha mulher - replicou ele num murmúrio. Envolveu-a com os seus braços e pôs-se em cima dela.
Sallie ofegou ao sentir o doce e feroz contacto dos seus corpos nus. Depois, a boca de Rhy tomou posse da sua e abafou as suas queixas. Ela pôs novamente os braços à volta do seu pescoço e agarrou-se a ele.
Era como se nunca se tivessem separado. Os seus corpos reconheciam-se como sempre o tinham feito. Presa no redemoinho da paixão de Rhy, a única coisa que podia fazer era corresponder, devolver-lhe a paixão que lhe brindava com tanta generosidade. Rhy não era um amante delicado, fora-o apenas na sua primeira vez. Era feroz, terno, erótico, desenfreado, excitante... E ela era incapaz de conter a sua resposta apaixonada. Era como sempre, como antes... Não, era melhor. Rhy fez com que esquecesse a prudência, as suas precauções e tudo o que não fosse ele.
Sallie foi acordando lentamente. Sentia-se demasiado bem, demasiado satisfeita para renunciar facilmente à inconsciência. Sentia-se leve, como se estivesse a flutuar. O seu corpo mexia-se para cima e para baixo com um ritmo suave e, debaixo da sua cabeça, um batimento firme e relaxante marcava o tempo. Sentia-se tão maravilhosa, tão segura...
A campainha estridente do telefone irrompeu bruscamente naquela euforia e ela murmurou um protesto. Depois, sentiu que a cama se mexia e agarrou-se, contudo, em vez dos lençóis, as suas mãos encontraram a pele quente de Rhy. Abriu os olhos e levantou a cabeça no momento em que ele esticava um braço longo e musculado para pegar no telefone que havia na mesinha.
- Sim? - murmurou Rhy com voz sonolenta, mais rouca do que era habitual nele. Ouviu o que lhe diziam. - Obrigado - desligou e, suspirando, voltou a fechar os olhos.
Sallie corou e tentou afastar-se dele e, ao mesmo tempo, tapar-se com o lençol. Os braços de Rhy impediram-na de se mexer, retendo-a sobre o seu peito. Ele abriu um pouco os olhos e, através das suas espessas pestanas pretas, viu que Sallie corava ainda mais. Estava muito bonita naquela manhã e os seus olhos cinzentos brilhavam de satisfação.
- Fica aqui! - ordenou com voz rouca. Estendeu uma mão e acariciou-lhe a pele sedosa das costas. - Sinto-me como se tivesse um gatinho em cima do peito. Pesas pouquíssimo.
Quando sentiu o fôlego quente de Rhy na orelha, Sallie tremeu sem querer, porém, fez um esforço para se soltar.
- Deixa-me, Rhy. Quero vestir-me...
- Ainda não, querida - murmurou ele e afastou-lhe o cabelo para trás para pousar os seus lábios atrás da sua orelha. - Ainda é cedo e não temos nada mais importante para fazer do que voltarmos a habituar-nos um ao outro. És a minha mulher e eu gosto de te ter nos braços.
- ”Era” a tua mulher - insistiu ela e tentou afastar a cabeça mas, em vez disso, viu-se a deitá-la para trás para lhe facilitar o acesso ao seu pescoço.
O coração de Sallie começou a bater com força quando Rhy lhe encontrou a nuca e a sugou com avidez, como Se quisesse beber o seu sangue.
- Ontem à noite fomos como marido e mulher - murmurou ele.
- Ontem à noite... - a sua voz falhou e, alguns segundos depois, conseguiu dizer: - Ontem à noite quisemos recordar Os velhos tempos, mais nada. Digamos que foi Uma despedida, está bem?
Ele recostou-se sobre as almofadas mas sem a soltar. Para surpresa de Sallie, não parecia zangado pelo que ela acabava de afirmar, pelo contrário, sorria preguiçosamente.
- Não faz mal que não te rendas agora - declarou ele. - Ontem à noite ganhei a guerra.
Sallie quase fez uma careta de dor ao pensar na ideia de se afastar dele novamente, apesar de saber que não oderia ser feliz ao seu lado. Apoiou a cabeça no ombro de Rhy e, por uns instantes, permitiu-se desfrutar da intimidade entre ambos. Ele acariciava-lhe as costas e os ombros, brincava com o seu cabelo... As carícias debilitavam a força de Sallie, como sempre acontecera, portanto, enquanto ainda tinha força suficiente, obrigou-se a levantar a cabeça, abandonando assim o refúgio que o ombro de Rhy lhe proporcionava, e olhou para ele com uma expressão séria.
- Apesar de tudo, não funcionaria - sussurrou. - Nós mudámos e agora há outros factores. Coral está apaixonada por ti, Rhy. Não podes deixá-la assim, irias magoá-la muito... Ou estás a planear continuar com ela?
- És um gatinho - assinalou preguiçosamente enquanto a sua mão começava a tocar-lhe mais intimamente, - sempre a arranhar e a atacar. Mas não me importo que sejas tão temperamental, sou duro de roer. Não te preocupes com Coral. Além disso, o que sabes sobre ela?
- Foi a minha casa - confessou Sallie. - Para me avisar de que tu nunca a deixaste a sério, que acabavas sempre por voltar para ela - tentava fugir à exploração profunda a que as mãos de Rhy a submetiam, todavia, apercebeu-se de que o contacto da sua pele com a dele a fazia suspirar de desejo.
Rhy soltou um palavrão entredentes.
- Mulheres! - resmungou. - São as criaturas mais difíceis da terra. Não acredites, querida. Coral não tem nenhum direito sobre mim. Eu faço o que quero com quem quero... E, neste momento, quero estar com a minha mulher.
- Não é assim tão fácil - insistiu ela. - Por favor, Rhy, deixa-me. Não consigo fazer com que entendas abraçando-me desta forma...
- Então continuarei a abraçar-te - interrompeu-a. - O resultado final é o mesmo: és minha e continuarás a sê-lo. Não posso deixar que saias do meu lado e espero que não estejas apaixonada por aquele fotógrafo, porque se estiveres, terei de ajustar contas com ele!
Sallie ficou muito pálida e olhou para ele fixamente. Rhy tinha o queixo apertado e os olhos muito abertos. Reagia de um modo totalmente primitivo à ideia de que outro homem pudesse tocar-lhe. De repente, Sallie deu-se conta de que fora uma estupidez deixar que pensasse que tinha uma relação com Chris. Não era justo usá-lo como escudo. Rhy era perigoso e podia magoar Chris. E se isso acontecesse a culpa seria sua, disse para si.
Por outro lado, rebelava-se contra a ideia de permitir que Rhy levasse a melhor, especialmente depois do que acontecera naquela noite; ele conseguira o que queria. Exceptuando um fraco protesto da sua parte ao princípio, não fizera nenhuma tentativa de se afastar dele.
Também não se sentia bem a falar com ele sobre Chris, já que o seu amigo, tão tranquilo e relaxado, era muito reservado na hora de revelar detalhes da sua vida privada e ainda a espantava que lhe tivesse feito tantas confidências. Recusava-se a trair a sua confiança só para que Rhy pudesse reforçar o seu ego.
Continuou calada e, de repente, Rhy perdeu a paciência. Agarrou-a pelos braços e rodou até ficar em cima dela.
- Se calhar precisas que volte a demonstrar-te quem desejas - havia um brilho irado no seu olhar.
Sallie reparou que as pernas musculadas de Rhy afastavam as suas e o seu coração acelerou, porque isso significava que queria fazer amor novamente. Uma sensação quente invadiu o seu corpo e deixou-se levar enquanto o coração batia cada vez mais depressa. No entanto, apesar de ter deslizado os braços à volta do seu pescoço, ouviu-se dizer obstinadamente:
- Não penses que és assim tão irresistível.
- És minha, Sallie, minha...
Embora a sua mente protestasse, os sentidos de Sallie estavam demasiado interessados nos prazeres que Rhy estava a oferecer-lhe para conseguir discutir. Amava-o, amava-o tanto que, depois de sete longos anos sem lhe tocar, agora que ele vencera a sua resistência e estavam novamente a fazer amor, a única coisa que ela desejava era desfrutar da intimidade dos seus corpos. Rhy não podia oferecer-lhe amor, contudo, podia oferecer-lhe aquelas sensações, que eram o máximo de si que podia dar a uma mulher. Ela agarrou-se aos seus largos ombros e começou a exigir-lhe tanto como ele estava a pedir-lhe a ela e, quando finalmente ele se afastou e se deitou de costas, estavam ambos satisfeitos e tremiam de esgotamento. Incapaz de suportar a distância que de repente afastava os seus corpos, Sallie aproximou-se dele, abraçou-se ao seu peito e pôs os lábios sobre o seu pescoço. Quase imediatamente, adormeceu e, no sono, as suas mãos agarravam-se a Rhy como se não conseguisse suportar deixá-lo partir.
Quando voltou a acordar, Sallie esticou-se, abriu os olhos e levantou a cabeça. Viu que Rhy também acabava de acordar. As lembranças das manhãs em que faziam amor e depois voltavam a dormir ocuparam a sua mente e, misteriosamente, foi como se os anos de separação nunca tivessem existido. Rhy afastou-lhe o cabelo da cara com uma mão e depois desceu e acariciou-lhe o pescoço.
- Não me respondeste - murmurou. - Estás apaixonada por ele?
Ela fechou os olhos, resignada. Era teimoso como um buldogue. O que ia dizer-lhe? Entenderia se lhe dissesse que amava Chris de um modo que não era nem romântico nem sexual?
- Chris não te diz respeito - disse finalmente, levantando o queixo. - Mas não fui para a cama com ele. Tira tu as tuas próprias conclusões.
Depois daquela confissão, houve vários minutos de silêncio e, quando ela reuniu coragem para olhar para Rhy directamente nos olhos, deu um salto ao ver o desejo que ardia neles.
- Não... não olhes assim para mim - sussurrou e baixou novamente o olhar.
- Quero-te para mim - disse com voz rouca.
- Fico contente por não teres um amante, porque não quero complicações no meu caminho.
Ela abanou a cabeça com um ar fatigado.
- Não, não entendes. O facto de não ter ninguém não quer dizer que queira retomar a nossa relação. Para que saibas, tu és o único homem com quem fui para a cama, mas não quero viver contigo. Não funcionaria, não vês? - implorou.
- Preciso do meu trabalho tanto como tu precisavas do teu quando nos casámos. Não seria feliz em casa, a limpar o pó e a cozinhar. Preciso de mais do que tu estás disposto a dar-me. Preciso da minha liberdade.
O rosto de Rhy estava muito tenso e olhava para ela com olhos inquietos.
- Não me peças para te mandar para sítios perigosos - murmurou. - Não posso. Se te acontecesse alguma coisa e eu fosse o responsável, nunca me perdoaria. Mas no que se refere ao trabalho, podíamos chegar a um compromisso. Porque não tentamos ver como nos damos juntos? A única coisa que fazíamos na época do nosso casamento era fazer amor e não chegámos a conhecer-nos bem um ao outro. Vamos estar aqui três dias. O que te parece se aproveitarmos? Pensaremos no futuro quando voltarmos a casa. Achas que é possível passarmos três dias sem discutir?
- Não sei - respondeu ela com cautela.
A tentação de passar três dias com ele roubou-lhe toda a sua força. Conhecia Rhy e sabia que a sua ideia de um compromisso era encurralá-la de tal modo que ela tivesse de fazer as coisas ao seu modo, porém, enquanto estivessem ali, não poderia manipulá-la. Já tomara a precaução de tirar as suas economias do banco e, quando estivessem de volta a Nova Iorque, sabia que teria de partir, mas naquele momento... Naquele momento, porque não podia simplesmente desfrutar do seu marido? Três dias era um período de tempo muito curto para acumular lembranças suficientes para toda uma vida. Por que razão Rhy não entendia que eram incompatíveis?
- Está bem - acedeu ela finalmente. - Mas quando voltarmos, não esperes automaticamente que eu vá viver contigo. Aceito com essa condição.
Ele sorriu com regozijo.
- Nunca pensei nada diferente - disse com ironia. Afundou os dedos na nuca de Sallie e obrigou-a a inclinar a cabeça para a beijar. O beijo começou com naturalidade e depois tornou-se gradualmente mais intenso até que se agarraram um ao outro com um desejo que só havia um modo de satisfazer.
Enquanto se vestiam para ir à festa que Marina organizara para a comunicação social, uma das celebrações prévias ao baile de gala, Sallie reparou em como a situação era familiar; era a mesma rotina de anos atrás que voltava a impor-se sem que tivessem falado disso. Ela entrava primeiro na casa de banho e depois, enquanto se maquilhava e arranjava o cabelo, Rhy tomava banho e barbeava-se. Esperava até que ela pintasse os lábios e então dava-lhe um beijo, fazendo com que o batom borrasse. Ele ria-se e ela voltava para o espelho para solucionar o desastre. Quantas vezes teria feito aquilo no passado? Incontáveis. Fazia parte da sua vida de casados e, quando Sallie se encontrou com o olhar de Rhy no espelho, percebeu que ele também estava a recordá-lo e trocaram um sorriso.
Escolhera um vestido de seda cor-de-rosa pálido. O corte era muito simples, já que a sua baixa estatura não lhe permitia usar nada demasiado pesado, arriscando-se a parecer uma boneca. A cor favorecia-a muito, pois realçava os seus olhos azuis e o tom do seu cabelo. Rhy olhou para ela com admiração depois de a ajudar com o fecho.
- Parece-me um pouco arriscado que saias para a rua - disse e inclinou-se para lhe murmurar ao ouvido: - Algum xeque pode raptar-te e levar-te para o deserto e eu teria de começar uma guerra para conseguir que voltasses.
- Como? E arruinar uma boa história? - brincou e os seus olhos encontraram-se com os dele reflectidos no espelho. - Tenho a certeza de que conseguiria fugir e pensa na crónica que podia escrever depois.
- Seria engraçado - disse ele forçadamente.
- Mas sei por experiência própria o tipo de perigos que tiveste de enfrentar e o meu sangue ferve quando penso nisso. Uma coisa é ser eu a expor-me e outra é que possa acontecer-te alguma coisa.
- Nada disso - disse e inclinou-se para a frente e, com o dedo, tirou uma manchinha que acabava de descobrir debaixo do olho. - Antes, quando estávamos juntos, aterrorizava-me pensar que podia acontecer-te alguma coisa e quase morri quando foste ferido. Agora compreendo porque voltaste a partir assim que pudeste. Agora, eu também estou viciada e preciso de emoções fortes.
- Isso passará - disse e uma expressão quase fatigada cobriu o seu rosto. - O perigo chega a ser aborrecido e a ideia de dormir na mesma cama mais do que poucos dias seguidos cada vez se torna mais atraente. Criar raízes não significa ficares presa, querida, e pode ajudar-te a continuar a crescer.
- Isso é verdade, mas só se o vaso for suficientemente grande para não asfixiar as raízes assinalou e virou-se para olhar para ele. Estava a sorrir, contudo, a expressão dos seus olhos era séria e pôs-lhe um dedo debaixo do queixo para a obrigar a levantá-lo.
- Mas prender-te é muito divertido - brincou.
- Não pensas em mais nada? - abanou a cabeça com regozijo.
- Quando estou contigo? Raramente - um brilho de paixão acendeu-se nos seus olhos cinzentos enquanto olhava para ela. - Mesmo antes de saber que tu eras tu, assim que via a tua trança a dançar em cima do teu rabo, senti vontade de saltar para cima de ti ali mesmo, nos corredores.
Sallie sorriu, contudo, percebeu que as palavras e os actos de Rhy eram apoiados na atracção física e não numa necessidade emocional. Rhy desejava-a, disso não havia dúvida, porém, estava a aperceber-se de que ele era incapaz de amar. Talvez fosse melhor assim. Se amasse tão intensamente como desejava, o seu amor podia ser destrutivo para a alma.
A festa era num hotel, já que o palácio Al Mahdi estava fechado para os preparativos para o baile e o marido de Marina não queria abrir a sua casa ao público por razões de segurança. O caminho de entrada do hotel estava repleto de limusinas. Europeus, americanos e sakaryanos misturavam-se e uma confusa amálgama de sotaques presidia as conversas. As medidas de segurança eram estritas: havia guardas em portas e janelas, vestidos com uniformes militares, que observavam a multidão de visitantes estrangeiros com os olhos pretos dos homens do deserto. Pediram-lhes várias vezes que mostrassem as suas credenciais e tiveram de mostrar o convite enquanto se juntavam à fila de convidados que entrava no hotel.
Lá dentro, guiaram-nos até à suíte onde se celebrava a festa e as medidas de segurança tornaram-se invisíveis. Ouvia-se uma música suave e o ruído dos cubos de gelo nos copos indicava que o ambiente era calmo e os convidados estavam relaxados.
A suíte estava mobilada com simplicidade, ao estilo árabe, contudo, havia lugares de sobra para os que preferissem sentar-se a estar de pé. As cores que preponderavam eram os dourados, os castanhos e o branco e Sallie adivinhou o toque final de Marina em muitos dos centros de flores que enfeitavam a divisão e que davam um toque alegre sem ser excessivo. Olhou à sua volta à procura da sua amiga, mas foi incapaz de descobrir o seu rasto no meio do movimento constante dos convidados.
- Porque havia tantos controlos de segurança lá fora? - perguntou, inclinando-se para Rhy para que ninguém os ouvisse.
- Porque Zain não é parvo - resmungou Rhy.
- Muita gente gostaria de o ver morto. Parentes do rei que têm ciúmes da sua influência, fundamentalistas religiosos que não gostam da sua política progressista, terroristas que não precisam de nenhuma razão... Sakarya é uma mina de ouro hoje em dia.
- Ouvi falar das reservas de petróleo - sussurrou ela. - São tão grandes como dizem?
- Enormes. Se as prospecções forem correctas, as reservas de Sakarya serão as segundas maiores do mundo depois das dos sauditas.
- Ah - murmurou ela. - E dado que o Ministro da Economia é casado com uma americana, o lógico é que as suas simpatias se inclinem para o Ocidente. O que significa que a sua influência sobre o rei é duplamente importante. Céus! Marina está a salvo neste país?
- Zain faz tudo o que pode para que assim seja e é um homem ardiloso. A sua ideia é chegar a velho.
Ela ia continuar a fazer perguntas, contudo, um brilho loiro capturou a sua atenção e, ao virar a cabeça, viu Marina, que se aproximava dela. A sua amiga estava fantástica, radiante e os seus lindos olhos verdes resplandeciam de alegria.
- Sallie! - exclamou, rindo-se, e as duas abraçaram-se com entusiasmo. - Não tinha a certeza de que pudesses vir! Quase não acreditei quando soube que pretendiam mandar outra jornalista no teu lugar. Recusei-me a conceder a entrevista, claro - disse com uma gargalhada triunfal.
- ”Claro” - repetiu Sallie. - Na verdade, Marina, apresento-te o meu editor, Rhydon Baines. Ele é que pretendia sabotar a minha viagem.
- Estás a brincar, não? - Marina sorriu para Rhy e estendeu a mão. - Não sabias que Sallie e eu somos amigas?
- Não sabia até àquele momento. Zain está por aqui? Há muito tempo que não o vejo.
Os olhos de Marina brilharam quando ligou os factos.
- Portanto tu és Rhy Baines, amigo de Zain... Sim, está por aqui, em alguma parte - virou a cabeça para localizar o seu marido entre os diferentes grupos de convidados. - Aí vem ele!
