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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


UNIDOS PARA SEMPRE / Esri Rose
UNIDOS PARA SEMPRE / Esri Rose

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

UNIDOS PARA SEMPRE

 

O amor pode estar em qualquer esquina... ou debaixo de uma pedra! Quando Erin Chandler saiu para dar uma volta com o cachorro de sua vizinha, à noite, ela achava que estava preparada para tudo. A última coisa que esperava encontrar no meio do caminho era um elfo! Sem falar que era um elfo incrivelmente sexy... Atacado por um inimigo empenhado em roubar sua terra e sua vida, Galan estava quase morto quando Erin o salvou, dando a ele sua própria energia, o que misteriosamente os uniu de uma forma indissolúvel. Eles não podiam se separar antes que Galan pagasse o preço final... e Erin não conseguia parar de criar fantasias a respeito dele! No entanto, com quanto mais perigos os dois se defrontavam, mais forte se tornava o vínculo entre eles...

 

 

Certas coisas acontecem na primavera. Coisas novas, sensuais... estranhas. No meu caso, aconteceram todas numa mesma noite porque levei o cachorro da vizinha para passear.

O vento frio soprava as abas do meu sobretudo preto enquanto eu caminhava até a casa ao lado. A luz dos postes tremeluzia nos galhos que balançavam ponteados de brotos. Toquei a campainha e esperei.

Uma senhora de baixa estatura abriu a porta, acompanhada de um enorme cão terra-nova negro.

— Olá, Erin!

— Olá, Sra. Jamison. Thor quer dar uma volta? Ela olhou para o cão.

— Quer ir, Thor?

Thor mostrou os dentes, como se sorrisse, e sacudiu o rabo, batendo, indócil, as patas no assoalho.

— Acho que isso é um "sim". — Ela me passou a correia pendurada na porta.

— É muita gentileza sua, Erin.

— A senhora é quem está me fazendo um favor. Adoro passear à noite, mas sozinha não tenho coragem. — Inspirei fundo. — O ar está incrível hoje, não?

A Sra. Jamison olhou o balanço das árvores e esfregou as articulações dos dedos.

— Costumávamos dizer que este tipo de noite é perfeito para os espíritos maus, espectros e bichos de pernas compridas.

— Não tenho medo. Quando ouço um barulho à noite, é o meu gato pulando do balcão da cozinha.

— Você não acredita no sobrenatural? — Ela riu. — Não trabalha numa loja de artigos da Nova Era?

— Só acredito em CDs de música de harpa e bijuterias com as fadas das flores. — Afaguei Thor. — Voltamos em uma hora mais ou menos.

Nas poucas quadras até a trilha, Thor estava tão agitado que puxava a guia, tentando fazer com que eu apressasse o passo. Meus cabelos caíam sobre os olhos com o vento; peguei no bolso um cachecol cinza e amarrei-o na cabeça. Uso os cabelos curtos para que fiquem encaracolados, e tinjo-os de mogno porque ao natural são marrom-camundongo.

Quando entramos na trilha de terra batida da reserva florestal, Thor lançou-me um olhar súplice. Então, desatei a correia e guardei-a no bolso. Ele disparou.

— Fique por perto, bicho do mato! — gritei. — É você que tem que me proteger!

Os pinheiros se agitavam, provocando ruídos semelhantes a suspiros, enquanto eu subia a ladeira. Thor me acompanhava, rodeando-me, passando por entre os galhos e espantando um ou outro passarinho sonolento.

Logo chegamos ao meu lugar predileto, a laje de granito vermelho que protuberava no alto da colina, a primeira de uma sucessão de pedras que coleavam ali no topo feito espinha de gigantesco fóssil. A réstia de luz revelava cacos de garrafas de cerveja e maços de cigarros vazios espalhados ao longo da junção da pedra com o solo.

Chamei Thor e apanhei um saco de plástico na bolsinha da coleira.

— Fique aqui — mandei. — Não quero que corte as patas no vidro.

Agachei-me e peguei uma embalagem de preservativo vazia com as pontas dos dedos indicador e polegar.

— Que nojo! É a primeira vez que encontro uma porcaria dessas aqui! — ao meu tom zangado, Thor ganiu com um ar de culpa.

Estendi o braço para apanhar um pedaço de papel, mas ele esvoaçou com a forte lufada que pôs as árvores a chicotear e sibilar. Meu cachecol foi arrancado da cabeça pela ponta de um galho baixo. Virei-me e o vi ser lançado ao vento, sobrevoar as pedras e sumir na escuridão.

— Droga! — O cachecol fora o meu melhor achado numa promoção no ano anterior. Enfiei o saco de lixo no bolso, de onde puxei uma argola, na qual estava pendurada uma pequena lanterna. O diminuto facho acendeu, deixando a escuridão ao redor proporcionalmente mais negra.

Com uma das mãos, afastei do rosto os cabelos e procurei o cachecol, tentando ignorar quão vivas pareciam as sombras a cada relance. Alguma coisa reluziu ali perto entre o aglomerado de pedras arredondadas.

Ao mover-me com dificuldade por cima das pedras ásperas e recobertas de líquen, minhas mãos ralaram.

— Pena que você não é de caça, Thor.

À menção de seu nome, o cão considerou-se liberado da ordem anterior e veio para o meu lado, estreitando os olhos por causa do açoite do vento.

Parei e movi o facho da lanterna sobre as pedras à procura do cachecol. Porém, o que vi foi um vulto de homem encolhido no chão.

— Meu Deus!

Ele estava cerca de quatro metros adiante, imóvel, deitado embaixo da saliência de uma peDra. Podia estar ferido, ou não.

— Estou com meu cachorro — berrei. — Thor? O latido grave do cão ecoou nas pedras.

Tateei a argola à qual estava preso também o spray de pimenta, peguei a lata e soltei a trava de segurança.

— E estou armada também, portanto, se estiver fingindo...

Não houve resposta. Prossegui entre os galhos caídos, com os olhos grudados no chão para não tropeçar, mas, quando cheguei ao lugar, não havia ninguém... nada.

— Olá!

Teria sido uma ilusão de ótica, causada por um galho descorado ou pelo ângulo de uma pedra? O vento esfriava minhas orelhas, e Thor se encostou-se a uma de minhas pernas. Senti um calafrio e me curvei para afagá-lo.

— Juro que vi alguma coisa.

Quando me aprumei, gritei de susto, e a lanterna caiu no chão; o homem estava deitado bem ali, na minha frente. Eu não o vira, não sei como.

Thor começou a rosnar. Passei a retroceder, tateando, e quase caí. Nesse momento, percebi que o rosnado não se dirigia ao homem no chão, e sim a um ponto à minha direita, para onde ele rosnava e latia, expandindo e contraindo o tufo de pelos do pescoço. Engatinhei à procura da argola e encontrei-a embaixo do meu pé; a lanterna estava despedaçada.

O rosnado de Thor transformou-se numa sucessão de latidos ferozes. Minha boca ficou seca de medo, pois havia pumas naquelas colinas. Avancei um passo na direção do homem.

— Você está bem?

Ele virou o rosto devagar e olhou para mim. Com o spray de pimenta na mão direita, estendi a outra para tocá-lo. Seus contornos pareceram oscilar por instantes, como se ele fosse desaparecer. Mas, por fim, consegui tocá-lo, e, com isso, recuperar minha lucidez. Chacoalhei-o de leve pelos ombros.

— Você consegue se levantar?

Ele não disse nada, mas tentou se levantar antes de cair deitado de novo. Olhei, aflita, ao redor. Thor se comportava de maneira frenética, indo de um lado para o outro e latindo para a escuridão. Agarrei o homem por um dos braços, e ele conseguiu se levantar.

— Temos que ir embora daqui.

Os minutos seguintes foram um pesadelo de tropeções na avultante escuridão. O vento era um objeto vivo, obrigando-me a manter os olhos semicerrados para evitar que a poeira os ferisse. O homem tombou uma vez e assim ficou, como se não pudesse continuar, mas puxei-lhe o braço com força, incitando-o a prosseguir.

— Vamos logo!— gritei, mais alto que o vento e os latidos de Thor. — Falta pouco.

Quando chegamos à trilha principal, Thor virou-se para trás e rosnou.

— Você é um cachorro e tanto! — proclamei com sinceridade.

Firmei o braço do homem sobre meus ombros, agradecendo o fato de ser alta. Ele tinha mais de um metro e oitenta, mas felizmente era esguio. A cintura, onde eu o abraçava para ampará-lo, era musculosa.

Andar agora estava mais fácil; o vento, menos violento. Os cabelos dele, bonitos, compridos, tocaram meu rosto, trazendo o cheiro do mato depois da chuva, conscientizando-me da proximidade com um estranho.

Quando chegamos ao cume da segunda colina, menor, avistamos ao fundo as luzes da cidade. Ele aprumou-se e recolheu o braço de meus ombros.

— Vai conseguir ficar em pé sozinho? — perguntei.

— Aparentemente, sim, embora eu não tenha certeza do porquê — ele respondeu, com voz suave e melodiosa.

Pela trilha de terra chegamos à calçada do poste de luz.

— Vamos parar um pouco.

Eu queria ver se ele estava ferido ou machucado. Quando ele se virou e me olhou, perdi o fôlego. Ele era simplesmente o homem mais bonito que eu já vira.

O rosto era anguloso, com os malares bem altos. Os olhos eram fundos, mas, na penumbra, era impossível identificar a cor e saber se as pupilas evidenciavam sinais de concussão.

Ele sorria e os cabelos ao vento tocavam seus lábios.

— Obrigado pela ajuda.

— De nada. — Sentindo-me tímida, abaixei a mão e cocei a cabeça de Thor.

— Como você chama?

— Galan.

— Eu sou Erin. Quer que o leve ao hospital?

— Não. — Ele olhou para trás, para as colinas.

Achei que ele parecia desamparado e gritei mais alto que o vento:

— Você mora perto daqui? Consegue ir a pé?

— Não sei. — Ele meneou a cabeça. — Estou meio tonto.

— O que aconteceu?

Ele levou a mão à têmpora.

— O vento está muito forte. Se eu falar alto, minha cabeça vai doer. Vamos andar um pouco?

— Claro. Desculpe.

Caminhamos até as casas de tijolo aparente; as folhas secas eram arrastadas à nossa frente pelo vento. Olhei algumas vezes para ele.

As roupas lembravam uma mostra renascentista: a camisa solta, as mangas compridas, um colete de couro amarrado na frente por uma fita. As pernas da calça, que parecia de veludo, estavam enfiadas nas botas amarradas com cadarços.

Quando um carro passou, ele me flagrou fitando-o, e os longos cabelos refletiram à luz dos faróis. Desviei rapidamente o olhar, mas fiquei sem-graça porque, naquele exato instante, eu admirava suas coxas alongadas e musculosas torneadas pela calça justa.

Prossegui no piloto automático; logo depois, chegamos à minha casa. Parei antes de entrar na pequena varanda.

— Espere aqui, por favor.

Entrei segurando Thor pela coleira. A porta da frente não estava trancada, o que significava que o colega com quem eu dividia a casa estava lá.

— Jed! — gritei, enfiando a cabeça na fresta da porta.

— Estou aqui! — ele respondeu da cozinha.

— Thor está comigo. Você pode levar Kitty para o meu quarto?

Esperei que ele confirmasse antes de soltar o cachorro. Virei-me, então, para Galan, cujo semblante estava pálido e cansado.

— Quer entrar um pouco? Ele assentiu.

Thor se antecipou e entrou rapidamente, fazendo os pequenos tapetes deslizarem sob suas imensas patas.

— Calma Thor!

Galan entrou comigo no pequeno vestíbulo. Tirei meu casaco, pendurei-o no armário e fomos para a sala de estar, de piso de madeira. Ali, o enorme sofá verde opaco predominava diante da tevê de trinta e duas polegadas, que era de Jed e que ficava em cima de uma mesa de café pequena demais para a finalidade. As reproduções dos trabalhos fotográficos de Ansel Adams em preto e branco, penduradas nas paredes, eram minhas.

Indiquei o sofá com um aceno de mão.

— Sente-se e descanse. Já volto.

Fui à cozinha encontrar Jed, que estava de casaco e retirava da geladeira uma caixa com seis latas de cerveja.

— Aonde você vai?

Ele fechou a geladeira e puxou para cima a calça jeans que ameaçava escorregar pela firme e esbelta cintura.

— Vou jogar RPG hoje. Sou um vampiro. Quer ir?

— Não. Escute, você nem vai acreditar no que aconteceu. — Abaixei á voz.

— Encontrei esse sujeito na trilha da colina, inconsciente. Talvez eu precise levá-lo para casa de carro, e eu nem sei quem ele é.

Jed ergueu uma sobrancelha.

— E você quer que eu vá com você, certo?

— Isso mesmo. Na volta, eu deixo você no RPG.

— Está bem. Preciso mesmo descansar da bicicleta. Devo ter feito umas doze entregas hoje, e não é fácil carregar aqueles cilindros.

— Obrigada. — Peguei um copo no armário e enchi com água na imensa talha de plástico em cima do balcão. — Ele ainda não contou o que aconteceu.

Jed guardou a caixa de cerveja na geladeira.

— Então, vamos saber do que se trata.

Galan estava deitado no sofá, com as compridas pernas cruzadas na altura dos tornozelos. Os olhos estavam fechados, mas logo se abriram e se fixaram em mim. Ele quase ignorou Jed por completo, o que fez com que eu me sentisse lisonjeada. Thor entrou atrás de nós; o som de suas patas ecoava no assoalho.

Arrastei o escabelo surrado da poltrona até o sofá e sentei-me.

— Galan, este é Jed. Jed, Galan.

— Olá. Como vai, Galan? — Jed escarrapachara-se na cadeira em frente ao sofá.

— Bem, obrigado.

Notei que Galan estava com os braços cruzados sobre o peito e perguntei:

— Está com frio? Você está em estado de choque?

— Chocado, talvez; em estado de choque, não.

— Eu trouxe água. — Estendi a mão com o copo. Ele aprumou-se no sofá e pegou-o.

— Conte o que aconteceu. — Inclinei-me para a frente, ansiosa para ouvir sua história. Jed levantou-se subitamente.

— Alguém com fome? Preciso comer alguma coisa.

— Não, Jed, não estou com fome. — Fitei-o com seriedade. — Você não quer ouvir isso?

— Quero, quero. Volto num minuto.

Sem acreditar no que ele estava fazendo, observei-o afastar-se até a cozinha. Depois, voltei-me para Galan.

— Não vamos esperá-lo. Pode me contar. Ele me devolveu o copo vazio.

— É meio difícil de explicar. Alguém me atacou.

— Vamos chamar a polícia.

Levantei-me para pegar o telefone, mas a mão dele impediu-me. Congelei, sentindo o contato até a boca do estômago.

— Eu sei quem foi — ele disse calmamente —, mas a polícia não vai encontrá-lo.

Ele fechou os olhos, e notei que os cílios e as sobrancelhas eram cor de prata fosca. Ele soltou minha mão, e eu me aprumei.

— Quem atacou você?

— Algum caçador clandestino.

— Caçador, tão perto da cidade? E o que ele fez, deu uma coronhada na sua cabeça? — Segurei a cabeça dele e inclinei-a na direção da luz. — Deixe-me checar seus olhos para ver se há indícios de concussão.

Violeta. Os olhos dele eram violeta-escuros. Engoli em seco, sentindo o calor de suas têmporas sob meus dedos.

— Suas pupilas estão do mesmo tamanho. Está sentindo muito sono?

Seus lábios curvaram-se nos cantos.

— No momento, não.

Uma vez que eu o socorrera e que estava tomando conta dele, poderia, provavelmente, tocá-lo nos cabelos, colocando-os atrás da orelha, sem sugerir segundas intenções. Era apenas um gesto maternal. Assim, quando os penteei para trás, vi que a orelha tinha a mesma beleza do resto do corpo. Percebi, também, que era muito pontuda em cima. Afastei a mão rapidamente.

— Você esteve em alguma convenção de Jornada nas Estrelas? — Eu ri por puro nervosismo.

— Não — ele respondeu depois de um suspiro.

Olhei de novo. A orelha era natural; minha proximidade permitia confirmar que não havia qualquer material de látex.

— Então, seu cirurgião plástico é um gênio. Ele cerrou os olhos por instantes.

— Pensei em mentir, mas você salvou minha vida e, para continuar vivendo, preciso de sua ajuda. Erin, não sou de sua parte do mundo.

— Deixe-me adivinhar... Você é da Califórnia.

— Não, sou da floresta onde me encontrou. Até esta noite, aquela terra era minha.

Eu procurei ser cuidadosa ao falar.

— Aquela terra é uma reserva florestal do Departamento de Parques. Pertence à cidade.

— E eu pertencia àquela terra até há pouco, quando Fellseth cortou meu elo com ela.

— Fellseth, o caçador clandestino?

— Fellseth, o elfo decadente.

Levantei-me aparvalhada e instintivamente comecei a dar tapinhas no flanco de minha perna para chamar Thor.

— Entendi. Você é personagem de um RPG, assim como Jed.

Por falar em Jed, onde estaria ele?

— Não, não sou.

Thor aproximou-se e olhou para mim. Forcei um sorriso.

— Então, você é da Sociedade do Anacronismo Criativo, e um de seus colegas perdeu o controle e acertou-o na cabeça com um daqueles grandes bastões.

Galan empalideceu.

— Nunca pensei — a voz musical demonstrava irritação — que um dia eu teria que explicar isto a um humano.

Revirei os olhos.

— Você está mesmo metido nisto até o pescoço, não?

— Ouça... — Ele franziu o cenho. —Eu sou Galan da Pedra Rabosa. Perdi minha terra, minha fonte de energia e...

Deixei-o falando sozinho e corri à cozinha.

— Vamos, Jed, temos que levá-lo depressa ao hospital.

— Posso ir dirigindo?

— Claro! — Peguei minha bolsa no balcão e entreguei-lhe as chaves. — Pode ligar o carro, já estamos indo.

Meu Ford Focus estava estacionado na alameda atrás da casa. Jed saiu pela porta dos fundos e teve que fazer força para fechá-la contra o vento.

Na sala de estar, Galan estava pálido.

— Vamos — falei muito séria. — Hora de ir.

— Se você me escutar... — Ele continuou imóvel.

— No hospital eu escuto. Acho que seu estado deve ser mais grave do que parece.

— Tenho certeza de que sim. — Ele levantou-se pesaroso do sofá.

O Hospital Público de Boulder não era longe. Assim que passamos pela porta automática, levei Galan à recepção e observei-o preencher os papéis. Ele assinou Galan Pedra e deu um endereço do qual eu nunca ouvira falar.

Apontei os campos que ele deixara em branco, tentando ignorar o gostoso aroma que ele exalava.

— Você não tem telefone?

— Não.

— Nem plano de saúde?

— Não.

—Ai! — exclamei, com uma expressão pesarosa. — Sinto muito pelo que isso vai custar, mas é melhor do que morrer de aneurisma durante o sono.

Sentamos os três na sala de espera, entre o brilho do linóleo e o cheiro de anti-séptico. Havia apenas uma pessoa além de nós, um homem segurando o joelho com a dor estampada no rosto, que a enfermeira levou para dentro minutos depois.

— Não devíamos ter que esperar muito tempo — Jed disse. — Esta não é exatamente uma cidade do interior.

Ele pendurou o casaco no espaldar da cadeira. — Vou procurar o bebedouro.

Assim que ele se afastou, Galan virou-se para mim.

— Por favor, fique comigo. — Ele segurou minha mão. Havia tanto desamparo naquele rosto que eu deixei.

— Ainda não estou muito forte. Se eu não ficar perto de você, vou morrer.

Soltei minha mão.

— Você é carinhoso. Psicótico, mas carinhoso. Estou me sentindo a mamãe pata com seus patinhos.

Uma enfermeira aproximou-se com uma prancheta nas mãos.

— Sr. Galan? Pode me acompanhar, por favor? Ele fitou-a com tanto pânico que fiquei com pena.

— Você se incomodaria se eu entrasse com ele? Ele está muito abalado.

— Pode vir.

Ela nos conduziu à enfermaria, gesticulou para Galan deitar-se numa das camas e fechou as cortinas ao redor, deixando-me do lado de fora.

Fiquei um pouco desapontada quando ela o mandou despir-se. Mas me lembrei de que não queria me envolver com ele. Mesmo que ele estivesse temporariamente abalado por causa de uma contusão na cabeça, que tipo de neurótico se submeteria a uma cirurgia para modelar as orelhas como as de um elfo?

Percebi que estava cansada e com fome.

— Vou comprar chocolate. Já volto — avisei.

— Erin? Não demore — Galan suplicou de dentro do cortinado.

— Volto já. — Caramba! Que sujeitinho carente!

Na sala de espera, a recepcionista me informou que no fim do corredor havia uma máquina de doces e refrigerantes. Fui até lá, inseri as moedas e escolhi uma barra de chocolate. Ao desembrulhá-la, o cheiro me atingiu como se eu não comesse havia dias. Um problema hormonal, talvez. Eu a devorei em três mordidas, comprei mais duas e voltei para a sala de espera, onde Jed lia absorto uma revista Outdoor.

— Quer chocolate?

— Quero, — Ele estendeu a mão sem olhar. Larguei-me na cadeira ao lado.

— O que achou desse sujeito? — perguntei em voz baixa.

— Ele me disse que é um elfo. Fez até uma cirurgia, implantou um enxerto para ficar com as orelhas pontudas.

— Humm...

— Ei! — Acenei a mão em frente ao rosto dele.

— Estou falando sério, ele pensa mesmo que é um elfo. Não estou falando de insinuações psicológicas, neutralidade caótica ou coisas do gênero.

Jed abaixou a revista e olhou em volta.

— Preciso ir ao banheiro.

Assustei-me ao ouvir a auspiciosa voz da enfermeira:

— Pronto, seu amigo está de volta. Está em perfeitas condições.

Galan estava ao seu lado, pálido e trêmulo, com uma camada de suor brilhando na testa.

— Em perfeitas condições, como? O aspecto dele está pior do que antes. Vocês nem tiveram tempo de submetê-lo a uma tomografia, a radiografias da cabeça... — Inspirei fundo.

— Viu as orelhas dele?

— Examinei os ouvidos, sim. — Ela respondeu, depois de consultar a prancheta, e retirou-se.

Apressei-me atrás dela e puxei-a pela manga.

— E a conta? Quem vai pagar?

-— Vamos mandar a conta para ele, não se preocupe. — Ela se desvencilhou e abriu uma porta com a inscrição "Apenas pessoal autorizado".

— Mandar a conta, como? — gritei pela fresta que se fechava.

— Aquele endereço nem é verdadeiro!

— Vamos embora? — Galan perguntou, atrás de mim. Virei-me e o encarei. O aspecto agora era um pouco melhor, mas não uma garantia de saúde.

— Por mim, eu o deixaria aqui mesmo, mas você parece à beira de desmaiar. Tem alguém para cuidar de você? Onde você mora?

Ele não respondeu; apenas olhou para algum ponto atrás de mim, franzindo a testa, concentrado. Virei-me, e vi que Jed havia se aproximado.

— Ele pode dormir no meu quarto. — Jed vestiu o casaco.

— Eu durmo no sofá.

— Como assim? Não estou entendendo. Ele é seu conhecido, de algum lugar? Por que vai deixá-lo usar seu quarto?

Jed encolheu os ombros.

— Vamos embora — ele disse.

Ao vê-lo passar pela porta automática a caminho do estacionamento, senti um súbito medo daquele homem que estava ao meu lado. Jed, a enfermeira... todos agiam de modo estranho na presença de Galan.

Olhei para ele; minha pele formigava de nervosismo.

— Você está fazendo alguma coisa com eles, não?

— Tenho uma certa influência sobre os humanos. É o que chamamos de glamour.

Ele pôs a mão em meu braço, mas eu me afastei.

— Em mim não funciona.

— É porque estamos ligados um ao outro — ele declarou, solenemente.

Eu quis gritar, mas ele prosseguiu:

— Fellseth estava se apoderando da minha terra e, consequentemente, da minha fonte de energia. Quando meu elo com a terra foi rompido, eu deveria ter morrido. Em vez disso, de alguma forma, eu me vinculei a você. Talvez porque estivesse recolhendo o lixo de lá ou porque tenha sido o momento certo, não sei. O que quer que tenha acontecido, você me salvou e agora estamos ligados.

Não acreditei em nada daquilo. Ou ele era um hipnotizador ou estava preparando uma armadilha para mim, e eu queria que aquilo parasse.

— Pois bem, eu o salvei, mas por que acha que tem que ficar comigo? — Cheguei mais perto e encarei-o com firmeza.

— Quero que você me deixe em paz.

Ele forçou um sorriso.

— É o que eu mais gostaria de fazer, mas é você quem está me mantendo vivo. A pouca energia que tenho, estou obtendo de você.

— Que mentira! Eu não...

— Por sorte, você tem muita energia! Mas é melhor comer a outra barra de chocolate.

Meus dedos crispados tinham deixado marcas na embalagem. De tanta fome, minhas mãos tremiam quando a abri e dei uma mordida. Quando olhei para Galan, percebi que ele estava corado, com uma aparência melhor.

— E como funciona? Você tem que ficar perto de mim? Olhei para o estacionamento e vi os faróis do meu carro acesos.

— Não determinei uma distância exata. — O tom que ele usava tornou-se mais incisivo.

— Sei que você não quer acreditar em mim e, normalmente, não precisaria, pois costumo usar o glamour para passar despercebido entre os humanos.

Ele se aproximou. Eu dei outra mordida no chocolate e emiti um raivoso ruído gutural.

— Se me levar com você — ele disse com um certo desespero —, tenho certeza de poder provar que sou elfo.

Pensei um instante e depois voltei à recepção.

— Chamem a polícia! Este louco está me assediando.

A recepcionista arregalou os olhos e pegou o telefone. Então, como se eu tivesse ficado invisível, colocou-o de volta no gancho.

— Por favor — Galan pediu, ao meu lado.

Saí do hospital, dirigindo-me ao estacionamento. Ele me seguiu.

— Não quero fazer-lhe mal, mas, se você encostar em mim, arranco sua mão fora — ameacei.

— Erin, não tenho a quem mais apelar. Você tem que acreditar em mim.

Olhei para ele, que de fato não parecia um maníaco homicida, mas um homem que estava lutando contra o pânico e sendo derrotado.

Entrei no carro e fechei a porta. Ele não tentou me impedir.

— Pode ligar o carro, Jed.

No assento do motorista, com o olhar disperso, Jed nem se moveu.

— Ligue o carro, maldição! — gritei.

Como ele continuasse imóvel, saí, contornei o carro, abri a porta do motorista, agarrei a alavanca de recuo do banco, que ficava entre as canelas de Jed, e empurrei-o todo para trás.

Sentei no colo dele, travei as portas e virei a chave na ignição. Jed não tentou impedir. Pela janela, vi Galan em pé, apoiado no carro ao lado... não relaxadamente, mas para não cair no chão.

Com meus pés, separei as pernas de Jed e dei marcha à ré, inclinando a cabeça para fora para olhar. Assim que tirei o carro da vaga, dirigi até a saída do estacionamento. Pelo retrovisor, vi que Galan continuava no mesmo lugar. Porém, quando olhei outra vez, enquanto esperava para entrar na via principal atrás do terceiro carro que passava, ele começou a escorregar da posição em que estava e despencou atabalhoadamente no chão.

— O que você está fazendo? — Jed sacudiu-se embaixo de mim.

— Droga! — Pelo retrovisor, vi que Galan estava imóvel no chão.

— Erin, saia de cima de mim! Coloquei a marcha em ponto morto e saí.

— Fique aí! — gritei para Jed.

Galan estava estatelado no asfalto, inerte. Abaixei e tomei-lhe o pulso: no início, não consegui sentir os batimentos, mas logo a seguir eles recomeçaram.

— O que você é? Algum alienígena, por acaso? — sussurrei.

As pálpebras de Galan tremeram, e ele meneou a cabeça, sem forças.

— Você é um elfo.

Ele abriu os olhos, fitou-me e aquiesceu com a cabeça.

— E precisa ficar perto de mim hoje. Ele aquiesceu de novo, e eu suspirei.

— Bem, Jed não tem sido muito útil, mas Thor está lá em casa. — Mudei de posição para poder levantá-lo.

— Quero perguntar uma coisa: digamos que esteja dizendo a verdade e que nós estejamos mesmo ligados um ao outro, como você vai fazer para nos desligar depois?

Ele cambaleou e apoiou-se em mim.

— Francamente, não sei.

Levei Jed à casa do amigo. No caminho, ele foi contando as peripécias de seu personagem no RPG, como se bem ali atrás não houvesse um ser de orelhas pontudas que podia se enfurecer e tomar o controle do carro.

Quando Jed desceu, tomei o rumo de casa. Ao chegarmos, Galan já parecia totalmente recuperado. Entramos, fui à cozinha e telefonei para a Sra. Jamison.

— Olá. É Erin. Desculpe a demora, mas Thor comeu um passarinho morto. Quando vi, já era tarde. É melhor ele dormir aqui hoje, pois ele pode vomitar. — A Sra. Jamison tinha tapetes caríssimos.

— Está bem, meu amor — ela concordou, aliviada. — Amanhã nos falamos.

— Se você me causar problemas, Thor irá arrancar sua cabeça — ameacei Galan assim que desliguei. Meu estômago roncou e abri a gaveta do armário.

— Se precisa de energia, por que não come alguma coisa?

— Os elfos são imortais, isto é, a não ser que alguém nos mate. Mas podemos nos tornar mortais, e comer é uma das maneiras de deflagrar a transformação. Prefiro me abster.

Thor entrou na cozinha. Abri a torneira da pia e coloquei água em uma tigela para ele.

— E água, pode? No hospital, você bebeu.

— Água de bebedouro, posso.

— Você tem resposta para tudo, não?

Peguei no balcão um pacote de salgadinhos crocantes de milho e sentei-me à mesa. Ao meu lado, Thor sorvia ruidosamente sua água.

— Sua hipnose não funciona em cães, não é? Galan puxou uma cadeira e sentou-se.

— Não tenho como glamourizar Thor, mas posso comunicar-me com ele, e com outros animais também.

— Não diga? O que ele está dizendo? — Mordi com força um salgadinho:

Galan encolheu os ombros.

— O cachorro não é uma criatura complicada. Ele normalmente adora quem o leva para passear. Mas posso dizer o que sua gata acha, se quiser uma prova.

— Kitty? — Interrompi o movimento da mão, que levava mais um salgadinho à boca. Minha gata estava comigo havia seis anos. Que palavras Galan poria naquela boquinha peluda?

Com o corpo, ele empurrou a cadeira para trás e levantou-se.

— Vamos ver?

Acompanhei-o à sala de estar, com Thor atrás de mim. Ele pôs a mão na maçaneta da porta do meu quarto.

— Espere um pouco! Kitty está aí dentro e, portanto, Thor não pode entrar. E eu não vou entrar no quarto com você sem Thor.

Ele suspirou.

— E se eu entrar e você ficar aqui fora com o cachorro?

— Está bem — concordei, hesitante.

— Mas não demore. E não vá bisbilhotar minhas coisas!

— Não estou interessado nas suas coisas. Você quer perguntar a ela alguma coisa em particular?

— Surpreenda-me. — Preferi não facilitar.

Segurei a coleira de Thor e mandei-o sentar. Galan abriu a porta o bastante para que conseguisse entrar e depois a fechou suavemente.

— Não posso acreditar que estou me expondo a isto — sussurrei para Thor, que ganiu. Encostei o ouvido à porta, tentando ouvir um miado ou algum outro ruído, mas havia apenas silêncio. Thor bufou e escarrapachou-se de frente no chão com a cabeça entre as patas dianteiras. Agachei ao lado dele, com a mão na coleira.

Galan saiu um minuto depois. Larguei o cão e cruzei os braços sobre o peito.

— Não ouvi nada.

— É mental. Ela disse que está com você há muito tempo.

— Há quanto tempo?

— Os gatos não pensam cronologicamente. Ela lembra que estava muito doente, e que você a curou.

Aquilo era assustador. Eu comprara Kitty por meio de um anúncio de jornal; ela viera com vermes e tinha se curado após um tratamento com medicação.

Galan levou uma das mãos ao pescoço. Ele ainda parecia cansado.

— Ela disse que você mudou a alimentação dela recentemente, mas ela gostava mais da anterior. Pediu para eu dar leite a ela, sem contar para você, como o outro indivíduo que você trouxe para casa costumava fazer.

Devia ter sido Mike, meu ex-namorado. Meu rosto contraiu-se.

— Ela tem diarréia se toma leite.

— Ela não sabia que era por causa do leite. Vou dizer a ela. — Ele olhou fixamente para a porta fechada.

Ouvi um miado forte e sentido, e sorri a contragosto.

— E o que mais?

— Ela disse que o outro homem empurrou-a para fora da cama durante a noite, e me perguntou se eu vou fazer a mesma coisa. — Ele sorriu sem-graça, e uma covinha em meia-lua apareceu em cada canto da boca.

— Diga a ela que não, de jeito nenhum!

Thor rolou para mostrar a barriga. Subitamente, conscientizei-me do que estava acontecendo. Recuei, afastando-me de Galan.

— Elfos não existem — sussurrei.

Ele aproximou-se e estendeu a mão para tocar meu braço.

— Por favor, não tenha medo. Sei que é difícil entender, mas prometo não lhe fazer mal.

— A não ser sugar minha energia, feito sanguessuga. — Recuei ainda mais. Ele se aproximou, e senti outra vez o aroma de seus cabelos.

— Você tem energia de sobra, confie em mim. — Ele estendeu as mãos, súplice.

— Só peço que me deixe ficar até eu me livrar de Fellseth. Depois, saio de sua vida.

Corri os dedos por meus cabelos. Qual era a hipótese mais provável? Galan seria mesmo um elfo, ou era um indivíduo comum capaz de controlar pessoas e ler a mente de gatos?

— Erin... — Quando ele olhou para Thor, o cão sentou-se apenas nas patas traseiras, erguendo as dianteiras e mantendo-se equilibrado, truque que jamais conseguira realizar antes. Era como se ele reforçasse o pedido de Galan.

— Por favor. — Thor empinou a cabeça e ganiu.

Meu coração disparou, mas a curiosidade superou o medo.

— Não consigo acreditar no que estou dizendo, mas estou propensa a acreditar em você. Pode ficar uns dias.

— Muito obrigado. — Ele sorriu.

— Quanto ao lugar para dormir, o quarto de Jed não é muito perto e, de lá, eu não poderia receber energia de você.

Estreitei os olhos.

— Vou encostar o sofá da sala na parede do meu quarto, e isso é o mais perto que você vai chegar.

Assim que transformei o sofá em cama, Galan deitou-se ali com Eatty, e eu levei Thor para o meu quarto, trancando a porta.

A bancada de minha oficina de bijuterias ficava na parede oposta à da minha cama, e o tampo estava abarrotado com ferramentas, fios de arame prateado e pequenos recipientes com contas de pedras semipreciosas. A visão me causou uma pontada de culpa, pois eu precisava fazer mais jóias para vender na loja.

Com a herança que eu recebera da minha tia, eu ia comprar a loja onde eu trabalhava, a Rosa Verde, que vendia artigos da Nova Era. Era um grande passo; vinte e sete anos de vida, mas eu adorava as duas coisas: a loja e um bom desafio.

Como o dia seguinte era domingo, e Lily, ao mesmo tempo dona da loja, minha melhor amiga e mentora, cuidaria da freguesia, eu teria o dia livre para lidar com Galan.

Preparei-me para me recolher. Achei que não conseguiria dormir, duvidando de minha sanidade. Porque, se por um lado os elfos não existiam, por outro as pessoas só tinham passado a acreditar na eletricidade e nas bactérias após elas terem sido descobertas. Talvez sempre houvesse uma primeira vez para tudo.

Só deixei Thor deitar-se comigo na terceira vez que ele subiu na cama, e foi o calor de seu corpo após tantas horas insones que me fez pegar no sono. Uma das minhas últimas conjecturas foi se eu chegaria a ponto de defender o restabelecimento da ordem de Tolkien, ou de chamar-me Firiel para ser alvo da cobiça de homens com trancas nos cabelos.

A fome me despertou. Apoiei-me em um braço e olhei o despertador na mesa-de-cabeceira.

— Seis horas da manhã, e estou morrendo de fome!

A cama rangeu quando larguei-me de volta no colchão. Eu só dormira quatro horas. Como eu queria me desligar de novo...!

Inútil tentar, disse o súbito aperto no estômago. Thor levantou-se, atabalhoado, e quis me acompanhar ao banheiro.

— Agora não! Você teve a noite inteira para beber a água do vaso sanitário.

Subi nua na balança, os braços cruzados por causa do frio, e, com os olhos turvos, fitei o marcador; os numerozinhos azuis fixaram-se depois do vaivém.

— Deve estar errado. — Desci, apertei o botão "reiniciar" e subi de novo.

— Não posso ter perdido um quilo de ontem para hoje.

Passei as mãos entre os cabelos e imaginei a capa de alguma revista: Perca cinco quilos com a surpreendente dieta do elfo!

Meu estômago roncou mais alto. Voltei ao quarto, peguei meu pijama xadrez de flanela na gaveta, vesti-me e saí.

— Venha, Thor, vamos lá fora!

Galan estava sentado no sofá, ao lado da roupa de cama muito bem dobrada. Estava com um ótimo aspecto. Não podia ser um elfo, aquilo não fazia sentido. Ou seria?

— Onde está Jed? — perguntei em tom de briga.

— Dormindo. Ele se deitou tarde.

— E Kitty? Eu segurava o cão, contendo-o.

— Eu disse para ela se manter afastada. — Galan lançou-me um olhar divertido, dos pés descalços aos cabelos despenteados.

— Se me permite dizer, você está parecendo particularmente humana esta manhã.

— E eu posso evitar que me diga? — Fiz uma careta.

— Você pode levar Thor para o quintal, aqui pela cozinha? Basta abrir a porta.

Senti a fragrância de Galan quando ele posicionou a mão ao lado da minha para segurar a coleira, e tive que me conter para não aspirá-la ostensivamente.

Fui atrás dele e enchi com água a tigela do cão. Quando Galan abriu a porta dos fundos, Thor correu, ansioso para explorar o novo espaço.

Abri a geladeira, afastei a cerveja de Jed e peguei a sobra de minha comida chinesa de dois dias atrás.

— Eu podia comer sem parar o dia inteiro.

O arroz frito formava um bloco sólido. Portanto, coloquei-o no micro-ondas e procurei o que beliscar enquanto esperava.

— Alguma sugestão, já que tenho que comer por dois? — perguntei a Galan.

— O que você normalmente come está bom — ele respondeu, erguendo um dos cantos da boca.

Enchi uma cumbuca com leite e cereais e sentei-me para comer.

Kitty chegou da sala de estar e esfregou-se nas pernas de Galan. Ele apanhou na geladeira uma lata de ração felina, despejou uma porção num pires e mostrou-a para mim.

— Ela come isso tudo?

Olhei para Kitty, que piscou para mim com inocência.

— Metade — respondi.

Enquanto Kitty e eu comíamos, Galan pegou uma nota de compra em cima do balcão, voltou para a mesa e começou a dobrá-la com seus dedos longos e elegantes.

— O que está fazendo?

Depois do último vinco, ele ergueu na mão um camundongo de papel, com rabo torcido e tudo. Depois, colocou-o no chão e soprou-o levemente. O camundongo deslizou, passando ao lado de Kitty; ela largou a comida e foi persegui-lo alegremente.

Quando ele cansou de soprar, voltou a atenção para mim, mas o camundongo continuou rodopiando, saltitando e coleando até disparar para a sala com Kitty atrás.

— Mágica... — sussurrei.

— O ar move-se na natureza. Eu apenas o direcionei. — Ele pôs os cabelos para trás... Impossível ser mais exótico, mesmo à luz do dia.

Olhei-o por mais alguns instantes antes de afastar o prato de cereais e ir apanhar a comida no micro-ondas. Eu queria saber de tudo, mas me sentia tímida na presença de um ser... sobrenatural.

— E essa questão da nossa ligação, como vamos resolver? — Sentei-me e comecei a soltar o arroz.

— Não tenho como sustentar uma alimentação dessas; é como ter um são-bernardo que só quer comida para viagem.

— Entendo. Achei que poderíamos começar a investigar hoje.

— Onde vamos conseguir a informação?

— Com meus pais.

— Você tem pais? — Meus olhos esbugalharam. Galan imitou-me, troçando.

— Você achava que os elfos cresciam embaixo dos cogumelos, e caíam quando estavam maduros?

— Não sei, talvez. Onde eles moram?

— Não moram numa rua específica. — Ele franziu o cenho.

— Não sei como explicar, mas sei chegar lá.

— Quanto tempo demora até lá?

— Não sei ao certo.

— Mais de um dia? Um mês? Eles moram neste hemisfério?

— Não tão longe assim. Se eu tivesse que calcular...

— Calcule, por favor.

— Umas duas horas. — Ele estimou, depois de me fazer uma careta.

— Viu? — Eu sorri para ele.

— Não foi tão difícil. Vamos depois do almoço.

Pus os pratos na lavadora, vesti o casaco por cima do pijama, enfiei os pés nos tamancos, chamei Thor com um assobio e coloquei nele a guia.

— Vamos — eu disse a Galan, que estava sentado no sofá, mudando os canais da televisão.

— Vamos deixar Thor em casa. A Sra. Jamison já está de pé e vai adorar você.

Quando ela abriu a porta e viu meu aspecto desgrenhado, levou a mão à boca.

— Nossa! Ele manteve você acordada a noite toda?

— Não! Eu acabei de conhecê-lo.

— Bem. Não é... — Ela pareceu confusa.

— Ah, está se referindo ao cachorro! — Atrás de mim, ouvi o riso abafado de Galan.

— Não, Thor dormiu bem e não vomitou.

Ela notou a roupa de Galan e sorriu, exibindo suas covinhas.

— E seu amigo, quem é? Você é ator?

— É Galan — respondi.

— É artesão, faz esculturas de papel. Não é daqui, veio me visitar.

Galan tomou a mão da Sra. Jamison.

— Prazer em conhecê-la.

— Não querem entrar um pouco? — Ela fitava-o com aprovação.

— Não podemos — respondi rapidamente.

— Temos que sair depois do almoço e nem me vesti ainda.

— São sete e meia da manhã — ela contestou, depois de consultar o relógio.

Galan gesticulou na direção da minha figura amarrotada e de pijama, e disse:

— Bem, nunca é cedo demais para começar.

— Temos que resolver algumas coisas antes, Sra. Jamison. — Esforcei-me para não perder a calma.

— Mais tarde nos vemos.

Assim que ela fechou a porta, dei um tapa no braço de Galan.

— Nunca é cedo demais para começar o quê?

— Você me agrediu — ele reprovou, zombeteiro. Empertiguei-me e acelerei o passo.

— Você tem sorte por eu não estar de dieta. Suponho que não exista um elfo que não seja atraente, não?

— Claro que não. Mas você também é atraente.

— Ah, é? — Fitei-o com seriedade.

— Só está um pouco amarrotada. Para um ser humano, você é muito atraente. — Galan apressou-se à frente e abriu a porta para mim.

— De qualquer forma, para os elfos — explicou — o maior atrativo humano não é a beleza.

— Os elfos não nos acham atraentes? — Eu estava tomada pela curiosidade. Tirei o casaco e joguei-o no espaldar do sofá.

— Às vezes. Por serem exóticas e imprevisíveis. Eu dei uma risada.

—Você acha que nós somos exóticas? Logo você, com seu origami de camundongo solto por aí? Curioso. — Fui até meu quarto.

— Vamos à mercearia, mas antes vou tomar banho. Se não, vou acabar comendo de novo.

Banho tomado, passei creme no corpo e saí nua do banheiro. Galan estava deitado na minha cama, de barriga para cima. Nem vi seu rosto, pois voltei depressa para o banheiro e bati a porta.

— O que você está fazendo no meu quarto? — Peguei meu roupão de banho, vesti-o e voltei para o quarto.

— Duas paredes entre nós é demais. — Ele pôs as mãos atrás da cabeça.

— Estava me sentindo fraco. Agora estou melhor.

Senti uma pontada de desejo naquela óbvia insinuação.

— Então, agora você já pode voltar para a sala, para eu me vestir.

Ele obedeceu, mas parou em frente ao meu armário, que estava aberto, e passou os dedos nas minhas roupas, quase todas pretas.

— Aqui é seu guarda-roupa ou o interior de uma chaminé?

— Assim é mais fácil vestir-se de manhã; as cores ficam por conta dos acessórios. Ande, saia logo! — Ele saiu, fechei a porta e bufei.

— Só me faltava essa!

Para ir conhecer os pais de Galan, eu tinha planejado usar uma calça preta e a blusa branca que eu mandara fazer, mas pensei se não seria o caso de me vestir um pouco melhor.

Após pensar no assunto por alguns instantes, escolhi uma blusa preta de mangas compridas e gola decotada e uma saia cor de fogo. O cinto era uma corrente de argolas prateadas e contas vermelhas. Voltei ao banheiro, passei gel nos cabelos, alisei algumas mechas terminando-as em pontas fofas e pintei os lábios com brilho granada.

— Agora sim! — Avaliei o resultado no espelho. — Isto é que é exagero!

Quando fui para a sala, porém, tive a satisfação de ver Galan arregalar os olhos.

— Belíssima! Só falta uma coisa. — Ele espalmou uma das mãos, onde estavam dois brincos com a forma de pequeninos ramos prateados.

— Onde conseguiu isto? — Fiquei maravilhada com a delicadeza das nervuras das folhas.

— Eu fiz enquanto você tomava banho. Sua bancada de trabalho estava logo ali, e eu estava entediado. Espero que não se importe.

— São lindíssimos! — Corri até o espelho do corredor, coloquei os brincos e mexi a cabeça de um lado para outro. Os raminhos balançaram como se soprados por uma brisa, reluzindo como se refletissem raios de sol.

— Custou muita energia. — Ele apareceu no espelho atrás de mim.

— Talvez uma cumbuca de flocos de milho.

— Eles valem uma semana de sushi — afirmei. — Muitíssimo obrigada!

— A mercearia é o único lugar a que vamos hoje de manhã? — Ele sumiu do espelho.

Quando virei, vi-o apoiado na parede, espreguiçando-se como um gato.

— Talvez eu passe lá na loja para mostrar os brincos para Lily. Ela vai enlouquecer. Quanto será que valem?

— Eu os fiz para você, não para vender. — Seus olhos violetas turvaram.

— Eu não ia vender estes. Só estava querendo saber...

— O quê?

— Não sei. E se você não recuperar sua terra? Talvez tenha que levar uma vida regular e ter um emprego.

Galan pôs os cabelos para trás e, de novo, assustei-me com suas orelhas pontudas.

— Não posso continuar vivendo assim — ele se queixou —, dependendo de desconhecidos, separado de meu habitat... Você não faz idéia.

Naquele momento, acreditei em tudo o que ele dissera porque sei como eu me sentiria na mesma situação. E os olhos dele diziam tudo.

— Peço desculpas, eu estava pensando só em mim. Sua situação é muito pior.

Ele virou-se, e os cabelos esconderam-lhe o rosto.

— Galan... — Ele não se moveu, e eu pousei a mão no braço dele.

— Seus pais vão saber como agir. Caso contrário, prometo que vou ajudar você a encontrar uma solução.

Quando ele finalmente olhou para mim, fiquei comovida com a esperança que havia nos olhos dele. E um pouco temerosa.

Levei Galan à mercearia de alimentação natural que eu costumava frequentar, e ele ficou fascinado com as mercadorias.

— São lindas — disse, admirando uma pirâmide de maçãs orgânicas.

Mas quando coloquei no carrinho uma caixa de macarrão instantâneo, ele retirou-a de lá e devolveu-a para a prateleira.

— Isto não tem nenhum valor nutritivo.

— Minha mãe diria a mesma coisa.

— Vamos voltar ao setor de legumes e verduras. Além de ter mais fartura, lá posso ajudá-la a escolher.

Decidi aceitar porque, sabendo que os elfos eram verdadeiros magos da culinária, eu seria muito bem servida.

Peguei mais alguns produtos, e encontrei Galan na seção de frutas, segurando um luminoso caqui-chocolate. Ele o colocou no carrinho com tanta reverência que não tive coragem de dizer que eu não gostava de caqui. Talvez Jed gostasse.

— Podemos deixar a comida em casa antes do almoço — sugeri já no carro, depois de consultar o relógio. Saímos do estacionamento e tomei a avenida.

— Sempre esqueço que o automóvel é a mão na roda.

Galan observava o tráfego que vinha no sentido oposto.

— Então é por isso que os elfos se ligam aos humanos! Vocês não têm rodas! Por falar nisso, como costuma ir ver seus pais?

— Não costumo. Não os vejo desde que saí de lá.

— Há quanto tempo?

— Uns duzentos e cinquenta anos.

— Como? — Agarrei-me com mais firmeza ao volante, procurando concentrar-me no tráfego.

— Pensei que você e eu tivéssemos quase a mesma idade.

— Não vivemos como vocês. Passamos parte do tempo em estado energético, fundidos com nossa terra.

— Em relação aos humanos, você teria o que, uns cento e vinte e cinco anos?

— Mais ou menos. — Ele riu.

— Qualquer terra lhe dá energia, ou só a floresta?

— A floresta e as imediações. Pensei por instantes.

— No passado, o Colorado era povoado de modo mais esparso. Onde as crianças elfos nascem hoje em dia?

