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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


VALEU A PENA / Vera Lucia Marinzeck
VALEU A PENA / Vera Lucia Marinzeck

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

VALEU A PENA

 

Necessitamos aproveitar as oportunidades do presente. Se deixarmos de fazer, de progredir, isto já é passado. Se deixarmos para realizar o Bem no futuro é comodismo e incerto. Devemos realizar agora. Construir, progredir, multiplicar o talento a nós entregue no atual momento. Muitos conseguem. Não é nada miraculoso, mas realizável. Necessitamos aproveitar as oportunidades a nós oferecidas pelo Amor.

Para incentivar meus amigos encarnados, convidei três companheiros queridos para narrar a vocês suas vidas e desencarnações.

Notarão que o primeiro tudo fez para ter o merecimento de ser chamado de bom, só que não estudou quando estava encarnado. A segunda muito fez, venceu a si mesma, numa encarnação vitoriosa, de Bem ao próximo e a si mesma. Teve conhecimentos relativos. O terceiro tudo fez, mas com uma diferença, realizou-se com conhecimentos.

A nossa intenção foi proposital na elaboração deste livro em trazer aos nossos irmãos encarnados algumas diferenças da maneira de ser, agir e consequentemente o carma resultante destas ações. Verão os leitores que, apesar de as personagens terem vivido a existência terrena no mesmo movimento religioso, reagiram de forma diferente embora dentro do plano moral elevado. Mas com visão e resultados um pouco diferentes uns dos outros. Meus amigos leitores notarão que dois deles ainda se sentem vinculados a um carma e às ações anteriores. E no terceiro temos a oportunidade de ver o espírito agir e viver sem as conseqüências do ontem. Verão como age o espírito liberto do seu passado em evolução.

Se muitos conseguem realizar encarnados, você leitor amigo poderá também. Caminhe, faça, modifique-se interiormente para melhor. Torne-se um servo do Pai, sirva o Bem. Aquele que persiste em ajudar o próximo tem tudo para se tornar bom. Não deixe a inércia tomar conta de você, esta inimiga que nos faz parar no caminho. Viva no Bem e verá que valerá a pena.

Meu amigo, construa no presente o que deseja para o futuro. E que os ensinos do nosso Mestre Jesus sejam as setas na nossa caminhada rumo à felicidade.

Que o Pai nos abençoe!

Antônio Carlos

 

ACORDADO

Espreguicei gostoso. Fazia tempo que não dormia assim tão bem. A cama estava limpinha, perfumada e sentia prazer em estar deitado. Passei a mão na cabeça, meus cabelos estavam cortados e a barba feita. Espreguicei novamente. Abri os olhos devagar. O lugar estava pouco claro, quase na penumbra. Não observei o local, não me importei com isso. Orei como sempre fazia ao acordar. Orar para mim sempre foi algo importante, gostava e gosto de fazê-lo. Depois de ter orado, me observei com mais atenção.

“Não sinto a costumeira dor”, pensei. “Não me dói nada.”

Tentei virar e o fiz com facilidade. A cama estava tão gostosa! Virei de costas novamente, levantei a cabeça ajeitando o travesseiro.

“Será que me deram um analgésico mais forte para não sentir dor? Que será que houve?”

Abri os olhos e só então comecei a observar onde estava.

“É uma enfermaria. Será a mesma em que estava antes, ontem? Aqui parece diferente. Será que desta vez desencarnei?”

Não tinha um pingo de medo de desencarnar. A vida toda, trabalhei com desencarnados. Com os bons que me ajudaram e com os espíritos infelizes que ajudei com o auxílio de amigos. Sabia que desencarnaria, todos o sabem. Mas deveria ter cautela. Lembrei e sorri de um episódio acontecido dias antes. Acordei também e pensei ter desencarnado e indaguei à enfermeira:

“Bom dia, irmã! Onde estou? Num hospital da Colônia? Numa enfermaria no Plano Espiritual? Estamos desencarnados?”

“Como senhor? O que diz? Passa bem? Quer que chame o médico?”

Ela fez uma tremenda cara de espanto. Entendi, no ato, que estava encarnado. Não consegui esconder minha decepção. Tentei sorrir e indaguei:

“Onde estou?”

“Na Santa Casa de Misericórdia, numa enfermaria masculina. O senhor passou mal ontem à tarde, seus filhos o trouxeram e o internaram. Estava inconsciente. Mas o que foi que o senhor perguntou mesmo?”

“Nada, filha, nada, obrigado. Estou bem.”

A enfermaria a que se referia era um quarto dos assegurados do governo, pequeno e simples. Eu não estava nada bem. Doíam-me o ventre, as costas e a cabeça. Logo esta enfermeira me deu uma injeção que me confirmou que estava ainda encarnado. No Plano Espiritual não tem tratamento doloroso assim.

“Bem, paciência, pensei, não foi desta vez. Devo esperar com resignação pela desencarnação.”

E naqueles dias foram injeções e muitos remédios e nada de melhorar. Agora, estava acordado novamente, não sabia onde estava. Estaria numa outra enfermaria? Ou teria desencarnado? A melhora que sentia seria aparente? Ou melhorara de fato e continuava encarnado? Um senhor agradável, no leito ao lado, sorriu para mim e disse:

- Parece feliz, amigo. Passa bem?

- Sim, sinto-me melhor, obrigado.

Ele calou, achei melhor ficar calado e esperar pelos acontecimentos. Olhei bem o quarto, de ponta a ponta. Havia uns vinte leitos, todos ocupados, todos homens, e estavam silenciosos; uns dormiam, outros liam, mas todos estavam com aspecto tranqüilo, não sofriam.

- Estou entre convalescentes! Exclamei baixinho.

Continuei a examinar o quarto. Vasos de plantas enfeitavam os cantos, ao lado das camas havia uma mesinha e cadeira. Em cima da mesa, uma jarra com água, copo e um vasinho com flores. Não havia nada nas paredes, nem quadros ou crucifixos.

Entrou um enfermeiro todo risonho e gentil. Foi em todos os leitos, indagando como estavam os pacientes. Logo veio até a mim.

- Olá, Sr. Felisberto! Como está? Pelo visto acordou satisfeito. Deseja algo?

Sorri e pensei: “Indago ou não indago se desencarnei? Se estou no hospital da Terra, vão achar que também adoeci da mente.” Resolvi responder só o que me fosse perguntado.

- Estou bem. Estou contente de fato. Parece que melhorei muito. Não desejo nada, obrigado.

- Pode me chamar se precisar de mim. Chamo-me Leonel.

Lá se foi ele para outro leito. “Bem, pensei, vamos aguardar. Se desencarnei, logo receberei visitas dos meus amigos desencarnados. São tantos!” Conhecia-os porque era vidente, via Espíritos e conversava com eles. Tinha Miguel, companheiro de anos, Samuel, José, Francisca, fui lembrando dos nomes de todos. Também havia Maria, minha companheira de tanto tempo, esposa querida, que desencarnou anos antes.

“Bem, se desencarnei, eles virão me ver.”

Esperei e nada. O sono foi chegando e dormi novamente. Acordei. Ah, que gostoso! Nenhuma dor, sentia-me tão bem que minha vontade era a de levantar e procurar algo para fazer.

- Olá, Sr. Felisberto! Disse o enfermeiro sorrindo.

Visitas para o senhor.

- Visitas? Hora de visitas?

- Sim.

“É agora que descubro se desencarnei ou não. Porque, se estou ainda encarnado, verei meus filhos, netos ou bisnetos.”

Esperei com ansiedade. Não pude deixar de falar alto quando os vi.

- Francisca! José! Samuel!

Tinha uma outra pessoa atrás, mas não deu para perceber quem era. Minha alegria foi imensa ao vê-los.

- Desencarnei meu Deus, que bom! Que maravilha!

Chorei emocionado. Não que não gostasse de viver encarnado. A vida para mim sempre foi bela. Vivia satisfeito comigo mesmo. Vivi bem e para o bem. Mas, já velho, cansado e doente estava me tornando um peso para os familiares. Nem trabalhar no Centro Espírita estava podendo, como também não conseguia mais atender as pessoas que me procuravam no meu lar todos os dias, para ouvir um conselho, pedir orações, receber um passe. Temos que saber a hora de abandonar o barco, dizia. Agora, desencarnado, iria sarar, voltar à atividade e aprender. Em vez de abraçar meus amigos de anos, enxuguei as lágrimas, fiquei olhando-os e agradeci a Deus em pensamento:

“Obrigado, meu Pai, por estar bem e entre amigos. Sou grato, eternamente grato.”

- Você está bem? Indagou Francisca. Por que não se levanta?

- Posso?

- Claro, disse José.

Descobri-me, estava com um pijama, que não era meu, ou melhor, não fora meu quando encarnado. Era uma roupa própria do hospital da Colônia. Era de tecido grosso, branco, que cobria toda a perna e os braços. Sentei na cama e, após, levantei.

- Amigos! Que prazer o de estar com vocês!

Abri os braços, abracei e fui abraçado.

- Felisberto, meu velho!

Parei ao ouvir esta frase. Tive medo até de olhar de onde veio. Fui olhando, meu coração batia forte, estava emocionadíssimo.

- Minha Maria! Exclamei.

Virei, abri os braços e recebi o abraço deste Espírito que por anos esteve comigo trabalhando e me incentivando. Choramos. Quando estava encarnado via sempre Maria desencarnada, que bondosamente ia me visitar. Mas agora era diferente, no mesmo plano, pude senti-la, abraçá-la com toda a saudade acumulada.

- Como você está bem! Falei.

Maria estava bem arrumada, com um vestido simples mas bonito, azul-claro estampadinho de flores, cabelos penteados como no tempo de mocinha. Tinha os dentes perfeitos e sorria de modo encantador.

- Maria! Maria! Como não chorar de felicidade? Mas me desprendi dos amigos, sentei no leito e agradeci alto. Àquele a quem tudo devia.

- Ó Deus, Pai Nosso, foste misericordioso demais comigo. Desencarnei e fui socorrido. Estou bem e feliz. Obrigado! Mil vezes obrigado!

Voltei aos amigos que me olhavam sorrindo. Tinha tanto o que conversar com eles. Francisca, me conhecendo bem, disse:

- Pode indagar. Pergunte o que quiser.

- Quando desencarnei? Onde estou?

- Desencarnou há doze horas. Seu corpo é velado por amigos e pela família. Recebe muitas orações numa demonstração carinhosa de gratidão. Quer ver?

Pensei por momentos. “Bobagem, não quero ver nada. Meu corpo, este abençoado veículo, vai para a terra, foi útil, mas não é mais. O que importa é o que sou,um Espírito, e agora devo viver como tal. Ver velório é sempre triste e chato, ainda mais o meu”.

- Não quero ver nada, Francisca.

- Bem, continuou esta amiga, você está na Colônia São Sebastião, no Plano Espiritual da cidade onde viveu até há poucas horas. Está muito bem. Veio para o hospital e aqui está numa enfermaria, porque não irá demorar por aqui. Logo estará conosco. Agora é melhor descansar.

- Para onde irei? Indaguei.

- Para nossa casa, disse Maria, feliz. Felisberto, moro no Educandário das Crianças, na parte da Colônia onde estão as crianças que desencarnam. Sabe que cuido delas. Tenho lá meu cantinho. Mas, para estar com você, vim temporariamente para uma casa na ala residencial onde estão outros amigos. Você vai gostar.

- Sim, claro que irei. Mas esclareçam uma curiosidade. Aqui é como está nos livros? Como vocês me diziam?

Indaguei e pensei: quase não lia, sabia ler muito pouco e quase sempre não conseguia ler um livro todo, por não ter uma leitura corrente e não conseguir entender. Dos livros, escutara mais os comentários. Era inteligente, não tinha era mesmo estudo, instrução. Foi Samuel quem respondeu.

- Sim, só que é mais bonito ainda.Você verá tudo.

- Onde está Miguel? Perguntei.

- No seu velório, respondeu José. Este amigo vela o local para que tudo dê certo.

Entendi. Miguel estava de guarda para que irmãos ignorantes não tumultuassem meu enterro.

- Estes amigos de Maria que moram na casa são vocês? Quis saber.

- Infelizmente não, respondeu José. Nós moramos, ou melhor, ficamos mais no Centro Espírita. E agora eles necessitam muito mais de nós por lá. Os amigos são outros, dos quais irá gostar muito.

- Posso lhes pedir um favor, falei.

- Claro, disseram.

- Vocês cuidam do Tião. O coitadinho deve estar sentindo minha desencarnação.

- Ele está bem, não se preocupe, disse Maria.

Tião é meu caçula. Nosso filho adotivo.

- Agora descanse, disse Samuel. Voltaremos aos nossos afazeres, mas voltaremos a vê-lo.

Saíram do quarto. Acomodei-me no leito. Sentia-me muito feliz, tão alegre que tinha vontade de sair voando, gritando.

O senhor do leito ao lado, o que já tinha me dirigido a palavra, tinha virado no leito para o meu lado e observou todos os últimos acontecimentos calado. Agora, me vendo sozinho, rindo e feliz, não agüentou e falou:

- Puxa, tudo isso só por que desencarnou?

- É pouco? Sinto-me tão bem! Não se sentiu assim ao desencarnar? Por que sabe que desencarnou, não é?

Indaguei meio preocupado... Vá lá se ele não sabia.

- Sei, respondeu ele. Já faz algum tempo. Desencarnei há anos. Estive em condições piores e estava em outra enfermaria. Porque esta aqui é para os que estão convalescendo, quase bons, ou bons. Disse-me, olhando. Após uma pausa, continuou:

- Não fiquei nada contente com a notícia. Sinto falta de tudo, de minha casa, da família e dos amigos.

- Ora, não se chora pelo leite derramado, disse. Eu também tive na Terra casa, família e amigos. Família sempre se tem, lá e aqui, e amigos devemos conservar os que temos e fazer sempre novos. Os que ficaram lá, os amigos encarnados, sei que poderei vê-los e estaremos um dia juntos. Aqui são todos bons e se faz amigos com facilidade.

- Pelo visto, fez amigos aqui também e antes de vir. Como?

- Bem...

No momento não soube o que responder, pensei por instantes, até que achei uma resposta.

- É que, quando encarnado, aprendi a fazer o Bem, e estes amigos me ajudavam.

Ri de novo. Não conseguia parar de sorrir. O senhor vizinho de leito me olhou, olhou, depois virou.

“Bem, pensei, devo ser obediente. Mandaram descansar, embora não esteja cansado, acho que devo dormir.”

Dormi gostoso, acordei disposto. Meu vizinho do lado me disse.

- Você dormiu oito horas. Ressonou. Até dormindo está contente.

- Será que posso levantar? Indaguei.

- Logo o enfermeiro Leonel vem e você pergunta.

De fato, logo após, o enfermeiro solícito veio até a mim.

- Tudo bem, Sr. Felisberto?

- Sim, obrigado. Posso levantar?

- Claro, se quiser ir ao banheiro é ali, naquela porta.

- Ir ao banheiro?

- Bem, talvez queira higienizar-se.

- Tomar banho?

- Por que não?

Ri alto. Vendo que todos na enfermaria olharam para mim, fiquei sem graça.

- Desculpe-me, disse. Pensei que estaria privado de todos os costumes terrenos. Preparei-me para isso.

- Isso é ótimo! Mas os reflexos do corpo nos acompanham com a desencarnação. Temos que aprender a viver como desencarnado. Faça como quiser. Mas fique à vontade.

Levantei, olhei para a janela. Como esperava, ali estava um lindo jardim com flores perfumadas e encantadoras. Dei um longo suspiro, então percebi que respirava. Como é gostoso respirar assim livre e fácil. Porque por anos e anos tive bronquite. Fiquei admirando o jardim por minutos. Depois olhei o céu, sem nuvens, de um azul maravilhoso que me encantou. Depois voltei para o quarto, e ali estava o meu vizinho me observando.

Pensei: “Por que será que me olha tanto?” Quis indagar-lhe mas só sorri para ele. Percebendo que notei que me olhava, falou:

- Sr. Felisberto, estou olhando-o porquê, nestes anos todos aqui, nunca vi alguém tão bem e feliz logo que desencarnou.

- Sou Espírita! E o Espiritismo nos dá a certeza da vida após a morte e como ela é. Nada para mim é novidade. Esperava encontrar isto mesmo.

- É... Espírita? Já ouvi falar.

- Teve religião quando encarnado?

- Sim, mas não me aprofundei.

- Perdeu a oportunidade, disse. Todas as religiões são boas se praticadas.

Resolvi caminhar pela enfermaria. O piso é de borracha de cor marrom-claro, as paredes azuis também em tom claro. Os internos, uns dormiam, outros conversavam baixinho com os vizinhos de leitos e alguns liam sentados nas cadeiras. Cumprimentei-os sorrindo e eles também sorriram para mim. Pensei como seria bom ler. Mas, se Deus quiser, logo estarei lendo também.

Curioso, fui ao banheiro.

- Que banheiro lindo! Exclamei.

Encarnado, não fui pobre. Porque, para mim, pobre era o que não tinha nada. A casa que morava era minha, mas era simples, bem simples.E aquele banheiro parecia ser de cinema. Não era luxuoso, mas bonito. Olhei tudo, tudo mesmo. Era azulejado até o teto. Azul-claro com peças de um tom azul mais forte. Tinha boxe com chuveiro, vaso sanitário e uma pia grande e bonita. Dois vasos com flores enfeitavam-no. Um estava dependurado num canto e outro em cima da pia. Tudo limpo e perfumado. No teto claro um bonito globo com várias lâmpadas. Depois de observar tudo, voltei à enfermaria.

- Felisberto, meu velho! Vim lhe buscar para um passeio.

Maria entrou na enfermaria toda risonha.

- Tome estas roupas e se troque, continuou ela a falar. Não vai querer passear de pijama. Vá ao banheiro e mude de roupa.

Peguei o embrulho que ela tinha nas mãos e fui ao banheiro. Surpresa! Ali estava minha roupa favorita. Calça marrom e camisa de manga longa xadrezinha de marrom e branco. Só que materialmente esta roupa estava velha. Ali não, estava novinha. Emocionei-me até as lágrimas com tanta demonstração de carinho. Sabia que amigos plasmaram aquela roupa só para me agradar. No banheiro, em cima da pia, tinha um espelho, onde me mirei. O que vi me deixou satisfeito. Estava curado, sumira a expressão de doente que tinha meses antes. Voltei para perto de minha companheira. Deixamos o pijama em cima da cama.

- Oh, meu velho, como estou contente de vê-lo bem! Exclamou Maria. Vem por aqui. Vamos ao jardim. Disse, apontando a porta. Passamos por um corredor limpo, com muitos vasos de flores e muitas outras portas que dão para outros quartos de enfermarias. Demos com outra porta e por ela chegamos ao jardim.

- Que bonito!

- Você sempre gostou de jardins e sempre, ao ver um, diz isto, falou Maria sorrindo.

Mas o jardim, embora parecido com muitos da Terra, tem algo diferente. Logo entendi a diferença. As flores são mais vivas, sadias e não murcham. Todos respeitam as plantas e flores. No meio dos canteiros, passarelas de cimento[1] para que as pessoas possam andar por aquele recanto. Tem árvores grandes, outras pequenas, algumas com flores, outras frutíferas, carregadas de frutos. Havia coqueiros de várias espécies. A grama é cortada. Sempre gostei de plantas, muitas daquelas não conhecia. Flores de diversas cores e formatos maravilhando tudo. Muitas pessoas, internos do hospital, passeavam pelas suas alamedas ou sentavam nos seus bancos, de cor marrom e confortáveis, e conversavam animadas.

- Aqui é mais bonito porque os fluidos são bons, explicou Maria. Felisberto, estou tão contente por estarmos juntos de novo. Sabia que isto ocorreria mas agora estou tão feliz.

Belisquei meu braço, depois dei umas tapinhas na minha face.

- O que é isso meu velho?! Maria me olhou preocupada.

- Estou tendo a certeza de que não estou sonhando.

Ri feliz, encantado com a desencarnação.

 

Aprendendo

- Ei vocês dois! Estava à procura de vocês!

- Oi Samuel, respondi.

- Vim para levá-lo para a casa onde você, Felisberto, irá ficar por uns tempos. Podemos ir agora?

Pensei: “Será que vou levar alguma coisa?”

- Não, nem o pijama que vestia, este é da enfermaria, respondeu Samuel, lendo certamente meus pensamentos. O que você necessita tem lá no seu novo lar.

- Posso ir me despedir do meu vizinho de leito?

- Claro, disse meu amigo.

Nós três voltamos à enfermaria.

- Já estou indo, disse ao meu vizinho. Voltei só para me despedir do senhor. Tchau.

- Já vai embora?! Vai para onde?

- Vou morar numa casa na parte residencial, respondi. Fique com Deus.

- Obrigado. Sabe, estive pensando e cheguei à conclusão de que quero ser Espírita. Será que posso?

Olhei para Samuel e indaguei com o olhar. Não sabia o que responder e quase sai um “sei lá”. Meu amigo, pacientemente, respondeu:

- O senhor poderá ler os livros Espíritas que estão na biblioteca e encontrará sempre alguém disposto a lhe tirar as dúvidas. No Plano Espiritual respeitamos todos os credos. Aqui cada um tem a religião que quiser. Mas, depois da morte do corpo, com a desencarnação se tem a certeza de muitos acontecimentos como a continuação da vida. Aí, muitos se voltam para aquela em que a fraternidade se destaca, que revive o cristianismo puro e, consequentemente, chegam ao Espiritismo.

O senhor se deu por satisfeito e agradeceu. Fazendo tchau a todos, saímos. Ao estar na frente do hospital, não pude deixar de parar e olhar a beleza do prédio. É de três andares, beginho-claro com detalhes em branco, todo cercado por árvores floridas e canteiros com muitas flores. As janelas são grandes, tudo muito conservado, como se fosse novinho, acabado de construir. É que aqui nada envelhece, tudo é sustentado pelas mentes dos seus construtores. É grande, bem grande. Embora a Colônia seja de porte médio, o hospital é enorme, como os grandes existentes na Terra. É que muitos desencarnados enfermos têm que passar por ali para se recuperar.

- Você, meu amigo, ficou aqui pouco tempo, Samuel explicou. Seu corpo estava doente, mas o espírito sadio. A maioria dos internos demora meses, ou anos, para se recuperar. Vamos.

Concordei e nos pusemos a caminhar. Pelo caminho parecia um menino encantado com o que via, estava boquiaberto com tantas belezas. Tudo aqui é mais bonito. O céu é de um azul mais lindo, as ruas limpas, arborizadas, as pessoas são felizes, risonhas e cumprimentavam-se umas às outras com carinho. As ruas são sempre movimentadas, a maioria ia ou voltava do trabalho. As ruas são calçadas. Indaguei ao vê-las:

- Samuel, de que é feito este calçamento?

Porque a rua é lisa, sem ondulações, cinza-claro, embora esta cor seja variada, depois vi ruas azuis, marrom-claro etc. Mas Samuel respondeu me esclarecendo:

- O material é diferente, é uma combinação de materiais plasmados. Para que possa entender, é quase igual ao cimento para os encarnados.

- É resistente? Indaguei de novo.

- Sim, não estraga. Aqui não há transportes pesados.

- Todo o espaço na Colônia é construído, tem muitos jardins e prédios harmoniosos. Em alguns lugares há ponto para os aeróbus e, nestes marcos, pequenos postes, há sempre um painel e alguns cartazes informativos com dias e horas de palestras, teatro e de algumas atividades da Colônia. Não se vê nenhuma sujeira nas ruas, gostei delas.

- É aqui!

Maria me mostrou uma casa bem bonitinha, cercada por um jardim com muitas flores. Entramos. A limpeza se fazia notar, tudo muito limpinho.

- Seja bem-vindo, amigo!

- Dijalma! Você por aqui!

Era meu conhecido. Quando encarnado não foi Espírita, mas era muito boa pessoa. Fazia tempo que desencarnara.

- Moro aqui. É um prazer enorme tê-lo conosco. Você tinha razão no que me dizia sobre a morte, tudo é como me falava.

Sorri, sem resposta. Outros moradores, seis ao todo, me cumprimentaram dando as boas-vindas. Depois fui conhecer a casa. Ela tem uma área bem grande que quase a rodeia. Nesta área, que dá para o jardim, tem cadeiras, bancos onde os moradores costumam ficar para conversar. É bem agradável esta área. O jardim a rodeia, melhor dizer que a casa está no meio do jardim. Dentro, não difere muito das casas dos encarnados. Casa de pessoas de classe média. Esta tem duas salas, sem muito enfeite e objetos supérfluos; dão um toque especial muitos vasos com flores e alguns quadros nas paredes. Há, nas salas, mesas, cadeiras e sofás. Meu quarto fica ao lado do de Maria. Há uma cama, um pequeno armário, mesa e cadeira. O armário estava vazio e iria continuar, porque não trocaria de roupa, aquela estava ótima. No quarto, uma porta dava para um banheiro bonito e simples.

Nem todos os quartos são iguais, este que descrevo é para os recém-chegados. Para os que já se adaptaram, os que já aprenderam a viver como desencarnados, os quartos são um cômodo, sem banheiro, não há cama e sim um sofá ou outro objeto de preferência. Em alguns, no lugar do armário tem estante, escrivaninha, instrumentos musicais. O quarto passa a ser um cantinho particular.

- Gostei de tudo! É lindo! Exclamei.

- Felisberto venha comer uma fruta.

- Não quero comer. Não necessito!

- Não se deixa aqui os hábitos que se tinha quando encarnado sem aprender a viver sem eles, explicou Samuel. Tudo tem o momento certo, aos poucos deixará de se alimentar e de dormir.

- Se eu não me alimentar o que acontece?

- Nada. Mas sentirá falta e fome. Não morrerá de novo, mas sentirá os efeitos de ficar sem alimento. Sentirá fraqueza.

As frutas estavam bonitas, peguei uma, saborosíssima. Comi três.

Samuel despediu-se. Maria me chamou para ir ao jardim. Sentamos num banco, então vi que ela tinha um livro nas mãos.

- Felisberto, veja isto!

Abriu o livro e se pôs a ler!

- Maria!

- Aprendi a ler. Não é maravilhoso?

Lia bem mesmo. Quando encarnada ela só sabia escrever o nome. Orgulhosa da proeza, explicou:

- Aqui fui na escola. Você também poderá ir.

- Puxa que bom! Claro que quero ir!

Logo mais, os moradores da casa reuniram-se a nós numa conversação agradável. Todos eram muito simpáticos e procuravam me agradar. Quando anoiteceu fui dormir. Meu sono foi calmo e gostoso. Acordei cedo. Maria me esperava.

- Felisberto, vou levá-lo a conhecer a escola. Iremos matriculá-lo. Começará hoje mesmo os cursos que ensinam a volitar e de nutrição, em que aprenderá a se nutrir. Você irá voar e não se alimentará mais, aprenderá também a se limpar. Assim suas roupas estarão sempre limpas, novas e bonitas.

Lá fomos nós. A escola é grande e muito bonita. Da entrada não dava para ver seus fundos, algumas partes eram de três andares, outras de dois. Marcamos horário nos cursos de volitação e nutrição. A parte da escola onde se tem cursos de alfabetização é encantadora. Fomos muito bem recebidos pela orientadora que me explicou que o ano letivo já havia começado, mas se quisesse podia freqüentar as aulas.

- Não faz mal, vou freqüentando. É uma enorme alegria estar matriculado numa escola...

