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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


VENTO DO ORIENTE, VENTO DO OCIDENTE/Pearl S. Buck
VENTO DO ORIENTE, VENTO DO OCIDENTE/Pearl S. Buck

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

A vós, minha Irmã, sei que posso contar estas coisas. Ser-me-ia difícil falar disto com qualquer dos meus, pois não faria uma ideia, sequer, dessas terras distantes onde meu marido viveu doze anos. E não me sentiria mais à vontade, também, com estrangeiros, que não conhecem nem o meu povo, nem a nossa maneira de viver desde o Antigo Império. Vós, não; passastes toda a vossa vida entre nós; pertencendo embora aos países onde meu marido estudou nos livros ocidentais, compreendeis tudo, e nada vos ocultarei. Chamei-vos minha Irmã. Contar-vos-ei tudo, pois.

 

 

 

 

Há quinhentos anos, como sabeis, já os meus venerandos antepassados viviam nesta cidade do Império do Meio. Nenhuma dessas augustas personagens se mostrou moderna ou ávida de inovações. Todas elas, tranquilas e dignas, viveram confiantes na própria integridade. E assim me educaram meus pais, em conformidade com tão honrosas tradições. Nunca a ideia de poder ser de outra maneira me assaltou. Instintivamente, acreditava que todas as pessoas vulgares deviam parecer-se comigo. Quando me falavam na existência - muito longe, para além dos muros da corte - de mulheres diferentes de mim, que andavam livremente, como os homens, não ligava importância a isso e procurava trilhar, como me haviam ensinado, os caminhos apontados pelos ancestrais. Não tinha contacto algum com o exterior e nada desejava.

Agora, porém, chegou a minha vez de observar atentamente essas estranhas criaturas - as mulheres modernas. E já a mim mesma pergunto como poderia imitá-las... Não por mim, minha Irmã, mas por meu marido.

Ele não me acha bonita! Será por ter atravessado os Quatro Mares, para os países de além, e haver aprendido, nessas terras longínquas, a amar as coisas e os costumes novos?

Minha mãe é uma mulher assisada. Quando, aos dez anos de idade, deixei de ser criança e passei a ser rapariga, disse-me ela as seguintes palavras: "A mulher deve, em frente dos homens, guardar um silêncio de flor e saber retirar-se na altura própria, sem demonstrar confusão".

Lembrando-me disto, curvei a cabeça quando fui ao encontro de meu marido. Estendi as mãos, sem dizer palavra, quando ele me falou. E creio não se ter aborrecido com o meu silêncio.

Se procuro o que poderia interessá-lo, o meu espírito fica logo vazio, como arrozal depois da colheita.

Sozinha, solto a fantasia e sonho com coisas belas e delicadas. Penso em confessar-lhe o meu amor, não com palavras atrevidas, copiadas do ávido Ocidente - ah! podeis ficar tranquila - mas com palavras veladas, como, por exemplo:

- O meu Senhor observou como o dia nasceu ? Parecia que a Terra ensombrada avançava para o Sol. Era tudo escuridão. Depois, um formidável jorro de luz, como se fosse uma explosão musical! Eu, meu Senhor, sou a terra ensombrada que espera...

Ou então assim, quando ela passeia pelo lago Lotus:

- E se as águas pálidas e lânguidas deixassem de sofrer a atracção da Lua? Se a onda deixasse de ser vivificada pela luz? Oh, meu Senhor, tenha cuidado consigo! Volte para mim são e salvo, porque, sem a sua presença, tenho receio de tornar--me nessa coisa pálida e extinta!

Mas quando ele volta para casa nas suas roupas exóticas, já não tenho forças para dizer-lhe tais coisas. Será possível que eu tenha casado com um estrangeiro? As suas palavras são raras, pronunciadas de fugida por entre os lábios, e os seus olhos deslizam rápidos sobre mim, mesmo quando estou vestida de cetim cor de pêssego e trago pérolas entre os cabelos bem alisados.

É este o meu desgosto: - Casada há um mês apenas, e não ser bela a seus olhos.

Há três dias que penso nisto, minha Irmã: tenho de empregar algum artifício; tenho de descobrir a maneira de atrair os olhares de meu marido.

Pois não sou eu duma estirpe de mulheres que, por muitas gerações, gozaram o favor dos olhares de seus maridos? Em cem anos, só uma delas desmereceu sob o ponto de vista de beleza: a Cuei--Mei, do tempo de Sung, que ficou marcada pela varíola aos quatro anos de idade. Mesmo assim, sabe-se que tinha uns olhos semelhantes a jóias negras e uma voz que agitava os corações dos homens, como o vento agita os bambus na Primavera. O marido amava-a, e tanto que, apesar de ter seis concubinas, de harmonia com a sua riqueza e a sua casta, chegava a preferi-la a todas.

Entre os meus antepassados, conta-se ainda Iang Cuei-Fei - que trazia sempre um pássaro branco empoleirado no pulso: tinha o Império em suas mãos perfumadas, pois o Imperador, o Filho do Céu, vivia apaixonado pela beleza dela.

Eu, a mais apagada entre essas veneráveis criaturas, devo, naturalmente, ter sangue seu cor-rendo-me nas veias, e seus ossos devem ser meus ossos.

Cheguei a mirar-me no meu espelho de bronze, e posso dizer-vos, só em atenção a meu marido, que verifiquei existirem outras mulheres menos bonitas do que eu. Os meus olhos são perfeitos, o branco nitidamente separado do preto. As orelhas, bem pequenas, acompanham a curva do crânio, de maneira a aderirem a elas os cachos de jade e oiro dos meus cabelos. Tenho o rosto oval, e a boca pequenina e bem arqueada. Só desejaria ser um pouco menos pálida, e ter mais prolongada a linha das sobrancelhas em direcção às fontes. Mas disfarço a palidez com um creme de rosa que ponho nas mãos e com que, em seguida, fricciono as faces; e um pincelzinho embebido em tinta escura ajuda-me a completar a perfeição das sobrancelhas.

Sinto-me bela, então, e capaz de agradar a meu marido. Mas quando o seu olhar se poisa sobre mim, sinto que ele nada vê, nem lábios, nem sobrancelhas. O seu pensamento erra por longe, por terras e mares distantes, por toda a parte onde não posso estar à sua espera.

 

Quando o geomante marcou o dia do nosso casamento, e as arcas de laca se encontravam já cheias, as colchas de cetim com flores encarnadas se amontoavam em cima das mesas e os presentes de núpcias se empilhavam como verdadeiros pagodes- minha mãe mandou chamar-me ao seu quarto. Tendo lavado as mãos e alisado os cabelos, fui ter com ela. Estava sentada na sua poltrona negra esculpida e tomava chá aos goles, tendo ao alcance da mão o longo cachimbo de bambu enfeitado de prata.

Parei diante dela, cabisbaixa, sem lhe fitar os olhos. Mas sentia o seu olhar penetrante fixar-se em mim, observando-me toda, da cabeça aos pés. O calor que dela emanava, intenso, parecia cortar o silêncio e atingir-me o coração.

Por fim, minha mãe ordenou que me sentasse. Ela brincava agora com algumas sementes de melancia que estavam num prato, a seu lado, em cima da mesa, e tinha no rosto tranquilo a habitual expressão de insondável tristeza. Meditava.

- Cuei-Lan, minha filha: - disse-me, após longo silêncio - está em vésperas de desposar o homem que lhe foi reservado muito antes do seu nascimento. Seu pai e o dele, amigos como irmãos, prometeram unir os filhos. Tinha o seu noivo seis anos quando a menina nasceu. Era este o seu destino, e com esse objectivo foi educada. Durante estes dezassete anos nunca deixei de pensar na hora do seu casamento. Cuidando em educá-la, duas pessoas tinha sempre na ideia: sua sogra e seu marido. Foi pensando em sua sogra, que lhe ensinei a preparar e servir o chá a uma pessoa de idade, a portar-se convenientemente em frente dela e a ouvir as suas palavras, sejam elas de louvor ou de censura; em qualquer caso, sei que a ensinei a submeter-se a tudo, como uma flor se submete ao sol e à chuva. Pensando em seu marido, ensinei-a a enfeitar-se, a dirigir-se-lhe sem uma palavra, apenas com a eloquência dos olhos e da expressão, e a... Mas isso, compreendê-lo-á na hora em que se encontrar a sós com ele. Portanto, sabe bem tudo o que respeita aos deveres duma senhora distinta. Sabe confeccionar os doces e os manjares delicados, de modo a despertar o apetite de seu marido e a chamar-lhe a atenção para o seu valor. Não deixe, vez alguma, de o seduzir com a sua habilidade em variar os pratos. Os usos e a etiqueta, na vida aristocrática - como deve apre-sentar-se diante dos superiores e, depois, retirar--se; como deve falar aos inferiores, como deve entrar na sua cadeirinha e como deve cumprimentar em público a mãe de seu marido - todas estas maneiras de proceder as conhece. O proceder duma dona de casa, quando tem visitas; a subtileza dos sorrisos; a arte de enfeitar os cabelos com jóias e flores, e de pintar os lábios e as unhas; de perfu-mar-se; o recurso dos sapatinhos pequenos para pequeninos pés... Ah! os seus pobres pés, quantas lágrimas lhe custaram! Mas também não conheço outros tão pequenos na sua geração. Quando tinha a sua idade, os meus não eram menores. Só desejo que a família de Li tenha recebido as minhas mensagens e haja ligado bem os pés da filha, a noiva de seu irmão, meu filho. Ouvi dizer que ela se instruiu com os Quatro Livros; e isso inquieta-me, porque, numa mulher, nunca a ciência andou ligada à beleza. A este respeito, tenho de mandar dizer qualquer coisa ao intermediário. Quanto a si, minha querida, se a minha futura nora se lhe compara, não terei de que me queixar. Ensinámos-lhe a tocar a antiga harpa, que as mulheres de outros tempos, durante muitas gerações, faziam ressoar para alegria dos seus senhores. Os seus dedos são hábeis, e as unhas longas. Aprendeu os versos mais famosos dos nossos velhos poetas e canta-os agradavelmente, acompanhando-se com a harpa. Espero que a sua sogra não encontrará lacuna alguma na minha obra. A não ser que não venha a ter filhos! Mas, se se passar o primeiro ano sem conceber, então irei ao templo apresentar à deusa uma oferenda.

O sangue subiu-me ao rosto. Não me lembro de, em qualquer tempo, haver ignorado coisa alguma a respeito de nascimentos e maternidade. O desejo de ter filhos, numa casa como a nossa, em que meu pai sustentava três concubinas reservadas apenas à função de procriar, era demasiado habitual para que pudesse encerrar qualquer mistério. No entanto, a ideia de se tratar de mim, agora...

Mas minha mãe não reparou nas minhas faces ruborizadas. Continuava absorta, em meditação, e voltou a brincar com as sementes de melancia.

- Há apenas uma coisa... - disse por fim. - Ele tem vivido longe, em país estrangeiro. Até estudou a medicina de lá. E assim, pergunto a mim mesma... Mas bem, basta. Pode retirar-se.

 

Não me recordo de, em qualquer outra ocasião, ter ouvido a minha mãe um discurso tão longo. Na realidade, ela falava muito pouco, e isso só para ralhar ou dar quaisquer ordens. E era bem este o seu papel, pois que, na parte da nossa casa reservada às mulheres, nenhuma se lhe comparava. Era ela a Primeira Esposa, superior às outras pela casta e pela inteligência.

Conheceis minha mãe e deveis estar lembrada: é bastante magra, e o rosto, pálido e tranquilo, até parece esculpido em marfim. Sei que na mocidade, antes de casar, foi de grande beleza: tinha as sobrancelhas cheias de sombra e uns lábios tão delicados como os botões de marmeleiro, da cor do coral. Agora mesmo, macilenta, conserva o oval puro que se vê nas pinturas antigas. Quanto aos olhos, disse-me um dia a Quarta Esposa, que tem uma bonita maneira de dizer as coisas:

- Os olhos da Primeira Esposa são jóias tristes, pérolas negras, mais escurecidas ainda por um grande contacto com a dor.

Ah! A minha mãe! Quando eu era pequena, ninguém se lhe igualava. Compreendendo muitas coisas, comportava-se com uma tranquila dignidade que nela era natural e que inspirava inveja às concubinas e aos filhos destas. As próprias servas a admiravam, embora não gostassem dela. E muitas vezes eu as ouvia resmungar, por nem, ao menos, poderem furtar os restos que ficavam na cozinha, sem que minha mãe desse por isso. No entanto, nunca ela as repreendia exaltada, como faziam as irritadiças concubinas. Quando minha mãe via qualquer coisa que lhe desagradava, poucas palavras proferia; mas essas poucas eram cortantes, cheias de desprezo, e tombavam sobre a culpada como um cáustico - como se fosse gelo em cima de carne viva.

 

Era boa para meu irmão e para mim, mas sempre solene e fria, como convinha à sua posição na família. Dos seis filhos que tivera, quatro foram--lhe roubados, cedo ainda, pela crueldade dos deuses. Por isso, amava tanto o único filho varão que lhe restava, meu irmão. Dera a meu pai um herdeiro vivo: já não podia, pois, queixar-se dela.

Além disso, intimamente, sentia-se orgulhosa daquele filho, tal como ele era.

 

Conheceis meu irmão. É parecido com minha mãe: delgado, franzino, alto e desempenado como uma haste de bambu. Em crianças, vivíamos juntos, e foi ele quem primeiro me ensinou a copiar, a tinta, os caracteres pintados no meu primeiro livro. Mas meu irmão era um rapaz e eu uma menina. Ao completar nove anos, e eu seis, tiraram-no dos aposentos das mulheres e colocaram-no nos dos homens. Daí em diante, só raramente nos encontrámos. Ele acanhava-se de visitar os pátios das mulheres, e minha mãe não o encorajava a fazê-lo.

E, por meu lado, nunca a mim me permitiram, como é natural, visitar os dos homens. Logo no princípio da nossa separação, consegui escapar-me uma noite e fui até ao muro circular, em forma de lua, que divide aqueles aposentos. Trepando ao muro, procurei descobrir meu irmão, correndo o olhar pelo pátio; mas apenas vi os criados, indo e vindo apressadamente.

Quando eles abriam as portas dos aposentos de meu pai, ouvia explosões de riso, a que se misturava uma fina e aguda voz de mulher. Mas, fechadas as portas, voltava a reinar o silêncio no jardim.

Durante algum tempo estive assim a ouvir o eco do riso dos convivas, procurando saber se meu pai se encontraria naquele meio. Mas, de repente, senti-me puxada por um braço. Era Uang Da Ma, a primeira serva de minha mãe, que me gritou:

- Se a encontro aqui outra vez, vou logo dizê-lo a sua mãe. Pois já se viu uma menina assim, tão pouco recatada, tentando espiar os homens às escondidas?

Cheia de vergonha, mal me pude desculpar:

- Era para ver meu irmão.

Ela respondeu-me com firmeza:

- Seu irmão também já é um homem. Assim, só muito de longe a longe o via. Mas ouvia dizer que era muito estudioso e depressa fizera grandes progressos nos Quatro Livros e nos Cinco Clássicos. E tanto assim, que meu pai acabou por atender os seus pedidos, permitindo-lhe que estudasse numa escola estrangeira de Pequim.

Quando do meu casamento, estudava ele na Universidade Nacional de Pequim. E nas cartas que escrevia, constantemente pedia autorização para ir à América. A princípio, meus pais nem sequer queriam ouvir falar nisso, e minha mãe nunca pôde concordar com a ideia. Mas meu pai o que desejava era não ter aborrecimentos, e eu bem sabia que meu irmão, com o correr do tempo, viria a alcançar o que pretendia, desde que insistisse.

Durante os dois períodos de férias que passou em casa antes da minha partida, meu irmão falou--me muitas vezes num livro a que chamava "ciência". Minha mãe sofria muito com isto, pois não reconhecia utilidade nesses conhecimentos ocidentais para a vida dum fidalgo chinês. Da última vez que esteve conosco, meu irmão apareceu vestido como um estrangeiro, o que descontentou vivamente nossa mãe. Logo que entrou na sala, tristonho, com um aspecto como de quem vinha de longe, minha mãe bateu com a bengala no chão, exclamando:

- Que é isso? Não se atreva mais a apresentar-se diante de mim metido nesses absurdos trajos!

De forma que se viu forçado a retomar os trajos antigos. Mas, aborrecido, ainda levou dois dias a resolver-se a fazê-lo, até que meu pai o ridicularizou, dando ordens terminantes sobre o assunto. E minha mãe tinha razão; trajando a indumentária chinesa, meu irmão tinha um ar majestoso, de verdadeiro estudante; ao passo que com as pernas a verem-se, com aquelas vestes esquisitas, não parecia nada o mesmo que a nossa família vira e conhecera.

Também durante esses dois períodos de férias, meu irmão raramente falou comigo. Ignoro os livros de que ele gostava, pois eu não podia continuar já a folhear os clássicos; o meu tempo estava todo tomado pelas coisas necessárias aos preparativos para as núpcias.

Devo esclarecer que nas nossas conversas nunca tratámos do casamento dele; não estariam bem estas conversas entre um rapaz e uma menina. Sabia apenas, por intermédio das servas que escutavam às portas, que ele se mostrava renitente em não querer casar-se, embora minha mãe já por três vezes houvesse tentado fixar a data do casamento. Ele não perdia oportunidade para sugerir ao pai a conveniência de se adiar o casamento até acabar os seus estudos. Como é natural, eu sabia do seu noivado com a segunda filha da casa de Li, família conceituada na cidade pela sua riqueza e posição. Três gerações antes, o chefe da casa de Li e o da nossa governavam dois distritos vizinhos na mesma província.

Escusado é dizer que nunca tínhamos visto a noiva. O assunto fora resolvido por meu pai, quando meu irmão ainda não contava um ano: e, antes do casamento, não seria próprio que as duas famílias mantivessem relações. Nunca, também, se falava na noiva; só uma vez ouvi Uang Da Ma referir-se-lhe, em conversa com as outras servas:

- É pena que a filha de Li tenha três anos mais que o nosso jovem senhor. Um marido deve ser sempre superior em tudo, mesmo na idade. Mas a família é antiga e rica, e...

Ao ver-me, calou-se e voltou ao seu trabalho.

Eu não compreendia a razão por que meu irmão opunha resistência ao casamento. A primeira concubina pôs-se a rir quando lhe disse isto, e respondeu-me:

- Talvez tenha encontrado alguma linda manchu, lá por Pequim.

Cá para mim, era certo que ele só dos seus livros gostava.

E assim me criei, sozinha, nos pátios das mulheres.

Verdade seja que eram muitos os filhos das concubinas; mas eu sabia que minha mãe os considerava simples bocas, na hora de distribuir as rações diárias de arroz, azeite e sal, e que só lhes prestava atenção quando era preciso determinar a metragem do algodão azul, liso, necessário para as suas roupas.

Quanto às concubinas, não passavam, no fundo, dumas ignorantes, discutindo a propósito de tudo e mostrando-se mortalmente ciumentas do papel que desempenhavam na vida afectiva de meu pai. Haviam começado por lhe excitar a imaginação com uma beleza que depressa murchava, como flores colhidas na Primavera. Depois, os favores de meu pai cessavam, mal se extinguia esse clarão fugaz. Mas elas pareciam não compreender nunca que se tornavam feias, e, muito antes de meu pai chegar, lá andavam já a preparar-se a toda a pressa, limpando as jóias e arranjando os vestidos. Meu pai dava-lhes dinheiro nos dias de festa ou quando ganhava ao jogo, mas elas logo o gastavam levianamente em bolos e vinhos. Em seguida, quando já nada tinham, pediam-no emprestado às servas, para comprar sapatos novos e enfeites para a cabeça; e as servas, que sentiam desprezo pelas concubinas logo que estas perdiam as boas-graças de meu pai, faziam então bons negócios.

A mais velha das concubinas, uma criatura gorda e balofa, de feições delicadas que desapareciam já sob as montanhas de carne das faces, tinha apenas de notável as mãos pequeninas, que constituíam todo o seu orgulho; lavava-as sempre com azeite, pintando as palmas de cor-de-rosa, e as unhas, lisas e ovais, de vermelho-vivo; depois, perfumava-as ainda com um forte extracto de magnólia.

Às vezes, minha mãe aborrecia-se com a oca vaidade desta mulher e, não sem certa malícia, pedia-lhe que lhe fizesse alguns trabalhos de lavagem de roupa e de costura. A gorda Segunda Esposa não ousava protestar, mas ia depois la-mentar-se junto das outras, às escondidas, acusando minha mãe de ter ciúmes dela e querer destruir-lhe a beleza por causa de meu pai. E dizia estas coisas olhando sempre para as mãos, exa-minando-as com o maior cuidado e procurando quaisquer indícios de calos na pele fina. Quanto a mim, não podia suportar o contacto daquelas mãos, quentes, macias e flácidas.

Meu pai deixara de suportar esta mulher havia já bastante tempo, mas dava-lhe dinheiro quando passava a noite nos aposentos dela, para evitar a sua gritaria nos pátios e as suas censuras, que o irritavam. Meu pai, de resto, devia-lhe mesmo certas atenções por causa dos seus dois filhos. Estes, gordos ambos, eram parecidos com a mãe, e eu nunca os vi que não estivessem a comer e a beber. Comiam bem, à mesa, com os outros, e logo em seguida iam para o local destinado às servas, a fim de disputar-lhes os restos da comida. Mas faziam isto com muita astúcia, receosos da mãe, que detestava a lambarice; ela contentava-se com um bolo de arroz seco, um pouco de peixe salgado, um pedacito de galinha fria e uma chávena de chá perfumado.

Da Segunda Esposa nada mais recordo, a não ser o seu medo de morrer. Comia muito bolo de gergelim e depois, adoecendo, apavorava-se. Gemia e chamava imediatamente os sacerdotes budistas, prometendo oferecer aos deuses os seus pentes de pérolas, se a curassem. Mas, mal se apanhava boa, voltava logo a comer bolo e esquecia a promessa.

A segunda concubina, portanto Terceira Esposa, era uma mulher terna, que raramente falava e tomava pouco interesse pela vida da família. Tinha cinco filhos, ou antes, quatro filhas e um filho, sendo este o último a nascer; e isto contra-riava-a, combalindo-lhe o espírito, pois as raparigas não lhe interessavam; por isso mesmo, também, elas andavam inteiramente desprezadas, gozando de tanta consideração como as simples escravas contratadas para o serviço. Esta mulher passava o tempo num recanto do pátio, ao sol, dando de mamar ao filho, um garoto pesado e de tez amarelenta, que a toda a hora lhe sugava os seios caídos; um garoto de três anos de idade, que ainda não sabia falar nem, ao menos, andar.

A minha predilecta era a terceira concubina, uma pequena dançarina de Sujuão. Chamava-se La-Mai, e era linda como a flor deste nome, que surge na Primavera como um pedaço de oiro pálido, entre os ramos despidos de folhas. Era delicada, pálida e doirada, como aquela flor. Não pintava as faces, como as outras faziam, contentando-se com acentuar o sombreado estreito das sobrancelhas e o vermelho do lábio inferior. A princípio, raramente a víamos, pois meu pai, cioso da sua beleza, a levava sempre consigo para toda a parte.

No último ano antes do meu casamento, passou a ficar em casa, por se encontrar grávida; deu então à luz um adorável garoto, lindo e rechonchudo. Tomando-o entre as mãos, colocou-o nos braços do pai, pagando-lhe assim tudo o que este lhe dera, em jóias e em afecto.

Antes do nascimento deste filho, a Quarta Esposa vivia numa contínua excitação, e o seu rir nervoso ouvia-se constantemente. Por toda a parte se falava na sua beleza, e realmente eu nunca vi mulher mais linda. Trajava sempre um vestido de cetim esverdeado, enfeitado a veludo preto, e brincos de jade nas orelhas. Em geral, olhava-nos com certo desdém, embora nos fizesse comparticipar, larga e generosamente, dos presentes e doces que lhe ofereciam nas festas a que, todas as noites, comparecia com meu pai. Comia muito pouco: um bolo de gergelim, de manhã, quando meu pai a deixava, e ao meio-dia metade dum bolo de arroz, com uma gema de bambu ou um pedaço de pato salgado. Mas gostava muito de vinhos exóticos e adulava meu pai para que ele comprasse um líquido amarelado, com bolhas de prata subindo do fundo da garrafa. Isto fazia-a rir e conversar muito, brilhando-lhe os olhos como cristais negros. Então, divertia bastante meu pai, que lhe pedia que dançasse e cantasse para ele.

Enquanto meu pai se divertia, minha mãe, sentada nos seus aposentos, lia as nobres máximas de Confúcio. Mas eu, já rapariga, sentia vontade de saber o que se passava, à noite, naqueles festins, enfiando o olhar pelas largas frestas da porta em forma de lua, até à sala dos homens. Isto era, porém, proibido por minha mãe, e eu tinha vergonha de a enganar.

No entanto, uma vez, numa noite escura de Verão, - ainda hoje me envergonho da minha desobediência filial - escapuli-me, aproveitando a escuridão, para ir espreitar, por detrás do muro, os aposentos de meu pai. E nem mesmo sei o motivo por que o fiz, pois nessa altura já não pensava em meu irmão. Uma onda estranha de vago desejo me invadira durante todo o dia, que fora longo e quente. E quando veio a noite, quente e negra, impregnada do intenso perfume da flor do lótus, a tranquilidade dos nossos quartos de mulheres pareceu-me uma coisa morta. Senti o coração bater com força quando vi as portas escancaradas e a luz duma centena de lanternas espalhar-se até cá fora, no ar calmo. Lá dentro, os homens comiam e bebiam, sentados em volta de mesas quadradas. Os criados andavam para trás e para diante, servindo as iguarias. Por detrás de cada cadeira via-se uma figura de mulher, esbelta como vara de videira. Mas sentada à mesa encontrava-se apenas La-Mai, ao lado de meu pai. Eu distin-guia-a perfeitamente, donde estava: tinha um aspecto sorridente, brilhante como uma pétala de flor de cera, quando se virava para ele. Em certa altura disse-lhe qualquer coisa, mal movendo os lábios, e os homens puseram-se a rir alto. Mas o sorriso de La-Mai manteve-se o mesmo, leve e subtil.

Desta vez, foi minha própria mãe quem me descobriu. Saía raras vezes de casa, ainda que fosse para passear no pátio, mas o calor que nessa noite fazia arrastara-a para fora dos seus aposentos, e logo me descobriu, apesar da escuridão. Mandou-me ir para o quarto imediatamente e, seguindo-me, ainda me bateu nas palmas das mãos com o seu leque de bambu, fechado, e perguntou--me, com o maior desprezo, se eu gostava de ver como as prostitutas procediam. Envergonhada, chorei.

No dia seguinte, mandou colocar uma grade na porta em forma de lua, e nunca mais, então, procurei espreitar.

Apesar de tudo, minha mãe não se mostrava menos bondosa para com a Quarta Esposa. As servas elogiavam a senhora pela sua indulgência, mas creio que as concubinas prefeririam vê-la cruel, como uma Primeira Esposa o é, tantas vezes, para com as outras.

Depois do nascimento do filho, a Quarta Esposa contava acompanhar meu pai novamente. E com receio de se tornar feia, nem amamentava o filho, confiando-o a uma escrava forte, cuja filha, é claro, não tivera direito à vida. Era uma mulher gorda, com uma boca imunda. No entanto, o garoto dormia toda a noite no seu colo, encostado ao seio, e passava também os dias nos seus braços. A mãe pouca importância ligava ao filho, a não ser para vesti-lo de vermelho nos dias de festa, meter-lhe nos pés sapatinhos de focinho de gato, e brincar uns instantes com ele; mas logo que este chorava, passava-o, impaciente, para os braços da escrava.

Este filho não lhe proporcionou grande influência sobre meu pai. Embora estivesse legalmente quite com ele, tinha ainda, como todas as outras mulheres, de procurar cativar-lhe os sentidos dia a dia, por meio de hábeis estratagemas. A astúcia, porém, já lhe não bastava, porque estava menos bonita do que antes do nascimento do filho. O seu rosto fino, cor de pérola, estava abatido, murcha já a delicada flor de juventude.

Metida no seu vestido verde-jade, soltava o risinho leve, e meu pai parecia mais satisfeito do que nunca; mas na primeira viagem, afinal, já não a levou consigo. A estupefacção e a raiva de La-Mai foram terríveis.

Satisfeitas intimamente, as outras concubinas procuraram consolá-la com sorrisos forçados. Minha mãe deu mais uma vez prova das suas virtudes. Ouvi então Uang Da Ma dizer enraivecida:

- Bem. Vamos ter agora que sustentar mais uma preguiçosa. Já está farto desta, também...

A partir desse dia, a Quarta Esposa tornou-se esquiva. Profundamente cansada da vida monótona que se leva num pátio de mulheres, tornou-se irritável e teve crises nervosas. Habituada às festas e às homenagens dos homens, mergulhou na melancolia, chegando mesmo a tentar suicidar-se, um dia, já depois do meu casamento.

Não se pense, porém, que passávamos uma vida triste, em nossa casa. Pelo contrário: éramos muito felizes, ao ponto de, em geral, os nossos vizinhos invejarem minha mãe. Meu pai respeitava-lhe a inteligência e aptidão para dirigir os negócios; por sua vez, ela nunca lhe fazia a menor censura. E viviam assim, os dois, com dignidade e em paz.

 

Oh, a minha querida casa! A infância perpassa diante dos meus olhos como se fossem imagens batidas pela luz: os pátios onde, de madrugada, eu me ficava a olhar o repentino desabrochar dos botões de lótus no tanque, enquanto as peónias floresciam no jardim; os quartos onde as crianças brincavam, deslizando nos ladrilhos; as velas ardendo em frente dos deuses familiares ; os aposentos de minha mãe, onde vejo sempre a sua silhueta delicada e austera curvada sobre um livro e, ao fundo, o imenso leito de dossel.

Mas, acima de tudo, do que eu gostei sempre mais, foi da majestosa sala de recepção, com seus enormes divãs e suas poltronas de madeira de teca negra, a comprida mesa esculpida e os reposteiros de cetim vermelho. Por cima da mesa, o retrato a cores do primeiro imperador Ming - fisionomia impenetrável, com um queixo que parecia talhado em pedra. De cada lado do quadro, pendiam finos cordões de oiro.

O lado sul da sala é todo em postigos entalhados, guarnecidos com papel de arroz; este, difunde na dignidade austera do aposento uma doce tonalidade de luar, que se reflecte nas grossas vigas do tecto, iluminando-lhes as arestas, pintadas a oiro e vermelho vivo.

Quando, sentada tranquilamente na sala dos antepassados, me ficava a ver cair o crepúsculo nesse silêncio de sombras, era como se ouvisse uma melodia.

No segundo dia do ano novo, escolhido pelas damas da aristocracia para as suas visitas, o aposento vivia momentos dum requinte extremo. Um cortejo de damas brilhantemente vestidas penetra naquele ambiente de outras eras. Há luz, risos e cerimoniosa conversação. Os escravos servem bolos pequenos, em bandejas de laca vermelha. Minha mãe preside a tudo com discreta afabilidade.

Durante centenas de anos, o velho tecto contemplou esta mesma cena; cabeleiras negras e olhos negros, sedas e cetins de todas as cores, pentes de jade, pérolas ou rubis, e, nas finas mãos de marfim, o brilho das turquesas e do oiro.

Ai, a minha casa, que eu amo tanto!

Parece-me que estou a ver-me ainda, uma solene senhorinha, agarrada à mão de meu irmão, olhando, no pátio, a fogueira onde iam ser queimados os deuses da cozinha; passaram-lhes mel pelos lábios de papel, para que subam ao céu proferindo doces palavras e esqueçam as discussões havidas entre as servas, e os furtos de comida. Mudos de espanto, ali ficávamos cheios de respeito, à ideia da partida desses mensageiros para ignotas paragens.

Estou a ver-me na Festa do Dragão, no meu lindo vestido de cerimónia, de seda rósea bordada com flores de ameixeira, esperando a noite ansiosamente, pensando no momento em que meu irmão me conduzirá à barca do Dragão, no rio.

Lembro-me ainda da lanterna que minha velha escrava me deu, na Festa das Lanternas: e ela rindo do meu nervosismo, quando, depois, vou acender a vela vermelha e fumarenta, dentro do balão de papel.

Estou ainda a ver-me andando lentamente ao lado de minha mãe, a caminho do templo maior. Vejo-a ainda a deitar o incenso na pira. Ajoelho com ela, reverente, em frente dos deuses, e o medo apossa-se de mim.

 

Pergunto-vos agora, minha Irmã: educada desta forma, estaria eu à altura do homem que é meu marido? Para nada serve tudo quanto eu faça. Às vezes, às escondidas, visto o meu chambre de seda azul, de botões escuros admiravelmente marchetados de prata; coloco jasmins nos cabelos e calço os sapatos bicudos, de cetim preto bordado a azul. E vou, assim, recebê-lo à porta. Mas os seus olhos deslizam sobre mim rapidamente, para irem poisar-se em qualquer outra coisa - nas suas cartas,' que estão em cima da mesa, ou nalgum livro - e eu para ali fico, esquecida.

Um receio atroz se me agita no fundo do coração. Ainda me lembro da véspera do meu casamento. Nesse dia, minha mãe escreveu rapidamente duas cartas do seu próprio punho, uma a meu pai e a outra à minha futura sogra, e enviou-as a toda a pressa pelo velho porteiro. Nunca eu a vira tão perturbada. No mesmo dia, percebi que as servas cochichavam: diziam elas que o meu noivo desejava quebrar o compromisso, porque eu não era instruída e usava os pés enfaixados. Não pude conter as lágrimas. Intimidadas, as criadas juraram não se tratar de mim, mas duma das gordas filhas da senhora Tao.

E ainda hoje me lembro disso, e sofro. Não seria de mim que falavam, realmente? As servas mentem tanto!... No entanto, eu não sou uma criatura completamente privada de instrução; ensinaram-me tudo o que se refere às coisas duma casa e aos cuidados a ter comigo mesma. E quanto aos meus pés, estou certa de que ninguém preferiria que eles fossem enormes e vulgares, como os duma camponesa. Não, não era de mim, não podia ser de mim que as servas falavam...

 

Ao despedir-me da casa de meus pais, para subir para o grande palanquim vermelho que me conduziria a casa de meu marido, nem sequer pensava em que poderia não lhe agradar. O que via, satisfeita, era a minha pequena estatura, o meu corpo ágil e o meu rosto oval, que outras pessoas gostavam de admirar. Lá quanto a isto, pelo menos, não sofreria ele decepção alguma.

Durante a cerimónia do vinho, olhei-o sorrateiramente, por entre os cordões de seda vermelha do véu. Via-o de pé, envergando aqueles feios trajos de estrangeiro. Era alto e delgado como um bambu novo. Senti o coração gelado e, ao mesmo tempo, em brasa. Pus-me nervosa, ardendo no desejo de lhe surpreender um olhar furtivo. Ele, porém, nem uma só vez se voltou para mim, no intuito de ver-me através do véu. Bebemos juntos as taças de vinho e prosternámo-nos ante as taças ancestrais; com ele ajoelhei também aos pés de seus veneráveis pais. Enfim, tornei-me filha deles, para sempre abandonando a minha família e a minha casta. E ele sem uma vez, ao menos, me ter lançado um olhar sequer...

 

Quando, nessa noite, a festa, os risos e as brincadeiras cessaram, sentei-me sozinha na beira do leito, no quarto nupcial. Estava transida de medo. Era chegada a hora que eu idealizara toda a vida, a hora temida e desejada, a hora em que, pela vez primeira, meu marido me veria o rosto, e ficaríamos a sós. Apertei as mãos geladas, uma de encontro à outra, entre os joelhos.

Por fim, entrou ele no quarto, alto, sempre muito sério, nos seus trajos escuros. Veio até junto de mim e, em silêncio, levantou-me o véu, contemplando-me demoradamente. Então, sempre me dava atenção! Depois, tomou-me uma das mãos geladas. Lembrei-me do que minha mãe me ensinara, em sua sabedoria:

- Mostre-se fria, e não ardente. É melhor o travo do vinho, do que a doçura enjoativa do mel. Assim, despertará sempre o desejo.

Lembrando-me disto, só a muito custo conservei a minha mão entre as suas. Depois, ele mesmo ma largou, olhando-me em silêncio. E começou a falar-me com a maior seriedade; a princípio, nem consegui entender-lhe as palavras, encantados como os meus ouvidos estavam com a sua voz - uma voz de homem, tranquila, profunda, que me fazia estremecer a carne assustada. Afinal, ouvi algumas palavras que me surpreenderam. Que dizia ele?

- Não se lhe pode pedir que se atire aos braços do homem que vê pela primeira vez. O mesmo se dá comigo. Este casamento foi-nos imposto, a ambos. Até há pouco, estávamos sem defesa; mas agora somos sós e podemos livremente organizar a nossa vida conforme desejarmos. Por mim, quero seguir novos rumos. Quero considerá-la, em tudo, igual a mim. Nunca a forçarei, seja ao que for. Para mim, a senhora não é uma propriedade minha, um objecto do meu uso. Pode mesmo vir a ser minha amiga, se assim o desejar.

Foram estas as palavras que ouvi na minha noite de núpcias! Foi tal o meu assombro, nessa altura, que nem pude atingir bem o significado delas. Igual a ele?!... Mas como? Pois não sou eu sua mulher? E quem, senão ele, poderia diri-gir-me? Não é ele o meu senhor segundo a lei? Ninguém me impôs coisa alguma. Se não me casasse, que faria eu? Se me caso, é preciso que tudo se passe de acordo com a deliberação dos nossos pais; por mim, só podia desposar aquele que foi meu noivo durante toda a vida. Em tudo isto, não há nada que seja contrário aos nossos costumes. Nada vejo de forçado nestas coisas.

