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VENTO LESTE VENTO OESTE / Pearl S. Buck
VENTO LESTE VENTO OESTE / Pearl S. Buck

 

 

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VENTO LESTE VENTO OESTE

 

A ti posso falar, irmã, como a nenhuma outra de minhas verdadeiras irmãs de raça. Que sabem elas desses países longínquos onde meu marido viveu durante doze anos?

Também não poderia falar livremente a algumas dessas estrangeiras que não compreendem o meu povo, nem os costumes que conservamos desde os tempos do antigo império. É verdade que tu pertences a essas terras onde meu marido estudou seus livros ocidentais; mas não deixarás por isso de me compreender. Digo-te a verdade. Chamei-te minha irmã e contar-te-ei tudo.

Meus verdadeiros pais, como sabes, viveram durante cinqüenta anos nesta velha cidade do Império do Meio. Nunca se deixaram influenciar por tendências modernas, nem conceberam o desejo de mudar. Viveram em paz, dignamente, satisfeitos de sua atitude; e assim me educaram, segundo nossas honoráveis tradições. Nunca se me ocorreu pensar que chegasse um momento em que poderia desejar ser de outro modo. Não tinha nenhum desejo, e nada do que provia de afora jamais me interessou. Mas agora chegou no dia em que devo mudar; olho essas estranhas mulheres modernas com um interesse que nasce do desejo de me converter numa delas; e isto, irmã, não é por mim, senão por amor a meu marido.

Ele não me acha bonita! Navegou pelos quatro mares, visitou países longínquos; e neles aprendeu a apreciar muitas coisas e costumes novos.

Quando cumpri os dez anos e deixei de ser criança, minha mãe, uma mulher prudente e boa, disse-me assim:

— Uma mulher deve guardar, ante os homens, um florido silêncio, tentando retirar-se tão cedo como seja possível, fazendo-o sem confusão.

Estas palavras soavam em meus ouvidos a primeira vez que me encontrei ante meu esposo. Inclinei a cabeça, levantando as mãos sem contestar suas palavras. Mas temo que deve ter lhe parecido terrivelmente monótono meu silêncio.

Quando penso sobre a maneira de lhe interessar, de repente toda minha inventiva me parece estéril, erma como os arrozais após a colheita. Durante as horas que passo sozinha, ocupada em bordar, penso em muitas coisas belas e delicadas que lhe diria. Por exemplo, o muito que lhe quero. Não lhe falaria com expressões grosseiras copiadas do Oeste, mas com expressões veladas, como esta:

— Meu senhor, viste o amanhecer esta manhã? Parecia que a terra saltava ao encontro do sol. Ao principio, tudo era escuridão; depois, surgiu a luz como uma nota musical. Meu senhor, eu sou tua pobre terra, que te espera.

Ou bem dizer-lhe-ia, quando em sua barca se aventura, pela noite, no lago dos lótus:

— Que ocorreria se as pálidas águas não sentissem a atração da lua? Se a onda não fosse nunca mais vivificada por sua luz? Meu senhor, ah! Tem cuidado e volta são e somente, para que eu não me converta, privada de ti, numa coisa pálida e sem vida.

Isso é o que eu quisesse lhe dizer. Mas quando regressa, vestido com suas estranhas roupas exóticas, não me atrevo a lhe falar. Talvez tenho de me persuadir de que sou a esposa de um estrangeiro? Mal me fala, suas palavras são sempre raras e indiferentes, quase não me olha. Parece que é como se não se desse conta de que levo minha veste de seda cor de pêssego e que em meus cabelos, bem aspergidos de frescos aromas, luzem todas minhas pérolas.

Este é meu tormento. Mal faz um mês que me casei... E já não sou formosa a seus olhos.

Em isso penso desde faz três dias, irmã. Tenho de recorrer à astúcia e pensar no meio de atrair-me os olhares de meu marido. Talvez não descendo eu de numerosas gerações de mulheres souberam atrair a si o favor de seus senhores? Durante um século, todas foram formosas, excetuando a Kwei-Mei, da época dos Sung, a quem a varíola desfigurou com a idade de três anos. E inclusive desta os escritos dizem que tinha uns olhos negros muito belos e uma voz que comovia o coração dos homens, como em outono o sopro do vento comove os canaviais. Seu esposo, que tinha seis concubinas, todas elas dignas de sua posição e riquezas, a queria até o ponto de antepor seu amor por ela ao de todas as outras. E daí vou falar-te de minha avó, Yang Kwei-fei, “a que tinha um pássaro branco no pulso”. Seria mais exato dizer que teve elevado entre as palmas perfumadas de suas mãos todo o império, porque o Filho do céu era louco por ela. De todas estas honoráveis antepassadas minhas, eu não sou mais que uma sombra; no entanto, seu sangue corre por minhas veias e de seus ossos são feitos os meus ossos.

Olhei-me no espelho de bronze. Não tanto por mim como por amor a meu esposo, irmã, mas te digo que as outras são menos belas que eu. Meus olhos, sei-o muito bem, estão bem modelados, o branco contrastando nitidamente com o negro. As orelhas, pequenas e delicadamente coladas à cabeça, permitem-me levar brincos de ouro e jade bem arrimados. Minha boca também é pequena e sua curva se ajusta ao ovalado do meu rosto. Mas quisera eu não ser tão pálida, e que a linha de minhas sobrancelhas se elevasse uns milímetros mais para cima. Para atenuar esta palidez passo a palma da mão, mal velada por uma tintura vermelha. Uma pincelada negra faz que minhas sobrancelhas sejam perfeitas.

Assim me mostro bastante formosa, e disposta para receber a meu marido. Mas no instante em que seus olhos se fixam em mim, compreendo que não observa nem meus lábios nem minhas sobrancelhas. Os pensamentos de meu esposo vagam pela terra, pelos mares, por todas partes, exceto onde eu lhe estou a esperar.

Quando o astrólogo fixou a data de meu casamento, quando as caixinhas de laca vermelhas estavam cheias até encima, quando os vestidos de seda com flores vermelhas foram colocados na mesa, e os doces do casamento se amontoaram formando pequenas cimeiras como pagodes; quando tudo esteve preparado, minha mãe me chamou em seu quarto. Ao entrar — primeiro tinha lavado as mãos e alisado meus cabelos — encontrei-a sentada em sua cadeira de teca negra talhada, bebendo chá. Apoiada contra a parede estava seu longo cachimbo de bambu incrustado de prata. Não me atrevia a levantar os olhos e encontrar seu olhar maternal, que eu sabia fixada em mim, escrutadora. Naquele silêncio sentia-a penetrar em meu coração, fria e acerada. Por último, ordenou que me sentasse. Minha mãe sempre fora muito cordata. Brincando com umas quantas sementes de melão, espalhadas num prato que tinha sobre uma mesa colocada perto dela, disse, me olhando com seu rosto calmo e sua acostumada expressão de infinita tristeza:

— Kwei-lan, minha filha, estás em vésperas de te casares com o homem a quem foste prometida antes mesmo de teres nascido. O pai dele e o teu se queriam como irmãos, e juraram se unir por meio de seus filhos. Naquela época, teu noivo não tinha mais que seis anos; então nasceste tu. Assim foste destinada e com esse fim te educamos. Essa foi a idéia que ocupou sempre meus pensamentos durante os dezessete anos de tua vida, ou seja, agradar duas pessoas: à mãe de teu marido e a ele mesmo. Tudo o que te ensinei o fiz tendo presente a eles. Pensando em sua mãe ensinei-te a preparar e servir o chá a uma senhora de idade; como se deve comportar em sua presença, como se escuta em silêncio quando fala uma anciã, tanto se é para criticar como para elogiar.

Sempre e em tudo te instruí na necessidade de te submeter como uma flor se submete à chuva e ao sol. Pensando em teu marido ensinei-te como deves enfeitar-te, como se fala com os olhos e a expressão, mas sem palavras, como... Mas isso compreendê-lo-ás por ti mesma quando chegar o momento em que finalmente ficarás sozinha com ele. Assim, pois, acho que estás bem educada em todos os deveres de uma nobre esposa. Sabes como se preparam os doces e os quitutes aptos para excitar o apetite de teu marido, lhe fazendo reflexionar no muito que vales. Não esqueças nunca de te lisonjeares com a geniosa preparação das comidas. Quanto à educação e a etiqueta da vida aristocrática, ou seja, como deves te apresentar e te despedir de teus superiores; como tens de lhes falar; como tens que entrar na cadeira de mão e saudar a mãe de teu marido em presença de estranhos, todas estas são coisas que já conheces. A conduta da dona de casa, o matiz de seus sorrisos, a arte de enfeitar seus cabelos com flores e jóias, a pintura dos lábios e as unhas, o emprego dos perfumes, o recurso dos pés pequenos... Ai de mim, quantas lágrimas me custaram teus pés! Mas, que eu saiba, nenhuma moça de tua geração pode se orgulhar de ter pés tão pequenos como os teus. Mesmo os meus, na tua idade, não eram menores. Só gostaria que os Li tenham levado em conta minhas recomendações e apertando mais estreitamente os pés de sua filha que é a noiva de teu irmão, meu filho. Mas confesso-te que tenho medo. Segundo disseram-me, a filha está versada na ciência dos Quatro Livros; e nas mulheres, a instrução foi sempre em detrimento de sua beleza. Mas enfim, que a condição de minha nora pareça-se com a tua, filha minha! Conheces a arte de tocar a harpa, esse venerável instrumento cujas mulheres cordas têm vibrado sob os dedos de muitas gerações de nossas mulheres para deleitar a seus senhores. Teus dedos são ágeis, filha minha, e tens as unhas longas. Inclusive ensinámos-te os famosos versos de nossos antigos poetas e sabes cantá-los docemente com o acompanhamento da harpa. Tua sogra não poderá objetar nada, estou segura, no que diz respeito à bondade de meu trabalho. A não ser que tu resultes impotente para trazer filhos, de preferência, filhos homens ao mundo! Mas inclusive pensei nessa eventualidade, e se o primeiro ano se passar sem novidade alguma, não deixarei de ir ao templo com um presente para a deusa.

O sangue subiu-me ao rosto. Lembra-tendo o passado não conseguia me convencer de que o ignorava tudo com respeito aos nascimentos e maternidade. Numa casa como a nossa, onde meu pai tinha três concubinas que não pensavam em mais do que conceber e educar filhos e o desejo de ter filhos era uma coisa muito comum para que isso pudesse constituir um mistério para mim. Mas pensar que eu... Minha mãe não via o rubor que me cobria as bochechas. Absorta em seus pensamentos, pôs-se a manusear de novo as sementes de melão.

— Disso, porém, existe uma incógnita — disse por último —, e é que teu marido tgrávida no estrangeiro, onde estudou a medicina dessas gentes. Não sei... Mas basta! O porvir dirá. Podes retirar-te!

 

Minha mãe nunca me tinha falado tão extensamente. Falava em raras ocasiões e nada mais que para corrigir ou mandar, tal como era justo que fizesse.

Nenhuma das concubinas alojadas nos aposentos destinadas às mulheres podia se igualar a ela, a Taitai, a primeira esposa de meu pai, tanto por causa de sua posição como de sua capacidade. Irmã, tu conheces minha mãe, não? É muito magra e seu rosto pálido e calmo parece esculpido em marfim. Ouvi dizer que em sua juventude, antes de se casar, tinha magníficas sobrancelhas, dessas que chamam “antenas de mariposas”, e os lábios delicados e vermelhos como corais. E os olhos? A terceira concubina, que não tem papas na língua, disse num dia a esse propósito:

— A Taitai tem olhos parecidos a jóias tristes: pérolas negras que se entristecem por um excesso de dor.

Pobre mamãe!

De menina, nenhuma se parecia a ela. Minha mãe compreendia muito bem as coisas; em casa movia-se com a calma dignidade que a caracterizava e que fazia grande inveja às concubinas e suas filhas. Os servidores admiravam-na, mas não sentiam apreço por ela. Muitas vezes ouvia-lhes resmungar porque nem tão sequer podiam pegar as migalhas da cozinha sem que ela se desse conta. No entanto, não lhes ralhava nunca, com a violência das concubinas quando se enfadavam. Se algo lhe desagradava, seus lábios pronunciavam poucas palavras de desprezo; mas dizia-as com um tom tão altaneiro, que produziam o efeito de agulhas de gelo penetrando na carne.

A meu irmão e a mim nos tratava amavelmente, mas com seriedade e sem expansões, tal como convinha sua posição em família. De seus seis filhos, a crueldade dos deuses arrebatou-lhe quatro na primeira infância. Isto explica seu grande apego a meu irmão, o único varão. Enquanto ficasse-lhe um filho varão, meu pai não poderia encontrar motivo de queixa contra ela. Por outra parte, estava tão orgulhosa de seu filho que chegava a prescindir do pai.

Tu viste a meu irmão? Parece-se com mamãe. Seu corpo é magro como o dela: a contextura é delicada, é alto e empertigado como um bambu jovem.

Durante nossa infância sempre estivemos juntos: ensinou-me a escrever, com tinta e um pincel, as primeiras letras de meu primeiro caderno de escrita. Mas ele era um menino, enquanto eu não era mais que uma garotinha. Quando cumpriu dez anos — eu tinha seis — lhe tiraram dos aposentos das mulheres e o levaram aos que pertenciam ao meu pai.

A partir de então vimos-nos cada vez mais raramente; conforme se fazia maior, considerava vergonhoso visitar as mulheres; ademais, minha mãe não lhe animava a que viesse até nós.

Em quanto a mim, ninguém me permitiu nunca, como é natural, que pusesse os pés nos aposentos destinados aos homens. Lembro-me que uma vez, pouco depois de nossa separação, me atrevi a ir, favorecida pela escuridão, à porta redonda que comunicava nossos aposentos com os aposentos dos homens. Colada contra a parede, olhei avidamente se meu irmão estaria no jardim, mas vi unicamente os criados que iam e vinham, levando recipientes cheios de manjares. Quando abriam a porta dos aposentos de meu pai ouvia o eco de risos, misturado a um canto feminino com voz de falsete. Uma vez fechada a porta, o silêncio voltava a reinar no jardim.

De repente, quando já fazia um bom momento que estava ali, escutando os risos dos convidados ao banquete e me dizendo que meu irmão também devia de tomar parte na festa, senti que me atiravam com força do braço. Era Wang Da Mah, a primeira criada de minha mãe.

— Se volto a te a pegar espiando — ralhou — irei contar a tua mãe! Onde já se viu uma menina tão sem modos, indo espiar o que fazem os homens?

Pálida de vergonha, não pude fazer mais que murmurar uma desculpa:

— Procurava meu irmão.

Ao que ela respondeu com firmeza.

— Teu irmão também é agora um homem.

A partir de então não lhe vi quase nunca. Sabia que gostava de estudar e que em pouco tempo se tinha feito muito versado nos Quatro Livros e os Cinco Clássicos: tanto é assim, que meu pai, acedendo por fim a seus rogos, lhe permitiu freqüentar um colégio estrangeiro de Pequim. Na época de meu casamento, ele estudava na Universidade Nacional, e em suas cartas não pedia mais que uma coisa: que lhe deixassem ir a América. Ao principio, meus pais não queriam ouvir falar disso, e minha mãe nunca mudou de opinião nesse respeito. Mas meu pai não queria que lhe molestassem e, a força de insistir e lhe importunar, meu irmão conseguiu seu consentimento.

Durante os dois períodos de férias passados em casa a seu regresso, citava freqüentemente um livro ao que chamava “ciência”, para grande desagrado de minha mãe, que não conseguia compreender sua utilidade na vida de um cavalheiro chinês. A última vez que veio, compareceu vestido de uma maneira exótica, e minha mãe não ocultou sua desaprovação. Vendo-lhe entrar com aqueles vestidos negros, que lhe davam o aspecto de um estrangeiro, golpeou o assoalho com sua bengala.

— Que significa isso? Que se te tem metido na cabeça? Não admito que apareças ante minha presença com semelhantes trajes!

Meu irmão pareceu muito irritado, mas não teve remédio senão mudar de traje. Durante dois dias não compareceu a presença de mamãe, e meu pai teve de intervir, rindo, para que se mostrasse de novo. Mas minha mãe sobrava-lhe a razão: vestido à moda dos nossos, meu irmão tinha o aspecto de um estudante. As roupas estrangeiras, que lhe ocultavam as pernas, lhe davam o extravagante aspecto de uma pessoa nunca vista em nossa família.

E mais, durante estas duas visitas falou muito pouco. Ignoro os livros que lia; a preparação de meu casamento tinha-me impedido prosseguir os estudos clássicos.

Naturalmente, não se falava nunca de seu casamento; falar, entre nós, de semelhantes assuntos teria sido uma incorreção. Por algumas indiscrições dos criados inteirei-me, no entanto, de que meu irmão não queria nem ouvir falar de seu casamento, e que sua atitude rebelde tinha obrigado minha mãe a atrasar três vezes a data. Cada vez que isto ocorreu, meu irmão pôde convencer papai do necessário que seria lhe permitir continuar seus estudos.

Eu não ignorava, é claro, que ele estava prometido à segunda filha dos Li, gente importante da cidade por causa de sua situação e riqueza. Bastará dizer que três gerações antes do atual chefe dos Li, eles tinham administrado um condado na província, onde o chefe de nossa casa foi também governador de um distrito.

Naturalmente que não tínhamos visto ainda à noiva. Meu pai marcou o casamento antes que meu irmão cumprisse um ano de idade. Isto impunha às duas famílias certa discrição; antes de efetuar-se o casamento, visitar-lhe tivesse sido pouco decoroso. Em quanto ao noivado, nunca se dizia nada.

Só uma vez tão ouvi Wang Da Mah murmurar, em presença de outras criadas:

— É uma lástima que a filha dos Li seja três anos mais velha que nosso patrãozinho! O marido deve ser superior à mulher em tudo, inclusive na idade. Mas a família dela é antiga e rica e...

Deu-se conta de minha presença e calou-se subitamente, recomeçando a trabalhar.

Por que meu irmão se negava a casar? Era inconcebível. Quando a primeira concubina o soube, se jogou a rir e disse:

— Ter-se-á apaixonado em Pequim de alguma formosa moça?

Mas eu não achava que meu irmão pudesse amar algo que não fosse seus livros.

Eu era a única que pensava assim nos aposentos das mulheres.

É verdade que havia os meninos e meninas das concubinas, mas minha mãe os considerava como simples bocas que se deve ter em conta ao calcular suas porções diárias de arroz, azeite, carne e legumes; isso aparte, e depois de calcular a quantidade de algodão necessário para suas roupas, não se ocupava mais deles.

As concubinas, ignorantes em alto grau, viviam a brigar pelas predileções de meu pai. Durante certo tempo tinham um rosto encantador, mas sua beleza murchava-se como uma flor pegada na primavera; e com sua beleza desaparecida, também desapareciam os favores de meu pai. Mas elas não pareciam se dar conta de que já não eram mais belas; durante dias e dias, logo de sua volta, via-as muito ocupadas em arranjar roupas e jóias. Durante os feriados, ou quando ganhava no jogo, meu pai lhes dava dinheiro, que regularmente gastavam em doces, bolos ou vinhos de seu gosto. Quando tinham gastado seus fundos, e em previsão do regresso de seu senhor, recorriam aos criados para pedir dinheiro emprestado, que se gastavam em sapatos e arranjos novos para seus cabelos.

Quando os criados se davam conta que uma delas tinha perdido o favor de meu pai, tentavam se mostrar arrogantes, e se acediam ao empréstimo era impondo as mais duras condições.

Lembro-me da mais velha das concubinas. Era gorda e balofa, e os traços de seu rosto quase desapareciam entre as bochechas inchadas. Não tinha de bonito mais que suas pequenas mãos, das que se mostrava muito orgulhosa. Sempre as estava a amaciar com azeite, esfregando as palmas com tintura vermelha, e as unhas, ovaladas, com carmim; acabava aspergindo-as com um pesado perfume de magnólia. Minha mãe, aborrecida às vezes desta e outras manias, lhe ordenava executar rudes trabalhos de lavar e costurar. Esta segunda esposa não se atrevia a desobedecer, mas se queixava às outras concubinas de que minha mãe sentia ciúmes deles e queria estragar a beleza que ela reservava para meu pai. E enquanto lamentava-se, voltava a lavar-se as mãos, examinando-as cuidadosamente para ver se a delicada pele estava cortada ou endurecida. O contato daquelas mãos dava-me náuseas. Eram macias, muito quentes, e pareciam derreter-se quando lhes apertava. Nem que dizer tem que meu pai tinha perdido desde fazia tempo toda desejo por ela, mas seguia lhe dando dinheiro, e quando voltava de suas viagens passava a noite em seus aposentos para não a ouvir berrar pelos corredores, se fazendo forte no fato de ser a mãe de dois filhos homens.

Seus filhos estavam feitos a imagem e semelhança sua. Também eram gordos e gulosos, e não me lembro deles senão estando os dois a comer ou beber. Na mesa se fartavam até mais que os demais, e depois da comida, se insinuavam furtivamente no pátio dos criados, onde sustentavam grandes discussões para se tentar progressos. Eram dois glutões. Sabiam que minha mãe não podia suportar os gulosos e temiam sua sobriedade, já que ela não lhes distribuía mais que uma tigela de arroz com legumes e um pedaço de peixe salgado ou um pequeno pedaço de galinha fria, tudo isso aspergido com uns poucos goles de chá aromático.

Da segunda esposa, unicamente mais recordo seu medo de morrer. Ela adorava bolos de gergelim, e quando se sentia doente não fazia mais que se queixar, cheia de terror, gritando como uma desesperada para que lhe trouxessem os sacerdotes budistas. Se os deuses a curassem, dizia ela, presentearia um colar de pérolas ao templo. Mas uma vez curada, voltava a atirar-se aos bolos como antes e fingia esquecer a promessa.

A segunda concubina, a terceira esposa, era uma mulherzinha taciturna, que vivia um pouco apartada do resto da família. Não podia se consolar de ter dado a luz três meninas, uma depois de outra, e só depois a um menino. Das meninas ocupava-se muito pouco ou nada em absoluto; as pobres eram consideradas por ela pouco mais que escravas. Já pelo menino, pelo contrário, — uma criaturinha gorda e pálida, que aos três anos não sabia andar nem falar — sentia um grande afeto. Víamo-la passar a todo o momento, num rincão do pátio, ao sol, acariciando à criança, que não fazia mais que murmurar, colada aos longos e flácidos seios da mãe.

A concubina que menos me desagradava era a terceira, uma pequena bailarina de Suchow. Chamava-se Lamay, e era graciosa como a flor cujo nome levava, e que, como sabes, abre as corolas de ouro pálido nos ramos primaveris ainda privados de folhas. Como a flor, Lamay, era pálida, doce, e dourada. Diferenciando-se das outras concubinas, não se maquiava, se limitando a acentuar um pouco o negro de suas sobrancelhas e se pôr uma sombra de carmim no lábio inferior. Ao principio, mal a víamos. Meu pai estava orgulhoso dela e a levava por todos os lados aonde ele ia.

No ano que precedeu a meu casamento, Lamay não saiu mal de casa. Esperava um filho que, efetivamente, nasceu formoso e robusto. O pegou, pondo-o nos braços de meu pai e compensando-o assim dos presentes, as jóias e o afeto que lhe tinha prodigado.

Durante os últimos meses antes do parto, mostrou-se muito contente. Não cabia em si mesma de alegria, a casa inteira ressoando com suas gargalhadas. Muito elogiada por causa de sua beleza — não lembrança ter visto jamais uma criança tão formosa —, apreciava as sedas de cor verde jade combinadas com veludo negro. Em seus delicados lóbulos levava brincos de jade, e ainda que desdenhasse aos demais, distribuía generosamente os doces servidos durante as festas noturnas a que tinha assistido em companhia de meu pai. Tivesse-se dito que ela não comia nada. Quando meu pai se ia, tudo se reduzia a um pastel de gergelim pela manhã, e meia xícara de arroz ao meio dia; ao mais, acrescentava um brote de bambu ou uma posta de pato salgado. No entanto, sentia grande predileção era por vinhos estrangeiros, e adulava a meu pai para que lhe comprasse certo líquido dourado que desprendia borbulhas de prata. Aquele líquido fazia-a rir muito, e quando tinha bebido um pouco, se voltava expansiva e seus olhos brilhavam como cristais negros. Meu pai, encantado e divertido, pedia-lhe que cantasse e dançasse para ele.Quando meu pai se divertia, mamãe se retirava a seus aposentos para ler as excelsas máximas de Confúcio.

Quando eu era criança, sempre me perguntava o que acontecia naquelas festas noturnas, e tinha uns desejos loucos de descobrir, como fiz quando fui em procura de meu irmão. Minha mãe não me teria permitido jamais e me dava dor na consciência de enganá-la.

Mas, uma vez mais — minha desobediência enche-me ainda de vergonha! — aproveitando a escuridão de uma noite sem lua, fui cautelosamente até a porta que conduzia aos aposentos de meu pai; alguém a tinha deixado aberta. Aquele dia tinha sido longo e cálido, e a noite chegou ardente e pesada pelo perfume do lótus. Em nossos aposentos das mulheres reinava um silêncio sepulcral, sentia-me agitada e oprimida por estranhos e vagos desejos. E, de repente, ao olhar o que tinha depois da porta, senti meu coração a ponto de cessar suas batidas. Todas as portas estavam abertas, a luz de centenas de lanternas se refletia para o exterior, para o ar parado e escuro. No interior, sentados às mesas quadradas, vi alguns homens que comiam e bebiam, servidos por criados muito apressados. Por trás da cadeira de cada um dos convidados, tinha, de pé, uma jovenzinha. A única mulher sentada, ao lado de meu pai, era Lamay. Via-a muito bem; sorria um pouco e tinha o rosto brilhante como as pétalas de uma flor. Tinha-se voltado para meu pai e murmurava-lhe algo sem mal mover os lábios. Do grupo dos homens partiam ruidosas risadas, mas ela não ligava e continuava sorrindo com aquele estereotipado sorriso.

Naquela ocasião, quem me descobriu foi minha mãe. Pressionada pelo calor, tinha saído para tomar o ar no pátio, contrariamente a seus costumes. De repente, viu-me e ordenou-me entrar em seguida em meu quarto. Ali veio a meu encontro, e depois de ter-me golpeado repetidas vezes as mãos com seu leque de bambu fechado, perguntou-me se é que me interessava ver como se portavam as meretrizes. Senti-me envergonhada e chorei. Ao dia seguinte, segundo ordens de minha mãe, a porta foi obstruída por uma grade.

Mas, apesar de tudo, minha mãe tratava Lamay afavelmente, e a criadagem falava a mil disso, elogiando tanta magnanimidade. Talvez as outras concubinas tivessem dado qualquer coisa por vê-la tratada com rigor, como facilmente se compreende numa casa onde há várias mulheres; mas minha mãe, sem dúvida, sabia o que se preparava.

Quando se tornou mãe, a terceira concubina julgou muito natural que meu pai a voltasse a luzir em público com ela, como antes. Por temor de arruinar sua própria beleza, não deu o peito a seu filho, e este foi confiado a uma robusta escrava que acabara de dar a luz uma garotinha, morta, suponho eu. O alento da escrava cheirava muito mau; mas era gorda e plácida, e o pequeno, que dormia todo o dia pegado a seu seio, se encontrava melhor em seus braços que com sua mãe. Esta, pelo demais, se preocupava muito pouco dele. Nos dias de festa gostava de vestir o menino de vermelho e calçar-lhe os pés com uns sapatinhos que tinham uma cabeça de gato na ponta. Mas quando o menino chorava, o devolvia, imediatamente e com impaciência, à escrava.

Contrariamente ao que tinha suposto, o nascimento do menino não lhe grande ascendência sobre meu pai. Legalmente tinha cumprido sua tarefa, mas, no entanto, via-se obrigada a encontrar em cada dia novas astúcias para conservar seu amor, tal como sempre fizeram nossas mulheres. Mas tudo foi inútil. Sua beleza, após nascer o menino, não era mais a de antes. Seu rosto, macio como uma pérola, se abateu um pouco... O suficiente para malograr seu aspecto de juvenil delicadeza. Mas Lamay não se dava por vencida, e seguiu levando sedas de cor jade, se enfeitando com brincos de jade e deixando ouvir seu riso argentino; mas quando meu pai saía de viagem já não a levou consigo.

Ao principio, Lamay estranhou-se; depois, teve tal acesso de ira, que dava medo de ver. Naturalmente, as outras concubinas alegraram-se, ainda que fingissem consolá-la. Quanto minha mãe, acrescentou sua amabilidade. Num dia ouvi a Wang Da Mah que murmurava, fazendo alusão à concubina em desgraça:

— Há bem, agora teremos outra preguiçosa à que teremos de alimentar... Quando se fartará o patrão das mulheres dessa classe?

A partir de então, Lamay se tornou outra. Desiludida, seu caráter sofreu alterações; de um período de irritabilidade passava a um tédio profundo, por causa da existência monótona que se via obrigada a levar no pátio das mulheres. Lamay era feita para os banquetes, para ser objeto da admiração dos homens. Sua melancolia aumentou até o ponto de atentar contra sua vida. Isso, no entanto, ocorreu após meu casamento.

Não deves achar que com tudo isso a vida era triste em casa: ao invés, era uma vida feliz, e muitas de nossas vizinhas invejavam minha mãe por causa do respeito com que meu pai a tratava e que não tinha deixado de professar-lhe, por sua inteligência e a hábil direção da casa; minha mãe passava, num silêncio equânime e generoso, os excessos de meu pai.

Assim viviam honoravelmente em santa paz.

Oh, minha querida casa! As imagens de minha infância vão minha memória como as figuras de uma lanterna mágica. Tenho aqui o pátio onde, quando amanhecia, gostava de ver se abrir as flores de lótus no tanque, e a peônia florescerem no terraço. Ali estão os aposentos interiores: no chão de tijolos brincam os meninos; ante os nichos dos deuses ardem velas de cera. No quarto de minha mãe, uma figura severa, inclinada sobre um livro... No fundo a enorme cama de baldaquino.

De todas os aposentos da casa preferia a sala de hóspedes, com suas maciças caixas de madeira negra de teca, a longa mesa esculpida, os estores de seda vermelha. Sobre a mesa, na parede, achava-se uma pintura do último imperador Ming. Vejo ainda a expressão indomável daquele rosto, a barbicha como se fosse de granito, os sutis bigodes que caem a um e outro lado. A parede que estava inteiramente ocupada por uma janela que chegava até o teto esculpido. Através das folhas de papel de arroz se filtrava a luz difusa, dando relevo à sala um pouco escura, e chegava até as vigas do teto, rebitadas de ouro e carmim.

Sentia carinho pela sala dos antepassados, onde gostava de refugiar-me à hora do crepúsculo. Sentada num rincão, como arrebatada por uma música, seguia absorta, no grande silêncio, a invasão das sombras.

Tinha que ver a sala dos antepassados no segundo dia de Ano Novo, reservada à visita das grandes esposas. O ambiente era festivo, e na antiga sala entravam senhores brilhantemente vestidos. Naquele esplendor ressoavam risos, pegavam-se frases voando, os escravos circulavam, portadores de recipientes de laca repletos de bolinhos minúsculos. Minha mãe presidia cortesmente... Fazia séculos que as velhas vigas viam todos os anos a mesma cena. Confusão de cabeleiras e olhos negros, sedas e tecidos com as cores do arco íris, e os arranjos brilhantes de jóias; jade, pérolas, rubis que harmonizavam com as turquesas e o ouro que os convidados luziam em suas mãos ebúrneas.

Oh, minha querida casa, minha amada querida!

Vejo-me muito pequenina, pegada da mão de minha mãe. Estou no pátio enquanto ardem as divindades na cozinha. Antes de entregá-las ao fogo, seus lábios foram untados com mel, para que os dois cheguem ao céu cheios de doces palavras e se esqueçam das brigas dos criados e dos furtos de comida. A idéia de uns mensageiros que estão a ponto de subir aos arcanos celestiais nos deixa mudos e assustados. Ninguém fala.

Vejo-me na festa do Dragão. Para esta circunstância vestiram-me de seda vermelha e rosa, bordada com flores de ameixeira. Ardo em impaciência esperando a noite e a chegada de meu irmão que conduzir-me-á à beira do rio para ver passar a barca do Dragão.

Vejo a trêmula lanterna de lótus que minha velha ama me presenteou no dia da festa das Lanternas. A ama ri-se de minha expressão quando, uma vez chegada a noite, acendo o pavio da bruxuleante vela.

Vejo-me estando com passos lentos, ao lado de minha mãe, quando entravamos no templo. Observo como deposita o incenso na urna, e com ela me ajoelho piedosamente ante os deuses, com o frio do medo na alma.

Eu pergunto, irmã, como, com semelhante passado, me podia adaptar a um homem do caráter de meu marido. Para que servem todos meus dons? Decido pôr-me uma jaqueta de seda azul com botões negros incrustados de prata. Enfeitarei meus cabelos com flores de jasmim, calçarei meus sapatos pretos bordados de azul e saudarei meu senhor quando entrar... Faço-o assim, mas é em vão. Seus olhos correm imediatamente para outras coisas... As cartas abertas em cima da mesa, os livros. Para mim, nem um pensamento solitário.

Tenho o coração atormentado pelo temor. Lembro-me de um episódio que ocorreu antes de meu casamento. Num dia vi minha mãe, turbada de uma maneira fosse do corrente, escrever duas cartas, uma a meu pai e outra minha futura sogra. Que ocorria? Pelas indiscrições dos criados soube que meu noivo queria romper o compromisso. Objetava que eu não era bem instruída e que tinha os pés enfaixados. Enfureci-me, as escravas tiveram medo e juraram que não falavam de mim, senão da segunda filha da gorda senhora Tao.

Esta lembrança assalta-me agora, perturbando-me. Talvez se tratava verdadeiramente de mim? As escravas são tão mentirosas! No entanto, não é verdade que eu seja inculta. Pelo contrário, instruíram-me cuidadosamente em todas as questões que concernem ao cuidado da casa e de minha própria pessoa. Em quanto a meus pés, não acerto que alguém possa preferir que eles sejam enormes como os de uma camponesa vulgar.

Não, não se tratava de mim... Não podia ser de mim que elas falavam!

 

Quando disse adeus à casa de minha mãe e subi à grande cadeira vermelha para empreender a viagem a casa de meu marido, não se me ocorreu pensar que pudesse desagradar-lhe. Em quanto a mim, me senti contente ao Lembra-ter que sou pequena e frágil; mas sei que tenho um rosto ovalada que outros tinham olhado com complacência. Em isto, pelo menos, ele não podia se sentir desiludido.

Durante a cerimônia do vinho olhei-lhe furtivamente por embaixo da faixa de seda vermelha do véu. O vi de pé, com um traje negro à maneira estrangeira; era alto e empertigado como um bambu. Esperava que me dirigisse um olhar, mas foi em vão: nem sequer voltou os olhos para ver meu véu.

Esvaziamos juntos as taças de vinho, inclinamo-nos ante as tabulas de seus antepassados e, por último, ajoelhamo-nos ante seus augustos progenitores, dos que eu me convertia em filha, me separando para sempre dos meus. Durante todos aqueles atos não se dignou sequer me conceder um olhar.

Quando chegou a noite — a festa tinha concluído e extinguido-se o eco dos risos —, me encontrei sentada na cama, sozinha, na câmara nupcial. O medo contraía-me a garganta. A hora sonhada, temida e desejada tinha chegado; por vez primeira meu marido veria meu rosto, eu estaria sozinha com ele... Nervosamente, esfregava-me as mãos, frias, abandonadas no regaço.

Por fim, ele apareceu. Parecia enormemente alto com seu traje exótico, e sua expressão pareceu-me sombria. De repente, acercou-se a mim e, me levantando o véu, contemplou longamente e em silêncio meu rosto. Depois de olhar-me, pegou uma de minhas frias mãos entre as suas.

Naquele momento, ouvi os prudentes conselhos de minha mãe: “Mostra-te fria. Melhor que a doçura enjoativa do mel é o travo embriagante do vinho. Assim, sempre despertarás desejo.”

Atendo-me àqueles conselhos, resisti-me a abandonar-lhe a mão. Ele retirou friamente as suas e de novo me olhou em silêncio. Em seguida pôs-se a falar muito sério e grave. Ao principio, turbada pela novidade de sua voz profunda e viril, que me fazia enrubescer de vergonha não compreendia bem o sentido de suas palavras. Que me dizia?

