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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


VAGABUNDOS DE NÓS / Daniel Sampaio
VAGABUNDOS DE NÓS / Daniel Sampaio

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

  

                                 Pietà

Sentamo-nos os dois. O frio, perpendicular, abafa qualquer comiseração. Sempre vagabundos de nós, tudo nos falta menos a rua. Esta noite um som ecoa, a luz, acre, levanta o peso do calor, e eu não sabia, calada e não refeita, de teu sono vigilante que já não me pertence. No quarto anterior, dormias em meu ventre, hoje o tronco no colchão firme recusa um qualquer sincronismo com o meu desejo. Somos luz comum, porém, caminho idêntico e diverso, o que atrai e repele, breve hesitação a minha, a de quem transporta o recém-nascido a um ritmo novo.

Se eu chamar tua voz para meu lado, arranco a flor mutilada à superfície da água. Mas teu labor é nocturno, ponto instável, díspar; a dúvida, uma interrogação insidiosa. Era um segredo, o nosso, amor lento, corpo que

nos cerra e mais tarde se extingue. Se espreito, o menino morre. Fecho então os olhos, e aprendo a ler sobre o texto o longo breve rio entre ti e o outro, o sentido da inverosimilhança, a ausência radical e lisa. Vou envelhecer tentando segurar a maternidade no peito.

 

 

 

 

Levas contigo os sonhos que tive quando te inventei? Sempre quis que fosses a minha palavra para além do que dizia, o eco da minha voz ao longe, o meu não constante aos donos do mundo. Desejei-te sereno e revoltado, criativo mas lúcido, corajoso e terno. Queria-te independente e próximo, criança e homem, alguém capaz de levar por diante as minhas ideias. Por vezes imaginei-te um rasto de mim, um pedaço do meu corpo a viver ao longe, um novo ser poucas vezes diferente do que ambicionei. Noutras ocasiões desenhei-te distante, mal te distinguia ao longe, ficava então só e à espera, o tempo havia de te fazer regressar para junto de mim.

Olho agora a notícia da tua morte, o recorte de um jornal diário onde alguém (o teu pai?) mandou escrever palavras sem sentido, a custo distingo a cruz sobre o nome Diogo que escolhi com alegria há vinte e dois anos, apenas sei que o frio me invade a cada dia que passa e o terror de te ter perdido para sempre cresce dentro de mim.

Ainda hoje oiço o telefone, distingo a voz cautelosa de alguém do hospital a interromper um sonho que não esqueço (estávamos à beira-mar e contavas o último filme, crianças brincavam ao pé de nós, a certa altura não tinhas vinte e dois anos mas apenas quatro ou cinco, levava-te pela mão até que o mar te desse pelos joelhos, encostavas o teu corpo ao meu e dizias ter frio), acordei o teu pai com um grito e depressa lá chegámos, tanta gente apesar da hora, as luzes das ambulâncias, portas a abrir e a fechar, médicos apressados sem olharem para nós, finalmente o teu corpo inerte ao fundo de uma sala.

Fiquei sentada ao lado do teu pai num banco de madeira da sala de espera, em vão queria saber notícias, explicações sobre o teu estado, alguém que me dissesse que não irias morrer, um qualquer médico que fosse capaz de parar e ouvir-me.

Pensava sempre em ti. No dia em que nos despedimos à porta da escola. Na história do menino, do coelho e do mocho que lhes ensinou o caminho para o mar (lembrei-me, Diogo, sentada no hospital à espera dos médicos, da primeira vez que me corrigiste, quando eu, preguiçosa, procurava chegar depressa ao fim, tinhas três anos acabados de fazer e querias ouvir tudo). No Jardim Zoológico, onde passeámos tantas vezes, só eu adivinhava o teu gosto pelas aves e o teu horror pelos macacos. Nos nossos passeios no pinhal, tu a correr à procura de flores, eu sentada num tronco de árvore a olhar para ti, finalmente o médico

chegou em coma profundo, estamos a fazer o possível...

por que razão não fui eu a guiar o carro naquela noite, por que motivo te pedi (exigi mesmo) que fosses buscar o saco de roupa que tinha esquecido na casa da praia? Parecia desconhecer que tinhas bebido um bocado, como sempre que discutias com o pai, cansada das vossas zangas pensei que te faria bem dar uma volta, arrefecer a cabeça longe de nós, a verdade é que logo disseste que “sim”, mais uma vez parecias disponível para o que te pedia, como posso agora viver com esta mágua?

Ficaste na unidade dos cuidados intensivos durante cinco dias. Não tinha sono nem fome, lembro-me de beber chá num velho bar a precisar de obras, onde alguns dos teus colegas da Faculdade me procuravam animar. Como não lhes era permitido olharem-te pela última vez, dividiam-se desde a entrada da Unidade dos Cuidados Intensivos até à porta do café, em conversas ciciadas, o teu pai sempre a perguntar: “Quem é este?” ou “como se chama?”, o teu irmão a deixar-se ficar para trás, sem saber o que dizer.

«Morte cerebral, infelizmente.»

Foi assim que o médico me comunicou o teu fim. Era preciso esperar mais um pouco por razões que não percebi, só então estarias ao pé de mim pela última vez, poderia beijar-te e dizer adeus, não consegui na altura entender, que jamais me vou separar de ti mesmo para além da tua morte.

Agora estás ao meu colo na varanda da casa da praia, o carro de brincar junto ao portão, a mancha branca e cinzenta do nosso gato aparece de vez em quando entre os arbustos, acabas de me pedir a chucha numa vozinha baixa e cúmplice, tens apenas 3 anos e já estou a imaginar o teu futuro, como serás como pai e eu como avó, só uma sombra me invade nessa altura, o aparente desinteresse do pai por ti e, ainda bem que tudo fazes esquecer quando encostas a cabeça e quase adormeces.

Estou no teu funeral, a voz do padre sussurra que eras uma flor tão bela que o Criador a levou para o Jardim do Paraíso, ninguém poderá compreender a falta que me fazes e a raiva que sinto por te ter perdido, de repente são cinco da tarde e estou a apressar-me para te ir buscar ao infantário, apareces a correr e a sorrir, a educadora a custo entrega o teu casaco, abraças-me no carro e chegamos a casa num instante...

Não sei se a minha vida prossegue, agora que moro longe de ti. Sempre que nos separávamos, reinventava-te num instante ao pé de mim, chegava a falar contigo na tua ausência, quando regressavas depressa esquecia a tristeza de teres partido. E quando te afastavas de novo, tudo recomeçava, entrava no teu quarto e ficava sentada na secretária, percorria com os dedos o computador, as lombadas dos livros, os brinquedos preferidos, os frascos miniatura que coleccionavas. Quando comecei a preocupar-me a sério, procurava indícios, pistas, pequenos pormenores que me tranquilizassem, cheguei a mexer nos teus papéis e gavetas, para logo me culpar, achar que tudo se iria resolver e que na realidade não eras diferente dos teus colegas, era eu que me inquietava sem razão.

Como naquele fim-de-semana prolongado em que quiseste ir ao Porto. Tinhas onze anos, o teu corpo crescia mas a voz traía-te, ainda eras o menino delicado e sensível que tinha aprendido a amar na infância. Andavas muito só, ia buscar-te à escola e estavas a ler encostado a uma árvore do velho pátio, ou em conversas sossegadas com meninas, perto da Sala dos Professores. Nunca surgias suado e vermelho como os teus colegas depois do futebol, nem em correrias de grupos barulhentos, a empurrarem-se na escada ou no campo de jogos. Inquietava-me o silêncio dos teus gestos, o olhar distante e perdido, os desenhos a negro que descobria nos cadernos, um gosto pela música clássica que julgava próprio de adulto. Por isso estranhei o teu desejo de ir ao Porto, um amigo das férias chamado Pedro de que nunca tinha ouvido falar, uma pressa pouco habitual em obter o nosso sim.

E por que razão haveria de dizer que não? Feriados de Junho, óptimo tempo, a mãe do Pedro solícita ao telefone, o pai encantado com o teu desembaraço. E, no entanto, a inquietação que me assaltava desde a tua infância cresceu de novo, recordei o pai descontrolado a bater-te e eu sem saber o que fazer, inventei desculpas, família desconhecida, a distância, o jantar em casa da avó, a tudo respondias com firmeza, parecia que o mundo acabava se não partisses.

Insisti em levar-te. Fomos os três de carro e estavas alegre, nem quiseste parar durante o caminho, só falavas como seria bom estar com o Pedro a brincar com a play-station. O teu pai também parecia feliz, tocou-me na perna com um sorriso cúmplice quando te ouvimos entusiasmado, até guiou com uma segurança desconhecida para mim.

Viviam num apartamento perto da Boavista, uma sala cheia de móveis a precisar de ser limpa, muitas portas entreabertas para quartos desarrumados, a entrada cheia de facturas velhas por cima de uma secretária pesada. Quis voltar para Lisboa e para a nossa casa discreta e arranjada, para a varanda onde de mão dada descobríamos as estrelas, mesmo para os momentos em que partias para a escola e me deixavas só. O teu pai parecia diferente, começou logo a falar com o pai do Pedro sobre o Futebol Clube do Porto, simplificava as coisas, é claro que regressarias de comboio, felizmente comias de tudo e a comida do Norte era óptima. Parecia desejoso de te deixar, surpreendeu-me por completo quando perguntou por restaurantes próximos para almoçar.

Senti-me ridícula com as minhas dúvidas, qual o quarto onde irias ficar, se achavam que terias roupa suficiente, recomendações sobre a hora de deitar e restrições ao horário da televisão, quais os gostos do Pedro que não conhecia. O teu amigo olhava-me um pouco de lado, julguei mesmo ver alguma crítica naqueles olhos salientes de míope, em breve te puxou para o computador do quarto e lá ficaram, o Pedro sempre a rir alto, tu muito atento a tudo o que ele fazia.

Os senhores insistiam para que nos sentássemos, hesitei entre um pequeno sofá de napa verde e uma cadeira de escritório junto a uma camilha, com surpresa o teu pai puxou-me para o seu lado e ficámos de frente para os pais do Pedro que, solícitos, serviam aperitivos. Não consegui seguir a conversa, o meu olhar vagueava entre o lustre a que faltavam peças e a vista da varanda para uns prédios velhos, procurava decifrar as vossas risadas ao longe, o Pedro seria mesmo teu amigo?

Festas de anos falhadas, encontros sugeridos pelos professores onde não surgia ninguém, a Directora de Turma do

6º ano a dizer que andavas muito isolado, o teu pai a insinuar que te protegia de mais, lá estava a mãe do Pedro a oferecer um bolinho de bacalhau, pedi para ir à casa de banho, precisava estar só para reflectir. Passei pelo quarto do Pedro, estavam sentados lado a lado em pequenos bancos frente ao computador, a janela entreaberta deixava ouvir os ruídos dos carros na avenida. A casa de banho era junto ao quarto do teu amigo, pude continuar a ouvir as conversas sobre a play-station, vi a minha imagem cansada no espelho de um pequeno armário cheio de sabonetes minúsculos e restos de pastas dentífricas. Desejei que fosse tudo mentira, as zangas com o pai e os meus receios, afinal eras um rapaz como qualquer outro e eu não passava de uma mãe possessiva e angustiada. E, no entanto... quem sabe se o problema não estava resolvido, diz-se que tudo começa na infância e que não há fumo sem fogo, que poderia fazer naquele momento?

Regressei à sala, o pai falava de política com grande à-vontade, a mãe do Pedro convidou-nos para almoçar, ainda bem que fui rápida na resposta e disse, a sorrir, que nunca se recusava um almoço íntimo com o marido.

Recordo este fim-de-semana no Porto porque me lembro de afinal ter ficado apaziguada, os medos nascidos durante a tua infância não pareciam ter razão de ser. Fui buscar-te à Estação de Santa Apolónia, trazias um blusão emprestado pelo Pedro e correste a abraçar-me como sempre fazias, pensei como era louca, tudo tinha corrido bem e estavas de novo comigo, até parecias mais conversador, partilhavas comigo as brincadeiras pela noite fora, as comidas diferentes (tinhas, lembro-me bem, descoberto um novo gosto por arroz) e a paixão pela play-station, nada parecia preocupar-te nesse momento. Pensei que tinha sido o nosso afastamento que agravara os meus medos, desta vez é que estavas a ser um rapaz como os outros, a passar fins de semana fora, não é verdade que era o início da adolescência e nessa época da vida é bom aprendermos a viver longe dos pais? Reflecti também sobre a minha necessária mudança, não poderia continuar, como até aqui, a organizar a vida à tua volta. E, no entanto, era assim que fazia sentido. O trabalho não motivava muito, o teu irmão estava numa fase que não dava grandes problemas, as amigas falavam demasiado da vida alheia para me apetecer estar com elas. E o teu pai? Por estranho que pareça, vivíamos um momento razoável. Centrado como sempre no escritório, parecia mais tranquilo a teu respeito e isso facilitava o nosso entendimento. Embora não estivéssemos próximos, não tínhamos nessa altura as terríveis discussões que te angustiavam. Sempre foste a verdadeira razão da minha vida e a tua alegria, quando te via livre, inundava os meus olhos de uma luz por todos notada, como naquela tarde na Estação de Santa Apolónia.

Desde essa altura, prometi a mim própria que te deixaria voar, não mais seria egoísta para te reter junto a mim, não iria propor programas idiotas contra a tua vontade, os receios seriam guardados cá dentro bem longe de todos, só pediria um lugar especial no teu coração, por certo não mo negarias.

Só à noite, durante esse período, os medos voltavam. Pensava que o teu entusiasmo pelo Pedro era excessivo, não gostava dos telefonemas constantes com frases que não entendia, imaginava que um dia irias viver para o Porto e eu ficaria sozinha, a culpa por não ligar ao teu irmão era difícil de suportar. Logo a seguir tudo recomeçava, eras de novo pequenino e estavas sozinho na escola primária, ouvia o teu pai criticar-me por te proteger em excesso. Também te lembras da minha mãe, onde quer que estejas por certo não a esqueces. A tua avó Xinha, como sempre lhe chamaste, foi uma grande companheira para mim, mas neste ponto concordava com o teu pai. Muitas vezes me recomendou que não andasse atrás de ti, precisavas desembaraçar-te e correr alguns riscos, só perante as situações é que aprendemos a resolvê-las, como costumava dizer com aquele ar sério dos grandes momentos. Nem ela parecia compreender-me. Não percebia que desde há muito pressentia um problema, não imaginava como eu pensava que o pior ainda estava para vir, um dia seríamos esmagados pelas tuas dúvidas e receios e viveríamos momentos difíceis. E era essa certeza de um futuro inquietante que me obrigava a proteger-te de novo, às vezes mesmo a tentar controlar-te sem razão aparente, pelo menos a tentar organizar os meus tempos livres à volta dos teus.

O Pedro passou, afinal era apenas um amigo de Verão, como me explicaste mais tarde, «devias saber, mãe, que os amigos e os namoros de praia ficam enterrados na areia, este afinal ainda durou até ao Natal», voltaste à tua solidão e eu à minha vida de pormenores onde só tu tinhas um lugar importante, o teu pai e a avó Xinha recomeçaram as críticas.

Foi nessa altura que me procuraste na varanda da nossa casa de Lisboa. Conhecias bem o meu hábito de me isolar de vez em quando, como naquela noite de Primavera. Reparei que os gestos dos teus braços se lançavam no espaço à minha frente e não condiziam com as palavras que balbuciavas. Conversámos sobre amizades e namoros, de como na escola se falava muito em sexo e não te sentias à vontade. As mãos teimavam em desobedecer-te, mais rápidas do que o teu pensamento pareciam conduzi-lo para um terreno proibido, que só a espaços querias partilhar comigo. Pensei nisso tudo enquanto procurava ajudar-te, pontuava o teu discurso quase sem nexo com palavras de encorajamento, quase reformulava as frases para ti. Fiquei com a certeza do que receava, o problema da infância não tinha desaparecido, continuavas diferente e só, procuravas agora ir mais longe, buscavas em mim uma aliada para o teu íntimo, alguém que não te criticasse nem exigisse.

Fantasmas perseguiam-me enquanto te ouvia, decerto já tinhas tido experiências que não te atrevias a contar, talvez o Director de Turma, sempre tão preocupado com o teu isolamento, percebesse mais do que dizia, um colega sem dúvida seria melhor confidente do que eu, que poderia fazer se não abraçar-te com força? Embora não te afastasses, o teu corpo tornou-se de súbito mais rígido, a tua voz quase sumiu no meu peito e disseste para não me preocupar, eram desabafos de adolescente, como deveria saber era uma época difícil, tudo se iria resolver.

Resolver de que modo, meu filho? Pelo silêncio, como durante onze ou doze anos? Pelo afastamento dos pais, como acontece na juventude de tanta gente? E foi ali, naquela noite na varanda, que tive a certeza de que a nossa vida se cruzaria para sempre, juntos combateríamos a ignorância e o medo, nos limites da vertigem estaria a teu lado, nunca existiriam mordaças para calar o nosso amor.

Nada disto te disse, Diogo. Jamais conseguiria partilhar contigo estes meus loucos receios, não te poderia confidenciar, naquele momento, o propósito de continuar a teu lado em todas as circunstâncias do futuro incerto que acabavas de mostrar. Sei hoje que percebeste tudo, a certeza de que tinha compreendido o que antes me deixavas ver ao longe, a convicção definitiva de que não poderias esconder-te de mim, deixavas de ser o menino frágil e inocente que eu protegia sem saber porquê.

Como te amei naquela ocasião! Como desejei que os momentos daquele encontro não acabassem! Senti-me como se estivesse sentada ao lado de mim mesma, como se de fora observasse aquele filho e aquela mãe, o compromisso secreto ali confirmado, o tempo do futuro, sem sul nem norte, que a partir daquele instante se alongava. Nada disseste no final, a tua mão demorou-se um pouco na minha, e nem me apercebi de que entraste na sala sem olhares para trás.

Agora estou de novo no teu funeral, alguns dos teus colegas que conheci no hospital estão encostados à parede da capela mortuária, a avó Xinha está sentada muito direita bem perto de ti, vagueio perdida entre abraços apertados e palavras de circunstância, o meu olhar cruza-se com a pessoa que amavas e logo o desvio, não posso permitir que alguém partilhe a dor que ambos sentimos neste momento, afinal não estamos sós porque estás connosco, podes confiar que nunca te deixaremos.

 

             Sempre quis guardar esta fotografia da minha escola. Estou de pé, ao lado da professora, com a cabeça cheia de caracóis e um bibe de riscas azuis e brancas.

Vejo a data do retrato, corresponde aos meus nove anos, a conversa foi uns dias depois da festa.

- Diogo, queres vir brincar ao elástico?

Aquela miúda parecia mandar nas outras. Nunca tinha reparado nela, não me dava com ninguém. Disse que sim, para não ficar sozinho. Os dias passavam devagar, sem brincadeiras nem amigos.

Foi a primeira vez que me senti diferente. Os meninos não brincam ao elástico, jogam futebol. Mas foi bom, nem sequer me incomodei com os risinhos das miúdas. Estive acompanhado e pronto. Como te lembras, até o dia de anos tinha corrido mal.

No dia da festa, mãe, critiquei-te sem razão. Sei que te esforçaste para que tudo corresse bem. Os convites desenhados no computador, o nome de cada um dos convidados escrito pela tua mão, os sobrescritos com um ursinho Pooh no lugar do selo. Gostei muito. Quase todos confirmaram. Fiquei tão contente, disse que a festa era o melhor presente que me poderias dar. Não precisavas gastar mais dinheiro com outras prendas.

Esperámos pelos meninos vendo televisão de mão dada, com muita calma dizias que acabariam por chegar. Comecei a ter dúvidas, levantava-me e sentava-me, não compreendia o que se estava a passar. Teria dado os convites às pessoas certas? Tinhas tomado nota de quem vinha? Não seria melhor telefonares?

A tudo respondias sem pressas: os meninos não demoravam, alguns moravam longe e ao sábado o almoço era sempre mais tarde, muitos tinham confirmado, não havia problemas, se estivesse com fome poderia comer alguma coisa, não fazia mal.

Vieram apenas duas meninas. Alguns convidados, lembro-me como se fosse hoje, nem telefonaram a explicar a ausência, os que avisaram deram desculpas que não convenciam ninguém. Brincámos os três com puzzles e legos, uma das meninas encantou-se com o Ricardo, cheguei a pensar por momentos que o meu irmão é que estava a ser o rei da festa.

Tenho agora dezoito anos, acabei de entrar para a Faculdade e continuo a sentir-me diferente, mas queria dizer-te, mãe, não esqueço esse dia. Recordo como me secaste as lágrimas quando as meninas se foram embora, lembro como me abraçaste no teu colo. Senti que afinal o mundo não ia acabar. Estávamos todos na sala, a mesa cheia de sandes e doces que sobravam, o Ricardo a brincar no chão, a avó Xinha a ver a telenovela do fim da tarde e o pai, como sempre, a ler o jornal, como se pertencesse a outro mundo. Eu estava muito triste. Sentia uma espécie de buraco dentro de mim. Sabes que mais tarde encontrei muitas vezes esse vazio. Foste a única pessoa que sempre o notou. Agradeço-te nunca me teres deixado completamente só.

Naquela tarde, quiseste dar a volta ao problema. Disseste bem das meninas e das brincadeiras que tínhamos tido. Propuseste ao pai jantar fora. Ficaste ao meu lado até eu adormecer. Quase me convenceste de que a minha festa dos nove anos não tinha sido um fracasso. Também acreditaste que no futuro tudo iria correr bem?

Volto aos meus dezoito anos, estou no bar da Faculdade, sozinho numa mesa onde nenhum colega se quer sentar, as latas vazias de coca-cola e as garrafas de cerveja lembram os copos de papel alinhados na festa dos meus nove anos, quem me dera estivesses de novo a meu lado e pudéssemos conversar.

Pelas janelas vejo ao longe a cidade inquieta, estudantes entram e saem batendo com a porta do bar, empregados gritam ao balcão por pedidos que não chegam, revejo apontamentos de aulas que não interessam. De repente estou de novo no pátio da escola a brincar ao elástico, os rapazes da minha aula estão a jogar à bola no campo de futebol, outros empurram-se na escada em correrias que me metem medo. Sou mesmo diferente deles. Tenho menos força e não me importo de brincar com as meninas, uma delas prende-me os pés com o elástico e sinto-me melhor. Está tudo a correr bem na escola, mãe, não te preocupes. Para o ano vou ter mais gente na minha festa, não havia necessidade de comprares tantos presentes no dia seguinte, não achas?

Mãe, tenho de dizer-te que nem tudo foi fácil entre nós. Sempre a meu lado, às vezes não conseguias ver o que para mim era evidente. Acho que esse é o problema dos pais. Preocupam-se, queimam as pestanas a ler livros de psicologia e não percebem o que está à frente dos olhos. Ou então não fazem nada, com medo de nos traumatizar. Desde há muito que suspeitas que não sou como os outros. Nunca gostei de sítios barulhentos, nem de programas só porque tem de ser. Odiava ir a casa da tia Madalena, acima de tudo porque é irmã do papá, depois nunca curti os primos. Só falavam de futebol e de miúdas, com dezasseis e dezassete anos já se gabavam de aventuras que me desagradavam. Passavas a vida a desculpá-los, a dizer que quando chegasse à idade deles havia de ser parecido. Não percebias como era diferente? Aos doze anos assaltavam-me dúvidas, uma vezes queria alinhar nas conversas masculinas e tudo parecia bem, ganhava forças e a seguir conseguia ter raparigas a olhar para mim. Noutras ocasiões olhava para os rapazes, fixava pontos no seu corpo, à noite tinha a cabeça cheia de imagens que me causavam confusão.

Não gostei de me ver crescer. Era como se a pressão para me definir aumentasse em cada dia, umas vezes imaginava-me a fazer amor com uma rapariga, noutros momentos excitava-me com homens. Os sonhos eram confusos. Lembro-me de um dia acordar aflito, estava num quarto com um colega da escola que me queria violar, noutra noite vivia rodeado de belas mulheres e não sabia como as conquistar.

Desde os dez anos que fugia de ambientes masculinos. Como sabes, mãe, nunca gostei de futebol, embora às vezes, devo confessar-te, observasse os jogadores na televisão, sem dizer nada a ninguém. O pai sempre teve pena, mas não fazia sentido acompanhá-lo aos jogos do Benfica. Os pais devem aceitar que há certas coisas em que não vale a pena insistir, são assuntos que os mais velhos não podem compreender.

Por isso, mãe, não percebi a tua insistência com a natação. Nunca o desporto me entusiasmou, é verdade, mas não odeio a água, como em fúria me chegaste a dizer. Lembras-te das nossas brincadeiras na piscina da Praia das Maçãs? Entravas comigo, brincávamos com uma bola de praia, com ternura dirigias os meus mergulhos, a puxar-me mal acabava de desaparecer na água. Às vezes outras crianças aproximavam-se. Eu não gostava nada. Para mim, eram pessoas que vinham perturbar a nossa paz. Por que razão não ficavam ao pé dos pais? Mas tu eras simpática, emprestavas a bola e dizias «Diogo, aqui está um menino para brincar contigo». Depressa corria com todos, não queria partilhar-te com ninguém.

As aulas de natação foram um tormento a que me obrigaste durante alguns anos. Deves lembrar-te disso. Descobri nessa altura uma mãe diferente, teimosa e chata, a insistir numa ideia que não fazia sentido. Além do mais, detestava o professor, um gajo de bigode tipo treinador da bola, perito em dar carolos aos alunos e em dizer palavrões. Nunca o vi dentro de água, ensinava sentado numa cadeira tipo realizador de cinema, colocada na borda da piscina e logo afastada quando os salpicos aumentavam. Sabes que me fez chorar muitas vezes? Achava que não tinha jeito para aquilo, tratava-me por Dioguinho e por duas vezes me chamou maricas. Nunca aprendi a mergulhar, a abrir os olhos debaixo de água, ou mesmo a conseguir nadar sem esforço.

Como poderias insistir naquelas aulas? A verdade é que não paravas de ralhar, quando falava em faltar nem sequer admitias a conversa. Às vezes ias assistir às aulas e eras a primeira a criticar a minha falta de entusiasmo.

É certo que não conhecias o meu drama. Não penses que o problema era o gajo do bigode, embora estivesse cada vez mais farto dele. Lembras-te quando mudou de fato de banho e apareceu de tanguinha ridícula, «a realçar a natureza», como gostava de dizer? Vim mais tarde a saber que uma noite deixou a mulher e fugiu com o cantor da discoteca, nunca foste capaz de me dizer nada.

Vou agora confessar-te o que me afligia. Nunca estranhaste a minha demora nos balneários? Tinha medo do que sentia, mas gostava de olhar para os homens. Quem sabe, tantos anos passados, se foi isso que me permitiu suportar os teus ralhos e os gritos do professor, a minha falta de jeito para os exercícios e os meus problemas com os mergulhos. Chegava, na noite anterior, a excitar-me quando definia estratégias para espreitar. Alguns homens facilitavam-me a tarefa, passeavam nus antes e depois do duche, ou conversavam de um chuveiro para outro, enquanto se ensaboavam. Outros faziam a barba ou penteavam-se frente ao espelho, sempre sem roupa ou com cuecas a deixar adivinhar tudo. Chegavam a sorrir ou a meter conversa comigo, interrogo-me hoje se com alguma intenção.

Eu andava de um lado para o outro, fingia esquecer-me da toalha ou de uma peça de roupa para poder voltar atrás e espreitar de novo, depois fugia dali e pensava ir-me embora, mas novas situações surgiam, lá estava aquele a passar o gel de uma cabina para outra e eu a seguir tudo com atenção, agora fingia precisar de ir à casa de banho para continuar a observar...

É evidente que nunca te contei nada disto. Só depois da grande discussão com o pai abri um pouco o jogo. Aliás, que havia para contar? Não entendia o que se estava a passar comigo, tinha apenas uma vaga sensação de ter desejos diferentes do que era esperado, mas depois tudo passava, era capaz na escola de dizer piadas ou ver revistas pornográficas com mulheres, aos doze, treze anos tudo me parecia interessar e nada fazia grande sentido.

Podes perguntar o que sentia a meu respeito. Como já te disse, achava-me diferente, nada mais. Acreditava que tudo ia correr bem, todas estas confusões deviam ser da idade.

No Verão dos meus doze anos, deves lembrar-te, insisti mais uma vez para desistir das aulas e, com surpresa, o papá apoiou-me. Estávamos no Algarve numa aldeia turística, a piscina era muito pequena, sempre cheia, e aproveitei para gabar o mar e convencer o pai a deixar-me parar com a natação.

Seguiu-se um período bom, tinha passado o 6º ano com boas notas. Depois de ter mudado de escola, sentia-me melhor no novo espaço, mais moderno e com menos gente.

Estava mais tranquilo, tinha agora alguns amigos com quem conversava nos intervalos, com algum esforço pus ponto final nas minhas dúvidas, aos doze anos temos muito tempo, tudo se iria arranjar se conseguisse ter calma e não andasse a brincar com o fogo.

Como andavas contente! Um dia compraste-me roupa nova, não gostei de tudo mas não te quis desiludir, lembro-me de que na escola as raparigas apreciaram e me senti feliz. A Sofia até parecia interessada em mim, foi uma sensação nova que ainda hoje recordo. Foi a primeira vez que pensei numa namorada, antes disso estava tão confuso que me parecia impossível. Quando espreitava os homens tinha pensado se um dia me tornaria gay, mas logo afastei essa ideia, tudo passaria com a idade, pensava, ficava então sossegado por uns tempos.

Imagino-me a andar com a Sofia de mão dada nos corredores da escola. No sétimo ano já muitos namoram, vejo-os aos beijos nos recantos do pátio e fico contente. Qualquer dia faço como eles ou como observo na televisão, ainda bem que me compraste aquela roupa gira, mãe, foi assim que ela reparou em mim.

Um dia, a Sofia convidou-me para uma festa, fiquei tão contente que fui a correr contar-te, mamã. Ajudaste-me a escolher um livro para lhe dar, «se tivesse não havia problema porque se podia trocar», afinal não era festa de anos e fiquei com o livro na mão, por sorte a Sofia, na excitação de receber os convidados, nem sequer reparou.

Correu tudo muito bem, os pais apareceram só no início e deixaram-nos à vontade, música e filmes no vídeo fizeram a tarde passar num instante. Nem por um só momento me senti a mais. Era como se os meus medos e desejos proibidos se tivessem ido embora de vez. Tinha a certeza de que ao lado dos meus colegas de escola nada de mal me poderia acontecer.

A mãe da Sofia veio a certa altura acender as luzes, parecia que ainda não tínhamos idade para aqueles ambientes, o pai sorria encostado à parede, sem nada dizer. Nunca tinha estado numa festa assim, como sabes não me dava com ninguém.

