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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


VASSALOS DA DESTRUIÇÃO / O. C. Tavín
VASSALOS DA DESTRUIÇÃO / O. C. Tavín

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

  

Penitenciária dos Desesperados, localizada na pequena cidade de Yuma, distante quarenta quilômetros da fronteira com o México.

Os protagonistas: três bandidos que, aproveitando-se da escuridão da madrugada, lograram evadir-se da prisão.

A dúvida: Cada um dos três tinha sua própria ideia do que fazer a seguir.

Frazer queria atravessar o Rio Colorado e chegar à cidade da Califórnia.

Schuck era da opinião que deviam separar-se, o que dificultaria a ação da polícia.

Pancho tinha como meta atravessar a fronteira e chegar à cidade de Astec, onde reencontraria com Lupe, por quem era perdidamente apaixonado e tinha certeza de ser amado igualmente pela moça.

Frazer e Schuck eram assassinos perigosos, que matavam pelo simples prazer de matar, se disso pudessem tirar alguma vantagem.

Pancho, pelo contrário, nunca tirara a vida de ninguém. Era ladrão, sim, mas nunca mataria alguém a não ser em defesa própria.

Qual o destino que estaria reservado aos três facínoras? Será que Lupe ainda estaria esperando por Pancho, mesmo após uma separação de dois anos?Quando o amor é verdadeiro, tudo é possível, até mesmo a regeneração de um bandido.

 

 

Na igreja da pequenina Yuma o relógio da tor­re badalou as duas da madrugada. O céu estava co­berto de nuvens e a noite era tranquila. Até mes­mo na prisão territorial tudo estava em paz.

Yuma fica na Califórnia, a uns quarenta qui­lômetros da fronteira com o México, e a sua prisão territorial é também chamada de Prisão dos De­sesperados. Toda a escória que escapou da forca é para ali encaminhada. Muitos são condenados à prisão perpétua, outros ali ficam por longos anos. Alguns, escapando do patíbulo, não escapam de morrer nas mãos de outros criminosos.

A prisão está cercada por um imponente e largo muro de pedras e, lá em cima, dia e noite, os sentinelas se revezam, atentos ao menor movimento, de armas embaladas, prontos para atirar. As portas e janelas são protegidas por grossas barras de ferro. Centenas de homens ali permanecem, como feras enjauladas, espreitando uma oportuni­dade para tentarem a fuga. Os mais conformados riscam os dias da folhinha dependurada na parede das celas, contando os anos e os meses que lhes res­tam de reclusão, na esperança de voltarem em li­berdade, livrando-se daquele verdadeiro inferno.

Quem passasse pelo descampado, a vinte me­tros ao sul da muralha, entre o mato rasteiro e montes de pedras, poderia ouvir o barulho surdo de picaretas, semelhante ao que fazem os mineiros de carvão a escavar as galerias. Mesmo no silêncio da noite, as sentinelas, lá no alto da muralha não chegaram a perceber. Continuavam no seu passeio rotineiro, com a atenção voltada apenas para o in­terior do presídio.

Cerca das duas e meia, o terreno coberto de mato pareceu elevar-se, de repente. Os golpes de picareta continuavam agora mais fortes, quase próximos da superfície. Depois de elevar-se por um instante, o matagal afundou inesperadamen­te, como se fosse sugado por um tremor de terra. A areia deslizou pela cratera que surgia. Cessados os golpes, apareceu na boca do túnel uma cabeça de homem. Enchendo os pulmões, aspirou fortemente o ar da madrugada. Olhou para a muralha. O ma­tagal oferecia bastante proteção.

— A sentinela deu meia volta na esquina e está caminhando, em nossa direção... – disse al­guém, em voz baixa. – Mas não tem possibilida­de de nos ver, aqui atrás do mato.

Chegando perto da torre, a sentinela olhou em direção ao mato, detendo-se por um momento, pa­ra continuar logo depois a sua caminhada.

O que estava de espreita avisou:

— Já se foi. Deverá estar de volta dentro de dez minutos. Vamos aproveitar! Tratem de cor­rer!

Agarrando-se à terra como uma lagartixa, o homem foi saindo do buraco. Já completamente fora, olhou, de novo, em direção à muralha e cor­reu para o outro matagal próximo, tratando apres­sadamente de ocultar-se. Outra cabeça apareceu na boca do túnel, repetindo os movimentos de cau­tela do anterior. Finalmente, o terceiro chegou à superfície e ficou um instante parado, demons­trando certa inquietação.

— Vamos, Panchito! Depressa! Estamos aqui! – exclamou um deles, levantando o braço. – Trate de correr, antes que venha a sentinela!

Panchito, o mexicano, precipitou-se em dire­ção aos companheiros. Ficou de cócoras atrás de uma moita, fazendo o sinal da cruz e murmurando algumas palavras que os outros não entenderam.

— Olhe ele! — exclamou Nic Schuck, debo­chando. — Pensa que foi Deus quem abriu o túnel para nós escaparmos!

— E por que não? – respondeu Panchito, convicto. — Nós seríamos capazes de fazê-lo se ele não quisesse?

— Ora! Deixe de tolices. O túnel foi aber­to por nós, à custa do nosso esforço e da nossa pa­ciência – comentou Tony Frazer. — Mas isto não interessa. O importante, agora, é usar as pernas.

— Tratemos de correr. Teremos que estar muito lon­ge daqui, antes do amanhecer.

Os três começaram a andar ao mesmo tem­po. Correram muito nos primeiro minutos, a fim de se precaverem contra o azar de serem percebi­dos pelas sentinelas. Passada a primeira fase do perigo, diminuíram um pouco o ritmo da marcha, embora continuassem apressados. Sabiam que às seis horas, os presos formariam para a revista matinal e sua ausência seria notada, fatalmente. O alarma provocaria a imediata saída dos guardas ru­rais à caça dos fugitivos.

— Para onde iremos? — perguntou Frazer, fatigado. — Precisamos resolver isto o quanto an­tes. Penso que o melhor seria tentarmos chegar à Califórnia, do outro lado do rio Colorado. E, pelo visto, tomamos a direção inteiramente contrária.

— Parece que seria melhor nos separarmos disse Schuck. — O que você propõe não vai dar certo. Penso que os rurais irão procurar-nos pri­meiro, justamente na estrada que vai para a Cali­fórnia. E se eles vão agir assim, melhor seria se tomássemos o rumo do deserto. Qual a sua opi­nião, Panchito?

— Que bom seria se eu tivesse agora uma bota e um cavalo para montar! Não teria necessidade de me arrebentar todo, botando as tripas pra fora de tanto correr! – exclamou o mexicano. — Acho que ir para a Califórnia é uma grande tolice. É ali mesmo que eles nos procurarão em primeiro lugar.

— Eu já sabia que você não iria concordar... – comentou Schuck. — Sei que prefere tentar cruzar a fronteira do México. Quer ficar em casa. Mas os rurais estarão vigiando, também, a região da fronteira!

— Então, vamos para o deserto. Depois, quando tudo acalmar, poderemos cruzar a frontei­ra, em Nogales ou nas proximidades – propôs Frazer. – A fronteira é muito grande e eles não poderão vigiá-la por inteiro e o tempo todo.

Os três recomeçaram a marcha em direção ao sul. Silenciosamente, avançaram sobre aquele ter­reno ressecado, recoberto de pedras, cactos e ma­to rasteiro. Depois de algum tempo, fizeram uma pequena parada, ao divisarem umas luzes, ao lon­ge. Identificaram Araby, pequena povoação pró­xima de Yuma cerca de dez quilômetros.

— Se fôssemos até lá, conseguiríamos água e comida. – comentou Frazer.

— E cavalos... E armas... – ajuntou Schuck, rindo. — Você pensa, por acaso, que fugir de uma prisão é como dar uma voltinha pelos arre­dores, comer e beber à vontade, roubar um cavalo e sair por aí como um grão-senhor? Deixe de bes­teira, imbecil! Seria cair na boca do lobo! O que temos a fazer é marchar rumo ao deserto. Dentro de umas duas horas teremos dezenas de policiais ao nosso encalço! Trate de correr, se não quiser voltar para aquela prisão miserável!

— Pois eu pensava que poderíamos encontrar uma bonita granja e nos regalar com água e bas­tante comida...! –suspirou Panchito. — Pe­dindo, é claro, pois não sou de assaltar ninguém! Mas, de qualquer forma, é bom que continuemos a caminhar até o raiar do dia. Quando amanhecer, teremos que parar e procurar um bom esconderijo.

Dormiremos, refazendo as forças, para continuar­mos de noite. Estão de acordo?

— Sim. Teremos que fazer isto mesmo, se ti­vermos juízo – respondeu Schuck. — Mas onde vamos encontrar água e comida? Será que vamos morrer de fome no deserto, dando de comer aos abutres? Não gostaria de entregar a minha carca­ça tão depressa... Esta história de deserto não me cheira bem. É a mesma coisa que suicídio.

— Vamos ao deserto e entraremos, depois, no México. Em Nogales é mais fácil. Serão dias ter­ríveis, não resta dúvida, mas teremos chance de continuar em liberdade – propôs Frazer, resolu­to. —É o que farei. Se quiserem, podem me acom­panhar. Caso contrário, cada um que faça o que bem entender.

— Eu irei com você — concordou Juarez. — Vamos pelo Caminho do Diabo até atingirmos a fronteira. Se a alcançarmos, estaremos salvos. Vo­cê também vai, Schuck? Se for, decida logo, pois ainda temos muito que caminhar!

— Preste atenção, Schuck — disse Frazer, se­gurando um punhal e olhando fixamente para o companheiro – somos a maioria e já decidimos ir pelo deserto. E não deixaremos que você se afaste de nós. Temos certeza de que se for preso, acaba­rá nos denunciando! E para que você não fale, te­remos que deixá-lo aqui mesmo, entregue às formi­gas! Escolha! Ou vai conosco, ou será sangrado agora mesmo!

Schuck deu dois passos atrás e também,sacou do seu punhal, furioso. Começou a investir contra Frazer, dizendo:

— Eu nunca traí! Nunca entreguei um com­panheiro! Não admito que diga isso de mim. Foi você mesmo quem propôs que cada um tomasse o ru­mo que entendesse. Ou pensa que poderá ser o nosso chefe? Você nunca teve tutano para tanto! Se quiser tirar a prova, venha!

— Vejam só! Que grandes lutadores! Um com medo do outro.. .! – exclamou Juarez, interpondo-se entre os dois e apartando-os com violência. — Foi para isto que cavamos dias e dias seguidos aquele túnel? Depois de tanto sacrifício resolvem-se matar? É uma burrice inominável! Deixem de ser idiotas e acabem com essa briga... Assim, não iremos muito longe. Não fiquemos perdendo tempo com discussões tolas. A polícia já anda por aí... Vamos embora!

— Ele que não se meta a chefe! — gritou Schuck, ainda segurando o punhal e olhando com raiva para Frazer. — Eu faço o que bem entendo e ninguém é mais macho do que eu para impedir-me! Não irei para o deserto. Sei que ali deixaria a minha carcaça. Prefiro ser denunciado pelo pes­soal das granjas e dos ranchos. Pelo menos, en­quanto não me pegarem, vou comendo e bebendo à vontade. Se me negarem o que comer, roubarei! Com fome é que não fico.

Frazer guardou o punhal e sentou-se num monte de terra, fingindo resignação.

— Que venha a polícia, que nos agarre e nos leve de novo para aquele inferno! – gritou, em tom de queixa, agarrando um punhado de terra e atirando longe. — Mas, antes que isso aconteça, Schuck, você morrerá na ponta do meu punhal!

Schuck empalideceu e se lançou contra Frazer, levantando o braço de punhal na mão.

— Antes disto eu o matarei! – rugiu ele, raivoso. — Você quer ser o chefe e nos levar ao deserto, porque tem medo de enfrentar a polícia e o pessoal dos ranchos. No deserto, pensa que pode­rá continuar vivendo... Você é um covarde!

Juarez teve que recorrer à força novamente a fim de apartar os dois valentões.

— Deixem de ser burros! – exclamou. — Vão terminar se matando antes de chegarem ao deserto, ou que a polícia nos encontre! E, então? Tem medo de enfrentar uma coisa ou outra? Nes­te caso, por que não ficaram na prisão?

Frazer e Schuck se entreolharam encabulados e guardaram os punhais, dando razão a Pan­chito .

— Para onde vamos, afinal? – perguntou Frazer. — Seguiremos juntos ou separados?

— O melhor é decidir na votação – propôs Juarez. — Quem for vencido acatará a opinião da maioria. Se algum de nós quiser tomar caminho diferente, poderá fazê-lo. Ninguém tentará impe­di-lo.

Schuck respondeu:

— Vocês já sabem o meu ponto de vista. É mais do que certo que deixaremos o couro no de­serto. Se ficarmos por aqui, em algum povoado, poderemos ser liquidados, mas ainda teremos a chance de lutar, escapando com vida. Poderemos roubar cavalos, encontrar comida... Quem se in­terpuser em nosso caminho, mandaremos direto para o inferno!

— Escute, Schuck, matar para roubar um ca­valo ou para enchermos a pança, o filho da mi­nha mãe não fará, nem consentirá que se faça – gritou Panchito, com redobrada energia. — Já lhes disse várias vezes que eu não sou um assassi­no. Posso ser um ladrão de cavalos, com muita honra, mas assassino não sou e nem serei jamais! Estamos entendidos? Não se iludam comigo!

— Assim não chegaremos nunca a um acor­do – interveio Frazer, furioso. — Você, Schuck, não quer ir para o deserto. Pancho, agora quer pôr a máscara de capuchinho ou missionário pro­testante, recusando-se a empregar a violência, mesmo correndo o risco de morrer de fome. Que devemos fazer, então? Não temos dinheiro para comprar coisa alguma e, ainda por cima, carrega­mos estes uniformes da prisão. Se ao menos dis­puséssemos de outras roupas! Aonde chegarmos se­remos logo apontados como fugitivos. Afinal, que fazer, para onde ir? Cheguemos logo a uma conclusão.

— Poderemos procurar as granjas, os peque­nos ranchos, mas nunca as vilas ou cidades. Ten­taremos alguns golpes de mão, roubaremos cava­los, armas, dinheiro, víveres. Qualquer coisa; o que pudermos. Se o idiota do Pancho quer mes­mo tirar cartaz de franciscano, que se afaste do nosso caminho! Não queira ele se fazer de tolo, fi­cando na encolha, comendo e bebendo do nosso tra­balho. Assim ele não terá nem um pouco d'água, nem uma migalha de pão! – ameaçou Schuck, olhando para o mexicano, com rancor.

A coisa estava assim, sem que chegassem a um acordo. O tempo passava e eles continuavam discutindo inutilmente, quando o importante era afastarem-se o mais possível de Yuma e daquela prisão horrorosa.

Parando de discutir, num acordo tático, os três recomeçaram a marcha rumo ao sul. O céu con­tinuava nublado e o tempo estava escuro, o que, de certa forma, lhes favorecia. Dificilmente seriam identificados. Caminhavam quase correndo e já se mostravam cansados com o exercício, devido à vida sedentária da prisão.

— Já começa a clarear — observou Juarez, assinalando uma leve claridade que surgia no hori­zonte.

— Mas ainda não estamos bastante longe – comentou Frazer. — Poderíamos estar mais lon­ge ainda se não tivéssemos perdido tanto tempo em discussões. Devem ser cinco horas. Daqui a pouco será dia.

— Caminhem! Caminhem! – aconselhou Juarez. — Poderemos caminhar mais dez quilô­metros até as seis horas. Só depois é que nos da­remos ao luxo de um repouso.

Os três recomeçaram a corrida, fazendo das fraquezas, força. Para a polícia, utilizando cava­los, aquela distância poderia ser vencida em meia hora. Seriam apanhados fatalmente se não encon­trassem um lugar seguro onde se escondessem.

— Deveríamos ter seguido a estrada de ferro, em vez de tomarmos este caminho – disse Schuck. — Poderíamos nos esconder num vagão de carga. Já estaríamos longe. Mas vocês preferiram a pior saída! Que burrice! Se não der certo eu ma­tarei os dois, não tenham dúvida!

Frazer olhou desdenhosamente para Schuck. Juarez preferiu levar a coisa na brincadeira, sor­rindo com deboche. O dia continuava amanhecen­do e as nuvens negras, para os lados do norte, não impediam que a luz do sol começasse a desfazer a nebulosidade. Mesmo a uma distância razoável, as formas das pedras e dos cactos já se delineavam fracamente. Os pássaros começavam a levantar voo, fazendo alarido. Os coiotes davam sinal da sua presença.

— Vamos parar, valentes! – gritou Juarez, brincalhão, levantando o braço. — Está na hora de procurarmos um bom lugar onde dormir, abriga­dos atrás das pedras, até que a noite chegue. Po­deremos comer um pouquinho e beber um gole d'água.

Agasalharam-se atrás dumas pedras, ao lado de umas moitas. O lugar era um pouco elevado, permitindo-lhes uma boa visão. Comeram um pou­co das provisões roubadas do armazém do presídio e a água foi poupada ao máximo. Teriam que fazer o máximo de economia, se é que tinham mesmo o propósito de atravessar o deserto.

 

A fome era muita, mas tiveram que comer o me­nos possível. A economia foi ainda maior, no to­cante à água.

Improvisaram camas de capim seco e logo se entregaram ao repouso, depois daquela marcha de vinte quilômetros. Juarez foi o último a dormir. Logo que Frazer e Schuck começaram a roncar, ele se afastou dos companheiros, procurando um lugar mais elevado, de onde pudesse divisar melhor as redondezas. Mas não dormiu imediatamente. Fi­cou a pensar na vida. Afinal, com trinta e um anos, não desejava levar a vida inteira fugindo da polícia. Se resolveu evadir-se da Prisão dos Deses­perados, topando aquela aventura com os dois com­panheiros, era porque tinha um motivo poderoso, mais forte do que o desejo de voltar à liberdade. Se não fosse, teria esperado que se esgotasse o seu tempo de prisão, pois só lhe restavam três anos. Mas é que existia Lupe Velez, a mulher a quem amava. Queria encontrá-la quanto antes.

Panchito não era mau por índole. A fatalida­de o transformara em órfão ainda muito pequeno e, depois, as más companhias fizeram o resto. Mal completara os quatorze anos, uma revolução convulsionou totalmente o seu país e o Estado de Coahuila também se viu conflagrado. Morava em com­panhia dos pais, nas proximidades de Torreón. Um bando de revolucionários se apossou do rancho. Viu serem assassinados friamente seu pai e sua mãe. Salvou-se graças à sua agilidade e à sorte de haver encontrando um cavalo, fugindo a todo galope.

Sozinho, sem meios de subsistência, tratou de se endurecer para continuar vivendo. Saiu de rancho em rancho, procurando trabalho. Se encontrava emprego, trabalhava; se ficava desempregado, tra­tava logo de roubar. E assim foi vivendo, ora pas­sando fome, ora de barriga cheia. Terminou fa­zendo parte de um bando de ladrões de gado, mas sempre se recusando a matar ou a incendiar as pro­priedades que saqueavam. Cruzou boa parte do Oeste, atingiu o Arizona, passando a fronteira em Água Prieta e entrando por Douglas, uma pequena cidade americana. Desejava mudar de vida mas lhe foi difícil, pois não possuía documentos e era considerado um clandestino. Se voltasse ao Méxi­co, a perseguição policial seria pior. Entre a cruz e a caldeirinha, não teve outra saída senão conti­nuar a vida que até então levara. Fugir, fugir sempre... Só poderia aproximar-se dos que viviam à margem da lei, porque estes nada lhe pergunta­vam. Por várias vezes esteve a ponto de cair em mãos dos polícias rurais do Arizona, mas sempre levou a melhor. Até que conheceu Lupe, a linda mexicana que vivia em companhia de um irmão, à margem do rio Gila. Eles possuíam um pequeno rancho, eram honestos e trabalhadores. Conheceu Lupe num pequeno povoado e logo simpatizou com a moça, tendo o cuidado de esconder as suas ativi­dades no bando de ladrões. Da amizade passaram ao amor. Como tinha que estar sempre fugindo, não teve outro remédio senão contar tudo a Lupe. Mesmo assim, ela continuou a querer-lhe, certa de que ele era uma vítima das circunstâncias.

Um dia, e há sempre um dia na vida dos ladrões, os po­liciais cercaram o bando de Panchito e ele não pô­de escapar. Entre matar e entregar-se, preferiu render-se. Julgado como ladrão de gado foi con­denado a cinco anos de prisão. Mandado para Yuma, ali ficou dois anos, rodeado de feras, so­nhando com a liberdade e, sobretudo, com a sua Lupe, de quem se separou com a promessa de ca­sar-se.

Foram dois anos insuportáveis onde os dias pareciam não ter fim. Convidado por Schuck e Frazer, seus companheiros de cela, topou a pa­rada e resolveu fugir. Só assim iria ver de novo a mulher com quem sonhava todos os dias na pri­são, e a quem adorava desesperadamente.

Com ferramentas roubadas do armazém da prisão, começaram a perfurar o túnel, partindo da própria cela, que ficava bem junto à muralha. Foi um trabalho lento, silencioso, em que se reveza­vam. Enquanto dois manejavam a picareta, um tratava de vigiar. Agora estavam livres, embora gozando de uma liberdade precária e cheia de te­mores, arriscados a ser recambiados para o in­ferno de onde saíram.

