Criar uma Loja Virtual Grátis
Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


UMA VISITA AO CAMPO / Bernard Shaw
UMA VISITA AO CAMPO / Bernard Shaw

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

Não sendo um «cockney» nato, não tenho quaisquer ilusões sobre o campo. As estradas onduladas e tortuosas, as sebes poeirentas, as valas com os seus cadáveres de cães, ortigas e nuvens de moscas venenosas, os grupos de crianças que trituram qualquer coisa, o camponês boçal e prematuramente envelhecido pelo trabalho, o vagabundo velhaco, os montões de estrume de cheiro nauseabundo, a cadeia de marcos miliários entre duas estalagens ou entre dois cemitérios; por tudo isto eu passo apressado e ansioso de avistar o primeiro poste telegráfico indicando-me estar próximo o comboio salvador. Da estrada do vilarejo à estação do caminho de ferro, vai um salto de cinco séculos, desde a brutal tirania da natureza sobre o Homem até ao domínio organizado deste sobre aquela.
E, contudo, na semana passada, deixei-me persuadir por dois amigos meus, Henry Salt e sua mulher, que não se cansavam de insistir para eu ir passar um «week-end» com eles, nas colinas de Surrey. Salt, um homem de excepcional inteligência em muitos assuntos, é um maníaco pelo campo e possui uma vivenda num buraco chamado Tilford, perto de Farnham, para a qual ele se retira, de tempos a tempos, alimentando-se dos fungos da vizinhança e escrevendo artigos a proclamarem o benefício da dieta e do ar puro. Sem dúvida, o meu amigo nutria a esperança de que Tilford converter-me-ia da rurofobia à rurolatria, e sendo uma companhia agradável para um passeio e uma conversa, consenti, por fim, na experiência, e acedi, mesmo, em ser conduzido ao cume de uma impostura cénica, denominada Hindhead, para dali avistar as planuras da Costa do Sul, a estrada de Portsmouth e, principalmente, o sítio onde três homens foram enforcados por terem assassinado alguém que os induzira a dar um passeio campestre na sua companhia.

 

 

 


 

 

 


Londres estava fresca, limpa e seca quando me dirigi para a estação de Waterloo, apôs ter saído da cama, às sete horas de uma manhã de Domingo. Abrindo um livro, esforcei-me por não olhar para a janela, entre as estações. Depois de termos atravessado um cemitério enorme e um campo imenso, chegámos finalmente, a Farnham. Como é vulgar no campo, chovia a cântaros. Perguntei o caminho para Tilford, e fui informado de que ficava a quatro milhas em linha recta. Como não quisera de forma alguma ofender os sentimentos de Salt, mostrando-lhe a minha suspeita pelo seu paraíso rústico, não trouxera guarda-chuva, e aquele paraíso, é claro, tirava a máxima vantagem de tal omissão. Não sei o que são as planuras da Costa do Sul, mas posso garantir as subidas e descidas das estradas de Surrey. Entre Farnham e Tilford, há, pelo menos, meia dúzia de colinas e nem um só viaduto. Subi as suas vertentes nas pontas dos pés e amassei os calcanhares, ao descê-las, fazendo, a cada passo, um charco de lama pegajosa. À medida que a paisagem se tornava menos hospitaleira, a chuva aumentava a sua violência, reduzindo o meu livro a uma polpa e transferindo o vermelho da capa para o meu já saturado casaco cinzento. Pássaros à prova de água, soltaram de uma vedação, trinados de troça, fazendo-me compreender melhor do que até então, o motivo porque é permitido caçá-los a tiro. Em determinado momento, a estrada passou por um pinheiral, com um gorgeante tapete de musgo húmido, e um aviso proibindo o estacionamento ali, sob pena de punição para os transgressores. Vale bem a pena caminhar trinta milhas, para ter de voltar para trás perante a mesquinhez de um proprietário rural. Já tinha os punhos da camisa colados aos pulsos. Deixando pender os braços, com desconsolo, afim de minorar a desagradável sensação, olhei para as joelheiras das calças e, instantaneamente, as abas do meu chapéu despejaram meio litro de água da chuva tingida de preto. Então não me contive mais e soltei uma daquelas gargalhadas que os condenados ao martírio da roda largavam ao segundo golpe do martelo. Uma milha ou duas mais de marcha forçada por caminhos lamacentos, levou-me aos subúrbios de uma vila, com um rio correndo sobre um leito pedregoso e atravessado por uma ponte construída sob o princípio da arquitectura gótica, isto é: de forma a exigir dos cavalos o máximo esforço, quer a puxar as carroças de um lado, quer a impedir de serem atropelados por elas, quando em sentido contrário, roçam, precipitadamente, uns pelos outros.

Chegara a Tilford, habitada pelo que pude ver, por um único homem e em cujo olhar espantado pude ler, melhor do que o faria num livro, a sua admiração por me ver ali. Após ter ultrapassado uma nova colina, palmilhei uma estrada onde a chuva e o vento desencadearam um último e violento ataque contra mim. Salt está enganado ao pensar que vive em Tilford, pois, de facto, vive muito para além da vila. Eu já estava a ponto de voltar para trás afim de aproveitar o resto da resistência de que ainda dispunha, para regressar a Londres, quando ouvi um grito de Salt «Ele aí vem!», e o meu amigo veio receber-me, satisfeitíssimo, como se eu tivesse surgido fresco e sorridente. Em menos tempo do que leva a descrever, as minhas roupas fumegavam na cozinha e eu, metido num fato pertencente ao cunhado de Salt, um poeta prometedor cuja figura é um tanto ou quanto diferente da minha, enchia o estômago com as últimas descobertas do meu hospedeiro, na fungologia local.

