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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


UMA VONTADE INDOMÁVEL / Edle Astrup Hubay
UMA VONTADE INDOMÁVEL / Edle Astrup Hubay

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

UMA VONTADE INDOMÁVEL

 

Este livro de Edle Astrup Hubay Cebrian é uma mistura de talento, humor, emoção e tragédia, alegrias e tristezas, felicidade e desgraça. Partindo da sua infância na herdade de Atlungstad, em Hedemark, na Noruega, menina feliz em perfeita comunhão com a natureza, a autora conta o seu percurso primeiro como jornalista freelance em Londres, cidade onde entrevista personalidades como Bernard Shaw, Axel Munthe, Charlie Chaplin, Mary Pickford ou Douglas Fairbanks, partindo depois para a Hungria, a convite de uma amiga, ao encontro daquele que viria a ser o seu marido, Andor Hubay, aristocrata, patriota, filho do conhecidíssimo músico e compositor Jenõ Hubay.

A alta sociedade húngara, os castelos, as grandes propriedades, os pavilhões de caça, os concertos no Palácio Hubay, que reúnem os mais prestigiados artistas de todo o mundo, são o universo em que a autora se move. Amigos do regente húngaro Miklos Horthy, estão relacionados com as grandes famílias da Europa central: os d’Otrante, Wittgenstein, nomes ilustres da Hungria como os Habsburg, Festetics, Esterházy, Andrassy, Betlen, Szechenyi fazem parte do seu círculo de amigos mais próximo.

 

 

             Os verdes anos

A vida é um perpétuo desafio. À medida que ficamos mais velhos, que o nosso corpo começa a responder com menos energia, devemos pensar em tirar o máximo partido do tempo que nos resta.

Quando somos crianças e adolescentes, parece-nos sempre ter direito a tudo o que há de melhor na vida. Mas, à medida que os anos passam, apercebemo-nos que cada dia feliz é uma verdadeira bênção.

Tudo isto é apenas uma introdução ao que me proponho fazer: contar a história da minha vida.

Falar de nós próprios, além de difícil, é sempre um tanto pretensioso. Mas, pela parte que me toca, o que quero, realmente, é falar do amor, das coisas boas da vida, dos momentos de felicidade entre as pessoas.

Inevitavelmente, isto conduz-me muito atrás no tempo, à época em que, pela primeira vez, tomei consciência de mim própria e me assumi como uma pequena parcela pensante da humanidade.

Decorria o ano de 1908. A minha família e eu vivíamos no campo, numa quinta chamada Hamang, em Sandviken, uma pequena aldeia de Kristiania*, nome da então capital da Noruega.

A nossa casa era de madeira, como ainda hoje é a maior parte das casas naquele país, toda pintada de branco, e ficava no alto de uma colina.

Mais abaixo ficavam os estábulos, os celeiros e as casas dos empregados.

Era Inverno, um Inverno rigorosíssimo: um frio de rachar, os termómetros marcavam muitos graus abaixo de zero e tudo estava coberto de um espesso manto branco de neve.

Eu voltava dos estábulos onde tinha ido ordenhar as vacas e dirigia-me à cozinha, ajoujada com uma grande bilha cheia de leite fumegante. Colina acima, os meus pés faziam estalar o gelo e o frio punha tons de vermelho nas minhas bochechas.

As luzes da casa acenavam-me, já muito perto. Lá dentro, estavam à minha espera os meus pais, o meu irmão Nils e a minha irmã Lisbeth.

Foi então que parei, pus a bilha de leite no chão e olhei para cima, para a casa e para o céu muito negro, pontilhado de estrelas, que a rodeava. E tive a certeza que aqueles pontinhos brilhantes eram os olhos dos anjos a olhar para mim, cheios de amor.

Com o coração aquecido, agarrei na bilha e desatei a correr para o conforto da minha casa e do colo do meu pai.

- Então, que aconteceu? - perguntou-me ele.

- Nada, pai, não aconteceu nada - respondi. Mas eu sabia que toda a minha emoção vinha da alegria de existir, de estar viva, de ser tão feliz.

 

* Designação da actual Oslo, usada entre 1624 (em homenagem ao seu reconstrutor, Kristian IV) e 1925, quando recuperou o nome da sua fundação, em meados do século XI. (N.T.)

 

Guardei sempre no meu coração, ao longo de toda a vida, este sentimento de gratidão pelos momentos de felicidade, pelas coisas boas que nos vão acontecendo. Mas só quando tive de enfrentar o sofrimento, as dificuldades, os desgostos, soube apreciá-los devidamente.

Nessa época, o tempo corria muito de vagar para mim. Nils e Lisbeth já andavam na escola e eu ainda não tinha idade para começar.

O nosso cocheiro, Karl, era o meu melhor amigo. Quando lavava as carruagens - nesse tempo ainda não havia automóveis -, deixava-me sempre ajudá-lo. E lá ia eu, completamente nua, se era verão, de balde e esfregões na mão.

Na Primavera e no Verão, fazíamos piqueniques nos prados ou na floresta. Os meus pais ensinavam-nos muitas coisas sobre as plantas, as flores, a vida das abelhas e dos pássaros, e apanhávamos cogumelos, framboesas e amoras. Quando me sentia cansada - sempre era a mais pequena! -, o meu pai levava-me às cavalitas e, às vezes, adormecia nas suas costas, feliz e segura.

A nossa família foi aumentando: nasceram mais três irmãos, e todos os partos foram lá em casa. Durante os partos, as crianças eram mandadas para casa de vizinhos. No regresso, encontrávamos a nossa mãe na cama e éramos informados de que a cegonha deixara mais um irmãozinho.

«Que estranho pássaro deve ser essa cegonha! pensava eu, ao mesmo tempo que inspeccionava o céu na esperança de ver alguma, de preferência com uma daquelas cargas...

O mais velho dos irmãos trazidos pela cegonha morreu e esse foi o meu primeiro desgosto. Era jovem demais para compreender o significado da morte, mas sofri pelo desgosto que presenciei nos meus pais.

Foi então que me apaixonei pela primeira vez. Ele chamava-se Gunnar e conquistou o meu coração no dia em que, agarrando uma minhoca muito gorda, a colocou na língua, enquanto me dizia: «Observa bem, vou fazê-la desaparecer». E desapareceu mesmo, pela sua goela abaixo! É claro que um herói desta estirpe não poderia deixar de enfeitiçar-me!...

Depois disso, por acaso, nunca mais tive interesse especial nem por heróis nem por minhocas... mas as pessoas modificam-se, não é?

Quando nos mudámos para Kristiania, inscreveram-me na escola de Vestheim, que a minha irmã Lisbeth já frequentava. Nils foi para a mesma escola, mas para o edifício dos rapazes. Nesse tempo, não havia misturas: meninos para um lado, meninas para o outro!

Durante as férias visitávamos sempre os nossos pais, que agora viviam numa enorme propriedade da região de Hedemark, a norte da capital. Atlungstad, assim se chamava, fora comprada pelo meu avô materno, Cari Wedel Jarlberg, na altura em que o seu irmão mais velho tomou conta de Bogstad, a quinta onde ambos tinham nascido e crescido.

A minha mãe era a mais velha de cinco irmãos, e quando o pai dela se mudou para Kristiania por se sentir demasiado velho para administrar a propriedade, nós instalámo-nos em Atlungstad.

Isto passou-se em 1914, tinha eu, portanto, nove anos. Lembro-me perfeitamente das expressões preocupadas dos adultos enquanto discutiam a guerra. Eu tentava perceber qual o significado de tudo aquilo. Mas, como é evidente, não é fácil explicar a uma miúda despreocupada e feliz de nove anos o que é uma guerra.

À laia de explicação, disseram-me que povos de vários países não estavam de acordo quanto a algumas coisas. Por

isso tinham discutido e agora andavam aos tiros uns aos outros, provocando muitas mortes.

«Andam a matar-se uns aos outros?», interrogava-me. Não conseguia perceber. A única coisa parecida de que me lembrava era de uma matança de porco a que assistira. Havia sangue por todos os lados, grunhidos, guinchos horríveis que me tinham feito fugir para longe, sem nunca mais ser capaz de esquecer.

Mas seres humanos, a matar-se uns aos outros?...

Para piorar tudo isto, o meu pai estava a caminho da Alemanha, porque fora nomeado adido militar. E havia guerra naquele país!

Fiquei aterrorizada e desgostosíssima. Então, ele sentou-me ao colo e pediu-me que o olhasse bem nos olhos.

- Prometo-te que nada de mal irá acontecer-me e que ninguém vai disparar sobre mim!

Depois disto fiquei tranquila. O meu pai tinha prometido, e uma promessa dele era sagrada!

Para nós, crianças, a vida continuou tranquila, feliz.

A minha mãe tinha muito que fazer. Tanto a casa principal como as dos trabalhadores precisavam de ser modernizadas, e ela e todo o pessoal não tinham mãos a medir.

Nós, crianças, durante as férias de Verão, passávamos o dia inteiro fora de casa a aprender todas as tarefas da quinta, nos estábulos, nos prados, na vacaria e também dentro de casa.

Algumas vezes, íamos até ao lago Mosa, muito perto da nossa casa, para nadar e remar, até mesmo fazer corridas.

No Outono seguinte, enquanto Ebbe e Henning, os mais pequenos, começaram a ir à escola, nós, os três mais velhos mudámos para a escola secundária de Hamar.

Durante o Inverno, levavam-nos de trenó puxado a cavalos até Gubberud. Os nossos resultados escolares eram satisfatórios, mas poderiam ser bem melhores se não passássemos tanto tempo nos estábulos e na vacaria.

Quando o nosso pai voltou, nunca mais nos deixou falhar trabalhos de casa e até nos ajudava a fazê-los. Em contrapartida, tínhamos que colaborar nos trabalhos da quinta durante as férias.

Consegui comprar a minha primeira máquina fotográfica com dinheiro ganho a apanhar nabos, e posso garantir que não foi tarefa fácil. Ainda hoje me lembro, com uma sensação muito pouco agradável, das intermináveis filas de nabos na minha frente. Cuidar dos animais era muito mais divertido!

Qualquer que fosse o trabalho que nos destinassem, tínhamos que estar todos os dias, às seis da manhã, pontualmente, à porta dos estábulos, onde nos diziam qual o cavalo a tratar e o serviço marcado para ele.

Começávamos por escovar o cavalo, depois enchíamos a manjedoura com ração e, por fim, aparelhávamo-lo.

Todos os sábados montávamos e levávamos os cavalos até uma cerca, na margem do lago, onde os soltávamos. Era uma alegria vê-los saltar para o ar mal se sentiam livres, dando coices e cangochas, como que a celebrar a sua liberdade inesperada, sobre o tapete verde da relva muito macia, completamente esquecidos da semana de trabalho duríssimo que ficava para trás!

Quando estava calor, metiam-se pelo lago dentro e gozavam a frescura da água, deliciados! O meu pai ensinou-nos a nadar com os cavalos, com uma mão na crina, deixando o animal puxar-nos, com cuidado, para evitar os cascos.

Em certo Outono, uma epidemia de gripe proporcionou-nos umas férias escolares inesperadas. Uma grande parte dos empregados caiu à cama doente. Lisbeth e eu tivemos que ajudar na vacaria, onde a velha Hilda era a única que continuava de pé.

Cento e vinte cabeças de gado não era brincadeira nenhuma e, às cinco da manhã, já tínhamos que estar no nosso posto de trabalho.

Durante dez dias, aguentámos a pé firme, limpando os estábulos e a vacaria, dando de comer aos animais, mugindo as vacas. O leite, a transportar para Hamar em grandes desnatadeiras, tinha que estar pronto o mais cedo possível.

Outra das nossas tarefas era ajudar nos partos das vacas. A primeira coisa que aparecia eram as mãos dos bezerrinhos. Com a mãe-vaca a gemer baixinho, tínhamos que nos apoiar com os pés de encontro à parede e puxar com todas as forças.

Hilda ensinou-nos que, cada vez que a vaca desse um mugido mais forte, devíamos puxar pelas patas do vitelo, e o bicho, mais tarde ou mais cedo, saltaria cá para fora. Logo a seguir, era preciso abrir-lhe a boca, limpá-la muito bem e soprar-lhe pela garganta.

Sempre achei uma barbaridade tirar o pobre recém-nascido à mãe. Deixávamos a vaca lamber o filho mas, a seguir, o vitelo era levado para um estábulo especial e começava logo a tentar equilibrar-se de pé sobre as suas pernas fracas, enquanto a mãe exprimia a sua reprovação e zanga, mugindo desesperadamente. Quando me explicaram que esta separação tão cruel era necessária para a vaca não ferir o útere, ao amamentar a cria, fiquei indignada com esta violação flagrante das leis da natureza.

Mas a verdade é que as vacas não tinham lá grande prazer com o processo de concepção, e ninguém tinha ainda ouvido falar de inseminação artificial.

Entre outras coisas ensinaram-me a saber ver quando a vaca estava no cio. Levávamo-la, então, para um recinto especial, enquanto íamos buscar o macho sortudo.

Por sinal, foi mesmo por causa de um boi que o meu segundo caso de amor não foi correspondido. Tudo aconteceu durante as férias do Natal, uma ocasião em que a casa estava cheia de gente nova. Ele chamava-se Hans e era amigo do meu irmão Nils. Era todo conquistador e atirou-se de cabeça, numa altura em que estava mesmo predisposta a amar. Resultado: o meu primeiro beijo!

Senti-me como se o céu tivesse desabado sobre a minha cabeça! Enquanto nos sentávamos em cima de duas caixas de sapatos, na varanda do meu quarto, a euforia apossou-se de mim e convenci-me que tinha encontrado o grande amor da minha vida!

Muito rapidamente, porém, Hans ficou cheio de dúvidas e chegou à conclusão que não queria nada com uma miúda tão pouco feminina, que era capaz de entrar sem pestanejar dentro do curral do boi!

Meu Deus, que coisa complicada era o amor! Então uma rapariga tinha obrigação de ter medo de um vulgaríssimo boi? Isto não fazia qualquer sentido para mim. Passei o resto das férias de Natal a carpir o meu desgosto amoroso mas, por fim, lá me curei...

O nosso cocheiro Karl, meu amigo do peito, tinha-se mudado com a família para uma casa em Stange. Tínhamos aí uma propriedade florestal, e ele foi tomar conta dela. Durante as férias de Inverno, era preciso marcar e abater algumas árvores, e Karl perguntou-me se queria ir com ele. Havia várias cabanas de madeira nessa zona e Karl e eu dormimos numa delas, enquanto os restantes trabalhadores se espalharam pelas outras.

Durante o dia, caminhávamos com bastante dificuldade sobre a neve fresca e mole. O trabalho era muito duro e custava-me imenso ver os lenhadores atacar à machadada aqueles gigantes de madeira, enquanto Karl filosofava:

- Foram precisos mais de sessenta anos para aquela árvore crescer, e agora bastam sessenta machadadas para a matar!

Encontrávamos constantemente as pequenas elevações que denunciavam os formigueiros, todas cobertas de neve, e Karl aproveitava para me ensinar:

- Se alguma vez a menina se perder na floresta, veja se há algum montículo dos formigueiros. É que eles estão sempre a sul dos troncos das árvores e, assim, poderá orientar-se.

Perdi-me muitas vezes ao longo da minha vida, mas nunca na floresta, porque me recordei sempre desse ensinamento.

Aprendi muito com Karl. Uma vez, ele levantou com os dentes a mesa da casa de jantar, mas isso era melhor não aprender... Curiosamente, nunca foi ao dentista!

Desde que Karl foi promovido a guarda-florestal, Hansen passou a ser o novo cocheiro. Tinha a mania da disciplina e nós tínhamos que nos desenvencilhar sozinhos. Quer fôssemos montar, conduzir uma carroça ou dar uma volta de esqui, tínhamos que aparelhar e escovar os nossos cavalos. Quando o lago Mosa gelava, costumávamos fazer esqui puxado a cavalo na sua superfície. A minha irmã Lisbeth levava o seu alazão Hamang, e eu era puxada pelo meu Tosa, um lindo cavalo todo negro. Posso garantir que não era tarefa fácil conseguir o equilíbrio em cima dos esquis, manter a direcção e controlar os cavalos, tudo ao mesmo tempo.

O meu maior desejo, nessa altura, era ter uma sela branca para o meu cavalo negro. Mas tinha que comprá-la com o meu dinheiro.

Quando os meus pais foram ao estrangeiro, li um anúncio no jornal que dizia:

«Cabelo ruivo, precisa-se. Paga-se bem.»

Agarrei numa tesoura, cortei as minhas belas tranças ruivas e... recebi 60 coroas (10 dólares) pelo meu escalpe... Fui logo comprar a sela branca e nem pode imaginar-se como o meu cavalo negro ficava bem com ela!

Quando os meus pais voltaram, não ficaram nada entusiasmados com a venda, e ainda menos com um telegrama que tínhamos mandado em nome deles.

Eu conto: tinha havido um casamento de estadão em Kristiania e, como a minha mãe era a madrinha da noiva, deixou-nos escrito o texto de um telegrama para ser mandado no próprio dia. Mas eu tinha lido, na edição de Natal de uma revista, um texto que me pareceu muito mais engraçado. Dizia: «Muitos parabéns no dia do seu casamento. Agradeça ao Adão e à Eva, que inventaram o momento!».

Foi isso que mandei em nome dos meus pais. A minha mãe não era propriamente pessoa para textos arrojados. Imagine-se a reacção quando o telegrama foi lido em voz alta, durante o copo de água!

Os princípios que nos foram incutidos toda a vida passavam por pensar nos outros, ser atencioso, ajudar o próximo, partilhar, ser modesto. Partilhar com os outros, principalmente no que dizia respeito a Hansen, não era nada complicado. Um certo Inverno, fomos convidados por uns amigos dos meus pais para um baile de crianças. Partimos de trenó com Hansen e a viagem durou aproximadamente uma hora.

O baile foi muito divertido, e eu muito procurada para dançar. A ceia foi magnífica, cheia de todas as coisas que os miúdos esfomeados e gulosos gostam. E não só os miúdos... Lembrei-me de Hansen, que ficara na cavalariça, e enfiei num guardanapo de papel uma data de comida. Quando lhe levei as coisas, reparei na enorme selha dos cavalos, cheia de água. Que grande tentação! Num instante, despi-me completamente e, nua em pelo, saltei para a selha. Depois, tornei a vestir-me. Refrescada pela banhoca, estava agora capaz de gritar: «Siga a dança!»

Durante as férias de Natal, a casa estava sempre cheia de gente nova. Um dia, combinámos um passeio de trenó até uma outra propriedade nossa, onde havia uma floresta linda. Juntámos todos os trenós disponíveis.

Um dos trenós destinava-se a um parzinho muito apaixonado. O cavalo que ia puxá-lo chamava-se Castor. Algum tempo antes de começar o passeio, eu e os meus irmãos demos ao cavalo uma dose valente de laxante. Certificámo-nos, também, que o trenó fosse um dos mais pequenos, de forma que o rabo do cavalo ficasse bem perto dos ocupantes do trenó. Acho que nem é preciso explicar como os intestinos do Castor interromperam aquele romance...

Para nós, miúdos, a vida era um divertimento pegado. Bem podiam os adultos dizer que nem sempre é assim...

Falávamos sobre muitos assuntos com os nossos pais, mas o sexo era proibido. Mas nós vivíamos no campo, em contacto directo com a Natureza, os animais e a terra, e, por isso, sabíamos muitas coisas e encarávamo-las com naturalidade. Milhe, a leiteira, conseguiu acrescentar um momento excitante. Ela estava muito apaixonada por um fazendeiro chamado Hjalmar. Um dia, ela pediu-me, muito em segredo, que fosse com ela ao palheiro para me mostrar uma coisa. Esta «coisa» era uma cova muito convidativa no meio da palha.

- Foi ali que eu e o Hjalmar dormimos a noite passada

- disse-me de olhos a brilhar. Tenho que admitir que ver aquela covinha amorosa me deu uma certa excitação. O mesmo aconteceu, pouco depois, quando comecei a ler um livro que tinha uma gravura muito ”especial”: uma jovem estendida num sofá, com um rapaz inclinado sobre as costas com um ar muito interessado...

Os anos foram passando. Nils estudava agora em Kristiania, e Lisbeth fora para um colégio interno em Inglaterra. Eu iria também para o estrangeiro, logo que acabasse o que se chamava a escola secundária. Nessa época, era raro as raparigas frequentarem a Universidade. Aprendiam línguas, culinária e bordados, enquanto esperavam pelo ”príncipe encantado” para casarem.

Para usar um termo que detesto, nós pertencíamos à classe alta. Nesse tempo, isto é, no fim do século XIX, início do século XX, muitas das coisas que hoje pertencem ao dia-a-dia, ainda não existiam. Como, por exemplo, o livre acesso ao ensino e a toda uma profusão de cursos superiores e graus académicos.

Era, realmente, tudo muito diferente nessa época.

 

                 Aventura em Londres

Foi então que começaram os preparativos para aquela que foi a minha primeira viagem ao estrangeiro.

Cissy Wedel, uma nossa prima alemã, tinha-nos falado de um colégio interno para raparigas, na Baviera, com excelente reputação internacional.

A minha mãe foi comigo até Weimar, onde nos encontrámos com os Wedel. E deixou-me ficar com eles, entre lágrimas e promessas de que tomariam conta de mim durante o tempo de férias.

Ainda que a despedida da minha mãe tivesse sido um momento difícil, foi amor à primeira vista o que senti pela minha nova escola, onde, desde o primeiro momento, me senti em casa.

O colégio ficava perto de Munique, em Feldafing, à beira do belo lago Starnberg, que me fez recordar, de imediato, o nosso belíssimo lago Mosa.

Era frequentado por quarenta ou cinquenta raparigas das mais variadas nacionalidades. Falava-se, naturalmente, alemão como idioma principal mas, três dias por semana, era obrigatório falar francês durante o dia inteiro.

Para uma pessoa como eu, nada e criada na Noruega, no campo, com escassas oportunidades culturais, musicais ou artísticas, este primeiro ano significou uma profunda viragem e abriu-me perspectivas de vida que eu nunca imaginara.

O meu mais profundo desejo era aprender, aprender, aprender. Aprender tudo, alargar os meus horizontes.

Duas vezes por semana apanhávamos o comboio para Munique. Durante a semana anterior, as aulas preparavam-nos para o que iríamos visitar, monumentos, museus, igrejas, exposições. E do mesmo modo acontecia com os espectáculos, fossem eles ópera, concertos ou ballet.

Quase todos os domingos, protestantes ou católicas, íamos à igreja. Embora na Baviera a religião católica seja a mais popular, cada um era livre de frequentar a igreja da sua crença.

Nascida na Noruega, país protestante, nunca tinha assistido a uma missa católica e a minha curiosidade levou-me até lá. Os meus pais tinham-me ensinado a respeitar a religião dos outros, mas não costumávamos ir à igreja, a não ser em ocasiões especiais.

Durante umas férias de Inverno, fomos a Garmish. Todos os alunos que quisessem - e fossem capazes! - podiam fazer esqui. Eu queria e estava convencida de que seria capaz, embora as condições fossem totalmente diferentes daquelas a que estava habituada no meu país. Na verdade, na Noruega, eu fazia esqui de fond ou de planície e, ali, fazia-se o alpino. Mas tudo decorreu bem e, no final, fui muito felicitada!

Na Primavera, voltámos a Garmish para assistir a uma famosa peça sobre a paixão e morte de Cristo, levada à cena de dez em dez anos. Esta peça é representada ao ar livre, num palco coberto. O papel de Cristo foi representado por um camponês da região, chamado Lang. A religiosidade, a unção com que a peça foi representada transmitia uma poderosa impressão de que aquilo não era simplesmente uma peça, mas algo de muito mais profundo, proveniente das vivências de cada actor, todos eles camponeses e trabalhadores da região, mais novos ou mais velhos, consoante as exigências do papel.

Quando o ano escolar terminou, fui convidada a ir à Polónia, para casa de uma irmã de Cissy Wedel. O marido dela tinha uma herdade na região que pertencera à Alemanha, antes da Primeira Guerra Mundial.

A viagem de comboio de Munique, via Berlim, foi longa e aborrecida mas, por fim, lá cheguei. Foi um verdadeiro acto de coragem por parte dos meus pais terem permitido que uma miúda de dezassete anos fizesse uma viagem como esta.

Uma carruagem muito vistosa, puxada a dois cavalos, com cocheiro e trintanário de libré, esperava-me na estação. Tive uma recepção muito cordial e tudo me pareceu fantástico. À noite, mal consegui dormir com a excitação e... uma comichão muito persistente na minha cabeça...

Na manhã seguinte, uma criada fardada entrou no meu quarto com uma bandeja de pequeno almoço que parecia destinar-se a, pelo menos, quatro pessoas e, depois de colocá-la na minha cama, abriu os pesados reposteiros, ao mesmo tempo que me dava os bons dias com um sorriso simpático.

Tudo isto era completamente novo para mim. Isto, e tudo o que aconteceu a seguir...

Depois da criada sair, afastei a pesada bandeja para o lado e fui ao espelho da cómoda para tentar descobrir a razão da comichão na minha cabeça. Piolhos! Estava cheia de piolhos que trepavam e passeavam tranquilamente pela minha cabeça! Alguém me tinha dito, um dia, que uma lêndea pode transformar-se em avó no decorrer de uma só noite. Na minha cabeça, eu acho que ela se fez... bisavó!

Nunca na minha vida tinha tocado para chamar uma criada, mas foi o que fiz naquela altura. Aliás, não toquei uma, mas uma avalanche de vezes, e a rapariga acorreu prontamente. Não pareceu ficar muito surpreendida com o que viu e saiu do quarto a correr, voltando logo de seguida munida de um pente fino e mais uma série de pentes e frasquinhos. Despejou um líquido de cheiro desagradável e muito forte para uma bacia, e com o pente fino varreu os bisnetos da lêndea para dentro dela. A seguir meteu a minha cabeça debaixo da torneira e pôs a água a correr.

Os meus anfitriões, quando lhes contei o sucedido, fartaram-se de rir, ao mesmo tempo que me garantiram ser um fenómeno muito frequente nestas viagens de comboio. Mas, felizmente, houve outros episódios bem mais divertidos durante a minha estadia.

Aquela casa era muito agradável e hospitaleira, e estávamos constantemente a sair, para visitar amigos e vizinhos.

Quando, à noite, saíamos para as festas - e as festas eram quase diárias -, utilizávamos o chamado char-à-banc, um carro puxado por dois cavalos polacos cinzentos, muito pequenos e vivos, com um cocheiro e um trintanário. Os passageiros entravam pela parte detrás e os bancos perfilavam-se uns em frente dos outros.

O dono da casa, que era um verdadeiro príncipe, sentava-se lá atrás, junto à portinhola aberta, a tocar acordeão - o único pormenor que não era de príncipe! Mas era muito divertido! Para onde quer que fosse aquela miúda norueguesa de dezassete anos, ia sempre escoltada por cavalheiros briosos. E que grupo animado!

A minha desenvoltura e coragem frente aos touros, lá na minha quinta, ajudava-me agora a mostrar-me desembaraçada, sem vacilar...

Lembro-me particularmente de um dos nossos ”acompanhantes”, que vinha muitas vezes visitar-nos. Chegava, em galope curto, no seu soberbo puro sangue e concentrava toda a sua atenção em mim. «Vamos fugir juntos... queres?». Eu não estava especialmente interessada, nessa época, em fugir fosse com quem fosse. Além de que já tinha decidido, bem no meu íntimo, que género de cavaleiro andante, de armadura a brilhar ao sol, haveria de escolher um dia.

Nessa época desabrochava em mim a mulher. Com ela vinha também o instinto do sexo. Mas este não lhe dizia, definitivamente, respeito.

Quando, por fim, resolveu ir-se embora, sem ter conseguido fugir comigo, ofereceu-me um pesado fio de ouro «para que não te esqueças de mim...».

O que não podia adivinhar era que aquele fio iria, daí a muitos anos, servir-me para sobreviver. Mas esta é uma outra história, e integra-se num período da minha vida que não foi nada divertido.

Muito divertida foi, sem dúvida, esta estadia com a minha prima. Dentro de mim, no entanto, subsistia sempre uma certa forma de recusa, quase de repulsa, pela maneira feudal de estar na vida das classes altas.

Nunca na minha vida tinha passado por uma experiência assim ou mesmo imaginado que ela pudesse existir.

Lembro-me, com particular acuidade, das vezes que atravessávamos os campos a cavalo, no meio dos trabalhadores rurais. Todos, homens e mulheres, nos cumprimentavam com um servilismo exagerado e embaraçoso. Tinham aspecto cansado, gasto. Dos ”senhores” eles recebiam, na melhor das hipóteses, um <Boa tarde» de volta, e, com raríssimas excepções, uma palavra amigável. Pior ainda, quase insuportável, era a passagem pelos sítios indescritíveis onde viviam.

Em herdades como aquela não havia a mínima hipótese de os filhos dos proprietários irem ajudar à sacha dos nabos, durante as férias. Mas eu senti-me bem contente por ter feito isso.

Um dia, tomei o comboio, desta vez sem piolhos, para ir visitar uma colega da minha escola.

A família dela era criadora de cavalos de corrida e nós montávamos todos os dias. Trotávamos e galopávamos nas areias fundas ao longo do rio, contentes por ajudar nos treinos de resistência.

Dali parti para Hannover, onde passei seis semanas com uma tia minha.

Por essa altura, a Alemanha sofria os efeitos de uma fortíssima inflação e cem libras norueguesas eram uma verdadeira fortuna, levando em conta a fraquíssima moeda alemã. Por consequência, consegui comprar um guarda-roupa inteiro, inteiramente ”à moda”, esquecendo por completo os meus uniformes de colégio no fundo do baú.

Ninguém esperava ver uma teenager de vestido azul escuro, com a frente coberta por lantejoulas vermelhas. No dia em que vesti esse vestido, em casa da tia Isa, outra parente dos Wedel, mandaram-me de imediato para o quarto para pôr qualquer coisa «mais adequada...Qualquer coisa que não arrumasse e pusesse na sombra as filhas dos meus anfitriões?...

De casa deles parti directamente para a Noruega. O meu pai foi buscar-me à estação, mas o meu prazer de voltar a casa sofreu um duro revés: muito triste, quase sem me olhar, o meu pai informou-me que a minha mãe estava doente, muito doente.

Uma moeda tem sempre duas faces. Eu estava prestes a experimentar o seu lado mau. Começava a compreender o que as minhas tias tinham querido dizer-me com «a vida nem sempre é fácil»...

A minha mãe morreu. O meu pai perdeu tudo o que tinha e teve que vender a nossa casa.

Todas estas perdas materiais, consegui eu aguentar. O que não me perdoava era ter sabido tão pouco da doença da minha mãe, do seu sofrimento, de não ter ajudado, compreendido, amado.

A consciência do meu egoísmo aniquilava-me. E nem a ideia, tão comummente aceite, de que juventude exuberante e a doença são irreconciliáveis me servia de consolação. O meu carácter tinha uma falha grave, que agora vinha ao de cima. Sentia-me digna de dó, sem merecer perdão. Hoje, porque o destino foi bom para mim e me permitiu ser mãe, a minha única consolação é saber que o amor de mãe consegue perdoar tudo. Mas jurei a mim mesma ter de percorrer um longo caminho para poder merecer esse perdão.

A verdade, porém, é que tentar é uma coisa; conseguir é outra, bem diferente.

Nos anos que se seguiram, vivi uma existência bastante errante. Vagueando por aqui e por ali, visitei a Inglaterra, onde vivi em casa de uma colega do colégio interno alemão. As pessoas que conheci então, o ambiente que testemunhei, fizeram-me desejar voltar para casa.

Na verdade, até gostaria de ter ficado em Londres, mas um convite de parentes meus que viviam em Paris levou-me a partir em direcção a esse destino.

Aprendi francês, assisti a muitas conferências na Sorbonne, trabalhei com afinco, desenvolvi o meu interesse pela arte e pela música.

A certa altura, tive lições de canto. O meu professor acenava-me com o sonho de uma carreira brilhante, mas, coitado, ele queria era ganhar a vida...

Um dos meus tios era diplomata. Através dele conheci muitos jovens da minha idade, todos eles relacionados com os círculos diplomáticos. A filha de um ministro húngaro tornou-se na minha melhor amiga. Esta amizade iria provar-se decisiva para a minha felicidade futura.

Durante a minha estadia em Paris, saiu o livro de Maurice Bedel, Jerónimo a 60° de latitude norte, que, em pouco tempo, se transformou num best-seller. Essa obra era, para os padrões da época, bastante arrojada: contava a história de uma norueguesa, faminta de amor, sozinha na imensidão árctica, tendo à sua volta uma série de machos gelados. Depois da saída deste livro, a vida tornou-se bem mais complicada para uma jovem norueguesa, como eu, a viver em Paris. Os franceses, e não só, concluíram que todas nós, jovens norueguesas saudáveis, estávamos extremamente esfomeadas, ávidas de prazer. Ora, estar esfomeada é uma coisa, mas comer nos intervalos das refeições... é outra! E se se cultivar alguma paciência, antes de apaziguar a nossa fome... tanto melhor!

Por intermédio do meu professor de canto, e também nos círculos diplomáticos, conheci inúmeros artistas de renome. Per Krohg pediu-me para pintar o meu retrato e foi assim que tive contacto, no seu estúdio, com a vida dos boémios e artistas.

O norueguês era a língua que se falava na casa do meu tio. Por essa razão fui mandada para La Rochelle, para casa de uma família francesa, onde, a troco de uma mensalidade, me ensinavam a língua.

A ”Madame” acolheu-me debaixo da sua asa. Era muito rigorosa no que tocava à gramática... Meu Deus, que horror, todos aqueles verbos franceses irregulares! Mas o seu ensino valeu-me de muito pela vida fora.

Tornei-me sócia do clube de ténis local e fiz muitos mais conhecimentos. Os franceses não são considerados muito hospitaleiros em relação aos estrangeiros mas, mesmo assim, fui muitas vezes convidada para visitar as suas casas de campo. Com algum desgosto descobri que o nível de conversa dos franceses da minha idade estava muito acima do meu. Tentei transformar isso numa espécie de desafio pessoal.

Um dos sócios do clube de ténis era um francês que tinha perdido uma perna e usava uma prótese, o que não o impedia de jogar ténis. Costumava tirar a perna artificial, arregaçava a calça e saltitava pelo court como um pardal, apoiando-se na raquete.

Um pouco antes do meu regresso a Paris, esse meu amigo deficiente ofereceu-me uma boleia no seu carro: no percurso, propôs-se mostrar-me alguns dos famosos castelos do vale do rio Loire. As suas intenções eram honestíssimas: era muito mais velho do que eu, casado e pai de cinco filhos.

Partimos numa manhã de Junho, revezando-nos ao volante. Combináramos almoçar no caminho com a mãe dele, que estava a passar férias na casa de campo da família.

Mas a senhora devia ter sabido que eu era norueguesa e lera, pela certa, o livro de Bedel! Logo à chegada, cumprimentou-me com estas palavras:

- Olá, menina! Ah, ah, com que então a viajar com o meu filho...!

Mas tanto eu como a própria razão daquela viagem fazíamos parte do mesmo mundo de inocência, que aquelas palavras não poderiam perturbar.

Tal como planeáramos, sozinhos ou incorporados em visitas guiadas, visitámos vários dos castelos do Loire. Os outros turistas olhavam constantemente para nós porque, a cada passo, a perna de pau do meu amigo chiava e estalava. Mas ele explicava que isso se devia ao calor e que a perna estava com falta de óleo!

Foi então que quis voltar para casa. Mas onde era, agora, a minha casa? Acho que era em Oslo, com a minha avó materna. As minhas raízes estiveram sempre com ela. A ela pude sempre voltar de todas as voltas para onde as minhas asas me levaram, enquanto o seu espírito sempre jovem se manteve entre nós.

Mas não podia estar muito tempo no mesmo sítio. Ansiava por voltar a viajar. E, um belo dia, fui falar com o chefe de redacção do maior jornal norueguês, o Aftenposten, que era, ao mesmo tempo, editor da revista We and our homes. Contei-lhe que estava de partida para Londres.

- Estará interessado em que eu escreva alguns artigos para as vossas publicações?

- Mande-os - respondeu-me. - Dir-lhe-ei depois se me interessam.

E interessaram. Pouco tempo depois, era correspondente deles e também do jornal sueco Idun. Com o que me pagavam, era agora autosuficiente.

Os contactos que fizera aquando da minha anterior estadia em Londres ajudaram-me bastante. Através deles conheci um senhor de meia idade, crítico de teatro do Observer. Passou a levar-me aos ensaios gerais que decorriam normalmente ao princípio da tarde. No final desses ensaios, tomávamos champagne no palco.

Por essa altura, Gladys Cooper era uma grande estrela inglesa. Meteu-se-me na cabeça entrevistá-la. Ao fim de duas ou três tentativas, veio a resposta: «Sim, se quiser pode vir tomar chá um destes dias»... Não precisei de segundo convite!

Quando relembro essa minha primeira entrevista, acho que Gladys Cooper devia ser tão boa pessoa quanto era bonita; ou, então, estava tão habituada a toda a espécie de jornalistas e perguntas que nem reagiu às minhas, simultaneamente ingénuas e desadequadas.

No final, ofereceu-me fotografias e convidou-me a voltar!

Quando, finalmente, me sentei à secretária para escrever o artigo, descobri que era muito mais fácil escrever do que fazer perguntas!

Com grande alívio meu, o artigo foi aceite e recebi os meus primeiros honorários.

Precisava de descobrir um lugar para viver. Um francês que vivia na mesma casa que eu tinha resolvido conquistar-me. Infelizmente, o propósito era unilateral e eu fartei-me das suas tentativas amorosas - bastante primárias, por sinal: bilhetinhos introduzidos debaixo da minha porta diziam, «o teu perfume põe-me louco»; ou, «só penso em ti, só sonho contigo».

Como não queria magoar o pobre homem - regra que sempre segui, ainda que me tenha causado bastantes dissabores -, acabei por decidir mudar de alojamento.

Aluguei um quarto, bastante melhor por sinal, com casa de banho privativa e uma pequena cozinha. Isto permitia-me convidar os amigos, coisa que muito me alegrava.

Nos fins de semana era constantemente convidada a ir para o campo. Estive em muitas casas deliciosas, bem ao estilo inglês, onde os hóspedes são completamente independentes e livres de fazer o que lhes apetece. Dava passeios, jogava ténis, montava a cavalo, gozava a natureza. Os vizinhos apareciam, ou nós íamos até às suas propriedades.

Uma vez, passei um fim de semana nos arredores de Newcastle, em casa do proprietário de uma mina de carvão. Pelo que me foi dado observar, a dita mina devia produzir... ouro! Nessa época, em que ter um automóvel era privilégio de muito poucos, ele tinha meia dúzia, assim como carros de corrida e cavalariças onde se alojavam muitos de puro-sangue.

Os hóspedes da casa gostavam de ir visitar o interior da mina. Quando me propuseram a visita, recusei veementemente. Acho que foi por pura cobardia. Mas, depois de todas as coisas horríveis que tinha ouvido sobre a vida dos mineiros de carvão, achei que não aguentaria o espectáculo, para mais em duro contraste com o luxo cá de fora.

O filho do proprietário da mina, o meu amigo, tinha como passatempo favorito as corridas de automóvel. Uma perna engessada testemunhava o seu último acidente. Alguns dias depois do meu fim de semana, telefonou a convidar-me para jantar. Não sei porquê, não fiquei admirada com o local escolhido: um dos mais caros restaurantes de Londres! Quando entrámos, vi logo que «sua excelência» era cliente habitual.

Sentaram-nos na mesa mais bem situada e trouxeram-lhe uma cadeira suplementar para que repousasse a sua perna engessada.

Pouco depois, um criado aproximou-se com um recado:

- A senhora que está na mesa em frente pede-lhe que esconda a sua perna, porque assim não consegue comer.

A resposta do meu amigo veio rápida:

- Diga àquela senhora que faça o favor de esconder a cara, que assim não consigo comer!

Era assim o ”pequeno lorde do carvão”. Mas uma companhia encantadora para os amigos.

Uma noite, fui jantar a casa de Sir Edwin Lutyens, na época o mais conceituado arquitecto de Londres. E conheci Philip de László, o grande retratista da moda. Contou-me que ia começar a pintar um grande quadro que tencionava intitular Mulheres 1914-1918.

- Gostaria de posar para mim? Quero pintá-la no interior de uma igreja, sentada na laje, com um véu de viúva, um bebé ao colo e uma criança pequena a seu lado...

A ideia pareceu-me tão sinistra que, perante o seu grande espanto, declinei de imediato. Ainda por cima, o pintor norueguês Henrik Lund tinha acabado de pintar um retrato meu e as sessões de pose tinham-me aborrecido de morte...

Alguns dias depois, László enviou-me uma carta a perguntar se não queria mudar de ideias. E convidava-me para almoçar, mandando o seu motorista buscar-me. Aceitei o almoço e acabei por concordar com o quadro, na condição de que me oferecesse primeiro um retrato meu, condição que logo aceitou.

Nunca me arrependi dessa decisão porque, para além de ter ficado com um retrato de grande qualidade e valor, passei horas interessantíssimas no estúdio do grande pintor.

Por essa altura, chegou a Londres o escritor sueco Axel Munthe, tão famoso como controverso, após a publicação de O Livro de San Michele. Conhecera-o em Estocolmo e, quando soube da sua chegada a Londres, telefonei-lhe. Ficou encantado por me ouvir e saber que estava em Londres. Ao mesmo tempo pediu-me se poderia substituir a sua secretária, que estava doente. Munthe estava, nessa altura, quase cego. Munthe e eu passávamos muito tempo juntos, e acabei por entrevistá-lo.

Quando Philip de László soube do nosso conhecimento, convidou-nos para almoçar. Ficaram grandes amigos desde então.

Mary Pickford e Douglas Fairbanks vieram, então, a Londres para negociar com Munthe os direitos sobre o seu livro. Este pediu-me que o secretariasse e reunimo-nos todos no hotel Hyde Park, onde o casal Fairbanks estava hospedado. O filme seria rodado em Hollywood e eu aceitei, com enorme alegria, o convite de Munthe para acompanhá-lo à Califórnia. Já antevia a possibilidade de conseguir várias entrevistas com as estrelas da Meca do cinema, gozando, ao mesmo tempo, de uma viagem fantástica...

Infelizmente, o contrato não chegou a ser assinado. Os Fairbanks exigiam que Munthe aparecesse em várias sequências do filme, e o escritor recusou essa participação.

E lá se foi por água abaixo a minha viagem ao mundo das estrelas do cinema...

Mas trabalho não me faltava. Elinor Glyn era uma das minhas ”vítimas”. Ela escrevia novelas românticas de grande sucesso, aquelas para as quais há sempre público... A decoração da sua casa era igual aos livros que escrevia: sugeria, destilava sexo e romance. Grandes divãs, cobertos de peles voluptuosas de tigre, catadupas de almofadas onde a carne se enterrava, cortinas lascivas carmezim, brocados cor de sangue.

Ela própria, envolvida em étamines levíssimas de cores pastel, a arrastar pelo chão, passeava decotes audaciosos e errava, lânguida, pelas salas.

Nordahl Grieg, escritor norueguês que, na altura, estava em Londres, leu em primeira mão o meu artigo sobre Elinor. Os seus comentários jocosos foram bem mais divertidos do que o artigo ou a entrevistada...

Bernard Shaw, que me foi apresentado por Lady Emily Lutyens, revelou-se, de entre todas as pessoas que entrevistei, uma das mais notáveis.

Quando lhe pedi uma entrevista, disse-me que aparecesse em sua casa, em Whitehall, às dez da manhã.

Sentia-me terrivelmente nervosa à chegada. Uma secretária mandou-me sentar e esperar num sofá baixinho, isolado, na entrada. Poucos minutos depois, aquela conhecida personagem, de figura ascética, muito bem parecido, entrou, em passo elástico, e cumprimentou-me, dizendo:

- Muito bom dia. Quem é você, menina loira?

O tom era tão cordial, tão amistoso, que o meu nervosismo desapareceu como por encanto.

Não me recordo de quantas horas passei com ele, mas cada minuto foi uma experiência inolvidável. Ainda vejo como se fosse hoje, na minha frente, aquele par de olhos de um azul muito vivo, perspicazes, com um brilho irónico e bem humorado. Muito jovem e inexperiente, quase nem me aper- cebi da honra que estava a ser-me concedida, quando Shaw me pediu a minha morada e me convidou para voltar a visitá-lo.

Muito pouco tempo depois, recebi um postal que rezava:

«O leão está na sua jaula. Venha visitar-me na quinta-feira, às cinco da tarde.»

Um chá com Bernard Shaw! Até ao dia marcado, o meu coração não cessou de bater em acelerado.

Uma vez mais, a conversa foi extremamente interessante. Ele estava muito interessado em saber como vivia nessa época a juventude. E perguntou-me tudo o que lhe veio à cabeça sobre as coisas que fazíamos, as nossas ideias, os objectivos de vida, como ocupávamos os tempos livres, quais eram os nossos mais profundos desejos.

Não quero massacrar os meus leitores com a lista completa das muitas personagens interessantes que me foi dado entrevistar. Mas há três que não posso deixar passar em claro. São eles a escritora Radclyffe Hall, o filósofo Bertrand Russell e o actor Charlie Chaplin.

Radclyffe Hall escreveu The well of loniless, obra que foi proibida pela censura inglesa. Em França, porém, a obra estava em todas as livrarias. O tema deste romance era a defesa do amor entre mulheres, um assunto que não me era lá muito familiar. Mas o fruto proibido é sempre o mais desejado: assim que um livro é censurado e proibido, todos o procuram e torna-se logo objecto de discussão generalizada.

Comigo aconteceu o mesmo. Consegui um exemplar, li-o de um fôlego e, logo de seguida, escrevi uma carta à sua autora a pedir uma entrevista.

Ela vivia no campo, numa pequena localidade a duas horas de distância de comboio, numa casa de estilo Tudor, rodeada por um jardinzinho romântico.

Acolheu-me com muita simpatia, ao mesmo tempo que me apresentou a amiga com quem vivia, uma típica lady inglesa, muito bela e extremamente femimina. Ambas pareciam estar na casa dos quarenta.

Nesse tempo, não era costume as mulheres usarem calças, mas Radclyffe Hall estava vestida com uma espécie de smoking, com uma blusa branca e gravata de seda. O rosto oval, muito branco, era emoldurado por cabelo grisalho muito curto. Tudo de uma extrema elegância e de uma imensa simplicidade.

Ao longo da minha vida, os meus amigos perguntaram-me muitas vezes como é que eu preparava as minhas entrevistas, se as escrevia, se as levava na cabeça... Esta foi das minhas entrevistas, a que me deu mais dores de cabeça. Que perguntas iria fazer? Que pontos tocar? Até onde poderia ir?

Acabei por decidir fazer como era meu hábito: ao correr da conversa, na passada das ideias, ao sabor da minha disposição e, sobretudo, da minha intuição.

Depois de uma breve troca de frases polidas, adequadas a quem acabou de conhecer-se, decidi arrancar a fundo, bem direita ao assunto.

Graças à personalidade tão humana e simples das duas mulheres, o tema, tão delicado na época, acabou por fluir, com toda a simplicidade e, pouco depois, senti-me completamente à vontade.

Radclyffe explicou-me a essência do amor lésbico de uma forma muito natural. Para ela tudo começara num dia em que regressava a casa, de volta do colégio interno. Na escadaria muito íngreme que dava acesso ao primeiro andar da casa, uma criada estava a limpar o chão. Descalça, sem meias, de saias curtas, mostrava inocentemente as pernas e coxas à menina que estava em baixo, no vestíbulo.

- Foi desde então que passei a sentir-me atraída apenas pelo sexo feminino. Já a minha amiga é diferente: é casada e tem filhos. Mas eu sou o grande amor da sua vida!