Panchito deixou de pensar em tudo aquilo pa­ra ficar de ouvido atento. Escutou bem e pôde per­ceber, lá longe, o bater de sinetas de alarme. Já passava das seis horas e, de certo, depois de feita a chamada na prisão, a falta dos três fora perce­bida. Revistada a cela, teriam fatalmente que des­cobrir o túnel. Era o alarma, avisando a fuga. Enquanto isto, os seus companheiros roncavam.

O mexicano puxou a sua caixa de tabaco e preparou um cigarro. A caça começara. Depois de fumar o cigarro, recostou a cabeça na palha e tra­tou de dormir. Aprendera a ser fatalista. Embora lutasse para sobreviver e até para mudar de vida – deixar de ser um fora da Lei –, quando via tudo preto em seu redor, sem encontrar saída, encolhia os om­bros e se deixava ficar, esperando um milagre. Para um homem cheio de pecados como ele, era es­tranho que nestas horas recorresse a Deus, mas sempre pedia, mesmo que fosse somente por aquela vez, que estendesse o manto do perdão sobre sua cabeça e lhe indicasse uma maneira de fugir ao pe­rigo.

— Por fim, dormiu. Sonhou com Lupe e ela, no sonho, lhe perdoava todas as trapaças, esconden-do-o no seu rancho. Era como uma mãe angustiada que procurasse proteger o filho, mesmo sabendo que ele é um transviado e mentiroso, sempre ju­rando emendar-se. Acordou e olhou o céu, quase limpo de nuvens.

Pela posição do Sol percebeu que era quase meio-dia. Dormira e sonhara várias horas. Olhou para Frazer e Schuck, que roncavam a sono solto. Es­tavam tranquilos como se não tivessem alma. Eram assassinos natos, gostavam de matar, roubavam por ambição. Deus teria que ser severo com eles.

Pensara bem no que ia fazer e decidira, de­pois dos sonhos, voltar a ser um homem decente, merecendo o perdão de Lupe, que estava esperan­do por ele. Não sentia nenhuma dor de consciên­cia abandonando aqueles dois perversos compa­nheiros, pois sabia que com eles nunca poderia encontrar o caminho da regeneração. Com grande cuidado, sem deixar de observá-los, Panchito foi-se afastando, e logo começou a correr, sempre pro­curando esconder-se pelas touceiras de capim.

Tomou rumo norte, procurando andar o mais depressa possível, temendo a perseguição dos companheiros. Sabia que dali até o rancho de Lupe a distância era bem grande. Poderia diminuí-la, se caminhasse em linha reta, mas tinha que evitar ranchos, pequenos povoados e até os trilhos da es­trada de ferro. Mantinha o passo rápido e firme, parando de vez em quando para vigiar.

Apesar de todos os perigos, Panchito conti­nuava a pensar em Lupe. Será que o receberia de braços abertos? Há mais de dois anos que não a via e ela podia, até mesmo, ter mudado a sua ma­neira de pensa. Quem sabe se já não teria casado? Devido à falta de notícias, teria razões, inclusive, para acreditá-lo morto. Como reagiria ela, ao vê-lo, assim de repente? Ainda que receoso, Panchito tinha esperança de que ela o aceitasse de volta, pronta a perdoá-lo e a ajudá-lo a mudar de vida. Para ele, se não houvesse essa esperança, a liberda­de não teria sentido. Melhor seria ficar mesmo ex­piando a sua culpa na prisão.

Procurando esquecer-se dos companheiros, continuava a caminhar apressadamente como se, fugindo deles, também fugisse de tudo o que repre­sentava de errado e sórdido na sua vida. Com Lu­pe teria uma nova vida, decente e honrada pelo trabalho, enobrecida e dignificada pelo amor.

 

Quando começava a anoitecer, Frazer foi o primeiro a acordar. O cansaço, a fome e a sede fi­zeram com que dormissem pesadamente durante mais de doze horas. Levantou-se e percebeu que Schuck também já começava a abrir os olhos, bocejando ruidosamente.

— Está anoitecendo ou amanhecendo? — per­guntou o companheiro, assustado. Parece que dor­mi demais.

— Eu também – respondeu Schuck. — E te­nho uma fome dos diabos! Onde está Pancho?

— Deve andar procurando alguma novilha para assar... – Disse Frazer, procurando divisar o mexicano por entre as rochas.

E logo continuou:

— Acabo de ter uma ideia a respeito desse candidato a franciscano. Penso que só teríamos a ganhar se liquidássemos com ele. Além do mais é estrangeiro, que come e bebe tanto quanto nós. No fim de contas, na situação em que nos encontra­mos, não seria um crime dividirmos conosco as ra­ções dele. Assim, teríamos mais oportunidade de sobrevivência neste deserto horroroso... Que diz você?

— Depende, homem... – respondeu Schuck, sorrindo. — Matar é sempre um crime, mas tirar um tipo desses da circulação me é completamente diferente... O certo é que, se morrer, já não pre­cisa nem das suas provisões de comida, nem da sua vasilha d'água... Por outro lado, as nossas reser­vas seriam aumentadas!

— Certo! Então, que estamos esperando?

Os dois bandidos começaram a procurar Pancho. Olharam para todos os lados, mas dele não encontraram nem sombra. Começaram a fumar, esperando que ele aparecesse. Depois, comeram e beberam, já contando com o reforço que teriam com o assassinato do mexicano.

Começando a desconfiar de alguma coisa, Fra­zer comentou:

— Parece que esse franciscano foi mais esper­to do que nós. Se não apareceu até agora é porque resolveu fazer a pista sozinho. Ele deve ter ido embora enquanto dormíamos.

Assoviaram e gritaram em todas as direções. Nenhuma resposta.

— Que refinado patife! — queixou-se Schuck, furioso.

— Podia ter sido pior... – comentou Fra­zer. — Vamos nos dar por satisfeitos por não ter ele nos matado, enquanto dormíamos. Se tivesse feito conosco, enquanto dormíamos, o que nós que­ríamos fazer com ele, teria multiplicado por três as suas rações...

— Mas é uma traição! – gritou Frazer, es­quecido dos seus projetos homicidas de pouco antes. — E, ainda por cima, ele é o único a conhecer o deserto. Agora não sei o caminho que devere­mos tomar. Sem orientação segura eu não me ar­risco a entrar neste deserto.

— Não desesperemos — disse Frazer, em tom apaziguador. — Pancho deve ter tomado a di­reção da fronteira mexicana. É para lá que deve­mos ir também e, se o encontrarmos, iremos torcer-lhe o pescoço. Ele foi um traidor, um péssi­mo companheiro!

— Pelo deserto eu não irei! Se quiser, vá sozinho. Nós não dispomos de água e de comida nem para dois dias...

Os dois bandidos se entreolharam com descon­fiança mútua, cada um compreendendo o que o outro pensava. Se um deles morresse, a ração se­ria dobrada.

— Então vamos para o norte! Lá nós encon­traremos, fatalmente, toda essa turma da qual es­tamos fugindo: os rurais, os xerifes, os seus aju­dantes e mais os voluntários que nos procuram. Já está anoitecendo – disse Frazer, mudando de as­sunto e dissimulando a sua inquietação.

— Estava pensando... – interrompeu Schuck, cofiando a sua barba loura. — Você não se recorda de que Pancho falava sempre na sua noiva, uma mexicana? Se não me falha a me­mória, ele disse que ela vivia com um irmão, nas margens do rio Gila.. . Ele falava sempre em vol­tar àquelas paragens...

— Ah! — exclamou Frazer, concordando. — Sim, é verdade. Agora me lembro bem. Quando o mexicano ficava triste começava a contar histó­rias do seu país, falava de uma tal Lupe e, tam­bém, da Virgem Maria.. . Fazia uma mistura dos diabos! O lugarejo em que a moça vive se chama Asteca, ou Astec...É uma coisa assim, não sei bem...

— Astec... Sim, ele dizia Astec – respondeu Schuck, sorrindo. — Na beira do rio Gila. Na cer­ta ele está caminhando agora naquela direção. O salafrário preferiu livrar a pele sozinho! Gran­de companheiro que ele é! Deixou-nos dormindo e se mandou!

— Poderia ter feito pior, não se queixe. Nós estávamos dormindo. Ele bem que nos poderia ter assassinado e se apoderado das nossas provisões... E não fez, porque é um idiota! – comentou Fra­zer.

— Talvez não seja tão idiota assim — respon­deu Schuck. — Quem nos garante que, a estas ho­ras, não terá ele nos denunciado, em troca da sua liberdade? Enquanto isto nós aqui estamos, com a perspectiva do deserto pela nossa frente!

— É... Mas as coisas mudam de repente! Se ele nos denunciar, teremos que mudar de rumo. Seria preferível que tomássemos a direção do rio Gila. E já sabe para que... Ele nos deve uma sa­tisfação, esse traidor! E ainda teremos a oportu­nidade de conhecer-lhe a noiva, que ele dizia ser uma criaturinha estupenda!

— Mas é preciso pensar duas vezes! Daqui até lá a distância é muito grande e se ele nos de­nunciou, a coisa piora ainda mais. Pense bem. Va­mos nos meter na boca do lobo, numa região cheia de granjas e ranchos, onde, naturalmente, a notí­cia da nossa fuga já foi propalada. Todos estão de olho, vendo em cada desconhecido um fugitivo. Di­ficilmente escaparíamos.

— Agora, qualquer rumo é a mesma coisa. Tudo é boca de lobo. Não podemos é ficar aqui, parados. Teremos que tomar uma decisão e come­çar a andar o quanto antes.

Sem mais delongas, certos de que Pancho os havia denunciado em troca da sua liberdade, os dois bandidos se puseram a andar, rumo ao norte, orientando-se pelo Sol durante o dia, e de noite, pelas estrelas.

Irmanados por um objetivo comum, esquece­ram momentaneamente as ideias de mútuo assas­sinato. Estavam unidos, agora, pelo desejo de vin­gança. Ah! Se pusessem a mão em Pancho, apoderando-se de Lupe, do seu rancho, do seu dinheiro e da sua farta despensa... Não resta dúvida que era uma perspectiva bem melhor do que enfrentar o deserto, com todos os seus perigos, tendo pela frente uma morte quase certa.

Mas Pancho já levava sobre eles uma vanta­gem de seis horas, pelo menos. E o mal é que os três se destinavam ao mesmo lugar.

 

Já era noite e Panchito Juarez estava atraves­sando os montes Mohawk. Andava sem descanso e as suas forças já estavam se esgotando. A fome e a sede eram um verdadeiro suplício. Para conse­guir alimento e água ao mesmo tempo, desviando-se dos lugares habitados, Pancho recorrera aos fi­gos silvestres e a algumas raízes. Nas montanhas Mohawk, porém, nem isto colheria. Ali era uma região desolada, completamente despida de vegeta­ção, igual ou pior do que o deserto. Agora, duran­te a noite, a caminhada era um pouco melhor. De dia, sob o sol inclemente, o calor era espantoso e não havia lugar onde encontrasse abrigo. Até perto das rochas, mesmo à sombra, o calor era in­fernal. Refletindo o calor do sol, elas se transfor­mavam em fornos.

A lembrança de Lupe, a certeza de que, a cada passo, mais se aproximava da encantadora criatura, davam a Pancho forças para reagir e continuar caminhando.

A luz da Lua começou a furar as nuvens e Pan­cho distinguiu, ao longe, subindo o suave declive da montanha, alguma coisa que parecia uma carreta. Fixou bem a vista e reparou que tinha razão. Era mesmo uma carreta, puxada por dois cavalos e de toldo avermelhado. Lançou-se precipitadamente ao chão, escondendo-se. Pensou tratar-se de um car­ro de vendedores ambulantes, desses que costuma­vam se embrenhar pelo deserto vendendo selas e bugigangas nas aldeias de índios, além de con­servas, ferraduras, bebidas, fazendas e outros ar­tigos .

Escondido no meio das pedras, Pancho via o carro aproximar-se lentamente. Um homem vinha na boléia, guiando a parelha, que se arrastava pela encosta da montanha com visíveis sinais de fadi­ga. Deslizando por entre as pedras, Pancho pro­curou aproximar-se da beira do caminho. Obser­vando atentamente, percebeu que naquele carro poderia obter o que ardentemente procurava: mantimentos, uma roupa para trocar aquele uniforme infamante, e um cantil cheio de água fresca. . . É claro que não obteria com bons modos, já que não dispunha de um centavo. Mas como o seu ofício até ingressar na Prisão dos Desesperados era mesmo o de roubar, não fazia mal que praticasse mais um assalto, desde que se fosse para assegurar sua própria sobrevivência. Teria que decidir-se a acer­tar uns bons golpes naquele homem, imobilizando-o temporariamente. Não havia alternativa, embora, intimamente, lamentasse.

O carro estava ca­da vez mais próximo e os cavalos resfolegavam, na subida, enquanto as rodas rangiam nas pedras e no barro. O homem queria ajudar os animais, ali­viando o seu esforço. Passou a caminhar ao lado da carroça, empurrando as rodas com toda a força de que dispunha. Panchito percebeu que era um índio o dono da viatura. Levava uma cinta amarra­da à testa e o seu cabelo caía até aos ombros. Ves­tia-se como um vaqueiro, embora usasse mocassim em vez de botas. Ao lado, na boléia, encontrava-se uma mulher, talvez esposa ou filha. O homem parecia ter uns cinquenta anos e era bastante for­te. Estava armado, levava um cinto-cartucheira. A mulher, também, talvez dispusesse de um rifle ou duma pistola. Ninguém se arriscaria a andar de­sarmado por aquelas paragens desertas.

Panchito estava a ponto de decidir-se. O fa­to de o índio estar armado não lhe infundia receio. O seu medo era levar um balaço da mulher. Esta­va em condições de matar o índio à distância, ar­remessando o punhal em suas costas, mas isto, além de covardia, era uma desumanidade, um frio assassinato. O carro passou bem junto a ele e logo tomou o rumo sul, em direção ao deserto. Ficou paralisado, sem ação. A sua consciência lhe obri­gava a cumprir o juramento de nunca mais voltar àquela vida de roubos e assaltos, Suspirou, alivia­do, quando viu a carroça se afastando, ladeira abai­xo, e o índio tentando acionar os freios, com uma corda amarrada atrás. Perdia a oportunidade úni­ca de possuir víveres e roupas, de que tanto neces­sitava, mas, em compensação, ficava tranquilo com sua consciência, sentindo-se digno de merecer o amor de Lupe.

Depois que o carro se afastou bastante, deixou o seu esconderijo e tratou de reiniciar a caminhada. Perdera um tempo precioso, mas mesmo assim se sentia contente e começou a cantar uma velha can­ção mexicana, na qual introduziu uma letra impro­visada, dedicada à sua noiva e à Virgem de Guada­lupe, fazendo comparações entre a beleza da moça e a sua adorada padroeira. Estaria mais alegre – perguntou a si mesmo – se tivesse assaltado a car­roça? Certamente que não, o remorso já teria to­mado conta dele.

De repente, à luz da Lua, divisou uma faixa d'água prateada. Era um riacho, o San Cristábal, que ali tinha as suas nascentes. Começava por ali e ia desembocar no rio Gila, do qual era afluente. Seguindo o curso do riacho, fatalmente chegaria às margens do Gila. Dava-lhe calafrio só em pensar que teria de enfrentar ranchos e granjas à beira do riacho. Mas não teria outro remédio. Não po­deria chegar até Lupe sem passar por lugares ha­bitados. Desceu a serra, correndo, como se já es­tivesse bem próximo da chegada, esquecido de que ainda teria de andar uns oitenta quilômetros, sem­pre procurando esconder-se das pessoas, o que lhe retardaria bastante a marcha, aumentando as suas apreensões e sofrimentos. Em todo caso, a água estava ali, cristalina e abundante. Já era uma com­pensação. . . Talvez aparecesse alguma coisa para comer.

Ao amanhecer, Frazer e Schuck ainda não ti­nham chegado às montanhas Mohawk e caminha­vam muito mais lentamente do que Panchito. Pa­ravam, discutiam muito sobre o caminho a tomar e em todos os lugares que passavam logo procura­vam esconder-se, evitando toda classe de pessoas, notadamente a polícia. Estavam crentes de que Panchito os denunciara.

— Vamos comer um pouco e depois dormir. Não é conveniente continuarmos andando de dia – propôs Frazer, apontando umas rochas onde se podiam esconder.

— Comer...! – comentou Schuck, com iro­nia, apontando para o pequeno embrulho de comida que lhe restava. — Grande banquete, não?

— As nossas provisões acabarão hoje – disse Frazer, desconsolado. — Teremos que nos valer dos figos silvestres, eles me dão nojo, mas não te­nho outro remédio. Quanto à água, também está acabando. Só nos resta um pouquinho, que mal dá para matar a sede, por hoje. Amanhã...

— Pois eu vou comer tudo agora. Amanhã será outro dia... O pior é ficar sempre com fome!

Sentaram-se atrás das rochas, de costas um para o outro, como se temessem uma mútua agres­são, e logo devoraram os seus restos de mantimentos. Depois colheram alguns figos silvestres e com­pletaram a refeição.

— Agora, vamos dormir... – disse Frazer, oferecendo um pouco de fumo e papel de cigarro ao companheiro.

Fumaram silenciosamente os seus cigarros, olhando as montanhas em frente, ainda bem longe.

— Olhe aquilo... – apontou Schuck para uma região plana, nas montanhas, fixando bem a vista.

— É o vento levantando poeira — afirmou Frazer, indiferente.

Mas Schuck continuou olhando para aquela imensa coluna de pó que se movia lentamente e parecia deslocar-se em direção a eles. Passado al­gum tempo, quando Frazer já começava a cochilar, Schuck acordou-o, gritando, e dando-lhe um leve pontapé no ombro.

— Não se trata de poeira levantada pelo vento! Repare bem! E' diferente...

Frazer, de mau humor, sentou-se no chão e começou a olhar, agora também intrigado.

— Bem... Talvez seja uma porção de ginetes. E se deslocam em nossa direção!

— Vão para o deserto! Na certa, Pancho já deu todo o serviço à polícia e ela nos procura – co­mentou Schuck, inquieto. — Que viriam fazer aqui a não ser a nossa procura?

A coluna de poeira continuava deslocando-se rumo ao sul, sem que pudessem ainda deduzir se passaria longe do local onde se encontravam ou se se movimentava na direção deles.

— Não sairemos daqui agora, a não ser que haja perigo imediato. Estamos num bom esconde­rijo. Se não nos virem, passarão ao largo e esta­mos salvos.

Dez minutos depois os bandidos podiam ver melhor.

— É uma carroça! — exclamou Schuck. — Tem o toldo avermelhado e vai sem escolta!

Minutos depois perceberam que a carroça tomava o rumo sudeste. Não passaria perto do ponto onde se encontravam. Seguia uma antiga trilha de índios, usada ainda ao tempo em que os navajos, apaches e outras tribos habitavam o deserto.

Frazer e Schuck acompanhavam com grande atenção a marcha da carroça, puxada por dois for­tes cavalos.

— Parece que não vai muita gente ali – dis­se Schuck, impaciente, acendendo um cigarro. — Seria capaz de jurar que se trata de um ambulan­te, desses que vendem coisas aos índios. É por isto que vem para o deserto.

— Então, é bem possível que a carroça venha cheia de coisas que nos interessam... Comida, água, roupas, vinhos... E esses cavalos, rapaz! Nós bem que estamos precisando de montarias...

— Isto me põe água na boca... – murmurou Schuck, olhando para Frazer em sinal de interro­gação. — Vamos deixá-los passar assim, mansa­mente, quando só temos figos silvestres para co­mer? Nós seríamos uns grandes idiotas...!

— Está bem... Mas teremos que agir com muito cuidado. Primeiro vamos averiguar quan­tos são. Só dispomos de dois punhais.

— Tratemos de nos aproximar. Se forem ape­nas dois, mesmo que tenham armas de fogo, pode­remos atacar. Trata-se de conservar a nossa pró­pria vida. Vamos?

A carroça estava passando ao largo, inclinando-se para o lado, vista do ponto onde se encontra­vam. Frazer e Schuck deslizaram como duas lagar­tixas, pelo lado oposto das rochas, sempre escondi­dos. Logo corriam por entre os cactos, com o maximo cuidado para não serem vistos. A distância entre eles e a carroça ia diminuindo e, agora, esta­vam à sua retaguarda. Aproveitaram a nuvem de poeira e começaram a correr em sua perseguição. Schuck chegou primeiro. O toldo estava baixado na traseira, amarrado por cordas. O bandido, com cuidado, dependurou-se na traseira e apoiou um dos joelhos na saliência de uma das cantoneiras de ma­deira que reforçavam a cobertura. Frazer o imi­tou, segurando o punhal com os dentes. Verificou, por uma abertura do toldo, que a carroça ia carre­gada de barris de água, sacos de farinha, carne de charque e outros artigos.

— Um índio e uma mulher... – sussurrou Frazer ao companheiro. — Mais ninguém! Há muitos rifles no carregamento! Carregam uma for­tuna! Parece até carregamento destinado a algum armazém de cidade...

— Silêncio! – impôs Schuck. — Parece que tudo pode vir a ser nosso, se usarmos a cabeça. Vamos ver se fincamos o punhal nas costas desse índio piolhento. A mulher não conta...

— Se for moça e bonita... – respondeu Fra­zer, sorrindo cinicamente. — Então, vamos come­çar. Que eles não cismem de olhar para trás. Dei­xe comigo, eu jogarei o punhal nas suas costas. Não falharei. No momento em que eu lançar o pu­nhal, você trate de imobilizar a mulher. Quando eu assoviar é porque tudo está liquidado.

