Sozinho e perdido nos seus pensamentos, Tannath caminhava a ponderados passos pelas tetras galerias da fortaleza de Asmodeon. Envergava a sua nova jaqueta de couro macio e segmentado em tons de negro e vermelho com espaldeiras estilizadas, calças com safões de couro cerzido e botas afiveladas que ressoavam pelos corredores sem aparente fim à vista. As elaboradas candeias de ferro que ardiam em arcaduras ao longo das paredes pareciam aumentar de intensidade à medida que o eahanoir se aproximava, esmorecendo então conforme se afastava até se extinguirem, o que criava a ilusão de que um globo de lume o acompanhava. A sua capa preta forrada a escarlate esvoaçava de um lado para o outro, não só devido aos seus movimentos mas às bizarras correntes de ar que por vezes se faziam sentir nas galerias e que as candeias não registravam, assemelhando-se antes aos repentinos vôos de almas penadas que clamavam por atenção sem nunca a poderem conseguir. Uma delas soprou-lhe os cabelos, desalinhando-lhe diante da cara as sedosas madeixas negras, que Tannath ajeitou para trás da orelha com os dedos cobertos por uma luva com ornadas facas de arremesso nela embainhadas, compondo de seguida a sua nova pala negra que lhe cobria o olho esquerdo, Tinha a forma de uma gota curva e pendia-lhe de uma fita à testa, unindo-se com a ponta à agora parcialmente coberta tatuagem vermelha de forma a dar uma fklsa ilusão de continuidade. A Oblação forçara-o a outras mudanças na sua indumentária, como o pano negro que agora usava como máscara sobre a boca, cujos ferimentos roxos e lábios rebentados impossíveis de sarar o tinham incomodado ao ponto de decidir simplesmente cobri-los.
Embora outros pudessem discordar, Tannath nunca se considerara vaidoso, mas havia padrões a manter cuja falta nem mesmo a morte desculpava. Passadas as primeiras semanas da sua nova existência, durante as quais o eahanoir alternara entre a melancolia e uma excitação quase infantil enquanto explorara as suas novas limitações e possibilidades, Tannath estava agora definitivamente em paz com a sua presente condição. Por mais que não fosse era um meio para alcançar um fim. O que faria após esse fim — a insidiosa morte de Quenestil e Slayra — ter sido alcançado era algo acerca do qual pensaria mais tarde.
Um par de olhos lucentes observavam-no da escuridão, perto do teto, e Tannath levou instintivamente a mão a uma das facas de arremesso embainhadas na sua luva, mas a luz que o acompanhava revelou-os como sendo pertencentes a um nycataal que pendia das garras dos pés agarradas a uma cornija. A criatura estava dependurada como um morcego sob uma transena de elaboradas barras de ferro, e viu o eahanoir passar enquanto este disfarçava o seu gesto brusco, fingindo estar a ajeitar a luva.
«Este sítio está cada vez mais cheio de bichos...», pensou, abanando a cabeça enquanto a escuridão engolfava novamente o nycataal.
Tannath fora à fortaleza do seu senhor por ordem deste, que exigira a sua presença e lhe dissera que aguardasse a sua chegada. Os seus dias em Asmodeon não haviam sido dos mais aprazíveis da sua vida, embora o fato de já ter regressado da morte tivesse deixado Tannath com uma perspectiva algo mais relativa no que dizia respeito a passar bons ou maus bocados. Já não era algo que se punha tanto em questão, o fato de se estar a sentir bem ou não, pois o seu corpo estava de tal forma dessensibilizado que tamanha dormência acabava por se alastrar à sua alma também. Ainda assim, estivera vivo havia demasiado pouco tempo, e as ânsias dos vivos ainda o tomavam ocasionalmente. Aquela tarde fora uma de tais ocasiões, e era por essa mesma razão que os passos das botas do eahanoir ecoavam persistentemente pelas basálticas galerias de Asmodeon, rumo a um destino incerto. Sentia a necessidade de saber o que se passava, o que deveria espetar, o que o aguardava ao certo. A paz dos mortos ainda não o tomara, mas também, tão-pouco Tannath se via dessa forma. Continuava a ser movido por emoções, embora estas bem mais confiantes e maliciosas que as que tinham causado a sua morte. Não era contudo por isso que deixavam de o atormentar, pois não se considerava um cadáver a depositar num caixão e a ser liberto quando havia necessidade dos seus serviços.
«Já em Jazurrieh me diziam que pensava demais...», lembrou-se o eahan negro, recordando-se igualmente das caminhadas nocturnas que costumava fazer pelas mortíferas vielas da sua cidade natal.
Sempre desconfiara da sua herança paterna, que até havia bem pouco tempo sempre estivera evidente no seu olho cinzento, que fora debicado por uma qualquer ave como o ato mais que simbólico da sua Oblação. Fora a ela que sempre culpara pelos seus característicos conflitos emocionais, sobretudo com Slayra, mas nem agora se via livre deles. Estava definitivamente livre de qualquer apego emotivo à eahanoir — um apego que quase de certeza se devera ao legado sangüíneo do seu pai — reservando-lhe apenas uma frieza calculista que se destinava unicamente a tramar o pior fim possível para ela e para Quenestil. Mas não era por isso que os seus pensamentos deixavam de o atormentar. Procrastinar parecia estar-lhe simplesmente na natuteza, muito embora as suas dúvidas agora fossem mais existenciais do que propriamente emocionais.
«E daí, duvido que se possam separar as duas...», avaliou Tannath, detendo-se subitamente ao notar algo na parede.
Como que em sintonia com os seus pensamentos, o lanço da parede da galeria na qual se encontrava ostentava uma fila de mascarões em relevo, que retratavam toda uma série de emoções em carantonhas de sexo indefinido. O espectro que compreendiam ia de um ar intrigado até à mais pura raiva, passando pelo desalento e algo que apenas podia ser descrito como lascívia ou luxúria. Intrigado, Tannath deteve-se diante da parede e observou-a com um cotovelo apoiado sobre um braço cruzado, coçando o queixo debaixo da sua máscara com um indicador enluvado. Semelhante obra não destoaria de todo em Jazurrieh, embora duvidasse de que mãos humanas ou humanóides pudessem replicar a perfeição daqueles mascarões. Estavam eximiamente talhados e esculpidos, parecendo realmente parte da parede, e com uma textura que deixava a suspeita de que haviam emergido da própria pedra em vez de serem dela esculpidos. Não só isso, mas deles emanava também uma estranha aura que não passou despercebida ao eahan negro e que o deixou com a distinta impressão de que eram mais que meras peças decorativas. Havia poder em Asmodeon, Tannath sentia-o, e este não deixava de o intrigar. Caminhava sobre aquele que fora o lar de uma anciana potestade, mais antiga ainda que o seu senhor, e mal podia conceber todos os segredos que se escondiam nas veredas da fortaleza, que obscuros caminhos pela própria mente partiam dos arcos lanceolados, cujos austeros ornatos pareciam desafiar cada um a confrontar os seus mais íntimos desejos e falhas.
Abanando a cabeça como para se libertar do breve encanto que os mascarões haviam sobre ele exercido, Tannath prosseguiu então com o seu caminho sem rumo, procurando abstrair-se dos seus pensamentos. Não era algo fácil de fazer, sobretudo num interior tão vasto e silencioso como a fortaleza de Asmodeon, e o eahanoir começava a ficar irrequieto. Em Jazurrieh, quando as suas caminhadas falhavam em ajudá-lo a abstrair-se, tinham o conveniente de freqüentemente resultarem em confrontos com os vermes da cidade, vagabundos ou assassinos toscos. Um bom combate clareava-lhe sempre a mente, e Tannath ponderou brevemente a hipótese de voltar atrás e ensinar o nycataal a não vagabundear na fortaleza do seu senhor. Porém, antes que pudesse ponderar a utilidade ou mesmo o sentido de tal idéia, uma verdadeira corrente de ar tornou a despentear-lhe as madeixas do cabelo, e o eahanoir viu uma abertura lanceolada que dava para uma das poucas varandas que até então vira. Naquela encontrava-se um vulto de costas que Tannath identificou como sendo o outro Aesh’alan que com ele partilhava o silêncio de Asmodeon, e, achando um pouco de conversa preferível à calada das galerias, optou por ir ter com ele.
O eahanoir fez por anunciar a sua chegada com passos mais ruidosos que o que lhe era habitual, mas o outro Aesh’alan não se deu conta deles, ou então ignorou-o. Encolhendo os ombros, Tannath fez-se convidado no espaço pessoal do seu circunstante, postando-se a seu lado à beira do parapeito. A varanda na qual ambos se encontravam era pequena e apertada, projectando-se em forma de cunha da junção de dois lanços de parede basáltica e sempre abrigada pela sombra de um deles. Como a restante arquitectura que a rodeava, tinha uma série de ornatos flamejantes, protuberantes e pouco convidativos a neles assentar os cotovelos, mas foi precisamente isso que Tannath fez, estando dessensibilizado à dor.
— Nishekan, não é? — perguntou. Pouco falara até então com o seu par, mas o laço negro que partilhavam e o à-vontade de Tannath haviam logo desde o início posto de parte quaisquer formalidades.
O Aesh’alan não respondeu de imediato, permanecendo na mesma posição em que se encontrara antes da chegada do eahanoir, direito e a olhar em frente com a concentração de uma águia e de mãos pousadas sobre o parapeito. O eahanoir não fez caso do silêncio e observou-o com interesse, pois das poucas vezes que vira Nishekan fora em condições de parca luminosidade, e poucas palavras haviam sido trocadas até então entre os dois. O Aesh’alan envergava uma túnica preta desbotada e esbranquiçada, cingida à sua cintura por uma corda gasta, e o tecido puído era-lhe colado ao corpo escanzelado pelas lufadas de vento que se faziam sentir no exterior e que lhe abanavam os inacreditavelmente desalinhados cabelos negros com insurretas mechas e madeixas grisalhas. Tinha pele lívida, quase cor de cinza, e os seus olhos ensombrados por protuberantes orlas orbitais eram ainda mais escurecidos por permanentes olheiras que davam a idéia de que o seu nariz fora partido. Eram de um qualquer tom escuro, quase negro, e o seu branco mal se via, entrecruzado como estava de veias arroxeadas, mas apesar de serem o espelho da sua atormentada alma, não eram os olhos de Nishekan que nele mais chamavam a atenção, mas sim a sua boca. Esta fora cosida com tiras da própria pele em redor dos lábios gretados, como a boca selada de um boneco de trapos, e estava encrostada de sangue seco, que também lhe deixara estrias pelo queixo abaixo e era provavelmente a causa da mancha castanho-averraelhada ao seu colarinho.
— É o meu nome — respondeu Nishekan sucintamente com uma voz rouca e abafada pelas tiras de pele, sem sequer olhar para o seu interlocutor.
Tannath concordou com a cabeça e seguiu o olhar do Aesh’alan, contemplando o vale onde a fortaleza de Asmodeon estava aninhada. As montanhas davam a impressão de se estarem a inclinar para fora, como para se afastarem daquilo que se encontrava naquele que evidenciava traços de anteriormente ter sido um frondoso vale. Porém, a sua terra estava conculcada pelas brutais botas das hostes de Asmodeon, a esparsa relva era áspera e ouriçada, e as poucas árvores que se viam em redor estavam escurecidas e definhadas. Devido a um qualquer fenômeno atmosférico, havia pouca neve no vale, visível sobretudo nos picos das montanhas e em poucos outros locais, e Tannath teve dificuldade em dizer ao certo quão frio estava por causa da sua dessensibilizada pele morta, embora na presente estação e àquela latitude o tempo não pudesse de forma alguma estar ameno. No vale corria um rio que se dilatava num lago de água salobra no centro, sobre o qual a fortaleza de Asmodeon se erguia, sustentada por três massivas escoras. Mesmo a água parecia inquinada, embora não devido ao local em si mas devido aos seus habitantes, cuja ausência era o que mais se evidenciava, deixando o vale verdadeiramente desprovido de vida. Ao longe, sobre uma projecção rochosa de uma rugosa vertente montesa, um solitário ogroblin bramiu com o seu focinho vesiculoso de braços aos lados de punhos crispados, como se a proclamar espúria soberania sobre o vale.
— Isto é sempre assim tão... sossegado? — perguntou Tannath.
— Não — redarguiu Nishekan, parecendo que não iria elaborar mais a resposta mas acabando por fazê-lo. — Asmodeon está... — Cada palavra era pronunciada com cuidado, esgueirando-se discretamente por entre as tiras de pele cruzadas. — Dormente.
— Dormente — repetiu Tannath, acenando com a cabeça e continuando a olhar para o vale. Não era palavra que alguma vez pensasse ouvir associada àquela que era considerada a terra de todos os pesadelos. E daí, literalmente até fazia algum sentido. — Dormente como... a modorra do Inverno?
Nishekan fez que não com a cabeça.
— Estagnado — especificou. — Vazio. O Primeiro Pecado... exilou-se... do seu lar. As escarpas... de Carcar-en-Moroth... estão silenciosas.
Tannath coçou o queixo debaixo da máscara, mais por hábito que por verdadeira necessidade, e tornou a ajeitar uma madeixa de cabelo que teimava em revolutear-se ao vento.
— Confesso que essa parte não apanhei muito bem. Não estava cá, e o... nosso senhor não foi particularmente expansivo nas suas explicações.
— Profundos são... os desígnios do nosso senhor. E intrincados... os seus intuitos.
O eahanoir revirou um olho.
«Deve ser por isso que és o Juízo dele. Parece que perdeste o teu», pensou.
— Certo, mas... então não resta drahreg nenhum em Asmodeon? Nishekan abanou a cabeça com absoluta convicção.
— Fui... o lorde interino de Asmodeon... durante a ausência... do nosso senhor — explicou, sem nunca relaxar a sua postura ou reencontrar o olhar perdido no vazio. — Sinto-o. Sei-o. O Primeiro Pecado... marcha em massa.
— Nem um qualquer que tenha partido uma perna? — duvidou Tannath. — Uma drahreg grávida? Um drahregzito?
— Os que... não conseguiram... acompanhar a hoste... alimentaram-na. — O eahanoir virou a cabeça para olhar para Nishekan.
— As fêmeas e as crias... também marcham.
— Mas isso... nem sei se na própria Guerra da Hecatombe... — tartamudeou Tannath, impressionado. — Todos?
— Todos... os que se encontravam... em Asmodeon — esclareceu Nishekan. — Os outros... ogroblins, ulkekhlens... ficaram.
— Só os de Asmodeon?
— Não. O Primeiro Pecado... sentiu o chamamento... por toda Allaryia.
— Pode parecer uma pergunta estúpida, mas qual é o propósito dessa hoste?
— Além... do mais evidente?
— Obviamente.
Silêncio, durante o qual apenas os cabelos de ambos os Aesh’alan se mexeram, lambidos pelo vento.
— Não sei — admitiu por fim Nishekan. — Com tamanha hoste... uma nação inteira... pode ser nivelada.
— Só uma? — questionou Tannath de sobrolho erguido.
— O Primeiro Pecado... desintegrar-se-á. Consumir-se-á... por dentro... e será desgastado... por fora. Como uma enorme árvore... a ser corroída do interior... e falqueada no exterior.
Tantas palavras esforçaram demasiado as tiras de pele que cosiam a boca de Nishekan, vertendo-lhe um fio de sangue pelo queixo abaixo. Tannath seguiu-o com o morbidamente fascinado olho.
— Não têm... propósito... nem organização. E o nosso senhor... não lhes fornece... nem um... nem outro...
— Por acaso não terá sido devido ao outro, não? — indagou Tannath. — O nosso senhor falou-me de uma traição, e disse que queria os seus Aesh’alan reunidos...
O eahanoir notou um retesar do maxilar de Nishekan, e os seus lábios gretados pareceram comprimir-se de raiva, espremendo mais vermelho das feridas abertas causadas pelas tiras de pele. Mesmo com a pele morta e dessensibilizada”, Tannath sentiu os seus cabelos eriçarem-se com uma súbita tensão no ar, um poder virulento que envolveu a varanda como um miasma. Tendo já assassinado magos, o eahanoir apercebeu-se de que Nishekan aparentava estar a um passo de canalizar uma dose massiva de Essência, mas a de que estava a dispor era diferente da que o eahanoir já enfrentara. Parecia tão doentia como o corpo enfermo do Aesh’alan, mas antes que tal se pudesse confirmar, a tensão desvaneceu-se em pleno ar, arrastada pelo vento como um mau pensamento. Tannath relaxou e afastou as mãos que inadvertidamente aproximara das facas de arremesso embainhadas nas suas luvas.
— Othragon... — disse Nishekan, a sua voz cava plena de ameaça. — O nosso senhor... rasgará a sua alma... e deixá-la-á... a fermentar na sua própria... amargura.
— Está a seguir a sua própria ordem do dia agora, é?
— Aproveitou-se... dos planos do nosso senhor... para Nolwyn... e pretende levá-los a cabo... em benefício próprio. O nosso senhor... irá certamente...
— Então... — interrompeu Tannath, tentando perceber toda a conjuntura de uma forma mais abrangente. — Estamos... nós, Asmodeon, aliás, os de Asmodeon... estamos em guerra? Com quem? Othragon? Nolwyn? Tanarch? Allaryia?
As magras mãos lívidas de Nishekan apertaram a pedra do ornado parapeito, exibindo os tendões de cada dedo debaixo da pele cor de cinzas.
— Não sei... ao certo — tornou o Juízo de Seltor a admitir, evidentemente vexado pelo fato. — Só posso... presumir que sim. Mas não é uma guerra... como a que o nosso senhor... antes empreendeu.
Um novo fio de sangue uniu-se ao rasto do outro no queixo de Nishekan. Era evidente que preferia não falar, mas o assunto parecia incomodá-lo ao ponto de não se importar de o discutir.
— O nosso senhor... usou Tanarch para... destruir a Sirulia. O Primeiro Pecado... podia ter invadido Tanarch... de seguida. Estavam... enfraquecidos... dispersos. Um ataque... em massa... à presente escala da hoste... tê-los-ia avassalado. Tanarch podia... estar de joelhos. E a Sirulia... totalmente destruída.
Embora assuntos militares não interessassem sobremodo a Tannath, o eahanoir ouviu com atenção na esperança de através da compreensão destes descortinar as intenções do seu senhor.
— Mas... o Primeiro Pecado... mal se deteve — continuou Nishekan. — Passou pela Sirulia... por Tanarch... e prossegue agora... pela Wolhynia.
— Sem duvidar das tuas capacidades (posso tratar-te por tu, não posso?), como sabes isso tudo? Ou ainda há coisas que o nosso senhor não partilha comigo?
A expressão de Nishekan alterou-se ligeiramente, sem esconder um certo desagrado pela leviandade do tom de Tannath.
— Não que eu me importe — apressou-se o eahanoir a clarificar, pois estava ciente de que o seu novo papel como Passo d’O Flagelo não se propiciava à mesma ligeireza que o caracterizara enquanto assassino a soldo. — Estou habituado a que me digam apenas aquilo que preciso de saber...
— Esta fortaleza... tem tudo aquilo que precisas... se souberes onde procurar — explicou o Juízo de Seltor. — Mas sim... o nosso senhor... partilhará contigo apenas... aquilo que deves saber. — Os fios de sangue unidos terminaram, o seu curso pelo pescoço do Aesh’alan abaixo e desembocaram no já manchado colarinho deste. — Assim como o faz... comigo... o seu Juízo.
Sentindo uma abertura, Tannath decidiu aproveitar para tentar arrancar algo mais a Nishekan.
— Então vamos lá ver... estamos em guerra, não é? O nosso senhor mobilizou as suas forças? — Nishekan acenou afirmativamente com a cabeça. — Então se estamos em guerra, por que carga de água é que dois Aesh’alan estão encafuados em Asmodeon?
— Tradicionalmente... o nosso papel... não é desempenhado... no campo de batalha — explicou Nishekan.
— Pronto, tudo bem, tu és o Juízo do nosso senhor, és a cabeça. O teu papel é pensar — elaborou Tannath, gesticulando com as mãos enluvadas de cotovelos apoiados sobre o parapeito. — Eu sou um Passo. Uma das pernas. Devo andar. Ir aonde tu não podes ir.
— O nosso senhor... não aprecia a freima...
— Nem sei o que isso quer dizer, mas seja o que for, não o tenho — disse Tannath, virando-se para Nishekan. — Fossos dos azigoth, o nosso senhor que me mande matar alguém! Alguém importante! Um general! Um rei! O Othragon! Era isso que eu fazia, é para isso que eu sirvo!
— De nada te servirá... exaltares-te — desaconselhou Nishekan, ainda na mesma pose desde o início da conversa.
— Então por que me trouxe o nosso senhor dos mortos? — quis o eahanoir saber, endireitando-se e estendendo os braços aos seus lados. — Para que fiz eu a Oblação? De que forma O estou a servir aqui?
— Profundos são... os desígnios do nosso senhor. E intrincados... os seus intuitos — repetiu o Juízo de Seltor como um devoto o faria com um aforismo.
Deixando os braços cair sobre as ancas, Tannath tornou a apoiar os cotovelos sobre o parapeito e abanou a cabeça, revirando o olho.
«Pois, se eu tivesse ficado vinte anos a olhar para a parede talvez também gralhasse isso... é mais fácil do que pensar pelos teus próprios meios.»
Os dois ficaram então em silêncio, sem nada mais para dizer, e continuaram a contemplar o desolador vale diante deles. Não fosse pelo seu ar devassado, a placidez que nele reinava até poderia ser relaxante, mas o pó cinéreo que o frio vento soprava pelas encostas das montanhas abaixo destruía só por si semelhante noção. As árvores mortas também não ajudavam, nem a esparsa relva que mais parecia arame escurecido por fogo.
— Uma coisa que não cheguei a perceber e que não me foi bem explicada... — insistiu, virando novamente a cabeça para o seu circunstante. — Afinal, que confusão foi aquela em Aemer-Anoth? Entre o azigoth, o moorul, a harahan, e o filho de Aezrel Thoryn, acabei por não perceber qual era ao certo o plano do nosso senhor.
A resposta de Nishekan tardou, enquanto este parecia remoer as palavras de Tannath, soprando a ocasional bolha de sangue através dos espaços entre as tiras de pele que lhe cosiam a boca.
— O plano... era inexistente — explicou. — O nosso senhor... tinha apenas algumas... contingências. Entre as quais... Baodegoth... o sindicante... e Bathrazhül... o azigoth que ousara desafiá-lo... e que pagara com o seu... aprisionamento.
— Aprisionamento? — repetiu Tannath.
— Na gema de Dalshagnar... a Língua Negra. A espada... do nosso senhor.
— Continuo sem perceber — admitiu Tannath.
— Após o combate... com Aezrel Thoryn... com o seu torso atravessado por Ancalach... o nosso senhor... disse-me que ficaria alojado... na Espada dos Reis. E que Bathrazhül saberia... encontrá-lo. Que a vingança... está no sangue... dos azigoth — elucidou Nishekan. — Sarea, o arauto dos deuses... levou a espada então... antes que eu... a pudesse impedir.
— E...?
— E o nosso senhor... esperava evidentemente... ser capaz de regressar... através do corpo do Bathrazhül. Tai como o fez... com Baodegoth. Entre um... e outro... o regresso do nosso senhor... estaria assegurado.
Tannath bufou então, sentindo que recebera bem mais informações que aquelas que desejara, e afastou-se do parapeito com os braços, deixando-se estar um pouco mais a contemplar a desoladora paisagem.
— Há alguma coisa para beber aqui na fortaleza? — acabou por perguntar.
Nishekan virou por fim a cara na direção do eahanoir, franzindo as sobrancelhas e sombreando ainda mais os seus olhos toldados.
— Estás morto — constatou prosaicamente. — Não precisas.., de beber.
— São hábitos, está bem? — arreliou-se Tannath, fitando Nishekan. — E também já há semanas que não mastigo nada. Esqueci-me de comer.
— Se comeres... a comida apodrecerá... no teu estômago... e lá ficará — explicou o Aesh’alan. — Se beberes... será como encher... um odre de vinho.
— Então depois eu faço um buraco, ou faço o pino para que tudo saia — fantasiou o eahanoir, gesticulando com uma mão e olhando para cima. — Têm algo que se beba ou não?
— O odor... será problemático — elucidou Nishekan. — Assim como o é... o das tuas feridas.
Tannath franziu uma sobrancelha, baixando a cabeça e puxando o colarinho dá jaqueta, e fungou com o nariz, evidentemente incapaz de captar qualquer cheiro.
— Arranja-me só uma maldita bebida, está bem? — pediu o eahanoir, deixando descair os desalentados braço e cabeça. — Pode até ser mijo de ogroblin, desde que tenha uma porra de um pico que eu consiga sentir com a minha língua morta.
Nishekan ficou silente e imoto a olhar para o seu par, obviamente intrigado com o seu comportamento e, julgou Tannath, porventura revendo-se nele de alguma forma.
— Vem comigo — acabou por dizer, enfiando as mãos nas folgadas mangas da sua túnica e retirando-se da varanda.
O eahanoir assim fez, e os dois Aesh’alan foram pelo corredor fora, rumo a um destino incerto na labiríntica fortaleza. O lume das candeias acompanhava-os a ambos, e o áspero deslizar das sapatilhas de Nishekan contrastava com os confiantes e altivos passos das botas de Tannath, que ecoavam pelas galerias fora. Olhando para o Juízo de Seltor, o eahan negro ficou com a impressão de que Nishekan deslizava pelo piso, pois mal movia as ancas e mantinha as costas perfeitamente direitas.
— Há um nycataal nos corredores — referiu, mais para quebrar o silêncio que por qualquer outro motivo. — Não sei se ele pode...
A resposta de Nishekan tardou ao ponto de Tannath pensar que não receberia nenhuma.
— Cedo descobrirás... que o humor... não é a... forma mais .adequada... de lidares com a tua... presente condição — disse, rasgando a sua boca de tal forma que Tannath quase semicerrava o olho a cada palavra adicional.
— Ai é? E posso saber como lidaste tu com ela? Não estando morto como eu, claro está...
— A Oblação... é uma espécie de morte — clarificou Nishekan com tom didáctico. — Morremos e renascemos... ao serviço do nosso senhot...
«Apre, este tipo é pior que o Illoth..,», arreliou-se Tannath, embora a memória da doce vingança contra o etharr e a cabra da Vinxenia lhe trouxesse um sorriso aos lábios debaixo da máscara. — Mas diz lá então, só por curiosidade, como lidaste tu com a tua... condição.
Para grande surpresa de Tannath, os cantos da boca cosida de Nishekan pareceram erguer-se na grotesca paródia de um sorriso, que contudo rapidamente desapareceu.
— Matando... o responsável por ela — disse. — Da forma mais... expedita... e deliciosa... possível. Então... pude começar... a minha nova vida... ao Seu serviço.
As palavras do Juízo de Seltor afiguraram-se sensatas a Tannath, apesar da predisposição deste para as menosprezar. Na verdade, até lhe diziam bastante, e certamente mais do que esperara, despertando nele algo que estivera a definhar a par do seu defunto corpo.
— Diz-me uma coisa... — pediu. — Como... como devemos comunicar com o nosso senhor?
— Quando Ele... desejar falar contigo... falará — explicou Nishekan. — Mas se precisares... de o fazer... é intuitivo. Será algo... que apren-derás... com prática.
— Hum. Silêncio.
— Por que... o desejas... saber?
— Precisava de lhe perguntar uma coisa... — disse Tannath, olhando meditabundo para o chão mas erguendo a cabeça de repente para olhar para Nishekan. — Achas que ele se importava que eu saísse por uns dias?
Pela primeira vez, a resposta de Nishekan não se fez esperar.
— O nosso senhor... explicou-te... por que nos deseja... em Asmodeon — elucidou. — Fomos traídos... e tu és... o mais novo... Aesh’alan.
— E isso faz de mim um potencial traidor? — redarguiu o eahanoir, afetadamente ofendido. — Não, espera. Não respondas. Vindo de onde venho, por que me estou eu a admirar?
— Por que... precisas de te ausentar?
— São umas... umas coisas que tenho de fazer. Coisas expeditas e deliciosas — esclareceu, olhando sugestivamente para Nishekan. — O nosso senhor disse-me que eu poderia levar a minha vingança a cabo, e que depois então O serviria.
Nishekan reflectiu brevemente, sem nunca se deter.
— Se o nosso senhor... assim o disse... então significa... que a tua vida anterior... ainda não terminou — concluiu. — Que deves pôr-lhe termo... para poderes começar a nova.
— E. É isso — concordou o eahanoir sem grande convicção, dando-se por satisfeito por ter conseguido chegar a uma certa concordância. — Olha, acerca daquilo que disseste, que Asmodeon tem tudo aquilo de que preciso, desde que saiba procurar?
— Sim...?
— Eu... sei o que procurar. Mas não como. Podias... ajudar-me?
A cara do Juízo virou-se para Tannath pela segunda vez desde que se haviam conhecido, e os seus olhos arruinados pareciam estar efectivamente a pesá-lo.
— Para poder começar a minha nova vida, e isso tudo — acrescentou o eahan negro.
Nishekan emitiu um áspero ruído gutural antes de tornar a olhar em frente.
— Segue-me — disse sucintamente, e Tannath assim continuou a fazer, caminhando ao lado do seu par pelas dolosas galerias de Asmodeon, que lhe pareciam sussurrar de forma sugestiva, aparentemente satisfeitas.
Tannath ouviu-as, e sorriu debaixo da máscara.
Quenestil estava assustado.
Não propriamente com medo, pois nada o ameaçava, mas sem dúvida intimidado, intimidado por uma desagradavelmente familiar sensação de responsabilidade. A última vez que sentira algo semelhante fora ao entrar em Jazurrieh com Babaki, a constrangedora impressão de que outros dependiam das suas ações, que olhavam para ele, um lobo solitário, em busca de orientação. Ficara impressionado com a prontidão com a qual Deadan e em especial os wolhynos de Horavog haviam acatado o que lhes dissera. Quenestil relatara-lhes fielmente as instruções de Ihjseom como se estas fossem um plano seu, dizendo que em dois dias deveriam ir com armas para o outro lado das montanhas com o intuito de defender a quinta, e ninguém levantara qualquer objeção. Agtor comunicara a sua tenção a Oska, e esta mal chegara a refletir antes de lhes dar a sua bênção, parecendo quase... aliviada. Quatro homens voluntariaram-se prontamente para o acompanhar: o homem dos cabelos brancos que lhe abrira a porta no dia da sua chegada, o da barba ruiva que o costumava acompanhar, o de cabelo que mais lembrava uma posta de bacalhau desfiada, e o próprio Agtor. Quenestil equipara-os com as armas e armaduras que trouxera da herdade siruliana, o espólio do seu combate e de Deadan com os tanarchianos que nela celebravam o massacre dos sirulianos, e os quatro trataram de arranjar por conta própria mantimentos para dois dias daquilo que julgavam ser uma expedição. O eahan não elaborara, e nem fora necessário fazê-lo, pois ninguém manifestara a mínima dúvida ou objeção, nem mesmo Deadan, que por norma se mostrava tão hesitante ao mínimo indicio de que teria de deixar os eahlan sozinhos. E isso assustava o shura, mais do que este julgara possível.
Na manhã seguinte, os seis tomaram um frugal pequeno-almoço e partiram ainda de noite, pois os dias Invernais da Wolhynia eram curtos e começavam tarde. Nevara durante a noite, e o vale que o grupo percorreu rumo às montanhas a Oeste estava coberto de neve, que se conservou dura com o fraco mas cortante vento frio que se fazia sentir. Quenestil não se despediu de Slayra, e nem teve tempo para sequer pensar na eahanoir, pois caminhava numa espécie de transe no qual se limitava a pôr um pé à frente do outro. Mal dormira durante a noite, mantido desperto pelas suas preocupações e atormentado por pesadelos com Babaki das poucas vezes que conseguira adormecer. Quão irônico, que os outros o estivessem a seguir como o fariam com um líder, quando nem sabia ao certo o que os esperava. Seguia apenas as indicações de Ihjseorn por este ser aparentemente o único que sabia o que fazer e o que se estava a passar, por muito obscuras que as suas verdadeiras intenções fossem. Não confiava nele, assim como não conseguia confiar verdadeiramente em nenhum dos habitantes de Horavog, mas as presentes circunstâncias também não lhe permitiam simplesmente ficar quieto e esperar para ver o que acontecia. Isso, e o fato de ansiar por algo com o qual pudesse efetivamente lutar, algo que o libertasse da opressiva sensação de se ver envolvido era situações que iam além do seu controlo. Não o podia negar, havia dentro de si uma raiva imensa que implorava por ser solta, uma vontade de retribuição sobre aqueles que lhe queriam mal e aos seus num mundo que se lhe mostrava cada vez mais hostil. Fosse como fosse, não havia como negar que se estava de certa forma a atirar de cabeça ao desconhecido, fiando-se nas indicações de um homem cujo único ponto a seu favor fora o fato de ainda não o ter atacado e de não agit de forma tão estranha como os de Horavog.
O eahan tivera ocasião de ponderar uma série de hipóteses ao longo da nocticolor manhã, tais como a possibilidade de Ihjseorn os estar a conduzir a todos a uma armadilha, mas falhava em ver o que o wolhyno teria a ganhar com isso, bem como a razão pela qual haveria de o fazer. Claro que pouco ou nada sabia acerca daquela gente de qualquer forma, e era evidente que tanto os habitantes de Horavog como Ihjseorn queriam algo dele, pelo que podia simplesmente não estar a compreender de que forma um ou outro poderiam ou não beneficiar da sua morte. Não estava habituado a semelhantes considerações, a intrigas e segundas intenções; esses eram os domínios de Slayra e da sua raça, mas embora já tivesse pensado nisso, o shura pura e simplesmente não conseguira sequer falar com ela com o pretexto de pedir a sua opinião. O estilhaçar da idéia de ter um filho seu, e a realidade e a crueza da traição de Slayra — ainda por cima reveladas por Tannath — tudo constituía uma ferida demasiado recente que Quenestil não se podia dar ao luxo de reabrir, não agora que os Lasan dependiam dele, eles que Quenestil jurara pela sua vida proteger. Ainda fantasiava com a noção, ainda havia nele uma réstia de esperança de que os bebês pudessem ser seus, mas as maliciosas palavras de Tannath e as circunstâncias da concepção das crianças pesavam muito. Fora tudo demasiado rápido. Demasiado forçado. A jangada. As palavras certeiras e tocantes. E Slayra era uma mestra do subterfúgio, sempre o fora, estava-lhe intimamente arraigado no seu ser. A natureza benévola de Quenestil nunca pôs de parte a hipótese de Slayra não o ter feito por mal, mas tal parecia um pequeno pormenor naquela que não deixava de ser uma traição.
Por essas e outras razões, o shura evitou ao máximo pensar durante a caminhada, limitando-se a pôr um quase mecânico pé à frente do outro numa dessensibilizada marcha à dianteira do grupo. Assim que avistaram uma vasta reentrância escura naquilo que podia ser uma forma de V numa montanha, tal como Ihjseorn o ilustrara, Quenestil fez como o wolhyno lhe indicara e começou a subi-la pela direita. A subida levou o equivalente a umas boas três badaladas, uma medida de tempo à qual Quenestil se habituara durante a sua estadia em Dul-Goryn, onde o tempo fora medido pelo som de sinos, e quando chegaram ao cimo da montanha tiveram uma vista privilegiada do sol a começar a raiar no horizonte. Os seis descansaram um pouco no ventoso cimo da escabrosa montanha, observando o nascer do ardente astro enquanto este dourava e ruborizava a linha que unia o céu de nuvens cinzentas e o mar plúmbeo. Do outro lado da montanha estendia-se um extenso campo coberto de neve circunscrito por mais montanhas, essas numa extensa serrania a Norte, com uma escura mancha florestal aos seus pés. A vertente oposta à que haviam subido não era tão íngreme, pelo que apenas comeram uns pedaços de bacalhau seco e fibroso com manteiga para restabelecerem alguma energia, tragando uns goles de água dos cantis para matar a sede antes de começarem a descer. Agtor e os outros surpreenderam Quenestil pela positiva, na medida em que não deram mostras de cansaço, provavelmente endurecidos pelo inclemente clima da sua terra. Deadan, como já seria de esperar, mal deixou entrever a sua inevitavelmente ofegante respiração, pois envergava o seu arnês completo com uma improvisada túnica de lã por cima e peles de ovelha aos ombros. Os outros vestiam peles semelhantes sobre as armaduras tanarchianas que envergavam com falta de prática mas uma certa medida de orgulho enfunado por estarem apetrechados como verdadeiros homens de guerra. Quenestil esperava que o fato de se terem voluntariado significasse que eram capazes de lutar, e que não usassem os machados e achas de armas tanarchianas como lenhadores.
Por fim, chegaram àquilo que devia ser a «água quente» que Ihjseorn referira, uma fumegante fonte aninhada debaixo de um afloramento rochoso do qual um ribeiro gotejava numa ínfima cascata. A nascente tinha uma forma circular, emanava um subtil odor a ovos podres, e a disposição das pedras manchadas de líquenes em seu redor e os vestígios de fogueiras davam a entender que era um ponto de paragem de eleição. Tendo em conta o vaporoso calor que emanava, tais pistas não constituíam qualquer surpresa. Quenestil ordenou outra paragem ali, e ninguém questionou a sua decisão, embora ninguém estivesse verdadeiramente cansado após a descida. Aproveitaram para almoçar uma refeição de gordurosas salsichas cozidas e soro de leite transportado era cilindros de madeira que mais pareciam canecas gigantes do que barris. A culinária wolhyna era majoritariamente preservada por uma questão de sobrevivência, e Quenestil acostumara-se aos seus exóticos sabores durante a sua Batida, embora a do Sul não fosse aos extremos que aparentemente caracterizavam a dos Fiordes. Deduziu que talvez isso se devesse à ausência de salinas que providenciassem sal suficiente para salgar mantimentos e à relativa escassez de madeira para os fumar. Enquanto mastigava, o eahan evitou pensar em comida e procurou motivos que poderia dar aos outros para permanecerem naquele local durante mais tempo sem que estes estranhassem, e lembrou-se da placenta que lhe sobrara.
Atirou-a a uma distância de vinte passos e acocorou-se diante da fonte, dando a entender que ali iria ficar à espera. Ninguém se manifestou contra a sua decisão, e Deadan e os wolhynos continuaram pacatamente a sua refeição, estendendo os seus sacos-camas de pele de foca no escabroso chão e instalando-se em redor da agradavelmente quente fonte. Apenas o jovem Ajuramentado permaneceu em pé e de vigilantes braços cruzados, dando mostras do tradicional desagrado dos sirulianos para com o comodismo. Nem mesmo o graciosamente afunilado elmo tirou, tendo apenas erguido a côncava babeira em forma de relha de arado para comer. Agtor desembainhou a sua longa e afilada espada tanarchiana, uma arma que fizera questão de ser ele a empunhar, e começou a afiá-la com uma pedra de amolar de cozinha. De todos os wolhynos, era o que mais confortável parecia com a sua armadura, uma solha de lâminas de aço, e o seu globuloso elmo de ponta pronunciada. Os outros, cujos nomes Quenestil entretanto aprendera, antes pareciam rapazes excitados com brinquedos novos. Hordur, o dos cabelos brancos e pele rúbida, acenava aprovadoramente enquanto contemplava a sua acha de armas, girando-a lentamente nas mãos ao mesmo tempo que ia ajeitando os desabituados ombros ao peso da sua cota de malha. Ohttur, o dos arenosos cabelos desfiados, tinha a sua sobre as pernas cruzadas, e olhava para o vazio com o seu elmo cônico torto. Engiv, o de barba ruiva que fora o último a escolher, tivera de se contentar com a túnica acolchoada e o simples machado. Durante o tempo que passara em Horavog, embora pouco deste tivesse sido em presença de wolhynos, Quenestil não pudera deixar de reparar em certas peculiaridades. Uma delas era o fato de todos os ruivos — homens, mulheres e crianças — agirem de forma mais servil para com os restantes. Tendiam a andar juntos, raramente participavam em conversas, e nunca sem serem consultados, e daquilo que Quenestil vira, desempenhavam sobretudo as tarefas mais humildes. Tudo isso tanto mais estranho parecia ao eahan devido à quase deferência que lhe mostravam em Horavog, e como os seus cabelos pareciam chamar mais a atenção que as suas orelhas de lóbulos pegados à cara, que sempre haviam sido o seu traço mais distintivo quando entre humanos. Mesmo enquanto observava os seus companheiros, Quenestil reparou que Engiv era constantemente chamado para trazer ou buscar cilindros de leite, e que regra geral permanecia atento às necessidades dos outros.
— Agtor? — chamou, interrompendo o amolar do wolhyno que se encontrava ao seu lado.
— Sim, Quenestil? — respondeu este, passando prontamente a espada pelo regaço da sua túnica para a embainhar.
— Por que é que os ruivos são tratados de maneira diferente?
— Os...? Não percebo, Quenestil.
— Os ruivos... os que têm cabelos da cor... dele — explicou o eahan, indicando Engiv com a cabeça de forma a não ter de dizer o seu nome em voz alta.
— Ah, o Engiv? — assim se foi a tentativa de Quenestil de não parecer descortês para com o referido. — Sim, tem razão. Os rufos são tratados de maneira diferente, porque são diferentes. São todos hjoínir. Sémel dos invasores forlomyanos.
Engiv percebera que estavam a falar dele, mas tentou claramente não fazer caso disso, o que tanto mais constrangeu Quenestil.
— Sémel?
Agtor gesticulou com as mãos para Norte, para além das montanhas.
— Há muitos, muitos anos, chegaram viajores da Forlornya à Wolhynia. Vieram do pélago em barcos veloces, tinham cabelos da cor do pêlo de golpelhas, e fizeram comércio conosco — relatou o antigo mercador. — Mas depois voltaram para uma algara com muitos barcos e com ferratos. Houve belona em dez anos de muitos mortórios, porque os forlomyanos atacavam toste com os seus barcos e fugiam, escondendo-se nos Fiordes dos Piratas.
Quenestil fez que sim com a cabeça, compreendendo por fim o nome do local.
— Apareciam em aldeias ou quintas perto do pélago, escochavam os homens mas nunca as mulheres, que estupravam. Houve belona e paz, e os forlomyanos ocuparam plagas no Norte da Wolhynia e nos Fiordes durante alguns anos, mas no fim, com grande adur, ganhámos.
— E os rui... os rufos?
— Nasceram e cresceram. Ter um filho rufo era um grande desdouro para uma família, porque um rufo tem sangue balordo forlornyano, e rufos são sempre rabazes ou rifões...
— Não sei o que é nem um nem outro... — desconfiou Quenestil, olhando de esguelha com sobrolho erguido para Agtor, que perdeu toda a vontade de elaborar.
— Eh... — tossicou. — Mas eu dizia, ter um filho rufo... ser um rufo, era um desdouro. Todos os que nasciam eram enviados aqui, para os Fiordes, onde os outros... onde os rifões e rabazes eram enviados.
— Então e que faziam os... rafos depois com os... rufões e ribazes?
— Eh, enganou-se... os rufos tornaram-se bjoínir dos outros nos Fiordes. Mancípios.
— Escravos?
— Sim — respondeu Agtor, embora não fizesse claramente idéia do que a palavra significava.
— Todos os rui... rufos são... mancípios na Wolhynia?
— Não há rufos na Wolhynia, só aqui nos Fiordes. São todos enviados para cá. E todos são mancípios. Por que quer saber, Quenestil?
— Então se todos os rufos são mancípios... — disse o shura, enclavinhando os dedos e virando a cara para fitar Agtor diretamente.
— Por que é que vocês fazem tudo o que eu digo?
Os olhos descaídos de Agtor arregalaram-se assim que este se apercebeu da óbvia cilada à qual se deixara conduzir, e a sua expressão deu mais certezas ainda a Quenestil de que havia verdadeiramente algo para dizer. Após gaguejar ao ponto de os outros wolhynos e mesmo Deadan começarem a prestar atenção à conversa, Agtor sorriu nervosamente e abanou mãos e cara.
— Ora... o Quenestil não é rufo como eles... os seus cabelos não são bem cor de golpelhas...
— Não faço idéia do que uma golpelha é, mas sou mais ruivo do que uma de certeza — interrompeu o eahan, permanecendo acocorado.
— Por que fazem aquilo que eu digo, sem nunca fazerem perguntas? A tensão subiu inegavelmente à volta da fumegante fonte, e
Deadan, sempre sensível a ela, abeirou-se discretamente de Quenestil. Agtor balbuciou um pouco mais, sentindo todos os olhos em cima de si, mas antes que os de Quenestil o pudessem trespassar, estendeu o braço e apontou para além da fonte.
— Quenestil... olhe!
O eahan assim fez, sobressaltando-se ligeiramente com a brusca manifestação do wolhyno, e ficou algo desiludido ao constatar que não passava de um mocho branco que aterrara diante da placenta. Era uma bela ave com plumas cor de neve sarapintadas de negro, e olhou para os humanos presentes com mal-encarados olhos amarelos antes de dar uma primeira bicada no pitéu diante dele.
— Um mocho... — constatou Agtor, estalando os dedos enquanto tentava lembrar-se do que tal significaria. — Um animal que não gosta do dia. O seu filho vai ser solitário, Quenestil. Melancólico. Vai preferir a escuridão.
Alheio a preconceitos, o mocho regalava-se com a placenta, atentamente observado por Quenestil.
— É do menino ou da menina? — indagou Agtor.
— Eu... não sei.
— Oh. Bem, e qual foi o animal que comeu a outra?
— Um corvo.
— Ui — disse o wolhyno, fechando um olho e inclinando a cabeça para se dirigir aos seus companheiros. — Andar vara kroík.
Os três outros wolhynos partilharam do seu sentimento, e HOrdur, o dos cabelos brancos, baixou os cantos da boca aberta de dentes cerrados, através dos quais inalou como se tal não agourasse nada de bom.
— O que foi? — quis Quenestil saber, ignorando momentaneamente o mocho.
— Mochos e corvos... não gostam um do outro — explicou Agtor, fazendo gestos antagônicos de uma mão para outra. — Odeiam-se, e escocham-se quando podem...
— Olha que bom... — suspirou Quenestil, atirando as mãos ao at. — Nem sei se são meus ou não, e já me estão a dizer que vão dar problemas...
— Eh... como?
— Nada. Não faças caso — disse o eahan, descartando o assunto com um gesto e erguendo-se da sua posição acocorada. — Acho que está na hora de...
Assim que virou as costas à nascente, Quenestil viu que um vulto se aproximava deles, vindo do extenso campo que se prolongava além dos pés da montanha. Era Ihjseorn, e apesar de não se estar a esforçar por passar despercebido, estava próximo o suficiente para evidenciar o fato de que ninguém no grupo estivera a prestar atenção aos arredores, o que só por si desagradou ao habitualmente atento shura. Os outros também o viram e levantaram-se, repentinamente alertas e empunhando as armas com as quais até então tinham apenas brincado. Deadan já estivera de pé, e postou-se a lado de Quenestil numa tentativa de compensar o fato de não ter sido o primeiro a avistar o vulto. Ihjseorn continuou descontraidamente a caminhar, como se a presença de um grupo de homens armados em tais paragens não fosse caso para receio ou desconfiança. Quenestil observou o wolhyno enquanto este se aproximava, ouvindo o tilintar de cota de malha e o roçar de cabos de machado em metal nas suas costas.
— Quem é, Quenestil Anthalos? — perguntou a voz de Deadan ao seu lado.
— Ainda estou para perceber... — respondeu o eahan ambiguamente. — Mas...
— Ihjseorn Snedurg! — ouviu Ageor gritar atrás de si, e o referido deteve-se, pousando as mãos sobre as amplas ancas e olhando para a pele de urso branco que tinha aos ombros, levando então a cabeça atrás como quem acabara de entender algo.
— Conhece-lo? — indagou Quenestil, constatando ao olhar por cima do ombro que os wolhynos estavam entre o medo e o ultraje, rilhando os dentes e de dedos crispados nos cabos das suas armas, mas claramente pouco dispostos a deixarem de ter o eahan entre eles e o recém-chegado.
— Quenestil, não olhe para esse homem! Não fale com ele! — advertiu Agtor de descaídos olhos bem arregalados.
Mesmo à relativa distância a que ainda se encontrava, tornou-se evidente nas suas feições que sorria e, após abanar a cabeça, retomou o passo rumo ao grupo, o que fez com que os wolhynos se retesassem reflexivamente. A tensão acabou por contagiar Deadan, que levou a mão ao cabo do espadão que tinha a tiracolo e olhou para Quenestil como que a perguntar se tal seria ou não necessário.
— Saudações — cumprimentou o homem, baixando de seguida a cabeça em reconhecimento da presença dos seus conterrâneos. — Goldogn.
— Quenestil, não fale com esse homem! — praticamente sibilou Agtor, apertando-lhe o ombro com a mão que nele pousou.
— Então porquê? — redarguiu este, livrando-se da mão com um sacudir do ombro. — Por que é que não haveria de falar com ele?
— E um kahrkr! — disse o wolhyno entredentes, corno se receasse que o referido os ouvisse falar.
Fitando Agtor com olhos semicerrados e erguendo de seguida uma sobrancelha na direção de Ihjseorn, que parecia acima de tudo divertido com o alvoroço que a sua mera presença estava a causar, Quenestil sentiu um novo assomar de dúvidas e suspeições.
— Estão todos prontos? — perguntou como se tivesse acabado de chegar a um encontro combinado. — Temos um longo caminho pela frente...
— Quenestil, ele escocha-nos a todos! — continuou Agtor. — E se não nos escochar, vai trazer a fúria dos garding sobre Horavog!
Ohttur praguejou em surdina, e Quenestil compreendeu o suficiente da sua diatribe privada para perceber que, pelo menos pelo meio, estava a rogar preces aos deuses. Um kahrkr. Agtor contara-lhe coloridas e convincentes histórias acerca desses guerreiros de um selvagem passado, e a sua mera menção parecia ser o suficiente para causar conflitos e dissensões entre os wolhynos. Não estava particularmente surpreendido, mas semelhante revelação tão-pouco era aquietadora numa situação que já de si pouco lhe agradava.
— Ihjseorn... — disse. — Sejas o que fores, tenho perguntas...
O homem interrompeu-o e dirigiu-se aos wolhynos presentes, que prontamente desviaram o olhar assim que o fez, e proferiu algo que Quenestil não percebeu. Após uma curta frase que fez com que os de Horavog se entreolhassem, Ihjseorn elaborou, apontando para Quenestil e de seguida para o seu peito, parecendo estar despreocupadamente a tentar convencer os seus conterrâneos de algo. O eahan não chegou perto de perceber sequer metade, mas compreendeu que falava de algo relacionado com quem encontrara quem, que dizia respeito à quinta, a perigo e, inevitavelmente, a fogo. Sempre o maldito fogo.
— Quenestil... — disse Agtor em surdina após um breve momento de silêncio, olhando para o chão de forma a evitar o olhar de Ihjseorn. — O Urso Branco diz que estás aqui porque queres proteger Horavog.
O eahan olhou alternadamente para o mercador e para o kahrkr, tentando compreender o que tal poderia implicar. Falhando em vê-lo, não pôde negar que a afirmação era verdadeira, e acenou com a hesitante cabeça.
— Diz outrossim que estás aqui para nos levar aos skrimmen, que vocês concordaram.
— Bem, concordar talvez seja uma palavra demasiado forte... — disse Quenestil, meio para si, meio para Agtor. — Mas sim, é ele que nos vai levar a esses skrimmen. Pelo menos, assim espero...
— Esperar? — disse Ihjseorn. — Esperar para quê? Vamos. O caminho ainda é longo.
Recuando um passo e fazendo-lhes sinal para que o seguissem, o kahrkr encaminhou-se então para o extenso campo além dos pés da montanha. Os wolhynos entreolharam-se nervosamente, mostrando-se hesitantes pela primeira vez desde que Quenestil partira com eles de Horavog, e o eahan pensou que o iriam mesmo abandonar. Preso entre duas vontades opostas, o eahan viu-se inesperadamente forçado a defender uma idéia na qual nem tinha a certeza de acreditar ou não, pois algo nele não só queria genuinamente proteger os Lasan — e, de forma subliminar, os bebes — como também ansiava por uma ameaça que pudesse combater, um inimigo que pudesse visualizar.
— Vão perder a coragem agora, que ainda nem viram as armas dos skrimmen? — afrontou, apontando para as costas de Ihjseorn, — Por causa de um homem?
— Quenestil... — tentou Agtor explicar, assumindo então um tom ligeiramente acusatório. — Se alguém sabe que estivemos com um kahrkr, como Oggber Coxo viu...
— Olha, não quero saber — interrompeu-o o shura, cortando-lhe as palavras com um brusco gesto diante da cara. — Eu já lutei contra drahregs, nekkr, boaroars, nycatalos e mais bichos que os que me apetece contar. Ponham-me à frente o que quiserem, que podem ter a certeza de que eu o enfrento, se estiver a ameaçar Horavog. Agora não me venham é com mais intrigas, rodeios ou histórias que esperam que eu perceba mas que não dizem o mínimo respeito à situação. Se vocês estão mais preocupados em terem problemas com os vizinhos do que terem a quinta arrasada por skrimmen, que já atacaram Hpraog, então o problema é vosso. Podem voltar para trás.
Apontando para além da montanha que tinham descido, Quenestil mostrou que estava a falar a sério.
— Se, por outro lado, conseguirem vencer esse medo estúpido que têm daquele homem, podem vir comigo. Ele vai levar-nos aos skrimmen, e aí nós podemos certificar-nos de que eles não mais ameaçarão Horavog. Se estão demasiado assustados para ficarem perto dele, então eu e o Deadan vamos sozinhos.
Alheio a semelhantes considerações, o jovem siruliano acenou afirmativamente com a cabeça e postou-se ao lado do eahan sem a mínima hesitação, baixando a viseira do elmo. Embora apenas Agtor compreendesse Glottik, os outros wolhynos mostraram-se igualmente humilhados e acabrunhados diante do responso de Quenestil, como se de alguma forma tivessem entendido as palavras. O eahan olhou-os à vez, fazendo com que evitassem os seus orbes cinzentos, fitou Deadan para confirmar a inabalável determinação do Ajuramentado e, com um aceno da cabeça, ajeitou o arco ao ombro e virou-lhes as costas.
— Vamos — disse terminantemente, seguindo Ihjseorn, que entretanto se distanciara do grupo.
Deadan foi atrás sem sequer olhar para os wolhynos, que se entreolharam dubiamente antes de, com resignados encolher es de ombros, enrolarem os seus sacos-camas e peles e irem atrás do eahan.
Ihjseorn conduziu o díspar e dividido grupo ao longo dos extensos campos entre as montanhas, tomando a dianteira enquanto Quenestil e Deadan iam no meio e os wolhynos de Horavog formavam a retaguarda. Enquanto caminhava, o eahan ia estudando o terreno para se distrair, constatando que se tratava de um campo de lava seca e pedra-pomes coberto por uma densa carpete de musgo e líquenes, estes por sua vez revestidos de neve. O piso era traiçoeiro, pois as formações de lava eram irregulares e um homem podia partir uma perna com um passo em falso, razão pela qual o grupo adotara uma lenta marcha na qual erguiam os joelhos e enfiavam os pés na neve, e que fez com que a caminhada durasse bem mais que o que seria de esperar, tendo em conta a distância até à floresta. Apesar de abrigado entre as montanhas, o campo era suficientemente extenso para que o vento soprasse nele com força, e à medida que a noite se aproximava as rajadas iam-se tornando cada vez mais fortes e frias. Durante a sua caminhada, o grupo apanhou um fraco chuviscar, que cedo se intensificou numa chuva forte, seguida de granizo e interrompida por uma breve brecha nas nuvens que permitiu ao sol banhar o campo com alguns raios antes de ser novamente ocultado. Quenestil e Deadan foram os únicos que estranharam tão bruscas mudanças climáticas, pois os outros pareciam estar habituados e não lhes fez confusão alguma.
Em contraste com os murmúrios e sussurros entre os wolhynos, o eahan e o siruliano mantiveram-se em silêncio o tempo inteiro, embora Quenestil por vezes falasse sozinho enquanto observava atentamente Ihjseorn, discutindo consigo mesmo. Embora não duvidasse da perícia marcial do homem, tinha dificuldades em imaginar um indivíduo de meia-idade com a força de cinco homens, ou como um assassino que ninguém conseguia controlar e que disseminava o terror pelo povo. A única característica que evidenciava era o parecer saber coisas que outros não sabiam, nada mais. Das poucas vezes que olhou para trás, limitou-se a sorrir de forma quase condescendente com a sua pequena boca, qual pastor a conduzir o seu rebanho.
— Confia nele, Quenestil Anthalos? — perguntou Deadan, a sua voz metálica dentro do elmo.
— Hã? — grunhiu o shura. — Ah, se confio nele? Não sei, Deadan. Sei ainda menos sobre ele do que sobre os nossos amigos de Horavog.
— Não são meus amigos — afirmou o jovem peremptoriamente. Quenestil ainda ponderou explicar-lhe as subtilezas de forças de expressão, mas sabia bem que os sirulianos não eram muito dados a formas de discurso indiretas. Não que não fossem perceptivos à sua maneira, mas tendiam a ver apenas o valor nominal das coisas, além de não serem particularmente flexíveis com as suas noções. Na verdade, o eahan dava graças por serem assim, pois ao menos Deadan não o importunava com perguntas impertinentes nem se deixava reter por hesitações ou considerações.
— Mas confia suficientemente nele para o estarmos a seguir rumo a um perigo desconhecido? — persistiu o jovem.
— Raios, Deadan, trata-me por tu. Ou pelo menos chama-me só Quenestil, que essa conversa de «Quenestil Anthalos» já enjoa...
Intrigado com o mau humor do shura, e desabituado a que este se lhe dirigisse de tal forma, Deadan olhou-o através da viseira do seu elmo. De fato, a expressão de Quenestil era tudo menos amigável enquanto este olhava em frente de sobrancelhas franzidas e com os maxilares tensos. Passavam-lhe pelos olhos cinzentos uma série de pensamentos, e em lugar da resultante dúvida que o siruliano estava habituado a ver neles, estes chispavam agora como pederneira. Deadan deu-se por satisfeito pela resolução que neles viu, e decidiu respeitar o silêncio de Quenestil em vez de insistir mais no assunto.
— Vamos acampar ali — gritou Ihjseorn vários passos à frente, sem olhar para trás e apontando para a orla do bosque negro do qual se aproximavam.
À primeira vista, parecia pouco mais que uma mancha escura entornada pela basáltica montanha diante deles, um denso aglomerado de teixos e faias desnudos, queimados pelo frio e granidos de neve, em cuja orla um ribeiro desaguava num afloramento rochoso manchado por líquenes, perdendo-se nos meandros do campo de lava. Pareceu-lhes convidativo apenas na medida em que oferecia abrigo do frio e insistente vento, o pior que Quenestil sentira desde a sua chegada à Wolhynia. Olhando para trás, viu que os homens de Horavog hesitavam uma vez mais a uma distância considerável, falando uns com os outros e de olhos postos nas árvores escurecidas.
— O que foi agora? — perguntou em voz alta para se fazer ouvir no meio da ventania. Ihjseorn também se virou ao escutar a sua voz.
— Essa floresta, Quenestil... — disse Agtor, murmurando algo de imperceptível antes de retomar a coerência. — É plaga dos skrimmen!
— Oh, que porra... — disse Quenestil, baixando a cabeça antes de a erguer de braços estendidos aos seus lados para vociferar. — E o que vieram vocês aqui fazer, se não lutar com skrimmen?!
Os homens sabiam-no, claro, mas continuavam reticentes devido à presença de Ihjseorn, e Quenestil até podia compreender as suas reservas. Também ele não tinha a certeza quanto às verdadeiras intenções do homem, mas raios, o tempo das hesitações já passara; se estavam ali, era para agir! Agir de vez, ao invés de se atormentar no celeiro da quinta ou no exterior desta por não poder suportar a proximidade de Slayra.
— O que fazemos agora? — perguntou a Ihjseorn em voz alta, optando por outra abordagem.
O homem estava de descontraídos braços cruzados e sorriu antes de responder.
— Agora acampamos ali dentro, e esperamos até ao meio da noite. — Gritada, a sua voz adquiria os contornos de um grasnido. — Depois, caçamos.
— Ouviram-no? — perguntou Quenestil. — Traduz, Agtor. E ponham-se a andar.
O eahan deu o exemplo, esperando que a estranha influência que parecia exercer sobre os wolhynos bastasse para os fazer andar, sendo seguido por Deadan, e Ihjseorn fez que sim com a cabeça antes de recomeçar a caminhada. Novamente vexados, os homens de Horavog trocaram apenas alguns hesitantes olhares antes de, conformados, ajeitarem as mochilas aos ombros e retomarem o passo. Já mais próximos uns dos outros, os sete entraram então pela orla da floresta, desenganando-se de imediato quanto à noção de que estariam abrigados do vento, pois as rajadas pareciam já ter trilhos de caça por entre as árvores desnudas, e sopravam sinuosas ao longo dos meandros do arvoredo. O bosque era pouco aprazível, arranhando os viajantes com ramos crestados, estalando e rangendo com o frio de forma ominosa e cobrindo-os com sombras frias. Os de Horavog tentavam a custo esconder o seu nervosismo, impelidos a andar apenas pela vontade invisível de quem ia à frente, e olhando incessantemente em redor como se esperassem ser emboscados a qualquer instante. Quenestil fez sinal a Deadan para que se deixasse estar e avançou uns rápidos passos para poder caminhar lado a lado com Ihjseorn.
— Aonde vamos? — perguntou o eahan, cujas pontudas orelhas lhe doíam, geladas. Mesmo a sua pele de montes se ressentia com o frio, e tinha a cara insensibilizada, especialmente o nariz, que estava vermelho.
— Para já, vamos encontrar um sítio para acampar — respondeu o Urso Branco, como se estivesse a planear um passeio. — Ainda temos algum tempo...
— Tempo? Tempo para quê?
Ihjseorn olhou para o shura, que o fitava com uma expressão muito pouco amigável enquanto andava, respirando de boca entreaberta.
— Tempo para vocês apanharem os skrimmen quando eles menos esperarem — esclareceu, formando dois regos na sua redonda cara achatada ao sorrir, o que lhe arredondou as maçãs do rosto ruborizadas pelo frio. — Tempo para descansarem e para se prepararem para lutar.
O eahan não se deu por satisfeito, mas os olhos azuis com papos de Ihjseorn encaravam diretamente os seus, sem nada a esconder ou então com algo muito bem escondido, e o wolhyno tornou a olhar em frente, desviando-se a tempo de um ramo perdido.
— Da outra vez, fugiste às minhas perguntas — recordou Quenestil. — Agora vais...
— Assim que assentarmos... — Ihjseorn hesitou, franzindo as sobrancelhas brancas. — Quenestil, não é?
O eahan fez que sim com a cabeça de má vontade.
— E tu és Ihjseorn. Sei o teu nome e pouco mais, mas tu pareces saber coisas sobre mim. Porquê?
— Eu? Saber coisas? — questionou-se o wolhyno retoricamente. — Que sei eu?
Foi então que Quenestil perdeu a paciência, agarrou o ombro do homem com força e virou-o bruscamente para si, avançando um passo para o encarar diretamente. Ihjseorn foi surpreso pelo gesto, mas não vacilou diante do olhar do eahan, enfrentando-o diretamente com uma inexpressiva promessa de ameaça no seu rotundo semblante impávido.
— Muitas coisas — disse Quenestil, a sua voz perigosamente baixa. — Demasiadas coisas.
Os dois ficaram a olhar um para o outro durante várias tensas percussões de coração, até que o ruído de Deadan a sacudir a lâmina do seu espadão na bainha em preparação para a desembainhar se fez ouvir. Ihjseorn foi o primeiro a desviar o olhar para fitar o siruliano, e então tornou a sorrir.
— Sei menos do que pensas, Quenestil. Mas ao menos falemos disso sentados, não? — sugeriu, olhando em redor do irregular terreno arborizado e apontando para um musgoso barranco. — Aqui serve. Ficamos abrigados do vento.
Deadan não relaxou de imediato, e os quatro wolhynos de Horavog pareciam tementes de um conflito, mas Ihjseorn limitou-se a dirigir-se descontraidamente para o pé do barranco, que estudou com algumas pisadas das suas robustas botas. Satisfeito, virou-se de costas, estendeu a pele de urso branco e assentou sobre ela com um bem vozeado suspiro de alívio.
— Podem montar as vossas tendas e comer alguma coisa — disse, gesticulando com a mão à sua frente. — Se estiverem cansados, podem aproveitar para dormir um pouco também.
— As minhas perguntas... — relembrou Quenestil, deixando a correia da sua mochila escorrer-lhe pelo braço abaixo.
— Sim, as perguntas... — acedeu Ihjseorn. — Traz-me um pouco desse vosso surmjol, que eu respondo.
Quenestil foi buscar um dos cilindros de Engiv enquanto este ouvia as instruções traduzidas por Agíor e atirou-o a Ihjseorn, que o apanhou com ambas as mãos.
— Mmmm... há já algum tempo que não bebia surmjol... — deliciou-se o wolhyno.
— És um fora-da-lei? — inquiriu o shura sem quaisquer rodeios. Ihjseorn pousou o cilindro ao seu lado, lambeu o lábio superior e tirou uma espécie de grande salsicha de entre as suas peles, aconchegando-se um pouco mais ao seu quente pêlo de urso.
— Pensava que as perguntas seriam sobre ti... — disse, arrancando com uma forte dentada um pedaço do que revelou ser uma morcela.
— Responde.
— O que é que te fez pensar isso? O receio que aqueles têm por mim? — indagou Ihjseorn, mastigando e indicando com a morcela os quatro homens de Horavog que, tendo estado a observar ambos, baixaram de imediato as cabeças.
— Não, isso é por seres um kahrkr.
— Ooooh — exclamou o wolhyno, erguendo as níveas sobrancelhas e dando uma nova trincadela na morcela. — Um kabrkr. Tempos houve em que isso não queria dizer a mesma coisa que «fora-da-lei»...
— Mais histórias não — advertiu Quenestil, erguendo uma mão.
— Responde-me só...
— Mas como esperas compreender as minhas respostas, se não sabes a história que causou as perguntas?
— Não quero saber de histórias — disse Quenestil entre dentes cerrados e com os punhos igualmente tensos. — Só quero que me digas o que... como... raios, por que é que todos esperam alguma coisa de mim! O que é essa conversa do fogo! Por que partiste do princípio de que eu queria defender Horavog...!
Ihjseorn levou calmamente um dedo enluvado à boca, e Quenestil calou-se ao aperceber-se de que estivera praticamente a gritar, olhando então em redor. Não sabia o que o esperava, mas já vira skrimmen e ulkatr, e aparentemente encontrava-se nos domínios destes. Os quatro wolhynos fizeram o mesmo, interrompendo a montagem de uma tenda, e Deadan ergueu a babeira do elmo para melhor ver.
— Entendes-me mal, Quenestil, e aos teus companheiros também — disse Ihjseorn. — Antes de mais, não és humano...
— Não é para as minhas orelhas que as pessoas olham — esclareceu o eahan.
— ...e as pessoas olham para ti por causa do teu cabelo. Dizemos «fogo» por causa da cor, igual à dos forlornyanos que em tempos invadiram a Wolhynia. Trouxeram fogo e morte às nossas aldeias, e tu vieste do mar, tal como eles.
— O quê? Então pensam que sou forlornyano? — duvidou o eahan, piscando os olhos e estremecendo a cabeça.
— Não. Mas nós, os wolhynos, somos uma gente supersticiosa. Horavog é uma quinta pequena, e chegares lá da maneira que chegaste, trazendo contigo seres mágicos e o teu amigo siruliano, com todo o seu aço... claro que ficaram impressionados.
— E a forma como me tratam? Como se esperassem que eu...?
— Como disse, somos uma gente supersticiosa — escusou-se Ihjseorn, erguendo as enluvadas mãos apologéticas e lembrando-se de dar mais uma dentada na morcela. — E temos os nossos costumes aqui nos Fiordes, que são... diferentes do resto da Wolhynia.
Quenestil queria perguntar mais, insistir mais, mas pela primeira vez sentiu uma pontada de dúvida, de que podia de fato estar a imaginar a situação toda e a exaltar-se de forma desproporcionada.
— És um hóspede. Foste acolhido. Como hóspede, tens direitos e deveres que a honra e a lei ditam. A casa onde foste acolhido está ameaçada. Tu decidiste protegê-la, tu, o estranho vindo do mar com cabelos de fogo e com o amigo armado. Claro que te iriam seguir.
— Não fui bem eu que decidi protegê-la...
— Fui eu quem te falou da ameaça, é verdade. Mas não o terias feito de qualquer forma, se tivesse sido outra pessoa a dizer-te?
Por muito que o contrariasse estar a concordar com Ihjseorn, Quenestil não podia negar a verdade.
— Sim...
— Então estamos entendidos — finalizou Ihjseorn, pegando na cabeça de urso branco que tinha sobre o ombro direito e pousando-a sobre a cabeça à laia de capuz, posto o que cruzou os braços. — Vou dormir um pouco. Descansa também, mas deixa alguém de guarda, e não façam fogo, que...
— Por que queres tu que Horavog esteja a salvo? Qual é o teu interesse? — lembrou-se o eahan de perguntar.
Ihjseorn não respondeu de imediato, o que não lhe passou despercebido. Tinha a cara meio coberta e ensombrada pela cabeça de urso, e a sua boca permanecia uma inescrutável linha horizontal, que contudo denotava hesitação.
— Esse... terá de ser o meu segredo -— disse por fim. — Mas podes ter a certeza... que não quero que nada de mal aconteça a Horavog.
Seguiu-se um breve momento de silêncio, durante o qual apenas se ouviu o estalar e ranger das árvores até os quatro outros wolhynos se lembraram de que deviam estar a aprestar a tenda.
— Vai descansar — finalizou Ihjseorn, ajeitando ao peito os braços cruzados e baixando mais a cabeça.
A vontade de Quenestil era persistir, ou pelo menos era o que achava que deveria fazer, mas as palavras de Ihjseorn tinham-no deixado na dúvida, e antes que o eahan disso se apercebesse, deu meia-volta e foi ter com os outros, perdido em pensamentos. Deadan tentou obter com o olhar uma confirmação de que estava tudo bem, habituado à linguagem de sinais e falta de apetência para diálogo dos seus conterrâneos, mas Quenestil não reparou, acusando apenas a voz de Agtor quando este a ele se dirigiu.
— Quenestil...?
— Vamos... vamos comer e descansar — disse o eahan. — O... ele depois logo nos acorda.
O antigo mercador trocou os inevitáveis olhares com os seus três companheiros, mas acabou por assentir com a pouco convencida cabeça.
— Esta tenda é para ti e o Deadan — disse, dando palmadinhas na lona. — Eu e os outros dormimos na outra.
O eahan olhou para o abrigo, constituído por duas empenas cruzadas com remates cinzelados e lona revestida por gordura de foca para afastar água, presa ao chão por calhaus.
— Acha que vai chover, Quenestil Anthalos? — perguntou Deadan. —- Duvido que caibamos os dois aí dentro com o meu arnês. Talvez tenha de o deixar cá fora.
— Hum... não sei, Deadan — admitiu o shura, olhando para o céu através da desnuda copa das árvores, e os outros fizeram instintivamente o mesmo. — O tempo aqui é...
Uma estrela cadente riscou o céu, revelando-se mesmo através das nuvens e silenciando Quenestil, que ficou de surpresa boca entreaberta.
— Hjroía Taroibar — disse Ohttur naquela que Quenestil entendeu ser uma oração a Tharobar, batendo com o coto de um punho cerrado numa mão aberta, que de seguida levou o punho à boca para que o wolhyno o beijasse de forma solene.
Cada um dos de Horavog parecia ter algo a dizer acerca da estrela cadente, e mesmo Deadan ficou a olhar para o céu, mas o fascínio que esta exercera em Quenestil fora apenas momentâneo, e o eahan deixou os cinco entregues às suas divagações, dirigindo-se antes à sua mochila para ir buscar um pouco de comida, esperando apenas que nos Fiordes tais fenômenos não fossem considerados um mau agouro.
Embora Quenestil e Deadan não estivessem propriamente a dormir, as palmadas do lado de fora da lona da tenda sobressai taram-nos na mesma, fazendo com que colidissem um com o outro ao erguerem os torsos e tatearem em redor às escuras. Quando por fim recuperaram a presença de espírito, perceberam que a hora chegara, e o eahan esgueirou-se por entre os braços e pernas de Deadan para abrir a prega de lona, pela qual saiu de cabeça, espirrando prontamente com o contraste entre o frio e seco ar do exterior com o interior quente e bafento da tenda. Viu as botas de Ihjseorn e olhou para cima, vislumbrando a silhueta do homem contra o escuro céu da noite.
— Está na hora — avisou. — Preparem-se.
Quenestil espirrou uma vez mais antes de se erguer, esticando os músculos doridos e constatando que Engiv acordava os outros, tendo sido ele designado para a última vigia. Ninguém parecia bem dormido, e o eahan percebia bem porquê. Ele próprio mal pregara olho, fitando antes o cimo da tenda no escuro enquanto o massivo corpo de Deadan se remexia irrequietamente a seu lado. Claro que os wolhynos não eram atormentados por nem metade dos pensamentos que moíam o eahan, mas a mera iminência de um combate com os skrimmen provavelmente bastava por si só para lhes roubar o sono. Uma série de vultos sonolentos foi saindo lentamente da outra tenda, que foram desmontando em expectante silêncio, evitando olhar na direção de Ihjseorn. Este parecia mais atento e menos descontraído, apressando o grupo com o seu olhar enquanto Quenestil ajudava Deadan a vestir o seu arnês e os wolhynos acabavam de levantar o acampamento. Recomendou-lhes que comessem algo, mas todos se sentiam demasiado nervosos para meter fosse o que fosse no estômago, e limitaram-se a beber um pouco de soro de leite para matar a sede. Quando viu que por fim estavam prontos, Ihjseorn nada disse e fez-se simplesmente ao caminho, sendo tacitamente seguido pelo cansado grupo, com Quenestil e Deadan novamente no meio, embora os de Horavog não se mantivessem assim tão distantes na retaguarda daquela vez.
Estava escuro e fazia um frio de estalar os dentes, pois ainda era de noite, embora o eahan não soubesse precisar a hora. Através da desnuda copa das árvores via-se um céu demasiado nublado para dizer ao certo, apesar do distante e meio encoberto brilho da lua tapada, mas Ihjseorn parecia absolutamente convicto de que chegara a hora, e tinha ele também o ar de ser a única pessoa que conseguira efetivamente descansar. O resto do grupo tinha um ar atarantado, e parecia mexer-se não por volição própria, mas arrastado pela vontade do kahrkr. Hesitações tornavam-se dúvidas, receios tornavam-se medo e a desconfiança tornava-se paranóia, e apenas a total segurança e confiança com que Ihjseorn caminhava rumo a um destino certo os impelia a segui-lo. Quenestil e Deadan não tinham medo, mas temiam o pior para o caso de ficarem impossibilitados de cumprirem as suas juras de protegerem os Lasan e vingarem os sirulianos mortos. À medida que iam avançando quase às cegas pelo traiçoeiro bosque escuro, tropeçando e arranhando-se em gravetos, humano e eahan cocavam o sono dos olhos. O Ajuramentado estava mais concentrado que Quenestil, pois limitava-se a seguir instruções, uma espada afiada que se entregara às suas mãos e que apenas esperava ser manejada, desde que dessa forma pudesse melhor cumprir o seu juramento. Já o shura tinha uma série de incertezas com que lidar, e nem o fato de ser agora Ihjseorn a orientar o grupo ajudava a aliviar o peso da responsabilidade que, em acréscimo a tudo o resto, lhe vergava o espírito. Deveria ter sido o caçador dentro dele a assumir as rédeas da sua consciência a partir do momento que partira de Horavog, mas mesmo os instintos que aprimorara ao longo de anos no ermo pareciam adormecidos, e o meditabundo eahan cedo perdeu a conta do tempo que passara desde que haviam começado a caminhar. O dente de volverino pendia-lhe do pescoço como uma qualquer peça de bijuteria, os ensinamentos da Mãe não lhe ofereciam quaisquer respostas, e os do seu pai pouco se aplicavam à sua presente situação. Quenestil tentou pensar no que faria caso os seus amigos ali estivessem com ele, e tentou consolar-se com a quase certeza de que, independentemente das circunstâncias, teriam feito os possíveis por ajudar. Horavog. Por mais que não fosse, era lá que os Lasan se encontravam, e foi a repetir esse mesmo pensamento que o shura foi avançando pelo bosque adentro, erguendo a cabeça apenas ocasionalmente para constatar se Ihjseorn continuava ou não à sua frente, embora mesmo com ela baixa pouca atenção prestasse ao chão.
Porém, ao erguê-la pela enésima vez, deteve-se a tempo de não colidir com o kabrkr, que parara e que parecia escutar atentamente o ar. O instinto de batedor de Quenestil despertou então, e o eahan ergueu a mão para avisar a retaguarda, agachando-se ligeiramente por reflexo. De fato, ouvia-se um rumor indistinto, trazido pelo gélido vento que sussurrava pelas árvores. Com a audição reduzida pelo elmo, Deadan não se pôs com meias medidas e levou logo a mão ao punho do espadão que levava às costas. Ihjseorn, porém, não parecia alarmado, e limitou-se a olhar por cima do ombro para quem lhe vinha atrás.
— Estamos perto. Vim verann natr. Preparem-se.