Foi alguns meses depois que se meteu na minha cabeça entrevistar Bertrand Russell. Embora me atraísse muito, a ideia enchia-me de complexos de inferioridade. Entrevistar aquele grande filósofo!...

A minha amiga Nalle Kjelland, um par de anos mais velha do que eu, e certamente muito mais culta, veio em meu auxílio:

- Eu vou contigo e ajudo-te. Sabes como me interesso por filosofia e, além disso, sou leitora fanática do Russell.

Devo confessar que acabou por ser ela a fazer a maior parte das perguntas, muitas das quais nem ao de leve percebi. Depois, para a redacção definitiva do texto, tive ainda a ajuda do meu amigo Nordahl Grieg. Feitas as contas, se me acusarem de ter feito batota, neste caso... declaro-me culpada!

Mais ou menos ao mesmo tempo, em todos os jornais ingleses, grandes parangonas anunciavam a visita de Charlie Chaplin ao Reino Unido.

Chaplin estava no auge da sua carreira e não mais voltara ao seu país natal desde que, rapazinho ainda, partira com intenção de não mais voltar.

Desde então de relações cortadas com a sua pátria, soava que se recusava a dar entrevistas ou a receber qualquer jornalista.

Para os meus colegas esta recusa era muito frustrante. Para mim... transformei-a num desafio.

Chariot iria ficar hospedado no Carlton Hotel.

Ora, eu conhecia aquele hotel muito bem. Tinha lá ido inúmeras vezes quando Lillebil Ibsen, a famosa cantora de ópera, filha do dramaturgo norueguês Henrik Ibsen, aí estava hospedada, encantando Londres com a sua arte, o seu encanto e a sua beleza. Por essa razão todos estavam habituados à minha presença, todos me conheciam.

Foi então que fiz um pacto com o porteiro...

Finalmente, chegou o grande dia. Os preparativos e a expectativa quanto à chegada de Chaplin eram semelhantes, talvez superiores, aos da chegada de uma qualquer cabeça coroada, porque esse que era o actor de cinema mais popular do mundo cativava ainda mais as populações.

Quando o carro de Chaplin chegou à entrada do Carlton, uma multidão delirante gritava o seu nome, ao mesmo tempo que engarrafava a rua, onde era impossível passar. Sem conseguir chegar à porta, o actor teve que saltar directamente para a varanda da sua suite, enquanto acenava, sorrindo, agradecendo a homenagem dos seus fãs.

Durante a sua estadia, fui passando pelo hotel e conferenciava todos os dias com o porteiro meu amigo, tentando descobrir uma aberta. As entrevistas continuavam fora de questão, o actor estava inabalável.

Um belo dia, porém, quando a minha esperança começava a enfraquecer, tive uma informação muito útil: «O senhor Chaplin almoça amanhã, à uma hora, com Lady Astor, em casa de Bernard Shaw.»

As duas e meia da tarde, apanhei um táxi, cujo motorista era amigo do ”meu” porteiro, e pedi-lhe que me levasse a Whitehall. Quando lá chegámos, um grande Rolls-Royce negro estava estacionada à porta do apartamento de Shaw.

Pedi ao meu motorista, a quem tinha contado todo o plano, que me esperasse, entrei no átrio do edifício e sentei-me na escada. Pouco depois, ouvi vozes animadas vindas de cima e corri a enfiar-me no meu táxi, ao mesmo tempo que Bernard Shaw e Lady Astor acompanhavam Chaplin até ao seu Rolls-Royce.

Depois, parecia um filme americano:

- Siga aquele carro, não o perca de vista para onde quer que ele vá! - gritei ao meu motorista.

A viagem não foi longa: de Whitehall até à entrada dos fornecedores, nas traseiras do Carlton. O Rolls parou, o meu táxi também.

Rápido que nem um relâmpago, Chaplin saltou do seu carro e esgueirou-se pela porta. Mas eu fui igualmente rápida e antes que ele tivesse conseguido fechar a porta do elevador, já me tinha lá dentro. Lembro-me que, mesmo assim, ainda tive tempo para pensar: «Mas que baixinho...».

Então, com a maior audácia, interpelei-o:

- Meu Deus, mas é o senhor Chaplin!! Que prazer encontrá-lo outra vez! A última vez que nos vimos deve ter sido na Califórnia!

O elevador, entretanto, parou. Mas Chaplin não fazia a menor ideia que eu não vivia ali. Por isso, muito delicadamente, deixou-me sair primeiro.

- Claro que me lembro de si, então como está?

- Estou óptima, felizmente. E sabe uma coisa curiosa? Depois de termos estado juntos, tornei-me jornalista! - E com um sedutor bater de pestanas dos meus olhos azuis noruegueses, acrescentei: - Eu sei que os jornalistas não são as suas criaturas preferidas... mas adorava, simplesmente adorava, entrevistá-lo!

- Sabe, eu recusei dar qualquer entrevista, mas... venha comigo.

E foi assim que eu, pela primeira e última vez na minha vida, entrei na suite real do Carlton, na companhia de Charlie Chaplin!!!

A suite tinha uma sala enorme e, num dos cantos, vi uma verdadeira montanha de caixas de cartão. Como que a desculpar-se, Chaplin explicou-me de que se tratava:

- Sabe, mandam-me toda a espécie de presentes, desde corn flakes a roupa interior, e pedem-me que diga publicamente que como este ou aquele produto, que uso esta ou aquela marca de roupa...

Em seguida, ligou para o serviço de quartos e pediu dois cafés.

Sentámo-nos, tomámos o café e tive então ocasião de lhe fazer todas as perguntas que me vieram à cabeça.

Por fim, levantei-me para sair. Mas não consegui resistir:

- Antes de ir-me embora... só mais um favor?... Não faz para mim alguns dos seus famosos passos de dança?

Sem pestanejar, Chaplin foi buscar os seus mundialmente conhecidos chapéu de coco e bengala. E, mesmo sem mudar de sapatos, pôs-se a dançar para mim dum lado para o outro da sala!

Resta-me dizer que o artigo que depois escrevi foi um sucesso. E o que me pagaram também.

Jovem, independente graças ao meu trabalho, vivi uma vida fantástica em Londres. Gozei cada momento, fosse de trabalho ou lazer. Visitei todos os museus, assisti a inúmeras conferências, fui a exposições e concertos, teatro, ópera, viajei por todo o lado, conheci todos os monumentos, absorvi avidamente, em doses maciças, arte, beleza e mundo. Conheci gente de todas as nacionalidades e meios, utilizando o meu potencial de idiomas estrangeiros. Havia muitos rapazes para me divertir, para namorar, para me apaixonar e nunca fui do género introvertido. Mas sempre tive os meus princípios muito nítidos e definidos sobre o amor e o casamento. O homem da minha vida teria que ser alguém com quem pudesse partilhar os meus pensamentos, alguém que apreciasse a mulher em mim. É provável que com todo o sentido de independência e de autoconfiança que sempre tive, não inspirasse com facilidade esses sentimentos a ninguém. Mas podia esperar com paciência a minha vez, ao mesmo tempo que ia evitando armadilhas e engodos.

Viajava muitas vezes até à Noruega e era sempre uma maravilha reencontrar a minha casa, a minha família, os meus amigos e a magnífica natureza do meu país. Sempre fui e serei profundamente grata pela minha infância e adolescência, pelo amor à natureza que sempre encheu a minha vida e sempre me proporcionou felicidade e consolo.

De tempos a tempos também visitava a Suécia. Mas Londres era sempre o sítio para onde voltava e onde continuava a ganhar a vida como jornalista.

 

                  Budapeste

Estávamos em Maio de 1931. E foi nessa altura que fui convidada para ir a Budapeste.

Durante os anos que passei em Londres, mantive-me sempre em contacto com uma jovem húngara que, como já contei, conhecera em Paris e de quem fiquei amiga. Um belo dia, escreveu-me uma carta:

«Gostava muito que viesses conhecer os meus pais e a minha casa em Budapeste...».

Foi assim que, uma semana depois, apanhei o comboio para Viena, cidade que não conhecia.

Ia emocionada, felicíssima, por finalmente ter oportunidade de visitar a famosa capital da Áustria. Queria conhecer o seu tão especial mundo da música, o famoso Stimmung (ambiente) vienense, mesmo sabendo que o país estava agora mais tristonho, empobrecido e retalhado pelo fim da Primeira Guerra Mundial.

Queria também - e consegui! - dançar a valsa vienense num salão da capital, numa réplica fiel das princesas de tantas histórias de amor, lidas em romances cor-de-rosa ou vistas no cinema...

Não sei se seria uma espécie de premonição, mas a verdade é que as palavras Hungria e Budapeste tinham sempre despertado sentimentos difíceis de definir dentro de mim, qualquer coisa muito romântica e bela. Pouco ou nada sabia daquele país, excepto o pouco que aprendera na escola, na disciplina de História, que nunca foi o meu forte...

«A Hungria é o celeiro da Europa»... Era isto, basicamente, o que eu recordava das minhas aulas.

A minha amiga, Edith, esperava-me na plataforma, quando o meu comboio, pelas sete da noite, entrou na estação de Budapeste. Mal entrámos no carro dela, disse-me:

- Assim que chegarmos, tens que despachar-te: pões um vestido bem chique, tiras da mala apenas o indispensável, porque não podemos demorar: vamos a uma grande recepção, em casa do Primeiro-ministro, que começa daqui a meia hora!

Mentalmente, escolhi logo tudo o que iria pôr para demorar menos a arranjar-me.

- Óptimo, vou vestir o meu vestido comprido de cetim azul claro, que comprei com o dinheiro da entrevista ao Chaplin.

Atravessámos o Danúbio - que é tudo menos azul! através da belíssima ponte Lánchid - Ponte das Correntes -, porque a casa da minha amiga, como quase todas as melhores casas de Budapeste, ficava do lado de Buda.

A casa situava-se no meio de um enorme jardim muito bem tratado. Ao fundo, havia um court de ténis. Os pais dela receberam-me de forma calorosa, e eu senti-me em família de imediato.

Vestimo-nos rapidamente, ficámos prontas em meia hora. Ao partir, esbocei um agradecimento mudo a mister Chaplin, no momento em que dei uma olhadela para o espelho.

Por muitos anos que viva, nunca irei esquecer esta minha primeira noite em Budapeste, a belíssima cidade que iria ser mal eu sabia! - o meu adorado lar, durante catorze anos.

Voltemos à festa do Primeiro-ministro. A sua casa ficava situada em frente do Palácio Real e tinha uma vista extraordinária para a cidade, o Danúbio e as suas seis lindas pontes. Uma longa fila de carros deslizava frente à entrada. Quando parámos, um ”magiar” lindo, vestido com uma libré antiquíssima, magnífica, abriu-nos a porta.

Na escadaria, cópias perfeitas daquele, com idênticas librés, alinhavam-se de ambos os lados, até ao cimo, à entrada do salão, onde o Primeiro-ministro Bethlen e a mulher recebiam os cerca de mil convidados.

«Isto deve ter sido copiado das Mil e Uma Noites!», pensei, enquanto me empertigava e subia a escadaria com toda a pose que consegui reunir. A maior parte dos convidados, tanto os homens como as mulheres, estavam vestidos com roupas que pertenciam às suas famílias havia séculos, trajes diferentes de família para família, tradição da Hungria e a que chamam Disz magyar.

Naquela noite, não havia baile, mas uma orquestra cigana tocava música tradicional húngara. Muito mais tarde, quando aprendi a língua, descobri que quase todos os poemas dessas músicas cantam o amor ou a história trágica do país.

Estava uma lindíssima noite de Maio, e do imenso terraço onde assomei a vista para a cidade e para o Danúbio, tudo era fantástico.

- Vamos até à ilha Margit dançar? - A minha amiga Edith punha, assim, fim ao meu devaneio, ao meu sonho de uma noite de Maio...

Disse logo que sim, claro, até porque vi, no grupo, um dos príncipes de contos de fadas, muito elegante, bonito, encantador. Dançar com ele? Porque não?

As palavras são insuficientes para descrever esta minha primeira noite na Hungria: uma rapariguinha norueguesa, com o seu vestido azul claro de Chaplin, um restaurante em Budapeste, uma noite quente de Maio, um jardim de acácias perfumadas, uma lua cheia de luar, um cheiro intenso a terra húmida e vegetação exuberante. Nos arbustos próximos, o canto dos rouxinóis competia com os acordes da orquestra cigana. Na mesa, Tokaji, o famoso vinho doce húngaro. De pé, ao meu lado, o príncipe encantado a convidar-me para dançar!

Mil e uma noites, tinha eu pensado? Tudo isto era infinitamente melhor!

Quando partimos, era quase dia. A minha primeira impressão da terra dos magiares foi avassaladora. Este sentimento iria continuar por mais três semanas.

Voltámos muitas vezes à Ilha Margit. Havia courts de ténis, um clube de pólo, piscinas e uma nascente de água termal quente. Graças a essa nascente quente, a vegetação era luxuriante, mesmo para a Hungria. As árvores eram frondosas, muito altas, os arbustos tão densos que os rouxinóis faziam lá os seus ninhos.

Esta ilha é conhecida como ”A Pérola do Danúbio” e percebe-se bem porquê.

Durante a minha estadia em Budapeste, tive também ocasião de visitar o campo. Vi propriedades lindíssimas, de jardins impecáveis, florestas bem limpas e cuidadas, prados a perder de vista. Castelos, casas senhoriais.

Certo fim de semana, levaram-me a visitar uma família de criadores de cavalos. Que cavalos extraordinários! Durante os dias que lá passei, tive ocasião de montá-los: de manhã bem cedo, antes de haver muito calor, cavalgávamos horas, por entre o mar das cearas douradas, de ondulado suave que a brisa matinal provocava. Ou galopávamos nos campos cobertos de alfazema azul, salpicados, aqui e acolá, pelas gotas de sangue das papoilas.

As faces vermelhas do exercício e da excitação, empertigada na garupa, pés bem assentes nos estribos em contacto ritmado com a barriga de um valoroso cavalo húngaro de raça bem apurada, eu bendizia a vida, a minha juventude e as tantas coisas belas que o Universo me proporcionava!

Um dia, fomos convidadas para uma grande recepção, aliás, um garden-party, no Palácio Real, oferecida pelo Almirante Horthy, o regente húngaro.

Quando entrámos o portão, vi que a minha amiga Edith cumprimentava um rapaz elegante e muito bem parecido, com quem trocou algumas palavras. Quando ela veio ter comigo, disse-me:

- Este meu amigo já está farto da festa e vai-se embora, mas fiz-lhe prometer que virá jogar ténis connosco um destes dias.

- Que pena sair tão cedo, é bem giro! - respondi-lhe, enquanto disfarçadamente me voltava para trás, na esperança de poder ainda vislumbrá-lo.

Os convidados continuavam a desfilar perante o regente Horthy e a mulher, e posso dizer que raras vezes me foi dado ver um casal mais bonito e simpático. Até eu, a rapariguinha desconhecida vinda lá do norte da Europa, teve direito a cumprimento, sorrisos e a algumas frases amáveis.

No final da recepção, fomos jantar a um restaurante. Comemos um delicioso paprikas csirke, galinha típica da Hungria temperada com natas e, claro, muita paprikal Bebemos um espumoso local que trepava pelo nariz e pelos pensamentos, enquanto dois conjuntos musicais alegravam ainda mais a nossa noite: uma orquestra de música para dançar e um grupo de ciganos com o seu primaz: o maestro. Curiosamente, nem o seu primaz, nem os músicos ciganos sabem ler música, antes tocam todos de ouvido. Assim, quando algum dos clientes quer cantar qualquer coisa, nomeadamente uma balada romântica dedicada à sua ”dama”, chama o chefe do grupo, trauteia-lhe a música ao ouvido, e logo ele e o seus violinistas a tocam, enquanto o cantor improvisado se desembaraça como pode.

Foi exactamente o que fez o meu companheiro de jantar. E logo que os músicos apanharam a sua cantiga, instalaram-se todos à roda da nossa mesa com os seus violinos, enquanto o meu cantor, acompanhado pelos outros comensais, me dedicou uma canção. A música era linda. Quanto à letra... não percebi, evidentemente, nem uma palavra. Mas isso não fez a menor diferença!

Não saber uma palavra da língua do país não é complicado na Hungria: a maior parte dos húngaros que conheci falavam francês, inglês ou alemão. A grande dificuldade começava no momento em que a conversa versava política - o que acontecia com muita frequência. Então, esqueciam-se que eu existia e só falavam em húngaro!

Voltemos ao jovem que eu entrevira, já de saída, na recepção do regente Horthy. O seu nome era Andor Hubay: Hubay Andor, como na Hungria se apresentam. Recordar-se-ão que ele tinha prometido à minha amiga Edith vir jogar ténis connosco. E cumpriu. Jogava muito bem, e não estava menos elegante no seu traje desportivo do que vestido de gala no garden-party.

No final do jogo, sentámo-nos no terraço a tomar uma bebida. Na altura de partir, convidou-me para jantar, uma noite. Achei difícil recusar. Com que desculpa? Poucos dias depois, veio buscar-me no seu carro e levou-me a jantar a um pequeno restaurante nas colinas Gellert, com uma vista maravilhosa sobre o Danúbio. vEste restaurante era diferente de todos os outros onde estivera em Budapeste: não havia música para dançar, apenas ciganos com os seus violinos.

Tudo me pareceu diferente nessa noite: a disposição e, sobretudo, a conversa que tocou em várias cordas minhas, onde antes ninguém tinha tocado. Achei a sua voz linda, quente e melodiosa, as mãos eram finas, delicadas e esguias, o género de mãos que parecem feitas para acariciar, desenhadas à medida de um rosto.

Quando regressei a casa, não fiz barulho nenhum e fui em bicos de pés para o meu quarto. Não queria correr o risco de acordar a minha amiga Edith. Queria estar sozinha com os meus pensamentos felizes, com os meus sonhos, com as minhas emoções.

A minha amiga tinha-me contado que ele era filho de um dos maiores músicos húngaros, Jenõ Hubay, violinista, compositor, maestro. Os seus pais tinham esperado quatro anos até conseguirem casar. A mãe pertencia à mais antiga aristocracia húngara e o pai recusava-se a deixá-la casar com um artista! E nem o facto de ele ser conhecido mundialmente o demovia, antes pelo contrário.

- Porque é que não pedes uma entrevista e escreves um artigo sobre a casa deles, o conhecidíssimo Palácio Hubay? Só a fantástica colecção de pintura que têm fornece-te material para vários artigos... - sugeriu-me Edith.

Aceitei a sugestão, fiz o pedido e a resposta foi afirmativa. Infelizmente, o pai de Andor estava ausente quando lá fui. Foi a mãe que nos recebeu, a mim e à Edith, e que gentilmente nos acompanhou.

Mostrou-nos a colecção de arte, da qual fazia parte um retrato da anfitriã, pintado por Philip de László, um dos três retratos que o tornaram mundialmente famoso.

Durante toda a visita, tive a sensação de estar a ser sujeita a um exame minucioso.

Vi Andor mais duas vezes antes de regressar.

O que eu nem sonhava era que o meu retrato, que fora pintado por de László, havia de estar pendurado naquelas mesmas paredes daí a dois anos.

Chegou o dia da minha partida. Não fiquei particularmente sensibilizada, nem pelas flores nem pela quantidade de pessoas que foram despedir-se de mim. Isto pela simples razão de que ELE não estava lá. Talvez tivesse alguma razão para isso...

Pouco tempo depois de chegar à Noruega, recebi um postal dele. Era apenas um postal, absolutamente banal. Mas achei que havia alguma coisa escrita nas entrelinhas...

Os meus artigos sobre a Hungria tiveram muito sucesso, deram para pagar todas as minhas despesas de viagem e ainda restou algum dinheiro.

As visitas ocasionais que continuei a fazer à Noruega deram-me sempre uma grande sensação de segurança: eram as minhas raízes, onde eu podia sempre voltar depois das minhas asas me levarem para longe. Hoje, quando olho para trás, chego à conclusão que os meus pais foram sempre muito tolerantes. A minha vida foi por completo diferente da das raparigas da minha idade.

Nessa época, e no meio em que me movimentava, não era frequente as jovens terem uma profissão e serem independentes economicamente. Acho que podia ser considerada emancipada.

Muitas das minhas amigas dessa época tinham casado e ”assentado”. Viver simplesmente com um namorado era impensável naquilo que costumava chamar-se o ”nosso círculo”.

Fiquei em casa durante um ano inteiro. Vivi com dois dos meus irmãos mais novos e foi uma época muito agradável. No decorrer desse ano, recebi apenas meia dúzia de postais do húngaro, a quem não conseguia afastar do meu pensamento. A coisa mais ”excitante” que me escreveu foi: «Quando volta até cá?». E não passou disso!!

 

                 Porquê a Itália?

O Príncipe Gustavo Adolfo da Suécia ia casar em Coburg, na Alemanha. E eu parti para essa cidade para fazer a cobertura jornalística do acontecimento.

Escrevi vários artigos sobre reis e rainhas, príncipes e princesas, sobre pompa e circunstância, sobre roupas magníficas, brocados e dourados, jóias, adereços, arminhos, tiaras, cabeças coroadas, rubis e esmeraldas, brilhantes e safiras. Por fim, as cabeças tiraram as coroas, os diademas voltaram ao seu lugar nos estojos, as pedras preciosas repousaram.

Chegara a hora de partir. Foi então que decidi continuar a viagem para Viena e Budapeste. Já que estava tão a sul... Desculpei-me perante mim própria com a ideia de que valeria a pena: podia colher mais material para entrevistas e artigos. Mas, bem lá dentro de mim, eu sabia que queria voltar a encontrar aquele húngaro gentil, de voz doce e mãos meigas. E, afinal, ele tinha escrito a perguntar-me quando voltaria...

Tal como dezoito meses antes, uma vez mais, a minha amiga Edith foi buscar-me à estação do comboio. Como o Natal estava próximo, a minha estadia não poderia ser muito longa... pensava eu!

Estávamos no mês de Dezembro de 1932. mas Budapeste

e o Danúbio, mesmo sem rouxinóis a cantar, como em Maio, continuava encantadora.

- Sabes que tenho encontrado o ”teu” amigo Andor por aí? Pergunta sempre por ti... - disse-me Edith, ao mesmo tempo que espiava no meu rosto algum sinal de emoção.

Sem pestanejar, disfarcei, aparentando total indiferença:

- Sim? E como tem estado o tempo por cá? Muito frio? No dia seguinte, cantava-se a ópera Anna Karenina, que

Jenõ Hubay compusera em 1913, e Edith tinha bilhetes para o espectáculo. Foi logo no princípio do primeiro intervalo que O vi !! Nesse momento, foi como se uma corrente eléctrica me tivesse atravessado: tive a certeza! Aquele era o homem da minha vida!

Trocámos algumas palavras, uma conversa morna e sem interesse. Perguntou-me que tal estava a ser esta viagem, o que tinha feito, se a vida estava a decorrer-me bem. Por fim, depois de uma pausa em que parecia que não havia mais nada para dizer, Andor perguntou-me:

- Quando é que nos vemos outra vez? - E, sem esperar resposta, acrescentou: - Quer vir jantar comigo amanhã?

Adeus cautelas, tabus e reservas de virgem recatada! Sem mesmo respirar, sem uma hesitação, aceitei o convite. Dentro dos seus olhos negros, muito profundos, vi um relâmpago de felicidade, em tudo semelhante ao que eu sentia. Quando hoje penso naquele momento de exaltação, de felicidade, só desejo que os meus netos possam sentir, nem que seja uma vez na vida, um momento tão forte, tão intenso de felicidade pura.

Passámos a encontrar-nos todos os dias. Mas, ainda que sempre rodeados de muitas outras pessoas, tínhamos a sensação que só existíamos os dois, que flutuávamos sozinhos no mundo.

Andor Hubay era pintor. Um dia, quando passeávamos a pé, muito perto do Danúbio, pediu-me:

- Gostava tanto de pintar o teu retrato! Posso?... Nem me passou pela cabeça dizer que não.

O estúdio dele ficava nas águas-furtadas da casa dos pais e tinha uma vista lindíssima para o rio e para o palácio do Parlamento.

Nos dias que se seguiram, as sessões de pose foram preenchidas por conversas longas, saborosas, sobre isto e aquilo, sobre os mais variados assuntos, numa ânsia de nos conhecermos em todos os aspectos. Do retrato ficou apenas um esboço a lápis, de contornos muito menos definidos do que a ideia que, então, cada um de nós tinha sobre o outro.

Um belo dia, perguntou-me:

- Tu, que já viajaste tanto, já estiveste em Itália alguma vez?

- Não - respondi-lhe -, nunca lá fui. Mas porque fazes essa pergunta, eu prometi a mim mesma guardar a primeira visita a Itália para a minha lua-de-mel!

- Nesse caso, eu vou contigo! - exclamou sem transição. E foi assim que ficámos noivos...

Nessa noite, fomos dar um passeio a pé. Acompanhou-nos o pastor alemão de Andor, que dava mostras de uma alegria esfusiante, não cessava de abanar a cauda e de correr à nossa roda.

Achei que o cão estava feliz por passear connosco. Mas, decididamente, Andor era muito mais romântico do que eu:

- Vês o meu cão? Está a dar-nos os parabéns e a demonstrar a sua aprovação pelo nosso noivado!

Em todo o caso, esse cão foi por algum tempo o único ser com quem partilhámos o nosso segredo, porque combinámos não dizer nada a ninguém antes de eu ter escrito ao meu pai a contar os nossos planos.

Na manhã seguinte, acordei com uma enorme constipação. O amor pode ser antídoto para muita coisa, mas não

serve de vacina contra o resfriado! Passei o dia todo na cama e escrevi, então, ao meu pai para lhe contar que estava noiva de um artista húngaro. Nem me passou pela cabeça explicar mais nada, nem a que família pertencia, nem qual a sua posição social. Disse-lhe apenas que era o homem da minha vida e que planeávamos casar o mais rápido possível.

Contei tudo à Edith, mas pedi-lhe que guardasse segredo absoluto. Para dizer a verdade, ela não pareceu nada admirada, antes muito satisfeita com a ideia.

Passei os dias que se seguiram sempre na companhia de Andor. Cinco dias depois, chegou um balde de água gelada sob a forma de telegrama assinado pelo meu pai: «Volta imediatamente para casa!».

Antes, porém, que eu desse cumprimento à ordem do meu pai, gizámos todos os nossos planos para o futuro. O noivo sabia perfeitamente o que queria, quanto aos pormenores do casamento. Teria lugar em Itália, em Veneza, na catedral de São Marcos. Sem convidados, sem assistentes, apenas os dois nubentes.

Como é normal, a noiva sonhava com o vestido comprido branco, de cauda muito longa, o véu, a flor de laranjeira, a entrada solene, ao longo da nave da igreja, pelo braço do pai orgulhoso, enquanto no órgão ribombava a marcha nupcial de Lohengrin. Os convidados, muitos, em trajes de gala magníficos, sentados nas naves, a admirar a beleza dela, por entre ”ahs” e ”ohs” em sussurro e sorrisos de cumplicidade...

Andor, porém, recusou, pura e simplesmente qualquer pompa ou circunstância. Eu acho que foi porque lhe tinha chegado aos ouvidos que, na Noruega, todos os pretextos servem para um discurso... E não queria correr o risco de que, pelo menos metade de uma ou duas centenas de convidados, se lembrasse, durante a recepção, de que era norueguês!!

Além disso, sublinhara:

- Se nós os dois não formos capazes de transformar o dia do nosso casamento num momento esplendoroso, não serão dez ou quinhentos convidados que irão fazê-lo.

Havia, entretanto, inúmeras formalidades a tratar. Ele era húngaro e católico, e eu, norueguesa e protestante. O casamento religioso teria que celebrar-se numa igreja católica e eu tive que assinar um documento no qual me comprometia a baptizar nessa confissão todos os filhos que tivéssemos.

- Não te importas de assumir este compromisso? - perguntou-me Andor.

- De modo nenhum - respondi-lhe. - Católicos ou protestantes, somos todos filhos de Deus, e o que é essencial é termos a nossa fé. Neste momento, não estou disposta a abdicar das minhas crenças. Mais tarde... quem sabe? Mas terá que ser sempre por minha vontade, e não por qualquer espécie de imposição.

Andor concordou inteiramente comigo. Sempre foi tão fácil falar com ele! Em qualquer contingência, conseguia transformar as dúvidas, os problemas, na coisa mais simples do mundo. Tinha tanto que aprender com ele!

Combinámos que ele iria à Noruega, no fim de Fevereiro, para ser apresentado - e aceite, esperávamos! - a toda a minha família.

A minha última noite em Budapeste não teve sentimentalismos nem tristezas. Estávamos tão apaixonados e tão desmesuradamente felizes e gratos por nos termos encontrado! Ele despediu-se de mim no jardim onde tantas vezes tínhamos estado e recusou-se a ir à estação do comboio. Foi a minha fiel Edith e vários outros amigos que me acompanharam na partida. Abraços e beijos, muitas flores, e lá fui eu...

À medida que o comboio se afastava lentamente, o meu coração batia ao ritmo das rodas e o acenar dos lenços dos meus amigos ia-se tornando cada vez mais indistinto, escondido pela cortina de lágrimas que não conseguia reprimir.

Algum tempo depois, o comboio parou, mas eu não liguei qualquer importância, sentada no meu lugar, imóvel, de olhos fechados, absorvida nos meus pensamentos e nas saudades que já tinha de Andor. O comboio retomou a marcha e eu senti que alguém tinha entrado no meu compartimento.

Quando, finalmente, olhei... Andor estava sentado no banco mesmo na minha frente! O motorista tinha-o trazido à primeira paragem do caminho, com ordens para ir buscá-lo à estação de Hegyeshalom, na fronteira, a qual ficava a mais ou menos uma hora de distância.

Foi aí que ele se apeou. Depois ficou imóvel, na plataforma, enquanto o comboio, envolto numa nuvem de vapor, se ia afastando lentamente.

Tentando controlar-me, eu sorria e acenava-lhe até que deixei de vê-lo e pude, então, dar livre curso à torrente de lágrimas que me afogava.

Um jovem húngaro sentado ao meu lado tentou consolar-me:

- Menina, não chore, vai ver que ele volta!

Disso eu tinha a certeza! E foi com o coração cheio de amor e tranquilidade que continuei a minha viagem para Oslo.

À chegada, o meu pai esperava-me na estação. Voltar a vê-lo dava-me sempre segurança e calor humano. Exactamente como encontrar-me com a minha avó.

Com imensa satisfação contei-lhes tudo o que acontecera, pu-los a par de todos os meus planos. Mais tarde, soube que o meu pai tinha escrito ao cônsul da Noruega em Viena, a pedir informações sobre ”um tal” Andor Hubay e sua família... A resposta que obteve-deixou-o sossegado!

Andor chegou a Oslo em Fevereiro, e a minha avó ofereceu um grande jantar de família em sua honra. Nessa noite Andor chegou, FOI VISTO e... venceu!...

Quatro dias depois, teve lugar a famosa competição anual de saltos de esqui de Holmenkollen e eu estava excitada e orgulhosa por poder mostrar-lhe um acontecimento tão diferente daquilo a que estava habituado. Antes, tinha escrito a dizer que viesse preparado com roupa desportiva de Inverno. Como é evidente, ele só tinha esse tipo de roupa para caçar... Deu um espectáculo notável, aquele húngaro, de grandes bigodes e fato da caça dos Cárpatos, no meio de todos os noruegueses nos seus muito práticos trajos de esqui!

Nessa noite, o meu irmão Nils e a mulher, Heddy, deram um grande jantar para mostrar e dar a conhecer a todos os nossos amigos o ”magyar” da Edle... Pelo meio, a conversa deslizou para a política.

Em 1933, na Noruega, não estávamos muito interessados em política internacional. Na Hungria, acontecia precisamente o contrário. Desde a minha primeira ida àquele país, pude aperceber-me de que os húngaros como Andor estavam profunda e ardentemente interessados em tudo o que lhes dizia respeito.

- Vocês não se dão conta do perigo do nazismo! E esse perigo não diz respeito apenas à Europa, mas ao mundo inteiro.

Com os olhos a fuzilar, Andor prosseguiu:

- Se Hitler não for detido, vai haver guerra. E, acreditem, a Noruega não vai ficar de fora!

De entre os convivas, alguém o contrariou:

- Não estou nada de acordo consigo, meu amigo. Primeiro, estou convencido de que não haverá guerra nenhuma. E, se por hipótese absurda tal acontecer, acredite que a Noruega ficará de fora. Aposto dez coroas consigo...

- Não estou habituado a que as pessoas apostem dez coroas sobre o destino do seu próprio país! - respondeu Andor, muito irritado, ao mesmo tempo que atirava com uma caixa de fósforos para cima da mesa.

 

               A lua-de-mel

Andor e eu tínhamos combinado casar em Veneza, no dia 6 de Maio. Só os dois. Exactamente como decidíramos. Sem que jamais nos arrependêssemos da decisão.

Não foi nada fácil a despedida da Noruega, da minha família, dos meus amigos e, sobretudo, da minha avó que estava muito doente. Veio muita gente despedir-se à estação e, quando o comboio partiu, a noiva desfez-se em lágrimas. Eu tinha resolvido passar a noite em Innsbruck, e não me apetecia nada lá chegar de ar triste e de olhos inchados.

Tinha agora bastante tempo para pensar na minha vida, nas minhas decisões. Era um passo muito sério e complicado deixar a minha terra com tudo o que isso significava.

Devia chegar a Veneza no outro dia, ao fim da tarde. Na estação de fronteira entre a Áustria e a Itália, Andor entrou pelo meu compartimento dentro:

- No dia em que ficámos noivos, disseste - lembras-te?

- que nunca tinhas estado em Itália. E que querias guardar essa primeira visita para a tua lua-de-mel. Quero chegar lá contigo...

Muitas pessoas no mundo inteiro passaram já pela magnífica experiência da chegada a Veneza. Mas talvez não muitas - e, certamente, muito poucas raparigas norueguesas - tenham chegado lá na companhia do homem amado e na véspera do seu casamento.

Uma vez mais, estávamos no mês de Maio e, quer acreditem quer não, era noite de lua cheia.

Como num bom filme romântico, como num sonho, a gôndola deslizava sem ruído pelo Grand Canale, parou dentro do hotel e desembarcámos no seu elegante átrio: eu e o homem por quem estava apaixonadíssima e com quem ia casar no dia seguinte.

Tínhamos que estar na Catedral de São Marcos às onze da manhã. Ainda que não tivesse um vestido de noiva, sentia-me linda no meu vestido azul claro de Verão. De mão dada com um noivo de ar felicíssimo, atravessei a praça de São Marcos cheia de sol, por entre um mar de turistas.

Casámos na sacristia. Andor tinha-me dito que eu devia, simplesmente, responder «si» quando o padre se virasse para mim. Ele pedira ao advogado que nos tratou das inúmeras formalidades que fosse nossa testemunha. Foi o causídico que me trouxe o ramo de flores e mo deu à entrada da sacristia. No final, com respiração ofegante, porque tinha asma e as flores lhe faziam alergia, pronunciou um felizmente curto discurso de parabéns. Mas, mesmo falada com dificuldades de respiração, a língua italiana é lindíssima e, ainda que não percebesse nada, soou-me como música aos meus ouvidos.

Pela primeira vez na minha vida, ajoelhei perante um altar. Apesar disso, como foi fácil e natural e bom estar de joelhos perante a Divindade, cheia de gratidão, a murmurar uma prece!

Passámos uma semana em Veneza e outra em Roma. Que bem que me soube ter adiado a minha primeira viagem à Itália até à lua de mel!

Andor falava italiano, a arte era a sua especialidade e, ainda por cima, tinha vivido em Roma enquanto estudante. Quando relembro essa viagem, no que aprendi a ver e a apreciar, como aumentei a minha cultura, agradeço ter crescido a apreciar a beleza. A cada passo, em cada momento, visitando a capela Sistina na companhia de Andor, apreciando os frescos de Miguel Angelo durante a missa cantada na catedral de São Pedro, mergulhava no mais profundo prazer, sentia-me verdadeiramente abençoada. À noite, íamos a concertos ou à ópera.

Eu era jovem, delirantemente feliz, apaixonada. Amava loucamente. Era amada com paixão. Quando a lua-de-mel chegou ao fim, partimos para Budapeste. O velho motorista da família veio buscar-nos à estação. Tinha os olhos marejados de lágrimas quando me cumprimentou, dirigindo-me um pequeno discurso, do qual, evidentemente, não percebi uma palavra. Mas quando Andor me fez a tradução, fiquei verdadeiramente comovida.

Depois atravessámos o Danúbio e parámos em frente da casa que eu tinha visitado, um dia, com a intenção de escrever um artigo. No vestíbulo, para nos receber, estavam os meus sogros, o irmão mais novo de Andor e Bumi, a idosa ama dos ”meninos”. Calculo que estariam à nossa espera com muita curiosidade e, ao mesmo tempo, com alguma ansiedade. Era um momento de alegria, é certo, mas eles não sabiam quem era verdadeiramente a mulher que lhes entrava pela porta para desempenhar o papel de nora.

ELES não tinham escrito a nenhum cônsul para saber informações desta jovem norueguesa que, uma única vez, lhes entrara pela porta dentro, no papel de jornalista.

Andor já tinha trinta e cinco anos e, certamente, confiavam no seu julgamento. Mas, mesmo assim, acho que devem ter-me recebido divididos entre sentimentos contraditórios. Eu era muito jovem e estava demasiado absorvida no que me dizia respeito para me colocar na pele deles. Nem me passava pela cabeça que pudessem existir outras emoções, para além da simpatia que expressavam.

A casa dos meus sogros tinha cinco andares. A entrada para o piso inferior ficava do lado do Danúbio. Para nós estavam destinados os dois andares superiores. No quarto piso ficava o atelier onde eu tinha posado para o meu retrato, um quarto e uma casa de banho. O terceiro piso não tinha qualquer mobília. Podíamos decorá-lo à nossa vontade.

Esta era agora a minha casa, num país estranho e longínquo, onde se falava uma língua da qual eu não percebia uma palavra.

Hoje em dia, olhando para trás, com a perspectiva adquirida nos longos anos que já vivi, penso que o que me permitiu encarar sem temor nem ansiedade tamanha mudança foi o sentido de segurança, de estar bem na minha pele, que adquiri durante a infância e a juventude. Isso e o imenso apoio que constituía a presença carinhosa, paciente, de Andor a meu lado. A extraordinária defesa, a armadura de ouro contra todos os males que só o amor é capaz de dar. Sinto-me tentada a dizer - quando se é jovem. Ou não?

Definitivamente, não: hoje, com muitos anos em cima, rugas profundas no rosto e o cabelo todo branco, continuo a sentir a segurança que o amor proporciona à minha volta. E não me refiro, apenas, ao mundo das memórias, das recordações. Refiro-me a cada dia da minha vida. A toda a minha vida.

Mas voltemos à minha chegada a Budapeste, casada de fresco. Os primeiros dias, a primeira semana, passei-a a conhecer os amigos e parentes da família. Fui exibida como um trofeu, mas a experiência não foi desagradável.

Todas as pessoas eram encantadoras comigo, acolhendo

com o coração aberto a recém-chegada da estranha e longínqua cidade do norte.

A minha sogra pôs ao meu serviço uma rapariguinha austro-húngara chamada Mietze, uma criatura sempre bem disposta e sorridente, que falava muito bem, quer húngaro quer alemão. Foi com ela que me iniciei na árdua tarefa de penetrar na complexidade do idioma húngaro.

O meu marido - como eu adorava pronunciar esta palavra! - foi, entretanto, nomeado director do Nemzeti Szalon, a Galeria Nacional de Arte, trabalho que o mantinha ocupado todas as manhãs.

Algumas semanas depois da nossa chegada fomos para uma propriedade da família, Szalatna, admimstrada por Andor, onde a minha sogra tinha sido criada, e que ficava a cerca de duas horas de automóvel.

No final da Primeira Guerra Mundial, quando o chamado tratado de paz da Hungria foi assinado em Versalhes, uma caneta empurrou Szalatna do território húngaro, adjudicando-a à recém-criada Checoslováquia. Passarinhando sobre os seus mapas, as eminentes cabeças reunidas em Versalhes repararam que existia um rio chamado Ipoly, e decidiram que este faria a fronteira entre os dois países. Apesar deste ficar reduzido a um riacho seco durante o verão, aquele tratado referia-o como navegável!

Posso imaginar o que sentia Andor de cada vez que, para ir a sua casa, depois de conduzir durante duas horas, tinha que parar e mostrar o seu passaporte para pisar uma terra que existia há mil anos e era sua!

Estávamos em Junho e a tarde era morna e doce quando chegámos a Szalatna. No exterior da casa e na entrada, os criados, perfilados, esperavam a nossa chegada.

Fui apresentada a todos, criados, pessoal da lavoura e tratadores de cavalos - a criação de cavalos era uma das principais actividades daquela propriedade. Ofereceram-me ramos de flores do campo, apertámos as mãos, houve alguns discursos, e ali estava eu, sem perceber uma palavra, a sorrir, com ar certamente muito estúpido. Foi nessa ocasião que jurei a mim própria aprender a língua o mais depressa possível.

Tive uma sensação estranha ao sentar-me à cabeceira da mesa de jantar como dona da casa. Nas olhadelas furtivas que deitei aos retratos de família que ornamentavam as paredes da enorme sala, julguei vislumbrar alguns olhares de análise crítica por parte daqueles antepassados...

Depois do jantar sentámo-nos no terraço. Na noite quente de Junho, os rouxinóis cantavam nos arbustos e milhões de estrelas brilhavam no céu muito escuro. Os meus pensamentos voaram para esse outro céu tão claro que parecia dia da minha Noruega, e senti-me percorrida por um arrepio de nostalgia. Baixinho, disse-o a Andor.

- Não tentes esmagar a tua saudade - disse-me ele. Deves sentir-te feliz por teres alguém, alguma coisa que te faça saudade. E por teres a capacidade de senti-la.

Ao longo da minha vida, recordei muitas vezes estas suas palavras que me ajudaram e serviram de conforto em inúmeras ocasiões.

Nos dias que se seguiram, vim a conhecer também os vizinhos mais próximos. No domingo, fomos à missa na aldeia. A igreja estava apinhada de gente e todos nos olhavam com curiosidade. Andor, embora fosse profundamente religioso, não era católico praticante. «A coisa mais importante é termos fé, sentido de que existe uma entidade superior, respeito pelo que é sagrado», dizia. Jamais fez qualquer tentativa para me influenciar, mas a missa da igreja católica causou-me sempre uma profunda impressão.

Era bom ajoelhar-me e sentir-me pequena face ao poder superior que nunca achei frio ou autoritário, antes suave e estimulante.

O tempo foi passando e, à medida que conhecia mais vizinhos e amigos, fui-me sentindo, cada vez mais, a dona da casa.

De manhã, saíamos a cavalo, acompanhados pelos cães fiéis de Andor. Na Noruega, na minha juventude, o cocheiro Hansen obrigava-me sempre a aparelhar a minha égua Tosa. Aqui, Jószi, o cocheiro e amigo fiel de Andor, trazia-nos sempre os dois cavalos selados e passados à guia, prontinhos para montar.

Embora eu estivesse habituada à vida numa quinta, aqui as coisas eram completamente novas e diferentes: campos imensos de milho, de maçarocas cheias, reluzentes, melancias, tabaco, vinhas, papoilas a salpicar os campos quais decorações de Natal e searas a perder de vista, ondulantes, douradas, de espigas perfeitas de trigo maduro. Muitas vezes lembrava-me do que tinha aprendido na escola: a Hungria é o celeiro da Europa. E o quentíssimo sol de Junho fazia brilhar cavalos alegres, fogosos, e cães barulhentos ladravam alegremente, a celebrar o sol e a alegria de estar vivo.

Nunca conheci ninguém com tanto jeito para lidar com animais como Andor. Era fantástica a forma como ele se entendia com os cavalos nas longas cavalgadas que dávamos pela propriedade. Ildiko, o grande lipisiano que eu costumava montar parecia sempre mais interessado no que ele dizia do que nos comandos que eu lhe dava...

No decorrer dos nossos passeios desmontávamos muitas vezes para ver as casas dos trabalhadores da herdade, bem como as vacarias, os estábulos e pocilgas. De acordo com os padrões húngaros, Szalatna não era, de modo nenhum uma grande herdade. Mas para a noção de tamanho norueguês era uma grande propriedade, com inúmeras habitações e anexos.

Aos poucos, fomos visitando tudo. Algumas das casas dos trabalhadores estavam bastante velhas e a precisar de várias reparações. Um pouco a medo, um dia, disse-lhe:

- Quando os meus pais herdaram a nossa propriedade de Hedemarken, sabes qual foi a primeira coisa que fizeram?

Andor olhou para mim de forma simultaneamente curiosa e admirada. Não disse nada, deixando-me espaço aberto para continuar.

- Estabeleceram um plano de modernização e alargamento das casas dos empregados... E, a pouco e pouco, tudo foi ficando melhor...

Sorrindo, Andor deu-me um beijo repenicado na face. Depois, olhando com olhar terno a imensidão na sua frente, continuou:

- Mas é isso mesmo, minha querida, o que eu vou fazer. Ou melhor; que nós vamos fazer...

E fizemos. As obras começaram pouco depois. Devagar, as casas velhas foram-se transformando, ficaram com melhor aspecto e melhores condições de habitação. E os seus inquilinos mais felizes.

O meu maior problema era a língua. Mas as minhas lições diárias com a Mietze iam produzindo os seus efeitos. Comecei a apanhar algumas palavras, aqui e ali, depois a entender o sentido das frases. Todos os empregados e criados me ajudavam, com muita paciência e dedicação. Aquela senhora vinda das neves precisava de ajuda... Como todos os que vivem em contacto mais directo com a Natureza, com a terra, eles eram generosos, compreensivos, tolerantes.

O meu marido atribuiu-me, entretanto, a responsabilidade do jardim, das estufas e da criação.

Isto queria dizer, em primeiro lugar, que precisava saber como se dizia em húngaro terra, solo, estrume, sementes, plantas, flores, galos e galinhas. Também não sabia muito bem como funcionava uma estufa. Na Noruega usávamos viveiros. Mas Perene, o jardineiro-chefe, era um homem cheio de paciência e ensinou-me tudo, a pouco e pouco. À medida que as estufas iam tendo cada vez mais flores, a minha perícia de floricultora desabrochava.

Convidávamos com frequência os nossos vizinhos. Algumas vezes vinham passear a cavalo ou jogar ténis connosco. Frequentemente, ficavam para jantar. No início, eu deixava todos os preparativos nas mãos de Pista e de Mariska, o mordomo e a governante, que já estavam na casa há muitos anos. Mas quando havia demasiada paprika e demasiado Tokaji eu tinha que intervir. Sem quaisquer problemas, devo dizer. Tudo funcionava sobre rodas.

Pouco tempo depois de estar em Szalatna, já tinha conquistado os nossos vizinhos e tínhamos excelentes relações. Apesar disso, acho que lhes fazia alguma impressão assistir às alterações que a ”estrangeira” ia fazendo.

Mas não era isso que me detinha, claro! Assim, a cozinha foi modernizada e foram construídos quartos individuais para os criados bem como uma sala de estar que podiam utilizar para descansar. Também à quinta chegou a mão da ”reformadora”: alguns edifícios que estavam muito velhos foram reconstruídos, outros modernizados. Curiosamente, nas propriedades dos nossos vizinhos começaram, também, a surgir modernizações...

Um dia, durante um jantar, consegui deixá-los sem palavras: servi-lhes morangos silvestres de sobremesa. Estes pequenos frutos tão perfumados existiam em grande quantidade na floresta húngara, exactamente como no meu país natal. Mas nunca ninguém se lembrara - como eu, habituada a fazê-lo na minha terra - de dedicar algumas horas a apanhá-los.