— Não é possível que tu sintas atração por mim, a quem vês pela primeira vez, como eu a ti. Quem sabe não te obrigaram, como a mim, a contrair este casamento? Até agora não pudemos fazer nada, mas a partir deste momento em que nos encontramos sozinhos, poderíamos organizar nossa existência a nosso gosto. No que me concerne, eu tenho idéias modernas e te considero igual a mim. Nunca impor-te-ei minha vontade, já que não te considero uma coisa minha, senão, mais bem, uma amiga... Se é que o queres.

Estas foram as primeiras palavras que ouvi no dia de meu casamento.

Ao principio fiquei assombrada. Não lhe compreendia. Eu ser sua igual? Como? Não era eu sua mulher? Se ele não me dizia o que devia fazer, quem me diria? Tinham-me obrigado a casar-me com ele... Que podia fazer eu senão o tomar como marido? E com quem tivesse podido me casar a ser com o homem a quem fui prometida desde que nasci, segundo o que tinha sido estabelecido por meus pais? Tudo se tinha cumprido segundo o costume, e não conseguia compreender em que sentido me tinham obrigado.

Suas palavras queimavam meus ouvidos:

— Obrigaram-te, o mesmo que a mim, a contrair este casamento.

Estava a ponto de cair desmaiada de puro medo. Talvez devia deduzir daquilo que ele se tinha casado comigo contra sua vontade?

Irmã, que angustia! Que pena mortal!

Pus-me a retorcer-me as mãos, incapaz de falar, incapaz de responder. Ele deixou cair uma das mãos sobre as minhas, e ficamos os dois em silêncio durante alguns instantes. Eu não desejava mais que uma coisa: que retirasse aquela mão. Sentia que me olhava fixamente. Por último, falou de novo, com voz baixa e amarga:

-O que temi ocorreu. Não queres nem podes me revelar teus verdadeiros pensamentos. Não te atreves a te afastar do que te ensinaram. Escuta: não te peço que fales, te peço unicamente uma pequena prova de carinho. Se estiveres disposta a percorrer comigo o novo caminho, inclina um pouco a cabeça.

Observava-me muito atenciosamente. Senti sua mão oprimir minha. Que queria? Por que não tinham de seguir as coisas o caminho prefixado? Tinha que ser sua mulher e mãe de teus filhos... A partir de então começa minha pena...Esse peso que me oprime noite e dia.

Que fazer? Em meu desespero inclinei a cabeça.

— Obrigado —disse ele, se levantando e retirando a mão — Descansa em paz neste quarto. Lembra-te que não tens nada que temer, nem hoje nem nunca. Vive em paz. Esta noite, dormirei no quarto da o lado.

Deu meia volta, precipitadamente, e desapareceu.

Oh Kwan-yin, deusa da misericórdia, tem piedade de mim!

Senti-me tão menina, tão inerme e cheia de temor no meio de tanta solidão! Nunca tinha dormido fora de minha casa, e tenho aqui que, de repente, ficava sozinha com a incerteza de não ter agradado meu marido!

Em meu desespero precipitei-me para a porta. Talvez pudesse escapar, voltar para casa... O contato com a porta maciça trouxe-me à realidade: pelo momento era inútil pensar no regresso. Se por milagre tivesse conseguido fugir através dos pátios desconhecidos da nova casa, tivesse devido ter em conta, ademais, o caminho a percorrer, que ignorava. E, por outra parte, supondo que por uma casualidade tivesse chegado, talvez a porta dos meus abrir-se-ia para me receber? O velho porteiro teria cedido, sem dúvida, minhas súplicas, permitindo-me ir aos aposentos onde passei minha infância... Mas ali tivesse encontrado minha mãe, que não deixaria de me Lembra-ter meu dever de esposa.

Vejo minha mãe, inexorável, ainda que condoída, ordenando-me regressar imediatamente à casa de meu marido: eu não pertencia já sua família.

Triste, comecei a desfazer minhas roupas de casamento. As sombras que se condensavam sob o baldaquino do leito me davam medo, não me atrevia a me aventurar entre os cobertores. Assim é que estive muito tempo, sentada ao lado da cama, pensando, numa espécie de vigília, sobre as inconcebíveis palavras que tinha ouvido da parte do meu marido. Por último, senti meus olhos banhados em lágrimas. Ocultei a cabeça sob a colcha e chorei até que o sono se apoderou de mim.

Quando acordei, tinha amanhecido. Surpreendida pelo novo quarto, senti que me invadia, subitamente, a amargura da lembrança. Levantei-me correndo e vesti-me. A criada, que veio minutos depois com a água quente, sorriu olhando ao redor com olhos de curiosidade. Levantei-me: é uma grande coisa ter aprendido de minha mãe a manter a dignidade. A criadagem devia ignorar que eu não tinha agradado meu marido.

— Leva esta água ao seu senhor — disse eu — Está a se vestir no quarto da o lado.

Arrogante, vesti-me com brocados de cor carmim e enfeitei minhas orelhas com brincos de ouro.

Irmã, uma lua passou desde nossa última conversa. Acontecimentos estranhos sucederam, acrescentando ainda mais confusão a minha vida.

Figura-te que nos fomos do domicilio dos antepassados. Meu marido teve o valor de declarar que sua mãe é uma autocrata, e que ele não pode tolerar que sua mulher seja uma serva na casa.

Isto ocorreu por uma insignificância. Quando concluíram as festas do casamento, me apresentei ante minha sogra da seguinte maneira: Ao levantar-me, chamei a uma escrava e mandei-lhe que me trouxesse água quente. Assim o fez; então a joguei numa bacia de cobre e, precedida pela escrava, apresentei-me à mãe de meu marido, a quem disse, inclinando-me:

- Rogo minha honorável senhora que seja tão amável de fazer suas abluções com esta água quente.

Minha sogra estava na cama; via seu enorme corpo desenhando-se sob os cobertores. Incorporou-se, sentou-se à beira do leito — não me atrevi a olhar — e lavou as mãos e o rosto; depois, sem falar, fez-me um sinal com a mão para que me retirasse com a vasilha. Não sei se foi porque minha mão tropeçou com os pesados cortinados do baldaquino ou bem porque o medo fazia tremer minhas mãos, o caso é que, ao levantar o recipiente, derramei um pouco de água na cama.

Senti que o sangue se gelava em minhas veias.

— Muito bem — exclamou, furiosa, minha sogra, com voz rouca —Eis aí uma linda nora!

Sabia que minha obrigação era de não pronunciar uma só palavra de desculpas. Dei meia volta e, levando a vasilha com mãos inseguras por causa das lágrimas que afluíam a meus olhos, saí do quarto. Ao atravessar a ombreira encontrei-me rosto o rosto com meu marido. Naquele momento temi que me reprovava por ter incorrido na cólera de sua mãe na primeira vez que a servia. Tinha as mãos ocupadas pelo recipiente e não podia enxugar as lágrimas que corriam abundantemente por minhas bochechas.

— A vasilha virou... -murmurei.

Teria continuado, mas ele me interrompeu:

— Não estou aborrecido com você. Mas esses trabalhos de serva não são dignos de minha mulher. Minha mãe pode ter cem escravas sua disposição se quiser.

Que outra coisa podia fazer, somente me esforçar em que compreendesse que não tinha tentado faltar o respeito minha sogra? Minha mãe tinha-me instruído cuidadosamente em todos os deveres concernentes a uma nora: levantar-se com educação e permanecer de pé em sua presença; acompanhá-la ao lugar de honra; enxugar as xícaras de chá, preparar-lhe o chá e apresentar a xícara com grande cuidado, levando-a entre as palmas das mãos e, sobretudo, não negar nunca nada à sogra, que deve ser considerada como uma mãe. Quando ela me ralha-se, eu deveria escutar em silêncio, com absoluta submissão.

Mas meu marido não me escutou e permaneceu firme em sua idéia.

Seus pais eram contrários à mudança, atendo-se aos velhos costumes, e chegaram, por fim, a opor uma proibição formal.

Sentado em sua poltrona, depois da mesa da sala de leitura, sob as tabulas dos antepassados, o pai, um homem sutil, alto, encurvado sob o peso de sua ciência — era um homem estudioso —, quando soube o propósito de seu filho, alisou sua barba branca e expressou-se assim:

— Filho meu, fica conosco. O que é meu te pertence. Aqui há lugar para todos. Não nos falta alimento e nem espaço. Não é necessário, pois, que dediques teu corpo a trabalhos materiais, já que podes passar em teus dias em ocupações dignas, cultivando os estudos que tu prefiras. Tenta que a nora de tua mãe engendre filhos. Três gerações sob um mesmo teto é um espetáculo que agrada ao céu.

Meu marido continha-se. Não obstante, sem irritar-se, exclamou:

— Pai, eu não peço outra coisa senão trabalhar! Especializei-me numa profissão científica. A mais nobre profissão do mundo ocidental. Quanto a filhos, não me interessam, pelo menos momentaneamente. Talvez mais tarde, sim. Mas por enquanto, meu país precisa mais bem dos frutos de meu cérebro, do que dos frutos do meu corpo.

Eu, que escutava depois dos cortinados da porta, me senti horrorizada ao ouvir aquelas palavras do filho ao pai. Se meu marido tivesse sido educado segundo os antigos costumes, nunca se tivesse atrevido a se opor assim a seu pai. Eram os anos passados longe, em países estrangeiros, onde a juventude não honra suas progenitores, o que lhe fazia ser tão desrespeitoso. É verdade que, em seguida, ao se separar de seus pais, encontrou algumas palavras amáveis, prometendo conservar intactos os sentimentos filiais. Mas, apesar de tudo, nos mudamos.

A nova casa não se parece às outras que vi. Entre outras coisas, não tem pátio. Reduz-se a uma salinha quadrada, em cima da qual se encontram os demais aposentos. Por uma empinada escada sobe-se ao segundo andar. A primeira vez que subi não me atrevia a baixar de novo: meus pés não estavam acostumados àqueles degraus tão empinados. Não tive mais remédio que me deixar escorregar de um degrau a outro, agarrada à varanda de madeira. Uma vez acabada a operação, tinha meus vestidos manchados de verniz fresco, e dei-me pressa em mudar-me por temor de que meu marido se desse conta e risse de mim com esse riso fácil que me intimida.

Colocar os móveis numa casa como aquela era um assunto difícil. Onde encontrar lugar para os meter? De meu lar materno, como parte do dote, eu trouxe uma mesa, cadeiras de madeira de teca e um grande leito de dossel, presente de casamento de minha mãe. A mesa e as cadeiras foram instaladas, por ordem de meu marido, numa sala secundária que denominou “sala de jantar”, e a cama onde achei que nasceriam meus filhos não pôde ser colocada em nenhum dos aposentos do andar superior. Assim é que tive de me contentar com uma caminha de bambu, na que durmo como uma serva, enquanto meu esposo dorme, num quarto separado, numa cama de ferro que parece um banco. Novidades a que dificilmente me acostumarei.

No aposento principal ele colocou cadeiras que ele mesmo comprou. Todas estão despareadas; algumas, inclusive, são feitas com junco ordinário; há de ver que formas estranhas têm! No centro pôs uma mesa e ainda por cima desta uma toalha de seda e vários livros. Um horror!

Nas paredes há penduradas fotografias de seus professores, e um pedaço de tecido quadrado com uma inscrição em caracteres exóticos. Num dia fiz-lhe rir, perguntando-lhe se era um diploma. O diploma — o verdadeiro, que me ensinou — é um pedaço de pele repuxada, que tem inscrito seu nome em caracteres estranhos, seguidos de outros sinais. Os dois primeiros querem dizer uma grande escola, e os outros seu qualificação de doutor em medicina ocidental. Minha pergunta de se aqueles sinais equivaliam a nossos antigos doutores, meu marido riu de novo e disse que não tinha comparação possível. O diploma, com marco de cristal, está colocado na parede, no mesmo lugar que minha mãe, na sala de hóspedes, tem a imponente pintura do velho imperador Ming.

Asseguro-te. Esta casa ocidental é um horror! Durante os primeiros meses perguntava-me como conseguiria me acostumar. Nas janelas, entre as cortinas esculpidas, há, em lugar do opaco papel de arroz, grandes placas de cristal transparente, que deixam entrar a luz do sol a torrentes. A claridade é impiedosa! Não consigo me acostumar. Às vezes tento pôr um pouco de ruge nos lábios e pó de arroz no roto, tal como me ensinaram a fazer, mas na crua luminosidade dessa casa, o efeito é, invariavelmente, que meu marido diga:

— Não te pintes assim, faz favor. Prefiro as mulheres que mantém a graça natura.

Que fazer? Não empregar os pós nem o carmim equivale a deixar incompleta nossa beleza natural; é como pentear os cabelos sem passar um pouco de óleo perfumado com azeite, ou usar sapatos sem bordados. Numa casa chinesa, a luz, atenuada com o papel de arroz, difunde-se, com suaves tonalidades, no rosto das mulheres. Mas aqui...! Que fazer para ficar atraente numa casa como esta? A propósito da janela, ainda não o disse tudo. Figura-te que meu marido me encarregou fazer estores com um certo tecido branca. É para morrer de rir que primeiro façam um buraco na parede, o obstruam com um cristal e, como se isto não fora bastante, lhe apliquem tecido!

O assoalho é de madeira, e há que ver como ressoa sob os passos de meu marido, que só usa sapatos estrangeiros. Provavelmente porque esse ruído também incomodava a ele, meu marido comprou grandes tapetes de lã, com desenhos que representavam flores, e os distribuiu por toda a casa. Imagine você o meu espanto! Tive medo de estragar os tapetes e que os criados, sempre distraídos e desatentos, lhe cuspissem em cima. Quando disse isto a meu marido, ele se irritou tremendamente. Ninguém deve cuspir no assoalho!

— Onde, então? — perguntei.

— Na rua, se for indispensável! — respondeu-me secamente.

Os criados, porém, não conseguem se acostumar a essas estranhas regras, e mesmo eu, estou sempre me esquecendo que não devo cuspir as sementes de melão nos tapetes. Por fim, meu marido comprou minúsculas cuspideiras, e as distribuiu por todas os aposentos, e nos obrigando a usá-las, segundo esse sujo costume estrangeiro.

 

Há momentos em que, se me atrevesse, fugiria desta casa. Se pelo menos tivesse valor para enfrentar minha mãe nestas circunstâncias! Mas não tenho outro lugar aonde ir. Nos dias sucedem-se monótonos, inacabáveis. Meu marido trabalha desde pela manhã até a noite, como se em lugar de ser um rico herdeiro, fosse um operário obrigado a se ganhar o arroz que se come. Ao amanhecer, antes que os raios do sol tenham aquecido a terra, já está a trabalhar, e eu fico sozinha em casa até a noite. Distraio-me na cozinha, onde, me envergonho a confessar, participo até das conversas dos criados.

É preferível, penso, servir minha sogra, e viver no pátio com minhas cunhadas. Ali, pelo menos, ouviria conversas e risos, e este silêncio que pesa em mim durante todo o dia, como se eu fosse um cadáver, não seguiria me oprimindo E nesta atmosfera, meu cérebro trabalha, e chego a cansar-me pensando na maneira de conquistar o coração de meu marido!

Eu também me levanto pela manhã bem cedo, para estar disposta a comparecer ante ele. Levanto-me, inclusive, ainda que durante a noite tenha dormido pouco ou nada em absoluto; lavo o rosto com água morna e perfumada, esfregando-o com óleos, cremes e perfumes, sempre com a idéia fixa de conquistar por surpresa o coração de meu esposo. Mas é inútil; por mais cedo que me levante, ele já está em seu despacho.

E assim todos os dias. Apresso-me, atrevendo-me a girar um pouco a maçaneta redonda da porta. Ah, essas estranhas maçanetas, com que tive que lutar para chegar a conhecer seu segredo! Meu marido punha-se nervoso quando fazia ruído, até o ponto que tive de praticar enquanto ele estava fora de casa. Mas agora que aprendi, com só roçar a maçaneta, sinto, de repente, que o coração se me encolhe.

Meu marido preocupa-se muito pouco de si mesmo. Há que ver como acolhe o chá que lhe trago pelas manhãs. Nem sequer levanta os olhos do livro que estuda. De que me serve, pois, que pela manhã encarregue minha criada que me vá procurar jasmins frescos para eu os pôr no cabelo? A fragrância do jasmim não chega até as páginas do livro estrangeiro; e, ademais, de cada doze manhãs, onze vai-se meu marido sem tão sequer levantar a tampa da chaleira. Em realidade, nada lhe interessa, exceto seus livros.

Meditei muito no que minha mãe me ensinou para me fazer agradável a meu esposo. Não tenho omitido nada para aumentar seu paladar com boas comidas. Em certa ocasião, mandei que um servo comprasse um frango fresco, brotos de bambu de Hangchow, pescado, gengibre, bom açúcar e salsa feita com sementes de soja. Durante toda a manhã me dediquei afanosamente à preparação daqueles manjares, me esforçando por não esquecer nada do que pudesse os fazer melhores e mais aromáticos. Quando tive preparado tudo, dei ordem de servir aqueles pratos ao fim da comida. Tinha a esperança de que meu esposo exclamaria:

— Ah, o melhor deixou-se para o final!

Em lugar disso, quando chegaram os pratos os acolheu, sem comentário algum, como se fizessem parte do menu.

Mal os provou e não disse nada. Eu lhe olhava com a alma nos olhos: Comia-se os brotos de bambu como se fossem simples couves!

Aquela noite, uma vez calmada a dor da desilusão, disse-me:

«Isso ocorreu porque não eram pratos de seu gosto. Já que não fala nunca de suas predileções, farei que perguntem sua mãe as comidas de gostava quando menino.»

À criada encarregada da investigação, minha sogra respondeu:

— Antes de cruzar os quatro mares, Kung Wei gostava de pato assado, bem passado, com geléia de azarola selvagem. Mas ao passar anos comendo as comidas bárbaras e meio cruas dos ocidentais, perdeu o gosto e já não sabe mais apreciar a boa comida.

Desisti de tudo. Meu esposo nada deseja de mim. Não sente necessidade de coisa alguma que eu possa lhe dar.

Uma noite — fazia quinze dias que vivíamos na nova casa — estávamos sentados ante a lareira. Quando entrei, meu marido lia um de seus livros. Numa folha vi desenhada uma figura humana; mas não revestida com sua pele, senão, é horrível o dizer, mostrando a carne sanguinolenta! Como é possível que meu marido se interesse em leituras desse gênero? Senti-me horrorizada, mas pelo momento não me atrevi a lhe fazer pergunta alguma.

Sentada numa das estranhas cadeiras de vime —tivesse sido pouco digno apoiar-me no respaldo; assim, pois, me mantinha com o busto rígido —, pensava melancolicamente na casa de minha mãe. Ali, naqueles momentos, estariam a preparar o jantar à luz das velas, entre as concubinas e a vociferante conversa delas. Minha mãe, sentada em seu lugar presidindo a mesa, e as servas dispondo as taças com legumes, carne, e arroz fumegante.

Alegria e felicidade geral se seguem. Todos comem. Todos se sentem felizes. Meu pai não comparece ainda; virá mais tarde, quando o jantar esteja acabado, para brincar um pouco com os filhos das concubinas. Os criados, uma vez tirada a mesa, tomarão assento em tamboretes baixos, no pátio, e se entreterão até muito tarde, conversando e rindo, enquanto minha mãe chamando o cozinheiro, repassará as contas à vacilante luz de uma longa vela vermelha.

Ah, casa materna! Se pudesse voltar a ela!

Andaria entre as flores, inclinar-me-ia sobre os lótus para ver se suas sementes estavam maduras. O verão anunciava-se, a maturação estava perto. Pela noite, Talvez, após sair a lua, minha mãe chamar-me-ia para tocar na harpa suas melodias preferidas.

Pensando em isto, me levantei para retirar o instrumento de sua caixa de madeira e veludo, no que estão incrustadas em madrepérola as figuras dos oito espíritos da música. O conjunto da ressonante harpa também contém oito palhetas que contribuem para acrescentar sonoridade ao instrumento. A harpa, as palhetas e sua caixa de madeira, veludo e madrepérola foram presenteadas à minha avó, mãe de meu pai. Ela, por sua vez, as recebera de seu pai, meu bisavô, que as comprara em Kwantung, oferecendo a filha para que ela não chorasse quando lhe amarrassem os pés.

Ao começar a tocar, minhas mãos fizeram soar um toque sustentado e melancólico. A harpa é o mais antigo dos instrumentos de meu povo e deve soar ao clarão de lua, sob as árvores, ou seja, sempre diante de um de um cenário a altura. Então, sua voz adquire uma doçura singular. Mas numa opaca casa estrangeira, só se emitiam sons débeis e sufocados.

Toquei mais uns instantes, atacando logo uma melodia do tempo dos Sung.

— Magnífico! - disse-me meu marido amavelmente, levantando os olhos — Alegra-me muitíssimo que saibas tocar. Num dia destes comprar-te-ei um piano e aprenderás a interpretar, também, a música dos ocidentais.

Lia seu horroroso livro. Olhava-lhe enquanto fazia vibrar maquinalmente os dedos, sem saber o que tocava. Nunca tinha visto eu um piano: que teria feito com ele?

De repente deixei de tocar, não podia mais. Abandonei a harpa e fiquei imóvel em meu assento, com a cabeça inclinada e as mãos cruzadas no regaço.

Teve um prolongado silêncio. Meu marido fechou seu livro e olhou-me, meditabundo.

— Kwei-lan — disse.

Senti um sobressalto no coração. Era a primeira vez que me chamava por meu nome. Que me ia dizer, por fim? Olhei-lhe timidamente. Ele continuou:

— Desde que casamos estou a desejar pedir-te que tires as faixas que comprimem teus pés. Isso faz mal a todo o teu corpo. Olha, todos teus ossos se deformaram assim.

Com seu lápis desenhou, rapidamente, um horrível pé todo encolhido.

Fiquei estupefata. Como sabia ele que eram assim?

Nunca me tinha atado os pés em sua presença e nenhuma mulher chinesa expõe jamais seus pés aos olhos dos demais. Inclusive pela noite temo-los ocultos em meias de algodão branco.

— Como o sabes? — perguntei, com voz estrangulada.

— Porque sou médico e estudei no Ocidente —respondeu —Ademais, não só por tua saúde, senão por tua beleza, desejaria que tirasses as faixas. Os pés atados são feios e não estão mais na moda. Suponho que este último argumento convencer-te-á.

Dizendo isto, sorriu, me olhando com doçura.

Apressei-me a ocultar os pés sob a cadeira. Suas palavras tinham-me estranhado. Os pés atados são feios? E eu que sempre tinha estado tão orgulhosa dos meus! Durante toda minha infância, mamãe tinha vigiado pessoalmente a quotidiana imersão em água quase fervendo e a imediata bandagem, cada vez mais apertada. Ao queixar-me de dor, ela me Lembra-teva que num dia meu marido elogiaria a beleza dos meus pés.

Inclinei a cabeça para ocultar as lágrimas. Pensei nas numerosas noites de insônia, nos dias em que a intensidade da dor me impedia comer e brincar, nas horas passadas, sentada à beira da cama, movendo meus pobres pés para os aliviar da pressão do sangue. E agora...? Após ter suportado tanto, quando a dor tinha cedido pouco a pouco, meu marido dizia que os encontrava feios!

— Não posso — disse, meio sufocadas pelos suspiros; e, não conseguindo reter por mais tempo as lágrimas, saí da varanda.

A verdade é que meus pés me preocupavam pouco. Nem quando levava sapatos vagamente bordados meu esposo se interessava em mim. Como suscitar, pois, seu amor?

Duas semanas depois saí para visitar minha mãe pela primeira vez; assim o impõem nossos costumes tradicionais.

 

Não te aborreço, irmã? Então, prosseguirei. Fazia pouco tempo que abandonei minha casa materna, mas me parecia que tinham passado mil luas desde que saí de ali na cadeira nupcial. Naquela ocasião tinha muitas esperanças e temores. E agora....? Agora voltava coma mulher casada, com as tranças recolhidas numa rede sem levar a frente oculta pela faixa da virgindade. Não obstante, seguia sendo a menina de antes —quem o ia saber melhor que eu? — mas mais assustada, mais solitária e com muitas menos ilusões.

Minha mãe veio a meu encontro, indo ao primeiro pátio, apoiando-se em sua bengala de bambu. Pareceu-me cansada e mais magra que antes; mas isto Talvez era devido a que nunca a tinha visto às claras. A tristeza que vi em seus olhos não deixou de me comover. Depois de inclinar-me, atrevi-me a pegá-la da mão. Ela respondeu com uma fugaz pressão, e juntas entramos no pátio interior.

Olhava tudo com olhos interrogadores. Achei que Talvez veria alguma mudança. Mas observei que tudo seguia exatamente como antes. Os pátios estavam sumidos em quietude, cada coisa em seu lugar. As únicas novidades foram os risos dos filhos das concubinas, e os gritos dos criados, que me saudaram em voz alta. O sol de outono se filtrava por entre os muros e brilhava nas pastilhas esmaltadas do pátio. As portas e janelas tinham as persianas jogadas para amortecer o calor e a luz do meio dia. O sol insinuava-se entre as flores, alumiando obliquamente as vigas pintadas e talhadas.

Aquilo já não me pertencia, mas meu espírito se sentia em sua verdadeira casa.

A ausência de um formoso rosto de pérola não me passou inadvertida.

— Onde está a quarta esposa? — perguntei.

— Lamay? — respondeu minha mãe, com desprezo. — Ah! Enviei-a ao campo. Precisava mudar de ares.

Pelo tom da contestação compreendi que não devia fazer mais perguntas. Mas depois, quando em meu antigo dormitório me preparava para me deitar, a velha Wang Da Mah veio a me ver. Fofocando de umas coisas e outras, enquanto me penteava e trançava os cabelos, conforme os velhos hábitos, Wang Da Mah foi me contar que meu pai pensava em tomar uma nova concubina, uma jovem de Pequim que tinha estudado no Japão. Quando a quarta esposa se inteirou do caso, afligiu-se tanto que engoliu seus mais lindos brincos de jade, tentando matar-se. Durante dois dias não disse nada, ainda que sofresse terrivelmente; mas depois minha mãe descobriu a tentativa. Imediatamente foi chamado o médico da família; a jovem estava a ponto de morrer. Mas o médico não soube fazer nada, por mais que pinchasse com agulhas o pulso e as costas da desventurada. Um vizinho sugeriu, por último, que a transportasse a um hospital estrangeiro, mas minha mãe se opôs. Como podiam conhecer os médicos estrangeiros as doenças de uma mulher chinesa? Talvez entendam as doenças dos bárbaros, mas não as dos refinados e cultos chineses... O destino quis que meu irmão estivesse em casa. Tinha vindo para celebrar em família a festividade da oitava lua; graças sua intervenção foi decidido chamar um doutor estrangeiro.

Era uma mulher. Ela veio na hora e não duvidou um instante do que devia fazer.

Introduzindo na garganta da concubina um longo tubo que levava em seus instrumentos, fez os brincos apareceram ante o assombro geral dos presentes. A única que não parecia nervosa era a estrangeira; esta, logo depois de colocar o instrumento em seu estojo, se retirou com a mesma calma com que tinha vindo.

As outras concubinas não ocultaram suas censuras pelo gesto de Lamay. Olha que loucura, se engolir tão formosos brincos de jade! A concubina gorda perguntou:

— Por que não te engoliste uma caixa de fósforos, dessas de dez centavos?

A quarta esposa não disse nada. Durante sua convalescença ninguém a viu comer nem a ouviu falar. Passava o tempo depois das cortinas de seu quarto; sabendo a ciência verdadeira que sua tentativa de suicídio a tinha rebaixado aos olhos de todos. Minha mãe tinha-lhe lástima, e para subtraí-la às ironias das outras a tinha afastado.

Aquilo constituía o atual tema das fofocas familiares.

Pelo contrário, nas conversas com minha mãe não se mencionava nunca o ocorrido. Prestei atenção às indiscrições de Wang Da Mah unicamente por causa do grande amor que sente por nossa família. Faz tanto tempo que vive conosco, que está a par de tudo. Veio com minha mãe da longínqua casa de Shansi, de onde saiu minha mãe para contrair casamento.

Viu-nos nascer a todos. Quando morrer minha mãe, a fiel criada passará ao serviço da mulher de meu irmão para se dedicar ao cuidado dos netos de sua senhora.

Porém, uma das coisas que Wang Da Mah me contou é algo mais que uma simples frivolidade. Meu irmão decidiu ir-se ao estrangeiro, a América, para continuar, segundo diz, seus estudos. Minha mãe não disse nada a esse propósito, mas Wang Da Mah não deixou do murmurar em meu ouvido, quando, ao dia seguinte de minha chegada, fez sua entrada em meu quarto com a água quente. Ao principio, papai tomou como brincadeira as intenções de meu irmão, mas acabou aprovando seu propósito e cedeu. Mas isto afligiu muito minha mãe. Wang Da Mah assegurou-me tê-la visto tão aborrecida nesse dia quanto no dia em que meu pai trouxe para nossa casa a sua primeira concubina.

Durante três dias, minha mãe negou-se a provar alimento algum e não dirigiu a palavra a ninguém. Quando abriu a boca foi para rogar a meu irmão que, já que estava decidido a atravessar o oceano Pacifico, pelo menos, antes de empreender a viagem, se casasse com a jovem a quem estava prometido, e lhe desse um filho.

— Já que te negas a reconhecer que tua carne e seu sangue não te pertencem exclusivamente — lhe disse — e estando decidido a enfrentar os riscos desse país bárbaro, sem consideração alguma a teus deveres, tenta, pelo menos, filho meu, transmitir a outros a sagrada herança de teus antepassados.

Mas meu irmão respondeu-lhe:

— Não tenho a menor intenção de me casar agora, minha mãe. Meu único desejo, por agora, é aumentar cada vez mais minha cultura; tu não me compreendes, mãe. Veremos isso quando eu voltar. Mas, por agora, desde já, asseguro-te que não casarei antes de viajar.

Nem ainda assim cedeu mamãe, e pediu a meu pai que interviesse. Este, completamente absorto nos preparativos para receber sua nova concubina, tomou as coisas às presas, e meu irmão conseguiu o que desejava.

A situação da minha mãe não podia deixar de me comover. A geração atual da família de meu pai era a última em descendência, já que meu avô não tinha tido mais filhos, além do meu pai. Minha mãe deu á luz outros quatro filhos, três homens e uma menina, mas perdeu-os todos, minha irmã durante a infância, devido a uma febre, dois meninos ao nascerem, e um antes disso, já que nasceu morto. Por esta razão era de uma importância suprema que meu irmão, o único varão sobrevivente, tivesse filhos o quanto antes... Unicamente assim poderia minha mãe cumprir seu dever para com nossos antepassados. Este dever era a razão para que meu irmão estivesse noivo desde sua infância da filha de Li.

Eu não conheço a noiva, é claro, mas me disseram que não é bonita. Claro está que esse é um detalhe sem muita importância para minha mãe, em razão da riqueza e da influência de nossa família e da família de minha futura cunhada.

A desobediência de meu irmão deixou-me aturdida durante vários dias, ainda que mamãe não me dissesse nada quanto a isso. Como todos, oculta seus sentimentos nas mais longínquas e escuras profundezas de seu espírito. Assim é seu caráter: quando vê que a dor é inevitável, fecha os olhos para sempre. De maneira que, no ambiente doméstico e acostumada ao silêncio de minha mãe, deixei pouco a pouco de pensar em meu irmão.

Tal como previ e temia, o primeiro pensamento que li nos olhos de todos se referia a meu estado: estaria eu finalmente esperando um filho? Respondi com evasivas às perguntas, limitando-me a aceitar os augúrios com graves inclinações de cabeça. Ninguém devia saber que eu não interessava ao meu marido!

No entanto, não podia enganar mamãe!

Uma noite, ao cabo de sete dias depois de ter voltado para a casa de minha mãe, estava sentada sozinha, na ombreira da porta que dá ao grande pátio.

Anoitecia, as escravas e servos iam para preparar o jantar, e no ar flutuava um cheiro de pescado e de pato assado. Hora perfeita. Os crisântemos do jardim estavam repletos de brotos; nunca tinha amado tanto minha casa e os objetos familiares como naqueles momentos. Lembro-me que o sinal com a mão de empunhar a maçaneta esculpida da porta me dava uma espécie de sensação de segurança; sentia-me em paz ali onde minha infância decorreu rápida como um sonho. Coisas que conheço, coisas amadas. A noite se desenrola lentamente sobre os telhados pontiagudos; nos aposentos percebem-se as débeis chamadas das velas. Sente-se o aroma do jantar. Ouvem-se as vozes dos meninos... O ruído apagado de seus sapatos de feltro nas pedras do pátio. Sinto-me a filha de uma casa patriarcal chinesa, onde tudo é velho: os trajes, os móveis, as relações. Casa calma e segura, à sombra das velhas paredes entre as quais se come e vive bem!

De repente penso em meu esposo, sempre exótico em seus modos ocidentais. Como me adaptar sua vida? Ele não tem necessidade de mim... Senti a garganta oprimida por causa das lágrimas que não podia deixar de verter. Estremeceu-me uma impressão de solidão como nunca experimentei enquanto vivi solteira. Naquela época me entretinha pensando no dia de manhã. E agora que conheço esse porvir que tanto esperei, me parece insuportavelmente amargo... As lágrimas caíram, por último, de meus olhos, e voltei o rosto para evitar que a luz das lamparinas me traísse.

Ouvi o gongo que anunciava o jantar. Sequei-me novamente os olhos e dirigi-me ao lugar que me correspondia.

Após o jantar, minha mãe retirou-se cedo em seu quarto. As concubinas tinham-se retirado também às suas, e, eu fiquei sozinha, terminando meu chá. Naquele momento apareceu Wang Da Mah.

— Seu honorável mãe — disse-me — ordena-lhe que a vá ver.

Respondi estupidamente:

— Mas minha mãe disse que se ia retirar e não sugeriu nada de outra conversa...

— Não sei o que ela quer lhe dizer, Kwey Lan, mas essa é a ordem que me deu sua mãe. Venho diretamente de seu quarto. — respondeu Wang Da Mah; e foi-se sem mais explicações.

Quando o ruído de seus passos se apagou no pátio, separei a cortina e entrei no dormitório de minha mãe. Encontrei-a estendida na cama. Numa mesinha, ao alcance de sua mão, ardia um pauzinho de incenso. Era a primeira vez que via minha mãe naquela postura, e não pude reprimir um movimento de surpresa. Pareceu-me frágil e quase débil. Tinha os olhos fechados, e seus pálidos lábios tinham um hirto amargo. O rosto exangue dela era a própria máscara delicada da tristeza.

— Mamãe — murmurei.

— Minha menina — respondeu ela.

Senti-me perplexa, não sabia como interpretar sua vontade. Devia sentar-me ou ficar-me em pé? Com a mão indicou-me que tomasse assento a seu lado. Obedeci e esperei em silêncio a que falasse. Enquanto, dizia-me: «Está abatida pelo pensamento de que meu irmão se dirige a longínquos países.» Equivocava-me; seu pensamento era alheio ao meu irmão. Mal voltou o rosto para mim, disse:

— Diga-me a verdade, minha filha: há algo em tua vida que não é o que deveria ser. Crês talvez que não me dei conta de sua tristeza? Desde que voltaste, observo que não demonstras mais a calma satisfação de antes. Teu espírito está agitado; choras por nada, como se uma dor secreta torturasse teus pensamentos, ainda que teus lábios não o falem. Que te passa? Sente talvez inquietação por não estar grávida ainda...? Tenha paciência. Eu só um filho a seu pai depois de dois anos.

Que podia lhe dizer? Do cortinado bordado do baldaquino pendurava um fio de seda desprendido da trama. O peguei, e durante um bom momento estive enrolando-o e desenrolando-o entre o indicador e o polegar... O mesmo que fazia, mentalmente, com meus pensamentos.

— Fala! — acossou-me mamãe, não sem algo de impaciência.

Levantei os olhos. Pobres lágrimas inúteis! Tentei em vão retê-las: me sufocavam, e rompi em pranto, enquanto tentava ocultar o rosto entre o edredom que cobria o corpo de minha mãe.

— Não sei, não compreendo o que quer meu marido! — exclamei — Diz que devo ser igual a ele, mas não sei como! Tem horror aos meus pés e os acha feios! Não sei como pode ser isso, já que nunca o deixei ver meus pés!

Minha mãe levantou a cabeça do travesseiro.

—Ser igual a ele? — disse, estupefata, com os olhos dilatados em seu pálido rosto — Que quer dizer teu marido com isso? Como é possível você ser igual ao marido?

— As mulheres ocidentais o são — disse suspirando.