Os de Horavog engoliram em seco? crispando os dedos nos cabos das armas, e os seus corações bombearam sangue quente que lhes floresceu pelo peito. Quenestil tirou o arco do ombro e frechou-o, o que lhe mereceu um olhar de aprovação de Ihjseorn antes de este recomeçar a caminhar. Alguns passos mais à frente, e os ruídos evidenciaram-se mais, levando Quenestil a praguejar consigo mesmo em surdina por não os ter ouvido mais cedo. Eram ruídos de presença humana e não só, pois ouviam-se também roncos animalescos que só podiam ser dos ulkatr. Não sendo aparatosos, evidenciavam um total descartar da possibilidade de não estarem sozinhos nos bosques, o que não pôde deixar de despertar em Quenestil um oportunismo predador que o excitou. À medida que se ia aproximando do perigo, ia descascando as camadas da sua personalidade, deixando as dúvidas e incertezas para trás, e chegando lentamente ao cerne puro e espontâneo do caçador, do animal, que era o que naquele momento lhe interessava. O próprio Ihjseorn andava agora com mais cuidado, dando três passos e parando para ouvir, cinco e olhando para trás, dois e detendo-se como se tivesse ouvido alguma coisa. Abrandou de tal forma que Quenestil acabou por ficar a seu lado, após o que foi uma questão de tempo até tomar a dianteira do grupo sem verdadeiramente disso se aperceber. O wolhyno nada disse e deixou o eahan ir em frente, satisfeito por ver a sua agachada pose de caçador, segurando o arco frechado quase ao nível do joelho enquanto avançava com silenciosos passos pelo terreno que começava a subir. A sua iniciativa também teve efeito nos homens de Horavog, que trocaram excitados sussurros, batendo desnecessariamente nos ombros uns dos outros e apontando para o shura. Alheio a tudo menos aos ruídos e à sensação de proximidade daqueles que agora sentia serem as suas presas, Quenestil continuou a avançar, inclinando-se ligeiramente para o lado para confirmar aquilo que vislumbrara: luzes entre as árvores. Era o lume tremulo de labaredas, e provinha de uma depressão no terreno mais à frente. O eahan avançou nessa direção até avistar um vulto e estacou, hirto, momentaneamente incapaz de distinguir se este estava de frente ou de costas para ele, ou se o vira ou não.
O vulto não se mexeu, e a sua silhueta delineada pelo lume foi clareando aos olhos do eahan até este perceber que de fato se encontrava de costas. Além dele ouviam-se mais claramente vozes e murmúrios humanos entremeados com roncos e rosnadelas, entre os quais se ia destacando sobretudo a voz de uma mulher. Ihjseorn surgiu ao lado de Quenestil e abriu a boca para lhe sussurrar algo, mas o shura estendeu um braço para o reter, erguendo de seguida a mão em sinal de que os outros deveriam parar e gesticulando com ela na direção de um arvoredo, no qual pretendia que se escondessem. Ninguém protestou, e embora Ihjseorn não se mexesse, pareceu intrigado com a iniciativa demonstrada pelo eahan, que espetou a flecha no chão, pousou o arco e ajoelhou-se, tirando a luva de uma mão para a assentar no chão coberto por neve. Sentiu-se brevemente avassalado pela força vital do bosque que o invadiu, pois estava algo desabituado a entrar era sintonia com a natureza. O ressonar das árvores vibrou-lhe pelos ossos, sentia mesmo o tilintar de cristais de gelo, e o estalar de madeira gelada tornou-se um crepitar insistente nos seus ouvidos. Não havia muita vida em redor, excetuando os tíbios pulsares de pequenos animais aninhados no chão e em algumas árvores, mas os intrusos destoavam claramente de tudo o mais, não pertencendo claramente ali, embora pisassem o solo da floresta com um mínimo de respeito. Eram uma série deles, umas duas dúzias, e encontravam-se reunidos no terreno diante do eahan. Os mais próximos eram o vulto que Quenestil avistara e outro que se encontrava a alguns passos deste, formando parte de um irregular círculo em redor da maior concentração.
Quenestil abriu então os olhos e recolheu a mão vermelha e molhada pelo contato com o gelo, enfiando-a debaixo da axila e erguendo-se, sempre de olhos postos no vulto. Ihjseorn, que ficara ligeiramente recuado a seu lado, nada disse enquanto o eahan tirava a outra luva e prendia ambas ao cinto atrás das costas, claramente decidido a agir. Pegou no arco e na seta que espetara no chão e começou então a avançar, cada vez mais agachado à medida que se aproximava do vulto. Havia outro que se encontrava relativamente próximo à sua direita, a cerca de sete passos, mas os outros estavam suficientemente distantes para que aquilo que Quenestil tencionava fazer passasse despercebido. Os dois tornaram-se o mundo do eahan, que se focou sobretudo no que se encontrava à frente, e tudo o resto se tornou borrado e indistinto. O vulto que agora via ser um skrimmen envergava peles e um chapéu redondo de topo chato, e estava totalmente concentrado no que se passava em baixo na depressão do terreno, esta ainda fora da vista de Quenestil. O outro estava vestido de forma parecida, ambos desprovidos de qualquer proteção substancial. Quenestil abriu os braços, arco de um lado e do outro a flecha segurada pela chanfradura. Cada vez mais próximo da sua presa, o eahan abafou os restantes ruídos e concentrou-se apenas no erguer e descer dos ombros do skrimmen enquanto se aproximava a cuidados e silenciosos passos. Os seus olhos iam-se desviando para a direita para memorizar a posição do segundo de forma a poder incluí-lo na trajetória do seu ataque. Já a dois passos de distância da presa, reparou que do outro lado da depressão também se encontravam mais homens, mas a luz vinha de baixo e era para lá que todos olhavam, pelo que a fração de instante que dispensou para ponderar bastou para descartar a possibilidade de ser visto e de imediato atacar a garganta como um volverino.
Quenestil avançou um passo e, num movimento fluido, enganchou o pescoço do homem por detrás com o braço esquerdo que segurava a flecha, frechando o arco ao fazê-lo. O grunhido sufocado do skrimmen foi silenciado pela pressão que o braço do eahan exerceu na garganta dele quando este o puxou para trás, flexionando-o ao mesmo tempo que esticava o braço direito de forma a puxar o fio do arco, o que deixou o homem de costas arqueadas e a agarrar-lhe o antebraço com mãos enluvadas incapazes de arranhar. Um cheiro curado e rançoso invadiu as narinas do shura, que soltou o fio e de seguida deixou o joelho direito cair, torcendo o braço que cingia o pescoço do skrimmen que estalou secamente. Ao mesmo tempo, a flecha singrou pelo ar e embebeu-se com um baque acima do ombro do outro skrimmen, cujas mãos lhe saltaram à garganta antes de tombar.
Ainda com o braço esquerdo a prensar o pescoço do skrimmen morto sobre o seu joelho, Quenestil deixou-se estar completamente quieto, sem sequer virar a cabeça para olhar e confiando totalmente na sua audição para perceber se alguém reparara ou não. Uma, duas, três vezes bateu o seu coração, e nada nos tons de vozes que ouvia deu a entender que falhara em passar despercebido, além do grito feminino que fez com que o seu coração lhe bombeasse um novo jorro de sangue pelo peito fora.
Cinco, seis, sete.
Não, ninguém reparara.
Quenestil largou então o corpo inerte do skrimmen, mas permaneceu ajoelhado, e olhou bruscamente para trás ao ouvir passos na neve. Ihjseorn aproximava-se, algo agachado, e os outros vinham atrás dele. Embora abafada pelas peles, a armadura de Deadan fazia ruídos que, no presente estado alerta de Quenestil, mais pareciam as correntes de um rastrilho aos ouvidos deste, fazendo com que se encolhesse de dentes e olhos cerrados, temendo que fossem descobertos. Tal não sucedeu, porém, e o grupo ajoelhou-se diante de Quenestil, olhando para o skrimmen morto ao pé deste. Os homens de Horavog estavam uma pilha de nervos, suando friamente e tremendo de frio ou de excitação, provavelmente ambos, e segurando as armas perto dos seus peitos. Ihjseorn acenou aprovadoramente com a cabeça e apontou para a frente, fazendo de seguida um gesto com a palma da mão para baixo, como para dar a entender que deveriam avançar a rastejar. Quenestil e os outros acataram a recomendação, sendo o eahan o mais rápido a fazê-lo e o primeiro a avançar na direção da beira da depressão.
Puderam então constatar que se tratava de um barranco semicircular a servir de anfiteatro improvisado para aquela que parecia ser uma cerimônia skrimmen. Estes encontravam-se dispostos irregularmente em redor deste, uns poucos em cima, alguns a meio, mas a maioria em baixo, entre eles ulkatr. Todos circundavam uma mulher no meio do barranco, ladeada por duas fogueiras, e que ia gesticulando de forma ritual ao mesmo tempo que vozeava a meio de gemidos possessos. Envergava um manto da pele de um animal que Quenestil nunca antes vira, com negros e lanosos pêlos compridos, calças e uma camisa do que devia ser pele de rena, e com a cabeça de uma a servir-lhe de capuz, ensombrando as suas feições. Tinha duas hastes desse mesmo animal presas às costas, e delas pendiam uma série de adornos e penduricalhos de ossos e penas, que chocalhavam a cada movimento seu. O que se via do seu cabelo eram duas tranças louras diante dos ombros, que se uniam uma à outra como um colar sobre o seu amplo peito, e das quais pendiam longas tiras de osso com inscrições que também chocalhavam conforme se mexia. Não tinha nada nas mãos, mas gesticulava incessantemente com elas, e às suas felpudas botas estava estendida uma manta de pele sobre a qual se encontrava um bebe nu a chorar. Os restantes skrimmen murmuravam, alguns de cabeça baixa e mãos cruzadas à frente, participando num díspar cântico para o qual os ulkatr presentes contribuíam com a ocasional rosnadela. Os humanos eram altos, usavam chapéus redondos de pele topo chato ou gáleas de couro, e envergavam roupas mais quentes e pesadas que os que haviam atacado Horavog, com capelos de pele de foca cerzida e debruada com pêlo na orla, da qual pendiam felpudas caudas de animais. Alguns tinham barbas entrançadas com caudas mais pequenas, e todos estavam armados com dardos de pontas de pedra escura e macas de cabeça de bronze. Por sua vez, os ulkatr eram praticamente iguais aos que Quenestil antes enfrentara, com pêlo amarelo-esbranquiçado listado, orelhas com tufos, rufos faciais e curtas jubas. Também à semelhança dos que antes vira, usavam um par de presas de morsa atadas a braceiras de pele nos antebraços direitos, distinguindo-se sobretudo pelos adornos de ossos que usavam, pelas formas dos focinhos e pelo número de tranças nos rufos e nas jubas.
A presença dos bestiais humanóides fez com que os homens de Horavog engolissem em seco, sentindo o azedo sabor do leite nas suas bocas secas, e o grito que a mulher emitiu ao atirar a cabeça para trás e elevar as mãos ao céu eriçou-lhes os pêlos da nuca. Quenestil olhou reflexivamente para cima e viu abrir-se uma brecha nas nuvens, revelando uma lua cheia que, por uma qualquer estranha razão, o fascinou.
— O importante é capturar a kuvamora — sussurrou-lhe Ihjseorn ao ouvido, apontando com um dedo enluvado para a mulher. — Não podem vencê-los todos. Têm de a capturar, mas viva. Com ela em nosso poder, os skrimmen não nos atacarão, nem a Horavog.
Quenestil piscou os olhos como se tivesse adormecido por breves instantes e abanou a cabeça, tornando a olhar para a mulher, que agora pegava no bebê e o sustinha diante de si de braços estendidos. A criança estava vermelha de frio, e começou a chorar mais alto ainda.
— Que fazemos, Quenestil Anthalos? — perguntou Deadan, estendido a seu lado e com o capacete nas mãos para ouvir o tom de voz sussurrado no qual conversavam.
O eahan não lhe respondeu, limitando-se a observar a mulher enquanto Ihjseorn ia traduzindo o que dissera aos homens de Horavog. Pegando na criança, esta vociferou algo aos céus ou à lua enquanto o bebê chorava de forma aflitiva e um dos ulkacr avançava, postando-se diante dela.
— Nós... temos de capturar aquela mulher — disse por fim, indicando-a com um gesto da cabeça e já nem pondo em causa os motivos ou as verdadeiras intenções de Ihjseorn. Chegara o momento de caçar, e o tempo de pensar acabara.
Porém, antes que pudesse dizer algo mais ou dar instruções a Deadan, a kuvamora pegou no bebe por ambos os pés com uma mão e deixou-o descair de cabeça para baixo como uma ave morta. Com a outra, desembainhou uma faca de cabo de chifre e lâmina de obsidiana, que ergueu a par do seu queixo, discorrendo em voz alta com o céu. Quenestil teve uma horrível premonição do que sucederia, mas o caçador em si esmoreceu brevemente e não ousou considerá-la, não acreditou que tal seria sequer possível. Aconteceu, porém, e a. mulher passou a faca de obsidiana com um gesto brusco entre as pernas do bebê, que guinchou de dor. O dilacerante vagido da criança foi abruptamente interrompido pelo ulkatr que se posicionara diante da kuvamora e que nela pegou com as suas grosseiras mãos peludas e providas de garras, levando-a à boca escancarada e nela cerrando as suas mandíbulas com um enojante ruído crocante.
Um outro grito de gelar o sangue fez-se então ouvir, e uma flecha rechinou pelo ar, embebendo-se no cachaço do ulkatr, que arqueou o pescoço para trás de sangrenta boca escancarada ao cair de frente. Todos olharam na direção da qual a seta viera, vendo um vulto delineado pelo lume das fogueiras de arco empunhado, mas antes que pudessem reagir, outra flecha voou, espetando-se na coxa da kuvamora. Um outro grito juntou-se ao primeiro, e um enorme guerreiro de aço assoberbou-se à beira do barranco, empunhando um enorme espadão que brandiu sobre a cabeça. Seguiram-se outros quatro, também armados e revestidos por aço, cada um a tentar exceder o grito do outro enquanto corriam pelo barranco abaixo num desenfreado frenesi.
Deadan foi o primeiro a chegar, e colheu um skrimmen com uma potente espadeirada, alçando-o pelo ar e deitando-o ao chão como um boneco de trapos sem ossos. Os ulkatr reagiram antes dos skrimmen, mas pouco mais puderam fazer além de rugir, eriçar o pêlo e arreganhar os dentes diante da carga dos quatro homens de Horavog. Hordur, Ohttur, Agtor e Engiv falquearam-nos e espadeiraram-nos selvaticamente com os seus machados e achas de armas, decepando braços e escachando cabeças sem nunca pararem de gritar, chegando um deles mesmo a cair ao chão com o ímpeto de um golpe. Ainda à beira do barranco, Quenestil disparou outras duas flechas em rápida sucessão, atingindo um skrimmen do lado oposto e falhando outro, que se refugiou atrás de uma árvore. O efeito de surpresa dissipou-se então, mas Deadan continuava a avançar de forma a não permitir que os adversários recuperassem, golpeando para a esquerda e para a direita em largos arcos que deixavam rastos de sangue e pedaços de peles no ar. Um ulkatr saltou para cima das costas de Ohttur, derrubando-o, mas Engiv despedaçou-lhe a coluna com uma machadada na ilharga. Um skrimmen conseguiu enristar um dardo e gritar algo, só para ser silenciado pelo baque surdo de uma flecha a embater no seu peito. Quenestil largou então o arco, desembainhou o facalhão e desceu a ladeira do barranco a correr de olhos fitos na kuvamora, que estava no chão, agarrada à perna ferida. Deadan deu mostras de uma boa visão táctica do pequeno cenário do combate, circundando-o e ocupando posições opostas às dos homens de Horavog de forma a isolar a kuvamora, por muito difícil que tal fosse, pois os quatro combatiam de forma errática e totalmente desenfreada, berrando como homens possessos. Correndo na direção da mulher, Quenestil viu que um ulkatr vinha dirigido a ele de cabeça baixa e braços de garras aos seus lados. Sem hesitar, o eahan enfrentou a sua carga e os dois correram um contra o outro como touros enraivecidos. Ambos saltaram e embateram em pleno ar com um grunhido e um rosnido, sendo que a superior arrancada e peso do ulkatr levaram a vantagem e projetaram o shura para trás, caindo ainda em cima dele e rebolando pelo chão. Apesar de o ar lhe ter sido contundido para fora dos pulmões, Quenestil debateu-se com o ulkatr agarrado a si, sentindo as garras rasgarem-lhe a roupa nas costas e agarrando-lhe a juba na nuca, puxando-lhe a cabeça para trás para o impedir de morder. O humanóide rosnou-lhe de forma aguda ao ouvido quando o facalhão do eahan se afundou no seu flanco. Garras afiadas rasgaram-lhe peles e carne do braço que empunhava a arma, e Quenestil retribuiu, torcendo a lâmina, o que fez com que o ulkatr inclinasse a cabeça para trás com a dor, permitindo ao eahan ficar por cima. Quenestil sacou então o facalhão do flanco do seu adversário e, antes que este pudesse puxar as garras que de imediato cravou nas suas costas, espetou-lha na boca escancarada. Este emitiu um gutural ronco sufocado, e o eahan arrancou a arma com um grunhido, erguendo-se e deixando o ulkatr a vasquejar no chão, tentando reposicionar-se após a desorientação do embate com o ulkatr. Sangrava da boca, pois mordera a bochecha no impacto, mas o sangue pouco mais fazia além de lhe dar um ar mais feroz ainda enquanto olhava para o violento combate em redor em busca da kuvamora. Viu-a ser assistida por um skrimmen, que tinha o seu braço sobre os ombros e que a tentava carregar para longe da ameaça, e foi na direção de ambos que o eahan se lançou.
Um skrimmen surgiu no seu caminho, berrando e brandindo uma maça de cabeça de bronze, cujo golpe Quenestil facilmente evitou, baixando-se e estocando o ventre exposto pela oscilação falhada. Puxando a faca e empurrando o homem para o lado com a mão esquerda, o eahan levou então o facalhão atrás e arremessou-o contra o skrimmen que carregava a kuvamora. A arma rodopiou pelo ar, oscilando pela pesada ponta, e enterrou-se em cheio nas costas do homem, que tombou em frente com um grunhido, arrastando a kuvamora consigo para o chão, e a mulher gritou ao cair com a perna ferida. A poucos passos do shura, Deadan despedaçou uma lança e a clavícula de um skrimmen com um golpe de espada, chutando outro no peito e atirando-o para cima de uma das fogueiras. Porém, um terceiro atacou o Ajuramentado por trás, e embora Deadan sentisse e visse o ataque na sua visão periférica ao virar-se e tentar desviar-se, o golpe de maça atingiu-lhe a cabeça de raspão, deitando-o pesadamente por terra. Um ulkatr atirou-se para cima de Engiv e este gritou ao ser por ele levado ao chão e golpeado, mas Agtor salvou-o, espetando as costas do humanóide com a sua espada tanarchiana. Este ainda reagiu, rugindo e contorcendo-se sobre Engiv com a lâmina espetada no seu corpo, tentando arranhar o seu agressor com as garras das pernas, mas o ruivo aproveitou então para, empunhando o seu machado perto da cabeça, enterrar a ponta da cunha na nuca do ulkatr.
Quenestil não perdeu mais tempo e correu para a kuvamora, praticamente saltando para cima dela e agarrando-lhe os braços. Foi surpreendido quando esta se soltou com uma brusca contorção e lhe cortou a palma da mão cora a afiadíssima lâmina de obsidiana da sua faca, ainda molhada com o sangue do bebe. Quenestil grunhiu com a inesperada dor, mas o caçador guiou a sua mão sã para o pulso da mulher, crispando nele os dedos com tamanha repentina força que esta cuincou e perdeu a força, largando a arma. O eahan torceu-lhe ainda o pulso, forçando-a a dar-lhe as costas, pegou na faca com a mão ferida e posicionou o nó do seu polegar debaixo da maxila da kuvamora, encostando-lhe a lâmina molhada à garganta. O repentino retesar dos músculos do corpo desta deu a entender que estava ciente do perigo, e o eahan puxou-a para cima pelo queixo com a ajuda da mão esquerda que lhe agarrava o pulso e lhe torcia o braço atrás das costas, o que a fez emitir um ruído sufocado que Quenestil ignorou com uma rosnadela, devolvendo então a sua atenção ao combate em redor.
— Quietos, ou ela morre! — berrou ao ver Deadan caído e que os quatro homens de Horavog começavam a perder o ímpeto. A mulher era mais alta que ele, e estava de costas arqueadas e praticamente apoiada sobre o seu ombro.
O grito do shura surtiu o efeito desejado, pois boa parte dos skrimmen e ulkatr se detiveram, mas os aliados de Quenestil estavam demasiado exaltados e tentaram tomar partido da hesitação dos seus adversários, o que em parte reiniciou a contenda.
— Parem todos, ou juro que lhe corto a maldita garganta! — praticamente urrou o shura, por pouco não partindo o braço da mulher ou sufocando-a com a pressão que lhe exerceu na garganta com o polegar.
Mesmo naquele momento de sentidos sobrecarregados e adrenalina aos jorros, Quenestil sabia no seu subconsciente que os skrimmen não compreendiam as suas palavras, mas confiava no discernimento destes para que compreendessem a sua ameaça, que por alguns momentos de simulação teve muito pouco. O combate cessou novamente, e desta vez os homens de Horavog não insistiram, olhando antes para Quenestil, ofegantes e com os nós dos dedos brancos da força com a qual empunhavam as suas armas. Deadan gemeu e soergueu-se com uma mão apoiada no chão e a outra sobre a cabeça, cujo cabelo estava empastelado de sangue. Para o alívio do eahan., os skrimmen tinham de fato levado a sua ameaça a sério e hesitavam, mas o seu alívio relaxou-lhe suficientemente a mão com a faca para que a kuvamora ousasse beliscar-lhe a parte de dentro da coxa. Quenestil grunhiu de olhos cerrados com a violenta pontada de dor, e então a nuca da mulher embateu contra a orla orbital do seu olho esquerdo. A cabeça de rena abafou o impacto, que ainda assim bastou para estontear o eahan e fazer com que largasse momentaneamente a kuvamora. Esta tentou fugir, mas a perna ferida cedeu e Quenestil cingiu-lhe a cintura com ambos os braços, alçando-a sobre si e fazendo-a embater de costas contra o chão com grande chocalhar dos seus ornamentos ósseos, o que lhe quebrou uma das hastes de rena. Antes que pudesse reagir, pôs-se em cima dela, agarrou-lhe o pulso direito e tornou a encostar-lhe a faca de obsidiana à garganta, o que deteve os skrimmen antes que estes pudessem reiniciar a contenda. Porém, não foi neles que a atenção de Quenestil se centrou naquele momento, pois a cabeça de rena descaíra com o embate e não mais ensombrava a cara da mulher.
A kuvamora tinha jovens feições oblongas com grandes olhos verdes, um nariz igualmente grande e uma boca de lábios finos com pequenos dentes amarelados. Era pálida, mas tinha a pele suja e cheirava a peles curtidas, e as tranças louras que se uniam sobre o seu peito tinham uma consistência sebosa. Todavia, houve algo na forma como o seu semblante contorcido de raiva, medo e dor se suavizou repentinamente ao fitar os selvagens olhos do eahan de boca sangrenta à luz das fogueiras, o que tanto mais tomou Quenestil de surpresa pelo fato de a troca de olhares ter nele um semelhante efeito de empatia.
— Karkkayu... — disse ela, meio em surdina.
Quenestil permaneceu silente, limitando-se a olhá-la de boca entreaberta, acometido por uma vaga sensação de reminiscência que fez com que olhasse para cima, para a lua que ainda se revelava entre a brecha nas nuvens.
— A lua ilumina o vosso caminho... — ecoou na sua cabeça a voz da nayana que se revelara a ele e a Slayra em Vau do Caar.
Quenestil abanou a cabeça, forçando-se a concentrar-se na situação em mãos, e obrigou a kuvamora a esticar o pescoço e erguer o queixo ao encostar-lhe novamente a sangrenta lâmina de obsidiana à garganta. Olhando em redor, constatou que todos os olhos dos skrimmen incidiam sobre si, e que embora continuassem de armas empunhadas, nem eles nem os ulkatr pareciam dispostos a perigar a vida da mulher, atacando.
— Ninguém se mexa — achou por bem advertir. — Ninguém se mexa, ou ela morre. Deadan, estás bem?
O Ajuramentado fez que sim com a cabeça ferida, erguendo-se com uma mão nela pousada. Os outros estavam ofegantes, suados e trêmulos com adrenalina por gastar, mas à parte Engiv, que se encontrava curvado e com uma careta de dor que a sua barba não podia esconder, não pareciam feridos. Os skrimmen agora dispostos num semicírculo pareciam incertos quanto ao que fazer, enquanto os ulkatr davam a idéia de apenas estarem à espera de uma desculpa para poderem investir e escalavrar os seus adversários. Quenestil ponderou as palavras enquanto se erguia e recuava na direção dos seus companheiros, mas o gesto deixou os skrimmen anda mais nervosos e alguns fizeram mesmo tenções de avançar, hesitando apenas quando o eahan forçou a kuvamora a erguer mais ainda o queixo com a ameaça da faca.
— Não se mexam! — reiterou, por falta de algo melhor para dizer. — Eu...!
— Lakkannata, jokkai! — vozeou Ihjseorn do cimo do barranco, atraindo para si as atenções, e só então Quenestil se apercebeu de que o homem, não participara no combate.
A sua vontade foi virar a cabeça para olhar para trás, mas não ousou tirar os olhos dos skrimmen e aproveitou apenas para recuar mais um pouco. Ihjseorn continuou a falar e desceu a ladeira, um palavreado do qual Quenestil não conseguiu perceber coisa alguma, mas que reteve a total atenção dos skrimmen. O wolhyno passou à frente do eahan, empurrando-o e à kuvamora delicadamente para trás com a mão enquanto parlamentava com aqueles que Quenestil julgara serem os seus inimigos. Ainda exaltados, os homens de Horavog olharam para o shura, partilhando exatamente os mesmos pensamentos, mas todos sabiam que aquele não era o local mais adequado para os discutir. Ainda meio zonzo, Deadan juntou-se a eles, empunhando o espadão com a lâmina para baixo e com morte nos seus olhos atiçados pela vergonha de ter sido o único no grupo a ser tombado. Embora por motivos diferentes, tanto o Ajuramentado como os homens de Horavog pareciam dispostos a continuar o combate, mas todos consultaram Quenestil com o olhar, e este, após fitar as costas de Ihjseorn com olhos semicerrados, gesticulou com a cabeça para dar a entender que deviam subir o barranco. Os skrimmen tornaram a mexer-se ao verem que os inimigos se iam escapar com a kuvamora, mas Ihjseorn ergueu as mãos, falando num tom de voz mais aplacante, e apontou para trás de si como se a explicar o que iriam fazer. Ainda que percebesse, o eahan não lhe pôde dar muita atenção, pois subir a ladeira de costas a puxar uma mulher mais alta que ele e com uma perna ferida provou não ser uma tarefa nada fácil, e Deadan teve que o assistir. Quenestil teve a presença de espírito para não ser demasiado bruto com a mulher ao arrastá-la, de forma a não providenciar a gota da qual os skrimmen aparentavam precisar para agirem, e esta na verdade facilitou-lhe a tarefa. A mulher não se debateu e deixou-se levar sem oferecer resistência, agarrando apenas com força o braço que empunhava a faca de obsidiana a ameaçar-lhe a garganta.
Assim que chegaram ao cimo do barranco, Ihjseorn olhou rapidamente para trás por cima do ombro e repetiu a sua ladainha, batendo com o punho cerrado no peito e apontando para os skrimmen e os ulkatr. Dito isto, virou-lhes as costas e começou ele também a subir a ladeira, o que originou alguns sussurros contritos da parte dos skrimmen, sem que contudo nenhum deles avançasse. O wolhyno falou-lhes uma última vez de costas, apontando para a kuvamora como se estivesse a reforçar uma idéia e de seguida para Deadan, que permanecia agarrado à cabeça. Quenestil e os outros receberam-no com olhares hostis e desconfiados, mas Ihjseorn não se deu por achado e virou-se para os skrimmen, lançando o que, a avaliar pelo tom, parecia ser um ultimato ou no mínimo um aviso. Aparentemente satisfeito com a tácita resposta destes, tornou a virar-lhes as costas e indicou aos outros com as mãos que era chegada a hora de partirem com certa celeridade. Assim fizeram, guardando as suas perguntas para outra altura, pois uma vez de costas para o inimigo, o seu impulso mais dominante era o de correr. Deadan manteve-se à retaguarda, olhando freqüentemente para trás, e Quenestil relaxou um pouco mais a posição com a qual retinha a kuvamora, que de resto não tentava sequer retardar o passo, coxeando em vez de se deixar arrastar. Porém, quando Ihjseorn se ajoelhou ao lado dela, esticando o braço para lhe tapar a boca e arrancando-lhe a flecha antes que esta tivesse sequer tempo de grunhir de dor, foi forçado a parar. A mulher recusou-se a dar aos seus captores a satisfação de um grito, mas de seguida Semicerrou os olhos e praticamente cuspiu ao falar.
— Kalttaya! — sibilou, obtendo em troca uma resposta algo descontraída do wolhyno, que olhava ocasionalmente para trás enquanto lhe enfaixava a perna para ver se estavam a ser seguidos.
— Belo tiro, Quenestil — elogiou, erguendo-se. — Vamos.
O eahan tinha uma série de perguntas que lhe queria fazer, mas naquele momento estava demasiado concentrado a pensar em como iriam escapar com uma refém em terreno acidentado sem superior mobilidade. Como poderiam criar distância, e o que impediria os skrimmen de os seguirem pela calada da noite fora até os surpreenderem? Isso, e o cheiro quase animalesco da kuvamora que lhe permeava as narinas, embevecendo-o com o seu primordial perfume mesclado com o cóbreo odor a sangue, e mantendo-lhe todos os sentidos despertos como um predador que enterrara os dentes na carne da sua presa. Tornava-se difícil pensar quando tinha de se concentrar em mantê-la suficientemente refreada para que não escapasse sem contudo dificultar-lhe a marcha que parecia disposta a acatar de livre vontade, apesar do ferimento. Era contudo o manter-se próximo dela que mais confundia o eahan, que se debatia com as razões pelas quais haveria de se ter lembrado das palavras da nayana em semelhante situação. Caminhando sem se concentrar verdadeiramente em onde punha os pés, conseguia apenas associar e dissociar sensações e cheiros comuns ou não a ambas as ocorrências, o que apenas o confundia mais.
— Sei que estão cansados — interrompeu Ihjseorn o que nele estava a passar por pensamentos —, mas o melhor é sairmos da floresta agora. No campo podem descansar um pouco.
Quenestil não discutiu e o wolhyno não se incomodou a traduzir, pois os homens de Horavog seguiam-no como membros de uma matilha, ainda ofegantes, alguns deles a soltarem longos e audíveis suspiros para soltarem a adrenalina que ficara por gastar. Ninguém viu, mas ouvi-los trouxe um sorriso à linha que era a boca de Ihjseorn.
Quando por fim saíram da orla do bosque, todos já haviam perdido a noção do tempo, tendo caminhado incessantemente sem qualquer outro objetivo em mente além de deixarem para trás as árvores e sombras que tantos perigos pareciam ocultar. Todavia, longe do abrigo das árvores, ficaram novamente expostos aos cortantes ventos, que lhes foram amortecendo o ânimo e entorpecendo os membros. Ainda assim, não se detiveram e continuaram a marchar até aquela que seria a madrugada, não nascesse o sol tão tarde no Inverno da Wolhynia. Porém, o motivo não foi cansaço, por muito que este já lhes toldasse os movimentos, mas sim um abrupto tombo de Engiv, que caiu desamparado ao chão. HOrdur tentou ajudá-lo a levantar, repreendendo-o por ser desajeitado e não ver buracos no escuro, mas o braço do ruivo permaneceu lasso e este deixou-se ficar de barriga para o chão, com o outro braço debaixo desta. HOrdur emitiu dois preocupados ruídos semelhantes aos que usaria para levar um rebanho de ovelhas a andar e ajoelhou-se, baixando a cabeça e falando com Engiv. Os outros juntaram-se-, incluindo Ihjseorn, que se manteve algo distante, e apenas Quenestil e Deadan permaneceram de parte, com o shura ainda a agarrar a kuvamora.
Os três homens de Horavog cercavam o quarto, falando todos ao mesmo tempo e virando-o, o que originou um gemido sofrido da parte deste. Com uma palavra e um toque da mão num ombro, Ihjseorn afastou-os prontamente e ajoelhou-se ao lado de Engiv, tirando-lhe a mão de cima da barriga e tenteando-lha. Descobriu dois buracos úmidos na túnica acolchoada sobre o ventre e, ao erguer os dedos enluvados à pálida iluminação da noite, constatou que estavam escurecidos com sangue. Sem meias medidas, desatou-lhe o cinto e’ puxou-lhe a túnica para cima, o que lhe valeu um fraco protesto do ruivo, e emitiu um ruído gutural ao ver os dois buracos na pálida barriga, abanando a cabeça.
— Vai morrer — declarou, tornando a cobrir o ventre de Engiv, que rebolou para ficar novamente de barriga para o chão. — Diydr haglar,
— Morrer? — repetiu Quenestil, praticamente ao ouvido da kuvamora. — Mas... nós ainda podemos subir as montanhas. Em Horavog...
— Mesmo que soubessem curar esta ferida, ele não chegaria a tempo — disse Ihjseorn, ainda de joelhos e a abanar a cabeça.
— Não podemos...
O eahan não terminou, pois a kuvamora virou ligeiramente a cabeça inclinada para o lado, e um olho verde reteve ambos os de Quenestil, cuja frase esmoreceu num som sibilante que acabou por se dissipar. Não havia nenhuma emoção em particular patente no orbe da mulher, que o fitava algo de cima e de boca entreaberta, mas foi quanto bastou para que o eahan não visse Ihjseorn desembainhar uma faca. Só despertou ao ouvir o acerado som de aço a rasgar carne e rachar osso, vendo então que o wolhyno puxara a cabeça de Engiv para trás pelos cabelos e lhe trespassara a cervical com a sua faca.
— Não! — gritou, largando a kuvamora e empurrando-a para cima de Deadan, que se sobressaltou quando a mulher embateu contra a sua couraça, agarrando-a algo atrapalhado.
Fumegando do nariz, Quenestil caminhou a irados passos na direção de Ihjseorn, que limpou a lâmina na túnica de Engiv e se ergueu. Os três restantes homens de Horavog não reagiram à morte do seu companheiro, mas recuaram diante da aproximação do eahan.
— E melhor deixá-lo aqui — recomendou despreocupadamente o kahrkr, embainhando a faca. — Se os skrimmen nos seguirem, podem aceitar este nosso sangue derramado pelo deles...
Quenestil interrompeu-o, empurrando-o bruscamente pelo peito e achegando-se dele com o indicador hirto debaixo do nariz e com os nós dos dedos da mão que empunhava a faca encostados ao seu queixo. Os homens de Horavog encolheram-se com o contato, como se esperassem que algo fosse rebentar.
— Por que é que fizeste isso, maldito? Por é que o mataste?
— Ele ia morrer... — disse Ihjseorn, empurrando-lhe a mão para o lado, mas Quenestil não abrandou e foi de peito contra o do wolhyno, encostando a testa à dele como um bisonte o faria em contenda com outro e esborrachando-lhe o nariz com o seu.
— Não abandono quem luta a meu lado! — gritou o eahan, apontando para o cadáver de Engiv. — E ele lutou mais do que tu! O que estiveste tu a fazer? Escondeste-te!
Ihjseorn não respondeu, mas o seu olhar frio preludiava uma reação drástica, cuja eminência fez com que Deadan soltasse uma das mãos com as quais retinha a kuvamora, levando-a ao punho do espadão.
— Ainda não compreendes — limitou-se o wolhyno a suspirar, recuando um passo com uma mão no peito de Quenestil para o impedir de avançar. — Mas em breve compreenderás.
O shura ainda não dissera a sua última palavra, mas Ihjseorn antecipou-se, apontando para a kuvamora.
— A criança que ela ofereceu ao ulkatr foi o sacrifício para a sede de sangue da caçada — explicou, esfregando alguns perdigotos do eahan sobre a sua boca. — O sacrifício de carne pura, tal como a Mãe o pede.
— O quê?
— Com ela nas tuas mãos, os skrimmen perderam os dentes — continuou o wolhyno, sem dar seguimento à anterior afirmação e tirando lentamente a mão do peito do eahan. — Não vão atacar Horavog.
— A Mãe o quê...? O que estás a dizer?
— Paciência, Quenestil — pediu Ihjseorn, virando-se de ombro para ele. — Em breve compreenderás. Por agora, Horavog está a salvo.
— O quê...? Espera, nem penses que vais...
— Vou — afirmou o wolhyno com finalidade, virando-lhe então definitivamente as costas e despedindo-se com um gesto. — Leva a kuvamora a Horavog. Podes fazer o que quiseres com ela, desde que fique viva.
O breve impulso de Quenestil foi saltar sobre as costas de Ihjseorn e esmagar-lhe a cabeça contra a pedra basáltica do solo, mas eram considerações a mais para um caçador, e por aquela altura já a racionalidade se sobrepusera ao espírito do volverino. Ainda hesitou e deu um passo em falso, mas acabou por simplesmente ficar a ver Ihjseorn caminhar pela noite fora, com a sua pele de urso branco a esvoaçar-lhe às pernas com o vento. Respirando aceleradamente como se tivesse acabado de sair de um combate, o eahan exalou para fora o que lhe sobrava de raiva e frustração com um urro de frustração, virando-se então para os homens de Horavog e atirando-lhes a faca de obsidiana aos pés, partindo-a.
— E vocês? — perguntou, apontando-lhes um dedo acusador. — Por que não fizeram nada? Deixaram-no matá-lo à vossa frente?
Hordur e Ohttur não perceberam as palavras, mas o tom era evidente e os dois escudaram-se atrás de Agtor, que tartamudeou algo antes de falar.
— Quenestil... Engiv era um mancípio...
O eahan estava sem palavras e demasiado enervado para articular as poucas que por acaso lhe ocorriam, pelo que se limitou a rosnar e a avançar alguns ameaçadores passos, que fizeram com que os três recuassem.
— Um de vocês vai levá-lo, nem que seja às costas — disse praticamente através dos dentes cerrados, virando-se então para Deadan. — Anda, Deadan. Não a largues por nada.
Dito isto e sem esperar por uma resposta, o eahan tomou então a dianteira do grupo, marcando um apressado passo rumo às montanhas em frente. Não queria falar, não queria que lhe fizessem perguntas, e acima de tudo não queria olhar mais para a kuvamora. Tal era o turbilhão de emoções conflituosas que lhe atormentavam o espírito, que a idéia de subir uma montanha não o intimidou de todo. E que os azigoth levassem os outros, ou que morressem de frio ao vento se não fossem capazes de o acompanhar.
A última coisa de que Aewyre se lembrava era de ter encalhado Ancalach entre as hastes da roda do moinho, um movimento mais instintivo do que propriamente ponderado, do frio gelado das águas do Olyf, e depois a escuridão. Não sabia dizer ao certo se acordara ou não desde então, incapaz de associar toda uma série de impressões a um estado desperto. Sentia calor, em oposição ao frio do rio, mas ao mesmo tempo estava tão alagado como se ainda estivesse meio submerso em água. Não... houvera algo mais... sim, uma mão. Uma mão fria a esfregar-lhe a testa. Uma mão que pertencia a uma cara, essa febrilmente turva, e que lhe dirigira palavras incompreensíveis. Uma maviosa voz de mulher, labaredas de tochas a bruxulearem, e depois novamente a escuridão. Tinha a impressão de que a cena se repetira várias vezes, ou então era ele próprio que a rememorava, sendo as vagas memórias preferíveis à escuridão. Nem sabia dizer se estava consciente, sentindo-se antes numa espécie de limiar do qual ora deslizava para um estado desperto, ora escorregava de volta para as trevas da inconsciência. Era-lhe igualmente difícil dizer quanto tempo passara, pois perdera completamente a noção, e o seu corpo estava de tal forma exaurido que a vaga sensação de segurança foi quanto bastou para o impedir de despertar por completo.
Quando por fim acordou, a sua visão levou algum tempo a focar-se, e assim que o fez a primeira coisa que viu foram camadas de cascas de árvore sobre uma armação de madeira. Um teto. A sua nuca estava apoiada sobre algo macio, e o jovem virou a cabeça para ambos os lados, constatando que se encontrava numa exígua sala com uma janela fechada. Era iluminada por uma única tocha na forma de um pau com um cilindro daquilo que parecia ser casca de árvore enrolada, e que pendia de um dos cantos da parede. Lá fora ouvia-se o incessante bater da chuva, e a avaliar pelo ruído encontrava-se perto de um curso de água, se não mesmo ao lado deste. Com um grunhido gutural, Aewyre mexeu-se e tentou erguer o torso, cerrando um olho devido às dores musculares que sentiu. Parecia que o seu corpo inteiro fora surrado, o que nem estava muito longe da verdade, e os seus membros protestaram com a tentativa de se erguer, pelo que Aewyre cedeu, deixando-se descair e soltando um arquejo. Estava envolto numa pesada manta quente, sem dúvida a responsável pelo fato de estar alagado no seu próprio suor, que lhe queimava as feridas, e empurrou-a com um gesto brusco das mãos para deixar o tronco exposto, bufando. Tinha a camisa ensopada e colada à pele, mas reparou que lhe faltavam as calças e a armadura, e nesse momento o seu coração jorrou-lhe calor adicional que se alastrou pelo seu peito fora, impelindo-lhe o torso para cima. Preocupado, olhou em redor e viu que as peças se encontravam arrumadas a um canto junto a uma série de fardos e bugigangas, mas Ancalach não estava à vista. Levantando-se, o jovem levou as mãos à cabeça e puxou os cabelos, e os alicerces do seu mundo começaram a ruir com a simples idéia de ter perdido Ancalach, de a Espada dos Reis ter ido parar ao fundo do rio.
— N’iahu lavia? —- disse uma voz vinda do chão, sobressaltando o guerreiro, que se virou repentinamente e olhou para baixo.
Uma cabeça de mulher surgira de um alçapão que Aewyre não vira da sua posição deitada, e embora recuasse inicialmente com uma expressão surpresa peia reação do guerreiro, as suas feições amainaram logo de seguida e sorriu-lhe. Ainda atarantado pelo seu recente despertar, Aewyre não associou de imediato os cabelos negros, olhos verdes, pele morena e fisionomia exótica a nada de concreto, mas assim que a mulher tornou a falar percebeu. Uma eahanna bruna, ou eahanna da floresta, uma raça da qual o jovem apenas ouvira falar sem nunca ter visto. Aewyre sempre julgara que, sabendo falar Fialass, compreenderia qualquer eahan, mas tal provou não ser o caso. De qualquer forma, ficou demasiado distraído a observar a eahanna para ouvir com atenção, momentaneamente absorvido pela beleza da recém-chegada que, embora não tivesse a aura feérica das eahlanas, tinha um encanto muito próprio e singular. A sua cara era longa e angulosa, quase retangular e com uma testa alta e malares salientes que lhe davam um ar distinto, esse mitigado pelos seus doces olhos cor de esmeralda debaixo de finíssimas sobrancelhas arqueadas. A cor dos seus orbes era tanto mais relevada pelo tom moreno da sua pele, que à luz da tocha quase aparentava ter uma textura de madeira polida. Os seus cabelos negros estavam enleados numa série de tranças com coloridas contas de madeira, de entre as quais despontavam as pontas de duas orelhas foliformes.
— Vel iann tuon? — indagou Aewyre em Fialass, interrompendo o que quer que ela estivesse a dizer.
A eahanna calou-se, arregalando as sobrancelhas ao ouvir uma fonética semelhante à sua, sem contudo perceber as palavras. Fazendo que não com a cabeça, embora o seu sorriso afável de lábios finos permanecesse, subiu mais uns degraus da escada do alçapão, continuando a fazer aquilo que pareciam ser perguntas na sua ininteligível língua.
— Onde está a minha espada? — lembrou-se então o guerreiro, repreendendo-se a si mesmo por ter baixado a sua guarda só por ver uma cara bonita. Podiam ser eahan, mas depois de tudo o que lhe acontecera, o jovem não estava disposto a confiar em pessoa alguma sem mais nem menos.
Uma das delicadas sobrancelhas da eahanna ergueu-se, e esta tornou a abanar a dúbia cabeça.
— Espada — explicou o guerreiro, executando um movimento como se estivesse a desembainhar uma, seguido de alguns golpes no ar. — Tching, tching. Onde está a minha espada?
— Ah — exclamou a eahanna, recomeçando então a palavrear, apontando para baixo e fazendo gestos apaziguadores com as mãos.
«Não se perdeu. Graças aos deuses...», pensou Aewyre com incomensurável alívio, encostando-se à parede e suspirando ao perder o arroubo de energia que fizera com que se levantasse.
A eahanna sorriu e subiu o resto dos degraus, aproximando-se então do jovem. Era alta e de membros compridos, com ancas estreitas e um peito pequeno que mal se revelava debaixo do seu corpete de couro. Aewyre não lhe deu mais atenção, pois a sua visão apagou-se por um breve instante, durante o qual descaiu ligeiramente contra a parede e levou a mão à testa, acometido de tonturas. Mãos de dedos fortes agarraram-lhe os ombros, puxando-o na direção do catre no chão, e Aewyre resistiu um pouco de início, mas a eahanna parecia genuinamente preocupada com ele, e a sua insistência acabou por o convencer a deixar-se levar. Estava de fato mais fraco que o que pensara, e foi só com a ajuda da mulher que não se deixou simplesmente cair sobre o catre assim que se acocorou. Encorajando-o com palavras que o guerreiro não compreendia e tornando a tapá-lo com a manta, a eahanna afagou-lhe os cabelos para o sossegar. Sem que Aewyre visse, surgiu outra cabeça do alçapão, que trocou olhares com a eahanna enquanto esta umedecia um pano numa taça de casca de árvore para com ele esfregar a testa do guerreiro. Porém, Aewyre não pôde deixar de o ouvir a subir os últimos degraus, e ergueu a cabeça, tirando de cima dela o pano. O recém-chegado era um eahan, alto como a sua congênere e pouco mais encorpado que ela, também com os cabelos entrançados e vestido de couro, embora sem contas nas tranças. A sua cara era um pouco mais austera, mas partilhava semelhanças fraternais com a da eahanna, tendo apenas as sobrancelhas mais direitas e os lábios mais cheios.
— Palablas Leriat? — perguntou com uma voz canora.
— Não. Glottik — respondeu o guerreiro, ainda a agarrar com força o pano que a eahanna tentava reaver.
— Ah, ainda bem. O meu Leriat é horrível — sorriu o eahan, avançando uns passos para que Aewyre não tivesse que estar de cabeça erguida para o olhar.
Ainda assim, foi preciso a eahanna empurrar delicadamente a sua cabeça com a palma da mão para que o jovem a pousasse, conseguindo apenas então arrancar-lhe o pano da mão para lhe tornar a esfregar a testa.
— O meu nome é Nan’taur — apresentou-se. — E esta é Aiun’alla, a minha irmã. Foi ela que te encontrou.
Ainda meio entontecido, Aewyre virou a cara para a eahanna, que ergueu os olhos verdes e sorriu ao ser fitada. O guerreiro levou algum tempo a perceber que o silêncio se devia ao fato de Nan’taur estar à espera de ouvir o seu nome.
— Chamo-me Aewyr... — apesar de zonzo, as semanas que passara a usar um nome falso haviam-no deixado atento sempre que alguém lhe perguntava pelo nome. «Oh, porra...», praguejou, apercebendo-se de que era tarde demais. — Aewyre.
— Aewyre — repetiu a eahanna, pronunciando a palavra como algo de estranho e maravilhoso.
— Estavas ferido e agarrado a uma roda de madeira, Aewyre — explicou Nan’taur com um sotaque bastante aceitável, no qual se destacava sobretudo a forma aspirada como enunciava as palavras. — Tiveste febre, mas a Aiun’alla tratou de ti com chá de bétula.
— Au — protestou o guerreiro, tornando a virar a cara para a eahanna, que recolheu a mão. Estivera a esfregar-lhe com o pano molhado uma das feridas que lhe ardiam na cara com o suor.
— Não te preocupes — disse Nan’taur, acocorando-se aos pés de Aewyre. — É teia de aranha. Pode parecer-te estranho, mas vai-te fazer bem às feridas.
De fato, o jovem não viu com bons olhos a substância sedosa que pendia dos dedos da eahanna, que aproximou lentamente a mão como em pedido de permissão, mas acabou por aceder e virar a cara. Não fosse pelo suor a queimá-los, mal estaria ciente dos seus ferimentos, mas achou perfeitamente evidente que teria bastantes. Atravessara paredes, fora projetado por rajadas de Essência e caíra repetidamente sobre as mais variadas coisas. Era até de admirar que não tivesse nada partido.
— Onde estou? — perguntou enquanto Aiun’alla lhe cobria as feridas com teia com delicados toques dos dedos, repetindo o seu nome em surdina.
— O sítio onde estamos não tem nome — esclareceu Nan’taur. -— Mas estás no Brejo dos Patos, na fronteira de Nolwyn e Laone.
— Fronteira... oh, deuses, a Layaline! Làriana! — lembrou-se o jovem, erguendo novamente o torso de rompante e sobressaltando Aiun’alla, que contudo se recompôs a tempo de lhe pousar as mãos sobre os ombros para o reter.
— Que se passa? — indagou o eahan de sobrancelha erguida. Apesar da sua postura amigável, havia nele uma inegável desconfiança quanto à presença do humano.
— Eu... eu tenho de ir! Os meus amigos...!
— Ainda estás fraco. Precisas de repousar. E com esta chuva nem mesmo nós, que vivemos nos pântanos, nos atrevemos a ir caçar...
— Vocês não compreendem. Eles...
— Pensa assim — recomendou o eahan, erguendo ambas as mãos. — Vais poder fazer alguma coisa se morreres, sozinho e perdido nos pântanos? Chove tanto que quase não vês dois passos à frente, e o rio corre com tanta força que te podes afogar se a água subir mais.
— Mas... eu... — tartamudeou o jovem, resistindo à delicada pressão que Aiun’alla exercia sobre os seus ombros. Layaline e Làriana, teriam elas conseguido chegar à outra margem? E Kror? Se algo lhe tivesse acontecido, era quase tão mau como perder Ancalach, pois significaria que não teria qualquer hipótese de obter o domínio sobre a Essência da Lâmina.
— Descansa. Amanhã a chuva pára. Se já estiveres restabelecido, podemos levar-te para fora dos pântanos.
— Como sa... — Pergunta estúpida. Quenestil sempre parecera capaz de prever o tempo só de olhar para o chão. — Amanhã? — repetiu, deixando-se então descair uma vez mais com uma careta de dor, acompanhado pelas mãos de Aiun’alla.
— Sim, amanhã — assegurou-lhe Nan’taur, concordando tranqüilamente. — Sara as tuas feridas. Hoje és nosso convidado.
Aewyre tinha uma série de perguntas para fazer, mas havia algo nos eahan, em todos os eahan, que fazia com que uma pessoa se sentisse levada a confiar neles sem reservas. Eram invariavelmente de uma sinceridade e candura que tornavam difícil desconfiar deles, e mesmo Quenestil, o mais temperamental eahan que o jovem alguma vez conhecera, era das poucas pessoas com as quais sabia poder contar para qualquer eventualidade, mesmo se não fosse seu amigo. Além do mais, ocorreu-lhe uma forma de aliviar um pouco as suas apreensões, mas para isso teria de estar sozinho, pelo que optou por facilitar a tarefa de Aiun’alla para que esta se retirasse quanto antes. A eahanna esfregou-lhe um pouco mais de teia num corte na maçã do seu rosto, deixando de seguida a sua mão pousar sobre o restolho de barba na face do humano. Aewyre franziu as sobrancelhas, mas a eahanna deslizou-lhe a fascinada mão pelo restolho abaixo, guinchando de surpresa ao fazer o mesmo para cima e sentir as ligeiras picadas. Nan’taur sorriu e a sua irmã riu, partilhando com ele algo a rir que Aewyre não percebeu, embora compreendesse a reação. Eahan não tinham crescimento piloso nos seus corpos além dos cabelos e sobrancelhas, e o jovem desde a puberdade que se habituara às reações destes ao visitar Edranil, a aldeia de Quenestil.
— A minha irmã vai dar-te uma coisa para as dores no teu corpo — disse Nan’taur, retirando-se para o alçapão. — Vemo-nos mais tarde, se já estiveres melhor.
— Sim... obrigado, Nan’taur.
O eahan aceitou o agradecimento com um aceno da cabeça e um meio sorriso, descendo então a escada. Sozinho com Aiun’alla, Aewyre ficou quieto e calado para que esta pudesse acabar o que tinha a fazer e deixá-lo sozinho. Pôs mesmo a cabeça de lado para não a fitar e não dar azo a qualquer conversa, que de qualquer forma não compreenderia, mas não pôde deixar de olhar abruptamente para ela quando Aiun’alla o destapou e lhe puxou a camisa para cima. Aparentemente divertida com a sua reação, a eahanna sorriu-lhe e tirou mais cascas de árvore de uma bolsa de couro no seu cinto, mantendo-as todas numa mão enquanto passava a outra pelo suado torso de Aewyre acima. Estar sozinho num quarto com uma mulher bonita a afagá-lo não lhe era uma sensação de todo estranha, mas naquele preciso momento a idéia não lhe passara pela cabeça e nem sequer lhe parecia apelativa. Porém, Aiun’alla não sorria e limitou-se a tentear-lhe os músculos, mantendo-se atenta às reações do guerreiro e pousando-lhe a úmida parte interior das cascas sobre as zonas que, quando pressionadas, faziam Aewyre estremecer. O jovem deduziu que não passava de um tratamento e deixou-se estar enquanto a eahanna o continuava a tentear e a pousar-lhe cascas úmidas sobre os músculos, inclinada sobre ele e com as tranças pendentes a balouçarem sobre a sua cara. O nariz ligeiramente adunco de Aiun’alla ia-se mexendo ocasionalmente, como se a eahanna estivesse a captar um cheiro curioso que Aewyre deduziu que só podia ser o seu. As eahannas de Edranil sempre lhe haviam dito que cheirava de maneira diferente, e Quenestil corroborara a impressão tal como Aiun’alla o fazia de forma mais discreta naquele preciso momento. Embora fosse sempre um assunto interessante para elaborar na presença de eahannas devido aos tópicos que invariavelmente abria e à proximidade corporal à qual acabava por levar, Aewyre estava com demasiado na sua cabeça para sequer pensar nisso. Quando a eahanna passou para as pernas foi-lhe contudo mais difícil abstrair-se, e as suas reações foram mistas enquanto esta lhe apalpava as coxas e as cingia com panos para manter presas as cascas. Fazendo os possíveis para se manter indiferente, deixou Aiun’alla fazer o seu trabalho, e quando a eahanna terminou, puxou a camisa do guerreiro para baixo, tapou-o novamente, despediu-se dele com um sorridente afago na bochecha, e foi descer a escada do alçapão.
— Aewyre — disse à laia de despedida com um último sorriso antes de desaparecer.
Por fim sozinho, o jovem inspirou fundo e expirou, abstraindo-se do contato úmido das cascas de árvore sobre a sua pele e concentrando-se no «tendão». Este não passava de uma sensação tênue sempre que Kror se encontrava longe, uma ligeira tensão na sua cabeça que não mais incomodava o guerreiro, desde que não se concentrasse nela. Era bom sinal, o fato de ainda o sentir, pois só podia significar que Kror estava vivo, ou pelo menos assim quis acreditar. Em busca de certezas, Aewyre focou-se na singular tensão na sua mente, abstraindo-se dos seus restantes sentidos e entrando num reino da percepção que não mais o confundia, onde as sensações eram afiadas como um gume e os pensamentos retos como uma lâmina. Direto corno uma estocada, Aewyre concentrou-se em Kror, rememorando o silvar e o embate das espadas de ambos durante os seus muitos combates e seguindo-os como um rasto deixado para trás por uma presa. Deu-se então o inevitável contato na forma de um silvo e um entrechocar acerado que tantas vezes antes o havia sobressaltado, e Aewyre soube que o drahreg estava vivo. As consciências de ambos rilharam uma na outra como lâminas com entalhes, e rugas riscaram brevemente a cata do jovem quando este a franziu, mas já estava suficientemente habituado para não romper o contato. O «tendão* rangeu diante da insistência do guerreiro, mas Aewyre ignorou-o e arremeteu como se quisesse enfiar mais fundo uma espada em alguém, determinado a saber algo mais acerca da condição de Kror. Já antes conseguira sentir as impressões do drahreg com contato estabelecido, e tentou fazer o mesmo, procurando unir a sua consciência à dele como duas espadas entrecruzadas. Porém, Kror pareceu achar a manobra demasiado invasiva e, instintivamente ou conscientemente, resistiu. As duas lâminas que eram as consciências de ambos deslizaram uma pela outra como hirtas cobras de aço, comunicando através de silvos e rilhaduras. Estava a salvo, mas mais do que isso não diria.
Aewyre ainda tentou o equivalente a uma torção de lâmina, procurando penetrar a guarda mental do drahreg para saber mais, mas Kror pareceu antecipá-la e rompeu contato, abrindo os olhos do jovem com um seco ruído metálico cujo eco lhe ficou a vibrar nos ouvidos. Aewyre piscou os olhos repetidas vezes, reambientando-se à sensualidade mundana confinada à exígua câmara na qual se viu uma vez mais. Sentiu-se algo frustrado e agravado pela resistência de Kror, mas ao mesmo tempo aliviado por saber que este se encontrava vivo e aparentemente bem, a avaliar pela pertinácia que revelara. Embora não soubesse se tal era ou não possível, teria gostado de saber através do contato se Layaline e Làriana também estavam bem, razão pela qual insistira.
«Bom, ao menos esta vivo, graças aos deuses. E agora sabe que estou vivo também», conformou-se o jovem.
Soltando um suspiro, Aewyre sentiu a fadiga que até então ignorara infiltrar-se pelos seus convalescentes músculos fora, e o calor da manta e o ruído da chuva começaram a embalá-lo. Sabendo que estava em segurança, que Ancalach não se perdera e que Kror continuava vivo, deixou de ter razões para permanecer acordado, e não teve grandes dificuldades em deixar-se adormecer num sono restabelecedor.
Quando acordou, a tocha ainda ardia e o ruído de chuva no exterior não parecia ter amainado de todo. Aewyre questionou-se mesmo se sequer dormira, mas ao examinar a tocha com mais atenção, constatou que a casca enrolada fora substituída. Olhando em redor, viu que tudo o resto se encontrava na mesma, incluindo a taça de casca com água e um pano a seu lado, e apoiou-se nos cotovelos para erguer um pouco o torso. Embora ainda ressentidos, os seus músculos não mais lhe doíam tanto, e o jovem conseguiu pôr-se sentado e de pernas cruzadas sem muitas caretas. As cascas de árvore debaixo da sua camisa deslizaram-lhe até à barriga, e o guerreiro puxou a camisa para cima para as remover. Foi então que distinguiu o odor a assado no meio do cheiro a verde e molhado da câmara, e a sua boca começou prontamente a salivar, motivando-o a levantar-se. Os seus músculos convalescentes não gostaram, mas também não cederam e o guerreiro agüentou-se bem de pé sem ter de se apoiar à parede, sofrendo apenas uma ligeira vertigem quando o sangue lhe desceu da cabeça. Olhou para o alçapão, do qual provinham ruídos de vozes e o cheiro a assado, e ergueu-se sobre bicos de pés de pescoço esticado para espreitar discretamente de cima, vendo apenas braços e cabeças de relance. Ponderou se devia ou não descer, e optou por espreitar primeiro pela janela fechada por uma adufa, da qual pendia uma vara de suporte que o jovem usou para a abrir, apoiando-a então no caixilho. A chuva respingou-lhe imediatamente as pernas desnudas e cingidas por panos, mas o guerreiro não fez caso e espreitou para o exterior.
À primeira e turva vista, parecia uma vila brejosa de meia dúzia de cabanas sobre palafitas com descaídos tetos lanceolados. Tinham todas dois pisos e um juncal de foguetes aos seus pés, e estavam harmoniosamente montadas entre os choupos, salgueiros, bétulas e ciprestes do pântano. As habitações encontravam-se acima do nível da água graças às palafitas, mas este subira consideravelmente e ameaçava começar a lamber as plataformas inferiores. Aewyre olhou um pouco mais em redor enquanto desatava os panos nas suas pernas, mas não conseguia distinguir qualquer atividade no meio da chuva e acabou por fechar a janela. O cheiro a assado começou a ser irresistível, e o guerreiro acabou por se ver atraído para o alçapão, que optou por fim por descer assim que vestiu as suas calças. As suas pernas tremeram um pouco, mas o guerreiro ferrou os dentes e continuou a descender à medida que os sons da chuva e vozes lhe subiam pelas costas. A primeira coisa que viu através dos degraus de madeira da escada foram dois eahan brunos acocorados diante de uma fogueira sobre a qual assava uma grande ave depenada. Estes calaram-se assim que o viram, fitando-o de bocas fechadas, e Aewyre olhou de esguelha para ambos os lados antes de assentar o pé na plataforma. Havia outros eahan presentes, incluindo duas eahannas, todos de cabelos entrançados e com traços fisionômicos semelhantes aos de Aiun’alla e Nan’taur.
— Aewyre. Acordaste a tempo — ouviu a voz deste.
O eahan e a sua irmã estavam acocorados atrás do guerreiro, e preparavam uma refeição qualquer dentro de recipientes de casca de árvore. Quando Aewyre se virou para os eahan, estes sorriram-lhe, e Aiun’alla apontou para ele, dirigindo-se aos seus conterrâneos com uma série de palavras, das quais Aewyre apenas percebeu o seu nome. Os eahan cumprimentaram-no então todos em coro, baixando ligeiramente as cabeças, e o jovem retribuiu, erguendo a mão à laia de saudação.
— Íamos começar agora a comer. Como te sentes? — indagou Nan’taur.
— Melhor — respondeu o jovem, girando o braço direito pelo ombro e inclinando o pescoço na direção oposta, pouco à vontade com toda a silenciosa atenção que recebia dos eahan.
— Ainda bem. Senta-te — disse, indicando a Aewyre o chão coberto de peles sobre o qual os restantes eahan estavam acocorados ou deitados- — Pega numa pele, se tiveres frio.
— Onde... onde está a minha espada? — perguntou, olhando para o chão atapetado com peles curtidas.
Nan’taut hesitou, mas acabou por apontar para algo enrolado em peles e que se encontrava no meio dos eahan como um mero recosto. A vontade do jovem foi pegar nela de imediato, mas reteve-se, ciente de que tal gesto poderia ser não só desrespeitoso como também assustador para com os seus anfitriões. Deu-se por satisfeito pelo fato de a espada estar a salvo e fez como Nan’taur lhe dissera, pedindo silenciosamente licença e mantendo uma certa distância dos eahan ao sentar-se de pernas cruzadas e cobrir os ombros com uma pele. A plataforma era mais comprida do que larga, e todos tentavam manter-se o mais próximo possível da fogueira, o que deixava pouco espaço para que se quisesse manter à parte. Ninguém lhe dirigiu palavra, mas todos o olhavam de forma mais ou menos discreta, mesmo os que continuaram a falar uns com os outros.
— Tu... falas muito bem Glottik — comentou, por falta de algo melhor para dizer.
— Obrigado. Era o meu pai que falava com os humanos quando eles ainda vinham comerciar conosco. Ensinou-me Glottik e um pouco de Leriat.
— Estou a ver...
Nan’taur não elaborou mais, e como tanto ele como a irmã pareciam ocupados com o que estavam a fazer, Aewyre cruzou os braços e olhou em redor para estudar as suas cercanias. Havia teias de aranha com gotas de umidade nos cantos da cabana, e cada uma tinha pelo menos duas caixas pendentes que mais pareciam casas para pássaros. Os foguetes serviam quase de cerca a cada uma das habitações, pendendo vergados e ensopados aos pés destas, e entre estes encontravam-se embarcações chatas com remos. Edranil, a aldeia de Quenestil, não era muito diferente de uma comunidade rupestre nolwyna, mas aqueles eahan brunos pareciam viver em condições bem mais toscas que as que seriam de esperar da raça. Podiam não ser quase místicos como os Eahlan, mas entre os humanos havia ainda a concepção quase supersticiosa de que qualquer eahan era obrigatoriamente asseado, impecavelmente vestido e que vivia em habitações feéricas de madeira viva.
— Pensava que vocês viviam na floresta — saiu-lhe de repente. Nan’taur parou brevemente o que estava a fazer, sem contudo responder, e retomou a sua tarefa, levantando-se e dizendo algo à sua irmã enquanto trazia as taças de casca de árvore para a fogueira. Aewyre julgou tê-lo ofendido de alguma forma, pois mesmo à sua frente o eahan nada disse, limitando-se a distribuir as taças pelos convivas. Quando se preparava para pedir desculpas pelo que quer que pudesse ter dito de inconveniente, Nan’taur respondeu-lhe por fim.
— Sim, nós vivíamos na floresta. Muitos, muitos anos atrás — explicou, servindo a primeira taça e mandando-a passar a Aewyre através das mãos de outros eahan. — E meliaig. Vocês, humanos, chamariam a isso cerveja, mas nós a fazemos com resina de bétula.
O guerreiro agradeceu o privilégio de convidado, erguendo a taça em saudação, e bebeu. O líquido castanho tinha um sabor algo adocicado e acre, e embora fosse provavelmente um gosto adquirido não era mau de todo, pelo que tanto o acenar de cabeça como o lamber do lábio superior do jovem tiveram um mínimo de sinceridade. Os eahan anuíram e beberam eles também.
— E por que vieram para os pântanos? — persistiu Aewyre, ao contrário do que julgava ser sensato. Estava genuinamente curioso, pois sempre pensara que a floresta fazia tanto parte dos eahan brunos quanto a montanha dos eahan rúbidos como Quenestil.
Nan’taur tornou a não responder de imediato, e um outro eahan mais velho e de pronunciados malares pareceu perguntar-lhe o que se passava. O eahan, mais jovem respondeu, e o outro abanou a cabeça, gesticulando com a mão como se este estivesse a preocupar-se desnecessariamente.
— No início, há muitas eras, os humanos tinham medo das florestas — explicou então enquanto continuava a servir taças, sem nunca olhar para Aewyre. — Eram escuras, misteriosas, e criaturas perigosas caçavam nelas. Nós vivíamos em paz, eahan castanhos e vermelhos, ou... como dizem vocês?
— Brunos e rúbidos.
— Brunos e rúbidos — lembrou-se Nan’taur, concordando. — Vivíamos os dois em paz nas florestas. Mas depois vocês começaram a precisar de mais madeira para as vossas casas. De carvão para os vossos fogos. De mais carne além da que já tinham.
Como seguimento da frase, sinalizou a um companheiro seu que começasse a cortar a grande ave que pendia de um espeto de madeira sobre a fogueira.
— Tivemos de nos afastar. Nós, os brunos, escondemo-nos nos corações das florestas, onde era mais escuro ainda. Os rúbidos subiram e refugiaram-se nas florestas das encostas das montanhas, mais frias e com menos vida. Mas nem isso bastou. Vocês, humanos, não se regem pelas estações para se reproduzirem, continuavam a crescer em número e precisavam de cada vez mais espaço. Em breve já não havia lugar nas florestas para os eahan, e poucos foram os que conseguiram ficar nelas.
Aewyre começava a sentir-se algo constrangido, e Aiun’alla olhou para o seu irmão de testa franzida enquanto servia as últimas taças, como se sentisse que o seu irmão estava a causar desconforto ao convidado.
— Os rúbidos tiveram que subir mais ainda nas montanhas — continuou Nan’taur, — Alguns tiveram a sorte de ficar com prados, outros tiveram de viver nas escarpas rochosas. Nós? Passamos a viver em partes da floresta tão escuras onde o sol não entra, ou então deslocamo-nos para os pântanos, onde os humanos antes também não queriam ir.
Aiun’alla veio servir a Aewyre um prato de casca de árvore com uma generosa porção da perna da grande ave ao lume. Mesmo como ouvinte e alvo indireto daquela que começava a ser uma diatribe de Nan’taur, o guerreiro mal conseguiu evitar salivar ao ver a suculenta carne fumegar às suas mãos.
— Sempre foi assim, nós, os eahan, e outras raças como os thuragar sempre tivemos de viver em regiões que não agradavam aos humanos, mas com o passar dos anos vocês iam sempre encontrando razões para cobiçar mais terras — explicou Nan’taur, e embora este se esforçasse por não usar um tom acusatório, Aewyre não podia deixar de se sentir visado. — Hoje, mesmo o pântano em que vivemos está a ser drenado pelo barão de Arle. Querem as aves para comer. Querem turfa para queimar. Querem mais terra para plantar. Querem... mais. Querem sempre mais.
Era uma perspectiva à qual Aewyre nunca fora exposto, talvez por Edranil ser uma exceção à regra, com os acordos que firmara com Ul-Thoryn. O subseqüente silêncio foi algo constrangedor para ambas as partes, pois mesmo os que não haviam percebido o conteúdo da conversa tinham sentido o seu teor. Alheia a tudo, a chuva recusava-se a amainar e continuava a bater incessantemente na água.
— Não vou pedir desculpa por algo que não fiz — declarou Aewyre. — Mas lamento muito pelo que vos aconteceu.
Nan’taur sorriu tristemente, abanando a cabeça.
— Eu é que peço desculpa, Aewyre. Não quis culpar-te, mas esse é um... assunto delicado para nós.
O jovem não duvidou, pois tanto quanto era possível a um eahan guardar ressentimentos, Nan’taur parecia albergá-los, e Aewyre sabia de poucas coisas que pudessem deixar os irmãos belos dos humanos em semelhante estado de espírito por mais que meros momentos.
— O que é isto? — perguntou, erguendo o prato para mudar de assunto.
— Cegonha. Espero que gostes.
— Hmmm — guturalizou Aewyre ao dar uma esfaimada trincadela. Não era nada que não tivesse já comido em Allahn Anroth, e de qualquer forma estava com demasiada fome para se fazer de esquisito.
Finda a unilateral conversa, os eahan começaram também eles a comer, trocando apenas breves palavras murmuradas entre si entre goles e trincadelas. Apenas Aiun’alla não desviava furtivamente a cara sempre que os seus olhares se cruzavam, sorrindo-lhe antes de bochechas cheias e finos lábios reluzentes. Por sua vez, Nan’taur limitava-se a olhar para a fogueira enquanto mastigava, introspectivo. As circunstâncias podiam ser diferentes, mas aqueles eahan brunos pareciam-lhe ser bem mais reservados que os rúbidos que conhecia em Edranil.
— Como é a vida no pântano? — não resistiu a perguntar. — Adaptaram-se bem?
— Todos nós já nascemos no pântano — disse Nan’taur com uma bochecha cheia, indicando os seus companheiros. — Mas para os nossos antepassados não foi fácil. Há muita água aqui, as coisas apodrecem, os insetos atormentam quem tiver sangue quente, e as águas podem causar doenças.
Aewyre sorveu outro trago de meliaig, escutando atentamente.
— Mas a Mãe é generosa, e qualquer terra tem as suas oferendas, se soubermos procurar — disse o eahan num tom quase sacramentai. — A madeira dos ciprestes não apodrece com a água. A casca das bétulas resguarda-nos da chuva nos telhados, dá-nos chá para nos proteger das doenças e óleo que afasta os mosquitos. Os foguetes atraem insetos que comem os que nos picam — prosseguiu, apontando para as plantas em questão e de seguida para as casas de madeira que pendiam da plataforma superior. — E os morcegos comem os que ainda assim nos tentarem incomodar.
— Adaptaram-se bem, então — concluiu o guerreiro.
— Os pântanos são ricos, Aewyre. E os humanos começam a aperceber-se...
Nan’taur calou-se antes que voltasse ao mesmo tópico, e Aewyre fez de conta que nem sequer reparara, limitando-se a acenar com a cabeça e a engolir aquele que já era o seu terceiro naco de cegonha, empurrando-o com outro trago de meliaig. O resto da refeição decorreu em relativo silêncio, tendo apenas a chuva como ruído de fundo, e o jovem não se fez de rogado, sendo o principal responsável para que da cegonha restassem apenas ossos. Foi também o último a acabar, demasiado faminto para se preocupar com o fato de estar ou não a fazer figura de alarve. Por sua vez, os eahan não o pressionaram e deitaram-se simplesmente, uns lado a lado, uns de cabeças apoiadas sobre as barrigas dos outros, outros ainda ajuntados como uma ninhada. Era um costume ao qual Aewyre várias vezes assistira, bem como a sua parte favorita das visitas a Edranil, mas naquele momento tais concupiscências não lhe passavam sequer pela cabeça. Nan’taur cingia a cintura de Aiun’alla por trás e esta, de cabeça encostada ao ombro, ia-lhe roçando o nariz pelo pescoço num comportamento que acharia deveras impróprio para irmãos, não estivesse já habituado às tendências incestuosas dos eahan. Tal como Quenestil por várias vezes lhe explicara, o fato de não contraírem enfermidades com a mescla do seu sangue, aliado à realidade de freqüentemente viverem isolados, levava a que fosse uma prática relativamente comum.
— Conheces alguma canção, Aewyre? — interrompeu-lhe Nan’taur os pensamentos.
— Eh... como?
— Se conheces alguma canção. Eu e os meus companheiros gostaríamos de a ouvir, porque há muitos anos que não ouvimos uma canção nova.
Aewyre conhecia, mas não tinha por hábito cantar e sentiu-se algo acabrunhado pelo pedido e por todos os olhos cor de esmeralda que o fitavam, expectantes.
— Dalast? — pediu Aiun’alla com voz quase doce demais para o jovem recusar.
— Valzn, dalast — pediu uma outra eahanna, essa com a cara mais comprida e o nariz mais adunco que o da irmã de Nan’taur, bem como um rabo-de-cavalo entrançado.
Diante da insistência das duas, dos acenos de cabeça dos restantes presentes e da sensação que estava a ser descortês para com os anfitriões, Aewyre acabou por aceder, pousando a taça de meliaig e erguendo as mãos. Os eahan calaram-se e o guerreiro clareou arrastadamente a voz para ganhar tempo enquanto pensava quase aflito no que haveria de cantar. Nan’taur percebia Glottik, pelo que não poderia fazer uso do seu vasto repertório de canções de taberna, e das poucas baladas que aprendera na corte sabia apenas os refrães e alguns versos soltos. Restava-lhe apenas a cantilena que ele e Quenestil haviam cantado enquanto moços, o que em retrospectiva nem lhe pareceu de todo uma má idéia. Aiun’alla não parecera compreender Fialass, mas havia a hipótese de que fosse mais inteligível que uma cançoneta humana.
— Não costumo cantar — referiu à laia de repúdio, pigarreando uma última vez antes de começar.
A cantilena era simples e infantil, e soou-lhe estranha aos próprios ouvidos com voz de homem adulto, embora tivesse a distinta impressão de não estar a desafinar tanto quanto o fizera com voz púbere. Falava de prados verdes e cabras a cabriolarem, do céu azul e de corridas pelas encostas abaixo, mas tudo adquiriu um tom mais sóbrio devido à ausência da alegria infantil de uma imberbe voz ofegante que estava a ver e a fazer tudo o que a canção dizia. Mesmo as palavras em Fialass lhe soavam estranhas ao ouvido, e não duvidava de que Quenestil já o teria interrompido para o corrigir. Alheios a todas essas considerações, os eahan ouviram, absortos e quase sem piscarem os olhos, o que constrangeu Aewyre ao ponto de este olhar para as peles no chão. Foi aí que manteve o olhar até acabar a canção e nem então o ergueu, limitando-se a coçar uma embaraçada mão encolhida ao seu colo. Os eahan tão-pouco disseram coisa alguma, e Aewyre não viu a deleitada surpresa patente nas suas caras, mas distinguiu os sons de movimento entre o ruído da chuva e ergueu o olhar para ver que Aiun’alla engatinhava na sua direção. Antes que pudesse dizer qualquer coisa, a eahanna pegou-lhe pela cabeça com ambas as mãos e osculou-lhe os lábios, afastando de seguida a cara sem contudo tirar as mãos.
— Malte — disse, sorrindo e tornando a beijar os lábios do guerreiro. — Tuan’na malte.
Apesar de habituado aos costumes eahan, Aewyre ainda levou alguns instantes a superar a surpresa e retribuir o sorriso, e os restantes eahan fizeram o mesmo, como se o gelo tivesse por fim sido quebrado.
— Obrigado — agradeceu Nan’taur. — Nós vamos ficar aqui algum tempo, a ouvir a chuva. Se estiveres cansado, podes subir...
— Eu... — apesar de refeito, Aewyre ainda estava cansado, mas sentiu que de fato estabelecera um elo com os eahan, e apercebeu-se da falta que sentia de um pouco de contato, humano ou não. De um pouco de paz e sossego. De embainhar um pouco a lâmina. — Não, não estou cansado. Fico convosco.