Zain ibn Rashid era magro, de aspecto felino. Tinha uma cara aquilina e um sorriso bastante cruel. Tinha um fato feito à medida que lhe assentava como uma luva e usava-o com a mesma naturalidade com que um adolescente usaria as suas calças de ganga. Os seus penetrantes olhos pretos tinham um brilho sensual. De repente, Sallie apercebeu-se de que só havia outro homem com aquela aura tão sexual: Rhy. Era irónico, mas quase inevitável, que tanto Marina como ela se tivessem casado com o mesmo tipo de homem indomável.
- Rhy! - Zain desviara os olhos da sua mulher para dar uma olhadela ao casal com quem ela estava e, ao reconhecer Rhy, abriu muito os olhos e estendeu uma mão. - Ouvi dizer que vinhas entrevistar o rei, mas depois houve uma mudança de planos. Então afinal vais entrevistá-lo?
- Não, outro repórter fará a entrevista no meu lugar. Estou aqui por outros motivos disse Rhy num tom irónico e inclinou a cabeça, apontando para Sallie. - Vim como guarda-costas da jornalista da World in Review. Sallie, apresento-te Zain Abdul ibn Rashid, Ministro da Economia...
- E também o meu marido - interveio Marina com atrevimento. - Zain, esta é Sallie, a amiga de que te falei - então olhou para Rhy. Como assim ”guarda-costas”? Pensei que fosses o editor da revista...
- E sou - admitiu ele, imperturbável. - E também sou o seu marido.
Sem conseguir conter-se, Marina deixou escapar um grito e abraçou Sallie novamente.
- Casaste-te? Quando? Porque não me escreveste para me contar?
- Não tive tempo - improvisou Sallie e lançou a Rhy um olhar que prometia vingança. Ele limitou-se a sorrir, encantado com o anúncio que acabava de fazer.
Zain sorria abertamente.
- Portanto finalmente caçaram-te. Teremos de o celebrar, mas não sei quando. Marina pôs o país de pernas para o ar com o baile. Estou desejoso que tudo isto acabe - disse e olhou para a sua mulher.
Sallie viu aquele olhar e suspirou aliviada. Zain olhara para Marina com ternura antes de voltar a pôr a máscara de sarcasmo que devia cobrir o seu rosto habitualmente. Amava-a de verdade, não se casara com ela apenas porque era bonita.
- Não posso ficar mais tempo, tenho de circular - Marina suspirou e pegou no braço de Zain. - Sallie, prometo-te que depois do baile nos encontraremos e falaremos até ficar sem língua.
Sallie assentiu.
- Até mais tarde - despediu-se de Marina enquanto ela se afastava, com Zain ao seu lado, para cumprimentar outros convidados.
- É muito bonita - comentou Rhy.
- Sim - ela olhou para ele com os olhos entreabertos. - Ainda mais bonita do que Coral.
- É suposto eu dar a minha opinião? - perguntou, arrastando as palavras.
Sallie encolheu os ombros e não respondeu. Então, fez outra pergunta.
- Desde quando conheces Zain?
- Há alguns anos - respondeu, sem dar mais informação.
- Como se conheceram?
- O que é isto, uma entrevista? - respondeu para evitar a pergunta. Agarrou-a pelo braço e levou-a para um canto, onde fez sinal a um empregado que se aproximava com uma bandeja. Tirou duas taças de champanhe e ofereceu uma a Sallie.
- Porque não respondes? - insistiu e lançou-lhe um olhar de exasperação.
- Porque não queria que ninguém ouvisse a minha resposta e Zain também não gostaria. Agora porta-te bem e não sejas tão intrometida.
Ela olhou para ele iradamente, deu meia volta e afastou-se, caminhando devagar entre as pessoas enquanto bebia pequenos goles da sua taça de champanhe. Intrometida! O seu trabalho consistia em fazer perguntas e ele sabia muito bem. Era o homem mais difícil que conhecia, pensou enquanto acariciava com o dedo um vaso de jade. Arrogante e sempre a contrariar, Rhy não sabia o que era não ganhar.
- Pára de resmungar e começa a tomar notas
- sussurrou ele ao seu ouvido. - Aponta quem está aqui e quem não está.
- Não preciso que me digas como tenho de fazer o meu trabalho - disse com indignação e voltou a afastar-se dele.
- Não, o que precisas é de umas boas palmadas - murmurou Rhy, que se aproximara novamente.
Talvez esperasse irritá-la dizendo aquilo, porém, ela ignorou-o e continuou a andar entre as pessoas que enchiam a suíte. Não costumava tomar notas naquele tipo de acontecimentos, porque sabia que os convidados se coibiam. Uma das suas vantagens era que tinha uma memória excelente. Foi identificando os aristocratas e os homens de negócios mais ricos do mundo. Os acontecimentos sociais não eram a sua área, contudo, foi capaz de atribuir os respectivos nomes e países às personalidades importantes que ocupavam a sala e também às menos importantes.
Rhy puxou-a pelo braço e inclinou-se para ela.
- À tua direita está o subsecretário do Departamento de Estado. E ao seu lado está o Ministro dos Negócios Estrangeiros francês.
- Eu sei - respondeu Sallie, pois já os tinha visto antes. - Não vejo nenhum representante de um país comunista, o que quer dizer que a influência de Zain está a fazer-se sentir.
Justamente naquele momento, um homem alto e magro com ar distinto aproximou-se deles. Tinha o cabelo grisalho e olhos azuis.
- Senhor Baines - cumprimentou com cordialidade. Tinha um sotaque britânico típico de uma escola privada. - Fico contente por voltar a vê-lo.
- É um prazer vê-lo novamente, senhor Embaixador - respondeu Rhy apertando a mão do outro. - Sallie, apresento-te sir Alexander Wilson-Hume, o embaixador britânico em Sakarya. Senhor Embaixador, esta é Sallie, a minha mulher.
Os olhos azuis do embaixador brilharam quando levou a mão de Sallie aos lábios, um gesto de outra época.
- É um prazer - sorriu enquanto murmurava uma saudação convencional. - Estão casados há muito tempo, senhora Baines?
Ela não conseguiu reprimir um sorriso.
- Oito anos, senhor Embaixador.
- Valha-me Deus! Oito anos? - olhou para ela com espanto.
De repente, ela perguntou-se se o seu interlocutor teria razões para pensar que Rhy não era casado na época em que o conhecera. No entanto, se era esse o caso, o embaixador disfarçou a sua confusão com elegância e continuou a falar sem se alterar.
- Parece tão jovem que é difícil acreditar que esteja há tanto tempo casada.
- Isso é verdade - corroborou Rhy. - Os anos passam por ela sem deixar marca.
O embaixador olhou para ele com espanto, porém, Sallie limitou-se a sorrir perante a insolência de Rhy, apesar da dor que sentiu ao pensar nas suas infidelidades durante todos aqueles anos. Tinha de o ultrapassar, disse para si. Só uma ingénua esperaria que um homem como Rhy fosse fiel; era demasiado ardente... e demasiado atraente!
Várias horas mais tarde, no táxi que os levava de regresso ao seu hotel, Sallie não conseguiu evitar referir-se ao assunto.
- Pobre homem, o embaixador. Teve de se controlar muito bem. Agora vai considerar-te um playboy.
- Esperava que não te tivesses apercebido respondeu Rhy forçadamente. - Mas não te escapa nada, não é verdade? Bom, também não penses que sou um Don Juan. Disseste que não acreditavas que tivesse vivido tantos anos como um monge, mas na verdade foi quase assim. Saí com uma série de mulheres, mas tudo acabava quando as acompanhava a sua casa à noite e me despedia à porta.
- Estás a mentir - afirmou. - Esperas que eu acredite que Coral Williams é apenas uma boa amiga?
- Certamente, não é minha inimiga - disse e a sua boca curvou-se com regozijo. Sallie não acreditou no que disse em seguida. - Queria que pensasses que era minha amante para te fazer ciúmes, mas imagino que não funcionou.
Ela riu-se com incredulidade. Nunca na sua vida ouvira uma história tão ridícula. Rhy era um homem sensual e a sua paixão estava à flor da pele e surgia com facilidade. Teria de ser uma idiota para acreditar que lhe fora fiel durante os sete anos que tinham estado separados. Nem sequer tinha a certeza de que o tivesse sido durante o ano em que tinham estado juntos.
- Lamento - riu-se. - Tens de inventar algo mais verosímil. Além disso, não tem importância.
Ele soltou um suspiro e olhou para ela iradamente.
- Conseguirei fazer com que tenhas ciúmes prometeu com ferocidade. Ou era uma ameaça?
Sallie sabia que ele tinha intenção de fazer amor com ela assim que estivessem no quarto para tentar desarmar as suas convicções. Olhou para ele com fadiga. Aceitara passar três dias com ele e sabia que isso significava que teriam de dormir juntos, contudo a sua intenção era limitar o sexo às noites. Afinal de contas, já sabia o que podia esperar de Rhy nesse campo. O que queria era falar, descobrir coisas, ficar a conhecê-lo melhor. Apesar de ser o seu marido, era também um desconhecido. Apercebeu-se com tristeza de que, embora tivesse planeado partir assim que regressassem a Nova Iorque, continuava à procura de uma forma de acreditar que podiam ser felizes, mesmo sabendo que era em vão.
O telefone tocou quando acabavam de entrar no quarto e Rhy mal tinha tido tempo de tirar o casaco. Soltou um palavrão e atendeu com impaciência.
-Sim?! -gritou.
Sallie olhou para ele. Rhy ouviu o que o seu interlocutor lhe dizia e franziu o sobrolho.
- Já desço - respondeu. Desligou e voltou a vestir o casaco.
- Quem era? - perguntou ela.
- Da recepção. Há uma mensagem para mim. Eu já volto.
Quando ele saiu, ela mudou de roupa, vestindo um vestido branco muito leve sem deixar de pensar no que Rhy dissera. Uma mensagem? Porque não lha tinham dado por telefone ou, ainda melhor, quando tinham pedido a chave na recepção, há cinco minutos? Não parecia plausível. Sem hesitar, Sallie saiu do quarto e dirigiu-se para os elevadores. Afinal de contas, ganhava a vida com a sua curiosidade pelas coisas.
No entanto, não sentia apenas curiosidade, algo lhe dizia que devia ir com cuidado. Saiu do elevador no segundo andar e continuou pelas escadas. A sua cautela obteve recompensa. Quando abriu a porta que havia no final das escadas, viu o seu marido no hall do hotel, a abraçar Coral Williams, que olhava para ele com os olhos cheios de lágrimas. Não ouvia o que diziam, porém, Rhy foi com Coral até aos elevadores e as portas fecharam-se atrás deles.
Ela apertou os lábios com força, voltou para o quarto e começou a arrumar as suas coisas na mala. Grande história! Portanto, fora fiel! Devia ser uma relação bastante séria para que Coral tivesse ido atrás dele até Sakarya. Pois ela não pensava esperar que Rhy lhe contasse mais mentiras, disse para si.
Tinha de agir depressa, pois não sabia quanto tempo ficaria com Coral. Rabiscou uma nota sem prestar muita atenção ao que escrevia, mas era algo como ”lamento, mas não estou interessada”. Depois, agarrou na mala e saiu, descendo novamente pelas escadas.
Foi-lhe fácil encontrar um táxi, pois havia uma fila à espera à frente do hotel. O seu problema era encontrar um sítio onde ficar. Sabia que em Khalidia não havia muitos hotéis. Em francês, explicou ao taxista que queria ir para outro hotel, mas um que não fosse conhecido. Quando ela viu o hotel para onde a levara, entendeu imediatamente porque não era conhecido: parecia que a fachada tinha sido atingida pelos disparos da Legião Estrangeira. Era pequeno, velho e simples. O homem que o geria olhou para ela de cima a baixo e depois disse algo ao taxista em sakaryano.
- Diz que tem um quarto, se quiser, mas que não é o melhor - traduziu o taxista. - E que tem de pagar adiantado e não pode sair do quarto, visto que não tem véu e o seu marido não a acompanha.
- Diga-lhe que me parece bem - replicou Sallie, já que lhe convinha ficar no quarto, pois assim Rhy não a encontraria. - Como farei para comer?
Os olhos do dono do hotel percorreram-na outra vez de cima a baixo e depois, num francês rudimentar, informou-a de que a sua mulher lhe prepararia alguma coisa para comer.
Encantada por conseguir comunicar com ele, Sallie agradeceu-lhe e sorriu. Quando o taxista se foi embora, agarrou na sua mala e esperou com expectativa que o seu anfitrião a conduzisse para o quarto. Ele ficou a olhar para ela, inclinou-se e tirou-lhe a mala.
- Está muito magra - resmungou. - A minha mulher dar-lhe-á de comer como é devido.
Depois, levou-a escada acima até ao quarto e deixou-a lá.
Sallie examinou o que seria o seu alojamento durante as duas próximas noites. O quarto estava impecável, mas tinha apenas uma cama individual e uma mesinha com um jarro azul cheio de água para se lavar. A cama estava coberta por uma colcha exótica e várias almofadas e o colchão era confortável, portanto deu-se por satisfeita.
A mulher do proprietário trouxe-lhe uma bandeja com pão, queijo, sumo de laranja e café. Examinou Sallie e ficou estupefacta ao ver as suas pernas nuas, porém, respondeu com um tímido sorriso ao seu agradecimento.
Depois de comer, Sallie tirou o vestido e descalçou-se. Já que tinha de ficar confinada naquele quarto tão pequeno durante quarenta e oito horas, pelo menos ficaria confortável. Revolvendo na sua mala, encontrou uma t-shirt larga e vestiu-a. Assim, em cuecas e t-shirt, não teria tanto calor. Depois, tirou da mala toda a sua roupa e pendurou-a para que se desenrugasse.
Como não tinha nada para fazer, deitou-se na cama e tentou concentrar-se na leitura de um dos livros que trouxera, contudo, o calor começou a ser insuportável e pensou com nostalgia no ar condicionado do Hotel Khalidia. Deitou-se de costas e levantou o livro para o abanar à frente do rosto. Então, viu uma ventoinha pendurada no tecto.
- Como no Casablanca. - gritou entusiasmada. Levantou-se e começou a procurar o interruptor.
Nem sequer teria pensado que aquele hotel tivesse electricidade, mas descobriu o interruptor e, quando o ligou, o ventilador começou em movimento. O ar que levantava aliviou a sensação de asfixia e Sallie voltou a deitar-se na cama.
Tentou ler novamente, contudo, não parava de pensar em Rhy e, de repente, começou a chorar. Espantada, mas incapaz de conter as lágrimas, afundou a cabeça na almofada e soluçou até que o peito começou a doer-lhe e os olhos se tornaram vermelhos de tanto chorar. Chorar por Rhy? Há sete anos, jurara a si mesma que ele não voltaria a fazê-la chorar e pensava que deixara para trás todas as suas fantasias com ele, contudo, vê-lo a abraçar Coral fora para ela um golpe tremendo. Seria sempre assim tão parva com os homens? Já chorara uma vez por Rhy, portanto voltar a fazê-lo era uma perda de tempo.
Devia estar contente por ter visto Coral antes que Rhy tivesse conseguido enganá-la por completo. Para ser sincera consigo mesma, era a sua própria fraqueza diante dele que lhe permitia responder às suas carícias e desejá-las ardentemente, mesmo sabendo que era uma idiota por ceder. E, subconscientemente, de certo modo esperava que as coisas entre eles funcionassem. No entanto, tinha de enfrentar a verdade de uma vez por todas: as razões de Rhy para desejar que voltassem a ser um casal não eram de carácter emocional, mas físico. O sexo entre eles era satisfatório. Mais do que satisfatório, pois cada um sabia como enlouquecer o outro e não era algo pensado, era inato nos dois. Talvez por isso se sentissem tão atraídos fisicamente.
Não evitara sempre ir para a cama com outros homens porque sabia que não poderiam comparar-se a Rhy? Provavelmente, com ele não lhe acontecia o mesmo com outras mulheres, já que o apetite sexual de Rhy era demasiado forte e premente, mas não havia dúvida de que sentia uma fraqueza por ela. No entanto, o sexo não era suficiente. Amava Rhy e queria que ele lhe correspondesse. Não podiam passar a vida na cama, tinha de haver mais alguma coisa.
Limpou as lágrimas e procurou alguma coisa para fazer. Ler não serviria. Oxalá tivesse trazido o manuscrito!, lamentou-se. Contudo... podia escrever à mão e depois passar tudo a computador quando chegasse a casa! Sabia que escrever seria terapêutico e que a ajudaria a superar a dor que sentia.
Nunca ia a lado nenhum sem vários cadernos na mala, portanto tirou um e sentou-se na cama. Apoiou o caderno no joelho, já que não havia nada que pudesse servir de mesa. Obrigou-se a recordar onde deixara a história ao partir de Nova Iorque e, ao fim de alguns minutos, a escrita começou a fluir. E então Rhy voltara a abandoná-la? Tinha-se a si mesma, ao seu talento e à sua integridade. Aprendera a viver sem Rhy e fora uma estupidez ficar na revista depois de saber que ele a comprara. Era vulnerável a ele, sempre fora, contudo, sabia que não lhe permitiria recuperar a posição central que noutra época tivera na sua vida.
Mas e se tivesse um filho? A ideia surgiu de repente e Sallie deixou cair o lápis e pousou uma mão na barriga. Fez algumas contas e pensou que era muito possível, até provável. No entanto, agora seria diferente, pois já não a horrorizava estar sozinha. Ficaria encantada por ter a possibilidade de criar uma criança sozinha. Desejava ter um filho, tê-lo entre os seus braços. Não chegara a pegar no seu filho, pois tinham-no levado imediatamente e apenas vira de relance a sua carinha azulada. Outro filho... De repente, desejou que assim fosse, desejava-o ardentemente. Talvez não pudesse ter Rhy, porém, podia ter um filho dele e dar-lhe o amor que Rhy não queria para si.
Na manhã do dia do baile, Sallie estava extremamente nervosa. Em parte, era a consequência de ter estado dois dias fechada naquele quarto tão pequeno e, em parte, devia-se a ter de ver novamente Rhy. Tinha a certeza de que ele não partira e de que estava à espera que ela emergisse à superfície no baile. Estaria furioso... Muito furioso.
Sallie vestiu o vestido de seda de cor lilás que escolhera para o baile e viu que dava aos seus olhos um tom violeta. Aplicou um pouco de sombra de olhos da mesma cor do vestido, que dava ao seu olhar um ar misterioso, e apanhou o cabelo num coque que enfeitou com um gancho com três borboletas de ametista.
Já estava quase na hora do seu táxi, portanto calçou os sapatos de salto alto e agarrou na mala, já que não regressaria depois do baile. Desceu com cuidado pela estreita escada, pois não queria torcer um tornozelo. O dono do hotel estava sentado à direita da escada e levantou-se quando a viu descer. Percorreu-a de cima a baixo com o olhar e Sallie reparou que ficava tenso. Tinha a incómoda sensação de que aquele sakaryano não se importaria de ter um harém e que ela seria a primeira concubina!
- É perigoso andar sozinha por esta parte da cidade. Acompanho-a ao táxi, sim? - perguntou no seu francês rudimentar.
- Obrigada - respondeu ela e reparou que daquela vez não se oferecia para lhe levar a mala, contudo, agradeceu que a escoltasse até ao táxi, apesar de este estar à sua espera a escassos metros da porta do hotel. O taxista sorriu e abriu-lhe a porta.
Na porta de entrada para o recinto do palácio, teve de sair do táxi, já que o condutor não estava autorizado a entrar. Procuraram o seu nome na lista de convidados e um guarda escoltou-a até ao palácio e guardou a sua mala num pequeno armário antes de a conduzir para a enorme sala decorada para o baile.