— Não nascem. Não se tem notícia do nascimento de um elfo puro, filho de pai e mãe elfos, nos últimos sessenta anos. A terra não-civilizada disponível mal é suficiente para os elfos que existem.

— Você está dizendo que os elfos estão em extinção?

— Provavelmente.

Pisquei para expelir as lágrimas que brotaram em meus olhos.

— Não sei como você consegue ficar sentado comigo neste carro. Vocês devem nos odiar.

Galan riu suavemente, e fitei-o, espantada.

— Os humanos têm tanto medo de mudar. — Ele recostou-se e entrelaçou as mãos por trás do descanso da cabeça.

— Quando o castor faz uma barragem, vales inteiros são inundados e muitas vidas acabam. Vidas insignificantes, vocês diriam... insetos, plantas... mas vida, da mesma forma. Elas acabam, e outros animais vêm e se desenvolvem.

— Pensamento muito filosófico o seu. — Minha voz tremia quando estacionei o carro na porta de casa.

— Bem, caso isso a faça sentir-se melhor, sempre que há um deslizamento de terra em Honduras ou que o monte Santa Helena entra em erupção, nós recuperamos terras. Sua gente morre, um pouco de nossa gente se salva.

Quando passei a mão sob os olhos, meus dedos se sujaram de rimel. Abaixei o retrovisor e apanhei um lenço de papel no porta-luvas.

— Você disse que há tempos não nasce um elfo puro. O que isso quer dizer?

— Os elfos às vezes se encontram com humanos. Há quem ache que um meio elfo é melhor que nenhum.

Enfiei o lenço de papel na bolsa e abri a porta do carro.

— Quer dizer que existem meios elfos aqui em Boulder?

— E um quarto e um trinta e dois avos de elfos também. — Ele saiu do carro, pensativo.

— Que diferença faz? Peguei uma sacola da mercearia no porta-malas e dei a outra para ele.

— Pois eu conheço alguém que pode ser um elfo mestiço. O que isso acarreta?

— Nada de mais. Beleza física, com certeza, e amiúde um maior talento para as artes.

A caminho da porta da frente, levei a mão ao peito.

— Não é imodéstia, mas, e se eu for um elfo mestiço?

— Você não é.

— Vai ver, foi por isso que você pôde se ligar a mim.

— Sinto muito.

— Eu poderia ser! — Entramos, e eu bati a porta com força atrás de nós.

— Não. Você é inteiramente humana. — Meneou a cabeça.

— Por que iria querer ser elfo?

— Quem não gostaria de ser um elfo? — Acenei com as mãos.

— Veja você! É lindo, mágico, sabe fazer camundongos de papel e brincos!

Estávamos na cozinha. Eu coloquei minha sacola no balcão e dobrei meu casaco sobre o espaldar da cadeira. Galan tocou meu braço e sorriu.

— Os humanos também têm pontos positivos. Vocês são afetuosos, engraçados e generosos. Podem não ser imortais, mas recheiam a vida com amor, coragem e... tolices...

Percebi, de repente, o calor que sua mão emanava sobre meu antebraço, e a ausência de Jed, que parecia não estar em casa.

— Os elfos não cometem tolices? — perguntei apreensiva. Ele olhou bem para o meu rosto e inclinou-se para frente.

— De um modo geral, não, mas às vezes abrimos exceções. Ele pôs uma das mãos no meu pescoço e com a outra abraçou-me pela cintura.

Fascinada por seus cabelos desde que o vira pela primeira vez, corri os dedos de baixo para cima em sua nuca, e percebi que os feixes platinados eram mais espessos e sedosos do que eu imaginara.

Ele segurou meu rosto com as duas mãos, inclinou minha cabeça e afagou minhas têmporas com a ponta dos dedos. Tocou minha boca com a dele. Como não correspondi imediatamente, ele gemeu, um ruído sensual e frustrado, antes de introduzir a língua entre meus lábios. Logo, estava me beijando ardentemente. Eu não conseguia pensar, apenas sentir.

Alguma coisa preenchia os espaços entre nós, não só nos pontos onde não nos tocávamos, mas na distância infinitesimal que impedia nossos lábios de se fundirem num só. Era como se houvesse uma rede elétrica entre nossos corpos.

— Pare. — Recuei, assustada com a sensação. — O que está havendo?

— Como assim? — Ele tentou beijar-me novamente. — Você está me dando uma energia incrível.

— Mas tem alguma coisa estranha! — Empurrei-o com força, e ele me soltou.

— Qual é o problema, Erin? — Ele estava tão bonito que parecia brilhar. — Esta sensação! — Eu ofeguei, com medo. — Que sensação é esta?

— Desejo? — Ele meneou a cabeça.

— O que senti foi você me dando energia. Vamos repetir para você ver. — Ele aproximou-se.

— Umas duas horas de sexo já me bastariam para eu dar cabo de Fellseth para sempre.

— Não! — Recuei até encostar na mesa.

— Coisas ruins acontecem às pessoas que se envolvem com criaturas sobrenaturais! Elas vão para casa e descobrem que cem anos se passaram e que todos os seus conhecidos estão mortos.

— Que bobagem, você já está em casa!

— Ou então viram escravos, ou ficam obcecados e mínguam até definharem. Está nos contos de fadas.

Quando ele parou de se aproximar, sentei-me numa das cadeiras. Ele pôs os cabelos para trás e suspirou.

— Erin, eu já fiz sexo com humanas... especificamente para receber energia.

— Já?

Ele apoiou-se no balcão e fez um gesto afirmativo com a cabeça.

— E o que aconteceu com elas?

— Nada — ele respondeu, franzindo a testa.

— Fizemos sexo e conversamos. Na manhã seguinte, fingi tomar o café da manhã e fui embora.

— Então, na verdade, você não sabe o que aconteceu com elas.

— Eu vi uma delas tempos depois, e ela estava muito bem.

— O problema eu estudava sua fisionomia em busca de indícios de mentira — é que não há como confirmar o que você está dizendo, e eu mal o conheço. Ele riu.

— Mas eu acabei de contar que os humanos estão levando os elfos à extinção, e você não confia em mim?

— Talvez você queira se vingar.

— O que quero é arrumar um jeito de voltar para minha terra. — Ele afastou-se rapidamente do balcão e foi embora da cozinha.

Não o segui. Levantei-me e guardei as mercadorias devagar. Depois, peguei meu casaco e fui para a sala, onde Galan, sentado no sofá, olhava para o vazio.

— Quero ajudá-lo. De verdade. Só acho que preciso ter cautela.

— Está bem. — Ele me fitou com uma expressão fria. Vesti meu casaco.

— Vamos ver o que os seus pais têm a dizer. — E, se eles me pegassem em uma armadilha e me prendessem debaixo da terra por mil anos, então minha cautela faria sentido. O pensamento não foi reconfortante.

Já no carro, perguntei:

— Como chegamos à casa de seus pais? Seria bom se fôssemos pelas estradas principais.

— Vá naquela direção. — Ele apontou para o sopé da colina.

— Lá vamos nós. — Coloquei o carro em primeira. Pegaria a rodovia 93.

A estrada subia e descia feito montanha-russa. Um nevoeiro cobria os campos verdes à direita, mas, ao norte das esparsas pedras redondas e arvoredos, ainda havia neve no chão. Para lá destes, os picos nevados lembravam um cinematográfico plano de fundo.

No início Galan estava rijo, com os braços cruzados sobre o peito, mas, com o passar do tempo, relaxou e passou até a apreciar a paisagem. Só falei quando o percebi mais à vontade.

— Peço desculpas se o insultei, mas, se estivesse no meu lugar, não faria o mesmo?

— Acho que sim. — Ele suspirou. — Fiquei apenas frustrado.

— Agora sim, você já está outra pessoa. — Eu sorri.

— Fiquei frustrado porque sei que você tem o que eu preciso para derrotar Fellseth, mas não quer me dar.

— Porque não sei quais serão as consequências — contestei de supetão.

— Vamos falar de outra coisa. Como são seus pais? São divertidos?

— Diversão não é uma palavra que costumo associar aos meus pais.

— Você não os vê há uns duzentos e cinquenta anos, talvez estejam mais relaxados.

— Meus pais são gente boa, não me entenda mal. — Galan tamborilou na porta.

— Mas a situação dos elfos é séria, e nós quase sempre estamos...

— Sérios?

— Exatamente.

— Como os dois se conheceram?

— Eles tinham terras contíguas. De um certo modo, estavam à frente de seu tempo. Só hoje, com os elfos decadentes rondando por aí, passamos a casar com os vizinhos, para garantir a posse das terras.

Inspirei fundo e expirei.

— Acho melhor você me explicar o que são os elfos decadentes.

Galan entrelaçou os dedos.

— Quando uma terra é transformada por humanos, libera muita energia latente. Árvores são abatidas, animais pequenos morrem, cursos de água são desviados ou interrompidos. Os elfos decadentes alimentam-se dessa súbita liberação de energia destrutiva, o que é impensável para a maioria dos elfos.

— Então, em vez de receberem uma quantidade regular de energia de sua própria terra, os elfos decadentes são como as cobras, que se alimentam em grande quantidade com menos frequência.

— É quase isso. E isso os transforma.

— Se querem energia destrutiva — franzi o cenho, intrigada —, por que não procuram os canteiros de obras? Por que atacar pessoalmente outro elfo?

— Por dois motivos. Primeiro, o elfo que morre também libera energia, e, segundo, todo elfo vivo está sempre se esforçando para proteger sua terra contra os incorporadores.

Pensei naquilo.

— O que ele ganhou atacando você? Nada, ao que parece. Não conseguiu matá-lo, e sua terra é um espaço público aberto a todos, que não pode ser incorporada por particulares. Talvez Fellseth queira roubar sua terra para ligar-se a ela e deixar de ser um elfo decadente.

— Os elfos decadentes não mudam. — Ele meneou a cabeça.

— Eles são mais poderosos? Quer dizer, como ele pôde... hum...

Ele deu um sorriso tenso.

— Como Fellseth pôde me expulsar? A triste verdade é que, por estar deprimido, eu não estava cuidando da terra a contento, o que enfraqueceu meu vínculo.

— Posso saber por que estava deprimido, ou é pessoal? Talvez por causa da situação dos elfos, que já é muito deprimente por si só.

— Perdi minha cônjuge. — Ele olhou para fora.

Senti meu peito se apertar de tristeza. Se aquilo tudo fosse ficção, Galan era melhor do que Spielberg para tocar os corações.

— Lamento muito.

— Já faz algum tempo, mas nunca consegui me recompor. A terra dela era adjacente à minha, o que talvez tenha sido um erro.

Ele se casara por amor, e a esposa morrera.

— Como ela morreu?

— Fellseth matou-a. — Ele confirmou com a cabeça, respondendo ao horror que me tomava.

— Já aconteceu antes. Matar um elemento de um casal para atacar o outro. Ele nem teve pressa. Eu deveria ter sido mais cauteloso, mas, depois que Timea morreu, nada mais me importava.

— Galan, tudo isso é abominável! Não existe algum meio de resolver a questão? Vocês não têm lei?

— A lei da natureza. — Ele soltou uma risada amarga.

— A mesma lei que permite aos corvos levar os filhotes das pegas, e às chupins pôr ovos no ninho dos sabiás-do-campo. — Ele me fitou de lado, longamente.

— Você poderia sentir pena de mim e fazer sexo comigo.

Eu meneei a cabeça, mal acreditando no que estava escutando.

— Vamos ouvir o que seus pais têm a dizer.

— Você está me dizendo que, se meus pais concordarem, você fará sexo comigo?

Ele pôs a mão em minha coxa, e eu a retirei.

— Eu me refiro a como vamos nos desvincular um do outro, e a outros meios de você conseguir energia. Galan, você não tem certeza de que o sexo vai lhe dar energia suficiente para derrotar Fellseth.

— Mas estou disposto a descobrir.

Ao ver aquele rosto malicioso, sorri. Eu gostava dele. Quando avistei um posto de gasolina, diminuí a velocidade.

— Vamos parar por quê?

— Quero comprar algumas coisas para comermos na estrada. Você não quer que eu desmaie de fome na direção, não é?

Uma campainha anunciou nossa entrada na loja. A atendente, uma jovem hispânica, sorriu com lábios lascivos para Galan. Encontrei a estante dos lanches, escolhi algumas barras de cereais e um saco de pretzels enquanto ele examinava um mostruário de chaveiros turísticos.

— Eles têm água mineral El Dorado — anunciei. — Quer uma garrafa?

Ele recolocou o ursinho com camiseta de beisebol no lugar.

— Não preciso, mas serve para refrescar.

Fui ao encontro dele, com os braços sobrecarregados de alimentos e água.

— Por curiosidade — abaixei a voz —, você nunca vai ao banheiro?

— Você e seus interesses pruriginosos! — Ele pegou as garrafas para aliviar o peso de minha carga.

— Talvez eu passe meus dejetos para você, já pensou nisso?

— Eca!

— Estou brincando. De que outras funções físicas minhas você quer saber? Aproveite e pergunte logo.

— Não, obrigada. — Levamos as compras para o caixa, e peguei minha carteira enquanto a funcionária somava os itens.

— É que esta é uma oportunidade única de conhecer sua gente.

Ele pegou uma garrafa de água e abriu a tampa.

— Eu não me incomodaria se fosse você. Assim que eu conseguir o que eu quero, vou me assegurar de que não se lembre de mim.

A caixa congelou, com uma barra de cereais na mão, e arregalou os olhos.

— Quer que eu chame a polícia? — ela sussurrou. Eu me aproximei dele.

— Seu cretino! — Empurrei-o, e a água molhou sua camisa.

— Ou talvez você prefira cuidar disso pessoalmente — a caixa constatou.

— Estou sendo generoso, Erin. — Galan passou as mãos pelos pontos molhados em suas roupas.

— Esse sujeito está me assustando. — A funcionária estendeu a mão para o telefone.

— Ele não quer me matar ou coisa parecida. — Eu estava enfurecida.

— É um ritual ligado à hipnose. Qual é o total?

— Treze dólares e dezessete centavos. — Ela me olhava com desconfiança.

Paguei, peguei a sacola e encarei Galan.

— Posso escrever tudo o que sei a seu respeito, enviar para minha tia em Tacoma e pedir a ela que me envie de volta. Quero ver como vai sair dessa!

— Eu espero e, quando você receber a correspondência, faço-a queimar ou algo parecido.

A caixa meneou a cabeça.

— Moça, você devia dar queixa e solicitar uma medida judicial para impedir que ele se aproxime.

Quando chegamos ao carro, eu estava quase chorando.

— Como vou confiar em você se fala essas coisas horríveis? — Eu procurei as chaves atabalhoadamente na bolsa.

— Você está se protegendo. Não percebe que eu também preciso me proteger? Os humanos não sabem guardar segredos, Erin.

— Eu não sei guardar segredo? Nem precisa me ameaçar com essa sua lobotomia, ninguém vai acreditar em mim mesmo!

Entrei no carro, e briguei com o saco de pretzels até conseguir abri-lo com os dentes.

— Você não confia em mim, não é? — perguntei, fungando.

— E você, confia em mim?

— No momento, não, obviamente, mas eu estava tentando! — Enfiei o saco de pretzels junto ao freio de mão e saí do estacionamento com os pneus espalhando cascalho.

— Vamos ver seus pais. Quanto mais cedo eu me livrar de você, melhor!

Dirigi em silêncio durante quase uma hora, comendo sem parar, fungando de vez em quando.

— Por ali — Galan falou enfim, apontando para uma estrada vicinal onde se lia "Parque Estadual do Canyon Golden Gate".

Quando chegamos ao pedágio da entrada do parque, paguei a tarifa e continuei em frente até Galan apontar para uma estrada que levava ao início de uma trilha.

Guiei-me pelas placas marrons e estacionei numa vaga. Depois do macadame, havia neve espessa. O lugar devia ser um esplendoroso paraíso nos dias de sol, mas naquele momento o céu estava nublado. As píceas e os pinheiros projetavam sombras escuras no chão liso e inteiriço.

— E agora? — perguntei.

Ele virou-se e olhou para fora pela janela de trás.

— Vamos ter que sair e andar um pouco a pé.

— Que ótimo!

— Espere um minuto. — Ele abriu a porta.

O ar gélido entrou no carro. Abotoei meu casaco enquanto Galan contornava o carro para abrir minha porta.

— Vou carregar você. Venha!

Contra o plano de fundo da neve e das árvores, os olhos violeta de Galan pareceram subitamente alienígenas e perigosos.

— Por que vai me carregar, está com medo que eu fuja? Ele exalou um suspiro e uma nuvem de vapor.

—A neve está muito funda, você não está com os sapatos apropriados.

— Ah!

— Suba nas minhas costas. — Ele instruiu, depois de virar e abaixar-se.

Equilibrei-me na borda do piso do carro e ergui um pouco meu vestido para subir nas costas dele. Assim que o fiz, ele aprumou-se, levantou-me um pouco mais e fechou a porta.

Procurei não apertar demais, mas não consegui equilibrar-me. Então, desisti e abracei-o por cima dos ombros. O calor de seu corpo se infiltrava em minhas pernas nos pontos em que ele as segurava com as mãos, e seus cabelos cheiravam a primavera naquele ar frio cortante. Descansei o queixo em seu ombro, e minha raiva abrandou.

— Seus pais vão gostar de vê-lo?

— Acho que vão ficar chocados. — Ele se abaixou para não esbarrar num galho nevado.

— Você vai gostar de vê-los?

Como ele demorou a responder, achei que fosse ignorar a pergunta.

— Quero ver minha mãe — disse, por fim.

— Você manda flores para ela no Dia das Mães? — perguntei e percebi que ele sorriu.

— Ela cultiva suas próprias flores.

A floresta adensou. Galan não parecia cansado, e desequilibrou-se só uma vez quando a manga do meu casaco se enroscou em um galho. Acostei minha cabeça e tentei consolar-me com as duas barras de cereais que levava no bolso.

Depois do que pareceu uma hora de penosa caminhada na mata, Galan parou junto de uma pedra grande, que fazia parte de um amontoado delas numa pequena clareira, inspirou fundo e soprou a superfície, espalhando feito borrifador os dez centímetros de neve que ali pesavam. Depois, aproximou-se dela de costas para que eu pudesse me sentar. Logo, me acomodei no espaço que ele limpara.

Após fazer alguns movimentos de alongamento, ele chamou em alto e bom som:

— Anatelia! Trion!

Olhei atenta na direção dos gritos, esperando ver formas materializando-se no ar rarefeito, mas quem emergiu, de trás de um pequeno arvoredo, foram duas pessoas, que fisicamente não pareciam muito mais velhas que Galan, embora tivessem um aspecto mais experiente. As vestes eram selvagens: peles de animais com as patas, e, nos longos e belos cabelos, feito pingentes, penas trançadas em folhas de capim. Eram tão bonitos que os fitei fascinada.

-— Galan! — A mulher correu na direção dele, mas parou quando me viu.

— Você está preso! Ela o prendeu? — Ela arrancou um galho da neve e atirou-o em mim.

— Não, mãe! — Galan saltou de lado e interceptou a tora com o peito, grunhindo de dor.

— Estamos ligados por acidente, é ela quem está me mantendo vivo!

Anatelia aproximou-se, inspecionando com o olhar zangado minha figura acuada.

— O que houve? — ela instou. — Por que está ligado a esta humana?

Ela era ainda mais bonita de perto, mas também mais aterradora, com rudimentos de civilização. O pai de Galan aproximou-se dos dois; seu rosto liso e comprido estava impassível.

— Fellseth, um elfo decadente, separou-me da minha terra. — Galan olhou para o chão. — Eu fui negligente.

— Por que veio nos ver? — A voz de Trion era um ribombo grave e baixo.

Não consegui discernir se aquela pergunta queria dizer "Por que você está vivo?" ou "Por que veio nos incomodar?". De um jeito ou de outro, ele não me pareceu muito afetuoso.

Assim que Galan começou a explicar o que tinha acontecido, Anatelia parou de lançar-me olhares odiosos, parecendo pensativa. Finalmente, ela se dirigiu a mim:

— Por que está com meu filho?

— Porque... quero ajudá-lo... — gaguejei, mas logo firmei a voz.

— Sim, é por isso. Não podemos deixar Fellseth continuar agindo assim.

— Humm. — Ela estreitou os olhos e fitou Galan. — Você teve intimidades com esta mulher?

— Não. — Ele ficou sem-graça. — Ela está com medo de mim, não sei por quê.

— Porque — intervim — eu não sei o que acontece aos humanos que fazem sexo com elfos.

O pai de Galan riu.

— Passam a se considerar felizardos.

— Nós vivemos junto da terra. — Anatelia franziu o cenho.

— Nós não criamos vínculos inconvenientes. — Ela tocou o antebraço de Galan.

— Estou feliz que ainda esteja vivo, mas não sei como ajudá-lo.

— Nem eu. — Trion meneou a cabeça ante o olhar inquisitivo de Anatelia.

— De uma coisa eu sei — ela prosseguiu —, os humanos destroem os elfos, não os ajudam. Ela disse que o está ajudando, mas está mentindo.

O vento rodopiou em remoinho a neve da clareira, e eu fechei os olhos para me proteger. Quando os abri de novo, os pais de Galan já não estavam mais ali.

—Visita agradável, não? — ironizei, incrédula.

— Exceto pelas partes em que sua mãe tentou me matar e me chamou de mentirosa.

— Eu disse que os elfos não são como os humanos — Galan disse, com irritação.

— Você é. Conheci alguns estudantes de engenharia bem menos humanos que você.

Ele posicionou-se em frente à pedra para eu subir de novo em suas costas.

— Os elfos influenciam os humanos, mas os humanos também influenciam os elfos. Minha terra é bem perto da cidade; a deles, não.

Enquanto voltávamos para o carro, imaginei-o menino correndo pela floresta, enrolado em peles, com aquele olhar selvagem que eu vira no rosto de seus pais, e senti um calafrio. Abracei-o com mais força.

— Você deve ter sido criado com uma boa dose de paranóia a respeito dos humanos.

Ele assentiu e perguntou:

— Você está dizendo que me perdoa por eu querer obrigá-la a me esquecer?

— Talvez. Você está dizendo que não vai me obrigar?

— Provavelmente. Belisquei-o no braço.

— Está bem. — Ele suspirou.

— Não Vou obrigá-la. Talvez não seja preciso. Você pode se cansar de mim e querer esquecer.

A viagem de volta foi feita quase em silêncio, porém de maneira mais confortável. Eu mastigava uns petiscos, pensando em neve e solidão; Galan recostava a cabeça no espaldar do assento, de olhos fechados.

Quebrei o silêncio quando entramos em Boulder.

— Quero passar na loja antes de ir para casa. Ele girou a cabeça e olhou para mim.

— Você quer comprar mais comida?

— Não é a mercearia, é a Rosa Verde, onde trabalho. Vendemos livros da Nova Era. Talvez possamos encontrar informação sobre como romper laços de energia. Ou talvez Lily saiba alguma coisa.

— Quem é Lily?

— A dona da loja, por enquanto. Vou comprar o negócio.

— Você vai comprar uma loja da Nova Era? A mulher que não acredita em elfos?

— Uma coisa não tem nada a ver com a outra. De qualquer forma, vendemos objetos de arte e presentes também.

Amassei o saco de pretzels e joguei-o no banco de trás.

— Lily é minha melhor amiga. Talvez possa ajudar.

— Melhor amiga ou não, não me apresente como seu amigo elfo. Vou glamouriza-la um pouquinho, e ela nem vai saber que estou com você.

— Está bem. — Peguei no bolso minha última barra de cereais.

Estacionei numa das duas vagas reservadas atrás da loja e abri a porta dos fundos com minha chave.

— Amigo ou inimigo? — perguntou Lily, lá de dentro.

— Sou eu- Puxei Galan, que olhava as mercadorias. — Vamos logo!

— Acho que conheço esta mulher. — Ele examinava uma estatueta de Morgan le Fey.

— Você veio rearrumar as bijuterias? — Lily apareceu no fim do corredor.

— Não precisava; isso pode esperar até terça. — Ela fitou Galan e sorriu.

— Olá.

Com a estatueta na mão, Galan congelou, como se apanhado furtando em flagrante. Eu pisquei, olhando de um para o outro.

— Olá, Lily! — saudei-a.

— Seu amigo, quem é? — Ela sorriu, intrigada. Galan pôs a estatueta de volta no lugar e deu um sorriso sedutor.

— Sou Galan, um novo amigo de Erin. Bonitas aquelas sinetas, os mensageiros do vento! — Ele foi ver as peças. Quando passou por Lily, parou atrás dela, virou-se para mim e moveu os lábios para dizer:

— Meia elfo.

— Namorado novo? — Lily fez o mesmo que ele, movendo os lábios em silêncio, e ergueu discretamente o polegar.

— Bem, vamos lá. — A sigilosa troca de informações me aturdira.

— Lily, nós temos livros sobre elfos?

— Acho que temos um livro de mitologia. Acompanhamos Lily. Passamos por uma prateleira com fontes de água e chegamos à primeira estante da livraria, de onde ela retirou um livro com uma belíssima capa: A Magia e os Costumes dos Elfos.

— Obrigada. — Passei o livro a Galan.

— Vamos dar só uma olhada.

Ela me fitou, intrigada, antes de se retirar para a frente da loja.

Galan folheou o livro.

— Quanta mentira! Quanta bobagem! — Ele fechou o livro com um estampido.

— Espere, também quero ver.

Ele me passou o livro, e folheei o primeiro capítulo.

— Certo, entendi — eu disse. Para início de conversa, Galan não tinha doze centímetros de altura. Recoloquei o livro na prateleira e fomos para a frente da loja.

— Não era bem o que procurávamos — informei Lily.

— Talvez algo sobre energia ou vínculos energéticos?

— Você precisa ser mais específica, garota. — Ela se dirigiu a outra estante, onde percorreu as lombadas com os dedos.

— Todos estes são sobre energia. Há wicca, kundalini, sexo tântrico...

— Esse último parece interessante. — Galan, que se aproximara de nós, retirou o livro da prateleira.

— Nós vamos dar uma olhada, Lily. Obrigada.

— Está bem. — Ela retornou para a frente da loja e, ao passar por mim, sussurrou: — Uau.

Galan começou a folhear o livro sobre sexo tântrico, e logo se deteve em uma fotografia colorida.

— Você é muito ou pouco elástica?

— Ponha de volta no lugar. — Tentei puxar o livro. Ele abaixou a mão livre e segurou minha perna.

— Porque, se você conseguisse levantar...

Ri ao sentir cócegas e ver a careta engraçada que ele fazia. Lily voltou com uma revista nas mãos.

— Achei este artigo... — Ao nos ver, ela parou.

Galan soltou simultaneamente o livro e minha perna. Eu me desequilibrei.

— Não fica bem você fazer uma insinuação dessas no atual estágio de nossa relação — ele troçou e dirigiu-se à estante seguinte.

Lily apressou-se ao meu encontro.

— Ele é o homem mais lindo que já vi. Vocês estão namorando?

— Não, Galan é... um amigo de Jed. Sabe, aquele pessoal de RPG?

Ela sorriu.

— Que bom!

Guardei o livro na estante e voltei ao assunto:

— Você encontrou alguma coisa? Ela me entregou a revista.

— Esse número da Blue Egg é todo sobre os mecanismos da energia. — Fitou-me, curiosa. — Por que o súbito interesse?

— Galan está projetando um novo jogo de RPG — inventei.

— Ele quer algumas idéias diferentes para as habilidades dos personagens.

— Eu diria que ele já têm idéias demais. — Ela piscou para mim.

A sineta do vento tiniu na porta.

— Cliente — ela disse e se foi.

 

— Gostou da loja? — perguntei a Galan a caminho de casa.

— Gostei.

— Você viu o mostruário das fontes? Eu pus a pedra de frente para as estantes. Demorei um fim de semana. E a iluminação embaixo das bolas de cristal? Fui eu que fiz. Mas acho que você não viu meu mostruário de jóias. Fiz uma árvore grande, de arame torcido, e decorei com folhas de seda. Minhas jóias não chegam aos pés das suas.

Percebi que estava falando a esmo e me calei.

— Vi suas jóias, sim, e são muito bonitas. — Ele sorriu.

— Seu orgulho está justificado.

— Sabe — senti meu rosto esquentar —, acho que estou empolgada com a perspectiva de ser a dona da loja.

— Sei como é. — A expressão dele estava triste, e eu tentei mudar de assunto.

— Lily é mesmo meia elfo?

Ele inspirou fundo e ergueu-se um pouco, talvez sensível à minha tentativa de melhorar seu humor.

— É, com certeza. Ela é imune ao glamour da minha invisibilidade.

— Nunca tinha notado que as orelhas dela são pontudas.

— Isso é como olhos azuis. Precisam vir dos dois lados.

— Como sabe tanta coisa a respeito dos humanos?

— Nós temos que saber, porque vocês nos afetam muito. Desde criança os elfos aprendem a falar e a escrever nos idiomas locais, mas ouvir e observar é o nosso maior instrumento de saber. — Ele riu, mexendo-se.

— De vez em quando, eu cometo algum erro.

— Mesmo?

— Uma vez, uma mulher me pediu que grelhasse um queijo. Se ela não tivesse percebido a tempo, eu o teria posto na torradeira.

— Com quantas mulheres humanas você já fez sexo? — Percebi que eu estava agarrando o volante com força.

— Não sei. As coisas ficam um pouco nebulosas com o passar do tempo. Mas eu garanto que nenhuma delas ficou mil anos dormindo depois do ato; tiraram apenas uma soneca.

Chegamos em casa. Desliguei o carro, mas não tirei o cinto de segurança.

— Supõe-se que os elfos sejam criaturas mágicas e ardilosas, mas não que se aproveitem das mulheres. — Olhei para ele, à espera da reação.

— Já que você quer saber mesmo — os olhos violeta escureceram —, estive com cinco mulheres humanas. — Um canto da boca ergueu-se, quase timidamente.

— E tive uma cônjuge elfo, você já sabe.

— Bem, cinco mulheres em duzentos e cinquenta anos não chega a ser promiscuidade...

Saímos do carro e, quando entrei em casa, joguei as chaves na mesinha ao lado da porta.

— Alguém em casa? -Ninguém respondeu, e eu fui até a cozinha.

— E gravidez? Doença venérea? Vocês usam preservativos?

— Minha cônjuge usava, já há trinta anos. Foi uma das pioneiras.

— E de lá para cá? — Olhei o interior da geladeira.

— Tenho andado pela cidade, ido à biblioteca, assistido a um ou outro filme, mas não estive com nenhuma humana.

— E se você tiver contraído sífilis em uma das experiências em outro século?

— Fechei a porta da geladeira. Tudo ali dentro precisava de cozimento.

Galan ergueu a sobrancelha.

— Quando nos desincorporamos, nos livramos dos germes. E eu não engravidei ninguém. Os elfos podem controlar a fecundação. — Ele levou a mão à fruteira.

— Se está com fome, por que não come uma fruta fresca?

Olhei para a maçã que ele segurava e ri, nervosa.

— Aposto que o simbolismo é um elemento natural para os povos dos contos de fadas. Ele recolocou a maçã na fruteira e segurou meus braços logo abaixo dos ombros.

— Erin, sei que esta situação é estranha, e difícil.

— Para você também não é fácil. — Eu olhava para o peito de Galan.

— Você tem sido muito compreensiva.

— Tenho tentado.

— E quero agradecer. — Ele me abraçou com ternura. Fechei os olhos, senti seu perfume e o leve roçar de seus cabelos. Ele se inclinou e aproximou-se. Deixei meus braços moldarem-se à vigorosa curvatura de suas costas.

Ele me afagava lentamente com as mãos. Eu me senti uma gata, e uma corrente estática formou-se em minha pele. De repente, meu estômago roncou alto.

Eu recuei e fitei-o por entre os cílios.

— Você pode agradecer — eu disse — fazendo o jantar.

Eu observava Galan cortar as cebolas com uma faca.

— Eu achava que os elfos não podiam tocar em ferro. Ou só nos contos de fadas?

Ele empurrou as cebolas para uma tigela e passou às pimentas.

— Às vezes nos chamam de elfos, às vezes de fadas. Esse mito em particular é meio esquisito, já que nos fundimos com a terra, que contém minério e rocha metálica. Alguém deve ter matado um elfo, atirando uma ferradura, e achado que o causador foi o ferro.

Despejei as cebolas e pimentas na panela grande onde o tofu com os temperos já estava em processo de fritura no óleo quente. Os legumes estalavam e fumegavam, e eu os mexia com a colher de pau.

 

— O cheiro está bom? — perguntei.

— Cheiro é cheiro.

Eu colocava o mexido em cima do arroz quando ouvi a porta da frente abrir e fechar. Jed entrou na cozinha logo a seguir.

— Você lembra de Galan? Talvez não. Bem, ele talvez passe uns dias aqui conosco. — Esperei a reação de Jed à possibilidade de hospedar um Adônis de vestes renascentistas e cabelos de platina.

— Que ótimo! — Ele pegou na geladeira a caixa com seis cervejas.

— Quer jantar? É fritada de tofu com legumes.

— Não, obrigado. Vou ver uma amiga. Só passei para pegar umas coisas.

Jed foi ao seu quarto e, um minuto depois, passou pela entrada da cozinha com um fichário de folhas soltas, à beira de arrebentar de tão cheio.

— Até mais. Devo chegar tarde.

A porta fechou-se. Peguei um pedaço de fritada no garfo e assoprei.

— Ele provavelmente vai representar um elfo em algum jogo de RPG hoje à noite. Você poderia ter dado umas dicas para ele.

Galan pôs a tampa na panela grande.

— Onde está aquela revista que Lily emprestou para você?

— Em cima do balcão. — Apontei com o garfo. Ele sentou-se e foi à página do índice.

— Aqui não há nada sobre desconexão de vínculos. Mas... — Ele apontou, ruidoso, enfático e triunfal:

— Geração de Energia Através do Sexo é o primeiro assunto.

— Hum. O que mais?

— Bem, depois do óbvio, música também pode funcionar. Percussão, canto, dança. Alguns tipos de ioga, meditação...

— Meditação? — Abaixei o garfo.

— Você medita? — Ele olhou para mim.

— Faço meditação Zen há um ano, mas é para descarregar energia, em vez de aumentar.

— Vamos ver o que dizem. — Ele localizou a página e leu.

— Não mencionam Zen especificamente, mas ensinam um exercício.

— Vou tentar fazer depois de comer. — Dei outra mordida. Galan enrolou a revista e começou a batê-la na mesa.

— Você sempre demora tanto assim para comer?

— Vamos tentar depois que eu comer e a digestão já tiver começado.

Levei duas garfadas à boca. Galan voltou a ler a revista, com a testa apoiada no punho cerrado. De vez em quando, ele punha os cabelos para trás da orelha, e eu admirava, fascinada, as pontas esguias.

Era a primeira vez que eu conseguia estudá-lo a contento, e aproveitei. Olhei seus cílios espessos, cor de prata fosca, a curva suave do rosto, o arco firme dos lábios, levemente entreabertos enquanto ele lia.

Que eu o queria era inconteste, mas como saber se ele dizia a verdade? No fundo, o ato de uma mulher beijar um homem sempre envolve certa fé. Espera-se que ele não seja um assassino em série, que não seja casado ou que não seja um completo imbecil.

Eu, normalmente, considerava a possibilidade de um futuro com os homens que beijava. Galan havia deixado claro que queria seguir seu caminho. E havia o fato de ele ser um elfo. Após acreditar nisso, o que mais restava? E se ele me dissesse que eu viveria para sempre se fizesse sexo com ele, eu acreditaria? E se ele dissesse que me amava?

Levantei-me abruptamente e coloquei o prato na lavadora. Depois, voltei e dei um tapinha na revista.

— Onde está o exercício?

Ele localizou-o para mim. Dizia que a energia da terra subia pela base da espinha dorsal, como a água nas raízes de uma árvore, e depois saía para o espaço.

— O que espera conseguir com isso? — perguntei, após examinar a ilustração.

— A energia que você me dá parece suficiente para eu me manter. Espero que, com este exercício, eu possa receber um fluxo bem mais intenso e liberar um pouco, como um sifão.

— Vamos fazer no meu quarto, onde eu costumo meditar, e não seremos interrompidos se Jed voltar mais cedo. Vou vestir uma roupa mais confortável. Espere um minuto.

No meu quarto, vesti uma calça de flanela e uma camiseta larga.

— Entre. — Abri a porta.

Galan entrou com a revista, sentou-se na cama e começou a tirar as botas.

— Para que vai tirar as botas? — perguntei.

— Porque vamos sentar no chão, certo? Também quero ficar à vontade.

— Ah.

Apanhei, sob a cama, minha almofada redonda de meditação. Sentei-me nela de pernas cruzadas e coluna ereta. Expirei todo o ar até meus ombros penderem.

— Como começamos?

Galan sentou-se no chão e dobrou a revista na página da ilustração.

— Primeiro, é preciso relaxar. Você está tensa.

— Não estou acostumada com platéias, muito menos as ansiosas.

Peguei a revista e reli alguns pontos da matéria enquanto Galan, ajoelhado atrás de mim, massageava meus ombros.

— Não adianta. — Tentava, mas não conseguia relaxar.

— Pois eu acho que senti alguma coisa -— ele disse. Dei uma última olhada no artigo, pus a revista no chão e fechei os olhos. Depois de me remexer um pouco, inquieta, por fim relaxei e evoquei a imagem da ilustração. O primeiro chacra lembrava uma bola de luz vermelha em volta do meu cóccix. Inspirei fundo e ouvi Galan fazer o mesmo, em sincronia com minha respiração.

O segundo chacra era laranja, abaixo do umbigo, e o terceiro era amarelo, no plano do plexo solar. Concentrei-me em cada um deles, que reluziram feito jóias ao longo de minha coluna. E agora?

— O coração. É verde, como as folhas da primavera. — Ele estava sereno.

— Obrigada — sussurrei, enlevada pelo sentimento de estar em comunhão com ele. Imaginei o chacra do coração como se fosse uma luz branda em meu peito.

— E agora?

— A garganta. Azul, como o céu do verão.

Ouvi-o mover-se, estender as pernas ao lado das minhas e apertar o peito contra as minhas costas.

Quando cheguei ao chacra violeta, na coroa da cabeça, senti como se meu crânio se abrisse para exaurir o intenso fluxo de energia que me subia pelas costas. Levantei os braços, feito galhos de árvore, com as palmas para cima.

Encostado em minhas costas, Galan estava quente. Senti o beijo suave que me deu na nuca, mas tudo parecia vir de muito longe, assim como o som da batida na porta da frente.

— Ignore isso — ele disse baixinho, e levantou os braços até encostar as palmas das mãos nos dorsos das minhas.

As batidas pararam, mas um minuto depois Galan levantou-se atabalhoado. Abri os olhos, confusa e desequilibrada.

Um estranho estava parado em pé no vão da porta do meu quarto.

— Pensei que você estivesse morto — ele disse para Galan, inclinando-se de lado para olhar para mim.

— Mas vejo que não.

Fitei aquele rosto muito bonito. Quem poderia achar que Galan estivesse morto?

— Fellseth — sussurrei.

Ele sorriu; a boca era sensual e um pouco debochada.

— O único.

Os cabelos prateados e os malares altos caracterizavam-no como elfo, mas os olhos eram verde-escuros em vez de violeta. As linhas do rosto eram mais profundas, como se ele estivesse marcado por uma forte emoção. Crueldade? Sofrimento?

— Uma doce mortal. Mas prefiro você de preto, a cor que usava quando nos conhecemos.

Ele trajava uma roupa azul meia-noite, mas, em vez de colete, usava um fraque de abas longas como as asas de uma andorinha. Duas trancas finas caíam-lhe nas têmporas, deixando bem à mostra as orelhas pontudas.

— Eu nunca o vi antes — contestei.

— Nós nos conhecemos na noite em que você pegou Galan no mato. Você apenas não me viu. — Ele foi até minha cama e sentou-se.

— Saia daqui — Galan exigiu, pondo-se entre nós dois.

— Por quê? Nós dois podemos ir para onde quisermos. Com limitações, no seu caso. — Fellseth alisou uma almofada de seda vermelha. Depois, jogou-a contra a cabeceira, deitou-se nela e pôs as pernas em cima da cama.

— Sabe, eu não guardo rancor de você.

— Não escute nada do que ele diz, Erin — Galan interveio.

— Ele está tentando enganá-la.

— Você é tão dramático que chega a cansar. — Havia aborrecimento na voz de Fellseth. Ele dirigiu-se a mim;

— Sei que você acha que está praticando o bem, mas é como cuidar de um filhote de passarinho. Esforça-se muito, sofre-se muito, mas o desgraçado sempre acaba morrendo. A sobrevivência do mais apto... Não foi um de vocês que cunhou esta expressão?

— Você roubou a terra dele, — Eu me sentia tonta e um pouco enjoada, mas estava articulada.

— Ele não estava dando conta do recado e a terra estava sofrendo — ele disse casualmente.

— Acredite, se a terra o quisesse, eu não teria conseguido romper o vínculo.

— Mas você vai destruí-la e tomar toda a energia de uma vez — insisti. Galan aproximou-se de mim. Eu pousei uma das mãos em sua panturrilha e me senti mais firme.

Incrédulo, Fellseth soltou uma gargalhada.

— Foi isso o que ele contou? — Ele se levantou e recolocou a almofada no lugar onde a pegara.

— O que veio fazer aqui? — perguntei. Ele lançou-me um olhar de aprovação.

— Gosto de um humano que vai direto ao ponto. Vim porque você sabe a respeito dos elfos e essa é uma parceria perigosa para o meu povo. Não é nada pessoal, mas Galan precisa se desvincular de você, e você tem que nos esquecer.

Segurei a mão de Galan. Seus dedos agarraram-se aos meus quando me levantei para posicionar-me ao seu lado.

— Os pais dele não se preocuparam com meu conhecimento dos elfos. — Elevei a voz.

— E nem falaram de sobrevivência do mais apto.

A conduta simpática de Fellseth desvaneceu como uma corrente elétrica subitamente desligada.

— Parece que estou perdendo meu tempo.

Ele investiu contra Galan, que protegeu o rosto com o antebraço, a outra mão ainda na minha. Houve um ruído, como emitido por uma gigantesca centelha de estática, e meu corpo começou a sacudir-se incontrolavelmente. Quando minha visão firmou-se de novo, Fellseth estava com as duas mãos agarradas ao antebraço de Galan. O ar em volta dos dois estava mormacento, quente.

— Aqui é sua casa, Erin — Galan reconfortou-a.

— Você deu forma a este lugar. Ele pertence a você.

Agarrei a mão dele com mais força e olhei ao redor. Vi a penteadeira que eu mesma pintara, com a foto de meus pais em cima, minha bancada de trabalho, com todas as ferramentas, e uma coleção de cartões emoldurados, na parede, acima de minha cama.

— Minha casa — murmurei, sentindo-me mais forte. Galan empurrou Fellseth até a porta do quarto. Eu o acompanhei sem soltar a mão dele.

— Ele está usando você. — O rosto do elfo decadente retorcia-se com o esforço e a fúria. Ele urrou, fitando-me com olhos semicerrados.

— Ele não gosta de você.

— Talvez eu goste dele. — Estávamos na sala de estar. Vi o sofá, a primeira peça usada que eu comprara a preço de ocasião, um par de sapatos de Jed num canto e um pequeno tapete que Kitty amarrotara.

— Vá embora daqui! — berrei e corri para abrir a porta.

— Você vai ver — Fellseth arfava, empurrado por Galan —, ele vai abandoná-la sem olhar para trás.

— Vá agora! — gritei. Galan desvencilhou-se dele com um empurrão, bateu a porta e nos encontramos, enfim, a sós em casa.

Senti minhas forças me abandonarem e lentamente sentei no chão.

— Ele vai voltar? — As palavras saíram às golfadas, entre soluços.

— O que vamos fazer para impedir que volte?

— Nós o ferimos. Ele terá de se recuperar. — Ele me embalava para frente e para trás.

— Calma. Ele não está mais aqui.

— Minha casa. — Eu solucei. — Ele esteve na minha casa.

— Eu sei, mas ele já foi. — Galan me levou para o sofá.

— Você foi forte demais para ele.

— Nós dois fomos fortes. — Desmanchei-me em cima das almofadas.

— Eu não teria conseguido se você não estivesse comigo.

— Se eu não estivesse aqui, ele não viria. — Ele afagou meus braços.

— É culpa minha.

— Ora, não seja bobo. — Eu me aprumei.

— Não salvei você para que pudesse bancar o nobre e se sacrificar.

Ele riu, surpreso.

— Você é incrível.

— Eu estou furiosa, isso sim. — Senti meu rosto suado quando afastei os cabelos.

— Não admito que esse imbecil tenha estado em minha casa. Isto não pode acontecer de novo. — De repente, meu estômago se contraiu, e eu me dobrei.

— Batata frita? — Galan perguntou, correndo até a cozinha.

— Não, proteína. — Esforcei-me para sair do sofá, e fui atrás dele, cambaleando.

— Na porta da geladeira, veja se tem um ou dois ovos marcados a lápis. — Sentei-me numa cadeira e deitei a cabeça na mesa. Um minuto depois, ouvi o tilintar de louça e peguei o pires com dois ovos cozidos. Rachei a casca do primeiro e o abri. Quando terminei de comer, Galan entregou-me o segundo já descascado.

— Você acha que ele vai voltar?

— Não sei. — Ele suspirou.

— Talvez não, porque não conseguiu me derrotar aqui.

— E lá fora? Não podemos ficar aqui dentro para sempre.

— Eu sei. — Ele pegou minha mão e sorriu.

— Você não quer mesmo que eu faça papel de bobo?

— Não quero, não. — Estremeci e olhei para ele.

— Não estou me sentindo bem.

— Não melhorou com os ovos? — Com o cenho franzido, ele pôs sua palma sobre a minha.

— Não sei. — Eu sentia calafrios,

— Que tal deitar-se?

Ele me ajudou a chegar no quarto. Perto da cabeceira, peguei a almofada vermelha que Fellseth acariciara, joguei-a no chão, larguei-me na cama e puxei as cobertas.

Galan trouxe-me água potável da pia do banheiro.

Minhas mãos tremiam quando segurei o copo. Bebi o líquido em longos goles e derramei um pouco.

— Não entendo por que você parece bem, e eu me sinto tão mal.

— É a energia que recebo de você que me dá vida. Neste caso, recebi muita. — Ele levantou as cobertas e deitou-se ao meu lado.

— O que você está fazendo? — Meus calafrios tinham aumentado.

Ele abraçou-me de lado e colocou minha cabeça em seu peito, bloqueando a luz com os ombros.

— Salvando você.

Ele abaixou sua boca sobre a minha. Meus dentes tintavam, mas seus lábios estavam quentes. Cerrei os olhos, fraca demais para protestar, mesmo que quisesse. A luz do quarto pareceu oscilar.

— Fique comigo, Erin. — Ele afagou meu rosto com os lábios e deitou-se em cima de mim, provocando uma sensação reconfortante.

— Você quer apenas ficar vivo — sussurrei.

— Nesse ponto você tem razão. A vida tem feito mais sentido para mim ultimamente.

Meus dentes pararam de tiritar. Galan tocou novamente meus lábios com os seus e intensificou o beijo. Senti como se uma corrente elétrica passasse diretamente do corpo de Galan para o meu, tão bem-vinda quanto o ar para quem está se afogando.

Quando ele se levantou, eu estava aquecida, com uma sensação de bem-estar.

— Você precisa dormir. — Ele roçou meus lábios com os dele e se levantou.

Eu teria discutido, mas estava adormecendo rapidamente.

Escutei o clique do interruptor, e a luz se apagou. Lá fora, a brisa fazia os galhos das árvores se entrechocarem. Ou outra coisa os impulsionava?

— Hoje você vai dormir comigo — consegui dizer.

— Não vou dar a Fellseth a chance de nos pegar separados.

— Não vou discutir. — Ele voltou para a cama, trajando apenas a calça justa. Quando nos cobriu de novo, o luar iluminou as curvas de seus braços, perfeitas como uma escultura de Michelangelo.

Movi meu braço lentamente, até minha mão encontrar a dele.

Ele segurou-a e, com o polegar, acariciou as articulações de meus dedos.

— Você falava a sério quando disse que gostava de mim? — Pensei tê-lo ouvido sussurrar a pergunta, mas, dominada pelo sono, não consegui responder.

Acordei no lusco-fusco da manhã e olhei de viés para o relógio da mesa-de-cabeceira. Eram seis e pouco. Galan dormia de costas com os cabelos espalhados no travesseiro e os lábios levemente entreabertos.

Ele não se mexia, e temi que estivesse morto. Será que se ferira na luta com Fellseth e não me contara?

Detive-me nas cobertas sobre seu peito, para verificar se estavam se movendo. Era difícil dizer com o edredom. Virei-me, apoiando-me no cotovelo e me inclinei para ouvir se respirava. Dali, a quinze centímetros, vi sombras sob seus olhos. Seria normal? Olhei com mais atenção.

Galan abriu os olhos e assustou-se ao ver meu rosto tão próximo.

— Peço desculpas. — Voltei para meu travesseiro.

— Achei que você podia estar morto.

Ele esfregou o rosto com as mãos.

— Não, não estou. — Ele virou-se de lado e me olhou, intrigado.

— Meu aspecto está tão ruim assim?

— Não, eu estava sendo tola.

— Você não é tola. — Ele moveu a mão e tocou a minha sobre o lençol.

— Está se sentindo bem?

— Cansada, mas estou muito melhor.