Nan’taur sorriu e indicou à sua irmã que trouxesse o jovem, e a eahanna assim fez, puxando-o pela mão. Aewyre acedeu, e embora ainda tivesse algumas reservas quanto a deitar-se com os outros eahan, Aiun’alla não lhe deu escolha e praticamente forçou-o ao chão, apoiando-lhe a cabeça sobre o seu colo e encostando-se por sua vez às costas do seu irmão, que começou a falar num baixo murmúrio com os outros. Sem grande escolha, o guerreiro deixou a sua nuca assentar sobre uma firme mas macia coxa e apenas tartamudeou a tentativa de uma pergunta quando a eahanna lhe começou a mexer nos cabelos. A avaliar pelos movimentos, ia entrançar-lhos, mas antes que Aewyre pudesse dar voz às suas reservas, Aiun’alla principiou a cantar em voz baixa como uma mãe faria com uma canção de embalar. Tinha uma bela voz; nada que se comparasse à de Alisa, a filha do Patriarca Hanal, mas melodiosa por si só e embaladora. Com a cabeça inclinada sobre o guerreiro enquanto cantava e lhe entrançava o cabelo com destros gestos dos dedos, as pontas das tranças de Aiun’alla pendiam sobre a face de Aewyre. Cheiravam a verde, a fresco, a ramos partidos na Primavera, e por alguma razão pareceu-lhe que a canção era precisamente acerca disso. De paz, harmonia e tranqüila vivacidade, da promessa de vida e da segurança de uma verdejante clareira banhada pelos raios oblíquos do sol matinal, que espalhavam por breves e repetidos instantes as sombras das borboletas que os atravessavam. Sereno e em paz pela primeira vez em semanas ou mesmo meses, Aewyre caiu num sono que havia muito tempo desconhecia, um sono que não se lhe infiltrava pelos olhos adentro devido ao cansaço ou à exaustão...
Sentado, com as muletas a seu lado e de costas apoiadas num tronco rodeado de fetos secos, Kror observava Layaline e Làriana, essas aninhadas na interseção entre uma árvore e um tronco caído em busca de abrigo da chuva. O drahreg tinha os braços apoiados sobre os joelhos, e segurava em cada mão um alfange embainhado, cruzando-os com os braços e com a ponderosa cabeça encapuzada e descaída sobre estes. A sombra do capuz ocultava-lhe a face enfaixada, mas não o vermelho dos olhos que fitavam as duas humanas de forma para estas aterradora, parecendo estar a avaliar o valor da vida destas. O seu negro nariz adunco pingava, e o fungar daí resultante era o único ruído que dele provinha, o que em nada ajudava à incerteza de Layaline, que se limitava a abraçar a sua filha com força. A criança estava tapada com uma manta, mas dera mostras de estar a ficar adoentada, tossindo baixinho como fazia naquele momento, mexendo-se pouco e falando menos.
— Deixa-as — disse-lhe a voz de Kerhex, ressoando malevolamente na sua cabeça. — Só te vão estorvar.
— Não as deves deixar seja por que razão for — contrariou Sassiras’s. — Mas se precisas de um motivo, pensa no quão úteis te podem ser. A rapariga pode servir-te de intermediária com humanos, sem que tenhas de falar com eles diretamente...
— Para que? Já sabes que ele está vivo. É apenas uma questão de tempo até te encontrar. Não precisas delas para nada. A não ser talvez se tiveres fome...
— Não é verdade! — contrapôs a harmoniosa voz da divaroth, parecendo repentinamente alarmada. — É a rapariga quem o ajuda com os livros. Sem ela, pode ser que nunca descubras algo de importante sobre a Essência da Lâmina.
Kerhex concedeu com um rosnido, mas a única resposta de Kror veio na forma de uma fungadela. Inicialmente sentira-se verdadeiramente perdido, assim que chegara à margem oposta com a balsa e as duas humanas, tendo deixado Aewyre para trás. Desorientado e sem saber o que fazer, seguira simplesmente os seus instintos e correra, ou melhor, coxeara a refugiar-se nos bosques adjacentes, levando apenas a sua mochila. Layaline seguira-o, levando não só a sua filha como também a sua mochila e a de Aewyre às costas, movida por simples desespero. Era difícil dizer devido à chuva e às fungadelas causadas pelo frio, mas Kror tinha a impressão de que Layaline chorava, provavelmente por pensar que Aewyre estava morto. Kror sabia que não era verdade — sentira que o humano ainda estava vivo, e este procurara-o ativamente havia pouco tempo — mas a humana não lhe perguntara, e o drahreg não via qualquer razão para ter que ser ele a dizer-lho. Durante o tempo em que pensou que o humano morrera, Kror tivera ocasião de ponderar o quão importante a Essência da Lâmina lhe era verdadeiramente, pois a sua vontade fora a de abandonar Layaline e a criança e partir para longe dali, talvez mesmo de volta para Karatai.
Kerhex e Sassiras’s tiveram evidentemente algo a dizer, alvitrando segundo os seus próprios interesses, mas Kror ignorara-os em grande parte e pensara naquilo que ele verdadeiramente queria. Não havia dúvidas de que, mais do que qualquer outra coisa, se deixara arrastar por Aewyre e pela inimizade combativa que o «tendão» criara entre os dois como incentivo para a obtenção da Essência da Lâmina. O humano sempre fora aquele que mais motivos e motivação tivera, e conseguira sempre compelir Kror para as suas lutas pessoais, sempre com a desculpa de que estas os poderiam beneficiar aos dois. Por sua vez, o drahreg chegara entretanto à conclusão de que desejava a Essência da Lâmina por um motivo muito simples, que podia ou não ter sido influenciado por Kerhex: poder. Poder para se defender, poder para combater o mundo, este sempre contra ele, poder para que todos o deixassem em paz. Sassiras’s não concordava, evidentemente, parecendo mais inclinada a ajudar Aewyre, cujo propósito achava nobre, razão pela qual o drahreg não dava grande atenção à divaroth quando esta se pronunciava sobre o assunto. Falhando a obtenção da Essência da Lâmina, queria simplesmente ver-se livre do «tendão», daquela perene e sempre presente tensão na sua cabeça, com a qual nunca poderia viver verdadeiramente em paz, embora antes tivesse pensado o contrário. Heldrada ajudara-o de certa forma a encontrar um novo centro na sua vida, por muito conturbados e viscerais que os seus contatos tivessem sido. Ainda pensara que esta porventura o pudesse ajudar a dominar a Essência da Lâmina com os seus conhecimentos, mas no estado em que ficara após a morte do Lamelar, de nada lhe serviria, e o drahreg acabara por se ver uma vez mais arrastado por Aewyre...
O som de vozes fez; com que erguesse e virasse a cabeça de lado, um gesto que só por si sobressaltou Layaline. Puxando o capuz para trás e expondo o seu crespo e eriçado cabelo à chuva, o drahreg constatou que não se tratara de impressão sua, e que alguém vinha na sua direção, pelo menos dois humanos. Pondo ambos os alfanges numa só mão e apoiando-se no chão com o punho direito, Kror ergueu-se sobretudo com a perna esquerda, poupando a direita a esforços maiores. Agachado, pegou nas suas muletas e na mochila e olhou na direção das árvores sem nada ver além da névoa provocada pela chuva, mas confirmando a direção da qual as vozes vinham. Embora não escondesse o seu nervosismo, Layaline nada lhe perguntou, reagindo apenas quando o drahreg se virou abruptamente na sua direção e se acercou dela com três passos coxeantes. Sem o capuz e com a cara enfaixada por ligaduras sujas exposta parecia mais assustador ainda.
— O que foi? — perguntou, apertando Làriana com mais força contra si.
— Vêm aí homens — advertiu o drahreg, atirando as muletas e a mochila para os pés da rapariga e desatando o colarinho da capa. — Fica aqui, e não te mexas.
A humana nada disse, e Kror contornou-a para se ir esconder atrás das árvores, silencioso e alerta à medida que recordava a sensação de estar a ser caçado antes de chegar a Karatai. Arreganhando os dentes de caninos afiados ao suster algum do seu peso com a perna ferida após passar por cima do tronco caído e inclinado, o drahreg acocorou-se e aguardou, escondido. Por medo ou por obediência, a humana não se mexeu e deixou-se estar abraçada à filha, murmurando-lhe na sua língua que Kror não percebia enquanto as vozes se aproximavam. Passo a passo, três silhuetas foram-se revelando na chuvosa névoa entre as árvores, três silhuetas de homens armados de lanças cujos chapéus de ferro se iam mexendo enquanto olhavam em redor, evidentemente em busca de alguém. Se possível, Layaline encolheu-se mais ainda, demasiado aterrorizada para se mexer, sussurrando a Làriana para que esta não fizesse barulho. Porém, apesar de relativamente abrigada da chuva, estava demasiado exposta e um dos homens avistou-a, tal como Kror previra.
— Miriem, aldré! — disse, apontando para a rapariga.
Os outros reconheceram de imediato o vulto encolhido debaixo das árvores e enristaram as lanças ao aproximarem-se, como se fossem caçar um javali. Layaline arquejou de susto e os três olharam à volta, como se esperassem mais uma pessoa. Um deles baixou-se para melhor ver a encapuzada mulher, e os outros dois fizeram-lhe perguntas ás quais a rapariga estava demasiado assustada para responder. Nenhum reparou na cabeça do drahreg que espreitava por debaixo do tronco caído, observando as botas e o posicionamento dos homens aos quais elas pertenciam, desembainhando lenta e silenciosamente os seus alfanges e recolhendo-se quando um dos pares se achegou de Layaline. O homem estendeu uma mão enluvada, agarrando a manta que cobria Làriana e puxando-a. Quando Layaline resistiu, o indivíduo sacudiu-a, tilintando a manga da cota de malha, e arrancou bruscamente a cobertura de cima da criança.
Foi então que Kror rugiu, rolando de ombro por cima do tronco caído com ambos os alfanges empunhados e aterrando com a perna ferida sobre o peito de um dos soldados, que esbofou com o impacto e cambaleou para trás. Apoiando-se seguidamente na perna boa, o drahreg descreveu um possante arco sobre a sua cabeça com um dos alfanges, que rompeu a manga de cota de malha e se embebeu até mais de metade do braço do soldado que segurava a manta. O homem nem chegou a gritar antes de Kror arrancar a lâmina com um sacão para dar seguimento ao seu ataque, deixando-lhe o braço pendente por uma tira de pele e do que restava da cota de malha. O berro veio então, acompanhado pelo de Layaline e por um jorro de sangue que por pouco não atingiu a rapariga na cara, e o drahreg aproveitou o que restava do efeito de surpresa para conseguir uma posição equilibrada da qual pudesse partir para uma nova investida. Todavia, os homens que enfrentava eram soldados treinados, e não lhe deram o tempo necessário para se recompor, sendo que um deles investiu de lança em riste. Kror mal teve tempo para sentir os impulsos de dor que lhe dardejaram do joelho para cima, desviando-se da lançada com um golpe de rins e revirando ambos os alfanges. A ponta de aço cravou-se no tronco caído, e o drahreg aproveitou para encalhar os copos de um alfange revirado no cabo da lança, apoiando-se nele para poupar a perna e deslizando ao longo da sua extensão. Antes que o soldado tivesse tempo de largar a lança, Kror esticou o braço e passou-lhe o outro alfange revirado pela garganta, o que o desequilibrou e fez com que caísse com o moribundo. O drahreg foi ao chão de costas em conseqüência do ímpeto do golpe, enfiando o pomo do alfange esquerdo na terra molhada ao amparar a queda, e ouviu atrás de si os passos do homem que chutara. Sentindo o ataque iminente, Kror ergueu e cruzou ambos os alfanges a tempo de interceptar um golpe de espada destinado à sua garganta, e que se enterrou a escassa distância da sua cabeça, arrancando-lhe alguns cabelos. Cerrando os dentes, o drahreg torceu as lâminas para manter a espada presa e enfiou-as no chão de forma a criar um ponto de apoio. O humano conseguiu soltar a espada, mas enquanto o fazia, Kror arqueou as costas, erguendo-as do chão, e impeliu a perna direita sobre a esquerda, assentando nela ao erguer-se. O seu joelho gritou em silêncio, mas o drahreg teve de o ignorar para interceptar o ataque do soldado, que se lançou num ataque fulminante. Kror aparou e desviou as espadeiradas, recuando diante da arrancada do humano e cambaleando para trás como se a sua perna tivesse cedido. O soldado viu a aberta e berrou, estocando em frente, mas o cambaleio não passara de uma simulação de Kror, que se recompôs e prontamente desviou o golpe com o alfange esquerdo, girando em si e revirando o direito para o cravar no flanco do adversário. A ponta da lâmina curva rompeu elos de cota de malha, penetrando na carne do humano, que grunhiu e se contorceu para o lado. Kror recolheu o alfange, tornou a girar em si, revirou novamente o alfange no punho e desferiu um possante golpe com ambas as lâminas em paralelo, deitando o homem por terra.
De armas empunhadas e com o seu peso sobretudo apoiado na perna esquerda, o drahreg contemplou o morto, o moribundo e o mutilado, passando apenas os olhos por Layaline e Làriana antes de olhar para trás, tentando discernir alguma eventual ameaça. Como nada distinguiu na névoa entre as árvores, baixou e inclinou a cabeça, mas nada mais ouviu além dos arquejos do soldado que agarrava em estado de choque o seu braço pendente. Virando então a cabeça bruscamente, o drahreg despejou a água que se tentava infiltrar no eriçado cabelo e fitou os dois soldados que ainda se mexiam. Layaline continuava a agarrar a sua filha com tanta força, tentando tapar-lhe a cabeça com a mão, que lha enterrou no ombro quando Kror fez o mesmo com um alfange no peito do soldado que jazia no chão, antecipando a conseqüência da sua já de si mortal ferida. A rapariga encolheu-se mais ainda quando Kror se dirigiu ao mutilado a escassa distância desta, escondendo a cara no pescoço da filha ao ver o drahreg puxar-lhe a cabeça para trás pela aba do chapéu de ferro e assentar-lhe a lâmina na garganta, e abafando um grito ao ouvir o silvo metálico de um gume em carne e o sangrento gorgolejar que se lhe seguiu.
Contendo soluços, Layaline apertou Làriana com firmeza, como se de alguma forma a pudesse escudar daquilo que estava a suceder, e ficou a aguardar de olhos fechados sem se atrever a erguer a cabeça. Estremeceu, cuincando quando algo lhe caiu em cima, mas levantou os olhos ao constatar que se tratava da manta. Kror encontrava-se diante dela, com um sangrento alfange cravado no chão, uma mão apoiada sobre o pomo desta, e olhos e dentes cerrados, como se estivesse em sofrimento. Layaline cobriu lentamente a sua filha com a manta, sussurrando-lhe aquietadoramente enquanto mantinha os olhos em Kror, cuja perna direita estava flexionada.
— Estás... — Layaline pigarreou. — Estás magoado?
O drahreg abriu os olhos, a cuja aterrorizante vermelhidão a rapariga nunca se habituaria, mas os seus igualmente atemorizantes dentes permaneceram cerrados.
— Vem. É melhor não ficarmos aqui — disse, flexionando a perna esquerda e deixando a direita estendida ao agachar-se para pegar nas muletas e na mochila aos pés de Layaline.
A rapariga anuiu, levantando-se cautelosamente e puxando o seu capuz para a frente enquanto Kror enfiava a custo as alças da mochila pelos braços abaixo ao mesmo tempo que segurava as muletas. Ainda estendeu a hesitante mão para o ajudar, mas o drahreg assustou-a ao rosnar e deixar a mochila cair, atirando de seguida as muletas para o outro lado do tronco caído, por cima do qual tornou a passar. Esquecera-se da capa, e sacudiu os riços cabelos molhados antes de a apertar ao colarinho e cobrir a cabeça com o capuz, ainda de dentes arreganhados. Layaline observou-o, mas o drahreg fulminou-a com o olhar vermelho-sangue e esta apressou as suas preparações para partir, evitando olhar para o seu companheiro enquanto este ia novamente buscar a mochila. Assim que a alçou aos ombros, Kror aprestou as suas muletas e começou a andar sem esperar pela humana, lançando um último olhar aos soldados mortos. Estranhamente, ou talvez não, a primeira coisa que lhe veio à cabeça foi a sua jornada pela Latvonia, na qual vira um grupo de clérigos de Gilgethan ser atacado por bandidos. Kerhex dissera-lhe que matasse os bandidos. Sassiras’s sugerira-lhe que ajudasse os clérigos para cair nas suas boas graças. Kror achara que podia fazer as duas coisas e assim tentara, mas o agradecimento dos clérigos foi atacá-lo. Acabara por ter de os matar também, mas Sassiras’s ainda o conseguira convencer a enterrá-los, tal como era o costume dos humanos. Seria uma forma de provar as suas boas intenções, dissera ela. Na altura ainda estivera particularmente aberto às sugestões da divaroth, pois esta dera-lhe bons conselhos que o haviam ajudado a integrar-se nos Cho Tirr, a tribo ocarr que o acolhera. Mas qual fora a sua paga por enterrar os clérigos?
Fora novamente atacado, dessa feita pelos amigos dele.
Praguejando em Olgur, Kror amaldiçoou-o, a Layaline, à filha desta e a todos os outros que se haviam cruzado no seu caminho. Estava farto deles, farto de tudo, e a sua vontade era deixar as duas humanas à sua sorte, para que sentissem na pele o destino que todos os da sua maldita raça lhe pareciam reservar: a morte.
Sassiras’s nada disse. Kerhex pareceu rir.
— ...e foi por isso que me escolheram a mim, percebe? — ouviu-se a voz de Taislin quando o camareiro abriu a porta para o quarto de Worick.
«Uh. Aí vem ele», pensou o thuragar, virando-se no banco que tinha diante da mesa de artesão do seu quarto.
— Era pessoal — continuou o burrik, entrando mas continuando a olhar por cima do ombro para o humano. Usava uma imunda coifa branca que lhe deixava os cabelos diante da face, ocultando minimamente as suas feições, e as roupas sujas providenciavam um disfarce convincente de criança vagabunda. — O rato fugiu-me, e se eu não o apanhasse, outros podiam aprender com ele e fugir-me também...
— Já me disseste, criança — interrompeu-o o camareiro sem grande paciência. — Faz o que tens a fazer, e despacha-te.
— Com pressa não dá, senhor — afirmou Taislin, contemplando o quarto iluminado por um par de candeias e pelo reconfortante fogo na lareira. — Isto requer cuidado e atenção...
«Olha o vocabulário, idiota», repreendeu-o Worick mentalmente, pousando o pequeno martelo e prego com os quais estivera a cinzelar um pedaço de chumbo para se entreter. «És uma criança ou não?»
O camareiro não pareceu reparar, limitando-se a fechar a porta com um suspiro e postando-se ao lado desta de braços cruzados.
— Boas tardes, general Worick — cumprimentou. — Encontram-se dois guardas do outro lado desta porta, mas estou certo de que mantereis a vossa distância e que eles não serão necessários.
O thuragar ergueu as duas sapudas mãos, baixando a cabeça.
— Não se preocupe — assegurou. — Estou tão fraco que nem seria capaz de agarrar o rato que anda por aqui...
— Ah, então é este um dos traidores que queriam atraiçoar nosso senhor Aereth? — perguntou Taislin, levando os falsamente indignados punhos às ancas e olhando Worick dos pés à cabeça, tentando gravar na sua mente a figura do thuragar indumentado unicamente com uma túnica branca para mais tarde recordar e gozar. — Deixá-lo ser devorado por ratos, era isso que devíamos fazer.
Worick quis responder à altura, mas concluiu que entrar numa troca de espirituosidades com uma pretensa criança em nada ajudaria.
— Vê lá o que dizes, pirralho... — ameaçou.
— Aliás, não o terão confundido a ele com um rato? — alvitrou o burrik, levando um pequeno dedo sujo ao lábio inferior.
— Se não te metes a trabalhar, não tarda nada confundem-te a ti com caca de rato no chão... — falou Worick em se conter.
— Cala-te e faz o que tens a fazer, criança — disse o camareiro.
— General, agradecia que permanecesse sentado no banco.
— E eu agradecia que se despachassem — retorquiu o thuragar. — Estava aqui descansado a cinzelar chumbo antes de vocês chegarem...
— Devias estar a cinzelar o teu epitáfio, rato traidor...
«Mau. Não abuses...»
— Criança, não te volto a avisar... — advertiu o camareiro.
— Pronto, senhor, pronto — escusou-se o burrik, erguendo ambas as mãos. — É que o meu papá sempre disse: «Filho, podemos ser pobres, mas seremos sempre leais a lorde Aereth, o nosso bom e justo senhor, que tanto fez por nós.» Tenho a certeza de que ele mataria um traidor com as suas próprias mãos, se o apanhasse.
— A minha paciência começa a esgotar-se, criança...
Fingindo amuo, Taislin deitou a língua de fora a Worick e esfregou então as mãos em preparação para a sua tarefa.
«Tu me pagas, caganito...», ameaçou o thuragar mentalmente, mexendo a barba enquanto roía os dentes de boca fechada.
— Ora então muito bem... — começou o burrik, espreitando atrás da única arca do quarto e abrindo-a de seguida para remexer um pouco nas roupas. — O senhor traidor disse que viu um rato, foi?
— Uma ratazana — participou Worick de má vontade. — Acordei com ela em cima do meu peito.
— Não admira. As ratazanas estão sempre prontas para acasalar...
— Sabes lá o que é acasalar, pirralho — redarguiu Worick, chamando Taislin a atenção.
— Sei sim! — afirmou o burrik, erguendo a cabeça da arca. — O meu pai ensinou-me!
«Vá lã, saíste-te bem», reconheceu o thuragar.
— Bom, aqui nas roupas não está — concluiu, fechando a tampa e passando para a cama de Worick, diante da qual se acocorou coçando o pensativo queixo com olhar atento. — São bichos tramados, os ratos. Quando lhes dá para isso, desaparecem.
Nenhum dos dois outros presentes se mostrou interessado nos comentários de Taislin, embora ambos o seguissem com os olhos por motivos diferentes. O burrik ergueu-se e foi verificar os dois lados da cama, regressando àquele que lhe deixava o leito entre si e o camareiro.
— E são espertos, muito espertos. Parece que sabem quando se chama alguém lá da guilda. — Enquanto falava, Taislin tirou um rolo de pergaminho amassado da sua bota, erguendo-o diante da sua cara para que Worick o visse e enfiando-o discretamente debaixo do colchão. — Mas deixam sempre pistas. E eu sou bom a encontrar pistas.
Ainda acocorado, o burrik percorreu a parede a partir da cama, arrastando o dedo ao longo do rodapé de mármore, levando-o ao nariz para o cheirar.
— Durante o Inverno, quando está frio...
Ao dizer isto, ergueu-se, olhando para cima e para a direita e com o indicador hirto, girando então ligeiramente em si e apontando para a lareira.
— Frio, calor! Mas claro!
Taislin dirigiu-se a curtos passos saltitantes para a lareira, rindo maleficamente para consigo mesmo na sua acriançada voz enquanto ia falando sozinho.
— Ah pois, malandro... achavas que me ias escapar outra vez, era? — perguntou, apoiando uma mão suja na marmórea prateleira sobre a lareira para olhar pela chaminé acima, resguardando a sua cara do calor com a outra. — Aha! Aí no quentinho, não é? Agora não me escapas.
Taislin olhou para trás com um sorriso malicioso na cara, felizmente longe demais para que o camareiro visse os seus olhos estreitados em duas felinas fendas verticais, e de seguida pegou num atiçador e folgou a camisa, como se estivesse com calor. Na verdade, o gesto serviu apenas para dissimular o rato morto que tinha escondido ao cinto e que de lá tirou, enfiando seguidamente a mão pela chaminé acima para se apoiar sobre o fogo enquanto chamava a atenção para a outra, brandindo o atiçador.
— Não olhem agora. Isto pode ser feio — advertiu, a sua voz a ecoar pela chaminé acima.
Mantendo a tensão teatral do momento, avançou lentamente o braço do atiçador, como se estivesse verdadeiramente a fazer os possíveis para evitar assustar uma presa, até que de repente guinchou e bateu com a ponta contra a fuliginosa pedra. Ao fazê-lo, largou o rato morto, que caiu na fogueira com um chapinhar de fagulhas, e recuou, tornando então a avançar para bater um pouco mais nos toros a bem do efeito dramático.
— Toma! Toma! Toma! A ver se voltas agora, bicho nojento! Arde! Arde!
Lançando um olhar de aviso a Worick, o camareiro descruzou os braços pela primeira vez e foi ter com Taislin à lareira, afastando o exaltado burrik e erguendo-lhe um indicador em advertência ao vê-lo empunhar o atiçador com ambas as mãos. Taislin ofegou e baixou a arma improvisada, e o homem apoiou as suas mãos sobre os joelhos para se curvar e olhar para dentro da lareira, onde distinguiu o rato morto já com o pêlo a arder.
— Esse já não chateia mais ninguém — proclamou o burrik, orgulhoso, apoiando o atiçador sobre o ombro como uma espada.
— Dá cá isso — disse o homem, erguendo o tronco e arrancando-lhe o atiçador da mão para o meter no seu devido lugar. — Já fizeste o que tinhas a fazer, criança?
— Eu? Bem, sim... mas se gostam tanto de mim, posso ficar mais algum tempo...
O camareiro agarrou-o pelo ombro, torcendo o nariz em evidente desagrado pelo contato com a camisa imunda de Taislin, e puxou-o para a entrada.
— Essa vérmina não mais vos incomodará, general Worick — disse num tom de voz enfadado, estando nele patente uma evidente despreocupação pelo bem-estar de Worick. — O resto de uma boa tarde.
— Deixa-o assar um bocadinho — recomendou Taislin, falando para trás enquanto era praticamente arrastado para a porta. — Havia de ser a única comida para ti, traidor!
O thuragar limitou-se a abanar a cabeça enquanto o burrik lançava os seus últimos chistes e insultos, prometendo no entanto dar-lhe o troco na devida altura. Quando a porta se fechou, saiu do banco e avançou alguns passos na direção da cama, mas esperou que a vozinha irritante de Taislin deixasse de se ouvir do outro lado da entrada. Só então foi a passo apressado ajoelhar-se ao lado da sua cama, levantando o cobertor e tirando debaixo dele o pergaminho espalmado que Taislin lá deixara. Praguejou com a dificuldade inicial que sentiu para o desdobrar com os seus dedos grossos, mas acabou por conseguir, rasgando-o um pouco e levantando-se com a mão apoiada sobre a cama. A sua visão de thuragar nunca fora particularmente apurada, tanto mais quando era preciso ler, e Worick amaldiçoou a escrita e letra pequena do burrik ao nem mesmo perto da lareira ser capaz de perceber o que estava escrito. Por sorte, os seus dedos continuavam sensíveis como sempre, e o thuragar pousou o pergaminho de frente sobre a sua mesa de trabalho, tenteando de seguida no verso as impressões deixadas pelo instrumento que Taislin usara para escrever. A péssima ortografia do burrik dificultou-lhe imenso a tarefa, fazendo mesmo com que Worick julgasse que pousara a folha ao contrário, mas lentamente foi começando a decifrar os seus conteúdos.
Uoric,
Dací a sinco diax vai haver a fexta de anux da prinseza lólina. Pede para falarex com a Liana nesse dia, dix ao Eireth que a podex comvenser a falar com lorde Sunelar para parar a gerra.
A Liana tem um martelu e um sinzel. Usa-ox para dejmontarex a latrina. Depoix uza a corda para dexer pur ela. Deixei-vus maix cordax pelu caminha. Xeira mal, max eu dei vinagre à Liana.
Cuando xegarem lá abaixo, procurem uma pedra solta ce marcei com um ‘X’. Debaixu dela extá uma xave e otra mensajem minha.
Nãu extragex o meu planu.
Taislin
Worick «releu» a missiva várias vezes, após as quais ficou simplesmente a olhar para ela, pasmado e de boca entreaberta. Numa primeira instância, nem foi a sugestão de desmontar uma latrina e através dela escapar de Allahn Anroth que mais confusão lhe meteu, mas sim o fato de Taislin ter congeminado um enredado plano para o qual tivera ainda o requinte de providenciar a primeira de duas listas de instruções. Faíscas da Bigorna, o raio do mafarrico só podia estar a brincar! Não soube sinceramente o que pensar ou fazer, se deveria maldizer o nome do desgraçado do burrik, ficar a olhar estuporado para as palavras que não via, bater com o martelo na sua cabeça, ou simplesmente rasgar o pergaminho em pedaços e atirá-los à fogueira.
Optou por rir.
Não passou de uma mera risada de início, mas não tardou a subir de tom até desembocar da sua boca numa incontrolável casquinada que fez com que Worick levasse a mão à barriga e esmurrasse a mesa, fazendo tremer e vibrar os conteúdos que nela se encontravam. Soltando o ocasional grunhido de dor devido às contrações abdominais do seu ventre convalescente, o thuragar ainda bateu com a mão na testa e deixou-se descair de costas sobre a mesa, estendendo sobre ela o braço que ainda segurava o pergaminho. Quando por fim acalmou, esfregou os pequenos olhos e soltou umas últimas risadinhas, tornando a olhar para a missiva de Taislin e abanando a cabeça.
— Pedras me partam... — praguejou. — É desta que nos matas.
E começou novamente a rir.
Por mais absurdo que parecesse, e parecia-o de fato, mesmo as masmorras de Allahn Anroth eram luxuosas, encontrando-se limpas, relativamente livres de pó e sem infiltrações à vista. Aereth tinha tantos servos que nem sabia o que fazer com eles — era essa a única explicação que ocorria a lorde Tylon enquanto descia a longa escadaria atrás do senhor de Ul-Thoryn. Aereth segurava a sua régia falda com uma mão e agarrava o corrimão de corda com a outra, pomposamente vestido em patrióticos tons de vermelho e amarelo como era o seu hábito. À frente e atrás dos regentes iam dois membros da guarda régia de Aereth, ambos com uma tocha empunhada e de partasana ao ombro, sendo que essa arma de haste em particular tinha uma águia dourada sobre a tripartida lâmina, com ambas as asas a acompanharem as pontas laterais e entrançadas borlas vermelhas e amarelas a penderem dela. Tratava-se de armas antigas, parte dos trajes usados pela guarda de elite de Ul-Thoryn quando esta fora a capital de Nolwyn, e que caíram em desuso quando da cisão da nação. Porém, cerca de uma semana atrás, Aereth decidira reintegrar as antigas vestimentas, mandando tirar a ferrugem e polir as armaduras que haviam sido armazenadas no arsenal, decretando-as então como a fardamenta da sua guarda regencial. Embora algo desagradado e surpreso pela ação, pois ia contra a política de unificar a todos os níveis as duas casas ligadas por casamento, Tylon via-se forçado a admitir que as armaduras eram de fato vistosas e imponentes, e que condiziam plenamente com a nova atitude do jovem regente. Cada peça do arnês estava ornada com ouro nas bordas e gravada com complexos padrões, desde as massivas espaldeiras às joelheiras convexas, sendo que a couraça ostentava uma orgulhosa águia nela cinzelada. O elmo era uma tradicional barbuda nolwyna com visor em forma de Y, mas com uma babeira forjada à semelhança de um bico de águia e asas estilizadas sobre as dobradiças com ornatos dourados nas penas.
Tylon não estava satisfeito, o que se refletia no seu semblante carregado e no ângulo quase reto que os seus maxilares formavam. Aereth tornara-se progressivamente refratário nos últimos tempos, dando cada vez mais atenção ao seu bobo e parecendo cada vez menos aberto às suas sugestões. A seu ver, a mudança de comportamento de Aereth dera-se quando da chegada do barril de suco do Teixo à cidade, embora o jovem regente já antes se tivesse mostrado particularmente maleável a quaisquer sugestões que o bobo apoiasse. Embora parecessem servir o mesmo senhor, Tylon sabia demasiado pouco sobre a criatura para confiar nela ou mesmo sentir-se à vontade na sua presença. Mestre Othragon falara-lhe de um outro servo da Sombra no palácio, mas por alguma estranha razão dera-lhe instruções para não estabelecer contato com ele. Por sua vez, o bobo parecia indiferente à sua presença, embora já o tivesse abordado diretamente para que arranjasse uma ama de leite para uma criança. Segundo ele, estaria a servir o seu senhor ao fazê-lo. Um plano de contingência, dissera.
Tylon fez uma nota mental para posteriormente inquirir acerca do estado da criança e tentar saber mais acerca dela, pois certamente um bebê normal não requereria tanta atenção. Quem sabe, talvez até pudesse exercer uma certa medida de influência sobre o bobo através dela...
— Ul-Thoryn sempre foi uma província com uma história muito rica — afirmou Aereth de repente, interrompendo os pensamentos do seu par. — Não concordais, lorde Tylon?
— Ehm... certamente, lorde Aereth. Embora o mesmo possa ser dito das restantes sete...
— Sim, sim... — acedeu Aereth, abanando a mão como se estivesse a afastar algo de irrelevante. — Sois um excelente diplomata, lorde Tylon, mas aqui entre nós esse diálogo é desnecessário. Sejamos sinceros: Ul-Thoryn foi a capital de Nolwyn, o seu centro nevrálgico, a sua alma cultural, o epicentro de tudo quanto sucedeu na nossa nação, tanto o bom como o mau.
Tylon franziu o cenho, estranhando a conversa. Aereth interpelara-o enquanto passeava no jardim com Lethia, roubando-o à sua esposa — que mandou ir ter com Iollina sem qualquer cerimônia — e praticamente arrastara-o para o palácio com a desculpa de que tinha algo para lhe mostrar. Desde que executara o seu malicioso plano contra o Ábaco que Aereth começara a agir cada vez mais por iniciativa própria, e sem o consultar, como antes quase obrigatoriamente o fizera. O seu engenhoso uso do suco do Teixo deixara-o com o Concílio das guildas e o Ábaco na palma da mão, pois ambos os cabecilhas haviam cometido hediondos crimes sob a influência da substância e posteriormente encostados à parede pelos homens de Aereth. Nos estratos superiores da cidade passaram a ser poucos os que levantavam objeções contra a eventualidade cada vez mais palpável de uma guerra contra Vaul-Syrith, e mesmo esses seriam, no ver de Aereth, fáceis de persuadir. O jovem regente não perdera uma única oportunidade para de alguma forma culpar ou demonizar lorde Sunlar, desde os contínuos ataques fronteiriços ao recente e misterioso silêncio de divindades como Bellex e Joral. Havia também rumores de que outras divindades estavam a ignorar as orações dos seus fiéis, mas apenas as igrejas dos deuses da justiça e do dinheiro o haviam reconhecido publicamente. Tanto quanto o clero de ambas as igrejas dera a entender, os seus deuses não respondiam às suas preces, o que só não causara ainda grande desassossego na cidade pelo fato de tanto um como o outro não serem muito populares entre a arraia-miúda. Aereth arranjara forma de culpar Sunlar pelo sucedido também, afirmando que estava a tentar cortar as fontes de rendimento de Ul-Thoryn e que a sua insidiosa tramóia ia contra as mais elementares leis. Tudo o que pudesse acicatar a consciência popular contra o seu inimigo.
— Por força dos eventos do passado, Ul-Thoryn porta um pesado legado — continuou Aereth, erguendo o braço livre. — Aqui, em Allahn Anroth, decidiu-se o futuro de nações. Entre as muralhas que nos cercam, uniram-se as mais variadas raças com um único propósito. Nos campos fora de Ul-Thoryn foi empreendida a batalha que determinou o rumo que os reinos humanos seguiriam.
Empolgado, Aereth tropeçou num degrau e Tylon estendeu uma mão forte para o agarrar, mas este baixou imediatamente o braço erguido para se agarrar ao corrimão de corda, endireitando-se e seguindo em frente como se nada tivesse sucedido.
— Um pesado legado, dizia eu — continuou. — Um legado que sempre encheu livros com histórias, corações com orgulho e bolsas com dinheiro. Nada mais.
Os quatro chegaram ao fim da escadaria, e os guardas avançaram pela escuridão fora de tochas em riste enquanto os dois regentes aguardaram ao pé das escadas. Tylon olhou para o negrume em redor, claramente intrigado, mas Aereth prosseguiu com o seu monólogo como se ambos estivessem a dar um simples passeio.
— Por si só, nunca foi capaz de desembainhar uma espada, por exemplo. Ou de mobilizar um exército — continuou o jovem regente a exemplificar. — Afinal, um legado é algo que se constrói durante uma vida e que se deixa sossegado nos anais para que futuros descendentes dele se possam gabar, correto?
Tylon não estava a perceber aonde Aereth queria chegar, e limitou-se a olhar com ar confuso para o seu homólogo. Entretanto, os guardas acenderam outras duas tochas com as suas, iluminando um grande pórtico de barras de ferro de tal forma ajuntadas que seria difícil enfiar uma mão entre elas.
— Pois não mais — disse Aereth, desafiante. — Este insurgir-se-á contra o mundo que o desrespeita, e provar-lhe-á que existem legados mais afiados que uma lâmina, e mais poderosos que uma coroa.
Enquanto Tylon tentava decifrar as palavras de Aereth e os intentos deste, os dois guardas destrancaram o pórtico e abriram-no, fazendo velhas dobradiças ranger e estalar ferrugem. O barulho que fez a abrir-se soou ominoso aos ouvidos do regente de Lennhau, o ruído de segredos ancianos que não mais deveriam ser desvendados, o chiar quase indignado do ferro a cuja consistência fora comparado um antigo tratado do qual Tylon se lembrou.
«Não. Ele não o faria.,.», duvidou, olhando de soslaio para o sorriso presumido de Aereth, que lhe sinalizou que o seguisse com a mão, que manteve erguida atrás de si num trejeito quase efeminado do andar.
— As glórias do passado deviam ser incutidas como as pedras basilares que pavimentam o caminho para o futuro, e não como rememorações saudosistas de uma época que não mais se repetirá — disse, gesticulando airosamente com as mãos, parecendo quase estar a desempenhar um papel para Tylon. O seu porte, que dava a entender que se encontrava num palco no qual era o centro das atenções, começava a afigurar-se demasiado parecido com o do bobo.
Perigosamente parecido, pensou Tylon, premindo os lábios e com eles mexendo a barba que lhe pendia debaixo do queixo ao entrar com Aereth, enquanto os dois guardas acendiam um par de tochas que flanqueavam a entrada. A avaliar pela forma como a voz do jovem regente ecoava pela escuridão fora, os quatro encontravam-se num amplo recinto, ao longo do qual se espalharam os passos acerados dos guardas, que se separaram do seu senhor e um do outro, caminhando em direções opostas e começando a subir dois graduais lanços de escadas simétricos. As tochas que estes empunhavam eram globos de luz difusa a vaguearem pelo negrume, iluminando à sua passagem um piso poeirento que havia certamente muitos anos não era percorrido, paredes de simples alvenaria, sólida e totalmente desprovida de ornamentos, e algo mais. Algo que apenas se revelou em relances, em contornos dourados relevados pela passagem do lume das tochas, algo que fez com que o coração de Tylon se esquecesse de duas batidas, retomando-as de seguida em rápida sucessão.
— As glórias do passado, Tylon Nehin, deviam fortalecer a ponte com o presente e a deste com o futuro, não miná-las — continuou Aereth, de costas iluminadas pelas tochas da entrada, mas de feições sombrias enquanto observava o progresso dos seus guardas, que entretanto tinham chegado ao cimo das escadarias. — E, pela honra do meu pai, o futuro que com elas construirei ananicará mesmo a glória do Nolwyn da Quinta Era.
Enquanto Tylon tentava conceber as implicações daquilo a que Aereth estava a aludir, os dois guardas pousaram os archotes em tocheiras sobre dois receptáculos metálicos e tubulares apoiados em duas varas de ferro paralelas cada, e destaparam-nos. As tampas requereram algum esforço a remover, e foram de seguida pousadas com cuidado quase solene, após o qual os guardas tornaram a pegar nas tochas e baixaram-se, agarrando o fundo dos receptáculos com uma mão apenas. Aereth pareceu sentir os seus olhares através das viseiras mesmo à distância a que se encontravam, e fez que sim com a cabeça. Os dois ergueram-se então, grunhindo quase imperceptivelmente dentro dos elmos e levantando a ponta dos receptáculos, que giraram num eixo entre as varas de ferro que atravessava os seus bocais, vertendo então os seus conteúdos para aqueles que pareciam ser sulcos talhados no próprio chão. Não foi senão quando os guardas pousaram as tochas em quase perfeita sincronia diante dos bocais dos receptáculos que se fez luz, na forma do fogo que se espalhou ao longo do óleo que era despejado naquele que revelou ser um canal no chão. A escadaria que os guardas tinham subido fazia parte de um estrado escalonado ao longo de três níveis sobrepostos com desnivelamentos inclinados entre eles, ambos percorridos e riscados pelos canais. O fogo que grassou por estes fora iluminou por fim o recinto, bem como o que este continha, e Tylon não conseguiu evitar que o queixo lhe descaísse, roçando o peito com as pontas da basta barba.
Ao longo dos três níveis, parcamente espaçadas entre si, encontravam-se cerca de cem armaduras douradas, a mestria da sua manufatura inflamada pelo fulgor das chamas. Eram todas de um modelo arcaico, segmentadas e com elmos de inexpressivas máscaras antropomórficas, e as armas e escudos retangulares e embossados que empunhavam eram igualmente antiquados, relíquias de uma época na qual o gume de uma lâmina pesada fora rei e senhor do campo de batalha. Embora o ouro do qual eram feitas não deslustrasse, muitas encontravam-se em mau estado, amolgadas ou de outra forma danificadas, o que tanto mais surpreendente tornava o fato de todas se encontrarem de pé, embora nada as ocupasse por dentro nem aparentasse estar a sustê-las. Nada havia nos espaços entre braceiras e braçais, por exemplo, estando estes simplesmente no ar e à distância correta um do outro, como se revestissem um braço. As máscaras eram feitas à imagem e semelhança das feições dos nobres que haviam sacrificado as suas vidas para animar as armaduras na hora de maior necessidade da sua nação, um ato de nobreza desde então nunca mais igualado, e olhavam todas em frente de bocas fechadas a transmitirem bem a determinação daqueles cujas almas alojavam.
«A Hoste Dourada...», apercebeu-se Tylon, esmagado pelo que via. «Pel’O Flagelo, o que vai este estouvado fazer? »
Aereth nada disse, sorrindo de boca aberta, erguendo o queixo e deixando as mãos de palmas viradas para o fogo, como se estivesse a ser arrebatado pelo calor. As chamas inflamavam as armaduras, fazendo-as luzir e conferindo-lhes aquilo que parecia ser uma ilusão de movimento através do fulgor e do turvar do ar resultante da emanação do calor do óleo ardente. Pelo menos era o que Tylon esperava, que não passasse de uma ilusão.
— O legado dos nossos antigos aliados sirulianos — disse então Aereth, aparentemente satisfeito com a impressão que provocara. — Não mais invocadas desde a Sexta Era, chegou a hora de se erguerem uma vez mais, agora que o coração de Nolwyn se encontra novamente ameaçado.
— Mas... lorde Aereth, que pretendeis? — indagou Tylon num raro momento de perda de compostura.
— Que mais, meu bom Tylon? — retorquiu Aereth retoricamente. — É guerra que lorde Sunlar deseja? Então tê-la-á: uma reencenação da Batalha do Sol Nascente em sua honra!
Embora Aereth não o tivesse dito com essa intenção, a alusão ao prélio que deixara as forças do seu senhor totalmente desbaratadas durante toda uma era deixou Tylon mais nervoso ainda. O jovem regente nada mais adiantou, limitando-se a contemplar o seu novo trunfo e deixando-se banhar ao lume do fogo, tentando não tornar demasiado evidente o gozo que sentia por ver Tylon tão atabalhoado devido a uma nova decisão que tomara sem o consultar. Por sua vez, o senhor de Lennhau estava sem palavras e limitava-se a contemplar as armaduras da Hoste Dourada em atemorizado respeito, temendo que o seu conluio com as forças d’O Flagelo pudesse ser sentido por aquelas que eram as obras dos sirulianos. Como que animadas pelo calor, algumas partes começaram a mexer-se, e o ranger e roçar de placas de ouro começou a sobrepor-se ao rugir das chamas, fazendo com que Tylon tremesse involuntariamente. Os inexpressivos elmos pareciam fitá-lo, e o regente orou para que tal não passasse de mera impressão sua.
«Pel’O Flagelo...», repetiu, começando a suar por entre as omoplatas, e não devido ao fogo.
— ...o mestre o quê?! — praticamente gritou a manifestação incorpórea de Allumno, adquirindo contornos mais nítidos como se a raiva o estivesse a moldar.
Por sua vez, a de Zoryan virou a cabeça, difusa como se estivesse a tentar ocultar o que lhe ia na alma, dando mostras de uma frágil resolução que estava a ser posta à prova pelo tom de voz traído do seu pupilo, que lhe era como um filho.
— Mestre, o que é que me está a dizer? — ecoou a voz do mago na cabeça de Zoryan, que se viu momentaneamente incapaz de o fitar.
Allumno flutuou de forma circular para forçar o arquimago a encará-lo, deixando para trás um rasto semelhante à passagem de um seixo por água, tentando futilmente agarrar a manifestação deste. Quando Zoryan por fim retribuiu o olhar, o seu semblante estava de tal forma difuso que era impossível nele distinguir qualquer emoção, o que atribulou Allumno mais ainda.
— Eu... menti-te — tornou Zoryan a admitir, o que não foi menos difícil de ouvir à segunda vez. — Menti-te, Allumno.
Chocado, o mago afastou-se, a sua cara uma clara máscara de desalento enquanto a abanava em incredulidade.
— Menti-te, e, embora não espere o teu perdão, peço-te desculpa por isso. Não imaginas o quanto me custou...
— O quanto lhe custou? — repetiu o mago, erguendo de seguida a voz e cerrando os imateriais punhos, que começaram a coriscar de Essência. — O quanto lhe custou, mestre? O mestre faz idéia do que... do quanto eu... — Balbuciando de raiva, Allumno perdeu toda a coerência e o que lhe saiu da boca foi um incompreensível rosnido gaguejante.
O fato de Zoryan nada mais acrescentar apenas piorou as coisas, sendo que cada palavra que o arquimago não dizia correspondia à confirmação de mais uma das suspeitas de Allumno, suspeitas das quais finalmente se tomava conta, mas nas quais ainda não se conseguia levar a acreditar.
— Diga-me que não é verdade, mestre — pediu, quase suplicou o mago assim que recuperou a congruência. — Diga-me.
Zoryan baixou a cabeça.
— Diga-me, mestre. Abanou-a.
— Diga-me.
— Allumno...
— Diga-me.
— Tens que...
— DIGA-ME! — berrou o mago por fim, impulsionando para a frente ambas as mãos de palmas abertas e descarregando uma potente rajada contra Zoryan, que foi por ela atingido em cheio e projetado a uma considerável distância, que no Pilar era em grande parte irrelevante.
Embora não houvesse ar nem a necessidade de respirar no Pilar, Allumno mexeu-se como se estivesse a ofegar, olhando para as suas mãos e de seguida para o trilho ondulante deixado para trás por Zoryan no seu vôo desenfreado. O arquimago pairava inanimado ao longe de braços e pernas estendidos, e Allumno foi lentamente na sua direção, flutuando como um fantasma e sentindo-se tão vazio como um. Assim que se acercou do seu mestre, este endireitou-se e assumiu a sua habitual pose de instrutor, cruzando as mãos atrás das costas.
— Sentes-te melhor agora, Allumno? — perguntou de forma quase cândida, permanecendo contudo de feições envergonhadamente indistintas.
— Não — admitiu o mago, apesar de aparentar estar mais calmo.
— É verdade, Allumno. Eu menti-te. E mesmo que não aceites, torno a pedir-te desculpa. Fica sabendo que não me perdoarei por isso até ao fim dos meus dias.
Sem saber o que dizer, Allumno abriu as mãos e abanou a cabeça de boca entreaberta, sentindo notórias dificuldades em articular as suas palavras, mesmo que estas não tivessem que passar pela sua boca.
— Mestre... tudo aquilo que fiz... fiz porque confiava em si — disse. — Por que teve que me mentir?
Zoryan soltou um suspiro etéreo, abanando tristemente a cabeça.
— Tinha... tinha que te testar, Allumno — confessou o arquimago, abstendo-se visivelmente de o tratar por «pupilo», como era seu hábito. — Tinha de ver até que ponto estavas permeável...
— Não me podia ter dito, mestre?
— Não — disse Zoryan, abanando novamente a cabeça, desta vez com mais ênfase, como se estivesse a tentar provar algo. — Tinha de ver... tinha de ver até onde estarias disposto a chegar.
A etérea face de Allumno ficou nitidamente mais carregada.
— Eu estaria disposto a chegar até onde o mestre bem o entendesse — quase rosnou o mago, apontando acusadoramente para Zoryan. — Eu tinha toda a confiança no mestre. Posso ter mostrado reservas, mas depositava toda a minha confiança...
— Em nome dos deuses, Allumno, como podes ser tão ingênuo? Olha à tua volta! — interrompeu-o o arquimago, subitamente exasperado ao indicar com um amplo gesto das mãos a imensidão etérea que os rodeava, e as gavinhas negras que pulsavam por esta fora como iníquas veias. — A sombra d’O Flagelo disseminou-se pelo Pilar! Os sussurros do Anátema ouvem-se na calada da noite! Eu... eu tinha que saber!
— Saber o quê, mestre? — redarguiu Allumno em igual tom de voz, achegando a sua cara da de Zoryan, que entretanto ficara mais nítida, como se o seu mestre estivesse por fim disposto a encará-lo de frente.
— Saber... — O arquimago hesitou, fazendo tenções de virar novamente a cara, mas desta feita o olhar etéreo de Allumno reteve-o. — Saber se foras ou não tocado — explanou por fim, falando tão baixo que os movimentos dos seus lábios apenas acusaram a mínima agitação na sua imaterial barba.
— Tocado?
— Sim. Se deras ou não ouvidos aos sussurros. Se a sombra...
O arquimago perdeu novamente as palavras, de tão focado que estava no intenso olhar de Allumno. Queria dar ao menos essa satisfação ao seu pupilo, a de o olhar de frente enquanto lhe rasgava o coração em pequenos pedaços, mas mesmo isso provava ser difícil.
— E...? — instou este, a sua voz um sussurro contrito na cabeça de Zoryan, esperando que continuasse.
— Sinto-me... incerto. Nem sempre seguiste as minhas diretivas, apesar de toda a fé que dizes depositar em mim. Deixaste-te levar pelas aleivosas palavras de Strelyanika, a bruxa tanarchiana, falhando em reconhecer a ameaça nela latente. Não só isso, deixaste uma série de magos viver, a despeito das minhas vivas recomendações em contrário.
O mago nada disse, cada músculo na sua intangível face imóvel e com os olhos a irradiarem a quase visível tensão que retinha o olhar do seu mestre.
— Sim, bem sei que disse que confiava no teu discernimento. Menti. Era um teste, Allumno, e o seu resultado preocupa-me. Se não posso confiar em ti para fazer aquilo que é necessário, em quem mais poderei confiar?
— O mestre quer mesmo falar de... confiança?
— Maldição, Allumno, O Flagelo está aí, e desta vez ataca de forma bem mais insidiosa. Quer corromper-nos por dentro, e os primeiros a sofrer o seu toque seremos nós, os que fazemos uso da Palavra!
Allumno não pareceu convencido, mas isso não deteve Zoryan.
— Olha à tua volta! — instou novamente o arquimago. — A sombra de Seltor percorre o Pilar, envenenando a Essência e causando sabem os deuses que mais calamidades. Uma delas sei eu, e é precisamente a causa de um dos sismos que te ia matando e têm feito Allaryia tremer.
Zoryan apontou para trás de si e para baixo, o que na verdade poderia corresponder a qualquer outra direção que não a que pretendia.
— Os servos das Entidades estão em guerra, Allumno, e não a guerra que tu já conheces. Não, esta guerra abala o próprio Pilar, pois os azigoth foram de alguma forma acirrados pela sombra de Seltor, o que causou um desequilíbrio. Os segmentos do Pilar movem-se e revolvem em si como nunca antes, e isso só poderá ter conseqüências nefastas. É por isso que urge que se faça algo, Allumno, e é por isso que urge que confies em mim e faças o que te digo sem reservas!
Pela primeira vez desde o início da conversa, a expressão de Allumno alterou-se, sendo a dúvida e não mais a raiva a enrugar-lhe as etéreas feições.
— Queres que te mostre? — ofereceu-se Zoryan. — Bem sei que não estás habituado a ir além do atrito, mas com a minha ajuda...
Allumno ergueu a mão.
— Não. Deixe estar, mestre — recusou. — Afinal, urge que se faça algo, não é?
— Não noto grande convicção na tua voz, Allumno.
— Convicções são perigosas quando alimentadas por um espírito ignorante, mestre. Visto que tão pouco sei, e que o pouco que sabia revelou ser falho, o melhor será mesmo cingir-me àquilo que aparentemente melhor faço: matar outros magos.
— Allumno, não estás a...
— ...compreender? Não, mestre, asseguro-lhe que agora compreendo. Compreendo perfeitamente. Retiro-me, então, pois urge que se faça algo, e certamente não temos tempo a perder com uma mera quizila entre aluno e mestre.
— Allumno..,!
— Adeus, mestre. Não tardaremos a rever-nos.
Sem mais uma palavra, a manifestação do mago dissipou-se nas águas etéreas do Pilar, e Zoryan estendeu uma mão em vão, como se com ela o pudesse reter. Desalentado, baixou-a novamente, embora a mantivesse e à outra de punho fechado, levando de seguida ambos à cara e sentindo a falta de carne na qual pudesse enfiar as suas unhas. Sentiu igualmente falta da capacidade de chorar de desalento ou tristeza, duas formas de expiação negadas pela sua presente condição, ou mesmo de qualquer outra forma de dar largas à imensa frustração que naquele momento lhe fervilhava em cada imaterial fibra do seu fantasmagórico ser. Restava-lhe apenas a descarga desenfreada de pura Essência, sem ter sequer um alvo para abater, mas mesmo isso lhe foi naquele momento negado, pois Allumno abnegara-o de tal forma que a gema deste, a âncora de Zoryan ao mundo dos vivos, deixou de imediato de o prender, fazendo com que o Pilar reclamasse sofregamente a sua alma tresmalhada. Soltando um grito surdo de raiva, o arquimago dissolveu-se então ele também, sendo diluído nas vastas e sidéreas águas do Pilar, que permaneciam alheias as pulsantes gavinhas de sombra que por elas flutuavam, palpitando inescrutáveis desígnios ao longo de toda a sua nefanda extensão.
Quando do seu regresso a Horavog, Quenestil e os outros não foram propriamente recebidos como heróis, pois quem se encontrava no exterior a tratar do bacalhau pendurado em armações de madeira à beira da falésia limitou-se a olhá-los em silêncio. Uma pessoa entrou no edifício para avisar os outros, mas os restantes ficaram simplesmente a observar a lenta caminhada dos cinco, parecendo apenas genuinamente interessados ao distinguirem uma mulher que coxeava, trazida pelo alto rapaz revestido de aço, e ao repararem que dois dos cinco levavam um sexto numa liteira improvisada com uma capa, que lhe deixava os braços e as pernas a penderem e a arrastarem-se pelo chão. Quenestil vinha na dianteira, de mão ligada e feições sombrias, quase propositadamente escondidas por fiapos de cabelos ruivos que o vento despenteava e lhe deixava pendentes diante da cara. Parecia rígido e cansado, como um pedaço de carne deixada a secar ao vento, e os outros não tinham muito melhor aspecto, embora acusassem maior alívio por chegarem por fim a casa, e mesmo um certo orgulho pelo seu regresso com um propósito cumprido. Tinham todos um ar surrado, mas era evidente que fora ao eahan a quem a expedição mais custara.
Os poucos habitantes que se encontravam fora do edifício começaram então a seguir os recém-chegados como uma procissão, acompanhando-os até à porta, que Quenestil abriu de forma abrupta, fazendo com que esta batesse na parede e ressaltasse contra o seu ombro. Alheio a tudo e todos, o eahan continuou pela partição de madeira e entrou na sala principal sem se anunciar, detendo-se à entrada desta e olhando em redor. Os residentes encontravam-se ocupados com os afazeres do costume no fumarento e oleosamente iluminado recinto, tecendo, cosendo, cozinhando e falando em voz baixa, que mais baixa ficou quando da sua chegada até se reduzir ao silêncio. Foi uma recepção semelhante à do seu primeiro dia em Horavog, quando mesmo as crianças se calaram, observando-o com grandes olhos azuis. A única coisa que criou uma racha na pétrea expressão de Quenestil foi ver os eahlan presentes e aparentemente instalados na sala principal, com pequenos eahan de cabelos brancos imiscuídos com pequenos wolhynos de cabelos cor de linho ao pé da fogueira. Slayra também se encontrava presente, mas o eahan passou por ela o seu olhar demasiadamente depressa para sequer reparar na expressão de alívio patente na cara da eahanoir, incapaz porém de evitar pousar os olhos por breves instantes sobre os dois bebês cingidos por envolvedouros aos braços desta. Ambos mamavam consoladamente, e Quenestil reteve neles o olhar mais tempo que o que queria, chegando mesmo a entreabrir a boca quando os músculos da sua face relaxaram, entesando-se contudo logo de seguida quando por fim virou a cara na direção do fundo da sala, para aquele que passava pelo trono de Hjlinar.
Com Deadan e os outros no seu encalço, o shura ignorou os ressurgentes murmúrios assim que as pessoas começaram a reparar na kuvamora presa pelos braços pelas fortes mãos de aço do Ajuramentado, e foi ter com o alegado senhor de Horavog. O rapaz estava nervosamente sentado numa cadeira esculpida, de longe a peça de mobília mais ornada da sala, e a expressão de Quenestil assustava-o cada vez mais à medida que o eahan se ia aproximando. A seu lado, Oska afagava o seu felpudo gato de indolentes olhos verdes, parecendo mais jovem e fresca naquele dia por uma serva ruiva lhe estar a arranjar os cabelos castanhos, deixando-os fluir à vontade pelas suas costas em vez de os prender com a habitual touca. Sabendo o que agora sabia, Quenestil viu a serva com outros olhos, e esta baixou os seus, evidentemente pouco à vontade com a atenção do eahan, que ignorou Hjlinar por completo e se dirigiu diretamente a Oska.
— Dou a minha boa tarde, Oska — saudou sem hesitar, apesar do seu sofrível Hjrutmalv, apontando para a prisioneira nas mãos de Deadan. — Nós trazemos a kuvamora, a mãe dos skrimmen. Os skrimmen não vêm a Horavog.
Ruídos de admiração fizeram-se ouvir, e a kuvamora manteve-se hirta e direita, olhando todos nos olhos com o intuito de não mostrar medo. Tinha a perna enfaixada, estava suja e ainda com caruxna nos entrançados e sebosos cabelos louros, mas parecia determinada a não se deixar intimidar, mesmo cercada por aqueles que sabia serem seus inimigos. Oska olhou-a sem qualquer emoção parente na sua cara, continuando a afagar o gato enquanto o fazia, e inclinou a cabeça para o lado para ver Ohttur e HOrdur, que se encontravam atrás desta e ainda com a liteira improvisada em mãos. Sem nada dizer, a mulher ergueu a inquiridora cabeça, e os dois wolhynos entreolharam-se, acabando por pousar a capa e o seu ocupante no chão. A reação da maior parte dos presentes diante do cadáver de Engiv não foi particularmente efusiva, mas uma mulher ruiva mal foi capaz de conter um gemido de angústia antes de tapar a boca com a mão, ficando então a soluçar, consolada pelas solidárias palmadas de outros ruivos.
— Tinham skrimmen e ulkatr — prosseguiu o eahan, alheando-se da angústia. — Morreu um homem que luta.
Oska anuiu com a cabeça, erguendo então os olhos para fitar novamente a kuvamora, cuja postura refratária não esmorecia. Sem tirar os olhos dela, mencionou o nome de Agtor e disse-lhe algo demasiado depressa para que Quenestil acompanhasse. O wolhyno avançou um passo, postando-se ao lado do eahan, e começou a traduzir.
— Enquanto nós não estávamos, Aggor, Hyrm e Hjoíld, os sobrinhos de Skoísvein, vieram a Horavog.
A expressão de Quenestil alterou-se novamente quando virou a cara para Agtor, mostrando-se desta feita preocupada.
— O que?
Oska continuou, e Agtor foi trasladando.
— Como havia poucos homens em Horavog, esses rabazes vieram e levaram algumas ovelhas. Disseram que não precisávamos delas, que tínhamos um frecheiro e que ele devia caçar para nós.
Quenestil baixou a cabeça e premiu os frustrados lábios, certo de que arranjaria forma de se sentir culpado por não ter sido mais discreto ao afugentar os três intrusos com a ameaça do seu arco.
— Disseram também que os outros garding vão saber que os kahrkr vêm a Horavog. Que Oska vai ser a arlota do seu tio, Skoísvein, e que a quinta vai ser deles em breve.
O eahan nada disse, e Oska prosseguiu o seu monocórdico relato, falando de forma deveras prosaica para quem fora ameaçada de ser feita prostituta do seu inimigo.
— Não podemos dar chus tempo a Skoísvein, é preciso começarmos a agir para não perdermos Horavog — continuou Agtor, que não escondia a sua preocupação. — Estamos soutos, e precisamos de aliados. Oska diz que devemos falar com Knorl.
— Quem é Knorl? — indagou Quenestil.
— O garding de KnorlvOg — explicou o antigo mercador por iniciativa própria. — É um garding forte, com boas terras e muitos homens. Se fosse amigo de Horavog, Skolsvein não teria coragem para um amago.
— Então... e por que é que ainda não falaram com ele?
Agtor remeteu a pergunta à sua senhora, que lhe respondeu prontamente, mantendo porém os olhos na kuvamora enquanto falava.
— Porque antes não tínhamos peita. Não tínhamos nada que Knorl pudesse querer. Tem mais ovelhas, mais mancípios e mais terras que Horavog, e tem uma esposa leina. Mas agora... — Agtor virou ele também o olhar para a kuvamora, que se sentiu visivelmente desagradada com a particular atenção da parte dele e de Oska. — Agora temos uma coisa que ele pode querer.
— Como assim? — perguntou Quenestil, pressentindo a resposta.
— A kuvamora — disse Agtor, indicando-a com o queixo. — Knorl tem esposa, mas também tem outras mulheres. Só que essas mulheres são todas bjinir, sémel dos invasores forlornyanos. Uma mulher skrimmen... e logo a kuvamora... é um grande troféu.
O wolhyno sobressaltou-se quando a mão de Quenestil embateu contra o seu peito, como para lhe refrear os próprios pensamentos. Outros presentes também se sobressaltaram, incluindo Hjlinar.
— O que é que estás a dizer? — perguntou o eahan, de olhos semicerrados e boca incredulamente aberta.
— Enh... — hesitou Agtor, obviamente assustado com a atenção que lhe fora reservada e olhando para a mão cuja palma permanecia assente sobre o seu peito. — Quenestil... temos a kuvamora, e graças a isso os skrimmen não vão fazer a sua algara... não é?
— O que é que isso tem que ver com oferecê-la como escrava? — quis o eahan saber.
Nervoso e obviamente com pouca vontade de ser responsabilizado pela sua escolha de palavras, Agtor remeteu a pergunta para Oska, que pareceu algo admirada pela veemente oposição do seu convidado.
— Quenestil... — começou o wolhyno a traduzir. — Se um amago dos skrimmen já não é um perigo, Horavog agradece-te. Mas os skrimmen não são os únicos immigos de Horavog, e Skoísvein é como um lobo que cheira sangue. Horavog precisa de aliados, Quenestil, mas é uma quinta pobre e não tem nada para oferecer. Mas agora temos a kuvamora.
De boca entreaberta e olhos semicerrados, Quenestil olhou alternadamente para Oska e para Agtor, vendo nos seus olhos que esperavam algo dele, que aguardavam genuinamente a sua aprovação. Virando-se abruptamente para trás, assustou os restantes wolhynos e constatou que estes também esperavam algo dele. Havia sempre alguém a esperar algo dele, mesmo os eahlan, dos quais Hanal e Eluana se destacavam naquele momento, ambos serenamente erguidos e de olhos postos em si, como se nele depositassem todas as suas esperanças. Mesmo Slayra, que segurava os dois bebês e se tentava levantar, sendo refreada por S. anã...
Ao evitar ativamente olhar para a eahanoir, o shura deu consigo a cruzar olhares com a kuvamora, cujos ombros se encontravam algo encolhidos devido à pressão exercida nos seus braços por Deadan, sempre sensível aos momentos de tensão. Ficou momentaneamente preso pelos orbes verdes desta, pelo brilho selvagem que falhavam em ocultar, e foi novamente acometido pela sensação de empatia que o surpreendera da primeira vez que a vira.
— Quenestil... — chamou-lhe Agtor a atenção. — Horavog deu-vos comida e teto...
— Então é esse o vosso conceito de hospitalidade? — rosnou o shura ao devolver-lhe a sua atenção. — Acolhem-nos e depois esperam que vamos caçar para vocês?
O wolhyno não deu mostras de ter compreendido a idéia, mas Quenestil não lhe deu sequer hipótese para falar e excluiu-se a si mesmo do assunto, afastando ambos os braços de mãos abertas.
— Sabem que mais? Façam com ela o que quiserem! — barafustou, virando-lhes as costas e dirigindo-se furiosamente à saída.
Tal era a raiva, que Quenestil meio chutou meio tropeçou num alguidar perto da fogueira, despejando a água deste pelo chão de terra batida. Ainda ouviu Deadan dizer o seu nome, confuso, mas ignorou-o por completo. Hanal e Eluana tentaram abordá-lo, e o Patriarca estendeu mesmo a mão para o refrear, mas Quenestil pura e simplesmente ignorou-os, tal como fez a Slayra, demasiado furioso para falar com quem quer que fosse e desaparecendo sozinho na partição que dava para a saída. Alguns wolhynos tinham ficado para trás, e saíram-lhe prontamente do caminho, encostando-se às paredes.
«Malditos sejam, não haverá limites para a depredação dos humanos entre os seus?-», questionou-se o eahan, abrindo a porta, fechando-a furiosamente atrás de si, e encostando-se a ela de seguida.
Foi de bom grado que recebeu uma baforada de vento frio na cara, e inspirou fundo, sem contudo conseguir acalmar o alvoroçado coração. O tempo estava a ficar mais frio, mas naquele momento o gelo e a neve pareceram-lhe mais apetecíveis que o quente mas intriguista interior da quinta, onde todos queriam alguma coisa dele ou esperavam que tomasse decisões para as quais não estava pronto... para as quais não se achava apto, raios, por que não percebiam eles isso? E nem sabiam de metade da história, nem eles nem os eahlan. Uns não sabiam de Ihjseorn, outros não sabiam do seu juramento de vingança, nenhum a não ser Slayra sabia da traição desta, a menos que a eahanoir lhes tivesse contado. E agora... agora...
Rosnando guturalmente, o eahan afastou-se de rompante da porta e começou a caminhar rumo à montanha a Norte, rumo ao entorpecedor frio, ao relaxante sossego, ao silêncio que apenas o turbilhão que era a sua alma poderia perturbar e que esperava conseguir amainar com algum tempo de isolamento, do qual se encontrava tão desesperadamente necessitado.
«Mãe... quando é que as coisas ficaram tão complicadas?», era um pensamento que se tornara recorrente nos últimos tempos.
A abrupta e enraivecida saída de Quenestil deixara o interior de Horavog em silêncio, apenas quebrado por Slayra, que se conseguira livrar das protetoras eahlanas para se levantar e ir até à porta com os bebes ao colo. Porém, o shura não mais estivera à vista e sana convencera-a a voltar para dentro, onde os wolhynos tentaram aparentar tanta normalidade quanta possível com um cadáver e uma skrimmen capturada entre eles. Oska restabeleceu de imediato a ordem e pôs as coisas a mexer, deixando o cadáver de Engiv a cargo dos seus, ordenando a dois homens que fossem prender a kuvamora no celeiro e indicando aos restantes membros da expedição que se sentassem para que os seus ferimentos pudessem ser tratados. Ninguém contestou as suas palavras, menos Deadan, que na ausência de Quenestil parecia sempre ficar meio perdido, e que mostrava pouca vontade de se deixar tratar por mãos wolhynas, nas quais aparentemente não depositava grande fé. Todavia, assim que os dois homens lhe vieram respeitosa e quase deferentemente tirar a kuvamora das mãos de aço, o Ajuramentado foi agarrado pelo braço. Ao olhar para o lado, viu que era Yhtte, a filha de Oska, quem lho agarrava, e quem lho puxou debilmente. Evidentemente embaraçada, a rapariga baixou os olhos de um azul cerúleo, mas insistiu através de débeis puxões para que Deadan se fosse sentar numa das bancadas.
— Eu... — titubeou o jovem. — Não, deixa estar. Não...
— Naj... — recusou Yhtte, indicando a sua cabeça de cabelos empastelados de sangue. — Hovde tirr...
— É só sangue, rapariga — minorou Deadan. — Não preciso de...
— Deadan, estás ferido! — ouviu Alisa, a filha de Hanal, dizer atrás de si.
Como sempre, a maviosa voz de uma eahlana teve no siruliano o efeito oposto ao que seria de esperar, deixando-o nervoso. Conseguiu afastar-se a tempo da mão que Alisa tentou pousar no seu ombro, empurrando Yhtte ao desviar-se, mas a eahanna branca avançou outro passo, forçando-o a recuar na direção que a wolhyna pretendia.
— A tua cabeça... — persistiu a eahlana, alheia ao nervosismo de Deadan. — Deixa-me...
— Não... não é preciso — firmou o Ajuramentado, recuando outro passo e indicando Yhtte com um gesto da cabeça. — Ela trata de mim.
Alisa cruzou as mãos sobre o ventre, olhando para a rapariga e sorrindo-lhe quando esta acenou com a cabeça, como que a confirmar o que o siruliano dissera. Encurralado, Deadan então nada mais pôde fazer além de se deixar arrastar até à bancada, na qual se sentou por incentivo das mãos de Yhtte sobre as suas espaldeiras. A wolhyna era alta, mas parecia mais intimidada pelo tamanho de Deadan do que as mais baixas eahlanas; isso, ou outra coisa qualquer da qual o jovem siruliano não se soube dar conta. Agtor, HOrdur e Ohttur sentaram-se eles também, assistidos por esposas, filhas ou irmãs, que lhes trataram dos ferimentos com água. Yhtte pousou um balde ao lado de Deadan e pegou-lhe com hesitantes mãos na cabeça, inclinando-a e umedecendo-lhe o cabelo para tirar o sangue encrostado e melhor ver a ferida. A água ardia em contato com o ferimento no seu escalpe, e o jovem deduziu que fosse do mar.
— Deadan? — ouviu uma voz, e olhou de lado de cabeça inclinada para ver Slayra diante de si. Não vinha com os bebês, e esfregava as nervosas mãos enquanto parecia estar a pensar naquilo que iria dizer.
— Também queres tratar de mim, eahanoir? — comentou o Ajuramentado, algo incomodado, baixando novamente os olhos como se desagradado por vê-la.
Slayra hesitou e ergueu ligeiramente as sobrancelhas, surpresa pela reação do jovem, mas a sua expressão endureceu logo de seguida como se tivesse sido picada sem qualquer provocação.
— Olha, agora tu também foste dar em sarcástico? — comentou.
— O que foi? Preferias que eu estivesse a tentar meter a tua cabeça dentro das minhas saias como essa rapariga?
Deadan tentou erguer a cabeça devido ao incômodo da mera sugestão, mas Yhtte manteve-a no lugar, sem saber que estavam a falar de si. Porém, e apesar de se sentir tentada, Slayra não deu seguimento ao seu escarninho e pigarreou como para dar um passo atrás, alisando o vestido negro sobre as suas ancas. A eahanoir recuperara relativamente bem do parto, apesar de ainda andar como se os ligamentos da sua bacia estivessem soltos, o que lhe afetava a graciosidade felina com a qual costumara caminhar.
— Ouve, eu sei que não morres de amores nem por mim, nem pela minha raça, mas só te queria fazer umas perguntas — explicou. — Depois deixo-te à vontade com a tua amiga.
O siruliano nada disse, e Slayra interpretou o seu silêncio como assentimento.
— O que... o que aconteceu com o Quenestil?
Deadan não respondeu de imediato, obviamente reticente em trocar palavras com uma eahanna negra.
— O mesmo que a todos nós, eahanoir — disse por fim. — Matou e viu morrer. Nada a que não deva já estar habituado.
Slayra revirou os olhos e exalou de frustração, apoiando as mãos sobre as ancas.
— Isso sei eu. O que mais aconteceu com ele? Ele não...
— Por que não lhe perguntas a ele, eahanoir? — interrompeu Deadan, incomodado. — Por que me vens importunar a mim?
— Porque ele não fala comigo.
— Comigo tão pouco fala...
— Raios, Deadan, podes parar de ser uma criança grande e macambúzia por um instante? — barafustou Slayra, inclinando-se diante do Ajuramentado. — És tu quem mais tem andado com ele, foi contigo que ele combateu, foi contigo que ele falou depois de correr com aqueles três louros. Alguma coisa te há de ter dito, não?!
O levantar da voz da eahanoir chamou a atenção de alguns wolhynos, mas Yhtte manteve-se concentrada na sua tarefa, esfregando a cabeça de Deadan com um pano ensopado em água salgada. Ciente de que se exaltara, Slayra levou a mão ao peito e inspirou fundo de olhos fechados, que assim manteve ao dirigir novamente palavra ao siruliano.
— Por favor, Deadan. Dá-me uma resposta, diz-me alguma coisa. Qualquer coisa para que eu possa perceber o que se passa. Qualquer coisa, e eu deixo-te em paz.
Os olhos do Ajuramentado permaneceram fitos no chão, observando as manchas nele causadas peia água salgada que lhe pingava dos cabelos, e a sua resposta tardou de tal forma que Slayra suspirou e recuou um passo para se retirar, mas a voz de Deadan reteve-a.
— Ele anda... perturbado, eahanoir. Com a situação. Com quem o rodeia. Consigo mesmo. Mas disso deduzo que tu própria te terás apercebido.
— Sim... — disse Slayra, acenando com a cabeça e esperando algo mais.
Porém, nada mais veio, pois Deadan parecia julgar a sua resposta satisfatória.
— É tudo, eahanoir — concluiu. — Mais não te sei dizer. Slayra ainda esperou que o jovem reconsiderasse ou se lembrasse de algo mais, mas os olhos dele permaneceram fixados no chão e parecia apenas aguardar que se retirasse, tal como prometido. A eahanoir retesou os frustrados maxilares, pronta a vergastar Deadan verbalmente, mas cedo se apercebeu de que estava a canalizar as suas frustrações para a pessoa errada. Fechou e relaxou os punhos duas, três vezes e tornou a inspirar fundo, baixando a cabeça ao expirar, após o que se sentou ao lado de Deadan. Este olhou-a de soslaio, pingando do nariz a salgada água sangrenta que lhe escorria da cabeça.
— Sabes... — disse a eahanoir, apoiando os cotovelos sobre os joelhos e o queixo sobre os dedos sobrepostos. — Quando o vi pela primeira vez, tentei capturá-lo. Por curiosidade.
Deadan tornou a olhar para o chão, esperando com isso desincentivar Slayra.
— Ele intrigava-me, mesmo só de o ver. Tinha um ar selvagem, puro, diferente. Ia capturá-lo, mas acabei por ser eu capturada. Matou os meus companheiros, também; era perigoso, além do mais.
O Ajuramentado manteve a boca bem fechada, tentando parecer o mais absorto possível, quase para se convencer a si mesmo de que Slayra estava a falar sozinha. Porém, esta continuou.
— Tive uma série de ocasiões para fugir, e numa delas fugi mesmo, mas acabei por voltar. Até salvei o couro dele mais de uma vez... e ele o meu...
Incomodado, Deadan tomou a virar ligeiramente a cabeça inclinada para olhar para Slayra, e viu que os líquidos olhos azuis desta estavam focados num qualquer ponto no vazio. O seu tom de voz ia também baixando, como se estivesse cada vez mais a falar sozinha, ou a deixar-se imergir em reminiscências.
— Claro que nenhum de nós o admitia, mas depois houve a noite nas montanhas, no meio do frio e da neve... havias de experimentar um dia, Deadan, e logo verias como pode ser bom — comentou a eahanoir, erguendo brevemente o canto da boca num sorriso algo sardônico, mas baixando-o logo de seguida ao retomar o seu tom confidente. — Com ele foi diferente. Com ele era tudo diferente. Fazes idéia de como é a vida numa cidade eahanoir?
Deadan não respondeu, até porque Slayra nem olhara para ele ao fazer a pergunta, permanecendo a fitar o vazio, o que contudo não a impediu de continuar.
— Quem não olha por cima do ombro, morre. Quem não conhece as pessoas certas, morre. Quem não vigia as pessoas certas, morre. Quem não dorme com um olho aberto e uma faca debaixo da almofada, pode morrer.
Slayra enumerou todas as hipóteses com voz desprovida de expressão, tal como se estivesse a descrever um itinerário comum na sua cidade.
— Quem te ajuda, faça porque encostaste uma lâmina à garganta dele, ou porque espera levar-te a uma viela escura para te encostar uma à tua — continuou, gesticulando um pouco com as mãos debaixo do queixo. -— Se confiares em alguém, acabas morto como o estúpido que foste. Se deres as costas a alguém, acabas com uma faca espetada nelas. Estás a perceber a idéia?
O que Slayra dizia apenas confirmava a idéia que Deadan tinha dos eahanoir, e apesar de não responder, esta continuou.
— Com o Quenestil... havia aquela atração entre nós, nenhum a podia negar. Mesmo sem ela, sentia-me segura com ele, com os outros. Sabia que, por muito que pudessem desconfiar de mim, não me enfiariam uma faca nas costas. Para mim foi algo de... novo. Nunca antes tinha sentido essa sensação tão simples de... segurança. E nunca pensei no quanto precisava dela... ou pelo menos, do quanto passei a precisar.