Embora fosse cedo, já tinham chegado algumas pessoas. As mulheres tinham vestidos de sonho e estavam cobertas de jóias. Sallie entusiasmou-se ao ver que também havia um certo número de muçulmanos entre os convidados. Tinha a certeza de que nem todos, entre os que estavam vestidos de forma tradicional e os que vestiam um fato à ocidental, eram sakaryanos. Provavelmente, Rhy saberia quem eram. E também havia algumas mulheres muçulmanas, bem vestidas, tranquilas, que olhavam à sua volta com os seus grandes olhos pretos. Teria gostado muito de falar com elas e fazer-lhes perguntas sobre as suas vidas, contudo, tinha a sensação de que a sua curiosidade não seria muito bem recebida.
De repente, Sallie sentiu um formigueiro na face esquerda e pôs uma mão na maçã do rosto. Então, compreendeu o que acontecia. Virou a cabeça e deparou-se com o olhar furioso de Rhy. Os seus olhos pareciam de vidro e o seu queixo, como se estivesse esculpido em granito. Sallie levantou o queixo e virou-lhe as costas. Ele dirigiu-se para ela com a ferocidade de um animal que se lança sobre a sua presa.
Ela ficou onde estava e sentiu de repente que a agarrava pela cintura. Os seus dedos não a apertavam, contudo sabia muito bem que a segurariam com firmeza se tentasse fugir.
- Posso saber onde te meteste? - resmungou uma voz zangada.
- Noutro hotel - informou ela com toda a naturalidade. - Disse-te desde o começo que não queria retomar o nosso casamento e estava a falar a sério.
- Aceitaste dar-nos três dias - recordou-lhe ele.
- Claro. E teria aceitado roubar um banco só para que parasses de me vigiar. E então? - levantou a cabeça e olhou para ele directamente nos olhos. - Eu menti-te e tu mentiste-me a mim. Estamos empatados.
- Quando é que eu menti? - perguntou com brusquidão.
- Mentiste-me sobre Coral - dedicou-lhe um sorriso glacial. - Não te entra na cabeça que não me importo que tenhas estado com outras mulheres? - era a maior mentira que dissera na sua vida. - Mas não suporto que me mintam. Portanto foste praticamente um monge, não é verdade? Devo acreditar que Coral te seguiu até aqui, a chorar desconsolada, e que não há nada entre vocês além de uma relação puramente platónica?
- Não sei como descobriste que Coral... - começou a dizer com impaciência, mas ela interrompeu-o.
- Segui-te. Sou intrometida por natureza. A curiosidade é inerente a qualquer jornalista. Foi assim, meu querido marido, que vi como consolavas a tua amante e a levavas para o seu quarto. E ainda ficaste com ela algum tempo, porque se tivesses voltado imediatamente, ter-me-ias apanhado quando ia...
- Se a acompanhei ao quarto, a culpa é tua resmungou e os seus dedos apertaram o pulso de Sallie. - Eu não lhe pedi que viesse nem te menti. Ela não é minha amante, nunca fui para a cama com ela, mas quando começou a chorar, comecei a pensar se não terias razão quando disseste que estava apaixonada por mim. Não tinha pensado nessa hipótese porque Coral também saía com outros homens e eu saía com outras mulheres, mas havia sempre a possibilidade de tu teres visto algo que me escapava. Pensei que lhe devia uma explicação, portanto acompanhei-a ao seu quarto para lhe contar sobre nós. E quando um quarto de hora depois voltei para o nosso quarto, encontrei aquele bilhete! Tive vontade de te matar, Sallie. Quase enlouqueci de preocupação estes dias.
- Já te disse que sei tomar conta de mim murmurou ela. Perguntava-se se seria verdade tudo o que lhe contara. Não se atrevia a acreditar. Conhecia demasiado bem Rhy e conhecia a força das suas necessidades sexuais.
Não puderam continuar a falar porque naquele momento o rei de Sakarya, Sua Majestade Abu Haroun ai Mahdi, fez a sua entrada. Toda a gente se inclinou e as mulheres fizeram uma reverência, incluindo as americanas. O rei parecia agradado. Não era tão alto como outros sakaryanos, contudo, o seu porte orgulhoso e o seu olhar revelavam a confiança em si mesmo de alguém cuja família estava há quinhentos anos a governar um país. Deu as boas-vindas aos seus convidados num inglês perfeito, depois em francês e, por último, em árabe.
Sallie pôs-se em bicos de pés para o ver melhor e, por um instante, o seu olhar cruzou-se com o do monarca. Depois de um segundo de hesitação, ele saudou-a com uma inclinação de cabeça e esboçou apenas um sorriso tímido. Ela correspondeu-lhe com outro, quente e amistoso. Depois, um grupo de pessoas interpôs-se entre eles e perderam-se de vista.
- Gostaste dele - observou Rhy com os olhos semicerrados.
- Apenas sorri - defendeu-se, contrariada. Parecia que estava a acusá-la de alguma coisa.
- O teu sorriso é um convite, querida - replicou ele, arrastando as palavras.
Rhy ia estar o dia todo a provocá-la, disse para si Sallie.
- Não está na hora de começar o desfile de moda? - perguntou. Esperava que isso distraísse um pouco Rhy, para que ele deixasse de a perturbar.
- Falta meia hora - respondeu e empurrou-a para a sala onde o desfile ia acontecer.
Vários dos melhores estilistas do mundo tinham acedido a emprestar as suas criações a Marina para a ocasião. Havia várias filas de cadeiras de ambos os lados dapasserelle e metade já estava ocupada. As convidadas, elegantemente vestidas, riam-se e conversavam enquanto os seus acompanhantes olhavam com interesse.
Então, surgiu uma ideia na mente de Sallie.
- Coral vai desfilar? - perguntou a Rhy com um murmúrio.
- Claro - confirmou com voz severa.
- Então é melhor procurarmos lugar - disse com brusquidão. - Suponho que não o queiras perder por nada do mundo.
Ele apertou-lhe o braço com força.
- Cala-te, por favor!
Antes que ela pudesse protestar, arrastou-a para fora da sala. Perguntou algo a um guarda que, por alguma razão, o cumprimentara marcialmente, e este deu-lhes passagem para um pequeno quarto. Rhy empurrou-a lá para dentro e fechou a porta.
- Para que serve este quarto? - apressou-se Sallie a perguntar, tentando distraí-lo do seu aborrecimento, fingindo um grande interesse.
- Não sei nem me interessa - respondeu Rhy. Falava com uma voz tão rouca que mal se entendia o que dizia. Então, dirigiu-se para ela e no seu rosto adivinhavam-se as suas intenções.
Sallie recuou alarmada, porém, ele aproximou-se imediatamente.
Não disse nada, limitou-se a abraçá-la e a beijá-la com tanta ânsia que ela se esqueceu de resistir. Teria sido inútil, em qualquer caso, pois ele era muito mais forte e apertava-a com tanta firmeza que os corpos de ambos estavam juntos da cabeça aos pés. Sallie sentiu um arrepio e entregou-se ao seu abraço.
Vários minutos depois, Rhy afastou a sua boca da dela e contemplou a cara corada de Sallie, plena de amor.
- Não me fales de outras mulheres! - ordenou-lhe com voz grave. O seu fôlego acariciava os lábios de Sallie. - Nenhuma mulher me excita como tu, mesmo quando não é essa a tua intenção, minha bruxinha. Desejo-te, quero fazer amor contigo agora mesmo - concluiu com um gemido e inclinou a cabeça, esfregando os seus lábios contra os dela.
- Não... não podemos - sussurrou Sallie, mas com pouco convencimento. A paixão que ardia em Rhy também estava acesa nela e, se ele tivesse insistido, não teria sido capaz de resistir. No entanto, Rhy conservava algum sentido da realidade e afastou-a de si com as mãos trémulas.
- Eu sei, bolas! - suspirou. - Imagino que será melhor voltarmos, se queres ver o desfile... E nem mais uma palavra sobre Coral - avisou-a.
Sallie estava a tentar fazer desaparecer os restos de batom à volta da sua boca e ofereceu-lhe um lenço para que ele fizesse o mesmo. Rhy aceitou. Depois de se limpar, sorriu ao ver que o lenço ficara cheio de manchas vermelhas.
- O que disseste ao guarda? - perguntou ela. Precisava de falar de algo corriqueiro, algo que relaxasse a tensão.
- Que estavas prestes a desmaiar - respondeu ele. - E a verdade é que estavas muito pálida.
- E agora? - quis saber e tocou nas faces com a mão.
- Não. Agora parece que acabaste de ser beijada.
Quando se sentaram para ver o desfile, Sallie continuava alterada e sentia que o desejo ainda pulsava nas suas veias. Estava demasiado perto de Rhy, tão perto que sentia o calor do seu corpo e chegava até ela o cheiro a almíscar da sua pele. O seu coração batia com força dentro do peito e mal prestou atenção às modelos que desfilavam. Apenas Coral captou a sua atenção. A modelo não parava de olhar para Rhy como se quisesse devorá-lo com o olhar. A sua boca perfeita sorria, era um sorriso sensual que parecia destinado unicamente a ele. Sallie olhou para Rhy pelo canto do olho e viu que a sua expressão permanecia inalterável, contudo, apercebeu-se de que tinha o queixo um pouco tenso, e isso era bastante eloquente. Olhou novamente para Coral com um aperto no estômago.
O programa era muito completo. Depois do desfile, celebrava-se um jantar beneficente. Depois, havia um baile e a actuação de um famoso cantor americano. As horas passavam e Sallie tinha a sensação de avançar debaixo de água. Rhy não se afastava dela, porém, Sallie não conseguia esquecer a expressão da sua cara quando vira Coral.
Porque permitia que Rhy a atormentasse daquele modo? Não se iludia em relação a ele e já decidira o que ia fazer; assim que regressassem a Nova Iorque, ir-se-ia embora. Não conseguia libertar-se da profunda tristeza que a embargava e bebeu mais champanhe do que era aconselhável, mas não se apercebeu até que tudo começou a andar às voltas e teve de se agarrar ao braço de Rhy.
- Já chega - disse ele com delicadeza, tirando-lhe a taça da mão e deixando-a em cima da mesa. - Devias comer alguma coisa, talvez um pouco de bolo. Vamos.
Certificou-se de que comia alguma coisa e vigiou-a enquanto o fazia. De facto, a sua preocupação era terna.
Quando Sallie se sentiu melhor, sorriu como agradecimento.
- Quanto tempo falta para a entrevista? murmurou.
- Já não falta muito, querida - animou-a, como se reparasse que se sentia infeliz.
Finalmente, tudo acabou e Sallie e Marina reuniram-se num dos quartos da ala privada do palácio que o rei lhes permitira utilizar.
- É encantador - explicou Marina, referindo-se ao monarca. - Eu acho que é tímido, embora tente disfarçar. E, claro, como lhe ensinaram desde pequeno a ignorar as mulheres e mostrar apenas um interesse físico nelas, custa-lhe lidar connosco, apesar de ter recebido uma educação britânica.
- O teu marido andou na mesma escola? perguntou Sallie, pensando que não parecia que Zain tivesse nenhum problema com as mulheres.
- Não, mas a sua atitude também seria susceptível de melhoras nesse aspecto - disse com alguma ironia não isenta de regozijo. - Sabes que tinha um harém? Obriguei-o a renunciar a tudo isso antes de lhe dizer o ”sim” - explicou com um ar satisfeito.
Sallie ficou boquiaberta e depois desatou a rir-se.
- Um harém? Ainda existem essas coisas?
- Claro que sim. Porque é que achas que nas famílias reais dos países árabes há tantos príncipes e princesas? A religião muçulmana permite aos homens ter três mulheres e todas as concubinas que quiserem e Zain tinha a sua selecção de concubinas para se distrair à noite.
- E como o convenceste a renunciar ao harém?
- Dei-lhe a escolher entre ficar comigo e ficar com o seu harém, mas deixei-lhe claro que não tinha intenção de o partilhar com ninguém. Não gostou da ideia, mas finalmente percebeu que a mente ignorante de uma ocidental não conseguia aceitar a poligamia.
As duas amigas desataram a rir-se às gargalhadas. Naquele momento, Rhy e Zain entraram no quarto.
- Pensei que era uma conversa séria – comentou Rhy e avançou até se sentar junto a Sallie.
- E eu pensava que era confidencial - replicou esta.
Nos lábios fortes de Zain apareceu um sorriso.
- Não fomos capazes de resistir - explicou. Apresentei Rhy a Sua Majestade - disse e fez um movimento circular com os ombros, como se estivesse cansado. Então, desatou a rir-se ao recordar. - Parece-me que alguns diplomatas ficaram um pouco ciumentos, porque o rei e o teu marido estiveram um bom tempo a falar em voz baixa e ninguém ouvia o que diziam.
- Provavelmente, o Departamento de Estado tentará fazer-me um interrogatório - acrescentou Rhy.
Então, Sallie aproveitou o momento.
- Como é que conheceste Rhy? - perguntou a Zain com naturalidade.
- Rhy salvou-me a vida - respondeu Zain sem hesitar, mas não acrescentou nenhuma explicação e Sallie arqueou o sobrolho.
- Não precisas de saber detalhes - brincou Rhy. - Estávamos ambos onde não era suposto estarmos e quase nos custou a vida. Não faças mais perguntas, Sallie. Conta-nos antes como é que Marina e tu se conheceram.
- Isso não é nenhum mistério - Marina encolheu os ombros. - Na universidade. Não tem nada de estranho. E agora porque não se vão embora? Como vamos falar à frente de testemunhas?
Os dois homens riram-se, contudo não fizeram menção de sair, portanto a entrevista transformou-se numa conversa a quatro. Na verdade, teria sido impossível excluí-los. Rhy não estava ali para entrevistar ninguém, mas o jornalista que havia nele surgiu imediatamente e quis intervir. Sallie estava admirada com a sua forma de formular perguntas a Zain. Algumas eram directas, exigiam respostas precisas; outras, mais vagas, permitiam ao seu interlocutor escapar e responder a elas como desejasse. Para lhe agradecer a sua consideração, Zain mostrava-se claro nas suas respostas e Sallie sabia que o que estava a ouvir era pura dinamite. O marido de Marina contava a Rhy coisas que provavelmente muitos chefes de estado ignoravam e parecia acreditar plenamente que Rhy saberia discernir o que podia contar na revista e o que devia omitir.
Lentamente, Sallie começou a entender como funcionava a mente do homem responsável pelas finanças de uma economia em eclosão e que, a pouco e pouco, ia introduzindo o seu país na modernidade. Era um aventureiro, mas leal ao seu país. Talvez por isso o rei tivesse depositado tanta confiança no seu jovem Ministro da Economia e, por isso também, permitisse que Sakarya se alinhasse com os interesses ocidentais.
Marina representava um papel que em nenhum modo era menor. Se Zain exercia grande influência sobre o rei, Marina exercia o mesmo poder sobre o seu marido. Sallie perguntava-se se este seria capaz de o admitir; um homem que até há pouco tempo tinha um harém não estaria disposto a admitir, nem sequer a si mesmo, que a sua esposa tinha um papel destacado no rumo da política externa de Sakarya. Nem o rei ficaria feliz ao ouvir que Marina tinha uma influência indirecta nas decisões reais. No entanto, aquela mulher tão bonita e sorridente, tão apaixonada pelo seu marido, tinha um papel importante num xadrez político que poderia ter consequências mundiais, dependendo de quem, como e quando obtivessem acesso ao petróleo sakaryano.
Finalmente, a conversa tornou-se mais geral e Marina perguntou se Sallie poderia voltar a visitá-la durante aquele ano. Sallie abriu a boca para aceitar o convite, contudo Rhy antecipou-se.
- Este Outono terei de ir à Europa gravar um documentário - disse, - e Sallie irá comigo. Ainda não tenho as datas, mas quando soubermos, dizemos.
- Não te esqueças - rogou Marina. - Agora quase nunca nos vemos. Quando eu vivia em Nova Iorque, conseguíamos ver-nos pelo menos uma vez por mês.
Sallie não fez nenhum comentário, porém, pensou que Rhy dava por garantidas demasiadas coisas. Iria ter uma bela surpresa quando ela se fosse embora e desaparecesse para sempre!
Já era muito tarde quando finalmente abandonaram o palácio e, como tinham pouco tempo para chegar ao aeroporto à hora do seu voo, Zain fez com que uma escolta os acompanhasse para lhes abrir caminho. Sallie e Rhy entraram na limusina de Zain e, ao chegarem ao aeroporto, fizeram o check-in e embarcaram directamente, sem pausas.
Rhy esteve calado durante o caminho todo e também não falou quando ocuparam os seus lugares no avião. Por ela, óptimo!, pensou Sallie. Estava cansada e não tinha vontade de discutir. Era inevitável, sempre que discutiam, ele ganhava. Ela era demasiado impulsiva, demasiado imprudente e incapaz de controlar o seu génio, enquanto Rhy planeava com antecipação todos os seus movimentos.
Quando levantaram voo, as hospedeiras começaram a distribuir almofadas e mantas aos passageiros. Sallie pensou que poderia tentar dormir um pouco, já que era tardíssimo. Então, pôs as costas do seu banco para trás.
- Estou cansada - disse a Rhy. - Boa noite.
Ele virou a cara e os seus olhos atravessaram-na. Depois, encostou também o seu assento, passou-lhe um braço pelos ombros e atraiu-a para si para que apoiasse a cabeça no seu ombro.
- Passei duas noites em branco, sem saber onde estavas - resmungou aquelas palavras junto ao ouvido de Sallie enquanto a agasalhava com a manta. - Dorme agora que voltaste - obrigou-a a levantar a cabeça e a sua boca pousou sobre a dela. Foi um beijo possessivo que durou o suficiente para que ela lhe retribuísse.
Depois, Rhy recostou-se nas costas da cadeira e voltou a pôr a cabeça de Sallie sobre o seu ombro. Ela agradeceu a possibilidade de esconder a cara, que ardia pelo beijo que acabavam de partilhar. Porque tinha de ser tão fraca, tão tonta? Porque não conseguia permanecer indiferente quando ele lhe tocava?
Depois daquele beijo, Sallie tinha a certeza de que não seria capaz de adormecer, contudo, adormeceu imediatamente e só acordou uma vez durante todo o voo, quando mudou de posição e Rhy voltou a agasalhá-la. Ela abriu os olhos e viu que a cabina de passageiros estava na penumbra. Então, olhou para Rhy.
- Não consegues dormir?
- Estava a dormir - murmurou. - Oxalá estivéssemos sozinhos.
Puxou-a para a aninhar mais contra si e Sallie não teve nenhuma dúvida da razão pela qual desejava tanto estar sozinho com ela. Os beijos de Rhy tornaram-se mais exigentes, procuraram a sua boca várias vezes, até que, frustrado, murmurou um palavrão e deixou que ela afastasse a cabeça.
- Posso esperar - resmungou. - Embora não muito.
Sallie recostou-se no seu ombro e mordeu o lábio para sufocar as palavras de amor que tinham estado prestes a sair da sua boca. As lágrimas queimavam-lhe os olhos. Amava-o! Doía-lhe tanto que queria gritar. Amava-o, contudo, não podia confiar nele.
Mudaram de avião em Paris, tal como tinham feito à ida, e como os dias que tinham passado em Sakarya não tinham sido precisamente de descanso, a fadiga e a falta de sono deixaram marcas nos dois. Quando finalmente aterraram no JFK, Sallie tinha uma terrível dor de cabeça e, a julgar pelo cansaço e a tensão que se reflectiam nos olhos de Rhy, ele não estava muito melhor. Se tivesse começado uma discussão, Sallie teria ficado histérica, porém, Rhy indicou ao taxista que a deixariam em casa primeiro e, ao chegar à frente do seu edifício, disse-lhe ”adeus” e partiu sem sequer lhe dar um beijo de despedida.