— Já sei, mas aqui somos gente com sentido. E os pés? Por que os desenha? Que quer dizer com isso?

— Faz isso para demonstrar que são feios...

— Vê-se que não foste suficientemente hábil! Não te dei eu vinte pares de sapatos? Estou certa de que não as escolheste com o acerto requerido.

— Os desenhos não reproduzem a linha exterior, mas sim, os ossos, por dentro.

— Os ossos? Quem já viu os ossos do pé de uma mulher? Podem os olhos penetrar na carne?

— Os dele podem, já que ele aprendeu a medicina ocidental. Ele disse isso.

— Ah, sim, pobrezinha! -Dizendo isto minha mãe caiu de novo sobre os travesseiros, suspirando e sacudindo a cabeça — Teu marido está instruído nas artes mágicas dos ocidentais...

Não pude agüentar mais e lhe fiz partícipe das minhas confidências. Confessei tudo, inclusive as particularidades mais íntimas e dolorosas. Lembrança em que cheguei a murmurar frases amargas.

— Ele não faz para que tenhamos um filho, mamãe! Ele não me ama! Ainda sou virgem!

Caiu um forte silêncio sobre eu e mamãe e eu mergulhei meu rosto molhado de lágrimas nos lençóis. Creio que senti a mão firme e macia de minha mãe pousar levemente sobre minha cabeça, durante um breve instante. Mas não tenho certeza absoluta disso; minha mãe não é dessas que apreciam tais atitudes.

Ela por fim sentou-se e pôs-se a falar:

— Não creio que tenho cometido um erro em educá-la como a eduquei. Estava certa que agradarias a um verdadeiro fidalgo chinês. Mas... Será possível que seu marido já não o seja? Será que ele se tornou um ocidental, se não no corpo, ao menos no coração e você desposou um bárbaro? Porém, meu genro é da família de Kung... Quem poderia supor que dali sairia alguém assim? Isso decorre dos anos passados no estrangeiro. Em minhas preces, disse aos deuses que preferia ver teu irmão morto a vê-lo partir para essas terras longínquas.

Minha mãe fechou os olhos, com um rosto que parecia mais agudo ainda. Calou uns instantes; depois, disse, com uma voz cansada e débil, como se estivesse exausta:

— A tudo isto, filha minha, não existe mais que uma solução para uma mulher... Um sozinho caminho, e isso a todo custo! A mulher deve agradar a seu marido! Imagina o que significa para mim te aconselhar que desfaças tudo o que com tanto trabalho cuidei em ti. Mas, já que já não pertences minha família, mas sim à de teu marido, não podes fazer outra coisa senão a vontade dele. Mas não sem uma última resistência. Tenta, por todos os meios, lhe seduzir com teus melhores vestidos de cor jade e negro, e com o perfume de flor de lis. Sorria, sem petulância, mais com essa timidez que tudo oferece. Podes, inclusive, permitir-te tomar-lhe a mão... Mas nada mais que um instante! Sorri, alegra-te; mas se ainda assim não funcionar, não ficar-te-á outro remédio que fazer o que te digo: faça sua vontade.

— Inclusive tirar as faixas dos pés? — murmurei.

—Inclusive tirá-las — disse, com cansaço — Os tempos mudaram... Podes retirar-te.

E voltou-se para a parede.

 

Como te dizer, irmã, a pena que me oprimia o coração? A aurora do dia fixado para minha marcha amanheceu cinza e calma. Concluía a décima lua, quando chegou a época em que as folhas das árvores começam a cair e os bambus se estremecem no ar gelado vespertino ou matinal. Antes de ir-me quis ver meus lugares prediletos, avivar e imprimir sua beleza na memória. Tenho aqui o tanque: a brisa mal murmura, a sinto no ligeiro movimento das folhas e o lótus. Este é o venerável zimbro de nosso pátio. Tem trezentos anos e está tudo retorcido; na sua sombra, no jardinzinho das rochas, no terceiro pátio, fiquei uma hora. Visitei os velhos bambus do antigo pátio de acesso. Sentindo-me feliz no meio de todas minhas plantas, me detive um instante para olhar as folhas de cor verde escuro. Por último, desejando levar-me algo que fosse como um símbolo de toda a beleza dos pátios, escolhi oito crisântemos, que coloquei num vaso. Estavam plenamente abertos, com toda sua gama de cores: vermelho, amarelo, violeta pálido... Disse-me que mitigariam um pouco a nudez de minha casa.

Assim voltei junto a meu marido.

Não lhe encontrei ao entrar no pequeno recibidor. Pela criado soube que tinha ido a um telefonema urgente, mas ignorava de quem. Desejando preparar-lhe uma surpresa, coloquei os crisântemos no salãozinho, arranjado-os para obter o melhor efeito possível. Mas depois de ter posto toda minha vontade, me senti desiludida. No antigo pátio, contrastando com o fundo negro das portas, os crisântemos resplandeciam de melancólica opulência. Aqui, ao invés, sobre o fundo das paredes pintadas de branco, o amarelo mal se destacava; sua beleza reduzia-se a um simples efeito artificial.

Talvez, não se podia dizer o mesmo de mim?

Precisava então vestir minhas calças e jaqueta de cor jade, com um pequeno paletó de veludo negro sem mangas e os cabelos enfeitados com colares de ônix, e brincos de jade. Nos pés levava sapatos negros de veludo, artisticamente bordados com pequenas pérolas de ouro. Da terceira concubina, Lamay, tinha eu aprendido a arte dos tons vermelhos nas bochechas e o lábio inferior, e a astúcia das unhas da mão pintadas de vermelho perfumado. Numa palavra, não pechinchava nenhum esforço para parecer mais formosa aos olhos de meu marido.

Assim ataviada me encontrava bela, e esperei seu regresso.

Se tivesse podido apresentar-me ante ele separando uma cortina vermelha à opaca luz de uma antiga mansão chinesa, tivesse conseguido lhe seduzir. Ali, pelo contrário, tinha que baixar com incertos passos numa estaladiça escada de madeira até o salãozinho nu, onde produziria o mesmo efeito que os crisântemos. Resultaria uma coisa graciosa e nada mais.

A espera foi longa, e quando chegou meu marido — estava muito cansado —, a frescura de meus adornos estava já seca desde fazia momento. Saudou-me ao passar, gentilmente; esteve ocupado durante todo o dia em assistir a uma doente, e não tinha comido nada desde pela manhã.

Jantamos em silêncio. As estúpidas lágrimas impediam-me quase engolir os alimentos. Ele comeu de pressa, e ao acabar fez que lhe servissem o chá. Estava muito preocupado, escapavam-se-lhe alguns suspiros. Por último, levantou-se com cansaço, e disse:

— Vamos ao salão.

Quando estávamos sentados me perguntou distraidamente como ia a saúde de meus pais; mas era visível que minhas contestações não lhe interessavam. Eu tartamudeava e acabei me calando, sem que ele parecesse se dar conta de meu silêncio. Levantou-se de novo e disse, com maior doçura:

— Rogo-te que não te preocupes por minha distração. Estou verdadeiramente contente de que tenhas voltado. Mas que queres? Durante todo o dia tive que lutar contra a superstição e a estupidez humana: e perdi. Que posso te dizer? Não posso pensar em outra coisa que em minha derrota. Pergunto-me se fiz tudo o que devia fazer. Existe algum argumento de que eu não me tenha valido para salvar essa vida humana? E, no entanto, quanto mais penso em isso, mais persuadido estou de ter feito tudo o possível. Mas isso não me evitou que perdesse! Tu te lembrarás, sem dúvida, da família Yu, a que vive perto da Torre do Tambor. A segunda esposa tentou enforcar-se, desesperada de não poder suportar por mais tempo a língua viperina da sogra. Chamado com urgência, fui a toda pressa e veja, eu teria podido salva-lá: descobriram-na quando acabava de se deixar pendurar no vazio. Pois bem, sabes o que ocorreu...? Tinha preparado o necessário para a intervenção quando chegou um idoso tio, um negociante de vinhos, que substitui com sua autoridade ao chefe da família, o velho Yu, que em paz descanse. Bem, o velho veio gritando como uma fera e exigindo que se recorresse aos sistemas tradicionais. Queria sacerdotes e gongos para chamar a alma da mulher! A família foi convocada, ajoelhou-se no assoalho, despiu à pobre moça desmaiada (não tinha mais de vinte anos), e lhe encheram o nariz e a boca de algodão! Taparam-lhe todo o rosto com algodão!

— Mas... Mas — disse — é o costume, é o que se faz sempre. Nesses casos, parte da alma foi-se, e é necessário impedir que o resto se vá também; por isso se tampam os orifícios.

Até então, em sua agitação, meu marido tinha falado andando pelo quarto. Mas, ao ouvir-me, deteve-se bruscamente, fulminando-me com seus olhos; tinha os lábios contraídos e respirava com dificuldade. Por último gritou:

- Como! Tu também?

Estremeci no assento.

— Morreu a moça?   — perguntei com voz como um sussurro.

— Se morreu? Por acaso não morrerias tu também se te fizessem assim por muito tempo?

Dizendo estas palavras, pegou-me as mãos numa das suas e com a outra me aplicou violentamente um lenço sobre a boca e nariz. Liberei-me lançando longe o lenço. Ele riu, com um riso que parecia um alarido, e se sentou se pegando a cabeça entre as mãos, oprimido pela mesma pena que me fazia emudecer. Não se dignou olhar tão sequer um instante os crisântemos que enfeitavam o quarto.

Fiquei olhando-lhe assustada. Seria possível que tivesse razão?

Aquela noite tirei os colares de jade e os vestidos de seda. Começava a compreender que tudo o que me tinham ensinado era falso; meu marido não era homem cujos sentidos uma mulher poderia seduzir ou excitar como se fosse uma flor perfumada ou um cachimbo de ópio. A beleza física não me bastava; devia seguir outro caminho se queria triunfar. E recordei as palavras que pronunciara minha mãe, com o rosto voltado para a parede, bem como o tom de sua voz ao dizer:

— Os tempos mudaram.

No entanto, não podia aceitar facilmente à idéia de liberar meus pés de suas bandagens. A pessoas que me ajudou a finalmente tomar coragem em faze-lo foi a Sra. Liu, a esposa do professor de uma escola estrangeira recentemente fundada. Eu tinha ouvido meu marido falar da Sra. Liu, como de uma amiga. E, efetivamente, ao dia seguinte de meu regresso anunciou-me que viria a me visitar.

Era a primeira visita que recebia, e não omiti fazer grandes preparativos. Dei ordem a um criado para comprar seis qualidades de bolos e servi-los com grãos de melão, biscoitos de gergelim e o melhor chá, o que se coleta após a chuva. Para vestir-me elegi uma jaqueta de seda cor de abricó, que fazia jogo com as pérolas que enfeitavam minhas orelhas. No fundo do coração sentia-me envergonhada de minha casa. Temia que a Sra. Sra. Liu a achasse feia e estranhasse meu gosto. Como meu marido estava sempre ausente, esperava ao menos poder colocar a mesa e as cadeiras de um modo mais convencional e determinar assim mais nitidamente o lugar de honra.

Equivocava-me, já que, chegado no dia da visita, meu marido não saiu de casa; preferiu ficar-se sentado, lendo; quando me via entrar no salãozinho, muito agitada, me acolhia levantando mal a cabeça e esboçando uma fugaz sorriso. A meu entender, tudo ia ao revés: logicamente, eu teria que estar sentada, para poder me levantar ao entrar a visita e a acompanhar cerimoniosamente ao lugar de honra. Mas, com meu marido sentado ali, não tinha maneira de arranjar um pouco a estadia; e quando chamaram ao timbre da porta, meu marido foi abrir em lugar da criada. Eu cheguei a retorcer as mãos de desespero.

Mas o som de uma voz jovial fez que desaparecesse meu mau humor, me obrigando a olhar para a porta. Coisa estranha! Meu marido tinha pegado a mão da recém chegada e dava-lhe no dorso um beijo curiosíssimo. Fiquei estupefata! Mas, subitamente, todo meu assombro desapareceu, e com ele, toda veleidade de simpatia pela visitante ao ver a expressão de meu marido. Seu rosto nunca aparecia assim quando falava comigo, que sou sua esposa; sua atitude era a de alguém que fala com uma amiga.

Irmã, se tivesses estado ali ter-me-ias ensinado o que devia fazer. Mas encontrava-me sozinha e não tinha amigos. Não ficava, pois, outra coisa que fazer que ruminar meus pensamentos e sofrer no coração por tudo o que me faltava para gostar a meu marido.

A visitante não era bela... Nem sequer graciosa; não demorei em me dar conta quando a olhei atenciosamente. Tinha um rosto roliço e jovial, olhos redondos e brilhantes como bolinhas de vidro, cordiais e cheios de sorrisos. Levava uma jaqueta cinza, uma saia de seda preta, mas sem flores, e sapatos masculinos. Falava bem, com uma voz que alegrava ouvir, seu riso era pronto e cálido. Notava-se que com meu marido se sentia alegre, porque falava com soltura de coisas que eu não conhecia nem sequer de nome, intercalando em sua conversa inconcebíveis palavras estrangeiras. Ele parecia contente. Eu, sentada em minha cadeira, escutava com a cabeça baixa.

Aquela noite, após o jantar, fiquei sentada silenciosa, perto dele. A lembrança de seu rosto quando falava a nossa convidada não se apartava de minha mente.

Nunca lhe tinha visto tão vivaz, tão animado! Parecia como se para ela não tivesse muitas palavras... Falou sem parar durante toda a visita, e não saiu do quarto. Como se a visitante fosse um homem em lugar de uma mulher!

Num dado momento, levantei-me e fui sentar-me junto a ele.

— Que me contas? — perguntou, apartando o olhar do livro.

— Diga-me algo da senhora que nos visitou hoje.

Apoiou-se no respaldo de sua cadeira e contemplou-me pensativo.

— Que queres que te diga? É licenciada de uma grande Universidade feminina de Ocidente chamada Wassar; vêem-se poucas mulheres aqui como ela, que conheçam as coisas a fundo. Meu coração alegra-se de vê-la. É casada, também com um professor e tem três filhos, dois meninos e uma menina. Um dia verás que criaturinhas tão formosas. É inteligente, limpa, bem educada e seus pés são sólidos e sadios.

Oh, como odiava, como odiava àquela mulher! Mas, que fazer? É possível que não existisse mais que um caminho para chegar ao coração de meu marido?

— Parece-te bela? — perguntei.

— Naturalmente! — respondeu com tom convencido — É uma mulher sã, de bom sentido, e como já falei, anda sobre pés normais, que não foram deformados.

Durante uns instantes pareceu olhar ao vazio. Eu imaginava idéias desesperadas. Não tinha nada, nada que uma mulher pudesse fazer! Mas, como conseguir...? As palavras de minha mãe eram bem claras: «É necessário que agrades teu marido.»

Ele ficou absorto em seus pensamentos. Em que pensava? Impossível sabê-lo. No entanto, de uma coisa estava segura, a saber: que não pensava em mim; e menos ainda em minhas sedas de cor pêssego, nos brincos com que me tinha enfeitado, nem em meus cabelos bem lisos, brilhantes, avivados com tanto cuidado. Não se ocupava nada de tudo aquilo; e, não obstante, estava tão perto dele que um ligeiro movimento tivesse bastado para unir sua mão à minha.

Naquele momento inclinei um pouco a cabeça e abandonei-me sua vontade, renunciando ao passado.

— Se me disser como tenho do fazer, estou disposta a tirar as faixas dos pés....

 

Quando penso no passado, acho que meu marido começou a se interessar por mim a partir daquela noite.

Parecia que até então não tínhamos tido nunca nada que nos dizer, que nossos pensamentos não se tinham encontrado jamais, que eu não podia fazer outra coisa que lhe olhar sem lhe compreender, e que ele nunca tivesse chegado a posar seus olhos em mim. Se talvez nos tínhamos dito algo, foi com a cortesia que se emprega entre pessoas estranhas: eu, timidamente; ele com uma correção muito manifesta para que eu pudesse a tomar por interesse. Mas agora tinha necessidade dele, e ele, por fim, se lembrava de que eu existia.

Ao falar-me interrogava-me, e mostrava interesse em minhas contestações; e eu que tinha sentido por ele, até então, um amor palpitante, mas ofuscado, sentia agora que lhe adorava.

Nunca imaginei que um homem pudesse se inclinar com tanta ternura a uma mulher. Ao perguntar-lhe o que devia fazer para liberar meus pés de suas bandagens, achei que reduzir-se-ia a me dar umas quantas instruções. Por isso me estranhou muitíssimo ao lhe ver aparecer com uma bacia de água quente e um rolo de ataduras.

Estava envergonhada: a idéia de que ia ver meus pés era insuportável; ninguém os tinha visto desde o dia em que alcancei a idade em que devia cuidar de mim mesma.

Sentia-me como sobre carvões acendidos. Quando, de joelhos ante mim, e a bacia a seu lado, fez um sinal com a mão para me pegar os pés, tive a tentação de fugir.

— Não — disse debilmente — Fá-lo-ei eu mesma.

— Não te preocupes. Lembra-te que sou médico.

De novo neguei-me. Ele levantou o rosto e me olhou aos olhos fixamente.

— Kwei-lan — disse com tom grave — Sei o que te custa fazer isto por mim. Mas permite que te ajude no que for possível. Sou teu marido.

Cedi sem reflexionar mais. Pegou-me um pé com seus dedos ágeis, tirou o sapato, a meia e, por último, a faixa interior. Seu rosto tinha uma expressão triste e ao mesmo tempo severa.

— Como deves de ter sofrido! — murmurou com ternura — Que triste infância! E tudo inutilmente!

Ao ouvir aquelas palavras, não pude reter as lágrimas. Sim, os sacrifícios feitos não tinham servido para nada. E agora ele me impunha outros!

Sob os efeitos da imersão e o desatado, novas torturas começaram para meus pés. O processo da distensão revelou-se quase tão doloroso como a compressão com as faixas apertadas. Pouco a pouco, o sangue começou a circular; e isto me produziu dores insuportáveis. Tinha momentos em que, para mitigar um pouco a dor, eu apertava de novo as faixas. Mas imediatamente pensava que meu marido dar-se-ia conta e, com mãos trêmulas, tornava a tira-las. Não encontrava alívio mais que me sentando sobre os pés, com as pernas cruzadas e balançando o busto.

Fazia tempo que tinha deixado de pensar em como me apresentaria ante meu marido. Que importava que me apresentasse fresca e alegremente ataviada? Durante a noite, as lágrimas tinham inflamado meus olhos e tinha a voz rouca por causa dos gemidos que não podia conter. E, coisa curiosa, meu marido, que não tinha cedido à fascinação de minha beleza, me consolava como o tivesse feito com uma criança! Aferrava-me a ele, desesperada pela dor.

— Passá-lo-emos juntos, Kwei-lan — dizia-me ele — Sofro vendo-te sofrer assim, mas pensa que isto que fazemos agora não é tão só útil para nós, senão para os demais: é um protesto contra um costume antigo, mau e inútil.

— Não! — suspirava eu —Faço-o por ti, unicamente por ti; para parecer a teus olhos uma mulher moderna!

Riu, com o rosto subitamente alumiado; o rosto que lhe tinha visto no dia em que veio a nos visitar aquela mulher.

Esta foi a recompensa minhas dores. A partir de então, nada me pareceu doloroso.

Com a distensão produzida e um melhoramento em meu estado de saúde, comecei a gozar de uma nova liberdade. Era jovem, e meus pés ainda não se tinham necrosado como os das mulheres mais velhas, caso em que murcham e ficam até inúteis. Os meus não estavam mais que entorpecidos. Cedo comecei a estar com maior soltura, as escadas já não me pareciam tão dificultosas. Inclusive toda a minha pessoa se robusteceu. Num dia entrei rapidamente no quarto onde meu marido escrevia. Levantou a cabeça, surpreendido, e sorriu.

— Corres? — exclamou —. Bom sinal, vejo que o pior passou, e que a deformação de antes desapareceu.

Surpreendida, contemplei meus pés.

— Mas — disse — não são tão grandes como os de Sra. Liu.

— E nunca o serão. — respondeu ele — Os pés de Sra. Liu desenvolveram-se naturalmente. Os teus adquiriram o tamanho máximo que poderão ter.

Senti-me um pouco entristecida de que meus pés não poderiam ser nunca tão grandes como da Sra. Sra. Liu. Com isso ocorreu-me outra idéia; já que meus pequenos sapatos bordados não mais me serviriam, decidi comprar outros de couro, como os que tinha visto nos pés da Sra. Liu. Ao dia seguinte, acompanhada por uma criada, dirigi-me à loja de sapatos e comprei um par da medida desejada: cinco centímetros maiores que meus pés. Enchi o espaço vazio com algodão. Assim, ninguém poderia se dar conta de que tinha tido os pés atados.

Então quis visitar a Sra. Liu. Quando meu marido soube meu desejo, me prometeu, sem mais, me acompanhar ao dia seguinte.

Fiquei estupefata; não está bem visto que um marido acompanhe sua esposa pela rua.

Agora também estou acostumada a isso.

Ao dia seguinte, tal como se tinha convindo, fomos à visita. Meu marido mostrou-se muito amável comigo, ainda que mais de uma vez me confundiu, me dando a preferência ao entrar numa ou outro quarto. Não estava ainda a par deste costume, e ele teve que a explicar ao regressar a casa.

— Assim se faz no Ocidente. — me disse.

— Por que? Talvez se deve a que, como ouvimos dizer, os homens são ali inferiores às mulheres?

— Não, essa é outra tolice.

E explicou-me. A preferência dada às mulheres provia de um antigo costume de cortesia que se perdia nos tempos antigos.

Antigos? A palavra assombrou-me. Eu não tinha ouvido nunca falar de outros países com outro passado longínquo que não o nosso.

Unicamente nós, povo civilizado, tínhamos tido uma antiguidade, assim eu pensava. Mas tenho aqui que, segundo parece, os povos estrangeiros tiveram também um passado e uma cultura; isso significa que não eram do tudo bárbaros. Meu marido prometeu-me ler-me os livros onde se fala deles.

Quão feliz fui aquela noite! Ser um pouco mais moderna era uma grande coisa! Efetivamente, naquele dia não tão só tinha levado meus sapatos de couro, senão que deixei de pintar o rosto e não enfeitei os cabelos. Meu marido disse que eu me parecia muito à Sra. Liu.

Desde o momento em que, por minha vontade, operou-se a mudança, me pareceu renascer em uma vida nova, mais completa. Cada noite, meu marido falava comigo, e sua conversa parecia-me cheia de encantos: ele, sobretudo.

Ah, se soubesses as coisas curiosas de que me informava a propósito dos países estrangeiros e seus habitantes! E daí gargalhadas motivavam minhas atônitas exclamações!

— Que ridículos são! Que gente esquisita!

— Não são mais esquisitos — contestava ele, muito divertido — do que nós aparecemos a seus olhos.

— Como? Eles consideram-nos esquisitos?

— Naturalmente! — dizia meu marido rindo — Se lhes ouvisses falar! A seus olhos, nossos costumes são ridículos, nossa aparência também, e o que comemos e tudo o que fazemos. Não lhes cabe na mente que tendo o aspecto que temos e nos comportando como nos comportamos, possamos tão humanos como eles.

Aquilo era muito forte. Como podiam considerar seu modo de vestir, seu aspecto e maneiras tão humanas como as nossas?

— Mas nós, — observei dignamente —as coisas que sempre fizemos, nossos costumes, nosso tipo físico, são coisas que datam de tempos antiqüíssimos!

— Exato... Ou pelo menos, tão antigos como os deles.

— Sempre achei que os estrangeiros vinham aqui para adquirir um pouco de civilização. Minha mãe assim me dizia.

—E tua mãe equivocava-se. É tudo o contrário: vieram aqui crendo poder civilizarnos. É verdade que nós podemos lhes ensinar muitas coisas; mas eles não estão persuadidos disso, o mesmo que tu não te persuades de que devemos aprender muito deles.

Tudo o que dizia meu marido era novo e interessante. Não me cansava nunca de lhe ouvir falar dos estrangeiros e, sobretudo de seus maravilhosos inventos: das torneiras de onde sai água fria ou quente, das lareiras que funcionam sem combustível, das máquinas que andam por cima da água e de outras que navegavam por debaixo dela. E, em fim, que dizer desses aparelhos maravilhosos que voam?

— Estás certo de que não se trata de magia? — perguntei inquieta —Os velhos livros falam dos milagres do fogo, da terra e a água; mas é sempre magia, realizada por seres sinistros e diabólicos.

— Magia? Que dizes? Nada de magia: uma vez consigas compreender, verás que são coisas bastante simples de entender. É a ciência.

Todas as noites me falava dessa ciência, e pouco me faltava para compreender que meu irmão sentisse seu fascinação até o ponto de se opor aos desejos de minha mãe, que em vão tinha tentado evitar que atravessasse o Pacifico. Eu mesma me sentia encantada e começava a me sentir superlativamente instruída; tanto é assim que, num dia, não pude resistir ao desejo de catequizar, a falta de outra pessoa, a nossa cozinheira.

Esta limpava o arroz na pila do pátio da cozinha; ao ouvir minhas palavras, cessou de sacudir a peneira.

— Quem diz isso? — perguntou, olhando-me com olhos de suspeita, e em absoluto desejosa de ser convencida.

— O senhor — disse com autoridade — Crie-lo agora, si ou não?

— Oh! — respondeu ela, duvidosa —O senhor tem muita instrução; mas basta com olhar para dar-se conta de que a terra não é redonda. Suba você à pagode que há na colina sul da Estrela do Norte, já verá como durante quilômetros e quilômetros a seu arredor, a terra, inclusive com suas montanhas, rios e lagos, é plana como um pastel. No que se refere a nosso país, sem dúvida se encontra no centro, de outra maneira não poderíamos dar razão aos antigos sábios, que sabiam muito, e lhe chamaram, precisamente, Império do Meio!                                                        

Eu tinha pressa de aprofundar um pouco mais.

— Isso não basta. — disse —. A Terra é tão grande que para atingir o lado oposto decorreria o período de uma lua, e quando é de noite aqui, no outro lado é de dia.

— Tolices, tolices, senhora! — exclamou a cozinheira triunfalmente — Se precisa-se uma lua de dias para ir de aqui a esses outros países, como pode o sol realizar todo o percurso em tão poucas horas, já que precisa de um dia inteiro para percorrer o curto espaço entre a Montanha de Púrpura e as Colinas ocidentais?

E prosseguiu sua tarefa de sacudir na água a peneira de arroz.

Reconheci, no entanto, que não podia a culpar de sua ignorância. Entre todas as coisas curiosas que aprendi de meu marido, tinha uma, sobretudo, que me surpreendia infinitamente: que os povos ocidentais tivessem as mesmas luzes celestes, o sol, a lua e as estrelas, que nós.

Até então tinha achado que Pan-Ku, o deus criador, tinha-as feito unicamente para os chineses. Mas meu marido é sábio, sabe-o tudo, e não diz mais que a verdade.

 

Com que palavras te dizer, irmã, como começou o favor de meu marido? Talvez eu mesma estou segura de quando começou seu coração a acordar? Ah! Como pode a fria terra observar que na primavera o sol abre às flores seu coração? É possível que o mar se dê conta de que a lua lhe atrai?

Perdi a noção do tempo; unicamente sei que já não estou sozinha, que ali onde esteja ele está meu lar. Esqueci a casa de minha mãe. Durante o dia, em decorrência das horas em que meu marido está ausente, não faço mais que pensar em suas palavras. Lembrança seus olhos, seu rosto, a curva de seus lábios, o ligeiro contato de sua mão na minha quando, juntos, voltamos as páginas do livro aberto na mesa ante a qual nos sentamos. Pelas noites, quando estamos sozinhos, lhe olho de soslaio, ansiosa de aproveitar as lições que me dá com ajuda dos livros.

Não faço mais que pensar nele. Estou ébria de amor, exatamente como o que ocorre em primavera, quando o rio invade os canais gelados e secados pelo inverno e divaga pela terra, levando a todos lados os germes da vida e dos frutos.

Quem pode compreender verdadeiramente a força desses sentimentos entre um homem e uma mulher? Minha solidão está cheia dele, não penso em nada mais. Em fim, chegou o momento de minha suprema alegria! E escuta agora, irmã, uma radiante notícia. No último dia da undécima lua — na época da colheita do arroz no meio no ano — nascerá meu primeiro filho. E será um menino.

Quando meu marido soube que eu cumprira meu dever com ele, que esperava um menino, não ocultou sua alegria. Os primeiros em receber a notícia foram seus pais e em seguida seus irmãos, que nos enviaram suas felicitações. Naturalmente, meus pais não estavam diretamente interessados neste acontecimento, mas decidi lhes dar a noticia por ocasião da visita de Ano Novo.

Mas o ano que começou não deixava de ser difícil para mim. Até então, minha situação na família de meu marido foi muito pouco importante: era apenas a esposa do filho caçula. A partir do dia de nossa mudança, mal participei na vida da família. É verdade que, em duas ocasiões, fui lhes visitar; mas eram visitas de elogio, feitas em épocas estabelecidas pela tradição, e minha sogra, a quem servi o chá, tratou-me quase com indiferença, ainda que não prescindisse de certa benignidade.

Mas agora tudo tinha mudado. De improviso converti-me numa sacerdotisa do destino. Em minhas entranhas estava sendo gerada a esperança da família... Um herdeiro masculino. Meu marido tinha cinco irmãos, nenhum dos quais tinha filhos homens. Como eu lhe daria um, meu marido não só ascenderia, subitamente, da posição inferior ao de irmão maior como também adquiriria o direito de herdar os bens da família. Mas, verdadeiramente, era muito triste que uma mãe não possa considerar como seu, mais que durante uns poucos dias, o menino que nasceu de seu seio. Efetivamente, o menino deve ocupar, muito cedo, um lugar preferido na hierarquia e a vida da maior família... Oh, Kwan-ying protegei o meu filhinho!

Falar pela primeira vez a meu marido de nosso filho produziu-me algo muito parecido ao êxtase; mas este sentimento foi prontamente vencido por outros pensamentos mais ansiosos. Disse que os tempos começavam a ser difíceis para mim, sobretudo por causa dos numerosos conselhos que me afluíam de todas partes. Em primeiro lugar, os de meu honorável sogra. Tão cedo se inteirou da notícia, quis eu fosse visitá-la. Até então tinha sido recebida, cerimoniosamente, no átrio dos convidados; isto por causa de certo rancor que minha honorável sogra nos guardava pela mudança. Mas naquela ocasião, os criados receberam, sem dúvida, outras ordens, já que mal entrei me fizeram passar aos aposentos interiores, passando pelo terceiro pátio, reservadas à família.

Ali encontrei minha sogra, ocupada em beber o chá. Era uma senhora majestosa e tão corpulenta, que seus pés não podiam suportar, desde já fazia tempo, o peso de seu corpo; tanto é assim, que era incapaz de dar um passo sem se apoiar pesadamente em duas robustas escravas, sempre atentas suas ordens, colocadas de pé por trás de sua cadeira. Levava as mãos cheias de anéis, e eram tão carnudas, que os dedos pareciam embutidos rigidamente numa bola de carne cheia de anéis.

Minha genuflexão foi acolhida com um sorriso que fez aparecer os finos lábios entre a gordura de suas bochechas. Pegou-me uma mão e golpeou-a amavelmente com uma das suas.

— Minha filha! Minha boa filha!— disse, com a voz um pouco rouca que tinha desde que seu pescoço desapareceu, afundado na carne, e por causa da asma que não a deixava em paz.

Imediatamente dei-me conta de que minha visita era agradável e, servindo o chá, lhe apresentei a xícara com as duas mãos. Feito isto, tentei me sentar a seu lado num tamborete baixo; mas ela não me quis permitir tanta humilhação, ainda que em outras ocasiões ela pouco se importasse pelo lugar onde eu me sentasse. Sorrindo e tossindo, indicou-me que me sentasse numa cadeira ao outro lado da mesa; e não tive mais remédio senão obedecer.

De repente, minha sogra expressou o desejo de que minhas cunhadas viessem me ver. Estas compareceram, me dando parabéns. Três delas não haviam concebido nunca e as outras geraram apenas meninas. Portanto, aquela cena não podia suscitar nada menos do que inveja e rancor. A mais velha delas começou a queixar-se baixinho, balançando-se para trás e para frente, gemendo, desesperando-se e compadecendo-se de sua sorte:

— Ai de mim, ai de mim, quão triste é minha vida! Que má sorte!

Minha sogra suspirou e sacudiu gravemente a cabeça sem dizer palavra, permitindo assim que sua nora se queixasse durante dois cachimbos de fumo; uma vez tendo-os fumado, deu-lhes ordem de retirar-se porque tinha que falar comigo. Inteirei-me então de que o irmão mais velho de meu marido tinha tomado, fazia pouco tempo, uma segunda mulher, já que a primeira não lhe tinha dado filho nenhum, nem menino e nem menina, para grande pesar seu. Estava verdadeiramente apaixonada de seu marido, e não perdia ocasião de demonstrar o afã de sua vida.

Minha sogra se prodigou então em conselhos, e entre eles me deu o de não preparar nenhuma roupa para o menino até que tivesse nascido.

Isto, disse, era um costume do tempo de sua juventude, em sua terra natal, Anhwer, originada pela idéia de que tinha de se manter segredo dos deuses cruéis o nascimento de um homem; de sabê-lo, fariam todos os possíveis para destruir aquela nova vida.

— Como vestir-lhe-ei? — atrevi-me a perguntar — Não vou deixar nu e abandonado ao pobrezinho!

— Envolve-lhe na roupa velha de seu pai. — respondeu minha sogra — Isso trá-lhe-á sorte. Eu o fiz com meus cinco filhos, e todos estão com vida.

Minhas cunhadas também me aconselharam fazer isto e aquilo, segundo suas experiências pessoais. Todas insistiram, especialmente, na necessidade de comer certa classe de peixe imediatamente após o nascimento da criança. Também não devia esquecer de beber uma boa xícara de açúcar mascavo dissolvido em água.

Pela noite, quando, feliz por causa de todas aquelas provas de interesse e assistência familiar, voltei a casa e contei a meu marido o que me tinham dito, fiquei petrificada ao vê-lo ficar subitamente enraivecido e percorrer a estadia a grandes passadas.

— Estupidez!Estupidez! — gritou —Tudo isso são mentiras! Superstições! Nunca, nunca! — Deteve-se, e pegando-me pelos braços olhou-me fixamente aos olhos, que eu tinha levantado para ele — Prometa-me — disse com doçura — que deixar-te-ás guiar, única e exclusivamente, por mim, Kwey-Lan. Tens de obedecer-me, compreendes?  Prometa-me, se não, te juro que não voltarás a ter nenhum outro filho!

Que podia fazer eu se não prometer? Quando lhe dei minha palavra, pareceu se acalmar.

— Amanhã — disse — vou te levar a uma casa onde poderás ver como se vive à moda ocidental. É o domicilio do meu antigo professor americano. Desejo que faças essa visita, não para que imites cegamente seus costumes, senão porque desejo ampliar o horizonte de tuas idéias.

As ordens de meu marido foram executadas ao pé da letra. Unicamente fiz uma coisa sem que ele o soubesse. À manhã seguinte, ao amanhecer — era tão cedo, que todo mundo dormia, exceto um rapaz que vi vagamente através da bruma matutina —, me escapei da casa sem ser vista; acerquei-me ao templo e acendi ante Kwan-ying, a deusa protetora dos filhos e da boa gestação, uns quantos pauzinhos de incenso de que me tinha provido numa loja. A lousa de mármore ante a deusa estava úmida de orvalho, mas apesar disso, me enrrodilhei, e várias vezes a toquei com a frente, murmurando preces com todo o coração, e olhando à deusa com olhos suplicantes. Esta me contemplava impassível; a urna estava cheia de cinzas frias do incenso que outras mães tinham oferecido antes que eu, com preces não menos ardentes que as minhas.

Afundei bem no pequeno monte de cinza os pauzinhos, os acendi e deixei que ardessem ante a deusa; uma vez feito isto, voltei para casa.

Fiel sua promessa, meu marido levou-me a visitar seus amigos estrangeiros. Sorrio, irmã, ao confessar que também se unia minha grande curiosidade um pouco de medo. Que queres...? Nunca até então tinha estado numa casa estrangeira, e nenhum estrangeiro tinha tido relações com a casa de minha mãe. Meu pai, naturalmente, tinha conhecido alguns durante suas viagens, e seu julgamento se resumia a uma gargalhada por causa da vulgaridade de seu aspecto e a rudeza de suas maneiras. Coisa estranha, unicamente meu irmão admirava-os. Em Pequim conheceu a muitos, e entre os professores de sua escola tinha-os estrangeiros. Lembrança que num dia lhe ouvi que tinha estado em casa de não sê que estrangeiro; e a idéia daquela audácia tinha-me enchido de admiração.