Sem conseguir evitar ficar algo constrangido com toda a situação, Deadan grunhiu de surpresa quando os dedos longos de Yhtte lhe empurraram o queixo para cima. A rapariga tinha ligaduras molhadas com água salgada nas mãos, e enleou-as então na cabeça. Alheia a tudo menos às suas palavras, Slayra não se deteve.
— Restava só aquilo que ele não gostava em mim, aquilo que todos os eahan desprezam em nós, os eahanoir, e aquilo que faz de nós o que nós somos — confessou. — Tive receio de que isso os... o levasse a abandonar-me. Achei que... achei que se eu mudasse, ele quereria ficar comigo, que não me abandonaria, que eu não iria perder essa sensação de segurança, que nunca mais teria de viver como dantes, sempre a olhar por cima do ombro... — disse, suspirando e abanando a cabeça.
Deadan abriu a boca para lhe dizer que eram palavras que lhe eram mal dirigidas, que as devia dizer a Quenestil, mas distraiu-se ao ver Yhtte rachar aquele que parecia ser um ovo de pato sobre a sua cabeça. O Ajuramentado ergueu-a mais, fitando a rapariga de sobrancelhas franzidas, e esta murmurou-lhe uma qualquer palavra apologética ao gotejar-lhe a clara do ovo nas ligaduras sobre a ferida, sustendo por breves momentos o olhar azedo do siruliano. Por sua vez, Slayra prosseguiu.
— Parece que me enganei, não é? De início até resultou, resultou até mesmo na minha própria cidade, onde um amigo nosso morreu. Morreu por mim, sacrificou-se por mim, e nada me devia a não ser... amizade. O meu mundo ficou virado do avesso, mas depois disso encontrei consolo nos braços do Quenestil, até nos braços de quem eu não esperara. Pensei que encontrara o meu lugar, que mudara para melhor e descobrira uma nova vida, até que, em Gul-Yrith... — Os punhos da eahanoir cerraram-se então debaixo do seu queixo. — Só gostaria de saber uma coisa: onde está essa bondade da qual os eahan sempre se gabam? A sua capacidade de perdoar? Onde? Eu só...
Para alívio de Deadan, que rapidamente se viu convertido em tensão, Slayra foi interrompida pela abrupta entrada de um jovem wolhyno de cabelos louros em forma de taça, que correu pela sala afora, contornando a lareira, e abrandou aos tropeções diante de Oska, acordando o gato desta de sobressalto. O rapaz ofegava, e as palavras tardaram em sair-lhe de forma consistente, mas Deadan já se levantara e os restantes presentes também se mostraram nervosos com a aparente urgência do moço. Slayra esqueceu por momentos a sua comiseração e levantou-se ela também, sendo prontamente assistida por duas eahlanas, dando uma vez mais mostras de serem piores que a mais atenciosa das mães. O rapaz falou então, ofegante, apontando para o exterior e respondendo a duas rápidas e concisas perguntas da parte de Oska, a cujo braço Hjlinar se agarrou num gesto muito pouco dignificante para o alegado senhor de Horavog. Contudo, e apesar do alvoroço que se gerou com o que o rapaz disse, Oska manteve a calma e começou novamente a distribuir ordens, indicando Slayra, Deadan e os eahlan. Estes foram prontamente assistidos por uma série de wolhynos e wolhynas, que falaram todos ao mesmo tempo, tropeçando nas palavras uns dos outros enquanto indicavam a partição que dava para as latrinas.
— O que se passa? — quis Deadan imediatamente saber, fulminando com o olhar os wolhynos que haviam ousado tocar nos eahlan, fazendo com que afastassem prontamente as mãos.
— Tu, Agtor! — disse Slayra, indicando o antigo mercador. — O que é que está a acontecer?
Agtor foi rapidamente ter com ambos, empurrando o ar com as mãos abertas para dar a entender que tinham que se mexer, e depressa.
— Toste, têm que exir daqui! — disse. — Vêm aí homens aguçosos!
— Homens o quê? — disse Slayra, soltando o braço que o wolhyno agarrara. — Estamos a ser atacados?
— Ferratos da Wolhynia, eles vêm buscar a peita de Horavog. Não vos podem ver! — explicou Agtor. — Toste, para as latrinas!
Deadan desembainhou o espadão, batendo com ele numa das traves do teto, o que por si só soltou uma invisível onda que afastou de si e dos eahlan todos os wolhynos mais próximos deles.
— Larga isso, Deadan! — repreendeu-o Slayra, tirando os seus filhos do colo das eahlanas. — «Ferratos» são soldados. Se fosse um «amago» é que deveríamos estar preocupados. Anda, venham todos. Se eles nos querem esconder, é porque devem ter uma razão.
Os eahlan seguiram Slayra para as latrinas, e Deadan manteve-se no fim da fila, olhando ameaçadoramente para os wolhynos mais próximos que os tentavam apressar. Hanal e a sua esposa Eluana aquietavam os pequenos eahlan, cujas memórias da fuga de Gul-Yrith foram brevemente reavivadas pelo momento de tensão e de urgência, ficando à entrada das latrinas e esperando até que todos estivessem dentro antes de eles próprios entrarem. Deadan ainda olhou desconfiado para os wolhynos, cujos olhos estavam todos centrados no siruliano, até que Agtor se atreveu a aproximar-se.
— Vai, gaiato, tu também! — disse, enxotando-o com gestos pendentes das mãos. — Eles não vos podem ver!
O Ajuramentado mostrou-se porém irredutível na sua desconfiança, ponderando as mais variadas hipóteses que tal ocasião representava para que fizessem mal aos eahlan.
— Deadan, anda! — instou a voz de Slayra vinda da escura partição, e o jovem acabou por aquiescer, curvando-se para não bater com a cabeça ao entrar de costas e hesitando ao ver que dois homens arrastavam o corpo de Engiv pelos pés para o mesmo local. — Anda!
Os dois trouxeram o cadáver até meio da partição, onde ajustaram a sua postura com os pés e onde o deixaram, indicando a Deadan que se deveria afastar e colocar-se fora de vista de quem pudesse estar a ver de fora. Relutante, o siruliano acabou por assim fazer, recolhendo-se na malcheirosa escuridão e escusando-se ao colidir com aqueles que julgava serem corpos dos eahlan. As latrinas não tinham luz, pois quem as usava devia trazer uma lamparina com todos os cuidados, e os presentes mantiveram-se tão juntos quanto possível, sussurrando palavras apaziguadoras às crianças e abraçando-se uns aos outros, pois mesmo os adultos não puderam deixar de sentir certas reminiscências do fatídico dia em Gul-Yrith.
— Slayra? — perguntou a voz de Eluana à escuridão.
— Sim? — respondeu esta, aquietando os seus filhos, beijando-os nas cabeças.
— Corremos perigo?
— Não, Eluana. Eles vêm só buscar a «peita». Se ficarmos aqui, não vai haver problemas.
Ou pelo menos assim o esperava, pois não fazia idéia do que «peita» significava, e a presença de «ferratos» nunca era uma coisa boa...
A chuva cessara por fim, e tornara-se novamente possível transitar pelos pântanos do Brejo dos Patos, esses já de si difíceis de trilhar mesmo em condições ideais. A mão de humanos ainda não chegara à área que Aewyre percorria num barco de fundo chato com outros eahan, uma zona de choupos, salgueiros, bétulas e ciprestes quase submersos pela água, com pequenas ilhotas entre as árvores na forma de tufos de canas a despontarem aqui e ali. A copa das árvores tapava em grande parte o céu, ajudando ao ambiente frio e úmido, embora algumas tivessem caído durante a chuvada, criando brechas nesta, o que revelava em certas partes uma intrincada rede de cordas semelhante a uma teia de aranha.
A chuva ajudara a aliviar o ar estagnado e a água continuava a correr numa miríade de cursos, mas as coisas não tardariam a normalizar, e o marasmo cedo regressaria. Porém, Aewyre não se podia dar ao luxo de esperar, e pedira aos eahan que os levassem assim que possível. Estes haviam aquiescido, e acompanhavam-no agora Nan’taur, Aiun’alla e três outros eahan brunos com ar de veteranos do pântano. Todos se tinham vestido a rigor para a viagem, envergando túnicas de um esbranquiçado material sedoso sobre as suas toscas vestimentas de couro e trazendo consigo um facalhão de madeira em cada anca e um arco com aljava de flechas com ponta em forma de V. Aewyre envergava a mesma vestimenta, pois usar armadura podia ser perigoso quando viajava em cursos de água, mas o que nele mais atenção chamava eram as curtas tranças feitas por Aiun’alla. Tivera apenas ocasião de se ver na turva superfície da água, pelo que não sabia dizer ao certo se lhe ficavam bem ou não, mas a eahanna assim achava, e o jovem não iria ser descortês ao ponto de as tirar por vaidade. Além. deles, havia ainda dois eahan em cada flanco e um na vanguarda a bater o terreno, sendo que esses envergavam vestimentas de pele revestidas por uma camada de folhas mortas que lhes permitia andarem camuflados por entre as árvores e os espaços verdes do pântano. Caminhavam sobre andas, o que a uma certa distância lhes dava o aspecto de cegonhas furtivas e sujas.
— Costumam ter problemas com os humanos? — perguntou Aewyre, esbofeteando a sua cara. Agora que a chuva cessara, os insetos tinham regressado em força, e o jovem arrependeu-se de não ter espalhado óleo de bétula pela sua cara e mãos de forma tão generosa como os eahan.
— Sim... por vezes — respondeu Nan’taur, olhando em frente enquanto remava. — Sobretudo com os de Arle. O barão Savincar é um homem cruel.
— Acredito — disse o guerreiro, esbofeteando uma orelha. — Mas... problemas graves?
— Já morreram eahan — elucidou Nan’taur7 e a sua expressão enegreceu. — Acidentes, disseram eles. Mas nós sabemos por que têm batedores boaroars.
— Boaroars? — gralhou Aewyre, incrédulo. — O Savincar usa boaroars?
— E uma... vantagem que vocês, humanos, têm em relação a nós — disse o eahan, incapaz de ocultar o preconceito na sua voz. — Não hesitam em usar o que vos for mais vantajoso, por muito vil que possa ser...
— Ei, o que dizes é surpresa para mim! — ressentiu-se Aewyre.
— Nunca soube de nobre humano algum que usasse boaroars...
— Não me refiro a eles, os boaroars são como animais com uma medida de inteligência na forma como caçam e nas armas que elaboram; só querem sobreviver. Não os considero malignos. Refiro-me à forma como Savincar os usa, vergastando-os, atormentando-os, quebrando-lhes o espírito e fazendo deles animais de caça raivosos.
Aewyre não soube o que dizer, mas Nan’taur não partilhou da sua falta de palavras.
— Usa-os porque eles sabem navegar muito bem nos pântanos, tal como os javalis dos quais evolveram. Usa-os como cães de caça, pois aqueles dos quais já abusa não se adequam ao brejo. Depois, como animais feridos e doentes que são, atacam-nos sempre que nos vêem, e lutam até à morte. Esventraram o... primo da Aiun’alla alguns dias atrás.
A eahanna ergueu as sobrancelhas e virou a cara na direção dos dois, mas o seu irmão indicou-lhe com um gesto da mão que de nada se tratava antes de continuar.
— Claro que os homens de Savincar afirmam que não é culpa deles, que não mataram nenhum eahan. Segundo a lógica dos humanos é verdade... — Antes que desse por si, Nan’taur apertava o remo com tal força que os nós dos seus dedos esbranquiçaram, antes de cair em si e suspirar. — Perdoa-me, Aewyre. Tomei a ofender-te com as minhas palavras.
— Não, não, Nan’taur... — assegurou-lhe o jovem, abanando mãos e cabeça. — Eu compreendo-te. Se o meu povo estivesse a ser assim tratado por um eahan, eu provavelmente também não te veria com muito bons olhos. E certamente que não te ajudaria como me têm ajudado.
O eahan sorriu com as palavras de Aewyre, e abanou a sua cabeça de olhos fechados.
— Não, Aewyre. Tu foste uma... benesse para a nossa vila. Deste-nos esperança.
— Esperança? Eu? — admirou-se o guerreiro, estremecendo quando um ramo perdido lhe raspou o peito, enganchando-se na túnica eahan que envergava.
— Não te preocupes, que isso não rasga — assegurou-lhe Nan’taur. — Sim, esperança. Deste-nos esperança ao mostrar-nos que nem todos os humanos são como Savincar e os seus homens. Trouxeste-nos alegria com a tua canção dos nossos irmãos da montanha. Acredita que retribuíste toda a ajuda que te demos, e mais.
— Mas, eu... — tartamudeou Aewyre, olhando para o tecido da sua túnica, que permanecia intacto e sem o mínimo rasgão.
— Seda de aranha — explicou o eahan com um sorriso ao dar uma remada, aproveitando para mudar de assunto.
— Seda de aranha? — gralhou o guerreiro.
— Sim. Pode ser que não saibas, mas a seda de aranha é mais resistente que o vosso aço, especialmente quando o tempo está úmido.
— Que aço? Desculpa, mas...
— Não me admira de todo que fiques surpreendido — disse Nan’taur, desta feita tentando verdadeiramente não ser faccioso. — Se algo é verdadeiramente tão bom, como é que os humanos não o usam, não é?
Aewyre não respondeu, limitando-se a puxar a túnica e a olhar para ela com o sobrolho erguido. Correspondia aos padrões algo toscos dos eahan, tendo um corte simples e as faldas sobrepostas sobre os ombros como únicas características de relevo além das orlas ornadas com motivos foliáceos.
— É que as aranhas não podem ser domadas. Podem tentar juntá-las e tentar que façam seda para vocês, mas elas só se vão matar umas às outras. São demasiado territoriais, e nada pode mudar isso.
— Mas então... como conseguem vocês isto? — indagou o guerreiro ao soltar a túnica.
Nan’taur sorriu novamente, como se soubesse algo do qual se orgulhava secretamente.
— Ao contrário de vocês... desculpa, da maior parte dos humanos... Ao contrário da maior parte dos humanos, nós não procuramos vergar os animais à nossa vontade. Requisitamo-lhes favores, e retribuímos. É assim que conseguimos, entre outras coisas, a seda das aranhas.
Aewyre não pôde deixar de partilhar o sorriso de Nan’taur, embora não pelos motivos de que o eahan suspeitava. As suas palavras algo convencidas lembravam-lhe Quenestil, que uns anos atrás derivara grande prazer em contrastar as diferenças entre humanos e eahan, numa altura na qual Aewyre se sentira incomodado com, entre outras coisas, a sua pelugem púbere.
— Mais resistente que aço, dizes tu? — duvidou Aewyre.
— Sim. Experimen...
Nan’taur calou-se ao ouvir o que pareceu ser o atito de uma ave, mas que Aewyre deduziu ser um chamamento de aviso de um dos batedores, pois todos os eahan no barco se endireitaram repentinamente, alerta como coelhos. A mão esquerda do jovem crispou-se no punho de Ancalach, que se encontrava à sua anca numa nova bainha de madeira feita pelos eahan, tendo perdido a anterior em Arle, e Aewyre olhou em redor, sem contudo nada ver. O cotovelo de Nan’taur chamou-lhe a atenção para o seu lado.
— Boaroars — disse, olhos fitos como os de um falcão num aglomerado de salgueiros à distância.
Aewyre olhou nessa direção e de fato distinguiu duas corpulentas formas a nadarem na água, movendo-se com furiosos movimentos dos membros que chapejavam na água, despedaçando troncos flutuantes e arrastando limos. Os eahan frecharam de imediato os seus arcos e Aewyre desembainhou Ancalach até metade da lâmina, semicerrando então os olhos e baixando a cabeça ao parecer-lhe ver algo vir no encalço dos humanóides.
— Aquilo é um barco? — perguntou a Nan’taur, que ainda tinha o remo em mãos para não deixar o barco à deriva.
— Sim — respondeu o eahan com um tom de voz totalmente diferente, mais frio. — E aqueles são os homens de Savincar.
Aewyre reconheceu de fato os capotes e chapéus de ferro dos soldados de Arle, mas o que mais lhe chamou a atenção foram as cintilantes luzes que emanavam de um outro vulto no barco, vulto esse que se ergueu, apontando na sua direção. Era Vascarò, o lacaio arcano do barão, e foi a sua presença a que mais alarmou Aewyre, pois o desvairado e explosivo combate que com ele tivera ainda estava bem fresco na sua memória. Os soldados já os tinham avistado, mas nenhum reagiu de forma tão efusiva como Vascarò, limitando-se a remar na direção da embarcação dos eahan. Por sua vez, estes dirigiram-se a uma lezíria com o claro intuito de buscarem uma posição defensiva na qual pudessem assentar os pés, sendo seguidos de perto pelos boaroars. Aewyre nunca vira um boaroar vivo, e aqueles eram bem diferentes dos que tivera ocasião de observar enquanto troféus de batidas de soldados. Eram de igual porte, embora fossem mais magros, como cães sujeitos a privações destinadas a tomá-los mais ferozes, e caminhavam de dorsos arqueados e cabeças baixas, quais animais habituados a serem castigados e contudo sempre prontos para uma luta. Os que Aewyre vira trajavam vestimentas toscas feitas das peles de outros animais, mas os humanos não haviam providenciado roupas algumas àqueles, que caminhavam desnudos como comuns javalis, de encharcada pelagem escura e cinzenta e cerdas ferozmente eriçadas. O seu único ornamento eram placas de metal com espetos curvos sobre os focinhos, providenciando-lhes armas em acréscimo às já de si temíveis presas dos humanóides, que espumavam raivosamente das focinheiras. Os dois mantinham-se a uma distância segura do barco dos eahan, circundando-o enquanto grunhiam e batiam os colmilhos como predadores incertos a tentarem intimidar presas nas quais reconheciam um certo perigo.
— Eles vêm atrás de mim — disse Aewyre em voz baixa a Nan’taur, embainhando novamente Ancalach, sem contudo largar o punho. — Não quero que vocês se magoem por minha causa. Eu vou...
Sem tirar os olhos dos humanos e dos boaroars, o eahan ergueu a mão abaixo do nível da borda do barco para que os inimigos não o vissem, silenciando Aewyre e segredando algo a Aiun’alla e aos dois outros ocupantes da embarcação.
— Não lhes digas nada — ciciou de seguida ao jovem. — Deixa-os aproximarem-se de nós com o seu barco...
Aewyre ia discordar, mas o tom da voz de Nan’taur evidenciava um plano, e optou por nada dizer. O barco encalhou então na lezíria e os eahan levantaram-se, originando grunhidos agudos da parte dos dois boaroars que os circundavam como sabujos. Os eahan mantiveram-se indiferentes a eles, erguendo-se e saindo do barco de arcos empunhados e frechados. Aewyre seguiu-os, pisando cuidadosamente a lezíria de juncos e escura terra esponjosa, ainda agarrado ao punho de Ancalach mas suficientemente intrigado para esperar para ver o que Nan’taur tinha era mente. Reparou que os batedores eahan não se encontravam à vista, mas antes que pudesse considerar o que estavam a planear, reparou que o barco dos homens de Savincar já se encontrava à distância do disparo de um arco... ou de uma das bestas que os homens de Savincar empunhavam. Vascarò estava de pé, rindo para consigo e oscilando enquanto se tentava equilibrar, enquanto os restantes homens se limitavam a olhar para Aewyre com expressões sombrias, não fazendo o mínimo esforço para esconderem a vontade de crivarem de virotes o homem que matara tantos dos seus camaradas em Arle.
— PríncipeAewyre! — disse Vascarò com os exagerados erres do seu entaramelado sotaque laonês, acenando com a mão como se estivesse a rever um velho amigo. — Heh. Estás... perdido? Nósestá-vamosàtua... procura.
Aewyre não respondeu, olhando antes para os eahan a seu lado, tentando avaliar as suas intenções através das suas posturas. Tinham todos um arco empunhado, mesmo Aiun’alla, e as suas caras eram um indecifrável vazio de emoções enquanto observavam silenciosamente a aproximação dos humanos.
— Heh. Arranjaste... arranjasteamigos? Eahan? — indagou o jovem mago, inclinando a cabeça para o lado e ajustando as lunetas sobre o seu nariz. — Ui. Uma... eahanna. Quebonitahumhurn.
O jovem não pôde deixar de avançar um passo na diagonal, adiantando-se a Aiun’alla e posicionando-se diante desta.
— Sou eu quem o teu senhor quer; deixa-os em paz — disse com voz determinada. — Como me encontraram?
— Heh — riu Vascarò, zombeteiro. — Não és... muitoesperto-poisnão? — As sobrancelhas de Aewyre franziram-se, friamente iradas. — Osineteosinete... que mais... podiaser?
Inicialmente incapaz de compreender, o guerreiro não tardou contudo a perceber ao que o mago se referia, arregalando então os olhos e enfiando a mão esquerda na sua bolsa, dentro da qual remexeu. Vascarò ia rindo, divertido enquanto o observava, franzindo os lábios num O de pretensa surpresa quando Aewyre tirou da bolsa o sinete com a águia de Ul-Thoryn que o mensageiro Augiol lhe dera para comprovar o conluio do seu irmão com Savincar. Irado por se ter deixado enganar tão facilmente, o jovem atirou o sinete para a água, o que lhe mereceu uma ameaçadora roncadela da parte dos boaroars.
— Fácil... tãofácil — gabou-se Vascarò, abanando a cabeça de um lado para o outro e desequilibrando-se, forçando-o a apoiar-se no ombro de um dos soldados. — Heh. Foste... fácildeencontrar. Mui-tofácil.
— É a mim que vocês querem — vociferou Aewyre, avançando outro passo. — Deixem-nos ir.
— Heh. O barão disse... disseparamatarmos... quem estivesse... contigo — disse Vascarò, e os anéis nos seus dedos começaram a fulgir de forma mais intensa. — Heh. Aubatan-tels!
Os soldados aprestaram então as suas bestas, visando os eahan, mas assim que o fizeram ouviram-se três silvos no ar, seguidos dos estalos de algo a ser repentinamente cortado. Ao mesmo tempo, os eahan atiraram-se ao chão na lezíria, sendo que Nan’taur se arrojou de ombro contra os jarretes de Aewyre, fazendo com que o guerreiro caísse sobre as suas costas. Dois virotes foram soltos das bestas, zunindo sobre os eahan, antes de os soldados olharem para cima e gritarem ao verem uma rede abater-se sobre eles. Vascarò, que se encontrava de pé, foi o primeiro a ser por ela coberto, começando prontamente a debater-se e oscilando dessa forma o barco. Os soldados não reagiram muito melhor, e a agitação provocada por todos acabou por fazer com que a embarcação emborcasse, despejando-os a todos nas águas do pântano.
Excitados pelos ruídos e movimentos bruscos, os boaroars grunhiram e começaram a correr na direção da lezíria, revolvendo as águas com poderosos movimentos das pernas e dos braços. Os eahan ergueram-se prontamente, disparando as suas setas, mas as pontas em forma de V destas eram mais adequadas para cortar cordas de armadilhas e caçar pássaros, e espetaram-se sem efeitos de maior no duro couro dos boaroars. Aewyre levantou-se pesadamente em seguida, desembainhando por fim Ancalach e enristando-a para receber a carga do boaroar que vinha na sua direção, roncando e espumando do focinho. O outro carregava contra os eahan na sua retaguarda, alheio às flechas nele espetadas, e estes empunharam as suas curtas espadas de madeira, que pouco mais eram que paus em forma de lâmina. Aewyre investiu contra o seu adversário, urrando e empunhando Ancalach sobre a cabeça, e o boaroar baixou a sua em preparação para a colisão. O choque entre a Espada dos Reis e a placa espinhosa sobre o focinho do boaroar foi violento e reverberante, vibrando pelos ossos de Aewyre acima e fazendo com que os dentes do guerreiro rangessem. Porém, a lâmina fendeu a placa do humanóide, cujo sonoro ronco foi abafado quando a sua cabeça foi projetada para baixo pelo embate, enterrando-lhe e fazendo com que arrastasse o focinho pela terra úmida da lezíria. Ainda com os ouvidos a zunirem, Aewyre empunhou Ancalach de ponta para baixo com ambas as mãos e enterrou-a no espesso cachaço do boaroar, cortando-lhe a espinha com um estalido seco e abafado por carne e gordura. O outro boaroar foi mais bem-sucedido na sua investida, abatendo-se em fúria sobre os eahan. Um deles teve praticamente que saltar para o lado para evitar ser colhido, e os outros atacaram pelos flancos e costas, percutindo o humanóide por todos os lados com rápidas e secas pancadas das suas espadas de madeira. As bordoadas eram suficientemente fortes para partir ossos, mas o boaroar era denso demais e estas apenas lhe abriram a pele, vertendo sangue. Grunhindo de raiva, o humanóide oscilou um braço, atingindo Aiun’alla e atirando a eahanna para a água. Nan’taur gritou o seu nome em aflição e baixou-se de um golpe, batendo com ambas as espadas na perna do boaroar e rachando-lhe o osso. A criatura cambou para o lado, oscilando cegamente com os braços e atingindo outro eahan antes de outro ainda lhe espetar a ponta de uma espada ao lado da garganta naquele que, não fosse pela anatomia diferente, teria sido um golpe mortal. Ainda assim, bastou para deixar o boaroar sufocado, e este, em pânico e raiva, estrebuchou mais freneticamente ainda, acabando por colher um eahan com uma convulsão da cabeça, projetando-o pelo ar. Grunhindo sufocadamente, o boaroar interceptou de seguida Nan’taur, que tentara aproximar-se pelo flanco para lhe concutir a nuca, e agarrou-lhe o pescoço com uma pata de dedos lamacentos e fortes. Porém, antes que pudesse puxar o eahan contra as suas presas, Ancalach surgiu entre ambos, fulgindo e cortando o ar antes de golpear o braço do boaroar. A lâmina abriu um horrendo lanho no peludo braço do humanóide, que grunhiu de dor, levando o focinho atrás e expondo a garganta, pela qual Aewyre prontamente passou o gume de Ancalach. A conseguinte golfada de sangue encharcou o ombro de Nan’taur, que se afastou, agarrado ao pescoço. Vascarò e os soldados ainda se agitavam nas águas, presos pela rede, mas Aewyre ignorou-os e foi ter com Aiun’alla, que estava de gatas à beira da lezíria, abanando a ainda zonza cabeça.
— Aiun’alla, estás bem? — perguntou em Glottik, alheio ao fato de a eahanna não perceber.
Os outros eahan reagruparam-se, sinalizando aos batedores de andas, que tinham permanecido escondidos nas árvores e de arcos empunhados, e foram ver o seu companheiro que fora colhido pelo boaroar e que se encontrava em posição fetal no chão, abraçando a barriga. Aiun’alla parecia estar bem, apenas atordoada, mas antes que os eahan pudessem verificar o seu companheiro, foram sobressaltados por um berro, seguido de vários outros agoniados. Virando-se para trás, Aewyre e os eahan viram águas revoltas e fervilhantes no local onde Vascarò e os soldados tinham caído, do qual emanavam luzes multicolores. Os homens gritavam em pânico, tentando futilmente afastar-se do fervilhante ponto da água no qual se encontravam, mas a rede retinha-os e não lhes permitia distanciarem-se.
— Nain’na that? — vociferou um dos eahan, apontando com uma espada de madeira para o foco de toda a agitação.
Aewyre ajudou Aiun’alla a levantar-se, e a eahanna observou a cena agarrada à cabeça, tentando focar a visão no espetáculo de luzes e corpos armados que se contorciam na pantanosa água. De repente, um vulto encharcado veio à superfície, de punhos cerrados com anéis fulgentes a seus lados e trilhando água pelo at ao levar a cabeça atrás, berrando desalmadamente. A explosão essencial que se seguiu rebentou a rede, projetando os soldados a uma curta distância pelos ares e criando uma onda em forma de anel que se propagou pelas águas afora. A onda esmoreceu antes de os homens caírem novamente no pântano, mas Vascarò pulsava de energia latente que parecia pronta a desencadear uma nova explosão se necessário fosse. Com água pela bacia e ainda de punhos crispados a seus lados, o jovem mago trouxe a cabeça novamente à frente, fitando Aewyre e os eahan de dentes e olhos odiosamente cerrados. Estava encharcado dos pés à cabeça, com as mangas e dobras da sua roupa a verterem água e os cabelos negros com estrias brancas pendentes diante da sua cara, mas os seus anéis e o seu amuleto brilhavam em multicolor ameaça.
— Dèfante! — berrou, demasiado descontrolado para falar Glottik ao apontar para a lezíria.
— Baixem-se! — gritou Aewyre, atirando-se para a água e arrastando consigo Aiun’alla.
Os eahan assim fizeram a tempo de evitarem a estralejante rajada vermelho-sangue que singrou na sua direção, irradiando a lezíria com uma voraz energia que consumiu os juncos e os foguetes molhados. Não se dando por satisfeito, Vascarò berrou e raivejou com as mãos a fervilharem de poder arcano, irradiando luz de todas as gemas em sua posse, e lançou ambas as mãos para a frente, projetando uma rajada tal que a lezíria explodiu num festival de lama, água e juncos, fazendo mesmo o barco dos eahan oscilar. Aewyre e os eahan mantiveram-se no chão, alguns submergindo-se mesmo na água para se resguardarem do estouro, mas o guerreiro levantou-se logo de seguida aos tropeções, estendendo uma mão aberta a Aiun’alla para que esta não se erguesse.
— Vascarò! — chamou, desafiando-o com Ancalach empunhada. — Sou eu quem tu queres! Deixa-os em paz!
— Dèfantecbenassòecoarò! — gritou o mago, cuspindo as palavras entre a raivosa espuma da sua boca.
Estava claramente descontrolado, e os seus olhos desfocados e desprovidos de lunetas visavam tudo à sua frente como um alvo, o que representava um problema para Aewyre. Estava a combater um mago em campo aberto e em terreno que lhe afetava a mobilidade, sem qualquer forma de se resguardar. Para mais, Vascarò encontrava-se a uma distância para ele segura, o que lhe permitiria bombardear o guerreiro antes que este se pudesse sequer aproximar. Ainda assim, Aewyre avançou, assumindo uma postura agressiva, e Vascarò retribuiu com uma nova saraivada, que o jovem evitou, pulando para cima de uma ilhota de juncos perto da devassada lezíria. Não encontrou porém um assento firme, e afundou o pé em lodo antes de cair sem qualquer cerimônia para dentro de água ao mesmo tempo que a saraivada fervilhou sobre o que ainda sobrava da lezíria. Implacável, Vascarò descarregou uma outra rajada no epicentro das ondas causadas pela queda do guerreiro e virou então as suas atenções para os eahan, que se erguiam, hesitantes e algo estonteados.
Quando o mago se preparou para os atacar, algo lhe baqueou nas costas, expelindo-lhe o ar dos pulmões e fazendo-o cambalear uma passo para a frente. Virando-se para trás de dentes ferrados e um olho semicerrado, Vascarò viu que um dos batedores eahan se tentava esconder atrás de uma árvore, mas as andas sobre as quais caminhava não lhe permitiram a rapidez necessária. O mago soltou então um berro e uma nova rajada, que crepitou contra o tronco da árvore, atingindo de raspão o eahan, que gritou ele também antes de cair à água. Ainda a espumar de raiva, Vascarò levou desajeitadamente o braço atrás das costas e delas arrancou a flecha com um grunhido. Ao avistar outro eahan de arco empunhado, estendeu a mão com a flecha à sua frente e criou um translúcido disco amarelado, contra o qual as duas subseqüentes flechas embateram. Ainda com o escudo erguido, o mago olhou rapidamente para trás, e viu que os eahan sobre a devassada lezíria já empunhavam os seus arcos, pelo que ergueu um outro, díspar do primeiro e mais atabalhoado na sua formação, como um quadro pintado à pressa. Provou contudo ser também ele eficaz contra as flechas que nele esbarraram com pequenos tinires crepitantes, e que apenas deixaram Vascarò mais furioso. Mantendo o primeiro escudo, o mago ergueu então a mão que formava o segundo, que começou a revolver em si mesmo como se acometido por uma repentina força centrífuga, e preparou-se para o arremessar contra os eahan que se encontravam na lezíria.
Aewyre irrompeu então da superfície da água, surgindo diante de Vascarò a verter água dos cabelos e roupas e a transbordar fúria dos olhos, que retiveram o mago na posição em que se encontrava, com um braço estendido a projetar um escudo luzidio e outro erguido com energia policroma a coalescer sobre a mão. Os dois fitaram-se mutuamente durante os breves instantes nos quais Vascarò se viu paralisado pela repentina aparição, até que Aewyre quebrou a inércia com uma forte bordoada na queixada do adversário com o pomo de Ancalach, chicoteando-lhe o queixo para cima e alçando-o ligeiramente acima da superfície da água, sobre a qual seguidamente caiu de costas com coriscos de Essência a trilharem-lhe das mãos. O mago foi brevemente sustido à tona pela sua capa cinzenta antes de o guerreiro pegar nele pelos colarinhos e o soerguer com a mão livre. Vascarò tinha os olhos revirados, e a sua cabeça oscilava frouxamente de um lado para o outro, arrastando o negrume estriado de branco dos seus cabelos molhados sobre a água. Todavia, a mais fiável indicação de que estava efetivamente fora de combate era o esvanecente brilho das gemas dos seus anéis, o que indicava que não mais estava a aceder à Essência. Continuando a segurá-lo e ainda a escorrer água, Aewyre olhou à volta com um frio olhar de morte, vendo alguns atordoados soldados laoneses em redor que mal se conseguiam manter à superfície da água devido ao peso das suas armaduras e à sua condição zonza. Os eahan ergueram-se então, alguns ainda de arcos frechados, e bastou verem que o mago se encontrava incapacitado para começarem a tratar dos seus. Nan’taur bateu nos braços de dois, indicando ao primeiro o local onde o batedor fora atingido pela rajada de Vascarò, e o eahan pulou para dentro do barco, atirando uma corda aos seus companheiros e remando nessa mesma direção. O segundo apanhou a corda, e o irmão de Aiun’alla indicou-lhe que o seguisse, pousando o arco e tornando a desembainhar as suas espadas de madeira ao acercar-se dos ainda entontecidos humanos.
— Estão todos bem? — perguntou Aewyre, que pareceu só então lembrar-se de respirar.
— Vamos ver o batedor, mas aqui ninguém ficou muito magoado — disse Nan’taur, vigiando de espada atenta o primeiro humano que o seu congênere atou com uma corda.
Mais aliviado, Aewyre largou então Vascarò e esfregou a água da sua cara, arrastando o mago pela água enquanto se encaminhava para a terra relativamente firme da lezíria.
— Achas que há mais? — perguntou Nan’taur nas suas costas, fazendo com que o guerreiro se detivesse e refletisse.
Savincar parecia determinado a apanhá-lo, e enviara os dois únicos recursos dos quais dispunha para o capturar: Vascarò, que conseguira encontrá-lo através do sinete que agora jazia no fundo do pântano; e os boaroars, que provavelmente se orientavam melhor que qualquer sabujo no pântano. Pareceu-lhe desnecessário enviar os dois juntos, mas o jovem deduziu que tal decisão se pudesse dever à ânsia de Savincar para o capturar.
— Não — disse por fim sobre o ombro, retomando o passo. — Mas mesmo assim, é melhor não ficarmos aqui muito tempo.
Nan’taur anuiu, e o jovem retomou o passo na direção da lezíria, onde Aiun’alla já se encontrava de pé, com a cabeça a ser averiguada por um dos seus companheiros.
«Graças aos deuses», agradeceu o jovem, que por momentos sentira o coração oprimido pela possibilidade de ver aqueles eahan feridos por sua causa. «Ninguém mais vai morrer só por me ter ajudado. Ninguém.»
Apesar das insistências de Aewyre contra, os eahan acompanharam-no até à orla do Brejo dos Patos, deixando-o num aluvião a Sudeste resultante das fortes chuvadas, onde ambas as partes se despediram. O guerreiro insistira numa qualquer forma de poder compensar os eahan pela sua ajuda, algo contrito devido aos ferimentos que um dos batedores sofrera, felizmente sem grande gravidade, mas estes reiteraram que, mesmo que estivessem interessados em contrapartidas, Aewyre já lhes retribuíra sobremaneira a sua assistência. Embora sustentasse que uma canção e alguns dedos de conversa não constituíam forma de remuneração alguma, o jovem viu-se incapaz de convencer os eahan, que se mantiveram sorridentemente teimosos diante das suas insistências. Para piorar a situação, ainda fizeram questão que Aewyre conservasse a túnica de seda de aranha que usara em vez da sua armadura durante a breve travessia de barco, algo que Aewyre apenas se viu forçado a aceitar quando Nan’taur a considerou uma oferenda de amizade, deixando o guerreiro numa posição na qual uma recusa seria uma ofensa. Finalmente, após um último beijo traquinas de Aiun’alla e uma troca de complicados apertos de mão nos quais os gestos que Aewyre aprendera com Quenestil não combinaram de todo com os dos eahan brunos, o jovem despediu-se e fez-se por fim à estrada.
Estrada essa que na verdade fez por evitar, pois apesar de, segundo as indicações de Nan’taur, se encontrar do outro lado do Olyf e em terras nolwynas, não pôs de parte a hipótese de Savincar ter enviado mais patrulhas em sua busca. Por essa razão, passou a correr pelo terreno desbastado que separava a orla do brejo de um bosquete próximo, que providenciava um mínimo abrigo. Nunca tendo prestado grande atenção aos assuntos da nobiliarquia, não sabia dizer ao certo qual a relação fronteiriça do barão de Arle com a regente nolwyna mais próxima, Nuncilia, a Viúva, senhora de Antumnia. Tinha uma vaga memória de um qualquer nobre laonês ter sido particularmente insistente na busca de matrimônio com a senhora de Antumnia, talvez mesmo Savincar, mas desconhecia o presente estado diplomático fronteiriço. Deixara sempre tais assuntos para o seu irmão, o verdadeiro interessado em política entre os dois irmãos.
«.Aereth...-», lembrou-se de repente das palavras de Savincar, que dera a entender que este ordenara a sua captura. «Será possível? Tu, o meu próprio irmão...?»
Foi então que se lembrou de Seltor e da aleivosa influência d’O Flagelo. Sim, a ser verdade, nada mais poderia explicar tal comportamento a não ser a instigação de forças negras com as quais o seu irmão não contara. Só podia ser isso, não acreditava que Aereth o fosse trair; era família, a única família de sangue que lhe restava. Não podia haver outra explicação. De alguma forma, a influência do maldito Flagelo chegara aparentemente a Ul-Thoryn e conseguira virar o seu próprio irmão contra si, pelo que tanto mais urgia que se despachasse e chegasse à cidade quanto antes.
O guerreiro olhou para cima, para o céu carregado de nuvens de chumbo que vaticinavam nova enxurrada para breve, e amaldiçoou os deuses por não cessarem de lhe meter obstáculos no caminho, na senda da lâmina. Movido por mundana indignação e pelo seu novamente desperto ódio a Seltor, o jovem firmou então o seu olhar num ponto indeterminado em frente, sentindo o rilhar de aço dentro da sua cabeça como se estivessem a ser desembainhadas lâminas dos seus canais auditivos. O «tendão» rangeu, incomodado por não ser ele o incitador, mas Aewyre não aliviou a pressão e partiu em busca de Kror através dos afiados sentidos que a Essência da Lâmina lhe conferia em acréscimo à ligação que tinha com o seu adversário. A distância deixava de ser um obstáculo, passando a mera questão de concentração para encontrar aquele ao qual estava inextrincavelmente ligado e que apenas a morte dele o poderia separar. Contudo, não era a morte nem o combate que lhe interessavam naquele momento, mas simplesmente ter uma noção geral da direção na qual poderia encontrar Kror.
A tensão que até então se mantivera adormecida despertou, torcendo como cordame o cérebro de Aewyre e pressionando-lhe a parte de trás dos olhos, como se dessa forma pretendesse retribuir a ousadia de ter sido ignorada. Aewyre deteve-se, cerrou os olhos e levou os dedos à têmpora direita, arreganhando os dentes com o repentino incomodo. Não era nada com que não conseguisse lidar, mas aparentemente bastava um dia de descanso para que a sua mente ficasse logo destreinada da realidade fria como aço da senda da lâmina. De qualquer maneira, após o contraste inicial, os sentidos de Aewyre entraram em sintonia com a linearidade aceirada desta, e conseguiu por fim concentrar-se em buscar Kror. Mantendo os olhos fechados, o jovem percorreu léguas em redor, cortando a relação entre espaço e distância com o golpe de uma lâmina e fixando-se na já intimamente familiar pontada de perigo análoga à sensação de ter a ponta de uma lâmina perto da pele, representativa da existência e proximidade de Kror. Quando por fim deu com ele, o encontro entre as duas consciências resultou no habitual entrechocar de espadas que ressoava na cabeça de ambos.
Estava próximo. Mais próximo do que o guerreiro esperara.
Com essa certeza, Aewyre pôs-se então a caminho, orientando-se pela impressão residual do entrechocar das lâminas na sua cabeça, que lhe dera uma noção geral da direção a tomar. Sem se deixar deter por considerações mundanas como as rosnadelas do seu estômago, o jovem percorreu a passos largos a distância que o separava de Kror, entranhando-se pelo bosquete adentro, empurrando gravetos para fora do seu caminho e pulando sobre arroios. Durante a subseqüente caminhada perdeu a noção do tempo, abstraindo-se mesmo do seu próprio corpo e sentindo-se mais leve no processo, como se dessa forma pudesse caminhar mais depressa. Os únicos sons que ouvia eram as batidas do seu coração e a sua respiração a ecoar-lhe aos ouvidos, e os seus olhos permaneciam fitos no caminho à sua frente, vendo contudo para além dele. O bosquete foi-se adensando gradualmente, dificultando-lhe o caminho, mas Aewyre mal se deu conta do ocasional tombo ou tropeção, continuando a sua inexorável corrida. Não era apenas movido pela vontade e necessidade de encontrar Kror, mas também pelo fato de não saber se Layaline e Làriana estavam bem ou não. As duas eram das últimas pessoas que queria ver magoadas simplesmente por terem sido vistas na sua presença, e duvidava de que se conseguisse perdoar a si mesmo se algo lhes tivesse acontecido após terem sido separados.
Detendo-se por breves instantes, Aewyre ofegou de mãos apoiadas sobre os joelhos enquanto recuperava o fôlego e ergueu a cabeça para olhar em frente, sem contudo se fixar nas árvores e fetos. Kror estava próximo, disso não havia dúvida, e sabia que se aproximava. Aewyre não sentiu da parte do drahreg mais hostilidade que a que era habitual, pelo que retomou a sua corrida para o encontrar quanto antes, movido pela sua não mais adormecida raiva e por uma quase angustiante sensação de premência. Era urgente que resumissem a sua viagem para Ul-Thoryn, e era igualmente urgente retomar as suas leituras dos escritos de Fèdac e não só. Cada dia que passava era a seu ver mais uma vitória de Seltor, que evidentemente apenas tinha a ganhar com a sua demora, um fato comprovado pelo que aparentemente sucedera a Aereth.
Aewyre perdeu novamente a sensação do tempo, que se foi erodindo lentamente à medida que se aproximava de Kror, e tentou quebrar os limites impostos às suas pernas, procurando através da força de vontade cobrir o dobro, o triplo da distância, imaginando que os seus membros se alongavam a cada passo, deixando-o cada vez mais próximo. Com ou sem essa ilusão, o guerreiro sentia-se acicatado pela crescente proximidade do drahreg, que o impeliu a correr cada vez mais depressa, levando-o mesmo a colidir contra alguns troncos além de tropeçar e cair outras tantas vezes. Quando por fim chegou a uma clareira na qual a presença de Kror era tão forte quanto o ruído de duas lâminas a rilharem uma contra a outra ao ouvido, parou novamente, arquejando, e olhou em redor.
— Kror...? — chamou com um tom de voz sufocado e parcamente audível, pois os seus pulmões recusaram-se a prescindir de mais ar que o estritamente necessário. — Kror... estás aí?
As árvores não lhe responderam, nem mesmo o vento passou por entre elas à laia de resposta, pois estava um dia parado e de céu pesado. A única resposta que obteve foi um irritado gralho de um gaio, que deu a impressão de se sentir incomodado com a persistência do humano em quebrar o silêncio do bosquete. Aewyre não fez caso dele, continuando a olhar à sua volta e de ouvidos atentos, dependendo uma vez mais dos seus sentidos mundanos, agora que sabia que o drahreg se encontrava próximo. O seu coração foi acalmando, apenas para retomar as frenéticas batidas da corrida assim que ouviu um galho estalar de forma quase intencional. Virou bruscamente a cara para o lado e viu que Kror saía do abrigo das árvores, sem usar as muletas e coxeando com ambos os alfanges embainhados atrás das costas. Como já era costume, os músculos de ambos entesaram-se na presença um do outro, prevendo instintivamente um combate iminente, e bastara dois dias de separação para que Aewyre se visse quase avassalado pela súbita belicosidade que por pouco não tomou conta dele. O «tendão» dormira, mas permanecera vigilante, e, manhoso, não perdia uma única ocasião para instigar os dois Portadores a lançarem-se num derradeiro combate pela posse da Essência da Lâmina. Aewyre conseguiu ignorá-lo, concentrando-se antes no alívio de ver definitivamente confirmado o fato de que Kror estava vivo, que ainda subsistia a esperança de conseguir obter o domínio sobre a Essência da Lâmina e com ela fazer com que Seltor pagasse pelo que lhe fizera e aos seus. Por sua vez, o drahreg não parecia particularmente feliz por o ver, ou mesmo pela sua presença. Nem sequer se mostrou intrigado pela súbita mudança de penteado do humano. Na verdade, Aewyre julgou que a careta que ostentava no semblante traía um certo... desapontamento.
— Onde estão... a Layaline... e a Làriana? — perguntou, ainda com dificuldade em respirar e falar ao mesmo tempo.
— Com um humano — respondeu o drahreg sucintamente, detendo-se à distância de três passos de Aewyre. Havia algo de... diferente nele, reparou o jovem.
— Um humano...?
— Sim.
As sobrancelhas de Aewyre franziram-se ligeiramente com a propositada obtusidade do drahreg.
— Que humano, Kror? O humano que nos estava a perseguir?
— Não. — O drahreg levou tempo o suficiente a dar seguimento à resposta para que Aewyre pensasse que não iria elaborar, mas acabou por fazê-lo antes que este se irritasse. — Um humano que vive aqui. Na floresta.
Mais aliviado, o jovem fitou então Kror, tentando discernir o que ia naquela cabeça negra na qual nunca se pudera verdadeiramente fiar. O drahreg retribuiu com intransigentes orbes vermelhos, duas gotas de sangue numa poça de negro piche que lhe inspiravam tão pouca confiança como dantes, mas que naquele momento exibiam algo mais. Algo que não agradou a Aewyre.
— Passa-se alguma coisa? — perguntou com tanta naturalidade quanta conseguiu, a despeito do seu mau pressentimento.
O drahreg tardou novamente a responder, dialogando antes com os olhos, e os dois Portadores assim ficaram, comunicando na silenciosa linguagem que entretanto tinham desenvolvido. Sem movimentos, sem sons, trocando apenas olhares como quem trocava golpes de espada em treino.
— Kror? — disse Aewyre, recuando o primeiro passo figurativo.
— Não vou fazer mais isto.
— Fazer o quê? O que é que não vais fazer mais? — insistiu Aewyre, dando um passo lateral ao qual o drahreg correspondeu, e os dois começaram a circundar-se como dois machos territoriais.
— Ir atrás de ti — explicou Kror. — Fazer coisas... que só te interessam a ti. Lutar lutas que não são minhas. Não vou fazer mais isso.
O semblante de Aewyre ensombrou-se a par do céu, ficando igualmente carregado.
— Acabou — declarou o drahreg com finalidade, e o passo lateral de ambos tornou-se diagonal, o que resultou numa gradual aproximação dos dois. — Não quero... não preciso da Essência da Lâmina. E os teus problemas não são meus. Resolve-os sozinho.
Cada vez mais próximos, os dois guerreiros estavam já de punhos cerrados, dando cada um o ombro direito ao seu adversário.
— Porquê...? — foi a única coisa que ocorreu a Aewyre.
— Não interessa. As humanas não correm perigo. Podes ir buscá-las ali — disse o drahreg apontando para trás de Aewyre e erguendo repetidamente o indicador para dar a entender que ainda se encontravam a uma certa distância. — Vai com elas para a tua cidade. Eu vou voltar para Karatai.
Os punhos crispados de Aewyre tremeram, mas este manteve-se em furioso silêncio.
— Se queres lutar comigo agora, podes tentar — continuou Kror, desafiante, quase à distância de uma estocada alongada. — A minha perna continua ferida, e a Essência não te vai deixar ficar com ela.
Por muito calma e decididamente que fossem proferidas, cada palavra do drahreg abalroava as fundações do mundo de Aewyre, daquilo que agora representava os propósitos da vida do jovem, que hesitou um passo. Kror, porém, não se deteve e compensou a hesitação com um avanço, postando-se diante daquele que jã fora inimigo e companheiro quase em igual medida, encarando-o frontalmente.
— Um de nós pode morrer aqui. Ou podemos ir os dois. Escolhe Aewyre — disse o drahreg em ponderosa mas resoluta cadência.
Fitando o seu adversário durante outros tantos momentos, Aewyre acabou por baixar a cabeça de olhos fechados, relaxando os resignados punhos e recuando um desconsolado passo.
— O que vais fazer? — indagou Kror.
— Eu... vou para Ul-Thoryn.
Vindo do nada e totalmente inesperado, o peito do pé do guerreiro que recuara enfiou-se entre as pernas do drahreg, originando um estouro de dor que se espalhou das virilhas deste pelo abdômen fora, curvando-o e expelindo-lhe o ar dos pulmões. Aewyre despediu-lhe então um possante murro ascendente no queixo que apagou o mundo do drahreg por breves instantes, após os quais este se viu a cambalear, fazendo uso de braços e pernas para não cair ao chão. Foram todavia as mãos de Aewyre que impediram que tal sucedesse, agarrando-lhe a cabeça pelas tranças e puxando-a para cima.
— E tu vens comigo.
Ao joelho do humano seguiu-se a escuridão.
Lorde Tylon não estava satisfeito. Uma série de problemas e inesperadas considerações pesavam-lhe nos ombros largos, esmagando-o contra a robusta cadeira na qual se encontrava sentado, com um cotovelo apoiado num braço e a cara ponderosamente sustida pela mão, contra a qual esborrachava a bochecha. Tinha uma perna estendida sobre um banco, e na outra flexionada batia com os grossos dedos da mão, perdido em pensamentos. O seu cadeirão estava encostado à parede e ao lado da lareira circunscrita por um par de asas ebúrneas manchadas de fuligem, cuja chaminé em forma de cone facetado nascia de um canto perto da janela. O ambiente nos seus aposentos era quente e confortável, mas em nada condizia com a presente disposição do senhor de Lennhau, esse friamente concentrado no problema que tinha em mãos. O fresco na parede à qual dava as costas retratava uma janela que dava para uma varanda de mármore com jarras de flores e vista para o mar num dia de sol e sem nuvens no céu, ao contrário de Tylon, sobre cuja cabeça mais pareciam pairar negras nuvens de iminente tormenta. A verdadeira janela de portinholas abertas destoava igualmente do fresco, pois a paisagem que apresentava era a de um dia chuvoso e cinzento, com os ocasionais clarões seguidos de trovão distante.
Ao lado da janela pintada encontrava-se o suntuoso leito com dossel, sobre o qual se deitava Lethia languidamente de costas, indumentada com um vestido verde generosamente decotado e de mangas com ramagens escuras semelhantes a trepadeiras ao longo destas. Parecia entediada com as cismas do seu esposo, e mexia aborrecidamente num dos reposteiros carmins da cama, passando os dedos de unhas pintadas de castanho-escuro pela lustrosa castorina vermelha orlada com folhos brancos. Estava com os cabelos soltos, estando estes ondulados devido à trança que usara diante do dia, mas Tylon não parecia disposto a tomar parte na atividade que Lethia tivera em mente ao soltar a melena. O recente comportamento de Aereth deixara o seu esposo bastante preocupado, pois além de pôr em risco a influência que exercera sobre o regente de Ul-Thoryn, começava também a contrariar os planos que o seu mestre Othragon tivera para ele. A Hoste Dourada não fizera parte do cenário originalmente idealizado pelo Aesh’alan, e as interferências do maldito bobo começavam a levá-lo a pôr em causa as suas verdadeiras alianças. O pior era todavia mesmo a redescoberta autonomia da qual Aereth dava crescentes mostras, a maior causa da sua preocupação.
Por fim, Lethia perdeu a paciência, revirou os olhos e soltou o reposteiro, passando um braço por cima da sua cintura e virando a cabeça para olhar para Tylon.
— Pode ser que tudo venha apenas a favorecer os desígnios do nosso mestre, esposo — disse.
Tylon limitou-se a grunhir, continuando a tamborilar o seu joelho com os dedos.
— A Hoste Dourada destina-se a combater lorde Sunlar, não é? — persistiu, plantando ambas as mãos no fofo colchão e soerguendo-se. — O resultado não acaba por ser o mesmo?
Tylon grunhiu, incomodado, sendo essa a sua única reação às palavras de Lethia, que contudo não se deixou desmoralizar.
— Acho que te estás a preocupar demasiado, esposo...
— Cala-te, mulher — silenciou-a o regente, deixando o seu braço cair sobre o do cadeirão e virando a cabeça na direção dela. — Será que não percebes? Deixei de ter qualquer pulso sobre o Aereth! Ele pode estar a cometer loucuras, mas está desgovernado, e o que ele pretende fazer não corresponde aos desígnios do nosso mestre. A sua intenção era a de que fosse eu a controlar Aereth, a dirigir os seus recursos de forma a causar a ruína de Ul-Thoryn. E agora aquela... criatura...
— Também o bobo serve o nosso senhor, esposo — interpôs Lethia.
— Serve? — descreu Tylon, erguendo-se e dando alguns passos na direção da parede oposta, apoiando as mãos sobre a cômoda encostada a esta. — Duvido muito, mulher. Aquela criatura serve-se a si própria.
— Decerto saberás...
Tylon abanou a cabeça descaída sem sequer ouvir as palavras da sua mulher, para a qual de seguida se virou, batendo por trás com ambas as mãos na cômoda.
— Não percebes? O povo está assustado, não só com a guerra, mas com o silêncio dos deuses e os tremores de terra. Assustados, tornam-se maleáveis. Aereth está resoluto, motivado por aquela maldita criatura, e a ralé segui-lo-á, dócil diante da liderança determinada que eu não esperava da parte do rapaz. Irá causar dissensão nas restantes províncias, provavelmente mesmo uma guerra civil, mas era a ruína de Ul-Thoryn que se queria! Assim o ordenou Othragon!
Lethia não insistiu, encostando antes o ombro a um dos suportes do dossel da cama e enleando nele um braço de forma sugestiva.
— Que te disse o nosso mestre Othragon?
— Nada. Nada! — barafustou Tylon, atirando as mãos ao ar e começando a andar nervosamente de um lado para o outro. — Este insustentável silêncio... por que não me diz ele nada? Ele tem de saber que houve imprevistos, ele sempre teve maneira de saber. Por que não me diz ele nada?
Lethia tão-pouco disse algo, limitando-se a encolher os elegantes ombros expostos e a mexer numa ponta do seu cabelo.
— E o maldito bobo... primeiro entrega-me uma criança, que diz ser importante para os planos do nosso senhor...
— Afinal, o que é feito do bebe? — perguntou Lethia, lembrando-se de uma antiga curiosidade.
— Ficou com uma ama, não interessa — disse Tylon, descartando a relevância do assunto com um gesto da mão. — Quanto mais penso nisso, mais me parece que a criatura o fez apenas para gozar comigo, para ver até que ponto eu era crédulo só por ser incapaz de desvendar as suas intenções...
Lethia revirou os olhos castanhos. Ia começar novamente a ladainha...
— Brincou comigo, ele. Continua a brincar, enquanto tenta usurpar a influência que eu já detinha sobre Aereth, torná-lo a sua marionete. Mas irá pagar — prometeu o regente, cerrando um punho diante da cara. — Irá descobrir da pior forma que Tylon Nehin não é influenciável como aquela criança armada em senhor da guerra.
O casal ficou então em silêncio, com Lethia a observar o seu esposo enquanto este andava furiosamente em redor, parecendo com vontade de desgastar o tapete vermelho sobre o piso ladrilhado. Suspirando, abanando a cabeça e revirando novamente os olhos, a mulher tornou a deitar-se de lado sobre a cama. Tylon continuou a ignorá-la, murmurando para consigo mesmo e arreganhando por vezes os dentes enquanto nutria pensamentos cruéis para com o bobo.
— Não achas que te estás a concentrar demasiado nessa criatura, esposo? — tentou uma última vez. — Porventura não te estarás a distrair com ele, esquecendo-te do mais importante?
Tylon deteve-se, pisando o tapete e virando a indignada cabeça para olhar para Lethia, que permaneceu indolentemente deitada sobre a cama.
— Sendo o mais importante o quê?
— Aereth Thoryn, claro está — explanou esta. — Concentrares-te demasiado no bobo em detrimento do homem mais vital para os planos do nosso mestre é um erro, esposo.
Tylon fitou a sua esposa, entreabrindo por duas vezes a ultrajada boca antes de as palavras lhe saírem.
— Por que me tomas, mulher? — perguntou com a voz indignadamente baixa antes de a levantar. — Eu sei muito bem o que é ou não importante para o nosso senhor, bem como o que deve ser feito!
— O que deverá ser então feito, esposo? — indagou Lethia, entediada. — Há dias que apenas te queixas do bobo, que te usurpou, que te enganou, que te suplantou... Não estivesses casado comigo, quase diria que mais pareces uma mulher cujo amásio a trocou em favor de outra.
A tez de Tylon enrubesceu então ligeiramente, e a barba debaixo do seu queixo mexeu-se quando os músculos dos seus maxilares se retesaram em mal contida fúria, que contudo acabou por ser expirada pelas suas largas narinas fora. Cruzando as mãos atrás das costas, o senhor de Lennhau forçou então uma postura calma e relaxada.
— Bem sei que gostas quando te bato, mulher, e sei que é apenas por essa razão que aparentas esquecer o teu devido lugar — disse, soberbo. — Mas não te vou dar esse prazer. Tenho coisas mais importantes que merecem a minha atenção.
O gelo que crestava os olhos cor de avelã de Lethia estalou no ar quando esta fitou o seu esposo, tão fria que o fogo da lareira pareceu naquele momento ser escasso conforto.
— E o que pode merecer a tua atenção em semelhantes condições, esposo? — indagou, álgida. — O desempenho do bobo hoje ao jantar, porventura?
Tylon sorriu, tão azedo como leite deixado ao sol.
— Não, esposa. Essa criatura pode parecer inofensiva, mas sei bem que não o é, e há algo nela que me leva a crer que é deveras perigosa. Não o confrontarei diretamente; pelo menos não por ora — declarou, começando então a dirigir-se à porta e baixando novamente o tom de voz. Lethia deixou-se estar na mesma posição e não olhou sequer por cima do ombro. — Porém, a única forma que tem de interferir com os meus planos e de me afetar é influenciando Aereth.
Tylon pegou na sua capa e passou-a por cima dos ombros.
— Pois bem, vou cortar o mal pela raiz e tornar por fim realidade os desígnios do nosso mestre. Chegou a hora. — Ao ouvir semelhantes palavras, Lethia rebolou na cama e apoiou-se sobre o outro cotovelo de forma a encarar o seu esposo. — A águia tem de morrer, e com ela cairá o ninho.
— Esposo...! — disse Lethia com afetado espanto. — Vais...?
— Cala-te, mulher. — silenciou-a Tylon com um gesto brusco da mão. — As palavras ecoam em Allahn Anroth.
— Onde vais?
— Tratar dos arranjos necessários — explicou o regente parcimoniosamente ao abrir a porta, olhando ainda uma última vez para trás. — Vai dormir. Devo regressar tarde.
Sem mais nada dizer, Tylon saiu, e Lethia ainda o ouviu falar com Cortun à entrada, trocando com ele breves palavras progressivamente abafadas pela porta que se fechava. A mulher deixou-se estar na mesma posição, aguardando, e alguns cautelosamente observados momentos depois, o trinco da porta fez um clique de movimento. Sorrindo, Lethia viu o corpulento Cortun entrar cuidadosamente, espreitando repetidas vezes para trás antes de fechar a porta atrás de si de forma cúmplice.
— O meu esposo parece... desassossegado — comentou Lethia.
— Deveras, senhora — concordou o paladino, falando no seu habitual tom de voz grave e baixo. Envergava despretensiosas vestes de couro, a sua barba e bigode estavam aparados como sempre, e o cabelo puxado para trás com óleo de árvore; toques de distinção que contrastavam com a ameaçadora cunha do machado que tinha às costas.
— Desassossegado, tentará algo de imprudente. Drástico. Algo que poderá comprometer os desígnios do nosso mestre — continuou a esposa de Tylon, ainda deitada sobre a cama.
— Assim o entendi, senhora.
— As ordens de Othragon foram claras nesse sentido, não foram, meu bom Cortun?
— Como água de nascente, senhora.
— O nosso mestre está desiludido. O meu esposo falhou-lhe, como ele bem te explicou enquanto estavas na minha presença, hmmm?
— Assim o fez, senhora — concordou Cortun, permanecendo à porta.
Lethia sorriu, derretendo algum do gelo dos olhos, que começaram a flagrar sem chama como a madeira de uma árvore inflamada por dentro. Sugestiva, começou a flexionar as pernas, arrastando languidamente os pés sobre o cobertor brocado.
— Deveremos então assegurar-nos de que o meu iludido e fracassado esposo não deite tudo a perder — disse desapaixonadamente. — Há que tomar medidas... definitivas.
— Tal como Othragon efetivamente o ordenou.
— Sim... o nosso mestre fará de mim viúva — concedeu Lethia, passando os dedos sobre a orla do decote. — Felizmente que te tenho a ti para me protegeres, meu bom Cortun. Estou certa de que tornarás todo o processo menos... penoso.
O paladino nada disse, limitando-se a grunhir à laia de assentimento. Encantada com a sua rigidez, a mulher sorriu de forma mais sugestiva ainda e afagou o cobertor.
— Agora vem. Conforta a tua senhora nesta noite fria e de difíceis decisões. O meu esposo tem-me negligenciado...
Sem precisar de incentivos adicionais, Cortun afastou-se da porta e dirigiu-se à cama, desafivelando a correia do machado e atirando-o sobre a carpete. De seguida, tirou a camisa com um gesto quase maquinai e exibiu a sua basta pelugem, diante da qual Lethia trincou o lado do lábio inferior e fincou as unhas no cobertor. Mantendo o seu inexpressivo semblante, o paladino pousou ambas as mãos aos lados de Lethia, cobrindo-a com a sua sombra e com os pêlos e barba alourados pelo fogo da lareira. As cordas da cama rangeram com o seu peso e Lethia gemeu de prazer, e os reflexos da paixão de ambos viram-se na vidraça delineada por fios de cobre, sobre a qual escorriam as gotas da chuva. Havia contudo algo mais no exterior além da chuva, uma mancha sombria que, mais atentamente fitada, revelou ser uma cara diabolicamente sorridente. Dilet observava do exterior, escorrendo chuva do afilado nariz e do queixo, sem contudo deixar de sorrir e de rir ocasionalmente para consigo. O seu chapéu de bobo amarelo e roxo estava encharcado, e as pontas com guizos pendiam-lhe, murchas como orelhas de coelho desanimado. Encontrava-se acocorado sobre uma gárgula na forma de águia com vista para um pátio interior, e que escoava água do bico, convenientemente posicionada para alguém que desejasse observar as intimidades do quarto de Lorde Tylon. Dilet ria, deliciado com a infidelidade de Lethia e a cumplicidade do aparentemente fidedigno Cortun. Os seus ombros escanzelados tremiam com as suas risadinhas, e o bobo mordia o lábio com os seus salientes incisivos.
«Ah, sim. A traição é um delicioso prato. Mas sabe melhor ainda quando tem de ser partilhada. Ah, pobre Othragon...»,, pensou, abanando a cabeça. «O nosso senhor tudo sabe. Achavas mesmo que a tua traição passaria despercebida e impune? A tua alma é d’Ek...»
Cortun começou então a sacudir as calças pelas peludas pernas abaixo enquanto as lisas de Lethia se enliçavam nelas, já com as saias bem puxadas para cima. Um gemido de prazer escapou-lhe antes de a grande mão do paladino lhe tapar a boca, passando abafado pela vidraça e chegando aos ouvidos de Dilet, que interrompeu as suas considerações para rir um pouco mais.
«Primeiro os teus servos, Othragon. Depois, tu. Não perdes pela demora. Não perdes, não», garantiu, lambendo a chuva dos lábios e mordendo de seguida a língua ao de leve, deixando a ponta desta de fora ao rir um pouco mais. «Cheira-me que a princesa vai ter um aniversário inesquecível...»
Um súbito abalo interrompeu as fantasias de Dilet, fazendo com que o palácio inteiro tremesse e com ele a gárgula, o que desequilibrou o bobo. Guinchando de surpresa, Dilet espanejou os braços para se equilibrar, mas acabou por cair à mesma, e apenas os seus reflexos lhe permitiram agarrar-se desesperadamente à escorregadia asa de pedra da águia. Aí se deixou ficar, pendendo precariamente de braços esticados e contrabalançando-se com as pernas magras de forma a não oscilar demasiado, o que poderia fazer com que as suas mãos deslizassem pela asa. No interior do quarto, Cortun e Lethia interromperam o seu adúltero ato, erguendo-se espavoridos e abraçando-se um ao outro enquanto olhavam para as paredes e viam os móveis tremer, incluindo a cama sobre a qual estavam pecaminosamente deitados.
Tão depressa como começara, o abalo cessou, deixando os dois amantes em estado de alerta e Allahn Anroth em reboliço, como se o palácio tivesse acabado de despertar. Por sua vez, Dilet permanecia na sua precária posição à chuva, tomando balanço com ambas as pernas antes de tentar envolver com elas o pescoço da águia, o que conseguiu à segunda tentativa, após quase ter caído. De cabeça para baixo e com as coxas a estrangularem a gárgula, Dilet ainda conseguiu agarrar o chapéu de bobo que lhe caiu da cabeça antes de erguer o torso com esforço abdominal, após o qual ficou gratamente abraçado à águia, ofegante e de coração aos pulos. Porém, ainda conseguiu rir com a sua situação, olhando para o céu de cabelos encharcados e piscando os olhos com as gotas de chuva.
— Meu senhor, que fareis? — perguntou à noite, abanando a cabeça em deleitada surpresa.
Acocorado no seu barranco de eleição com vista para Horavog, Quenestil meditava e preocupava-se. A noite ia fria, com um vento cortante a soprar pelas vertentes da montanha que sobranceava a quinta iluminada pelo luar, e o eahan cobria-se com as peles de volverino aos ombros, cruzando os pulsos debaixo do queixo e mantendo encolhida a cabeça encapuzada para melhor a resguardar. Com o vento vinham minúsculos flocos de neve, que pontilhavam de branco as suas peles e esvoaçantes pontas do cabelo, mas ainda assim o shura continuava a preferir a intempérie à companhia dos outros em Horavog, aos constantes olhares dos wolhynos, às incessantes tentativas de Slayra de reatar diálogo... Claro que em breve não teria outra escolha senão regressar e falar com Oska, pois as notícias trazidas pelo grupo de wolhynos que chegara após a partida de Quenestil eram pouco auspiciosas. Negras, mesmo, e o eahan ficara quase possesso quando Deadan lhas revelara mais tarde, quando regressara brevemente a Horavog para debater novamente o destino da kuvamora.
A mulher passara contudo para segundo plano assim que Deadan lhe revelara que Tanarch ameaçava a Wolhynia como seqüela da passagem dos drahregs pela nação, que ficara em polvorosa desorganização quando do êxodo do Primeiro Pecado. Ao que parecia, a horda de drahregs passara impune por Tanarch e pela Wolhynia, dirigindo-se para Oeste, mas a primeira ficara aparentemente em condições de invadir, e a segunda pronta a ser invadida. Como tal, fora declarada guerra, e os wolhynos que vieram a Horavog eram dignitários do reino, tendo vindo para buscar os mantimentos e bens de valor que Oska pudesse dispensar para a guerra. Ao que parecia, Skoísvein dera-lhes indicações de que a «puta da baía» escondia armas e tinha um arqueiro ao seu serviço, bem como uma aliança secreta com kahrkr, e os dignitários vinham já com idéias preconcebidas daquilo que deveriam esperar. Oska fora forçada a ceder uma vaca, uma porção dos conteúdos das kvalaker e mesmo algumas peças pessoais de joalharia suas para que os wolhynos não se sentissem tentados a espreitar as latrinas em busca de possíveis esconderijos, o que foi também em parte evitado pelo cadáver de Engiv judiciosamente postado diante destas. Quando um dos dignitários quis ir aliviar-se, deparou-se com o cadáver e as mulheres ruivas correram a carpir, rodeando-o como se tivessem acabado de saber que Engiv morrera, o que dissuadira os visitantes de entrarem e descobrirem os eahlan escondidos. Ainda assim, Horavog saíra depauperada da visita, e a situação tornara-se mais desanimadora ainda, com a perspectiva adicional de um ataque de Tanarch. Mesmo ali, naquele fim do mundo, os malditos traidores contra os quais jurara vingança ameaçavam-no e aos eahlan que prometera proteger, uma das razões pelas quais Quenestil estava confuso.
Por um lado, ansiava por poder atacar os tanarchianos, por poder puni-los pelo que haviam feito em Gul-Yrith e abater-se sobre eles como o fogo de vingança, como o relâmpago que cai do céu sobre uma árvore que se ergue demasiado, jactanciosa. Por outro, temia qualquer coisa que pudesse pôr os eahlan era perigo, e uma invasão tanarchiana seria certamente mais perigosa que a ameaça dos maltrapilhos skrimmen ou os primitivos ulkatr. Por outro lado ainda, não podia deixar de estranhar semelhantes sentimentos da sua parte, sentimentos que por norma sempre associara a humanos. Tanto rancor e tamanha sede de vingança não lhe eram característicos à índole ou à raça. Reconhecê-lo-ia o seu pai, Lunce Anthalos, se o visse? Conseguiria qualquer um dos seus conhecidos e familiares de Edranil compreender a raiva que nele ardia, a controlada vontade animalesca de matar aqueles que, apesar de tudo, lhe tinham feito mal? Duvidava muito. Duvidava de que sequer o recebessem, se soubessem o que fizera e o que intentava fazer, apesar da notória capacidade para o perdão que caracterizava os da sua raça, uma capacidade com a qual se identificava mas que desde sempre o confundira. Talvez por isso mesmo tivesse tantas dúvidas, dúvidas quanto ao que estava certo ou errado, dúvidas que antes nem sequer considerara. Tudo fora muito simples antes, e tudo se tornara extraordinariamente complicado desde que partira com Aewyre. Desde que conhecera Slayra. Desde que Babaki morrera.
Desde que se separara dos seus amigos. Desde que Gul-Yrith fora atacada. Desde que... desde que se lembrava. As coisas nunca mais haviam sido simples, não como em Edranil, não como nos bosques nas encostas das montanhas, não como nos prados destas, não como nas noites ao relento nos lapedos das serranias.
Perdido em pensamentos como estava, Quenestil não se apercebeu da figura que se movia discretamente atrás de si, até que de repente sentiu uma presença que o levou a olhar para trás. A meio do movimento, ouviu o silvo de aço a ser desembainhado, o que o levou a atirar-se para o chão, rebolando para uma posição acocorada de arco empunhado e frechado. Era Ihjseorn, e empunhava com ambas as mãos a sua possante espada com copos em forma da cornuda cabeça de um bode. Porém, não era para Quenestil que estava a olhar, e apesar de estar a ser ostensivamente visado pela ponta de uma flecha, o wolhyno caminhava perpendicularmente ao eahan, atento e pronto para combater, mas não a ele. Ainda assim, o shura não baixou o arco, e seguiu o movimento de Ihjseorn enquanto este ia caminhando, esticando o atarracado pescoço para ambos os lados como se estivesse à procura de algo escondido. Por fim, não encontrando nada, acabou por embainhar a sua espada atrás das costas e virou-se para Quenestil como se nada se tivesse passado, ignorando a flecha apontada na sua direção.
— Saudações, Quenestil — cumprimentou.
O eahan relaxou um pouco o fio do arco e baixou-o para fitar Ihjseorn, mas manteve-o frechado.
— O que queres, Ihjseorn? E por que desembainhaste a espada?
— Algo maligno estava aqui, Quenestil — explicou o wolhyno, olhando para o lado com ar desconfiado. A sua cara redonda estava vermelha com o frio, bem como as orelhas, e ia fungando e colhendo ocasionalmente expectoração da garganta.
Quenestil olhou na mesma direção, sem saber dizer ao certo qual teria então sido a presença que sentira. Ocorreu-lhe que talvez fosse mais um dos testes de Ihjseorn, pelo que não deu mais atenção ao assunto.
— O que queres? — tornou a perguntar.
— Vim ajudar-te a perceber — explicou o humano, premindo as dessensibilizadas bochechas com os dedos enluvados. — Da última vez que nos vimos, ainda tinhas perguntas.
— Perguntas? Sobre ti?
— Não. Sobre a Mãe. O sacrifício da criança. Do que é esperado de ti.
Foi quanto bastasse para pôr o sangue de Quenestil a ferver novamente, reavivando-lhe a ainda recente memória do sucedido com os skrimmen no bosque, e sobretudo a forma traiçoeira como Ihjseorn matara Engiv. Contudo, o eahan conteve-se e baixou o arco, embora de dedos tensos, tentando perceber qual era o jogo do wolhyno daquela vez.
— Que queres de mim agora?
Suspirando com a evidente desconfiança do eahan, Ihjseorn aproximou-se dele com lentos e ponderados passos, os seus olhos azuis honestos e penetrantes e a sua boca uma linha inexpressiva.
— Sei que as minhas ações te podem... confundir. E que as minhas intenções talvez até sejam pouco claras. Mas acredita que desejo apenas ajudar-te, e aos Fiordes.
— Ai agora já é aos Fiordes, e não só Horavog? — notou Quenestil, céptico. — Quer dizer que vou ter mais pessoas a observar aquilo que faço e a regerem as suas vidas de acordo com isso, como se eu fosse uma constelação estelar?
Ihjseorn tornou a suspirar, e fungou ao fazê-lo, passando de seguida a mão enluvada debaixo do nariz.
— Percebo que não confies em mim. E percebo que ainda não entendas, mas desta vez venho explicar-te coisas. Queres ouvir-me?
O vento vaiou a sugestão, como se dessa forma pudesse influenciar a decisão de Quenestil, que ficou longos momentos simplesmente a olhar para o humano, que retribuía com aparente franqueza.
— Acabaram-se as evasivas?
— O quê? — falhou Ihjseorn em perceber.
— Vais deixar de me responder com mais perguntas? Estavas a mentir quando falamos antes dos skrimmen, e agora vais-me mesmo explicar o que se passa?
— Não sei o que são «evasivas» — admitiu o wolhyno, quebrando momentaneamente o contato visual com Quenestil para olhar para além deste, para o mar escuro. — Venho explicar-te... algumas coisas. Queres ouvir-me?
Ao perguntá-lo, Ihjseorn cruzou novamente o olhar com o do eahan, parecendo genuinamente estar à espera de uma resposta, quase como se estivesse pela primeira vez a pedir a sua permissão. Quenestil não soube o que dizer de início, tendo-se já mentalizado para desconfiar de quem quer que fosse naquela terra, onde todos pareciam esperar algo dele e onde ninguém hesitava em recorrer a métodos desonestos para que fizesse o que dele se esperava. A pior parte era não perceber o que esperavam ao certo dele, mas se Ihjseorn se estava a oferecer pela primeira vez para explicar, ao invés de quase ter que estar a ser forçado...
— Muito bem... — acabou por dizer, metendo o arco ao ombro e cruzando os braços. — Estou à espera.
— Não é aqui que te vou explicar — disse Ihjseorn, apontando para baixo, para Horavog. — Mas ali.
O eahan ergueu uma sobrancelha ruiva, e o humano retribuiu com uma branca, como se tivesse dito a coisa mais natural do mundo e esta estivesse a ser indevidamente contestada.
— Ali...?
— Sim, em Horavog — acenou Ihjseorn a cabeça, sem contudo parecer conseguir convencer o shura. — Tenho de te mostrar uma coisa.
Deixando de esperar pela aprovação de Quenestil, o wolhyno recuou um passo diagonal, virando-se ligeiramente para o trilho que dava acesso à extensão de terra sobre a qual se encontrava a quinta.
— Vem. Vais compreender...
Com isto, Ihjseorn começou a descer o trilho, vagarosamente mas sem olhar para trás para ver se o eahan o estava ou não a seguir. Quenestil estava claramente hesitante, sentindo que ia ser novamente conduzido como um boi, embora de forma mais subtil. Estremeceu ao reprimir o impulso de dar um passo, mas acabou por aceder e seguiu mesmo Ihjseorn, resmungando entredentes.
«É bom que me dês respostas desta vez..,», pensou de olhos fitos no escudo nas costas do wolhyno, preparando-se mentalmente para todas as perguntas que lhe faria caso o que tinha para lhe dizer não fosse satisfatório.
Distraídos como estavam, humano e eahan não viram o vulto negro que de fato se encontrara próximo deles, e que quando do início da sua descida se revelou um pouco mais, saindo das sombras da encosta e com o denunciante luar a revelar os seus esbeltos contornos humanóides.
