Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
UMA VOZ DE MUITO LONGE
Pamela e Bob eram um dos casais mais respeitável de Sioux City, ela já vinha de uma das famílias mais ricas e respeitáveis da cidade e ele um simples aventureiro. Pamela já desconfiava que um dia seria morta por Bob, devido a sua ambição, até que um dia o fato concretizou-se, mas, o que Bob não desconfiava que iria acontecer é que Pamela voltaria do túmulo para vingar a sua morte...
"ONTEM à noite, John, sonhei que você vinha me matar.
Peço-lhe que perdoe esta idéia absurda, John, porém ela esteve me atormentando durante horas e horas enquanto eu olhava a Lua através da janela.
Lembra-se como é essa janela, John? Recorda-se como é a nossa velha casa?
Claro que você deve recordar-se. Ali você me deu o primeiro beijo, ali sussurramos as primeiras palavras de amor, e decidimos ser marido e mulher para sempre... mesmo nas fronteiras do crime...
Não sei porque, mas não afasto a idéia de crime da cabeça, John. Terei que lhe pedir perdão outra vez.
Nós temos vivido sempre em Sioux City, perto da fronteira entre Iowa e Dakota do Sul, nas velhas terras onde, ainda não faz muito tempo, lutava-se ou morria-se por um pedaço de terra ou pelos lábios de uma mulher índia. As pessoas respeitáveis daqueles dias, quando a cidade começou a se pacificar, quiseram fazer casas que fossem também lares respeitáveis, mas só conseguiram criar uma espécie de castelos sinistros como este em que vivo, agora. As enormes habitações que mal recebem luz, os pesados cortinados, os quartos onde, quando eu era criança, não me atrevia a pôr os pés e que ainda hoje me enchem de um horror secreto, o esquecido jardim onde jazem os ossos dos meus pais, tudo isso enche de pesadelos estranhos minhas noites, me angustia, converte-me em uma mulher que está vivendo em uma espécie de meio termo entre a realidade e as fronteiras do outro mundo.
Por isso sonhei que você vinha ver-me, sonhei que necessitava de você como nunca. Por isso, também, meu pesadelo foi espantoso porque pressentia que você me vinha matar.
Não o faça, John. Não se lembre de o fazer nunca. Porque se me matar será horrível para você e para mim. Porque eu o amo, e, não obstante, não terei outro remédio senão persegui-lo, depois de morta.
Perdoe esta carta sem sentido, sem nexo, John, e volte logo. A existência me é insuportável porque você não está junto de mim.
Sua amantíssima
Mary".
Esta carta fora escrita há vinte anos.
Pamela, que tinha descoberto aquele pacote de cartas na velha secretaria de sua mãe, retirou outra e a leu com ansiedade.
Esta segunda carta dizia assim:
"Você ainda não veio, John. E à noite passada tornei a sonhar que você voltava a Sioux City para acabar comigo.
Era uma coisa estranha, John, que eu não consigo explicar. Você estava diante de minha sepultura, fingindo um grande sofrimento diante de todos apesar de me ter assassinado. Não obstante, eu não estava naquela sepultura. Estava a sua espera no interior da casa. Eu já não existia, e, entretanto, estava na minha poltrona preferida, no recanto sombrio do extremo do corredor, quieta, aguardando. Dava corda ao velho relógio que não tem funcionado nestes últimos cem anos... Estava atrás dos pesados cortinados do dormitório onde você descançava. Durante as noites você ouvia meus passos a andar de um lado para outro da casa, como nos outros tempos, quando eu estava viva. Você tentava despertar e não podia. Não podia!
Rogo-lhe que continue a não fazer caso do que eu digo, John, porém não me deixe tanto tempo só nesta casa. Às vezes penso que vou enlouquecer. Volte logo, John. Volte..."
Pamela terminou de ler esta segunda carta,
Não pôde evitar que uma espécie de mão fria pousasse no seu ombro.
Tudo estava como há vinte anos atrás na velha casa de Sioux City, época em que foi escrita aquela carta de sua mãe.
O sombrio jardim com as sepulturas, uma das quais, com efeito, era a de sua própria mãe. A poltrona preferida, na qual, desde muito, não se tinha sentado ninguém: o escuro ângulo do corredor interminável; o velho relógio que não tinha funcionado nos últimos cem anos, do qual se dizia que somente durante uma noite, precisamente naquela em que sua mãe morreu, tinha tornado a funcionar.
A mão fria parecia tornar a pousar no ombro de Pamela.
Como nas outras noites, como naquelas silenciosas e intermináveis horas da sua infância, a lua parecia bruxolear dentro dos aposentos, penetrando sua luz espectral através das janelas. Assim a sua mãe a teria visto quando escreveu aquelas terríveis cartas.
Pamela, com dedos trêmulos, pegou a terceira carta.
Esta dizia:
"Finalmente comunicaram-me seu regresso, John, e você não pode imaginar a alegria e, ao mesmo tempo, o pavor que cheguei a sentir. Porque eu tenho sonhado sempre que me verá viva, mas encho-me de pânico indescritível ao saber, ao ter a certeza, de que você chegará a me ver em todos os aposentos da casa quando eu já estiver morta.
Tenho estado olhando no nosso velho jardim, precisamente o lugar em que sei que vou ser enterrada.
Adivinho sua gargalhada de zombaria ao ler isto. Você bem sabe que hoje em dia já não se enterram as pessoas nos jardins das casas em que habitam, nem sequer nas igrejas onde elevaram as suas preces a Deus. Hoje os tempos mudaram muito. Logicamente, quando eu morrer, deverei ser sepultada no cemitério de Sioux City, pois o prefeito não permitirá de modo nenhum outra coisa. E, não obstante, eu sei que vão me sepultar no jardim. Sei que você tem tudo preparado para o crime e que quando chegar não terei muito tempo para viver. Por isso, porque lhe quero muito, John, peço: mande queimar meu cadáver. Do contrário você me verá. Ver-me-á e me encontrará sempre, enquanto seu coração pulsar sobre a terra!
Sua amantíssima esposa
Mary".
Desta vez, Pamela não teve que deixar a carta na secretaria.
É que simplesmente esta caiu de entre os seus dedos e foi pousar sobre o tapete.
A moça pôs-se de pé, afastando-se da escrivaninha diante da qual tinha estado sentada, inclinou-se para apanhar a carta e outra vez aquela mão fria pousou no seu ombro.
Acabava de ouvir passos no imenso corredor que ia dar à grande biblioteca onde ela se encontrava naquele momento.
Com os nervos contraídos por uma espécie de espasmo que ela mesma não sabia explicar, esperou ansiosamente a chegada de quem tinha produzido aqueles passos.
Um suspiro de alívio escapou dos seus lábios ao ver recortada a silhueta de um homem no umbral da porta.
Era um homem forte, jovem, de tipo esportivo. Qualquer mulher teria jurado por sua mãe ser capaz de sonhar com um tipo assim durante sete noites seguidas..., contando que sua mãe não viesse saber. Produzia ele a impressão de um violento contraste com aquela casa, tão velha, tão solene. Dir-se-ia que um ar de renovação entrava nela pelo simples fato da sua presença na biblioteca.
Pamela correu aos seus braços.
— Bob!
Seu marido a estreitou neles e durante uns instantes as duas figuras, jovens, fortes e sadias fundiram-se em um estreito abraço.
Eram como um hino a juventude, ao amor e a vida naquela casa onde parecia que só se pudesse falar de morte.
Ao separarem-se, Bob perguntou com um sorriso:
— Está muito pálida, Pamela. Não está passando bem?
— Estou perfeitamente bem, Bob. Sobretudo agora que você está aqui.
— Isso indica que você não se sentia muito tranqüila. Digo-lhe sempre que faz muito mal em ficar só tantas horas nesta casa. Ou a encherei de criados que lhe façam companhia ou iremos para longe daqui, para um chalé moderno que não esteja cheio de sombras, como esta casa sinistra. Que estava fazendo?
Ela encolheu os ombros com infinita suavidade, com um gesto elegante de mulher bem nascida.
— Nada...
— Que papel é esse que tem na mão?
— Nada, não tem importância.
Ele não insistiu, porém, seus olhos receosos e incrédulos foram dando uma volta lenta pelo aposento, até que se deteve na escrivaninha aberta.
Imediatamente soltou uma gargalhada.
— Logo vi que você esteve revolvendo papéis velhos, Pamela.
— Não se ria, Bob.
A expressão da moça era tão grave que Bob sobressaltou-se.
— Mas, que se passa com você?
— Nada de notável.
— Mas você esteve certamente revolvendo cartas velhas, ou não?
— Nunca tinha aberto essa escrivaninha...
— E que há nela?
— Papéis de minha mãe.
— Que dizem eles?
Ela respondeu com uma pergunta inesperada.
— Sabe porque enterraram mamãe no jardim, Bob?
— Sei lá! — Bob encolheu os ombros enquanto tirava um cigarro de um maço recém-aberto. — Com vocês, os Seymour, tudo é possível. É a família mais respeitável desta cidade. Os conselheiros municipais tremiam diante de seus antepassados, e eu creio que alguns deles seriam capazes de desenterrar os restos mortais, de algum presidente estadunidense para meter vocês todos no mausoléu dele. Ora, porque enterraram sua mãe no jardim? Pois foi, com certeza, para respeitar a tradição mantida durante um par de séculos pelas famílias mais nobres da comarca. Agora já não acontecerá o mesmo, é claro. Mas... a que propósito vem isso?
Ela falou quase sem voz:
— Eu suspeitei sempre que papai tinha matado mamãe, Bob.
— Tolices. Eu não tenho nenhum interesse especial em defender seu pai, que, afinal, está morto há muitos anos, mas tudo isso é falatório. Semelhante crime jamais se poderia provar.
— Sabe de que papai morreu, Bob?
— Sobre isso também circulam muitos e absurdos boatos.
— Morreu de medo.
Bob soltou uma baforada de fumaça pela boca e olhou com indiferença sua mulher, como se estivesse fitando uma louca pela qual já não se pudesse fazer nada.
— Medo? — sussurrou.
— Ele continuava vendo mamãe mesmo depois de morta. Sempre desconfiei, mas estas cartas não fizeram mais do que confirmar.
E acrescentou com algo que era apenas um sopro de voz:
— Certamente você não me matará nunca, Bob? Com certeza que não quererá encontrar-se comigo depois de morta... Na verdade você nunca terá a tentação de me assassinar?
O JUIZ EVERETT era um homem tranqüilo, bondoso, que conhecia todas as famílias de Sioux City e tinha assistido grande parte dos nascimentos e não menor parte dos falecimentos de todos os que agora habitavam ou tinham habitado na povoação.
Não havia acontecimento em Sioux City, por insignificante que fosse, que sua prodigiosa memória não recordasse no momento.
Quando Pamela lhe expôs suas inquietações, ele arqueou as sobrancelhas num gesto entre surpreendido e irônico.
— Eu, no seu lugar, esqueceria tudo isso que acaba de pensar e dizer, Pamela.
— Então crê que são tolices?
— Não creio que seja ou não seja, mas basta olhar seu rosto para ver-se que você está passando por uma verdadeira crise. E é isso o que mais me preocupa, Pamela. Você sempre foi uma moça sensata, e não compreendo porque agora esteja se inquietando por toda essa estória de fantasmas.
Conversavam no escritório do juiz Everett, uma sala elegante e iluminada pelos raios de sol, que penetravam através das largas janelas, porém, Pamela, estranhamente, sentia-se como se fosse noite. Desde que abrira a velha secretaria da sua mãe, não via senão sombras.
— Crê que é coisa de fantasmas eu perguntar se meu pai foi o assassino de minha própria mãe, senhor juiz?
— Isso nunca se pôde provar, Pamela. Eu já era juiz aqui naquela época e você deve compreender que um acontecimento tão importante, que além disso afetava a família mais rica da cidade, não poderia deixar de ser estudado por mim, minuciosamente. Lembro-me que então interrogamos dúzias de testemunhas, enchemos páginas e páginas com atestados da polícia, e, apesar disso, não chegamos a nenhuma conclusão prática. Seu pai nem sequer chegou a ser processado. É verdade que morreu apenas um ano depois...
— De que meu pai morreu, senhor juiz?
Everett desviou a conversa, porém o Fez com tão pouca habilidade que ela adivinhou logo sua intenção.
— A morte de sua mãe foi um acidente casual, Pamela — disse calmamente. — Aquela queda do sótão não teve nada de especial. Há centenas de pessoas que quebram o pescoço durante o ano em acidentes dessa natureza. Eu creio que tudo ficou suficientemente esclarecido na ocasião e me parece tolice que você torne agora a pensar naquilo.
Pamela insistiu ternamente:
— De que meu pai morreu, senhor juiz? Everett encolheu os ombros.
— Bem, foi um ataque do coração.
— Provocado porquê?
— Olhe, Pamela, nós os homens morremos hoje em dia de duas coisas principalmente: dos ataques do coração e de câncer, e, ninguém tem encontrado o modo de evitar essas duas pragas. Como quer você que eu, depois de tantos anos, possa explicar a morte do seu pai? Ele morreu de uma síncope- e isso é tudo. Se quer ver a certidão de óbito, ainda a tenho arquivada no meu escritório. Além disso, a que propósito vêm tais indagações? Não faz um ano que você está casada e jamais teve tantas tolices na cabeça. Eu pensava que você era uma mulher feliz...
— E sou.
Não obstante, a expressão de Pamela desmentia aquelas palavras. Não, não era feliz porque vivia com seus próprios fantasmas, e, os nossos fantasmas, aqueles que nos falam de noite, são mais fortes que nós mesmos. O juiz adivinhou vagamente tudo isso, mas, ainda assim, não estava preparado para a pergunta que a moça lhe Fez em seguida. Ficou surpreendido ao ouvi-la dizer:
— Não é verdade que meu pai morreu de medo?
O juiz soltou uma gargalhada oca, de som falso.
— Medo De quê?
— Ele via continuamente minha mãe depois de morta.
— Pamela! — A voz do juiz fez-se severa. Estamos, segundo dizem, no país mais avançado da terra e também no mais espírita. A vinte anos passados este país já era assim e não creia que isto não tem suas vantagens. Os mortos não existem, se os esquecemos logo. Nem seu pai viu nenhum espírito nem você deve pensar mais nisso. Sabe o que lhe proponho agora? Vamos tomar qualquer coisa e logo se esquecerá. Ninguém dirá nada de mal se você sair com um velho como eu, que já não faz concorrência a ninguém. Depois eu a acompanharei à sua casa.
— Não quero voltar àquela casa, senhor juiz.
— Porque não? É a mais bonita de Sioux City.
— O senhor gosta dos prédios velhos, porém aquele é horrível.
Fez uma pausa breve e acrescentou:
— Mas, não é só isso.
— Não é só isso? Que há mais?
— Sim, senhor juiz — disse ela com voz sumida. — Estou certa de que meu marido quer assassinar-me.
O juiz pôs-se a rir.
E continuou rindo até que a sua secretária entrou na sala supondo que lhe tinha dado algum ataque.
É que o mundo de hoje está tão louco e há algumas leis tão singulares, que até um velho juiz corre o perigo de morrer de riso.
Bob examinou a arma que o comerciante lhe mostrava e a observou durante alguns minutos, como quem examina e comprova uma espécie de aparelho de precisão do qual viesse a depender o destino da sua própria vida. Ele entendia de armas e sabia apreciar sua qualidade ao primeiro golpe de vista, porém jamais tinha examinado nenhuma com tanta atenção como aquela.
Era um rifle Winchester de um cano só, calibre pesado e sem mira telescópica. Uma arma relativamente simples, mas de uma terrível eficácia para caçar a pouca distância.
Desmontou o cano e examinou as estrias da arma com tanta atenção como tinha examinado antes toda a parte exterior.
O comerciante insistiu:
— O senhor tem me comprado várias armas de fogo, Sr. Bentley, mas esta, se a levar, é da melhor qualidade, superior a todas que tenho vendido. As armas de alma lisa não servem para nada e o senhor sabe muito bem disso, mas pior que isso é uma arma de cano mal estriado. Esta, entretanto, é perfeita. Pode ser que não seja uma arma de tiro rápido, mas não pode falhar à meia distância. Pode dizer-me para que a quer, Senhor Bentley?
— Precisamente para caçar à meia distância, meu amigo, para caçar à meia distância...
— Pensa ir muito longe daqui?
— Não, desta vez não penso em sair dos limites deste território.
— Aqui há pouca caça... Bob Bentley não contestou. Examinava a arma com toda atenção, uma
atenção realmente fora do comum, como jamais tinha examinado um rifle em toda a sua vida.
— Fico com ela — decidiu afinal.
— Quer que a faça levar à sua casa, Senhor Bentley?
— Não, não é necessário. Eu mesmo a levarei.
— Naturalmente terei que tomar os dados para a licença.
— Tome-os.
Enquanto o armeiro tomava os dados do rifle para dar conta à polícia, Bob examinava com olhares de entendido as armas expostas na loja. As armas tinham sido sempre sua grande paixão e entendia delas tanto quanto um profissional. Teve em suas mãos um par de revólveres último modelo que por fim deixou quando o armeiro lhe entregou a peça recém-adquirida.
— Felicidades, Senhor Bentley.
— Agradecido.
Fora da loja, Bob tinha estacionado seu carro tipo Station Wagon. Era um Chevrolet de luxo, presente de sua esposa Pamela, no dia do primeiro aniversário de seu casamento. Bob, que era um habilíssimo chofer, fez a manobra na rua estreita para regressar à sua casa. Para chegar até ali, ao seu destino, tinha que atravessar um sombrio trecho de bosque e um pântano. Antes de dobrar a primeira esquina encontrou-se com Jeremy, que sempre vagabundeava nas proximidades da loja de armas. Jeremy o fez deter-se.
— Que há de novo, Bob?
— Você pode ver. Acabo de comprar um rifle novo.
E o mostrou através da janelinha do carro.