Em casa de minha mãe não se sentia nem sombra da influência dos estrangeiros. Às vezes, é verdade, algumas criadas contavam animadamente coisas a respeito de estrangeiros mal entrevistos na rua, quando iam à compra; eram intermináveis conversas a propósito de sua pele lívida, de seus olhos claros. Eu prestava ouvido àquelas conversas com a mesma curiosidade insana que escutava os contos de fantasmas e diabos, no que a fantasia de Wang Da Mah era fertilíssima. Não tinha eu, efetivamente, ouvido referir à servidão coisas da estranha magia dos brancos, de seu poder de raptar a alma das pessoas com uma pequena máquina encerrada numa caixinha negra à que aplicavam o olho? A caixinha fazia tac! Ouvia-se saltar um estampido. Imediatamente, uma estranha debilidade sentia-se no peito, e pouco tempo depois alguém morria de doença ou acidente.

Meu marido riu-se quando lhe falei disto.

— Então, como se entende que eu esteja aqui são e somente depois de viver doze anos em seu país?

— Porque és valente — respondi — e penetraste no segredo de sua magia.

— Observo que precisas conhecer por teus próprios olhos os estrangeiros. Só então verás como são homens e mulheres igual que nós.

Fomos aquele mesmo dia. Lembrança um jardim com erva, árvores e flores. Primeira surpresa: os estrangeiros compreendem-vos a natureza, e podem ter formosos jardins. Não é que estivesse entusiasmada; o conjunto tinha sido disposto com uma evidente rusticidade, não se viam pátios nem sinal de tanques com peixes vermelhos. Confesso que quando nos encontramos ante a porta, tivesse escapado de não ter ao lado a meu marido.

Alguém, desde o interior, abriu rapidamente, e na ombreira apareceu um «diabo estrangeiro». Era alto e contraía seu rosto com um grande sorriso. Compreendi por sua vestimenta, igual à de meu marido, que se tratava de um homem; mas figura-te meu horror quando vi que no crânio, em lugar dos cabelos negros e lisos de todo mundo, tinha uma espécie de lã vermelha encrespada. Dois olhos, parecidos a pedras lavadas pelas águas do mar, brilhavam em seu rosto, em cujo centro se destacava um nariz como uma montanha. Uma criança horrível; mais repulsiva que o deus do Norte, à entrada do templo!

Mas meu marido não parecia nem minimamente impressionado pela estranha personagem, sendo que inclusive estendia uma mão, que o outro pegou, a sacudindo energicamente. Em lugar de mostrar-se surpreendido, meu esposo voltou-se para mim e fez as apresentações. O estrangeiro contraiu novamente seu rosto com um enorme sorriso, e fez sinal de pegar-me a mão. Olhei a sua. Que mão horrível, irmã! Grande e ossuda, coberta de pêlos vermelhos rígidos, e pontos negros. Notei que se me parecia com pele de galinha. Nunca me atreveria a tocar aquela mão! Assim é que escondi as minhas nas mangas e me inclinei. O estrangeiro acentuou seu sorriso e convidou-nos a entrar.

Atravessando um vestíbulo parecido ao nosso, entramos num quarto onde, sentada ante a janela, havia uma pessoa no que imediatamente reconheci ser uma mulher estrangeira. Em lugar de calças, levava um longo vestido de algodão, pegado pela cintura por um cinto largo e chato. Seus cabelos, não tão feios como os de seu marido, eram longos e lisos; no entanto, tinham uma cor amarela, esquisita. Também tinha um nariz longo, mas não ganchudo como o de seu marido, e mãos vulgares, com unhas quadradas e curtas. E os pés! Ao olhá-los imaginei um par de barcas.

«Com uns pais como estes — pensei —, como serão as pobres crianças estrangeiras?»

Devo dizer, ademais, que, apesar de sua rudeza, faziam tudo o possível por parecer amáveis. Mas não tinha nenhum gesto que não se denotasse sua falta de educação; por exemplo, ofereciam xícaras com uma mão nada mais, e me davam a preferência descuidando-se de meu marido. Num momento dado, o homem dirigiu-me a palavra, como se não fosse o dever de sua mulher me dar conversa! Aquilo me pareceu um insulto.

Reconheço que não se lhes podia fazer responsáveis de seus atos até o ponto de me ofender, mas já viviam a doze anos na China — segundo me disse meu esposo — Tendo portanto tempo suficiente para aprender um pouquinho de educação. Não digo isto por ti, irmã, que viveste sempre entre nós e, portanto, és uma das nossas.

O mais interessante da visita começou quando meu marido pediu à estrangeira que me mostrasse as crianças deles e suas roupas.

— Nós também esperamos um menino — explicou — e queria que minha esposa se iniciasse nos costumes estrangeiros.

A mulher levantou-se imediatamente, pedindo-me que a acompanhasse ao andar superior. Tive medo de ir-me sozinha com ela, e olhei para meu marido. Este, como resposta, me fez um sinal de seguir à estrangeira.

Minhas apreensões desapareceram rapidamente. No andar superior entramos num quarto inundado de sol e aquecida por uma lareira negra. De repente, uma coisa estranhou-me: estava bem claro que pretendia manter a estadia quente, e, no entanto, por uma janela aberta entrava o ar exterior. Para que te dizer meus sentimentos quando vi os três pequeninos estrangeiros, uma menina mais velha, um menino um pouco mais novo que esta e uma menininha ainda menor, brincando pelo assoalho! E por último, havia um bebê, menino, em seu berço. Estava encantada, pois nunca tinha visto umas crianças tão bonitas.

Tinham o aspecto saudável. Mas seus cabelos e olhos eram de cor clara. Isto confirmava o que tinha ouvido dizer a propósito da natureza dos estrangeiros que, contrariamente ao que nos sucede, ao nascer têm os cabelos claros e que este se escurecem com o tempo. E a pele? Muito branca. Talvez eles lavassem diariamente aquelas crianças em algum tipo de água medicinal que clareasse a pele? Esta suposição revelou-se exata quando a mãe me mostrou um quarto de banho onde diariamente lavavam as crianças dos pés à cabeça. Com tantos banhos, não se poderia estranhar que sua pele acabasse perdendo a cor.

E, por último, a mãe mostrou-me das crianças. A maioria era quase completamente branca. Mesmo o bebê também ia vestido de branco de pés a cabeça. Ao perguntar eu se levavam luto — o branco é para nós a cor de luto —a mãe me respondeu que não, que o branco era tão só para que as crianças sempre se apresentassem adequadamente. A mim me parecia que uma roupinha menos clara seria melhor, sujaria menos. Mas nada entre os estrangeiros está conforme a natureza.

As caminhas eram todas brancas, e produziam um efeito lúgubre. Não compreendo por que usam tanto a cor da morte. As crianças ficam tão graciosas quando se vestem com cores alegres, vermelho, amarelo e azul! Nós vestimos aos meninos de vermelho no momento de nascer, como sinal de alegria. Mas é inútil; o caráter destes estrangeiros não concorda em nada com o nosso. Por exemplo, fiquei pasmada ao saber que aquela estrangeira amamentava ela mesma a seus filhos... Que coisa tão estranha! A mim nunca teria ocorrido fazer assim com os meus. É contrário a nossos costumes. Efetivamente, nenhuma mulher chinesa de certa posição dá o peito a seus filhos, já que têm muitas escravas grávida de poder cumprir esta missão.

Quando voltamos a casa, disse a meu marido:

— É verdade que ela mesma amamenta a seus filhos? São tão pobres assim?

— É o melhor para uma criança que a mãe a amamente. — disse-me —Tu também, quando chegar o momento, amamentarás também ao teu.

Fiquei extraordinariamente surpreendida.

— Eu?

—  É claro. — confirmou meu marido muito sério.

— Mas... Então, deverão passar dois anos antes que eu possa ter outros? — Objetei.

— É o justo intervalo, ainda que a causa que alegas seja estranha.

Talvez tenha razão meu marido, inclusive neste particular.

De todos modos, estou a ver que algumas crianças fatalmente morrem, e que também terei meninas, minha casa não encher-se-á de filhos homens tal como tinha esperado.

Ao dia seguinte fui a casa da Sra. Liu para contar-lhe minha visita. Ah, se a deusa concedesse-me filhos, como os dela! Direitos, robustos, corados e com olhos vivazes! Vestir-lhes-ia com trajes cor de rosa e vermelhos, cores que fazem ressaltar o extraordinário tom dourado de sua pele.

—Já vejo — disse, com um suspiro de satisfação — que os criaste segundo os antigos costumes.

— Nada mais que até certo ponto. Olha — e dizendo isto atraiu para ela o menorzinho. — emprego a cor branca para sua roupa interior. É mais fácil de lavar. Dos estrangeiros pegue o que achar de útil e elimine o que não puder ser adaptado.

A primeira coisa que fiz ao sair de sua casa foi entrar numa loja onde vendiam tecidos e comprar uma peça de seda rosa e vermelha, com flores, outra de veludo negro para uma camisetinha sem mangas, e seda para um gorrinho. Não foi uma compra fácil, porque não queria para meu filho nada que não fosse de primeira qualidade.

O vendedor teve que tirar das estantes uma série de peças, uma depois de outra. Era um velho asmático, e resmungava quando lhe pedia que me mostrasse sua mercadoria.

— Mostre-me outra... Quero uma peça de seda com flores de pêssego bordadas.

Ouvi-lhe murmurar algo a propósito das mulheres vaidosas.

— Não é para mim — lhe adverti —  É para meu filho.

Ao ouvir estas palavras, o velho sorriu com expressão astuta, e sacou uma formosa peça que tinha estado oculta até então.

— Tome-a — disse — Estava guardada para a mulher do governador, mas tratando-se de seu filho ofereço-a a você.

A seda lançava lindos reflexos rosados sobre o mostrador. Não pechinchei o preço e a comprei, mesmo sabendo que o velho astuto deve ter com certeza aumentado o preço, ao perceber meu interesse. Ao levá-la a casa dizia-me:

«Esta noite cortarei, costurarei e bordarei a jaqueta e as calças. Eu mesma fá-lo-ei tudo; não quero que ninguém toque em meu filho.»

A idéia de passar a noite costurando para meu filho fazia-me feliz.

Confeccionei-lhe um par de sapatos bordados com uma carinha de tigre. Como brinquedo, lhe comprei uma corrente de prata.

 

Grande notícia, irmã! Hoje senti que meu menino se movia em meu ventre! Se me tivesse falado não teria me sentido tão emocionada.

Suas coisinhas, tudo que vai usar, tudo estão preparado até nos menores detalhes.

Inclusive os pequenos Budas dourados estão em seu lugar, cosidos ao redor da aba do gorrinho. Comprei um cofre de madeira de sândalo e dentro dele, coloquei as roupinhas, que assim, se impregnarão de um perfume delicado, antes de vestirem o corpo do meu filho.

Já não me resta nada que fazer; nos campos, o arroz está cor de jade; ainda tenho de esperar mais três luas ainda. Como será meu filho?

Oh tu, pequena deusa negra, acelera o curso dos alados dias para que cedo possa estreitar entre meus braços a meu tesouro! Pelo menos, durante todo um dia será inteiramente meu. E depois...? Não quero pensar! Os pais de meu marido escreveram que desejam ter ao menino com eles, na casa dos antepassados. Sendo o único neto, sua vida é muito preciosa para que possam permitir que o retenham afastado de seus olhos. Já falam dele com ternura. O pai de meu marido, que não me tinha dirigido nunca a palavra, me fez chamar no outro dia; dedicou-me uma conversa muito longa do que unicamente compreendi que, para ele, já tinha nascido a criança.

Pelo contrário, eu quisesse que fosse para nós! Reconciliaria-me com meu lar estrangeiro. Seria tão bonito viver os três juntos! Mas ainda não posso ir contra a tradição dos meus, que não permite à mãe se consagrar a seu primeiro filho; este pertence a toda a família. Quem não se conforma é meu marido. Não faz mais que resmungar, dizendo que as escravas viciarão o menino no excesso de alimentos e em luxos e costumes inúteis. Uma vez, inclusive, ouvi-lhe lamentar-se de que a criança viesse ao mundo. Naturalmente, assustei-me — os deuses podem irritar-se — e conjurei-lhe para que se calasse.

— Há que respeitar os antigos costumes! — lhe disse.

Mas ao mesmo tempo doía-me o coração pensando que teria de abandonar o meu pequeno.

Meu marido parece ter-se acalmado e já não fala de seus pais. Mas parece-me preocupado; quem sabe as idéias que forja! No que me concerne, eu não penso em nada, ocupada como estou em esperar o meu tesouro...

Já sê o que meu marido fez. Parece-te bem, irmã? A dizer verdade, nem eu mesma o sei; tão só acho que tem razão ao notificar a seus pais que, ao igual que deseja sua mulher para ele, assim, também, nosso filho deve pertencemos exclusivamente, já que somos os pais.

Os velhos enfadaram-se, mas suportamos em silêncio sua cólera. Meu marido contou-me que, num momento dado, seu pai deixou de discutir para chorar em silêncio; quando o soube, mal pude conter meu coração. Se não se tivesse tratado de meu filho, teria cedido. Mas meu marido é mais forte que eu, e por amor a seu filho não deixou que as lágrimas de seu pai lhe abrandassem.

Quando abandonamos a casa dos idosos para nos vir aqui, não deixei de reprovar a meu marido aquela infração manifesta aos usos e costumes do passado. Mas a tradição já está rompida e, mulher egoísta que sou, isso deixou de me preocupar. Não tenho mais que uma idéia: meu filho, meu filho, inteiramente, unicamente meu! Não terei que o compartilhar com vinte pessoas ao mesmo tempo, com os avôs e os tios! Eu, sua mãe, bastarei para lhe cuidar. Eu o vestirei, banharei e cuidarei de tal maneira que não se afaste de meu lado nem de dia nem de noite.

Digo que meu marido me recompensou por tudo, e dou graças aos deuses por me ter casado com ele. Meu esposo, homem moderno, dá-me um filho inteiramente meu; toda a vida não bastará para lhe pagar semelhante dom.

Dia depois de dia, sigo os progressos do arroz que amarela nos campos. As espigas estão cheias e inclinam-se. Um pouco mais deste lânguido sol e, esplendidamente maduras, poderão ser coletadas. Meu filho nascerá num bom ano, num ano de abundância, como dizem os fazenderios.

Quantos dias durará ainda minha sonhadora espera?

Já não me pergunto se meu marido me ama ou não. Quando nascer meu filho, meu esposo conhecerá meu coração, como eu o seu.

Oh, irmã minha, irmã minha! Aqui está; já o tenho entre meus braços! Por fim nasceu! Olha-lhe: tem os cabelos negros como o ébano.

É possível que tenha vindo ao mundo uma criança tão bonita? Que braços tão pequenos, gorduchos e fortes! E as pernas! Robustas como uma pequena árvore! Examinei atenciosamente seu corpo: é forte e formoso como o de um jovem deus. Ah, o guloso! Chora e agita-se, reclamando o peito, como se não fizesse mal uma hora que lho dei! Tem a voz forte e não admite atrasos.

Mas sofri, irmã minha, sob os olhos apaixonados e ansiosos de meu marido. Alegre e angustiada a um tempo, caminhava ante as janelas. Lembro-me que via segar o arroz madurado, o reunir em grandes montões. Ano de abundância, ano de vida!

A dor fazia-me gritar e, no entanto, sentia-me cheia de exaltação ao pensar que tinha chegado ao ápice de minha feminilidade. Ah, se soubesses quão robusto ele era! E com que grito imperioso veio ao mundo! Temi que sua impaciência me matasse, mas imediatamente me glorifiquei ao lhe ver tão forte, meu filho de ouro!

Minha vida floresceu. É necessário que te diga, irmã, como está cheia de alegria? E por que não me abrir a ti, que tens sondado tão profundamente meu coração nu? Tenho aqui como ocorreu.

Exausta, mas triunfante, jazia no leito com meu filho ao lado. E tenho aqui que meu marido entra no quarto, se acerca à cama e tende os braços. Senti que o coração se me subia à garganta: queria que se cumprisse o antigo rito da apresentação.

Peguei a meu filho e o pus nos braços de seu pai, oferecendo-lho com estas palavras:

— Senhor, tenho aqui vosso primeiro filho. Pegai-o. Vossa esposa o dá.

Ele me olhava aos olhos e eu senti que me fundia sob a luz ardente de seu olhar. Inclinou-se e disse:

— Devolvo-to. É nosso.

Falou baixinho, e suas palavras caíram em meu coração como um orvalho de prata.

— Compartilhá-lo-ei contigo, eu, teu marido, que te quer.

Choras, irmã? Si, já o sei, eu também choro! De que outra maneira poderíamos resistir a tanta alegria? Mas olha a meu filho... Está sorrindo...

 

Irmã, agora que tenho um filho, cria poder te contar unicamente coisas agradáveis. Supus que nada poderia me fazer recair na tristeza de antes. Por que têm de ser os laços de sangue a nos dar motivos de dor?

Hoje, meu coração mal pode conter suas batidas. Não, não... Não se trata de meu filho! Já tem nove meses, e se visses que gordo está! Parece um verdadeiro Buda.

Não lhe viste desde que começou a querer se manter em pé. É como para fazer rir a um frade! Imagine que agora quer andar e faz pirraça quando lhe fazemos ficar sentado. É inútil que alguém tente lhe dominar: não há maneira. Constantemente penso: que olhos de pérola têm! Seu pai diz que lhe estou mimando. Mas eu me pergunto como seria possível para mim ralhar com semelhante criaturinha, um encanto de criança como esta, tão formosa que faz rir e chorar de alegria. Não... Não se trata de meu filho!

É questão de meu irmão, do filho único de minha mãe, que durante todos estes anos esteve na América. É ele quem nos aflige tanto, minha mãe como a mim. Lembra-te o que te disse dele, do muito que lhe queria quando éramos pequenos. Depois, não o vi durante vários anos. É verdade que, de vez em quando, recebia notícias suas, mas não muito com freqüência, porque minha mãe não pôde esquecer que se foi de casa contra sua vontade. Que mais posso dizer? Ordenou-lhe inclusive que contraísse casamento com sua noiva, e ele se rebelou. Esta é a causa que faz que minha mãe raramente mencione seu filho.

Não contente com o fato de ter afligido gravemente no passado, agora a atormenta com outras novidades. Ela mo comunicou numa carta que me remeteu ontem por intermédio de Wang Da Mah, nossa velha ama de leite e fiel depositária de todos os segredos da família.

Ao entrar, Wang Da Mah, com uma expressão medonha, inclinou-se ante meu filho. Depois, entregou-me a carta, não sem suspirar:

— Ai de mim! Ai de mim!

Estava segura de que tinha ocorrido uma catástrofe. Durante um segundo senti que o coração deixava de bater em meu peito.

— Minha mãe! — exclamei.

A última vez que a vi se apoiava penosamente em sua bengala; tanto é assim que, a vendo naquele estado, me reprovei interiormente não a ter visitado mais que duas vezes após nascer o menino. Muito absorta em minha felicidade, não encontrei o tempo necessário para a visitar.

— Não se trata de vossa mãe, filha de uma honorável esposa. —retificou Wang Da Mah, suspirando — Os deuses prolongaram-lhe a vida para reservar-lhe estas novas dores.

— Trata-se de meu pai? — perguntei, afligida.

— O honorável senhor — disse o ama de criança, inclinando-se — não bebe ainda nas Fontes Amarelas.

—Então?

Assinalou-me a carta que tinha deixado em cima de meus joelhos.

— Que a jovem mãe do principesco menino leia a carta. — me aconselhou.

Dei ordem de servir o chá a Wang Da Mah em outro quarto e, tendo confiado o menino ao ama, olhei a carta. Estava dirigida a mim e levava a indicação do remitente: minha mãe. Meu assombro era muito natural; nunca até então ela me tinha escrito.

Vencendo um movimento de dúvida, rompi o estreito sobre e retirei a folha, que imediatamente vi coberta com finos caracteres traçados pelo pincel de minha mãe. Saltei a propósito as palavras de cumprimentos, para chegar rápido ao conteúdo essencial onde li:

«Teu irmão, que desde faz longo tempo se encontra no estrangeiro, me escreve que pensa tomar como esposa a uma mulher estrangeira!»

Oh, irmã! Como senti naquelas palavras todo o lacerante dor de minha mãe!

— Cruel!  Louco! — não pude evitar dirigir estes desprezos a meu irmão, ditos em voz alta.

As mulheres dos criados foram, aconselhando-me que me calmasse; devia lembra-mer que a excitação podia me envenenar o leite que alimentava meu filho. Mas as lágrimas me sufocavam; para desafogar toda a cólera que fervia em meu coração, me arrojei ao assoalho e chorei muito. Quando cessei de chorar, mandei que as criadas chamassem a Wang Da Mah.

Quando esta se encontrou em minha presença lhe pedi que esperasse o regresso de meu marido, a quem queria pedir conselho e a permissão de ir ver minha mãe; enquanto esperava ofereci-lhe arroz e carne para que se reconfortasse.

Acedeu de bom grau, e eu dei ordem de que lhe servissem uma porção de arroz com um pedaço de carne de porco. Consolando-a assim pela parte que tomava em nossa desgraça, me senti singularmente reconfortada.

Encerrada no quarto, esperando o regresso de meu marido, reflexionei no ocorrido. Lembrava-me perfeitamente do meu irmão, e por mais esforços que fazia não podia mo imaginar tal como devia ser na atualidade: um homem feito e direito, vestido com trajes americanos, movendo-se com desenvoltura nas ruas estranhas daquele longínquo país, falando com homens e mulheres... Mais com mulheres que com homens, já que se tinha apaixonado por uma delas! Era inútil, não podia imaginar a meu irmão de outra maneira que como o pintavam minhas lembranças. Tinha um palmo de estatura mais que eu. Ligeiro em seus movimentos,; agitado ao falar, rindo com um riso que lhe fazia enrubescer e tremer. Seu rosto ovalado era, exatamente, o de nossa mãe: lábios retos e finos, as sobrancelhas bem marcadas, por cima de seus olhos agudos. Era belo, muito belo, e as concubinas ficavam enraivecidas ao ver que ele muito mais bonito que seus filhos. Mas não podia ser de outra maneira! As concubinas do meu pai, em sua maioria, não eram mais que mulheres ordinárias, escravas de nascimento, com lábios gordos e vulgares, sobrancelhas ralas e cabelos rígidos. Minha mãe, não, era uma esposa, descia de cem gerações de esposas. Sua beleza estava feita de precisão e delicadeza; uma formosura refinada e madura, tanto em linhas como em cores, tudo isso transmitido, intacto, ao filho.

A ele lhe deixava indiferente se saber belo. Ainda lhe vejo apartando de suo rosto as mãos acariciadoras das escravas e criadas. Não queria que estas lhe molestassem em seus jogos, aos que se dedicava com ardor. Punha grande empenho em tudo. Vejo-lhe absorto em seu jogo, a frente sempre rugada. Quando queria algo, sso era sério: que ninguém tentasse se opor! Eu, que o sabia, não me atrevia a lhe contradizer enquanto jogávamos, em parte porque ele era um menino—eu não devia opor minha vontade de garotinha à sua — e, ademais, porque lhe queria muito, e não suportava o lhe ver enfadado por qualquer coisa que for.

Pelo demais, ninguém tentava lhe contradizer. Os servos e escravas, respeitavam-lhe como o jovem senhor da casa, e até a dignidade severa de nossa mãe se abrandava em sua presença. Não permitia, é claro, que desobedecesse suas ordens, mas em realidade, lhas compunha para não lhe ordenar mais que as coisas em harmonia com os desejos dele. A este propósito, lembro-me que, em certa ocasião, ordenou a uma escrava que tirasse da mesa um bolo doce de que meu irmão gostava bastante e que teimava em comer, embora, sempre ficasse doente depois de o fazer. Ao fazê-lo desaparecer evitava-se o perigo de que, o vendo, meu irmão pedisse, desobrigando minha mãe de uma negativa.

Tinha-os atemorizados a todos, e, naturalmente, triunfou sempre desde sua infância; tanto é assim, que nunca se me ocorreu observar a diferença de trato entre ele e eu. Como se me tivesse podido ocorrer me considerar ao mesmo nível que meu irmão? Nunca imaginei que isto pudesse ser possível; minha missão na família era de muita menor importância que a esperada dele, o primogênito e herdeiro de meu pai.

Naqueles tempos antepus a afeição de meu irmão à que pudesse sentir por todos os demais.

Naturalmente, lembrança nossos passeios pelo jardim: ia eu pegada de sua mão. Inclinávamos-nos juntos sobre a água pouco profunda do tanque, e tentávamos distinguir, na verde sombra, as escamas douradas de nosso peixinho predileto; ou bem procurávamos pedrinhas multicoloridas, com as que construíamos pátios com mosaicos inspirados nos de casa, mas infinitamente mais complicados. No dia que meu irmão me ensinou a manejar com arte o pincel no primeiro caderno, guiando minha mão, o considerei o mais sábio de todos os mortais. Quando se aventurava nos pátios das mulheres eu lhe seguia como um cachorrinho segue a seu dono; e quando franqueava a arcada do portão primeiramente aos aposentos dos homens, cujo acesso me estava proibido, ficava ali, pacientemente esperando que voltasse.

Quando fez dez anos, o tiraram dos aposentos das mulheres e o levaram aos dos homens; e nossa vida comum foi bruscamente interrompida.

Oh, naqueles primeiros dias! Eu não fazia mais que chorar. Ia dormir banhada em lágrima, sempre sonhando com um lugar onde seríamos sempre crianças, sem que ninguém nos separasse nunca. Passou muito tempo antes que me acostumasse aos aposentos que tinham ficado vazias depois de sua marcha. Num dia, minha mãe, inquieta por minha saúde, chamou-me e disse-me:

— Filha minha, a tristeza que sentes por teu irmão não te convém. Sentimentos e emoções como os que mostras só deverão se exteriorizar quando morrerem os pais de teu marido. Tenta ter na vida o sentimento das proporções e domina-te melhor. Chegou o momento de pensar em sério em teu casamento: portanto, convém que te dediques aos estudos e ao bordado.

A partir daquele dia a mim sempre esteve presente a idéia do casamento. Era evidente que minha vida e a de meu irmão não podiam seguir unidas; eu pertencia mais à família de meu noivo do que à minha. Que outra coisa podia fazer que não fosse seguir os conselhos de minha mãe e me dedicar por inteiro aos meus deveres?

Tenho outra lembrança bem clara de meu irmão. Remonta-se ao dia em que disse querer ir a uma escola de Pequim, Eu estava no quarto de minha mãe quando ele entrou para solicitar, por simples cortesia, a permissão, já que já tinha obtido o consentimento de meu pai, e não era costume de mamãe o proibir o que seu marido tinha consentido. No entanto, devo reconhecer que meu irmão observava as formalidades exteriores.

Era verão. Meu irmão luzia em uma vestimenta ligeira, de seda cinza, e em seu polegar levava um anel de jade. Sempre elegante, naquele dia me fez pensar num junco de prata.

Ante minha mãe, com a cabeça um pouco inclinada, tinha os olhos baixos, mas desde onde eu estava podia ver o brilho de suas pupilas.

— Mãe — disse —se tu não te opões, queria ir a Pequim para continuar meus estudos.

Minha mãe sabia muito bem, como é natural, que não lhe ficava outro remédio que consentir; mas ele, por sua vez, não ignorava que, de ter podido, mamãe lhe tivesse negado sua autorização.

— Filho meu — disse sem vacilar nem chorar, como tivesse feito outra qualquer, senão com uma voz firme e calma — bem sabes que tem de se fazer o que teu pai deseja. Para que falar, já que não posso me opor à vontade paterna? Teu pai e teu avô em casa completaram sua educação. E para que te instruísse te demos os melhores professores da cidade. Inclusive Tang, o sábio, foi chamado de Szechuen e veio a ensinar-te a poesia. A escola estrangeira não é necessária a um homem de tua posição: pensa que indo a uma terra afastada expões a perigos a vida que só te pertencerá por inteiro no dia que tiveres um filho em condições de levar o nome dos antepassados. Se pudesses casar antes...

Meu irmão se sobressaltou, irritou-se, fechou o leque que levava na mão esquerda e o voltou a abrir com um golpe seco, enquanto brilhava em seus olhos o fogo da rebeldia.

Mas minha mãe levantou a mão:

— Não fales, filho meu. Eu não estou lhe ordenando nada, só lhe aconselho. A vida não te pertence; assim, pois, tem cuidado.

E com um sinal de cabeça despediu-lhe.

A partir de então raramente o vi. Antes de meu casamento não compareceu por casa mais que duas vezes; não tínhamos nada que nos dizer; e, ademais, nunca estivemos sozinhos. Quase sempre aparecia no pátio das mulheres com o único fim de apresentar minha mãe uma saudação de etiqueta, ou para se despedir, sem que me fosse permitido falar livremente em presença de pessoas maiores que eu.

Observei que meu irmão tinha crescido e que se mantinha bem direito. Seu rosto e sua pessoa tinham perdido um pouco da delicadeza da juventude, essa delicadeza, essa graça um pouco floreal que, durante os primeiros anos, fez que se assemelhasse mais a uma mocinha que a um homem. Na escola, dirigida segundo métodos estrangeiros — assim o ouvi dizer minha mãe —, se praticavam diariamente exercícios físicos; graças a eles, precisamente, meu irmão se tinha fortificado, tanto em estatura como em desenvolvimento muscular. Ao pouco tempo de ir-se a Pequim, cortou-se o cabelo, mantendo-os penteados à moda da primeira revolução; numa palavra, era um belo rapaz. As mulheres, nos pátios, suspiravam por ele, e a primeira concubina sussurrava:

— Ah! Ele é como o pai, nos tempos de nosso amor.

Depois, meu irmão atravessou o mar e já não o voltei a ver.

Sua imagem foi fazendo-se quase irreal, e desde então não consegui lembrar-me dele com exatidão.

Sentada e esperando em meu quarto com a carta de mamãe na mão, pensei que meu irmão era uma pessoa estranha que eu não reconhecia.

Quando meu marido voltou, ao meio dia, corri a seu encontro, chorando e lhe mostrando a carta.

— Que passa? Que é isto? — perguntou-me surpreendido.

— Lê... Lê e diga-me o que pensas! — exclamei, pondo-me a chorar de novo quando vi que seu rosto se enraivecia com a leitura.

— Que imbecil! — murmurou, fazendo amassar o papel entre seus dedos —É uma loucura! — acrescentou—. Mas, como é possível imaginar uma coisa semelhante...? Sim, vá à casa de tua honorável mãe, que deve de precisar de teus conselhos.

Deu ordem ao criado de advertir ao cocheiro e de antecipar a hora do almoço, para não perder tempo. Quando tudo esteve preparado, peguei a meu filho e me fiz acompanhar pela ama, suplicando ao cocheiro que corresse tanto como fosse capaz.

Encontrei a casa de minha mãe consumida num pesado silêncio, como quando uma nuvem oculta o esplendor da lua. As escravas estavam ocupadas em suas tarefas quotidianas, sem dizer-se uma palavra, nem mesmo um murmúrio. Wang Da Mah, que regressou comigo, não fez mais que chorar durante todo o trajeto.

No pátio dos salgueiros encontrei a segunda e a terceira esposas, sentadas ao lado de seus filhos. Ao ver-me aparecer com meu menino assaltaram-me com um sem fim de perguntas.

— Que menino tão formoso! — exclamou a primeira, acariciando com seus dedos gordos as bochechas do bebê e pegando-lhe, carinhosamente uma mãozinha — É um verdadeiro bombom! — disse-lhe. Depois, voltando-se para mim com ar grave, me perguntou—: Já sabe?

Afirmei com a cabeça e perguntei por minha mãe.

— Faz três dias que a honorável Taitai não sai de seu quarto. — me respondeu — Não fala com ninguém e só duas vezes por dia se assoma à porta para dar as costumeiras ordens. Seus lábios estão selados como os de uma esfinge de pedra e seu olhar dá medo. Ninguém de nós sabe o que pensa. Se pelo menos tu pudesses nos informar isso! —acrescentou, toda sorridente e persuasiva, estendendo os braços a meu filho.

— Tenho de levá-lo para minha mãe. — disse, tentando evitar que ela o carregasse consigo.—. Isso a consolará, a distraindo um pouco de suas tribulações.

Atravessei o átrio dos convidados, entrei no pátio das peônias e desde ali, passando pela sala de descanso das mulheres, cheguei aos aposentos de minha mãe.

Ordinariamente, a ombreira não estava obstruída mais que por uma ligeira cortina de pano vermelho, mas naquela ocasião vi a porta fechada. Acercando-me, chamei suavemente com a palma da mão. Silêncio. Repeti o gesto, outra vez sem resultado. Unicamente quando gritei:

— Mamãe, sou eu, tua filha.

Ouvi uma voz que parecia vir de bem longe.

— Entra, filha minha.

Ao entrar encontrei minha mãe sentada ao lado da mesa negra esculpida. Na urna de bronze, ante as inscrições sagradas da parede, elevavam-se vapores de incenso. Ao ver-me, levantou os olhos do livro que lia e disse:

— Vieste? Esforcei-me em ler o livro das Mutações, mas hoje nada pode me reconfortar.

Sacudiu a cabeça com ar distraído, o livro caiu e nem tão sequer inclinou-se a recolhê-lo.

Seu aspecto ausente me alarmou. Sempre a tinha visto dona de si mesma, vigilante; observei que esteve muito tempo sozinha e briguei comigo mesma pelo amor egoísta que me atava a meu filho e meu marido, me fazendo postergar constantemente a visita. Como a distrair agora? Como dar outro giro a seus tristes pensamentos? Pus a meu filho em pé sobre suas pernas gorduchas e fiz-lhe que se inclinasse ante ela, murmurando, para que o repetisse:

— Vovó! Diga, meu filho.

— Vó... — Balbuciou o pequeno.

Como já te disse, minha mãe não lhe tinha visto desde três meses de idade e bem sabes, irmã, que é um menininho adorável. Quem pode resistir a seu encanto? Minha mãe deixou cair seu olhar sobre ele, e duvidou um instante.

Depois, levantou-se, pegou uma caixa de laca vermelha e pegou de dentro dela alguns bolinhos de gergelim. O pequeno, com as mãos cheias riu estrondosamente, enquanto ela seguia olhando-o, sorrindo vagamente, e murmurou:

— Come, minha flor de lótus! Coma, meu cordeirinho!

Ao vê-la assim um pouco distraída, recolhi o livro e enchi uma xícara de chá da chaleira que estava em cima da mesa. Ofereceu-me assento, e as duas ficamos olhando o pequenino, que brincava sentado no assoalho. Ignorando se devia ou não falar de meu irmão, fiquei à expectativa. Mas ela se referiu a ele.

— Teu filho está aqui, minha filha... — murmurou.

Recordei a noite em que lhe referi minhas dores.

—Sim, mamãe —respondi, sorrindo.

— E és feliz? — perguntou-me, com os olhos sempre fixos no menorzinho.

— Meu senhor um príncipe em suas gentilezas para comigo, sua humilde esposa.

— O menino foi concebido e nasceu perfeito. — disse, meditando. — As dez partes da unidade estão completas. Sua formosura nada deixa a desejar. — Ao dizer se moveu nervosamente — Teu irmão era um menino como este! Se tivesse morrido então, teria ficado em minha memória como uma formosa lembrança, obediente ao igual que teu filho!

Compreendi que desejava falar de meu irmão, mas segui calada, esperando que precisasse o giro que tinha dado à conversa. Teve uma pausa; depois, elevando os olhos até mim, mamãe me perguntou:

— Recebeste minha carta?

— A carta de minha mãe — respondi, inclinando-me — foi-me remetida esta manhã por Wang Da Mah.

Suspirou novamente, e, levantando-se, acercou-se a uma escrivaninha e sacou de um de suas caixas uma segunda carta, que eu em pé, peguei com ambas mãos.

— Lê!