— Então vou me levantar e preparar alguma coisa para comermos. — Ele desfez-se das cobertas.

Pousei a mão em suas costas.

— Ou... podemos nos beijar um pouco mais. Ele deitou-se de novo e sorriu.

— Claro que podemos, mas acho que você precisa comer, agora ou depois.

— Podemos testar, não acha?

Sem dizer nada, ele passou o braço por baixo do meu corpo e apertou-me contra seu peito largo e nu.

Não foi um beijo cuidadoso para salvar uma mulher frágil, mas senti uma infusão de vida, de qualquer forma. O formigamento começou em nossas bocas unidas, mas isso eu já esperava. Desta vez, relaxei e tive a sensação de que nossos corpos uniam-se, alinhavados por um ímpeto estonteante.

— Nossa! — Arfei, encostando a cabeça em seu braço.

— Ainda não sei definir o que é, mas a sensação é deliciosa.

Ele roçou o nariz em meu pescoço, entreabriu os lábios e passou a língua em minha pele.

— E o nosso vínculo. Sei que é, mas é diferente do vínculo que eu tinha com minha terra.

— Espero que seja. Eu acharia muito estranho se o solo o excitasse sexualmente.

Ele riu, virou meu rosto de frente para o seu e voltou à minha boca.

Como eu dormira vestida, sentei-me na cama e tirei a blusa. Galan admirou meu sutiã e estendeu a mão às minhas costas.

— É na frente.

— Uma boa idéia. — Ele abriu o fecho com uma das mãos. Eu ainda me desvencilhava do sutiã quando senti o corpo dele sobre o meu. Ele ofegou ao sentir nossos corpos unidos, pele contra pele, e fitou-me com os olhos escurecidos.

— Isso significa que você não está mais com medo de dormir mil anos?

— Não estou mais. — Na verdade, ter participado da luta com Fellseth me fizera confiar em Galan como nada mais tinha feito: isso, sem mencionar o fato de que ele dissera a verdade a respeito de ter um inimigo mortal. Mas achei que não era algo que ele fosse gostar de ouvir. Ele afagou meu rosto com o dedo.

— E você gosta de mim?

Por que ele queria saber, se iria embora? Podia dar meu corpo a ele, mas não entregaria meu coração para ele amarrar com um laço e devolver.

— Não como você está pensando — menti.

— Mas há tanta coisa em jogo, que é bobagem eu não... O que quero dizer é que, se for para ajudá-lo a livrar-se de Fellseth, já que ele é tão terrível...

Ele interrompeu-me com um beijo tão abrasador que fez meus olhos revirarem. Imaginei se aquilo ocorria de forma diferente com os elfos, mas, a julgar pela rigidez pressionando minha perna, concluí que não. Eu fechara os olhos ao toque de seus lábios, mas os abri, determinada a me lembrar de seu rosto enquanto fazia amor comigo.

Não foi fácil. Eu queria me entregar, em vez de pensar. Minhas pálpebras agitaram-se quando ele introduziu a língua entre meus lábios, ora afagando, ora pressionando. Arqueei as costas, e ele gemeu... um som lindo e animalesco.

Abri os olhos e fitei os dele; eram da cor do amor-perfeito na primavera.

— Você é lindo — sussurrei, erguendo a mão para tocá-lo no rosto.

— Você também. — Ele beijou meus dedos, um a um.

— E meiga, valente, generosa...

Então por que está louco para ir embora ? Só de pensar em viver sem Galan, eu sentia uma dor quase física. Será que eu conseguiria de novo me entusiasmar tanto assim por um mortal, ou aquela criatura extraordinária me deixaria incapaz de amar novamente? Tentei afastar esses pensamentos quando ele tocou-me no seio, afagou-o carinhosamente e aproximou sua boca. Meus olhos marejaram e eu os cerrei

— Erin?

— Sim? — perguntei, com um nó na garganta. —O que há, querida?

— Nada. — Engoli em seco, e as lágrimas começaram a escorrer por meu rosto.

Ele virou-se de lado e apertou-me contra ele.

— Não precisamos fazer nada que possa machucá-la.

— Você não estava me machucando. Foi maravilhoso. — Funguei.

— E por isso está chorando? Erin, não quero fazê-la infeliz. Senti uma enorme onda de ressentimento sobrepujar minha tristeza.

— O que é uma reles infelicidade humana diante da grandeza de devolvê-lo à sua terra? O objetivo é esse, não é? Nada mudou. — Comprimi minha testa contra seu peito para não vê-lo e chorei.

Galan apoiou o queixo em minha cabeça e afagou-me nas costas.

— Talvez eu tenha mudado. Eu achava que pudéssemos agir com displicência, mas vejo que estava enganado.

Ele continuou a me acariciar, emitindo sons calmantes enquanto eu dava vazão às lágrimas. A gentileza dele me fazia chorar mais.

Os soluços foram amenizando e se transformando em fungadas. Cobri meu rosto com o braço quando me voltei para a mesa-de-cabeceira, para que ele não visse meus olhos vermelhos e meu nariz escorrendo.

— Sinto muito, eu sou uma boba — eu disse, puxando com força os lenços de papel da caixa.

— Você não é boba.

— E agora, o que vamos fazer? — Minha voz saiu abafada pelo chumaço de papel que apertava meus olhos e meu nariz.

— Vou preparar um café da manhã gostoso, e depois podemos tentar de novo aquela meditação estimulante. Que tal?

— Está bem. — Eu apertava os olhos com o dorso das mãos.

Quando ele saiu do quarto, assoei o nariz e fui ao banheiro. Joguei tanta água fria no rosto que achei que meus dentes fossem trincar, e no espelho examinei meu Era tênue a linha divisória entre a beleza trágica e o incha­ço repulsivo, e esperei não tê-la ultrapassado.

Quando ele saiu do quarto, assoei o nariz e fui ao ba­nheiro. Joguei tanta água fria no rosto que achei que meus dentes fossem trincar, e no espelho examinei meu reflexo. Era tênue a linha divisória entre a beleza trágica e o incha­ço repulsivo, e esperei não tê-la ultrapassado.

A inevitável fome levou-me à cozinha, onde senti cheiro de comida em preparo. Ao menos, depois que ele se fosse, a conta da mercearia da mercearia iria diminuir. Não me incomodaria de pagá-la se pudesse sentar-me à mesa com ele todas as manhãs.

Ele já estava vestido, e mexia alguma coisa em minha panela antiaderente.

— Está fazendo o quê? — perguntei ao sentar-me à mesa.

— Torrada com ovo frito, gratinado com o queijo que estava na geladeira, que não sei qual é.

— Provolone.

— Bonito nome.

— Galan — eu o observava —, por que Fellseth simplesmente não me hipnotizou para eu sair, e ele poder acabar com você sozinho?

Ele deslizou o sanduíche para o prato.

— Os elfos não conseguem glamourizar-se entre si, privilégio que se estende a você por estarmos ligados.

Devorei o sanduíche, e depois um punhado de amendoins.

— Está bem, vamos ver se conseguimos elevar um pouco nossa energia.

Voltamos para o quarto. Sentei-me no chão e preparei-me para a meditação dos chacras. Galan, para minha surpresa, sentou-se na cama.

— Por que não fica atrás de mim, como antes?

— Achei melhor não tocar em você. Bufei.

— Eu consigo lidar com isso e, de qualquer forma, você provavelmente vai ter de me tocar para que isso funcione.

Galan ajoelhou-se atrás de mim. Permiti-me saborear a sensação antes que a energia começasse a fluir. Quando ergui os braços, senti Galan fazendo o mesmo, e seu corpo projetou uma sombra sobre o meu. Inspirei fundo, tentando levar o senso de comunhão a cada célula do meu corpo.

— Já chega — ele sussurrou.

— Não quero cansar você. Ele afastou-se e baixei os braços. As sensações feneceram, e eu me senti lamentavelmente normal.

— Então, funcionou? — perguntei.

Virei-me para olhá-lo e embasbaquei. A pele de Galan estava quase luminosa; as sombras sob os olhos haviam desaparecido; os cabelos tinham um brilho que eu ainda não vira.

— Não atingi a energia máxima, mas funcionou a contento — ele respondeu.

Tentei mostrar-me contente.

— Que bom! Você agora vai caçar Fellseth, não?

— Acho que tenho que correr o risco. Se eu tiver sorte, ele ainda deve estar se recuperando de ontem. — Ele sentou-se na cama para calçar as botas.

— Então, talvez isso seja um adeus?

Ele já amarrara os cadarços, mas continuava inclinado, mexendo no laço. — É possível que sim. Mas não sei se nossa ligação, mesmo que eu o mate, será desfeita.

Senti a esperança tomar conta de meu coração. Apesar de saber que seria melhor não vê-lo nunca mais, não consegui resistir àquela outra possibilidade.

— Você quer dizer que talvez não se vincule automaticamente à sua terra de novo?

— É possível.

— Então, você talvez ainda precise de minha energia. Nesse caso... — Peguei na bolsa um punhado de moedas.

— Sabe usar um telefone público?

— Já vi usarem, não vai ser problema.

Escrevi o número do meu telefone de casa e o do celular num papel e dei a ele.

— Se precisar de mim, seja de energia ou de qualquer outra coisa, telefone para o primeiro número. Se eu não atender, ligue para o segundo. Entendeu?

— Entendi. — Ele guardou o papel e as moedas no bolso do colete.

Peguei minha argola e retirei o spray de pimenta.

— Leve isto também.

— O que é?

— Spray de pimenta. Não aperte a válvula! — Ele tirou o dedo de cima do botão.

— Se apertar isto contra Fellseth, a pimenta vai queimar os olhos dele.

— Vão pegar fogo? — Galan olhou para o dispositivo com admiração.

—Não, mas vão arder tanto que ele não vai enxergar nada por alguns minutos. — Achei graça da expressão de Galan.

Acompanhei-o à porta e imaginei se ele me daria um beijo antes de partir.

— Vou pedir Thor emprestado, para o caso de Fellseth aparecer por aqui.

Ele começou a menear a cabeça, discordando, mas se deteve no meio do movimento.

— Eu ia dizer que Fellseth não a perturbará se você estiver sozinha, mas ele não obedece a regras.

— E, corrija-me se eu estiver enganada, basta ele golpear minha cabeça com uma pedra e você morre, não?

Galan tirou do bolso o spray de pimenta e o devolveu.

— É melhor você ficar com isto.

Ele abriu a porta, pôs o pé do lado de fora e, com a mão ainda na maçaneta, virou-se.

— Se não nos virmos mais, saiba que não vou esquecê-la.

— Obrigada. — Pressionei a boca com os dedos tentando conter o choro.

— Tente não morrer.

— Vou fazer o possível.

Quando ele inclinou a cabeça, ofereci o rosto, hesitante, pois não estava certa de sua intenção. Ele beijou-me a têmpora e abraçou-me. Pressionei a cabeça em seu peito e ouvi as batidas de seu coração. Não éramos tão diferentes.

— Adeus. — Virei-me e entrei rapidamente, antes que eu fizesse papel de tola.

Andei pela sala, com o spray de pimenta na mão, como um talismã, esperando sentir meu vínculo com Galan se desfazer a qualquer momento, caso Fellseth o matasse. Pouco depois, quando me acalmei o suficiente para tomar banho, entrei sob a água quente e permaneci ali até senti-la esfriar.

Vesti meu roupão de banho, e me dirigia ao armário quando um reflexo em cima da penteadeira chamou minha atenção. Eram os brincos que Galan fizera para mim.

Enxuguei as novas lágrimas, peguei os brincos, fui à bancada, acendi a luz e coloquei a lupa no suporte.

—Admirável — Enquanto fungava, fui examinando aqueles raminhos sob o foco de luz. Seria impossível reproduzir tamanha habilidade, mas o trabalho era a melhor maneira de superar a dor. Abri uma gaveta de contas de pedras semipreciosas e peguei o alicate.

Após uma hora e meia, dei-me por satisfeita. Tinha feito um raminho de folhas retorcidas, do qual pendiam as uvas, aglomerados de contas de ametista. Era pequeno, mas não a ponto de poder ser um brinco; daria um belo pingente. Arqueei as costas, ajeitando a coluna, e percebi que ainda estava de roupão. Enervou-me não estar com fome. Vesti calça jeans e camiseta e fui à cozinha tomar um copo de água.

Voltando para o meu quarto, resolvi parar em frente ao quarto de Jed, esperando que ele me ajudasse a tirar Galan do pensamento. Encostei meu ouvido à porta para verificar se havia som de música ou ronco, mas não havia. Ele devia ter saído para o trabalho enquanto eu tomava banho.

Parei no meio da silenciosa sala, sob a ameaça das lágrimas, esperando que se dissipassem. Afinal, eu mal conhecia Galan. Ele era elfo, e daí? Afinal, um elfo não era... Bem, havia coisas melhores... Não, não consegui pensar em nada mais maravilhoso que os elfos em geral, e Galan em particular.

Eu tinha que sair. Resolvi levar o protótipo de minha jóia à Rosa Verde e pedir a opinião de Lily. Aproveitaria para procurar algum livro de auto-ajuda. Talvez encontrasse um Mulheres que Querem Elfos Inacessíveis para principiantes.

— Eu não disse para você só vir na terça? — Lily, que fazia o controle do inventário, olhou para mim.

— Você devia estar se divertindo.

— Divertir? Pois é. — Pus o cacho de uvas em cima do balcão. — Que tal?

Ela o apanhou e examinou-o em vários ângulos, observando o cacho balançar.

— Bonito. Você fez em quanto tempo?

— Uma meia-hora, mas acho que consigo reduzir para vinte minutos. Três por hora.

— Custo do material? — Lily roçava o dedo nas contas.

— Dois dólares, no total.

— Viável. — Ela pegou no mostruário da parede uma corrente de prata e enfiou nela o pingente.

— Vou usar hoje e sondar a reação dos pessoas.

Uma cliente habitual entrou na loja e acenamos para ela.

— E aquele homem lindo que você trouxe aqui outro dia? Alguma perspectiva?

Suspirei.

— Antes tivesse. Mas, não.

— Por que não? Ele parecia gostar de você.

Eu queria muito poder contar a verdade para minha melhor amiga, mas não podia.

— É o que parecia, mas ele vai se mudar. Para a Espanha.

— Por que não vai visitá-lo?

— Ele vai entrar para um mosteiro. Ela fez uma careta.

— Quem sabe você o convence a desistir?

— Impossível. A espiritualidade é muito importante para ele. Não posso pedir que abra mão dela.

— Muito nobre de sua parte.

Apoiei os cotovelos no balcão e cobri o rosto com as mãos.

— Eu não quero ser nobre. Eu o quero, e quero que ele me queira.

—Ah, minha flor... — Lily afagou minhas costas.

— Sinto muito. Você o conhece há muito tempo? Tirei as mãos do rosto.

— Um dia e meio. Sei que é bobagem minha.

— Às vezes, basta um dia. — Ela falava a sério.

— Foi assim comigo e Jim. De repente, estávamos apaixonados.

— Não sei se entre nós houve amor. — Suspirei outra vez.

— Só o achei muito sensual, engraçado, meigo, e comecei a querer passar o tempo todo com ele... — Devaneei.

— Então não foi amor mesmo. — Ela meneou a cabeça. Meu celular tocou. Peguei-o no fundo da bolsa e o atendi.

— Alô?

— Erin? — Era Galan.

— Oh, meu Deus! Você está bem? Livrou-se de Fellseth?

— Não o encontrei, mas estou bem. Você pode vir à Biblioteca Municipal de Boulder? Preciso vê-la.

O sol se infiltrava no amplo saguão da Biblioteca Municipal de Boulder através do domo de vidro em forma de montanha. Galan estava na seção de consulta no segundo andar. Ele queria me ver! Não, melhor ainda, dissera que precisava me ver. Muito melhor, não? Subi correndo a escada em espiral, dois degraus por vez. Quando cheguei lá, senti uma pontada na boca do estômago e um intenso desejo de comer. Ainda estávamos ligados.

— Erin! — Galan acenou para mim da sala da internet. Forcei-me a seguir andando, em vez de correr feito uma criança ao seu encontro, mas acho que o modo como meu rosto se iluminou quando ele disse meu nome bastou para me denunciar.

— Tenho boas notícias. — Ele pôs as mãos em meus ombros.

Meu coração começou a bater com força. Ele ia me dizer que não queria mais saber de Fellseth ou de sua terra, mas só de mim.

Ele apontou com a cabeça uma mulher ao seu lado ali na sala.

— Esta é Kutara. Ela talvez possa me ajudar a encontrar Fellseth.

Após dar um último clique no mouse, ela se voltou para nós. Senti meu coração afundar quando a vi.

Uma calça justa e uma bata em matizes de cinza envolviam as esbeltas curvas. Os cabelos eram negros e compridos; o rosto lembrava um coração; os olhos eram grandes, amendoados e... violeta, notei quando olhei com mais atenção.

— Sua irmã? — perguntei esperançosa.

— Não tenho irmãos. Kutara, esta é Erin.

—Ah, então é ela a humana. -A entonação era de quem estava prestes a chamar o responsável pela dedetização.

— Sou eu, sim — confirmei empertigada.

— A humana que salvou Galan e que está dando energia para que ele continue vivo. Sim, sou a humana.

Ela suspirou e voltou-se para o computador.

— Hoje em dia temos de usar tudo o que pudermos.

Olhei para Galan, indignada. Ele retribuiu o olhar, desculpando-se.

— A terra de Kutara não sofre ameaça de Fellseth no momento, mas ele atacou os dois vizinhos mais próximos dela. Ela os está ajudando, e está investigando se os ataques de Fellseth obedecem a um padrão que permita prever quem será a próxima vítima.

— Uma boa idéia — concordei, com relutância.

— Diga-me — ela provocou —, você é proprietária ou inquilina?

— Os humanos não sabem que estão prejudicando vocês — contra-ataquei.

— E se os elfos não ficassem por aí se escondendo, talvez pudéssemos pensar em algumas soluções.

— Já tentamos, mas não funcionou. É impossível contar com vocês. — Ela virou-se para Galan e apontou para o monitor.

— Posso levar uma cópia desta imagem?

— Estes computadores não estão conectados a uma impressora — respondi, ainda furiosa.

— Envie-me o endereço do site, e eu imprimo.

— O que foi que ela disse? — Ela nem me olhara.

— Com licença. — Afastei-a para o lado, puxando-a pelo braço. O monitor mostrava um mapa topográfico e, em questão de segundos, enviei um e-mail para mim mesma contendo o endereço do site. Mas minha arrogância evaporou quando me dei conta de que ela teria que ir à minha casa para pegar a cópia.

Mesmo quieta, Kutara conseguia importunar-me.

— Quero outras também, se você me der licença.

— Basta dizer o endereço, e eu envio os e-mails. — Eu não saí do lugar.

— Já aprendi, vendo você. — Ela tentou empurrar-me com o ombro.

— Eu consigo mais rápido. — Empurrei-a também. Nossa silenciosa briga terminou quando eu recuei.

Kutara cambaleou e dirigiu-se ao terminal seguinte. Pôs a mão no mouse como se nada tivesse acontecido.

— Vou esperá-lo lá embaixo, está bem? — Lancei um amplo sorriso para um Galan bastante espantado.

No térreo, debrucei-me na beirada do chafariz e fiquei olhando as moedas reluzindo ao fundo.

— Mulherzinha petulante! Procurei moedas na bolsa.

— Desejo que Kutara fracasse, e eles não consigam encontrar Fellseth.

O centavo que atirei provocou o ruído característico quando atingiu a água, e logo me arrependi de meu gesto... não por acreditar nessas coisas.

Olhei as moedas em minha mão. As de um centavo tinham acabado. Suspirando, peguei uma de dez centavos.

— Quero que Kutara encontre Fellseth, que dêem cabo dele e que Galan recupere sua terra. — Era o que eu podia fazer, além de atirar a moeda com força maior que a necessária para não me debulhar em lágrimas ao finalizar a última parte do meu desejo. Claro, eu queria que Fellseth parasse de prejudicar os elfos, mas por que Galan teria de ir embora se eu podia dar tudo de que ele precisava? Alguns minutos depois, ele e Kutara desceram a escada.

— Quer comer alguma coisa? — Galan perguntou.

— Vou comer em casa. Kutara, não quer vir também? Aproveito e imprimo os mapas para você.

— Eu mostraria a Galan qual das duas era a melhor.

— Aceito o convite.

Quando passamos pela porta automática, Galan deu-me o braço, que apertei, grata pela manifestação de apoio.

Quando chegamos ao meu carro, Kutara olhou-o, hesitante.

— Acho que vou com você, porque não sei onde você mora.

— De que outra maneira você iria?

— Nós costumamos viajar desincorporados. — Galan explicou. Depois, abriu a porta de trás e entrou.

— Não posso me desincorporar agora porque não estou vinculado à terra.

— Seja como for, viajar não é necessário, e ninguém quer fazer isso — Kutara acrescentou.

— O lugar de um elfo é em sua propriedade. — Ela sentou-se no banco da frente e ficou olhando para a porta, esperando que fechasse sozinha. Pouco depois, estendeu a mão e fechou-a.

— Com Fellseth à solta, quanto menos eu ficar em casa, mais eu me arrisco.

— Admiro o que você está fazendo por Galan e pelos elfos — comentei.

— Admira por quê?

Galan moveu-se, e ouvi-o chutar a traseira do banco de Kutara. Ela pigarreou.

— Quer dizer, obrigada.

Kitty correu ao nosso encontro quando chegamos.

— Mil desculpas, Kitty! — Estendi a mão ao chão e peguei a súplice felina.

— Não tenho lhe dado atenção, eu sei. Foi Jed quem abriu a porta para você?

— Ela acha que a gata vai responder? — Kutara perguntou a Galan.

Pus Kitty no chão para abrir a porta. Ela enroscou-se nos meus tornozelos e foi até Kutara, que recuou com uma expressão de repulsa.

— Não gosta de gatos? — perguntei.

— São animais não-naturais. Calei a boca e entrei.

— Nunca entrei numa casa, é a primeira vez — Kutara comentou.

— Que cheiro estranho!

— Deve ser por minha causa. — Jed dirigiu-se a nós por cima do espaldar do sofá, onde assistia à tevê.

— Como vão?

Kutara fitou-o fixamente, e ele se virou de novo para a televisão.

Percebi que ela o encantara.

— Não precisava ter feito isto. Se você não disser que é um elfo, ele não vai saber.

Kutara contornou o sofá e encarou Jed, que nem se mexeu, apesar de ela ter parado exatamente entre ele e a televisão.

— É o seu companheiro? — ela me perguntou.

— Nós dividimos a casa. A casa é dos meus pais; ele aluga um quarto.

— Ótimo. Você está evitando que ele compre uma propriedade. Não o deixe ir embora.

Virei-me para Galan e revirei os olhos.

—Venha comigo, Kutara, vou imprimir os mapas. Imagino que você ainda tenha que ir a outros lugares. — E irritar outras pessoas.

Galan foi à cozinha. Quem sabe prepararia alguma coisa para eu comer? Eu o sentia consumindo minha energia, e não havia como meditar com Kutara por perto.

No quarto, sentei-me à escrivaninha e acessei meu e-mail.

— O que você vai fazer com esses mapas topográficos?

— Estudar se os ataques de Fellseth obedecem a algum padrão.

— De onde ele é? — Eu ligara a impressora.

— Quer dizer, alguém o conheceu antes de ele virar um elfo decadente?

— Os elfos decadentes sempre vêm de longe. — Kutara estava sentada no chão, de pernas cruzadas.

— São aberrações e atacam os vizinhos. — Ela olhou em volta. — Quanto a quem possa tê-lo conhecido antes... Bem, quando ele chegou por aqui, tentou ser meu cônjuge, mas eu recusei.

— Fellseth apaixonou-se por você?

— Duvido que ele seja capaz de amar. Ele queria uma fonte de energia, e eu estou vinculada a uma área imensa. Se eu soubesse que ele iria transformar-se no canalha que é, talvez o tivesse aceitado.

A impressora liberou a primeira cópia.

— Um pensamento nobre, mas ele poderia tê-la matado.

— Ele não teria motivos.

— Galan acha que os elfos decadentes mudam quando vivem de energia destrutiva.

— Galan perdeu muito tempo filosofando e viajando, e descuidou da terra. — Ela pegou o mapa que eu estendi.

— Ninguém sabe o que se passa na cabeça dos elfos decadentes.

— Você tem que se decidir se quer mesmo derrotá-los.

— Eu tentava manter-me simpática.

— Pelo que entendi — ainda em pé, ela olhava o mapa —, você ajudou Galan a combater Fellseth. Você e Galan estão ligados de alguma maneira.

— Estamos, sim.

— E acha que o compreende por isso?

— Entender as pessoas é muito difícil, seja quem for. Nós estamos tentando entender um ao outro.

— Imagino que seja difícil dois humanos se entenderem um ao outro, mas é impossível um humano entender um elfo. — Ela interrompeu o protesto que eu esbocei.

— Você ajuda Galan porque ele é lindo. Esta tem sido, em toda a história, nossa melhor arma contra vocês, e aprendemos a usá-la.

Empurrei a cadeira para trás com o corpo e levantei-me; as pontas dos nossos pés quase se tocavam.

— Minha ajuda a Galan é assim tão repulsiva? Você quer que eu pare de ajudá-lo?

— Você faria este favor?

— Não! Nem por você nem ninguém. — Inspirei fundo, mas não me acalmei.

— Sabe, naquela noite, lá no parque florestal, poderia ter sido você, e eu teria agido do mesmo jeito. — Entreguei-lhe agressivamente as cópias.

— Nem todos os humanos querem mal a vocês. Talvez deva levar isto em consideração.

Saí do quarto, impelida pela vontade de comer e, quando cheguei à cozinha, Galan já punha na mesa um prato com um sanduíche.

— Obrigada, muito obrigada. — Comecei a comer com vontade e, por pouco, não mordi um dos dedos.

— Onde está Kutara, já foi embora? Olhei para a sala e engoli em seco.

— Deve estar pichando as paredes do meu quarto com propaganda contra os humanos. — Kitty pulou do chão para a minha cadeira e se acomodou ao meu lado.

— E que piadinha de mau gosto foi aquela, dizendo que os gatos não são naturais?

— O que ela tem contra os gatos?

— Contra os animais domésticos de um modo geral — Galan falou bem baixo.

— Se você tivesse uma vaca, então, nem se fala!

— Já tive uma.

— Shhh... — Ele indicou a porta atrás de mim. Kutara entrava na cozinha.

— Tomei a liberdade de usar seu computador para procurar mais algumas informações. — Ao ver Kitty na minha cadeira, ela segurou o espaldar no intuito de enxotá-la. Galan pegou Kitty e acariciou-a.

— Ela deve estar com fome — intervim.

— A ração está no balcão ao lado da tigela. Pode dar duas porções.

Naquele belíssimo rosto, o olhar de Kutara, vendo Kitty comer, era de extrema repugnância. Ela abriu os mapas em cima da mesa.

— Encontrei o padrão dos ataques de Fellseth.

— Já? — Galan sentou-se e ficou atento.

— Sabe-se que os elfos decadentes podem operar muito tempo à base da energia destrutiva que absorvem, mas, se a intensidade do ataque for exagerada, correm o risco de não ter energia suficiente para o próximo.

— O que não entendo — interrompi — é por que Fellseth, tendo se apoderado da terra de Galan, não se contenta em ficar lá mesmo?

— Se Fellseth parar, torna fácil encontrá-lo e pode ser alvo de retaliações, de Galan ou da família e dos amigos das outras vítimas. Você tem algum objeto para escrever?

Peguei um lápis numa gaveta do armário e observei Kutara desenhar áreas irregulares no mapa.

— Onde aprendeu a ler esses mapas? — indaguei.

— E a navegar na internet?

— Por observação, e perguntando, quando necessário.

— Ela indicou cada uma das áreas esboçadas. — Vocês notam alguma coisa especial?

— Não. — Galan meneou a cabeça.

— Nunca vi esses mapas. Eles não me dizem nada.

Apontei para uma linha irregular azul que ziguezagueava entre quase todas as áreas marcadas.

— Isto aqui é um rio, certo?

— Certo. — Kutara pôs o lápis na mesa e recostou-se.

— Acho que Fellseth está seguindo o curso da água.

— Por que motivo? — perguntei.

— A água é a única fonte de energia que não pertence a uma única área. Contém muita vida, mas move-se o tempo todo. Acho que os elfos decadentes usam essa energia quando viajam para se manterem em vantagem em relação aos elfos que, se não fosse por isso, poderiam derrotá-los.

Estudei o mapa.

— Nem todas essas áreas acompanham rios.

— Há nascentes nas demais áreas — Kutara explicou. Galan estava concentrado, pensativo.

— Na minha terra, há apenas um fosso sazonal, mas ainda não está funcionando.

— No seu caso, há outros fatores — Kutara ponderou —, assim como nos demais.

— Você pode dizer onde vai ser o próximo ataque? — perguntei, examinando as áreas que ela marcara com círculos.

— Só pelos mapas, não. O rastro dele não é uma linha reta, é caótico.

— Deve ser proposital. Ele é esperto.

— Não é só isso — Galan interveio.

— Ele costuma atacar elfos com terras que estão sendo incorporadas, ou que o serão logo depois que ele os derrotar.

— A primeira hipótese faz sentido, porque, na segunda, como ele pode saber de antemão que terras serão transformadas? A menos que... — Levei a mão à boca, pasma quando me ocorreu a explicação mais provável.

— É bem provável. — Kutara concordou com a cabeça.

— Fellseth está influenciando os humanos a incorporarem certas áreas, para colher delas a energia liberada. — Ela levantou-se.

— Tenho que ir.

Galan continuou sentado enquanto eu acompanhei Kutara.

— O que vai fazer? — perguntei quando atravessávamos a sala.

— Posso ajudar em alguma coisa?

À porta da frente, ela parou e virou-se.

— Não.

Eu peguei-a pelo braço, retardando-a.

— E se eu tiver alguma boa idéia, como posso entrar em contato com você?

Kutara olhou para a minha mão em seu braço e, pela primeira vez, relaxou os lábios.

— Vou com frequência à biblioteca, para aprender o que Fellseth já sabe. Se precisar conversar, encontre-me lá. — Ela soltou-se e foi embora.

Pela janela, vi-a passar por trás da árvore do jardim vizinho e desvanecer antes de chegar ao outro lado.

— Caramba! — exclamei.

No sofá, Jed piscou e consultou seu relógio.

— Nossa, eu não sabia que já era tão tarde! — Ele levantou-se, atabalhoado, e foi ao banheiro.

Voltei para a cozinha, onde Galan estava limpando a mesa e lavando a louça.

— Não precisa fazer isso!

— Eu sei.

Quis abraçá-lo e dizer que eu estava feliz por ele ter voltado. Porém, aquilo não faria sentido, uma vez que em breve ele iria embora de novo. Como consolo, peguei a esponja e limpei o balcão.

— Não sei o que achar de Kutara. Por um lado, é uma líder admirável; por outro, é irritante.

— As duas coisas não são excludentes. — Galan fechou a lavadora de pratos.

— Você disse que ela estava ajudando alguns elfos que estavam sendo atacados. O que ela está fazendo por eles? E você? Ela não o está ajudando por quê? — Não levei em conta que, se ela o ajudasse, ele iria embora cuidar da vida.

— Kutara está ajudando elfos vizinhos dela. São dois machos que ela adotou como cônjuges. Kutara é um elfo dos mais poderosos na região onde vive. Ela está ligada a uma propriedade imensa, mas muito pedregosa.

— Isto explica muita coisa. — Entrelacei as mãos em cima da cabeça.

— É por isso que ainda não construíram um conjunto habitacional lá. Fellseth deve estar louco para livrar-se dela. Ele quis ser cônjuge dela, você sabia?

Galan ergueu a sobrancelha.

— Para ser franco, não.

— Será que era uma confidencia pessoal, e não me dei conta no meio dos insultos? — Sentei-me à mesa e olhei para o vazio. Galan puxou uma cadeira.

— Você acha impossível elfos e humanos se entenderem?

— Não sei. — Ele sorriu.

— A julgar pela ascendência élfica de Lily, no mínimo dois já tentaram.

Peguei o porta-guardanapos em forma de macaco que Lily me dera.

— E agora, o que vamos fazer? Meditar, para você poder ir procurar Fellseth depois?

— Kutara disse para eu continuar aqui por enquanto. Pousei o objeto na mesa com mais força do que desejava.

— Você está brincando! Ele deu de ombros.

— Ela quer organizar uma equipe para combater Fellseth, e quer que eu conserve minha energia até sabermos onde encontrá-lo.

Cruzei os braços sobre a mesa e apoiei neles o queixo.

— Quer dizer, então, que vou ser o seu carregador de bateria até segunda ordem de Kutara?

— Peço desculpas por Kutara. — Galan estava desapontado.

— Ele é uma anti-humana radical.

— Percebi. Ela disse que você estava me usando, o que não seria um problema, uma vez que não estou disposta a ser servil a vocês.

— Ela está equivocada.

— Em que parte? — desafiei.

Ele cruzou as mãos sobre a mesa e fitou-as.

— Eu gostaria de dizer que nas duas partes, mas, na verdade, eu estou mesmo usando você. Gostaria que não fosse necessário.

Suspirei.

— Use-me ou morra. Uma escolha difícil. — Empurrei minha cadeira para trás.

— Vou fazer umas jóias para a loja.

— Posso ajudá-la.

— Achei que você não gostasse de vender as jóias que faz. Ele levantou-se e ajeitou a cadeira embaixo da mesa.

— Era um caso diferente. Aqueles brincos eu fiz para você. Senti uma pontada de alegria, mas tentei não expressá-la no rosto.

— Ah, bem. Se é assim, vamos começar. Traga a cadeira. — Fomos para o quarto e acendi a luminária da bancada. Galan foi apanhar outra cadeira.

— Só tenho um alicate para cortar arame — dei a ele o alicate de ponta fina —, mas esse aí corta também.

— Não faz mal, não preciso de alicate. — Ele pegou um pedaço de vinte centímetros de arame de prata, dobrou-o entre o polegar e o indicador, cortou e pôs na mesa a metade recém-cortada.

Peguei o pedaço de arame e examinei-o na lupa. A ponta estava arredondada, sem indício de corte ou derretimento; ao contrário, tinha um perfeito acabamento e polimento.

— Como consegue?

Ele riu enquanto ia curvando o arame com os dedos longos.

— Eu faço, simplesmente.

— Todos os elfos trabalham com metal?

— Alguns trabalham com metal, outros com pedra ou madeira. Kutara esculpe em gelo.

— Vocês são todos artistas?

— Somos.

Observei-o trabalhando, fascinada. Às vezes, ele tocava o arame nos pontos exatos, às vezes fechava os dedos sobre o material e dava-lhe outra forma. O objeto, ainda desconhecido, tinha menos de cinco centímetros quadrados, mas ele fazia uma sucessão de modificações cada vez menores. De todas as vezes que o vira, ali era onde o vira mais relaxado. Os cabelos caídos à frente revelavam a ponta de uma orelha e o contorno marcante do pescoço.

— No início — ele disse em tom meio distante enquanto trabalhava —, obrávamos a terra por simples prazer estético. Fazíamos arranjos de galhos e flores, pedras e folhas, mas, com o tempo, a necessidade de desafios prevaleceu, talvez por termos ficado mais ambiciosos como resultado do contato com os humanos. Tome.

Ele colocou em minha mão um pequeno pingente. Era um pássaro canoro em vôo, talvez um chapim-da-cabeça-preta. Quando o segurei, a cauda pareceu inclinar-se, como se suscetível a uma corrente de ar imaginária.

— É maravilhoso! — Eu o segurava, boquiaberta.

Galan pegou um pedaço miúdo de arame e colocou-o embaixo do pingente. Quando ele levantou a mão, as patinhas do passarinho lá estavam. Ri de contentamento.

— Ele precisa de um poleiro. — Galan moveu minha mão até a borda superior da lupa e pôs os dedos sobre os meus; os dedinhos do pássaro agarraram o aro de plástico e a cabeça virou-se empertigada para mim.

— Que lindo! — Eu estava embasbacada. Afastei minha mão, e o passarinho continuou no poleiro.

— Adoro me exibir para você. — Ele riu.

Quando afastei meu olhar da peça, o rosto de Galan estava perto do meu, e os lábios estavam levemente curvados num sorriso.

— Agradar você é muito fácil. — Ele inclinou a cabeça e beijou-me respeitosamente nos lábios.

— Tão fácil de conviver. — Beijou-me mais uma vez, agora mais demoradamente.

Facílimo, pensei. Nossas cadeiras se chocaram quando as afastamos para trás, ainda nos beijando. Seus cabelos escorriam dos dois lados do meu rosto feito água chapiscada. Se morrer afogada fosse assim, valia a pena.

Instantes depois, ele recuou e repousou sua testa na minha.

— Não devíamos estar fazendo isto. Pus a mão no rosto dele.

— Ouça, sei que fui muito sentimental da última vez, mas posso ser menos ansiosa.

Ele beijou a palma de minha mão.

— Não é você que me preocupa.

Levei um segundo para entender o que ele dissera.

— Você está querendo dizer que... gosta de mim? Galan segurou minha mão e fitou nossos dedos entrelaçados.

— Você salvou-me quando eu estava à beira da morte, abrigou-me em sua casa quando qualquer um teria fugido de mim, ajudou-me a combater Fellseth e ofereceu-me seu corpo para eu poder me libertar. — Ele me fitou, com os olhos densos de emoção.

— Claro que eu gosto de você.

Emiti um ruído incoerente de alegria, aninhei-me em seu regaço e abracei-o. Ele me abraçou com força, com o rosto enfiado em meu pescoço.

— O que não quer dizer, infelizmente, que vamos ficar juntos.

— Podemos nos ocupar dos detalhes depois, não? — A alegria de saber que ele gostava de mim banalizava tudo o mais.

— Depois, quando? Quando estivermos ainda mais envolvidos um com o outro? — Sua respiração aquecia meu pescoço.

— Sim.

Ele levantou-se e, passando as mãos sob minhas pernas, ergueu-me no colo.

— Quero-a demais para discutir. Espero que me perdoe. Agarrei seus cabelos enquanto ele me carregava para a cama, a boca muito próxima da minha. Ele sentou-me na beira do colchão; despimo-nos entre beijos e rimos muito quando nossas roupas emaranharam-se de tanta pressa.

Afaguei seus ombros e senti nosso vínculo sob meus dedos, uma corrente permanente que amplificava cada sensação.

Uma vez despidos, deitei-me de costas na cama. Ele veio a seguir, colocando-se sobre mim. Sentimos, então, um choque delirante quando nos deitamos pele sobre pele, com toda a extensão de nossos corpos nus em contato pela primeira vez.

— Ah... — sussurrei. Minhas pálpebras adejavam, minha cabeça flutuava, meus membros tremiam, entregues.

Os lábios de Galan cobriram os meus, úmidos e macios.

— Preciso estar dentro de você. — Ele afastou minhas pernas com o joelho.

— Sim. — Eu abri os olhos.

Quando ele me penetrou, minha lassidão esvaiu-se, Era assim que os animais copulavam, e lutamos para possuir um ao outro, gritando e nos agarrando como se o outro estivesse tentando escapar, em vez de se aproximar cada vez mais.

Nosso clímax quase roubou minha respiração quando arquejei, rija e arfante, e os lábios entreabertos de Galan deslizaram em minha pele escorregadia de suor.

Por fim, deitamos, exaustos. Eu recostei a cabeça no ombro dele, e acariciei-o no tórax e no abdômen, sorrindo.

— Não queremos filhos elfos, não é? — perguntei, um pouco tarde demais.

—Não queremos — ele concordou, meio tristonho.

—Basta o nosso vínculo, que agora está mais forte: do que nunca. Aconcheguei-me ainda mais.

— Por que não? Qual seria o problema?

Ele levou minha mão aos seus lábios e beijou minhas articulações.

— E se você se cansar de mim?

Virei minha cabeça para olhá-lo de frente.

— Impossível. Estamos ligados um ao outro.

— O que quer dizer que minha energia vem de você, mas não é garantia de compatibilidade.

— Como não, se tudo indica que sim? — Eu estava estupefata.

— Não é. Daqui a seis meses, você pode resolver que não aguenta mais olhar para mim. Então, como vou ficar?

— Isso é muito improvável.

— Mesmo nos conhecendo há apenas alguns dias? — A voz de Galan retumbava em meu ouvido, porém com palavras nada reconfortantes.

— Quando você conseguir sua terra de volta, não vai se sentir tão dependente de mim.

— Se eu retomar minha terra e me ligar de novo a ela, eu e você não estaremos mais ligados. Você pode não sentir a mesma coisa por mim quando o sexo começar a ficar desinteressante.

Virei-me para ele, apoiando-me no cotovelo, e estudei seu rosto. Nosso ato de amor dera-lhe um inédito halo de saúde, mas a expressão estava tensa.

— Você está tentando criar dificuldades?

— Estou apontando as dificuldades costumeiras. A ligação do elfo com a terra não é igual a um dia de trabalho, Erin. Nos longos períodos que passo em estado incorpóreo, estou incorporado à terra. E há o fato de eu não envelhecer. Como vai explicar essas coisas à sua família, aos seus amigos?

— Não sei. Talvez dizendo que você é viciado em cirurgias plásticas — respondi. Porém, não consegui evitar as preocupações que começaram a me atormentar. O que eu diria à minha família? Galan ainda iria me querer quando eu tivesse sessenta e quatro anos?

— Os problemas acontecem, mas existem meios de contorná-los. — Lágrimas ardiam em meus olhos.

— Gostaria que existissem.

Ele saiu da cama e levantou-se, belo como mármore.

Sentei-me.

— Você está me dizendo... que não quer nem tentar? Então, fizemos amor à toa?

— Eu já pedi perdão. — Ele pegou a calça no chão e vestiu-a.

— Tudo em você me atrai feito ímã, Erin, mas é como querer alguma coisa feita de fogo. Quero tocar em você mesmo sabendo que vou me queimar. — Ele colocou a camiseta e pegou as botas.

— Você vai sair? Nossa conversa ainda não terminou.

— E não vai terminar, por mais que conversemos. Vou à biblioteca. — Ele saiu do quarto com as botas na mão.

Corri até o banheiro, agarrei meu roupão e vesti-o a caminho da sala.

— Sabe, você está começando a me irritar.

— Não posso fazer nada. — Ele continuou calçando as botas.

— Vou procurar Kutara na biblioteca. Quero iniciar a busca a Fellseth o quanto antes.

— E se sua energia descarregar? Não foi por isso que Kutara disse para você ficar aqui?

— Talvez me baste a energia do rio Boulder, perto da biblioteca, mas graças a você ainda vou durar mais um pouco. — Ele foi até a porta e virou-se.

— Peço desculpas.

— Você é um covarde! — gritei.

— Um dia você talvez me agradeça. — A porta fechou-se.

Não era meu dia de trabalho na Rosa Verde. Portanto, fiquei em casa alternando entre raiva e tristeza. Saber que Galan não conseguira ficar longe de mim já não me consolava, pois ele fora embora.

Não havia soluções fáceis para os problemas que ele apontara; dependiam mais de determinação do que de qualquer outra coisa. Mas de que me servia estar determinada, se ele não estava?

A ventania aumentava, e eu fui até o lado de fora ver se as latas de lixo estavam bem presas aos postes. Densas nuvens cinzentas, quase negras, recobriam o céu.

Eu fazia nachos para o almoço quando o relógio do microondas emitiu um bip longo e zerou. Ao trovão que estourou logo depois seguiu-se o barulho de uma chuva torrencial.

— Kitty, Kitty, Kitty! — Sob o abrigo do toldo da porta da frente, com os respingos molhando meu rosto e meus braços, chamei mais algumas vezes, mas a gata não apareceu. Devia estar sob algum automóvel, ou na varanda de alguém. Voltaria encharcada e zangada quando a chuva amainasse.

O dia estava tão escuro que acendi a luz da cozinha para almoçar. Debrucei-me sobre o prato, mastigando as rodelas de milho e lendo uma revista para não pensar em Galan. Quando cheguei no artigo É possível salvar meu casamento?, comecei a chorar e afastei a revista.

— Se todos os problemas fossem assim!

A chuva persistia. Ao menos Galan não teria problemas de energia, pois o rio já devia estar começando a transbordar.

Depois do almoço, liguei para meus pais, que me contaram a respeito do cruzeiro de tia Jean ao Alaska.

— Você está muito quieta, querida — observou minha mãe.

— Bem, não tem quase nada acontecendo por aqui. Limpei meu guarda-roupa. Minhas lágrimas molharam as calças jeans que não me serviam mais e as blusas bonitas de que eu não gostava.

Fiz três colares para a loja, todos em tons de preto.

De vez em quando, ia ver se Kitty tinha voltado, mas não, ela devia estar esperando a chuva passar. Talvez eu mandasse fazer uma porta para ela, embora, na casa do vizinho, os quatis amiúde entrassem pela porta do cachorro e deixassem a cozinha uma imundície.

Por fim, sentei-me no sofá e liguei a televisão. Jed também não chegara. Eu já me oferecera para ir pegá-lo quando o tempo o impossibilitasse de usar a bicicleta, mas ele preferia esperar na casa de um ou outro amigo, onde estivesse.

Alguém bateu à porta.

Olhei para a porta, e as batidas continuaram. Galan não bateria com tanta força. E Fellseth, seria ele?

Peguei na bolsa o spray de pimenta e dirigi-me à porta de madeira maciça. Além da porta da gata, teria que acrescentar um olho mágico à minha lista de coisas a instalar. As batidas estavam me deixando nervosa.

— Quem é? — berrei.

Abri a corrente, e Galan entrou cambaleante, encharcado até a alma, os olhos quase fechados.

Kutara ficara lá fora, a chuva escorrendo pelo rosto.

— É todo seu — ela declarou depois de afastar da boca uma mecha de cabelos. Num ato contínuo, caminhou pelo gramado do meu jardim e fundiu-se bruxuleante com o solo alagado

Galan estava trêmulo, e uma poça de água formava-se no soalho à volta de seus pés. Amparei-o pelos braços, com medo de que caísse. Apesar dos calafrios, ele exalava calor.

— Você está doente?

— Acho que não faz bem receber energia do rio quando há cheia — ele sussurrou.

Imaginei o rio Boulder turbulento, lamacento, sujo com os produtos químicos dos jardins e talvez animais mortos.

— Você não aprendeu que não se pode enfiar o dedo num soquete de lâmpada?

— Como? — Ele me olhava de viés, com os olhos embaçados!

— Venha. — Agarrei-o pelo pano ensopado e conduzi-o ao meu quarto.

— Vamos tirar essa roupa molhada!

Ele mal conseguia se mexer. Sentei-o na cadeira da escrivaninha, tirei suas roupas e joguei-as na banheira.

— Já para a cama. — Pus meu ombro embaixo de seu braço e amparei-o, lembrando-me de quando nos encontramos pela primeira vez. Naquela época, eu não sabia que ele era um elfo. No que dizia respeito a Galan, parecia sempre haver algo que eu não sabia.

Naquele momento, ele não parecia estar recebendo energia de mim. Mesmo assim, fechei a porta do quarto e deitei-me na cama com ele, para o caso de haver necessidade. Estávamos de frente um para o outro; seus joelhos tremiam junto dos meus.

Os cabelos úmidos, cor de prata fosca, estavam grudados no couro cabeludo; as orelhas estavam expostas, e as pontas estavam inchadas e róseas.

Cobri-o até o pescoço com o edredom.

— Você não devia ter saído.

— Eu não devia ter voltado. Da próxima vez que eu me for, vai ser mais difícil.

— Não vou correr atrás de você, Galan. Talvez você tenha razão, talvez o convívio entre humanos e elfos seja impossível, ou apenas seja possível com muito esforço, mas para mim será impossível se você nem ao menos tentar.

— De qualquer maneira, acho que não posso depender de uma humana. — Ele cerrou os olhos.

— Você vai me causar transtornos.

— Prefere depender de um pedaço de terra?

— Não é bem assim.

— Ou de Kutara?

— Erin...

— Alguém sempre depende de outro alguém, Galan. Você não será exceção.

Na manhã seguinte, durante o banho, perguntei-me se o vapor vinha da água ou de mim. Eu estava com raiva porque Galan e eu fizéramos amor, e ele levara embora aquele amor. Estava com raiva porque ele não quisera continuar nossa conversa, e com muita raiva porque ele arriscara a saúde achando que poderia viver sem minha energia.

Vesti o roupão, fui ao quarto e cutuquei Galan, que estava adormecido.

— Levante! Você vai fazer um servicinho para mim na loja.

Ele tirou um dos braços do rosto.

— Ah,é?

— Você vai ficar aqui em casa? Vou ter que comer para você viver?

— Vai.

— Como não estamos juntos, você vai ter que trabalhar para se sustentar.

— Não estávamos juntos quando você me ajudou da primeira vez.

— Agora estou mais vivida e esperta. Trate de vestir-se logo. Traga o que precisar para fabricar jóias.

— Que horas Lily chega? — Galan perguntou enquanto eu abria a porta da Rosa Verde.

— Ela não vem. Às terças, só uma de nós trabalha, porque o movimento é fraco. — Acendi a luz.

— Você vai ficar no escritório, para a freguesia não bisbilhotar.

Galan pousou um saco de papel no balcão, e eu o abri.

— Você trouxe todo o material necessário? — perguntei, pegando um embrulho em papel laminado.

— O que é isto?

— Um sanduíche. Achei que você podia sentir fome. Fiz enquanto você secava o cabelo.