— É uma bela arma, puxa! — resmungou Jeremy.
— Você terá que a experimentar e verá como dará bom resultado.
Jeremy, que tinha em toda sua vida sido um empedernido caçador, pegou a arma e a examinou até nos seus mínimos detalhes.
— Creio que é uma arma estupenda, Bob.
— Se for boa, qualquer dia lhe empresto.
— O que me parece que não está bom é seu carro.
— Que diz?
— Percebi quando você fazia a manobra. Só freia bem em uma roda.
— Será possível? Eu não notei nada.
— Você pode verificar num pedaço reto de estrada; freando bruscamente notará em seguida. Parece mentira que um chofer tão experimentado como você não tenha notado.
Bob encolheu os ombros.
— Bem, de qualquer modo não irei muito longe. Agora sigo diretamente para casa.
— Pois não corra muito pela pista do bosque que margeia o pântano, Bob. Poderá ser perigoso.
Bob deu-lhe um adeus e arrancou. Antes que o conseguisse de todo, Jeremy, que tinha o defeito de ser bastante metido, o deteve com um novo gesto.
— Você tem certeza de que ninguém quer lhe matar, Bob?
— Liquidar-me? Quem? Jeremy soltou uma gargalhada.
— Puxa, quem seria? Nestes casos só uma pessoa: sua mulher...
Bob pôs-se repentinamente sério.
— Temos um ano de casados e ela, precisamente por isto, me presenteou com este carro. Porque diz essa asneira?
— Nada, homem, não me faça caso. É que eu leio demais novelas policiais. Boa viagem.
Bob arrancou finalmente e se dirigiu com velocidade moderada para a pista do bosque. Porém esta, em suas retas largas, compridas, convidava a correr e o carro saía-se magnificamente. Quando chegou nas imediações do pântano ia a cento e vinte por hora.
Antes de tomar, não obstante, o trecho perigoso, Bob saltou do Chevrolet, verificou bem os pneus e passou pelo bosque uns minutos, o tempo exato para fumar um cigarro.
Quando recomeçou sua viagem, parecia plenamente satisfeito.
Não obstante, sua expressão foi mudando à proporção que se aproximava do pântano.
Tentou frear algumas vezes e o carro deu várias derrapagens negando-se a obedecer.
Quis encostar-se a esquerda, do lado oposto ao da água.. . S a direção não lhe obedeceu!
O poderoso automóvel parecia ter-se transformado em uma máquina louca.
Bob, demasiadamente impetuoso talvez, fez urna manobra ousada querendo introduzir-se de chofre num claro do bosque, mas o automóvel não lhe obedeceu de novo. Fez tudo ao contrário do que se podia esperar naquela manobra.
Ouviu-se um chiado espantoso das rodas, seguido do grito agônico de Bob, quando o automóvel, a mais de noventa por hora, se precipitava para o fundo das águas.
O DOUTOR Jabert sussurrou:
— Teve muita sorte na queda, uma sorte tão grande que duvido se repita isso em cem casos semelhantes. Felizmente seu marido é um grande nadador, por isso pôde se salvar, Pamela.
Bob jazia quase inconsciente na cama de um quarto particular do hospital de Sioux City. Estava sob grande comoção e perdia os sentidos de vez em quando por causa do tremendo choque nervoso. Mas não sofrera nenhuma lesão grave. O médico tranqüilizou Pamela a esse respeito:
— Três ou quatro dias de cama e você terá outra vez seu marido em bom estado, Pamela.
Ela parecia preocupada e envelhecida depois do acidente, mas, coisa estranha, dir-se-ia que aquilo a tinha alegrado em segredo. O fato de Bob estar ali, indefeso, dependendo dos seus cuidados, fazia com que ela se esquecesse dos seus estúpidos pesadelos de poucos dias antes. Se até tinha chegado a pensar que Bob desejava matá-la! Se até se tinha acostumado a idéia de que, depois de morta, apareceria a Bob, tal como sua mãe teria aparecido ao seu pai!
Sem dúvida estava positivamente louca. Só uma mulher neurastênica, uma autêntica obcecada poderia pensar coisas tão estúpidas como aquelas.
No fundo, um Bob Bentley indefeso e que, de certo modo, estava ali como uma criança em suas mãos, dissipava suas inquietações e lhe causava uma espécie de prazer íntimo.
Naquela mesma tarde vieram o delegado Lincoln e o agente de seguros Parker, que tinha chegado a toda pressa da capital.
— Estamos fazendo todo o possível para recuperar o carro, Pamela — disse o delegado, que a tinha conhecido desde sua meninice e a tratava com grande intimidade —, mas não sei se será possível. Acha-se mergulhado no lugar mais profundo do pântano e ali há grandes massas de lodo. O Senhor Parker, da companhia de seguros, poderá explicar melhor.
Parker era um homenzinho assustado e muito suado, que parecia ser quem ia pagar o carro sinistrado do seu próprio bolso.
— Creio que tentar resgatá-lo será para a companhia mais caro que pagar o valor do seguro, senhora — disse apressadamente. — Na apólice, nós nos obrigamos a tratar de recuperar o carro no caso de acidente, mas, se seu marido estiver disposto a chegar a um acordo amistoso, muito agradeceríamos. A Companhia está disposta a abonar a importância do seguro sem discutir, visto como não houve vítimas, no caso em que nos permita desistir da busca, Bob, que agora, saía de seu letargo, disse, na sua cama:
— Vão para o inferno.
— Quer dizer que não concorda, Senhor Bentley?
— E por que não hei de aceitar, com todos os diabos?! Carros como o que perdi há às dúzias. Por mim pode deixá-lo no fundo do pântano até o dia do juízo final. O que sinto é a perda da arma.
— Que arma? — perguntou solicitamente o Senhor Parker.
— Isso o delegado saberá melhor do que o senhor. Suponho que terá que dar parte. Eu a tinha adquirido algumas horas antes e sua descrição já deve estar na repartição da polícia. Terá que dar-lhe baixa e arquivar os dados, delegado.
Este encolheu os ombros.
— Bem, o prejuízo não é tão grande.
— Isso diz você porque não a conhecia.
— Ora. O armeiro já me tinha falado disso! Era uma arma realmente excepcional, segundo disse. E até me entregou uma bala disparada por ela.
— O quê, delegado?
— Você não conhece o método que adotei há uns seis meses, Bob? Não permito que na minha jurisdição se venda uma arma sem que o armeiro me entregue antes, com a documentação, uma bala disparada por ela. Eu a arquivo e, assim, tenho a certeza de que em qualquer momento posso comparar o esfriado da bala com qualquer outra que tenha sido disparada pela mesma arma. Qualquer dia me agradecerão isto lá de Washington, amigo.
Bob abafou um bocejo.
Tudo aquilo devia ser parte do passado para ele. A expressão de seu rosto parecia dizer que fosse para o inferno o delegado, sua documentação e sua bala de amostra. Lincoln assim compreendeu e se evaporou discretamente, o mesmo fazendo o agente de seguros, o Parker.
Pamela ficou a sós com Bob.
Esteve cuidando dele durante três dias e três noites, apesar de existirem excelentes enfermeiras no hospital. Para ela, Bob era único e só o que ela fazia com suas próprias mãos é que era bom para ele.
Todo o mundo ficou sabendo que Pamela amava o marido mais que sua própria vida.
Coisa estranha, Pamela foi durante aqueles dias mais feliz do que em sua própria lua-de-mel.
Foi tão feliz o quanto pode ser uma mulher que deixa para trás as portas da dúvida, as portas do desespero, do medo e do inferno.
Uma mulher que volta a crer na vida.
A proibição da caça estava em pleno vigor no condado e, até então, todos a tinham respeitado escrupulosamente. Por isso o delegado se indignou grandemente quando chegou à sua repartição uma denúncia sem importância, procedente de um guarda florestal. Alguém tinha matado um gamo jovem e teve que fugir sem poder levar sua presa.
— Se a arma pertence a alguma pessoa desta comarca encontraremos o transgressor — decidiu o delegado.
Estava indignado pelo fato de que a proibição não era respeitada.
E como não tinha nada melhor que fazer, dedicou-se a comparar as balas extraídas do animal morto com todas as que conservava no seu arquivo. Nenhuma coincidia. Pelo fato de ser a primeira que tinha nas mãos, começou com a bala correspondente a da arma perdida de Bob Bentley e aquela encaixava menos que nenhuma.
Chegou à conclusão de que um saqueador desconhecido se ocultava nos bosques próximos a Sioux City e calculou que aquele delito sem importância seria seguido por outros de maior gravidade. Sempre acontecia assim: primeiro alguém transgredia e logo a seguir éram praticados alguns roubos e a situação podia terminar em um assassinato. O transgressor, fosse quem fosse, dispunha de uma arma e por isso o delegado julgou necessário organizar uma patrulha. Isso, de certo modo, fazia parte da rotina no seu cargo.
Não encontrou nada.
A seguir começou a segunda parte da rotina, que consistia em advertir todos os habitantes das casas isoladas. Uma das advertidas foi Pamela.
— Não tema nada — explicou o delegado —, mas vocês estão quase sem criados. . . E... é verdade, como está Bob?
— Muito melhor, Senhor Lincoln. Já está dando alguns pequenos passeios.
— Mas não quererá empunhar outra vez o volante de um automóvel, não é verdade1?
— No momento, nem eu mesma desejaria fazê-lo. Mas, a verdade é que ele nada me pediu. Prefere andar a pé.
— Não faça caso daquele acidente, Pamela. Ainda que Bob viva trezentos anos aquilo não tornará a acontecer. O carro não estava em boas condições e isso é tudo. O velho Jeremy havia notado antes, quando Bob lhe mostrou a sua nova arma.
Levou uma das mãos ao chapéu como em despedida e terminou com um último conselho com que concluía sempre suas determinações:
— Feche bem as portas e janelas ao anoitecer e verifique, antes de ir dormir, se o seu telefone funciona corretamente.
Isso foi tudo.
Bem. Tudo não, porque naquela mesma tarde Pamela recebeu uma carta.
Parece mentira que uma simples carta possa fazer mudar o todo de uma pessoa que, de certo modo, está doente de solidão.
A carta era muito breve, estava assinada por uma tal de Kate e anunciava sua visita para dentro de uma semana. Pamela, louca de alegria, tomou a lê-la.
—- Bob! É de Kate!
Bob, que folheava velhos álbuns de fotografias na biblioteca, voltou-se estranhando e até com um leve gesto de mau humor.
— Nem que o Presidente dos Estados Unidos lhe tivesse escrito... Quem é Kate?
— A melhor amiga que tenho.
— Pois nunca a ouvi falar dela. Pamela ruborizou-se ligeiramente.
— É um episódio da minha infância que quase não conto a ninguém, Bob, porque, no fundo, não tem nenhuma importância. Eu salvei Kate de morrer afogada quando tínhamos doze anos. Depois estivemos muito tempo juntas no colégio, e, por fim, a vida nos separou. Não imagina a alegria que tenho ao saber que voltarei a vê-la.
— Ela virá para cá?
— E penso em convidá-la a passar conosco algumas semanas, se você não vê inconveniente nisso.
— Porque me haveria de opor? Mas, ela não nunca esteve nesta casa?
— Não. Enquanto meus pais viveram, a entrada de Kate foi proibida rigorosamente no seio da nossa família.
— Porquê?
— Sua mãe tinha uma profissão muito estranha.
— Sabe que está despertando minha curiosidade? Quem era a mãe dela? Corista?
— Não. Era cartomante.
— Uma profissão um tanto fora da moda, não?
— É que Kate também adivinhava coisas...
— Isso me parece uma solene bobagem, Pamela.
— Se você tivesse conhecido. Kate não diria isso. Enfim, de qualquer maneira a conhecerá. Chegará dentro de poucos dias.
Fez um gesto faceiro e acrescentou:
— Quero agora perguntar-lhe uma coisa, Bob.
—- Que é?
— Porque está o dia todo metido na biblioteca revistando fotografias? Algumas delas são horríveis.
— Horríveis, porquê?
— Refiro-me as do meu pai antes de morrer. É como se ele estivesse sempre envolto em um clima de pesadelo.
— Essa é outra bobagem a mais, Pamela.
— Mas deveria sair, Bob; tomar ar, animar-se ... Não gosto de vê-lo sempre metido na biblioteca.
Bob Fez um gesto vago.
Porém ele sabia muito bem porque estava ali.
MANTEVE a carabina escondida em um dos cantos da biblioteca durante quarenta e oito horas mais. Por fim a tirou de onde estava para examinar.
Era uma tarde em que Pamela e ele estavam sós em casa. Os poucos serviçais tinham obtido licença de Ketty, a criada mais velha, ele mesmo a acompanhou até Sioux City, dizendo-lhe ali que ia dar um passeio, coisa que fazia com freqüência nos últimos dias. À velha Ketty pareceu-lhe aquilo muito natural e Bob dispôs assim de um álibi, si não seguro, pelo menos muito razoável.
Poderia dizer que tinha estado passeando pelo bosque, como fazia ultimamente com freqüência, quando lhe pedissem que justificasse onde estava naquela ocasião, durante aquele tempo.
Mas, regressou logo para casa.
Esta se mostrou ante seus olhos, silenciosa, sombria, hostil, como se fosse um ser vivo e soubesse o que haveria de suceder e estava a rechaçar sua presença.
Porém Bob tinha tudo calculado. Não cederia.
Tinha chegado ao final de um caminho cheio de sombras, porém as sombras não lhe assustavam. Seguiria até o fim.
Reviu, pois, a arma, tirando-a do canto da biblioteca onde a tinha oculta, e verificou o cano que estava perfeitamente serrado.
Ainda estava com a arma na mão quando Pamela entrou no aposento.
Vinha vestida aquela tarde com um formoso vestido negro de duas peças e sua figura esbelta e elegante, cheia de juventude e graça, destacava-se naquele ambiente cheio de tons sombrios, mas pleno também de distinção. Ao ver Bob com a arma na mão não fez um só gesto.
Não fez absolutamente nada que demonstrasse surpresa.
Bob teve a estranha e inquietante sensação de que ela adivinhava o que ia acontecer, o que talvez tivesse sabido desde o primeiro momento. Era, quem sabe, como sua amiga Kate, aquela de quem se dizia que adivinhava as coisas? Ou talvez uma voz distante lhe teria advertido desde o Outro Mundo o que ia acontecer na casa grande e silenciosa, de onde pareciam flutuar as sombras dos mortos?
Mas, que diabo! Há momentos em que um homem não deve pensar. Existem situações na vida em que ninguém deve refletir sobre o que já tem bem pensado.... e agir!
Bob levantou suavemente a arrna, que estava carregada.
Ela nem sequer pestanejou.
— Essa é a arma que você perdeu, Bob?
— Sim.
— A mesma com que você matou aquele gamo no bosque?
— Sim.
A voz de Bob era seca e cortante como a queda da lâmina de uma guilhotina.
— Onde a escondeu, Bob?
— Num lugar do bosque que só eu conheço, antes de sofrer o acidente no pântano. Desci do carro para fumar um cigarro e então a escondi.
— Quer dizer que o acidente foi provocado?
— De certo. Queria justificar diante de todos o sumiço desta arma. Corri um grande risco, mas era necessário. Tratava-se de um perigo conhecido e perfeitamente calculado, querida Pamela, como o daquele que planeja um negócio e calcula o que pode perder nos primeiros tempos. Fiz a prova de matar aquele gamo para dar a sensação ao delegado de que alguém vagabundeava por aqui. A seguir comprovei que as balas disparadas por esta arma não coincidem com os exemplares que ele tem no seu arquivo.
— Por isso você cerrou o cano, Bob?
— Sim, por isso mesmo. Em uma arma tão bem acabada como esta, as estrias marcam a bala de uma maneira muito exata. Ao cortar o cano as estrias marcam a bala de modo diferente e é muito difícil saber que se trata da mesma arma. Pode-se identificar o cartucho pelo impacto do percussor, mas numa arma nova como esta o impacto do percussor é exatamente igual ao de milhões de outras armas, porque os mecanismos não sofreram nenhuma deformação. Fui armeiro durante meu serviço militar e sei o que posso esperar de uma investigação sobre uma só bala disparada por um cano que agora está alterado. Ninguém chega a nenhuma conclusão. Além disso, o velho Jeremy é testemunha de que meu carro estava enguiçado antes do acidente. Fiz com que ele notasse intencionalmente.
Bob Bentley falava com uma absoluta frieza, com uma tranqüilidade pasmosa, como se tratasse de um negócio sem importância que nada tivesse a ver com sua mulher e com ele mesmo. Às vezes sua voz adquiria inflexões de suprema indiferença, como se falasse do tempo, de nada... Tudo aquilo era horrível, e, ele mesmo, sentia isso ligeiramente, porém nada parecia influir na impenetrabilidade de Pamela.
Seu rosto continuava parado, rígido, e seus olhos pareciam mortos como se por detrás deles não estivesse um cérebro a pensar.
E, não obstante, Pamela não se sentia impassível. Era que ela tinha chegado às últimas fronteiras do medo, do horror, do nojo.
Há situações tão terríveis que tornam nosso rosto impenetrável, que nos convertem em uma espécie de estátuas impassíveis, como que vazias por dentro.
Durante uns instantes se estabeleceu um angustioso silêncio.
Nada na biblioteca se movia, exceto uma mosca que revoava caprichosamente ao sol. Raios oblíquos de luz se projetavam sobre as cantoneiras douradas dos velhos livros.
Ao final desses instantes, Pamela só soube balbuciar:
— Porquê?
— Por sua fortuna, querida.
— É que você casou-se comigo só por meu dinheiro, Bob?
— Que importância tem isso agora? Quem fala de sentimentos e de mentiras quando a vida vai terminar?
Ela fechou os olhos por um momento.
— Sempre suspeitei isso, Bob, mas é terrível ouvi-lo dos seus próprios lábios.
Bob continuava sorrindo.