Aos ouvidos, ressoam-me de novo, cortantes, as suas palavras: "Este casamento foi-nos imposto a ambos". De repente, estremeço de medo. Quereria ele dizer, com isto, que preferia não ter casado comigo?...

Ah, minha Irmã, que angústia, que amargura!

Eu apertava as mãos contra os joelhos, num desespero, sem ouvir coisa alguma, sem saber como responder-lhe. Ele poisou uma das mãos sobre as minhas, e, por momentos, ficámos silenciosos. Eu só um desejo tinha: que ele retirasse aquela mão. E o seu olhar pesava sempre sobre mim.

Por fim, falou num tom baixo e amargo:

- Era o que eu receava. Não quer, ou não pode, mostrar-me o seu verdadeiro pensamento. Não sente coragem para romper com todas essas coisas que lhe ensinaram para dizer e fazer nesta hora. Oiça o que lhe digo; escusa de falar. Bas-ta-me um ligeiro sinal: se consente em acompa-nhar-me pelos novos rumos, incline um pouco a cabeça.

E não tirava os olhos de mim; e sobre as minhas mãos pesava sempre a sua mão. Que queria ele dizer com aquilo? Porque é que as coisas não poderiam correr de acordo com a tradição? Eu devia ser realmente sua mulher, e desejava vir a ser mãe de vários filhos seus. Ah! Foi então que começou o meu desgosto, esta tortura que não me abandona um momento.

Fiquei sem saber que fazer; mas, como uma tonta, desesperada, baixei a cabeça.

- Agradeço-lhe muito - disse ele. Endirei-tou-se e retirou a mão. E continuou: - Pode descansar tranquilamente neste quarto, que é o seu. Fique certa de que nada terá a recear, nem agora, nem nunca. Fique em paz. Esta noite, eu dormirei no quartinho ao lado.

Voltou-se rapidamente e saiu.

 

"Cuan-Iing, deusa da Misericórdia, tende piedade, tende piedade de mim! Sou uma pobre criança aterrorizada e ao abandono. Nunca dormi fora da casa de meus pais. Agora, tenho de dei-tar-me sozinha, sabendo, para mais, que não consegui agradar-lhe".

Desvairada, corri para a porta, pensando que, ao menos, poderia fugir e voltar para casa de minha mãe. Só ao sentir o contacto da pesada barra de ferro, é que voltei a mim. Fugir, era impossível! Se, por um milagre, conseguisse orientar-me através dos pátios, para mim desconhecidos, da minha nova residência, ainda teria de atravessar as ruas, que não conhecia também. Se, mesmo assim, conseguisse orientar-me e chegar à minha antiga casa, não me abririam a porta. Mas ainda que o velho porteiro, reconhecendo-me a voz, me deixasse transpor os umbrais da casa onde passara a infância, lá estaria minha mãe. Via-a já, triste, inexorável, ordenando-me que voltasse imediatamente para sob o tecto conjugal. Eu já não fazia parte da família.

Despi lentamente o vestido de noivado e dobrei-o, cuidadosa. Fiquei por muito tempo sentada na beira do grande leito de dossel, com medo de me meter na sua sombra.

As palavras de meu marido vibravam sempre no meu espírito, soltas e sem sentido. As lágrimas inundavam-me os olhos e, por fim, enrosquei-me debaixo da roupa, para soluçar mais livremente. Depois, adormeci e tive um sono agitado.

Acordei de madrugada, surpreendida a princípio pelo aspecto deste quarto, para mim ainda quase desconhecido. Não tardaram a despertar também as lembranças tristes. Levantei-me à pressa, e vesti-me. Quando a serva entrou, trazendo água quente, sorriu, olhando em volta com olhar inquiridor. Fingi não perceber, satisfeita por minha mãe me ter ensinado a manter a dignidade. Ao menos, ninguém havia de saber que eu não tinha conseguido agradar a meu marido.

- Traga água para o seu senhor - ordenei--lhe. - Está a vestir-se no quarto ao lado.

E, altiva, enverguei um vestido vermelho, de brocado, pondo nas orelhas uns brincos de oiro.

 

Transcorreu já uma lua desde que nos encontrámos, minha Irmã. E estranhos acontecimentos transtornaram, de então para cá, a minha vida.

Abandonámos a morada ancestral de meu marido, que chegou ao ponto de dizer que sua venerável mãe era uma autócrata e que não queria ver sua mulher feita criada na própria casa! E tudo isto por uma ninharia sem importância, como podeis ver:

Quando terminaram as festas nupciais, apre-sentei-me à mãe de meu marido. Como despertara muito cedo, chamei a serva e mandei-lhe que trouxesse água quente. Deitei a água numa bacia de metal e, acompanhada pela serva, dirigi-me aos aposentos de minha sogra. Aí, inclinei-me, dizen-do-lhe:

- Rogo à Honrada Senhora que aceite esta água. quente.

Estava deitada na cama, e era uma massa enorme, uma verdadeira montanha debaixo da coberta de cetim. Não ousei olhá-la, quando se sentou para lavar as mãos e o rosto.

Ao terminar esta operação, minha sogra fez--me, sempre em silêncio, sinal de que podia tirar a bacia e sair. Não sei se a mão se me embaraçou então entre os pesados cortinados de seda, ou se era eu que tremia: a verdade é que, ao levantar a bacia, esta se inclinou, caindo uma pouca de água na cama. Senti o sangue gelar-se-me nas veias, de terror, tanto mais que minha sogra gritou, furiosa, em voz de trovão:

- Sim, senhor! Ora aqui está o que se chama uma boa nora!

Sabia que não devia tentar desculpar-me. Por isso, voltei-me logo, com a bacia nas mãos cada vez mais trémulas, de olhos rasos de lágrimas, e saí do quarto. Meu marido ia a passar nesse momento, e notei que, por qualquer motivo, estava aborrecido. Temi uma censura por assim haver desagradado a sua mãe, logo ao primeiro contacto. E eu nem ao menos podia levantar as mãos, para enxugar as lágrimas que me deslizavam pelas faces!

- A bacia virou-se-me... Mas ele interrompeu-me:

- Não estou aborrecido consigo. Mas o que não quero é que minha mulher volte a fazer o serviço que compete a uma criada. Minha mãe tem uma centena de escravas para a servirem.

Tentei explicar-lhe que apenas desejara prestar a sua mãe a devida homenagem. A minha, ensinara-me meticulosamente tudo o que uma nora deve fazer para com a mãe de seu marido: levantar-me delicadamente e ficar de pé diante dela; levá-la para a poltrona mais confortável; lavar a sua chávena, pondo-lha depois entre as mãos, deitando-lhe pouco a pouco o chá verde, acabado de fazer; aceitar tudo da sua parte e amá-la como à minha própria mãe, suportando em silêncio as suas censuras, mesmo injustas que sejam; inclinar-me ante a sua vontade, em todas as coisas...

Mas meu marido tomara já a sua decisão e não prestava atenção alguma ao que eu dizia.

Não se julgue, porém, que a mudança foi fácil. Os pais de meu marido ordenaram-lhe que ficasse sob o tecto dos antepassados, segundo a tradição. Meu sogro é um erudito, baixo e magro, curvado de tanto saber. Sentado à direita da mesa, na sala comum, por três vezes alisou a barbicha rala, antes de dizer:

- Fique em minha casa, meu filho. O que é meu, seu é. Não nos falta nem comida, nem espaço. Nunca terá necessidade de dedicar-se a trabalhos físicos. Passe os seus dias em distracções úteis e estude o que melhor entender. Faça com que a nora de sua honrada mãe tenha filhos. Três gerações sob um mesmo tecto constituem um espectáculo que os deuses abençoam.

Mas meu marido é nervoso e impaciente. Sem ao menos se inclinar diante do pai, exclamou:

- Pois eu quero trabalhar, meu pai! Exerço uma profissão científica, a mais nobre no mundo ocidental. O meu maior desejo não é ter filhos: o que quero é produzir com o cérebro, para bem do meu país. Quanto a ter filhos, qualquer simples cão pode povoar a terra com os frutos do seu corpo.

Eu mesma ouvi um filho falar assim ao pai, espiando através dos reposteiros azuis, e fiquei transida de horror. Fosse ele o filho mais velho ou, então, educado à maneira antiga, e nunca teria ousado resistir assim ao pai. Mas os anos vividos lá fora, em países onde os moços não respeitam os mais velhos, transtornaram-no. Verdade seja que, à saída, ele teve para os pais palavras de cortesia, assegurando-lhes que era deles, para sempre, o seu coração de filho.

Mas, no entanto, mudámos de casa.

 

A nova morada em nada se parece com as que havia visto em minha vida. Não tem pátios. A única sala é muito pequena e quadrada, dando para os outros aposentos. Na sala há uma escada. A primeira vez que tentei subi-la, tive medo de cair, por causa da dureza dos degraus, a que meus pés não estavam habituados. Sentei-me logo, deslizando assim degrau a degrau, agarrada ainda ao corrimão de madeira. Vi depois que tinha o vestido sujo de tinta e tratei de ir mudá-lo, antes que meu marido desse por isso e se risse do meu medo. Ele tem umas gargalhadas imprevistas e bruscas, bastante ruidosas. E eu tenho medo desse riso.

Quanto aos móveis, nem sei como dispô-los numa casa assim. Não se pode arrumar nada. No meu dote, trouxera da casa de minha mãe uma mesa e cadeiras pesadas de madeira de teca, além duma cama tão larga como o leito nupcial de minha mãe. Meu marido pôs a mesa e as cadeiras numa divisão secundária a que ele chama "sala-de-jantar", e a cama, que eu pensava destinada a ver nascer meus filhos, nem sequer pode ser armada num dos quartos de cima, tão pequenos eles são.

Assim, durmo num leito de bambu, semelhante ao das criadas; e meu marido, numa cama de ferro, tão estreita como um banco, noutro quarto. Não há maneira de me habituar a estas esquisitices.

Na principal divisão, a que chama o "salão", pôs meu marido as cadeiras que ele mesmo comprou : umas cadeiras disformes, todas diferentes e em junco vulgar. Ao centro, uma mesinha coberta com um pano, e alguns livros. Um horror!

Nas paredes, dependurou retratos de companheiros seus e um quadrado de pano escrito em caracteres estrangeiros. Perguntando-lhe eu se era o seu diploma, meu marido riu-se muito. Depois mostrou-mo: era um pedaço de pele preparada, com estranhas inscrições a preto. Indicou-me o seu nome, seguido duns sinais curvos. Os dois primeiros designam a sua Universidade, e os outros as suas aptidões como doutor em medicina do ocidente. Perguntei-lhe ainda se isto correspondia ao nosso antigo "Han-Lin", e novamente se pôs a rir, dizendo não haver comparação possível. Este diploma, posto num caixilho e coberto com um vidro, ocupa na parede o honroso lugar que, na sala de recepção, em casa de minha mãe, ocupa o augusto retrato do velho imperador Ming!

Simplesmente horrível, a casa ocidental! Como poderei eu em qualquer tempo sentir-me ali como em minha casa? As janelas são fechadas com grandes caixilhos de vidro transparente, em vez de grades trabalhadas e papel de arroz opaco. A luz crua ilumina as paredes brancas e põe à vista qualquer grão de poeira em cima dos móveis. Não estou habituada a esta claridade descaroável. Se pinto os lábios de vermelho e ponho um pouco de pó de arroz na cara, como me ensinaram a fazer, esta luz revela-o logo, a pontos de meu marido me dizer:

- Peço-lhe que não se pinte assim. Gosto de ver a mulher com a sua graça natural.

Mas pôr de parte o pó de arroz e a pintura dos lábios, é deixar por acabar todo o nosso esforço para sermos belas. É como se eu julgasse pentear bem os meus cabelos sem lhes pôr um pouco de óleo, ou calçasse umas chinelas sem bordados. Numa casa chinesa, a luz amortecida pelos rótulos e pelas figuras reflecte-se suavemente nos rostos das mulheres. Como hei-de eu ser bela aos olhos de meu marido, numa casa assim?

Para mais, as janelas são horríveis. Meu marido comprou pano branco para lhes pôr cortinas. E eu não compreendo como se possa fazer um buraco na parede, para depois o guarnecer de vidro e tapar ainda com um pano.

O soalho, esse é de madeira, e os sapatos ocidentais de meu marido ressoam a cada passo que dá, ao ir dum para outro lado. Além disso, comprou um pesado tapete de lã, com flores, que estendeu no chão. Fiquei estupefacta, temendo que o estragássemos ou que as criadas, distraídas, lhe cuspissem em cima. Mas, quando lhe fiz esta observação, meu marido indignou-se, dizendo não consentir que se cuspisse no chão.

- Então como há-de ser? - perguntei.

- Lá fora, se isso é assim uma coisa tão indispensável - respondeu-me secamente.

Era muito difícil, porém, obter que as criadas e eu mesma, que me esqueço muitas vezes, não cuspíssemos as sementes de melancia para cima do tapete de lã. Meu marido comprou então uns pequenos vasos chatos, um para cada divisão da casa, querendo que nos sirvamos deles para aquele fim.

É curioso: ele mesmo tira o lenço do bolso, cospe-lhe e torna a guardá-lo. Que lamentável costume ocidental este é!

 

Ai-ai, em certas horas, como eu fugiria daqui se pudesse! Mas não teria coragem para me apresentar em casa de minha mãe em tais circunstâncias, e não poderia ir para outro lugar.

Os dias arrastam-se, um a um - longos dias de solidão. Meu marido trabalha como se fosse um lavrador que tivesse de colher o arroz para comer, em vez de ser o que é, o filho dum rico funcionário. Logo de manhãzinha, antes de o sol aquecer, lá vai ele para o seu trabalho, e assim fico sozinha nesta casa até à noite. Aqui, só há umas criadas desconhecidas, lá na cozinha, mas envergonho-me de ir ouvir a sua tagarelice.

Ah! Quantas vezes penso em como seria preferível servir a minha sogra e viver no pátio com as minhas cunhadas! Pelo menos, assim sempre ouviria vozes e risos. Aqui, o silêncio pesa dentro de casa como se fosse um nevoeiro, durante o dia todo.

Por isso mesmo fico sentada horas e horas, a pensar, a sonhar em mil formas de prender o coração de meu marido.

Levanto-me muito cedo e preparo-me para lhe aparecer já arranjada, mesmo quando tenha passado mal a noite. Lavo o rosto em água quente e perfumada, amaciando depois a pele com óleos e aromas, tão grande é o meu desejo de, pela manhã, lhe chamar a atenção sobre mim. Mas, por mais depressa que ande, vou sempre encontrá-lo já pronto também, sentado à secretária.

E todos os dias é a mesma coisa. Tusso um pouco e dou a volta, o mais rapidamente possível, à maçaneta da porta. Ah! Estas horríveis maçanetas, tão duras, que eu tive de as fazer girar em todos os sentidos antes de lhes descobrir o segredo! Meu marido aborrece-se com estas minhas tentativas, a tal ponto que me vejo obrigada a exercitar-me com elas na sua ausência. Apesar disso, porém, pela manhã, quando as minhas mãos tocam naquela porcelana pesada e fria, sinto o coração desfalecer, e apresso-me, então. É que meu marido detesta a lentidão e, quando anda, os seus movimentos são tão rápidos, que chego a recear que o incomodem. Mas ele não toma precaução alguma.

Quando, de manhã cedo, lhe sirvo o chá quente, aceita-o sem sequer levantar os olhos do livro. Para que serve, então, mandar eu uma criada buscar, de manhãzinha, jasmim fresco, para pôr nos cabelos? Nem esse perfume consegue atravessar aquelas páginas em língua estrangeira !

Depois de ter saído, vou ver se ele bebeu o chá, mas, onze vezes em cada doze, encontro o pires a tapar a chávena e as folhas do chá boiando plàci-damente no líquido pálido. Só gosta dos seus livros, vê-se bem.

 

Tenho pensado em tudo o que minha mãe me ensinou para agradar a meu marido. Assim, já cozinhei os mais saborosos pratos, para lhe conquistar o paladar; mandei um criado comprar um frango acabado de matar, rebentos de bambu de Hangchau, peixe, gengibre, açúcar mascavado e molho de favas. Sou eu que todas as manhãs preparo os pratos, sem esquecer seja o que for que lhes possa aumentar a riqueza e finura de gosto. Depois de tudo pronto, dou ordem para que apresentem esses pratos em último lugar, esperando ouvi-lo exclamar:

- Ah! O melhor foi guardado para o fim! Mas são manjares de imperador, isto!

Porém, quando lhe apresentam esses pratos, aceita-os com a maior naturalidade, como se se tratasse de coisas absolutamente vulgares, e mal os prova, sem fazer qualquer comentário. Obser-vo-o ansiosa, enquanto ele vai comendo em silêncio os talos de bambu, como se fossem couves apanhadas na horta dum fazendeiro.

Uma noite, depois de passado o choque da decepção sofrida, pensei comigo mesma: "Naturalmente, não serão estes os seus pratos predilectos. E já que não me quer dizer nada sobre os seus gostos, mandarei perguntar a minha sogra do que é que ele gostava antes de casar".

Assim fiz, enviando um criado a casa dela, que me mandou dizer o seguinte:

"Antes de atravessar os Quatro Mares, gostava da carne de pato assada, mas bem passada, com geleia de azarola brava. Mas depois de ter passado alguns anos a comer as comidas bárbaras e meio cruas dos ocidentais, perdeu o paladar, não sabendo apreciar a boa comida". Desisti então de tudo. Meu marido nada deseja de mim: não precisa de coisa alguma que eu possa dar-lhe.

Quinze dias depois da nossa chegada à nova casa, estávamos juntos, à noite, no salão. Ele lia um dos seus livros enormes, quando entrei. Ao dirigir-me para o meu lugar, vi na página aberta do livro a imagem duma forma humana de pé, mas - coisa horrível! - sem pele, em carne viva! Senti-me revoltada, não sabendo como se pudesse ler semelhante literatura; mas não tive coragem para o interrogar.

Fiquei sentada no meu cantinho, numa daquelas poltronas de junco, mas sem me encostar ao espaldar, pois tal atitude, em frente de alguém, seria uma quebra de dignidade. Tinha saudades da casa de minha mãe. Lembrava-me de que, à mesma hora, se reuniriam todos para cear à luz das velas, com as concubinas e os buliçosos filhos destas. Minha mãe lá estaria no seu lugar, à cabeceira da mesa, e as criadas, sob a sua direcção, serviriam as taças de legumes e de arroz fumegante, distribuindo pauzinhos por toda a gente. Todos comiam e se sentiam felizes. Depois da ceia, meu pai brincaria com os filhos das concubinas. Em seguida, quando tudo tivesse acabado, as criadas sentar-se-iam no pátio, em pequenos tamboretes, ficando a conversar meio ocultas pela penumbra. Minha mãe, ainda à mesa, fazia as contas com a cozinheira-chef e, e um candeeiro alto e vermelho lançava sobre ela a sua luz intermitente.

Ah! Como eu desejava ardentemente encon-trar-me entre os meus! Passearia por entre as flores; examinaria os botões de lótus, para ver se as sementes estariam secas por dentro - pois já é tempo disso, em vista de estar chegado o fim do Verão. Talvez ao nascer da Lua minha mãe me pedisse que fosse buscar a minha harpa e tocasse as suas canções predilectas. A mão direita modula o canto, enquanto a esquerda acompanha em tom menor.

Pensando nisto, levantei-me para ir buscar o instrumento. Tirei-o cuidadosamente do seu estojo de laca vermelha, tendo incrustadas em madre--pérola as imagens dos oito espíritos da música. Dentro, na própria harpa, diversas madeiras, bem ajustadas, juntam à ressonância a sua própria riqueza de tom, quando nelas tocamos. Harpa e respectivo estojo tinham já pertencido à mãe de meu pai, que, por sua vez, os recebera já do pai, tendo-os este comprado em Cuantung para os oferecer à filha, a fim de que esta não chorasse quando lhe ligavam os pés.

Tangi suavemente as cordas, que emitiram um som fino e melancólico. Esta harpa é a antiga harpa dos meus e deve ser tocada sob as árvores, à luz do luar, perto das águas tranquilas. O seu canto é então doce e maravilhoso. Mas nesta sala silenciosa, tão pouco familiar, o canto é abafado e fraco.

Por isso mesmo, também, hesitei um pouco antes de começar a tocar uma ária frívola da época de Lung. Meu marido levantou a cabeça, dizendo-me amavelmente:

- É encantador! Sinto-me satisfeito por ver que sabe tocar. Qualquer destes dias, comprar--lhe-ei um piano, e assim poderá também aprender a música do Oeste.

Dito isto, voltou de novo a ler.

E eu via-o a ler aquele livro horrível e continuava a tanger as cordas suavemente, sem já saber o que elas cantavam. Eu nem sequer tinha visto nunca um piano. Que havia de fazer com esse instrumento estranho?

De súbito, não tive forças para continuar. Guardei a harpa e conservei-me sentada, cabisbaixa, de mãos caídas no colo.

Depois de um longo silêncio, meu marido fechou ò livro e olhou para mim atentamente, terminando por proferir o meu nome:

- Cuei-Lan!

Senti o coração estremecer; era a primeira vez que ele pronunciava o meu nome. Que iria dizer--me? Olhei-o timidamente.

- Desde o nosso casamento - continuou ele - que sinto desejos de lhe perguntar se não quer desenfaixar os pés. Isso faz-lhe mal a todo o corpo. Quer ver? Olhe, os seus ossos estão assim...

E pegando num lápis, desenhou, em poucos traços, numa folha do livro, um pé descalço, horrível, disforme.

Como sabia ele isto? Eu nunca desenfaixara os pés na sua frente. Nós, as mulheres chinesas, nunca mostramos os pés; mesmo de noite, conservamo-los metidos em sapatos de pano branco.

- Como sabe isso ? - perguntei, aflita.

- Porque sou médico e estudei no Ocidente. Por outro lado, desejava que você desenfaixasse os pés, porque não acho isso nada bonito. E, de resto, até já passou de moda. Não lhe interessa isto?

E teve um leve sorriso, olhando-me com bondade. Mas eu meti logo os pés para debaixo da cadeira. As suas palavras surpreenderam-me. Não era bonito?! E eu que sempre tivera orgulho dos meus pés pequeninos! Em criança, era mesmo minha mãe quem preparava os banhos de água quente, todas as noites, assistindo sempre ao enrolar das faixas, cada vez mais apertadas. Se eu chorava, porque o sofrimento era já demasiado, pedia-me então que pensasse no dia em que meu marido havia de louvar a beleza dos meus pés.

Baixei a cabeça para esconder as lágrimas. Lembrava-me de todas aquelas noites agitadas, de todos aqueles dias em que eu nem queria comer nem brincar, sentada na beira da cama, balançando os meus pobres pés para aliviar a pressão do sangue. E agora, depois de tanto ter suportado, quando havia apenas um ano que deixara de sofrer, vir a saber que ele os acha feios!

- Não posso... - foi tudo quanto pude dizer.

E levantei-me a soluçar, abandonando a sala, sem poder conter as lágrimas. Não era que eu desse aos meus pés um valor exagerado; mas se estes, pequeninos e metidos em sapatos habilmente bordados, não conseguiam agradar-lhe, como poderia eu esperar conquistar um dia o seu amor?

Passadas duas semanas, fui fazer a primeira visita a minha mãe, segundo o nosso costume chinês. Meu marido não tornara a falar-me em desenfaixar os pés; mas também nunca mais me havia chamado pelo nome.

 

Está cansada, minha Irmã? Não? Então, continuo.

Estivera ainda pouco tempo fora da casa de minha mãe; mas ao transpor os seus umbrais tão meus conhecidos, parecia-me agora que cem luas haviam passado já, desde o dia em que dela saíra no palanquim de núpcias. Sentia-me cheia de esperança e ao mesmo tempo de temor. Havia sonhado voltar ali como mulher casada, não de tranças, mas com os cabelos enrolados, e sem usar na testa a tradicional franja das virgens. O que sabia, é que continuava a ser a mesma menina de antes, com a diferença de ser mais tímida, mais solitária e bem menos confiante.

Minha mãe saiu ao meu encontro, no primeiro pátio, apoiada à sua comprida bengala de bambu e prata. Pareceu-me mais cansada, envelhecida, sem dúvida porque eu não a via já diariamente. Em todo o caso, o que me chamou mais a atenção foi o acento duma grande tristeza que havia agora no seu olhar; e tanto isto me impressionou, que, depois de me haver inclinado diante dela, tentei tomar-lhe a mão. Ela correspondeu apertando as minhas ligeiramente, e assim juntas nos dirigimos para o pátio da família.

Ah! Com que avidez eu corria os olhos por aquelas coisas todas! Pensei que iria encontrar grandes transformações. Mas por toda a parte se encontrava tudo no seu devido lugar, tranquilamente, como de costume. Ouviam-se os risos dos filhos das concubinas e o vaivém das criadas atarefadas, que, logo que me viram, me cobriram de sorrisos e exclamações festivas. O sol dum princípio de Outono estirava-se ao longo das paredes floridas, reflectia-se nos ladrilhos limpos e brilhava nos arbustos e nos tanques. As portas e as janelas de rótulas das salas, abertas ao sol, deixavam entrar o calor e a luz. Dentro de casa, os raios solares beijavam as esculturas e as vigas pintadas. E, embora soubesse que já não era ali o meu lugar, a minha alma sentia-se como na sua verdadeira casa.

No entanto, sentia falta de qualquer coisa, a falta dum rosto lindo.

- Onde está a Quarta Esposa ? - perguntei. Minha mãe chamou uma criada e mandou-lhe que lhe enchesse o cachimbo. Depois disto feito, respondeu-me em tom indiferente:

- La-Mai? Ah! Mandei-a para o campo, a mudar de ares.

Pelo tom em que me falou, compreendi que não devia insistir no assunto. Mas à noite, quando me preparava já para dormir no quarto da minha infância, a velha Uang Da Ma veio para, conforme o antigo hábito, me desmanchar o cabelo e fazer as tranças. Começou logo a conversar sobre várias coisas e foi então que me contou que meu pai pensava em arranjar uma nova concubina - uma rapariga de Pequim, educada no Japão. Quando soube isto, a Quarta Esposa engoliu os seus mais lindos brincos de jade. Durante dois dias, nada disse a ninguém, apesar de sofrer muito; mas minha mãe, afinal, descobriu a coisa. Encontrava-se já à morte quando chamaram um velho médico, que a martirizou com as suas agulhas e outros instrumentos, mas sem resultado. Um vizinho lembrou que a mandassem ao hospital estrangeiro, mas minha mãe considerou isso uma coisa impossível. É que nós nada conhecemos dos estrangeiros. Portanto, como poderiam estes conhecer também o que se passa com uma chinesa? Os médicos estrangeiros conhecem as doenças da sua gente, que é muito simples e bárbara comparada com os chineses, pessoas extremamente complicadas e cultas. E foi meu irmão, que nessa época se encontrava em casa para assistir às festas da Oitava Lua, quem tomou a iniciativa de chamar uma médica estrangeira. Esta trouxe um instrumento exótico, com um longo tubo, que enfiou na garganta da Quarta Esposa. Pouco depois, os brincos apareciam. Ficaram todos assombrados, menos a estrangeira, que guardou tranquilamente o referido instrumento e saiu. As outras concubinas ficaram furiosas com a Quarta Esposa, por esta ter engolido tão lindos brincos; e a concubina gorda chegou mesmo a pergun-tar-lhe:

- Não podia antes ter engolido uma caixa de fósforos, que era mais barata?

A Quarta Esposa não respondeu; e durante a convalescença, também ninguém a viu comer nem a ouviu falar. Conservava-se sempre estendida na cama, de cortinas fechadas, desanimada em extremo, depois do fracasso da sua tentativa. Minha mãe, que lastimava o que lhe sucedera, mandou-a então para fora, para a poupar à troça das outras mulheres.

Ora, factos desta natureza, bisbilhotices tão baixas, não eram próprios para constituírem assunto de conversa para minha mãe. E só em virtude do meu muito amor à casa é que eu procurava conhecer minuciosamente tudo o que ali se passava, escutando a tagarelice de Uang Da Ma. Esta já estava há tanto tempo ao nosso serviço, que andava sempre ao par de todos os factos que com a casa se relacionavam. Quando minha mãe deixou a sua morada longínqua de Xansi, para casar-se com meu pai, Uang Da Ma acompanhara-a; foi ela também quem recebeu em seus braços todos os filhos de minha mãe, à medida que nasciam. E quando minha mãe morrer, Uang Da Ma irá para casa da mulher de meu irmão, para criar os netos de minha mãe.

Entre as coisas que lhe ouvi, só uma me pareceu importante: que meu irmão resolvera ir continuar os seus estudos na América. Minha mãe nada me disse a respeito disto; mas Uang Da Ma, ao trazer-me a água quente na manhã seguinte, segredou-me que meu pai não tomara a sério a nova ideia do filho, mas que, no entanto, acabara por consentir em que ele partisse, visto ter-se tornado moda enviar os filhos a estudar no estrangeiro, a exemplo do que faziam os seus amigos. Minha mãe aborreceu-se muito quando soube disto; aborreceu-se como nunca se aborrecera na sua vida, segundo disse Uang Da Ma, excepto no dia em que meu pai arranjara a primeira concubina. Quando soube que meu irmão ia realmente partir, deixou de comer durante três dias e não falou com quem quer que fosse. Mas vendo que nada o impediria de atravessar o Pacífico, pediu--lhe que desposasse a noiva, para que ao menos esta pudesse dar-lhe um neto. Minha mãe dis-se-lhe:

- Já que se recusa a compreender que a sua carne e o seu sangue lhe não pertencem a si exclusivamente, já que se mantém indiferente e teimoso, procurando os perigos dum país bárbaro sem levar em conta o seu dever, pelo menos transmita a alguém a linhagem sagrada dos seus antepassados, de modo que, se o meu filho morrer, eu possa ainda contemplar o meu neto!

Mas meu irmão respondeu:

- Não desejo casar-me. Antes de tudo, o que quero é estudar as ciências e aprender tudo o que com elas se relaciona. Nada de mau me há-de suceder, minha mãe. E um dia, quando voltar, pode ser que me case; mas agora, não...

Minha mãe enviou então mensageiros a meu pai, sugerindo-lhe que forçasse o filho a casar. Mas meu pai, absorvido pelos preparativos referentes à nova concubina, de nada tratou, e meu irmão venceu a causa.

Eu gostava de minha mãe. Meu irmão representa a última geração da descendência de meu pai, visto que meu pai não deixava qualquer outro filho varão; e os outros filhos de minha mãe haviam morrido crianças ainda. Portanto, é indispensável que meu irmão tenha um herdeiro o mais cedo possível, a fim de minha mãe poder acabar de cumprir o seu dever em relação aos antepassados. E fora por isto mesmo que arranjaram o noivado de meu irmão com a filha de Li, desde a infância. Eu nunca a vi. Dizem que não é bonita; mas isso não tem importância alguma, em face dos desejos de nossa mãe.

Durante muitos dias, senti-me perturbada por esta desobediência de meu irmão, olhando a minha mãe, que, aliás, nunca me falou nisto. A mamã enterrou mais este desgosto, como fez a tantos outros, nos recantos invisíveis da sua alma. Os seus lábios cerraram-se sempre sobre os sofrimentos que julgava inevitáveis.

E assim, cercada pelas fisionomias e pelas paredes da casa familiar, e habituada como estava aos silêncios de minha mãe, acabei pouco a pouco por não pensar mais em meu irmão.

 

Claro, que o primeiro pensamento que vi estampado em todos os olhos foi aquele que já esperava e que temia tanto: quais as minhas esperanças, quanto a um filho? Foi esta a pergunta que todos me fizeram, mas eu contornei o assunto, aceitando simplesmente, com uma grave inclinação de cabeça, os bons votos que a esse respeito formulavam. Ninguém sabia que meu marido me não amava - ninguém! Mas quem eu não consegui iludir foi minha mãe... Uma tarde, sete dias depois da minha chegada, estava eu indolentemente sentada na penumbra, à entrada do grande pátio. As escravas e as criadas andavam dum para outro lado, preparando o jantar. O cheiro de peixe assado e de pato cozido enchia o ar. Caía o crepúsculo, pesadamente, e os crisântemos, ao meu lado, pareciam carregados de promessas. Bem no fundo do coração, eu sentia um entranhado amor à minha casa; coloquei a mão na escultura da almofada da porta; e eu gostava dela, porque - ainda me lembro bem - me sentia ali protegida, quando a minha infância se escoou tão docemente que quase nem dei por tal. Amava tudo aquilo: a sombra da noite caindo sobre os telhados recurvos, os candeeiros que começavam a acender-se nos quartos, o cheiro picante da comida, a voz das crianças e o som abafado dos seus sapatos nos ladrilhos. Ah! Eu sou a filha duma velha casa chinesa, com seus antigos hábitos, seus antigos móveis, e os seus amigos a toda a prova, sempre leais! Aqui, é que eu sei viver.

Estava pensando em meu marido. Naquele momento, estaria ele sozinho, sentado à mesa", naquela casa de estrangeiro, metido nas suas vestes ocidentais, e parecia-me bastante afastado de mim, de todos os pontos de vista. Como havia eu de adaptar-me à sua vida? Ele não tem necessidade alguma de mim. E a minha garganta estava apertada pelos soluços, que já não podia conter. Sentia-me solitária, muito mais do que nos tempos de rapariga. Mas a verdade, minha Irmã, é que, antes, eu tinha ainda esperança no futuro; e agora, o futuro com que eu sonhava aí está, e só amarguras me apresenta. Apesar de todos os meus esforços, as lágrimas saltaram-me dos olhos. Voltei então o rosto para o lado do crepúsculo, temendo que a luz dos candeeiros me traísse, reflectindo-se-me nas faces. Soou o gongo, chamando para o jantar. Enxuguei furtivamente os olhos e deslizei até ao meu lugar.

Em seguida, minha mãe retirou-se cedo para o seu quarto, e as concubinas não tardaram a seguir-lhe o exemplo. Estava eu, sozinha, a tomar ainda o chá, quando Uang Da Ma apareceu, a dizer-me:

- Sua Honrada mãe mandou que fosse lá. Fiquei admirada:

- Mas minha mãe disse-me que ia recolher-se e não me falou em querer conversar comigo!...

- Todavia, mandou-me chamá-la, e venho agora do quarto dela - confirmou Uang Da Ma, retirando-se logo, sem dar qualquer outra explicação.

Quando o rumor dos seus passos se perdeu no corredor, afastei o reposteiro de cetim e entrei no quarto de minha mãe. Com grande surpresa, vi que ela estava deitada, com uma única vela alta acesa sobre a mesa, ao lado da cama. Nunca, em toda a vida, eu a vira repousar assim. Parecia-me estar excessivamente fraca e cansada. Tinha os olhos fechados, e os lábios pálidos e secos. Aproximei-me sem fazer ruído e esperei. Ó seu rosto estava inteiramente descorado - um rosto grave, delicado e muito triste.

- Mãezinha! - disse-lhe afinal, de mansinho.

- Minha filha! - respondeu.

Hesitei um pouco, não sabendo se ela desejaria que me sentasse ou me conservasse de pé. Mas minha mãe estendeu-me uma das mãos e fez-me sinal para que me sentasse na cama, a seu lado. Obedeci e esperei que ela falasse, enquanto pensava comigo mesma: "Está aborrecida por causa de meu irmão, que se encontra lá em países tão longínquos". Mas não era em meu irmão que ela pensava agora.

Voltando o rosto, levemente, para mim, minha mãe disse-me:

- Vejo que as suas coisas não correm bem, minha filha. Desde que aqui chegou, tenho notado que não se encontra no seu estado habitual, de tranquilo contentamento. O seu espírito está inquieto e as lágrimas vêm-lhe aos olhos facilmente. É como se algum desgosto andasse ligado sempre aos seus pensamentos, sem que os seus lábios se atrevam a confessá-lo. O que há? Será por não se sentir grávida ainda ? Tenha paciência. Só depois de dois anos de casada, é que eu dei o primeiro filho a seu pai.

Eu não sabia como havia de explicar-lhe. Comecei a enrolar entre os dedos um fio de seda do cortinado bordado do dossel, enquanto as ideias se me atropelavam na mente.

- Fale - disse por fim minha mãe, em tom severo.

Olhei-a. Oh, que lágrimas estúpidas, que não me deixavam pronunciar uma palavra, assaltan-do-me e sufocando-me! Cheguei a pensar que ia ficar sem a respiração necessária para viver. Depois, explodiram num grande soluço e escondi o rosto na colcha que cobria minha mãe.

- Ah! Não percebo o que ele quer dizer! - exclamei, afinal. - Diz que devo ser igual a ele, e eu não sei como. Tem horror aos meus pés, achando-os feios. Já até os pintou duma maneira horrível! E nem sei como os pode conhecer, porque nunca os mostrei!

Minha mãe irritou-se:

- Igual a ele?! - disse estupefacta, de olhos muito abertos no rosto pálido. - Que quer dizer? Pois alguma vez a mulher pode ser igual a seu marido ?

- No Ocidente, toda a mulher o é - solucei.

- Será; mas nós somos pessoas que compreendemos as coisas. E os seus pés? Porque os pinta ele ? Que quer isso dizer ?

- Pintou-os, para me provar que são feios...