Enquanto descia a encosta da montanha ao lado de Ihjseorn, embora ligeiramente mais recuado, Quenestil ia observando o humano, tentando discernir as suas intenções através da sua linguagem corporal. Já percebera que não devia pôr hipótese alguma de lado quando o alegado kahrkr estava envolvido, e já pensara mesmo que ele iria sugerir algo de drástico, como por exemplo matar os habitantes de Horavog. Ou fugir com os eahlan para um sítio qualquer de sua sugestão. Enquanto não tivesse a certeza quanto ao que se estava a passar, não poderia confiar plenamente no homem, mas tão-pouco se podia dar ao luxo de descartar levianamente o que ele dizia.
— Por que temos de ir a Horavog para tu me explicares seja o que for? — perguntou por fim, fungando.
— Há uma coisa que deves ver — disse o humano, sem olhar para trás.
— Que coisa? — insistiu Quenestil, tornando a fungar.
— Já vais ver.
— Ouve... — O corrimento no nariz começava a incomodá-lo, e o eahan acabou por se curvar ligeiramente para o lado enquanto andava, tapando uma narina com o indicador para expelir o ranho através da outra. — Diz-me o que vais fazer, ou eu...
— Já observaste animais pequenos? — indagou Ihjseom despropositadamente.
— O que?
— Já viste animais pequenos, novos? Como eles agem?
Quenestil balbuciou, sem compreender o súbito desvio da conversa ou qual a sua pertinência.
— Claro que já vi animais novos... já vi muitos. Sei muito bem como eles são. O que é que isso interessa?
— Deves ter reparado que, enquanto são pequenos, brincam uns com os outros. Mordem-se, arranham-se, rosnam. Mas fazem tudo a brincar. Sabes porquê?
— Para se treinarem, mas o que é que isso...
— Exatamente. E sabes quando é que a... brincadeira acaba?
— Quando os pais os abandonam! — rosnou Quenestil, incomodado. — Mas que raio é...
— Não — interrompeu-o Ihjseorn, erguendo um indicador enluvado e abanando-o negativamente. — Os pais podem abandoná-los, mas os jovens machos não deixam de brincar uns com os outros.
— Onde é que queres chegar?
— A... brincadeira só acaba — Ihjseorn olhou de lado para o eahan, que entretanto se aproximara mais — quando as fêmeas chegam.
Quenestil franziu o cenho, e entretanto os dois já tinham chegado ao fim da encosta.
— Essa é uma das coisas que te vou explicar — continuou o wolhyno. — Estás a reter-te. Estás a... brincar.
— O quê?
— Já vais perceber — assegurou-lhe Ihjseorn, pedindo calma com a mão e apontando de seguida com ela para o celeiro da quinta, para o qual se dirigiam.
— Perceber o quê? Espera... o que queres da kuvamora?
— Ela... tu não a capturaste só para que os skrimmen não atacassem Horavog.
— Não...?
— Não. Ela... tu... — Ihjseorn pigarreou. — Já vais perceber.
Quenestil soltou um suspiro de frustração, conseguindo contudo conter-se o suficiente para esperar, as suas esperanças acalentadas pela promessa de respostas da parte de Ihjseorn. As sempre indolentes ovelhas observaram-nos aos dois enquanto estes se encaminhavam para o celeiro, deitadas no chão e de patas recolhidas debaixo da sua basta lanugem. Ihjseorn emitiu aquietadores ruídos com a língua para que os animais não se assustassem com a sua presença desconhecida, o que provou ser desnecessário, pois nenhuma se incomodou a afastar-se, de tão habituadas que estavam à presença de humanos. Quenestil não lhes deu grande atenção, concentrado como estava no wolhyno, determinado a não o deixar evadir-se às suas questões assim que a altura chegasse.
— Está alguém a vigiá-la? — perguntou Ihjseorn.
— Não — respondeu o eahan secamente, olhando à volta para se certificar. — Eles querem oferecê-la a um garding.
O humano emitiu um neutro som gutural ao estender a mão para abrir a porta, não parecendo muito preocupado pelo fato. Quenestil avançou então um brusco passo e agarrou-lhe o antebraço, retendo-o e obrigando-o a olhá-lo nos olhos.
— Tu sabes? Vens libertá-la, é isso?
Tal como já antes o fizera, Ihjseorn comunicou através do perigoso e gélido olhar que não gostava que lhe tocassem. Contudo, a sua única reação subseqüente foi libertar o braço com um brusco sacão para o lado, após o que os dois se enfrentaram olho a olho com as peles e cabelos a serem sacudidos pelo vento.
— Não — acabou Ihjseorn por responder, fungando e passando o dedo debaixo do nariz. — A kuvamora vai ajudar-me a fazer-te compreender.
Dito isto, o wolhyno virou-se novamente para a porta e abriu-a sem mais delongas, entrando no celeiro de cabeça baixa e passando a mão pelo seu ralo cabelo escuro para tirar as partículas de neve. Quenestil seguiu-o de má vontade, baixando ele também a cabeça ao passar pela porta baixa e estremecendo com um arrepio causado pela diferença de temperatura. O interior do celeiro estava relativamente aquecido pelo calor dos poucos animais que nele residiam, bem como completamente escuro, e Quenestil deixou de ver quando Ihjseorn fechou a porta. Apesar de momentaneamente nervoso, inspirou fundo quando ouviu o humano a raspar pedra com um fuzil, produzindo faíscas que aclararam momentaneamente as cercanias, merecendo alguns nervosos nitridos dos cavalos. Quando os seus esforços lhe valeram por fim a esperada chama de uma lamparina de pedra postada sobre um ressalto numa viga ao lado da entrada, Ihjseorn pegou nela com cuidado de forma a não derramar o óleo ardente sobre o feno seco no chão, erguendo-a mesmo assim e olhando à volta à procura da kuvamora.
— Onde está ela? — perguntou.
— Não sei... ali — disse Quenestil, apontando para a baia mais afastada, onde Slayra parira os seus... os bebes.
Ihjseorn seguiu a sua indicação, e os dois passaram pelas parcas posses de Horavog: dois cavalos e duas vacas em oito baias, com cada um dos animais a recuar nervosamente do fogo à passagem do wolhyno. Quenestil reparou pelo caminho que ninguém desfizera os catres nos quais os eahlan tinham dormido, e o feno revolto ainda assinalava as noites de pernoita. A sua atenção centrou-se porém rapidamente na última baia, onde a luz da lamparina revelou a kuvamora, que se encontrava encolhida a um canto, abraçada às pernas e com a testa sobre os joelhos. O seu manto de lanosa pele fora apropriado por Oska, e envergava agora apenas a sua camisa e calças de pele de rena, com o capuz na forma da cabeça de uma recolhido. Também fora privada dos penduricalhos de osso com inscrições que ostentara ao peito, provavelmente devido a medo supersticioso dos wolhynos, razão pela qual desmanchara as tranças e os seus longos e sujos cabelos lhe descaíam como uma cascata loura pelas pernas abaixo. Estava de mãos e pés atados com escuras peias de cavalos, e presa a um barrote nas suas costas, embora as suas restrições estivessem suficientemente folgadas para lhe permitir a presente posição. A mulher não se mexeu quando da aproximação de Quenestil e Ihjseorn, que ficaram a olhar para ela como fariam com um animal enjaulado.
— Raeitte — saudou Ihjseorn, esfregando o chão com o pé para afastar o feno e pousando a lamparina sobre o piso de terra batida.
A kuvamora mexeu a cabeça quase imperceptivelmente, revelando entre os cabelos apenas um furioso olho azul incendiado pela chama da lamparina.
— Kalttaya! — sibilou com a voz abafada pelos braços, sem se dignar a sequer mostrar a cara.
Ihjseorn suspirou através do nariz, pousando as mãos sobre os joelhos quando estes começaram a ranger ao ajoelhar-se para ficar ao nível da mulher, fitando-a em pretensa igualdade. Começou então a falar com ela na língua dos skrimmen, da qual Quenestil não compreendia palavra alguma, num diálogo unilateral durante o qual a kuvamora se limitou a encará-lo com um odioso olhar, erguendo apesar de tudo a cabeça quando Ihjseorn indicou Quenestil com o polegar. O eahan cruzou então novamente o olhar com o da mulher, preso pelos seus grandes olhos glaucos que o fitaram com uma reveladora intensidade, como se de alguma forma o conhecesse. Ainda não percebia por que razão se lembrara das palavras da nayana quando a vira, mas também não teve tempo para ponderar os motivos, pois Ihjseorn ergueu-se de seguida, pousando-lhe uma mão forte sobre o ombro enquanto falava, referindo-se claramente a ele. A kuvamora ia acenando com a cabeça oblonga, ainda de feições parcialmente ocultas pelos cabelos com os quais tapava a cara, como para esconder a humilhação de ter sido capturada. Não havia como negar que ia ficando progressivamente mais aberta ao que quer que Ihjseorn lhe estava a dizer, demonstrando cada vez mais interesse para com as suas palavras. Acabou mesmo por interromper o wolhyno, erguendo uma mão suja, apontando para o eahan e de seguida para o chão diante dela, e Ihjseorn anuiu, baixando a cabeça no que parecia ser um sinal de agradecimento e fazendo ligeira pressão no ombro de Quenestil para lhe dar a entender que se devia sentar.
— O que se passa? — desconfiou o shura, resistindo.
— Ela vai responder as tuas perguntas.
— Responder? — duvidou Quenestil, fitando ambos alternadamente de sobrancelhas franzidas. — Não percebo a língua dela, nem ela a minha...
— Sei que é difícil para ti, mas confia em mim — afiançou-lhe o wolhyno, apertando-lhe o ombro. — Vais compreender o que ela tem para te dizer.
Ainda desconfiado, como não podia deixar de ser com aquela gente, Quenestil acabou por aquiescer e apoiou a mão no chão para se sentar de pernas cruzadas diante da kuvamora, que observou cada gesto seu com uma atenção animal. Insatisfeita com a posição do eahan, indicou-lhe através de gestos que se devia aproximar mais, o que Quenestil fez de não tão bom grado. Não se sentia particularmente à vontade na presença da mulher, e a sua proximidade arrepiava-lhe a pele do pescoço. Parecendo alheia ao seu desconforto, a mulher ergueu os punhos atados, claramente com o intuito de que Quenestil lhe cortasse as peias.
— Vamos... libertá-la? — perguntou por cima do ombro a Ihjseorn, que entretanto se afastara um pouco, o que subiu outro tanto os níveis de desconfiança do eahan.
— Não. Corta-lhas só para ela poder fazer... o que tem a fazer. Para te explicar.
As sobrancelhas do shura permaneceram franzidas e não deixou de emitir um grunhido desconfiado, mas ainda assim desembainhou o seu facalhão e estendeu a mão para que a kuvamora nela pousasse as suas. Quando a mulher assim fez, Quenestil por pouco não retirou a mão, pois o contato entre as peles de ambos foi quase elétrico, enervante ao toque. Fazendo por ignorar o desconforto, Quenestil cortou-lhe então as ataduras das mãos e, após uns breves instantes de ponderação, as das pernas também. Nunca gostara de ver seres vivos presos, e havia algo de animalesco naquela mulher com o qual o eahan tanta mais empatia partilhava. Grata, a kuvamora esfregou os pulsos e os tornozelos, que certamente lhe estariam doridos, e aproximou-se um pouco mais de Quenestil, curvada para a frente e apoiando-se sobre os punhos. O eahan recuou ligeiramente o torso, mas a mulher gesticulou-lhe que se aproximasse, fazendo-lhe de seguida ademanes de baixo para cima, como se lhe estivesse a dizer que tirasse a camisa. Quenestil hesitou e tornou a olhar para Ihjseorn, que estava mais afastado ainda mas que fez que sim com a cabeça, gesticulando ele também com a mão para que tirasse a camisa.
— Noystta se kaykostaa — insistiu a kuvamora.
Relutante, o eahan começou a despir a camisa, passando-a por cima da cabeça e expondo ao atento olhar da kuvamora o seu torso seco, delgadamente musculado e riscado por cicatrizes. Ambos olhavam um para o outro à bruxuleante chama da lamparina de pedra, que lhes sombreava os lados das caras, ardendo-lhes nos orbes e dourando-lhes os cabelos. Lentamente, a mão da mulher ergueu-se, detendo-se de palma aberta a escassa distância do peito de Quenestil como que em pedido de permissão. Quenestil não esboçou qualquer tipo de reação, engolindo apenas em seco sem nunca tirar os olhos dos da sua circunstante. Porém, a mulher não o fitava agora, concentrada como estava em algo no peito do eahan, e o olhar do shura acabou por vaguear pela cara dela, incapaz de se concentrar num único ponto e devaneando pelo grande nariz e queixo, pelos contornos das suas feições de pele branca, suave e suja, e pela boca de lábios finos e pequenos dentes amarelados que murmurava palavras incompreensíveis. A sua contemplação só foi interrompida quando sentiu o toque enervante da mão da mulher no seu peito, quando ela lhe pegou no dente de volverino.
— Karkkayu... — disse a kuvamora, tal como já antes dissera, quando da primeira vez que se tinham visto.
— Volverino — deu Quenestil consigo a corrigir.
Foi nesse momento que se estabeleceu uma ligação entre ambos, quando eahan e humana transcenderam as barreiras da raça, língua e cultura e chegaram a um instintivo entendimento mútuo. Diferenças ruíram e semelhanças surgiram quando da singela troca de palavras, estimulada pela mão da kuvamora no peito do shura e transferida a nível visceral pelas batidas do coração deste. Pondo-se de joelhos, a mulher acercou-se mais de Quenestil e agarrou-lhe o colar com ambas as mãos, começando a passá-lo pela cabeça do eahan antes de este a refrear, agarrando-a por ambos os pulsos. Sem nada dizer, a kuvamora limitou-se a abanar a cabeça, e Quenestil acabou por a deixar tirar-lhe o colar, apesar de todos os impulsos em contrário. Afinal, o dente era a sua ligação ao espírito do irmão volverino que matara e ao qual se unira, e raras vezes se vira sem ele. Aparentemente alheia à íntima ligação, a mulher enfaixou a mão direita com o colar e deixou o dente entre os dedos médio e indicador, observando-o atentamente e deixando a mão esquerda descair sobre o ombro de Quenestil. Começou então a murmurar na sua língua, descosendo palavras entarameladas de forma quase imperceptível de início, mas que foi lentamente adquirindo uma cadência irregular. Enquanto falava, a sua mão deslizava pelo ombro do eahan até à nuca deste, lançando-lhe formigueiros pelo escalpe acima, e aproximou-lhe da cara a outra mão com o dente, no qual os olhos de Quenestil se focaram. Lenta, cuidadosa e concentradamente, a kuvamora abanou a mão diante da cara do eahan, fazendo com que seguisse o dente com os olhos enquanto continuava com o seu rítmico cântico.
Por fim, tocou-lhe com o dente de volverino na testa, deslizando de seguida a ponta pelo nariz do eahan abaixo, passando pela boca e queixo e fixando-se por fim na garganta, na qual assentou sobre a palpitante carótida do shura, que estacou. Fitando-o intensamente com os seus olhos verde-mar, a mulher não interrompeu a ladainha, contrastando antes a ameaça do dente na garganta ao passar-lhe as unhas repetidas vezes pela nuca num movimento de trás para a frente que causou prazenteiros arrepios ao eahan. Arrastando-se pelo feno com os joelhos, posicionou-se ao lado de Quenestil, deslizando sobre o ombro dele os seus sebosos cabelos louros e segredando-lhe inefáveis palavras ao ouvido com o seu hálito quente, palavras que evocavam sensações e imagens primordiais, palavras que lhe aceleraram o ritmo do coração e lhe trouxeram o sangue à flor da pele. Arrastando-se um pouco mais pelos joelhos, a kuvamora posicionou-se atrás do eahan, assentando-lhe o queixo sobre o trapézio enquanto falava, sempre a acariciar-lhe a parte de trás da cabeça com as unhas. Embora não estivesse calor, o shura começou a transpirar, e não apenas devido às macias formas femininas pressionadas contra as suas costas, que apenas destoaram contra o súbito puxão dos seus cabelos para trás e o ardente trilho deixado pelo dente de volverino, que lhe desceu pelo esterno abaixo, vertendo sangue. Quenestil cerrou olhos e dentes e inalou através deles, dando consigo mesmo a rosnar guturalmente. Um dos cavalos resfolegou em reação ao animalesco ruído e começou a bater com o casco no chão, mas o eahan não fez mais do que rosnar enquanto uma gota vermelha lhe escorria do esterno para o umbigo.
Enlevados pelo bizarro ritual, o shura e a mulher estavam agora alheios à presença de Ihjseorn, que se afastara até à parede e que caminhava a passos laterais ao longo desta na direção da porta. Por sua vez, o wolhyno também não reparou na pequena e esguia lâmina que irrompeu cuidadosamente do teto de turfa, deslizando então lentamente para baixo e sendo de seguida torcida para alargar a abertura feita. Passando igualmente despercebido, um olho azul espreitou através da fresta criada, chegando-se mais para cima e observando então Quenestil e a kuvamora, arregalando-se com interesse ao ver as posições em que ambos se encontravam. O eahan começava a respirar cada vez mais depressa, e o seu corpo respondia à crescente tensão com o retesar de músculos aleatórios, que palpitavam a cada palavra mais enfatizada pela mulher na sua misteriosa e primeva língua. Os olhos de Quenestil tremiam, em parte devido ao suor que para eles corria, em parte devido à sobrecarga sensorial que começava a sofrer, como se as frases sussurradas pela kuvamora lhe estivessem a despertar os sentidos para o mundo. O odor a estrume tornou-se mais pungente, a voz quente da mulher ao seu ouvido ia ficando mais clara, mais pura, e a sua visão intermitente mesclava detalhes pormenorizados da baia na qual se encontrava com visões de um volverino, o volverino que vira nos seus sonhos. Com o corpo inteiro a latejar, as suas mãos alternavam entre um curvar que as tornava semelhantes a garras e um relaxamento que lhe deixava os dedos pendentes. A mulher correspondeu, passando a mão com o dente do peito para as costas do shura, e deslizando-o pela pele suada até à ilharga, na qual lhe espetou a presa bem na base da espinha. Quenestil rosnou uma vez mais e arqueou as costas tensas, semicerrando convulsivamente os olhos enquanto se deixava estar na posição de braços abertos.
A sua respiração principiou então a revezar-se entre uma inalação rápida e fraca e uma mais vagarosa e profunda, chiando da garganta como se estivesse a sofrer um ataque. Uma vaga mas forte sensação de que estava prestes a cair aliou-se à sempre presente impressão de que estava preso, retido por vínculos que não conseguia romper e dos quais apenas podia fugir. Uma ligeira náusea percorreu-lhe o corpo, fazendo mesmo com que pousasse as mãos no chão devido à sensação de uma queda iminente. O seu rosnido misturou-se com outros que julgou ouvir, e as suas emoções tornaram-se numa desgovernada balbúrdia, alcançando picos divergentes e interpolados de raiva, medo e êxtase. A kuvamora agarrou-lhe então a cabeça com ambas as mãos, pressionando-lhe os lados com os antebraços e subindo o tom de voz, começando a agitá-la de um lado para o outro. As veias temporais de Quenestil palpitavam, inchadas, e as suas pontudas orelhas de lóbulos pegados à cabeça estavam vermelhas. O eahan arquejava, ofegava e rosnava, de olhos fitos em visões do volverino de dentes arreganhados, do escuro orbe do animal no qual se via a si mesmo refletido, preso, desesperadamente à espera de ser solto. A kuvamora largou-lhe então a cabeça com um gesto brusco e espetou-lhe o dente num hirto músculo dorsal, pontuando a picada com uma exclamação entre a palavra e o gemido, mas Quenestil não sentiu dor. Não sentiu a mínima dor. Não sentiu nada. A única coisa que sentiu foi uma raiva tremenda, oriunda de uma brecha que estalou na sua psique, vertendo um quente fio de fúria que depressa começou a escorrer com mais força, rachando mais ainda a abertura e tornando-se numa autêntica torrente de cólera.
A pele do eahan arrepiou-se, furiosamente ruborizada, e os seus cabelos eriçaram-se como as cerdas de um animal. Os músculos de veias empoladas incharam, e os tendões estavam-lhe bem visíveis nos pulsos, tal era a força com a qual crispava os punhos. A sua visão foi bloqueada nesse momento, e a única coisa que via era o volverino, com o qual estava uno de corpo e alma, pois naquele momento era o volverino. Quenestil saudou-o com um rugido vindo do diafragma, de boca hiante e de lábios puxados para trás, espumando como um animal raivoso. Naquele sublime momento, todas as suas emoções reprimidas jorraram-lhe para fora das barreiras com as quais as tentara conter, toda a raiva que sempre recalcara devido ao condicionamento que se impusera a si mesmo, toda uma explosão de sentimentos que reprimira por não os achar dignos da sua raça. O volverino foi solto, e a fúria transbordou em puro ódio, o medo em abjeto terror, tudo ao sabor da torrente de poder animalesco e emoção crua. A sensação de libertação, de um despertar havia muito adiado, foi eufórica, quase indescritível na sua plenitude que trazia consigo uma inequívoca certeza de estar vivo, verdadeiramente vivo. Os tanarchianos, Tannath os skrimmen, todas as pessoas odiosas que até então conhecera ou enfrentara, todas foram rememoradas em rápida e furiosa sucessão, como folhas de memórias atiradas ao sabor da corrente de um raivejante rio. Os sentimentos que estes lhe causavam fluíram, desenfreados por fim, e o shura pôde finalmente dar largas ao rancor que lhes tinha, gritando até nada mais ouvir além do próprio animalesco berro nos seus ouvidos. Tudo o resto era puro êxtase, e nada mais importava.
De repente, a torrente foi estancada na fonte, o volverino desapareceu com uma rosnadela de protesto, e Quenestil estacou, encontrando-se de pé e diante da parede do celeiro a pingar saliva espumosa dos cantos da boca. O seu coração ainda retumbava como um tambor de guerra, e a sua pele ainda fervia, mas a sensação de sublime libertação desaparecera, bem como a acompanhante impressão de plenitude e união com o espírito do volverino. Teve apenas uns breves instantes para constatar que a baia ao seu lado estava quase totalmente destruída, com as tábuas rachadas e partidas, e que a parede de turfa ostentava as profundas marcas de golpes, alguns dos quais a tinham atravessado quase de lado a lado. Após essa breve olhadela em redor, mal teve tempo de ver que as suas mãos estavam esfoladas e a sangrar, antes de todos os músculos do seu corpo se contorcerem num grande nó de agonia que o deitou por terra quando as suas pernas cederam. A dor era incrível, como se cada fibra dos seus músculos estivesse em plangentes chamas após um esforço desumano, e o eahan enrolou-se numa posição fetal para tentar lidar com a cruciante distensão muscular. Por sua vez, os animais presentes estavam aterrorizados, mugindo e relinchando como se um lobo se encontrasse entre eles. Incapaz de se mexer, e com o lado da cara espalmado contra o chão, Quenestil plangia, soprando feno que se lhe colava à saliva da boca com sonoros arquejos de dor que iam interrompendo o seu contínuo grito sofrido. Quando a mão da kuvamora pousou sobre o seu ombro, o shura levou o pescoço atrás em protesto, arrastando os cabelos pelo chão e tentando afastar-se do doloroso contato. A mulher insistiu, contudo, e virou Quenestil de costas, passando a perna por cima dele e assentando ambos os joelhos aos lados do tronco do eahan, ao qual cada movimento causava dores. Sem se compadecer, agarrou-lhe de seguida a enrugada cara e forçou-o a encará-la, embora o eahan permanecesse de olhos bem cerrados. Com os seus sebosos cabelos louros a caírem como cortinas sobre o eahan, a mulher continuou a sua ladainha, mais insistente desta vez, como alguém que estava a ver uma outra pessoa afogar-se e que esperava impedi-la através de meras palavras.
— Karkkayu! — era a única palavra que Quenestil ia percebendo, e que era repetida várias vezes, acompanhada por um sacudir da sua ainda latejante cabeça.
Porém, embora não entendesse as restantes, estas foram surtindo nele um lento mas progressivo efeito, tornando a despertá-lo para a realidade animal na qual brevemente acordara e da qual fora quase expelido quando o espírito do volverino se retraíra. Tornou a ouvir uma rosnadela vinda do âmago do seu ser, inicialmente abafada pelo seu contínuo e aflitivo grunhido de dor, mas que a pouco e pouco foi aumentando de tom, arrastando-se agressivamente pelos seus canais auditivos, raspando neles as garras. Quenestil abriu então os trêmulos olhos, pausando os seus grunhidos com tentativas irregulares de respirar, e a única coisa que viu à sua frente foram as feições sombreadas da kuvamora, cujos selvagens olhos verde-mar pareciam brilhar e cuja voz era como o chamamento do ermo, elaborando palavras que lhe soaram como grunhidos e sons de animais, distorcidas pelo sangue que lhe recomeçou a jorrar pelos ouvidos. O cheiro a peles curtidas e a unto era pungente, o que, aliado aos cabelos em seu redor e ao hálito quente da kuvamora sobre a sua cara, despertou nele um sentimento de aflição e clausura, que por sua vez trouxe uma vez mais o volverino à tona.
Um novo jorro de adrenalina lavou a ardente dor nos músculos do eahan, relaxando-os instantaneamente e permitindo-lhe entesá-los num brusco erguer do torso que tirou a mulher de cima dele. Rosnando e de olhos novamente possessos, Quenestil inverteu as posições e lançou-se sobre a kuvamora, agarrando-lhe os pulsos e premindo-lhe violentamente os lábios com os seus. A mulher ficou paralisada como se estivesse a ser atacada por um animal selvagem, e não reagiu nem se mexeu inicialmente, inalando apenas de susto quando o eahan lhe mordeu o pescoço, rosnando. Mãos que mais pareciam garras deslizaram pela pele de rena, formando pregas e enganchando-se nelas para de seguida puxar, rasgando a vestimenta pelas costuras. Arrebatada pelo ímpeto animalesco do shura, cujas mãos lhe desceram para as nádegas e daí para as coxas, a kuvamora agarrou Quenestil pelos cabelos quando os dentes deste começaram a exercer demasiada pressão, mas o shura limitou-se a sacudir a cabeça com um resfolego, rompendo-lhe as soturas do colarinho e mordendo-lhe o peito. A mulher era mais alta, e Quenestil percorreu cada palmo do seu corpo, fungando e grunhindo como um animal enquanto lhe explorava forçosamente as formas, corcovando-se como um cão a copular.
Inviso, o olho azul que observava da fenda no teto arregalou-se mais ainda, desaparecendo assim que a delgada lâmina foi recolhida, o que estreitou a abertura. Foi de seguida tapada por uma mão enluvada, uma mão que imediatamente a seguir passou para trás uns sedosos cabelos negros polvilhados de branco enquanto estes esvoaçavam ao vento. Tannath não podia acreditar no que acabara de ver, e olhava incrédulo e de boca entreaberta para o mar escuro além da quinta, mantendo a mão na cabeça enquanto os seus bravios cabelos longos lhe iam serpenteando pelo braço e pelo ar a seu bel-prazer.
«Não... não posso», disse o eahanoir para consigo mesmo, abanando a cabeça e abafando uma primeira risada, com a qual engasgou, sorridente. «Não posso crer...»
Para se certificar de que não estava a ver coisas, tornou a baixar-se para espreitar pela fenda, mas como a turfa praticamente se selara, virou apenas a cara para ouvir, e de fato conseguiu captar os gemidos e grunhidos a meio do vento no exterior. Soltando um riso púbere de olho arregalado, Tannath tornou a erguer a cabeça, abanando-a.
«Isto é... ê tão melhor que o que eu tinha em mente.»
De fato, ter vindo até àquele local remoto com o único intuito de matar por fim Quenestil e Slayra para poder deixar para trás a parte da sua vida que ambos representavam, parecia-lhe agora deveras banal. Nishekan ajudara-o a encontrar o casal através dos recursos de Asmodeon, e Tannath viajara até àquele ermo no Norte de Allaryia sem mais delongas, jornadeando através das céleres sombras da noite. Porém, agora que ali se encontrava e que se deparara com tão deliciosamente inesperada situação, ocorrera-lhe uma nova idéia que prontamente pôs em prática. Erguendo-se subitamente, o eahanoir pulou do teto de turfa, desfazendo-se no ar como uma efígie de cinza arremessada contra o vento e tornando-se um ser de pura sombra. Nesse estado, lançou-se num vôo errático, semelhante ao de um inseto, à medida que pulava de mancha em mancha de sombra, corporificando-se uma vez mais ao chegar ao telhado do edifício principal da quinta. Pousando nele numa felina posição acocorada, Tannath desenvencilhou-se da capa que lhe pousara sobre o braço e olhou para baixo, para o buraco no teto, do qual saía o fumo da fogueira quando esta estava acesa, o que não se verificava naquela altura. Sorrindo e rindo para consigo mesmo, o eahanoir pousou a mão sobre o teto e fechou o olho, separando de si mesmo a sua própria sombra através da força de vontade e comandando-lhe que descesse pela fumarola.
A sombra assim fez, afunilando-se e deslizando sinuosamente pelo buraco adentro como uma tetra cobra, escorrendo então por uma viga abaixo até ao chão de terra batida. Aí ergueu-se ligeiramente, serpenteante, observando com os olhos de Tannath os corpos em redor que dormiam e se mexiam, ressonando. No exterior, Tannath estava absolutamente imóvel, mantendo o olho concentradamente fechado enquanto lobrigava o interior do edifício com a sombra, e sorrindo maliciosamente ao avistar um vulto que conhecia bastante bem. A esbelta silhueta de Slayra continuava inconfundível, mesmo após um laborioso parto e deitada como estava de lado debaixo de um cobertor. A sombra rastejou até ela, passando pelo moribundo borralho da fogueira, subindo pelas pernas da eahanoir e chegando-lhe ao ombro, do qual a sua untuosa extremidade ficou a pender sobre a sua curva orelha pontuda.
— Slayra... — sussurrou-lhe numa oleosa voz.
A eahanoir emitiu um gemido baixo e ajeitou a sua posição, virando ligeiramente a cara na direção da voz.
— Oh Slaaayra... — tornou a voz, e desta vez os olhos da eahanna, negra piscaram, sonolentos, abrindo-se de seguida quando reconheceu por fim o tom.
Com um arquejo, Slayra ergueu o tronco de rompante, tirando a sombra de cima de si e olhando em redor, procurando instintivamente armas que não estavam à mão. O seu repentino despertar mereceu alguns ruídos incomodados da parte de quem dormia, e a cabeça de Deadan também se ergueu, sempre alerta.
— Tannath...? — disse a eahanoir em surdina, sentindo que o coração lhe iria rebentar a caixa torácica ao olhar aflitivamente para os seus filhos, que dormiam consoladamente ao seu lado.
— És capaz de querer ir ver o que o Quenestil está a fazer no celeiro... — sugeriu a sombra, rindo maliciosamente de seguida enquanto serpenteava em redor de Slayra.
— O que se passa, eahanoir? — sussurrou Deadan, já com a mão no punho do espadão ao lado do qual dormira.
— Quenestil? — repetiu Slayra, olhando à volta, incapaz de ver a sombra mas certa de que Tannath não estava ali, pois não sentia a sua presença. — Oh, deuses, Quenestil!
O tom urgente da sua voz acordou então alguns eahlan e wolhynos mais próximos, que balbuciaram, estremunhados, uns resmungando, outros perguntando na sua língua o que se estava a passar. Slayra não lhes deu resposta, chutando o cobertor e levantando-se de rompante, pisando e passando por cima de quem dormia e libertando-se das suaves mãos eahlan que a tentaram agarrar para saber o que se passava. A eahanoir ignorou tudo e todos, as vozes das eahannas brancas, o silvo do aço do espadão de Deadan, o gorjeio dos seus filhos acabados de acordar e os sons assustados de wolhynos que apenas ouviam ruídos na escuridão. Slayra tropeçou e pisou todos sem discriminar até chegar à porta, dando um pontapé inadvertido no criado ruivo que dormia diante dela antes de a abrir, alheia à comoção que estava a causar.
— Guardem os meus filhos! — disse urgentemente enquanto corria pela partição fora e abria a porta que dava para o exterior, que a saudou com uma lufada de vento gélido que lhe arrepiou a pele debaixo da singela camisa de linho branco com a qual dormira. «Quenestil!»
Slayra estava descalça, e corria de pernas desnudas pela crestada relva afora, assustando algumas ovelhas e queimando as plantas dos rosados pés no gelo que começava a cobrir o solo. Porém, tal era o alvoroço que a eahanoir mal se deu conta da dor, afogueada pelas imagens que a sua mente lhe conjurava em rápida sucessão, com Quenestil morto, estropiado ou a esvair-se em sangue aos pés de Tannath. Ele dissera que voltaria, dissera que os iria matar aos dois, e agora, destroçada a ilusão de que estariam a salvo dele naquele ermo desolado, a eahanoir pôde apenas correr e esperar que ainda chegasse a tempo, que não fosse tarde demais.
Arquejante, Slayra projetou-se praticamente contra a porta do celeiro, escancarando-a com um desesperado grunhido e permitindo que toda uma série de roncos e gritos escapassem do interior, juntamente com rinchos e mugires assustados. Incapaz de dissociar os divergentes tons dos ruídos que ouvia, a eahanoir entrou, ainda impelida pela sensação de morte iminente que lhe torcia as entranhas e lhe afundava o coração. Os animais assustaram-se mais ainda à sua passagem quando Slayra se dirigiu à última baia, na qual avistava movimentos convulsivos. Não foi senão quando viu o que se estava a passar que estacou repentinamente, por pouco não caindo devido ao ímpeto da sua corrida e ao súbito fraquejar dos seus joelhos, que mal a puderam suster quando o seu estômago e coração se afundaram.
Quenestil encontrava-se sobre a mulher loura, suado e de tronco nu, agarrando-lhe e erguendo-lhe uma perna com o braço direito enquanto unia vigorosamente a sua virilha à dela. A mulher tinha as roupas rasgadas e estava com os vacilantes seios expostos, ofegando e gemendo a cada brusco impulso do eahan, que lhe enrubescia a pele pálida e suja com o seu vigor. Estava manchado de sangue em partes do seu corpo, e os músculos das suas costas luziam de suor à medida que se retesavam com os robustos impulsos das suas ancas, fazendo com que a mulher estremecesse após cada um, agarrada como estava ao seu pescoço. O shura rosnava como um animal ao fazê-lo, alheio ao esmagador peso exercido pelos subitamente vazios olhos líquidos de Slayra, ela própria vergada pela cena que observava com distanciamento quase onírico, sendo que parte dela se recusava a estar ali presente a ver algo que, num único instante, lhe destruía todos os seus sonhos e ilusões. Por sua vez, e embora parecesse arrebatado por um selvagem instinto animalesco, Quenestil deteve-se de repente, como se tivesse sentido uma presença atrás de si, e olhou por cima do ombro.
Estava irreconhecível, com saliva a pingar-lhe do queixo, feições contorcidas numa raiva focalizada que descarregava na forma de um arrojo copulador na skrimmen, e olhos injetados de sangue que quase pareciam ter mudado de cor. A sua primeira reação foi arreganhar os dentes com um rosnido diante daquela que à primeira vista se lhe afigurou como uma desconhecida, mas cedo ficou patente na sua cara um vestígio de dúvida. Esse vestígio inicial espalhou-se quase de imediato pelos restantes músculos da face do shura, relaxando-os e amainando a sua expressão à medida que a mente de Quenestil ia reconhecendo Slayra, ressurgindo das profundezas animalescas nas quais se deixara afundar. Com a folga concedida, a kuvamora descaiu no chão com um sofrido suspiro, respirando aceleradamente e de olhos postos no teto, alheia ao que se passava entre os dois eahan, que pareciam congelados pelo olhar um do outro. Nenhum dos dois abanava a cabeça, nem esboçava qualquer gesto, nem tentava sequer formar palavras com a boca entreaberta, tal fora o choque. Quenestil permanecia entre as pernas da kuvamora, ofegando e readquirindo foco nos seus olhos vermelhos, nos quais era cada vez mais patente a esmagadora realização daquilo que se fizera, enquanto Slayra continuava de pé, tremendo com os joelhos progressivamente enfraquecidos. Não havia palavras, não havia gestos, não havia nada. Apenas o silêncio de duas almas estilhaçadas e o lento sufocar de um amor que como que morrera às sangrentas mãos de Quenestil, perdido no odor a estrume e traição consumada.
O Inverno caíra frio nas campinas que constituíam os feudos de Ul-Thoryn, despindo os viçosos pomares nelas plantados e alagando os seus extensos campos de cultivo com dias seguidos de chuva. A habitualmente floral e bucólica paisagem estava lúgubre e melancólica naquele dia cinzento, no qual a transição do dia para a noite quase passou despercebida, e a fila de mendigos e indigentes que se formava na porta das traseiras de um dos muitos solares espalhados pelas campinas foi mais fiável que qualquer relógio de sol a assinalar o início da noite. O solar em questão era propriedade da senhora Leoneta, irmã de lorde Daveanorn, paladino de Aereth Thoryn, e era um ponto de paragem de eleição para os mendicantes da região, pois a generosidade e piedade da senhora eram sobejamente conhecidas. Mesmo a pequena muralha que anteriormente cercara a propriedade fora demolida e a sua pedra usada para criar anexos adicionais no solar, o que muito ajudava à noção de abertura e acessibilidade que fazia com que os pedintes se sentissem mais à vontade. Conhecido como Quinta da Piedade, era sobretudo no Inverno que se formavam filas na porta das traseiras que dava para a cozinha do solar, pois a senhora Leoneta partilhava da sua comida com os pobres nos tempos de maior necessidade, e o presente Inverno afigurava-se indubitavelmente como tal.
Encarregando-se como sempre pessoalmente da distribuição, Leoneta encontrava-se à porta, entregando taças de madeira com fumegante caldo de carne e um naco de pão nele enfiado. Vestia um singelo vestido azul com uma bata verde sobreposta a ele, com um chapelete vermelho de topo chato coberto por uma mantilha branca que também lhe envolvia o pescoço. Tinha uma face doce e branda completamente desprovida de maquiagem, com estreitos olhos apartados e uma longa boca melancolicamente sorridente, o que em parte lhe valera a alcunha de Viúva Feliz e que, aliado à sua longanimidade, a tornara particularmente querida entre os mais necessitados da região. Os andrajosos mendigos da fila agradeciam-lhe copiosamente, presenteando a senhora com sorrisos nas suas caras esquálidas e emaciadas ao receberem as taças com mãos enfaixadas e de unhas pretas. A todos Leoneta retribuía com um sorriso e palavras de apoio e esperança, desempenhando de clara boa vontade a tarefa que a si mesma impusera à medida que se ia virando dos mendigos para a serviçal que servia as taças de madeira de um alguidar de latão. A jovem rapariga mantinha os olhos no fumegante caldo, evidentemente não tão à vontade como a sua senhora na presença de tanta miséria humana, e ia puxando distraidamente o seu toucado como se desejasse esconder mais a cara. Leoneta porém não mostrava o mínimo nojo ou incômodo, não receando sequer tocar nos dedos das pessoas às quais oferecia o caldo, que lhe agradeciam de voz rouca com uma vênia e se retiravam prontamente, comendo enquanto andavam.
A fila fora grande, mas Leoneta tinha sempre caldo quanto bastasse para todos, e o alguidar ainda estava a um quarto da sua capacidade quando chegaram os três últimos mendigos. Não tinham um ar tão miserável quanto os outros e as suas roupas não estavam esfarrapadas, mas estavam sem dúvida sujos, cansados e com fome. Um deles, uma mulher, tinha uma criança a tossir ao colo, e o outro, alto e corpulento para um mendigo, puxava um carrinho sobre o qual se encontrava um outro, sentado de joelhos ao nível do peito e coberto por uma manta. A testa de Leoneta enrugou-se de pena, e cruzou as mãos sobre o ventre enquanto aguardava que a serviçal servisse a taça.
— Pobre criança. O que tem ela?
— Está doente. Era capaz de precisar do seu xarope de cenoura — disse o mendigo mais alto, puxando de seguida o capuz para trás e revelando uma cara barbada —, tia.
Leoneta piscou inicialmente os olhos, incapaz de reconhecer a face que se lhe apresentava, mas a voz cedo lhe avivou a memória e a mulher inspirou bruscamente, levando a mão à boca e arregalando os seus olhos.
— Aewyre! — disse quase em surdina.
— Aewyre? — repetiu a serviçal, erguendo por fim a cabeça do alguidar e deixando cair a colher ao reconhecer ela também o príncipe e levar as mãos ao peito.
— Que fazes aqui, infeliz? Entra, depressa! — instigou a mulher, indicando-lhe com a mão que entrasse rapidamente e fechando logo de seguida a porta com dobradiças de palheta atrás dele.
— Então a tia também já sabe? — perguntou o guerreiro, largando a pega do carrinho com o qual transportara Kror e encostando-se à parede, cansado. — Olá, Hilarina.
A serviçal retribuiu o cumprimento com um aceno da mão, mas Leoneta não estava com disposição para semelhantes formalidades, agarrando a cara barbada de Aewyre com ambas as mãos.
— Como não haveria de saber? O teu irmão quer-te nas masmorras por alta traição! — explicou, virando a face do jovem para os lados, como se o estivesse a avaliar, e acabando por o abraçar. — Oh, Aewyre, o que é que tu fizeste?
— Sinceramente, não sei, tia — disse-lhe o guerreiro, agarrando delicadamente os ombros da mulher e afastando-a de si. — Tenho de saber o que se passa com o meu irmão, por que é que ele...
— Então não sabes? Ai, Hilarina, fecha-me aquela porta, antes que alguém o veja! — A rapariga fez que sim com a cabeça e foi rapidamente acatar a ordem da sua senhora. — Oh, filho, então foste roubar a Ancalach e fugir do palácio para andares ao léu com a princesa Lhiannah? O que é que pensavas que o teu irmão iria fazer? E quem são estes?
— Já explico, tia. Foi só isso?
— Oh, filho, não, claro que não — disse a mulher, agarrando com força a mão do jovem e abanando desconsoladamente a cabeça. — Diz-se que tu e o conselheiro Allumno orquestraram isto tudo com lorde Sunlar para desacreditarem Ul-Thoryn: roubarem Ancalach, reunirem-se com a princesa Lhiannah, entregarem o alegado corpo do teu pai, tudo em preparação da guerra que agora...
— Guerra?
— Por onde tens andado tu, Aewyre? Em que é que esperavas que tudo isso desse? Lorde Sunlar declarou guerra contra o teu irmão!
— Oh, deuses, não admira que o outro me tenha vendido os cavalos tão baratos... — apercebeu-se o jovem, lembrando-se da sua última transação em terras nolwynas. — E que conversa é essa de pretenso corpo, tia?
— Oh, filho, a princesa Lhiannah aparece um destes dias em Allahn Anroth com um caixão, diz que tem o corpo do teu pai... Claro que o teu irmão não acreditou; achou que era um plano de Vaul-Syrith para denegrir a imagem da casa de Thoryn, para espalhar a discórdia pela nossa província, e mandou prender a princesa!
— Oh, pela mão decepada de Kispryn... — praguejou Aewyre, baixando a cabeça e abanando-a enquanto apertava as mãos de Leoneta. — Correu tudo mal. Está tudo errado. Tenho de falar com o Aereth, tia.
— Falar? Oh, que a palma de Bellex te vede do seu punho... Ele quer-te nas masmorras, se não algo mais!
— Não quer não, tia. Eu vou-lhe explicar o que se passou, e vai ver que tudo corre bem. A tia bem sabe que eu sempre fiz muitos disparates, mas que nunca faria nada contra o meu irmão, não sabe?
— Afinal o que se passou, filho? — perguntou Leoneta, fitando Aewyre diretamente nos olhos e afagando-lhe a carda nas maçãs do tosto com os polegares. — Conta-me, por favor.
Aewyre suspirou, tirou as mãos da mulher da sua cara e agarrou-as num gesto confidente, compreendendo também a serviçal Hilarina com o seu olhar. A Quinta da Piedade sempre fora um dos seus destinos de eleição quando saía do palácio, e o trato que tinha para com a irmã de Daveanorn sempre fora como o de um verdadeiro sobrinho, por vezes assumindo contornos quase filiais. Não poucas vezes pernoitara lá, ocasionalmente sem o conhecimento da proprietária e com a cumplicidade de serviçais como Hilarina, mas fosse como fosse, Aewyre sempre fora uma espécie de filho dileto de Leoneta, e a viúva sempre lhe aturara os disparates e recebera de bom grado a sua galante companhia. Daquela vez as coisas eram um pouco diferentes, mas o guerreiro ainda assim sentia que podia confiar na mulher, razão pela qual viera ao solar, e principiou a contar-lhe o que sucedera desde que saíra de Allahn Anroth. Em retrospectiva, o início da sua saga pareceu-lhe verdadeiramente disparatado, e quase mal pôde acreditar que fizera semelhantes coisas a caminho de Asmodeon, pelo que optou por se cingir ao essencial.
Não referiu O Flagelo, nem a Essência da Lâmina, nem metade das provações pelas quais tivera de passar, resumindo a sua viagem até Asmodeon como uma jornada árdua, na qual Ancalach lhe valera contra os perigos que tivera de enfrentar até encontrar o corpo do seu pai. A princesa Lhiannah acompanhara-o, bem como o general Worick e uns outros companheiros, apresentando Kror como um deles e Layaline como uma das pessoas que o tinham auxiliado. Quanto ao fato de ter sido Lhiannah e não ele a trazer o corpo do seu pai, justificou-o com pretensos ferimentos que sofrera em Asmodeon, e que o tinham forçado a permanecer no Norte de Allaryia, achando contudo que o seu irmão mereceria saber quanto antes o que verdadeiramente acontecera ao pai de ambos. Não era uma história particularmente imaginativa nem bem estruturada, e custou a Aewyre ter de mentir a Leoneta, mas o jovem estava quase certo de que incluir todos os pormenores mais fantásticos da sua viagem em nada ajudaria à compreensão ou mesmo credibilidade daquilo que dizia.
— ...e é por isso que eu preciso de ver o meu irmão quanto antes — terminou por fim, respirando fundo para recobrar o fôlego. — Houve um grande mal-entendido; devem ser as víboras da corte que o estão a virar contra mim e o Allumno...
— E o conselheiro Allumno, onde está? — lembrou-se Leoneta de perguntar.
«Oh, bolas», repreendeu-se o guerreiro por se ter esquecido de tão importante pormenor. — Ele... deixou-me depois de termos encontrado o corpo do meu pai. Disse que tinha coisas a resolver. Sabe, tia, coisas de magos...
Não sendo desconfiada por natureza, a mulher nada mais disse, limitando-se a abanar a cabeça e a afagar as mãos de Aewyre.
— Oh, filho, em que espécie de alhada te foste tu meter? Nunca deverias ter saído assim...
— Eu sei, tia, eu sei... mas agora tenho mesmo de ir ver o meu irmão. Ajuda-me a entrar na cidade?
— Sabes que, se fores descoberto, eu também posso ser acusada de alta traição. íamos os dois parar ao cadafalso, se não pior...
— Tia, confia em mim, não confia? — insistiu Aewyre, erguendo-lhe as mãos. — Sabe que eu seria incapaz de trair o meu irmão dessa forma, não sabe? Eu juro-lhe que vou explicar tudo ao Aereth, vai ver que tudo corre bem. Só preciso que me ajude a entrar na cidade, depois disso eu desenvencilho-me sozinho.
Leoneta hesitou, balbuciando, e a breve idéia de que poderia ter cometido um erro ao vir ali acalorou o peito de Aewyre por instantes, mas então a mulher apertou as mãos do guerreiro e levou-as ao peito, abanando a cabeça.
— Oh, filho, claro que confio, claro! — assegurou-lhe. — Nunca acreditei que tivesses feito tal coisa, e admira-me como é que o teu irmão pode sequer pensar isso.
— Também eu me admiro, tia, mas vou tratar disso assim que me meter dentro da cidade. Pode ajudar-me?
O semblante de Leoneta adquiriu então contornos de reflexão, e largou as mãos de Aewyre para as levar às ancas, olhando então para os amigos do jovem.
— Tens alguma idéia?
— Por acaso tenho, tia. Precisava só de deixar aqui a minha amiga e a filha dela — disse Aewyre, indicando Layaline. — A criança está doente, coitada. Com toda a chuva que apanhou, o que mais precisa é de passar uma. noite num sítio quente e abrigado. Por causa desta situação, não nos temos atrevido a dormir em estalagens...
Leoneta olhou para a criança coberta dos pés à cabeça por uma manta e compadeceu-se, aproximando-se dela e olhando para a mãe em busca de permissão ao estender a mão. Layaline fez que sim com a tímida cabeça e a mulher destapou a de Làriana, que estava pálida, de olhos mortiços e nariz úmido e de narinas encrostadas.
— Oh, pobre criança — comoveu-se Leoneta.
— Chama-se Làriana, e a mãe, Layaline — apresentou-as Aewyre, postando-se no meio de ambas e pousando as mãos nos ombros das duas. — São laonesas, mas a Layaline sabe falar um pouco de Glottik.
— Que linda menina que tens, Layaline — elogiou Leoneta, afagando a quente bochecha da criança. — Não te preocupes, vamos tratar dela aqui.
— Obrigado, senhora — agradeceu a rapariga com voz rouca.
— Obrigada — corrigiu Aewyre quase em surdina, retomando de seguida o tom de voz normal como se nada tivesse dito. — A coitadinha apanhou muita chuva pelo caminho...
— Pobrezinha... e o teu amigo? — disse Leoneta, indicando Kror. — Não parece muito bem.
Aewyre olhou para o drahreg para reunir coragem para mais uma mentira, sentindo-se igualmente culpado pelas condições nas quais o arrastara no carrinho de macieira para incapacitados. Debaixo de uma manta, Kror estava amarrado, amordaçado e enfaixado com as suas ligaduras sujas, e os olhares de ódio que dirigia a Aewyre mal eram perceptíveis. Não dissera uma única palavra desde que o humano para todos os efeitos passara a mantê-lo prisioneiro, mas os mais ínfimos detalhes que nele captava davam conta de que o drahreg o iria matar ou ser morto por ele assim que pudesse, o que no fundo era exatamente o que Aewyre queria. Mantê-lo perto de si até que estivesse apto a combater, caso não conseguisse encontrar uma alternativa entretanto, mas ao menos assim garantia que o teria sempre à mão enquanto pesquisava. O fato de Leoneta se ter lembrado dele podia ter algo que ver com o seu cheiro, que começava a fazer-se sentir.
— Está muito doente, tia, e muito ferido — mentiu. — Não faz idéia das coisas que lhe aconteceram em Asmodeon e fora dele... Deu-me imenso trabalho estar a arrastá-lo este tempo todo, mas é o mínimo que posso fazer por ele, depois de tudo o que ele fez por mim.
Abençoadamente pouco curiosa, a mulher limitou-se a acenar compreensivamente com a cabeça e a afagar uma vez mais a barba na cara de Aewyre.
— E tu, filho, estás bem? Pareces tão magro...
— A vida na estrada faz-nos isso, tia — suspirou o jovem, presenteando contudo de seguida a mulher com o sorriso maroto ao qual a habituara. — Por acaso hoje ao jantar não tiveram daquelas ricas iscazitas que a Uranagia faz, não?
Leoneta abanou a cabeça, sorrindo, e afagou ternamente a cara de Aewyre.
— Malandro. Vou arranjar-vos algo que comer. E se calhar é melhor dormirem aqui, não? Duvido que queiras chamar muita atenção...
— Bem pensado, tia — reconheceu o jovem.
— Hilarina, vai buscar-lhes algo para comerem, e manda trazerem catres para aqui. Diz que são pessoas muito doentes às quais decidi dar alojamento, que esta noite vai ser fria...
— A tia continua caritativa como sempre, pelo que vejo... — comentou Aewyre, piscando o olho a Hilarina enquanto esta se retirava porta fora e olhando para o alguidar de caldo.
— Olhem, podem ir já comendo o que sobrou — lembrou-se a mulher, servindo ela própria uma taça e entregando-a à mão livre de Layaline, que arrastou pelo braço até uma cadeira. — Senta-te, querida, dá-lhe de comer. Não te preocupes, que nesta casa estás segura.
Layaline agradeceu e assim fez, e Leoneta foi de seguida ter com Kror com o intuito de o ajudar, mas Aewyre pôs-se no caminho dela.
— É melhor não, tia. Ele sofreu queimaduras e o melhor é ninguém lhe tocar. Vou levá-lo a um boticário que conheço em Ul-Thoryn.
— Oh, pobre homem — acedeu a mulher, abanando a consternada cabeça diante de tanta miséria. — Como se chama ele?
— Eh... Kror.
— Kror?
— É um nome do Norte. As gentes de lá são estranhas.
— Não é muito educado dizeres isso à frente do teu amigo, meu menino — repreendeu-o Leoneta com o indicador. — Ele não come?
— Dou-lhe eu de comer, depois.
— Está bem. Vem tu comer, então. E depois ainda te quero fazer algumas perguntas, sobre amanhã e sobre todas essas coisas que te aconteceram.
— Sim, tia — disse Aewyre, retendo-a com uma mão no ombro, virando-a para si e abraçando-a. — Obrigado.
Leoneta sorriu e deu umas palmadinhas nas costas largas do guerreiro, que então a largou com o cansado sorriso de alguém que sentia poder por fim relaxar após grandes provações.
— Eu bem te disse que, se não ganhasses juízo, um dia te metias em problemas a sério — tornou a mulher e repreendê-lo, erguendo as sobrancelhas e abanando a cabeça.
— Disse, pois, tia — admitiu Aewyre com um sorriso, que desapareceu assim que Leoneta lhe virou novamente as costas para lhe ir servir caldo. «E nem sabe metade da história...»
Na manhã seguinte, Aewyre despediu-se de Layaline e Làriana e agradeceu encarecidamente a Leoneta a sua ajuda, seguindo então para Ul-Thoryn numa carruagem com a serviçal Hilarina e um postilhão que julgava estar a transportar um vagabundo ferido para a cidade. Nada que a sua caridosa senhora não lhe tivesse já mandado fazer anteriormente, pelo que ninguém no solar estranhou. Aewyre levou Kror amarrado e amordaçado no interior da carruagem, e o drahreg não esboçou qualquer reação, limitando-se a fitar o guerreiro com ódio. O jovem ignorou-o e manteve Hilarina distraída, galanteando-a com rememorações das noites românticas que no passado tinham partilhado na despensa de Leoneta, e passando os momentos de silêncio a refletir naquilo que lhe fora revelado na noite anterior, tal como o casamento do seu irmão, a clausura de Lhiannah e todos os ditos e feitos que haviam resultado na presente tensão política em Nolwyn. Assim que chegaram aos portões da cidade, Hilarina falou com os guardas, entre os quais um conhecido seu, e explicou-lhes o que vinham fazer. Como todos conheciam a reputação de Leoneta, deram apenas uma olhadela ao interior da carruagem, falhando em reconhecer Aewyre, e permitiram-lhes passagem. O postilhão levou-os de seguida até ao boticário que Aewyre lhe indicou, e o jovem despediu-se com um beijo na mão de Hilarina e uma série de falsas promessas em como tornaria a visitar o solar em breve, assim que tivesse resolvido a situação. Esperou então que a carruagem partisse e, arrastando Kror pelo carrinho de madeira com uma pega e levando Ancalach embrulhada numa manta às costas, afastou-se do boticário e perdeu-se nas apinhadas ruas de Ul-Thoryn.
As vias da cidade estavam tão apinhadas como sempre, e naquele arruamento em particular, na Rua da Lanceta, o jovem não destoava muito dos transeuntes, pois era nele que se concentravam vários boticários e barbeiros, uma série de santuários de Acquon e o principal hospital de Ul-Thoryn. Por essa razão, o que mais se via era vagabundos, pedintes e estropiados, e nem a visão de um rapaz alto e corpulento a arrastar num carrinho um corpo coberto por uma manta chamou muita atenção. O pavimento era bom, tal como na maior parte dos bairros da cidade, e Aewyre não teve grandes dificuldades em arrastar Kror, deixando-se imergir no burburinho de vozes que escorriam pelas ruas como a água dos canais da cidade. Algumas das coisas que ouviu intrigaram-no, como uns rumores de um tal de suco do Teixo, com o qual o seu irmão aparentemente pretendia, entre outros, envenenar a nobreza rival, criar um exército de guerreiros imunes à dor ou mesmo derramá-lo no rio e deixar que os seus inimigos se matassem uns aos outros. Não só isso, mas um número invulgar de homens religiosos andava pela rua, não apenas fiéis de Acquon, mas membros das igrejas de todos os deuses deambulavam pelas vias da cidade, bradando que a cidade insultara este ou aquele deus e que o divino silêncio era o castigo. A única exceção eram os clérigos de Gilgethan, que apregoavam os preparativos para a vindoura guerra, assistidos no seu serviço pelos homens que distribuíam fólios gratuitos entre a população. Aewyre leu um deles, quatro simples páginas a explicarem a sua vil traição a mando de lorde Sunlar, que pretendia nada menos que a destruição da Pérola do Sul para se tornar ele o rei de Nolwyn, um execrando desígnio em nome do qual já chacinara uma série de aldeias debaixo da alçada de Ul-Thoryn. Aparentemente, os cascos dos cavalos de Vaul-Syrith já atroavam nas colinas a Leste, e a hora de os filhos da mais esplendorosa das cidades tornarem a empunhar as suas armas já não ia longe.
«Esta nem Tharobar arquitetava...», pensou o guerreiro para consigo, estupefato, enquanto puxava o carrinho de Kror com uma mão e segurava o fólio com a outra. «Aereth, que fizeste tu?»
Movido por um renovado sentido de urgência, Aewyre estugou o passo e atirou fora o fólio, cujas folhas se mancharam no chão molhado e algo lamacento, sendo de seguida desapiedadamente pisadas por indiferentes botas e sapatos. O jovem não revelara a Leoneta o seu verdadeiro destino em Ul-Thoryn — outra mentira à qual se vira desagradavelmente forçado — e foi com vista a chegar a ele quanto antes que se dirigiu ao Portão dos Pobres. Assim era chamado aquele que dava acesso ao distrito mais miserável de Ul-Thoryn, a face voltada para baixo da moeda que procurava esconder o seu lado riscado e manchado de verdete. A estrutura encontrava-se espremida entre dois altos e estanques lanços de muro, com um enferrujado rastrilho de ferro erguido que de noite mantinha os indesejáveis fora das ruas civilizadas da cidade. Com ou sem guerra, sempre fora o portão mais vigiado de Ul-Thoryn, e aquele dia não era exceção, pois nele apresentavam-se uma série de guardas da milícia citadina, armados de alabardas e indumentados com brigandinas debaixo de briais com as armas da milícia, uma barbuda diante de duas lanças cruzadas. Tinham cara de poucos amigos, mas não se opunham a ninguém que quisesse voltar para o distrito pobre; sair é que já era um assunto diferente. Quando da passagem de Aewyre, limitaram-se a olhá-lo de cima a baixo, abanando a enojada cabeça ao verem Kror, que tomaram por morto ou doente e pronto a ser atirado às ratazanas. O guerreiro cumprimentou-os humildemente, afetando um andar curvado e servil, e conseguiu passar debaixo do arco sem chamar atenções indevidas. Além do Portão dos Pobres havia uma rampa de pedra que descia para a decadência, com a muralha a separar o distrito do resto da cidade de um lado e nada do outro, sendo que esse dava para uma grande poça onde se acumulavam lama, dejetos, detritos e mesmo um cão morto. A própria pedra da rampa era suja, manchada de salitre no seu lado exposto, e estava escorregadia devido aos anos de pés que a alisaram e às recentes chuvas. Aewyre desceu-a com cuidado, ignorando os olhares dos miseráveis que subiam e os que estavam sentados e encostados ao muro, exibindo chagas naquele que era o último reduto onde alguém poderia esperar misericórdia.
No fim da rampa, as coisas complicaram-se um pouco, pois o piso irregular e lamacento em nada facilitava a tarefa de arrastar o carrinho de Kror, que foi manifestando o seu incômodo com o ocasional grunhido, que pouco mais fazia além de prometer morte ao humano assim que a ocasião se proporcionasse. Aewyre ignorou-o a ele também, olhando fixamente para as miseráveis e decadentes ruas do distrito, onde casas inclinadas ameaçavam cair umas contra as outras formando pontes arqueadas sobre as ruas escuras, úmidas e lamacentas. Havia umas quantas tábuas no chão a servirem de vias improvisadas, sobretudo diante dos maiores aglomerados de edifícios e daqueles que aparentavam ser estabelecimentos como tabernas. Aewyre freqüentara algumas delas nos seus anos mais rebeldes, durante os quais fugir do palácio fora o seu maior prazer e conviver com a arraia-miúda de Ul-Thoryn a sua atividade preferida. Metera-se numa série de problemas, e causara um sem-número de pequenos escândalos, mas graças a isso criara igualmente uma rede de contatos da qual até ao presente dia nunca julgara vir a precisar.
Todavia, o distrito pobre era altamente volúvel, sendo que nele edifícios se desmoronavam numa base quase diária e eram rapidamente substituídos por outros feitos a partir dos seus escombros. Ruelas alteravam-se com o capricho de arroios durante o Inverno, e as ratazanas, cujas caudas se viam a desaparecer debaixo de escombros ou entre as fendas de tábuas, eram as únicas capazes de as navegar com alguma certeza. Aewyre deixou-se simplesmente guiar pelas memórias que tinha do local, e as suas botas e a orla do manto de Kror cedo ficaram completamente enlameadas. O tempo úmido entranhara ainda mais o cheiro a dejetos humanos e lixo no local, o que resultava numa atmosfera particularmente pesada e desagradável, algo que o jovem sentiu com redobrada intensidade após a sua longa viagem no ermo. As pessoas que se encontravam na rua estavam a confraternizar ou a observar quem por ela passava, uns encostados às paredes, outros a observarem detrás de janelas com adufas periclitantes, mas todos com caras desconfiadas. Os trajos de Aewyre não destoavam sobremodo, mas eram mais os de um viajante do que propriamente os de um residente do distrito, pelo que lhe foi impossível não chamar alguma atenção. Fingindo-se indiferente e ajeitando ocasionalmente a correia de Ancalach ao ombro, o jovem avançou sem estabelecer contato visual com ninguém, esperando dessa forma não ser abordado e desnecessariamente atrasado por um qualquer habitante mais curioso ou belicoso.
A sua postura teve o efeito desejado durante o equivalente a dois quarteirões, após os quais foi abordado por dois indivíduos saídos de esquinas opostas com sorrisos malvados nas caras e o aspeto de quem desde cedo aprendera a tirar em vez de trabalhar. Aewyre deteve-se, observando-os de relance antes de baixar o olhar, pois se havia algo que aprendera em todos os anos que visitara o distrito pobre, fora que não devia estabelecer contato visual com os predadores, a menos que desejasse conflito. Não deu para lhes distinguir os traços particulares das feições, apenas que tinham a barba por fazer, com riscos brancos de cicatrizes entre o restolho, e que um deles usava sobre a cabeça um lenço imundo. As roupas de ambos estavam sujas, esfarrapadas e piolhentas, e as suas dobras escondiam evidentemente facas que tinham todo o ar de saberem usar com perícia amolada pela vida nas ruas.
— Estás perdido, moço? — perguntou um deles, cujos dentes em falta não passaram despercebidos nem à visão periférica de Aewyre, embora a sua fala salivada e sibilante por si só evidenciasse tal condição dentária.
— Não — respondeu Aewyre, mantendo a cabeça baixa mas permanecendo atento ao posicionamento dos dois homens.
— Mas olha que não pareces saber muito bem aonde vais — comentou o outro, estalando os dedos de uma mão.
O guerreiro não respondeu, ponderando as suas hipóteses e esperando que Kror não escolhesse aquele momento para se tentar evadir ou de outra forma causar-lhe problemas.
— Então fazemos assim... — sugeriu o primeiro. — Dá-nos o dinheiro que tiveres, e nós damos-te as indicações de que precisares. Que te parece? Assim ficamos todos satisfeitos, e ninguém tem de se magoar, sobretudo esse teu amigo aí no carrinho, hum?
Era mais que evidente agora que não tinham boas intenções, e a falta de resposta de Aewyre incentivou-os a avançarem, trocando olhares furtivos um com o outro antes de se começarem a dirigir ao guerreiro. Kror agitou-se então um pouco, manifestando pela primeira vez uma certa aflição por estar preso, e logo em semelhante situação, mas Aewyre não fazia tenções de combater.
— Eu sei algo que vocês não sabem — limitou-se a dizer, ainda a olhar para o chão.
As palavras fizeram com que os homens hesitassem, franzindo as testas e enrugando os narizes, pois não era o que as pessoas costumavam dizer quando estavam prestes a ser atacadas.
— O que é que estás aí a dizer, moço?
Foi então que o guerreiro ergueu por fim o olhar, fitando-os a ambos sem medo e sentindo-se suficientemente confiante para esboçar um sorriso oblíquo.
— O que é que tem quatro patas, e ainda assim anda mais devagar do que nós?
As faces de ambos permaneceram inexpressivas, e Aewyre pensou por momentos que talvez tivesse mesmo que combater, mas um deles acabou por se manifestar antes que o jovem achasse melhor desembrulhar Ancalach.
— Ah, por que não disseste logo, moço? Podíamos ter-te magoado — disse o homem, relaxando com o desapontamento de quem estivera à espera de um pouco de ação. — Vens falar com o Cagado!
— Sim — acenou Aewyre com a cabeça.
— Bom... — disse o outro, coçando a nuca e olhando à volta.
— Então anda daí. E é bom que não nos faças perder tempo e que ele te queira mesmo receber, hã?
Com essa última ameaça, os dois conduziram Aewyre pelas ruelas do distrito, e o guerreiro seguiu-os em silêncio, arrastando o carrinho de Kror pela lama. Até então correra tudo bem, e a senda da lâmina permanecera direta e ininterrupta desde que saíra do Brejo dos Patos. A doença de Làriana complicara um pouco as coisas, mas a mulher do monteiro com o qual pernoitara acompanhada da sua mãe dera-lhe algumas ervas que tinham ajudado um pouco. Não o suficiente, e Aewyre temia pela saúde da criança, mas tal não era um pensamento com o qual se pudesse dar ao luxo de se ocupar naquela altura. Estava em Ul-Thoryn, era procurado e estava a meter-se numa situação que esperava poder ajudá-lo a alcançar os seus objetivos, mas que por outro lado também poderia por si só consistir um perigo. Estava a arriscar bastante, vindo ali, mas a necessidade assim obrigava e não tinha tempo para pensar em algo melhor. A sua vontade até fora a de ir simplesmente bater às portas do palácio e exigir satisfações do seu irmão, mas se havia algo que aprendera nas suas viagens, fora a não ser tão impulsivo. Isso, e o fato de não se poder dar ao luxo de ignorar o perigo de tal situação, ainda que o seu irmão não estivesse simplesmente a ser acicatado pelas víboras da corte dele. E se por alguma razão não acreditasse mesmo na sua palavra e decidisse tirar-lhe Ancalach? Era um risco que não podia correr, pelo que seguiu os dois criminosos, apercebendo-se do quanto o caminho mudara ao longo dos anos e dando graças à «sorte» de ter deparado com aqueles dois, que lhe tinham poupado uma certamente demorada e potencialmente reveladora procura pelo Cagado. Quanto menos atenção chamasse, melhor.
Os quatro chegaram então a um edifício aparentemente abandonado, mas cuja aparência não enganava quem já estava habituado a andar por aquelas bandas, e foi nele que Aewyre e os dois indivíduos entraram. O interior estava escuro, sujo, e cheirava mal, mas os pretensos assaltantes de Aewyre avançaram pelos escombros e detritos sem quaisquer percalços, deixando o jovem a haver-se com o carrinho de Kror e o piso acidentado. Enquanto fazia os possíveis para que Kror não caísse, os dois homens postaram-se diante de uma parede de tabique esventrado com remendos de tábuas pendentes e pregadas umas às outras. Um deles deu umas batidas rítmicas nas tábuas, soando aquele que parecia ser um código, e o outro ergueu de seguida duas, que estavam pregadas às outras de forma a que puxar uma mexia as restantes como uma cobra segmentada. Revelou-se então uma abertura pela qual um deles entrou, falando com alguém que se encontrava do outro lado enquanto o seu companheiro a mantinha aberta, esperando por Aewyre. O jovem apressou-se discretamente, empurrando Kror primeiro pela abertura e lançando um olhar subtilmente desconfiado ao homem que segurava as tábuas antes de se curvar e entrar ele também. Meter a mão sobre a nuca revelou ser uma precaução desnecessária, pois não havia ninguém à sua espera com um porrete empunhado na estreita partição escura na qual entrou.
— Quem é este? — perguntou um terceiro indivíduo, que aparentava estar ali de guarda.
— Quer falar com o Cagado — disse o dos dentes em falta, dando-lhe o benefício da dúvida de clara má vontade.
O terceiro limitou-se a olhar Aewyre dos pés à cabeça, acabando por concordar e sentando-se novamente no seu periclitante banco com perna em falta, e que lhe servia apenas de ponto de apoio para se encostar à parede em mau estado.
— Mexe-te — rosnou o que ficara para trás, passando por debaixo da abertura e deixando as tábuas caírem atrás de si.
Aewyre não se fez difícil e tornou a puxar Kror, seguindo o indivíduo da frente. Além de apertada, a partição era escura e úmida, com teias de aranha nos cantos e detritos, e tábuas de madeira manchada a dificultarem o caminho de um carrinho, tendo todo o aspecto de ter sido improvisada. Levava a uma espécie de antecâmara em escombros, na qual foi preciso um dos homens tirar do caminho um barrote com estrias ferrugentas dos pregos nele cravados para que o outro pudesse abrir a primeira porta sólida que Aewyre vira desde que entrara no distrito. O homem que ia à frente abriu-a, revelando uma pequena escadaria da qual emanavam vozes e um viciado odor a vinho azedo misturado com suor humano.
— Ajude-me a levá-lo, por favor — pediu Aewyre, virando Kror e deixando-o de costas para as escadas, tomando ele a iniciativa de pegar no lado no qual o peso iria decair durante a descida.
O homem piscou os olhos, fazendo uma incrédula e mal-encarada careta, mas a aparente candura do guerreiro deixou-o desarmado e acabou por aceder, agarrando a pega do carrinho e descendo as escadas com Aewyre, resmungando. Só se calou quando lhe pareceu ver um par de olhos vermelhos fitá-lo debaixo do capuã daquele que julgava ser um aleijado, e olhou dele para Aewyre com renovada desconfiança na cara suja. O jovem não se deu por achado e concentrou-se na descida das escadas, ao fim das quais chegou àquela que parecia ser uma adega reconvertida era antro. Nele encontrava-se uma série de indivíduos de aspecto ameaçador ou no mínimo pouco salutar, todos ocupados a fazer algo como afiar facas, cozinhar comida em pequenos tachos ou jogar aos dados. O local era uma sala quadrada, com um barrote de madeira no meio e um dos lanços da parede ocupado por duas prateleiras sobrepostas de grandes barris abertos com lençóis e trapos sujos no seu interior, alguns dos quais com pés sujos a saírem deles. O piso estava coberto por mantas, com algumas mesas que eram pouco mais que toros com rodelas de madeira sobre eles, e de resto expunha apenas os desarrumados pertences dos seus ocupantes, que olharam para o recém-chegado com cara de poucos amigos.
— Cagado — chamou o homem que ajudara Aewyre a descer o carrinho de Kror, postando-se atrás do guerreiro de braços cruzados. — Está aqui um moço que quer falar contigo.
Os outros presentes estranharam e estudaram Aewyre como se este fosse um animal esquisito, tentando descortinar as intenções daquele alto e encorpado jovem com barba e cabelos despenteados. Aewyre esforçou-se por não parecer ameaçador, evitando o contato visual que os indivíduos ativamente procuravam, como se buscassem um motivo para um confronto. Antes que o conseguissem fazer, ouviram-se os ruídos de madeira a bater contra madeira vindos do interior de um dos barris da fila inferior, em direção do qual todos os olhares se viraram. O que se viu foi um pat de pernas tortas e escanzeladas com longas meias brancas e manchadas e pés descalços a arrastarem-se para fora sobre pranchas de madeira nelas atadas. Mexiam-se pouco e eram praticamente impelidas para trás pela força de braços, encontrando-se ambas numa posição que lhes dava o aspecto de estarem partidas, sobretudo abaixo do nível do joelho. Mais pata cima tinham umas calças castanhas puxadas para cima até ao nível do ventre torto, que se ia alargando para os lados e curvando numa corcunda ao longo de uma túnica castanha até chegar a uns ombros fortes que mexiam braços de mãos crispadas em duas outras pranchas de madeira com pegas. A túnica tinha mangas curtas e serradas, revelando as mangas compridas de uma camisa verde por baixo, e a cabeça estava coberta por uma coifa de couro com fios desatados que lhe pendiam sobre as orelhas, oscilando à medida que o indivíduo ia abanando a cabeça enquanto praguejava. Assim que se empurrou para fora do barril, foi-se virando para os outros, ruidosa braçada ante ruidosa braçada.
— Mas quem é o filho duma cróia que me veio chatear agora? — perguntou numa voz irritada e irritante. Tinha uma inflexão vocal estranha, parecendo ter de grunhir pela garganta de forma a conseguir pronunciar as palavras. — Juro-te, Braciano, se és tu outra vez...
Ao virar-se completamente, o bizarro homem que saiu do barril calou-se assim que viu que o desconhecido não era a pessoa que esperara, o que contudo nada fez para dulcificar o seu humor, servindo apenas para lhe enfatizar o ar desagradado da carranca. A sua cara era tão deformada quanto as suas costas, com o queixo desviado para a direita e dentes salientes que lhe afastavam o lábio superior do inferior, criando uma proeminência entre o nariz e a boca.
— Eh? Mas quem é este? — perguntou com voz incomodativa ao ouvido. — E quem é o aleijadinho aí no carrinho?
— Ninguém — respondeu Aewyre, o que lhe mereceu olhares ameaçadores dos restantes presentes.
— Estás a gozar conosco, moço? — perguntou-lhe um dos homens que o acompanhara, achegando-se dele de queixo erguido e peito inchado.
— Só uma pessoa que já por três vezes te safou de teres essa tua carapaça feia rachada, Cagado — disse Aewyre, detendo o indivíduo que se aproximava com um perigoso olhar de soslaio antes de devolver a sua atenção ao estropiado. — A pessoa que te tirou o courato da frigideira quando os teus capangas foram apanhados a extorquirem os cirieiros da Rua da Luz.
A cara deformada do Cagado continuava intrigadamente franzida, embora os seus olhos principiassem a estreitar-se em aparente reconhecimento.
— A pessoa que te tirou das masmorras com o seu próprio dinheiro quando te deixaste apanhar, e porque lhe prometeste que não tomarias a fazer asneira da grossa — continuou o jovem, cruzando os despreocupados braços. — A pessoa que te safou da forca quando quebraste essa promessa.
— Eu seja um eunuco de Assana... — disse o Cagado, acenando com a cabeça. — Aewyre!
O jovem nada disse, permanecendo de braços cruzados com toda a confiança de quem sabia que outros estavam em dívida para com ele.
— Esta é boa... ponham-se de joelhos, seus mariolas! Estamos na presença de realeza! — grasnou o Cagado, batendo no chão com uma das pranchas que empunhava.
Os meliantes entreolharam-se, dúbios e sem saberem se o seu líder falava ou não a sério. Havia contudo alguns entre eles que arregalaram verdadeiramente os olhos, batendo uns nos outros com os cotovelos e trocando sussurros conspiradores.
— Olha que esta... e não é que um dos pratos da balança de Acquon finalmente pende para o meu lado? — continuou o Cagado, aproximando-se de Aewyre com ruidosas batidas e arrastos das suas pranchas, e erguendo-se apenas numa ao simular uma vênia com o braço que segurava a outra. — O meu grande amigo, príncipe Aewyre! Então e por que nos agraciais com a vossa presença, meu príncipe?
— Lembras-te de todas as vezes que me disseste que me devias uma? — indagou o guerreiro, indo direito ao assunto.
— Eh... lembro pois.
— Venho cobrar essa dívida — disse Aewyre terminantemente. O Cagado não respondeu logo de seguida, ficando antes a olhar para o príncipe com olhos que revelavam a astúcia animal que lhe permitira não só sobreviver tanto tempo entre a escumalha de Ul-Thoryn, como conseguir subir para uma posição de liderança. Aewyre conhecera-o durante os seus anos mais boêmios, nos quais se escapulira praticamente todas as noites do palácio para se aventurar pelos distritos menos sadios de Ul-Thoryn. Já então o Cagado fora uma figura famigerada, conhecido pelo seu acerbo humor e mente brilhante, que ao longo dos anos lhe permitiram criar um nome e uma reputação para si mesmo. Enquanto novo e rebelde, Aewyre dera-se particularmente bem com ele, e cometera mesmo alguns disparates em conluio que lhe tinham valido sérios problemas no palácio e com o seu irmão, sempre o mais responsável dos dois. Nunca haviam sido propriamente amigos, mas conseguiram estabelecer uma relação de benefício mútuo, na qual o Cagado providenciava a Aewyre a excitação e aventuras citadinas que tanto buscava, bem como a possibilidade de se relacionar com o submundo, pois durante a adolescência o príncipe não fora diferente do comum rapaz, e tal como um tendia rebeldemente nessa altura da sua vida a buscar relações perigosas que rompessem com a monótona segurança paternal e que o ajudassem a encontrar a sua própria identidade ao quebrar com aquilo que dele se esperava. Por sua vez, o Cagado beneficiara ocasionalmente da influência que Aewyre detinha, bem como do ocasional empréstimo em ouro palaciano, do qual o jovem príncipe sempre dispusera livre e despreocupadamente. Naturalmente, com o passar dos anos as brincadeiras do Cagado deixaram de o ser e passaram a adquirir contornos mais sérios e criminosos, o que lentamente levou a que se tornasse uma figura de destaque no submundo de Ul-Thoryn, um feito admirável, dada a sua condição física, mas não menos merecedor de vilipendio. A paradoxal ascensão do Cagado ao topo do submundo coincidiu com a altura na qual Aewyre começou a assumir um mínimo de responsabilidades que não mais lhe permitiam aventurar-se com semelhante laia. Todavia, permaneceu uma relação de cordial amizade entre os dois representantes de estratos tão distintos, unidos por um passado pândego e pelas memórias de pequenas aventuras vividas em conjunto. Além do mais, embora não se vissem havia algum tempo, ainda tinham recorrido um ao outro para o ocasional favor sempre que Aewyre passeava pelos distritos mais pobres, um hábito que mantivera.