— Você sabe que eu não passaria nunca de um simples assalariado, se não viesse a contar com seu dinheiro, Pamela. Não é que eu não merecesse subir, mas a vida é injusta e a sociedade está mal organizada. Confesso que a princípio me conformei só com isso, com ser ao seu lado um homem importante que os outros respeitam. Mas isto já não me parecia suficiente.
Ela murmurou, apenas com um sopro de voz:
— Será que há outra mulher, Bob?
— Não, isso não. Realmente é o único desgosto que não lhe posso dar, Pamela. Não há nenhuma mulher determinada, mas lá está a vida, a vida com suas tentações e sua imensa variedade de coisas. Eu não sabia que ao casar-me com você ia me transformar em prisioneiro deste vilarejo reles que é Sioux City. Bem, isto eu sabia, mas a princípio não me importei. Agora quero viver a existência que sempre desejei, Pamela. Quero desfrutar do prazer imenso de desejar uma mulher e depois a deixar impunemente porque sou rico. Sei que você me fez seu herdeiro universal. Juro-lhe que não vai ter mais tempo de modificar o testamento, querida...
Levantou suavemente a arma, mas o que viu nos olhos de Pamela o fez deter-se.
Naqueles olhos não havia horror, mas sim, lástima. Lástima por ele!
Ouviu sua própria voz como uma voz estranha ao perguntar:
— Será que você não diz nada, Pamela?
— Só posso dizer que essas são as palavras mais cínicas que tenho ouvido em minha vida, Bob.
— Elas têm a vantagem de serem também as últimas.
Ela então falou com tão inusitada frieza que a situação chegou a parecer incrível ao seu marido.
— Vai você cometer um erro ao matar-me.
— Não creia; tudo está previsto. Ninguém poderá provar nada contra mim.
— Não é isso, Bob.
— Então a que você se refere?
— Você me causa pena, Bob. Causa-me pena e de certo modo sinto horror de mim mesma.
Bob sentia um frio estranho nas costas e o pior era que não conseguia adivinhar sua causa. Não sabia se era a expressão dos olhos de sua mulher, se a atmosfera, que de repente parecia tornar-se sinistra, ou o silêncio impressionante da casa. Aliás era uma voz distante que falava aos dois. Não compreendia, mas a voz estava ali. Parecia falar-lhes desde as regiões do Além, onde um dia — ou melhor, uma noite — ele entraria soltando gritos de angústia.
Era absurdo, mas ele não conseguia separar esse pensamento da sua cabeça.
Foi então que ela repetiu:
— Cometerá um erro se me matar, Bob. Eu lhe aparecerei depois de morta.
— Não diga tamanha estupidez!
— Não é uma estupidez, Bob. Eu lhe deixo minha herança, mas minha mãe deixou-me a sua. Ela também foi assassinada pelo seu marido, estou certa disso... e, em seguida, seu marido morreu de pavor. Sei que o poder sobrenatural e diabólico que minha mãe possuía, muito contra a sua vontade, passou para mim. Não se exponha a esse perigo, Bob! Eu o amo demasiadamente para vir a ser a causa de sua morte!
Os olhos de Bob arregalaram-se por um instante.
— Você me quer ainda, depois de tudo isso que ouviu?
— Sim, Bob. Sempre lhe quis mais que a minha própria vida, e o que foi uma verdade quando nos casamos continua sendo verdade agora.
Bob apertou os lábios.
— Você perde tempo se pretende me comover, Pamela.
— Não pretendo comovê-lo. Isso seria inútil. Pretendo assustá-lo, o que não é a mesma coisa. Pretendo falar-lhe de um horror em que você vai viver a partir de agora, se apertar o gatilho.
— Pois ainda assim você perde tempo, Pamela. Nunca ouvi semelhante demonstração de insensatez. Quer voltar as costas? Assim tudo será mais fácil. Não gostaria de desfazer seu bonito rosto.
Agora Pamela exclamou com um grito áspero :
— Olhe os últimos retratos de meu pai, Bob! Veja-os por favor! ele chegou a retratar minha mãe quando lhe apareceu depois de morta! Não faça isso, Bob! Não façaaa!...
O grito de Pamela teve a virtude de conseguir o que suas palavras não tinham conseguido: pôr Bob nervoso.
Sem esperar um segundo a mais, ele apertou duas vezes o gatilho.
O brutal impacto desfez o peito de Pamela.
Matou-a brutalmente, mas nem sequer roçou no seu rosto.
Seus olhos, ao cair, continuavam fitando-o com uma fixidez impressionante.
O INSPETOR Trulock, chefe do grupo, homem premiado com a medalha de mérito, favorecido várias vezes com menção honrosa no F. B. I., encheu seu cachimbo enquanto dizia com voz surda:
— É absurdo.
O homem que estava à sua frente moveu-se suavemente, com uma desenvoltura e uma agilidade felinas, apesar de ser um desses tipos que, se sobem a um ringue, dão a sensação de que vão comer até as cordas.
Era jovem; teria uns vinte e sete anos, enquanto que Trulock já completara os cinqüenta.
Vestia um traje cinzento elegante e limpo, mas não demasiadamente novo. Camisa branca que parecia estar sendo estreada naquele momento. Gravata de riscas oblíquas, grená, azul e preta.
Trulock fitou-o.
Sim, Vance devia ser um desses tipos de quem as mulheres gostam, ainda que eles não dêem por isso. Estava na sua melhor idade e Trulock o invejava. Claro que não o invejava em muitas outras coisas, como por exemplo no seu futuro.
Vance tinha sido seu aluno na escola especial de Quantico, para aspirantes a agentes do F. B. I. Podia ter sido um dos melhores sujeitos sobre este planeta ingrato, um autêntico lutador, um homem nascido para investigar, para aprender, para ser fiel, valente, nobre, para matar e para ter a habilidade de não morrer.
Não obstante, ali o tinha, com seu traje não muito novo, com sua expressão de desalento, convertido em um simples agente da polícia estadual. Vance fora expulso do F. B. I., um ano antes, por suspeita de cumplicidade com um companheiro metido em casos de suborno. Certo em tudo aquilo era que Vance se negara a depor em juízo contra aquele a quem ele considerava um amigo.
E ali estava. Um homem que nunca seria nada apesar dos seus vinte e sete anos. Um fracassado total.
Trulock matutou curioso porque diabos Vance, depois de tamanha desgraça, ainda conservava aquela especial suavidade de expressão.
E, repetia suavemente:
— É absurdo.
— Porque há de ser?
— Você serviria para coisas melhores que perseguir mulheres lunáticas e visionárias.
— Mas, que hei de fazer, se não me encarregam de outra coisa? Desde que passei a depender da polícia do Estado, depois de ter saído do F. B. I., fui considerado um agente de segunda classe a quem não se pode confiar tarefas de importância.
— Como se chama essa mulher?
— Kate.
Trulock demonstrou estar recordando alguma coisa.
— Não a conheço, apesar de ter na memória milhares de nomes de pessoas que têm infringido a lei neste Estado. Quer que consulte os arquivos? Eu o ajudarei no que puder.
— Não é necessário. Na realidade, trata-se de um trabalho de rotina que eu posso fazer sozinho. Além disso, deram-me tempo para fazer a investigação.
— Querem desfazer-se de você, hein?
— Isso é o que temo. Talvez no Departamento de Polícia pensam que sou um tipo ruim.
— A que se dedica essa Kate?
— Era estudante até bem pouco tempo.
— Com os diabos, isso não é delito.
— É que se suspeita que, além disso, tenha uma profissão singular: adivinha.
— Não me lembro — disse Trulock, enquanto exalava uma lenta baforada de fumo — que as cartomantes, sejam consideradas delinqüentes neste Estado. Jamais me preocupei com isso.
— Aqui são delinqüentes. Sua atividade é considerada uma espécie de fraude, segundo a maneira como a exerçam.
— E você tem que perseguir essa tal de Kate?
— Já lhe disse que no Departamento, pelo menos, querem se ver livres de mim.
— Sim, disso eu desconfio — disse pensativamente Trulock. — Podiam também encarregá-lo de procurar as pegadas daquele que assassinou Júlio César... O caso é tê-lo afastado. Bem, eu sinto muito, rapaz.
— De qualquer modo, cumprirei todas as ordens, por ridículas que sejam.
— Você sempre as obedeceu, Vance. Sabe que, por mim, jamais teria saído do F. B. I. E o que essa mulher adivinha, essa tal de Kate? Alguma coisa muito importante, para ter chamado a atenção da polícia?
Vance disse suavemente:
— Sim, uma coisa muito especial.
— Qual?
— Kate adivinha o dia e as circunstâncias em que temos de morrer.
O delegado Lincoln Fez com que puzessem uma manta cobrindo inteiramente o cadáver e disse:
— Sinto muito, Senhor Bentley. Bob parecia desolado.
Tinha-se vestido inteiramente de preto, mostrava os olhos arroxeados por causa do choro e as mãos lhe tremiam. Dava a impressão de não ter dormido nada, o que aconteceu nas duas noites inteiras em que esteve exposto o cadáver de sua mulher.
— A culpa não é sua, delegado — murmurou.
— Sim, claro que sim, não é. Se eu estivesse dado a tempo com aquele salteador, aquele meliante, teríamos evitado essa horrível tragédia. Só ter controlado a arma já seria bastante, mas, confesso, nado num mar de dúvidas. Não sei que fazer, Senhor Bentley, nem por onde começar. Talvez seja verdade que eu já me esteja convertendo num velho fraco e inútil. O juiz Everett comunicou-me que Pamela temia que a assassinassem, mas. ..
— Não diga tolices, delegado.
— Foi terrível para você, voltar depois de ter acompanhado a empregada e encontrar morta sua esposa, não é verdade? Não pense que não notei como você tenta aparentar serenidade. Mas por dentro deve estar descontrolado.
— Faço o que posso, delegado.
O representante da lei engoliu em seco penosamente.
— Quer ver sua esposa pela última vez, antes que a coloquemos no ataúde?
— Não, seria pior. Prefiro recordá-la sempre tal qual era em vida.
— De qualquer modo vai tê-la perto, Senhor Bentley.
— Que quer dizer?
— Vai ser enterrada no jardim da casa. Bentley empalideceu.
Por uns momentos seu rosto adquiriu uma estranha cor de cinza. Suas mãos tremeram durante frações de segundo. O delegado não chegou a perceber, nem, ao que parece, ninguém mais. Entretanto, aquela sensação que lhe tinha acometido foi intensamente forte. Quando conseguiu recobrar a serenidade, levantou a cabeça. Seus olhos tinham expressão normal, mas no seu fundo brilhava algo assim como uma chama sinistra.
— Que quer dizer?
— O que acabo de declarar, Senhor Bentley. O cadáver de sua esposa vai ser enterrado no jardim desta casa.
— Não diga asneiras!
— A que se refere, Senhor Bentley?
— É impossível que nesta época seja um cadáver enterrado no jardim da casa onde viveu.
— Compreendo, Senhor Bentley. Ao senhor deve parecer muito estranha esta situação.
— Muito estranha, delegado. Digo melhor, parece-me uma brincadeira de mau gosto. Não creio que seja justo que você se dedique a brincadeiras macabras num momento como este.
O delegado meneou a cabeça lentamente.
— Caso desejar, Senhor Bentley, o cadáver pode ser trasladado, porém foi esta a última vontade da morta.
— Que espécie de vontade é essa?
— O senhor não conhece o testamento?
— Ainda não.
O delegado tornou a balançar a cabeça mais lentamente que da vez anterior.
— Parece estranho que não tenha tido ocasião de lê-lo. Está depositado no escritório do tabelião desta localidade. Ele advertiu-me sobre o que tínhamos que fazer com o cadáver. Naturalmente deveria ter falado com o senhor, mas não teve ocasião de o fazer. É um homem muito impressionável. De qualquer modo, me parece certo que ele, dentro de uns dois ou três dias, no máximo, virá vê-lo e lhe falará do tal testamento.
Nos olhos de Bob voltou a brilhar aquela leve chama sinistra.
— Quer dizer, delegado, que minha mulher dispôs que seu corpo fosse sepultado precisamente no jardim desta casa, como o foram os corpos de seus pais?
— Isso mesmo.
— E têm consentido?
— Isso mesmo, Senhor Bentley.
Bob levou uma das mãos aos olhos, permanecendo assim alguns segundos, quieto, em silêncio, mergulhado nos seus próprios pensamentos. Evidentemente que estava fazendo o possível para serenar, e, pelo jeito conseguira, porque ao abrir de novo os olhos mostrava-se mais tranqüilo.
Encontravam-se os dois na porta da casa que dava para o jardim, uma porta trabalhada em pedra com ângulos no estilo gótico. Era uma autêntica obra de arte, mas naquele momento a sensação de tristeza que ela produzia, era angustiante.
Mais adiante, no jardim, estavam umas vinte ou vinte e cinco pessoas, todas vestidas de negro em sinal de respeito pela morta. Eram as pessoas mais ilustres de Sioux City e das outras cidades vizinhas. Só uma mulher tão importante como Pamela poderia ter conseguido que tanta gente se reunisse ali para vê-la.
Todos estavam um pouco nervosos, e parecia que cochichavam entre si, como que estranhando o atraso do enterro.
O delegado que interpretava mal os pensamentos de Bob, julgou que ele estava inquieto por outra coisa e disse suavemente:
— Não se preocupe, meu amigo. Juro-lhe que sua esposa será vingada. Esse salteador, seja quem for, cairá nas nossas redes e pagará suas culpas no patíbulo. Você será testemunha de honra na execução, eu lhe prometo. Sabe? Já pedi ajuda à polícia federal. Talvez, sozinho, não possa capturar o meliante. As palavras do juiz Everett, ao contar-me o que Pamela lhe disse, não fazem senão aumentar minha confusão.
Bob olhou-o no fundo dos olhos.
— Falemos claro, delegado.
— Oh! Você não acredita que eu tenha chamado os federais? Posso provar. E um par de agentes virá logo.
— Não me refiro a isso.
— A que então?
— Quer entrar um momento? Tanto você como eu precisamos tomar alguma coisa.
— Bem... se quer assim.
Já no interior de um dos desertos salões, Bota preparou dois uísques capazes de derrubar um cavalo. A verdade é que ele começava a necessitar de um trago. A atmosfera sombria daquele dia e as palavras que acabava de escutar o desassossegavam profundamente. Por isso ele bebeu a metade do uísque de um só trago e disse em seguida:
— Explique-me delegado, porque as autoridades do Município cometeram essa selvageria?
— É uma espécie de tradição aqui, Senhor Bentley... Todos os antepassados de Pamela jazem enterrados neste jardim, tal como se fazia nos velhos tempos. Agora isto não é mais permitido, salvo em casos muito especiais, mas as autoridades acreditaram que assim rendiam uma última homenagem à família mais importante de Sioux City. Considere que com Pamela, que morreu sem deixar descendência, extingue-se por completo o nome da família. Além disso.. . Bem, as autoridades municipais pensaram que você se alegraria em tê-la perto de si.
O delegado bebeu um bom gole do seu copo e acrescentou com timidez:
— Lamento muito que não tenha sido do seu gosto, Senhor Bentley.
Bob estava transtornado.
Percebia que agora a situação era irremediável e um estremecimento percorreu suas costas ao pensar nas últimas palavras de Pamela. Tudo o que ela tinha dito era absurdo, mas parte daquelas coisas absurdas começavam a suceder.
A sensação de frio nas suas costas se Fez mais intensa.
Bem, ele tinha que raciocinar. Não era um garotinho para deixar-se levar por aqueles tolos pensamentos.
— Porque não me consultaram antes, pelo menos? — perguntou ao delegado, levantando a cabeça.
— Não quiseram aborrecê-lo. Pensavam na sua imensa dor e, ao mesmo tempo, estavam certos de que isso o contentaria, o ter mais perto de si, sua querida esposa. Eu não desejo meter-me nos seus assuntos, Senhor Bentley, mas lhe aconselho a agradecer ao prefeito quando vier apresentar-lhe os pêsames na despedida. Eles crêem ter agido bem e sempre se deve estar de bem com essa gente, sabe?
Bob apertou os lábios. De modo que ainda por cima teria que agradecer!
Durante alguns segundos sentiu a tentação de aplicar uns pontapés no delegado, mas se conteve. Sempre tinha sido um homem frio e calculista e agora necessitava continuar a sê-lo mais do que nunca.
— Farei assim — disse com voz rouca.
— Isso me agrada, Senhor Bentley. Verá como dentro de alguns dias nos agradecerá o que fizemos. Agora está aturdido, mas depois se consolará tendo tão perto a sepultura.
— Oh, sim... Claro que sim.
— Aconselho-lhe, entretanto, uns dias de repouso, Senhor Bentley.
— Penso fazer isso. Farei uma viagem pela Europa, sabe? Viajarei de navio, que é o único meio de transporte em que realmente se descansa. Depois voltarei e... bem, tive uma idéia.
— Qual?
— Farei profundas reformas nesta casa. Vou modernizá-la totalmente, mudando o mobiliário e transformando-a em um sítio acolhedor e moderno de verdade.
— Sinto não poder partilhar da sua opinião, Senhor Bentley. Tal como está, é uma casa muito bonita.
— Eu tenho outro gosto.
— Reconheço que isto aqui faz algum medo, mas...
— Porque você pronunciou a palavra medo? — perguntou asperamente, avançando um pouco para o delegado.
— Bem, eu...
— Supõe que eu esteja assustado, delegado?
As feições de Lincoln avermelharam-se por um momento. Seus olhinhos fizeram-se receosos e penetrantes.
— Que há consigo, Senhor Bentley? Que sucedeu?
Bob tratou de serenar-se. Caindo em si viu que estivera a ponto de se deixar levar pelos nervos.
— Perdoe-me... — sussurrou. Não sei às vezes o que penso. Tudo isto é terrível para um homem simples como eu. Quer me acompanhar para presidir a cerimônia, delegado? Os convidados já faz tempo que esperam.
— É uma grande honra, para mim, Senhor Bentley.