- Os seus pés? Então, é porque não tem sido suficientemente cuidadosa, decerto. Eu dei-lhe vinte pares de sapatos. Não os tem escolhido, como devia?

- Mas não pinta os meus pés como são por fora; pinta os ossos, muito apertados.

- Os ossos? Quem é que já viu os ossos do pé duma mulher? Podem os olhos do homem atravessar a carne ?

- Os olhos dele, sim, porque é doutor do Ocidente. Disse-mo ele.

- Ai-Minha pobre pequena!

E suspirando, minha mãe recostou a cabeça, baloiçando-a na almofada:

- Se ele conhece a magia do Ocidente... Então, pus-me a contar-lhe tudo, tudo, até ao ponto de chegar a proferir estas palavras amargas:

- E nada faz para termos um filho. Ah, mamã! Ele não gosta de mim. Estou virgem ainda!

Entre nós caiu um silêncio pesado, e eu escondi de novo o rosto na colcha. Creio que cheguei a sentir a mão de minha mãe poisar-se-me de leve sobre a cabeça, por um momento. Mas não tenho bem a certeza disso: minha mãe não era dessas mulheres que gostam de dar sinais exteriores de ternura. Por fim, sentou-se no leito e começou a dizer:

- Creio não ter cometido qualquer erro, edu-cando-a como eduquei. E estou certa de que agradaria a um autêntico fidalgo da nossa raça. Será possível que a tenha casado com um bárbaro? No entanto, seu marido é da família de Cung. Quem havia de supor?... Isso é o resultado dos anos passados no estrangeiro. Por isso, nas minhas preces, pedi que antes visse morto seu irmão, do que o soubesse em viagem por esses países distantes.

E minha mãe fechou os olhos, esticando-se para trás, com o rosto magro mais pálido ainda. Quando voltou a falar, a sua voz era muito fraca, como se tivesse esgotadas as forças:

- Apesar de tudo, minha filha, neste mundo há apenas um caminho que a mulher deve seguir, custe o que custar. É preciso que faça por agradar a seu marido. Ver destruir o resultado dos meus cuidados é superior às minhas forças. Não pertence já à minha família: pertence a seu marido. Só uma coisa lhe resta, pois: fazer o que ele deseja. No entanto, oiça bem: tente ainda conquistá-lo, pondo em jogo todos os seus esforços.

Vista-se de verde-jade e preto. Use perfume de nenúfares. Sorria, não atrevidamente, mas com essa timidez que tudo promete. Pode ir mesmo até tocar-lhe a mão, apertando-a por um instante. Quando o vir rir, seja alegre. Mas se, apesar de tudo, ele continuar impassível, não tem outro remédio senão inclinar-se ante a sua vontade.

- E desligar os pés ? - murmurei.

Minha mãe conservou-se em silêncio por momentos, para dizer depois, num tom de cansaço:

- Desligue os pés. Os tempos mudaram. Pode retirar-se.

E voltou o rosto para a parede.

 

Que hei-de dizer-lhe, minha Irmã, do meu coração tão oprimido?

O dia da minha partida amanheceu cinzento e tranquilo. Era nas proximidades da Décima Lua, quando as folhas secas começam a cair silenciosamente, e de madrugada, como à tarde, os bambus se agitam ao sabor do vento.

Passeava eu pelos pátios, visitando os recantos que mais me agradavam e fazendo com que a sua beleza se fixasse de novo e mais vivamente na minha memória. De pé, junto do tanque, ouvia crepitar, com o vento fresco, as flores mortas e as folhas secas do lótus. Sentei-me e ali me conservei durante uma hora, debaixo do zimbro nodoso que há três séculos cresce no terceiro pátio. Perto do grande pórtico, colhi um galho de bambu sagrado, cujas bagas, dum vermelho vivo, sobressaíam entre o verde-escuro das folhas. Quis levar comigo um pouco da beleza desses jardins, e escolhi oito vasos de crisântemos. As flores estavam bem abertas e perfeitas - vermelhas, oiro e púrpura um tanto pálida. Pensei que eles iriam alegrar a nudez da casa. E foi assim que voltei para junto de meu marido.

Não estava ele em casa, quando transpus o pequeno vestíbulo. A criada informou-me de que havia sido chamado de madrugada, para um caso urgente, não sabia onde. Coloquei os vasos no salão com o maior cuidado. Procurei a melhor forma de os dispor, no intuito de fazer uma surpresa agradável a meu marido. Mas, depois de os ter arrumado, senti-me desiludida; as flores que, no velho pátio, brilhavam esplêndidas ao lado dos tabiques escuros e esculpidos dos corredores, perdiam agora toda a expressão junto das paredes embranquecidas e das pinturas amareladas; ficavam apenas bonitas, tomando um ar artificial.

Entretanto, precisava também de cuidar de mim mesma. Vesti as calças e o casaco de cetim verde, com a pequena jaqueta de veludo preto, sem mangas. Enfeitei os cabelos com jade e ónix, e pus uns brincos de jade nas orelhas. Calcei uns sapatinhos pretos, de veludo, delicadamente bordados com pequenas pérolas de oiro. Aprendera com La-Mai, a Quarta Esposa, em casa de minha mãe, o encanto das faces cuja palidez é posta em relevo por um pouco de vermelhão aplicado no lábio inferior, e a sedução dumas mãos rosadas e perfumadas. Nada descurei para este primeiro serão com meu marido, e vi que, de facto, estava linda.

Tendo acabado de me preparar, sentei-me, à espera de ouvir o rumor dos seus passos. Se pudesse levantar um reposteiro de cetim escarlate e aparecer diante dele, à luz delicada duma velha sala chinesa, estou certa de que conseguiria conquistá-lo. Mas aqui, teria de descer, com passos incertos, as escadas que estalavam, e depois entrar na sala! Nada havia, aqui, que pudesse auxiliar-me. E eu seria como os crisântemos - bonita, apenas.

 

Meu marido só voltou muito tarde, com um aspecto fatigado. Enquanto esperava, perdera eu todo o meu frescor. Acolhendo-me, embora, amavelmente, os seus olhos pouco ou nada se demoraram em mim. E apressou-se a pedir à criada que servisse a ceia rapidamente, pois nada comera desde pela manhã; passara o dia todo junto dum doente.

Comemos em silêncio. As minhas lágrimas inúteis quase não me deixavam comer. Depois de haver engolido apressadamente o seu prato de arroz, franziu as sobrancelhas em frente da chávena de chá, dando um suspiro de vez em quando. Por fim, levantou-se, com ar cansado, e disse:

- Vamos para a sala.

Quando nos sentámos, pediu notícias dos meus, por descargo de consciência, prestando tão pouca atenção ao que eu lhe dizia, que desisti de tentar interessá-lo e acabei por me calar. Mas ele nem deu por isso, a princípio. Passado pouco é que caiu em si e me disse com bondade:

- Desculpe-me. Sinto-me realmente satisfeito por a ver de volta. Mas passei o dia inteiro lutando contra a superstição e uma estupidez extremas. E depois de tudo, ainda tive de sair sem nada ter conseguido. Não posso esquecer isto, e pergunto a mim mesmo sem cessar: "Teria eu feito tudo quanto era possível? Não teria esquecido nenhum pormenor que me tornasse possível salvar uma vida?" Não; creio bem, tenho mesmo a certeza de ter tentado tudo quanto estava ao meu alcance; e no entanto, perdi! Lem-bra-se da família de Iu, perto da Torre do Tambor? A Segunda Esposa tentou hoje suicidar-se, enforcando-se. Parece que já não podia suportar mais a língua viperina da sogra. Chamaram-me, e fique certa de que eu a salvaria ainda. Quando a encontraram, acabava apenas de se fechar o nó da corda. Preparei logo os remédios a ministrar. Mas chegou então um tio velho - comerciante de vinho. O velho Iu morreu, como sabe, e é esse tio, agora, o chefe da família. Entrou, e ficou furioso, querendo que se adoptasse o antigo método. Mandou chamar os sacerdotes e fez soar os gongos, para invocar a alma da mulher. A família reuniu-se e colocou a pobre rapariga inconsciente - não tem ainda vinte anos - de joelhos, no chão. Depois encheram-lhe o nariz e a boca de algodão e linho, enrolando-lhe ainda o rosto num pano!

- Más... - estranhei eu - mas é esse o costume, o que se faz sempre. Uma grande parte da alma já lhe havia fugido, e era preciso tapar os orifícios, para que não se escapasse o resto.

Ele começou a passear pelo aposento, procurando acalmar-se. Quando eu falei, meu marido deteve-se de repente, em frente de mim, de lábios cerrados. Podia ouvir a sua respiração. Fitava-me com ar irritado, e depois exclamou:

- Como, também?! Recuei:

- Ela morreu?

- Se morreu?! Pois alguém poderia viver, fazendo-lhe isso durante muito tempo?

E, dizendo isto, segurou-me as mãos com uma das suas, e com a outra tapou-me a boca e o nariz com um lenço. Fiz tudo quanto pude para me desembaraçar e tirar o lenço. Ele teve um riso cruel, como um rosnar de cão, e depois, sentan-do-se, ocultou a cabeça entre as mãos. Caiu sobre nós um silêncio pesado, que nos fazia sofrer.

Meu marido nem sequer olhara para os crisântemos que eu colocara na sala com tanto carinho!

Olhei para ele um pouco atordoada, surpresa. Seria possível que, apesar de tudo, ele tivesse razão, afinal?

Nessa noite, guardei tristemente os meus enfeites de jade no seu estojo de prata e dobrei o vestido de cetim. Haviam-me ensinado tudo ao contrário - já me ia convencendo disto. Meu marido não era desses homens cujos sentidos uma mulher pode excitar da mesma forma que uma flor perfumada ou um cachimbo de ópio; não lhe bastava o embelezamento do corpo. É necessário que estude outros meios de lhe agradar.

Lembrei-me de minha mãe, quando me disse, com voz abafada e rosto voltado para a parede: - Os tempos mudaram!

 

Apesar de tudo, não podia decidir-me fàcilmente a desenfaixar os pés. Na verdade, foi a senhora Liu quem me ajudou a fazê-lo. Era mulher dum professor duma nova escola estrangeira. Ouvira já meu marido falar da senhora Liu como duma amiga. No dia seguinte ao da minha chegada, mandou-me ela dizer que, se isso me agradasse, poderia vir visitar-me no outro dia.

Preparei tudo o melhor que pude, pois era a primeira visita que ia receber. Mandei a criada comprar seis espécies diferentes de bolos, sementes de melancia, pastéis de gergelim e o melhor chá de Antes-da-Chuva. Vesti-me de cetim rosa--seca e pus pérolas nas orelhas.

No fundo, envergonhava-me da minha casa. Temia que a senhora Liu a achasse feia e estranhasse o meu gosto. Como meu marido estaria ausente, esperava, pelo menos, poder colocar a mesa e as cadeiras dum modo mais conforme com o costume, e determinar assim mais nitidamente o lugar de honra.

Mas meu marido, desta vez, ficara em casa. Estava a ler, quando, um pouco nervosa, entrei na sala. Olhou-me, sorrindo. Eu pensara em ficar sentada até que a visita chegasse. A criada introduzi-la-ia e eu levantar-me-ia, indicando-lhe, enquanto me inclinava levemente, o melhor lugar.

Como meu marido se conservou na sala, não pude arrumá-la como queria, e, quando tocaram a campainha, foi ele mesmo quem foi abrir a porta. Fiquei bastante contrariada e apertava as mãos sem saber que fazer. Ouvi então uma voz alegre e, sem poder conter-me, olhei para o vestíbulo. Vi assim uma coisa bem estranha. Meu marido tomara a mão daquela mulher e sacudia-a para baixo e para cima, desajeitadamente. Era espantoso!

De súbito, deixei de pensar na minha surpresa para pensar na visita, pois vira a expressão do rosto de meu marido. Ah! Meu marido! Nunca a sua fisionomia tivera para mim aquela expressão! Era como se tivesse acabado, afinal, por encontrar uma verdadeira amiga!

Se ali estivésseis comigo, minha Irmã, ter--me-ia orientado. Mas eu estava sozinha; não tinha sequer uma amiga! Só o que podia fazer, era reflectir, chorar intimamente e procurar saber o que é que me faltava para poder agra-dar-lhe.

Durante todo o tempo em que esteve em minha casa, examinei essa mulher minuciosamente, a mim mesma perguntando se ela era bela. Não era; nem sequer bonita: um rosto largo e vermelho, denunciando bom-humor, olhos amáveis, enrugados pelo sorriso, redondos e brilhantes como se fossem bolas de vidro. Vestia casaco curto cor de cinza, liso, com saia de seda preta, sem flores, e trazia sapatos iguais aos dum homem. Contudo, tinha uma voz agradável, a palavra fácil e fluente, e um riso quente e permanente.

A senhora Liu conversou bastante com meu marido, e eu ouvia-os, de cabeça baixa. Falaram sobre coisas de que eu não tinha conhecimento algum, à mistura com palavras estrangeiras. Eu nada compreendia, a não ser o prazer que se reflectia no rosto de meu marido.

Nessa noite, depois da ceia, conservei-me em silêncio junto dele. Tinha sempre presente ao meu espírito a expressão da sua fisionomia durante aquela visita. Nunca lhe vira o rosto tão iluminado, tão alegre. As suas palavras atropelavam--se-lhe, de tão depressa que falava, de pé, diante dela. E ficara na sala todo o tempo, como se a visita fosse dum homem.

A certa altura, abandonando o meu lugar, fui para mais perto dele.

-Então?-perguntou-me, levantando os olhos do livro.

-Diga-me alguma coisa a respeito da mulher que cá veio hoje - pedi-lhe.

Encostando-se ao espaldar da cadeira, fitou--me com ar pensativo.

- Que posso eu dizer-lhe ?... Estudou num grande colégio feminino do Ocidente, chamado Vassar. É inteligente e interessante, como uma mulher deve ser. Além disso, tem três belos rapazes, diligentes, saudáveis, bem educados. Gosto de vê-los assim.

Ah! Como eu a odeio! Como a odeio!... Só há então um caminho para chegar ao coração de meu marido?

- Não é linda ?

- Pois acha-a linda?! - perguntei-lhe baixinho.

- Decerto - respondeu-me, rapidamente. - É uma mulher saudável, que compreende as coisas, e os seus pés são sólidos e sãos.

Parecia meditar. Durante alguns momentos, reflecti também, desesperadamente: "Só existe um caminho para uma mulher!" Como poderia eu?... Mas minha mãe também me disse: "Deve-se fazer tudo para agradar ao marido".

Ele continuava de olhos perdidos, percorrendo a sala. Não podia adivinhar o que lhe ia no espírito, mas duma coisa estava certa: apesar do meu vestido de cetim cor de pêssego e dos cabelos lisos, negros e brilhantes, habilmente repuxados; apesar de conservar-me a seu lado, tão próxima do seu ombro que ao menor movimento as nossas mãos se encontrariam - apesar disso, não era em mim que ele estava pensando.

Então, baixei um pouco mais a cabeça, como que entregando-me toda, e, renunciando definitivamente ao meu passado, balbuciei:

- Se quiser ensinar-me a maneira, desenfaixarei também os pés...

 

Olhando para o passado, reconheço agora que foi a partir dessa noite que meu marido começou a demonstrar algum interesse por mim. Até então, parecia nunca termos coisa alguma a dizer um ao outro. Nunca os nossos pensamentos se encontraram. Eu limitava-me a observá-lo, admirada, sem conseguir compreendê-lo. Ele nunca me fitava. Apenas nos dirigíamos uma ou outra palavra cortês, como dois estranhos, eu timidamente, meu marido com uma polidez forçada e distante.

Agora, porém, que eu necessitava dele, meu marido deu, afinal, pela minha presença: fez-me algumas perguntas e interessou-se pelas minhas respostas. Quanto a mim, o amor que me enchia o coração cresceu ainda mais, até se tornar adoração. Nunca poderia ter acreditado que um homem assim pudesse impor-se tão ternamente a uma mulher.

Quando lhe pedi que me ensinasse o modo de desligar os pés, esperava apenas alguns conselhos, ditados pelos seus conhecimentos médicos. Mas fiquei assombrada, porque ele mesmo foi buscar uma bacia com água quente e um rolo de ligadura branca. Tive vergonha; não podia suportar que ele me visse os pés. Desde que atingi a idade de poder tratá-los sozinha, nunca mais os mostrei. Sentia-me como que a arder em febre. Meu marido pôs a bacia no chão e ajoelhou-se.

- Não-disse eu, procurando resistir, embora fracamente. - Eu mesma o farei.

- Não tem importância. Lembre-se de que sou médico.

Insisti em não deixar. Mas meu marido, fitando-me bem, disse-me gravemente:

- Cuei-Lan, sei quanto lhe custa fazer isto por mim. Deixe-me ajudá-la no que esteja ao meu alcance. Eu sou seu marido.

Cedi, sem mais palavra. Tomou-me o pé, tirou rapidamente o sapato e depois a meia, e, por fim, desenrolou a faixa. O seu aspecto era triste e grave.

- Como tem sofrido! - murmurou depois, um pouco comovido. - Que infância dolorosa! E, afinal, para quê?

As lágrimas vieram-me aos olhos quando ouvi estas palavras. Considerava então inúteis tantos sacrifícios, e era ele quem vinha agora pedir-me outro ainda!

A dor tornou-se intolerável quando os meus pés, depois de metidos na água, foram enrolados com uma ligadura muito frouxa. Na realidade, esta libertação era tão dolorosa como a compressão anterior. Habituados às faixas, os pés incharam-se-me rapidamente, quando o sangue começou a circular.

Durante o dia, por momentos, apertava a ligadura, para aliviar a dor. Mas pensando em que meu marido poderia, à noite, dar por isso, logo a afrouxava, com mão trémula; e só conseguia um pouco de alívio, sentando-me sobre os pés e esmagando-os debaixo de mim, dum lado e do outro.

Não me preocupava já com a impressão que poderia produzir em meu marido. Nem sequer olhava para o espelho, a ver se estaria bem ou mal arranjada. À noite, tinha os olhos inchados de chorar e a voz rouca dos soluços que não podia conter.

Coisa estranha! Meu marido, que se conservava indiferente em face da minha beleza, mos-trava-se agora interessado, ante o meu sofrimento. Consolava-me como se se tratasse duma criança, e eu agarrava-me então a ele, sem reparar, em meio da minha dor, no amparo de que me socorria.

- Suportaremos isto juntos, Cuei-Lan - di-zia-me ele. - Custa-me, também, vê-la sofrer tanto. Mas procure pensar que não se trata apenas do nosso caso, mas de outros muitos: é um protesto, isto, contra certo hábito inútil e até pernicioso.

- Não - soluçava eu - faço-o só por si. Se quero ser uma mulher moderna, é por si.

Meu marido sorriu e a fisionomia iluminou-se--lhe um pouco, como naquela tarde em que conversara com a tal mulher. Foi esta a recompensa dos meus tormentos. E depois disto, tudo se me afigurava já suportável.

 

Realmente, à medida que a carne se ia vivificando, fui eu conhecendo também uma nova comodidade. Eu era jovem e os meus pés estavam sãos ainda. Muitas vezes, nas mulheres mais idosas, os pés enfaixados vão ao ponto de secarem e se tornarem mesmo inúteis. Mas os meus estavam apenas inchados.

Comecei a andar mais livremente e a subir melhor as escadas. Senti todo o corpo mais forte.

Uma noite, entrei mesmo correndo, sem dar por tal, na sala onde meu marido estava a escrever. Surpreendido, ergueu a cabeça e um sorriso lhe iluminou o rosto.

- A correr, já! Ah! Então já atravessámos a pior crise. O sofrimento passou.

E olhava-me para os pés com certo espanto.

- Os meus pés são já do tamanho dos da senhora Liu, não é verdade?

- Não; e nunca o serão - respondeu. - Os pés dela são normais; e os seus já atingiram todo o comprimento que é possível terem.

Fiquei triste à ideia de que não podia ter pés iguais aos da senhora Liu. Mas pensei numa coisa: já que os meus sapatinhos bordados se haviam tornado inúteis, iria comprar outros novos, de coiro, como os que vira usar àquela senhora.

Com efeito, no dia seguinte, fui a uma loja com uma criada, e escolhi um par de sapatos do tamanho que desejava. Eram duas polegadas mais compridos do que os meus pés, mas enchi-os de algodão. E quando os calcei, ninguém poderia acreditar que eu havia tido os pés enfaixados. O meu desejo era mostrar os sapatos novos à senhora Liu. Por isso perguntei a meu marido quando poderia ir visitá-la.

- Irei lá amanhã consigo - disse-me ele. Surpreendeu-me que quisesse andar, na rua, na minha companhia, o que não é, decerto, muito bem visto entre nós; por isso me encontrava embaraçada. Mas afinal, começo já a habituar-me às suas ideias esquisitas.

Fomos realmente visitá-la no dia seguinte, e meu marido, na presença dela, tratou-me com extraordinária bondade. Uma ou duas vezes me deixou mesmo confundida; por exemplo, quando me fez passar adiante dele, ao entrarmos na sala onde se encontrava a senhora Liu. De volta para casa, explicou-me que isto era um costume do Ocidente.

- Porquê? - perguntei. - Os homens, lá, são considerados inferiores às mulheres? Já o tenho ouvido dizer.

- Mas não é assim. - E explicou-me então que esse costume vem, segundo parece, dum velho sistema de cortesia, que data da antiguidade. Isto surpreendeu-me muito. Eu ignorava a existência de quaisquer povos antigos, além do nosso - isto quanto a povos civilizados, entenda-se. Mas creio agora que os estrangeiros têm também a sua história e a sua cultura; não são, pois, inteiramente bárbaros.

Meu marido prometeu-me que me leria alguns livros a este respeito.

Senti-me muito feliz nessa noite, ao deitar-me. É interessante a gente modernizar-se. Eu calçara os sapatos de coiro, não me vestira como habitualmente, e assim, sem enfeites nos cabelos, ficara parecida com a senhora Liu. Estou certa de que meu marido o notou.

Desde o momento em que consenti na transformação, logo uma vida inteiramente nova se abriu diante de mim. Meu marido habituou-se a conversar, à noite, comigo. E eu achava a sua conversa das mais atraentes. Ele sabe tudo. Ah, que coisas curiosas me contou acerca de lugares estranhos e dos seus habitantes! Até riu, quando exclamei, a certa altura:

- É engraçado! Que esquisito!

- Também essa gente nos acha esquisitos e engraçados! - disse-me, sorrindo.

- Como?! - perguntei, mais surpreendida ainda. - Essa gente acha-nos esquisitos ?!

- Naturalmente - respondeu meu marido, continuando a rir. - Havia de ouvir o que os estrangeiros dizem. Os nossos trajos, as nossas feições, a nossa alimentação e tudo o que fazemos, lhes parece coisa extraordinária. Não podem compreender como, com os nossos hábitos e a nossa aparência, possamos ser tão humanos como eles.

Eu nem podia acreditar. Pensar que eles pudessem considerar naturais as suas atitudes, as suas roupas exóticas e a sua maneira de ser!...

Com certa dignidade, insisti:

- Mas nós sempre fomos assim, e conservamos os nossos costumes, a nossa mesma aparência, como os nossos cabelos e olhos negros...

- Exacto. E eles também...

- Creio que vêm ao nosso país para aprender o que é civilização; disse-mo minha mãe.

- Enganava-se. Pelo contrário: eles é que vêm ensinar-nos. Verdade seja, que encontram aqui muitas coisas de que podem aproveitar, mas sabem também, mais do que pode imaginar, quanto nós temos a aprender com eles.

Eu achava novo e interessante tudo o que meu marido dizia. Não me cansava de o ouvir falar desses estrangeiros e sobretudo das suas extraordinárias invenções: a torneira que deita água quente ou fria, o forno sem combustível, e ainda essas histórias, que considero quase incríveis, sobre certas máquinas - umas que andam pelo mar, outras que voam no ar e deslizam na água, e tantas outras maravilhas!

- Tem a certeza de não se tratar de magia? - perguntei, inquieta. - Os velhos livros falam--nos de milagres de fogo da Terra e de milagres da água, mas são coisas de magia, realizadas por seres meio diabólicos.

- Não se trata de nada disso. E basta ver como tais coisas são feitas, para se concluir como é muito simples! É a ciência.

Sempre a ciência! E pensava em meu irmão. Por causa dela, vive ele lá no estrangeiro, comendo coisas exóticas e bebendo da água lá deles; vive em terras a que o seu corpo não foi habituado desde que nasceu.

Fiquei muito interessada em conhecer a ciência, em saber com que se parece ela. Quando confessei isto a meu marido, sorriu-se, dizendo-me em tom brincalhão:

- Como é ingénua! A ciência não é um objecto que se possa tocar, nem manejar, nem tomar entre os dedos para examinar, como se fosse um brinquedo.

Depois, vendo que eu não compreendia nada do que me dizia, dirigiu-se à biblioteca, tirou alguns livros ilustrados e começou a contar-me muitas coisas.

A partir de então, todas as noites me ensinou um pouco de ciência. Já não me espantava de que meu irmão se houvesse deixado atrair por ela, a ponto de obstinar-se em atravessar o Pacífico para estudá-la, sem dar ouvidos aos desejos da mamã. Quanto a mim, sentia-me também maravilhada, e comecei a considerar-me prodigiosamente sábia; e de tal maneira assim me considerava, que, a certa altura, me vi na necessidade de fazer confidências a alguém. Na falta de outra pessoa, fiz da nossa velha cozinheira a minha confidente.

- Sabe que a Terra é redonda e que o nosso grande país não fica ao meio dela, apesar do que se diz? Sabe que o nosso país, como todos os outros, ocupa apenas uma parcela da terra e da água que constituem a superfície do Globo ?

Ela encontrava-se nessa altura a lavar arroz num tanque pequeno, no pátio da cozinha. Parando de sacudir a peneira por um instante, olhou-me em ar de dúvida:

- Quem é que disse isso? - perguntou, nada convencida.

- O nosso senhor - declarei peremptoriamente.- E agora, já acredita?

Ela duvidava ainda, e respondeu:

- Ah! Ele sabe muito, isso sabe; mas basta olhar, para a gente ver que a Terra não é redonda. Ora pense bem: se a senhora subir ao cimo do pagode, na Montanha da Estrela do Norte, verá centenas de léguas de montes, de vales, de lagos e riachos, e, à parte as montanhas, que ninguém pode dizer que são redondas, tudo o mais é chato como um prato de creme de favas. Quanto ao nosso país, está no meio da Terra, disso não há dúvidas, porque, se assim não fosse, os nossos antigos, que tudo sabiam, não lhe teriam chamado o Império do Meio!

Mas eu sentia vontade de discutir.

- Mas ainda há mais: a Terra é tão grande, que para chegar ao outro lado gastaríamos uma lua inteira. Quando aqui é noite, está o Sol a iluminar tudo, do outro lado.

- Agora vejo que a senhora está muito enganada - exclamou a criada, triunfante. - Se gastamos uma lua para chegar lá a esses países, como é que o Sol faria o mesmo caminho numa hora, quando leva um dia todo para fazer o pequeno trajecto entre as Montanhas Púrpuras e os Montes do Ocidente?

E continuou a sacudir a peneira na água. Em verdade, eu não podia censurá-la pela sua ignorância, porque, de todas as coisas curiosas que meu marido me disse, a mais surpreendente era esta: os povos ocidentais têm as mesmas três luzes do céu, que nós temos - O Sol, a Lua e as Estrelas; quando eu sempre acreditara que Pâncu, o Deus-criador, as havia feito para os chineses.

Meu marido é um sábio: conhece todas as coisas e só diz a verdade.

 

Como poderia eu traduzir em palavras as primeiras atenções de meu marido para comigo? Como é que eu pude descobrir o despertar do seu coração ?

Ah! Como é que a terra fria sente o instante em que o sol da Primavera vem dominar a sua alma e fazê-la florir ?

Qual o sinal que permite ao mar compreender o poderoso apelo da Lua ?

Agora, nem sabia já como é que os meus dias passavam. Quando meu marido estava em casa, sentia-me à vontade, e já nem pensava na casa de minha mãe. Durante a sua ausência nas longas horas da tarde, ficava a pensar em cada uma das palavras que ele pronunciara. Pensava nos seus olhos, no seu rosto, na curva dos seus lábios. Lem-brava-me do contacto fortuito da sua mão com a minha, quando virava a página dum livro aberto diante de nós sobre a mesa. E quando, à noite, voltava para junto de mim, olhava-o disfarçadamente, absorta, admirando-lhe a fisionomia enquanto me ensinava.

Pensava nele dia e noite. E assim como o rio, na Primavera, enche os canais esgotados pelo Inverno e se expande pelos campos fazendo-os reviver e frutificar, assim o pensamento do meu senhor enchia a minha solidão e os meus cuidados.

Quem pode compreender semelhante poder entre um homem e uma rapariga? Começa isto por acaso: um encontro de olhares, um olhar tímido que demora a chegar e que de repente se inflama, tornando-se fixo e ardente; os dedos tocam-se e logo se desviam; e depois, os corações que se precipitam um para o outro.

Mas como posso eu dizer isto tudo, mesmo a vós, minha Irmã?

Foi uma época de grande alegria para mim. As palavras que pronuncio agora são palavras rubras. No último dia da undécima lua, soube que um filho meu nasceria por ocasião da colheita do arroz, no meio do ano.

 

Quando participei a meu marido que havia cumprido o meu dever para com ele - isto é, que estava grávida - ficou muito satisfeito e informou logo oficialmente os pais e depois os irmãos, e recebemos as suas felicitações.

Meus pais não eram directamente interessados no assunto, sem dúvida; mas mesmo assim, resolvi dar a notícia a minha mãe quando a visitei no Ano-Novo.

Comecei então a viver um período muito difícil. Até então, a família de meu marido nunca me prestara a atenção devida. Eu não passava da mulher de um dos rapazes mais novos; por isso mesmo, não participava da sua vida desde que havíamos saído da casa paterna. Por duas vezes, em determinadas épocas, fui apresentar cumprimentos e oferecer o chá a minha sogra; mas ela tratara-me sempre com indiferença, embora sem maldade. De repente, tornei-me uma verdadeira sacerdotisa do destino, pois trazia comigo a esperança da família: um herdeiro.

Dos cinco irmãos de meu marido, nenhum tinha filhos. Portanto, se o meu fosse varão, tomaria lugar ao lado do tio mais velho, na família e na grei, e seria o herdeiro dos bens.

Ah! Que desgosto o de uma mãe por não poder conservar o filho consigo senão durante os primeiros dias, que tão breves são! Logo muito cedo ele é chamado a tomar o seu lugar na grande vida da família, ó Cuan-Iin, protegei o meu filhinho!

Ao êxtase da hora em que, pela primeira vez, ambos nos entretivemos conversando a respeito do nosso filho, logo sucedeu a angústia que nos oprimia. Como já disse, foi este um período difícil para mim, principalmente em virtude dos conselhos que de todos recebia; os mais oportunos foram os de minha veneranda sogra.

Logo que soube da minha felicidade, mandou ela buscar-me. Até então, eu tinha sido sempre cerimoniosamente recebida na sala de recepção, porque a mãe de meu marido se mostrava um pouco altiva connosco, depois da nossa saída da casa. Agora, porém, a criada tinha evidentemente recebido ordem para me conduzir à sala comum, depois do terceiro corredor.

Encontrei minha sogra sentada à mesa tomando chá, enquanto me esperava. Ela é uma senhora imponente, enorme, com uns pés minúsculos, que já desde há muito lhe não suportam o peso do corpo: para andar, tem de apoiar-se em duas escravas robustas, que se mantêm sempre às suas ordens, de pé, por trás da cadeira. Tem as mãos muito pequenas, cobertas de anéis, e tão gordas que os dedos nascem como hastes, dum monte de carne fofa. Não larga nem por um momento o longo cachimbo de prata polida, que as escravas enchem sem cessar e acendem com uma mecha de papel que ao mais leve sopro se inflama.

Fui direita a minha sogra e inclinei-me na sua frente. Com um largo sorriso, que lhe fez desaparecer os lábios delgados entre as montanhas de carne das faces, pegou-me na mão, dando-lhe palmadinhas :

- Boa filha, minha boa filha!

As palavras saíam-lhe roucas. Desde há muito que o pescoço lhe havia desaparecido entre montes de gordura. Tinha uma voz de asmática.

Sabia ter-lhe dado satisfação. Deitando um pouco de chá, apresentei-lho com as duas mãos, e ela aceitou-o. Depois sentei-me numa cadeira pequena, ao lado, mas ela não consentiu nesta minha atitude de modéstia. Antes disto, pouco se importava com o lugar que eu escolhia. Sorrindo e tossindo, fez-me sinal para que passasse para mais perto, do outro lado da mesa; obedeci.

Em seguida, mandou chamar as outras noras, que vieram todas apresentar-me felicitações. Três de entre elas, já casadas havia muitos anos, nunca tinham concebido. Eu era para elas um motivo de inveja e como que uma censura. Com efeito, a mais velha, mulher de grande estatura, tez amarela, sempre doente, pôs-se pouco depois a gemer alto, balançando-se dum lado para o outro e lamentando a sua sorte:

- Ai-ia, ai-ia, que vida amarga, que triste destino o meu!

A minha sogra suspirou e abanou gravemente a cabeça. Permitiu à mais velha das noras que se desfizesse em lágrimas enquanto fumava dois cachimbos. Depois, pediu silêncio, pois queria falar comigo. Soube mais tarde que o irmão mais velho de meu marido acabara por arranjar segunda mulher, já que a primeira nunca lhe dera um filho. Isto é que tornava maior o sofrimento da pobre criatura, pois amava o marido e compreendia, afinal, que os deuses não lhe ouviam as preces nem prestavam atenção às suas oferendas.

Minha sogra deu-me muitos conselhos. Entre outras coisas, recomendou-me que não preparasse roupinha alguma antes do nascimento da criança. Era este o costume na sua terra, Anhuer. Julgavam lá que, com isto, os deuses maus ficariam ignorando o próximo nascimento, não lhes sendo assim possível destruir a criatura que estava para vir ao mundo. Quando me falou nisso, pergun-tei-lhe:

- Como hei-de então vestir o recém-nascido nuzinho?

- Deve envolvê-lo em roupas velhas do pai - disse-me em tom grave. - Isso dar-lhe-á sorte. Já o fiz com os meus seis filhos, e todos viveram.

As minhas cunhadas também me deram muitos conselhos, oferecendo-me cada uma delas uma receita, sugerindo-me que comesse certa espécie de peixe logo depois do parto, ou bebesse grandes copos de água com açúcar mascavado. Ciumentas, consolavam-se assim, dando-me conselhos.

 

Quando voltei para casa, de noite, muito satisfeita com o carinhoso acolhimento que encontrara da parte da sua família, disse logo a meu marido tudo o que me haviam pedido que fizesse, quanto à criança. Surpresa e atemorizada, vi-o tornar-se furioso de repente e começar a andar pela sala, a largos passos, coçando a cabeça.

- Mas que tolices, que absurdos! - exclamou. - Quantas mentiras, quanta superstição! Não! Nunca, nunca!

Detendo-se por um momento, segurou-me pelos ombros, fixando um olhar severo no meu rosto erguido para ele:

- Vai prometer-me muito seriamente que há--de deixar-se guiar por mim. Veja bem, é preciso obedecer. Cuei-Lan, prometa-me isto; senão, juro--lhe que nunca mais terá outro filho!

Atemorizada, fui forçada a prometer. Assim que lhe dei a minha palavra, em voz hesitante, acalmou-se logo:

- Amanhã, hei-de levá-la a uma casa ocidental, onde se relacionará com a família do meu velho professor americano. Quero mostrar-lhe como os ocidentais cuidam dos filhos; isto, não para que os imite cegamente, mas para lhe aclarar as ideias.

Procurei obedecer a meu marido. Só uma coisa fiz a ocultas. Na manhã do dia seguinte, saí de casa em segredo, acompanhada duma criada apenas. Era tão cedo,, que só encontrei um garoto que bocejava, no denso nevoeiro da madrugada. Numa loja, comprei uns tocos de incenso, e fui colocar--me em frente da negra e pequena Cuan-Iin, que dá filhos e favorece os partos. Diante dela, toquei com a fronte na pedra de mármore, ainda húmida do orvalho da noite. Murmurei tudo o que tinha no fundo do coração, e, de olhar bem fito, dirigi--lhe as minhas súplicas. Não obtive resposta. A urna estava ainda cheia das cinzas frias do incenso que outras mães, antes de mim, haviam queimado, fazendo as suas preces e formulando votos semelhantes aos meus. Meti o meu incenso a arder no meio das cinzas, deixando-o queimar-se ante a deusa. E em seguida voltei para casa.

 

Cumprindo a sua promessa, meu marido levou--me a visitar a casa dos seus amigos ocidentais. Confesso que sentia então uma grande curiosidade, misturada com certo receio. Agora, sou eu própria a sorrir-me disto - eu, que vos chamo minha Irmã.

Até então, nunca entrara numa casa de estrangeiros. Nunca tivera oportunidade para o fazer. Nunca andava pelas ruas e, em casa da minha mãe, ninguém frequentava os ocidentais. Verdade é que meu pai os encontrava nas suas viagens, mas eles interessavam-no apenas pelos seus ares grotescos e seus modos bruscos e grosseiros. Só meu irmão é que gostava deles, porque os via com frequência em Pequim e, na sua escola, tinha mesmo alguns professores ocidentais. Uma vez até, antes do meu casamento, ouvi dizer que ele havia ido visitar uns estrangeiros, e bastante admirei a sua coragem.