Para mim eram dois enormes prazeres: primeiro, passear horas pela floresta a fazer a colheita; e, mais tarde, servi-los bem frescos aos meus convidados.

Fazia muito calor e eu, habituada ao oceano, aos fiordes, sentia imenso a falta do mar, de nadar. O Ipoly, o tal rio fronteiriço inventado em Versalhes, ficava apenas a vinte minutos de carro. Mas, com grande desapontamento, descobri que, embora considerado «navegável», não era sequer «nadável»! Mesmo assim, conduzi o carro bem para o meio do rio e, com a água a chegar a meio das rodas, dei uso ao meu fato de banho... chapinhando na pouquíssima água que havia.

Num outro dia, repeti a proeza com uma carruagem puxada a cavalos, e acho que os cavalos ficaram tão desapontados quanto eu. Józsi, o cocheiro, ficou bem mais chocado do que o fiel Karl dos tempos da minha juventude.

A outra grande propriedade da família Hubay ficava situada num planalto dos Cárpatos, distante umas horas de Szalatna. Chamava-se Mosòc.

Como os meus sogros e o meu cunhado, Tibor, estavam no estrangeiro, Andor e eu fomos visitá-la sozinhos.

Mosoc era a mais bela propriedade que eu jamais vi.

Quando Andor era criança, a minha sogra herdara Mosoc, que pertencia à sua família, os Revay. Era uma propriedade de floresta e tinha três castelos, agora quase em ruínas. Fora oferecida pelo rei da Hungria à família, em agradecimento pela sua heróica resistência contra os turcos, vários séculos atrás.

Para mim, Mosòc, aninhada nos montes Cárpatos, com a sua floresta imensa, os rios e a montanha, era muito mais bonita e atraente do que Szalatna. A escassez de população também contribuía para a sua extrema beleza.

Passámos vários dias na sua zona de caça, que ficava mais ou menos a uma hora de carro, através de caminhos de terra batida, por um vale muito estreito, ladeado por cursos de água caudalosos, com as montanhas a servir de pano de fundo. A uma altitude de quinhentos ou seiscentos metros, num planalto cheio de erva muito tenra, ao lado do qual corria um rio cheio de trutas, ficava o pavilhão de caça.

À tarde, iniciámos a nossa caminhada para as montanhas, passando a noite num pequeno e primitivo abrigo. Às quatro ou cinco da manhã, levantámo-nos para ver a caça. Havia muitos trilhos e vestígios feitos por veados dos Cárpatos, javalis, lebres, raposas e grandes aves. Na caminhada de regresso ao pavilhão de caça, ao passarmos por um pequeno lago, Andor parou de súbito:

- Vou contar-te uma cena muito curiosa que presenciei a última vez que aqui estive. Uma manhã muito cedo, vi uma raposa a passear junto à borda da água. Pus a arma à cara mas, de repente, vi que o animal levava na boca um longo pau. Fiquei intrigado e baixei a arma. O animal entrou com cuidado na água, com o pau bem alto, sempre à superfície, e começou a nadar. Momentos depois, voltou, e, nessa altura, a sua cabeça estava toda praticamente debaixo de água, mantendo o pau à tona de água. Quando a raposa chegou de novo à margem, deixou cair o pau, sacudiu-se com força e entrou tranquilamente no bosque. Sabes o que foi tudo aquilo?

Olhei-o, interdita, e sacudi negativamente a cabeça.

- A espertinha da raposa esteve a... desparasitar-se! Daquele modo, viu-se livre das pulgas, que foram todas refugiar-se no pau, enquanto ela esteve metida na água!

Ficámosxsozinhos nas montanhas durante uma semana e, depois, voltámos a Mosoc.

A casa - o castelo principal - era enorme, recheada de magnífico mobiliário antigo. Uma das coisas que mais me impressionou foi a longa galeria dos retratos de família. Um deles, de uma jovem muito loura, lindíssima, tocou-me especialmente.

- Quem é, Andor? Tem um ar tão triste...

Em vez de me responder, Andor levou-me a um quarto e mostrou-me, no canto de uma vidraça, riscada provavelmente com o diamante de algum anel, uma frase garatujada: «Amo-o, hei de amá-lo sempre». Depois vinha um nome e a data: 1850.

- Segundo sempre ouvi contar na minha família, um inglês veio de visita a Mosóc. Apaixonou-se perdidamente por ela e foi correspondido. Mas a aristocrata e rica herdeira desta imensa propriedade não podia casar com um inglês qualquer...

Estremeci e pensei com os meus botões: «Graças a Deus, não vivi nesse tempo!...»

A parte que nos estava destinada na casa de Budapeste levou muito tempo a ficar pronta. Assim, vivíamos no estúdio e tomávamos as nossas refeições com os meus sogros.

Muito já se escreveu, ao longo dos anos, sobre essa casa e o seu proprietário, Jenò Hubay. Recebida como membro da família, à medida que os anos passam, apercebo-me do privilégio que me foi concedido.

O Palácio Hubay sempre foi considerado pelos húngaros e também pelos estrangeiros como um centro de cultura. Nele se reuniam pessoas de toda a espécie - e não só a elite -, interessadas em cultivar-se. Jenõ Hubay era a razão. Nascido em 1858, filho de um músico e compositor, muito jovem adquiriu reputação internacional como um dos maiores violinistas da sua época. Chamavam-lhe o novo Paganini. Era um conversador de extremo interesse, fascinante, cheio de humor. Conhecera e privara com grandes nomes da música e contava histórias apaixonantes sobre a sua convivência com Franz Liszt, Joachim, Vieuxtemps, Massenet, Brahms, os dois irmãos Strauss, entre outros.

 

O meu novo lar, para além de nele reinar a felicidade e o amor, era um refúgio fantástico de arte e cultura.

Um dia, chegou um telegrama com a triste notícia da morte da minha avó. Não havia tempo de poder assistir ao seu enterro, mas parti o mais cedo que pude para estar com a família.

Foi muito difícil separar-me de Andor e da minha nova vida na Hungria. Mas, ao mesmo tempo, foi bom voltar ao meu país, ver a minha família e os meus amigos. Apesar de ter agora raízes na Hungria, as raízes do meu amor, a minha pátria continuava a ser a Noruega.

No regresso a Budapeste, tive muito tempo para pensar. Naquela época ainda não havia ligações aéreas e a viagem de comboio durava trinta horas.

É sempre bom pensar quando os nossos pensamentos são basicamente felizes. Para mim, aquele comboio até podia ir mais devagar.

Fiquei poucos dias em Budapeste. Estava prestes a começar a temporada de caça ao veado dos Cárpatos, uma espécie que tinha ganho inúmeras medalhas de ouro e era considerada uma das melhores e mais fortes raças de veados, e Andor queria estar presente.

Esta caça faz-se durante a época do cio, nos poucos dias em que os veados procuram as fêmeas. É então que são perseguidos pelos caçadores que se guiam pela ”brama”, o seu grito de amor. Apesar da minha simpatia pela presa, deixei-me sempre levar pelo entusiasmo da perseguição.

Nesse ano, tínhamos connosco três convidados, todos eles excelentes espingardas e bons conhecedores do terreno. À noite, encontrávamo-nos todos no pavilhão principal de caça, onde nos deliciávamos com bons pitéus, bons vinhos e convivência muito agradável. Fazíamos o balanço da caçada e depois a conversa fluía para outros temas, desde os problemas do dia-a-dia à política, à arte, à música.

Quando a caçada terminou, Andor e eu subimos no carro até Szklabina, outro dos castelos que ele tinha herdado. O castelo principal estava em ruínas e inabitável, mas um dos Revay tinha mandado construir um pequeno, adjacente.

Foi naquele ambiente, naquela paisagem magnífica, que Andor me falou da invasão turca, em 1526, e da guerra da Hungria contra os turcos, que durou duzentos anos.

O facto dos sinos das igrejas católicas tocarem todos ao meio-dia deve-se a um decreto do Vaticano em sinal de agradecimento pela vitória dos húngaros contra os turcos em Belgrado.

Assim fui entendendo cada vez melhor o patriotismo exacerbado e o sentido político dos húngaros, ao mesmo tempo que percebia a sua situação e a amargura que sentiam em relação ao chamado tratado de paz de 1918, de acordo com o qual perderam dois terços do seu país.

Aprendi muito, sem dúvida, adquiri uma extensa bagagem através de todas estas conversas mas, ao mesmo tempo, a minha educação norueguesa suscitava-me algumas dúvidas. Será que fazem o suficiente? Terão a noção completa dos problemas sociais que afligem a nossa época?

Talvez, então, eu não usasse a expressão ”problemas sociais”. Estas dúvidas, porém, ia buscá-las à forma de viver no meu país e à comparação com a minha adolescência nórdica.

Não sei se me mantive suficientemente discreta em relação a estas dúvidas, mas Andor era, sem dúvida, o tipo de pessoa capaz de ouvir sempre os meus pontos de vista, e a resposta convenceu-me, pelo menos durante algum tempo:

- Se pensarmos em termos de desenvolvimento social, sem dúvida que a Noruega está vinte e cinco anos à frente da Hungria. Mas a Noruega não sofreu uma guerra de mais de cem anos. E não só temos sido martirizados por guerras constantes, como também o nosso território tem sido retalhado. Ainda por cima, tivemos o terror de um regime comunista.

Em Mosoc, a minha sogra era a dona da casa. Andor tinha ficado com Szalatna, enquanto que o seu irmão mais novo, Tibor, ficaria com Mosoc.

A primeira impressão que tive da minha sogra foi que era uma senhora muito rigorosa e extremamente culta. Eu não era nem uma coisa nem a outra, e falhei tristemente a tentar imitá-la. Mas com o meu sogro tive, desde o primeiro momento, uma grande cumplicidade, apesar de saber tão pouco de música.

Vista objectivamente, eu era uma jovem norueguesa, pertencente à família pelo casamento. Antes de aparecer em cena, eles eram como um castelo, assente em quatro pilares. É verdade que tinham esperado com alguma ansiedade por uma nora. Isto, em teoria. Mas agora que o filho mais velho arranjara como esposa uma criatura estrangeira, oriunda de um distante país nórdico, a situação não ficou fácil para a mãe.

Provavelmente, serviu-lhe de consolo o que viu - tinha que ver! -: que o filho estava feliz, mesmo que um dos pilares não estivesse agora tão junto dos outros.

O amor, quando se é jovem, é muito egoísta. Mas uma coisa é certa: nunca provoquei nada, a não ser harmonia, durante todo o tempo que passei em Mosõc. E apreciei sempre, infinitamente, toda a beleza que nos rodeava, dentro e fora de casa.

As pessoas habituam-se ao luxo, às coisas boas muito depressa: ser servida por dois criados de libré, na enorme sala de jantar; acordar no belíssimo quarto com o fogão de sala de porcelana barroca; percorrer os corredores com tantos quartos que lhe perdi a conta...

O parque era emoldurado pelos Cárpatos. Era tão grande que levava mais ou menos uma hora a percorrê-lo de carro. Havia várias estufas enormes para vegetais e flores. E uma delas, só de palmeiras e orquídeas. As palmeiras eram transplantadas para o parque no verão e as orquídeas, às centenas, eram penduradas em cestos nas pernadas das árvores do parque.

Chamávamos à alameda principal a Avenida de Nice. Várias vezes por semana chegava uma carroça puxado por um burro, cheia de flores frescas, e mudavam-se, então, todas as decorações florais dentro de casa.

O que sempre e mais me deliciou em Mosóc foi a beleza natural, as montanhas, as florestas habitadas por centenas de animais. Logo a seguir, a música.

No fim de cada jantar, a minha sogra sentava-se ao piano, o meu sogro ia buscar o seu Stradivarius e tocavam juntos. Muito calada, quase sem respirar, sentava-me a ouvi-los. Aos poucos, passo a passo, naquela atmosfera mágica, eu ia entrando no mundo maravilhoso da música.

 

             Magyarorszagi - Os dias felizes

Foi nessa altura que se iniciou a nossa vida em Budapeste. A minha primeira tarefa foi decorar a casa. Acho que não me saí muito mal dela. Pelo menos essa foi a opinião de toda a gente: «Que bonito que ficou o vosso apartamento! E a vista que tem para o Danúbio, que espectáculo!»

Eu própria não me cansava da vista para aquele rio. A todas as horas, com as mais variadas luminosidades, com bom ou mau tempo, era uma festa para os meus olhos!

Na nossa casa, o dia começava bem cedo. Andor levantava-se sempre cerca das sete horas, tanto durante a semana como nos dias de descanso. E eu aproveitava essas ”madrugadas” para as minhas lições de húngaro. Tinha agora um professor que me ensinava este idioma tão difícil e, depois, praticava, horas e horas, com a minha Mietze. Mas demorou um ano, pelo menos, até que fosse capaz de me aventurar a tomar parte em qualquer conversa.

Tínhamos, ainda, um casal para fazer o serviço em casa, Mariska e Sandor. Ela era a nossa cozinheira e sempre nos demos muito bem. Ambos gostavam de trabalhar lá em casa e

 

* Magyarország = País dos Magiares = Hungria (N.T.)

 

ficaram contentíssimos quando modernizámos as dependências em que viviam.

Andor devia ter razão: os nossos trabalhadores da quinta em Atlungstad, na Noruega, há vinte e cinco anos atrás deviam ter o mesmo tipo de dificuldades que estes ainda tinham agora.

Sempre ouvi dizer que os húngaros são famosos pela sua hospitalidade e, nessa altura, tive oportunidade de experimentar isso mesmo na pele. Nunca me senti estranha ou estrangeira ou desadaptada entre as muitas pessoas que conheci e, apesar de vivermos num grupo social de certa forma restrito, jamais me senti posta de lado. Os húngaros são pessoas encantadoras e nós, mulheres, somos, de um modo geral, muito sensíveis a esse encanto.

Durante a nossa lua-de-mel, Andor e eu tínhamos combinado que, se algum dos dois se sentisse especialmente atraído por outra pessoa, deveríamos falar disso abertamente entre nós.

Inúmeras vezes vi outras mulheres rendidas aos encantos do meu marido. Houve também alguns homens que demonstraram um particular interesse em mim. Mas o nosso acordo, como o nosso amor, defendeu-nos toda a vida de que qualquer coisa acontecesse.

Os meus sogros tinham um camarote permanente na ópera e nós utilizávamo-lo muitas vezes. A vantagem de ter, permanentemente, um camarote reservado significava que podíamos ir quando nos apetecesse e até assistir a determinada ária da nossa predilecção, saindo em seguida.

Também íamos ao teatro com muita frequência. Isso foi muito didáctico para mim e de grande ajuda na minha aprendizagem da língua.

Depois do teatro, umas vezes íamos a algum restaurante, outras regressávamos a casa para cear. E a ceia era, invariavelmente, fria já que eu tinha decidido que os criados não esperassem por nós.

Nos fins de semana, continuávamos a ir muitas vezes até Szalatna. Esta propriedade tinha sido muito esquecida pela família depois de terem tomado conta de Mosõc. Mas nós estávamos cheios de planos, não só para modernizar tudo, mas também para iniciar novas actividades. Os nossos planos incluíam repovoamento florestal, criação de ovelhas, de porcos, de galinhas, plantio de vinha, ao mesmo tempo que se melhoravam as existentes. Como já fora combinado, os jardins e a criação eram o meu pelouro e havia muitíssimo que fazer nesses sectores.

A propriedade tinha tido um rendeiro que passara a ser nosso feitor. Chamava-se Havas, e Andor contou-me que era judeu.

Tivemos sempre uma excelente relação de trabalho e até de amizade. As nuvens negras ainda não tinham ensombrado esta nossa parte da Europa mas, na Alemanha, Hitler começava a sua demoníaca perseguição ao povo judeu.

Em Szalatna passávamos quase todos os serões em casa. Janos e a mulher, Maritza, os empregados que viviam lá em casa, serviam-nos o jantar, regado com os excelentes vinhos da nossa herdade. Ela era uma cozinheira de mão cheia e ensinou-me muitos dos pratos tradicionais do país, que ainda hoje faço com frequência.

A seguir ao jantar, se era Inverno, sentávamo-nos diante dum fogo crepitante e acolhedor e conversávamos durante horas. Quantas coisas aprendi nestas conversas com o meu marido! Sempre tive muita curiosidade e desejo de aprender, mas faltava-me a persistência para conseguir chegar ao fundo das coisas e dedicar-me a alguma em particular. Nesta fase da minha vida, com Andor a meu lado, sempre paciente e carinhoso, pude alargar consideravelmente os meus conhecimentos e a minha cultura.

Tínhamos combinado passar o Natal em Szalatna com os meus sogros e o meu cunhado, Tibor. E estava ansiosa que chegasse aquela festa, embora a lembrança do meu país me apertasse um pouco o coração. Os meus pensamentos fugiam com frequência para a Noruega, a minha família, os meus amigos, mas Andor já me tinha ensinado o valor da nostalgia...

Decorei uma enorme árvore de Natal que chegava quase ao altíssimo tecto, mas devo confessar que, tanto ela como as outras decorações, tinham um indiscutível cunho nórdico!

No entanto, insisti para que a minha sogra ocupasse o lugar da dona da casa na mesa da festa. Afinal, era a casa onde ela tinha nascido e se tinha criado...

No dia 23, as crianças dos empregados foram convidadas. Tínhamos presentes para todas, brinquedos e doces. No final, quando se foram embora, depois de nos terem presenteado com várias canções de Natal, iam esfusiantes de alegria.

Na noite de Natal, Andor e eu fomos à Missa do Galo, na aldeia de Losonc, a que ficava mais perto de nós. A igreja estava apinhada de gente, naquela noite. Muito bem enfeitada, tinha um presépio gigante, à roda do qual se amontoavam as crianças, a espreitar o Menino Jesus e os três Reis Magos.

Felizes são aqueles a quem a Fé foi concedida nos primeiros anos da sua vida. Ela é uma frágil planta, e, com o decorrer dos anos, temos nas nossas mãos a capacidade para robustecê-la. Ou deixá-la murchar definitivamente.

A história da humanidade demonstra, no entanto, que quando o homem é confrontado com a adversidade, na guerra, na prisão, no perigo, na infelicidade, sempre conseguiu ir buscar forças à fé da sua infância.

Para mim também estava próximo o tempo em que a Fé iria ser o meu apoio e sustentáculo.

No fim do ano, fomos convidados para uma grande festa no velho castelo de Gacs, propriedade de uns vizinhos e amigos.

O baile durou até de madrugada. Dançaram-se as czardas, a tradicional música húngara, mas eu não tive coragem sequer de tentar. Acho que para se dançar esta música, para conseguir aquele ritmo apaixonado, é indispensável ter-se nascido na Hungria, ter no sangue a emoção, a paixão daquele país.

Mesmo sem dançar, foi apaixonante assistir ao espectáculo. Os húngaros parecem ficar hipnotizados pelas czardas. E, quando mais perto dos músicos eles dançam, mais são contagiados pelo frenesim do ritmo e da melodia.

As únicas vezes que me aventurei ao ritmo da czarda foi nas festas das ceifas, em Mosòc e em Szalatna. Os dançarinos eram os ceifeiros e camponeses, cheios de força e energia, e sem a menor timidez. Habituados a levar os sacos de cereal às costas, rodopiavam com o maior à-vontade, levando-me em turbilhão.

A forma tradicional de dançar a czarda é mais ou menos assim: o homem segura a mulher pelas ancas, ela coloca os braços à roda do pescoço dele e... aí vão a rodopiar!

Quando acabou a época do Natal, voltámos para Budapeste. A minha fiel Mietze viajava sempre connosco. Era ela, aliás, quem se encarregava de fazer as malas que Sandor e Mariska desfaziam quando chegávamos a casa.

Que tempos esses, meu Deus! De luxo feudal, sem dúvida. Também de muitas coisas boas para muita gente.

Estou convencida, por exemplo, que Mietze adorava acompanhar-nos e se divertia tanto ou mais do que nós.

Tinha chegado a altura de ser oficialmente apresentada ao regente Horthy e à sua mulher. A minha sogra acompanhou-me. Que emoção voltar àquele palácio, em cujo jardim tinha visto Andor pela primeira vez na minha vida! Naquele dia, que já me parecia tão distante, eu era uma rapariguinha estrangeira, vinda de um longínquo país do norte da Europa. Voltava agora, casada com um húngaro, membro de uma família ilustre, cujo nome abria todas as portas e me levava, através de uma guarda de honra fardada de uniformes a rigor, até à residência dos Horthy.

No momento da apresentação formal, fiz a vénia protocolar ao regente e cumprimentei a mulher com um aperto de mão. Mas logo a seguir, sem mais formalidades, conversámos durante cerca de uma hora. Eles foram extremamente simpáticos, de uma simplicidade cativante.

Mal sabia eu, então, que vinte anos depois nos haveríamos de encontrar e passar muito tempo juntos em Portugal, o país que, tanto a eles como a nós, havia de acolher-nos como refugiados de guerra. Mas ainda bem que «o futuro a Deus pertence». E só a Ele.

Em Budapeste, o mês de Janeiro era o que englobava mais acontecimentos, tanto sociais como artísticos. Era precisamente nesse mês que começavam os concertos no Palácio Hubay.

A arte e a música eram os objectivos da vida do meu sogro. Isso e a paixão pelo seu país. Por essa razão, ainda muito jovem, Jenõ deixou o lugar de grande prestígio que ocupava na Academia de música de Bruxelas, para aceitar a nomeação como director da Academia de música de Budapeste, que o governo húngaro lhe oferecia.

Jenõ Hubay passou um ano exilado, fugindo ao regime comunista de Bela Kun. Quando, em 1919, Horthy conseguiu esmagar aquele reinado de terror, o meu sogro, nessa altura com sessenta e dois anos, voltou à Hungria. É então que inicia a tradição dos seus concertos no Palácio Hubay, ao fim da tarde, os quais rapidamente se tornaram famosos.

Nessa época, o país estava ocupado por tropas romenas e à beira do colapso económico. Mas, em casa dos Hubay, tendo em comum uma atmosfera musical única, encontravam-se pessoas de todos os meios e facções, políticos antagónicos das mais variadas correntes, diplomatas de estados adversários, políticos e artistas húngaros, que professavam as mais diversas doutrinas.

Acho que a posição do meu sogro estava profundamente correcta: naquelas reuniões conseguia criar-se uma atmosfera muito especial. A música que todos ouviam unia-os e promovia bons sentimentos de reconciliação, compreensão e entendimento mútuo.

Muitos dos maiores artistas da Europa, a despeito dos seus credos ou convicções políticas, aceitavam os convites de Jenó Hubay e vinham a sua casa, aos seus concertos, completamente esquecidos de quaisquer antagonismos.

Grande parte dos concertos Hubay era transmitida pela rádio. Reuniam-se, então, entre oitenta a cem convidados: aristocratas, realeza, diplomatas, artistas, pintores, médicos, jornalistas, executivos de grandes companhias.

Servia-se chá e alguns canapés ou sanduíches. Nessa época ainda não se tinham importado os cocktails da América...

Na grande sala de música, toda branca, eram colocadas em filas as cadeiras douradas, especialmente concebidas para essas ocasiões. Quando a sala de música não chegava, os convidados podiam espalhar-se pelas salas adjacentes onde eram colocadas algumas cadeiras extra.

O programa variava muito: música de câmara, concertos para violino, sonatas para piano forte. Muitas vezes também havia cantores. Tive, frequentemente, o privilégio de ouvir alguns dos mais famosos músicos da época e mesmo de conversar com eles. Muitos jovens músicos, em princípio de carreira, foram lançados pelo meu sogro nesses concertos.

Antes das suas actuações, Jenõ ensinava-lhes como deviam conduzir-se no palco, como deviam cumprimentar o público, agradecer os aplausos. Muitas vezes ensinava-lhes, inclusivamente, qual a roupa mais adequada para usar ou como arranjar o cabelo.

Entretanto, o dia-a-dia de Andor era preenchido pelas suas funções de director do Szalon Nemzeti, que acumulava com as de principal consultor artístico da Herend, a famosa fábrica de porcelanas húngara. Esta última empresa convidara-o quando ele tinha apenas vinte e seis anos.

Na Herend, Andor fundou escolas de desenho e de pintura. Manteve-se nas suas funções até 1948, altura em que os comunistas o despediram e levaram a julgamento. Mas isto faz parte dos maus momentos e, por agora, quero fixar-me apenas nos bons. E houve muitos, graças a Deus!

Um dia, fomos convidados para um casamento na Suécia. A minha grande amiga, Margareta d’Otrante, ia casar com o príncipe alemão, Gustav Albrecht Wittgenstein, que eu já conhecia e de quem muito gostava também.

Este acontecimento deu origem à primeira discussão entre mina e os meus sogros. Acontece que o dia do casamento coincidia com o da inauguração de uma exposição de pintura de Andor. Claro que eu queria estar presente nas duas coisas...

Andor, sempre dócil e conhecendo muito bem a minha exuberante alegria de viver, deu-me a escolher. Mas para os meus sogros não era admissível que eu pudesse deixar Andor em ocasião tão significativa.

- Margareta só vai casar uma vez. Ao passo que Andor fará muito mais exposições... - argumentava eu.

Argumentei e... zarpei para a Suécia!

Hoje em dia, com a calma que os anos me deram, acho que eles tinham razão: fui muito injusta com o meu marido, ele que fez sempre o possível por me agradar...

Não me lembro se, na altura, tive alguns rebates de consciência. Mas lembro-me, isso sim, que o casamento foi muitíssimo divertido, o que, sem dúvida ajudou a aplacar a minha má consciência. Se é que tive alguma...

Foi muito bom voltar a Budapeste, para a minha casa e para o meu marido! Durante os fins de semana, íamos agora, regularmente, a Szalatna, onde o trabalho abundava, quer na quinta quer no meu sector especial. Estávamos na Primavera, aquela estação maravilhosa em que a Natureza acorda da letargia do Inverno, quando há um cheirinho bom a terra, os botões florescem, os pássaros cantam as suas canções de amor, os pirilampos brilham no escuro da noite e parece que a vida renasce por toda a parte.

Infelizmente, nessa Primavera, pesadas nuvens negras pairavam sobre a Europa. Ouvíamos todos os dias, ansiosamente, as notícias sobre a loucura dos políticos, sobre a sua passividade. E as notícias eram cada vez mais preocupantes.

A minha sogra, entretanto, fundou uma creche, na zona industrial dos arredores de Budapeste, destinada aos filhos das operárias das fábricas vizinhas.

Fui eu a madrinha da Creche Jenó Hubay. A mulher do regente Horthy, acompanhada de várias personalidades do governo, veio à cerimónia de inauguração.

Foi naquele edifício cheio do chilrear alegre de muitas crianças felizes, todas com as suas melhores roupas, acompanhadas das mães, ainda mais felizes que eu, que tive de pronunciar, muito nervosa, o meu primeiro ”discurso” em húngaro...

Foi para mim muito gratificante o trabalho que passei a desempenhar junto dessas crianças e das suas mães, além de representar um grande desafio.

Três anos depois, quando o meu sogro morreu, a família Hubay pediu a toda a gente que, em vez de mandar toneladas de flores em ramos e coroas, depositasse o dinheiro numa conta expressamente aberta para o efeito. A quantia apurada destinava-se à ampliação da creche, nessa altura já muito pequena para as necessidades.

O resultado excedeu a expectativa. E o edifício foi ampliado - para ser totalmente destruído, poucos anos depois, pelos russos e alemães. Mas esta foi apenas uma das muitas ruínas que, infelizmente, tivemos que testemunhar.

Andor e eu celebrámos sozinhos o primeiro aniversário do nosso casamento, em 6 de Maio, na ilha Margit, no restaurante onde eu ouvira a orquestra cigana na minha primeira noite em Budapeste. Exactamente como um ano antes, os rouxinóis cantavam intensamente nos arbustos. Exactamente como um ano antes, eu estava na companhia do príncipe das Mil e Uma Noites...

Uma das minhas grandes amigas na Hungria era Medina Teleki. Nascida em Itália, era casada com um diplomata húngaro.

Um dia, ela teve uma ideia brilhante:

- E se nos inscrevêssemos no clube de remo?...

Apoiei entusiasticamente a sugestão e começámos os treinos. Algum tempo depois, já auto-promovidas a ”especialistas”, fazíamos corridas entre as duas no Danúbio. Que continuava a ser muito belo e a não ser azul...

Quando o calor apertava, então nadávamos na agradabilíssima água termal da ilha Margit. Nas pausas, conversávamos, discutíamos, filosofávamos e, extremamente felizes, gozávamos a vida até à saciedade.

Andor e eu tínhamos um grande círculo de amigos com os

quais convivíamos, tanto em Budapeste como no campo, nas suas propriedades. Eram grandes personagens da sociedade e da história da Hungria e viviam uma vida de senhores feudais nas suas imensas herdades.

Tinham nomes ilustres - Festetics, Esterházy*, Andrassy, Bethlen, Széchényi.

Anos depois encontrei muitos deles no exílio, despojados de todos os seus bens, a viver em terríveis circunstâncias. Mas nunca ouvi das suas bocas quaisquer queixas amargas, quaisquer referências às condições sub-humanas em que viviam.

Apenas falavam da saudade lancinante do seu país perdido, do desgosto por tão triste destino.

Só uma cultura superior, uma sólida formação moral permite que as pessoas aguentem assim a adversidade. Da mesma maneira que só deste modo se convive bem com o êxito.

Assim eram estes húngaros. Os mesmos que tinham vivido uma vida de grande estadão em imensas herdades, em castelos, em casas de campo, rodeados de batalhões de criados e de trabalhadores rurais.

Mas o feudalismo pertencia ao passado. Na Hungria, foi abolido pelo Parlamento, em 1848, durante a guerra da independência.

Muitos trabalhadores rurais receberam terras e tornaram-se agricultores por conta própria.

Um pequeno número de pessoas continuou, no entanto, a ser proprietário dos latifúndios remanescentes. Eu senti-me muitas vezes indignada e prestes a explodir quando, sendo

 

1 Os Esterházy eram os maiores latifundiários da Europa. O total das suas propriedades era de cerca de duzentos e cinquenta mil hectares.

No final da Primeira Guerra Mundial, o Primeiro-ministro, conde Bethlen, iniciou a reforma agrária que reduziu consideravelmente o tamanho das maiores propriedades e, consequentemente, as suas receitas. (N.T.)

 

convidada dessas propriedades, testemunhei - e experimentei

- o luxo em que vivia a classe alta. Mas nunca me senti chocada com o que vi na Hungria, contrariamente ao que me aconteceu na Polónia.

Com bastante frequência, o meu marido e eu - ocasionalmente eu sozinha - visitávamos a Princesa Festetics, na sua herdade de Keszthely. Fiel a mim própria, sempre com vontade de meter o nariz em tudo, falei muitas vezes com os trabalhadores do campo e com os criados da casa. Fazia-lhes inúmeras perguntas sobre a forma como viviam, como eram os filhos educados, chegava a visitar as suas casas. Mas tudo o que vi, tudo o que ouvi, só serviu para me encher de admiração pelos meus anfitriões: de facto, era difícil imaginar melhores relações entre patrão e empregados. Não podemos esquecermo-nos de que tudo isto aconteceu há mais de sessenta anos. De então para cá, quantas mudanças...

Devo acrescentar que estas famílias húngaras de velha linhagem lutaram, no passado, com grande coragem na defesa do seu país e contribuíram enormemente para o desenvolvimento da arte e da cultura, com especial incidência no sector da música, em toda a Europa.

Pela parte que me toca, ensinaram-me muitíssimo. Muitas vezes, comentei com amigos:

- Que sorte para esta bárbara do norte ter encontrado para ”educá-la” um ”europeu” civilizado!

Quando o Verão chegou, resolvemos ir visitar a Noruega, que Andor conhecia muito mal nesta estação do ano. Na minha cabeça, muito em segredo, tinha urdido um plano ”maquiavélico”: convencer o meu marido a comprar uma pequena propriedade na costa sul.

Assim, numa bela manhã do meio de Junho, metemo-nos no carro e partimos para o norte. Como sempre, em todas as nossas viagens, eu sentava-me ao volante. Mas a culpa de Andor ter desistido de conduzir era toda minha - meu Deus, quantas culpas eu tenho no cartório! Provavelmente fui, enquanto passageira, uma companhia extremamente desagradável. A verdade é que assistir, no ”lugar do morto”, à condução do meu marido, que não via grande diferença em guiar em primeira ou em terceira, e cuja atenção era constantemente desviada para qualquer coisa bonita por que passássemos, era demais para o meu sistema nervoso!

Uns tempos antes, à minha terceira observação de «cuidado!», Andor travou de repente, saiu do carro, passou pela frente, abriu a minha porta e disse tranquilamente:

- Está bem, está bem, é verdade que nem reparo se vou em primeira ou terceira; mas distingo à primeira uma sonata de Brahms de uma de Beethoven!! A partir de agora, guias tu!

- E foi de vez.

Ao relembrar a cena, sorrio ao pensar como podemos hoje fazer as duas coisas ao mesmo tempo: conduzir, até mesmo sem meter mudanças, e ouvir as sonatas que quisermos, só com o esforço de carregar num botãozinho!

Nesse tempo, porém, viajar de carro, Europa fora, tinha outros encantos: as estradas passavam pelas povoações, a velocidade era moderada, podia parar-se para ver coisas à beira da estrada, ou para petiscar em pequenos restaurantes pitorescos de comidas locais. Ficavam-se a conhecer os países, os monumentos, as coisas das terras.

Bem diferente das auto-estradas actuais, onde se rola a muitos quilómetros por hora. Chega-se depressa, é certo. Mas não se fica a conhecer nada.

Voltemos à nossa viagem rumo à Noruega. Andor, agora promovido a ”navegador”, era quem estudava minuciosamente os mapas, antes de partir, estabelecendo itinerários pormenorizados que incluíam não só a rota, mas também os monumentos ou locais de interesse a visitar. Pela minha parte, preparara um grande cesto de piquenique, onde não faltava um garrafão de cinco litros de óptimo vinho húngaro.

Cem ou cento e cinquenta quilómetros por dia, era a nossa meta. Quando a fome ou a sede apertavam, escolhíamos um local agradável para parar. Comíamos, bebíamos e depois eu estendia-me para dormir um bocado. Ao acordar, estava fresca e pronta para mais uma etapa de condução e turismo.

Ao fim do dia, parávamos em qualquer hotelzinho agradável para passar a noite. Tomávamos um banho, mudávamos de roupa e saboreávamos um jantarinho, enquanto passávamos em revista o que tínhamos visto nesse dia. Andor levantava o seu copo num brinde à sua ”motorista”, que eu secundava com outro ao meu piloto-navegador, passageiro e guia cultural.

Éramos felizes, apaixonados, cúmplices.

O único ponto fraco foi a travessia de Kiel para Oslo: então não é que eu, nórdica, certamente com algum sangue viking a correr-me nas veias, me deixei desastradamente enjoar logo que olhei para as ondas, enquanto a meu lado, o meu marido da Hungria, nascido e criado num país sem mar, estava como peixe na água e até foi para o convés superior admirar a turbulência do mar?

Quando chegámos à Noruega, a viagem continuou. Havia muitos parentes e amigos para visitar por todo o país, uns na cidade, outros nas montanhas, outros ainda à beira-mar. Planeámos também um percurso só nosso, através da região dos fiordes e, de volta, pela costa até Oslo. As condições atmosféricas estavam excelentes e foi um prazer extraordinário viajar com uma pessoa como Andor, tão sensível à beleza, à paisagem e à Natureza. Muito especialmente o Sogna, de todos o mais belo fiorde, mostrou-se como um regalo para os olhos.

Infelizmente, a ensombrar o nosso prazer, vimos ancorado um navio de cruzeiro alemão, no qual flutuava uma bandeira com a cruz suástica. Eram os tristemente famigerados cruzeiros organizados por Hitler para demonstrar o seu apreço pelos trabalhadores alemães. Chamava-lhes os cruzeiros Kraft durch frende - cruzeiros da Força pela Alegria - mas a nossa alegria sofreu um rude golpe com aquela visão.

- Como é que as pessoas podem ser tão ingénuas? - exclamou o meu marido. - Qual cruzeiro da alegria... Isto é apenas uma forma de espiar os fiordes noruegueses com vista aos planos diabólicos do Hitler!

Ansiosa por encontrar alguém com quem partilhar o meu entusiasmo pela paisagem sem ser perturbada por Hitler, interpelei um casal de ingleses que tinha acabado de chegar à beira do fiorde:

- Não é uma maravilha?!

- É muito bonito, é - responderam-me mornamente.

E ainda que eu quisesse esquecer o barco e Hitler, fiquei ainda mais incomodada com a resposta deles, perfeitamente alheia ao ”Cruzeiro da Alegria”.

O dia estava lindo, o céu azul e sem nuvens. Mas os nossos corações ficaram pesados, a nossa alegria murchou. Aquela suástica era uma nuvem muito negra, para Andor como que uma premonição da grande tempestade que se aproximava.

O nosso passeio continuou ao longo da costa sul da Noruega até à casa do meu amigo Rolf Grieg Halvorsen, em Homboroy.

No dia a seguir à nossa chegada, ele levou-nos a passear de barco a motor até à ilha de Sandoya, ao largo de Tvedestrand. A paisagem era magnífica, a costa das mais bonitas que me foi dado conhecer. Estava tão entusiasmada que me aventurei a falar do meu sonho:

- Andor, sabes o que tenho estado a pensar? Era tão simpático se comprássemos uma pequena propriedade na costa da Noruega... um sítio só nosso, para onde pudéssemos vir de férias, sem estar sempre em casa da família...

- Não sei, Edle... Já tenho tantas casas, tantos sítios para cuidar e manter, para quê mais um? Além disso, a situação da Europa está muito complicada. Ainda ontem, não te lembras?, a suástica no fiorde... E a Noruega está tão desatenta, tão apática...

Mas acabámos por comprar. Não sei se foi o sortilégio e a beleza de Sandoya, o meu optimismo ou, mais provavelmente, a vontade que ele tinha sempre de me agradar. Encontrámos um terreno, o meu marido desenhou a casa, e Olsen, um carpinteiro local, foi encarregado de construí-la.

Mais tarde, quando todas as casas de Andor foram reduzidas a escombros ou ocupadas pelos russos, a nossa casinha de Sandoya foi a única que nos restou. Só a vendemos tempos depois, quando resolvemos viver em Portugal.

Em 1974, quando o golpe comunista, então chamado de ”revolução” atingiu este país, uma vez mais fui obrigada a partir: mais comunistas, não, obrigada. E nem obrigada! Voltei, nessa altura, ao meu país natal e pensei muitas vezes, vivendo num andarzinho em Oslo, na pequena casa de madeira da minha ilha de Sandoya. Como seria bom se ainda tivesse aquele pedacinho de terra!

No final das nossas férias, voltámos a Budapeste. E foi então que comecei a ter uma sensação esquisita, um misto de inquietação e desejo profundo. Havia em mim qualquer coisa que eu não reconhecia. E, uma manhã, um enjoo, uma náusea que me fez sair da cama a correr, deu-me a perceber o que se passava. Como fiquei contente!

Infelizmente, essa alegria durou pouco. Aquele não era,

ainda, o filho que me escolheria como sua mãe. Como sempre, foi a ternura e o apoio do Andor que me sustentaram. Fiquei, também, a saber quanto os meus sogros, sobretudo ele, ansiavam por um primeiro neto.

Entretanto, o nosso quotidiano decorria tranquilo e feliz. Andor continuava a sua actividade como director da Galeria Nacional e obtinha enorme sucesso com as exposições que organizava de artistas locais ou estrangeiros. Duas ou três vezes por semana, ia à fábrica Herend, e eu acompanhava-o frequentemente. A fábrica está ainda hoje situada perto do lago Balaton, um dos maiores lagos da Europa, maravilhoso para tomar banho. As margens são de areia muito branca e fininha e a água é límpida como cristal e nada fria.

Era também muito interessante para mim estar a par do trabalho do meu marido na fábrica e assistir à convivência cordial, cheia de respeito mútuo, que existia entre ele e os operários. Infelizmente, eu ainda não dominava suficientemente o idioma para poder participar nessas conversas.

Uma das vezes que fomos juntos à fábrica, ficámos a passar o fim de semana na enorme propriedade do arquiduque Joseph Habsburg e da sua mulher, a arquiduquesa Ana, de quem eu era muito amiga, e que se situava nas margens do lago Balaton.

O arquiduque era parente do imperador Francisco José. A sua situação na Hungria não era nada fácil naquele momento político, mas ele e a mulher, sempre juntos, sempre lado a lado, iam ultrapassando as dificuldades, desempenhando a arquiduquesa um trabalho social e de ajuda humanitária muito activos. Fugiram da Hungria com os seus oito filhos um pouco antes da invasão russa e encontrámo-nos, mais tarde, em Portugal, como refugiados.

A primeira vez que convidámos sua alteza real e imperial para jantar em nossa casa de Budapeste, esforcei-me arduamente em planear tudo. A ocasião era de grande responsabilidade e era imperativo que tudo decorresse impecavelmente. Teríamos dez convidados à mesa - connosco doze - e decidi combinar a ementa com o meu marido, que era um grande gourmet: de entrada, caudas de lagostins de água doce, que estavam na época ideal e são óptimos na Hungria. Perguntei a Mariska se sabia cozinhá-los. Com ar muito ofendido, respondeu-me que sim...

Também me aconselhei com Sandor sobre a decoração da mesa. Ambos concordámos que os nossos ilustres comensais deveriam estar fartos de ver pratas antigas e optámos por usar, para a entrada, uma antiga travessa oval de estanho, típica da Noruega, que eu tinha trazido na minha bagagem. Tudo foi preparado cuidadosamente e eu estava nervosa e excitadíssima.

Andor recebeu à entrada da casa os nossos ilustres convidados, como manda o protocolo. Tomámos os aperitivos enquanto todos admiravam a minha sala de estar azul com vista para o Danúbio, e toda a gente estava muito bem disposta quando Sandor entrou a anunciar que o jantar estava servido.

Passámos à casa de jantar. A mesa estava linda, muito simples, decorada com rosas selvagens que eu mesma tinha colhido na floresta, o género de decoração não convencional de que, certamente, ninguém estaria à espera.

Sentámo-nos, e o meu coração batia a pensar na entrada requintada de caudas de lagostins, que ia iniciar aquela refeição vocacionada para ser memorável. E foi...

Esperámos, esperámos, a conversa já esmorecia como acontece sempre que se está à espera de alguma coisa. Andor deitou-me um olhar crítico da sua cabeceira e eu toquei a campainha a chamar Sandor. Mas não apareceu nenhum Sandor... Eu estava uma pilha de nervos e conversava sem grande nexo com sua alteza imperial, sentado à minha direita.

Finalmente, uma eternidade depois, Sandor entrou na sala. Quase suspirei alto, de alívio. Mas, antes que qualquer suspiro pudesse ter saído, olhei para as mãos do mordomo à procura da minha linda travessa de estanho onde deviam ser vedetas as caudas dos lagostins de água doce.

Com a maior consternação, verifiquei que não havia nem uma, nem outros... Sandor transportava uma pequena travessa de prata onde repousava... um pouco de arroz com molho ao lado!...

Desta vez, Andor dardejou-me um olhar crítico e interrogativo: «Onde diabo estão os lagostins??» Bem podia perguntar...

No dia seguinte, um pouco a medo, porque não queria magoar Mariska, pedi-lhe uma explicação. E ela respondeu-me:

- A senhora sabe, é claro, que as caudas dos lagostins são venenosas. Por isso, logo que chegaram do mercado, bem vivinhos, cortei-lhes as caudas - bichos malditos -, deitei-as fora e, com as cabeças, fiz um estufado com aneto. Depois coloquei esse estufado na travessa de estanho e meti-a no forno para que se mantivesse quente até à hora de ir para a mesa...

É claro que, quando foi buscar a travessa ao forno, encontrou apenas uma amálgama do estanho derretido misturado com o estufado...

Ficou-me de emenda! Nunca mais pude pensar em lagostins de água doce com aneto, e também nunca mais usei uma travessa de estanho!

A minha amiga Margareta e o marido, Gustav Albrecht Wittgenstein, a cujo casamento assisti - em lugar de ir à inauguração da exposição do meu marido... - vieram muitas vezes visitar-nos à Hungria. Gostávamos muito de estar com eles e passámos belos tempos juntos.

Foi num desses encontros que, um dia, Gustav começou a falar da situação na Alemanha e da forma como estava a evoluir. Gustav Albrecht era um crítico feroz e opositor violento de Hitler. Mas a verdade é que, a despeito desta e outras oposições, o ditador seguia acumulando vitórias. Começara, por então, a sua diabólica perseguição aos judeus, construindo campos de concentração - campos da morte -, ao mesmo tempo que impulsionava o rearmamento, enquanto os representantes da Europa, do poder ocidental, se sentavam com ele à roda da mesa de negociações, sem consciência de que o desastre total estava próximo.

Andor e eu vivíamos a nossa vida, felizes um com o outro, cheios de ocupações. No verão, instalávamo-nos na nossa casinha na ilha de Sandoya, que ele pintou por fora e por dentro. Eu era pau para toda a obra e funcionava também como ”arrais” do nosso velho barco a motor, onde eu arriscava a vida de cada vez que punha o motor a trabalhar...

Gustav Albrecht e Margareta estiveram connosco a última vez que visitámos a nossa ilha antes da guerra. Isto passou-se em Julho de 1939. Poucos dias depois da nossa chegada, o nosso amigo recebeu um telegrama da Alemanha que o convocava a prestar serviço no exército. Mal sabíamos, quando nos despedimos dele, que seria a última vez que o veríamos.

Em Sazlatna, os nossos planos de modernização e de agricultura iam caminhando lentamente. Já estavam em funcionamento uma pequena destilaria, as pocilgas, a criação de ovelhas, as minhas capoeiras cheias de aves e a horta. Estavam também em construção novas casas para os trabalhadores.

A parte florestal estava a cargo de dois judeus, os irmãos Grossman, dois excelentes homens de quem nos tornamos amigos. Graças ao seu trabalho competente e devotado, a nossa exploração florestal ia de vento em popa.

Um dia, quando estavam no escritório de Andor a discutir planos quanto ao alargamento da propriedade para novo investimento, fizeram, com muita cautela, uma sugestão ao meu marido:

- O senhor conde devia depositar o seu dinheiro na Suiça; ou então comprar ouro como investimento. É o que nós estamos a fazer...

Infelizmente, não seguimos nenhuma das duas sugestões. E as reservas dos pobres homens também se perderam quando tentámos escondê-las.

Certo dia, o meu sogro recebeu um convite oficial de Bruxelas para fazer parte do júri da competição Ysaye de violino que devia ter lugar no dia 22 de Março de 1937. Jenõ ficou muito lisonjeado com o convite e preparou cuidadosamente a viagem.

Num jantar, alguém entre os convivas disse-lhe:

- Deve ser muito agradável para si voltar a Bruxelas, ao fim de tantos anos. Quantas memórias, quantas recordações...

Rápido, o meu sogro respondeu-lhe:

- Recordações do passado? Não é o passado que me interessa, mas sim o presente!

No dia 12 de Março, tínhamos que partir para Szalatna. Era altura de fazer as sementeiras da Primavera e muitos outros trabalhos na quinta. Almoçámos e fomos a casa dos meus sogros despedir-nos. Encontrámo-los na grande sala de estar verde, sentados no sofá, por baixo do famoso quadro de Munkácsy, A morte de Mozart. Esse quadro representa aquele músico, já muito doente, a reger o seu Requiem, sentado numa cadeira.

O meu sogro vestia um jaquetão preto e calças de fantasia.

- Mas que elegante está hoje! Alguma razão especial? perguntei.

- Então tu achas que eu costumo andar mal vestido? respondeu-me com um sorriso encantador. E prosseguiu: Mas há, de facto, uma razão especial: como sabes, sou presidente da comissão organizadora do festival de música de Santo Estêvão. E, hoje, temos uma grande reunião na Câmara Municipal.