Não tive oportunidades, encarnado, de aprender. Morei na zona rural muito tempo, depois na cidade bem que tinha aulas para adultos. Mas, acabei não indo, sabia ler e escrever pouco, mas sabia. Não fui à escola de adultos porque ora me achava velho, ora que ia ter dificuldades para aprender. Ora meu trabalho era muito puxado e estava sempre cansado. Aposentado, tinha as reuniões no Centro Espírita à noite e assim o tempo passou. Mas, agora, era diferente, sabia que ia aprender, queria ter instrução.

Depois de me matricular fui conhecer a escola toda, enquanto não dava a hora de começar minha primeira aula de volitação. Como tem salas de aula! Como é bem repartida e limpa. Seus corredores são bem iluminados e pelas paredes há bonitos quadros. São na maioria gravuras de outras escolas do Plano Espiritual. Também muitos vasos com flores enfeitam suas salas. Nesta escola há muitos cursos. A biblioteca é grande e com muitos livros, tendo sempre muitos alunos pesquisando e lendo.

- Vou lê-los, disse. Ah, se vou!

A escola é mesmo encantadora. Depois fui para a minha aula que ia ser em um dos pátios. Os pátios são maravilhosos, rodeados por cercas de flores. Há pátios gramados e outros com azulejos que formam desenhos bonitos.

- Então, Sr. Felisberto, pronto para a aula? Perguntou meu instrutor depois de ter se apresentado.

- Primeiro o senhor dá o impulso e sai deslizando.

- O quê? Como é?

- Faz assim e sai voando.

O professor repetiu, ao ver que não entendi o palavreado difícil. Sabia volitar, quando encarnado saia muito do corpo enquanto dormia. Mas, aqui, se deve fazer com exatidão. Foi fácil. Em poucas aulas concluí o curso. Aprendi todas as regras e todos os modos de volitação, devagar, rápido, na horizontal e na vertical. Volitar devagar é muito gostoso, vai-se voando e vendo a paisagem e quase sempre conversando se estamos acompanhados. Depressa ou rápido é como o pensamento, se deseja estar num lugar e lá estamos em minutos.

O curso de nutrição, levei dois meses para terminar. Tinha posto na cabeça que não queria me alimentar e isto facilitou meu aprendizado. Embora o alimento aqui seja leve, saboroso, baseado em sucos, frutas e caldos de vegetais. A água, grande alimento por aqui, tomava com mais gosto, mas também fui deixando e, logo após ter concluído o curso, não tomei mais. Quando aprendi a me nutrir pelos fluidos da natureza, aprendi também a plasmar minha limpeza. Não fiz mais a barba e fiquei sempre como se acabasse de ser barbeado. Quando encarnados, usávamos dentadura, tanto eu quanto Maria. Foi uma alegria ter de volta os dentes, todos sadios e bonitos. Também devido à idade não enxergava bem. Agora estava enxergando perfeitamente e sem os óculos. Com todos estes detalhes e sadio, meu aspecto era de mais jovem. Idade não me era importante, sim a saúde.

Passei a freqüentar as aulas e, com a ajuda de amigos e dos moradores da casa, acabei por acompanhar a turma. Cada dia era um que me ensinava, isto era feito com gosto. Um me tomava a lição, outro fazia um ditado, outro corrigia a leitura.

Encarnado lia muito “O Evangelho Segundo o Espiritismo” e de tanto lê-lo até que o fazia corretamente. Mas os outros livros de Allan Kardec eu não conseguia assimilar. Agora lia-os e entendia. Que enorme prazer! Acabei com a minha vontade de lê-los, até dizia todo orgulhoso aos amigos:

- Estou lendo “A Gênese”. Acabei de ler “O Céu e o Inferno”.

E tem mais: o que não entendia perguntava ao meu professor de Moral Cristã. Ele respondia com gentileza.

Para minha confirmação, indaguei a Maria.

- E minha primeira companheira? Fui casado com Maria em segundas núpcias. Minha primeira esposa desencarnou há muito tempo.

- Como sabemos, ela reencarnou, é uma das suas netas, ela está muito bem[2].

Mas voltando aos primeiros dias de desencarnado. As visitas começaram e foram muitas. Um dia, voltando da aula de volitação, Maria me esperava no portão. Só para enfeite, nossa casa era cercada por plantinhas com altura de uns sessenta centímetros. E havia uma passarela de mosaicos cinza-claro por onde passávamos para ter na área da casa, e havia no início desta passarela um portãozinho dourado que não era trancado.

- Felisberto, tem uma surpresa para você e bem grande.

Entrei e vi umas vinte pessoas me esperando na sala.

- Viva, Sr. Felisberto! Viva!

Olhei-as bem, conhecia umas delas só de vista. Sorri encabulado e nada falei. Abraços. Votos de felicidades, cumprimentos por ter voltado vitorioso à Pátria Espiritual. Achei que vitorioso era um termo forte. Imagina, não me sentia assim tão importante, mas respondia sempre com:

- Obrigado! Obrigado!

Um senhor disse, me olhando carinhosamente:

- O Sr. Felisberto me ajudou muito. Vaguei por anos e foi ele com sua bondade que me orientou. É certo que os desencarnados que trabalhavam junto participavam. A eles já agradeci. Também naquela época não conseguia, pelas minhas baixas vibrações, ver os desencarnados bons, só via os encarnados. O senhor falou comigo com tanto carinho, que entendi tudo, vim para a Colônia e hoje estou bem e em condições de ajudar.

- O senhor me emprestou o corpo para que pudesse perceber a diferença entre um encarnado e eu que estava desencarnado e assim entender meu estado, disse outro senhor. Este empréstimo não há como devolver, mas foi demais para mim. Sofri tanto e com seus fluidos me recompus. Devo-lhe muito.

- Eu, disse uma senhora, sou por demais grata. Em época difícil, passamos fome, meus filhinhos e eu; foi o senhor com sua generosidade, embora não fosse rico, quem nos ajudou e pude, com sua bondade, alimentar meus filhos.

Outra senhora que conhecia, disse chorando:

- Fiquei muito doente e tinha um filho recém-nascido e você o criou como seu. Porque fiquei impossibilitada de criá-lo. Amou-o e fez dele um homem de bem. Obrigado, mil vezes, obrigado!

Vendo-me totalmente sem jeito, Maria se aproximou e me disse baixinho.

- Velho, lembra da Parábola dos dez leprosos? Um voltou para agradecer e Jesus aceitou seus agradecimentos, porque Ele sabia que a gratidão é sinal de Amor.

Respirei fundo, todos me olharam esperando que dissesse algo. Olhei-os e senti que os amava e acabei por dizer:

- Desculpem-me se não lembro de todos. Não nada demais, mas, se dizem que fiz, foi feito por Amor a Jesus e agora entendo que foi também por Amor a cada um de vocês, um Amor de irmão querido. Não precisam me agradecer. E...

Comecei a chorar. Como não chorar? Sentia a vibração carinhosa de cada um. Maria tinha razão, a gratidão é um sinal de Amor.

- Ora, ora, disse um moço. Nada de chorar. Viemos para festejar!

- Tem razão, disse. Vamos sorrir. Sorria e chorava.

E todos os dias aquele punhado de visitas. Muitos traziam presentes, eram bônus-hora para que pudesse ir a lugares de lazer, como teatro, às salas de vídeos e para alguns passeios especiais pela Colônia. Eram livros, flores, doces, etc. Tratei de me acostumar com as visitas e ser gentil. Pensei bem e concluí que se estivesse no lugar deles, se estivesse vagando e sido socorrido, ajudado, iria ser também grato a Deus, aos bons Espíritos, a todos que me ajudaram. Cortava com delicadeza alguns agradecimentos excessivos. Mas recebia-os sorrindo e falando sempre.

- A Deus, a Jesus, a todos os Espíritos que trabalham no Bem, devemos estes agradecimentos.

Depois de algum tempo foram escasseando essas visitas, mas estava sempre a escutar quando andava pela Colônia.

- Oi, Sr. Felisberto! Como vai?

- Sr. Felisberto, meu amigo querido!

Eram demonstrações de carinho de muitos que não conhecia, mas que lembravam de mim. No começo me envergonhava, depois respondia contente.

- Oi, amigo! Como está passando?

- Como está companheiro?

Para passear na Colônia tinha sempre alguém para ir comigo e me explicar as maravilhas que via encantado.

- Aqui está o reservatório d'água. Aqui se abastece toda a Colônia.

Samuel me disse contente. A água brota de umas pedras e forma um lago maravilhoso, cercado de árvores frondosas. Em volta há muitos bancos e muitos passeios se faz por entre as árvores. A água é cristalina e azulada.

Fui conhecer e passear de aeróbus. Por fora é uma mistura de trem com ônibus, moderno, bonito e elegante. Entrei ressabiado. Dentro, suas poltronas são confortáveis, bege, com encostos móveis. Sentei e segurei a mão de Maria que sorria se divertindo com minha cisma. Deu-me um frio na barriga quando começou a andar. Ora anda em cima das ruas, ora sobe por metros como um avião em vôo baixo. Desliza tão suavemente que você não sente nenhum movimento brusco. Gostei tanto que andei bastante.

- Vamos descer, meu velho?

- Por favor, vamos ficar mais um pouquinho.

Olhava pela janela encantado. O aeróbus serve a Colônia como veículo de locomoção. São pessoas que o usam para ir do trabalho para casa e vice-versa. Também há os que nas horas de lazer usam-no para passear. Como andei de aeróbus. Gostei demais!

A primeira vez que usei um aeróbus para uma viagem foi quando o grupo do coral do qual participava viajou para outra Colônia. Em viagens assim é rápido, quase não se vê a paisagem. Não se sente a condução se locomover. Tem aeróbus de três tamanhos, que são usados conforme o número de passageiros. Tem o pequeno, o médio e o grande. Sempre tem na frente, na parte de cima, o local de procedência. E tem mais, são seguros e não ocorre acidente. Mas, curioso, indaguei a um senhor que viajava ao meu lado.

- E, se bater um no outro, o que acontece?

- Primeiro, é difícil esse tipo de imprudência. Segundo, se porventura isto se dá, há um campo magnético que o envolve, é esse campo que bate, não acontece nada.

- Acontecer também o quê, já estamos todos desencarnados.

Ri, vi que meu amigo que me esclarecia não riu, pedi desculpas pelo comentário bobo. Meus amigos tinham razão, ao desencarnarmos ainda estão fortes em nós os acontecimentos corriqueiros da Terra.

- Nesta praça se escuta música.

Maria falou me mostrando uma majestosa praça com muitas flores e bancos.

Conheci toda a Colônia em poucos dias. Falando em música, gostava da sertaneja. Ganhei de presente um aparelho com muitos discos e fitas, parecidos com os que os encarnados têm para ouvir músicas. Encantei-me com as músicas daqui. Coloquei esse aparelho no meu quarto e lá escutava bonitas melodias. Bem, quanto a escutar, também estava meio deficiente nesta parte quando encarnado. Aqui logo passei a ouvir muito bem. Ao nos recuperarmos das doenças, vamos também nos recuperando de todas as deficiências.

Achava que dormir era perda de tempo, mas no começo o sono vinha mesmo. Mas, fui deixando devagar. Até que passei a não dormir mais.

- Felisberto, venho lhe fazer um convite, disse Miguel. Hoje é dia de reunião do nosso grupo no Centro Espírita, não quer ir?

- Irei como?

- Volitando comigo.

- Quero!

E lá fomos. Interessante é ficar perto de um encarnado. A impressão que tive foi a de que era uma fumaça com forma e o encarnado coisa pesada. Mas, rever amigos é sempre grato ao coração. Orei para eles. Quando a reunião começou foi feita a leitura do Evangelho e depois a oração. Chorei de emoção.

- Agora venha, Felisberto, disse Miguel. Outro dia ficará até o fim. Vamos agora visitar seus filhos.

Filhos são filhos! Que amor a gente sente por eles! E pelos netos então. Tinha até bisnetos. Em visitas rápidas fui vê-los e graças a Deus encontrei-os bem.

Muitas e muitas vezes tenho voltado a Terra. Para vir, volita-se rápido, ou vem-se de aeróbus[3]. No começo, Miguel me dava a mão para volitarmos e ia me explicando mais alguns detalhes. Depois passei a fazer essas viagens sozinho. Não pude deixar de perguntar a Miguel na primeira vez que volitamos:

- Há perigo de se trombar um no outro enquanto volitamos?

- Isso acontece só se for muito distraído. Aqui devemos educar nossa atenção. É difícil porque podemos com rapidez desviar de outra pessoa que também volita. Mas, se porventura duas pessoas se chocarem volitando, há o choque, mas nada acontece. Na colisão são afastados. Mas é por isso que nas aulas de volitação se aprende todas as normas para que isso não suceda.

- E como achamos a Colônia nessa imensidão? Quis saber.

- A Colônia se acha pela vibração. Ela está sempre sobre o mesmo lugar na Terra. A Colônia São Sebastião está sempre no Plano Espiritual da cidade de São Sebastião do Paraíso. Não tem erro, se você se sintonizar com ela será atraído. Você vibrando igual é atraído por ela. Quem vibra diferente não a acha.

Quando vim visitar a Terra, os encarnados, pela primeira vez, encantei-me com tudo. Viemos volitando rápido e não vi nada. Na volta pedi a Miguel para volitar em certas partes devagar para apreciar. Que bonito ver a Terra de cima! As estrelas nos parecem mais encantadoras. Que lindo é o nosso planeta!

Um mês passou e bem rápido. Estava envolvido no estudo, em receber visitas e conhecer a Colônia. Foram esses dias como umas férias e achei que já era demais o descanso. Resolvi cuidar do jardim da casa. Mas, andei por ele, fui em todos os canteiros, e não havia nada para fazer. Tudo estava perfeito.

- Meu velho, o jardim está sempre assim, em ordem. Todos os moradores cuidam dele com carinho. Ele foi plasmado e é sustentado pelas mentes dos moradores da casa. Maria me disse.

Quis trabalhar e fui ao Departamento do Trabalho pedir algo para fazer. Uma moça muito simpática me atendeu e fui falando.

- Senhorita, por favor, quero trabalhar.

- Seu nome completo por favor, quando desencarnou, quando foi recolhido à Colônia.

Dei os dados pedidos e aguardei uns minutos, logo após a moça novamente me perguntou:

- O que o senhor sabe fazer? No que quer trabalhar?

- Bem, saber não sei se sei, mas faço qualquer coisa que não seja complicada.

- Sr. Felisberto, o senhor sabe fazer muitas coisas. Encarnado dava passes com precisão. Consolava a tantos.

- Como sabe? Indaguei.

Aí vi que ela estava lendo uma ficha que certamente era a minha.

Não me respondeu a pergunta, mas falou sorrindo.

- Posso colocá-lo para trabalhar como enfermeiro no hospital, cuidará de doentes, fará com eles o que tantas vezes fez com irmãos encarnados e desencarnados.

- Será que serei capaz?

- Claro e lá encontrará quem o oriente.

Comecei no dia seguinte e trabalhei somente duas horas. Apresentei-me no horário marcado e o enfermeiro chefe daquela ala me recebeu carinhosamente.

- Sr. Felisberto pode perguntar o que quiser. É um prazer tê-lo conosco.

E foi me explicando o que ia fazer. Prestei atenção para fazer tudo bem feito. Às vezes tinha vergonha da minha falta de instrução, por isso queria tanto aprender. Não entendia uma palavra mais difícil, ora não conseguia ler recados.

Mas tudo foi tão fácil! Meu companheiro, o que trabalhava comigo, me tratou gentilmente, ser educado é algo que se aprende logo por aqui. A enfermaria em que servia era para os enfermos em estado consciente. Conversava com eles, animava-os, fazia como sempre fiz. Ajeitava-os no leito, alimentava-os ou ajudava-os a tomar a refeição, ria e tudo deu certo. Sentia-me tão bem!

- A moça do Departamento do Trabalho acertou em me dar esse serviço, disse a Maria. Está tão bom! Que gostoso trabalhar! Sou tão feliz!

Maria, logo que me viu adaptado, voltou para seu cantinho no Educandário. Mas nos víamos todos os dias.

Aos poucos fui aumentando minha carga horária no trabalho, até que fiquei trabalhando oito horas diárias.

E continuava encantado com a vida no Mundo Espiritual.

 

Recordando a Vida Encarnada

Aos poucos fui me encaixando aqui no Plano Espiritual. Sadio, disposto, tudo me era prazeroso e agradável. Trabalhava oito horas por dia e estudava seis horas na sala de aula, mais algumas em casa. Fui passando a dormir cada vez menos, depois passava dias sem fazê-lo, até que não dormi mais. Tinha as vinte quatro horas, todos os dias para as atividades.

Lia muito, tanto livros instrutivos quanto todos os livros Espíritas da biblioteca. Conversava com amigos, o assunto aqui é sempre interessante e sadio. Trocamos notícias de amigos, de acontecimentos da Terra, falamos sobre estudo e da vivência aqui e dos acontecimentos na Colônia. É um prazer manter conversação na Colônia.

Sempre gostei de música, meu sonho, que só Maria sabia, era tocar um instrumento. Quando ela me levou ao Conservatório Musical fiquei encantado. É um prédio muito bonito, nas paredes externas é enfeitado por notas musicais de diversos tamanhos e cores suaves. Os canteiros na frente do prédio também têm formatos musicais. Soube que em todas as Colônias há lugares dedicados à música e que tem uma Colônia só para esse fim juntamente com a pintura artística.

Dentro do Conservatório é algo fenomenal. Tem oito salas para concertos sendo três grandes. Esses salões são muito bonitos. De cor clara, flores que enfeitam o local. As maiores com palco e as cadeiras confortáveis. Sempre fui a concertos, maravilho-me com a música. E os concertistas vão de uma Colônia a outra brindando quem gosta de música. Só em raras exceções esses músicos dedicam-se só à música. A maioria o faz só nas horas de lazer.

Tem muitas salas de aulas. Nas paredes, por todo o Conservatório, há quadros de peças musicais, de corais, orquestras e quadros de instrumentos antigos. Por todo o conservatório se vêem vasos com flores. Fomos ciceroneados por um aluno que como eu era admirador da música. Ele nos explicou:

- Os alunos para aprender têm que estudar no horário que dispõem para o descanso e lazer. Eu trabalho dez horas por dia no hospital e três horas dedico à música.

- E quem ensina também o faz nas horas de lazer? Indaguei.

- Só o orientador do Conservatório e dois professores trabalham aqui, no período integral. Os outros mestres dedicam algumas horas por dia e fazem outras atividades para continuarem aprendendo em outros campos. Muitas pessoas que se dedicaram, encarnadas, à música continuam aqui no Plano Espiritual, o amor pela arte continua. Aqui estas pessoas se aperfeiçoam e ensinam. Os que gostam da música e não tiveram, encarnados, oportunidades de aprender, aqui realizam seus sonhos aprendendo.

- Mesmo os que nunca aprenderam, podem aprender?

- Claro, o saber faz parte do progresso.

- Que bom! Quero aprender música. Onde me matriculo?

- Levo o senhor lá.

Assim me matriculei nos cursos de violão, e violino e para aprender a cantar. Queria fazer parte de um coral.

Que satisfação foi ter as primeiras noções. Que alegria tirar sons nos instrumentos musicais. Para cada uma das atividades tinha um professor. Sempre atencioso, ensinando com gosto. Foram tempos estudando. Aprendi com alegria, amei tirar nos instrumentos músicas maravilhosas que os encarnados desconhecem. Harmoniosas, as letras falam de alegria e otimismo. Muitos são hinos de Amor, gratidão ao Criador. Hoje toco piano, órgão, violão e faço parte de um coral. A música é divina. Sou grato por ter aprendido, por continuar a aprender. E tudo isso fiz no meu horário de lazer. Meu tempo era todo ocupado e isso é muito bom.

Os estudos na escola, como o curso de reconhecimento do Plano Espiritual que freqüentava para me alfabetizar, são considerados um trabalho, por ele se recebe como por outro trabalho qualquer. Isso para incentivar todos a aprender. Tudo é facilitado para o estudante. O curso que fazia não era só para alfabetizar, completado em três anos se tem conhecimento do primeiro grau.

Na escola, meu curso me encantava e estudava pra valer.

Numa aula de redação, gostamos muito de um trabalho que Maurício fez. Copiei para mim e guardei. Agora o transcrevo porque muito me ajudou e talvez poderá ajudar alguém que o leia.

“No mundo Espiritual: Passamos a ver a vida de modo diferente, quando desencarnamos. No primeiro impacto, o medo. Na Lei da Atração, semelhantes se atraem. E como ímãs somos levados para onde merecemos.

Mas em qualquer lugar que estamos nos é dada a visão do que fizemos e do que somos. Seja no meio da dor, do ódio, da revolta que corrói sem descanso, somos levados a ver nossos erros até que o arrependimento sincero nos abre a porta para o socorro.

No meio do socorro, o consolo de poder reparar nossos erros com o trabalho edificante.

No meio do trabalho edificante, aprendemos a ser agradecidos.

O mundo Espiritual é continuação da escola da Vida. Aprende quem quer. Com os olhos do espírito são ampliados os nossos conhecimentos.

Uma certeza todos nós devemos Ter: A vida continua e continuamos apesar do corpo carnal morrer. Isso para muitos é o espanto do despertar. Para outros é o consolo esperado.

A cada um é dado o que merece. A felicidade é para os que muito amaram.”

Minha turma era muito legal, ótima mesmo. Logo na primeira aula me tornei amigo de todos. Eram todos adultos e ali estavam para aprender. Éramos dezesseis alunos. Com senhoras e senhores muito educados.

Um dia, na aula de Moral Cristã, o assunto era desencarnação e muitos foram convidados a falar da sua. Chamado, narrei a minha. Completei:

- Minha desencarnação foi maravilhosa. Senti tanta Paz. Dormi encarnado para acordar desencarnado.

- Felisberto, disse o professor, o que ocorreu com a sua desencarnação é um fato raro. Certamente foi uma conseqüência de sua vivência encarnada. Para que possamos eu e os outros alunos entender esse acontecimento que lhe foi maravilhoso, fale para nós o que fez quando encarnado para ter esse merecimento. O que plantou para ter como colheita essa desencarnação tão feliz.

Preferia não falar no que fiz mas, se era para que outros entendessem e também porque era o professor a pedir, resolvi falar.

- Desde pequeno minha mediunidade estava aflorada. Via e conversava com os espíritos. Meus pais preocupavam-se comigo e me levavam para benzer. Este senhor que benzia, vizinho de sítio, porque morava na zona rural, era muito boa pessoa. E minha infância toda ia lá, tornamo-nos amigos, quando mocinho ele me ensinou a benzer. E passei a fazê-lo, Miguel, amigo da encarnação passada, esteve sempre comigo. O benzedor, meu amigo, ficou doente e passei a atender pessoas por ele.

Logo ele desencarnou e fiquei no seu lugar.

Casei novo e os filhos vieram. Trabalhava muito na lavoura, minha vida era difícil, mas não me queixava; à noite, embora cansado, tinha sempre pessoas para atender. Intuído por Miguel animava as pessoas, aconselhava-as e benzia como sabia.

Fiquei viúvo, foi um período muito triste, crianças pequenas e com muitas dificuldades.

Conheci Maria e ela foi um anjo bom, casamos e ela me ajudou muito, tivemos mais filhos.

Vinham pessoas de longe para que eu as benzesse. Estas benzeções eram orações repetidas, para alguns casos com ramos de plantas. Bastava começar as orações e via com nitidez os problemas que as pessoas enfrentavam, se tinham espíritos junto, se a pessoa estava obsidiana via e às vezes conversava com ele, aí entrava Miguel e levava o espírito embora.

Sempre atendi a todos que me procuravam e lembro de uma vez que quase deixei de atender. Desde pequeno tinha crises de bronquite, mas nunca as tive fortes como daquela vez que tive febre alta. Também tive junto cólica de rins, estava acamado. E veio de longe uma pessoa para que eu atendesse.

“Sinto muito, senhor, estou muito doente para atendê-lo.” Disse-lhe. o homem montou no seu cavalo e andou um pouco. Meu coração apertou, ele ia tão triste, estava tão necessitado que o chamei de volta.

“Senhor! Volte, vou atendê-lo.”

Aquele homem estava obsediado e o espírito vingativo e mau ficou comigo. Depois de benzer aquele homem ele foi embora aliviado. Voltei ao leito. Vi esse espírito com nitidez, que me xingou, ameaçou, me pegou pela garganta e sufocou-me mais ainda.

“Vou ensiná-lo a não se meter onde não é chamado. O que tem de se meter na minha vingança. Você está fraco e doente, é a minha vez.”

Falou com ódio, chamei por ajuda.

“Miguel! Miguel! Jesus!”

Chamei com fé. Miguel apareceu, pegou o espírito vingativo pelo ombro e afastou-o de mim.

“Ele está doente, mas é só a matéria, eu sou companheiro dele e estou sadio como você. Por que não me enfrenta?”

Fez o espírito olhar para ele.

“Não, por favor, com o senhor não. Não quero lhe enfrentar. Largue-me! Piedade! Quem é você? É Jesus?”

“Não. Sou um dos que trabalham em nome Dele, de Jesus. Venha comigo e deixe meu amigo em Paz.”

“Deixe-me voltar para o outro, o que estava antes. Minha vingança é justa.”

“Vingança nenhuma é justa”, disse Miguel. “Perdoa e será feliz.”

O espírito olhou bem para Miguel, pensou e disse:

“Posso pensar e resolver com calma?”

“Enquanto pensa vou levá-lo para um abrigo onde ficará.”

Pegou-o pela mão e não o vi mais. Mas Miguel logo voltou e desta vez trouxe Samuel. Juntos me deram passes e colocaram medicamento na minha água. Dormi bem aquela noite e melhorei logo.

Uma senhora que atendi me levou de presente um livro. Com educação disse que não aceitava presentes. E não aceitava mesmo. Só mais tarde vim ter conhecimento que da. mediunidade não se deve receber nada de material. Embora eu não pudesse impedir que pela gratidão orassem por mim. E essas orações foram grandes presentes. Mas aquela senhora explicou, tentando me convencer.

“Sr. Felisberto, não é presente pelo que recebi ou pelo que o senhor fez. É um presente de uma amiga. Este livro é um Evangelho e um cristão não deve recusar um Evangelho. Pergunte para o espírito protetor do senhor se pode aceitar”.

Miguel e Samuel olharam o livro e me disseram. “Aceite desta vez.”

Agradeci à senhora e, logo que tive tempo, passei a lê-lo. Lia devagar, às vezes soletrava. Era o livro “O Evangelho Segundo o Espiritismo”. Encantei- me e nunca mais deixei de lê-lo e de meditar nas suas leituras. Li-o tanto que sua leitura se tornou fácil. As explicações dadas sobre os ensinos de Jesus me levavam a raciocinar e gostei disso. Que lições profundas estão nesse livro. Foi um presente e muito me ajudou e esclareceu. O único que ganhei de uma pessoa a quem atendi, mas não me arrependi, pois me fez muito bem.

“Quero ser Espírita, dizia sempre. Quero! Foi nesta religião que me encontrei.”

Meus filhos mais velhos casaram, já estava ficando velho. Peguei o dinheiro que tinha juntado com muito trabalho, comprei uma casinha na cidade e mudamos para lá. Ainda trabalhava na roça, na lavoura, ia de manhãzinha e só voltava à tarde. Na cidade procurei um Centro Espírita e maravilhei-me com a Doutrina.

As pessoas da cidade que iam à minha casa no sítio logo passaram a ir à minha casa na cidade como muitas outras.