Entretanto, em casa de minha mãe não havia relações desta natureza. Sucedia às vezes que uma criada, tendo saído em serviço, voltava espantada, dizendo ter visto passar um estrangeiro na rua. Contavam-se então coisas espantosas a respeito da pele esquisita dessa gente e dos seus olhos pálidos. Eu ouvia tudo isto com a mesma curiosidade com que ouvira Uang Da Ma falar-me de fantasmas e dos demónios dos tempos antigos. As criadas contavam baixinho, umas às outras, histórias de magia negra: os bárbaros tinham o poder de roubar a alma duma pessoa com o auxílio duma pequena máquina fechada numa caixa cor de tinta; quando olhavam para dentro da caixa com um olho só, a máquina dava um estalido, e no mesmo instante a pessoa sentia uma estranha fraqueza no peito, morrendo pouco depois, de doença ou de desastre. Contei estas coisas a meu marido, que desatou a rir:

- Como é que eu pude, então, passar doze anos lá nesses países, e ainda voltar vivo?

- Ah! É que o meu senhor é um sábio e aprendeu a magia deles...

- Há-de ver então o aspecto que eles têm - retorquiu-me. - São apenas homens ou mulheres, como as outras pessoas.

Assim, nesse mesmo dia saímos de casa e entrámos num jardim onde havia relva, árvores e flores. Fiquei admirada de ver tudo tão bonito e verificar que os ocidentais amam a natureza. Já se sabe que tudo era um tanto descuidado: não havia riachos, nem tanques com peixes encarnados, e as árvores eram distribuídas ao acaso, nascendo as flores irregularmente, à vontade. Devo confessar que, quando chegámos, afinal, à porta da casa, eu teria fugido, se não fosse na companhia de meu marido.

A porta abriu-se repentinamente pelo lado de dentro e um alto diabo estrangeiro apareceu diante de nós, com a fisionomia escancarada num sorriso. Reconheci que era um homem, porque vestia roupas iguais às de meu marido. Mas, para meu maior horror, em vez de ter cabelos humanos, pretos e lisos, como os de toda a gente, tinha a cabeça coberta com uma espécie de lã vermelha e arrepiada. Os olhos pareciam pedras lavadas pelo mar e o nariz como que uma montanha rompendo a meio do rosto. Ah! Era uma criatura horrível! Mais feio que o deus do Norte, à entrada dos Templos.

Meu marido é corajoso. Ao ver aquele homem, não deu mostras de sentir medo algum e até lhe estendeu a mão. O estrangeiro apertou-lha, sacudindo-a para baixo e para cima. Sem demonstrar qualquer surpresa, meu marido voltou-se para mim, apresentando-mo. 0 estrangeiro sorriu de novo com o seu enorme sorriso e fez o gesto de me apertar também a mão. Mas quando vi a dele estendida, grande e ossuda, e com longos pêlos vermelhos, toda a minha carne se contraiu. Por isso, meti as mãos nas mangas e inclinei-me. Ele alargou ainda mais o sorriso e convidou-nos a entrar.

Atravessámos um pequeno vestíbulo como o nosso e entrámos depois noutro aposento. Perto da janela, estava sentada outra pessoa. Percebi logo que devia ser a mulher estrangeira. Pelo menos, em vez de calças usava um longo vestido de algodão, apertado a meio da cintura por um cinto chato. Os cabelos pareciam menos feios do que os do marido, porque eram lisos e unidos, se bem que duma cor esquisita: amarelos. Tinha também um nariz muito grande, mas direito, e as mãos grandes, com unhas curtas e quadradas. Observei-lhe os pés: eram compridos como uma vara de bater o arroz. Disse comigo mesma: "Com pais assim, como não hão-de ser esses diabinhos ocidentais ?"

Tenho, porém, de confessar que os estrangeiros foram tão amáveis quanto o podiam ser. Cometiam erros e, a cada momento, traíam mesmo a sua falta de educação: apresentavam as chávenas de chá com uma só mão e, em geral, ser-viam-me antes de servir meu marido. O homem chegou mesmo a dirigir-me a palavra, fitando-me no rosto! Senti o insulto. 0 dever dele era ignorar a minha presença e deixar à mulher o cuidado de conversar comigo. Todavia, estão aqui há doze anos, segundo me disse meu marido, e parece-me que isto já é tempo bastante para aprender certas coisas. Evidentemente que vós, minha Irmã, que sempre aqui vivestes, sois já dos nossos.

Mas a parte mais interessante da visita começou quando meu marido pediu à estrangeira que me mostrasse os filhos e as suas roupas. Explicou então que esperávamos também um filho e por isso desejava dar-me a conhecer os hábitos ocidentais. Erguendo-se logo, ela pediu-me que a acompanhasse.

Consultei meu marido com o olhar, mas ele fez-me sinal para que a seguisse.

Entretanto, ao chegar ao andar de cima, esqueci todo o medo. Ela conduziu-me a um quarto inundado de sol e aquecido por um forno preto. Coisa curiosa: desejando aquecer o quarto, deixava, no entanto, uma janela meio aberta, por onde o frio entrava continuamente! Logo de início, não me apercebi bem destes pormenores, encantada como estava a ver três crianças estrangeiras que brincavam no chão. Nunca havia visto tão interessantes criaturinhas!

Sadios na aparência, rechonchudos, tinham, porém, os cabelos brancos. Isto confirma o que já ouvira dizer: os estrangeiros têm uma natureza diferente da nossa. Nascem com o cabelo branco e este vai escurecendo à medida que aqueles crescem. A pele é branca também. Julguei que a pele dos meninos fosse embranquecida por efeito de qualquer água mineral, mas a mãe mostrou-me um quarto onde todos os dias tomam banho, de corpo inteiro. Isto explica a sua pele branca; as marcas naturais acabam por desaparecer com tantos banhos.

Mostrou-me também as roupinhas deles. As de baixo são brancas, e o pequenino estava igualmente vestido de branco, da cabeça aos pés. Perguntei-lhe se estava de luto por algum parente, pois o branco é a cor da tristeza; respondeu-me que não se tratava disso; era apenas para que o petiz se vestisse da melhor maneira. Eu entendia que uma roupinha menos clara seria melhor, se sujaria menos. Mas ia observando tudo, sem nada dizer.

Em seguida, vi as caminhas, igualmente cobertas de branco. Era inacreditável! Não conseguia compreender como é que empregavam tanto a cor branca! É a cor do luto e da morte. Decididamente, uma criança só deveria vestir-se e cobrir-se com cores alegres: escarlate, amarelo ou azul celeste. E nós vestimos os nossos filhos de vermelho, pela alegria que nos dão quando nascem; mas, entre os estrangeiros, nada é conforme com a natureza.

Uma das coisas espantosas que observei é que a mulher amamenta o filho ao seio. Nunca pensara em alimentar assim o meu; não é esse o costume, entre mulheres de categoria ou de certos haveres. Para tal tarefa, não faltam escravas.

De regresso a casa, contei tudo a meu marido, acrescentando:

- E, além de tudo, é ela quem amamenta o próprio filho. São assim tão pobres?

- É bom que as mães alimentem os filhos - respondeu-me. - Há-de ter também de amamentar o seu.

- Eu ?! - perguntei, surpresa.

- Decerto - disse-me, gravemente.

- Mas, então, não terei outro filho antes de dois anos?

- Tem de ser como lhe disse, embora a sua ideia de agora seja absurda.

Talvez seja justo, isto. Em todo o caso, noto que, se em cada família muitas crianças têm fatalmente de morrer e outras são do sexo feminino, a minha casa não se encherá tão facilmente de meninos, como esperava.

Não vos surpreende, minha Irmã, o facto de eu não deixar de considerar meu marido bastante absurdo ?

 

No dia seguinte fui a casa da senhora Liu para lhe contar aquela visita. Ah! Se a deusa me concedesse um filho como os dela, esbelto, corado e com uns olhos assim brilhantes! São lindos, com a pele doirada, e engraçados, nos seus trajos vermelhos, com flores.

- Aqui, conservam-se os nossos velhos hábitos - disse-lhe eu ao ver as crianças e dando um suspiro de satisfação.

- Sim... e não... Olhe - respondeu, chamando o filho mais velho. - Veja que a roupa de baixo é branca, pois é mais fácil de tirar e lavar. O que há a fazer é aprender com os estrangeiros o que eles têm de bom e pôr de parte o que não convém.

Ao sair, fui a uma loja de fazendas; comprei seda vermelha e cor-de-rosa, com flores, da melhor qualidade; veludo preto, para fazer um casaquinho sem mangas; e cetim para um gorro. Era difícil escolher, porque para meu filho só me interessava o que houvesse de melhor. Pedi ao comerciante que me mostrasse outras fazendas que ele separara, embrulhadas em papel escuro, no armário do fundo. O homem era já velho, respirava com dificuldade e pôs-se a resmungar, quando lhe pedi:

- Mostre-me outras ainda. Queria uma seda bordada, com flores de pessegueiro.

Era a respeito da vaidade das mulheres que ele resmungava. Então, vi-me forçada a dizer-lhe:

- Não é para mim; é para meu filho.

Ele teve um sorriso desajeitado e mostrou-me a fazenda mais bonita que até aí estivera escondida.

- Veja esta, que estava reservada para a mulher do magistrado. Como é para o seu filho, pode levá-la. Afinal, ela não passa duma mulher, também!

Era aquilo justamente o que eu procurava. No meio da pilha de sedas colocadas em cima do balcão, esta brilhava com um belo reflexo cor-de--rosa. Comprei-a sem olhar ao preço, embora o velho espertalhão o aumentasse, sem dúvida alguma, ao notar o meu interesse. Trouxe o embrulho nos braços, dizendo para mim mesma:

"Esta noite, vou cortar o casaquinho e as calças. Hei-de fazer tudo sozinha. Tenho ciúmes do contacto das mãos de qualquer outra mulher, com meu filho".

Ah! Sentia-me feliz, ia poder trabalhar a noite inteira para meu filho! Cortei também um par de sapatos de focinho de tigre. E comprei-lhe, para lhe ser agradável, uma corrente de prata.

 

Sois vós? Tenho uma grande novidade a dar--vos: meu filho moveu-se hoje em direcção ao meu coração, e é como se tivesse falado.

Já preparei tudo o que era necessário. As roupinhas estão prontas. Até mesmo já cosi os pequeninos Budas de oiro em torno da touca de cetim. Quando acabei de arranjar tudo, comprei uma caixa de madeira de sândalo e arrumei as roupas dentro dela, a fim de que se impregnem dum delicado perfume, antes de vestirem o corpo de meu filho.

Agora, já não tenho que fazer. No entanto, o arroz ainda está nos campos, num tom verde-jade, e tenho de esperar mais três luas. Passo o meu tempo sentada, cismando em como será meu filho.

 

Ah! Pequena deusa negra! Ouvide a minha prece, fazei com que corra depressa o tempo, até que o meu tesouro seja depositado em meus braços.

Ao menos por um dia, hei-de tê-lo comigo. Não exigirei mais, pois meus sogros escreveram uma carta dizendo ser preciso que a criança vá viver em casa deles. O menino será o único neto, e a sua vida é, portanto, demasiado preciosa para que possa decorrer dia e noite longe das vistas dos avós. E eles mesmos se regozijam já ternamente com esta ideia. Meu sogro, que nunca me dirigia a palavra, mandou-me chamar há dias e conversou comigo. Percebi que, para aquele espírito de velho, o neto era como se já tivesse nascido.

Ah! Como eu desejo reservá-lo para nós! Se pudermos conservar aqui o nosso filho, reconci-liar-me-ei com a pequena casa estrangeira e estes hábitos esquisitos. Mas conheço as verdadeiras tradições do nosso povo. Não posso crer que o meu primogénito venha a ficar comigo. Pertence já a toda a família.

Meu marido sente isto profundamente. Franze as sobrancelhas e fala por entre dentes. Diz que a criança se perderá, ao contacto com a estupidez dos escravos, a alimentação em excesso e um luxo pernicioso. Passeia agitado pela casa, e um dia chegou até ao ponto de lastimar o próprio nascimento do menino. Tive medo, receei a cólera dos deuses em face desta ingratidão, e roguei-lhe que se calasse.

- Devemos conformar-nos com o que é um costume razoável!

Mas, dizendo-lhe isto, sentia no íntimo o maior desejo de conservar comigo o meu filhinho.

Meu marido acalmou-se e ficou muito sério. Já não fala nos pais. A mim mesma pergunto o que terá resolvido, porque nada me diz.

Quanto a mim, só penso no dia em que a preciosa criaturinha chegará, para nela concentrar todo o meu olhar.

 

Sei agora o que meu marido fez. Achareis que procedeu mal, minha Irmã? Não sei; eu não posso deixar de confiar nele e de acreditar que fez bem, desde que tomou uma decisão.

Disse aos pais que, assim como reivindicara" sua mulher só para si, desejava agora também que o filho nos pertencesse só a nós, o pai e a mãe.

Meus sogros ficaram zangados. Mas podemos bem suportar-lhes a zanga, sem nada dizermos. Contou-me meu marido que, por fim, seu velho pai deixara de discutir e se pusera a chorar em silêncio. Achei muito lamentável isto de um filho fazer chorar seu pai. Se não se tratasse de meu filho, o coração ter-me-ia traído. Meu marido, porém, é mais corajoso do que eu e suportou bem a investida das lágrimas paternas.

Ah! Quando deixámos um dia a casa de seu pai, imediatamente censurei meu marido por haver quebrado as honestas tradições do passado. Mas agora, mulher egoísta que sou, já não receio romper com a tradição. Só penso em meu filho. Ele será meu, só meu. Não terei necessidade de o partilhar com vinte outras pessoas - avós e tios. Sou eu, a sua mãe, quem poderá cuidar dele, dar-lhe banho e vesti-lo, conservando-o noite e dia a meu lado.

Agora, meu marido livrou-me de preocupações. Agradeço aos deuses o ser a mulher dum homem moderno. Ele dá-me o meu filho; e nem com a vida poderia demonstrar-lhe cabalmente o meu reconhecimento.

 

Todos os dias vejo o arroz dos campos amadurecer. As espigas estão pesadas e vão-se curvando. Mais algum tempo sob o sol ardente, e ficarão completamente maduras, boas para a colheita. Meu filho vai nascer num belo ano de fartura, dizem os lavradores.

Quantos dias terei ainda de ansiosa expectativa?

Deixei de perguntar a mim mesma se meu marido gosta de mim. Quando der à luz o meu filho, ele conhecerá meu coração, e eu conhecerei o seu.

 

Minha Irmã! Já chegou, o meu filho está aqui! Descansa, afinal, entre os meus braços, e os seus cabelos são negros como o ébano.

Ora vede: não é possível que tanta beleza já haja sido criada! Os seus braços são gordos e roliços, as pernas têm a força dos cavalos novos. Com que carinho lhe examinei todo o corpo! É sadio e admirável como o filho dum Deus!

E que maroto! Dá pontapés e grita, procurando o seio. E no entanto, há só coisa de uma hora que o amamentei. Tem uma voz forte, e quer tudo!

Mas a minha hora foi cruel, minha Irmã. Meu marido fitava-me com olhos ternos e inquietos. Alegre, embora sofrendo, eu andava para cá e para lá, em frente à janela. Começavam a cortar o arroz maduro e espalhavam-o no chão, em belos feixes. A plenitude do ano, a plenitude da vida!

Cheia de dores atrozes, eu arquejava, mas logo a seguir exultava por me sentir no apogeu da minha vida de mulher. E assim dei à luz o meu primeiro filho. Ai-ia, como era robusto! Como forçou as portas da vida para vir ao mundo, e com que grito formidável! Pensei morrer ao sentir a sua impaciência, e gloriei-me com o seu vigor! * Homem-menino, meu tesouro!

Agora, a minha vida floriu. Devo dizer-vos tudo para compreenderdes quanto a minha alegria é completa ? Porque não vo-lo hei-de contar, minha Irmã, se até agora tendes visto sempre a minha alma às escâncaras? Contar-vos-ei, pois, o que se passou.

Eu estava deitada na cama, fraca, mas orgulhosa, tendo ao lado o meu filho. Meu marido entrou. Aproximando-se, estendeu os braços. Senti estremecer o coração. O esposo reclamava a velha tradição da apresentação.

Peguei em meu filho e coloquei-o nos braços do pai, apresentando-lho nos seguintes termos:

- Meu Senhor querido: eis aqui o seu filho, o seu primogénito. Aceite-o: é a sua mulher quem lho dá.

Fitou-me nos olhos de tal maneira, que me senti perturbada ante a luz ardente desse olhar. E inclinando-se para mim, disse-me:

- Entrego-lho. É todo nosso - e a sua voz era baixa e as palavras boiavam no ar como gotas de prata. - Partilho-o consigo. Sou o seu marido e gosto muito de si.

Chorais,-minha Irmã? Ah, sim! Compreendo-o, eu também. Sem lágrimas, como poderíamos suportar tanta alegria?

Vede meu filho: está a sorrir-se...

 

                                         SEGUNDA PARTE

 

Ali, minha Irmã! Pensei que, com o meu filho ao pé de mim, nunca mais teria a dizer-vos senão palavras de contentamento. Radiante, supunha que nunca mais poderia sentir tristeza alguma. Porque é que, afinal, enquanto existem, os laços do sangue nos fazem sofrer?

Hoje, o meu coração mal pode com o próprio palpitar.

Não, não se trata de meu filho! Tem nove meses e é gordinho como um verdadeiro Buda. Não o vistes ainda nesta fase em que procura já aguentar-se nas perninhas. Tem imensa graça. Agora, percebeu que poderá andar e fica irritado quando o sentam na cadeira. Na realidade, os meus braços já não têm força suficiente para dominá-lo. As suas ideias são cheias de alegre malícia e a luz brinca-lhe nos olhos. O pai acha que o estrago com mimos, mas eu pergunto: como hei-de zangar-me com esta criaturinha que me desarma com a sua teimosia e beleza, de tal modo que às vezes me ponho a rir e a chorar ao mesmo tempo? Não, não se trata de meu filho.

Trata-se de meu irmão. Refiro-me ao filho único de minha mãe, o que acaba de passar três anos na América. É ele quem nos magoa agora o coração - a minha mãe e a mim.

Já vos falei a respeito dele, lembrais-vos? Eu estimava-o tanto, quando éramos crianças! Depois quase o perdi de vista durante todos estes anos e raras vezes tive notícias suas, porque minha mãe nunca esqueceu que ele partira contra a sua vontade e que chegara mesmo a recusar-se a atendê-la, desposando a noiva. Desta forma, o seu nome não aflorava facilmente aos lábios de minha mãe. Neste momento, é ele ainda quem vem perturbar a paz na nossa antiga casa. Não lhe bastou ter desobedecido assim, de modo grave, no passado ; era preciso também...

Mas esperai. Eis a carta que me chegou ontem por intermédio de Uang Da Ma, a nossa velha preceptora, que nos deu o seio a ambos quando nascemos e que está sempre ao par de tudo quanto ocorre na casa de minha mãe.

Ao entrar, ajoelhou-se logo no chão, diante de meu filho.

Depois entregou-me a carta, chorando e soluçando alto: "Ai! ai! ai!"

Sabendo que só uma fatalidade poderia justificar tal atitude, senti por um momento como que suspender-se-me a vida.

- Minha mãe... Minha mãe ? - exclamei.

Lembrei-me de como ela estava fraca, apoiada à sua bengala, na última vez que a vira, e cheguei a sentir remorsos por só ter ido visitá-la duas vezes desde o nascimento do menino, inteiramente absorvida, como andava, pela minha felicidade.

- Não se trata de sua mãe, filha da Honrada Senhora - respondeu Uang Da Ma, soltando um profundo suspiro. - Os deuses prolongaram-lhe a vida para que passasse por este desgosto.

- Pois foi meu pai ?... - perguntei, transf or-mando-se em sobressalto a minha breve surpresa.

- Também não foi o Honrado Senhor; ele não bebe ainda nas fontes amarelas - esclareceu, inclinando-se.

- Então? - insisti, ao ver a carta que acabava de colocar em meus joelhos.

Apontando-a com o dedo, aconselhou-me:

- Faça que a jovem mãe dum filho príncipe leia essa carta; está escrita por dentro.

Mandei então à criada que lhe servisse o chá no outro quarto, e, entregando meu filho à velha ama, comecei a ler a carta, que me era dirigida e tinha a assinatura de minha mãe. Fiquei assombrada; minha mãe nunca me escrevera.

Senti-me embaraçada por um momento, mas depois abri o pequeno sobrescrito e retirei de dentro deste a folha de papel fino. Reconheci logo as linhas firmes e delicadas do pincel materno. Percorri rapidamente as frases convencionais do começo, e os meus olhos foram cair sobre estas palavras, que constituíam o assunto principal da carta: "Seu irmão, que tem estado durante todos estes meses em longínquos países, escreveu-me agora, dizendo pretender casar-se com uma estrangeira".

Seguiam-se, para concluir, as formalidades habituais. E era tudo. Mas através daquelas poucas palavras de minha mãe, sentia-lhe a alma sangrando. Exclamei:

- Ah, irmão cruel e louco! Ah, irmão cruel e mau!

Falei tão alto, que as criadas acorreram, procurando consolar-me e pedindo-me que pensasse no leite para meu filho, que a cólera podia envenenar. Depois, vendo que o ímpeto das minhas lágrimas era tão forte que não as poderia deter, sentaram-se no chão e, elevando a voz, puseram-se a chorar comigo para livrar-me da cólera.

Chorei até me sentir calma. Cansada do barulho que as criadas faziam, pedi-lhes que se calassem e mandei chamar Uang Da Ma, para lhe dizer:

- Espere uma hora mais, até que o pai de meu filho esteja de volta. Vou ler esta carta diante dele. Quero saber o que me aconselha. Entretanto, vá comer arroz e carne, para restaurar as forças.

Aceitou a sugestão de bom grado, e dei ordem para que lhe servissem também um pouco de carne de porco. Animando-a assim, sentia-me reconfortada com a parte que ela tomava na calamidade que se abatia sobre a nossa família.

 

Enquanto aguardava o regresso de meu marido, fiquei sozinha no quarto, meditando. Pensava em meu irmão. Apesar de todos os esforços, não conseguia fazer sequer uma ideia de como seria agora: homem feito já, vestido como os americanos, percorrendo sem medo algum os caminhos desconhecidos desses países longínquos, falando talvez com os homens e as mulheres estrangeiras - com estas principalmente, visto que ama uma delas. Revia-o na minha memória, recordando-o tal qual como o conheci: o irmãozinho mais velho do meu tempo de criança, com quem brincava à porta de casa ou no pátio. Então, pensava ele é melhor do que eu. Era de movimentos vivos, falava muito e gostava de rir. Nas feições, pare-cia-se com minha mãe: tinha um rosto oval, os lábios rectos e finos, as sobrancelhas nitidamente desenhadas por cima dos olhos oblíquos. As concubinas sentiam inveja, por o verem mais bonito que os seus filhos. Mas poderia ser de outro modo ? Elas eram mulheres vulgares, escravas na sua mocidade, de lábios grossos e carnudos, sobrancelhas eriçadas como pêlo de cão. Minha mãe, pelo contrário, é uma dama oriunda de seis gerações, e a sua beleza é feita de precisão e beleza, cheia de discrição na linha e na cor. E fora esta beleza que legara ao filho.

Meu irmão nenhuma importância dava a isto. Irritava-se sempre que as escravas, no intuito de agradar à mãe, lhe acariciavam as faces com os dedos macios. Dedicava-se inteiramente ao folguedo, excessivo sempre, mesmo nos brinquedos e no riso. Parece que estou ainda a vê-lo brincar, de sobrancelhas franzidas. Resoluto em tudo quanto fazia, não admitia uma vontade mais forte que a sua.

Quando brincávamos juntos, nunca ousei contrariá-lo, não só porque se tratava dum rapaz e isso não seria bonito da minha parte, como menina, mas principalmente porque gostava muito dele e não desejava vê-lo aborrecido.

E a verdade é que ninguém gostava de o contrariar. As crianças e as escravas viam nele o senhor novo. Até minha mãe, com toda a sua altivez, se modificava na presença dele. Para não ter de opor-lhe uma recusa e sobretudo para lhe evitar a tentação, ouvi-a uma vez mandar a uma escrava que retirasse da mesa, antes de meu irmão chegar, certo bolo oleoso, bastante doce, de que ele gostava muito e que teimava em comer, apesar de lhe fazer mal.

A vida fora-lhe assim facilitada, na mocidade. Nunca me passou pela cabeça observar a diferença de tratamento havido para connosco. Nunca me ocorrera a ideia de ser considerada igual a meu irmão. Era inútil pensar nisso. Nunca eu poderia desempenhar, no seio da família, papel tão importante como ele, que era o primogénito, o herdeiro de meu pai.

Por esse tempo, de ninguém gostava mais que de meu irmão. Andava com ele pelos jardins, de mãos-dadas. Juntos nos inclinávamos sobre a água pouco profunda, procurando na sombra verde certo peixe vermelho que pretendíamos apanhar. Juntos recolhíamos pequenas pedras de diferentes cores e com elas construíamos minúsculos corredores, semelhantes aos da nossa casa, mas dum desenho complicado. Quando meu irmão me ensinava a passar com cuidado o pincel nos contornos dos caracteres traçados no meu primeiro caderno de escrita, guiando com a sua a minha mão, julgava-o o mais sábio dos humanos.

Quando ele circulava pelos pátios das mulheres, acompanhava-o por toda a parte como um cãozinho. E quando passava o portão chapeado, indo para as salas dos homens, onde me era proibido entrar, pacientemente aguardava a sua volta.

Depois, um belo dia, ele completou os seus nove anos. Retiraram-no dos aposentos das mulheres para o levarem para os de meu pai e dos homens. A nossa vida em comum viu-se assim, de repente, interrompida.

Ah, aqueles primeiros dias! Não podia suportá-los sem grandes crises de lágrimas. À noite, ia dormir, cansada de muito chorar, e sonhava com um lugar onde nos conservaríamos crianças sempre, e nunca nos separaríamos. Durante muito tempo arrastei a minha melancolia, parecendo-me vazios os recantos por onde ele não andava já. Minha mãe chegou a recear pela minha saúde e disse-me:

- Minha filha: esse desejo constante de ver seu irmão não tem jeito algum. Deve reservar semelhante emoção para outras coisas. Uma dor como a sua só seria admissível se se tratasse da morte dos pais de seu marido. Aprenda a ter o sentido das proporções, na vida; e domine-se. Dedique-se ao estudo e aos bordados. Chegou a altura de começar a preparar-se a sério para o casamento.

Daí por diante, fiquei sempre com a ideia do meu futuro casamento diante dos olhos. Cresci, e assim cheguei depois a compreender que a minha vida e a de meu irmão não poderiam desenrolar-se lado a lado. Eu não pertencia só à nossa família; pertencia também e, principalmente, à do meu noivo. Assim, ouvi atenta as palavras de minha mãe e dispus-me resolutamente a cumprir os meus deveres.

Lembro-me ainda muito bem do dia em que meu irmão mostrou desejos de partir para a escola de Pequim. Encontrava-me presente quando foi visitar minha mãe, a fim de lhe pedir a necessária permissão, segundo as normas. Como havia já obtido, antes, o consentimento de meu pai, aquela visita era de mera deferência, pois nunca ela poderia opor-se ao que já fora concedido. Mas meu irmão foi sempre muito escrupuloso na sua maneira de observar todas as formalidades.

Colocou-se em frente de minha mãe, de pé. Estávamos no Verão. Meu irmão vestia uma cabaia de seda cinzenta, leve, e tinha no polegar uma pedra de jade, pois sempre gostou das coisas bonitas. Nesse dia, fez-me lembrar um caniço de prata, pela sua elegância. Mantinha a cabeça inclinada e os olhos baixos, mas eu podia ver as pupilas reluzirem-lhe por entre as pálpebras.

- Minha mãe - disse ele - se mo permitisse, eu gostaria de continuar os meus estudos na Universidade de Pequim.

Ela sentia-se naturalmente obrigada a consentir. Se pudesse, não daria autorização, bem o sabíamos. Em vez de ajoelhar e desfazer-se em lágrimas, como tantas outras fariam no seu lugar, limitou-se a responder com calma e firmeza:

- Compreenda, meu filho, que se fará o que for da vontade de seu pai. Eu sou apenas sua mãe. Fica entendido, pois. No entanto, tenho o direito de falar, embora nada possa fazer contra a vontade dele. Não vejo utilidade alguma na sua saída daqui. Foi aqui que seu pai e seu avô se educaram. E o filho mesmo, tem tido por professores, desde criança, os homens mais cultos da terra; chegámos até a mandar vir T'Ang, o letrado de Xenen, para lhe ensinar poesia. A sabedoria dos estrangeiros, para nada lhe servirá na vida. E partindo para lugares distantes, vai pôr em perigo uma vida que só será inteiramente sua quando nos der um filho que possa continuar o nome ancestral. Se pudesse casar-se antes...

Meu irmão mostrou-se inquieto e fechou o leque, que até aí conservara aberto na mão esquerda. Depois abriu-o de novo, de repente, com ruído. Levantou os olhos, que brilhavam de descontentamento. Minha mãe adiantou a mão:

- Não precisa de falar, meu filho. Não lhe dei qualquer ordem, por enquanto. Quis apenas lembrar-lhe que a sua vida lhe não pertence. Pense bem nisto.

E em seguida inclinou a cabeça. Meu irmão devia então retirar-se.

Desde essa altura, raramente tive ocasião de o ver. Por duas vezes apenas voltou a nossa casa antes do meu casamento e nada encontrámos para nos dizermos. Nunca estávamos sós. Em geral, ele não entrava no pátio das mulheres, a não ser para cumprimentar minha mãe ou para despedir-se dela, e eu não podia falar-lhe à vontade na presença de uma pessoa mais velha.

Notei que ia crescendo, mantendo-se muito sensato. O seu rosto ia também perdendo certa graça um tanto infantil que na adolescência lhe dava quase o ar duma menina. Ouvi-o dizer à minha mãe que na escola estrangeira tinha de exercitar o corpo diariamente, de maneira que se desenvolvia, tornando-se mais forte e musculoso. Cortara o cabelo segundo a nova moda, na época da primeira revolução; e os cabelos caíram-lhe, negros e luzidios, da cabeça, que tomou um porte arrogante. Reparei como era belo. Nos corredores, as mulheres desejavam-no, e a Segunda Mulher murmurou um dia:

- Ah! Como se parece com o pai, no começo dos nossos amores!

Depois, meu irmão atravessou os mares e não voltei a vê-lo. No meu espírito, ia-se tornando indistinto, esfumado por toda essa onda de exotismo que o cercava; de modo que nunca consegui fixar nitidamente a sua imagem na memória.

Sentada no quarto, aguardando meu marido e conservando entre as mãos a carta de nossa mãe, compreendi que meu irmão era para mim como que um estrangeiro.

 

Ao meio-dia, quando meu marido entrou, corri para ele a chorar, sempre com a carta nas mãos. Admirado, perguntou-me:

- Mas o que há ? Que sucedeu ?

- Leia isto! Leia, e julgue!

E soluçando sempre, comecei a observar a expressão do seu rosto, à medida que ia lendo.

- Que rapaz tão tonto!... Doido! Doido! - murmurou por entre dentes, amarrotando a carta. - Como se pode proceder assim ? Está bem, vá imediatamente a casa de sua Honrada mãe. Tem de ir consolá-la.

Por um servo, mandei pedir ao moço do carro que apressasse o almoço, a fim de evitar-me perda de tempo. Logo que terminou, saí de casa com meu filho e a velha ama, pedindo ao homem que corresse quanto pudesse.

Assim que passei a porta da casa de minha mãe, senti que um pesado silêncio pesava sobre todas as coisas, como nuvem cobrindo a Lua. Os escravos estavam entregues aos seus trabalhos, piscando os olhos uns aos outros e cochichando. Uang Da Ma, que ia comigo, havia chorado tanto pelo caminho, que as suas pálpebras estavam inchadas.

No Pátio dos Chorões, encontrei a Segunda e a Terceira Esposas, sentadas em companhia dos filhos.

Quando me viram entrar, com o menino, mal tiveram tempo para me cumprimentar, tão ansiosas estavam por me fazer perguntas.

- Ah, que lindo ele é! - exclamou a Esposa gorda, passando os lindos dedos redondos na face da criança e cheirando-lhe as mãozinhas, à maneira duma carícia.

E voltando-se para mim, importante e grave:

- Já sabe?...

Movi a cabeça afirmativamente e perguntei, por minha vez:

- Onde está minha mãe?

- A Honrada Primeira Esposa passou estes três últimos dias no seu aposento. Não fala com pessoa alguma e mantém-se sentada, indiferente a tudo. Duas vezes por dia vem à sala de fora para transmitir ordens ao pessoal e distribuir o arroz e outros alimentos. Depois, volta para o quarto. Tem os lábios imóveis como os duma estátua, e o seu olhar obriga-nos a desviar o nosso. Não sentimos coragem para lhe dirigir palavra. Ignoramos em que pensa. Contar-nos-á depois o que ela lhe disser, não é verdade?

E procurou lisonjear-me com as suas caretas e sorrisos. Mas eu sacudi a cabeça, negando-me a satisfazer-lhe a curiosidade.

- Ao menos deixe-nos ficar o seu lindo tesouro. Brincaremos com ele.

E chegou a estender os braços para meu filho, mas não consenti que lhe pegasse.

- Vou levá-lo a minha mãe; talvez a distraia e lhe faça esquecer o seu desgosto.

Depois, atravessei a Sala de Recepção, o Pátio das Peónias e a sala de repouso das mulheres. Em frente dos aposentos de minha mãe, hesitei um momento. Em geral, apenas o reposteiro de cetim vermelho se encontrava corrido, fechando o quarto. Mas agora, por detrás do reposteiro, a porta estava fechada também.

Bati ao de leve com a palma da mão. Não obtive resposta. Bati de novo, exclamando:

- Sou eu, mãe. Trago-lhe aqui o seu netinho! Só então distingui a sua voz, parecendo vir de muito longe:

- Entre, minha filha.

Entrei. Estava sentada junto da mesa preta esculpida. O incenso ardia numa urna de bronze ante as escrituras sagradas, na parede. Minha mãe tinha a cabeça inclinada, e duma das mãos pendia-lhe um livro.

Ao ver-me entrar, disse:

- Então, veio cá! Tenho feito tudo para ler o Livro das Transformações. Mas hoje não encontro coisa alguma que possa consolar-me.

E abanou a cabeça, com ar um pouco abstracto. O livro caiu-lhe ao chão e ali ficou.

Esta atitude irresoluta inquietou-me. Minha mãe fora sempre senhora de si, tivera sempre confiança em si mesma e muito sangue-frio. Percebi que ficara sozinha por demasiado tempo, e censurei-me por isso. Exagerando o amor que sentia por meu filho, deixara-me levar pelos carinhos de seu pai - profundamente, demoradamente! Havia já muitos dias que não visitava minha mãe. Que podia fazer agora para a reanimar e distrair? Peguei em meu filho e coloquei-o de pé sobre as perninhas grossas; fi-lo juntar as mãos e inclinar-se diante da avó; e murmurei:

- Diga, meu filho: Vovó...

- Vó... vó - balbuciou ele, olhando-a muito sério.

Já disse que minha mãe só o vira aos três meses de idade. E vós sabeis, minha Irmã, como ele é bonito! Ninguém lhe pode resistir.

O olhar de minha mãe caiu demoradamente sobre ele. Depois, endireitando-se, levantou-se e dirigiu-se a um armário doirado, donde tirou uma caixa de laca, cheia de bolinhos cobertos de sementes de gergelim. Abriu a caixa e encheu de bolos a mão do menino, que riu alto, ao vê-los. Minha mãe esboçou um sorriso:

- Coma, minha florzinha de lótus; coma, meu cordeirinho.

Vendo-a distraída por um instante, apanhei o livro, pus chá numa chávena e apresentei-lha com as duas mãos.

Pediu-me então que me sentasse. O menino brincava pelo chão e nós vigiávamo-lo. Esperei que ela falasse, por não saber se desejaria que o caso de meu irmão fosse, ou não, trazido à conversa. Mas não tocou logo no assunto, começando por dizer-me:

- Aí tem já o seu filho, minha filha... Lembrei-me da noite em que lhe contara a minha aflição. Agora, sentia em mim a alegria do alvorecer.

- É verdade, minha mãe - respondi, sorrindo.

- E é feliz ? - perguntou-me, sem tirar os olhos do menino.

- O meu Senhor é um príncipe pelas suas gentilezas para comigo, sua humilde esposa.

- O menino foi concebido e nasceu perfeito - disse ela, pensativa e continuando a olhá-lo. - Em tudo e por tudo, é perfeito. As dez partes da unidade são completas. Quanto a beleza, nada deixa a desejar. Ah! - e agitou-se, dando um suspiro. - Seu irmão era assim como esse menino. Antes tivesse ficado sem ele nessa idade, porque ao menos guardaria eu, a seu respeito, uma lembrança agradável.

Compreendi então que desejava conversar acerca de meu irmão, mas esperei ver mais claramente ainda a direcção dos seus pensamentos. Depois dum momento, minha mãe levantou os olhos para os meus:

- Recebeu a minha carta ?

Inclinei-me, respondendo:

- Sim; chegou-me às mãos esta manhã, entregue pela criada.

Suspirou de novo e, levantando-se, tirou outra carta da gaveta da sua escrivaninha. De pé, fiquei esperando que voltasse para ao pé de mim. Recebi depois, com ambas as mãos, a carta que me entregava.

- Leia - disse-me.