Era um certo Xiu-Kuoh-Ting, com quem meu irmão tinha ido de Pequim para América. Xiu informava aos honoráveis idosos, por encarrego de seu amigo, que seu filho estava noivo, segundo as regras ocidentais, de uma das filhas de um de seus professores da Universidade. Meu irmão enviava seus respeitos filiais aos pais e rogava-lhes que rompessem o compromisso com a família Li, cuja idéia de casar com a filha deles tinha-lhe feito sentir-se sempre desgraçado. Ao mesmo tempo em que se declarava filho indigno, rendia homenagem às superiores virtudes de seus pais e sua inesgotável bondade; desejava, no entanto, fazer constar com toda clareza que não podia se unir à que foi sua noiva segundo os usos e costumes chineses, pois os tempos tinham mudado.

A carta concluía com expressões de carinhoso afeto e obediência, o que não impedia que declarasse rotundamente sua decisão de contrair aquele insensato casamento. O amigo foi eleito por meu irmão com o fim de evitar a ele e a seus pais a gravidade de uma confissão direta. Ao ler a carta pareceu-me que odiava a meu irmão. Meu coração era um oceano tempestuoso. Quando acabei a leitura, dobrei a folha e, sem nenhum comentário, devolvi a carta minha mãe.

— Está louco — disse — Pelo telégrafo ordenei-lhe que regressasse imediatamente.

Aquilo era uma evidente demonstração do estado nervoso de mamãe. Devia de estar muito apressada para recorrer ao telégrafo, cuja implantação, a base de postes e fios disseminados pelas ruas de nossa cidade, como enormes teias de aranha, lhe tinham feito clamar como se se tratasse de um sacrilégio.

Acostumava dizer:

— Nossos antepassados empregavam o pincel, o papel e a tinta. Que temos nós, seus indignos descendentes, de melhor para falar para precisarmos apressar nossas palavras?

Estava indignada. E quando soube que as palavras podiam viajar também por embaixo da água, disse, a guisa de comentário:

— E o que temos para comunicar aos bárbaros? Os deuses puseram os mares entre nós e eles para nos separar deles. É um sacrilégio juntar o que os deuses, em sua sabedoria, separaram.

E tenho aqui que ela também tinha pressa!

— Cria — disse com tristeza- que nunca teria de recorrer a esses inventos estrangeiros. Não teria nunca precisado deles se meu filho tivesse ficado onde nasceu. Mas quando temos de nos haver com os bárbaros, é necessário pactuar com o diabo em pessoa!

Tentei consolá-la:

— Mamãe, não se aflija. Meu irmão é obediente, e não cometerá a loucura de se perder por uma mulher estrangeira.

Minha mãe moveu a cabeça, apoiando a frente entre suas mãos. Quão enfraquecida estava! Uma súbita ansiedade apoderou-se de mim. Ela nunca forte, mas agora estava magérrima, quase esquelética, e a mão que levou a sua frente tremia. Lentamente disse-me, com voz esgotada:

— Já devia ter-lhe ensinado que quando uma mulher consegue penetrar no coração de um homem, os olhos desse homem estão como hipnotizados pela visão dela; e assim seguem durante algum tempo, cegos a qualquer outra verdade.

Fez uma pausa, depois acrescentou, com palavras que eram suspiros:

— Teu pai não é considerado como um homem de bem? No entanto, faz tempo convenci-me de que quando uma mulher o atrai por sua beleza, e quando enlouquece, não escuta nada. Nada e ninguém. E o filho não pode ser mais sensato que um pai que, logo de ter conhecido mais de vinte cantoras, trás para sua casa três concubinas. E teria tomado uma quarta se seus desejos por uma mulher de Pequim não se tivessem extinguido antes de concluir suas negociações.  Ah, os homens! — Ao dizer isto se pôs em pé, oprimindo os lábios e fazendo de sua boca a expressão vivente do desdém — Os homens! Seus pensamentos mais secretos são sempre tortuosos como serpentes que rodeassem o corpo vivo de uma mulher.

Eu fiquei estupefata. Nunca tinha falado assim de meu pai e as concubinas. Quanta amargura, quantos sofrimentos naquele coração hermético! Mas, que podia eu dizer para a consolar? Tentei imaginar o que ocorreria se meu marido tomasse uma concubina... Foi em vão, apenas conseguia lembra-me de nossas horas de amor.

Involuntariamente, meus olhares caíram em meu filho, sentado no assoalho e brincando com os pequenos bolos de gergelim. Em verdade, que podia dizer eu para a consolar?

— Talvez a estrangeira... — comecei timidamente. Minha mãe golpeou os mosaicos com seu longo cachimbo e começou a carregá-la com dedos que tremiam de puro nervosismo.

— Não fale mais dessa mulher! — disse com aspereza —Eu falei, agora só resta a meu filho obedecer. Que volte e se case com sua noiva, a filha dos Li. Dela deve nascer seu filho! Uma vez executada a vontade dos antepassados, que tome quem quiser como concubina. Pode o filho ser mais perfeito que o pai? Agora, cale-se e me deixe; não posso mais de cansaço. Quero descansar um pouco na cama.

Que dizer? Minha mãe estava muito pálida, e seu corpo curvava-se como um junco seco; peguei ao menino nos braços e saí do quarto.

Quando voltei a casa, contei a meu esposo, chorando, que tinha sido incapaz de aliviar a dor de minha mãe. Aconselhou-me ter paciência até a volta de meu irmão. Suas palavras deram-me esperança. No entanto, ao dia seguinte, enquanto ele estava fora, a dúvida me invadiu de novo: não podia esquecer minha mãe.

Na tristeza de todos aqueles anos, se manteve forte pela esperança do porvir: a esperança que todas as boas mulheres têm no filho de seu filho, para o sustenta de sua velhice e a honra da família. Como era possível que meu irmão tivesse anteposto seu inconseqüente desejo à esperança de toda a vida de minha mãe? Eu lhe ralharia, repetiria tudo o que tinha ouvido dizer dele, lhe lembraria que ele era o único varão da família. E acabaria dizendo-lhe:

— Como podes pôr o filho de uma estrangeira no colo de nossa mãe?

 

Sempre sem notícias, irmã! O jardineiro, que diariamente, se atendo minhas ordens, vai à casa de minha mãe para me informar de sua saúde e perguntar se meu irmão deu sinais de vida, volta, desde faz quinze dias, com a mesma contestação:

— A honorável Taitai diz que não está doente. Aos olhos dos criados não escapa o fato de que não come. Do jovem senhor não há notícias. Assim, em certo modo, o coração da Taitai consome o corpo. Na sua idade não se resistem facilmente algumas penas.

Mas, por que não diz algo meu irmão? Para minha mãe preparei manjares delicados numa vasilha de porcelana fina, e tenho-os enviado com umas servas, acrescentando, ademais, esta mensagem: «Prove estes alimentos, minha mãe. Não valem nada, mas já que os preparei eu mesma, se sirva de os consumir.»

Disseram-me que agora come um pouco, mas que, de repente, deixa na mesa os pauzinhos, vítima da náusea que enche seu coração. Como pode meu irmão matar assim nossa mãe? Deveria saber que não é uma mulher que possa suportar as grosserias do Ocidente. É escandaloso por parte de meu irmão esquecer assim seus deveres!

Que decisão tomará meu irmão? Penso em isso sem cessar, perplexa. Ao principio pareceu-me impossível que não acabasse cedendo a nossa mãe. Não recebeu ele tudo dela? Como é possível que possa pensar em contaminar seu dom sagrado com uma estrangeira?

Meu irmão aprendeu desde sua mais terna infância o sensato preceito do Grande Mestre, Confúcio, que escreveu: «O primeiro dever do homem é ater-se à menor vontade dos pais.»

Assim, penso que quando meu pai volte a casa e saiba o que ocorre, unirá seu veto ao de mamãe. Esta idéia devolveu-me um pouco a calma perdida.

Mas hoje me sinto como uma terrível corrente de ar que se estende pelas areias. Que ocorreu? Irmã, meu marido faz-me também duvidar da sabedoria da velha máxima. Exercendo em mim a força de seu amor, aviva minhas dúvidas! Ontem à noite disse palavras estranhas. As coisas ocorreram assim.

Estávamos sentados no terraço de tijolos que fez construir na parte da casa que dá ao Meio dia. No andar inferior, nosso filho dormia em sua cama de bambu, os criados tinham-se retirado e ocupavam-se em seus afazeres. Eu, como é conveniente, me tinha sentado a pouca distância de meu marido, numa cadeira de ferro esmaltado; ele se tinha estendido num longo cadeirão de vime.

Contemplávamos a lua cheia que, muito alta, parecia oscilar no céu. Tinha-se levantado um vento noturno que empurrava rapidamente, nos céus, uma massa de nuvens que pareciam enormes pássaros brancos. Depois dos vapores que passavam, a lua se escondia e reaparecia, magnificamente clara e pura; tinha-se a ilusão de que a lua corria acima das árvores. Estava extasiada por aquela beleza e a paz que emanava. O ar cheirava a chuva, sentia-me feliz de viver.

Levantei os olhos, meu marido contemplava-me. Tremi de prazer íntimo e extraordinário.

— Que formosa lua! — disse, por último, com entusiasmo —. Queres tocar tua velha harpa, Kwei-lan?

Tentei, em piada, fazer-me rogar.

— Segundo nossos antepassados que a inventaram, a harpa aborrece seis coisas; a saber, emitir seus sons nos seguintes casos: quando há outros instrumentos, em caso de duelo, quando o músico se sente desgraçado, quando sua pessoa está oculta, quando não se deixou arder incenso fresco e, por último, quando há um auditório pouco benévolo. Se esta noite não soa a harpa, em qual destes pontos, meu senhor, há que procurar a causa?

Ele se pôs sério e disse:

— Teve um tempo, sei-o, em que a harpa não tivesse deixado ouvir seus sons por minha causa; eu era um ouvinte pouco benévolo. Mas agora, sob teus dedos, devem ressoar as velhas canções de amor, as canções dos poetas.

Persuadida, levantei-me e fui procurar o instrumento.

Apoiando-o na mesinha de pedra, pulsei suas cordas, enquanto pensava no que ia tocar. Por último, cantei:

Fresco é o vento de outono

e clara a lua,

Leva as folhas mortas.

E, arrepiado de frio,

da árvore

um corvo sai voando.

Amor, onde estás? Esta noite meu coração chora.

Estou sozinha!

Fazia tempo que meus dedos não tinham feito vibrar as cordas, e o triste eco final flutuou longo momento no ar.

«Sozinha... sozinha... sozinha...» Parecia como se o vento propagasse o eco, e, subitamente, se tivesse dito que todo o jardim vibrava com a triste harmonia, que reavivava em mim a tristeza de minha mãe, aplacada durante uma hora de calma e paz.

Pus uma mão sobre as cordas para extinguir o tangido.

— Senhor, eu sou a causa de que a harpa tenha emudecido. Sinto-me aflita e o instrumento geme comigo.

— Aflita? — levantou-se e chegou perto de mim, me pegando a mão.

— É por amor a minha mãe — disse debilmente, atrevendo-me a apoiar por um instante minha cabeça em seu braço —. Está triste, e sua aflição expressa-se no são da harpa. Este irmão meu... Sinto que minha mãe está inquieta esta noite; esperando sua chegada, tudo se converte em inquietude. Minha mãe não lhe fica mais que ele. Dizer-se-ia que já não existe nenhum laço entre ela e meu pai, e eu mesma passei a ser uma estranha desde que fui... Tua.

Meu marido calou-se. Extraiu de seu bolso um cigarro estrangeiro e acendeu-o. Depois, com voz calma, disse:

— É necessário que estejas preparada para o pior. Será melhor contemplar a verdade como ela é. O mais provável é que teu irmão, meu cunhado não obedecerá minha sogra.

Me sobressaltei.

— Em que te baseias para crer isso? — perguntei-lhe.

— E em que te baseias tu para não o crer?

— Faz favor, não me contestes com outra pergunta. Eu não sei discutir. Mas tenho um bom argumento: meu irmão educou-se na obediência a seus pais. E o dever de um filho é obedecer a seus pais.

— Os antigos dogmas derrubam-se... Melhor dito, já se derrubaram.— me interrompeu, olhando-me de uma maneira significativa — Atualmente pensa-se de outra maneira!

Suas palavras encheram-me de dúvida. De repente, recordei uma coisa que sempre me tinha consolado em segredo, ainda que a expressei em voz alta.

— As mulheres estrangeiras são tão feias! — murmurei —Seus homens não têm outra alternativa, mas...

Calei-me envergonhada por falar de homens ante meu marido. Como podiam os homens sentir desejos por mulheres do tipo da que vimos antes de nascer nosso filho? Aqueles olhos insípidos! Aqueles cabelos descoloridos! E as mãos! E os pés! Como se eu não conhecesse meu irmão. Sabia que, ao igual que meu pai, o que mais apreciava na mulher era sua beleza.

Meu marido riu suavemente.

— Ah, vamos, querida... Nem todas as chinesas são belas e nem todas as estrangeiras são feias! A filha dos Li, a quem esteve teu irmão prometido, não é nenhuma beleza, segundo ouvi dizer. Na casa de chá, por exemplo, dizem que não somente ela é gorda e balofa e tem os lábios extremamente grossos, como também os têm arqueados para abaixo, como uma foice de segar o trigo!

— Por quê se intrometem nessas coisas os ociosos que freqüentam a casa de chá? — perguntei, indignada —. É uma jovem de bem, e pertence a uma família nobre!

— Não faço mais que repetir o que dizem... Teu irmão, sem dúvida, ouviu algo assim. Inútil dizer que este detalhe pode ser causa de almejar a outra mulher em seu coração vazio.

Calamo-nos durante uns segundos; depois, meu marido prosseguiu, entre as baforadas de seu cigarro:

— Ah, essas estrangeiras! Algumas são tão formosas como a Estrela Branca! Olhos claros... livres, desenvoltas...

Voltei-me para ele e lhe olhei com olhos dilatados pela surpresa. Meu marido nem deu-se conta, e continuou:

— Seus formosos braços nus! Não têm nada da modéstia artificial de nossas mulheres. São livres como o vento e o sol. Com um sorriso, um movimento, conquistam o coração de um homem... E deixam-no escapar entre seus dedos, como um raio de sol.

A respiração faltou-me: de que falava? Que estrangeira lhe tinha ensinado aquelas coisas? De repente, um amargo despeito apoderou-se de mim.

— Tu... Tu tens...

Mal moveu a cabeça e riu calmamente.

— Que dizes, mulher...? Não... Nunca me devastaram o coração. Foi meu até que...

Sua voz extinguiu-se simultaneamente que adquiria um tom de ternura que reconheci imediatamente e me emocionou.

— Foi difícil? — murmurei.

— Pois, si... Às vezes. A nós, os homens chineses, nos mantiveram muito distantes... Nossas mulheres são tão reservadas... Tão caladas... Não é que as censure, mas, agora, os jovens (e teu irmão é um jovem) gostam dessas outras, as estrangeiras, com suas formosas carnes brancas como as plumas de um cisne, e seus corpos extraordinários, que se oferecem na dança...

— Silêncio, meu senhor! — disse com dignidade — Isso é um conversa para homens, e eu não quero ouvir. É possível que essa gente seja tão inculta e selvagem como se desprende de tua conversa?

— Não — respondeu ele, calmamente — Isso se deve, em parte, a que pertencem a um povo jovem, e a juventude procura o prazer com impulso. Mas eu falo assim porque teu irmão também é jovem e, ainda que te desagrade o saber, não devemos esquecer que os lábios de sua noiva gorda são tão curvos como um mangual para o arroz.

Sorriu uma vez mais e, sentando-se de novo, se distraiu na contemplação da lua.

Recapitulando, convenci-me de que meu marido sabia muito. Era impossível não ter em conta suas palavras. Do que tinha dito deduzi que se desprendia certa estranha fascinação das carnes nuas daquelas estrangeiras. Veio-me a lembrança dos olhos brilhantes e o sorriso da terceira concubina a noite do convite. Tremi e não pude desterrar os tristes pensamentos.

Minhas reflexões não me deixavam em paz. Certo que meu irmão é um homem, e seu silêncio resulta de muito mau augúrio. Desde que era pequeno, seu silêncio reforçava as decisões que tinha tomado. Wang Da Mah costumava dizer que quando minha mãe lhe proibia algo, se calava subitamente, mas era para desejar com maior empenho a coisa cobiçada.

Com um suspiro, coloquei a harpa em seu estojo de laca. A lua tinha-se ocultado por completo depois das nuvens.

Começou a chover; o tempo mudou e entramos na casa. Mas dormi mal.

 

Hoje a aurora emergiu de um céu cinza, imóvel. O ar, carregado de umidade, arrastava os recentes calores. O pequeno está em perfeita saúde, e, no entanto, chora.

Pelo servo que enviei a casa de minha mãe em procura de notícias, soube que meu pai voltou. Segundo parece Wang Da Mah tomou a iniciativa de escrever-lhe, por intermédio do escriba que tem seu posto na entrada do templo, para lhe advertir do estado de minha mãe e lhe fazer ver a conveniência de seu regresso. Mamãe mal come e passa no dia inteiro encerrada voluntariamente em seu quarto. Ao receber meu pai a carta, regressou imediatamente a casa.

Senti o desejo de ver-lhe, e por motivo desta visita vesti a meu filho de vermelho: é a primeira vez que meu pai o verá.

O encontrei sentado junto ao tanque do Peixe Dourado.

Provavelmente por causa do grande calor, e porque tinha engordado muito, não levava mais que uma camisetinha e calças de seda estival, clara como a água sob os salgueiros.

A seu lado, a primeira concubina lhe abanava: o suor corria-lhe pelas bochechas por esse esforço inexperado. Nos joelhos tinha um de seus filhos, vestido de gala pela sua chegada.

Ao ver-me aparecer no pátio, exclamou:

— Ah! A mãe e o filho!

Deixou no assoalho o pequenino que tinha nos joelhos, e convidou meu filho para que chegasse perto dele, lhe animando com sorrisos e caretas, enquanto eu me inclinava profundamente; como resposta, sacudiu a cabeça. Uni as mãos de meu filho e fiz que se inclinasse.

Meu pai estava muito contente.

— Meu netinho! —continuou exclamando baixinho. Levantou a meu filho, apalpou-lhe os braços e pernas gorduchas.

Os olhos dilatados do menininho faziam-lhe rir.

— Que homenzinho! — exclamou, encantado — Que uma escrava traga algumas gulodices para ele! Bombons de guaiacana e bolinhos de açúcar!

Me alarmei. O nenê não tinha mais que dez dentes. Como ia comer aquelas coisas?

— Oh, meu honorável pai! — supliquei —. Ele é muito pequeno e seu pequeno estômago está unicamente costumeiro a alimentos ligeiros. Rogo-lhe...

Mas meu pai indicou-me que calasse, e continuou falando ao pequenino. Não ficava mais remédio que resignar-me.

— És um homenzinho e tua mãe ainda alimenta-te com mingaus? Filha minha, eu também tenho filhos, muitos... Quantos? Cinco ou seis... ? E asseguro-te que entendo de crianças mais que uma mãe que tenha um só, ainda que seja um tão formoso como este!

Riu com riso cavernosa e prosseguiu:

— Só espero agora o filho que teu irmão me dará da filha de Li, para venerar meus velhos ossos!

Animada ao ouvir-lhe falar de meu irmão, perguntei:

— E se meu irmão decide casar-se com uma estrangeira? Essa é a inquietude que oprime o coração de mamãe e a faz adoecer em cada dia mais.

Meu pai lançou uma expressão de despreocupado cepticismo.

— Teu irmão fará o que eu disser. Como se lhe vai a ocorrer se casar com uma estrangeira sem meu consentimento? Não seria legal. Tua mãe preocupa-se sem motivo; esta mesma amanhã lhe disse: «Cessa em tua inútil aflição. O rapaz quer divertir-se com uma estrangeira. Não há demais nisso. Ele tem 23 anos e seu sangue requer isso mesmo. Na sua idade, eu amava três cantoras. Quando tiver se cansado, e isso ocorrerá dentro de duas luas, e, se é verdadeiramente formosa, dentro de cinco ou seis, ele voltará e se casará com a moça dos Li. Não vamos pretender que viva como um ermitão durante seus quatro anos de estadia no estrangeiro. As mulheres estrangeiras não são mulheres como as outras...?» Isso é o que disse a tua mãe. Mas ela insiste ainda... É inconcebível! Bom, sempre foi assim; lembrança que sempre a dominou alguma idéia fixa. Não quero censura-la: É uma boa mulher, é valente, cuidadosa e entre suas mãos, meu ouro e minha prata não se desperdiçam em tolices. Por isso não me queixo. Contrariamente às outras mulheres, sua maneira de repreender-me é guardando o mais absoluto mutismo. Às vezes até preferiria que me ralhasse; assim sairia desse silêncio em que se escuda; um silêncio que me desconcertou desde que nos casamos. Bah, agora já não me importa! Quem é capaz de entender às mulheres e suas caprichos? Mas desde sua juventude teve o defeito de ser muito séria; e, nessas condições, que fazer senão tomar a vida tal como vem? Quando se apodera dela uma idéia, a adota até a converter num complemento de sua vida, uma missão, um dever... Nada, como para acabar com a paciência de qualquer um!

Interrompeu-se, preso de uma irritação que nunca visse nele; arrebatou o leque da mão da concubina e pôs-se se abanar. Deixou a meu filho no assoalho e pareceu esquecer-se de que existia tal criança. Cedo desapareceu sua ira, e de novo adotou a expressão acostumada de pacífico bom humor. Encheu de doces as mãos do menininho e disse:

— Come, pequeno. Que importa tudo? E tu, Filha minha, não te preocupes. Talvez pode viver um filho que desobedeça a seu pai? Quando a isso estou tranqüilo.

Eu não estava muito persuadida e, depois de um curto silêncio, disse:

— E se apesar de tudo, meu irmão se nega a obedecer? Ouvi dizer que os tempos mudaram...

Meu pai não quis falar mais daquele assunto. O liquidou com um desabrido sinal com a mão, e sorriu.

— Negar-se? Nunca ouvi falar de um filho que não acate as ordens de seu pai. Calma-te, Filha minha. Dentro de um ano, teu irmão terá casado e procriado um filho com a filha dos Li... Um menino como tu, meu homenzinho!

E deu um tapinha amistoso na cabecinha de meu filho.

Quando meu marido soube o que meu pai pensava, respondeu:

— O pior é que me parece difícil que a estrangeira se resigne ao papel de subordinada. Em seu país não é costume o homem tomar uma concubina. Alguns o fazem secretamente, mas isso é muito mal visto e profundamente reprovado.

Não soube que contestar. Nunca se me tinha ocorrido pensar na estrangeira e ignorava como julgaria ela nossos costumes. Não tinha conseguido seduzir meu irmão? Que outra coisa podia desejar? Até então tão só pensei em meu irmão e em seus deveres para com meus pais. A partir daquele momento comecei a pensar nela.

— Queres dizer que pretenderá ser, durante toda a sua vida, a única mulher de meu irmão? — perguntei.

Sentia-me dominada por certa indignação. Com que direito podia ela proibir a meu irmão que usasse de uma prerrogativa que lhe concediam as leis do país? Como podia exigir a seu marido mais do que minha mãe pediu ao seu?

Disse isto a meu marido e concluí:

— É muito simples. Se ela casa-se com um homem de nossa raça, deve resignar-se lhe conceder a liberdade a que está costumeiro. Não pode pretender importar aqui os costumes de seu país.

Meu marido mal me olhou, sorrindo de uma maneira estranha. Eu não compreendi sua atitude. Após uma pausa, ele disse, por fim:

— Então suponhamos que eu te faça saber meu desejo de tomar uma segunda esposa... Uma concubina.

Sobressaltei-me.

— Seria possível que tivesses essa intenção...? Não, meu senhor, agora não! Eu te dei um filho!

Pôs-se em pé de um salto. Senti seus braços rodear-me as costas, e murmurou em meu ouvido:

— Não, não, meu coração; não quis dizer isso. Eu não faria isso... Não poderia o fazer ainda que quisesse...

Mas as palavras que acabava de pronunciar eram muito inesperadas. Palavras que toda esposa teme, e, no entanto, prevê ter que ouvir. Mas eu...? Eu não as tinha previsto. E, de repente, me injetou no coração toda a angústia de minha mãe, a angústia de centenas de mulheres que, amaram seus senhores e perderam os favores destes.

Dominada por este pensamento, não pude conter as lágrimas. Ele começou a me consolar, pegando minhas mãos entre as suas e me dizendo palavras carinhosas. Por último deixei de chorar. Teve uma pausa bastante longa, e de repente, ele se interessou:

— Por que choras?

Inclinei a cabeça, tinha as bochechas ardentes. Pegando-me a cabeça com ambas mãos, me obrigou a lhe olhar aos olhos.

— Por quê? Por quê? — insistiu.

— Porque, meu senhor — balbuciei —, tu encheste todo meu coração, e eu...

Calei-me, mas em seus olhos li a contestação. Depois, com infinita ternura, disse:

— E se essa estrangeira amar a teu irmão tanto como tu me amas a mim? Seu coração não difere do das mulheres chinesas, mesmo que tenha nascido no estrangeiro. Todas as mulheres sois iguais em caráter e aspirações.

Nunca tinha pensado assim das estrangeiras, mas observei que até então não tinha compreendido bem as coisas. Foi necessário que meu marido me alumiasse.

— Tenho medo! — Comecei a compreender—. Que faremos se meu irmão e a estrangeira se amam até esse ponto?

 

Meu irmão escreveu! Escreveu a meu marido suplicando-lhe que falasse com meus pais. Falava da estrangeira usando palavras doces e profundamente comovedoras. Dizia que era formosa como um pinheiro coberto de neve.

E acrescentou, oh irmã minha, que já tinha contraído casamento segundo as leis estrangeiras. Concluía dizendo que tendo recebido a carta de minha mãe em que solicitava sua presença em casa, obedeceria trazendo com ele sua esposa.

«Com — tal dizia — que nós lhe ajudássemos no possível, já que a ama e é correspondido...»

Que fazer? O amor que me une a meu marido me desarma por completo. Meu irmão não pode eleger argumento mais eficaz para me converter em sua aliada: se sua esposa quer-lhe como eu a meu marido, posso eu lhe negar algo?

Irei ver minha mãe.

Passaram três dias, irmã, desde que vi minha mãe; tinha-me preparado para comparecer ante ela com humildade; primeiro, escolhi as palavras com o cuidado que um apaixonado escolhe jóias para sua amada.

Entrei sozinha no quarto, e falei-lhe com uma suplicante delicadeza. Queres crê-lo? Não me compreendeu, não quis me compreender. Somos muito diferentes, minha mãe e eu. Acusou-me, em silêncio, de favorecer à estrangeira e tomar partido por meu irmão na contramão dela, minha mãe, irmã! Não expressou seu pensamento, mas compreendi que o sentia no fundo de seu coração, e por isso não serviram de nada minhas explicações.

E isso depois de preparar meu conversa com tanto cuidado! Tinha-me dito a mim mesma: «Acordarei nela a lembrança de seus primeiros anos de casada, do amor de meu pai... Da época em que ela estava em plena posse de sua juventude.»

Mas como podem as rudes imagens, que são as palavras, conter a essência e o espírito do amor? É o mesmo pretender encerrar uma nuvem rosa num recipiente de ferro, ou pintar uma borboleta com um duro pincel de bambu.

Quando, duvidando por causa da delicadeza de meus argumentos, fiz alusão à secreta harmonia que encadeia de uma maneira inesperada os corações, me disse com sarcasmo:

— Tolices! Não existem essas coisas entre homens e mulheres. — Altaneira, acrescentou —Afinal de contas, não se trata mais que de um desejo inútil. Não serve de nada querer o velar com expressões poéticas. O desejo reduz-se a isto: o desejo do homem pela mulher e da mulher por um filho. Uma vez satisfeito, não fica nada.

Eu voltei ao ônus.

— Recorde, mamãe, a época de seu casamento. Lembra-se de como falavam suas almas, a de papai e sua?

Pôs-me sobre os lábios um dedo magro e febril.

— Não me fales de teu pai. Em seu coração há cem mulheres. A qual delas pertence sua alma?

— E seu próprio coração, mamãe? — perguntei com doçura, pegando sua mão, que senti tremer um instante entre as minhas antes que a retirasse.

— Meu coração está vazio. — respondeu —Apenas espera o meu neto, o filho de meu filho. No dia em que tenha conduzido meu neto ante as tabulas dos antepassados, então poderei morrer em paz.

Voltou-me as costas e negou-se a prosseguir falando.

Não ficava mais que me retirar. E o fiz com tristeza. Que era o que me tinha separado assim de mamãe?

Falávamos em voz alta, mas era como se não nos ouvíssemos. Falávamos sem compreender-nos.

Noto que mudei e que nessa mudança contribuiu o amor.

Parece-me ser uma ponte muito frágil tendido sobre um abismo aberto entre o passado e o presente. Aferrava-me à mão de minha mãe e não queria a abandonar, porque sem mim, mamãe ficaria muito sozinha; mas, ao mesmo tempo, sentia que minha mão estava encerrada na de meu marido, e compreendo que nunca poderei renunciar a seu amor!

E, agora, irmã, que nos reserva o porvir?

Vivo dias de espera. Parece-me sonhar, e invariavelmente esse sonho evoca um navio branco e a água azul. A embarcação voa, como um grande pássaro, para a costa. Se pudesse alongar meu braço até a metade do oceano, pegar o barco e impedir-lhe que se acercasse! Porque, de outra maneira, como vai ser feliz meu irmão após o que fez? Para ele já não há lugar sob o teto paterno.

Mas minhas mãos são débeis e não podem deter o destino; meu espírito nega-se a formular idéias bem netas. Nada consegue me fazer esquecer o navio; tão só, e parcialmente, o balbucio de meu filho, que começa a querer falar. Tenho-o cerca de mim durante todo o dia; mas, pela noite, começa a murmurar em meus ouvidos o ruído das ondas. A cada hora que passa, o barco se acerca... E eu não posso fazer nada para o evitar.

Que passará quando meu irmão chegue com ela? O extraordinário da situação espanta-me, sinto-me inerme.

Não lucro discernir o que está bem ou mal, não posso fazer outra coisa que esperar. Quanto tempo ainda? Meu esposo diz que sete dias. Sete dias, ao cabo dos quais o navio branco chegará ao porto, na desembocadura do Filho do Mar, o grande rio que corre pelas ruas da parte setentrional da cidade.

Meu marido não acerta a compreender por que me agarro, pelo dizer assim, às horas, para as alongar... Fazer, se é possível, que se atrasem. No que me concerne, sou incapaz de lhe dizer com palavras o que penso dos momentos que teremos de viver. Ele é um homem, e como poderia compreender o coração de minha mãe? Temo tanto a chegada de meu irmão! Não voltei a ver minha mãe, mas não posso a esquecer... Nem também não sua solidão. No entanto, nada tínhamos já que nos dizer.

Também não posso esquecer a meu irmão nem à mulher que ele quer. Sinto-me sacudida violentamente por um lado e por outro, como uma débil ameixeira que não pode opor resistência ao vento muito forte.

 

Não pude esperar, irmã, uma hora mais oportuna! Vim a pé após deixar a meu filho entre os braços do ama, surda a seus gritos quando viu que me ia. Não, não me sirvas o chá. Devo regressar imediatamente, vim tão só para contar-te... Inteiraste-te?  Chegaram ao fim! Meu irmão e a estrangeira! Faz duas horas. Falaram conosco durante a comida. Vi-a, ouvi-a falar... Mas não entendo nada do que diz. Que criatura tão estranha...! Tão estranha que, apesar meu, não posso por menos da olhar com olhos assombrados.

Estávamos ocupados em preparar a comida quando o porteiro entrou na estadia e anunciou sem mal se inclinar.

— Na porta há um homem com uma pessoa como não vi nunca! Nem sequer sei se é homem ou mulher! Parece uma mulher, mas é tão alta como um homem!

Meu esposo olhou-me, deixando os pauzinhos.

— São eles — disse, calmamente, em contestação meu olhar interrogador.

Baixou, regressando imediatamente com os hóspedes.

Recebi-lhes de pé. Confesso-te que quando vi a elevada estatura da estrangeira me faltaram as palavras, e mal vi meu irmão. Tão só tinha olhos para ela; seu corpo ágil, envolvido numa jaqueta de cor azul que lhe chegava até os joelhos.

Meu marido não se mostrou intimidado. Convidou-lhes a sentar-se à mesa conosco, e deu ordem de que lhes fosse servido arroz e chá. Eu me calava, muito ocupada na olhar. Inclusive agora não cesso de me perguntar:

— Que faremos com essa estranha? Como a vamos adaptar a nossa vida?

Quase não me lembrava de que meu irmão a queria, e notei uma confusa sensação de estupor por causa de sua presença em minha casa.

Parecia-me sonhar... E, em realidade, notava a sensação de alguém que, sonhando, se faz cargo do irreal de suas visões.

Queres saber que aspecto tem? É-me difícil descrevê-la, ainda que, como já te disse, não cessei da olhar desde que entrou. Vejamos: é mais alta que meu irmão e tem o cabelo cumprido. Mas os cachos estão dispostos de tal maneira, que ocultam suas orelhas. Descompostos pelos quatro ventos, têm uma cor de cobre velho, como o vinho que chamamos «osso de tigre». Os olhos? São da cor do céu de verão, e ela não sorri com facilidade.

Desde que a vi perguntei-me se era bela. A contestação veio-me de repente; não, não o é. Efetivamente, não tem as sobrancelhas bonitas... Sabes...? Dessas que se assemelham aos veios que têm as borboletas nas asas, como as que nós gostamos. São escuras e marcadas sobre uns olhos pensativos. A seu lado, meu irmão aparece com um rosto juvenil, cheio de rasgos mais sutis. No entanto, tem a mesma idade que eu, dezenove anos, quatro anos menos que meu irmão.

E suas mãos? Postas junto às de meu irmão, dizer-se-ia que as deste são as que devessem corresponder a ela. Tem os ossos pontiagudos...! Suas munhecas são maiores que as minhas. Lembro-me que quando me deu a mão, senti na minha o contato da rugosa pele de sua palma.

Após comer, aproveitando um momento em que nos deixaram sozinhos, eu o disse a meu marido. Este me explicou que aquela rugosidade era devida a um certo jogo chamado tênis, que as mulheres estrangeiras acostumam a praticar, inclusive com os homens... Suponho que para lhes divertir! Estas mulheres estrangeiras têm uma curiosa maneira de se fazer gostar!

E têm uns pés...! Mais cinco centímetros longos que os de meu irmão! Pelo menos assim parecem... Imagino-me que deve de ser uma coisa muito embaraçosa ter uns pés assim!

Em quanto a meu irmão, viste-se à maneira ocidental e move-se com rapidez, vítima de uma perpétua inquietude. Em verdade, não compreendo muitos de seus gestos.

Por mais que lhe olho, não reconheço nele ao rapaz alto, erguido, delgado e alegre que tinha reconhecido, e se não fala, seu rosto também não sorri. Não leva nenhum enfeite e nem nenhuma jóia; uma exceção tão só: o anel que luze numa de suas mãos. Sua palidez destaca-se mais vivamente por contraste com a cor escura de sua cingida vestimenta ocidental. Senta-se à maneira estrangeira: cruzando uma perna sobre a outra. Com meu marido e sua esposa, fala, sem esforço algum, no idioma estrangeiro. As palavras seguem-se com um som semelhante ao de pedras arrojadas contra uma rocha.

Está mudado por completo. Inclusive seus olhos não são os de antes. Não os mantém baixos; ao invés, os planta, arrogantemente, no rosto de seu interlocutor: uns olhos inquietos, atrás depois dos cristais de uns óculos horríveis, mistos de escama de tartaruga e ouro, que o envelhecem.Unicamente seus lábios continuam sendo iguais a antes.

São os lábios de minha mãe, finos e delicados. Há neles como uma sombra do antigo gesto que fazia quando alguém se negava a satisfazer seus desejos. Naquele pequeno detalhe reconheci meu irmão. Pelo demais, em minha casa não tinha de chinês mais que meu filho e eu. Meu marido e os dois hóspedes, vestidos com seus trajes exóticos, falavam um idioma que nem eu nem meu filho entendemos.

Os hóspedes ficarão em nossa casa até que meus pais consintam em lhes receber. Tremo ao pensar nas censuras de minha mãe quando saiba que acolhi os rebeldes sob meu teto. Mas meu marido assim o deseja e, ademais, não se trata de meu irmão, do filho de minha mãe?

Quando nos sentamos à mesa para comer, a estrangeira demonstrou não saber se servir dos pauzinhos. Fez-me rir furtivamente, ao ver que os pegava ainda mais torpemente que meu filho com suas mãozinhas. Segurava-os, enrugando a testa, com um sincero esforço por aprender;

Mas era inútil: não o conseguia; suas mãos não estavam feitas para as coisas delicadas.