Schuck aprovou o plano, acenando com a cabe­ça. Estavam contentes, certos de que tudo ia cor­rer bem e que ficariam com a presa. Para eles, a vida de um índio não tinha a menor importância.

Abaixou-se com cuidado, deslizando sem tocar os pés no chão. A carroça fazia muito barulho nas pedras, não dando margem a que os índios perce­bessem o rumor dos bandidos ao se deslocarem. Frazer segurava o punhal pela ponta. Na boléia, os dois índios tocavam a carroça, indiferentes. Frazer lançou o punhal de onde se encontrava.

A arma partiu sem ruído, cravando-se, com grande força, nas costas do índio, que se dobrou para diante, gemendo. Frazer soltou o assovio combinado e Schuck imediatamente imobi­lizou a mulher, derrubando-a ao chão, depois de de­sarmada. O índio também caiu, enquanto Frazer tomava as rédeas do cavalo, fazendo parar a car­roça.

— Não mate a moça! – gritou Frazer a Schuck, que contemplava a mulher, estendida ao chão, sem sentidos.

— E ele? – perguntou Schuck, apontando para o índio estirado na estrada, em meio a uma grande mancha de sangue.

— Está morto – respondeu Frazer, fingindo comiseração. — Você já viu coisa mais fácil, ra­paz ?

Os bandidos se entreolharam, sorrindo, satis­feitos e assombrados com aquela carga inesperada de víveres, armas, vinhos, fazendas e tantas outras coisas.

Voltaram para junto da moça, que continua­va estendida ao chão, inteiramente desacordada. Era bastante jovem, de uns vinte e cinco anos, no máximo, e de rosto bastante delicado, tomando-se por comparação as feições características das mu­lheres da sua raça.

— Vamos, menina! – disse Frazer, olhando fixamente para a jovem índia. — Será que mor­reu?

— Não – disse Schuck, aproximando-se da jovem e segurando o seu pulso. — Foi apenas o susto. Ela nem sequer está ferida. Vamos, bone­ca, acorde... Trate de acordar e não tenha medo. Está diante de dois homens que poderão querer-lhe muito... O homem era seu pai? Parece que sim, pela idade. Mas não fique triste, pois você agora poderá dispor de dois pais bem carinhosos...

Schuck sacudiu a garota e deu-lhe palmadinhas no rosto, tentando acordá-la. Frazer, perce­bendo que a moça demorava a recuperar-se, foi até a carroça e voltou trazendo uma garrafa de gene­bra. Rompeu o gargalo contra a roda da carroça e bebeu um bom trago.

— Dê um pouco à moça – disse ele entre­gando a garrafa a Schuck, que observava a índia com olhares de cobiça.

Schuck bebeu o seu trago e, com o pu­nhal, afastou as mandíbulas da moça, derramando uma forte dose de bebida na boca.

A jovem abriu os olhes, tossindo com força. Olhou assombrada, para os dois bandidos, que es­tavam ajoelhados, observando-a. O rosto dela se endureceu de repente, adquirindo a rigidez da pe­dra, tão própria dos homens e mulheres da sua ra­ça diante da morte ou do suplício. Ela estava con­vencida de que a sua sorte seria horrível e adotava uma atitude estoica, sem um gesto de horror, sem um pedido de clemência.

Frazer, sem que a moça visse, levou o cadá­ver do índio para detrás das rochas, escondendo-o, Logo regressou à carroça e olhou para Schuck, que tentava levantar a moça, pondo-a de pé. A índia tinha um corpo esbelto e harmonioso. Os homens se entreolharam, piscando o olho e sorrindo.

— Vamos para a carroça, boneca – disse Schuck. — Aqui faz muito calor. . . Você ficará debaixo do toldo, com todos os cuidados que me­rece. Pode ficar tranquila, pois teve a sorte de en­contrar dois sujeitos que estão dispostos a adorá-la...!

A índia não ofereceu resistência. Sabia que seria inútil e esperava o pior. Para ela, era prefe­rível que a morte viesse o mais depressa possível. Assim, tudo acabaria de uma vez.

Frazer, afastando caixotes e embrulhos, im­provisou uma cama, onde colocaram a moça, que ficou sentada, de olhos fechados.

— Vamos para o norte, como pretendíamos? – perguntou Schuck, segurando as rédeas e voltando-se para Frazer, que se encontrava sob o tol­do, ao lado da garota.

— Vamos para... Para onde você quiser – respondeu ele, rindo. — Pode guiar a carroça, eu tomo conta da mocinha... Parece que ainda não voltou a si completamente.

 

Panchito Juarez atingiu a linha férrea que ia de Tucson e Yuma. Do outro lado, a uns poucos quilômetros ao norte, corria o rio Gila. Estava per­to de chegar ao seu ponto de destino, três dias de­pois de ter abandonado Frazer e Schuck no deser­to. Escondeu-se à beira da linha, vendo passar os trens. Para ele, aquilo parecia a fronteira entre o bem e o mal. O trem era, ainda, o meio de chegar e de fugir. Aquele que ia passando, bem que pode­ria livrá-lo do perigo. Se se escondesse em um dos vagões de carga, poderia chegar depressa a San Cristóbal e, de lá, ao rancho da sua querida Lupe. Mas era arriscar demais, pois seria quase certo en­contrar com um agente de polícia. Ainda com aquele uniforme, mesmo esfarrapado, seria facil­mente identificado como fugitivo.

Continuava com fome. E era um contrassenso, pois nas margens do San Cristóbal com seus campos, seus ranchos e suas granjas, havia abun­dância de alimentos: carne, leite, frutas à vonta­de. Os pomares estavam ali, bem perto. Mas, dis­posto a empreender nova vida, Panchito nem se­quer se aproximava das granjas, Pedir, simples­mente, ou procurar trabalho nos ranchos, em tro­ca de comida, seria o mesmo que denunciar-se. Aquele maldito uniforme!

Anoitecera e ele se encontrava sentado a uns poucos metros da linha. A fome era medonha, não comia nada havia muitas horas. Os figos silves­tres foram a sua única refeição no dia anterior. Ao caminhar, horas atrás, vira pomares carregados de peras, maçãs, abricós... Mas não se atreveu a to­cá-los, apesar da fome.

Tinha que transpor a linha férrea. Um pouco mais adiante encontraria o rio Gila e, à sua margem, o rancho de Lupe, perto de Astec, uma aldeiazinha pitoresca e quieta. Valendo-se da escuridão, atravessou a linha e começou a correr rumo ao norte. Consumia as poucas forças que lhe resta­vam, a correr em direção ao rio. Era nele que via o caminho da salvação. Já cansado, alcançou o rio. Ajoelhou-se à beira d'água, usou as mãos era con­cha e bebeu com prazer. Já que não tinha comida, pelo menos poderia matar a sede!

Refeito da correria, continuou andando, im­pulsionado por nova energia. Parecia ter adquiri­do novas forças ao ver os pequenos ranchos ilumi­nados e, mais além, a pequenina Astec. Aqui era um touro que mugia; ali, um cachorro ladrando, numa inédita recepção ao desconhecido. Lá adian­te, no caminho, percebeu duas sombras caminhan­do. Ouviu um sorriso de mulher e logo a voz de um homem, falando de maneira carinhosa. Talvez dois namorados... Lembrou-se de Lupe e o seu coração bateu mais forte ao saber que já estava bem pró­ximo do seu rancho. Uma angústia lhe assaltava, enquanto os olhos se enchiam de lágrimas. Como seria recebido ao peso de toda aquela desgraça que sobre ele se abatera? Seria escorraçado ou recebi­do de braços abertos? Ela ainda estaria disposta a perdoar, a ser compreensiva diante das suas fraquezas?

Quando deu fé, estava em frente ao rancho. Era ali mesmo... Teria coragem de entrar?

 

Estava parado junto à cerca de espinheiros. O portão estava fechado. Eram quase dez horas da noite e Lupe e o seu irmão já deviam estar deita­dos. Trabalhando de sol a sol, àquelas horas deve­riam estar repousando, refazendo forças para as tarefas do dia seguinte.

Levantou o arame da cerca e logo se sentiu envergonhado. Aquilo era o que fazia sempre quando assaltavam ranchos. Ou afastavam o ara­me com a mão, ou usavam o alicate, cortando-o e, então, como lobos, saíam à procura do gado, tangendo-o ao fragor dos tiros. Lembrou-se do passa­do e teve remorsos. Não devia mais agir da mes­ma forma. Mas, agora, que desejava encontrar Lupe sem chamar a atenção, não queria bater. Alguém poderia perceber. Pela última vez utiliza­ria aquela maneira de entrar num rancho. Como um cão faminto, transpôs a cerca e se aproximou da casa. E logo lhe veio ao pensamento esta per­gunta: Será que Lupe teria casado? Afinal, há mais de dois anos que se encontrava preso, sem dar notícias. Ela tinha razões para acreditar que ele a esquecera e ter aceitado o amor de outro homem, trabalhador e honesto. Sim, ela podia estar casa­da... Mas, se ainda estivesse solteira, o aceitaria de volta? Estaria farta da sua conduta reprovável? Poderia recebê-lo com o maior desprezo.

Todos estes pensamentos o assaltavam, en­quanto caminhava, passo a passo, em direção à ca­sa. Crescia a sua ansiedade, o seu receio de ser re­pelido como um cão sardento.

A casa do rancho era térrea e ele avistou luz numa janela que dava para a varanda. Era o quar­to de Lupe, ele sabia. Talvez ainda estivesse acor­dada. Deu volta à casa, indeciso, Não queria apro­ximar-se daquela janela. Seria horrível se ela o tomasse como um assaltante e desse o alarme. Ou, talvez, como boa atiradora, preferisse acertar nele uma boa carga de chumbo! Foi até a porta da co­zinha, que estava fechada. Não quis bater. Vol­tou à varanda e, enchendo-se de coragem, chamou:

— Lupe! – falou, trêmulo de emoção. — Lupe!

Uma figura feminina se aproximou da janela, olhando por entre as frestas da veneziana, empu­nhando o candeeiro de querosene. Ela percebeu quem era e falou, emocionada:

— Pancho! É' você, Pancho?

— Sim, Lupe querida! — exclamou, angustia­do. — Mande-me embora...! Eu sei que não me­reço a sua amizade!

Ela desapareceu por um instante, para sur­gir logo depois, abrindo a porta da varanda. Os seus cabelos negros caíam sobre os ombros, res­valando o robe de chambre. Ficou parada, olhan­do, admirada, para Pancho que não se atrevia a dar um passo.

— Pancho! — gritou ela, soluçando.

Foi tão intensa a sua emoção que a moça caiu de joelhos.

Pancho aproximou-se e também se ajoelhou, pedindo perdão por tudo. Lupe lhe estreitava con­tra o peito, acariciando o seu rosto empoeirado, a sua cabeça raspada, segundo o regulamento da pri­são.             Durante um minuto permaneceram assim, es­quecidos de tudo, dando vazão às lágrimas e às emoções.

— Estou de volta, meu anjo! — anunciou ele, ainda angustiado. — E eu sem poder vê-la duran­te tanto tempo!

Ele levantou-a e também se pôs de pé. Ainda continuavam abraçados, cada um procurando acari­ciar o outro. Por fim, vieram os beijos, sedentos, prolongados. Pancho esquecia-se de que se encon­trava sujo, empoeirado e com o uniforme em frangalhos.

— Você está em ruínas, meu bem! – observou Lupe, reparando melhor no seu aspecto. — Vamos lá dentro...

Os dois entraram e ela voltou a fitá-lo longa­mente:

— Até que enfim, Pancho! Há mais de dois anos que não tinha notícias suas. E como está acabado... Deus do Céu! Escrevi várias vezes e nun­ca recebi resposta. Fiquei pensando que você me tivesse esquecido...

— Juro que não as recebi! – respondeu ele, aturdido. — Aquela prisão é pior do que o inferno. A gente chega ali como um coiote que caiu na ar­madilha e perde as esperanças de escapar. Feliz­mente, tive uma chance e aqui estou, embora roto, esfarrapado e coberto de sujeiras.. . Será que ain­da mereço o seu perdão?

— Ah, bandoleiro! Sou eu a lhe querer tanto, por maiores que fossem os danos que me causasse! Para você, sempre tive mais carinho do que re­provação...! Que tola que eu sou – lamuriou-se ela, movendo a cabeça.

— Lupe, querida, eu agora sou outro homem! – murmurou ele, compungido. — Sei que sou outro e você logo se convencerá. Peço que me acredite. Quero esquecer o passado e começar vida no­va como qualquer homem honrado e trabalhador. E tudo graças a você, que me inspirou à regenera­ção e me indicou o bom caminho!

— Não sei, Pancho, não sei... Ainda não es­tou certa de que você realmente vai mudar. Há sempre vários caminhos... Às vezes, a gente es­colhe um que vai dar num beco sem saída e para sempre. Quantas vezes você me jurou que se re­generaria ? E eu sempre acreditando... Bem... Mas, agora, que houve?

— Mas... Panchito olhava fixamente para o armário em frente, onde divisou um cesto de pão, um prato com carne assada e batatas coradas... Ah, minha querida! – implorou ele. — Se você pudesse arranjar um pouco de pão para um fugi­tivo faminto, por caridade! Há três dias que ve­nho passando fome...!

— Ora, Panchito! Por que não disse logo? Vá sentando...

Ela lhe apontou a cadeira e colocou a comida sobre a mesa. Trouxe da oczinha café com leite e frutas.

— Vá tratando de matar a fome! Se não che­gar, diga que eu vou matar uma novilha para fa­zer churrasco... – disse Lupe, brincalhona.

Pancho sentou-se e baixou a cabeça envergo­nhado. Pegou um talher e partiu timidamente um pedaço de carne. Lupe disfarçou, foi novamente à cozinha, fingindo que estava ocupada. Pancho co­mia apressadamente, com os olhos esbugalhados.

Lupe, na cozinha, escondia o rosto entre as mãos, chorando, baixinho. Sentia alegria em rever o homem que amava, mas sofria pelos seus desas­tres. Queria ardentemente que ele tomasse o ca­minho certo. Duvidava dos propósitos de Pancho que, por varias vezes, prometera não mais voltar àquela vida de assaltos. Ele prometia, mas logo voltava a colocar-se fora da lei, tendo que fugir e ela que esperar... Esperar sempre. Reconhecia que ele era um rapaz de bons sentimentos e procu­rava entendê-lo, porque sabia da sua historia. Sa­bia que Pancho tinha uma estranha fé religiosa, era devoto da Virgem de Guadalupe e se arrepen­dia sinceramente quando pecava.

Voltou à sala de jantar. Panchito já tinha co­mido toda a carne, o pão e devorava as frutas. Sorriu ao ver Lupe de volta, mostrando-se acanha­do por tanta fome.

— Sei que você está achando feio, minha que­rida, mas é que eu estava louco de fome... Há três dias que comia apenas figos silvestres!

Lupe apanhou um pacote de cigarros, uma cai­xa de fósforos e os colocou diante dele, com um sorriso carinhoso. Ela sempre o perdoava, mesmo depois de mais uma asneira. Era sempre assim... O seu amor por ele era o de uma mulher cegamen­te apaixonada, mas muito próximo, também, de uma mãe que está sempre pronta a perdoar os erros do filho, lutando para que ele encontre o bom caminho.

Panchito sorriu ao acender o cigarro, reclinando-se no espaldar da cadeira. Depois daquela espantosa refeição, sentia sono. Estava cansado de tanto andar e sentia-se ainda mais derretido, na­quele ambiente de ternura... Ao mesmo tempo, estava terrivelmente envergonhado. O perdão de Lupe, que ele sempre desejava, representava para ele uma doída lição de moral, mais forte do que a mais candente das descomposturas.

Será – pergunto-se ele – que poderia cor­responder a tanto amor, tanta compreensão?

Pancho estava convicto de que somente por um milagre da Virgem poderia encontrar uma mo­ça tão boa e tão dedicada.

Terminada a refeição, Lupe sentou-se ao seu lado e perguntou:

— Afinal, que houve com você? Cumpriu a pena toda?

Panchito empalideceu, envergonhado, esque­cendo o cigarro no cinzeiro.

— Eu já estava naquele inferno há mais de dois anos. A sentença era de cinco... Dois anos, minha querida, já era uma pena bem cruel para um homem arrependido e que jurara a si mesmo nunca mais voltar àquela vida de loucuras. Faça um cálculo, minha querida, de um homem vivendo entre feras, no meio de grades, durante dois lon­gos anos, afastado da mulher amada, pensando ne­la a todo instante, tentando encontrar uma manei­ra de voltar ao seu lado! Que faria você, se fosse ele?

— Então.. . — ela o encorajou a con­tinuar. — Você obteve indulto? Apontaram o seu nome ao governador por boa conduta...?

— Não, apesar de haver-me portado como um preso exemplar durante estes dois anos. Não ti­ve uma falta, não mereci nem mesmo o castigo de uma repreensão. Eu mesmo resolvi indultar-me, não sei se me entende... Em companhia de dois colegas de cela conquistei a minha própria liber­dade .

— Deixe de mistérios, Pancho! – duvidou Lupe, fazendo-se de séria. — Não compreendo o que quer dizer. Como é que você mesmo resolveu indultar-se? Conte tudo direitinho. Que aconte­ceu?

— Foi simples, meu anjo. Simples... Fugi­mos! – confessou Pancho. — Escapamos como três lagartixas, através de um túnel que nós mes­mos construímos. Foram três meses de trabalho continuado e paciente...

Pancho logo ficou sério, vendo que Lupe empalidecia, assustada.

           — Pancho, você fugiu da prisão? – pergun­tou ela, angustiada, enquanto levantava as mãos aos céus, num gesto de perdão. — Você nunca se emenda, meu querido! E agora? Como pretende resolver a situação? Continuará na mesma vida, fugindo, fugindo sempre da polícia?

— Pense nestes dois anos de inferno, minha querida. Foram dois anos terríveis! Você não las­tima esse tempo todo que passei lá? Já não foi o bastante para expiar todas as minhas faltas?

— Virgem de Guadalupe, valei-nos! – evo­cou ela, cada vez mais angustiada. — E eu pensando que você voltava livre, pronto para começar uma nova vida! Como nos poderemos casar e enfrentar a todos de cabeça erguida? Lá se vão por água abaixo todos os nossos projetos...

— A Virgem nos protegerá, meu amor, e ha­veremos de arranjar as coisas. Eu lhe juro, por tudo, que serei agora um homem inteiramente di­ferente. Quero viver longe de todas essas com­plicações, trabalhar honradamente, casar-me com você e esquecer todo esse passado vergonhoso. A Virgem nos ajudará, meu amor. Mas é preciso que você acredite em mim!

— Mas você é um fugitivo, Pancho com a po­lícia no seu encalço! Como pretende sair desta situação? Você sempre me trazendo desenganos, meu bem. Quando será que você toma juízo? E eu, que gosto tanto de você, que fiquei esperan­do por todos estes anos! Não estou vendo maneira de nos casarmos... Fico com o meu coração sangran­do, Panchito, em ver você metido em tamanha en­rascada. Parece perdido todo este amor que lhe de­dico.

— Não diga isso, meu amor – suplicou ele, angustiado. — Era de todo impossível eu conti­nuar ali, naquele inferno em vida, sofrendo a sau­dade de você, esta saudade imensa que não me dei­xava um instante. Pense na tortura em que eu vi­via a todo instante! Queria o seu perdão, queria estar ao seu lado como estou agora, sentindo-a, querendo-lhe... Será que não entende?

Ela suspirou. Sim, compreendia e sentia-se imensamente feliz ao lado dele. Mas ele teria que andar sempre se escondendo, fugido da polícia? Afinal, aquilo não era vida. E se o matassem?

Depois destas reflexões, Lupe voltou a falar:

— Já é tarde, você está bastante cansado e deve tratar de dormir. Mas, antes, naturalmente, quer tomar um banho. Vou prepará-lo. Você pre­cisa quanto antes retirar essa sujeira. Não gos­to de vê-lo assim.

— E seu irmão, o Pedrito, onde anda? Eu até me esqueci de perguntar per ele.

— Ele viajou de trem, esta manhã. Foi a Tucson tratar de um negócio e só voltará dentro de três ou quatro dias. Foi até bom você não en­contrá-lo, pois ele anda bastante aborrecido com você. Está contra o nosso casamento e até falou em matá-lo. Acha que você não deixa de fazer ca­nalhices. Mas deixe por minha conta. Eu termi­narei obtendo o perdão dele, como das outras ve­zes. Pedrito tem bom coração.

— Eu sinto muito – respondeu Pancho bai­xando a cabeça, confuso. — Mas ele esquece que foi criado debaixo dos bons ensinamentos dos seus pais. E eu? Não tive ninguém para guiar-me. Fui andando sozinho, inteiramente às cegas. Nunca ti­ve ninguém para me guiar. Somente agora, depois de homem feito e cheio de vícios é que tive a feli­cidade de encontrar alguém que procura me guiar para o lado bom da vida. As circunstâncias nos tornaram diferentes na maneira de proceder, mas eu também chegarei lá, Com grandes sacrifícios, é verdade, mas chegarei. E não vai demorar mui­to.