Saíram de novo para o jardim. O ataúde, soberba peça trabalhada em bronze, já estava ali. Bob Bentley não se atreveu nem sequer a olhá-lo.
Todos pensaram que ele estivesse compungido pelo desaparecimento de sua mulher. E, de certo modo, era assim.
A primeira coisa que Bob Fez, uma vez terminado o enterro e todas as incômodas cerimônias que se seguiram, foi tomar um avião que o levou a Nova Iorque.
Dali saía o transatlântico "France" naquele mesmo dia. Teve apenas tempo de retirar fundos do Ghemical Bank e pagar na agência o camarote de luxo que tinha reservado pelo telefone. A seguir emitiu uns cheques de viagem para cobrir todas as suas despesas durante uma estadia de três meses na Europa, porém, três meses vividos no ritmo de um autêntico Rockefeller. Não havia motivo para que Bob Bentley, agora um dos mais ricos da sua cidade, se privasse de nada.
A vida a bordo do "France" era maravilhosa. Bob esqueceu por completo sua mulher, sobretudo quando se apresentou uma aventura com uma vedette famosa que tinha ouvido falar dos seus milhões. Ao desembarcar no Havre, dirigiu-se diretamente a Paris, hospedando-se no Ritz.
Paris pareceu-lhe divertido durante duas semanas. Logo se aborreceu um pouco das suas belas pequenas, dos seus monumentos históricos e dos seus espetáculos muito bem apresentados.
Passou uma temporada de descanso na Cote d'Azur e na Riviera italiana. Depois foi a Roma, a Nápoles e a Capri. Dali voou para Berlim ocidental. Gastava mais do que tinha calculado e teve que pedir uma nova remessa de fundos. Mas... que importava?
Com toda uma vida de dissipação não chegaria a gastar o que sua mulher lhe tinha deixado por herança.
Quem disse que o crime não compensa? Quem imaginou que o criminoso termina sempre sangrando no asfalto, assando na cadeira elétrica ou enforcado?
Ele era um tipo respeitado por todos e para obter dinheiro bastava levantar um dedo. Os diretores dos bancos o acompanhavam até a porta e os policiais lhe faziam quase uma reverência ao examinarem seu passaporte e verem seus anéis de brilhantes. Os diretores dos hotéis sempre se lamentavam de não terem para ele uma suite digna de sua categoria. Nos clubes mais caros, mais selecionados e mais fechados da Europa, sempre lhe reservavam um lugar de honra.
Nunca Bob tinha desfrutado uma existência tão maravilhosa.
Estar de barriga para cima todo o tempo que lhe desse na veneta. Viajar em classe de luxo. Desfrutar da comida dos melhores restaurantes e das carícias das mais cotadas vedettes. Não ter que se preocupar por um zero mais, um zero menos, posto em um cheque. Podia um tipo como Bob Bentley imaginar nada melhor?
Além disso não tinha despertado suspeitas. De vez em quando, por meio de uma agência de detetives, fazia iniciar uma discreta investigação no juizado de Sioux City, para certificar-se de que continuava a não ser objeto, da menor suspeita. Nem o juiz nem o delegado lhe atribuíam a menor participação na morte de Pamela.
Tudo tinha saído tão bem que Bob pensou em "ampliar" seu negócio.
Porque não podia sair-se bem duas vezes já que tinha saído bem de uma? Porque, contando agora com a ajuda dos seus milhões, não podia casar-se de novo com uma mulher rica e repetir o que tinha feito com Pamela, ainda que em outro lugar bem diferente, onde ninguém o conhecesse nem pudesse inteirar-se dos acontecimentos de Sioux City?
Não que Bob necessitasse de dinheiro: Tinha o suficiente para gastar até morrer, mas devia contar com uma progressiva desvalorização da moeda e com um maior refinamento dos seus gostos. Era possível que chegasse um momento, muitos anos mais tarde, em que já não pudesse fazer frente aos seus dispendiosos gastos, que cada vez iam aumentando. Por exemplo, ele tinha começado perseguindo as coristas dos teatros de Paris, mas agora já gostava somente das estrelas. Que aconteceria se as coisas se fossem complicando desse modo tão agradável?
Bob mostrara-se um assassino frio e calculador, mas agora pensava já como um negociante mais frio e calculista ainda. Tinha que conservar seu dinheiro. A possibilidade de um novo golpe — agora definitivamente o último — valia a pena ser levada em conta.
Mas ele não podia estar indefinidamente na Europa. Tinha que pensar em dar uma volta em Sioux City.
O velho Jeremy — que tinha descoberto sua direção não se sabe como — escreveu-lhe para o hotel de Berlim. Um trecho da sua carta fez com que meditasse bastante. Era assim:
".. .e por aqui diz-se que você já tem se divertido bastante e que não tem sentido muito a morte de sua mulher. Eu, que o conheço, sei perfeitamente o muitíssimo que tem lamentado o acontecimento, porém, você sabe que não é isto o que esta gente pensa. O povo é mau e dado a murmurações. Para muitos vizinhos de Sioux City, você não está descansando dos seus pesares, mas divertindo-se e passando vida folgada. O que você deve fazer é vir para cá imediatamente e achatar as ventas de mais de um imbecil que não sabe de que modo perder seu tempo..."
Bob compreendeu que Jeremy dizia a verdade.
O velho Jeremy era um homem sem maldade e em seus comentários refletia as coisas tal qual estavam acontecendo. Sem dúvida, a gente do local já começava a murmurar depois de permanência sua em hotéis de luxo da Europa. O melhor que podia fazer era regressar a.Sioux City, liquidar discretamente a casa e as demais propriedades e afastar-se dali para sempre.
Ainda estava dentro do possível o início de um processo criminal contra ele, baseando-se em simples suspeitas. Nunca se sabe onde e como podem terminar os falatórios em uma cidade pequena. Deste modo, respondeu ao velho Jeremy:
"Estou pesaroso em excesso, rapaz. Nem sequer a velha Europa conseguiu dominar a minha dor. E é isso o que tenho procurado: esquecer. Mas, asseguro-lhe que vez por outra — embora lamente muito depois — tenho ido a algum cabaré ou alguma festa. Mas minha vida transcorre em um contínuo peregrinar de museu em museu e de igreja histórica em igreja antiga. Apesar disto, entretanto, não consigo esquecer Pamela, e, por isto, vou regressar a Sioux City. Explique a essa gente que breve me verão de novo por aí. Sinto-me fracassado e mais triste do que quando deixei a cidade..."
Bob enviou a carta pelo correio aéreo.
Sabia que aquela carta seria lida pouco mais ou menos no centro da rua principal. E velho Jeremy era a pessoa ideal para difundir notícias e comentários de qualquer espécie. Explicaria a carta até às criancinhas e, ainda por cima, defenderia Bob com capa e espada. A situação voltaria a ser boa.
Duas semanas depois — as quais passou quase que inteiramente perseguindo uma monumental vedette alemã — regressou a Sioux City.
Na velha e puritana cidade, tudo continuava no mesmo.
ACONTECE muitas vezes que, ao regressarmos de uma longa e estafante viagem, parece-nos que o mundo que deixamos ao partir devia ter seguido também o nosso acelerado ritmo e sofrido profundas transformações, como as que nós tenhamos sofrido. Vemos, entretanto, que tudo continua no mesmo, imutável, tal como deixamos. Sentimos então uma espécie de desorientação e parece-nos que nossa viagem foi uma ilusão. Foi isto o que aconteceu a Bob Bentley.
Ao regressar a Sioux City teve a sensação de que nunca saíra dali e de que seus longos três meses na Europa não tinham sido senão uma espécie de sonho.
Chegou de noite. As velhas ruas, construídas pelos primeiros colonizadores, estavam solitárias. A paz e a calma da pequena cidade chegavam a impressionar profundamente a qualquer pessoa.
Bom lugar para repousar. Bom lugar para esquecer as preocupações de uma vida estafante.
Porém Bob não gostava daquilo.
A única coisa de bom daquilo era que o medo, sentido por ele no dia em que soube que Pamela ia ser enterrada no jardim, tinha desaparecido por completo. Depois de seus três meses maravilhosos passeando pela Europa, os temores ridículos tinham desaparecido. Bob Bentley sabia agora que a única coisa que existe são as mulheres de carne e osso. Os fantasmas não.
Nem sequer a visão da velha casa, atrás de um jardim iluminado pela lua, conseguiu impressioná-lo.
O velho Jeremy tinha ido buscá-lo. Foi ele quem lhe disse:
— Está tudo no mesmo, não é verdade?
— Sim, tudo... Parece que o tempo não passou por aqui.
— É que três meses é um prazo muito curto, ainda que a você tenha parecido uma eternidade. Três meses é apenas o tempo justo de vida de uma mosca.
— Compreendo.
— Durante sua ausência ninguém entrou aqui, exceto as mulheres que vinham fazer a limpeza. A residência não está como dantes, mas nela pode-se viver. Você precisará de serviçais.
Sim, suponho. O mal é que despedi e indenizei a todos os que estavam aqui antes.
— Eu lhe conseguirei algumas pessoas que atendam todos os trabalhos da casa. Dois empregados bastam para isto.
— De acordo, mas que seja gente discreta. Quero que respeitem minha dor.
— Oh, não se preocupe!
Chegavam naquele momento diante da sepultura, sobre a qual descansava uma singela lápide. Bob murmurou:
— Descobriram o... o...?
— O saqueador que fez isso?
— Sim.
Jeremy deu de ombros.
— Sinto muito, Bob, mas ninguém pôde fazer nada. Parece que a terra tragou o bandido. O delegado está aborrecido, mas pensa que talvez o tipo fugiu daqui ao ver que tinha chegado ao crime. O delegado avisou seus colegas vizinhos, mas até agora não há nenhum resultado.
Fez uma pausa e acrescentou:
— Já detiveram muita gente por suspeita. Todos os vagabundos sem documentos e desocupados da região, incluindo a mim mesmo... Todos têm passado pelo crivo. Mas, todo o mundo tinha seu álibi.
Sem dar pela coisa, tinham-se detido diante da sepultura, sobre a qual, na lápide, havia flores frescas.
— Quem... ? — perguntou Bob.
— O delegado Lincoln. Ele vem aqui muitas vezes e sempre traz um ramo de flores. Você sabe que ele conheceu Pamela desde pequenina.
— Compreendo.
Jeremy disse, com um sentimento de pesar muito próprio de gente velha:
— Imagina você como estará agora, Bob?
— Quem?
— Ela, a morta. Parece mentira, não acha?
— Não gostaria de falar disso. Mas Jeremy insistiu:
— Era tão bonita! A mulher mais formosa de Sioux City, ainda que um pouco grã-fina, quer dizer, demasiadamente distinta. Era mesmo uma mulher maravilhosa. E, entretanto, agora...
Imagina você o que haverá ali debaixo depois de três meses. A morte é algo muito repugnante, meu amigo. Se a morte fosse alguém, alguma pessoa a quem se pudesse encontrar, eu avançava agora mesmo e lhe dava uns pontapés nas tripas. Mas a morte, não é gente, está ali — e mostrou a casa — em qualquer parte e nós não a vemos. É isso o que nos converte em suas vítimas.
Bob não estava gostando da conversa. Fez uma careta.
Recordava as enigmáticas palavras de Pamela: — Verá minha pessoa depois que eu tiver morrido.
Tinha conseguido esquecer aquilo e agora tornava a sentir-se imerso naquele frio universo de horror, por culpa do maldito Jeremy. Era para uma pessoa pôr-se a gritar.
— Não poderíamos falar de outra coisa?
— Oh, perdão... Não pensei que isto renovava sua dor.
— Eu quero lembrar-me de Pamela tal como ela foi.
— Compreendo.
— Quer entrar e tomar alguma coisa, Jeremy?
— Não, muito obrigado. É a primeira vez que não aceito um trago, mas os médicos puseram-me de sobreaviso. Se continuo bebendo, esta maldita tensão acabará comigo.
Bob esboçou um gesto.
Na verdade, não sabia por que, gostaria que Jeremy houvesse aceitado seu convite. A idéia de entrar completamente só naquela casa o anulava.
Porém, tinha que acostumar-se a idéia. Não ia agora pôr-se a temer como uma criança.
— Adeus, Jeremy. Sinto muito não aceitar o trago.
— Adeus, Bob. Vou tratar de arranjar as duas pessoas para o serviço e as mandarei. aqui amanhã, sem falta, ou, o mais tardar, depois de amanhã.
— Agradeço.
Bob Fez girar a chave na fechadura. Tudo estava silencioso, sombrio, como ele deixara. Parecia que o tempo não tinha passado.
Os mesmos velhos móveis, os recantos ignorados que faziam com que cada quarto da casa parecesse misterioso como um sepulcro.. . E o silêncio que envolvia tudo, esse silêncio espesso, impressionante, cheio, entretanto, de estranhos sussurros que pareciam chegar do mais fundo das sombras.
Bob foi acendendo todas as luzes por onde passava, sem apagar nenhuma depois. Assim conseguiu logo que toda a casa ficasse iluminada. Lá do jardim, o casarão devia estar reluzindo como uma jóia.
As luzes das janelas chegaram até a lápide da sepultura.
Mas, porque pensava nessa coisa? Que fossem para o diabo essas complicações.
O que devia fazer era permanecer ali uns dias, para não chamar atenção, e nesse meio tempo ir procurando alguém com muito dinheiro que estivesse interessado em adquirir a casa.
Claro que ninguém quereria uma casa com uma sepultura perto, mas isso ele procuraria arranjar.
Foi ao bar e se serviu de um copo quase cheio de uísque. Era uma dose forte, capaz de derrubar um cossaco, mas ele bebeu tudo de dois tragos.
Ao terminar sentiu-se mais confortado.
Desceu aos porões, onde, como em todas as casas antigas, havia um armário com porta dupla, que era um esconderijo ideal. Pamela lhe tinha mostrado logo que se casaram. Pamela lhe desvendara todos os segredos de sua alma, de seu coração, de sua casa.
Mas a recordação não comoveu Bob.
No duplo fundo do armário tinha escondida aquela arma e esperava de que se apresentasse um bom momento de desembaraçar-se dela. Viu que a arma continuava no seu lugar e que ninguém a tocara. Sobre ela estava uma finíssima camada de pó.
Bob a contemplou.
Dava pena ter que se desembaraçar de uma arma assim, mas era preciso. Dentro de cinco ou seis dias, quando não chamasse a atenção de ninguém, a enterraria no bosque.
A seguir, foi dormir.
Dormiu como um santo, como uma pessoa que não tivesse nada a lhe pesar na consciência.
Mas, ao abrir os olhos, lá para as dez da manhã, uma boa surpresa o aguardava.
FORMOSOS raios de sol penetravam pelo grande janelão sobre o leito. O ambiente era cálido e confortável. Estava-se bem naquela imensa cama, que ele tinha compartilhado com Pamela noutro tempo. De uma maneira vaga e distante, Bob recordou: Pamela tinha sido uma mulher muito bonita, formosa mesmo. Agora gostaria de ter ali, ao alcance das suas mãos, outra moça que se parecesse com ela.
Bocejou.
O sol se projetava sobre a mesinha de mármore, sobre os ricos cortinados, sobre a espingarda apoiada na parede.
O bocejo de Bob parou em seco.
Que diabo era aquilo? A arma, ali?!
Levantou-se dum salto da cama e a tomou entre seus dedos. Imediatamente estes, sem que ele pudesse evitar, puseram-se a tremer. A arma, que ele conhecia perfeitamente, esteve a ponto de cair ao solo.
Ele tinha a certeza de a ter deixado, na noite anterior, no armário do porão!
E agora estava ali! Que espécie de pilhéria macabra era aquela? Quem se ria dele?
Bob sentiu umas gotinhas de suor gelado começando a aflorar na sua testa, mas fez o possível para dominar-se.
Não, ele não era uma criança. Tudo aquilo teria, forçosamente, uma explicação lógica.
Pôs apressadamente um robe sobre os ombros e desceu ao porão.
Abriu o armário. Estava vazio! Tinha que ser assim, com efeito, porque ele estava com a arma na mão. Porém, até o último momento, tinha confiado absurdamente que aquilo fora um erro, uma espécie de pesadelo. Encontrar a arma autêntica dentro do armário o teria tranqüilizado.
Entretanto, alguém a tinha tirado dali. Tinha entrado na sua casa enquanto ele dormia e a colocara à cabeceira do leito...
Bob Bentley sentiu uma mão espantosamente fria posar no seu ombro. A sensação de horror foi tão intensa que ele acreditou que, efetivamente, alguém lhe tinha tocado.
Voltou-se dando um salto.
Porém, estava só, completamente só. E devia parecer ridículo, com o pijama meio caído, o robe sobre os ombros e aquela arma de cano serrado na mão.
Lentamente, como um autômato, colocou-a sobre uma mesinha que ocupava o centro do quarto.
Uma coisa era evidente, depois do que aconteceu: alguém conhecia seu segredo. Mas quem?
Só podia ser uma pessoa, ou, melhor, um ser do outro mundo.
Bob esteve a ponto de soltar um grito quando ao seu cérebro chegou aquele nome: Pamela!
Pamela, que lhe tinha dito que tornariam a se encontrar! Pamela, que tinha prometido voltar do Outro Mundo!
A sensação de frio nas costas de Bob aumentou, mas este fez terríveis esforços para se dominar.
Tudo aquilo devia ter uma explicação lógica. e ele se encarregaria de averiguar.
Tomou o telefone e discou o número da delegacia. O delegado atendeu.
— Ouça, Lincoln.
— Encantado em ouvi-lo, Bob. Puxa, que agradável surpresa!
— Pois não se alegre tanto. Há preocupações para você.
— Porquê? Que sucedeu?
— Tentaram roubar-me esta noite. Ouviu-se o delegado resmungar um palavrão do outro lado do fio.
— Você está certo disso?
— Bolas, claro que estou!
— Que levaram?
— Nada, porque ouvi ruídos suspeitos e me levantei. O ladrão deve ter fugido.