E sua voz! Nunca ouvi semelhante voz numa mulher. Nós gostamos de timbres leves e doces, tal como a água que corre entre penhascos, ou como o pipilar de passarinhos na mata. Pelo contrário, a estrangeira tem uma voz cheia e profunda, rica em tons. Suas palavras têm a sonoridade do tordo na primavera, quando o arroz está a ponto para ser segado. Suas palavras fluem rápidas, dirigidas tão cedo a meu marido como ao seu. Comigo não fala: não nos entendemos. Mas observei que em duas ocasiões passou um fugaz sorriso por seu rosto, alumiando seus olhos como faria um reflexo de prata numa lenta corrente de água. Creio ter compreendido. Dizia; «Vamos ser amigas?» Olhamos-nos, duvidosas, e em seguida respondi, sem palavras: «Verei se chegamos a entender-nos... Segundo como olhares para o meu filho.»

Vesti-o com a jaquetinha de seda vermelha e umas calças verdes. Nos pés pus-lhe sapatos bordados de cor cinza, e cobri sua cabeça com o gorrinho sem viseira, enfeitado ao redor com pequenos Budas dourados. No pescoço pus-lhe sua corrente de prata que acabou de lhe dar o aspecto de um verdadeiro príncipe. Assim vestido, o mostrei à estrangeira.

O pequenino, em pé, sobre suas longas perninhas, olhou-a estranhando. Ao dizer-lhe eu que se inclinasse, juntou as mãos e me obedeceu, cambaleando um pouco pelo esforço.

Ela olhou sorrindo, e ao lhe ver executar a inclinação se jogou a rir com força, elevando uma nota que lembrava o som profundo de um sino; depois, com uma exclamação cheia de doçura, pegou o pequenino, carregando-o contra seu peito, e lhe beijou com tal entusiasmo que fez cair seu gorrinho com os Budas dourados. Em seguida olhou-me acima da cabecinha. Que olhar, irmã! Seus olhos diziam: «Quero ter uma criança como esta!»

Sorri e disse:

— Seremos amigas.

Creio que agora começo a compreender porque meu irmão a ama.

 

Passaram-se quinze dias de sua chegada e ainda não se apresentaram a meus pais. Meu marido e meu irmão discutiram muito em língua estrangeira. Os dois estão confusos: alguma coisa devem ter deliberado, o quê, eu ignoro. Mas, qualquer que seja sua decisão, se vê que coincidem na conveniência de fazer prudentemente.

Enquanto, eu não perco de vista à estrangeira. Se me perguntasses, irmã, o que penso, dizer-te-ia que não o sei.

Certamente, não é como nossas mulheres. Todos seus modos são desenvoltos e cheios de graça. Seus olhos procuram, sem timidez, os de meu irmão, presta atenção às conversas dos homens, e intervém com rápida resposta. Então, todos se jogam a rir. A quarta esposa diria que a estrangeira está acostumada a tratar com homens.

No entanto, há uma diferença. Parece-me que, no fundo, a quarta esposa tinha medo dos homens, apesar de sua beleza. Pensando em isto, me convenço de que seu medo deriva da íntima convicção, bem presente inclusive na mais feliz época de sua beleza, que no dia em que sua formosura começasse a declinar, não lhe ficaria nada com que atrair o coração dos homens.

Muito diferente é, pelo contrário, a conduta da estrangeira, que, desde depois, não é tão bela como a quarta esposa e, no entanto, não parece se preocupar por isso.

O interesse que os homens lhe demonstram, ela o considera como um tributo devido. Não usa atavios sedutores; ao invés, parece dizer: «Eis-me aqui tal como sou, e não pretendo aparecer diferente da realidade.»

Parece-me orgulhosa, ou, pelo menos, indiferente de uma maneira estranha ao transtorno que causou no seio de nossa família. Passa o tempo brincando com meu filho, ou abismada na leitura — trouxe consigo várias caixas de livros —, ou escrevendo cartas. E que cartas! Uma vez olhei a folha acima de seu ombro e vi que a página estava coberta de grandes sinais unidos os uns aos outros. Impossível de se entender coisa alguma!

Mais que qualquer outra coisa, prefere sonhar, sentada no jardim, onde se entretém, ademais, bordando.

Uma manhã, muito cedo, saiu com meu irmão e não voltaram até o meio dia. Ao voltarem estavam cobertos de pó e varro. Estupefata, perguntei a meu irmão aonde tinham ido para voltar em semelhante estado.

Respondeu-me:

— Fomos a fazer o que os ocidentais chamam uma excursão.

Roguei-lhe que se explicasse.

— Uma excursão é uma longa e rápida caminhada para qualquer lugar afastado. Hoje foram até a Montanha Púrpura.

— E daí prazer há em isso?

— Para eles, é muito divertido.

— Que coisa esquisita! Entre nós, até uma mulher do povo acharia extremamente desagradável andar tanto.

Meu irmão, a quem fiz esta observação, disse-me por toda contestação:

— A maneira de viver no país onde minha esposa nasceu foi sempre livre. Depois das altas paredes de nossos pátios sente-se um pouco como uma prisioneira.

Meu assombro não conhecia limites. Até então achei que a vida que meu marido e eu fazíamos era indebrinco. As paredes que rodeiam os jardins servem, tão só, para impedir os olhares curiosas: teria graça que qualquer camponês ou mercador pudesse espiar o interior de nossa casa! Inconscientemente, pensei:

«Se a estrangeira tem essas idéias, como vai fazer para viver nos pátios?» Mas calei-me.

Há que ver com que despreocupação demonstra seu amor por meu irmão. Ontem noite, por exemplo, estávamos todos sentados no jardim, para desfrutar um pouco do fresco da noite. Tinha-me sentado no lugar de costume, no tamborete de porcelana, um pouco afastada dos homens, e ela, a meu lado, subida no parapeito de pedras que rodeia o terraço. Sorrindo um pouco, como é seu costume quando estamos juntas, me assinalava um objeto depois de outro, na sombra, me perguntando seu nome, que depois repetia. Tem uma memória feliz; quando ouve um nome não o esquece nunca. Repetia várias vezes cada sílaba, como se gozasse com a entonação, e ria um pouco quando, timidamente, a corrigia. Assim passamos o tempo, distraídas, enquanto os dois homens falavam entre si.

Mas quando a sombra se converteu em escuridão, e se fez impossível distinguir as flores e as pedras, a jovem calou-se, inquieta, voltou os olhos para meu irmão e, por último, levantou-se com um movimento brusco e se acercou a ele, com passos elásticos, que na escuridão faziam oscilar sua saia branca e vaporosa.

Riu, disse algo baixinho, deteve-se ao lado de meu irmão e lhe pegou a mão com desenvoltura. Voltei os olhos em outra direção.

Quando voltei a lhes olhar, simulando me interessar na direção do vento, vi que a estrangeira se tinha sentado, feita um ovillo, nos mosaicos do terraço e, desavergonhadamente, apoiava sua bochecha na mão de meu irmão.

Naquele momento lhe compadeci. Quão envergonhado devia de estar de ter uma mulher assim! Estava escuro e não podia ver seu rosto, mas todos guardávamos silêncio; no jardim não se ouvia mais que o suave zumbido dos noturnos insetos estivais. Levantando-me, retirei-me.

Quando, instantes mais tarde, meu irmão veio me desejar boa noite, lhe disse:

— Essa estrangeira é uma desavergonhada!

Ele riu.

— Não, irmã; o que ocorre é que tu és uma boneca de porcelana!

Indignada, exclamei:

— Queres, talvez, que te pegue a mão ante os olhos de todo mundo?

Ele me olhou e voltou a rir.

— Não, porque se o fizesses serias verdadeiramente desavergonhada!

Aquilo me surpreendeu muito. Mas por mais que penso não consigo encontrar maldade na estrangeira. Quando ela demonstra seu amor por meu irmão o faz com a singeleza de uma criança; não há nada de equívoco nem oculto. Nossas mulheres não são assim.

É como a flor da laranja silvestre, pura e picante, mas sem fragrância.

 

Por fim decidiram a norma de conduta que seguirão. A estrangeira vestir-se-á como as mulheres chinesas, e, com meu irmão, apresentar-se-á ante nossa honorável mãe, depois que meu irmão lhe tenha ensinado a fazer a reverência. Eu precederei aos dois e farei as apresentações.

Pela noite, pensando na missão que me foi encomendada, não consigo dormir; tenho os lábios secos, e quando tentativa molhá-los, não posso, porque tenho a boca completamente áspera. Meu marido intentou dar-me valor com piadas e palavras de ânimo, mas, ao deixar-me sozinha, entra-me medo outra vez. Vou pôr-me abertamente na contramão de minha mãe, eu, que nunca discuti sua vontade!

De onde tirarei o valor para o fazer? Sou a tímida criança de sempre e, abandonada a mim mesma, não veria mais que mal no que faço. Inclusive numa embaraçosa situação como a presente, vou até o fundo do coração maternal; e diria que, segundo os antigos costumes de nossa raça, tem razão.

É meu marido quem me mudou; pela primeira vez atrever-me-ei a falar em pró do amor e contra meus pais.

Mas tremo ao pensá-lo.

Entre nós, só a estrangeira conserva sua tranqüilidade.

 

Hoje, irmã, sinto-me cansada, quase debilitada, como se em meu coração se tivesse afrouxado, de repente, uma corda de harpa que se manteve tensa durante muitos dias, e dela tivesse fugido a música.

Passou a hora terrível!

Não dizer-te-ei em seguida como. Prefiro contar as coisas ordenadamente, para que possas julgar por ti mesma. Em quanto a mim... Escuta.

O mensageiro enviado para solicitar a permissão a nossos pais, autorizando-nos a visitar-lhes ao dia seguinte à hora do meio dia, voltou com a constatação de que papai tinha viajado para Tientsin tão logo lhe informaram da chegada de meu irmão. Ele sempre fora assim, sempre fugindo das situações difíceis que porventura aparecessem na família e que porventura não dissessem diretamente a pessoa dele. Em ausência do cabeça de família, nossa mãe informava-nos que estava disposta a nos receber a meu irmão e a mim. Da estrangeira não disse nada.

Mas meu irmão exclamou:

— Se eu vou, minha esposa irá comigo!

Ao dia seguinte, tal como foi convindo, precedi aos esposos, e me apresentei, acompanhada por uma criada, com os presentes de meu irmão, escolhidos em países estrangeiros: coisas curiosas e bonitas que raramente vemos aqui. Um pequeno relógio dourado, encerrado no ventre de um menino, também dourado, de mais de quinze centímetros de altura; depois, uma máquina que falava ao lhe dar corda com uma manivela; depois, um relógio de pulseira, rodeado de pérolas; por último, um lustre que se acendia sem necessidade de fogo e permanecia acendida durante tempo indefinido, bem como um leque de plumas de avestruz brancas como um punhado de flores de pereira.

Com aqueles presentes apresentei-me ante minha mãe. Esta me tinha comunicado que nos receber na sala de hóspedes. Efetivamente, ali encontrei-a, sentada num cadeirão de ébano maciço e escuro, à direita da mesa, sob o retrato do imperador Ming. Levava uma blusa negra de brocado e nos cabelos luziam colares de ouro; em sua mão mostrava muitos anéis preciosos, com rubis e topázios, que são pedras apropriadas à dignidade das idosas. Vista naquela espécie de trono, apoiada em sua longa bengala de ébano e prata, pareceu-me mais majestosa e severa que nunca.

Mas conhecia-a bem, e esquadrinhando-lhe o rosto para questionar de seu estado de saúde, meu coração me deu uma pontada. Sobre o negrume da blusa destacava-se com toda nitidez a diáfana magreza de seu rosto, descarnado até o ponto de que seus lábios tinham adquirido as pregas e a aderência da morte. Seus olhos tinham crescido e afundado, como costuma ocorrer aos doentes para os que não há esperança. Quando moveu as mãos ouvi tilintar os anéis, muito grandes. Queimava-me o desejo de perguntar-lhe como se encontrava, mas sabia que perguntas assim sempre a irritavam; assim não me atrevi a faze-lo. Via-a preparada para a entrevista, fazendo uso de todas suas forças, que boa falta lhe faziam.

Por isso, quando me recebeu sem uma palavra, lhe ofereci os presentes em silêncio, os tomando, um depois de outro, de mãos da serva. Acolheu-os com um movimento grave da cabeça, mas não os mirou, e fez sinal a outro criado, que esperava ordens a certa distância, de que os levasse a outro quarto. Animada pela aceitação — recusá-los seria, na linguagem das mulheres, um repúdio a meu irmão —disse:

— Minha muito honorável mãe, meu irmão está aqui e espera que vos digneis a lhe receber.

— Já me disseram. — respondeu ela friamente.

— Ele trouxe a estrangeira. — atrevi-me a dizer, quase sem alento, convencida de que seria melhor dizer quanto antes o mais desagradável.

Guardou silêncio; seu rosto era inescrutável.

— Eles podem entrar? — inquiri, não sabendo dizer outra coisa que o já estudado de antemão.

— Que ele entre — respondeu ela, com gélida frieza.

Fiquei sem saber o que fazer. Não estava a estrangeira ali na ante-sala? Acerquei-me da cortina, levantando-a, e referi a meu irmão as palavras de mamãe, aconselhando-lhe que se apresentasse primeiro sozinho.

Seu rosto avermelhou-se como de costume quando se lhe contraria, e cruzou umas palavras com sua esposa em idioma estrangeiro. Ela franziu o cenho, se encolheu de ombros e esperou com perfeita e despreocupada calma. Mas meu irmão, com brusca decisão, pegou-a pela mão e, antes de que alguém pudesse o evitar, entrou com ela na sala.

Era verdadeiramente curioso ver aquela estranha figura de mulher na sala de nossos antepassados. Era a primeira pessoa de sangue estrangeiro que transpunha sua ombreira! Como hipnotizada pela cena, fiquei agarrada à cortina, com os olhos fixos na esposa de meu irmão, esquecendo minha mãe por um instante.

Disse-me que a decisão de meu irmão de não entrar só, faria desaparecer de repente o desejo maternal de voltar a lhe ver; mas a cena que se desenvolvia ante meus olhos não perdia interesse.

Obedecendo ao desejo de meu irmão, a estrangeira tinha se vestido à moda do país: uma jaqueta de seda azul escura, bordada de prata. A saia era de seda negra sem adornos. Calçava sapatos de veludo negro, sem bordados. Contrastando com a cor escura de seus vestidos, a pele aparecia branca e luminosa como as pérolas à luz da lua, e seus cabelos pareciam um fogo dourado.

Os olhos eram azuis como um céu de verão, os lábios vermelhos tinham uma prega algo desdenhosa. Entrou diretamente e altaneira, levando a cabeça um pouco jogada para trás, e sustentou, intrépida, o olhar de minha mãe, com olhos calmos, sem sorrir.

Cobri-me a boca com a mão para reprimir um grito. Como pôde meu irmão descuidar de ensiná-la que onde há uma pessoa idosa deve-se entrar com os olhos baixos? Naqueles instantes compadeci amargamente a meu irmão por ter uma esposa com atitude tão orgulhosa. Parecia-me assistir ao encontro da Imperatriz reinante com a Rainha viúva.

Pelos olhares que se cruzaram, imediatamente compreendi que a estrangeira e minha mãe se declaravam inimigas.

Mamãe voltou os olhos com orgulho para outro lugar, olhando ao vazio pela cortina entreaberta. A estrangeira disse algo a meu irmão com voz indiferente. Mais tarde soube que lhe perguntou:

— Tenho de ajoelhar-me agora?

Ele assentiu com a cabeça e ambos se ajoelharam.

Meu irmão disse:

— Idosa e venerável mãe: Eu, vosso filho indigno, voltei dos países estrangeiros à amorosa presença de meus pais, obedecendo a vossa ordem. Alegrou-me o pensar que julgastes oportuno o aceitar nossos miseráveis presentes. Digo “nossos” porque me acompanha minha esposa, de quem vos falei na carta que vos escrevi por mediação de meu amigo mais íntimo. Ela vem para ser a nora de minha mãe. Em suas veias corre sangue estrangeiro, mas a instâncias suas informo-vos, honorável mãe, de que seu coração tornou-se chinês ao se tornar minha mulher. Por sua livre e espontânea escolha, adota os usos e costumes de nossa família e nossa raça. Seus filhos pertencerão, em corpo e alma, a nossa celestial Nação, cidadãos da resplandecente República, herdeiros do Império do Meio. Ela rende suas homenagens.

Voltou-se à estrangeira, que esperava calmamente e lhe fez um sinal. Obedecendo, ela se inclinou com surpreendente dignidade, aos pés de minha mãe, até tocar o assoalho com a frente. Repetiu o sinal com a mão por três vezes, e a estas sucederam outras três, executadas ao uníssono com meu irmão.

A seguir puseram-se em pé, esperando a que minha mãe falasse.

Mas esta guardou silêncio. Estava como absorta na contemplação do espaço vazio do pátio, sem ceder no mais mínimo de sua altaneira atitude. Compreendi que, em realidade, estava agitada pela ousadia de meu irmão, que a tinha desobedecido, se apresentando ante ela em companhia da estrangeira, apesar de sua ordem expressa. Vi uma mancha vermelha colorir suas bochechas, um músculo de sua fina pele tremia.

Mas não deu nenhum outro sinal exterior de emoção. Seguiu sentada, com as mãos cruzadas sobre a maçaneta de sua bengala, o olhar impassível; e os dois, ante ela, esperavam em silêncio, na atmosfera da sala, que de repente pareceu pesada e deprimente.

De repente, algo perturbou a desdenhosa severidade do rosto de minha mãe. Suas bochechas, ligeiramente coloridas, empalideceram bruscamente. Uma mão caiu inerte em seu regaço, seu olhar perdeu intensidade, como vencida pelo cansaço... Vi que se encolhia, se fazendo pequena no assento. Depois disse, vivamente, como se estivesse a ponto de perder o conhecimento:

— Filho meu... Me alegro que tenha voltado. Esta casa sempre será tua casa... Mas... Falar-te-ei mais tarde. Agora, vai-te.

Meu irmão levantou os olhos e esquadrinhou seu rosto. Era um observador menos agudo que eu, mas não deixou de compreender que algo havia se sucedido. Olhou-me, duvidando, fazendo um gesto como se quisesse protestar. Muito inquieta, indiquei-lhe com a cabeça que não fizesse nada. Ele disse algo à estrangeira; ambos se inclinaram e saíram.

Precipitei-me para minha mãe, mas ela deteve-me com um gesto. Eu tinha ido pedir-lhe perdão, mas sua atitude hermética impedia-me falar. Parecia extenuada; compreendi que o melhor seria mesmo ir-me. Portanto, inclinei-me lentamente e saí. No pátio voltei-me, e pude ver como atravessava a estadia, se apoiando pesadamente em duas escravas.

Entristecida, voltei a casa. Por mais que penso, não adivinho o que passará amanhã.

Meu irmão e a estrangeira saíram a dar um passeio que lhes reteve longe de casa durante todo o dia. Regressaram pela noite, e não nos dissemos nada.

 

Tens estado muito tempo ausente, irmã! Trinta dias? Não, mais ainda; desde nosso último encontro, quase quarenta se passaram, mais de uma lua inteira! Fizeste boa viagem? Dou graças aos deuses por teu feliz regresso.

Sim, meu filho está bem de saúde. Aprendeu a falar tudo agora, e seu parolar não cessa um instante durante o dia, como a voz de um rouxinol. E daí palavras tão doces, irmã! Parecem rodar ao sair de seus lábios, e nós todos nos alegramos. Mas se dá-se conta de que nos rimos dele, se enfada e ralha. Igual que um homem! Há que lhe ver quando pretende andar como seu pai, alongando suas perninhas gorduchas para não perder terreno.

Queres saber...? Ah, si! Como vai o assunto de minha cunhada? Contesto-te com um suspiro. Não, não vai bem. Meu irmão e ela seguem esperando. Não se decide nada! Meu irmão contém-se, e, impaciente como os homens do Oeste com quem estudou, faz questão de que em nosso país o tempo não tem valor algum. Aqui não conhecemos a impaciência que pode acelerar o curso do tempo.

Mas dizer-te-ei que desde a apresentação minha mãe passaram em vários dias — oito — em espera de alguma notícia, que não chegou. Ao principio, meu irmão teve a esperança que, de uma hora para outra, minha mãe enviar-lhes-ia uma carta, e não permitiu à estrangeira que desfizesse suas malas.

— Não vale a pena — dizia —Não teremos que esperar mais que um ou dois dias.

Não podia se conter: ria com estrépito por qualquer coisa, muito alegre; agora, pelo contrário, se voltou muito taciturno e surdo a tudo o que se lhe diz.

Se ao principio meu irmão parecia prestar ouvido, constantemente, às vozes e sons que os demais ocupantes da estadia não percebiam, agora, ao passar nos dias e se dar conta de que a esperada notícia não chega, se voltou áspero e irritável. Já não ri, e repassa com a imaginação todos os detalhes da entrevista com sua mãe; quando lhe disse para ralhar à estrangeira por não se ter mostrado suficientemente submissa, meu irmão retrucou que teve razão ao fazer como o fez, que nos tempos atuais é uma estupidez se inclinar ante qualquer pessoa que seja. Ao ouvir este último despropósito não pude ocultar minha surpresa.

— Então nossa mãe já não é nossa mãe, pela razão de viver em tempos modernos?

Mas ele não tinha paciência para me escutar com calma; irritava-se por qualquer coisa e não queria admitir razões.

No entanto, devo ser justa com a estrangeira, que em verdade não se negou a se inclinar ante minha mãe. O que eu sei é que ela disse:

— Se essa é o seu costume, não tenho inconveniente em fazer uma reverência, ainda que, em verdade, me pareça ridículo ter que me inclinar ante quem queira que seja.

Parecia cheia de calma, bem mais que meu irmão, e mais confiada no porvir. Não fazia outra coisa que pensar em seu marido e na maneira de lhe devolver a felicidade que parecia ter perdido. Às vezes, quando lhe via irritado, lhe consolava passeando com ele pelo jardim e fosse do recinto.

Assim lhes vi, uma vez, desde minha janela.

O que lhe dizia naqueles colóquios, o ignoro. Mas sei com certeza que, depois, meu irmão parecia um pouco mais calmo, ainda que sempre devorado pela febre da espera.

Mas não sempre consolava, tal como acabo de dizer, já que às vezes ocorria — como uma vez tive ocasião de ver — que ela se encolhia de ombros, lhe deixando sozinho. Mas, nem ainda então lhe abandonava por completo. O seguia com o olhar profundo, e tão só quando não conseguia o acalmar, se retirava para se aprofundar no estudo de nosso idioma, ou para brincar com meu filho, a quem ama muitíssimo e com quem fala numa língua que o pequenino não entende.

Também quis se iniciar nos rudimentos da harpa e em pouco tempo aprendeu de mim o necessário para acompanhar seu canto com nosso antigo instrumento nacional. Quando canta, sua voz é clara e profunda, ainda que a nossos ouvidos, acostumados às notas delicadas e agudas, produz o efeito de ser suavemente rouca. Basta que cante para que em meu irmão se acenda súbita paixão. Não entendo suas canções, mas ao as ouvir noto um obscuro sentimento de pena.

Como minha mãe segue sem dizer palavra, a estrangeira parece a ter esquecido por completo. Eu até poderia imaginá-la absorta em outros pensamentos; sai para dar intermináveis passeios, sozinha ou em companhia de meu irmão. Aqueles passeios solitários assombravam-me. Como era possível que meu irmão lhe consentisse tanta liberdade? Sair sozinha casa muito mal com a modéstia feminina, e ele, no entanto, se calava quanto a isso. E tinha que a ouvir falar, quando voltava de seus passeios, das ruas por onde tinha passado. Entusiasmava-se com certas particularidades às que outra qualquer não tivesse prestado atenção, e de belezas vistas em lugares estranhos.

Por exemplo, num dia voltou muito sorridente, como se a alegrasse um íntimo pensamento. E quando meu irmão quis conhecer o motivo, ela lhe disse, segundo soube mais tarde:

— Vi a beleza dos dons da terra. Na feira, na rua central, expuseram numas cestinhas de vime os grãos maiss lindamente coloridos... milho amarelo, judias vermelhas, ervilhas de uma formosa cor verde, nabos de cor marfim, sementes de soja de uma cor pálida mel, trigo roliço, vagens verdes... Impossível não se deter para os contemplar. Que comida eu poderia fazer!

Não compreendi com exatidão o que queria dizer, mas ela é assim: vive como encerrada em si mesma, e vê belezas onde outros não podem as ver. Quem pensou jamais numa feira como ela o fazia? É verdade que há cereais de múltiplas cores, mas isso ocorre porque a natureza assim o quer; não há, pois, razão de se assombrar, já que sempre foi assim. Para nós, uma loja de cereais é um lugar onde compramos certa mercadoria destinada a ser consumida.

Pelo contrário, ela vê as coisas com outros olhos, mas se abstém de todo comentário. Prefere perguntar e tirar ela mesma suas conclusões acerca de nossas respostas.

A vida quotidiana junto a ela me inspirou um principio de simpatia. Se olho-a, descubro às vezes certa beleza em seus estranhos rompantes e em suas maneiras. Sem dúvida alguma, é orgulhosa sua maneira e tem os modos bruscos e francos. Em relação a meu irmão, não sempre é humilde.

Essa é uma coisa curiosa. Meu irmão jamais toleraria semelhantes tais atitudes numa mulher chinesa, mais nela experimenta como um misto de dor e desejo que lhe aviva a paixão. Quando a vê muito distraída por seus estudos, ou pelas brincadeiras com meu filho dá sinais de inquietude, a olha furtivamente, logo lhe fala e, por último, quando ela não faz nenhum caso dele, começa a falar como uma criança, como que vencido. E aí, ela faz o que quer que ele esteja desejando dela no momento.

Nunca vi nada semelhante a esse amor.

Mas chegou num dia — acho que foi o vigésimo segundo após ele terem comparecido perante minha mãe — em que esta chamou meu irmão com uma carta expressada em termos amáveis, que nos encheu a todos de esperança. Na carta rogava a meu irmão que a fosse ver, o que este fez imediatamente, me deixando com a estrangeira na espera dos acontecimentos.

Porém, sua ausência não durou mais que uma hora. Vimos-lhe entrar, dando grandes pisadas, pela porta central, vindo ao salão onde lhe esperávamos. Tinha o rosto franzido de irritação, e ao falar não fez outra coisa que repetir uma e mil vezes que estava decidido a se separar para sempre de nossos pais.

Estávamos completamente desconcertadas, e pelo momento não compreendíamos nada do que dizia. Somente após uma paciente conversa, foi que começamos a ter uma vaga idéia do que tinha ocorrido.

Meu irmão apresentou-se a mamãe cheio de sentimentos de ternura e desejos de reconciliação. Mas ela se mostrou dura e a conversa foi iniciada com o sentimento de que mamãe não cederia um centímetro. Começou fazendo destacar sua precária saúde:

— Não passará muito tempo antes que os deuses me transfiram a outro ciclo de existência... — começou.

Ele se sentiu comovido.

— Não diga isso, mamãe — replicou — Ainda tem que viver muitos anos para seus netinhos!

Mal pronunciou aquelas palavras, arrependeu-se das ter proferido.

— Netinhos? — respondeu secamente — Que outro filho pode me dar netinhos se não tu? E a filha dos Li, minha nora, segue a esperar, ainda virgem...

Após estas palavras, minha mãe guardou silêncio, cortesmente, para logo em seguida, exigir, sem mais delongas, que meu irmão se casasse com sua noiva o mais cedo possível para lhe dar um netinho antes de morrer. Meu irmão respondeu que já estava casado. Com tom irritado, declarou, então, que nunca aceitaria uma estrangeira como esposa de seu filho.

Isso foi tudo o que soubemos através de meu irmão. Ignoro que outras palavras eles se disseram. Mas Wang Da Mah, a fiel criada, que tinha escutado escondida depois da cortina, me disse que entre a mãe e o filho se cruzaram frases excitadas, palavras grosseiras... «Foi — dizia Wang Da Mah — como uma rápida sucessão de trovões que percorre o céu.» Meu irmão mostrou-se paciente até o momento em que minha mãe lhe ameaçou com fazer que lhe deserdassem. A isto meu irmão respondeu com amargura:

— Talvez acha que os deuses dar-lhe-ão outro filho, repudiando ao que já lhe deram?  Ou bem se rebaixará a senhora até adotar o filho de uma concubina?

Palavras indignas nos lábios de um filho!

Meu irmão deu fim à cena saindo precipitadamente, rogando pragas contra os antepassados enquanto atravessava os pátios. No quarto de minha mãe teve um prolongado silêncio; depois, Wang Da Mah ouviu gemidos.

Era minha mãe, e a criada apressou-se a entrar. Mas minha mãe calou-se imediatamente, mordendo-se os lábios e limitou-se lhe pedir, com voz como um suspiro, que a ajudasse a chegar até sua cama...

É vergonhoso que meu irmão tenha falado assim com mamãe! Não tem desculpa! Devia ter se lembrado da idade e da posição de mamãe. Ma ele não pensa mais que nele. Verdadeiramente, às vezes sinto ódio pela estrangeira que tem assim, entre suas mãos, o coração do meu irmão!

Quis correr para ver minha mãe, mas meu esposo me dissuadiu:

— É melhor — disse — esperar que ela te chame. Se fosses por tua própria iniciativa pareceria uma atitude contrária a teu irmão; e isso, precisamente agora que come nosso arroz, pareceria descortês.

Não nos ficava, pois, mais remédio que ter paciência: e bem sabem os deuses que a paciência é um mísero consolo para meu coração ansioso, irmã!

Ontem, a Sra. Liu veio a visitar-nos. Alegrei-me de vê-la. Nosso dia tinha sido cinza. Continuávamos deprimidos pelos acontecimentos do dia anterior, o da tempestuosa conversa entre mãe e filho. Este se tinha encerrado em seu quarto, mudo, o olhar obstinadamente para a janela. Tentou distrair-se com um livro, mas cansou-se cedo, pegou outro e depois outro, mas foi inútil. A estrangeira, por sua vez, vendo que era inútil tentar lhe consolar, fechou-se em seus próprios livros. Por minha parte, tinha tomado a decisão de não ficar perto deles, e com esse objetivo me ocupei exclusivamente de meu filho. A opressão que reinava em casa era tão forte que nem o regresso de meu marido para a refeição do meio dia conseguiu serenar meu irmão e tirar à estrangeira de seu mutismo. Por isso, a chegada da Sra. Liu foi como um sopro de ar fresco no inerte calor de um dia estival.

A esposa de meu irmão estava sentada, meditativa, com o livro abandonado sobre seu regaço. Ao ver aparecer a Sra. Liu, olhou-a um pouco surpreendida. Desde o assunto de minha mãe, ninguém tinha vindo nos visitar. Nossos amigos conheciam o desgosto e, por delicadeza, abstinham-se de ir; nem nós lhes tínhamos convidado, já que não sabíamos como apresentar a estrangeira. Efetivamente, eu a chamo esposa de meu irmão por atenção a ele, mas, legalmente, não é tal, nem sê-lo-á enquanto meus pais se neguem à reconhece-la.

Mas a Sra. Liu não se mostrou nem minimamente espantada. Chegando, pegou a mão da estrangeira e ambas começaram uma conversa que não compreendi: falavam em inglês. Ambas riam de vez em quando. Senti-me estupefata; parecia como se a estrangeira se tivesse reanimado subitamente. Observei-a com atenção, pensando que devia de ter um caráter curiosamente volúvel. Reflexionando-o bem, há nela duas pessoas... Uma silenciosa, retraída, e a outra alegre; mas uma alegria muito intensa para ser verdadeira alegria. Em quanto a Sra. Liu, chocou-me por seu desenvoltura, como se não se desse conta de nossa triste situação. Quando se levantou para se ir me apertou a mão, dizendo em nosso idioma:

— Estou desolada... É uma coisa lamentável para todos...

Voltou-se e disse algo à outra. Aquilo fez fluir as lágrimas em seus olhos. Nós três olhamo-nos entristecidas. De repente, a estrangeira pôs-se em pé e saiu rapidamente do quarto. Sra. Liu seguiu-a com os olhos e disse, compassiva:

— É triste para todos. — Depois perguntou — Eles se amam?

Já que ela é amiga intima de meu marido, respondi:

— Sim, muito, mas isso mata minha mãe. Já sabe você que a pobre mamãe é muito fraca, mesmo quando tudo está bem. Agora, imagine-a idosa e doente, nessas circunstâncias..

A Sra. Liu suspirou, agitando a cabeça:

— Sei... São dias difíceis para os velhos. Entre os idosos e os jovens já não existe possibilidade alguma de entendimento; estão separados, como uma afiada faca separa o ramo do tronco.

— É um absurdo — murmurei.

— Não é absurdo —- respondeu —É apenas inevitável. E nada há no mundo tão triste como isso.

Enquanto esperávamos, sem fazer nada, o sinal que nos ajudaria a regular nossa conduta, não consegui esquecer mamãe. Não fazia mais que pensar nas palavras da Sra. Liu a propósito dos ásperos tempos que corriam para os idosos. Para consolar-me, disse-me:

«Meu filho poderia visitar aos pais de meu marido.»

Sentia meu coração enternecido por todos os velhos. Eles também são velhos e estão delicados de saúde. Peguei ao neném e vesti-o com sua longa jaqueta de seda, parecida à que levava seu pai. Na cabeça pus-lhe um chapeuzinho semelhante ao que luzem os homens, de veludo negro, com uma borla vermelha. Tínhamo-lo comprado no dia de seu aniversário e sentava-lhe muito bem. Assim arranjado, o pequenino estava tão belo que cheguei a temer que os deuses lhe considerassem muito formoso para ser humano, e se sentissem induzidos a destruí-lo.

A avó paterna pensou o mesmo que eu. Quando viu o menino, o levantou entre seus braços, estreitando-o contra suas bochechas inchadas, que tremiam de alegria. Não cessou de cheirar seu corpinho fragrante, repetindo com uma espécie de êxtase:

— Encanto meu, filho de meu filho!

Estava tão comovida que me reprovei não lho levar com maior freqüência. É verdade que não se queixava pela decisão que tomamos de nos o ficar... Uma iniciativa que podia ser acrescentada às que Sra. Liu mencionou. Senti piedade pela avó, que envelhecia sem ter o consolo de seus netinho perto dela. Assistia, sorridente, a suas efusões, quando de repente vi que punha as mãos nas bochechas da criança e ladeava a cabeça a direita e esquerda, dizendo rapidamente:

— Mas que vejo? Não fizeste nada para o proteger contra os deuses! Que descuido! — Depois, voltando-se à escrava, exclamou — Traga-me um brinco de ouro e uma agulha.

Anteriormente tinha pensado em perfurar-lhe a orelha esquerda para pendurar-lhe um brinco a fim de enganar os deuses e faze-los achar que se tratava de uma menina, o que não lhes interessava. Era um antigo rito que livrava o primogênito da morte prematura. Mas tu sabes, irmã, quão sensíveis são suas carnes. Naqueles instantes, ainda que não me atrevesse a duvidar da sabedoria de minha sogra, senti que os cabelos se me punham de ponta ao pensar na dor que meu filho teria que passar.

Mas quando a avó tocou o lóbulo da orelha do pequenino com a agulha, este começou a gritar, pondo olhos de susto, chorando. A avó, ao ver-lhe aterrorizado, arrependeu-se de sua idéia e murmurou palavras de consolo, enviando por um fiozinho de seda vermelha, ao que atou o brinco, o suspendendo depois à orelha do bebê; assim evitou ter que perfurar-lhe o lóbulo. O neném sorriu, e seu sorriso conquistou nossos corações.

Esta visita fez-me compreender, com maior exatidão ainda, a dor de minha mãe. O verdadeiro fruto de sua vida era aquele netinho que não tinha nascido ainda. Mas senti-me feliz por ter alegrado o coração da avó paterna, e pareceu-me sentir menos dor pela sorte dos idosos.

Meu filial pensamento de levar ontem ao menino a casa da avozinha alegrou aos deuses, já que esta amanhã chegou uma carta de mamãe. Estava dirigida a meu irmão. Não falava da recente cena; unicamente ordenava-lhe instalar-se sob o teto paterno, afirmando não aceitar nenhuma responsabilidade no que quer que concernisse à estrangeira. Esta era uma questão muito grave para que ela pudesse decidir; essa responsabilidade recaía em nosso pai, o cabeça de família. Enquanto, nada se opunha a que meu irmão conduzisse à estrangeira ao domicilio paterno, se instalando com ela no pátio exterior, já que — aqui concluía a carta — não seria oportuno pôr à estrangeira em contato direto com as concubinas e as crianças.