— Dívida, pois sim, claro... — disse por fim o Cagado. — Então e como posso ajudar vossa alteza?
— Uma coisa que só tu deves ser capaz de fazer: preciso que me metas dentro de Allahn Anroth.
O espanto foi geral, até porque a maior parte dos presentes ainda se estava a debater com a idéia de estarem diante do príncipe Aewyre, irmão do seu regente. A noção era-lhes tão ou mais estranha do que ouvirem esse mesmo príncipe a pedir ajuda para conseguir entrar no seu próprio palácio.
— Eh... como assim? Perdeste as chaves do quarto e achas que um dos meus homens tas roubou? Posso ver os bolsos deles, mas para isso terão que fazer o pino para elas caírem, que eu não chego lá...
— Ouviste bem, Cagado — interrompeu-o o jovem. — Preciso de entrar no palácio, mas não pelos portões e à vista de todos. Preciso que me metas lá dentro.
Dito isto, Aewyre apontou para trás de si com o polegar, indicando Kror.
— E preciso que me guardes este aqui. — O Cagado e os seus homens olharam para Kror, que aos seus olhos pouco mais parecia ser que um inválido. — Pode não parecer, mas é perigoso, e não confio em mais ninguém para o vigiar.
O guerreiro apercebeu-se então de que se esquecera de deixar os alfanges de Kror com Leoneta, e repreendeu-se mentalmente pela omissão. Embora tivesse provavelmente necessitado de explicações adicionais, teria sido muito melhor deixá-los na Quinta da Piedade, pois assim mesmo que Kror se conseguisse evadir, saberia que ele iria sempre em busca das suas armas.
«Bom, agora é tarde demais», conformou-se, esperando por uma resposta, que contudo tardou a vir.
O Cagado fitava-o com um olhar que Aewyre já conhecia muito bem, o olhar astuto de um homem de negócios que ponderava os ganhos a ter numa série de alternativas para a situação que se lhe deparava. Os seus capangas pareceram partilhar dos seus pensamentos, e alguns olharam para Aewyre como um pedaço de carne à venda, o que deixou o jovem nervoso pela primeira vez, pois aquele seria o momento decisivo da sua vinda ali.
— Eu acho que o devíamos entregar, ó chefe — opinou de gingões braços cruzados um dos que se encontravam mais próximos do Cagado. — O Aereth é capaz de dar uma bela maquia por ele.
Segundo o que Aewyre ouvira, era bem capaz de ser verdade, e talvez tivesse contado demasiado com a boa vontade e as memórias do Cagado, pois este olhava-o, meditabundo e fazendo que sim com a cabeça. Um dos homens estalou os dedos, e o guerreiro sentiu movimentos discretos nas suas costas, começando então a descontrair as pernas e os braços instintivamente, em preparação para o pior e pronto a desembainhar Ancalach.
— Heh — gracejou o Cagado, olhando para cima para o capanga que lhe dera o seu parecer — Sabes que mais?
Sem qualquer aviso, arriou-lhe com uma das suas pranchas de andar na canela, e o homem soltou um berro de dor, deixando-se cair ao chão agarrado à perna e a grunhir de dentes e olhos cerrados.
— Está mas é calado, imbecil! — cuspiu-lhe o Cagado, olhando então para cima e sorrindo de forma grotesca para Aewyre ao piscar-lhe o olho e indicar-lhe com um gesto da prancha que viesse ter com ele. — Ouro compra muita coisa, mas não compra a amizade de um príncipe. Chega-te aqui ao teu velho amigo, Aewyre, que és demasiado alto para eu estar a olhar para cima.
Aewyre suspirou pelo nariz, dando-se conta de que estivera com os dedos ligeiramente flectidos, e relaxou-os prontamente de forma a não retomar o breve clima de ameaça que se fizera sentir. Olhando para os lados, ajustou a correia de Ancalach ao ombro e ajoelhou-se diante do Cagado, cujo odor corporal continuava tão azedo quanto o jovem se lembrava, tendo tido ocasião de maturar ao longo dos anos.
— Então diz-me lá como é que o Cagado te pode ajudar, companheiro, que eu não me esqueci do que já fizeste por mim — disse o estropiado. — Queres que eu te meta no palácio, é? E que guarde o aleijadinho aí?
— Sim — respondeu Aewyre, ajeitando o joelho ao senti-lo assentar sobre algo pegajoso. — Tenho que entrar lá, dê por onde der, e preciso que o guardes enquanto o faço.
— Quem é ele? — quis o Cagado saber, olhando desconfiadamente para Kror, que retribuiu em igual medida o olhar, oculto pelas sombras do seu capuz e transmitindo a impressão de uma ameaça oculta debaixo da manta que o cobria.
— Um... — Aewyre hesitou, olhando por cima do ombro para o drahreg. — Uma pessoa da qual eu preciso.
— A sério? — admirou-se o Cagado, arregalando as sobrancelhas.
— Olha que bem que me enganaste estes anos todos, da maneira como cheiravas as saias das vagabundas que eu te apresentava...
Aewyre ignorou o chiste e olhou para o seu circunstante com a fria seriedade de uma lâmina encostada à garganta.
— Estou a falar a sério, Cagado. Não fazes idéia da quantidade de coisas que podem depender dele, não imaginas quantas pessoas poderão morrer se lhe acontecer alguma coisa. — Tudo verdades, mas Aewyre não quis elaborar, até porque uma história relacionada com O Flagelo e a Essência da Lâmina dificilmente seria convincente.
— Até pode ser que não te importes, mas eu importo-me e sei que é importante; por isso te peço a ti que o guardes para mim enquanto eu vou para o palácio. Ele não pode escapar, e nada lhe pode acontecer.
— Pronto, pronto, está bem... — acedeu o Cagado, erguendo uma prancha em sinal de que não precisava de mais persuasão. — Eu guardo-o para ti. Ninguém o virá procurar neste ninho de ratos, e se ele tentar, os meus rapazes partem-lhe as pernas.
— Agradecia que não o fizessem. Preciso dele inteiro.
— Era só uma expressão. Além do mais, ele já de si não parece inteiro...
— É um disfarce, ele só tem uma perna ferida — bufou Aewyre, claramente sem paciência para entrar em mais detalhes que o estritamente necessário. — Posso confiar em ti em como nada lhe vai acontecer?
O Cagado evitou então os olhos de Aewyre, tentando escapulir-se com algumas evasivas.
— Cagado...
— Está bem, podes confiar. Devo-te umas quantas, bem sei...
— Obrigado. Outra coisa, ele está sentado sobre duas espadas — adiantou o jovem, indicando o carrinho. — Pode parecer-te mais estranho ainda, mas elas também são importantes. São bem ornadas, por isso diz aos teus capangas que não lhes toquem a não ser para as guardarem. Prometo que depois vos compenso com ouro.
— Espadas, é?
— Sim. E repito: ele pode não parecer, mas é muito perigoso. Está amarrado, e o melhor é deixarem-no assim, e mantenham-no longe das suas espadas.
— Heh. Rica peça que ele nos veio trazer, hã, rapazes? — disse o Cagado aos seus homens. — Está bem, está bem. E quanto ao palácio?
— Sim. Tens como me meter lá dentro?
— Sou capaz de saber como o fazer, sim. Já sabes que aqui o Cagado pode andar de cabeça baixa, mas faz bom uso dela — afiançou-lhe o estropiado, piscando-lhe um olho. — Ó Nericio, não era o primo do Panoldo que ia esta semana a Allahn Anroth?
— Sim — respondeu um mal-encarado homem de barba e fala ásperas. — Ele e a família vão lá.
— Sua alteza está cheia de sorte — gozou o Cagada. — Por acaso não sabes dar uns pulos, não? Tocar umas notas?
Aewyre franziu o sobrolho, e o Cagado riu para consigo.
— Esta semana vai haver a festa de anos da princesa Iollina, e o palácio vai estar em festa. Conheço uma trupe de músicos e saltimbancos que já foi destacada para tomar parte nas festividades durante o banquete, e se quiseres posso meter-te com eles.
— Saltimbancos...?
— Se não te agrada a idéia, sugerir-te-ia que fosses bater ao portão principal, mas isso para ti não parece ser opção.
Aewyre ia levantar objeções, mas a verdade era que, dadas as circunstâncias, a idéia era tão boa como qualquer outra. O importante era que o ajudasse a cumprir o seu objetivo de conseguir entrar no palácio e lá tentar descobrir o que verdadeiramente se passara e se estava a passar.
— Sim... está bem. Isso vai servir — disse, acenando com a cabeça. — Se tudo correr bem, podes considerar a tua dívida saldada, e ainda vai haver ouro para ti e pata os teus homens.
Ao dizê-lo, Aewyre levantou-se e olhou à vez para cada um dos presentes no antro, incluindo-os na sua promessa com um olhar franco e sincero. Era a sua única hipótese; dependia deles e da sua boa vontade, pelo que mais valia deixar as coisas bem assentes.
— Muito bem. Quando queres que eu te apresente a eles? — perguntou o Cagado, batendo com as pranchas no chão à laia do selar de um contrato.
— Assim que possível. Mas eu não sou o príncipe Aewyre. Sou só uma pessoa que tu queres que se junte a eles, para lhes dar uma ajudinha, para me manter fora de apuros, seja qual for o motivo que te ocorra.
— Entendido. Então vamos lá tratar aqui do teu amigo... Aewyre suspirou então novamente e não se virou logo para Kror, permitindo-se antes uns breves momentos de satisfação por ter passado mais uma etapa na senda da lâmina antes de enfrentar o odioso olhar do drahreg. Até agora tinha-lhe tudo corrido de feição, na medida do possível, pelo que havia apenas que continuar. Em breve tiraria tudo a limpo, era breve descobriria o que verdadeiramente se passara, e tudo se resolveria quando a verdade viesse ao de cima.
Seltor foi violentamente projetado contra uma coluna basáltica, na qual embateu ruidosamente com a sua negra armadura. Mal teve tempo para recobrar do ataque antes de ser forçado a desviar-se do possante golpe de uma maça, que rachou o basalto e fez a coluna tremer, e foi então cambaleando à medida que tentava recuperar o equilíbrio, espadanando o braço livre e soltando afiadas gavinhas de sombra que silvaram pelo ar e atravessaram os corpos de divaroth alados que o tentaram atacar. Dois uman atravessaram-se no seu caminho, um deles com quatro braços que empunhavam duas lanças, mas Seltor decepou as pontas de ambas com um golpe de Dalshagnar, que de seguida decapitou a moluscóide cabeça de quem as empunhava quando o Anátema girou em si. O segundo agitou os tentáculos da sua boca ao emitir um guincho de raiva ou medo antes de a Língua Negra lhe cortar o braço da espada e de seguida o partir em dois, deixando no ar um repuxo de sangue prateado que manou um pungente odor salgado. Um outro divaroth carregou contra Seltor num voo raso, enterrando-lhe a cunha de uma acha-de-armas que lhe fendeu a armadura e se lhe cravou na omoplata, fazendo com que O Flagelo tropeçasse para a frente com a força do golpe e fosse direito a duas divaroth de plúmeas sobrancelhas franzidas de cólera que contra ele investiam de espadas empunhadas ao alto. Girando ao sabor do ímpeto do golpe, Seltor passou por ambas, descrevendo dois semicírculos com Dalshagnar que projetaram as duas divaroth por cima de si, rodopiando como bonecas desossadas e espirrando sangue azul. Uma dúzia de outras e outros tantos uman arremeteram então contra o Anátema, que, com um grunhido em crescendo, desferiu um golpe em arco, soltando uma undíflua reverberação sombria que se propagou pelo ar, expandindo-se e ceifando o grupo numa cruenta colheita. Seltor agarrou então o cabo da acha-de-armas que tinha cravada na sua omoplata, arrancou-a e arremessou-a contra o divaroth que com ela o atingira, atingindo-o em pleno ar como uma ave fisgada.
Mal teve tempo de se virar para os pesados passos que ouvira e sentira nas suas costas antes de ser colhido por um golpe de maça lateral, que o atirou novamente pelos ares. Caindo e derrapando no rugoso piso basáltico molhado de sangue azul e prateado, Seltor deslizou até bater de cabeça contra a cornija de uma cariátide de mármore negro na forma de um guerreiro de escudo e lança em riste. A força do impacto partiu-lhe o pescoço, que estalou imediatamente a seguir ao retomar a sua posição normal quando O Flagelo apoiou a mão no chão para erguer o torso, mas teve de se desviar logo de seguida de uma enorme bota com grevas de metal, rebolando para o lado e passando o gume de Dalshagnar pelo jarrete da perna que o tentara pisotear. O ofensor berrou de raiva e dor, e o incapacitante golpe parou o seu ímpeto e deu suficiente tempo a Seltor para que este se erguesse e recuperasse. O seu sangue negro pingara-lhe indistinguível sobre a amolgada armadura ebanizada que se ia reajustando lentamente, e estava despenteado e com escuras riscas sangrentas na perfeição marmórea da sua cara. O seu adversário não estava muito melhor, esse sim ostentando uma série de feridas. Envergava meras peças de armadura no corpo venosamente musculado e riscado de escoriações vermelhas, com uma ombreira de aço sujo no ombro esquerdo a partir da qual desciam uma série de segmentos metálicos cheios de mossas e bocas até à mão de unhas carcomidas que pingava sangue dos dedos. As outras peças eram uma braceira de metal no pulso direito, duas grevas ornadas com motivos bélicos nas pernas, um talabarte de couro rijo a atravessar-lhe o torso de outra forma descoberto e um cinturão com uma placa metálica que lhe protegia parcamente o baixo-ventre. Usava à cabeça um elmo em forma da cabeça de um javali, cujas presas formavam cornos sobre as orelhas, com o focinho a servir de protecção nasal e a crista de cerdas vermelho-sangue desgrenhada. A odiosa expressão de raiva cinzelada na cabeça do javali semelhava na perfeição a da cara do guerreiro, cujos dentes ferrados espumavam dos espaços entre eles e cujos olhos sombreados pelos contornos do elmo pareciam luzir com um brilho maníaco. Os seus venosos músculos faziam o couro do talabarte e das correias ranger, e as veias palpitavam furiosamente, fazendo com que o sangue das suas inúmeras feridas escorresse aos pequenos borbotões. Tudo nele gritava pura agressão e animalidade, ambas aliadas a uma insaciável fome de destruição e de corpos arruinados aos seus sangrentos pés, mas naquele momento ficou apenas a ofegar e de olhos fitos em Seltor, rilhando os dentes e crispando os dedos de ambas as mãos no cabo enfaixado por tiras de cabedal da sua possante maça com cabeça com rebordos e um espeto.
Seltor endireitou-se, plenamente recuperado e com a armadura acabada de reparar pelas restauradoras sombras tintas que por ela tinham escorrido e em cujas frestas agora desapareciam. Os únicos vestígios de combate que ostentava eram o sangue que lhe riscava a face e os cabelos despenteados, pelos quais passou a mão ao permitir-se a si mesmo uma breve olhadela em redor. O sacrário era um local escuro e ameaçador, esculpido em severo basalto e com um teto baixo sustentado por negras e ásperas colunas em forma de lanças cruzadas, o que ajudava ao ambiente opressivo e sufocante de quem queria os seus inimigos perto de si para melhor os poder matar. As paredes tinham rodapés e cornijas com espetos de ferro manchado com o castanho de sangue seco, e a iluminação difusa e intermitente era providenciada tanto por ardentes fogaréus de ferro negro ao longo das paredes como pelos ocasionais bafos de fogo e faíscas semelhantes às resultantes do entrechocar de lâminas, e embora estas não se vissem, o silvar e a colisão de aço contra aço era um ruído constante no sacrário, bem como o perpétuo tilintar das correntes de engenhos de guerra. O odor cóbreo a sangue e a metal desnudado era pungente no ar, bem como um indistinto odor que formigava nas narinas e fazia o coração bater mais depressa, fervendo-o com o próprio sangue. De resto, a única decoração que ostentava além de uma inacreditavelmente variada colec-ção de panóplias eram as estátuas de guerreiros em posições de combate, estátuas feitas de armaduras ferrugentas que invariavelmente retratavam golpes finais ou mutuamente mortais. Os suplicantes vertiam de cadinhos sujos de fuligem e dependurados de correntes, coloridos de um laranja de metal fundido e silvando como lava em contato com água enquanto chapejavam sobre calhas de ferro, ao longo das quais escorriam, sendo bafejadas por foles de fogo que tanto mais os abrasavam, presos além da sua vida numa existência volátil e conflituosa. Assim se conservava a ferro e fogo a sua belicosidade, com a qual contribuíam para o favor da batalha daqueles que oravam ao deus que serviam. O próprio sacrário era um campo de batalha habitual entre Azigoth, Divaroth e uman, que nele se digladiavam com o aval do deus que nele regia, mas desta vez o combate fora um massacre, e apenas os azigoth permaneciam vivos, observando a cena escondidos nas sombras e atrás das colunas basálticas.
— Acredita que eu não derivo qualquer prazer disto, Gilgethan — assegurou Seltor ao deus da guerra, dando um passo para o lado com Dalshagnar de ponta baixa. — E embora duvide de que me estejas sequer a ouvir com o sangue a rugir-te aos ouvidos, fica sabendo que isto tem de ser feito.
Gilgethan não respondeu, limitando-se a sangrar e ofegar de dentes cerrados, fazendo com que os seus tendões e o couro que o revestia rangessem com a tensão nos seus músculos.
— Como já deves ter reparado, o meu sangue exacerbou a tua faceta de destruidor — explicou O Flagelo. — Estás descontrolado, descoordenado, desnorteado; já me deste o teu melhor, e eu ainda aqui estou. Acabemos isto, para que não tenhas de sofrer mais.
As palavras de Seltor serviram apenas para enraivecer mais ainda Gilgethan, que desprendeu um possante urro ao apartar as salivantes maxilas, levando a sua maça atrás e investindo contra O Flagelo, que caminhou calmamente para o interceptar. Os pesados passos do deus da guerra ressoaram no piso basáltico como o tropel de uma carga de cavalaria, e o seu urro contínuo ressoou pelo sacrário qual trompa de um arauto de destruição, mas Seltor limitou-se a estender a aberta mão esquerda enquanto avançava, soltando uma roaz e furiosa descarga de poder que distorceu o ar como as ondas de calor de um sol negro, dilacerando a pele de Gilgethan e cobrando em sangue o inexorável avanço do deus da guerra. Urrando mais alto ainda de boca escancarada e com farrapos da sua pele a ficarem deixados para trás a meio de gotículas de sangue, Gilgethan foi contta o cerne da tetra vaga que o flagelava, pronto a esmagá-la com a sua maça, triturar-lhe os ossos, espalhar-lhe os miolos pelo chão, fazer com que os seus olhos saltassem, rachar-lhe os dentes e lacerar-lhe a garganta com os fragmentos...
Mas então a onda negra cessou, e Seltor investiu com desnatural rapidez para penetrar na abertura forçada a dor e sangue, trespassando o ventre de Gilgethan de um lado ao outro com Dalshagnar, que desabrochou de forma sangrenta da ilharga do deus da guerra, fazendo com que este se enterrasse até metade do comprimento da lâmina negra. O urro cessou, e os cantos da boca de Gilgethan baixaram-se quando dela saiu um chio gutural, que se converteu num sufocado e vibrante grunhido quando O Flagelo o ergueu, levantando-lhe ao de leve os pés do chão e dilacerando-lhe a carne e intestinos antes de encalhar a lâmina na base das suas costelas. Debaixo das sombras do seu elmo, os olhos de Gilgethan arregalaram-se, distinguindo-se bem neles o branco entrecruzado de veias sinuosas, e o deus deixou a maça cair com um pesado ruído metálico no chão.
— Morrerás como de ti seria de esperar — disse-lhe Seltor sem qualquer tom chistoso na voz, empunhando Dalshagnar com ambas as mãos. — Como um guerreiro.
Dito isto, o Anátema alçou o deus da guerra sobre a sua cabeça, rachando-lhe as costelas ao fazê-lo e invertendo o sentido do movimento com um sacão para a frente, após o qual a Língua Negra abriu a barriga de Gilgethan, que de seguida tombou de costas atrás das de Seltor com a vida e as divinas tripas a serem despejadas da sua barriga. O deus ainda estorcegou no chão, debatendo-se com a inevitabilidade da sua morte enquanto se esvaía em sangue, mas Seltor ignorou-o nas vascas da sua morte, erguendo Dalshagnar até ficar com a ponta ao nível da cara e observando o corredio jogo de cores entre o vermelho sangue de um deus e o azul e cinzento dos divaroth e uman que matara. Gilgethan conseguira entretanto virar-se de barriga para o chão, no qual se alastrava uma poça vermelho-escura, e assentou nele as mãos escoriadas numa última e desesperada tentativa de se erguer, mas as suas forças escorriam-lhe pela barriga fora, e apenas conseguiu erguer debilmente o torso com braços trêmulos, batendo por duas vezes com a fronte do elmo no chão. Seltor suspirou, baixando a lâmina e virando-se então para o moribundo deus da guerra, que soltou um suspiro seu, o último, morrendo de braços e pernas espraiados diante d’O Flagelo.
Tal como todos os outros, a pele de Gilgethan começou a luzir, sendo que a sua fulgiu com uma luz alaranjada que alumiou mesmo a armadura por dentro, e o deus começou então a desincorporar-se, com pele, músculos e armadura a desagregarem-se numa série de luminescentes partículas laranjas. Essas partículas jorraram de seguida para os vários fluxos de suplicantes que vertiam dos cadinhos dependurados de correntes, interrompendo brevemente o seu fluxo, que foi seguidamente retomado a um ritmo mais acelerado, com cada uma das partículas a vibrar como uma lâmina que acabara de embater contra pedra, até que de repente desapareceram todas com um agudo e estridente ruído de aço a rilhar contra aço e uma relampejante faísca, após a qual a escuridão desceu no sacrário.
«Está feito, então», pensou Seltor ao embainhar Dalshagnar, confortável na inescrutável escuridão que se instalara. Gilgethan fora o último, e causara-lhe menos reservas do que qualquer um dos outros deuses, pelo que não se deteve em considerações nem esperou que os azigoth lhe dirigissem palavra como até agora sempre tinham feito, desincorporando-se ele também na sombra e desaparecendo.
Estava definitivamente feito. Agora sim, poderia dedicar-se a Allaryia.
Reinava uma tremenda atividade em Horavog no dia em que era esperado o poderoso garding Knorl, e embora o tempo estivesse frio e ventoso com o céu carregado de nuvens túmidas, as gentes da quinta labutavam que nem formigas. Estavam todos cientes da importância do banquete daquela noite, pois dele poderia depender a sobrevivência de Horavog, e todos desempenhavam o incumbido papel com afinco. Os escravos empilhavam a madeira para as fogueiras e preparavam os dois carneiros mortos para o festim, substituíam o óleo de peixe das lamparinas e limpavam as tábuas que iriam assentar sobre os cavaletes, e enquanto falavam uns com os outros, apercebiam-se de que não se lembravam da última vez que fora feita tal limpeza na quinta. O piso de terra batida foi coberto por uma nova camada de feno misturado com folhas de angélica-silvestre seca para lhe dar um odor aprazível, e todos vestiram as suas melhores roupas para a ocasião, sendo mesmo os escravos obrigados a irem banhar-se na fonte de água quente mais próxima. Oska queria evidentemente jogar com tudo a seu favor, e, dadas as circunstâncias, ninguém a podia culpar ou acusar de exagero. Uma aliança com Knorl, ou mesmo uma singela declaração de amizade da parte do poderoso garding, desencorajaria futuras picardias de Skoísvein, e certamente que o dissuadiria de simplesmente atacar Horavog. Os skrimmen já eram outro assunto, mas o que era certo é que a quinta ficaria muito melhor com Knorl do seu lado do que sozinha e isolada contra a ganância de uns e a selvajaria de outros.
Perdidos no meio de tanto bulício, os eahlan tentavam ajudar como podiam, mas regra geral os wolhynos limitavam-se a abanar as cabeças, recusando a sua assistência como se não fossem dignos de tal.
Hanal e Eluana sentiam-se particularmente perdidos, incapazes de providenciarem orientação como estavam habituados e incapazes de ignorarem a impressão de que não passavam de fardos. O séquito dos Lasan partilhava desse sentimento, pelo que os eahlan permaneciam sentados na bancada que lhes fora designada, afagando as cabeças das suas crianças e aguardando em meditabundo silêncio enquanto a quinta se preparava para a festa em seu redor. O que acontecera com Quenestil e Slayra em muito contribuíra também para o seu presente estado de espírito, tendo-os chocado a todos e deixando-os entristecidos. Slayra deixara a quinta inteira em polvorosa ao sair a correr para o celeiro, e quem a seguira acabara por deparar com a cena que deixou a eahanoir quase catatônica. Além de Slayra, Deadan e Talin, o filho mais novo de Hanal, também presenciaram a cena que chocara todos, segundo alguns mesmo ao próprio Quenestil, ao ser apanhado a fornicar com a kuvamora. A skrimmen fora a única que não parecera minimamente chocada, nem sequer incomodada por estar quase nua e exposta a olhos desconhecidos, limitando-se a recolher-se ao seu canto à espera que alguém a tornasse a amarrar. Tardou até que alguém o fizesse, e se não tivesse sido pela chegada de alguns wolhynos ao celeiro, os cinco poderiam ter ficado ali especados a noite inteira sem se mexerem, tal fora o impacto daquilo que haviam presenciado, um impacto que se repercutiu nos dias seguintes, pesando na consciência de todos, e sobretudo na de Quenestil.
O eahan não ficara muito melhor que Slayra, e enquanto que esta se retraíra com um frio glacial em reação ao que vira, Quenestil inverteu completamente a tendência das passadas semanas, e tentou por todos os meios falar com a eahanoir, que contudo se manteve irredutível. Os últimos quatro dias em Horavog tinham sido difíceis, tanto para quem sabia o que ia nos corações dos dois eahan, como para quem apenas compreendia o que se estava a passar observando os olhares de ambos e a sua tensa linguagem corporal. Quenestil em particular parecia arrasado, talvez mais ainda que Slayra, e martirizava-se a olhos vistos pelo que fizera, evidentemente incapaz de lidar com o preço de uma ação que tinha por tão condenável. Com as mãos enfaixadas e a sua cabisbaixa postura, estava com uma figura lastimosa, mas era por dentro que mais sofria. Tentou explicar-se, nunca com o intuito de se justificar, mas numa tentativa de relatar as causas daquele que tentava fazer crer que não passara de um acidente. Slayra manteve-se todavia irredutível no seu silêncio, mal reconhecendo a existência de Quenestil enquanto amamentava os seus filhos ou falava com outras pessoas na presença do shura, mesmo outros wolhynos. Foi só então que Quenestil se deu conta de que Slayra fora entretanto aprendendo algumas palavras de Hjrutmalv, sendo já capaz de articular frases limitadas minimamente inteligíveis. Porém, recusava-se terminantemente a partilhar qualquer palavra que fosse com o eahan, independentemente da língua, forçando-o a tentar falar indiretamente com ela através dos eahlan. A boa índole dos eahan brancos não lhes permitia condenarem Quenestil pelo que fizera, e ainda que para tal estivessem inclinados não o fariam, pois tinham o shura em grande conta, mas estavam claramente desiludidos com ele. Nenhum lhe negou um ouvido ou um ombro amigo, mas todos foram igualmente incapazes de conseguir transmitir com sucesso as palavras que Quenestil destinara a Slayra.
Ao quarto dia desde a fatídica noite no celeiro, a situação permanecia praticamente na mesma, sendo que Slayra falava cada vez mais com outras pessoas e Quenestil se ia tornando cada vez mais retraído. A única diferença residia no fato de não fugir para os montes e isolar-se como o fizera de todas as outras vezes, mas permanecia em Horavog sem saber ao certo para onde se virar, evidentemente com vontade de se aproximar de Slayra mas sem noção de como o fazer. Tentava forçosamente não refletir acerca de qualquer significado obscuro daquilo que acontecera com a kuvamora, nem acerca de quais teriam sido as verdadeiras intenções de Ihjseorn ao convencer ambos a efetuarem o ritual, nem sequer da latente ligação mais apurada que agora sentia com o espírito do volverino, de tão perturbado que estava com o que acontecera. Os eahlan não lhe podiam valer, Deadan não tinha quaisquer palavras de conselho, e ainda que estivesse suficientemente desesperado para recorrer aos wolhynos, estes estavam demasiado ocupados com os preparativos para a vinda de Knorl para lhe darem grande atenção. A maior parte dos habitantes dava a impressão de estar lentamente a habituar-se à presença dos feéricos eahlan, da misteriosa eahanoir, do siruliano revestido de aço e de Quenestil, que continuavam a respeitar, mas pelo qual evidentemente nada poderiam fazer para o ajudar em assuntos do coração.
Quenestil não esquecera a kuvamora — muito pelo contrário, pois esta pesava-lhe na consciência —, mas no seu presente estado de espírito não se permitia a si mesmo pensar nela ou no destino que Oska lhe reservara e que o repugnara. Apercebera-se vagamente de que a estavam a preparar para ser apresentada a Knorl, mas não mais ousou ir vê-la ao celeiro, nem sequer perguntou por ela nem tentou obter mais detalhes. Acontecera algo entre ambos, algo que parecera de certa forma preordenado e que não fora causado somente pelo que apenas conseguia definir como um segundo acesso de fúria inflamado pela necessidade de apaziguar as dores causadas pelo primeiro. As suas mãos ainda estavam enfaixadas com ligaduras embebidas em água salgada, mas como qualquer um poderia ver, os ferimentos que mais atormentavam o eahan não eram os da carne. Não só isso, mas também o moía o fato de se sentir verdadeiramente vivo e desperto pela primeira vez em semanas. Moía-o por não o achar correto, o sentir-se vigoroso após aquilo que fizera, mas o que era certo era que nem mesmo o seu sentimento de culpa conseguia amainar a nova energia que parecia correr-lhe pelas veias. Algo despertara dentro do shura após o que sucedera com a kuvamora, algo que certamente nele estivera latente todo aquele tempo, esperando apenas pela altura certa para ser liberto, e por muito que evitasse pensar nisso, acabava fatalmente por dar consigo em considerações que apenas o faziam sentir-se mais culpado.
Assim passou o dia para os convidados de Horavog, em constrangido silêncio, em culposa reflexão e em triste inatividade, até que o sol se pôs e um rapaz de cabelos cor de linho surgiu a correr à porta, anunciando a vinda de Knorl, senhor de Knorlvog. O buliçoso ritmo constante que se verificara na quinta durante o dia acelerou então, ordens foram berradas, a fogueira foi atiçada e escravos ruivos começaram a correr de um lado para o outro em cumprimento das suas tarefas. Hjlinar parecia perdido, andando de um lado para o outro e distribuindo ordens tíbias que não passavam de repetições daquilo que a sua mãe dissera. Oska comandava os seus servos como um general no campo de batalha, assistida pelo seu comandante, Agtor, enquanto Yhtte se limitava a ajudar como uma comum serviçal. Quando ficou satisfeita com a forma na qual as coisas estavam dispostas, dirigiu-se então a Quenestil e, através da tradução de Agtor, comunicou-lhe os lugares que desejava que ele e os eahlan ocupassem, pedindo-lhe ainda que ostentasse o arco e a faca quando Knorl chegasse e que Deadan estivesse igualmente apetrechado. Dizê-lo ao siruliano fora desnecessário, mas Quenestil teve de ir buscar as suas armas, estranhando o pedido mas com demasiadas coisas na cabeça para se ocupar a questionar a solicitação da mulher. Slayra mantinha-se aparentemente alheia à situação, observando simplesmente todos menos Quenestil com atentos olhos azuis e um friamente inexpressivo semblante.
Oska chamou então os seus dois filhos para perto de si diante da entrada para receberem Knorl, pigarreando em antecipação, alisando a sua saia e ajeitando a touca. Usava um vestido azul-escuro com um xaile da mesma cor de entrecruzadas linhas vermelhas aos ombros, um dos seus últimos colares de contas de âmbar ao peito e o seu toucado branco retorcido nas têmporas em forma de cornos de carneiro. Hjlinar estava apresentável, de borbulhenta cara escanhoada e com uma fita vermelha com um padrão branco nela bordado à testa, embora não parecesse sentir-se muito à vontade com a sua ostentativa túnica azul de orlas bordadas no mesmo padrão da fita. Yhtte usava um despretensioso vestido azul-bebé com um avental branco, cobrindo a sua cabeça com uma touca que apenas deixava entrever o rolo entrançado do seu cabelo, que lhe pendia numa trança loura sobre o ombro direito. Os eahlan envergavam roupas wolhynas, e com as mulheres de cabelos cobertos quase passavam despercebidos, até porque as crianças em pouco divergiam dos rebentos de Horavog, sendo que os únicos que destoavam verdadeiramente eram Quenestil e Deadan. O eahan devido às suas peles e orgulhosamente longos cabelos ruivos, e o siruliano devido ao seu arnês e punho do espadão sempre sobre o ombro. Slayra insistira em usar o vestido negro que as eahlanas lhe tinham feito, tendo-o mandado lavar no dia anterior, e usava o cabelo preso num rabo-de-cavalo. De todos os visitantes de Horavog, parecia ser a única que se preparara verdadeiramente para o banquete, tendo mesmo retocado os olhos com um pouco de fuligem que lhe intensificava mais ainda o olhar.
Horavog estava pronta, e os presentes aguardaram então a entrada de Knorl, que seria recebido no exterior por Agtor. Apesar do ambiente festivo, havia uma certa tensão no ar, pois ninguém se conseguia abstrair da importância do banquete e do quanto o destino da quinta dele poderia depender. Apesar de não lhes dizer direta-mente respeito, os eahlan também o sentiam, o que contudo apenas contribuiu para que ficassem mais calados e recatados. Por sua vez, e embora tivesse a impressão de que Oska esperava algo dele, Quenestil sentia dificuldades em concentrar-se na iminente situação em mãos, tamanha era a tempestade de emoções conflituosas que lhe assolara o espírito nos últimos quatro dias e que lhe conseguira mesmo tirar os pensamentos da invasão tanarchiana. Em contraste, os outros pareciam mais concentrados no presente, e quando se ouviram ruídos da outra ponta da partição, todos ajeitaram roupas e cabelos e deram as últimas indicações às crianças, como se estas também estivessem prestes a tomar parte num teste que lhes poderia ser vital. As candeias ardiam com uma luz bruxuleante, criando jogos de sombra na grande sala e soltando um odor oleoso que carregava o ar em acréscimo ao calor e olor humano que nela reinava. Todos olharam para o vulto escuro que se revelou do outro lado da partição, acompanhado de saudações nervosas, do ranger de correias de couro e do tilintar de cota de malha. Oska tornou a pigarrear e sussurrou algo ao filho, roçando-lhe o braço com os nós dos dedos, e Hjlinar limitou-se a fazer que sim com a cabeça como uma criança incomodada, incapaz porém de esconder o seu nervosismo. O primeiro homem que surgiu de cabeça baixa parecia demasiado novo para ser um poderoso garding, o que se confirmou quando este se posicionou ao lado da entrada. O segundo fez o mesmo, postando-se no lado oposto, e apenas o terceiro transmitia a segura impressão de ser Knorl, senhor de Knorlvog e alegadamente um dos mais poderosos garding dos Fiordes dos Piratas. Em termos de vestimentas não se esforçara de todo como os habitantes de Horavog, envergando apenas um jaco de cota de malha com cinto sobre uma túnica branca, calças cinzentas, sapatos de viagem e uma capa negra presa ao ombro por um broche. Trazia, à cabeça um elmo com uma protecção nasal, duas laterais e uma para a nunca, e do seu cinto pendiam uma bainha com uma espada e outra com uma faca. Tal como os seus três homens, incluindo um que lhe veio na retaguarda, viera vestido como um guerreiro, o que transparecia tanto no seu porte como nas suas armas e vestimentas. Olhando em redor, Knorl baixou então a cabeça e tirou o elmo, sobraçando-o e passando a mão enluvada pelos amassados cabelos castanhos de linha recuada. Tinha feições alongadas manchadas por um raso restolho de barba, com uma alta e luzidia testa, queixo fendido, nariz grande de ponta truncada e um par de estreitos olhos azuis realçados por longos e profundos pés de corvo. A imagem que nele transparecia era a de um homem que não alardeava o seu poder, mas que estava seguro e ciente dele, o que se refletia na segurança e confiança de cada um dos seus gestos. Oska fez-lhe uma vênia com a devida deferência, e Hjlinar seguiu o seu exemplo de forma mais atabalhoada, como se tivesse acabado de se lembrar do protocolo adequado. Com voz tíbia, o rapaz saudou o visitante, açambarcando a sala em redor com um amplo gesto dos braços e colocando-a à sua disposição. Knorl retribuiu a saudação de forma brusca, mais interessado nos outros presentes do que propriamente no senhor de Horavog, que de qualquer forma sabia não ser senhor de coisa nenhuma.
Deadan foi o primeiro a atrair a sua atenção e a dos seus homens, sobretudo devido ao arnês e ao exposto punho do espadão, mas também pelo fato de, ao contrário de todos os outros, o siruliano estar a retribuir o seu olhar. Hjlinar olhou para a mãe, que fez discretamente que não com a cabeça, e o jovem nada disse. Knorl passou então os olhos pelos eahlan, franzindo ao de leve as sobrancelhas como se estivesse a estranhar o número de habitantes da reputadamente quase desabitada quinta, e então reteve o olhar em Quenestil. Ninguém disse nada enquanto Knorl estudava silenciosamente o eahan, evidentemente intrigado pelas suas selvagens vestimentas e pelo fato de estar a ostentar as suas armas, embora, ao contrário do jovem arnesado, não retribuir o seu olhar de forma quase desafiadora. Dava apenas a impressão de estar ali contrariado, e nem aparentava estar concentrado na situação em mãos.
Oska bateu então ao de leve na mão do seu filho e este balbuciou algo a Knorl, indicando-lhe as mesas montadas em forma de U sobre cavaletes numa tentativa de dar início ao banquete. O garding não respondeu de imediato, fitando antes a mãe de Hjlinar e sorrindo-lhe, ciente do jogo de poder que a mulher estava evidentemente a jogar mas não se dando por achado e aceitando o convite para se sentar. A atmosfera desanuviou com o seu gesto, e todos se postaram diante dos seus lugares e esperaram que os presentes mais ilustres se sentassem. Não havia cadeiras, e as longas plataformas ao longo das paredes desempenhavam a função de assentos, exceptuando apenas o cadeirão de Hjlinar ao fundo da sala e as duas cadeiras para a sua mãe e irmã a seus lados. Knorl sentou-se à direita de Hjlinar e ao lado da mãe deste, sendo que o seu lugar na plataforma estava adequadamente fornecido com confortáveis peles, incluindo uma pregada ao poste que naquele lugar servia de recosto. O banquete não era propriamente um festim para os olhos, tendo em conta os recursos de Horavog, mas nunca a sala estivera tão apresentável como naquela noite, nem tão guarnecida de comida. Além dos dois carneiros dispostos sobre pranchas de madeira ensopadas de sangue e gordura, havia taças de talco com papas de líquenes, pão de musgo, lascas de bacalhau, manteiga azeda, duas cabeças de carneiro assadas na fogueira, morcelas, testículos e geléia dos cascos desses mesmos animais. Servos ruivos caminhavam em redor com cilindros de madeira, servindo os chifres de beber dos convivas com soro de leite, e então Hjlinar bateu duas vezes com as pouco confiantes mãos, dando início ao banquete. Knorl teve direito a uma cabeça preparada para si e para os seus homens e não se fez de rogado, arrancando prontamente uma maxila e começando a roê-la como a uma perna de galinha. Um dos seus homens desembainhou a sua faca para arrancar um olho e foi-o trincando distraidamente enquanto olhava em redor, fixando-se freqüentemente em Deadan e Quenestil. Os dois também comiam, sendo que o siruliano o fazia com mais vontade que o eahan, que tinha efetivamente de se esforçar para se manter atento ao que o rodeava enquanto mastigava sem apetite. Sabia que o bem-estar de Horavog, e por arrastamento dos eahlan poderia depender do resultado do banquete, pelo que fez um esforço para ouvir o que estava a ser dito sempre que não estava de cara virada para Slayra na esperança de conseguir que os seus olhares se cruzassem.
A conversa pareceu-lhe inicialmente superficial e de circunstância, com Oska e Knorl a inquirirem cordialmente acerca do gado de cada uma das quintas, partilhando os seus dissabores e problemas, nos quais Horavog era evidentemente mais pródiga. O garãing ia olhando para Quenestil e Deadan enquanto falava, provavelmente numa tentativa de trazer indiretamente o assunto à baila, mas pelo que o eahan ia percebendo, a mulher nunca abordou o tópico de estranhos visitantes na quinta. Tão banal era a conversa que Quenestil teve sérias dificuldades em permanecer concentrado nela, debatendo-se com uma crescente vontade de sair da sala, que apenas aumentava de cada vez que olhava para Slayra e era ostensivamente ignorado por esta. A eahanoir comportava-se à altura da ocasião, falando com as entristecidas eahlanas aos seus lados e mantendo uma postura discreta e recatada enquanto comia. Quenestil nunca a vira tão à vontade desde que haviam desembarcado nos Fiordes, e a única coisa que nela estranhava era o fato de ir olhando ocasionalmente para a entrada, como se estivesse à espera de algo ou alguém. De volta à conversa de Knorl e Oska, apercebeu-se de que os dois falavam agora dos problemas de Horavog com Skoísvein e os skrimmen. Apesar de o garãing tornar a olhar para ele, não percebeu se Oska referira ou não a sua participação nos confrontos, pois duas raparigas ruivas começaram a tocar uma flauta de osso de ovelha e uma harpa, enquanto que um wolhyno barbudo e de voz cava soltou as primeiras duas notas de uma canção em Hjrutmalv que, aliada ao burburinho dos convivas, lhe praticamente impossibilitou a tentativa de ouvir o que os dois falavam. Privado do único motivo que tinha para ficar atento, Quenestil deixou-se esmorecer novamente até ao seu estado sorumbático, e não mais prestou atenção ao que se passava em seu redor, marcando presença apenas porque Oska lho pedira e debicando dos pratos sem grande apetite.
O resto do banquete decorreu sem acontecimentos de maior, com generosas e para Horavog pouco habituais porções de comida e bebida, e música a acompanhar. Os habitantes aproveitaram e empanturraram-se, os visitantes usufruíram da hospitalidade e o ambiente foi-se tornando mais descontraído à medida que barrigas cheias iam aligeirando a disposição de todos. Sorrisos principiaram a rachar-se em semblantes carregados, conversas díspares e separadas animaram-se sem subirem de tom, e toda a tensão que se verificara no início foi-se dissipando, até porque o próprio Knorl já dava mostras de um grande à-vontade com Oska, partilhando com ela e com os seus homens algumas gargalhadas e aliviando a dura máscara de guerreiro que trouxera para o interior. Continuava a lançar a ocasional olhadela indiscreta na direção de Quenestil e Deadan, e a forma conspícua com a qual de seguida se virava para Oska dava a entender que não pretendia sair de Horavog sem ter a sua curiosidade satisfeita. A mulher não parecia contudo disposta a ceder tão facilmente, e invariavelmente passava a palavra a Hjlinar, que quase suava para tentar manter uma conversa. Assim se mantiveram as coisas, até que a música acabou por esmorecer e o cantor entoou as suas últimas palavras, terminando com um decrescente vibrato até baixar por completo a cabeça e os braços que tivera erguidos. Oska tocou então na perna do seu filho debaixo da mesa e Hjlinar levantou-se, pedindo silêncio com as mãos e despertando Quenestil das suas taciturnas reflexões ao desobstruir a garganta. Ao que parecia, chegara a hora de presentear o ilustre convidado com uma oferenda adequada, e para esse efeito o rapaz indicou a Agtor, Quenestil e Deadan que a fossem buscar. Algo surpreso por se ver entre os nomeados para a solene tarefa, o eahan demorou alguns instantes a acatar o pedido, olhando à volta com ar confuso antes de se erguer ao ver Agtor acenar-lhe com a mão. Viu-se igualmente retido pelos olhos de Slayra, que apenas então se dignaram a fitá-lo, retendo-o com toda a força de uma condenação irrevogável que lhe desenterrou a farpa que se lhe alojara no coração, dilacerando-lho.
— Vamos, Quenestil Anthalos? — segredou-lhe Deadan ao seu lado, sempre desconfiado de qualquer coisa que o afastasse dos eahlan.
— Eu... — tartamudeou o eahan, desviando o olhar de Slayra e virando-lhe as costas ao subir para cima da plataforma. — Sim. Vamos.
Os dois foram então ter com Agtor à saída, e o antigo mercador abriu prontamente a porta, estendendo um braço para que os dois passassem à sua frente e saindo de seguida para o gélido exterior, onde uma violenta ventania alisava a relva do terreno em redor como uma grande mão a afagar uma carpete crespa. Os aulidos do vento varriam Horavog como o pranto de cães celestiais, entre os quais apenas se ouvia o violento marulhar das vagas contra as falésias, além das quais se via o mar de ondas encapeladas, com a espuma branca a destacar-se ao sombrio luar. As resistentes ovelhas dormiam encostadas ao edifício ou aglomeradas, pouco mais que bolas de lã à mercê da intempérie. Os três avançaram a passo rápido e de cabeças baixas na direção do celeiro, sendo que Quenestil ia mais recuado que Deadan e Agtor. Era-lhe porém impossível partilhar das suas reservas, pois o vento arrancar-lhe-ia ferozmente as palavras da boca e dispersá-las-ia pela costa fora, pelo que meio os seguiu meio foi arrastado até à porta do celeiro, que Agtor abriu e pela qual entrou, balbuciando de frio e esfregando as mãos geladas no interior.
— Que friasco! — comentou. — Já viram como o vento rasca?
Deadan nada disse, e Quenestil apenas balbuciou a tentativa de uma resposta, hesitando em fechar a porta e olhando com uma expressão quase receosa na direção da última baia, na qual sabia encontrar-se a kuvamora. Ainda quis perguntar ao wolhyno qual a razão de Oska o ter escolhido para vir buscar a mulher, bem como os motivos da sua presença no banquete e qual o interesse em manter o garding Knorl na expectativa quanto à sua origem, mas o entrar no celeiro assolou-lhe a mente com uma rápida sucessão de memórias dos momentos que antecederam o imperdoável ato que cometera. As suas perguntas perderam-se, e o shura deu novamente consigo simplesmente a seguir Agtor, dando um passo para cada dois do humano.
— Espero que não te importes, Quenestil — disse Agtor, estalando a língua e os dedos ao passar por uma vaca. — Oska quis que tu e o Deadan estivessem presentes para Knorl não pensar que Horavog está a pregalhar... apesar de estar. Para que ele visse que Horavog ainda tem algumas coisas que... bem, sabes o que dizem, que às vezes é melhor mostrar só o punho da espada em vez de a desembainhar?
Quenestil não respondeu e Deadan nada disse, querendo apenas despachar quanto antes o que havia a tratar para poder regressar o mais rápido possível para perto dos eahlan.
— Knorl não é tolo, sabe que Horavog precisa de ajuda — continuou Agtor, inabalável diante do silêncio dos seus dois companheiros. — Mas Oska queria que ele visse que nós... oh.
Deadan retesou-se antes de Quenestil ao ver Agtor estacar diante da última baia, apoiando-se numa das divisórias assim que viu o que esta escondia. Levando de imediato a mão ao punho do espadão sobre o seu ombro, o siruliano alarmou suficientemente Quenestil para que este despertasse do seu culposo torpor, avançando então ele também com passos que ainda assim se arrastaram ligeiramente pelo feno do chão.
— For dr darma... — praguejou o wolhyno em surdina, levando a mão à boca e apoiando-se na divisória da baia com a outra.
— O que foi? — quis Quenestil saber, ousando por fim passar pelo wolhyno e olhar para o interior da baia por ele quase destruída havia poucos dias.
A kuvamora jazia nela, espraiada no feno numa posição fetal agarrada à barriga e com uma taça de madeira revirada de leite coalhado entornado a seu lado. Quenestil foi o primeiro a ajoelhar-se diante da mulher, pegando-lhe pelos ombros e sacudindo-a, o que apenas fez com que a cabeça da kuvamora abanasse, lassa e com os seus sebosos cabelos louros a penderem em mortiça cascata. Alarmado, o eahan levou-lhe os dedos à garganta numa vã tentativa de lhe sentir o pulso.
— Está morta — disse em incrédula surdina, olhando então para os seus companheiros. — Está morta.
Agtor manteve a mão na boca, praguejando entre barba e dedos, mas a única reação de Deadan foi franzir as sobrancelhas sem que os seus penetrantes olhos cinzentos traduzissem outra qualquer emoção além de mórbida curiosidade. Porém, esta bastou para que o jovem Ajuramentado se ajoelhasse ao lado de Quenestil, pedindo permissão com um grunhido para pegar com as mãos na cara da mulher, que virou para si sem grande delicadeza. Deadan emitiu um conhecedor grunhido gutural ao ver os finos lábios roxos da skrimrnen, e ao abrir-lhe o olho com um polegar acerado e reparar na pupila dilatada, a sua grave boca comprimiu-se e o siruliano largou a cabeça da mulher, apoiando o cotovelo no joelho e olhando para Quenestil.
— Foi envenenada, Quenestil Anthalos — disse prosaicamente, passando o indicador pelo leite coalhado entornado no chão e levando-o perto da cara, remexendo nele com o polegar e distinguindo pequenos pedaços de folhas secas e esmagadas entre o coalho e feno. — Veneno de teixo. O meu veneno de teixo.
— Teu...? Teu? — tartamudeou Quenestil, abalado.
— Dei-o aos Lasan quando partimos para combater os Skrimmen... para o caso de acontecer alguma coisa — explicou-se Deadan, visivelmente confundido. — Não sei como veio parar aqui.
Agtor praguejava agora apenas em Hjrutmalv, levando ambas as mãos à cabeça e puxando os ralos cabelos castanhos, vendo a vida a andar para trás. Quenestil ainda estava meio retido pelo choque, e de entre os três foi Deadan o único a agir, levantando-se de punho cerrado e narinas frementes.
— Quem usou o meu veneno? — exigiu saber, apontando acusadoramente para Agtor. — Foram vocês?
— O quê? Nós o quê? — balbuciou Agtor, largando a cabeça e erguendo seguidamente o tom de voz. — Cala-te, gaiato! Não tens desdouro? Escocharam a kuvamora, a peita de Knorl! Oí, farrbarn... — lamentou-se novamente.
— Veneno...? — perguntou Quenestil a ninguém em particular, olhando para a perturbada cara de uma mulher que morrera em sofrimento e sentindo o dente de volverino pesar-lhe ao pescoço.
— Oska tem de saber... — disse Agtor, pousando as mãos sobre as ancas e abanando a cabeça. — Tem de saber.
— Agtor, espera — pediu Quenestil ao ver o homem dirigir-se para a porta. O choque despertara-o da sua depressiva modorra, e não podia contudo deixar de sentir que algo de importante se iria passar, pois os planos de Oska tinham acabado de ruir, os planos dos quais o destino de Horavog poderia bem depender.
— Tem de saber... — repetiu o wolhyno maquinalmente, abanando a cabeça enquanto andava e saindo porta fora em emergente urgência.
— Agtor...! Porra! — praguejou o eahan ao esticar a cabeça para fora da baia e ver a porta ficar a abanar ao vento. — Deadan, fica aqui com ela — pediu sem saber ao certo porquê, erguendo-se de seguida para seguir o humano.
O siruliano nada disse, permanecendo na mesma posição e de rosto sombrio, ainda com um punho cerrado e soerguido, como se quisesse agredir alguém. Quenestil não esperou para ouvir o que o jovem tinha a dizer e foi atrás de Agtor, que corria desalmadamente em direção ao edifício principal numa reta ondulada pelo forte vento. O shura correu no seu encalço, entrando de rompante pela porta que Agtor deixara aberta e empurrando para fora do seu caminho um servo ruivo que a viera fechar. Quando chegou à sala principal, viu que as mesas já tinham sido arrumadas e que os presentes se tinham dividido nos seus grupos habituais: Slayra e os eahlan, os escravos ruivos, as mulheres e as crianças, os homens, e Oska e os seus filhos na parede oposta à entrada, sendo que esta última tinha a companhia adicional de KnOrí e os seus homens. Ao seguir apressadamente Agtor, Quenestil não se apercebeu da eahanoir a erguer a cabeça diante da sua passagem e levantar-se de seguida. Agtor já se acercava de Oska, que o olhava de sobrancelhas franzidas, evidentemente admirada por este não trazer a kuvamora consigo. A sua surpresa foi partilhada pelos restantes presentes na sala, que cessaram as suas conversas, ficando todos a olhar para o antigo mercador num silêncio apenas quebrado pelos residuais gracejos dos homens de Knorl, que se calaram também ao verem que eram os únicos a falar. Agtor deteve-se diante de tanta atenção, olhando alternadamente para Oska e KtiOrl, que sentiu que algo de errado se passava, incrementando prontamente os níveis de tensão na sala quando os seus homens olharam desconfiadamente para os seus circunstantes. Havia armas no recinto, e naquele momento poucos foram os que se sentiram confortáveis sabendo-o.
— Oska... — disse Agtor, hesitando. — A nossa oferenda...
— Sou eu — ouviu-se uma vox inesperada dizer.
Todas as caras se viraram incrédulas para Slayra, que caminhava com sedutores requebros na direção de Knorl, mãos sobre as ancas enquanto meneava estas com sinuosos gestos serpenteantes. Bocas descaíram, olhos avivaram-se e o garding recuou ligeiramente a cara, arregalando as interessadas sobrancelhas ao ver a exótica mulher vestida de negro e com cabelos cor de meia-noite vir ao seu encontro. Os seus olhos ardiam com uma chama azul, dando a ilusão de incrementar a fuligem que já de si lhos realçava, e a sua boca estava sugestivamente entreaberta, prometendo prazer sem nada dizer. A eahanoir deixava propositadamente entrever as pontas das suas orelhas entre os cabelos presos, tentando o olho sem contudo revelar demasiado, tal como faria com uma outra parte sua mais íntima, toda ela um fruto misterioso tentadoramente revestido por uma casca na forma do seu modesto e nada revelador vestido.
— Sou a fêmea que veio com o macho vermelho do grande azul — continuou, dando mostras do que até então conseguira aprender de Hjrutmalv, o seu sotaque alienígena e contudo cativante aos ouvidos dos presentes. — Horavog dá a mim para o grande garding Knorl.
Uma vez diante deste, Slayra levou uma perna atrás da outra e flectiu-as a ambas, cruzando-as numa elaborada vênia desconhecida naquela região nortenha, o que tanto mais reforçou o seu exotismo. Knorl estava visivelmente agradado, e enquanto apreciava a eahanoir dos pés à cabeça, esta puxou o cabelo para trás da orelha com um gesto lânguido, revelando sedutoramente uma curvilínea orelha pontuda, o que avivou mais ainda os olhos de Knorl. Satisfeito, o garâing virou a cara para Oska, mas esta estava especada a olhar para a eahanoir, abrindo e fechando a boca com palavras que não estava certa de querer ou não pronunciar. As eahlanas levavam as mãos às bocas, Hanal e Eluana tinham as suas abertas, e os restantes presentes partilhavam entre si toda uma série de reações estupefatas. Quenestil fora fulminado pelo que vira e ouvira, e sentia nos pés o coração, cuja abrupta queda lhe abalara os joelhos e por pouco não o fizera cair. O choque sobreposto ao de ter visto a kuvamora morta deixou-o incapaz de reagir ou falar, e momentaneamente mesmo de respirar. Indiferente a todos menos a Knorl, Slayra olhou contudo para trás por cima do ombro, e os seus olhos encontraram os siderados orbes de Quenestil. O gelo azul tantas vezes partido pelo pétreo cinzento mostrou-se mais frio e duro que nunca naquele singelo olhar, fazendo a pedra estalar com um frio mais penetrante que o do vento que uivava no exterior. Em contraste, os quentes arroubos que assolavam o corpo do shura pareciam provir de uma imensa ferida dentro dele reaberta com toda a violência de uma traição revelada, sangrando golfadas de aflição e de culpa, e rebentando por se ver incapaz de comportar a crua enormidade da realidade que presenciava.
Worick subia com o camareiro as escadas em espiral da torre do belver de Allahn Anroth, escoltado por quatro guardas armados de partazanas. O fidalgo arrastava a longa falda pelos degraus, e a julgar pelo alinhamento dos seus olhos papudos e boca sapuda, não parecia particularmente satisfeito por ali estar, mas a oferta que Worick fizera ao seu senhor não podia ser recusada de ânimo leve. Por muita vontade que lorde Aereth efetivamente tivesse de levar a guerra a lorde Sunlar, a garantia da parte do thuragar de conseguir convencer a princesa a dialogar com o pai e a sugerir-lhe uma alternativa pacifica não podia ser simplesmente ignorada, sob pena de o senhor de Ul-Thoryn parecer um açougueiro sanguinário. Ainda assim, lorde Aereth mostrou-se relutante, tendo era conta os preparativos que já haviam sido efetuados, e foi necessária a sugestão de obrigar Lhiannah a apresentar condições extremamente vantajosas para Ul-Thoryn para que a paz pudesse ser alcançada, condições essas que nenhum regente com um mínimo de orgulho e dignidade aceitaria. Lorde Aereth acabou por aceder e permitir a Worick ir visitar a princesa com a promessa de a convencer de que tais condições seriam a melhor alternativa para o seu pai, certo de que lorde Sunlar as veria como um mero insulto.
O thuragar vestia uma túnica e calças azuis com sapatos de ponta afilada, caminhando desajeitadamente com tão distinta indumentária, e olhava cabisbaixo para o chão. Dava a impressão de se ter conformado e por fim rendido após tão feroz resistência, apresentando-se agora dócil e disposto a fazer aquilo que lhe mandavam. Era um papel que lhe custava, mas que cumpria a bem da verosimilhança da tramóia que Taislin engendrara, e aproveitava o estar de cabeça baixa para rever mentalmente aquilo que o burrik lhe dissera na mensagem. Ainda achava a idéia uma loucura, mas a seu ver loucura era preferível a clausura, pelo que ia já mentalizado para castigar mais ainda o seu ainda algo Convalescente corpo. O seu coração acelerou assim que chegaram ao topo das escadas, e foi-lhe retumbando cada vez com mais força no peito à medida que se aproximavam da porta vigiada por um guarda.
— Abram-na — comandou o camareiro, esfregando as mãos com o frio que se fazia sentir no cimo da torre assolada por correntes de ar. — Não demore muito tempo, general. O vosso pedido deixou lorde Aereth algo impaciente.
— Vou fazer os possíveis — acordou o thuragar de forma invulgar e forçadamente congenial. — A minha cachopa sempre foi um pouco casmurra, e gosta muito do pai, mas eu dou-lhe a volta.
O camareiro grunhiu em resposta, indicando com um gesto da mão ao guarda que se apressasse a abrir a porta.
— Devo retirar-me agora. Sereis posteriormente conduzido aos vossos aposentos, onde devereis aguardar o fim das festividades, após o que sereis chamado à presença de lorde Aereth. Discutireis com ele então os resultados da conversa com a princesa.
— Certamente — acedeu Worick, flexionando os dedos em antecipação quando a fechadura da porta fez um último clique e esta foi aberta por um guarda, que lhe fez sinal para que entrasse.
— Muito obrigado — ainda se conseguiu o thuragar forçar a dizer antes de entrar, tendo de seguida a porta fechada nas suas costas.
O Ninho era escuro e frio, alumiado por uma mortiça candeia no buraco tapado por mantas que servia de janela. Lhiannah encontrava-se sentada no bloco de pedra que fazia as vezes de cama com uma manta aos ombros, um vulto melancólico de contornos coloridos de amarelo pela candeia e cabelos diante da cara, que contudo se ergueu à chegada do thuragar. Worick via bem no escuro, e mesmo em tão parcas condições de iluminação viu a expressão admirada na cara de Lhiannah, que contudo aparentou não o reconhecer à primeira vista, revelando porém logo de seguida uma incrédula surpresa que lhe embotou momentaneamente os sentidos, como se não se atrevesse a acreditar naquilo que estava a ver.
— W... Worick? — gaguejou com uma voz fraca.
— Cachopa...? — disse o thuragar, algo preocupado com a tibiez do tom de Lhiannah.
Tibiez essa que se dissipou de imediato quando a arinnir tirou a manta de cima de si com um brusco gesto dos braços, praticamente saltando de seguida para cima de Worick, cingindo-o com um abraço tenaz e enterrando-lhe a cara entre o ombro e o pescoço.
— Oh, Worick! — gemeu Lhiannah incredulamente, apertando o thuragar com tamanha força que este soltou um grunhido sufocado de olhos esbugalhados. — Deuses, como é bom ver-te! Tu não imaginas... tu não fazes idéia...
As palavras da princesa foram-se entaramelando, perdendo nexo e coesão e acabando por se desfazer num descontrolado pranto enquanto Lhiannah praticamente pendia dos ombros de Worick, que ia tropeçando para trás. Um tufo da barba era-lhe pressionado contra o repolhudo nariz pelo ombro da sua protegida, que nas vascas do seu desespero corria o risco de sufocar o thuragar.
— Unf... cachopa...
— Eu... eu pensei que nunca mais te veria, que ia morrer aqui — ouviu Lhiannah dizer contra o seu ombro, que começava a humedecer. — O Hepascar... ele disse que me matava... e o maldito Aereth... oh, Worick, como é que nós...
— Cachopa! — vociferou então Worick, conseguindo desenvencilhar-se o suficiente para a agarrar pelos braços e afastá-la bruscamente de si, dando-lhe em seguida uma sapuda chapada. — O que é que eu te ensinei? O que é que eu te ensinei, hã, cachopa?
Ao ver a cara de Lhiannah ainda contorcida numa lacrimejante careta de baba e ranho, o thuragar desferiu-lhe outra bofetada, desta vez com as costas da mão.
— Dura! Dura que nem pedra! Insensível como a pedra! Não foi isso que eu te ensinei? — barafustou, sacudindo a princesa pelos ombros. — Hã? Foi ou não foi, cachopa?
Lhiannah fitou o seu mentor com olhos marejantes, fungando e soluçando com cabelos diante da cara e alguns colados à boca, curvada sobre ele e de ombros encolhidos pela força com a qual Worick lhos agarrava. Os duros e empedernidos dedos do thuragar passaram-lhe então pela cara, afagando-a com dura ternura e tirando-lhe os fiapos louros da frente.
— Pedra, cachopa. Agora tens de ser de pedra, tal como eu te ensinei — insistiu, mais brando.
Lhiannah deu dois últimos soluços, inspirando então profundamente e deixando-se descair sobre o thuragar ao exalar, abraçando-o com mais calma. Worick retribuiu então, apertando a sua protegida contra si antes de a afastar novamente, olhando-a com ar sério.
— Para já temos de sair daqui — disse, falando em voz baixa para que eventuais ouvidos do outro lado da porta não o escutassem. — O mafarrico deixou-te umas coisas.
Lambendo o muco no lábio superior com a língua e recompondo o seu vestido branco, Lhiannah fungou uma última vez e fez que sim com a cabeça, indo prontamente buscar o odre de vinagre, os dois trapos, o martelo e o cinzel que o burrik lhe trouxera na sua inesperada visita.
— Deixou também uma corda... para nós usarmos — disse Lhiannah, forçosamente mais calma e com a voz tensa de quem se estava a conter.
— Ótimo. Traz-me essa corda então, e vamos ver onde a podemos prender... — pediu Worick, pegando no martelo e cinzel e abanando a cabeça ao olhar para a latrina. — Não acredito que vou fazer isto...
— O... o quê? Tirar...?
— Hum-hum — guturalizou o thuragar, avançando para a latrina mas detendo-se como se tivesse acabado de se lembrar de algo. — Ah, é verdade.
Remexendo nas calças, o thuragar tirou delas uma elaboradíssima pedra do tamanho de uma pequena maca, que pousou sobre a mão de Lhiannah.
— A tua prenda de anos, cachopa. Atrasada.
A pedra estava impecavelmente esculpida na forma de uma elaborada runa angulosa e com pontas, polida e de arestas limadas.
— Esse calhau esteve debaixo do teu berço. Comecei a esculpi-lo a partir do dia em que partimos de Vaul-Syrith — explicou o thuragar sucintamente, desagradado com o sentimentalismo implícito. — É para te proteger.
— Foi... — disse Lhiannah após alguns momentos em silêncio a olhar para a runa. — Foi isto que estiveste a fazer... este tempo todo?
Antes que o thuragar pudesse responder, Lhiannah tornou a abraçá-lo em agradecimento, e Worick fez que sim com a conformada cabeça, dando-lhe duas rápidas palmadinhas nas costas.
— Sim, sim. Vá, cachopa, temos trabalho a fazer — despachou-a, empunhando então martelo e cinzel e dirigindo-se à latrina. — Olha, eu pretensamente vim aqui para te convencer a falares com o teu pai.
— O quê? — perguntou Lhiannah, confusa.
— Não interessa, depois logo te explico — disse o thuragar, passando as mãos pela latrina para a estudar. — Agora finge que estamos a discutir, para que eles não ouçam o barulho. E vê se arranjas onde amarrar essa tal corda.
Worick assentou então a ponta do cinzel no espaço preenchido a argamassa entre a laje da latrina com assento de madeira e as cantarias, mas ao ver que a sua protegida continuava trôpega e atrapalhada, decidiu dar o exemplo.
— Nem pensar! — berrou. — Vais fazer isto, e ponto final, minha menina!
— O quê? Mas queres que eu...? — perguntou Lhiannah em voz insuficientemente alta.
— E não resfolegues! — berrou novamente, desferindo a primeira martelada. — Vais dizer o que lorde Aereth bem entender!
A princesa percebeu por fim, embora a simples menção a Aereth tivesse provavelmente por si só bastado, pois a testa de Lhiannah franziu-se de ambígua raiva ao ouvir o odiado nome, e a sua boca e nariz formaram o esgar de um animal que rosnava.
— Tu não mandas era mim! — berrou, e Worick acenou aprovadoramente com a cabeça, tenteando então a latrina em busca dos seus pontos fulcrais. Estava escuro, mas com o seu tato, o thuragar dispensava luz — Nem penses que eu vou fazer isso!
— Pouco barulho! Não é altura de te armares em menina mimada! — vociferou Worick, desferindo duas secas marteladas que racharam argamassa e deslocaram ligeiramente a laje da latrina.
— E não é altura de tu te armares em meu pai! — redarguiu Lhiannah, tirando as mantas da janela e pegando na corda que escondera atrás delas, desenlaçando-a apressadamente. Com todo o tempo do qual dispusera em clausura, a arinnir fizera uma série de nós ao longo do comprimento da corda, certa de que ajudariam na descida.
— Isso, cachopa — disse Worick para consigo, erguendo de seguida consideravelmente o tom de voz a tempo de cobrir uma nova martelada. — Deixa-te de criancices! Agora fazes o que eu te digo, ou...!
— Ou o quê? — quase estridulou Lhiannah, começando a ficar vermelha de tanto gritar. — Bates-me? É isso, é? Vais bater-me?
Ao ver que a princesa ia começar a atar a corda à barra de ferro da janela, Worick sinalizou um certo comprimento entre ambas as mãos e apontou com o cinzel para a porta. Lhiannah compreendeu e acenou com a cabeça, gritando um pouco mais para cobrir as marteladas enquanto passava a corda pela barra, deixando-a suficientemente folgada para que ainda pudesse chegar à porta depois de a amarrar.
— Não me toques! Tu estás feito com o Aereth!
— Oh, raça da cachopa! — barafustou Worick com uma martelada por palavra, penetrando no espaço de argamassa entre a laje e uma cantaria e deslocando a primeira ao forçar o cinzel.
A pretensa discussão acesa entre os dois continuou até Worick erguer a meio de um berro de Lhiannah a mão que empunhava o martelo, uma vez convencido de que enfraquecera suficientemente a latrina para a desmontar. O thuragar ergueu dois dos dedos da mão levantada e fez com eles sinal para que Lhiannah se aproximasse. A princesa largou a corda e assim fez, seguindo então as instruções para se posicionar ao lado de Worick diante da latrina.
— Lhiannah, tu sabes que não nos resta alternativa — disse em voz suficientemente alta para benefício de quem pudesse estar a ouvir do outro lado da porta, mexendo de um lado para o outro o cinzel cravado. Quando se deu por satisfeito, usou o instrumento como uma alavanca, alargando o espaço entre a laje e a cantaria, e indicou à princesa que enfiasse os dedos na fresta. Soletrou então uma contagem até três, após a qual Lhiannah ergueu com um grunhido a laje, que protestou com o ruído de argamassa a rachar.
— Boa, cachopa — sussurrou-lhe o thuragar, franzindo o nariz com o cheiro que veio da latrina aberta e pousando martelo e cinzel no chão. — Agora vai atar a corda à porta, e... pela Bigorna Dourada, não acredito que vamos descer esta coisa.
— Achas que agüentas, Worick? — preocupou-se a princesa, erguendo posteriormente o tom de voz. — Não, o meu pai nunca o aceitaria!
O thuragar não respondeu, e enquanto Lhiannah ia atar a ponta da corda à porta, encharcou os dois trapos brancos com vinagre, levando o primeiro à sua boca como uma máscara. O intenso odor acre escarrapachado no seu nariz trouxe-lhe lágrimas aos olhos, e o thuragar fez sinal à sua protegida para que continuasse a falar enquanto os esfregava.
— Tens que perceber, Worick, o que o Aereth me fez... o meu pai nunca lhe irá perdoar — continuou Lhiannah, dando um último e forte nó à corda e indicando as mantas com as quais o thuragar se devia cobrir.
Este tirou a máscara, piscando os olhos lacrimejantes com uma caricata careta de boca aberta, fungando antes de se começar a enrodilhar com uma manta, certo de que esta apenas o resguardaria do pior da latrina.
— Não, cachopa, o teu pai é um homem sensato, e perceberá que esta é a melhor alternativa — disse enquanto Lhiannah se revestia ela também com uma manta. Inspirando fundo, o thuragar atou novamente a máscara de vinagre atrás da sua nuca e apontou para Lhiannah e de seguida para o seu olho, deixando-o deslizar pela maçã do seu rosto abaixo.
— Mas... mas o que é que achas que ele vai pensar de mim se eu disser isso? — indagou a princesa, de voz trêmula, ao perceber a deixa.
O thuragar acenou aprovadoramente com a cabeça, e Lhiannah forçou-se a soluçar, sem grandes dificuldades para verter lágrimas novamente.
— Oh, Worick, eu sinto-me tão perdida... — lamentou-se a arinnir de forma teatral. — Tinha tantas saudades tuas...
Lhiannah recomeçou a chorar, e Worick fez continuamente que sim com a cabeça enquanto esta desempenhava o seu papel e se vestia. Por fim, quando ambos estavam devidamente revestidos por uma manta e de máscaras postas, dirigiram-se à latrina, apoiando ambos as mãos nela e olhando para a abjeta escuridão no fundo enquanto Lhiannah emitia soluços abafados pelo trapo com vinagre. Era uma peripécia ousada, aquela à qual se propunham a mando de Taislin, em cujos planos nenhum dos dois alguma vez verdadeiramente se fiara.
— O caganito disse na mensagem que me deixou que há mais corda lá para baixo — sussurrou o thuragar, pegando na de que dispunham. — Se ele se enganou, estamos bem arranjados.
Lhiannah meio assentiu, meio soluçou.
— Bom, eu vou primeiro — predispôs-se o thuragar, passando uma perna sobre a cantaria e sendo agarrado pelo ombro por Lhiannah, que o fitou com pequenas labaredas tremulas nos olhos, resultantes da lamparina que ardia fracamente sobre a cama.
— Worick... — sussurrou. — Se a corda não agüentar, não importa quem vai por cima ou por baixo.
— Não interessa — disse o thuragar teimosamente, atirando a corda pela latrina abaixo e puxando-a até esta ficar tesa. — Se calhar devia ir só eu primeiro, cachopa...
— E se alguém entra?
Conformado, o thuragar agarrou a mão de Lhiannah e apertou-a com força.
— Coragem. Vamos sair daqui.
Para grande surpresa de Worick, a princesa sorriu.
— Quer dizer que já confias no Taislin?
— Hmpf — resmungou o thuragar sem sequer se dignar a responder, agarrando a corda com ambas as mãos e deslizando por ela os pés até os assentar no primeiro nó.
Os dois começaram então a descida, e os braços de ambos queixaram-se logo de início do esforço, sobretudo os de Worick. Embora mais robusto e forte, era também mais pesado que Lhiannah, e a sua longa convalescença deixara-o fraco, mas o thuragar rilhou os dentes e afrontou a fraqueza com a lendária teimosia da sua raça, recusando-se a dar parte de fraco numa altura daquelas. Por sua vez, e apesar de ter arrancado à força o seu corpo da letargia na qual este decaíra, Lhiannah também se sentia fraca, e mesmo com a ajuda dos nós, o esforço inicial de descer a corda abalou os fundamentos da sua crença de que seriam capazes de descer a torre até ao fim. Além de escuro e iluminado apenas pela parca luz de alguns buracos ao longo do seu comprimento, o tubo era apertado também, o que os forçava a arrastarem-se pelos dejetos ainda que não o quisessem. Nenhum dos dois hesitou, contudo, e o choque da dificuldade inicial cedo se dissipou à medida que humana e thuragar iam encontrando o seu ritmo, habituando-se a pouco e pouco às inalações avinagradas.
Porém, não eram apenas os seus músculos que estavam a ser testados, pois a repulsa e o nojo que sentiam por se encontrarem a descer o tubo de uma latrina quase se sobrepunham ao esforço físico. Lhiannah sentia o estômago subir-lhe à boca ao deslizar pela parede caiada de dejetos, mesmo com as costas revestidas por uma manta, e cerrava os olhos sempre que um fiapo de odor fecal se lhe entranhava pela máscara adentro. Worick tentava mentalizar-se que se encontrava num dos túneis da cavernosa comunidade na qual nascera, ou perto dos cadáveres de entranhas evacuadas no campo de batalha, tudo menos a noção de estar a descer o tubo de uma latrina como uma ratazana, revolvendo-se em dejetos de humanos. Para se distrair, ia insultando Taislin em Garogar, invocando os mais obscenos epítetos e lapidando o nome do burrik com palavras duras como pedras. Lhiannah ouvia os palavrões, mas estava demasiado concentrada na sua avinagrada respiração e em se manter agarrada à corda para lhes dar grande atenção. Cada músculo no seu corpo trabalhava, e apesar do frio que se fazia sentir no tubo, a princesa começou a transpirar, e os poros da pele sobre o seu lábio superior principiaram a arder quando o suor se misturou com vinagre.
— Estás bem, Worick? — perguntou, olhando para baixo.
— Ligeiro que nem tripa... depois de comer... uma cesta de peras — disse o thuragar com voz esforçada. — É uma comparação apropriada... não achas?
Preocupada, a princesa nada disse.
— Olha... a corda acaba aqui — reparou Worick, e as suas palavras fizeram com que o coração de Lhiannah lhe jorrasse fogo no peito. — O raio do mafarrico... fez bem as contas. Está aqui outra.
Lhiannah suspirou.
— Não faças isso, Worick... assustaste-me.
— Heh — riu o thuragar, zombeteiro. — Ora anda cá... mas que requinte... o caganito andou para aqui... a martelar estacas de ferro.
— O quê? — ofegou Lhiannah.
— Ah, isto afinal... vai ser canja — afirmou Worick, passando para a segunda corda, que contudo não tinha nós. —- Não te preocupes, cachopa... vamos descer esta trampa...
Se tal lhes tivesse sido possível, Worick e Lhiannah teriam desistido a meio caminho, mas tendo como única alternativa a queda livre, foram forçados a continuar. De costas, ventre, pernas e braços doridos, os dois foram descendo o tubo da latrina em moroso esforço, pressionando ocasionalmente as costas contra a parede com as pernas apoiadas na oposta para descansarem os braços, o que contudo lhes cansava as costas e as pernas. Taislin deixara comprimentos de corda bem intervalados ao longo da descida, sendo que cada estaca de ferro que surgia era uma benesse para humana e thuragar, visto que podiam nela apoiar um pé ou dois e repousar um pouco mais, o que também aproveitavam para fazer sempre que encontravam uma abertura inclinada a escorrer urina e fezes. As mãos de ambos já estavam assadas pelas cordas, e envolveram-nas com as pontas das mantas para as resguardar na medida do possível, mas estas e todas as restantes partes dos seus corpos imploravam por descanso e suplicavam-lhes que parassem. A partir de determinada altura, Worick e Lhiannah não mais trocaram palavras, demasiado ocupados a respirarem e a prestarem atenção aos seus trêmulos músculos para que estes não lhes falhassem de um momento para o outro. As suas mentes embotadas pelo asco e repulsa pela languinhenta sordícia que os rodeava e pela qual se arrastavam estavam reduzidas às mais primárias funções de sobrevivência, focando-se apenas nos contínuos e repetidos movimentos de braços e pernas durante a descida, sem espaço para pensamentos ou ponderações que as pudessem disttair. Tanto a princesa como o thuragar já tinham perdido toda e qualquer noção de tempo, mas nem a hipótese de os guardas se poderem ter dado conta da sua fuga os preocupou, de tão concentrados que estavam em simplesmente sobreviver à descida. O odor ia piorando à medida que desciam, e nem um nem outro queria imaginar qual seria a sensação se as suas máscaras ensopadas em vinagre caíssem. O odor mais intenso teve neles porém um efeito animador, pois mesmo as mentes embotadas de Worick e Lhiannah o conseguiram associar à proximidade do fundo da latrina, o que o thuragar confirmou ao olhar para baixo e distinguir o tremulo arder de chamas.