Aprendi a dar passes, assim, deixei minhas benzeções para dar passes, mais eficientes e corretos. Logo passei a trabalhar com minha mediunidade no Centro Espírita. No começo trabalhei com psicofonia para que espíritos recebessem orientações, com o tempo passei também a doutrinar.

Ia duas vezes por semana ao Centro Espírita, nas outras noites atendia as pessoas que me procuravam como também aos domingos.

Quando me aposentei passei a dedicar mais tempo a ajudar o próximo. As pessoas iam atrás de mim a qualquer hora e eu atendia-as com todo o carinho de sempre. Era realmente o tempo todo, de madrugada, como de manhã e à noite.

Foram muitos os casos complicados que resolvemos, muitos auxílios prestados. Tantas obsessões resolvidas tanto para os encarnados como para os desencarnados. Porque estes eram orientados nas sessões de desobsessões no Centro Espírita. Muitas pessoas foram orientadas e tantos males evitados. Foram tantas as ajudas que necessitaria de horas para narrá-las.

Dediquei-me ao Espiritismo com todo o carinho e sempre trabalhei, até doente. E sempre comigo os meus amigos desencarnados, Miguel, Samuel e depois, quando vim para o Centro Espírita, Francisca. Nunca me faltou assistência da parte Espiritual. Muitas vezes, irmãos que tinham outro caminho, os que preferem seguir o mal, me atacaram, agüentei, me fortalecendo nas orações e bons pensamentos e tentei ajudá-los como irmãos muito necessitados. Como também em certas ajudas era como mexer em caixa de marimbondos. Embora cuidadoso, levava sempre algumas picadas. Mas tinha a certeza de que estava livrando a pessoa dos marimbondos e de que, também, orientava esses marimbondos para que não se prejudicassem e nem prejudicassem ninguém com suas ferroadas, as picadas que levava eram nada. Recebi-as, porém procurando sempre precaver-me delas.

Foram anos, muitos anos de trabalho. Trabalho material para o sustento da numerosa família, como também trabalhei espiritualmente para a família maior ainda, que é toda a Humanidade. Porque tenho a todos como irmãos.

Só parei de trabalhar meses antes de desencarnar, porque fiquei acamado.

Terminei encabulado meu relato e um colega me indagou:

- Felisberto, atender assim tantas pessoas não atrapalhou sua vida?

- Minha vida era isso, trabalhar para o Bem. Fazia e faz parte de mim. Não me atrapalhou em nada, amigo. Depois Maria, minha esposa, muito me ajudou, a ela sou tremendamente grato. Ela era Espírita e trabalhava comigo no Centro Espírita e em casa, benzia crianças.

- Ajudando tantos infelizes, não foi também um infeliz? Quis saber uma colega.

- Sempre me chateei com a desgraça alheia. Muitas e muitas vezes chorei muito junto com os que vinham até a mim em busca de auxílio. Mas fui, sou muito feliz. É bem verdade o ditado: “fica sempre nas mãos o perfume de quem oferece flores”. Sempre senti Paz, alegria, no Bem realizado.

- Já fez o bem para uma pessoa má? Indagou Maristela, uma colega.

- Sim, muitas vezes, respondi.

- Nestas ocasiões não teve vontade de deixar de ajudar? Indagou Maristela novamente.

- Não, lembrava sempre que Deus fez o sol para bons e maus, faz chover sobre todos e que somos irmãos, filhos do mesmo Pai.

Por um momento fez- se silêncio na sala de aula. O professor Nonato elucidou:

- Felisberto fez muito mais do que nos disse. Ajudou tantas pessoas encarnadas quanto desencarnadas que sua ficha é enorme. Ele tem razão, toda ação que fazemos, primeiro a nós fazemos. A ação boa dá alegria e felicidade, a má, a insatisfação e a infelicidade. Ele plantou a erva boa com tanto carinho que sua desencarnação só podia ser como foi, feliz como é seu espírito, como ele é.

A aula terminou com grandes lições para nós todos.

Continuei estudando até concluir o curso. Três anos de estudos que realizei com amor e dedicação. No término foi uma festa, senti enorme alegria por ter recebido nesse tempo tantos conhecimentos.

Quando terminei senti- me instruído, entendia tudo, lia e escrevia com perfeição, aí fiz outro estudo. Foi o curso de Reconhecimento do Plano Espiritual. Foi maravilhoso conhecer tudo por aqui. Conheci com entendimento lugares lindos, muitas outras Colônias como também lugares tristes. Aprendi a desligar pessoas que desencarnam, vi e ajudei em reencarnações. Compreendi melhor a lei de causa e efeito, as obsessões, enfim, vi um pouco de tudo o que temos por aqui. Li muito, reli muitas vezes todos os livros de Allan Kardec e os livros Espíritas que a maioria dos encarnados têm para ler.

Continuei a morar na mesma casa, só que em outro quarto. Agora era um cômodo somente, que decorei a meu modo. Tudo simples e prático. A janela dava para nosso jardim, me premiando com sua visão pela e agradável. Na janela, uma cortina fina e graciosa de cor verde-clara como as paredes. Coloquei um sofá, uma estante, uma escrivaninha, meu piano, violão e meu aparelho de som. Ali estudo música como também ouço. Com a porta fechada o som não sai do quarto, assim não atrapalho ninguém.

Sempre há alguém de mudança na nossa casa.

Uns reencarnam, outros vão trabalhar ou estudar em outro local e, para as vagas vêm novos moradores. São amigos que vão e novos amigos que vêm. Amo muito minha casa.

Continuei a estudar música, o curso de violão acabei e, nas minhas horas de lazer, toco para amigos. É bem gostoso. A música alegra e anima. Ainda estudo piano mas já toco bem. Faço parte de um coral. Este coral tem cento e cinqüenta vozes. São um encanto suas apresentações. Sempre, em época festiva, apresentamo-nos cantando músicas maravilhosas. Algumas conhecidas dos encarnados, outras compostas por compositores desencarnados. Ensaiamos quase sempre no pátio do Conservatório ou Casa da Música, como também é conhecida. Quase sempre os ensaios são à noite, uma vez por semana, para que todos possam vir. Assim mesmo, nem sempre estão presentes todos, como também há faltas nas apresentações. Corais como este vão sempre visitar outras Colônias. Assim tem sempre corais apresentando-se nas Colônias, às vezes, nos Postos de Socorro, presenteando a todos com a encantadora música. Gosto muito desta atividade que faço nas horas de lazer.

Trabalho quatorze horas nas enfermarias onde aprendi e aprendo, socorrendo irmãos em estado grave. Gosto muito deste trabalho, dedico-me com Amor a cada um dos que visito nos leitos. Muitos fatos interessantes vi, porque cada um dos enfermos tem uma história. Entretanto, para estarem assim tão necessitados foram, e muitas vezes ainda são, imprudentes que não lembraram da vida Espiritual. Da continuação da existência com a morte do corpo físico. Muitos egoístas só pensaram neles e nada fizeram de bom, nem a eles, nem a outros. Porque podemos fazer muito bem a nós mesmos quando pensamos em fazer o Bem a outros.

Também dedico muitas horas de trabalho ao Centro Espírita que freqüentava quando encarnado. Nos dias de encontros, das sessões, são as horas que mais trabalho. Ajudo encarnados que lá vão. Gosto muito de ajudar encarnados. Porque estar no corpo físico não é muito fácil, as ilusões do mundo material são muito fortes e tentadoras.

Tenho planos de fazer enfermagem aqui no Plano Espiritual. Aqui se pode estudar todos os cursos que no Plano Físico são úteis. Como também há outros que os encarnados não têm e não conhecem. Muitas vezes estudar é difícil, porque aqui se aprende muito, mas, para quem quer, nada é impossível, principalmente aqui onde para os estudantes tudo é facilitado. Para estudar os cursos oferecidos aqui, é preciso ter certos conhecimentos e vocação. Gosto de curar, como gosto. Mas, para fazer um curso completo de enfermagem, ainda falta estudar muito, mas vou devagar e servindo sempre.

Estudar é aprender a servir com sabedoria. Podemos crescer, progredir Espiritualmente sem o estudo, mas o saber faz falta e se chega num estágio que temos que ter conhecimentos para melhor servir. Tem que saber. Depois, caminhamos com mais segurança quando sabemos o porquê de tudo e para onde seguimos. Até mesmo necessitamos saber para ler as setas do caminho, que para mim é o Evangelho.

Numa das visitas que fiz à Terra, fui visitar um amigo, o Lúcio. Conheci-o garotinho e desde menino era médium. Dei passes nele muitas e muitas vezes. Quando pequeno a mãe levava-o quando estava inquieto, com problemas ou, como ela dizia, “necessitado de passes”. Eles diziam ter uma religião mas não a praticavam. A mãe, embora o amasse muito, não quis ir ao Centro Espírita nem levá-lo. Logo na juventude aconteceu um acidente com ele, vitimando seu irmão que desencarnou. Foi chamado para freqüentar e desenvolver, ou seja, aprender a lidar com sua mediunidade e fazer o Bem com esse dom. Não quis. Tempos depois, um novo episódio o envolveu, vitimando outras duas pessoas num acidente de carro que dirigia. Ele continuou ignorando o Espiritismo. Casou e tem uma vida de trabalho como todos os encarnados. Só lembra do Centro Espírita em apertos; aí, vai melhorando, some de novo. Muitas e muitas vezes foi alertado para o trabalho e sempre diz :

“Não me acho preparado. Acho que não está na hora!”

Desculpa. Não quer deixar os vícios, os erros que tanto lhe agradam no momento, que sabe serem prejudiciais. Entende que freqüentando um Centro, trabalhando com a mediunidade vai ter que melhorar interiormente, vibrar melhor. E o tempo vai passando. Talvez quando achar que é hora, esteja velho e não tenha mais nada a oferecer, ou a desencarnação chegará. O fato é que enterrou seu talento, as conseqüências disso são para o futuro, como se o futuro não fosse chegar.

Fui vê-lo e vi o tanto que é infeliz, insatisfeito, nervoso, inquieto, triste e amargurado. Vibra mal e por isso está sempre acompanhado por entidades afins. Mas essa tristeza, insatisfação é dele mesmo. Quando deixamos de fazer o que nos compete, as conseqüências são nossas mesmo. E não precisa desencarnar para sentir isso não, já encarnado sentimos e muito. Médium é como poço d'água que quanto mais tira da água para dar, melhor ela é para si e para os outros. Se não tirar apodrece, estraga, prejudicando a si mesmo. Deixou de dar, não a terá boa para si. Além do mais, não fez a lição que lhe compete. Voltará para fazer até que a tenha feito. Repetir a lição não é agradável.

Lembrei de um amigo e quis revê-lo. Conheci-o porquê trabalhamos materialmente juntos alguns anos, fizemos alguns negócios. Chama-se Lázaro, encarnado trabalhava com sua mediunidade para o mal. Desencarnou bem antes de mim. Mesmo sem ter muita liberdade com ele, foram muitas as vezes que tentei alertá-lo. Dizia a ele de modo educado:

“Lázaro, você não pode fazer o mal. Não está certo. Um dia tudo retorna a você.”

“Não faço o mal, amigo. Só castigo quem merece.”

“Não somos ninguém para castigar a outro. Não erramos também? Não existe Deus para isso?” Indaguei.

“Deus está muito longe de nós, cabe a nós mesmos castigar.”

“E você, meu amigo, está excluído de castigo?”

“Claro que estou, sou protegido”, respondeu sério.

“Por quem?”

“Pelos meus amigos desencarnados.”

Quando o assunto começava a importuná-lo, forçava a mudá-lo. Quero deixar claro que não penso ou tenho certeza de que não é Deus quem castiga. Deus não premia ou castiga, somos nós que, imprudentes, plantamos a má erva e a colheita só pode ser ruim. Falava daquele modo com ele só para lembrá-lo de que Deus é tudo, nós nada somos. E também para tentar chamá-lo à realidade. Porque certamente se iludia ao dizer que castigava, o fato é que fazia o mal mesmo. Quem somos nós para castigar alguém? Como atirar pedras se somos ainda alvo delas?

Outra vez ele me contou que ia fazer um trabalho no mato para uma moça. Como indaguei para quê, ele me disse:

“A coitada da moça me procurou chorando, está apaixonada por um homem casado e quer ele para ela. Vou fazê-la feliz. Vê, amigo, não faço o mal.”

“Não é bom forçar alguém a querer outro. Depois esse homem é casado. Como ficarão a esposa e os filhos? Você pensou neles?”

“Ora, quem me pede é a moça, não a esposa. Não podemos contentar a todos.”

Não adiantou dizer que ele estava errado, quando pelas minhas perguntas ficava sem resposta, dizia:

“Deixe-me fazer o que quero. Não me intrometo na sua vida. Você, com sua mediunidade, poderia estar melhor de vida e não necessitar trabalhar tanto na roça. Não cobra de ninguém. Para mim é você o tolo e imprudente! Como resolveria o caso da moça, ia deixá-la sofrendo?”

“Lázaro, se essa moça viesse até a mim, aconselhá-la-ia a esquecer esse homem casado.”

“Como também ia ficar sem receber o dinheiro que ela paga. Ora, ora...”

Conheci também Jovino que usava muito os serviços de Lázaro. Por qualquer motivo lá estava mandando fazer um trabalho para alguém. Contou para mim, um dia, que mandou um despacho ou macumba para uma vizinha só porque esta não cumprimentou sua esposa.

Lázaro cobrava pelos trabalhos que fazia e não era barato. Mas dinheiro recebido assim não faz fortuna, ele não conseguiu enriquecer.

Mas a desencarnação chegou para os dois e bem antes de mim. Fiquei curioso para saber, deles e resolvi procurá-los. Encontrei-os morando no Umbral mas também trabalhando com encarnados afins. Faziam parte do grupo que trabalhava junto quando eles eram encarnados. Jovino era um escravo, tinha que obedecer ordens do grupo, tinha que trabalhar para eles, por qualquer motivo era castigado. Aproximei- me dele e tive pena, não estava visível, mas tentei intuí-lo.

“Jovino”, disse mentalmente tentando transmitir de mente a mente.” Peça perdão a Deus, ore, arrependa-se, peça socorro aos bons Espíritos.”

Ele sofria, era maltratado, mas não quis me escutar, estava revoltado e achava que era injusto o sofrimento que recebia. Acho que vai demorar para entender que sofre porque faz a colheita da sua semeadura. Encarnado, ele se ligou ao mal. Fez, mandou fazer, desejou mal para outros e ao mal se ligou, desencarnou e foi atraído para seus afins. Plantou espinhos e se feria com eles.

Lázaro também é como um empregado. O grupo tem um chefe que manda e desmanda. Lázaro sempre gostou de dar ordens, agora as recebe e trabalha muito fazendo favores para encarnados. É muito infeliz porque está insatisfeito com a vida medíocre que leva. Falei com ele, também não me ouviu, mas lembrou de mim e falou suspirando:

“Onde estará o Felisberto? Ele sempre seguiu o outro caminho. Ele já era feliz. Como estará ele agora? Será que realmente era ele o tolo? Encarnado, pensei que era importante fazendo o que fazia, agora vejo que nada sou, aqui tenho que obedecer. E tenho medo de acertar 'as contas' com Deus. Certamente ele não teve. Sempre fui infeliz, encarnado, me iludia, agora não tenho como. Que vida boba! Como é ruim minha vida!”

Não fui visitá-los mais. Eles terão que entender seus erros, arrepender- se e pedir perdão e ajuda. Só assim poderei ajudá-los. Mas oro por eles.

Encarnado, vi e ajudei muitas pessoas com problemas às vezes sérios, pelos trabalhos feitos, feitiços ou macumba. Essas vibrações negativas atingem quando há ressonância. Por isso temos que vibrar com Amor, com Caridade e Perdão. Se existe o mal, existe o Bem, com mais força e harmonia, que anula a maldade. Mas, infelizes os que fazem o mal. Porque, ao receber uma maldade, isso não nos toma maus. Mas os que fazem, esses sim fazem mal realmente a si mesmos. E a colheita chega...

Visito muito Maria, aproveitamos para conversar, lembrando os acontecimentos felizes. Ela sempre me diz:

- Meu velho, sou tão grata a Deus pela oportunidade desta última encarnação. Tive a bênção da mediunidade e trabalhei para o Bem. Reparei meus erros, queimei com o trabalho meu carma negativo e ainda aprendi muito. Fui feliz porque o Bem que fazemos nos enche de alegria e sou muito, muito feliz. Tive uma linda desencarnação e estar aqui entre as crianças que adoro é maravilhoso.

- Já pensou, Maria, se não tivéssemos feito o Bem, encarnados? Deixado para fazer o Bem desencarnados, como muitos dizem.

- Tem lições que cabe só a encarnados fazer. Se não tivéssemos feito, não íamos aprender, não íamos vibrar para merecer ser recolhidos na Colônia. Ainda bem que fizemos.

Maria trabalha muito, ela cuida de crianças de tenra idade no Educandário da Colônia. Trabalha vinte horas por dia. Nas outras quatro horas, ás vezes, vem à Terra para visitas, vai ao Centro Espírita nos dias de reuniões, vê amigos e parentes. Ou, então, fica lá mesmo com os seus pequenos. As crianças a amam muito. O amor é recíproco. Maria sempre gostou de crianças. Quando encarnada estava sempre rodeada delas. Os pequenos ao vê-la davam-lhe os braços. Desde que casou comigo e aprendeu a benzer, passou a fazê-lo sempre com muito amor. Quando se tornou Espírita aprendeu a dar passes. Mas mesmo assim, em casos especiais ela fazia suas benzeções. Maria sempre foi boa, um anjo, honesta e trabalhadeira. Quando estava para desencarnar vi no seu quarto um coral de mais de vinte crianças em redor do seu leito cantando harmoniosamente... Ela também os viu e desencarnou sorrindo. E, como me contou depois, trabalhadores a desligaram e a levaram para a Colônia. Dormiu com o coral de crianças para acordar disposta e feliz num leito de uma ala de recuperados no Hospital. Onde se recuperou rápido e as crianças maiores do Educandário sempre iam visitá-la e a cercavam de mimos. Ela foi estudar, trabalhou em muitas tarefas na Colônia para aprender. Quando se sentiu apta foi trabalhar no Educandário.

Ela tem seu cantinho no próprio Educandário. É um cômodo todo cor- de- rosa, onde tem só o indispensável. Ela quase não pára lá, usa-o mais para receber visitas. Tem um sofá, uma mesa com cadeiras e uma estante. Só dois vasos com flores o enfeitam. Também tem fotos dos filhos e netos na parede.

Como não paro em casa, sou eu quem mais vai visitá-la. E lá está ela, cercada de crianças. Elas a chamam de vó ou vovó. Vê-la entre as crianças é emocionante. Como ela cuida delas com Amor.

Maria é feliz!

Quero explicar que se é feliz aqui porque quase sempre se foi feliz encarnado. Estar feliz é ter a alegria do Bem viver ou de viver para o Bem. Não importa se teve problemas, dificuldades, isso são provas a serem vencidas. Não importa as doenças do corpo. O que importa é a transformação interior, trocar vícios por virtudes. Ser servo de Jesus, passar a servir e deixar de ser servido.

Por amigos comuns, conheci Antônio Carlos e ele me pediu para que falasse de mim. Contei rapidamente os fatos mais importantes e ele me ouviu com muita atenção.

- Sr. Felisberto, disse ele, convido-o a narrar para os encarnados a história de sua última encarnação, tudo o que me contou agora. Será um incentivo para aqueles que trabalham para o Bem.

- Será que conseguirei?

- Estudará para isso.

Mais tarde estudei, porque aceitei o convite deste amigo. Mas, voltando a nossa conversa, Antônio Carlos me indagou:

- O que queria ter quando encarnado e não teve?

- Conhecimentos. O saber é importante demais. Com sabedoria se ajuda com precisão. Se tivesse mais conhecimentos quando encarnado, iria ajudar a muitos melhor do que fiz.

- Sr. Felisberto, valeu a pena ter trabalhado com sua mediunidade? Ter feito o Bem encarnado?

- Tudo o que fiz, a mim fiz. Nunca pensei que ajudando tão pouco a outros estivesse fazendo tanto a mim mesmo. A alegria do dever feito, da tarefa realizada é grande e maravilhosa. Sempre, desde encarnado, orava como se estivesse aos pés de Jesus. Sempre pude imaginá-lo e nunca me envergonhei de estar na sua presença. Há muitas encarnações desejei ser servo do Mestre Jesus. Nesta servi, embora tenha sido um pequeno aprendiz, fiz o que me competia. Sim, meu amigo, valeu a pena, e como valeu!

 

Desencarnação

Há dias não estava passando nada bem. Tinha uma doença crônica nos rins que há anos me obrigava a fazer hemodiálise. Mas meus rins não me prendiam ao leito, dentro do possível levava uma vida normal. Mas, o coração não estava bem. Estava inchando e sentia muita falta de ar. Há uns oito dias estava mesmo só querendo cama. Tenho três filhos, duas mulheres e um homem. Todos casados, as filhas moravam perto, de preocupadas vinham sempre na minha casa. Morava sozinha desde que minha caçula se casara. Mesmo indisposta levantava para ir ao banheiro e sentar à mesa para as refeições. Há três meses não ia ao Centro Espírita. Como sentia falta das reuniões amigas. Mas o pessoal do Centro vinha me visitar, premiavam-me com os passes agradáveis ao meu espírito. Sempre tive o hábito de visitar pessoas quando doentes ou com problemas. Agora era minha vez de recebê-las. Eram muitas as visitas que me traziam conforto e me enchiam de carinho.

Três dias antes, estava saudosa, pensava, mesmo não querendo, no passado. Engraçado que acontecimentos por mim esquecidos vinham-me à lembrança. Ora me entristecendo, ora me alegrando. Parecia, em certas partes, como um filme de minha própria vida. Vi meus erros, acertos, todos os acontecimentos de maneira clara. Às vezes, chorava ao recordar certas partes.

Senti, à tarde, mais os sintomas das minhas doenças, passei mal, minha filha chamou o médico.

Este, preocupado, mandou que chamassem a ambulância para me levar ao hospital.

“Logo desencarnarei”, pensei e fiquei atenta. Sempre pensei em poder ver minha desencarnação. Mas, na hora, não estava tão corajosa assim. Senti medo, e me deu um frio na barriga. Lúcida, observava tudo, o médico e a filha chorosa.

Aí me confundi um pouco, minha respiração era muito incômoda, estava muito difícil respirar. Vi que me colocaram na maca e após no veículo, ou seja, na ambulância. Vi outras pessoas de branco que julguei ser o pessoal do hospital. Foi me dando sono, esforcei-me para ficar acordada. Via umas cinco pessoas em minha volta e pensei: para que tantas pessoas dentro da ambulância? Esforcei-me ao máximo para ficar acordada, pensei que alguns dos medicamentos, porque já havia tomado pelo menos umas três injeções, estavam me fazendo dormir, acabei por render-me ao sono[4].

Dormi mas não perdi a consciência de tudo. Melhor, fiquei numa modorra, sentia mais do que via, fui retirada da ambulância. Minha respiração estava mais fácil. Parecia que me levavam na maca. Pensei: desencarnei e estou sendo desligada ou me tiraram da ambulância para o hospital. Senti que logo cheguei em outro local e me acomodaram no leito. Não sentia nenhuma dor. Novamente a dúvida: desencarnei ou não? Não, pensei, não devo ter desencarnado, senão teria visto. Sonolenta e querendo acordar, escutei:

- Maria Dalva, sou médico, seu estado de saúde melhora bastante. Acalme-se, durma e descanse.

A voz calma, harmoniosa e cheia de carinho me deu confiança, senti que me ajeitavam no leito. Mas estava inquieta, queria saber se desencarnara. Tentei mover-me, abri os olhos e vi um homem de branco sorrindo ao meu lado.

- Maria Dalva, acalme-se filha. Não há motivo para se agitar assim.

“Tem razão, pensei, por que me agitar? Se continuo ainda encarnada, melhorei. Se desencarnei, devo estar em algum hospital no Plano Espiritual e socorrida.” Não tinha por que me preocupar, logo saberia. Resolvi acatar os conselhos daquele gentil médico e me acalmei, deixei que novamente me ajeitassem no leito. Pensei em Jesus, naquele amigo de todos, aquele Jesus que, encarnado, andava por entre as pessoas as abençoando e dormi gostoso.

Novamente passei por uma modorra e me pareceu ver minha mãe desencarnada, perto de mim, segurando minha mão. Minhas costas ainda doíam um pouquinho. Ajeitei-me no leito, acho que virei e dormi de novo.

Acordei mesmo e sentei na cama.

- Melhorei! Exclamei, contente.

Respirei gostosamente três vezes seguidas.

- Minha respiração está normal, falei contente.

Espreguicei e fui orar. Por uns trinta minutos, orei.

- Será que desencarnei?

Perguntei a mim mesma. Recordei os últimos acontecimentos e parecia que neles tinha visto minha mãe ao meu lado. Minha mãezinha desencarnou há tempo, mas vinha sempre me ver, nos momentos difíceis ela estava sempre comigo. Mas desconfiei que poderia ter desencarnado, não estava com aparelhos, sem soro, estava confortável na cama. Examinei o quarto. Era simples, limpo, todo clarinho, tinha duas portas e uma janela grande que estavam fechadas. O quarto estava na penumbra. Além da cama, tinha uma mesa e três cadeiras e um armário pequeno. Em cima da mesa, uma jarra d'água e um vaso com flores lindas cor-de-rosa.

- O quarto nada tem de especial, pode bem ser um do hospital da Terra. Mas, quarto particular? Certamente se estivesse encarnada iria para um coletivo.

Falava sozinha e baixinho. Resolvi aguardar para saber. Porque sentia ainda leves dores nas costas, que me deixavam em dúvida. Embora soubesse que a maioria dos que desencarnam sentem as dores que sentiam encarnados. Uns trinta minutos passaram. De repente, uma das portas se abriu e um homem moço ainda, aparentando ter uns quarenta anos, entrou e sorriu para mim.

- Olá, Maria Dalva! Acordou bem disposta. Deseja algo?

Reconheci a voz agradável, era a mesma pessoa que tinha me acalmado anteriormente.

- O senhor é médico? Indaguei.

- Sou sim. Senhora.

- Como estou?

- A senhora me parece ótima. Sente algo?

- Estou com um pouco de dores nas costas, nos rins.

- É só impressão, respondeu ele, calmo.

- Impressão, reflexo, é isso que o senhor quer dizer?

Ele sorriu. Temi perguntar minhas dúvidas. Mas, esforcei-me e indaguei.

- Onde estou? Que hospital é este? Onde fica?

- Afinal, a senhora está querendo saber se desencarnou, não é? - Fez uma pausa dando um suspense e falou: Sim, Maria Dalva, a senhora desencarnou.

Comecei a chorar baixinho. Acho que foi a emoção ou porque no fundo tinha um pouco de cisma. Por mais que se fale na desencarnação, ao chegar a nossa, emocionamo-nos. Enxuguei as lágrimas que corriam pelo meu rosto e me envergonhei. Olhei bem para o médico, que me fitava com muito carinho, e indaguei.

- Como o senhor se chama?

- Vamos fazer um trato? Não lhe chamo mais de senhora e nem você me chama de senhor ou doutor. Vamos ser amigos? Chamo-me Valter. E vamos cuidar dessa dorzinha nas costas que teima em lhe incomodar. Vamos deixar essa impressão de lado? Por muito tempo teve essa dor, mas agora é hora de não tê-la mais.