Embora fosse contraditório, Sallie teve vontade de começar a chorar. Conduziu a sua mala até ao seu apartamento e esvaziou-a iradamente. Tomou um duche rápido e deitou-se. No entanto, ficou furiosa ao dar-se conta de que o sono se esquivava. Recordou a sensualidade dos beijos sonolentos de Rhy e como se sentira protegida aninhada no seu ombro, entre os seus braços. Encolerizou-se e chorou amargamente e, finalmente, adormeceu.
Contudo, quando na manhã seguinte acordou, tinha as ideias claras. Rhy ia enlouquecê-la e, se não se fosse embora naquele momento, como planeara, ele conseguiria vencê-la pelo cansaço. Iria trabalhar, transcreveria a entrevista com Marina e iria calmamente apresentar a sua demissão a Greg. Depois, voltaria para casa, faria os preparativos necessários para a sua partida, faria a mala e entraria num autocarro qualquer. Não lhe importava onde a levasse.
Vestiu-se e apanhou o autocarro para ir trabalhar. Chegou um pouco tarde porque havia um ligeiro engarrafamento, devido a um acidente. Quando entrou na redacção, as conversas cessaram de repente e fez-se silêncio. Sallie tinha a sensação de que toda a gente se virava para olhar para ela à sua passagem. Corou sem saber muito bem porquê e correu para o seu cubículo. Lá, encontrou Brom, concentrado, a trabalhar, no entanto, quando ela se sentou, parou e virou a cadeira para olhar para ela.
- O que se passa? - perguntou Sallie com um sorriso. - Tenho alguma coisa na cara?
Em jeito de resposta, Brom inclinou-se e virou para ela a placa de madeira com o seu nome que repousava na parte da frente da sua secretária. Em vez de ”Sallie Jerome”, ali dizia ”Sallie Baines”. Ela deixou-se cair na cadeira e ficou a olhar para a placa como se fosse mordê-la de um momento para o outro.
- Parabéns - felicitou-a Brom. - Grande viagem!
Sallie não conseguia pensar em nada para dizer, continuava com o olhar cravado na placa. Evidentemente, fora colocada naquela manhã e perguntava-se quais seriam os motivos de Rhy para o fazer. Sentia que estava a apertar o cerco à sua volta e talvez ela tivesse esperado demasiado tempo para fugir. No entanto, já não havia remédio, a sua integridade profissional não lhe permitia ir-se embora sem entregar a entrevista com Marina.
- E? - perguntou Brom. - É verdade?
- Que somos casados? - inquiriu ela com crispação. - Se quiseres acreditar que sim...
- E o que significa isso?
- Significa que o facto de duas pessoas serem casadas pelo registo civil não significa que sejam realmente marido e mulher - brincou. Não o leves demasiado a sério.
- Olha, não se pode estar meio casado ou casado às vezes. Ou és casada ou não és casada disse com exasperação.
- É uma história longa - naquele momento, o telefone tocou e salvou-a das perguntas de Brom. Atendeu, disfarçando um suspiro de alívio.
- Sallie Jerome.
- Nada disso - resmungou Greg no seu ouvido. - Sallie Baines. O teu marido pôs tudo em pratos limpos e tirou-me um peso de cima. Se chegasse a descobrir que eu sabia, teria ficado numa situação muito delicada. Agora a coisa é entre vocês os dois.
- O que queres dizer? - perguntou com voz cansada. O que mais fizera Rhy para tentar encurralá-la?
- Só isso, linda. No que me diz respeito, já não és uma das minhas melhores jornalistas. És a mulher do chefe.
Dominada pela cólera, Sallie esqueceu que tinha a intenção de apresentar a sua demissão.
- Quer dizer que não vais atribuir-me mais trabalhos?
- Exacto. Fala directamente com ele. Se queres gritar com alguém, para isso é que ele é teu marido. E, pelos vistos, está desejoso de se reconciliar contigo.
- Não quero nenhuma reconciliação - respondeu, tentando controlar o seu aborrecimento e falando em voz baixa para que Brom não a ouvisse. - Mas aceitaria encantada uma carta de recomendação. Vais escrever-me uma?
- Não posso. Agora já é do conhecimento público que és mulher dele e ele é o chefe - limitou-se a dizer Greg. - E deixou muito claro que qualquer assunto relacionado contigo precisa da sua autorização.
- Ah, sim? - perdeu as estribeiras. - Eu terei algo a dizer a esse respeito, não te parece?
Bateu com o auscultador contra o telefone e olhou para ele fixamente. Depois, virou-se irritada para Brom, que levantou as mãos num gesto brincalhão para dar a entender que se rendia e começou a trabalhar novamente.
Sallie esperava que a qualquer momento Rhy a mandasse subir ao seu escritório, e não conseguia decidir se queria vê-lo ou não. Seria um alívio poder libertar a sua raiva e desforrar-se aos gritos, contudo, sabia que Rhy se aproveitaria da sua falta de autocontrolo e a provocaria para que lhe revelasse os seus planos. O melhor que podia fazer era completar o seu relatório e partir. Conhecia as suas fraquezas e o seu temperamento e Rhy conseguia alterar aquelas suas duas características. O sensato era não permitir que nem a sua fraqueza nem o seu temperamento dirigissem os seus actos.
Tentou concentrar-se, porém, nunca lhe fora tão difícil. A sua mente estava ocupada, pensando no que devia arrumar na mala, o que tinha de realizar para deixar o apartamento, para onde iria... E, no meio de tudo isso, de repente, surgia a imagem de Rhy, nu, a olhar para ela com desejo e a aproximar-se dela. Começava a recordar as suas carícias e tremia. Desejava-o. Porque não subira com ela ao seu apartamento na noite anterior? Sim, claro, estavam os dois cansados, esgotados, irritáveis, mas mesmo assim... Como podia ser tão estúpida! Mais uma vez, tornara-se viciada no sexo com Rhy. Seria muito difícil esquecê-lo, esquecer a doçura que a devorava quando estava entre os seus braços. A manhã passou e Sallie decidiu continuar a trabalhar durante a hora de almoço, porém, os seus planos caíram por terra quando Chris apareceu à frente da sua mesa. Ele pestanejou ao ler o nome que estava escrito na sua placa. Levantou-a, observou-a atentamente e depois voltou a deixá-la no lugar sem fazer nenhum comentário.
- Podes escapar alguns minutos? - perguntou calmamente, mas Sallie apercebeu-se imediatamente da tristeza que havia na sua voz, talvez porque ela também estava muito deprimida, o que a tornava mais receptiva ao sofrimento de outros.
- Está na hora do almoço - respondeu sem hesitar. Virou a cadeira e levantou-se. - Onde queres ir?
- Ficará incomodado? - perguntou Chris e Sallie entendeu a quem se referia.
- Não - mentiu e sorriu. - Além disso, não lhe vou pedir permissão.
Chris não voltou a dizer nada até que chegaram à rua e começaram a andar entre a multidão de pessoas que, tal como eles, caminhava, apressada e faminta, em busca de um lugar onde almoçar. Levantou a cabeça e olhou para o sol com as pálpebras entreabertas.
- Estão realmente casados? Não é fácil organizar um casamento tão depressa, a menos que seja em Las Vegas.
- Casámo-nos há oito anos - admitiu ela e não quis olhar para Chris porque reparou que este lhe lançava um olhar inquisitivo. - E estivemos sete anos separados.
Continuaram a andar em silêncio. Depois, Chris pegou na mão dela e apontou para um café. Qualquer sítio servia. Entraram e sentaram-se a uma mesa para dois. Sallie não tinha fome, portanto pediu um sumo de laranja e uma salada. Aparentemente, Chris também não tinha muito apetite, porque quando lhe trouxeram a comida continuou a beber café e permaneceu a olhar para a sandes de atum que repousava no prato.
- Portanto, voltaram a juntar-se... - começou a dizer.
Sallie abanou a cabeça.
- Isso é o que ele quer.
- E tu não?
- Rhy não me ama - disse com tristeza. - Está apenas empenhado em demonstrar que consegue recuperar-me. Como te contei no outro dia, a única coisa que quer é brincar um pouco. Não se importa se isso me destrói a vida. Já arruinou a minha carreira. Disse-me que se certificará de que ninguém me dê um emprego como jornalista.
Chris soltou um palavrão, coisa que fazia poucas vezes. Sallie olhou para ele, surpreendida, e viu que a indignação acendia nos seus olhos faíscas douradas.
- Como pode fazer-te uma coisa dessas? murmurou.
Ela encolheu os ombros com uma indiferença fingida.
- Diz que tem medo de que me aconteça alguma coisa. Que não suportaria pensar que estou em perigo, a cobrir uma revolução, por exemplo - quantas vezes ele próprio o fizera, deixando-a a tremer de preocupação?
- Isso consigo entender - disse Chris e um sorriso atrevido surgiu no seu rosto. - Tenho de admitir que, às vezes, eu também me preocupo que possa acontecer-te alguma coisa e não sou casado contigo...
- Mas tu não és capaz de deixar o teu trabalho por Amy - recordou-lhe bruscamente. - E eu não o deixarei por Rhy, se puder escolher. Ele está a encurralar-me, Chris. Quer que eu ceda.
- Tu ama-lo.
- Mas tento não amar. Embora até agora não tenha tido muito sucesso - abanou a cabeça. Vamos esquecer-nos de mim. As coisas com Amy continuam na mesma?
Chris inclinou ligeiramente a cabeça para um lado.
- Continuo apaixonado por ela e continuo a querer que nos casemos, mas ela só se casará comigo se deixar as reportagens no terreno. E quando penso em fechar-me num emprego de escritório, das nove às cinco, fico com suores frios.
- Não podes ceder? Olha para Greg, ele fê-lo pelos filhos.
- Mas não pela mulher - assinalou Chris. Teve de a perder para decidir afastar-se. Se ela ainda estivesse viva, tenho a certeza de que ele continuaria a cobrir notícias pelo mundo fora.
Era verdade. Sallie suspirou e desviou o olhar da cara de Chris. Era mais difícil recusar um pedido a uma criança do que a um adulto. As crianças consideravam as coisas apenas do seu ponto de vista e não conseguiam entender que as necessidades dos seus pais deviam ser tão importantes como as suas. Não sentiam vergonha se tivessem de reclamar com clareza o que queriam enquanto os adultos se continham, recuavam, controlavam-se para não pressionar demasiado, porque sabiam que ninguém lhes devia nada e que, portanto, era inútil exigir. Embora ela tivesse pedido; noutra época, exigira a Rhy que deixasse o seu emprego para estar com ela. E não conseguira nada. Rhy deixara-lhe claro que não era da sua responsabilidade fazê-la feliz, que cada um tinha a sua própria vida. Portanto, pensou Sallie, não podia oferecer a Chris nenhuma esperança, nenhuma solução, porque também não encontrava uma para o seu próprio dilema. Fizessem o que fizessem, seriam sempre infelizes.
- Vou partir - disse em voz alta e olhou para Chris, horrorizada, porque não tinha intenção de contar os seus planos a ninguém.
Ele apercebeu-se de que a confissão lhe escapara sem querer.
- Não te preocupes, não direi a ninguém garantiu. - Além disso, pensei que farias algo do género. Tens razões de sobra para fazer o que achas que deves fazer, apesar de ser doloroso. Vais cortar amarras. Oxalá eu fosse capaz de fazer o mesmo.
- Conseguirás quando estiveres preparado. Não te esqueças que eu tive sete anos para me habituar a estar sem Rhy - esboçou um sorriso triste. - Até me tinha convencido a mim mesma de que já não havia nada entre nós, mas não foi muito difícil para Rhy acabar com este conto de fadas.
- Vou conseguir esquecer Amy - disse Chris com serenidade e no seu rosto surgiu uma expressão de resignação. - Suponho que não tenho outro remédio.
Regressaram em silêncio para o escritório e, quando entraram no elevador, Chris pôs o dedo no botão que mantinha as portas fechadas enquanto olhava fixamente para Sallie.
- Dá-me notícias tuas de vez em quando pediu. - Oxalá me tivesse apaixonado por ti, Sal
- pôs-lhe uma mão no pescoço e inclinou-se ligeiramente para a frente até que os lábios de ambos se tocaram.
Os olhos de Sallie encheram-se de lágrimas. Sim, porque não podia ser Chris em vez de Rhy?
Não podia prometer-lhe que lhe telefonaria, embora gostasse de o fazer. No entanto, depois de partir de Nova Iorque, não podia arriscar-se a fazer nada que desse alguma pista a Rhy sobre o seu paradeiro. Saiu do elevador sem desviar os olhos dele e disse-lhe adeus. Em seguida, regressou à sua mesa e continuou a trabalhar.
A certeza do ”agora ou nunca” proporcionou-lhe a concentração de que precisava e, em menos de uma hora, mandou o seu trabalho acabado para Greg. Levantou-se e esticou-se para relaxar a tensão muscular. Depois, pegou na sua mala com naturalidade e saiu do edifício sem dizer adeus a ninguém, como se saísse para fazer uma entrevista, quando na verdade não tinha intenção de regressar. Lamentava ter de partir sem dizer nada a Greg, contudo, este deixara claro que devia lealdade a Rhy e Sallie sabia que o informaria imediatamente da sua demissão.
Por precaução, levantou o cheque que tinha na mala há dias. Tinha de partir e fazê-lo o quanto antes.
Quando chegou ao seu apartamento eram já três e meia. Abriu a porta e sentiu um arrepio sem saber porquê. Olhou para os móveis e reparou que havia algo diferente. Olhou à sua volta e apercebeu-se de que várias coisas tinham desaparecido: os seus livros, um relógio antigo... Ladrões!
Correu para o seu quarto e viu, espantada, que estava vazio. As portas dos armários estavam abertas e dentro deles não havia nada. Os seus cosméticos e os artigos de higiene pessoal tinham desaparecido da casa de banho, incluindo a escova de dentes. Todos os seus pertences tinham desaparecido! Completamente pálida, regressou ao quarto a correr e viu horrorizada que o manuscrito também não estava onde o deixara. Tinham levado até o seu manuscrito!
Um ruído fez com que se virasse. Enfrentaria os ladrões se estes tivessem voltado, contudo, era a sua senhoria que estava à porta.
- Parecia-me ter-te visto - disse a senhora Landis alegremente. - Estou muito contente por ti. És uma rapariga linda e sempre me perguntei quando irias casar-te. Tenho muita pena que te vás embora, mas compreendo que estejas desejosa de começar a viver com o teu lindo marido.
Sallie sentiu um frio no estômago.
- ”Marido”? - repetiu fracamente.
- É a primeira vez que conheço um famoso continuou a senhora Landis. - É muito simpático e disse-me que já preparou tudo para que este fim-de-semana venham buscar os móveis, portanto poderei voltar a arrendar o apartamento dentro de pouco tempo. Pareceu-me muito atencioso da parte dele tratar de tudo para que não tivesses de faltar ao trabalho.
Sallie, que já conseguira recuperar o domínio de si, conseguiu sorrir à senhora Landis.
- Claro - reconheceu com os punhos apertados. - Rhy é muito atencioso!
No entanto, ainda não tinha vencido!
Estava tão zangada que não conseguia parar de tremer. Não sabia o que fazer e entrou num autocarro qualquer. Desejava violentamente torcer o pescoço a Rhy. Roubara-lhe as suas coisas, a roupa e tudo o resto, o que já era grave, mas poderia ultrapassá-lo. No entanto, havia algo a que não podia renunciar, o manuscrito, e também não sabia como o recuperar. Nem sequer sabia onde Rhy vivia e o seu número de telefone não estava na lista telefónica.
Tinha de encontrar um sítio para passar a noite, portanto saiu do autocarro. Estava calor e passeou pelas ruas cheias de gente até que se cansou e escolheu um hotel à sorte. Pediu um quarto e permaneceu sentada na cama, incapaz de resolver como devia agir. A sua mente saltava de um pensamento para outro, tentando encontrar um modo de recuperar o manuscrito sem ter de voltar a ver Rhy. Para isso, primeiro tinha de descobrir onde vivia e, para o conseguir, tinha de lhe telefonar, coisa que queria evitar.
O ladrão que lhe roubara o manuscrito conseguira paralisá-la, como se também lhe tivesse tirado a sua capacidade de agir. Pensou por um momento em voltar a começar do zero, contudo, sabia que não conseguiria reescrever a história exactamente igual, pois não se recordava dos detalhes nem de cada frase tal como a escrevera. Chorou, consumida pela raiva e pelo desespero. Quando finalmente se decidiu a telefonar a Rhy para o escritório, deu-se conta de que já era demasiado tarde e de que ninguém estaria na revista.
Portanto, a única coisa que podia fazer era esperar. Tomou banho, deitou-se na cama e ligou a televisão. Adormeceu sem a desligar e acordou de madrugada, com o ruído do ecrã, quando a programação acabou.
Estava morta de fome. Mal comera à hora do almoço e não jantara nas duas noites anteriores. A dor de estômago tornou-se agonizante. Deitada na cama, adoptou a postura fetal e começou a chorar. Como se atrevera Rhy a fazer-lhe algo do género!
Mas ele atrevia-se a tudo e ela já o comprovara. Adormeceu novamente e quando acordou, perto das dez da manhã, tinha uma forte dor de cabeça. Tomou outro banho e vestiu-se. Depois, respirou fundo várias vezes e sentou-se junto ao telefone. Não podia evitá-lo, tinha de falar com ele.
Antes que a coragem a abandonasse Sallie marcou o número da revista e perguntou pelo senhor Baines. Amanda atendeu e ela deu-lhe os bons dias antes de lhe pedir que passasse para Rhy.
- Claro, disse-me para passar a chamada assim que telefonasses - respondeu Amanda alegremente.
Sallie estava prestes a gritar de nervos enquanto esperava.
- Sallie - quando ela ouviu a sua voz, rouca e aveludada, quase deu um salto. - Onde estás, querida?
Sallie engoliu em seco.
- Quero que me devolvas o manuscrito! exclamou severamente.
- Perguntei-te onde estás.
- O livro... - começou a dizer ela novamente.
- Esquece o maldito livro! - gritou com voz áspera.
Sallie não aguentou mais. Sentiu um nó na garganta ao tentar conter as lágrimas que lutavam por sair. Engoliu em seco, contudo teve de conter mais um soluço e, no final, desatou a chorar, incapaz de se controlar.
- Tu... roubaste-mo - acusou-o entre lágrimas. As suas palavras eram praticamente ininteligíveis. - Sabias que era algo de que não conseguiria desprender-me e roubaste-mo. Odeio-te, sabes? Odeio-te!
- Não chores - disse com voz rouca. - Querida, por favor, não chores. Diz-me onde estás e irei buscar-te agora mesmo. Recuperarás o teu livro, prometo.
- As tuas promessas não valem nada! - exclamou ela e enxugou as lágrimas, que lhe corriam pelas faces, com as costas da mão.
Ele deixou escapar um suspiro de impaciência.
- Olha, vais ter de me ver se queres recuperar o teu livro. É a única coisa que tenho para te fazer repensar e penso aproveitar-me disso. Podemos almoçar juntos...
- Não - apressou-se ela a responder, olhando para as calças velhas e para o top que vestia. Não, não estou bem vestida.
- Então podemos almoçar em minha casa decidiu ele bruscamente. - Vou telefonar à senhora que se ocupa da casa para lhe dizer que nos prepare alguma coisa. Encontramo-nos lá ao meio-dia e meia e assim poderemos falar calmamente.