— Cachopa... — ofegou, a sua respiração fogo nos pulmões. — Estamos quase... a chegar...
— Estamos...? — arquejou Lhiannah, incrédula.
— E só... mais um pouco.
Dito isto, os dois grunhiram e ferraram os dentes, fortalecendo os seus corpos para a reta final e constatando com grande alívio que a última corda tinha nós. O tubo desembocou então numa câmara subterrânea na qual se encontrava uma das fossas do palácio, iluminada por uma tocha e com uma carregada atmosfera fecal que o vinagre mal conseguia dissimular. Um pouco acima do nível da fossa havia um piso de pedra com a borda úmida e manchada, no qual se encontrava uma série de baldes e longas pás de madeira, e além do qual subia um lanço de escadas até uma porta. Desse piso partia também uma imunda plataforma de madeira ao longo da parede, bem debaixo do tubo, e foi sobre ela que Worick se deixou cair e à sua manta, cambaleando então de seguida até ao piso de pedra e derrubando um balde ao tombar, exausto. Lhiannah seguiu-se-lhe, tropeçando de pernas vacilantes e caindo de joelhos ao lado do thuragar, deixando o pescoço descair para a frente e apoiando a mão no ombro do seu mentor.
— Worick... sentes-te bem?
— Não há tempo... — arfou o thuragar. — Procura... uma pedra marcada... com uma cruz...
— O quê? — disse Lhiannah, curvando-se preocupada sobre Worick.
— O mafarrico... deixou uma pedra deslocada... marcada com uma cruz. Procura-a... eu fico bem.
Lhiannah acenou com a cabeça e livrou-se da sua manta com um grunhido enojado, mas manteve a máscara de vinagre ao erguer-se e procurar por uma pedra que correspondesse à descrição de Worick. A sua vontade era espojar-se no chão de membros espraiados, mas agora que passara a provação de descer a latrina, a sensação de urgência sobrepunha-se à sua fadiga, e a princesa estava ciente de que quanto mais tempo ali passassem, mais riscos corriam que a sua fuga fosse descoberta, se é que ainda não o fora. Enquanto a princesa procurava a pedra, Worick tentava recuperar o fôlego, com cada músculo do seu atarracado corpo a tremer e o punho cerrado ao peito, tentando acalmar o seu coração. Naturalmente que não o dissera a Lhiannah, mas a razão pela qual quisera ser ele o primeiro a descer fora para, na eventualidade de cair, não levar a sua protegida consigo. Worick sabia que estava fraco, e por várias vezes durante a descida pensara que não agüentaria mais, que o seu corpo o atraiçoaria e que cairia para a sua morte. Tai não acontecera, felizmente, mas isso em nada ajudou o orgulhoso thuragar, que cerrava os punhos de raiva para com a sua própria fraqueza.
«Velho dum raio...», praguejou consigo mesmo. «Não vales mesmo nada... não passas de peso morto...»
— Olha, encontrei! — anunciou Lhiannah, acocorando-se diante da pedra demarcada com uma cruz sem que o thuragar ouvisse as suas palavras.
«Abranda, Abranda, seu sacana, já passou!», ordenou o thuragar ao seu coração, cerrando dentes e olhos e pingando suor e vinagre da barba ao sentir um novo arroubo de calor assomar-se-lhe à face, vendo-se incapaz de erguer o tronco do chão com os braços. A máscara dificultava-lhe a respiração, pelo que a agarrou e se livrou dela, agitando a cabeça. «Não há tempo para ficar aqui deitado, fracote!»
Alheia ao conflito interno de Worick, Lhiannah desencaixou a pedra do seu lugar e encontrou debaixo dela uma chave e uma mensagem dobrada, que prontamente abriu.
— Está aqui uma mensagem! — informou, mexendo os lábios ao lê-la para si.
Worick nada disse, ocupado como estava a tentar erguer o seu corpo com pura raiva, visto que tudo o resto lhe falhava. A fúria que sentia para consigo mesmo e para com a sua fraqueza cedo transbordou para Aereth, que tinha como responsável pela sua condição, e o thuragar deu largas ao ódio que sentia para com o imbecil que o deixara e a Lhiannah em semelhante situação.
«Estúpidopirralho cretino...», imprecou de grandes narinas frementes. «.Depois de todos os riscos que corremos para trazer o teu pai... Pelo que nos fizeste, juro que te racho os cornos com o meu martelo da próxima vez que te vir! Arranco-te o nariz empinado â dentada, meu filho duma grande...»
O raivoso formigar do escalpe de Worick deu lugar a um eriçar dos pêlos do seu pescoço quando sentiu uma presença atrás de si. O thuragar virou-se precisamente ao mesmo tempo que Lhiannah olhou por cima do ombro.
— Worick! O Taislin diz aqui que...!
Ainda antes de ver o horrendo vulto curvar-se com uma convulsão sobre o seu mentor, Lhiannah ouviu o revoltante ruído de alguém a vomitar, seguido do sobressaltado grunhido do thuragar, abafado pelas mãos deste quando as levou à cara.
— Worick! — gritou Lhiannah, virando-se completamente e erguendo-se, e então estacou ao ver quem se encontrava sobre ele.
Hepascar limpava com a manga o líquido amarelo-esverdeado que lhe pingava do queixo sobre a barriga bojuda de veias azuis que se alastravam do umbigo, sorrindo de forma grotesca para Lhiannah com os seus dentes tintos da mesma cor.
— Olá linda. Há quanto tempo.
A princesa viu-se momentaneamente retida por duas reações opostas, a de fugir do homem que a aterrorizara aquelas semanas todas no Ninho, e a de proteger o seu mentor, sendo que a segunda acabou por prevalecer.
— Afasta-te dele, maldito! — gritou, olhando em redor e pegando numa das longas pás de madeira, empunhando-a como a uma arma de haste.
— Oh, eu afasto-me, claro — acedeu o haghral, erguendo as mãos de palmas rubras em sinal de paz e recuando para a parede. — Duvido é que ele se queira afastar de ti...
Lhiannah não percebeu e avançou de dentes arreganhados, ameaçando Hepascar com a pá suja de excrementos enquanto olhava para Worick, que rebolava pelo chão, grunhindo através dos dedos que lhe cobriam a cara.
— O que é que lhe fizeste, maldito? — demandou, recebendo apenas como resposta um riso escarnecedor do haghral, que se afastou ao longo da parede assim que a ela se encostou, aproximando-se da porta.
Worick parou abruptamente de rebolar, quedando-se numa posição de barriga para o chão e de cara ainda coberta pelas mãos, de entre cujos dedos escorria o viscoso líquido amarelo-esverdeado. Hesitante, Lhiannah aproximou-se dele, olhando alternadamente para o thuragar e para Hepascar, que continuava a sorrir como se tivesse uma surpresa preparada.
— Worick? — perguntou a arinnir, flexionando ligeiramente as pernas e estendendo a mão para tocar no seu mentor enquanto segurava a pá com a outra.
Foi então que o thuragar tirou as mãos da cara e a ergueu, fitando Lhiannah com um odioso esgar que fez com que a princesa recuasse um passo. As suas feições estavam contorcidas numa máscara de fúria que lhas sulcava com uma série de rugas, das quais escorria o vil líquido.
— É sempre tão fácil com os thuragar — comentou Hepascar, suspirando de braços cruzados. — Os maus fígados da raça não representam o mínimo desafio.
Praticamente rosnando, Worick ergueu-se de barba a pingar e punhos cerrados, acercando-se ameaçadoramente de Lhiannah, que recuou outro passo.
— Worick, sou eu — disse Lhiannah nervosamente. — O que é que estás a fazer?
O thuragar avançou então bruscamente, forçando Lhiannah a enristar a comprida pá que empunhava, o que o reteve sem contudo fazer com que parasse de avançar.
— Worick... o que é que lhe fizeste, maldito? — tornou a princesa a perguntar, mas a única resposta da parte de Hepascar foi uma nova risada ao ver a princesa recuar com medo do seu mentor.
— Delicioso, minha linda — comentou, de braços cruzados e encostado à parede perpendicular da qual Lhiannah se aproximava. — Não é bem o que tinha em mente, mas a arte é por vezes improviso...
Worick não ouvia nada do que se dizia, fitando Lhiannah com ódio e avançando com lentos passos laterais na tentativa de evitar a imunda pá de madeira que a princesa empunhava. Esta ia recuando, fazendo que não com a cabeça e tentando trazer o thuragar à razão, até de repente bater com a ponta oposta da pá na parede. O breve instante de hesitação e atrapalhação foi quanto Worick precisou para esbofetear a cabeça da ferramenta para fora do seu caminho, carregando então contra Lhiannah com um berro e enfiando o ombro direito na barriga desta. A princesa expeliu o ar dos seus pulmões com um sonoro arquejo e embateu violentamente com as costas contra a parede, curvando-se sobre as do thuragar, que de seguida a alçou sobre a cabeça com outro berro. Lhiannah deu uma cambalhota no ar, desfraldando a saia e os cabelos e largando a pá, caindo mal de anca e ombro no chão com um grunhido sufocado. Os seus ossos lançaraxn-lhe pontadas de dor pelo tutano fora, mas ainda assim a arinnir tentou erguer-se, sendo então forçada a resguardar-se com os braços de uma joelhada lateral do thuragar quando este lhe pegou pelos cabelos e lhe puxou a cabeça contra o joelho, berrando.
— Worick, nã...! — Antes que pudesse acabar, o outro joelho de Worick penetrou-lhe por entre os dois braços, fazendo os seus dentes estalarem uns contra os outros e atirando para trás a cabeça de Lhiannah, que agiu por puro instinto ao agarrar a perna do thuragar antes que a pudesse agredir uma terceira vez.
Gritando em desespero, a princesa puxou Worick para o chão, no qual rebolou com ele para grande prazer de Hepascar, que observava o combate com grande deleite, calando-se porém ao virar bruscamente a cara para a porta, da qual se ouvia o ruído de chaves na fechadura. Alheio a tais sons, Worick rosnava e berrava intermitentemente, esmurrando os rins de Lhiannah enquanto rebolava com ela pelo piso sujo, até que chegaram à parede oposta, contra a qual a arinnir bateu com a cabeça. O thuragar encontrava-se por cima, tentando chegar com as ásperas mãos à garganta de Lhiannah, que o mantinha afastado de pernas flexionadas e pés plantados no seu peito. Ambos ferravam os dentes, Worick de raiva e Lhiannah com o esforço de manter longe da sua cara as mãos do thuragar, que estava a exercer uma força tal que o cocuruto de Lhiannah se arrastou pela parede acima, até a princesa ficar com nuca e pescoço encostados a ela.
— Parece que vamos ter companhia... — comentou Hepascar, batendo com as mãos, após o que a porta se abriu de rompante, batendo contra a parede e atirando pelas escadas abaixo um balde que se encontrara perto desta.
— Quem vai aí? — gritou um guarda arnesado, levando a mão ao punho da espada ao ver o que se estava a passar e gritando por cima do seu ombro. — Alerta! Os prisioneiros fogem!
Lhiannah respondeu com um sofrido grunhido, empurrando ambas as pernas para a frente e tirando Worick de cima de si ao impulsionar o thuragar, que lhe arrancou parte da saia ao agarrar-se a ela e derrapou pelo chão, rebolando para uma posição acocorada, pronto a investir novamente. Porém, o humano arnesado que descia as escadas com passos acerados e a empunhar uma espada de lâmina triangular com ambas as mãos reteve a sua atenção, permitindo um momento de refolgo a Lhiannah.
— Quietos, os dois! — ordenou o guarda a três quartos da escada, apontando a ponta da espada a Worick e Lhiannah, e falhando em ver Hepascar, que se manteve discretamente encostado à parede atrás dele.
O thuragar pareceu esquecer Lhiannah e fixou o olhar no guarda, começando a aproximar-se dele com os mesmos intuitos raivosos, o que fez com que o homem tornasse a virar a ponta da espada na sua direção em advertência.
— Não se mexa, general! — avisou, olhando ainda pelo canto do olho para Lhiannah, que se encontrava numa posição acocorada, esfregando sangue do canto da boca com a mão.
Worick porém não lhe deu ouvidos, investindo com um furioso grunhido que fez corn que o humano recuasse um degrau, admirado pela ousadia de um thuragar desarmado e desprotegido estar a atacá-lo. O guarda desferiu um altabaixo com o lado plano da lâmina, do qual Worick se desviou a meio da investida, tentando então agarrar a perna do humano, que o chutou com a outra. Worick cambaleou para trás com o golpe, recuando diante do avanço do guarda e pegando num dos baldes de madeira como uma arma para o enfrentar.
— Worick! — gritou Lhiannah, levantando-se e afastando-se da parede para ajudar o seu mentor.
Foi retida quando Hepascar a agarrou pelos cabelos, esticando-lhe abruptamente o pescoço e puxando-a violentamente de volta contra a parede, na qual a arinnir bateu com a cabeça. Atordoada, foi de seguida esmurrada no estômago e empurrada para o chão com um gesto de desprezo.
— Novamente interrompido — queixou-se, olhando em redor. — Mas julgo que é um cenário que se adequa, não te parece? Uma tumba fecal, uma morte a meio de dejetos, quando tu própria não passas de um dejeto daquilo que outrora foste, reduzida a uma bola enrolada de medo e raiva enquanto o teu protetor se mata a lutar contra aquele simpático guarda. Poético.
Arquejando, Lhiannah soergueu-se do chão agarrada à barriga e com a cabeça a latejar, sangrando da boca por ter mordido a bochecha. Hepascar riu de forma doentia e lambeu os lábios feridos ao ver a princesa levantar-se de membros trêmulos.
— Sim, um quadro memorável, um tributo digno da minha progenitora — afirmou o haghral, acenando aprovadoramente com a cabeça e fitando Lhiannah com um brilho maníaco nos doentios olhos verdes cercados de amarelo. — Hoje, o coração ira verter.
Algo no tom de finalidade da voz de Hepascar alvoroçou Lhiannah, instigando-a a levantar-se quase de um salto e a atacá-lo, mas o haghral desviou-se facilmente do seu golpe, pegando-lhe pelas costas e atirando-a de cara contra a parede. Ossos e palmas de mão estatelaram-se contra pedra num ruído abafado pelo aço a embater contra madeira quando Worick aparou uma espadeirada com o balde que empunhava. O guarda não lutava para matar, procurando antes incapacitar o thuragar, mas este defendia-se ferozmente com o singelo balde malcheiroso, cujas lascas deixavam no chão um trilho que demarcava o percurso da contenda de ambos.
— Renda-se, general! — ordenou o guarda, atrapalhado. — Não me force a...!
Ao dizê-lo, o humano encalhou a lâmina da espada no espaço entre duas aduelas do balde com um golpe, e Worick torceu-o imediatamente, arrancando-lhe a arma da mão. Sem se deter, atirou o balde ao chão e baixou-se para evitar um golpe de manopla do guarda, agarrando-lhe então a perna e puxando-a para cima com um grunhido. O homem caiu ao chão com um sonoro clangor do arnês e o thuragar caiu-lhe em cima, esmurrando-lhe o elmo com punhos desnudos.
— Oh, linda, o teu protetor está a esforçar-se mais do que tu — comentou Hepascar, dando uma olhadela à luta por cima do ombro e abanando a cabeça. — Se calhar vou ter de o matar primeiro para te motivar, não?
Lhiannah estava de mãos coladas à parede, tendo deslizado por ela até ficar de joelhos, mas ao ouvir a ameaça do haghral virou-se de costas e ergueu-se com joelhos trêmulos, arrastando-se para cima com as palmas da mão. Os seus dentes estavam manchados de vermelho, e a raiva ardia-lhe nos olhos atiçados que nem brasas pelas palavras de Hepascar, que arregalou as agradadas sobrancelhas.
— Ah, assim está melhor. Ficas mais bonita ainda quando fazes cara de má — apreciou Hepascar com um sorriso doentio.
Lhiannah rosnou e investiu de punhos cerrados contra o haghral, que se desviou com um riso escarnecedor do seu primeiro murro, baixando-se para evitar o segundo e enfiando o cotovelo na ilharga da arinnir. Lhiannah arqueou as costas com o golpe, curvando-as para a esquerda e para a direita quando Hepascar lhe desferiu dois murros nos rins, empurrando-a de seguida novamente para o chão, rindo. A princesa tentou amparar a queda com as mãos, mas os exaustos músculos dos seus braços falharam-lhe e Lhiannah embateu de peito contra o piso, esbofando com a queda. O tombo fez com que algo lhe saltasse do vestido, saltaricando pelas lajes sujas com pequenos cliques de pedra contra pedra antes de parar, oscilante, diante da cara da arinnir. Era a runa que Worick lhe oferecera.
— A tua raiva é deliciosa, linda — disse Hepascar, tirando duas lancetas da sua cinta com palhetas e rodopiando-as nos seus dedos. — Está na altura de acabarmos com isto, enquanto o fel te ferve no fígado.
«Dura que nem pedra. Insensível como a pedra», lembrou-se a arinnir, focando então a sua visão na espada que se encontrava além da runa, caída no chão e encalhada no balde.
— Oh, então? Esperava um pouco mais de dignidade de ti, linda! — reclamou o haghral quando Lhiannah começou a rastejar, arregalando porém as sobrancelhas e abrindo a boca em jeito de compreensão ao ver a arma à qual se dirigia. — Aaaah... mas que bem. Força, ünda, pode ser que isso te ajude.
Ignorando-o, Lhiannah arrastou-se até à espada, crispando os dedos no punho desta e apoiando a outra mão no balde para a arrancar, rebolando então sobre o ombro e empunhando a espada com ambas as mãos de ponta virada para Hepascar, que ergueu as suas com as lancetas presas pelos polegares.
— É sem dúvida maior que as minhas! — comentou, jocoso, recuando um passo em pretenso receio.
«Dura que nem pedra. Insensível como a pedra», repetiu a princesa para consigo, apoiando uma mão no chão e principiando a erguer-se, mantendo a espada apontada a Hepascar.
A alguns passos de distância a seu lado, Worick contendia com o guarda no chão, grunhindo e rosnando que nem um javali enquanto agredia o humano com o balde que entretanto agarrara, mas naquele momento Lhiannah estava plenamente concentrada em Hepascar, que abria os braços e expunha a bojuda barriga convidativamente.
— Anda, linda, que mais vale acabar uma coisa boa antes que ela se torne enfadonha — disse o haghral, chamando-a com os dedos de ambas as mãos.
«Dura que nem pedra. Insensível como a pedra», amiudou Lhiannah de tendões bem visíveis nas costas das mãos, aproximando-se de Hepascar a passos lentos mas decididos.
O diabólico sorriso do haghral chegou-lhe quase até aos olhos amarelentos, e as máculas vermelhas na sua cara macilenta floriram como rosas malsãs. De lancetas empunhadas, parecia finalmente disposto a pôr um fim ao tormento de Lhiannah, que contudo continuou a avançar, mantendo a ponta da espada ao nível da barriga de Hepascar e os olhos de um azul vago fitos nos dele, que o haghral tomou por sinal de terror. A sua cara era uma fria máscara de concentração, hirta e firmada à excepção da boca, que se mexia, enunciando silentes palavras.
«Dura que nem pedra. Insensível como a pedra.»
— Devo confessar que foi um prazer, linda. Espero que tenha sido mútuo? — Lhiannah não respondeu, e Hepascar fechou a boca, embora mantivesse o sorriso. — Sim, tens razão. Acabemos com isto.
Inabalável, a princesa continuou a avançar, começando então a murmurar as palavras, torcendo o couro do punho da espada em direcções opostas com as duas mãos. Hepascar expôs descaradamente o seu torso à ponta da lâmina, enfunando o peito cavo em jocoso desafio
— O coração irá vert...
Foi então que os seus insalubres olhos se arregalaram a par da boca, da qual lhe escapou um pasmado arquejo, após o qual Hepascar olhou incredulamente para baixo, para a lâmina que a princesa com um golpe rápido e frio enterrara na sua grotesca barriga de irradiantes veias azuis. Inalando roucamente com o choque do frio aço que lhe trespassava as entranhas e que nelas se continuava a enterrar devido ao inexorável avanço da arinnir, o haghral elevou a cabeça para olhar para Lhiannah, cuja expressão se mantinha inalterável e cuja voz ia subindo de tom a cada passo.
— Dura que nem pedra. Insensível como a pedra — continuou, lenta, calma e ponderada como os seus passos que iam conduzindo Hepascar à parede.
O haghral ia recuando, tremendo e levando as mãos à lâmina triangular, cujo gume lhe mordeu as rubras palmas das mãos, vertendo sangue. O seu hálito doce e amoniacal era exalado pelos seus gemidos secos, formigando nas narinas de Lhiannah, que em contraste com a sua disposição geral começavam a fremir. Quando o haghral foi encostado à parede, os dois ficaram a olhar um para o outro, ambos a tremer e de respiração acelerada, que no caso de Lhiannah lhe começava a entrecortar as palavras.
— Dura... que nem... pedra... — disse, e um tremor da espada soltou um fio de sangue da bojuda barriga de Hepascar, que estremeceu, chiando do fundo da garganta. Em crescente pânico, reconheceu a fúria que reemergia no azul dos olhos da princesa, tarde de mais para lhe poder valer.
— Insensível... como... a pedra — continuou, arrancando a lâmina do abdome de Hepascar e cortando-lhe mais ainda as palmas das mãos, que pousaram sangrentas sobre a mortal fresta na sua barriga.
O haghral começou então a escorregar para o lado pela parede, mas Lhiannah cravou-o contra ela, trespassando-o por debaixo do esterno e sentindo a ponta retinir secamente contra a pedra do outro lado. Os olhos de Hepascar esbugalharam-se mais ainda, e o nariz de Lhiannah franziu-se então como o de uma loba a rosnar, uma impressão reforçada pelo torcer do seu lábio, revelando ferozes dentes.
— Dura que nem pedra — disse, arrancando novamente a espada e, movida por uma repulsa extrema pela cara de Hepascar, levou a espada atrás e golpeou-a em seguida de lado, atingindo-o entre maxila e mandíbula, cortando-lhe a pele da boca e encalhando o gume na articulação da queixada.
— Insensível como a pedra — puxando a espada uma vez mais, a arinnir rilhou a lâmina nos dentes do haghral, e cravou-lha seguidamente no peito, rachando costelas e perfurando o coração, que espirrou uma golfada escarlate assim que a princesa sacou novamente a lâmina.
O sangue quente chapinhou-lhe sobre a coxa, e nesse momento a pedra rachou e Lhiannah sentiu-se tomada por uma vertigem, começando a golpear selvaticamente o haghral, tendo a sua visão distorcida ao ponto de apenas ver um vulto vago contorcer-se e estremecer a cada um dos seus golpes à medida que espetava, talhava e dilacerava, sentindo o aço morder osso e lacerar carne. O sangue salpicava-lhe o vestido e a cara com gotas cálidas, acirrando-a ao ponto de começar a gritar a sua ladainha à medida que toda a raiva e medo reprimidos lhe jorraram numa torrente contra o homem que a atormentara e humilhara durante semanas a fio. Não mais exaustos, os seus braços mexiam-se por sua própria iniciativa e com os músculos em fogo, malhando e espetando com abandono. Mesmo com Hepascar reduzido a uma ruína alanhada e sangrenta, Lhiannah não parou, continuando a golpear e estocar o agora inerte corpo do haghral.
— Dura! Que nem! Pedra! — gritou a princesa selvaticamente, pontuando cada palavta com uma espadeirada, espirrando golfadas de sangue para o ar com a rápida ascensão e descida da lâmina. — Insensível! Como! A pedra!
Lhiannah teria continuado, não lhe fossem os braços agarrados por dois pares de mãos que a arrastaram violentamente para o chão, após o que um joelho metálico lhe assentou sobre a ilharga. Completamente descontrolada, a arinnir debateu-se e escoiceou com as pernas, abanando a cabeça de um lado para o outro ao tentar libertar-se de quem quer que a estava a agarrar. Ouviu então mais passos metálicos, e escarpins passaram apressadamente diante da sua cara, acompanhados de vozes bruscas e violentas.
— Louca!
— Assassina!
— Segurem-na!
Lhiannah rosnava-lhes roucamente em resposta e sacudia a cabeça, até que uma manopla lhe forçou o lado da cara ao chão, mantendo-a quieta e premindo-lhe a maçã do rosto molhado de sangue contra a laje, em advertência. Calhou que o lado para o qual ficara virada lhe permitisse ver Worick ser ele também agarrado por dois guardas e removido de cima daquele que estivera a combater, chegando ainda a agredir um com o cotovelo antes de receber o mesmo tratamento de Lhiannah de forma mais bruta e expedita. Foi só então que a princesa se deu conta do que verdadeiramente se estava a passar e das devidas implicações, estacando e soltando um arquejo que lhe tirou os cabelos que estavam sobre a sua boca.
Tinham falhado.
O salão real de Allahn Anroth estava decorado a rigor para o dia de anos da princesa Iollina, com o seu enorme e esplendoroso candelabro dourado decorado com flâmulas verdes, os pilares enro-dilhados por coloridas grinaldas, vistosas tapeçarias com os brasões de ambas as casas pendurados entre as colunatas atrás dos comensais, e as cornijas das paredes ornamentadas por festões entremeados de bagas falsas em homenagem ao teixo do brasão de Lennhau, tapando dessa forma as gravuras dos brasões das restantes províncias de Nolwyn. As mesas estavam dispostas em forma de U, com os assentos principais na base resguardados por um baldaquim com cortinas vermelhas debruadas a fio de ouro, sendo que a traseira estava repuxada para permitir que uma das três fogueiras da sala aquecesse as costas dos mais ilustres presentes. Além do baldaquim havia um palco montado em ambas as pontas da mesa, em cima do qual um grupo de músicos entretinha os comensais, entre cujas mesas dançava e saltava uma família de saltimbancos, executando acrobacias, pulando por cima uns dos outros e formando pirâmides humanas com crianças aos ombros. Estavam presentes as cortes de Ul-Thoryn e Lennhau em mesas opostas, enquanto na principal se encontravam Aereth, Lethia e os pais desta, acompanhados dos paladinos Daveanorn e Cortun.
A atmosfera e a indumentária dos presentes era festiva, condizendo em grande parte com os vivos frescos das paredes, embora os comensais se mantivessem sóbrios e comedidos, pois o tempo de guerra aproximava-se, e foram poucos os sorrisos e risadas. As conversas mantinham-se sobretudo em tom baixo, facilmente sobrepostas pela música, o que forçava os falantes a inclinarem-se para os seus interlocutores, que quase tinham de encostar orelhas a bocas para conseguirem ouvir. Os da corte de Lennhau mexiam-se desconfortavelmente nos seus assentos, parecendo acalorados e lançando olhares incomodados às lareiras que tinham nas suas costas, embora todos os outros parecessem achar a temperatura bastante aceitável. Dilet, o bobo, saltitava em redor, falando sozinho e executando piruetas em resposta às acrobacias dos saltimbancos, como se estivesse numa competição privada com estes. Um dos pratos servidos foi gamo em vinho tinto com bagas de zimbro, uma especialidade de Lennhau, em cujas florestas o belo animal vagueava em grupos, mas o gesto passou em grande parte despercebido e os serventes foram trazendo outros pratos.
Iollina dava o mote de comedimento geral, permanecendo cabisbaixa durante as festividades e debicando ocasionalmente do seu prato sem sequer olhar para os saltimbancos. A seu lado, Aereth mostrava-se pouco mais sociável, tentando apenas ocasionalmente falar com Daveanorn, que lhe respondia de forma fria e distante devido aos seus recentes desentendimentos. Tylon e Lethia eram o mesmo casal desapaixonado de sempre, embora naquela noite o regente se mostrasse mais agitado que o que era costume, olhando em redor e mexendo nervosamente nos seus copos e talheres. Por sua vez, Lethia ia trocando olhares cúmplices com Cortun sempre que se servia ou bebia do seu cálice, franzindo desaprovadoramente o cenho sempre que via o paladino folgar a gola da sua túnica num incaracterístico gesto de nervosismo. Cortun parecia pouco à vontade, respirava mais depressa que o costume e limpava freqüentemente o suor da fronte, o que levou a que Lethia lhe batesse repetidas vezes na perna debaixo da mesa, obviamente receosa de que o seu esposo estranhasse. Por sorte, Tylon estava demasiado nervoso para reparar, e embora não estivesse tão visivelmente agitado quanto Cortun, estava suficientemente enervado para se concentrar apenas no seu prato, que comia com sofreguidão. Lethia tentava manter a sua fachada fria e distante, mas ela própria não conseguia conter por completo um nervoso miudinho que, aliado a um calor que de fato também sentia, lhe lançava por vezes o coração em rápidas batidas. Se ao menos baixassem a cortina nas suas costas para não estar a apanhar tanto calor da lareira... A maior parte dos serventes não fazia caso ou não se apercebia do estranho comportamento, exceptuando o pajem de Aereth que, sempre sensível e atento à linguagem corporal de todos os que o rodeavam, não podia deixar de reparar. Naturalmente que nada disse, mas ia lançando o ocasional olhar a Tylon e Cortun enquanto aguardava de gomil na mão que o copo do seu senhor precisasse de ser reenchido. Sentada na mesa da corte de Lennhau, a aia de Iollina ia-lhe sorrindo e boca cheia sempre que os seus olhares se cruzavam, um gesto ao qual o pajem retribuía sem que porém nele o sorriso perdurasse. Alguns presentes já cochichavam, indicando subtilmente o senhor de Lennhau e comentando o comportamento deste, mas antes que pudessem elaborar grandes histórias, tanto a conversa como a música foram interrompidas por um estrondo.
Todos se viraram ou ergueram as cabeças, alguns sobressaltados, vendo escancaradas as enormes portas duplas de madeira que davam entrada ao salão. Quatro guardas arnesados traziam pelos braços uma mulher e aquele que à primeira vista parecia ser um homem atarracadíssimo e barbudo, vindo com cinco membros da guarda pessoal de Aereth no seu encalço. Assim que as pessoas viram o vestido branco da mulher encharcado de sangue, fizeram-se ouvir vozes chocadas e um inalar quase em coletivo quando uma série de pessoas levou as mãos às bocas, bem como um uníssono arrastar de cadeiras, copos a serem pousados e tinir de garfos contra pratos. Aereth ergueu-se de mãos apoiadas na mesa, de incrédula boca entreaberta. Seguiu-se-lhes o silêncio, no qual apenas se ouviu o roçar e o clangor dos arneses dos guardas enquanto estes arrastavam os dois prisioneiros, deixando atrás de si um odorífero rasto a urina e excrementos que fez com que muitas mãos voltassem para as bocas. Os sussurros fizeram-se novamente ouvir à medida que algumas pessoas iam reconhecendo os prisioneiros como sendo a princesa Lhiannah e o general Worick, provocando uma generalizada reação de choque e pasmo entre os presentes. Aereth estava lívido.
— Meu senhor, perdoai a interrupção, mas os prisioneiros tentaram escapar! — anunciou um dos guardas com arnês de motivos aquilinos, postando-se diante dos seus companheiros que agarravam’ Lhiannah e Worick e saudando Aereth, levando o punho à couraça. — Evadiram-se através da latrina do Ninho e foram descobertos na fossa da torre do belver.
Mais vozes de espanto, mas Aereth nada disse, fitando Lhiannah com incrédulo agastamento estampado na cara e enrugando a toalha da mesa ao fincar nela os dedos. Ouviu-se ainda o tilintar dos guizos de Dilet, cuja cabeça surgiu detrás de uma das mesas, pousando nela o nariz e espreitando curiosamente.
— Um guarda foi violentamente agredido pelo general Worick, e a princesa Lhiannah matou quem julgamos ser o limpador da latrina.
O ato dispensava adjetivos, pois o sangue que encharcava o vestido de saia rasgada da arinnir estava à vista de todos. Lhiannah olhava de baixo para Aereth, as suas feições riscadas por sujeira preta, espirros e gotas de sangue e o princípio de um inchaço na maçã do rosto, sem se esforçar por esconder o desprezo que sentia pelo regente. Tinha os lábios comprimidos e os maxilares tensos, como se estivesse a reprimir palavras que queria gritar ou a desesperante frustração que sentia por ter sido capturada. A seu lado, pendendo das mãos dos guardas que o agarravam, Worick parecia atordoado, olhando à sua volta com olhos descaídos e cara e barba molhadas pela biliosa substância que Hepascar lhe regurgitara em cima. A avaliar pela frouxidão dos seus membros, o thuragar estava exausto, com a força completamente esgotada pelo acesso de raiva causado por Hepascar, e tivera verdadeiramente de ser arrastado até ao salão.
— Princesa Lhiannah... — disse Aereth com um frio glacial na voz que mesmo os mais acalorados comensais sentiram.
A arinnir não respondeu, resistindo ao impulso de cuspir saliva e sangue na direção do regente. A sua situação já era suficientemente má.
— Pelo que vejo, matastes uma vez mais um dos meus homens enquanto em menagem...
— Menagem requer a palavra do prisioneiro, lorde Aereth — foi Lhiannah incapaz de se coibir de dizer. — Essa nunca me foi sequer pedida. E ele não era...
— Silêncio, cabra! — interrompeu-a Aereth, esmurrando a mesa e entornando alguns cálices, cujo vinho escureceu a toalha vermelha. — Não estás em casa do teu pai, onde o salão real cheira a estrume de cavalo e os cavaleiros se matam uns aos outros por desenfado! Estás na casa de Thoryn, e mostrar-lhe-ás o devido respeito!
Lhiannah fitou-o em fúria com punhos trêmulos, e os braçais dos homens que a seguravam roçaram com as cotoveleiras ao agarrarem-na com mais força. Os comensais, músicos, guardas e saltimbancos observavam a cena em silêncio e imóveis, à parte uns gestos nervosos da parte dos da corte de Lennhau.
— Acabaste de me dar a derradeira prova de que não posso confiar em ti... pior, de que, caso se propicie a ocasião, fugirás cobardemente e matarás se necessário for.
Ignorado por todos, as maçãs do rosto de Dilet ergueram-se quando este sorriu com a boca escondida pela mesa, e as sobrancelhas franzidas turvaram-lhe os olhos com uma sombra malévola ao olhar para Aereth.
— E o general... não posso dizer que esperasse mais dele — disse Aereth, não mais aos gritos, mas visivelmente a tremer de raiva e com os dedos de tal maneira fincados na toalha que começou a criar sulcos nela. — Não contentes por terem tentado deturpar a memória do meu pai, abusaram da minha paciência e cuspiram na minha boa vontade repetidas vezes. Não mais. Para as masmorras com vocês os dois, e rezem para que lorde Sunlar chegue antes que as ratazanas vos roam até aos ossos!
Lhiannah impeliu-se para a frente, sendo prontamente retida pelas manoplas, cujos dedos de aço se lhe fincaram dolorosamente nos braços. Worick permaneceu inerte, quase sem forças para manter a cabeça erguida.
— Desta vez, princesa... desta vez... — Aereth hesitou, e todos os olhares se voltaram novamente para ele, até que o regente apontou para Lhiannah com um vacilante indicador. — Não tentarão fugir novamente. Partam-lhes as pernas.
Ouviu-se um inalar coletivo de pasmo, vindo sobretudo da mesa da corte de Ul-Thoryn, pois houve quem na mesa oposta eiguesse a cabeça como se tivesse acabado de ouvir uma idéia. A única voz de protesto veio do palco, no qual alguém bateu com o pé ao erguer-se, derrubando uma cadeira e a de outra pessoa que com ela também caiu.
— Não!
A atenção de todos os presentes recaiu então no palco, em cima do qual o grupo de músicos olhava para um jovem com barba e cabelos quase pelo ombro e que, de pé, era mais alto do que qualquer um dos presentes. Vestia por cima de uma camisa verde uma túnica esbranquiçada com faldas sobrepostas que lhe realçavam os ombros largos, e calças e botas gastas e puídas por longas viagens, muito pouco apropriadas para a ocasião. Arrastava pelo palco um organistro, um enorme e pesado instrumento de cordas, teclas e manivela, que ao ser erguido derrubara o homem a seu lado que o devia tocar, e com a outra mão apontava acusadora e ousadamente para o regente.
— Perdeste a cabeça, Aereth? Que loucura vem a ser esta? Todos no salão pareceram demasiado chocados com a audácia do desconhecido para reagir, mesmo os guardas, e ouviram-se apenas alguns arquejos indignados. O próprio Aereth piscava os incrédulos olhos e quase enfiava o queixo no pescoço de embasbacamento, momentaneamente incapaz de conceber tamanha ousadia. Lhiannah arregalou ela também os olhos ao ver o afoito, embora por motivos completamente diferentes, deixando o queixo descair.
— Aewyre! — arfou em surdina.
— Aewyre? — descreu Daveanorn.
— Aewyre... — geou Aereth, alto o suficiente para que todos o pudessem ouvir, relaxando os dedos e alisando novamente a toalha.
O nome do guerreiro foi então repetido por todos os presentes, uns mais exaltados que outros, sendo que alguns dos da corte de Lennhau se levantaram, dando a impressão de estarem prontos para uma contenda. Tylon nada lhes disse, limitando-se a olhar alternadamente para Aewyre e Aereth, ofegando e com a careca luzente de suor. Os guardas olharam para o seu jovem regente, aguardando a sua ordem de partasanas aprestadas, mas este parecia ainda atordoado com a inaudita aparição do seu irmão, olhando-o como se não pudesse acreditar que tivera a ousadia de comparecer no palácio. Quem também partilhava do seu choque era Dilet, que pousara ambas as mãos sobre a mesa e se erguera de queixo pendente e olhos esbugalhados, tinindo os guizos do chapéu enquanto abanava a cabeça.
— O que se passa contigo, Aereth? — vociferou Aewyre, exaltado, aproximando-se da beira do palco. — Como... como podes sequer dizer uma coisa dessas? A Lhiannah veio a meu pedido trazer o corpo do nosso pai, e tu... tu...
— Aewyre, foge! — gritou-lhe Lhiannah, chocalhando novamente os arneses dos homens que a agarravam. — O teu irmão é louco!
Virando bruscamente a cara para Lhiannah, o jovem olhou então à sua volta, vendo guardas armados prontos a agir, convivas erguidos que o fitavam com hostilidade, e o seu próprio irmão, que tremia, e cujos olhos coléricos lhe davam a entender que dissera a pior coisa possível.
— Irmão... — começou de voz trêmula, deixando entrever a superfície da torrente de raiva que esperava para transbordar. — Tu... tu não devias ter cá vindo.
Esmurrando a mesa com os anéis do punho, Aereth apontou de seguida para Aewyre com um indicador tremulo, inclinando-se sobre a mesa.
— Guardas! Prendam esse traidor!
Como um só, os membros da guarda pessoal de Aereth avançaram de partasanas enristadas, enquanto os outros se afastavam, arrastando os prisioneiros. Lhiannah debateu-se, praticamente balouçando dos braços dos homens que a seguravam.
— Aewyre!
O guerreiro recuou, pegando no braço do organistro com ambas as mãos e olhando para os seus lados enquanto os músicos iam descendo do palco, tementes de se verem envolvidos num combate. Começou a haver alguma agitação nas mesas a partir do momento em que mesmo os membros da corte de Ul-Thoryn se levantaram, incentivando os de Lennhau a fazerem o mesmo, havendo mesmo alguns que empunharam facas de trinchar. Tylon e Cortun suavam e ofegavam, incapazes de se manterem quietos e observando o que se passava com olhares turvos, enquanto que Lethia parecia meramente indisposta. Os serventes recuavam para as paredes, alguns com pratos e gomis nas mãos, olhando nervosamente uns para os outros e para os guardas, que se acercavam do palco, apertando progressivamente uma coleira de puas viradas para dentro que ameaçava estrangular Aewyre, que olhava em redor e girava em si, vendo-se encurralado. O guerreiro continuava a arrastar o pesado organistro pelo braço, lançando alternadamente olhares traídos ao seu irmão e olhares aflitos a Lhiannah, que tentava desesperadamente livrar-se dos homens que a agarravam, gritando-lhes imprecações e que o deixassem em paz.
Toda a comoção foi interrompida quando uma sonora gargalhada se fez ouvir no salão real, uma doentia casquinada que ecoou pelas abóbadas e que virou todas as sobressaltadas caras para a mesa da corte de Lennhau, sobre a qual pulara Dilet, que levava a cabeça atrás enquanto ria de costas arqueadas e braços deleitadamente abertos. Naquela noite estava trajado de amarelo e verde, com uma túnica partida em ambas as cores com badanas com guizos nas pontas, e apertadas calças listadas com sapatos de bico revirado e atado ao calcanhar. Usava ainda ura gorro vermelho com duas extremidades retorcidas, também elas com os inevitáveis guizos nas pontas, e um capelo da mesma cor que lhe pendia das costas com a aba recortada em forma de penas de águia. Retendo a atenção de todos, o bobo curvou-se para a frente, abraçando a barriga e chocalhando os guizos do gorro ao abanar a cabeça enquanto ria, o que no seguimento dos dois anteriores acontecimentos apenas deixou os presentes intrigados. Ainda assim, Dilet parecia satisfeito com a reação, e fez uma vênia a todos, dirigindo-se então a Aewyre com um exageradamente floreado gesto da mão.
— Príncipe Aewyre, que inesperada surpresa! Temos aqui reunida toda a realeza! — declamou, executando um passo de dança com os pés, após o que chutou um cálice pelo ar, esparramando um fresco na parede com vinho.
Pessoas da mesa oposta exclamaram de surpresa com o gesto, vendo o cálice singrar pelo ar, bater contra a parede e retinir pelo chão aos pulos, deixando atrás de si um gotejante trilho de vinho. Os membros da corte de Lennhau olhavam para o bobo num misto de espanto e encanzinamento, havendo mesmo alguns que estenderam as mãos numa tentativa de lhe agarrar a perna, mas Dilet saltitou graciosamente por entre elas, pulando então da mesa com um rodopiante salto lateral de fazer inveja aos saltimbancos, que entretanto se haviam retirado do espaço entre o palco e as mesas. Rindo sozinho, Dilet fez quatro outras vênias, guardando a última e mais vistosa para Aewyre, que estranhava tanto quanto todos os outros as ações do bobo, que não ocupara um único pensamento seu durante o ano que passara fora de Allahn Anroth.
— Ilustres senhoras, nobres senhores, permiti-me contar-vos uma história. Será curta, nada temeis, e parca em vanglória — anunciou o bobo, pigarreando e pavoneando-se entre as mesas e o palco, expondo-se aos olhares de todos como um lagarto ao sol.
— Há pouco mais de duas décadas, ainda era a Pérola do Sul conhecida por UI-Kathen, a nossa bela cidade era regida pelo nobre servente de uma incompreendida potestade. — A quebra com a fala rimada de Dilet surpreendeu alguns, embora a maior parte das pessoas estivesse demasiado admirada pela sua ousadia para reparar. — Num tempo conturbado, esse servente trouxe estabilidade a Ul-Kathen, seguindo os desígnios da injustamente vilipendiada potestade, e embora alguns dos seus métodos fossem porventura condenáveis e as suas decisões não reunissem o consenso geral (tal como as de qualquer regente), a verdade é que trouxe segurança a uma região martirizada pelo conflito e pela dissensão após o sacrifício da Batalha do Sol Nascente.
Detendo-se subitamente e batendo com os pés, Dilet torceu as ancas e estendeu ambos os braços como um cata-vento, apontando com eles para Aewyre e Aereth.
— Os tempos de paz e segurança terminaram pela mão de Aezrel Thoryn, pai do vosso belicoso regente e do vosso rebelde príncipe, guerreiro plebeu e mercenário sem honra. — O queixo de Aereth descaiu diante das palavras do bobo, que suscitaram espanto de todos os que as ouviram. — Aliado a Zoryan, refratário prestidigitador que a ninguém devia aliança a não ser a si mesmo, Aezrel Thoryn incitou uma sublevação na nossa então pacífica cidade, e com o apoio arcano de Zoryan, depôs e assassinou o servente, mergulhando todo Nolwyn em caos, rebelião e guerra civil, o que culminou na derradeira fragmentação da nossa outrora gloriosa nação.
Levando bruscamente as mãos ao peito como se ferido de morte, Dilet deixou-se cair de costas para o chão, mas quando parecia que ia rachar o crânio contra o pavimento, esticou os braços para trás e formou uma ponte com o corpo, efetuando então uma pirueta e aterrando graciosamente de pés cruzados, após o qual fez uma nova vênia.
— Esse servente, excelsas senhoras e prezados senhores, era meu pai — disse Dilet, sorrindo maleficamente. — E a minha presença nesta corte nunca a mais se destinou além de ridicularizar a usurpação que nela se verificou, ao ponto de o nome da cidade ter sido mudado em honra do usurpador. Eu, seu filho, jurei tomar parte nesta grotesca paródia para um dia poder vingar a sua morte e expor as maçãs podres que recolhi em tão degenerado pomar.
As labaredas das fogueiras deram a impressão de vacilar quando o bobo parou de falar, e as sombras nos recantos do salão pareceram adensar-se como o reverso de brasas ariçadas. Houve quem sentisse um frio na espinha com as palavras de Dilet, e os guardas mexeram-se, hesitantes, olhando para o seu senhor à espera de ordens, mas Aereth nada disse, como que embruxado a olhar para o bobo. Não obstante o seu desagrado para com Dilet, Aewyre estava tão surpreso quanto os outros, e tal como eles não sabia bem como reagir, embora aproveitasse a distração para procurar uma via de fuga, caso necessário fosse.
— Esta corte não passa de uma paródia de si mesma, de uma zombaria daquilo a que as nobres castas de Ul-Kathen se atinham em tempos idos — continuou o bobo, andando à volta e apontando para todos os presentes, terminando com Tylon e Lethia acusados pelo seu indicador. — O ilustre Tylon Nehin, por exemplo, que nesta noite do aniversário da sua filha planeia assassinar lorde Aereth.
Arquejos de choque e consternação fizeram-se ouvir no salão, e vários membros da corte de Lennhau ergueram-se dos seus lugares, esmurrando a mesa e manifestando o seu ultraje com incoerentes vociferações, parecendo ébrios e mais que prontos a lutar. Por sua vez, Tylon ficou lívido, olhando para o bobo com o suor já a escorrer-lhe da barba, que se mexia de cada vez que engolia o abundante salivar.
— Teria visto os seus planos gorados, contudo, pois a sua bela esposa Lethia envenenou-o com suco do Teixo, esperando que dessa forma fosse ele a assassinar lorde Aereth...
Virando-se bruscamente para a sua mulher e entornando um cálice com o cotovelo, lorde Tylon fitou-a com olhos irados e traídos, e Lethia teve de se agarrar à mesa como se de outra forma fosse cair, tendo na sua cara estampada uma expressão do mais puro choque. Antes que a mulher ou outra pessoa qualquer pudessem reagir às palavras de Dilet, Tylon atirou-se sobre ela com um urro, agarrando-a por um dos bandos nos quais os seus cabelos estavam presos e esmurrando-lhe a cara. Iollina gritou ao ver a sua mãe ser atacada, mas Tylon não se deteve e caiu sobre Lethia, arrancando-a da cadeira e agredindo-a repetidas vezes na face, berrando injúrias como um homem possesso. Foi então que Cortun se ergueu, derrubando a sua cadeira e precipitando-se sobre o seu senhor, agarrando-o pelas costas e tirando-o de cima de Lethia com um forçado grunhido, após o qual o arremessou contra a mesa. Tylon derrubou o móvel com grande espalhafato, entornando pratos, atirando talheres e copos ao ar e deslocando as duas outras mesas. O regente caiu de ombros no chão, trazendo atrás de si a toalha vermelha e uma dúzia de acepipes que sobre ele caíram ao dar uma cambalhota para trás. Dilet levou uma mão à boca, como se tivesse acabado de dizer um disparate, olhando para o corpo prostrado de Tylon e abanando a cabeça.
— Ah, talvez devesse também ter dito que assegurei uma distribuição justa do suco pela corte de Lennhau — disse em voz demasiado baixa para ser ouvido a meio da agitação que se instaurou quando os membros da corte de Ul-Thoryn se levantaram, receosos, e os da mesa oposta fizeram o mesmo, revirando a sua.
Aereth levantou-se ele também, e Daveanorn puxou o seu senhor prontamente para trás de si para o proteger, enquanto Iollina foi agarrar o braço de Cortun, que se preparava para pisotear Lethia. Irado e fora de si, com o suco do Teixo a ferver-lhe nas veias e a escumar-lhe nos cantos da boca, o paladino atirou a princesa para trás. Iollina voou pelo ar, desfraldando e arrastando as cortinas recolhidas do baldaquim e com elas a estrutura, que caiu e bateu com a quina superior no lintel da lareira, perto da qual a princesa tombou. Enquanto isso, os homens e mulheres da corte de Lennhau começaram a atacar os serventes que se encontravam atrás deles, agredindo-os, arranhando-os selvaticamente e atirando-os de cabeça contra os pilares numa confusão de gritos e bandejas a ressoarem no chão. Outros saltaram por cima da mesa, empunhando garfos e facas de trinchar, tendo em vista os da corte de Ul-Thoryn no lado oposto, que fugiram, tropeçando em cadeiras e saias e gritando pelo auxílio dos guardas.
— Bobo, que vem a ser isto? — exigiu Aereth saber, tentando livrar-se de Daveanorn, que retinha o seu senhor, mantendo-se à sua frente e chamando ele também pelos guardas.
— Isto, meu senhor? — indagou Dilet com desprezo na voz alterada, voltando a cabeça para Aereth e fitando-o com olhos agora revestidos de uma película negra, recurvando os dedos das mãos, das quais brotaram labaredas negras. — Isto é vingança!
Sem qualquer aviso, o bobo virou-se para o palco, estendendo os braços de mãos espraiadas e manando delas uma rajada de agasta penumbra que serpenteou, faminta, na direção de Aewyre. O guerreiro teve apenas tempo de erguer o organistro à sua frente, servindo-se dele como escudo, antes de a sombria descarga o estraçalhar com o ruído de madeira a ser despedaçada e o ressoante som de cordas rebentadas. O impacto lançou o jovem pelo palco fora e para cima das agora desocupadas cadeiras, deixando um trilho de pedaços de madeira pelo ar e espatifando os assentos ao cair sobre eles de costas. Lhiannah gritou o nome de Aewyre, e os dois guardas que a agarravam viram-se forçados a intervir, entregando-a bruscamente a um dos que seguravam Worick. Gargalhando como um maníaco, Dilet deu um salto mortal para trás, saindo do caminho da carga de ensandecidos cortesãos de Lennhau, alguns dos quais começaram a chutar lorde Tylon, que se tentava levantar. O bobo aterrou graciosamente do outro lado da mesa principal, desembainhando duas adagas que emanavam um oleoso fumo parecido com o de velas de sebo e visando Lethia com um sombrio sorriso. A mulher erguia-se: apoiando-se numa cadeira e agarrada à cara surrada, cujo olho esquerdo se começava a fechar, mas que ainda se abriu o suficiente para ajudar à expressão horrorizada da mulher quando esta se viu diante do bobo.
— Olá, minha querida — cumprimentou-a Dilet sadicamente, girando destramente as fumarentas adagas nos seus dedos.
Arquejando de medo, Lethia olhou para trás em busca de Cortun, que se arrojava com um berro sobre Daveanorn, rebolando com o paladino pelo chão. Vendo-se sozinha, começou a rastejar para trás ao longo da mesa revirada, sendo calmamente seguida por Dilet enquanto este brincava com as adagas e inclinava a curiosa cabeça para os lados, como se estivesse a tentar ver algo nas mãos de Lethia.
— Belos anéis — comentou. — Foi com um desses que me marcaste, não foi?
Dilet indicou com um dedo a cicatriz no seu malar causada por uma bofetada da mulher, que abanava a cabeça enquanto recuava, murmurando palavras inaudíveis com os lábios a sangrar.
— Cuidado com a cabeça — advertiu o bobo antes de Lethia bater com a nuca nas pernas da mesa revirada, que lhe barraram a retirada.
— Ups.
— Por favor... — implorou a mulher, estendendo a mão como se dessa forma pudesse impedir o avanço do bobo.
— Oh, não ê preciso pedir por favor. Faço isto com todo o prazer — disse Dilet, arremessando uma das suas adagas e enfiando-a entre os seios da mulher, que estremeceu quando o aço frio lhe deslizou por entre as costelas, etitalhando-lhe o esterno e perfurando-lhe o coração.
— Mãe! — gritou Iollina, que entretanto se levantara, tropeçando na saia ao dirigir-se aflitamente ao encontro de Lethia.
Dilet virou a cara para a princesa, sorriu, girou uma adaga na mão e agarrou a lâmina com os dedos médio e indicador, pronto a arremessá-la.
— Bobo, não! — vociferou Aereth.
Dilet olhou para o seu senhor, inclinando a cabeça e franzindo as sobrancelhas em pretensa pena antes de, com um seco empinar do pulso, lançar a adaga. A fumarenta lâmina singrou pelo ar com um oleoso silvo, cravando-se na garganta de Iollina.
— Não! — gritou Aereth, acorrendo à princesa, que caiu de joelhos, agarrada à garganta e com sangue a escorrer-lhe por entre os dedos. — Oh, deuses, não!
O bobo arregalou as sobrancelhas, olhando de lado, encolhendo os ombros e contraindo os lábios ao levar os braços atrás das costas num gesto grotescamente infantil de quem fizera um disparate. Aereth ajoelhou-se ao lado de Iollina e tomou-a nos seus braços, de hesitante mão aberta sobre o trêmulo e ornado punho da adaga cravado na garganta desta e abanando a cabeça, como se negando o que estava a ver de alguma forma o pudesse tornar menos real.
— Uma criança... oh, Acquon a cure, não passa de uma criança — lamentou-se o regente, abanando vigorosamente a cabeça enquanto via a cor desvanecer-se da pele de Iollina, que ia empalidecendo à medida que a sua jovem vida lhe escorria pelo pescoço fora, formando pequenos regatos nas amplas mangas vermelhas de Aereth.
Satisfeito, Dilet olhou de lado para o caos que se instaurara no espaço entre as mesas e para além deste, tendo-se tornado o salão real num autêntico campo de batalha. Os comensais lutavam entre si, sendo que os cortesãos de Ul-Thoryn procuravam sobretudo defender-se ou fugir dos de Lennhau, estes possessos com a excepção de alguns, sobretudo mulheres, que tinham fugido ou sido atacadas pelos seus. Os guardas também já se tinham envolvido na contenda, e embora não desatassem a empalar os cortesãos de Lennhau, tão-pouco se contiveram a lidar com a ameaça ao seu senhor, concutindo e vergastando os ensandecidos lennheses com os cabos das partasanas. Daveanorn e Cortun rebolavam pelo chão, e graças ao seu tamanho e peso superiores o paladino de Tylon parecia levar a vantagem, esmurrando o velho mestre de armas com os seus grandes punhos. Longe de ambos, Tylon desbravava uma floresta de pernas que o pisavam e chutavam, agarrando tornozelos com um braço e aparando joelhos com o outro. O senhor de Lennhau estava a ser pisoteado como um cão, e debatia-se como um, rosnando com um lábio rebentado e moendo com os punhos quem quer que conseguisse arrastar para o chão, sendo também ajudado pelos pés alheios sempre que lhes providenciava outro alvo. Tudo isto deliciou Dilet, cujo sorriso contudo apenas se alargou ao ver Aewyre erguer-se no palco e olhar irado na sua direção.
— Com licença, meu senhor — pediu a um desconsolado Aereth, que permanecia abraçado a Iollina, já com a pálida cabeça da princesa a pender da dobra do seu braço. — Já venho tratar de vós.
Dito isto, tirou as mãos das costas, trazendo nelas com um oleoso silvo duas novas adagas, cujas lâminas fumegavam fiapos de sombra, e pulou, assentando um pé sobre o canto da mesa e impul-sionando-se para cima da cabeça de um cortesão, que usou para se impelir para cima de uma segunda e uma terceira, após o que executou uma rodopiante pirueta que terminou numa pose felina-mente encouchada sobre o palco com os braços a seus lados. Aewyre largou o braço partido do organistro e enfiou a mão no que sobrava do corpo, desembainhando Ancalach do seu interior e descartando então o arruinado instrumento para empunhar a arma com ambas as mãos. Estava com pedaços de madeira e lascas pegadas à túnica e à barba, e a sua face e mãos haviam sido arranhadas por farpas resultantes do despedaçar do organistro, gotejando esférulas de sangue das escoriações, algumas das quais ainda com puas nelas espetadas. Dilet sorriu diante da careta irada que o guerreiro ostentava.
— O filho pródigo regressa — disse, erguendo-se lentamente para uma posição agachada. — Mesmo a tempo de ver a águia cair.
Aewyre nada disse, fazendo os possíveis por não deixar transparecer a sua surpresa e confusão, mas o alargar do sorriso do bobo deu-lhe a entender que falhara.
— Perplexo? Não me espanta, tendo em conta que tu ficaste com os músculos e o teu irmão cora os miolos; os poucos que a tua linhagem tinha para oferecer, pelo menos — derriçou Dilet. — Nunca te chegaste a questionar por que razão eu não te delatei assim que vi que ias fugir com Ancalach?
Vendo a expressão confundida na cara de Aewyre, o bobo riu zombeteiramente, indicando Ancalach com os seus olhos.
— O meu senhor falava-me através dessa tua espadinha. Era a Sua vontade que partisses do palácio para que o Seu regresso fosse possível, e enquanto tu Lho ias possibilitando, eu fui ajudando o teu irmão a levar Ul-Thoryn à ruína.
Dilet investiu então, pulando de sombrias adagas empunhadas, e Aewyre correspondeu ao ataque com uma estocada sua, que o bobo aparou entre a lâmina e o copo de uma adaga, desviando a espada para penetrar na abertura com a outra. O contragolpe foi fulminantemente rápido, mas Aewyre teve reflexos para recuar um passo e puxar Ancalach atrás, bloqueando a enristada adaga e trazendo de seguida a espada num arco sobre a cabeça, desferindo um golpe transversal do qual Dilet escapou dando uma pirueta para trás. Novamente agachado, o bobo rilhou ambas as adagas uma na outra em desafio, fazendo com que as lâminas chispassem fiapos de sombra.
— O que é que fizeste ao meu irmão, verme?
— Nada que ele não quisesse fazer, caso a situação fosse verdadeiramente aquela que viu pintada diante dos seus olhos — explicou Dilet com um sorriso enquanto dava passos laterais, circundando Aewyre como um predador. — Sabes, o meu senhor ainda tinha planos para ti e para o Aereth... bom, pelo menos para o teu irmão.
Aewyre Semicerrou os olhos de ódio, crispando os dedos no punho de Ancalach e mantendo o bobo dividido pela Espada dos Reis, com a ponta bem debaixo do queixo.
— Mas sabes que mais? Para a fossa com os planos. Mato-vos aos dois hoje, o meu pai será vingado, e as fundações podres de Ul-Thoryn ruirão na mesma, embora de forma menos subtil que aquela que o meu senhor pretenderia...
As palavras de Dilet inflamaram o curto pavio de Aewyre como se este tivesse sido imerso em óleo ardente, queimando-lhe as camadas de temperança que nele se tinham formado durante o último ano, e o jovem atacou com um urro,, Ancalach retiniu contra as duas sombrias adagas, que a lamberam durante a subsequente furiosa troca de golpes- O palco tremeu com os pesados passos de Aewyre, enquanto as ligeiras passadas de Dilet mal eram registadas pela madeira enquanto este saltitava, esquivando-se de golpes e assediando Aewyre com dardejantes adagadas vindas de rodo o lado. O bobo desviava-se, agachava-se e rodopiava em pleno ar numa confusão de pernas e lampejantes lâminas, dançando habilmente por entre as mortíferas linhas que Aewyre desenhava no ar com a espada. Além do palco, os guardas e cortesãos de Ul-Thoryn contendiam com os de Lennhau, que lutavam como animais engalfinhados, berrando, agredindo e arranhando. Mais que delirantes, pareciam possuídos de um vigor e força desnaturais que lhes permitiam suster repetidas agressões dos guardas e retribuir com selvagem abandono, rasgando a pele dos seus punhos nas armaduras e chegando e enfrentando com meras facas de trinchar os guardas armados e arnesados. Uma mulher saltou para as costas de um guarda, agarrando-se ao seu pescoço com um braço e enfiando-lhe um garfo por entre o visor da barbuda, que espirrou sangue e no interior do qual ressoou um grito. Para os cortesãos foi apenas mais um som na raivosa cacofonia que os incitava a lutar, mas para os guardas ver um dos seus companheiros tombado foi a gota de água, e a violência intensificou-se da sua parte. Manoplas começaram a partir dentes, cabos de partasanas partiram cabeças e pouco tempo levou até que a primeira lâmina de uma das armas de haste vertesse sangue, dando então início a uma verdadeira batalha campal.
Os únicos guardas na sala que não se encontravam envolvidos no combate eram os dois que seguravam Lhiannah e Worick, vendo-se obrigados a arrastar os seus dois prisioneiros era direção à entrada, para a qual corriam os aflitos membros da corte de Ul-Thoryn. Lhiannah debatia-se, sacudindo os braços e pisando os escarpins do homem que a agarrava, mas este apenas lhe apertava os braços com mais força em resposta. A seu lado, Worick não dificultava tanto assim o trabalho ao guarda que o levava, caminhando aos tropeções em vez de se deixar arrastar, mas parecia continuar tão atordoado como até então estivera, desde que recuperara do acesso de raiva induzido por Hepascar. Lhiannah gritava que a largassem, cada vez mais estridente à medida que se iam afastando do palco e de Aewyre, mas o guarda mostrou-se irredutível e resistente, rosnando-lhe que ficasse quieta e que se calasse. Lhiannah apenas se debateu mais, olhando constantemente para trás por cima do ombro e tentando pregar rasteiras ao homem, calando-se apenas quando Worick tropeçou na sua direção e lhe chamou a atenção com um beliscão na anca. A princesa olhou para baixo, e Worick fez-lhe sinal com a cabeça ao ser ajeitado pelo guarda que o arrastava, erguendo ligeiramente o queixo de barba ainda viscosa de fel e indicando o guarda atrás dele com os olhos. Lhiannah ainda ficou breves momentos a olhar para o thuragar, falhando em perceber as suas intenções de imediato, mas foi apenas preciso Worick repetir o gesto uma vez para que os vários anos de treino que ambos levavam juntos preenchessem as lacunas na indicação do seu mentor. Lhiannah acenou com a cabeça e, esperando o momento certo, deixou-se pender dos braços do guarda que a agarrava, juntando ambas as pernas e oscilando-as na diagonal para chutar a cara do homem que segurava Worick. Protegido pelo elmo, o golpe nem sequer o atordoou, mas desorientou-o o suficiente para que o thuragar se deixasse também ele pender, impelindo-se para a frente com a im-pulsão de uma cambalhota, levando o humano atrás de si e fazendo com que ele caísse de cara contra o chão. O ângulo do impacto e a força do mesmo teriam sido suficientes para partir o pescoço ao guarda, que se viu incapaz de amparar a queda quando o thuragar lhe agarrou as manoplas, mas o elmo resguardou-o do pior, e este caiu de seguida sobre Worick.
— Quieta, maldita! — praguejou o outro, agarrando Lhiannah pela cintura, alçando-a bruscamente sobre a anca com um repelão e virando-a para a parede, contra a qual a tentou encurralar.
Lhiannah conseguiu porém, assentar nela os pés, flexionando as pernas com o ímpeto do guarda, e arrojando-se de seguida para trás com um grunhido. O homem tropeçou no seu companheiro tombado e caiu ele também com grande estrépito de costas com Lhiannah em cima, permitindo à arinnir soltar-se e sair de cima dele com uma cambalhota para trás, a meio da qual pegou na espada do homem, desembainhando-a com o movimento. Os dedos de aço do guarda agarraram-lhe a manga do vestido manchado de sangue, que a arinnir rasgou ao puxar o braço assim que assentou os pés no chão, posto o que empunhou a espada com ambas as mãos e percutiu o homem com o pomo da arma, fazendo com que o elmo ressoasse contra o chão.
— Worick! — exclamou Lhiannah ao ver os braços do thuragar mexerem-se debaixo do primeiro guarda caído, espalmando as mãos no chão e tremendo ao tentarem erguer o peso de ambos.
A arinnir contornou o atordoado guarda que acabara de agredir e tirou o outro de cima de Worick, que permanecia deitado de barriga para o chão e com uma careta de esforço na cara suja de bile seca.
— Worick, estás bem? — perguntou a princesa, ajoelhando-se ao lado do thuragar e mantendo-se atenta aos movimentos dos dois guardas.
— Estou todo partido, cachopa — disse Worick, levantando-se com o braço de Lhiannah a servir-lhe de apoio e olhando para a caótica contenda que se desenrolava em frente. — Temos de ir ajudar o Aewyre.
— Estás desarmado...
— Eu cá me arranjo! — asseverou o thuragar, empurrando a princesa ao ver que os dois guardas se começavam a levantar. — Vamos!
Foi todo o incentivo de que a arinnir precisou, e esta tomou a dianteira a correr com a sua saia e manga rasgadas, empunhando a espada do guarda com ambas as mãos. Passou por guardas que combatiam cortesãos ensandecidos e dirigiu-se à mesa com o intuito de saltar sobre ela para chegar ao palco, mas um homem reparou nela e começou a correr na sua direção, enquanto outro que estivera a bater com a cabeça de uma mulher contra o chão se apercebeu da sua vinda e se levantou ele também para a atacar. Lhiannah interceptou o primeiro, baixando-se e atirando-o por cima da sua cabeça, e cortou abruptamente a arrancada do segundo ao plantar-lhe o pé no peito, derrubando-o de seguida com uma bordoada do pomo da espada na têmpora. Worick chutou na cara o primeiro, que caíra de costas ao chão e se tentava levantar, pegando de seguida numa adjacente cadeira caída e despedaçando-a nele e no chão, empunhando então o recosto como uma arma. A violenta chegada de ambos não passou despercebida, e o thuragar e a princesa tornaram-se o novo centro das atenções dos cortesãos mais próximos, que largaram as suas surradas e indefesas vítimas para os atacar. Os outros ignoraram-nos simplesmente, atacando quem estivesse mais perto deles num selvagem frenesim, guardas, cortesãos ou serventes, espancando-os como se dessa forma pudessem apagar o fogo que lhes ardia nas veias.
Tylon e Cortun berravam enquanto o faziam, espumando das bocas e urrando como se estivessem a arder por dentro. O regente estava a ser atacado pelos seus, tendo já derrubado e partido os ossos a três que se encontravam aos seus pés, mas já ostentava uma série de ferimentos de punho e faca, e três outros continuavam a trocar violentos socos e pontapés com ele. Por sua vez, Cortun contendia com Daveanorn, e os dois esmurravam-se um ao outro no chão, pelo qual rebolavam. O lennhês era maior, mais jovem e mais forte, mas combatia de forma quase cega, e o velho paladino era um mestre em formas de luta, com ou sem espada, o que lhe permitiu reverter o ímpeto inicial de Cortun, que se distraía a esmurrar-lhe o costado enquanto Daveanorn lhe agarrava o braço esquerdo. Quando ambos se encontraram lado a lado, o velho paladino torceu-lhe o braço e, com um golpe de ancas, pôs-se sobre ele e colocou-o em posição de luxação, incitando-o a desistir com um olho intumescente e os pêlos brancos da barba manchados de vermelho.
Alheios ao caos em redor do palco, Aewyre e Dilet continuavam o seu combate, os seus passos demarcados ao ritmo do furioso retintim das lâminas. O guerreiro estava acostumado à vantagem que o tamanho de Ancalach lhe dava, e que deveria ser mais significativo ainda por estar a combater um homem armado de adagas, mas Dilet era tão rápido, os seus movimentos tão imprevisíveis, e os seus golpes tão arrojados, que Aewyre se via confundido. O bobo passava quase tanto tempo no ar como de pés assentes no chão, executando estonteantes piruetas ao desviar-se de golpes e ao desferi-los em ousados movimentos que seriam certamente suicidas para um lutador normal. As suas adagas sibilavam como serpentes venenosas, trilhando o seu oleoso fumo sombrio a cada golpe, e o sorriso sardônico nunca lhe abandonava a cara, como se o combate o estivesse genuinamente a divertir. Mesmo quando teve de cruzar as adagas para aparar um forte altabaixo de Aewyre, que lhe fez os ossos estremecerem, Dilet riu. O guerreiro recolheu Ancalach quase de imediato, impelindo-a de seguida em frente numa estocada da qual o bobo prontamente se desviou, flexionando uma perna e desferindo com a outra um pontapé no joelho de Aewyre. O jovem cambaleou e Dilet pulou contra ele de braços estendidos para o lado, rodopiando pelo ar e golpeando o pescoço do seu adversário quando este desviou a cabeça de um certamente mortal golpe à garganta. O bobo aterrou nas suas costas e Aewyre virou-se rapidamente, recuando um passo e estendendo Ancalach para criar distância entre si e Dilet.
— Surpreso? — indagou, agitando provocadoramente a adaga com o sangue do jovem. — O poder do meu senhor não reside na escuridão, Aewyre, mas na sombra. Sabes, aquelas coisas desagradáveis que te são intrínsecas mas que te recusas a reconhecer ou admitir?
O guerreiro nada disse, respirando ofegantemente e mantendo Ancalach entre si e Dilet.
— Graças a Ele, consegui confrontar a minha, e agora uma fração do Seu poder flui através de mim. Uma fração que me permitirá matar-te a ti e ao teu irmão e a quem quer que se meta no meu caminho para tentar impedir-me.
— Veremos, verme — disse Aewyre, avançando com uma convidativa guarda alta.
Dilet sorriu e não se fez de rogado, pulando para o lado e arrojando-se contra o adversário de adaga em riste, visando a ilharga exposta do jovem, mas Aewyre bloqueou o golpe com a lâmina ao baixar a espada até à anca numa guarda fechada. A mão livre de Dilet teve então caminho livre até à barriga do guerreiro, mas Aewyre levou uma perna atrás da outra e torceu os pulsos para interceptar a adagada, deixando Dilet de braço estendido e numa posição de equilíbrio precário. Torcendo novamente os pulsos e avançando com a perna que recuara, Aewyre reverteu o golpe, e o bobo apenas conseguiu evitar ser degolado arqueando as costas para trás e deixando-se cair, sentindo Ancalach rasar a sua barriga com um chofre que ainda assim lhe cortou uma das extremidades do seu gorro. O guizo na ponta desta tilintou pelo ar e Dilet cravou ambas as adagas no chão, formando uma ponte arqueada com o seu corpo e desferindo de seguida um pontapé na omoplata de Aewyre. O guerreiro desequilibrou-se com o golpe e cambaleou para o lado, permitindo ao bobo executar uma pirueta para trás, arrancando as adagas do palco, pousando com a graça de um dançarino e reassumindo uma pose de combate ao passar novamente as lâminas das adagas uma pela outra, deixando um rasto de fiapos de sombra.
— Nem imaginas o gozo que isto me está a dar — disse. — Qual é a sensação de ser toureado por alguém que sempre menosprezámos, hmm? De ser alto, forte e bem-parecido, e estar a ser enxovalhado por um bobo?
— Já passei por bem pior — rosnou o guerreiro, tornando a investir.
Dilet dançou com Ancalach como se esta fosse a sua parceira, lambendo-a de forma quase lasciva com as suas adagas em sinuosos golpes e movimentos, e prendendo-a de lâminas cruzadas para de seguida dar uma pirueta lateral, rodando no ar com as pernas a girarem como as velas de um moinho e raspando a cabeça de Aewyre com um pé quando este a baixou. O jovem varreu o chão com
Ancalach assim que o bobo aterrou, tentando cortar-lhe os pés, mas este ressaltou como uma bola e chutou-lhe a cara com um pontapé certeiro, fazendo o guerreiro cambalear para trás.
— Ui, desta é que o teu incisivo torto se foi! — provocou o bobo. Aewyre levou a mão esquerda à boca e tirou-a de lá com sangue nos dedos, mas para grande desapontamento de Dilet mostrou ao torcer o lábio ferido de raiva que conservava o seu saliente incisivo inferior. O bobo limitou-se a rir com os ombros e sorrir, e Aewyre tornou a atacar, percorrendo meio palco com oscilantes golpes de Ancalach, dos quais Dilet se ia desviando enquanto recuava, sem sequer lhes tocar com as adagas. A Espada dos Reis cortava o ar com afiados choftes e o bobo fugia dela, pulando como uma pulga risonha até à borda do palco, onde se encontravam as cadeiras e instrumentos caídos. Dilet evitou uma estocada, pulando para trás e para cima de uma cadeira, sendo prontamente seguido por Aewyre, que desferiu uma espadeirada transversal que obrigou o bobo a dar uma pirueta lateral para cima de outro assento. Porém, o guerreiro antecipou-se ao movimento e chutou a cadeira antes que Dilet assentasse os pés nela, deixando-o cair desamparado. O bobo estatelou-se no palco e Aewyre revirou Ancalach de ponta para baixo com o intuito de cravar Dilet ao chão, mas este pegou nas pernas de uma outra cadeira com as suas e puxou-a sobre si para se resguardar da espada, que nela se espetou. O bobo torceu então as pernas e rebolou, arrancando Ancalach das mãos de Aewyre e atirando a cadeira sobre a cabeça para fora do palco, impulsionando-se de seguida com as pernas para uma posição agachada. Vendo-se desarmado e com o sorridente bobo entre si e Ancalach, Aewyre recuou um passo e olhou à volta em busca de uma arma improvisada.
— Pois é, meu rapaz... — disse Dilet, girando as adagas entre os dedos e envolvendo-os com oleosos fiapos de sombra. — Confesso que estava à espera que este nosso jogo durasse um pouco mais, mas não faz mal. Deixo-te aqui a sangrar, mato o teu irmão e depois volto...
O jovem pegou na perna de uma cadeira e empunhou-a com ambas as mãos, o que alargou mais ainda o sorriso do bobo, que começou a avançar e cujas mãos se viram então envoltas em acirrada sombra ondulante.
— Estamos um bocado desprotegidos sem a espadinha, não é? Sente o poder do meu se...
— Aewyre! — ouviram ambos Lhiannah gritar.
O guerreiro olhou para além de Dilet, que espreitou por cima do ombro e viu a princesa de braço estendido sobre o palco, como se tivesse acabado de atirar algo. Só então Dilet viu Ancalach derrapar pela madeira, vendo-se incapaz de reagir a tempo para a interceptar, mas virando-se rapidamente para Aewyre e apontando-lhe uma adaga, da qual jorrou uma emanação sombria. Aewyre saltou para o lado, evitando-a, rebolou pelo palco e agarrou a espada, erguendo-se com ela empunhada a tempo de cortar a segunda emanação que o bobo contra ele arrojou, dissipando-a como cinzas negras expostas a uma rajada de vento.
— Mau... — queixou-se o bobo, vendo que a princesa subia ao palco, também ela com uma espada empunhada. — Dois contra um é que não.
Dito isto, Dilet arremessou uma adaga contra as pernas de Lhiannah, prendendo-lhe a ponta da saia a uma tábua do palco e fazendo com que a arinnir tropeçasse e caísse de peito ao piso. Aewyre investiu com um grito, desferindo um corte ao nível das coxas do bobo, que contudo pulou sobre os seus ombros, apoiando-se neles para um novo salto que lhe permitiu evadir-se de uma possante espadeirada em arco sobre a cabeça do guerreiro. Dilet agarrou-se então à borda do grande candelabro sobre o palco, oscilando as pernas para cima e alçando-se para cima dele com o contrabalanço. O candelabro começou a vacilar de um lado para o outro e Dilet agarrou-se à corrente numa pose triunfante a meio dos brandões de agitadas chamas, capitaneando o oscilante objeto com uma adaga teatralmente enristada.
— Avante, então! A águia cairá, qual candelabro sobrecarregado! — proclamou, deixando-se pender do braço agarrado à corrente quando o candelabro atingiu o seu ápice na direção da entrada e com Aewyre em baixo, ao qual acenou com uma adaga. — Diz adeus ao teu irmão, jovem príncipe onerado!
Com isto, Dilet tomou balanço, e, antes de o candelabro atingir o seu ápice virado para a revirada mesa principal, saltou em pleno ar e aterrou com força sobre o aro de ouro, arrancando a base da corrente do teto. O bobo precipitou-se então em queda livre, montando o candelabro como uma montaria desgovernada de adejantes flâmulas verdes e soltando uma gargalhada maníaca ao pular dele a meio caminho, deixando-o abater-se com grande estrépito sobre dois cortesãos, que apenas puderam resguardar-se debalde com os braços e gritar antes de a pesada morte dourada lhes cair em cima. Dilet rodopiou em piruetas pelo ar como um parafuso arremessado na direção de uma das tapeçarias pendentes do teto, desembainhando uma outra adaga e espetando nela as duas, e descendo diagonalmente ao longo da tapeçaria, deixando nela dois rasgões que cortaram ao meio a águia nela bordada. Com a queda amparada desta forma, o bobo pousou graciosamente no chão, olhando para trás para Aewyre, que ainda se encontrava em cima do palco, sorrindo-lhe e ostentando as suas lâminas.