Era dum amigo de meu irmão, chamado Chu, com quem aquele embarcara em Pequim, com destino à América. A pedido de meu irmão, ele, Chu Cuo-ting, escrevia aos Honrados, a fim de dar--lhes a seguinte notícia: seu filho estava noivo, seguindo o costume ocidental, da filha dum dos seus professores na Universidade; que enviava aos pais o seu respeito filial e lhes pedia que desfizessem o seu noivado com a filha de Li, coisa que sempre o desgostara muito. Meu irmão - dizia Chu - reconhecia em tudo a superior virtude dos pais e a sua constante bondade com relação a ele, seu filho indigno. Desejava, contudo, confessar claramente que não podia desposar aquela de quem o fizeram noivo segundo os costumes chineses, porque os tempos haviam mudado e ele era um homem moderno, disposto a adoptar os modernos métodos do casamento com toda a independência e liberdade. A carta terminava com muitas frases cerimoniosas, e testemunhos e protestos de obediência e afeição filial.

Entretanto, meu irmão não dissimulava de qualquer modo a resolução que tomara. Pedira a um amigo que escrevesse em seu lugar, apenas com o propósito de evitar aos pais e a si próprio o constrangimento duma confissão directa.

Enquanto ia lendo a carta, o coração ardia-me em revolta contra meu irmão. Finda a leitura, dobrei-a e entreguei-a a minha mãe, sem dizer palavra.

- Enlouqueceu - foi tudo quanto me disse. - Mandei-lhe um telegrama, ordenando que regressasse imediatamente.

Notei então quanto se encontrava perturbada. Porque minha mãe era bem Velha-China, sob todos os aspectos. Quando plantaram nas ruas da nossa antiga e bela cidade uns altos postes que sustentavam fios de arame, como se fossem árvores enfeitadas com teias de aranha, minha mãe protestou contra tal profanação.

- Os nossos avós contentavam-se com o pincel e o vidro da tinta, e nós, seus descendentes indignos, que teremos a dizer de mais importante, em relação às suas venerandas palavras, para apressar as coisas? - exclamara, irritada.

Quando soube que as palavras se transmitiam através dos mares, perguntara:

- Além disso, que teremos de comunicar a esses bárbaros? Os deuses, em sua sabedoria, puseram um mar de permeio, para nos separar deles. É um sacrilégio juntar o que os deuses, na sua sabedoria, separaram.

E agora, no entanto, era ela mesma quem sentia já a necessidade das comunicações urgentes.

- Pensei que nunca teria de recorrer a estas invenções estrangeiras - disse, com tristeza. - E se meu filho tivesse ficado na sua terra, nunca tal coisa sucederia. Mas quem se liga aos bárbaros, atrela o diabo ao próprio moinho... Procurei acalmá-la:

- Não se aflija minha mãe. Meu irmão é obediente; há-de acatar a sua ordem e voltar a si, desistindo de correr atrás duma estrangeira.

Abanando a cabeça, minha mãe apoiou a fronte nas mãos. Vendo-a assim, senti-me tomada de súbita inquietação. Parecia seriamente doente. Nunca fora forte, mas a sua magreza aumentara ainda, e as mãos, que lhe amparavam a cabeça, tremiam. Curvei-me um pouco, no propósito de melhor a observar, mas voltou logo a falar, lentamente, com voz fraca e cansada:

- Já devia saber, há muito tempo, que quando uma mulher entra no coração dum homem, os olhos deste como que se retraem e só a ela vêem, de modo que para tudo o mais fica cego durante algum tempo.

Interrompeu-se, para descansar, e depois prosseguiu ; mas as palavras, por fim, já lhe saíam dos lábios como simples suspiros:

- Não é seu pai tido por homem sensato? No entanto, tive de resignar-me desde há muito às suas loucuras, sempre que a beleza duma mulher o domina e lhe desperta os desejos. Nesses momentos, torna-se mesmo incapaz de atender à razão. Conheceu dezenas de cantoras, além dessas bocas inúteis que nos trouxe para casa como concubinas. Temos aí três, e mais uma teríamos se o seu desejo por certa rapariga de Pequim não houvesse morrido antes de findas as negociações nesse sentido. Assim, como poderia o filho mostrar-se mais prudente do que o pai? Os homens...

De repente, animou-se. Os lábios contraíram--se-lhe de tal forma, que a boca, pouco antes tão cheia de desprezo, pareceu tornar-se num ser vivo.

- Os pensamentos íntimos dos homens enrolam-se sempre, como verdadeiras serpentes, ao corpo de alguma mulher.

Sentei-me, aterrada com estas palavras. Nunca ela me falara a respeito de meu pai e das suas concubinas. De súbito, via surgir assim o fundo da sua alma. A amargura e o sofrimento emprestavam-lhe entranhas de fogo. E nada encontrei que pudesse dar-lhe conforto, eu, a amada do meu Senhor. Tentei imaginar o meu marido tomando uma Segunda Esposa. Impossível! Só podia recordar as nossas horas de amor; e, involuntariamente, voltei os olhos para meu filho, que continuava a brincar com os bolinhos de gergelim.

Com que palavras consolaria minha mãe? E, no entanto, desejaria ardentemente dizer-lhe qualquer coisa.

- Pode ser que essa mulher estrangeira...- comecei, timidamente.

Mas minha mãe bateu, impaciente, com o longo cachimbo que acabara de tomar de sobre a mesa e que estava a encher com mãos nervosas e trémulas.

- Não falemos mais dessa mulher - ordenou. - Agora, cabe a meu filho obedecer. Virá desposar a filha de Li, sua noiva, e com ela formará o seu primeiro fruto. Uma vez cumprido o seu dever para com os antepassados, poderá arranjar quem bem queira para segunda mulher. Como posso eu esperar ver o filho mais perfeito do que o pai?

Mas, agora, quero silêncio. Deixe-me só. Sinto-me muito cansada. Preciso de repousar um pouco, deitada.

Nada pude dizer. Vi que, efectivamente, estava bastante pálida, e o corpo arqueado como um bambu meio murcho. Peguei em meu filho, e saí.

 

De volta a casa chorei e disse a meu marido ter-me sido impossível acalmar o desgosto de minha mãe. Poisando a sua mão sobre a minha, tranquilizou-me e pediu-me que esperasse com paciência a volta de meu irmão. Em face destas palavras e de tamanha bondade, voltou-me a confiança no futuro. Mas no dia seguinte, quando meu marido saiu para o seu trabalho, as dúvidas assaltaram-me de novo. Não podia esquecer minha mãe. Em meio das tristezas da sua vida, sentia-me presa ao mundo por esta grande esperança- a esperança de toda a mulher virtuosa: um filho de seu filho, que seria o esteio da sua velhice e lhe permitiria cumprir o seu dever para com a família.

Como é que meu irmão pôde colocar tão insensato desejo acima da própria vida de sua mãe? Hei-de repreendê-lo, repetindo-lhe tudo o que nossa mãe me disse. Dir-lhe-ei ainda que é ele o único filho varão, e perguntar-lhe-ei:

- Como é que queria colocar o filho duma estrangeira no colo de nossa mãe?

 

Por enquanto, de nada sabemos. Todos os dias mando o jardineiro a casa de minha mãe para ter notícias da sua saúde e saber se meu irmão deu quaisquer sinais de vida. Há quinze dias que a resposta é sempre a mesma:

- A Honrada diz não estar doente. Mas, aos olhos das escravas, emagrece, tendo quase deixado de se alimentar. Quanto ao senhor novo, nada se sabe ainda. É por esta razão, sem dúvida, que ela se está definhando: a alma destrói o corpo. Na sua idade já não se suporta facilmente a inquietação.

Porque é que meu irmão não escreve? Tenho preparado delicados manjares para minha mãe. Ponho-os em pratos de fina porcelana e envio-lhos sempre por intermédio das minhas servas, com esta mensagem: "Coma, minha mãe, essa pobre carne. Não terá sabor, talvez, mas preparei-a com as minhas próprias mãos. Por isso, ao menos, lhe peço que coma um pouco".

Mas dizem-me que mal lhes toca, poisando logo os pauzinhos. Minha mãe não consegue desterrar a angústia, da sua alma. Pois será permitido a meu irmão matar a nossa mãe? Já devia saber que as maneiras pouco filiais do Ocidente lhe são insuportáveis. É uma vergonha que de tal forma esqueça os seus deveres!

Passo muitas horas a meditar, reflectindo sobre a deliberação que meu irmão irá tomar. A princípio, convenci-me de que acabaria por obedecer a nossa mãe, pois dela herdou o corpo, a pele, os cabelos. Como poderia profanar essa pureza, com uma estrangeira ?

Para mais, desde muito cedo que ensinaram a meu irmão o sábio preceito do Grande Mestre: "O primeiro dever dum homem é prestar toda a atenção ao menor desejo de seus pais".

Quando meu pai regressar e souber das intenções de meu irmão, há-de também procurar resolver o assunto. Assim pensava eu, a princípio, procurando tranquilizar-me.

Agora, porém, sou como torrente incerta cujas águas transbordaram do leito. Meu marido é que, pela força do seu amor, me faz duvidar da sabedoria dos velhos costumes. Ainda ontem, à noite, me disse coisas estranhas. Vou contar-vo-las:

Estávamos então no pequeno terraço de tijolos que mandou construir do lado sul da nossa casa. O nosso filho estava já dormindo lá em cima, no seu leito de bambu. Os escravos, entregues às suas ocupações, haviam-se retirado. Sentada num banquinho de porcelana, conservava-me como convém, um pouco afastada do meu Senhor, estendido num divã de junco.

Ambos olhávamos gostosos a Lua-cheia, que passeava no céu. Levantava-se já o vento da noite, e através do firmamento corria, com a rapidez de grandes pássaros brancos, uma série de brancas nuvens, que ora ocultavam a face da Lua, ora lhe permitiam uma maravilhosa pureza. E as nuvens corriam tão depressa que parecia que a própria Lua corria também por cima das árvores. Um cheiro a terra húmida enchia a atmosfera da noite.

A alegria desta beleza e desta paz trasbordava-me do coração. Experimentei, repentinamente, uma grande alegria de viver. Em dado momento, levantando os olhos, percebi que meu marido me contemplava. Senti uma felicidade estranha e confusa.

- Que Lua! - disse ele, por fim, com a voz perturbada pelo próprio encantamento. - Quer tocar um pouco na sua velha harpa, Cuei-Lan?

Não concordei logo com a ideia, e disse:

- Segundo os nossos antepassados que a fabricaram, a harpa tem seis aversões e sete interdições. Assim, ela não tem voz em presença dum luto, de instrumentos festivos quando o músico está triste ou é indigno, quando o lume não foi renovado ao incenso em tempo devido, ou ante um ouvinte que nos seja pouco simpático. Se a harpa não cantar esta noite, a que aversão poderemos atribuir o facto, meu Senhor?

Tomou um ar grave, ao responder:

- Não, meu coração; lembro-me dum dia em que a harpa não quis tocar, porque era eu a aversão: um ouvinte pouco simpático. Mas agora? Deixe que os seus dedos toquem os velhos cânticos de amor, os cantos dos poetas.

Então, levantei-me, tomei a harpa e apoiei-a sobre a mesinha de pedra, a seu lado. De pé, feri as cordas, a mim mesma perguntando o que iria cantar. Afinal, decidi-me por esta canção:

É fresco o vento outonal, Claro da Lua o palor; Caem folhas, a morrer, Espalhando-se no pó. Com o frio, um negro corvo Deixa a árvore ancestral. Onde estás, ó meu amor ? Poderei tornar-te a ver ? Minh'alma, esta noite, chora, Sentindo-me assim tão só!

E o estribilho triste continuou a ressoar por muito tempo ainda, depois de ter deixado de ferir as cordas: "Só-só-só"... O vento apoderou-se do eco, e todo o jardim se encheu do lúgubre som; e vibrava estranhamente dentro de mim, despertando a minha tristeza esquecida por uma hora. Era a tristeza de minha mãe.

Poisei a mão ao de leve sobre as cordas, para abafar-lhes o gemido.

- Eu, meu Senhor, é que sou a aversão, esta noite. A tocadora está angustiada e a harpa geme com ela.

- Angustiada?!

E dizendo isto, meu marido levantou-se, apro-ximando-se e pegando-me na mão.

- É por minha mãe - disse-lhe baixinho, ousando repousar a cabeça, por um instante, no seu braço. - Ela está aflita, e a sua aflição é-me transmitida pela harpa. Por causa de meu irmão.

Sinto que está aflita esta noite. Anda tudo perturbado, na expectativa da vinda de meu irmão. Minha mãe só nele pensa. De há muito que quase nada de comum há entre ela e meu pai, e eu própria pertenço já a outra família, a sua.

A princípio, meu marido nada disse. Tirou do bolso um cigarro estrangeiro e acendeu-o; depois, acentuou com voz calma:

- É necessário que se vá preparando para o golpe. É preferível encarar a verdade, de frente. Oiça: é provável que seu irmão não obedeça a sua mãe.

Senti-me aterrada.

- Oh! Porque julga isso ?

- E quem lhe garante que ele obedecerá ? - perguntou-me, por sua vez, expelindo grossas baforadas de fumo.

Não me dei por vencida:

- Não me responda com outra pergunta. Eu nada sei. Sou pouco hábil em raciocínios. Para a minha convicção, só há uma base; é esta: é que ele aprendeu que a obediência aos pais é o fundamento do Estado e o dever dum filho...

- Os velhos fundamentos desmoronam-se... Já estão em ruínas. No nosso tempo, são precisas razões mais fortes do que essas!

Estas palavras encheram-me de dúvida. Depois, lembrei-me da minha íntima consolação, uma ideia que nunca exprimira; e formulei, baixinho, o meu pensamento íntimo:

- As estrangeiras são muito feias. Como pode um homem da nossa raça casar com uma delas? Os seus compatriotas não têm outro recurso; mas...

 

Interrompi-me logo, porque tinha vergonha de falar assim, a respeito dos homens, diante de meu marido. Contudo, como é que algum deles podia desejar uma mulher semelhante àquela que víramos antes do nascimento do meu filho - aqueles olhos claros e chatos, os cabelos secos, as mãos e os pés tão grosseiros? Conheço meu irmão. Não é ele o filho de meu pai, que sempre amou, acima de tudo, no mundo, a beleza das mulheres?

Meu marido sorriu ligeiramente:

- Oh! Nem todas as chinesas são belas, nem todas as estrangeiras são feias! A filha de Li, a noiva de seu irmão, não é bonita, segundo consta. Dizem, nas casas de chá, que os lábios dela são excessivamente grossos e curvos para baixo, como foices de cortar o arroz.

- Que têm os ociosos das casas de chá que ver com isso ? - exclamei indignada. - É uma menina distinta e de família nobre.

Encolheu os ombros.

- Estou-me limitando a repetir o que tenho ouvido e que seu irmão deve saber também. E é possível que esses comentários ajudassem o seu coração errante a fixar-se noutra mulher.

Por instantes, ficámos em silêncio.

- E as estrangeiras - prosseguiu meu marido, fumando, com ar sonhador - são às vezes tão belas como a Estrela Branca! Pupilas claras, corpos livres...

Voltei-me, esbogalhando os olhos para ele, que continuou sem dar pelo meu espanto:

- ...lindos braços nus... garanto-lhe que não têm nem a modéstia postiça nem a reserva das nossas mulheres. São tão livres como o Sol e o vento. Com risos e danças, conquistam o coração dum homem e deixam-no, depois, filtrar-se por entre os dedos, como um raio de luz, e perder-se no chão.

Por um momento, a minha respiração parou. De quem falaria meu marido? Que estrangeira lhe teria ensinado aquilo? Senti uma cólera súbita e amarga.

- O Senhor... O Senhor... - balbuciei.

Ele agitou a cabeça, zombando um pouco de mim.

- Mas que mulher esta! Não. Nenhuma me roubou assim o coração. Duma forma ou doutra, guardei-o até ao dia em que...

E a sua voz tomou um acento delicado, que minha alma compreendeu, e senti-me perturbada.

- Mas custou-lhe? - insisti baixinho.

- Sim, às vezes. Nós, os chineses, temos vivido só ao nosso modo; as nossas mulheres são cheias de reserva e de modéstia. Nada revelam de si mesmas. E para um rapaz (e seu irmão é um rapaz), essas outras mulheres, as estrangeiras, com a sua bela carne duma alvura de cisne, seus corpos esquisitos oferecendo-se na dança...

- Basta, meu Senhor!-interrompi, com certa dignidade. - Isso é conversa para homens; não posso ouvir mais. Essas criaturas serão de facto tão pouco cultas e tão selvagens como se poderia julgar, ouvindo-o?

- Não. Isso deve-se, em parte, ao facto de o país dessa gente ser ainda jovem; e a mocidade quer divertir-se à vontade. Se lhe digo tudo isto, é porque seu irmão é moço também, sendo preciso não esquecer, embora tal coisa lhe não seja agradável, que os lábios da filha de Li são grossos e caídos para baixo como uma foicinha.

E sorriu de novo, pondo-se a fitar a Lua.

O meu Senhor querido é um sábio. Não posso deixar de ouvir as suas palavras. Depois do que me disse, começo a acreditar que há um estranho encanto na carne nua das mulheres estrangeiras. Ouvindo meu marido, sinto-me perturbada, só com esta ideia. Estas coisas fazem-me lembrar os olhos brilhantes e o riso de meu pai, quando acompanhado pela concubina favorita. Estremeci. Mas não posso libertar-me de tal pensamento.

Pus-me a reflectir. Não há dúvida de que meu irmão é já um homem. E o seu silêncio, um mau sintoma. Em criança, era justamente quando tomava uma resolução, que ficava calado. Uang Da * Ma contou-me: se minha mãe lhe proibia qualquer coisa, ele emudecia, mas cada vez mais aferrado ao seu ponto de vista.

Dando um suspiro, coloquei a harpa no seu estojo de laca. A Lua libertara-se das nuvens por completo, e uma chuva miudinha começava a cair.

Recolhemo-nos. Mas dormi mal.

 

A aurora surgiu num céu parado e cinzento. Sob o peso dos últimos calores, a atmosfera encon-tra-se saturada de humidade. Meu filho está agitado, mas não lhe descubro qualquer sinal de doença.

Ao voltar de casa de minha mãe, o criado que lá mandara trouxe-me a notícia da chegada de meu pai. Parece que Uang Da Ma, enchendo-se de coragem, lhe enviara uma carta, que mandara redigir pelo escriba público instalado à porta do Templo. Pedia ela, humildemente, a meu pai, que voltasse, pois minha mãe estava a definhar-se a olhos vistos, dias e dias encerrada no quarto, sem poder alimentar-se. Recebida esta carta, meu pai veio passar quarenta e oito horas em casa.

Deliberei ir vê-lo e vesti meu filho de encarnado, por ser a sua primeira visita ao avô.

Fui encontrá-lo sentado um pouco além do tanque, no Pátio do Peixe Vermelho. Como fazia calor e meu pai engordara excessivamente, as suas roupas eram de seda leve, pálida como a água à sombra dos salgueiros. Abanava-o a Segunda Esposa, cujas faces brilhavam de suor com esse trabalho inesperado. Tinha ao colo um dos filhos desta, vestido de gala, pelo seu regresso.

Quando entrei no pátio, meu pai bateu palmas, exclamando:

- Ah! Aí vêm a mãe e o filho!

Pôs a criança no chão e fez sinal a meu filho para que se aproximasse, chamando-o com voz doce e com sorrisos. Inclinei-me profundamente diante de meu pai, que me respondeu com um sinal da cabeça, fitando sempre o meu filho. Então, juntei as mãos do menino, obrigando-o a fazer uma vénia. Meu pai estava encantado.

- Ah! Ah! - repetia, baixinho.

Sentou meu filho no colo, apalpando-lhe as pernas e os braços carnudos; e sorria ao ver-lhe os olhitos escancarados e surpresos.

- Um homem! - exclamou, satisfeito. - Que uma escrava lhe traga gulodices, bolos e bombons com creme.

Senti-me consternada. Como é que o meu menino, com os seus dois dentes, poderia comer aqueles bombons?

- Meu Honrado pai: ele é muito pequeno ainda e o seu estômago nunca digeriu alimentos sólidos...

Impôs-me silêncio com um gesto da mão e pôs--se a falar com o menino. Tive de conformar-me.

- Você está um homem! Sua mãe ainda o alimenta só com papinhas?... Minha filha, eu também tive filhos, muitos, quatro ou cinco, creio. Já nem sei bem. Em todo o caso sempre sei mais do que minha filha, mãe dum só filho, mesmo que ele seja como este.

Soltou uma risada, e acrescentou:

- Ah! Só meu filho, seu irmão, me poderá dar um menino assim, da filha de Li, para venerar meus ossos!

Ouvindo-o referir-se a meu irmão, apressei-me a perguntar-lhe:

- E se ele casar com uma estrangeira, meu pai? É este receio que atormenta a alma da minha mãe, fazendo o seu corpo enfraquecer dia a dia.

- Não! É impossível! - foi a sua resposta, em tom breve. - Como havia de casar sem o meu consentimento ? Não seria legal. Sua mãe aflige-se inutilmente a respeito deste caso. Ainda esta manhã lhe disse: "Não esteja a inquietar-se sem motivo. Deixe que o rapaz se divirta com essa estrangeira. Tem vinte e quatro anos; é o sangue que lhe requer isso mesmo. Não quer dizer nada, isto. Na idade dele, amava eu três cantoras. Deixe-o gozar à vontade. Quando se cansar, dentro de uma lua ou duas - ou mesmo quatro ou cinco, se se tratar realmente duma mulher bonita, o que não espero - há-de espontaneamente resolver-se a casar. Pode lá supor-se que vá viver durante quatro anos como um frade, mesmo em terra estranha! As mulheres, lá, são como as outras". Mas sua mãe foi sempre incompreensível. Está desde o princípio possuída duma estranha veemência. Isto não é dizer mal dela. É uma boa mulher e pelas suas mãos nunca o meu oiro e a minha prata serão esbanjados. Disso, nada tenho a queixar-me; de modo algum. Também nunca me censura, como fazem outras. A falar a verdade, às vezes até gostava de que o fizesse, em vez de ter de encontrar aquele silêncio que sempre me desconcertou, mesmo logo no princípio. Ah! Mas desta vez a coisa não tem importância alguma. Ninguém pode compreender os caprichos das mulheres! Desde nova que tem esse defeito: demasiada gravidade, para que nos agrade na vida quotidiana. Uma ideia ou um dever imaginário assalta-lhe o espírito, e logo se torna o centro da sua vida. É horrível...

Interrompeu-se. Nunca o tinha visto tão irritado. Tomando o leque das mãos da Segunda Esposa, começou a abanar-se agitadamente. Pôs o meu filho no chão e pareceu tê-lo esquecido. Depois recomeçou a falar, quase num tom de cólera:

- Agora meteu-se-lhe na cabeça essa estranha fantasia feminina; como se o nosso neto tivesse forçosamente de nascer da primeira união do

* nosso filho, para ser favorecido pelos céus! Que supersticiosa noção esta! Ah! Como as mulheres são obstinadas! Até mesmo as melhores de entre elas, permanecem sempre ignorantes, enclausuradas, longe do mundo...

Cerrou os olhos, abanando-se por momentos em silêncio. Em seguida, passada a irritação, a fisionomia readquiriu-lhe a habitual expressão de bom-humor, sorridente e tranquila. Abriu de novo os olhos e encheu meu filho de bolos, dizendo:

- Come, meu menino... Que importância tem isto tudo? Não deve inquietar-se, minha filha. Pois pode um filho desobedecer ao pai, e viver? Lá quanto a isso, estou tranquilo.

Apesar de tudo não me sentia satisfeita e, passado pouco tempo, vi-me forçada a dizer-lhe:

- Mas imagine, meu pai, que ele se recusa a desposar a noiva. Ouvi já dizer que nos tempos actuais...

Meu pai nada quis saber e, agitando a mão e sorrindo, exclamou:

- Recusar! Nunca, em parte alguma, um filho pode dizer não a seu pai. Tranquilize-se, minha filha. Dentro de um ano, já ele terá procriado um filho segundo a lei, com a filha de Li.

E dando uma palmadinha no rosto de meu filho:

- Um maroto assim como tu, meu homenzarrão.

 

Repeti as palavras de meu pai a meu marido, que me ouviu, respondendo depois, com ar pensativo:

- O pior de tudo é que a estrangeira há-de recusar-se, sem dúvida, a aceitar uma situação subalterna. Não é costume, no seu país, um homem tomar Segunda Esposa.

Nada tive que objectar. Não me ocorrera ainda pensar nela, nem no que ela poderia pensar dos nossos costumes. O haver seduzido meu irmão já devia bastar-lhe. Só este me preocupava e o seu dever para com os pais.

- Quer dizer com isso que ela espera ser a única mulher de meu irmão, para toda a vida ? - perguntei.

Sentia-me indignada. Como poderia ela proibir o que, afinal de contas, era um direito de meu irmão, segundo as leis do nosso país? Isso seria exigir-lhe mais do que minha Honrada mãe exigira de meu pai. Fiz ver isto a meu marido, concluindo por dizer:

- Parece-me que a coisa é muito simples. Se quer casar com um homem da nossa raça, tem de concèder-lhe a habitual liberdade. Não pode pretender trazer para aqui os modos exóticos da sua terra.

Meu marido olhou-me com um estranho sorriso, que me surpreendeu. Depois, disse-me:

- Ora suponhamos que eu desejava tomar outra mulher, que queria ter uma concubina...

Fiquei fria, como se me houvesse posto uma pedra de gelo sobre o coração. Murmurei:

- Oh! Não, meu Senhor, não é possível! Agora, já não poderíeis. Já vos dei um filho!

Ele levantou-se rapidamente e senti seus braços em redor dos meus ombros.

- Não, não, meu coração! Não é isso que eu queria dizer. Não queria... não poderia... Posso garantir-lhe!

Mas aquela sua primeira frase havia sido demasiado brusca. As mulheres temem sempre tais palavras, embora, em geral, devam esperá-las. Eu é que não as esperava, porque ele ama-me. E agora, sem me avisar, meu marido fazia nascer-me no coração toda a angústia de minha mãe, o sofrimento de cem gerações de mulheres que amaram o seu senhor e perderam os seus favores. Não pude mais; explodi em soluços convulsivos, que não podia dominar.

Meu marido procurava consolar-me, apertando-me as mãos e falando-me baixinho. Mas não posso repetir-vos as suas palavras, minha Irmã, porque, mesmo repetidas só entre nós, me fariam corar. Só de pensar nelas, sinto-me ainda confundida: era o amor, uma coisa assim tão estranha, que as minhas lágrimas cessaram. Estava calma já.

Após um momento de silêncio, perguntou-me:

- Porque chorou ?

Senti o sangue subir-me às faces e inclinei a cabeça. Ele levantou-ma delicadamente, insistindo :

- Porquê? Mas porquê?

Como acontece sempre que respondo às suas perguntas, a verdade saiu-me dos lábios:

- Porque o meu Senhor está em meu coração, enchendo-o inteiramente, e eu queria...

Calei-me. Meu marido respondeu-me com o olhar, dizendo-me depois, baixinho, ternamente:

- E se a estrangeira amar o seu irmão da mesma forma ? A natureza dela não difere da das outras mulheres, só porque nasceu do outro lado dos mares ocidentais. Ambas vós sois mulheres que se parecem bem, nos corações e nos desejos.

Não tinha pensado nisto. Até então, não havia compreendido coisa alguma. É sempre meu marido quem me ensina.

Oh! Tenho medo, tenho medo! Começo a compreender. Que será de nós, se tal amor existir entre meu irmão e a estrangeira?...

 

Recebemos carta de meu irmão. Escreveu-nos, a meu marido e a mim, pedindo que o auxiliássemos. Pede mesmo a nossa interferência junto de nossos pais. Depois, fala-nos dela, da estrangeira. Tem palavras lindas para descrever a sua beleza: até a compara a um pinheiro coberto de neve.

A seguir, minha Irmã, diz-nos que se casou já com ela segundo as leis estrangeiras. Vai trazê-la consigo, uma vez que a mãe ordena o seu regresso, e suplica-nos que o ajudemos, como se fosse a sua vida que estivesse em perigo. Tudo isto, porque se amam.

Dou-me por vencida. Por causa do amor que existe entre mim e meu marido, sinto-me completamente transformada. Já não posso ouvir minha mãe. Não penso sequer na sua tristeza. Esqueço até a desobediência de meu irmão. Para mim, há um argumento decisivo: se ela o ama como eu amo o meu Senhor, nada lhes posso recusar.

Irei procurar minha mãe.

 

Há três dias, minha Irmã, fui visitar minha mãe. Preparei-me para me apresentar em sua casa com toda a humildade. Escolhi com antecedência as palavras que iria dizer-lhe, como um noivo escolhe presentes para a sua noiva.

Entrei sozinha no seu quarto, ficando de pé. Falei com tacto, persuasivamente.

Minha mãe nada quis compreender. Nada, minha Irmã! Estamos distantes uma da outra. No fundo, acusa-me mesmo de fraternizar em silêncio com a estrangeira e tomar o partido de meu irmão contra ela. Não quer dizer-me estas coisas, mas pensa-as; sinto-o. Não atende explicação alguma.

E, no entanto, com que cuidado eu havia preparado o meu discurso! Dizia para mim mesma: "Despertar-lhe-ei as recordações do seu casamento, a lembrança dos primeiros dias de amor com meu pai, quando, jovem ainda, ela era muito bela".

Mas as palavras são formas demasiado inflexíveis para poderem conter a essência espiritual do amor. Não podemos tentar prender uma nuvem cor-de-rosa num vaso de ferro, nem pintar uma borboleta com um duro pincel de bambu. Quando lhe falava, hesitante em virtude da delicadeza do assunto, no encanto do amor entre seres jovens, e a secreta harmonia que liga dois corações sem que eles mesmos disso se apercebam, minha mãe tomou um ar desdenhoso para dizer:

- Entre um homem e uma mulher, nada disso existe. O que há, é desejo, apenas. Não procure expressões poéticas para o descrever. É desejo, só: o homem deseja a mulher, a mulher deseja um filho. Satisfeito o desejo, nada resta. Insisti ainda:

- Não se recorda, minha mãe, de como as almas de ambos se confundiram, no momento do seu casamento com meu pai?

Mas ela cerrou-me os lábios com os dedos ardentes:

- Não se trata dele. Teve no coração cem mulheres. A qual delas falaria o seu coração?

- E quanto ao seu, minha mãe? - perguntei com doçura. E tomei-lhe a mão trémula, que ela deixou entre as minhas por um instante, para logo a retirar.

- O meu coração está vazio. Aguarda apenas o meu neto, o filho de meu filho. Quando o tiverem levado ante as tábuas sagradas dos antepassados, poderei morrer em paz.

Dizendo isto, voltou-se, recusando-se a proferir qualquer palavra mais.

Voltei cheia de tristeza. Que é, então, que me separa de minha mãe? Falámos alto, e não nos ouvíamos. Conversámos, e não nos compreendemos. Sou eu que estou mudada, e foi o amor, eu sei, que assim me transformou.

Sou como uma frágil ponte, ligando, no infinito, o passado e o presente. Aperto a mão materna; não posso largá-la, porque, de contrário, minha mãe ficaria sozinha. Mas meu marido segu-ra-me as minhas, apertando-as fortemente. Nunca poderia deixar fugir o amor.

E o futuro, minha Irmã?...

 

Passo os dias esperando. Julgo sonhar sempre o mesmo sonho: sobre um mar azul voga um navio branco, que avança, como um grande pássaro, em direcção à praia; se eu pudesse, estenderia a mão pelo Oceano fora, para o segurar e impedir que chegasse cá.

A mim mesma pergunto como poderá meu irmão ser feliz aqui, já que actualmente não há lugar para ele sob o tecto de meu pai.

As minhas mãos são demasiado débeis para deter os acontecimentos. Abandono-me aos sonhos, já que nada consigo ver claramente. Só meu filho, com os seus sorrisos e os retalhos das suas primeiras palavras balbuciadas, consegue afastar do meu espírito a obsessão do navio. De dia, conservo sempre o menino a meu lado; mas, de noite, desperto atormentada com o quebrar das ondas; o navio aproxima-se pouco a pouco, sem que seja possível evitá-lo.

Que irá passar-se, quando meu irmão chegar com sua mulher? Penso nisto, e sinto-me aterrada. Emudeço, neste período de espera. Para mim, não há felicidade nem infelicidade: há ansiedade apenas...

Segundo meu marido, o navio branco deve chegar dentro de sete dias ao porto na embocadura do rio, o grande Filho do Mar que corre pela cidade diante da porta do Norte. Meu marido admira-se de me ver agarrada a essas horas, com o desejo de as tornar mais longas e assim retardar quanto possível a chegada do Oitavo Dia. Não encontro palavras para explicar-lhe o meu receio pelo que estará para acontecer. Ele é homem. Como poderia compreender o coração de minha mãe? Não esqueço nunca quanto ela teme também a chegada de meu irmão. De resto, não voltei mais a sua casa. Nada temos a dizer uma à outra, por agora.

Também não esqueço meu irmão, nem a mulher que ele ama.

Sinto-me arrastada para um lado e para outro, como frágil arbusto baloiçado por um vento forte e terrível.

 

Nem pude esperar pela vossa hora de descanso, minha Irmã. Vim a pé. Deixei o meu filho entregue à empregada, sem me preocupar com o seu choro quando me viu sair. Não. Não quero chá. Tenho de voltar quanto antes. Vim apenas para vos prevenir: já chegaram! Meu irmão e a estrangeira estão lá há duas horas. Comeram connosco. Vi-a, ouvi-a, mas não compreendo nada do que ela diz. É tão estranha, que, por mais que faça, os meus olhos não podem desviar-se dela.

Estávamos a almoçar, quando chegaram. O porteiro veio, a correr, ter connosco, ofegante, sem quase se deter para nos saudar, e anunciou:

- Está à porta um senhor com uma pessoa como nunca vi outra igual! É grande como um homem, mas o rosto parece de mulher.

Meu marido olhou para mim e poisou o talher.

- São eles - disse tranquilamente, respondendo ao meu olhar surpreso.

E foi em pessoa abrir-lhes a porta, trazendo-os logo para dentro de casa. Levantei-me para os cumprimentar, mas, ao ver a alta figura da estrangeira, não pude dizer palavra. Quase nem vi meu irmão; só a presença dela me preocupava, aquele corpo enorme e magro metido numa espécie de vestido azul-escuro que lhe ia até aos joelhos.

Meu marido é que parecia não experimentar qualquer emoção. Convidou-os a sentarem-se à mesa, e pediu chá e arroz. Eu nada dizia; o que fazia, era olhar sempre para a mulher.

Agora mesmo, limito-me a perguntar: "Que havemos de fazer desta estrangeira ? Como poderá ela participar da nossa vida ?"

Esqueço que meu irmão a ama. Admiro-me de vê-la em minha casa e fico confusa. É um sonho que se sente ser passageiro mesmo enquanto dura, porque a sua inverosimilhança destrói todo o seu aspecto de realidade.

Perguntais-me com quem se parece? Nem sei como explicar-vo-lo, muito embora, como já vos disse, não tivesse feito outra coisa que não fosse olhar para ela. Ora deixai-me reflectir.

É mais alta que meu irmão. Tem os cabelos cortados, mas, em vez de serem harmoniosamente puxados e alisados para trás das orelhas, parecem como que soprados e postos em desordem pelos quatro ventos. E são ruivos, da cor do vinho de osso de tigre. Os olhos lembram o mar sob um céu de tempestade, e o seu sorriso não é fácil.

Ao vê-la, a mim mesma perguntei logo: "É bonita?" Não. As suas sobrancelhas, em vez de fazerem a delicada curva das antenas de falena tão admirada nas nossas mulheres, são grossas e escuras, sobre os olhos pensativos. Ao pé do dela, o rosto de meu irmão parece muito mais juvenil, os ossos mais delicados, as faces mais bem modeladas. No entanto, tem apenas vinte anos, quatro menos do que ele.

Olhando as mãos de ambos, ocultando-lhes os corpos, iria jurar que as de meu irmão é que são de mulher: muito finas e com uma bela cor de azeitona. Comparada comigo, a estrangeira tem grossos punhos, e os ossos aparecem-lhe sob a pele distendida. Quando me apertou a mão, senti-lhe a palma calosa e dura, contra a minha.

Disse isto a meu marido, depois do almoço, quando ficámos a sós por uns momentos. Explicou-me então que isto é devido a um jogo chamado ténis, que as estrangeiras jogam com os maridos, para os distraírem, creio eu. As mulheres ocidentais têm umas maneiras muito esquisitas de se fazerem amar.

Os pés dela são, pelo menos, duas polegadas maiores que os de meu irmão. Como isso deve ser aborrecido para ambos!

Meu irmão traja à moda ocidental e estranho-o bem, sob vários aspectos. Tem movimentos rápidos e mostra-se agitado. Em vão procuro encontrar nele aquela mocidade viva, aquela gentileza do rapaz que antes era. Agora, ergue a cabeça e, quando está calado, toma um aspecto grave. Não usa jóias nem quaisquer outros enfeites, a não ser, no segundo dedo duma das mãos, uma simples argola de oiro maciço, sem a menor pedra incrustada. As roupas escuras e pesadas do Ocidente acentuam-lhe ainda mais a palidez da pele.

Chega a sentar-se à maneira ocidental, um joelho sobre o outro. Fala sem esforço a língua de sua mulher, quando esta se lhes dirige, a ele ou a meu marido. As palavras saltam-lhe da boca com um rumor de pedras batendo contra rochedos.