- Não sei onde vives - respondeu ela, rendendo-se ao inevitável. Sabia que cometia um erro indo a casa dele e que devia esquecer o manuscrito e começar novamente, mas não conseguia. Fosse qual fosse o risco que corria ao tentar recuperá-lo, não queria seguir em frente sem o seu livro.
Ele deu-lhe a morada e indicou-lhe como lá chegar.
- Estás bem? - perguntou antes de desligar.
- Sim - respondeu Sallie com desolação e desligou o telefone.
Levantou-se, escovou o cabelo e viu, horrorizada, a imagem que o espelho reflectia. Estava pálida, tinha os olhos vermelhos e a roupa enrugada. Não podia permitir que Rhy a visse naquele estado, mas a única coisa que tinha na mala era um batom!
Não era verdade, tinha dinheiro e havia várias lojas no andar de baixo do hotel. Entrou no elevador e comprou um vestido branco, de Verão, com um estampado de flores, e umas sandálias brancas de salto alto.
Noutra loja, adquiriu um conjunto de maquilhagem e um perfume e voltou a subir para o seu quarto. Maquilhou-se para apagar os rastos da preocupação e da inquietação das últimas horas e vestiu o vestido de algodão. Como não tinha tempo para se pentear, deixou a cabeleira solta.
Apanhou um táxi para chegar a casa de Rhy, pois estava demasiado nervosa para entrar num autocarro em hora de ponta. Quando chegou à frente do edifício de apartamentos, consultou o relógio e viu que chegava com alguns minutos de atraso. Pagou ao taxista, correu até ao elevador e carregou no botão.
Assim que tocou à campainha, a porta abriu-se e Rhy apareceu à sua frente. O seu rosto era inexpressivo.
- Desculpa o atraso... - começou Sallie a dizer para tentar esconder o seu nervosismo.
- Não faz mal - interrompeu-a ele e desviou-se para a deixar entrar. Tirara o casaco e a gravata. Tinha alguns botões da camisa desabotoados, por onde apareciam alguns caracóis dos pêlos que lhe cobriam o peito. Os olhos de Sallie contemplaram a sua pele morena, tão masculina, tão viril e, sem se dar conta, humedeceu os lábios com a língua. Só de o ver a sua coragem enfraquecia!
Os olhos de Rhy estavam escuros como o carvão.
- És uma feiticeira... - murmurou e começou a desabotoar os restantes botões da camisa, tirou-a e deixou-a cair no chão. Os raios do sol, que penetravam pelas amplas janelas, incidiam no seu peito e nos seus ombros e reflectiam as gotas de suor que humedeciam a sua pele.
Sallie recuou, pois queria fugir para não sucumbir ao desejo de tocar naquela pele, de sentir os músculos de aço dos braços de Rhy, contudo, cometeu o erro de levantar os olhos para ele e o desejo palpitante que viu nos seus paralisou-a.
- Desejo-te - sussurrou ele, enquanto avançava para ela. - Agora.
- Não vim para isso! - protestou Sallie e tentou, em vão, afastar-se.
Os braços de Rhy rodearam-na e atraíram-na contra o seu corpo seminu. Ela começou a tremer ao sentir o poder erótico que Rhy exercia sobre ela. O cheiro da sua pele, o calor do seu corpo e a sua vitalidade vibrante apoderaram-se dela e atordoaram-na até que se esqueceu que devia empurrá-lo.
Rhy apoderou-se da boca de Sallie. Os seus beijos devoravam-na e exigiam resposta. Deixaram-na sem forças, de modo que não opôs resistência quando as mãos trémulas de Rhy começaram a mexer-se sobre o seu corpo e a explorar os lugares que tão bem conheciam. Sallie levantou os braços e pô-los à volta do seu pescoço, beijando-o também e entregando-se ao seu próprio desejo, que ardia no seu interior e a devorava.
Permaneceu agarrada a ele, a tremer, quando Rhy levantou a cabeça para recuperar o fôlego. O sorriso que surgiu fugazmente nos lábios dele revelava que tinha consciência do seu triunfo e da capitulação de Sallie. Com movimentos lentos e suaves, como se não quisesse assustá-la, abriu-lhe o fecho do vestido e deixou-o cair aos seus pés. Sallie limitava-se a olhar para ele em silêncio; o desejo nublava os seus olhos azuis. Não conseguia resistir, não conseguia pensar, apenas sentir. Sentir e corresponder. Amava Rhy e era inútil negá-lo a si mesma.
Pelo menos, o seu desejo era correspondido. Era vagamente consciente de que Rhy estava a tremer, que todos os músculos do seu poderoso corpo tremiam enquanto a pegava ao colo e a levava para o quarto. Pô-la na cama e deitou-se junto a ela ao mesmo tempo que lhe tirava a roupa interior para que nada se interpusesse entre eles. Ele também não conseguia disfarçar o seu desejo, tal como acontecia com ela. Sussurrava-lhe palavras e frases desconexas que faziam com que Sallie se agarrasse a ele enquanto se afundava cada vez mais na maré de sensações que ele despertava nela.
Quando o mundo começou a recuperar novamente o seu sentido, Sallie encontrou-se deitada sobre Rhy, enquanto ele lhe acariciava o cabelo, as costas e os braços.
- Não pretendia que as coisas fossem assim murmurou ele com os lábios junto da sua testa.
- Tinha planeado conversar, comer e comportar-me como uma pessoa civilizada, mas assim que te vi parecia que a única coisa importante era fazer amor contigo.
- Isso é a única coisa que sempre te interessou em mim - disse ela sem disfarçar a sua amargura.
Ele dirigiu-lhe um olhar inquisitivo.
- É isso que pensas? Era precisamente sobre isso que queria que falássemos, mas talvez seja melhor comermos alguma coisa antes.
- A comida não terá arrefecido? - perguntou ela. Afastou o cabelo da cara e sentou-se.
- Bife e salada. A salada está no frigorífico e só teremos de aquecer os bifes. Disse à senhora Hermann que tinha o resto do dia livre, portanto ninguém nos incomodará.
- Tinhas tudo planeado, eh? - comentou sem que realmente se importasse demasiado. Começou a vestir-se e ele contemplou-a enquanto o fazia.
- O que se passa? - perguntou Rhy bruscamente. Aproximou-se dela, pôs-lhe uma mão debaixo do queixo e olhou para o seu rosto pálido. - Sentes-te mal?
Claro que se sentia mal, magoada e deprimida depois da explosiva paixão que tinham partilhado. E estupidamente fraca. No entanto, sabia que os seus únicos problemas eram a sua incapacidade para lidar com Rhy e o facto de estar há vinte e quatro horas sem comer.
- Eu estou bem - garantiu, para atenuar a preocupação de Rhy. - Deve ser a fome. Não comi nada desde ontem de manhã.
- Óptimo - resmungou ele. - Precisas de perder alguns quilogramas, já que pesas pelo menos quarenta... Precisas que alguém te vigie e te obrigue a comer, tontinha?
Provavelmente estava a pensar nele, contudo, ela não tinha vontade de discutir. Acabou de se vestir em silêncio e esperou que ele também o fizesse. Depois, foram à cozinha, limpa e organizada. Rhy recusou-se a deixar que ela fizesse alguma coisa e obrigou-a a sentar-se num banco enquanto punha a carne no microondas e punha na mesa duas toalhas individuais, talheres e copos.
Abriu uma garrafa de vinho californiano e comeram em silêncio durante vários minutos, sem que nenhum dos dois dissesse nada. Depois, Sallie, sem levantar o olhar da sua salada, perguntou:
- Onde está o manuscrito?
- No escritório - respondeu ele. - Tens um dom para escrever. Dá gosto de ler.
A cólera apoderou-se de Sallie e levantou bruscamente a cabeça.
- Não tinhas o direito de o ler!
- A sério? - perguntou ele secamente. - Pensava que tinha todo o direito de ler o que estiveste a escrever enquanto devias estar a trabalhar para a revista. Estivemos a pagar-te e tu não escreveste nem uma palavra dos artigos que te foram atribuídos. Se não quisesse ter-te calmamente sentadinha à tua secretária, ter-te-ia posto na rua há muito tempo.
- Se quiseres posso devolver-te até ao último cêntimo que recebi desde que compraste a revista - afirmou. - Mas continuas sem ter o direito de o ler!
- Pára de espernear e de me arranhar, gatinho
- disse Rhy. Começava a divertir-se. - Já o li, portanto não podes fazer nada para o evitar. Em vez de discutir, tenta pensar construtivamente. Tens um manuscrito com grandes possibilidades, mas terás de o polir e isso exige muito trabalho. Precisas de um sítio onde trabalhar sem ser incomodada e a última coisa em que precisas de pensar é em pagar a renda da casa.
- Porquê? - murmurou. - Há milhares de escritores que se ocupam de coisas semelhantes.
- Mas não é o teu caso - assinalou ele. Toda a tua vida gozaste de uma certa segurança económica e estás habituada a isso, mas desde ontem já não estás na folha de pagamentos, portanto a partir desta semana não receberás o teu salário e gastarias as tuas economias num instante. Escrever um livro e encontrar uma editora demora o seu tempo. Ficarias sem dinheiro muito antes de conseguires publicá-lo.
- Não sou uma menina desamparada e não me assusta trabalhar - replicou ela.
- Eu sei, mas porquê preocupares-te com essas coisas quando podes viver aqui, trabalhar no teu livro sem interrupções e guardar as tuas economias?
Ela exalou um suspiro; sentia-se encurralada. Aparentemente, a proposta parecia muito lógica, contudo, sabia que aquela oferta era uma forma de voltar a prendê-la. Se fosse sensata, sairia dali à primeira oportunidade, mesmo que tivesse de sacrificar o manuscrito, contudo, já deixara passar a oportunidade e reconheceu, não sem tristeza, que era demasiado tarde para fugir. Deixara-se apanhar novamente na rede do seu amor por Rhy, apesar de saber que ele lhe correspondia apenas com o desejo físico. Desejava-a e por essa razão queria tê-la por perto, mas o que aconteceria quando voltasse a cansar-se dela? Ir-se-ia embora simplesmente, como já fizera uma vez? Sabia que estava novamente a expor-se a que ele lhe partisse o coração.
- Está bem - respondeu, olhando fixamente para a salada que tinha no prato.
Ele soltou um suspiro.
- É só isso? Sem discussões, sem condições? Não tens perguntas para me fazer?
- Não estou interessada nas respostas - replicou, encolhendo os ombros. - Estou cansada de lutar contra ti e quero acabar o livro. Com excepção disso, nada mais me interessa.
- Realmente sabes como destruir o ego de um homem - murmurou Rhy.
- Foi o que tu fizeste com o meu - respondeu ela com brusquidão. - Não esperes que esteja feliz. Tu conseguiste o que querias, que não trabalhe e que viva contigo, mas não esperes uma adoração cega da minha parte porque não vai acontecer.
- Nunca esperei tal coisa - disse com voz áspera. - E, para que conste, não estou a tentar cortar-te as asas. Opunha-me a que continuasses com o trabalho específico de enviada especial pelas razões que já conheces e o que estou a pedir-te é tempo para estarmos juntos, para tentar fazer com que as coisas funcionem. Se depois de seis meses não nos suportarmos um ao outro, pensarei no divórcio, mas o mínimo que podemos fazer é tentar.
- E se não funcionar, divorciamo-nos? - perguntou Sallie com cautela. Queria ter a certeza.
- Discutiremos o assunto no devido momento. Ela olhou para a expressão implacável de Rhy e apercebeu-se de que não lhe arrancaria uma promessa de divórcio, portanto cedeu pela enésima vez.
- Está bem, seis meses. Mas vou dedicar-me a acabar o livro, portanto não tenciono cozinhar nem engomar nem limpar. Se o que queres é uma dona de casa, vais ter uma desilusão.
- Caso não tenhas reparado, tenho uma boa posição social - disse com ironia. - Não pretendo que a minha mulher se dedique a lavar e esfregar.
Ela levantou a vista e olhou para ele fixamente.
- O que ganhas com esta situação, Rhy? Além de teres companhia na cama, quero dizer, e isso podes conseguir sem necessidade de armar tanta confusão...
Ele entreabriu os olhos.
- Não te parece suficiente? Desejo-te. Deixemos as coisas como estão - murmurou com voz rouca.
Para surpresa de Sallie, o acordo funcionou bastante bem e ambos se adaptaram rapidamente a uma rotina. Rhy levantava-se todas as manhãs e preparava o pequeno-almoço. Depois, acordava-a com um beijo e saía para trabalhar. Ela tomava o pequeno-almoço e passava a manhã toda a trabalhar no escritório. A senhora Hermann, uma mulher gordinha de cabelo grisalho, continuava a tratar da lida da casa e era um modelo de eficiência. Preparava alguma coisa para Sallie comer ao meio-dia e deixava o jantar feito. Saía justamente à hora a que Rhy voltava para casa.
Jantavam e ele contava-lhe as novidades da revista, o que acontecera naquele dia e fazia-lhe perguntas sobre o livro. Ela sentia-se muito confortável com ele, embora a sua relação não chegasse a ser de verdadeira camaradagem. Sallie tinha a sensação de que ambos guardavam algo para si mesmos, mas talvez fosse o normal em duas pessoas de carácter forte. As boas maneiras deviam preponderar para que o tecido da sua frágil convivência não se rasgasse sem solução.
À medida que as semanas passavam e o monte de páginas escritas ia crescendo, os conselhos e a experiência de Rhy eram muito úteis a Sallie. O estilo dela era muito directo e desprovido de complicações, porém, ele tinha a faculdade de chegar ao fundo de uma ideia. Depois de jantar, Rhy lia o que ela escrevera durante o dia e dava-lhe a sua opinião. Se não gostava de alguma coisa, dizia-o, mas deixava sempre claro que, no conjunto, era um bom texto. Por vezes, à luz das críticas que ele apontava, ela atirava várias folhas para o cesto de papéis e começava novamente mas, noutras vezes, defendia o seu texto, convencida de que as palavras utilizadas eram as que melhor convinham ao que queria expressar.
Trabalhava melhor à noite, quando Rhy se sentava com ela no escritório para ler artigos e adiantar algum trabalho em casa, ou para começar a reunir dados e informação para o documentário que tinha de gravar dentro de três meses. Parecia contente, satisfeito. A sua antiga inquietação e desassossego, tal como ela os recordava, tinham desaparecido, como se já tivesse esgotado a sua necessidade de aventura. Ela, o que era ainda mais estranho, também estava contente. A estimulação mental que lhe proporcionava a escrita de um romance era mais do que suficiente para manter a sua imaginação ocupada. Trabalhavam juntos em harmonia e relativo silêncio, quebrado apenas pela campainha do telefone quando Greg telefonava, coisa frequente, ou pelos comentários que ocasionalmente faziam um ao outro.
Depois, quando era tarde, Sallie desligava o computador e deixava Rhy a trabalhar enquanto ela tomava banho e se preparava para se deitar. Por vezes, ele ficava ainda a trabalhar mais uma hora ou duas; outras, retirava-se imediatamente, contudo, sempre que se deitava, abraçava-a e as suas maneiras civilizadas transformavam-se numa explosão de desejo e paixão desenfreada. Sallie pensara que essa paixão iria decrescendo à medida que Rhy se habituasse a tê-la ao seu lado, porém, tal não aconteceu. Ele continuava a desejá-la com força. Por vezes, quando estavam ambos a trabalhar no escritório, ela olhava para o rosto concentrado de Rhy com fascínio. Assombrava-a que pudesse ter um aspecto tão sereno e depois se tornasse tão sensual e apaixonado assim que ela o abraçava e beijava. Aquela ideia rondava a sua mente até que sentia vontade de comprovar se seria capaz de fazer com que Rhy interrompesse o seu trabalho, contudo, ao longo dos anos desenvolvera um profundo respeito pelo trabalho dos outros e nunca o distraía.
Apenas dois incidentes quebraram a harmonia daquelas primeiras semanas. O primeiro aconteceu uma noite enquanto Sallie levantava os pratos do jantar e os metia no lava-loiça. Rhy estava no escritório a ler as páginas que ela escrevera naquele dia, portanto, quando o telefone tocou, foi Sallie quem atendeu.
- Rhy está? Posso falar com ele, por favor? perguntou uma voz de mulher que Sallie reconheceu imediatamente.
- Claro, Coral, vou passar - respondeu. Deixou o auscultador sobre a bancada e foi ao escritório.
Ele levantou a cabeça.
- Quem era? - perguntou com ar ausente enquanto voltava a fixar o olhar nas folhas que tinha na mão.
- É Coral, quer falar contigo - respondeu Sallie num tom espantosamente normal e regressou à cozinha para acabar de a arrumar. A tentação de ouvir a conversa pelo telefone da cozinha tentou-a um instante, contudo, desligou com decisão.
Tentou convencer-se de que não eram os ciúmes que a carcomiam. Coral tinha o sangue-frio de telefonar para sua casa. Continuariam a encontrar-se? Rhy nunca dizia onde nem com quem almoçava e, uma noite por semana, regressava a casa muito tarde. Como Sallie estava absorvida pelo livro, nunca parara para pensar nas razões. Além disso, sabia que no trabalho muitas vezes tinha de prolongar o dia para conseguir fechar a edição.
Coral era tão bonita! Como podia um homem não se sentir lisonjeado pela adoração de uma mulher tão bonita?
Não conseguiria suportar que Rhy e Coral continuassem a encontrar-se, Sallie sabia. Durante algum tempo, convencera-se de que não se importava que Rhy tivesse estado com outras mulheres, porque ela o esquecera, no entanto, agora era diferente. Amava-o e ele derrubara todas as suas barreiras. Vencera-a, porém, ela não admitira em voz alta que o amava. Ele nunca falava de amor, portanto ela também não o fazia.
Como Sallie não voltava para o escritório, Rhy foi à sua procura e encontrou-a sentada na cozinha com as mãos entrelaçadas.
- Não vens? - começou a dizer, mas calou-se ao ver como estava tensa.
- Não posso impedir que continues a encontrar-te com ela - disse Sallie com severidade. A raiva e a dor toldavam o seu olhar. - Mas não permito que telefone cá para casa! Não o aguento!
O rosto de Rhy endureceu e o seu queixo ficou tenso. Foi como se as semanas de convivência educada não tivessem existido. Ao primeiro sinal hostil, ambos perderam a calma, como dois cavalos selvagens que estavam há demasiado tempo presos.
- Não seria melhor que procurasses saber os factos em vez de lançares acusações graves? resmungou Rhy. Aproximou-se dela e olhou para ela, furioso. - Devias ter ouvido pelo telefone se estás assim tão interessada nas minhas actividades. Acontece que Coral me convidou para almoçar com ela amanhã e eu disse-lhe que não.
- Se é por mim, não te prives! - gritou Sallie com aspereza.
Rhy franziu os lábios para esboçar um sorriso.
- Por estranho que te pareça, foi exactamente o que estive a fazer - disse entredentes. - Mas agora, com a tua permissão, vou mostrar-te do que estive a privar-me.
Ela reagiu demasiado tarde. Tentou evitar as suas mãos quando ele a agarrou, porém, rodeou-a com os braços e arrastou-a para o quarto. Sallie torcia-se e esperneava, mas ele era muito mais corpulento e forte e controlou-a. Lançou-a para cima da cama e deitou-se sobre ela. Capturou a sua boca e beijou-a com tanta ferocidade, de um modo tão exigente, que ela deixou de resistir e, sem hesitação, começou a corresponder. Fizeram amor com desenfreio e as suas frustrações afloraram em forma de paixão.
Mais tarde, os dois jaziam deitados e ele acariciava a pele nua de Sallie.