As minhas roupas secaram rapidamente. De tarde, ao envergá-las de novo, observei que embora tivessem encolhido umas duas polegadas, estavam quentes e enxutas. Apesar disso, fartei-me de espirrar e Mrs. Salt, na mais amável das intenções, foi buscar uma garrafa de espírito de cânfora. Não familiarizado com a violenta natureza deste remédio, engoli, descuidado, uma colher de sopa cheia. Senti-me morrer, mas tive a alegria, após ter voltado a respirar, de saber que, certamente, o bacilo da gripe não sobrevivera. Como a chuva já cessara de cair, fomos dar um passeio e seguimos por uma estrada que serpenteava por umas colinas lembrando montões de turfa molhada, sob o céu cinzento. De vez em quando, atravessávamos planaltos onde a lama era substituída por areia movediça e tojo, já secos pelo vento agreste que soprava do mar do Norte. O Lago Frensham, como um enorme depósito de abastecimento público de água, desnudado de maquinaria, jazia a sotavento e a sua superfície enrugava-se de um extremo a outro, a cada aguaceiro. Simpatizei com ele e olhei furtivamente para Salt para ver se a inefável tristeza daquele espectáculo não o envergonhava. Mas o meu amigo já estava habituado a tudo aquilo e quando chegámos a casa, começou a planear um passeio para a manhã seguinte, até Hindhead. Só a simples sugestão de novo passeio trouxe-me um desejo irreprimível de espirrar. Não obstante, neguei-me com firmeza, a tomar mais cânfora, e Mrs. Salt ministrou-me em sua substituição, uma vulgar geleia preta com água a ferver que eu ingeri de boa vontade.

Na manhã seguinte, levantei-me às oito horas, na intenção de ver o nascer do sol e de ouvir o chilrear dos pássaros. Percebi, contudo, que me levantara antes deles, pois não vi o nascer do sol nem ouvi os pássaros, senão quando regressei à metrópole. Salt estava radiante porque o vento soprava do nordeste, o que tornava a chuva impossível. Assim, após o pequeno almoço, pusemo-nos a caminho de Hindhead, através dum nevoeiro que fazia as vacas parecerem mamutes e os espinhaços, a cordilheira dos Alpes. Quando não se avistava um único abrigo, a chuva começou a cair. Salt assegurou-me que não seria nada, pois a chuva não se poderia aguentar contra um vento nordeste. No entanto, tal não aconteceu. Quando, após termos subido e descido por sítios que Salt denominava atalhos, mas que eram, de facto, leitos de torrentes de lama, chegámos por fim a Hindhead, (que era igual às outras colinas), onde mal nos podíamos distinguir um ao outro e muito menos a Costa do Sul, em virtude do nevoeiro cerrado que fazia. Vi o sítio onde os três homens foram enforcados e não posso negar que senti uma certa satisfação vingativa ao pensar que alguém fora assassinado ali, por induzir semelhantes seus a passeios campestres.

Quando regressámos, Salt estava no auge do entusiasmo. A descoberta de um dia chuvoso com um vento nordeste alegrava-o tanto como a descoberta de um cometa alegraria um astrónomo. Quanto a Mrs. Salt, a conclusão que ela tirou de tudo aquilo, foi que eu devia voltar. A chuva incomodava-a tanto, como se em vez de mulher, fosse um peixe, e não pude deixar de pensar se o seu vestido de passeio não seria na realidade, um fato de banho habilmente confeccionado.

Ela parecia felicíssima, embora os carneiros balissem tristemente para o céu e uma vaca, a quem eu dei uma palmada amigável nos flancos, estivesse tão saturada em água, que eu fiquei com o braço encharcado até ao sovaco. O tema principal de Mrs. Salt, enquanto estivemos nas colinas, era a doçura do seu cão de guarda, cujos movimentos na direcção do rebanho eram cuidadosamente frustados pelo meu amigo. Antes de chegarmos a casa, as minhas roupas continham três vezes o volume de água do dia anterior. Foram postas novamente a secar e quando voltei a envergá-las, pareciam ter sido emprestadas, numa emergência, por um irmão muito mais novo.

Não preciso de descrever o meu regresso a Farnham, após o jantar. Choveu todo o caminho. Mas, pelo menos, eu aproximava-me de Londres. Mudara de ares e estou certo de que eliminei os seus efeitos dentro de quinze dias. Se a minha experiência puser de sobreaviso algum incauto londrino, tentado a gozar os prazeres vernais nas colinas de Surrey, então nem todo o meu sofrimento terá sido em vão.

 

 

                                                                  Bernard Shaw

 

 

              Voltar à “Página do Autor"

 

 

 

 

      

 

 

O melhor da literatura para todos os gostos e idades