— Chegou a vê-lo?
— Não.
— Já sei o que aconteceu, Senhor Bentley: não sabiam que você tinha voltado. Acreditaram que a casa estava desabitada, por isso entraram.
— Ouça, delegado, não tenho nada com isso. Quero é que isso não torne a se repetir.
— OK. Montarei um serviço de vigilância.
— É isso justamente o que quero.
O delegado refletiu uns momentos.
— Ouça, Senhor Bentley — disse por fim —, não me vai ser possível fazer tudo o que quero, mas, farei alguma coisa. Recorda-se que lhe disse que tinha pedido a ajuda dos federais?
— Claro que me recordo!
— Bern, pois os federais estiveram flanando por aqui uma temporada e afinal foram-se calmamente. Nem uma pista, nem um indício, nada. Para justificar o F.B.I. e o dinheiro que ele custa aos contribuintes. Para consolo, o governador designou um homem da polícia estadual, um tipo chamado Vance.
— Quem é Vance?
— Encarregaram-no da missão de encontrar uma cartomante, mas eu creio que o que querem é desfazerem-se dele. Entretanto, é um tipo extraordinário, acredite. Se ele vigiar sua casa, ninguém se aproximará dela a menos de duas milhas.
— Pensa que ele virá?
— Vance depende da polícia estadual e está designado para esta zona, sob minha jurisdição.
Não terá inconveniente nenhum em vir. Quer que vá morar na sua própria casa?
— Não é necessário — disse Bob, medindo bem as palavras —, não lhe quero dar muito trabalho. Bastará que vigie de noite, à distância; de dia pode dormir.
— De acordo, Senhor Bentley. Vance irá hoje mesmo pela manhã visitá-lo para que o senhor o conheça.
— Obrigado. Você é um grande homem, Lincoln.
O delegado riu servilmente.
— Faço o que posso, Senhor Bentley, faço o que posso.
Bob desligou.
Uma certa expressão de alívio desenhou-se em seu rosto.
Se alguém vigiava a casa durante a noite, poderia inteirar-se de muitas coisas. A mentira do rifle tinha criado um ser de carne e osso, não um fantasma. Seguramente, Vance daria com ele, ainda que Bob tivesse o cuidado de não se deixar interrogar.
Poderia ser perigoso.
Bentley também poderia ter contratado alguns detetives para que vigiassem os arredores, pagando-os com o seu dinheiro e exigindo-lhes discreção. Mas isso talvez tivesse chamado a atenção de Lincoln, fazendo-o pensar que Bentley lhe ocultava algo. Assim, pelo contrário, solicitando sua ajuda, Bob aparecia como um cidadão honrado, sem nenhuma espécie de temor pela lei.
Vance apresentou-se pela manhã.
Era um tipo alto, com aspecto de lutador de catch e em cujo rosto, entretanto, havia uma especial doçura. Parecia um homem discreto e silencioso e Bob o considerou ideal para a missão que teria que lhe encomendar.
— Por onde entraram para roubar, Senhor Bentley?
— Não sei. Depois da casa ficar desabitada mais de três meses, é possível que tenham janelas mal encaixadas, fáceis de um ladrão forçar. Não verifiquei. Só ouvi uns ruídos suspeitos e me levantei, notando que alguém fugia pelo jardim. Isso é tudo.
— No jardim não há pegadas.
— Como sabe?
— Verifiquei antes de entrar na casa.
, — Pois, ontem à noite estive caminhando pelo jardim com meu amigo, o velho Jeremy.
— Esses rastos eu notei. E não os levei em conta. Porém, o que me causa espécie é a certeza de que por aqui não passou ninguém mais.
Bob perguntou, quase sem perceber:
— Que sugere? Que foram fantasmas? Imediatamente apertou os lábios.
Não gostava da palavra. Não devia jamais tê-la pronunciado.
Porém, Vance limitou-se a sorrir suavemente.
— Os fantasmas não existem, Senhor Bentley; você sabe disso muito bem. O que penso é que o ladrão agiu com muita astúcia. No jardim existem muitos caminhos cobertos de folhas secas por onde pôde passar o assaltante sem deixar rastos apreciáveis.
Bob sorriu aliviado.
Não sabia por que, mas sentia um grande alívio ao lembrar que o acontecimento da noite anterior só poderia ser obra de uma pessoa de carne e osso, não um fantasma, nem nenhum espírito vindo do outro mundo.
Vance perguntou:
— Posso ver a casa, Senhor Bentley?
— Neste momento.
O rifle já tinha sido enterrado profundamente no lugar mais afastado do jardim e a terra removida fora coberta, precisamente, com folhas secas. Não havia possibilidade da arma ser descoberta. Além disso, naquele lugar, havia infiltrações de um arroio próximo, o que faria com que a arma se oxidasse logo, e, por isso, seria muito mais difícil o exame dos técnicos, caso ela fosse encontrada um dia.
Vance disse:
— Agradecido.
Durante o resto do dia não aconteceu nenhuma novidade. Bob Bentley foi a Sioux City almoçar, visitou o delegado e alguns conhecidos, simulou diante de todos um grande pesar e a noite voltou para sua casa.
Esta se mostrou ante seus olhos como na noite anterior.
Também havia luar. Também viam-se brilhar tranqüilamente os vidros das janelas, assim como a lápide da sepultura.
Bob começou a ficar nervoso.
Em maldita hora tinha voltado para ali. Devia, simplesmente, estabelecer por carta todas as transações para a venda das propriedades.
Se não fosse pela necessidade de comportar-se de um modo natural, para evitar toda a sorte de suspeitas, não estaria ali.
Quando estava para entrar em casa, úmidas luzes do térreo acendeu-se. Bob teve um estremecimento, porque a luz que acabava de surgir correspondia ao quarto de música de Pamela, uma das suas dependêncais favoritas.
Porque pensava em todas essas bobagens? Até a que extremo se deixara influenciar pelo ambiente da casa?
Decidiu não se acovardar e foi até o aposento.
Exalou um suspiro de alívio ao ver que a pessoa que estava ali era Vance.
— Olá, Sr. Bentley. Ouvi o senhor chegar.
— Boa noite. Estava investigando até agora?
— Sim.
— Que conseguiu averiguar?
Vance Fez um gesto sincero de desânimo, enquanto evitava encará-lo, como se se sentisse um pouco envergonhado ante seu fracasso.
— Nada. Esta casa é imensa.
— O mesmo penso eu. É demasiado grande para um homem só, mas, de qualquer modo, você está fazendo muito. Ao notar que isto está vigiado, o ladrão não voltará.
— Eu, pelo contrário, gostaria que voltasse.
— Para prendê-lo?
— Naturalmente.
Vance acendeu um cigarro e disse, encaminhando-se para a porta:
— Vou vigiar pelo lado de fora. Darei voltas em torno da casa e agirei com presteza, se notar alguma coisa suspeita: O senhor pode, portanto, dormir tranqüilo.
Ia abrir a porta quando Bob perguntou rapidamente :
— Você é agente credenciado, não? Lincoln disse-me que pertenceu ao F.B.I.
O rosto de Vance parecia talhado em pedra; não refletia nenhum sentimento, nenhuma emoção.
— Porque o expulsaram?
— Por não querer acusar um amigo.
— Agora deve ser penoso para você ver-se obrigado a esse trabalho subalterno.
— Que remédio! O subordinado tem que fazer o que lhe mandam.
Bob sorriu, mas, insensivelmente, seu sorriso era artificial.
"Está aqui um exemplo vivo do pouco que serve ser-se virtuoso até o fim, pensou.
Ele tinha diante de si um homem honrado, um camarada honesto à toda a prova. Um policial que tinha sacrificado seu futuro depois de anos e anos de dura aprendizagem. Enfim, para que? Para vigiar-lhe a casa enquanto dormia. Para ser uma espécie de seu criado.
Acercou-se do piano, que era antigamente o instrumento de música favorito de sua mulher, e pôs os dedos sobre as teclas.
— Boa noite, Vance.
— O piano está desafinado — disse Vance antes de sair. — Tentei antes tocar alguma coisa e não sei o que há. A metade das teclas não soam, apesar do piano ser de marca excelente.
— De certo. É um Pleyel — disse Bob pensativamente —, mas é muito velho. A única pessoa que sabia afiná-lo num momento era minha esposa. Enfim, isso já passou... Não vale a pena recordar.
— De fato, Senhor Blentley, isso é passado — disse Vence.
E saiu.
Bob preparou um uísque duplo e o bebeu à memória de Pamela. Estava certo de que aquilo o ajudaria a dormir. Despiu-se a seguir, e, efetivamente, não tardou em estar dormindo como um justo.
Despertou muito mais tarde, com uma estranha sensação.
O que acabava de despertá-lo era algo muito conhecido, um som familiar,
No primeiro momento não pôde precisar o quê. Só sabia que era alguma coisa que tinha ouvido muitas vezes desde o seu casamento. Algo relacionado com Pamela.
Estremeceu.
Todo o seu corpo ficou rígido e ele moveu-se num impulso independente da sua vontade, e saltou da cama sem querer.
Agora sabia perfeitamente em que consistia aquele som tão familiar.
Era o piano que tocava.
O mesmo piano que ele não tinha conseguido fazer vibrar horas antes! O instrumento favorito de Pamela!
Ouviu um ruído áspero e só mais tarde viu. com surpresa, que era o bater dos seus próprios dentes.
No seu dormitório tinha sempre uma pistola Smith de modelo um tanto antigo, mas terrivelmente eficaz à curta distancia. Procurou-a na mesinha de cabeceira, com as mãos trêmulas, e a encontrou ali, no mesmo lugar onde tinha estado sempre. Verificou se estava carregada e se as molas funcionavam perfeitamente, apesar do desuso.
Com ela na mão, desceu para o térreo.
Durante todo aquele tempo, durante minutos tensos e angustiantes, o piano continuava soando. A música interpretada era claramente perceptível através dos amplos salões desertos e dos corredores cheios de vibrações. Tratava-se de "Barcarola" uma das melodias favoritas de Pamela.
O suor escorria pelo rosto de Bob enquanto ele se aproximava do andar térreo.
Sua mão direita, mantendo a pistola, tremia como a de um condenado à morte.
Quando já estava no vestíbulo, no começo da grande escadaria, a música parou.
Que contraste! O silêncio fez-se tão terrível, tão impressionante como o que deve reinar no interior das sepulturas.
A escuridão parecia mais densa, e, dir-se-ia que uma espécie de sopro fatal se desprendia das velhas paredes da casa, Bob engoliu em seco. Sua garganta produziu um som estranho, como o de duas peças metálicas ao juntar-se. Estava espantosamente seca.
Empurrou brutalmente a porta que dava para a sala de música e entrou de repente nela, levando a pistola apontada.
Os raios de lua, penetrando pelas grandes janelas de cortinados corridos, projetavam-se em cheio sobre o velho piano, iluminando o claramente.
Não havia ninguém sentado diante do instrumento.
A sala estava vazia e o silêncio era completo.
Bob esteve uns instantes na porta, ofegando ruidosamente, sentindo que o ar lhe queimava os pulmões. Se nesse instante tivesse visto mover-se uma sombra teria esvaziado toda a carga do revólver sobre ela, sem pensar um instante. Porém nada se movia ali. Tudo estava imerso em mudez absoluta.
Bob decidiu-se, por fim, avançar.
Roçou as teclas do piano.. . e estas não produziram o menor som!
O Pleyel continuava desafinado como antes, como quando ele tocou diante de Vance!
Não obstante, ele tinha ouvido perfeitamente a música!
Tinha que ser aquele! Não havia outro piano na casa!
O suor gelado impregnava agora todo seu corpo, e as gotas chegavam até sua boca, produzindo nela um sabor amargo.
Naquele momento ouviu-se um ruído na porta.
Bob Bentley dirigiu a pistola para lá, disposto a disparar contra quem quer que fosse.
A alta figura de Vance se recortou no umbral.
Não pestanejou ao ver Bob apontando-lhe a arma, ainda que percebesse que o dono da casa estava nervoso e podia cometer, naquele estado, qualquer loucura.
— Que aconteceu, Senhor Bentley?
Sua voz, seca e metálica, parecia vir de muito longe.
— Alguém tocava este piano.
— O que está dizendo?
— Alguém tocava, com todos os diabos! Eu mesmo ouvi!
— Quando?
— Há poucos minutos. . .
Vance, em resposta, aproximou-se do instrumento e tocou nas teclas. Estas não produziram o menor som. Levantou os olhos e fitou interrogativamente Bentley.
— Está imprestável — disse.
— Isso eu vejo! Com os diabos, já me certifiquei disso! Mas eu ouvi há alguns minutos! Ouvi, juro!
Vance murmurou:
— Às vezes o sonho nos prega peças. À vezes uma pessoa crê estar vivendo coisas que nunca viveu, viu ou ouviu.
— Pretende dizer que sou algum maluco? Que vai fazer? Levar-me a algum psiquiatra?
— Eu não digo isso, Senhor Bentley. Nós sonhamos e não há quem não se tenha encontrado alguma vez na vida tendo um sonho de particular intensidade, capaz de o atraiçoar por momentos.
— Eu não.
— Mesmo que você tenha os nervos muito bem controlados, Senhor Bentley, pode se encontrar em certa situação que não compreenderá.
Bob ia ficando, por momentos, cada vez mais nervoso.
A calma imperturbável e fria do policial — que, sem dúvida, não lhe acreditava — era alguma coisa que o punha fora dos eixos.
Com muito gosto teria disparado sobre ele.
— Onde você estava? — inquiriu. — Onde estava você, com os diabos!?
— Perto da porta da casa.
— E não ouviu nada?
— Nada, Senhor Bentley.
— Então lhe recomendo que procure um médico! Você está precisando de um aparelho para surdez.
— Não preciso dele, Senhor Bentley, Ouço perfeitamente bem. A prova é que ouvi seus passos e a pancada que deu contra essa porta. Se alguém estivesse tocando piano, eu teria ouvido com a mesma perfeição.
— Isso que diz é impossível, "tira". Vance perguntou com voz muito suave:
— Porque não descansa outra vez, Senhor Bentley?
— Porque não recomenda que me apliquem uma ducha fria, como se recomenda para os loucos?
— Não tome as coisas assim, Senhor Bentley. Vá descansar tranqüilamente e lhe prometo que vigiarei.
— Também vigiava antes, e, entretanto...
— Alguém o atacou? Correu o menor perigo, Senhor Bentley?
Bentley apertou os lábios.
Não, não tinha corrido o menor perigo. Alguém estava lhe perturbando o cérebro, porém tinha que reconhecei que não tinham lhe tocado a pele.
— Está bem — disse zangado. — Voltarei para o quarto de dormir. Porém, vigie bem esta parte da casa porque pode ser que haja alguém por aqui.
— Claro. . . Crê que não tenho olhos? , Maldizendo em voz baixa, Bentley voltou ao seu dormitório. Mas resolveu ter a pistola debaixo do travesseiro para o caso de tornar a ouvir algum ruído estranho.
O delegado Lincoln envesgou os olhos ao ver entrar na sua repartição o agente Vance em companhia daquela moça.
Evidentemente que era uma dessas moças que só se vêm uma vez no ano e ainda por cima nos anos bissextos.
Lincoln abriu a boca, embasbacado.
A pequena era ruiva, alta, cheia de corpo. "Ruiva, alta e cheia". Lincoln ficaria repetindo estas três palavras até o dia da sua aposentadoria ou até quando sua mulher lhe rachasse a cabeça.
A moça era uma perfeição, desconhecida ali, e devia ter aproximadamente seus vinte e três anos. Estava vestida de branco, com um traje muito ajustado às suas formas e tinha meias cor de antílope. Seus sapatos combinavam com magnífica bolsa que pendia da sua mão direita.
Não obstante, apesar de andar passeando com uma pequena tão monumental, Vance não parecia satisfeito.
Nem ela.
Dava a impressão de que só lhes faltava morderem-se.
Vance fez a moça entrar, segurando-a por um braço, e disse ao delegado:
— Esta é Kate.
Lincoln pôs-se de pé num salto.
— Muito prazer, com os diabos,
— Pois a mim não agrada nada entrar no seu cubículo, delegado.
A pequena sentou-se numa cadeira, diante de um mudo e enérgico sinal de Vance e cruzou as pernas.
O delegado caiu em cheio sobre o assento. Sua boca abriu-se tanto, que já não a podia fechar.
— Necessito de um trago — balbuciou. Enquanto lhe servia, Vance explicou a situação :
— Procurei esta mulher durante muito tempo por todas as povoados, grandes e pequenos deste Estado. A polícia estadual me encarregou que a encontrasse; afinal consegui.
— E, porquê a persegue? Para devorá-la?
— Não seja tolo, delegado.
— Ah, bom ,já compreendo. É que o chefe da polícia estadual a quer em observação.
— Menos asneiras. Ela é acusada de praticar ocultismo.
— Isso não é certo! — gritou a moça.
— Não me diga que não adivinha o futuro.
— Se eu adivinhasse o futuro, você não me tinha prendido, seu mastodonte!
Kate parecia expelir fogo pelos olhos. Mas, assim mesmo, estava muito mais bonita. E, ainda por cima não se apercebia de que a saia lhe subia pelos joelhos, como constatou manhosamente Lincoln.
— É melhor que você não crie dificuldades, moça — disse Vance, conciliador. — Também não lhe acontecerá nada de grave por causa do que lhe acusam. No máximo uma simples multa.
— Não tenho dinheiro!
— Bem, então uns dias de detenção e a proibição de exercer aqui sua atividade.
— Não tem o direito de deter-me! Ninguém poderá declarar que eu lhe tenho cobrado dinheiro para adivinhar-lhe o futuro! Tudo isso não é mais do que invenção para perseguir uma moça indefesa,
Vance suspirou de cansaço.
— Ouça, delegado, este é um assunto sério. Encarregaram-me na capital de encontrar esta mulher.