— Obrigada — agradeci, superando o nó na garganta. Ele não queria que eu me sacrificasse por ele, mas ainda cuidava de mim.

A manhã passou sem movimento, e minha raiva transformou-se em resignação com nuances de esperança. Apesar de elfo, Galan era homem quando tentava evitar as emoções fortes e confusas. Se ele contava comigo para afastá-lo com ralhos e zangas, estava enganado. Eu dissera o que tinha a dizer, agora era a vez dele.

Ele estava se esforçando para ser útil. Trabalhava rápido, e produziu um sortimento de pingentes de artesanato tão delicado que marquei o preço a sessenta dólares, e vendi três na primeira hora.

Na hora do almoço, desembrulhei o sanduíche; era fritada de tofu com legumes. Os relacionamentos não eram sua única artimanha.

Ele sentou-se ao meu lado.

— Se você está vendendo os colares pela loja, como vai ganhar dinheiro?

— Você os vendeu para mim por trinta dólares cada.

— Vendi?

—Não se preocupe. Vou emitir o recibo no computador, e depois Lily me dá o dinheiro.

Mais ou menos uma hora depois, eu desembalava os livros novos quando Galan aproximou-se, vindo do escritório.

— A prata acabou — ele informou.

— Já? Quantos pares de brincos você fez?

— Dezoito — Ele apontou para a caixa a minha frente.

— Quer ajuda para desembalar?

— Já estou terminando. — Dei um tapinha no livro de arte em minhas mãos, que mostrava a fotografia de um rio na capa.

— Estive pensando no que Kutara disse, que Fellseth está usando energia hídrica.

— É uma hipótese válida.

— E se os elfos se coordenassem para usar a energia daquele rio, para não sobrar nada para Fellseth? Depois, era só expulsá-lo de lá. — Perguntei-me o que Galan acharia daquela minha prestimosa sugestão em prol da retomada de sua terra. A expressão dele era indecifrável.

— Mesmo admitindo que a idéia possa funcionar, onde poríamos o excesso de energia?

Retirei outro livro da caixa.

—Vocês não poderiam investi-la na própria terra? Boulder pode ficar mais verde, as árvores podem crescer mais.

— É muito difícil convencer os elfos a cooperarem entre si.

— Por quê?

— Não é nosso costume. — Ele começou a enumerar os itens nos dedos, um por um.

— Passamos a maior parte do tempo em estado incorpóreo, somos muito solitários e só nos reunimos quando queremos procriar. — Ele baixou as mãos.

— Os elfos são basicamente territoriais, como os animais selvagens.

Conferi na fatura o título do último livro.

— Se as pegas e os gaios cooperam entre si para cercar um gato, os elfos podem se reunir o tempo necessário para derrotar Fellseth. Kutara está trabalhando com outros elfos, não?

— Só dois, e só porque, caso contrário, morreriam.

— Vamos insistir para ela marcar um encontro. Ah, uma correção: contando você, ela está trabalhando com três elfos.

Coloquei o plástico de bolhas na caixa vazia e voltei para o balcão da frente, passando os olhos pela loja no trajeto.

— Não temos clientes no momento. Vá à biblioteca e pergunte a Kutara o que ela acha da idéia. Depois, que tal uma meditaçãozinha rápida?

— Está bem.

 

* * *

Ali sozinha, minha valentia definhou, e mais de uma cliente perguntou se eu me sentia bem.

No fim do dia, fechei a loja e caminhei até o ponto de ônibus. A Rosa Verde estava em localização privilegiada, portanto eu não me incomodava com meu carro. O ônibus chegou logo depois.

Encostei meu passe no visor e sentei, verificando antes se não havia chiclete no estofamento. Mal guardara a carteira na bolsa e alguém se sentou ao meu lado. Fechei o zíper, ergui os olhos e vi Fellseth.

— Devo louvá-la pelo bem que está fazendo em prol dos elfos — ele ironizou.

— Pena que eles nem se incomodaram.

Por um brevíssimo instante de pânico, pensei se deveria pedir socorro, mas o que eu diria? Tem um elfo conversando comigo. Mandem que se cale? Abri de novo o fecho éclair da bolsa, com a intenção de pegar o spray de pimenta.

Fellseth pôs sua mão sobre a minha.

— Seja o que for, não será necessário. Distanciei-me e encarei-o de lado.

— Eu decido o que é necessário.

Fellseth descansou o braço no espaldar do meu assento. Senti seu cheiro, mais forte que o de Galan, com um toque de almíscar, ao mesmo tempo atraente e assustador.

Peguei o spray e deixei-o pronto para dispará-lo à menor provocação. Ele estudou-me.

— Sabe, não é incomum um elfo travar um relacionamento com um humano para usá-lo como fonte de energia. Quando há seca, ou a vegetação está sendo pisoteada por gente de fora, esses namoros oportunistas, tão próprios dos mortais, ajudam a superar os obstáculos.

— Você não está me dizendo nada que eu não saiba. — Cheguei mais à frente no assento para evitar o calor de seu braço em meus ombros.

— Mesmo assim, você insiste em ajudar alguém que está apenas se aproveitando de você. Se eu e Galan somos iguais, por que não me ajuda?

— Vocês não são iguais. Galan, entre outras coisas, não está por aí matando gente.

Fellseth sorriu. Em sua expressão havia remorso.

— Creia-me, eu não queria ser o vilão da história, e vim para propor uma solução fácil para toda essa situação: devolvo a terra de Galan se você se ligar a mim.

— Ótimo! — Incrédula, eu ri.

— Não gosto de vê-la correndo atrás daquele rapaz. Se você tem uma queda por elfos, terei o maior prazer em satisfazê-la. — Cioso, ele estendeu a mão e roçou o dedo na ponta dos meus cabelos.

— Você é encantadora.

Lembrei das palavras de Kutara: "Se eu soubesse que ele iria transformar-se no canalha que é, talvez o tivesse aceitado". Eu não era assim tão nobre.

— Poderíamos nos dar uma trégua. Dê-me uma chance, e deixo todos vocês em paz. — Ele sorriu, sincero e cínico, e de novo dei-me conta do perigo daquela beleza.

— Sabe, eu não costumava ser assim.

— Mas começou a andar com as pessoas erradas.

— Bem, aprendi todos os meus truques com seu povo. — Ele ficou sério.

— Ceda-me algumas horas hoje à noite. Há um lindo restaurante no cânion. Podemos jantar lá.

— O Flagstaff? Eu achei que os elfos não comiam.

— Não comemos — o humor pregueou os cantos de seus olhos —, mas sabemos pedir os pratos.

Refleti. Fellseth queria conversar comigo em lugar público, o que era mais seguro do que irmos à minha casa. Eu poderia atraí-lo à biblioteca, mas, e se Kutara não estivesse lá? Se Galan e eu não tivéssemos força suficiente para derrotá-lo, ele poderia matar Galan sumariamente. E, por último, ele poderia revelar informações úteis.

— Está bem, vamos conversar — eu disse, cautelosa.

— Uma decisão generosa, Erin. Agradeço essa segunda chance. — Ele suspirou e recostou-se.

— Nem todos seriam assim magnânimos.

Aquiesci, esperando que os não-magnânimos não fossem mais espertos que eu.

 

Tivemos que baldear uma vez e tomar outro ônibus para o restaurante no Boulevard Canyon. Fellseth limitou-se aos costumeiros comentários formais de dois estranhos que viajam juntos.

Eu nunca fora ao Flagstaff. No alto de um penedo no sopé da colina, era conhecido pela vista fabulosa, e preços também fabulosos.

Quanto ao traje de Fellseth, típico dos elfos, ou ninguém o notara ou ele tinha glamourizado a todos. Perguntei-me quantos ele conseguiria glamourizar ao mesmo tempo.

— Jantar para dois — ele murmurou para a recepcionista depois que deixei meu casaco na chapelaria.

Ela nos conduziu a uma mesa junto aos janelões, onde se ouvia o sussurro das conversas e o tinir de louças e talheres no imenso salão.

Sentei-me na cadeira que Fellseth puxara para mim, junto de uma janela com vista para as luzes de Boulder. O restaurante estava cheio, e imaginei se estaríamos ocupando uma mesa reservada para outrem.

— Você traz suas namoradas aqui? Ele meneou a cabeça.

— De um modo geral, venho aqui para jantar com algum incorporador da Califórnia. É o melhor lugar para fechar negócios.

Ele abusava da franqueza. Estaria abrindo mão dos modos característicos dos elfos decadentes?

O garçom trouxe água e os cardápios. Quando se foi, bebi um gole de água.

— Como aderiu aos elfos decadentes?

— Que termo mais antiquado! — Ele recostou-se na cadeira. Os intensos olhos verdes sobressaíram atrás da tremeluzente vela sobre a mesa.

— Sabe, os elfos não murcham como as bruxas orientais. Quando seu povo começou a terraplenar minha terra para construir residências de luxo, entendi que minha morte chegara, e seria longa e muito dolorosa.

Ele sorriu de leve. — Eu só tinha trezentos anos na época. Era muito jovem para morrer e, por isso, quando toda aquela energia começou a transbordar, recarreguei-me e parti.

— E foi fazer o quê? Ele encolheu os ombros.

— Pensei em encontrar uma cônjuge que tivesse terra própria, ou encontrar um projeto de recuperação de manguezais que não tivessem moradores elfos, algo que me devolvesse o estado de graça. Mas não havia manguezais disponíveis — cabisbaixo, Fellseth mexia na taça de vinho —, e eu já carregava a pecha de elfo decadente, indesejado por todos.

— Então, o que fez?

— Comecei a avaliar as incorporações, o que, com o tempo, virou hábito. — O tom de voz passou a melancólico.

— Os humanos têm mais compaixão que os elfos. Para vocês, o alcoolismo é uma doença, mas nem por isso vocês dizem "aquele fulano é um bêbado decadente".

— Nossa compaixão — tentei usar um tom neutro — não se aplica quando o bêbado começa a matar gente.

Fellseth pousou uma das mãos na mesa, e estava prestes a falar quando o garçom se aproximou. Ele, então, calou-se.

— Pode pedir. Entendo que você não pode demorar muito. Passei os olhos no cardápio, perguntando-me o quanto ele sabia de meu vínculo com Galan.

— Quero legumes cozidos na panela de barro. — O garçom serviu pão e afastou-se.

— Não mato meus semelhantes elfos por uma questão de hábito. — Linhas de tensão apresentaram-se perto de seus lábios.

— É uma questão de ocasião, então? Ele suspirou.

— Ponha-se no meu lugar. Proscrito entre meu próprio povo, encontrei Galan, que abandonara sua terra.

— Ele estava triste porque você matou a companheira dele.

— Eu não a matei — ele disse lentamente.

— Fiz o que sempre faço quando encontro um elfo que desiste quando perde a terra. Apenas apressei o processo e livrei-a da agonia.

— Você perguntou-lhe se ela queria morrer? — Eu estava perplexa.

— Para ser franco, perguntei. Cheguei a oferecer-me para ensiná-la a viver do meu jeito, mas ela não quis nem falar comigo, e eu entendi a recusa como um "não".

— Se você queria mesmo ajudá-la, por que não mandou parar as máquinas e interrompeu a construção?

— É fácil motivar os humanos a fazer algo que querem, mas não é tão fácil mandá-los parar.

— Você poderia ter tentado.

— Não faria sentido para eles.

— Você poderia ter pedido ajuda.

— De quem?

— Dos próprios elfos!

Ele esbarrou na mesa, e as taças balançaram.

— Os elfos não falam comigo!

Olhei atenta ao redor, e vi que ninguém nos olhava. Fellseth parecia mais angustiado que zangado.

— Em cinquenta anos, esta é a primeira vez que não converso sobre imóveis.

— Vamos perder tempo se ficarmos gritando um com o outro.

— Desculpe. — Percebi que suas mãos tremiam, e mal acreditei que eu tinha dito o que dissera.

— Está tudo bem. — Ele bebeu um gole de água.

— Ao menos não preciso mentir para você... Uma mudança revitalizante.

Calei-me, odiando-me por sentir pena dele. Eu viera em busca de informações, e aquele momento era tão bom quanto qualquer outro.

— Na hipótese de eu me ligar a você, como eu me desligaria de Galan?

— Você não sabe?

— Como você agiria? — Aprumei-me à frente.

— O vínculo se desfaz quando você quiser, Erin. Quando for a coisa que você mais quer. Por isso, consegui tomar a terra de Galan. A terra era o que eu mais queria, e ele, não.

Eu torcia o guardanapo no colo, conforme ele prosseguia:

— A ironia é que todos os elfos poderiam viver da energia gerada nas incorporações imobiliárias. De um jeito ou outro, o fim vai chegar. Os humanos não serão detidos. Os elfos decadentes podem ser vistos como uma evolução, pois, no fim, só restaremos nós.

O garçom trouxe meu prato.

— A senhorita quer mais pão? — Ele ignorou Fellseth, o que me lembrou os poderes dos elfos.

— Faça-o desaparecer — sussurrei para Fellseth.

O garçom virou-se subitamente e foi-se. Fellseth ainda me fitava, inquisitivo.

— Não vou conseguir comer. Tudo isto foi demais para mim.

— Entendo.

Ele enfiou a mão dentro do paletó azul. Observei-o contar algumas cédulas e colocá-las na mesa.

— Você vai pagar? Pensei que...

— Você gostaria que eu apresentasse a conta para você? Às vezes, presto serviços de consultoria. — Ele esticou-se para consultar meu relógio de pulso.

— O próximo ônibus só passa daqui a uma hora. Você quer o dinheiro do táxi?

— Eu tenho. — Estudei-o com curiosidade.

— Você está morando na terra de Galan?

— Onde moro não interessa muito, mas como vivo. Só. — Ele levantou-se.

— Pense na minha proposta, Erin. Se você quer salvar alguém, sou um ótimo candidato.

Ele contornou a mesa. Eu continuei sentada quando ele me beijou no rosto, tocado por suas trancas prateadas.

— Eu a procuro. — Ele se foi.

O garçom voltou, pedi-lhe para embrulhar a comida para viagem e chamei um táxi.

Foi surreal entrar pela mesma porta por onde Galan e eu enxotáramos Fellseth. Fechei-a e pendurei meu casaco no gancho.

Galan e Kutara conversavam no sofá.

— Onde está Jed? — perguntei.

— Espero que não esteja trancado em algum armário por aí.

Galan veio ao meu encontro.

— Jed já não estava quando chegamos. Onde você esteve?

— Fui interceptada por Fellseth.

— Você está bem? Ele a machucou? — Galan olhou-me à procura de indícios e abraçou-me.

— Ele me convidou para jantar. — As palavras saíram abafadas, pois minha boca estava pressionada contra seu ombro.

— O quê? — Ele separou-se tão depressa que perdi o equilíbrio.

Kutara aproximou-se. Usava os cabelos escorridos, metade para cada lado, e tinha rugas na testa como se tivesse envelhecido trinta anos desde a última vez que a vira.

— Você está bem? — indaguei, alarmada com seu aspecto.

— Acho que superestimei o número de pessoas que minha terra pode manter. Não é da sua conta.

— Claro que é da minha conta... Você está com fome! — Amparei-a pelo braço e levei-a até o sofá.

— Kutara pode esperar cinco minutos. — Galan oscilava entre raiva e ansiedade.

— E Fellseth, o que houve com vocês?

Larguei-me no sofá.

— Ele me abordou no ônibus, quando eu vinha para casa, disse que gostava de mim e propôs devolver sua terra se eu me ligasse a ele.

— É mentira! — Galan irrompeu.

— Tenho minhas dúvidas. A versão dele é que ele fez o que fez por desespero e foi declarado Inimigo Público Número Um sem uma segunda chance. Acho que ele gostaria de melhorar mas, condenado ao ostracismo, não tem escolha. A situação é meio triste.

— Ele me atacou, você viu! — Galan insistiu.

— Sua mãe também me atacou, não? — retruquei.

— Não passei a acreditar nele, mas, prescrito, sua humanidade pode ter ressecado. Elfomanidade? — corrigi, olhando para Kutara.

— Está certo?

— Dizemos nassa — Kutara respondeu séria.

— É possível que haja algum sentido no que você diz.

— Não estou acreditando! — Galan meneou a cabeça.

— Você ainda é jovem, Galan — Kutara ponderou.

— Se a época fosse outra, poderíamos ter dado uma nova oportunidade a Fellseth. Mas, quando nosso modo de vida é ameaçado, sempre vemos os elfos decadentes como imperdoáveis traidores.

Tirei os sapatos com um gesto brusco dos pés e estiquei o corpo.

— Não estou entendendo. Os humanos sempre são a causa de todos os seus problemas, mas vocês estão aqui, querendo conversar comigo, e o próprio Fellseth, além de você, Galan, já disseram que os elfos às vezes confraternizam com os humanos.

— Mas os elfos decadentes sabem o que estão fazendo; os humanos, não — Kutara comentou.

— Vocês não têm compreensão, entendimento...

— Entendi, entendi.

Galan, que andava de um lado a outro, parou.

— Os elfos decadentes vivem intencionalmente de energia negativa. E o mesmo, por exemplo, que resolver tirar proveito da morte de um familiar moribundo.

— Para ser franca, isso acontece o tempo todo entre os humanos. A avó está morrendo de câncer, e alguém vai cuidar dela para ver se fica com a casa.

— Não existe compreensão — Kutara comentou com Galan.

Galan sentou-se ao meu lado.

— Vou colocar de outra maneira. Se o espírito da terra for uma criança que está morrendo asfixiada, o elfo decadente aproveita-se e rouba o ar que lhe resta.

Fiz uma careta.

— Vejo que não vamos encontrar uma solução fácil. Mas, antes de prosseguirmos, quero cuidar de Kutara. O aspecto dela está horrível.

— Cuidar de mim? Para quê? — ela perguntou a Galan. Levantei-me e, em frente a Kutara, acenei para ela.

— Ei, sou eu. Eu existo. Vamos já para o banheiro! Kutara fitou-me, intrigada.

— É essa a tal confraternização de que você falava?

Quinze minutos depois, Kutara tirou as mãos dos meus ombros.

— Eu não imaginava que isto fosse possível — comentou.

Inspirei fundo antes de abrir os olhos, e senti-me ao mesmo tempo aliviada e temerosa de ver Kutara restaurada ao seu fabuloso ser.

— Como está se sentindo?

— Muito melhor. Sou grata a você.

Galan levantou-se da cama, onde esperara sentado, e ofereceu a mão para ajudar-me a levantar do chão.

— E você, como está se sentindo? Foram duas vezes hoje.

— Estou bem. — Lembrei do jantar que eu não comera, ainda na sacola sobre a mesa da entrada.

— Vamos para a cozinha conversar enquanto como. Kutara evitava olhar-me comendo, como se eu estivesse fazendo algo repugnante.

— Para onde ele a levou? — Galan olhava o prato de cara feia.

— A um restaurante no cânion, o mais caro de Boulder. E pagou em dinheiro vivo. Mal acreditei.

— Por que não comeu lá? — Kutara arriscou olhar-me.

— Não consegui. Fiquei muito nervosa, vendo meu inimigo tornar-se repentinamente sincero e frágil.

— O que ele disse exatamente quanto a devolver minha terra?

— Para começo de conversa — pousei o garfo —, devo contar que, segundo Fellseth, ele conversou com sua esposa, propondo ensinar-lhe viver do jeito dele. Ela contou isto para você?

Galan fitava as próprias mãos crispadas sobre o tampo da mesa,

— Não. Mas no final ela nem falava mais.

Quis consolá-lo, mas não queria ser acusada, depois, de induzi-lo à tentação.

— Fellseth disse também que posso romper o vínculo com você se e quando eu quiser.

— Você acreditou? — Ele empertigou-se.

— Até o momento — agora era eu que o rechaçava —, não há motivo que me faça desacreditar.

Kutara rompeu o silêncio que se instalou entre eles.

— Galan me contou sobre sua idéia de usar toda a energia hídrica.

— O que você acha?

— Para ser franca — ela meneou a cabeça —, seria mais fácil organizar uma expedição de caça para localizar e enxotar Fellseth.

— E por que não se fez isso ainda?

— Eu disse que seria mais fácil, não que seria fácil. Com Fellseth à solta, todos estão com medo de sair de casa, de gastar energia em coisas que não sejam essenciais, para não correrem riscos.

— Mas você está agindo exatamente assim — assinalei.

— Estou convencida de que, para resolver o problema, é preciso ser... Qual é mesmo a palavra, Galan?

— Pró-ativo.

Levei a mão à boca para esconder meu sorriso.

— Sempre foi difícil localizar eficientemente um elfo decadente — Kutara prosseguiu.

— Mas a nova situação pode estimular a cooperação entre os elfos.

— Que nova situação? — perguntei.

— Fellseth quer você. Podemos usá-la como isca.

— Um momento. — Olhei um e outro elfo.

— Não sei se essa tática é correta.

— Você prometeu ajudar-me a derrotá-lo, Erin — Galan sobrou.

— Isto foi antes do belo jantar de hoje. Kutara, ele está querendo melhorar. Não gosto da idéia de atraí-lo para que vocês o peguem armados de tochas e tridentes. Galan, e se eu me vincular a ele só para dar-lhe energia, e você receber sua terra de volta? Os problemas de todos seriam resolvidos. Triste, Galan calou-se.

— Não temos motivos para acreditar — a voz seca de Kutara quebrou o silêncio — que Fellseth vai cumprir a palavra, mas temos uma oportunidade de dar cabo dele de uma vez por todas, que talvez não tenhamos de novo.

— Quem conversou com ele fui eu — protestei.

— Ele disse muitas coisas que não precisava dizer. Para não ser sincero, não faria sentido ter ido encontrar-se comigo.

— Se o objetivo dele era impedi-la de cooperar conosco, parece que conseguiu. — Ela ergueu a mão para interromper minha contestação.

— Não mando em você, Erin, e você já fez mais do que podia. Só peço que pense bem nessa situação antes de tomar qualquer decisão.

— É o que estou fazendo, creia.

— Tenho que voltar para a biblioteca. Galan, converso com você depois.

Quando ela foi embora, fui até a geladeira pegar alguma coisa para beber.

— Quanto à proposta de Fellseth... — Ouvi a voz de Galan atrás de mim.

— Você não está pensando em aceitá-la, está?

Abri uma caixa de leite de soja e enchi um copo.

— Se tivéssemos certeza de que ele iria devolver sua terra, você iria querer que eu aceitasse, não?

— Eu não aguentaria. — Ele demorou a responder. Peguei o copo e fui para a sala.

— Quanta delicadeza! Porém, como você não vai ficar, a energia tem que ir para outra pessoa, não?

— Eu nunca disse que ia ficar, Erin. — Ele me seguiu. Pousei o copo na mesinha lateral e larguei-me no sofá.

— É verdade. Você diz que sou ótima, que gosta de mim, e vai embora?

Ele sentou-se ao meu lado.

— Para que toda essa raiva?

Levantei-me e me sentei na poltrona em frente ao sofá.

— Você pode não querer discutir se vamos ou não ficar juntos, mas não pode decidir como me sinto, Galan.

Ele olhou para a distância que nos separava.

— Sabe, não tenho experiência nisto. Nunca senti nada igual por uma humana antes, mas se alguma mulher se apegasse a mim, eu poderia glamourizá-la para ela me esquecer.

— Infelizmente para nós dois, seu glamour não funciona em mim. — Fui para meu quarto e fechei a porta.

Quando Galan e eu chegamos à Rosa Verde na manhã seguinte, Lily nos recebeu à porta.

— Onde você conseguiu aqueles pingentes maravilhosos? — ela perguntou.

— Galan os fez. Se você não se incomodar, pensei em deixá-lo passar o dia conosco para fazer mais, talvez até receber algumas encomendas especiais.

— Ótimo! — Ela afagou-o auspiciosamente nas costas.

— Você pode usar a tenda do tarô; a mocinha não veio hoje.

Depois de prover Galan com o material necessário, Lily voltou à frente da loja onde eu provava amostras de perfume.

— Ele vai para a Espanha mesmo? — ela indagou.

— Se vai! Imbecil!

— E você não vai mais tentar que ele fique, certo? — Ela se solidarizava comigo.

Inalei uma das fragrâncias.

— Tudo depende dele agora.

Galan entrou atrás do balcão e entregou-me um punhado de brincos.

— Nove pares. Se eu fizer alguns com bolinhas, você acha que vendem?

— Tudo o que você fizer vende. Vou pegar os suportes onde ficam os brincos. Por favor, pendure-os para mim.

— É cansativo ter que ser cuidadoso, para que os clientes não percebam nada estranho. — Galan suspirou.

Depois de remexer as prateleiras embaixo da caixa registradora, encontrei os mostruários dos brincos e entreguei-os a Galan.

— Trabalhe em casa amanhã, se quiser. Ele franziu a sobrancelha.

— Talvez.

Uma mulher aproximou-se do caixa. Era linda: os cabelos morenos formavam uma crista, os traços eram finos, os olhos eram de corça.

— Eu não estou aqui — Galan murmurou, afastando-se. Ela pôs um livro em cima do balcão sem nem sequer olhar para ele.

— Encontrou o que queria? — perguntei.

— Estou procurando um baralho de tarô com imagens de elfos, mas não encontrei. Você tem algum catálogo na loja, onde eu possa procurar?

— Tenho, sim. — Entreguei a ela o catálogo de jogos.

— Se encontrar, podemos encomendar, e você economiza o frete — Olhei para Galan, que, agachado, afixava um brinco no mostruário.

— Você está interessada em elfos?

— Estou. — Ela bateu de leve no livro.

— Este livro ensina a atrair a energia dos elfos para nossa casa.

— Comer muito é o melhor atrativo! Galan riu.

— Não entendi. — Ela fitou-me, hesitante.

— Desculpe. Acabo de me curar de um distúrbio alimentar, e comer muito é uma das minhas compensações. O que diz o livro?

— Os elfos adoram o som das sinetas. Logo, uma boa idéia pode ser instalar mensageiros do vento, que eu terei de guardar à noite porque tenho sono leve. E é preciso deixar a casa bem bonita, com muitas cores vivas e coisas reluzentes.

— Só faltava essa! — Abaixado, Galan olhou para mim. Puxei-o pelo pulso e coloquei-o na minha frente. A freguesa recuou com a súbita aparição.

— Não o tinha visto.

— Ele estava arrumando a prateleira. Sorte sua, este é Galan Penedo.

— Pedra.

— Galan Pedra, doutor em Folclore. A tese dele foi sobre os elfos.

— Você já publicou alguma coisa? — Ela sorriu para ele.

— Ainda não, mas estou para publicar. — Com as pontas dos dedos, ele afastou de lado o ultrajante livro.

— É verdade que os elfos gostam das coisas bonitas, mas todo o resto é bobagem.

— Mas o autor diz...

— A questão das sinetas, por exemplo. — Galan meneou a cabeça.

— Os elfos são criaturas da natureza. Os sons de que mais gostam são: água corrente, vento nas árvores e o pio dos passarinhos.

Pensativa, ela retraiu os lábios.

— Acho que vou levar um disco de ruídos da natureza.

— Você pode plantar árvores para os passarinhos fazerem ninhos. Qual o tamanho do seu terreno?

— Doze mil metros quadrados. Temos um haras, ao norte de Boulder.

Galan pensava.

— Um tamanho com bom potencial. — Ele pôs as mãos no balcão.

— Faça o seguinte. Primeiro, desfaça-se dos cavalos. Segundo, plante quantas árvores puder, todas nativas. Terceiro, deixe o mato crescer à vontade e fique longe o máximo possível.

— Está falando sério? — Ela estava aparvalhada.

— Se quiser elfos, é assim que precisa agir.

— Acho que meu marido não vai querer. — Ela fez menção de ir embora.

— Acho que queria no máximo uma pequena redecoração do ambiente.

— O hábitat dos elfos não se faz num fim de semana — Galan afirmou.

— Tenho que ir. O tempo do estacionamento já deve estar expirando. — Ela saiu da loja.

— Agradeço se você não assustar a clientela. — Guardei o catálogo de jogos.

— Peço desculpas, mas esse livro diz muita bobagem.

— E você? O que disse funciona mesmo?

— Sim, com o tempo.

— Então, eu posso comprar uma terra, deixar o mato crescer, e você pode ligar-se a ela?

— E por que você faria isso? — Ele me encarou.

— Ah, não sei, talvez para salvar sua vida. Ele meneou a cabeça, visivelmente perplexo.

— Ouço me dizerem, desde criança: tome dos humanos tudo o que quiser, porque eles tomam tudo de nós. E agora você está me oferecendo uma terra? Impossível!

Empertiguei-me.

— Em teoria tudo é impossível, até que alguém faça.

Agora que me ocorrera a idéia de comprar terra para Galan, resolvi colocá-la em prática. Talvez eu não conseguisse mudar o juízo que os elfos faziam de todos os humanos, mas talvez conseguisse mudar o que faziam a respeito de uma humana em particular.

No sofá, eu folheava lentamente a revista Residências e Terras do Condado de Boulder.

— Posso conseguir um empréstimo maior, e dar um sinal menor na loja. — Apontei para um anúncio que chamou minha atenção.

— Veja este: seis hectares, florestas adultas, casa de toras de madeira. Pela fotografia, é selvagem. Será que já tem algum elfo morando lá?

— Temos que verificar — Galan comentou sem olhar, absorto, enquanto confeccionava alguma coisa, deitado no braço oposto do sofá, com os pés quase em meu regaço.

Dobrei o canto da página para marcá-la.

— Há outra aqui: "Oito hectares, adjacente à reserva federal, construtor finalizará segundo exigências do comprador". Vou exigir que ele derrube tudo e jogue fora o entulho.

A indiferença de Galan não estava nos meus planos. Por isso, bati com a revista em suas pernas.

— Você não está interessado? Você pode fabricar jóias a qualquer hora.

Ele deu um último arremate na peça e sentou-se.

— Eu queria terminar isto. E para você. — Ele a pós em minha mão.

Era uma representação perfeita do perfil de Galan, feita com um único fio de arame de prata.

— É para você lembrar de mim. Não é o bastante, claro. Aliás, sempre me acho insuficiente, porque nós, os elfos, sempre nos vemos como condenados. Talvez por isso eu não tenha derrotado Fellseth, porque me acostumei a entregar os pontos. Mas você apareceu, e eu percebi que uma mulher persistente pode mudar tudo.

O pingente turvou conforme eu o olhava, e uma lágrima escorreu por seu perfil.

— Então, eu quero agradecer.

— De nada. — Contive o nó na garganta.

— Também quero pedir desculpas, porque sei que não tenho agido a contento e que você está zangada comigo. — Ele hesitou.

— E sinto não tê-la deixado me mostrar antes que nem tudo é necessariamente impossível.

— Ainda está em tempo de tentar, se você quiser. — Eu apertava o pingente.

— Eu quero. — Ele abraçou-me.

— Bom dia.

— Bom dia. — Eu sorri ao ver o rosto de Galan no travesseiro ao meu lado.

Ele me aproximou de seu corpo, e nós nos abraçamos. Para quem achava que o amor recíproco seria repousante, eu me sentia curiosamente vulnerável, por causa de tudo o que havia em jogo.

Inalei o aroma de Galan, desejando que aquele momento fosse eterno.

— Ainda está contente com a decisão que tomamos?

— Muito. — Ele beijou-me. Esquadrinhei seu rosto, a centímetros do meu.

— Você sabe que não tenho um plano predefinido para resolver todos os nossos problemas, não?

— Estou decepcionado. Pensei que tivesse vindo a você durante a noite.

Ri, aliviada por podermos brincar.

— Apenas uma coisa veio até mim durante a noite...

Meu braço ficou dormente, e eu deitei-me de costas.

— Há um programa para hoje? — Galan afagou-me o ventre, tocou um seio, depois o outro.

— Claro. — Cerrei os olhos.

— Pensei em avisar no trabalho que não estou passando bem, pedir comida tailandesa e passar o dia na cama com você.

— Mesmo?

O entusiasmo na voz dele me fez rir.

— Isto é o que eu queria fazer, mas não. Hoje à tarde, vamos ver algumas terras. Agora de manhã, vou receber uma partida de fontes de água na loja. Tenho que recebê-las, marcar os preços e guardar nas prateleiras. Nao posso deixar tudo para Lily fazer.

— E eu, tenho que ir à loja? Acho que não precisamos fazer mais jóias, mas posso ajudar em outra coisa.

Coloquei-me sobre o corpo dele.

— Tem, sim. Vou dizer a Lily que distendi as costas fazendo ginástica sexual, e você, para se livrar da culpa, vai me ajudar a carregar as pedras das fontes.

Ele riu e esfregou-se em mim.

— Sem brincadeira. Se eu for, o que vai dizer a ela?

— Exatamente o que eu disse. — Rolei meu corpo, saí de cima dele e fui para o banheiro.

— Nunca subestime a franqueza das conversas femininas.

Galan levantou-se e acompanhou-me.

— Por falar em ginástica, quero mostrar como é a flexão lombar. — Ele chegou bem perto de mim e deu-me um tapinha nas nádegas.

— Vamos tomar banho juntos?

Lily já estava na loja quando chegamos.

— Vendemos cinco pingentes de sessenta dólares ontem — ela alardeou, estendendo as mãos para implorar a Galan:

— Vão deixá-lo fazer jóias lá no mosteiro, não vão? Você vai arrecadar um bom dinheiro para eles.

— Bem... — Galan olhou-me pedindo socorro.

— Pode deixar, ele vai fazer os pingentes. — eu dei risada.

— Hoje ele veio me ajudar a arrumar as fontes novas. Estou com dor nas costas porque...

O rosto de Galan ficou petrificado.

— Erin, eu preciso... — Ele apontou para o corredor.

— Vou só...

— Pode ir. — Abaixei seu rosto e beijei-o. Lily esperou-o afastar-se.

— Ele não vai mais para o mosteiro? — perguntou.

— Seria muito difícil para ele cumprir os votos.

— Você disse que está com dor nas costas?

— Estou, um pouco.

— É melhor interromper a ginástica sexual. — Ela sorriu.

Fomos almoçar em casa, onde reli os anúncios que eu marcara com círculos. Três das cinco propriedades potenciais eram de uma mesma corretora. Telefonei para Lily, confirmando se eu podia mesmo faltar no expediente da tarde; depois telefonei para a corretora e marquei a entrevista.

Na minha bancada, Galan esboçava o desenho de uma jóia.

— A corretora vai nos receber às três. — Observei o que ele fazia. Era o esboço de uma série de coelhos brincando, arrumando-se, saltando e bocejando.

— Você fez tudo isso enquanto eu estava no telefone?

— Não. — Ele meneou a cabeça.

— Tive a idéia ontem à noite, e comecei logo, enquanto você dormia. Vou fazer um bonito bracelete.

Não aceitei a modéstia.

— Amor, vai ficar lindo. Você vai precisar de uma distribuição mais ampla do que a Rosa Verde. Talvez um portal na internet, no mínimo.

Ele sombreava os dedos de uma das patas de um coelho.

— O que vamos fazer antes da corretora? Eu não gostaria de vê-la desmaiar de fome na entrevista.

Aninhei-me em seu peito.

— Tem razão, seria horrível. Você tem alguma sugestão de como conseguir um pouco de energia?

Ele pousou o lápis e levantou-me. -Vou mostrar minhas anotações sobre o tema. Deixei-as na cama.

Depois de gerarmos energia suficiente para iluminar um vilarejo, Galan e eu fomos procurar Kutara na biblioteca de Boulder. Ela estava em frente a um dos terminais da internet, com o mouse na mão.

— O que estão fazendo aqui? — Ela surpreendeu-se. Percebi que ela estava cansada, com os olhos fundos.

— Vim perguntar se alguém viu Fellseth, e também se você precisa de ajuda.

— Não há notícia de Fellseth.

Esperei, mas era visível que ela estava sem jeito de pedir ajuda.

— Por que não vamos até as estantes para eu recarregá-la, para não perdermos a viagem?

— Eu guardo seu lugar neste terminal — Galan ofereceu-se.

— Já que você insiste... — Kutara concordou. Caminhamos entre as estantes de metal da biblioteca, sentindo o cheiro dos livros. À esquerda, havia cabines de estudo separadas com divisórias de vidro; em cada uma, um colegial.

— Todas estão ocupadas — constatei.

— Esta está boa. — Kutara parou diante de uma cabine ocupada por um jovem que visivelmente dormia com a cabeça apoiada na mesa. Ela abriu a porta.

— Caia fora! — ordenou.

Ele juntou seus pertences e saiu, com os olhos inchados.

— Eu sempre quis fazer isso! — Peguei um livro qualquer e entrei atrás dela.

Ela fechou a porta. Abri o livro em cima da mesa, juntei as duas cadeiras e posicionei Kutara na que estava mais perto da porta.

— Finja que está lendo. — Sentei, e ficamos as duas de braços dados.

Comecei a meditar e a sentir, além da energia que vinha da terra, a corrente que levava a Kutara. Ao terminar, abri os olhos e examinei-a.

— É gratificante vê-la recuperada. É como ver uma planta aprumar-se depois de regá-la.

Kutara passou uma das mãos nos cabelos novamente viçosos.

— É a primeira vez que me comparam com um vegetal. Ela começou a levantar-se, mas pus a mão em seu ombro e interrompi seu movimento.

— Tenho uma coisa a dizer.

— O que é?

— Se eu vir Fellseth — hesitei —, vou dizer que não vou me ligar a ele, e que Galan não quer a terra de volta.

— Entendo. — Kutara ficou séria.

— Quer dizer, então, que Galan vai ser seu marido, vai tornar-se mortal, e a comunidade dos elfos diminuirá ainda mais.

— Nada disso. — Fiquei muito irritada.

— Vou comprar uma terra e dar para Galan, para ele não ter que depender de mais ninguém.

Para ver a perplexidade de Kutara, valeria a pena tomar um empréstimo colossal. Sei que eu agia com afetação, mas era inevitável.

— Como vê, não é preciso linchar ninguém. E, se os elfos fizerem algumas concessões diplomáticas, Fellseth talvez possa ser readmitido na comunidade. Um final feliz para todos.

— Talvez, se ele aceitar.

— Acho que aceita. Pareceu-me muito solitário. Kutara fitava-me, e comecei a ficar sem-graça.

— Bem, talvez você queira voltar ao trabalho. — Levantei-me e andei até a porta.

Kutara pigarreou.

— Nunca pensei que houvesse humanos como você. Ainda com a mão na maçaneta, virei-me.

— Isto é um elogio?

— Acho que sim. Apesar de...

Com a mão espalmada, sinalizei para que não dissesse mais nada.

— Então não o estrague, Kutara. Ela moveu-se, sem-graça.

— Está bem.

A caminho de casa, o sinal fechou na esquina das ruas Broadway e Canyon, onde, à esquerda, estavam os prédios da administração municipal. Um homem de terno, cabelos compridos e prateados passava em frente ao prédio principal. Seria Fellseth?

Ele dobrou a esquina no mesmo instante em que o carro atrás de mim buzinou. Dobrei à esquerda e entrei no estacionamento.

— Onde vamos? — Galan perguntou.

Se eu contasse, ele provavelmente insistiria que fôssemos buscar Kutara para matar Fellseth. Eu não me oferecera para tomar parte no assassinato, mas Galan talvez pensasse que sim.

— Acabei de lembrar que preciso pegar uns formulários na prefeitura. Para os imóveis. Pode me esperar no carro. Já volto.

Apressei-me na calçada sinuosa, entrei no prédio, atravessei o saguão e saí por uma porta lateral.

O homem de cabelos prateados estava sentado em um banco encostado na parede oposta. Aproximei-me, tentando, ao mesmo tempo, identificá-lo e mostrar casualidade. Olhei bem seu rosto.

— É você mesmo!

— Erin, como vai? — Ele sorriu.

De perto, seu terno cor de carvão parecia dos mais caros.

— O que está fazendo aqui? De terno? Ele sorriu com amargura.

— Às vezes, brinco com a idéia de me tornar um mortal. Fazer um curso noturno, glamourizar alguns contatos comerciais, consumir comida árabe... Ouvi dizer que é uma alimentação muito salutar. Quer sentar?

Sentei-me na outra ponta do banco.

— Está mesmo falando sério? Quer ser humano?

—Já vi muita desgraça e causei bastante também. — Ele fitou o parque.

— Ser elfo, hoje em dia, é muito deprimente. — Ele encarou-me, e havia uma ruga entre as sobrancelhas angulosas.

— Você pensou na minha proposta?

Inspirei fundo.

— Pensei, mas não posso me ligar a você.

Ele suspirou e olhou novamente para o infinito.

— Eu temia que fosse essa a sua decisão.

— Mas... — Pousei minha mão em seu braço, e ele olhou para mim.

— Vou comprar uma terra para Galan e, por isso, ele não vai mais precisar da antiga. — Ergui a cabeça, colocando no meu olhar toda a sinceridade.

— Existe a possibilidade de você voltar para a comunidade dos elfos. Tenho conversado com Kutara a respeito disso.

— Você sempre me traz alegrias. — Ele riu.

— E o que diz a indômita Kutara?

— Ela está receptiva à idéia, se você demonstrar que é isso o que você quer. Conhecendo-a melhor, ela não é má pessoa. É meio parecida com você.

Fellseth estendeu a mão para tocar a minha, mas mudou de idéia. Pigarreou.

— Erin, quero agradecer a compaixão que tenho recebido de você e de sua gente, muito mais do que já recebi de meu povo. Neste exato momento, sinto-me mais humano do que elfo.

— Que isso não o impeça de fazer as pazes. É importante curar as feridas antigas.

— Concordo. — Ele estava muito sério.

— E mais importante é pertencer a algum lugar.

— Isso mesmo! Tenho que ir.

Ele aproximou-se, hesitante, e eu, mesmo tomada de uma sensação de estranheza, aceitei seu abraço.

— Sou grato por tê-la conhecido, Erin — ele murmurou antes de me soltar.

— Espero de coração que resolva tudo a contento.

— Vou fazer o possível.

A caminho do carro, sentia-me esperançosa. Se minha diplomacia funcionasse, essa história de duelo de morte acabaria, e Galan e eu poderíamos nos dedicar a coisas mais importantes.

Entrei no carro. Galan, que lia a revista de classificados imobiliários que trouxéramos, olhou para mim.

— Não encontrou os formulários?

— Vou baixar pelo computador, em casa. — Eu queria sair dali rapidamente porque, se Fellseth dobrasse a esquina, Galan poderia vê-lo e querer atacá-lo.

Esperei chegar em casa para contar a Galan sobre meu encontro com Fellseth.

— Você o quê? — Em pé ao meu lado, perto da bancada de trabalho, ele tremia de raiva, sem compartilhar, obviamente, de minha esperança.

— Você deveria estar contente, porque pode abrir mão da terra que tinha, e Fellseth pode deixar de ser um elfo decadente.

— Ele já podia ter feito isso há muito tempo!

— Perseguido por todos, não! — Tentei tocá-lo, mas ele afastou-se e começou a andar de um lado a outro. Mordi os lábios.

— Sei que sua experiência com ele foi terrível, mas a vida para ele também não foi fácil. Ele só aderiu aos elfos decadentes porque, caso contrário, morreria. Acho que ele quer mudar para melhor.

— Ele matou minha esposa. E tentou me matar. Mesmo que prometa não matar mais ninguém, não vai adiantar, porque é um mentiroso, um assassino. — Ele sentou-se bruscamente na cadeira da bancada, de costas para mim, meneando a cabeça.

— E você me deixou no carro, esperando, para ir falar com ele!

— Fiz isso por você. — Toquei-o no ombro.

— Agora ele não tem mais motivo para matá-lo.

Ele olhava fixo à frente, calado.

— Peço desculpas, Galan. — Agachei-me para encará-lo.

— Prometo que nunca mais falo com ele.

Ele passou a mão na testa.

— Agora não tenho mais escolha.

— Mil desculpas, Galan. — Pus a mão em sua coxa.

— Achei que fosse a atitude correta, mas não o faria de novo.

Ele abaixou os braços e colocou-me em seu colo.

— Obrigada. — Eu o abracei com força, enfiando meu rosto em seu pescoço.

— Vamos esquecê-lo — ele sussurrou.

— Se tivermos sorte, você tem razão, e nunca mais vamos ouvir falar dele.

O escritório da Landmax não era longe. Parei numa vaga e tirei o cinto de segurança.

—A corretora vai perguntar, mas, como você não tem identidade oficial, só o meu nome vai constar nos formulários.

No saguão, Galan abriu a porta para mim.

— Mais cedo ou mais tarde, vamos ter que dar um jeito nesse meu estado extra-oficial. Eu não gostaria de ser alvo de investigação.

— Talvez, na internet — falei baixinho —, você encontre quem possa cuidar disso. Você pode usar a identidade de alguém que já morreu.

— Ou então posso glamourizar as autoridades para emitirem a documentação.

— Ou isso. — Eu sempre me esquecia do glamour, porque não funcionava comigo.

Na mesa da recepção, munidas de fones de ouvido, estavam duas jovens. Esperei desocuparem, e uma delas, enfim, olhou para mim.

— Olá, sou Erin Chandler, tenho hora com Bárbara Findleman para ver uns imóveis.

— Vou avisar Bárbara que a senhorita chegou. Agradeci com um gesto de cabeça e fui para perto de Galan, que examinava as fotografias dos lotes expostas na parede do saguão.

— Haverá momentos em que vou precisar me desincorporar — ele sussurrou —, e você vai ficar sozinha.

— Quando acontecer — eu sorri, confiante —, vou imaginar que você viajou a negócios. Não vai ser um problema.

Uma mulher aproximou-se.

— Srta. Chandler? — Bárbara Findleman tinha uns quarenta e cinco anos, cabelos brancos precoces e curtos. Usava um terninho e exalava um sorriso funcional.

— Erin, por favor. Este é meu namorado, Galan. Nós vamos morar juntos.

— Meu nome é Bárbara. Prazer em conhecê-los. Vamos para minha sala.

Entramos numa sala ao fim do corretor, e ela fechou a porta.

— Sentem-se. — Ela indicou as duas poltronas estofadas diante de uma escrivaninha revestida com papel decorativo. As paredes exibiam diplomas de Corretor do Ano e fotografias de estâncias de férias. Ela sentou-se, afastou para o lado uma xícara de café e entregou-me um impresso.

— Por favor, preencha este formulário, para eu ter uma idéia de suas possibilidades.

Quando terminei, ela lançou os números no computador e estudou os resultados. Depois, voltou-se para mim, fitando-me por cima dos óculos.

— Bem, no condado de Boulder propriamente dito, a única possibilidade para sua faixa são os apartamentos de um quarto.

— Estou mesmo interessada em comprar terra, talvez... — Olhei para Galan.

— Dois acres? — Ele confirmou com a cabeça.

Ela digitou alguma coisa no teclado.

— Em Boulder vocês não vão encontrar nada na sua faixa. Que tal em Berthoud?

“Será que eu teria que viajar para fazer sexo?”

— É meio longe. Eu sabia das limitações do mercado, mas não imaginei que fossem tantas.

— O motivo são as restrições que Boulder impõe à expansão. Mas hoje, na Câmara, houve uma moção para vender uma porção das reservas florestais a um incorporador. Embora as residências a serem construídas lá estejam muito além da sua faixa, o mercado pode afrouxar. — Ela clicou o mouse, e a impressora entrou em operação.

— Que reservas são essas? Onde são?

— É a faixa atrás do centro terapêutico.

Bárbara, com o apoio do teclado, examinava os lotes anunciados na tela do computador.

A terra de Galan. Olhei para ele, vi-o largado na poltrona, com os olhos fechados; no rosto, uma expressão de dor.

— Eu achei que as terras públicas não pudessem ser negociadas. Você tem certeza de que são aquelas terras mesmo?

Bárbara estudou a folha impressa.

— Há um lote particular à venda nas montanhas, ainda no condado de Boulder. O plano é vender o lote aqui, e, na área maior, construir um parque, que ainda vai depender de audiência pública. A área particular está bastante comprometida, por erosão, etc. O incorporador vai investir uma fortuna para construir residências de luxo até o sopé da colina; a cidade quer um condomínio de alto gabarito. Acredito que o projeto vá passar. Dizem que o consultor é muito persuasivo.

— Aposto que é. — Pensei em Fellseth sentado naquele banco ao lado do prédio da prefeitura.

Bárbara fitou-me, parecendo sentir que havia algo errado.

— Não tenho opinião formada a respeito. Pelo sim, pelo não, há vantagens e desvantagens, mas está causando um rebuliço no ramo imobiliário. — Virou-se para Galan e perguntou:

— Você está se sentindo bem?

Ele nem se incomodara em glamourizá-la.

— Ele teve uma intoxicação alimentar ontem. — Pus a mão em seu ombro.

— Pensei que tivesse melhorado, mas é possível que não. Bem, temos que ir. Sinto muito.

— Fique à vontade. Melhoras! — Ela levantou-se e acompanhou-nos até a porta.

— Tenho seu telefone. Vou ligar para marcarmos um novo encontro.

— Claro.

Galan deixou-se conduzir até sairmos da imobiliária e só se manifestou quando já estávamos no carro.

— Tenho que ver Kutara.

—Agora mesmo! — Saí da vaga rapidamente, fiz uma curva fechada e dirigi-me à saída do estacionamento.

— Não consigo acreditar!

— Eu consigo.

— Galan, eu...

— Agora, não. — Ele meneou a cabeça.

— Conversamos depois.

Encontramos Kutara com três elfos numa cabine de estudo. Amargurado, Galan contou-lhes a notícia da incorporação. Kutara tamborilou na mesa com os dedos e falou:

— Tenho observado os anúncios da audiência pública no portal da cidade na internet. A data deve ser marcada em breve. Fellseth vai comparecer para tentar glamourizar a maior quantidade possível de pessoas. — Ela olhou para os outros elfos.