A mudança de atitude em minha mãe assombrou-nos a todos, fazendo renascer a esperança em meu irmão.

— O sabia, sabia-o! — não se cansava de repetir —. Estava certo de que cederia! Afinal de contas, eu sou seu único filho!

Fiz-lhe observar que mamãe não tinha aceitado à estrangeira, mas não me fez caso.

— Uma vez tenha transposto a ombreira da casa, todo mundo gostará dela!

Não quis desanimá-lo e me calei. O que ele não sabia é que, no íntimo de nosso coração. nós, mulheres chinesas, não gostávamos facilmente o que não é nosso. Por isso, o mais provável seria que tivessem sempre presente à filha dos Li, sempre esperando a consumação do casamento.

Fiz várias perguntas discretas ao mensageiro, e este me disse que no dia anterior minha mãe se tinha sentido muito doente; tão mal se pôs que temeu morrer. Chamaram aos sacerdotes e foram recitadas as preces do caso; isso fez que, por último, se sentisse um pouco melhor. Pela manhã se reanimou milagrosamente, tanto é assim que teve forças para escrever de seu punho e letra a carta que tínhamos recebido.

Imediatamente compreendi o que tinha passado. Minha mãe viu-se próxima a morrer, e temendo que seu filho não voltasse a casa, faltando assim a seus deveres, tinha feito promessa de lhe chamar para que os deuses lhe conservassem a vida. Aquilo era uma grande humilhação para ela, e pensar nisso me irritava. Compreendi que devia ir em seguida à ver, e me tivesse posto em caminho de não me ter retido meu esposo.

— Espera! Suas forças mal serão suficientes para uma sozinha coisa ao mesmo tempo. Para os que se sentem debilitados pela doença, até a simpatia dos demais se converte em um peso.

Tive que me dominar e ajudar à esposa de meu irmão na tarefa de fazer suas malas. Se lhe tivesse podido falar livremente, em nosso idioma, tivesse-lhe dito:

«Lembra-te que minha mãe é velha e está doente... E que lhe tiraram seu único bem...»

Mas nada podia lhe dizer... Nossas conversas eram fragmentarias, e entendíamos-nos com muita dificuldade.

 

Meu irmão e sua mulher mudaram-se hoje para casa dos antepassados, onde lhes foram preparados alguns quartos nos melhores aposentos onde vivia meu irmão durante sua infância. À estrangeira foi-lhe proibido entrar e comer nos departamentos das mulheres. Isto significa que minha mãe segue se negando a reconhece-la.

Alegro-me de encontrar-me outra vez sozinha com meu marido e o neném. No entanto, meu irmão e a estrangeira deixaram um vazio como se um pouco de vida se tivesse ido de nossa casa. Como quando cessa o vento do Oeste, deixando depois dele uma calma, na que há gemidos de morte. Penso nos dois ausentes e imagino-os sozinhos na antiga casa dos antepassados.

Ontem disse eu a meu marido:

— Como acabará tudo isto?

Moveu ele a cabeça.

— Quando velhos e os jovens vivem juntos, é como ferro quebrando pedra. Quem pode dizer qual dos dois vencerá?

— E o quê ocorrerá daí?

— Prevejo problemas sérios — respondeu gravemente — Tenho pena de teu irmão. Muita pena. Nada é mais difícil para um homem do que viver entre duas mulheres, uma jovem e outra velha, entre as duas alternativamente e tendo que ser amável com ambas.

Sentou nosso filho nos joelhos e contemplou-o pensativo.

Não pude adivinhar seus pensamentos. Num momento dado, o pequeno apartou um pouco os cabelos que cobriam sua orelha, orgulhoso de ensinar o amuleto que sua avozinha lhe tinha suspendido.

— Olha, papai!

De repente, esquecemos a meu irmão e sua esposa. Meu marido olhou-me com olhos de suspeita, cheios de desprezos:

— Que significa isto, Kwei-lan?

— Tua mãe quis... — balbuciei —Eu não me atrevi a...

— Tolices! — exclamou — A primeira coisa que devemos tentar é que não metam na cabeça da pobre criança essas estúpidas superstições!

Extraiu uma navalha do bolso e cortou o fio de seda que sustentava o brinco. Quando teve o amuleto na mão, foi até a janela e o atirou ao jardim. O pequeno fez que ia chorar, mas meu marido deteve-o, rindo:

— Seja um homem como teu pai! Por acaso eu uso jóias como as mulheres? Sejamos homens! Não tememos os deuses!

O pequeno sorriu.

Mas, pela noite, lembrando-me essa cena, certo temor apoderou-se de mim. Seria possível que os velhos estejam sempre equivocados? E se os deuses existissem em realidade?  Ah, como compreendo o coração de minha mãe!

 

Durante vinte dias abstive-me de visitar minha mãe.

Sentia-me cansada e indisposta, e pensar em mamãe e meu irmão aumentava ainda mais a confusão de meu cérebro.

Não podia pensar em meu marido sem que surgisse a imagem de meu irmão, e quando pegava ao neném entre meus braços, evocava imediatamente minha mãe.

Mas apresentar-me a ela sem ter sido chamada, nas circunstâncias que atravessávamos, seria algo embaraçoso. Como justificar minha visita? Nas intermináveis horas de solidão, passadas no silêncio de minha casa — tu sabes que o pai de meu filho trabalha todo o dia até o anoitecer —, meus pensamentos erravam longe. Como devia passar a estrangeira àqueles dias tão longos? Teria se apresentado a minha mãe? E esta, teria lhe dirigido a palavra? Desde depois, não ignorava que as escravas e concubinas fariam comentários sobre ela. Quantos olhares furtivos nos rincões! Os criados deviam de lançar mão de qualquer pretexto para entrar e ver à estrangeira. Na cozinha não se falaria mais que dela, de suas maneiras, de seu aspecto, de sua conduta, de seu modo de falar, e de todos as conversas — até disso estava certa — acabariam com lamentações por se ter dado hospitalidade na casa a uma estrangeira, intercalando expressões penosas pela desgraça da filha dos Li.

Por último, meu irmão deu sinais de vida. Uma manhã — estava eu ocupada em bordar um par de sapatos para meu filho, pois já sabes que dentro de sete dias é a festa da Luminosa Primavera — a porta se abriu de repente e apareceu meu irmão sem se fazer anunciar. Usava uma vestimenta chinesa, e desde que voltou à pátria, nunca lhe vi tão parecido aos dias de sua adolescência. A expressão grave de seu rosto era a única diferença. Sentou-se sem saudar-me, e começou a falar como se prosseguisse uma conversa interrompida horas antes.

— Será que não podes vir comigo, Kwei-lan? Mamãe está muito débil, acho que a doença a mina pouco a pouco. Apenas sobrevive sua vontade, forte como sempre. Por ordem sua, minha esposa tem que viver no pátio, como uma mulher chinesa; e como minha herança depende de que observemos esta ordem, tentamos obedecer o melhor possível a ela. Mas ela é muito dura! Vêem a visitar-nos com o pequeno!

Levantou-se e começou a percorrer a estadia a grandes pisadas. Ao ver-lhe tão agitado prometi ir ver-lhes.

Aquela mesma tarde, fiel minha palavra, fui à casa de mamãe, com a intenção de aproveitar meu passeio pelos pátios para ver à esposa de meu irmão. No entanto, compreendi que nunca me atreveria a demonstrar abertamente minha mãe que também ia lá pela estrangeira. Assim, pois, me disse que faria caso omisso desta, a não ser que me oferecesse seus aposentos.

Sem deter-me nos pátios, fui diretamente à estadia de minha mãe. Enquanto atravessava o pátio das mulheres, observei que a segunda esposa me fazia senhas de que me acercasse desde a ombreira do portão da Lua, oculta a meias por um pé de oleandro. Limitei-me a fazer um movimento com a cabeça e passei de longo, pedindo imediatamente audiência minha mãe.

Depois das saudações rituais, falamos de meu filho. Depois, fazendo acepção de valor, olhei-o rosto o rosto. Apesar do que disse meu irmão, pareceu-me mais bem melhorada, pelo menos não tão doente como me tinha imaginado. Portanto, abstive-me de perguntar-lhe como se encontrava, pois sabia a ciência verdadeira que aquela classe de perguntas a irritava, ainda que suas respostas fossem sempre corteses. Assim, pois, me limitei a perguntar:

— Como está meu irmão, seu filho? Mudou muito durante os anos que passou longe?

Imediatamente minha mãe arqueou as sobrancelhas.

— A dizer verdade, não tratei com ele nenhuma questão de importância. A situação de seu casamento com a filha dos Li, pelo visto, não poderá ser resolvida até que teu pai regresse. Quanto minha ordem, tão cedo colocou os pés nesta casa, de vestir-se como todo mundo, foi estritamente observada. Não me agradava ver as pernas de meu filho metidas em calças iguais as dos carregadores de água.

Já que ela mesma tinha mencionado o casamento de meu irmão, perguntei, com fingida indiferença, ao mesmo tempo em que comparava uma mostra de tecido com a seda de meu vestido:

— E o que achou da estrangeira de olhos azuis?

Notei que minha mãe se zangou. Tussiu e, logo, disse, com voz indiferente:

— Não sei nada dela. Uma vez só, acedendo às súplicas de teu irmão para que lhe permitisse ma apresentar, a mandei chamar para que me preparasse o chá. Mas não pude agüentar a expressão bárbara de seu rosto e suas mãos nada jeitosas. É evidente que não serve para nada, é torpe, burra e se nota que ignora, inclusive, os rudimentos da educação para com as pessoas de idade. Parece que nunca lhe ensinaram como se cuida de uma pessoa mais velha. Cansei-me. Sinto indignação quando trato de esquecer, me dizendo que meu filho está de novo sob o teto de seus antepassados.

Estranhou-me que meu irmão não me tivesse dito nada daquilo. Com incrível atrevimento, perguntei:

— Posso convidar à estrangeira minha pobre casa...? Já que aqui tratam-na como a uma estranha...

Minha mãe respondeu friamente:

— Não fizeste bastante ainda? Enquanto viva sob meu teto não lhe permitirei que transponham o grande portão; assim aprenderá a reserva conveniente a uma grande esposa que pretende viver entre estas paredes. Não me importa que toda a cidade fale de nós. A estrangeira não conhece nem regras nem disciplina; precisa aprendê-las. E não me fales mais dela!

O resto de nossa conversa foi dedicado a assuntos correntes. Observei muito bem que minha mãe unicamente desejava falar dos assuntos e fofocas quotidianos, tais como a salada de verduras pelos criados, o aumento do preço das tecidos para as roupas das crianças, dos crisântemos que estavam a plantar no jardim para que florescessem em outono. Não pude, pois, fazer mais que saúda-la e ir-me.

Dirigia-me para a saída, atravessando os portais interiores, quando compareceu meu irmão. Tinha-se acercado à grande porta, segundo disse-me, porque tinha algo que dizer ao guardião. Mas dei-me conta de que não era mais que um pretexto e que, em realidade, foi à porta para me esperar. Acerquei-me a ele, e ao lhe olhar fixamente observei que a expressão decidida que lhe convinha num estranho para mim tinha desaparecido. Ao invés, parecia confuso e ansioso; isto, unido à vestidura que levava e sua estar com a cabeça inclinada, contribuía a lhe dar o aspecto de escoar que tinha antes de se ir ao estrangeiro.

— Como está tua mulher? — perguntei-lhe rapidamente.

Ele apertou os lábios, que tremiam, e respondeu:

— Nada bem, irmã! Não podemos continuar esta vida durante muito tempo. Estou a ver que terei de fazer algo... Ir embora... Procurar trabalho... Talvez até voltar para os EUA.

Calou-se. Aconselhei-lhe que tivesse paciência antes de jogar tudo para o alto. Era um grande passo que minha mãe tivesse consentido que estrangeira se instalasse nos pátios. Um ano passaria depressa.

Mas ele sacudiu a cabeça.

— Minha mulher também começa a desesperar — disse com tristeza —Enquanto estivemos longe de aqui, nunca perdeu os ânimos. Mas agora emagrece com o transcurso dos dias, não se acostuma a nossa comida, e eu não posso conseguir a comida de seu país. Não come quase nada. Em seu país de origem, esteve acostumada a sentir-se livre e cortejada; ali consideravam-na formosa, e muitos homens desejaram-na. Era para mim um orgulho me dizer que fui eu quem conseguiu a levar de todos os admiradores. Mas agora é como uma flor seca, truncada num vaso de prata sem água. Passa no dia inteiro sentada, em silêncio, com os olhos cada vez mais dilatados e febris.

Como era possível que meu irmão considerasse um mérito o que muitos homens tivessem desejado sua mulher?

Entre nós, semelhante antecedente seria considerado desmerecedor, coisa digna de uma mulher de bordéis. Como uma mulher assim podia esperar tornar numa de nós?

Um súbito pensamento cruzou minha mente.

— Ela pensa em voltar a sua pátria? — perguntei com ansiedade.

Oxalá fosse assim! Seria a única solução. Meu irmão, homem afinal de contas, esquecê-la-ia cedo quando o mar os separasse, e cumpriria com seus deveres. Nunca esquecerei sua expressão quando ouviu minhas palavras.

— Se ela decidir ir-se — disse, olhando-me com olhos de fogo — eu irei com ela, como já disse. — E depois, com uma violência inesperada — E ela morrer nesta casa, deixarei para sempre jamais de ser o filho de meus pais!

Com macieza, lhe reprovei o pronunciar umas palavras tão duras. E ele, me surpreendendo, em verdade, emitiu um rouco soluço, deu meia volta e se afastou com rapidez. Que fazer? Durante curtos minutos fiquei imóvel, contemplando seu curvado dorso, até que desapareceu no pátio onde habitava; depois, vencendo uma última incerteza, e sempre temerosa de minha mãe, lhe segui.

Desejava ver à estrangeira e, efetivamente, encontrei-a no pátio interior. Levava uma vestimenta exótica, uma longa jaqueta cingida, de cor azul escuro, cortada de tal maneira que não oprimia sua garganta. Quando cheguei, ela andava leve, levando na mão um livro estrangeiro coberto com ricas e sutis estampas, constituindo grupos em cada página. Lia, enquanto andava, com a frente sulcada de rugas. Ao ver-me, sorriu e deteve-se para que eu lhe chegasse perto.

Nossa conversa foi sem interesse. Ela tinha acabado de aperfeiçoar seus conhecimentos de nosso idioma e, por tanto, não tivemos dificuldade em nos entender, quando se trata de coisas simples. Convidou-me a entrar, mas me desculpei: meu filho estaria a me esperar. Ela parecia um pouco triste. Disse algumas palavras sobre o velho zimbro que cresce num dos pátios; depois me entregou um bonequinho para meu filho. Era de tecido recheado de algodão. Agradeci a gentileza e fiquei sem saber que dizer. Houve uma pausa; depois comecei a despedir-me, sentindo-me entristecida ao pensar que não podia fazer nada para ajudar nem meu irmão nem minha mãe.

Quando quis me ir, me pegou uma mão e a reteve entre as suas. Olhei-a e vi que duas lágrimas fluíam de seus olhos azuis, que ela tentou dissimular com um brusco movimento de cabeça. Senti-me apiedada e, não sabendo que dizer, lhe assegurei que voltaria cedo à visitar. Tentou sorrir, mas seus lábios tremiam.

Assim passou uma lua mais, e meu pai regressou. Ainda que pareça estranho, interessou-se imediatamente pela esposa de meu irmão, que lhe foi simpática. Por Wang Da Mah, soube que mal franqueou a porta principal inquiriu se meu irmão tinha conduzido sua mulher a casa. Como lhe responderam afirmativamente, mudou de roupa e anunciou sua visita a meu irmão tão cedo acabasse de comer.

Efetivamente, compareceu muito sorridente e amável, sendo recebido por meu irmão com os sinais de respeito que lhe eram devidos. Imediatamente comunicou seu desejo de ver à estrangeira, e ao comparecer esta, se jogou a rir a gargalhadas, observou-la atenciosamente e se pôs a fazer comentários em voz alta.

— Não está mal para ser uma estrangeira. Na verdade, é até bastante bela — disse de bom humor — Bem, bem, é uma coisa nova na família. E sabe falar nossa língua?

Meu irmão, irritado por tanta desenvoltura, respondeu secamente que se ocupava em ensiná-la. Ao ouvir isto, meu pai riu a mais não poder.

— Para quê, filho, para quê? As palavras de amor soam com maior doçura quando pronunciadas num idioma estrangeiro, hahaha!

Enquanto deixava-se dominar por aquele excesso de hilaridade, toda a gordura de seu corpo tremia.

A estrangeira não compreendia as palavras de meu pai — que como você sabe é muito espontâneo e fala sempre muito rápido —, mas a jovialidade que demonstrava teve o efeito de reanimá-la e, naturalmente, meu irmão se guardou muito bem de a advertir que o chefe da família lhe estava a faltar ao respeito.

Inteirei-me de que meu pai a visita com freqüência, e que caçoa muito sem se preocupar para nada das conveniências; ensina-lhe novos modismos e maneiras de dizer as coisas. Em certa ocasião enviou-lhe doces, e em outra, um limoeiro anão, desses que se chamam de Pequeno Buda, num magnífico jarro verde.

Meu irmão tenta estar presente durante estas entrevistas. Quanto à estrangeira, é uma criança que não se dá conta de nada.

Ontem, após saudar minha mãe, fui aos aposentos da mulher de meu irmão para fazer-lhe uma breve visita; não me atrevia a incorrer na reprovação de mamãe a visitando mais vezes: isso tivesse podido ser causa de que me proibisse o acesso, sem mais nem mais, ao pátio da estrangeira.

— Está melhor agora? — perguntei-lhe.

Sorriu daquela maneira que alumiava todo seu grave rosto.

— Quase — respondeu —Pelo menos as coisas não pioraram. Não voltei a ver sua mãe desde a vez em que tive de lhe preparar o chá. Ela zangou-se muito comigo, mas que podia fazer? Nunca na minha vida, preparei chá daquela maneira! Mas seu pai vem ver-me quase todos os dias.

— É necessário ser paciente — disse —Chegará no dia em que meu augusta mãe acabará cedendo.

A expressão de seu rosto endureceu-se.

— Como se eu tivesse cometido um pecado! — disse com voz rouca e vibrante — Épecado amar e se casar? O pai de meu marido é o único amigo que tenho nesta casa. Pelo menos é amável comigo! E preciso de amabilidade, crie-me. Não poderei agüentar durante muito tempo esta opressão.

Com um ligeiro movimento nervoso de sua cabeça jogou atrás os cabelos longos e ruivos que lhe caíam sobre a frente.

Em seus olhos li uma expressão encolerizada. Vi que olhava para os outros pátios, e segui a direção de seus olhos.

— Olha-as, aí estão outra vez! — exclamou —Para essas aí, eu sou como um brinquedo, não posso resistir que me olhem assim! Por que vêm sempre a descobrir e me assinalar com o dedo?

Ao falar assim me indicava com a cabeça o portão da Lua, onde se tinham agrupado as concubinas, e meia dúzia de escravas com seus meninos; mas via-se claramente que olhavam em direção à estrangeira, rindo entre elas, indiferentes minha expressão reprovadora, fingindo não me ver. Por último, a estrangeira obrigou-me a entrar, de um empurrão, na estadia, fechando a porta no nariz das curiosas.

— Não posso agüentar isso! — disse furiosa — Não entendo nada do que dizem, mas sei que falam de mim desde pela manhã até a noite!

Tentei acalmá-la:

— Não preste atenção. Elas são totalmente ignorantes.

Mas ela sacudiu a cabeça.

— Isto já vai durando demais! Não posso mais! — Franziu o cenho e calou, absorta em seus pensamentos. Eu também guardava silêncio, a seu lado, na amplo quarto onde reinavam as sombras. Por último, já que não acertávamos a nos dizer nada, olhei a meu arredor. Podia-se ver que tinha verificado algumas mudanças no local, para lhe dar um aspecto o mais ocidental possível. Observei alguns detalhes estranhos. Por exemplo: nas paredes tinha pendurado, sem ordem nem concerto, alguns quadros, e entre eles várias fotografias com marcos. Ao dar-se conta de que os olhava, seu rosto se suavizou.

— Estes são meus pais — disse — e aquelas minhas três irmãs.

— Não tens irmãos?

Sacudiu a cabeça, contraindo um pouco os lábios.

— Não, mas não ligamos para isso. Não vivemos apenas para gerar filhos machos.

Não compreendi. Levantei-me para olhar os quadros. O primeiro reproduzia a um idoso de aspecto grave, com uma barbicha branca em ponta. Seus olhos eram como os da estrangeira, tempestuosos, com as pálpebras inchadas. Tinha o nariz pontiagudo e a cabeça era calva.

— Meu pai é professor da Universidade onde encontrei pela primeira vez a teu irmão — disse, olhando a fotografia com nostalgia —. Ao ver-lhe neste quarto, parece-me fora de lugar — acrescentou baixinho e trêmula —. Mas o que, ao principio, não podia olhar é a fotografia de minha mãe!

Pôs-se em pé e falou a meu lado: eu, comparada com ela, resulto de muito curta estatura. Separou seus olhos da segunda fotografia, sentou-se, pegou de em cima a mesa um retalho de tecido e pôs-se a bordar. Nunca a tinha visto dedicada àquele trabalho, e me estranhou a curiosa caixinha de metal em que introduzia seu dedo; era algo muito diferente de nossos dedais constituídos por um anel apropriado ao dedo médio. Manejava a agulha como uma faca. Não dizia nada.

Tive curiosidade pela fotografia de sua mãe, uma mulherzinha delicada, não excenta de certa graça, apesar da maneira pouco decorosa de pentear seus cabelos brancos, em forma de auréola. A irmã da estrangeira tinha uma parecença extraordinária com sua mãe, que aparecia ainda muito jovem e sorridente.

— Tem muitos desejos de ver outra vez a tua mãe? —perguntei discretamente.

— Não. Nem tão sequer posso escrever-lhe.

— E por quê?

— Porque estou a ver que todos seus temores a propósito de meu casamento se cumprem. Nem por todo o ouro do mundo queria que me visse aqui! Se escrevesse-lhe leria a verdade entre linhas. Por isso não lhe escrevi desde que cheguei. Em nosso país, tudo aparecia de uma maneira muito diferente, magnífica; minha novela de amor. E eu... Naturalmente, tu não sabes até que ponto chegava meu marido a ser o tipo de perfeito apaixonado. Falava-me com cálidas palavras, bem mais originais e interessantes que as de todos meus outros apaixonados... Estes, comparados com ele, me davam a impressão de ser fastidiosos e vulgares. Um amor expressado como teu irmão o fazia era uma novidade. Mas minha mãe não se sentia muito calma, e nunca conseguimos lhe fazer perder o medo!

— De que tinha medo? — perguntei, perplexa.

— Que indo tão longe não fosse eu feliz, e que os pais de meu marido não aprovassem o casamento e tentassem me fazer a vida impossível. E isso é precisamente o que ocorre! Ignoro a coisa como é, mas me como se tivesse caído entre as malhas de uma rede. Aqui, confinada entre estas quatro paredes, minha imaginação voa. Que dizem todos os que me rodeiam? Que pensam de mim? Quisesse poder ler isso em seus rostos, mas não o consigo. São tão impassíveis! Pela noite, até dá-me medo... Às vezes vejo o rosto de meu marido como as demais, liso, imperturbável. Ali, em meu país, parecia um dos nossos, mas um pouco mais fascinante; uma amabilidade como não tinha conhecido nunca. Mas aqui...! Há momentos em que me parece o ver como se desvanece nas sombras deste estranho mundo. Até parece que me foge... Como diria...? Sempre estive acostumada a ouvir expressar com franqueza os sentimentos. Ah, a alegria de viver! Aqui, pelo contrário, tudo é silêncio, reverências, olhares de esguelha. Importar-me-ia pouco não gozar de liberdade, se, pelo menos, soubesse o que tudo isto oculta. Sabes? Em certa ocasião, em meu país, disse que por amor a teu irmão estava disposta a me fazer chinesa ou hotentote.  Pois bem, não posso, me é impossível!  Serei americana até a morte!

Desafogava-se em mim, com rosto confuso e expressões convulsivas, tão cedo em seu idioma como no nosso. Nunca imaginei que pudesse ter nela tantas idéias inesperadas. Falou com a fluidez da água que mana de uma rocha. Jamais vi a uma mulher mostrando seu coração tão ao nu. Grande era minha turvação, e a isto se unia uma vaga sensação de piedade. Estava ali, pensando no que poderia contestar, quando meu irmão compareceu do quarto contíguo e, sem me prestar atenção, achegou-se a estrangeira. Ajoelhou-se a seu lado, pegou as mãos, que ela tinha deixado cair em sua regaço, e lhas levou às bochechas, inclinando a cabeça como se o tivesse ouvido tudo. Eu fiquei indecisa, não sabendo se devia me ir. Por último, meu irmão elevou para ela seu rosto descomposto e murmurou, com certa dificuldade:

— Mary, Mary, nunca te ouvi falar assim. Já não tens confiança em mim? Em teu país dizias-me que usarias minha nacionalidade, a compartilhando comigo. Se não podes... Se te é impossível... Pois bem, a fim de ano iremos embora e eu serei americano como tu. E se isso não fosse possível, ir-nos-emos a outro país, usaremos outra raça, que mais dá, com tal de estar juntos... E que nunca possas duvidar de mim, nem de meu amor!

Compreendi estas palavras porque meu irmão falou em chinês. Depois, começou a murmurar frases em outro idioma e já não pude entender o que dizia. Mas vi que a estrangeira sorria, e compreendi que por amor a meu irmão estava disposta a qualquer coisa. Inclinou sua cabeça sobre o ombro dele e os dois calaram, palpitantes. Senti-me envergonhada e retire-me, encontrando certo alívio no fato de ralhar às escravas que olhavam curiosas ante a cancela. Não podia, naturalmente, ralhar com às concubinas de meu pai, mas tive cuidado em recalcar certas expressões que disse às escravas, dirigidas também às outras. Nenhuma das concubinas compreendia que aquela era uma curiosidade indigna e desrespeitosa. A mais gorda, que mastigava um bolo oleoso, disse, estalando a língua:

— Uma pessoa tão ridícula e de aspecto tão estranho, não devia se espantar que rissem e zombassem dela as suas costas.

— Essa mulher é humana e tem os mesmos sentimentos que nós — respondi com toda a fria severidade de que fui capaz.

Mas a concubina limitou-se a encolher os ombros, e continuou mastigando, limpando os dedos nas mangas com muito cuidado.                                                                                

Fiquei muito encolerizada, e ao chegar cerca de casa dei-me conta de que minha cólera era mais bem em favor da esposa de meu irmão do que na contramão.

 

E agora, irmã, ocorreu o que não desejávamos; a estrangeira está grávida! O sabia desde vários dias antes, mas não o disse a meu irmão até ontem, com certa curiosa reserva. Este veio imediatamente me comunicar.

O caso não é para o festejar. Minha mãe acolheu a notícia metendo-se em cama, e encontra-se tão mal que é incapaz de se levantar. Seus temores, horrorosos temores, cumpriram-se, e seu frágil corpo não suporta facilmente as impressões fortes. Tu sabes o muito que ela desejou que o primeiro fruto do amor de meu irmão pertencesse a família. E agora, em vista de que seu desejo não se cumpriu, meu irmão já não tem valor algum para ela, e perdeu todo interesse pelo futuro menino, que nunca poderá lhe ser apresentado como o esperado netinho.

Sabendo que não se encontrava nada bem, a fui ver, e a encontrei, rígida e imóvel, em seu leito. Tinha os olhos fechados e não os abriu mais que para me reconhecer, os voltando a fechar em seguida. Sentei-me suavemente a seu lado e esperei em silêncio. De improviso, como ocorreu a outra vez, seu rosto mudou até o ponto de adquirir a cor da morte, e sua respiração fechou-se fatigosa. Impressionada, bati palmas para chamar às escravas, e subitamente compareceu Wang Da Mah com o cachimbo de ópio aceso e fumegante. Minha mãe pegou-a, começou a chupar com desespero e, ao pouco momento, pareceu um pouco aliviada.

O que vi me transtornou. Era evidente que aquele mal-estar era uma coisa diária, já que o cachimbo de ópio estava disposto junto ao acendido lustre. Quando pretendi falar, minha mãe disse:

— Não é nada; não me molestes!

Não quis dizer nada mais. Fiquei ainda curtos instantes sua cabeceira; depois, fazendo uma reverência, retirei-me. Ao atravessar o pátio dos criados pedi explicações a Wang Da Mah. Esta moveu a cabeça.

— A Taitai sofre destes ataques diariamente, e, às vezes, são mais que os dedos de minha mão. Durante estes últimos anos também sofreu de ataques parecidos, mas eram mais raros e, em realidade, ocasionas. Unicamente nestes últimos tempos, por causa dos desgostos que lhe dá a família, são mais freqüentes. Tento estar sempre perto dela, e lhe vejo um rosto cada vez mais lívido. Pela manhã, quando lhe levo o chá, a encontro descomposta. Até faz nuns dias sustentou-a um resto de esperança. Mas agora esta desapareceu sua vez, e se inclina como uma árvore cujas raízes estão mortas.

Com a ponta do avental azul secou os olhos e suspirou.

Ah, sei muito bem, muito bem, em que consistia essa esperança que seguia a animando! Wang Da Mah não disse nada, mas eu voltei a casa e chorei. Contei tudo a meu marido, suplicando-lhe que me acompanhasse para ver minha mãe. Mas ele me aconselhou que esperasse.

— Forçá-la ou irritá-la seria pior. Quando o momento te parecer oportuno, lhe aconselha que se faça consultar por um médico. Tua responsabilidade ante uma idosa impõe-te esta obrigação.

Não ignoro que meu marido tem sempre razão. Mas não consigo me livrar do pressentimento de uma iminente desgraça.

Quanto a meu pai, parece contente de que a estrangeira vai ser mãe. Quando inteirou-se do caso, exclamou:

— Ah! Ah! Agora terei um pequenino estrangeiro com quem brincar! Vá, vá! Um brinquedo novo! Terá o nome de Pequeno Palhaço e nos fará rir!

Estas palavras, acolheu-as meu irmão com um rosnado. Era evidente que em seu coração começava a sentir ódio por seu pai.

Em quanto à estrangeira, parecia ter enviado sua tristeza para os quintos do infernos.

Quando a fui ver para a felicitar, estava murmurando uma canção estranha e áspera. Perguntei-lhe que era e me respondeu que uma canção de ninar. Pareceu-me que nenhuma criança poderia dormir a ouvindo.

Parecia como se tivesse esquecido seu desafogo comigo. Dizer-se-ia que o amor entre ela e meu irmão fortaleceu-se, e agora não faz mais que pensar em seu pequeno, que não demorará em nascer.

Em meu foro interno sinto impaciência por ver esse pequeno estrangeiro. Estou certo de que não poderá ser tão belo como o meu filho. Se ainda for uma criança com os cabelos ruivos como os de sua mãe... Ah, meu pobre irmão!

A infelicidade de meu irmão é tanto maior quanto mais vivo é seu desejo de legalizar o estado de sua esposa, agora, sobretudo, que espera seu filho. Em cada dia, falando com meu pai, faz alusão a isso. Mas este muda de conversa, sorrindo, e fica parolando de futilidades. Meu irmão diz que durante a próxima festa submeterá o caso ao julgamento de toda a família, reunia em o grande átrio, ante as tabulas sagradas de nossos antepassados, para que seu filho venha ao mundo legalmente, como seu primogênito. Claro está que se se tratar de uma menina a coisa não terá importância, mas nunca se sabe o que o porvir reserva.

Estamos na undécima lua do ano; a neve cobre a terra, os bambus do jardim... ouve-se mar de brancas ondas, que mal se movem na brisa, gemendo sob o peso branco. A gravidez da esposa de meu irmão progride, na casa de minha mãe a atmosfera é densa, enquanto esperam... O que...? Não poderia o dizer com precisão.

Esta manhã, ao levantar-me, vi as árvores nuas e negros sob o céu cinza. Meu acordar foi brusco, como ocorre quando se tem um sonho ansioso. E, no entanto, não tinha sonhado nada. Que significa nossa vida? Está nas mãos dos deuses, e nós não conhecemos nada, somente o medo.

Tentei analisar o motivo de meu sobressalto. É por causa de meu filho? Mas é um leãozinho, fala como um rei e o mundo inteiro lhe obedece. Unicamente seu pai atreve-se a desobedecer-lhe, rindo. E eu... Eu sou sua escrava e ele o sabe! Sabe-o tudo, o danadinho.

Não, não se trata de meu menino. Então? De qualquer modo que me formule a pergunta, não consigo dominar minha inquietude; é o pressentimento de uma desgraça que está a ponto de cair sobre nós. Espero que os deuses se decidam a nos revelar seus desejos, convencida da maldade destes. E se se tratasse, afinal de contas, de meu filho? Porque não consigo me desfazer deste vago temor, por causa da atitude de seu pai com respeito ao amuleto da avó.

E o pai? Ri-se. O menino não está são e forte? Não se contenta com o peito; agora quer arroz e os pauzinhos três vezes ao dia. Estou-lhe amamentando, mas está feito um homem. Ah, não; nenhum outro menino pode competir em vigor com meu filho.

Minha mãe debilita-se em cada dia mais. Papai, para escapar às instâncias de meu irmão em favor de sua esposa, foi-se a Tien-Tsin para certos assuntos. Desde faz várias luas não se lhe vê em casa. E, no entanto, aproxima-se a ameaça, e seria conveniente que regressasse. Meu pai não se preocupa de nada mais que de seus prazeres, mas isto não deveria ser motivo para esquecer que, ante os céus, representa à família. Escrever-lhe? Não me atrevo, simples mulher atemorizada, a lhe molestar com meus pressentimentos que, talvez, não são outra coisa que temores supersticiosos.

Mas, se são supersticiosos, por que não conclui a opressiva tensão desta espera?

Comprei incenso e queimei-o ante Kwan-yin a escondidas, por medo da irritação de meu marido. Está bem que não se creia nos deuses quando nada irrite nosso espírito; mas quando a dor cai numa casa, a quem recorrer...? Supliquei à deusa antes que meu filho nascesse, e a deusa me ouviu.

 

Estamos a ponto de entrar na duodécima lua. Minha mãe jaz, imóvel, em sua cama. Começo a achar que nunca mais levantará. Sugeri-lhe que chamasse aos médicos e cedeu por fim... Sem dúvida para que não siga a importunando.

Chang, o célebre médico e astrólogo, veio. Depois de receber, em pagamento, quarenta libras de prata, prometeu curá-la.  Todos conhecemos sua sabedoria, e esta promessa nos tranqüiliza.

Mas eu me pergunto quando começará a tão esperada melhoria. A doente não faz mais que fumar ópio desde pela manhã até a noite, para aliviar as dores que a afligem; e, consumida em sua sonolência, mal fala. Sua cor tornou-se amarela; a pele está colada aos ossos, seca e fina como papel. Sugeri-lhe que se deixasse cuidar por meu marido, à maneira ocidental, mas mamãe não quer saber fr nada disso. Murmura que, ainda que num tempo foi jovem e agora é velha, não por isso deixar-se-á submeter a tratamentos bárbaros. Quando falei de mamãe a meu marido, este moveu a cabeça... E por este movimento compreendi que ele também está seguro de que não demorará em entrar no terraço da Noite.

Oh, mãe minha, mãe minha!

Meu irmão não fala, se consome. Passa nos dias inteiros em seus aposentos, olhando ao vazio e franzindo o cenho; e quando volta em si, é tão só para prodigar ternuras sua mulher. Os dois criaram-se uma existência pessoal, afastados num mundo onde não existem mais que eles dois e o filho que tem de nascer.

Desde faz algum tempo, um trançado de bambu colocado contra cancela-a da Lua evita os olhares curiosos das mulheres.

Quando lhe falo de mamãe, meu irmão se faz o surdo e se limita a dizer, como um menino caprichoso:

— Não a perdoarei nunca; não posso a perdoar!

Nunca, em toda a sua vida, teve meu irmão que suportar uma negativa. E agora não pode perdoar sua mãe!

Durante muitas semanas mostrou-se negativo a idéia de visitá-la.