Está completamente mudado. Já não baixa os olhos, quando fala com alguém, conservando-os, vivos e afoitos, arrogantemente fitos no rosto do interlocutor. Usa uns óculos horríveis, num misto de escama escura e de oiro, que o envelhecem.

Os seus lábios, porém, é que são ainda os de nossa mãe: delgados, finos, bem apertados um contra o outro, quando em repouso. Só nesses lábios encontro ainda os traços da antiga teimosia infantil, que se manifestava sempre que lhe recusavam o que ele desejava. Pelos lábios, é que reconheci meu irmão.

Eu e meu filho, somos, creio, os únicos chineses presentes. Os outros encontram-se em nossa casa, mas conservando os seus trajos exóticos e falando a sua estranha linguagem. Eu e meu filho, não os compreendemos.

Ficarão connosco até que nossos pais os recebam. Quando a minha mãe souber que lhes permiti que morassem aqui, ficará irritada por o meu tecto ter sido tão pouco filial.

Tenho medo. Mas a verdade é que tenho de agir de acordo com o desejo de meu marido. Para mais, não se trata de meu irmão, do filho de minha mãe?

 

Quando todos nos sentamos para comer o arroz, ela não consegue servir-se dos pauzinhos.

Rio às escondidas, ao vê-la manejar os paus com menos habilidade do que o meu filho com as suas pequeninas mãos. No esforço para aprender a servir-se deles, aperta-os muito entre os dedos e franze as sobrancelhas. Mas não está habituada a lidar com coisas delicadas. Não sabe nada.

Nunca ouvi uma voz semelhante à dela. Nós gostamos dos timbres leves e suaves, como o correr dum riacho por entre duas pedras, ou como o pipilar dos passarinhos no arvoredo. Ela tem uma voz cheia e profunda, e, embora fale pouco, todos se interrompem para ouvi-la. É o som forte do canto dos tordos na altura das colheitas, na Primavera, quando o arroz aguarda que o juntem em feixes. Ao falar com meu irmão ou meu marido, as palavras saem-lhe em frases rápidas. Nunca se me dirige, a mim, porque não nos compreenderíamos.

Sorriu-me por duas vezes - um sorriso breve e luminoso, que parte dos olhos, semelhante a um raio de sol doirado batendo nas águas sombrias. Compreendi então que quereria dizer-me: "Seremos amigas?" E olhámo-nos, hesitantes. Para mim mesma, respondi: "Vê-lo-emos, quando lhe apresentar o meu filho".

Vesti ao menino um casaquinho de seda vermelha e calças verdes; e calcei-lhe os sapatinhos bordados a flores de cerejeira; na cabeça, pus-lhe um chapéu sem copa, cercado de pequenos Budas ; e coloquei-lhe ao pescoço a sua cadeia de prata.

Assim vestido, parecia um verdadeiro príncipe. Conduzi-o então à presença da estrangeira. O menino conservou-se de pé diante dela, de perninhas juntas, olhando-a com ar espantado. Disse-lhe que a cumprimentasse; juntando as mãozinhas, inclinou-se, quase perdendo o equilíbrio.

Ela fitava-o com um sorriso; e quando ele a cumprimentou, pôs-se a rir forte, um riso em nota grave, como um dobre de sino. Depois, disse qualquer palavra que não conheço, muito doce, levantou meu filho e apertou-o contra o peito, apoiando os lábios levemente no pescocinho dele.

O chapéu caiu. Ela olhou-me por cima da cabeça da criança. Que olhar aquele, minha Irmã! Os seus olhos diziam claramente: "Quem me dera um menino assim!"

Sorri-lhe então: "Seremos amigas!"

Parece-me que começo a compreender a razão por que meu irmão a ama.

 

Passaram-se já cinco dias depois da sua chegada. Ainda não se apresentaram a meus pais. Meu marido e meu irmão passam juntos longas horas, conversando, inquietos, em língua ocidental. Ignoro o que resolveram. Em todo o caso, temos de proceder com prudência. Entretanto, vou observando a estrangeira.

Se me perguntardes o que penso a seu respeito, ser-me-á difícil dizer-vo-lo. Certamente que é diferente das nossas mulheres. Nenhum dos seus movimentos demonstra qualquer constrangimento: são livres, rápidos, cheios de graça. O olhar bem de frente revela coragem. Os seus olhos procuram os de meu irmão sem a menor timidez.

Ouve a conversa dos homens, interrompe-os com uma observação viva, e põem-se todos a rir. Mostra-se tão familiarizada com eles, como a Quarta Esposa.

Mas não é a mesma coisa. Com a confiança que a sua beleza lhe dava em face dos homens, a Quarta Esposa parecia, no entanto, ocultar certo receio: mesmo no momento do seu maior triunfo, bem devia temer a hora em que essa beleza desapareceria pouco a pouco, nada lhe restando então para conquistar os corações.

A estrangeira nenhumas preocupações tem consigo mesma. Embora seja menos bonita do que a concubina, nunca se mostra perturbada por assim ser. Aceita como coisa natural o interesse que desperta, mas nada faz para chamar a atenção. Parece dizer: "Eu sou tal como me vedes. E nem procuro ser de outro modo".

Julgo-a muito orgulhosa. De qualquer forma, parece-me bem indiferente a todas as dificuldades que veio trazer à nossa família. Brinca preguiçosamente com meu filho, lê livros - trouxe caixotes inteiros - e escreve cartas. E que cartas! Por cima do seu ombro, vi uma dessas páginas coberta de grandes, enormes sinais, agarrados uns aos outros. É impossível compreender, ali, seja o que for! Mas o que prefere a tudo é ficar sentada no jardim, absorta, a cismar. Não lhe vi ainda um bordado entre as mãos.

Uma vez, de manhã cedo, saiu ela com meu irmão. Voltaram ao meio-dia, empoeirados, sujos de terra. Deveras surpreendida, perguntei a meu marido o que teriam eles feito para chegar a casa naquele estado.

- Deram uma "volta", como dizem os ocidentais - respondeu-me.

- Deram uma "volta"?! - insisti, intrigada.

- Sim, fizeram uma rápida excursão a qualquer ponto afastado. Olhe: hoje, escalaram a Montanha Púrpura.

- Porquê ?

- Por gosto; consideram isso um prazer. Que esquisito! Aqui, nem uma rapariga do campo gostaria de ter de andar durante tanto tempo. Fiz também esta observação a meu irmão, que me explicou:

- Minha mulher está acostumada a uma vida livre, na sua terra, e por isso se sente presa, aqui, neste jardinzinho, por detrás das altas muralhas.

Fiquei admirada. A nossa existência, segundo me parece, pode considerar-se já absolutamente moderna, liberta como está das velhas restrições. O muro do jardim serve-nos apenas para preservar a nossa vida privada: não seria bonito que, ao passar pela porta, nos visse qualquer vendedor de legumes ou de bombons. Pensei logo: "Que faria então, se vivesse nos pátios?" Mas nada disse.

 

Ela demonstra a meu irmão, abertamente, o seu amor.

Ontem à tardinha, encontrávamo-nos todos no jardim, gozando a frescura. Eu tomara o meu lugar habitual, no banco de porcelana, um pouco afastada dos homens. A estrangeira veio sentar-se ao pé de mim, na pequena balaustrada de grades que cerca o terraço. Com o ar meio sorridente com que sempre me fala, apontou com o dedo vários objectos, um após outro, na penumbra, e pediu-me que lhe ensinasse o nome de cada um, para depois o ir repetindo. Aprende muito depressa e jamais esquece, depois de ter compreendido. Repetia várias vezes as sílabas, saboreando as entonações e rindo um pouco, quando eu, timidamente, a corrigia.

Divertíamo-nos com isto, enquanto meu marido e meu irmão conversavam.

A noite caiu, e já não podíamos distinguir as árvores, nem as flores, nem as pedras. A estrangeira mostrou-se então inquieta e, silenciosa, voltou os olhos para meu irmão. Por fim, levantou-se subitamente e dirigiu-se para ele, com o passo cadenciado, agitando-se à sua volta, como se fosse simples nevoeiro, o tecido leve do seu vestido branco. Pôs-se a rir, dizendo-lhe ao mesmo tempo algumas palavras em voz baixa e pegando-lhe nas mãos.

Procurei não os ver. Quando arrisquei de novo o olhar para o seu lado, com o pretexto de sondar a direcção do vento, estava ela sentada no chão, nos tijolos do terraço, apoiada na cadeira do marido e com uma face encostada à mão deste. Tive um impulso de comiseração por meu irmão, que devia sentir-se bem envergonhado, em virtude dessa manifestação apaixonada por parte duma mulher; mas não pude distinguir-lhe a fisionomia, na obscuridade. A conversa cessara: só se ouvia no jardim o rumor das asas dos insectos de Verão. Levantei-me e saí.

Quando meu marido apareceu, momentos depois, observei-lhe:

- Que falta de pudor, o dessa estrangeira! Mas ele sorriu:

- Oh! Não! Só os seus olhos é que vêem isso, meu coração de porcelana.

Senti-me indignada e insisti:

- Pois gostaria que me agarrasse assim à sua mão, em público ?

Meu marido tornou a rir, de olhos fitos em mim:

- Não; mas se se dispusesse a fazê-lo, então é que seria, realmente, pouco decente.

Percebi que zombava de mim; mas como não sabia a razão, nada mais acrescentei.

Tal liberdade de maneiras é para mim incompreensível. No entanto - é curioso! - quando agora penso nisto, não lhe descubro já qualquer significado mau. Ela confessa o seu amor a meu irmão, como qualquer criança procura o seu companheiro de brinquedos. Não põe nisso nada de artificial, nem quaisquer subterfúgios. Como é estranha! Em nada se parece com as nossas mulheres. É como a flor da laranjeira brava, pura e ácida, mas sem perfume.

 

Afinal, assentaram já no caminho a seguir. A estrangeira vestirá uma roupa chinesa e, juntos, lá irão os dois procurar os Honrados. Meu irmão ensinou-lhe a verdadeira maneira de se inclinar diante deles. Quanto a mim, devo precedê-los e entregar-lhes os presentes.

Mas, à noite, nem posso dormir, só de pensar em tal hora. Tenho os lábios secos, e quando pretendo humedecê-los, sinto, dentro da boca, a língua ressequida também. Meu marido esforça-se por animar-me com sorrisos e palavras de estímulo, mas, assim que me deixa, logo sinto o medo voltar. Tomo abertamente partido contra minha mãe, eu, que nunca na minha vida discuti as suas ordens.

Donde me vem a coragem para proceder agora desta maneira? Sempre fui uma criatura tímida, e, entregue a mim mesma, em tudo isto não teria visto senão o mal. Agora mesmo, leio claramente no coração de minha mãe, e, se estivesse sozinha, reconheceria que ela tem razão, dadas as tradições do nosso povo.

Foi meu marido quem operou em mim esta transformação, e a tal ponto, que ouso, apesar de todo o medo que sinto, agir contra os meus antepassados em favor do meu amor. Mas sinto-me tremer. De todos nós, só a estrangeira se mantém serena.

Hoje sinto-me cansada, esgotada mesmo. Parece que no meu coração uma corda de harpa, extremamente distendida durante vários dias, de repente se partiu, embora não haja música dentro de mim.

A hora pior passou. Não vos direi desde já o que resultou de tudo isto, minha Irmã; con-tar-vo-lo-ei minuciosamente e julgareis por vós mesma. Quanto a mim... Mas não quero começar pelo fim.

Enviámos, como devíamos, o mensageiro a nossos pais, transmitindo-lhes o nosso pedido para que nos permitissem uma visita para o dia seguinte, ao meio-dia. O portador voltou dizendo que nosso pai partira para Tientsin desde que soubera da chegada de meu irmão; evitava assim o momento delicado. Aliás, meu pai soube sempre esquivar-se a deliberações deste género. Assim, seria minha mãe quem nos receberia em seu lugar, a meu irmão e a mim, ao meio-dia. Nenhuma menção se fazia da estrangeira, mas meu irmão disse logo:

- Se eu vou, minha mulher irá também!

No dia seguinte, lá entrei em casa de minha mãe, à frente de todos, precedida pela criada que levava os presentes. Meu irmão havia-os comprado no estrangeiro: coisas lindas e interessantes, raramente vistas na nossa terra - um pequeno relógio colocado no ventre dum belo menino de seis polegadas de altura, um relógio de pulso todo incrustado de pedras, uma máquina que fala e grita quando a levantamos com a mão, uma luz que se renova sem fogo e fica acesa todo o tempo que se queira, um leque de plumas de avestruz, brancas como uma chuva de flores de pereira.

Apresentei-me diante de minha mãe com os presentes. Mandara-nos ela dizer que nos receberia na Sala de Recepção. Quando entrei, já minha mãe lá estava, sentada numa poltrona enorme de madeira escura esculpida, à direita da mesa, sob o retrato do Imperador Ming, com um vestido de cetim negro bordado e enfeites doirados nos cabelos. Tinha as mãos cheias de anéis de oiro, rubis e topázios, pedras estas que diziam bem com a nobreza da sua idade. Mantinha-se apoiada na bengala de ébano e prata. Nunca a vira tão imponente.

Como a conhecia bem, examinei-lhe a fisionomia de perto, para verificar o seu verdadeiro estado de saúde. Senti o coração paralisarse-me. O preto do vestido ainda fazia realçar mais a magreza transparente do rosto, tão emaciado que os lábios tomavam já, de qualquer forma, as curvas rígidas da própria morte. Os olhos, mais abertos, estavam encovados e tristes como os dos doentes sem cura. Os anéis cobriam-lhe os dedos e entrechocavam-se com um leve som musical quando se movia.

Tive vontade de perguntar a minha mãe como se sentia, mas não ousei fazê-lo, na certeza de que tal pergunta lhe não agradaria. E já que se dispusera a receber-nos, precisaria de concentrar em si todas as suas forças.

Minha mãe recebeu-me sem dizer uma palavra e, em vista disso, limitei-me a apresentar-lhe todas as oferendas, tomando-as uma a uma das mãos da criada e colocando-as na sua frente. Com uma grave inclinação de cabeça, foi recebendo os objectos e, sem mesmo olhar para eles, fez sinal a uma das suas criadas, que se encontrava de pé a seu lado, para os levar para outra sala. Esta atitude animou-me um pouco. Se então houvesse recusado os presentes, seria o mesmo que manifestar a sua repulsa por meu irmão.

Assim, animei-me a anunciar-lhe:

- Minha mãe, está lá fora o seu filho, que espera ser recebido.

- Já mo disseram - foi a resposta, em tom frio.

- Ele trouxe a estrangeira - arrisquei ainda timidamente, por entender ser melhor dar-lhe logo esta notícia, intimamente sentia-me nervosa.

Minha mãe nada respondeu, e eu coisa alguma consegui decifrar também, no seu rosto impassível.

- Podem entrar? - perguntei, não podendo já conter-me.

- Que entre - respondeu ela, no mesmo tom gelado.

Hesitei, não sabendo como proceder. Afinal, não estava a estrangeira na ante-sala? Dirigi-me à porta onde ambos me esperavam e, abrindo o reposteiro, repeti a meu irmão as palavras de nossa mãe, acrescentando que talvez fizesse melhor entrando sozinho, de início.

Fechou-se-lhe o rosto, tomando a expressão que lhe era tão habitual em criança, quando alguma coisa lhe desagradava. Falou à estrangeira na sua língua; esta ergueu as sobrancelhas, sacudiu um pouco os ombros e conservou-se calada, calma e indiferente. De súbito, meu irmão tomou-lhe a mão e entrou com ela na sala sem que eu tivesse tempo para detê-los.

Que criatura tão estranha - entrar assim na sala dos nossos antepassados! Toda eu me encolhi junto ao reposteiro, meio fascinada, olhando a primeira pessoa de sangue estrangeiro que transpusera o limiar daquela porta. Pensando nisto, o espanto fazia com que dirigisse o meu olhar surpreendido apenas para ela, a ponto de, por espaço dum segundo, me esquecer de minha mãe. Numa vaga inconsciência, senti quanto nossa mãe se chocaria com esta atitude de meu irmão, recusando-se a apresentar-se sozinho; esta atitude farlhe-ia perder, a ela, o desejo, tão natural, de rever o filho. Mas eu continuava inteiramente fascinada pela estrangeira.

Para esta, havia meu irmão escolhido o vestuário vulgar no nosso país: um paletó de seda, azul-pálido, pesado e flexível, ligeiramente bordado a prata; saia de cetim preto, bastante justa, formando pregas; sapatos de veludo preto, sem enfeites. Contrastando com estas cores escuras, a sua pele parecia mais alva e tinha o brilho das pérolas ao luar. Os cabelos amarelos brilhavam, circundando-lhe o rosto. Os olhos eram do azul dos céus de tempestade, fulgurantes, e os lábios conservavam-se calmos e imóveis. Entrou com passo firme, altivamente, de cabeça lançada para trás. Cruzou o olhar com o de minha mãe, sem o menor receio e sem um sorriso.

Levei as mãos à boca para abafar um grito. Porque é que meu irmão lhe não explicara que devia apresentar-se, diante das pessoas mais velhas, baixando os olhos? Deplorei aquela atitude horrível; aparecia ali, como rainha reinante, em visita à Imperatriz viúva.

Minha mãe olhou-a firmemente. Os dois olhares cruzaram-se no ar, e nesse instante se declararam inimigas. Depois de sustentar altivamente o olhar da outra, minha mãe dirigiu os olhos para além da porta aberta.

Em voz firme, a estrangeira disse algumas palavras a meu irmão. Soube, depois, que lhe perguntara :

- Devo ajoelhar-me agora?

Ele respondeu-lhe com um gesto afirmativo da cabeça, e ambos se ajoelharam diante de minha mãe. Em seguida, meu irmão pronunciou estas palavras, que previamente havia estudado:

- Muito Velha e Honrada: eis-me aqui, vindo de lugares longínquos, atendendo à ordem de me apresentar a meus pais, eu, seu filho indigno. Sinto-me satisfeito por minha mãe haver concordado em aceitar os nossos pobres presentes. E digo nossos, porque trouxe comigo minha mulher, que foi assunto duma carta escrita por um amigo meu. Ela vem para ser a nora de minha mãe. Embora em suas veias corra sangue estrangeiro, pede-me ela que diga a minha Honrada mãe que o seu coração se tornou chinês desde o nosso casamento. Minha mulher adopta espontaneamente a raça e os costumes da nossa família, renunciando à sua. Seus filhos pertencerão à nossa Celeste Nação, cidadãos da brilhante República e herdeiros do Império do Meio. E rende-lhe as suas homenagens.

Meu irmão voltou-se depois para a estrangeira, que tranquilamente esperara enquanto ele falava, e fez-lhe um sinal. Com rara dignidade, ela curvou-se, com a fronte tocando o solo, aos pés de minha mãe, repetindo três vezes a saudação. Depois, juntos, inclinaram-se três vezes ainda. Em seguida, endireitaram-se, ficando, de pé, a aguardarem as ordens de minha mãe. Esta não proferiu uma única palavra. Durante toda a cena conservara o olhar fixo no céu aberto por sobre o pátio, para além da porta. E assim ficou mais uns instantes ainda, guardando silêncio, altiva e rígida.

Creio bem que, no íntimo, se sentia perturbada com a audácia de meu irmão, que, embora ela tivesse autorizado apenas a sua presença, ousara desobedecer-lhe assim, trazendo consigo a estrangeira.

Imagino que estaria a pensar na maneira de agir nessa hora crítica. Talvez por isso nada dizia. Uma mancha vermelha se lhe desenhou nas faces, e vi mesmo tremer um músculo no seu queixo magro. Mas sinal algum de confusão transpareceu na sua digna postura.

Sentada, com ambas as mãos apoiadas no punho da bengala, o seu olhar passava por cima do casal ali postado, sem se desviar. O filho e a mulher deste, conservavam-se em expectativa. O silêncio, na sala, tornou-se pesado.

De súbito, qualquer coisa quebrou a serenidade de expressão de minha mãe. A fisionomia alte-rou-se-lhe; empalideceu tão depressa como corara: as faces ficaram-lhe da cor da cera. Uma das mãos caiu, mole, sobre os joelhos; os olhos, incertos, baixaram; os ombros abateram-se e toda ela como que se encolheu na poltrona. Em voz rápida e fraca, balbuciou:

- Meu filho... meu filho... É sempre ben-vindo... a sua casa... Depois lhe falarei... Agora, peço-lhe que se retire...

Meu irmão interrogou-a com o olhar, fitando--lhe o rosto. Menos perspicaz do que eu, percebeu, no entanto, que as coisas não iam bem. Voltou-se para mim.

Vi que pretendia falar ainda a nossa mãe, cri-ticar-lhe talvez a frieza. Tive pena dela e sacudi a cabeça, despersuadindo-o de o fazer. Disse então qualquer coisa à estrangeira, e ambos, fazendo uma reverência, foram saindo.

Quando me dirigi para minha mãe, repeliu-me com o olhar. Eu sentia uma grande vontade de lhe pedir perdão; mas não me permitiu que pronunciasse uma palavra, sequer. Uma dor secreta a devorava a olhos vistos, e vi-me forçada a sair também.

Inclinando-me, voltei-me então, lentamente.

Do pátio, lancei ainda um olhar para trás, e vi-a dirigir-se devagarinho para os seus aposentos, apoiando-se nas duas escravas com todo o peso do corpo.

Soltando um suspiro, voltei para casa. E por mais que pense, não posso imaginar o que irá acontecer.

Quanto às duas criaturas que assim estão torturando o coração de minha mãe - meu irmão e a estrangeira - levaram o resto do dia a passear. Ao voltarem para casa, à noite, nada achámos que dizer uns aos outros.

 

Que grande ausência a vossa, minha Irmã! Trinta dias. Há quase quarenta que não nos vemos - uma lua inteira e mais alguma coisa. Foi agradável, a viagem? Agradeço aos deuses por já terdes voltado.

Sim, meu filho está bom. Já diz tudo, agora, e a sua vozita faz-se ouvir durante todo o dia, como um rio correndo. Só está calado quando dorme. E que encantador, o seu tagarelar! As suas palavras estropiadas fazem-nos rir, mas não podemos deixar-lho perceber. Quando surpreende um simples sorriso, irrita-se e bate com o pé, sentindo que zombamos dele. O garoto considera-se já um homem. É interessante vê-lo caminhar ao lado do pai, cujo andar rápido quer imitar, esticando as pernitas grossas.

Perguntais-me... Ah, sim, a respeito da mulher de meu irmão! E eu respondo-vos com um suspiro. É que as coisas não vão bem.

Sim, ainda aqui estão, à espera. Nada ficou decidido. E meu irmão aborrece-se por ver os dias passar sem que surja qualquer resolução. Está imbuído da impaciência ocidental e quer ver os seus desejos imediatamente satisfeitos. Esqueceu já que, na nossa terra, a vida pouco vale, e que o destino pode torná-la desconhecida, mesmo depois da morte. Aqui, não há pressa que consiga precipitar o tempo. Mas ides já saber.

Depois da visita a minha mãe, decorreu, a princípio, uma série de dias - oito longos dias! - em que todos esperámos. Nem uma palavra veio. A princípio, ainda meu irmão esperava uma mensagem, a qualquer hora; por isso se opunha a que a mulher desarrumasse as malas enormes que trouxeram, dizendo:

- É inútil, por tão pouco tempo!

Mas a sua atitude era inquieta. Tinha, às vezes, um riso brusco e cortante, a propósito de qualquer coisa; alegre então, logo emudecia, não prestando atenção ao que se lhe dizia. Parecia estar sempre a escutar uma voz ou um som que ninguém mais, no aposento, podia ouvir.

Os dias passavam-se sem qualquer novidade, e meu irmão foi-se tornando irritadiço. O seu sorriso desapareceu. Tinha sempre presente ao seu espírito aquela hora que passara em frente de nossa mãe, continuamente falando nela. Ora criticava a estrangeira pela sua falta de humildade ou acusava nossa mãe por causa da sua atitude altiva, ora dava razão à mulher, achando que, em boa verdade, nestes tempos de república, era loucura prosternar-se alguém diante de quem quer que fosse. Quando lhe ouvi isto, perguntei assombrada :

- Então a mãe deixou de ser nossa mãe, depois do regime republicano?

 

Mas, impaciente, irritado, nem mesmo ouvia coisa alguma do que lhe diziam.

Devo prestar justiça à estrangeira. Na realidade, nunca ela havia feito verdadeira objecção quanto a inclinar-se diante de minha mãe. As suas palavras, que me repetiram textualmente, foram estas: - "Se se trata dum costume da terra, submeto-me a ele, como devo; muito embora me pareça estúpido, isso de nos curvarmos assim, diante seja de quem for".

Conservava-se calma, muito mais calma do que meu irmão. Sobretudo, mais confiante no futuro. Só pensava no marido e na maneira de o fazer feliz. Por vezes, quando o via mais nervoso, arrastava-o até ao jardim ou mesmo para além das grades.

Um dia, da minha janela, vi-os no jardim. Ela falava-lhe muito séria e, por fim, como meu irmão se obstinasse a olhar para o chão com um ar lúgubre, sem lhe responder, passou-lhe delicadamente a mão pela face, com uma expressão meio sorridente, meio maliciosa. Não sei o que lhe dizia quando estavam a sós; mas o certo é que, pouco depois, meu irmão parecia já menos inquieto, embora a tensão provocada pela expectativa subsistisse ainda.

Mas nem sempre o animava assim. Às vezes chegava a sacudir os ombros levemente com um modo muito seu e deixava-o entregue a si mesmo. Acompanhava-o ainda com o olhar que tinha então aquela expressão profunda que o caracteriza quando nele se fita. Se o marido não a procurava logo, ela recolhia-se e entretinha-se a aprender a nossa língua e a brincar com meu filho, de quem gosta muito e a quem fala com palavras desconhecidas para mim.

A estrangeira começou a aprender comigo um pouco de música na velha harpa, e logo conseguiu arranjar um acompanhamento para si. Tem uma voz cheia e agradável, embora profunda, se bem que aos nossos ouvidos, habituados às delicadas notas altas, pareça ao mesmo tempo rude e suave. Consegue impressionar meu irmão com os seus cantos, despertando-lhe a paixão. E, quando a oiço, também eu sinto uma pena vaga e obscura invadir-me, mesmo sem compreender as suas palavras.

Como o mensageiro de minha mãe não aparecia, a estrangeira fingiu não pensar mais nisso e voltou a atenção para outros assuntos. Todos os dias ia dar longos passeios, só, ou com meu irmão. Admirava-me de vê-lo permitir que ela saísse sozinha. Evidentemente que isto não está bem para uma mulher; mas ele nada diz, e, no regresso dos seus passeios, ela conta tudo o que viu na rua, espantando-se com coisas que outros nem sequer notariam e descobrindo motivos de beleza em lugares estranhos. Lembro-me de certo dia em que voltou com um sorriso muito aberto, parecendo só ela ter conhecimento duma coisa muito divertida. Quando meu irmão a interrogou, a estrangeira respondeu, na sua língua, que ele depois nos traduziu:

- Contemplei a beleza da terra, nos seus produtos. Na loja da rua principal, expuseram ces-tinhos escuros, cheios de frutos de cores maravilhosas : milho amarelo, feijão vermelho, ervilhas secas cinzentas, gergelim branco, favas pálidas, da cor do mel, trigo ruivo, feijão verde... Passo sempre muito devagar em frente dessa loja. Que pastel eu faria ali, se pudesse aproveitar o espectáculo para treinar o meu lápis!

Eu nem compreendia o que ela queria dizer. Mas a estrangeira é assim, muito viva, descobrindo beleza onde os outros nenhuma encontram. Nunca pensei que uma loja de frutas pudesse despertar tal interesse. É certo que os frutos são multicolores; mas isso é natural. Porque nos admirarmos quando isto foi sempre assim? Para nós, uma loja não passa dum local onde se compram quaisquer artigos.

Mas ela observa tudo com os seus olhos esquisitos, embora faça poucos comentários sobre o que vê. Limita-se a fazer algumas perguntas e a reflectir nas nossas respostas.

Convivendo com ela diariamente, começo já a estimá-la. Chego até, por vezes, a achar certo agrado nos seus ares exóticos e nas suas maneiras. É muito orgulhosa, a seu modo. Tem atitudes perfeitamente francas e independentes. Mesmo junto de meu irmão, nunca se mostra humilde. Coisa curiosa: nunca ele suportaria isto numa mulher chinesa; mas, vindo da parte dela, parece experimentar um misto de alegria e de sofrimento, que lhe aviva o amor. Quando entende que ela se deixa absorver demasiadamente pelos estudos ou pela leitura, ou que se conserva por muito tempo junto de meu filho, logo se inquieta e a olha e lhe fala. Se a mulher continua a não lhe prestar atenção, meu irmão abandona as suas meditações, vindo para ao pé dela, e lá a conquista de novo.

Nunca vi nada semelhante àquele amor.

 

Afinal, chegou o dia - creio que já haviam decorrido vinte e um após a sua visita - em que minha mãe mandou chamar meu irmão, pedindo--lhe que fosse sozinho. A carta era escrita em termos afectuosos, ternos até. Dispusemo-nos a aguardar o resultado. Meu irmão partiu logo, e eu fiquei só com a estrangeira, esperando.

Ao fim de uma hora, voltou ele, caminhando a passos largos. Atravessada a porta de entrada, veio logo ter connosco à sala onde nos encontrávamos. Vinha furioso, de fisionomia transtornada, e não cessava de repetir que se separaria definitivamente dos pais. Era difícil compreender com exactidão, pelas suas palavras, o que se passara. Só mais tarde é que pudemos perceber alguma coisa a tal respeito.

Parece que esperava ir encontrar em minha mãe certo sentimento de ternura e espírito de conciliação. Mas, desde o começo, em nada quis ceder. Começara por invocar a sua má saúde:

- Dentro em pouco, os deuses levar-me-ão para outro ciclo da existência - teria ela dito.

Meu irmão ficou muito impressionado.

- Não diga isso - suplicou. - Minha mãe ainda tem toda uma vida a viver com os seus netos.

Mas logo se arrependeu de haver sugerido tal ideia.

- Netos... - repetiu ela, em voz baixa.- Ah! Só o meu filho mos poderia dar. Mas a filha de Li, minha nora, continua a esperar, virgem ainda...

Depois, pondo de lado as frases de cortesia, foi direita ao assunto principal, dizendo-lhe que devia casar-se com a prometida noiva. Queria ter um neto antes de morrer.

Meu irmão declarou-lhe que já estava casado. Irritada, a mãe retorquiu-lhe que não reconhecia a estrangeira como mulher dele.

E foi isto, tudo o que pudemos depreender das palavras de meu irmão. Não sei o que se passou depois.

Mas Uang Da Ma, a serva fiel, contou-me que, oculta atrás do reposteiro, ouvira nessa ocasião uma discussão violenta, com palavras que não devem ser pronunciadas entre mãe e filho, e que pareciam trovões rasgando o céu. Uang Da Ma entende que meu irmão mostrou paciência até à altura em que a mãe ameaçou deserdá-lo. Foi então que respondeu em tom amargo:

- E os deuses dar-lhe-ão outro filho para me substituir? Os seus seios murchos tornarão a encher-se nessa idade avançada, ou descerá até ao ponto de adoptar o filho duma concubina?

Palavras terríveis estas, realmente, vindas da boca dum filho!

Depois ele saiu a correr, e atravessou o pátio precipitadamente, dizendo mal dos antepassados. Em seguida, houve no quarto de minha mãe um grande silêncio. E a certa altura, como Uang Da Ma ouvisse um gemido, apressou-se a entrar no aposento. Minha mãe calou-se logo, mordendo os lábios, e só lhe pediu que a ajudasse a meter-se na cama.

É uma vergonha que meu irmão haja falado assim à mãe. Não lhe posso perdoar esta falta. Devia ter em atenção a idade e a posição de nossa mãe. Mas agora, ele só pensa em si mesmo.

Oh! Às vezes, detesto essa estrangeira, que assim traz na palma da mão o coração do marido!

Tive vontade de ir imediatamente ver minha mãe, mas meu irmão pediu-me que esperasse que ela me chamasse. Meu marido entendeu também que eu devia esperar. Se assim não fosse, não teria atendido o pedido de meu irmão, embora tal atitude não fosse correcta enquanto ele se hospeda em nossa casa.

Resta-me um recurso: ter paciência - magro recurso para um coração inquieto.

É esta a situação em que nos encontramos.

 

Ontem, fiquei satisfeita quando vi a senhora Liu. Tínhamos passado um dia penoso, pensando no que ocorrera na véspera e no furor de minha mãe contra meu irmão.

Este andava pela casa toda, para cá e para lá, sem falar a ninguém e olhando, às vezes, pela janela. Pegava num livro, mas logo o largava, para escolher outro, que tinha, a mesma sorte.

A estrangeira via tudo isto; e tomando também um livro, ficou-se a cismar.

Para não me ver obrigada a falar com eles, fui tratar de meu filho. Mas o peso da decepção tanto se fazia sentir em toda a casa, que a boa disposição de meu marido, ao chegar a hora do arroz, mal dissipou a tristeza de meu irmão e o silêncio da estrangeira.

Assim, quando a senhora Liu veio ver-nos, à tarde, foi como uma brisa fresca soprando em meio do calor enervante dum dia de Verão.

A mulher de meu irmão, sentada, parecia sonhar, segurando o livro, indiferentemente, entre as mãos. Durante alguns instantes, fitou a senhora Liu. Era esta a primeira visita que recebíamos depois da chegada deles, pois os nossos amigos, conhecendo a delicadeza da situação em que nos encontrávamos, delicadamente se abstiveram de vir a nossa casa. Pela nossa parte, deixámos também de fazer quaisquer convites, em virtude de não sabermos como apresentar a estrangeira. Em atenção a meu irmão, eu chamo-lhe sua mulher; mas a verdade é que ela só terá uma situação legal e definida, quando como tal for considerada por meus pais.

A senhora Liu não se perturbou. Deu a mão à estrangeira, e começaram a conversar muito naturalmente. Cheguei a ouvi-las rir. Não compreendi o que diziam, porque falavam em inglês. A estrangeira saiu do seu torpor, e eu observava-a, admirada de tal transformação. Parecia haver nela duas pessoas: uma, silenciosa, distante e mesmo um pouco taciturna; a outra, muito divertida, embora de maneiras bastante artificiais para representarem a verdadeira alegria.

Nesta ocasião, a senhora Liu foi, para mim, causa de verdadeira decepção, pois não parecia prestar atenção alguma à nossa situação embaraçosa. No entanto, à saída, estendeu-me a mão,/ dizendo-me na nossa língua:

- Estou desolada. Tudo isto é lamentável... E, voltando-se, dirigiu ainda à estrangeira algumas palavras que, de súbito, provocaram lágrimas brilhantes nos seus olhos azuis-escuros. Ficámos as três olhando umas para as outras, sem coragem para falarmos, até que a dada altura a estrangeira se afastou apressadamente. A senhora Liu acompanhou-a com o olhar, manifestando no rosto sincera pena.

- Tudo isto é lamentável... - repetiu. - E entre os dois, corre tudo bem?

Ela é muito franca com meu marido. Respondi apenas:

- Entre meu irmão e ela, existe de facto amor; mas minha mãe é que anda muito mal disposta. Como sabe, minha mãe é fraca, já o era mesmo nos seus bons tempos; e agora, com a idade, mais fraca está ainda.

A senhora Liu soltou um suspiro e meneou a cabeça:

- Compreende-se. São dias cruéis, estes, para os velhos. Nenhuma aliança é possível, entre eles e os novos. Estão completamente separados uns dos outros, como galhos da mesma árvore cortados à machadada.

- É um mal!

- Não, não é um mal - disse ela. - Mas é inevitável, e a coisa mais triste que há no mundo.

 

Enquanto esperávamos qualquer recado, eu não podia esquecer minha mãe. Comecei a pensar nas palavras da senhora Liu: na verdade, que penosa é a nossa época, para os mais velhos! Procurando distrair-me, decidi-me a levar meu filho a visitar os pais de seu pai. Também eles estão velhos e sofrem! Sentia o coração cheio de ternura por todos os velhos.

Vesti a meu filho uma longa capa de cetim, igual à do pai. Quando do seu primeiro aniversário, havíamos-lhe comprado um chapeuzinho de homem, de veludo preto, com um botão vermelho. Pus-lhe este chapéu na cabeça, e depois, com um pincel molhado em tinta vermelha, pintei-lhe o queixo, as faces e a testa. Quando acabei de o arranjar, ficou tão bonito, que temia a cólera dos deuses, como se fosse bonito demais para este mundo.

Da mesma opinião foi a avó, cujas faces roliças tremiam, quando ria de alegria, ao abraçá-lo, cheirando-lhe a carne perfumada; e repetia sem cessar, numa espécie de êxtase:

- Ah, meu filhinho! Ah, meu netinho! Fiquei comovida, a mim mesma censurando não ter levado mais vezes o menino a visitá-la. Mas não podia arrepender-me de o ter conservado connosco; também isto fazia parte do inevitável a que se referira a senhora Liu. No entanto, lamentava a sorte dos que ali envelheciam sem gozar da presença contínua do garoto.

Sorri, ao ver a velha adorar meu filho. Olhan-do-o bem de perto e passando-lhe as mãos pelas faces, fazia-lhe voltar o rosto para um lado e para o outro. De súbito, exclamou:

- Mas que é isto? Pois ainda não fez nada para o proteger contra os deuses? Que negligência!

- E, chamando uma escrava, ordenou-lhe: - Traga um brinco de oiro e uma agulha!