— Nós temos que ir também, para contra-atacar.

E talvez matá-lo, pensei, mas disse:

— Eu peço desculpas. — Minha voz embargou.

— Por quê? — Kutara olhou-me intrigada.

— Você não chegou a ajudá-lo, e tem sido prestimosa conosco.

Na verdade, eu me desculpava com Galan por ter dado ouvidos a Fellseth e ter confiado nele, mesmo que por um breve momento. Desde a imobiliária, ele não me olhava diretamente. Sentara-se com os outros elfos e só olhava para a mesa.

— Há algum jeito de eu ajudar? — perguntei a todos. Como eu queria que ele olhasse para mim!

— No momento, não — Kutara respondeu.

— Nós avisamos quando precisarmos.

— Galan — tentei conciliar, calmamente, vendo-o ainda cabisbaixo —, podemos conversar um minuto lá fora?

Saímos, e eu fechei a porta da cabine para os outros elfos não nos ouvirem.

— Eu não contei a ele nada que nos expusesse. Você tem que acreditar em mim.

— Está bem. — Ele ainda não olhava para mim.

— Temos que nos unir mais do que nunca neste momento, Galan. — Eu o sacudi pelas mãos.

— Sei que está chocado, mas não me afaste.

— É difícil — ele falou com amargura.

— Aquela terra era parte de mim, e ele vai matá-la.

— Nós não vamos permitir — afirmei.

— Nós, quem? — Ele me fitava, e a sensação não era agradável.

— Eu disse que Fellseth não é confiável, e você confiou nele. Em vez de aproveitar a oportunidade que tivemos de nos livrar dele, você preferiu conversar sigilosamente com ele.

— Quis dar a ele uma chance de mudar.

— Neste caso, não, Erin. — Ele meneou a cabeça lentamente, como se não acreditasse no que ouvia.

— Fellseth não é um bom moço incompreendido, não é decadente só na superfície, é decadente até o âmago.

— Só agora entendi isso.

— Entendeu mesmo? Você não pode entender os elfos sem ser elfo.

— Ah, essa não! — Agora eu me irritara.

— Seria o mesmo que dizer que não posso entendê-lo porque não sou do seu sexo.

— Se compreensão fosse isso, não existiriam relacionamentos.

— Nossa relação não é minha prioridade no momento. — Ele desvencilhou-se de mim.

— Tenho que voltar para a reunião. E um problema dos elfos, que tem de ser resolvido por elfos.

— Mas acontece que você precisa da minha energia. Não corra riscos só porque está zangado comigo, Galan.

— Se eu precisar de você, aviso. Até lá o rio Boulder já voltou à altura normal. Vou arrancar uma página do livro-caixa de Fellseth para me abastecer de energia.

Segurei minha bolsa com força, e senti a correia cravar entre meus dedos.

— Vou ao banco conversar sobre o empréstimo, por via das dúvidas.

Ele não respondeu. Apenas entrou na cabine e fechou a porta.

Passei altiva pela seção de periódicos, mas as revistas embaçaram quando as lágrimas marejaram meus olhos. Galan tinha razão, eu superestimara minha compreensão e por pouco não causara dano real.

Nossa relação não é minha prioridade no momento. Até o momento, eu me achara competente para agir, mas doravante seria a vez de Galan tomar a iniciativa das ações. Eu me sentia desamparada, uma tola. Havia vidas em jogo, e tudo o que eu conseguia pensar era em não perder o namorado.

Ao chegar ao térreo, comecei a correr. Passei pelos balcões da recepção, pela seção infantil com seus cavalinhos de brinquedo e seus aquários. No estacionamento, tropecei e caí de joelhos.

— Ai! — Doía. Sentei no meio-fio, cobri o rosto com os antebraços e me abandonei às lágrimas.

O sol estava bem mais baixo quando me recuperei. Levantei, enxuguei o rosto com as mãos e vi meu carro dali a duas fileiras. Iria para casa, tomaria um banho e no dia seguinte iria conversar com o encarregado da seção de empréstimos. Era o que me restava fazer.

— Fui afoita, estraguei tudo! — Na casa de Lily, deitada na cama do quarto de hóspedes, eu arfava com um chumaço úmido de lenços de papel nas mãos.

Lily trouxe do banheiro uma tolha molhada em água fria. O marido, Jim, veio dar uma espiada e, depois de ver-me, sumiu.

— Eu sei, meu bem, mas você precisa acalmar-se.

— Não sabe, não — lamentei.

— Só eu sei!

Ela ajeitou-me nos travesseiros, cobriu meus olhos com a toalha molhada, sentou na beira da cama e afagou meus cabelos.

— E agora, Galan vai para a Espanha?

— Não. — Eu mexia a cabeça, irritadiça.

— Que bom, não?

— Não! — Eu apertava a toalha com o dorso das mãos.

— Você não vai entender.

— Que tal tentar explicar? Tirei a toalha e olhei para ela.

— Pode contar. — Ela me fitava.

— Galan não vai para a Espanha. — Suspirei do fundo do peito.

— E nem ia. Ele é um elfo...

Passei os próximos minutos contando tudo a Lily. Quando terminei de falar, pedi:

— Você tem que prometer que não vai contar para ninguém.

Ela tinha se deitado ao meu lado na cama, por cima da colcha de florzinhas recoberta de lenços de papel encharcados.

— E quem iria acreditar em mim? — Ela estava pasma.

— Era isso que eu dizia para mim mesma. Mas você acredita, não é, Lily?

— Acredito. — Ela embolou o travesseiro de penas sob a cabeça e virou de frente para mim, para me estudar.

— Porque é você quem está dizendo, principalmente, e porque, naquele dia em que Galan trabalhou lá na loja, ele continuou a fazer as jóias mesmo sem o alicate de corte, que tinha esquecido na minha mesa. Por que você diz que eu sou meia elfo?

— Ao que parece, é. E é por isso que Galan não pôde ficar invisível para você na primeira vez que ele foi à loja. — Ao lembrar da ocasião, comecei de novo a fungar.

— Pode ser que ainda dê certo, meu bem. — Lily afagou minha coxa.

— Galan e sua gente podem dar cabo do elfo decadente. E então, ele virá procurá-la, triunfante.

— Não sei se eles conseguem derrotar Fellseth. Ele vem agindo dessa forma há décadas, e é escorregadio. — Cerrei os punhos.

— Eu de fato achei que ele não fosse tão mau assim. Eu queria acreditar que não, para Galan ficar comigo, e sei que Galan sabe disso. Mas, quando você ama, é preciso levar em conta os interesses da pessoa amada, mesmo que você a perca.

— É o que dizem. — Lily deu uma risada insípida.

— Mas, na vida real, você quer o outro a qualquer custo.

— É verdade. — Fechei os olhos para conter as lágrimas que ameaçavam transbordar.

— A idéia de ficar sem ele me apavora.

— Se disser isso a ele, é meio caminho andado para ele perdoá-la. Se bem que, na verdade, não há nada a ser perdoado. — Ela deslizou para fora da cama.

— Vamos comer alguma coisa. A hora do jantar já passou há muito tempo.

— Não estou com fome. — Enfiei o rosto no travesseiro.

— Vou fazer um sanduíche para você — ela disse, acariciando meu ombro — e deixar na geladeira. Você pode querer mais tarde. Fique aqui o tempo que precisar.

Ouvi os passos de Lily no carpete.

— Obrigada — agradeci e despedi-me dela com um aceno. A porta fechou-se silenciosamente.

Pouco depois, adormeci.

Quando despertei, já estava escuro. Tateei, acendi o abajur na mesa-de-cabeceira e peguei meu celular na bolsa para ver a hora. Duas da manhã. O aparelho não registrava nem ligações não atendidas nem mensagens.

Meu rosto estava quente. Fui ao banheiro, e bebi três copos de água bem cheios rapidamente.

Pensei em ir para casa, mas a ausência de Galan pareceu-me insuportável. Além disso, dirigir me faria despertar, e despertar me faria pensar, o que era a última coisa que eu queria. Ainda vestida, voltei para a cama e enfiei-me embaixo das cobertas. Dormir foi minha fuga.

— Erin, acorde. Acorde!

— Não.

— Você não tem que ir ao banco hoje? — Lily insistiu. Rolei na cama e cobri o rosto com o braço.

— O quê?

Ela deu um leve puxão nas cobertas.

— Você dormiu de roupa?

Sentei-me e apoiei as costas na cabeceira. A luz da manhã me obrigava a piscar.

— Não tenho que ir ao banco. Ia aparecer por lá para conversar com o encarregado dos empréstimos. Mas já nem sei se Galan vai aceitar que eu lhe dê a terra de presente. — Minha visão ainda estava embaçada.

— Que horas são? Quer que eu vá para a loja?

Lily bufou.

— Eu não acho que hoje você possa oferecer as vibrações que são a nossa especialidade. — Ela estendeu-me um copo com um líquido fosco e espesso.

— Beba isto, é um coquetel de vitaminas.

Indiferente, tomei um gole.

— Beba tudo! — Lily ordenou.

— Está bem, está bem. — Bebi de um só gole.

— Assim é bem melhor. — Ela pegou o copo.

— Galan chegou a dizer que detesta você e que não quer vê-la nunca mais?

Respondi que não com um gesto de cabeça.

— Eu achava que não. É provável que ele precise esfriar a cabeça, mas vai voltar. Portanto, vá para casa, tome um banho e vá resolver seu assunto no banco, por via das dúvidas. Depois, se estiver bem-disposta, e quiser, vá para a loja. Combinado?

— Você acha mesmo que ele vai voltar? — Fitei-a esperançosa.

— Acho. Diga que sim para si mesma e ensaie alguns discursos apaixonados para quando ele voltar. Ao menos, não dói nada.

Abracei-a afetuosamente.

— Você é a melhor amiga do mundo.

— Talvez eu seja. — Ela apertou o abraço e afastou-se.

— Agora vá para casa, para meu marido poder sair do esconderijo.

Quando cheguei à porta de casa, Kitty veio correndo das folhagens, miando freneticamente. Peguei-a e imergi meu rosto na pelagem macia.

— Que bom que você ainda gosta dessa sua mãe incompetente!

Já dentro de casa, vi-me no espelho do cabideiro: olhos injetados, olheiras, cabelos arrepiados e pele muito pálida.

— Ele vai voltar! Lily diz que sim. — O espelho não pareceu convencer-se.

Sobressaltei-me quando a porta abriu de repente ao meu lado. Era Jed.

— Ora vejam! — Ele largou a bolsa de entregas no aparador do cabideiro.

— Por onde andou? Fiquei preocupado ontem à noite.

Esperei meus batimentos cardíacos voltarem ao normal.

— Ontem? Ah, Galan e eu ficamos fora até tarde e acabamos apagando na casa de uns amigos. — Meu reflexo mandou-me tomar um banho.

Kitty entrou pela estreita fresta quando eu fechava a porta do banheiro.

— Veio me fazer companhia? — Olhei em volta à procura de indícios de Galan, talvez um bilhete, mas não vi nada.

Enchi a banheira com água tão quente que gemi para imergir, e Kitty, saltando para o patamar, ladrilhado, veio ver o que havia, olhando-me fixamente. Fechei os olhos para evitar seu olhar de raio laser.

— Não vou me preocupar com a espuma. O silêncio antecedeu um miado.

— Ah, está bem! — Despejei um pouco de óleo espumante e espalhei-o na água, agitando-o vigorosamente com as mãos. O único som ambiente era o estalo das bolhas da espuma que Kitty estourava com as patas.

Ele vai voltar. Fiz disto um mantra, que pronunciei ao ensaboar-me.

Porém, quando a noite veio sem sinal de Galan, meu mantra já tendia a Ele nunca mais vai voltar. Eu conseguira re-configurar meu empréstimo no banco, e resolvi ir à biblioteca para saber dos novos acontecimentos.

No saguão, um garoto hippie sorriu para mim, e consegui retribuir com um sorriso apagado. Ao chegar à seção de consulta, porém, sem um único elfo à vista nos terminais da internet ou nas cabines de estudo, fiquei ainda mais triste.

Esquadrinhei duas vezes o segundo pavimento. Meu pânico aumentava a cada segundo. E se não fossem continuar reunindo-se ali? E se Galan tivesse resolvido ir para outra cidade, encontrar outra pessoa para dar-lhe energia? Iria ao menos despedir-se de mim?

Ao descer a escada, eu estava emocionalmente exausta, tanto que tropecei e teria caído se não tivesse sido amparada por alguém que subia.

— Erin? Era Kutara.

— Galan está com você? — perguntei.

— Não. — Sua expressão não revelava nada.

— Ele passou a noite com você? — Enrubesci.

— Fiquei preocupada.

Ela continuou escada acima, e só restou-me acompanhá-la.

— Minha terra não tem água corrente; ele deve ter pernoitado aqui.

— Sabe onde ele está agora? — Eu detestava implorar, mas não havia outro jeito.

— Ele tinha melhorado, depois de passar anteontem à noite à beira do rio, e foi identificar alguns lugares para mim. — Kutara dirigiu-se ao terminal de internet mais próximo.

A mulher que ali estava logo juntou seus pertences e saiu. Mordi os lábios enquanto esperava Kutara abrir o navegador, perguntando-me se ela me diria mais alguma coisa.

— Posso ajudar? O que vocês vão fazer agora?

— Não posso dizer, para o bem de todos e o seu.

— Não vou contar para Fellseth!

— Não por sua iniciativa — ela me estudou —, mas aprendi a não subestimá-lo. Quando eu souber a data da audiência pública, aviso você. Assim, se quiser, pode ajudar a protestar contra a venda da terra.

— Está bem, obrigada. Ouça... — Ela olhava para mim, esperando-me escolher as palavras, que saíram entrecortadas.

— Você pode dizer a ele que estou com saudade?

— Claro! — A compaixão enternecera traços tão belos.

Quando entrei na Rosa Verde na manhã seguinte, Lily, assim que me viu, puxou-me até a mesa administrativa atrás do balcão.

— Não leve a mal, criança, mas seu aspecto é uma péssima publicidade para nossa seção de auto-ajuda.

Puxei uma cadeira.

— Pensei em ficar por aqui atendendo o telefone, talvez começar a lançar os impostos do trimestre. Não vou aguentar ficar em casa.

Ela abriu uma gaveta.

— Bem, eu ia cobrar a entrega dos óleos de essências, mas você pode fazê-lo.

Suspirei e instalei-me. Ela entregou-me um catálogo.

— Depois que você me contou do Galan, acho que vou ver elfos por todo canto. Há pouco entrou um cliente, e pensei que fosse um dos seus amigos excêntricos.

— Por quê? — Disquei o número do fornecedor.

— Os cabelos eram muito bonitos e o olhar, belíssimo. E as trancinhas...

— Diante das orelhas? — Pus o telefone no gancho abruptamente.

— Sim. Achei estranho, uma vez que ele estava de terno. Além disso, surpreendeu-se quando perguntei se ele precisava de alguma coisa.

— Não! Aqui não! — Enfiei o rosto nas mãos.

— O que houve? — Lily agachou-se ao meu lado.

— Era Fellseth — sussurrei.

— Ele ficou surpreso porque não conseguiu glamourizá-la. — Quando ergui a cabeça, tratei de estampar um sorriso; havia alguém no balcão.

— Temos um cliente.

Lily embrulhou sete incensos diferentes e uma moxa e entregou o pacote para o cliente.

— Não vá causar incêndios por aí! — ela brincou e, quando o viu sair, voltou-se para a mesa.

— Então era Fellseth mesmo?

— Só podia ser. Talvez tenha vindo saber se eu tinha alguma informação para ele. — Eu roia as unhas.

— Ele ainda não sabe que estou contra ele, e nem sei como agir se o encontrar de novo.

— Diga que está treinando tiro ao alvo.

O resto do dia passou sem incidentes. Às seis, Lily deu-me meu casaco.

—Vá para casa, você está exausta. E não converse com elfos estranhos.

— Não. — Peguei a bolsa.

— Você o achou assustador?

— Não. E isso é o que mais assusta. Agora, vá para casa e tome cuidado.

Mais um dia sem notícia de Galan. A caminho de casa, lembrei que precisava comprar algumas coisas na mercearia do bairro, cujo estacionamento estava lotado por causa, dos fregueses da hora do jantar. Telefonei para casa com o celular.

— Alô! — Jed atendeu depois do terceiro toque.

— Olá. Alguém me ligou?

— Não. Algum problema?

— Não, liguei por ligar. Precisa de alguma coisa da mercearia? Aproveite, estou aqui. — Retirei o último carrinho da fileira e entrei.

— Uns dois vidros de creme de amendoim. E veja se não traz aquelas refeições naturebas com dois dedos de gordura em cima!

— É só misturar, Jed.

— Muito trabalho.

— Está bem, até já!

Devo ter pensado que comer faria com que eu me sentisse melhor, porque, quando saí de lá, tinha um estoque de alimentos para um mês inteiro.

Enfiei nos braços as alças das sacolas de plástico. No meio do caminho, uma delas começou a me machucar, e parei para redistribuir o peso.

— Posso ajudar?

Ao ouvir a voz de Fellseth, quase perdi a respiração.

— Não, obrigada. Já ajeitei. — Apressei um pouco o passo.

— Sei que você não tem motivo para querer me ver, mas fiquei com saudade de nossas conversas. Dê-me as sacolas, para você pegar a chave- Estávamos ao lado do carro, e dei-lhe duas sacolas.

Enquanto abria a porta, aproveitei para olhar em volta. Havia muita gente nas imediações. Será que ele conseguiria glamourizar tantas pessoas, para que ninguém interferisse caso ele me forçasse a entrar no carro? Pus as sacolas no banco de trás.

— O município está cogitando vender uma terra que acabei de adquirir. — Ele entregou-me a segunda sacola.

— A audiência pública é segunda-feira.

Ao pegar a sacola, parei, sem saber se o ouvira corretamente.

— Como disse?

— É irônico. — Ele sorriu.

— Eles deviam estar de olho naquele lote há anos. Sorte minha, não? Roubar terras prestes a ser incluídas no lote.

— O que vai fazer? — Eu representava bem o papel de quem estava surpresa. Aliás, para ser franca, eu estava estupefata. Estaria ele dizendo a verdade?

— Irei à audiência para persuadir o município a desistir disso. Você não gostaria de ir também? Eles vão permitir que os cidadãos interessados façam comentários. — Ele inclinou-se, pôs a sacola no banco e recuou. Os lábios estavam levemente curvados.

— Ou seria esperar muito que esteja preocupada comigo?

— Eu vou, sim, sem dúvida. — Ao menos isso era verdade.

— Ficarei contente. Agora vou até a administração municipal, ver se converso com alguém de lá. Sei que não devia pedir, mas posso pegar carona até sua casa? De lá, vou andando até a prefeitura.

Sirenes dispararam na minha cabeça.

— Eu o levaria com prazer, mas vou preparar o jantar para uma amiga enferma, e já estou atrasada. — Entrei e sentei-me.

— Sinto muitíssimo, Fellseth.

— Compreendo perfeitamente. Vejo-a na audiência. — Ele fechou a porta do carro e acenou.

Liguei o carro com os dedos meio trêmulos e, pelo retrovisor, não perdi de vista aquela figura que se afastava.

— Ora, ora — sussurrei comigo mesma. O que um elfo teria a fazer numa mercearia? Além disso, como era sábado, a prefeitura estava fechada.

Chegando em casa, pus as sacolas sobre o balcão da cozinha.

— Alguém em casa? — gritei.

Ouvi o rangido característico da porta do quarto de Jed.

— Eu. — Ele entrou na cozinha logo depois.

— Calcule sua parte. — Entreguei-lhe a nota da mercearia.

— Está bem. — Ele enfiou as mãos nas sacolas, retirou os vidros de creme de amendoim e virou um deles para ler o rótulo.

— "Fabricado com triglicerídeos genuínos, igualzinho ao da mamãe''.

— Alguém passou por aqui ou telefonou enquanto estive fora? — De preferência Galan, e não Fellseth.

— Não. Só eu e a gata, o dia inteiro. Deixei-a sair há pouco, para você poder limpar a cuia dela. — Ele guardou os legumes congelados.

— Quer assistir um vídeo hoje? Mike emprestou-me dois.

Era tentador ficar em casa e comer os legumes, mas eu precisava contar a Kutara a respeito de Fellseth.

— Talvez amanhã; hoje já tenho compromisso.

— Você não pára mais em casa.

— Por acaso nós nos casamos e eu não notei? — Guardei o resto dos alimentos e fechei de supetão o balcão retrátil.

— Olhe quem fala! Você não larga seus amigos do RPG.

— James está com mononucleose, e o jogo de hoje foi cancelado. — Ele me seguiu até a sala.

— Sinto muito. Outro dia. — Tirei do armário meu sobretudo preto e, no lugar dele, guardei o casaco leve que eu usava. O céu fechava e começava a fazer frio.

— Se Galan aparecer, diga para telefonar para o celular.

O interior do carro ainda estava quente, mas, mesmo assim, liguei o aquecedor. Eu sabia que a biblioteca ficava aberta diariamente até as nove, mas, aos sábados, eu não tinha certeza.

Quando dobrei a esquina ao fim do quarteirão, passei por um homem de cabelos compridos e prateados caminhando na calçada. Diminuí a velocidade e preparei-me para voltar caso fosse Galan, mas, ao perceber que o transeunte usava terno, pisei no acelerador e disparei ladeira acima. Se Fellseth estivesse mesmo me seguindo, Galan e Kutara eram as únicas pessoas que poderiam me socorrer.

A massa envidraçada da biblioteca agora às escuras avultou-se à minha frente como um cenário de filme de horror. Estava fechada.

— Droga! — Levantei a gola do sobretudo e peguei no bolso o gorro de tricô.

Decidi contornar o prédio porque Galan poderia estar lá dentro, para pernoitar e, por isso, ele, ou um dos outros elfos, poderiam me ver pela janela.

À minha esquerda, o rio Boulder fluía ao longo da pista para pedestres e bicicletas, um local ideal para estupradores à espreita. Vagar por ali não era nada seguro à noite, mas a idéia de deparar-me com um assaltante aleatório era muito menos assustadora do que a ameaça de Fellseth.

Segurei com firmeza o spray de pimenta, e comecei pelo lado da biblioteca que dava para a rua. Quase todas as janelas eram no segundo andar. Por isso, levei as mãos em concha à boca e chamei:

— Oláááá!

Um casal na calçada, esperando o ônibus, olhou-me com indiferença.

Fui para o lado oposto e parei junto ao passadiço envidraçado que dava para o rio e ligava o prédio novo ao original, que fora transformado em sala de exibição de filmes e espetáculos. No espelho d'água, o reflexo das luzes lembrava uma árvore de Natal.

Vindo da margem do rio, um vulto aproximou-se de mim. Corri, sentindo o ar frio entrar em meus pulmões.

— Ei, você tem moedas? — o homem gritou.

— Não! — respondi automaticamente, e atravessei a ponte de pedestres em passo acelerado rumo ao prédio iluminado.

A porta, havia um cavalete com um cartaz. Aproveitei para ler enquanto minha respiração normalizava: "Abaixo a androgenia — Estudo do gênero expresso nos estilos de construção".

Tirei o gorro e entrei. Uma harpista tocava num canto do saguão e, atrás dela, algumas pessoas segurando pratos e taças de ponche admiravam fotografias em preto e branco presas cm biombos.

Andei em linha reta ate a mesa das bebidas. Eu ainda não jantara. Um lanche me faria bom o me acalmaria antes que eu voltasse para o carro. Após aquilo, eu não sabia o que fazer.

A atendente, com um sorriso educado, serviu-me ponche e perguntou:

— Você conhece o trabalho de Guy?

— Hum... não. Eu cheguei aqui meio que por acaso.

— É fascinante. A tese de Guy na escola de Naropa foi sobre as contratações sem concurso na vida política. Ele agora é diretor da biblioteca, e foi um dos responsáveis pela escolha do arquiteto para estes painéis daqui. — Ela apontou para um homem de aspecto vigoroso, de uns quarenta e poucos anos, que conversava com um grupo de pessoas. Usava barba, óculos de aro metálico e um paletó de veludo cotelê.

— É aquele ali, caso você queira fazer alguma pergunta.

— Obrigada. — Com a taça na mão, fui ver as fotografias, tentando não causar a impressão de querer apenas aproveitar o lanche.

Todas as fotos mostravam construções — catedrais, prédios de escritórios, monumentos, mansões, edifícios públicos — sem um tema específico. Sob elas, havia cartões contendo as respectivas descrições e comentários, mas eu estava muito ocupada para ler, tentando equilibrar os biscoitos e o ponche.

Uma gargalhada atraiu meu olhar. Guy estava bem à minha frente.

— E, entendam — ele explicava a um grupo —, todas estas coisas foram, de fato, construídas. E então há as plantas da catedral, desenhadas pelo cardeal Boniveti no século dezesseis, com uma sucessão de domos e uma série de colunas avulsas enormes em frente e entre eles. E o tamanho dos capitéis, vocês deviam ver! Não foi por acaso que a catedral não chegou a ser construída.

Olhei a fotografia mais perto de mim, de uma igreja com um grande domo central. As palavras "ereto" e "arredondado" ocorriam com muita frequência no texto do respectivo cartão, e perguntei-me se as experiências sexuais de Guy teriam passado pelo ofício de pedreiro.

— Erin?

Virei-me, sobressaltada. Era o garoto hippie que sorrira para mim na biblioteca, de olhos oblíquos azuis, eu agora notava, e cabelos negros tão lustrosos quanto os de Kutara. Eu poderia apostar que suas orelhas, ocultas pelo gorro preto de crochê, eram pontudas.

— Se existe algum aperto de mão secreto, ainda não aprendi — saudei-o, e ele riu.

— Sou Lenny.

Um nome esquisito para um elfo! Equilibrei meu prato de biscoitos em cima da taça, estendi a mão e,cumprimentei-o.

— Sabe onde está Kutara?

— Venha comigo.

Passamos pela exposição de fotos, pela porta do auditório e entramos numa área visivelmente destinada às salas da administração. Ele dobrou à esquerda ao fim do corredor e bateu na terceira porta, Quando a porta abriu-se, passei os olhos no interior, e não vi Galan dentre os cinco ou seis elfos que ali estavam.

Entramos, e Lenny fechou a porta. Os elfos usavam roupas humanas. Kutara estava sentada diante de um terminal de computador, trajando um conjunto de moletom cor-de-rosa, lembrando uma atleta de alguma liga juvenil em versão hollywoodiana, e girou a cadeira em nossa direção.

— Erin, como nos encontrou?

— Por acaso. — Aproximei-me por entre os circunstantes.

— Vim procurá-la na biblioteca e não a encontrei. Entrei na exposição para passar o tempo e Lenny me viu. O que é isso aqui? — Fiz um gesto que abarcava o local.

— Nosso plantão noturno; um elfo foi atacado.

— Quem atacou? Fellseth? Quem foi a vítima? — Pensei em Galan.

— Ele está bem?

— Estou bem — Lenny respondeu.

— Que bom! Por que Fellseth atacou-o?

— Lenny estava encarregado de vigiá-la ostensivamente — Kutara respondeu —, para manter Fellseth ocupado enquanto ou montava uma rede dissimulada para monitorar os movimentos dele.

— Pois eu sei onde ele esteve, ao monos hoje à noite- Dei um tapinha em meu peito.

— No estacionamento da mercearia, ele me abordou para pedir carona. Gostaria de saber como soube que eu estaria ali. Estaria mancomunado com outro elfo decadente? Kutara pensou.

— Pelo que sabemos, os elfos decadentes não cooperam uns com os outros, mas Fellseth tem muitos contatos entre os humanos, e pode ter contratado um detetive para segui-la.

— Só faltava essa! — Sentei-me na beira da mesa.

— E tem mais, ele marcou a audiência pública para segunda-feira, e sugeriu que eu fosse também, para ajudar nos protestos contra a venda da terra de Galan, que ele enfim admitiu ter roubado.

— O que você respondeu?

— Que eu iria, mas fingi que não sabia de nada. Só não sei se acreditou. Para culminar, apesar de eu ter dito que não ia para casa, tenho quase certeza de que o vi indo para lá quando eu vinha para cá.

Kutara mantinha os olhos fixos diante de si, enquanto tamborilava no braço da poltrona com os dedos graciosos.

— Gostaria de saber qual é o alvo prioritário dele, você ou Galan.

— Onde está Galan? — Tentei em vão simular casualidade.

— Está fazendo um serviço para mim. — Ela ainda tamborilava.

— Você transmitiu meu recado?

— Transmiti.

— O que ele disse? — Fosse qual fosse a resposta, determinei-me a não chorar. Os demais elfos observavam-nos.

— Você tem algum parente que more longe daqui e que você possa ir visitar? — Ela parou de tamborilar.

— Para eliminarmos ao menos uma variável da equação?

Engoli em seco. Galan não respondera? Ou teria dito alguma coisa terrível a meu respeito, e Kutara estaria me poupando? O que ela sabia dos sentimentos humanos?

— Não quero sair da cidade. Alguém pode precisar de mim. — Eu, ao menos, esperava que sim.

— Outras possibilidades?

— Dificultar o acesso a você. Há outro lugar por aqui onde possa passar alguns dias?

— Posso ir para a casa de Lily. — Fiquei subitamente triste.

— Kutara, sei que está preocupada quanto a eu entregar alguma informação para Fellseth, mas, se eu me afastar, não vou contar com a possibilidade de ele me dizer coisas importantes, que possam ajudá-los.

Kutara inclinou-se para a frente e, para minha surpresa, segurou minhas mãos.

— Erin, hoje confio em você como jamais confiei em algum humano, mas peço que confie em mim também.

— Está bem. — Apertei suas mãos.

— Obrigada. — Ela recostou-se.

— O que tenho a dizer é que estamos avançando. Pelo que sabemos, Fellseth não está ligado à terra de Galan ou a outra qualquer e, portanto, não pode desincorporar. E, vivendo entre os humanos há tanto tempo, deve estar com alguns instintos amortecidos.

— Então, aos elfos basta encontrá-lo e terem a força necessária para derrotá-lo.

— Mais ou menos isso. Mas, aviso, não tente cuidar de Fellseth sozinha, ou pedir socorro a outros humanos. Agora, só nós podemos dar conta dele. Se o vir, fuja. Estaremos vigiando você sempre que possível, mas seria melhor se estivesse em outra cidade.

— E se um de vocês precisar de mais energia? — Eu meneei a cabeça.

— Por falar nisso, quer que eu medite para você? Aliás, cá entre nós, você está muito lépida e fagueira.

— Para a hora do desespero, soluções desesperadas. — Ela sorriu, sem-graça.— Toda essa energia, estou recebendo de um humano.

— Será que entendi o que você está querendo dizer?

— Digamos apenas — ela voltou-se para a tela do computador — que eu passei a interessar-me por arquitetura.

Na varanda da casa de Lily, a porta aberta iluminou-me.

— Posso passar a noite aqui? Diga a Jim que prometo não chorar.

— Claro. — Ela fez um gesto para que eu entrasse.

— O que houve?

— Fellseth pode estar querendo me pegar. — Baixei a voz.

— O pessoal de Kutara está me vigiando, e só por isso pude vir. Posso ficar mesmo?

— Venha. — Ela pegou meu casaco e pendurou no armário da entrada.

— Olá, Erin. — Jim acenou quando entramos na sala, onde assistia à televisão. Ele era grande, tinha os cabelos castanhos curtos e possuía uma coleção de camisas de flanela. Programador de computadores, sorria mais do que falava.

— Olá, Jim.

— Quer tomar alguma coisa? — Lily perguntou a caminho da cozinha.

— Só água. — Sentei-me numa cadeira da copa e cruzei os braços sobre a mesa. O relógio de parede, em forma de gato, balançava o rabo alternadamente para os lados.

— Teve notícias de Galan?

— Não. — Descansei o queixo nos braços e fechei os olhos.

— Acho que ele não quer mais me ver.

— Ainda é cedo. — Ela serviu dois copos de água e puxou uma cadeira.

— Não faz nem dois dias. Dê-lhe um pouco mais de tempo.

— Ele vai ter bastante tempo. Só posso voltar para casa na segunda. Devo vê-lo na audiência. — Ri com amargura.

— Vai ser estranho, ver os dois ao mesmo tempo, ele e Fellseth. — Aprumei-me e tomei um gole de água.

— Acho que vou para um motel amanhã. Não fui hoje porque estava sem forças para procurar.

— Se ele voltar a abordá-la, chamar a polícia não vai funcionar.

— Ele pode glamourizar os policiais, que vão pôr as algemas em mim.

— Para sua informação, não contei nada a Jim.

— Fez bem. — Bebi o resto da água e bati o copo na mesa, descoordenada.

— Lily, também para sua informação, se eu sumir, procure Kutara. Você a encontra no segundo andar da biblioteca, nos terminais dos computadores. Ela não pode glamourizá-la, para sorte sua.

A expressão de Lily passou de alarmada a resignada.

— Como ela é?

— Belíssima. Cabelos compridos negros e olhos violeta. Olha para você como para um inseto. — Sorri.

— Bem, até conhecê-la melhor, quando você é promovida a inseto interessante e útil.

 

Na manhã seguinte, olhando para o teto desconhecido, eu me perguntava se deveria tentar dormir mais. A loja, aos domingos, só abria às dez. Alguém bateu à porta.

— Estou acordada, pode entrar.

Lily entrou e sentou-se na beira da cama.

— Fui à loja e pus o aviso de "Fechada para balanço" na porta, para o caso de Fellseth ir até lá procurá-la. Pensei em passarmos a manhã atualizando as fichas para a liquidação, e depois irmos a Denver, talvez ao Museu de História Natural.

— Você acaba de me salvar, Lily. Eu estava pensando em como passar o tempo sem repetir os lugares de costume. Vou ao banheiro e já volto.

— Sei que você é um poço de saúde, mas gosta de cereais?

— Eu como qualquer coisa. Não estou em posição de ser exigente.

— Flocos de milho... com leite achocolatado. — Ela riu de minha expressão de horror.

— Estou brincando. Ainda tenho um pouco de musli.

Duas horas depois, na mesa da copa, terminei de atualizar uma pilha de fichas de estoque.

— Tem mais?

— Essas são as últimas. — Lily passou o polegar pelas fichas.

— Não foi por acaso que você enlouqueceu e começou a ver elfos por aí! Não é normal ser tão organizada.

Eu ri.

— Quando eu era criança, agrupava as balas mistas por cor antes de chupá-las.

— Isso faz até mal! — Ela ergueu a cabeça e gritou na direção da sala:

— Jim! Quer ir conosco ao Museu de História Natural?

A resposta foi um ruído abafado.

— O que isso quer dizer? — perguntei.

— É um "sim", mas temos que almoçar no restaurante tailandês predileto dele.

— Impressionante! Há quanto tempo vocês estão juntos?

— Há tanto tempo que não usamos mais as consoantes.

Consegui relaxar o resto do dia. Almoçamos em Denver, fomos ao museu e depois ao cinema. Quando voltamos, Lily veio dirigindo. Jim dormia, de boca aberta, no banco de trás.

— Você acha que é seguro passarmos lá em casa para eu pegar umas roupas? — perguntei em voz baixa.

— Claro. — Atenta ao trânsito, ela mudou de pista.

— Jim está conosco, afinal.

— O que só vale se ele for meio elfo também.

— Então, você fica dentro do carro, agachada, e eu entro para pegar as roupas.

— Combinado. A roupa de baixo e as meias estão na primeira gaveta da cômoda; depois, pegue no armário o que você gostar, e só. Ah, coloque tudo numa sacola de mercado para disfarçar o conteúdo. As sacolas estão em cima da geladeira.

— E o que digo ao seu inquilino, se ele estiver em casa?

— Diga a Jed que quebrei a perna, e estou no hospital. Seja grosseira, se precisar, mas demore só uns três ou quatro minutos, está bem?

Ao chegarmos à minha quadra, dei-lhe a chave da casa e agachei-me de mau jeito no chão do carro. Ela saiu e fechou as portas. Jim emitiu um ruído, que parecia um grunhido, mas continuou dormindo. E se acordasse, o que eu diria? Que estávamos pregando uma peça no meu inquilino, talvez.

Consultei o relógio, e desejei tê-lo feito assim que Lily saíra do carro. Quanto tempo fazia que ela saíra? Dois, três minutos? Eu encostava a cabeça nos joelhos, para reduzir ao máximo as possibilidades de ser vista.

— Venha logo, Lily — sussurrei, e respirei aliviada ao ouvir passos lá fora.

Levantei a cabeça. Fellseth olhava para mim, em pé junto à janela do motorista. Comecei a pensar rápido. Talvez eu consiga blefar. Levei o dedo à boca, como a pedir silêncio, apontei para minha casa e sorri.

Ouvi o riso de Fellseth pelo vidro do carro e percebi um movimento no banco de trás. Jim levantou-se e destravou minha porta.

Gritei enquanto tentava me endireitar, apoiando-me na maçaneta da porta. Quando consegui abri-la, senti uma mão em meu ombro. Caí de frente na calçada, levantei com dificuldade e corri para casa.

— Lily! Lily! — eu gritei com toda a força de meus pulmões.

Já no meu jardim, senti o peso de alguém impulsionar meu corpo à frente e me derrabar de peito contra o gramado. O ar de meus pulmões foi expelido de uma só vez.

Assim, arfei debilmente por alguns instantes, o suficiente para encher meus pulmões antes que uma mão tapasse minha boca. Consegui soltar a cabeça com um brusco movimento lateral e morder o dedo de meu captor, mas parei na hora certa, quando vi que quem me agarrava era Jim.

Em pé, Fellseth olhava para nós dois, com uma expressão preocupada no belo semblante.

— Acalme-se, Erin — ele pediu com as mãos espalmadas.

— Não vou machucar você.

Jim levantou-se e puxou-me para cima.

Invoquei os conselhos referentes à defesa pessoal: Nunca permita que a levem para outro lugar.

A porta de casa se abriu, e Fellseth virou-se para olhar. Levantei minha perna com toda a força, e o som abafado anunciou máxima eficácia.

Fellseth levou as mãos à genitália e desabou no chão. Jim soltou-me, fitou o corpo contorcido de Fellseth e olhou para Lily.

— O que houve? — Lily aproximou-se, brandindo uma frigideira.

— Entrem no carro! — berrei para os dois.

— Deixei suas roupas lá dentro. — Ela hesitou.

—Vamos para o carro agora! Quando ele se recuperar, vai controlar Jim de novo! — Segurei a mão de Jim e puxei-o.

Lily correu para a porta do motorista. Desejei que a frigideira estivesse comigo, e que eu tivesse a coragem necessária para rachar com ela a cabeça de Fellseth.

— O que houve? — Jim perguntava incessantemente. Lily empurrou-o para o banco de trás é fechou a porta.

— Depois eu conto. — Arfante, ela jogou-se no banco do motorista e enfiou a chave na ignição. O carro arrancou, e os pneus cantaram quando ela, por engano, pisou na embreagem.

Fellseth ainda estava no chão.

—Vou chamar a polícia. — Jim começou a discar. Quando arranquei o telefone das mãos dele, olhou-me, furioso.

— Não vai adiantar, Jim. Você não vai ter como explicar. -Lily...?

— Ela tem razão, querido — Lily respondeu com firmeza.

— Depois eu conto com calma; agora não.

Antes de dobrarmos a esquina, olhei para trás e vi Fellseth começando a levantar-se.

— Não é seguro continuar com vocês. Vou pegar meu carro e sumir.

— E se ele aparecer lá em casa? — Os olhos de Lily estavam arregalados e amedrontados no retrovisor.

— Você sabe se ele tem carro?

— Não faço idéia. — Consultei meu relógio.

—A biblioteca fecha às seis hoje. Procurem Kutara e perguntem o que fazer. Se Fellseth seguir vocês, digam a ele que saí da cidade.

— Você vai sair?

— Vou — menti.

— Mas não vou para a casa dos meus pais, porque lá seria fácil me achar. — Larguei-me no banco e fiquei pensando nas opções enquanto Lily explicava ao marido que ele agira daquela forma porque um elfo assumira o controle de sua mente.

— Que bom! Pensei que eu tivesse enlouquecido! Quando vi Erin correr, fui atrás dela para detê-la. Quando voltei a mim, percebi que não tinha motivo algum para isso. Peço desculpas. — Ele pousou a mão em meu ombro.

— Você não teria como impedir. — Olhei para ele e dei-lhe um sorriso tenso.

— Sorte sua eu ter percebido que era você, ou teria arrancado seu dedo com os dentes. Passe meu casaco, por favor.

Meu carro estava estacionado diante da casa deles.

— Agora, procurem Rufara na Biblioteca Municipal de Boulder, segundo andar, terminais de computadores. Cabelos negros compridos, olhos violeta, lindíssima. Tchau. — Bati a porta e o carro partiu.

Entrei no meu carro e joguei a bolsa e o casaco no banco do lado. Como fazer Fellseth pensar que eu saí da cidade? Poderia deixar o carro no estacionamento do terminal rodoviário de transferência para o aeroporto, tomar um táxi e ir para um hotel. Se ele localizasse o carro, pensaria que eu fora para o aeroporto.

Como era domingo, o edifício-garagem estava quase vazio. Estacionei no segundo andar, numa vaga perto da escada, e, abaixando-me, corri para a frente do prédio, a fim de observar a rua lá embaixo.

Logo depois, telefonei do meu celular para o serviço de informações, onde consegui o número da empresa de táxi. Após pedir um carro, percebi que tinha gastado meus últimos centavos para comer. Encontrei ali no prédio um caixa eletrônico, no qual saquei trezentos dólares, o máximo permitido, e sentei-me atrás de um vaso com uma figueira para aguardar o táxi, que chegou após dez minutos, uma espera que pareceu bastante longa.

O motorista saiu do carro. Era jovem, e tinha os cabelos rastafari curtos espetados em todas as direções. Assim que ele entrou no saguão, corri ao seu encontro.

— Tenho que me esconder de uma pessoa; portanto, vou abaixada no banco de trás. Você vai ter que prestar atenção para ver se há alguém nos seguindo, principalmente se for um homem muito bonito, de cabelos prateados com trancinhas à frente das orelhas. Tudo bem?

— Sim, sem problemas. — Ele enfiou as mãos nos bolsos da calça jeans e sussurrou:

— Tem algo a ver com drogas?

— Não. — Abri a porta do prédio e posicionei-me atrás dele, mantendo-o entre mim e a rua.

— É uma intimação judicial. Vou para o Hotel Saint Julien, na esquina da Ninth com a Canyon.

Ele entrou no carro depois de abrir a porta para mim.

— Se é uma intimação, não é melhor sair da cidade?

— Já estou fora, vim de outra cidade. — Deitei-me no banco de trás e me cobri com o casaco.

— Não se apresse, e só converse comigo se achar que estão nos seguindo.

Ele ligou o carro.

— Posso cantar com o rádio?

— Pode, pode.

— Perguntei só para saber.

Chegando ao hotel, atravessei rapidamente o saguão até a recepção.

— Quero um quarto, duas diárias.

A recepcionista tocou a tela do monitor.

— São quinhentos e quinze dólares e setenta e cinco centavos. — Ela passou-me a ficha de registro e uma caneta.

Engoli em seco, pegando a carteira.

— Então, uma diária só.

— São duzentos e cinquenta e três dólares e treze centavos.

Entreguei o dinheiro.

— Posso ver sua identidade? — ela pediu.

— Se eu paguei em dinheiro, para que quer a identidade?

— É a política da casa, sinto muito.

Fechei a carteira para ela não ver a carta de motorista.

— Minha identidade foi roubada; a nova só fica pronta em uma semana.

— A senhorita tem cartão de crédito?

— Se eu tivesse, teria pago com ele. Encaramo-nos longamente. Ela quebrou o gelo.

— Tome sua chave magnética. — Ela suspirou.

— A diária termina ao meio-dia. Tenha uma boa estada.

— Vou tentar.

Dirigi-me para o quarto. Apesar do local ter vista para a serra, fechei a cortina. Depois, joguei o casaco e a bolsa em uma das camas e sentei-me com cuidado na outra. Meu ombro esquerdo e meu quadril doíam, efeito do ataque de Jim. Senti-me muito só naquele quarto tão asséptico.

— Por que esse Fellseth teve que nascer? — resmunguei, mas logo percebi a ironia de minha queixa, porque se Fellseth não tivesse nascido eu não teria conhecido Galan.

— Muito bem. Então, por que simplesmente ele não desaparece de uma vez?

Telefonei para a Biblioteca Municipal de Boulder, cujo número encontrei no catálogo da cidade na gaveta da escrivaninha.

— Consulta. Em que posso ajudar? — A simpática voz atendeu.

— Preciso encontrar minha tia. — Toda a exaustão pesava em minha voz.

— É uma emergência de família. Ela deve estar fazendo uma pesquisa num dos seus terminais de computador. O nome é Kutara. Você poderia ver se ela está aí, e pedir a ela que atenda o telefone?

— Claro.

Enquanto esperava, procurei no catálogo o número do serviço de quarto, e acabei me deparando com informações sobre o centro para executivos, que o hotel disponibilizava vinte e quatro horas por dia.

— Qual das minhas sobrinhas você é? — Kutara atendeu, em tom seco.

— Sou Erin. Lily e Jim estiveram com você?

— Eu não os via há um tempão! Estiveram, sim. Hoje é dia dos parentes aparecerem. Diga-me o número onde está, e telefono em seguida. Você merece mais privacidade.

À espera do retorno, examinei mais detidamente o catálogo do hotel. Retirei o telefone do gancho rapidamente assim que a campainha tocou.

— Onde você está? — perguntei.

— Ainda estou na biblioteca, mas não vou demorar. — A voz de Kutara reverberava.

— Estou no banheiro. E ótimo que meu celular funcione aqui.

— Não sabia que você tinha celular. — Achei aquilo incondizente com os elfos.

— Apesar das necessárias precauções contra roubo. Anote o número. — Ela o disse, e escrevi-o no bloco de anotações.

— O que disse a Lily e Jim?

— Para não se preocuparem, pois Fellseth não tem motivos para fazer-lhes mal, se não estiverem com você.

— Passei a ser um perigo para os amigos. Só me faltava essa!

— Onde fica seu hotel?

— Esquina da Ninth com a Canyon, a umas poucas quadras da administração municipal. Se meu quarto tivesse janela para o lado direito, provavelmente eu veria a biblioteca. Acho que você não vai me contar seus planos, estou certa?

— Está. Mas posso dizer que não vamos mais ficar em um lugar fixo. Portanto, se quiser me encontrar, ligue para o celular. Porém, apenas em caso de emergência.

— Você vai divulgar a audiência pública de amanhã?

— Não, não temos recursos nem competência profissional.

— Eu tenho. Há um centro para executivos aqui no hotel.

Se eu imprimir os folhetos, você manda buscar? Vocês podem distribuir amanhã de manhã para todas as pessoas que vão caminhar ou levar o cachorro para passear lá na trilha.

— Pena que você não é elfa; seria uma excelente assistente.

Senti-me muito contente, subitamente, de não ser elfa.

— Um de nós vai passar aí em duas horas, está bom assim?

— Está. Mande apanhar no meu quarto.

— Então são setenta e cinco cópias em papel cor de abóbora — A atendente do centro executivo pediu que eu contasse.

— Sim. — Quando as cópias começaram a sair, senti meu estômago roncar.

Assim que voltei para o quarto, pedi um sanduíche de queijo quente com salada. Algum tempo depois, despertei com alguém batendo à porta. Com o coração acelerado, chequei o olho-mágico e, felizmente, era um atendente do hotel com uma bandeja, e não algum elfo decadente enfurecido. Paguei, liguei a televisão e voltei para a cama com o lanche.

Sempre me sentia importante quando usava o serviço de quarto, mesmo ali como foragida. Terminei de comer, e comecei a assistir à televisão quando bateram à porta outra vez. Pé ante pé fui verificar quem era.

— Galan! — Machuquei meu dedo tentando abrir a cavilha do fecho.

Ele usava um blusão impermeável, calça jeans e camiseta. Os cabelos prateados, enfiados no vão traseiro do boné de beisebol, formavam um reluzente rabo-de-cavalo. Eram roupas comuns, mas, para mim, ele estava resplandecente. Vi tudo isso num brevíssimo relance, pois logo a seguir ele me tomou nos braços e começou a me beijar.

Atabalhoados, entramos no quarto ainda nos beijando, e ele fechou a porta com um chute. Paramos para retomar o fôlego.

— Eu estava enlouquecendo de preocupação — Galan desabafou.

— Kutara pensou em mandar-me vir buscar os folhetos, já que não posso fazer nada. Você está bem?

— Estou, agora que você está aqui. — Dois semicírculos azuis sublinhavam os olhos de Galan.

— Você parece cansado.

Puxei-o para a cama; ele se deitou e suspirou de exaustão.

— Não quero reclamar de Kutara, mas, como motorista dela, sou um escravo. Minha reserva de energia está muito baixa.

Desliguei a televisão e aninhei-me em seus braços.

— Você me perdoa? Está tudo bem?

— Claro que perdôo. — Ele beijou-me.

— Fiquei em estado de choque quando soube do que ia acontecer com minha terra.

— Sempre achei que fosse proibido lotear o espaço público, mas tinha me esquecido da glamourização. E de surpreender que os elfos ainda não dominem o mundo.

— É uma questão de energia e, por isso, Fellseth conseguiu aproximar-se de você. Conte como aconteceu. — Ele acariciava meu braço.