Enquanto Lupe lhe preparava o banho, Pan­cho a observava com carinho. Ficava embevecido pelos seus gestos, sua maneira de fazer as menores coisas. Para ele, Lupe era sempre uma festa para os sentidos e para os olhos. Lamentava, sincera­mente, trazer mais dissabores àquela criatura tão boa, tão carinhosa e meiga. A tristeza lhe invadia a alma.

— Pode gastar bastante água e sabão – dis­se ela, sorrindo. — O esfregão está aí ao lado. Se você tornar a ser preso, pelo menos que esteja lim­po. Vou arranjar roupas do Pedrito para você, agora mesmo, e tratarei de queimar esse horrendo e sujo uniforme do presídio.

Lupe afastou-se para voltar com sapatos e to­das as peças de roupa de que Pancho necessitava. Por sorte, tinha a mesma estatura do seu irmão.

Pancho olhou agradecido e, sorrindo, comen­tou:

— Que bela esposa você será!

           — Eu vou tratar de dormir, meu bem. Tenho que levantar-me cedo para cuidar da horta. De­pois do banho, pode tomar conta do quarto de hós­pedes. Você sabe onde ele fica. A cama já está arrumada.

— Não seria preferível que eu dormisse fora? Afinal seu irmão está viajando e não fica bem vo­cê dormir com um homem estranho na sua casa... Eu poderei dormir na beira do rio.

— Eu sei que você não é um canalha para se aproveitar da circunstância. Sei quanto você me quer e quanto eu lhe quero. Não é um estranho pa­ra mim e até já podia ser meu marido, se não fi­zesse tantas tolices.

Lupe aproximou-se dele, beijando-o com cari­nho .

— Boa noite, seu bandoleiro maluco... Sonhe comigo e durma com os anjos.

— Que Deus lhe pague por tudo, minha bone­ca! – agradeceu ele, comovido. — Você é tão ca­rinhosa que até parece minha mãe, que mal che­guei a conhecer... Como eu lhe quero, meu bem!

 

Numa taverna de Astec, não muito longe da granja de Lupe e seu irmão, dois homens bebiam genebra, sentados a uma mesa. Vestiam-se como vaqueiros, mas os seus modos e os seus rostos mais se assemelhavam aos de bandidos da pior espécie. Levavam no cinto-cartucheira revólveres de grosso calibre.

— Quer dizer que o irmão viajou esta manhã, de trem? Então ela está sozinha, hoje à noite...– disse Benny, coçando a barba de vários dias. Di­zem que têm dinheiro... Esses mexicanos são gozados! Na sua terra não passam de uns preguiço­sos, mas quando transpõem a fronteira tratam lo­go de trabalhar, vão metendo a cara e dentro de pouco tempo já estão ricos.

— Ora, se têm dinheiro...! E bastante! Eu mesmo já vi o irmão fazendo um grande saque no banco local. – respondeu Jim, com segurança.

— E eu o vi tomar o trem, hoje de manhã. Conhe­ce a irmã?

— Sim, homem! E' uma morena do outro mundo. Vamos dar um bom golpe. Teremos di­nheiro e uma boa garota! Vamos levá-la conosco...

— Então, mãos à obra. Não há tempo a per­der – comentou Jim, consultando o relógio de bol­so. São doze e quarenta. Vamos chegar depois de uma hora e ela já estará dormindo como um an­jo. Vamos procurar dominá-la sem barulho, sem violência. Teremos toda a madrugada para comer, beber e nos divertirmos com a garota. Parece uma coisa de encomenda, não há perigo algum!

— Vamos andando. Não há necessidade de matá-la. Aliás, não gosto de matar mulher boni­ta. Basta que usemos as máscaras no rosto para que ela não nos possa reconhecer depois.

Pagaram a conta e saíram. Tomaram os cava­los e se dirigiram rumo ao rio. Eram dois bandidos experimentados, com vários assaltos a ranchos e até mesmo a bancos e diligências. Antes, fize­ram o reconhecimento do rancho de Lupe e arqui­tetaram o plano.

O portão estava fechado, mas não constituía empecilho. Levantaram o arame da cerca com a maior facilidade. Depois de amarrarem lenços no rosto, deslizaram silenciosamente por entre as alas de ciprestes, de punhal na mão. Se Lupe estives­se acordada seria imediatamente silenciada, sem que disparassem um tiro. Queriam evitar a todo custo usar arma de fogo. Havia outras granjas ali perto e qualquer alarma poderia prejudicar os seus planos.

Panchito esfregou o corpo com vontade, qua­se ficando em carne viva. Há quanto tempo não to­mava um banho quente. Limpo, depois de matar a fome e a sede, com um bom cigarro da Virgínia, sentia-se satisfeito. Mas não estava tranquilo. Moralmente, a sua situação era a pior possível. Contando com as restrições precedentes do irmão de Lupe e sabendo que ela sofria, preocupada com sua situação de fugitivo, Pancho sentia-se culpado pelos dissabores causados à pobre moça. E ele lhe queria tanto...

Pensava em encontrar uma solução para o problema, mas nada de positivo lhe ocorria. Esta­va convencido de que a liberdade não era tudo.

Estava livre, mas cercado de enormes restrições. Precisava encontrar uma saída decente que lhe possibilitasse trabalhar, ser um homem honrado e, finalmente, casar com Lupe. Mas, como soluciona­ria o problema? Só um milagre da Virgem!

Apoiado na janela olhou para o céu cheio de estrelas. Jogou a ponta de cigarro fora e olhou pa­ra a pradaria. A grama, refletindo a luz da Lua, parecia um tapete prateado. Tudo era silêncio e corria uma brisa agradável. Pensou em Lupe, que talvez já estivesse dormindo. Ou talvez não... Mostrava-se tão preocupada e era bem possível que ainda estivesse pensando em todas as complicações que ele lhe trouxera... Pobre Lupe!

Continuou a cismar, olhando o tempo pela ja­nela. Admirou a horta tão bem cuidada, com as canaletas de irrigação. O rio estava bem perto, fa­cilitando tudo. Terras boas, aquelas! Do outro lado os estábulos, com as vacas leiteiras e os cava­los. Voltou a admirar a pradaria e percebeu que um vulto se movia. Fixou bem a vista e viu dois homens caminhando cautelosamente. A claridade da Lua facilitava a visão. Não havia dúvidas. Eram dois homens que se movimentavam em dire­ção ao rancho. Pancho estremeceu e raciocinou ra­pidamente. Recordou-se de Schuck e Frazer, de quem já esquecera. Ao deixá-los para trás, estava certo de nunca mais encontrá-los. No entanto, a julgar pelas aparências, eles ali estavam. Recor­dou, rapidamente, quão tolo fora ao lhes falar de Lupe, do seu rancho, indicando a localização exa­ta da fazenda. Reconhecia, agora, que fora uma imprudência. Dera todo o serviço, informando pa­ra onde viria e o que pretendia fazer. Deviam es­tar furiosos com ele, por havê-los abandonado. Agora, decerto, tentariam a forra. Por ele, nada havia a recear, mas não queria nem pensar no que poderiam fazer a Lupe. Pobrezinha! E logo agora, quando o seu irmão estava viajando...

Sim, eram dois homens e estavam cada vez mais perto, embora caminhassem lentamente e com cuidado. Tinham lenços amarrados ao rosto a fim de não serem identificados. À luz da Lua, os pu­nhais que empunhavam eram facilmente percebi­dos.

Já vinham em posição de ataque, sinal de que não queriam perder tempo. Deviam estar furiosos, talvez pensando que ele os tivesse denunciado às autoridades. Não tinha dúvidas de que primeiro se lançariam contra ele e depois contra Lupe, com toda a sua torpeza. Eles eram capazes de tudo!

Virgem Santa!

Agachando-se para não ser visto, deixou ra­pidamente a janela. Conhecia bem a casa, pois lá já estivem várias vezes. Foi direto ao armário de armas, dali retirando um rifle Winchester e uma caixa de balas. Carregou a arma e encheu os bol­sos de munição. Tirou o sapato, para não fazer barulho e voltou à janela, olhando com cuidado. Entrincheirou-se, levantando o rifle. Os dois ho­mens se aproximavam da varanda. Ele os via de costas, porque o quarto de hóspedes ficava nos fundos. Esperava o momento exato para fazer fo­go. Já estava com o dedo no gatilho.

 

Os dois homens continuavam, cuidadosamente, a reconhecer a casa, procurando uma janela aberta ou mal fechada. Lupe deixara uma janela aberta. A noite estava agradável e a brisa ajudava a dor­mir. Os dois bandidos logo perceberam e para lá se dirigiram.

Panchito caprichou bem na pontaria. Ia ter que matar; era forçado a usar da violência pela primeira vez. Sabia que se tratava de bandidos, mas, mesmo assim, aquilo o repugnava. Mas era preci­so. Teria que defender a sua Lupe adorada, mes­mo que para tanto fosse necessário empapar as suas mãos de sangue.

Um deles levantou a perna, tentando saltar a janela. Panchito disparou. Como levassem o lenço amarrado ao rosto, Pancho não poderia saber se era Schuck ou Frazer. O bandido ficou imóvel um instante e logo levantou os braços, caindo pesada­mente ao chão. O outro assaltante gritou assus­tado, olhando em redor, sem ver ninguém. Empu­nhava um revólver numa mão e o punhal na outra. Panchito moveu rapidamente a alavanca do rifle e disparou outra vez. O bandido começou a correr pela pradaria e o mexicano saiu ao seu encalço, de rifle em punho. Pancho acionou novamente o ga­tilho e a bala se alojou na cabeça do bandido, que logo caiu de bruços.

— Pancho! Pancho! — gritou Lupe, que acor­dara sobressaltada.

— Venha aqui, meu bem! Traga um candeeiro! – gritou ele, caminhando em direção à va­randa.

Chegando perto da janela deu um pontapé no primeiro bandido. Pensava que ainda vivesse, mas logo constatou que estava morto. Lupe apanhou o candeeiro e se dirigiu ao quintal.

— Que aconteceu? – perguntou ela, ainda assustada.

Lupe se aproximava com o candeeiro numa mão e o colt na outra.

— Tive que matá-los! Um deles já ia pulando a janela do seu quarto, de punhal na mão.

— Quem será? – perguntou ela. — Será al­gum dos seus antigos companheiros?

Pancho não respondeu. Aproximou-se do mor­to e retirou o lenço do rosto.

— Não! Não posso atinar quem seja. Eu cheguei a pensar que fossem eles! Nunca matei um homem, mas não podia agir de outra maneira. Eles vinham dispostos a matá-la!

— Tinha que ser assim, meu bem! Antes ma­tar que morrer – disse ela, abraçando-o e procu­rando consolá-lo. — Se você não estivesse acorda­do, a estas horas eu já estaria morta!

— Não sei como é que o seu irmão teve cora­gem de deixá-la sozinha neste rancho! – censu­rou ele, indignado. — É uma temeridade.

— Mas eu tinha que cuidar dos animais, da horta... Não podia ir com ele. Mas Deus é bom e lhe trouxe para cuidar de mim e defender-me. Foi a Virgem que retardou o seu sono!

Ela o beijou de novo, enternecida.

— Eram ladrões que talvez agissem nas re­dondezas. Eles deviam saber que o seu irmão via­jou e que você estava sozinha. Deviam ter tudo planejado. Agora, a coisa piorou para o meu lado. Além de fugitivo, estou encrencado com a morte de dois homens. Não vejo saída para a minha si­tuação. Talvez possa levar os corpos para longe daqui, jogá-los no rio... Depois que o encontra­rem, ao sabor da corrente, ninguém poderá dizer que foram mortos no seu rancho.. .

— Lupe! — gritou uma voz masculina, ainda longe. — Que aconteceu, Lupe? E' Harold, o vizi­nho...

— Virgem Santa! É o rancheiro vizinho que ouviu os tiros e veio em meu socorro. Corra, meu bem! Vá esconder-se no depósito de lenha. Não quero que o vejam nesta situação. Corra! – Insistiu ela empurrando-o e tirando o rifle da sua mão.

Panchito estremeceu e logo tratou de escon­der-se. De nenhuma maneira poderia apresentar-se como o defensor de Lupe. Era um fugitivo da jus­tiça e estava sendo procurado. Foi direto para o depósito de lenha, nos fundos da casa.

— Eu direi que fiz os disparos. Afinal, te­nho o direito de defender-me de gatunos que assal­tam a minha casa. E eles estão mortos, não pode­rão desmentir-me.

Acompanhando-o até a lenheira, Lupe trancou o depósito onde Pancho se escondera.

            — Fique quieto, meu bem. Não faça o menor barulho.

— Lupe! – gritava o rancheiro vizinho, in­quieto.

Ele e o seu filho, Frank, já estavam chegan­do. Pularam a cerca e vinham armados, dispostos a socorrê-la. — Que aconteceu Lupe?

Ela se dirigiu ao seu encontro, simulando agi­tação e terror. Mas, intimamente, desejava que eles fossem embora o quanto antes e a deixassem só com o seu Panchito.

— Obrigado por terem vindo – disse ela, nervosa, falando em inglês. Os vizinhos não sa­biam falar o espanhol. — Foram dois ladrões que tentaram assaltar-me...

— Onde estão eles? – perguntou Harold, o filho do rancheiro. — Fugiram?

— Não. Eu os matei! Ouvi barulho na varan­da e abri a janela. Eles se aproximavam de rosto coberto por lenços e armados de punhal e revólver. Era evidente que as suas intenções não poderiam ser boas. Eu estava só, não tive alternativa... Empunhei o rifle e derrubei o primeiro. O outro saiu correndo e ainda pude alcançá-lo com uma bala!

— Você foi muito corajosa, Lupe! – elogiou Harold.

— Meu Deus! — disse Frank, um rapaz alto e elegante, de uns vinte e dois anos.

— Fez muito bem, menina – comentou Ha­rold. — Esses canalhas! Vamos até lá vê-los, Frank. Lamento tudo isto, Lupe. Sem querer censurá-lo, acho que o seu irmão devia levá-la con­sigo quando viajasse. Nós ficaríamos encarrega­dos do rancho, dando uma olhada de vez em quan­do, até que regressassem. É para isto que servem os bons vizinhos.

— Obrigada, Harold mas eu sei me defender. Tenho o sono leve. Desta vez ainda estava acor­dada. Venham comigo.

Lupe apanhou o candeeiro e acompanhou-os, mostrando-lhes os cadáveres. Harold examinou o primeiro, comprovando que realmente estava morto.

— Levou uma bala na cabeça. Boa pontaria, menina. E o outro?

O outro estava estendido na grama, um pouco distante da varanda, caído de bruços, com o rosto no chão.

— Foi também atingido na cabeça! – excla­mou Harold, assombrado. — Você enxerga bem à noite. Que boa pontaria você tem. Ninguém se atreva a enfrentá-la quando você tiver um rifle na mão!

— Foi o medo, Harold. Foi o medo que me deu coragem. Se eu falhasse estaria morta.

— De qualquer forma, devo felicitá-la. Não é bom matar dois homens, mas há momentos em que se torna absolutamente necessário. Além do mais, há homens e homens. Afinal, eles encontraram o que procuravam. A gente nem pode lamentar a morte destes bandidos!

— Temos que comunicar ao xerife – disse Frank, quando já regressavam à varanda. — Não poderemos deixar de fazê-lo a fim de que tome as providências necessárias.

— Sim, claro. Tem certeza, Lupe, de que eram apenas dois? Será que não escapou ninguém? É bom revistar a casa, Frank. Pode ser que ain­da haja algum por aí, escondido.

Harold, juntando o gesto às palavras, sacou o revólver, decidido.

— Não! Não! – exclamou Lupe, pensando em Panchito, escondido no depósito de lenha. — Eram apenas dois. Eu os vi perfeitamente e, logo em se­guida, revistei toda a casa. Não há necessidade de revistarem novamente. Não precisam ter tanto trabalho!

— Pensei na possibilidade de encontrar mais algum – disse Harold. — Sendo assim, vou até a casa apanhar o cavalo. Procurarei o xerife o quan­to antes. Fique aqui, Frank, fazendo companhia a Lupe, enquanto eu volto. Nós não a deixaremos só até que Pedrito volte.

O rancheiro se afastou, deixando o filho sen­tado numa poltrona, com o revólver na mão, muito orgulhoso por poder proteger Lupe, que ele até ainda bem pouco supunha ser uma frágil criatura, uma mulher necessitada de amparo.

A moça suspirou, sentada em frente a Frank. Panchito se metera numa bruta encrenca, em sua defesa. O azar o estava perseguindo, não restavam dúvidas.

— Vou passar uma revista, Lupe. Pode ser que ainda tenha algum escondido por aí – insistiu Frank, de repente. Levantou-se, decidido, que­rendo demonstrar o seu valor à bonita mexicana, a quem admirava muito, embora em silêncio.

— Não, Frank! Não há necessidade. Eu já revistei tudo – disse ela, inquieta, agarrando o ra­paz pelo braço e lhe sorrindo com doçura. — Eram apenas dois, tenho certeza. Não se incomode. Eu lhe agradeço da mesma forma. Trate de sentar-se. Quer uma dose de uísque? Eu também beberei, es­tou precisando.

— Obrigado, Lupe. Não preciso de álcool para criar coragem... Embora eu nada mais tenha a fa­zer. Você é uma ótima atiradora!

Lupe sorriu e logo se afastou, voltando com uma garrafa de uísque e dois copos, que colocou so­bre a mesa. Serviu as doses, oferecendo uma a Frank, que bebeu de uma só vez copiando a ma­neira dos frequentadores de saloons. Mas logo lhe veio um acesso de tosse.

— Parece que o uísque tomou o caminho erra­do... – gracejou Lupe, rindo intimamente daque­la cômica atitude varonil do rapaz. — Acho que você devia regressar a sua casa, Frank. Sua mãe deve estar inquieta. Seu pai saiu e ela está sozinha. Eu já não preciso de ajuda.

— Os homens por estas bandas têm que ser mesmo corajosos –afirmou Frank, enérgico e servindo-se de mais uma dose de uísque. Temos que impor a esses vagabundos a nossa própria lei. E as mulheres também devem ter a mesma têmpe­ra, é claro. Se não nos defendermos, estaremos perdidos. Os homens da lei andam sempre atrasa­dos. Ainda outro dia, topei com um bêbado, na rua, que me disse: Saia do caminho, bebê... Eu sou uma locomotiva e não quero atropelar grin­gos...

— Que desaforo! – exclamou Lupe, fingindo indignação. — Chamou-o de gringo!

— Eu não me zanguei por ele me ter chama­do de gringo – respondeu Frank. — Por mais bê­bado que estivesse ele podia ver que eu não sou uma criança. Não admiti que me chamasse de be­bê. Então, respondi-lhe: Se você é uma locomo­tiva eu vou fazê-lo sair dos trilhos! Já ia dar-lhe um empurrão quando chegou meu pai, que sem­pre anda atrás de mim como se eu ainda precisas­se da sua proteção. Ele me disse que aquele tipo era Curdy, um conhecido pistoleiro. Apenas por causa do meu pai eu não lhe dei o ensino merecido. Gisela, que estava em minha companhia, levou um bruto susto, mas logo me confessou que eu agira como homem e me achava simplesmente estupen­do.

— Frank – disse Lupe, com diplomacia — você já está na terceira dose. E' bom que você vá, sua mãe está esperando. Não seria interessante que você saia daqui trocando as pernas. Se con­tinuar a beber não poderá proteger-me, em caso de necessidade...

Frank não teve tempo para responder. Logo ouviram o barulho de cavalos que se aproximavam. Frank levantou-se, pálido, com a mão no revólver.

— Não tenha receio, Frank – disse Lupe. — É seu pai e o xerife. Guarde o revólver. Eu en­treguei a chave a Harold. Deus queira que tudo acabe bem – murmurou ela em voz baixa, pen­sando em Panchito.

Logo chegavam Harold, o xerife de Astec e seus ajudantes. O xerife, um jovem vigoroso, pa­recia bastante agitado e se dirigiu a Lupe bastan­te nervoso.

— Harold me contou tudo – disse ele, com voz trêmula, olhando demoradamente para a mo­ça. — Eu sinto profundamente, Lupe, tudo o que lhe aconteceu. Fiquei gelado quando Harold me contou – disse o jovem, colocando entre as suas a mão que Lupe lhe estendia.

Frank, mesmo bastante alto, ficou perplexo ao ver tamanha intimidade da parte do xerife. Além do mais, aquela não era uma ocasião apropriada para manifestações daquela espécie.

— É... – disse ela sorrindo com doçura e procurando retirar a mão, discretamente. — Feliz­mente tudo acabou bem, ao menos para mim. Eu os percebi a tempo e pude defender-me. Aí es­tão os cadáveres, ajuntou Lupe, apontando para a varanda e para a pradaria. — Que vai fazer agora?

— Você terá que prestar um rápido depoimen­to, Lupe – disse o xerife, já em voz baixa, perce­bendo que não estava só.

Trevor Whitman, o xerife do condado, podia ter, no máximo, trinta e quatro anos. Era alto, ele­gante e forte como uma rocha. De temperamento nobre e maneiras afetuosas, era bastante enérgico quando necessário.

— Eu já contei tudo – esclareceu Lupe, fa­lando em espanhol, pois Whitman compreendia bem aquela língua. Eles já iam se metendo em meu quarto. A janela estava aberta. Logo que vi um deles, apanhei o rifle e atirei. Estavam armados de punhal e com os rostos encobertos por lenços. Acer­tei em ambos. Tive sorte... Poderia ter levado a pior.