- Não estou a encontrar-me com Coral murmurou junto ao seu cabelo. - Nem com nenhuma outra mulher. A maneira como faço amor contigo todas as noites devia ser suficiente para te convencer - disse com ironia.
- Fiquei furiosa quando ela telefonou - admitiu Sallie. Virou a cabeça e esfregou os lábios contra o ombro suado de Rhy. Reparou como este tremia ao sentir a carícia e que o seu braço a apertava com força contra ele.
- Estavas com ciúmes - acusou-a, satisfeito.
Ela gemeu, zangada novamente, e tentou libertar-se, contudo, ele agarrou-a e a paixão rebentou de novo entre eles até que acabaram por fazer amor mais uma vez.
O segundo incidente foi por culpa dela, reconheceu Sallie. Uma manhã, decidiu ir às compras e era a primeira vez que o fazia desde que Rhy conseguira ”convencê-la” a viver com ele. Precisava de várias coisas e passou uma manhã agradável. Depois, lembrou-se de passar pela revista para ver os seus amigos e, talvez, almoçar com Rhy se ele não estivesse muito ocupado.
Primeiro, passou pelo andar onde antes trabalhava e foi recebida com entusiasmo. Brom estava fora, a cobrir uma notícia e, por um instante, ela sentiu um formigueiro de inveja, contudo, as boas-vindas alegres que os seus colegas lhe dispensaram fez com que esquecesse que já não era um ”passarinho” que voava livremente. Alguns minutos depois, desculpou-se e subiu para ver Greg. Não tinha a certeza de lhe ter perdoado por se ter passado para o lado de Rhy, mesmo que agora vivessem como marido e mulher em relativa harmonia, contudo Greg era um velho amigo e estava apenas a fazer o seu trabalho, portanto Sallie não queria que houvesse distância nem frieza entre eles.
Cumprimentaram-se com alguma reserva, mas recuperaram a sua cumplicidade de sempre numa questão de segundos. Quando se afastaram, Greg comentou que ter um marido a tempo inteiro lhe fazia bem, pois parecia satisfeita.
”Como uma criança”, pensou Sallie com regozijo, enquanto subia para o escritório de Rhy. Continuava a sorrir quando, ao sair do elevador, se deparou com Chris.
- Voltaste! - exclamou ele, encantado, enquanto a segurava pelo braço e a percorria com o olhar. - Estás linda!
Sallie abriu os olhos com consternação quando se apercebeu de que não telefonara a Chris para lhe contar que afinal não se fora embora. Greg sabia, claro, contudo, Greg não era o tipo de pessoa que andasse a dar detalhes da vida dos outros.
- Não cheguei a ir - admitiu com arrependimento. - Rhy apanhou-me.
Chris arqueou o sobrolho.
- Pois não pareces consumida pela dor disse, arrastando as palavras. - Talvez a situação não seja tão má como pensavas?
- Talvez - respondeu, a rir-se. - Greg acabou de me dizer que pareço ”satisfeita” e não sei se devo ofender-me ou não.
- És feliz, querida? - perguntou Chris e o seu tom era amável, desprovido de brincadeira.
- Sou feliz de uma forma realista - respondeu ela, depois de reflectir. - Já não espero o paraíso e sei que, se o que tenho se acabar, também não morrerei.
- Tens a certeza de que acabará?
- Não sei. Vivemos cada dia e conseguimos dar-nos bem, mas quem pode dizer que será sempre assim? Então e tu? Amy e tu...? - interrompeu-se e, ao olhar para ele, viu resignação nos seus olhos e compreendeu que já não estavam juntos.
- Não resultou - Chris encolheu os ombros, agarrou-lhe numa mão e conduziu-a até à janela que havia ao fundo do corredor, longe dos elevadores. - Casou-se com o outro e disse-me que não voltasse a telefonar-lhe.
- Lamento - murmurou Sallie. - Casou-se muito depressa, não é verdade? Não me disseste que pensava fazê-lo no fim do ano?
- Está grávida - informou Chris e, por um instante, o seu rosto mostrou a dor que sentia. Depois, respirou fundo e olhou para Sallie com uma expressão brincalhona, como se estivesse a rir-se de si mesmo. - Acho que o menino é meu. Bom, talvez seja do outro, não sei, mas podia ser meu. Nem sequer tenho a certeza de que Amy saiba, mas não importava. Ter-me-ia casado imediatamente se ela tivesse querido, mas disse-me que eu era demasiado ”instável” para ser um bom pai.
- Casar-te-ias com ela mesmo sabendo que ia para a cama com outro enquanto saía contigo? perguntou Sallie, assombrada. Aquilo era amor, amor a toda a prova.
Ele encolheu os ombros.
- Não sei o que fazia, mas é indiferente. Amo-a e faria qualquer coisa para estar com ela. Se me telefonasse neste momento, iria ter com ela, e o seu marido que fosse passear disse num tom inexpressivo e calmo. Depois, abanou a cabeça. - Não te preocupes - disse e esboçou um sorriso. - Eu estou bem, querida. Não me vou afundar.
- Mas eu preocupo-me contigo! - protestou Sallie fracamente.
- E eu preocupo-me contigo! - Chris sorriu e, de repente, levantou-a no ar. Sallie começou a protestar e ele lançava-a para cima sem a soltar, entre gargalhadas. - Tive muitas saudades tuas - disse com um brilho nos olhos. - Preciso de ti como conselheira sentimental, não confio em mais ninguém...
- Tira as mãos de cima da minha mulher.
As palavras, embora pronunciadas num tom inexpressivo, caíram como pedras e Sallie afastou-se dos braços de Chris, virou-se e viu Rhy, que estava de pé à frente da porta do seu escritório a olhar para eles com os olhos semicerrados. Sallie olhou para as suas mãos; não tinha fechado os punhos, mas estava prestes a fazê-lo. Aquelas mãos podiam bater sem aviso prévio, pois Rhy tinha um aspecto ameaçador. Sallie avançou com naturalidade e interpôs-se entre Chris e Rhy, contudo, ele rodeou-a e dirigiu-se para o fotógrafo. Justamente naquele momento, Amanda saiu do escritório e parou ao ver a cara pálida de Rhy.
Chris não parecia alterado, continuava relaxado, com um sorriso atrevido nos lábios.
- Calma - disse num tom ligeiro. - Não ando atrás da tua mulher. Já tenho problemas suficientes com a mulher de quem gosto sem recorrer à mulher de outro.
Sallie, que se aproximara de Rhy, colocou uma mão no seu ombro e sentiu a rigidez dos seus músculos.
- É verdade - disse com um sorriso enorme que tentava esconder o medo que disparara os batimentos do seu coração. - Está profundamente apaixonado por uma mulher que quer que assente e renuncie às viagens profissionais e estava a contar-me como estão as coisas entre eles. A história parece-te familiar?
- Está bem - resolveu Rhy. Os seus lábios mal se mexeram e ainda tinha a cara paralisada de raiva, porém, disse resmungando a Amanda:
- Vai almoçar. Está tudo bem.
Quando Amanda e Chris se foram embora, Sallie e Rhy ficaram a olhar fixamente um para o outro no meio do corredor. Ele foi relaxando progressivamente.
- Vamos lá para dentro.
Ela assentiu e entrou no escritório. Assim que a porta se fechou, Rhy abraçou-a com tanta força que as costelas de Sallie protestaram de dor.
- Chris e eu nunca saímos juntos - garantiu ela, tentando respirar.
- Eu acredito em ti - Rhy suspirou, enquanto roçava com os lábios a testa de Sallie, a maçã do rosto e o seu olho. - Não consegui suportar ver-te nos braços dele. Não quero que outro homem te toque.
O coração de Sallie começou a pulsar com força. Levantou os braços, rodeou-lhe o pescoço e agarrou-se a ele. Sentiu esperança. A violenta reacção de Rhy não podia dever-se apenas ao facto de ser possessivo; para reagir daquele modo tão desmedido tinha de ter sofrido uma tensão emocional. No entanto, não podia ter a certeza, portanto calou o que ia dizer, as palavras que tinha na ponta da língua: ”Amo-te”. Ainda não podia confessar-lhe, porém, já albergava uma esperança.
- Eh, vinha ver se querias ir almoçar - disse alegremente, depois de levantar a cabeça do ombro de Rhy.
- Não é o que mais desejo - resmungou ele e os seus olhos lançaram um olhar insinuante ao sofá, - mas conformo-me com um almoço.
- Receio que tenhamos provocado um escândalo - disse Sallie num tom alegre quando se dirigiam para o elevador. - Antes do fim do dia, já toda a gente saberá.
Ele encolheu os ombros.
- Não faz mal. Servirá de advertência, caso outro dos teus antigos colegas pense em abraçar-te. Apesar de ser deslocado nesta época, sou um animal territorial e não quero intrusos no meu território.
Sallie sentiu o gelo que lhe percorria o coração. Era tudo o que ela significava para ele, uma parte do seu território? Graças a Deus mordera a língua e não lhe confessara os seus sentimentos! Era uma parva por tentar acreditar nos sentimentos profundos de Rhy, porque ele não os tinha e ela sempre soubera. Era, efectivamente, um homem atrasado para a época, que se guiava por instintos primitivos. Procurava satisfazer as suas necessidades e não perdia tempo com assuntos tão parvos como o amor.
A satisfação que sentiu ao pôr o ponto final no manuscrito ultrapassava todas as sensações que experimentara na sua carreira jornalística. Estava acabado! Já não era um fruto da sua imaginação, existia na realidade, tinha uma identidade. Sabia que ainda faltava muito trabalho: reler, rever, corrigir, reescrever... contudo o romance estava, para todos os efeitos, acabado. Estendeu uma mão e agarrou no telefone pois queria telefonar a Rhy e partilhar com ele aquele momento mas, de repente, sentiu um enjoo e teve de se apoiar nas costas da cadeira.
Foi um enjoo momentâneo mas, quando passou, Sallie ficou imóvel. O impulso de telefonar a Rhy desvaneceu-se. Era a quarta vez que enjoava naquela semana... Claro, como não se apercebera? Embora talvez soubesse durante todo aquele tempo, no entanto não permitira que a ideia emergisse até àquele momento. O livro reclamava toda a sua atenção, toda a sua energia. Dedicara-se de corpo e alma a escrever, porém, assim que o acabara, o seu subconsciente deixara que a ideia da gravidez voltasse a emergir.
Contemplando o calendário de mesa, percebeu que tinha de ter sido naquela primeira noite em Sakarya.
- Espantoso! - murmurou para si.
Fora a primeira vez que fora para a cama com Rhy em sete anos e engravidara imediatamente. Sorriu, como se estivesse a gozar consigo mesma. Depois, o sorriso tornou-se maior e pegou no calendário para contar as semanas. O menino ou a menina nasceria no princípio da Primavera; era um sinal maravilhoso, um novo começo.
O seu filho viveria, estava convencida. Era mais do que uma nova vida, seria outro laço que os uniria e fortaleceria o seu casamento. Ele seria um pai fantástico, muito melhor do que teria sido alguns anos antes. Ficaria encantado com o seu filho.
Então, Sallie franziu ligeiramente o sobrolho. A gravação do documentário estava programada para o mês seguinte e tinham decidido que ela o acompanharia. Talvez ele mudasse de opinião ao descobrir que estava grávida, portanto não lhe diria nada até que regressassem. Não tinha intenção de deixar que partisse sem ela, pois seria como voltar a viver a situação da primeira época do seu casamento e não tinha a certeza de que conseguissem resistir a uma separação prolongada.
Sallie apercebeu-se de que tinha muitas coisas para fazer antes dessa viagem. A primeira e mais importante era ir ao médico e certificar-se de que estava tudo normal e de que viajar não prejudicaria a sua gravidez. Também devia começar a tomar as vitaminas e comprar roupa nova, porque quando começassem a gravar o documentário, certamente a que usava ficaria apertada. Imaginou-se com uma barriga e sorridente. Rhy perdera a sua primeira gravidez, contudo, daquela vez insistiria para que a ajudasse em tudo o que antes tivera de fazer sozinha, como por exemplo levantar-se da cama.
De todas as noites que Rhy poderia ter escolhido para chegar tarde, tivera de escolher precisamente aquela. Telefonou-lhe às cinco horas para lhe dizer que provavelmente só voltaria para casa depois das oito.
- Janta sem mim, querida - disse-lhe. Mas guarda-me alguma coisa quente para quando voltar. Precisarei de mais do que uma’ sandes.
Ela controlou a sua desilusão e ofereceu-lhe a sua ajuda.
- Precisas que te dê uma mão? Sou perita em prazos apertados.
- Não sabes como a tua oferta é tentadora ele suspirou, - mas é melhor continuares a trabalhar no livro e eu irei para casa o mais rápido possível.
- Já o acabei - informou e a sua mão apertou o auscultador. - Portanto tenho tempo - pensara dizer-lhe assim que ele abrisse a porta, contudo não conseguira esperar tanto tempo.
- Acabaste? Por Deus! - parecia aborrecido e Sallie ofendeu-se com o comentário, contudo as palavras seguintes de Rhy devolveram-lhe o sorriso: - Devia levar-te para jantar para celebrar, em vez de ficar a trabalhar. Irei para casa assim que conseguir e poderemos celebrá-lo em privado, não sei se entendes ao que me refiro.
- Pensei que estavas cansado - ela riu-se e ouviu-o a fazer o mesmo.
- Estou cansado, não estou morto - replicou.
- Vejo-te mais tarde.
Ela sorriu e desligou. Jantou sozinha, tomou banho e depois sentou-se no escritório para começar a releitura do manuscrito. À medida que avançava, ia fazendo mudanças e notas nas margens. Era um trabalho absorvente, tanto que, quando ouviu a chave de Rhy na fechadura, ficou espantada com a rapidez com que o tempo passara. Pôs de parte as páginas que estava a ler e levantou-se, contudo, teve de se apoiar na beira da mesa um instante porque voltou a ter um enjoo. Devagar, tinha de se lembrar de se mexer devagar.
Rhy entrou no escritório e a fadiga desapareceu do seu rosto ao ver Sallie com a sua camisa de dormir azul transparente e robe a condizer. Despiu o casaco, tirou a gravata pela cabeça sem desfazer o nó e atirou-a para cima do casaco. Começou a desabotoar a camisa enquanto se aproximava dela.
- Agora entendo o encanto de voltar para casa e ter a mulher à espera em camisa de dormir - comentou, ao mesmo tempo que deslizava os seus braços à volta da cintura de Sallie e ela se punha em bicos de pés para receber um beijo. - É uma injecção de adrenalina.
- Não te habitues - avisou. - Esta noite tomei banho antes porque não tinha mais nada para fazer. Vens muito faminto?
- Sim! - resmungou ele. - Vais fazer-me esperar?
- Referia-me à comida! - Sallie riu-se e foi para a cozinha. - Lava as mãos enquanto ponho a mesa. A comida está no forno.
- Jantarei na cozinha, não precisas de pôr a mesa na sala de jantar.
Ela serviu-lhe o prato na cozinha. Enquanto comia, falaram do livro. Rhy já tinha falado com um agente literário que conhecia e queria entregar-lhe o livro antes de partir para a Europa.
- Mas ainda não está pronto! - protestou Sallie. - Já comecei a fazer mudanças.
- Quero que o entregues o quanto antes - insistiu Rhy. - É um rascunho, portanto ela não espera que esteja cada palavra no seu sítio.
- ”Ela”? - perguntou Sallie, franzindo o sobrolho.
- Sim, ”ela” - brincou Rhy com os olhos brilhantes. - É uma máquina, chama-se Barbara Hopewell e é vinte anos mais velha do que eu, portanto não tires conclusões precipitadas.
Sallie olhou para ele iradamente. Tinha a sensação de que ele lhe preparara aquela armadilha para que tivesse ciúmes e não tinha intenção de lhe fazer a vontade.
- Porque tens tanta pressa? - quis saber.
- Não quero que andes preocupada com o livro quando estivermos na Europa. Contrata uma dactilógrafa ou faz o que for necessário, mas quero que tires o livro da cabeça antes de irmos.
Ela ainda estava ressentida pelo modo como Rhy brincara com os seus ciúmes, como tal, apoiou os cotovelos na mesa e inclinou-se para a frente para lhe devolver o golpe.
- Já pensaste que agora que acabei o livro vou aborrecer-me aqui sentada o dia todo? Terei de começar a procurar um emprego e não andar a passear pela Europa.
Se o que pretendia era irritá-lo, obteve o seu desejo. Rhy ficou pálido, depois, a cólera cobriu as suas faces de rubor. Atirou a faca com força sobre a mesa. Dirigiu-se para ela, agarrou-a pelos braços e obrigou-a a levantar-se.
- Nunca perdes a oportunidade de me provocar, não é verdade? - murmurou asperamente.
Antes que ela pudesse abrir a boca, no caso de querer responder, ele inclinou a cabeça e beijou-a. Sem parar de a beijar, passou-lhe um braço por trás dos joelhos e levantou-a nos braços.
Sallie agarrou-se a ele. O movimento fora brusco e inesperado e tinha a cabeça às voltas; sentia que ia desmaiar. Não entendia por que motivo Rhy se zangara tanto, pois ela só quisera irritá-lo um pouco. Então, beijou-o também e ele respondeu com desejo e levou-a para o quarto.
Alguns minutos depois, ambos descansavam deitados na cama. Sallie estava enroscada sobre Rhy, a desfrutar do calor do seu corpo e ele acariciava-lhe preguiçosamente as costas enquanto lhe beijava o pescoço.
- Não achas que já está na hora de me contares sobre a tua gravidez?
Sallie deu um salto e sentou-se na cama, olhando para ele com os olhos muito abertos.
- Como sabes? - perguntou com perplexidade. - Eu só me apercebi hoje!
Ele pestanejou, como se ela também o tivesse deixado atónito. Depois, afundou a cabeça na almofada e desatou a rir-se às gargalhadas, até que a puxou para que se deitasse outra vez ao seu lado.
- Devia ter adivinhado - disse, enquanto lhe afastava com delicadeza o cabelo da cara. - Estavas tão envolvida com o livro que nem sequer sabias em que dia estavas. Eu sei, querida, porque não sou assim tão tolo e sei contar. Pensei que estivesses a esconder-me a gravidez de propósito porque não querias dar-me a satisfação de saber.
- Ufa, deves pensar que sou uma bruxa murmurou contrariada e virou a cabeça para ele, dando-lhe uma dentada no ombro. Ele gemeu de dor e ela começou a cobrir de beijos a marca que os seus dentes lhe tinham deixado na pele. -Mereceste!
- Dado que estás grávida, não te responderei na mesma moeda - brincou ele e beijou-a nos lábios.
- Na verdade - confessou Sallie alguns segundos depois, - não ia contar-te nada ainda.
Ele levantou a cabeça bruscamente.
- Porquê? - resmungou.
- Porque quero ir contigo para a Europa - limitou-se a dizer. - Receava que me dissesses que tinha de ficar aqui.
- Nada disso. Da outra vez, não estive ao teu lado e agora não tenciono afastar-me de ti nem um dia. E, com a sua permissão, senhora Baines, estarei presente no parto.
O coração de Sallie começou a bater a toda a velocidade. Demasiado emocionada para conseguir falar, afundou a cara no ombro de Rhy e abraçou-se a ele com força. Apesar de tudo o que ele podia ter dito e, sobretudo, pelo que nunca dissera, começava a ter a esperança de que ele a amasse de verdade.
- Rhy... Rhy... - murmurou emocionada. Ele interpretou mal os motivos da sua emoção e acariciou-lhe a cabeça.