Como foi bom contar-te tudo, mamã! Era quase meia-noite quando me trouxeram, lias uma revista na sala ao lado do pai, puseste-a logo de parte para me ouvir com atenção. Tantos anos passados, foi alívio o que vi nos teus olhos?

Não foi isso que te fez dizer «ainda bem que tudo correu como querias»? Será que receavas alguma coisa? Nunca serei capaz de perguntar, mas posso hoje dizer-te que também me senti aliviado, como se tivesse receio de que os medos dos balneários me invadissem de novo, como se me pudesse assustar de repente com uma festa de gente nova e com aquela rapariga tão bonita...

O pai também se interessou, penso que ainda não estava muito preocupado comigo (ainda não se tinha dado a discussão que, um dia mais tarde, tudo iria precipitar), mas talvez estivesse inquieto com o meu isolamento e desinteresse pelo desporto. O certo é que fez várias perguntas e comentários a propósito e lembro-me, como se fosse hoje, que olhaste para ele a sorrir e disseste como eu estava contente.

Uns meses passados e tudo começou a correr mal. Não andava bem de saúde, o pediatra só receitava vitaminas, às minhas terríveis dores nas pernas dizia que eram do crescimento, à minha falta de apetite respondia com a idade.

Mudei de médico e tudo foi diferente, o novo dava-me muita atenção e gostava de conversar comigo, música e pintura eram os seus temas preferidos a que eu tentava responder. As análises pedidas mostraram (lembras-te, mãe?) uma doença de nome esquisito, mononucleose infecciosa, a «doença dos namorados», como explicou. Não lhe disse que não tinha namorada nem que nunca tinha curtido com uma rapariga, porque o seu sorriso maroto me atrapalhou um pouco.

O pior estava para vir. Faltei quinze dias à escola e foi o fim. Quando regressei, a Sofia andava com um gajo qualquer, a turma parecia estranha e os professores não me receberam bem. Fiquei de novo só.

Precisei outra vez de ti, mãe. Não foi preciso dizer nada, aparecias quando menos esperava e era bom. Surgias na escola nos dias de mais trabalho, sabia bem regressar a casa de carro e responder às tuas perguntas sem pressa. Só uma vez falaste da Sofia, logo percebeste que não valia a pena insistir. Não tinha havido nada, tudo tinha acabado antes de começar. Só uma vez disseste uma frase batida de que não gostei, claro que aos doze anos se é muito novo e temos muito tempo à nossa frente, mas comigo era diferente, a Sofia era o fim dos medos e a certeza de um caminho aceite por todos, um percurso como o dos filhos das amigas de que tanto falavas.

Apesar de tudo, não entrei em pânico. Fiz um esforço para estudar para os testes e consegui boas notas. O pai não se apercebeu de nada, como de costume pôs o escritório em primeiro lugar e o Benfíca logo atrás.

Só à noite os medos voltavam. A Sofia ter-me deixado poderia ser um sinal. Ficava na dúvida se tinham comentado o meu corpo nas aulas de Educação Física. Achava-me demasiado magro, com menos pêlos que os meus colegas, tinha a certeza de que alguns deles já faziam a barba. Olhava-me ao espelho e notava o meu sexo pequeno, procurava na enciclopédia medidas padrão, pistas sobre o modo de dominar desejos proibidos, perigos da masturbação. Os sonhos eram outra vez estranhos, um elevador fechado e eu lá dentro com um homem, gritava por ti, mãe, e não respondias. Noutra noite brincava nas rochas de uma praia em busca de caranguejos, um deles começava a crescer e tentava agarrar-me com as suas patas, corria pela praia à tua procura e só encontrava homens a acenar-me, aparecias num toldo diferente dos outros, não tinha a certeza se eras tu e receava aproximar-me, finalmente gritei «Mãe!» e despertei.

No dia seguinte acordava exausto, a avó Xinha dizia que andava com cara de desenterrado, um primo francês do papá chegou a dizer-me «Mon ami, tu travailles trop ou tu fais trop l’amour», não percebi nada mas pela tua cara, mamã, não era coisa que se pudesse dizer a um miúdo.

Só agora, tantos anos depois, percebi essa frase, as olheiras cá estão, não sei se trabalho muito mas tenho a certeza de que não amo em excesso, nunca se ama em demasia, o que nos deixa perdidos é a falta de amor.

Já não está ninguém no bar da Faculdade, o empregado faz contas no computador e verifica a caixa, doem-me as imagens que me assaltam, gostaria que estivesses aqui comigo, que é feito de ti, mãe?

 

Não sei por que razão conservo este bilhete do Jardim Zoológico. Pela data, tinhas nove anos. É certo que nessa época íamos lá muitas vezes. Deixava o Ricardo com uma das avós (ficava bem com quase toda a gente) para poder ter a tarde livre. Ao contrário das minhas amigas, sempre mais preocupadas com os filhos bebés, era sozinha contigo que eu gostava de estar. O teu irmão não dava problemas, desde que se sentou aos seis meses era fácil entretê-lo, uma série de cubos coloridos ou argolas para empilhar eram suficientes.

Contigo era diferente, estavas sempre a chamar por mim, fazias perguntas difíceis ou tinhas reacções inesperadas, a avó Xinha sempre falou de uma sensibilidade um pouco doentia.

Gostavas muito do Jardim Zoológico, como muitos rapazes dessa idade, mas também tinhas outros interesses. Lembras-te de quando quiseste ouvir de novo um CD de música clássica? Não tenho a certeza, mas devias andar no fim da primária. É espantoso como me recordo, posso garantir que era o concerto para violino de Brahms. Ficaste a ouvir sentado a meu lado, muito atento, a tua cabeça acompanhava o ritmo com pequenos movimentos. O teu pai não achou graça nenhuma, disse logo que isso não era coisa de rapazes, onde é que se viu um miúdo ficar encantado com uma peça de música clássica?

Fiquei zangada, chamei-lhe provinciano e inculto, bastava ir a Londres e a Paris para ver os concertos cheios de crianças. Devo confessar-te hoje, no entanto, que qualquer coisa estranha soou dentro de mim. Falei com amigos, procurei outros sinais. Lembrei-me do bebé chorão e da tua pena quando ele se perdeu (tinhas seis anos), do teu gosto em fazer bolos comigo.

Essas coisas teriam significado? Eras o filho mais velho, não podia fazer comparações, as minhas colegas nada explicaram. A Alice foi a mais optimista, como amiga não podia aceitar que o teu pai me metesse ideias na cabeça, também tinha um filho com a mania de calçar sapatos de mulher, não deixava por isso de ser uma criança normal.

Fiquei sossegada por uns tempos, como era possível estar a pensar naquelas coisas se ainda eras um miúdo?

Estou contigo no Jardim Zoológico, desta vez o teu pai fez-nos uma surpresa e também veio. Passeámos no comboio do Jardim, gritas sempre que aparece um bicho de que gostas, estás tão contente que depressa esqueço os meus medos. À saída, lembras-te, dividimos o algodão-doce, o papá achou graça e também tirou um bocadinho.

Vou dizer-te agora por que guardei o bilhete. Precisava de ficar com alguma coisa que me ajudasse a lembrar. Tudo se passou à noite, estava com o Ricardo ao colo e já dormias, a televisão mostrava uma telenovela qualquer e o pai parecia interessado no jornal. De repente, olhou para mim sem nada dizer, como sempre acontecia com os assuntos importantes. Por momentos receei que fossem questões do escritório de advocacia, as coisas não andavam muito bem, um sócio trabalhava pouco e pedia mais dinheiro. Não, não é esta a expressão do escritório, deve ser precipitação minha, está outra vez a ler e não vai dizer nada, ou então vai pedir que resolva alguma coisa, visitar os pais, ou tratar de papéis, não há-de ser nada importante.

Luísa, temos de pensar a sério na educação do Diogo.

Mais a sério do que eu penso? Mais tempo só para ti? Senti-me corar, o papá iria tocar na nossa intimidade, tinha chegado a um segredo qualquer que apenas eu suspeitava em ti. Seria por causa do futebol? Coitado, nesse ponto sempre tive pena dele. Deve ser uma tristeza ter um filho rapaz que não o acompanha. As poucas vezes que fui ao estádio bem vi como as crianças iam contentes, enfeitadas com gorros e cachecóis do Benfica, nos golos abraçavam-se aos pais aos gritos, no final dos jogos compravam bandeiras e camisolas. Nunca quiseste ir, ainda bem que o teu irmão passou a acompanhá-lo mais tarde, sempre preferiste ficar na sala a conversar ou ir ao cinema. Não, percebi depressa que não era o futebol, se fosse já o teu pai teria falado, é um assunto que não faz pensar, de algum modo já desistiu da tua companhia. Seria a música clássica? Talvez, sou a primeira a isolar-me contigo, levo-te pela mão até à aparelhagem do meu quarto, ouvimos a peça baixinho, explico-te o violino ou o violoncelo, o piano sempre conheceste bem. Tenho cuidado para que ninguém nos surpreenda, quero estar só contigo, ninguém vai compreender esses momentos, sobretudo não quero que o teu pai saiba, é mais um dos nossos segredos.

Afinal não era nada disso, tudo tinha a ver com o Jardim Zoológico, o teu pai fazia uma pergunta inesperada. Não era dos flamingos que tinhas gostado mais? Para ser verdadeira não tinha reparado (comecei a defender-me, a proteger-te, pressenti o perigo, alguma coisa ia surgir contra ti, tentei mudar de assunto), o papá insistia, nunca tinha visto um miúdo gostar de aves, os rapazes gostam de macacos e leões, por este caminho vai ter problemas...

Procurei não dar importância, respondi com uma frase banal, género as crianças são todas diferentes, perguntei depois se me criticava de alguma forma, por vezes dizia que te mimava de mais...

A conversa morreu ali, depressa o pai voltou ao jornal e à televisão, só eu fiquei a pensar. Se o que tinha ouvido era um reparo à minha proximidade, poderia ter a certeza de que não iria mudar. A única pessoa que devia alterar alguma coisa não era eu, mas ele, sempre encantado com as gracinhas do Ricardo e a afastar-se cada vez mais de ti.

Agora que morreste e que já não estás ao alcance do meu abraço, quero dizer-te que sempre amei a tua sensibilidade e o teu bom gosto. Se foste diferente, ainda bem, porque pude criar uma união só nossa, um espaço dentro de mim (dentro de ti) onde só nós dois tivemos lugar. Estavas (estás) tão junto a mim, que mais posso desejar?

Talvez tivesse receado perder-te. Logo durante a gravidez, quando o médico me mandou ficar em repouso. Foi a primeira vez que pensei na tua morte. Ainda não sabia como irias ser, mas já falava contigo e doía-me a ideia de não te ter. Ficava horas deitada num sofá, uma revista inútil nas mãos, sem conseguir concentrar-me nos programas de televisão.

Conversava contigo, imaginava-te alto e com o cabelo encaracolado (não me enganei), fazia planos para a nossa vida. Imaginava levar-te à escola, brincar em jardins cheios de flores e árvores, descobrir contigo os mistérios do mar. Fazia as perguntas e dava as respostas, mudava de voz para imitar a de uma criança, às vezes chegava a ralhar quando me parecias distraído. Quando ia ao médico receava os seus comentários, falava em abortos e riscos para a criança de uma maneira que me apavorava, jurei a mim mesma que faria todo o repouso possível para que nascesses sem problemas.

O tempo passava e já não me custava estar sem trabalhar, deitada naquele sofá sem fazer nada, na aparência só a comer e a dormir. Como ninguém percebia que falava contigo, vinham visitar-me para me fazerem companhia, carregados de flores e doces. Mandava todos embora logo que possível, para voltar aos nossos diálogos e às nossas aventuras. Às vezes sentia dores, sobretudo quando estava mais tempo de pé, corria logo a deitar-me, o teu pai elogiava a minha disciplina e, na altura, era carinhoso para mim.

Um dia imaginei que estávamos num país distante, tinhas vestido um casaco comprido e um gorro de lã, passeávamos num parque cheio de folhas caídas, ao longe uns jovens faziam desporto. Falei com a tua voz e perguntei(-me):

Mamã, gostas de mim?

Já nem sei quem respondeu, se a mãe que sou, se o filho por quem falava no momento, o certo é que ouvi (não estava louca, não tenhas medo), distingui umas palavras que me pareceram «para sempre», desde aí ouço-as de novo sempre que nos afastamos, escuto-as todos os dias desde que partiste.

Nos últimos meses de gravidez o médico recomendou ter uma actividade ligeira, retomei mais ou menos o trabalho, mas não deixei de falar contigo. Nessa altura aparecias como um menino grande, vinhas da escola cansado e sujo, estava à espera para te receber e ajudar. Ficava de pé a ver o teu banho, de vez em quando pedias para te lavar as costas, durante muito tempo ainda era capaz de te pegar ao colo e, embrulhado no lençol, levar-te até ao meu quarto. Tudo isto, Diogo, se passava antes do teu nascimento, hoje em dia confundo um pouco a realidade e o sonho, queria apenas que soubesses como foi maravilhoso o tempo em que apenas te adivinhava e já falava contigo.

O teu nascimento não foi difícil, não encontrei razões para os meus medos. Queria muito saber como eras na realidade, embora tivesse a certeza de que já te conhecia. Nasceste sem problemas, lembro a cara preocupada do papá a perguntar ao médico se estava tudo bem, eu apenas desejava o momento de te aconchegar sobre mim. Quando te arranjaram e colocaram sobre o meu peito, lembrei-me das nossas conversas, das noites sem dormir com receio de te perder, do futuro de esperança que já tínhamos construído.

A enfermeira retirou-te logo, queria que descansasse um pouco, pela minha parte o mundo acabava ali, não queria ver ninguém nem fazer nada, apenas conservar-te sobre mim e amar-te para sempre.

Nessa noite do parto não dormi, desejei ter-te a meu lado, não saber onde estava o meu bebé era o pior que podia acontecer. Interpretava os ruídos do hospital, agora devia ser a porta da sala de partos a bater, chegou mais uma ambulância e a grávida não está bem, será o barulho de uma maca a raspar na parede? Tenho a certeza de que neste momento é uma criança a chorar, não sei se és tu porque apesar de já conhecer a tua voz de criança ainda não conheço o teu choro de bebé, toca o telefone, deve ser o pediatra a avisar que não demora, por que razão não te trazem para o pé de mim?

Hesito se chamo a enfermeira, de novo aquele medo de não te ter, não é um bebé acabado de nascer que perco, é alguém que há meses me habita por dentro e que aprendi a amar e a conhecer, uma pessoa para quem já construí um mundo de coisas boas, por isso aguardo mais um pouco, digo a mim mesma que foste bem observado pelo pediatra e estava tudo bem, talvez consiga dormir uns minutos.

Em sonhos estou outra vez num país estrangeiro, o teu pai está doente e os tratamentos não resultam, és grande e estás ao meu lado na sala de espera de um hospital, ao longe oiço os médicos a falarem uma língua que não entendo.

O pai está numa enfermaria cheia de pessoas a morrer, vejo-o nu em cima de uma cama, tubos ligam-no a aparelhos complicados que apitam de vez em quando, abre os olhos mas não nos reconhece. Ficamos de pé junto à cama, sem saber o que fazer. Enfermeiros e médicos entram e saem, em vão tentamos saber alguma coisa, dizem-nos para esperar com gestos sacudidos, uma angústia de morte toma conta de mim.

Acordo e não estás comigo, a senhora da cama ao lado piorou, tem dois médicos à sua volta que não parecem entender-se, uma enfermeira vem dizer que o seu bebé está bem.

E o meu? Alguém me poderá dizer se tudo corre sem problemas? E, de repente, sem eu pedir, trazem-te aconchegado numa envolta branca, estás rosado e rechonchudo, num instante estás de novo sobre o meu peito e a enfermeira aconchega-te bem junto a mim, ensina como devo amamentar-te, «o bebé está com fome, minha senhora, precisa de si». Precisamos um do outro, nesse momento não sei quem necessita mais, estás carente do meu peito para crescer, estou ávida da tua pele sobre a minha para sobreviver em paz.

Ficaste comigo até ao novo dia, de manhã cedo o papá veio trazer roupas e pela primeira vez pegou-te ao colo, foi nessa altura que o sono me venceu, por um curto período dormi sem sobressaltos.

À tarde vieram as visitas esperadas, as avós e os tios, os amigos mais chegados. Faziam apostas sobre parecenças, mas eu penso que quem tinha razão, como quase sempre, era a avó Xinha: o menino é diferente.

É dessa diferença que tantas vezes falámos, Diogo. Dos pormenores que sempre me fizeram considerar-te único. Da sensibilidade que sempre te afastou da gente vulgar.

Tenho a certeza de que, desde a gravidez, vivo inquieta com a hipótese de te perder. Talvez depois dos meses de repouso no sofá. Se calhar pelo medo que tive na altura do parto. Agora que te perdi mesmo e o imaginário se tornou realidade, penso a toda a hora como essa ideia sempre se atravessou entre nós, como o receio de que desaparecesses fez com que, tantas vezes, não soubesse estar contigo.

Queria recordar outro momento. Agora que não existes, não estás interessado, mas quando vivias a meu lado também não quiseste saber. Só eu posso recordar esse período. O teu pai quase não deu por ele, o teu irmão ainda não existia e a avó Xinha esforçou-se para se manter de lado.

Tinhas um ano de idade e ainda não andavas, como te devo ter dito só conseguiste aos quinze meses. Adoeceste com febre, pensámos que era mais uma virose, com sinceridade te digo que não ligámos muito, até porque parecias sempre muito bem-disposto. Foi ao quarto dia que apanhei um grande susto, a temperatura subiu muito, reviraste os olhos e quase desmaiaste. Felizmente o papá estava em casa, num instante estávamos no hospital, dezenas de crianças a chorar ao colo das mães, sala de espera sem informações, seguranças de pé a dar ordens a toda a gente.

Ficaste internado numa enfermaria de Pediatria, a radiografia mostrava uma pneumonia e a médica não permitiu o regresso a casa. Ainda tentei convencê-la, afinal tínhamos uma boa habitação e uma família organizada, por certo faríamos tudo o que a doutora recomendasse, infelizmente não nos deu ouvidos.

Foram cinco dias terríveis. Estavas numa sala separada por um vidro de um compartimento semelhante, a teu lado uma criança da tua idade a ser alimentada por uma sonda, uma bebé recém-nascida com uma mãe atrasada que não sabia cuidá-la, outro menino mais velho com uma doença de rins. Não havia espaço nem lugar para os pais, dormitava num banco a teu lado, sempre aflita com a tua febre, a observar a respiração para ver se não te faltava o ar.

Os médicos vinham ver-te ao fim da manhã, um era simpático, brincava contigo e com o teu boneco preferido (uma coelha de saias que ainda conservo), os outros eram apenas eficientes, auscultavam-te sem comentários e tomavam apontamentos em papeletas cor-de-rosa. O Chefe de Serviço era um senhor de cabelos brancos e nariz afilado - como ainda me lembro bem! - que aparecia de vez em quando a dar sugestões e parecia muito preocupado com a tua doença.

Nas noites de hospital também receei a tua morte. A menina da sonda estava cada vez pior, uma enfermeira disse-me que era cancro e que tinha de ser operada outra vez. A mãe atrasada fazia comentários sem sentido que me angustiavam, uma vez fui à casa de banho e quando regressei não estavas, disse-me que te tinham levado não sabia para onde. Imaginei o pior, os médicos tinham avisado que poderias ser transferido para a Unidade de Cuidados Intensivos, por certo estavas aflito com falta de ar e eu sem te poder valer, ou então o coração estava com problemas e eu não sabia. A mãe da menina da sonda tranquilizou-me, não tinha acontecido nada, tinhas ido com uma enfermeira, fui dar contigo, muito bem-disposto, a brincar com uma educadora.

Noutra ocasião não conseguias dormir, a rapariga da sonda estava com dores e não reagia à medicação, o menino da doença de rins também estava pior e vomitava de vez em quando. Achei o teu pulso muito acelerado, não era só por causa do barulho da enfermaria que não conseguias sossegar, devia existir outra doença, uma reacção ao antibiótico, uma complicação qualquer a causar aquela insónia.

O médico de serviço disse que eu era ansiosa, não se passava contigo nada de especial e as análises estavam a melhorar, era bom que me controlasse mais para te poder ajudar. Fui agressiva, respondi aquilo que sei enfurecer os médicos e os políticos, «se tivesse aqui um filho não dizia isso», virou-me as costas sem responder.

Será que não quis perceber como estava cansada? O pânico de perder-te e a impossibilidade de dormir naquela enfermaria deveriam merecer mais respeito, não achas?

Acabaste por ficar curado e foi assim que se consolidou o nosso amor, ou a nossa dependência, como costumava dizer o papá. Estiveste mais de um ano sem dormir bem, choravas logo que se apagava a luz, só sossegavas por bocadinhos na nossa cama ou depois de mais um biberão. O teu pai protestava, mas virava-se de lado e dormia toda a noite, eu ficava acordada a olhar para ti, a pensar se irias ficar doente dos nervos ou dos pulmões, a sonhar com um futuro a dois onde mais ninguém tivesse lugar, um mundo de sonho onde não existissem doenças nem mentiras.

 

Estou sozinho em casa numa noite de Inverno. Sentado no sofá da sala, olho para a fotografia do vosso casamento. Tens um vestido de noiva muito simples, cai a direito num belo corte, a saia e os punhos terminam num debrum arredondado. O cabelo está puxado para trás e preso por pérolas (como me explicaste um dia), na mão seguras um ramo arredondado que irás atirar às tuas amigas solteiras. O pai leva um fato demasiado claro (era menos formal do que agora?), olha para ti de um modo que nunca encontrei nestes vinte anos. Ao fundo ainda consigo ver uma escada de ferro com uma planta, deve ser a buganvília roxa de que sempre falaste.

Imagino-te a entrar na sala onde os convidados te recebem com palmas, devias estar linda com o vestido que vejo neste retrato, segundo me contaste havia flores em toda a parte. Alguém adivinhou que estavas grávida?

Contaste-me um dia, sem eu perguntar nada. Casamento à pressa, disseste, contra a opinião dos teus pais. Foi aí que a avó Xinha se irritou para sempre com o meu pai? Foi desde essa data que se passaram a olhar com desconfiança? Mãe, sempre senti que a avó não gostava do pai, era a única forma de explicar aqueles silêncios à mesa ou as piadas sobre advogados.

Olho outra vez para o vestido de noiva. Sempre gostei deste retrato que o mostra tão bem, com muito mais pormenor do que o velho álbum que ainda guardas. Nunca vi um vestido tão simples e tão bonito. Quase não tem feitio, adapta-se ao teu corpo sem se perceber como, não tem cauda nem folhos pirosos, como se devia usar nos anos oitenta. Foi uma vizinha que o fez, disseste-me um dia, mas por certo o teu bom gosto foi o mais importante.

Tenho quase a certeza de que a avó Xinha não se entusiasmou com este fato. Não é o género dela. Vi no álbum que foi de branco-pérola, muito pouco próprio para a idade, ainda por cima com aquele chapéu horroroso. E havia outras mulheres mal vestidas, com fatos pirosos e jóias pesadas, por que razão não se vestiam como tu, com discrição e arte?

Sempre me interessei pela moda. Gosto de a ver na televisão e de vez em quando compro uma revista. Acho que as pessoas devem andar bem vestidas, é bom para elas e para nós. Já pensava assim quando era pequeno.

Às vezes imaginava o vestido de noiva, mas não sabia onde ele estava. Descobri-o mais ou menos aos doze anos, no armário de parede do corredor, muito bem dobrado numa caixa quadrada de papelão, por baixo de vestidos compridos que quase nunca usavas. O fato do pai também lá estava, pendurado à direita, protegido por um lençol amarelecido. Era de veludo, verde-claro, com bandas muito largas e calças sem pinças. Sempre tive a ideia de que o alfaiate se enganara no dono, onde já se viu um senhor tão sério vestido assim no seu próprio casamento?

O vestido de noiva sempre me encantou. Passei a observá-lo às escondidas, desde aquele dia em que o descobri por acaso. A princípio, abria um pouco a caixa e ficava a olhar, sem me atrever a tocar-lhe. Uma parte de mim segredava-me que não podia fazer aquilo, não era brincadeira própria para um miúdo do 6º ano, com tantos brinquedos no quarto não fazia sentido andar a mexer em roupeiros. Estava uns dias sem lá ir, depois outra voz dizia que não fazia mal, não passava do vestido de noiva da minha mãe, era natural que me interessasse.

Um dia arrisquei um pouco mais. Levantei a tampa toda e toquei no tecido pela primeira vez. Tive uma estranha sensação. Uma espécie de arrepio que me assustou. Com as mãos suadas, guardei tudo como estava e fui a correr para o quarto.

Nunca percebi, mãe, por que razão não te contei isto. Teria sido melhor. Se tivéssemos conversado sobre o vestido, muita coisa se poderia ter evitado. Sobretudo, não teria aquela zanga com o pai. Talvez não tenha falado porque aquilo era uma espécie de tesouro secreto para mim. Uma descoberta que fazia a pouco e pouco, um caminho que teria de percorrer sozinho.

Voltei lá com frequência. Lembro-me da primeira vez em que tirei o vestido da caixa e o estendi, com todo o cuidado, sobre os sapatos velhos arrumados no fundo do armário. Tive o cuidado de o proteger em papel de seda e fiquei triste quando a fivela de uns sapatos à pajem puxou um fio daquele tecido branco que me fascinava. Com muito cuidado, endireitei tudo, de modo a nada se notar. Encostado à parede, fiquei a olhar para o teu fato de casamento, muito atento a todo o corredor, com medo de que alguém surgisse. Pela primeira vez imaginei o vestido no corpo de princesas das histórias de fadas, uma delas conhecia-me e mais tarde casava comigo, numa festa toda organizada por ti, querida mãe. Noutro dia, desejei que emagrecesses de repente e pudesses então vestir de novo o teu fato, comigo a teu lado em vez do papá, só faltava a fotografia na escada de ferro com a buganvília para que tudo fosse perfeito.

Às vezes sonhava toda a noite, tinha ganho um prémio como autor do modelo, aparecias a vesti-lo e a entregar a medalha, noutro sonho era tudo diferente, alguém mexera na caixa e o vestido tinha desaparecido, acordei a suar e, sem fazer barulho, fui até ao armário ver se estava tudo bem.

Durante alguns meses o vestido foi importante para mim, sem que soubesse porquê. Apenas tinha a certeza de que fazia parte de um caminho que começava a conhecer.

Estou de novo no sofá em frente da lareira. Tenho vinte anos e estou na Faculdade como sempre desejaste, tudo o que acabo de recordar me parece distante, apenas atalhos num percurso que percorri sozinho ou contigo. Já não estou só. Novas pessoas cruzam agora a minha vida. Conheces as principais. Sempre te apresentei aqueles que, de alguma forma, foram decisivos para mim.

Como o professor de Educação Visual do 7º ano. No princípio não gostei dele. Sensível à moda como sempre, achei que se vestia mal. Jardineiras de ganga e camisa de pescador, no Verão calças do mesmo tipo em cima de T-shirt preta, jamais seria o meu estilo. Depois, pareceu-me vaidoso. Nunca gostei de professores que se gabavam, preferia os que tinham problemas connosco e se esforçavam para os resolver. Para o Prof. João era tudo fácil, desde as questões de disciplina da turma até aos trabalhos de desenho mais elaborados, um sorriso e um «vamos a ver» deixava a maioria a rir, a mim soava-me a falso. Modifiquei a minha opinião a pouco e pouco. Afinal, era sobretudo uma pessoa atenta e justa, não tinha favoritos como outros professores, nem se mostrava cansado quando íamos falar com ele.

Era espectacular a desenhar. Andava sempre com um caderno de capa dura com folhas A4 sem linhas, onde escrevia notas e fazia desenhos soltos. Cheguei a mostrar-te alguns, mãe, não sei se te recordas. Desenhava tudo: as nossas caricaturas, um boião de iogurte perdido à porta da sala de aula, os troncos das árvores à volta do campo de futebol, dois namorados à entrada da escola. Às vezes corrigia os nossos trabalhos e fazia um esboço no canto da folha, a nossa cara a rir ou a chorar, a mochila que estava na borda da cadeira ou o kispo pendurado no cabide do fundo. Era, sobretudo, uma pessoa inesperada. De vez em quando falava durante toda a aula, contava estórias de artistas e reis, mostrava fotografias de países distantes ou reproduções de quadros célebres, obrigava a dar opinião e aproveitava tudo o que dizíamos, mesmo quando parecia ter sido asneira. Noutras ocasiões pouco conversava, dizia que não podíamos perder tempo porque precisávamos aprender a desenhar, então distribuía folhas grandes de papel de cenário e dizia para fazermos qualquer coisa, à vista ou da nossa cabeça, o que era preciso era pôr a nossa alma no papel. Ficava furioso quando alguém dizia que não tinha jeito, para ele aprendia-se a pintar como se aprendia a ler e a escrever. Toda a gente pode ser ensinada a escrever, só alguns serão escritores; todos podem aprender a pintar, só alguns serão artistas, dizia sem hesitação.

No final do primeiro período já ninguém protestava. Alguns preferiam as aulas de diapositivos e debate, outros gostavam mais de desenhar sem restrições. O papá perguntou-me que nota é que iria ter no meio daquela confusão, respondi que o Prof. João conhecia bem a turma e que me ia safar.

Com alguma surpresa tive 4, o professor deve ter achado graça ao meu desenho das pedras da Praia Grande. Lembro-me como se fosse hoje, enchi o papel de cima a baixo com aquelas rochas do fim da praia e desenhei o mar a entrar nelas, como se as quisesse destruir. (Ainda deves ter esse desenho, mamã, sempre guardaste os nossos trabalhos com boa nota, durante muito tempo esteve num dossiê de capa azul na estante do escritório.) O Prof. João olhou para o meu trabalho e disse que devia gostar muito dessa praia para a desenhar assim, com tanta força, limitei-me a acenar que sim e ele fez-me uma festa no cabelo.

Não sei do que gostei mais, se do elogio se do toque no cabelo, nunca ninguém tinha dito bem de um desenho meu, todos achavam que não tinha o tal jeito, podes imaginar, mãe, como fiquei contente.

O Prof. João notou como eu estava envergonhado, olhou outra vez para o desenho e retocou-o com um lápis que usava na orelha como os lojistas dos filmes antigos, as rochas ganharam mais força e o mar ficou mais bravo, depois num minuto desenhou-me sentado na areia com um lápis e um bloco nas mãos, parecia mesmo que estava a pintar o meu próprio trabalho.

Tapei depressa a pintura, uma vergonha estranha fez-me corar. Não quis que ninguém visse o que acabava de se passar, era uma coisa entre nós, uma espécie de jogo onde mais ninguém podia entrar. Neste caso, nem tu, mãe. É claro que à noite te mostrei o trabalho, achaste divertido o boneco a ver a vista, afinal era a caricatura do teu filho Diogo pelo Prof. João, mas a coisa ficou por aí.