— É sinal de que na capital não têm trabalhos mais importantes, apesar de tudo o que dizem. E, que quer que eu faça?
— Dê parte da detenção.
— Não posso, porque a moça não está detida — apressou-se o delegado a declarar. — Eu lhe dou liberdade imediatamente.
— E é para isto que tenho me fatigado tanto? — perguntou Vance.
— Você não é mais que um pobre assalariado, que de vez em quando precisa levar uma lebre ao seu dono para que lhe poupe a vida inútil! — gritou Kate. — Nunca vi ninguém tão miserável, tão baixo, tão.. . — a moça parecia a ponto de saltar sobre ele. — Dá-me vontade de matá-lo!
— Eu não faço mais do que cumprir com o meu dever, Kate.
— Também os verdugos cumprem, e, ninguém por isso lhes aperta a mão!
Levantou-se, como que encorajada pela atitude favorável de Lincoln e por um momento pareceu que iria bater em Vance. Este teve que segura-la pelos pulsos, obrigando-a a sentar-se com um gesto rude.
— Menos barulho, ferazinha.
— Não me toque! Não me toque ou o denunciarei !
— O que estou fazendo é evitar que você me toque, boneca.
O delegado Lincoln impôs a paz.
— Deixemos isso agora — decidiu. — Darei parte à chefatura da polícia estadual, mas esta senhorita não ficará no cárcere. Onde estava hospedada no momento da sua detenção, Kate?
— No hotel Ransom.
— Conheço-o. Pode continuar ali.
— Não posso sair da cidade?
— No momento, não; sinto muito. De qualquer modo lhe garanto que este incômodo assunto se resolverá em muito poucas horas. Pode ir, Kate. Darei logo mais uma volta pelo hotel Ransom para certificar-me de que tudo anda bem.
Vance olhou o velho com os olhos entrecerrados, mas não disse uma palavra até que a pequena saiu.
— Você fez da boa, delegado.
— Porquê?
— Tirou-me toda a autoridade.
— Homem, o caso não é para tanto.
— Essa pequena me odeia. Fará qualquer coisa para me desacreditar.
— Nesse caso eu o defenderei, Vance. Mas, você verá que não vai haver necessidade disso. Que é que há com Bentley?
— Creio que está louco.
— Como?
— Começou a padecer de alucinações.
— Você está brincando, Vance. Precisamente Bob que tem sido sempre um homem frio, com os nervos estupendamente controlados.
— Porém, agora, já começou a degringolar. Ontem à noite ouviu tocar um piano que está defeituoso há tempos.
— Quer dizer que ouviu uma música?
— Sim. Acordou por causa disso. Não duvido que não ouvisse, mas o que acontece é que a música ressoava exclusivamente dentro do seu crânio. O piano está desarranjado, como qualquer pessoa pode verificar.
— Você o dissuadiu?
— Duvido muito, mas, pelo menos, consegui que voltasse para o leito. Entretanto, o que aconteceu a seguir foi pior.
O delegado arqueou uma sobrancelha.
— Que aconteceu?
— O caso do perfume e o da marca na cama.
— Que perfume?
— Segundo Bentley, sua esposa usava exclusivamente um perfume muito peculiar, uma variedade de Chanel. Voltando a entrar no seu dormitório, aquele perfume estava recendendo nele todo.
— Não será que ele mesmo o usou?
— Impossível. Era um perfume muito feminino.
— Então dar-se-ia o caso de ter derramado algum frasco dos que deviam estar sobre o toucador.
— Pensei nisso, certamente, porque era a única explicação lógica. Porém não havia nenhum vidro de perfume.
— Não podia vir do exterior?
— As janelas estavam fechadas.
O delegado começou a murmurar em voz baixa.
— Você mesmo sentiu o perfume? — perguntou por fim. — Não se tratava da imaginação de Bentley?
— Não, isso não. Quando ouvi o grito, subi em seguida, e captei o perfume eu mesmo.
— Pois é incompreensível. . . Claro que há de ter uma explicação lógica. Porém aconteceu alguma coisa mais?
— Sim. A marca na cama.
— Que foi isso?
— Bentley garantiu que tinha deixado na cama a marca de um só corpo, o seu, e, não obstante, havia ali duas.
— Duas?
— Quer dizer, como se tivesse dormido um casal no mesmo leito.
O delegado, contra sua vontade, estremeceu.
— Que Bentley queria dizer?
— Nem mais nem menos que isto: Sua esposa tinha estado naquela cama.
Outra vez, Lincoln estremeceu violentamente.
Apesar de tom de voz despreocupado de Vance, ele captava todo o horror da situação.
Aquele homem acreditava que Pamela tinha saído da sepultura para visitá-lo.
— Que acha você? — perguntou ao cabo de uns minutos, quando pôde coordenar seus pensamentos. — Viu as marcas?
— Sim.
Sobressaltou-se.
— Então é verdade o que Bentley dizia?
— Não há razão para acreditar. Um homem que durma só numa cama de casal, dá bastantes voltas durante o sono sem sentir. Sobretudo tratando-se de um sono agitado como o que devia ser o de Bentley. Ao fim de algum tempo é impossível descobrir se na cama dormiu mais de uma pessoa.
— Mas, que você acha?
— O que vou pensar? Você não percebe, Lincoln? Tudo o que acontece com Bentley é absurdo. Está transtornado como um hipopótamo em um cenário de balé. Ali tinha dormido uma só pessoa, porém ele não quer acreditar.
— Mas, o caso do perfume?
— Foi uma mistificação dele.
— O queeê?...
— Deve ter sido ele que o espalhou, guardando a seguir o frasco no bolso. Naturalmente, eu não pude verificar, mas penso que ele o fez para justificar seu pavor. Determinados psicopatas necessitam de quem lhes acredite, lhes dêem razão. E esse Bob Bentley começou a descer por uma rampa muito perigosa.
Lincoln ficou pensativo.
Sua testa se encheu de mil diminutas rugas.
— Em que pensa, delegado? — perguntou Vance ao fim de uns instantes.
— Nada, Vance... Prefiro não recordar. — Parecia que o delegado descera, de repente, de outro planeta, um planeta silencioso e negro, cheio de um frio horror. — Falemos de outra coisa.
VANCE passeava lentamente pelo imenso jardim.
Olhava as velhas sepulturas e a tumba nova, a que pertencia a Pamela. E recordava a conversa que tivera com o delegado na tarde anterior, quando ele lhe contara as estranhas circunstâncias em que tinha sido morta a mãe da moça.
Um desses mistérios que não se esclarecem nunca, um desses enigmas de cidades pequenas, em que a polícia vai deitando pouco a pouco terra sobre o assunto, para que não apareça alguma coisa que possa prejudicar a reputação da gente rica. A mãe de Pamela fora mesmo assassinada? Seu pai tinha morrido de medo, quando sua defunta mulher lhe aparecera mais tarde?
Vance acendeu um cigarro pensativamente.
Tudo isso era falatório, sem dúvida. Invenções de gente que não têm nada de mais sério em que pensar.
Em todas as cidades do centro, os habitantes acreditavam em bruxas, em aparições, em fantasmas. Talvez isso fosse uma tradição de quando a terra pertencia aos índios, não muitos anos atrás, e os chefes das tribos garantiram estar em comunicação com os mortos. Sioux City era, pois, a mais supersticiosa daquelas pequenas cidades, mas ainda assim Vance não compreendia o porque daquela lenda.
Enquanto pensava nisto, viu a sombra de Bob Bentley recortar-se em uma das janelas.
Bob não tinha saído de casa durante todo o dia. Não se movia dali para nada, como se estivesse hipnotizado por aquelas paredes. Durante as últimas horas não se tinha afastado de um dos aposentos.
Que aposento era aquele? Que guardava ali?
Vance sorveu o fumo pensativamente e naquele momento, viu chegar até ali o delegado, acompanhado de uma pessoa que ele conhecia muito bem.
Aquela pessoa era Kate.
Vestia o mesmo vestido branco do dia anterior e só tinha mudado as meias, que agora eram mais escuras, de uma suave cor de chumbo.
Uma estranha sedução se desprendia de cada movimento daquela mulher, que era extremamente séria, como uma estudante de Filosofia e que sem embargo parecia ter nascido para enlouquecer os homens.
O delegado Lincoln devia pensar o mesmo, porque procurava ficar sempre um pouco afastado e dirigia à moça cada olhar de espanto...
Quando chegaram perto, Kate envolveu Vance num olhar de desprezo.
Não disse uma palavra.
O delegado foi quem teve que explicar:
— Não pense o que está pensando, Vance. Eu não sou mais que um sujeito inocente.
— O que estou pensando é que você é um velho malandro, seu delegado.
— Diabos! Você acaba de dizer justamente o que sempre me diz a minha esposa. Mas, porquê?
— Porque foi ao hotel procurar a pequena.
— Sim, confesso. E admito que ia convidá-la a cear.
— Porque não o Fez?
Kate continuava fechada em um profundo silêncio. O delegado berrou:
— Demônios! Você deveria tê-la visto como eu a vi!
Vance pensou se não teria sido quando ela estaria endireitando as meias e a inveja o incomodou. Mas Lincoln apressou-se em desmentir esse pensamento.
— Eu a encontrei presa de um transe. Dizia frases sem sentido. Nunca tinha imaginado que a uma pequena tão desconcertante pudesse acontecer tal coisa.
— Mas, que lhe acontecia? Com os diabos, delegado, fale de uma voz!
— Nem que estivesse bêbeda. Olhava-me e não me via. Dava a impressão de estar olhando sempre mais longe, mais longe... Coisas que não eram deste mundo. De repente compreendi porque mandaram procurá-la, Vance. Esta pequena adivinha coisas.
Kate não dizia nada. Olhava singelamente o infinito e por sua expressão ausente e distante percebia-se que aquele estado de transe tão estranho de que o delegado falava não se tinha dissipado de todo ainda.
— Adivinhou algo? Quer dizer, pronunciou algumas palavras que lhe chamaram a atenção, delegado?
— Sim. E por isso a trouxe aqui. Quero que você saiba.
Vance estava mordendo seu cigarro sem perceber. Teve que cuspi-lo feito um bagaço.
— Que disse Kate?
— Disse que Bob Bentley morreria.
— Todos temos que morrer — afirmou Vance tratando de tirar a importância do caso.
— É que ela disse que Bob morreria de medo...
As feições de Vance se tornaram bruscamente de uma estranha cor de cinza.
Apesar de já estar quase anoitecendo, ainda havia sol, e a tarde estava relativamente clara. Mas, de pronto, pareceu a Vance que tudo mudava, que a tarde se fazia mais escura, mais cinzenta, e, que o antes risonho jardim se convertia em uma aléia de cemitério.
Olhou Kate.
— Como sabe isso? — perguntou.
— Não acertaria em explicar — disse ela com um sopro de voz. — Logo compreendi.
— Você não percebe de que isso a prejudica? Demonstra que você, Kate, é uma adivinha?
— Eu não tenho culpa de ver certas coisas — balbuciou ela. — E também nada cobro por isso. Nunca me pode considerar uma adivinha no sentido que vocês, da polícia, dizem. Nem tenho infringido nenhuma lei.
— Não disse que a infringira. Só tenho advertido de que tudo isto a prejudica.
Kate limitou-se a envolver Vance com um olhar distante. Não parecia tão agressiva como no dia anterior. Dava a sensação de que estava sumida em um mundo estranho que só ela era capaz de ver.
— Que você viu exatamente. Kate? — perguntou Vance suavemente. — Pode explicar?
— Claro que sim... — a voz da moça parecia vir de longe. — Tenho visto com toda a clareza.
— E, que era?
— Bob Bentley. Um homem chamado Bob Bentley.
— Você diz que o viu? Mas se não o conhece!
— Você se engana, esbirro. Eu o conheço. Eu já vi Bob Bentley uma vez, ainda que tenha sido em fotografia.
— Onde?
— Sua esposa Pamela e eu éramos muito amigas. E eu vinha, precisamente, passar uma temporada com ela nesta casa quando soube que ela tinha morrido. Mas, antes, quando se casaram, Pamela enviou-me uma foto do casamento. Por ela conheci Bentley, e foi ele, exatamente, quem vi há pouco.
— De que modo?
— Usava um terno cinzento.
— E que fazia?
— Estava morto em um dos aposentos da casa. Diante de um relógio.
— Que relógio?
— Um relógio de parede muito antigo.
Não obstante a clareza das suas explicações e a sua aparente serenidade, a moça parecia continuar aprofundada em um mundo que lhe era próprio, um mundo cujos limites só ela conhecia. Vance desejava fazer-lhe mais perguntas, mas não se atreveu.
Tinha medo de tirá-la do estado em que se achava. Era como se ela fosse um copo de cristal que qualquer movimento brusco poderia fazer em pedacinhos.
Durante um longo minuto os dois homens guardaram silêncio, sem saber o que pensar de tudo aquilo, até que, por fim, Lincoln despregou os lábios de novo.
— Eu quis que você soubesse de tudo isto, Vance e que prevenisse Bob Bentley.
— Sobre o quê?
— Ora bolas! Que não se aproxime de nenhum relógio de parede dos que tem em sua casa!
Vance olhou-o com surpresa.
Suas pálpebras tremeram.
— Será que você já começa a crer em todas essas patranhas, Lincoln?
— Por cem mil legiões de abutres! Eu não creio em nada, nem tão pouco deixo de crer! O que está acontecendo no meu condado já ultrapassa todos os limites do absurdo. Tenho que pensar que ando bêbedo ou que no mundo há coisas que os olhos humanos não podem ver. Pela cara que esta pequena mostra, parece que é verdade. E, neste caso, nada perdemos em prevenir esse homem.
Vance estranhou que o delegado acreditasse tão seriamente no que Kate dizia. E começou a perceber que Lincoln já estava perdendo a serenidade, estava transtornado pelos estranhos pressentimentos que flutuavam em torno de Sioux City. Compreendeu que, em parte, o delegado tinha razão, mas havia um inconveniente.
— Mas, assim, assustaremos ainda mais Bentley. Tenha em conta que ele já está assustado de verdade.
— Isso é certo... — o delegado parecia confuso, mesmo um pouco aturdido. — Mas creio que posso deixar este assunto à sua discrição, Vance. Veja como Bentley está e lhe fale quando achar oportuno. Eu, enquanto isso, convidarei Kate a cear. Creio que ela precisa encontrar-se cm um ambiente familiar. Desgraçadamente, e dadas as circunstâncias, não terei outro remédio senão convidá-la a cear em minha casa, onde, no mínimo, minha mulher preparará veneno para dois.
— A idéia parece-me boa, Lincoln, mas não se lembre de depois convidar a pequena a passear no jardim à luz da lua.
— Porquê? Tem medo dela?
— Não. Tenho receios por você, delegado. Lembre-se de que sua esposa tem licença de porte de armas.
Lincoln soltou um resmungo ininteligível e saiu com aquela espécie de criatura impressionante que era Kate, mas, de pronto, deteve-se enquanto ficava olhando-a.
A moça parecia transfigurada e Vance teve que perguntar:
— Eu disse algum inconveniente, Kate?
— Falou da lua.. .
— O quê?
— Agora me recordo.
— Pela vida de mil sapos! Será que vou ter praguejar como um pirata? De que se recorda agora, Kate?
— Ele morrerá em uma noite de lua.
— Ele? Quem?
— Bentley, naturalmente.
— Que acontecerá?
Ela disse com um sopro de voz:
— Verá sua esposa no relógio numa noite de lua e então morrerá.
O delegado deixou de respirar, olhando estupefato a Kate.
Vance sentiu que a boca estava seca.
QUANDO o delegado e a moça se afastavam, Vance os olhou em silêncio.
Reparou que os sentimentos de Lincoln com relação a Kate tinham mudado por completo. Antes Lincoln considerava Kate como uma pequena por quem valia a pena cruzar a pé as Montanhas Rochosas. Ele a teria convidado para cear num lugar requintado ainda que tivesse de gastar o soldo de três meses. Mas, agora, não obstante, o delegado tinha medo dela. Lincoln percebia que por trás dos olhos da pequena existia um mundo que ele nunca poderia decifrar, e isso o humilhava. Kate tinha se convertido para ele, de repente, numa espécie de bruxa. De certo, se ela se pusesse nesse momento a endireitar as meias, o delegado nem sequer perceberia.
Vance os manteve sob seu olhar até que ambos desapareceram numa curva do jardim. Então entrou na casa.
Tudo estava silencioso e banhado dessa luz espectral do anoitecer que cobre os objetos de uma cor violeta, sepulcral e sinistra como uma mão que avança através das sombras.
Não se ouvia nada na casa.
Nada, nem o rangido de uma porta deformada pela umidade ou estragada pelos insetos que durante longos anos nela se instalaram.
Vance subiu pelas solenes escadas que levavam aos andares superiores e então viu o relógio.
O velho relógio solene, construído há mais de cem anos antes e cujos mecanismos estavam ocultos por um cristal de delicados ornatos, escrupulosamente limpo.
Não se ouvia nada. O relógio de carrilhão já não funcionava. Seguramente teriam se passado anos e anos sem que ninguém fosse capaz de o pôr em marcha.
Vance lembrou as estranhas palavras de Kate: "Bentley verá sua esposa no relógio..."
Como se aquilo pudesse ser certo, Vance examinou em silêncio o móvel, que era uma verdadeira jóia.
Não, ali não cabia uma pessoa e muitíssimo menos uma pessoa que já estava morta.
Não obstante, Vance sentia como uma corrente de frio na costa. Apesar de toda a sua, experiência, ele também estava conhecendo o sabor do medo.
Apertou os dentes.
Estaria ficando assim tão estúpido? Iria crer nas palavras de uma moça que talvez estivesse zombando dele?
Seus dedos apalparam com certa dureza a superfície do cristal que cobria o relógio, como se ali tivesse de descobrir um segredo. Porém nada de anormal havia no móvel. Estava parado e isso era tudo. Tratava-se de uma peça que teria causado a admiração de um antiquário, mas a verdade era que não tinha nada de misterioso nela.