Pegou nas minhas mãos e fez que me sentasse no leito. Passou com delicadeza suas mãos por algumas vezes no lugar que ainda doía e a dor sumiu.

- Que alívio! Não tenho mais dor!

- E não a terá mais. Não pense nela, deverá pensar daqui para frente só que está muito bem e sadia.

- Estou com sono! Exclamei.

- Ótimo, disse Valter, durma tranqüila. Quando acordar terá muitas surpresas. Muitos amigos querem vê-la.

Ajudou-me a deitar, segurou minha mão de forma muito carinhosa, fechei os olhos e adormeci.

Acordei e vi ao meu lado, para minha alegria, minha mãe, Durvalina e João. Estes dois últimos foram meus protetores, companheiros de trabalhos espirituais. Eram os desencarnados que me ajudavam nos trabalhos no Centro Espírita e que muito me auxiliaram pela minha vida. Abracei-os e chorei. Fiquei muito emocionada. Mamãe enxugou meu rosto.

- Maria Dalva, Dalvinha, não chore! Faz três dias que desencarnou. Não se emocione assim.

Sempre fui curiosa principalmente na parte que se refere à Espiritualidade. Esqueci o choro e comecei a indagar.

- Onde desencarnei? De quê?

- De que Maria Dalva? Falou mamãe. Estava tão doente! Seu coração parou e pronto. Onde? Na ambulância a caminho do hospital.

- Meus filhos sentiram?

- Claro, você é tão querida. Filhos, netos, amigos, vizinhos, todos sentiram muito. Mas a família, tendo conhecimentos Espíritas, esforçou- se para agir como tal.

- E minha casa? Indaguei, lembrando do meu cantinho.

- Sabe que é alugada. As meninas estão desocupando-a, repartem os móveis, devem doar muitos objetos.

As meninas, embora adultas, são assim chamadas por mim e pela avó.

- Amava tudo o que era meu, disse, mas raciocinei e logo completei. Serviram-me todos esses objetos quando encarnada, sou grata por tê-los tido. Que outras pessoas façam bom uso deles.

- É isto ai! Exclamou mamãe. Objetos materiais são para nos servir quando encarnados, não para amá-los em demasia.

- Como se chama este lugar? Indaguei curiosa.

- Colônia Vale da Paz. Está na parte do hospital.

- É bonito aqui? Como na Colônia Nosso Lar que André Luiz narra nos livros?

- Sim, aqui é deverasmente encantador, disse minha mãe.

- Quando sairei daqui? Quando sair, para onde irei?

- Irá morar comigo, disse mamãe, numa casa grande e linda, juntamente com outras pessoas e alguns parentes, tio Lécio, tia Mariquinha e o primo Marcelo. Irá para lã quando estiver boa para isso. Quando Valter lhe der alta.

- E vocês amigos, que farão agora? Indaguei a Durvalina e a João.

- Eu, disse Durvalina, vou trabalhar com uma médium novata que se inicia agora no Espiritismo. Espero ajudá-la e, juntas, trabalhar pelo Bem de muitos.

- Eu, disse João, vou preparar-me para reencarnar. Sinto que é chegado o momento de retornar à carne. Meu neto irá casar, penso ser filho dele.

- Tenho tanto que lhes agradecer.

- Não nos agradeça. Fomos companheiros, o que fizemos foi junto. Aprendemos, servimos e crescemos num trabalho de conjunto, disse Durvalina.

Mas era grata a eles, foram muitos anos que estivemos juntos, mas senti que deveria insistir nos agradecimentos. Durvalina e João despediram- se e mamãe me ajudou a levantar.

- Agora vamos ao banho.

Estranhei, mas estava com vontade de tomar banho. O banheiro era simples e agradável. Tomei um banho gostoso e coloquei outra camisola de tecido grosso de meia manga e que ia até os joelhos, era de cor branca. Depois fui me alimentar. Em cima da mesa estava uma bandeja com uma tigela de caldo, frutas e pães.

- Alimente- se, minha filha.

Estava muito gostoso, após fiquei sentada na cadeira. Era uma convalescente. Recuperava-me da doença do corpo.

- Os acontecimentos aqui não parecem tão diferentes dos da Terra. A não ser pela melhora e pelo alívio ao respirar, parece que estou encarnada mamãe.

- Embora tenha mudado de plano, do físico para o Espiritual, esta mudança não se dá de forma brusca. Tudo é suavizado para não se estranhar. Você, recém-desencarnada, tem ainda o reflexo forte do corpo, por isso se alimenta, usa o banheiro, quer higienizar-se, logo tudo isso será superado.

- Isso acontece com todos?

- Assim se dá com os que fizeram por merecer socorro. Com os que vagam, estes reflexos são mais fortes e por mais tempo.

Por dias fiquei assim, dormia, alimentava-me, recebia visitas e conversava. Da janela via o jardim do hospital, muito bonito. Fui passear por entre seus canteiros, conversei com outros internos. As conversas, nos primeiros tempos, são sobre desencarnação, sobre os parentes que ficaram encarnados e impressões da Colônia. É sempre gostoso conversar. Às vezes, a dorzinha dos rins aparecia e me esforçava para repeli-la. Isto ocorria quando lembrava dos filhos, da vida encarnada. Quinze dias passaram e Valter me deu alta.

A Colônia Vale da Paz é grande e encantadora. Mamãe me levou para casa. Fomos de aeróbus. A condução parou na frente do hospital: Entramos, que sensação maravilhosa é estar dentro de um aeróbus. De maneira suave desliza e logo chegamos. Paramos numa esquina perto do meu futuro lar. A casa foi outra surpresa. Bonita e grande, cercada de plantas e um gracioso jardim. No momento em que cheguei, só dois moradores, tio Lécio e tia Mariquinha, estavam presentes. Receberam- me com alegria, me dando as boas-vindas. À noite conheci mais outros dois moradores, um casal muito simpático e revi meu primo Marcelo.

A casa era um sonho. Lindos quadros nas paredes e vasos de flores. Tem uma área com bancos e cadeiras na frente da casa, onde os moradores se reúnem para conversar nos momentos de folga. Tem duas salas grandes mobiliadas com simplicidade e encanto. Depois um corredor e os quartos. Nada tem de supérfluo, tudo tem utilidade. Dias depois vi que a casa era limpa pela ação da mente dos moradores. Assim, não se tem trabalho doméstico. Encantei-me com isso. Eu fui dona de casa por anos e sempre com os mesmos serviços, ali bastava querer e tudo estava limpo e a gosto. É maravilhoso!

Ao entrar no quarto que me foi reservado, uma surpresa, na parede uma foto dos meus filhos e netos.

- Que lindo! Exclamei.

- Foi uma surpresa que fiz a você, disse mamãe.

No quarto, a cama, uma mesinha com cadeiras, um armário. Tinha outra porta que dava para o banheiro.

- Como se alimenta, disse minha mãe, tem que usar o banheiro. As necessidades da vida encarnada nos acompanham e precisamos aprender para ficar sem elas, logo saberá viver como uma desencarnada.

Sabia que era verdade, tinha sono e dormia, fome e comia, sentia necessidade de me banhar, pentear meus cabelos, escovar meus dentes.

- Aqui, com a permanência e convivência, vamos deixando essas necessidades, mas temos na escola cursos em que se aprende bem mais rápido.

- Quero aprender, mamãe me leva à escola?

- Sim, logo que for possível.

Viver ali estava sendo totalmente agradável. Matriculei-me nos cursos de volitação e nutrição e tudo ia muito bem. Recebi muitas visitas, eram de parentes, claro que eram dos que estavam bem, porque infelizmente havia os que estavam vagando ou até mesmo no Umbral. Visitas muito agradáveis de amigos que desencarnaram antes de mim e de pessoas gratas. As que tive a felicidade de beneficiar e que agora vinham com agrados e mimos me visitar, dando as boas-vindas. Muitas dessas pessoas que vieram me ver eu desconhecia e às vezes nem lembrava. Comentando sobre isso, Murilo, um dos moradores da casa, disse:

- É por isso mesmo que você está entre nós. Lembra de todos os benefícios recebidos e esqueceu dos que beneficiou.

Também fui visitar outros moradores em outras casas. Fui rever minha sogra, que encarnada foi muito boa, caridosa e prestativa. Morava ela a alguns quarteirões de casa. As casas aqui diferem pouco umas das outras. Minha sogra morava numa casa grande que tinha doze moradores. Foi uma alegria abraçá-la.

Peguei livros na Biblioteca para ler, eram livros Espíritas que só tem aqui ao Plano Espiritual, adorei lê-los. São lindos! Três meses se passaram e mamãe me acompanhou numa visita aos meus filhos. Foi uma emoção vê-los, emocionei-me e chorei. Mas, graças a Deus, estavam todos bem, eles sentiam saudades de mim. Pedi a mamãe:

- Vamos dar uma passadinha no Centro Espírita Amor e Luz? Queria tanto vê-lo com os olhos de desencarnada.

Freqüentei esse Centro muitos anos, ali aprendi e participei de seus trabalhos no Bem. Mamãe concordou e fomos. Que gostoso, os fluidos eram agradáveis e fomos recebidos pelo mentor espiritual da casa.

- Maria Dalva! Que alegria em vê-la bem!

O local onde está situado o Centro Espírita é um prédio grande e bonito. Mas, confirmando o que sabia, na parte astral há um grande Posto de Socorro. Simples, tem só o essencial, mas é lindo. Tem enfermarias espaçosas onde muitos espíritos estão internados. Ali permanecem quase todos temporariamente. Ficam ali para receber uma orientação através de uma incorporação nos dias de trabalhos de desobsessões, ou até ficarem melhor, depois são transferidos para outros locais maiores. São muitos os trabalhadores desencarnados que servem a todo momento.

Todos os trabalhadores daquele Centro Espírita me conheciam e os desencarnados que estavam ali no momento vieram me cumprimentar com carinho. Recebia as demonstrações de afeto e agradecia.

- Obrigada, agradeço-lhes por tudo.

Todos ali são felizes e o ambiente é muito gostoso, senti que meu amor pelo Centro Espírita continuava forte, exclamei com convicção:

- Quando for possível quero vir trabalhar aqui! Visitei todo o Posto e ouvi as explicações do orientador da casa.

- Recebemos tudo que necessitamos, como vestimentas, alimentos e remédios da Colônia Vale da Paz da qual somos filiados. Aqui nada se produz. O transporte é feito de aeróbus.

De volta à Colônia, pensei que já era tempo de servir. Mamãe me disse que deveria ir ao Departamento do Trabalho pedir uma ocupação.

O Departamento do Trabalho é um grande e muito movimentado. Às vezes, para não ter filas é marcado um horário para consulta. Isto se dá em Colônias maiores. Foi o que fiz logo de manhãzinha. Fui e marquei um horário para a tarde. Uma moça me atendeu, sorrindo. Estava ela com uma cópia de minha ficha. Esta ficha tem dados pessoais só da última encarnação e da desencarnação. Por meia hora conversamos sobre o que gostaria de fazer, se estava gostando da Colônia, etc. Acabei por dizer:

- Fui costureira durante muitos anos, gostaria de continuar sendo. Quero confeccionar roupas.

- Maria Dalva, a senhora tem muitos conhecimentos. Foi estudiosa das verdades eternas. Foi Espírita convicta. Encarnada, deu passes, cuidou de doentes espirituais e aqui poderá continuar esse trabalho, sendo útil na área de auxílio ao próximo. Mas, procuramos sempre atender nossos abrigados. Já que faz tanta questão, servirá nas nossas oficinas por três meses. Findo este trabalho a senhora deverá retomar aqui.

Já no outro dia, mamãe me acompanhou até a fábrica, pelo caminho indaguei-a:

- Mamãe, a roupa que uso é confeccionada aqui?

Não trajava nenhuma que fora parecida com as que tive encarnada. Não tive nenhuma que me fora especial. Quando tive alta do hospital, mamãe me deu uma saia cinza clara e uma blusa branca. Uma roupa simples e prática. No começo mamãe plasmava a limpeza dela para mim. Depois aprendi, eu mesmo limpava minha roupa e corpo. Assim, a roupa aqui fica sempre limpa e nova. Mas, as roupas dos internos do hospital são lavadas na grande lavanderia em máquinas gigantes de onde saem enxutas e passadas. Há trabalhadores para fazer este serviço. Mamãe respondeu minha pergunta:

- Sim, foi confeccionada aqui.

- Mamãe, não seria mais fácil se em vez de confeccionar estas roupas na fábrica, fossem plasmadas pelos orientadores da casa, da Colônia?

- Também pensei nisso quando vim para cá. Mas filha, aqui necessita ter fonte de ocupações. Servir é útil ao progresso do espírito. Se tudo fosse plasmado muitas fontes de trabalho acabariam. Aqui não há espaço para os ociosos. Temos que aprender a trabalhar com alegria. A parte de ocupação é uma necessidade para que o espírito não se torne ocioso. No estágio em que estamos, necessitamos exercitar nossa capacidade criativa como se fôssemos desenvolvendo um talento. Lembra- se, filha, da parábola dos Talentos? Em que Jesus disse: “servo bom, foste fiel nas coisas pequenas dar-te-ei a intendência das grandes”. Nós ainda somos pequenos, precisamos nos ocupar com coisas que nos dizem respeito. Aqui mesmo na Colônia nossos instrutores não necessitam usar roupas confeccionadas ou qualquer outra coisa confeccionada. Mas, como não sabemos ainda das grandes coisas que o Pai nos reserva, então, vamos cuidar das pequenas, para que, pouco a pouco, possamos ir nos habilitando para realizar as grandes. Ociosos, a mente fica sem uso e aqui na Colônia, tanto quanto na Terra, precisamos burilar nossos pensamentos e esse trabalho se realiza ainda através da solução das nossas necessidades.

Mamãe trabalhava no hospital quatorze horas por dia. Desde que eu desencarnara ela passava seu tempo livre comigo.

Fomos à fábrica de aeróbus. A grande fábrica, como é conhecida, é realmente enorme. Tem inúmeros galpões e é dividida em alas. O aeróbus parou bem na frente da fábrica, desci encantada com o que vi. Ela é toda pintada por fora de bege com enfeites em relevo branco. Tem grandes vitrais e muitos portões. Dá a impressão de ser uma bem cuidada fábrica da Terra, mas ela é bem mais bonita, o prédio é como se fosse acabado de construir. Entramos pelo portão principal e recebemos um crachá. Uma coordenadora veio nos receber.

- Então, Maria Dalva, servirá aqui por três meses! Seja bem-vinda! Acompanhá-la-ei para que visite tudo.

Entramos num carrinho aberto, mamãe, eu e um grupo que iria visitar a fábrica. Estas visitas são freqüentes, a maioria são grupos de estudo que vêm conhecer este local de trabalho. Nossa cicerone foi nos explicando.

- Aqui é a parte da coordenadoria, onde estão as salas dos responsáveis pela fábrica.

Normalmente estas fábricas, que existem em quase todas as Colônias, existem mesmo para ser fonte de trabalho a muitos moradores do Plano Espiritual. São simples, enfeitam-nas plantas e alguns quadros nas paredes de paisagens, como também bonitas frases tiradas da Bíblia, principalmente dos Salmos e dos Evangelhos, escritas com letras simples mas bonitas que incentivam os trabalhadores. O tamanho destas fábricas depende do tamanho da Colônia.

Olhava tudo encantada. Passamos para outra ala. Nesta fábrica as partes são chamadas de alas, mas isso difere de uma região para outra.

- Aqui é onde se faz o fio, disse nossa meiga cicerone.

O fio, que é transformado em tecido, é feito de plantas. Elas são cultivadas só para este fim no bosque da Colônia. Aqui são feitos só tecidos em tons claros. Depois vimos a parte da confecção. Após visitarmos tudo, fui levada pela coordenadora à seção de confecção onde trabalharia. Mamãe foi embora, mas não me senti sozinha, todos eram amigos e gentis. Fui apresentada à coordenadora desta ala, fiquei maravilhada ao ver com que perfeição tudo é feito. Estava curiosa para saber como tudo funcionava ali. Perguntei à coordenadora:

- Não acontecem acidentes aqui?

- Não, tudo funciona em perfeita segurança e ordem. Aqui se aprende a educar a atenção. Mas, se porventura houver um corte que seja, é imediatamente atendido na enfermaria da fábrica e plasmada a cura na hora[5].

Em trinta minutos aprendi o que ia fazer. Cortaria peças do vestuário, calças, camisas, pijamas, camisolas e uniformes.

São muitas peças feitas por dia. A grande fábrica serve a Colônia e os Postos de Socorro a ela vinculados.

- Tinha uma roupa só e sabia que ela ia ficar sempre novinha. Interessei-me em saber o que aconteceria com ela quando eu voltasse a encarnar. Mamãe me explicou:

- Parada de ser alimentada por sua mente, ao deixá-la ao reencarnar no Departamento das Reencarnações, a roupa se desfaz.

- Some?

- Sim.

Trabalhava oito horas por dia e aprendi rapidinho a fazer todas as espécies de roupas no Plano Espiritual. Também aprendi a me nutrir pelos fluidos vitais da natureza. Assim parei de me alimentar e dormir. Estava me sentindo ótima e fui conhecer toda a Colônia. O que mais gostei foi dos vídeos. Vi encantada tudo sobre o codificador da Doutrina Espírita, Allan Kardec. Achei lindo as praças, jardins, prédios e a escola. Logo aprendi tudo o que é possível no Plano Espiritual. Aprendi rápido porque muito já sabia, li e estudei muito encarnada.

Sentia- me ótima como desencarnada. Só tinha que agradecer, tudo me era maravilhoso. Muitas vezes pensei que recebera muito. Mas, sobre isto, escutei.

- É que você merece!

Grata, profundamente grata, a vida no Mundo dos Espíritos me encantava de tal modo que sempre exclamava:

- Que bom estar desencarnada!

 

Recordando o Passado

Três meses se passaram nos quais fiz um pouco de tudo na grande fábrica. Gostei muito do trabalho ali, aprendi muito e fiz boas amizades. De volta ao Departamento do Trabalho foi me dado outro trabalho. Fui trabalhar no hospital dez horas por dia. Servia como enfermeira, fiz o que já sabia, escutava os enfermos, aconselhava, dava passes, ajudava-os a se alimentarem. Também gostei muito. Sempre, quando me era dada permissão, ia a Terra visitar meus filhos e amigos. Sempre acalentando o sonho de trabalhar no Centro Espírita.

Uma coisa que sempre me intrigava desde que me tornei Espírita era meu passado, minhas vivências anteriores. Encarnada, não consegui saber nada. Desencarnada, logo que saí do hospital, quis saber. Mas mamãe me aconselhou:

- Calma, Maria Dalva! O que modificaria em você saber quem foi em existências anteriores? Não lhe basta a vivência desta?

Para mim não bastava. Queria saber, logo que possível fui ao Departamento das Reencarnações. O prédio é lindo. Como todos, é cercado de árvores, mas nesta área as flores são vermelhas. O prédio é de cor verde-claro com beirados verdes mais escuro. Logo na entrada tem um quadro grande que retrata Jesus ensinando na barca. Está nosso Mestre com os braços erguidos vestindo uma túnica branca. O quadro é lindíssimo! Parei diante do quadro e fiquei a contemplá-lo extasiada. O prédio é enorme e o vai-e-vem de pessoas é grande no seu horário de atendimento. Ali se tem como saber das pessoas, onde estão e como estão. E muitos ali vão em busca de informações. Ali se faz os pedidos para as reencarnações, como também se resolvem os detalhes para esta volta à carne. São muitos os que trabalham ali. Depois desta sala de entrada, fui ter em outra sala, na de recepção. Nesta, tabuletas escritas indicam onde estão os assuntos desejados, a serem consultados. A recepção é grande. Procurei a minha, onde li no cartaz “Regressão”, e encaminhei-me para lá. Enquanto aguardava na fila, observei o local. Enfeitava a parede principal um grande relógio. Os horários nas Colônias e Postos de Socorro são os mesmos da cidade material a que são vinculados. Dia aqui, dia aí, noite aí é noite aqui, e as horas são as mesmas. Há nesta sala alguns bancos confortáveis nos quais estavam sentadas algumas pessoas. Por toda sala, vasos com flores alegrando o local. O prédio é de três andares.

Conheci aqui na Colônia uma senhora que é minha vizinha. Mora na casa ao lado da minha e trabalha neste Departamento. Ela gosta muito do seu trabalho, é fascinada pelo assunto. Ela disse que no Departamento tem muitas salas e que o assunto aqui tratado é muito científico.

Ao ser atendida expus os meus motivos.

- Desejo fazer uma regressão para recordar minhas outras existências encarnada.

- Preencha os dados, por favor, disse o senhor que me atendeu.

Deu-me uma ficha e caneta. Logo a devolvi preenchida. Era sobre dados pessoais, como nome, datas, onde mora, trabalho, etc. Então, foi marcada uma audiência para dois dias depois.

Esperei ansiosa. No horário marcado, lá estava toda encabulada, mas curiosa. O senhor da portaria me indicou o local onde tinha que ir. Seria atendida no segundo andar, preferi subir pelas escadas, mas em todos os prédios há elevadores, parecidos com os que têm os encarnados[6]. Chegando ao segundo andar, conferi o número da porta e entrei. A sala era agradável, bonita, com muitas poltronas confortáveis. Sentei e aguardei. Logo uma moça me pediu para entrar na sala ao lado. Esta sala parecia mais com um consultório. A moça apresentou-se e sentamos para conversar. Ela era uma orientadora da casa.

- Então, Maria Dalva, a senhora quer saber de suas existências anteriores. Tem para isso algum motivo especial?

Fiquei sem graça mas respondi com sinceridade.

- Não, não tenho. É por curiosidade mesmo. Mas também é para saber se reparei meus erros nesta última encarnação.

- Maria Dalva, recordar o passado é assunto sério que não deve ser feito só por curiosidade. Tudo o que vivemos, fazemos, fica registrado na nossa memória e nos arquivos. A pessoa apta, madura para isso, recorda sozinha, seja encarnada ou desencarnada. Os que recordam imaturos, não preparados, correm o risco de se desequilibrar. Principalmente os que erraram muito. Sente-se madura para isso?

- Bem, é que pensei que ao desencarnar ia recordar tudo sozinha e rápido.

- Sozinhos só recordam os que estão maduros, aptos para isso, como já disse. Quanto ao que pensava, que desencarnada iria recordar logo, não é bem assim. Embora aqui, essa recordação é bem mais fácil. Aqui neste departamento temos profissionais competentes que ajudam a fazer esta regressão. Como também já existem, para os encarnados, esses profissionais. Cada caso que nos é pedido é estudado. Só pode ser ajudada, pelo Departamento, a recordar a pessoa cujas lembranças não atrapalharem na vida atual.

- Então, nem todos os pedidos são atendidos?

- Não, quando vemos que o passado pode vir a atrapalhar o presente, não fazemos. Claro que esse indivíduo que não foi atendido poderá recordar no futuro. Pode não ser bom a ele no presente, mas não quer dizer que não possa fazê-lo mais tarde.

- Qualquer pessoa pode fazer essa regressão em outra?

- Não, absolutamente. Necessita-se saber para fazer. Aqui conosco trabalham médicos especialistas, estudiosos especializados. Mas, sabemos que algumas pessoas têm feito outras recordarem. Muitos dos espíritos que vagam no Umbral, vítimas de vinganças, lembram porque seus carrascos os fazem recordar suas maldades, para os fazerem sofrer mais ainda. Como também pode ser ao contrário, pessoas boas fazem outros recordar as encarnações que viveram juntos para ajudá-los. Mas, nestes casos, são recordados pedaços somente de suas vivências.

- Estas recordações podem ocorrer com encarnados, não podem?

- Sim, temos visto isso em casos de obsessões, prejudicando ainda mais o obsediado. Como também há espíritos amigos para incentivar no Bem seus tutelados.

- Você disse que além de ter tudo registrado na memória se tem também nos arquivos. Que arquivos?

- Todos nós temos um registro ligado a nossa própria mente que registra simultaneamente em nós e na nossa ficha de arquivo. Mas são registrados só os acontecimentos importantes.

- Deve ser enorme esse arquivo, disse admirada.

- Temos dois arquivos. Há um numa Colônia própria na Esfera Superior, no Departamento Geral, onde estão as fichas de todos os habitantes da Terra. E outro na Colônia onde o espírito está filiado. Uma pessoa que está encarnada ou desencarnada nos domínios da Colônia Vale da Paz tem seu arquivo guardado conosco. Se está desencarnado e querendo reencarnar em outro local seu arquivo vai para os domínios de outra Colônia.

- E as pessoas que desencarnam longe do local de sua origem. Que acontece com suas fichas?

- Isso vai depender das circunstâncias, se esta pessoa estava apenas de passagem em outro local e desencarnou, sua ficha continua na Colônia anterior. Se essa pessoa morava em local diferente da sua ficha, esta muda-se também. Muda-se encarnado, leva a mudança, os documentos e a ficha também mudam de Colônia.

- E se esta mudança é feita após o desencarne? Porque conheci uma moça que veio da Venezuela para o Brasil, especialmente para a Colônia Vale da Paz, e pretende ficar aqui.

- Por enquanto ficará no lugar de origem, se resolver reencarnar nos nossos domínios sua ficha virá para nós.

- E quem muda muito quando encarnado? Indaguei.

- Neste caso sua ficha fica no arquivo de origem. Quando esta pessoa desencarna ela resolverá onde ficar e sua ficha ficará junto.

- E desencarnados que trabalham por todo o Brasil não tendo Colônia certa para ficar? Quis saber, curiosa.

- Suas fichas ficam no arquivo da Colônia de origem, respondeu sempre bondosa a orientadora.

- Com tantos arquivos não há confusão?

- Não, porque, como já disse, a ficha está ligada à memória do indivíduo.

- Mesmo ele estando no Umbral e fazendo o mal?

- Sim.

- Se o espírito está no Umbral ou vagando onde fica a sua ficha?

- Cada pedaço do Umbral está vinculado a uma Colônia. A ficha do indivíduo fica na Colônia do espaço Espiritual em que ele está. Se ele muda de lugar, de região, sua ficha fica na Colônia de origem.

- Isto quer dizer que temos sempre uma Colônia de origem?

- Mais ou menos. Nas nossas múltiplas encarnações mudamos muito de local e pais. Origem é mais o modo de dizer em que Colônia estamos no momento filiados.

Uma pausa se fez. Vendo que as perguntas cessaram, a orientadora completou:

- Maria Dalva, vamos estudar seu pedido. Depois de amanhã a senhora vem aqui para saber a resposta.

Despedimo-nos. Cada vez mais queria saber do meu passado. No dia marcado fui em busca da resposta e contente vi que era afirmativa. Para esse evento necessita-se de horas. Então marcamos um horário que dava certo para ambos os lados.

Aguardei ansiosa.

Como tudo que se espera, chega. E lá fui eu para o Departamento das Reencarnações. Chegando lá fui direto à sala indicada. Conheci Hélio e Lúcia que me auxiliariam. Este senhor me disse:

- Maria Dalva, se quiser parar em qualquer momento é só avisar. Mas, antes quero indagá-la. É isto que realmente quer?

- Sim, é isto que quero, respondi convicta.

A sala ampla e confortável estava na penumbra. Fui convidada a deitar num divã. Na frente uma tela de cinqüenta polegadas, fina e transparente. Essa tela levemente faz recordar a televisão dos encarnados. Essa tela foi ligada a minha memória. É algo extraordinário e maravilhoso. Hélio foi narrando no começo e eu ia vendo as cenas na tela. Ele lia a minha ficha. Curiosa, quis saber em que língua está escrita essa ficha, ele respondeu:

- Em esperanto.