Foi mais desagradável relembrar o ocorrido do que o fato em si. Na ocasião, eu estava movida a adrenalina, agindo mais e pensando menos. Agora, com o rosto preocupado de Galan bem à minha frente, eu tinha consciência do perigo que corri.

— Gostaria de saber ao certo qual foi a motivação de Fellseth. — A expressão dele estava muito séria.

— Você acha que ele pretendia usar-me como isca?

— Talvez. Ele pode ter pensado que Kutara não ajudaria uma humana e que, portanto, eu iria aparecer pessoalmente, tomando-me um alvo fácil. Somos poucos contra ele, você sabe. Ainda por cima, temos que nos preocupar com informações e reuniões, e ele só tem que se preocupar consigo mesmo, o que lhe dá muito mais agilidade.

Eu mordi o lábio.

— E ele sabe que, como vocês são poucos, livrar-se de um de vocês já é vantagem.

— Ele deve tê-la atacado por motivos menos estratégicos. Foi você quem me salvou, quem me ajudou na briga contra ele. Talvez ele esteja querendo vingar-se.

Apertei-me ao corpo de Galan, confusa com motivos tão contraditórios. Fellseth chamara-me de criatura adorável e me agradara. Teria estado apenas me amolecendo para, então, acabar comigo? Psicopatas existiam em pesadelos e filmes de horror, mas nunca imaginei que fosse encontrar um na vida real.

— Preciso de você — eu disse de repente, puxando-o pelo blusão.

— Agora.

Despimo-nos rapidamente, e eu o abracei como se não nos víssemos havia meses, e não apenas alguns dias. Eu me acostumara ao nosso vínculo de antes, que agora crepitava entre nós, erótico e forasteiro.

Galan envolveu meu rosto com as mãos ao penetrar-me.

— Não vou esperar para dizer isso. Eu amo você.

— Eu também amo você. — Eu arfava, conforme acompanhava os movimentos dele. Lágrimas escorreram dos cantos dos meus olhos. Sempre achara que, quando Galan se declarasse, eu me sentiria segura, mas agora que as circunstâncias sugeriam perda, eu senti medo.

Quando ouvi o alarme do rádio-relógio tocar, agitei-me, tateando para desligá-lo. Galan me pedira que o ajustasse para as onze horas da noite. Ele se mexeu no escuro, e cobriu meus lábios com os seus. Abracei-o com força, tomada por uma súbita necessidade de estar perto dele.

— Gostaria que tudo isso já tivesse acabado.

— Eu também. — Ele acariciou meus cabelos. Estiquei-me um pouco para acender o abajur na mesa-de-cabeceira.

— Quando vocês pegarem Fellseth, o que vai acontecer?

— Não sei. — Ele me puxou e aninhou minha cabeça em seu peito.

— Kutara conseguiu unir os elfos como nunca. Se não exterminarem Fellseth sumariamente, ela organizou uma espécie de tribunal para decidir o que fazer com ele. Terminada esta fase, ela pretende viajar a outras comunidades que precisam de ajuda contra os elfos decadentes. É possível que me peça para ir também.

— Você iria?

— Não sei. — Ele beijou-me na testa.

— A idéia de que podemos agir em vez de nos render tem sido um despertar para todos nós. Trabalhar em equipe, como os humanos. Acho que as circunstâncias hoje são diferentes, mas a experiência tem sido gratificante. — Ele suspirou.

— Devo ir, sim — disse, levantando-se.

— E quando vou vê-lo de novo? — Sentei-me e observei enquanto ele se vestia.

— Não sei ao certo. Antes, precisamos capturar Fellseth.

— Enquanto isso, o que eu faço? .

Ele calçou os tênis e, um pouco trêmulo, fechou os velcros.

— Se dependesse de mim, eu vigiaria você, mas o plano de Kutara exige a presença de cada um de nós. A única certeza que temos é que ele estará na audiência pública, às três horas. — Ele aprumou-se e segurou meus braços.

— Seria melhor você esperar aqui até a reunião começar, e depois ir para outro lugar aleatório.

— A que distância daqui?

— Dakota do Sul. Sabemos que ele nunca esteve lá. Bufei, surpresa, mas o medo me fez aquiescer.

— Está bem.

Ele levantou-se, enrolou os cabelos e colocou o boné.

— Tenha cuidado. — Ainda nua, eu o abracei.

— Você também. — Ele beijou-me, acariciando-me as costas e as nádegas.

— Se tivermos sorte, amanhã estará tudo terminado e a vida voltará ao normal. — Ele pôs os óculos escuros.

— Ser normal, como será?

Galan saiu e fechou a porta. Eu tranquei-a e fui para a cama, onde enrosquei-me debaixo das cobertas, procurando seu calor. Eu tateava o abajur para apagar a luz quando ouvi novas batidas. Após verificar quem era, abri a porta.

— Esqueci os folhetos — ele explicou.

Depois de oito horas muito bem-dormidas, recuperei meu otimismo natural. Sim, Fellseth tinha me atacado, mas eu o golpeara e fugira. Minhas contusões quase não doíam, Kutara tinha um plano de ação e, mais importante, Galan me amava, o que tinha deixado bem claro na noite anterior.

Se tivéssemos sorte, Fellseth já estaria derrotado à tarde. Prometi a mim mesma não deixar o excesso de confiança me levar a agir com displicência. Telefonei para o serviço de quarto e pedi um café da manhã caprichado, para me segurar até o jantar, possivelmente tardio.

Comi, tomei banho e resolvi permanecer no quarto até me enxotarem. Passei minhas roupas, liguei a televisão e estava absorta numa novela quando a camareira chegou.

— Como pode? — Eu indiquei a televisão.

— Jack e Sally estavam tentando namorar quando eu estava na faculdade, e até hoje não conseguiram.

A camareira hispânica era atarracada e vestia uniforme branco.

— Já conseguiram, sim — ela explicou —, mas Sally teve um filho de outro homem e Jeff trocou-a pela irmã gêmea. Ela agora está tentando reavê-lo. A diária termina ao meio-dia — ela lembrou-me.

— Não vá esquecer.

— Você não pode ir limpando o resto? Quero assistir esse capítulo — insinuei, tentando cativá-la.

— Sinto muito.

— E se eu ajudá-la a arrumar, e sair depois?

— Não pode.

— E se eu lhe der vinte dólares, posso ficar?

— Vai chegar um hóspede novo às três. — Ela foi ao banheiro e voltou com as toalhas sujas.

— Por que a senhorita não vai para um hotel mais barato?

— Porque não posso sair deste prédio. — Inspirei fundo.

— Há um homem querendo me sequestrar.

— Chame a polícia.

Minha declaração não surtira o efeito desejado; ela apenas jogou a roupa suja no carrinho.

— Eles não vão resolver meu problema. É uma longa história.

— Igual à de Jack e Sally, que eu também não tenho tempo de assistir. — Ela desligou a televisão e sugeriu, com as mãos nos quadris:

— Vá para o centro executivo. Se perguntarem, diga que está esperando alguém.

Levantei-me.

— Boa idéia. Gostei.

— É mesmo? Cadê a gorjeta?

Desci com o espírito mais leve, assim como o bolso, após a gorjeta de cinco dólares.

Eu precisava mesmo ir ao centro executivo, para ver como chegar a Dakota do Sul e onde ficar quando lá chegasse. Também poderia ser bom alugar um carro, para não dar a Fellseth a chance de glamourizar alguém em uma delegacia de polícia e mandar rastrear meu carro.

Pouco antes das três, eu reunia meus mapas impressos e as confirmações do hotel e do aluguel do carro quando meu celular tocou.

— Chamada a cobrar da Prisão Correcional do Condado de Boulder — dizia a mensagem gravada.

— Se aceitar, serão cobrados um dólar e setenta e cinco centavos. Tecle "um" para aceitar.

— O que será dessa vez? — Teclei "um" e fui para o corredor.

— Erin, é Jed. Onde você está? Ignorei a pergunta.

— Você está na cadeia? O que houve?

— Eu estava em casa, preparando um sanduíche, e vi um sujeito espiando a casa.

— Que sujeito? Como era?

— Louro, de trancinhas. Bonito. Quando começou a mexer nas janelas, liguei para a polícia. Eles vieram imediatamente.

— Ótimo! — Senti-me aliviada.

— Ótimo, nada — Jed ergueu a voz.

— Fui lá fora quando a polícia chegou, e pensaram que o tal sujeito é que tinha avisado, e que eu havia invadido a casa. Aí me prenderam por invasão de domicílio.

— Você está brincando! Você mora lá. Não mostrou a eles a identidade ou alguma conta de consumo?

— Eu estava sem a carteira, e não me deixaram entrar para pegá-la. O tal sujeito, além do mais, estava de terno, e eu, todo mal-ajambrado.

— Não é possível. Não acredito!

— Você tem que vir até aqui. Estão dizendo que só me dispensam da fiança, que custa duzentos e cinquenta dólares, se você vier aqui, provar que mora lá e se responsabilizar por mim. Aí me soltam.

— Jed, você ligou numa hora péssima. Você não tem alguém que possa pegar sua carteira e levá-la aí?

— Eu não atualizei o endereço da minha carta de motorista. — Ele abaixou a voz.

— Entendeu? Erin, eles me puseram numa cela temporária, e os outros presos não são nada simpáticos. Preciso ir embora daqui.

Pensei. De um jeito ou de outro, a reunião na administração municipal começaria em alguns minutos. Portanto, já era hora de ir. Se eu deixasse Jed na cadeia, quem daria comida para Kitty?

— Está bem. — Eu estava agitada e ansiosa.

— Se me lembro, a cadeia é um prédio bem largo, com arame farpado, na estrada do aeroporto, não?

—É aqui mesmo — ele confirmou, aliviado.

— Muitíssimo obrigado.

— De nada. Já estou indo. Até logo.

A locadora de automóveis ficava perto do edifício onde eu deixara meu carro. O jeito mais rápido seria eu ir de táxi pegar Jed na cadeia e de lá irmos para o estacionamento. Ele levaria meu carro para casa e, no caminho, me deixaria na locadora.

Procurei na memória do celular o número da empresa Boulder Táxis. Disquei e expliquei ao atendente que eu queria o mesmo motorista que me servira no dia anterior, um jovem com cabelos rastafari curtos.

— É a senhorita quem está fugindo dos federais?

— Eu mesma. Pode pedir a ele para me pegar no Hotel Saint Julien? Diga para me encontrar no saguão. Não quero esperar na rua.

— Sim, senhorita. Ele estará aí em quinze minutos.

Resolvi usar um disfarce, para o caso de Fellseth não comparecer à reunião na prefeitura ou mandar alguém me seguir. Na loja de presentes do hotel havia um lenço estampado com aquilégias, a flor do Estado do Colorado. Comprei-o.

No banheiro, amarrei o lenço na cabeça, cobrindo quase todo o cabelo e a franja. Pus os óculos escuros e examinei o resultado no espelho; o efeito lembrou-me Jackie Onassis.

Quando o motorista chegou, esgueirei-me de trás de um vaso com uma palmeira e acenei furtivamente para ele.

Ele sorriu, com as mãos nos bolsos.

— Isto está ficando cada vez melhor. Por que não se curva, finge que é uma senhora idosa e eu finjo que a estou ajudando?

— Claro, por que não? — Puxei o lenço um pouco mais à frente e dei-lhe o braço.

— Estamos exagerando. — Eu arrastava os pés.

— Só há uma pessoa aqui, o atendente do estacionamento.

— Pode estar disfarçado.

Acho que não. Deve ter só uns dezenove anos.

— O pessoal da entorpecentes é todo jovem hoje em dia, para poder vigiar os colégios à paisana.

— Mas eu já disse, não tenho nada a ver com drogas. Já dentro do táxi, aproximei-me do banco da frente e disse:

— Vamos para a Prisão do Condado de Boulder.

— Vai se entregar?

— De jeito nenhum! — Arqueei-me para parecer mais velha.

— Vou tirar um amigo da cadeia.

O motorista meneou a cabeça.

— Algum problema? — interpelei-o.

— Não, só estou perplexo. Você parece tão certinha.

— Obrigada. Assim tenho mais possibilidades de arrumar emprego.

Já tínhamos percorrido mais ou menos um terço da sinuosa estrada para a prisão quando vi uma pessoa caminhando no capim seco da margem.

— Pare! Acho que é ele.

Quando o táxi encostou, eu abri a porta.

— Jed!

— Ei! Onde está seu carro? Para que esses enfeites? — Ele apontou para o lenço e os óculos escuros.

— Depois eu conto. Venha.

—- Para onde vamos agora? — o motorista perguntou.

— Para o edifício-garagem em Baseline. — Voltei-me para Jed.

— Soltaram você?

— Pois é, soltaram. Quando aquele sujeito apareceu lá em casa, eu telefonei do meu celular porque não achei o telefone sem fio, e alguém teve a idéia brilhante de verificar minha ficha de registro, onde consta o número do meu telefone, que é cobrado no nosso endereço. Muito esquisito!

— Com certeza! — Pensei um pouco antes de dizer:

— Quero pedir um favor, Jed. Aquele sujeito que estava espiando a casa é meio perigoso.

— Você avisou a polícia? — Ele franziu a testa.

— Apesar disso não ser muito recomendado.

— Não, a polícia não pode fazer nada. Deixei meu carro na garagem do terminal rodoviário em Baseline, e pensei que você poderia levá-lo para casa. Deixe o carro lá, pegue Kitty e vá para a casa de alguém por alguns dias.

— E você, onde vai estar?

— Não posso dizer, mas, se tudo correr bem, volto logo e aviso você.

— É coisa séria, então. Não posso ajudar em nada?

— Não. — Abracei-o, agradecida.

— Você é um bom amigo, Jed.

O tema de Guerra nas Estrelas tocou no carro; era o celular de Jed.

— Não, ainda não comprei a cerveja. Eu estava na cadeia. Você nem vai acreditar no que está acontecendo. Não, neste exato instante, não. Tenho que ir pegar o carro da Erin na estação rodoviária. É em Baseline, não é longe. Ei, você gosta de gato? — Houve uma pausa.

— Está bem, mais tarde.

— Quem era? — Torci para Jed não ter dito nada a meu respeito.

— Um dos meus amigos do RPG. — Ele recostou-se ao banco.

— Essa minha prisão me deu umas idéias para novos personagens. — Teclou um número no celular.

— Sean? Você ainda tem aquele cão pitbull, ou sua namorada o levou quando foi embora?

Jed ainda procurava onde ficar, e eu, recostada no banco, pensava no que pegar em casa quando chegamos ao estacionamento.

— Será que fui cúmplice de uma fuga da prisão? — O preocupado motorista me deu o troco e guardou a robusta gorjeta.

— Não, não foi.

— Agora que resolveu o problema, já pode ficar à vontade, não?

— Ainda não resolvi. — Ajeitei o lenço na cabeça.

— E, por isso, ainda não posso me expor.

— Lamento. Não quer mesmo me contar o que está havendo? Eu gostaria de saber.

— É uma questão entre elfos e propriedades territoriais. Ele meneou a cabeça e dirigiu-se a Jed.

— Diga à sua amiga para não esquecer de tomar o calmante.

Atravessamos apressados o vazio saguão do estacionamento. Abri a porta da escada e espiei antes de subir. Estávamos quase no segundo pavimento quando o som de uma porta se abrindo ecoou nas paredes de concreto.

— Venha logo — chamei Jed apenas movendo os lábios.

— Hein? Estou indo. — Ele continuou no mesmo ritmo. Ao chegar ao segundo andar, ouvi passos na escada. A porta para onde estava meu carro ficava a menos de dois metros dali.

— Vamos, Jed — sussurrei, puxando-o.

Os passos aproximaram-se. Jed segurou meu braço.

— Erin, você está aí — A voz lúgubre e calma de Fellseth reverberou no vão da escada. Segundos depois, eu já o via.

— Pensei que poderia encontrá-la aqui.

Insisti em apressar Jed, inutilmente. Elegante e controlado, trajando um terno preto, Fellseth parara, e agora estava encostado à parede do patamar abaixo.

— O rapaz é bem forte, não? Sorte dele.

Mudando de tática, resolvi descer e ir ao encontro de Fellseth, mas o braço de Jed detinha-me feito âncora.

— Você não vai me acertar de novo. — Fellseth recuou alguns passos.

— O lugar ainda dói quando ando.

Esganicei de raiva e comecei a chutar Jed, mas ele abraçou-me pelas costas, colocou-me sobre o chão de cimento e imobilizou-me com seu peso. Fellseth ajoelhou-se atravessado sobre minhas panturrilhas. Gritei mais alto, e o vão da escada encheu-se de sons desagradáveis. Senti algo fechar-se em volta de um tornozelo, e depois do outro. Fellseth algemara minhas pernas.

— E agora os pulsos. Vire-a de frente, Jed, por favor. Quando o braço de Jed passou à frente de meu rosto, mordi com força, esperando que a dor rompesse o glamour de Fellseth. Minhas arcadas dentárias encostaram uma na outra e senti enjôo, mas Jed nem notou.

— Nada disso vai adiantar. — Fellseth algemou meus pulsos.

— Foi difícil glamourizá-lo, se quer saber. Ele deve gostar muito de você.

Inclinei a cabeça para trás, arfante.

— Tenho que dizer, esses RPGs não valem nada. Nem precisei mudar de nome, só os glamourizei. Fiz o papel de um menino de dezoito anos cheio de espinhas.

— Foi você quem telefonou para Jed agora há pouco?

— E fui eu quem mandei prendê-lo. Chega de conversa. — Fellseth tirou do bolso um lenço grande de algodão e fez com ele um chumaço.

— Enfie-lhe isto na boca — ele instruiu Jed.

— Não quero que ela arranque meus dedos.

Jed colocou o lenço na minha boca. Eu não tinha como resistir no momento. Além disso, precisava poupar energia. Eu olhava súplice para meu amigo, na esperança de romper o glamour, mas ele agia como um zumbi.

Fellseth pegou no bolso um rolo de fita adesiva e cortou um pedaço de uns dez centímetros. Como era óbvia a intenção de usá-lo em minha boca, o medo de ser sufocada assolou-me. Esperneei e gemi, respirando ofegante através do lenço.

— Problemas para respirar? — Quando eu assenti, ele aplicou a fita diagonalmente, deixando livres os cantos da boca. Depois, pegou minha bolsa, que estava no chão.

— Vamos embora, Jed.

Eles levantaram-me, um em cada extremidade. Eu me debatia, mas não havia ninguém por perto para me socorrer. Minutos depois, puseram-me no porta-malas de um Acura antigo estacionado ao lado do meu carro. Jed segurava minhas pernas; Fellseth, meus pulsos.

Eu estava deitada em um tapete dobrado, que amaciava um pouco meu contato com o porta-malas. O lugar cheirava a metal queimado, e vi um laço metálico soldado ao interior do veículo. Fellseth tirou do bolso dois mosquetões de alpinismo. Com um, prendeu ali a corrente dos pulsos. Deu o Outro a Jed, que fixou meus tornozelos em alguma coisa que não consegui ver.

Meu medo assomava com toda essa preparação.

— É a primeira vez que preciso de um automóvel. Você está me saindo muito cara, mas espero que valha a pena. Fellseth usava um tom coloquial, e chegou a inclinar-se como se fosse beijar minha testa, mas algo nos meus olhos deve tê-lo feito desistir.

— Não vou arriscar quebrar meu nariz. — Ele recuou.

— Quero tratá-la bem, mas você dificulta as coisas. — Ele fechou o porta-malas, e tudo ficou escuro.

O movimento do carro sugeriu tráfego. Ergui minha cabeça para ver se eu conseguiria golpear por dentro a tampa do porta-malas e chamar a atenção de algum carro próximo, mas a dolorosa tentativa demoveu-me da intenção.

A claustrofobia assolou-me, assim como a convicção de que eu seria asfixiada. Durante o restante do trajeto, procurei relaxar e acalmar minha respiração, mas, mesmo assim, senti uma leve vertigem quando o carro parou e o porta-malas se abriu.

Fechei os olhos para simular inconsciência. Quero pegar Fellseth de guarda baixa.

Dedos suaves exploraram o calombo em minha testa.

— Que menina valente! Que bobagem! — Fellseth provocou.

Contive a raiva. Alguém soltou meus pés e mãos do interior do porta-malas.

— Segure-a pelos ombros — Fellseth instruiu. Levantaram-me, e ouvi o ruído de passos em cascalho.

Ouvia também barulhos que me pareciam de um rio e do vento ciciando entre as árvores, e sentia a fragrância acre das sempre-vivas. Abri os olhos rapidamente para tentar identificar onde eu estava: vi a fachada de uma casa bonita com cercas vivas laterais de cedro, para onde Jed e Fellseth me levavam.

Passamos por uma sala luxuosa e por uma cozinha cujos balcões estavam vazios. Revirei a cabeça para tentar ver o lado de fora, mas, as janelas estavam fechadas com persianas e cortinas.

Quando meus pés inclinaram-se para baixo, percebi que estávamos descendo uma escada. Se eu empurrasse Fellseth, e ele caísse e ficasse inconsciente, Jed me soltaria. Esperei um instante e golpeei meus pés à frente com toda a força.

Fellseth foi à frente aos trambolhões e largou meus pés; minhas pernas bateram na quina de um degrau. A dor foi intensa. Acima de mim, vi o rosto de Jed, confuso por míseros instantes antes de recuperar o olhar amortecido.

— Uma boa tentativa, sem dúvida. — A voz de Fellseth estava contida, sugerindo dor.

— Vou ter que usar o corrimão.

Ele levantou meus pés e enfiou-os embaixo de um de seus braços. Esperneei e chutei, mas não houve uma segunda queda.

Nosso destino era um porão de aspecto confortável, com um sofá superestofado, bar e televisão. Havia uma cadeira metálica afixada a uma parede, e nela Jed imobilizou-me enquanto Fellseth prendia a corrente nos meus pulsos a uma outra, que circundava um dos braços da cadeira, e meus tornozelos algemados a uma base giratória.

Depois de amarrar-me a contento, ele retirou suavemente a fita adesiva, e Jed tirou o lenço da minha boca.

— Puxa, você dá trabalho! — Fora do meu alcance, Fellseth friccionava cuidadosamente o quadril.

— Você se esqueceu de dizer "Ninguém ouvirá seus gritos"? — trocei, enfurecida.

— Achei que fosse óbvio, já que tiramos a mordaça. — Ele andou até o sofá e sentou-se pesadamente. Jed posicionou-se em frente à porta do cômodo. Houve silêncio.

— O que você quer? — Desejei que minha voz não estivesse tão trêmula.

— Talvez possamos chegar a uma solução que satisfaça a nós dois.

Fellseth inclinou-se para a frente, pousou os cotovelos nos joelhos e encostou as palmas das mãos uma na outra diante do nariz.

— Vejo que já chegamos à fase das negociações, mas, infelizmente, você terá que acreditar que estou, de coração, agindo em seu interesse. — Ele levou dois dedos aos lábios e sorriu.

— Não quer perguntar nada? Ou fazer um comentário indignado? Ameaçar vingar-se?

Fitei-o, enfurecida, mas não disse nada. Talvez ele preenchesse o silêncio, uma vez que parecia adorar o som da própria voz.

— Não quer? — Ele levantou-se após alguns instantes.

— Pois muito bem. Vou lá para cima dar uma olhada, e Jed vai preparar alguma coisa para você comer.

— Espere! — gritei. Ele virou-se.

— Preciso ir ao banheiro. — Fingi estar envergonhada.

— Ah! Felizmente, você não ficará prisioneira por muito mais tempo. Portanto, podemos evitar essas situações constrangedoras, ou que possam pôr em risco a integridade dos meus ossos.

— Não entendi. Ele suspirou.

— Contenha a bexiga.

Quando Jed abriu a porta para sair, eu berrei a plenos pulmões:

— Socorro! Incêndio!

Fellseth meneou a cabeça pacientemente, saiu e fechou a porta.

Tentei de todo jeito soltar-me enquanto estava sozinha, mas consegui só me machucar, cortar-me e esfolar-me. Finalmente, desisti e recostei a cabeça na parede atrás de mim.

O que Fellseth queria? As respostas poderiam ser muitas. Ele poderia matar-me, ou a Galan, ou a nós dois e todos os demais elfos do universo. Talvez quisesse unir-me a Jed para produzirmos uma raça de escravos humanos. Fechei os olhos e resisti à vontade de chorar.

Mas ele não parecia querer me ferir. E o que tinha em mente quando dissera que eu não ficaria presa por muito mais tempo? Contemplando as possibilidades, senti uma lágrima escorrer por meu rosto.

A porta abriu-se, e um saboroso aroma precedeu a entrada de meus captores. Jed trazia uma travessa com uma tigela e um sanduíche de queijo quente.

— Jed disse que este é um dos pratos prediletos de sua infância. — Fellseth armou sobre meu colo uma mesinha retrátil.

Jed dispôs os pratos ali. A tigela continha sopa de tomate.

— Por que está me tratando tão bem? — perguntei em voz baixa.

— Está aplicando lavagem cerebral na sua refém? Se for, não vai adiantar, porque estudei Psicologia na faculdade.

— Trato-a bem porque tenho por você muito respeito e afeto. Desde que a conheci.

Ao aceno de Fellseth, Jed arrumou os pratos e cortou o sanduíche em pedaços pequenos.

— As algemas são necessárias — Fellseth explicou.

— Depois você vai entender por quê. Ou melhor, não vai entender porque não vai lembrar.

— Porque vou morrer?

— Não. — Ele levantou e começou a andar de um lado para o outro.

— Porque você vai ser minha mulher. Nós vamos nos casar.

Soltei uma gargalhada.

— Casar? — eu zombei.

— Então é esse seu plano mirabolante? Casar comigo? O objetivo seria descartar Galan de vez para apropriar-se de sua terra? Porque, se for, posso dizer agora...

—- Estou me lixando para a terra de Galan! — Fellseth interrompeu-me.

— E para Galan também, só que ele não pára de interferir. Eu a quero desde o dia em que a vi gerando energia para ele.

— Ele o teria derrotado mesmo sem mim.

— Não, Erin. — Ele inclinou-se à minha frente.

— Não teria, não. Você faz idéia do que você é?

— Faço, sim — gritei no rosto dele.

— Sou a mulher que não vai ajudá-lo.

— Você vai me ajudar, sim. Você será minha fonte pessoal de energia, sem direito a escolha. Já há algum tempo venho querendo aliar-me a outros elfos decadentes, e agora tenho o que oferecer a eles. — Ele sorriu.

— Quanto ao casamento, uma esposa confere muito mais credibilidade a todo homem de negócios.

Estiquei-me o máximo permitido pelas correntes. A mesinha caiu; a comida e os pratos lambuzaram o carpete.

— Percebo que você não quer comer agora. Vamos embora, Jed.

Esganicei de raiva e frustração. Ele parou e olhou para trás.

— Procure se acalmar. Dói vê-la machucar-se tanto. Assim que saíram, olhei em volta à procura da mínima chance de escapar dali. Entendi o que Fellseth tinha em mente quando dissera que eu não teria escolha. A única possibilidade de glamourizar-me seria matar Galan para quebrar meu vínculo com ele. Eu passaria a ser um zumbi, assim como Jed, para o resto da vida.

— Pense, Erin. Pense. Olhei no chão o sanduíche de queijo quente. Seria possível, se eu conseguisse alcançá-lo, engordurar meus pulsos para tirar as algemas? Um breve movimento bastou para mostrar-me que meus pulsos estavam inchados demais, e o queijo de nada adiantaria. Contorci-me na cadeira para examinar as amarras. Eu já vira que a cadeira estava afixada por trás à parede. Uma corrente com cadeado passava por baixo de um dos braços e da corrente das algemas nas mãos. Outra corrente unia meus tornozelos algemados à base giratória.

Apoiei-me com as duas mãos na cadeira e consegui mover minhas nádegas para fora do assento, passando por cima do braço da cadeira. Arqueada e torta, mexi-me para ficar de frente para a parede.

O espaldar pesado da cadeira estava encostado à parede. E não havia parafusos à vista para desatarraxar. Se estivessem embuchados talvez pudessem ser entortados, aplicando-se pressão lateral.

Balancei-me com cuidado, agarrei o braço da cadeira e puxei com força. A cadeira nem se mexeu. As correntes permitiam-me um afastamento de uns quinze centímetros, mas eu precisaria abaixar-me ainda mais. Arrastei-me o mais que pude lateralmente e movi o quadril para golpear o braço da cadeira.

— Droga! — Escorreguei e caí de lado, cortando o pulso. O sangue escorreu para o antebraço. No hospital, eu não teria utilidade para Galan. Ou teria? Se eu me ferisse gravemente, Fellseth perderia concentração a ponto de Jed desencantar-se? E, como o transporte para o hospital envolveria muita gente, Fellseth talvez não conseguisse glamourizar todos ao mesmo tempo.

— Mesmo trêmula, consegui reaprumar-me. A cadeira ou eu, um dos dois quebraria. Golpeei de novo a cadeira lateralmente, e não caí. Mais uma vez, e consegui uma folga mínima entre a parede e o espaldar da cadeira. Ofegante com o esforço, fiz nova pontaria, mas ouvi passos na escada do porão.

Quando Fellseth e Jed entraram, eu estava sentada, e escondia o corte em meu colo.

— Que barulheira foi essa? — Fellseth olhou em volta.

— Acordei os vizinhos? — ironizei. — É melhor chamar a polícia.

Fellseth empurrou Jed levemente, e meu amigo se aproximou para examinar as amarras. Parou ao ver meu pulso.

— Não é grave, Jed — sussurrei para aquele rosto inabalável.

— Ainda estou amarrada.

— Os fechos estão firmes? — Fellseth perguntou.

— Estão — Jed respondeu, e eu suspirei aliviada.

— Mas ela está sangrando.

— Não é nada. — Usei um tom entediado.

— Deixe-me ver. — Quando Fellseth aproximou-se, Jed virou meu pulso. O sangue escorria, e Fellseth meneou a cabeça.

— Esse Galan precisa mesmo morrer.

— O que há com você? — gritei.

— Não percebe que, mais cedo ou mais tarde, alguém vai matar você, por causa da pessoa horrível que é?

— Ninguém conseguiu isso ainda. — Ele foi até o bar e, sob o balcão, pegou um rolo de fita adesiva, que entregou a Jed.

— Vamos ter que dar um jeito de ela ficar quieta.

— Farei o que você quiser se deixar Galan em paz — balbuciei, conforme Jed se aproximava.

— Posso meditar para você e cuidar de você em horário integral, se não matar mais ninguém.

Ele riu.

— E então, de repente, você me empurra na frente de um ônibus. Do meu jeito será muito melhor. Você vai gostar, prometo.

Jed soltou a ponta do rolo e tentou amarrar a fita em volta dos meus braços. Esquivei-me dentro do espaço que me permitiam as correntes. Um pedaço da fita grudou no outro, e ele titubeou.

— Contar com criados que não pensam tem essa desvantagem — Fellseth comentou, tomando a fita de Jed.

— Eles não têm iniciativa quando as coisas complicam. Você a segura, e eu passo a fita.

Jed juntou meus pulsos e firmou-os contra o braço da cadeira.

— Ai, ai! As algemas estão me cortando. — Inclinei a cabeça para trás.

— Segure-a nos antebraços — Fellseth instruiu.

— Ponha os pulsos e as algemas por fora do braço da cadeira.

A distância entre nós era o braço de Fellseth, que foi encurtando à medida que ele se entregava à tarefa.

Permaneci imóvel, quase sem respirar, até que ele inclinou-se para cortar a fita. Então, dei-lhe uma cabeçada. Ele afastou-se rapidamente, mas minha testa o acertara na boca. Ele levou o dedo aos lábios e viu sangue.

— Eu não disse que ela era indócil? — ele comentou com Jed, que fitou-o, impassível. Depois, dirigiu-se a mim:

— Você gostava de mim. Por que não gosta mais?

— Eu não gostava, eu tinha pena de você.

Ele não respondeu. Apenas instruiu Jed a finalizar a amarra dos meus braços e depois a ajudá-lo a prender minhas pernas ao pé da cadeira.

Resolvi conversar com Jed enquanto ele trabalhava, a fim de tentar estabelecer contato ou, no mínimo, dificultar o domínio de Fellseth sobre ele. Mas seria eficaz cansar Fellseth? Minha intuição dizia que ele mandaria alguém matar Galan, que não o faria pessoalmente.

— Você lembra, Jed, quando fomos àquele karaokê em Las Vegas, e cantamos com aquele cover do Elvis? Foi tão divertido! — A recordação me fez rir.

Vi um lampejo fugaz nos olhos dele.

— Pare, Erin, ou vou amordaçá-la de novo — Fellseth ameaçou-me. Sério, Jed continuava a segurar minhas pernas enquanto Fellseth as amarrava.

Fitei Jed, olhos nos olhos, e sorri com minhas covinhas.

— Sabe eu sempre tive uma queda por você. Estou pensando em ir ao seu quarto para seduzi-lo uma noite dessas.

— Desta vez, a mão de Jed afrouxou o aperto momentaneamente.

— Eu avisei. — Fellseth levantou-se e cortou um pedaço de fita. Mexi minha cabeça de um lado para outro, esquivando-me.

— Segure a cabeça dela — ele ordenou.

Os dedos de Jed escorregavam em meus cabelos, mas Fellseth conseguiu passar a fita na metade inferior do meu rosto. Comecei a bater com a parte de trás da cabeça na parede.

O celular de Fellseth tocou, pontuando o baque surdo de meus golpes.

— Só faltava essa! — ele berrou, soltando um pedaço de fita do dedo e jogando-o no chão. No bolso do paletó, pegou o telefone e viu o número do interlocutor antes de atender.

— Alô, é Seth.

Parei de me debater, e, mesmo abafada pela fita, gritei.

Fellseth cobriu o outro ouvido com uma das mãos.

— Eu já disse o que fazer. Depois da audiência, siga-o e faça o serviço. — Ele virou levemente o rosto.

— Como, ele não está na audiência?

Parei de gritar para ouvir.

— Espere, vou ver. — Ele pegou um controle-remoto dentro do bar, ligou a televisão e passou de um canal a outro até encontrar a emissora desejada.

Virei a cabeça para ver. A assembléia municipal tinha um canal local que transmitia as audiências públicas. No momento, exibia uma mesa de reuniões em forma de ferradura, com os vereadores em volta, cada um com um microfone defronte. Um deles discorria monotonamente sobre a regulamentação das zonas de construção.

— Vamos lá... — Fellseth estava irritado.

A câmera cortou para a platéia, dando uma panorâmica lenta no auditório. Um homem indefinível, de paletó e óculos escuros, estava encostado à parede dos fundos com um telefone celular na mão. Minha pele se arrepiou. Deve ser o homem contratado para matar Galan.

A panorâmica prosseguiu até mostrar toda a platéia. Eu sorri, e a fita apertou minha boca: Galan não estava na reunião e, portanto, não seria alvo do matador. Lenny também não estava, e, mais significativamente, Kutara também não.

Fellseth resmungou algo em uma língua que não identifiquei.

— Fique onde está — ordenou ao telefone.

— Pode ser que ele apareça. Entro em contato depois. — Ele fechou o aparelho, enfiou-o no bolso, segurou o braço de Jed e levou-o para fora do recinto.

Voltaram logo depois, cada um com uma faca de cozinha. Senti muito medo, mas usaram a faca para cortar a fita que me prendia à cadeira. Depois, Fellseth entregou a Jed um chaveiro, que abriu o cadeado da corrente que prendia meus pulsos à cadeira. Fellseth foi guardar as facas embaixo do balcão do bar.

Vi minha oportunidade quando Jed abaixou para abrir o cadeado nos meus pés. Golpeei-o na têmpora com meus pulsos ainda algemados, e ele caiu.

Fellseth virou-se rapidamente. Abaixei e puxei a corrente próxima aos meus pés, pensando em usá-la como arma, mas ela enroscou nos pés da cadeira. Fellseth aproximou-se e levantou-me, puxando para cima a corrente das algemas em meus pulsos. Ofeguei de dor.

— Boa tentativa. Mudei de tática. Amoleci meu corpo e caí no chão. Calado, ele arrastou-me até a escada. Com os dedos eu remexia a corrente das algemas para tentar impedir que o metal machucasse ainda mais meus pulsos.

Ele era fortíssimo. Arrastada escada acima, enfiei meus pés na balaustrada para agarrar-me ao corrimão, mas ele puxou com força, e um de meus sapatos soltou-se.

Já estávamos na cozinha quando ouvi lá fora o ruído de um automóvel no cascalho. Berrei. A fita abafava meu grito, mas compensei o abafamento balançando os pés e chutando os armários da cozinha.

Chegamos à sala, e ele dirigiu-se a uma porta corrediça de vidro na parede dos fundos. Olhei para fora. Vi um pátio e, depois, um brilho que me pareceu de água nas árvores.

Fellseth largou-me ao chão quando ouviu um ruído na frente da casa. A porta abriu-se bruscamente, e Galan apareceu, acompanhado de perto por Kutara, Lenny e outros três elfos.

Deitei-me no chão quando Fellseth brandiu a mão e lançou contra os elfos um jato de energia, que descreveu um arco no ar, qual rubro relâmpago. Galan e Kutara ergueram os braços. O jato resvalou, atingiu a base metálica de um abajur de pé e dissipou-se. A reação de ambos foi um jato azul contra Fellseth.

Arrastei-me de costas no chão para me afastar dele.

Contorci-me para passar pela porta corrediça, que, naquele instante, atingida por um aumento de energia, levantou-me os pelos dos braços ao crepitar das centelhas azuis contra a esquadria metálica.

Eu já estava do lado de fora quando Galan disparou um jato flamejante que quase derrubou Fellseth de costas. O adversário retribuiu o fogo, abriu a porta corrediça e saltou para fora.

Os elfos foram atrás dele feito cães de caça, e perdi-os de vista momentaneamente. Ainda deitada de costas, tentei escutar algo, mas ouvi apenas minha respiração ofegante. Pelo que parecia, os elfos caçavam em silêncio.

Ocorreu-me que Fellseth poderia voltar pela frente da casa para vir pegar-me. Portanto, pressionei-me de costas contra a parede, levantei-me e, aos pulos, cheguei ao corredor. Dali, entrei num dos quartos, deitando-me no chão entre a cama e o armário.

Consegui retirar, com as mãos, a fita que ainda cobria a parte inferior do meu rosto; uma dolorosa tira de cada vez. Ainda faltavam duas quando ouvi a voz de Galan.

— Erin! Onde você está?

Deixando a fita para depois, bati com as mãos na porta do armário ao lado. Galan encontrou-me em segundos, levantou-me e sentou-me na beira da cama.

— Ah, meu bem. — Ele examinou meus pulsos ensanguentados. Pôs o dedo na primeira algema e concentrou-se.

Logo depois, o fecho abriu-se.

Kutara já estava ao lado dele, e retirou de um só puxão a fita de minha boca enquanto Galan cuidava da segunda algema.

— Ahhh... — Eu gemi, levando a mão à pele que ardia.

— Acredite, é melhor puxar de uma vez só. — Kutara grudou a fita no chão.

— Como sabe? — gritei. Dando de ombros, ela retirou-se.

Galan retirou as algemas dos meus pulsos e aninhou-me cuidadosamente em seus braços.

— Eu estava com tanto medo... — sussurrou em meu ouvido.

Coloquei o rosto dolorido em seu pescoço, e permiti-me chorar um pouco, com ele a embalar-me.

— Como me encontrou?

— Logo depois que nos despedimos hoje de manhã, Kutara descobriu onde Fellseth vivia. — Galan ajoelhou-se e abriu as algemas dos meus tornozelos.

— Eu fiquei à espreita na estrada e telefonei para ela quando ele passou com Jed no carro. Ela arregimentou os reforços e viemos.

— Por que demoraram tanto? — Abaixei as meias e olhei as marcas vermelhas na pele.

— Logística. Transporte. — Galan sentou na cama e pôs o braço em meus ombros.

— Que bom que está inteira.

— Você o pegou? — Apoiei minha testa na dele.

— Não. — Ele suspirou.

— Lenny está tentando rastreá-lo, e os outros estão com ele.

— Então não acabou ainda — lamentei.

— Ainda não, mas o importante é que você está bem. — Ele acariciou meu rosto.

— Não era eu quem corria perigo. — Eu estava determinada a contar-lhe a verdade.

— Não de morrer, ao menos. Ele disse que ia me escravizar, e contratou alguém para matá-lo.

— Espere Kutara, para ela ouvir também. Ela precisa saber disso.

Voltamos para a sala. No sofá de couro, Kutara cuidava de Jed, que estava atordoado.

— Puxa vida, o que houve? Você me deu um chute na cabeça? — Jed perguntou ao ver-me.

Hesitei. Por mais que eu sofresse só de pensar em vê-lo hipnotizado de novo, como iríamos explicar o ocorrido? Olhei para os dois elfos em busca de apoio.

Para Kutara, ao que parecia, Jed já fora glamourizado o suficiente.

— Barbitúricos — ela improvisou.

— Deram-lhe uma dose muito forte.

Uma mentira brilhante, pensei, admirada.

— E a luta? — Jed pareceu duvidar.

— Fui à cozinha, e vi aquele tiroteio de eletricidade. — Ele balançou os braços para enfatizar as palavras.

— Efeitos colaterais dos psicotrópicos — Kutara interveio com sabedoria.

— Mas quem é você?

— Agente federal Kutara.

— Onde está o distintivo? — Ele olhou-a desconfiado.

— Agente federal Kutara à paisana. Minha equipe esteve durante seis meses no encalço de um grupo que mexia com psicotrópicos. Você estará recuperado em um ou dois dias.

Jed friccionou a testa, amedrontado.

— Então, não foi eletricidade? Que armas vocês usavam?

— Revólveres normais. — Kutara suspirou.

Jed não viu bolsos na saia nem na blusa de Kutara, e a bolsa que ela usava era pequena demais.

— Onde está sua arma?

— Como agente à paisana — Kutara titubeou —, não uso minha arma nos lugares óbvios. Com licença, preciso ir...

Quando ela se virou, Jed viu a manga de sua camisa.

— Um momento. Se houve tiroteio, deve haver estragos. — Ele olhou intrigado ao redor.

— Furos nas paredes, cartuchos no chão, essas coisas.

— Você não está vendo os furos? — Kutara encarou-o com pena.

— Sua recuperação vai demorar mais do que esperávamos.

— Não! — Jed quase chorou.

— Bem, com licença. — Ela foi até o lado de fora conversar com os elfos, visíveis pela porta de vidro.

Eu já lavara meus pulsos e os secara com toalhas de papel. Examinei os ferimentos de Jed enquanto Galan procurava nos armários os itens de primeiros-socorros necessários para cuidar de meus cortes.

— Não encontrei nem um band-aid. Seus curativos vão ficar para depois. — Ele avisou-me na cozinha.

— Você acha seguro levar certas pessoas para casa? — Apontei Jed com a cabeça, discretamente.

— Em caso positivo, como vamos levá-las?

— Vou perguntar. — Ele foi encontrar Kutara. Pela porta aberta, ouvi-a dar instruções e novas baterias para os celulares dos elfos. Depois, em voz baixa e indistinta, conversou longamente com Galan.

Os dois voltaram para a sala, enquanto os demais sumiram no mato atrás da casa.

— Onde estão os outros? — indaguei.

— Um deles vai vigiar a casa; os demais têm outras tarefas. Você vem comigo e Galan. — Ela dirigiu-se à porta.

— Vamos, Jed. — Afaguei-o no ombro.

— Parece que o governo vai nos dar uma carona.

— Posso ir na frente com a agente Kutara? — Ele cochichou-me no ouvido assim que levantou.

— Boa idéia — concordei.

Kutara conduziu-nos a uma picape bege que exibia no pára-choque dianteiro a frase: "Os arquitetos têm ereções mais duradouras".

— Este é o seu carro? — Jed perguntou, intrigado.

— Bom, não? — Kutara abriu a porta do passageiro.

— E você nem imagina o que está escrito no pára-choque!

— Posso ver? — Jed animou-se.

— Não.

Assim que instalei-me no banco de trás, sussurrei para Galan:

— Este carro é daquele arquiteto que está expondo na biblioteca?

— Guy?

— Sei lá. Aquele arquiteto fetichista.

— Ele mesmo.

Kutara saiu em cautelosa marcha à ré. Eu pousei minha cabeça no ombro de Galan.

— Ela sabe dirigir mesmo?

— Está aprendendo com Guy. E rápido.

— Dá para ver. Primeiro a internet, depois os celulares, e agora os automóveis. Tomara que não se candidate a prefeita!

— Ela tem outros planos — Galan murmurou.

— Outro dia eu a vi consultando o portal do FBI na internet, de recrutamento de pessoal.

Aconcheguei-me a ele, ignorando meus ferimentos. Na frente, Jed não parava de falar, mas Kutara respondia apenas com monossílabos.

— Vocês vieram todos nesta coisa? — perguntei a Galan.

— Eu me ofereci para vir na parte de trás. Você não faz idéia de como é desconfortável.

O caminho de terra desembocou numa estrada asfaltada de duas pistas.

— Nem acredito que estávamos tão perto do cânion de Boulder. Já passei por esta estrada umas mil vezes.

— Para onde estamos indo? — Jed perguntou. Kutara não respondeu. Em vez disso, fez um gesto vago na direção dele. Jed baixou a cabeça, o queixo tocando o peito. Estendi a mão ao lado do banco do passageiro e ajeitei-o, para que ele não ficasse com torcicolo.

— Ele vai ter que dormir bastante, pois passou muito tempo sob controle de Fellseth. O que aconteceu por lá, você pode nos contar?

Narrei o ocorrido.

— Vamos para a casa de Guy — Kutara avisou quando terminei.

— Lá estaremos protegidos até termos notícias de Lenny.

— E a audiência, não temos que cuidar desse assunto?

— A sessão de hoje foi a primeira de uma série. Ainda podemos salvar a terra de Galan.

— Ótimo! — Aliviada, recostei-me no banco.

—Você tem idéia de onde Fellseth pode estar?

— Ainda não, mas vamos encontrá-lo.

 

A casa de Guy ficava no bairro de Martin Acres, ao sul de Boulder. Parecia uma construção característica da década de setenta, dividida em meios-pisos. Muito modificada, lembrava os projetos de Frank Lloyd Wright.

Assim que entrou com o carro, Kutara pousou a mão no ombro de Jed.

— Onde estamos? — Jed, enfim, ergueu a cabeça.

— Vai ser aqui o interrogatório?

— Você já foi interrogado, não lembra?

— Pensei que eu tivesse sonhado. Você não parecia vestida para interrogar.

— Você ainda deve estar sob efeito dos barbitúricos. Depois, lhe darei um remédio, e vai melhorar. — Ela abriu a porta do carro.

— Vamos, aqui estaremos a salvo.

— Espero que sim. — Acompanhei Kutara, e entramos na casa.

A sala de estar, uma maravilha, ficava no piso de cima. A madeira era clara; o estofamento, azul-escuro; havia detalhes em aço e as paredes exibiam fotografias de edificações em preto e branco.

Guy estava na copa-cozinha, pondo a mesa. Quando nos viu, ele veio ao encontro de Kutara e beijou-a no rosto.

— Se eu soubesse que vinha mais gente, teria feito mais comida.

— Eles vão pedir pizza — ela disse.

— Desculpe não ter avisado. São amigos meus. A casa deles foi assaltada e depredada hoje à tarde. Você os deixaria dormir aqui hoje?

— Que horror! — Guy exclamou.

— Podem ficar, sim!

— É muita gentileza sua... — comecei a agradecer.

— Eles ainda estão meio traumatizados. A boa educação pode esperar — Kutara cortou-me e dirigiu-se com Jed para a escada.

— Vou ajeitá-los no quarto de hóspedes.

Ela nos conduziu a um belo quarto com uma cama de casal e um sofá reversível, que ela logo converteu em cama para Jed.

— Seu anfitrião não sabe mesmo o que está acontecendo, ou vocês estavam conversando em código? — Jed questionou, intrigado.

— Você é perspicaz. Era o nosso código — Kutara respondeu.

— Não converse muito com ele, para não dizer o que não deve. Pode vir aqui um instante? — Ela tocou o sofá-cama.

— Quero fazer um teste rápido para ver como vai sua recuperação.

Quando ele se sentou, Kutara fitou-o, fazendo-o fechar os olhos imediatamente. Ela pegou-o pelos ombros para deitá-lo, e depois, concentrada, segurou-lhe a cabeça com as duas mãos.

— Ele está com algum problema? — Eu e Galan nos aproximamos.

—A cabeça está com algum hematoma interno — Kutara cerrou os olhos e friccionou suavemente as têmporas de Jed.

— Ele pode ter levado um chute.

— Eu não o chutei na cabeça — eu disse, na defensiva.

— Tenho certeza disso. — Galan segurou minha mão.

— Mas um soco eu dei — admiti.

— Ah, isso é totalmente diferente — afirmou Kutara. Fiz uma careta atrás dela.

— Vou procurar o banheiro. Já volto.

Quando voltei, Kutara estava sentada na cama de casal conversando com Galan.

— Jed está bem? — perguntei.

— Vai ficar. Vamos deixá-lo dormir.

— Kutara é curandeira. — Galan estava orgulhoso, mais do que eu gostaria.

— Foi o que imaginei. — Sentei-me do outro lado, o mais perto possível dos dois.

— Isto é comum entre os elfos?

— Não muito. Apenas recentemente descobri essa minha capacidade, pesquisando na internet. Hematomas e queimaduras são fáceis, mas fraturas acho que ainda não consigo corrigir. Agora, Erin, vamos ver seus ferimentos.