Só que desde então tudo foi diferente, passei a gostar mais das aulas de Educação Visual e das conversas com o professor. Em casa fazia desenhos em vários sítios, desde o papel timbrado do escritório do pai às folhas pequeninas que guardavas na cozinha, para apontar o que fazia falta. A avó Xinha dizia, como te lembras, que ainda ia acabar em artista. Gostava sobretudo de pintar paisagens imaginárias, bosques com animais estranhos ou praias desertas, de vez em quando colocava-me lá, tal como o Prof. João tinha ensinado. O pai estava surpreendido com este novo entusiasmo, mas como deves recordar até o estimulou, passava a vida a trazer papel de cenário e tintas para casa, uma vez até me ofereceu uma caixa de aguarelas. Foi dos momentos em que estivemos mais próximos, numa vida que tanto nos afastou.

O Prof. João notou o meu interesse, chamava-me no final da aula para ver os desenhos, nos trabalhos de grupo elogiava os meus progressos, sem deixar de corrigir os meus eternos erros de perspectiva. Os colegas notavam a preferência, a Marta até chegou a dizer que eu era o «queridinho do professor», mas andava tão contente que suportava bem as piadas.

Um dia o Prof. João convidou-me para ir com ele até ao bar, lembro-me como se fosse hoje e já passaram quase dez anos. Estava calor, vestia a habitual T-shirt preta (lembro-me de que me interroguei, na altura, se seria sempre a mesma) e as jardineiras de ganga, a novidade era umas sandálias com os dedos à mostra, como se estivesse na praia. Transportava um enorme dossiê preto com fecho de correr, que encostou com cuidado à mesa. Olhava para mim de uma maneira diferente, naquele momento eu, tinha a certeza, não era apenas mais um aluno, era uma pessoa que lhe interessava, alguém que queria conhecer melhor.

- Tens continuado a desenhar, Diogo?

Lembro-me de ter olhado em volta, não queria que ninguém ouvisse a conversa, ainda bem que não estava muita gente. Ao fundo do bar, a professora de Matemática, de saia e casaco verde-alface e colar de pérolas (como me interessava por moda, registava todos estes pormenores) falava com uma colega de outra turma, dois alunos mais velhos bebiam coca-cola, uma rapariga passava apontamentos. Ninguém, felizmente, parecia interessado em nós.

E então falei, a custo disse que, graças a ele, o desenho era tudo o que mais gostava. Estava sempre a pensar em paisagens e em bichos que me apareciam em sonhos ou quando parava para os imaginar, andava agora a experimentar trabalhar com umas aguarelas oferecidas pelo meu pai, gostaria que visse os meus últimos trabalhos.

Respondeu que não se esquecia de mim, se não dava mais atenção às minhas pinturas é porque tinha muitos trabalhos e as turmas eram grandes, íamos ter muitos momentos para conversar, tinha a certeza de que eu era uma pessoa interessada e isso era bom.

Não consegui aguentar o seu olhar, fiquei com a ideia de que me observava de cima a baixo, senti-me pequenino e inútil, frente àquele professor tão seguro de si e que eu admirava tanto. Mandou vir dois ice-tea sem me perguntar nada, disse adeus a uma colega que passou e perguntou:

- Queres ver o meu portfolio?

Nem percebi a palavra, por isso não respondi. Queria ficar ali muito tempo, frente ao professor a falar de desenhos e da escola, sem pensar em mais nada. Lembro-me, dez anos passados, de que também desejei que ali estivesses, era a única pessoa com quem poderia partilhar aquele diálogo, a quem poderia contar tudo o que sentia.

O Prof. João abriu o dossiê, mostrou muito devagarinho uma folha grande com o seu nome e todas as exposições onde tinha entrado, depois cinco ou seis desenhos que achei muito bonitos, guardados com muito cuidado em separadores transparentes.

A professora de Matemática levantou-se e foi-se embora sem olhar para nós, a rapariga dos apontamentos bebia agora um sumo natural e não parecia nada interessada na nossa conversa. Fiquei a olhar para os desenhos com muita atenção, o Prof. João explicava que pertenciam a uma série chamada circo, por momentos pensei que me tratava como atrasado mental, até um miúdo de doze ou treze anos era capaz de perceber aquele palhaço ou aquele rapaz a brincar com tantas bolas.

Gostei mais do último trabalho, um cavalo desenhado a tinta-da-china, a transportar um homem novo, de cabeça para baixo numa espécie de pino. Comecei logo a pensar como é que o homem se aguentava naquela posição, teria de ser um bom artista para não cair, não havia dúvida de que este desenho ficava bem numa série sobre circo.

Nunca mais parava de olhar para o desenho, o Prof. João riu-se e disse:

- Se gostas, podes ficar com esse.

Ainda comecei a dizer que não, recordo as suas gargalhadas a perguntar por que razão era tão envergonhado, num instante estava a separar o desenho do rapaz do cavalo e a guardá-lo à parte num dos separadores, enquanto metia todo o resto no dossiê preto.

Lembro-me de chegar a casa contigo, telefonei-te para me vires buscar porque era difícil para mim transportar tanta coisa, a mochila carregada de livros, o equipamento de ginástica e o desenho do rapaz do cavalo, viemos a conversar e nem protestaste com o trânsito, querias saber tudo sobre o encontro com o professor e sobre os meus progressos a desenhar, nem sequer me mandaste lavar as mãos como sempre fazias, mal chegava a casa.

Gostaste muito do rapaz e do cavalo, lembro-me de comentares que o trabalho mostrava muita arte, quando o papá chegou foste logo mostrar-lho. Nessa noite adormeci a pensar em desenhos e artistas de circo, e em como era bom ter um professor que gosta de nós.

Nem tudo correu bem depois. Estava tão entusiasmado com o Prof. João e com a hipótese de vir a ser pintor que falava nisso a toda a hora. Comecei a perceber que não gostavas, hoje penso que chegaste mesmo a ter ciúmes. Porquê, mamã? Por que razão te comparavas?

Dez anos depois compreendo melhor, mas na altura custou muito. E penso mesmo que influenciaste o pai, porque ele nunca mais trouxe material para desenhar. Quando te mostrava os meus trabalhos, manifestavas apenas um interesse bem-educado, nada mais. Os desenhos que fazia em casa não te entusiasmavam como dantes, perguntavas sempre se era para oferecer ao «tal professor». isbofi

Tal professor, mamã? O único que se interessou por mim, a pessoa que soube fazer crescer em mim um bocadinho de arte... não posso aceitar que o tenhas criticado como daquela vez.

Não percebeste que a nossa relação melhorava todos os dias. Eu tinha perdido a timidez e era capaz de participar nas aulas, através dos meus desenhos (que o Prof. João elogiava), ou mesmo com comentários aos trabalhos de grupo. É claro que a Marta continuava às piadinhas, mas já não ligava, procurava desenhar mais e melhor, para que ele ficasse contente e me dirigisse uma palavra especial.

Um dia convidou-me para ir a sua casa, disse que me levava de carro e depois me deixaria onde quisesse. Sempre me educaste a não a aceitar nada de estranhos, desde muito pequeno aprendi contigo que há homens que se metem com as crianças, mas o Prof. João não era um desconhecido, era a pessoa que me ensinava a pintar. Por isso disse que aceitava, mas teria de pedir licença aos meus pais, depois daria uma resposta.

Ainda hoje recordo a tua reacção de fúria. Disseste que o professor devia ser um anormal, a convidar miúdos para casa, o mundo andava cheio de tarados. Não podes imaginar o meu desgosto ao ouvir-te falar assim. O Prof. João era, na altura, tudo para mim. Um artista como eu gostava de ser. Um professor de quem os alunos gostavam. E, por que não dizê-lo, um homem bonito, com aquele ar à-vontade e aqueles grandes olhos azuis.

Foi o fim quando te disse isto, aos gritos disseste que me andava a meter ideias doentias na cabeça, devia era andar a olhar para as raparigas e não para homens esquisitos, agora é que estava mesmo proibido de ir a casa dele, ou mesmo a ter conversinhas secretas no bar da escola.

Fui fechar-me no meu quarto e nesse dia não quis jantar. Passou-me pela cabeça fugir com o Prof. João para um país onde compreendessem os artistas e os miúdos pudessem conversar à vontade com os professores, numa terra de campos e mares à espera de serem desenhados.

Com doze ou treze anos, não sei bem, temos pouca força, mamã, e é claro que venceste. Continuei a trabalhar nas aulas de Educação Visual, mas nunca mais falei a sós com o Prof. João. Suportei, em silêncio, a sua nova preferência pelo Bruno. Também não fui nunca capaz de te dizer, excepto agora quase dez anos depois, como isso ficou a doer entre nós.

No ano seguinte o Prof. João mudou de escola e nunca mais o vi.

O desenho do rapaz do cavalo ainda lá está, na parede do meu quarto.

 

Folheio o álbum de fotografias do meu casamento. O primo idoso discursa e oferece uma peça de prata, uma lâmpada de Aladino onde mandou gravar «ajuda-te que Deus te ajudará», que fiz eu deste conselho? O tio da província está aqui ao pé dos noivos com um sorriso simpático, nesta vemos um grupo de colegas do escritório de advogados onde o teu pai sempre trabalhou, lembro-me de como andavam contentes no dia do casamento, não paravam de dizer graças. A fotografia de que gosto mais, como sabes, é esta, está uma cópia em cima da lareira, os noivos estão junto a uma escada de ferro com uma buganvília, no sítio mais bonito da quinta.

Ao contrário do que possas pensar, Diogo, foi um dia feliz para mim. Estava grávida, como sabes. E embora tivesse que suportar a indiferença dos teus avós paternos, os conselhos da avó Xinha e as pressas do teu pai («se é preciso casar, casamos») sentia-me feliz e cheia de esperança.

Acho que nunca te falei da quinta. Era muito bonita. Descia-se por uma escada de pedra até uma espécie de varanda com vista para a serra de Sintra, lá em baixo ficava o jardim de onde, ao longe, se via o mar. As mesas tinham toalhas amarelas e brancas com loiça antiga e num recanto havia um tabuleiro enorme cheio de miniaturas doces, que a tia Glória tinha levado dois dias a fazer.

Os nossos amigos dançaram toda a noite e por lá ficaram, eu e o papá saímos às escondidas por uma porta lateral, para ver se não descobriam o nosso carro (sabes como o pai é esquisito com essas coisas), mas lá estava ele todo pintado e cheio de florzinhas pirosas, foi difícil fazer desaparecer aquilo tudo.

Não penses que estou a fazer filmes, como costumas dizer, mas pensei muito em ti.

Conversávamos muito, como sabes. E nesse dia estava contente por te ter dentro de mim. Nunca pus a hipótese de interromper a gravidez, como o teu pai chegou a sugerir, sempre quis que nascesses. E no dia do casamento já levava a mão à barriga como que a proteger-te. Fazia planos a teu respeito, irias ser advogado como o papá ou engenheiro como o avô, cursos sólidos que dariam o suficiente para viver sem sobressaltos. No dia do casamento não imaginava que te viesses a interessar, desde muito pequeno, por coisas ligadas às artes, música clássica que partilhámos tantas vezes, desenhos de paisagens como aprendeste na escola, até os bolos que querias fazer comigo.

Nunca estive distraída, podes crer. Desde sempre reparei nesse teu ar diferente, na delicadeza com que seguravas os cadernos e os lápis, no isolamento no jardim-de-infância. E nunca esqueci aquela festa de anos em que quase ninguém apareceu.

O teu pai não me deixava em sossego, não penses que quando eras pequeno era tão distante como se tornou, depois daquela zanga de que tanto falas. Lembro-me do infantário, às vezes agarravas-te a nós a chorar, o papá ficava irritado e dizia que a culpa era minha, era preciso que, desde criança, te habituasses a estar sozinho. Quando vinhas da escola com ar triste e por acaso estava em casa (o que era raro), dizia-me que não te sabias defender, devias ter medo dos outros miúdos, por esse andar nunca serias um homem.

Pensando bem, meu filho, acho que falava do seu próprio medo. Do receio de falar contigo para te compreender, do pânico em abrir o coração às tuas dúvidas. Acho que desejou que fosses aquilo que nunca conseguiu ser: um homem corajoso.

Tornar-te um homem à sua maneira era uma obsessão. Sem fazer psicologia barata, porque nunca fui boa nisso, como tantas vezes me disseste, tenho quase a certeza de que tinha medo de descobrir em ti a parte de si próprio de que andava sempre a fugir. Nunca reparaste como evitava os grandes processos e tinha medo de ir ao tribunal? E, no entanto, dizia que a qualidade que mais apreciava era a coragem, não podia permitir que o filho tivesse medo de tudo.

Às vezes era mais directo, dizia que os rapazes têm de ser educados como homens, por isso controlava tudo, desde a escolha das cores das tuas roupas (só poderiam ser fortes, azul ou vermelho-escuro, nunca verde-claro ou muito menos rosa) até ao feitio dos fatos, sobretudo mandava na tua relação com o Ricardo, como irmão mais velho tinhas de dar o exemplo de força e coragem, nada de pieguices entre os miúdos...

Também se preocupava muito com o teu físico, sempre te achou magro de mais, por isso comprava vitaminas e remédios para abrir o apetite, queria lá saber se não tinham sido receitados pelo médico. Houve uma época, como te lembras, Diogo, que até te obrigava a fazer corridas no fim-de-semana, lá ias tu correr para o Estádio Universitário, sempre muito contrariado.

De onde viria esta obsessão do pai em fazer-te à sua maneira? Nunca encontrei respostas, não concordo com a avó Xinha que era tudo uma questão de feitios. Sempre se deram mal, esses dois! Às vezes a avó provocava um bocado, era como se incitasse certos comportamentos teus com o desejo de o irritar. Lembras-te da toalha que ajudaste a bordar? Devias ter mais ou menos onze anos, a avó Xinha foi a correr dizer ao papá que já dominavas muito bem o ponto de cruz, não gostava do trabalho?

O papá desatou aos berros e perguntou se ela gostaria de ter um neto maricas, ainda bem que não ouviste esta discussão, só te iria fazer mal.

Lembras-te do tio Ernesto? Claro que sim, não eras muito pequeno nessa altura, talvez dez ou onze anos, não posso precisar. Soubemos da sua vinda por carta, mesmo a avó Xinha, como irmã, nunca esperou que ele viesse viver para Portugal.

Não me posso esquecer da sua chegada. Trazia presentes para todos, para ti um livro sobre bailado que o papá só não pôs de parte por cerimónia, para o Ricardo um carro telecomandado que deitava luzes por todos os lados.

A princípio nem demos conta de que o tio Ernesto tinha viajado acompanhado por um senhor da mesma idade, um suíço de bom aspecto mas com roupas extravagantes, «nojentas» disse logo o pai. Depressa soubemos que o tio voltava por doença, acabou por ser internado no hospital e, sempre a seu lado, lá estava o amigo. O teu pai resmungava pelos cantos e uma vez chegou a perguntar à avó Xinha se sabia que tinha um irmão gay. Só nos faltava a genética, disse-me uma noite antes de fechar a luz, devia estar a pensar em ti mas não foi capaz de o dizer.

A vinda do tio Ernesto mexeu muito comigo. Não te deves lembrar, eras pequeno e não nos demos muito, a avó Xinha é que passava a vida com ele, dizia que era bom voltar a ter um irmão quando já não se espera. É claro que o teu pai não queria proximidades, chegou a dizer, naquela preocupação constante, que era uma má influência para ti.

Não o condeno, apenas critico aquele controlo excessivo, aquela vigilância permanente sobre tudo o que entendia poder tornar-te «menos homem», como dizia. O tio Ernesto era uma ameaça. Vê lá que o papá disse um dia que um homossexual de sucesso era uma coisa perigosa, porque podia fazer com que outros resolvessem imitá-lo!

Confesso que estes comentários aumentavam a minha curiosidade. Nunca tinha privado com alguém do mundo gay. Para mim eram pessoas com problemas, quase sempre criticadas, muitas vezes vítimas de piadas de mau gosto. O tio Ernesto tinha sucesso, dedicava-se à hotelaria na Suíça, coleccionava relógios caros e era dono de um iate. Constava que tinha tido muitas aventuras, mas agora parecia ter assentado com o companheiro que o papá detestava.

Fui visitá-lo uma tarde a um hotel de Sintra. Comecei por me aborrecer no caminho, filas de trânsito compacto à saída de Lisboa, um desvio Sintra-Praias que infelizmente deixei passar e me obrigou a ficar retida no centro histórico entre espanhóis barulhentos e americanos gordos, finalmente o hotel, junto ao Palácio velho e às charretes do tempo da minha avó.

O tio Ernesto recebeu-me no bar do hotel, deve ter reparado nalguma hesitação minha porque disse logo que o Alain tinha ido comprar queijadas, poderíamos assim falar mais à vontade.

A conversa levou-nos até à Suíça e à sua vida de grande senhor (como dizia a avó Xinha). Descreveu a sua cadeia de hotéis em Geneve e Lausanne, os passeios no iate e as férias em Itália, agora pensava ficar em Portugal e dirigir os negócios à distância, tinha sido maravilhoso reencontrar a irmã e toda a família, sobretudo ver como todos estavam bem. O Alain era um pouco mais novo e deslocava-se com facilidade, como sócio podia ir à Suíça e voltar depressa, enquanto ele ficava com todos nós...

A certa altura já não o ouvia, pensava se um dia a diferença que adivinhava em ti te faria parecer com o tio Ernesto, se numa noite qualquer chegaria ao pé de mim e dirias «mamã, sou gay», como sei que o tio tinha feito com a tua bisavó, mais tarde surgirias com um amigo especial e eu teria de fazer de conta que tudo estava bem. Ao menos que fosses rico, como o tio, o dinheiro tapa muita coisa, uma pessoa com posses é mais respeitada...

O tio Ernesto falava outra vez de negócios, perguntava a minha opinião sobre a possibilidade de montar um hotel em Sintra, estava encantado com o ambiente, tinha apenas receio de que fosse muito húmido no Inverno. Pensei em ti nesse momento (para quê mentir, estava quase sempre a pensar em ti), nas manhãs de nevoeiro da Praia Grande, os dois de mão dada a fugir dos carros na pequena estrada junto à praia, motas barulhentas a assustar-te quando eras pequenino, os teus dedos cheios de açúcar das bolas-de-berlim. O frio da água, as rochas do fundo que um dia desenhaste com a ajuda do professor que afastei de ti, o nosso chapéu amarelo e verde sempre ao pé do parque infantil de que tanto gostavas. Ao fim da tarde, corrias atrás das gaivotas, um dia quase tocaste numa, tinha uma asa ferida que te fez choramingar com pena. O papá chegava depois, tinha assuntos a tratar e quase nunca fazia praia connosco, por vezes ficávamos mais um bocado nos cafés junto à areia, pedias outra bola-de-berlim e dizias que querias ficar com bigodes de açúcar, íamos para casa ao anoitecer, no dia seguinte fazíamos o mesmo mas parecia diferente...

Sim, tio Ernesto, esta zona é muito húmida, no Inverno chove muito ou faz nevoeiro cerrado, é na Primavera e no Outono que é a melhor época, o Verão também não é seguro. Sabe, tio, a serra que hoje se vê tão bem raramente se mostra toda, nas noites frias o nevoeiro rodeia as luzes do castelo, durante o dia impede-nos de ver o mar. O seu hotel tem de ficar bem situado, já viu por certo como o trânsito é horrível aqui no centro histórico, mas não desista, desde que Sintra é património mundial vêm cá muitos turistas...

- Ma petite, não precisas fazer sala comigo. Ainda não pensei a fundo no hotel, o Alain é que está a estudar o projecto. Mas não é disso que queres falar, há qualquer coisa que te preocupa, confia aqui no velho tio.

Como poderia falar dos meus receios? Como seria capaz de perguntar as razões de se ter tornado gay? Ao mesmo tempo, tudo me parecia ridículo. Tinhas onze ou doze anos (já não sei ao certo), nessas idades está tudo por definir como dizem os psicólogos, por que razão me atormentava a ponto de deixar pistas junto de pessoas que mal conhecia? Não seriam tudo invenções de teu pai, sempre a querer que fosses aquilo que não tinha sido capaz de ser? E, no entanto, a angústia persistia. Não serias de facto delicado de mais? Não terias gostos pouco comuns num rapazinho da tua idade? Quem sabe se o professor de desenho era pedófilo, nunca ninguém percebeu por que razão se tinha ido embora da escola, um professor efectivo e com tanto sucesso não costuma andar a mudar. Sei que te custou muito a minha proibição, compreendo o teu desgosto, mas acho que fiz muito bem em te afastar dele.

Não consegui perguntar ao tio Ernesto nada de importante. Sempre que, nessa tarde no otel de Sintra, ia começar a falar de ti e dos meus medos, lembrava a tua cara pequenina no mar da Praia Grande, pensava que não queria partilhar a tua intimidade com ninguém, nem tinha o direito de tornar conhecidos os meus medos do futuro. E que me poderia dizer o tio Ernesto? Nunca seria capaz de esclarecer o que me preocupava na altura: a tua educação estava a falhar? O teu pai tinha razão quando afirmava que eu te protegia de mais e por isso não te estava a ajudar a ser homem? E à pergunta mais difícil, o que nos faz preferir o mesmo sexo, como poderia o tio responder, se todos os livros de Psicologia que li durante anos não lhe dão resposta?

- Tio Ernesto, ando cansada do trabalho, mais nada.

Olho pela janela e vejo a serra de Sintra, desta vez não tem nevoeiro e distingo no cume o Palácio e o Castelo, fui uma vez contigo até lá acima para ver uma anunciada chuva de estrelas, adormeceste antes de chegarmos, andar de carro era a única coisa capaz de te pôr depressa a dormir.

O Alain acabou de entrar, cumprimentou-me com um beijinho e fez um leve aceno ao tio Ernesto, desta vez não está vestido de maneira extravagante, tem roupas desportivas de bom estilo como gostaria que o papá usasse, oferece-me uma queijada da Sapa e fica sentado a olhar para nós.

- O Alain já percebe um pouco de português, não te preocupes, ma petite, podemos continuar a conversar. Se gostar de ti, vais passar uma semana à Suíça a um dos nossos hotéis, precisas descansar. Muitos alunos e dois filhos não dá para parar...

Na Suíça, eu? Sozinha sem os filhos? Contigo ao pé destes dois? O papá nunca iria consentir, e talvez tivesse razão. Não vale a pena precipitar nada, vou estar atenta, quanto menos falar no assunto, melhor. E depois do problema do professor tudo parece mais sereno, há raparigas a telefonar, bem sei que é por causa dos trabalhos e dos testes, mas assim é que tudo começa...

O empregado do hotel trazia chá e scones, desatei a rir com os erros de português do Alain, de repente fiquei tranquila, é evidente que não tens nada a ver com a vida destes dois homens, que estúpida sou, és só um menino a crescer com um pai severo, vou pôr de parte todas estas ideias loucas e viver contigo uma vida tranquila, não me posso esquecer do Ricardo que também precisa muito de mim.

O tio Ernesto veio até à porta do hotel dizer-me adeus, o Alain acenava de longe, desta vez não me perdi e depressa encontrei o caminho de Lisboa, estavas à minha espera com um livro na mão, «mãe, onde estiveste?», «com uns amigos, com uns amigos», não consegui dizer mais nada.

 

Neste dossiê de capa verde guardo muitos dos meus segredos. Como a redacção que fiz no dia do Pai, uma semana antes de fazer treze anos.

Não percebo por que razão conservo isto. São duas páginas de um caderno de linhas, com título a letra desenhada: «O meu pai».

Não é verdade o que lá está escrito. «O meu pai faz-me todas as vontades e conversa muito comigo», grande tanga.

Tu sabes, mamã. Bem te esforçaste para o defender, mas não resultou. Do papá recebi críticas e medos, ralhos e violência. Não o protejas mais. E o momento de falar verdade.

Nunca o abracei com força. Nunca o beijei com ternura. De certo modo, sempre tive medo dele. Quase posso dizer que nunca nos tocámos. Não, não digas que exagero. Em pequeno, estava sempre a ralhar e a exigir. Quando cresci, evitava o meu olhar. Agora que sou homem, despreza-me. Sim, é verdade que ficou contente quando entrei para a Faculdade à primeira e que se alegra com as minhas notas, mas que vale isso? Um pai não é um professor. Um pai é alguém que nos guia. Um adulto que nos orienta quando nos sentimos perdidos. Uma pessoa (não vais gostar muito disto) que nos ajuda a sair do colo da mãe. O pai fez isso?

Claro que não. Sempre o vi centrado em si, a pensar no tribunal e nos carros. Sei que sempre estudou muito, dou-lhe os parabéns por isso, mas quantas vezes disse que não podia brincar, por causa do trabalho?

E como aprendi a odiar aquele barulho da cadeira do escritório! Acordava de noite e ouvia-a rodar, levantava-me devagarinho e ia espreitá-lo. Quase não levantava os olhos do livro, mandava-me logo deitar.

Nos fins-de-semana tentava de novo. Não havia tempo, ou não gostava dos meus brinquedos. A pouco e pouco, fui aprendendo a não contar com ele.

Tenho pena de não ter sido o filho que ambicionou. Tenho a certeza de que gostaria de ter tido um rapaz que o acompanhasse ao futebol, ou que lhe falasse de mulheres. Em vez disso, nasci eu, sempre a esconder-me de mim próprio.

As coisas nunca correram bem entre nós. Dizes que, quando era pequeno, me ligava muito. Tenho pena, mas não me lembro.

Só me recordo de desencontros e discussões, raivas surdas e pazes fingidas. Tudo piorou naquele fim de tarde. Foi depois dessa zanga que nos perdemos um do outro para sempre.

Não, não tenhas medo, mãe. Sabes no que estou a pensar. Preciso esclarecer tudo, só tu podes ajudar.

Durante muito tempo espreitei o vestido de noiva. Tinha medo de lhe tocar, só a custo abria a caixa e tocava ao de leve no tecido, como já te disse. Ficava a ver o armário com as portas abertas, a caixa do fato sem tampa por cima dos sapatos velhos, o fato do papá no fundo. Depois arrumava tudo e regressava no dia seguinte.

Um dia jurava nunca mais voltar, mas não era capaz de cumprir. Tinha vergonha de pensar tanto num vestido de mulher, a certeza de que vocês achariam mal, não era brincadeira para um rapaz da minha idade.

Havia qualquer coisa que me obrigava. Cada dia avançava um bocadinho, deixava a caixa sem tampa durante mais tempo, ou tocava mais no tecido. Numa tarde, pendurei o vestido num cabide que encontrei livre, fiquei a vê-lo e a alisá-lo com todo o cuidado. Pareceu-me ouvir passos, desfiz tudo num instante e corri pelo corredor, mas estava vazio.

Tinha doze anos quando vesti o fato de noiva pela primeira vez. Era Inverno e não estava ninguém em casa. Coloquei-o por cima da minha roupa de criança, protegido pela porta entreaberta do armário. Calcei uns velhos sapatos de verniz e fiquei uns instantes sem me mexer, o coração a bater muito depressa. Sentia-me diferente, uma estranha euforia tomava conta de mim.

À noite, olhei para a fotografia do vosso casamento. Procurei ver como o vestido te assentava, não queria deixar de me comparar contigo, a minha imagem no espelho do guarda-fato não me saía da cabeça.

Foi apenas um início. A partir daí todos os dias ia ver o fato de noiva e vestia-o de vez em quando. Era uma coisa a que não podia fugir.

Naquele fim de tarde voltei lá mais uma vez. Quis ter uma sensação diferente, com o fato de noiva vestido fui observar-me ao espelho grande do vosso quarto, tinha o cabelo um bocado comprido para um rapaz de doze anos e penteei-o para trás. Um colar de pérolas de duas voltas com um fecho dourado virado para a frente não ficou mal. Talvez um príncipe vestido de azul com um chapéu com uma peninha me viesse beijar e pedir em casamento, seríamos felizes num país de fadas.

De repente, vocês entram. Quem poderia adivinhar que viriam tão cedo?

Como gritaste, mãe! Como o teu grito ainda hoje, tantos anos passados, ecoa nos meus ouvidos! E a cara do pai, uns olhos de fúria como só tinha visto em filmes!

Tentaste que ele não se aproximasse de mim, não conseguiste. A primeira bofetada deitou-me logo ao chão, um pontapé acertou-me no joelho, depois mais pancadas com a mão e com os pés, gritos. Levaste-me a custo para fora do quarto e fiquei a soluçar nos teus braços. Foste tu que, a pouco e pouco, me tiraste o fato de noiva e ajudaste a vestir o pijama. Não posso esquecer nada do que se passou, não achas que tenho razão?

Mãe, foi aí que nasceu entre nós um amor sem limite. Talvez já existisse, mas só o entendi naquela altura. Agora que tenho vinte e dois anos e sou diferente daquele que tinhas ambicionado, quero agradecer-te nunca me teres deixado só. Obrigado também por naquele fim de tarde teres controlado o pai e evitado o ódio definitivo entre nós. Sobretudo foi bom não teres perguntado nada, o vestido de noiva voltou para a caixa do armário do corredor, ajudaste-me a deitar sem comentários, recordo como adormeci agarrado a ti com um livro nas mãos.

Revejo a redacção do dia do pai. Odeio a minha falta de sinceridade, tenho vontade de rasgar estas folhas, para nunca mais as poder ler. «O meu pai às vezes ajuda-me nos trabalhos de casa», «vamos muito ao cinema», frases feitas, vontade de agradar à professora. Familiazinha feliz, exemplo para todos, tangas!

Sabes bem como tudo ficou mais difícil depois da zanga do vestido de noiva. Devo confessar-te uma coisa: a violência do pai foi tão grande que o meu único consolo foi ter feito nascer em mim um ódio forte, capaz de neutralizar o medo com que fiquei. Quando estava no chão e o pai me pontapeava, a raiva enchia o meu peito, sentia que poderia aguentar tudo o que ele quisesse descarregar sobre mim.

Por isso, não entendo esta redacção. Onde fui descobrir o bocadinho de ternura que escrevi, mais ou menos um ano depois daquela violência? É que, nessa altura, ainda não tinha nascido em mim uma certa compaixão que hoje me tranquiliza. Tu contribuíste para isso, mãe.

Esqueces aquela noite em que contaste que vocês não se tinham realizado sob nenhum ponto de vista? Não percebi onde querias chegar, mas pensei que falavas da vossa intimidade. Acho que foi a partir daí que suspeitei de um lado frágil do pai, talvez por ter perdido o próprio pai tão cedo, aos quinze anos, não foi?