Quando nos fomos embora, eles ficaram a acenar da varanda do salão.

Nessa noite, jantámos em Szalatna e sentámo-nos, depois, frente à enorme lareira para ouvir pela rádio um concerto tocado em Viena. De repente, veio da entrada um som de vozes excitadas. Levantámo-nos para ver de que se tratava.

No meio da entrada, estavam o nosso criado Pista e o cocheiro Józsi. Muito agitados, contaram que tinham ouvido pela rádio que Jenõ Hubay morrera. Com aquela incredulidade que todos temos diante do anúncio da morte dos que nos são queridos, respondi-lhes:

- Mas isso é impossível, ainda há pouco mais de duas horas estivemos com ele!...

Infelizmente, ao voltar à sala, a voz do locutor de Viena confirmava-nos a triste notícia: «Acabámos de receber de Budapeste a informação do falecimento súbito do maestro e compositor húngaro, Jenò Hubay. Por essa razão vamos interromper o programa com três minutos de silêncio».

O meu marido ficou lívido. Mudou, de seguida, para a rádio de Budapeste, que transmitia uma biografia de Jenõ, ao mesmo tempo que anunciava três dias de luto nacional decretados pelo governo.

De carro dirigimo-nos de imediato a Budapeste, mudos pelo desgosto, incapazes de dizer fosse o que fosse. Quando chegámos, à roda da nossa casa era um pandemónio. Centenas de pessoas, carros, e a polícia a tentar disciplinar o trânsito.

Numa urna muito simples, na bela sala de música que deliciara tanta gente, jazia o meu sogro. O ar nobre, calmo, uma expressão de paz tranquila, muito bela, no seu rosto aristocrático.

Soubemos mais tarde que, quando começara a reunião na Câmara Municipal, Jenó Hubay tinha feito logo a sua alocução. Estava mais a menos a meio, e tinha acabado de dizer «por esta nobre arte, todos temos a obrigação de dar o máximo e o melhor», quando baixou a cabeça. A volta da mesa da conferência, os outros membros da comissão mantiveram-se em silêncio, calculando que estaria à procura de qualquer coisa nas notas que estavam à sua frente, sobre a mesa. O silêncio era completo na sala e foi apenas interrompido por um fundo suspiro de Jenõ, ao mesmo tempo que a cabeça lhe descaía para a frente e a mão que segurava as notas caía na mesa. Jenõ Hubay estava morto. A sua vida tinha sido de uma grande beleza, e também na morte lhe fora concedido algo de muito belo.

Ajoelhei-me em frente do seu ataúde para orar, num momento de gratidão e também de desgosto. A minha sogra, Andor e o seu irmão, Tibor, revelaram naqueles momentos dolorosos uma força, um domínio sobre si próprios que foi uma verdadeira lição para mim.

Disse ao meu marido que ele agora tinha que pensar, sobretudo, na mãe e em todas as providências que era preciso tomar. Telefonei ao meu irmão Henning, que estava a estudar em Viena, pedindo-lhe que viesse ter comigo.

O funeral foi de uma solenidade extrema. A urna do meu sogro foi levada para a Ópera, onde teve lugar uma cerimónia muito bonita, com música - a sua música - e muitos discursos. Depois fomos em procissão até ao cemitério e a urna foi depositada no mausoléu da família Hubay.

O regresso a casa foi um momento muito doloroso. Ele, o eixo à roda do qual tudo girava, já lá não estava. E a casa parecia vazia.

O meu sogro era, sem dúvida, um grande artista. Mas era, acima de tudo, uma pessoa muito nobre, boa, generosa, cheio de compreensão pelos outros, sempre pronto a ajudar quem quer que fosse. Ainda me lembro da enorme quantidade de cartas que recebia todos os dias, as quais Bumi, anterior ama e governanta, e na altura sua secretária, lhe organizava. Quem lhe pedia ajuda recebi-a sempre que possível, e nem uma carta ficava sem resposta.

Não era fácil continuar a sua tarefa, agora que ele partira. Milhares de cartas, telegramas e artigos na imprensa exprimiam o desejo intenso de que a família continuasse com os concertos vespertinos no Palácio Hubay.

Discuti este assunto ponderadamente com o meu marido. Naquele momento, a minha sogra não estava em condições de considerar sequer essa hipótese. Continuar, como?, se a alma e inspiração de todo o projecto, o artista, já não estava entre nós?

Apesar de tudo, conseguimos continuar. E continuámos quase até ao dia em que os canhões transformaram a casa num monte de ruínas.

Na Primavera de 1938, a Áustria foi incorporada à Alemanha. Isso significou que a fronteira da Checoslováquia passou a ficar exposta e indefesa, a sofrer a pressão da vizinha Alemanha, onde Hitler cada vez tinha mais força.

No Outono do mesmo ano, os representantes do poder ocidental europeu reuniram-se com Hitler em Munique. Desta conferência resultou uma convenção segundo a qual a Checoslováquia foi obrigada a ceder a região dos Sudetas à Alemanha; à Polónia foi anexada a área de Tesin; e à Hungria juntou-se, de novo, a parte sul da Eslováquia, bem como parte dos Cárpatos da Rússia.

Assim, uma vez mais, com um golpe de tinta, Szalatna voltava ao seu país de origem. Esta propriedade fazia, agora, fronteira com a Eslováquia. Como deve calcular-se, Andor ficou muito feliz por a sua casa estar de novo em território húngaro mas, infelizmente, isto foi sol de pouca dura.

O primeiro-ministro húngaro, Teleki, estivera presente na reunião de Munique. Logo que as suas conclusões foram tornadas públicas, gerou-se, naturalmente, grande regozijo na Hungria. No seu regresso da Alemanha, uma enorme multidão esperava Teleki na fronteira austro-húngara e em todas as estações por onde o comboio passava para aplaudi-lo entusiasticamente. Ele fechou as cortinas do seu compartimento e recusou terminantemente aparecer.

Pouco depois daquela viagem, fomos convidados pelos Teleki. Eu estava cheia de curiosidade por saber a razão da sua recusa. Mal cheguei e cumprimentámos os nossos anfitriões, não pude conter-me que não lho perguntasse.

Com um sorriso amargo, contrafeito, Teleki respondeu-me:

- Em 1918, o tratado de Versalhes roubou à Hungria dois terços do seu território. Agora, em Munique, devolveram-nos uma pequena parte daqueles. Historicamente, devo dizer-te: foi cometido, agora, um segundo erro, em tudo muito semelhante ao do passado.

A nossa vida continuou, com os seus deveres e as suas alegrias. Mas a loucura daquela época começava a fazer-se sentir, e não era fácil imitar a avestruz e esconder a cabeça debaixo da areia.

Pouco tempo depois da morte do meu sogro, veio a Budapeste e ficou em nossa casa Erich Kleiber, um dos maiores maestros da época.

Num serão em que, sentados frente ao enorme fogão, recordávamos Jenõ Hubay, mostrámos-lhe uma composição que ele começara em 1915 e terminara pouco antes da sua morte: no início da Primeira Grande Guerra, o escritor francês Romain Holland publicou o poema Ara Pads, um verdadeiro hino à paz. Muito sensibilizado com essa obra, o meu sogro compôs uma cantata para orquestra e coro misto com o mesmo nome. Enquanto o mundo ardia e se desintegrava, a sua sensibilidade, idealismo e pacifismo levaram-no a fazer, com música, uma verdadeira elegia à paz.

Em Agosto de 1917, Andor, que tinha então dezoito anos, foi incorporado no exército. No momento de partir para a frente de batalha, quando se despedia do pai, este desmaiou e ficou muito doente. A obra que tinha entre mãos ficou parada. Muito mais tarde, Jenò retomou-a, para terminá-la em 1937. Erich Kleiber ficou muito impressionado com a cantata e logo afirmou que iria fazer o possível para ser o primeiro a regê-la. Infelizmente, pouco depois de estar connosco, Kleiber partiu para a América do Sul e o projecto não se concretizou. A sociedade musical húngara e o maestro Furtwàngler tentaram, por diversas vezes, estreá-la. Em vão. As autoridades proibiram-na com o fundamento de que «tanto o libreto como a música têm características marcadamente pacifistas...

Até hoje, o hino à paz nunca foi tocado. Não será já tempo para mostrar ao mundo um trabalho que exprime o desejo mais íntimo dos povos pela paz?*

O meu sogro tinha, em testamento, manifestado o desejo de que o seu Stradivarius fosse vendido após a sua morte. Muitas vezes o ouvi criticar o facto de o Stradivarius de Paganini estar guardado dentro de uma vitrina, num museu italiano

 

* A cantata Ara Pads estreou-se em 11 de Setembro de 2000, na Academia de Música de Budapeste, tocada pela Orquestra Sinfónica da Rádio Húngara, dirigida pelo maestro László Kovács. (N.T.)

 

só saindo dela para ser tocado nos dias do aniversário da morte daquele.

Um violino Stradivarius que não é tocado perde a sua sonoridade tão especial, se as cordas não fizerem vibrar a sua madeira de trezentos anos. Assim, de acordo com a vontade de Jenõ, fui encarregada de levar o violino a Londres para o leiloar no Hill.

A caminho de Londres, fui passar uns dias com os Wittgenstein, que se propuseram acompanhar-me ao leilão. Gustav Albrecht estava muito divertido com o meu pavor de que acontecesse qualquer coisa ao violino durante a viagem e brincava constantemente comigo, dizendo que, provavelmente, ao passar a fronteira, eu teria que tocar qualquer coisa para provar que o violino era meu! Mas era, sem dúvida, uma grande responsabilidade viajar com uma preciosidade desta espécie. E se ma roubassem?

Passámos a noite num hotel, em Frankfurt, dormindo em quartos contíguos e com uma porta de comunicação. Para maior segurança, à noite, coloquei o Stradivarius no chão, dentro do seu belíssimo estojo, em frente à minha cama.

Bebo sempre água durante a noite e, por isso, fico com uma garrafa de água na mesa de cabeceira. Conhecedora disto, a minha amiga Margareta, que teve sede durante a noite, levantou-se às escuras e entrou no meu quarto para beber da minha água. Acordada pelos seus passos, o meu primeiro pensamento foi para o violino. Gritei o nome do Gustav e, assustada, Margareta por pouco não tropeçou no precioso objecto! No dia seguinte, continuámos a viagem para a Holanda, onde iríamos apanhar o ferry-boat. No controlo da fronteira, havia duas bichas. Uma delas ostentava uma tabuleta que dizia «Judeus». Enquanto esperávamos na outra bicha, perguntava-me a mim própria se, por acaso, não descendíamos todos de Adão e Eva...

Os carregadores tinham ordens rigorosas para não ajudar nenhum judeu com a bagagem. Contudo, quando Gustav Albrecht viu, na bicha dos judeus, uma velhinha que carregava a sua pesada bagagem, com grande dificuldade, foi ter com ela e levou-lhe as malas até ao guichet do controlo. Imagine-se quantos dos seus compatriotas alemães seriam capazes, naquela época, de ter um procedimento assim!

Chegados a Londres, fiquei no apartamento de uma amiga da época em que era jornalista naquela cidade. Senti-me transportada aos meus tempos de solteira, enquanto as duas percorríamos os teatros e concertos. Na segunda noite, tive a sorte de assistir a um concerto de Rachmaninov, no qual este músico interpretava as suas composições. No final, aproveitei e fiz-lhe uma entrevista. Para matar saudades...

Infelizmente, não houve licitadores para o Stradivarius. O futuro mostrava-se muito incerto e as pessoas não estavam à vontade para despender uma fortuna num instrumento, ainda que se tratasse do melhor violino do mundo. Assim, voltámos juntos para casa.

Entretanto, as nuvens negras, cada vez mais negras, iam-se acumulando sobre a Europa. Quando regressei a Budapeste, encontrei o meu marido muito preocupado com a situação política. Já não sabia o que fazer para tentar roubá-lo aos seus pensamentos, quando Deus Nosso Senhor veio em meu auxílio. Enjoos matinais, tonturas, cansaço, fizeram-me suspeitar que estaria de novo grávida. Deixei passar mais uns dias e marquei uma consulta no meu médico. Não queria dar falsas esperanças a Andor, precisava absolutamente de ter a certeza.

Uma manhã, dias depois, o telefone tocou. O meu médico confirmava que as análises eram positivas: tinha-me sido concedida a imensa alegria de ter um filho!

Andor estava a trabalhar no seu atelier do quarto andar, o telefone situava-se no salão azul do terceiro. Ia começar a subir as escadas a quatro e quatro, para lhe dar a notícia quando estaquei ao mesmo tempo que ME recriminava: «Edle, calma, tens que pensar no teu filho!».

Então, subi devagarinho, com muito cuidado e... lancei-me nos braços do meu marido, ao mesmo tempo que lhe gritava a maravilhosa novidade. Depois, sentada no seu colo, os dois imensamente felizes, agradecemos a Deus a enorme bênção que nos concedia.

Apressámo-nos a dar a novidade à minha sogra. Porque sabíamos que ia ficar tão feliz quanto nós, e também que a notícia iria amenizar o seu luto e desgosto.

- Meu Deus - disse-nos. - Como eu rezei para que isto acontecesse! Agora que terminou uma geração com a morte do Jeno, uma nova geração vai começar com a vinda do vosso filho! Deus seja louvado!

Nesse Verão, durante as nossas habituais férias na Noruega, Andor quase conseguiu esquecer as nuvens ameaçadoras que continuavam a engrossar sobre a Europa. No regresso, porém, ao atravessar a Alemanha, desabou sobre nós a triste realidade. Em muitas janelas e montras de lojas, enormes cartazes rezavam: «Proibida a entrada a judeus». E soubemos que tinha saído um decreto, obrigando todos os judeus a usar no peito a estrela amarela de David. Na Alemanha, reinava a loucura!

No dia 8 de Fevereiro de 1938, depois de trinta e seis horas de trabalho de parto, nasceu a nossa filha. O parto, embora normal, foi bastante difícil e eu tive que ficar no hospital durante três semanas, devido a algumas complicações posteriores.

Meu Deus, cometemos tantos erros na vida! E o pior é que, depois, é impossível desfazê-los. A seguir ao parto, fiquei debilitadíssima e com febre muito alta. Por isso, o médico prescreveu repouso absoluto, sem visitas. Eu também não tinha disposição para ver ninguém. A minha sogra, porém, deveria ter sido uma excepção. Mas eu nunca lhe disse que viesse, e hoje assumo que isso foi profundamente errado e desumano. Acho que, no meu egoísmo, não me apeteceu enfrentar o seu luto, a sua tristeza. Eu só queria pensar na minha felicidade e esqueci-me da obrigação que nos cabe de partilhar a nossa alegria com os outros. A começar pelos mais próximos.

Foi um momento inesquecível, aquele em que a minha filha e eu voltámos para casa. A minha sogra e o meu cunhado apareceram imediatamente e também muitos amigos e conhecidos. A menina, muito calma, parecia que sorria a todos.

As horas mais felizes do meu dia eram aquelas em que a ama lia, uma rapariga muito simpática, me punha nos braços o bebé a gritar com fome. O meu leite era em tal quantidade que bombeava uma boa parte para um frasco e mandava entregá-lo ao polícia da frente da nossa porta, cuja mulher não tinha leite para alimentar o seu bebé.

Durante sete meses deliciosos, foi esta a minha vida e a da minha filha.

Anna Roza foi o nome com que baptizámos a nossa filha, usando um vestido de baptizado de renda, antiquíssimo, que pertencia à família há muitas gerações. Anna, que era o nome da minha mãe, e Roza, o nome da mãe de Andor. Porém, o nosso amigo Gustav Albrecht Wittgenstein crismou-a de Rozann e assim ficou a chamar-se para todo o sempre!

A cerimónia do baptismo teve lugar na igreja que ficava em frente da nossa casa.

 

             Tempestade na Europa

No dia 1 de Setembro de 1939, estava em Szalatna. Sentada no enorme terraço sobranceiro ao parque, gozava o dia cálido de Outono, ouvindo música na rádio.

De repente, a emissão foi interrompida. Um locutor de voz excitada, emocionado, leu um boletim de notícias de última hora: os alemães acabavam de invadir a Polónia!

Andor tinha saído a cavalo para inspeccionar algum trabalho no campo. A correr tanto quanto podia, fui à procura dele. Nunca hei-de esquecer a sua cara quando, quase sem fôlego, lhe transmiti a triste notícia.

Sem dizer uma palavra, encaminhou o cavalo para casa. Quando, um pouco depois, me juntei a ele, encontrei-o junto ao rádio, branco como a cal. De mãos dadas, continuámos a ouvir as terríveis notícias; e as lágrimas corriam pelas nossas faces. Não conseguíamos articular uma palavra. Por fim, o meu marido falou:

- Isto é o fim da Hungria. Uma vez mais, vamos aliar-nos aos alemães para combater os russos... Como eu pensava, Hitler rasgou todos os tratados de paz e embarcou definitivamente no seu desvario louco para dominar o mundo!

A invasão da Polónia causou, como é evidente, uma enorme indignação na Hungria. Para mais, a Hungria e a Polónia têm em comum uma história igualmente trágica e os seus povos um temperamento muito similar.

A Polónia foi esmagada em três semanas. Em 17 de Setembro, Hitler e Estaline estabeleceram uma linha de demarcação que antecedeu aquela que, depois, foi denominada de linha Curzon.*

Doze milhões de polacos seriam mandados para a Rússia e dez milhões para a Alemanha. Num piscar de olhos, assim se decidia o destino de vinte e dois milhões de pessoas. O passo seguinte seria o extermínio dos judeus polacos.

Em Szalatna, fomos das primeiras testemunhas desta tragédia. O fluxo cada vez mais grosso dos refugiados de leste atravessava a nossa propriedade. Dia e noite, passavam por nós homens, mulheres, crianças, jovens e velhos, esfarrapados, sujos, esfomeados, miseráveis, puxando penosamente carrinhos de mão, carroças ou qualquer coisa com rodas, onde se amontoavam os objectos que tentavam salvar. Todos contavam histórias de arrepiar: os bombardeamentos de Varsóvia, os aviões voando a baixa altitude com as suas metralhadoras, abatendo mulheres e crianças, os pacotes de chocolate envenenado atirados pela força aérea de Hitler às populações esfomeadas.

A nossa cozinha de Szalatna passou a funcionar vinte e quatro horas por dia. As multidões de refugiados tinham, ao menos, uma tigela de sopa quente antes de continuar a jornada. Para onde iam ninguém sabia, muito menos eles próprios.

 

* A linha Curzon, proposta por Lord Curzon como fronteira provisória entre a Polónia e a Rússia, foi aceite pelos aliados em lalta (1945), demarcando de novo as fronteiras da Polónia. (N.T.)

 

Mas em nenhum deles se apagava a esperança de que o caminho os conduzisse à liberdade.

Em Budapeste, foi criado um gabinete de apoio aos refugiados, publicitado por toda a parte em cartazes escritos em polaco e em húngaro. Pela nossa casa nessa cidade passaram inúmeros refugiados, alguns amigos nossos. Um deles tinha sido secretário da embaixada da Polónia em Budapeste. Chegou de carro com a família. Um carro cheio das mais variadas coisas, tudo o que tinha sido possível salvar. Ficaram connosco três meses.

Chegaram depois dois oficiais do exército polaco. Vinham exaustos, física e moralmente, os uniformes em muito mau estado. A única esperança que lhes restava centrava-se no governo polaco no exílio, sediado em Londres. Era lá que queriam apresentar-se para continuar a luta. Mas como, se não tinham passaportes, dinheiro, nem sequer roupa?

Com a ajuda dos nossos contactos, algum tempo depois, eles tinham tudo o que precisavam para partir: roupas novas, passaportes e algum dinheiro. A despedida foi muito triste. Ambos fizeram questão em oferecer a Andor as suas duas espingardas Purdy, o único bem, a única coisa que tinham conseguido trazer na fuga da Polónia. O meu marido aceitou, até porque essa era a única maneira de que as espingardas não se perdessem. Demos-lhes vários contactos e prometeram dar notícias se conseguissem sobreviver. Nunca mais ouvimos falar deles.

Andor meteu as duas Purdy dentro de uma parede da cave em Szalatna, juntamente com as nossas espingardas, quando fomos obrigados a abandonar a nossa casa. Onde estará tudo isso agora?

Nessa altura, a ajuda aos polacos ocupava-nos o tempo todo. Os hospitais, os médicos, o pessoal de enfermagem, todos estavam a postos. Fundou-se mesmo, em Budapeste, uma universidade polaca.

Raras eram as casas onde não houvesse, pelo menos, um refugiado polaco. Muitos deles continuaram viagem para Londres, onde o governo polaco no exílio continuava a ser a sua única esperança. Mas muitos ficaram também na Hungria, até o nosso país, por sua vez, ser ocupado pelos alemães.

No palco da Europa, as hecatombes seguiam-se umas às outras em resultado da política desastrosa dos poderes ocidentais. Quando Estaline atacou a Finlândia, tentaram convencer-nos de que o fizera por razões... de segurança!

Os finlandeses são o único povo europeu antepassado longínquo dos húngaros. No ano de 896, algumas tribos nómadas fino-úgricas de idioma uralo-altaico, desceram dos montes Urais até ao território húngaro. É capaz de ser demasiado romântico pensar que daí deriva a simpatia que liga estes dois países, mas arrisco-me a propô-la!

Em 1918, a Hungria sofrera na pele o horror do regime comunista russo. A Finlândia é vizinha da Rússia. Não admira, portanto, o repúdio generalizado que se estabeleceu na Hungria contra aquele ataque. Assim, muitos húngaros tomaram a decisão de juntar-se ao exército finlandês. Entre eles contou-se o meu marido, que foi incumbido de submeter o plano de auxílio ao embaixador finlandês em Budapeste. Mas nada resultou deste plano, provavelmente porque o governo chegou à conclusão de que, para levá-lo a cabo, seria necessário todo o exército da Hungria.

Como já contei, tínhamos o privilégio de ser amigos de Teleki. Um dia, de repente, interpelei-o:

- Diga-me qualquer coisa que consiga proporcionar-me nem que seja uma pequena esperança no futuro...

- Isso não posso fazer, infelizmente - respondeu-me. O que posso afirmar-lhe, sem qualquer sombra de dúvida, é que as grandes nações são sempre implacáveis em relação às mais pequenas.

Aos domingos, costumava passear com ele e a filha, May. Os dois guarda-costas à paisana que nos acompanhavam discretamente a alguma distância eram sempre motivo de aborrecimento para ele. Como uma criança a jogar às escondidas, divertia-se sempre a fugir à sua vigilância. Também, nesse tempo, não devia ter muito mais distracções!

Hitler continuava a somar vitória sobre vitória. Na Hungria, os colaboracionistas, como que inspirados em Quisling1, bem organizados e financiados pelos agentes de Hitler, ganhavam cada vez mais força.

A minoria suábia, um escasso meio milhão de alemães daquela etnia comandada por Szalasi, funcionava, agora, na Hungria como uma força estrangeira.

A coacção alemã crescia de dia para dia. Teleki continuava a resistir, mas estava cada vez mais só e acabou por ficar isolado na cena política. Uma facção húngara, constituída pelos oficiais mais velhos do exército, persuadida da vitória de Hitler, fazia uma fortíssima pressão sobre aquele ministro, atacando violentamente a sua política sobre a neutralidade húngara.

Milhares de judeus, bem como prisioneiros de guerra fugidos de França, invadiram a Hungria. A maior parte dos húngaros - mas, infelizmente, nem todos - procurou ajudá-los a encontrar trabalho e abrigo.

A embaixada de França ficava mesmo ao lado da nossa casa em Budapeste e, por isso, dia e noite, tínhamos polícias à

 

1 Quisling - político norueguês que colaborou com o governo dos ocupantes do seu país. (N.T.)

 

porta. Éramos amigos do embaixador e da mulher, e demos-lhes toda a nossa cooperação.

Pediam-nos frequentemente que acolhêssemos algum refugiado. Em Budapeste, isto era cada vez mais difícil, porque a polícia, estacionada à porta da embaixada, vigiava simultaneamente a nossa casa. Mas conseguimos muitas vezes levar os refugiados para Szalatna e dar-lhes todo o nosso apoio.

Lembro-me de um deles de uma forma muito especial. Pusemos-lhe o nome de Charles, como era frequente chamar aos rapazes bem parecidos do sul de França. Depois de duas tentativas goradas para fugir de uma prisão alemã, ele tinha, finalmente, conseguido. Disfarçado de gato-pingado, vestido com as roupas pretas de funeral, conseguiu escapar-se até à Hungria.

Agora, em Szalatna, ajudava nos trabalhos domésticos, debaixo do olho vigilante de Pista. Mas quando descobriu os encantos das raparigas húngaras, acho que as suas tarefas domésticas ficaram bastante prejudicadas... Andor costumava dizer que, desde aí, uns quantos bebés da terra nasceram com algumas gotinhas de sangue francês!

Havia muitas coisas para fazer, mas, porque tudo tinha que passar-se às ocultas, era arrasante! Era uma tarefa de loucos, porque a tensão a que estávamos sujeitos dava cabo do nosso sistema nervoso.

Nós os três, Andor, Rozann e eu própria, tentávamos prosseguir com as nossas rotinas diárias. Entre nós existia uma felicidade absoluta, da qual a nossa filhinha era o cerne.

É nas simples tarefas do dia-a-dia que as almas se preparam para os grandes feitos. Isto é ainda mais verdadeiro quando essas tarefas têm que ver com a Mãe Terra, que, na sua generosidade, dá e tira, mas renova e recria sempre.

Nos grupos de refugiados, o que me causava mais dó eram as crianças. Seria o pensamento que às vezes me assaltava: «Lembra-te que pode acontecer-te também...»?

A ideia de não ser capaz de proteger e salvar os nossos próprios filhos tornou-se quase obsessiva. Nunca tive coragem de partilhar este medo com Andor, ele que já tinha a experiência da guerra. Mas onde poderia eu encontrar a força de que necessitava? De que forma poderia preparar-me para aceitar o que o destino me reservasse?

Resolvi fazer alguma introspecção. Não gostei nada do que descobri. A minha experiência diária alimentava, cada vez mais, maus pensamentos. Sentia-me muito revoltada, cheia de ódio pelos alemães.

Percebi que tinha que analisar-me cuidadosamente e mudar uma grande parte de mim. O amor pelos meus não era suficiente para me tornar melhor, porque esse amor era, evidentemente, muito egoísta. Era preciso aprender a humildade. E, assim, aos poucos e poucos, voltei-me para a Fé da minha infância - seja feita a Sua vontade.

O Natal estava à porta e a minha sogra, bem como o meu cunhado, Tibor, vinham passar as festas connosco a Szalatna. Os olhinhos azuis da nossa Rozann, mais brilhantes que as velas da árvore, eram um pólo de atracção irresistível...

Na Missa do Galo, quando me ajoelhei ao lado de Andor, na igrejinha da aldeia, pedi a Deus que me desse forças para ajudar os outros e a ser boa e compreensiva.

Entre o Natal e o Ano Novo, nevou fortemente. Na noite de fim de ano, Józsi, o cocheiro, levou-nos de trenó puxado por dois cavalos a visitar uns amigos nossos vizinhos. Durante o caminho, recordei com alguma nostalgia os passeios semelhantes, na Noruega, conduzidos pelo Hansen, em Atlungstad.

À meia noite, com as janelas escancaradas para a noite gelada, cheia de estrelas, ouvimos o toque festivo dos sinos no campanário vizinho, a acolher o Novo Ano. Um Novo Ano que não sabíamos muito bem o que iria trazer-nos...

De volta a Budapeste, retomámos a rotina das nossas vidas. O trabalho, a ópera, os concertos, muita música, que era aquilo de que mais gostávamos nas horas de lazer e nos ajudava a exorcizar os nossos pensamentos mais negros. Que iam ficando cada vez mais sombrios, à medida que as grossas nuvens negras se acumulavam todos os dias sobre a Europa.

Continuámos a darmo-nos com a maior parte dos nossos amigos. No entanto, houve alguns cujas opiniões políticas se tornaram incompatíveis com as nossas, e que deixámos de ver definitivamente.

Foi a Roménia a vítima seguinte de Hitler. A Alemanha, uma vez mais, pôs-se do lado de Antonescu, o ”Quisling” da Roménia.

Deu-se o nome de «unidades de instrução» aos contigentes militares destacados para aquele país. Inventavam-se muitas palavras novas para mascarar as situações, mas todas queriam dizer o mesmo: domínio, ocupação.

A teia ia sendo urdida à roda da Hungria e, em pouco tempo, o país estava cercado pelas forças que representavam o tal domínio, agora mais que evidente.

Teleki, contudo, mantinha-se firme. ORGULHOSAMENTE SÓ.

A Primavera chegou e a beleza da paisagem que nos rodeava ajudou, apesar de tudo, a melhorar a nossa disposição. Com o despertar da Natureza, os trabalhos agrícolas recomeçavam em Szalatna. E, assim, nós partilhávamos o nosso tempo entre Budapeste e esta propriedade, onde havia tantas modernizações e projectos novos para inspeccionar. Uma das nossas primeiras visitas foi a uma família de trabalhadores agrícolas que acabara de mudar-se para uma nova casa. Antes, eles tinham um chão térreo; agora, no soalho de madeira amarelinha, brilhava a mobília, também ela completamente nova.

No canto da cozinha, porém, Andor reparou que duas galinhas muito gordas chocavam os seus ovos, e insistiu que elas, mais as suas futuras ninhadas, fossem transportadas para as capoeiras. Percebo tão bem a posição da dona das galinhas como a de Andor. A verdade é que Roma e Pavia não se fizeram num dia! E as pessoas precisam educar-se para serem capazes de utilizar convenientemente as melhorias a que vão tendo acesso.

Infelizmente, o futuro iria revelar-se bem mais destrutivo para a nova casa do que as galinhas, por mais bicadas que dessem...

No dia 9 de Abril, exactamente às nove horas, tinha consulta marcada no meu dentista em Budapeste. Quando cheguei ao consultório, pontual como sempre, a recepcionista olhou para mim de uma forma estranha, como se não estivesse à minha espera.

O médico olhou-me quase da mesma forma. Comecei a ficar intrigada.

- Desculpe lá, doutor, mas porque é que vocês estão a olhar para mim desta maneira? Parece que nunca me viram...

- A senhora não ouviu hoje as notícias, pois não? - Perante o meu abanar enérgico de cabeça, continuou: - A Alemanha acaba de invadir a Dinamarca e a Noruega!

Reagi como sempre fazemos, quando recusamos veementemente uma desgraça:

- Não é possível, deve haver qualquer confusão... Posso usar o telefone?

Do outro lado da linha, Andor ficou tão estupefacto como eu:

- Vou já ligar ao embaixador britânico. Falo-te a seguir...

Poucos minutos depois, o meu marido confirmava-me a informação:

- Segundo as últimas notícias, Oslo está neste momento debaixo de intenso bombardeamento.

Corri para casa. No caminho esbarrei com uma grande amiga minha, sueca, casada com um húngaro:

- Já sabes as notícias? - Acenei tristemente com a cabeça e ela continuou:

- Bem, agora só espero que os alemães cheguem aqui também!

Contive-me para não a esbofetear, ao mesmo tempo que lhe respondi:

- Desaparece da minha vista, nunca mais quero ver-te nem sequer ouvir falar de ti, ouviste? - E foi exactamente o que aconteceu.

De volta a casa, Andor e eu não largámos mais a telefonia. As notícias iam piorando de minuto a minuto. Ainda tentei, por várias vezes, telefonar para Oslo, mas, como é evidente, tive que desistir.

O nosso telefone não parava de tocar: os nossos amigos e conhecidos queriam saber notícias. O ministro Teleki telefonou-nos também. Tinha estado todo o dia fora da cidade a proferir uma conferência e, no regresso, ouvira as notícias. Convidou-nos a ir a sua casa imediatamente. Ficámos lá uma boa parte da noite.

Sentimo-nos muito sensibilizados com a atitude de Teleki, em relação a mim e ao meu país. Era impressionante a forma como ele conhecia a Noruega. Geólogo de formação académica, sabia muito mais sobre os fiordes noruegueses do que eu própria. A estratégia de Hitler era, para ele, por demais evidente:

- O grande problema com a Noruega é que o país vive em paz há mais de cem anos. Não me atrevo a dizer que os noruegueses sejam pacifistas, mas humanistas são, com certeza. Andar aos tiros e matar pessoas, neste momento, é impensável para eles. Mas há-de chegar o dia em que o farão, aí não me restam dúvidas.

- Mas não lhe parece que esta é a gota de água, que Hitler foi longe demais? - argumentou Andor. - A Marinha Real e o Exército britânico vão entrar em acção e as tropas alemães serão esmagadas, isoladas, e, assim o espero, completamente aniquiladas.

Por muitos anos que eu viva, nunca esquecerei o sorriso de resignação e o gesto de desespero com que Teleki respondeu:

- Acredite nas minhas palavras: os alemães ainda vão ganhar muitas batalhas antes que percam a guerra.

Quando regressámos a casa naquela noite, muito abatidos, Andor disse-me:

- Lembras-te daquele dia, no fiorde Sogna, quando vimos o navio alemão com a suástica na bandeira, do que eu disse sobre a ingenuidade norueguesa em relação aos cruzeiros do Hitler? Aí está! Como vês, eu tinha, infelizmente, razão.

Nesta terrível época, foram totalmente por água abaixo todas as minhas boas intenções de ser compreensiva, boa e de alcançar a Fé da minha infância.

Em tempos como aqueles, como é fácil deixarmo-nos invadir por maus pensamentos! A sensação de total impotência deixa-nos revoltados e se, ainda por cima, estivermos pessoalmente envolvidos no desastre, tudo se potência em raiva e ódio. Sentia-me má, odiosa, homicida, vingativa. Em todo o meu ser só albergava uma imensa revolta e um incomensurável sentido de injustiça. E mesmo nos momentos mais tranquilos, quando encontrava um pouco de paz na companhia da minha filha, sentia que a mente me fugia constantemente para o pior de mim mesma.

As plantas e as flores dos vasos na minha sala de estar azul, com aquela vista maravilhosa sobre o Danúbio, que sempre cuidei com desvelo e carinho, começavam a murchar, a morrer, prova evidente do meu desinteresse e actual falta de amor por elas.

Os cabeçalhos dos jornais e as notícias na rádio serviam-me para atiçar o fogo do meu ódio.

Um dia, as coisas atingiram o ponto de ruptura. Eu ia a pé para casa, através da Ponte das Correntes. Já no lado de Buda, à direita onde começava a nossa rua, havia um quiosque onde costumava comprar os jornais. Nesse dia, ainda bastante longe, já se ouvia a voz do vendedor, a gritar quaisquer notícias de última hora. Quando lá cheguei, li os títulos em cacha alta da primeira página do jornal germanófilo Pester Lloyd: «Acção heróica das forças alemãs. Tomada a cidade de Narvik».

Automaticamente, quase sem dar por isso, arranquei dos escaparates todos os exemplares do Pester Lloyd e espalhei-os pelo chão. Quando caí em mim, fiquei horrorizada com o que tinha feito, e escapuli-me a correr para casa, onde consegui chegar inteira...

Algum tempo depois, a caminho de Szalatna, na meia modorra da viagem, dei por mim a pensar: «É preciso fazer qualquer coisa. Mas o quê, meu Deus?»

À medida que prosseguíamos viagem, agora já dentro da propriedade, a beleza do que via ainda fazia mais contraste com a fealdade do momento político. Os pássaros cantavam como sempre, as flores rompiam das árvores e da terra como sempre, o sol brilhava como sempre. Só o homem se encarniçava a desfear tudo com a sua maldade inconcebível. Como sempre?

No domingo, fomos à missa. No meio, na pausa da comunhão dos outros fiéis, dei por mim a pensar no que tinha dito a Andor na altura do nosso noivado:

- Só me converterei à fé católica no dia em que sentir dentro de mim esse desejo e essa necessidade.

Teleki tinha uma vez falado de um padre muito jovem, chamado Szunyogs, capelão dos escuteiros, em sua opinião uma pessoa extraordinária. Quando voltámos a Budapeste,

telefonei-lhe e perguntei-lhe se poderia receber-me. O nosso encontro - o primeiro de muitos - foi o começo de uma amizade que teve uma importância profunda na minha vida toda.

O padre Szunyogs era alto, de compleição forte, bastante corpulento, com uns olhos que sorriam e uma mente brilhante.

Expliquei-lhe que me sentia atraída pela religião católica e considerava a hipótese de vir a converter-me. Antes, porém, precisava de ser esclarecida em muitos pontos. Ele aceitou a tarefa e combinámos que estaríamos juntos duas vezes por semana. Pedi-lhe que não dissesse nada ao meu marido, antes da minha decisão final.

Encontrávamo-nos às segundas e sextas-feiras e, durante algumas horas, eu fazia toda a espécie de perguntas e partilhava com ele os meus problemas, as minhas dúvidas e mesmo os meus maus pensamentos. Ele ouvia-me, esclarecia-me, explicava e pedia-me, depois, que pensasse até ao encontro seguinte sobre o que tínhamos discutido, de forma a dar-lhe a minha opinião. À sexta-feira, falava-me sempre sobre o Evangelho do domingo seguinte e, à segunda-feira, eu contava-lhe o que tinha pensado durante a missa e durante o fim de semana.

Um dia, ele disse-me:

- Edle, acho que já está preparada para se converter à religião católica.

- Não, padre Szunyogs, acho que ainda não estou - respondi-lhe. E justifiquei: - Ainda ontem, durante a missa, dei por mim a pensar no vestido que acabei de mandar fazer e se devo usá-lo com um xaile azul ou vermelho. Se eu me distraio a este ponto durante a missa, a pensar em coisas tão fúteis, certamente não estou ainda suficientemente preparada!

Com o seu doce sorriso e agarrando-me na mão, respondeu:

- Está enganada, minha filha. Deus Nosso Senhor é um esteta: ama tudo o que é belo. Não é nenhum pecado ter esse tipo de pensamentos durante a missa.

Para poder converter-me tinha primeiro que desistir da religião protestante. Era preciso ir duas vezes à igreja protestante, acompanhada de uma testemunha.

Nem mesmo nessa altura quis dizer a Andor. E pedi à Bumi, a antiga governanta da família, que viesse comigo. Foi também ela quem marcou pelo telefone a entrevista com o ministro protestante.

A entrevista não foi lá muito agradável. Quando lhe expliquei a razão da minha vinda, ele olhou para mim e disse-me:

- A senhora nasceu na Noruega, não foi? Já ouviu falar de Quisling?

Esquecida das minhas lições com Szunyogs, respondi-lhe, de uma forma bastante áspera, que achava a sua pergunta completamente despropositada. Impávido, ele continuou:

- A sua família é protestante? - Perante a minha confirmação, aquele clérigo ”encantador” retrucou: - Então, a senhora é uma traidora em relação à sua família, tal como Quisling foi para o seu país!

Levantei-me imediatamente e fui-me embora, não sem lhe dizer primeiro:

- Muito obrigada. A sua total falta de compreensão tornou bem mais fácil para mim deixar a igreja que o senhor representa. Agora, não preciso de mais nada. Mais uma vez, obrigada.

Ainda tive que voltar, um outro dia, ao presbitério. Bumi foi comigo, muito atrapalhada, e eu fiz um imenso esforço para me lembrar dos ensinamentos do bom padre Szunyogs: perdoar e esquecer. Mas foi fácil e rápido. Consegui o meu certificado, uma simples declaração de que tinha abandonado a igreja protestante.

Nessa mesma noite, falei a Andor sobre a minha conversão à religião católica. Ele ficou comovido e contente:

- Se é isso que queres, estou feliz, minha querida. Embora eu ache que acreditar no Buda, em Alá, em Shiva, abraçar o islamismo ou qualquer outra crença, não é o mais importante. Fundamental, isso sim, é que cada pessoa tenha algo em que acreditar.

E foi assim que eu abracei a religião católica, na nossa igreja, sendo o padre Szunyogs o celebrante, e a minha sogra a madrinha.

Este foi o primeiro Verão em que não fomos à Noruega. Mas isso não teria nenhuma importância, não fora a guerra a razão que nos impedia de partir. Felizmente, recomeçara a receber alguma correspondência da minha família, cartas escritas com muito cuidado, todas carimbadas pela censura. O censor assinava com o número 427. Não sei se era homem ou mulher, mas o que sei é que tinha sentido de humor porque, para além das palavras apagadas pela tinta, vinham, algumas vezes, comentários escritos à margem, que chegavam a ter graça.

Eu tinha uma tia na Alemanha, chamada Polly, e, por essa razão, na nossa correspondência, o meu pai e eu demos à Alemanha o mesmo nome de código. Uma vez, escrevi: «A tia Polly está muito doente e não creio que viva muito mais tempo...».

O 427 escreveu na margem: «Está completamente enganada, a tia Polly está de óptima saúde e não vai morrer...».

A Holanda e a Bélgica foram as vítimas seguintes da Alemanha. As famílias reais e os governos pediram asilo em Inglaterra e, deste país, continuaram as suas lutas.

Em Szalatna, fazíamos o possível para não nos deixar arrastar pelos prognósticos pessimistas quanto ao futuro. Os trabalhadores estavam muito contentes com os melhoramentos introduzidos, bem como com as novas construções, a agricultura ia de vento em popa, como também a exploração florestal, o gado e a horta.

De todas estas coisas nós íamos retirando, no dia-a-dia, a força para continuar, apesar da onda de loucura que varria a Europa sob a batuta sinistra de Hitler.

Um dia, dois amigos noruegueses, Aake Bratt e Riieser-Larsen* telefonaram-me de Budapeste. Tinham conseguido fugir da Noruega através da Rússia e estavam a caminho da Inglaterra. A Itália, destino que se propunham, tinha entrado na guerra durante a sua viagem, e eles não conseguiam obter vistos. Pediam-me, naturalmente, toda a ajuda que pudesse dar-lhes.

Meti-me no carro e fui para a cidade. Já não sei, exactamente, qual foi a ajuda que lhes dei. Mas lembro-me que resolvi os seus problemas e que passámos uma noite muito agradável juntos. Quando nos despedimos, Riiser-Larsen fez-me prometer que, se alguma vez precisasse, recorreria à sua ajuda.

Tínhamos então a viver connosco uma menina suíça que falava francês e alemão, e viera substituir lia para tomar conta de Rozann. Foi assim que a nossa filha aprendeu francês. Já falava, naturalmente, o húngaro e, pouco depois, começou a aprender alemão. Na Hungria, era muito frequente que se falassem três idiomas desde tenra idade.

Em Budapeste, Rozann tinha muitos amigos da sua idade, filhos dos nossos amigos. Em Szalatna, a sua grande amiga era Eva, filha do ferrador local e uns anos mais velha. Ela ficava frequentemente connosco e também vinha muitas vezes a

 

* Riiser-Larsen foi um dos famosos participantes da expedição de Amundsen ao pólo norte. (N.T.)

 

Mosòc. Tiro o chapéu à minha sogra pela tolerância que demonstrava. De facto, naqueles tempos, não era vulgar ter a filha do ferrador a correr pela casa e a partilhar o quarto com

a neta...

Mosóc era um verdadeiro paraíso, tanto para os adultos como para as crianças. No meio do enorme lago do parque, havia uma ilhota para a qual se acedia através de uma ponte em arco. Tínhamos um barco a remos na ilha e podia tomar-se banho, nadar e pescar trutas.

O que fazíamos também muitas vezes era ir de carruagem puxada por dois cavalos até à floresta, para apanhar cogumelos, groselhas e morangos silvestres. Às vezes, as crianças juntavam alguma lenha, faziam uma fogueira e grelhavam chouriço e bacon num espeto de pau de loureiro. No tempo das castanhas, que até no parque abundavam, assavam-nas depois para a sobremesa.

A mademoiselle da Rozann tinha instruções minhas para deixá-la ser tão independente quanto a sua idade permitia. Levávamo-la muitas vezes aos estábulos e às cavalariças para que se habituasse aos animais e não tivesse medo, e Andor cavalgava com ela. Quando fez cinco anos, demos-lhe um pónei, chamado Palli. Rozann aprendeu a tratar dele, a alimentá-lo e a aparelhá-lo, e, dentro de pouco tempo, era uma óptima amazona.

Montou o seu Palli todas as manhãs, até os russos lho tirarem - aliás, tiraram-nos tudo. Perdemos tudo, as nossas casas, as nossas propriedades. Mas na nossa filha ficou sempre, inalterável, o amor pela Natureza que veio a transmitir às suas filhas, apesar de viverem, hoje em dia, uma vida muito diferente da que foi a nossa.

Éramos muitas vezes convidados para as propriedades dos nossos amigos. Se havia crianças da idade da nossa filha, Rozann vinha connosco, acompanhada pela mademoiselle. Andor nem sempre nos acompanhava. Tinha muito que fazer em Budapeste e, além disso, preferiu sempre receber a ser recebido... Uma das casas onde eu mais gostava de ir era a da grande actriz húngara, Gizi Bajor. Era casada com um judeu, catedrático na faculdade de medicina, e na casa deles reuniam-se artistas, cientistas, actores e magnates de grandes empresas. A conversa era sempre variada e muito interessante, e aprendi muitas coisas sempre que lá fui. A casa era magnífica e ficava nas margens do lago Balaton. De manhã, Rozann, a mademoiselle e eu íamos para a praia e tomávamos banho. Foi aí que a minha filha aprendeu a nadar.

Há muito que Andor e eu desejávamos ter outro filho. Mas não havia maneira de acontecer. Que estranho, uma mulher saudável e bem constituída, nascida no campo, como eu, ser tão pouco fértil!

Finalmente, chegou esse momento. Foi o panorama do costume: enjoos, umas tonturas, a análise e... as boas notícias: estava grávida de novo! Foi com muita alegria que dissemos à Rozann. Numa época em que a guerra, com todos os seus horrores, estava cada vez mais perto, aquela notícia fez-nos esquecer, por algum tempo, a triste realidade.

Com a ajuda de Teleki mandávamos, com regularidade, grandes encomendas para a Noruega, com todos os géneros que escasseavam naquele país: açúcar, café, arroz, cacau, mel, cigarros. Um dia, enquanto me ajudava a empacotar tudo, Andor disse-me:

- Não deve faltar muito tempo para que as encomendas mudem de direcção. Serão eles a ajudar-nos...

O futuro próximo viria a dar-lhe toda a razão.

Um dia, chegou a Budapeste uma amiga minha norueguesa. Sofria de reumatismo e tinha sido aconselhada a vir tratar-se à Hungria. Convidei-a para tomar chá, juntamente com uma senhora em casa de quem ela se hospedou, uma inglesa casada com um diplomata da embaixada britânica. Ela trazia novidades da Noruega, dos meus amigos e parentes. Enquanto a conversa não passou de trivialidades, tudo correu sobre rodas. Mas, quando começámos a falar sobre a guerra na Noruega, notámos uma mudança na expressão e nas atitudes da inglesa, que ficou agressiva. A minha amiga e eu trocámos um olhar preocupado, enquanto a senhora dizia:

- Um dos maiores actos de heroísmo desta guerra foi, sem dúvida, a travessia do mar do Norte, pela esquadra inglesa, em socorro da Noruega. - E prosseguiu, manifestando o maior desprezo pelo que ela considerava o débil desempenho das forças norueguesas.

Tentei fazê-la calar, lembrando-lhe que estava numa casa semi-norueguesa, que a minha amiga acabava de chegar do seu país em guerra e de que haveria, certamente, outros motivos de conversa muito mais agradáveis. Em vão.

Por esta altura, a minha amiga debulhava-se em lágrimas, mas ela continuava imperturbável. Então, pus-me de pé e disse-lhe:

- Saia imediatamente, por favor. Se não, mando pô-la na rua, à força! - Felizmente, não chegou a ser preciso.