Whitman concordou, suspirando profundamen­te. Depois de olhar ternamente para Lupe, afas­tou-se com os seus ajudantes, dirigindo-se ao local onde se encontrava o primeiro cadáver, junto à va­randa. Tirou um papel do bolso e aproximou-se do candeeiro, passando um rápido olhar sobre o do­cumento. Pediu outro candeeiro a Lupe, que logo foi apanhá-lo.

— Escute, Harold, eu lhe agradeço por tudo e acho que você bem merece um repouso. Vá para casa, por favor. Sua senhora deve ter razões para estar intranquila sozinha. Agora já não há mais razões para temores quanto a mim. Mais uma vez, muito obrigada. Vocês se mostraram muito meus amigos!

Pai e filho se despediram da moça, renovando os seus oferecimentos. Se precisasse de alguma coisa, era só mandar chamar. Eles, no entanto, ficariam atentos a qualquer movimento suspeito, du­rante a ausência de Pedrito.

O xerife e os seus ajudantes continuavam o serviço de reconhecimento dos cadáveres. Lupe, na varanda, sozinha, procurava acalmar-se, recostada numa cadeira de balanço. Não desejava mais apro­ximar-se daqueles mortos. De tanto afirmar que matara os dois bandidos, já estava quase acreditan­do... Até remorsos já começava a sentir. Mas não podia despreocupar-se quanto a Pancho, coitado, que continuava escondido no depósito de lenha e, agora, se descoberto, estaria duplamente encren­cado.

Depois de uma meia hora, regressaram os três representantes da lei. Whitman parecia bastante preocupado e já tinha guardado o papel que levava em uma das mãos.

— Não são os que eu pensava – disse ele a Lupe, sentando-se numa cadeira ao seu lado. Ain­da bem... Eram outros, parece que não muito me­lhores. Fred, você e Mack tratem de revistar a ca­sa, pode ser que ainda haja alguém por aí, escon­dido.

— Mas eu já revistei, ainda há pouco, Whit­man! Não há necessidade... – disse ela, angustiada. — Tenho certeza de que eram apenas dois. Não se incomodem, sentem-se e tomem um pouco de uísque — acrescentou, apressando-se em apa­nhar os copos.

Whitman mostrava-se visivelmente preocupa­do e, com um gesto, fez sinal aos ajudantes para que desistissem de revistar a casa. Mas foi ter com ela na sala de jantar, aonde se dirigira, à pro­cura dos copos.

— Você não sabe como eu me sinto, querida – disse ele, com um toque de ansiedade na voz. — Devia pensar melhor na sua segurança quando o seu irmão viajasse. Como estava preocupado com outros assuntos, nem me lembrei de tomar provi­dências neste sentido. O meu dever era protegê-la, meu anjo. Não foi desinteresse da minha parte, acredite – disse o rapaz, segurando a mão da mo­ça e olhando-a com ternura. — Mas tudo estará terminado dentro em pouco. Não se preocupe.

— Não tem de que desculpar-se, Trevor – respondeu ela, sorrindo carinhosamente. — Afi­nal, eu sei defender-me... Eu não gosto de vê-lo assim angustiado por minha causa. É verdade que poderia ter acontecido o pior, mas esqueça isto. Tudo está bem e não há razões para ficarmos a la­mentar, a não ser a morte desses dois pobres dia­bos.

— Até que Pedrito regresse, estarei aqui to­das as noites. Quero que você durma tranquila e quero, também, estar tranquilo de que nada lhe acontecerá. Seu irmão, quando regressar, bem que pode censurar-me pelo descaso, e com inteira razão. Deixá-la sozinha... Que loucura fiz eu...!

— Não, Trevor! Você não pode e não deve fa­zer isso! Como poderia admitir a sua companhia, de noite, sozinha em casa? Compreenda que seria uma situação constrangedora, para você e para

mim... Os comentários viriam, certamente. Os vi­zinhos não ignoram que você me distingue com uma amizade toda especial. Que iriam dizer? Pen­se bem que não nos será possível agir dessa manei­ra. Comentários desse tipo só poderiam prejudi­car-me. . .

— Sim, minha querida, eu compreendo – dis­se Whitman, encabulado e baixando a cabeça. — Mas juro que isto não teria acontecido se você já me tivesse aceitado como marido. Para mim, seria uma grande felicidade.. . Entretanto, você insiste em recusar-me! Pancho continua sendo o dono absoluto do seu coração... Você ainda insiste nes­sa absurda esperança de que ele um dia venha a re­generar-se? Até quando continuará acreditando no impossível?

— Escute, Trevor. Quero lhe falar como ami­ga, como uma grande amiga que nunca poderá re­tribuir a imensa amizade que me dedica. Você é um ótimo rapaz e merece ter uma esposa até me­lhor do que eu. Lamento, sinceramente, não poder corresponder na mesma proporção aos sentimen­tos que me dedica. Se o coração da gente obede­cesse ao raciocínio, bem que poderia amá-lo ternamente, pois você o merece mais do que ninguém. Acontece, Trevor, que as coisas não são tão fáceis assim. Não sei por que, não me pergunte os moti­vos, mas o meu amor está todo em Pancho. A vo­cê, quero-lhe muito, mas de uma maneira diferen­te, apenas como um grande amigo, um amigo de verdade. Acredite, Trevor, que a mim me dói di­zer isto, mas eu não saberia fingir... Sei que estou agindo tolamente, mas terei que ser sincera! Pro­cure entender, meu querido amigo...

— Continuo a dizer que você está redonda­mente enganada, Lupe. Mas, que fazer? Está aci­ma das minhas forças, sei que não poderei conven­cê-la. Talvez, com o tempo...

Mudando de assunto, o xerife perguntou:

— Tem tido notícias dele?

— Não. E você?

Ela resolveu dirigir a conversa, a fim de que Trevor não desconfiasse de que se encontrava em­baraçada. Por outro lado, sentia ter que enganar a Trevor, um amigo de todas as horas, leal e ver­dadeiro.

O xerife levou dois copos para a varanda, ser­vindo aos seus ajudantes, que ali continuavam sen­tados, enquanto ele, na sala, conversava com Lupe.

Voltando ao assunto, Whitman falou, sem ro­deies:

— Lupe, tenho más notícias de Pancho para você. É pena que eu as tenha de transmitir, ago­ra, quando você já está tão acabrunhada com o que acaba de acontecer.

— Fale, Trevor. Pode dizer, por piores que sejam essas notícias. Os meus nervos estão reagindo, graças a Deus. Não sou mulher de chiliques.

— Pancho fugiu da prisão, há três dias. Está sendo caçado por toda parte. Fugiu em companhia de dois outros sentenciados. Recebi um telegrama de Yuma, em que me pedem a captura dos três, caso apareçam aqui. Estamos vigiando todas as estradas. Sinto muito, Lupe, mas terei que pren­dê-lo, mesmo sabendo que você irá sofrer muito. É a lei e eu sou o seu representante no condado. Não poderia fugir ao meu dever.

A moça estava pálida e tinha a cabeça inclina­da para baixo, tentando esconder as lágrimas. Era muito grande a sua tristeza e Trevor a notou, com­pungido.

— Eu também lamento muito, Trevor. Sei que Panchito não é... não é tão mau assim. Meu irmão e eu mesma já lhe contamos toda a sua his­tória. Você já sabe de quase tudo, não é? Desde os quatorze anos que ele, órfão de pai e mãe, vive no meio de bandidos e assassinos. É um escorraçado da sociedade, pelas circunstâncias. Vive fora da lei não porque queira, mas porque é forçado, acre­dite. Se a sociedade o repele, é obrigado a se che­gar aos maus, que o aceitam sem fazer perguntas. Fugindo da sociedade que o repele, volta à convi­vência dos bandidos! Esta, a sua tragédia e eu não descansarei enquanto não encontrar uma saída pa­ra ele. É um rapaz de bons sentimentos e bem o merece. Compreenda, Trevor.

— Eu sei – respondeu Whitman, contristado. — Ele teve bom comportamento na prisão. Eu sempre me interessei por saber notícias dele. Não como rival, mas para tentar, sinceramente, fazer alguma coisa em seu benefício, oferecer-lhe, se pos­sível, uma oportunidade. Durante dois anos e meio, Pancho foi irrepreensível na prisão de Yuma. Chegava a ser mediador nas brigas dos detentos, sempre se mostrando amistoso, ajudando os guar­das a resolver os conflitos que de vez em quando surgem ali como em qualquer outra prisão. Você sabe, num presídio há de tudo, até mesmo gente boa...

— Pelo que você mesmo diz, eu não estou exa­gerando. Panchito não é um rapaz de maus instintos!

— Ele parece ter dupla personalidade, Lupe. Tão depressa pratica uma boa ação, logo volta ao caminho errado, colocando-se fora da lei. É pena que assim seja. Ele já prometeu emendar-se tantas vezes...! Mas sempre volta à vida antiga.

— É porque vivem a persegui-lo e não lhe dão emprego! – disse ela, alterada. — Ninguém lhe dá um crédito de confiança. A lei está sempre a reclamá-lo, sem nenhuma caridade, como se fosse uma fera. Sendo assim, ele não encon­tra outra saída a não ser acompanhar quem o acei­ta. E só não é repelido pelos bandidos. Daí...

— Cheguei a saber que ele ia ser indultado – continuou Trevor. — Dentro de seis meses estaria solto, sem que nada o impedisse de mudar de vida. Depois de pagar pelo que fez, poderia arranjar em­prego em qualquer parte. Mas, agora, com esta fu­ga, só complicou ainda mais a situação. O que ele fez foi um autêntico gesto de loucura! E o culpa­do é apenas ele, mais ninguém.

— Eu não sabia que ele ia ser indultado! Po­bre Pancho! Mais uma vez a fatalidade se volta centra ele! – exclamou Lupe, contristada. — Eu lhe escrevi várias vezes, mas nunca me respondeu. Não recebia as minhas cartas...

— Como você sabe que ele não recebia as suas cartas? – perguntou Trevor, olhando-a com as­sombro. — Pedrito já me dissera que ele não lhe escrevia e é por isto que seu irmão acha que ele não merece a menor consideração.

— Bem... – gaguejou ela, notando que fa­lara demais — eu é que deduzi que ele não recebia as minhas cartas. Do contrário teria respondido, tenho certeza. Talvez a correspondência fosse in­terceptada pelos guardas.

Whitman olhava fixamente para Lupe e, no seu rosto tão expressivamente leal e sincero, per­cebeu uma sombra de indecisão.

— Está bem – disse ele, levantando-se. — Tenho que ir. Este barulho que está ouvindo é o da carroça que vem apanhar os cadáveres. Deixa­rei aqui, de guarda, um dos meus ajudantes. Eu gostaria de ficar, mas...

— Não, Trevor. Não é necessário deixar nin­guém. Se tivesse que ficar alguém, gostaria que fosse você, mas a vizinhança está aí mesmo para não deixar passar nada. Não vale a pena dar mo­tivos para comentários. Tudo já passou. Dentro em pouco estará amanhecendo e não há mais nada cada a temer.

— Enquanto o seu irmão estiver ausente, Lu­pe, um dos meus homens ficará aqui, de guarda – disse o xerife, secamente. — Você se saiu bem, é verdade, mas pode ter sido, como acredito, um me­ro acaso. Não quero que fique exposta a novo pe­rigo.

— Você não deixará aqui nenhum dos seus homens, Trevor! – gritou ela, com energia. — Eu sei muito bem me defender e tornarei a matar quem tiver a coragem de atacar-me ou de ofender-me! Trate de proteger os outros que eu me protejo sozinha!

Whitman ficou a olhá-la, estupefato. Era co­mo se não a conhecesse. Nunca a vira tão exaltada, tão cheia de cólera. Ficou sem compreender nada. Talvez fosse a emoção reprimida depois do choque com os bandidos, que agora estivesse transbordan­do. Ou talvez as notícias que acaba de lhe transmitir a respeito da situação desesperada em que se encontrava Pancho, perdendo tolamente a oportu­nidade de ser indultado, ganhando a liberdade e o direito de conviver com pessoas decentes.

— Sinto muito, querida – disse ele ternamente, estendendo-lhe a mão. — Sinto muito de verdade. Já que não deseja ninguém aqui, nós nos iremos.

— Desculpe, Trevor. É que os meus nervos estão a ponto de arrebentar. Até amanhã. Logo nos veremos outra vez...

— Até amanhã – respondeu ele, retirando-se em companhia dos ajudantes.

 

Os guardas rurais postos à disposição da Pri­são Territorial de Yuma para captura dos fugiti­vos Frazer, Schuck e Pancho Juarez, enfrentavam as agruras do deserto a sudeste da prisão quando divisaram, quase ao anoitecer, um bando numero­sos de abutres voando a baixa altura sobre um lo­cal não muito distante.

Habituados àquele espetáculo, os dois guardas, Moore e Taylor, sabiam que alguém estava sendo devorado pelos sinistros carniceiros. Era possível que se tratasse de um outro animal, um cavalo, por exemplo, mas era mais certo ser um homem, ou vá­rios... Os homens notadamente os fugitivos, é que costumavam a se aventurar pelo deserto.

— Será que você também está vendo a mes­ma coisa? –perguntou Moore, apontando com o dedo, ao longe, um vulto esbranquiçado. Não era uma rocha, nem um cacto gigante, nem um ginete. Ele bem sabia distinguir.

— É bem sob a zona onde estão os abutres – respondeu Taylor, detendo o cavalo e colocando a mão na testa para ver melhor. Vamos até lá.

Puseram a trote as montarias. O sol estava quase no poente e o seu reflexo dificultava bastan­te a visão.

— Não acredito que esses três condenados te­nham vindo por aqui – disse Taylor, limpando o suor do rosto. — Não tendo víveres nem água, se­ria um autêntico suicídio... Neste caso, melhor seria não fugir.

— Ordens são ordens, amigo – respondeu Moore, encolhendo os ombros. — Para ir ao Mé­xico este é um dos caminhos. Talvez tenham pre­ferido este sabendo que aqui a vigilância é bem menor ou quase nenhuma.

A discussão não foi adiante. Os dois guardas ficaram silenciosos, porque ali, naquele calor in­fernal, até o falar era um esforço que devia ser evitado. O suor logo aumentava. Os cavalos, dan­do mostras de cansaço, logo abandonaram o trote e se puseram a passo. A sede lhes tornava a ca­minhada quase insuportável.

— É uma carroça parada, sem cavalos! – exclamou Taylor, com assombro. — Nunca vi dis­to. E os cavalos, onde estão?

— Pergunte aos abutres – respondeu Moore. — Devem ter morrido de sede ou de fome. Garan­to que por aqui nenhum animal, nem mesmo o ho­mem, morre afogado ou de indigestão... Já começo a me sentir mal. Ninguém pode ver estas coisas sem sentir um arrepio. Este deserto é uma das pio­res coisas do mundo!

Era uma carroça, com efeito. Voando baixo por cima dos destroços, uma meia centena de abu­tres estavam a grasnar numa barulheira infernal. Era estranho, porém, que ainda não tivessem des­cido sobre a carroça. Talvez estivessem com receio de se arriscarem sob o toldo. A boléia estava va­zia e a parte reservada à carga ainda se conservava fechada com a lona.

— Se não descem é porque ainda há alguém vivo sob o toldo. Estes bichos têm uma sensibi­lidade estupenda... Eles sabem quando a presa está morta. Só então começam a atacar! – comen­tou Moore.

— Não sei... Não estou lá dentro... – res­pondeu Taylor, tentando fazer humor. — Será que lá dentro não há nada que possam comer?

— Eles é que sabem. Se estão voando é por­que ainda não é hora de pousar.

Voltaram a exigir o trote dos cavalos. Esta­vam curiosos por saber o que se passava. Era a primeira vez que encontravam uma carroça no de­serto, aparentemente abandonada. Espantados com a presença dos ginetes, os abutres se espalha­ram tomando altura. Continuavam grasnando nu­ma tremenda algazarra.

Aproximando-se umas trinta jardas, já empu­nhando revólveres prevendo qualquer surpresa, os policiais rodearam a carroça, procurando divisar alguma coisa. Nada. Não lhes pareceu que hou­vesse ninguém sob a lona. Se fossem os fugitivos,certamente já teriam disparado ou tentado a fu­ga, caso não dispusessem de armas.

— Vamos descer e verificar – propôs Moore, impaciente. Tocou o seu cavalo para junto da car­roça, sempre apontando a arma. Antes de descer da sela abaixou-se sobre a montaria e olhou para dentro do toldo, por uma fresta da lona. Estava escuro. Voltou-se para Taylor e informou:

— Parece não haver ninguém vivo. Algumas pipas, caixas, objetos...

Taylor logo desceu do cavalo e se dispôs a ver a coisa de perto. Puxou o toldo e entrou.

— Venha, Jack! –— gritou Taylor. .— Aqui há uma moça que ainda se move. Parece estar nas últimas... Está tudo cheio de sangue!

Moore logo subiu à carroça. A moça estava fe­rida, deitada sobre os caixotes, entre barris, cai­xas de ferramentas e outros fardos. Algumas gar­rafas vazias, outras quebradas. E muito sangue coagulado sobre as roupas da mulher, sobre o seu rosto, suas mãos, suas pernas... Estava de rosto voltado para cima e recebera, no peito, vários gol­pes de punhal.

— Deus do Céu! – exclamou Taylor, horro­rizado, tomando o pulso da pobre moca e exami­nando os seus olhos, levantando as pálpebras. — Ainda vive, mas parece que está quase morrendo. Pobrezinha!

— Foi apunhalada – disse Moore, rangendo os dentes, furioso. —É quase certo que foi obra desses três bandidos. Que poderemos fazer por ela? É ainda bem jovem e parece índia.

— Vamos dar-lhe um pouco de genebra, Apa­nhe uma destas garrafas. Genebra ou uísque, tan­to faz um como outro. Pode ser que ela se reanime.

Moore rompeu o selo de uma garrafa de uís­que, apanhou um dos copos que estavam rolando por ali e tirou água de um dos toneis. Juntou uma coisa à outra, levantou o busto da moca e entornou o líquido na sua garganta. Ela pareceu respirar com dificuldade, emitindo um gemido rouco. Logo tossiu.

Os dois policiais a observavam com ansiedade. Fizeram com que bebesse mais um pouco, limpa­ram o seu rosto e a colocaram em melhor posição.

— Talvez a gente a faça falar – comentou Moore, despejando, ao mesmo tempo, um pouco d'água sobre a cabeça da jovem, tentando reanimá-la mais ainda. — Parece coisa daqueles três bandi­dos. Será que ela viajava sozinha? Não quero acreditar. E os cavalos?

— Os cavalos? Ora, que pergunta! Eles leva­ram! Repare, ela abriu os olhos. Mas não vamos enchê-la agora, de perguntas. Tratemos de salvá-la. Pobrezinha!

A moca abriu os olhos, lentamente. A dose de uísque fizera recobrar um pouco as forças.

— Ouça — disse Moore, falando em voz pau­sada e em tom moderado — você vinha só? Somos policais... Você nada tem a temer. Vamos tentar salvá-la. Você pode falar um pouquinho?

A moca olhava para eles, assombrada. Custa­va-lhe muito respirar e era evidente que lhe restavam poucos momentos de vida. Estava se acaban­do em febre.

— Com meu pai – respondeu ela, num fio de voz. — Os dois policiais se inclinaram sobre ela, tentando ouvir melhor. — Eles mataram meu pai.

— Quem eram eles? – perguntou Taylor, derramando um pouco d'água no rosto da jovem. — Responda. Eram três homens? Está me ouvindo?

A índia moveu a cabeça negativamente, mos­trando dois dedos da mão. Tossiu e um pouco de sangue escorreu da sua boca. Moore deu-lhe mais um pouco de uísque com água.

— Eram dois — sussurrou ela. – Mas fa­lavam dum Pancho. Eram dois...

— O mexicano não ia com eles – disse Moore. — Ouça, menina, eles se chamavam Nic Schuck e Tony Frazer?

— Nic e... Tony, sim – respondeu a moca, fazendo das fraquezas força e demonstrando uma carga terrível de ódio em seu olhar. Que vergo­nha...! – exclamou. — Prefiro morrer... Dei­xem-me morrer...!

Os policiais se entreolharam. Perceberam, de relance, o ato tremendamente vergonhoso dos dois pistoleiros. Mataram o pai e violentaram a filha, esfaqueando-a depois, num requinte de perversi­dade .

— Eles levaram os cavalos, menina – infor­mou Taylor, que via extinguir-se rapidamente a vida da pobre moca. — Sabe para onde foram? Será que disseram alguma coisa?

— Gila – respondeu ela, fazendo um grande esforço. — Quero... – ela olhou para os homens com os olhos cheios de lágrimas. — Segurem mi­nha mão... Rezem comigo. Que vergonha...! Meu Deus!

Moore segurou-lhe a mão, fazendo com ela, so­bre a pobre moca, o sinal da cruz. Os três reza­ram em voz baixa,

— Repare, Moore... – murmurou Taylor,comovido.

— Acaba de morrer – disse Moore, que lhe segurava o pulso. — Mais alguns minutos e a en­contraríamos morta. Que canalhas, meu Deus!

— As informações que ela nos deu serão úteis – comentou Taylor, cobrindo o cadáver com um pedaço de lona. — E agora? Vamos deixá-la aqui mesmo? Os abutres tomarão conta dela tão logo nos afastemos.

— No carregamento há pás e picaretas. Va­mos enterrá-la aqui mesmo – disse Moore, lim­pando o suor da testa. — Onde estaria o cadáver do pai?