Por isso compreendo agora, mais ou menos dez anos depois do vestido de noiva que, tal como eu, o pai tem dentro dele uma criança perdida, cheia de raiva e abandono. Compreender não é perdoar, não esqueço nem perdoo, como posso pôr de parte aquele descontrolo selvagem que ainda hoje encontro em sonhos? A fúria do infeliz, disseste tu, mãe, numa noite em que me queixei, mas isso pode desculpar aquela violência sobre uma criança?

Quando os meus amigos da Faculdade me acham ainda preso a ti, não percebem nada. Não entendem que mais do que o amor que soubemos construir, foi o medo do pai que no início nos aproximou. Agora o que mais desejo é poder viver sem estar sempre a pensar nos pais, sem medir a distância de mim para vocês. Poder encontrar uma paz para o meu corpo tão fatigado.

O pai nunca conheceu o Rafael. Talvez o tenha visto ao longe, mas nunca soube nada dele. Como sempre acontecia com tudo que era importante para mim.

Se o conhecesse, também não gostaria dele.

Ficaste chocada, mãe, quando te disse que lhe chamavam o «mariconço» da escola. Reparei que o observaste enquanto me esperavas. Estava rodeado de meninas, de pé junto ao portão da escola, cachecol demasiado largo quase a tapar os ombros, blusão de penas com umas pintinhas ridículas. Tapava a boca com a mão com as piadas das colegas e deixava escapar, de vez em quando, um grito na sua voz aflautada. Estavas a olhar para ele porquê? Nunca o disseste. Sempre receei que fosse por causa das minhas dúvidas, se calhar já suspeitavas das minhas inclinações e não dizias nada.

Toda a minha vida naquela escola foi feita a espreitar o Rafael ou a fugir dele. Às vezes olhava-o no pátio e não me aproximava, noutras ocasiões entrava nas piadas e chegava até a empurrá-lo nas lutas do pátio.

Um dia resolvi falar-lhe. Disse só «como vais, ’tás porreiro?». Tinha as pestanas humedecidas, devia ter estado a chorar, cobarde não fui capaz de lhe dizer mais nada.

Uma semana depois encontrei-o na casa de banho junto ao pavilhão. De joelhos no chão, preso por dois colegas mais velhos, as lágrimas caíam dos seus olhos cansados. Lutava para não olhar para o que queriam que visse, dois rapazes de sexos em punho junto à sua cara, a gritarem «isto é para aprenderes, paneleiro de merda!».

Fugi o mais depressa que pude. Não queria que se soubesse que podia ser eu. Um dia tudo se ia passar comigo, tive a certeza. Alguém havia de descobrir que também eu olhava para os rapazes nos balneários, os espreitava na casa de banho e os vigiava quando beijavam as raparigas.

Escondi-me numa sala de aula vazia. Oxalá ninguém tivesse visto. Alguém mexe na porta, o meu corpo foge-me, descontrola-se, começa a tremer, sou o Rafael e vêm atrás de mim, já os ouço gritar «pensas que escapas, também sabemos que és picolho», querida mãe, vem buscar-me depressa, como no infantário, quando a porta do guarda-vento se abria e eu corria para o teu colo para me abraçares com força.

Mãe, tantas vezes quis falar do Rafael e não consegui! Uma vez estive quase, a televisão dava um programa sobre a «condição gay» que vias com interesse, não fui capaz. Com treze ou catorze anos a cabeça está cheia de confusões. Fugia do Rafael para não ser como ele, mas parecia-me cada vez mais, continuava a olhar para o sexo dos rapazes e a ter medo das raparigas que se metiam comigo. Só tinha uma certeza: nunca seria feliz se me «assumisse», como ouvi dizer na televisão, como com certeza o Rafael tinha feito.

Tenho mais de vinte anos agora, olho a minha cara ao espelho e não me acho mal, estou decerto muito melhor do que no tempo em que andava na escola com o Rafael, onde só encontrava um rapaz feminino, com aspecto pouco decidido, perdido no mundo, à espera do sorriso de sua mãe.

«O meu pai» é para guardar ou deitar fora? Não sei. Nada do que lá está escrito é verdade. E, no entanto, podia sê-lo. Neste ponto, não ajudaste, mãe. O pai gostava dos meus desenhos, tenho a certeza. nunca criticou o meu entusiasmo com as aulas do Prof. João.

Um dia foi buscar-me à escola. Lembro-me como se fosse hoje e já passaram mais ou menos dez anos. Gostei de o ver. Quase nunca andava assim, tão desportivo, os advogados andam sempre de blaser azul e calças creme. Dessa vez, um pólo azul-escuro e umas calças claras, uns óculos de sol modernos que não conhecia. Não estava à espera, não sei se me quis surpreender, ou se aconteceu mesmo por acaso, como pensei na altura.

Esperou por mim junto ao portão, a ver passar os alunos que saíam em grupo, não parecia ter pressa nenhuma.

Qual é o teu professor de Desenho?

Os pais nunca dizem Educação Visual, muito menos EV como nós, lembro-me de ter pensado por instantes, talvez para disfarçar o nervosismo. Sabes, mãe, naquele momento fiquei tão aflito que não sabia o que fazer, se inventar uma desculpa qualquer e pedir para ir embora, se indicar o Prof. João ao papá. Não precisei de fazer nada, dizem que não há transmissão de pensamento, mas não é que o Prof. João apareceu?

Quase se tocaram, o papá reconheceu-o pela descrição que tinha feito há tempos, ou pelo meu gesto aflito a cumprimentá-lo. O Prof. João passou por ele e sorriu, eu fiquei a olhar para os dois sem conseguir falar.

Fomos para o carro sem nada dizer. Olhava para o pai à espera de um sinal, um indício qualquer que mostrasse a sua opinião. Guiou até casa quase sempre em silêncio, lembro-me de que chovia e havia muito trânsito.

Passados estes anos todos, recordo um pormenor. Disse para ir no banco da frente e não me esquecer de pôr o cinto. Podes achar ridículo, mãe, mas foi a primeira vez que o pai não me tratou como um bebé. Pensei, vai falar comigo, dizer qualquer coisa sobre as minhas pinturas ou acerca do aspecto do Prof. João, pode ser que me compre mais coisas para desenhar ou um cavalete como tanto gostava, de certeza que se não me mandou para trás é porque assim podemos falar melhor.

Talvez um dia se possam encontrar, quase todos os dias sonho que vou fazer uma exposição de pintura com a ajuda do Prof. João e o papá vai à inauguração. As rochas da Praia Grande, as casas de Colares, o Guincho ao fim da tarde, o retrato da avó Xinha sentada num pequeno banco de jardim... o professor explica a exposição ao papá (tu já a viste com ele muitas vezes), salienta pormenores de técnica que ensinou, agora apresenta o pai a um crítico de arte, «o feliz pai do jovem pintor», eu observo tudo de um canto da sala. O pai faz perguntas educadas, nunca percebeu muito de arte e sobretudo não quer parecer ridículo a falar do filho, o crítico fala não sei quê das minhas potencialidades, estão agora frente ao último quadro, o rio Maçãs a atravessar Colares, é altura de agradecer ao professor «tudo o que tem feito pelo meu filho», despedem-se por momentos e o papá volta para o pé de ti.

Atravessamos o Campo Grande, à direita estão as Faculdades que nunca irei frequentar porque o meu sonho é ir para Belas Artes e ser pintor, espero ainda um comentário, uma frase qualquer sobre o Prof. João ou a escola, mas o pai começa a falar do escritório e do Ricardo, ainda bem que desistiu de vez de me chatear com o Benfica.

Estou outra vez distraído, é o Rafael que me ocupa agora. Se um dia fizer uma exposição, vou convidá-lo? E afinal ele está lá, anda com um jornalista muito mais velho, não vês, mãe, até lhe foi buscar uma bebida e estão os dois a conversar com o crítico de arte? Passaram tantos anos, o Rafael não vai reconhecer-me, nunca descobrirá que este pintor da exposição é o miúdo magrinho e de caracóis que fugia dele na escola...

... na escola onde uma vez te traí, Rafael. Nem tu sabes isto, mãe.

A sala de estudo. Para onde nos mandavam quando faltava um professor. Um quadro preto à antiga, mesas e cadeiras em mau estado, mapas de Ciências Naturais engelhados pelo uso. Professores meio doentes a tentarem que estudássemos alguma coisa. Quando entrei, ouvi dizer que a professora já tinha tido três esgotamentos, podíamos fazer porcaria a valer. Não havia muitos lugares, fiquei na última fila, o Rafael estava um pouco mais à frente, a tentar passar apontamentos.

Houve mesmo porcaria. Um gajo qualquer começa a atirar bolas de papel com cuspo para ver se ficavam presas no tecto, outro rouba os livros a uma miúda. Vários andam de pé de um lado para o outro, a empurrarem-se por entre as mesas e a soltar palavrões. Uma rapariga chora de raiva, alguém lhe tinha riscado várias folhas do livro, grita que o pai lhe vai bater. A professora, pequenina e gorducha, ameaça pôr toda a gente na rua, grita mas não consegue nada, parte a esferográfica de tanto bater na secretária. Calados, calaaados, grita e ameaça chamar alguém que não percebi. Começa a circular uma revista pornográfica, vejo um colega a escrever qualquer coisa numa página, os risos e os palavrões aumentam. Olho de repente para a revista, setas e frases tornam a professora heroína da estória, não quero ver em pormenor e passo-a logo a outro.

Foi então que a professora tomou uma atitude. Aos gritos, apanhou a revista, olhou-a num instante e saiu da sala.

Ainda oiço as gargalhadas, mãe, os gritos e os palavrões continuam dentro da minha cabeça. O carro está parado no trânsito e o pai ainda não falou comigo, por isso posso voltar àquela sala de estudo. Agora estamos sozinhos e a confusão aumenta. De repente, três ou quatro rodeiam o Rafael, dão-lhe palmadas nas costas, tentam levantá-lo da cadeira, uma rapariga pede calma mas os insultos não param. Estou sentado atrás do Rafael e como sempre procuro que ninguém repare em mim. Um dia posso ser eu. Vão agora descobrir que sou como ele, também observo os rapazes e não me interessam as miúdas, por certo alguém já reparou como olho para o lado nas casas de banho. O Rafael está a chorar, abriram a mochila e estão a destruir os livros dele, um gajo escreve no quadro «FUCK YOU» em letra de imprensa. De repente, há silêncio, acaba de entrar o Director, a professora pequenina vem atrás dele, uma empregada traz a revista. Querem saber a quem pertence, ninguém sai dali sem se apurar quem a trouxe e quem escreveu aquilo sobre a professora, se não confessarem há falta disciplinar para todos e proposta de suspensão.

Foram momentos terríveis, mamã. Comecei a pensar que já tinham descoberto o meu problema e me iam acusar, por isso não olhei para ninguém, fingi estar concentrado no caderno até que aquilo passasse.

Não passou. O Director gritava que não pensássemos que as coisas iam ficar assim, se não queríamos ser todos castigados alguém que confessasse, ou então o melhor seria ele virar costas para podermos escrever o nome num papel. Ia sair durante cinco minutos e, quando voltasse, queria tudo resolvido.

Eh, pessoal, bute acusar o Rafael!

Alguém disse isto, mãe, tenho quase a certeza de que ouvi esta frase, ou então o medo tomou conta de mim, já não sei se ouvi Rafael se Diogo. Olho em frente e já vejo uma rapariga a escrever qualquer coisa, é pena os nomes serem do mesmo tamanho, ao longe não distingo as letras, lá na esquerda há um grupo que partilha uma caneta, estão a combinar pôr todos o meu nome, a ideia vai passar rápido, já sabem que sou como o Rafael...

Queres saber como tudo acabou, mamã? Em nada, como tantas vezes acontece na escola. Como ninguém escreveu nenhum nome, e éramos muitos, o Director mandou uma carta aos pais e tudo terminou assim.

Hoje, com vinte e dois anos, percebo que a escola me deu a verdadeira aprendizagem do desprezo. Escondida nas linhas da redacção sobre o pai, que afinal vou continuar a guardar, está a violência do seu silêncio naquela ida à escola e a fúria dos colegas que maltratavam o Rafael. E sempre a minha cobardia.

Lanço o olhar para trás e lá estás tu, minha mãe, segurarás sempre o meu corpo inquieto e, mais cedo ou mais tarde, alcançarei a paz.

 

Diogo, escuta, estás enganado, nunca te quis impedir de ser artista. A prova está neste catálogo da exposição que vimos em conjunto, tinhas onze ou doze anos. Tenho a certeza de que foi lá que falaste de pintura pela primeira vez, foi o momento em que pediste para ir para Artes.

É verdade que talvez não tenha sido muito entusiasta. Há outros cursos que sossegam mais os pais, engenheiro ou médico, que se queixam muito mas acabam sempre por arranjar emprego. Mas podes ter a certeza, garanto-te, nunca me opus a que seguisses pintura.

Sei por que razão tens essa ideia errada. É verdade que te afastei do Prof. João, aquele teu professor de Desenho. Nunca me perdoaste isso. Estou de acordo que foi ele que fez nascer em ti o gosto por desenhar. Sei também que te ensinou muita coisa, sobretudo alguma técnica que ainda hoje tens. Admito até que possa ter tido ciúmes. Apesar de ter marido e dois filhos, sabes que ocupaste sempre o primeiro lugar. Nunca gostei de te partilhar, por isso não gostava que falasses tanto desse professor.

Queria dizer-te uma coisa. Não gostei do aspecto dele. Acho que uma pessoa que trabalha numa escola deve vestir com dignidade. Não acho bem que se ande de calças de ganga - ainda por cima jardineiras - e T-shirt, quando se tem quarenta e tal anos. E depois, vocês estavam a ficar demasiado íntimos. Não concordo que um professor convide um aluno para casa, cada qual no seu lugar. Achei o convite estranho. Os alunos passam tantas horas na escola, os professores têm de arranjar mais tempo para falar, não é preciso marcar encontros fora de horas. Percebi como ficaste zangado, mas se voltasse atrás fazia exactamente o mesmo. Há coisas que os pais têm de decidir, só mais tarde os filhos percebem que eles têm razão. Naquele momento resolvi sozinha, como quase sempre. O pai, como sabes, até encorajou o teu lado artístico e uma vez disse-me que foi à escola para conhecer o Prof. João (espero que te tenha falado sobre isso). Podes não estar de acordo, mas havia qualquer coisa de suspeito naquele homem, por isso tive de intervir. Não me arrependo, só tenho pena de que isso tivesse ficado mal resolvido entre nós.

Durante alguns anos não falaste no assunto, estavas aborrecido comigo. Continuavas a desenhar, claro, embora com menos ritmo. Via os teus bonecos nas capas dos livros ou no meio dos cadernos, de vez em quando em folhas de papel cavalinho que encontrava quando arrumava o teu quarto. Mas a tua cabeça é que te levava para outros lados, por isso trabalhavas um pouco menos.

Voltaste à ideia mais ou menos aos dezasseis anos. Estava a dar a biografia do Picasso na televisão e disseste teres pena de não ter seguido Artes, no agrupamento em que estavas nem tempo havia para se falar de pintura.

Andavas estranho nessa altura. Telefonemas esquisitos, livros que lias às escondidas, pesquisas na internet durante a noite. Como sabes, nunca mais descansei depois da noite do vestido de noiva. Tinha a certeza de que tinhas um problema sexual, às vezes pensava que o melhor seria ajudar-te a falar, mas depois calava-me. Qual é a mãe capaz de falar com um filho sobre isso?

E quando, nessa noite do programa de televisão, me voltaste a falar em seguir pintura, de certeza que deixei transparecer o medo que me invadiu. Será que estava a ser convencional, a pensar que é mais fácil ser homossexual no meio artístico?

Desde a noite do vestido de noiva que esse medo me visita todos os dias, vejo-te em sonhos perdido nos bares gay de Lisboa, seropositivo escondes isso de todos e consultas médicos de renome sem ninguém saber, às vezes até penso se quando abraças o teu irmão eu deveria intervir...

Se fosses pintor poderias arranjar um companheiro e ter aventuras, é mais fácil do que noutro curso, ninguém no fundo aceita um advogado ou engenheiro sem mulher e filhos. Logo a seguir pensava como estava a ser estúpida, uma professora devia raciocinar melhor, estas ideias sobre os artistas são pensamentos do tempo da minha avó.

Devo dizer-te que a zanga da noite do vestido apenas me confirmou aquilo que receava há muito. Sempre notei em ti qualquer coisa difícil de definir, uma fragilidade especial que noto desde que eras muito pequeno. É esse teu lado diferente que me faz pensar tanto, que me obriga a encontrar novas maneiras de te proteger.

Não, não concordo contigo, o teu pai não ia recusar o curso de pintura. Não preciso relembrar-te o papel de cenário e as tintas que tanta vez comprou. Sei que sempre falaram muito pouco, mas em relação à pintura estás a ser injusto.

Tal como tu, nunca poderei esquecer a violência com que te bateu naquela noite, aqueles olhos abertos de fúria e os gritos de raiva. Pensei que quando crescesses as coisas melhorassem e se pudessem entender, numa família o tempo ajuda a esquecer. Afinal, terminou a violência das pancadas, ficou aquele silêncio que se manteve até à tua morte.

Meu filho, não sei se fui culpada de tudo. Talvez não te tenha deixado aproximar do pai, no desejo de te ter só para mim. Ou então vivi com medo de que crescesses e pudesses numa fúria dar cabo dele. Quem sabe se, sem querer, alimentei esse ódio? Quem pode esquecer como foste humilhado com o vestido? Vivo com a dúvida que nessa noite poderia ter feito mais. Apesar de me ter esforçado para o controlar, ainda deixei que te magoasse tanto!

Diogo, sei que passaste a vida à procura do teu pai, de um homem que te pudesse ouvir, de alguém que dissesse não na altura certa. Sei hoje que o papá também se perdeu de ti naquela noite, foi tudo tão brutal que a vossa ligação, tão fraca, se rompeu para sempre. Quantas vezes o encontrei parado à porta do teu quarto, com medo de te interromper, talvez com receio de que não abrisses a porta. Sem dúvida desejoso de falar contigo. Não, não é verdade que não tinha tempo para ti. O escritório nunca foi tão importante como pensas, trabalhavam em grupo e os estagiários resolviam muitos problemas. Tenho hoje a certeza de que se desculpava com o trabalho porque não se entendia bem connosco, só o Ricardo é que o fazia feliz.

Cresceste entre mim e o papá. Não sei mesmo se te perdeste à procura de cada um de nós, não do pai e da mãe que procurámos ser, mas do homem e da mulher que nunca encontraste. Deixei de ser mulher (sei que não gostas de ouvir isto) porque estavas sempre a precisar de mim como mãe e o Ricardo precisa agora, o teu pai nunca chegou a ser o homem que desejei quando o conheci.

Agora que temos só um filho e a dor de ter perdido o Diogo me visita todos os dias, quero dizer-te, António, que vamos continuar a ser marido e mulher só porque o Ricardo é muito novo ainda. Quando ele for adulto pode ser que estejamos juntos só por inércia (dá tanto trabalho uma separação), mas a esperança de podermos envelhecer juntos e em paz há muito desapareceu. Estamos unidos porque a vida nos juntou, mas quase nada foi forte entre nós, nem fomos capazes de construir um dia-a-dia sereno. E como imaginei que poderia ser feliz a teu lado! Como sonhei que seríamos capazes de construir um futuro!

Nunca falei sobre este assunto, mas talvez tudo tenha começado com a gravidez do Diogo. Não querias a criança, disseste que te tinha pregado a partida, como se fosse a única responsável. Não consigo dizer se isso te fez afastar para sempre do miúdo, o que sei é que nunca mais nos demos da mesma maneira. Ficaste para sempre longe de mim. Mesmo agora que a morte nos levou um filho, não consigo tocar-te.

Lembras-te de como me desejavas antes de casarmos? Tudo se modificou com a gravidez, pensei que era por isso, quando a criança nascesse tudo voltaria a ser normal. Como me enganei, quantas noites fiquei acordada a teu lado, a ouvir a tua respiração e os ruídos da cidade! Era sempre igual, viravas-te para o lado e nem dizias boa noite, ficava ali sozinha até adormecer de cansaço.

Uns anos depois fiquei convencida de que tinhas um problema sexual, passavam meses sem termos relações, descobri enojada que vias filmes pornográficos às escondidas. Uma vez levantei-me a meio da noite e vi que te masturbavas, uns olhos de alucinado fixos na televisão. Fiquei tão revoltada que fechei em silêncio a porta que tinhas deixado entreaberta e não fui capaz de dizer nada quando te deitaste a meu lado. Só nessa altura percebi que isso era um vício terrível que te perseguia, cheguei a acordar com os estremeções da cama, em pânico deitei fora revistas de mulheres que descobri no escritório. Como podias ser um bom pai para o Diogo e para o Ricardo, se não és um homem normal? Tenho pena de o dizer, mas tu, António, és na realidade o mais incompleto dos homens, nem sequer és capaz de reparar na pessoa que dorme a teu lado há mais de vinte anos.

Diogo, não sei se me ouves, onde quer que estejas talvez lá chegue a minha voz, a tua acompanha-me todas as noites, de dia oiço-a ao longe, há mais ruído, estou mais ocupada e por isso menos atenta a ti. Não tenhas medo, abre o teu coração, mostra os teus segredos. Vamos os dois de mão dada por uma estrada que nos afasta do resto do mundo. Escuta.

Depois do vestido de noiva li tudo o que encontrei sobre questões de sexo. Queria parar um processo que adivinhava sem fim. E, no fundo, que havia de concreto? Quantos miúdos vestem as roupas das mães sem problemas?

Quantos se interessam por artes, depois casam e têm filhos?

Nos livros procurava indícios, teorias ou casos clínicos que me ensinassem a conhecer-te, a compreender em definitivo qual iria ser o teu caminho. Páginas que me ajudassem a aceitar-te, se um dia fosses homossexual. Mas alguém pode encontrar estas respostas num texto? Ninguém pode tranquilizar uma mãe cheia de dúvidas, às voltas com a culpa de não te ter educado de outra maneira. No entanto, continuava sempre, talvez descobrisse uma estratégia, um atalho qualquer para diminuir a minha angústia, qualquer coisa que me tranquilizasse sem me afastar de ti. O pior é que não podia falar com ninguém. O teu pai por certo também tinha as mesmas dúvidas, mas falar com ele significava uma discussão sem fim sobre a educação que não tínhamos sido capazes de te dar, e eu não tinha forças para ouvir isso pela centésima vez. Com a avó Xinha talvez fosse possível, mas tinha vergonha, pudor em dizer à minha mãe, sempre tão segura, que em algum momento tinha falhado. Talvez uma amiga? Nem pensar, apresentavam sempre os filhos como seres perfeitos, cheios de namoradas desde a quarta classe e os melhores alunos do mundo.

Decidi falar com a psicóloga da escola, como professora não era difícil, bastava fingir que desejava conversar acerca de um aluno que me preocupava.

Era muito nova e não tinha contrato, dividia-se por várias escolas e andava sempre a correr, mas os miúdos gostavam dela. Lembro-me do gabinete, uma velha sala de aula adaptada, fotografias de grupos de jovens na parede, secretária cheia de papéis, um conjunto de canetas num copo de vidro, um cinzeiro lascado. Olhou para mim a sorrir, lembro-me de ter receado que descobrisse o truque, começa a fazer perguntas e vai ser o fim, toda a escola vai conhecer os meus problemas e o pior é que não me apetece pedir transferência, já estou habituada a estar aqui. Um aluno bateu à porta e espreitou logo a seguir, ainda bem que não é dos meus e já se foi embora, sinto-me um pouco ridícula a fingir que venho falar de um caso, a psicóloga

a homossexualidade é uma opção, desde há muitos anos que já não é considerada doença. O seu aluno, ele é do 11º, não é?, deve ser ajudado a assumir-se, se quiser falo com ele

como se pode assumir uma coisa que se desconhece? Se alguém pudesse de facto escolher, escolhia ser homossexual? Como mãe, desisto assim com essa facilidade de ter um filho como ambicionei, que continue a família e me dê netos? As ideias fugiam-me, fiquei sentada em frente da psicóloga sem nada dizer, lá fora ouvia os gritos no pátio e o toque para entrar, a psicóloga de novo

temos de lutar contra o estigma que a sociedade lança sobre os homossexuais. É isso que lhes dá sofrimento. Não tenha problemas, recebo o seu aluno, basta ele aceitar

nunca falei deste encontro, lembro-me de chegar a casa cansada e de te procurar no quarto, desenhavas em cima da cama como de costume. Sentei-me a olhar para ti, nesse momento não quis que nada deste mundo pudesse perturbar a paz que sentia. Fiquei assim um bocado, até o Ricardo me chamar.

É na morte que tudo termina e recomeça. É estranho o que sinto, mas se fosses vivo não recordava aquilo que sonhámos. Tu, que nasceste anos depois da liberdade, não podes perceber como foi fácil conquistá-la para o país e difícil estabelecê-la entre nós. Pela minha parte, sonhei que um dia me darias dois netos, um deles de cabelo aos caracóis, como tu, depois uma menina que seria sempre a minha companhia. Disse-te isso uma vez, numa tarde de fim-de-semana em que o Ricardo estava com a avó Xinha e o papá tinha ido ao futebol. Nunca pensei que respondesses que isso era contra a tua liberdade, estava a querer traçar o teu caminho. E a possibilidade de não ser condicionada pelo teu percurso, não contava?

Gostaria de te ter dito que há muito não era livre. Vivia rodeada de fantasmas, o Ricardo ia ser gozado na escola por ter um irmão homossexual, o tio Ernesto levava-te de férias para a Suíça e nunca mais voltavas, finalmente tinhas decidido assumir-te. Noutras ocasiões sonhava que entravas numa rede de pedofilia da internet e a polícia viria cá a casa vasculhar tudo, aparecias em casa todo ferido por uma vingança qualquer, não sabia se era capaz de inventar mais uma estória para te proteger.

O que me torturava é que nada se definia, a psicóloga estava bem enganada porque não eras capaz de decidir nada, com quinze, dezasseis anos já as pessoas costumam saber do que gostam, contigo era diferente. Um dia aparecias com raparigas para fazerem trabalhos de grupo, estavam horas no computador, eu ficava a ouvir os vossos risos e pensava, que parva sou, o rapaz não tem problema nenhum, não o oiço ali às piadas com miúdas tão giras? A seguir andavas sozinho, o telemóvel não tocava e parecias mais triste, depois aparecias de novo acompanhado, desta vez eram rapazes que ia logo inspeccionar, se tinham brincos ou pulseiras pensava que tinhas entrado no mundo gay, retirava-me para o meu quarto sem saber que fazer.

Uma noite falavam de sexo na televisão, um sociólogo explicava a erotização da sociedade contemporânea e um sexologista discutia a bissexualidade no tempo da SIDA, não tive a certeza se o pai estava atento ou não, eu ouvi e não me esqueci sabes, mãe, o Bruno é maricas, o Rafael já não é o único na escola fiquei calada. Pensei que falavas de ti, utilizavas o mesmo truque que eu na conversa com a psicóloga, não eras capaz de te assumir mas estavas a preparar o terreno, qualquer dia eras tu, estavas só a experimentar-me, ou então não avançavas porque o papá podia ouvir. Não me lembrava do Bruno, não tinha a certeza se era aquele rapaz muito magro, vestido de maneira a dar nas vistas e cheio de pulseiras às cores, por isso disfarcei, cobarde não fui capaz de desenvolver a conversa, passado pouco tempo foste para o quarto.

Pergunto hoje se podia ter feito qualquer coisa. Há mensagens indirectas dos filhos a que não damos respostas, porque não as registamos ou porque, tolhidos pelo medo, não sabemos que dizer. E como pode ter importância a conversa de uma mãe com um filho adolescente!

Voltei às minhas dúvidas, aos livros que continuei a comprar. Uns pais com problemas, uma sensibilidade para as artes, um tio-avô gay, segundo o que lia tudo apontava para um desfecho, tinha de estar preparada. Foi então que me disseste que andavas com a Cláudia, namoravam há um mês e eu não tinha dado por nada!

Que bom, os meus receios não tinham razão de ser, iam casar e ser felizes para sempre, o sonho de ter dois netos ia realizar-se.

 

Cláudia, quando te beijei pela primeira vez foi o fim dos meus medos, senti que o mundo não ia acabar, nunca seria como o Rafael. Estava salvo.

Imaginei logo o dia em que te mostraria a todos os colegas, de braço dado contigo à porta da Associação. Ainda bem que tinhas mais um ano do que eu. Já devias ter andado com outro rapaz, não me importava nada.

Ainda me lembro de como ficaste contente, mamã. Sei que andavas sempre a pensar como era bom para mim ter uma namorada.

Não sei porquê, mas tudo aconteceu uma semana depois de uma conversa com o Rafael. Recordo que te falei disto, mãe. Andava a fugir dele, nunca queria que alguém nos visse juntos, mas nesse dia não pude escapar.

Diogo, sabes que fui chamado ao Director?

A seguir sou eu, algum professor já reparou como ando sempre sozinho. No 11º ano há muitos namorados, até nas aulas se fala disso. Não vale a pena fingir, dizer piadas sobre maricas e mostrar à-vontade nas conversas sobre sexo. Alguém já descobriu que é tudo a fingir. Os colegas estão sempre a falar de grandes curtes ou de quantas vezes por semana têm sexo com as namoradas, eu não posso contar o que penso antes de adormecer.

O Rafael começou a falar, não o consigo ouvir, sou eu que estou no gabinete do Director que ameaça expulsar-me, um comunicado sobre o meu comportamento sexual vai sair dessa reunião. O pai vai ser chamado à escola e em casa a sua violência será pior do que com o vestido de noiva, tu ficarás triste para sempre e nunca mais terás paciência para mim.

Olho para o Rafael, está sentado num banco de pedra da escola, à sua volta há restos de cigarros, canetas partidas, papéis velhos, canteiros de flores secas. Ninguém está próximo, mas continuo com medo. Alguém pode pensar que temos um caso, toda a gente sabe quem ele é. Posso fazer um sinal para que uma das minhas amigas venha para o pé de nós? Agora passa um par de namorados, o Rafael só olha para o rapaz, já não tem nada a perder. Em que momento é que perdeste o medo? Por que razão não continuaste a esconder-te como eu, a olhar para o sexo dos rapazes e a fingir interesse pelas raparigas?

Olha para a frente sem me dar atenção, quer apenas desabafar. Tem as pestanas húmidas, como sempre, está vermelho e a tremer:

- ... disse para ser discreto, para não provocar os outros. Respeitava a minha opção mas eu tinha de aceitar a diferença, não podia permitir que provocasse os colegas. A conversa até não correu mal, acabou por concordar que eu não tinha a culpa de ter este problema...