Na manhã seguinte, o embaixador britânico telefonou-me porque ouvira falar no incidente. Eu continuava furiosa e contei-lhe a história toda. Completamente de acordo comigo, o embaixador apresentou-me as suas desculpas, em nome da sua súbdita.

Nessa noite, fomos ao teatro. Durante o intervalo, um amigo veio ao nosso camarote, agarrou nas minhas mãos e inspeccionou cuidadosamente os meus dedos, por sinal um bocado maltratados pela jardinagem em Szalatna.

- Só queria saber se ainda te tinham sobrado algumas unhas depois do teu chá de ontem à tarde... - E, para reforçar o seu apreço, beijou-me as mãos com respeito.

Recordo ainda a última vez que estivemos com Teleki, em sua casa, uma noite. Ainda que mantivesse a sua posição, a pressão sobre ele era cada vez maior. Pressão da Alemanha, da oposição húngara e dos oficiais mais velhos do exército. Homem de grande visão e inteligência, cultura humanística e sabedoria, estava cada vez mais isolado.

Lembro-me de que, quando falámos da imensa necessidade de reformas sociais, ele disse:

- Dêem-me cinco anos de paz e eu criarei na Hungria as mesmas estruturas sociais que existem no seu país.

Era do conhecimento geral que a Hungria e a Alemanha estavam a negociar. Hitler exigia livre direito de passagem através da Hungria para as suas tropas, a caminho da Jugoslávia. Teleki recusou, e a situação tornava-se cada vez mais tensa.

Para mim, as coisas também não decorriam nada bem. Fui internada de urgência no hospital e perdi o filho que esperava.

As tropas alemãs marcharam através da Hungria, num claro desafio a Teleki. Impotente, o primeiro-ministro suicidou-se. Em discurso inflamado, Churchill declara que a morte de Teleki, em protesto contra a intervenção alemã, não seria esquecida durante as negociações de paz. Mas não foi o que aconteceu.

Quando, no hospital, acordei da anestesia, tinha, como sempre, Andor a meu lado. Contou-me mais tarde que, no meu estado de semi-inconsciência, ouvia os aviões alemães e gritava sem parar: «Pai, pai, dispara!»

A paciente do quarto ao lado do meu pediu para ser mudada porque não podia ouvir os meus gritos de dor. Em húngaro, a palavra faj (semelhante à palavra norueguesa para pai) quer dizer dor. Por isso, ela julgava que eu gritava dor, dor.

Hoje em dia, penso que foi melhor esse filho não nascer de uma mãe tão sedenta de sangue!

A seguir à ocupação da Jugoslávia pela Alemanha e à morte de Teleki, o poder ficou nas mãos do exército e do traidor Szalasi. O que iria agora acontecer aos refugiados judeus, polacos e franceses, e à oposição húngara? Que poderiam fazer para salvar as suas vidas e bens?

Os irmãos Grossman, nossos amigos e empregados, foram os primeiros a pedir-nos conselho e ajuda. Tentámos arranjar-lhes uma solução. Voar para fora do país já não era possível. A melhor hipótese seria talvez passar à clandestinidade, muito mais fácil em Budapeste, uma grande cidade, do que no campo. Pediram-nos, então, que tomássemos conta de dinheiro e valores, dos seus e de amigos. Como nós estávamos também sob vigilância, achámos que a melhor solução seria enterrar tudo no jardim, em Szalatna. Sem dizer nada a ninguém, combinámos que o melhor local seria a norte de uma certa árvore.

No dia seguinte, chegaram com uma fortuna incomensurável em dólares, francos suíços, jóias e, principalmente, ouro, em barras que tinham sido pintadas de preto.

Fiquei apavorada com a nossa responsabilidade e Andor perguntou-lhes se não queriam fazer uma lista de tudo. É claro que era uma ideia um tanto ingénua: em primeiro lugar, porque conheciam Andor muito bem e, em segundo lugar, onde esconderíamos a lista? Quando partiram, todos tínhamos consciência de que poderiam nunca mais voltar. A sua intenção era passar à clandestinidade, tão depressa quanto possível. A despedida foi de partir o coração.

Nessa noite, quando todos estavam a dormir, fui à despensa buscar uma série de grandes boiões de compota, vazios, que podiam fechar-se hermeticamente. Quando o despertador tocou, às três da manhã, Andor e eu, munidos de enxadas, dirigimo-nos para o parque. No local combinado, começámos a cavar com muito cuidado, para não fazer barulho nem deixar vestígios. E enterrámos tudo.

Não me lembro de quanto tempo as coisas ficaram debaixo da terra. Quando partimos de Szalatna pela última vez, desenterrámos e metemos tudo no carro, e partimos para uma viagem dramática, através da linha de fogo e das colunas militares, em direcção a Budapeste. Uma vez aí chegados, consegui guardar tudo, juntamente com os nossos bens mais valiosos, na delegação diplomática sueca.

Hoje em dia, enquanto recordo tudo o que se passou, ainda me sinto angustiada por todas as tribulações que passámos. E, nessa fase, ainda nem sequer estavam em risco a nossa vida ou os nossos bens. Era o sofrimento, a ansiedade, o desespero de muitos dos nossos amigos, o que nos atingia. E muitas vezes nos sentimos totalmente impotentes, incapazes de ajudar. Como seria possível, então, dizer «Seja feita a Vossa vontade»?

Fora, entretanto, nomeado um novo ministro sueco. Já me tinha sido apresentado. Chamava-se Danielsson e ficámos grandes amigos. Ajudei-o a instalar-se em Budapeste e apresentámo-lo às pessoas das nossas relações. A sua amizade, aliás, revelou-se uma mais-valia para ambas as partes. Graças aos jornais que vinham na mala diplomática, consegui uma imagem muito mais nítida do que se passava na minha adorada Noruega.

A legação sueca, uma das poucas representações diplomáticas neutras em Budapeste, também representava a Rússia, país agora em guerra com a Alemanha. O governo húngaro e a junta militar, dominados por oficiais germanófilos, tinham cedido à pressão de Hitler. Fora decidido que algumas divisões húngaras iriam juntar-se ao exército alemão para atacar a Rússia. Quando foi declarada a mobilização parcial, Andor, tenente na reserva da Primeira Guerra, corria o risco de ser chamado. Se recusasse todos estaríamos em perigo. Lutar contra os comunistas era uma coisa que qualquer húngaro era capaz de fazer, depois de ter sofrido na pele o regime de terror de Bela Kun, em 1919; mas lutar ao lado dos alemães era absolutamente impensável.

- A minha recusa pode significar a prisão ou mesmo o fuzilamento - explicou-me. - Estás de acordo que, mesmo assim, me oponha?

Que outra coisa podia eu fazer, senão concordar? Perante a minha resposta, ele continuou:

- A ordem de mobilização vem sempre por escrito. O convocado tem que assinar o recibo. Portanto, não posso estar cá. Tenho que esconder-me, juntando-me à resistência. Tens que dar ordens rigorosas aos nossos empregados: ninguém me viu, ninguém sabe para onde fui.

A nossa situação começava a ser perigosa.

Istvan, o filho mais velho do regente Horthy, tinha sido nomeado pelo parlamento para suceder-lhe, caso alguma coisa acontecesse ao pai. Ele era piloto, tinha um cargo muito importante e, a todos os títulos, uma pessoa capaz de desempenhar aquelas funções. Para além disso, era ferozmente contra Hitler e, só por essa razão, gostávamos dele. Estava casado com uma condessa húngara, Ily Edelsheim, e tinham um filho de dois anos.

Istvan Horthy, naquele momento, fazia voos de inspecção sobre a Rússia, na área onde estavam em acção as tropas alemãs e húngaras. Ily estava na frente de batalha, a trabalhar como enfermeira no hospital da Cruz Vermelha.

Assim conseguiram estar juntos durante alguns dias, muito perto da frente de combate. Na última noite, quando estavam sozinhos, Istvan disse-lhe:

- Ily, acho que a única esperança para a Hungria é eu conseguir fugir e juntar-me aos aliados. Mas receio que, quer eu consiga quer não, tu e o nosso filho sejam presos como reféns.

Tive ocasião de conhecer muito bem Ily, em Portugal, ambas na situação de refugiadas. Passámos muitas horas juntas e tornámo-nos grandes amigas. Era uma mulher que não conhecia a palavra medo e nunca perdia o sangue frio. A resposta que deu ao marido não deixava dúvidas:

- Se achas que é isso que deves fazer pelo teu país, não hesites. Vai, e não penses em nós.

Às quatro da manhã, Istvan descolou no seu monomotor, fez uma volta sobre o sítio onde os dois tinham estado e... o avião despenhou-se. O piloto morreu instantaneamente. Algumas horas depois, chegou um general alemão que transmitiu a Ily as condolências do Fúhrer.

De pé, sem uma tremura na voz, Ily disse ao general que não aceitava condolências, nem dele nem de Hitler. E saiu.

Um amigo de Andor foi nomeado representante da Hungria em Berna. Ele e a mulher tinham ideias políticas muito semelhantes às nossas e, como nós, estavam profundamente pessimistas quanto ao futuro.

Vieram uma noite jantar connosco. Estavam encantados com a ideia de mudar para um país neutro, e iam levar com eles a mobília da casa de Budapeste. Como diplomata, ele tinha à sua disposição um vagão selado e, por isso, de forma muito discreta, perguntou-nos se não quereríamos aproveitar a oportunidade para mandar também algumas coisas nossas. Talvez alguns dos melhores quadros, o Cranach, os Gobelins, ou jóias.

Na verdade, tínhamos muitas coisas que poderíamos ter mandado para o oásis da Suíça. Se tivéssemos feito isso, teria sido muito fácil aguentar a emigração. Mas de que vale dizer «devia ter feito isto ou aquilo...»? Eu sinto-me, em todo o caso, a principal responsável, porque sempre tive um sentido mais prático da realidade do que Andor.

Uma das razões para não mandar nada foi querermos continuar a oferecer os concertos à tarde. Aliás, os convites já tinham sido enviados para o próximo. Que diriam os nossos convidados, ao olhar para as paredes nuas, despidas dos Gobelins e dos quadros? E que desculpas poderíamos dar? É claro que isto não se aplicava em relação às jóias. Não tínhamos o hábito de pendurá-las nas paredes... As nossas tentativas seguintes para salvar algumas revelaram-se um completo fiasco.

Nesta altura, porém, a tempestade ainda não tinha desabado sobre nós. Tentávamos viver como sempre tínhamos vivido, tanto em Budapeste como em Szalatna, mantínhamos as nossas tarefas diárias, convivíamos com quase todas as mesmas pessoas. Algumas já tinham, no entanto, deixado o país. E, muitas vezes, em conversa, ventilava-se a hipótese de se fazer o mesmo. Pessoalmente, nunca o fizemos, mas sugerimos à nossa mademoiselle que talvez fosse melhor voltar para a sua casa na Suíça. Ela não quis partir e deixar-nos precisamente então, quando a situação não era famosa. Sempre foi uma pessoa extraordinária e temos para com ela uma imensa dívida de gratidão. Vive hoje nos Estados Unidos, casada e feliz, e, tanto eu como a minha filha, nunca perdemos o contacto com ela. As recordações, tanto as boas como as muito más, criaram entre nós elos indestrutíveis.

No dia em que os Estados Unidos entraram na guerra, a esperança encheu os nossos corações: agora, o conflito ia acabar. Mas a ofensiva alemã continuou.

Um dia, o embaixador britânico telefonou a perguntar se poderia visitar-nos durante o fim de semana. Quando ele chegou, estava convencida que ia dar-lhe uma boa notícia:

- Sabe, acabei de ouvir na telefonia que um avião alemão, que tentava bombardear Buckingham Palace, foi abatido.

A sua reacção deixou-me perplexa:

- A guerra é uma coisa terrível! Imagine o que estará, neste momento, a sentir a família do piloto...

Com toda a franqueza, não consegui admirar a sua atitude.

Chegámos então àquele que seria o nosso último Natal em Szalatna. Reunimos a família toda. E, no fim do ano, vieram também os nossos amigos. Fazia muito frio e estava tudo coberto de neve. Andor aproveitou para ensinar à nossa filha a patinar no gelo. Eu observava-os, babada, e com muita admiração: é que, na patinagem, nunca passei da fase de entortar os tornozelos!

Eram fantásticas as relações entre pai e filha. As suas conversas não tinham limite: contos de fadas em que as nuvens vagueavam pelo céu com anjos a dançar em cima ou, nos dias de trovoada, a tocar enormes tambores que ribombavam cá em baixo.

Em 8 de Fevereiro de 1944, fizemos uma grande festa de anos para Rozann. Na sala de música, cheia de crianças, um prestidigitador encantou todos, mesmo os adultos, com a sua arte. Era uma delícia ver tanta alegria estampada naquelas caritas jovens. Mas nós, crescidos, não conseguíamos deixar de pensar: até quando, meu Deus? Até quando?

 

                 O exército alemão na Hungria

Como é evidente, devido à guerra que se espalhava na Europa, a vida social em Budapeste era quase inexistente. Por isso, foi uma excitação quando recebemos um convite impresso para um jantar de smoking, da parte do embaixador suíço.

Apesar do racionamento de gasolina para todos os carros particulares, como a minha sogra tinha um carro de matrícula eslovaca, fomos nele para o jantar. Quando chegámos, já lá estava muita gente. Mas sentimo-nos gelar quando vimos que a maior parte eram pessoas com quem tínhamos cortado relações.

Estava o embaixador alemão com a mulher, um ministro do governo húngaro - que, mais tarde, foi enforcado -, simpatizantes nazis e germanófilos assumidos. A cara do meu marido fez-se branca como a cal e ficou muito tenso, completamente esquecido do seu encanto natural.

Quando nos sentámos à mesa, o anfitrião levantou-se, bateu no seu copo e disse - em alemão - que acabara de receber a notícia de que os alemães tinham vencido uma importante batalha naval. E propôs que nos levantássemos todos e o secundássemos num brinde à boa notícia.

Deixei cair o meu guardanapo e fiquei sentada, tentando apanhá-lo. Andor levantou-se, sem o copo na mão, e veio buscar-me ao meu lugar, ao mesmo tempo que dizia:

- Vamos embora, sem sequer dizer adeus!

A condessa de Kinsky, nossa amiga, saiu connosco. Quando chegámos ao seu carro, agarrou numa almofada e meteu-a debaixo do vestido:

- Se a polícia me parar, digo que estou grávida e, por isso, tive autorização para usar o carro!

Foi a única coisa divertida daquela noite.

No dia seguinte, recebemos uma carta muito simpática da nossa anfitriã. Pedia-nos desculpa do incidente, que fora causado pelo facto de pensarem que eu era sueca, portanto neutral.

Chegou o dia em que se realizou o último concerto tudo chegava ao fim! - no Palácio Hubay. Lembro-me que se tocou música de câmara, embora já não recorde de que compositores. Lembro-me, sim, da atmosfera, simultaneamente imponente e dramática. No fundo de nós mesmos, sabíamos que iria ser o último.

Rozann sentava-se no meu colo. Desde muito pequenina adorava música.

Entre os nossos convidados estavam o regente Horthy e sua mulher, o arquiduque e a arquiduquesa, a actriz Gizi Bajor com o marido e, praticamente, todo o corpo diplomático. Com excepção, é evidente, da delegação alemã.

Gizi, no final do concerto, perguntou-me se podia vir visitar-me, pois queria falar comigo em particular. Dois dias depois, ela voltou:

- Minha amiga, preciso de fazer-lhe uma pergunta que é, simultaneamente, um pedido. Se a perseguição aos judeus começar na Hungria, pode ajudar-nos? Talvez o meu marido possa esconder-se em algumas das vossas propriedades no campo ou pedir asilo político à embaixada sueca.

Dissemos-lhe que tudo faríamos para ajudá-la. Mas não imaginávamos que o tempo estava contra nós.

Alguns dias depois, o telefone da minha mesa de cabeceira tocou, às sete da manhã. Um amigo nosso, funcionário do Ministério dos Negócios Estrangeiros, estava do outro lado da linha. Não disse o nome, tão-só perguntou se sabíamos quem falava. Disse-lhe que sim e passei o telefone a Andor. A conversa entre ambos não foi longa. Mas o que disse deixou-nos aterrorizados: durante a noite, os alemães tinham ocupado Budapeste e o palácio do regente estava cercado.

- Saiam da cidade quanto antes. É provável que Horthy e o primeiro-ministro, que deviam voltar da Alemanha ontem, estejam presos como reféns de Hitler. - Logo a seguir a ligação foi cortada.

Ficámos sentados na borda da cama, sem palavras. Liguei de seguida para a delegação sueca. Um telefonista sonolento respondeu-me que o ministro estava a dormir e não podia ser incomodado. Disse quem era e pedi-lhe que o acordasse. Algum tempo depois, ouvi a voz do Danielsson do outro lado da linha:

- Bom dia, então que precisa de mim, já que me mandou acordar?

Contei-lhe o que se passava e ele disse que viria imediatamente ter connosco, se não nos importássemos que não fizesse a barba.

Telefonei em seguida a Nandor Zichy.

A espera não foi longa. Danielsson chegou, logo seguido por Nandor, branco como a cal. Pediu um whisky, ao mesmo tempo que contou que fizera um desvio para não passar no palácio, o qual, segundo as mais recentes notícias, estava cercado pelas tropas alemãs. A ocupação tinha sido arquitectada em conivência com o traidor Szalasy.

Nesse momento tivemos uma amostra do espírito diabólico de Hitler. Mas a verdade é que a Hungria não era o primeiro país a ser apanhado completamente desprevenido.

Conseguimos chegar a Szalatna de comboio. A minha sogra e o meu cunhado, Tibor, estavam em Mosõc.

Nessa noite, quando ouvíamos as notícias na rádio, Andor disse:

- Isto é ainda a calmaria que precede a tempestade. Agora que os alemães já cá estão, falta pouco para que os russos venham também. Vai ser em solo húngaro que estes dois exércitos irão bater-se.

Ali, no campo, ao menos a Natureza estava em paz. As rãs coaxavam, os pássaros cantavam, o prado reverdecia e as árvores e arbustos enchiam-se de novas flores, enquanto os homens lavravam a terra, preparavam o solo e faziam as sementeiras. Eu perguntava a mim própria quem iria colher tudo aquilo.

Esse interlúdio idílico não durou, todavia, muito. As tropas alemãs começaram a requisitar e a ocupar as terras. Também a perseguição aos judeus, meticulosamente planeada, começou por então: foi construído um gueto e tornado obrigatório o uso da estrela de David. As propriedades dos judeus foram todas confiscadas, incluindo as suas próprias casas de habitação.

Mas isto ainda não chegava para satisfazer os alemães, e nós tínhamos consciência de que era apenas um começo.

O nosso capataz, Havas, veio falar connosco, desesperado. Ouvira contar que os alemães tinham feito um campo de concentração para judeus em Losonc, a aldeia mais próxima, e receava pela sua vida e pela dos seus familiares. Pediu-nos que o ajudássemos a salvar as coisas mais valiosas que possuía: alguns objectos de prata, tapetes, umas quantas jóias e dinheiro. Ele vivia numa bela casa, a dez minutos da nossa, que pertencia a Andor, e este afirmava que os alemães não tinham o direito de lá entrar. Mas, como é evidente, dissemos que o ajudaríamos. Combinou-se que enrolasse os tapetes e guardasse os outros valores em malas, que nós iríamos buscar por volta das três horas da manhã. Devia deixar a porta do jardim aberta, mas não aparecer.

Fomos lá como combinado, entrando furtivamente, sem fazer barulho e metemos tudo no nosso carro. Em nossa casa, escondemos as coisas o melhor possível, ficando algumas das carpetes nas nossas salas, como se nos pertencessem.

Na manhã seguinte, não foi fácil levantarmo-nos e começar o dia como se nada tivesse acontecido. Mas a nossa filha entrou no quarto e pediu que lhe contássemos uma história. Depois, saiu com o pai para o jardim e começaram a lição diária sobre os pássaros: ouviam-nos cantar e Andor dizia o nome de cada um deles. Depois, os dois em conjunto, tentavam imitá-los.

Com ela, nestes momentos tão perfeitos, íamos vivendo e tentando esquecer a fealdade do quotidiano.

Pensava muitas vezes nos ensinamentos do padre Szunyogs. Não vale a pena refugiarmo-nos no sonho para fugir à brutalidade da realidade, por mais terrível que ela seja. Eu tinha que aceitar isto. Mas a verdade é que os sonhos também fazem parte da realidade.

Os dias que se seguiram não trouxeram grande conforto no que dizia respeito, quer à situação do mundo quer à nossa própria. A fortaleza de espírito que eu tentava manter dissolvia-se constantemente, perante a interrogação horrível: «Que poderei eu fazer para proteger Rozann?». Este pensamento era tão obsessivo que tive que obrigar-me a pô-lo de parte. Ainda bem que nós não temos capacidade para adivinhar o futuro!

A minha preocupação em relação à situação na Noruega e à minha família e amigos continuava a desesperar-me. A correspondência era cada vez mais esporádica, até acabar completamente. Aproximávamo-nos a passos largos do último acto da tragédia.

Os Aliados tinham desembarcado na Normandia. Na frente leste, os alemães estavam a retirar. Mas, para a Hungria, isto não fazia qualquer diferença: os russos estavam cada vez mais perto. Enquanto esperávamos pela nova invasão, os alemães e os nazis húngaros espalhavam o terror com uma eficiência diabólica. E a perseguição aos judeus, seguindo à risca os planos demoníacos de Hitler, progredia a passos gigantes. Os campos de concentração estavam a abarrotar e os judeus eram amontoados como gado, em vagões que os levavam na sua última viagem até às câmaras de gás.

Meu Deus, como era difícil, nesses tempos, mantermo-nos como seres humanos! Nós, que não érarmos judeus, estávamos, mesmo assim, em condições privilegiadas se comparados com eles, mas, evidentemente, não podíamos fechar os olhos ao sofrimento à nossa volta.

O campo de concentração de Losonc já estava concluído. Ficava mesmo ao lado da estação do caminho-de-ferro. Os alemães eram muito práticos: daquele modo, era mais fácil mandá-los de comboio para a Alemanha!

Uma manhã, vieram dizer-me que tinham vindo buscar o nosso capataz e a sua família, durante a noite. Poucos dias depois, chegou às mãos de Andor um papel amachucado, escrito por Havas, que este tinha conseguido fazer sair do campo de concentração: «Tenho sido torturado para confessar onde estão as minhas coisas. Por amor de Deus, leve-as de volta, porque se eu não conseguir aguentar mais, vou dizer que estão escondidas no jardim!».

Na noite seguinte, fomos de noite, outra vez, à casa de Havas e conseguimos repor tudo sem sermos vistos. Dias depois, recebemos outro bilhete: «Cada vez é pior, não sei quanto vou aguentar mais. Adeus e obrigado por tudo. Que Deus o abençoe».

Danielsson, o nosso amigo ministro da delegação sueca, veio visitar-nos. Implorei-lhe que viesse comigo a Losonc. Juntos, talvez conseguíssemos falar com o diabo alemão que comandava o campo.

O terreno estava rodeado por uma vedação muito alta de tábuas, que isolava os prisioneiros completamente e nos impedia de testemunhar o seu sofrimento. Frente ao portão, estavam dois guardas das SS e dois oficiais nazis húngaros, armados até aos dentes. O carro de Danielsson, com matrícula do corpo diplomático, parou mesmo em frente. Ingenuamente, eu pensava que a chapa diplomática seria um «abre-te Sésamo».

Saímos do carro e dirigi-me aos dois húngaros, dizendo-lhes que queríamos falar com o comandante.

- Qual é o fim da vossa visita?

- Se não se importa, prefiro dizer isso ao comandante! Um deles rosnou que o melhor era dizer-lhe a ele. Como não tinha alternativa, disse-lhe o meu nome e que estava muito preocupada com o nosso capataz, que tinha sido trazido para ali com toda a família. Disse-lhe também que a mulher estava muito doente e, como ambos já eram idosos, gostaríamos de cuidar deles na nossa casa.

Com um sorriso de gozo, o homem atravessou o portão e voltou quase de seguida:

- O coronel manda dizer que se ponham a andar! Ainda tentei discutir. Mas ele abriu a porta do carro e

acrescentou:

- Desapareçam! Ou serei eu quem os ajuda a desaparecer!

Tenho que acrescentar, para minha vergonha e humilhação eterna, que desaparecemos mesmo.

No dia seguinte, Andor recebeu um terceiro e último bilhete: «Pararam de me torturar. Vão levar-nos para fora daqui, amanhã. Obrigado por tudo».

A última coisa que soubemos de Havas foi que pedira uma gota de água a um empregado da estação do comboio. Os judeus tinham sido amontoados num vagão que ficou muito tempo debaixo do sol ardente de Junho. Foi o homem que lhe estendeu o copo de água através das grades que nos transmitiu o seu último adeus.

Depois de ter ouvido relatos sobre estes comboios onde se amontoavam adultos aterrorizados que gemiam e crianças que gritavam, de cada vez que ouvia um comboio, sobretudo de noite, sentia-me no meio de um verdadeiro pesadelo. E não valia a pena tentar tapar os ouvidos. Continuava a ser atormentada pela minha visão interior.

Na Natureza, a paz continuava. O Verão estava no auge, as searas maduras ondulavam ao vento em tons dourados, salpicadas de papoilas brancas e vermelhas. A vinha crescia, os frutos amadureciam, os legumes estavam verdinhos e apetitosos. Continuávamos a dar passeios a cavalo, acompanhados por Rozann no seu pony Palli. Quando ficava muito quente, desmontávamos num local sombrio e fresco. Andor colhia uma melancia bem madura, cortava-a, ensinava a nossa filha a apreciar isto tudo. À noite, quando o trabalho já tinha terminado, sentávamo-nos os dois no terraço, a ouvir o canto dos rouxinóis, a fazer concurso com o coaxar das rãs. De mãos dadas, olhávamos para o céu cheio de estrelas e agradecíamos a Deus termo-nos um ao outro.

Numa dessas noites, Andor não conseguiu mais guardar só para ele o peso da sua preocupação: que havíamos de fazer para proteger a vida da nossa filha? A fronteira suíça estava fechada. Só era possível entrar com um visto alemão, coisa que nós nunca conseguiríamos, mesmo partindo do princípio de que seríamos capazes de pedi-lo.

À noite, passava cada vez maior número de aviões sobre as nossas cabeças. Os russos já tinham atravessado os Cárpatos. Começavam a chegar tropas avançadas, aparentemente soldados russos lançados em pára-quedas. Dizia-se que eram comandadas por um capitão de cossacos.

Quando Andor chegou à conclusão de que Szalatna já não tinha condições de segurança, resolveu ir a Budapeste para ver como estavam as coisas. Sentia-se também muito preocupado com a falta de notícias da mãe e do irmão, com os quais já não tinha contacto havia bastante tempo.

Logo depois de tomar o comboio para a capital, o diabo andou à solta na cidade: um bombardeamento violentíssimo, o primeiro de muitos, reduziu a escombros a maior parte das casas da nossa rua. Em Szalatna, que fica a cerca de duzentos e quarenta quilómetros, ouvia os estrondos das explosões na distância mas, felizmente, não fazia a menor ideia onde seria.

Não era nada agradável estar sozinha naqueles tempos, sobretudo à noite, quando se ouvia o som dos motores dos aviões. Sentia-me aterrorizada, às vezes levantava-me, sem me atrever a acender a luz, e ia ao quarto de Rozann ver se ela não acordara. Depois, ia até ao terraço, com um copo do nosso vinho na mão, tentando acalmar-me com a vista do céu cheio de estrelas. Numa dessas noites, quando seguia o rasto de uma estrela cadente, entrou no meu campo de visão um desses infernais aviões, pronto para espalhar a morte e a destruição. Com uma horrível sensação de medo e desespero, fugi para dentro Do quarto da minha filha não vinha, felizmente, qualquer som. E passei a ir apenas ao terraço do piso inferior, onde me sentia mais protegida.

Eu sabia que aquilo era apenas o começo. Não podia fraquejar, porque, se o fizesse, como seria quando as circunstâncias piorassem? Lembrei-me muitas vezes de uma frase, creio que de Nietzsche, que dizia: «Tudo o que não consegue matar-nos, dá-nos mais força».

Tínhamos sido uns privilegiados toda a nossa vida. Chegava agora a altura de sermos postos à prova. Andor já tinha sofrido os horrores de uma guerra. Uma outra abatia-se agora sobre a sua terra, e ele sabia que era impotente para nos proteger.

No nosso hino nacional, diz-se a certa altura: «As mulheres lutam com todas as forças...». Há muitas formas de lutar: a minha teria que ter, simultaneamente, força, auto-domínio e dádiva. Dádiva de amor.

Uma noite, depois de mais um sobressalto, ajoelhei-me no terraço numa oração: «Meu Deus, ajuda-me, dá-me força e coragem!» À minha roda era o silêncio, a quietude extrema. Dentro de mim também.

Quando voltei para dentro, escutei à porta do quarto de Rozann, como habitualmente. Depois, resolvi entreabri-la. Ainda a dormir, ela estava no meio do quarto, sentada na bacia.

- Querida, queres vir dormir com a mãe na cama do papá?

Um sorriso imenso respondeu à minha pergunta. Adormecemos de mãos dadas.

Quando Andor voltou, vinha muito cansado e deprimido. Contou-me que Budapeste parecia uma cidade fantasma. Falara com vários amigos nossos e todos tinham sido unânimes: acontecesse o que acontecesse, não devíamos voltar a Budapeste. Os nossos amigos, Maria e Józsi Teleki, convidaram-nos para a sua casa de campo, a vinte e cinco quilómetros de Budapeste, para onde, em princípio, iriam também outros amigos comuns.

O meu marido continuava, entretanto, sem contacto com Mosõc e muito preocupado com a falta de notícias da mãe e do irmão.

Andor tinha estado com Danielsson para saber se Rozann, a mademoiselle e eu poderíamos acolher-nos na delegação sueca, já que a representação diplomática de um país neutro poderia dar-nos asilo quando os russos chegassem. O ministro respondeu-lhe que tinha que pedir autorização a Estocolmo. Mas a Suécia ia montar, naquele momento, um lar para crianças «Save the children», e a Cruz Vermelha Internacional precisava de uma casa para armazenar alimentos e equipamentos de primeiros socorros.

Esta era a situação: estávamos em Setembro de 1944, ainda não se combatia em solo húngaro, mas activavam-se já as medidas de emergência para fazer face à catástrofe que se avizinhava.

Naquela noite, Andor e eu sentámo-nos no terraço e conversámos até muito tarde. De repente, o meu marido teve uma ideia:

- A casa de campo dos Teleki, em Pomaz, tem aquela famosa cave com cerca de dez metros de profundidade. Talvez não se importem de a emprestar para o lar das crianças, e nós podíamos oferecer a nossa casa, em Budapeste, como armazém para a Cruz Vermelha.

Fiquei muito entusiasmada com a ideia. Na nossa ingenuidade, julgávamos que, assim, as duas casas ficariam, uma sob a protecção de uma bandeira humanitária, e a outra, de um país neutral. E decidimos ir a Budapeste expor este assunto aos Teleki e a Danielsson.

No dia seguinte, tive uma longa conversa com a mademoiselle. Contei-lhe os nossos planos e expliquei que a situação ia piorar de dia para dia. Não estávamos em situação de conseguir protegê-la, nem sequer a nós próprios.

- Não queres tentar a possibilidade de voltar para a Suíça? Mas a nossa corajosa e fiel amiga respondeu como da primeira vez:

- A senhora acha que ia ser capaz de abandoná-la, logo agora que as coisas estão tão mal?

E chegou o dia em que Rozann deixou Szalatna, a casa da sua infância, o lar do seu pai e dos seus antepassados. Despediu-se do seu pónei, dos cães, e a todos prometeu voltar.

Hoje pergunto-me se ela, alguma vez, poderá cumprir a promessa...*

Em Pomaz, havia segurança e, por isso, deixámos lá ficar a nossa filha. Andor e eu também lá permanecemos alguns dias, antes de partir para Budapeste. Vezes sem conta tentámos contactar Mosõc, mas nunca tivemos sucesso e a nossa ansiedade ia aumentando.

Entretanto, tudo se passou como Andor planeara: montou-se o lar das crianças em casa dos Teleki, e a nossa foi usada como armazém da Cruz Vermelha. Enormes cartazes, escritos em húngaro, alemão e russo, informavam estarmos sob protecção do governo sueco. Ao mesmo tempo, hasteámos bandeiras daquele país.

A minha sogra e o meu cunhado, Tibor, chegaram a Budapeste no princípio de Outubro. Ela parecia uma sombra do que fora, e vi logo que estava muito doente. Nem vale a pena descrever em pormenor os horrores por que passaram, primeiro em Mosõc e, depois, durante a fuga. Esta história já vai longa...

Antes da tempestade, há sempre uma calmaria. Essa acontecia quando tomávamos o comboio para ir a Pomaz, onde a nossa filha estava muito bem entregue. No meio do mês de Outubro, fomos lá. Adultos e crianças, todos no relvado, gozavam o maravilhoso tempo de Outono. As crianças eram muitas e o seu número aumentava de dia para dia, vindas das partes do país mais ameaçadas pela guerra.

* A família Hubay voltou à Hungria - a Budapeste, Szalatna e Mosõc

 

- depois da morte do pai, em 1971. (N.T.)

 

Os adultos sentaram-se todos à roda de uma telefonia com bateria para ouvir as notícias. De repente, o choque foi imenso: Horthy e a sua mulher presos pelos alemães, Ily e o filho pequeno mandados para a Alemanha, e Nicky, o outro filho de Horthy, ferido e capturado.

A Hungria tinha deposto as armas. O General Miklós e as suas tropas desertaram para o sector russo, e as tropas soviéticas, vindas em massa através da Eslováquia, já estavam junto à fronteira húngara. Fora decretada a mobilização geral.

Perante estas notícias, Andor e eu decidimos, de imediato, tentar chegar a Szalatna. Mas tínhamos consciência que seria pela última vez. A razão que nos fazia sair de Budapeste com esta urgência prendia-se com a ordem de mobilização geral: Andor não iria de maneira nenhuma juntar-se aos traidores, portanto, tinha que passar à clandestinidade.

Muito em segredo, informaram-nos de que um camião ia partir para Losonc e poderia dar-nos boleia. Foi uma viagem terrível, de arrasar o sistema nervoso, cheia de paragens constantes, por causa dos alarmes de bombardeamentos, com magotes de soldados e de refugiados a entupir as estradas.

Finalmente, chegámos a Szalatna. E que comissão de boas vindas estava à nossa espera! Oficiais das SS ocupavam a ala direita da casa enquanto, no piso inferior, se acumulavam os soldados. Um tanque tinha rebentado o portão da propriedade e uma enorme quantidade de outros estacionava no que fora o nosso roseiral. Centenas de sulcos provocados pelos tanques cavavam o parque e os campos à roda, enquanto soldados alemães com os seus capacetes de aço circulavam por todo o lado.

A nossa Mariska tinha o aspecto de quem fora torturada e Pista fervia de raiva contida. O pessoal alemão tinha-nos feito o ”grande favor” de deixar livre o nosso quarto e o de Rozann, e aí fizemos o nosso refúgio. Abracei-me a Andor.

Tremíamos, não de medo, mas de uma imensa raiva. O que, mesmo assim, é melhor.

Pedimos a Pista que nos contasse o que tinha acontecido.

Os alemães estavam completamente à vontade e tinham-se servido à tripa forra: com as metralhadoras abateram entre seiscentos a setecentos porcos, os quais foram transportados em camiões para os seus aquartelamentos. O mesmo aconteceu com mais de mil carneiros, os quais, porque andavam a pastar nos prados, lhes devem ter proporcionado um desporto mais completo. A minha criação teve um destino semelhante.

- Mas não devem ter lá muito boa pontaria, porque fugiram a voar muitas galinhas pintadas, minha senhora! - Este foi o único momento em que vi Pista sorrir.

Toda a mobília e bens pessoais das casas abandonadas pelos judeus foram roubados. Na nossa casa, mal entraram, os alemães tinham começado a enrolar os tapetes melhores, mas Pista opôs-se dizendo que os donos da casa deviam estar a chegar a qualquer momento. Os dois oficiais envolvidos na operação trocaram olhares preocupados e desenrolaram, de novo, os tapetes. Bem, se calhar pensavam na hipótese de enrolá-los connosco lá dentro!...

Quando eles estavam de partida, Pista avisou-nos de que restava muito pouco que comer em casa:

- Os porcos levaram quase tudo aqui de casa e também das lojas que saquearam na aldeia!

Andor passeava de um lado para o outro da sala, possuído por uma raiva imensa, as mãos apertadas, os olhos muito negros a faiscar. Tentou dizer alguma coisa, mas a voz saiu estrangulada, não conseguia articular.

Achei melhor intervir porque tive medo que aquele estado de espírito o levasse a qualquer confronto com os nossos ”hóspedes”. Ou que lhe causasse algum enfarte. Sugeri-lhe que se mostrasse o menos possível e que, caso fôssemos lá fora, deveríamos ir juntos.

Quando anoiteceu, caiu um aguaceiro violento. Como se a terra chorasse a sua desgraça. Pista serviu-nos o jantar no quarto: uma das galinhas pintadas que tinha conseguido fugir ao massacre alemão e que Kratki, o nosso guarda florestal, conseguira apanhar. Depois de comer, ligámos o rádio, embora com pouca esperança de ouvir boas notícias.

O exército vermelho aproximava-se rapidamente da fronteira. Já se ouviam os seus canhões em Budapeste. A ordem de mobilização geral fora revogada, depois de ter-se revelado um fracasso total: ninguém se apresentou ao serviço militar. O caos e a confusão absoluta imperavam por todo o país. A uma velocidade impressionante, às ordens seguiam-se contra-ordens e ninguém sabia porquê.

Em Losonc, as sirenes dos ataques aéreos soavam a todo o momento. Ouviam-se constantemente sobre as nossas cabeças os motores dos aviões.

Na manhã seguinte, acordámos para o que ia ser um dia muito triste. Andor esgueirou-se às escondidas para as cavalariças à procura de Józsi, o nosso cocheiro. Antes de sair, eu fiz a mim própria um pequeno discurso: «Mete bem na cabeça e não te esqueças, não tens nada a ganhar, mas sim tudo a perder se cruzares ”armas” com os ”hóspedes” alemães!»

Cheia das melhores intenções, desci até à sala de jantar, depois fui à biblioteca e, por fim, à sala de estar. Não encontrei ninguém, mas cheirava-se a presença deles e eu tive a certeza que tinham andado por ali. Na sala de estar fiquei uns momentos parada, de pé, a olhar o retrato a óleo de um antepassado de Andor. Esse quadro fora cortado com uma espada quando a casa fora saqueada, durante o regime de terror de Bela Kun, em 1918, e, posteriormente, restaurado. «Será outra vez esquartejado ?», perguntei-me.

Atravessei a sala e sentei-me ao piano, perdida em pensamentos, recordando a música maravilhosa que ele nos tinha proporcionado ao longo dos anos. Depois comecei a arrumar todas as fotografias, retirando-as das molduras que estavam sobre o piano.

Nessa altura, entrou na sala um SS fardado. Olhou-me dos pés à cabeça, fez-me a continência e apresentou-se: coronel qualquer coisa. Fiquei imóvel, com a fotografia do meu pai na mão. Ele quebrou o silêncio:

- A senhora é a dona da casa? - Acenei com a cabeça. Ele continuou: - Já tinha visto essa fotografia. Não é um uniforme norueguês?

- É o meu pai. É coronel na Noruega. - Continuei: Posso esperar que não se oponha, você que ocupou a minha casa?

Hesitou um pouco antes de me dizer que iria fazer o possível. Agradeci e dei meia volta, enquanto ele batia os calcanhares e, de novo, fazia a continência.

Perguntei depois aos meus botões se teria tocado qualquer ponto sensível naquele homem. Mas não creio. Todos eles estavam corrompidos até ao íntimo pelo seu Fúhrer.

Fui, então, às cavalariças à procura de Andor. A estrada ao lado do parque estava completamente cheia de refugiados, camponeses húngaros, resistentes eslovacos, prisioneiros de guerra, civis, gado, carros e carroças a deitar por fora, mulheres, crianças.

Estavam ensopados pela chuva, tremiam exaustos, choravam, miseráveis. Era como um horrível pesadelo. Que podia fazer-se para ajudá-los? Ou estavam irremediavelmente condenados? E se fosse eu e a minha filha a caminhar naquela estrada?

Depois de encontrar Andor, fomos os dois à cozinha ter com Mariska. Ainda tínhamos farinha, batatas, toucinho e hortaliças. Podíamos fazer uma sopa... Chamámos a velha Maria, que costumava tratar das roupas, e pedimos-lhe que nos ajudasse. Procurámos depois os panelões maiores e todos os pratos fundos. Quando a primeira panela ficou pronta, Maria e Pista levaram-na lá para fora, para a beira da estrada onde passava toda aquela gente. Nós não fomos suficientemente corajosos para ir também. Mariska disse-me que alguns deles tinham pedido para entrar um pouco e se aquecerem e lavarem. Falavam sobre a fuga. Todos eles, húngaros, eslovacos, polacos, romenos, tinham em comum um só pensamento: fugir dos russos.

Mantivemos a nossa cozinha a fazer sopa durante os dois dias que lá passámos. Depois, a aventura chegou ao fim. Como todas as outras coisas.

Fomos ter com o nosso feitor para Andor lhe dar as últimas instruções. Tudo o que ainda restava nos celeiros, bem como algum gado que escapara ou qualquer coisa que pudessem cultivar na herdade, deveria ser distribuído por todos. O meu marido aconselhou também que tivessem cuidado e se mantivessem dentro de casa, sempre que possível.

Apertámos as mãos em despedida. Com os olhos cheios de lágrimas, o feitor disse:

- Que irá acontecer-nos, agora que o carvalho que nos protegia foi arrancado pelas raízes?

Um velho trabalhador, chamado Horvath, acrescentou:

- Sou um velho. Em 1918, já passei por toda esta desgraça. Ao longo dos anos, aprendi a amar a Deus e a confiar Nele. Agora estou apenas à espera que Ele me leve para junto de Si.

Kratki, o tratador dos cães, veio ter connosco. Ficou ali na nossa frente com três deles, Rex, Fradi e Pajtas. Em voz surda, descolorida, o meu marido disse-lhe:

- Os cães não podem cair nas mãos dos russos. Leva uma arma e mata-os.

Depois pediu a Kratki que enterrasse na cave todas as armas e as pratas que eu tinha conseguido esconder no meu armário da roupa.

Jószi contou-nos o seu plano: quando os russos estivessem a chegar, prepararia uma mochila com comida e roupa, e fugiria para a floresta com dois dos nossos cavalos de sela e Palli. Desejámos-lhe muita sorte para o seu plano optimista.

Andor fez um pequeno discurso de despedida. Toda a gente chorava. Como, aliás, eu também, neste preciso momento em que conto a história. O meu marido agradeceu a todos a dedicação, pediu-lhes que transmitissem o agradecimento às famílias e exortou-os a não perder a esperança:

- Temos que ser sempre húngaros. Cada um à sua maneira, dentro das suas possibilidades, tem que lutar pelo seu país e pela sua continuidade. Vamos pedir a ajuda de Deus. Peco-Lhe, também, que vos abençoe e proteja a todos. E agora vamos todos dizer VISZONTLÁTÁSRA - até à vista!

Voltámos para casa, depois de mais alguns abraços comovidos. Atravessámos o portão principal em ruínas e o roseiral, onde se enfileiravam os tanques alemães. Subimos aos quartos, ainda à nossa disposição. E chorámos como crianças desgraçadas.

Algum tempo depois, ouvi vozes, barulho e uma espécie de golpes surdos que vinham do andar de baixo. Desci para ver o que era. O barulho vinha do fundo do corredor onde se situava a sala de bilhar. Abri a porta e os meus olhos recusaram-se a creditar no que viam: dois soldados alemães cortavam ao meio uma vaca em cima da mesa do bilhar, sob o olhar complacente de um coronel! Havia sangue por toda a parte! O coronel, imperturbável, bateu os calcanhares e fez continência quando me viu.

Nesse momento, perdi tudo o que restava do meu auto-domínio e esqueci todas as minhas prudentes boas intenções. E gritei, berrei como nunca na minha vida tinha feito nem voltei a fazer com qualquer pessoa ou mesmo com um animal. A circunstância de falar alemão fluentemente deu-me uma eloquência redobrada, embora me pareça que, naquele momento, mandei às urtigas todas as regras de gramática que sabia. Mas consegui fazer-me compreender: não sairia dali enquanto não tirassem e limpassem tudo, a carcaça do animal e todos os vestígios de sangue.

O coronel ordenou, então, aos dois SS que levassem tudo dali para fora. Voltou a bater os calcanhares e a fazer continência e saiu, mais os dois homens, a carcaça e todo o sangue. Eu tremia de tal maneira que tive que sentar-me um bocado antes de tornar a subir as escadas para ir ter com Andor.

Ainda hoje acho que foi um verdadeiro milagre ter-me saído bem desta cena macabra.

Pouco depois, ouvimos na telefonia que os russos tinham tomado Vacz, uma cidade situada entre Szalatna e Budapeste. Isto queria dizer que já não podíamos voltar a Budapeste - e à nossa filha - por essa estrada. A única hipótese era atravessar o rio de ferry-boat junto de Esztergom. Podíamos levar o velho Chevrolet da quinta, mas para isso era preciso uma licença de condução. Onde iríamos arranjá-la?

Em Losonc, ainda estava um oficial amigo de Andor. Era, porém, muito perigoso. O meu marido não podia ir ao quartel e correr o risco que o vissem. Decidi montar na minha bicicleta e ir lá eu. O que vale é que nunca perdi o meu sentido de humor, nem mesmo com os assobios e ”propostas” vindas dos soldados, quando cheguei ao quartel!

O amigo de Andor foi muito simpático e também ele elaborara já um plano de fuga para a sua família. Perguntou-me se o meu marido tinha a farda militar em Szalatna. Como a resposta era, felizmente, afirmativa, ele redigiu um documento que ornamentou com uma quantidade de selos muito impressionantes. Segundo este, Andor era chamado a uma reunião no Quartel-General em Budapeste. Pedalei de volta a casa com o documento bem escondido nas minhas calças de ciclismo!

Esta foi a nossa última noite em Szalatna. Encafuados nos três quartos que tinham feito o favor de nos deixar, ali estávamos nós com os nossos tristes pensamentos. Para mim, memórias, gratidão infindável por tudo o que tinha sido. Para Andor, era bem pior. Ainda bem que estava com ele.

Fui ao quarto de Rozann. Olhei para a cama, para os brinquedos, os livros de contos de fadas, onde princesas de olhos como estrelas eram invariavelmente libertadas pelo seu príncipe encantado. Os livros de animais, que ela adorava, e os desenhos que o pai lhe fazia. Como estávamos gratos pela nossa casa e pelas histórias de encantar!

Nos contos de fadas é muitas vezes preciso lutar contra dragões a cuspir fogo e monstros de mandíbulas aguçadas. Mas, ao menos neles, temos a certeza que tudo vai acabar bem!

Meu Deus, protege Rozann, por favor, e faz com que amanhã já estejamos juntos!

Na manhã seguinte, muito cedo, Andor vestiu a farda de tenente. Olhar para o uniforme fazia-me arrepios: trazia-me imagens de guerra e de ódio.

Foi dramático, de partir o coração, dizer adeus ao Kratki e aos cães, a Józsi,* Pista e Mariska. Sentei-me ao volante do nosso velho carro, agarrei na mão de Andor e arranquei, passando pelo roseiral e os tanques alemães, em direcção ao portão desfeito.

 

* Józsi Basci está ainda vivo, em Szalatna. Quando a família Hubay voltou lá, chorou convulsivamente ao reencontrá-la. (N.T.)