Mas ontem, por fim, acabou cedendo a minhas angustiosas súplicas, e consentiu em vê-la. Entrou comigo no quarto, mas não fez nenhum saudação. Obstinadamente silencioso, olhou minha mãe, e ela, num momento dado, abriu os olhos e lhe olhou com firmeza, sem dizer uma palavra. Mas quando nos retiramos pude observar que a vista daquele rosto descomposto lhe tinha comovido a alma. Provavelmente achou que minha mãe mantinha-se enclausurada em seus aposentos tão só por enfado com ele; mas ao vê-la, deu-se conta de que estava verdadeiramente doente, e que não curaria nunca. Assim é que agora — Wang Da Mah mo tem contado — se acerca em cada dia à cabeceira de sua mãe e lhe oferece uma xícara de chá com as duas mãos, sem se mover. A primeira vez, a doente incorporou-se para dar-lhe as obrigado, mas desde que soube o estado da estrangeira, não voltou a abrir a boca.

Meu irmão escreveu uma carta a meu pai, e amanhã o chefe da família virá.

Faz em vários dias que mamãe está submersa num pesado sonho muito diferente do sonho que conhecemos.

Chang, o médico, abriu os braços e disse:

— Se o céu ordena a morte, quem sou eu para me opor ao destino supremo?

Embolsou o dinheiro que se lhe devia, ocultou as mãos em suas amplas mangas e se foi. Então corri em procura de meu marido e lhe supliquei que fosse: a doente não vê nada do que ocorre a seu arredor, e não fará objeção alguma. Ao principio, meu marido não queria saber nada, mas insisti, e pela primeira vez pôde ver minha mãe doente.

A visita comoveu-lhe como em nenhuma outra ocasião pude observar. Olhou-a durante um bom momento, um estremecimento percorreu todo seu corpo e, por último, saiu.

Durante um momento temi que se encontrasse mal, mas minhas agoniadas perguntas limitou-se a contestar:

— É muito tarde. Não posso fazer nada.

Depois, de repente, voltou-se para mim, exclamando:

— Parece-se tanto a ti, que até parecia estar te vendo morta!

E choramos os dois.

 

Vou ao templo duas vezes ao dia, onde não tinha posto os pés desde que nasceu meu filho.

Não sentia a necessidade de pedir nada aos deuses, já que tinha tudo o que podia desejar. Mas vê-se que os deuses, enfadados por minha alegria, me castigam golpeando minha mãe. O deus a quem rogo com maior devoção é o da longa vida, ante o qual pus oferendas consistentes em carne e vinho. Prometi entregar ao templo cem fios de prata, caso minha mãe se cure.

Mas o deus não me ouve. Sentado, imóvel atrás de sua cortina, não me fez saber, tão sequer, se aceita minhas oferendas.

Depois do véu, os deuses confabulam contra nós!

 

Irmã, oh, irmã! Os deuses falaram, por fim, revelando-se com toda seu perversidade! Olha, olha, irmã, meus vestidos de tecido branco! Olha os vestidos brancos de luto, que leva meu filho! Por ela vestimos de luto, por minha mãe! Ela morreu!

Eu velava sua cabeceira. A meia-noite tinha soado; ela jazia imóvel, sem mudar de postura desde fazia dez dias: uma estátua de bronze. Não comia nem falava; seu espírito tinha ouvido já as vozes imperiosas. Não vivia nela mais que seu forte coração, mas também se debilitava pouco a pouco. Pouco antes da alva me apercebi, com súbito terror, de que algo tinha mudado nela. Bati palmas chamando à escrava de serviço, e enviei-a em procura de meu irmão, que velava em seu quarto, disposto a ir tão cedo lhe chamassem.

Apareceu instantes depois, olhou à doente e murmurou quase com medo:

— Acabou-se. Mande alguém aos aposentos de papai.

Fiz um sinal a Wang Da Mah que, em pé, junto ao leito, se secava os olhos. Uma vez saiu a criado, pegamo-nos das mãos chorando e gemendo. De repente, nossa mãe pareceu acordar: voltou a cabeça e olhou-nos fixamente. Depois levantou os braços, como se elevasse um grande peso, e emitiu dois profundos suspiros. Seus braços caíram inertes, e seu espírito voou, silencioso e impenetrável, como durante sua vida.

Chegou meu pai, ainda meio adormecido e com as roupas em desordem. Quando lhe comunicamos a desgraça, ficou como aturdido, olhando à morta. Era visível que sentia medo — sempre a temeu — e começou a chorar como uma criança, vertendo lágrimas.

— Uma boa mulher! — exclamou —Ah, sim, uma boa mulher!

Meu irmão afastou-lhe suavemente, com palavras de consolo, e ordenou a Wang Da Mah que me trouxesse vinho.

Fiquei a sozinhas com minha mãe, absorta na contemplação do mudo rosto, que ia adquirindo a rigidez da morte. Eu era a única que compreendia, e as lágrimas fluíram, abundantes, de meu coração. Por último, corri as cortinas para evitar os olhares dos estranhos, e abandonei-a à solidão em que sempre viveu.

Aspergimos o cadáver de essência de jasmim e acanto, envolvemo-lo numa longa gaze de seda amarela, e, por último, o depositamos num dos dois grandes ataúdes cavados em imensos troncos de árvores de alcanfor, dispostos para ela e meu pai desde que morreu a avó. Nos olhos da morta pusemos as pedras sagradas de jade.

O grande ataúde foi selado. O astrólogo veio e o consultamos a respeito do dia mais favorável para os funerais. Este esquadrinhou os livros das estrelas, descobrindo que o dia exato é o sexto da sexta lua de ano novo. Depois chamamos os sacerdotes, que foram ataviados com suas veste amarelas e vermelhas. Ao som de a música fúnebre conduzimo-la ao templo, em espera do dia para o enterro.

Atualmente jaz no templo, sob os olhos dos deuses, no silêncio e o pó dos séculos. Nem um ruído interrompe seu sonho eterno. Unicamente ressoam os cantos fúnebres dos sacerdotes ao amanhecer, quando chega o crepúsculo e durante a noite. De vez em quando, o são dos gongos do templo.

 

É possível, irmã, que tenham passado quatro meses?

Minha vida segue seu curso, mas não sou a mesma de antes. Em meus cabelos luzem os cordões brancos do luto de minha mãe. Os deuses separaram-me de meu manancial... Da carne que deu vida e dos ossos de que estão feitos os meus.

A lembrança do irreparável faz-me sangrar de dor.

No entanto, penso: já que o céu não quis que se cumprisse o último desejo de minha mãe, não foi este misericordioso ao lha levar do mundo, a afastando desta vida que ela nunca teria conseguido compreender? Tempos difíceis para os que vivemos, como tivesse suportado ela os acontecimentos?

Vou te dizer tudo, irmã: Mal tinha saído o cortejo fúnebre pela porta principal, quando as concubinas se engalanaram numa violenta discussão para saber a quem correspondia a posição de Taitai. Todas desejavam vestir os trajes de brocado vermelho, que estavam proibidos às de sua condição, bem como o privilégio de sair pela porta principal no dia de seus funerais. Tu já sabes, efetivamente, que os ataúdes das concubinas devem sair por uma porta lateral.

Você tinha que as ver, pavoneando-se e rivalizando entre si para se atrair os olhares de meu pai.

Todas? Bem, devo fazer exceção a Lamay. Durante estes últimos meses viveu numa das propriedades agrícolas da família.

Ao morrer minha mãe, e com todo o transtorno conseguinte, esquecemos lhe comunicar imediatamente a notícia, que lhe foi notificada, dez dias mais tarde, pelo mordomo de meu pai. Lamay viveu retirada durante todo aquele tempo com a única companhia de seu filho e os servos; não fez nada para reconquistar meu pai, nem quando soube que este tinha renunciado a seu projeto de adquirir uma nova concubina.

Meu pai, efetivamente, cansou-se cedo de seu novo capricho. A nova concubina, pensou, não vale o dinheiro que pedem por ela. Mas Lamay não podia esquecer que meu pai desejou substitui-la, e nunca quis ouvir falar de se reunir com ele; meu pai odiava o campo e, por isso, nunca foi atrás ela.

Ao inteirar-se da morte de minha mãe, Lamay veio imediatamente. Seu primeiro pensamento foi visitar o templo onde se conservavam seus restos mortais. Durante três dias, recusando todo alimento, chorou no templo. Quando Wang Da Mah me explicou este detalhe me apressei a ir ao templo, levantei a chorosa Lamay e a levei a minha casa. Está mudada por completo. Já não é a moça alegre e vivaz de antes; as sete elegâncias de seus vestidos já não são mais que uma lembrança. Não pinta mais os lábios, que traçam uma linha esbranquiçada em seu pálido rosto; mal fala, e sua cor é cinza. A única coisa que sobrevive nela de antes é seu desdém. Ao saber que as concubinas brigavam entre si, franziu os lábios com desprezo. É a única a quem não lhe importa em ser a primeira.

Não fala de meu pai. Alguém me contou que ameaçava se envenenar se este se atrevesse a se acercar dela; o amor de antes se converteu em ódio.

Quando lhe falei da mulher estrangeira com quem se tinha casado meu irmão, não abriu a boca, como se não me ouvisse. Mas como insisti, me escutou friamente e, por último, comentou, com voz fina e rilhante:

— Para que falar e se ocupar de algo que se sabe de antemão como irá acabar? Pode ser fiel o filho de tal pai? Hoje está muito apaixonado, mas já sei para onde vão esses assuntos. Espere até que nasça seu filho, e a mãe perca a beleza como um livro perde a capa. Por acaso achas que ele lerá as páginas desse livro?

E se desinteressou da questão. Viveu quatro dias conosco sem mencionar para nada a meu pai; nela morreram a alegria e o amor que por algum tempo chegou a sentir. Sente ódio do mundo inteiro, mas é uma cólera sem fogo, sem motivo, fria como a de uma serpente, e cheia de veneno. Chegou a dar-me medo; disto não falei a meu marido até o dia em que se foi.

Pegou-me a mão, reteve-a entre as suas e, por último, disse:

— É uma mulher desprezada. Por nossas velhas maneiras, tratamos as mulheres levianamente como bens ou brinquedos. E Lamay, não consegue suportar, com tantos amores fáceis que poderia ter obtido, ter sido jogada de lado.

O amor é uma coisa terrível se sua veia não se derrama, pura e livre, de coração a coração!

Em quanto às concubinas, não se podia decidir nada enquanto a mulher de meu irmão não fosse legalmente reconhecida. Efetivamente, correspondia à esposa legítima de meu irmão assumir o posição de senhora da casa. Quanto aos Li, contribuíram a que a situação fosse ainda mais delicada, ao fazer questão de que o casamento com a filha deles se celebrasse quanto antes.

Naturalmente, meu irmão guardou-se bem de comunicar este detalhe à estrangeira; mas eu o sabia e me dava conta de sua ansiedade por causa de todas as complicações que surgiam. Meu pai tinha recebido os delegados da família para marcar o casamento, e meu irmão, que não os viu, teve que ouvir como seu pai repetia com fingida indiferença e grandes risadas, as propostas deles. Estas conversas concernentes ao casamento eram para ele, que desde a morte de mamãe estava mais apaixonado que nunca de sua esposa, como punhaladas. Às vezes, é verdade, golpeava-se o peito gritando e reprovando-se o ter acelerado a morte de nossa mãe. Então, a estrangeira, que nunca gostou da defunta, mostrava grande ternura, e aquela atenciosa criança escutava pacientemente as palavras de remorso de seu marido, e tentava desviar seus tristes pensamentos lhe falando do filho que esperavam. Qualquer outra, menos compreensiva e inteligente, tivesse-se enfadado. Mas ela... Mal começava ele a exaltar as virtudes de sua mãe, já estava ela disposta a unir seus elogios, sem nunca lhe reprovar o comportamento da defunta com ela. Inclusive, num dia, chegou a elogiar com maior convicção ainda que seu marido a força de alma da finada que, no entanto, tinha sido sua inimiga.

Assim, meu irmão desafogava a dor, e no vazio que sua mãe deixasse, se infiltrava, perfeito, o amor de sua mulher.

Passou uma temporada em que mal lhes vi. Parecia como se vivessem num longínquo país. Quando lhes ia visitar, me acolhiam com efusão, mas em seguida se esqueciam de mim. Não tinham olhos mais que para se olhar, e inconscientemente se procuravam, inquietos, quando no mesmo quarto algo lhes separava.

Acho que foi durante aqueles dias quando meu irmão começou a ver com clareza a linha de conduta que devia seguir.

Acalmou-se, e em sua alma confirmou-se o propósito de sacrifica-lo tudo por sua mulher. Verdadeiramente, ao ver-lhes sentia-me comovida. Se lhes tivesse visto assim antes de me casar, ter-me-ia escandalizado, pelo pouco digno que me tivesse parecido seu comportamento. Naqueles tempos eu achava que as efusões amorosas tão só se demonstravam às concubinas e escravas.

E é tudo o contrário...! Vês como os ensinos de meu marido me mudaram? Eu não sabia nada de nada antes de lhe conhecer.

Assim, aquele casamento, meu irmão e a estrangeira, viviam esperando o porvir.

No entanto, meu irmão não era completamente feliz. Ela si; a estrangeira sentia-se feliz. Já tinha deixado de importar-lhe não pertencer a nossa família. Esperava seu filho, e só este pensamento bastava para fazer-lhe esquecer todas as penas. Para ela, não tinha neste mundo mais que seu marido e o pequenino. Ao sentir como este se movia em seu ventre, me dizia:

— Ele me ensinará. Através dele aprenderei a pertencer ao país e à raça de meu marido. Graças a ele saberei como era seu pai desde que nasceu até se converter num homem. Ocorra o que ocorra, já não estarei sozinha. Darei a luz um filho que será seu e de seu povo.

E a seu marido:

— Pouco me importa que tua família queira me receber ou não. Teu sangue e tua vida estão em mim, a mãe de teu filho.

Meu irmão não se sentia contente. Reconhecia uma mudança nos sentimentos de sua mulher, mas não conseguia dominar sua cólera contra papai. Dizia-me:

— Eu e minha mulher poderíamos viver sozinhos, mas não é justo que privar nosso filho de sua herança. Não temos esse direito.

Que podia eu lhe contestar?

Chegava no dia do nascimento; meu irmão, que contava as horas que faltavam para ser pai, foi ver ao chefe de nossa família para obter dele que reconhecesse formalmente sua mulher. E tenho aqui, irmã, o resultado da entrevista.

Como mais tarde me contou, entrou nos aposentos de meu pai tentando se alentar com a simpatia que o chefe da família demonstrou sentir pela estrangeira. Meu pai não foi, precisamente, correto e amável, mas meu irmão se dizia que suas exuberantes manifestações com a estrangeira eram devidas a um sentimento de benevolência. Inclinou-se ante meu pai e disse:

— Honorável pai; agora que a Taitai, minha muito honorável mãe, se foi para morar junto ás fontes amarelas, eu, vosso filho indigno, vos rogo tenhais a bondade de me escutar.

O chefe de nossa casa estava sentado à mesa. Assentiu com a cabeça, sorrindo, e, com expressão benigna, serviu-se de um copo de vinho tirado de um jarro de prata. Levando aos lábios o minúsculo copo de jade, degustou delicadamente o vinho, sem contestar.

Animado, meu irmão prosseguiu:

— A pobre flor estrangeira aspira a que se arranje sua situação em nossa família. Segundo as leis de Ocidente, estamos legalmente casados e ela é minha esposa. Agora deseja que lhe seja dada, sua vez, a sanção das leis de nosso país. Isto é duplamente importante, já que espera dar a luz a seu primeiro filho. A idosa Taitai abandonou-nos, e de sua perda não nos consolaremos jamais. Mas agora ocorre que a esposa de vosso filho não está nem tão sequer colocada na ordem justa das gerações. Por isso, e nada mais que por isso, a flor estrangeira deseja figurar entre nossas mulheres e pertencer a nossa estirpe, o mesmo que uma ameixeira se enxerta num fino tronco antes de dar seus frutos, e ser a próxima Taitai. Segundo o expresso desejo da mãe, o menino que tem de nascer deverá pertencer para sempre a nossa antiga raça celestial. Tão só falta o reconhecimento por parte de nosso pai, cujos graciosos favores passados consolaram muito à flor estrangeira.

Meu pai seguiu calado. Sorriu, Voltou-se a servir um pouco de bebida e absorveu de novo o conteúdo da copa de jade; por último disse:

— A flor estrangeira é formosa. Seus olhos são como duas jóias azuis, seus membros brancos como a polpa das amêndoas. Vocês dois divertiram-se bastante, não? E como você espera receber dela um pequeno brinquedo, eu o felicito.

Novamente serviu-se de beber, e continuou, com seu costumeiro tom afável:

— Sinta-te, filho meu. Estás a cansar-te inutilmente.

Meu pai pegou um segundo copo, animando a meu irmão, com um movimento de cabeça, a que se sentasse. Encheu, pois, esse segundo copo até o borda e prosseguiu, com uma voz que fluía fácil:

— Como! Já não gostas do vinho?

Meu irmão tinha ficado em pé.

Novo sorriso, nova libação e novo esfregar da boca com o dorso da mão. Vendo que meu irmão seguiria em pé até que obtivesse dele uma resposta, o chefe da família decidiu-se, por fim, à dar-lhe uma:

— Quanto a tua petição, filho meu, vou pensar no assunto. Tenho tantas coisas que fazer...! Ademais, a morte de tua mãe esgotou-me de tal maneira que não posso concentrar minhas idéias. Esta noite sairei para Xangai. Preciso distrair-me; se não, a dor acabará me fazendo adoecer. Enquanto, podes dar meus cumprimentos à futura mãe. Que teu filho seja como o lótus! Adeus, filho meu, digno filho, filho bom!

Levantou-se, sorriu e retirou-se à quarto contíguo brincando a cortina depois dele.

Ao contar-me aquela cena, meu irmão tremia de ódio intenso, como se meu pai fosse um estranho para ele. E, no entanto, aprendemos, já que os escritos de Confúcio ensinaram-no, que um homem não deve nunca pôr o carinho de sua mulher á frente do amor que deve a seus pais. O que comete esse pecado ofende as tabulas dos antepassados e ofende aos deuses.

Mas, pode-se opor barreiras ao impulso do amor? Ele amor se impõe, tanto se o coração quer, como se não... Então, é possível que nossos antecessores, apesar de toda sua sabedoria, jamais se tenham dado conta disto?

Já não tenho valor para repreender a meu irmão.

É estranho: a que mais sofre agora é a estrangeira. A hostilidade de minha mãe nunca a afetou assim; mas o descaso de meu pai a enoja. Ao cedo, irritou-se; depois, falou dele friamente:

— Toda sua simpatia então era fingida! E pensar que cria lhe ter agradado e ter nele a um amigo... Bruto!

Ao ouvi-la expressar-se assim a propósito de papai me senti escandalizada e olhei a meu irmão, de quem esperava umas palavras de censura. Mas este inclinou a cabeça e guardou silêncio. Ela lhe olhou com olhos onde, subitamente, tinha uma expressão de terror, e, sem poder seguir conservando o sangue frio que minutos antes demonstrasse, gritou, suspirando:

— Oh...! Vamos-nos, vamos-nos longe de aqui... Deste lugar horrível! Quero voltar para a América! Nunca terei meu filho aqui! Nunca!

Eu estava estupefata. Meu irmão pegou-a entre seus braços, murmurando-lhe algo no ouvido, enquanto eu me retirava, condoída por eles e cheia de pena e dúvida pelo porvir.

 

Irmã, nosso pai decidiu! É triste conhecer sua decisão, mas vale mais isso que viver animado por falsas esperanças.

Ontem recebeu meu irmão a visita de um delegado de papai. Tratava-se de um primo terceiro, servidor público às ordens de meu pai. Depois de tomar o chá na sala de hóspedes, o mensageiro referiu assim a embaixada de papai:

— Escuta, filho de Yang. Teu pai contesta claramente a tua petição, de acordo com os membros da família, todos eles dispostos, até o mais insignificante, a lhe apoiar. E diz:

“A estrangeira não pode ser admitida como uma das nossas. Em suas veias corre um sangue inalteravelmente estrangeiro. Seu coração cultiva afetos estrangeiros; o filho de suas entranhas não pode ser um filho dos Yang. Onde o sangue está misturado e é impuro, não pode existir estabilidade para o coração. Ademais, teu filho não pode ser recebido nas salas dos antepassados. Como poderia um estrangeiro se ajoelhar ante a longa e sagrada descendência dos Grandes Antepassados? Tão só os que possam vangloriar-se de possuir uma herança incorrupta estão em condições do fazer. Teu pai é generoso e envia-te mil peças de prata. Quando nascer o filho da estrangeira, paga isso à mãe e depois a envia com a criança a seu país. Já te divertistes bastante: chegou o momento de pensar em teus deveres. Presta atenção ao que se te ordena! Casa-te com a que te foi predestinada! A filha dos Li impacienta-se por causa de tão grande demora. A família dela mostrou-se paciente e preferiu esperar, postergando o casamento até que passasse tua loucura, de que a cidade inteira fala com grande vergonha para a família. Mas já não pode seguir esperando e solicita que sejam seus direitos respeitados: a juventude passa, e os filhos gerados na juventude são os melhores!”

Assim falou o mensageiro; e ao terminar sua embaixada, tendeu a meu irmão um pesado saco de prata.

Meu irmão pegou-o, olhou-o por alguns instantes, para em seguida atirá-lo no chão com estrondo. Adiantou-se, com uns olhos que pareciam punhais de duplo fio, como se quisesse perfurar o coração do mensageiro e, com a violência de um trovão no céu sereno, gritou:

— Volta e diga a esse homem, a quem um dia chamei de pai, que fique com seu dinheiro! Desde hoje não tenho pai, nem família, nem o nome de Yang, que repudio! Apagai meu nome dos livros! Minha mulher e eu seguiremos nosso caminho, livres como a gente de outros países! Começaremos uma nova raça... Livres desta decrépita criação que oprime as almas!

Mais que uma conversa foi um grito. O mensageiro recolheu o dinheiro e murmurou:

— Há outros filhos, há outros!

E regressou onde meu pai lhe esperava.

Ah, irmã! Compreendes agora por que te disse que a morte de minha mãe foi uma sorte? Ver ao filho de uma concubina ocupar o lugar do primogênito e herdeiro!

Assim, pois, meu irmão não possui mais nenhum bem de família. A parte que lhe pertence passará a mãos da ultrajada família Li, que já está a procurar um novo marido para sua filha. Assim me disse Wang Da Mah.

Este é o sacrifício que meu irmão se impôs pela estrangeira. Nela nada pode turbar sua impaciente espera. Meu irmão disse-lhe, tão só:

— Vamos embora daqui, meu coração. Entre estas paredes não poderemos jamais construir nosso lar. Vamos voltar para a América.

Ela se alegrou muito. Assim é que meu irmão abandonou a casa e o país de seus antepassados sem ser saudado por ninguém, somente Wang Da Mah. Quando esta soube que o patrãozinho ia embora para nunca mais voltar, prostrou-se ante ele, tocando o pó com a frente, e exclamou, entre lágrimas:

— É possível que o filho de meu amo abandone estes pátios? Para mim tudo acabou... É hora de morrer!

E assim fomos nós. Por motivo da educação de meu filho, a quem meu marido deseja, acima de tudo, ver com o coração livre de superstições, fomos, eu, ele mesmo e nosso filho, morar com meu irmão e a estrangeira, na terra dela. Meu marido diz que a América é a terra das oportunidades e da liberdade, e que é o melhor lugar para se criar sem abusões uma criança.

Lá chegando, depois de uma viagem de uma semana de navio – Oh, irmã, precisava ver como meu filho se divertiu! E eu mesma, como fiquei de queixo caído ao ver como os mares são grandes! – Chegamos até uma cidade quente e ensolarada cheia de estrangeiros, que meu marido disse-me chamar-se São Francisco, onde não entendi nada do que diziam. Apavorei-me como nunca antes me apavorara, nem no navio, onde havia estrangeiros, mas em muito menos quantidade que naquele lugar onde aportáramos. Ficamos num alojamento, onde tivemos de preencher formulários e mais formulários, responder perguntas e mais perguntas. Felizmente, havia meu marido, meu irmão e sua mulher para me ajudarem, já que pouco falo dessa estranha língua estrangeira, o inglês. Preenchidas essas formalidades, pegamos um trem para o norte até uma cidade muito fria chamada Portland, onde mora a família da mulher do meu irmão.

Fomos recebidos por eles com alegria e espanto. Moram numa fazenda onde plantam morangos, um pouco afastada da cidade onde o pai de minha cunhada dá aulas. Fiquei conhecendo seus pais, um casal muito bondoso, mas um tanto desajeitado e sem modos e suas três filhas mais jovens, irmãs de minha cunhada, um trio jovem e exuberante.

Ainda me espanta que os estrangeiros não façam questão de ter ao menos um menino na família. Está certo que filhas também são bem vindas, mas ter um menino é essencial. Um filho homem é quem cuidará dos pais na velhice, ao passo que as filhas se casam e passam a pertencer ás famílias de seus maridos. Mas nada nos estrangeiros está mesmo de acordo com a natureza, cada vez me convenço mais disso.

Nós, junto com meu irmão e a estrangeira fomos morar num pequeno prédio com dois apartamentos na avenida das Pontes Firmes. Meu marido, meu filho, e eu, moramos no apartamento que dá frente para a rua e meu irmão e minha cunhada moram no apartamento dos fundos. Há uma loja de roupas no primeiro andar e a dona da loja, uma senhora de aspecto estranho, mas muito simpática, adora meu filho e sempre sorri para ele quando descemos até a rua.

Você, irmã, há de pensar que eu jamais me acostumaria a morar em uma minúscula casa estrangeira, numa terra estrangeira. Mas, por amor a meu marido e principalmente, por amor a meu irmão, eu me acostumarei.

Falando em meu irmão, ele está envelhecido e parece mais maduro. Pela primeira vez em sua vida tem que prover a seu próprio sustento e o de sua família. Cada manhã vai à escola governamental para dar lições, já que é um professor, ele, que nunca se tinha levantado até que o sol brilhasse bem alto no céu. Fala e sorri um tanto menos que antes; seu olhar é mais decidido. Num dia atrevi-me a dizer-lhe:

— Tem saudades de algo, irmão?

Dirigiu-me por embaixo de suas pestanas, um breve olhar.

—Não tenho saudades de nada! — respondeu. Certamente, minha mãe estava equivocada! Não é filho de meu pai, senão dela por sua tenacidade.

Sabes o ocorrido, irmã? Quando mo contaram, chorei e ri ao mesmo tempo. Ontem, meu irmão acordou porque tocavam fortemente a campainha de seu apartamento. Abriu ele mesmo a porta — não tem mais criadas para fazê-lo e sua mulher não está passando muito bem —e daí quem viu? Wang Da Mah em pessoa com uma grande mala e um saco de tecido contendo suas roupas.

— Vim — disse simplesmente — para morar com os filhos de minha ama, e servir a seus netos.

— Como vieste?  — perguntou meu irmão, quase mudo de espanto.

— A Sra. Liu, seu marido e filhos trouxeram-me. Também vieram morar na terra dos bárbaros. E quando estavam para vir, tiveram a bondade de ir até a casa do meu venerando senhor, para me perguntar se gostaria de vir com eles, para servir aos filhos da minha ama, mesmo que fosse em terra estrangeira. E eu disse sim. Viver lá, sem meus patrõezinhos, os filhos da ama, seria a morte para mim.

— Os Liu estão aqui?  — Perguntou a estrangeira sorrindo. Ela se levantara ao ouvir a voz da velha ama.

— Sim. Mas não nesta cidade, minha senhora. Ficaram numa cidade grande do sul. De lá, um amigo deles, que vinha para aqui, trouxe-me e pagou um homem num carro amarelo para me trazer aqui.

— Mas — disse-lhe meu irmão — Será que não sabes já não se me consideram como filho de minha mãe?

Wang Da Mah levantou, decidida, o saco com uma mão e a mala com a outra, depois exclamou:

— E é você que me diz isso? Não estava eu ali para lhe acolher entre meus braços, estando você nu como um peixinho e não sendo maior que uns palmos? Não fui eu sua ama de leite? Tal como nasceu você, você seguirá sendo, e seu filho será o neto de minha ama. E não compliquemos mais nossa vida! Cá estou e aqui morrerei!

Meu irmão ficou aturdido, sem saber que dizer nem que fazer. É verdade que Wang Da Mah nos viu nascer, e desde depois, não se pode considerá-la apenas como uma simples criada. Vendo que meu irmão duvidava, transpôs com seu vulto a saleta de entrada, bufando e resmungando — porque está velha e gorda e se instalou na casa dele, passando a trabalhar na casa dele e na minha como nossa criada.

Tudo isso é por amor a minha mãe. É a mesma de sempre, dizer-se-ia que viveu toda a vida em casa de meu irmão. No entanto, sê muito bem que não consegue se acostumar às escadas. Meu irmão diz que finge não ver nada que lhe produza estranheza, mas não pode com as escadas: nega-se a subi-las sem ajuda, mesmo podendo fazê-lo.

Hoje contou-me toda a verdade sobre sua vinda, confessando-me que não podia agüentar o que passava em casa de meu pai. Por ela me inteirei de que a concubina gorda passou a ser a Taitai. A ascensão a esta posição foi consagrada na grande sala, ante as tabulas sagradas. Agora, a concubina se pavoneia toda pela casa, vestida toda de vermelho e violeta, com as mãos carregadas de anéis. Até mudou-se para os aposentos de minha mãe.

Ouvindo Wang Da Mah falar assim, compreendi que aquela não era mais minha casa mesmo e que nunca mais mesmo poderei voltar ali.

Não viste nunca, irmã, um formoso vale cinza sob um céu cinza? As nuvens se decorrem subitamente, o sol brilha, a vida e as cores voltam e cantam por todos os lados.

Assim é agora a estrangeira. Seus olhos brilham de alegria, sua voz é um canto que não cessa nunca. Fala e sorri sempre: é verdadeiramente formosa! Até agora, sua beleza me deixou perplexa. Era tão diferente de tudo o que tinha conhecido! Mas revelou-se. De seus olhos desvaneceu-se a negra melancolia. Estes resplandecem, azuis como o mar sob um céu sereno.

Meu irmão também está mais calmo desde que tomou sua decisão. Quando penso no que teve ao abandonar - seu mundo e tudo o que conhecia - por amor a sua mulher sinto-me como humilhada. O fruto de semelhante amor será formoso e puro como o jade.

E a criança? Não será nem completamente oriental nem de todo ocidental, e por isso terá que se criar seu próprio mundo. Disse-me que se possui a força espiritual de seus pais conseguirá vencer todas as adversidades.

Mas trata-se de minha opinião pessoal, e não sou mais que uma mulher. Terei que falar a meu marido, que sabe mais que eu, para que me diga onde está o enganoso e o verdadeiro.

Mas de uma coisa estou segura, e é meu desejo de ver a seu filho, que já quero como a um irmão do meu.

 

A estrangeira canta. O canto brota-lhe inesgotável do coração aos lábios; é de uma assombrosa alegria. Mas, eu, aquela que já sabe o que é ser mãe, participo de sua alegria, unida a ela numa comum experiência humana, já que acabo de descobrir que também espero outra criança, para daqui a seis meses.

Juntas falamos das roupinhas chinesas. Quando está indecisa na escolha das cores, a estrangeira enrruga a fronte, enquanto seus lábios sorriem, e raciocina assim:

— Se seus olhos forem negros, este tecido poderá ficar bem. Mas forem azuis, será mais acertado eleger esta cor rosa. Irmã, como serão seus olhos? Negros ou azuis?

E volta para mim seu sorridente olhar, e eu, rindo minha vez, lhe pergunto:

— De que cor são em teu coração?

Ela se sufoca, parece se inundar de luz e contesta:

— Acho que serão negros, da cor da noite. Elegeremos a cor vermelha.

E nós duas estamos certas de ter acertado na escolha.

Mostrei-lhe os primeiros sapatos de meu filho e, de comum acordo, comparamo-los às mostras de seda vermelhas, e depois às de seda rosa. Eu mesma bordei com minhas próprias mãos os sapatinhos com uma cabeça de tigre. Estes trabalhos cimentam nossa união, e esquecimento nos dias em que era para mim ela era apenas uma estrangeira. Agora é minha irmã, e aprendi a chamá-la por seu nome: Mary.

Também, sua mãe, já que a criança será seu primeiro neto e ela, ao contrário de minha mãe, a espera com ansiedade, mandou preparar, nas melhores costureiras daqui, um enxoval feito com tecidos finíssimos, tão leves e suaves como nuvens, coisa que eu nunca antes vira. Sorridente, Mary disse-me:

— Durante seis dias, ele será o filho de seu pai; mas ao sétimo vesti-lo-ei com tecidos americanos, e então ele será americano como eu.

De repente, pôs-se séria.

— Ao principio quis que fosse completamente americano, mas agora estou convencida de que ele também deve ser chinês. Assim, irmã, pertencerá ao meu mundo quanto ao seu.

Sorriu de novo. Agora compreendo como pôde vencer e se assegurar tão calidamente o coração do meu irmão.

Irmã, a criança nasceu! Com uma expressão de orgulho, Wang Da Mah, junto com um médico estrangeiro habilitado, ajudou-a vir ao mundo. Eu e a mãe de Mary também estávamos com ela.

É uma menina, um leoazinha em força e vigor. Não é tão formosa como o meu filho: seria difícil o ser, porque a filha de meu irmão e da estrangeira é diferente de todos as demais crianças.

Tem a vivacidade cheia de ardor do Ocidente e seus olhos são azuis como os da mãe. Mas tem os cabelos negros como os nossos e a pele luminosa e dourada como o jade. E desde que nasceu já se pode ver que tem o formato dos olhos e dos lábios como de minha mãe.

Com que mistura de dor e alegria faço esta observação!

Minha irmã não me falou nada. Devolvi-lhe sua filha, dizendo-lhe, com um sorriso:

— Vês tua obra, minha irmã? Com este criaturinha uniste dois mundos!

Ela jazia em seu leito, muito pálida. Sorrindo, disse:

— Põe-na a meu lado.

Obedeci, e a pequena, junto ao branco seio de sua mãe, parecia um tanto mais morena que esta, o que lhe acentuava os olhos claros. A mãe olhou-lhe amorosamente e com seus brancos dedos acariciou-lhe os cabelinhos negros e finos.

— A roupinha vermelha assentar-se-á muito bem — disse, sorrindo. E acrescentei —: É muito morena para a roupinha branca.

— Ela é como seu pai, e não desejo outra coisa — respondeu ela. Nessa hora, meu irmão entrou sorrindo, com os demais familiares sorridentes de Mary e meu marido e eu saí.

Ontem noite, após nascer a menina, encontrava-me com meu marido no quarto de nosso filho. A janela estava aberta à noite; a lua exibia um formoso clarão e o jardim era como um sonho em preto e branco. No fundo claro do céu, as árvores lançadas agudas sombras de ébano, com as copas prateadas pela lua.

Nós dois olhamos para o exterior, à noite. Nosso filho dormia, calmo, em seu caminha. Cresceu tanto, que esta é muito pequena para ele, ao se agitar tropeça com os pés. É um homenzinho!

Ao ouvir sua profunda respiração, meu marido e eu nos lançamos um olhar de orgulho e sentimos nosso futuro segundo filho mexer-se em minhas entranhas. Penso na recém nascida, em sua parecença com minha mãe, que concluiu em seus dias quando ela começava os seus. Um pouco entristecida, disse:

— Entre tantas dores vem ao mundo a filha de nosso irmão e da minha irmã em solo estrangeiro. E meu irmão perdeu sua casa, seus antepassados e a sagrada tradição do passado.

Meu marido sorriu, jogou-me um braço acima dos ombros, e disse gravemente:

— Minha flor de jade, pensa unicamente na alegria desta união! Graças à pequena, os corações de seus pais converteram-se num só coração. Pensa que ela suprimiu uma diferença de raça, e uma diferença de educação secular.

Assim me consola, quando recordo as recentes e tamanhas dores que passamos.

Não quer meu marido de jeito nenhum que me apegue ao passado. Deseja apenas que eu pense no futuro. Diz:

— O passado, passado está, minha querida! Nosso filho, esse que vai nascer, e os outros que ainda virão, não podem se sentir encadeados ao peso de todas essas coisas mortas e inúteis!

Pensando nos três — em meu filho, em sua prima recém chegada ao mundo, nessa futura outra criança que ainda nascerá de mim e meu marido e nos outros que ainda virão dessas uniões — dou-me conta de que meu marido tem razão, que sempre tem razão!

 

                                                                                            Pearl S. Buck

 

                      

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