Mãe, não fui capaz de dizer nada. Apeteceu-me bater-lhe. Como podia aceitar aquelas palavras? Esqueceste-te de dizer ao Director como foste massacrado na casa de banho, como todos os dias és gozado no pátio e correm piadas a teu respeito... não te lembras da sala de estudo onde quiseram lixar-te, até ontem te tiraram o lugar e te empurraram para a parede, sem que a professora fizesse alguma coisa...

Mãe, quero que saibas que gostei mesmo da Cláudia, foi o meu amor por ela que fez com que começássemos a andar. Não penses que foi o medo de ser igual ao Rafael, não passou de uma coincidência de datas, nada de confusões.

Cláudia, acreditei de início que o nosso namoro ia durar muito. Fazia planos de vida contigo, apresentei-te à família toda, gramavas do Ricardo. Tanto tempo que passámos juntos, na escola ou em casa, em passeios de mão dada no jardim perto da casa da avó Xinha. Finalmente podia olhar para onde quisesse, não precisava de virar a cara para o lado para disfarçar o ter espreitado um rapaz, apetecia-me gritar ao mundo que eras minha e que seríamos felizes para sempre.

Os medos quase pararam e tu, mãe, bem o notaste. Algumas imagens ainda me visitavam, numa espécie de nevoeiro. Um homem condenado por abuso sexual que tinha visto na televisão de cara meio tapada, apareceu-me em sonhos, perseguia-me numa rua deserta que terminava num muro, felizmente não tiveste medo, mamã, chegaste a tempo. Um site da internet tem o meu nome, vou fazer parte de uma lista internacional para encontros gay, a minha namorada vai saber e nunca mais a vou ver. Noutro sonho apareço com o vestido de noiva, é espantoso como me fica bem, só não tenho as pérolas no cabelo porque agora o uso muito curto, o noivo tem bigode, é o professor de natação que fugiu com o cantor, por isso não se importa que eu seja um travesti, acordo e és tu, mãe, que mais uma vez me limpas o suor e me sossegas.

Depois, o nevoeiro desaparecia quando a Cláudia chegava, os medos fugiam, imaginava que seríamos capazes de construir um amor sereno que nunca teria fim.

Cláudia, tenho agora vinte e um anos, há muito que deixámos de nos ver e nada sei de ti, se calhar tens um namoro sério com um rapaz normal e estás a acabar um curso qualquer, quero dizer-te - para que nunca o esqueças - que ainda hoje tenho as nossas alianças.

Nesse dia não havia nevoeiro na serra e Sintra estava cheia de turistas barulhentos. Comprámos os anéis numa loja de artesanato bem no centro da Vila Velha, foste tu que insististe para que os usássemos na mão esquerda como os casados, aliança de comprometido era pouco para o nosso amor. A senhora da loja riu-se da nossa conversa, deve ter pensado tão novos e já com estas manias, fomos até à loja dos bolos comer travesseiros, ficámos a olhar para o castelo até ser noite.

Tantas coisas aconteceram depois, estou sozinho no mundo, nada sei de ti. A aliança está aqui, na palma da mão direita. Que será feito da tua?

Deves saber, mamã, que foi uma boa época da minha vida. O tempo chegava para tudo e as notas até melhoraram. É certo que sentias a minha falta, porque não parava em casa. Depois das aulas, íamos a qualquer lado, um café na Avenida de Roma, um gelado nas docas, um passeio nas Amoreiras. Protestavas com o dinheiro que andava sempre a pedir, mas no fundo sei que ficavas contente. Voltei a desenhar em blocos a sério, a Cláudia achava que era uma pena encher cadernos e livros com bonecada, por isso estava sempre a encorajar-me a fazer trabalhos maiores. Levou para casa um esboço que fiz da nossa escola, o cubículo junto ao portão com o porteiro a espreitar com ar ameaçador, a entrada principal no meio da parede decorada com graffiti, o parque de automóveis e o jardim fechado, onde só entravam os professores. Ainda hoje pergunto a mim próprio como consegui pôr aquilo tudo numa folha de papel!

Os pais da Cláudia parece que gostaram, tive pena que nunca tivesses visto este desenho, foi um dos melhores que fiz.

Nunca te falei dos pais dela. O namoro não durou muito, como sabes, não deu para se conhecerem. Guardo deles boas recordações.

O pai trabalhava em ar condicionado numa firma conhecida, era do Benfica como o papá e tinha orgulho na filha. De início olhava para mim desconfiado, devia estar a ver se aquilo era a sério ou não, a pouco e pouco passou a aceitar-me e até me achava graça, quando eu, bem-disposto, gozava com o Benfica (eram bocas que ouvia na escola, como sabes nunca percebi de futebol).

Com a mãe foi mais difícil. Não me lembro muito bem, acho que era secretária de alguém, tinha um bocado a mania das limpezas e das arrumações, passava a vida a dizer que tínhamos de deixar tudo impecável, ou que precisávamos de lavar as mãos. Tratava-me como um miúdo, quando jantei lá em casa até me descascou a fruta, senti-me ridículo. Uma seca! O problema é que a Cláudia gostava muito dela, não fazia nada que a mãe não concordasse, pediu-me muito para não ser antipático. É claro que me esforcei, não queria perdê-la por um motivo desses.

Gostava mais de estar em nossa casa, se a avó Xinha estivesse a ouvir esta conversa diria logo que eles eram diferentes de nós, mas acho que aos dezasseis anos isso não tem grande importância. Contigo nunca houve problemas, desde que fosse uma rapariga era sempre bem recebida.

Sabes qual era um dos nossos sítios favoritos? A Praia da Aguda. Fui lá contigo muitas vezes, lembras-te? Custava a chegar lá no Inverno, só em alguns sábados lá fomos, de comboio até Sintra e depois, num autocarro lento e desconfortável, até Fontanelas.

Recordas a praia? Tem uma descida íngreme, um carreiro e uma escada ladeados por pequenos arbustos, um mar muito azul em baixo. Na maré vazia, as rochas aparecem cobertas de lapas e limos verdes. Pescadores passam lá muitas horas, sem que se consiga perceber se têm algum êxito.

A Cláudia adorava a Aguda, apesar do tempo que perdíamos nos transportes. Sentava-se mal chegava à praia, procurava pedras de feitio estranho, esta aqui parece uma baleia, repara nesta, parece uma cabeça de velha com um lenço, já viste que é mesmo um cão, quando me ria dizia que os homens não têm sensibilidade para estas coisas. Depois, puxava-me pela mão e íamos até às rochas, procurava caranguejos e pequenos peixes nos recantos das rochas, fazia-me dar pequenos saltos para evitar as mais rugosas, ria com a minha falta de jeito para apanhar os bichos.

Tantas vezes te beijei à beira-mar, não posso esquecer que foi na Praia da Aguda que senti o teu corpo, pela primeira vez, bem junto ao meu.

Uma vez fomos lá contigo, mãe, já me esquecia. Deve ter sido a última vez que foste, nunca mais falámos da Praia da Aguda. De carro, chegámos num instante. A praia não tinha quase ninguém, corremos os três de mão dada pela areia fora, lembro-me de como a água estava fria quando tocámos o mar. A Cláudia escreveu os nomes na areia molhada, DIOGO - CLÁUDIA em letras enormes, para que se pudessem ver do alto da escada.

Resolveste depois dar um passeio, talvez para nos deixares sós. Lembro, por muito que te admires, como estavas: o teu cabelo comprido preso por uma fita azul, um fato de banho escuro, um pano à roda da cintura onde te envolveste no final da tarde. A Cláudia ainda insistiu para ir contigo, mas eu sabia como gostavas de andar a pé sozinha, como mesmo em pequeno me deixavas a brincar à beira-mar e te afastavas um pouco, aflito deixava as formas de areia e corria atrás de ti.

Nesse dia caminhaste sem pressa ao longo do mar, apanhavas conchas e pedras para logo as deitar fora, a certa altura estavas sentada na areia a ver as gaivotas, depois deixei de te ver. O nevoeiro tinha chegado, a custo voltei a distinguir-te ao longe, com cuidado atravessavas as rochas cobertas de limos verdes até ao fim da praia.

Fiquei com a Cláudia, lembro-me de a beijar mais uma vez, abraçados olhávamos para a água que devagar escorria pela falésia, estou salvo, não vou pensar no Rafael nem olhar para o sexo dos rapazes nas aulas de Educação Física, não me importo de desistir da pintura porque finalmente estou bem comigo próprio. Nunca mais vou acordar de noite depois de os homens me perseguirem em sonhos, esquecerei o vestido de noiva e a zanga com o pai, estás a meu lado, Cláudia, fica comigo para sempre.

Que tens?

Deves ter visto qualquer coisa, um gesto, um olhar perdido, talvez um leve tremor nas mãos, de outro modo como se podia compreender a tua pergunta?

Regressavas enfim, o pano não estava enrolado à cintura mas transformado em saco, lá dentro trazias dezenas de pequenas coisas, conchas, um búzio pequenino onde dizias ouvir o mar, penas de gaivota, uma forma de areia perdida por algum menino, várias algas todas diferentes, disseste «Que acham do meu tesouro?», sentada à nossa frente despejavas tudo a pouco e pouco, uma pequena estória para cada coisa. Tinhas ido até ao Magoito, a maré vazia deixou-te caminhar pelas rochas até ao fim da Aguda, por certo tinhas olhado para as casas que avançam quase até ao mar. Ao voltar tinhas tomado banho, não vi a fita azul, o cabelo molhado tornava-te diferente.

Que terás visto, se te recebi de mão dada com a Cláudia e dei tanta atenção ao tesouro? Quem sabe se tiveste razão, talvez por segundos eu tenha regressado às dúvidas, pode ser que não estivesse ali, na Praia da Aguda, mas na sala de estudo com o Rafael. Fiz-te uma festa para te tranquilizar, agarrei com força a mão da Cláudia, limitei-me a dizer para nos irmos embora.

 

Não, não fui eu, podes crer que foi do pai a ideia da pizaria, lembro-me como se fosse hoje, quase que ainda sou capaz de desenhar o cartão do restaurante. O papá dizia que pizas melhores só mesmo em Roma, não queria ir a outro lado, mais a mais era um dos sítios preferidos do Ricardo a quem, como sabes, sempre fez as vontades todas.

Estavas lindo nessa noite. Vejo-te entrar, de mão dada com a Cláudia, camisa aos quadrados por fora das calças de ganga, um sorriso como há muito não te via. «A minha namorada, a Cláudia», disseste para o pai. Havia um certo triunfo na tua voz? Era eu, a imaginar, quando me pareceu ver o papá sorrir com a cara toda?

Sabes que o pai fazia perguntas, comentava que nunca mais arranjavas uma namorada, com dezasseis anos e meio já muitos rapazes tinham tido relações sexuais. E depois dizia que eras demasiado delicado, não dizias palavrões quando te zangavas nem gostavas de futebol.

Eu tinha de ter paciência. Respondia que eras muito novo e não valia a pena ter pressas, ou então ia um pouco mais longe, atirava-lhe que homens autoritários e machistas estavam a passar de moda. Às vezes acabava tudo em zanga, criticava-o pela violência e ele acusava-me de te proteger em excesso, não chegávamos a nenhuma conclusão. E depois tinha teorias ridículas, como aquela de o masculino ser sempre superior ao feminino, como podia aceitar uma coisa dessas?

Nessa noite esqueci tudo. íamos jantar os quatro (o Ricardo ficou com a avó Xinha), não era momento para discussões.

A conversa não foi fácil. Silêncios prolongados pareciam encher a sala, o teu pai (tenho de o dizer) fez um grande esforço para os quebrar, falou da escola e das notícias do mundo, eu estava tão nervosa que me limitei a sorrir.

Gostaste da «panna cota», o teu doce preferido? Não, não é por me lembrar de tudo, sei que nos restaurantes italianos não és capaz de pedir outra sobremesa. A Cláudia não comeu nada depois da piza, achei-a um bocado magra, fiquei logo com medo de que fosse anoréctica.

- Muito calada, a miúda, não achas? Mas o Diogo parece muito contente...

Foi o comentário do pai, no regresso a casa, já tinhas ido embora com o pretexto de levar a Cláudia a casa.

Tanta coisa mudou, desde essa altura! Agora que passaram mais ou menos cinco anos e nada sei da tua antiga namorada, quero dizer-te que nessa noite cheguei a casa feliz, contente por mim e pelo pai, sobretudo satisfeita por te ver sereno e confiante, a sorrir e a falar de nadas, finalmente sem discutir com o papá. Sei que foi por pouco tempo, umas semanas depois quase não falavas e, embora continuasses a andar com a Cláudia, a tua alegria tinha desaparecido de novo.

Nunca te contei a conversa que nessa noite tive com o pai. Chegaste tarde, deves ter ficado algum tempo com a Cláudia, por isso não te apercebeste de nada.

O papá vinha muito bem-disposto, não ligou a televisão nem começou a ler o jornal, disse numa voz calma que queria falar comigo e sentou-se na sala à minha espera.

Fiquei enervada, nunca gostei, como sabes, destes diálogos solenes. Quem quer falar aproveita todos os momentos, ou então a conversa surge natural, sem estas preparações de cenário. E depois receei que fosse sobre a nossa relação. Durante muitos anos procurei disfarçar, mas agora não preciso de o fazer. Sabes bem que eu e o teu pai só fomos felizes antes de casar, ou quando a vida dos filhos nos trouxe alguma alegria.

Quando mudava de roupa no quarto, vi um retrato teu, lembro-me de que usavas o cabelo mais comprido e tinhas o ar frágil de sempre. E se a conversa fosse a teu respeito? Não iria dizer nada. Com a tua fotografia na mão, decidi calar-me. Como poderia falar-lhe do Rafael? Do meu medo que te tivesses apaixonado pelo Prof. João, que em sonhos via como pedófilo? Das minhas dúvidas se virias a ser gay?

Começou tudo muito bem. O papá quis que me sentasse a seu lado no sofá e fez-me uma festa no cabelo, depois disse que estava muito contente contigo, tinhas boas notas e eras educado, sobretudo estava feliz porque finalmente tinhas uma namorada.

E, a seguir falou muito, sem que o interrompesse, contra o costume até preparou uma bebida e comeu um biscoito.

Preciso contar-te, Diogo, um bocado dessa conversa. Nunca toda, porque há coisas que tenho pudor em revelar-te, mas se ouvires com atenção poderás entender melhor. Não é importante se neste momento em que falo estás vivo ou morto. As pessoas que desaparecem continuam, durante muito tempo, em diálogo connosco.

Foi nessa noite, depois do jantar na pizaria em que conheceu a Cláudia, que o pai me revelou o grande desgosto da sua vida. Por momentos pensei que ia falar de nós, de como as coisas tinham ficado mais ou menos mortas, desde que lhe tinha chamado «o mais incompleto dos homens». Ou imaginei que, mais uma vez, me falaria do escritório e do seu medo da barra, a protestar com os colegas mais novos que lhe passavam à frente, depois de terem aprendido tudo com ele. Até, por instantes, receei que fosse falar de ti, embora não viesse a propósito, porque tudo corria bem. Não me esqueci, nesses minutos em que, sozinha no quarto, me preparava para a conversa, das críticas que fazia sobre o modo como te educava, nem nos medos e presságios terríveis que reservava para o teu futuro.

A grande mágoa era ter perdido o pai com quinze anos, um pouco menos do que tu tinhas, Diogo, na noite desse jantar.

Luísa, imaginas o que isso dói? Aos quinze anos andava no liceu, treinava futebol no Lourel e tinha a mania das miúdas. Nunca tinha tido um desgosto na vida. O meu pai era tudo para mim. Não era homem que andasse aos beijinhos nem que comprasse presentes, como tu fazes com os nossos filhos. Também não havia muito dinheiro em casa, um empregado de escritório e uma funcionária pública sem curso não ganhavam muito, mas chegava para o essencial. O meu pai não se preocupava com pequenas coisas, «cagalhufas» como dizia. Era a minha mãe que tratava da casa e do nosso dia-a-dia, o que não devia ser fácil porque, como sabes, somos três irmãos.

O meu pai, Luísa, tinha a mania da educação, dos princípios como dizia. Se o conhecesses, por certo que o achavas rígido, tens um pouco a mania de deixar andar, era justamente o que ele mais detestava.

Não tinha estudos, mas passava a vida a dizer que a família era muito mais importante do que a escola e que aquilo que não se aprendia em casa, nunca mais se aprendia.

Com quatro anos tínhamos de comer à mesa direitos e com garfo, tomar banho sozinhos e arrumar o quarto. Quanto à escola, desde muito cedo nos meteu na cabeça estudarmos por nós próprios, o que acho muito bem. Sei que também não concordas, Luísa, bem vejo como sempre ajudaste os nossos filhos com aqueles horríveis trabalhos de casa. Com o meu pai isso nunca acontecia, dizia que o nosso trabalho era estudar, como o dele era escrever ofícios no escritório.

Deves pensar que era muito autoritário, ou que tínhamos medo dele, estás enganada. As pessoas não precisam exigir respeito, merecem-no. Não tínhamos receio do nosso pai, aprendemos a ouvi-lo e a seguir aquilo que nos mandava fazer, era um processo natural.

Nunca acreditei que pudesse morrer tão novo. Sabia que andava nos médicos, a minha mãe falava de radiografias e análises, mas quando se tem quinze anos pensa-se sempre que a morte é uma coisa dos outros, nunca virá ter connosco. É certo que o via mais magro, a comer pouco, até a deixar passar pequenas coisas de educação antes tão decisivas para ele, mas pensava que tudo iria passar, em breve o teríamos de novo cheio de força ao pé de nós.

Como já te disse, Luísa, foi dele que me veio a paixão pelo futebol. Dizes que eu falo muito sobre isso, não fazes ideia o que era o meu pai!

Comprava todos os jornais desportivos, sabia os nomes de todos os treinadores da I Divisão e de muitos da segunda, conhecia em pormenor as características dos principais jogadores. Com o Benfica, era o delírio. Retratos na sala, bola de futebol autografada, cachecóis e galhardetes, o meu pai coleccionava tudo. A minha mãe, que tão bem conheces, dizia que quando o Benfica perdia o papá comia menos e ia deitar-se muito cedo.

Dos três filhos, sempre fui o que gostei mais da bola. Em pequeno, ia com o meu pai ver os treinos e não faltava aos jogos do Benfica em Lisboa. Habituei-me àquele ambiente, tenho pena que o Diogo não sinta o mesmo. Comecei a jogar no pequeno clube do bairro, jogos de futebol de salão mais ou menos a sério, lembro-me de que até havia taça, não a trouxemos porque um puto qualquer da nossa equipa se lembrou de falhar um penalty decisivo.

Estou contente por lhe ter dado uma grande alegria. Foi pouco tempo antes de morrer. Um amigo dele levou-me a treinar nos juniores do Lourel, acabei por ser aceite e lá comecei a jogar futebol de onze. O meu pai dizia a toda a gente que tinha um puto com jeito, a jogar futebol federado. Não falhava um jogo meu e em casa não parava de me dar conselhos e recomendações de táctica.

Morreu no hospital. Cancro de estômago espalhado para o fígado, disseram os médicos. Só lá esteve uma semana, a operação não serviu para nada, abriram e fecharam, como se costuma dizer.

Lembro-me de o visitar na enfermaria e ficar em silêncio, quase nem conseguia olhar para ele. A minha mãe fazia a conversa, como sempre, já falava com todos os doentes e parecia com esperança, o meu pai António, estou feito. Já sabes o que hás-de fazer com a vida, nunca te esqueças que a família é o mais importante de tudo. E não deixes de estudar um dia depois morria. Desde então foi como se crescesse um buraco dentro de mim. Deves perceber, porque também perdeste o pai muito nova. Sem rumo, sem orientação, deixei o futebol porque me zanguei com o treinador do Lourel, mais tarde tirei o curso de Direito como poderia ter seguido outro qualquer. Houve uma coisa que consegui, talvez a única: amar-te quando te conheci, infelizmente matámos esse sentimento que um dia nos uniu. O resto já sabes. Quando há pouco tempo disseste que eu era o mais incompleto dos homens, tinhas toda a razão. Sou alguém que perdeu uma coisa muito importante numa altura decisiva. Já viste o que aconteceria ao Diogo se eu desaparecesse?

Nunca tinha ouvido o teu pai falar assim, Diogo. Tantas vezes desejei que me abrisse um pouco o seu coração, fosse capaz de falar do que tinha lá dentro, não se limitasse a criticar e a pôr sempre a culpa nos outros! Deixei-o desabafar mais um pouco, era preciso que tentasse libertar toda aquela mágoa, no fundo nunca ninguém o tinha ouvido com atenção.

Não quis pôr em dúvida o que dizia. Pensamentos terríveis tomavam conta de mim. Se o pai morresse, ficarias com um buraco dentro de ti? Ou, pelo contrário, liberto de uma relação que te esmagava, conseguirias realizar-te mais depressa? E eu, teria finalmente força e ânimo para encontrar um homem capaz de me amar sem medos e vícios? Ou continuaria, mais mãe que mulher, a sofrer com os filhos e a protegê-los?

O teu funeral acabou há muito, os amigos da Faculdade transportaram o caixão aos ombros, caminharam sem parar por entre a relva do cemitério, ao longe o lago e os pássaros que não esperava encontrar. Depositaram o teu corpo numa vala, cruzes brancas sem nada escrito a ladear a tua, Diogo Bastos e a data da tua morte, cruzo mais uma vez o meu olhar com a pessoa que te amava e não choro, -i u Chorei naquela noite, Diogo, agarrada ao teu pai como nos tempos de namoro, comecei por secar as suas lágrimas com os dedos a tremer, depois também me emociono, prometo a mim própria que tentarei voltar a amá-lo, dividirei o meu tempo entre o menino sem problemas, o adolescente com quem sonho e o marido que preciso voltar a amar, chegarei para os três e não o deixarei só.

O teu pai está agora mais sereno, encosta a cabeça para trás e bebe um pouco. Fico onde estou, bem junto a ele, estou outra vez perdida, culpo-me por não ter tido esta conversa há mais tempo, por ter alinhado com as opiniões da avó Xinha ou por te dar razão. Logo a seguir recordo os gritos, as zangas e as humilhações ao longo destes anos, o teu pai a dizer que as opiniões das mulheres pouco valor têm, não era por acaso que foram sempre as criadas e os homens os patrões, as espécies animais mostravam bem quem dominava; noutras alturas a dizer que eu não sabia educar os filhos, era uma cultura do deixa-andar, sem regras e com mimo a mais, por isso o mais velho não é um rapaz normal e o mais novo é demasiado perfeito...

Preciso estar atenta, parece querer falar de novo, já se endireitou na cadeira e fixou os olhos na parede em frente (quase nunca foi capaz de olhar para mim, um dos medos afinal tem razão de ser, agora quer falar a teu respeito, Diogo.

Não, quase não falou da pizaria e da Cláudia, só tinha ficado contente por teres uma namorada, oxalá fosse de uma família de gente honesta, nada é mais importante que a nossa origem. Sem quase dar por isso falava em medos, afinal tão parecidos com os meus, imaginava que um dia podias vir a ser homossexual, confessou-me que te via em sonhos em manifestações a favor da causa gay, cheio de plumas e pulseiras, ou então a perder sucessivos empregos porque o teu aspecto não enganaria ninguém. Queria que, em conjunto, tudo fizéssemos para impedir esse trajecto, por isso era fundamental tratar muito bem a Cláudia, para que o vosso namoro corresse o melhor possível.

Apeteceu-me fugir mais uma vez, dizer àquele homem agora tão racional que já estava tudo decidido dentro de ti, a Cláudia será a primeira de muitas, bonito como eras (és) não te iam faltar mulheres, bem oiço o telemóvel sempre a tocar e agora não é pelos testes. As dúvidas tinham surgido só na mudança de idade, há muitos jovens que a certa altura nem se distingue se são rapazes ou raparigas, bastava agora olhar para ti e para a Cláudia para ver que havia muita atracção sexual. Não fui capaz de falar, o pensamento fugia-me para outra direcção, talvez o papá tivesse razão e a relação com a Cláudia acabasse depressa, tinhas arranjado uma rapariga só para disfarçar. O problema mantinha-se, querias ter uma namorada para ser como a maioria dos colegas, mas o teu fundo devia ser gay, por isso falavas tanto no Rafael e em alguém que se tinha assumido, o papá tinha razão, estava tudo na mesma.

O teu pai disse que ainda faltava dizer uma coisa importante, receei o pior, já foi chamado à escola como encarregado de educação, antes da Cláudia se calhar houve alguma questão. Dizem que as escolas são liberais, não é verdade, como professora sei bem que dependem muito de factores pessoais, basta um professor não saber lidar com as questões sexuais para poder haver problemas. Será que ouviu alguma coisa a teu respeito? Viu-te à procura de algum site pornográfico?

- Luísa, quero falar-te do problema do vestido de noiva.

Não, não quero desculpas, isso não vou aceitar. Nunca esquecerei e, se perdoo, é porque és o pai dos meus filhos. Nunca poderei perceber o que se passou. Sim, compreendo que estavas desesperado, mas um pai tem de saber controlar-se.

E seria uma traição para ti, meu filho. Foi nesse dia que uma espécie de pacto nos uniu para sempre. Nunca te acusarei de nada, sei que naquele momento em que vestias o fato de noiva procuravas um sentido, um rumo que não fomos capazes de te dar. O teu pai não percebeu, não vale a pena pedir desculpa.

E na vala do cemitério, junto à cruz com o teu nome, o teu corpo transporta as recordações da tua vida e o fato italiano, de que tanto gostavas, leva no bolso um pedacinho do meu vestido de noiva.

 

Cláudia, disseste-me uma noite que estávamos a caminhar para um fim qualquer e, embora não o manifestasse, julgo que entendi. A solidão era a minha melhor companhia e, mesmo quando estava ao pé de ti, era o silêncio que escrevia palavras no teu rosto.

Compreenderás (se ainda te lembrares de mim, cinco anos passados) como era difícil contar-te o que ia cá dentro, falar do medo que sentia sempre que estava contigo. E, apesar disso, estava certo do meu amor. Desejava que os dias passassem e pudesse acordar de novo com a tua voz no telemóvel, ou então que o fim de tarde chegasse para estarmos um com o outro. E, embora com receio, era o sentir do teu corpo que me tranquilizava e dava esperança de um dia alcançar a paz.

Agora encontro outro lugar onde repouso o meu olhar. Já não é a ti que escuto, neste momento respiro com força e não partilho a solidão que continua comigo. Às vezes, a minha mão quase alcança a memória do teu corpo e então recordo. Lembro os nossos passeios em Lisboa, junto ao rio pessoas apressadas ao fim da tarde, diferentes de nós, sempre cúmplices um do outro, o dia seguinte ainda nos deixaria mais próximos.

Pergunto-me agora em que instante a tua vida deixou de existir dentro de mim i, em que momento o medo voltou e me perdi de novo.

Olho para trás e encontro a tua ternura, o teu olhar a percorrer-me sem pressa, o mar e a neblina da Aguda à nossa volta. E quando tento fixar-me num ponto, quando procuro nas minhas recordações o minuto da ruptura, encontro-te de novo (à minha espera?), posso abraçar-te porque andamos outra vez, vou ser capaz de vencer todos os receios e ficar contigo para sempre.

Tudo correu bem de início. Muito tempo juntos, algumas vezes até depois do jantar, noites longas na sexta e no sábado.

Parece uma contradição o que te vou dizer, tenho montes de dúvidas, gostava de te ter aqui a meu lado para confirmar, mas julgo que os problemas surgiram quando ficámos mais próximos e a intimidade foi maior. Nenhum fez planos, as coisas foram acontecendo e, como eras mais velha, deixei que as conduzisses. Sem pensar muito tinha feito amor pela primeira vez, sentia-me feliz. Podes ter a certeza de que te amei inteiro, só mais tarde a minha cabeça me distanciou.

Onde está o momento da separação que continuo a procurar na minha memória, aquele minuto em que decidi partir e deixar-te? Durante muitos anos o procurei sem sucesso. Talvez tenha sido depois da conversa com o teu irmão. Recordas-te decerto, Cláudia.

Em cima da cómoda do teu quarto, ao lado de um pequeno búzio que escolhi para ti na Praia da Aguda, vi uma caixa de preservativos de uma marca desconhecida. Tínhamos tido relações quatro ou cinco vezes, os meus fantasmas só me tinham visitado por minutos, tinha sido bom. Não querias, é lógico, engravidar e, como fumavas, tinhas medo da pílula, por isso ia-me habituando ao preservativo.

Quando vi uma marca diferente pensei logo que andavas com outro e o nosso amor era uma mentira, de certeza que não tinhas prazer comigo porque era gay.

Ou então eu é que andava a fingir para fugir ao meu problema, tu tinhas reparado e fazias de conta, o melhor era teres prazer com outro.

De uma forma doentia pensei quem ele seria, por certo alguém com mais experiência de cama e menos dúvidas na cabeça, só não percebia por que razão andavas a fazer jogos comigo, o melhor é dizeres-me já quem ele é e eu, sempre delicado, vou-me embora sem fazer qualquer cena.

Tiveste uma reacção demasiado calma. Os preservativos eram do teu irmão que andava com uma paixão carnal (ainda hoje odeio, como naquele dia, essa expressão que me parecia ridícula para um rapaz de dezanove anos), por distracção ali tinham ficado depois de uma conversa.

Deves lembrar-te do que se passou. Estava com tanta raiva que não conseguia sossegar, exigi que o chamasses para esclarecermos tudo. O Vasco entrou no teu quarto, irritado, «desliga o complicador, pá, não me lixes, já te disse que essa merda é minha, deixa a minha irmã em paz».

Não sei, francamente não sei, Cláudia, se a partir desse dia tiveste alguns minutos de paz comigo. Só tenho a certeza de que a minha cabeça nunca mais sossegou. Tornei-me desconfiado, telefonava só para te controlar, aparecia na escola de surpresa, mandava-te mails a toda a hora.

Perdia-me de mim próprio. Um dia pensava que as coisas iam bem entre nós, noutros momentos o medo dominava-me. Pensava na escola, todos iam saber que tínhamos acabado por eu ser maricas, de certeza passariam a gozar comigo como faziam com o Rafael. O melhor era desistir de tudo, acabar com este namoro que só existe para disfarçar, assumir desde já que sou gay e nada mais.

Quando voltámos a fazer amor fiquei com a ideia que fingias prazer, não tinhas o ar apaixonado que adorava em ti. Se calhar não ficavas satisfeita porque eu não estava à vontade, cada dia os medos tomavam mais conta de mim. A minha cabeça voava para longe, pensava em coisas diferentes, tudo surgia para me distrair e não me envolver. Devias estar a pensar noutro porque o meu sexo é demasiado pequeno e o outro é mais homem do que eu, agora estás distante porque não soube ser carinhoso contigo. Precisamos de nos afastar por uns dias, estamos muito dependentes um do outro, se não nos virmos durante algum/tempo quem sabe se não correrá tudo melhor (propus), mas fui o primeiro a telefonar assim que cheguei a casa. Na escola andava cheio de dúvidas e com vontade de desistir, pouco me concentrava nas aulas, voltei a espiar o Rafael. Finalmente, quinze dias depois do problema do preservativo, aconteceu o pior. Os teus pais estavam fora de Lisboa e o teu irmão ia dormir num sítio qualquer, a casa finalmente só para nós.