— Eis os piores. — Mostrei os pulsos.

— O resto pode esperar.

Kutara percorreu meu corpo com os dedos. No início, eu não vi mudança, mas, instantes depois, a pele dos pulsos já estava cor-de-rosa, como se alguns dias já tivessem passado.

— Surpreendente! — exclamei, admirada.

— Consome muita energia? Quer que eu medite para você depois?

— Consome, sim, mas tenho recebido muita energia ultimamente.

Eu pigarreei.

— Por falar em Guy, você o glamourizou para ele nos hospedar hoje? Ele sabe o que você é?

— A resposta para as duas perguntas é "não". Ele mesmo os teria convidado a pernoitar. E uma pessoa muito generosa.

Não consegui evitar as próximas perguntas:

— Não é uma ironia que você esteja namorando um arquiteto? Ele tem algum projeto recente, digamos para alguns condomínios na serra?

Kutara sorriu.

— Ele é mais intelectual do que prático, mas pretendo incentivá-lo a candidatar-se a vereador. Ele é contra a expansão imobiliária descontrolada. Prefere reformar o que já existe.

— Inteligente — Galan opinou.

Agora que a dor nos meus pulsos tinha passado, comecei a sentir os outros lugares afetados, mas calei-me para que Kutara não me considerasse fraca.

— Quando vamos saber do paradeiro de Fellseth? — perguntei.

— Quando eu souber, aviso. Se perguntarmos a Lenny agora, ele vai se desconcentrar. — Ela indicou o catálogo e o telefone em cima da mesa de canto.

— Podem pedir a pizza agora. O número daqui está no aparelho; eles vão precisar para confirmar o endereço.

— Vamos vê-la ainda hoje? — Galan indagou.

— Quando a pizza chegar, levo-a para vocês, e conversamos. — Ela se retirou e fechou a porta.

— Enfim, sós. — Galan pôs o braço em meus ombros.

— Mais ou menos. — Ri, vendo Jed inconsciente. Galan inclinou-se à frente e puxou-me para perto. Mas, ao beijar-me, sorriu. Recuei.

— Qual é a graça?

— Seu rosto está grudento, da fita adesiva, e ainda esta avermelhado. — Ele segurou meu rosto com as mãos para examiná-lo.

— E há um hematoma cor-de-rosa no seu supercílio.

— É da cabeçada que dei em Fellseth. Cortei os lábios dele — enfatizei, orgulhosa.

— E estou com um hematoma atrás da perna, porque dei-lhe um pontapé quando descíamos a escada. Ele me largou, e eu caí.

Afastei-me, inclinei-me sobre Jed e arregacei a manga de sua camisa.

— Esqueci de contar isto para Kutara.

Galan olhou para a marca feia no braço do rapaz.

— Fellseth queimou Jed?

— Não. Eu... o mordi. Galan recuou.

— Não vou ousar dormir com você.

— Você que se atreva a não dormir comigo! — Aproximei-me.

— Você não me machucaria de propósito, claro. — Ele ergueu as mãos defensivamente.

— Mas já pode ter se acostumado.

Eu ri.

— Para ser franca, o que quero agora é pedir a pizza e dormir um pouco. Portanto, você não corre perigo.

— Que pena — ele disse, desapontado.

— Eu estava louco para correr o risco.

Não sei quanto tempo cochilei, mas sei que acordei quando Galan levantou da cama. Depois, dormi de novo e despertei definitivamente quando senti o cheiro da pizza no quarto.

Kutara pôs a embalagem em cima de uma mesinha e abriu a tampa.

— Tem alguma notícia? — Galan perguntou.

— Vou telefonar para Lenny agora. Já passou tempo suficiente. — Ela sentou na cama e abriu o celular.

Junto com a pizza, Kutara trouxera pratos de papel, guardanapos e algumas caixas de suco. Enquanto eu me servia, Jed sussurrou qualquer coisa e lambeu os lábios, dormindo.

Kutara, que falava ao telefone, subitamente ergueu a voz. Parei de mastigar para fitá-la, com um fiozinho de queijo no queixo.

— Então procure mais. Suba o rio, depois desça de novo. Deve haver algum indício. — Ela desligou, zangada.

— Ele ainda está à solta? — Galan perguntou, sentado na cama.

— Pode estar morto também. — Ela expirou, frustrada, e, vendo meu olhar inquisitivo, acrescentou:

— O rastro é visível até o rio, e ali some. Examinamos a terra, ele não se incorporou a ela. Então, onde estará?

Ela levantou-se e começou a andar de um lado para outro. Eu lambi o suco dos meus lábios.

— Ele não poderia ter se incorporado ao rio? — perguntei. Galan respondeu que não com a cabeça.

— Bem, eu pouco sei a respeito dos elfos.

— Estamos todos no campo das suposições. Até hoje, nenhum elfo incorporou-se a um curso de água, mas não sabemos se é impossível. Eu não tentaria, a não ser que quisesse morrer.

— Então, se Fellseth tentou, pode estar morto? — indaguei.

— Provavelmente. — Kutara parou e mexeu no telefone.

— Lenny e eu procuramos indícios da energia de Fellseth no rio, mas não encontramos.

— Porém, ao longo do leito, a água não pode tê-los apagado? — perguntei, ansiosa para que ele estivesse morto.

— É outra possibilidade. — Kutara suspirou.

— Mas preciso de provas.

Fechei a caixa da pizza, pois subitamente tinha perdido o apetite.

— Portanto, não sabemos nada. Eu e Jed podemos voltar para casa sem saber se estaremos a salvo, porque Fellseth tanto pode ter sido transformado em comida de peixe quanto pode estar à nossa espera.

— Uma explicação sucinta e precisa. — A coluna de Kutara, sempre ereta, desta vez estava um pouco arqueada.

— Talvez de manhã já saibamos alguma coisa. Caso contrário... tudo pode

— Alguém precisa ir lá em casa abrir a porta para Kitty entrar e comer — lembrei.

— Vamos providenciar. — Kutara suspirou outra vez.

— Galan, sei que você quer desfrutar da presença de Erin, mas, assim que ela dormir, gostaria de ouvir seu depoimento. Estarei na sala. Ah, quanto a Jed... — Ela apontou-o, ainda dormindo.

— Quem se oferece para dar uns pedaços de pizza para esta criatura?

Fellseth estava me estrangulando. Eu tentava arrancar suas mãos de meu pescoço, mas meus dedos pareciam moles como borracha, e não funcionavam. Vi Galan subindo a escada para vir me salvar, mas os degraus ou esfarelavam, ou alongavam-se ou soltavam-se. Ele não teria como se aproximar.

Acordei ofegante. Galan não estava na cama. Com a pouca luz que entrava pela janela, fui até a porta e subi sorrateiramente até o andar de cima, onde Galan e Kutara conversavam em voz baixa.

— O importante é deixar Erin a salvo — Galan disse.

— Concordo, mas como? — Kutara estava preocupada.

— Até agora, Fellseth era um reles elfo decadente, de uma grandeza relativamente conhecida, mas, se conseguiu fundir-se com a água...

— Isso não é possível — Galan insistiu.

— Assim como não é possível que exista seu vínculo com Erin. E, ainda assim, ele existe. Quem sabe o que é ou não possível?

Pé ante pé, voltei para a cama. A incerteza na voz de Kutara me amedrontava. Enrosquei-me embaixo das cobertas, incapaz de me aquecer.

Quando acordei de manhã, Galan estava ao meu lado na cama. Rolei ao seu encontro, e ele me puxou para mais perto, pousando minha cabeça em seu peito.

— Dormiu bem?

— Tive um pesadelo.

— Por que não me acordou? — Ele aconchegou-me ainda mais.

— Você não estava na cama. — Olhei-o de viés.

— Você e Kutara traçaram algum plano?

— O melhor que pudemos, nas atuais circunstâncias

— A ternura de Galan transformou-se em preocupação.

— E qual é o plano? — perguntei, depois de esperar em vão.

— Vamos lá para cima. — Ele deu-me um beijo na testa.

— Guy saiu, e a casa está à nossa disposição. Vamos conversar enquanto você come.

Levantamos da cama e nos vestimos. Passamos silenciosamente por Jed, que ainda dormia tranquilamente. Kutara estava sentada à mesa da copa, tamborilando no tampo de vidro.

— Que bom que vocês levantaram! Há frutas no balcão.

— Não vai ser suficiente.

Kutara apanhou o cereal, e eu me servi de uma cumbuca bem cheia.

— Teve notícias? — Sentei-me à mesa.

— Nada de útil.

— E qual é o plano?

Galan esfregou o queixo, visivelmente nervoso.

— Achamos que não é seguro que vá para casa até termos mais notícias. Na verdade, achamos que a melhor solução ainda é que você saia da cidade, assim como Jed.

O cereal arranhou minha garganta quando o engoli.

— Por quanto tempo? E a loja, como vou fazer? Tenho data marcada para fechar negócio com Lily.

— A Rosa Verde está fechada. Lily e Jim sumiram — Kutara informou, seca.

— Como assim, sumiram?

Galan pousou uma das mãos em meu ombro, a fim de me tranquilizar.

— Há um aviso na porta dizendo que Lily está resolvendo um problema familiar de urgência e que voltará logo.

— E se Fellseth os pegou? Precisamos descobrir.

— Isso não aconteceu — afirmou Kutara. — Telefonei para ela. Eles estão bem e não têm notícias de Fellseth.

— Ela apanhou a bolsa na mesa. — Quanto ao custo da viagem, você e Jed serão reembolsados de todas as despesas.

— Ela entregou-me um papel dobrado.

— O que é isto?

— O extrato bancário de Fellseth.

Fiquei atônita com o saldo. Eu não sabia como Fellseth ganhava dinheiro, mas ele sem dúvida era competente.

— Cancun é um lugar muito agradável nesta época do ano. — Kutara guardou de novo o extrato.

— Por que Cancun? — Dirigi-me a Galan:

— Dakota do Sul é perto demais?

— Você não prefere Cancun?

Procurei ver as coisas pelo ângulo positivo, já que Galan queria deixar-me à vontade. Imagine, ir para o México com tudo pago; Galan de calção, de mãos dadas comigo, passeando pela praia.

— Os elfos ficam bronzeados? — perguntei.

— Você vai com Jed. Eu fico.

— Você ficou louco? É você quem Fellseth quer matar!

— Para poder ficar com você — Kutara explicou.

— Lenny está despendendo todas as forças para tentar encontrar Fellseth. Preciso de Galan por aqui para ajudar no resto.

— Essa situação vai demorar quanto tempo, afinal?

— Ainda não sei. As passagens serão só de ida, claro. Levantei-me.

— Galan, podemos conversar a sós?

Fomos para outro cômodo, sem dúvida o estúdio de Guy. Havia plantas sobre a escrivaninha e livros de arquitetura do chão ao teto em toda a estante. Agarrei-me à beira da mesa para estabilizar minhas mãos trêmulas. Galan entrou e fechou a porta.

— Não gostei dessa idéia. Nós nem sabemos se Fellseth está morto ou se ainda quer nos pegar. Não sabemos de nada.

— Sei que Kutara vai encontrar a melhor solução. — Ele segurou minhas mãos.

— Será que vai mesmo? O que me parece é que Fellseth entrou no corpo dela, e está apenas esperando a hora certa de nos pegar.

— Erin... — Galan meneou a cabeça.

— Falo sério! — Elevei a voz.

— Foi Kutara mesma quem disse que nada é possível ou impossível. Sem regras, sem lógica. Como pode viver assim?

— Aguento porque tenho você. — Ele me levantara e agora me abraçava. Meus olhos marejaram.

— Eu te amo. — Ele beijou-me suavemente.

— Eu também te amo. — Aquelas palavras não fizeram com que eu me sentisse magicamente melhor. Ou talvez a própria magia tivesse me traído. A magia nas mãos de Fellseth, que podia ou não estar vivo. '

Quando Galan e eu voltamos para a cozinha, Lenny estava sentado à mesa ao lado de Kutara.

— E então? — Kutara insistiu. Larguei-me na cadeira.

— Vou para o sol do México!

— Ótimo! Lenny trouxe sua bolsa e seu passaporte. Pelo visto, todos já esperavam que fosse esta a minha decisão.

— Sei que minha bolsa estava na casa de Fellseth, mas como conseguiram meu passaporte?

— Estava na sua pasta. — Lenny sorriu.

— Na letra "P", dentro da escrivaninha. Aliás, abri a porta para o gato.

— Obrigada, Lenny. Na hora da comida e da água, use as tigelas grandes, está bem? Kutara, não tenho roupa, nem Jed.

— As lojas de Cancun aceitam dólares e todos os cartões de crédito. Pus algum dinheiro na sua bolsa. O que for cobrado de você, pagaremos aqui.

— E Jed?

— Há bastante para vocês dois, dentro do razoável. Sentei-me, entorpecida com os preparativos. Lenny fez as reservas do hotel e comprou as passagens aéreas pela internet, no computador de Guy. Kutara chamou o táxi e foi acordar Jed. De volta à cozinha, pôs uma maçã na mão dele.

— Coma esta maçã, e ouça com atenção. Há umas pontas soltas ainda por amarrar. Enquanto isso, você e Erin vão para Cancun por nossa conta. Não conte a ninguém o motivo da viagem. Finjam que são irmãos, entendeu?

Jed aquiesceu com a boca cheia de maçã e os olhos brilhando de entusiasmo.

— Não posso garantir seu emprego, mas posso dizer ao seu patrão que você sofreu um acidente, o que pode ajudar quando você voltar.

— Arrumo outro, se precisar. — Jed descartou o problema com um gesto da mão.

— Podemos ir — disse Lenny, que vigiava, da janela, o lado de fora.

Uma limusine nos esperava. Os elfos nos cercaram e nos conduziram ao carro, mas só Galan entrou conosco. Kutara e Lenny, atentos ao redor, voltaram para dentro.

Jed refestelou-se no estofamento de couro, inspirando o luxuoso aroma.

Eu revirei as gavetas até encontrar um fone de ouvido. Conectei-o ao painel e entreguei-o a Jed.

— Se importa se eu tiver uma conversa particular com Galan?

—Adelante! Vá em frente. — Ele pôs o fone e ajustou os botões de controle.

— Galan, tudo aconteceu tão depressa que nem tivemos tempo para nos despedir direito.

Galan olhou para Jed, e viu-o de olhos fechados, marcando com a cabeça a batida surda do áudio.

— Ele não vai nem notar.

— Estou falando sério. — Segurei as mãos dele.

— Já imaginou se acontecer alguma coisa, e nós não nos virmos nunca mais?

Ele beijou-me.

— Não seja pessimista, Erin. Você vai para o México e vai se divertir a valer até encontrarmos Fellseth. Depois, você volta.

Descansei minha cabeça em seu peito, ouvindo as batidas de seu coração.

— Nunca temi por minha vida antes. Isso, sem mencionar a sua, a de Jed, a de Lily e a de Jim.

— Eu sei. A situação se complicou mais do que o esperado. — Ele beijou-me na testa.

— A sensação é igual a de quem se casa com um policial. — Olhei para o peito de Galan, querendo protegê-lo do mundo.

Assim permanecemos, mas fiquei tensa ao ver as árvores do lado de fora e perceber que não estávamos na direção do aeroporto de Denver.

— Para onde ele está nos levando?

— Acalme-se. Kutara achou melhor irmos para o aeroporto das montanhas Rochosas, de onde vocês vão, num avião fretado, para Utah, e de lá para Cancun.

Jed olhou-me, preocupado. Eu devia ter aparentado estar apavorada.

Galan pegou um papel no bolso.

— Aqui estão todos os números dos nossos celulares. Kutara pediu para você só telefonar se Fellseth aparecer.

Minha expressão deve ter sido de desapontamento, pois ele apressou-se em conceder:

— Abri uma nova conta de e-mail para você. Todos os nossos endereços estão aqui. — Ele indicou a folha de papel.

— Vamos manter contato diariamente, está bem?

— Está bem. — Guardei o papel na bolsa.

Quando a limusine parou na área de desembarque, descemos.

— Vou comprar as passagens com dinheiro — Galan sussurrou quando entramos.

— E vou glamourizar a segurança para apagar o registro, para Fellseth não poder rastreá-la.

Aquele era um aeroporto privado. Jed e eu mostramos nossas cartas de motorista, passamos pelo detector de metais e fomos encaminhados para o portão A-2, onde nos esperava um piloto de uns cinquenta e poucos anos, trajando calça caqui e blusão impermeável. Ele se apresentou como capitão Bradshaw.

Jed olhou-o de cima a baixo.

— Vocês não usam uniforme?

— O avião é meu. O uniforme é este. — O sorriso do capitão fendeu seu rosto experiente.

— Então, vamos lá! — Jed sorriu.

Galan entregou ao piloto um maço de notas de vinte dólares.

— Na chegada, haverá uma gratificação. Impassível, Bradshaw conferiu rapidamente o dinheiro e guardou-o num dos bolsos internos do blusão.

— Obrigado. Podemos ir?

Galan fez sinal para que Jed acompanhasse o piloto.

— Erin vai daqui a pouco — disse.

— Venha, garotão, vou mostrar-lhe minha cabine. — O piloto conduziu Jed ao interior da aeronave.

— Posso pilotar um pouco? — Jed aventurou-se.

— Você tem brevê?

— Não.

— Então, não pode.

Galan virou-me de frente para ele.

— Tenho que voltar. Beije-me.

Tomada de amor e medo, ergui-me na ponta dos pés, inclinei a cabeça de Galan e beijei-o. Ele me abraçou, erguendo-me levemente.

— Eu não quero ir — murmurei quando ele afrouxou o abraço.

Ele beijou os dois cantos dos meus lábios, enfiou o rosto em meu pescoço e inspirou fundo.

— Também preferia que você não tivesse que ir, mas assim é mais seguro. — Ele pôs meus cabelos para trás.

— Fellseth a quer, e virá procurar-nos para descobrir onde você está. Então o pegaremos.

— Traga-me de volta assim que puder, está bem?

— Claro. Agora vá.

Dirigi-me ao avião, resistindo ao impulso de voltar correndo para os braços fortes de Galan. Ele acenava para mim.

— Cuidado com os degraus — o piloto recomendou ao pé da escada.

Com uma das mãos, segurei o corrimão.

— Vocês têm comida a bordo? — Com a outra, apertei meu estômago.

— Temos, claro.

Abaixei-me, entrei e vi uma pequena sala de estar com um frigobar.

— O senhor não sabe o quanto isto me alegra! — exclamei.

— Assim que atingirmos a altitude de vôo, a senhorita pode servir-se.

Sentei-me na poltrona ao lado de Jed, e coloquei o cinto de segurança. O comandante estabeleceu contato com a torre, e o motor do avião começou a funcionar.

Logo, o terminal foi ficando para trás até sumir. As lágrimas ameaçavam escorrer por meu rosto. Jed afagou meu braço, solidário.

— Você sabia que Galan trabalhava para o FBI quando você o conheceu?

— Uuuuu! Enfim, México! — Jed uivou seis horas depois.

Estávamos num táxi a caminho do hotel. O calor tropical era intenso, mesmo em abril. A umidade encrespava meus cabelos.

Jed já parecia um turista, pois ele usava camiseta o ano inteiro. Quanto a mim, sentia-me na iminência de desintegrar com tanto sol a castigar minha blusa preta de mangas compridas.

Lá fora, o canteiro entre as duas pistas era uma cerca viva ondulada e contínua. Todos os arbustos da cidade tinham forma de ondas, pássaros e até mesmo de uma cadeira.

— Inacreditável, não? — Jed observou.

— Sem dúvida.

Acho que ele nem ouviu minha resposta, pois, na faixa de pedestres, à nossa frente, passava um grupo de jovens trajando sarongues. O sinal abriu.

— Você acha que o FBI vai se zangar se eu comprar bebida alcoólica com o dinheiro deles?

Respondi que não com a cabeça.

— A agente Kutara disse que não questionariam nossas despesas.

Quanto mais tempo ele passasse se divertindo, menos eu precisaria esquivar-me de suas perguntas.

— Ei, doçuras! — Ele acenou para outro grupo de belas jovens.

— Sugiro que compre roupas novas assim que chegarmos. — As garotas retribuíram o aceno.

— E preservativos — acrescentei.

— O que acha desta? — Jed segurou contra o peito uma camisa havaiana debruada com palmeiras rosa-choque.

— É a sua cara. — Um filete de suor escorria pelo meu braço. Eu olhava sem muito interesse a vitrine da loja do hotel, que tinha tudo para satisfazer os meus desejos se eu gostasse dos tons rosa, verde, roxo ou turquesa, com eventuais rajadas douradas.

O único biquíni preto que encontrei tinha a parte de cima com uma armação bem rija e a de baixo com uma saia, obviamente destinada a esconder a celulite. Coloquei-o de volta no cabide.

Escolhi um vestido de verão branco, estampado com peixes verdes e roxos, e uma sandália combinando. Levei-os ao caixa.

— Donde están los... Ora, bolas! Escova e pasta de dente, onde estão? — perguntei à funcionária.

— Terceira prateleira, de cima para baixo. — Ela apontou um lugar atrás de mim.

Depois das compras, Jed e eu tomamos o elevador para o terceiro andar, onde ficavam nossos quartos contíguos.

— Vou tomar banho, e depois acho que vou dormir um pouco. — Eu estava parada diante da minha porta.

— Não precisa esperar por mim, se quiser sair. Deixe recado no meu telefone, que eu deixo no seu.

— Ainda bem que sou solteiro. Hasta luego, brotinho. — Ele sorriu.

Meu quarto era uma linda suíte com piso de granito, uma escrivaninha de vime branca e um aconchegante conjunto de mesa e cadeiras em frente à porta corrediça de vidro que dava para a sacada.

Larguei minhas compras em cima da colcha floral da cama e me despi. Depois fui ao banheiro revestido de mármore e abri o chuveiro. Quando a água começou a correr e envolver meu corpo, olhei as manchas nas minhas pernas, lembranças de minha luta com Fellseth. Talvez eu nem comprasse o maiô.

Enxuguei-me e, nua na cama, pedi uma refeição ao serviço de quarto. Suspirei e estiquei-me para pegar a sacola da butique. O vestido ainda apresentava a rigidez de toda roupa nova. Vesti-me e fui olhar-me nas portas espelhadas do armário. A cor branca empalidecia minha pele e, infelizmente, um dos peixes ficava bem em cima de meu seio esquerdo, com a boca aberta, prestes a morder.

— Olá — saudei meu reflexo.

— Sou Erin Chandler, e não faço idéia do que aconteceu com a minha vida.

Adormeci depois de comer, mas acordei no meio de um pesadelo em que Jed cortava-se com uma faca, indiferente à dor. Sob a fraca luz noturna, observei um mosquito solitário.

— Jed está fora de perigo — falei em voz alta para reforçar o fato.

— Talvez esteja fazendo sexo com alguma turista bronzeada, à custa dos dólares de Fellseth, que está morto. Ou não.

Levantei-me e passei pelas cortinas simples que cobriam a porta corrediça, dirigindo-me à sacada. Senti o doce aroma no ar úmido. Lá embaixo, os casais passeavam na areia, rindo e conversando. Uma canção de Michael Jackson tocava nos alto-falantes do bar da praia, sobrepujando o ruído pesado e contínuo do mar. Para lá das luzes do hotel, havia o imenso vazio do oceano, do qual só se via a rebentação, com sua espuma lambendo a areia em linhas brancas.

Fellseth estaria morto? Parecia impossível que eu não precisasse mais sentir medo daquele homem que tanto atormentara minha vida. Se ao menos houvesse um corpo, ou coisa assim, que materializasse sua morte... Voltei para dentro. O que me faltava era uma conclusão. Era daquilo que eu precisava, mas o que eu tinha era um belo quarto num país estrangeiro, em companhia de Jed, em vez de Galan.

 

Acordei às seis e meia da manhã, coçando no braço a mordida de um mosquito parado ali no teto bem acima de mim, agora mais gordo. Rolei na cama e peguei na mesa-de-cabeceira uma revista de turismo. Equilibrei-me em pé sobre a cama, caprichei na pontaria e golpeei o teto com toda a força.

Depois, verifiquei o local... Estava imaculado. Olhei em volta, oscilando no colchão. Quando examinei a revista... Sim, ali estava o mosquito, agora uma mancha preta na nádega da modelo em roupa de praia. Joguei a revista no chão.

Jed não estaria acordado tão cedo. Portanto, arrumei-me com calma e untei-me com filtro solar. Desci e tomei o café da manhã no restaurante do hotel, quase deserto.

O que estaria acontecendo em Boulder? Louca para ver meus e-mails, fui à recepção e esperei a bela atendente terminar sua conversa ao telefone.

— Hola, senorita — ela saudou-me. — Em que posso ajudar?

— O hotel tem terminal de internet para os hóspedes?

— Tem, se a senhorita tiver um laptop.

— Não tenho.

— Então, terá que usar um dos cybercafés da cidade. Poderá ir de táxi, mas há um ônibus que passa em frente ao hotel, a dois dólares a passagem se a senhorita não tiver dinheiro mexicano.

— Ótimo. Gracias.

Tomei o ônibus. Era a única turista óbvia àquela hora, pois os demais passageiros deviam ser moradores locais indo para o trabalho ou para os afazeres diários. No banco de plástico rígido, sorri para a menininha no regaço da mãe ao lado. As janelas abertas deixavam entrar o cheiro de óleo diesel e água salgada.

Foi fácil encontrar o lugar. A cada um a quem eu me dirigia, inclusive o motorista do ônibus, eu dizia apenas "internet?".

Cheguei ao Café Digital, ocupado por rapazes que pareciam ter passado a noite na farra. O sujeito ao meu lado bocejava. Meu nome de usuário, no papel que Galan me dera, era Praia Babel 369, e havia uma mensagem para mim, enviada por ele na noite anterior.

Olá, amor. Kutara telefonou para seu hotel para confirmar sua chegada. Por isso, sei que está bem. Queria estar aí com você.

Temos procurado Fellseth no Sul, e já chegamos a Littleton. No trajeto, Lenny tem entrado em contato com outros elfos. Por si só, isto não quer dizer nada, porque nunca aconteceu antes, mas é interessante ver a rede de Kutara tomar forma. Por outro lado, é triste tomar conhecimento do que vem acontecendo em outras regiões.

Senti um toque de pânico naquelas palavras. Que outras regiões? Fellseth fugira para muito longe? Quantos elfos havia no total?

Por conta de meu conhecimento sobre os humanos, estou ajudando Kutara a examinar os documentos de Fellseth. Ainda não há vestígios dele, mas o que importa é que você está em segurança. Escrevo mais quando tiver tempo.

Cliquei em "responder" e comecei a digitar.

Aqui sem você está horrível. Quero acordar ao seu lado de manhã, tocar seu rosto, cheirar seus cabelos, amá-lo, senti-lo dentro de mim. Queria que isto terminasse logo.

Lamento saber dos elfos das outras regiões, mas já esperava que o plano de Kutara estivesse a pleno vapor; ela é uma mulher das mais corajosas.

Percebi que me afastara da carta de amor tradicional e corrigi o rumo.

Espero que descubram logo o que houve, e que Fellseth esteja morto de fato. Cuide-se porque, se alguma coisa acontecer a você, não sei o que será de mim. Com amor, Erin.

Cliquei em "enviar", saí daquela conta e fui ao meu e-mail regular, onde uma mensagem de Lily deixou-me aliviada.

Olá, garota, espero que esteja em paz. Jim e eu resolvemos nos ausentar para poupar energia. Passaremos uma semana com os pais dele. Estamos bem, mas fugir de um psicopata sobrenatural é ou não é um problema familiar? Lamento fechar a loja em início de temporada, mas é inevitável. Depois recuperamos.

Envie um e-mail ou ligue para meu celular, estou morta de ansiedade para saber se está bem. Tenho que ir. Sobrou bolo de frutas, e a mãe de Jim vai ficar triste se eu não assistir ao programa da Oprah com ela. Cuide-se. Lily.

Engoli minha culpa e enviei a Lily uma resposta rápida, pedindo mil desculpas pelo fechamento da loja. Quem sabe Kutara daria um jeito de reembolsá-la com os fundos de Fellseth?

Voltei ao outro e-mail para ver se Galan já tinha respondido, mas encontrei uma mensagem de Kutara.

Quero que saiba, para o caso de precisar de socorro, que G e eu estamos lendo suas mensagens assim que chegam. Estamos trabalhando na casa de F, por isso G trouxe seu bicho de estimação para cá para cuidar dele. Agradeço o elogio à minha coragem. Kutara.

Voltei para o hotel. Encontrei Jed no saguão, conversando com uma raiva de sorriso farto e nariz sardento e descascado.

— Olá, Erin! — Ele acenou.

— Esta é Cheryl, e nós vamos fazer um cruzeiro pirata. Não quer vir conosco?

— Não tenho maiô — respondi, não querendo segurar vela.

— Ora, compre um. Temos tempo.

— Matt foi pegar a máscara de mergulho. — Ela falava com um agradável sotaque do Meio-Oeste.

— Estou aqui com meu irmão, também.

— Tenho que levar máscara? — Eu estava indecisa.

— A excursão fornece, mas meu irmão prefere usar a dele.

— Vamos lá. — Jed cutucou-me no braço.

— Você vai acabar indo para o quarto e se deprimindo.

— Vai se deprimir por quê? — Cheryl insistiu.

— Meu namorado não pôde vir — expliquei —, mas nao vou me deprimir.

— Prove que não! — Jed sorriu. — Venha conosco.

Dei um giro rápido na loja do hotel e, em menos de quinze minutos, encontrei chapéu, maio, sarongue, máscara com tubo de respiração e uma bolsa de praia. Quando voltei, o irmão de Cheryl já estava ao lado dela. Seus cabelos eram castanho-avermelhados, e ele não tinha sardas; tinha uns dois metros de entusiasmo e bom humor.

— Olá! — ele saudou-me com um sorriso.

— Olá! — Tratei de organizar minhas compras.

O ônibus de turismo chegou logo depois, e Jed sentou-se junto de Cheryl. Matt sentou-se ao meu lado.

— Você já mergulhou? — ele perguntou.

— Não. É difícil?

— Que nada. É mais fácil do que nadar, mas a máscara precisa ser do tamanho exato. Deixe-me ver a sua.

Peguei a máscara na bolsa, e dei a ele.

— A primeira coisa a fazer é tirar isto. — Ele removeu a etiqueta com o preço.

— Se não, os peixes vão saber que é sua primeira vez.

— Não vamos encontrar tubarões, não é?

— Não, o maior perigo são seus colegas de mergulho. Cuidado com os pés deles, pois adoram chutar os outros. — Ele passou o elástico para a frente da máscara.

— Vamos ver se o tamanho está bom. Coloque os cabelos para trás. Assim. — Ele pôs a máscara em meu rosto.

— Agora feche a boca e respire lentamente pelo nariz.

Comecei a respirar. Ele tirou as mãos e a máscara continuou no lugar.

— Está ótima! — ele atestou.

Quando o ônibus passou por um buraco, a máscara caiu no meu colo, o que me fez rir.

— Pois é esta a regra número um em mergulho: cuidado com os buracos.

Adorei mergulhar, graças aos ensinamentos de Matt. Durante a viagem de volta, os tripulantes nos serviam tequila e tiravam muitos retratos, que ofereciam a um preço adicional por unidade.

— Hola, hola, hola! Todos aqui sabem dizer hola? — gritou o rapaz mulato vestido de pirata.

— Hola — sussurrei.

Uma mulher muito animada ria às gargalhadas, com a mão no traseiro de um prestativo marujo que, ao seu lado e com um sorriso maléfico, posava para uma fotografia com o sabre de plástico apontado para o pescoço dela.

Matt aproximou-se.

— No convés de cima está mais calmo.

— Como chegamos lá? — Acompanhei-o escada acima, agarrando-me com firmeza ao corrimão, pois atravessávamos uma sucessão de ondas.

O vento afastou o som dos risos do salão. Debrucei na amurada que cercava o pequeno convés, e meus cabelos foram projetados para trás ao sabor do vento marinho.

— Eu estava me sentindo um pouco deslocada lá embaixo.

— Eu também não sou muito de beber. — Ele riu.

— Mas o mergulho foi bom, não? Que bom que viu os peixes-donzela!

— São tão bonitos! — Meu sarongue colou-se ao maiô molhado e chicoteou minhas pernas. Cruzei os braços. Minha pele grudava com sal e maresia.

— Está com frio? — Matt aproximou-se. Seus cabelos ainda úmidos formavam caracóis escuros em volta do rosto. Senti uma pontada de desejo e, a seguir, um certo pânico.

— Eu tenho namorado — extravasei.

— Que ótimo! — Ele riu.

— É só que lá embaixo tem mais toalhas secas, se você quiser uma.

— Desculpe... — balbuciei. — Você estava sendo educado... E eu sou uma... idiota.

— Não, não é. Eu estava mesmo dando em cima de você. Meus dentes tiritaram, e eu ri.

— De fato, uma toalha seca cairia bem.

Ele desceu, e logo voltou com duas toalhas enormes. Eu peguei uma e amarrei nos quadris; ele pôs a outra em meus ombros.

— Obrigada. Já melhorou muito.

— Quer descer? Prometo respeitar o fato de você ter namorado, mas... — Ele olhou para meus tornozelos, ainda com as marcas dos grilhões de Fellseth.

— Notei seus hematomas. Alguém bateu em você? É por isso que seu irmão veio no lugar do seu namorado?

Caí numa estrepitosa gargalhada.

— Que alívio! Pensei que você poderia ser uma vítima de agressão.

— Digamos que meu namorado, Galan, é um homem da lei. Quem me atacou o fez para agredi-lo.

— Que cretino! — Ele se zangou.

— O homem fugiu, e Galan mandou-me para cá em sigilo. Nem Jed sabe a história toda, portanto peço que não toque nesse assunto com ninguém.

— Você e Galan estão juntos há muito tempo? — Ele ainda estava zangado.

— Esse tipo de coisa acontece com frequência?

— Não sei. — Percebi que eu vinha evitando fazer-me essa mesma pergunta.

— Apesar do pouco tempo que estamos juntos, coisas horríveis começaram a acontecer de repente. Eu o amo, mas amigos meus foram envolvidos. — Comecei a chorar.

— Detesto sentir medo.

Ele pousou o braço em meus ombros, e senti-me envolta em generosidade e calor humano.

— Acho que precisa de aconselhamento. — Ele descansou o queixo no alto de minha cabeça.

— Você passou por maus bocados.

Aprumei-me, enxuguei os olhos e o nariz com a toalha.

— Desculpe o desabafo.

— Não estou reclamando, só acho que um profissional seria mais eficaz.

—Acho que não. — Afastei-me de lado e sorri, ainda lacrimosa.

— Você disse coisas importantes, mas acho que tenho com quem conversar. Vou pensar no assunto. — Pensei em Lily e nas tantas prateleiras de auto-ajuda da Rosa Verde.

O barco começava a atracar, mas Matt relutou em descer daquele convés.

— O seu Galan é um bom sujeito mesmo? Ele...

— Vale a pena? — finalizei. —

Vale, sim. A questão não é essa. A questão é saber com o que consigo lidar. — Um calafrio percorreu-me.

Sobre a toalha, ele friccionou minhas costas para aquecê-las.

— Vamos descer? — ele sugeriu.

Ali embaixo, no convés principal, os demais passageiros juntavam seus pertences, alguns um pouco desequilibrados. Jed abraçava Cheryl pela cintura.

No ônibus, Matt e eu viemos conversando sobre trivialidades. Eu tentava ignorar o vazio que tomava conta de mim.

Na manhã seguinte, nua na cama, eu examinava os hematomas nas minhas pernas. Ao passar os dedos por uma marca mais roxa, lembrei-me de quando minha pele tinha se reintegrado sob o toque de Kutara, pois uma luz emergiu de dentro do ferimento.

— Ora, vejam!

Toquei outro machucado, para testar, e não senti nada. Inspirei fundo, toquei-o de novo esperando sentir a dor anterior, mas, quando ergui o dedo, a marca tinha desaparecido.

— Caramba!

Depois de passar os quinze minutos seguintes desfazendo as marcas mais feias nas minhas pernas, senti o cansaço e a fome de quem chega de uma longa caminhada. Teriam os cuidados de Kutara ensinado meu corpo a curar-se sozinho? O que eu acabara de fazer estaria ao alcance de qualquer pessoa? Pouco provável, já que eu não tinha consciência de como o fizera.

A alternativa era que minha ligação com Galan causara mudanças em mim. Essas mudanças seriam todas positivas?

Abracei minhas pernas e olhei o oceano turquesa e silencioso além da porta de vidro, além da sacada. Eu teria que abrir mão da alimentação humana? Conseguiria glamourizar as pessoas? Minhas orelhas ficariam pontudas?

Ao tatear minhas orelhas, tranquilizei-me; ainda eram arredondadas. Hora de sair e procurar respostas para minhas perguntas.

Lá embaixo, encontrei Matt vendo a estante de revistas de turismo.

— Você está em todo lugar! — Fui ao encontro dele.

— Seu irmão levou minha companheira de viagem. Estou carente do amor da minha irmã.

— Logo você, tão tímido para conhecer outras pessoas! — brinquei.

— Minha reputação vai ficar abalada, mas vim mesmo para mergulhar. Veja esta revista. É possível nadar até com os golfinhos!

— Pois eu vou agora ao cybercafé.

— Ótima idéia. Posso ir junto?

— Claro.

Ao chegar lá, escolhi um computador perto da parede, a algumas cabines de Matt. Meu e-mail regular tinha uma mensagem de meus pais. Estavam bem, felizmente. E de Lily também.

Bom saber que o espantalho não pegou você! Galan já avisou quando pode voltar? Jim não tem pressa, mas eu e você marcamos a escritura da loja para daqui a quatro dias. Como vamos fazer? Amo você. Lily.

No outro e-mail, havia uma única mensagem. Era de Galan. Logo que comecei a ler, meus olhos marejaram; eu o ouvia proferindo as palavras.

Olá, amor. Seus dois dias de ausência parecem uma eternidade. Mas tenho boas notícias... Você pode voltar amanhã!

Teriam encontrado Fellseth? Continuei a ler.

Lenny e o pessoal fizeram uma busca minuciosa, mas não encontraram indícios de Fellseth. Estou convencido de que ele deve ter tentado escapar no rio e não conseguiu reter sua forma. Kutara neste momento está consultando os horários de vôo para você e vai telefonar por volta das oito da noite para ver se você concorda.

Ela queria que eu decidisse? Aquilo era diferente.

Mal posso esperar para vê-la. Nossa distância me fez enxergar tudo com muita clareza.

Recostei-me, olhando a mensagem. Para mim, era o contrário, nada estava claro. Voltei à mensagem de Lily e toquei em "responder".

Acabo de receber ordem de partir da turma das orelhas pontudas. Parece que Fellseth morreu durante a fuga. Vão me despachar para casa amanhã. Se você não conseguir se desvencilhar da família de Jim em tempo hábil, fique mais um pouco. Eu cuido da loja e vou ao banco para ver se está tudo em ordem. Até breve. Erin.

Enviei a mensagem e voltei para o e-mail de Galan para respondê-lo.

Algo muito estranho aconteceu, e preciso saber por quê: consegui curar meus machucados tocando-os com meus dedos, assim como Kutara fez com meus cortes. Você tem certeza de que Fellseth morreu mesmo? Quero ir para casa, mas em segurança. Gostaria de ter certeza absoluta!

Cliquei em "novas mensagens", mas não havia resposta. Estariam gastando o dinheiro recém-conquistado, ou Fellseth reaparecera de repente? A idéia, antes tão atraente, de conviver com um elfo, agora parecia o mesmo que ir viver no Oriente Médio.

Juntei minhas coisas. A caminho da recepção toquei o ombro de Matt.

— Há um restaurante ao ar livre do outro lado da rua. Vou para lá.

Acomodei-me e pedi uma margarita. Ao tomar outro gole da bebida, olhei as mesas ao ar livre. A nossa estava à sombra de uma árvore. Os vasos de gerânios rosa, buganvílias e lírios exóticos disputavam o privilégio da cor.

— Novidades? — Matt perguntou. Pousei os óculos na mesa.

— Aparentemente, não há mais homem mau.

Matt parou a garrafa de cerveja no ar, a meio caminho dos lábios.

— Uma boa notícia, não?

— Claro. — Eu observava o homem que ia de mesa em mesa com uma iguana, colocando-a na cabeça dos turistas e tirando retratos em troca de gorjetas.

— Erin, a notícia não a entusiasmou?

— Onde ele vivia, há muitos homens maus. — Dei de ombros.

— Como vai fazer? Mais cedo ou mais tarde, você vai ter que voltar.

— Vou mesmo? — Eu descansava o queixo em meu punho.

— Posso continuar aqui, bebendo margaritas e conversando com os homens solteiros. Seria um modo de vida dos mais saudáveis.

Chegando ao meu quarto de hotel, tirei os sapatos sacudindo os pés e deitei na cama com a cabeça apoiada nas mãos entrelaçadas para procurar mosquitos. Em vão.

— Pode ser que você não tenha vindo hoje, ou talvez esteja se escondendo — murmurei.

O medo me deixara muito cansada. Cerrei os olhos e procurei sentir-me confiante, segura e relaxada, mas, quando percebi o meu vestido de verão todo amarrotado no corpo, constatei que eu estava zangada.

Logo depois, cochilei, e fui despertada com o toque do telefone. Virei-me de lado para atender.

— Alô — resmunguei.

— Erin? Você está doente? — Kutara perguntou com firmeza.

— Não. — Pigarreei. — Caí no sono.

— Que história foi essa de curar seus próprios machucados?

— Pois foi isso mesmo. Passei meus dedos, e eles sararam.

— Em vez de machucados, suas pernas não estariam sujas de terra?

— Com certeza! Fellseth passou terra em mim, e eu nem notei. Ora bolas, eu sei muito bem o que é um machucado. Você já teve notícia de algum humano que conseguisse curar-se?

— Não, mas não perco tempo estudando os humanos.

— Os humanos mudam quando estão ligados a elfos? Que outras novidades posso esperar?

— Não faço idéia.

— Galan está aí?

— Não, está trabalhando. Suspirei.

— Seu itinerário está pronto — Kutara informou.

— Seu vôo parte amanhã à tarde, pouco depois das três. Tome nota.

— Espere. — Peguei uma folha de papel na escrivaninha.

— Pode falar.

Kutara enunciou os dados do meu vôo.

— Desta vez, você vai para o Aeroporto Internacional de Denver. Galan vai buscá-la.

— Kutara...

— Você tem bagagem?

— Só de mão. Kutara... Você acha que Fellseth morreu?

— Não há porque pensar que não. Você quer ficar mais tempo aí no México? É que o seu bicho está definhando. Quero dizer, seu gato. Mas Galan também está com muita saudade.

— Fico contente. — Sorri brevemente.

— Mas eu queria mesmo saber o que você acha.

— Há uma possibilidade — a voz de Kutara continuou inalterada — de Fellseth estar vivo. Se estiver, talvez tenha se mudado para algum lugar que não esteja preparado para recebê-lo. Ou então pode estar esperando até baixarmos a guarda. Quanto tempo vai esperar, não há como saber. Era a última coisa que eu queria ouvir. Fechei os olhos.

— O que você faria se fosse eu?

— Eu voltaria para casa. Fellseth abusou da autoconfiança ao pegar você primeiro para depois matar Galan. Se tentasse de novo, você não seria a primeira opção.

— Seria Galan?

— Sim.

— Então por que não o mandou vir para o México em vez de eu? — O medo voltava a ocupar meu coração, só que, agora, por Galan.

— Mesmo ameaçados, nós elfos ainda somos muitos. — A voz de Kutara estava triste.

— Mas você é única. Se sua energia abastecesse Fellseth, ele seria quase indestrutível.

— Você me atribui uma capacidade exclusiva, quando em Boulder há muita gente que pratica meditação.

— É verdade. Descobri isso recentemente. Porém, ninguém nos serviu.

— Você fez experimentos?

— Sondei, apresentando-me como pesquisadora. O pessoal do Instituto Naropa foi muito prestativo. — Ela baixou a voz.

— Você passou por mudanças desde que se ligou a Galan, mas temos como impedir que os elfos decadentes se aproximem de você daqui para a frente, se minha idéia funcionar.

— Que idéia?

— Conversaremos quando você voltar. Agora vou enviar o seu itinerário por fax, para a recepção do hotel. Quero muito revê-la. — Ela desligou.

Olhei intrigada para o fone.

— Quer mesmo?

Jed, Cheryl e Matt foram a uma nova excursão de mergulho de manhã. Chamaram-me também, mas preferi ficar no quarto e pensar quais seriam as consequências de uma relação duradoura com Galan.

À escrivaninha, ia pensando e anotando no papel timbrado do hotel. Galan não vai envelhecer, eu vou. Serei eu a carregar as marcas da cirurgia plástica, a não ser que... Se eu estivesse mesmo em mutação, seria jovem por mais tempo? E se eu já tivesse me tornado imortal? Estremeci. A idéia era atraente e... bizarra.

O que vou dizer aos amigos e à minha família? Aos meus pais eu teria que contar, a eles eu sabia que podia confiar um segredo, mesmo que não gostassem.

As clientes da loja notariam se eu não envelhecesse, ou se Galan envelhecesse, e eu não. Poderíamos tentar fazer com que não nos vissem juntos, mas nos veriam juntos na mercearia. Talvez Galan pudesse glamourizar as pessoas para não repararem, ou talvez eu...

— Quanta bobagem! — Amassei o papel e joguei-o longe. Nenhum casal mapeava o futuro em detalhes. E se eu ficar esquizofrênica? E se eu perder minhas pernas e não puder mais trabalhar? Tudo poderia acontecer a qualquer um. O destino não dava garantias.

Podíamos apenas refletir sobre os acontecimentos, e não tínhamos assinado um contrato de sangue. Isto é, tínhamos, até certo ponto.

O marulhar do oceano, com a firmeza de uma pulsação, tomou o ambiente. Nosso vínculo era um contrato tácito que me afetava de um jeito que eu não entendia e, independentemente da vontade de Galan, ligava-o a mim.

Fellseth tentara matar Galan por causa de nossa união. Estaria tentando ainda? Outras pessoas tentariam?

Eu marcara com Jed ao meio-dia e meia no saguão e, enquanto eu me aproximava de lá com a bagagem, ele e Cheryl se despediam.

Cheryl roçou seu nariz sardento no de Jed e beijou-o.

— Obrigada por ter vindo ao México.

Jed pegou um papel no bolso e colocou-o na mão de Cheryl.

— Ao menos me mande e-mails. Cheryl fez beicinho.

— Essas coisas à distância não funcionam, você sabe que não. — Ela beijou-o de novo, agora mais demoradamente.

— Apenas lembre-se dos bons momentos que passamos juntos, está bem? Tenho que ir.

Ela se foi, e Jed observou-a com um olhar de saudade.

— Essas meninas de Nebraska são apaixonantes!

— Não ia dar certo. — Afaguei-o no ombro.

— Ela joga RPG ao menos?

— Não sei, não perguntei — ele respondeu, triste.

—Ainda bem que tive tempo de vir me despedir. — Matt viera do outro lado do saguão.

— Olá! — Jed estendeu a mão, mas Matt já passara por ele.

Ele me deu um abraço tão caloroso que a alça da minha mala escorregou da mão, e a mala caiu. Jed olhou-nos, admirado.

— Eis meu endereço de e-mail. — Matt passou-me um papel.

— Prometa que vai escrever para me dizer se está tudo bem.

— Tudo vai ficar bem, pode deixar.

— Prometa, ou vou ficar preocupado.

— Matt, você mal me conhece. — A doce atenção de Matt exasperava-me.

— Não foi por falta de tentativa. — Ele sorriu jocoso.

— Está bem. — Tive que sorrir.

— Prometo que vou enviar um e-mail para você. Um só.

— E se um dia for a Nebraska, avise. Ou se terminar com o policial.

— Agente federal. — Jed interveio.

— Sério? — O humor de Matt esvaiu-se.

— Erin, não deixe de me enviar um e-mail!

— Vou enviar, mas não se preocupe, está tudo sob controle.

Eu comprara um espesso romance histórico no aeroporto, determinada a não pensar em nada durante a viagem. Algum tempo depois, dobrei o canto da página para esticar-me. Jed dormia na poltrona ao lado, bronzeado e descansado.

Senti inveja da heroína do livro, Isabel, porque, quando Laird Roderick matou seu arqui-inimigo, ela soube com certeza que ele estava morto. Provava-o a cabeça do homem espetada numa lança.

Quando o avião começou a taxiar no aeroporto de Denver, percebi que estava com torcicolo e minhas nádegas estavam dormentes de um lado. Guardei o livro.

Jed acordou e enxugou o canto dos lábios.

— De volta às minas de sal, não? — Ele inclinou-se para olhar lá fora.

A culpa assolou-me.

— Espero que não tenha perdido seu emprego.

— Eu enviei um e-mail. Eles responderam, dizendo que não iam criar caso. — Ele esticou os braços acima da cabeça.

— Vamos voltar aos nossos trabalhos e esquecer tudo o que aconteceu. Só espero que eu não tenha flashbacks por causa dos barbitúricos.

— Eu também. — Pensei na possibilidade de Fellseth voltar.

Galan esperava-nos no aeroporto com um buquê de hemerocales. Quando ele me abraçou e ergueu-me, com tanta gente passando por nós, senti dois tipos de fome. Cerrei os olhos e inalei seu aroma. Quando ele me pôs no chão, fitei-o, esperando demonstrar no rosto todo o meu amor, mas não minha ansiedade.