- Não te preocupes - murmurou com os lábios no cabelo de Sallie. - Desta vez não acontecerá nada à criança, prometo. Iremos ao melhor ginecologista de Nova Iorque. Vamos ter uma casa cheia de crianças, vais ver.
Ainda abraçada a ele, Sallie pensou que o filho que esperava seria suficiente. Com aquela criança e o amor de Rhy, a sua vida seria completa.
Durante as semanas seguintes, Sallie mal teve um momento de pausa. Tinha de deixar o manuscrito pronto antes de partir e encarregar-se de todos os preparativos, já que Rhy voltava do trabalho muito tarde. O ginecologista garantira-lhe que a gravidez estava a correr perfeitamente, embora ela devesse ganhar um pouco de peso. E mostrara-se a favor da viagem à Europa, desde que ela se lembrasse de se alimentar correctamente.
Nunca fora tão feliz. Quatro meses antes, pensava que Rhy não significava nada para ela e queria libertar-se dele. Às vezes, continuava a irritá-la que fosse tão autoritário e que estivesse sempre a recordar-lhe que era sua mulher, contudo, agora estava mais apaixonada por ele do que estivera há alguns anos, quando era uma adolescente insegura. Os anos que tinham estado separados tinham contribuído para que fortalecesse o seu carácter. Os seus sentimentos eram mais fortes e os seus pensamentos e as suas emoções, mais maduros. Ele comportava-se como se quisesse que estivessem sempre juntos e estava tão orgulhoso do seu futuro filho que às vezes parecia que queria pendurar um cartaz ao pescoço de Sallie para anunciar o seu estado.
O desastre aconteceu, sem aviso prévio, na semana anterior à sua partida. Era um daqueles dias de Outono tirados de um calendário. O céu estava muito azul e o sol era quente, porém, o ar tinha a inconfundível fragrância do Outono que se aproximava. Sallie foi às compras e regressou a casa carregada de sacos. Sentia-se maravilhosamente, os seus olhos resplandeciam e estava radiante. Com um sorriso nos lábios, foi tirando as roupas que comprara.
Bateram à porta e, como estava perto, gritou à senhora Hermann:
-Eu abro!
Abriu e o seu sorriso desapareceu quando viu Coral Williams. A modelo estava muito bonita, como sempre, mas tinha uma expressão atormentada. Sallie perguntou-se se Rhy não estaria enganado e Coral estaria a sofrer por não poder continuar a vê-lo.
- Olá! - cumprimentou-a Sallie. - Entra. Posso ajudar-te em alguma coisa?
- Obrigada - respondeu Coral. Falava tão baixo que a sua voz era quase inaudível. Entrou e ficou de pé junto à porta, indecisa, hesitante. Eu... Rhy está? Telefonei-lhe para o escritório, mas a secretária disse-me que não estava na revista, portanto pensei que se calhar...
Não conseguiu continuar e Sallie sentiu pena. Sabia muito bem o que era sofrer por Rhy. Compreendia Coral, contudo, não ia oferecer o seu marido numa bandeja a outra mulher, mesmo que ele o quisesse.
- Não, não está - respondeu. - Anda muito ocupado porque está a preparar a viagem. Vamos para a Europa.
- Europa!
Coral ficou muito branca. Já era naturalmente pálida e o fato preto que vestia, muito severo, contribuía para realçar as suas maçãs do rosto marcadas e a sua frágil aparência.
- Vai gravar um documentário - explicou Sallie. - Estaremos fora três meses.
- Não... não pode ser! - balbuciou Coral e fechou os punhos.
Um tremor percorreu as costas de Sallie e, de forma involuntária, endireitou os ombros, como se antecipasse o que ia acontecer.
- O que queres de Rhy? - perguntou à queima-roupa.
Coral também ficou em tensão. Era mais alta do que Sallie e olhava para ela de cima.
- Lamento muito, é pessoal.
- Não, não é pessoal. Tudo o que tem a ver com Rhy diz-me respeito. Ele é meu marido, sabes muito bem - concluiu.
Coral fez uma careta de dor, como se Sallie tivesse atingido um ponto fraco. Depois, recuperou-se e disse com rancor:
- Grande marido! Achas que ele alguma vez pensou em ti enquanto estiveram separados? Com Rhy, é verdade o ditado que diz ”longe da vista, longe do coração”. Até me conhecer, saía todas as noites com uma mulher diferente.
Sallie tremeu com o repentino e violento desejo de dar um murro na boca perfeita de Coral. Na verdade, estava a dizer em voz alta o que ela sempre pensara, apesar de desejar acreditar nas afirmações de Rhy que as suas relações com outras mulheres não tinham passado do plano platónico. Apesar de tudo, naquele momento, não tinha nada a reprovar-lhe desde que tinham voltado a viver juntos, pois não havia marido mais atencioso do que ele.
- Eu sei tudo sobre a tua relação com Rhy afirmou com convicção. - Ele contou-me tudo quando me pediu para voltar para ele.
- A sério? - perguntou Coral, furiosa, e a sua voz quebrou-se numa gargalhada. - Duvido. Tenho a certeza de que guardou alguns detalhes!
De repente, Sallie pensou que aquilo era demasiado e abriu a porta para convidar Coral a sair.
- Lamento - disse com firmeza. - Tenho de te pedir que saias. Rhy é meu marido e eu amo-o. Não me importa o que tenha feito no passado. Lamento que o tenhas perdido, mas as coisas são assim e devias enfrentar a realidade. Ele não vai voltar para ti.
- Como podes ter tanta certeza?! - gritou Coral. Perdera o controlo de si e uma expressão de raiva cobria o seu rosto. - Quando ele ouvir o que tenho para lhe dizer, voltará para mim! Deixar-te-á sem te dar sequer uma palmadinha no ombro.
Por um momento, a segurança com que Coral disse aquelas palavras alterou Sallie. Depois, recordou a sua gravidez e apercebeu-se de que Rhy nunca a deixaria.
- Não me parece - disse calmamente. – Estou grávida e a criança nascerá em Março, portanto não acredito que os teus encantos possam igualar este facto aos olhos de Rhy.
Coral cambaleou um pouco, como se fosse desmaiar, e Sallie olhou para ela, alarmada, contudo, a modelo recuperou-se e começou a rir-se. Era uma gargalhada histérica, monocórdica. Enquanto se ria, abraçava a cintura e inclinava-se para a frente, como se achasse hilariante o que Sallie acabava de lhe dizer.
- Incrível! - gemeu quando finalmente recuperou o fôlego. - Oxalá Rhy estivesse aqui. Seria a comédia do ano!
- Não sei ao que te referes - apontou Sallie, tensa. - Mas acho que é melhor saíres - o brilho malicioso nos olhos de Coral incomodava-a e a única coisa que queria era que ela se fosse embora para recuperar a sua serenidade e a sua confiança.
- Não estejas tão segura de ti! - exclamou Coral. - Conseguiste atrair o interesse de Rhy fingindo que não querias nada com ele, mas tenho a certeza de que já te deste conta de que ele é incapaz de ser fiel a uma mulher. Eu entendo-o. Alguns homens são assim e eu amo-o apesar da sua fraqueza por outras mulheres. Estou disposta a consentir as suas aventuras desde que continue a voltar para mim, enquanto contigo dentro de um ano estaria morto de aborrecimento. E não penses que por ter um filho vai mudar!
Sallie olhou para Coral e atrás dela viu a cara redonda da sua empregada, que estava a passar com o aspirador no corredor. A senhora Hermann franziu o sobrolho, preocupada, ao ouvir a desagradável argumentação.
- Fora daqui! - exclamou Sallie bruscamente. Não queria testemunhas da cena que Coral estava a fazer.
- Com muito prazer! - Coral sorriu. - Mas não penses que vais ganhar. As mulheres como tu põem-me doente. Tanta segurança em ti mesma... E sempre a meter o nariz em assuntos que não te dizem respeito, pensando que os homens te vão admirar! Por isso é que Rhy te retirou da lista de enviados especiais. Disse que estavas a fazer uma figura ridícula, tentando provar que eras tão dura como um homem. E agora achas que és especial só porque estás grávida! Não é para tanto, Rhy é especialista em engravidar as mulheres.
Sallie não tinha a certeza de compreender o que Coral dizia, contudo, sentia-se perturbada pelas suas palavras. Ao ver que empalidecia de repente, Coral sorriu satisfeita.
- Exacto. Tu não és a única que está grávida. Eu também estou à espera de um filho e Rhy é o pai. Estou grávida de dois meses, querida, portanto podes dizer o que quiseres sobre como o teu casamento é perfeito. Já te tinha avisado que ele volta sempre para mim!
Coral saiu com a cabeça erguida, como uma rainha. Sem assimilar ainda o que acabava de ouvir, Sallie fechou a porta calmamente e olhou para a senhora Hermann, que estava no outro extremo da sala com a boca aberta.
- Senhora Baines - a criada gemeu com voz carinhosa. - Senhora Baines...
Naquele momento, Sallie compreendeu o que Coral dissera. Estava grávida de dois meses e o pai era Rhy. Isso significava que Rhy não só lhe mentira no que se referia à sua relação com Coral, como também continuara a encontrar-se com ela depois de se terem reconciliado. Horrorizada, recordou todas as noites em que Rhy voltava tarde para casa porque ficava a trabalhar. Nunca pensara em telefonar para o escritório para comprovar se era verdade. Parecera-lhe humilhante fazer algo semelhante, portanto depositara toda a sua confiança nele. E Rhy abusara dela.
Passou pela senhora Herniann a cambalear e entrou no seu quarto, o quarto de Rhy, onde tantas noites felizes tinham passado. Ficou com o olhar cravado na cama e apercebeu-se de que não conseguiria suportar voltar a dormir nela.
Sem pensar duas vezes, tirou a mala do armário e começou a enchê-la com a roupa que comprara para a viagem. Tinha dinheiro e um sítio para onde ir, portanto não havia razão para ficar ali nem mais um minuto.
Parou um instante quando pensou no manuscrito, mas felizmente estava já nas mãos de Barbara Hopewell. Entraria em contacto com ela mais tarde, quando conseguisse pensar outra vez com clareza, quando a dor tivesse substituído a ansiedade que naquele momento a invadia.
Quando saiu com a mala para o corredor encontrou a senhora Hermann.
- Senhora Baines, por favor, não vá assim. Tente falar com o seu marido, tenho a certeza de que haverá uma explicação...
- Provavelmente - reconheceu Sallie, cansada.
- Rhy é muito bom a dar explicações, mas prefiro não saber mais nada. Vou-me embora para algum sítio calmo onde possa ter o meu filho e não quero pensar no meu marido e na sua amante.
- Mas para onde vai? O que vou dizer ao senhor Baines? - hesitou a criada.
- Dizer-lhe? - Sallie pensou um momento, porém, era incapaz de elaborar uma frase que expressasse o seu estado de espírito. - Diga-lhe... diga-lhe o que se passou. Não sei para onde vou, mas acho que nunca mais quero voltar a vê-lo.
Depois de dizer aquelas palavras, saiu pela porta.
Os dias decorriam lentamente. Como um salmão que volta para o lugar onde nasceu para desovar e morrer, ela regressou à cidade onde vivera com os seus pais, onde conhecera Rhy e onde se tinham casado. A casa dos seus pais estava vazia e descuidada. Muitos dos antigos vizinhos tinham morrido ou mudado de casa e Sallie não conhecia as crianças que brincavam na rua. No entanto, apesar de tudo, aquele era o seu lar, portanto instalou-se na casa da sua infância, limpou-a e ordenou-a e comprou os móveis de que precisava. Depois, esperou que o tempo exercesse a sua magia e fosse curando as feridas.
Ao princípio, estava anormalmente tranquila, paralisada por uma sensação de traição, de derrota.
Habituara-se a viver com ele e agora estava novamente sozinha. As noites solitárias eram um peso invisível que a afundava. Não tentou pensar nisso, nem resolvê-lo racionalmente, pois não fazia sentido enlouquecer a pensar em ”se estivesse” ou ”se não estivesse”. Tinha de o aceitar, tal como se Rhy tivesse morrido. Não tinha outro remédio.
Em certo modo, fora isso que acontecera. Perdera o seu marido, uma perda irrevogável, como se tivesse morrido. Sentia-se igualmente vazia, igualmente sozinha. Rhy naquele momento estaria na Europa, no outro lado do mundo e era como se estivesse noutro planeta.
Então, recordou que não estava nem vazia nem sozinha. A criança mexeu-se no seu interior e ela pôs as mãos na barriga, maravilhada com a sensação de ter uma criatura viva no seu interior. O filho de Rhy, uma parte dele. Mesmo que nunca mais voltasse a vê-lo, tê-lo-ia sempre perto. Aquela ideia era ao mesmo tempo dolorosa e reconfortante.
A paralisia inicial desvaneceu-se repentinamente. Uma noite, acordou de madrugada com uma dor que asfixiava todo o seu corpo. Pela primeira vez, chorou e soluçou com a cara afundada na almofada e começou a pensar no que acontecera, tentando compreender os ”comos” e os ”porquês” do comportamento de Rhy. A culpa fora sua? Havia algo nela que induzia Rhy a tentar vencê-la e, depois de conseguir o seu propósito, a perder o interesse? Ou era a personalidade de Rhy, como Coral dissera, a sua incapacidade para ser fiel a uma mulher?
No entanto, isso revelava uma fraqueza de carácter que não assentava em Rhy. Havia muitos adjectivos para o descrever: arrogante, susceptível, obstinado... Contudo, fraco não era um deles. Também teria posto a mão no fogo pela sua integridade profissional e essa integridade não era uma qualidade isolada numa pessoa, restringida unicamente a um campo. A integridade era algo que se manifestava em todos os aspectos da vida de uma pessoa.
Portanto, como podia explicar a sua infidelidade? Não podia e a questão carcomia-a. Obrigava-se a comer pelo bem do menino, mas apesar de tudo estava pálida e magra. Às vezes, acordava a meio da noite com a almofada húmida e desejava tanto que Rhy estivesse ao seu lado que não conseguia voltar a dormir. Nessas ocasiões, perguntava-se por que razão fugira a correr, deixando o caminho livre a Coral. Por que razão não ficara, porque não lutara por Rhy? Ele magoara-a, fora-lhe infiel, mas ainda o amava e a dor que sentia não seria maior se tivesse permanecido ao seu lado. Pelo menos teria o consolo da sua presença e teria podido partilhar com ele o milagre de ver crescer o seu filho. Naquelas horas obscuras da madrugada, por vezes tomava a decisão de fazer a mala de manhã e apanhar o primeiro avião para a Europa, contudo, depois, quando o dia nascia, lembrava-se de Coral e do filho que ela esperava. Talvez Rhy não quisesse que voltasse, pois havia a possibilidade de Coral estar com ele. Coral tinha mais glamour e faria um papel perfeito ao lado de Rhy em público. De facto, era feita para a vida social.
Não era próprio de Sallie mostrar-se tão indecisa, porém, pela segunda vez na sua vida, estava desorientada e, em ambas as vezes, a culpa fora de Rhy. Da primeira vez, reunira finalmente força e traçara um objectivo, contudo, naquele momento era incapaz de pensar além das necessidades da vida diária, não conseguia planear o seu futuro. Comer, lavar-se, dormir...
Não se desleixava, seguia em frente com a sua existência. Lera livros sobre a gravidez e sabia que, em parte, a sua inércia era consequência do seu estado. No entanto, a gravidez não justificava a sua total falta de interesse por tudo o que não fosse o futuro imediato.
À medida que os últimos dias do Outono foram passando e o Inverno se aproximava, apercebeu-se de que em breve seria Natal. Desde a morte dos seus pais, sempre passara aqueles dias sozinha e daquela vez não seria diferente. Contudo, no ano seguinte, prometeu-se, enquanto olhava para uma árvore de Natal decorada na montra de uma loja, que teria uma época festiva como Deus manda. O seu filho ou filha teria nove meses e estaria interessado em tudo o que o rodeava. Enfeitariam a árvore e em baixo dela haveria imensos presentes que fascinariam o menino.
Era um plano um pouco difuso, porém, era o primeiro que fazia desde que deixara Rhy. Pelo bem do seu filho, tinha de seguir em frente. Tinha o seu livro e tinha de telefonar à agente para perguntar se tinha possibilidades de chegar a ser publicado. E também podia começar a escrever outro. Devia procurar os meios económicos suficientes para poder cuidar do menino, ou Rhy apressar-se-ia a pedir a custódia do seu filho. Rhy ia ter outro filho com Coral, no entanto, ela só teria um e nunca renunciaria a ele.
Duas semanas antes do Natal, decidiu-se finalmente a telefonar para o escritório de Barbara Hopewell. Quando Barbara atendeu o telefone, Sallie identificou-se e, antes que a agente pudesse dizer alguma coisa, perguntou se tinham encontrado uma editora para o livro.
- Senhora Baines! - Barbara ficara boquiaberta. - Onde está? O senhor Baines anda louco à sua procura. Sempre que tem um tempo livre, vem da Europa para tentar encontrá-la. Está em Nova Iorque?
- Não - respondeu Sallie. Não queria ouvir falar de Rhy nem da forma desesperante como a procurava. Por estranho que parecesse, sabia que ele teria tentado localizá-la, mesmo que fosse apenas porque estava à espera do seu filho. - Não importa onde estou, a única coisa que quero é falar do livro. Encontrou alguma editora interessada?
- Mas... - Barbara mudou de opinião e respondeu bruscamente. - Sim, temos uma editora que está muito interessada. Preciso que nos reiunamos, senhora Baines, para rever os termos do contrato. Podemos marcar uma reunião?
- Não quero voltar para Nova Iorque - disse Sallie. Só de pensar em voltar sentiu um nó na garganta.
- Então poderei ir eu ter consigo. Só tem de me dizer o lugar e a hora.
Sallie hesitou. Não queria divulgar o seu esconderijo, contudo, também não desejava viajar para se encontrar com a agente. Fez algumas contas e chegou à conclusão de que Rhy ficaria mais um mês na Europa. Barbara dissera que ele voltava sempre que tinha um intervalo nas gravações, mas ela sabia como o trabalho estava planeado e era um programa muito apertado. A questão era que Rhy não poderia partir de um dia para o outro, sem aviso prévio, mesmo que entrasse em contacto com Barbara e esta mencionasse que tinha falado com ela.
- Está bem - aceitou, ainda um pouco renitente, e deu a Barbara a sua morada. Combinaram encontrar-se em sua casa naquela quinta-feira.
Dois dias depois, Sallie sentia-se cada vez mais confiante em que Rhy não encontraria o seu esconderijo. Quando na quinta-feira visse Barbara, faria com que ela prometesse não dizer nada a Rhy; não quisera dizer-lhe por telefone porque sabia que qualquer colaborador de Barbara poderia estar a ouvir a conversa.
À noite não conseguia dormir, pois angustiava-a ter cometido um erro ao revelar o seu paradeiro à agente. Tinha a sensação de que Rhy estava em vantagem, como de costume. Deitada na cama, tensa e incapaz de fechar os olhos, imaginava todas as possibilidades. E se Rhy estivesse em Nova Iorque naqueles dias? E se tivesse estado no escritório de Barbara quando ela lhe telefonara e já estivesse a caminho da sua casa? E se de manhã se levantasse e o encontrasse à porta? O que lhe diria? O que havia para dizer?
As lágrimas lutavam por escapar dos seus olhos e ela esfregou-os para fazer desaparecer a imagem que subitamente se formou na sua mente. Não conseguia parar de ver o rosto moreno de Rhy. Sentiu uma dor profunda e virou-se para um lado. Deixou escapar o choro e afundou a cara na almofada para abafar os soluços.
- Amo-o - gemeu em voz alta.