Nada resultou, como te lembras. Foi tudo culpa minha, Cláudia. Se ainda recordas, como espero, quero que saibas, não foste responsável por nada. Fui eu que me descontrolei uma vez mais.

Falavam de homossexuais na televisão, a mãe de um deles disse que tinha custado a princípio mas que agora estava tudo bem, afinal era uma questão de opção. Apeteceu-me mudar de canal mas parecias interessada e não quis dar nas vistas, se calhar a senhora tinha razão e o melhor era não disfarçar, dizer que era e talvez pudesse contar com a tua amizade para toda a vida.

Quando começámos a fazer amor no chão da sala, imagens loucas assaltavam-me, apressei-me a olhar para o teu sexo porque, de repente, tive medo de estar a fazer amor com um homem. Depois, estava na escola e corriam de novo atrás do Rafael, também eu lá estava a fazer de conta e gritava contra ele. De repente caí, dezenas de miúdos rodearam-me a fazer troça, um deles pisou-me a cara com uma bota e disse que os maricas metem nojo. Fugi para a casa de banho que não ficava longe, de uma cabina surgiu um rapaz a segurar um sexo enorme, limitei-me a tapar a cara com as mãos. As imagens não paravam, agora apareço com o vestido de noiva de braço dado com o meu pai, acho que é o teu novo namorado que está ali a espreitar e a fazer pouco de mim.

Agradeço-te hoje, vários anos passados, teres permanecido tão calma. Deitada no chão, disseste para não me preocupar, tudo ia correr bem na próxima vez.

Lembro-me de voltar para casa de táxi, muito mais cedo do que esperava. Só pensava em ti, Cláudia. Serias capaz de suportar o que se tinha passado? Podias esperar por mim, aguardar que acalmasse e que estes fantasmas desaparecessem de vez?

Queria perceber o que se passava comigo. Tinha a certeza de que gostava de ti. Por que razão não fazia desaparecer aquelas ideias que nos afastavam cada vez mais?

Como tinha lutado por ti! Nessa noite, sem conseguir adormecer, recordei como nos tínhamos conhecido.

Ainda te lembras? Ainda não arrumaste de vez a recordação daquele rapaz da secundária que um dia se aproximou?

Nessa tarde estavas linda. Um colega da turma já me tinha falado de ti, não sei se sabias mas os rapazes desejavam-te, sabia-se que tinhas acabado com o Frederico.

Era um debate na Associação sobre a droga, daqueles que costumam acontecer uma vez por ano, só para dizer que se faz qualquer coisa. Para mim, eram um problema. Gostava dos assuntos e tinha perguntas para fazer, mas os microfones e tanta gente a assistir amedrontavam-me.

A professora de Psicologia dirigia o debate, dois colegas do 12º ano estavam na mesa, mas coitados, limitavam-se a tomar nota de quem queria falar. Um psicólogo era o convidado. Nunca mais me vou esquecer dele, tinha um ar ridículo. Muito baixo, segurava na boca um cachimbo apagado, de vez em quando ajeitava uma pequena barba. Tentei ouvir o que estava a dizer, não sei quê das drogas leves e duras, a despenalização e o consumo, parecia que não estava ali. Ao fim de um certo tempo muita gente se foi embora e outros começaram a levantar o dedo para pôr questões.

Lembro-me de que foste das primeiras a falar, ainda me lembro da pergunta.

- Como podemos ajudar um colega a deixar a droga, se ele não quer ser ajudado?

O psicólogo pequenino sorriu, ajeitou mais uma vez a barba e tratou-te por tu (não sei se nesse momento já gramava de ti, o certo é que não achei graça nenhuma, o homem não andava ali na escola connosco), disse que talvez soubesses responder à pergunta que acabavas de fazer, um estudante tem sempre alguma ideia sobre a forma de poder ajudar um colega. Achei espantoso não desistires.

- S’tor, temos alguns colegas que começaram a fumar charros, tentamos conversar, dizemos para se deixarem disso, às vezes até os criticamos mas não deixamos de gostar deles, eles é que se afastam de nós e dizem que um charro não faz mal nenhum.

Ai, a crítica, a crítica não é boa conselheira, respondeu o psicólogo, mas já não o ouvia, fui para o pé de ti e com um à-vontade inesperado - gramei a tua questão. Dá para falarmos um pouco?

achaste graça, um dia disseste que reparaste em mim pela forma como me aproximei, além do mais tinha uns caracóis com piada, ficámos a conversar ao fundo do ginásio, junto ao espaldar, sem ouvirmos o psicólogo pequenino que não parava de falar.

Nesse dia não se passou mais nada, perguntas triviais sobre as aulas e os professores, lembro-me de teres dito que ainda bem que eu não curtia o futebol, os rapazes só falavam da bola e das namoradas. Respondi-te que nunca falaria nem de uma coisa nem doutra, de futebol não gostava, embora tivesse um pai que só falava no assunto não percebia nada disso, de namoradas ainda menos porque nunca tinha tido nenhuma.

Passados estes anos, mais importante do que os caracóis que continuo a ter, apesar de já andar na Faculdade, acho que foi a simplicidade das minhas respostas que te fez reparar em mim. Quiseste falar mais um pouco, se gostava da escola e o que achava dos debates da Associação, nunca pensei que naquele momento não estivesses já farta de mim, com tantos rapazes interessados não entendia por que estavas a dar trela a um miúdo inseguro como eu.

Uma semana depois andávamos. Foi tudo de repente, todas as minhas estratégias falharam. Não sei se te apercebeste, Cláudia, mas estava sempre atrás de ti, procurava um pretexto, uma conversa, um acontecimento qualquer da escola para dizer que queria andar.

Sentia-me diferente, não se pode dizer que andasse calmo, era grande a excitação de me encontrar contigo. Parecias, como sempre, muito segura e disponível. Lembro a paciência que tiveste quando, em grupo com outros colegas, discutíamos o colóquio sobre a droga. Deixaste que todos tivessem tempo para dar a sua opinião e, no fim, remataste com ar enérgico:

- Acho bem fazer colóquios, desde que se façam mais ao longo do ano e possamos ter mais tempo para fazer perguntas. Também é preciso escolher melhor os convidados. Aquele psicólogo de outro dia não respondia às nossas perguntas, tinha a mania que já sabíamos as respostas...

Todos concordaram e ficaste na comissão organizadora do próximo debate. Quando, no dia seguinte, te disse mais uma vez como tinha gostado de te ouvir, puxaste-me para ti e beijaste-me na boca. Já te disse o que senti nesse momento. Se o recordo aqui de novo, é para lembrar que foi assim, sem grandes declarações de amor, que começámos.

Cláudia, agora que os anos passaram e há muito não nos vemos, quero apenas dizer que foi bom ter estado contigo. Se não continuámos foi porque, como acabei de explicar, não estava bem comigo próprio. Eu sou diferente.

Mãe, por que razão sempre evitaste falar da Cláudia?

 

«Orgulho gay». Guardo este folheto não sei bem porquê, deste-mo pouco tempo depois de entrares para a Faculdade. Tinhas dezoito anos e, como dizia a avó Xinha, finalmente um rumo para a vida.

Ainda me lembro de quando me chamaste para ver as classificações na net. Tinhas entrado na Faculdade e estavas muito contente. Puseste a mão no meu braço e guiaste-me por entre as listas, até descobrirmos o teu nome e o curso de Sociologia.

Tinhas deixado a Cláudia há quase dois anos. Vi perder os meus sonhos numa conversa no café ao pé de casa. «Já não ando com a Cláudia», ainda hoje, passados quase seis anos, oiço esta frase. Fiquei assustada. Pensei logo que isso tinha acontecido porque talvez o papá tivesse razão e não gostasses de raparigas, mas recordo-me de ter perguntado se não seria apenas uma zanga passageira, todos os namorados se aborrecem de vez em quando.

Ainda hoje não esqueço o teu olhar e o que me contaste. Fiquei a saber que a querias controlar a todo o instante, telefonavas muitas vezes e não lhe davas liberdade, sei agora que eram as tuas dúvidas que comandavam. Como naquela vez em que a seguiste a casa de um colega, lembras-te de me contares envergonhado? Andavas sem confiança, não entraste em pormenores, mas fiquei a pensar se teriam discutido. Sem a Cláudia saber foste atrás dela durante horas, até chegaste ao ponto de espreitares pela janela do amigo. Um abraço entre dois jovens não quer dizer nada nos dias que correm, tentei sossegar-te com este comentário banal, para depois ouvir dizer o que ainda hoje rejeito, a frase que afinal sempre receei escutar (embora a ouvisse tantas vezes dentro da minha cabeça), uma espécie de diagnóstico de doença grave a que procurava escapar: «Mãe, eu devo ser gay.» Fiquei uns minutos sem dizer nada, todas as minhas ilusões tinham desabado naquele instante, não teria um neto teu porque jamais surgiria outra Cláudia, quem sabe se apanharias uma doença e, tal como o tio Ernesto, encontraria a teu lado, no hospital, um homossexual como tu. Que podia dizer às amigas, quando perguntavam sobre a tua namorada? Como podia explicar ao teu irmão o que se passava? E, acima de tudo, como iria aguentar as críticas do teu pai?

Olho para o folheto do «orgulho gay». Dois anos de hesitações e dúvidas até me entregares este papel. Chegavas a casa e corrias à minha procura, depois ficavas muito tempo calado, eu sempre à espera de palavras que não vinham. Adivinhava novas experiências na tua vida que não conseguia perguntar e o silêncio entre nós parecia aumentar todos os dias.

Em algumas ocasiões fiz o que censurava noutras mães, pesquisei gavetas e agendas, em vão procurei pistas nas roupas e no computador, cheguei a fazer perguntas cuidadosas aos teus colegas da secundária. E via-te inquieto, em sobressalto, cada vez mais dominado por contradições.

Tanto dizias que ias assumir de vez a tua condição de gay, que mal tinha isso, estamos numa época diferente e a homossexualidade é mais aceite, já nem sequer é considerada doença. Uma hora depois gritavas que a solução era morrer, se não eras um homem normal não podia haver outra solução que não fosse o suicídio.

Imagina o sofrimento em que eu vivia! Quase só pensava em ti. Agora que não estás cá podes calcular como o teu irmão se deve ter sentido comigo, sempre tão pouco disponível. Tinha, no entanto, uma certeza: não ia falar com ninguém, aquele era o nosso segredo. Seríamos capazes de encontrar uma saída, um caminho para ti que eu pudesse partilhar. Era uma espécie de pacto, ninguém precisava conhecer as nossas conversas. Na verdade nem eu saberia bem o que dizer.

Desde que me contaste o fim do namoro com a Cláudia até ao preciso instante em que me deste este folheto, que sei da tua vida? Penso que deambulaste muitas vezes pela noite de Lisboa, por certo bebias de mais porque ouvia o teu arrastar de pés pela madrugada, imaginava que frequentavas bares gay e locais de engate, às vezes só desejava saber se tinhas chegado para poder dormir umas horas.

Os estudos, quem diria, não corriam mal. Quando à noite, no nosso quarto, o papá criticava as tuas saídas nocturnas, respondia que eras novo e que, desde que tivesses boas notas, não precisávamos ralhar. Sobretudo, deixava-o falar. Tinha sobre ele o grande trunfo de poder falar contigo a sós, conhecer alguma coisa da tua intimidade, estar a teu lado para te sossegar quando choravas, ouvir os teus desabafos com calma aparente.

Passaste o 12º ano e entraste na Faculdade. Parecias mais sereno, por momentos acreditei que tudo estava passado. Percebi porquê, quando mostraste este folheto que guardo sem motivo. Tinhas aderido aos movimentos gay, uma certa tranquilidade surgia agora nas nossas conversas sobre o assunto. Eu fingia, disfarçava todo o tempo.

Receava ver-te na televisão em paradas espalhafatosas ou em conferências de imprensa a defender posições radicais, de repente imaginava o papá a interromper aos gritos uma dessas demonstrações, e a pontapear-te como tinha acontecido com o vestido de noiva. O teu melhor amigo era o Rafael, os dois cobiçavam rapazes numa discoteca de homens, nada podia parar a vossa necessidade de sexo, talvez até fossem pedófilos e eu andasse enganada todo o tempo.

Depois do acidente revivi tudo, assim como quero que continues vivo, também desejo voltar atrás e modificar o teu caminho, tornar-te naquilo que projectei e que foi uma das minhas razões para viver, mas sei que estás morto e que não consigo, a memória e o silêncio são os traços que nos unem. Sinto-me só. O folheto sobre os movimentos gay está agora em cima da revista que procuro ler, mas que acabei de abandonar no colo.

Na sala, adormecem as palavras que disseste, oiço-as ao fundo e não as aceito. Quero espreitar de novo o silêncio no teu rosto, escutar os teus passos na calçada junto ao café. Tenho a certeza de que é neste momento que te foste embora e me deixaste, só como agora, com o folheto entreaberto na mão. As sombras desse nosso encontro enchem a sala onde estou hoje. Consegues ver-me? Ainda sei viver, não te preocupes.

Depois da conversa no café passei a sentir-me dominada pela culpa. De nada servia tentar pensar o contrário, dizer a mim própria que não tinha sido dona do teu caminho e que, como ouvia dizer na televisão, a homossexualidade é uma opção. Tanto desejei ver-te escolher livremente! Em vez disso, sentia a tua angústia, as noites de insónia em que te arrastavas no corredor, os toques no telemóvel que tentavas disfarçar. Na verdade, Diogo, nunca descobri liberdade nas tuas decisões e, mesmo quando me entregaste o papel do «orgulho gay», não foi firmeza que encontrei na tua cara.

Passados estes anos a culpa não me deixa e é talvez a minha única companhia. De tanto calar o que sentia já não sei o que dizer, apenas tenho a certeza de que, na tua ausência, ainda dói mais o que não consegui evitar.

Como já te disse, vivia atormentada com o facto de te sentir diferente. Nunca tiveste um aspecto feminino. Durante anos pesquisei gestos, a forma como te penteavas, as escolhas das roupas, os perfumes que preferias. Nisso eras um rapaz como os outros, estou aliás convencida de que essas coisas não têm importância nenhuma, são ideias feitas na cabeça de pessoas sem imaginação.

Eras, no entanto, diferente, nunca tive muitas dúvidas e, agora que vejo o teu irmão crescer, estou certa do que afirmo. Lembras-te de como te preocupavas comigo? Quando eras pequenino, não estranhei. Todos os miúdos se afligem quando as mães têm qualquer coisa e, por isso, as sentem menos disponíveis. Como recordo os pensos que, desde sempre, querias colocar em mim, fosse numa pequena queimadura de cozinha ou numa nódoa negra sem importância... o certo é que me olhavas sempre, vinhas a correr ver como estava e ficavas a observar-me, para logo a seguir perguntares o que sentia ou percorreres o meu rosto à procura de um sinal. Sempre te conheci muito próximo, uma espécie de cumplicidade secreta uniu-nos ao longo da vida e, agora que estás noutro lugar, permanecemos unidos. Foi na tua adolescência que tudo se consolidou. Talvez porque pressentisse o teu drama, percebesse a inquietação em que vivias. Nessa altura, nunca te disse nada de muito concreto, limitava-me a responder às perguntas, mas não podia impedir-me de olhar. E sempre te vi interessado nos homens, estou hoje convicta de que, embora disfarçasses, era uma força muito grande em ti. Às vezes observava-te com cuidado, era preciso ter a certeza de que não me vias, espreitavas os homens em cafés e restaurantes, por vezes tinha a ideia de que, nas praias, te afastavas para sítios mais distantes, nunca tive coragem de perguntar onde ias.

Podes imaginar a minha decepção quando acabaste com a Cláudia. Pensava que tinhas ultrapassado as tuas dúvidas e que o namoro com uma rapariga equilibrada seria a cura definitiva dos problemas. Penso hoje que a tua namorada foi apenas uma tentativa de calar dentro de ti as inquietações de sempre.

Falei-te há pouco da minha sensação de culpa. Às vezes procuro tranquilizar-me, convencer-me com frases banais, ideias feitas que só por momentos me sossegam. Nesses instantes, digo para mim própria que os pais pouco podem fazer pela sexualidade dos filhos, são os amigos que tudo determinam, as circunstâncias da vida é que ajudam a traçar um caminho. Não estou a mentir, sempre me contaste pouca coisa, o mesmo se passou com os filhos das minhas amigas, que nunca falaram de sexo às mães. O problema é que muitas vezes suspeitei, porque te sentia diferente, e nada fiz. Por isso me culpo. E recordo. Lembras-te daquele passeio? Tenho a certeza de que te marcou. Tinhas acabado há pouco tempo com a Cláudia, estavas inquieto e às vezes triste, passavas horas a pesquisar na net (fantasiava sites perversos, pornografia homossexual, encontros com gente pouco recomendável) ou a responder a toques no telemóvel, nunca consegui perceber como ainda arranjavas tempo para estudar.

Fomos jantar fora, um restaurante perto da Praia Grande, presuntos pendurados do tecto, uma garrafa de vinho em cada mesa, famílias inteiras em refeições prolongadas. Num canto, só tu e eu, como fazíamos quando precisávamos de falar. Uma amiga dizia que a melhor maneira de convencer um filho era levá-lo a jantar fora, em casa arranjavam sempre maneira de escapar às nossas críticas, ao menos no restaurante tinham de nos ouvir.

Contigo também isto era diferente. Não tinha nada de concreto para partilhar contigo, como podia confidenciar-te os meus medos, convicta como estava de que, com isso, só os iria agravar? Era de ti que esperava notícias, confirmações, pistas para o nosso relacionamento que, embora próximo, estava cheio de segredos e receios.

Dessa vez o convite para jantar partiu de ti, o pai tinha ficado no escritório e o Ricardo em casa da avó Xinha, com determinação quase impuseste o local, era afinal um sítio onde costumávamos ir na tua infância. Durante a refeição quase não falámos, decerto ambos receávamos iniciar qualquer tema difícil, lembro-me de que o teu olhar passava de mesa em mesa sem se fixar, de vez em quando fazias um comentário de circunstância. E de repente, quando já me interrogava sobre os verdadeiros motivos do teu convite, disseste que querias dar um passeio à beira-mar, o melhor seria levar o carro até às Azenhas do Mar.

Parámos em frente de uma casa velha com um letreiro «Rooms», imaginei logo que conhecias o sítio devido a um encontro secreto, mas recordo, sobretudo, a forma suave como me conduziste até às arribas.

Junto à estrada, ladeámos uma casa abandonada, mais ou menos dez anos depois de a termos visitado pela última vez. Recordei os nossos passeios de mão dada entre as ruínas, a explicar-te a sala, a lareira, a cozinha, o tanque abandonado, o fogão enferrujado e as portadas das janelas destruídas pelo tempo, tu mais uma vez diferente, olhavas para tudo com um ar absorto e sorrias.

- Mãe, quero escolher uma flor para ti...  

Seis, sete anos, não terias mais idade nessa altura. Não era a aventura na casa abandonada que te atraía. Ao contrário dos teus primos da mesma idade que corriam entre os destroços com pistolas de brincar, a ti só interessava o pormenor, o passarinho morto nas escadas da entrada, os restos de uma jarra de cerâmica, as flores selvagens que de vez em quando apareciam.

Dez anos depois era noite, a casa em ruínas ainda lá estava, quando me deste o braço foi como se sentisse a tua mão de menino, levavas-me agora até ao mar quase da mesma forma como me tinhas conduzido à flor que escolhias para mim.

- Gostas desta, mãe? Acho que é linda, não há aqui nenhuma igual.

Segurei a flor contra o peito e vi o mar ao fundo, entre os restos de janelas e a porta destruída, enquanto me guiavas naquele cenário de pesadelo onde só tu podias encontrar beleza. Era como se pedisses para ver o nunca visto, como se o teu olhar inventasse novas cores, como se das tuas palavras simples de criança nascessem sonhos que ninguém poderia desfazer.

Dez anos depois não tinhas medo do escuro, em breve estávamos nas arribas junto aos bancos dos pescadores, entre as traseiras das velhas casas e o ruído do mar. Quando eras pequeno não tinhas receio da casa abandonada mas o barulho das ondas assustava-te, depressa pedias para voltar para casa, para os teus livros e puzzles preferidos. A casa em ruínas era diferente. Houve uma época em que todos os dias a visitávamos, de manhã quando a neblina impedia a ida à praia, à tarde quando o sol quase desaparecia frente à janela principal. Hoje em dia penso que, sem saber porquê, me demorava no espaço aberto pelas portas quebradas e me detinha nos restos de água apodrecida no tanque, para depois me sentar a teu lado na pedra nua do meio da casa. O teu pai nunca compreendeu como podíamos passar horas naquele cenário de destruição, os teus primos gozavam com o silêncio que exigias quando te acompanhavam.

Ninguém percebia a nossa intimidade. Quem poderia compreender que aquela casa destruída era o nosso local secreto? Que interessava se às vezes ias com os teus primos, ou eu a mostrava a um potencial comprador? Tenho a certeza, hoje que a casa ainda lá está, de que não houve quem se aventurasse como nós no seu interior. Estou segura de que nem uma única pessoa foi capaz de descer por aqueles escombros até ao andar de baixo ou que tivesse ousado permanecer debaixo de um tecto semidesfeito, abrigando-se de uma chuva que só existia na tua imaginação.

Nessa noite, depois do jantar, nada disseste sobre a casa abandonada, mas quando a ladeámos o teu braço apertou o meu com mais força, por certo não era devido às pedras do caminho, ambos recordávamos a tua infância, só com esforço afastei a voz de criança para te ouvir, mais ou menos dez anos depois.

Falaste de um modo arrastado e desconhecido, tão baixo que quase não ouvi. Dois pescadores teimavam em lançar de novo as linhas, um cão ladrava ao longe e um nevoeiro frio envolvia as casas. Foi nesta noite que tudo percebi em definitivo, não haveria mais Cláudia e caminharias sem fim por um mundo de sombras, o teu corpo estava ali à minha frente, imóvel, a sussurrar-me o que não queria escutar, a nosso lado vi troncos derrubados e pedras desfeitas, atrás a casa abandonada, lugar do nosso amor.

- Mãe, ajuda-me. A minha cabeça é uma confusão. Não sei bem o que sinto, nem do que gosto.

A tua mão descobriu-me no silêncio e apertou a minha, ficámos ali os dois sem nada dizer, até o frio nos obrigar a regressar.

Hoje odeio a minha cobardia naquele instante. Tenho a certeza de que o teu olhar, retido pela minha angústia, não encontrou resposta. Mas quero que saibas, Diogo, que compreendi finalmente como eras diferente, não iria ter um neto teu para abraçar, teria de viver para todo o sempre com o desgosto sobre o teu íntimo. Lamento ter-te desiludido e ficado calada, decerto esperavas um comentário, quem sabe se apenas um leve aceno, encontraste a tua mãe imóvel e em silêncio, por isso quase não falaste.

E hoje foi no meu corpo que morreste. Já não temos ocasião para a conversa que ambicionaste nessa noite ou, pelo contrário, talvez tenhamos o tempo todo à nossa frente. Se nesse dia falhei, podes agora regressar em sonhos e dizer-me tudo o que não fui capaz de ouvir.

 

Não posso continuar com estas dúvidas que me destroem a pouco e pouco. Não vale a pena fugir do problema.

Chegou o momento de seguir aqueles desejos que há tanto tempo indicam um caminho. Sinto um rasto confuso, mas persistente, uma estrada que preciso percorrer sem demora. Anseio e temo um futuro inevitável. Estou só.

Revejo o meu passado. Procuro uma linha de rumo que oriente os meus dias, encontro mais dúvidas e medos que me apavoram. Quem visito dentro de mim? Uma criança perdida, um menino a jogar ao elástico sem saber jogar à bola, um filho pequeno a fazer bolos com a mãe.

Agora tenho doze ou treze anos, escondo-me dos olhares da família para pôr o vestido de noiva, diferente dos outros meninos corro sempre para casa e fujo das brincadeiras da praceta. Estou em frente ao espelho da casa de banho a sentir-me estranho por me ver vestido de mulher, de súbito escondo tudo num instante, pressinto passos, uma porta que se abre e fecha, o meu pai vai entrar e bater-me mais uma vez, mas não, é a minha mãe que me pega ao colo e me embala, fico de vestido de noiva no seu colo e sorrio até adormecer.

Sonhos estranhos deixam-me exausto. Vejo-me velho, talvez com setenta anos. Pinto o cabelo de loiro para esconder os brancos, tenho ao pescoço uma écharpe da avó Xinha e seguro uma bengala do tio Ernesto. Passeio à noite por uma praia desconhecida e procuro rapazes novos, dizem-me que se reúnem ali depois da meia-noite, pode ser que algum não se ria de mim e me aceite. Agora acordo em sobressalto porque alguém vai contar ao papá que me assumi como gay e ele aparece-me aos gritos, sair de casa é a solução e fujo a atravessar o nevoeiro gelado que cobre a cidade.

Há sonhos diferentes, um pouco mais tranquilos. Estou numa casa toda decorada de branco, a ver televisão de mão dada como um amigo e tu, querida mãe, preparas um jantar com coisas de que gosto. Não vai haver mais ralhos nem violência, acabo de saber que finalmente te separaste do pai, tomamos café sem problemas, vou poder abraçar as duas pessoas que amo e ser feliz.

As dúvidas não param, quanto mais tento esquecer aquilo a que chamo trauma (afinal a dúvida sobre o meu futuro como homem), mais os medos surgem e me impedem de viver em paz. Foi quase sempre assim. Desde há muito tempo que pensava em rapazes. As aulas de Educação Física com balneários sem espaço atraíam e metiam medo, no Verão frequentava praias de nudistas para observar os homens, depois revia tudo em sonhos ou imagens que povoavam o meu espírito quando me masturbava.

Na escola vivia sempre com medo de ser descoberto e passar a ser gozado como o Rafael. Em segredo, aproximava-me, a princípio não sabia se para o imitar ou para ser diferente, alinhava com os outros no desprezo com que o tratavam, às vezes consolava-o com frases de circunstância.

Normal ou gay, gay ou normal. Não posso continuar com estas dúvidas. De uma vez por todas tenho de decidir. Na escola diz-se que as pessoas como eu «dão para os dois lados», é quase certo que pensam isso de mim. Devem saber. Há um ano tinha uma namorada linda, agora espreito os rapazes na casa de banho. Tenho a impressão de que já perceberam tudo. Tento ser discreto, mas não consigo. Uma força dentro de mim faz com que volte sempre ao mesmo, lá estou de novo a fingir que me esqueci do caderno e a voltar ao balneário, ou então procuro pares de namorados junto ao muro da escola.

Ontem estive todo o intervalo a olhar um rapaz. Era muito alto, moreno e magro como eu gosto. Seguia o jogo de futebol da escola, duas turmas de miúdos lutavam para um campeonato qualquer, nunca compreendi como uma bola pode interessar a alguém. Tinha uma miúda espectacular, uma rapariga loira de quem já tinha ouvido falar. Ao longe, pareciam agarrados de uma maneira discreta, ele abraçava-a pela cintura e ela tinha a mão esquerda no seu braço, como dois namorados à moda antiga. Quando me aproximei e continuei a observar, vi um jogo entre eles que me interessou. A rapariga metia a mão por baixo da camisa do namorado (que usava por fora das calças) e percorria-lhe as costas, em movimentos muito lentos de baixo para cima. Depois era ele que fazia deslizar a mão ao longo do braço dela, terminando com pequenas palmadas no rabo. Em seguida beijavam-se na boca, ele afagava-lhe os cabelos muito devagar, ela respondia com pequenos toques no pescoço, e tudo recomeçava.

Concentrei a minha atenção no rapaz. Por momentos senti inveja. Parecia tão bem, ali a beijar a namorada como se não existisse mais ninguém no mundo, até teve tempo para trocar uma piada com um colega que entretanto passou. Desejei estar no seu lugar. Recordei a Cláudia e os nossos encontros naquele pátio, pensei como era bom ter uma namorada gira para mostrar aos amigos, como isso me dava confiança e fazia esquecer as minhas dúvidas. O rapaz devia estar em grande, a miúda era uma das mais giras da escola, não devia ter sido fácil conquistá-la, ainda há pouco tinha visto os olhos que o colega lhe deitou. Agora comecei a sentir coisas estranhas, já não é a rapariga que está a ser abraçada pelo rapaz moreno, sou eu em vez dela, ele percorre as minhas costas com os dedos, de repente volta-se e tenta beijar-me, resisto por momentos mas acabo por ceder, com espanto verifico que me dá prazer e não me afasto. Parece um sonho, esfrego os olhos e estou no pátio da escola primária a brincar ao elástico, os meninos fogem de mim e só as meninas me aceitam, agora como que acordo e o par de namorados parece ter percebido tudo, afastam-se um pouco, o rapaz está mais interessado no jogo de futebol, grita «golo!» e solta um palavrão, é ela que me olha com curiosidade, decerto desconfiou por eu estar ali há tanto tempo. Finjo interesse na bola, são rapazes muito novos e fico logo aflito porque lhes tento descortinar o sexo, será que além de maricas vou ser pedófilo? Volto a olhar e eles recomeçam, a rapariga sentou-se ao colo do namorado e deixa que ele a baloice para baixo e para cima, beijam-se de novo, imagino que ele agora está excitado porque a empurra um pouco para os joelhos, ela olha para baixo a rir-se. Não, não é ela, tenho a certeza absoluta de que é a mim que ele balança, com as suas grandes mãos segura-me com força e não tenho medo de cair, arrisco e sinto o seu sexo na minha mão, felizmente o segundo toque interrompe tudo e vou para as aulas sem olhar para trás.

Estou confuso e perdido. Na sala de aula não me concentro, estou outra vez com o rapaz, agora é no balneário que o espreito. Tal como nas lições de natação, passeia-se nu e conversa com os amigos que estão no duche, imagino que me olha e despreza porque sou gay, só quer falar de miúdas, como pode ligar a uma pessoa como eu?

É como se estivesse mesmo a vê-lo, sai do balneário às piadas a um colega, tenho a certeza de-que está a contar que já curtiu com aquela rapariga do campo de futebol, sigo-o com o olhar e vejo-o vestir-se, cuecas justas para que continue a descobrir-lhe o sexo, calças de ganga e T-shirt com o Calvin e Hobbes, mas não, estou na sala de Português e é o professor que usa uma camisola assim, desperta-me com uma pergunta a que não consigo responder.