 

- Adeus para sempre, Szalatna - murmurou Andor.

- Não, viszontlátásra, até à vista, Szalatna - respondi-lhe baixinho.

Mas Andor é que estava certo. Pelo menos no que lhe dizia respeito.

As estradas estavam apinhadas de soldados e populações em fuga através da lama e da chuva. Ouvia-se o troar dos canhões já bem perto. Um pouco antes de Vacz, virámos à direita, para uma estrada esburacada e lamacenta que ia dar ao ferry-boat.

Uma fila muito comprida de carros esperava para atravessar. «É agora ou nunca!», pensei. E saindo da estrada, ultrapassei a bicha. Dos carros, as pessoas buzinavam e gritavam na nossa direcção. Mas Andor, com a sua farda, meio saído da janela, gritava: «Prioridade militar!» E foi assim que conseguimos entrar no barco.

Mais tarde, fomos directos a Pomaz e a Rozann. Ficou muito feliz quando nos viu e fez toda a espécie de perguntas:

- Como está a Eva, o Palli, o Rex, o Pajtas? Respondemos-lhe que tudo estava bem. E era quase uma

verdade: agora que estávamos com ela, podia dizer-se... que estava tudo bem!

 

               QUANDO O INFERNO CHEGOU À TERRA

Em Pomaz, a casa estava superlotada. Por isso, todos os homens, incluindo Andor, tiveram que alojar-se em casas na aldeia. De facto, o projecto do lar «Salvem as crianças» era o objectivo principal da casa de Pomaz, e, com o exército russo cada vez mais perto, todo o cuidado era pouco. O «salve-se quem puder» era cada vez mais o nosso dia-a-dia.

No dia seguinte ao da chegada, partimos de comboio para Budapeste. A viagem foi extenuante, constantemente interrompida por alertas de ataques aéreos e consequentes paragens. Os passageiros comprimiam-se numa amálgama indescritível, nas carruagens superlotadas.

Finalmente, chegámos à capital.

Andor e eu tivemos, ao longo da vida, momentos muito tristes e difíceis. Mas um dos piores foi, sem dúvida, o reencontro com a minha sogra. Estava deitada na cama, no seu quarto com vista para o Danúbio. Rodeada por tantas coisas belas, era uma sombra do que fora, tão enfraquecida que mal tinha força para falar. O nosso médico de família vinha vê-la várias vezes por dia, mas os seus prognósticos não eram nada optimistas.

Quanto a nós, rezávamos para que tivesse uma morte tranquila e não sofresse muito até lá.

Os dias eram agora divididos entre a assistência à minha sogra moribunda e as visitas à nossa filha, em Pomaz. A viagem de comboio é de cerca de trinta quilómetros. Nada de especial em tempos normais, mas então, com os russos cada vez mais perto e os alemães cada vez mais desesperados, era bem mais complicado. Para piorar a situação, tornavam-se cada vez mais frequentes os bombardeamentos dos aliados a Budapeste e a muitas outras cidades.

Já ouvíamos os canhões russos em Vacz. Budapeste estava prestes a ser totalmente cercada. Os alemães tinham posto minas em todas as belas pontes sobre o Danúbio. Na larga avenida ribeirinha, escavaram-se trincheiras que chegavam mesmo até à nossa casa. Hitler tinha dado ordem de defender Budapeste até ao último homem, e o traidor Szalasi seguia fielmente a voz do seu dono. A cidade de Budapeste estava prestes a transformar-se no verdadeiro inferno.

À nossa porta passavam, todo o dia, filas infindáveis de prisioneiros que os alemães conduziam como gado. Era uma visão horrorosa, que me fazia cada vez mais descrer dos homens. Não tínhamos a menor ideia para onde os levavam. Mas não havia dúvidas que esta era a sua última viagem.

A minha sogra tinha pedido que virássemos o grande espelho barroco, de forma a que pudesse vê-los da cama. Quando soavam os alarmes de ataque aéreo, implorava-nos que descêssemos para a cave, mas recusava que a levássemos. Nós também não descíamos e ficávamos a fazer-lhe companhia. Tínhamos que abrir as janelas, senão as explosões das bombas partiriam os vidros todos. A casa estremecia a cada rebentamento, mas mantinha-se de pé. Oh, meu Deus, por favor, protege Rõzann em Pomaz!

Um dia, o nosso velho médico de família não apareceu para a visita diária. Tinha sido morto na rua por uma bomba. A minha sogra enfraquecia de dia para dia e os remédios já não surtiam qualquer efeito. Só uma coisa lhe dava ainda prazer: a música. Tínhamos mantido a sala de música do meu sogro como ele a deixara depois da sua morte. Essa sala comunicava através de uma porta com o quarto da minha sogra.

Pedimos, então, aos nossos amigos que quase todos os dias nos visitavam - entre eles, muitos alunos de Jenõ - que organizassem mais um concerto, o último, no Palácio Hubay. Vieram Zathuretsky e Wanda Luzzato com os seus violinos e Margit Maday sentou-se no nosso piano. E tocaram para a moribunda, Beethoven, Brahms, Liszt, Bach e, por fim, a Sonata Romântica, que Jenõ compusera.

A minha sogra assistiu com um sorriso na sua face branca e esquálida e uma expressão de quem já não pertencia a este mundo. Não disse uma palavra, mas era evidente o prazer que a música lhe dava. Mantinha os olhos fixos no retrato de Jenò, que Andor pintara.

Nos dias e noites que se seguiram, um de nós, Andor, Tibor e eu própria, estava sempre ao seu lado. À noite, fazíamos enormes cafeteiras de café para nos mantermos acordados. Eu sentava-me à sua cabeceira, as duas de mãos dadas, ao mesmo tempo que lhe ia passando na testa febril uma esponja humedecida. Os aviões roncavam sobre as nossas cabeças, ouviam-se os estampidos dos tiros, as explosões das bombas e eu corria a abrir as janelas, enquanto a casa toda estremecia. A morte andava por perto. Meu Deus, protege a minha filha!

As últimas palavras que a minha sogra conseguiu murmurar foram um pedido: um padre.

Quando ele chegou, mimstrou a extrema-unção à moribunda. Lá fora, cavavam-se trincheiras, os judeus eram torturados e mortos, explodiam bombas por todo o lado. Dentro do quarto havia paz. Ajoelhados à roda da cama, rezávamos em conjunto: «Santa Maria, Mãe de Deus, rogai por nós, pecadores, agora e na hora da nossa morte. Ámen».

A minha sogra morreu no dia 30 de Novembro. Tivemos que pedir uma licença especial para levar a urna através da ponte, até ao mausoléu da família. Esta parte da cidade estava sob fogo constante da artilharia russa e, por isso, tivemos que assumir total responsabilidade.

A urna foi colocada ao lado da do meu sogro. O fragor da guerra quase abafou completamente as palavras do sacerdote: «Paz no céu e na terra... Que a paz esteja contigo».

Nessa noite fomos ter com Rozann. Tremíamos à ideia de dizer-lhe que a avó - Mima, como ela lhe chamava - tinha morrido. Aquelas duas tinham uma relação muito especial. Andor sentou a nossa filha no colo e contou-lhe. Ela desfez-se em lágrimas. Depois perguntou:

- E a Mima foi enterrada?

- Sim, querida. Como fizemos com o passarinho que encontrámos morto em Szalatna. Lembras-te, estava doente e não ia conseguir voar nunca mais? A Mima também estava muito doente e sofria. Quando as pessoas morrem, nunca mais sofrem e ficam em paz. A Mima vai tomar sempre conta de nós. Vês aquela estrela muito brilhante, ali no céu? São os olhos da avó. Vês como ela ilumina o nosso caminho?

Desde esse dia, a estrela do crepúsculo ficou a ter sempre um brilho e um poder muito especial para Rozann.

A casa de Pomaz estava a rebentar pelas costuras com cerca de trinta crianças e pais. Cartazes da Cruz Vermelha, escritos em quatro idiomas informavam que a casa estava sob a protecção daquela instituição, bem como da legação Real da Suécia.

Resolvemos, entretanto, pedir a Danielsson que pusesse bandeiras suecas na nossa casa. À noite, uns amigos nossos pediram-nos que levássemos um embrulho e o depositássemos na delegação sueca. Era uma jóia preciosa, que parecia saída directamente das Mil e Uma Noites, uma taça da Renascença, cheia até à borda com velhas relíquias da família.

Na manhã seguinte, partimos para Budapeste com a encomenda. Mas o comboio só conseguiu chegar a meio caminho. A linha fora destruída por um bombardeamento, durante a noite. A única hipótese era seguir a pé, carregando as jóias preciosas que nos tinham confiado. No caminho, senti-me angustiada com o pensamento de que tínhamos deixado Szalatna e não sabíamos por quanto tempo conseguiríamos manter a nossa casa de Budapeste. Só nos sentimos realmente seguros quando pertencemos a algum sítio e temos uma casa, com tudo o que ela significa.

À chegada à nossa rua, constatámos que várias casas estavam em ruínas. Todo o cais do Danúbio era agora uma trincheira, com canhões e artilharia pesada em posição, e, por toda a parte, alemães e oficiais nazis húngaros gritavam ordens de comando.

Muitos dos nossos criados tinham partido a caminho de suas casas, sobretudo para longe de Budapeste. Era horrível ver o quarto da minha sogra vazio, despojado de todos os objectos. Tibor estava em casa. Combinámos que eu levaria todas as jóias da minha sogra para a delegação sueca. Enquanto embalávamos tudo, apareceu uma amiga minha com um embrulho debaixo do braço. Pediu-me que o levasse, igualmente, para a delegação sueca.

Entretanto, Andor e Tibor ficaram a empilhar na sala de música as nossas coisas mais preciosas, os Gobelins, mobília, os melhores quadros, tapetes antiquíssimos. Pareceu-nos que esta sala, que ficava mesmo no meio da casa, estava menos exposta que as do lado do Danúbio ou da outra rua.

Em passo rápido, um tanto dificultado pelo peso das «encomendas», dirigi-me à delegação sueca e tive tanta sorte que Danielsson estava em casa. Aceitou imediatamente guardar as coisas, embora, é claro, não se responsabilizasse, e mostrou-me dois cofres, um no rés-do-chão, outro atrás de um quadro, no escritório em que nos encontrávamos. A conversa não foi muito animada. Também ele estava cheio de problemas.

Não consigo ainda hoje explicar a razão, mas, de repente, num impulso súbito, agarrei em várias jóias do topo do nosso embrulho e meti-as no meu bolso. Depois, fechei-o de novo, pedi lacre a Danielsson, aqueci-o e selei os embrulhos com o meu anel de brasão. O ministro colocou tudo no cofre, nas costas do quadro. Agradeci-lhe efusivamente, ao mesmo tempo que lhe disse desistirmos da hipótese de ficarmos em casa dele. Tínhamos decidido permanecer em Pomaz, que também era considerado território neutro. Foi a última vez que vi Danielsson.

Quando voltei a casa, encontrei Andor e Tibor a esconderem as nossas muitas pratas na parede da cave. Tinham partido o cimento, retirado os tijolos e aberto um grande buraco. Fiquei a ver enfiar aquelas pratas barrocas no imenso buraco negro e, no último momento, meti lá também as jóias que trouxera no bolso. Os tijolos foram repostos e tudo foi cimentado de novo.

Aquelas pratas existiam na família da minha sogra há mais de duzentos anos, sobrevivendo a várias guerras e a um regime comunista. Que iria agora acontecer-lhes?

Na realidade, o que aconteceu mais tarde foi o seguinte: depois dos alemães terem destruído as seis pontes sobre o Danúbio, houve um período de muito frio, e o rio gelou. Quando o gelo derreteu, todos os destroços flutuantes entupiram o rio, impedindo que corresse livremente. Na nossa cave, a água subiu um metro e meio, e manteve-se nesse nível até que o Danúbio voltou ao seu curso normal. (Muito mais tarde, quando reabrimos o buraco, encontrámos uma amálgama de lama e terra preta. Não foi fácil descortinar a prata naquelas peças negras como carvão. Mas a prata é sempre prata, seja negra ou brilhante...).

Depois de termos fechado de novo o buraco, Andor e eu demos uma grande volta à casa. Sabíamos que estávamos, de novo, a despedir-nos de outro lar. Mas aqui era mais fácil do que em Szalatna: lá, tínhamos todo o pessoal antigo, os cães, os cavalos, os outros animais. Ou, então, éramos nós que estávamos a ficar endurecidos. «Tudo o que não nos mata, dá-nos forças...».

Foi então que metemos em duas mochilas roupas quentes para Rozann, a mademoiselle e para nós próprios. Empilhámos no corredor, afastado do lado do Danúbio, quadros e fotografias retirados do estúdio de Andor. Entre eles estava o meu esboço feito por ele, doze anos antes, quando me pedira em casamento: «Então, eu quero lá estar...».

- Devias ter dito «não» em Veneza - disse-me, com um sorriso muito meigo, abraçando-me. - Vê lá em que desgraças te envolvi...

NÃO, mil vezes não. Sei o que é o amor e continuo a sabê-lo todos os dias. Isso é que é verdadeiramente importante. E quem é que disse que a vida é fácil?

Pegámos nas nossas mochilas e dirigimo-nos a uma estação onde ainda havia tráfego. Tirei os sapatos e as meias; estava cansada e os meus pés também. Descalça, como quando era miúda em Atlungstad, passei pelas casas destruídas pelas bombas, ruínas fumegantes algumas delas, onde os seus donos procuravam febrilmente algum objecto que restasse. As lojas estavam fechadas, o que era irrelevante, uma vez que havia pouco ou quase nada para comprar. Os pavimentos tinham sido arrancados pelas bombas, a maior parte dos edifícios estava em ruínas, havia lixo e destroços por todo o lado, cães vadios vagueavam de olhar aterrorizado.

- Agora é que eu compreendo Stefan Zweig - disse-me Andor. - Ele e a mulher suicidaram-se, apesar de terem escapado ao inferno alemão. Um homem como ele não podia continuar a viver, vendo os seus, os judeus, serem sistematicamente exterminados.

A casa em Pomaz estava cada vez mais cheia. As crianças viviam agora em três quartos, para os quais tínhamos conseguido que a Cruz Vermelha desse camas. Rozann partilhava a sua cama com László, filho de uma grande amiga minha, que tinha exactamente a mesma idade dela, enquanto eu dormia com a mãe, Thyra Pallavicini.

Meu Deus, o que aprendi com Thyra! Aliás, o que aprendi com as mulheres húngaras, em geral. Muito corajosas, com grande auto-domínio, amigas de ajudar e capazes de aceitar o que viesse sem se queixarem, não tinham a mania das grandezas, apesar de terem sido criadas com alto luxo, de viverem em castelos e mansões imensas, usarem nomes históricos sonantes e terem recebido grandes heranças, entre as quais a trágica história do seu país.

O pai de Thyra, que pertencia à classe alta, foi a primeira pessoa a alertar o Governo húngaro contra o perigo de Hitler e do expansionismo alemão, através de um discurso inflamado, que proferiu logo que a guerra rebentou. O seu filho mais velho, Gyula, foi preso pelos alemães e mandado para Auschwitz.

Uma tarde, Thyra, Andor, eu e as crianças fomos dar um passeio e apanhar cogumelos. Tomámos um atalho muito íngreme, que levava à floresta, com as crianças a correr à nossa frente. De repente, ouvimos a sirene de um ataque aéreo e chamámo-los. No mesmo instante, dois pequenos aviões picaram em nossa direcção e, já muito baixos, fizeram fogo sobre nós com as metralhadoras.

Andor gritou às crianças que se atirassem para o chão, enquanto nós fazíamos o mesmo. Mas elas acharam que estariam mais protegidas perto de nós e correram na nossa direcção. Nesse momento, o meu coração quase parou! Saímos todos ilesos do ataque, mas este é um incidente que nunca conseguirei esquecer.

Andor fazia anos no dia 1 de Dezembro. Rozann foi a única a oferecer-lhe alguma coisa: os seus desenhos e uma canção. Com imensa satisfação, vimos chegar Tibor, que queria dar os parabéns ao irmão. Tentámos convencê-lo a ficar em Pomaz, mas ele recusou, dizendo que já não valia a pena, porque agora o inferno estava em toda a parte. Além disso, considerava como dever seu permanecer na nossa casa em Budapeste. Havia vários judeus escondidos na cave, a nossa fiel Bumi e o porteiro Moinar também lá estavam, assim como todo o armazém da Cruz Vermelha. Tibor trouxera uma grande mochila e queria ver se arranjava batatas e legumes na aldeia, porque em Budapeste já não havia nada. Só voltámos a vê-lo muito tempo depois. O inferno estava, realmente, instalado na terra. Mas o Natal aproximava-se. Tínhamos muitas crianças connosco, com idade suficiente para terem essa noção, e sentimos que devíamos tentar celebrá-lo. Cortámos uma árvore e decorámo-la com o que havia à mão. Os presentes é que não eram muitos... Juntámo-nos todos à roda da árvore e procurámos aparentar alguma felicidade: «Dashing through the snow, on a one-horse open sleigh»...

Foi uma noite muito difícil. Ainda por cima, Rozann estava constipada e com febre. Mesmo assim, deixámo-la ficar a pé, e as crianças, com toda a sua inocência, divertiram-se muito. No fim da noite, Andor partiu para o seu quarto na aldeia, enquanto Thyra e eu nos deitámos na nossa luxuosa acomodação.

Mas estava escrito que dormiríamos pouco. As sirenes de alarme aéreo soaram e ficámos sem electricidade, tanto em casa como em toda a aldeia, a qual ficou mergulhada na mais profunda escuridão. De repente, porém, luzes intensíssimas iluminaram tudo. Era o que nós chamávamos luzes de Estaline, a temível iluminação que permitia aos bombardeiros uma visão clara dos seus alvos. Andor e os outros homens, desafiando sirenes e holofotes, vieram a correr ter com as suas famílias. Enrolámos Rozann num cobertor, Andor pegou-lhe ao colo, agarrei nalgumas camisolas quentes e descemos para a cave, a qual, como estava dez metros abaixo do chão, servia de abrigo anti-bomba para toda a aldeia, e estava equipada com cobertores e camas da Cruz Vermelha.

Éramos cerca de seiscentas pessoas na cave e, é claro, não havia janelas nem qualquer arejamento. A iluminação era constituída por pequenos candeeiros de petróleo, sempre acesos. Deitámos Rozann mais a sua constipação e sentámo-nos aos pés da cama à espera. À espera de quê?

Ao nosso lado ficaram Thyra, o filho e a mademoiselle. Para as crianças a excitação era enorme: descer para a cave, a meio da noite, que aventura divertida! E tantas pessoas, tantas novidades! Falavam sem parar e nenhuma conseguia adormecer. Era, sem dúvida, uma atmosfera estranha, ali debaixo da terra. E, nesse aglomerado de gente, desconhecida na maior parte dos casos, criava-se um entendimento enorme, uma solidariedade total, como acontece a todos os náufragos de um mesmo naufrágio. Mesmo sem trocarmos muitas opiniões, sabíamos que todos queriam, em primeiro lugar, salvar as crianças e protegê-las. Se uma criança ou um velho começasse a tossir, logo alguém dispensava um cobertor suplementar. Era também impressionante o tom baixinho em que todos falavam, fosse para não incomodar os outros, fosse para ouvir o estrondo dos bombardeamentos e o crepitar das rajadas de metralhadora.

De mão dada com o pai, Rozann conseguiu, finalmente, adormecer. De repente, um barulho infernal. Podia ser uma bomba altamente potente ou uma explosão ali mesmo ao lado. A parede à qual estávamos encostados, de repente, abriu enormes fendas e parte dela caiu sobre nós. Instintivamente, Andor e eu atirámo-nos para cima de Rozann. Logo a seguir, foi de novo o silêncio. A noite passou sem mais incidentes.

Ao amanhecer, trouxemos as crianças para a superfície, ao encontro de um novo dia. Que não sabíamos o que nos traria. Constatámos, com alguma surpresa, que a constipação e a febre de Rozann tinham desaparecido. Hoje, penso que isso ficou a dever-se ao bolor da cave. A minha filha foi curada pela penicilina do futuro!

O bombardeamento da noite de Natal fez estragos tremendos. Da sala onde a árvore de Natal nos recordava «Sou tão feliz nesta época!», víamos as ruínas fumegantes do que fora uma aldeia, as casas de que só restavam os alicerces e alguns destroços de paredes, que tinham sido, ainda na véspera, o lar de muitos com quem passáramos a noite na cave.

Uma novidade mais benigna chamou a nossa atenção: os alemães tinham desaparecido! Por outras palavras: os alemães acabavam de entregar-nos aos russos. Ainda conseguimos arranjar força para gracejar com uma frase que usávamos bastante nestes tempos: Éz jo nekunk? Com ela queríamos dizer: «Isto será bom para nós?»

                 A ocupação russa

Pouco tempo depois, tivemos a resposta à pergunta de todos, Éz jo nekunk?

Do cimo das colinas, por detrás da casa, desciam filas intermináveis de canhões e tanques, essas terríveis máquinas de semear a morte. Agora sabíamos que estávamos perante um facto consumado: era a ocupação russa e tínhamos que estar preparados. Andor e os outros homens correram à aldeia para trazer as suas coisas. A partir desse momento, todos tinham que viver com as suas mulheres e filhos. Maria, a anfitriã em Pomaz, que era enfermeira diplomada, vestiu o seu uniforme da Cruz Vermelha, ao mesmo tempo que Jószi foi buscar os documentos onde se lia em russo que aquela casa estava sob protecção da Cruz Vermelha e da legação sueca. Chamámos as crianças e reunimo-nos todos na enorme sala, junto à árvore de Natal. Nesse momento, um jeep de fabrico americano entrou a grande velocidade e parou de repente, travões a guinchar, frente à entrada. Saltaram de dentro quatro oficiais russos de metralhadoras em riste. Os donos da casa saíram para o terraço para recebê-los. Jószi estendeu-lhes os documentos, ao mesmo tempo que apontava para as crianças por detrás dele. Um dos russos, coronel, olhou para os papéis e pô-los de lado, enquanto dizia:

- Nitchevo, voina - duas palavras que aprendi bem depressa. Queriam dizer: «Tanto faz, estamos em guerra!»

Um dos nossos amigos, que falava sérvio, tentou servir de intérprete e conseguiram entender-se, embora com alguma dificuldade. Mas sem grande vantagem. O coronel gritou-lhe: Voina. Sem mais demoras a casa era requisitada.

Aquela divisão russa estava a caminho de Budapeste, onde se travava agora a última e decisiva batalha. Disso ninguém tinha dúvidas, ao ver as densas nuvens de fumo e o fogo que pairavam sobre a nossa bela cidade.

O mesmo coronel deu uma volta muito rápida de inspecção a toda a casa, acompanhado pelos donos. Depois rosnou algumas ordens: ”dispensavam-nos” quatro quartos e o resto da casa ficava à disposição da divisão que estava a chegar. Dito isto, galgou em passos largos a distância que o separava do jeep e arrancou a grande velocidade, com outro guinchar de pneus semelhante ao da chegada.

Tomados de pânico, todos nós nos apressámos a esvaziar a parte requisitada e a juntar os nossos pertences. Maria e lia, o cozinheiro, correram à cozinha para tirar toda a comida que restava, bem como tachos, panelas e talheres, já que o coronel também ”requisitara” aquela divisão.

Horas depois, quando já escurecia, chegou a horda. Soltando gritos ferozes, cuspiam, gritavam uns com os outros, lutavam entre si, atiravam-se para as cadeiras e sofás. Um deles sentou-se no piano de cauda e martelou miseravelmente nas teclas. Outro saltou para o enorme lustre de cristal, pendurou-se nele e balançou-se de um lado para o outro, até que o suporte os fios se partiram e se desfez no chão em mil estilhaços. Muitos deles estavam completamente bêbedos e brandiam metralhadoras ameaçadoramente.

Era de partir o coração ver o terror estampado nos rostos das crianças. Rozann ficou hirta, sem dizer nada, agarrada à mão do pai. Um dos piores momentos foi, sem dúvida, aquele em que um dos ”libertadores” agarrou numa das crianças e se pôs a ”brincar” com ela. Ainda hoje parece que estou a ver esta cena e sinto-me estremecer ao recordá-la.

A seguir, começou a pilhagem que, naquele momento, se limitou às nossas roupas e objectos de toilette. Todos os frascos de água de colónia, elixir dental ou perfume, foram bebidos até à última gota. Depois descobriram na cave as pipas cheias do vinho da propriedade e, com tudo o que apanharam à mão, jarros, baldes, trouxeram-no para cima. Bebiam, cuspiam, arrotavam e gritavam. Não tenho coragem para descrever mais pormenores de toda esta cena abominável... Mas o pior ainda estava para vir...

Vivemos, ou melhor, existimos neste inferno até ao dia 6 de Março. Quando me perguntam como conseguimos sobreviver, acho que, em primeiro lugar, foi o nosso grande apego à vida que nos aguentou. Acreditávamos, queríamos obstinadamente acreditar no futuro. Para isso era preciso uma imensa auto-disciplina, não deixar que o medo nos invadisse, não permitir que nos aniquilassem. Eu ia buscar forças a Andor e ele a mim. Dele aprendi a força moral das almas nobres como a sua, o sentido da expressão noblesse oblige: o dever moral dos que são culturalmente superiores. Pela minha parte, transmiti-lhe a avidez de viver, básica, primitiva, terra-a-terra. Juntos, agarrámo-nos à força do nosso amor.

O que eu tento descrever nestas páginas é, simplesmente, o mapa fragmentado dessa época de terror.

Houve também alegria, momentos mais leves e muito para aprender. De facto, houve tanto que aquela época mudou completamente a minha forma de encarar a vida e deu origem a uma perspectiva totalmente nova.

A primeira manhã depois da chegada dos russos foi como a abertura de uma ópera de Wagner: ficamos logo a saber como serão as várias cenas.

Cerca das dez horas, vimos um grupo de pessoas que se aproximava. Mas não havia razão para sustos: eram todos húngaros. À frente, vinham o médico da aldeia e o presidente da Câmara. O pároco, muito prudentemente, não estava com eles. O dono da casa, Jószi, foi ao encontro deles, sorridente, amável, controlado como sempre, e perguntou-lhes ao que vinham. O presidente da Câmara respondeu que queria falar com o coronel russo e pediu-lhe que combinasse um encontro.

- Mas de que se trata? - perguntou Jószi.

- Durante a noite passada, a primeira desde a chegada dos russos, foram cometidas tantas atrocidades que consideramos nosso dever pedir protecção e assistência para a população, especialmente para as mulheres. Ontem, foram violadas cerca de trinta, desde meninas de doze a quinze anos até velhinhas de muita idade. Um jovem que tentou proteger a mulher foi abatido a tiro. A aldeia está em pânico!

O coronel recebeu-os no terraço e o nosso amigo Gyula traduziu para russo as queixas do presidente da Câmara e do médico. A resposta do coronel não se fez esperar: Voina, voina. É a guerra! Posto o que se retirou imediatamente.

Tanto quanto nos foi dado saber, estes russos aguardavam ordens para avançar e ”libertar” Budapeste. E nós desejávamos que assim fosse, para nos vermos livres dos nossos ”libertadores” e também porque de Pomaz víamos e ouvíamos que a luta era cada vez mais violenta na capital. Com preocupação crescente pensávamos em Tibor, na nossa casa, na belíssima Budapeste e nos seus pobres habitantes.

Os russos ficaram em Pomaz durante três dias. Tínhamos aprendido a nossa primeira lição e travado conhecimento com eles. As minhas reacções espantavam-me. Suportámos os alemães na nossa casa, mas vê-los cortar uma rês na mesa de bilhar não podia comparar-se com o que agora tínhamos que aguentar. No entanto, eu nunca senti o mesmo ódio por estes russos como senti pelos outros. Estes eram verdadeiros animais. Alguém disse, um dia: «Quanto mais conheço os homens, mais gosto dos animais». Estes ”animais” eram completamente primitivos, oprimidos por séculos de tirania, explorados brutalmente pelos seus ditadores. Bourgi - burgueses - era uma palavra que gritavam constantemente, como que fazendo votos para que esse grupo social fosse exterminado. Brigavam constantemente entre eles, disputando os objectos que nos roubavam. «Hora, hora», diziam. E, num abrir e fechar de olhos, todos ficámos sem os nossos relógios. Excepto eu: enquanto eles faziam a ”colheita” dos «hora, hora», consegui meter o meu num sapato e, mais tarde, escondi-o em local seguro. Um dos soldados exibia, muito orgulhoso, quatro relógios no pulso, embora para ele as horas fossem um pormenor sem importância. Pois se nem sabia lê-las! Quando se foram embora, saíram com tanto barulho e confusão como à chegada, ao ocupar a casa. Começámos a arrumá-la, tarefa que se assemelhou bastante à de Sísifo*. Prefiro não entrar em detalhes do que foi a limpeza da casa de banho, onde não havia autoclismo. A banheira tinha sido usada como retrete... Thyra foi buscar um balde e uma pá do jardim e limpou tudo.

A frente de batalha aproximava-se cada vez mais de nós e, pouco tempo depois, Pomaz estava na linha de fogo. Noite após noite, ouvíamos o barulho infernal dos aviões, dos raides aéreos, da artilharia e das metralhadoras.

 

* Sísifo, filho de Eolo e rei de Corinto, foi condenado pelas suas atrocidades a rolar no inferno uma pedra enorme até ao alto de uma montanha, donde ela tornava imediatamente a cair. (N.T.)

 

Uma das crianças, entretanto, adoeceu. O médico veio vê-la e diagnosticou escarlatina. Tivemos que isolá-la imediatamente. Foi então que apareceu outro destacamento russo, maior que o primeiro e, se possível, ainda pior. Permaneceram em Pomaz durante vinte e quatro horas. Essa foi a pior de todas as noites. De metralhadoras em riste, obrigaram todos os homens a entrar num quarto do primeiro andar, fecharam-nos à chave e deixaram um guarda à porta. E começou a caçada às mulheres. A falta de luz - tínhamos só meia dúzia de velas - não prejudicou os propósitos dos russos, porque cada um muniu-se de um grande archote.

A cama da Rozann ficava junto da parede. Ela, como as outras crianças, estavam deitadas muito quietinhas e em silêncio. Sussurrei-lhe:

- Não te mexas, nem faças o menor barulho! Vou esconder-me porque vêm aí os russos. - Escondi-me debaixo da cama dela o mais possível encostada à parede. Lembro-me que tremia tanto que tive que ter o cuidado de não tocar nas pernas da cama.

Com um grande estrondo, a porta cedeu aos pontapés dos russos e dois deles, de tochas na mão, avançaram pelo quarto. Do meu esconderijo via as suas botas, à medida que eles avançavam pelo quarto em passos cambaleantes. A mãe da criança com escarlatina sentava-se na borda da cama do filho, acarinhando-o. Ouvi a palavra Davái - vem. Depois, vi as pernas da mãe, que seguiam as botas russas. A criança doente chorava e gritava pela mãe, aterrorizada.

A seguir, um outro par de botas aproximou-se da cama de Rozann. O russo levantou o cobertor. A vista da criança de sete anos, jovem de mais mesmo para o seu gosto, não lhe despertou apetite. E seguiu caminho. Rozann, apavorada, disse muito baixinho, em francês:

- Mamã, porque estás debaixo da minha cama?

Não faço ideia de quanto tempo ali fiquei. Pode ter sido uma eternidade ou meia hora. Depois, ouvi gritos de comando através de um alto-falante, tropel de botas, motores de jeeps e tanques a arrancar. O destacamento estava de partida!

Os nossos homens deitaram abaixo a porta aos pontapés - à lla russe! - e correram, escadas abaixo, ao nosso encontro.

Quatro das minhas amigas foram violadas, uma delas por três soldados. Atirei-me para os braços de Andor, enquanto dizia muito baixinho:

- Eu não, eu não!

Das camas das crianças vinham choros convulsivos. Ouvi um suspiro abafado do lado da cama da mademoiselle. Peguei numa vela e fui até lá. O seu rosto, os seus olhos, estavam irreconhecíveis; virava-se e revirava-se na cama convulsivamente, a chorar baixinho. Com grande consternação, vi no chão uma caixa vazia de comprimidos para dormir. Andor correu a chamar o médico e, quando ele chegou, ajudei-o com o que era preciso.

Mademoiselle murmurava:

- Minha senhora, por favor, deixe-me morrer! Na manhã seguinte, estava fora de perigo. Nunca soubemos exactamente o que aconteceu. Apenas que ela saíra para apanhar ar, um pouco antes de todo aquele horror começar. Jamais falei com ela sobre o sucedido. Não sei nada, não quero saber nada. Hoje, sinto-me simplesmente agradecida que ela esteja viva e feliz.

No meio de todo este horror, foi um milagre que nenhuma das outras crianças tenha apanhado escarlatina. Antes pelo contrário: todas ficaram bem e cheias de saúde!

Reunimo-nos, então, para tomar decisões sobre como proceder quando chegasse outro destacamento russo. Sabíamos que não faltava muito tempo até termos, de novo, a casa cheia de soldados aos gritos. Inocentemente, pensámos que o facto de habitarmos um castelo ”burguês” poderia ser uma provocação para aqueles monstros.

Jószi e Maria, sempre calmos, sempre prestáveis, propuseram procurar-nos acomodações na aldeia. Meu dito, meu feito! O contínuo da escola local estava disposto a albergar-nos. Ele vivia com a família numa casa com três quartos e uma cozinha, para a qual podíamos mudar.

Ainda não tinham passado muitas horas quando recomeçaram as nossas tribulações. E as coisas pareciam ainda piores desta vez.

Havia vários dias que nevava e estava tudo gelado. Anoitecera e o céu estava muito estrelado. Andor e eu, com Rozann no meio de nós, saltámos de uma janela do rés-do-chão, nas traseiras da casa, para irmos para a casa do contínuo. A nossa filha tinha um par de botas de feltro vermelho. Só tivemos tempo de lhe calçar uma e corremos, com ela ao colo, para um bosque muito denso, a poucos metros da casa. Aí, ajudámo-la a calçar a outra bota e corremos, tão depressa quanto possível, em direcção à casa do contínuo.

- Olhe, papá, ali estão os olhos da avó! - disse Rozann, quando estávamos quase a chegar, apontando para a estrela do anoitecer.

- E isso mesmo! Lembras-te do que te disse? A avó há-de tomar sempre conta de nós! - respondeu-lhe Andor, enquanto caminhávamos com muito cuidado na neve escorregadia. Aos nossos ouvidos chegava o troar dos canhões, o estrondo das bombas e o crepitar das rajadas de metralhadora.

De repente, Rozann estacou, ao mesmo tempo que, com o pé, tirava um papel, meio enterrado na neve.

- Papá, papá, é a letra da avó!

Com muito cuidado para não o rasgar, Andor tirou da neve um bocadinho de papel. Era um pedaço de uma carta da

minha sogra, certamente deixada cair pelos saqueadores russos de entre as coisas que nos tinham roubado. «Meu querido filho, não esqueças que as coisas nunca são tão más como nós tememos», lemos.

Ainda hoje tenho esse bocadinho de papel. Andor guardou-o na carteira até ao fim da sua vida. Aquelas foram as palavras de que precisávamos desesperadamente, que vieram ter connosco no momento certo, quando fugíamos da nossa casa ”burguesa” para a do empregado da escola.

Quando chegámos, fomos acolhidos com muita simpatia, ao mesmo tempo que puseram à nossa disposição um pequeno quarto. Havia uma cama para mim, um colchão no chão para Andor e duas cadeiras, uma frente à outra, improvisando uma caminha para a nossa filha.

No dia seguinte, os nossos amigos Mihalys fugiram também da casa ”burguesa” com os três filhos pequeninos - o mais novo de apenas dois anos - e pediram igualmente guarida ao contínuo. A casa ficou a abarrotar, com dez pessoas em três quartos. Mas isso já não tinha importância nenhuma para nós.

Não me apetece entrar em mais pormenores das coisas horrorosas por que passámos. Aliás, a memória é um instrumento cheio de misericórdia: já esqueci muitas delas. Mas, entretanto, houve alguns raios de luz, horas boas de que quero ocupar-me agora.

Uma tarde, já muito ao fim do dia, chegou um novo contingente de tropas russas, um destacamento de cossacos a cavalo. Vimo-los aproximar pela encosta abaixo. Não sei se eram cem, se eram mil, vinham a galope curto nos seus pequenos cavalos russos muito vivos. Mostravam ser excelentes cavaleiros, montando como se homem e cavalo fossem uma só peça. Ocuparam a aldeia, a escola e a casa do contínuo e amarraram os cavalos onde puderam.

Os primeiros a vir à casa onde estávamos foram dois oficiais, que pareciam exaustos e gelados. A forma como entraram na casa não podia comparar-se com a das anteriores tropas russas: cumprimentaram com uma continência impecável e entregaram ao dono da casa um documento que este se apressou a ler em voz alta: «Caros irmãos húngaros, não precisam de ter medo destes russos. Passaram dois dias connosco e demonstraram que são boas pessoas».

Eles queriam apenas um sítio onde ficar, alguma coisa para comer e a possibilidade de se aquecerem e descansar. O dono da casa mostrou-lhes a cozinha e o quarto onde estávamos instalados.

Acho que não vou nunca esquecer-me da noite que se seguiu, a qual mais pareceu um capítulo de uma novela de Dostoievski.

Os oficiais saíram para a rua, ouviu-se uma voz de comando, a seguir à qual entrou na nossa cozinha um bando de soldados extenuados, semi-congelados e a morrer de fome. Todos tinham uma tigela de folha na mão e alguns transportavam grandes panelões cheios de sopa de feijão, onde nadavam pedaços de carne e bacon, que puseram a aquecer na cozinha. Traziam também garrafões de vinho. Considerámos um milagre que tivessem trazido comida e bebida! Quando se instalaram todos, não ficou nem um espacinho vazio na cozinha.

Sentei-me no chão, com a cabeça da minha filha no colo. Andor sentou-se ao nosso lado. «Que irá trazer-nos esta noite?», interrogavamo-nos.

Não nos trouxe nada de mal, antes pelo contrário.

Os russos descalçaram as botas, despiram os casacões e instalaram-se onde havia espaço, enquanto a sopa era distribuída pelas tigelas e o vinho deitado nas canecas. A única iluminação desta cena digna de Dostoievski provinha de algumas velas de Natal, de luz fraquinha e vacilante.

Um jovem e bonito oficial sentou-se ao lado de Andor. Num alemão titubeante, disse ao meu marido que fosse buscar duas canecas, onde deitou algum vinho para nós. E pôs-se a trautear baixinho, com bela voz, uma música qualquer. Andor pediu-lhe, então, que cantasse algumas canções do seu país. Por essa altura, já todos tinham acabado de comer.

O oficial bateu na caneca a chamar a atenção e disse algumas palavras em russo aos seus companheiros. A forma como lhe prestaram atenção mostrou que era alguém simultaneamente respeitado e querido. Fez alguns gestos com a mão, a indicar que cantassem baixinho, posto o que o grupo todo nos proporcionou um recital de canções folclóricas russas, todas muito melancólicas e românticas.

Foi extraordinário ouvi-los, mais ainda observar os seus rostos. Eram seres humanos, tal como nós, cheios de saudades dos seus, da sua terra, a sofrerem uma guerra. Tal como nós, ali estavam, amontoados numa casinha húngara abafada. Tal como nós, sentiam-se expatriados, sem abrigo. Lembrei-me das palavras finais da nona sinfonia de Beethoven: «Todos os homens são irmãos».

Por fim, as canções acabaram e esta gente desgraçada, arrastada para uma guerra tão cruel, ansiava agora pelo repouso e a paz do sono. Uma estranha empatia nascera entre nós. Quando os nossos olhos se encontraram, eles sorriram. Ninguém foi capaz de pronunciar uma palavra.

Uma a uma, as crianças adormeceram; um a um, os soldados russos também. O jovem oficial cabeceava, quase a dormir, mas era óbvio que sentia frio. Andor foi buscar o seu casaco e uma almofada, ajudou-o a estender-se no chão e tapou-o com o casaco. Antes de adormecer, ele entreabriu os olhos e agradeceu.

Na manhã seguinte, fomos todos acordados por vozes de comando: On, On! O destino deles era a cidade, melhor dizendo, as ruínas fumegantes da cidade de Budapeste. Tontos de sono, vestiram os casacões, calçaram as botas, tudo húmido da noite, e enrolaram os mapas e outro equipamento.

Muitos despediram-se com um aperto de mão, o jovem oficial deu um abraço a Andor. Em poucos minutos, partiram todos. Ouviam-se os cascos dos cavalos a galope, em direcção à destruição, ao sangue e à morte. Pergunto a mim mesma quantos deles terão regressado a casa...

Em 13 de Fevereiro de 1945, depois de um cerco que começara em z6 de Dezembro, Budapeste capitulou. O comando supremo russo concedeu três dias de pilhagem às tropas. Mas a pilhagem tinha começado havia muito. Era perturbador ver com que prazer os russos se apoderavam dos objectos mais comezinhos!

De entre os muitos destacamentos que ocuparam Pomaz e, depois, rumaram para Budapeste, houve um comandado por uma mulher. Um dia, veio ter comigo e mostrou-me algumas das coisas provenientes do saque. Havia uma que ela roubara na pilhagem de uma loja e que não conseguia perceber para que servia. Tratava-se de um soutien... Lá lhe expliquei como se usava. Mas ela era uma tábua, completamente destituída de ”atributos” que dessem utilidade ao objecto pilhado, que, mesmo assim, insistiu em usar! Andor, com imenso humor, desenhou o seu retrato.

Um dos destacamentos russos acabou por fazer quartel-general na escola onde estávamos. Por isso, tivemos que sair e foi o padeiro da aldeia que nos ofereceu o seu tecto. Ou melhor, o ex-padeiro, porque a aldeia tinha sido completamente saqueada e já não havia nenhuma farinha para fazer pão.

Os russos mataram e comeram toda a criação. Os alemães tinham praticamente acabado com o gado e o pouco que restou foi herdado pelos russos. Mesmo assim, conseguimos esconder duas das vacas leiteiras de Józsi, para ter leite para as crianças.

Como já não havia empregados na quinta, pôs-se o problema de saber quem seria capaz de mugir aquelas tetas que quase rebentavam de leite. Quem havia de ser senão eu, a rapariga do campo da Noruega? Levei comigo Rozann e ensinei-lhe como fazer: foi uma nova e divertida experiência que a guerra proporcionou à minha filha!

Józsi organizou, entretanto, uma espécie de piquetes de húngaros que tinham por missão fazer rondas de assistência aos seus compatriotas, para ajudar, sobretudo, as mulheres.

O destacamento russo instalado na escola era o do comando: kommandatura. Por isso, nós pensávamos que, se acontecesse alguma coisa dramática, como, aliás, acontecia dia e noite, poderíamos pedir-lhes ajuda. Quanta ingenuidade da nossa parte! Mas as pessoas têm sempre que agarrar-se a alguma esperança para sobreviver.

Era sobretudo depois do escurecer que os nossos piquetes húngaros tinham mais a que acudir. Cada vez que apareciam russos completamente bêbedos, aos tombos pelos caminhos, os húngaros gritavam: Vigyázni, jõnek! - cuidado, eles vêm aí. Quando, na casa do padeiro, ouvíamos estas palavras, vestia o meu casacão e ia pelo jardim fora esconder-me num poço sem água até que Andor me gritasse que tudo voltara a estar tranquilo. Rozann, às vezes, perguntava: «Onde é que foi, mamã?»

- Fui dar um passeiozinho lá fora, querida!

Tinham-nos roubado a maior parte dos nossos objectos pessoais. A Andor só restava o par de sapatos que tinha nos pés. Mas, felizmente, conservámos algumas peças de roupa, sobretudo da nossa filha. Enfiei tudo dentro de uma mochila e a mademoiselle ajudou-me a escondê-la num fardo de feno dentro da vacaria vazia. Alguns dias depois, soube que os russos tinham vasculhado toda a vacaria e encontrado a minha mochila. E lá se foram os nossos últimos pertences!

 

                 A OCUPAÇÃO RUSSA

Senti-me rebentar de raiva. Não disse uma palavra ao meu marido, mas pedi à mademoiselle que trouxesse o meu passaporte suíço e me acompanhasse à kommandatura. Pus uma velha écharpe preta sobre os meus cabelos loiros - as loiras eram muito apreciadas - e meti no bolso a fotografia do meu pai, fardado de coronel, onde estava colada uma pequena bandeira norueguesa. A tremer, entrei no covil do monstro, ou seja, no gabinete do comandante. Ele olhou-me dos pés à cabeça e eu puxei mais a écharpe para a cara. Comecei a gesticular, enquanto dizia a palavra russa «roubado» que aprendera há algum tempo.

O comandante percebeu perfeitamente a mensagem, mas limitou-se a responder-me com o inevitável voina, voina: é a guerra...

Então, tirei a fotografia do meu pai do bolso, avancei para o comandante e - milagre - desatei a falar fluentemente russo, juntando a terminação ski às palavras húngaras!

Apontei para a fotografia, para a bandeira e para mim própria e, orgulhosamente, debitei:

- O papá generalski noruegueski, bum-bum, alemanski Narvik. - O que, ”evidentemente”, queria dizer: - O meu pai era um general norueguês que combateu os alemães em Narvik. O russo ficou esclarecido. Levantou-se, deu-me uma palmadinha nas costas e disse: - Dobre norvetski - bom norueguês.

O pior é que não voltei a pôr os olhos na mochila. O ”general” e Narvik não me serviram de nada!

Havia tão pouca comida que nós, os adultos, estávamos sempre com fome. Estou convencida de que o feijão encarnado salvou muita gente de morrer à fome, durante aqueles meses. Mas o que é curioso e ficou, aliás, estatisticamente provado, é que durante a ocupação as pessoas mantiveram-se mais saudáveis do que em circunstâncias normais.

A batalha travava-se muito perto de nós. Encontrávamos por todo o lado cadáveres de cavalos. Por volta das quatro ou cinco da manhã, havia quase sempre uma pausa nos bombardeamentos. Aproveitávamos, então, para dar uma escapadela lá fora e cortar bocados dos cavalos mortos. Os desgraçados não só estavam mortos como praticamente congelados e não era tarefa fácil cortar os pedaços. Em ”casa”, limpávamos a carne, tirávamos os nervos e fazíamos um picado para rissóis, os quais, bem temperados com sal e pimenta, perdiam o adocicado da carne e eram muito saborosos.

Todos os dias chegavam novos contingentes russos. Aparentemente, eram tártaros e ainda mais brutos que os outros.

Uma noite, ouvimos o habitual «Cuidado, eles vêm aí», e eu fui, como sempre, esconder-me no poço. Três soldados armados até aos dentes arrombaram a porta da casa do padeiro e entraram na cozinha onde Andor estava sentado com Rozann adormecida ao lado. Um dos soldados tinha a pistola numa mão e uma granada na outra. Obrigou Andor a entrar para a outra divisão enquanto o outro ficou para trás, onde Rozann dormia. Ela acordou, não chorou e ficou quieta que nem um rato.

Contou-me, mais tarde, que o soldado virou a sala dos pés à cabeça, à procura de coisas. Subiu mesmo a um banco para inspeccionar o candeeiro do tecto, à procura de ouro ou jóias que pudessem lá estar escondidas.

Alguns dias depois, mudámo-nos para casa de um casal idoso que vivia na periferia da aldeia. O homem tinha sido chefe de cozinha em casa do duque do Luxemburgo.

Aqui sentada a escrever, hoje, sinto uma imperiosa necessidade de parar de vez em quando e dar um passeio pela sala. Cada vez que recordo esses tempos e todos os horrores que tenho tentado esquecer, o meu coração bate em ritmo acelerado e a emoção apossa-se de mim.