— Você parece cansada. — Ele deu-me as flores e pegou minha mala.

— Linda, mas cansada.

— A distância foi difícil, senti saudades. — Eu sentiria menos saudades se tivesse sido eu a determinar a separação?

— Onde está a agente Kutara? — Jed perguntou quando nos dirigíamos ao estacionamento.

— Está trabalhando. — Galan piscou para mim. Ele aprendera a piscar ou seria a primeira vez que eu o via piscando? Os mínimos detalhes pareciam-me preciosos.

— Vou pegar meu casaco na mala. — O ar frio do estacionamento me incomodou.

— Tivemos uma onda de frio por aqui. — Galan fechou o zíper da mala enquanto eu vestia o casaco.

— Kitty pedia para ir para fora, e depois me olhava como se eu tivesse culpa do mau tempo.

— Ela é assim mesmo. — Vista de fora, nossa conversa parecia muito normal. Tão normal quanto eu poderia voltar a ser.

A caminho de casa, Galan foi sinalizando a cada mudança de pista, lembrando o comportamento de todo motorista recém-habilitado, e respondendo com mentiras às perguntas de Jed. A periferia de Denver estava escura e deserta em contraste com o verde viçoso do México, e havia neve fresca nas montanhas.

Ao chegarmos, Kitty saiu correndo de trás das folhagens e veio ao meu encontro, miando freneticamente. Enverguei-me para pegá-la.

— Eu sei, filhinha, mas espero que tenha sido a última vez. Eu e você vamos voltar ao normal.

O aroma familiar da casa deu-me as boas-vindas. Jed foi para seu quarto enviar e-mails, e eu sentei no sofá, pois minhas pernas já não me aguentavam.

Galan sentou-se ao meu lado e segurou minha mão.

— Pensei em levá-la para jantar fora. Olhei minha mobília.

— Lembra? Nós lutamos com Fellseth nesta sala. Ele beijou-me com ternura na têmpora.

— Vamos construir novas lembranças. — Havia preocupação em sua voz.

Virei o rosto e entreguei-me ao seu beijo. Meu corpo o acolhia sem questionar enquanto minha mente dialogava com a incerteza. Quando ele se afastou, meus lábios foram procurar os dele.

— Esta é a Erin que eu conheci. — Ele riu e beijou meu nariz.

— Então, vamos jantar fora?

— Não estou com fome — menti, sabendo que minha fome aumentava a cada momento que passava ao seu lado.

— Que tal encomendarmos a comida e depois irmos ver as estrelas no cânion?

— Não sei se é boa idéia. — Ele agia com cautela.

— Por quê? — A raiva que eu tinha sufocado reaflorou.

— Porque não é seguro? — A culpa não era dele, mas eu tinha o direito de me zangar por nossas vidas estarem tão ameaçadas e incertas.

— Temos que ser prudentes por enquanto, não temos escolha.

— Ah, não? Fellseth disse que, se eu quisesse muito, eu poderia romper o elo com você. Se rompêssemos, você deixaria de constar na lista de executáveis de Fellseth. — Naquele instante, apesar da expressão de mágoa de Galan, eu sentira nosso vínculo esticar-se e fragilizar-se ao máximo.

— Erin, não diga isso. — Ele levantou-se e estendeu-me a mão, mas eu recuei.

— Por favor, esse ressentimento não leva a nada. Vamos conversar com Kutara.

— Kutara diz que, se Fellseth ainda estiver vivo, vai tentar matar você primeiro. Como posso aguentar uma situação dessas? — Tropecei ao passar por ele e caí de joelhos no sofá. Cruzei os braços, escondendo meu pranto.

— Não vou aguentar!

Senti o peso de seu corpo ao meu lado, e ele tocou-me no ombro. Eu virei-me e apertei meu rosto contra seu peito.

— Meu amor... — Ele abraçou-me e acariciou meus cabelos.

— É difícil, acha que não sei?

— É melhor rompermos nosso vínculo, e você ir embora. — Minhas lágrimas quase me impediam de falar.

— Você está em perigo por minha causa.

— Não me importo. — Galan me embalava.

— Não vou ficar longe de você. Não vou conseguir.

Eu chorei até esgotar minhas lágrimas. Depois, Galan fez o jantar e insistiu para que eu comesse antes de me levar à casa de Guy para conversar com Kutara.

No alpendre, Galan tocou a campainha. Ele segurava minha mão afetuosamente.

— Kutara tem pesquisado muito os antigos costumes dos elfos. Pode ser que encontre um escudo contra os elfos decadentes.

Kutara abriu a porta.

— Guy foi a um seminário de Arquitetura. A casa é toda nossa. — Ela conduziu-nos à sala de estar.

— Erin, quer tomar alguma coisa? Um refrigerante?

— Sim, sem gelo — respondi automaticamente e observei-a indo para a cozinha.

— Galan, por que o papel de anfitriã?

— Guy deu um jantar para alguns vereadores amigos anteontem à noite. Ela deve estar treinando para os futuros jantares. — Ele puxou-me para perto no estreito sofá.

Kutara trouxe um copo e pousou-o na mesinha lateral.

— Gostou do México? — Ela sentou-se numa cadeira diante de mim.

— Não muito. — Mantive a guarda alta. Não queria deixá-la me persuadir a mudar de idéia.

— Pelo total da conta do bar, vejo que ao menos tentou relaxar.

— Que conta do bar? Ah, deve ter sido Jed e umas doze amizades que fez por lá. Sinto muito.

— Não estou reclamando, mas imaginei que você ao menos fosse se sentir mais segura.

— Desde que isso começou, deixei de me sentir segura. E acho que para sempre. — Peguei meu copo e bebi no silêncio que se seguiu.

— Conversa fiada — Kutara contestou.

— E vocês dois, como vão?

Suspirei.

— Pensei que nossa conversa tivesse terminado.

— Já terminou, mas minha pergunta já faz parte de nossa discussão de hoje.

— Estamos bem — Galan respondeu por mim.

— Bom saber, porque, assim, imagino que nenhum dos dois faça objeção a se casar?

Nós dois ficamos pasmos.

— Que história é essa de casamento? — Fui a primeira e me recuperar.

— Núpcias, a bem-aventurança conjugal. A união de dois em um. — A voz de Kutara era casual.

— É um evento tão popular entre vocês que os humanos chegam a casar-se duas, três vezes, mas estou imaginando uma relação mais permanente.

— Em que o casamento vai nos ajudar? — Eu descartei a idéia com um aceno de mão.

— Acho que sei. — Galan estava sério.

— Você está se referindo ao penansel, não?

Kutara aquiesceu com a cabeça.

— Península? — Olhei de um a outro.

— Por favor, não me venham com os mistérios de vocês.

Galan segurou minha mão.

— É inevitável. Sei muito pouco a respeito, mas penansel é um ritual de núpcias que não acontece há, digamos, mais de mil anos. Não é, Kutara?

— Há mil duzentos e quatro anos, segundo o que investiguei. Penansel, Erin, era muito comum entre os elfos europeus quando as terras ainda eram abundantes, e eles se casavam exclusivamente por amor. Uma época muito romântica.

— Mas como é?

— É um ritual — Galan respondeu —, que une um casal de elfos depois da morte. Aquela época foi muito violenta, havia muitas mortes, e frequentes, por isso era preciso muita convicção.

— Une um casal, como? Ainda não entendi.

— Vamos supor uma união comum entre elfos. — Kutara inclinou-se para a frente.

— Se um dos dois morre, o vínculo se desfaz, e o elfo vivo pode ligar-se a outro.

— Mas, no penansel, o vínculo existe para sempre — Galan completou.

Eu meneei a cabeça, incrédula.

— Vocês estão sugerindo, então, que nós nos casemos nesse ritual e, se você morrer, meu vínculo com você permanece?

Kutara recostou-se, satisfeita.

— E Fellseth não conseguirá glamourizá-la jamais! Perplexa, bufei.

— Foi a pior idéia que já ouvi na minha vida. Primeiro, não sou elfo, portanto talvez isto nem funcione. Mas, supondo que funcione, se Fellseth estiver morto, Galan provavelmente vai viver mais que sua companheira, e, depois que ela se for, ele não poderá mais amar. Não é justo.

— Antes de continuarmos — Kutara estava pensativa —, quero fazer uma pergunta. Galan, você está disposto a casar-se no ritual do penansel com Erin?

Galan, que fitava as próprias mãos, olhou-me, e o amor que transpirou em seu rosto enterneceu-me.

— Sim, quero ficar ao lado dela enquanto ela me quiser, e tudo farei para dar-lhe segurança.

Kutara anuiu com a cabeça.

— Neste caso — ela voltou-se para mim —, você não faz objeção a tentar.

— Só que nós só vamos saber se a união funcionou quando Galan morrer, porque até lá Fellseth sempre terá motivo para matá-lo, porque eu e Galan estaremos ligados.

Kutara levantou-se.

— Você tem que entender que, se um elfo decadente lograr controlá-la, Galan não será o único a correr perigo.

— Vocês já pensaram que, se rompermos nosso vínculo, todas as minhas faculdades extraordinárias, de curar-me sozinha, de gerar energia para os elfos, podem desaparecer?

— E se um elfo decadente encontrar um jeito de ligar-se a você, e suas habilidades se fortalecerem ainda mais?

Levantei-me rapidamente, contornei a mesa do café e aproximei-me de Kutara.

— Quer dizer, então, que os elfos agora são iguais à Máfia? Quem entra não pode sair. E se eu não quiser mais me relacionar com os elfos? Com qualquer elfo, não apenas os decadentes?

Kutara não recuou. Ao contrário, avançou.

— Se não fossem os humanos, não existiriam elfos decadentes!

— Parem! — Galan levantou-se e aproximou-se de nós.

— Vocês duas estão procurando um culpado, mas Fellseth não está aqui. — Ele bufou e voltou a se sentar. — E talvez não esteja em lugar nenhum.

— Tomara que não! — Meus ombros desabaram.

— Mesmo assim, mantenho minha decisão.

— Vou levar Erin para casa. — Galan fitou-me. Kutara ia retrucar, mas Galan meneou a cabeça.

— Não, Kutara. A decisão é dela.

A caminho de casa, os postes de luz passavam acima de nós, e eu olhava o perfil de Galan.

— Você me odeia, não?

— Já deixei claro que não.

Eu friccionava um arranhão no fecho de minha bolsa.

— Está zangado comigo?

— Porque você está com medo do perigo? — Ele me olhou de lado.

— Um pouco. Eu também estou com medo, mas meu amor por você supera meu medo.

Olhei para fora, com um nó na garganta.

— Se fôssemos apenas nós dois, Galan, seria diferente, mas estou pensando também em Jed, Lily e Jim. E meus pais? Já imaginou se algum elfo decadente resolver prejudicá-los?

— E se Kutara tiver razão, e o rompimento de nosso elo não significar a perda de suas habilidades? Você estará ainda mais vulnerável aos elfos decadentes.

— É muito improvável. Minhas habilidades apareceram depois que o conheci. — Encostei a cabeça no vidro da janela.

— Temos que decidir isso agora? Posso pensar um pouco?

Quando parou o carro diante da minha casa, ele perguntou:

— Você quer ao menos que eu durma com você hoje? Uma vez ele fizera amor comigo porque não tivera forças para recusar. Agora, era minha vez.

— Quero, sim. Isto é, se você quiser.

Minha casa estava às escuras. Com medo, abri a porta e tateei o interruptor para acender a luz.

— Jed deve estar com os amigos.

Atrás de mim, Galan pôs as mãos em meus ombros.

— Desculpe-me. — Ele encostou seu rosto no meu.

— Gostaria que você não tivesse que passar por isso.

Virei-me e o abracei.

— Pode até parecer que eu me arrependa de tê-lo encontrado, mas não pense isso.

— Para tranquilizá-la, Kutara mandou que continuassem a vigiar sua casa, a loja e todos os lugares em que Fellseth possa aparecer.

— Isto não me tranquiliza. — Afastei-me e pendurei meu casaco.

— Vou me preparar para dormir.

Quando saí do banheiro, Galan já estava na cama. Os cabelos prateados espalhados no travesseiro. Ele ergueu as cobertas para mim.

Ao ver aquele belo corpo, tão conhecido e querido, as lágrimas ameaçaram brotar. Fosse sensato ou não, eu não poderia deixá-lo.

Fizemos amor lenta e suavemente; nosso elo, uma silenciosa canção de prazer num mundo tão incerto. As lágrimas brotaram com meu êxtase, e os lábios de Galan nos meus, quando ele atingiu o clímax, tinham gosto de sal.

Cruzei os braços atrás de seu pescoço e apertei-o contra meu corpo.

— Desejo, de todo o coração, que eu não tivesse que deixar você.

— Então não me deixe — ele sussurrou com voz cativante. Mas de manhã, quando acordei, ele já tinha ido embora.

Não sei se Galan concordava com nossa separação ou se apenas se conformaria com minha decisão, mas resolvi aproveitar o pouco espaço que sua ausência me deixava para respirar. Romper nosso vínculo ainda não era o que eu mais queria porque eu ainda não tinha a motivação necessária para tentar.

Quando cheguei à Rosa Verde, a caixa registradora ainda estava ligada, um mudo vestígio da saída repentina de Lily, e as cédulas na gaveta indicavam ao menos que não tínhamos sido roubadas.

Executei automaticamente as rotinas iniciais de um dia útil: ver se havia mensagens de voz, completar a água das fontes, ligar o vaporizador de óleo de essências. Por último, retirei o papel preso ao vidro da porta no lado de dentro, no qual estava escrito: "A Rosa Verde está fechada temporariamente por motivos familiares de urgência. Vamos reabrir em breve. Até lá, respirem fundo... não há motivo para pânico!".

Tomei fôlego.

O primeiro freguês não era conhecido. Sorri, conversei sobre a música da Nova Era e fiz algumas recomendações.

— Acredito que a depressão tenha origem cinquenta por cento nos hábitos nutricionais e cinquenta por cento nos hábitos mentais.

Ele levou um livro sobre as vantagens do açúcar, e outro sobre seus males.

Fui à gaveta onde Lily e eu guardávamos o chocolate de emergência. Quando o telefone tocou, engoli o pedaço de chocolate com menta, e tossi quando o doce passou pela minha garganta.

— Rosa Verde — atendi com voz rascante.

— É a Erin? Aqui é Geraldine Krupper.

— Olá, Geraldine! — Era uma cliente habitual, generosa, mas meio mandona, que nos tratava como se fôssemos suas filhas transviadas. Limpei a boca com a mão, e depois a mão num pedaço de papel de embrulho.

— Em que posso ajudar?

— Só queria ver se a loja estava aberta. Passei por aí ontem e vi o aviso. Está tudo bem?

— Está, sim; obrigada. Lily deve voltar em breve, e vai contar o que houve.

— Eu já ensaiara essa resposta.

— E você, por que teve que se afastar também? Fiquei muito preocupada.

— Bem... — O ensaio não previra essa variante. Por isso, apertei os olhos e dei um tapinha na testa.

— Fomos revezando na direção. Até Nebraska, onde moram os pais dela... eram eles que estavam com problemas.

— Não é a família de Jim que mora lá? Ele não foi com ela?

— Ah... — Expirei.

— Ele não pôde ir por causa do trabalho.

— Sei. — Geraldine não parecia convencida.

— Bem, espero que esteja tudo bem. E a festa depois de amanhã, para comemorar a passagem da loja, está confirmada?

Claro, a festa! Eu quase gemi. Nesse momento, aquela seria uma tortura cruel. A compra estava marcada para segunda-feira. A arrumação e o bufê já tinham sido providenciados havia muito tempo, e o bilhete de Lily enfatizava que ela voltaria logo.

— Está confirmada. Segunda-feira à noite.

— Encontro vocês na segunda. — A despedida de Geraldine continha a entonação de uma ordem.

— Está bem, obrigada. — Desliguei. Quem sabe um dia seria possível de novo se preocupar com essas coisas. Será?

Eu comia um sanduíche num raro momento de folga entre um cliente e outro quando ouvi alguém entrando pela porta dos fundos. Pé ante pé fui à porta da frente, deixei-a entreaberta e preparei-me para fugir.

— Quem está aí? — gritei na direção dos passos.

— Sou eu! — Era Lily. Depois, um ruído surdo e um estrépito metálico.

— Ai! Quem deixou o aspirador de pó aqui? Ah, é, fui eu mesma. — Ela entrou na loja esfregando a canela.

Fui ao encontro dela, com a mão no coração.

— Que susto você me deu! Não pensei que fosse aparecer hoje. — Abracei-a com tanta força que ela ofegou.

— Que bom encontrá-la também! — Ela levou a bolsa para o escritório e voltou com o relatório do inventário.

— Ainda está meio nervosa, não? Ora, o homem mau já foi embora.

— Não de todo — sussurrei, debruçando no balcão.

— Por quê?

— É provável que já tenha ido.

— Que conversa é essa? — Ela cutucou-me no ombro.

— Não o mataram, Erin?

— Ele tentou desincorporar no rio para escapar, coisa que nenhum elfo ainda tentou. Como não encontraram vestígios dele, acham que ele morreu na tentativa. O que é mais provável.

— Mais provável? — Lily jogou o relatório no balcão.

— É quase certeza. — E emendei rapidamente:

— E Geraldine Krupper telefonou para saber o motivo do nosso sumiço. Eu disse que fui a Nebraska com você ver seus pais porque Jim não pôde se ausentar do trabalho.

— Um momento. Geraldine sabe que meus pais não moram em Nebraska. Você chegou a dizer por que fomos até lá?

— Não.

— E Fellseth ainda por cima pode estar vivo? — Lily zangou-se.

— Será que não é melhor eu voltar para a casa dos meus pais que nem em Nebraska moram?

— Pode ser que sim, mas seria perda de tempo, porque nada indica que ele ainda esteja vivo. Kutara diz que, mesmo que estivesse vivo, ele não ousaria tentar raptar-me sem antes matar Galan, e é por isso que vou romper meu vínculo com ele... Para sempre. — Comecei a chorar.

— Ah, querida... — Lily deu-me um abraço apertado.

— Lamento tanto.

— É a única maneira de preservá-lo, de preservar a nós todos. — Encostei minha cabeça em seu ombro.

— Por que você não me conta tudo desde o início? — Ela afagou minhas costas. Passei o resto da tarde contando a Lily o que ocorrera desde a última vez que nos víramos.

— Acho que está tomando a decisão certa. Além do mais, você só conhece Galan há duas semanas, não?

— É verdade. — Apesar disso, ele já estava em mim como se fosse minha pele.

— Não quero ser egoísta — ela hesitou —, mas você não mudou de idéia quanto à compra da Rosa Verde, não é?

— Vou comprá-la, sim. É o que me resta a fazer por mim mesma.

— Trabalhar é a melhor coisa a fazer agora. — Ela sorriu.

— E vai haver trabalho de sobra nos próximos dias. Vamos fechar a loja.

Naquela noite, sentada no chão do meu quarto, eu corrigia as últimas informações financeiras necessárias para a compra da loja. Kitty dormitava na cama.

— Pronto! — Coloquei o último extrato bancário na pasta. Quando joguei a pasta no chão, no semicírculo formado pela papelada, os documentos foram expelidos para debaixo da cama.

Suspirei, ajoelhei e apanhei-os entre a caixa de fotografias antigas e os chinelos empoeirados, pequenos para mim. E aquele papel branco ali atrás, o que era?

Kitty miou, inquisitiva, saltou para o chão e esperou-me sair de debaixo da cama. Sentei nos calcanhares e olhei: era o camundongo de papel que Galan fizera para mim.

Sentir saudades dele causava-me dor física.

Pus o camundongo no chão e, trêmula, soprei-o. Ele desprendeu-se do chão, expondo a borda empoeirada, e aterrissou novamente. Kitty fitou-o por instantes, e depois saiu do quarto.

— Vai ser difícil. — Enxuguei minhas lágrimas.

No dia seguinte, trabalhei como se desconhecesse o repouso. Limpei a loja e preparei a decoração para facilitar sua colocação na hora oportuna.

Lily flagrou-me esvaziando as fontes para limpar o fundo e tirou-me a esponja da mão.

— Vá para casa, Erin.

— Ainda aguento, tenho mais três coca-colas.

— Eu as despejei na pia. Vá!

Chegando em casa, jantei no sofá com Jed, vendo-o rir do seriado na televisão. Nossa experiência parecia não ter deixado sequelas nele, embora, a bem da verdade, para ele tudo tivesse sido uma reles alucinação induzida por barbitúricos.

— Não é o seu telefone?

— O quê?

— Seu celular.

Corri ao meu quarto e fucei minha bolsa.

— Alô?

— É Kutara.

— Galan está bem? — O medo paralisara brevemente meu coração.

— Está bem. De fato, acho que tenho boas notícias. Galan teve a idéia de investigar notícias da mídia e boletins da polícia em busca de ocorrências estranhas.

Sentei-me e apertei o telefone contra o ouvido para ouvi-la melhor. O ruído ambiente evidenciou um certo rebuliço no quartel-general dos elfos.

— Ocorrências estranhas seriam, por exemplo, caroneiros suspeitos e carros roubados?

— Isso mesmo. Na internet, encontramos o depoimento de uma dona de casa que viu um homem nu, todo molhado, roubando roupas no varal. Ele tinha cabelos compridos grisalhos e parecia doente. O incidente foi registrado no livro de ocorrências da delegacia local.

— Quando aconteceu?

— Ontem à noite, e lemos hoje cedo.

— Você telefonou para a tal dona de casa?

— Ninguém atende, por isso vou até lá. De avião. Estou no aeroporto.

Percebi que as vozes que eu pensara ser dos elfos eram os anúncios dos vôos.

— Você não vai sozinha, vai?

— Oito elfos vão me esperar; acho que dão conta de Fellseth, se for ele.

— Gomo encontrou esses elfos?

— Eles tinham formado um grupo no Yahoo. Já ouviu falar?

Meu queixo caiu. A possibilidade de existirem elfos mais organizados que os de Boulder era de embasbacar.

— Parece que chamaram meu vôo, só telefonei para avisar.

— Obrigada, Kutara, foi muita gentileza sua.

— Mesmo? — Ela gostou do reconhecimento.

— Se matarmos Fellseth, telefono.

— Não deixe de telefonar.

Desliguei, fechei a porta do quarto e liguei para o celular de Galan.

— Erin? — Ele atendeu depois do segundo toque.

— Sou eu. — Não soube o que dizer de pronto.

— Kutara telefonou do aeroporto.

— Ela contou que talvez possamos encontrar Fellseth?

— Mal posso acreditar. — Fui à janela e notei, pela primeira vez, que a macieira estava florida.

— Como você está?

— Estou bem, mas não exatamente contente. — Comecei a andar de um lado a outro, e, quando passei pela escrivaninha, vi o esboço do bracelete com a figura de um coelho que ele desenhara.

— Na verdade, estou muito triste.

— Teria sido melhor não tê-la deixado sozinha?

— Não, agradeço que tenha me deixado sozinha. Houve um breve silêncio.

— Se você soubesse, inquestionavelmente, que Fellseth estava morto — Galan hesitou —, você mudaria sua decisão a nosso respeito?

Sentada à escrivaninha, passei o dedo no saltitante coelho.

— Francamente, não sei.

— Mas você não diria que é impossível, não é?

— Impossível, jamais! — Eu sorri.

— Você vai me telefonar se tiver qualquer notícia?

— Você será a primeira a saber. Eu não queria desligar ainda.

— Amanhã vou comprar a Rosa Verde. — Deveria convidá-lo para a festa? Não. Eu ainda não tomara uma decisão; vê-lo a dificultaria ainda mais.

— Que boa notícia, Erin! É uma loja maravilhosa, e sei que vai fazê-la feliz.

— Obrigada. — Eu desistiria da loja numa fração de segundo se fosse para ir viver com Galan. Fechei os olhos com força para não chorar de novo.

— Consegui mudar meu empréstimo no banco. Ainda quero comprar uma terra para você.

— Não estou com pressa. Vamos esperar para ver o que vai acontecer.

Passei a manhã seguinte organizando minha documentação para a escritura. Quando saí para o escritório do advogado, trajando uma calça jeans preta e um suéter verde-escuro, percebi que fazia calor, e eu estava com a roupa inadequada.

Kitty saltou e rolou satisfeita no chão de concreto quente. Abaixei-me para acariciá-la, mas ela pulou sobre minha mão e esgueirou-se para o quintal.

— Olá, Erin! — A Sra. Jamison passava na calçada, puxada por Thor.

— Como vai? Thor, sente-se!

— Estou bem. — Afaguei a cabeça do robusto cão.

— Sinto não ter levado Thor para passear recentemente. Estive fora.

— Não tem problema. Está mais quente agora, e andar faz bem para a artrite do meu joelho. Você esteve fora com aquele seu amigo artista? — Ela piscou o olho tão rapidamente que quase não percebi.

— Infelizmente, não. A senhora vai à nossa festa na loja logo mais? Estou indo para o advogado para assinar a escritura, e vamos comemorar à noite. Gostaria que fosse. E às sete horas.

— Vou levar meu pão de gengibre. — Thor a circundara, e ela mudou a correia de mão.

— Ele está ficando impaciente, tenho que ir.

— Obrigada, Sra. Jamison. Se quiser carona, avise. — Entrei para trocar o suéter por uma camiseta.

Cheguei um pouco cedo no advogado. Lily já estava na sala de espera e abriu espaço ao seu lado pondo a valise no chão.

— Você teve que expulsar algum cliente para poder vir? — perguntei.

— Dois colegiais, que não iam comprar nada. Pus na porta o cartaz "Volto depois do almoço" e aqui estou eu. Preparada para ser proprietária?

Segurei com força a minha pasta cheia de papéis.

— Acho que sim. Se você me ajudar meio expediente, até eu poder andar com minhas próprias pernas, estarei muito bem.

— Posso trabalhar por meio período para sempre. Sem as dores de cabeça do dono, vai ser muito melhor. — Ela levou a mão à boca.

— Dores de cabeça, não, desafios gratificantes.

Um homem roliço com um terno impecável entrou na sala de espera.

— Srta. Chandler? Srta. Savchuk? Entrem, por favor. Saímos uma hora depois. Eu devia estar com aquele aspecto abobalhado de quem acaba de abrir mão de uma vultosa quantia, e Lily, com a expressão satisfeita de quem acaba de recebê-la.

Ela deu-me um tapinha nas costas.

— Que tal comprarmos uns sonhos comemorativos a caminho da loja? Eu pago.

— Você está rica, mas sabe que eu não como sonho.

— Então, muffins com pedaços de chocolate.

— São um pouquinho menos problemáticos. Que tal umas frutas?

— Ora, esqueça. Vou comprar sonhos. Você coma o que quiser.

Vi a Rosa Verde com outros olhos quando entramos. Agora a loja era minha, desde a mercadoria mais empoeirada até o revestimento que começava a descascar embaixo do balcão, e que eu provavelmente mandaria consertar.

Lily abriu a gaveta do nosso estoque de guardanapos de papel.

— Temos que confirmar com o fornecedor dos pratos.

— Deixe comigo. Que horas são? Esqueci meu relógio.

— Meio-dia e quinze. Posso abrir a loja?

— Pode. Os clientes já nos viram comendo antes. — Fui ao banheiro lavar meu cacho de uvas.

Quando voltei, Lily estava à porta, assinando o recibo da entrega de um enorme buquê de rosas. Como todo ano ela enviava flores no meu aniversário, eu esperava algo semelhante.

— Que delicadeza sua! Obrigada! — Pousei as uvas e abracei-a.

Ela colocou o buquê no balcão e ajeitou uma rosa.

— Sim, mas as que encomendei ainda não chegaram. Talvez seus pais tenham enviado estas.

Abri o cartão e li em voz alta:

Você já tem uma Rosa Verde. Por isso, estas são cor-de-rosa.

Com meu amor,

Galan.

— Espere um momento! Vocês voltaram? — Ela me encarou.

— Não. — Eu enfiei o cartão na bolsa.

— Porém, Kutara está no Kansas com uma turma de elfos para investigar uma pista sobre Fellseth. Se estiver vivo, não vai escapar desta vez.

— Um bom começo, mas seria melhor se encontrassem o cadáver dele. Veja! — Ela apontou para uma picape marrom que estacionava na frente da loja.

— A primeira entrega para a nova dona.

— Devem ser os mensageiros do vento. Eu esperava mesmo essa entrega hoje.

O entregador abriu a porta, empurrando-a com o corpo. Trajava o clássico poliéster marrom, da bermuda ao boné comercial, mas trazia apenas um envelope acolchoado. Então, não era o que eu estava esperando.

Afastei de lado o buquê e as uvas, abrindo espaço no balcão para eu assinar o recibo.

— Olá! — saudei-o.

— Olá, Erin! — ele retribuiu a saudação e sacou uma arma de dentro do envelope.

Fiquei petrificada com o choque. Fellseth jogou o envelope no chão e tirou o boné. Os cabelos esparramaram-se, úmidos e macios, agora grisalhos, e não mais prateados. A pele estava macerada, com um brilho artificial, como se estivesse encharcada.

O depoimento da dona de casa de Kansas veio-me à mente. Não, ele não parecia doente; Fellseth parecia afogado.

Ele estendeu a mão para trás e trancou a porta.

— Saia de trás do balcão e venha para perto de Erin. — Ele brandia a arma para Lily, que moveu-se atabalhoadamente para obedecê-lo. Ele sorriu.

— Não sei por que relutei tanto em usar armas de fogo. São muito eficazes.

— O que quer? — Protegi Lily, abraçando-a.

— Sempre admirei sua objetividade. Quero Galan, e você vai buscá-lo para mim.

— Não!

— Pois bem, então vou matar sua amiga e todos que entrarem na loja. — Com o polegar, ele ajustou alguma coisa na arma, produzindo um nefasto clique.

— Por que quer Galan? Eu vou com você. — Por que não rompi o vínculo quando tive oportunidade?

— Você virá comigo, mas primeiro vou matá-lo. Eu já o teria feito se o tivesse encontrado. Portanto, se Maomé não consegue encontrar a montanha, Erin vai telefonar para o celular da montanha.

— Ele não tem celular, e eu não sei onde ele está. Fellseth ergueu a arma e deu um passo à frente.

— Não minta! — Havia ódio em seu rosto. Recuei e senti Lily retrair-se.

Com a arma apontada, Fellseth recuou e, com uma das mãos, esvaziou nossas bolsas em cima do balcão. Pegou meu celular e ergueu-o.

— Os escravos de Kutara têm celulares — sussurrou, rolando o menu do visor de cristal líquido.

— Se não tivessem, não poderiam tê-la socorrido com tanta presteza. Ah!

— Seus olhos se iluminaram. — O celular de Galan. Uma mente organizada vale ouro!

— Ele aproximou-se, encostou a arma contra a cabeça de Lily e passou-me o telefone.

— Telefone e mande-o vir até aqui. Ainda não! — ele gritou, fazendo-me interromper a digitação. Lily arfou com o grito.

— Você vai segurar o telefone de modo que eu ouça também. Se tentar avisá-lo, ou se não mandá-lo vir sozinho, vou matar... — Ele cutucou a cabeça de Lily com o cano.

— Como é seu nome, meu bem?

— Lily. — Ela tremia.

— Vou matar Lily.

— Se matá-la, Galan vai ouvir e vai ficar onde está. — Minha voz tremia.

— Não, ele virá, mas sua amiga estará morta. — Ele sorriu. A carne em volta dos lábios estava inchada e esbranquiçada.

— Eu vou cumprir meu objetivo; a você cabe escolher quantas pessoas vão morrer.

— Há elfos vigiando a loja. Você conseguiu entrar, mas, se atirar, vão ouvir.

— É possível. Se vierem, mato Lily, Galan e quem mais eu puder. A escolha é sua, Erin. Por quantas mortes você vai se responsabilizar?

— Você será o responsável! — berrei.

Fellseth agarrou Lily pelos cabelos com a mão desimpedida e puxou-a contra o cano da arma.

— Mais um chilique desses — ele me encarou —, e eu arranco a orelha dela, a título de aviso amigável. Telefone para ele.

Teclei o botão "enviar" e, com as mãos suadas, levei o telefone ao ouvido. Fellseth encostou sua têmpora na minha para ouvir. Eu sentia a umidade e o enjoativo odor adocicado que ele exalava.

E se Galan não atendesse?

— Alô?

— Sou eu. — Cerrei os olhos.

— Erin? — Ante meu silêncio, ele perguntou:

— Algum problema?

Fellseth afastou-se, enfiou o cano da arma na boca de Lily, cujos olhos reviraram.

— Recebi suas flores. — Minha voz continuava trêmula.

— Mande-o vir aqui. — Fellseth moveu os lábios, fuzilando-me com os olhos.

— A festa começa às sete horas, e arrebentou um cano no banheiro. — Fechei os olhos para não ver as lágrimas escorrerem dos olhos de Lily.

— O encanador já está a caminho, mas precisamos tirar umas coisas de lá, para não molharem. Eu não queria pedir, mas é uma emergência.

Fellseth voltou a encostar a cabeça na minha para ouvir. Engoli um soluço.

— Que bom que você telefonou. — Galan animou-se.

— Já estou indo.

— Galan... — Ele desligara.

Fellseth rosnou triunfante e tirou o telefone de mim.

— Ele não é uma gracinha? — Ele tirou o cano da arma da boca de Lily.

Ela fraquejou, e ele sacudiu-a para aprumá-la.

— Não seja grosseira, Erin, arranje uma cadeira para sua amiga. Com cuidado, claro, e sem fazer nada que me obrigue a matá-la.

Peguei um tamborete atrás do balcão, sentindo meu coração bater forte e o suor acumular-se sobre o lábio superior. Galan estava a caminho. Fellseth o mataria, e talvez a Lily também. Eu tinha que fazer alguma coisa.

Ele apontava a arma para Lily.

— Qual será o melhor ângulo de tiro? — Ele olhou ao redor, divertindo-se.

— Ponha o tamborete no fim do balcão, encostado à parede. Vou com Lily para lá, e você vem para a frente, para ele vê-la primeiro. — Ele riu.

— Pela última vez, claro.

Segui suas ordens. Quanto tempo Galan demoraria para chegar? Oito minutos? Dez?

— Agora vá para lá — ele ordenou depois de ajeitar Lily ao seu gosto.

Fui para a frente da loja.

— E se chegar um cliente? — Lily inspirou fundo. Fellseth franziu o cenho, pensativo.

— Vocês têm um aviso de "Fechado"?

— Não, nós só apagamos as luzes.

— Faça um aviso: "Fechado. Abriremos à tarde. Tubulação avariada". E quero vê-lo antes que o afixe.

Peguei papel e caneta hidrográfica. Demorei-me pensando num jeito de infiltrar uma mensagem no aviso.

— Escreva o que eu disse — Fellseth berrou.

— Não precisa pensar.

Escrevi a mensagem. Uma nova idéia germinava em mim. Fellseth dissera que, se eu quisesse de fato, eu poderia romper o elo com Galan. Se eu o rompesse, será que conseguiria convencer Fellseth de que não era preciso matar Galan? Valeria a pena colocar Lily em risco para avisá-lo? E que garantias eu tinha de que ele não a mataria de qualquer forma?

Mostrei o aviso a Fellseth.

— Está bom. — Com um aceno da mão desimpedida, ele mandou-me ir afixá-lo.

— Use fita adesiva, e não faça gracinhas com as mãos ou a cabeça.

Afixei o aviso.

— Agora, recue uns três metros. Mais um pouquinho. Vire-se mais para mim. Assim!

Sem mais conversa, ele apoiou a arma no ombro de Lily e fez pontaria contra a porta.

Concentrei-me. Quero romper nosso elo. Quero muito, mais do que qualquer outra coisa. Tenho que salvar Galan. Porém, nada mudou. Eu não conseguia nem sequer sentir nosso vínculo, ao contrário de quando quisera rompê-lo anteriormente.

Alguém estacionou do outro lado da rua. Fiquei muito tensa, assolada por uma densa névoa de medo e desespero. A mulher com duas crianças tomou outra direção e sumiu do campo de visão.

Minhas pernas tremiam, meu pescoço suava. Olhei para Fellseth, que sorriu cinicamente para mim, com a arma à vista.

Se eu conseguir relaxar, talvez consiga sentir nosso vínculo. Fechei os olhos.

— Abra os olhos. — Fellseth ordenou. —Não quero dramalhões.

Quando os abri, uma voz interna entoava frases de fracasso e desespero. Ele vai matar Galan, e você não pode fazer nada.

Extingui aquela linha de pensamento. Estou aterrada. A meditação que eu aprendera com Galan brotou-me na mente. Talvez aquilo me ajudasse a me concentrar. Mentalizei a base de minha coluna dorsal.

Vermelho para sobrevivência e alicerce. Galan é como se fosse meu alicerce, meu lar, ele trabalhou aqui na loja comigo. Laranja é paixão. Desloquei a atenção para meu baixo-ventre. Eu o amo muito, preciso muito dele. Quero tudo de bom para nós. Houve um primeiro formigamento energético nas solas dos pés, mas ainda não sentia o vínculo.

Fellseth sussurrou qualquer coisa para Lily e riu. Minha concentração fraquejou, mas continuei.

Amarelo é intelecto. Pensei no talento de Galan, nos coelhos brincando, desenhados numa folha de papel. O fluxo fortaleceu-se, subindo por minhas pernas.

Verde é coração. Lembrei-me da primeira vez que vi o rosto de Galan, belo e exótico à luz da rua. Apesar de minha rejeição, ele quis vincular-se comigo para sempre. Senti um nó na garganta.

Azul é garganta, minha capacidade de comunicar. Eu o amaria para sempre, e queria poder dizer isso a ele.

Índigo, o terceiro olho, é visão e intuição. Quase consegui sentir o vínculo, e só faltava um.

Violeta é universo, minha ligação a tudo que está nele.

Os pelos dos meus braços se eriçaram, e algo se moveu no meu campo de visão.

À porta da frente, Galan estendia a mão para abrir a maçaneta.

Nosso elo lampejou, um fio de chama invisível. Galan abriu a porta. Tudo parecia acontecer em câmera lenta. Fellseth firmou o dedo no gatilho.

— Não! — gritei e ergui a mão contra o elfo decadente. O raio elétrico não estalou; houve apenas um bruxuleio no ar, que emanou da palma da minha mão como tênues marolas num lago, e atingiu Fellseth, que arregalou os olhos antes de estilhaçar-se em mil partículas de prata. A nuvem expandiu e desapareceu feito centelhas que se apagavam.

A arma escorregou pelo braço de Lily e caiu estrepitosa no chão. Lily me olhou boquiaberta, soluçou e desfaleceu contra a parede.

A última coisa que vi antes de minha visão escurecer foi Galan no vão da porta da frente, lívido.

Alguém segurou minha mão, e abri os olhos. Era Galan que me olhava sorrindo, afagando meus dedos.

— Que bom que acordou!

Ergui a mão e passei meus dedos entre a sedosa cortina de seus cabelos.

— É bom acordar assim!

Ainda estávamos na loja. Atrás de Galan, Lily estava cabisbaixa, com o rosto ainda riscado de lágrimas.

Galan ajudou-me a levantar do chão. Apoiei-me no balcão e pisquei para desembaçar os olhos.

— O que aconteceu?

— É o que esperávamos que você nos contasse. — Galan olhou para Lily. Depois, pegou no chão a arma de Fellseth.

Friccionei meu rosto.

— Bem, eu ia romper meu elo com você...

— Como? Por quê?

— Para Fellseth não ser obrigado a matá-lo, e para alertá-lo de que estávamos com problemas.

Lily me encarou.

— Mas Fellseth disse que iria me matar se você avisasse Galan.

Suspirei.

— Você não acha que ele iria matá-la de qualquer jeito?

— E provável. — Ela indicou o tamborete. — Cadê ele?

— Está pela loja toda. — Galan passou a mão na parede atrás do balcão.

— Essa não! — Nós duas exclamamos.

— É uma assinatura à base de energia. Não precisa limpar. Mas agora não há mais dúvida de que ele está morto.

— E foi você quem o matou — Lily afirmou. — Como?

— Como eu dizia, eu estava tentando romper meu vínculo com Galan, mas estava tão aterrorizada que não conseguia me concentrar. Comecei a meditar para me acalmar, e executei a meditação energética que Galan me ensinou. Eu mal tinha terminado quando você chegou à porta e, naquele instante, parecia que eu estava vendo nosso elo. — Pasma, eu meneei a cabeça.

— E tudo o que fiz foi levantar a mão.'

— Ki — Lilly afirmou.

— O fluxo de ki, que devia estar muito forte quando ela ergueu a mão, impulsionado pela intenção de Erin, foi lançado contra Fellseth. Os mestres das artes marciais usam a ki para rachar tábuas apenas encostando a mão. Não há golpe, apenas energia.

— Para ser franca, Fellseth estava em péssimo estado. Talvez por isso ele tenha usado a arma de fogo. E não devo ter gastado muita energia para extingui-lo. Quanto tempo passei desmaiada?

Galan puxou-me contra seu corpo, com as mãos em minha cintura.

— Os piores vinte minutos de minha vida. Acho que vou levá-las para casa.

— Não posso ir agora, ainda tenho muito o que fazer. — Levantei-me na ponta dos pés e beijei-o.

— Vou passar o resto da minha vida com você, e vamos comemorar na nossa festa!

Ele aninhou minha cabeça. A alegria estava estampada no seu rosto.

— Está falando sério?

— Quando você entrou por aquela porta, eu soube que o que eu mais queria era estar ao seu lado, e nenhum elfo decadente iria mudar meu desejo.

Ele abraçou-me, e seu riso reverberou em meu ouvido.

— Todo elfo decadente que se preza vai querer ficar longe de você!

Galan telefonou para Kutara, contou as novidades e ficou conosco para ajudar na festa. Pendurou as grinaldas de seda com as lâmpadas pisca-pisca e fez o serviço de rua. O verdadeiro entregador dos mensageiros do vento acabou vindo, e os penduramos em toda a loja.

Depois de tudo pronto, fomos para a porta da frente ver o resultado.

— É o dia mais bonito da loja — Lily opinou.

— E ela nem é mais minha. — Ela fingiu chorar.

Eu ri e consultei meu relógio.

— Ainda temos uma hora. Podemos ir jantar. — Entrelacei meus dedos nos de Galan e sorri para ele.

— Uma boa parte disso devemos a você.

— Gostei de ajudar- — Ele retribuiu o sorriso.

Lily passou por nós, espremendo-se, e pegou a bolsa no escritório.

— Que tal irmos comer uma pizza?

— Ótimo! — Acompanhei-a. Galan cutucou meu braço.

— Por que nós dois não ficamos na loja?

— Para quê?

— Porque sim, ora.

— Boa idéia.

— Divirtam-se, crianças! — Lily sorriu e foi-se. Galan fechou a porta da frente e desligou as principais peças acesas. Acima de nós, as grinaldas floridas reluziam e cintilavam à luz das pequeninas lâmpadas.

— Espere aqui, já volto.

Ele dirigiu-se ao pátio dos fundos da loja, onde meu carro estava estacionado, e voltou com lençóis, cobertores e travesseiros.

— A que horas você pegou essa roupa de cama? — Ri, surpresa.

— Quando saí para comprar as lâmpadas. Também trouxe um sanduíche. — Ele levou-me para um lugar que não se podia ver da rua, ajoelhou-se e fez a cama no chão.

— E é comida o que você tem em mente? — Eu ri.

Ele suavemente fez-me deitar ao seu lado e começou a desabotoar minha blusa. .

— Andei pesquisando e encontrei dois contos que falam do penansel entre humanos e elfos. Podem ser lendas, mas um deles fala de um humano que passou a curar feridas depois que casou com um elfo. Acho que nosso vínculo é mais forte do que imaginamos.

Passei os dedos entre os fios prateados de seus cabelos e acariciei-o na ponta da orelha.

— Mesmo assim, é um passo muito grande.

Ele afastou minha blusa de lado e beijou a curva do meu seio esquerdo ao lado do coração.

— A outra história conta que o humano viveu muito mais do que o normal. — Seus olhos violeta estavam escuros e calmos.

— Impossível abrir mão da oportunidade de passarmos mais tempo juntos, amando-a como a amo.

Puxei-o e apertei-o contra meu corpo. Aquilo era mais do que eu pedia; e talvez mais do que ele devesse dar.

— Mas, quando eu me for... Para sempre é tempo demais.

— Esta é uma época de incertezas para os elfos. — Senti seus lábios curvarem-se contra meu pescoço.

— Mas tenho certeza de você.

Despimo-nos com ternura. Entre os beijos, as mãos de Galan acariciaram cada pedacinho da minha pele até eu sentir que derretia de prazer.

Quando ele se afastou, eu protestei. Ele desemaranhou sua calça de nossas roupas misturadas e pegou alguma coisa no bolso.

— Fiz algo para você, na esperança de continuarmos juntos. — Ele deitou-se sobre mim, cobriu meus lábios com os seus, colocou a mão em minha nuca e aninhou-me nele. Gemi, ansiando por seu beijo. Enrosquei minhas pernas nas suas e arqueei os quadris, convidando-o a estar dentro de mim. Ele me penetrou, e senti seu calor, sua extensão, a fusão de nossos corpos; senti prazer, o dele e o meu. A intensidade de nossa união deixou-me tonta, e ofeguei ao sentir a aproximação de nosso clímax.

Galan, com a mão direita, retirou minha mão esquerda de trás de sua nuca e segurou-a acima da minha cabeça.

— Ech torash lannan — ele murmurou, movendo-se cada vez mais rápido. — Sil fass, non tiem.

Uma corrente invisível percorreu a loja, fazendo os mensageiros do vento soarem suavemente. Inclinei minha cabeça para trás quando meu corpo se arqueou. Entreguei-me totalmente e experimentamos, juntos, o êxtase. Galan colocou algo em meu dedo anular.

Fomos nos aquietando aos poucos. Senti o peso daquele corpo quente e macio, e mais querido do que eu imaginara ser possível, sobre o meu. Quando consegui mover-me, ergui a mão para ver o que ele me dera.

A luz das lâmpadas decorativas era tênue e desnecessária. Em meu dedo, cintilava um anel de ouro branco, na forma de uma coroa de louros, ornado no centro com uma pedra verde lapidada em forma de rosa.

— Aquelas palavras, o que queriam dizer? — sussurrei. Galan segurou minha mão e dobrou-a dentro da sua; o anel tocava-nos simultaneamente.

— "Do meu corpo para o seu, um coração, para sempre."

 

A festa da Rosa Verde era um sucesso retumbante. Kutara conseguira chegar a tempo. Entre os convidados, vi Geraldine Krupper, que se aproximou de mim com um pedaço do pão de gengibre da Sra. Jamison.

— Tenho que admitir, Erin, que nunca a vi tão bem como hoje. A viagem a Nebraska deve ter-lhe feito bem. Aliás, Lily ainda nem me explicou qual foi a emergência que as levou até lá.

Inclinei-me e baixei a voz:

— Na verdade, Lily e eu estávamos trabalhando tanto que resolvemos ir a Las Vegas para relaxar, mas ela não quer que ninguém saiba.

— Ora — ela impacientou-se —, as mulheres aqui de Boulder são tão pudicas com essas bobagens.

— A senhora tem toda a razão. Com licença, vou mandar servir o jantar. — Demorei a encontrar minha idosa vizinha.

— Olá, Sra. Jamison! Vi seu pão de gengibre, e por isso soube que estava aqui.

— Eu devia ter feito duas fornadas. Quanta gente! — Ela apontou para onde Galan estava, alto e bonito, rodeado por um grupo de admiradoras.

— Seu amigo está ali. Cuidado para não o levarem!

— Não estou preocupada. — Sorri, estendendo a mão esquerda para mostrar-lhe meu anel.

— Que lindo! — Com sua mão frágil, ela apertou a minha.

— Sabe, sempre achei-a diferente. Seu aspecto está ótimo, nunca a vi assim antes. Sua luz vem de dentro.

— Deve ser felicidade — sussurrei e beijei-a no rosto.

— Ei, proprietária. — Lily acenou da mesa de refrescos.

— Acabaram os guardanapos, você pode trazer as toalhas de papel?

Pedi licença e fui ao banheiro dos fundos pegar as toalhas, guardadas no armário em cima da pia. Enquanto as pegava, ouvi a voz de Kutara. Já com as toalhas na mão, vi-a conversando com a cliente que queria atrair energia dos elfos para suas terras.

— Entrei aqui para comprar um livro — ela disse —, quando aquele homem ali apareceu dizendo-se doutor em elfos ou coisa assim. Perguntei a ele como atraí-los, e ele disse tanta bobagem que você nem imagina! Nada fazia sentido. Disse para eu vender meus cavalos e deixar o mato crescer. O que você acha que os elfos podem querer?

— Já que está perguntando... — Kutara ergueu elegantemente o punho e esticou o dedo indicador.

— Primeiro, um companheiro com vigoroso apetite sexual. — A mulher recuou um passo.

— Segundo, uma base de operações particular e assessores de confiança.

— Eu... — Ela esganiçou.

— E a terceira exigência, mas não a última... — Kutara ergueu o terceiro dedo e aproximou-se.

— Uma conexão de internet de altíssima velocidade.

Cobri minha boca com a mão para esconder o riso e vi Galan, do outro lado do aglomerado de gente, sorrindo para mim.

O mundo estava repleto de coisas novas, estranhas e maravilhosamente sensuais. Na minha opinião, tudo era possível.

 

                                                                                Esri Rose  

 

                      

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