Quem sou eu, afinal? Um rapaz normal, capaz de ter outra namorada? Ou alguém que esconde o seu fundo? Sinto necessidade de ser qualquer coisa, cada vez tenho mais dificuldade em definir o que quer que seja. Não posso recorrer a ninguém, porque mesmo a ti, mãe, só consigo deixar perceber um mínimo de dúvidas.

Alguma vez pudeste entender o meu desgosto? Sim, mãe, desgosto é a palavra exacta. Imaginas como custa andar à procura de si próprio? Tentar achar respostas e só encontrar mais dúvidas? Fugir de um sítio e sentir vontade de lá voltar?

As casas de banho dos centros comerciais eram inferno e atracção. Chegava a entrar e a sair sem me aproximar dos homens, outras vezes ficava à espera. Alguém faria propostas, o meu ar não devia deixar dúvidas. Se ninguém dizia nada, sossegava por momentos. Depois começava a imaginar quem estaria atrás das portas das sanitas, observava os pés que às vezes espreitavam em baixo, tentava distinguir ruídos e depois nada acontecia, apenas um autoclismo e um senhor bem vestido a lavar as mãos. Então fugia, desaparecia a correr sem olhar para trás, com promessas que tinha de acabar com aquilo. No dia seguinte lá estava de novo, para me torturar por não ter sido forte e resistir.

Tornei-me quase um especialista, é com horror que agora, vários anos passados, confesso aquele hábito de andar de uma casa de banho para outra, a fugir dos seguranças, a perceber como fechavam as portas, a voltar atrás para ver se alguém percebia a pista que tinha deixado, às vezes apenas para tornar a olhar. À noite, em casa, percorria sites na net, marcava encontros com homens a que não comparecia, mandava mails a desconhecidos, depois arrependia-me e prometia mudar.

E, no dia seguinte, lá estava de novo. Saía das aulas para os centros comerciais, ficava muito tempo a entrar e a sair das casas de banho, às vezes refugiava-me na livraria para disfarçar.

Uma tarde foi diferente. Chovia muito e a casa de banho estava cheia, homens entravam a compor o cabelo e a sacudir chapéus de chuva ou gabardinas encharcadas. Juro que dessa vez estava tranquilo, entrei lá porque precisava mesmo. Nem olhei para o lado (ou talvez tenha olhado só um instante), de repente senti uma mão no meu sexo, um ofegar assustou-me, a custo fechei as calças e fugi.

Em casa, à noite, sozinho no quarto, cheio de medo, comecei a chorar. Lembro-me como se fosse hoje. Deitado sobre a minha cama olhava para as estrelas luminosas que tu, mãe, tinhas trazido de Londres e que sempre me ajudavam a adormecer. Na altura eram novidade. Recordo como ficaste aflita com o meu ar desiludido! Tiveste paciência, como de costume. Percebeste que as crianças esperam sempre um brinquedo novo, no meu caso um livro infantil ou uma caixa de pinturas, não podem ficar contentes com um pacote tão pequeno, sem nada lá dentro a chamar a atenção. Depois de jantar levaste-me pela mão até ao meu quarto e os dois colámos as estrelas uma a uma. Havia uma estrela-cadente que ficou bem por cima da cama, disseste (há dez, há onze anos?) que assim podia pedir um desejo todas as noites, na altura quis apenas que ouvíssemos música, para poder adormecer ao pé de ti.

Pensei tudo nessa noite. Será que teria sido bom chamar-te? Não tenho a certeza, três ou quatro anos depois. Não queria desiludir-te. Nenhuma mãe deseja ter um filho homossexual. Podes acreditar que, nessa noite, não tive medo do papá. Apenas pretendi que o caminho começado naquela tarde não me afastasse de ti, acreditei por momentos que tudo tinha sido um sonho, não tinha havido encontro na casa de banho e ia ter outra namorada, nunca ninguém tinha aberto a caixa do vestido de noiva nem espreitado os homens na piscina, podias ter a certeza de que te ia dar um neto.

Chorei muito. A dor de te poder ferir de morte. O pânico de nunca mais ser como os outros. O medo de me afastar de quem ainda me aceitava. E, no entanto, o desejo voltou. Era meia-noite e estava outra vez na net, tomava nota de contactos e locais no estrangeiro, depois desligava o computador e procurava esquecer, até adormecer de cansaço sem sequer me despir.

Os dias seguintes foram uma tortura. Queria deixar tudo congelado, um acidente daqueles pode acontecer a qualquer um, sou quase uma criança e há redes pedófilas por toda a parte. Uma hora depois pensava tudo ao contrário, de certeza que me tinha posto a jeito, por certo tinha olhado para o lado e o gajo tinha percebido. Por isso é que tinha sentido uma coisa estranha, afinal também me tinha excitado um pouco, não era isso um sinal? Uma força inesperada dizia-me para experimentar de novo, tinha de ter a certeza de mim próprio, compreender o que estava cá dentro. E assumir-me. Seria um choque para muita gente, mas talvez acabasse com o sofrimento. As dúvidas é que não podiam continuar.

Nessa altura sonhava muito. Numa noite acordei em sobressalto, estava com uma namorada linda, abraçados no corredor de um hotel, abrimos a porta do nosso quarto e estavam lá dois homens a fazer sexo. Desatei a chorar, foi o meu choro que me despertou, tenho a certeza porque ainda hoje, tantos anos passados, recordo as minhas lágrimas, uma vez mais foram as dúvidas sobre mim próprio que me mantiveram acordado durante muito tempo.

Noutro sonho estava numa festa magnífica numa casa antiga que não identifiquei, a piscina tinha uma cobertura transparente que deixava ver luzes de várias cores, empregados serviam bebidas exóticas a convidados muito alegres. Eu estava contigo, mãe, de braço dado ladeámos uma mesa de aperitivos e caminhámos pelo jardim. Atrás de uma árvore vimos pares enlaçados, com horror descobrimos ser uma festa gay, acordei a pensar que, sem dizer nada, tinha revelado o meu íntimo e ias deixar de gostar de mim.

Dois dias depois voltei à casa de banho. Ainda hoje não entendo porque tive essa necessidade. Era como se precisasse ter a certeza, como se a confirmação do que tinha sentido fosse essencial para prosseguir um caminho que não podia decobrir de outro modo.

Hesitei à entrada, quase sem me dar conta voltei para trás e procurei ganhar tempo na livraria em frente, por que razão me aproximava de uma coisa que me horrorizava?

Nessa tarde nada se passou, homens entravam e saíam e ninguém reparou em mim. Demorei-me várias vezes fingindo que urinava, em vão procurava cruzar olhares, perceber pequenos gestos, sinais que me indicassem como agir. O facto de ninguém olhar fez-me sentir mal, afinal não havia tantos homossexuais como diziam na net, devia ser o menos controlado de todos, estava ali a espreitar os homens naquela casa de banho onde nada acontecia. Mais uma vez jurei acabar com aquilo de vez, o sexo era importante mas nada que não se pudesse dominar.

Foi por essa época que me virei um pouco para a religião, com grande surpresa tua, mamã. Nunca fomos religiosos e, se me baptizaste, estou convencido de que foi mais para agradares à avó Xinha do que por grande fé, que nunca conheci em ti. Não te disse nada, mais uma vez receei desiludir-te, pensei que um filho adolescente que se torna católico de repente pode pôr em causa os pais.

Recordo um jovem padre, ouvia-me com atenção e não me criticava. Falava de si (por momentos pensei que talvez fosse gay) e de como tinha sido capaz de vencer os seus fantasmas. Estimulou-me a frequentar as actividades da paróquia e a conviver o mais possível com rapazes e raparigas.

Por uns tempos as coisas correram melhor. O grupo era simpático e, embora sem grande fé, aquele ambiente fazia-me bem. Depois, a pouco e pouco, tudo voltou à mesma. As conversas desinteressavam-me, as raparigas não diziam nada de jeito, voltei a observar os rapazes com toda a atenção.

Como podia pôr fim a tanta dúvida? Às vezes pensava que morrer era a única saída, a maneira de acabar com o sofrimento. A morte era para mim a forma de alcançar uma paz definitiva, de atingir momentos de tranquilidade que há muito não conhecia.

Tinha sentido continuar a viver assim?

 

Posso ajudar-te, aliviar o teu sofrimento? E, ao mesmo tempo, conseguir um pouco da tua atenção?

Tenho de continuar a mostrar que sou forte, é a única maneira de poderes confiar em mim. Precisamos estar mais próximos, tu com os teus dilemas, eu com os meus receios. Cúmplices, sempre cúmplices. Nunca te trairei. Podes ter a certeza de que não falarei a ninguém, não contarei, seja a quem for, o que me preocupa e vejo te atormenta. O papá faz-me perguntas, por que razão o rapaz acabou o namoro, a miúda era caladinha mas educada e parecia gostar dele, tens a certeza de que não anda a beber de mais? Desvio a conversa, não digo nada.

Passaram alguns anos, em breve vais morrer e levarás contigo o melhor de mim própria, sei que entre o fim da tua relação com a Cláudia e o primeiro ano do curso de Sociologia viveste enganos, desilusões, fracassos. Ouvia-te chegar a casa de madrugada e dormir toda a manhã, outras vezes eram toques misteriosos no telemóvel, saías de perto de mim e observava-te ao longe, de costas, em gestos sacudidos, depois eram horas no computador (eu imaginava sites homossexuais promíscuos, encontros secretos com homens, uma vez vi impressa uma página sobre crossdressers, tive medo de que quisesses parecer mulher outra vez, como naquela ocasião do vestido de noiva), um copo de cerveja sempre ao pé, cigarros amontoados no cinzeiro, aparecias a falar em morte e em suicídio, ficávamos os dois a conversar durante horas, em busca de um momento de tranquilidade que nunca chegava.

Quando naquela noite exigiste que te ajudasse a assumir (a princípio nem percebi, só quando pronunciaste a palavra gay tive a certeza do terror em que vivias), vi de repente tudo a cair à minha volta, não ias casar nunca e não teria um neto, o medo da genética voltou e tu e o Ricardo iam ser iguais ao tio Ernesto, a morrer de sida num hospital decrépito com os vossos namorados ao lado perante a troça de toda a gente, o papá iria descobrir tudo e a violência não tardaria a regressar, lembro-me de que te agarrei com força e pedi, exigi também que não me deixasses, acontecesse o que acontecesse ficaríamos próximos, como não contava nada a ninguém ao menos tinha de estar segura de que não fugirias. Olhaste-me surpreendido, «quero contar contigo, mas vou à minha vida, mãe», uma raiva cresceu dentro de mim, não percebias que tinha deixado de existir, era agora uma não-pessoa para que te tornasses alguém, gay ou não tinha a certeza de que finalmente eras um adulto, podias estar certo que era a mim que o devias, não ao teu pai, sempre o mais incompleto dos homens. Fui eu que me sacrifiquei para que não ficasses sozinho com o teu drama, sou a pessoa que sempre te ouviu e ajudou a crescer.

Passados estes anos não sei, neste momento, se fui capaz de te dizer tudo o que senti, talvez me tenha controlado um pouco. A certa altura não sabia se devia rir ou chorar, a tua reacção deixou-me constrangida, «tantas vezes quis ir ao fundo das questões, mãe, mas só encontrei o teu medo», não quero aprofundar nada, todo o meu esforço a partir do momento em que te assumiste como homossexual vai ser no sentido de te aceitar, na verdade não esperei esta solução, mas podes contar comigo, peço-te apenas que nunca me esqueças.

Duas semanas passaram em que pouco falámos, a tua vida prosseguiu inquieta e triste. Percebi, sem saber como, que tinhas tido sexo com um homem. Não consigo explicar como adivinhei, talvez um olhar mais secreto, um caminhar ainda mais silencioso no regresso a casa, uma nova maneira de vestir, um perfume diferente. Não perguntei nada, mas tive a certeza. Acho que também o notaste, a partir daí a conversa entre nós correu melhor, falavas com à-vontade de um mundo até aí desconhecido para mim, bares, quarto escuro, sauna, ficava horrorizada com tudo, o meu menino perdido na noite da loucura gay, aparentava uma calma que ia buscar não sei onde, o que importava era que não adoecesses e não andasses mais triste.

Em casa surgiu um novo problema, o Ricardo deve ter percebido alguma coisa, com doze ou treze anos já se sabe muito, passou a provocar-te, por vezes chegava ao insulto, deixava papéis no teu quarto e no espelho da casa de banho com piadas ordinárias, ralhei-lhe uma vez e ainda foi pior, caprichava em gozar, imitava as bichas da televisão em poses ridículas, felizmente nunca à frente do papá. Reagias com fúria, várias vezes fui dar com os dois em lutas terríveis em que lhe batias com violência, mostravas uma parte de ti que lembrava o teu pai. A avó Xinha viu tudo uma vez, foi afinal ela que me convenceu a levar-te ao psiquiatra, saberia do teu problema sexual?

A consulta foi um desastre, era um homem sonolento e gordo atrás de uma secretária cheia de papéis e de porcarias de propaganda médica, despachou-me em cinco minutos e a ti não deu mais de um quarto de hora, saíste de lá com uma série de medicamentos que o teu bom senso aconselhou a não tomar e, pasme-se, com um papel a sugerir a compra de dois vasos...

Nunca percebi muito bem a ideia, ainda hoje, mais ou menos seis anos depois, pergunto por que razão fizeste tudo sem me explicar. Parece que o médico te convenceu, só assim posso perceber que tenhas colocado sementes em cada um dos vasos, num ia crescer o Ricardo e o outro representava o teu desenvolvimento, disseste uma tarde que os dois, separados, simbolizavam a vossa independência...

Para mim aquilo era uma estupidez, as plantas a crescer irritavam-me, ainda por cima era eu que as regava, furiosa dei comigo a tentar saber qual era o Ricardo e qual seria o Diogo, quem tinha tido a ideia dos vasos devia ter pancada. Sobre este assunto, nunca disseste nada. De vez em quando olhavas para os vasos e seguias em frente, sem qualquer comentário, mas quando propus deitar tudo fora gritaste, «mãe, não queiras controlar tudo, isso é um assunto meu, deixa!», fiquei mais uma vez sem nada dizer.

Para mim as plantas não serviram para nada. O Ricardo deixou de se meter contigo porque arranjou amigos e passou a sair muito, tu também não paravas em casa, portanto não havia pretexto para discussões.

(Passados anos, os vasos estão no mesmo sítio, no corredor junto à varanda, será que a tua planta, agora que partiste para sempre, permanecerá viva? Tenho a certeza de que é a do Ricardo que está mais forte, ultrapassa a tua em altura, lado a lado mas independentes como desejava o médico, será assim para sempre?)

As zangas terminaram, mas como te recordas, Diogo, não foi um bom período. Já falámos sobre isso. Via-te deprimido, sem objectivos, dizias mal de tudo e várias vezes discutiste com o papá. Por estranho que pareça, já não me importava muito. Durante anos receei as vossas zangas, tinha horror quando começavam a falar mais alto, imaginei vezes sem conta que um dia teriam uma luta tão grande que só acabaria no hospital... tudo isso findou quando te tornaste um homem, de um momento para o outro deixaste de ter medo do pai, olhavas para ele sem qualquer receio, às vezes até o provocavas, como que a desafiá-lo... e nesses momentos, estranhamente, uma paz invadia-me, já não eras o menino do vestido de noiva que fugia horrorizado para o meu colo, mas um homem que eu tinha ajudado a crescer contra tudo e contra todos, os dois encontraríamos um caminho só nosso até um lugar seguro.

Diogo, os meus medos eram diferentes. Deixei de te defender das fúrias do papá. À minha volta, outros fantasmas cresciam. Às vezes corria ao encontro dessas sombras, na confusão do silêncio à tua volta tentava reencontrar-te. Não conseguias ouvir o que agora, onde quer que estejas, poderás escutar. Também eu, é certo, tantas vezes me calei.

Como naquele fim de tarde em que tornaste a falar de suicídio. Ainda hoje lembro como de repente surgiu a angústia, como de súbito nos olhámos sem conseguir dizer mais nada. Lembras-te? Estou segura que sim. Um café em Fontanelas, a pequena praça com o velho coreto, os carros à procura do restaurante para jantar, tu à minha frente e eu a querer sentir o que dizias.

- Mãe, a minha vida não tem qualquer sentido, já não posso cá continuar muito tempo...

A fala perde-se na tua boca, já não oiço mais, quero desaparecer contigo, sei que não é esse o pensamento que esperas de mim mas, cobarde, desvio o olhar para o coreto onde há muitos anos a avó Xinha me levou a passear, não és tu que estás a falar de morte, é o meu pai, que morreu quando eu tinha mais ou menos a tua idade, que me observa, não te quero perder como o perdi, por isso disse

não queres voltar ao médico?

tantos anos passados, vejo de novo a raiva na tua cara, culpada me castigarei toda a vida, desejei (como agora) partir para um lugar incerto onde nos reencontrássemos sem ninguém à volta, o silêncio no teu rosto imóvel impediu-me de continuar.

Tenho hoje a certeza de que viste rejeição onde só queria transmitir apoio, sentiste fuga onde só pretendi fornecer amparo. Parecias ter aderido ao médico, seguiste as indicações com aquela estória das plantas, naquele momento fazia sentido para mim pedir ajuda, qual a mãe capaz de viver com o receio de perder um filho por suicídio?

O meu pai está de novo ao pé de mim, não tenho dúvidas, tenta estacionar o carro junto do coreto, sempre gostou de Fontanelas e deste café. Só o conheceste, Diogo, na tristeza do rosto da avó Xinha. E, no entanto, está aqui junto a nós, dá-me força para ouvir a tua recusa em ir ao psiquiatra, não me deixa sozinha com a culpa do meu silêncio.

Nada mais disseste. Um nevoeiro frio cobria Fontanelas, já ninguém rodeava o velho coreto, caminhámos sem falar até ao carro, a casa de praia e o resto da família lá estavam, como se nada se tivesse passado.

No dia seguinte marquei consulta no psiquiatra. A Alice tinha-me dado o contacto de um médico especialista em problemas familiares, podia ser que tivesse algum tempo para me ouvir e não fizesse propostas com plantas.

O consultório era no centro da cidade, sexto andar num prédio mal cuidado, elevador lento e barulhento que me deixou insegura. Esperei quase meia hora numa sala de espera muito quente, ao longe o telefone sempre a tocar, junto a mim uma mesa demasiado larga com revistas que me surpreenderam pela actualidade. Os quadros não tinham ligação entre si, duas gravuras de razoável qualidade estavam esmagadas por um desenho de principiante, junto à janela jazia uma planta a necessitar de água. Dois adolescentes aguardavam vez e falavam um com o outro, um era muito bonito mas um pouco feminino, o outro era muito grande, os ténis sobravam para cima da mesa sem que parecesse preocupado.

Pergunto a mim própria por que razão recordo tudo com tanta nitidez. Lembro-me de tentar esquematizar o que iria dizer, escrever até umas notas num bloco, mas depressa me dispersava, agora o rapaz bonito pediu licença para fumar e o amigo abriu logo a janela, pensei, se calhar são namorados, vêm à consulta porque não conseguem assumir-se como gays, pelo menos fazem alguma coisa para resolver o problema. O miúdo giro fuma agora e comenta para o amigo os gatos que observa lá em baixo, chega a contá-los e são mais de dez, sorriem para mim mas faço que não percebo, se adivinhassem o meu problema decerto seriam mais discretos.

De repente, Diogo, não são o rapaz bonito e o companheiro que estão ali à minha frente, és tu e o teu namorado que esperam consulta, devem ter um problema sexual, ou então só um se consegue assumir, decerto não és tu porque continuas a pensar em suicídio.

O rapaz bonito passa um cigarro ao amigo, sentam-se ao pé um do outro, reparo que se vestem quase de igual, T-shirt e calção, ambos usam ténis sem meias, agora tenho a certeza de que são um par. Pensando bem, e já que não consegues andar com uma rapariga, seria melhor, Diogo, uma relação estável, sempre ouvi dizer que os homossexuais sem parceiro certo são mais infelizes.

Será que estes dois rapazes se amam? O dos pés grandes mudou de posição, parece não caber na cadeira, o joelho direito toca na perna do amigo, imagino logo que se ficam assim encostados é porque são amantes, dois rapazes normais ficariam embaraçados. O rapaz giro ri-se de uma piada que não entendi, uma gargalhada fina que sinto de mulher, comparo com o teu riso, Diogo, fico segura de que pelo menos não darás nas vistas, a tua voz e os teus gestos são apenas um pouco delicados, jamais levantarão suspeitas.

Se se amam, como farão amor? A Alice disse um dia que isso de passivo e activo não significa nada, se observasse estes dois mudaria de opinião, o dos pés grandes é que deve fazer o papel de homem, vê-se logo, basta olhar para ele, o giraço é tão frágil e belo que às vezes parece uma mulher. Parece que ouvem os meus pensamentos, um deles (qual?) pergunta se também venho à consulta, um tom de provocação na sua voz, respondo por monossílabos e mergulho na revista que fingia ler.

Que poderia dizer, Diogo? Que estou aqui, nesta sala de espera, a aguardar uma consulta de Psiquiatria porque tenho um filho gay sempre a falar em suicídio? Que em pequeno usavas o meu vestido de noiva e o teu pai te batia? Que me sinto culpada pelo teu destino e venho pagar meia hora de consolo?

O psiquiatra veio chamar-me à sala de espera. Tem peso a mais, cabelo a menos e olhos descaídos. Surpreendeu-me o gabinete para onde me conduz, móveis antigos que parecem roubados a um quarto de casal dos anos trinta, armário de portas de vidro onde guarda livros antigos, secretária com duas filas simétricas de gavetas, um sofá amarelo que me choca a princípio, mas onde acabo por me sentar. Está demasiado quente e a ventoinha do canto incomoda-me, interroguei-me se não ganharia o suficiente para um ar condicionado.

- Em que posso ajudá-la?

A voz é calma e o olhar sereno, por momentos pensei que posso confiar o meu coração, dizer como te amo e te receio perder na noite clandestina de Lisboa, contar-lhe como um dia, junto à casa abandonada da tua infância, confessaste os teus medos e permaneci culpada para sempre. Mais uma vez fui cobarde, falei de insónias e tristeza, dores de cabeça e faltas de apetite.

Sinto que ainda não revelou o verdadeiro motivo da consulta. Por razões que desconheço fala de sintomas, não é difícil chegar à conclusão que se trata de uma síndrome depressiva, mas prevejo que procura mais qualquer coisa, necessita falar de um drama que a destrói a pouco e pouco. Observo os seus olhos, olheiras profundas num risco negro que parece pintado, uma mágoa na expressão que afaz parecer distante. É professora, mas não fala de cansaço nem da indisciplina dos miúdos, pressinto que a relação com o marido não vai bem mas não vou por aí, procuro pontuar com pequenos comentários o seu discurso, que se aprofunda a pouco e pouco.

Não imaginas, Diogo, como foi difícil começar a falar de ti, contar coisas tuas a este homem desconhecido que não sei se está atento, ao longe ouvia as vozes dos rapazes na sala de espera e o telefone sempre a tocar, ruídos do trânsito entravam pela janela entreaberta.

Comecei pela tua infância e pela casa abandonada. Não sei porquê, lembrei-me da manhã em que te levei ao colo quase todo o caminho (tinhas quatro, cinco anos?), parámos apenas no buraco que tinhas descoberto e onde gostavas de ver correr a água. Sempre acreditaste que era o mar que ali passava, por isso protestavas com a sujidade, boiões velhos de iogurte, latas de cerveja, maços vazios de cigarros.

- Mãe, vamos fazer um lixo só nosso e deixar o mar sozinho?

Não era possível impedir-te, exigias um saco de plástico e acabava por te ajudar a limpar, só parávamos quando a água corria mais ou menos limpa. Ficávamos depois muito tempo a olhar, os carros passavam depressa no caminho para as Azenhas do Mar, com medo puxava-te para dentro, de encontro a mim imaginavas o mar a atravessar a estrada até àquele pedaço de terra que ambos defendíamos.

Naquela manhã, recordei na consulta, estavas muito cansado, pedias colo entre o buraco e a casa abandonada, quando lá chegámos ficámos sentados na escada da entrada, atrás de nós os restos da porta principal deixavam adivinhar as ruínas do interior. Depois passeámos entre os destroços das várias divisões, querias saber o que lá tinha existido, só terminaste a volta com a minha promessa de que um dia alguém iria arranjar toda a vivenda.

Foi depois que tudo aconteceu. Tinha ficado sentada no resto de uma portada a observar-te ao longe, de repente chamas com voz inquieta, lembro-me de recear que tivesses caído, havia ferros e pedaços de madeira espalhados por todo o lado, na tua vozinha de miúdo querias saber que era aquilo para onde apontavas, vi um monte de ferrugem mesmo a teu lado. Depressa percebeste o que expliquei, o cofre da velha casa tinha passado a ser só nosso, poderíamos lá guardar tudo o que nos apetecesse. Com cuidado tentei mover a porta e mostrar-te a fechadura onde há muitos anos alguém teria colocado um segredo, agora tínhamos de inventar um novo e depositar lá dentro todos os tesouros das nossas descobertas.

Ainda hoje, mais ou menos dezassete anos depois, recordo a tua excitação. Correste entre as ruínas à procura de flores, subiste e desceste os restos das escadas em busca de pedras especiais, vinhas entregar num instante, para que guardasse tudo no tesouro. Eras, és, uma pessoa diferente, essa é uma das razões do nosso amor e, quem sabe, o ponto de partida para os teus problemas. O médico pode compreender isto, já está atrasado nas consultas, não tem tempo para me ouvir porque está mais motivado para receber os rapazes, a Alice disse-me que era especialista em adolescentes, não deve interessar-se pela história de uma mãe.

 

O meu mestre americano Cari Whitaker dizia que na primeira vez não se deve deixar falar muito, se a pessoa que nos consulta não conhece limites temos de as conduzir em conjunto. Pontuei com uma frase banal «Tem um grande amor pelo seu filho», com surpresa notei que ajudou a actualizar o problema.

 

Estou a falar com demasiados pormenores, sei que estas consultas têm tempo limitado e não me esqueço dos rapazes da sala de espera, imagino que sozinhos trocam beijos ou piadas íntimas, apresso-me a falar de ti, do teu medo de viver e das ideias de suicídio, da minha culpa em não ter evitado o teu destino homossexual.

 

Tomo pequenas notas na ficha, chegámos à parte decisiva da consulta, agora é que a aliança terapêutica se vai ou não esboçar. Começo a gostar desta mulher-mãe, necessita de verbalizar os sentimentos de culpa que a destroem a pouco e pouco, no entanto nunca poderei desdramatizar em excesso, porque sem culpabilidade ninguém muda. Só ela poderá (ou não) concluir que a homossexualidade não é uma escolha e que nenhuma mãe a deseja para um filho.

Preocupam-me as ideias de suicídio do rapaz, sobretudo porque acabo de ouvir que não aceita vir à consulta. Não ignoro que as minorias sexuais juvenis têm mais ideias de suicídio que os seus pares heterossexuais e que, nos adolescentes do sexo masculino, existe uma forte associação entre o risco de suicídio e a homossexualidade/bissexualidade.

Ajudo-a a circunscrever um pouco a narrativa, em conjunto construímos o seu genograma. Filha única, pai falecido na adolescência, mãe sempre presente. Dois filhos, aparente grande preferência pelo mais velho. Relação conjugal sentida como insatisfatória, uma raiva inesperada nos olhos quando perguntei pelo marido. «O mais incompleto dos homens», lá estava de novo a falar de mais.

Lembrei-me de Cari Whitaker e da sua «síndrome de David e Golias», em que a mulher, de modo inconsciente, alimenta no filho o ódio pelo pai, como modo de se vingar de uma relação de permanente insatisfação conjugal. O pequeno David cresce, um dia vencerá o grande Golias e ficará para sempre com a sua mãe. Caberia aqui a eventual homossexualidade do rapaz? Identidade perturbada, má identificação com a figura paterna, excesso de mãe, slogans da Psiquiatria tradicional perturbavam a minha atenção. «The hindrance of theory in clinical work»

(o embaraço da teoria para o trabalho clínico), (nota do autor), diria vinte anos antes Cari Whitaker, na cadeira giratória do seu gabinete em Madison, EUA. Precisava esquecer preconceitos e continuar a ouvir, agora já não tinha muito tempo, era fundamental criar a relação que tornasse inevitável um segundo encontro.

 

Se calhar acha que sou uma mãe ansiosa, tem fama de liberal com a gente nova e deve achar a homossexualidade uma coisa trivial (por isso vai atender os rapazes da sala de espera), a minha amiga Constança que é beta (e não gosta de gente de esquerda como ele) diz que este médico dá força aos filhos e os vira contra os pais - até parece que escreveu um livro, Inventem-se Novos Pais -, o melhor será voltar a falar de mim e do meu desespero, do receio de te perder, Diogo, do meu eterno sentimento de culpa.

 

Esta mãe, como tantas outras, tem dentro de si o mito da família heterossexual, projecta-se no futuro como avó, vive uma profunda desilusão com o trajecto actual do filho mais velho.

Se um dia

me quiser falar mais abertamente da homossexualidade do filho, teremos de co-construir a necessária aceitação e integração do rapaz.

 

Tanta coisa ficou por dizer! Pede-me para voltar, digo que sim, mas rejeito terapias, não tenho tempo nem paciência para passar a vida a caminhar para cá. Em vão tento dizer mais alguma coisa, a custo aceito nova marcação para a semana seguinte.

Para ti, Diogo, só mais uma coisa: saberei sempre dosear as minhas confidências, nunca desvendarei o secreto íntimo do nosso amor.

 

Envolvo-me e tenho prazer, fujo da confirmação que acaba de chegar, distancio-me e julgo que foi mais um acidente, um acaso de quem está só e carente de amor. Uma semana depois procuro de novo. Um vazio cá dentro faz-me percorrer os lugares do costume e entrego-me uma vez mais. Quero atingir certezas no meu mundo de dúvidas.

Se tenho sexo com homens é porque sou gay. Por que razão não me aceito, por que motivo continuo à procura de algo que não encontro? E, no entanto, cresço a cada momento que passa. Já não sou o menino do jogo de elástico nem do vestido de noiva. Falo contigo, mãe, mas sobretudo converso comigo, dialogo com a parte de mim que durante anos fiz por esquecer. Os charros e o álcool são bons para isso. Põem-me em contacto com uma parte de mim que desconhecia, cá por dentro sinto uma raiva de animal ferido, acordo de manhã com vontade de partir coisas e adormeço cansado por noites de descontrolo e prazeres proibidos. Nem imaginas, mamã, como me apetece fugir de tudo, desaparecer para sempre com uma dose de comprimidos, partir para um país distante, outras gentes que não conheço, lugares desconhecidos onde possa fazer sexo com quem me apeteça, longe do teu olhar triste e das críticas do papá.