Também eu já pensara nisto: devia furar a orelha esquerda de meu filho e pôr nela um brinco de oiro, a fim de enganar os deuses, fazendo-lhes acreditar que se tratava duma menina que lhes não interessava. É um antigo rito que livra o primogénito de morte prematura.

Mas vós sabeis bem como a caminha dele é tenra! Sinto-me sem coragem, sofrendo o que ele vai sofrer, mesmo agora, se bem que não tenha forças para enfrentar a sabedoria de minha sogra.

Quando esta lhe aproximou a agulha do lóbulo da orelhinha, meu filho pôs-se a gritar. Os olhos esbogalharam-se-lhe de medo, descaíram-lhe os cantos da boca, e então minha sogra não teve ânimo para mais e pediu uma linha de seda vermelha, com a qual prendeu o brinco à orelha, sem a furar. O petiz começou logo a sorrir e o seu sorriso aproximou de novo os nossos corações.

Vendo o papel que meu filho representa na vida da avó, melhor compreendi ainda, ao regressar a casa, o desgosto de minha mãe - por causa do neto ainda por nascer e que será o fruto da sua vida.

Mas sinto-me feliz por ter alegrado o coração da avó de meu filho; sinto-me um pouco aliviada das minhas apreensões a respeito dos velhos.

 

Os deuses estão satisfeitos por eu ter cumprido os meus deveres filiais, levando ontem o meu filho a visitar a avó. E digo isto, porque esta manhã um mensageiro veio trazer uma carta de minha mãe para meu irmão. Não se referia em nada à discussão havida e apenas lhe pedia que fosse vê-la. Acrescentava que nenhuma providência tomaria quanto à estrangeira, pois a decisão final não era da sua alçada, mas sim da de meu pai e dos homens da família. Enquanto aguardava esta decisão, poderia meu irmão levá-la consigo; sua mulher viveria no pátio exterior, pois não achava conveniente que se juntasse às concubinas e crianças. E a carta nada mais dizia.

Esta mudança no espírito de minha mãe sur-preendeu-nos a todos. Meu irmão voltou logo a mostrar-se cheio de esperança; e várias vezes exclamou sorrindo:

- Tinha a certeza de que ela acabaria por modificar a sua atitude. Apesar de tudo, sou o seu único filho!

Quando lhe lembrei que a mãe de forma alguma aceitara a estrangeira, respondeu-me:

- Uma vez lá dentro, todos gostarão dela! Nada lhe disse, temendo desanimá-lo, mas no íntimo sabia bem que nós, as chinesas, não é facilmente que gostamos das mulheres estrangeiras; e é muito provável que lá em casa pensem também na filha de Li, que espera ainda, para casar.

A ocultas, interroguei o mensageiro, e por ele soube que minha mãe estivera muito doente na noite anterior. Todos tiveram medo de vê-la passar para o domínio dos mortos. Fizeram-se orações, foram chamados os sacerdotes. Melhorou depois e, de manhã, sentiu-se tão bem, que já pôde escrever a carta por seu próprio punho.

Compreendi imediatamente o que se passara. Julgando chegada a hora da morte, a mãe temeu que o filho não voltasse mais a casa, nem se integrasse no sentimento do dever. Por isso tomara a deliberação de chamá-lo, se os deuses ainda lhe permitissem fazê-lo.

No fundo do coração, senti por ela toda esta humilhação. Tive vontade de ir logo visitá-la, mas meu marido não concordou.

-Espere ainda - disse-me. - Ela só tem forças para atender uma pessoa de cada vez. Quando se está fraco, a própria amizade chega a ser um peso.

Assim, contive-me e ajudei a mulher de meu irmão a arrumar as malas. Se eu soubesse falar correctamente o seu idioma, ter-lhe-ia dito então:

- Lembre-se de que ela é idosa e está enferma, e de que lhe tirou tudo o que possuía de mais precioso...

Mas nada posso dizer-lhe, porque a nossa conversa é sempre cortada por palavras incompreensíveis, para uma ou para outra.

 

Meu irmão e a mulher fixaram hoje residência no domínio ancestral. Vão viver nos velhos aposentos onde meu irmão passou a infância. A estrangeira não tem autorização para dormir, nem comer, nem demorar-se nos aposentos das mulheres. Como se vê, minha mãe ainda se recusa a aceitá-la.

Agora que partiram, sinto-me feliz por me encontrar de novo a sós com meu marido e meu filho. No entanto, reconheço que um pouco de vida abandonou a nossa casa. Parece que o vento do Ocidente desapareceu ao pôr-do-sol, deixando atrás de si uma calma quase de morte.

Penso neles, e imagino-os sozinhos, os dois, nos quartos antigos. Ainda ontem à noite eu dizia a meu marido:

- Que irá sair de toda esta tormenta ?

Ele agitou a cabeça em ar de dúvida e respondeu:

- Velhos e novos vivendo sob o mesmo tecto... É como o ferro partindo pedra. Nunca se sabe o resultado...

- E que acontecerá ?

- De tudo isto, qualquer chama surgirá - disse em tom grave. - Lamento a sorte de seu irmão. Nenhum homem é capaz de conservar-se neutral e impassível entre duas mulheres altivas, uma velha e outra nova, que o amem com loucura.

Pegou no filho ao colo e contemplou-ô, com ar pensativo. Não sei o que então lhe ia no espírito. O menino levantou inocentemente a mecha de cabelos que lhe cobria a orelha e mostrou o brinco que a avó ali lhe pusera, dizendo:

- Veja, veja, Da-da.

Esquecendo logo meu irmão e a mulher, meu marido lançou-me um olhar desconfiado e carregado de censuras:

- Que é isto, Cuei-Lan ? Pois não havíamos já posto de parte estas superstições tolas?

- Foi sua mãe quem lhe pôs isso, e eu não tive coragem para...

- É ridículo! - exclamou. - É preciso cuidarmos desde já da criança, tratando de não lhe inculcar tais ideias. - E tirando do bolso um canivete, cortou com cuidado o fio de seda que segurava o brinco. Depois, debruçando-se um pouco na janela, atirou com o enfeite para o jardim. Como o menino começasse a choramingar, disse--lhe, rindo:

- O meu filho é um homem, como eu. Olhe: eu não uso brinco na orelha, como as mulheres. Nós somos homens. Não temos medo dos deuses.

E o menino sorriu, ao ouvir estas palavras.

Mas, na obscuridade da noite, pensei nisto com algum receio. Pois agirá a velhice erradamente? E se, no entanto, os deuses existissem? Eu bem quisera não negligenciar coisa alguma a respeito de meu filho. Ah! Como então compreendo bem minha mãe!

 

Passei vinte dias sem ir ver minha mãe. Sen-tia-me cansada, doente, e quando pensava nela e em meu irmão, a confusão aumentava-me no espírito. Ao lado de meu marido, o coração inclinava-se-me a favor de meu irmão; mas se tinha o meu filho nos braços, logo tomava o partido de minha mãe.

Não recebi dela qualquer recado chamando-me, e se tal situação se prolongasse, não saberia como iria visitá-la depois e explicar-lhe a minha vida.

Às vezes, sozinha na casa tranquila - sabeis bem, vós, como o pai de meu filho trabalha durante o dia e até mesmo à noite - muitas vezes me ficava a pensar, imaginando muitas coisas.

Esses dias monótonos, como os passaria a estrangeira? Teria voltado a visitar minha mãe? Ter-lhe-ia falado? Bem sabia eu que as escravas e as concubinas, curiosas, se esconderiam pelos cantos, observando-a; que as criadas procurariam vê-la, a pretexto de lhe servirem o chá ou de qualquer outro serviço; e que, nas cozinhas, só nela se falaria, nas suas maneiras, na sua paciência, nas suas atitudes e no seu modo de falar, criticando-se sempre a sua presença ali e lamentando-se a sorte da filha de Li.

Afinal, foi meu irmão que veio ver-me. Estava eu a fazer um par de sapatinhos para meu filho, uma manhã - como sabeis, o festival da Primavera Clara realiza-se dentro de sete dias - quando de repente a porta se abriu, e meu irmão entrou sem se ter feito anunciar. Estava vestido à maneira chinesa e, desde que voltara, nunca o vira tão parecido com o que era nos tempos da nossa mocidade. Parecia estar preocupado. Sentou-se e, mesmo sem me ter cumprimentado, pôs-se logo a falar, como se continuasse apenas uma conversa interrompida há pouco.

- Porque não vai lá, Cuei-Lan? A mamã está muito fraca. Creio bem que esteja doente. Só a força de vontade a não abandona, mais firme do que nunca. Determinou ela que, durante um ano, minha mulher deveria levar uma vida de chinesa nos pátios; e nós tentamos conformar-nos com os seus desejos. Mas isso é pretender meter um pássaro numa gaiola! Vá lá, e leve o seu filho, sim?

Levantou-se e, inquieto, atravessou a sala. Em vista da sua perturbação, prometi-lhe fazer o que me pedia.

E, nesse mesmo dia, fui visitar minha mãe. Pensei em deter-me um pouco nos aposentos da mulher de meu irmão, ao atravessar o pátio, mas temi que minha mãe julgasse que não era apenas o vê-la que lá me levava. Estava disposta, também, a não lhe falar na estrangeira, caso não fosse forçada a fazê-lo.

Ia, pois, procurar logo minha mãe, sem me deter; mas ao entrar na parte da casa destinada às mulheres, a Segunda Esposa apareceu na soleira da porta em forma de lua, por detrás de um loureiro rosa, e chamou-me, fazendo-me sinais. Limitei-me a saudá-la e fui até aos aposentos de minha mãe.

Trocados os cumprimentos, conversámos a respeito de meu filho. Depois, armando-me de coragem, atrevi-me a olhar para minha mãe. Ao contrário do que meu irmão dissera, deu-me ela a impressão de se encontrar melhor, ou antes, menos doente do que eu pensara. Não a interroguei sobre a sua saúde, por saber que tais perguntas a aborreciam, embora nunca deixasse de responder com a maior delicadeza.

- A mãe achou o seu filho, meu irmão, muito mudado pelos anos que passou lá fora? - perguntei.

Levantou levemente as longas sobrancelhas e respondeu:

- Ainda lhe não falei sobre quaisquer coisas importantes. A questão do casamento com a filha de Li, está visto, só será resolvida quando o pai chegar. Mas já o fiz voltar um pouco ao que antes era, desde que lhe mandei que vestisse os trajos habituais do nosso país, quando veio cá para casa. Não me agradava ver as pernas de meu filho metidas em calças iguais às dos carregadores de água.

Assim, uma vez que era ela mesma quem falava naquele casamento, afectei indiferença e disse-lhe, olhando atentamente o desenho do meu vestido:

- E que impressão teve da estrangeira de olhos azuis?

Senti que minha mãe se retesava toda. Tossiu apenas e respondeu, a seguir, secamente:

- A respeito da estrangeira que vive nos pátios, de nada sei. Cansada de tantas súplicas da parte de seu irmão, que pretendia que eu a recebesse, mandei chamá-la uma vez para me preparar o chá. Mas verifiquei que não podia suportar-lhe as mãos desajeitadas e a aparência bárbara. Nas suas maneiras para comigo, mostrou-se muito pouco educada. Nunca lhe ensinaram a atitude a manter em face duma pessoa mais velha. Procurarei não tornar a vê-la. Sinto-me bem quando posso alhear-me de tudo isso e lembrar-me apenas da volta de meu filho ao tecto ancestral.

Meu irmão não me havia dito que minha mãe mandara chamar sua mulher para servir-lhe o chá. Assim, fiquei deveras surpreendida, pois se tratava dum facto importante. Mas, reflectindo nisto, e sentindo até que ponto a estrangeira fora motivo de decepção para minha mãe, compreendi aquele silêncio. Lembrei-me da angústia de meu irmão e, com muita audácia, perguntei ainda:

- Posso convidar a estrangeira a vir passar uma hora em minha pobre casa, já que é desconhecida aqui?

Minha mãe respondeu-me friamente:

- Não. Já fez bastante por ela. Não permitirei que lhe abram a grande porta de entrada, enquanto morar em minha casa. Se tiver de ficar a viver aqui, é necessário que se habitue à reclusão que convém a uma dama. De forma alguma desejo que toda a cidade murmure. Vejo bem que essa jovem não admite leis nem repressão. Tem de ser vigiada. Não fale mais nela.

O resto da nossa conversa versou voluntariamente sobre factos insignificantes: a salada de legumes para as criadas; o aumento do preço das fazendas destinadas às crianças; a promessa de estacas de crisântemos recentemente plantados e que deviam florir já no próximo Outono. Em seguida, despedi-me, retirando-me.

Ao atravessar as portas pequenas, encontrei--me com meu irmão. Dirigia-se à casa da grande porta de entrada, sob pretexto de pedir uma informação a sua mulher. Mas logo compreendi que o que pretendia era falar comigo.

Aproximando-me, notei a transformação que nele se estava operando. A expressão de vigor e de força de vontade que, a meus olhos, lhe dava o aspecto dum estrangeiro, fora substituída por um ar pasmado e inquieto. Assim metido nos trajos chineses e com a cabeça inclinada, parecia voltar a ser o estudante de fisionomia um pouco teimosa que outrora fora, antes da sua partida.

- Como está sua mulher ? - perguntei. Tremera-lhe os lábios, que meu irmão humedeceu com a língua.

- Nada bem. Ah, minha Irmã! Não poderemos suportar esta vida por muito mais tempo. Tenho de fazer qualquer coisa: ir-me embora, procurar trabalho...

Interrompeu-se, aproveitando-me disso para lhe dizer que tivesse paciência, em vez de se decidir a romper; muito era já o haver nossa mãe permitido à estrangeira que viesse viver dentro do pátio; e um ano depressa passava. Mas ele agitou a cabeça.

- Minha mulher já começa a desesperar - confessou, desanimado. - Antes de vir para aqui, nunca perdeu a coragem. Mas, agora, emagrece, dia a dia. A nossa alimentação desagrada-lhe, e eu não posso conseguir-lhe as comidas a que estava acostumada. Não come quase nada. Também estava habituada à liberdade e às homenagens que, no meio em que vivia, lhe tributavam; todos a admiravam, e muitos foram os homens que a amaram. Sentia-me orgulhoso por os ter vencido a todos; pensava que isso provava a superioridade da nossa raça. Agora, minha mulher é como uma flor cortada que se colocou numa jarra de prata, sem água para beber. Passa os dias sentada, em silêncio, de olhos brilhantes no rosto cada vez mais pálido...

Surpreendi-me ao ver que meu irmão considerava uma qualidade de sua mulher o facto de ter sido amada por vários homens. Na nossa terra, tal facto só seria considerado uma qualidade, para uma cortesã. Poderia, assim, a estrangeira, esperar vir a ser um dia como uma das nossas mulheres?

Mas as palavras de meu irmão fizeram de repente surgir uma ideia no meu espírito; e perguntei-lhe, com alguma ansiedade:

- Desejará ela voltar para o meio dos seus?

Entrevia aí uma solução. Se ela partisse e os mares se pusessem de novo entre eles, meu irmão, que, apesar de tudo, é homem, deixaria de pensar nessa estrangeira e lembrar-se-ia então dos seus deveres. Mas nunca esquecerei o olhar de raiva que ele me lançou.

- Se partir, segui-la-ei - disse, com súbita violência. - E se morrer, aqui, em minha casa, para sempre deixarei de ser o filho de meus pais!

Habilmente, procurei censurar-lhe estas palavras tão pouco filiais, quando, com surpresa minha, me virou um pouco as costas, soluçando alto, e se retirou apressado.

Perplexa, ali fiquei presa ao chão, enquanto o seu vulto, curvado, desaparecia dentro do pátio onde vivia. Depois, segui-o, hesitante, com receio de minha mãe.

Fui ver a estrangeira. Agitada, esta andava a passos largos pela área interna do aposento de meu irmão. Voltara a vestir os seus,trajos ocidentais: envergava um lindo vestido azul-escuro, com um largo decote que lhe deixava a descoberto o colo alvo. Nas mãos, tinha um livro aberto; as páginas estavam cobertas de linhas curtas, com letras ocidentais, colocadas em grupinhos que ocupavam o meio da folha.

Enquanto lia, ia andando, de sobrancelhas franzidas. Ao ver-me, um sorriso lhe iluminou o rosto e esperou, parada, que eu fosse ao seu encontro. Falámos um pouco, com as palavras mais correntes; ela já fala chinês, quando se trata de coisas simples.

Recusei-me a entrar, desculpando-me com o ter de voltar para casa, para junto de meu filho, o que não lhe agradou. Falei-Ihe no antigo zimbro do pátio. E ela contou-me que andava a fazer um brinquedo para meu filho, de pano, bordado a algodão. Agradeci-lhe a lembrança.

E ficámos logo sem assunto. Passado pouco, despedi-me. Sentia muita pena, pois há verdadeiros mares a separar-nos; e eu sem poder ajudar nem a meu irmão, nem a minha mãe!...

Quando me voltei para sair, tomou-me bruscamente a mão, apertando-ma. Olhei para ela, e vi que procurava, como num rápido movimento de cabeça, esconder as lágrimas que lhe saltavam dos olhos. Comovida, murmurei-lhe a promessa de voltar brevemente, sem saber que mais havia de dizer-lhe. Os lábios tremiam-lhe, quando tentou sorrir-me.

 

Assim se passou uma lua. Depois, voltou meu pai. Facto bem curioso, é que demonstrou grande interesse pela mulher de meu irmão, dedicando--lhe logo singular afecto. Uang Da Ma contou-me que ele, mal transpusera a porta de entrada, imediatamente perguntara se meu irmão trouxera consigo a estrangeira. A seguir, mudara de roupa e mandara-o avisar de que iria vê-lo aos seus aposentos, depois da refeição.

Meu pai entrou, despreocupado e sorridente, na casa que fora destinada a meu irmão, recebeu os seus cumprimentos e depois pediu que lhe apresentasse a estrangeira. Quando esta apareceu, riu muito, examinou-a e, com a maior liberdade, fez algumas observações sobre a sua aparência.

- É bastante bonita, a seu modo - disse com ar benévolo. - Bom, bom; é uma coisa nova na família. E sabe falar o nosso idioma?

Tal sem-cerimónia desagradou a meu irmão. Secamente, respondeu-lhe que a mulher andava a procurar aprender a língua. Meu pai riu com gosto, exclamando:

- Tanto pior! Tanto pior! As palavras de amor devem parecer muito mais doces, pronunciadas em língua estrangeira... Ah! Ah! Ah!

E ria alto, sacudindo o corpo todo.

A estrangeira não percebia bem o que meu pai dizia. Com a sua voz grossa, ele falava, como sempre, muito depressa. Mas a sua amabilidade recon-fortava-a, e meu irmão de forma alguma podia explicar-lhe que meu pai estava a faltar-lhe ao respeito.

Disseram-me já que meu pai vai vê-la muitas vezes, divertindo-se com ela. Olha para a estrangeira com a maior liberdade e ensina-lhe palavras e expressões novas. Tem-lhe oferecido certas gulodices e até, uma vez, um limoeiro anão, num vasi-nho verde. Mas meu irmão consegue estar sempre presente, quando destas visitas.

A estrangeira é uma verdadeira criança: não compreende coisa alguma.

 

Estive ontem, de novo, em casa da mulher de meu irmão, depois de haver cumprimentado minha mãe, por motivo do dia de festa. Não ouso arriscar-me a desagradar-lhe prolongando as minhas visitas à estrangeira, com medo de que venha a proibir-me a entrada no pátio onde esta mora.

- Está mais satisfeita? - perguntei.

- Sim, talvez. Em todo o caso, as coisas não se agravaram. Apenas vi sua mãe uma vez, quando ela quis que lhe preparasse o chá. Nunca na minha vida fiz chá daquela maneira! Mas seu pai vem aqui quase todos os dias.

- Paciência! Dia chegará em que a Veneranda Mãe se deixará vencer.

A fisionomia da estrangeira transformou-se.

- Acho que não fiz mal nenhum - disse em voz baixa e sufocada. - Pois será pecado alguém amar e casar-se? Seu pai é o único amigo com quem conto nesta casa; dá-me provas de bondade, e eu tenho necessidade disso, garanto-lhe. Creio que não poderei ficar muito mais tempo nesta prisão...

Sacudiu para trás os cabelos loiros e curtos, com os olhos brilhantes da raiva. Vi que olhava para os outros pátios; meus olhos seguiram a direcção dos seus.

- Ora veja! Lá estão elas! Para essas mulheres, eu não passo dum brinquedo. Aborrece-me, ser assim observada por elas. Afinal, porque é que se põem a cochichar, a espiar-me, a apon-tar-me com o dedo?

Enquanto falava, mostrava-me com a cabeça a porta em forma de lua. Em grupo, perto da entrada, estavam reunidas as concubinas e muitas das escravas. Pareciam passear, comendo amendoim e distribuindo-o pelas crianças; mas olhavam furtivamente para nós e eu ouvia-as rir. Ameacei-as com o olhar, mas foi como se não me vissem. Por fim, a estrangeira levou-me para dentro de casa e fechou com o trinco as pesadas portas de madeira.

- Já não posso suportá-las - disse-me, irritada. - Não compreendo coisa alguma do que dizem, mas sei que falam de mim desde pela manhã até à noite.

Procurei acalmá-la:

- Não lhes ligue importância. São umas perfeitas ignorantes.

A estrangeira sacudiu a cabeça:

- Mas é-me impossível continuar a suportar isto todos os dias.

Depois, pareceu mergulhar nas suas reflexões, em silêncio, de sobrancelhas cerradas. Calei-me também. E assim nos mantivemos por algum tempo, sentadas na vasta sala que o crepúsculo invadia.

Ao cabo duns momentos, como nada tivéssemos que dizer uma à outra, pus-me a olhar à minha volta. Notei as transformações que ela fizera na casa, sem dúvida para lhe dar um aspecto mais ocidental. Isto pareceu-me simplesmente estranho.

Algumas gravuras pendiam das paredes, sem simetria alguma, bem como várias fotografias. Quando a estrangeira notou o meu olhar, o rosto pareceu iluminar-se-lhe.

- Aqueles, são meus pais e minha irmã - informou-me, pressurosa.

- Irmão, não tem ?

Balançou a cabeça, franzindo ligeiramente os lábios.

- Não, mas isso não tem importância nenhuma. Não vivemos apenas para os nossos filhos.

Admirei-me do tom em que falara. Como não consegui interpretá-lo, levantei-me para examinar os retratos. O primeiro era o dum velho, sereno, de barba branca e curta, cortada em ponta. Os olhos eram de estrangeiro, espantados, com pesadas pálpebras. Era calvo e tinha um nariz enorme.

- Ele ensina... É professor no colégio onde nós, seu irmão e eu, nos encontrámos pela primeira vez - explicou-me a estrangeira, de olhos ternamente postos no rosto do velho. - É curioso vê-lo nesta sala: destoa de tudo, aqui, exactamente como eu.

E com voz abafada, acrescentou:

- Mas é o retrato de minha mãe que mais me custa a olhar nestes momentos!

A estrangeira tinha vindo para junto de mim. De pé, a meu lado, era muito mais forte do que eu. Desviando-se do segundo retrato, foi depois para o seu lugar, apanhou o pano branco que estava numa mesa próxima, e começou a coser. Nunca a tinha visto trabalhar. Meteu num dedo uma peça esquisita, de metal, muito diferente dum verdadeiro dedal, que se coloca no dedo médio. Pegava na agulha como se fosse um punhal. Eu nada disse; olhava para o rosto de sua mãe - muito franzina, parecia delicada e boa, a seu modo; mas os cabelos brancos, que lhe enquadravam o rosto, como que lhe tiravam a graça.

A fisionomia da irmã era bastante parecida com a da mãe, embora mais jovem e risonha. Delicadamente, perguntei:

- Gostaria muito de ver agora sua mãe ? Com surpresa minha, sacudiu a cabeça, declarando em tom brusco:

- Não. Nem mesmo posso escrever-lhe.

- Porquê ?

- Porque tenho medo de que os seus augúrios se realizem. Por coisa alguma deste mundo, quereria que ela me visse aqui, neste momento. Conhece-me muito bem; leria logo nas entrelinhas. Não tornei a escrever-lhe desde que vim para esta casa. De longe, na minha terra, tudo me parecia maravilhoso. Minha irmãzinha julgava não poder haver mais lindo romance. E ele?... Ah! Nem pode imaginar como ele sabe amar! Tinha um modo de falar-me, que tornava banais e monótonas as palavras dos outros homens. Fazia do amor uma coisa nova! Mas minha mãe tinha medo; sempre o teve!

- Medo de quê?! - indaguei, admirada.

- Medo de me saber infeliz, muito longe, afastada da família, distante dos seus cuidados. Sinto que minha mãe talvez tivesse razão. Nem sei o que isto é; parece-me estar a ser comprimida por uma lâmina. Metida entre esses altos muros, penso em tanta coisa!... Não compreendo o que essa gente diz. Não sei o que pensam, todos; os rostos, aqui, são impenetráveis. Chego a pensar que mesmo o rosto de meu marido se parece com o dos outros: liso, fechado, não revelando qualquer sentimento. Lá, entre nós, parecia ser também dos nossos, apenas com mais sedução, com um encanto que me era desconhecido. E já aqui, dir-se-ia que cai num mundo estranho, que foge de mim. Oh! Nem sei como exprimir-me! Estou habituada à franqueza, à alegria espontânea, e aqui tudo é silêncio, curvaturas e olhares furtivos. Suportaria que me tirassem a liberdade, contanto que soubesse o que há lá por fora. Antes, na minha terra, dizia-Ihe eu que me faria chinesa, hotentote, fosse o que fosse. Mas agora, não, já não posso! Não posso! Serei americana para sempre.

A estrangeira expandiu-se assim, em palavras, metade na sua própria língua, metade na nossa, de sobrancelhas franzidas, mãos em movimento, fisionomia excitada. Nunca poderia crer que ela fosse capaz de falar tanto! As palavras fluíam-lhe dos lábios como água rebentando dum rochedo.

Senti-me extremamente embaraçada, porque nunca vira um coração de mulher assim posto a nu. Entretanto, assaltava-me uma vaga piedade por ela. Enquanto procurava algo para dizer--lhe, meu irmão, como se tivesse ouvido tudo, saiu do aposento ao lado. Parecendo não me ter visto, tomou as mãos da mulher, que estavam poisadas no bordado, e, de joelhos, inclinando a cabeça, começou a afagar com elas as próprias faces e os olhos.

Hesitei por um momento, sem saber se devia ficar ou ir-me embora. A certa altura, levantando para ela os olhos desvairados, ele murmurou com voz rouca:

- Mary, Mary! Nunca a ouvi falar assim! Pois realmente duvida de mim? Na sua terra, disse-me que partilharia da minha raça e da minha nacionalidade. Se ao fim de um ano isto continuar a parecer-lhe impossível, abandonaremos tudo e tornar-me-ei americano. Se também isto não for possível, iremos para qualquer parte do mundo, para vivermos juntos e fundarmos um novo país e uma nova raça. Ah, meu amor! Tenha confiança em mim!

Meu irmão pronunciou estas palavras no nosso idioma, por assim se sentir mais à vontade. Depois murmurou ainda qualquer coisa em inglês, que eu já não pude compreender. A estrangeira sorria. Por ele - eu via-o bem - seria capaz de suportar ainda muitas outras provações. Reclinando a cabeça, poisou-a no ombro do marido. E assim permaneceram os dois, num silêncio pungente.

Tive vergonha de ficar mais tempo em frente daquele amor sem recato. Deslizei devagarinho para fora de casa, e senti certo alívio quando ralhei com as escravas por terem estado a olhar por cima das grades. Está visto que não podia censurar as concubinas de meu pai; por isso mesmo repreendi as escravas na presença daquelas. Em todas elas, só encontrava uma curiosidade e um espanto de ignorantes.

Comendo ruidosamente um bolo gorduroso e fazendo estalar os lábios, a concubina gorda ainda disse:

- Quem tem um aspecto tão ridículo e tão pouco humano bem merece ser alvo de curiosidades e de risos...

- No entanto, é humana e tem os mesmos sentimentos que nós - respondi, no tom mais severo que pude.

A Segunda Esposa encolheu os ombros e continuou a mastigar, limpando cuidadosamente os dedos à manga.

Saí apressada. Ao chegar a casa, compreendi que, na exaltação do momento, havia tomado partido, não contra a mulher de meu irmão, mas a seu favor.

 

Agora, minha Irmã, aconteceu o que todos nós temíamos: está grávida, ela! Há muitos dias que a estrangeira desconfiava disto; mas, por uma estranha reserva lá do ocidente, nada dizia, nem mesmo a meu irmão. Veio comunicar-mo há pouco.

É uma notícia que não veio alegrar-nos. Minha mãe, quando o soube, ficou de cama. O desgosto impede-a de levantar-se. Depois de ter evitado quanto possível esta decepção, não pode já, em virtude da fraqueza do corpo, suportar a violência do golpe. Sabeis bem quanto ela desejava que o primeiro' fruto de seu filho pertencesse à família. Isto tornou-se impossível, agora, e ela crê haver-se perdido uma virtude do filho, porque a criança não poderá aparecer como neta.

Fui vê-la. Estava estendida, hirta e imóvel, na cama. Tinha os olhos fechados, e teve de os arregalar para me reconhecer; depois, cerrou-os de novo. Tranquilamente, sentei-me a seu lado e esperei, em silêncio.

De súbito, a fisionomia transtornou-se-lhe, como já de outra vez sucedera, na minha presença; o rosto tomou a aparência da morte, com uma cor horrível de ver; a respiração era difícil.

Tive medo e bati as palmas, chamando uma criada. Uang Da Ma apareceu logo, com um cachimbo de ópio, fumegando. Minha mãe pegou no cachimbo, aspirando-o desesperadamente. Pouco a pouco, foi-se acalmando.

Todavia, senti-me inquieta. A dor devia ser--lhe habitual, visto que o cachimbo de ópio estava sempre preparado e aceso. Quis falar-lhe nisto, mas minha mãe não mo consentiu, com uma voz cortante:

- Não é nada. Não me irrite.

Não lhe disse uma palavra mais. Depois de me haver demorado um momento junto dela, cumpri-mentei-a e retirei-me.

Ao atravessar o pátio das criadas, interroguei Uang Da Ma, que me disse, meneando a cabeça:

- A Primeira Esposa sofre assim todos os dias, tantas vezes quantos os dedos que há nas duas mãos. Durante muitos anos, o mal aparecia de tempos a tempos; mas, como vós sabeis, nunca fala de si mesma, ultimamente, o desgosto deu lugar a acessos contínuos. Estou sempre perto dela, e vejo, de vez em quando, a sua fisionomia empalidecer. Fica com o rosto transfigurado até de manhã, quando lhe levo o chá. Até aqui, ainda ia alimentando um pouco de esperança; agora, está prostrada, como árvore a que cortaram a última raiz.

Pegou na ponta do avental azul e enxugou os olhos, um de cada vez, suspirando.

Ah! Compreendi bem qual era a esperança que nossa mãe alimentava. Nada disse, e, logo que cheguei, chorei e contei tudo a meu marido. Pedi-lhe que fosse vê-la comigo, mas ele aconselhou-me a esperar.

- Se se sentir constrangida ou a contrariarem, pior será para a sua saúde. Quando tiver uma oportunidade, lembrar-lhe-ei a necessidade de receber um médico. Não há outra coisa a fazer, relativamente a uma pessoa idosa.

Sei que ele tem sempre razão. No entanto, não posso afastar de mim a sensação duma desgraça iminente.

 

Ao que parece, meu pai anda encantado com a ideia de que a estrangeira espera uma criança. Quando lho participaram, exclamou:

- Ah! Ah! Vamos ter um pequeno estrangeiro para nos divertir! Ah! Ah! Um brinquedo novo! Terá o nome de Menino Palhaço e far-nos-á rir!

Ouvindo estas palavras, meu irmão murmurou qualquer coisa por entre os dentes. No fundo, já começa a odiar meu pai, bem o vejo.

A estrangeira é que perdeu o ar triste. Quando fui felicitá-la, cantava ela uma ária exótica, selvagem e rude. Perguntei a significação dessa cantiga. Era canção de embalar. Admira-me que uma criança possa dormir, ouvindo-a. A estrangeira, parece, esqueceu que já um dia me confiou a sua infelicidade. Meu irmão e ela, estão numa primavera de amor, e não há lugar para mais nada no espírito de ambos, agora que esperam uma criança.

Estou ansiosa por ver esse pequeno estrangeiro. Não poderá ser tão bonito como o meu filho. É até possível que seja uma menina: herdará talvez os cabelos cor de fogo da mãe. Ah, meu pobre irmão!

É infeliz, ele! Já que o filho vai nascer, mais do que nunca deseja ver regularizada a situação da mulher. Todos os dias alude a isto em conversa com o pai, que, no entanto, desconversa e, sorrindo, fala sempre noutras coisas.

No próximo dia de festa, meu irmão conta insistir junto do conselho dos homens da família, na sala ancestral, diante das tábuas sagradas dos antepassados, no sentido de que o filho possa ser, legalmente, o seu primogénito. Está visto que, se se tratar duma menina, nada disto terá importância. Contudo, nada podemos dizer quanto ao futuro.

 

Estamos na décima primeira lua do ano. A neve cobre o chão do jardim e pesa nos bambus, formando um mar encapelado, muito branco de espuma, quando o vento os agita docemente. A mulher de meu irmão engordou. Na casa de minha mãe há uma penosa impressão de expectativa. Mas expectativa, de quê? - é o que, todos os dias, a mim mesma pergunto.

Esta manhã, quando acordei, vi as árvores nuas e escuras, sob um céu de Inverno. Despertei em sobressalto, espantada, como sob a acção dum pesadelo. Todavia, não me lembro de ter tido qualquer sonho. Que significado poderá ter a nossa vida? Ele está nas mãos dos deuses, e nós só conhecemos o medo.

Procurei justificar os meus receios. Será que eu tema pela sorte de meu filho? Mas se é um leãozinho - tão forte!... Agora, fala como um rei que dirigisse o mundo. Só o pai ousa desobe-decer-lhe, rindo. Quanto a mim, sou sua escrava, e ele bem o sabe. Sabe tudo, aquele maroto. Não, não se trata de meu filho.

Por mais que procure raciocinar, não me é possível abafar a minha inquietação - o temor dessa ameaça do céu. Espero que os deuses a afastem. Mas estou receosa da sua malevolência; apesar de tudo, podem querer-me o meu filho. Não me sinto tranquila desde aquela história do brinco.

O pai ri. Tem a certeza de que o garoto se encontra perfeitamente, da cabeça até aos pés. O apetite de meu filho também me surpreende. Agarra-se-me ao seio e pede arroz e pauzinhos, três vezes por dia. Já o desmamei. É um homem. Não; de facto, não se pode tratar duma criatura tão forte como o meu filho é!

Minha mãe é que enfraqueceu mais ainda. Lamento a partida de meu pai, que descobriu ter negócios a tratar em Tientsin desde que meu irmão começou a importuná-lo mais, a respeito da mulher. Está ausente há já várias luas. Mas devia regressar, agora que a infelicidade parece adejar por sobre a sua casa. Embora nunca tenha cuidado de outra coisa que não fosse o seu prazer, deveria agora lembrar-se de que é o representante da família, ante os deuses.

Por mim, não ouso escrever-lhe, porque sou uma simples mulher, sofrendo os sobressaltos que todas nós sofremos. E se tudo isto não tivesse realmente importância? Mas então, porque é que um dia passa e outro vem, e eu sempre com a opressão da expectativa?

Queimei incenso diante de Cuan-Iin, às escondidas, por temer o sorriso descrente de meu marido. Podemos deixar de acreditar nos deuses, quando nenhum perigo nos ameaça; mas na hora em que nos sentimos aflitos, para quem apelar? Fiz uma prece à deusa antes do nascimento de meu filho, e ela atendeu-me.

 

É hoje o primeiro dia da décima segundo lua. Minha mãe repousa imóvel no seu leito. Começo a recear que não se levante mais. Insisti muito por que chamasse os médicos e lá acabou por aceder, creio que por efeito do cansaço.

Minha mãe pediu a Chang, o famoso doutor e astrólogo, que viesse assistir-lhe, oferecendo-lhe quarenta peças de prata. Ele aceitou e prometeu curá-la. Sinto-me mais confortada, pois todos sabemos tratar-se dum sábio.

No entanto, a mim mesma pergunto quando se sentirá totalmente aliviada. Fuma sem cessar os seus cachimbos de ópio, no intuito de atenuar assim a dor dos órgãos vitais; e mal pode falar.

O rosto é dum amarelo-pálido, e a pele está de tal forma estendida sobre os ossos, que a sentimos seca e macia ao tocar-lhe, como se fosse papel.

Pedi a minha mãe que recebesse a visita de meu marido, a fim de que ele pudesse experimentar a medicina ocidental. Respondeu-me, num murmúrio, que a sua mocidade já passara e viera a velhice, mas que nunca poderia suportar as maneiras dos bárbaros. Quanto a meu marido, agita a cabeça, quando lhe falo de minha mãe. Vejo bem que a julga prestes a sair para o Pátio da Noite.

Oh, minha mãe! Minha mãe!

 

Meu irmão conserva-se silencioso desde pela manhã até à noite. Para lá está, sentado nos seus aposentos, de olhar fixo e grave. Só volta a si para se lançar em verdadeiros acessos de ternura para com a mulher. Vivem uma existência recolhida, num mundo à parte, onde se encontram a sós, com o filho que vai nascer.