— Aereth! — gritou o guerreiro ao ver Dilet correr na direção do seu irmão, hesitando um breve instante ao olhar para Lhiannah, que o fitava com grandes olhos, ajoelhada e a arrancar a adaga que lhe prendia a saia.
A quase irresistível vontade que os acometeu foi a de se abraçarem ali mesmo, de se reconfortarem nos braços um do outro e sentirem os corações a ressoarem nos seus peitos, mas ambos lhe resistiram e limitaram-se a acenar com as cabeças em concordância. Lhiannah levantou-se e foi pegar na sua espada, e Aewyre correu até à borda do palco e saltou para fora dele, movido pelo iminente terror de que poderia não chegar a tempo de impedir o bobo, que pulava na direção do seu irmão, evitando os ensandecidos cortesãos com uma série de piruetas. Uns tentaram agarrá-lo, estendendo os braços ou mesmo saltando para o apanhar, mas a maior parte deles ignorou-o, permitindo-lhe pousar com a graciosidade de um gato perto de Aereth sem quaisquer confrontos. O regente ainda estava ajoelhado e com Iollina nos seus braços, balbuciando incoerentemente e abanando a cabeça com a princesa a pender frouxa e exangue dos seus membros.
— Oh, meu senhor, então agora é que vos lembrais de que a vossa esposa existe? — perguntou Dilet, inclinando a cabeça para o lado com apenas um guizo a tinir e levando ambas as adagas ao coração, pondo um lento pé à frente do outro à medida que avançava. — Longos dias sangrou ela do coração, sem que lhe désseis atenção, e apenas agora que o sangue lhe pinga vermelho do colo para os frios ladrilhos do chão, frios como o vosso trato...
Dilet suspirou, emitindo estalidos aprovadores com a língua, e Aereth virou a cara para ele com os olhos marejados de lágrimas que lhe escorriam até à barba e dela pingavam.
— Porquê, bobo... porquê? — plangeu.
Dilet sorriu e olhou para trás, vendo que Aewyre se debatia aflitamente com os cortesãos que se lhe metiam no caminho, e deliciando-se ao vê-lo ceifar um com Ancalach. Não chegaria a tempo, por muito que tentasse, e Dilet avançou então para Aereth de braços apartados e adagas enrodilhadas em fumarenta sombra, os seus não mais jocosos olhos a luzirem com um brilho assassino.
— Porquê? Porque jurei destruir-vos e aos vossos, meu senhor — explicou Dilet com nojo na voz. — Por muito que tenha sonhado com esta ocasião, a verdade é que matar-vos nem me dará grande prazer, de tão pateticamente crédulo e fácil de persuadir que fostes...
O bobo foi interrompido pelo pajem, que se interpôs entre ele e Aereth de braços abertos, surpreendendo Dilet, que estacou e arregalou as já de si arqueadas sobrancelhas com a inesperada interrupção. O rapaz estava claramente assustado, bem como desarmado e mal vestido para um combate com o seu gibão alaranjado e apertadas calças azuis, mas nem por isso parecia menos decidido a proteger o seu senhor. Dilet piscou três vezes os olhos, mas como não tinha tempo para piadas, sorriu e revirou uma das adagas na sua mão para despachar o insolente pajem, desferindo um corte limpo à garganta, do qual o rapaz contudo se desviou, inclinando-se para trás.
— Eh? — admirou-se o bobo, franzindo o sobrolho.
O pajem nada mais fez, limitando-se a recuar um curto passo, e Dilet tornou a atacar, instigado pelos gritos cada vez mais próximos de Aewyre nas suas costas. O bobo cortou novamente o ar com uma adagada, pois o rapaz tornou a evitar o seu golpe, bem como os dois que se lhe seguiram em rápida e sibilante sucessão. Todos falharam, dextramente evitados pelo pajem para grande incredulidade de Dilet, que cedo se converteu em agravamento, levando o bobo a envolver as suas adagas inteiramente em serpenteantes sombras, pronto a arrancar a pele dos ossos do impertinente rapaz, mas então ouviu um tremendo urro atrás de si.
Aewyre estava em pleno ar, saltando sobre a mesa revirada e com Ancalach empunhada por ambas as mãos, pronto a partir Dilet ao meio. O bobo pulou para o lado e .a espada vibrou agudamente contra os ladrilhos do piso quando Aewyre aterrou pesadamente sobre eles, virando bruscamente a cara para ver Dilet pular contra ele de dentes cerrados num contra-ataque com um braço esticado de adaga enristada e o outro recolhido, visando o seu costado exposto. O guerreiro girou a bacia e posicionou Ancalach diagonalmente sobre o seu tronco, bloqueando o golpe e, assim que o bobo tentou atacar pelo lado com o outro braço, flectiu o joelho dianteiro e entrou pelo golpe de Dilet adentro, levando bruscamente acima o punho da espada e golpeando-o com o pomo. Um esguicho de sangue cuspiu um dente para fora da boca do bobo, cuja cabeça foi para trás de repelão com a força do golpe, e Aewyre não lhe deu tempo para se recompor, desferindo um altabaixo que teria escachado o crânio a Dilet se este não se deixasse cair para trás de pernas flexionadas, rolando no chão sobre as costas e empurrando-se com os braços para uma posição agachada. Dilet apontou então com ambas as adagas para o jovem, emanando delas dois jorros de revoluteante penumbra que Aewyre desfez em fiapos de sombra com Ancalach, investindo então contra ele com Ancalach ao seu lado. O bobo foi-se evadindo com piruetas, contra-atacando sempre que julgava encontrar algum espaço, mas Aewyre fustigava-o com uma acerada lufada de golpes, determinado a manter o bobo afastado do seu irmão.
Os dois passaram por Cortun e Daveanorn, que continuava a manter o braço do seu adversário em posição de luxação, sem que este contudo cedesse. O corpulento paladino grunhia e berrava, ignorando as palavras de Daveanorn e contorcendo-se selvaticamente no chão com este em cima do seu braço, até que, para grande espanto do mestre de armas, os ossos do braço do seu adversário se separaram com um forte estalo que foi tragado pelo urro de Cortun. Dobrando o membro de forma grotesca, o paladino agarrou o colarinho de Daveanorn com o outro e puxou-o contra a sua nuca, partindo-lhe o nariz com um enojante baque. Daveanorn levou as mãos à cara e saiu de cima de Cortun que, sem nunca deixar de urrar, mexeu o braço dobrado e se apoiou com o outro no chão para se pôr de joelhos. Olhando em redor com vítreos olhos injetados de sangue, deixou a dor afogar-se na torrente de violência que varria o salão real com vagas de sangue e gritos, e virou novamente a sua atenção para Daveanorn, que estava de costas viradas para ele e com as mãos na cara. O paladino arreganhou os dentes e pegou no seu adversário caído pelos cabelos grisalhos, puxando-lhe a cabeça para cima para a esmagar contra o chão, mas foi surpreendido quando o mestre de armas se virou bruscamente para ele com um sangrento ricto de raiva, espetando-lhe uma faca de trinchar na garganta, cuja ponta lhe saiu pela parte de trás do pescoço. Cortun emitiu um ruído sufocado e crispou reflexivamente os dedos nos cabelos de Daveanorn, mas não foi senão quando este puxou a faca para o lado e lhe abriu a garganta que a sua mão afrouxou. As raivosas rugas que lhe riscavam a face desapareceram, aplainadas pelo choque da passagem do ferro frio a encher-lhe as vias respiratórias com o seu próprio sangue, e o paladino agarrou a garganta como se pudesse parar o sangramento, apertando-a. Caiu sobre o ombro do braço bom e ficou então de barriga para o chão sobre uma crescente poça de sangue, deixando o outro membro frouxo e dobrado a seu lado.
Lhiannah não conseguira acompanhar Aewyre, que correra que nem um touro desenfreado até Aereth, empurrando ou cortando cortesãos para fora do seu caminho, e eram esses que agora se erguiam e a atacavam, retardando-lhe o avanço. Algo lhe dizia subconsciente-mente que não devia lutar a matar com aquelas pessoas, mas a princesa estava demasiado ferida, assustada e furiosa para se conter contra homens e mulheres que a tentavam matar a ela, e o seu avanço ia-lhe manchando a espada com o sangue cobrado quase a cada passo. Procurava ainda assim ferir em vez de matar, mas alguns cortesãos obrigaram a arinnir a defender-se de forma mais vigorosa, como o homem caído e de punhos ensangüentados que lhe agarrou a perna, ameaçando derrubá-la e deixá-la à mercê da furiosa turba, forçando Lhiannah a abrir-lhe o escalpe e lascar-lhe o crânio com um golpe de espada. Uma mulher saltou-lhe para as costas, tapando-lhe a cara com os seus cabelos e fincando-lhe as unhas na cara suja de sangue, e Lhiannah curvou-se a projetou-a sobre a cabeça, fazendo-a golpear com as pernas um outro cortesão que se preparava para a atacar. Mal se viu livre desses dois, houve logo um outro a investir contra ela de faca e garfo empunhados, alheio ao alcance superior da espada que a arinnir empunhava e que lhe fendeu o joelho, partindo-lhe de seguida o queixo com uma bordoada do pomo. Tombado esse cortesão, Lhiannah constatou que os restantes entre as mesas estavam demasiado ocupados a lutar entre si e teve por fim espaço para respirar, aproveitando para olhar para Aewyre, que perseguia o bobo ao longo da parede com espadeiradas das quais este se ia evadindo. Worick rebolava debaixo da mesa da corte de Ul-Thoryn, a única que ainda se encontrava de pé, fugindo de dois guardas armados de partasanas. Lhiannah preparou-se para o ir ajudar, mas um grito nas suas costas deteve-a e levou-a a olhar para trás, reconhecendo a aia de Iollina, que estava encolhida à parede, resguardando a cabeça com os braços e sendo violentamente agredida por um gritante cortesão, que a chutava como a uma cadela. Lhiannah sentiu-se apenas momentaneamente dividida, mas foi quase de seguida acorrer a rapariga, cujos gritos eram entrecortados a cada pontapé por grunhidos abafados. A princesa cobriu a curta distância que os separava com três longas passadas a correr e acometeu o homem com uma forte pancada do pomo da espada na nuca, que lhe fez estremecer a cabeça e o corpo, que caiu esfacelado para o lado.
— Estás bem, rapariga? — perguntou Lhiannah, ajoelhando-se diante dela e pousando-lhe a mão sobre o trêmulo ombro, que se encolheu juntamente com o resto do corpo ao toque. — Está tudo bem, ele já não te faz mal...
Hesitante, a aia acabou por espreitar por entre os braços, a sua face marejada por lágrimas mescladas de sangue e das marcas sujas de um pé. Tremendo, acabou por baixar os braços ao reconhecer a princesa por detrás da máscara escarlate.
— Prin... princesa Lhiannah? — balbuciou.
— Sim, está tudo bem. Não te preo...
— Cuidado! — gritou a rapariga, arregalando os olhos e agarrando-se à mão de Lhiannah, que se virou imediatamente de espada aprestada.
Grande foi a sua surpresa ao ver Tylon arremeter contra si de braços estendidos, enterrando-se com abandono na lâmina a ele apontada, que o trespassou de um lado ao outro, e ainda assim conseguindo colidir com Lhiannah, que foi contra a parede e arquejou asfixiadoramente quando o pomo da sua espada se lhe enterrou na barriga, levando de seguida uma involuntária cabeçada do regente que fez com que a sua cabeça ressaltasse contra a parede. Debaixo das suas pernas, a rapariga gritou e tornou a cobrir a cabeça, sendo porém ignorada por Tylon quando este rosnou, ignorando o aço que lhe atravessava o torso, e cerrou os dedos no pescoço de Lhiannah, arrastando-a para o chão. A arinnir bateu novamente com a cabeça, deixando-a atordoada e de pulmões apertados, com os ásperos dedos do pesado regente a enterrarem-se na sua garganta. Privada de ar, Lhiannah debateu-se desesperadamente, arranhando os braços de mangas rasgadas de Tylon e esmurrando-lhe a cara intumescida de sangue pisado e com um olho fechado. Porém, o enlouquecido regente não fazia caso e apertava com cada vez mais força, expelindo saliva e sangue através dos espaços partidos entre os seus dentes e respingando a já de si cruenta cara da princesa com sanguinolentos perdigotos de muco do seu nariz. A visão de Lhiannah começava a turvar-se, e as forças esvaíam-se-lhe lentamente enquanto agredia Tylon com um braço e procurava agarrar com o outro o punho da espada que lhe pressionava o ventre, estando esta agora enterrada até aos copos na barriga do regente. O sangue que lhe ficara preso do pescoço para cima enrubescia-lhe a cara e marulhava-lhe aos ouvidos, abafando o tremendo berro que veio na direção de ambos e do qual apenas Tylon se apercebeu.
Erguendo a surrada cara, o regente teve apenas uma fração de instante para ver Worick carregar contra ele antes de a perna da cadeira que o thuragar empunhava se partir contra a sua cara com um estraçalhar de madeira e osso que espirrou sangue e lascas pelo ar, arrancando Tylon de cima de Lhiannah e prostrando-o de braços estendidos no chão. A arinnir inalou roucamente ar, levando uma mão à garganta e a outra à barriga, momentaneamente incapaz de ouvir as inquirições de Worick acerca do seu bem-estar.
Do outro lado da sala, Ancalach continuava a ser assediada por adagas enquanto Aewyre e Dilet prosseguiam no seu combate. O jovem estava a ter dificuldades em compensar a mobilidade do bobo, que já recuperara da pancada no queixo e retomara as suas mortíferas piruetas, parecendo estar com as adagas por todo o lado. Com a agilidade de Dilet, o superior alcance de Ancalach era uma vantagem ilusória, pois o bobo entrava repentinamente no seu espaço sempre que o guerreiro se estendia com uma estocada ou golpe mais vigoroso, o que o obrigava a manter guardas próximas e a desferir cortes curtos na esperança de que Dilet ficasse excessivamente confiante e cometesse algum erro. Porém, o bobo parecia mais que disposto a prolongar aquela que para ele parecia ser uma brincadeira até que Aewyre ficasse exausto, rindo enquanto saltava e emitindo provocantes ruídos de antecipação sempre que via uma aberta.
— Admito que aquele rapazote me surpreendeu — disse Dilet, revirando a adaga e aparando uma espadeirada de Aewyre com a lâmina desta apoiada sobre o antebraço. — Não sabia que treinavam tão bem os pajens aqui. Talvez pudesses aprender umas coisas com ele, se não fosses morrer hoje.
Aewyre não respondeu, recolhendo imediatamente Ancalach para interceptar o penetrante golpe da outra mão do bobo com os copos da espada, recuando então um passo e volteando a espada com o intuito de atingir de lado o joelho do bobo. Este pulou como um gafanhoto para evitar o golpe, saltando por cima da cabeça do guerreiro e rebolando pelas suas costas, espetando-lhe uma adaga na ilharga pelo caminho. Aewyre grunhiu e rodou a bacia, desferindo um cego revés, mas o bobo já estava fora do seu alcance e limitou-se a rir, franzindo porém ao ver que a adaga não estava manchada de sangue. O jovem arreganhou os dentes e tornou a investir, retomando a dança de lâminas, na qual Dilet lhe permitia tomar as rédeas, deixando Ancalach pautar o ritmo e causando dissonâncias sempre que lhe convinha. O bobo recuava, deslizando com os pés pelos ladrilhos, e Aewyre procurou encurralá-lo contra um pilar, orientando-o à espadeirada. O bobo pareceu todavia aperceber-se das suas intenções, pois pulou para trás, apoiando os pés no pilar, saltando e efetuando uma pirueta sobre Aewyre, no decurso da qual as suas adagas resvalaram vibrantes por Ancalach, com a qual Aewyre se defendeu dos múltiplos e inesperados ataques vindos de cima. Dilet aterrou após duas cambalhotas com um sorriso e uma risadinha, rilhando as adagas uma contra a outra e assumindo uma convidativa pose de perna flexionada.
«O maldito érápido... bem mais rápido que eu», reconheceu Aewyre, ignorando a pontada de dor que sentia na ilharga e concentrando-se na única coisa que ainda o poderia salvar.
Kror estava demasiado longe, e mesmo que o ranger do «tendão» lhe sinalizasse a morte iminente do seu adversário, o jovem duvidava muito de que sentisse a mínima vontade de o ajudar, tendo em conta o que acontecera. Ainda assim, Aewyre tentou, esperando algo semelhante ao que sucedera segundo Fèdac quando a família de Blai contratara um bando de assassinos para matar Tûmes. Crispando os dedos no punho de Ancalach, tentou o «tendão» com o acirrado combate que se avizinhava e cuja ferocidade já tivera ocasião de degustar. Seduziu-o com a raiva adormecida no seu sangue fervilhante, com o calor líquido que lhe escorria do corte no pescoço pelo colarinho abaixo, com os gritos e sons da contenda que ecoava pelas abóbadas do salão, e com a sombria ameaça das adagas de Dilet, que ergueu a sobrancelha ao ver a sua aparente hesitação. O «tendão» mostrava-se relutante como sempre, mais ainda que o costume, tendo em conta a distância a que se encontrava de Kror, mas o rangido forte que Aewyre sentiu incentivou-o a tentá-lo mais. O «tendão» estava adormecido, moüficado pelas semanas de convivência desprovidas de conflito entre Aewyre e Kror, mas o jovem julgou que podia jogar com isso a seu favor, por muito que uma parte de si se continuasse a revoltar contra a noção de que o «tendão» era algo senciente com o qual podia comunicar.
«Sabes bem que o queres», provocou, enristando novamente Ancalach e avançando a passos decididos na direção de Dilet, cujo sorriso regressou.
— Pareceste meio perdido por instantes. Tens a certeza de que queres continuar? — zombou o bobo.
«Não serves para mais nada. O teu propósito é nulo se não estalares em combate», continuou Aewyre, de olhos fitos em Dilet mas ignorando as suas palavras. «Ele é mais rápido que eu, é alimentado pelo poder do homem que matou o meu pai, e corrompeu o meu irmão. Vou matá-lo por isso.»
Os dois seguintes passos foram mais rápidos, e Aewyre assumiu uma guarda lateral de espada erguida, expondo o ombro esquerdo. Começou a apoderar-se dele uma tênue sensação de que os seus braços se alargavam, tornando Ancalach parte do seu corpo, o que viu como um claro sinal de que faltava apenas um derradeiro puxão.
«Se queres estar recolhido a um canto como o Kror, força, mas eu vou cortar este maníaco em pedaços, e mesmo que morra vou vender cara a minha pele!»
Sem mais delongas, Aewyre atacou Dilet com um urro, e nesse momento a sua visão afunilou-se, tornando o bobo o centro do seu mundo, e um estalido fez os seus próprios tendões e músculos contraírem-se como uma grande cãibra, soltando-os de seguida com renovado vigor. O guerreiro tornou-se uno com a sua lâmina, que acometeu Dilet com uma súbita e quase sobrepujante saraivada de golpes, apagando o sorriso da cara do bobo. Aewyre avançou implacavelmente com relampagueantes molinetes que cortavam o ar com chofres acerados, forçando Dilet a recuar não por opção, mas para evitar ser mortalmente golpeado. Os seus reflexos permitiram-lhe eva-dir-se do avassalador ataque, deixando traços entrecruzados de oleoso fumo sombrio à sua frente à medida que ia aparando os sucessivos ataques a um ritmo alucinante que o tomou totalmente de surpresa, mas os seus movimentos afiguravam-se mais lentos aos olhos do guerreiro, que não lhe deu o mínimo espaço para sequer pensar num contra-ataque, vedando-lhe todas as aberturas com o leque lamelar que o seu ataque formava. Os dois chegaram até à fogueira diante da mesa principal, sobre a qual se encontrava inclinado o baldaquim de cortinas pendentes, uma das quais Aewyre quase cortou ao meio com um golpe de Ancalach quando Dilet se tentou esconder atrás dela. Debaixo do baldaquim e com uma enfunada cortina cortada entre eles, o bobo julgou ver por fim uma aberrura e por pouco não foi empalado por Ancalach ao tentar tirar partido dela. Aewyre recobrou quase instanraneamente da falhada empalação e partiu dela para um traiçoeiro revés, mas embora se mantivesse concentrado em Diler, viu que Aereth ainda se encontrava ajoelhado e com Iollina nos seus braços à sua direita, e a ameaça que o bobo representava para o seu irmão apenas encarniçou os seus ataques. De cima, de baixo, pela esquerda ou pela direita, a espada rutilante à luz da lareira próxima perseguia Dilet, e Aewyre estava prestes a encurralá-lo contra o baldaquim caído, quando a sua investida foi bruscamente interrompida. O vigor de aço que lhe ondulara pelos músculos desvaneceu abruptamente, deixando-o desamparado como se tivesse acabado de ser expelido de uma carruagem em andamento, e o ímpeto do seu último golpe desequilibrou-o.
«.Não! Maldito, não agora...!»
O bobo não perdeu um instante sequer e aproveitou de imediato, desferindo um corte transversal no torso de Aewyre e partindo dele para uma rápida seqüência de golpes fluidos, rodopiando em si em pleno ar ao deslizar as adagas pelo peito e barriga do jovem e culminando com um pontapé no esterno deste, que o fez ir de costas contra a prateleira da lareira. Antes sequer de o jovem colidir contra o mármore, já Dilet dava uma cambalhota no chão para de seguida se impulsionar de adagas em riste contra Aewyre, enfiando-lhas na barriga e apartando-as bruscamente de seguida num movimento de evisceração. O guerreiro curvou-se com um grunhido sufocado, caindo de joelhos com a mão que segurava Ancalach apoiada no chão e a outra agarrada à barriga. O bobo chutou-lhe então a cara, fazendo com que Aewyre largasse Ancalach e deixando-o estendido no chão de cabeça virada para a fogueira, cujo calor lhe abrasou a já de si enrubescida face.
— Nada mal, Aewyre — ofegou Dilet, empurrando Ancalach para longe com o pé, revirando nas suas mãos as adagas, que começaram novamente a emanar o seu sombrio fumo, e acercando-se do guerreiro enquanto esse se erguia a custo. — Mas agora a brincadeira acabou.
— Bobo... não! — gritou Aereth debilmente.
De costas para Dilet, Aewyre apenas ouviu os delicados passos que se aproximavam, mas os seus instintos de guerreiro amolados pela constante tensão do «tendão» permitiram-lhe sentir a aproximação das duas pontas de aço assassinas que sibilavam pelo ar como duas cobras em busca da sua jugular. Grunhindo um grito de desesperado esforço, o jovem levou a cabeça atrás e agarrou os pulsos de Dilet, deixando as adagas a menos de uma agulha de distância da sua garganta de veias palpitantes. O bobo assentou rapidamente um pé nas omoplatas do guerreiro para lhe puxar as adagas contra a garganta, mas Aewyre antecipou-se-lhe, dobrando a cintura e servindo-se do pé de Dilet como ponto de apoio para o projetar sobre a sua cabeça. O bobo teve apenas tempo para grunhir com o súbito sacão e arregalar os surpresos olhos antes de cair de cara desamparada sobre os toros em brasa da grande fogueira, fazendo-a espirrar incandescente brasido com o impacto. O silvo de carne a ser queimada antecedeu o tremendo berro do bobo, que estorcegou em agonia dentro da lareira, escorregando em toros e caindo de costas para trás enquanto esperneava e esbracejava com o seu gorro a pegar fogo. Aewyre arrastou-se para trás, momentaneamente preso pela horrífica dança de dor do bobo, mas assim que este saltou às convulsões para fora da lareira, lembrou-se de rastejar aos tropeções até Ancalach.
— Aewyre! — gritou Lhiannah, que se aproximava com Worick, correndo ao longo da parede.
O guerreiro olhou brevemente para a princesa, vendo-a surgir com o thuragar detrás de uma das cortinas pendentes do baldaquim inclinado, mas o seu olhar e a ponta da espada voltaram rapidamente para Dilet assim que o ouviu berrar novamente. Com a cara a fumegar e chiar, o bobo arrancou o seu gorro ardente e atirou-o para o chão, levando então à face as mãos coruscantes de penumbra enquanto cambaleava em redor. Lhiannah e Worick chegaram a tempo de verem Aewyre investir contra o gritante bobo, que destapou uma carranca escurecida, ruborizada e fumegante para fitar o jovem com um olho semicerrado e o outro a lacrimejar odiosa sombra. Aewyre gritou ao levar Ancalach atrás e atacar, temendo que o seu irmão ainda pudesse ser ameaçado, mas Dilet retribuiu o berro ao pular de costas por cima de Aereth e para cima da base do baldaquim inclinado, da qual ressaltou para se agarrar às cortinas enroladas na fronte deste, usando-as para se alçar para o topo, no qual se agachou, olhando para baixo. Aewyre ergueu a cabeça e olhou em redor, buscando uma forma rápida de aceder ao cimo do baldaquim, ponderando mesmo a hipótese de subir pela prateleira da lareira, mas Dilet não lhe deu tempo. Balbuciando a tentativa de uma ameaça, o bobo acabou por levar a mão à cara em dor e perder as palavras num novo urro, após o qual pulou e desapareceu de vista. O estilhaçar de vidro fez com que Aewyre urrasse de frustração, agarrando ainda uma cortina como se intentasse subir o baldaquim e ir no encalço de Dilet, mas deteve-se ao olhar para Aereth e, devido à aproximação desta, Lhiannah.
— Aewyre! — vociferou a arinnir, correndo na direção do guerreiro a abanar a cabeça em descrença e colidindo com ele ao abraçá-lo.
O jovem grunhiu com o impacto, e Lhiannah afastou-se prontamente, deixando na sua túnica manchas vermelhas do seu vestido ensangüentado. Com uma careta de dor, o jovem agarrou-se à barriga onde Dilet o atingira e à qual a arinnir levou uma preocupada mão, pousando a outra no pescoço ferido do guerreiro, cujo colarinho estava ensopado de sangue.
— O que foi...? Estás bem?
Sem nada dizer, Aewyre olhou para baixo e tenteou a zona atingida da barriga, constatando que, apesar de lhe doer cada vez mais devido ao decréscimo de adrenalina, não fora puncionada nem cortada pelas adagas de Dilet, e que a túnica oferecida pelos eahan brunos não ostentava o mínimo furo.
— Seda de aranha... — murmurou o guerreiro.
— O quê? Aewyre, estás ferido?
Sem responder, o jovem levantou a cabeça e fitou por fim Lhiannah nos olhos, deixando-se perder nos charcos azuis de douradas pepitas flutuantes que havia tanto tempo apenas pudera rever em sonhos e memórias. Os ruídos de luta que ainda se ouviam não o conseguiram distrair, mas o seu olhar acabou por ser atraído para o alvo vestido manchado de sangue da princesa, que contemplou com ar preocupado.
— E tu... estás bem? — perguntou, tocando a anca da princesa com a mão que agarrava Ancalach reversamente e levando-lhe a outra à cara, esfregando-lhe com o polegar o sangue do canto da boca e fazendo com ele um borrão que se mesclou aos respingos vermelhos na face.
Lhiannah fez que sim com a cabeça, fitando Aewyre com olhos de cintilantes bordas humedecidas, e o guerreiro abraçou-a então com força, deixando escapar dos seus próprios olhos cerrados uma ínfima gota. A arinnir cheirava a sangue, fezes e urina, mas tal não bastou para que Aewyre se afastasse. Ouviu e sentiu-a soluçar ao seu ombro, o que fez com que a apertasse com mais força ainda contra si, como se desta feita pretendesse contrariar quaisquer venetas do destino que conspirassem para os separar novamente, deixando ambos os seus corações falarem com a quase esmagadora proximidade dos seus peitos.
— Eu cá se fosse a vocês... não ficaria tão juntinho — ofegou Worick, interrompendo-os com a sua inoportuna voz. — É mais fácil para eles... fazerem de vocês uma espetada.
Apoiado num canto do baldaquim, o thuragar apontou para trás de Aewyre, que se afastou bruscamente de Lhiannah e girou Ancalach numa mão antes de a asir com as duas numa pose de combate, colocando-se protetoramente diante da princesa. Os guardas de Ul-Thoryn aproximavam-se, muitos com os arneses respingados de sangue e todos de partasanas em riste ou espadas empunhadas. Tinham o baldaquim cercado, embora a maioria viesse liderada por Daveanorn da esquerda, onde Aewyre e Lhiannah se encontravam, e outros pelo meio, aproximando-se hesitantes e cientes de que o perigo para o seu senhor ainda não passara, sobretudo agora que se encontrava próximo daqueles que a seu ver eram tão perigosos como os cortesãos que se haviam visto forçados a matar. Vendo isto nos olhos por detrás das viseiras de elmos, Aewyre olhou por cima do ombro para Aereth, que permanecia exatamente na mesma posição.
— Aereth, diz-lhes que parem — pediu da forma menos imperativa que conseguiu.
O jovem regente apenas balbuciou, ainda com os olhos marejados de lágrimas e com Iollina a oscilar sem vida dos seus incrédulos braços.
— Eu... eu não queria isto... — titubeou, meneando a cabeça com a coroa meia descaída sobre a sua testa.
Os guardas continuaram a avançar, lentamente, mas cada vez mais próximos. Daveanorn, cujo nariz lhe ensangüentara a barba e bigode, ergueu a mão ao de leve, incerto quanto à decisão a tomar.
— Aereth, por favor, diz-lhes que parem — instou Aewyre, recuando um passo e olhando para Daveanorn ao levar a sua mão atrás para que Lhiannah fizesse o mesmo. — Mestre, por favor...
Worick aproximou-se de Aereth, e a sangrenta perna de cadeira que tinha na mão alarmou os guardas, cujas placas dos arneses roçaram agressivamente umas nas outras quando se detiveram e enristaram as armas de haste.
— Worick — advertiu Aewyre, estendendo para trás a mão livre para que o thuragar parasse, e este assim fez, sem contudo largar a arma improvisada. — Aereth...?
— Têm de acreditar em mim... — praticamente implorou o regente.
— Aereth, pelos deuses, não me faças ameaçar o meu próprio irmão! — sussurrou-lhe Aewyre exasperadamente por cima do ombro, mantendo os guardas debaixo de olho.
Vendo que os guardas continuavam a avançar e que Aereth permanecia insensível às suas palavras, limitando-se a abanar a cabeça e a soluçar desculpas difíceis de perceber a quem eram dirigidas, Aewyre perdeu a paciência e optou por outra abordagem.
— Basta! — vociferou, apontando com Ancalach para o grupo de soldados que mais próximos se encontravam, e Daveanorn estendeu os braços a seus lados para evitar qualquer reação precipitada dos seus homens. — Sou Aewyre Thoryn, filho de Aezrel Thoryn, vosso príncipe, e não serei tratado como um inimigo, não aqui, não por vós!
O estentoroso tom ao qual não estavam habituados fez com que os guardas se detivessem novamente, pois os ecos que reverberaram pelo salão real não eram os da voz do príncipe galdério que conheciam, mas os de um homem endurecido pela guerra e pela morte.
— Houve traição entre estas paredes, mas não veio da minha parte! — continuou, apontando Ancalach para o grupo que vinha do lado oposto, fazendo com que Worick se baixasse ao ver que estava no caminho. — Agora deponham as vossas armas! Não atravessei meia Allaryia para ser ameaçado na minha própria casa, pelos próprios homens com os quais convivi e treinei estes anos todos!
Os guardas entreolharam-se e viraram-se para Daveanorn e para Aereth em busca de ordens, mostrando-se hesitantes, embora alguns baixassem de fato as suas partasanas após ouvirem as sentidas palavras do seu príncipe, que encorajou este a baixar o cansado braço que empunhava Ancalach, suspirando.
— Baixem as vossas armas, chega de sangue e mortes por hoje. O único inimigo de Ul-Thoryn já não se encontra entre nós — disse, olhando para o cimo do baldaquim, que tapava a vista para a janela pela qual Dilet saltara, e em seguida para Aereth, que permanecia na mesma gemebunda posição. — Baixem as armas...
Desorientados, os guardas acabaram lentamente por aquiescer, e as pontas das partasanas foram-se arriando, umas mais convictas que as outras, e os braços de Daveanorn seguiram-se-lhes assim que o paladino sentiu a tensão amainar. Worick manteve-se atento, baixando a perna da cadeira mas não a guarda enquanto observava aqueles que durante as últimas semanas aprendera a ver como inimigos. Lhiannah parecia partilhar do sentimento, sentindo-se pouco à vontade mesmo atrás de Aewyre e com as mãos apoiadas sobre os ombros deste. Por sua vez, o guerreiro nada mais disse, olhando para os guardas com cansados olhos francos e mantendo as mãos a seus lados, com Ancalach de ponta a roçar o chão. Ninguém avançou nem recuou, ficando antes todos simplesmente a olhar, para Aewyre, para o seu senhor, para aqueles que apenas momentos atrás tinham sido prisioneiros, para a mortandade em seu redor cujos resultados estavam esparramados a vermelho sobre as suas armas e armaduras.
Houve por fim um pouco de silêncio, e então ouviram-se os gemidos dos feridos e moribundos espalhados pela sala fora, os distantes gritos de alarme e traição a ecoarem pelos corredores do palácio, e acima de tudo os lamentos de Aereth. O regente acabara por baixar a soluçante cabeça, deixando-a pendente sobre a cara exangue de olhos abertos de Iollina, presa numa pálida expressão de inocência violentada. O seu sangue ensopava os já de si vermelhos trajes de Aereth, afogando as falsas ilusões com as quais o regente até então convictamente vivera e dissolvendo-lhe as sombras que lhe toldavam os olhos. O vermelho que as suas mangas embebiam e que lhe formava uma poça de mágoa nos joelhos era tanto mais marcante pelas imagens que naquele momento evocou, as imagens de um amor que nunca existira e no qual o sangue fora a única constante. O sangue de um pequeno e delicado polegar a ser picado pelo espinho de uma rosa, o sangue da desflorada virtude de uma criança, o sangue de um coração que desde então sofrera, e o sangue de um pálido pescoço que nunca conhecera as carícias de um homem amado e que agora ostentava o ornado punho de uma cruel adaga, a adaga que julgara estar ao seu serviço e que acabara por cortar os fios que lhe haviam até então sustido o mundo encenado no qual vivera.
As águas do Mar Norreno fulgiam como metal incandescente, invulgarmente calmas e aplanadas como um exausto e vasto corpo estendido após uma violenta tormenta. O sol grelava a Oeste, branco e candente, nimbando a linha do horizonte em tons dourados e ornando da mesma cor as dispersas nuvens que vagueavam preguiçosamente pelo amplo céu azul. Horavog começava a despertar, mas além das sempre presentes ovelhas não se viam sinais de vida em redor, a não ser mais para cima, na montanha que sobranceava a quinta, onde se via a habitual solitária figura agachada.
Quenestil observava o arrebol da aurora, deixando a sua amortalhada silhueta ser lentamente descortinada por um ascendente e acalentador lençol de luz solar, que contudo falhava em aquecê-lo por dentro. O semblante do eahan parecia esculpido de rocha, e ostentava uma pétrea falta de expressão, que também se refletia nos seus cinzentos olhos sem vida que olhavam para o vazio. De braços apoiados nos joelhos e mãos lassas e pendentes, o shura ostentava ainda as olheiras de uma ou mais noites passadas em branco, tinha as bochechas ruborizadas e dessensibilizadas pelo frio e as suas narinas estavam úmidas, vermelhas e escamadas. As suas mãos enluvadas eram a única parte do seu corpo que se mexia, e ainda assim de forma quase imperceptível, limitando-se a menear os dedos e a arrastá-los pela áspera pedra basáltica da montanha. A sua cara apenas se baixou quando as pontas dos dedos passaram pela superfície lisa de uma minúscula poça de água solidificada com pequenas ilhas de pedra manchada de líquenes, dentro da qual se via um tufo de musgo congelado, enclausurado numa prisão de gelo translúcido. Por alguma razão, aquela singela ocorrência natural capturou-lhe o interesse, e Quenestil tenteou a superfície, premindo-a com alguma força para testar a sua resistência e constatando que estava tão dura como o seu coração. Sentia-o tão encasulado em gelo como o tufo de musgo, tão apertado por dentro como uma planta crestada e esmagada pelo duro e impiedoso frio. A superfície era lisa, e nela o eahan viu refletido o vulto havia já alguns momentos anunciado por passos roçagantes, cuja cabeça agora surgia detrás do reflexo do seu ombro.
— Estava a ver quando é que aparecias — disse Quenestil, continuando a olhar para a poça. — Mais algum conselho a dar? Mais palavras sábias?
Ihjseorn nada disse, esmagando basalto a cada passo das suas pesadas botas e postando-se silenciosamente ao lado do eahan, observando o nascer do sol de contemplativos braços cruzados. Quenestil fungou desdenhosamente e sorriu sem qualquer humor ao sol, batendo ao de leve na poça com as pontas dos dedos.
— Há mais alguém que eu deva matar? Ou será que antes disso ainda vou ouvir outra história tua, uma outra fábula que me deixe mais longe ainda da verdade que a anterior? — continuou o eahan.
Ihjseorn não respondeu, desopilando antes a garganta com um ronco gutural.
— A kuvamara... não devia ter morrido — disse por fim.
— Ai pois não devia — concordou Quenestil, meneando a cabeça. — E a Slayra não devia ter engravidado do Tannath. E os tanarchianos não deviam ter traído os sirulianos. E tu não devias ter matado o Engiv. E eu... eu não devia... não devia ter feito muita coisa.
Fechando os olhos, Quenestil suspirou longamente, acabando por bater com as mãos nos joelhos e erguer-se, inclinando a cabeça para o lado para olhar para Ihjseorn antes de virar para o encarar de frente.
— Os skrimmen irão atacar, agora... — disse o wolhyno, como se não o tivesse ouvido, mas Quenestil ergueu uma mão enluvada para o silenciar.
— Desde que eu cá cheguei, que me têm arrastado de um lado para o outro, que me levam a fazer coisas que não quero, que me dizem que sou especial e importante e me manipulam ao mesmo tempo — disse o shura prosaicamente, baixando a mão e fixando Ihjseorn com um olhar inexpressivo e arraigado como pedra. — Acabou. Diz-me de uma vez o que se passa, o que querem de mim, e por que sabes tanto sobre mim. Diz-me, ou juro que mando tudo para os infernos.
Os dois ficaram a olhar longamente um para o outro, Quenestil sombrio e de ruivos cabelos alourados por estar de costas para o sol, e Ihjseorn de olhos azuis semicerrados e luzidias sobrancelhas brancas. A boca do humano era uma pensativa linha, e os seus lisos cabelos escuros abanaram com a aragem que então se levantou, agitando-se como se devido à passagem de idéias que o seu semblante traía.
— Eu disse-te que a... brincadeira apenas acabava com a chegada das fêmeas — relembrou-lhe o wolhyno, fitando Quenestil fixamente e acabando por acenar afirmativamente com a cabeça. — Agora estás pronto.
Quenestil não manifestou qualquer reação, e Ihjseorn indicou com os olhos a poça que o eahan estivera a observar.
— Estás a ver esse musgo? — O eahan não respondeu, mas Ihjseorn não fez caso. — É extremamente resistente. Cresce em todo o lado, e é indomável. Assim foram outrora os wolhynos, bravos guerreiros, o povo do Norte, sem medo da morte e com amor à vida, de aço empunhado mas sempre com respeito pelas árvores cuja madeira fora usada para o forjar. Éramos guerreiros, e éramos livres.
Esticando ligeiramente a perna, o humano bateu no gelo que envolvia o musgo.
— E assim se encontra hoje o nosso espírito, a nossa alma. Fria. Presa. Revestida de gelo, e não por vivermos onde vivemos — prosseguiu Ihjseorn. — As nossas mulheres começaram a vestir roupas do Sui em vez da lã que sempre nos mantivera quentes, os nossos soldados começaram a usar cavalos em vez de confiarem na força das suas pernas, as nossas crianças foram ensinadas a venerar outros deuses em vez dos espíritos da floresta e das montanhas, e um garâing ficou mais forte que todos os outros quando se aliou a outras nações. A sua palavra tinha mais peso que a dos outros, e tornou-se rei. Nem todos o aceitaram.
— E foram expulsos para aqui — interveio Quenestil numa tentativa de apressar Ihjseorn.
— Sim. As pessoas que acreditavam nos costumes antigos foram enviadas para os Fiordes dos Piratas com ladrões, assassinos e traidores. ..
— E os kabrkar.
— Especialmente os kahrkar — acedeu o humano, fazendo que sim com a cabeça e semicerrando os olhos ao olhar para o sol. — Eram uma lembrança, um pedaço vivo do passado, de uma época na qual os wolhynos viviam entre a madeira das suas florestas, e não entre a pedra de muralhas...
— Muito bem, e o que é que isso tudo tem que ver comigo? — quis Quenestil saber, monocórdico, e os orbes azuis de Ihjseorn tornaram a encontrar os seus.
— A última vez que os wolhynos estiveram unidos... foi quando a Forlornya invadiu — explicou. — Camponeses e pescadores pegaram em armas, os ventos do Norte uivaram como lobos nas batalhas, e o fogo que sempre ardeu nos nossos corações para nos manter vivos neste frio deflagrou, mais brilhante que o sol do Verão.
Deixando-se levar pelas próprias palavras, Ihjseorn deu consigo de punho erguido, olhou para ele e baixou-o.
— Esmorecemos depois disso. O nosso fogo esgotou-se, ficámos quebradiços com o frio, e fomo-nos partindo era pequenos pedaços. Assim ficou a Wolhynia como ela é hoje, e as tradições permanecem apenas aqui, nos Fiordes.
— Continuo sem perceber o que isso tem que ver comigo — disse Quenestil.
Ihjseorn acenou com a cabeça, dando a entender que já lá chegaria.
— Em tempos, nós, os wolhynos, também tivemos as nossas kuvamoras. Não lhes chamávamos isso, e elas não faziam as mesmas coisas que as dos skrimmen fazem, mas eram o nosso elo com as florestas, a nossa voz que falava com o vento, a nossa carne que se decompunha na terra quando morríamos, as nossas historiadoras e as confidentes dos nossos antepassados.
Ihjseorn parecia invulgarmente nostálgico enquanto falava, e o seu olhar vagueava freqüentemente da cara de Quenestil para o inflamado céu e para o luzente mar.
— Quando os costumes antigos entraram em declínio, também elas começaram a esmorecer, e tal como os kabrkar, desapareceram nas florestas a Norte, fugindo ou sendo expulsas por quem já não queria ouvir as suas palavras e preferia esquecer o passado. Porém, antes de partirem, cada uma delas visitou a casa de um garding, e pressagiou algo que iria acontecer...
— Sim...?
— Nenhuma delas fez uma profecia igual, mas o que todas disseram foi que, um dia, viria do mar um homem de cabelos de fogo, e com ele viria uma guerra que uniria ou quebraria de vez os wolhynos.
A expressão de Quenestil alterou-se por fim quando a sua testa se enrugou.
— Tal como os forlornyanos de cabelos vermelhos como labaredas que se abateram sobre as nossas costas, atiçando com o seu fogo uma brasa mais forte e ardente ainda nos corações dos wolhynos... — Ihjseorn desembainhou lentamente a espada, empunhando-a de ponta para baixo, e cravou-a na poça de gelo, rachando a superfície. — Esse homem forçaria os wolhynos a lutar ou a morrer, faria arder os nossos corações revestidos de gelo, quebraria os seus álgidos grilhões e faria a própria terra tremer em fúria e fogo.
Agora genuinamente atrapalhado, o eahan entreabriu a boca e franziu as sobrancelhas.
— O quê...? Mas o que estás a insinuar, que sou eu...?
— Vieste do mar com cabelos de fogo, tal como os forlornyanos — enumerou Ihjseorn, embainhando a espada. — Levaste os homens de Horavog ao seu batismo de sangue. Tanarch vai invadir, e os skrimmen preparam-se para a guerra.
Quenestil piscou os olhos e abanou a cabeça, tomado de surpresa pelas implicações das proféticas revelações do wolhyno.
— Não, isso é ridículo — afirmou peremptoriamente. — O ter chegado aqui não passou de uma coincidência, um acaso. Eu não...
— Mas há mais, Quenestil — interrompeu Ihjseorn. — As nossas... kuvamwas eram servas da Mãe que também tu serves; era através dela que falavam com as florestas e os céus, era com a sua ajuda que despertavam os animais dentro dos que tinham nascido para serem kabrkar. Graças a ela, tal como tu és capaz de prever o tempo olhando para o céu, assim previram elas a tua chegada, olhando para os ossos inscritos e os desenhos feitos no chão pelo sangue de homens sacrificados. Graças a ela, eu senti a tua chegada.
— Sentiste...?
— Há muito que ainda não sabes sobre os kahrkar. Apesar daquilo que te possam rer contado acerca deles, um kahrkr é muito parecido com aquilo que tu és.
— Es um shura?
— Não sei. Só sei que tu és um kahrkr que veio treinado mas que só agora despertou.
Cada vez mais confuso, o eahan perdera parte da austeridade que lhe fincava o rosto e agora olhava Ihjseorn com relutante mas legítimo interesse.
— És um eahan. És diferente dos humanos, és... bom. E como tal, nunca serviste a dualidade da Mãe, nunca reconheceste a sua outra face: o rosto sombrio de um céu de tempestade, a inclemência do fogo que varre uma floresta, a fúria do relâmpago que estraçalha uma árvore, a crueldade do macho que mata as crias que não são suas, a naturalidade com a qual uma kuvamora sacrifica uma criança... em nome da Mãe.
— O quê?
— Sim. O sacrifício foi feito em nome da Mãe e para obter o seu favor, mas não é isso que importa agora. A kuvamora despertou aquilo que já rosnava, preso dentro de ti, e agora estás pronto para fazer aquilo para o qual a Mãe te designou.
Quenestil não se manifestou, tamanha era a incredulidade, mas esta não passou despercebida ao wolhyno.
— Eu admito que nunca conheci eahan, mas tu pareces... diferente. Por alguma razão apareceste da forma que apareceste, a liderar um grupo tão diverso e sem nenhum membro da tua raça contigo. Estou enganado?
O shura levou a mão à cabeça, passando-a pela nuca e olhando para o chão, e virou as tácitas costas a Ihjseorn para contemplar o sol. O wolhyno tomou o seu silêncio como confirmação.
— Eu nunca te menti, Quenestil — assegurou-lhe. — Apenas nunca te contei toda a verdade, como estou a fazer agora, porque não estavas pronto.
— E agora, que estou pronto? — indagou o eahan sem olhar para trás. — O que esperam que eu faça?
— Agora não importa o que outros esperam que tu faças, Quenestil, mas sim o que tu achas... o que queres fazer. A escolha é tua.
«A escolha é minha?», quase riu Quenestil por dentro. «Essa é boa.» Não escolhera apaixonar-se por Slayra, a sua escolha de ir para Jazurrieh resultara na morte de Babaki, e a única escolha que tivera em Gul-Yrith fora a de fugir ou morrer com os sirulianos. Desde que chegara aos Fiordes dos Piratas, não mais se lembrava de ter sequer feito escolhas, apenas de se sentir como um inseto que, ou queria quedar-se imóvel e era empurrado pelo vento, ou que pretendia voar numa direção e era por este levado num rumo contrário. Mesmo a escolha de servir a Mãe se lhe afigurava dúbia, agora que tomara conhecimento da faceta mais negra desta, e o fato de nem sequer ter posto as palavras de Ihjseorn em causa significava que ele próprio já antes nelas pensara. A própria Slayra o referira, após a batalha em Alyun, a primeira vez que Quenestil matara humanos com animalidade, deixando-se possuir por uma fúria que desde então por várias vezes dele se apossara, como em Jazurrieh.
Não fora isso que o seu pai lhe ensinara, não fora para isso que o seu mestre druida cinzento o treinara, e certamente que não era por tais ditames que a sua raça se regia. E, contudo, agora que pensava nisso, o fato de a Mãe ter manifestado a sua satisfação quando enfiara o facalhão no rio em Vau do Caar, apesar da insensata chacina na qual tomara parte, bem como o não ter reprovado a presença ou as ações de Slayra... Deuses, não passaria tudo de um treino, uma nova iniciação, como Ihjseorn o estava a dar a entender? Estivera apenas a ser preparado, por Slayra, pelos guardas de Alyun, pelo druida negro, pelos tanarchianos, pela kuvamora, pelos skrimmen? Tudo não passara de um... teste?
O sol queimava-lhe os olhos, refletido pelo grande lençol metálico que era o Mar Norreno, e nele Quenestil sentiu o penetrante olhar de uma Mãe severa, que o estudava e observava. Revoltado, o eahan fechou os punhos, e a sua boca mexeu-se sem emitir sons, mantendo um diálogo privado com aquela que sempre servira e venerara enquanto abanava a descrente cabeça. Ihjseorn assistiu em silêncio ao conflito interno, ciente do quão crucial aquele momento era para o shura, para si mesmo e, quiçá, para todos os Fiordes. Todos os anos que esperara, todo o trabalho das últimas semanas, o sentido da sua própria vida, tudo dependia agora da decisão de Quenestil, que começou lentamente a erguer os trêmulos punhos cerrados. Quando estes já estremeciam perto da sua cara, o eahan arrojou-os para os seus lados e deu largas ao torvelinho de emoções que lhe assolavam a alma, soltando um tremendo berro que virou na sua direção as cabeças de todas as lânguidas ovelhas que se encontravam em baixo no pasto, empertigando-lhes as orelhas. Quenestil baixou então os braços e a cabeça, afrouxando lentamente os punhos e acabando por se virar para Ihjseorn com uma cara serena e conformada.
— Enquanto Tanarch e os skrimmen ameaçarem os Fiordes, os eahlan que jurei proteger continuarão em perigo — concluiu com voz átona. — O que preciso de fazer?
O wolhyno suspirou discretamente de alívio pelo nariz, e o seu peito baixou com a respiração que aparentava ter estado a conter.
— Agora não te posso ajudar mais, Quenestil. Terás de ir procurar as tuas respostas a outro lugar.
— Onde?
Algo surpreso pela determinação patente na voz do eahan e pela falta de hesitação deste, Ihjseorn não respondeu de imediato, estudando antes os olhos de Quenestil e nada vendo neles além da firmeza de uma rocha enraizada nos ossos da terra. As reservas que nele sempre vira haviam-lhe sido aparadas dos orbes como as impurezas de um minério, deixando-lhe os olhos polidos como a afiada ponta de uma lança.
Estava pronto.
— Deves ir a EihrOin, o Caldeirão, uma ilha além deste Fiorde — revelou, apontando com o braço para Oeste, para lá da montanha. — Lá obterás as respostas que eu não te sei dar. Lá tornar-te-ás o fogo, derreterás o gelo que nos restringe, e desencadearás novamente as Vagas de Fogo sobre a Wolhynia.
Austero, Quenestil nada mais disse, fitando Ihjseorn com a boca rigidamente firmada e olhando de seguida para o céu ainda escuro sobre o esbranquiçado pico da montanha, como se pudesse ver para além dela. Tal como os seus olhos, a escuridão celeste estava a ser dissipada por uma reveladora luz que, por muito que ardesse, era de certa forma reconfortante pela maneira como iluminava o novo caminho que se lhe apresentava. Nada mais lhe restava. Slayra deixara-o, os seus amigos estavam a meio continente de distância, e as duas únicas coisas que davam sentido à sua vida naquele momento — a promessa de vingar os sirulianos e proteger os eahlan — iam de acordo com aquilo que Ihjseorn lhe sugeria. Os Lasan em breve estariam em perigo, quer às mãos de skrimmen ou de tanarchianos, e os segundos iriam aparentemente invadir a Wolhynia; a Norte ou a Sul, não importava onde, o que sabia era que os malditos desgraçados lhe vinham atrás, e que o nome da nação deles estava inscrito na sua flecha.
Permanecendo em silêncio, Quenestil tornou a olhar para o wolhyno e fez que sim com a cabeça num seco gesto de concordância. Ihjseorn retribuiu-o e o eahan virou-lhe novamente as costas, olhando para Horavog e vendo que o seu grito causara suficiente agitação para que algumas pessoas tivessem saído do edifício, olhando assustadas em redor. Quenestil observou-as, vendo-as agora com olhos diferentes à luz das revelações de Ihjseorn, e não mais se questionou quanto às suas verdadeiras intenções. Sabia agora o que esperavam dele, e a única dúvida que lhe restava dizia respeito à sua reação quando por fim lhes desse aquilo que eles queriam.
Vagas de Fogo?
Tê-las-iam, então.
Linsha encontrava-se num dos mirantes da Torre Executória, antigo lar de lorde Gorom, e dele contemplava os tetos níveos e as ruas enlameadas de Dul-Goryn. A jovem feiticeira segurava o cajado do seu falecido mestre com uma mão e apoiava a outra na ornada imposta de uma das colunas que serviam de base para os três arcos decorados com verdes e alaranjados motivos florais. Usava um alisado e luzidio vestido de lã negra que lhe escorria até aos pés, ornado por um capelo encastoado de contas e brilhantes e com mangas igualmente debruadas, com a cabeça coberta por um gorro identicamente ornado e com orla felpuda. Acompanhavam-na um Ignoto e Volgo Dokhan, o meirinho de Val-Oryth que se deslocara até Dul-Goryn para acompanhar aquela que agora via como a sua senhora. Linsha ignorava-os aos dois, sendo que o Ignoto permanecia encostado à parede de braços cruzados e com a inescrutável máscara antropomórfica eternamente vigilante, emanando vapor da fresta bucal. Por sua vez, Volgo não parava de falar, relatando fielmente a Linsha todas as novidades da cidade e bamboleando as suas anafadas formas revestidas por um bojudo cafetão vermelho enquanto o fazia, qual cão a menear-se de contentamento diante da dona.
— ...e como tal, tudo indica que a onda de crime amainou em Val-Oryth — relatou com um sorriso tolo. — Em parte isso também poderá ser atribuído ao recente silêncio de Bellex, em cujo desfavor houvestes malogradamente caído, mas de momento reina a paz na cidade, embora as gentes continuem algo inquietas na ausência da sua heroína...
Linsha não respondeu, farta da gordurosa voz, mas tolerou a sua presença para manter a fachada de que se importava com as minúcias urbanas, pois dessa forma o meirinho sentia-se motivado a tratar delas para lhe agradar, dando-lhe tempo para se preocupar com as coisas mais importantes. Claro que vergastá-lo com o cajado ou arrojá-lo contra a parede com uma descarga de Essência surtiria os mesmos resultados, mas Volgo começava a demonstrar demasiado agrado com semelhante tratamento, e a feiticeira preferia não o encorajar demasiado.
— A verdadeira questão prende-se agora com a gestão dos nossos recursos para a invasão da Wolhynia, senhora Linsha, e os mercadores já manifestaram...
— É disso que eu preciso que tu trates por mim, Volgo — intet-rompeu-o Linsha, erguendo uma mão anelada. — Não tenho paciência nem capacidade para esses detalhes, sou apenas um símbolo da vontade do nosso senhor.
— Oh, senhora Linsha, não vos menosprezeis — disse o meirinho, abanando a cabeça de rubicundas bochechas alteadas pelo sorriso. — Sois uma inspiração para todos os tanarchianos, uma heroína do povo, a mulher que quebrou a Sirulia e rechaçou o Primeiro Pecado, a mais bela das...
— É tudo, Volgo — tornou a feiticeira a interrompê-lo, sem nunca olhar para trás. — Trata-me disso, sim?
O meirinho abriu a boca para falar, hesitou, olhou para o lado, pôs as gordas mãos atrás das costas, tornou a abri-la e acabou por pigarrear, enterrando o pequeno queixo na sua papada.
— Muito bem, senhora Linsha. Não trairei a confiança que tendes em mim — disse, retirando-se com uma vênia e olhando discretamente para o silencioso Ignoto, cuja inexpressiva máscara de aço se virou para ele, apressando o seu passo.
Suspirando de enfado, a jovem feiticeira apoiou o queixo sobre a balança dourada com duas esmeraldas que encimava o seu cajado, e passou os felinos olhos castanhos pelas solitárias ruas de Dul-Goryn. O ouro estava frio, e a sua respiração enevoou a superfície amarela de um dos pratos, mas o contato com o antigo instrumento de poder do seu mestre agradava-lhe, quase tanto como a deferência que outros agora lhe prestavam. Linsha não pôde deixar de sortir com a presente situação, com a ironia da reversão de papéis, com a forma como tudo agora parecia jogar a seu favor. O seu senhor mostrara-lhe o caminho, e Linsha não o desapontara, estava certa disso, embora o declarar a guerra à Wolhynia lhe tivesse causado algumas reservas, pois não chegara a consultá-Lo. Fora contudo forçada a tomar uma decisão, pois o povo mostrara-se naturalmente agitado após a morte do Triunvirato, e uma das coisas que aprendera enquanto aprendiza de Malagor fora que um povo distraído era um povo molificado. E nada distraía e unia um povo melhor que uma guerra, virando as suas atenções para o exterior para que não refletissem acerca do que se passava na sua própria pátria. Funcionara na perfeição contra a Sirulia, e agora que os odiados sirulianos não mais representavam sequer a fictícia ameaça com a qual Linsha atiçara as brasas de indignação dos tanarchianos, tornara-se necessário encontrar outro inimigo. Fora uma simples questão de averiguar dispuras dinásticas ao longo da fronteira com a Wolhynia, dotes que tinham ficado por pagar, ou mesmo herdeiros negligenciados de casamentos interfronteiriços. Não fora preciso muito para acirrar disputas e com elas justificar uma invasão, até porque muitos ainda estavam arrebatados pela incursão na Sirulia.
A decisão deixara-a hesitante, mas tivera que a tomar, e fosse como fosse, o seu senhor dera-lhe rédea solta para fazer o que achasse necessário para impedir o povo de se sublevar. Assim o fizera, e estava certa de que o seu senhor aprovaria a sua iniciativa... assim que tornasse a falar com ela. Havia já algum tempo que as suas doces e tranqüilizadoras palavras não se faziam ouvir à sua orelha, nem lhe bafejavam acalentadores sussurros no pescoço pela calada da noite, passando-lhe dedos etéreos pela pele arrepiada enquanto a protegia dos seus maus sonhos. Claro que não ousava pensar que era mais importante aos olhos d’Ele do que os Seus próprios desígnios, mas ainda assim nutria uma tênue esperança de que podia um dia vir a ser digna das suas atenções, se o servisse condignamente. Era só isso que teria que fazer, certamente, e até então saíra-se bem, pois O Flagelo mostrara-se satisfeito, e tudo parecia correr de feição. O único problema era o fato de Linsha não conseguir compreender na íntegra quais os objetivos d’Ele, e o Seu recente silêncio em nada ajudava, mas não tinha dúvidas de que a quietude em Dul-Goryn se devia às Suas ações. Havia algo no ar, uma tensão que não se devia apenas à iminente guerra, e tinha quase a certeza de que o recente silêncio dos deuses também se devia a uma Sua ação. O que pretenderia? Se ao menos falasse com ela, lhe mandasse um pequeno sinal...
— A desanimar tão depressa, querida Linsha?
A feiticeira ofegou, estremecendo como se tivesse sido inesperadamente tocada num ponto agradável do seu corpo, e agarrou o cajado com mais força. A máscara do Ignoto mexeu-se na sua direção, atenta, embora o homem permanecesse de braços cruzados.
— Meu... senhor?
— Bem sei que o meu silêncio tem sido prolongado, mas estive deveras ocupado — disse a sublimemente sedutora voz. — Não te preocupes. Estás a sair-te muito hem, e em breve ouvirás de mim novamente.
— Meu senhor, eu...
— Eu sei. Agiste bem, querida Linsha. Muito bem. Estou satisfeito.
A feiticeira admirou-se por breves instantes, após os quais se lembrou de que nada de mais natural havia do que Ele estar ciente de tudo quanto se passava, estivesse ou não presente.
— Obrigada, meu senhor. Prometo que não vos desiludirei.
— Estou certo de que não ofarás — asseverou a voz, e Linsha sentiu então a passagem de dedos etéreos pelo pescoço, que lhe lançaram um arrepio até ao escalpe, onde se dissipou num breve formigueiro. — Adeus.
Linsha fechou os olhos de trêmulas pestanas e baixou os ombros com um suspiro que lhe jorrou em névoa da boca, esta formando um sorriso assim que os seus olhos se abriram. Rodando nos calcanhares, a jovem feiticeira bateu com a ponta do cajado no chão e encaminhou-se para dentro da torre, andando com um confiante requebro da cintura e ruflando a orla da saia no chão.
— Vem, vamos ter com o meirinho e os outros — disse ao Ignoto, que prontamente se posicionou nas suas costas, resguardando-a com a sua protetora sombra. — Temos uma invasão a preparar.
A enfermaria da Cidadela da Lâmina começava a ficar desocupada, e dos feridos da batalha com os ghèren sobrava apenas Heldrada. Os restantes estavam a ser tratados devido a ferimentos mais recentes, resultantes dos novos confrontos levados a cabo pelas fações que se começavam a formar na cidadela. As lutas pelo poder tinham-se tornado uma ocorrência quase diária, embora apenas na forma de duelos pessoais após uma primeira sangrenta escaramuça. Reinava agora uma tíbia paz que poderia ser quebrada a qualquer instante pelo entrechocar de duas espadas, e os habitantes do recinto inferior viviam receosos. Alguns, como Aurayda, continuavam a desempenhar os seus serviços aos Lamelares, esperando dessa forma poderem ser poupados a quaisquer eventuais depredações resultantes de um conflito mais acirrado.
Aurayda era uma rapariga modesta, com os cabelos recatadamente tapados por uma touca branca que apenas deixava escapar algumas farripas negras, e desde sempre trabalhara na enfermaria. Como havia poucos homens que necessitassem dos seus cuidados, dedicava boa parte do seu tempo a Heldrada, que permanecera praticamente catatônica desde a morte do Alto Lamelar. A mulher não falava nem olhava para ninguém, deixava-se banhar e passear, e comia quando lhe chegavam uma colher à boca, como Aurayda fazia naquele momento, mas além disso limitava-se a vegetar na enfermaria, deitada na sua cama. A rapariga pusera-lhe três almofadas debaixo da cabeça para melhor a ajudar a comer o caldo que lhe trouxera, e Heldrada ia abrindo obedientemente a boca enquanto olhava para o vazio com os seus claros olhos azuis. Aurayda ainda não ouvira uma única palavra dela, mas compadecia-se da mulher, indignada com a crueldade do homem que lhe deixara a cara no estado em que a vira, com um dos lados inchado que nem um bolo roxo, bem como cortes de lâmina nas pernas e um rasgão feio na palma da mão direita. Heldrada recuperara entretanto dos ferimentos, que se tornaram apenas mais marcas e cicatrizes entre as muitas que já ostentava no seu corpo magro e nervudo, mas os abusos não tinham terminado. A enfermaria era regularmente visitada por Lamelares que se aproveitavam da condição dela, e Aurayda repreendia-se pela sua cobardia, mas nunca fora capaz de interferir, temendo que os homens se pudessem aproveitar dela também, caso os provocasse. A única coisa que podia fazer era zelar pela saúde de Heldrada, e esperar que ela recuperasse para poder um dia fugir àqueles homens horríveis...
Distraída pelos seus pensamentos, Aurayda despertou a piscar os olhos ao aperceber-se de que Heldrada deixara a boca entreaberta e não estava a permitir a entrada à colher, pelo que se curvou diante dela, pedindo-lhe com voz doce que a abrisse. Foi surpresa por um inesperado e intenso olhar que lhe gelou a espinha e fez com que saltasse da cama, deixando a tigela de sopa cair ao chão. Heldrada ficou com um fio de sopa a escorrer-lhe do lábio inferior, mas não fez caso dele ao apoiar-se com os braços magros na cama e erguer o tronco, sem tirar os olhos de cima da rapariga.
— Foi ele — disse com a sua voz rouca. — A culpa foi dele. Arrancando o lençol de cima de si, a mulher levantou-se da cama, levando as mãos à nuca e puxando os cabelos cor de linho, sem sequer reparar que a sua trança fora cortada e agora não passava de uma mecha de cabelo mais comprido que lhe chegava pouco abaixo da base do pescoço. Continuava indumentada com as mesmas roupas desde o massacre, que estavam sujas de sangue e suor.
— A culpa é dele... a Culpa veio por causa dele — continuou, prendendo Aurayda com o seu olhar cor de gelo. — O Assiòn morreu por culpa dele.
A rapariga arquejou e escudou-se com os braços quando Heldrada se abeirou repentinamente dela, agarrando-lhos e sacudindo-a.
— Ele disse! Culpa disse que estava cá por causa deíe Eu ouvi! — exclamou a Lamelar, aterrorizando Aurayda com a expressão quase maníaca que ostentava e com a robustez com a qual os seus dedos fortes se enterravam nos braços da rapariga. — Foi por culpa dele que o Assiòn morreu, e por isso eu vou matá-lo! Ouviste-me? Vou matá-lo!
Assustada, Aurayda fez que sim com a cabeça, mas Heldrada ainda a sacudiu um pouco mais antes de a soltar bruscamente, olhando em redor como se estivesse à procura de algo.
— A foice? Onde está a minha foice?
A rapariga apontou com um trêmulo dedo para a cama de Heldrada, diante da qual esta se ajoelhou rapidamente, tirando debaixo dela a sua foice partida. Fora cortada durante o seu combate na noite do massacre, perdida após se ter espetado no peito de Culpa e posteriormente encontrada por um rapaz que armava lapões para caçar texugos na encosta da vertente sulcada. Era agora pouco mais que um pequeno cabo de madeira com uma lâmina de gume único na ponta, mas a mulher empunhou-a com alívio e gratidão, encostando a fria lâmina à cara e passando a mão por ela. Vendo-a distraída, Aurayda tentou escapulir-se, estacando espavorida assim que Heldrada se levantou, mas a Lamelar ignorou-a e dirigiu-se à saída de foice na mão com um andar determinado que não seria de todo de esperar de alguém que passara boa parte das últimas semanas deitada. A rapariga não a tentou deter nem disse nada nesse sentido, ficando calada e abraçada aos seus braços, mas Heldrada acabou por se deter à mesma a poucos passos da porta. Aurayda assustou-se, pensando que a mulher iria voltar atrás para a magoar, mas o motivo pelo qual Heldrada parara surgiu da porta na forma de dois homens, um dos quais com o braço por cima dos ombros do outro, falando alegre e jocosamente com ele como se estivesse a encorajá-lo, e executando gestos sugestivos com ambas as mãos. Porém, quando viram Heldrada, ambos se detiveram, por pouco não tropeçando.
Antes de qualquer palavra ou reação, a Lamelar levou a foice à anca esquerda e descreveu com ela uma linha diagonal ascendente, que cortou o ar e cujo chofre reverberou num afiado arco que atingiu um dos recém-chegados no ventre e traçou uma linha limpa na garganta do que tinha o braço por cima do primeiro, uma linha da qual espirrou sangue quando o homem tombou de costas. Agarrado à barriga, o primeiro desembainhou a sua espada e ainda conseguiu atacar, mas Heldrada já avançara e foi-lhe fácil penetrar pela estocada adentro, desviando-a com a foice, que de seguida se enterrou entre ambas as clavículas do homem. Arrancando-a, a Lamelar varreu de seguida a perna do adversário com um golpe que lhe cortou o jarrete, fazendo-o cair, após o qual revirou a foice decepada nas mãos e ajoelhou-se para lha enterrar na barriga. Sem se deter, Heldrada arrebatou com força a lâmina do estômago do homem, sacudindo-lhe o corpo e deixando-o moribundo no chão. Aurayda levou as mãos à boca, mal contendo um grito que temeu poder causar a sua morte, mas a Lamelar parecia ter perdido todo o interesse nela e, olhando breve e friamente para os dois moribundos, passou por cima deles e foi descer o corredor com a cruenta foice empunhada.
«A culpa ê tua, Aewyre Thoryn. O Assiòn morreu por tua culpa, porque tu a trouxeste», convenceu-se, olhando em frente com um propósito bem definido nos novamente vivos olhos azul-claros. «Vou encontrar-te, e matar-te.»
— Temos acordo, então? — perguntou Iginasco com o seu untuo-so sorriso, estendendo a mão ao nervoso mercador do outro lado da mesa.
O homem, pouco mais que uma magra e tremula pilha de nervos com roupa escura, olhou à volta, tirando o seu gorro vermelho, passando a mão pela calva e cofiando os nervosos bigodes negros.
— Eu nunca fiz semelhante coisa... mas sabe, é que eu fui proscrito de tomar parte nas feiras da cidade e de fazer qualquer outro tipo de comércio entre estas muralhas... um engano, uma calúnia... fui acusado de pesar mal as minhas mercadorias.
Sempre sorridente, Iginasco levantou as mãos abertas.
— Nada tenho que ver com isso, amigo. Estou só aqui para ajudar um patrício, mas como compreende, não posso deixar de lhe cobrar, pois fazê-lo é perigoso para mim.
— Sim, sim... — compreendeu o homem, acenando com a cabeça. — Uma moeda de ouro é um preço muito razoável para os impostos que me iriam cobrar na ponte pelas minhas mercadorias... e sabe, os guardas também costumam cobrar um imposto deles, pelo menos a mim...
— Realmente, teve pouca sorte, amigo — compadeceu-se falsamente Iginasco, o seu sorriso tapado pelo bigode.
— Eu... eu podia ir por Atha ou pelo Portão do Norte e depois pelo Desfiladeiro das Lanças, mas é um desvio demasiado grande, só me causaria prejuízo.
— Eu compreendo — assegurou-lhe Iginasco, pousando uma mão sobre a mesa e a outra sobre o nervoso ombro do homem. — Esteja descansado, que com a minha balsa atravessamos as suas mercadorias em dois tempos. Temos acordo, então?
Vendo a mão estendida diante de si, o mercador apertou-a com a firmeza de folhas mortas, acenando tibiamente com a cabeça. Iginasco sacudiu-o com o vigor do seu aperto e arrumou o pipo sobre o qual se sentara, inclinando-se novamente sobre a mesa para lhe confidenciar:
— Amanhã à noite, então — disse, olhando à volta de forma cúmplice. — Já sabe, vira à direita na ponte, segue a borda do rio, passa pelo castelo, e a partir daí vai contando os moinhos de água. Eu estou à sua espera no quinto.
— Sim... sim, amanhã à noite. Lá estarei.
Sorrindo, Iginasco despediu-se e desceu da sobreloja da taberna com andar gingão, piscando o olho à empregada e vestindo a capa antes de sair porta fora. Já no exterior, o bater de asas molhadas fê-lo olhar para cima, vendo a insígnia da taberna abanar à luz dourada e entrecortada por pingos de chuva de uma lanterna, embora não houvesse vento. Ouviu o crocitar de um corvo, mas o responsável desapareceu atrás do edifício, e Iginasco não fez caso dele, tapando a cabeça com o capuz e fazendo-se à sua vida. Desceu a fila de fachadas, saudando com um gesto os guardas que se encontravam ao longe na ponte e virou à direita desta, encaminhando-se então à beira-rio de lutuosos salgueiros como todos os dias fazia.
«Os deuses choram...», pensou, olhando para o céu escuro e piscando os olhos com os pingos de chuva. «Deve ser por isso que andam tão silenciosos. Pelo menos Joral há-de estar chateado comigo, com os impostos que perd& à minha conta...-»
Rindo para consigo, fez uma pequena prece a Kispryn para que este o protegesse da sua pequena heresia e puxou o capuz para a frente. O tempo estava um pouco melhor, tendo mesmo parado de chover durante alguns dias, mas aparentemente o céu ainda tinha algumas lágrimas a verter, e o Olyf fluía em resultado disso como o corrimento de um nariz congestionado. Mais um Inverno de Arle, portanto, cheio de água, frio e umidade, bem como muitos mercadores e gente menos escrupulosa a tentar atravessar o rio sem ser pela ponte, pois os poucos vaus que existiam ficavam sempre completamente submersos pelas torrentes Invernais do Olyf. Era uma estação particularmente lucrativa para Iginasco, pois o barão Savincar requisitava sempre os seus serviços durante a época hiemal, quando a ponte era a única alternativa viável e aquela que muitos mais tentavam contornar. Iginasco já perdera a conta da quantidade de patrícios seus que entregara às mãos do barão, sem contar com todos os laoneses, namuriquanos e mesmo alguns benelgas. Via-os como criminosos, naturalmente, como pessoas que tentavam roubar dinheiro ao seu senhor, pelo que nada mais justo havia que intrujá-los e ficar com o seu ouro, além da recompensa com a qual Savincar sempre o obsequiava...
— Eu sou aquilo que te remói por dentro.
Iginasco assustou-se, virando-se sobressaltado para a viela entre dois edifícios da qual ouvira a profunda e eólica voz. Uma lanterna de óleo de baleia ardia sobre uma porta, mas a sua poça dourada não escorria pela ruela adentro.
— Quem está aí? — perguntou, levando a mão ao espavorido coração, que toava no seu peito.
— Inflamo-te a alma, quebro lentamente o teu espírito — continuou a voz, e então Iginasco distinguiu nas sombras da viela um vulto que se aproximava, os seus passos compassados pelo bater de um cajado nas lajes.
Desconfiado, Iginasco avançou dois passos em frente sem tirar os olhos da viela, mas quando olhou para a frente, deteve-se ao ver um corvo que, por alguma razão, lhe pareceu sinistro e fez com que parasse.
— Eu sou o chicote da tua consciência, o azorrague da tua moral, o látego do teu delito.
Arfando, Iginasco recuou alguns passos, virando-se de seguida para trás para regredir de onde viera, mas deteve-se novamente com um arquejo assustado ao ver outro corvo aterrar no chão, ruflando as asas molhadas e crocitando em advertência.
— Eu sou a Culpa — continuou o vulto, penetrando com a ponta do cajado na poça de luz. — E todos irão pagar.
Assim que a lanterna iluminou o homem que ralava, Iginasco tornou a arquejar de susto e recuou para o parapeito à beira do rio, apoiando as mãos na pedra molhada. O indivíduo vestia uma encharcada túnica vermelha até aos calcanhares, com mangas apertadas e rígidas ombreiras salientes e uma faixa bordada em perturbadores motivos que lhe descia do pescoço até aos pés. Era calvo, com os cabelos brancos mesclados à barba encharcada que tinha colada ao peito, e o que nele assustou Iginasco mais ainda que a potencial ameaça do nodoso e retorcido cajado que empunhava foi a venda vermelha de aberturas costuradas e com duas longas badanas dela pendentes. Dava-lhe um ar aterrador, uma faixa vermelha numa cara de profundos vincos sombreados pela luz da lanterna.
— Iginasco Leopo — anunciou com uma voz que ignorava o ruído ambiente. — Devido às tuas traições e engodos, famílias ficaram privadas dos seus pais.
Involuntariamente, o nolwyno levou as mãos à cara, olhando arrega-ladamente através dos dedos e abanando a cabeça ao sentir o inesperado atiçar de remorsos pelas palavras do homem, quais brasas dormentes a serem bafejadas.
— Atraiçoaste homens teus conterrâneos, levaste mercadores à ruína, causaste a morte dos que não sobreviveram às masmorras de Savincar, condenando-os a uma morte de pulmões túmidos de humores...
— Não... não... — tentou Iginasco negar em vão, abanando a cabeça na qual ecoavam as palavras do homem.
Porém, quanto mais as tentava negar, mais agudamente sentia as pontadas de remorsos que sempre reprimira, vendo-se incapaz de conter a irrupção destes, que o martirizavam como espinhos presos dentro da sua cabeça e prestes a romperem-lhe do crânio. Os homens presos, as mulheres que iam chorar para os calabouços, os corpos envolvidos em mortalhas a serem carregados para fora das masmorras, o seu próprio príncipe, que caíra ao rio devido à sua traição... Todos esses pequenos arrependimentos que discretamente lhe tinham roído a consciência até então soltaram-se de forma súbita e repentina, livres de quaisquer justificações e racionalizações que os pudessem minorar, atenuar ou legitimar. O efeito foi agonizante, e Iginasco ergueu a cabeça de mãos sobre as orelhas, berrando aos céus como se a chuva que manavam o pudesse de alguma forma purificar, mas não havia nada que pudesse aplacar a sua consciência, nada que pudesse amainar o culposo fogo que lhe queimava o espírito, nada que pudesse atenuar tamanha culpa. Nada, a não ser deixar-se cair de costas do parapeito, afundando-se e ao seu sofrido grito nas furiosas águas do Olyf, que o arrastaram com a justa fúria das lágrimas de mães e mulheres que tinham perdido filhos e maridos por delito seu.
Impávido, Culpa ficou a olhar para o mesmo sítio, sendo observado pelas irrequietas cabeças dos seus corvos, um dos quais debicou uma asa, estremecendo de seguida para se livrar das gotas de chuva que lhe pesavam sobre as penas. O seu mestre estava encharcado dos pés à cabeça, mas não parecia minimamente incomodado, e deixou-se ficar durante algum tempo na mesma posição. Quando por fim ergueu o queixo, foi com o equivalente a uni olhar determinado, caso tivesse olhos, e mirava a margem oposta do rio, fixando a Sul o olhar que não o era. Aewyre Thoryn estava novamente próximo, e desta vez, por muito que lhe custasse, não lhe poderia escapar.
A culpa era inolvidável.
Todos iriam pagar.
Filipe Faria
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