Vi uma encarnação que vivi na África, fui negra. Nas reencarnações mais longínquas, só vi o essencial. Reencarnei na Europa, na Alemanha. Fui pobre, rica, feia e bonita. Interessante que essas não me tocaram nada em especial. Até que nasci na Espanha, fui médium e feiticeira, fiz o mal.

Hélio parou de narrar. Vi na tela as cenas. Para minha experiência, para aprender, fechei os olhos e continuei a ver as cenas. Foi como se começasse a desenrolar um novelo. As lembranças vieram, foi como revivê-las novamente. Abri os olhos e procurei ficar tranqüila e recordar tudo como sempre quis.

Nessa encarnação fui feia, magra e invejosa. Meu alvo de inveja eram principalmente meus irmãos formosos e sadios, em especial uma irmã muito bonita. Desprezava a todos e sempre estava lhes fazendo alguma maldade. Meu bisavô era um feiticeiro que morava numa casa na floresta perto da cidade em que residíamos. Era parente de minha mãe, meu pai nos proibiu de ter contato com ele. Tinha vinte e seis anos, solteira e muito rabugenta, sabia que era detestada e odiava a todos, quando resolvi sair de casa e ir à procura desse meu bisavô. Andei por dois dias na floresta, temi estar perdida, quando achei sua casa foi um alívio. Contei a ele quem era e senti muito medo de não ser aceita por ele. Meu bisavô nada disse, mas me deu de beber e alimento. Esperou que saciasse meu apetite. Aí aproximou- se. Ele era feio, horroroso e eu parecia com ele.

“Então você quer ficar comigo? Quer aprender para ser uma feiticeira?”

“Sim, gostaria de aprender.”

“Não é fácil, disse ele pausadamente, terá que estudar, fazer sacrifícios.”

“Faço tudo.”

Ele era velho, mas forte. Um tanto arcado, andava segurando um bastão. Não era de muito falar, me acomodou num canto onde passei a noite. Não foram fáceis as primeiras noites que lá passei, via espíritos e esses riam de mim. Contei essas visões ao meu bisavô que sorria, divertindo-se. Depois de alguns dias ali, comecei a pôr em ordem a casa e arrumei meu quarto. Meu bisavô foi à cidade e me deixou sozinha, tive medo, mas tratei de me controlar. Ele comprou muitos objetos bonitos para mim.

Quando estava bem instalada, ele passou a me ensinar. Deu-me para ler livros que lia e ele me explicava o que não entendia, logo passei a ajudá-lo nos seus trabalhos.

Meu bisavô tinha muitos clientes. Eram pessoas de posses que encomendavam trabalhos para seus desafetos, para ter a vida facilitada, filtros para amores, isto é, poções que faziam as pessoas sentir desejo pelo seu possuidor. Ele cobrava bem e fui aprendendo fácil. Um dia ele me disse:

“Menina, era assim que ele me chamava, você foi um presente para a minha solidão. Gosto de você. Pode pegar na caixa de jóias todas as que quiser.”

“Obrigada.”

E perguntei algo que há tempo queria saber.

“Esses trabalhos, esses feitiços funcionam? Dão resultado?”

“A Terra, minha querida, pelos seus fluidos pesados, é propícia a esses trabalhos. Resultado dá mesmo para os que vibram com o nosso trabalho.”

“O senhor quer dizer que para uma pessoa boa o trabalho não dá resultado?”

“Com os bons nada posso. Mas com os que são bons realmente. Não precisa ser mau, basta ser indiferente para que dê resultado.”

“O senhor pode matar uma pessoa com seu feitiço?”

“Não, meu feitiço não chega a tanto, não faço nenhum mal maior.”

“Forçar alguém a querer outro, não é um mal?”

Indaguei e arrependi-me, ele me olhou bem e respondeu.

“Amar não se pode obrigar. Podemos fazer desejar, até, em certos casos, despertar a paixão. Mesmo assim, filha, todos se podem safar, temos o nosso livre-arbítrio. Depois há os que fazem o mal, há os que desmancham.”

Isto era verdade. Às vezes, ele mesmo fazia um trabalho e a pedido, claro que pago, do que recebera o feitiço, ele mesmo desmanchava.

Entendi que na Terra sempre foi assim com esses trabalhos para o mal, os feitiços, macumbas. É feito, quanto a pegar ou não, depende da vibração boa ou má da pessoa. E se o indivíduo indiferente entra na vibração dos omissos ele pode ser atingido. Entretanto nem sempre os resultados são assim desastrosos. Porque muitas vezes levam as pessoas atingidas a procurar ajuda e encontram o aprendizado que se faz necessário ao seu espírito eterno.

Lidava muito com ervas. Fazia remédios que eram vendidos. Fazia também um remédio abortivo que vendi muito. Meu pai descobriu que eu estava ali e foi me buscar. Não quis ir, estava adorando viver ali. Ele então me renegou, disse que não era mais sua filha. Quando morava com eles, gostava de infernar a vida deles, resolvi infernar ainda mais. Os primeiros trabalhos de feitiços que fiz foram para meus familiares.

Mas logo esqueci deles e passei a me dedicar cada vez mais ao feitiço. Toda a primeira noite de lua cheia, íamos ao Sabá, num vale perto de um velho castelo, uma festa que durava a noite inteira. Tinha comida e muita bebida. Os espíritos incorporavam e a festa era uma bacanal. O chefe encarnado ninguém sabia quem era, estava sempre encapuzado. Nessas festas, via e incorporava espíritos. Também tinha um chefe desencarnado que organizava todos os trabalhos. Muitas vezes fiquei grávida e abortei todas as vezes.

Anos se passaram. A Inquisição estava matando muita gente e a temíamos. Estávamos, meu bisavô e eu, preparando-nos para mudar de casa, íamos para uma gruta não longe dali quando nossa casa foi invadida por soldados. Fomos amarrados e jogados numa carroça. Tudo o que era de valor foi levado por eles e depois foi posto fogo na casa. Temi bastante, sabia que muitos inocentes morriam nas fogueiras da Inquisição, ainda mais nós dois que éramos culpados.

Ficamos dois dias numa cela imunda com outros prisioneiros, só a água. Fomos levados para o interrogatório. Acusaram-nos de muitas coisas horrorosas. Meu bisavô concordou com tudo e não sofreu tortura. Mas eu neguei as muitas acusações absurdas.

“Você come crianças? Mata-as e come? Perguntava com fúria meu interrogador.”

“Não...não...”

Queimaram-me com ferro quente, extraíram dentes e unhas. Cansada, menti.

“Sim, comia crianças.”

“Onde as pegava?”

“Por ai, na cidade.”

“Na cidade não tem desaparecimentos de crianças. Onde as pegava?”

Novas torturas.

Acho que cansaram de me torturar e pararam, nos condenaram, meu bisavô e eu, à morte no outro dia na fogueira. Como na manhã do outro dia estava chovendo muito, ficou adiado para o dia seguinte. Estava muito machucada e tinha dores horríveis. Na cela em que estávamos tinha mais pessoas, todas foram torturadas, menos meu bisavô. Ali conosco na cela estavam dois inocentes. A moça, novinha, de dezessete anos, muito bonita, estava um trapo. Tive pena dela. Procurei ficar perto do meu bisavô. Comentei com ele.

 “Tudo de mal que fizemos não chega a um quarto do que eles nos fizeram. Fizemos mas não fomos hipócritas, fazíamos o mal em nome do diabo, agora eles o fazem em nome de Deus, de Jesus.”

“Eles plantam, mas colherão. A cada um é dado o que merece.”

“O senhor não me disse isso antes, que colhemos conforme plantamos. Isto que nos acontece é colheita?”

“Sim. Não se faz o mal sem ficar impune.”

“Mesmo sabendo disso, continuou a fazer”, disse.

“Iludia-me com a colheita, depois a vida de mago me fascinava. Mas, eles podem matar o corpo, não a alma”, respondeu calmo.

“Quer dizer que o senhor faria tudo de novo?”

“Penso que sim. Principalmente porque planejo me vingar. Morto o corpo, serei um espírito e esses inquisidores irão me pagar.”

“O que acontecerá conosco? O que será de nós depois que nosso corpo morrer?”

“Não sei ao certo, mas confio nos meus amigos. O inferno para onde esses inquisidores dizem que vamos, não é real. Mas existe um lugar para onde vão os maus e deveremos ir para lá. Foi lá que estivemos ligados durante nossa vida encarnada.”

“E estes que são inocentes?” Indaguei.

“Devem ser inocentes nesta encarnação, mas devem ter errado no passado, em outras vidas, para ter esta colheita como morte. Quanto ao que acontecerá com eles, isso dependerá de eles perdoarem ou não. Se perdoarem irão com o pessoal do Bem, do Cordeiro, senão, ficarão com os maus.”

“Tenho ódio deles!” Exclamei furiosa.

O dia chegou e fomos postos numa carroça e levados para o local do sacrifício, um pátio no centro da cidade. Estava fraca e tinha muitas dores pelos muitos machucados. Fomos colocados em postes e o fogo foi aceso. Meu bisavô desencarnou logo. Eu demorei. O fogo começou nos meus pés. Gritei alucinadamente, depois pegou nas minhas vestes, no meu corpo, aí desencarnei.

Após estas lembranças, Hélio desligou a tela e me indagou.

- Você está bem? Quer continuar?

Um pouco confusa, não respondi de imediato. Sentia-me gelada. Senti até o cheiro de carne queimada. Lembrei que o inquisidor que me interrogou foi meu pai nesta última encarnação. Reconciliara-me com ele. Foi bom pai, teve uma vida difícil, ajudou muitas pessoas e desencarnou com a doença do fogo selvagem, sofrendo muito. Quando desencarnei, perguntei a minha mãe a seu respeito, se ele estava reencarnado. Quem me acusou para a Igreja foi minha irmã, cansada de minhas maldades. Reencontrei com ela nesta, foi minha professora. Ela não gostava de mim e eu tive que me esforçar para aceitá-la.

- Sim, por favor, respondi, quero continuar.

E as lembranças continuaram.

Desencarnei e fui ajudada. Uma equipe de bons espíritos auxiliavam sempre os que desencarnavam pela Inquisição. Recebi os primeiros socorros. Fui levada para um Posto de Socorro. Mas, revoltada, não queria perdoar nem pedir perdão. Sai do abrigo e fui vagar pelo Umbral. Por anos vaguei sem rumo. Não quis ficar com meu bisavô, ele se ajuntou com os espíritos que trabalhavam conosco quando estávamos encarnados. Foram vingar-se dos inquisidores. Achando que eles não puderam nos ajudar quando fomos presos, não quis saber deles e vaguei sozinha.

Um dia, um socorrista veio conversar comigo, gostei dele e do que ele me disse. Por muitas vezes ia até onde estava para conversar. Resolvi perdoar e pedi perdão com sinceridade e fui levada a um posto de Socorro. Nesse abrigo bendito gostei de escutar o Evangelho, de orar, e acabei por gostar muito.

Sabendo que era necessário reencarnar, pedi para vir para o Brasil. Foi minha penúltima reencarnação. Fui mulata, filha de pai escravo e mãe morena e livre. Minha mãe não me quis e um casal de portugueses me adotou, fui criada com mais três meninos. Todos adotados. Minha infância foi sem problemas. Aprendi a ler e a escrever e fui trabalhar numa fábrica logo que fiquei mocinha.

Assim que vi o chefe da seção em que trabalhava, apaixonei- me por ele. Ele era casado e tinha filhos, mas acabou se interessando por mim. Tornamo-nos amantes. Ele já fora meu amor em outras vidas. Tudo fiz para que ele largasse a família. Ele acabou cedendo aos meus rogos e largou a esposa e os filhos. Sempre quis ter filhos, nunca engravidei. Não fomos felizes juntos, logo passamos a brigar muito. Continuei no meu trabalho. Um dia ele me largou e voltou para a família. Desesperei-me. Fui num local onde faziam trabalhos para o mal e paguei caro para que fizessem um para que ele voltasse para mim. Não deu certo. Ele nem me olhava. Dizia que queria a família. Vivia amargurada.

Tinha um colega de trabalho, um moço que há tempo me queria. Um dia, fiquei fazendo horas extras, quando sai da fábrica era noite. Não morava longe da fábrica e ia para casa a pé. Só que meu caminho era sem movimento. Esse moço me seguiu e, num lugar mais deserto, tentou me agarrar. Brigamos, ele furioso pegou uma faca, lutamos e eu caí em cima da arma e desencarnei. Reconheci no amante meu esposo nesta encarnação e no meu agressor meu filho que tanto amo.

Desencarnei sentindo muito ter de deixar o corpo morto, vaguei por anos, até que busquei um socorro num Centro Espírita. Ali fui bondosamente orientada e socorrida.

Desta vez pude me preparar para reencarnar. Queria reparar meus erros. Pedi para ter de novo mediunidade. Muito trabalhei, estudei e voltei a reencarnar. Entendi que fui médium para reparar erros de quando fui feiticeira. Quero deixar claro que isto aconteceu comigo. Cada caso é um caso. Nem todos que são médiuns o são por este motivo. A mediunidade é para muitos oportunidade de crescer espiritualmente e de aprender.

As lembranças pararam. Estava calma.

- Tudo bem, Maria Dalva? Indagou Hélio.

- Tudo. Estou bem. Quero lhes agradecer.

Saí do prédio e sentei num banco no jardim na frente do Departamento das Reencarnações e pensei muito em tudo. A orientadora que me atendeu tinha razão. O passado nosso está nos arquivos, tudo o que fazemos fica registrado. Porém, não devemos ter pressa de lembrar o passado, mesmo estando desencarnados. Muitos acontecimentos podem nos chocar. Mas, ainda bem que reparei meus erros. E acabei com minha curiosidade. Agora sabia do passado. Senti-me outra, muito mais grata. Profundamente agradecida à bondade do Pai pelas oportunidades das reencarnações, nas quais podemos sempre acertar nossos erros.

 

O Porquê da Boa Colheita

Tudo decorria normalmente e sentia-me feliz no Mundo Espiritual. Além de trabalhar, estudei também. Ainda tinha muito o que aprender. Numa ocasião em que fazia um curso de reconhecimento do Plano Espiritual, fui convidada a narrar para meus colegas minha desencarnação. Narrei-a e terminei dizendo:

- A desencarnação para mim foi uma continuação feliz de vida. Sinto-me muito bem e sou muito grata ao Pai por tudo o que me foi concedido.

- Maria Dalva, disse Eugenia, uma colega de classe, que desencarnação feliz! Por que a sua foi assim? Teve motivos?

- É a primeira vez que ouço alguém dizer que teve uma desencarnação tão feliz assim, comentou César. E já estou há anos por aqui. Certamente fez por merecer.

- Eu também nunca ouvi falar de uma desencarnação deste modo, disse Márcia. Conte-nos o porquê. Eu sofri muito, era apegada à matéria e temi a desencarnação. Você veio para o Piano Espiritual com conhecimentos?

- Sim, respondi, encarnada fui Espírita.

- Ah! Fez a maioria da classe.

- Está aí uma boa explicação. Mas penso que foi Espírita realmente e não só de rótulo. Tenho razão, Maria Dalva? Indagou Nei.

- Realmente, fui Espírita estudiosa e tentei seguir os ensinamentos de Jesus e dos Evangelhos que tão bem o Espiritismo nos dá esclarecimentos, respondi.

Todos da classe me olhavam e sorri envergonhada. Nossa professora, Dona Marly, disse:

- Maria Dalva quando encarnada teve conhecimentos verdadeiros sobre o que é a vida além-túmulo e este fato se torna muito importante a todos nós sujeitos à desencarnação. Nada melhor que desencarnar conhecendo o que se vai passar após a morte do corpo físico. Você foi esperta tendo estes conhecimentos, isto lhe facilitou muito. Porém, não basta dizer que se tem uma religião, tem que realmente seguir seus preceitos e colocá-los em pratica. Religiões são setas no caminho, a fé e a luz, mas só caminhamos se queremos. E é dessa caminhada que gostaríamos de escutar de você como foi. Porque, Mana Dalva, há muita justiça no que se refere à desencarnação. Vamos, ao ter o corpo físico morto, para lugares afins. Somos atraídos para onde merecemos. É na desencarnação que desfrutamos da colheita da nossa plantação boa ou ruim. Na vida encarnada, o Bem que fazemos pode ser em reparação dos erros do passado. Mas podemos fazer, pela bondade do Pai, ao mesmo tempo, a reparação e a boa plantação. Você teve esta desencarnação como uma boa colheita. Narre para nós o porquê desta desencarnação que admirou a classe.

Encabulei. Por segundos fiquei em silêncio e todos olharam para mim. Minha mestra sorriu e disse:

- Maria Dalva, por favor, sua narração será para nós um aprendizado. Para que nós todos compreendamos que, se foi possível a você, poderá ser a todos nós e que fazer o Bem, às vezes, não é tão fácil, mas, se todos quiserem, conseguem. Fale-nos de você, para que entendamos que muito fez para merecer. Que não foi prêmio, foi conquista, que não foi regalia, foi merecimento.

Com esses argumentos falei de minha vida encarnada.

- Tive uma infância pobre mas feliz. Meu pai desencarnou quando tinha dez anos. Minha mãe, para nos sustentar, passou a trabalhar como empregada doméstica. Cursei até a quarta série e saí da escola para trabalhar. Arrumei emprego numa fábrica de confecções, perto de casa. Foi lá que aprendi a costurar. Não foi um período fácil, novinha ainda, saía de casa bem cedo e só voltava à tardinha e ainda ajudava minha mãe nos serviços de casa.

- Estava com dezoito anos quando conheci Mauro e me apaixonei assim que o vi. Ele trabalhava numa fábrica perto da que era empregada. Confesso que fiquei atrás dele, até que passamos a namorar. Fazia tudo o que ele queria para agradá-lo. Sentia que ele não me amava, mas me queria bem, isto me bastou. Namoramos firme e passamos a economizar para casar.

Meu casamento foi o dia mais feliz de minha vida. Estava com vinte e dois anos. Logo que casei, meus outros irmãos casaram e minha mãe desencarnou.

Quando meu primeiro filho nasceu, saí do emprego e passei a costurar em casa para as freguesas. Logo vieram as duas filhas. Estava bem feliz. Foi quando comecei a sentir Mauro estranho, mas pensei que era por causa do trabalho. Até que um dia, aproveitando que fui à padaria com as crianças, foi embora levando todas as suas coisas e me deixou uma carta dizendo que estava apaixonado por outra e que estava nos deixando. Sofri muito, fiquei desesperada. Um dia, segui-o quando saiu do seu trabalho. Vi-o entrar numa casa simples, bati na porta. Uma mulher veio atender, olhei-a, era bonita e estava grávida. Disse quem era e pedi para entrar. Mauro, ao me ver, ficou nervoso, foi grosseiro e me expulsou de sua casa.

Como se faz em período de aperto, fui ao Centro Espírita e lá recebi carinho, muitos conselhos e consolo. Resolvi cuidar de minha vida e de meus filhos. Perdoei-os e nunca mais importunei meu ex-marido com sua outra esposa.

Logo que nos separamos, Mauro tratou do desquite que assinei sem problemas. Ele me dava uma mesada todo mês. Casou-se com a outra e teve mais dois filhos. Mas a vida para ele também não era fácil, aos poucos foi parando de dar a mesada, até que não deu mais.

Passei então a trabalhar muito, costurar dia e noite para criar meus filhos. Graças a Deus consegui. Eles estudaram, tiveram uma profissão, são honestos e todos casaram bem. Tive uma vida simples e fui muito honesta.

Mas fui médium. Desde mocinha via espíritos e sentia muito medo. Via muito meu pai e muitas vezes conversava com ele. Meu genitor, espírito bom, estava sempre preocupado comigo e dava-me conselhos. Bem, quando me sentia mal pelas vibrações ruins que captava pela minha sensibilidade, ou via espíritos maus, ia ao Centro Espírita perto de minha casa tomar passes e melhorava. Muitas vezes, fui avisada de que necessitava aprender a lidar com minha mediunidade e com ela passar a fazer o bem. Deixar de ser servida e servir. Mas adiei por muitas vezes, era católica embora raramente freqüentasse a igreja. Questionava muito os ensinamentos da Igreja Católica. O que muito me intrigava eram os deficientes mentais. Muitas vezes indaguei aos padres e não me satisfazia com as respostas. Ora eles diziam que era porque os pais pecaram. Como, então, um inocente pagar pelo pecador? Pensava. Ora me respondiam que era porque Deus assim quis. Mas Deus não era justiça e Amor? Indagava. Os deficientes mentais, não fazendo o mal, vão para o céu, diziam. Então Deus está sendo injusto com os outros, inteligentes, que podem fazer o mal e ir para o inferno, retrucava. Não havia meio de entender esse fato que me perturbava. Só encontrei explicações racionais no Espiritismo pela lei da reencarnação.

O inferno era outro problema. Achava que eterno era muito tempo. Se Deus nos ama, Ele iria nos perdoar logo que pedíssemos perdão. Contente, tive o verdadeiro ensinamento pelo Espiritismo. O inferno é somente um local ruim, que se chama Umbral e que é temporário.

la sempre ao Centro Espírita, mais para tomar passes, depois com a chegada dos filhos passei a levá-los também. Pegava emprestado, na Biblioteca do Centro, livros que lia e estava sempre conversando com as pessoas espíritas, trocando idéias sobre o que lia e pedindo explicações.

Quando meu esposo Mauro saiu de casa, sofri muito como já disse. Foi aí que resolvi dedicar-me mais à parte espiritual e escolhi o Espiritismo como religião para mim e para meus filhos. Recebi muito apoio das pessoas espíritas e passei a freqüentar a Casa Espírita.

Convidada a estudar a Doutrina, matriculei-me em cursos. Deixava meus filhos sozinhos e uma vizinha, que morava encostado a minha casa, vinha sempre olhá-los para mim.

Logo que aprendi o essencial passei a trabalhar nos trabalhos de passes e de desobsessão. Foram muitos anos trabalhando sem ter faltas. Também costurei para o grupo de Assistência Social do Centro Espírita. Às vezes, cortava o tecido, ora costurava, este serviço levava para casa. Foi assim minha vida.

- Maria Dalva, indagou Leonilda, você costurando tanto para se manter com seus filhos, ainda levava costura da Assistência Social para casa? Como dava conta?

- Sempre dava um jeitinho. Também porque não fazia outra coisa, além de costurar e ir ao Centro Espírita.

Vendo todos calados, Dona Marly completou.

- Para melhor ajudar a todos vocês, nós os professores sabemos um pouquinho da vida de cada um. Maria Dalva não nos narrou tudo. Ela fez muito mais. Mesmo tendo uma vida sacrificada de trabalhos materiais e dificuldades financeiras para criar os filhos, ainda levava mais trabalho para casa. É certo o espanto de Leonilda. E ela dava conta, só que se privava de muitas coisas, como os divertimentos de que pouco usufruía. Costurava, tantas vezes, até altas horas da noite, para que pijaminhas quentes aquecessem corpos de crianças carentes. Três vezes por semana ia ao Centro Espírita trabalhar espiritualmente. Dava passes aos sábados à noite, ficando quase sempre após para escutar e aconselhar pessoas que a procuravam com seus problemas. Nas segundas e quarta- feiras, ela se dedicava aos trabalhos de desobsessões. Foram muitos, mas muitos mesmo, os espíritos necessitados para quem ela emprestou o corpo para que fossem ajudados e orientados. Foi honesta, perdoou o marido e a mulher que foi viver com ele. Deu bons exemplos aos seus filhos, esforçou-se para trocar seus vícios por virtudes. Orientou-se no que Allan Kardec escreveu no início de “O Evangelho Segundo o Espiritismo”: “Não há fé inabalável senão aquela que pode encarar a razão face a face, em todas as épocas da Humanidade”. Porque, meus alunos, é muito certo o que diz o Codificador da Doutrina Espírita. “Quanta gente repele as crenças Espíritas, não pelo medo de tornar-se perfeita, mas simplesmente pelo de ser obrigada a emendar-se.” E Maria Dalva foi corajosa, não teve medo de emendar-se. Esforçou-se, sua luta consigo mesma não foi fácil, mas conseguiu modificar-se interiormente para melhor. De tanto fazer o Bem, tornou-se boa. Depois estudou o Evangelho, a Doutrina Espírita, leu muitos livros Espíritas e colocou em prática seus ensinamentos. Muito bem fez, sua lista de boas ações é enorme. Aquele que é médium e trabalha para o Bem com sua mediunidade tem muitas oportunidades de multiplicar seus talentos, de plantar a boa semente e, o mais importante, de aprender. Ao auxiliar irmãos estamos na verdade ajudando a nós mesmos. E não foi só no campo da mediunidade que ela fez o Bem, foi boa vizinha, ótima amiga, nunca falou mal de ninguém, tinha sempre uma palavra caridosa para todos. E sua desencarnação só podia ser como foi, feliz como era seu espírito.

- Para melhor entender, Dona Marly, podemos fazer algumas perguntas a Maria Dalva? Indagou Pedro.

- Claro, aqui estamos para tirar dúvidas.

- Por que você se encabula ao falar do que fez? Perguntou Pedro, querendo saber.

Sorri sem graça e respondi:

- Acho que tenho certo pudor de falar de mim, porque o que fiz a mim fiz. Não fiz para ser propagado mas sim para reparar erros do meu passado, de minhas existências anteriores. Depois, acho que nada fiz de mais.

- De fato, todos nós temos o dever de ser bons e fazer o Bem, disse Dona Marly. E não devemos nunca falar de nós para nos vangloriarmos, ou para diminuir outras pessoas. Aprovação basta a do Pai e a da nossa consciência. Mas é válido falar de nós para servir de bom exemplo. Convidamo-la a falar porque achamos que seu relato servirá a todos nós de aprendizado e incentivo.

- Maria Dalva, perguntou Pedro, você se arrependeu de ter feito algo quando encarnada?

Nunca havia pensado nisso, nem havia sido indagada sobre esse assunto, fiquei quieta por segundos para depois responder.

- Desculpem-me, disse, estava pensando. Não me veio à mente nada de que pudesse me arrepender. Acho que fiz tudo o que deveria ter feito. Não tenho remorso de nada.

Novamente Dona Marly interferiu.

- Aqui atos errados que fizemos quando encarnados vêm mesmo à nossa mente nos chamando, para um aprendizado. Acredito mesmo que nada deve incomodar Maria Dalva. Feliz é você, minha aluna, por nada incomodá-la.

- Você veio com todos os conhecimentos que queria ou para isto teve que estudar mais? Indagou Luíza.

- Queria ter estudado mais, muito mais. Na escola de encarnados fiz até a quarta série. Da Doutrina Espírita, estudei pouco também, queria ter aprendido mais. Agora que tenho mais tempo, muito tenho lido e estudado. O estudo, o saber, nos facilita tudo estando encarnado ou desencarnado.

- Você, Maria Dalva, quando reencarnar quer ser médium novamente? Perguntou Nei.

- Se tiver oportunidade de escolher, quero sim. Seria ótimo continuar meu trabalho, agora com mais experiência.

- Se você fizer um bom trabalho aqui, desencarnada, poderá escolher, disse nos explicando Dona Marly.

- Se você não tivesse feito o Bem, trabalhado com sua mediunidade, saberia nos dizer como seria sua desencarnação? Indagou Leny.

- Fazer o Bem me trouxe muitas alegrias, fui e sou feliz. Trabalhando com minha mediunidade tive oportunidades de aprender e crescer espiritualmente.