Os seus sentimentos não tinham mudado e cada dia que passava longe dele era uma eternidade.
De repente, afundada na sua solidão, admitiu a si mesma que queria regressar para junto dele. Queria a sua força, a sua presença e que estivesse fisicamente ao seu lado, mesmo que não a amasse. Queria que lhe segurasse a mão no momento do parto e que tivessem mais filhos. Lembrou-se de Coral e do filho dela, contudo, gradualmente percebeu que o amor que sentia e a necessidade que tinha de Rhy eram mais fortes do que a sua raiva. Teria de o aceitar como era, se quisesse viver com ele.
Finalmente, adormeceu quando quase estava a amanhecer e acordou algumas horas mais tarde com o som da chuva no telhado. O céu estava cinzento e as ruas, desertas e tristes. A neve ainda não caíra e a paisagem ainda não tinha aquele aspecto mágico que ela proporcionava. As árvores já tinham perdido as folhas e os ramos agitavam-se uns contra os outros, como os ossos de um esqueleto. Não havia nada que a animasse a levantar-se, mas mesmo assim levantou-se e tentou distrair-se a trabalhar na possível trama e personagens de outro romance. A segunda vez seria mais difícil, já que da primeira usara as suas próprias experiências e agora teria de extrair tudo da sua imaginação.
A meio da tarde, parou de chover e o ar arrefeceu. Na televisão, anunciaram que naquela noite choveria novamente e que de madrugada nevaria. Sallie fez uma careta. Se as estradas não estivessem em boas condições, talvez Barbara desistisse de viajar até ali e cancelasse a sua reunião. Sentiu-se muito desiludida, pois estava a começar a recuperar o interesse pelas coisas.
Depois de uma hora a andar para cima e para baixo, aborreceu-se. Sentia-se presa em casa. Estava frio e a rua estava molhada, no entanto, pensou que um passeio a ajudaria a esclarecer as ideias e, talvez, a relaxar e dormir naquela noite. E o médico também lhe recomendara que fizesse um pouco de exercício todos os dias. Portanto, um passeio era exactamente o que lhe convinha.
Agasalhou-se bem, calçou botas altas e um gorro de pele que lhe tapava as orelhas. Fechou, o casaco e enrolou o cachecol à volta do pescoço. Quando saiu, o ar frio provocou-lhe um arrepio, contudo, a pouco e pouco, à medida que andava, foi aquecendo e começou a desfrutar de ter as ruas apenas para ela. Estava quase na hora do entardecer e o céu coberto tornava-o mais escuro do que o habitual. O único ruído existente era o das gotas de água que caíam na calçada dos ramos nus das árvores e o dos seus próprios passos. Tremeu novamente, mas dessa vez não foi de frio. O que fazia a andar como uma idiota quando poderia estar a salvo e quente na sua própria casa? E porque estava a fugir de Rhy, se o que realmente queria era voltar a estar nos seus braços?
”Tola”, disse para si e dirigiu-se para a sua casa. ”Tola, tola, tola!” E fraca, além disso. Seria uma idiota se deixasse o caminho livre para Coral. Quando o temporal passasse e a estrada estivesse limpa, voltaria para Nova Iorque e apanharia o primeiro avião para a Europa e, se quando lá chegasse encontrasse Rhy com Coral, mostrar-lhe-ia toda a sua força. Rhy também não sairia incólume da situação, prometeu a si mesma com um brilho belicoso no olhar. Tinha umas quantas coisas para lhe dizer! Afinal de contas, aqueles últimos sete anos não lhe tinham demonstrado que para ela não havia outro homem?
Sallie voltou para trás, caminhando mais depressa daquela vez, e dobrou a esquina. Estava tão imersa nos seus pensamentos que ao princípio não reparou no táxi parado à frente da sua casa. Atraiu a sua atenção a figura de um homem alto que se mexia com a agilidade de um felino e que se inclinou junto à janela para pagar ao taxista. Depois, o táxi reatou a marcha e as luzes vermelhas foram-se perdendo na escuridão. O homem pousou no chão uma mala pequena e permaneceu a olhar para a casa como se estivesse hipnotizado. Não havia nenhuma luz acesa e poderia pensar-se que a casa não estava habitada, a não ser pelas cortinas que cobriam as janelas. Seria isso que Rhy estava a pensar?, perguntou-se Sallie ao mesmo tempo que sentia uma repentina pontada de dor. Que chegara a uma casa vazia?
- Rhy - sussurrou e recomeçou a andar.
O som dos seus passos atraiu a atenção de Rhy e este virou a cabeça como faria um animal selvagem alertado de repente para o perigo. Ficou paralisado um instante e depois começou a andar em direcção a ela com passos decididos. ”Muito próprio dele”, pensou Sallie, tentando não sorrir. Aquele homem nunca hesitava. De facto, mesmo que tivesse metido a pata na poça, mostrava-se sempre seguro de si mesmo.
No entanto, quando se aproximou mais e parou apenas a três passos dela, Sallie mordeu o lábio para não dar um grito. Rhy estava muito diferente e o seu rosto mostrava claramente como sofrera nas últimas semanas. Tinha umas olheiras profundas e algumas rugas que antes não existiam. Estava cansado, claro, e a fadiga acentuava a sua expressão lúgubre, contudo, emagrecera e as maçãs do rosto destacavam-se mais do que antes na sua cara.
Rhy afundou as mãos nos bolsos do seu casaco e ficou a olhar para Sallie, para o seu lindo e delicado rosto e para a sua silhueta arredondada. Ela tremia e desejava lançar-se para os seus braços, porém, ele não os abrira e, de repente, teve medo de que Rhy não quisesse tê-la de volta. Mas então, o que fazia ali?
- É mentira - a voz de Rhy era ainda mais rouca do que o habitual e mexeu os lábios apenas o indispensável quando disse: - Morro sem ti, Sallie. Por favor, volta para casa.
Ela sentiu que uma alegria imensa a invadia e fechou os olhos um momento numa tentativa de dominar as suas emoções. Quando voltou a abri-los, ele continuava a olhar para ela com olhos suplicantes e os lábios apertados, como se esperasse o pior.
- Era justamente o que estava a planear disse ela com voz trémula de alegria. - Acabava de decidir que partiria para a Europa assim que o tempo melhorasse.
Um arrepio visível percorreu o corpo de Rhy. Depois, tirou as mãos dos bolsos e avançou para Sallie ao mesmo tempo que esta se aproximava dele. Rhy abraçou-a com força e ela pôs os braços à volta do seu pescoço, chorando de felicidade. Ele beijou-a, e foi um beijo que confirmava a ambos que estavam novamente juntos, e levantou-a no ar enquanto dava voltas e mais voltas sem deixar de a beijar.
Sem que se apercebessem, começou a chover novamente. Quando Sallie levantou o olhar para o céu e desatou a rir-se, os dois estavam completamente encharcados.
- Que tontos! - exclamou. - Porque não vamos para dentro em vez de ficarmos aqui à chuva?
- O que menos te convém é apanhar uma constipação - resmungou Rhy. Deixou-a no chão e foram para a casa. - Vamos secar-nos e depois podemos falar.
Insistiu para que ela tomasse um duche quente e ele vestiu roupa seca. Quando Sallie saiu da casa de banho, viu que tinha feito café e duas chávenas fumegantes repousavam sobre a mesa.
- Hum, que bom - Sallie suspirou e bebeu um gole.
Rhy sentou-se à mesa e esfregou a nuca.
- Preciso de um café para me manter acordado.
Sallie olhou para ele e viu que estava exausto.
- Lamento.
Ele fez um gesto para afastar a fadiga do seu rosto e os dois permaneceram calados, como se tivessem medo de começar a falar, como se estivessem assustados. Sallie tinha o olhar cravado na chávena de café.
- Chris foi-se embora - disse de repente Rhy sem olhar para ela.
Ela levantou a cabeça.
- Foi-se embora? - repetiu.
- Demitiu-se. Foi Downey que me disse... Não me lembro de quando foi, é tudo tão impreciso... Mas demitiu-se e foi viver para fora de Nova Iorque.
Por um instante, Sallie teve a esperança de que Chris e Amy se tivessem reencontrado, todavia, apercebeu-se de que não fora isso que acontecera. Também ela estivera prestes a perder Rhy. Sentiu uma dor aguda e bebeu um gole de café.
- Imagino que Barbara te tenha telefonado disse sem rodeios.
- Imediatamente - reconheceu ele. - Devo-lhe um favor. Interrompi o programa de gravações para poder apanhar o primeiro avião. De qualquer forma, todos pensam que enlouqueci. Não fiz mais do que ir e vir da Europa cada vez que tinha um intervalo. Enlouqueci - admitiu. Não sabia onde estavas, se estavas bem... Depois do que aquela descarada te disse.
- A senhora Hermann contou-te? - perguntou Sallie. Queria saber se sabia tudo o que se passara com Coral. No seu interior, pulsava uma esperança, pois Rhy dissera que era mentira e, certamente, não parecia sentir-se culpado de nada.
- Palavra por palavra, a chorar como uma Madalena - de repente, estendeu um braço, pegou na mão livre de Sallie e apertou-a com firmeza. - É mentira - repetiu e a sua voz rouca estava carregada de tensão. - Acredita em mim.
Talvez Coral esteja grávida, mas juro-te que eu não sou o pai. Nunca fui para a cama com ela, apesar de ela ter feito tudo o que estava nas suas mãos para que acontecesse.
Aquelas palavras perturbaram Sallie. Parecia sincero.
- Nunca? - repetiu com incredulidade. Rhy corou.
- Nunca. E o ego dela não o suportava. Não podia conceber que eu não quisesse ir para a cama com ela, nem sequer quando lhe contei que era casado e que nenhuma mulher me atraía tanto como a minha esposa - disse, olhando para ela fixamente. Sallie corou e apertou-lhe a mão com mais força. - Acho que por isso é que ela te odiava - continuou, sem desviar os seus olhos dela. - Tentou separar-nos, magoar-te. Se calhar não foi lá a casa com a intenção de te dizer o que disse, mas deve ter improvisado. Se realmente estiver grávida, provavelmente queria pedir-me dinheiro para abortar. Uma gravidez é o fim da carreira de uma modelo.
- Mas Coral tem dinheiro, não? Não me parece que precise de to pedir.
- Não é bem assim - murmurou. - Gosta da boa vida e gasta tudo o que ganha, não poupa nada. Gosta de jogar e deixa muito dinheiro nos casinos de Las Vegas e Atlantic City - explicou.
- E porque é que saías com ela se não estavas interessado nela? - quis saber. Aquele era o ponto fraco da história de Rhy, já que o vira com Coral várias vezes e não era assim tão parva para pensar que a única coisa que tinham feito era passear.
- Porque eu gostava da companhia dela - respondeu. - Não posso dar-te provas de fidelidade, Sallie, porque não as tenho. Só posso dizer-te que Coral e eu nunca fomos amantes, nem sequer antes de tu e eu nos termos reencontrado.
- Tenho de acreditar nisso? - inquiriu com voz tensa.
- Claro - respondeu ele com um tom firme.
- Tal como eu acredito que tu não saíste com ninguém. E tu também não tens nenhuma prova.
Sallie apoiou na mesa a mão que tinha livre e riscou um desenho com o dedo sobre a toalha.
- Nenhum homem me interessava - admitiu, embora odiasse revelar-lhe aquele segredo. - Portanto nem me incomodava em sair para jantar ou ir ao cinema.
- E tu és a única mulher que me interessou nestes oito anos - respondeu ele. Levantou-se e começou a dar voltas pela cozinha, inquieto. Sentia-me como um idiota. Não podia entender porque estava tão encantado contigo, que naquela época eras um ratinho tímido. Não teria aguentado as cenas que fazias com nenhuma outra mulher. No entanto, continuava contigo e esperava que em algum momento crescesses e compreendesses que precisava do meu trabalho. Tu disseste-me que estavas viciada nas viagens e nas emoções fortes e era isso que me acontecia naquela época. Era um viciado... Na verdade, eu não tencionava deixar-te de forma definitiva, só queria dar-te uma lição. Queria que me pedisses para voltar, mas não o fizeste. Seguiste em frente como se não precisasses de mim para nada. Até me devolveste o dinheiro que te enviei. Portanto, eu enterrei-me no trabalho e jurei a mim mesmo que te esqueceria e às vezes dizia-me que tinha conseguido. Eu gostava de sair com outras mulheres, mas quando as coisas começavam a ficar sérias... bloqueava, era incapaz de ir mais longe e isso deixava-me furioso. Lembrava-me de como as coisas eram entre nós e não queria conformar-me com menos.
Sallie olhava para ele fixamente, assombrada, e ele cravou os olhos nela e olhou para ela iradamente, como se tivesse feito algo terrível.
- Ganhava muito dinheiro - prosseguiu o seu relato, contendo o seu aborrecimento. - Muito dinheiro. Comprei umas acções que depois subiram e tornei-me rico. Não tinha necessidade de me pôr na linha de fogo para conseguir uma reportagem e arriscar-me a ficar sem cabeça perdeu o seu encanto. Comecei a desejar poder dormir todas as noites na mesma cama e admiti finalmente que, se ia partilhar essa cama com uma mulher, essa mulher tinhas de ser tu. Comprei a revista e comecei a procurar-te, mas tinhas partido daqui há muitos anos e ninguém sabia nada de ti.
- Procuraste-me? - perguntou, maravilhada, com os olhos muito abertos. Isso significava que Rhy não se esquecera dela durante todos aqueles anos. - E agora também andaste à minha procura?
- Parece que se tornou um hábito – tentava brincar, porém, a sua expressão era demasiado tensa. - Não pensei em procurar-te aqui. Telefonei para os jornais mais importantes das grandes cidades, porque pensei que provavelmente estarias à procura de um emprego. Disseste várias vezes que não conseguias estar sem fazer nada, que te aborrecias, e pensei que quererias começar a trabalhar o quanto antes.
- Sim, pensei que me aborreceria muito, mas a verdade é que não - admitiu. - Tinha o livro, claro, mas, sobretudo, tinha-te a ti.
A cara de Rhy iluminou-se e olhou para ela com curiosidade.
- Dificultou muito a situação, senhora disse com ironia.
- Não tinha alternativa - afirmou ela. - Da noite para o dia transformei-me na tua empregada e isso dava-te muito poder sobre mim.
- Não vais acreditar - disse asperamente, mas da primeira vez que te vi, com aquela trança que se mexia de um lado para o outro e ricocheteava no teu rabo, foi como se me tivessem derrubado. Apesar de nem sequer ter visto a tua cara, já sabia que te desejava. Pensei que era uma brincadeira do destino encontrar uma mulher de que gostava justamente quando tinha começado a procurar a minha esposa, mas sentia-me demasiado atraído para renunciar a ti. E depois encontrei-me contigo no corredor e reconheci-te. A misteriosa rapariga da trança era a minha própria mulher. Tinhas mudado tanto que, se não fosse pelos olhos, não te teria reconhecido e deixaste bem claro que eu não te interessava. Passei oito anos sem conseguir esquecer-te, sem conseguir estar com outra mulher... E tu não querias saber!
- Claro que queria saber! - interrompeu-o e levantou-se. Estava a tremer, contudo não queria que ele ficasse com a ideia de que não a afectava. - Mas não queria que voltasses a magoar-me, Rhy. Quase morri da primeira vez e não acreditava conseguir suportá-lo novamente. Estava a tentar proteger-me. Tentei convencer-me de que te tinha esquecido, mas não funcionou - concluiu, baixando a voz.
Ele suspirou e respirou fundo.
- Somos muito parecidos - disse com voz rouca. - Somos muito independentes e tentamos proteger-nos a todo o custo, e vai ser difícil mudá-lo. Mas eu mudei, Sallie. Cresci e preciso de ti mais do que preciso do meu trabalho ou das emoções e das viagens. É difícil reconhecê-lo à tua frente, porque isso dá-te a possibilidade de me magoares. O amor torna-nos vulneráveis e custa muito admitir que amamos alguém. Por isso é que as pessoas tentam esconder que amam alguém quando o amor não é correspondido. Amo-te. Podes destruir-me o coração e partir-me a alma, mas em algum momento teremos de começar a confiar um no outro, Sallie, e eu estou disposto a dar o primeiro passo. Amo-te.
Quando o ouviu, Sallie tentou conter o choro por todos os anos de solidão e dor. Quando levantou a cara, estava pálida e tinha as faces cobertas de lágrimas.
- Eu também te amo - disse com calma. Sempre te amei. Fugia de ti porque me tinhas magoado. Estava insegura e Coral envenenou-me com as suas mentiras, mas hoje tinha decidido que te amava demasiado para te deixar ir, para te entregar a Coral sem lutar. Ia ter consigo, senhor Baines, para lho demonstrar.
- Então - disse ele, também com voz tranquila, enquanto abria os braços, - demonstra-me.
Sallie lançou-se para os seus braços e ele abraçou-a com força. Ela não conseguiu conter as lágrimas e começou a chorar contra o pescoço de Rhy. Ele tentou consolá-la, beijando-lhe as faces e os olhos.
Estavam há demasiado tempo longe um do outro. Os beijos de Rhy tornaram-se mais sensuais e as suas mãos começaram a acariciar o corpo de Sallie. Ela sentiu que o desejo se acendia no seu interior e gemeu. Ele levantou-a nos braços e levou-a para o quarto, o mesmo onde oito anos antes a iniciara na sensualidade das suas carícias. Tal como então, mostrou-se apaixonado e delicado ao mesmo tempo e ela respondeu sem hesitação. As dúvidas tinham desaparecido. Quando satisfizeram o seu desejo, ficaram abraçados um ao outro, saboreando a intimidade do momento. A cabeça morena de Rhy estava apoiada no ombro de Sallie e os seus lábios sonolentos roçavam o seu peito inchado. Os seus dedos acariciaram a barriga ligeiramente pronunciada.
- Tudo bem? Não é perigoso para a criança que façamos amor?
- Não - garantiu Sallie e afundou os dedos nos caracóis da nuca. Não se cansava de o acariciar. Estava encantada por estar ali deitada debaixo dele, longe das viagens e dos riscos.
Rhy estava meio adormecido, contudo, murmurou:
- Eu não quero cortar as tuas asas, o que quero é que todas as noites voltes a voar para casa.
- O nosso amor não me corta as asas. Pelo contrário, dá-me forças - respondeu ela antes de o beijar na testa.
E era verdade. De facto, estava espantada consigo mesma. Para onde tinham ido todos os seus medos, o receio de perder a sua independência? Então, percebeu que o que realmente a atemorizava era voltar a sofrer. O amor de Rhy fazia com que se sentisse mais livre do que nunca, porque se sentia também mais segura. Ele não a prendia, contribuía para a sua força.
- Tens talento - sussurrou Rhy. - Muito talento. Usa-o, querida. Ajudar-te-ei em tudo o que puder, não quero cortar as tuas asas. Apaixonei-me novamente por ti, pela mulher em que te transformaste. Enlouqueces-me quando estás perto e adoeço quando não estás ao meu lado.
Sallie sorriu na escuridão. Aparentemente, todos os cursos intensivos que fizera há alguns anos tinham servido para alguma coisa.
Rhy adormeceu sobre o seu ombro e ela dormiu também, satisfeita e feliz com o seu amor. Pela primeira vez, sentia que a sua relação, a necessidade que sentiam um do outro, era definitiva. Sempre soubera que estava unida a ele por um laço invisível, porém, até àquele dia não se apercebera de que ele sentia o mesmo. Por isso nunca se tinham divorciado, por isso nenhum dos dois tentara fazê-lo. Tinham sido feitos um para o outro e seria assim para sempre.
Linda Howard
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