Até mandou colocar uma paliçada de bambu entrançado na porta em forma de lua, de maneira que as mulheres curiosas já não podem olhar para dentro da casa.

Quando lhe falo em nossa mãe, parece não ouvir. Limita-se a repetir, como uma criança teimosa:

- Nunca lhe perdoarei... Nunca!...

É a primeira vez em que, na sua vida, lhe recusam qualquer coisa, e isto é que ele não perdoa a nossa mãe.

Durante várias semanas, nem foi vê-la. Mas depois, tocado afinal pelas minhas queixas e súplicas, consentiu em acompanhar-me. Conservou-se ao pé do leito de nossa mãe, num silêncio obstinado, sem a saudar, fitando-a. Ela abriu os olhos e fixou-o, sem pronunciar palavra também.

Apesar de tudo, quando nos retirámos juntos, notei que se comovera ao ver aquele rosto enfermo. Mas nada disse, nem mesmo a mim. Antes, desconfiara de que minha mãe se houvesse encerrado no quarto, em virtude de qualquer decisão desfavorável tomada contra ele; mas compreende agora que está mortalmente ferida.

Desde então - foi Uang Da Ma quem mo disse - todos os dias tem ido apresentar um bule de chá, com as próprias mãos, a minha mãe, sem nada dizer. Por vezes, ela agradece-lhe em voz baixa, mas a conversa entre ambos nunca vai além dumas poucas palavras, desde que percebeu que a nora está grávida.

Meu irmão enviou uma carta a nosso pai, que deve chegar amanhã.

 

Há dias que minha mãe já nem abre a boca. Mergulhou num sono pesado, diferente de qualquer outro sono. Chang, o médico, encolheu os ombros, estendeu os braços e exclamou:

- Se o Céu decretou a sua morte, quem sou eu, para pretender contrariar o supremo destino?

Recebeu o seu dinheiro, meteu as mãos nas mangas, e saiu.

Depois de haver partido, procurei meu marido, implorando-lhe que fosse ver minha mãe: ela já não dá acordo do que se passa e não o reconhecerá. A princípio, recusou-se; mas ao notar a minha inquietação, decidiu-se a acompanhar-me. De pé, junto da cama, meu marido contemplou-a pela primeira vez depois de doente. Nunca o vira tão comovido. Olhoua demoradamente, depois um estremecimento o percorreu da cabeça aos pés, e saiu, a correr. A mim mesma fiquei perguntando se se teria sentido mal. Quando o interroguei, respondeu-me apenas:

- É muito tarde... Demasiado tarde...

E, voltando-se para mim, gritou-me, de repente :

- São tão parecidas, vocês, que imaginei vê-la ali, estendida, morta!

E chorámos ambos.

 

Todos os dias vou ao Templo, onde raras vezes voltara desde o nascimento do menino. Tendo meu filho, nada mais havia que pedir aos deuses. Mas estes, irritados com a minha felicidade, puniram-me na pessoa de minha querida mãe. Vou ao deus da longa vida, pondo na sua frente as oferendas de carne e vinho. Prometi cem peças de prata, caso minha mãe se pusesse boa; não obtive, porém, nenhuma resposta do deus, que se Conservou invisível atrás da sua cortina. Nem sequer sei se aceita as minhas oferendas. Por trás da cortina, os deuses conspiram contra as nossas vidas.*

Oh, minha Irmã, minha Irmã! Os deuses, afinal, manifestaram-se, revelando a sua maldade. Ora vede: o meu vestido é de tecido grosseiro. Vede meu filho, inteiramente envolto numa fazenda grossa - a fazenda branca do luto. Por ela, por minha mãe! Oh, minha mãe!... Não. Deixai-me chorar. Sinto necessidade de chorar, agora que já morreu!

Eu estava a sós com ela; era meia-noite. Minha mãe continuava estendida, na posição em que há dez dias permanecia, imóvel como uma estátua de bronze. Não falava; não comia. A sua alma já ouvira o apelo das vozes do alto; apenas o coração continuava firme, a bater, até ao esgotamento e ao silêncio.

Uma hora antes do alvorecer, assustada, notei--lhe qualquer transformação. Bati as mãos e mandei a serva de guarda chamar meu irmão, que se encontrava na antecâmara, pronto para acudir à primeira chamada. Logo que entrou, percebeu tudo e murmurou, com certa expressão:

- Aproxima-se o fim! Mandem chamar nosso pai.

Depois, fez um aceno a Uang Da Ma, que enxugava os olhos ao pé do leito, e esta saiu logo, para cumprir a ordem. Conservámo-nos em expectativa, de mãos-dadas, chorando, cheios de medo.

De súbito, a mãe pareceu despertar. Volvendo o rosto, olhou para nós, ergueu os braços lentamente, como se estivessem suportando um peso enorme, e suspirou duas vezes. Depois, os braços caíram-lhe e o seu espírito deixou-se vencer, sem nada revelar: tão mudo, na hora da partida, como durante a vida.

Quando nosso pai entrou, ainda sonolento, arranjado à pressa, como se se houvesse vestido a correr, avisámo-lo logo. Colocando-se então junto de minha mãe, contemplou-a estupefacto. No fundo, meu pai sempre tivera respeito pelo carácter da esposa.

Depois, explodiu numas lágrimas de criança, lágrimas copiosas, exclamando alto:

- Uma boa mulher... Uma boa mulher...

Meu irmão arrastou-o suavemente para fora do quarto, procurando acalmá-lo, e pediu a Uang Da Ma que trouxesse um pouco de vinho para o reconfortar.

Sozinha então com minha mãe, inclinei-me sobre o seu rosto silencioso, tomado da rigidez da morte. A não ser eu, ninguém a compreendera tal como ela era. Senti o coração explodir em lágrimas ardentes. Depois desci lentamente o cortinado e deixei-a mergulhada naquela solidão que a acompanhara através de toda a vida.

Minha mãe! Minha mãe!

 

Perfumámos o corpo de minha mãe com óleo de flores de acanto. Envolvemo-lo muito em gaze de seda amarela. Colocámo-lo num dos dois grandes caixões, talhados em madeira de cânfora e preparados, um para ela e o outro para meu pai, quando da morte de meus avós, há muitos anos. Sob as pálpebras cerradas colocaram pedras sagradas de jade.

Agora, o enorme caixão está fechado já. Mandámos chamar o geomante, para sabermos qual o dia prescrito para os funerais. Consultou então o livro das estrelas e marcou o sexto dia da sexta lua do novo ano.

Chamámos também os sacerdotes, que logo vieram, nas suas vestes amarelas e vermelhas. Ao som duma triste música de flautas, conduzimos então o caixão para o Templo, em procissão solene, a fim de aguardar aí o dia da inumação.

Minha mãe repousa já sob o olhar dos deuses, na paz e na poeira dos séculos. Ruído algum vem perturbar o seu sono sem fim. Haverá apenas, para todo o sempre, as salmodias, em surdina, dos sacerdotes, de madrugada, e, ao crepúsculo e durante a noite, a única nota do sino do Templo, tocado a longos intervalos.

O meu pensamento só pode ir, todo ele, para minha mãe.

 

Pois já se passariam quatro luas, minha Irmã ? Eu trago ainda nos cabelos a corda branca do luto - pela minha Veneranda.

Por mais que procure continuar a fazer a minha vida, não sou já a mesma. Os deuses des-viaram-me da minha nascente, da carne que formou a minha carne e dos ossos de que foram feitos os meus ossos.

Mas ainda pude pensar nestas coisas: já que o céu não quis conceder a minha mãe a realização do seu grande desejo, teria sido por bondade que os deuses levaram aquela que eles amam, retiran-do-a dum mundo em transformação, um mundo que nunca pôde compreender? Este período teria sido bem difícil para ela. Como teria suportado o que se passou? Vou contar-vo-lo.

Mal o cortejo fúnebre transpôs a grande arcada, as concubinas começaram logo a discutir sobre qual viria a ser a preferida. Todas queriam substituir minha mãe como Primeira Esposa, desejando usar os vestidos vermelhos, objecto de inveja vedado às concubinas. Aspiravam também ao privilégio de transpor, quando morressem, o patamar da grande arcada, porque, como se sabe, o caixão duma concubina só pode passar por uma porta lateral.

Essas loucas enfeitaram-se da melhor maneira que podiam, procurando, cada uma delas, atrair os olhares de meu pai. Todas? Não; esquecia-me de La-Mai. Durante esses longos meses, que se tornaram anos agora, viveu lá no interior, na propriedade de sua família. Na hora da morte de minha mãe, no auge da tristeza, tínhamo-nos esquecido de a prevenir imediatamente. Só dez dias depois é que a notícia lhe chegou, por intermédio do intendente de meu pai. Sim; vive ali sozinha, com as servas e o filho, desde o dia em que meu pai pensou em arranjar uma nova concubina. É verdade que isto não chegou a reali-zar-se, porque meu pai deixou de se interessar pela nova mulher, antes de concluídos os entendimentos nesse sentido, por considerar exagerada a importância reclamada pela família. Mas La-Mai nunca mais pôde esquecer o facto de meu pai ter pensado em a substituir. E nunca mais o procurara; e sabendo quanto meu pai detesta o campo, estava certa de que ele não a procuraria também.

Mas, ao saber da morte de minha mãe, La-Mai dirigira-se logo ao Templo onde o corpo repousava, e, aproximando-se do caixão, chorou em silêncio durante três dias, sem tomar qualquer alimento. Assim que Uang Da Ma me deu esta notícia, fui procurar La-Mai e trouxe-a para minha casa.

Está, realmente, muito mudada. Desapareceram-lhe já o riso e a animação. Também deixou de usar sedas brilhantes e de pintar os lábios que parecem rígidos e sem cor, numa fisionomia pálida. Tornou-se tranquila, triste e silenciosa. Do que antes era, apenas subsiste o seu ar desdenhoso. Quando soube da disputa das concubinas, franziu a boca num trejeito amargo. É ela a única que não disputa o primeiro lugar, evitando toda e qualquer alusão a meu pai. Dizem mesmo que La-Mai teria declarado que se envenenaria, se este tentasse qualquer reaproximação. O amor transformara-se-lhe em ódio, dentro do coração!

Demonstrou não se interessar pelo que lhe contava a respeito da estrangeira, parecendo nem ouvir-me, sequer. Quando insisti no assunto, La--Mai mostrou-se mais reservada ainda, e disse-me com uma vozinha fina e fria como gelo:

- Há demasiada agitação e muitas palavras em torno duma coisa que a natureza determinou. Pois como pode ser fiel o filho de tal pai? Agora, está ainda todo entregue à sua paixão; sei o que isso é. Mas aguarde o nascimento do filho e o dia em que a beleza fuja dela, como a um livro se arranca a encadernação. As folhas soltas falarão apenas de amor, e ele de modo algum quererá lê-las.

Depois de ter dito isto, mostrou-se indiferente. Durante os quatro dias que passou em minha casa nunca mais se pronunciou o nome de meu pai. Tudo o que outrora era alegria e desejo de amor murchou no espírito de La-Mai. Apenas a sua cólera está viva, uma cólera permanente, a propósito de tudo, mas à qual falta calor; é uma cólera fria, como a da serpente, e cheia de veneno. Quando ela partiu, fiz esta observação a meu marido, pondo as minhas mãos entre as suas. Ele reteve-as por algum tempo e acabou por me dizer:

- É uma criatura desprezada. Segundo os velhos costumes, tratamos levianamente as mulheres. Esta não é das que conseguem, com um amor fácil, suportar o desdém.

Que terrível coisa é o amor, se não pode passar dum coração para outro, livremente, em toda a sua doçura!

Logo que passou o período do luto, La-Mai voltou para o campo.

 

Nada se podia decidir a respeito das concubinas antes do reconhecimento da mulher de meu irmão, visto que era a esta que cabia, se fosse legitimada, suceder a minha mãe na qualidade de Primeira Esposa. A situação tornava-se cada vez mais crítica, uma vez que a casa de Li, cuja filha continuava noiva de meu irmão, começava a enviar mensagens quase diárias pelos intermediários, insistindo pela realização do casamento.

É claro que meu irmão nada disto dizia à mulher; mas eu sabia de tudo e compreendia a sua expressão de cansaço e de crescente inquietação à medida que as complicações o envolviam.

Meu pai recebia os intermediários; meu irmão bem fazia por não os encontrar nem os ouvir, mas meu pai tinha o cuidado de lhe repetir as palavras deles, embora afectando um ar descuidado e desdenhoso.

Depois da morte de minha mãe, houve como que uma primavera de amor entre meu irmão e a estrangeira; de modo que, aludir a outro casamento, seria como enfiar um punhal nas entranhas de meu irmão. Quando este se censura a si mesmo pela dureza com que tratara nossa mãe, já doente, e bate no peito à ideia de haver apressado a sua morte, a estrangeira, conquanto a não tenha amado, ouve-o com um ar de doçura, prestando atenção aos seus remorsos. Depois, volta o pensamento para o filho que virá em breve, e para o futuro. É prudente e conscienciosa. Outra qualquer, irritar-se-ia diante daquelas lamentações; mas esta - quando meu irmão lembra as virtudes maternas, na sua maneira de falar a respeito dos mortos-balança a cabeça afirmativamente, mantendo silêncio acerca da atitude de minha mãe; junta ainda aos louvores do marido a expressão do seu respeito pelo ânimo resoluto demonstrado pela desaparecida, mesmo em relação a ela própria. Confiando assim em sua mulher, meu irmão livrava do desgosto um coração que o amor dominava de novo.

Viviam juntos no seu canto, distantes de todos. Mal os vi durante algum tempo. Era como se vivessem num país longínquo, onde nada, nem ninguém, podia incomodá-los. Quando ia vê-los, acolhiam-me bem; mas quase imediatamente e sem o querer, esqueciam-me. Os olhos deles encon-travam-se às escondidas e comunicavam-se, mesmo falando comigo.

Creio que foi durante essa primavera de amor que meu irmão compreendeu nitidamente o caminho que devia seguir. No seu espírito reinou certa calma e, prestes a tudo abandonar pela mulher, dominou a sua agitação física.

Ao observá-los, admirava-me de experimentar, em relação a ambos, apenas sentimentos muito ardentes. Antes do meu casamento, tanta ternura demonstrada entre marido e mulher ter-me-ia repugnado; na minha incompreensão, teria considerado isto uma falta de dignidade. Teria ames-quinhado o amor e julgado que tal coisa só conviria às concubinas e escravas.

Vejam como me transformei. O meu senhor tudo me ensinou! Realmente, eu nada sabia antes de me casar.

E assim viviam na expectativa do futuro, meu irmão e a estrangeira.

No entanto, meu irmão não estava satisfeito. Ela é que era feliz e já não se preocupava com fazer parte da família do marido; apesar da simpatia que demonstrava por meu irmão, depois da morte de minha mãe, sentia-se livre de uma espécie de escravidão. A presença do filho moven-do-se em suas entranhas afastava-lhe os temores. A estrangeira só pensava no marido, em si mesma e no filho. Sentindo-o inquieto, disse-me um dia, a sorrir:

- Este pequenino ser é que me há-de ensinar tudo, até a fazer parte do país e da raça de meu marido. Além disto, mostrar-me-á como foi o pai, desde o nascimento até depois de homem feito. De agora em diante nunca mais estarei sozinha nem separada dos outros. E disse também ao marido:

- Já não tem importância alguma o facto de a sua família querer ou não querer receber-me. Os seus ossos, o seu sangue e o seu cérebro já me penetraram. Darei à luz um filho que será seu e do seu povo.

Esta lei espiritual não bastou para satisfazer meu irmão. Gostara de ouvir a mulher falar assim; mas, revoltado contra o pai, saiu e dis-se-me:

- Nós dois, ela e eu, poderemos viver sozinhos a vida inteira. Mas podemos privar o nosso filho da herança que lhe pertence? Temos o direito de proceder assim?

Nada lhe pude responder, porque ignoro de que lado se encontra a razão.

 

Aproximava-se o dia do nascimento. O acontecimento esperava-se duma hora para outra, e meu irmão teve uma nova entrevista com meu pai, pedindo-lhe que reconhecesse oficialmente a estrangeira como nora. Vou repetir o que meu irmão me contou.

Ele procurava tranquilizar-se a si mesmo, lem-brando-se dos favores que sua jovem esposa merecera antes a seu pai; os actos e as palavras deste, embora então parecessem descorteses, denunciavam um pouco de verdadeira afeição.

Inclinando a cabeça diante de meu pai, disse--lhe:

- Meu Honrado pai: agora que a Primeira Esposa, minha Honrada mãe, nos deixou para ir morar junto das Nascentes Amarelas, eu, seu indigno filho, peço-lhe que me oiça.

Nosso pai bebia, sentado a uma mesa. Inclinando também a cabeça, por sua vez, esboçou um sorriso, e foi sorrindo sempre que deitou um pouco de vinho, dum jarro de prata, num copo de jade que tinha à mão. De tempos a tempos, bebia, sem dizer palavra.

Por isso meu irmão se sentiu animado a prosseguir :

- A pobre flor dum país estrangeiro procura definir a sua situação dentro do nosso meio. Segundo a lei ocidental, somos casados e, aos olhos dos seus compatriotas, ela é a minha Primeira Esposa. É isto também que ela deseja ser, agora, no nosso país. O assunto é tanto mais importante, quanto é certo que minha mulher me vai dar o primeiro filho. A antiga Primeira Esposa morreu, e nós chorá-la-emos sempre. Entretanto, é necessário colocar a Primeira Esposa de seu filho no lugar competente, na ordem das gerações. A flor estrangeira deseja tornar-se uma compatriota nossa. Quer ter connosco raízes comuns, da mesma forma que uma ameixoeira, antes de frutificar, é enxertada no tronco que a alimenta. Deseja ela que seus filhos façam parte, para sempre, da nossa antiga raça celeste. Só falta, para isso, que meu pai a reconheça. Minha mulher sente-se encorajada pelos generosos favores com que antigamente meu pai a distinguiu.

Meu pai continuava a guardar silêncio e a sorrir ; deitou mais vinho no copo de jade, e bebeu-o. Em seguida, disse:

- A flor estrangeira é bela. Tem uns olhos esplêndidos - verdadeiras jóias purpúreas. A carne apresenta a brancura da amêndoa. Tem-nos distraído bastante, não é verdade? Como espera receber da parte dela um pequeno brinquedo, apre-sento-lhe as minhas felicitações.

Tomou o jarro e bebeu mais, continuando no mesmo tom amável:

- Sente-se, meu filho. Está a fatigar-se em vão.

E abrindo a gaveta da mesa, tirou de dentro outro bolo, ao mesmo tempo que indicava uma cadeira a meu irmão. Encheu de vinho outro copo, mas meu irmão recusou beber e conservou-se de pé. Nosso pai continuou a falar, numa voz mole e pesada:

- Ah! Não gosta de vinho ?

E meu pai sorriu e bebeu, limpando depois os lábios com a mão. Sempre sorrindo, disse afinal, vendo que meu irmão, de pé, continuava a esperar a sua resposta:

- Quanto ao seu pedido, meu filho, vou estudar o assunto. Tenho andado muito ocupado. Para mais, a morte de sua mãe causou-me tamanha tristeza, que não tornei a poder fixar a atenção em coisa alguma. Parto esta noite para Xangai, a fim de encontrar qualquer diversão para o meu espírito, pois tenho medo de cair doente, de tanto sofrer. Transmita os meus cumprimentos a sua mulher. Possa ela oferecer-lhe uma criança semelhante a um lótus. Adeus, meu filho. Excelente filho! Digno filho!

Sorrindo sempre, levantou-se, dirigiu-se a outra sala e correu o reposteiro.

Contando-me tudo isto, meu irmão falava de meu pai como de um estranho, tão grande era o seu ódio. Ainda crianças, tínhamos aprendido nos livros sagrados que um homem não deve ter mais amor a sua mulher do que aos próprios pais. Talvez ele tivesse pecado, pois, ante as tábuas sagradas e os deuses; mas qual é o fraco coração humano que sabe resistir ao afluxo do amor? Quer o coração queira, quer não, o amor enche-o. Que teria acontecido, para que os Antigos, com toda a sua sabedoria, ignorassem isto? Agora, já nada posso censurar a meu irmão.

 

É estranho, mas, dos dois, é a estrangeira quem sofre mais. A oposição de minha mãe não a magoava tanto; desespera-se, agora, com a indiferença de meu pai. A princípio, encolerizou-se e falava-lhe até num tom bastante frio. Quando soube o que se passara entre o marido e o sogro, disse:

- Era, pois, fingida, a sua amabilidade ? Pensei que ele me tinha realmente alguma afeição. Sentia nele um amigo. Mas que queria, então? Oh! É estúpido!

Mostrei-me surpreendida por ver alguém julgar assim os mais velhos, e olhei para meu irmão, intimamente perguntando a mim mesma se iria repreender a esposa. Mas meu irmão ficou em silêncio, de cabeça baixa, de maneira que não lhe pude ver o rosto. Ela ergueu para ele uns olhos que pareciam esbogalhados pelo espanto e, de repente, sem que ninguém o esperasse, pois que havia falado antes num tom glacial e tão seco, desatou a soluçar e correu para meu irmão, exclamando :

- Oh, meu querido, deixemos esta casa horrível!

Surpreendeu-me o inesperado da sua emoção. Mas meu irmão recebeu a mulher nos braços e murmurou-lhe algumas palavras de conforto. Em seguida, retirei-me, preocupada com a tristeza deles e com as dúvidas que me assaltavam acerca do futuro.

 

Meu pai tomou uma decisão. É penoso ouvi-la, mas tudo é preferível a viver com falsas esperanças.

Ontem, enviou um mensageiro a meu irmão, um primo em terceiro grau, membro do conselho da casa de meu pai. Depois de haver descansado um pouco e de ter bebido chá na sala de recepção, comunicou a meu irmão a vontade de nosso pai, nos seguintes termos:

- Oiça, filho de Iang: seu pai responde cabalmente ao seu pedido, e os membros do conselho estão de acordo com ele. Todos, até mesmo o mais humilde, o apoiam. Seu pai disse: - "É impossível receber a estrangeira entre nós. O sangue que lhe corre nas veias não se pode alterar. No íntimo, ela conserva-se fiel a leis que nos são desconhecidas. Os seus filhos não podem ser filhos de Han. Quando o sangue é misturado e impuro, o coração não pode conservar-se firme. Além disso, seu filho não poderia ser recebido na sala ancestral. Como se prosternaria uma estrangeira ante a vasta linhagem sagrada dos grandes Antepassados?

Tal coisa só é permitida àqueles cuja herança é pura e em cuja carne circula o sangue dos Antepassados, sem qualquer mistura". Seu pai - continuou o mensageiro - é generoso e envia-lhe mil moedas de prata. Quando a criança nascer, entregue à mãe esse dinheiro, para que volte para o seu país. O senhor já se divertiu bastante. Volte agora ao cumprimento dos seus deveres. Oiça a voz de comando: case-se com aquela que lhe fora destinada. A filha de Li já está irritada com tão grande demora; a família foi extremamente paciente, permitindo que o casamento fosse retardado até que a sua loucura desaparecesse. Toda a cidade já fala nisto, de forma que é um escândalo e uma vergonha para nós. Mas a família de Li não deseja prolongar mais esta expectativa e reclama os seus direitos. O casamento já não pode adiar-se por mais tempo. A juventude passa, e os filhos concebidos e nascidos na mocidade são os melhores.

Dizendo isto, entregou a meu irmão um pesado saco de dinheiro. Meu irmão recebeu-o e atirou-o ao chão. Inclinou-se para a frente, de olhos fuzilando como espadas que procurassem o coração dum adversário. A cólera, como um relâmpago imprevisto, transformava-lhe a fisionomia glacial.

- Volte e diga a esse homem que fique com o seu dinheiro! - exclamou. - A partir de hoje, nada me liga já a meu pai. Também não reconheço os laços de família. Repudio assim o nome de Iang! Risquem o meu nome dos livros! Minha mulher e eu partiremos. De hoje em diante seremos livres como os jovens dos outros países. Começaremos uma linhagem nova, liberta desta antiga e cruel escravatura das nossas almas!

E saiu da sala a passos largos. O mensageiro apanhou o saco do dinheiro, murmurando: "Ah! Há outros filhos! Há outros filhos!"

E lá se foi, a entender-se com meu pai.

Compreendereis agora a razão por que eu disse preferir que minha mãe tivesse morrido. Como poderia ela suportar um tal choque? Como poderia ver o filho duma concubina tomar o lugar que pertencia ao seu filho único, ao verdadeiro herdeiro?

Meu irmão já não tem direito a quaisquer bens da família. Com a parte que lhe pertencia, será indemnizada a casa de Li pelo ultraje sofrido. Diz-me TJang Da Ma que já estão procurando outro esposo para a rapariga que foi noiva de meu irmão.

Quantos sacrifícios, afinal, ele aceitou, por amor da estrangeira!

Meu irmão nada revelou dos sacrifícios feitos a sua mulher, com receio de, no futuro, isso poder vir a constituir uma sombra. Limitou-se a dizer-lhe:

- Agora, vamos partir, meu coração. Nunca poderíamos arranjar o nosso lar dentro destas paredes.

Ela sentia-se feliz, acompanhando-o alegremente.

Foi assim que meu irmão abandonou para sempre a morada dos nossos ancestrais. Ninguém veio despedir-se dele, a não ser Uang Da Ma, que, chorosa, curvou a cabeça para o chão, exclamando :

- Como é que o filho da minha senhora pode deixar estes pátios? Tenho de desaparecer... Tenho de morrer...

Foram viver para uma casa pequena de dois andares, como a nossa, na rua das Pontes. Em pouco tempo, meu irmão envelheceu e acalmou-se. Pela primeira vez na vida, vê-se forçado a lutar, para comer e vestir-se. Está como professor, aqui, na Escola do Governo. Sai de casa cedinho, todas as manhãs, ele, que só se levantava quando o Sol já ia alto! Tem o olhar resoluto, a palavra mais rara e o sorriso menos fácil do que noutros tempos. Um dia, aventurei-me a perguntar-lhe:

- Não tem saudades de nada, meu irmão? Ele deitou-me um dos seus olhares de outrora,

tão vivos sob as pálpebras, e exclamou:

- Nunca!

Ah, creio que minha mãe se enganou! Ele não é filho de meu pai. É muito parecido com ela mesma, pela sua firmeza.

 

Sabeis o que aconteceu? Quando tive conhecimento do facto, até ri; mas depois, sem bem saber porquê, comecei a chorar.

Ontem à noite, meu irmão ouviu bater fortemente à porta da sua casita. Ele mesmo foi abrir, porque na casa só há uma criada; e, assombrado, deu de cara com Uang Da Ma, que, num carrinho de mão, levava tudo o que possuía, metido num grande cesto de bambu entrançado e num embrulho de pano azul. Ao ver meu irmão, disse-lhe com a maior naturalidade:

- Venho morar na casa do filho da minha senhora e servir o netinho dela.

- Mas então não sabe que já não me consideram filho de minha mãe? - perguntou meu irmão.

Uang Da Ma, já com o cesto numa das mãos e o embrulho na outra, respondeu:

- Ora! E é o senhor quem me vem dizer isso? Não fui eu quem o tomou dos braços de sua mãe e andou consigo ao colo, quando tinha apenas um pé de altura e andava nuzinho como um verme? Não o alimentei ao meu seio? O que era quando nasceu, ainda o é; e seu filho, é seu filho da mesma forma. Portanto, é isto.

Meu irmão diz que nem soube que responder. Na verdade, Uang Da Ma conheceu-nos durante toda a nossa vida, e é para nós mais que uma serva. Enquanto ele hesitava, fora ela colocando cesto e embrulho na sala de entrada e, resfolegando e resmungando-porque está velha e gorda - esforçava-se por tirar a bolsa. Em seguida, voltou-se, discutiu longamente com o condutor do carro de mão a respeito do preço do transporte, e lá se instalou como em sua casa.

Procedeu assim, em lembrança de minha mãe. É absurdo dar muita importância às atitudes de uma serva; mas a verdade é que, quando meu irmão fala na mãe, no sorriso dela transparece uma ponta de ternura. Também ele está contente por a ter ali, e porque seu filho dorme e brinca nos braços da nossa velha ama.

Esta manhã veio cumprimentar-me e achei-a na mesma. Acreditar-se-ia que Uang Da Ma viveu por muitos anos já, com meu irmão, naquela casa estrangeira; sei, no entanto, que, no íntimo, ainda se admira de muita coisa. Diz meu irmão que ela pretende não estranhar coisa alguma, mas desconfia sobretudo das escadas, que não quis subir, da primeira vez, diante de quem quer que fosse. Hoje, Uang Da Ma confessou-me que não podia suportar as transformações feitas na casa de minha mãe.

Parece que a concubina gorda se tornou a Primeira Esposa, no lugar de minha mãe. Foi proclamada na sala ancestral, diante das tábuas sagradas. Depois disso, passeia altivamente, toda de vermelho e púrpura, com dedos cheios de anéis. Chegou mesmo a instalar-se nos aposentos de minha mãe! Ao ouvir a narrativa de Uang Da Ma, sinto que nunca mais lá poderei voltar. - Ah! Minha mãe!

Meu irmão mostra-se muito terno para com a mulher, mais terno do que nunca, desde que a tudo renunciou por sua causa. Está pobre, agora, ele que sempre vivera à vontade, custeado pelo pai. Mas aprendeu a torná-la feliz.

Fui vê-la ontem. Ela ergueu os olhos da página em que traçava longas linhas, quando entrei com meu filho, e sorriu, como sempre que o vê.

- Estou a escrever a minha mãe - disse-me, com os olhos iluminados por um sorriso. - Enfim, agora posso contar-lhe tudo. Digo-lhe que pus nas janelas cortinas amarelas, e que há um vaso com um narciso de oiro, sobre a mesa. E mais: que forrei com seda cor-de-rosa uma cesta para meu filho dormir, seda da cor das flores de macieira da América! Ela lerá tudo o que não lhe conto, nas entrelinhas, e saberá como sou feliz, afinal!

Minha Irmã: já vistes alguma vez uma linda várzea cinzenta, sob um céu pesado? Depois, de repente, as nuvens afastam-se, o Sol aparece, e a vida, a cor, surgem alegremente e cantam por toda a parte. É o que ela me lembra, neste momento: a felicidade dá-lhe um novo brilho ao olhar, e a sua voz é uma perpétua canção. Os lábios nunca estão quietos, porque constantemente se animam e agitam em leves sorrisos e súbitos risos apenas esboçados.

Ela é, realmente, muito linda. Sempre duvidei da sua beleza, porque nunca vira coisa semelhante; mas, agora, vejo-a claramente. A tempestade e o ar sombrio desapareceram-lhe dos olhos, que são azuis como o mar sob um céu tranquilo.

Depois de ter agido segundo a deliberação tomada, meu irmão mostra-se calmo, grave e satisfeito. É um homem.

Contemplando estes dois seres, que abandonaram um mundo pelo outro, sinto-me humilde, em face de semelhante amor. O fruto deles será precioso - tão maravilhoso como um jade.

Sinto-me perplexa a respeito desse menino, que terá, por si mesmo, de escolher o seu caminho. O Oriente e o Ocidente, fundidos na sua carne, não o reconhecerão e repudiá-lo-ão, ambos. Mas creio bem que, se herdar a energia dos pais, saberá compreender esses dois mundos, e há-de triunfar. Mas tudo isto não passa de simples suposições, formuladas enquanto observo meu irmão e a estrangeira. Sou uma mulher, apenas. Tenho de falar nisto a meu marido, que é um sábio e vê onde se encontra a verdade, sem que lha apontem.

Em todo o caso, tenho a certeza de estar impaciente por ver o filhinho de ambos. Desejo bem que ele seja um irmão para meu filho.

 

A estrangeira canta. De momento a momento, as canções sobem-lhe do coração aos lábios, como bolhas, e ela sente-se alegre, duma alegria surpreendente. Eu, que já dei à luz um filho, procuro-a, e a nossa comum experiência humana nos une. Conversamos a respeito de roupas, das roupinhas chinesas. Quando hesita na escolha das cores, franze as sobrancelhas, esboça um sorriso e diz:

- Ora vejamos: se os seus olhos forem pretos, deverá vestir de vermelho; se forem cinzentos, de cor-de-rosa. Serão pretos ou cinzentos, os olhos dele, minha irmã?

E dizendo isto, dirige-me um olhar sorridente. Eu, rindo também, interrompo-a:

- Como é que os vê dentro do seu coração? Corando, subitamente tímida, responde:

- São pretos. Usemos então o vermelho...

- O vermelho é a cor da alegria; é a que convém a um rapaz.

Ambas sabíamos que havíamos escolhido bem. Mostrei-lhe as primeiras roupinhas de meu filho, colocando os moldes sobre o cetim florido, vermelho, e sobre uma delicada seda, vermelha também. Eu própria lhe bordei os sapatinhos de focinho de tigre. E com as tarefas deste género, sentimo-nos mais ligadas uma à outra. Esqueço quando ela me parecia estrangeira, agora que já se tornou minha irmã. Aprendi a pronunciar o seu nome: - Mary! Mary!

 

Depois, fez também uma porção de peças do enxoval com tecidos do seu país. Nunca vi coisas assim, como delicadeza e simplicidade. Maravi-lhou-me o tecido, levíssimo. As mangas, microscópicas, são cosidas sobre o comprido vestido, em forma de capa, com uma renda mais fina que um bordado, e o tecido, sem ser de seda, é delicado como uma nuvem. Perguntei-lhe:

- Quando é que o vestirá assim?

Ela sorriu-se e, com um gesto rápido, deu-me uma palmadinha na face. A estrangeira tem umas maneiras delicadas e cheias de encanto, agora que é feliz. E respondeu-me:

- Seis dias na semana, será filho do seu país; mas, no sétimo, vesti-lo-ei com roupas brancas e de rendas, e será então americano.

E, pondo-se séria, acrescentou:

- A princípio, acreditava poder fazer dele um verdadeiro chinês; mas sinto agora que tenho de lhe dar também um pouco da América - um pouco de mim mesma. Pertencerá assim aos dois lados do mundo, ao seu e ao meu, ao mesmo tempo.

Sorri-lhe de novo. Compreendo bem a razão por que conquistou o coração de meu irmão e o domina inteiramente.

 

A criança já nasceu, minha Irmã! Recebi-a em meus braços, das mãos de Uang Da Ma, que falava baixinho e ria de orgulho. Examinei-a logo, curiosa.

É um menino, um garoto forte e robusto. Verdade seja, que não é tão bonito como o meu filho; mas também, não pode haver outro igual ao que nós tivemos, meu marido e eu. O de meu irmão e da mulher não se parece com nenhum outro menino: tem a ossatura forte e o grande vigor do Ocidente, mas os olhos são pretos, como os nossos, e a sua pele, embora tenha o brilho do jade, é duma tonalidade sombria. Os olhos e os lábios lembram-me um pouco a expressão de minha própria mãe; e é com um misto de alegria e de tristeza que observo esta semelhança!

Nada disto digo a minha irmã. Mostro-lhe o filho e comento, rindo:

- Veja a sua obra, minha irmã! Numa pequena semente, conseguiu juntar dois mundos!

Ela está estendida, fraca, mas radiante.

- Ponha-mo aqui, perto de mim.

Obedeço. Encostado ao seio cor de leite da mãe, o menino mais moreno parece. Ela devora-o com os olhos e passa os dedos brancos pelos cabelinhos escuros da criança. Disse-lhe eu, sorrindo:

- Vestirá a roupinha vermelha. É muito moreno para as roupas brancas.

- É como o pai, e sinto-me feliz por isso - respondeu simplesmente.

Neste momento entrou meu irmão, e retirei-me.

 

Ontem à noite, depois do nascimento do menino, fiquei ao pé de meu marido no quarto do nosso filho. Contemplávamos juntos o luar, pela janela aberta. O ar era límpido, e o nosso jardinzito lembrava uma pintura grosseira a preto e branco. As árvores subiam em direcção ao céu, como pontas de ébano que a Lua prateava.

Atrás de nós, o nosso filho dormia no leito de bambu, que já se tornou pequeno para ele. Sonhando, o menino a certa altura levantou os braços, e as mãozinhas agitaram-se-lhe rapidamente. Está um homem agora. Entreolhámo-nos, meu marido e eu, e sentimo-nos orgulhosos, ouvindo a respiração forte e vigorosa do garoto.

Pensei então no recém-nascido e na sua semelhança com minha mãe, cuja vida findou quando a dele começa. Um pouco triste, disse, baixinho:

- Em meio de quanta coisa dolorosa, nasce o filho de meu irmão e de minha irmã! A mãe abandona o seu país e a sua raça; a avó, no auge do desespero, renuncia ao filho único; o pai repudia a casa, os antepassados, as tradições!

Meu marido limitou-se a sorrir. Depois passou um dos braços pelo meu ombro e disse-me em tom

grave:

- Mas pense na magnífica união que assinala o seu aparecimento: a criança ligou mais fortemente ainda os corações dos pais - dois corações muito diferentes pelo nascimento e pela educação, separados mesmo por divergências seculares. Que

união!

É assim que ele me consola quando recordo as tristezas passadas. Não deixa que eu me apegue às coisas, lá só porque são antigas; quanto a ele, tem sempre os olhos postos no futuro.

- É preciso pôr de parte tudo isso, meu amor! - disse-me ainda. - Não devemos permitir que nosso filho fique acorrentado a velharias inúteis.

E eu, quando penso nessas duas crianças - meu filho e o primito - sinto que meu marido tem razão. Tem sempre razão, o meu Senhor. 

 

                                                                  Pearl S. Buck

 

 

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