— O esqueleto, você quer dizer – co­mentou Taylor. — Vamos tratar de enterrá-la. Está ficando tarde e devemos voltar.

Perto de uma rocha, os policiais cavaram uma sepultura na areia e logo enterraram o seu corpo.

— Não sei se pensa da mesma maneira – co­mentou Taylor, olhando firmemente para o seu companheiro. — Se eu puser a vista em cima des­ses dois bandidos, não lhes direi palavra, não lhes farei uma pergunta. Mandarei seis balas no corpo de cada um. Não terei a mínima piedade para com esses filhos de Belzebu. Uma morte só, é pouca pa­ra eles. Um desgraçado dessa espécie deveria mor­rer mil vezes!

— Estou inteiramente de acordo – respon­deu Moore — contanto que a tarefa seja dividida entre nós dois. Não quero ser um simples especta­dor. A justiça para essas feras terá mesmo que ser feita a bala.

Voltaram à carroça e com um barril d'água, deram de beber aos animais.

— Parece que não teremos outro recurso se­não deixar este carregamento aqui – comentou Moore. — Não poderemos levá-lo. Além do mais, não devemos perder tempo. Pode ser que até che­garmos a Yuma, tenhamos a sorte de encontrar esses dois bandidos.

— O comandante poderá mandar recolher o carregamento depois. Ao chegarmos ao povoado, telegrafaremos avisando – disse Taylor. — Po­deremos, entretanto, levar um pouco d'água e al­guma coisa para comer, pois até chegarmos ao po­voado sentiremos fome.

— Acredito que sim – concordou Moore.

Encheram os cantis d'água e meteram nos al­forjes algumas conservas, carne seca, farinha, sal e açúcar.

— Agora, talvez fosse melhor tocarmos dire­tamente para as margens do rio Gila, para onde esses bandidos se dirigem. Não creio que eles te­nham andado muito. Talvez os encontremos logo depois das montanhas Mohawk – comentou Moore.

Notando que os cavalos estavam cansados, Taylor propôs ao companheiro que pernoitassem ali, repousando e proporcionando descanso aos ani­mais. Antes do amanhecer recomeçariam a mar­cha.

Com os caixotes quebrados que os dois bandi­dos deixaram na carroça, improvisaram uma fo­gueira e assaram um pedaço de carne.

— As pegadas dos cavalos indicam que eles se movimentam para o norte – disse Taylor, que dera uma pequena caminhada de inspeção, obser­vando a areia.

— Então, não resta dúvida. Eles foram mes­mo para as margens do rio Gila. Eles não escapa­rão. Desta vez terei que desprezar todos os regu­lamentos. Faço questão de matá-los. Não importa que nos proíbam fazer justiça com as próprias mãos!

Acomodaram-se perto da carroça e pouco de­pois dormiam. De vez em quando um deles acor­dava, para vigiar. Era um hábito antigo. Os poli­ciais, quando em serviço dessa natureza, não costu­mam dormir a sono solto.

 

Enquanto os dois rurais dormiam ao lado da carroça, no deserto, Frazer e Schuck aproximavam-se, como lobos, das margens da linha férrea que liga Tucson a Yuma. Haviam-se desviado um pouco do caminho trilhado por Pancho Juarez e já viam, em frente a eles, as luzes do povoado de Theba, a oeste de Astec e bem próximo de Gila Bend.

Como já não usassem as roupas da prisão e montassem os cavalos roubados da carroça, bas­tante resistentes, os bandidos, agora bem atinados, pareciam outras pessoas. Fizeram a barba e esta­vam com outra aparência.

Tiveram sorte até ali, não encontrando ne­nhum rural, nem xerife, nem ajudantes. Evitavam os povoados, margeando o rio San Cristóbal. En­contrando um ou outro granjeiro, sentiam que eram tomados por vaqueiros. Ninguém chegou a desconfiar que se tratasse dos fugitivos da Prisão Territorial de Yuma.

— Estamos chegando, compadre, e com os ossos e o pescoço ainda no lugar... – disse Frazer, tentando ser irônico. — Quem iria dizer que sairíamos com vida do deserto, depois que esse mal­dito do Pancho nos abandonou traiçoeiramente! Cheguei a pensar que aqueles abutres iam se banquetear com as nossas carcaças...!

— As pessoas decentes devem sempre espe­rar que Deus lhes estenda a mão quando estão em apuros – respondeu, rindo grosseiramente, Schuck. — Não era o que Pancho dizia? Pois aí está, irmão. Encontramos uma carroça cheia de víveres, de água e de boas bebidas. Foi um verda­deiro maná do deserto... Ou, se prefere, a multi­plicação dos pães e dos peixes, que também está nas escrituras...

— E eu que não acreditava nisso... – comentou Frazer, sorrindo maliciosamente. — Ago­ra faça os votos para que a sorte continue nos bafejando. Depois que encontrarmos Pancho, aon­de iremos? Estou com um desejo enorme de me mandar para uma cidade grande e divertir-me um pouco... Afinal, ainda temos mais de quinhentos dólares daquele índio. Que homem bom! Legou-nos toda a sua fortuna...!

— Sacrificou-se por nós, amigo – ajuntou Schuck. — Deu-nos a sua vida e a da sua filha. Devemos ser-lhe agradecidos.

Schuck fazia os seus comentários grosseiros, dando gostosas gargalhadas, enquanto o compa­nheiro lhe fazia coro. E continuou:

— Poderemos ir a Phoenix ou a Tucson. São duas boas cidades e lá poderemos divertir-nos a vontade. Há sempre boas mulheres à procura de dinheiro. É justo que tiremos umas férias, de­pois desses três longos anos de cadeia. Somos dois homens livres, solteiros e sem qualquer compromis­so. Viva a liberdade, amigo!

A linha férrea estava bem em frente a eles. A uma distância de quatro quilômetros podiam avis­tar Theba, com os seus telhados prateados pela luz da Lua.

— Olhe a linha do trem! – mostrou Frazer, apontando o leito da estrada de ferro e os postes telegráficos. O trem, sim, é que faz vantagem. Enquanto nós caminhamos um quilômetro a cavalo, ele faz dez, folgadamente! E a gente não precisa fazer forca, basta sentar num banco e a coisa cor­re à vontade. O único trabalho é ver a paisagem passando depressa diante dos nossos olhos!

— E' mesmo! – concordou Schuck, acendendo o cachimbo. — Nada melhor do que viajar co­mo os homens importantes, sentados numa boa pol­trona... Pois bem, depois de nos encontrarmos com Panchito, possivelmente amanhã, nós iremos de trem até Phoenix. Dali poderemos dar uma che­gada até Novo México. Aquilo sim é que é estu­pendo! Lá poderemos começar uma vida nova sem que ninguém nos conheça. Poderemos bancar o jo­go. Ganha-se muito e bem depressa. Vamos apro­veitar a nossa maré de sorte. Poderemos nos dedi­car a negócios mais rendosos e sem os riscos que correríamos assaltando granjas...

— Eu conheço uma infinidade de trapaças de jogo. Seremos sócios e vamos levar vida de lorde – ajuntou Frazer, entusiasmado.

Interrompendo a conversa, Frazer olhou para trás, talvez por instinto.

— Olhe vem gente aí! – gritou ele. — São dois ginetes. Vá tratando de empunhar as armas, discretamente...

— Olá, amigos! – gritou uma voz forte, à sua retaguarda. — Um momento, por favor. Sou o xe­rife de Theba e este é um dos meus ajudantes. São forasteiros?

O xerife e o ajudante pararam os cavalos a uns vinte metros de distância, desconfiados.

— Muito prazer, xerife – respondeu Frazer em tom amável, fazendo um aceno com a mão esquerda. Na direita empunhava o revólver, escon­dido no cabeçote da sela. — Que deseja de nós? Somos granjeiros e vamos para Theba, ali à nossa frente, se é que não estamos enganados.

— São forasteiros? – insistiu o xerife, que os observava atentamente.

Discretamente, o representante da lei disse alguma coisa ao seu ajudante. Schuck e Frazer perceberam que o xerife e o seu ajudante já esta­vam com o dedo no gatilho.

— Ouçam! – gritou o xerife. — Que nos des­culpem se é que estamos enganados, mas desçam dos cavalos e venham até aqui, de mãos para o alto. A região está em estado de alerta. Estamos à procura de uns bandidos que fugiram da Prisão Territorial de Yuma. Façam o favor de obedecer. Quero vê-los de perto e examinar os seus documen­tos. É uma questão de rotina. Se nada têm a es­conder, nada temam.

— Escute, xerife! – respondeu Schuck, em tom ofendido. — Está nos tomando por bandolei­ros? E' uma ofensa. Sendo assim, nós também te­mos o direito de supor que vocês dois não são auto­ridades e, sim, uns simples bandidos disfarçados de representantes da lei. E se assim é poderão nos atacar. Neste caso temos o direito de defesa. Pro­ponho, então, que se aproximem de nós para ve­rificarmos se é verdade o que alegam. Não vamos acreditar que são autoridades apenas porque estão dizendo...

— Se chegarem mais perto atire para matar... – sussurrou Frazer ao companheiro. — Eles pos­suem todas as informações a nosso respeito... Não vamos cair na asneira de nos entregar!

O xerife de Theba e seu ajudante vacilaram, desconfiados. Observavam aqueles dois homens, na relativa claridade da noite. Não pareciam ser o que alegavam. Se assim fosse, não necessitavam de tanto palavreado e nada tinha a temer.

— Desçam dos cavalos e se aproximem, de mãos ao alto! Do contrário, seremos obrigados a atirar! – gritou o xerife, com a voz enérgica e já irritado.

O representante da lei começava a suspeitar de que se tratava dos bandidos, embora a informa­ção falasse em três. Possivelmente um deles já te­ria morrido ou tomado rumo diferente.

O ajudante deslocou o seu cavalo, afastando-se rapidamente do xerife e tomando posição atrás dos dois desconhecidos, tentando prevenir qualquer agressão. Mas os bandidos desconfiaram da mano­bra. Conheciam quase todos os truques e não se deixavam enganar facilmente. Tão depressa per­cebera que o ajudante se separava do chefe, Schuck sacou com a rapidez de um relâmpago e dis­parou duas vezes seguidas. Frazer encarregou-se do xerife que, mesmo prevenido, não esperava se­melhante agressão. Quase ao mesmo tempo caíam por terra o xerife de Theba e seu ajudante. O primeiro, com a garganta atravessada por uma bala o segundo, ferido no peito. Seus cavalos, es­pantados, fugiram em disparada.

— Parece que não perdemos a boa pontaria, apesar de encarcerados há tanto tempo! – obser­vou Frazer, debochando.

— Vamos embora daqui! – ordenou Schuck, tocando o seu cavalo. — Podem ter ouvido os dis­paros! Atravessemos a linha do trem!

— Espere! Vamos verificar se estão mortos. Se os deixarmos vives, seremos delatados! – pon­derou Frazer.

Aproximaram-se dos representantes da lei, examinando-os. Schuck viu que o punhal brilhava, à luz da Lua, na mão do seu companheiro.

— Estes jamais baterão com a língua! – dis­se Frazer. Estão mortos! Aonde iremos, agora?

— Nossa principal missão é acertar contas com o Panchito! – respondeu Schuck, enquanto fazia galopar o seu cavalo, em direção à linha férrea. — Vamos tentar descobrir o rancho de Lupe, a noiva desse canalha!

Chegaram ao leito da linha do trem e logo ouviram o apito de uma locomotiva. Era um trem que corria em direção a Yuma. O barulho do com­boio aumentava a cada instante, enquanto surgia uma nuvem de fumaça negra.

— Vamos cruzar a linha antes que ele passe – propôs Frazer, tomando o seu cavalo.

Os dois animais recuavam e se recusavam a transpor a linha férrea, assustados com o barulho.

— Desçamos e passemos puxando estas bestas! Cismaram de não andar... – disse Schuck, descendo do cavalo.

Frazer fez, a duras penas, seu cavalo avançar sobre os trilhos. Schuck, puxando a sua montaria, soltava imprecações enquanto o trem avançava rapidamente. O animal, ainda mais espantado, pu­xou as rédeas, recuando. Deu um tremendo salto, derrubando Schuck sobre os trilhos, e logo saiu galopando. O bandoleiro caiu sobre os dormentes, bateu do com a cabeça nas pedras do lastro e ali fi­cou, esparramado, com uma das pernas sobre a li­nha.

— Saia daí, idiota! – gritou Frazer que já percebia os faróis da locomotiva avançando sobre o companheiro. — Saia daí, idiota!

Schuck abriu os olhos. Ainda estava tonto, quase inconsciente. Colocou as mãos sobre um dor­mente, inclinando a cabeça. Tinha um pé preso en­tre um dormente e o trilho e fazia força para tirá-lo daquela posição. Ouvia o barulho do trem, que se aproximava rapidamente...

— Saia depressa, o trem está chegando, imbecil! – gritava Frazer pálido de horror, monta­do no seu cavalo do outro lado da linha. Vamos! Depressa!

 

Schuck, ainda tonto, logrou libertar o pé, po­rém não pôde levantar-se. A dor era tremenda e não se moveu.

— Não posso! – gritou, desesperadamente, estendendo os braços para Frazer. Tira-me daqui! Venha depressa! Não posso sair! Socorro!

— Que se dane! – murmurou Frazer, sem descer do cavalo, inclinando-se para apreciar bem o que ia acontecer. Compreendeu que já era tarde para tentar qualquer socorro. Se arriscasse enfrentar a locomotiva, poderia também ser esmagado.

O trem, resfolegando e lançando a sua fuma­ça negra, avançava velozmente sobre os trilhos, en­golindo metro por metro. As luzes dos faróis cada vez mais se aproximavam. Schuck voltou a cabeça e soltou um grito terrível, movendo-se com selva­gem energia. Todo o seu corpo estava agora ape­nas sobre uma das linhas, mas aquela perna não se movia um milímetro.

— Tira a perna, Nic! –gritou Frazer, seca­mente .

Schuck levantou-se de braços abertos, tiran­do o pé, apressado. A locomotiva avançava sobre o bandi­do, a toda velocidade. Atrás dela, quinze vagões de passageiros e carga.

O bandido sentiu uma pancada tremenda nas costas e seu corpo foi lançado a três ou quatro metros de distância, grotescamente retorcido. A lo­comotiva, indiferente, continuava avançando.

Frazer, do outro lado da linha, via passar a máquina e, depois, os quinze vagões, velozes e ba­rulhentos, sobre o corpo do companheiro que se transformara numa massa informe. O que restava de Nic Schuck, depois de o trem passar, era ape­nas um amontoado de ossos e sangue.

Frazer sacudiu a cabeça, espantado. A loco­motiva que já ia bem longe, começou a apitar com alari­do, aproximando-se da próxima estação, que era Astec.

O bandoleiro tocou seu cavalo, afastando-se dali rapidamente. Não sabia se o maquinista per­cebera o acidente. Se tal tivesse ocorrido, certa­mente daria parte na próxima estação. Sorriu, ci­nicamente, pensando na idiotice de Schuck ao ten­tar atravessar a linha puxando o cavalo. Cada vez mais se convencia de que somente os espertos têm direito à vida. E pensou: "Que morte estúpida, de­pois de tantas peripécias para escapar da prisão e depois de escapar de morrer de fome no deserto, ser atropelado por um trem como se fosse um ca­brito imprudente!"

Exigiu o máximo do seu cavalo, correndo em direção ao Rio Gila. Agora, sentia um redobrado ódio de Panchito. Lançava sobre ele a culpa pela morte de Schuck. Se não tivessem que procurar o mexicano para vingar-se, certamente não teriam passado por ali. Teria que ajustar contas com Pan­chito, de qualquer maneira, para vingar-se e para vingar a morte de Nic. Era bem possível que o en­contro com o xerife fosse resultado de uma denún­cia de Pancho, aquele canalha. Se foi, os tais re­presentantes da lei encontraram o merecido.

O pior é que teria de perguntar a alguém onde se encontrava o rancho de Lupe – a mexicana. Não poderia arriscar-se a sair por aí mostrando-se a to­do mundo, quando a noticia do assassinato do xeri­fe de Theba e do seu ajudante seria imediatamente espalhada. Qualquer cara desconhecida seria olha­da com desconfiança e logo poderia surgir novo in­cidente.

 

Naquela mesma noite, Pancho estava ceando no depósito de lenha, ainda escondido, com Lupe ao seu lado. Observava-o com ternura, movendo de vez em quando a cabeça, desalentada. Um pe­queno lampião de querosene mal iluminava a es­treita dependência. Os dois sabiam que a situação era insustentável e que um homem não poderia fi­car indefinidamente enclausurado num pequeno de­pósito de lenha, enquanto o xerife de Astec seus ajudantes, e os xerifes vizinhos andavam em pé de guerra, à procura dos três bandoleiros.

— Que azar o meu tentar a fuga às vésperas de ser indultado! – exclamou Panchito de cabeça baixa, mordendo os lábios. — Por que o diretor ou os carcereiros não me avisaram? Que azar! Se sou­besse, teria paciência de esperar e hoje seria um homem livre, pronto para enfrentar uma nova vi­da! Meu Deus por que isto acontece?

— Não adianta lamentar-se, meu bem... – murmurou Lupe, acariciando sua cabeça. — Be­ba o seu café que está esfriando. Terminaremos encontrando uma saída. Tenha paciência. Talvez o xerife Whitman nos ajude. Ele tem boa impres­são sua e já demonstrou vontade de ajudá-lo. Es­tava trabalhando em favor do seu indulto. Não me dizia, porque desejava fazer-me uma surpresa...

— Sim... Uma surpresa! Mas não deixava de tentar tirar-me a noiva! Neste caso, de nada me adiantaria a liberdade. Para que estar livre, se vo­cê casasse com outro?

— Mas ele sabe que eu só amo a você. Eu sempre lhe disse, embora de maneira delicada. Whitman é um homem nobre e você não deve jul­gá-lo desta maneira, apenas porque ele me propôs casamento. Ele será capaz de ajudar-nos, como amigos, apesar de tudo. Não há motivos para ciúmes. Será que você ignora que eu quero somen­te a você? Seu bobão!

Lupe inclinou-se e o beijou na testa, como se fosse um filho,

— Quanto você me fez sofrer! – continuou ela. — Deus sabe o quanto passei! Quando mais a gente quer, mais a gente sofre... Que vida ingrata!

— Eu bem sei que sou um canalha, que não mereço um grama de perdão! – falou Pancho, exaltado, batendo no peito com os dois punhos. — Eu sempre lhe dei desgostos, lhe enganei e lhe fiz chorar! Sou mesmo um tipo da pior espécie. Ago­ra, na hora da desgraça, apareço mendigando am­paro em vez de enfrentar todos os riscos sozinho, arranjar dinheiro, estabelecer-me e vir buscá-la para nos casarmos. . . Sou, além do mais um co­varde!

— Deixe de dizer tolices, meu bem!. – disse Lupe, saindo um instante para ver se vinha al­guém. Eu não fico todo o dia com você porque Whitman anda sempre vigiando, ele ou os seus ho­mens. Eles andam à sua procura e estão certos de que, vindo para Astec forçosamente chegará aqui.

— Vá deitar um pouco – disse Panchito quando ela regressou. — Você precisa descansar. Eu já dormi bastante, durante o dia. Deixe o rifle comigo; eu vigiarei. Ficarei escondido nas sombras e ninguém me verá. Deixe que eu faça um pouco por você, em retribuição ao muito que tem feito por mim.

— Mas você não deve sair, Pancho. Lembre-se dos vizinhos, do xerife. Eles podem aparecer de um momento para outro. Estão de espreita, ron­dando. Se virem alguém aqui vão logo atirando. Você morrerá antes de fazer o sinal da cruz. Meu Deus! Como as coisas se complicam! Se pudesse, estaria longe, bem perto de você, mesmo que fosse no deserto...!

— Escute, meu amor. Tenho certeza de que Frazer e Schuck virão procurar-me. Eu os conheço muito bem. Mas a culpa é minha, que lhes contei tudo, falei a seu respeito, disse onde era o seu ran­cho e que nos iríamos casar tão logo eu estivesse livre. Fui um tolo! Falei mais do que uma viúva tagarela... É que não tinha com quem conversar. Sabe como é, a gente vai falando, falando, sem me­dir as consequências. Um belo dia a coisa se vira contra nós. Foi o que aconteceu...

— Mas insisto em dizer que você não deve sair daqui. É muito arriscado. Eles logo darão de cara com você.

— Pois você já verá como eles não me pegam! Você trabalhou o dia todo e agora terá que repou­sar. Não dormiu nada ontem à noite. E se che­garem de uma hora para outra esses dois canalhas, companheiros de cela? Eu terei que esperá-los. Terei que enfrentá-los... Não haverá outra saída. Trate de ir para a sua cama! – Pancho falou com energia. — Deixe de ser teimosa, eu cuidarei de tudo. Vá deitar-se! Do contrário eu irei embora imediatamente, enfrentando todos os perigos!

Lupe baixou a cabeça, resignada. Era tama­nho o seu amor por ele que não tinha coragem de contrariá-lo. Além disto, gostava do seu tom enér­gico, dominador. Assim, ele lhe parecia mais ho­mem, capaz de defendê-la de todos os perigos. Apanhou o rifle, a caixa de balas e a cinta-cartucheira, com dois Colts, entregando a Pancho todo aque­le arsenal.