Porém, «aquilo que não nos mata, dá-nos mais forças». Nós três escapámos sãos e salvos. Temos todas as razões do mundo para estar agradecidos. Nesses dias de horror e tragédia, também testemunhámos bondade, humanidade, coragem e sentimento pelos outros. Foi isso que nos deu forças no dia-a-dia e nos ajudou a fazer frente a tudo. Juntos nos mantivemos e juntos conseguimos sobreviver.

Embora muito danificada pelos bombardeamentos, a igreja da aldeia continuava de pé. O coro, o altar e o campanário ficaram intactos e os sinos chamavam-nos à oração, lembrando que existe algo mais que o ódio e a guerra.

Conseguimos assistir à missa várias vezes sem o som das bombas e dos tiros, na igrejinha superlotada, com parte das paredes e do tecto em ruínas, onde se proclamava a glória de Deus e o evangelho do amor. Era estranho ver os rostos dos russos, ao encaminharmo-nos para a igreja: não aparentavam qualquer ódio ou agressividade.

Um domingo, quando Andor, Rozann e eu voltávamos da igreja, um grande cão branco veio atrás de nós e pôs-se a cheirar Andor. Era um Komondor, raça húngara de pêlo espesso e ar agressivo. As ruas estavam cheias de russos e, à nossa volta, ainda fumegavam as ruínas de alguns edifícios. Andor parou, fez uma festa na cabeça do cão e disse-lhe:

- Também não tens casa, como nós, não é?

Em resposta, o cão lambeu-lhe a mão e deu ao rabo. E Andor concluiu:

- Bem, então o melhor é vires connosco!

Pusemos-lhe o nome de Bundas (peludo), e depressa percebemos que não podia com os russos. Um dia, fui à aldeia com Rozann e ele veio connosco. Um russo tentou fazer-nos parar, e logo Bundas avançou para ele, ladrando furiosamente. O russo empunhou imediatamente a metralhadora para se defender. Rozann deu um grito e avançou para ele, dizendo:

- Não, não, não atire!

O russo olhou para a carinha suplicante da miúda, fez-lhe uma festa e foi-se embora. Eu agarrei com força a coleira do Bundas e não a larguei mais. Mas, antes de deixar Pomaz, conseguimos encontrar um lar para o cão.

Algumas vezes, russos que estavam aquartelados em Pomaz e combatiam pela tomada de Budapeste, voltavam à aldeia, ao fim do dia, trazendo os seus camaradas mortos em combate. Como nos consideravam os seus criados, era a nós que mandavam lavar os cadáveres, prepará-los e metê-los nos caixões. Depois, acompanhavam-nos até à sua última morada, por entre choros e lamentações. Com algum espanto, reparámos que muitos deles usavam uma cruz ou um fio com uma medalha de algum santo ao peito. Lenine e Estaline não foram, afinal, capazes de erradicar totalmente os sentimentos religiosos do povo russo.

Havia um soldado raso, chamado Peter, com quem tive algumas ”conversas”, fundamentalmente gestuais, é claro. Conseguiu fazer-me entender o quanto detestava a guerra: «Não há-de durar muito», pareceu-me que queria dizer. Depois, com um gesto eloquente de quem corta cabeças, continuou: Churchill kaput. Hitler kaput. Estaline kaput. Voina kaput.

Peter era caucasiano, uma gente menos brutal e muitas vezes decente. Ele e muitos outros eram grandes opositores de Estaline. Para termos o direito de julgar os russos - como, aliás, qualquer povo - é preciso saber algo da sua história. Na época dos czares, os russos sofreram os efeitos de um governo muito autoritário; agora, era totalitário.

Não acredito que a maior parte das tropas que lutaram contra a Hungria ou as que, mais tarde, a ocuparam, tivessem o mínimo conhecimento sobre este país. Viviam numa feroz ditadura, que privava totalmente a juventude de qualquer conhecimento histórico ou pensamento livre.

A vodka, bebida tradicional da Rússia, sempre foi uma fonte de preocupações para as autoridades do país. Na Hungria, não há vodka, mas muito vinho e outras bebidas alcoólicas. Os soldados russos bebiam até embrutecer e, a seguir, punham-se a perseguir as mulheres. Lá foi por água abaixo a teoria de Lenine, de que o sexo promíscuo é uma característica da alta burguesia!

Conhecemos, em Budapeste, uma senhora que ficou a viver sozinha num apartamento, com as filhas de catorze e dezasseis anos, depois do marido ter sido preso e levado para um campo de concentração. Quando a luta na cidade estava no auge, durante as pausas, os russos entravam com frequência nos abrigos anti-bomba e violavam as mulheres. A nossa amiga foi encostada a um canto por um soldado empunhando uma metralhadora e forçada a assistir à violação das duas filhas, enquanto quatro ou cinco soldados mais faziam bicha à espera da sua vez.

Como já disse anteriormente, a batalha de seis semanas para a tomada de Budapeste acabou em 13 de Fevereiro. Dois dias mais tarde, Tibor veio visitar-nos. Foi um momento extraordinariamente feliz: nenhum de nós sabia se o outro estava vivo. Mas ele deve ter ficado tão admirado com a nossa aparência como nós com a dele! Depois de ter passado seis semanas na cave, parecia esgotado, velho, magríssimo, e de uma lividez cadavérica. Agradecemos a Deus ter-nos poupado aos três o sofrimento horroroso por que ele passara. Ao menos, em Pomaz, todo o mal que nos atingiu não podia comparar-se com o dele. Tibor passou seis semanas numa cave superlotada, muito húmida, sem luz e quase sem água. Uma bomba caiu na nossa casa do lado do Danúbio, deixando-a em ruínas, e uma parte da cave abateu. Nela estavam os mortos e os feridos ou doentes. E também nasceram alguns bebés. Segundo Tibor, um dos sons mais horríveis era o do relinchar dorido dos cavalos abandonados pelos alemães, vagueando ao longo do Danúbio, até morrerem gelados, de fome ou com algum tiro misericordioso.

Tibor tinha vindo a pé, que é como quem diz, tinha caminhado, rastejado, trepado e atravessado o Danúbio, num barco muito pequeno. Todas as pontes sobre o rio tinham sido destruídas. Passou a noite no chão da nossa cozinha, e, embora lhe pedíssemos que ficasse uns dias, respondeu que era seu dever voltar ao que restava da nossa casa. Explicou-nos que tínhamos que esperar até podermos voltar. A tarefa prioritária, agora, era enterrar os mortos, um trabalho bem difícil, com a terra gelada.

Já não me lembro quanto tempo tivemos que esperar, mas estávamos ansiosos por voltar a Budapeste e tentar encontrar quem nos desse um tecto para morar. Andor insistiu em ir à frente, deixando-me a mim e a Rozann. Saiu uma manhã, pelas seis horas, equipado apenas com uma pequena mochila. Achei mal que ele fosse sozinho e temia que o que fosse encontrar o deixasse demasiado abatido.

Dois dias depois, voltou, não abatido, mas completamente desfeito. Fora até ao topo do monte Schwabenberg, de onde se vê a cidade, para saber se o seu primo, que ali vivia, tinha sobrevivido. Estava realmente vivo e a casa de pé. Convidou-nos a ir para lá quando quiséssemos e prometeu ir buscar Rozann ao sítio do ferry-boat, no Danúbio, com a velha motorizada que tinha conseguido manter. A mademoiselle, entretanto, resolveu ficar mais algum tempo em Pomaz, para ajudar uma família nossa amiga com três filhos.

Foi com um grande peso no coração que nos despedimos de Maria e de Józsi. Quase não dissemos nada. Um «obrigado pela estadia, foi muito agradável», das regras da etiqueta, era absolutamente descabido.

Conforme combinado, fomos ter com o primo de Andor. E Rozann ficou radiante com a experiência totalmente nova de montar numa motorizada! Estes primos, que a minha filha já conhecia, tinham dois filhos quase da idade da nossa e, naturalmente, ela estava deliciada.

Foi então que Andor e eu começámos a caminhar ao longo do Danúbio, pelos subúrbios de Budapeste. Não foi a distância, uns meros quatro ou cinco quilómetros que nos esgotaram, antes o que vimos pelo caminho. Mais de metade dos edifícios estava em ruínas. Deambulámos, rastejámos, trepámos através das ruínas. Por todo o lado havia um cheiro agri-doce nauseabundo, proveniente dos cadáveres e de cavalos mortos, ainda por enterrar. A cidade era um montão de lixo. Algumas vezes, parecia irreal, como se nos passeássemos pelos bastidores e arrecadações de um teatro. Mal acreditávamos no que estava em frente dos nossos olhos. Um avião alemão tinha-se despenhado, furando a parede de uma casa. Continuava lá, suspenso, a cabine para dentro e a cauda espetada no exterior. Uma banheira de esmalte, de pés de garra, estava pendurada, nem sei bem em quê, do lado de fora da parede de uma casa cujo interior estava todo à vista.

Trepámos por cima de restos de automóveis, de canhões e tanques meios desfeitos, desembocámos no que fora, um dia, a bela alameda do Danúbio, e chegámos à Avenida Margit Rakpart, onde ficava a nossa casa. Cadáveres, de estômagos como balões, e carcaças de animais flutuavam no Danúbio, viajavam ao sabor da corrente, muito de vagar.

- É isto que os malditos políticos chamam libertação! exclamei.

Com as lágrimas a cair pela cara abaixo, continuámos a nossa dolorosa excursão. Avistámos a igreja, rodeada por um enxame de jeeps e canhões e, finalmente, chegámos à nossa casa. E ali ficámos, de mãos dadas, a olhar, petrificados, para o que restava dela. Parecia que tinha sido cortada em duas fatias, desde o quarto andar até ao pavimento. A fachada estava transformada em montes de cascalho: podíamos ver até as divisões do interior, a sala de música e a dos pequenos almoços. Uma brisa suave agitava alguns bocados rasgados do papel das paredes. Tapetes, quadros e peças de mobiliário equilibravam-se precariamente, onde a bomba tinha rebentado a casa. Vagueámos como fantasmas pelas ruínas, apanhando pequenos fragmentos. De repente, vi algumas ervas verdes no meio daquela pilha de destroços. E as lágrimas começaram a rolar-me pela cara. Mas estas não eram lágrimas de mágoa: a sábia mãe Natureza tinha conseguido que alguma coisa criasse raízes e crescesse no meio de tanta desolação! Também nós tínhamos conseguido sobreviver e íamos seguir em frente e, uma vez mais, construir uma casa.

Ficámos ali muito tempo, de mãos dadas. Por fim, voltámos a Schwabenberg e à nossa filha.

Os russos eram aos magotes, por todo o lado, e constantemente interceptavam as pessoas. Fomos parados duas vezes e, em ambas, inspeccionaram a nossa mochila. Mas, pelos vistos, não consideraram as nossas coisas suficientemente ”burguesas” para serem confiscadas.

Os parentes de Andor tinham duas casas no mesmo terreno. Numa, viviam os pais e, na outra, o filho com a mulher e os dois rapazinhos. Ambas as casas ficaram intactas, mas a maior foi requisitada pelos russos, tendo os pais ido viver com o filho. Com a nossa chegada, havia agora ali três famílias. Deram-nos dois quartos no piso de baixo, um dos quais com três camas. O outro, que tinha sido uma sala de engomados, foi mobilado de modo a funcionar como sala para nós. Além disso, luxo dos luxos, tínhamos uma casa de banho com chuveiro! Bom, tudo era relativo: não havia água, e até ao poço mais próximo levávamos vinte minutos. Em todo o caso, considerávamos tudo isso um luxo. A electricidade ainda não funcionava, mas tínhamos velas - não só de Natal - e também lanternas de parafina. E tinham acabado as bombas, o fogo de artilharia e os tiroteios. Era a vez da paz. É verdade que os russos, quando estavam bêbedos - e estavam quase sempre

- davam alguns tiros. Mas isso já não tinha importância nenhuma; o ser humano acostuma-se a tudo, o que é, simultaneamente, um misto de fraqueza e de força.

Andor, que era um verdadeiro esteta, e estava habituado a ver-se rodeado de arte e coisas belas, sentia-se surpreendido por já não se preocupar com as coisas feias. Comentámos muitas vezes como era incrível que Rozann, durante esse período tão conturbado, nunca se tivesse mostrado assustada, nem chorado ou queixado. Mas, apesar de tudo, isto fazia sentido. Para as crianças, a segurança depende da presença dos pais. Com eles, sentem-se tranquilos e definitivamente protegidos.

Devo acrescentar, uma vez mais, que nós fomos privilegiados: todos sobrevivemos e não sofremos qualquer abuso físico. E nem vale a pena determo-nos no que passou mas, sim, vivermos o momento actual tal como ele é.

A minha amiga Thyra chegou pouco tempo depois de nos instalarmos no novo santuário. Os pais dela estavam vivos e habitavam todos uma casa que tinha ficado pouco danificada. Foi tão bom encontrá-la de novo!

O distrito de Schwabenberg estava inundado de russos. Mas quanto menos se falar deles, melhor! Dizia-se que Estaline tinha criticado - para usar um termo suave! - o comando supremo russo por ter feito poucos prisioneiros na batalha de Budapeste. Para responder à crítica, durante esta chamada ”paz”, prendiam, agora, constantemente, os homens húngaros nas ruas. Por esta razão, os nossos homens procuravam ficar em casa, tanto quanto possível, e encarregavam-se de algumas tarefas domésticas como, por exemplo, preparar as batatas e legumes que as mulheres conseguiam arranjar nas trocas de bens de consumo.

Andor e vários outros homens foram apanhados, um dia em que se aventuraram fora de casa. Mandaram-nos marchar em filas. Quando a fila transpunha uma trincheira, em lugar de saltar, ele escapou, mergulhando na trincheira e fingindo-se morto no fundo. Só ”ressuscitou” quando passou o perigo.

Thyra e eu esquadrinhávamos os arredores à procura de comida. A nossa moeda de troca eram artigos muito apreciados, como fósforos, óleo alimentar e, claro, dinheiro. Conseguia obter-se com bastante facilidade batatas, couves e cenouras e, com um bocado de sorte, alguma galinha, escondida dos russos por um fazendeiro esperto.

Um dia, quando voltávamos a casa, exaustas com o peso das mercadorias conseguidas, demos de caras com um destacamento de russos. Ainda bem que não percebemos nada do que nos gritaram, mas, de repente, um dos soldados saiu da coluna e meteu-me uma rasteira que me fez estatelar. Como é evidente, isso foi motivo de risota para os outros e ainda mais quando rebolaram do meu cesto, espalhando-se pela estrada, maçãs e meia dúzia de ovos que tinha conseguido arranjar.

Fiquei no chão, humilhada e furiosa, a tentar salvar os restos da minha preciosa comida. Mas o meu sentido prático veio em meu auxílio. Levantei-me rapidamente - com a ajuda dos russos, imagine-se! - e segui para casa.

Algum tempo depois, os russos ocupantes de uma das casas dos nossos amigos foram-se embora. Tinha-lhes sido atribuída uma outra grande casa ”burguesa” em Peste, o outro lado do Danúbio, que ficava mais perto do comando supremo.

A mademoiselle veio juntar-se-nos. Pretendia ir à delegação suíça, já que, tanto ela como eu, não tínhamos há muito notícias das nossas famílias. E queríamos dizer aos parentes que estávamos vivas. Eu estava igualmente ansiosa por ir à cidade ver se tinha restado alguma coisa do edifício da delegação sueca.

Continuava a não haver transportes, mas as crianças tinham construído uma campana com quatro rodas encontradas no lixo, equipada com uma espécie de leme para manobrá-la. Pedimo-la emprestada, sentámo-nos, e os miúdos deram-nos um empurrão. E lá fomos nós, colina abaixo! Divertimo-nos quase tanto como as pessoas que nos viram passar! Para os russos, porém, não teve qualquer interesse: nem a campana nem nós próprias aparentávamos um ar minimamente burguês!

A delegação suíça estava situada no lado de Peste; a sueca, em Buda, o nosso lado do rio. Por isso, a mademoiselle e eu separámo-nos na estação do ferry, onde ela tomou o barco para o outro lado, combinando encontrarmo-nos mais tarde, no mesmo local.

Colina acima, já que a delegação sueca ficava no alto de Gellert, reboquei o carrinho atrás de mim. A casa estava de pé, paredes e telhado intactos, mas faltavam todas as janelas e portas, e o aspecto era um tanto ou tanto patético. Guardas russos patrulhavam a frente do edifício e pensei voltar para trás. Nesse momento, veio ao meu encontro uma rapariga que reconheci logo: tinha sido criada em casa de Danielsson. Não fazia a menor ideia onde poderia estar o meu amigo nem os seus colegas diplomatas. A delegação estava vazia havia muito tempo, fora completamente saqueada e todos os cofres arrombados com dinamite.

Não havia mais nada a fazer senão esquecer as minhas jóias, dizer adeus às preciosidades que lá tinha deixado, sentar-me no meu ”descapotável” e rolar, colina abaixo, até ao Danúbio.

A mademoiselle teve mais sorte nas suas voltas: a delegação suíça estava intacta. Logo que voltasse a haver transportes, todos os suíços seriam evacuados e voltariam ao seu pacífico país.

Quando a Primavera se aproximou, começámos a trabalhar no jardim. Mas não plantámos petunias ou rosas, amores-perfeitos ou begónias. Cavámos a terra para batatas e semeámos ou plantámos todas as sementes e plantas que produzissem alimentos. Um sinal de que o pior já tinha passado.

Os amigos e conhecidos começaram a aparecer detrás das suas barricadas, cada um com uma história para contar mais horrível do que a outra. Então, resolvemos fazer um pacto: «Se não me contares as tuas desgraças, eu também não te conto as minhas». Já chegava de horrores. Agora todos queríamos tomar parte na reconstrução nacional.

Foi então que abriram repartições especiais, onde toda a gente podia inscrever-se para qualquer tarefa: limpeza de entulhos, reparação das linhas dos eléctricos, repavimentação das ruas, e por aí fora. Havia um número infindável de tarefas a realizar para emergir do caos.

Um dia, apareceram a visitar Andor dois homens que tinham sido empregados da fábrica Herend. Um deles fora capataz e o outro contabilista. A visita deu-nos, como é de calcular, a maior satisfação. Vinham em nome de todos os trabalhadores, pedir ao meu marido que pusesse de novo a fábrica a trabalhar e reassumisse a direcção.

O edifício sofrera pequenos estragos. Como não havia ainda transportes e a fábrica ficava a duas horas de comboio de Budapeste, sugeriam que começasse no escritório Herend, em Peste, o qual, embora com alguns buracos, ainda estava de pé. Ao mesmo tempo, entregaram-lhe um documento, assinado pelos trabalhadores, que confirmava a sua nomeação como gerente. Esta foi a contribuição de Andor para a reconstrução do país. Fê-lo com tanto sucesso que a Herend foi a primeira firma húngara a conseguir exportar depois da guerra.

Andor continuou a gerir a fábrica até 1947. E foi então que a Hungria sofreu uma nova ”libertação”. Apesar dos comunistas terem perdido as eleições, um golpe daquele partido tomou conta do poder. E o meu marido foi, naturalmente, despedido da Herend.

Estas foram as últimas eleições livres na Hungria.*

 

* Ocupada pelos russos, em 1947, a Hungria foi, desde 1949, pela mão do estalinista Rákosi, um estado comunista de modelo soviético.

Em 9 de Novembro de 1989, cai o muro de Berlim. A Hungria denuncia, de imediato, o Pacto de Varsóvia.

Este pacto, de 14 de Maio de 1955, englobou a União Soviética e os seus países satélites - Albânia, Bulgária, Checoslováquia, Alemanha de Leste, Polónia, Roménia e Hungria. Sob o pretexto de defesa mútua, não foi mais do que um plano sistemático de domínio dos países satélites por parte da URSS.

Na Primavera de 1990, os húngaros vêm-se, por fim, livres dos ocupantes russos. Em Abril do mesmo ano, realizam-se as primeiras eleições livres desde 1947.

Venceu o MDF - Hungarian Democratic Fórum -, um partido de centro. Joseph Antal é o Primeiro-ministro eleito. (N.T.)

 

                  A chegada dos aliados

Em 6 de Junho de 1944, as tropas aliadas, comandadas pelo general Dwight Eisenhower, entram em França, através da Normandia. Graças a um plano meticuloso, secundado por uma execução brilhante, o avanço aliado, que em Julho engloba milhão e meio de homens, chega a Paris em 25 de Agosto. As tropas alemãs são perseguidas, à medida que se retiram de França.

Cerca de um ano depois, em 8 de Maio de 1945, a Alemanha rende-se incondicionalmente em todas as frentes. O grande pesadelo, finalmente, acabava.

Estávamos outra vez no alegre mês de Maio. A Natureza teimava em mostrar que os pássaros cantavam de novo, as plantas voltavam a florir, os dias a crescer e a nossa coragem e alegria de viver tinham encontrado novas asas.

Pouco depois, chegou outra grande notícia: os Aliados estavam a caminho da Hungria! Em conjunto com Andor e um primo seu, tomámos desde logo uma decisão: oferecer a casa grande às autoridades encarregadas dos aquartelamentos, para aboletar os soldados americanos ou ingleses.

Dois oficiais vieram ver a casa e assinaram um contrato de arrendamento, ao mesmo tempo que me prometiam um lugar de secretária ou governanta, se os ”inquilinos” estivessem de acordo.

Não chorei muitas vezes durante todo o horror por que passámos. Mas quando as tropas aliadas marcharam, garbosamente, pelas ruas de Budapeste, as minhas lágrimas saltaram, grossas, irreprimíveis, de alegria: não eram alemães, não eram russos, eram... os nossos!!

Foi o chefe da missão americana, Arthur Schoenfeld, com a mulher e duas filhas, de dezasseis e dezoito anos, e um filho de oito, que vieram para a nossa casa. Ficaram encantados com ela e também comigo, quando souberam que era uma ”aliada” norueguesa e que falava húngaro. Contrataram-me logo como governanta, com uma primeira tarefa a cumprir: arranjar uma cozinheira, uma criada de fora e um mordomo. Ofereceram-me trinta dólares de salário mensal.

Assim começou um novo capítulo da minha vida, uma oportunidade de recomeçar do «lado de lá», de conhecer o reverso da medalha. Agora era eu que recebia ordens, que obedecia a ordens. Encarado positivamente, isto foi uma verdadeira lição de vida.

A minha amiga Thyra aceitou, contentíssima, a ideia de ser ela a criada de fora. Nenhuma de nós tinha dinheiro, as ofertas de trabalho escasseavam, sobretudo para as pessoas do nosso grupo social, e o problema financeiro era muito grave.

Pouco depois, numa das minhas idas à cidade, encontrei Fritz, um austríaco que tinha sido mordomo da delegação francesa, agora completamente em ruínas. Era um excelente homem, sempre bem humorado, que ficou radiante e agradecidíssimo quando lhe propus o lugar em casa dos Schoenfeld.

Desloquei-me, depois, a Pomaz à procura de Pista, que tinha sido chefe de cozinha de um duque, e que nos dera alojamento. Também ele ficou entusiasmadíssimo com a perspectiva de trabalhar em casa dos americanos.

Foi assim que tomei posse do meu emprego como governanta. Ajudei os Schoenfeld a fazerem a mudança e instalei-me na parte de baixo da casa, estando assim sempre disponível para eles.

Com os meus ”patrões” vieram vários jeeps americanos, carregados com a bagagem e oitenta e oito caixotes de provisões. Para mim, naquela época, abrir um caixote daqueles equivalia a entrar na caverna do Ali-Babá: um conto das mil e uma noites. Era muito sensato da parte da senhora Schoenfeld guardar a chave da despensa... É que eu tinha agora um hábito inveterado: surripiar o que pudesse dos russos e alemães, com a maior habilidade, e sem o mínimo rebate de consciência. Como ”eles” me tinham surripiado - para usar um termo suave - as minhas coisas todas.

Os americanos nunca nos favoreceram com a sua abundância. Conseguimos, mesmo assim, tirar partido das laranjas, de que eles tinham muitos caixotes. Todas as manhãs bebiam sumo fresco de laranja ao pequeno-almoço. Eu apanhava as cascas e fazia com elas uma espécie de doce de laranja.

Thyra usava um uniforme de criada, com uma crista na cabeça. Que lhe ficava quase tão bem como o seu diadema perdido de brilhantes. Como governanta e chefe do pessoal doméstico, nunca tive qualquer problema com a criada, a condessa Thyra Pallavicini.

Já não posso dizer o mesmo do que fora chefe de cozinha do duque e do mordomo da delegação francesa. Eram uns snobs patetas!

O ”patrão” só falava inglês. Por isso, quando queria comunicar com eles, eu tinha que servir de intérprete. Não era fácil manter boa cara quando os dois rosnavam os seus apartes, criticando ou ridicularizando as ordens que recebiam. Pista murmurava, por exemplo, que se o duque gostara dos seus souffles, não era «uma senhora Schoenfeld qualquer» que iria criticá-lo. Uma coisa é certa: não estava disposto a alterar a receita.

O ministro francês com quem Fritz trabalhara não usava leite ao almoço nem cereais ao pequeno almoço. Por isso, ele ”esquecia-se” sistematicamente de colocá-los na mesa.

A dona da casa dava todas as ordens ou criticava Thyra em inglês. Um dia, deu-lhe várias peças de roupa para passar a ferro. Para ela, que tinha enfrentado a tarefa de lavar a banheira usada pelos russos como retrete, esta incumbência pareceu-lhe muito fácil. Mas, para usar os baldes e as pás de jardim da outra limpeza, não era preciso grande prática; com o passar a ferro era diferente. Ainda por cima, nessa altura, na Hungria, ainda não tínhamos travado conhecimento com esse material miraculoso que dá pelo nome de nylon. Thyra esperou até que o ferro ficasse bem quente e... no momento em que o assentou no vestido, o nylon derreteu e abriu um enorme buraco. Eu tinha ido à cave tomar um banho quente, um luxo inexistente nas nossas casas, quando o desastre aconteceu. Estava no quarto de Thyra a vestir-me, quando ela apareceu e me contou a catástrofe... Nesse preciso momento, a campainha de chamada, recém-instalada, tocou.

- Juro a mim própria que, se voltar a ter a minha casa, nunca hei-de tocar a chamar ninguém - disse Thyra, antes de subir a escada a caminho de confessar o desastre e desculpar-se com a senhora Schoenfeld.

Para mim, foram duas coisas a aprender: como passar nylon a ferro e como não chamar ninguém com a campainha.

Todas as manhãs eu recebia da senhora as ordens do dia. Era responsável por todas as compras. Graças à generosidade da Mãe Natureza, a fruta e os legumes começavam a aparecer no mercado. Ia até lá no carro americano, guiado pelo motorista, e pensava com os meus botões: «Cá estás tu de novo a andar de carro!»

Nunca tinha ido ao mercado antes, mas depressa fiz amigos entre os meus fornecedores habituais. Devem ter percebido que era uma freguesa rara e muito especial, de carro americano, com motorista e dinheiro à vontade para as compras. E que pedia recibos de tudo, porque tinha que dar contas. Mas fazia-me muita impressão ver toda aquela abundância de coisas no mercado, quando nós não tínhamos dinheiro para comprá-las.

Um dia, uma vendedeira perguntou-me, enquanto me dava uma piscadela de olhos: «Quer que ponha o preço certo das coisas ou um bocado mais?»

Não percebi imediatamente o que ela queria dizer com aquilo, e quando lhe respondi, «Ponha o preço que paguei, é claro!», olhou para mim com uma expressão onde se lia claramente: «Tu deves é ser parva!»

Aí está como é fácil tornarmo-nos ladrões! Pensei na minha Mariska, que reagiria exactamente da mesma maneira

que eu.

A inflação aumentava e nós estávamos sem dinheiro. Quase todos os bancos tinham sido pilhados ou estavam falidos. Por isso, mesmo que tivéssemos algum dinheiro depositado de nada nos serviria.

Por mais incrível que pareça, ainda tinha o fio de ouro dado por aquele meu admirador polaco, quando era uma jovem inocente de dezasseis anos. Mesmo com a inflação na sua taxa mais alta, o ouro continuava a ter o mesmo valor, o que nos dava alguma tranquilidade. Além disso, Andor ganhava na Herend o equivalente a sete dólares por mês e o meu salário era pago em dólares. Com uma inflação que fazia subir os preços de hora a hora, os dólares e o ouro eram valiosíssimos.

Cada vez que precisava fazer compras para nós, tinha que actuar rapidamente: primeiro, via quanto custava a mercadoria e depois corria ao penhorista com o meu fio de ouro. Ele cortava do fio a porção equivalente ao preço do que eu queria comprar. Depois, recebia os meus ”milhões” e corria para a loja, a fazer figas para que os preços não tivessem, entretanto, voltado a subir.

De cada vez que me cortavam um pedaço do fio do Conde Jevoski, pensava nele com gratidão, e perguntava-me se estaria vivo e se teria algo como o meu fio, a que pudesse recorrer em caso de necessidade.

Um dia, a senhora Schoenfeld pediu-me que fosse com ela e o marido à cidade, para ajudá-los na contabilidade do escritório. Era uma honra ir de carro com eles!

Tinha sido construída uma ponte de cimento sobre o Danúbio, que, supostamente, só podia ser utilizada por estrangeiros. Os húngaros estavam proibidos de atravessá-la, sob pena de punição. Mas como nós já não tínhamos nem carros nem carruagens, não fazia grande diferença. Andor ia todos os dias a pé para o escritório da Herend e os Schoenfeld nunca lhe ofereceram boleia.

Mas, naquele dia, eu atravessei a ponte em grande estilo! Quando estávamos a meio do rio, a senhora Schoenfeld perguntou ao marido:

- Arthur, o Danúbio corre sempre para o mesmo lado?(!) Entrámos juntos no escritório e, depois, a senhora pediu-me que esperasse cá fora até ela acabar o que tinha a fazer. Enquanto estava no corredor, conheci um dos colegas do meu patrão, do qual não recordo o nome, e ficámos um bocado a conversar. Passou, entretanto, um dos empregados húngaros do escritório, e o outro disse-lhe:

- Bom dia, Peter, foste à lavandaria buscar as minhas calças que estavam para passar a ferro?

- Lamento, senhor, ainda não estão prontas.

Aos berros, o outro disse:

- Nem umas calças passadas a ferro se consegue neste maldito país! Vocês são todos uns incompetentes! Só sabem é queixar-se: queixam-se dos alemães, dos russos, queixam-se do tratado de paz da Primeira Guerra... Vocês não merecem mais do que o que têm!

Peter tentou explicar-lhe que o homem que devia passar as calças tinha a casa em ruínas, que trabalhava sem condições nenhumas, mas o outro não lhe dava ouvidos. Senti-me obrigada a intervir como húngara e norueguesa, revoltada contra a opressão sem escrúpulos de um pobre vencido da guerra. Da minha boca saiu uma torrente de palavras. Entre elas, disse que a opinião sobre uma nação e a sua história não passa, certamente, pela rapidez ou mestria com que as calças de uma pessoa são passadas. Depois, voltei-lhe as costas e fui-me embora. Provavelmente, ele nunca tinha lidado com governantas antes, mas estou convencida de que não ficou com qualquer vontade de contratar uma. Era muito mais fácil insultar o Peter.

Ainda furiosa, fui interceptada no corredor pelo senhor Lebovit, a quem ajudara a arranjar um apartamento. Contou-me que estava à espera da chegada da família. Um dos filhos aprendia música e pediu-me, por isso, ajuda para alugar um piano vertical ou de cauda. Lembrei-me logo do meu Blúther de cauda, que tinha vindo da Noruega e, por sorte, tinha escapado intacto. Chegámos a acordo quanto ao transporte do piano e ele achou que o assunto estava arrumado. Mas eu insisti que se redigisse um contrato de aluguer, segundo o qual, se eu quisesse recuperar o instrumento ao fim de um ano, ele me fosse devolvido e entregue no local por mim designado.

- Acha que isso é mesmo necessário? Um contrato escrito?

Insisti, ao mesmo tempo que lhe acenava com o dinheiro do aluguer. E foi assim que o Lebovit ficou com o piano e eu com o contrato.

Um ano mais tarde, quando recuperámos a nossa casa, fui ter com ele e pedi-lhe o piano. Ficou tão admirado como quando lhe pedira o contrato escrito. Todos gostavam muito do piano e não estavam nada interessados em devolvê-lo. Mostrei-lhe a minha surpresa, ao mesmo tempo que extraí o contrato de dentro do meu saco.

- Dê cá isso - disse-me.

- Nem pensar - respondi-lhe. - O senhor vê muito bem daí. Olhe aqui em baixo a sua assinatura...

À semelhança do que acontecera a Peter, um ano atrás, por causa do passado a ferro das calças, fui vítima da sua cólera:

- Está então a querer obrigar-me a devolver o piano de cauda, hein? Pois fique sabendo que mais depressa o encho de areia e atiro pela janela abaixo. Experimente depois, como húngara, denunciar-me!

Ele estava bem enganado. Com o contrato na mão, entrei no escritório do nosso comum patrão e disse-lhe que queria o piano de volta e sem areia dentro...

Na verdade, cada medalha tem duas faces. Tínhamos sofrido na pele uma guerra que começara como tentativa de deter a gula de Hitler pelo poder. Mas foi como vencidos que, na Hungria, desfrutámos da paz. Depois de tudo o que sofrêramos debaixo da pata dos alemães e dos russos, vinham agora os americanos tentar espezinhar-nos.

Tenho a certeza de que a Europa deve muito aos americanos e até os admiro pessoalmente. Porque será, então, que eu e tantos outros como eu ficámos com tão má impressão deles? A minha convicção é que a maior parte dos que vieram para a Hungria eram descendentes de húngaros ou de judeus. Vinham, provavelmente, cheios de ódio e ressentimentos e não tinham, com certeza, conhecimento de que a perseguição aos judeus fora inventada pelos alemães e pelos nazis da Hungria, e não pelo povo húngaro. Pelo menos foi nisto que tentei acreditar, cada vez que a amargura da situação tomava conta de mim. Como quando pedi a Schoenfeld que mandasse, via Estados Unidos, uma carta minha para a Noruega, para o meu pai, que não fazia a mínima ideia se eu ainda estava viva. Era uma carta escrita em inglês, metida dentro de um envelope sem selo. Sem um minuto de hesitação, recusou o pedido:

- O seu marido é húngaro, não posso ajudá-la.

Levei, então, a carta ao chefe da delegação britânica, mr. Gascoigne, que eu tinha conhecido como secretário da delegação em Budapeste.

- Tenho o maior prazer em ajudá-la - disse-me. - Sei muito bem tudo aquilo que a senhora e o seu marido passaram e também o que fizeram para ajudar os outros, durante a guerra.

Como já disse, o meu pai não sabia de mim havia muito. Antes da minha carta chegar, porém, teve uma estranha mensagem telefónica. Foi a minha madrasta, Gunvor, que atendeu o telefone. Do outro lado, uma voz abafada de mulher debitou um nome que não se percebia, e disse que estivera na Hungria como delegada da Cruz Vermelha. Quando estava numa estação de comboio em Budapeste, de uniforme da Cruz Vermelha e bandeira da Noruega na mão, ouviu uma jovem chamá-la de dentro de um vagão selado, cheio de prisioneiros a caminho da Rússia.

- Noruega, Noruega, socorro! Chamo-me Edle Astrup, sou norueguesa e vão mandar-me para a Rússia. Ajudem-me, pelo amor de Deus!

Muito mais tarde, o meu pai e eu investigámos este incidente na Cruz Vermelha norueguesa. Mas eles negaram ter qualquer conhecimento dele.

Chegámos à conclusão que esta mentira sádica só podia ser um acto de vingança, por qualquer incidente ocorrido durante a guerra.

Um dia, voltaram a Budapeste, vindos da prisão na Alemanha, dois grandes amigos nossos, Gyula Pallavicini, irmão de Thyra, e Antal Forgach, nosso vizinho em Szalatna. Vieram visitar-nos, uma tarde, e eu pensei que seria curioso para Schoenfeld conhecer duas pessoas que tinham combatido e sofrido pela causa dos Aliados. Fui ter com ele e expliquei-lhe o que tinham feito, que tinham sido presos e deportados e, ao mesmo tempo, perguntei se gostaria de conhecê-los.

Schoenfeld perguntou como se chamavam.

- São o Conde Pallavicini e o Conde de Forgach - respondi.

- Condes?? Nem pensar, não os quero cá! É bom que desapareçam todos de vez!

Dias depois, tive a minha vingança. Foi num domingo, estava um dia de sol maravilhoso. Fritz veio ter comigo, a correr:

- Venha depressa, o senhor Schoenfeld mandou-a chamar, estão cá uns russos!

Estávamos os dois espantados. É verdade que era a governanta, mas ser chamada para lhes dar assistência, estando lá os russos, não estava incluído no meu contrato de trinta dólares.

Acompanhada por um Fritz que tremia, fui ter com eles.

Um jeep russo estava estacionado em frente do portão, e dois russos meio embriagados batiam na porta principal e exigiam entrar. Subi a uma varanda que ficava sobre a entrada e perguntei-lhes o que queriam, no meu melhor russo. A resposta foi:

- Whisky, whiskyl Respondi-lhes, no meu russo habitual:

- Esta é a embaixadsky americanskyl

A resposta foi uma que eu já ouvira muitas vezes:

- Nitchevo, voina whisky!

Fechei a porta mas, antes, vi que se puseram a andar à volta da casa. A família Schoenfeld entrou em pânico. Que iriam eles fazer? Consultaram-me logo como ”perita” nestas situações.

A ”perita” respondeu rapidamente:

- A senhora e as duas meninas corram para o andar superior e escondam-se debaixo das camas. - Tenho que confessar que o disse com uma certa malícia...

O senhor Schoenfeld agarrou no telefone, que tinha uma linha directa para a sede americana:

- Daqui fala o ministro. Mandem imediatamente dois jeeps com soldados: os nossos aliados estão cá.

Tive que me concentrar para não sorrir. Disse ao meu patrão que ia buscar uma garrafa de whisky porque teríamos que beber com eles, até à chegada dos soldados.

Deixámos entrar os russos, que se apresentaram - a nós e ao whisky, que era o que realmente queriam. Eram dois russos ”simpáticos”, com muita, muita sede. Entre grandes goles de whisky, falavam um com o outro. Nós esboçávamos uns sorrisos amarelos, o meu menos amarelo porque me lembrava das criaturas escondidas debaixo da cama, o que me dava uma vontade irreprimível de rir.

Quando os dois jeeps chegaram com os soldados, Schoenfeld abriu-lhes a porta com um suspiro de alívio. Os russos ficaram encantados por ver os soldados aliados e, muito ”generosamente”, ofereceram-lhes uns goles dos seus copos. Disse ao meu patrão que era melhor bebermos todos com eles. Assim, eles ficariam totalmente bêbedos e seguiriam os americanos de boa vontade. Foi isto mesmo que aconteceu. Logo que saíram, fui lá acima e libertei a senhora e as meninas dos seus esconderijos debaixo das camas.

Pouco tempo depois, mr. Gascoigne informou-me que podia lá ir buscar uma carta, acabada de chegar da Noruega.

Foi um grande dia para mim: finalmente, ao cabo de vários meses sem notícias, sabia dos meus. Todos os membros da família estavam vivos, mesmo o meu irmão, Henning, que fora preso e torturado mas, graças a Deus, sobrevivera.

Quando fui buscar a carta, mr. Gascoigne pediu-me que o ajudasse a encontrar uma casa melhor para viver. Lembrei-me logo de Pomaz.

Partimos para lá, no seu elegante carro, onde tremulava a bandeira inglesa. No caminho, vieram-me à memória todas as recordações do tempo vivido em Pomaz. Os tempos mudam. A vida não pára. Tudo o que passámos não foi certamente uma brincadeira. Mas era preciso não desistir, e foi o que fizemos. E houve também alguns dias bons, dias de sol, Verão e amor, rodeados pela maravilhosa paisagem daquela região. O assunto que nos levou lá foi resolvido num instante. O futuro inquilino ficou encantado com a casa, e os Teleki igualmente encantados por alugá-la.

Por essa altura, já nenhum de nós tinha roupa e o preço de qualquer peça de vestuário era impraticável. Eu tinha dois vestidos, costurados com as bandeiras sueca e da Cruz Vermelha da nossa casa, mas os sapatos eram um problema mais complicado.

Um dia, lembrei-me que a mademoiselle tinha conseguido esconder a nossa máquina fotográfica Leica e, como tinha ouvido que os americanos pagavam bom dinheiro por estas máquinas, decidi-me. Jimmy, o motorista da casa, de quem eu me fizera amiga, conhecia um coronel interessado em comprar uma. Fui ter com ele. Ficou muito interessado e ofereceu-me cinquenta dólares. Mas eu sabia que o preço podia ir até ao dobro e foi isso que pedi. Ao mesmo tempo, expliquei-lhe que precisava muito do dinheiro, porque a minha filha não tinha roupa nenhuma e também tínhamos de comprar comida para ela. Não consegui os cem dólares, mas mesmo assim recebi setenta e cinco. Com esse dinheiro comprei açúcar, alguma roupa para Rozann e sapatos para Andor, feitos no sapateiro que ele utilizava antes da guerra, na rua Vaci. Um tanque alemão tinha entrado pela sua loja e ainda lá estava dentro, mas ele tinha conseguido esconder alguns pares de sapatos.

A nossa situação económica estava cada vez pior. Ansiava por voltar à Noruega, agora libertada, e por ver a minha família. Mas como? Para começar, a ideia horrorizava Andor. A situação parecia impossível de resolver.

Mas eu parti, mesmo assim, no fim de Outubro. Uma aventura irresponsável, uma loucura que só pode ser atenuada pelas saudades irreprimíveis que me assaltavam. O meu argumento para partir tinha por base a expectativa de conseguir arranjar algum dinheiro na Noruega. Precisávamos desesperadamente do dinheiro, sobretudo agora que aparecera uma hipótese de alugar quatro quartos e uma casa de banho, em casa de um amigo. E nós estávamos loucos por voltar a ter uma casa nossa.

A minha viagem começou porque eu soubera que os nossos amigos, Rosty-Forgach, viviam agora em Praga. Entretanto, soube que um antigo funcionário da Herend ia partir para a fronteira da Checoslováquia de motorizada. Parti com ele, braços à volta da sua cintura, uma mochila às costas, aos saltos pelos caminhos. Ainda hoje tenho rebates de consciência, quando me lembro da cara de Andor e das lágrimas de Rozann ao despedirem-se de mim.

A viagem demorou dezasseis dias! Consegui arranjar um passaporte norueguês, já que, sem ele, não iria a parte nenhuma.

Quando o homem da motorizada me deixou na fronteira, continuei a pé e apanhei algumas boleias, em carros de bois e camiões. O meu destino era Praga, onde existia uma legação norueguesa, mas, primeiro, tinha que passar por Pozsony, a actual Bratislava. Passei aí três noites, num hotel que não tinha vidros nas janelas e, por isso, fazia um frio de rachar. Daqui parti para Praga, num comboio superlotado, infestado de russos. Viajei no corredor, sentada na minha mochila, e aguentei-me muito bem.

Logo que cheguei a Praga, fui para casa dos nossos amigos. E se eles tinham histórias da guerra para contar! Os alemães tinham apanhado a sua velha mãe, algemaram-na e fizeram-na desaparecer. Nunca ninguém soube para onde a levaram, nem tiveram mais notícias dela.

Fui depois à delegação norueguesa. O ministro ia partir para o nosso país. Tinha conseguido lugar num avião, o que, mesmo para o corpo diplomático, não era nada fácil. Pedi-lhe que contactasse o meu pai e lhe dissesse que eu estava em Praga, à espera de uma oportunidade para partir para a Noruega.

E, um dia, ela apareceu realmente! Descobri um piloto checo que tencionava ir a Copenhaga vender uma série de filmes e fotografias que arranjara. Pouco antes, tinha encontrado um avião militar abandonado e conseguira pô-lo a funcionar. Disse-me que, se eu estivesse disposta a voar com ele, assumindo total responsabilidade, me levaria a Copenhaga.

Eu nunca tinha andado de avião, mas estava absolutamente decidida a chegar à Noruega. O avião era um monomotor, em muito mau estado, mas arranjei maneira de me enfiar lá dentro com a minha mochila. Estava tão ansiosa pela viagem que não senti nem um bocadinho de medo, apesar de termos suportado chuva e trovoada. Isto, naturalmente, sem nenhum dos equipamentos hoje considerados indispensáveis para a navegação aérea. O barulho no avião era tão ensurdecedor que nem conseguíamos falar um com o outro. Mas acho que isso até foi uma vantagem! Uma tarde, quase ao pôr do sol, aterrámos em Copenhaga.

Nesta cidade, aguardava-me uma surpresa: o meu irmão, Nils, tinha pedido ao comandante de um dos seus navios que, em Copenhaga, vigiava a reparação de um barco, que se mantivesse em contacto com o aeroporto e, caso chegasse algum avião de Praga, fosse ver se eu vinha nele. Por isso, mal passei a alfândega, vi dois senhores à minha espera. Apresentaram-se, explicaram por que estavam ali. E tudo isto em norueguês! Senti que estava quase em casa...

Tinham-me arranjado um quarto, em casa de uns conhecidos, porque os hotéis estavam cheios, e como, ainda por cima, não sabiam quando chegaria, não era possível fazer uma reserva. No carro que me levou à tal casa, o capitão Corneliussen perguntou-me se eu precisava de alguma coisa. Eu devia ter vergonha - mas nunca tive! E, com a maior desfaçatez, respondi-lhe prontamente:

- Preciso. Preciso de dinheiro, lagosta e champagne!

Os meus três desejos foram cabalmente satisfeitos, no então famoso restaurante Krogh, especialista em mariscos. E passei uma noite muito agradável.

Na manhã seguinte, muito cedo, comecei a averiguar as possibilidades de alcançar o meu objectivo final e, por sorte, soube que um avião britânico de correio voava para Oslo no dia seguinte.

- Volte amanhã de manhã, para lhe dizermos que hipóteses haverá de ter lugar.

No dia seguinte, confirmaram-me que o avião ia partir à tarde e tinha lugar para mim. O responsável pelas operações prometeu avisar o meu pai da minha chegada.

Neste avião, muito maior do que o anterior, havia lugar à vontade para mim e para a minha mochila. Descolámos de Copenhaga com um tempo maravilhoso, muito claro, de Outono. Seria preciso um poeta para descrever os meus sentimentos naquela altura. No momento em que avistei, pela primeira vez, a costa norueguesa, as lágrimas saltaram-me dos olhos, irreprimíveis. Havia seis anos que não visitava a Noruega nem tinha visto a minha família. Mas os meus sentimentos causavam-me alguma perturbação. A minha casa, o meu lar, não eram, agora, na Hungria? Era lá que estava a minha casa. Era nessa terra que estavam Andor e Rozann. Eu amava a Hungria. Mas o amor ao país onde nascemos e fomos criados permanece sempre. A Noruega será sempre a Noruega, o meu país natal. Sempre me senti grata por ter dois países para amar.

O meu irmão Ebbe estava à minha espera, no aeroporto de Fornebu. Em casa, esperavam-me o meu pai, Gunvor e, a pouco e pouco, apareceram todos os membros da família. A minha irmã Lisbeth desatou a chorar quando me viu. Não era unicamente a alegria de rever-me: a falta de comida e tudo aquilo por que passei tinham deixado marcas evidentes.

Na manhã seguinte, fui à embaixada britânica agradecer todo o apoio. Ao mesmo tempo, mandei um telegrama a Andor, via Gascoigne, a dizer-lhe que tinha chegado bem. As saudades de Andor e de Rozann, juntamente com a má consciência pela forma como os tinha deixado, atormentavam-me constantemente. Em conjunto com a alegria de estar de volta a uma Noruega livre, vinha-me a amargura de pensar no destino da Hungria e no estado em que aquele país se encontrava depois da guerra e ocupada pelos russos.