Acredito que, se não tivesse feito isso, já encarnada sentiria as conseqüências, certamente seria triste e infeliz, meu espírito ansioso por aprender, fazer, seria insatisfeito. A desencarnação, acontecendo neste estado de desequilíbrio, só poderia haver continuação. Não, minha Leny, minha desencarnação não teria sido assim se não tivesse feito o Bem. Certamente o deixar de fazer só ia me fazer sofrer. Ninguém cobra nossos atos a não ser nós mesmos. E esta cobrança é sofrida. Sou feliz por ter feito, realizado.

Como não houve mais perguntas, a aula acabou em proveito de todos nós.

 

Valeu a Pena!

Uma das minhas filhas era médium mas não queria seguir o Espiritismo nem trabalhar com esse dom para o Bem de muitos e de si mesma. Dizia que era Espírita mas não seguia, de vez em quando lia um livro da Doutrina. Estava sempre dando desculpas por não seguir: ora que o marido era de outra religião e não gostava que ela fosse, ora que os filhos eram pequenos e necessitavam muito dela. Desculpas sempre dadas para encobrir a má vontade. Poucos têm realmente impedimentos justificáveis. Mas a maioria não segue, não faz, porque não quer e infelizmente dá desculpas mais para si mesmos, tentam justificar o injustificável.

Ao visitá-la encontrava-a sempre triste, insatisfeita, deprimida, com vontade de sumir sem saber para onde, ou em crises de choro. Sintomas claros da mediunidade doente, que não tem uso. Porque mediunidade é como um instrumento musical, se bem cuidado e se aprendemos a usar esse instrumento só podemos tirar bom som dele. Se desprezado, não cuidado, quando não aprendemos a lidar com ele, só perturba.

Isto quando não encontrava desencarnados com ela, espíritos que vagam e vêem nas pessoas sensitivas um canal para vampirizar. Quando isto acontecia nada podia fazer, porque não cabia a mim ajudá-la naquele momento. Nós os desencarnados não podemos fazer a lição de aprendizado que cabe ao encarnado querido. Sentimos por não poder ajudar. Neste caso nada podia fazer por minha filha que teve a mediunidade como uma oportunidade para reparar seus erros e para aprender. Se a privasse dos sintomas doentios e tirasse tudo o que a incomodava estaria fazendo a ela mais mal do que Bem. Mas quando ela orava para mim e me pedia ajuda ia até onde ela estava e tentava livrá-la dos desencarnados importunos. Tornava-me visível a esses desencarnados e lhes oferecia ajuda. Se aceitassem os levava para o Centro Espírita para receber orientação. Se não aceitavam, pedia a eles para que saíssem da casa dela, de perto dela. Às vezes, eles saíam, outras não. Não podia forçá-los. Era com pesar que a deixava com desencarnados mal intencionados, mas ela sabia onde procurar ajuda e o que tinha que fazer para ter paz.

Estava sempre incentivando-a, dizendo mente a mente:

- Minha filha, segue o Espiritismo. Vá ao Centro Espírita e peça ajuda. Quando você usar sua mediunidade para o Bem, sentir-se-á outra. Será feliz! Às vezes conseguia que ela ficasse com vontade de ir, mas ia só para o passe. Passe, este santo remédio, aliviava-a temporariamente. Cabia, entretanto, a ela fazer a sua tarefa para ficar livre de todos os maus sintomas. Enquanto isso, ia a médicos e tomava inúmeros remédios.

Sempre orei muito pelos meus filhos, mas, para esta filha, minhas orações eram especiais. Desejava ardentemente que compreendesse e fosse fazer o Bem com sua mediunidade. Entendi que só a ela cabia a decisão. Quando estava encarnada lhe dei muitos conselhos neste sentido, escutava-me atenta, mas nunca os seguiu.

Assim que desencarnei, desencarnou também uma amiga minha, companheira do grupo Espírita. Chama-se esta amiga Maria do Carmo. Pessoa muito boa, amiga, leal, alegre e sempre disposta a ajudar quem quer que fosse. Maria do Carmo comentava sempre para nós que seu sonho era ser médium.

“Gostaria tanto de ver, falar com um espírito!” Dizia ela suspirando.

Mas era cega e surda, como dizia, para o mundo Espiritual. Trabalhou anos na Assistência Social, tanto na sopa que a casa distribuía, quanto na costura de roupas para os pobres, bem como na distribuição de alimentos que era feita nos bairros pobres da cidade. Também deu aulas de Evangelização para as crianças.

Querendo vê-la, fui visitá-la, ela já estava instalada numa residência. Alegramo-nos muito ao nos revermos. Pedi a ela que me falasse como foi sua desencarnação.

- Maria Dalva, meu passamento da vida material para a vida Espiritual foi maravilhoso. Estava bem, sadia, em plena atividade. No horário de costume sentei na sala com a família para assistir televisão e tive um infarto que me desencarnou de imediato. Nada senti, só amoleci na poltrona. Depois de minutos quieta, meus familiares vieram até a mim, mas já era tarde, já havia desencarnado. Senti sono e dormi para acordar no Plano Espiritual. Ao acordar, percebi logo meu estado e agradeci o socorro recebido. Disseram-me que a minha família, mesmo sentida, comportou-se muito bem, como bons espíritas que são, facilitando o desligamento do meu corpo. E que tudo correu bem. Dormi três dias. Fiquei em recuperação uns dias no hospital e aqui estou entre parentes e amigos.

- O que mais a emocionou aqui no Plano Espiritual? Indaguei.

- Foi um grupo, uma parte de um coral infantil que veio me visitar no hospital, brindando-me com lindas melodias que me emocionaram até as lágrimas. Recebi destas crianças um ramalhete de lindas flores. Disseram que era em gratidão pelo muito que fiz pelas crianças pobres na Terra.

- Então, brinquei com ela, conformou-se por não ter sido médium?

- Não era minha tarefa ser médium. É uma grande bobagem pensar que só podemos fazer o Bem com a mediunidade. Ser médium pode ser uma oportunidade a mais. A caridade, a benevolência são oportunidades fáceis e ao alcance de todos. Felizes os que fazem. Fiz, encarnada, a lição que me cabia e sinto-me muito bem com isso.

- Você sabe de Joana? Indaguei a Maria do Carmo.

Por uns momentos ficamos sérias. Joana era uma médium que infelizmente usou esse dom para o mal. Conhecíamo-la porque ela fora nossa vizinha. Muitas vezes Maria do Carmo tentou alertá-la. Ela nos evitava e chegou mesmo a ser mal-educada com Maria do Carmo. Joana tinha desencarnado antes de nós.

- Sim, respondeu minha amiga. Indaguei ao meu mentor espiritual e ele me disse que Joana vaga pelo Umbral em grande sofrimento. Também o Honório do bar da esquina, lembra-se dele? Ele era mau, incentivou muitos ao vício da bebida. Negava-se sempre a dar algo aos pobres, até uma simples bala. Ele também sofre muito no Umbral. Pior do que quando encarnados, nem bons amigos fizeram. Porque, minha amiga, é muito certo o ensinamento de Jesus que nos disse que fôssemos sábios e fizéssemos amigos com o dinheiro do mundo. Porque amigos sinceros estão sempre dispostos a ajudar em qualquer ocasião.

Minha amiga tinha razão. Despedimo-nos com a promessa de nos ver sempre. Maria do Carmo estudou e foi trabalhar no Educandário e está sempre muito feliz.

Quando acabei de estudar, fiz um pedido para trabalhar com a equipe desencarnada no Centro Espírita. Logo recebi a resposta positiva que me deixou muito feliz.

Vim de mudança para o Centro. Lá tenho meu cantinho no Posto de Socorro que está acima da construção material. O Posto é dividido em três partes. Na da frente estão a recepção, sala de consultas, biblioteca e refeitório. A segunda parte é destinada aos trabalhadores. É nesta ala que estão as acomodações. Um cantinho particular para cada um dos servidores, é um cômodo pequeno. No meu tem só um sofá, mesa e estante. Mas é bonito, para mim é excelente. Também tem nesta parte uma sala a que chamamos de Salão das Palestras, é onde os trabalhadores se reúnem para conversar nas horas de lazer e escutar músicas. É muito agradável, trocamos idéias sobre trabalhos realizados e tarefas a serem feitas. Na terceira parte estão as enfermarias. O Centro Espírita é grande e o Posto também. As atividades são muitas. Há muito trabalho.

Meu sonho se realizou trabalhando ali, lugar que servi encarnada e que muito amo. Também porque no meu tempo livre posso ir mais vezes até meus filhos. Ajudo-os, porém não me cabe fazer a tarefa para eles, cada um tem que fazer por si, mas aprendi a vê-los com problemas e permanecer tranqüila.

Lembrei de uma irmã de caridade, uma religiosa, católica, que muito bem fez quando encarnada, trabalhando como enfermeira em um dos hospitais da cidade. Há tempo havia desencarnado. Querendo saber dela, indaguei ao pessoal da casa. E um colega respondeu:

- Maria Dalva, esta laboriosa irmã trabalha no próprio hospital onde serviu encarnada. Ela é encantadora!

Quis visitá-la, porque sempre a admirei. Na minha próxima folga, fui ao hospital. Lá fui recebida gentilmente por um trabalhador desencarnado do local, que foi chamá-la para mim.

Em quase todos os hospitais, na recepção, na entrada, há também a recepção do Plano Astral. Onde trabalhadores atendem os desencarnados como também tentam ajudar os encarnados doentes. Se no plano material é às vezes uma correria, no astral é mais calmo e organizado, mas com muito trabalho. Aguardei numa salinha confortável e calma Esperei uns quinze minutos, logo a porta se abriu e vi a figura radiosa da Irmã Lucíola. Ela me abraçou carinhosamente. Tratei de explicar.

- Irmã Lucíola, sou Maria Dalva, quando encarnada fui sua admiradora. Sempre achei seu trabalho humano e caridoso. Encarnada fui Espírita, agora trabalho num Centro Espírita. Desculpe- me se a incomodo, mas desejei muito vê-la.

- Maria Dalva, que prazer conhecê-la! Você é que precisa me desculpar por não ter vindo recebê-la antes e deixando-a esperar. É que estava providenciando uma desencarnação. Nós daqui do hospital, os trabalhadores desencarnados, estamos sempre enviando aos Centros Espíritas irmãos recém-desencarnados que necessitam de orientação.

- Como foi a desencarnação da senhora? Indaguei. Digo, a senhora se decepcionou por não ser como achava, ou acreditava?

- Não me decepcionei, ela respondeu sorrindo. No íntimo tinha a certeza de algo mais justo e certo. Desencarnei no trabalho, nada senti, acordei muito bem no Plano Espiritual. Membros da equipe desencarnada que trabalhava no hospital me socorreram. Encantei-me com o Mundo dos Espíritos. Que beleza é a Colônia! Acostumei logo. Por uns tempos trabalhei num hospital da Colônia e estudei para entender tudo e conhecer a Espiritualidade. Porém, amo tanto este hospital que desejei ardentemente voltar a servir aqui. Meu pedido foi aceito para minha felicidade. E aqui estou, feliz e trabalhando.

Irmã Lucíola trabalha vinte e quatro horas por dia, por isso não quis tomar mais seu tempo. Despedimo-nos como grandes amigas. Compreendi o tanto que é importante servir, ser útil, fazer o Bem. E como os bons são felizes. E que o Bem realizado faz com que a pessoa no íntimo sinta as verdades eternas.

Muitos grupos visitam o Centro Espírita em que trabalho. São equipes de estudantes, de outros Centros, que vêm para trocar idéias e visitar amigos. Um grupo deste chegou e logo uma amiga me cochichou:

- Este ê Antônio Carlos! O escritor que dita para os encarnados.

E fiquei a observá-lo. Sorriu para nós e veio nos cumprimentar. Antônio Carlos é simples. Estatura mediana, cabelos de lado, sorriso franco e aberto. Olhos castanhos sempre vivos e olhar bondoso. Uma conversação agradável surgiu. Olhou-me carinhosamente e disse:

- Maria Dalva, você foi médium encarnada. Foi uma trabalhadora do Cristo. Poderia me falar de você? Gosto de ouvir histórias.

- Ora, respondi, nada tenho de interessante a falar.

- Tem sim! Não acontece com muitos o que ocorreu com você. Desencarnou tendo o dever cumprido, infelizmente isso não é para todos.

- Como sabe disso? Ainda não narrei minha vida.

Rimos. Ele tinha lido a minha aura. Resumi e contei tudo.

- Maria Dalva, disse ele, convido-a para narrar o que me falou aos encarnados. Necessitamos muito incentivar os trabalhadores do Bem. Sua narração será como dizer a eles: “É isto aí irmãos, sigam em frente que compensa, a plantação, às vezes, pode parecer difícil, mas os frutos estão garantidos e são saborosos.”

Minha amiga, que até então estava escutando, indagou ao Antônio Carlos:

- Meu amigo, será que os encarnados que lerem estas desencarnações felizes não terão vontade de desencarnar?

- Nosso objetivo é incentivar a viver no Bem encarnado. Não se pode abreviar nossa permanência no corpo da carne e nem desejar a desencarnação. Tudo tem seu tempo certo. Todos esses convidados viveram felizes, porque tinham o equilíbrio e a harmonia no bem viver e não desejaram a desencarnação. E tem mais, vieram para o Plano Espiritual no tempo certo, determinado por eles mesmos antes de reencarnar. Devemos, em qualquer plano, viver bem para o Bem e sentir Deus em nós. Os leitores certamente saberão que um dia desencarnarão, mas que não é certo desejar a desencarnação. Ela virá, vem para todos, e são felizes aqueles para quem ela vem no tempo previsto.

Pensei na proposta que meu amigo me fez e indaguei:

- Será que é difícil fazer esta narração?

- Não, é bem fácil. Irá, em curso rápido, aprender como se deve escrever, depois ditar à médium algumas horas por dia.

- Bem, aceito. Porque também acho que os encarnados trabalhadores do Bem, principalmente os Espíritas, merecem este incentivo. E saber também que a desencarnação para eles poderá ser fácil e feliz como a minha.

- Maria Dalva, Antônio Carlos me indagou o que deveria ter feito quando encarnada e não fez?

Surpreendi- me com a pergunta e pensei por momentos.

- Talvez devesse ter estudado mais. O estudo nos facilita tudo, com conhecimentos fazemos com mais segurança e sabedoria. Quanto ao resto, fiz o que devia ter feito. Se voltasse atrás, se tivesse de passar por esta encarnação novamente, iria fazer tudo, vírgula por virgula, ponto por ponto novamente.

- Então, Maria Dalva, valeu a pena? Indagou meu amigo a sorrir.

- Como valeu! Sempre fui alegre, meu espírito é feliz. Mesmo com dificuldades, problemas e doenças, estava tranqüila, em paz. O Bem que fazemos nos dá uma harmonia inexplicável. Muitos encarnados têm medo da desencarnação. Não é preciso. O que é necessário é viver no Bem, plantar a boa semente, o resto é conseqüência. Sim, meu amigo, valeu a pena!

 

Há um bom tempo vinha fazendo um tratamento para o corpo. Sabíamos que a doença no meu coração inspirava cuidados. E estava fazendo todas as indicações mandadas pelos médicos. Tinha a consciência de que deveria cuidar do corpo como o templo que ele é do espírito.

Era de tardezinha, estávamos, minha esposa e eu, sentados na sala vendo televisão. Deitei no sofá e coloquei a cabeça no seu colo como de costume. Ela passava a mão de modo carinhoso pelos meus cabelos. Senti que estava saindo do corpo ou que deveria sair. Estas saídas conscientes ou quando o corpo dormia eram normais para mim. Mas, aquela não era hora para esse evento e quis retomar ao corpo. Então escutei:

- Saulo, você está desencarnando. Calma! Se quiser nos ajudar.

“Quero ajudar”, falei mentalmente.

Antes de concluir a saída do corpo, deixei-o com uma aparência de calma. Fui saindo do corpo devagar. Logo que saí do corpo, isto é, meu perispírito saiu do corpo carnal, olhei e vi tudo um tanto deformado, mas isto foi só por uns instantes. Sentei ao lado. Vi que estava ainda com os cordões prateados que me ligavam ao corpo. Percebi que meu aparelho carnal parara de respirar. Olhei-o com atenção. Minha aparência, do corpo, estava ótima. O coração parou e senti uma pontada no peito. Mas foi por instantes. Novamente o espírito que estava ao meu lado, que não reconhecera ainda, mas não importava, sentia ser amigo, me indagou:

- Saulo, você está bem? Quer adormecer?

- Estou bem, obrigado. Não, quero ficar consciente. Que faço para ajudar?

- Pense firme que está se desligando do corpo físico. Faça o que você já sabe.

Foi o que fiz. Transferi a energia do corpo físico ao perispírito. Sempre amei tudo como uma manifestação da Divindade. Amei e era grato ao meu corpo. Cuidei dele como deveria. Mas não era apegado. Nada me pertence, conscientizava-me disso. Tudo me era emprestado e, com objetos emprestados, meu cuidado era dobrado.

Ainda percebia a esposa querida passando a mão pelos meus cabelos. Ela me indagou algo, não respondi, pensou que dera uma cochilada. Sorriu e aquietou-se.

Passei a ver nitidamente, reconheci os dois que ali estavam comigo, eram espíritos de dois homens, dois amigos que por anos, tempo mesmo, trabalhamos juntos no Centro Espírita. Sorri para eles. Olharam-me com expressão de felicidade, estavam sempre assim, felizes. Outros dois socorristas me desligaram. Cortaram com as mãos, não fizeram nenhum esforço, só passavam as mãos sobre mim, o cordão foi sumindo. Resolvi ajudar. Pensei forte que aqueles laços deveriam ser desunidos. Fixei minha mente.

Sabia que esse desligamento é feito só pela ação da mente, mas isto é para os que sabem. Porém, como vim a saber mais tarde, a maioria dos socorristas precisa da sugestão do tirar, desligar, pelas mãos. Eu poderia ter me desligado sozinho. Mas, meus amigos, graças a Deus, muitos no Plano Espiritual, vieram ter comigo numa fraternal demonstração de carinho.

Um dos socorristas, vendo que eu os ajudava, fato não tão comum, me indagou.

- O senhor Saulo não teme a desencarnação?

- Em todos os momentos estamos na presença do Senhor. Não tenho nada a temer.

Sorriu, aprovando e voltou ao seu trabalho.

Sabia que esses desligamentos são feitos de várias maneiras, rápidas ou lentas. E o meu, que ajudava, ia ser rápido. Principalmente porque não tinha medo e sabia que este acontecimento é e deveria ser tido como algo normal e natural. Tudo o que é vivido é facilitado.

Quinze minutos passaram. Nesse tempo um dos amigos deu um passe em Inês, que se envolveu no programa de televisão.

- Acabado! Você está completamente desligado do corpo morto, disse um dos amigos, o Márcio.

Olhei para meu corpo. Estava quase a sorrir, com expressão calma e tranqüila. Os dois amigos que ali estavam comigo ficaram ao meu lado. Os dois socorristas foram embora.

Inês me chamou novamente.

- Saulo, acorda se não você não irá dormir à noite! Saulo! Saulo!

Colocou a mão na frente do meu nariz e não sentiu a respiração. Tentou escutar o coração. Levantou-se do sofá com cuidado, colocando meu corpo físico na almofada e correu para o armário, pegou o remédio e colocou embaixo da minha língua, isto é, do meu corpo físico. Discou rápido para o Pronto-Socorro e pediu uma ambulância. Em seguida, discou para o filho e depois para a filha. Aguardou ansiosa, novamente chamou:

- Saulo! Saulo! Será que você me deixou meu querido? Será que desencarnou?

Chorou baixinho.

Emocionei-me. Minha Inês era minha única preocupação. Casados há anos, sempre tivemos carinho, respeito enorme um pelo outro.

Chegaram todos ao mesmo tempo. A ambulância, os filhos, genro, nora e os netos.

O enfermeiro tentou o pulso, colocou a mão no pescoço. Entendeu que já desencarnara, mas nada falou. Colocaram meu corpo na maca e o transportaram rápido. Outros amigos desencarnados, companheiros que por anos serviram no Centro Espírita, aproximaram-se. Vi, ao lado de minha esposa, seu protetor. Entendi que estava amparada Pedi ao amigo, ao Márcio, que estava ao meu lado.

- Se puder, podemos ir embora.

- Dê a sua mão, disse Márcio.

Mas dei o impulso sozinho e saímos os três a volitar, logo ganhamos o espaço vazio. A cidade foi ficando pequena e continuamos a subir. Não importava para onde ia. Sempre dissera para meus companheiros que não tinha preferência para onde ir quando desencarnasse, pois, onde quer que fosse, estava no Centro de Deus, pois Nele não há periferia. E todos os lugares são bons quando se está satisfeito consigo mesmo. Fazer bons amigos entre pessoas boas é tesouro adquirido que a traça não rói. Mas, indaguei, ao falar minha voz era como sempre, forte e clara:

- Para onde estamos indo?

- Para a Colônia Esperança.

Chegamos. A minha impressão era de que chegamos numa nuvem. Mas logo vi uma construção grande de perder de vista . Cercada por muros altos. Paramos e um portão logo foi aberto. Atravessamo-lo e caminhamos lado a lado. Andamos por alguns metros e paramos num ponto. Esse ponto é um local onde a condução de transporte faz parada. Logo surgiu um aeróbus, entramos e em seguida ele se locomoveu. Observei-me. Estava como sempre, sentia-me bem disposto, nada me incomodava. Na Terra, era época de verão e estava quente, ali a temperatura era agradável. Estava com a mesma roupa que meu corpo vestia quando desencarnara minutos atrás.

Nada do que via era novidade. Agora tinha a certeza que vinha muito à Colônia. O aeróbus parou, descemos e novamente andamos alguns metros. Estávamos na parte residencial da Colônia. Permanecíamos calados, mas muito tranqüilos. Entramos numa casa. Fui cumprimentado por três pessoas que sorriam amáveis, me dando as boas-vindas.

- Esta residência é moradia de sua sogra, disse Márcio. Ela nos pediu para trazê-lo para cá, já que não necessita passar pelo hospital. Tem o perispírito totalmente sadio por entender bem o que seja a desencarnação e também por sempre alimentar seu espírito com o Bem. Só que sua sogra, Dona Maria, manda-lhe pedir desculpas por não poder vir recebê-lo. Ela está com a filha.

- Entendo, disse, e fico mais tranqüilo sabendo que Dona Maria está perto de minha Inês.

Lembrei de minha sogra. Pessoa boa, foi como uma mãe para mim. Gostava e gosto muito dela. Há muito tempo está desencarnada. Mas estava ansioso por ver uma pessoa. Há muitos anos uma das minhas filhas desencarnou adolescente. Sempre soube notícias dela e sentia-a sempre ao meu lado. Lembrei agora que nos encontrávamos sempre quando saía do corpo em desdobramento ou quando o físico dormia. Indaguei a Márcio.

- E minha filha?

- Papai! Meu pai!

Ela acabara de chegar. Por momentos não consegui dizer nada, só a olhei. Minha Valéria estava tão linda. Mas, tão linda! Sorria com seu modo doce e me fitava com seu olhar harmonioso. Abraçou-me e me beijou nas faces.

- Valéria!

- Seja bem- vindo meu pai!

Passei a mão pelos seus cabelos. Emocionei-me, mas controlei-me. Que momento feliz! Ela me pegou pela mão e atravessamos uma parte da casa.

- Aqui é o seu quarto!

Disse, abrindo uma porta. Não reparei no local. Para mim tudo estava excelente.

- Sente-se meu pai. Não quer descansar?

- Engraçado, Valéria, não estou cansado, só um leve torpor me invade.

- É natural. Desencarnou faz duas horas somente. Sabemos que o que aconteceu com o senhor não é comum. Cada desencarnação é diferente uma da outra. A do senhor só poderia ter sido assim, fez por merecer e muito estudou, aprendeu para ter o domínio da situação. Por que não dorme um pouco? Fico com o senhor.

- Valéria, ficaria mais tranqüilo se você fosse ficar com sua mãe e irmãos. Não pode?

- Sim, posso.

- Prefiro ficar a sós. Quero pensar.

Nisto, Márcio entrou no quarto.

- Saulo, já está querendo ficar a sós? Está bem. Estou na sala. É só pensar em mim que venho para seu lado.

- Agradeço-lhes.

Márcio sorriu e nada respondeu. Tínhamos em comum um não agradecer ao outro, porque se um fazia pelo outro era em total prazer, amor, era pela alegria de servir. Agradecimentos eram dirigidos ao Pai.

Minha filha me beijou e saíram fechando a porta, fiquei a sós. Estava de sapatos, eram uma cópia de um dos meus. Tirei-os e deitei no leito. O local estava muito agradável. Compreendia a desencarnação como algo que tinha que acontecer e para isto me preparei a vida inteira encarnado, vivendo em harmonia com todo o cosmo. Era algo corriqueiro. Certamente, muitas e muitas vezes desencarnara. Mas, desta vez a fiz bem. Minha filha e meu amigo adivinharam. Queria estar a sós para orar, elevar meu espírito em agradecimento a Aquele a quem tudo devia.

- Pai Indiscutível! Senhor, sinto não merecer o que me concede. Agora sinto o que sempre procurei. Meu Senhor, apesar da minha nulidade e pequenez não mais sinto a separação entre sua infinita grandeza e minha insignificante personalidade. Sua vontade é a minha, pois o que importa a mim é que Sua glória resplandeça em tudo e em todos. Não vejo como agradecer-Lhe. Só sinto, neste instante, meu peito a explodir em contentamento e felicidade. Obrigado por tudo.

Voltando do êxtase a que a oração me elevou, pensei nos meus e os senti, vi-os. Vi de maneira clara minha esposa, filhos e netos a chorar de mansinho. Sabia que eles não me decepcionariam, agiriam como espíritas que eram. Meu corpo era preparado para o enterro. Trocavam a roupa do meu corpo físico, mas eu continuava com a roupa com que desencarnei, calça cinza e camisa amarelo-clara. Quando saí do corpo, plasmei automaticamente um duplo da roupa. Sabia que, ao sairmos do corpo pelo sono ou consciente, podemos sair com o perispírito vestido igual ao corpo, ou plasmar outra de nossa preferência. Para mim, desligado desses detalhes, não importava, esta roupa que vestia estava ótima.

- Devo dormir, disse baixinho. Não devo preocupar-me com nada. Amigos velam por eles, pela minha família e sinto que no momento nada posso fazer por eles. Relaxei e adormeci.

Sonhei. Vi-me como que desligado novamente, deixava a roupagem que é ainda o perispírito[7] e saí volitando devagarinho, mas com confiança. Ia como se fosse atraído, como se alguém de longe me guiasse. Parei entre umas árvores e em frente a um lago.

- Saulo! Saulo!

Escutei me chamar baixinho e fui ao encontro da voz. Vi um oriental num banco.

- Sente-se, Saulo!

Sentei, senti-me encabulado diante dessa personalidade que sabia, sentia ter sido um dos meus mestres do passado. Senti profundo respeito e emocionei-me com a atenção dele. Ele sorriu para mim. Observei-o, estava trajado como os orientais se vestiam no passado, o rosto belo, não de traços perfeitos, mas pela harmonia que radiava. Olhos rasgados e pretos, cabelos curtos e escuros. Olhava-me carinhosamente, por momentos não soube o que dizer, mas ele disse, sua voz era agradável e cadenciada:

- Saulo, desta vez agiu certo quando encarnado. Vim para cumprimentá-lo.