— Está tudo aqui, querido – disse ela, entregando-lhe as armas, submissa, ao tempo em que se mostrava orgulhosa de tê-lo como futuro marido.

Lupe sentia que, à falta de Pedrito, o irmão e chefe da família, ali estava outro homem a quem entregara o seu coração e a sua vida e a cuja von­tade gostosamente se rendia, como se fosse um semideus.

Ela entrou em casa e foi direto ao seu quarto, deixando a porta encostada. Apagou a luz, tendo antes o cuidado de colocar o Colt debaixo do traves­seiro. Sentia-se fatigada e estava que não podia mais manter os olhos abertos. A noite mal dormida da véspera e o duro trabalho durante o dia cui­dando da horta, das vacas, dos galinheiros e ainda atendendo às vizinhas que foram visitá-la e intei­rar-se do incidente da noite anterior, tudo lhe alquebrara bastante. Seu corpo pedia cama. Tratou de dormir, esquecendo o perigo. De resto, podia fi­car tranquila. Se o xerife não voltara, e ela sabia que foi apenas para atender ao seu pedido, tinha ao seu lado Panchito, vigilante, pronto para defen­dê-la. Não havia perigo, dormiria tranquila.

O mexicano, depois de fumar um cigarro, co­locou o cinto-cartucheira examinando, antes, os re­vólveres. Agarrou o rifle já carregado e saiu do esconderijo na semi escuridão. Ia vigiar enquan­to Lupe dormia. Era o menos que poderia fazer em seu benefício. Mas era preciso ter a máxima cautela, pois se fosse descoberto, não apenas ele se­ria prejudicado Que pensariam os vizinhos da sua Lupe, notadamente as mulheres? Diriam que ela recusara o auxílio do xerife, um homem honrado e decente, para ficar ao lado de um bandido, evadido da prisão...

Meteu-se por entre os galinheiros, os estábulos, escondendo-se como um índio, buscando os lu­gares de sombra, onde a luz da Lua não pudesse denunciá-lo. Sentou-se numa pedra, com o rifle en­tre as pernas, escutando o menor ruído, olhando com cuidado ao seu redor.

Depois de algum tempo levantou-se e, pé ante pé, deslizou lentamente em direção à cerca da direita e procurou um lugar escuro. Pressentia que alguma coisa iria acontecer, quebrando aquela quietude. Pensava em Frazer e em Schuck, que talvez estivessem a caminho, sedentos de vingança, ansiosos por matá-lo, cobiçando a linda mulher que era a sua Lupe, de quem fizera descrições maravi­lhosas.

Havia uma touceira ao lado da cerca de ara­me farpado. Um homem, dois ou mesmo mais po­deriam esconder-se ali, facilmente. E se vissem outro deslizando na sombra, armado de rifle, pé ante pé, como um ladrão, não vacilariam em ati­rar. Um homem que invadisse assim uma proprie­dade, de certo não teria boas intenções. Panchito pensava em tudo isto e a angústia tomava conta dele. Que situação desesperada criara para Lupe! E' verdade que lhe salvara a vida na noite passa­da mas, quando Pedrito chegasse, talvez não le­vasse isto em consideração e logo fosse metendo chumbo no seu corpo, como prometera...

Abrigou-se à sombra de uma árvore de grande copa, voltando a sentar-se. Olhava em redor es­preitando o menor movimento, o ouvido, também, de sobreaviso. A noite ia ser espantosamente lon­ga para ele, com os nervos tensos, esperando sem­pre o pior. Se o xerife aparecesse de um momento para outro, teria que se entregar, estragando tudo e complicando Lupe. Poderia reagir a bala, mas não consentiria nunca em matar um inocente. Era preferível mil vezes, voltar à prisão e lá ficar apodrecendo. Fugiria, se pudesse, deixando a pobre Lupe angustiada, com a sua reputação em jogo e acusada de homiziar um fugitivo. Pobre menina!

Deu-lhe uma vontade louca de fumar, mas se conteve, A luz de um fósforo, mesmo por um ins­tante, poderia oferecer um alvo bem visível para uma descarga de rifle.

Baixou a cabeça, escutando. Tinha um bom ouvido, acostumado a perceber de longe o barulho de patas de cavalos, o andar de um homem, o des­lizar de uma pessoa avançando cautelosamente. Tendo vivido sempre fora da lei fugindo da polí­cia, dos xerifes e dos vaqueiros desejosos de vin­gança, teve que aguçar os ouvidos para defender-se. Às vezes, a percepção antecipada do menor ruí­do poderia lhe valer a vida. E assim tinha aconte­cido em várias ocasiões.

De repente percebeu uns passos. Alguém se aproximava pela beira do rio, pisando em folhas secas. Tinha certeza de que não se enganava. Ouvia aqueles passos da mesma maneira que ouvia o barulho dos grilos, o coaxar das rãs, o latido de um cão distante. Deixou a sombra da pereira e, num salto ágil, transpôs o espaço iluminado e logo se abrigou sob outra sombra. Continuou assim, pulando sobre a grama, agachado, prendendo a res­piração, procurando localizar aquele que caminhava à beira do rio pisando nas folhas secas. Quem seria? O xerife, seu ajudante, um vizinho? Ou seria um dos fugitivos?

Talvez fossem eles que chegavam para matá-lo e, depois, à Lupe... A solidão, a moca sozinha e aquelas duas feras sedentas de sangue, ansiosas por dar vazão aos seus instintos bestiais. Atirou-se ao chão quando avistou uma sombra emergir por entre os grossos alamos, na beira do rio. Ele não se enga­nara. A sombra era de um homem alto, cheio de corpo. Trazia na mão direita um rifle e na esquerda um punhal. Era Frazer! Sim, tinha que ser Frazer, sem a menor dúvida. Depois de vê-lo dia­riamente durante quase três anos, não poderia en­ganar-se. E Schuck? Por onde andaria o astuto e perverso Schuck? Será que estaria atacando pelo outro lado? Se assim fosse encontraria a casa des­guarnecida e Lupe dormindo, sem defesa.

Ao pensar nesta possibilidade, ficou em pâni­co. Sua Lupe adorada à mercê de um assassino frio e bestial como Schuck. Sacou o punhal e continuou escutando, parado. Olhava em redor, desconfiado. De repente Frazer se colocou sob a luz da Lua e Pancho pôde ver o seu rosto.

Era Frazer, sim! Ali estava o seu rosto páli­do e cruel. E pensar que aquele homem foi o seu companheiro de cela, seu amigo e confidente...!

E Schuck? Onde estaria Schuck? Ele não se inquietava tanto com a presença de Frazer, certo de que poderia dominá-lo. O que lhe fazia tremer era justamente não saber por onde Schuck ia ata­car.

Frazer chegou até a cerca de arame farpado. Levantou dois fios e meteu a cabeça, passando pa­ra o lado de dentro. Pancho apertou o punhal, com a mão suada. Nada de usar arma de fogo, nada de barulho que podia ser evitado. Enquanto pensava nisto, imediatamente mudava o curso do seu pensa­mento, voltando a preocupar-se com Schuck. Esta­ria ele atacando Lupe?

Frazer deslizava mansamente, parando de vez em quando para escutar. Se não fosse também um fora da lei fugido da justiça, não teria dúvidas em liquidá-lo imediatamente com uma bala de fu­zil, por ter entrado clandestinamente na proprie­dade alheia. Infelizmente, um disparo de rifle ou de revólver seria o mesmo que provocar um alar­ma.

Frazer avançava à sua maneira, como um lo­bo faminto disposto a não deixar escapar a presa. Panchito levantou-se de repente, a seis passos de distancia do bandido. Pulou de pernas abertas dando de cara com ele. Frazer esteve a ponto de correr, assustado. Espantou-se ao ver surgir dian­te dele um homem que parecia disposto a saltar como um tigre, com um Colt numa mão e o punhal na outra.

— E agora, desgraçado, que pretende? – per­guntou Panchito, falando baixo. — Parece que está morrendo de medo! Onde está a sua valentia, seu covarde?

Frazer inclinou-se disposto à luta, ainda que um temor inconsciente o invadisse dos pés à ca­beça. Contava surpreender e fora surpreendido.

— Eu vim à sua procura, seu traidor sujo!

— E Schuck? – perguntou, de novo, Panchi­to, apreensivo com a ideia de que o outro bandido pudesse estar atacando Lupe casa adentro, ras­tejando como uma serpente.

— Era um idiota, como você! E como todos os idiotas logo caiu no meio do caminho atropelado por uma locomotiva, puxando o seu cavalo em vez de montá-lo. Morreu esmagado, mas não acredite que, por causa disso, vai me escapar. Eu vim para ajustar contas e não preciso dele para ajudar-me!

Panchito respirou, aliviado. Sabia, agora, que só tinha Frazer como inimigo, e estava diante de­le. Lupe poderia dormir tranquilamente!

— Eu já o esperava, seu canalha! Resolvi abandoná-los porque estava disposto a ter uma vi­da decente e na companhia de vocês era impossí­vel. Pois bem, aqui me tem, seu vagabundo! E Lu­pe está lá dentro, dormindo. Ande e atravesse o pasto, se quiser vê-la. Mas, para tanto, é necessá­rio ser homem... E você nunca passou de um co­varde!

Frazer sempre acreditara que era muito mais forte e mais ligeiro do que Pancho, que sempre de­monstrou gênio apaziguador com as suas brinca­deiras, fugindo à violência. Acreditava que pode­ria vencê-lo facilmente.

— Se essa mulher não tem ninguém para de­fendê-la a não ser você, cão piolhento, dentro de dois minutos eu estarei a seu lado pronto para amá-la. E ela vai conhecer o que é homem! Bonita como é, se você falou a verdade, ela bem que mere­ce um homem como eu! Vá tratando de rezar, sacristão! Pode ir abrindo as asas, porque agora irá direto para o céu ou para o inferno!

Os dois homens empunhavam punhais, depois de terem recolhido os Colts aos respectivos coldres. Panchito, para não fazer barulho atraindo o xeri­fe ou os vizinhos. Frazer, quase pelos mesmos mo­tivos. Se matasse Pancho a tiros, o ruído dos dis­paros provocaria alarma e ele queria entrar na casa de Lupe silenciosamente, encontrando-a inerme e à mercê dos seus caprichos.

Encolhidos, avançaram até encontrarem-se a três passos um do outro. Olhavam-se, estudando-se mutuamente; o braço direito ligeiramente avan­çado, músculos tensos. Giravam lentamente, dis­postos a saltar um sobre o outro na primeira opor­tunidade, desfechando a cutilada mortal. Durante alguns segundos permaneceram assim, dando vol­tas, avançando e retrocedendo, buscando-se mutua­mente. Panchito, mais ágil, sorria, como se aquilo fosse uma simples brincadeira. Frazer, acostuma­do àquele tipo de luta, esperava o seu momento, mas não compreendia porque o inimigo demonstra­va tanta confiança... tamanho bom humor.

De repente Panchito teve um movimento esquisito. Fingiu que caía sobre o capim, botando um joelho no chão e descobrindo a guarda. Ficava as­sim num nível mais baixo do que Frazer e este, percebendo, avançou rapidamente, a mão armada no alto enquanto lançava um grito de vitória. O mexicano agachou-se ainda mais apoiando a mão esquerda no chão e, quando Frazer ia dar-lhe a punhalada, inteiramente confiante da vitória, Pancho levantou o braço direito com a rapidez de um raio atingindo Frazer no ventre. O bandido lançou-se para trás, gemendo profundamente. O punhal de Pancho penetrou-lhe no ventre, até o cabo, e o san­gue começava a jorrar aos borbotões, manchando as calças do bandido.

Panchito levantou-se e se encolheu de novo, dando voltas em torno de Frazer que apertava a ferida com a mão esquerda, o rosto hirto e os olhos esbugalhados, como um louco.

— Ande, vagabundo, vá à procura da minha Lupe. Ela é mesmo uma mulher bonita, formosa como uma flor de cacto ao amanhecer. Quando bei­ja, é ardente e carinhosa. Vá, você a tem à sua mercê, se é que ainda tem forcas para andar com essas tripas de fora, miserável! Nunca mais se me­ta a valente, você nunca passou de um covarde! – gritava Pancho, enraivecido. — Seja homem, ao menos uma vez!

Frazer se sentia cada vez mais fraco. Sentia que a vida lhe esvaía pela ferida horrível que con­tinuava a sangrar intensamente. Mas seu ódio era tremendo e ainda lhe dava forcas para tentar uma vingança. Morreria, estava certo, mas não se con­formava em deixar Panchito vivo. Lupe deveria ficar sem ele! Abandonou o punhal e sacou o revól­ver, sorrindo como um demônio, com a boca coberta de espuma. Levantou o braço... Mas Panchito percebeu o lance e se arrojou sobre ele. Pancho era um bandoleiro corajoso, nobre e leal. Se combinaram o duelo a punhal, teriam que aceitar a lu­ta com aquela arma até o fim, perdendo ou ga­nhando. Apesar de menos experiente no manejo da arma branca, não titubeou em aceitar a luta. Ago­ra, o bandido sacava o colt, desistindo de devolver a cutilada. Pancho agarrou-se com Frazer, imobilizando-o e lançando-o contra a cerca de arame. Suas costas foram de encontro às farpas e ele sol­tou um grito de dor. Panchito assestou-lhe outra punhalada, agora no rosto, descendo até o pesco­ço. Frazer tentava disparar o revólver no peito do mexicano, mas não podia. Ele já o tinha dominado inteiramente. Pancho nunca estivera tão furioso e tinha, pela primeira vez, vontade de matar, abrir feridas de qualquer maneira. Frazer caiu ao solo, banhado em sangue, com o ventre e a garganta perfurados, apresentando um grande rasgo no ros­to. Pancho abriu as pernas, vencido mais pela emo­ção do que pelo cansaço. Horrorizado, olhava para o inimigo inerme e ensanguentado que gemia ago­nizando. O revólver estava ao seu lado, completamente inútil, enquanto uma poça de sangue se ia alastrando na grama. Quando se inclinou para to­car-lhe o pulso, verificou que estava morto. Mais uma vez viu-se obrigado a matar. Mas matara em luta leal, defendendo a sua própria vida e a honra e a vida da sua querida Lupe. Sentia-se acabrunhado por ter matado, em apenas vinte e quatro horas, nada menos do que três homens enquanto passara a sua vida toda – trinta e um anos – sem tentar, sequer, contra a vida de ninguém.

 

Com o passo vacilante, mas já sem adotar precau­ções para não ser visto, Pancho regressou à casa. Apoiado no peitoril da varanda, pensando no que acabara de acontecer e nas suas consequências, co­meçava a desesperar-se, mais por Lupe do que por ele próprio.

Deixou-se cair no degrau da escada que dava acesso à varanda, baixou a cabeça e ficou olhando a relva. Em seguida, olhou detidamente para as mãos tintas de sangue. Ficou horrorizado e sentiu calafrios na espinha.

Não queria acreditar que pudessem existir ho­mens que gostassem de matar os seus semelhantes, armando ciladas, provocando duelos, sentindo desejos homicidas como se isso fosse uma necessi­dade inadiável. E ainda existiam os que matavam friamente em troca de alguma paga, sem ao menos odiar as suas vítimas, e o fazendo sem qualquer es­crúpulo. Santo Deus, quanta miséria!

Levantou-se da escada e passou à varanda. Procurava manter as mãos bem separadas do cor­po, para não lhe mancharem as roupas de sangue.

Passou à sala, onde reinava o silêncio. Pisava de leve para não despertar Lupe, quando cruzou em frente ao seu quarto. Foi até a copa e se olhou no espelho do armário, onde viu uma garrafa de uísque, uns vasos com água e uma jarra. Sentia sede e um abatimento que não chegam ainda a co­nhecer. A consciência começava a cravar nele as suas garras, da mesma forma que cravara o pu­nhal no ventre do inimigo. Não se atreveu a to­car em nada com as mãos sujas de sangue. Na ponta dos dedos apareciam gotas que começavam a desprender-se, caindo ao chão sujando o assoa­lho. Para ele, naquele instante, bem dentro da sua memória, as gotas do sangue de Frazer não seca­riam jamais. Poderiam ser lavadas, raspadas, mas continuariam no mesmo lugar denunciando a sua violência, o seu mau instinto. Aquela noite espan­tosa não poderia jamais ser esquecida. Em menos de vinte e quatro horas ele matou três homens, sendo que dois deles nem chegara a conhecer, a odiar.

Ouviu um leve ruído e se voltou sobressaltado, com os braços longe do corpo, as mãos para trás escondidas, a fim de que ninguém pudesse vê-las.

— Panchito... – era a doce voz de Lupe, ainda sonolenta. — Ouvi você entrar... Aconteceu alguma coisa?

A luz da Lua entrando pela janela, deixava ver a esbelta silhueta da jovem mexicana, com o seu belo cabelo negro caindo sobre os aveludados ombros.

— Pancho! – exclamou, olhando-o com in­quietação. — Que aconteceu, meu bem? Por que não responde? Você está escondendo as mãos? – Ela começou a chorar baixinho e se abraçou com ele, tremendo, como se fosse desmaiar, com os ner­vos à flor da pele. — Eles vieram, meu anjo? – insistia ela em perguntar, olhando-o com espanto. — Eles vieram?

Pancho baixou a cabeça, ainda com as mãos nas costas sujas de sangue.

Ela avançou decidida colocando-se às suas costas, olhando para as mãos dele. Pancho levan­tou os braços até a altura dos ombros e ela o se­gurou pelo pescoço, beijando-lhe o rosto.

— Meu querido! Eu já adivinho o que acon­teceu! Mas eu continuo lhe querendo da mesma forma. Não pense que eu o julgo uma criatura má. Você não assassinou ninguém. Se matou, foi de­fendendo a minha vida e a sua. Nós é que somos os assassinos, pois matamos a bondade que existia dentro de você desde menino! Foi a perseguição que lhe moveram, que o colocaram à margem da lei. Mas, mesmo assim, você sempre foi um rapaz de bons sentimentos, sempre evitou a violência!

— Não tente dourar a pílula, minha querida! Todos me verão como um simples assassino. So­mente você me absolve, e me absolve porque me ama, não enxerga os meus defeitos. Acabo de ma­tar Frazer. Ele vinha atacar-nos. Já passou a cerca de punhal na mão... Primeiro seria eu. depois você.

— E o outro? – perguntou ela, apoiando a cabeça no peito do rapaz.

— O outro... Deus não quis que fossem dois. Veio apenas um. Schuck foi apanhado por uma lo­comotiva quando transpunha a linha do trem. Fi­cou amassado no meio dos trilhos. Pelo menos, foi o que Frazer contou. Mas, agora, já não faz dife­rença. Mais um, menos um, para quem começou a matar... É horrível, meu bem...!

— Venha cá...

Ela o puxou com carinho, levando-o para o seu quarto. Encheu d'água uma bacia e pegou um pedaço de sabão.

— Deixe-me ver as suas mãos... Eu as la­varei. Não se ponha a pensar que este é sangue de inocente e o que você é um assassino.

Ela agarrou suas mãos metendo-as na água, num movimento brusco. A água imediatamente se tingiu e logo ela passou o sabão. Mudou de água e fê-lo abaixar lavando o seu rosto, que também es­tava salpicado de sangue.

— Veja-se, agora, no espelho! – falou ela em tom de brincadeira. — Olhe as suas mãos! São mãos de um homem, um homem de verdade, que lutou por mim, pela minha honra, pelo nosso amor! Nós não temos que nos envergonhar por isto. Abrace-me, meu bem, sem cuidados, sem medo de me sujar de sangue. Quero senti-lo bem perto de mim. Pode me apertar, como eu estou apertando-o! Beije-me, querido, beije-me...Pancho abraçou-a com ternura e logo os seus lábios se uniram. Para ele, havia apenas uma pes­soa no mundo.

Ela o levou novamente para a copa, servindo uma dose de uísque,

— Eu direi, também, que o matei! — afir­mou a moca, decidida. — Eles aceitaram a minha versão de ontem à noite e não vejo motivos para não aceitarem a de hoje.

— Ontem foi diferente, querida. Os de ontem foram abatidos a tiros. Frazer, não. Tive que matá-lo a punhal. Não podíamos fazer barulho. E nin­guém vai acreditar que você matou um homem for­te como Frazer, lutando com ele de arma branca. O duelo a punhal é próprio para feras...

— Uma mulher honrada e decente pode muito bem se transformar numa fera, ao repelir uma ofensa! – exclamou ela. — E' o que direi!

— Não... Não – murmurou ele, balançando a cabeça. — Estamos no fundo do poço sem poder sair. A minha presença atrapalha tudo. Tenho que ir embora, o quanto antes. Depois, você poderá di­zer o que bem entender, mas não creio que o xeri­fe ou quem quer que seja vá acreditar na sua his­tória. E se descobrirem que eu estou aqui, você poderá ser presa e condenada como minha cúmpli­ce, por ter acolhido um foragido da justiça!

— Não fale assim! – exclamou Lupe, inter­rompendo as suas queixas. — Vem alguém aí... a cavalo. É capaz de ser o xerife! Eu assumirei a responsabilidade por tudo. Esconda-se!

O cavalo parou em frente à varanda. Um homem entrou de repente na sala, empurrando a porta entreaberta. Não era o xerife nem qualquer dos seus ajudantes.

— Pedrito! – exclamou Lupe, muito pálida, pondo-se em frente de Pancho, para protegê-lo. — Antecipou o regresso?