Tinha que esquecer suas estúpidas apreensões.
Voltou as costas ao relógio e continuou subindo, enquanto olhava tudo em torno de si mesmo.
Afortunadamente, naquela noite não tinha lua.
A luz violácea do crepúsculo continuava envolvendo tudo e enviando seus últimos reflexos sobre os quadros colocados na parede. Eram quadros de família e recebiam a luz de uma grande janela que havia no primeiro patamar. Todos pertenciam a pessoas mortas, e, sem que se soubesse bem porque, qualquer pessoa estremecia ao vê-los.
Mas Vance não quis pensar naquilo. Ele era um polícia, não "uma criança. Para ele a única coisa que estremeceria um homem era uma boa bala que o alcançasse em cheio.
Empurrou a única porta do andar superior sob a qual se filtrava um raio de luz.
Bentley estava ali, voltado de costas. Voltou-se pouco a pouco ao ouvir o ruído da porta atrás dele. Estava lívido.
— Sou eu — disse Vance. — Não se assuste.
Parecia incrível como em tão poucos dias Bentley tivesse ficado assim, arrasado. Dir-se-ia que emagrecia de hora em hora. Quando Vance o conheceu era ainda um homem com aspecto saudável, que tinha umas leves inquietações mas que conhecia bem tão só a parte boa do mundo. Agora, ao contrário, era um sujeito encurralado, enfraquecido, cujos olhos temerosos olhavam em todas as direções como se temesse encontrar-se com a morte.
— Ah, é você — balbuciou.
— Sim. Venho ver como está.
— Bem... Olhava umas velhas fotos.
— Que espécie de fotos?
Bob as guardou apressadamente na secretária. Eram as mesmas que estava vendo quando Pamela aparecera, antes de ser morta por ele, naquele mesmo aposento. Suas mãos tremeram.
— São do pai de Pamela — disse em voz baixa —, quer dizer, meu sogro, que não cheguei a conhecer. Algumas... realmente, impressionam. Dir-se-ia que era um homem atormentado por algo.
— Como você está se atormentando — sussurrou Vance. — Porque não sai para tomar um pouco de ar? Acredita que é bom estar encerrado aqui todo o dia, como se fosse um prisioneiro? Na cidade há algumas diversões. Porque não vai?
— Parecia um homem atormentado por algo... — repetiu Bob, como quem repete uma ladainha. — Pamela tinha razão.
— Em que Pamela tinha razão? Que ela lhe disse?
Uma expressão de astúcia e de alarma se desenhou no rosto de Bob. Mas Vance não a notou porque o tinha de costas. Bob Bentley percebeu que estava resvalando, que se deixava levar demais por seus próprios pensamentos. Vance, no final de contas, era um policial. Qualquer palavra dita além da conta, poderia ressoar muito nos ouvidos daquele servidor da lei.
— Nada — disse. — A verdade é que ela não me contou nada. São asneiras minhas, sabe?
Voltou-se de repente a encontrou o olhar de Vance. Aquele olhar o fez estremecer.
Havia algo nele que gelava o sangue, mas não sabia porquê.
— Que há? — perguntou Bob. — Porque me olha desse modo?
Vance sussurrou:
— Essa roupa...
— Que é que há com ela?
Vance cerrou por um momento os olhos. Na verdade não havia nada.
Mas era um terno cinzento, tal como Kate tinha dito que Bob estaria vestido quando fosse morrer.
Vance acendeu um cigarro para dominar-se e disse a seguir, mesmo contra a sua vontade:
— Tire essa roupa, Bentley. Tire-a antes que as nuvens se ocultem e a lua torne a sair.
BENTLEY balbuciou:
— Que quer dizer? Que tem a ver a lua com tudo isto?
Suas feições se tinham decomposto ainda mais e.seus lábios tremiam de um modo que ele já não podia ocultar.
Vance passou as mãos pelos olhos.
Tudo aquilo estava fora do programa, fora do calculado. Percebia que ele mesmo estava se colocando em uma posição ridícula, mas não podia evitar.
— Olhe, são coisas que aliás não tem sentido, mas que lhe interessa conhecer. Alguém disse que você morreria em uma noite de lua e vestindo esse terno.
Vance esperava que Bentley reagisse dizendo: "Isto é asneira!", mas o dono da casa não disse nada.
Pelo contrário, parecia ter levado a sério tais palavras. Seu comentário foi o seguinte:
— Se uma pessoa disse isso, é porque essa mesma pessoa decidiu assassinar-me.
— Não acredito.
— Porquê?
— Quem disse foi uma mulher extraordinária, que não sei como classificar ainda. Alguém que é, de certo modo, uma adivinha, mas a quem não posso atribuir o desejo de matá-lo.
— Essa adivinha, chama-se Kate?
— Sim. Você a conhece?
— Minha esposa falou-me dela, nos seus últimos dias. Era uma sua amiga que viria passar uns dias conosco. Como é possível que esteja na cidade e não se tenha aproximado desta casa?
— Não o conhece, Bentley. Pensou, talvez,que, morta Pamela, nada tinha que fazer aqui,o que, aliás, é justo.
— E foi ela quem assegurou que eu morreria com uma roupa cinzenta e numa noite de luar?
— Ainda que pareça um conto de fadas, é assim, Senhor Bota Bentley.
Bob voltou a cabeça, evitando o olhar do policial.
Não obstante, aquela conversa o tranqüilizava. Seu medo diminuía com as palavras de Vance. O que este estava dizendo, efetivamente, era como um conto de fadas. Não podia crer naquilo.
No fundo, aquilo significava que podia sentir-se mais tranqüilo, mais seguro do que nunca.
A única coisa importante — o assassinato de Pamela — já nem sequer se discutia. Pelo contrário, falava-se de fantasmas, de crendices, de coisas que não existiam.
Voltou a cabeça, sorrindo e mudou bruscamente de conversa.
— Vai vigiar esta noite, Vance?
— Creio que sim.
— Então pode estar tranqüilo. Procurarei tomar umas pílulas para dormir e esquecerei todos esses problemas. No fundo, não tem sentido.
— Claro, Senhor Bentley.
Vance começava a crer nisso também,
— Adeus, Vance.
— Boa noite.
Vance saiu. Refletindo serenamente, percebia que não tinha mesmo sentido nada do que tinha dito Kate. Noites de lua para morrer? Um terno cinzento? E que mais?
Para o diabo.
Vance desceu para o andar térreo e saiu da casa, enquanto que Bob ficava só.
Bob pensava, com efeito, que lhe convinha dormir. Tinha levado muitas noites apegado à vertigem dos pesadelos. Dois comprimidos arranjariam as coisas.
Procurou o tubo onde os guardava e viu que estava vazio. Tinha consumido muitos deles, sem cautela, nas últimas noites. E o pior era que elas hão tinham dado resultado nenhum.
Mas, se dobrasse a dose, talvez desse resultado.
Porém, onde estava o outro tubo, que ele tinha de sobressalente? Onde o teria deixado? Ah. sim! Na mesa central do vestíbulo. Bob pensava tudo isto de um modo impessoal, como se o cérebro que estava, na sua cabeça fosse de outro ser humano, não o seu mesmo. Tinha a garrafa de uísque ao alcance da mão. Bebeu um bom trago, com o que se sentiu mais animado, e abriu a porta. A cabeça lhe andava às voltas.
Tenho estado a beber demais — pensou. — Toda a tarde bebendo, até esvaziar a garrafa de uísque. Se isto continua assim, vou acabar com meu fígado..."
Porém, isso não tinha importância no momento.
Começou a descer pouco a pouco, contando os degraus.
Pelo grande janelão do primeiro andar, que agora ficava às suas costas, não penetrava a luz da lua. Não. Nessa noite as grossas nuvens cobriam tudo e não era fácil que se dissipassem porque tinha começado a gotejar. Porém, uma débil luz penetrava por aquele janelão, projetando-se sobre os grandes quadros — todos de corpo inteiro — que adornavam a vetusta parede da escadaria.
Bob se deteve diante do relógio. Era. o mesmo relógio antigo de que Pamela lhe tinha falado em suas horas de solidão.
Estava parado.
Nada se refletia no cristal, que era como que um pedaço de sombra. Apenas distinguiam-se palidamente os ponteiros.
Sacudiu-o levemente.
Bentley chegou ao andar térreo e deteve-se a olhar em volta de si mesmo, como se visse aquilo pela primeira vez.
Acabava de notar alguma coisa estranha. Alguma coisa que não era normal, que não estava antes ali.
Não obstante, não sabia o que era. Seus olhos correram os móveis, os grandes quadros que adornavam a escada, os tapetes... Tudo estava no mesmo. Com dedos trêmulos, acendeu uma lâmpada.
Compreendeu imediatamente o que era. Algo estava evidente, e ele acabava de descobrir. Os ponteiros do relógio não estavam parados na posição de sempre, como ele tinha conhecido, quer dizer, marcando justamente as onze.
Tinha que ser isso, um detalhe dos que passam desapercebidos e penetram no subconsciente daquele que o vê.
As pálpebras de Bob tremeram quando contemplaram o relógio.
Não, não era isso que estava mudando. Os ponteiros do relógio mostravam, como sempre, as onze em ponto.
Que havia pois de particular ali? Com os diabos! O que era que tinha mudado?
Tratava-se de algo muito importante, de algo visível, porque do contrário ele não teria chegado a notar.
Mas que era?
Com o rosto transtornado, Bob Bentley tornou a olhar em volta de si detidamente. Nada. Não notava o que pudesse ser.
"Creio que estou nervoso — pensou. — Amanhã, com a luz do dia, verei melhor. Alguma coisa deve ter mudado, mas eu não percebo. É melhor esperar o dia de amanhã..."
Procurou o tubo de comprimidos e verificou que não estava ali. No primeiro momento teve um sobressalto.
Lembrou-se então que o tinha deixado junto ao piano, no aposento contíguo. Tinha que estar ali.
Entrou. Não notou que estava ofegando. Respirava com dificuldade, como se estivesse se afogando.
Estaria, por acaso, ficando louco?
Iria começar a acreditar em toda aquela enfiada de alucinações e de mentiras que Parnela, antes de morrer, lhe tinha impresso na mente?
Viu os comprimidos. Estavam, com efeito, junto ao piano, onde ele se lembrava tê-los deixado de tarde.
Ao menos, isso não era irreal. Pelo menos sabia que o soporífero estava ali, ao alcance das suas mãos.
Pegou no tubo.
E, imediatamente, ficou rígido, com as feições transtornadas, sentindo que o suor começava a escorrer por sua fronte.
Um ruído parecia encher a casa inteira.
Era um ruído familiar, apesar dele não o ter ouvido nunca. Um ruído desses que a gente mal escuta, de tão acostumado que está de os perceber. Mas agora ressoava em seus ouvidos como chicotadas, ou melhor, como uma sucessão ininterrupta de estalidos.
Bob custou em perceber o que acontecia.
Por fim compreendeu, enquanto todo o seu corpo estremecia violentamente.
Era o relógio, o maldito relógio que tinha voltado a andar outra vez!
Aquele carrilhão que estava quase a cem anos parado e que agora, de repente, voltava à vida!
Bob apertava fortemente o tubo de comprimidos entre os dedos. Estava a ponto de gritar, e o teria feito, se estivesse ar nos pulmões. Mas, nem respirar podia. Sufocava! Sentia-se como si já estivesse nas garras da morte!
Soltou, por fim, um grito agônico, enquanto se precipitava para a porta como um bêbedo, e, a abriu com uma cabeçada, produzindo uma pequena ferida na sua testa.
Ali, no vestíbulo, o tiquetaque do relógio era ensurdecedor. Dir-se-ia que cada segundo, cada batida, tinha repercussão de um golpe num gongo.
Agora o suor já escorria pelas faces de Bentley, misturando-se a gotas do seu próprio sangue, proveniente da ferida da sua testa. E, não obstante, ele ainda não acreditava que aquilo fosse certo, fosse a verdade. Ainda continuava pensando que estava sofrendo uma alucinação.
Plantou-se em frente do relógio, a boca aberta, ofegando, como um bêbedo que já está às portas do "delirium tremens".
Não, não era uma alucinação. Tratava-se de coisa real.
O relógio estava soando! O ponteiro, que antes marcava as onze em ponto, conforme ele mesmo comprovou, estava marcando neste momento as onze e três minutos. O que Pamela dissera antes de morrer estava acontecendo. Aquele relógio tinha voltado a funcionar! Todas as suas malditas profecias cumpriam-se, palavra por palavra!
Bob soltou um grito sufocado, enquanto se voltava de costas e subia pelas escadas quase de quatro, como um macaco.
Uma vez no seu dormitório, fechou-se, tremendo, enquanto o som do tique-taque se ia afastando pouco a pouco como os guizos de uma cascavel.
Tomou quatro comprimidos do sonífero, avidamente, bebendo a metade do jarro de água que estava, sobre sua mesinha.
Imediatamente tombou na cama, respirando como um cão ao qual se desse veneno. Sentiu que estava para morrer.
Até que por fim os comprimidos produziram efeito e uma calma angustiante, parecida com a da morte, tomou conta dele.
VANCE acendeu um cigarro e o colocou nos lábios da mulher que estava à sua frente. Ela o recusou com um gesto faceiro.
— Tolo!... Você não vê que assim fico com a boca ocupada?
O jovem sorriu apenas, enquanto envolvia a moça com um olhar cheio de paixão e seus lábios procuraram os lábios de Kate.
Os dois beijaram-se silenciosamente, no escuro, enquanto o cigarro ardia lentamente e as finas gotas de chuva roçavam o abrigo sob o qual se tinham refugiado.
Por fim, Kate sussurrou:
— Não acha que já é bastante? Você está me "comendo" os lábios...
Vance soltou-a. E pôs, por fim, o cigarro na sua boca.
— De certo modo o sinto — murmurou. — Não sei o que aconteceu conosco, Kate.
— Aconteceu que o olhei com simpatia quando você se negou a prender-se, apesar de ter recebido ordem para isso.
— Como ia prendê-la? Não tinha cometido nenhum delito. Na realidade tinham-me dado aquela ordem para manter-me afastado por algum tempo. A alguns membros da Polícia é incômodo um tipo como eu, que diz as verdades com muita freqüência. Mas tudo mudará quando esteja solucionado o caso de Pamela.
Ela sorriu, embora aquele sorriso fosse apenas visível na penumbra que os envolvia.
— Também a coisa começou porque você me pareceu ser um homem autêntico — disse suavemente.
— E você me pareceu magnífica como mulher.
Ela deu uma tragada, e o fitou bem nos olhos. Aquele olhar penetrou fundo em Vance, produzindo-lhe um íntimo calor, apesar de, na semi-escuridão, mal distinguir os olhos de Kate.
Esta sussurrou:
. — Foi um pouco difícil livrar-me do delegado. Ele talvez quisesse que aquela cena não terminasse nunca, apesar da sua mulher, que estava ali, nos fitar como uma loba.
— O delegado crê que nos odiámos — disse Vance, enquanto acentuava seu sorriso.
— Sim. Reconheço que a comédia que representou no seu escritório, quando me levou "detida", foi bem boa — murmurou ela.
Moveram-se lentamente para um lado da casa onde não havia janelas, para terem a certeza de não serem ouvidos.
— Até quando quer você que isto continue?
— perguntou Vance rapidamente, segurando-a por um braço.
— Até que Bentley fique louco.
A voz da moça traía uma secreta, uma inextinguível fúria.
— Então você está a ponto de o conseguir.
— Ainda não é o bastante. Eu o odeio de toda a minha alma — disse ela asperamente.
— Pamela era minha melhor amiga, a pessoa a quem devia muitas coisas. -Não descansarei enquanto não tenha sido vingada. Não pararei enquanto Bob Bentley não tiver pago suas culpas, uma a uma.
— Mas já temos provas de que ele a matou. Temos o rifle. Porque não dar parte ao delegado Lincoln?
— Não quero expôr-me a que saia absolvido, em virtude dessas miseráveis chicanas que, às vezes, os juizes se vêm obrigados aceitar nas cidades pequenas. Não. isso não aceitarei nunca! Quero que morra! Quero que ele sofra como ela sofreu!
Vance acendeu por sua vez um cigarro. Percebia que o ódio da moça era quase como uma coisa sólida, palpável. Compreendia até que ponto ela odiava Bentley. Não o perdoaria jamais por ter assassinado Pamela.
— Você ainda não me explicou como descobriu que era ele — murmurou. — Este ponto ficou um pouco confuso entre nós.
— Não há nenhum mérito. Pamela me explicara seus temores na carta que me escreveu. Porém foi você quem descobriu o rifle e não eu. O mérito é todo seu.
Tratava-se de uma simples dedução — explicou Vance. O caso do acidente daquele homem pareceu-me suspeito desde o primeiro momento. Examinei as balas encontradas no corpo de Pamela e compreendi que tinham sido disparadas por uma arma de cano serrado, coisa que os técnicos da polícia local também poderiam ver se não estivessem adormecidos pela rotina. Então não restava mais nada senão achar a arma. Eu estive procurando-a durante muito tempo, enquanto esse biltre se divertia na Europa. Por fim a encontrei. Só com esta prova, creio que Bob não teria salvação.
— Não estou certa. Necessito estar convencida de que ele vai morrer irremediavelmente.
— E por isso você quis que puséssemos o rifle na cabeceira da sua cama, não é verdade?
— Esse foi só o primeiro passo.
— Aconteceu a seguir o fato do piano tocar. Depois o perfume. As marcas de outro corpo na cama... Reconheço que você tem agido com uma habilidade diabólica, Kate.
— Ele está agora à beira do paroxismo.
— De certo que está.