- Mestre, disse, é um prazer revê-lo. A alegria explode no meu coração.

- Saulo, continue a estudar e a servir. A escola de Regeneração precisa de mais um mestre. Estou tentando reunir nosso grupo e conto com sua ajuda para esta tarefa.

- Sei que muito me ajudou quando estava encarnado. Sentia-o muitas vezes ao meu lado me esclarecendo e ajudando.

- Ajudava-o quando você orientava os que devíamos, por ligações do passado, auxiliar.

- Mora aqui Mestre? Indaguei.

- Sabe que não. Estou na Colônia para lhe dar as boas-vindas e dizer que você está aqui por merecimento próprio, porque vibra com este ambiente.

- Mestre, gostaria de beber da fonte dos seus conhecimentos.

- Logo estará comigo me ajudando a reunir nosso grupo.

- Todos conseguiram vencer no Bem? Indaguei.

- Você sabe que nem todos fizeram por merecer serem escolhidos. Eles terão outras oportunidades.

Abraçou- me, senti o amor mais puro que um ser humano tem por outro.

- Meu Mestre! Disse com ternura.

- Saulo! Meu amigo Saulo! A felicidade transborda quando um filho retorna à casa do Pai com entendimento e sabedoria. Não poderia deixar de demonstrar minha alegria.

- Encontrar-nos-emos sempre? Perguntei.

- Todas as vezes que você instruir um irmão, estarei em pensamento ao seu lado. Sim, teremos outros encontros.

Não queria que aquele encontro terminasse, queria desfrutar da companhia daquele que por milênios foi meu Mestre, meu incentivo ao caminho do Bem e do progresso. Mas senti que deveria retomar e o fui fazendo novamente, devagarinho, até voltar ao leito.

Acordei e fiquei a pensar. Encarnado recordava muito de minhas existências passadas. Fazia parte de um grupo que muitos conhecimentos adquiriu e muitos acontecimentos e tramas sucederam. Este oriental é o líder do grupo. Este grupo é uma família espiritual, pessoas unidas por uma sincera amizade e afinidades de conhecimentos. Ele foi o primeiro a progredir, a atender o chamado do Pai e fazer por ser escolhido. Mas não deixou os retardatários, mesmo no Plano Espiritual mais elevado, é o Anjo que tem nos ajudado e incentivado. Foi muita bondade dele vir me cumprimentar, me abraçar. Sentia-me recompensado pela visita.

Pensei nos familiares e os senti tranqüilos, pelos pensamentos que recebi, entendi que já fora o enterro.

- Puxa! Dormi mesmo! Exclamei.

Disse estranhando, parecia que dormira por minutos. É comum o desencarnado sentir o que estão pensando os encarnados queridos. Isto não acontece com todos. Os que se perturbam ao desencarnar não conseguem entender nada. Mas os que retornam, sentem as vibrações dos que os amam. Pensei na minha filha e logo a porta abriu e ela entrou maravilhosa como sempre.

- Esperava que me chamasse...

Bastou pensar em Valéria que ela sentiu. Ri, rimos. Não esperou que a interrogasse e foi dizendo com seu modo encantador:

- Todos estão bem em casa. Meus irmãos confortam mamãe. Todos sentiram sua desencarnação. Mas vivenciam as verdades do espírito. A saudade é companheira deles, mas não a saudade dolorosa. Sentem a ausência física daquele que muito amam. Como também a falta do pai espiritual que estava sempre a lhes ensinar e aconselhar nas ocasiões que precisavam. Mas, demonstram que os ensinos Espíritas que professam são autênticos. Mamãe está bem. Logo virá ter conosco.

- Adoecerá?

- Não, irá desencarnar de forma suave, por um fator surgido fatalmente.

- Valéria, preocupo-me com ela.

- Preocupamo-nos. Mas ela é mais forte do que supomos. Não carecemos inquietar-nos por ela.

- Bem, vou levantar e participar da vida aqui no Plano Espiritual.

- Já? Não prefere descansar uns dias?

- Já chega o descanso que me vi forçado a fazer pela doença do corpo. Sou feliz servindo.

- Alegro-me e orgulho-me do senhor, meu pai. Seja bem-vindo à nova morada![8]

Sorrimos felizes.

Levantei e fui para a sala. Lá encontrei Márcio.

- Então, Saulo, como se sente?

- Muito bem. Quero logo me integrar à vida aqui.

- Muito pouco tem que aprender. Sabe volitar muito bem. Penso que nada tenho a lhe informar. Mas, qualquer dúvida fique à vontade para me indagar. Quer se alimentar, experimentar um fruto daqui?

A fruta foi oferecida com tanto carinho que peguei uma maçã e a experimentei. De fato é muito saborosa. Mas foi a primeira e a última vez que me alimentei no Plano Espiritual. Sabia manter-me pela força da mente, tirar alimentos pela sustentação dos fluidos da natureza. Sabia muito bem viver sem alimentos sólidos. Encarnado já exercitava este tipo de alimentação quando irmãos necessitados me sugavam energias ou quando me sentia fraco. Sabia também como deveria fazer para me manter limpo. Desligava-me completamente dos reflexos das necessidades do corpo físico. Também nunca mais dormi.

- Agora, disse aos dois que me olhavam, vou sair e sozinho. Certamente não me perderei. Por favor, não se privem do trabalho por minha causa.

Os dois sorriram.

- Sair sozinho, papai? Eu que pensei que ia ter a honra de passear com o senhor.

- Outro dia, filha.

- Amanhã passo aqui para levá-lo à Escola de Regeneração.

- Está certo.

Os dois saíram e saí também. Fui andando devagar, admirando as ruas e as casas com seus jardins lindos. Tudo muito limpo e conservado. Tudo como novo, nada fora do lugar. Encantado com tudo o que via, distanciei-me e fui Ter no bosque. Que lugar maravilhoso! O bosque era um grande pomar de árvores frutíferas. Examinei-as. Todas sadias e com frutos.

- Não é época de ter tantos frutos assim! Exclamei.

- Aqui temos frutos o ano todo - disse um senhor que saíra detrás de umas árvores.

- Boa tarde! Admirando as árvores?

- Boa tarde, sou Saulo. Sim, estou admirando as árvores, são sadias e bonitas.

- Sou Januário. Trabalho aqui, estou no momento fazendo um replante de mudas. Não quer ver?

- Sim.

Segui-o por entre as árvores e meu novo amigo foi falando.

- Aqui é o pomar da Colônia. Chamamo-lo de Bosque. Dos frutos aqui obtidos sustentamos todos na Colônia e Postos de Socorro filiados à Colônia. Pelo sistema de sustentação das plantas e os cuidados devidos temos os frutos o ano todo. Logo do outro lado está nossa horta. Lá temos os legumes para os caldos e sucos.

Chegamos onde Januário estava trabalhando. Ele foi tirando, de um tablado de madeira, as plantinhas de dois centímetros e ia replantando-as num cesto maior.

- Logo que crescerem mais, iremos plantá-las no local definitivo.

Fazia tudo com tanto carinho que, após observar uns minutos, pus-me a ajudá-lo e ele foi conversando.

- Sabe, a Colônia Esperança está em ampliação. Onde o encontrei, na frente do Bosque, vai ser o Departamento do Trabalho.

- E as árvores de lá? Indaguei.

- Serão levadas para a parte ampliada. A Colônia está pequena. A ampliação é feita assim: os técnicos do Plano Superior vêm até nós. É uma equipe de espíritos estudiosos e preparados que plasmam, constroem com a mente. Eles trabalham em conjunto. Primeiro aumentam seu tamanho. O Bosque vai mais para perto do muro. Estas árvores que serão transplantadas, vão ser levadas para a parte aumentada, como também muitas outras vão ser plantadas. Vão construir o prédio do Departamento do Trabalho e o prédio antigo, que dá fundo com a escola, passará a fazer parte da escola que tem urgência em ser aumentada. Vão só fazer as adaptações.

- Estas plantinhas são só árvores frutíferas?

- Não, são de flores também. Porque a área residencial também vai ser aumentada. E, como você deve ter visto, todas as casas têm bastante plantas.

- Estas ampliações são demoradas?

- São nada. Tudo é preparado e estudado antes pelos orientadores da Colônia. Aí é só marcar o tempo certo com os construtores, como são por aqui chamados esses trabalhadores. Quando eles vêm é questão de dias, semanas ou meses, conforme a reforma. A nossa está prevista para ficar pronta em dois meses. Eles fazem a parte deles e depois cabe a nós moradores da Colônia acabar e ajeitar tudo. Você tem jeito para mexer com as plantas. Que fazia quando encarnado?

- Era agricultor, cuidava de um pequeno sítio.

- Seu?

- Sim, quando encarnado estava a mim emprestado pelo Criador.

- Você ama muito as plantas, disse Januário me observando.

- Amo tudo como uma manifestação do Pai.

Examinei a terra. A impressão que tive era a de que a terra ali era como para os encarnados. Sabia que tudo ali era de uma matéria rarefeita como o corpo que agora revestia, o perispírito.

- Saulo, acabamos bem na hora da chuva. Olhe, as nuvens estão se formando, logo os primeiros pingos cairão, disse Januário.

Olhei-me e vi que me sujara de terra. Ao levantar, me limpei pela minha vontade.

- Maravilha! Exclamou meu amigo. Você recém-desencarnado e já sabe se limpar.

- Muitas coisas podemos aprender ainda encarnados sobre como viver no Plano Espiritual. Pensei firme em me limpar e o fiz.

- Saulo, vem para cá.

Januário me chamou e fomos para um abrigo pequeno onde estavam muitas mudinhas.

- Aqui é a estufa? Indaguei.

- Não precisamos de estufa. A temperatura aqui é sempre agradável, não faz calor ou frio, não temos tempestade. É só um galpão para as sementinhas.

A nuvem não escureceu, era cinza-clara e começou a chuva mansa. Sempre gostei de chuva e vê-la no Plano Espiritual me encantou. Encarnado sempre gostei de ver as tempestades, os raios sempre foram, para mim, motivo de emoção, via neles a força de Deus.

Ao ver a chuva cair de mansinho, recordei. Quando encarnado fui agricultor, tinha um afeto especial pela terra. Na verdade eu a amava e ela me correspondia. O afeto notava-se na diferença na divisa da cerca entre o pedaço que cuidava, o que me pertencia, e o dos meus vizinhos. Lembrei de um fato: em certa ocasião, um vizinho dispensou um funcionário e este homem me pediu emprego, que dei prontamente. Passados alguns meses, este empregado me disse que seu antigo patrão havia lhe perguntado qual era meu segredo. Por que tudo em volta estava feio e seco e no meu sítio estava tudo verde e bonito? Ele disse ao seu ex-patrão que eu tratava com amor e respeito a natureza e que ela agradecia. Um simples trabalhador braçal entendeu o que eu fazia.

Eu sempre me senti bem com a natureza, me sentia parte dela. Tanto que ao tomar meus banhos mentalizava a essência d'água a higienizar minha aura. Outras vezes pensava no fogo purificando meu espírito. Buscava espiritualmente o movimento da força do ar para me purificar e com a solidez da terra contribuía para o ambiente ficar agradável.

Presenciando o Bosque como algo extraordinário, via as árvores frutíferas e elas produzirem. Sabia que tudo ali podia ser plasmado com a força mental e com fluidos primários que sustentam o cosmo, objetos, todas as coisas do mundo astral e até do mundo físico, tudo, enfim, pode ser sustentado permanentemente. Mas, também ali, no Plano Espiritual, havia necessidade de dar ocupações a todos. Se tudo fosse plasmado, os que sabiam plasmar trabalhariam e os que eram incapazes não teriam ocupações, como o Januário que tudo fazia com muito amor.

Tudo o que podemos pensar e ver está presente na vida, do contrário nada existiria. Compreendendo no fundo d’alma esta questão, a Paz e a Harmonia são nossas companheiras em qualquer circunstância. Desencarnar com lucidez é efeito da ausência de desejos particulares, sejam materiais, mentais ou espirituais. É uma completa confiança em Deus, não confiança de herdar o céu ou o paraíso. Mas a compreensão de que o importante é a glória de Deus e não o meu conforto ou bem-estar.

- Está chovendo só no Bosque, disse meu amigo me despertando de minha meditação.

- Como?

- Chove sempre por toda a Colônia. A chuva a lava, deixando as árvores dos jardins e das ruas alimentadas e bonitas. Mas aqui no Bosque chove quase diariamente.

- A chuva nos molha? Indaguei.

- Veja, disse Januário indo para a chuva, ela cai sobre mim e não me molha. É só você pensar que ela não irá lhe molhar, que não molhará.

Experimentei. Fui até ele. Que gostoso sentir a chuva. Pensando assim, sentindo a chuva cair sobre mim, ela me molhou. Januário riu da minha alegria.

A chuva parou. Sempre gostei da chuva e senti-la foi uma alegria. Mas em seguida pensei em mim seco e num instante estava seco e arrumado.

- Agradeço a sua atenção, Januário, mas já vou indo.

Voltei contente, o passeio me fez muito bem. Em casa, minha sogra me aguardava. Foi um prazer abraçá-la. À noite recebi algumas visitas que resultaram em conversas agradáveis. No outro dia, Márcio e Valéria vieram me buscar para me levar à Escola de Regeneração. Esta escola está dentro da Colônia, mas é cercada e seus alunos, principalmente nos primeiros tempos de internato, não saem dela. Esta escola é para espíritos que por algum tempo foram rebeldes às leis de Deus. Os que seguiram o caminho do mal. Ex-rebeldes, rudes, sem conhecimentos de educação, mas querendo regenerar-se, são internos nesta escola para um aprendizado. Muitos, entre eles, têm muitos conhecimentos, são instruídos sem ter a boa moral. Fomos caminhando devagar, conversando animados. Quando a avistamos, reconheci-a, sabia que vinha muito ali.

O portão foi aberto, fiquei emocionado. Amava tudo ali. Entramos no pátio, que é enorme, tendo canteiros de flores, árvores e muitos bancos.

- Oi Saulo! Como vai? Nesta hora aqui? - Disse uma senhora que, após ter me observado bem, falou: Você desencarnou! Quando? Como está passando? Bem, claro.

Sorri, pelo jeito esta senhora indagava e ela mesma respondia. Estava parada a minha frente e disse de modo sincero.

- Desejo-lhe que continue sendo útil aqui. Espero ser sua aluna.

- Obrigado, respondi.

Valéria me puxou pela mão.

- Vamos rever nossos amigos.

Entramos no prédio e fomos direto à sala da diretoria. Surpresa! Lá estavam muitos amigos. Companheiros com quem convivi no período em que me desligava do corpo.

Abraços.

- Não faz tempo que nos vimos. Mas agora a situação é outra, você está desencarnado. Quando vem ter conosco em definitivo?

Um deles me indagou, era um professor da escola. Márcio foi quem respondeu.

- Logo Saulo virá ter conosco, se isto for do seu gosto. Ele poderá morar e trabalhar aqui.

Ao toque de uma sineta que os levaria às salas de aula, os amigos se dispersaram. Valéria e Márcio continuaram comigo e minha filha disse:

- Venha, meu pai, rever tudo.

Lembrava de tudo e de todos os detalhes. Mas fui rever como ela quis. A Escola de Regeneração é muito bonita. Sua parte principal são as salas de aula. Há a ala onde os alunos têm seus alojamentos, um canto para si, como também o pessoal que trabalha na casa. Tem o refeitório, sala de orações, sala ou salão de palestra e música, uma boa biblioteca, sala de vídeos e televisão. Na parte da orientação, tem salas para atendimentos particulares, sala da diretoria e uma sala só para os professores e trabalhadores da escola se reunirem para uma conversação sadia. No pátio tem um bonito chafariz e sua água serve para abastecer a escola. Grupos de corais e de teatro vêm com freqüência se apresentar na escola. Depois de certo tempo, os alunos, se aptos, podem sair da escola e passear na Colônia. Depois do curso completo, escolhem o que querem fazer, reencarnar, continuar estudando, etc.

Ali era conhecido e conhecia. Recebia cumprimentos e era um prazer retribuir. Quando já íamos saindo, escutamos.

- Senhor Saulo! Senhor Saulo!

Era um homem, aspecto jovem, chegou rápido perto de nós.

- Hoje o senhor tem tempo? Espero que não tenha esquecido de que prometeu conversar comigo.

Lembrei vagamente de que tempos antes, numa visita à escola, quando ainda encarnado, este senhor me abordou pedindo para falar comigo. Mas estava com o tempo vencendo, tinha que retornar ao corpo e não pude atendê-lo. Mas, agora não, tinha tempo.

- Claro, hoje tenho tempo e será um prazer falar com o senhor.

- Não me chame de senhor, por favor, disse ele.

- Está bem, mas só se você também não me chamar.

- Tenho-lhe respeito.

- Sejamos amigos. Entre amigos nada de cerimônia.

Valéria e Márcio nos observavam e eu disse a eles.

- Podem ir. Fico aqui, depois irei sozinho.

Despediram-se e saíram, convidei este novo amigo para sentarmos num banco perto do chafariz.

- Como o amigo se chama?

- Leo-Chin.

- Muito bem Leo, podemos conversar.

- Conheço-o há tempo, sei um pouco do que é e faz. Minha vida tem sido diferente da sua. Segui o caminho do mal por séculos, tanto encarnado quanto desencarnado. Tive a graça de ter recebido a sua doutrinação. Você me convenceu a voltar ao Bem. Preocupo-me agora somente com o meu carma negativo. Acha mesmo que posso anulá-lo pelo trabalho no Bem, pela transformação interior?

- O hoje é conseqüência do ontem, mas o amanhã é o resultado do que fazemos hoje, com a herança do ontem e o trabalho de agora. Se no passado tivermos vivido em oposição à harmonia do universo, cultivando a prepotência, o orgulho, a vaidade, enfim, cultivando o que interessava a nossa personalidade medíocre e egoísta, criamos inconscientemente energias que desestabilizam nosso corpo e perispírito. Mas no momento em que acontece a compreensão da verdade única do universo, não somente o conhecimento mental, mas a compreensão verdadeira, passamos então a viver para o universo e não mais para a satisfação e prazer da personalidade, não temos mais desejos particulares[9]. Agimos em comunhão com a natureza. É neste tipo de vida que anulamos todo o carma negativo e nos transformamos. Agindo assim, não é mais a personalidade que age, mas sim Deus agindo através de cada um de nós. Nesta circunstância, não mais se cria carma, nem negativo nem positivo. Acontece a realização cósmica do filho de Deus. Eles se tornam um só.

- Saulo, não entendi direito.

- Meu caro amigo, você pode, em vez de sofrer para anular seu carma negativo, transformar-se interiormente para melhor, trabalhar para o Bem de todos e consequentemente para o seu próprio bem. Sim, o trabalho no Bem anula o carma negativo.

- Saulo, se eu fizer todo o propósito e, encarnado, mudar de planos? Porque sei que encarnado esquecerei de muitas coisas. Aí, o que me acontecerá? Como fazer para reencarnar bem firme?

- Fazer o propósito é atitude do crente que viu que muito perdeu e se arrependeu. Aspira ganhar o que não possui. Este propósito tem que ser sincero e sentido. Mas só isso não é suficiente. Esta mudança mental foi ocasionada pelo sentimento da perda. Ela é benéfica no primeiro estágio, mas, se foi apenas um conhecimento mental, esta fadada a ser esquecida numa futura encarnação. Para que levemos à nova encarnação dons natos é necessário que estes dons não sejam somente produtos de arquivos mentais. Mas que sejam filhos queridos da compreensão de que não só estamos no universo mas somos parte integrante deste universo. Assim, minha mão esquerda e a direita são partes do meu corpo, embora possa ficar sem elas. Compreendido isto eu estou em tudo e tudo está em mim. Consequentemente eu amo tudo. Não farei o mal, não porque Deus assim o quer, mas porque sei que, fazendo o mal aparentemente aos outros, estou fazendo- o a mim.

Isto, compreendido e vivido, será o elemento que levará ao reencarnante o dom nato do Bem. O que fizermos tem que ter a espontaneidade, tem que ser feito com alegria. Para que isto aconteça, temos que sentir Deus dentro de nós. E em tudo o que fizermos devemos pensar que estamos na sua presença. Estude Leo, prepare-se, só reencarne quando se sentir firme e capaz. Preocupe-se com o presente, faça agora para ter bom alicerce no futuro.

Leo deu-se por satisfeito, desejei-lhe de coração que tivesse êxito. Despedimo-nos e voltei à casa que temporariamente me servia de lar.

Por três dias passeei pela Colônia. Já sentia falta de atividades. Márcio veio conversar comigo.

- Saulo, daqui a três dias vou com você para revermos todo o Plano Espiritual.

- Não farei um curso para isto? Indaguei.

- Veja bem o que falei, rever, você já conhece, encarnado ia para muitos lugares, principalmente o Umbral, onde muito trabalhou. Pessoas como você, ativas no Bem, trabalhador dentro de um Centro Espírita por muitos decênios, estudioso, conhecem muitos aspectos do Plano Espiritual. Agora irá rever. Não fará curso. Este estudo é para ter conhecimentos e estes você já os tem. Iremos nós dois, em excursão de dois meses, rever tudo.

- Isso é bom! Exclamei contente.

Começamos pela Colônia Esperança, fui em todos os lugares, departamentos, hospitais, escolas. Tudo me pareceu encantador. Depois fomos visitar outras Colônias e as de estudo no Plano Superior. Achei-as divinas. O bom gosto e a simplicidade são marcas nestas Colônias.

Depois fui rever os Postos de Socorro da região como de outras partes. Fui ao Umbral, que me pareceu familiar demais. Sabia que, quando encarnado, por ele andava ajudando irmãos necessitados que ali vagavam. Sempre gostei de espíritos ativos, mesmo daqueles que ainda trabalham no mal, pois estes estão fazendo alguma coisa ou à procura de conhecimentos. Para mudarem é só uma questão de mostrar-lhes como trabalhar certo. E muitos deles, depois de entender a bondade de Deus, doutrinados, tornam-se preciosos trabalhadores do Bem.

Fui ver como se processam as reencarnações, como é a desencarnação, vi muitas religiões, participei de auxílios a encarnados doentes e obsediados. Enfim, vi um pouco de tudo no mundo Espiritual.

O tempo passou e acabou o tempo que Márcio se propôs a ficar comigo. Foi meu amigo e ótimo cicerone. Agradeci comovido.

- Obrigado, Márcio!

- Saulo, agora você pode ir para a Escola de Regeneração e trabalhar nela.

- Antes não posso ir trabalhar por uns meses no Posto de Socorro do Umbral junto com os socorristas?

- Poderá sim. Vá ao Departamento do Trabalho e acerte tudo. Mas posso saber o porquê?

- Márcio, amo de forma especial esses irmãos rebeldes às leis do Pai, gosto de tentar ajudá-los.

Tudo acertado, fiquei seis meses trabalhando junto com os samaritanos no Umbral mais profundo. Gostei demais, mas servir a Escola de Regeneração era minha meta e retornei a ela.

Nesse tempo ia sempre que possível rever meus familiares e amigos encarnados. Achei-os sempre bem.

Completamente familiarizado com o Plano Espiritual, passei a trabalhar na Escola de Regeneração.

 

Relembrando a Vida Encarnada

Fiz um pouco de tudo na Escola de Regeneração, mas logo passei a dar aula. Um aluno, certo dia, nos indagou. Estava com Márcio.

- Saulo, você já vai lecionar? Pensei que isto fosse tarefa para os que já estão há tempo desencarnados.

Foi meu amigo quem respondeu.

- Ensinar é para os que sabem. Mestre encarnado, continua desencarnado. Quem foi sempre é.

Também fui estudar, matriculei-me em cursos em uma Colônia de Estudo, onde estudava oito horas e lecionava doze horas. No restante do dia, visitava minha querida Inês, lia e ia à palestras.

Um dia, ao terminar a aula, saímos, os alunos e eu, a conversar pelo pátio. Um aluno me indagou:

- Saulo, o que fez para merecer uma desencarnação lúcida e, para mim, gloriosa?

- A lagarta, depois de comer com toda a voracidade que lhe é peculiar as folhas que encontra pela frente e ter acumulado energia necessária, procura um local adequado e, confiando no Criador, morre como lagarta para renascer como borboleta. Não é doença, trauma ou perturbação, é uma comunhão completa entre ela e o Criador. Da mesma forma pode acontecer com o homem, com uma única e importantíssima diferença. O que a lagarta faz inconscientemente, o homem deve fazer conscientemente. Aqui está o nó da questão. Todos sabemos da existência de Deus, da Sua onipresença, mas este conhecimento mental não muda a maneira de viver e agir, apesar de cultivar alguma crença, aos homens não interessa realmente investigar o que Ele é. Vivem envolvidos somente no seu ambiente, no seu conhecimento físico e mental. Como foi dito a “Adão”: “Ide, crescei, multiplicai e realizai a vossa natureza”. Não paramos para pensar no que significa crescer, já que “Adão” na época era adulto[10]. Basta dizer que o que ele fez foi constituir família. A grande maioria continua ainda vivendo da mesma forma. Mas crescer como? Crescer em espírito, compreender profundamente que o homem é uma síntese do espírito e da matéria. Se conseguimos nos espiritualizar na matéria, é sinal de que vivenciamos o espírito. O espírito é a vida que permanece, não importa quantos corpos tenhamos usado.

Se a desencarnação é o oposto do nascer, quer dizer então que os dois atos fazem parte do viver a manifestação cósmica. Conscientes disso, vivemos em harmonia não só com a vida que nos rodeia mas com tudo e com todos, até com a própria morte do corpo.

Desencarnar com lucidez é estar desprovido de todos os desejos, sejam eles quais forem, e ter completa confiança no Pai. Minha desencarnação não foi gloriosa, foi a de uma pessoa que se sente um com Deus.

- Por que não nos fala de como viveu encarnado?- falou um outro aluno que prestava atenção na conversa.

Nisso um outro grupo aproximava-se e com eles estava o orientador da escola, que me disse:

- Saulo, para que todos nós aprendamos que não é impossível viver bem e no Bem encarnado, falemos de você. Com seu exemplo veremos que se pode vencer os vícios, adquirir virtudes e que, para transformar-se interiormente para melhor, não é preciso ser excepcional, basta querer.

Vendo todos me olhando, comecei a recordar e falar.

- Quem sou eu? Quando esta pergunta preenche nossa mente, automaticamente os primórdios do passado desta encarnação afloram com toda a força em nossa tela mental, e nos confundimos com a personalidade que estamos representando.

Uma saudade sem razão nos envolve e chega a ser dolorida, saudade que não sabemos o porquê. Pois o passado dessa vida não carece de saudade, minha vida foi comum, igual a outras milhares. Nasci em família humilde, meu pai era um trabalhador braçal, dependia do seu vigor físico para ganhar o nosso pão de cada dia.

Cresci como qualquer criança até os nove anos. Foi quando, nessa idade, comecei a notar que meu raciocínio era mais lento que o de alguns dos meus colegas. Isso começou a me aborrecer e me fazer sentir inferiorizado, levando a inibir-me diante de outras pessoas. Este fato me acompanhou até minha estadia no antigo curso ginasial. Foi nessa época que meu pai desencarnou. Foi grande a perda desse amigo no qual eu confiava.

A vida me chacoalhava, me chamava à ação. Mas não sabia disso, pelo contrário, sentia-me punido, sozinho e abandonado à própria sorte num mundo em que me sentia menor que os outros.