Pedrito era muito parecido com a irmã, tendo um rosto simpático, moreno. Olhos negros e nariz retilíneo, alto e espigado. Usava um fino bigode. O irmão de Lupe olhou fixamente para Pancho, que tirou, lentamente, a cinta-cartucheira, colo­cando as armas sobre a mesa. Lupe abraçava-o pe­la cintura, protegendo-o, de cabeça alta e gesto de­safiador.

— Meu irmão, se você vai mesmo atirar sobre Pancho, terá antes, que atravessar-me de chumbo! – replicou ela, com energia. — Para matá-lo, terá que me matar, também!

— Quem matou aqueles ladrões, ontem à noi­te? – perguntou Pedrito, com voz serena e muito sério.

— Eu! — respondeu ela, impetuosamente.      

— Não, Pedrito. Fui eu quem os matou – disse Pancho, firmemente. — Sua irmã disse ao xerife que foi ela mas a verdade é esta que estou afirmando. Cheguei aqui fugido e ela me acolheu.

— Foi isso mesmo que o xerife me contou – murmurou Pedrito. — Não o enganou Lupe, ele apenas fingiu acreditar. Antes de vir para o ran­cho, parei na cidade e conversamos longamente so­bre as últimas ocorrências. Ele passou-me um te­legrama, pedindo o meu regresso. Whitman sabe que Pancho está escondido aqui. Não querendo prejudicá-la, preferiu silenciar. Foi por isto que antecipei o meu regresso.

— Certo! Ele teve que matar os dois bandi­dos, para defender-me, enquanto você me deixava aqui sozinha! Será que ele cometeu um crime sal­vando a minha vida? Eu estava só, inteiramente desamparada!

Pedrito baixou a cabeça, confuso. Pancho, frente a ele, imóvel, esperava sua reação. Sabia que Pedrito jurara matá-lo tão logo o encontrasse. Estava disposto a deixar-se matar sem uma rea­ção, pois nem pensava em levantar a mão contra o irmão da sua noiva.

— Escute, meu irmão – continuou Lupe, ex­citada — este homem não somente matou aqueles dois ladrões e assassinos, como continuou de­fendendo a minha honra, pois acaba de abater outro celerado que pretendia atacar-me. Era um dos fugitivos da prisão de Yuma. Um dos seus an­tigos companheiros de cela. Pancho, leve Pedrito para ver o cadáver.

Pedrito olhou para Pancho, receoso, atônito. Observou sua irmã e o rapaz como se fossem duas pessoas inteiramente desconhecidas.

Pancho separou-se de Lupe fazendo sinal a Pedrito para que o acompanhasse e este o seguiu, silenciosamente.

— Apanhe um candeeiro aceso – disse Pan­chito ao irmão de Lupe. — É bom você ficar aqui, Lupe. É um quadro horrível e talvez os seus ner­vos não resistam.

Os dois rapazes se afastaram após Lupe reti­rado da cintura do irmão o Colt que levava. Pedri­to sorriu e deixou que ela retirasse a arma, dando-lhe um beijo fraternal.

Foram pelo caminho dos ciprestes, tomando, depois,a direção do rio Gila.

— Aqui está ele – disse Pancho, apontando para um vulto estendido sobre o capim numa poça de sangue. Pedrito levantou o candeeiro e olhou detidamente para a face do cadáver de Frazer. Lançou uma exclamação de horror e voltou-se para Pancho, que permanecia de cabeça baixa, abatido.

— O outro bandido, seu companheiro, também esta morto. Foi atropelado por um trem - disse Pedrito, aproximando-se de Pancho. Ofereceu-lhe um cigarro que Pancho aceitou, acendendo na lamparina. — Whitman me contou. Mas antes de morrer, ele e este cometeram crimes hediondos.

— Já sabia que Schuck fora atropelado. O próprio Frazer me disse. Que fizeram eles, antes?

— Mataram o xerife de Theba e seu ajudan­te, que os interpelaram na estrada. Enfim, rece­beram o que mereciam... !

— Agora será a minha vez — disse Pancho, resignado. – Jamais matei um homem e nunca pensei em fazê-lo. Vou agora mesmo entregar-me ao xerife. Você vai me fazer o favor de conter Lu­pe, para que ela não me acompanhe. Depois, quan­do estiver livre, voltarei e a pedirei em casamento.

— Escute, Pancho – disse Pedrito seguran­do o braço do rapaz. — Estive em Tucson e me en­contrei com o Juiz Federal, o mesmo que examinou o seu processo quando o prenderam. Whitman também estava e está interessado no seu caso. Ela estava procurando obter o seu indulto, sem nada dizer a Lupe. Dentro de seis meses você estaria livre...

            — Lupe me contou – respondeu Pancho. — Mas ignorando que ia ser perdoado, eu fiz a lou­cura de fugir. Botei tudo a perder!

— Com as recomendações favoráveis do dire­tor da prisão, esses seis meses restantes seriam de liberdade condicional. Você sairia imediatamente da prisão e viria passar o resto da pena em Astec, sob a responsabilidade de Whitman.

— Não diga! – exclamou Panchito, desespe­rado. — Que azar! Tudo dá errado para mim! Desde pequeno que a má sorte me acompanha. Não tive pais que me guiassem na vida. Os meus únicos amigos foram os bandidos, os ladrões de gado. Te­ria de ser o que sou! Agora a minha pena será fa­talmente aumentada! Meu Deus! Virgem Santa!

Regressaram à casa caminhando lentamente, de cabeça baixa. Lupe foi ao seu encontro e os fi­tou, interrogativamente, temerosa de que tivessem se atracado.

— Bem – disse Pedrito em tom decisivo — é hora de descansar. Dentro em pouco será dia. Lupe, trate de ir para casa. E você, Pancho, também Eu vou até o cidade comunicar ao xeri­fe as ultimas ocorrências.

Pedrito tomou o cavalo que o xerife lhe em­prestara, deixando a sós Lupe e Panchito. A jovem voltou a falar sobre as gestões feitas por seu irmão e por Whitman junto ao Juiz Federal, em Tucson, no sentido de ser obtida a liberdade condi­cional de Pancho.

— Meu irmão não me contava para não me ver nervosa. O mesmo fazia Whitman. Os dois são nossos amigos e desejam a nossa felicidade, Pan­cho. Eles sabem que eu só serei feliz casando com você. Agora, teremos que obter a sua liberdade. Não quero que você volte para a prisão de Yuma. O seu crime mais grave foi fugir. Você nunca ma­tou ninguém para roubar e nunca atirou contra um representante da lei, como fizeram os outros. E, se matou, todos nós sabemos que foi em defesa da minha vida e da sua própria. Ninguém poderá con­dená-lo por isto! Qualquer pessoa faria o mesmo...

— Ainda não sei o que será de mim, minha querida! Estou como um louco... Já sinto a cor­da apertando meu pescoço! Se voltar para Yuma vo­cê irá me esperar, meu bem? – Ele a beijou ternamente. — Eu sei que é pedir muito.. . Se você ca­sasse com Whitman, tudo seria melhor. Ele é um homem honrado, uma autoridade... E eu? Apenas um ladrão de gado!

Lupe ficou indignada e explodiu:

— Se não calar essa boca, agora mesmo, serei obrigada a esbofeteá-lo! Está-me ofendendo, Pancho! Eu não seria capaz de casar com quem quer que seja, a não ser por amor! E não seria ca­paz, também, de trair o homem a quem amo, nem mesmo que acontecesse com ele as piores desgra­ças. Morreria ao seu lado se necessário! Não esti­ve esperando por você durante esse tempo todo? Por que não haveria de esperá-lo novamente? As suas insinuações me ofenderam, estou muito triste com você...

— Perdão, minha querida. Eu não quis ma­goá-la. E' que você já sofreu tanto por minha cau­sa... Alegro-me imensamente por saber que você ainda me quer e que está disposta a me esperar, mais uma vez! Que a Virgem nos ajude e faça com que eu possa regressar depressa!

A chegada da carroça que ia recolher o cadá­ver de Frazer interrompeu o dialogo entre Lupe e Pancho Juarez. No veículo vinham, também, Pedrito, o xerife Whitman e o seu ajudante.

O representante da lei olhou serenamente para Pancho, aproximando-se. Falou num velado tom de amizade.

— Lamento sinceramente, Juarez, mas você cometeu o delito de fugir da prisão. Meu dever é prendê-lo, agora que Pedro regressou. Tinha cer­teza de que se refugiara no rancho, mas não quis tomar qualquer providência, pois Lupe estava nervosa, sofrendo muito. Seria magoá-la num momen­to de aflição.

— Eu lhe agradeço, xerife. Estou pronto a pagar pelo erro que cometi.

— Amanhã de manhã você comparecerá pe­rante o juiz da comarca, que deverá decidir sua sorte. Acredite que eu me alegrarei se tudo sair bem e você puder, finalmente, casar-se com Lupe. Estou disposto a auxiliá-lo.

— Estou sinceramente convencido disso, xe­rife. Já me contaram Pedrito e Lupe as providências que andou tomando a meu favor. Eu lhe serei eternamente agradecido por tudo. Pode contar com a minha amizade. Para mim há apenas uma mulher no mundo. Ela será capaz de me levar ao bom caminho. Sabia que era um cavalheiro e que, ao perder, me estenderia a mão como adversá­rio leal e honrado que é. Fique certo de que cor­responderei à sua lealdade.

Lupe, inteirada dos fatos, teve que aceitar, resignadamente, que Pancho se entregasse à jus­tiça, acompanhado do xerife. Qualquer rebeldia só poderia piorar a situação.

Na manhã seguinte chegava a Astec, viajando de trem, o juiz da comarca acompanhado do seu ajudante, que trazia instruções do Juiz Federal de Tucson. E também já tinham chegado, proceden­tes do deserto, os rurais Moore e Taylor. A audi­ência teve lugar no próprio gabinete do xerife. O juiz ouviu a petição de Pancho e os depoimentos das testemunhas, inclusive dos dois rurais. Tay­lor e Moore contaram como encontraram a carro­ça no deserto. Falaram da moca índia que, antes de morrer, apontou os assassinos do seu pai e de­la própria, Schuck e Frazer isentando Pancho de qualquer culpa, pois já não se encontrava em com­panhia dos bandidos.

— Quer dizer que Juarez se afastou deles an­tes do assalto à carroça – comentou o juiz, pensativo. — É um ponto a favor de Juarez. Também conta a seu favor o fato de ter defendido a vida da moça, no rancho, enfrentando os criminosos. Há contra ele somente a fuga da prisão. Foi uma im­prudência que poderá prejudicar a concessão da sua liberdade condicional. Mas, vamos prosseguir, interrogando o próprio Juarez.

Pancho apresentou-se. Whitman em vez de metê-lo em uma cela, levou-o para o seu alojamen­to no andar superior do escritório do xerife, ofere­cendo-lhe uma cama limpa e servindo-lhe o desjejum, ao levantar-se.

O juiz era um homem magro, de uns sessen­ta anos, bem competente, sereno e respeitado. Era daquela classe de juízes que odeiam o crime, mas se compadecem do criminoso de acordo com as circunstâncias que o levaram a cometer o delito. A lei e a justiça em suas mãos eram utilizadas sem ran­cor, de uma forma muito humana, visando sem­pre a recuperação do criminoso de maneira a rein­tegrá-lo na sociedade.

Panchito, depois de prestar o juramento, con­tou tudo que lhe sucedera, desde a organização do plano de fuga até seu duelo com Frazer.

O juiz, que já conhecia, por informações de Whitman, as inclinações sadias de Pancho, ouviu seu depoimento com interesse e, por fim, ressal­tou, em seu favor, a excelente conduta que tivera na prisão.

— Juarez – disse o juiz, olhando demoradamente para o jovem, que se encontrava de pé di­ante da sua mesa, numa atitude respeitosa — você cometeu o delito grave da fuga e não pode alegar ignorância. Será castigado somente por isto. Quanto à morte dos três pistoleiros, você nada tem a pagar. A lei castiga, Juarez, mas também pro­tege.

— Sim, senhor juiz – respondeu Panchito, pálido, esboçando um sorriso.

— O Juiz Federal de Tucson já havia decidido que os seis meses que lhe restavam de reclu­são, você os passaria em liberdade condicional, gra­ças à sua boa conduta e sob a vigilância do xerife. A justiça estava sendo benévola com você e lhe de­monstrava a sua confiança, reduzindo-lhe a pena e concedendo-lhe uma liberdade vigiada até que che­gasse o tempo de gozar da liberdade total. Mas, você resolveu fugir antes de conhecer a decisão da justiça, agravando a sua situação.. .

— Ah, senhor juiz! Se tivesse sabido antes...! – respondeu Panchito, suspirando profundamente.

— Ser-lhe-ia comunicado precisamente hoje, na prisão de Yuma. Foi, realmente, uma fatalida­de . Mas você não poderá culpar a ninguém, senão a você mesmo. E terá que pagar pela rebeldia. Não posso, honradamente, firmar um mau precedente deixando-o em liberdade, depois da fuga. Se não aplicássemos o castigo aos fugitivos, não existiria mais ninguém nas prisões...

Pancho baixou a cabeça, resignado. O xerife Whitman olhava para ele com simpatia. Esperava a decisão do juiz.

— Assim sendo, Juarez, eu o condeno a passar os seis meses que ia passar em liberdade condicio­nal, devidamente recolhido a uma penitenciária. O Juiz Fe­deral e eu desejamos dar por cancelados os dois anos e meio restantes da sua pena, em consideração à sua boa conduta anterior, e também aos seus pro­pósitos de se transformar em homem honrado e trabalhador. Será levado, amanhã, para a peniten­ciária de Phoenix. Não desejo que volte a Yuma, onde, possivelmente teria que enfrentar o ódio de alguns condenados. É tudo, Juarez. Eu o autorizo a ir despedir-se da sua noiva, sozinho, sem qual­quer escolta.

— Eu lhe sou muito grato, senhor juiz – res­pondeu Pancho. — Estou empolgado com sua bondade. Seis meses passarão depressa e logo eu poderei andar de cabeça erguida. Obrigado, senhor juiz. E peço permissão para agradecer, também, nesta oportunidade, ao modo cavalheiresco e bon­doso com que me tratou o xerife Whitman, que te­rá sempre, em mim, um amigo.

Panchito deixou o escritório emocionado. Ca­minhava vacilante, dirigindo-se ao rancho. Lá che­gando encontrou Lupe em companhia do irmão, sentados na varanda. Ela estava soluçando, te­mendo pela sua sorte. Esperava o pior, certa de que Pancho seria enviado novamente para Yuma, condenado a cumprir a pena de cinco anos de re­clusão.

Ao ver chegar Pancho, levantou-se, de repen­te. Ele estava chegando inteiramente só, livre da escolta do xerife e dos seus ajudantes.

— Que aconteceu? – perguntou ela, ansio­sa. — Você já está livre?

Pedrito também se mostrava admirado.

— Quase livre... – respondeu ele, sorrindo. — Para o que merecia, é praticamente a liberda­de. – Pancho sentou-se ao lado de Lupe, acarici­ando-lhe as mãos. — O juiz foi muito bondoso comigo...

— Conte logo! – exigiu Lupe, impaciente. — Que negócio é esse de "quase livre"?

— Quero dizer que dentro de seis meses estarei completamente livre! – respondeu Pancho, não se contendo de alegria. — Não voltarei para Yuma. Vão me encaminhar à penitenciária de Phoenix. Serão somente seis meses, minha querida! Estou tão contente...!

Agarrou as mãos de Lupe e ficou a beijá-las com imensa ternura.

— Seis meses! – murmurou ela pálida e de­monstrando tristeza. — Os seis meses que você iria passar em liberdade condicional.

— Realmente, o juiz foi muito bondoso – co­mentou Pedrito. — Eu pensava que você teria que cumprir a condenação de cinco anos a partir de agora. Às vezes, quando o prisioneiro foge, o tempo anterior de prisão é como se não existisse. Começam a contar de novo... Quando será leva­do para Phoenix?

— Amanhã, ao meio-dia... – respondeu Pancho, novamente triste ao ver que Lupe soluça­va, desesperadamente. — Não fique assim, minha querida. É como se eu tivesse que fazer uma longa viagem. Você deveria estar alegre per ter me livra­do do pior!

— Vamos fazer um acordo, eu e vocês – dis­se Pedro, sorrindo. — Vocês têm pouco mais de vinte e quatro horas para passar juntos, não é? Pois então, casem agora mesmo! Aproveitem e fiquem juntos nestas poucas horas. Seria uma lua-de-mel relâmpago! Eu ficarei em casa de Harold, dei­xando vocês aqui inteiramente à vontade.

Lupe olhou para o irmão, assombrada. Pan­chito não se continha, quase arrebentando de ale­gria.

— Agora mesmo! – exclamou Lupe, entusi­asmada, jogando-se nos braços de Panchito.

— Que ótimo! — exclamou Pancho, com os olhos rasos de lágrimas. — Os seis meses serão mais curtos...!

Pedrito emprestou a Pancho uma roupa apro­priada. Lupe, à falta de um vestido de noiva, ves­tiu um suntuoso traje branco, de passeio, enfeitando-se com colares, brincos e anéis vistosos. Esta­vam transbordando de alegria.

Pancho levou-a na garupa do seu cavalo. Pa­reciam o casal mais feliz do mundo. Pedrito os acompanhou até Astec.

O mesmo juiz que determinara a sua ida para a penitenciária de Phoenix celebrou seu casamento, assombrado com a decisão repentina dos jovens. Depois, foram até a igreja, onde o Padre Domingo, um mexicano, fazia as vezes de pároco. O vigário já estava ciente do que sucedera o concordou em uni-los, antes recebendo a confissão de Pancho pa­ra ter a certeza de que ele estava realmente arre­pendido e no firme propósito de mudar de vida.

Não houve festa. A falta de tempo para pre­pará-la e os incidentes da véspera não permitiam que o casamento fosse celebrado com a participação dos vizinhos. Além disto, a cidade estava pratica­mente de luto, chorando a morte do bom xerife de Theba e de seu ajudante, dois excelentes vizinhos.

Terminado o casamento, Pancho e Lupe re­gressaram ao rancho, a galope. Tinham diante de si um pouco mais de vinte e quatro horas para celebrar a lua-de-mel.

Durante todo aquele dia ninguém bateu na porta do rancho, não apareceu nenhum curioso. To­dos sabiam que Pancho, já no dia seguinte, teria de partir rumo à penitenciária de Phoenix.

Terminada a lua-de-mel, Lupe despediu-se, chorosa, de seu marido. Ali já estavam o xerife Whitman e Pedrito. Mas Pancho viajaria sozinho. O juiz decidira que assim fosse, dando-lhe mais uma prova de confiança. Estava contente por sa­ber que o rapaz entrava definitivamente para o cír­culo dos homens decentes.

Pancho partia, contente. Sabia que seriam seis meses de provações, mas ele escolhia, resigna­do, o seu próprio caminho. Afastava-se da esposa querida, mas sabia que voltaria dentro em pouco sem nada dever à sociedade, pronto para recompor, de vez, a sua vida.

Chegando a Phoenix dirigiu-se à penitenciária e apresentou-se a um serventuário, entregando a ordem do juiz. O diretor e os oficiais da prisão fi­caram assombrados, vendo-o apresentar-se só e sorridente, alegre e decidido.

Cativando, desde logo, a simpatia da adminis­tração, foi encaminhado aos trabalhos da horta, onde passava os dias ao ar livre. Os soldados en­carregados da vigilância eram unânimes em afir­mar que Pancho mantinha excelente conduta e tra­balhava além das horas regulamentares.

Aprendeu a ler com o capelão, e o padre não se cansava de dizer que jamais conhecera um preso de comportamento tão exemplar. Não compreendia porque estava ali recolhido, já que a prisão não era o lugar para um homem decente.

Depois de dois meses, uma das cartas de Lu­pa anunciava uma boa nova:

"Quando voltares, teremos outra Lupíta ou, talvez, outro Panchito..."

Pancho ficou louco de alegria. Passou a tra­balhar com maior afinco na esperança de que, tra­balhando, o tempo passasse mais depressa. O pró­prio diretor, que o observava de vez em quando, pe­la janela, sentiu-se comovido. Procurou o governa­dor do estado e pediu clemência para aquele jo­vem que trabalhava como dois, para redimir-se e poder ser um pai exemplar, legando o exemplo aos filhos.

— Se trabalha como dois – disse o governador, em tom de brincadeira — passe a contar o tempo em dobro. Em vez de seis meses de prisão, corte a pena pela metade... Mas não lhe diga nada até

que chegue o dia.

 

Os três meses passaram rápido. Panchito vol­tou ao rancho que agora era também o seu lar. Mas, desta vez, entrou pela porta da frente, de cabeça erguida, levando um papel na mão.

Lupe correu ao seu encontro, louca por abraçá-lo. Ela não sabia de nada e ficou estarrecida. Pancho mostrou-lhe o documento onde se afirmava que sua pena fora definitivamente cumprida e que ele nada mais devia à justiça ou à sociedade.

           — Agora, minha querida, diga-me se é ver­dade que, em pouco tempo seremos três?!... – ele a beijava com ternura, envolvendo-a nos seus braços.

Pedrito, ao lado, passava a vista no certifica­do de liberação.

— Não me aperte tanto...! – pediu ela. — Você será sempre um bobalhão... – ajuntou Lu­pe, sorridente. — Estou horrível, deformada e de pés inchados, mas, mesmo assim, estou contente. Ninguém é mais feliz do que eu! 

 

                                                                                O. C. Tavin 

 

 

 

                                         

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