— Acabará ficando louco e então... então o entregarei ao delegado — articulou ela com ódio reconcentrado. — Então, quando todos os seus dias não sejam mais que um suplício infernal, pouco me importarei que o matem ou não! Então saberei que Pamela está vingada, vingada para sempre! Só nesse momento me sentirei tranqüila! Vance murmurou: — De qualquer modo, isto não pode continuar por muito tempo, Kate. Como agente da lei, tenho o dever de entregar esse homem, uma vez tenha reunido provas contra ele. As provas existem. Não podemos retardar a ação da justiça. Fará uma última coisa contra Bentley, Kate, mas, só uma.
— De acordo. Essa vai ser definitiva.
— Em que consistirá?
— Eu sabia muito bem o que Pamela tinha falado com ele e por isso quase posso adivinhar seus pensamentos. Pamela me escreveu uma última carta detalhadíssima. Por isso sei que há alguma coisa que acabará por deixar Bentley louco.
— O que é que vai fazer?
A moça apertou os lábios e respirou lentamente antes de responder:
— Você se lembra daquele velho relógio?
— Sim, claro que me lembro. Aquele do vestíbüío.
— Estive estudando o bem e sei que funcionará perfeitamente. Por sinal já o lubrifiquei, valendo-me de um óleo de máquina que encontrei no hotel. Hoje a noite vou pô-lo a bater as horas.
ENTRARAM no vestíbulo da casa. A porta não chiou. Um silêncio espesso, angustiante, a recebeu apenas puseram os pés no umbral do aposento.
Um silêncio apenas quebrado por um som familiar, tão conhecido que custaram identificá-lo.
Por fim. Kate conteve uma exclamação.
Era o som de um velho relógio!
O som do velho relógio de parede que estava há quase cem anos parado!
Alguém tinha tornado a pô-lo em funcionamento.
A moça quase que correu para ele, esquecendo suas precauções. Entretanto, não se via ninguém ali. Bentley devia estar lá em cima encerrado no seu quarto.
Kate com as feições mortalmente pálidas, contemplou a marcha dos ponteiros.
Agora marcavam onze e meia.
— Meu Deus... — sussurrou. — Meu Deus... Vance, pela primeira vez na sua vida, também estava pálido como uma vela de cera.
— Não foi você quem pôs a funcionar esse relógio? — balbuciou.
— Não. Eu só limpei parte da maquinaria e a acertei, porém... não cheguei a lhe dar corda.
— Então...
A voz de Vance quase que não existia, era mais que um sopro.
— Então... — Kate concluiu a frase —, só cabe a possibilidade de que tenha sido a própria Pamela...
Vance sentiu que seus nervos sofriam uma sacudidela.
Sem se aperceber estava sacudindo Kate, estava torturando-a segura pelos ombros como se ela fosse uma inimiga.
Alguma coisa lhe alterava a mente, alguma coisa lhe nublava a vista.
Bruscamente encontrava-se diante do Outro mundo! De súbito, ele, que tinha pensado dominar a situação, encontrava-se dominado por ela.
Aquela história da intervenção de Pamela não podia ser verdade, no entanto...
— Você está maluca, Kate -— resmungou. — Você estava assustando Bentley, para fazê-lo pagar suas culpas, e eu lhe ajudava porque me parecia justo, mas, em tudo o que tem acontecido até agora, unicamente você e eu temos agido. Ninguém mais! A participação de Pamela é alucinação sua. Pamela está morta! Já não existe!
Olhou no fundo dos olhos de Kate e pouco a pouco suas mãos foram soltando-a, como se já não tivesse forças.
Porque no fundo dos olhos de Kate só havia uma coisa: horror!
Ela também se sentia transtornada pela situação. Tinha começado a crer que um poder sobrenatural flutuava em torno de si.
— Aquela espécie de sonho... — balbuciou.
— Que sonho? O que você explicou ao delegado?
— Sim...
— Eu pensei que fazia parte do seu plano — sussurrou ele — e por isso continuei acompanhando-a, mas julgando que exagerava e que não havia necessidade de tudo aquilo. Agora, porém, vejo que é certo.
— E.. . é certo.
— Você pensava de verdade que Bentley morreria diante desse relógio e que veria nele Pamela?
Dos lábios trêmulos de Kate tornou a surgir a palavra:
— Sim...
Agora as mãos de Vance tremiam. Agora ele sentia como que uma corrente de frio nas costas. Agora já não sabia em que pensar.
— Como foi? — sussurrou ao cabo de uns instantes. — Como você chegou a pensar nisso, Kate?
— Foi uma inspiração repentina, como um choque... Estava semi-acordada e de súbito pareceu-me ver. . . Era Pamela. Pamela numa noite de lua. . . Ela dentro deste relógio... E diante dela, olhando-a, com olhos desvairados, estava Bob Bentley.. . Bentley, que morria.. .
A voz da moça parecia vir de muito longe, desde a misteriosa região do Outro Mundo só ela podia penetrar. Sua voz tinha um tom agourento que crispou os nervos de Vance.
— Não é verdade! Isso não está certo, Kate!
— Não sei como, mas eu vi, Vance.... Juro-lhe que digo a verdade...
— Com certeza, Pamela lhe explicou alguma coisa na sua carta. Algo que você tem interpretado ao seu modo e que lhe chegou a sugerir essa visão.
— É possível.
Não obstante, a moça não parecia convencida. Continuava tendo medo de si mesma.
— É possível — repetiu. — Sim, deve ser isso. Deixei-me influenciar pelos próprias palavras de Pamela.
— Falemos com sensatez, Kate.
— É... é o que eu estou tentando fazer. Nem você nem eu cremos em contos de aparições.
— De certo que não...
— Todas as coisas aparentemente sobrenaturais que tem acontecido até agora a Bentley tem sido obra nossa. Sobre isso estamos de acordo, não?
— Claro.. . claro que sim. Vance.
— Por conseguinte nada pode ser obra de Pamela. Devemos gravar isso na cabeça: Pamela está morta! Não existe!
— Mas, o relógio.. .
— Aconteceu algo, é claro, mas não pode ser sobrenatural.
— E meu sonho...
— Deve ser uma interpretação de algo que Pamela lhe disse em sua carta.
— É possível, mas... mas não posso lembrar-me agora...
— Tem que ser isso, Kate.
Ela levou uma das mãos aos olhos, como se quisesse dissipar uma imagem que estava gravada neles.
— É muito possível. Relerei aquela carta... Sinto não a ter aqui.
— Devemos sair daqui, Kate. Esta noite não temos mais nada que fazer aqui. Vou ver se Bentley está descansando e...
Rapidamente as mãos da moça agarraram o casaco de Vance pela lapela.
— Não... Não me deixe sozinha.
— Mas, por Deus! Que há com você, Kate?
— Nada, não é nada... — entretanto a voz da moça continuava trêmula. — Subirei com você.
— Como queira.
Subiram, ouvindo como se fosse um som ameaçador o rumor dos seus própriso passos. Ao abrir a porta do quarto de dormir de Bentley repararam que ele estava mergulhado em um sono pesado, certamente produzido pelos tranqüilizantes. Não despertaria senão dentro de vinte horas. Vance fechou a porta lentamente.
— Vamos, Kate — sussurrou.
Ao pegar no seu braço notou alguma coisa.
— Porque treme?
— Por nada. Só estou pensando,é que essas nuvens grossas não ocultarão o céu por muito tempo. E que amanhã haverá lua...
O CÉU tinha amanhecido limpo, mas Bob não notou.
Sob o efeito dos barbitúricos, dormira até às dezenove horas, quando acordou com uma terrível sensação de vazio no estômago, atordoado. Com muito esforço pôs-se de pé e teve que se apoiar em diversos móveis para não cair. Um bom trago de uísque lhe devolveu em parte as energias.
Foi ao quarto de banho e molhou a cabeça. Estava barbado, com olheiras e pálido, tão descomposto que se assustou com o próprio aspecto.
"Terei que chamar um médico — pensou. — Terei que fazer um tratamento, e, sobretudo, afastar-me daqui..."
Foi essa a decisão que tomou: Sair, o quanto antes, daquela casa,
Mas primeiramente tinha que resolver alguma coisa que o impressionara durante seu pesado sono, até fazê-lo revirar na sua ampla cama.
Foi até a biblioteca, abriu a secretaria e tirou de novo as fotos. Haviam algumas dos seus sogros, aos quais não tinha conhecido. Todas eram normais até uma determinada data — a da morte da mãe de Pamela — quando o rosto do marido começava a assumir um aspecto estranho, sinistro, de homem atormentado. Um rosto parecido ao que ele tinha agora. Mas Bentley não pensava nisso.
Pamela, antes de morrer, lhe tinha dito que seu pai fotografara sua mãe depois de morta. Ou, quem sabe, não lhe tinha dito? Talvez fosse uma alucinação sua? Bentley atormentado até a medula dos ossos, precisava sair dessa dúvida.
Esteve procurando durante algumas horas, entre papéis velhos, enquanto a noite se prolongava, se assenhoreava de tudo do outro lado das janelas da casa.
Enquanto isso, a Lua saía.
Os dedos de Bentley tremeram ao encontrar o que procurava. Era uma foto amarelada, na qual se distinguia, muito tênuamente, a figura de uma mulher. Uma mulher que parecia avançar para o que tirava a foto. Uma mulher que não era outra senão a mãe de Pamela!
Havia nela algo de sobrenatural, algo que não se podia definir mas que não concordava com a idéia comum que todos temos das pessoas e dos objetos. Era como se flutuasse no ar... Era como se alguém tivesse conseguido fotografar um fantasma!
Tremendo, Bob olhou a data daquela foto. Tinha observado que seu sogro sempre anotava isso no verso, assim como o fato de que ele mesmo fazia a revelação fotográfica.
Aquela data era estremecedora e a mão que a tinha escrito tremia como se não pertencesse já a um ser deste mundo. A foto estava datada de vários meses depois que morrera a mãe de Pamela... e justamente no dia em que seu esposo morrera de um ataque de coração!
A última coisa que fez aquele homem foi fotografar um fantasma... e morrer!
Um estremecimento total sacudiu o corpo de Bentley. Um grito de agonia escapou dos seus lábios.
Os fantasmas existem! Pamela tinha dito a verdade!
Ela voltaria, como tinha voltado sua mãe! O grito de agonia repetiu-se nos lábios de Bentley.
Suas feições estavam alteradas, e as mãos tremiam como as de um possesso.
Abriu a porta e desceu. Necessitava fugir! Tinha que sair dali de qualquer maneira, ou ele também morreria!
Os degraus das escadas começaram a flutuar diante dos seus olhos.
Tudo estava iluminado pela luz espectral da lua.
Em baixo, nos porões da própria casa, Vance e Kate examinavam os velhos utensílios do antigo laboratório onde o pai de Pamela revelava suas fotos em outros tempos.
Máquinas de excelente qualidade, mas passadas da moda, provetas, bandejas, um par de ventiladores para a secagem, uma ampliadora, um jogo de objetivas, algumas caríssimas... Todo o necessário, enfim, para um homem que gosta de fazer fotos com grande perfeição...
Estavam revistando tudo, procurando uma explicação para o estranho pressentimento de Kate. Vance, para não perturbá-la, tinha evitado tratar diretamente do assunto, mas, por fim, o fez.
Envoltos naquele ambiente de pesadelo, de um mundo extinto, a voz de Vance pareceu chegar de muito longe quando perguntou:
— Você releu a carta, Kate?
— Sim, mas já não pensava nisso.
— Quer dizer que está mais tranqüila? Ela evitava encará-lo. Sua voz soou rouca:
— Há um parágrafo na carta de Pamela em que ela me falava de seu velho relógio. Pode ser que todas minhas imaginações tenham surgido disso, do que senti ao ler aquelas palavras ... De qualquer maneira, há coisas que o entendimento humano não pode compreender.
Vance engoliu em seco.
A voz da moça continuava sendo agourenta, desfeita por uma emoção que parecia não vir dela mesma.
— Mas esse ponto obscuro já está esclarecido — disse ele. — Você já sabe porque chegou a imaginar aquilo.
— Sim...
— E, apesar disso, está mais preocupada que ontem.
— Estou porque... Bem, não posso entender. Mas, lá em cima, naquele vestíbulo, há alguma coisa.
Não quis continuar, mas estremeceu suavemente.
— Que coisa? O quê?
— Não, não é nada sobrenatural e entretanto uma pessoa percebe. É como uma pancada nos olhos que não pode ser explicada. Se eu tivesse uma fotografia exata veria como era aquela antes e como é agora! Alguma coisa mudou, Vance, alguma coisa que não posso atinar. Isso é o que me preocupa agora e que me tirou o sono.
— Eu também notei alguma coisa — sussurrou Vance —, e não posso precisar em que consiste. Entretanto é uma coisa que está relacionada com este porão, algo que eu também vi a primeira vez que entrei nele. Se pudesse concentrar meus pensamentos! Se pudesse...
De repente ouviu-se uma batida de porta, no primeiro andar da casa. Kate balbuciou:
— Ele está descendo... Ouviam-se pisadas cambaleantes. Passos bruscos de um homem descendo como um bêbedo.
Imediatamente a luz se Fez no cérebro de Vance.
Compreendeu porque o pai de Pamela tinha conseguido fotografar o fantasma de sua esposa. Compreendeu porque Bentley ia "ver" Pamela.
Percebia porque a própria Pamela tinha escrito à sua amiga falando-lhe do relógio. Ela temia fazer o que estava pensando... e, entretanto, antes de morrer, tinha feito...
Era tudo tão simples!
E, não obstante, tão espantoso!
Vance segurou fortemente o braço de Kate. Suas feições tinham-se transformado.
— Vamos! — gritou. — Vamos lá em cima antes que seja demasiado tarde!
Bentley estava descendo as escadas. Seus passos eram como os de um bêbedo, como os de um possesso.
A luz da lua penetrava pela janela do primeiro patamar, a estranha e branca luz o perseguia.
Aquele som, o mesmo da noite anterior, enchia seus ouvidos, seu cérebro.
Tique-taque... Tique-taque...
Um som familiar e doce e que, entretanto, o enchia de horror. Um som que lhe parecia o dos passos da própria morte!
O relógio estava funcionando... O som de sua marcha implacável ritmava tudo!
Bentley olhou para ele. E, então, a viu!
Viu Pamela!
Pamela estava no relógio, olhando-o! Ela parecia flutuar no ar, avançando para ele!
Bentley levou as mãos à garganta. Um grito de horror escapou dos seus lábios, mas já sem forças. Os dedos encrespados fizeram as unhas se cravarem na sua própria carne.
Instintivamente, avançou dois passos mais, olhando o cristal do relógio e de pronto alguma coisa parecia romper-se em seu peito.
Um sabor espesso de sangue chegou em sua boca e o gemido agônico se repetiu. Percebeu que seus joelhos se dobravam, de que morria...
Bob Bentley viveu sua própria morte.
Não pôde perceber que, ao avançar dois passos mais, a figura de Pamela se esfumava e desaparecia.
Não pôde compreender a simples, a terrível verdade.
Quando Vance chegou junto a ele, um minuto mais tarde, suas mãos estavam crispadas sobre um coração que tinha falhado, que já não palpitaria mais...
Vance resmungou:
— Era o que eu temia. Cumpriu-se a justiça, mas, apesar disso, eu gostaria de ter chegado a tempo.
— Que... que foi que sucedeu, Vance?
— Pamela, antes de morrer, introduziu uma mudança nos quadros que adornam essa parede, sem que Bentley soubesse, nem percebesse, dada a escassíssima atenção que dedicava a esses detalhes e mesmo à sua esposa. Simplesmente trocou o quadro em que a mãe aparecia por outro do mesmo tamanho, onde estava fotografada ela mesma e que jazia esquecido no porão. Precisamente foi o retrato da mãe que ele viu no porão no primeiro dia, depois da mudança. E era essa troca o que nós não sabíamos definir e que tínhamos notado, Kate.
— Mas... mas que isso tem que ver com...?
— A luz da lua, ao entrar por esta janela do primeiro patamar, se projeta sobre o quadro e sobre o cristal do relógio, fazendo que no cristal apareça reproduzida com muita clareza, a imagem de corpo inteiro que está no quadro. Só é possível vê-lo de determinada altura e de determinado ponto, mas o efeito causado sobre alguém que tenha os nervos abalados é de um realismo terrível. O. mesmo que aconteceu com o seu sogro, ao qual ele nem sequer chegou a conhecer, aconteceu a Bentley, esse outro assassino ...
— Então é verdade que John, o pai de Pamela, matou sua esposa? — murmurou Kate, com lima estranha voz, quase sem forças.
— Isso não saberemos nunca. Pertence ao mistério do passado, mas se sucedeu como você diz, o assassino também recebeu seu castigo.
Kate olhou como alucinada o corpo imóvel de Bentley e a seguir contemplou o relógio que continuava trabalhando.
— Porque funciona, Vance? Eu não toquei nele...
— Sim, você mexeu nele, moça. Claro que mexeu, ao azeitá-lo e a pôr sua máquina em condições. O relógio devia ter corda, mas não funcionava por causa de algum torrãozinho de pó que ainda estava nas suas rodas, de algum pequeno objeto que se desprendeu quando alguém, sem dúvida o próprio Bentley, lhe deu alguma batida. Isso bastou para que voltasse a funcionar de novo, renascendo do seu esquecimento. Não deve ser um modelo de exatidão, é claro, mas voltou a trabalhar... para assinalar a morte de um assassino.
Passou um braços sobre o ombro de Kate e sussurrou, atraindo-a para si:
— Agora o pesadelo terminou, querida. Vamos quanto antes ver o delegado Lincoln é lhe explicar isso. Temos todas as provas em nossas mãos, de modo que não haverá dificuldades. Por certo, ao mesmo tempo, quero dar-lhe outra notícia que fará com que se sinta muito confusa...
Ela sorriu, debilmente, pela primeira vez em muitas horas, enquanto aceitava sua suave carícia.
— Já adivinho o que é, querido. A notícia do nosso casamento que lhe vai causar um sobressalto. ..
E Vance sussurrou junto de seu rosto:
— A coisa mais exata que você adivinhou em toda a sua vida, Kate...
Silver Kane
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