Em pouco tempo de viúva, minha mãe casou-se novamente com um rapaz bem mais moço que ela. Iniciava ali a dilapidação do patrimônio acumulado por meu pai. Destituído desse alicerce monetário, me vi de um momento para outro necessitado de trabalhar a fim de ganhar o meu sustento. Para ganhar a competição natural da preferência do empregador, vi que precisava ser melhor e mais produtivo que meus colegas. Passei a dar quase total atenção ao aprimoramento ou desenvolvimento da minha acuidade mental e habilidade manual, com os anos o esforço foi recompensado.

Moço ainda conheci minha valorosa companheira, que a princípio não me deu atenção, pois ela era de família rica e tradicional. Eu, funcionário de uma fábrica que pertencia a sua família. Mas que coisa interessante, nesse encontro com ela, me veio novamente aquela saudade sem razão e o anseio por algo que desconhecia. Mas, para minha felicidade, fui aceito por ela como pretendente e encontrei em sua mãe minha defensora e segunda genitora.

Casamos. Esse início de nova vida foi para minha Inês época de desprendimentos e privações. Vários anos passamos com dificuldades e sofrimentos. Houve época em que trabalhava dezoito horas por dia e Inês, além do seu trabalho caseiro, e cuidar dos filhos, ainda me ajudava no meu trabalho.

Mas a vida teve piedade de nós cinco. Éramos minha Inês, eu , Juninho, Andréa e Valéria, a caçula. Nosso esforço produziu, com o amparo Divino, uma condição financeira razoável, tínhamos o necessário. O trabalho era muito, com Inês me ajudando já tínhamos nosso próprio negócio, mais tarde o nosso sítio.

Nos períodos tempestuosos da luta pela sobrevivência, os meus anseios interiores eram totalmente sufocados. Mas com a relativa calmaria do ganha-pão eles apresentavam-se novamente como meus inseparáveis companheiros. Julgava então naquela época que a angústia e aquela saudade eram frutos do meu anseio de ter tranqüilidade financeira suficiente para dar aos meus uma vida tranqüila sem privações. Mas a vida novamente vem avisar que não era na abastança financeira que residia a minha harmonia.

Os dias se repetem e a maioria de nós estamos empenhados na conquista de bens e posições sociais julgando encontrar nessas aquisições a felicidade. Eu não fugia à regra. Até em nossas preces somos profundamente egoístas, geralmente pedimos a Deus soluções para problemas criados por nós mesmos ou ainda a conquista de nossas aspirações. Muitas vezes, só conjugamos o verbo no presente e na primeira pessoa, eu. Poucas vezes nos calamos para que Deus possa nos falar. E eu fazia parte dessa maioria que assim age.

A humanidade através dos tempos criou várias normas e regras para a boa convivência entre os homens. E, para mim, uma das melhores foi o casamento, o baluarte de todas as minhas atitudes. Minha Inês esteve sempre ao meu lado, semelhante a um sustentáculo, no qual minha confiança era absoluta.

Medíocre era minha vida, assim como é estúpida a vida da maioria dos homens. Uma busca incessante e interminável de sensações e prazeres físicos e mentais. Nesse afã, as posses do mundo se tomam o fim da nossa existência.

Nem só de pão vive o homem, disse o maravilhoso Nazareno. Mas estamos por demais ocupados com as coisas do mundo e não temos tempo para os interesses d'alma.

Quando forças astrais nos atingem perturbando nosso viver, procuramos soluções para o que nos incomoda. Não entendemos que, se algo está errado, não será na nossa maneira de viver? Porque nos avisou Jesus de Nazaré que algo mais do que comer, beber e vestir, compõe a estrutura do homem. Quedas e tropeços fazem parte do jogo da vida. Já havia me acostumado a essa insegurança que me atingia. Mas, quando a dor e a angústia atingiam meus afetos, me sentia como se atingido nas entranhas.

Então um fato veio me chamar atenção. Meu filho mais velho, na idade escolar, tomou verdadeiro pavor de ir para a escola. Tentamos de tudo, nada conseguimos. Por sugestões de amigos levamo-lo a um benzedor, Sr. José Alexandre, um senhor em idade avançada com seu terço na mão, amor fraterno no coração e na alma, envolveu meu filho em suas orações e, como por milagre, findou o pavor dele pela escola. Logo após, minha filha Andréa passou a ter medo de todas as pessoas do sexo masculino. Novamente busquei o socorro do bondoso José Alexandre e ela voltou à normalidade com todos.

Mas aquele bondoso velho me chamou atenção; apesar do corpo já em decadência, todo trêmulo, possuía ele uma força ou estava ligado a forças que desconhecia.

O Bem e o mal faziam parte do meu conhecimento teórico. Mas não conseguia, apesar de todas as promessas e rezas, neutralizar as forças do mal, quando estas nos atingiam.

Nascia ali em minh'alma o desejo de saber. Não somente o conhecimento teórico, mas a própria essência dessas forças. Mas onde começar? Nas igrejas cristãs só tinha encontrado uma evangelização baseada na boa convivência entre os homens e uma devoção sofrida a Deus. Não era isso que procurava. Ansiava por um estado sem conflito, um estado de espírito pleno em que minhas ações espontâneas não fossem opostas à vontade de Deus.

Só me restava o Espiritismo. Naquela época tinha uma simpatia por ele, embora não o conhecesse.

Mas os interesses e necessidades do mundo físico eram depositários de todo o meu tempo e atenção. Até que um dia me vejo novamente tomado por uma angústia que me doía até a alma. Procurando a razão ou motivo desse sofrimento não o encontrei na esfera das coisas físicas, pois minha vida estava estabilizada e tudo ia bem. Sentia minh'alma vazia e isso me incomodava profundamente. Minha companheira me recomendou que rezasse. Busquei nos arquivos mentais a forma de ser mais religioso, lembrei da época em que vivi num convento de Beneditinos, recordei dos ensinos que lá tive, que julgava serem espirituais, mas hoje vejo que não passavam de devaneios mentais que não deixaram raízes. Não era isso o que queria para minh'alma.

Os homens raramente buscam dentro de si mesmos as respostas para os seus problemas. Por sugestões de outros, passei a buscar num passista a solução para meus estados de angústia e depressão. Passe é remédio momentâneo. Defini novamente que não era na dependência ou mendicância espiritual a resposta adequada para saciar meu espírito.

Mas a vida não tem pressa pois não precisa chegar a lugar nenhum. Só os homens se afligem pelo tempo. Confundem-se com a sua personalidade passageira, por isso estão sempre afobados.

O Espiritismo me chamava a atenção. Mas por não entendê-lo não me dediquei a ele. Mas perseguições espirituais passaram a atingir meu trabalho e negócios. Sentia que algo estranho estava me afligindo.

Minha cunhada, pessoa de meu afeto, médium, começou a ver espíritos e estes a perturbavam pelo seu dom mediúnico. Também buscava lenitivo nos passes para seus apertos. Um dia, fui com ela num trabalho de desobsessão. Talvez, por sermos ainda imaturos, não nos tocou e não voltamos.

Até que um dia foi emprestado a Inês um livro Espírita. Ela leu, gostou e me deu para ler, dizendo que ia gostar, pois o assunto era o que andava a buscar. O livro que veio mudar minha vida foi “Nosso Lar”, psicografia de Francisco Cândido Xavier, pelo autor espiritual André Luiz. Disse um grande espírito que o escritor deve ter a capacidade de trazer ao leitor o nascimento da luz mental que já está em gestação no interior do seu coração. Foi justamente isto que aconteceu comigo. Quanto mais lia, mais me entusiasmava. Li todos os livros do André Luiz e muitas obras Espíritas. Encantei-me com a Doutrina do codificador Allan Kardec, estudei seus livros com afinco e meditei muito no que lia. Mais tarde, li a filosofia do Oriente e os ensinos dos grandes homens que passaram pela Terra. Assim, todo meu tempo disponível era usado para leitura ou meditação sobre os valores espirituais que me levaram a compreender os ensinos do genial Nazareno.

Mas, logo depois de ter lido as primeiras obras Espíritas, tentei me encaixar num grupo, no começo não foi fácil, porque queria um grupo de estudiosos.

Minha cunhada casou-se e foi residir em outra cidade, distante da que morava. Por acúmulo de problemas provocados por sua mediunidade sem uso, foi levada por uma vizinha a um Centro Espírita. Como teve todas as dificuldades resolvidas, resolveu virar Espírita e freqüentar um Centro Espírita. Ela encantou-se com o grupo, me falou com tanto entusiasmo que resolvi conhecer. Era o que procurava. Assim, apesar das dificuldades, passei a freqüentar como me era possível o grupo, depois com a ajuda de uma pessoa desse Centro, uma senhora, que muitas vezes veio até a cidade em que residia para nos orientar, formamos um grupo. Então preenchi o vazio de minh'alma. Nunca havia me passado pela cabeça ser um dirigente Espírita. Mas, desde que me foi dada a. possibilidade, procurei fazê-lo com carinho e eficiência. No correr do tempo, fui arquivando experiências e, através de muito estudo, fui notando que com minha interferência na doutrinação de espíritos trevosos e zombeteiros tinha maior eficiência e muito aprendi para ajudá-los. Compreendi que no contato com o Bem aprendemos a cultivar atitudes benéficas. Mas no relacionamento, ou melhor dizendo, sofrendo assédio dos maus, fatos normais depois que me tomei um dirigente Espírita, tive que desenvolver, ou melhor, propiciar ambiente interior. Este fato estimulou-me a crescer espiritualmente e a vibrar no Bem em comunhão com o Criador. Essas pressões desses irmãos aconteciam com tal intensidade que sentia falta quando não estava sendo pressionado. Nunca reclamei nem fiquei a implorar a assistência dos protetores. Isso me estimulou a crescer, estudar, meditar e a compreender as forças que regem os dois mundos que nos sustentam.

Hoje, olhando para o passado, para o período em que iniciei como dirigente espírita, me parece ter sido como uma prova de fogo a que foi submetida minha personalidade. Foi para testemunhar que realmente buscava os valores d'alma.

É comum aos adeptos de uma seita, seja ela qual for, se encher de entusiasmo quando vislumbram a possibilidade de conquista de algo melhor ou maior do que possuem. Julguei erradamente que ser religioso era obter a assistência dos bons espíritos e que, para isto, era necessário minha presença física no movimento Espírita, mas logo descobri que era necessário eu Ser, vibrar com as forças do Bem, largar de ser mendigo espiritual e de ser servido para servir, tornar-me servo do Pai.

Meditando como foi que viveram nossos grandes instrutores, em especial Jesus de Nazaré, vi que eles combateram as trevas com a luz da compreensão. E tudo fiz para ser um foco de luz para desintegrar as trevas.

Devo esclarecer a vocês que não fui um evangelizador, fui um doutrinador, tanto para os encarnados e, mais ainda, para os desencarnados.

Tive a felicidade de unir-me aos meus amigos desencarnados, uma boa equipe que estava a fim de estudar, meditar e, acima de tudo, seguir os passos de Jesus.

Sabia também que os espíritos que orientávamos no Centro Espírita vinham para esta escola de Regeneração, e aqui por algum tempo estudavam.

Para minha alegria, todos da família tornaram-se Espíritas e estudiosos. De modo inesperado, por uma doença fatal, Valéria desencarnou, nos deixando o vazio de sua presença física. Este fato nos levou a ter mais fé e confiança. Tudo fiz para ajudar minha filha na nova vida a que foi chamada a viver. Com nosso exemplo diante da sociedade, ajudamos muitos outros pais nas mesmas condições.

Com minha transformação interior, com minha integração com Deus, com compreensão, não houve mais conflito. Tudo o que importava era minha ação como parte integrante do universo e não mais como personalidade gozadora dos bens físicos e mentais. E nunca deixei de ensinar o que sabia para os que me procuravam.

Finalizei. Achei que para mim foi esta mudança interior, esta busca da Verdade que me levou a ser feliz, a ter a Paz desejada. Márcio resolveu interferir, talvez para que tudo ficasse bem explicado.

- Certamente a modéstia fez com que nosso amigo Saulo não nos narrasse tudo o que fez. A vida do espírito sempre foi um chamamento para as atenções do nosso amigo. Desde o princípio, quando se envolveu no movimento Espírita, os mínimos detalhes de informações espirituais, em que ensinos de grandes espíritos estavam gravados em livros que ele lera, eram como tijolos numa construção. Parecia a ele que tudo aquilo lhe era conhecido. Se realizava o ditado popular. A quem sabe ler, um pingo é letra. E qualquer menção ou fato descrito do ambiente espiritual era como lembranças de algo esquecido. O início do seu trabalho no Centro Espírita com irmãos necessitados foi muito intensivo. Não tinha hora nem dia para socorrer encarnados e espíritos. Mas, ao mesmo tempo que se dedicava ao auxílio, meditava e olhava o resultado do trabalho realizado. Nesse ínterim, foi descoberto por espíritos inteligentes dedicados na realização do mal. Aí, em vez de implorar ou reclamar a assistência dos protetores, se pôs a meditar, a instruir-se, procurando a melhor maneira de neutralizar as forças que o oprimiam. Foi na ajuda a esses irmãos que ele recordou muito do seu passado. Sempre estava satisfeito com o que tinha, mas nunca deixou de desenvolver e aprimorar tanto seu trabalho físico quando seu trabalho Espiritual.

Foram muitos os irmãos temporariamente no mal que ele orientou. Ele o fez por amor. Ele ama particularmente esses espíritos. Talvez até porque tenha sido um deles no seu passado distante. Viveu visando o melhor. Vendo que o simples fato de neutralizar o efeito dos erros não muda o espírito, ele até usava a expressão um tanto rude: “Os desencarnados e encarnados procuram neutralizar a ressaca dos erros cometidos, porque a ressaca os incomoda, mas querem continuar cultivando os prazeres que os erros lhes proporcionam.”

Sem saber o porquê das intuições que lhe afloravam, sentia no seu íntimo que algo mais deveria ser feito. Que o trabalho realizado de socorro, amparo, auxílio era bom, mas não o suficiente para transformar ou libertar o espírito do seu carma negativo. Dedicou-se então, com muito empenho, a ensinar encarnados e também desencarnados. Para isto, foi montado no Plano Espiritual um canal onde os desencarnados pudessem ouvi-lo. Também, ao sair do corpo físico quando adormecido, ele ia sempre ao Umbral, privando-se até dos Planos Superiores, que são sempre mais agradáveis, para socorrer, ensinar, orientar os irmãos que ainda não foram tocados pela compreensão do amor fraternal do Pai.

Assim, Saulo viveu para que o maior número de pessoas pudesse com seu ensino, e exemplos, deixar de realizar o mal. Como também serem auto-suficientes e deixar de ser mendigos espirituais para ser companheiros na construção do mundo melhor que todos nós aspiramos viver na Terra. Sua lista de Bens realizados é imensa.

Márcio terminou sua narrativa simpático como sempre. Um dos ouvintes, aluno da escola, me indagou:

- Saulo o que você pensa de nós? Somos aqui na Escola de Regeneração ex-espíritos trevosos que você orientou. E eu particularmente senti seu carinho. E esta foi a maior ajuda que recebi.

- Sinto que para ser feliz, para estar bem comigo, é necessário que vocês também estejam. Meu sentimento para com vocês é um misto de pai e irmão mais velho. Eu posso adorar a Deus sozinho, mas a Deus só posso amar, amando todos vocês.

Senti que aqueles alunos também me queriam bem. Com o toque da sineta, o grupo foi dispersado, terminada assim a conversação tão útil a todos.

Valéria veio me ver e trouxe uma visita.

- Papai, quero lhe apresentar Antônio Carlos, um notável escritor.

- Muito prazer, disse contente. Quando encarnado li alguns dos seus livros e aqui tive a felicidade de ler outros. Gosto muito do que escreve.

- Obrigado, respondeu simplesmente.

- Sabe, papai, disse Valéria, conheci Antônio Carlos na Colônia Casa do Escritor, convidei-o para vir aqui conhecê-lo e, para minha surpresa, ele aceitou.

- Há tempo queria vir visitar uma Escola de Regeneração, disse o escritor. Acho este trabalho muito importante. Mas fale de você. Gosta daqui Saulo?

- Sim, todos os lugares para mim são especiais, sinto a presença de Deus em tudo.

- Que maravilha. Soube por Valéria que você encarnado foi um grande estudioso e que teve uma bonita desencarnação.

Rimos.

- Saulo, disse meu novo amigo, estou à procura de uma pessoa para compor um livro que será escrito mostrando aos leitores pessoas que encarnadas venceram a si mesmas e tiveram por merecimento próprio uma desencarnação feliz. Serão três pessoas, as outras duas já encontrei, convidei-as e aceitaram. Este livro será um incentivo às pessoas boas que se esforçaram pela sua melhoria, que foram servos, serviram com boa vontade. Enfim, fizeram o Bem. A primeira, fez tudo isto, só que não estudou, não adquiriu conhecimentos encarnados. A segunda teve conhecimentos razoáveis. Quero agora uma que tudo fez por compreensão. Fale- me de você.

- Bem, tentarei resumir. Verá que nada fiz de excepcional.

Por horas conversamos agradavelmente. E, para minha surpresa, Antônio Carlos fez o convite.

- Saulo, convido-o a ser esta terceira pessoa. Por favor, aceite. Você não quer dar seu exemplo e incentivo a muitos encarnados? Ficaria feliz se aceitasse.

- Aceite, papai, por favor, disse Valéria entusiasmada.

- Aceito!

Valéria refletiu por momentos e me indagou:

- Será que os encarnados ao lerem estas desencarnações felizes não sentirão vontade de desencarnar?

Ri de minha filha, mas achei que ela poderia ter certa razão na sua preocupação, e respondi:

- Este é um dos pontos que mais deveriam ser pesquisados e meditados por todos os homens de boa vontade. Veja bem, minha desencarnação não foi uma conquista, nem era tida como fim na minha maneira de viver. Em muitas ocasiões, nas palestras que fazia aos meus companheiros encarnados, dizia- lhes que, quando desencarnasse, não sabia para onde iria. Pois onde quer que fosse estaria com Deus. O meu sentir bem ou viver bem não está vinculado a ganho ou perda. Se este viver bem acontecia desde quando estava na carne, ele é conseqüência da minha compreensão de que a vida é a realidade única, que está em tudo e em todos, não havendo diferença se é na matéria ou aqui no mundo astral. A única diferença está na separação dos indivíduos. Aqui se reúnem espíritos com o objetivo do Bem, no Umbral os do mal. E na Terra bons e maus estão juntos.

Então, se não sentimos Deus, ou melhor, não temos a sensibilidade para vê-Lo em todas as coisas, tanto faz estarmos na Terra ou no mundo astral, não conseguimos ser felizes. A beleza da criação Divina é fantástica em qualquer dos seus aspectos. Digo-lhe que a vejo bonita até na liberdade que têm os malfeitores de fazer o mal. Só que aqui vem a advertência de Jesus: “O mal há de existir, mas ai de quem o praticar”. Se porventura o encarnado acha que a desencarnação irá mudar o seu mundo interior, sua primeira descoberta será frustrante. Verá que a felicidade ou infelicidade é um estado de ser. É construída no lugar onde estamos. Eu, aqui, sinto como se tivesse mudado de casa. Minha maneira de ser, meu objetivo e meu trabalho continuam os mesmos. Dignificar incessantemente a minha personalidade por toda a eternidade, me integrar cada vez mais. E se, para que isto aconteça com maior voltagem, tiver que voltar para a vida material, não pensarei duas vezes, na primeira oportunidade lá estarei.

Valéria, este problema sempre existiu. É que nunca estamos satisfeitos com aquilo que Deus nos dá, com a oportunidade que temos nas mãos. Ao olhar, ao querer mais, deixamos de desfrutar aquilo que o Amor paternal de Deus nos concede no agora. Ao querermos as facilidades e a felicidade do depois, esquecemos de ser felizes, muito embora possamos estar no corpo físico. A diferença aqui para nós é que não temos necessidades fisiológicas, para os que sabem, porque os que vagam ainda sentem os reflexos do corpo físico. Mas como você, minha filha, já bem viu nas suas excursões, os conflitos da vida mal direcionada existem tanto para encarnados como para os desencarnados.

Espero, Valéria, que o conteúdo que ora estamos narrando possa despertar nos nossos companheiros encarnados o desejo de abrir os olhos e ver Deus transcendente a sustentar seus próprios corpos, tanto quanto as outras coisas. E, digo-lhe, se chegarem a este ponto as dificuldades não serão peso ou castigo.

Mas as verão como oportunidades de se melhorar, por viver mais intensamente esta união com Deus. A beleza da vida está em participar com Deus no seu concerto universal. Não importa o local ou de que maneira estamos, porque tudo o que tivermos não será merecimento nosso, será sempre uma doação Divina.

Se o leitor prestar atenção no nosso diálogo verá que a desencarnação não lhe trará lucro nenhum. Pois a desencarnação apenas o mudará de plano. A verdade tem uma força própria, se conseguirem ver a verdade do que dissemos não só mudarão sua maneira de agir interior e exterior, mas também verão que as dificuldades do mundo físico são uma oportunidade excepcional de burilar a personalidade que nos pertence.

- Saulo, disse Antônio Carlos, desde que o vi, sua harmonia me chamou atenção.

- Sou feliz! Respondi.

- O que é a felicidade para você?

- Buscar parece ser a sina do homem. Desde que Adão foi expulso do Paraíso, dá-nos a impressão de que o homem perdeu algo de suma importância[11]. E desde então está a buscar sem descanso, mas não encontra o objeto procurado. Na verdade o homem não sabe o que busca. Nesta confusão, as satisfações e prazeres do mundo físico que ele conhece muito bem tornam-se a razão de ser, a finalidade de sua existência.

A hominalidade, um potencial que só o ser humano possuí, deve ser por ele trabalhado e desenvolvido. Esta é a herança Divina, sua imagem e semelhança de Deus. Este estado é de Divina bem-aventurança.

A personalidade humana no seu princípio é egoísta e ociosa. É por esta razão que raramente nos dispomos a trabalhar o espírito. Pois esta aventura, em regiões ainda não conhecidas pela grande massa, exige do bandeirante espiritual convicção que requer disposição incansável e capacidade de renúncia a todos os valores conhecidos dos seus companheiros de caminhada.

Diante de tamanha dificuldade, nossa mente com muitas artimanhas permuta os valores mais difíceis de alcançar por valores que ela já conhece. Os que já são há muito patrimônio da humanidade. E, por isso, buscamos a felicidade.

Mas o que é felicidade para os homens? Quando é que achamos que o homem é feliz? Para a maioria, feliz é o homem que não tem problemas financeiros, os que não precisam trabalhar para ganhar o seu sustento, ou os que têm, além do dinheiro, saúde e gozam muitos prazeres. Quando a natureza nega, boicota essa felicidade, julgam-se infelizes e saem em busca desses prazeres temporais. Não somos humildes e não nos contentamos com o que julgamos ser pouco. Estamos acostumados que quantidade e superioridade são prenúncios de felicidade.

Precisamos aprender a ver Deus em suas criaturas e em nós mesmos. Aprender a dar valor à tranqüilidade do Bem realizado, à harmonia da compreensão e vivência dos ensinos de Jesus, no crescimento Espiritual. Que não são temporários, são eternos. É na Paz da consciência tranqüila que sentimos a onipresença e o Amor do Pai. Se chegarmos a este ponto encontraremos a bem-aventurança daqueles que nada têm de seu, mas com Deus tudo possuem.

Para mim, esta é a verdadeira felicidade que a humanidade perdeu e ainda não achou, com a exceção de alguns poucos felizardos.

Neste estado termina todo o anseio de acumular ou possuir desejos, não há mais nada a ser buscado, é como se estivéssemos em plena ou constante alegria. Veio em minha mente o dito do genial Jesus em que compara o Reino dos Céus a um banquete. Mas, quando somos regidos pelas nossas paixões mentais, não somos capazes de intuir este banquete permanente. Pois a mente só conhece os prazeres sensitivos que são por sua natureza temporários e precisam ser renovados constantemente. Só a instrução, a compreensão da unidade entre Deus, homem e todo o Universo podem proporcionar ao homem, seja desencarnado ou encarnado, estar no banquete do Pai. Esta é a maior e permanente felicidade que o ser humano pode desfrutar.

- Muito bom, disse Antônio Carlos. Peço-lhe para escrever isto no seu relato. Mas Saulo, me responda, o que foi mais importante para você nesta encarnação?

- O estudo e consequentemente a vivência dos ensinos de Jesus.

- E, agora, a famosa pergunta. Valeu a pena?

- Dizer que valeu a pena é muito pouco. É insuficiente para descrever minha felicidade que resultou desta última encarnação. Até o ponto em que estou, erros e acertos foram constantes nas minhas existências físicas e nos meus estágios no plano astral. Como qualquer outro homem, meu mundo psíquico foi um poço de conflito entre o que deveria ser e aquilo que era na realidade. Mesmo quando só cultivava a virtude, tinha uma vida sofrida. Pois a virtude significava abster-me daquilo que gostava, não o fazia espontaneamente. Só quando passei a fazer por compreensão, amor, aprendi seu significado verdadeiro e a alegria de Ser. Compreendi pelo estudo e meditação que não havia separação entre mim e Deus. Desde então, não sinto distância entre mim e Deus, sinto-me parte da própria criação sem qualquer dúvida. Pode, meu amigo, haver algo melhor ou maior?



 

[1]N.A.E. - Diferem aqui um jardim de outro. Em muitos, esta passarela é de mosaicos coloridos, em outros esses ladrilhos formam lindas gravuras.

[2]N.A.E. Quando encarnado, os amigos desencarnados, meus companheiros de trabalho, me comunicaram o fato. 

[3]N.A.E. Aeróbus é opcional, é utilizado quando dele se necessita e pelos que não sabem volitar.

[4]N.A.E.- Naquele momento confundi os desencarnados que me socorriam com os encarnados. Era somente um encarnado que estava comigo, os outros que via eram amigos espirituais que me desligavam. Quando dormi foi em parte pelos remédios que tomava e porque desencarnava.

[5]N.A.E. Acidentes ocorrem com espíritos se estes estiverem ainda inconscientemente ligados à matéria.

[6]N.A.E. Nas Colônias locomovemo-nos andando. Há, também, os aeróbus que circulam por elas. Não é costume volitar. Nos prédios, ou subimos pelas escadas ou usamos os elevadores como os encarnados.

[7]N.E. Deixei adormecido o perispírito, este ainda é um veículo inferior, saí em espírito. No livro “Nosso Lar”, de André Luiz, psicografado por Francisco Cândido Xavier, temos melhores explicações no capítulo 36.

[8]Nota de Antônio Carlos: No livro “O Céu e o inferno” ou “A Justiça Divina Segundo o Espiritismo”, na segunda parte, capítulo II, Allan Kardec nos dá exemplos de pessoas que tiveram desencarnações parecidas com a de Saulo. 

[9]N.A.E. Trata- se de uma colocação pessoal do Espírito Leo-Chin. Ver, a propósito, em “O livro dos Espíritos”, na primeira parte, Capítulo I, as questões 14, 15 e 16; na Introdução, parte II, 3º. e 9º. parágrafos; e, ainda, a questão 83. 

[10]N.A.E. Adão, personagem Bíblica, é utilizado aqui apenas como ilustração simbólica pelo autor, não acarretando qualquer envolvimento obrigatório com religiões ou seitas.

[11]N.A.E. Novamente, Adão é utilizado como ilustração simbólica.

 

 

                                                                                Vera Lucia Marinzeck  

 

                      

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