Em Oslo, as casas e os grandes edifícios continuavam de pé, tal como seis anos antes, enquanto na Hungria não tínhamos nem um quartinho a que pudéssemos chamar nosso. Inveja? De modo nenhum, mas uma certa amargura que me ajudava a fazer mais auto-crítica.

Não é, obviamente, fácil para o vencedor compreender o vencido, como não é para quem vive no lado da luz compreender a escuridão. Quando visitei uma amiga, ela disse-me:

- Lembras-te daquele pote lindo que eu tinha nqui fora? Imagina, os alemães levaram-no. Não é inacreditável?

- Sem dúvida - respondi-lhe. Ela continuou a descrever a ocupação e eu fiquei ali, sentada, sem palavras.

Alguns dias depois de estar na Noruega, comecei a pensar que já devia ter tido o meu período menstrual. Claro que nem sabia bem a quantas andava, mas como me sentia um bocado sem energia de manhã, resolvi marcar uma consulta no ginecologista. O médico confirmou que estava grávida de dois meses. Agradeci-lhe, e fui direita ao escritório do meu irmão Nils para lhe dar as boas notícias.

- Meu Deus, vais ter mais um filho! - exclamou, muito contente.

- É verdade, vou ter um filho e desejo-o muito. Para mim ele é um sinal precioso, sinal de que tudo vai, a partir de agora, ser bom para nós. Vai ser um rapaz, tenho a certeza...

Mas como é que eu ia contar a Andor? Fui ter com um amigo que me ajudou a mandar um telegrama para o seu contacto em Londres. Por sua vez, ele mandaria um telegrama a Schoenfeld, porque não era possível mandá-lo directamente para Andor.

O telegrama dizia: «Favor informar senhor Hubay mulher espera filho daqui a sete meses. Tudo bem. Ela procura voltar logo que possível».

Andor recebeu o telegrama das mãos de Thyra. E nestes assuntos ela era capaz de ser muito eloquente!

Agora, mais do que tudo, eu desejava voltar para Andor e Rozann, voltar para casa, de modo a que o meu filho pudesse estar presente na reconstrução do seu país, desde o primeiro momento. Fui a Estocolmo, principalmente para investigar as hipóteses da minha viagem de regresso. Mas não resultou. Havia ainda outra razão para esta ida: indagar, junto do Mimstério dos Negócios Estrangeiros, sobre as jóias e o dinheiro que depositara na delegação sueca em Budapeste.

A resposta foi negativa: tudo o que fora lá depositado presumia-se perdido, e não havia qualquer hipótese de indemnização. E pronto, este foi o fim de todos esses milhões!

Recordei-me especialmente de duas das jóias depositadas naquele cofre: uma era uma pulseira de diamantes e esmeraldas, a outra um alfinete de peito. Tinham sido compradas pelo meu avô, na Suíça, no final da Primeira Guerra Mundial. Eram duas peças de joalharia russa, muito provavelmente vendidas por algum refugiado russo que tinha conseguido salvá-las. Estariam agora de volta ao seu país de origem?

O Natal estava a chegar quando voltei a Oslo. Celebrar um Natal norueguês era muito agradável, mas quase fora mais fácil passá-lo em Pomaz, com os russos já perto, porque estava com Andor e Rozann. Quando já desesperava com a dificuldade de regressar a casa, lembrei-me de Riiser-Larsen, o herói do pólo norte e piloto da força aérea norueguesa, e do que me tinha dito quando deixou Budapeste: «Se alguma vez precisar de mim, é só dizer».

Fui procurá-lo ao seu escritório. A recepção não podia ter sido mais calorosa, e deu-me também esperanças: a Noruega estava a exportar óleo de fígado de bacalhau para Praga e, se eu não me importasse de voar no mesmo avião, haveria uma possibilidade. Ficou de me ligar, mais ou menos dentro de uma semana.

Comecei logo a preparar tudo para a minha viagem de regresso. Desta vez, porém, eu queria levar de volta mais do que uma mochila cheia. A coisa mais importante era dinheiro, basicamente dólares, que eu tinha conseguido na Suécia. Mas também queria levar roupa para a família e fatos largos para mim, agora que a minha linha de cintura desaparecia rapidamente, com tendência para piorar.

Depois de ter obtido os vistos necessários, estava pronta para partir com a minha mochila e duas malas bem cheias.

Deixar a Noruega, agora, não custava nada: o país era, de novo, livre, a família e os amigos estavam bem e, quando quisesse, podia voltar, desta vez com o meu marido e filhos.

Finalmente, em Fornebu, embarquei no avião do óleo de fígado de bacalhau. Esta foi uma nova experiência. O óleo de fígado de bacalhau já eu conhecia desde criança, tomado em grandes colheradas mal cheirosas, com uma mão a apertar o nariz, para evitar o cheiro nauseabundo. Como companheiro de viagem, é que eu não sabia o que significava. Dessa vez, consegui evitar as colheradas, mas não o cheiro.

O avião era grande, sem assentos. De cada lado da fuselagem, alinhavam-se os barris do óleo, cuidadosamente presos. Junto à cabine de pilotagem, tinham colocado um assento, preso dos dois lados, que me era destinado. Ao levantarmos voo, os barris e as suas amarrações estalavam e gemiam, e numa curva mais apertada para a direita que o avião fez, parecia que a pilha de barris ia soltar-se e cair. Mas, para além do barulho e do cheiro, aterrámos em Praga, sãos, salvos e a horas. O piloto foi muito simpático e ainda me ajudou a ir do aeroporto até à estação de comboios, onde tive a sorte de apanhar um comboio para Pozsony.

Desta vez, o comboio estava também superlotado, mas o compartimento tinha vidros nas janelas, o que era óptimo, atendendo ao frio que fazia. Tive o cuidado de não me deixar adormecer: havia demasiados russos a viajar. Fiquei sempre de olho na minha bagagem e no meu dinheiro, que escondi dentro da roupa, bem perto do filho que estava para nascer. O hotel em Pozsony também já tinha vidros nas janelas. Até consegui tomar um banho, uma ”prenda” extraordinária, depois do óleo de fígado de bacalhau e do comboio atulhado de gente.

Dois dias depois da minha chegada a Pozsony, o porteiro do hotel, que já me conhecia da minha anterior estadia, segredou-me que sabia de dois motoristas que iam partir para Budapeste com contrabando. Eles tinham disfarçado uma velha furgoneta, pintado a bandeira da Cruz Vermelha num oleado, no tejadilho, e tencionavam arrancar no dia seguinte, às sete da manhã. Disseram que me levariam por cinquenta dólares. É claro que aceitei logo. A furgoneta, que parecia da mesma colheita que os barcos dos vikings no museu de Oslo, estava atulhada de contrabando.

Havia mais dois passageiros, e fomos os três colocados em cima dos caixotes de contrabando, na parte de trás, com as costas voltadas para outros caixotes. Depois de nos instalarem, puxaram o oleado com a bandeira da Cruz Vermelha para o topo, presa com correntes, e ficámos completamente fechados lá dentro, às escuras e com um frio de rachar.

A minha maior preocupação, durante todos os saltos e tombos da viagem, foi que o meu filho não congelasse nem sofresse qualquer dano irreparável. Só tinha espaço para mexer um pouco as pernas. Os meus dois companheiros estiveram todo o tempo muito ocupados a mascar milho cozido e a cuspir as peles de cada bago. Só de vê-los e ouvi-los, fazia perder o apetite. Com um canivete consegui cortar um buraco no oleado para poder ver qualquer coisa para fora. Contudo, o meu lugar era de costas, e tanto eu como o meu filho não gostámos muito da posição. O tempo estava terrível, caía granizo e havia muita lama gelada. A furgoneta tossia e engasgava-se ao longo das estradas lamacentas.

De repente, através do meu ”periscópio”, vi um moderno camião russo fabricado na América, que vinha em grande velocidade, ganhando-nos terreno. Cá atrás ouvíamos a sua buzina, mas o nosso motorista não ouvia nada com o barulho da furgoneta e nem sequer tinha espelho retrovisor. Como os caixotes do contrabando estavam empilhados entre ele e nós, não tínhamos qualquer possibilidade de avisá-lo.

Através do meu buraco, vi que o homem sentado ao lado do condutor tinha uma pistola apontada na nossa direcção. Com um bocado de sorte, talvez só estivesse a fazer pontaria aos pneus. Baixei-me, enrolei-me o mais que pude e avisei os meus companheiros de viagem de que ia haver tiroteio. Ficaram tão assustados que até deixaram de cuspir as peles do milho que mascavam!

Afinal, não houve tiros. Calculo que eles acharam que tinham todo o direito de nos ultrapassar à bruta, naquela poderosa máquina americana. Depois, nem percebi bem o que aconteceu, porque continuava com a cabeça no colo e os olhos fechados. A nossa furgoneta foi parar à valeta e voltou-se. Acho que os caixotes de contrabando nos salvaram. Ninguém sofreu um arranhão sequer, o oleado com a Cruz Vermelha foi retirado, o ar fresco entrou e puxaram-me pelas pernas cá para fora. Nessa altura, apareceu um carro de bois. O seu condutor desatrelou o boi, o animal puxou o nosso veículo para a estrada e a nossa viagem recomeçou sem mais delongas.

Devo confessar que o meu coração bateu mais rápido quando chegámos à fronteira entre a Checoslováquia e a Hungria. Mas o guarda recebeu o seu quinhão do contrabando e deixou-nos passar sem quaisquer problemas.

Na última subida para Schwabenberg, a velha furgoneta tossiu e engasgou-se de forma tão patética que o motorista parou e disse que não podia levar-nos mais longe. Saltei para o chão com as minhas duas malas e a mochila, agradeci a boleia e parti para fazer o resto do percurso a pé. A minha bagagem era pesada e custava-me a carregar, mas o meu pior problema foi evitar os russos que me faziam toda a espécie de propostas.

Por fim, cheguei. Aí estava eu, dentro do jardim, a bater à porta da cave. Eram oito da noite. Calculei que Rozann já estivesse na cama. Tinha que ter cuidado para não a assustar e, antes de bater pela segunda vez, gritei:

- Rozann, é a mãe, abre, querida! Ouvi os gritos de alegria da minha filha:

- Papá, papá, a mamã está à porta!

É impossível descrever o nosso reencontro! Ninguém no mundo foi tão feliz como nós três, nessa noite, naquela lavandaria transformada em quarto, na cave que nos servia de casa.

Na manhã seguinte, abrir as minhas malas foi um verdadeiro Natal. Mas o poeta não disse que «Natal é quando o homem quiser»? Nós quisemos um Natal naquele dia: cantámos, rimos, deixámo-nos embeber na maior felicidade.

Quando disse a Rozann que ia ter um irmão, ela ficou louca de alegria:

- Tem a certeza que vai ser um rapaz? - perguntou-me. É engraçado: quanto a isso, eu não tinha dúvidas.

 

                     Hungria, o país esquecido

Voltar a ver a Hungria não teve para mim o mesmo impacto que senti ao avistar, de novo, a Noruega libertada. O meu país saiu vitorioso da guerra e começou o processo de reconstrução em completa liberdade. E a Hungria? Como país vencido, poderia alguma vez ter as mesmas oportunidades?

O meu cunhado, Tibor, e a nossa velha governanta, Bumi, vieram visitar-nos. Tínhamos para ambos uma parte das coisas trazidas da Noruega. Queríamos partilhar com eles o «nosso Natal». Estavam a viver em três quartos menos destruídos, nas ruínas do Palácio Hubay. Também por causa deles, era muito importante voltarmos a ter a nossa casa.

Na Primavera, finalmente, o nosso desejo realizou-se. Conseguimos os tais quatro quartos, com uma casa de banho, que incluíam ainda um pequeno cubículo onde podíamos cozinhar.

Com a ajuda de amigos conseguimos recuperar alguns dos ”restos mortais” dos móveis da nossa casa bombardeada. Foi uma tarefa difícil e pesada, lavar, limpar e pôr a funcionar os objectos pescados nas nossas ruínas. Entre outras coisas, encontrámos alguns tapetes, cinzentos da poeira de cimento. A nossa senhoria, a senhora Pintyõ, ofereceu-se para nos emprestar um aspirador. Nunca tinha visto tal coisa na minha vida. Em Atlungstad, trabalhei na vacaria, nos estábulos e na terra; na Hungria, as carpetes eram limpas pelos empregados. Mas quando peguei no aspirador, disse a mim própria que aspirar um tapete não devia ser mais difícil do que guiar um tractor. Poucos minutos depois de iniciar a minha experiência, já não conseguia ver um palmo diante do nariz: era só pó! Enquanto tossia e espirrava, comecei a ficar com sérias suspeitas quanto à utilidade daquela máquina...

Felizmente, a dona do aparelho apareceu ao pé de mim, por entre as nuvens de poeira, e mostrou-me como aquilo funcionava. É que eu tinha posto a mangueira ao contrário e, em vez de aspirar, deitei para fora todo o pó que estava dentro do aspirador!! Ao fim de algum tempo, consegui limpar tudo...

Matriculámos Rozann na escola que abriu quase ao lado da nossa casa. Andor tinha muitíssimo que fazer na Herend. Também eu estava cada vez mais ocupada com o meu trabalho voluntário. Todos estávamos profundamente empenhados na reconstrução nacional.

As últimas eleições livres na Hungria tiveram lugar em

1947*. Venceu o partido dos agrários, com 58% dos votos. Os socialistas tiveram 18%; os comunistas 22%.

Assim, o povo húngaro rejeitou, de uma forma muito clara, o comunismo. Apesar de a Hungria estar ocupada pela URSS. Ou talvez por essa razão.

O povo húngaro rejubilou, o seu optimismo aumentava, assim como o desejo de trabalhar para reconstruir. Estava ansioso por restaurar os princípios democráticos, os direitos e as liberdades individuais. As Nações Unidas tinham garantido que, após as eleições livres, a Hungria teria o seu governo próprio, de acordo com o resultado daquelas, que, afinal, eram a expressão da vontade do seu povo.

Infelizmente, nada disto se materializou. O general Voroshilov, comandante supremo das tropas russas estacionadas na Hungria, iniciou um processo de minar a democracia húngara, evidentemente comandado por Estaline e supervisionado pela GPU, a polícia secreta comunista.

Um dia, recebemos visitas vindas de Szalatna, e as notícias que nos trouxeram deixaram-nos gelados. E se a mim me deixaram assim, só Deus sabe como terá ficado Andor!

Quem nos fez o relato do que se passara foi Horvath, o nosso feitor daquela propriedade. Ele tinha um pedaço de terreno, alguns porcos e criação, e a sua casa era uma das que tinham sido modernizadas. Que os animais tivessem sido todos roubados pelos ”libertadores” ainda se compreendia. Mas a violência e o terror a que ele e a família tinham estado sujeitos era uma coisa impossível de esquecer. Para aquele orgulhoso camponês húngaro, não havia explicação possível. A sua face exprimia um desgosto profundo, uma raiva insustentável, uma dor impossível de suavizar, à medida que nos contava a forma brutal como fora violada a sua filha de catorze anos, a maneira selvagem como fora destruída a sua casinha. Tal como antigamente descrevia a Andor os trabalhos que se iam fazendo na propriedade, de forma curta e factual, assim contou os violentos combates nela ocorridos. Os alemães tinham cortado uma grande parte da floresta com o objectivo de conseguir uma linha de fogo para os seus canhões. Józsi, o nosso cocheiro, tentara esconder-se na floresta com dois dos nossos cavalos de sela e o poney Palli, de Rozann. Mas acabou por ser descoberto e os cavalos tiveram o mesmo destino de todos os nossos outros animais.

O edifício principal da propriedade fora pilhado e destruído. Até arrancaram irradiadores das paredes! Provavelmente, tencionavam levá-los para casa como recordações... Conseguiram também descobrir tudo o que tínhamos escondido nas paredes da adega: as pratas e as espingardas. Nada mau, como souvenirs!

Por sua vez, os russos tinham reunido os trabalhadores rurais e os aldeões, para saber se havia queixas a apresentar sobre os donos da propriedade, os ”burgueses”. Ninguém fez qualquer reclamação, mas se tivesse havido alguma, teriam eles proposto castigos?...

Horvath também trazia notícias de Mosõc. O velhíssimo castelo, tão belo, construído pelos antepassados de Andor, no século XVI, tinha sido saqueado e estava completamente vazio. A maior parte dos empregados fora morta - liquidada, como eles diziam. Não era fácil recuperar a serenidade, depois do que Horvath contava. Andor nunca conseguiu ultrapassar esta desgraça toda. No fundo do seu coração, nunca deixou de sentir a dor imensa de quem perde tudo, a sua casa, o seu país. Como se se tivesse transformado num sem abrigo para todo o sempre.

Decidimos, nessa altura, que eu iria ter o meu filho à Noruega, e que partiria com antecedência, bastante antes do mês de Agosto, previsto para o nascimento. Andor não podia ir antes do fim de Julho, mas insistiu que Rozann e eu partíssemos no início de Junho. Tomámos o comboio para Praga, uma viagem de super luxo comparada com a minha ida anterior, de motocicleta. Quando chegámos a Pozsony, onde tínhamos que mudar de comboio, Rozann vinha a dormir. Quando a acordei, perguntou-me:

- Mamã, o bebé já nasceu?

Mais um comboio para Praga, depois foi de avião que continuámos até Copenhaga - desta vez sem lagosta nem champagne - e, por fim, até Oslo, onde ficámos em casa do meu pai e de Gunvor.

O nosso filho nasceu no dia 18 de Agosto. Demos-lhe o nome de László Istvan: o primeiro nome, uma tradição na família; o segundo, em honra do santo protector nacional Santo Estêvão.

Durante quatro anos, Andor desejara veementemente um filho varão, acalentara grandes sonhos, fizera grandes planos para ele. Agora tudo fora por água abaixo. Mas ele não era materialista. Mais do que um herdeiro do nome, do título e das propriedades, ele só desejava agora um filho que viesse a ser um bom cidadão húngaro e pudesse assistir à reconstrução do país.

Voltámos à Hungria em Novembro. Agora éramos quatro e já tínhamos um apartamento nosso.

Um dia, veio visitar-nos Margit, a nossa empregada dos bons velhos tempos, acompanhada da irmã, Gizi, que nós não conhecíamos e cujo marido fora assassinado pelos russos. Margit pediu-nos que deixássemos a irmã trabalhar lá em casa. Se isso fosse possível, então ela adoptaria a sobrinha de seis anos.

Infelizmente, embora gostássemos de poder ajudá-la, não tínhamos condições para fazê-lo. Mas Gizi veio viver connosco e ficou na família até à sublevação húngara de 1956, altura em que foi viver com a filha, que fugira para o Canadá. Chamávamos-lhe «mãe Gizi».

Tivemos, a seguir, a visita inesperada de um dos dois irmãos Grossman, de Szalatna. Tinha um aspecto horrível: muito pálido, pele baça, cabeça totalmente rapada. Tinha sido prisioneiro dos alemães num campo de concentração de judeus, juntamente com o irmão. O outro, porém, fora menos afortunado e morrera na câmara de gás. Nenhum deles esquecera Andor, a sua simpatia e vontade de ajudar e, acima de tudo, a sua crença num mundo melhor.

Durante o tempo que passaram no campo de concentração, prometeram um ao outro que, se algum sobrevivesse, Andor seria a primeira pessoa que procurariam. Queriam converter-se ao catolicismo e que o meu marido fosse o padrinho. Afinal, só este pudera cumprir a promessa. Mantivemo-nos, depois, sempre em contacto e, muitos anos mais tarde, veio visitar-nos a Portugal. Vivia, então, no Brasil, tinha casado e, como era muito habilidoso, conseguira um bom emprego e uma casa nova. Quando soube que Rozann ia casar-se, mandou-lhe de presente de casamento um cheque de cem dólares.

Apesar da guerra ter acabado, os russos pululavam por todo o país. Embora vivessem quase todos em quartéis, portanto sujeitos a alguma disciplina militar, tanto os soldados como os oficiais não perdiam uma única oportunidade para nos recordar que eles é que mandavam.

O mundo ocidental ocupava-se em remediar os estragos da guerra. Mas nós, apesar das promessas e dos tratados, continuávamos esquecidos. Éramos as vítimas de uma força avassaladora, abandonadas sem protesto aos russos. Mas, em 1956, provámos que não éramos vítimas submissas...

Continuávamos, no entanto, a ter esperança de que, como Andor costumava dizer, pelo menos os nossos filhos viessem a assistir à construção do futuro, da nova Hungria. O que era importante, agora, era proporcionar-lhes uma boa casa, segurança, e educá-los, de forma a serem pessoas dignas e boas.

Pode perder-se tudo menos a nós próprios.

O meu filho tinha nascido de uma mãe com mais de quarenta anos. Mas quando olhava para ele, um bebé forte, soberbo, tinha a certeza que a idade não era problema. E que tinha sido extraordinário trazê-lo a este mundo numa época tão dramática. É claro que também ajudava - e muito ouvir o meu marido dizer que a mulher atinge o máximo da sua beleza aos quarenta anos, e que, a partir daí, é cada dia mais bonita. Então, eu achava a vida bela. Estranhamente também, as coisas pareciam melhorar e tínhamos muitos momentos optimistas. Mas faltava pouco para que se manifestassem os sintomas da infiltração comunista.

Um dos nossos momentos bons foi o concerto de reabertura de um dos teatros de Budapeste. Apesar de ainda não terem terminado as obras de reconstrução, tivemos oportunidade de ouvir música e, mais tarde, assistir a algumas peças de teatro. Uma das vezes, assistimos ao ensaio geral da Dama das Camélias, onde o papel principal era desempenhado por Gizi Bajor, a famosa actriz que mencionei atrás.

Durante a guerra, o marido, famoso oftalmologista judeu, tinha vivido escondido na sua própria casa. Fizeram uma abertura na parede do sótão com tamanho suficiente para ele entrar e sair. Dentro, havia um pequeno espaço por baixo do tecto amansardado, onde ele permanecia em momentos de grande perigo. Às vezes, fazia um frio horrível, mas Gizi dava-lhe comida e bebidas quentes. Conseguiu, assim, salvar o marido durante a perseguição aos judeus. Uns anos depois da guerra acabar, porém, Gizi e ele suicidaram-se. Já não conseguiam aguentar mais o regime comunista russo na Hungria.

Regressemos ao ensaio geral da Dama das Camélias.

Voltámos do teatro animados e optimistas. Quando subíamos a rua da nossa casa, Rozann veio ao nosso encontro a correr.

- Mãe, pai, estão dois homens que eu não conheço à vossa espera lá em casa!

Olhámos um para o outro, e os nossos olhos diziam: «O que será? Nada de bom com certeza...».

Os dois homens estavam em frente da porta de entrada e o seu aspecto veio confirmar as nossas inquietações.

Identificaram-se como polícias e informaram-nos que iriam fazer uma busca à nossa casa.

- Quantas pessoas vivem aqui? Têm que estar todos presentes!

Fecharam a porta à chave.

Consegui sussurrar ao ouvido do meu marido:

- Tem calma, não os provoques... Não lhes dês pretextos.

Sabia por experiência própria que, se o meu marido perdesse a cabeça, não seria capaz de controlar-se e agiria de forma arrogante e provocadora. Para as mulheres, é sempre mais fácil desempenhar um papel de sorrisos e encantos.

Um destes dois miúdos pretensiosos, que não teria mais de vinte e cinco anos, enfiou a nossa chave no bolso, enquanto dava as suas ordens. Andor devia acompanhar um deles na busca a dois dos quartos, enquanto eu iria aos outros dois com o segundo rapaz. Num dos quartos, estava a mãe Gizi com o bebé László ao colo e, no outro, Rozann. Ela estava a pintar com as aguarelas e, embora sem parar, não perdeu o homem de vista. Ainda hoje é capaz de descrever todos os detalhes da busca.

Não houve um móvel que não fosse despejado e escrutinado. Não faço a menor ideia do que procuravam. Despejaram também a escrivaninha e insistiram que traduzisse algumas das cartas.

- De quem são estas cartas? - perguntaram.

- Do Tom, do Dick e do Harry - respondi-lhes. A minha resposta pareceu-lhes bastante suspeita.

Entre a minha correspondência estava um cartão de boas festas mandado pela rainha Ingrid da Suécia, nessa altura a princesa herdeira do trono. O cartão tinha a coroa real da Suécia.

- Que quer isto dizer? - perguntou.

Tentei explicar-lhe, mas os sorrisos não produziram qualquer efeito. Furioso, gritou-me:

- Julga que sou parvo, ou quê? Não vim aqui para ser gozado! - Posto o que enfiou o cartão na algibeira. Coitado, deve ter sido esta a primeira e última mensagem de uma princesa em que pôs os olhos...

Andor e o seu galfarro já tinham terminado a visita guiada aos dois quartos. Eu ainda estava na sala e calculei que Andor devia estar, agora, na casa de banho. Fiquei em pânico! Era no armário dos medicamentos, escondidos dentro de tubos de comprimidos, que eu tinha posto os nossos dólares! Nessa altura, a posse de moeda estrangeira era punida com a pena de morte! Exactamente, pena de morte.

Comecei a saltitar sobre uma e outra perna, e disse ao meu jovem carrasco que tinha que satisfazer uma necessidade da Natureza. Respondeu-me que não, não havia tempo...

- Desculpe, tenho mesmo que ir à casa de banho. Se quiser, pode vir comigo...

Perante esta oferta, ele recuou e deu-me autorização. Sem fazer barulho, abri o armário dos medicamentos e extraí dele a nossa fortuna. Que fazer agora? Deitar as notas pela retrete abaixo? Lá desapareceria o nosso tesouro! De que iríamos viver? Com muito cuidado, coloquei as notas debaixo do meu vestido, no lugar onde elas tinham viajado pela primeira vez. Só que, desta vez, sem o László para nascer...

Puxei o autoclismo, mas as notas estavam a salvo na minha barriga. Saí e agradeci, muito reconhecida.

Andor e o seu rapazeco já tinham acabado a inspecção. Fomos os quatro para a sala. Calculei que a função tinha acabado, quando uma frase dita a Andor me pôs completamente gelada outra vez: «Vou revistá-los!»

O meu marido foi obrigado a tirar os sapatos, enquanto o outro homem os passava a pente fino! Meu Deus, se os olhares matassem aqueles dois tinham ficado ali mesmo estendidos no chão!

Senti-me desesperada. Fui até ao pé da lareira, onde estavam duas grandes almofadas, já revistadas. Sentei-me nelas com as costas voltadas para os dois e consegui enfiar o envelope do dinheiro entre as duas.

Chegara a minha vez e o meu marido ia ter o ”prazer” de ficar a ver. Mas as almofadas não me pareciam um lugar muito seguro. Por isso, disse em norueguês a Rozann:

- Se queres dar uma ajuda ao papá, leva o envelope que está no meio das almofadas e coloca-o debaixo do colchão, no quarto do László.

A minha filha fez o que lhe pedi e eu fui distraindo os dois rapazes. Ao passar por mim com o envelope, ela disse-me, graças a Deus em norueguês:

- Onde é que ponho o envelope?

O quarto do meu filho já fora revistado e tudo correu bem. Aliás, acabei por não ter que passar pelo vexame da busca corporal, e eles partiram com o cartão da herdeira do trono e algumas outras cartas, afirmando que teríamos notícias muito em breve.

Na manhã seguinte, voltaram com outro polícia fardado. Levaram Andor para ser interrogado. Ambos tínhamos consciência do que isso poderia significar.

Levei Rozann à escola, tentando dar-lhe uma versão suave do que estava a acontecer. Depois, pus László no carrinho e caminhei, melhor, corri com ele pela rua fora. O meu sistema nervoso já não era o mesmo!

À noite, já muito tarde, Andor voltou para casa. Parecia ter envelhecido muitos anos. Tinham-lhe dito que iria ser julgado, acusado de fazer contrabando de moeda da fábrica Herend para a Suíça. Como director da fábrica, ele era o responsável. Tinham-no levado para a cave - provavelmente para atemorizá-lo. O lugar estava cheio de pessoas, completa ou parcialmente inconscientes, que tinham sido espancadas.

No dia seguinte, as primeiras páginas de todos os jornais noticiavam: «Filho de Jenõ Hubay, acusado de contrabando de moeda para a Suíça».

A finalidade de tudo isto era óbvia: o passaporte fora-lhe confiscado. Poucos dias depois, todas as empresas, grandes ou pequenas, foram nacionalizadas. Ao mesmo tempo, Andor foi despedido da Herend e da Galeria Nacional, o Nemzeti Szalon. Estes despedimentos privavam-no de todos os meios de subsistência.

Nesta altura, começámos a pensar sair do país. Deveríamos tentar ir para a Noruega? Afinal, para nós era mais fácil do que para muitos dos nossos amigos na mesma situação. Tínhamos outro país natal para viver, ainda por cima um país livre. Mas eu tenho a certeza que nem passaria pela cabeça de Andor expatriar-se, se eu e os nossos filhos não existíssemos.

 

                   O adeus à Hungria

O cônsul-geral da Noruega na Hungria morreu durante a guerra, e um representante do Mimstério dos Negócios Estrangeiros veio a Budapeste convidar Andor para substituí-lo, convite que ele aceitou.

A situação política não podia estar pior e o meu marido achou que só havia uma saída possível para nós: eu e as crianças devíamos deixar a Hungria o mais depressa possível.

- As coisas só têm tendência para piorar, o passaporte foi-me confiscado e eles não vão, em circunstâncias nenhumas, dar-me autorização para sair do país.

A decisão, provavelmente a mais difícil decisão da sua vida, estava tomada.

Estávamos na Primavera, a terra florescia por toda a parte, os rouxinóis cantavam de novo, cumprindo a extraordinária capacidade de recuperação da nossa Mãe Natureza. E que sabiam as flores e os rouxinóis da guerra e das ocupações alemã e russa?

Perdemos tudo, o nosso país, a nossa casa, absolutamente tudo, excepto a nossa capacidade de recomeçar. Mas já não eram viáveis os planos que tínhamos feito para reconstruir a Hungria. Para recomeçar, era preciso, era indispensável partir.

Era preciso dizer adeus à Hungria - que agora sentia como pátria - e a todos os amigos que me tinham dado tanto. Era preciso dizer adeus à nossa nova casa e deixar Andor sozinho, com todas as imensas dificuldades que o rodeavam.

Mas eu era nova, cheia de força, inundada de um desejo fortíssimo de sobrevivência. O desejo de dar aos nossos filhos segurança e um futuro melhor venceram todas as hesitações.

Resolvemos partir em Junho de 1947. Como quase não tínhamos bagagem, fizemos as malas num instante. Com Andor, fomos dizer adeus à nossa antiga casa, agora em ruínas e despedimo-nos de Tibor e da Bumi. Foi horrível voltar a ver os restos bombardeados do que, um dia, fora o nosso lar. A despedida foi muito dramática. Foi a última vez que vi Bumi e Tibor.

De mão dada, Andor e eu saímos das nossas ruínas e caminhámos ao longo do Danúbio. Ao menos, este corria agora livremente, sem cadáveres nem destroços das pontes bombardeadas. Eu tinha ali vivido durante catorze anos e, mesmo na altura em que a guerra estava na sua fase pior, fora sempre feliz porque tinha Andor.

- Lembras-te?... Lembras-te ?... - As recordações, tantas boas recordações, vinham-nos à memória em caudal.

No dia seguinte, parti com as crianças. Quanto tempo iríamos estar separados? Ninguém podia dizer, e esta incerteza tornava tudo ainda mais doloroso.

Foi bom regressar à Noruega livre, foi bom ver, de novo, a minha família. Mas, apesar de extenuada, não consegui pregar olho na primeira noite. Só nessa altura compreendi o verdadeiro sentido de ser expatriado, o peso real de perdermos a nossa casa. Imagens de Mosòc, de Szalatna, do Palácio Hubay, em Budapeste, corriam, velozes, na minha cabeça, como se assistisse a um filme, enquanto percorria o meu quarto de um lado para o outro. Agora, a minha tarefa prioritária era fazer sair Andor da Hungria. Depois de consegui-lo, tudo ia ser mais fácil.

Passaram alguns meses até que isso se concretizasse. Andor foi preso mais do que uma vez, maltratado, e, por fim, condenado à morte. Por que crime? Os comunistas conseguiam sempre fabricar qualquer coisa... Na véspera do dia marcado para a sua execução por enforcamento, um milagre diplomático trouxe-o para a Noruega. Estávamos em fins de 1949. A nossa separação durara mais de um ano.

Foi um Andor marcado pela tragédia, de alma moribunda, que se encontrou comigo em Oslo. Alguma coisa, muitas coisas morreram dentro dele, quando lhe roubaram o seu país. Irremissivelmente. Para mim foi, apesar de tudo, a imensa felicidade de estarmos de novo reunidos.

Fomos viver para a nossa casa de verão em Sandoya. Quando a construímos, Andor tinha comentado que já possuía demasiadas casas para tomar conta. Agora, esta era a única que nos restava. O meu marido húngaro tinha muito pouco a ver com o mar, e eu própria fui criada no campo, na quinta em Hedemarken, mas, mesmo assim, tinha mais queda para os barcos do que ele. Por isso, o leme passou para as minhas mãos.

Muitas vezes o meu marido envolvia-se em discussões com a minha família. Era agora um homem que tinha perdido a fé na justiça, na política, profundamente amargo e desiludido com a vida, com as grandes potências e com a humanidade.

- O poder corrompe sempre, seja o poder do dinheiro ou da política - era a sua conclusão.

Em 1950, Andor foi convidado a ser director artístico da fábrica de porcelanas em Porsgrunn, e foi para essa terra que fomos viver. Mais tarde, soubemos das histórias que tinham circulado sobre nós, sobre o húngaro que ia chegar e tinha vivido no meio do luxo na Hungria feudal. Como ia ele conseguir aguentar-se num pequeno apartamento na rua Market, em Porsgrunn? Provavelmente, para grande desapontamento dos mexeriqueiros, aguentou-se até muito bem!

Os ditos acabaram num instante, à medida que aquela gente conheceu e aprendeu a gostar do homem modesto, mais sossegado que muitos noruegueses.

Para nos instalarmos, comprámos alguns móveis em segunda mão e pedimos outros emprestados. Pregámos, pintámos, limpámos e, pouco tempo depois, conseguimos ter uma casinha muito confortável.

Mas o clima e o temperamento norueguês não coexistiam muito bem com Andor.

A sua fama, entretanto, chegava além fronteiras. Em 1952, recebeu, quase em simultâneo, duas propostas: a primeira vinha da Universidade americana de Pittsburg, e propunha-lhe uma cátedra de ensino de arte. A segunda, oriunda de Portugal, oferecia-lhe o lugar de director artístico da fábrica de porcelanas Vista Alegre.

Quanto à decisão tomada, confesso-me totalmente responsável. Não queria, em circunstâncias nenhumas, ir para os Estados Unidos. Em Portugal, ao menos, estaríamos longe dos russos e dos comunistas...

Como é que eu posso descrever os muitos anos que vivemos em Portugal? Aprendemos a amar um novo país, ao mesmo tempo que nos apaixonámos pelos portugueses. No entanto, a nossa impressão era de que o tempo parara, no que dizia respeito ao Governo e à classe alta. Como se todos tivessem sido enfeitiçados nalgum castelo de uma Bela Adormecida. Se não tivéssemos já testemunhado o reverso da medalha na nossa dolorosa experiência de vida, talvez não tivéssemos dado pelo pequeno mal-estar que dormia por debaixo da superfície aparentemente tranquila.

Na fábrica da Vista Alegre, Andor iniciou, cautelosamente, um processo de modernização e melhoramentos. Mas esbarrou sempre com alguma hostilidade por parte dos proprietários. Como é evidente, não estávamos em situação

- nem tínhamos esse propósito - de fazer uma revolução. O meu marido queria apenas melhorar algumas condições de trabalho. Criou-se uma situação um tanto incómoda entre Andor e a gerência da fábrica, e ele demitiu-se. Continuou, no entanto, ligado à parte artística até 1958, altura em que aquela fábrica já gozava de grande prestígio internacional.

Com a ajuda do nosso amigo Salvador Corrêa de Sá, Visconde de Several, fomos, então, viver para o Estoril. Andor ensinava desenho e pintura na Escola Americana, e também a filhos de alguns dos nossos novos amigos, e era treinador de futebol no colégio inglês St. Julian’s. Eu sei que ele sempre gostou muito de futebol, mas daí a ser treinador... isso confesso que me surpreendeu bastante!

Em 23 de Outubro de 1956, o povo húngaro subleva-se, em mais uma clara demonstração de repúdio pelo regime comunista que lhe é imposto. O mundo assiste, em desespero, à chacina de centenas de húngaros. Em Portugal, uma velada que reuniu milhares de pessoas desfilou pela baixa até aos Paços do Concelho, em apoio ao povo húngaro.

Andor fazia parte do grupo que apoiava o governo húngaro no exílio. Constantes telefonemas para Budapeste tornam-no suspeito. A Pide vem buscá-lo para interrogatório e, durante três dias, a família não sabe nada dele. Uma vez mais, o seu amigo Corrêa de Sá, amigo de Salazar, vem em seu auxílio. Andor volta nesse mesmo dia para casa, conduzido num Mercedes negro com motorista. Risonho, conta-nos que foi, apenas, interrogado.

- Comparada com os comunistas russos, a Pide é um bebé de berço! - Graças a Deus. ;

Depois de ter feito o ensino secundário no St. Julian’s, Rozann casou em Oslo, em casa do meu irmão, numa festa que durou três dias. Um verdadeiro casamento cigano! O marido, o barão austríaco, Giselbert von Schmidburg, era director de um banco, em Bruxelas, e foi para lá que eles foram viver. László, terminado o Colégio St. Columban’s, foi cursar gestão na Universidade de St. Gallen, na Suíça.

De vez em quando, em ocasiões especiais como o Natal ou a Páscoa, ou durante as férias de Verão, os meus filhos vinham a casa. Eram momentos inesquecíveis, de grande alegria. Por essa altura, estavam em Portugal outros refugiados húngaros e convivíamos muito com eles. O regente Horthy, a mulher e o filho sobrevivente, Nicky, a nora Illy, o irmão de Otto Habsburg, o sobrinho Joseph e Maria, sua mulher. Nossos amigos eram também os Condes de Barcelona e os seus filhos. O actual rei de Espanha, da mesma idade de Rozann, passava muitos dias em nossa casa.

Em meados de 1970, o estado de saúde de Andor começou a deteriorar-se. Estava cada vez mais fraco, sem forças, o espírito ausente. Acho que desistira de lutar e preparava-se para deixar esta vida.

No Natal desse ano, reunimo-nos todos, uma vez mais. O tempo estava magnífico. Eram aqueles dias de Inverno, privilégio de Portugal, com pouco frio, um sol radioso e flores por todo o lado.

Rozann tinha, agora, Alexia, a sua filhota já quase com quatro anos.

Dois dias depois do Natal, Giselbert regressou a casa e ao seu trabalho e László às suas aulas, na Suíça, mas a minha filha e a minha neta, com o seu amiguinho alemão, Kaj, que tinha vindo com ela, ficaram mais uns dias.

Com crianças tão pequenas, Rozann e eu tivemos que esquecer os longos passeios a pé pela Serra de Sintra, o que era um velho hábito nosso. E esquecer igualmente os belíssimos cogumelos que costumávamos apanhar! Uma bela tarde, estávamos sentadas debaixo de uma mimosa em flor, no jardim da nossa casa - casa Malvarosa, assim se chamava. As crianças brincavam na caixa de areia e, de vez em quando, vinham ao pé de nós dizer qualquer coisa.

Kaj ficou um momento muito quieto, a fitar Andor. Depois disse:

- Não falta muito para que Deus te venha buscar! Sorrindo suavemente, Andor respondeu-lhe:

- Como sabes tu isso, filho?

- É porque já tens muitas rugas. Mas não faz mal, porque nós vamos rezar por ti.

Este episódio impressionou-me imenso. Ainda hoje não consigo perceber como é que um miúdo de cinco anos viu isso e, ainda por cima, como foi capaz de dizê-lo!

Quando Andor piorou, o médico insistiu em que o levássemos para o hospital. Ao passarmos pelo portão da nossa casa, ele agarrou na minha mão e disse-me:

- Não vou voltar a atravessar vivo este portão.

Durante dez dias, Rozann e eu revezámo-nos entre o hospital e a casa, para estar com o meu marido e acompanhar também a Alexia.

Durante os primeiros dias, ele esteve consciente e quase sem dores. Eu sentava-me ao lado da sua cama, com um bordado ou um livro.

- Vou ler-te estas linhas, são tão belas! Depois de ler, perguntei-lhe:

-Não são lindas?

Andor disse-me muito baixinho:

- Devem ser, com certeza. Mas, sabes, não prestei muita atenção, porque estava embevecido a olhar para ti. Estás tão

bonita e os teus olhos são tão azuis como no dia em que te conheci.

No meio do meu profundo desgosto, senti-me estremecer de amor e gratidão.

Foi nessa altura que telefonámos a László. Veio imediatamente, mas Andor já estava inconsciente quando ele aterrou no aeroporto de Lisboa. O silêncio era total, naquele quarto em que Andor jazia inconsciente.

Com as lágrimas a correr, László ajoelhou ao lado da sua cama e agarrou-lhe na mão:

- Pai, estou aqui. Sou o László. Olhe para mim!

Ao longo de toda a sua vida, o pai tinha sempre prestado atenção ao que ele dizia. Devagar, muito devagarinho, Andor abriu os seus grandes olhos e olhou para o filho, antes de fechá-los para sempre.

Rozann passara essa última noite no hospital, à sua cabeceira. Algumas horas depois, telefonou-me e eu fui para o hospital. Percorri todo o corredor até ao quarto de Andor. A porta estava completamente aberta. Rozann ouviu os meus passos e disse à enfermeira:

- A minha mãe vem aí. Vai ver, assim que ela chegar, o meu pai dará o seu último suspiro. Foi sempre assim, ele esperou sempre pela minha mãe.

Foi, uma vez mais, o que aconteceu. Estávamos no dia 9 de Fevereiro de 1971.

Levámos o corpo de Andor para a Noruega, para ser enterrado na igreja de Haslum. O sacerdote era o padre Horvath, e o nosso filho László tinha trazido de Lisboa um pequeno embrulho, oferecido pelos seus amigos húngaros, que continha alguns punhados da terra negra, macia e fértil da Hungria. Pedimos ao organista que tocasse música de Jenó Hubay enquanto, todos juntos, a escutávamos na capela.

Lá fora, era a paisagem escura do Inverno norueguês, onde a brancura da neve dava uma imagem de silêncio e pureza.

A urna de Andor foi colocada em frente do altar e do crucifixo. Ao fundo, as montanhas cobertas de neve davam luz e alegria. Do órgão vinha a música de Jenõ Hubay. Música de um pai para o seu filho. László e Rozann rezavam lado a lado, enquanto eu murmurava:

- Obrigada, meu Deus, por cada momento que passámos juntos na terra. Ajuda-nos a prosseguir no nosso caminho, dá-nos coragem e força para viver com justiça e amor. Como Andor sempre viveu.

Pouco depois, terminou a cerimónia fúnebre. O carrilhão da igreja tocava e o som repercutia-se no ar frio e límpido, enquanto seguíamos a urna para a sepultura. Não fazia diferença que a terra estivesse gelada, porque o nosso amor e o nosso calor estavam ali.

Nandor Zichy fez um pequeno discurso de despedida ao seu amigo, ao mesmo tempo que espalhava terra húngara sobre as flores norueguesas.

 

E agora? Se me perguntarem, «Onde vives actualmente?», responderei:

«Bem, onde é que eu vivo? Vivo nas casas dos meus filhos, vivo no meu pequeno apartamento de Oslo. Vivo onde me leva a amizade, ou a curiosidade, ou o estado de espírito».

«Viajas muito, então?», dizem-me com frequência.

«É verdade, viajo tanto quanto me permite a minha saúde, as minhas pernas, a minha vontade. Mas tenho que confessar: a minha existência não é um simples produto da minha vontade».

Quando estou em casa, na Noruega, há Verão, Outono, Natal, Inverno, fazem-se planos para a Páscoa.

Muita gente faz planos para passar férias numa propriedade sua, aqui ou acolá. Nessas alturas mais marcantes do ano, também penso muitas vezes que gostaria de ter um sítio onde eu, os meus filhos e os meus netos pudéssemos ir. E não se trata de um sentimento de inveja. Mas talvez contenha alguma amargura, em relação às circunstâncias que levaram milhares de pessoas a sair do seu país.

Também há quem possa perguntar-me: «Mas porque é que te casaste com um estrangeiro? Sim, porquê?». «Eu sei exactamente qual é a resposta. O amor é a resposta. E tendo ficado sem casa, ou sem nada, faria mil vezes a mesma coisa, se tivesse que recomeçar».

O lar dos meus filhos, na terra do seu pai, deixou de existir. A minha filha vive em Bruxelas, e o meu filho em Portugal. Eu vivo entre esses dois países, porque é aí que está o meu coração. Nos momentos em que estou com um deles, anseio por estar com o outro. Quando estou fora, morro por estar na Noruega. Mas este anseio é enriquecedor e não nasce da falta de qualquer coisa.

A falta que Andor me faz não é destrutiva nem avassaladora. A morte faz parte da vida. Quando uma criança nasce, a única coisa que sabemos sobre ela, sem sombra de dúvida, é que morrerá um dia.

Quando penso na morte, não sei se é crença ou religião, mas pergunto a mim própria se vale a pena pensar numa vida depois da morte. A religião ensina-nos a fazer isso. Eu prefiro não discutir uma coisa que é imensa e nos faz sentir tão pequenos.

Um dos nossos amigos noruegueses perguntou, um dia, a Andor, se ele era crente católico. Quando o meu marido lhe respondeu afirmativamente, ele retrucou:

- Eu não consigo acreditar naquilo que não entendo. Andor explicou-se:

- Tu sabes que uma andorinha pode ir fazer o ninho em Narvik. Quando o Verão chega ao fim e os seus filhote já estão crescidos, voam de volta para África. Na Primavera, a andorinha volta ao seu ninho, em Narvik. Todos sabemos que isto se passa, invariavelmente, assim. Mas, por acaso, sabemos porquê?

À medida que os anos avançam, pensamos cada vez mais na morte. Quando calha, converso com os meus netos e tento falar com naturalidade sobre a morte. Faço o possível por ser

muito terra-a-terra, porque a morte é tão natural quanto a vida. Embora o valorizemos de forma diferente, é tão natural encontrar um pássaro morto no jardim como morrer um ente querido.

A crença é uma parte muito importante da vida. Mesmo os que negam a religião, não podem esquecer que a ética tem origem na religião e ela é uma parte essencial da existência e do desenvolvimento do homem.

Sinto-me muito feliz quando os jovens me deixam participar das suas conversas. É uma extraordinária fonte de enriquecimento, que me ajuda a estar a par com a vida e com o que se passa no mundo. Mas será que os jovens conseguem, alguma vez, aprender da experiência dos mais velhos? Segundo a ordem natural das coisas, é muito raro que tal aconteça. Os conceitos mudam constantemente, quase tanto como as tecnologias.

No meu tempo, exigíamos muito menos da vida e éramos menos materialistas. Hoje, fala-se muito de stress. Aprendemos a cuidar do nosso corpo, do nosso físico, de modo a poder funcionar bem. Mas será que pensamos suficientemente nos sentimentos, nos pensamentos, na nossa ética e na nossa moral?

Será que eu tenho o direito de falar destas coisas? A minha idade é uma desculpa? A verdade é que me vou sentindo cansada e, depois de ter ficado sozinha, sinto que vou perdendo o poder e a capacidade para dar conselhos, excepto os que advêm da minha experiência. Por outras palavras, é o reverso da minha medalha.

Mas de uma coisa tenho a certeza: na minha vida, recebi muito mais do que aquilo que dei.

A conclusão - a minha conclusão é um hino ao amor, que foi, é e será sempre o meu.

 

                                                                                Edle Astrup Hubay  

 

                      

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