Nas reuniões do movimento gay que passei a frequentar ouço relatos, bocados de vidas semelhantes à minha, vejo folhetos onde tudo parece simples. Listas de locais de engate, sites na net, agora aquele rapaz partilha a sua intimidade, apetece ir com ele e falar até de madrugada, és como eu um estranho na própria casa e fizeste na escola a aprendizagem do desprezo? Um homem mais velho fala em «coming-out», ri-se quando traduz por «sair do armário», apetece gritar que é melhor deixar tudo escondido, de nada serve afirmar que a homossexualidade não é doença mas uma opção, onde esteve a alternativa no meu caso? Os fantasmas que desde criança me visitam todas as noites, as vozes cá dentro que sussurram «és maricas» desde que o corpo cresceu, as imagens de sexo com homens que preenchem os meus sonhos, tudo o que há tanto tempo me controla, pode ser parte de uma escolha? E, por estranho que pareça, é nestas reuniões de quinta-feira à noite que encontro alguma paz. Finalmente estou entre iguais, é bom ver que não estou só no mundo. Há mais homossexuais do que pensava, se calhar muita gente tem o mesmo problema que eu e apenas disfarça.

Mãe, como sabes tenho vinte e um anos acabados de fazer, passaram mais ou menos três meses depois daquela noite em que te falei do Francisco, tudo está calmo e vejo-te mais feliz. Deixa-me dizer uma coisa: nunca percebi porque criticavas o movimento. Devias ter percebido que me ajudaram a encontrar um caminho, foi naquelas noites de quinta-feira e nalguns fins-de-semana, em reuniões na província, que deixei de me odiar. Sabes, fiz amizade com rapazes angustiados como eu, conheci homens mais velhos de quem me tornei confidente e, acima de tudo, foi lá que conheci quem amo.

Sei que sempre estiveste comigo. Vi o teu olhar cruzar-se com o meu nos momentos de pânico em que sentia vontade de morrer, tenho a certeza de que mesmo quando me arrastava pela noite em aventuras que condenavas não me deixaste só. Gostaria, no entanto, que em instantes decisivos pudesse ter ouvido a tua voz e o teu conselho. Precisava tanto de um rumo, de alguém que dissesse por onde não devia ir, imagina que até pensei perdoar ao pai tudo o que me fez e procurar algum consolo na sua opinião! Mas perdias-te em pormenores, falavas em doenças e vitaminas, más companhias, de estar perdido, não conseguir acabar o 12º ano e entrar para a Faculdade, até de roupas um pouco mais extravagantes que às vezes usava. Não quero ser injusto contigo. Sei que desde o vestido de noiva tens ideia do que sempre se passou. Por isso me protegeste em tantas ocasiões, não querias ter um filho gay mas nunca deixaste de me amar. Hoje tenho pena de que ainda tenhas tantas ideias feitas, onde foste arranjar essa convicção de que foram as más companhias que me empurraram para este caminho?

Querida mãe, nunca te apercebeste do instante decisivo. Não teve nada a ver com o movimento que só mais tarde surgiu na minha vida, muito menos resultou de companhias, boas ou más. Passou-se tudo em silêncio, numa solidão de abismo, numa noite desesperada que nunca partilhei com ninguém. Lembras-te do senhor da esplanada de Telheiras? Sim, aquele homem de mais ou menos quarenta anos, sempre com um livro debaixo do braço e óculos de intelectual. Sem quase dar conta meteu conversa a propósito do livro de Matemática do 12º ano (é certo que já tinha havido olhares, perguntas sobre as horas e ofertas de cigarros, nunca liguei e procurei ser bem-educado como sempre ensinaste), percebia daquilo e até me tirou dúvidas. Depois, foi tudo muito rápido, dois ou três encontros no café e chegámos àquela noite de sexo em casa dele. Tal como tinha acontecido pela primeira vez na casa de banho, o prazer e o desgosto tomaram conta de mini. Queria esquecer como tinha gostado e ao mesmo tempo verificar se me podia entusiasmar de novo. Foi em Telheiras que se iniciou a minha vida de hoje, onde apesar de tudo encontrei carinho e o fim das minhas hesitações, a confirmação que procurava há tantos anos.

E, no entanto, talvez uma palavra tua, sem crítica nem rancor, um aviso, quem sabe se poderíamos ter mudado de casa (nunca gostámos de Telheiras), poderias ter-me apresentado filhas de amigas tuas, só muito mais tarde te convenceste que era gay, na altura dos encontros pela net e dos engates da noite...

Quero afastar de vez estes pensamentos. Os filhos são sempre injustos, a melhor prova disso é que só os pais andam com retratos nas carteiras, nunca vi um rapaz com a fotografia do pai! Como posso ser egoísta a ponto de te responsabilizar por aquilo que decidi?

Mais ou menos quatro anos depois tudo parece diferente. Tenho o Francisco e jantámos os três pela primeira vez, por favor não digas nada ao papá porque ele nunca aceitará. Quero partilhar contigo este momento, mesmo que não dure muito sinto alguma vontade de viver. Gostaste dele? Adoro aquele ar discreto, as costas um pouco curvadas, o eterno sorriso em toda a cara. Fiquei tão contente quando regressei da casa de banho e os vi a conversar...

Mãe, promete que não dizes nada ao papá nem ao Ricardo. Nunca compreenderão o meu amor pelo Francisco. E, já agora, não procures tirar partido de saber tanto a meu respeito, às vezes parece que estás sempre a tirar vantagem de te contar tantas coisas…

Sim, mamã, não protestes. Passados tantos anos, sei que muitas vezes te entusiasmavas com os nossos segredos. Não sei se todas as mães são assim, julgo que não. Apenas tenho a certeza de que entre nós havia uma espécie de pacto, viveríamos um para o outro e ninguém poderia saber certos factos. Não me arrependo dos nossos momentos, não penses isso. Como posso esquecer o tesouro da casa abandonada? Os passeios de mão dada entre as ruínas, as flores selvagens que escolhia para ti, o sol ao fundo entre os destroços das portadas, o buraco onde inventámos o mar. Ou mais tarde os cafés de Lisboa, o cinema ao fim da tarde, quando deixavas a escola e me ias buscar a casa, a certeza de que à noite te virias despedir e entalar a roupa (que importavam os comentários do papá, só lá para os quinze deixaste de o fazer, podes crer que a iniciativa não foi minha), acima de tudo os livros que líamos em conjunto antes de adormecer. Todas as noites uma história diferente, rias quando exigia todos os pormenores, cansada às vezes apressavas o fim mas eu, sem saber ler, não te facilitava a vida.

Não quero esquecer nunca esses momentos de felicidade. Insisto, no entanto, numa coisa. Sem te querer culpar de nada, ainda hoje me interrogo por que razão nunca te falei do homem de Telheiras.

Tenho a certeza de que não disse sequer o nome. E para quê fazê-lo, se nunca seria capaz de contar nada?

Chamava-se Carlos e era engenheiro. Há pouco disse como nos conhecemos. A Matemática, de que nunca gostei, foi o pretexto.

Não tenhas receio, mãe. Sempre me tratou com delicadeza.

Os nossos encontros eram ao fim da tarde. Tenho uma vaga recordação da casa. Uma aparelhagem com som de qualidade, serigrafias coloridas em todas as paredes, livros de arte destacados nas estantes.

Era muito simpático para mim. O chocolate Carbury, a música preferida, as canetas de esfera fina que sempre adorei. Nunca me forçou a nada. Sempre se preocupou com o que poderia sentir, embora nunca lho dissesse.

Tinha um divórcio antigo, sem filhos, algum sucesso profissional. Dava-me bons conselhos, sabes? Sempre disse que me devia assumir e foi quem primeiro me falou do movimento. Nunca criticou a minha família, nem os meus colegas. E ajudou a compreender o Rafael.

Como sabes, nunca deixei de o ver, embora falássemos cada vez menos. O Carlos dizia que a pior coisa que podia acontecer a um homossexual era transformar-se em «bicha disponível». Por isso, não estimulava os meus encontros com o Rafael, dizia apenas que devia pôr os olhos nele, para ter a certeza de que me ia tornar diferente. Só mais tarde percebeu que aquele colega era uma parte de mim, um pedaço do meu interior que não conseguia encarar e que me fascinava ao mesmo tempo. Por isso, houve momentos em que continuei a espreitar o Rafael e a guardar para mim próprio tudo o que sentia. Voltei a falar-lhe, numa manhã de escola com greve dos professores. As salas de estudo estavam vazias, os estudantes preferiam o campo de futebol ou os recantos do pátio, lá estavam os pares de namorados que me excitavam e os betos a gozarem com os chungas.

- Eh Diogo, andas a fugir de mim? Topo-te bem, é melhor dares uma de verdadeiro. Malta como nós não precisa esconder-se...

Anos e anos de fuga, pensamentos secretos, visões de sexo sem limites, tudo desabou à minha frente. O Rafael sorria, surpreendo-me hoje porque não o odiei como tantas vezes tinha acontecido, apenas me afastei um pouco, de novo a inquietação a crescer dentro de mim. Se me assumisse, matava-me a seguir. Ninguém poderia saber do Carlos nem dos engates da net. Com esforço viveria o meu drama secreto, longe dos olhares e comentários de toda a gente.

O Rafael continua à minha frente, o rapaz do par de namorados olha para nós e julgo vê-lo sorrir, decerto despreza estes dois colegas que jamais terão uma mulher nos braços. De repente ali não é a escola, estou na sauna onde só fui uma vez, semideitado e com uma toalha entreaberta na cintura espero que alguém se aproxime, oiço os sussurros de dois homens a fazerem sexo na cabina ao lado, o terror de ser quem sou e a vontade de me aceitar confundem-se, sinto-me enlouquecer.

Não, não te quero ver mais, Rafael, penso dizer-lhe mas não sou capaz, apenas tento um sorriso simpático e vou até ao bar, procuro refúgio na mesa ao lado de um professor.

Quando saí da escola contei tudo ao Carlos. Gostei de falar com ele. Não me criticou, nem me deu conselhos.

Apenas disse, na sua voz pausada e serena, que nós (como, por instantes, detestei esse «nós») precisamos de nos aceitar, é dentro de cada um que podemos encontrar alguma paz. E que muito do sofrimento se devia ao facto de andar a fugir de mim próprio, há quanto tempo tinha a certeza de ser gay?

Nada de confusões, mãe. Nunca amei o Carlos. Agora que conheces o Francisco tens a certeza de que falo verdade. Tenho pena de te ter deixado ilusões com a Cláudia, talvez na altura precisasse seguir um caminho, percorrer uma distância e olhar para dentro de mim. Foi também isso que consegui com o Carlos.

A certa altura mandei-o calar, já estava um bocado a armar em professor, não gostei da maneira desprezível como falou do Rafael. Lembro-me de que nesse fim de tarde me deixei amar sem medos, por momentos o meu corpo estava ali, não precisava fugir nem controlar nada, mas logo a seguir tudo voltou. Apeteceu-me sair a correr, esquecer tudo no chuveiro da minha casa, fumar um charro sozinho no meu quarto, desaparecer para sempre.

Foi assim durante mais ou menos três meses. Encontros ao fim da tarde, uma coca-cola no sofá a ouvir música de câmara, sexo distanciado no quarto em frente, i Percebi depois que me traía, mensagens no telemóvel e mails que descobri às escondidas não me deixavam dúvidas. Acabou como começou, numa tarde na esplanada de Telheiras. Nunca mais o vi.

Durante algum tempo andei perdido. Uma espécie de cegueira invadia-me. Desconhecia o mundo à minha volta. Procurava um lugar incerto onde pudesse acontecer. Quando me falavas, mãe, deves recordar-te, não te respondia. Era como se afastasse das palavras o seu próprio som. Sozinho, nem na sombra do meu corpo me reencontrava.

Devíamos ter falado. Se uma palavra certeira tivesse existido, talvez nunca tivesse ido a casa do Carlos. Estou de novo a ser injusto, como posso esquecer as dúvidas que me invadiam as noites, os olhares secretos nas casas de banho? Não sei, em resumo, o que pensar.

Uma noite tive um sonho estranho. Deitado numa cama, vi o meu corpo desprender-se, atravessar um muro de água à sua volta, desaparecer ao longe e sem destino. Acordei excitado e cheio de frio, por momentos pensei que já não vivia neste mundo.

Como te disse, o movimento ajudou-me. O Carlos deixou de lá aparecer. Surgiram outras pessoas. Nunca aderi a grandes manifestações públicas, mas frequentei as reuniões.

E foi lá que conheci o Francisco. Querida mãe, tenho pena de não conseguir contar-te tudo o que sinto. Não há, no mundo, modo de o dizer. Gostava apenas que o aceitasses. Digo-te: em silêncio me demoro a olhar para ele, no seu olhar revejo o mar em frente da casa abandonada.

Desapareceram as sombras que durante anos se afundaram no meu rosto.

Tenho vinte e dois anos, estudo Sociologia com mais ânimo, após muito tempo a minha vida afinal ganha sentido.

Uma noite, em Colares, jurámos o nosso amor. O café da Várzea estava a fechar, os patos dormiam na margem da ribeira, grupos de adolescentes combinavam programas.

Nunca te contei o que dissemos. Estava feliz por tê-lo encontrado no meu caminho até aí tão solitário, limitei-me a ouvi-lo sussurrar que gostava de mim. Chorámos depois a dor de cada um, nenhum de nós é uma pessoa simples e viver é violento. Lembro-me apenas de que desejámos que a noite fosse além da madrugada, em silêncio passeámos junto às rochas da Praia Grande, o sonho do nosso futuro só terminou pela manhã.

Mãe, fiquei com a sensação de que a princípio não gostaste do Francisco. Não nego que ele pode parecer um pouco arrogante, tem um bocado a mania das famílias finas, de nomes com consoantes dobradas. Concordo que, nessas coisas, somos pessoas mais simples. Ou então quem sabe se tiveste um bocadinho de ciúmes, deves ter pressentido como gosto dele.

Não te preocupes. Não preciso de lhe falar muito da nossa vida. Apenas lhe vou dizer como é bom que existas, nada mais.

Neste lugar dentro de mim encontro-o, tenho a certeza.

 

Podes ter a certeza. Gosto do Francisco desde o primeiro momento, encantou-me a tranquilidade do seu sorriso, o modo educado como cumprimenta, sobretudo a ternura com que te olha.

Foi preciso vencer muitos medos. Por estranho que pareça, Diogo, era mais simples não saber com quem andavas do que te ver amar uma pessoa concreta. Quase me envergonha dizer isto, mas continuo a pensar que ninguém te pode dar mais carinho do que eu. Egoísmos de mãe! Quando chegavas a casa de madrugada e na manhã seguinte tentava em vão tirar-te da cama, vinham-me à cabeça os riscos que corrias, doenças, vinganças, problemas com a polícia, mas tinha a certeza de que uma parte de ti continuava a ser minha, como não amavas ninguém eu continuaria em primeiro lugar. Foi por isso que tive medo quando disseste que finalmente tinhas uma relação importante. Parecias feliz mas a princípio não me alegrei, só apareciam o ciúme e o abandono, receios de que partisses de vez daquela casa e eu ficasse só no mundo, a ver adoecer a avó Xinha e a sentir o teu pai cada vez mais longe.

O tempo ajudou, duas ou três semanas obrigaram-me a reflectir. A pouco e pouco esqueci estes pensamentos egoístas e mesquinhos, compreendi que nada poderia ser melhor do que ter alguém para amar. Sei agora que o acontecimento decisivo foi o jantar a três no restaurante de Campo de Ourique. Aquele sorriso fez desaparecer todas as dúvidas, o modo tranquilo como o Francisco te respondia deu-me a paz há muito pretendida.

Prefiro deixar as coisas assim, não falarei do Francisco a ninguém. Quando as minhas amigas perguntarem pelas tuas namoradas continuarei a dizer que não as conheço e que me pareces um rapaz que não se quer prender. Ao teu pai nada direi, vou limitar-me a responder que tudo vai bem, entraste na Faculdade no curso de Sociologia escolhido em primeira opção, não era isso o mais importante para ele?

E como estavas mais disponível! Pedias muito o carro, é verdade, mas a carta de condução foi uma coisa boa para todos, oferecias boleias e favores, a avó Xinha e o Ricardo foram os mais beneficiados. Parecia que as horas te rendiam, tinhas tempo para a Faculdade e para os amigos, jantavas em casa e, embora os fins-de-semana fossem quase todos para o Francisco, arranjavas maneira de ver os jogos de futebol do Ricardo! Foi um bom período, agora que já não estás ao pé de nenhum de nós recordo com saudade aqueles meses, sorrias quase sempre ao acordar e vivias com esperança em cada dia.

Passou algum tempo, o teu corpo deixou de estar ao alcance, raça olhar, na terra do cemitério desejo, se possível, que continues livre. Caminharemos para sempre, como na casa abandonada descobriremos um tesouro só nosso. Uma vida sem princípio ou fim está à nossa frente. Não sabes que respiras um ar desconhecido? Esquece razões antigas, descobre para mim um mundo novo, fontes brancas, a flor mais linda que me ofereceste em menino, pássaros únicos, tudo aquilo que ninguém possa entender.

Avançaremos sós e em silêncio, entende que te ouço mesmo quando não falas, um mundo inteiro aguarda-nos. Abriga a tua face junto à minha, não tenhas medo. Escutas o vento? Começou de manhã, neste lugar incerto nunca se sabe quando surge o dia, a noite sem fim parece nunca ir embora. Ainda bem que não vês os muros de água do sonho que contaste, olhas decerto os campos, as folhas ressequidas das árvores, o navio que nos transportará para bem longe. Não te despeças de ninguém, todos acabaremos por perdoar a tua ausência, voltarás um dia e já não fará sentido chorar.

Ouço rumores estranhos, vejo a meu lado o sol que afinal apareceu entre as ramagens, o chão abre-se agora numa espuma branca que lembra a do mar. Meu filho, quando voltaremos a falar de amor? Podes estar certo de que nunca saberás que não existes, cuidarei de ti para que nada te falte.

Rios, seixos, sons perdidos, aves estranhas rodeiam-nos. Fica tranquilo, estou a teu lado, as minhas mãos cobrirão para sempre as sombras do teu rosto.

Como naquela tarde em que voltaste a pôr tudo em causa. Recordas-te?

Devo dizer-te que vivia um pouco mais tranquila. Tinhas deixado as saídas à noite, os telefonemas misteriosos, as buscas nocturnas no computador. Era como se me tivesse resignado a um destino que nunca escolheria, mas que, apesar de tudo, adivinhava ser o menos mau para ti.

A culpa, no entanto, não me deixava sossegar. Onde tinha falhado? Por que motivo não tinha interpretado os sinais que observava desde a tua infância? Não tinha sido cobardia jamais ter interrogado o teu destino, ou questionado aquilo que era evidente no teu percurso?

Dormia mal. Sonhava que a avó Xinha te descobria um dia com o Francisco, ou que o teu pai voltava ao passado, os dois descontrolados batiam-se à minha frente e o vestido de noiva, rasgado pela fúria do papá, ficava em pedaços no chão da sala. Noutras ocasiões não conseguia adormecer, as minhas amigas tinham-te visto de mão dada com o teu namorado à entrada de um bar gay, a Alice dizia finalmente perceber por que razão eu não gostava de falar das tuas namoradas.

Naquela tarde folheava uma revista na sala, o Ricardo estava no quarto e o papá ainda não tinha chegado do escritório. Pela maneira como entraste vi logo um problema, caracóis despenteados sobre a testa, olhar inquieto sem se fixar em mim.

- Mamã, isto não dá, não há hipótese...

Fiz com que te sentasses a meu lado no sofá, baixei o som da música, a custo consegui mais umas palavras.

Tinhas encontrado colegas da Faculdade quando passeavas com o Francisco no Bairro Alto, o bar de onde saíam não deixava dúvidas, quem sabe se até tinham observado a rápida festa que ele te tinha feito, quando a porta se fechou nas vossas costas.

Tentei tranquilizar-te, mas acumulavas indícios, modificavas a realidade à tua maneira. Um colega tinha fingido não te ver, uma rapariga da Faculdade tinha troçado sem parar, um par de namorados (que conhecias da Cidade Universitária) beliscou-se para não rir.

Meu querido Diogo, nesse instante desejei que fosses de novo pequenino, imaginei que te levava pela mão a dar comida aos patos da ribeira de Colares, juntos comíamos queijadas e mais uma vez pedias para tirar aquela casca dura de que não gostavas, adormecias no carro sem eu dar por isso. Estou certa de que nesse momento também passeámos à beira da Praia Grande, brincámos com formas de estrelas e de Rato Mickey, a tua bola a correr à nossa frente.

Depois ficámos ao lado um do outro sem nada dizer. Cobarde mais uma vez, não aproveitei a oportunidade. Não consegui ser verdadeira, palavras em que não acreditava saíam da minha boca sem controlo, afinal andavas com a pessoa de quem gostavas, que importava a opinião dos outros? O que interessava é que pudessem ser felizes...

Oh, como me arrependo, neste instante em que de novo caminhamos num mundo só nosso, mergulhamos vestidos em águas estagnadas, só uma leve corrente as move. Se fosse hoje, inventava a palavra certa para te dizer, sinto-a em mim, mas só a direi no momento exacto. Desceremos este rio até ao mar, despes-te agora muito devagar e eu desvio o olhar para não te ver sem nenhuma roupa

o teu corpo nu na cama do hospital

não sou capaz de fazer o mesmo, alivio apenas os ombros de uma camisola que incomoda, uma ligeira aragem percorre-me, olho afinal para o teu corpo branco a meu lado

morte cerebral, morte cerebral infelizmente volto atrás e à nossa conversa, sentados no sofá da nossa casa de Telheiras, nesse fim de tarde não fui capaz de dizer nada.

- Mãe, vou candidatar-me ao Programa Erasmus e passar um ano fora, esquecer tudo, encontrar outras pessoas, é a minha única saída.

Contactos no estrangeiro via net, sida, preservativos que se rompem, redes pedófilas internacionais, quartos escuros em bares gay, tanques para sexo em grupo em saunas conhecidas por catálogo, o meu filho a prostituir-se nas ruas de Amesterdão, tudo a surgir nesse instante em que aparentemente só me falas de estudo, não será mesmo boa ideia mudar de ares, uma faculdade no estrangeiro é sempre uma boa experiência. Mais uma vez não percebi nada. Aproximei-me de dizer alguma coisa importante, mas foi o silêncio que venceu. Tenho hoje a certeza de que querias verificar, conhecer melhor o meu pensamento sobre a tua relação com o Francisco, por isso sussurraste:

- Mas mamã, será o fim, deixo de andar com o Francisco...

E então, pensei, que mal poderá vir ao mundo? Fazes os teus estudos e trabalhas o melhor possível, podes pôr o sexo na cabeça (como dizia o padre dos meus tempos de liceu) e dedicar-te a uma causa social, o teu curso é bom para isso. Pode-se viver sem sexo, nunca te esqueças (nunca te diria que não se vive sem amor).

Acabei por nada dizer, a custo contive o egoísmo e ciúme que me inquietavam. Como hoje compreendo, apenas querias reforçar o teu amor! Como neste dia entendo que te expunhas para que te aceitasses, nessa altura em que finalmente te reencontravas...

No rio que ambos percorremos grito o teu nome, estás ali e não me respondes, gostaria que uma descarga do universo criasse naquele instante um mundo novo, uma terra sem sombras onde nem falar fosse preciso, agora vejo-te com nitidez, nadas nu a meu lado

o teu corpo sem feridas nos cuidados intensivos

a roupa aperta um pouco mas hesito em despir-me ao pé de ti, deixo que a leve corrente me conduza, lado a lado vemos o mar ao fundo, de certeza que ao longe está a casa abandonada e o cofre do tesouro que ambos construímos há quase vinte anos

- Nunca vou ser capaz de fazer uma vida normal, tenho imensos medos, o Francisco está sempre a gritar que preciso sair do armário...

Assumir o meu amor por ti, ser capaz de afirmar que me fazes sofrer e ser feliz ao mesmo tempo, que me importa se o teu pai toda a vida foi o mais incompleto dos homens, sofro muito por seres gay e andares com um rapaz, alegro-me pela forma como também me amas, agora que tens vinte e dois anos e há muito não falamos na casa abandonada. Um dia vou ser capaz de aceitar o Francisco, jantaremos muitas vezes no restaurante de Campo de Ourique, quem sabe se um dia, daqui a muitos anos, o papá e o Ricardo estarão connosco, uma família unida como nunca tinha acontecido

morte cerebral, morte cerebral, morte

vem até mim, não fiques para sempre sepultado nesse mar que ambos descobrimos, se mergulhaste na terra imita a vida e depois ensina-me a morrer.

Ver-te tem às vezes um sabor antigo, surpreendo-te imóvel de novo no rio, nas margens agapantos brancos e malmequeres desfolhados em conjunto esperam por nós, estamos quase a alcançar a areia deserta do fundo do mar, a praia do desenho da escola primária que me ofereceste a sorrir, se desapareceres sem mim as árvores ficarão afogadas nas águas onde me deixas. Grito de novo o teu nome, vou gritá-lo até o encontrar dentro de mim, estou certa de que isso vai suceder no momento exacto em que o nosso rio tocar o mar, se não te apressas a levar-me as palavras ficarão vazias para sempre.

Como as palavras que te disse naquela tarde, Diogo. Como pude ser tão banal! Incapaz de te dar alguma esperança, apenas soltei frases de circunstância, o tempo havia de ajudar e a sociedade cada vez aceitava melhor os homossexuais.

Mais uma vez nada percebi, falas agora da diferença entre ti e o Francisco, parece ser um homem sereno mas receias o tédio, confessaste para meu horror que não garantes continuar a ser fiel. Voltam os meus fantasmas, andarás de bar em bar na loucura da noite gay, vives com o Francisco mas todas as noites o deixas por aventuras sem fim, chegas a casa de madrugada e quase não falam. Imagino assustada o vosso quarto, uma cama negra de casal tem a cabeceira de costas para a porta, para que em conjunto possam ver o Castelo de São Jorge. Descubro de que lado dormes pelos livros que mal vejo, ciências sociais para ti, história de arte para ele, não podiam ao menos ser discretos e escolher camas separadas? Observo-te em sonhos no bairro onde vivem, a mulher-a-dias e os vizinhos decerto os tratam por maricas e riem nas vossas costas, no café da esquina as piadas não param, quando lá for que pensarão de mim? Parece que o Francisco só andou contigo, nunca se perdeu em aventuras rápidas nem em conquistas da net. Dizes que te ama e lamenta não seres capaz de o apresentar a toda a gente. Como te confidenciei, não sei o que prefiro. Com a razão, escolho o coração, ou seja, quero convencer-me de que um dia compreenderei o amor que dizes ele ter por ti. Passou algum tempo, a vossa relação continuou, não me confidenciaste mais nada. Voltámos a almoçar no restaurante de Campo de Ourique, com o meu eterno instinto maternal chamei filho ao Francisco. Bom sinal, mamã, disseste a rir e fiquei contente

morte cerebral, coma profundo, nada a fazer

não havia nenhuma urgência em ir buscar o saco da roupa à casa da praia, egoísta aproveitei logo o teu favor. Chovia muito, fiquei em casa ao pé da lareira, como me culpo agora por te pedir aquele recado...

Soube que tinhas ido com o Francisco. Sempre conduziste muito depressa, injusta até pensei que ele te devia ter ajudado a reduzir a velocidade, talvez quisesse apenas dividir a culpa que me sufoca.

 

Há muito que não marcava consulta, tudo parecia mais sereno da última vez. A rejeição da homossexualidade do filho tinha-se atenuado e a relação conjugal, emboinsatisfatória, não vivia um conflito aberto. Voltava como se transportasse ao colo o filho morto. Vestia de negro e as olheiras, mais carregadas do que nunca, pareciam tingir uma máscara.

Como vou ajudar esta mulher o fazer o luto de um filho que tanto amou? Os livros diriam que era importante minorar os sintomas depressivos e ajudar a encontrar o tempo de recuperação, mas a relação terapêutica permitia isso?

A ideia do suicídio do filho surgiu-me de repente, não podia esquecer que a mãe me tinha contado as suas ideias autodestrutivas. Afinal o rapaz não ia sozinho no carro e a relação com o namorado parecia estabilizada, por isso afastei a hipótese. «Azar, simplesmente azar, professor. E mais uma culpa em cima dos meus ombros já tão cansados.» Viver é violento, pensei, mas não disse. Continuei a ouvi-la.

E, sem darmos conta, iniciámos a viagem de uma psicoterapia. Desta vez iria marcar uma consulta regular, ajudá-la a construir uma narrativa diferente da sua própria vida, chamar a atenção para a necessária protecção ao filho mais novo - que parecia não existir naquela família - revalorizar o seu trabalho como professora.

 

Diogo, foi no meu corpo que morreste, estamos outra vez no rio, ainda não chegámos à areia deserta do fundo do mar, nos caminhos das margens vejo agora máquinas desfeitas, destroços de incêndios, rochas pesadas, onde estão os agapantos e os malmequeres, talvez à direita distingas os muros de água que te apareciam em sonhos, a pouco e pouco perco a vergonha e tiro a roupa, oiço a tua voz a chamar-me ao longe.

Não sou capaz de viver sem ti. Estou no teu funeral e o Francisco está do outro lado do caixão, olho e vejo como chora, discreto como sempre esconde a cara com as mãos e abraça-se com força a alguém que se aproxima. Junto à porta da capela está outro rapaz com quem penso tiveste um caso, julgo reconhecê-lo a partir de uma fotografia que em tempos vi no teu computador, mas não quero partilhar-te com ninguém, serás meu para sempre.

Não aceito o discurso do padre, não pode haver paz na tua morte, também recuso partilhar-te com Deus, apenas lhe peço ajuda para a culpa de ter causado a tua morte

morte cerebral, coma profundo

pedi ao médico para ficar a sós contigo. Apeteceu-me pegar-te ao colo, abraçar o teu corpo nu e ficar assim durante muito tempo. Onde quer que estejas, precisas saber que foi como se o fizesse. Imaginei que ali ficaria para sempre, na sala do hospital, entre tubos e aparelhos, unidos pela memória do que construímos. Vagabundos da nossa condição, os segundos passariam, sem pressa, de um para o outro.

Ainda hoje lá estou, sentada na cadeira metálica do hospital, abraçada a ti.

Tenho a certeza de que estou a tirar o anel da tua mão direita para o entregar ao Francisco, observo mais uma vez o teu corpo sem nenhuma ferida e amparo a tua cabeça no meu peito. Gostaria de te envolver todo como fazia quando eras bebé, mas as tuas pernas sobram e pendem sem vida fora do alcance do meu braço esquerdo, com a mão direita afago a tua cara e beijo os teus cabelos pela última vez. 

 

                                                                                Daniel Sampaio

 

 

                      

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