Biblio "SEBO"
Onde é apresentada a Narradora
A minha amiga Vera Alexandrina, obedecendo a uma tendência muito comum na adolescência, a de praticar pesquisas arqueológicas, desde cedo começou a calcorrear os montes e os vales da sua terra, na ânsia de descobrir objectos antigos escondidos debaixo do chão ou restos de construções deixados pelos homens de outros tempos.
Ao contrário do que acontece com a maioria dos adolescentes, em que ao lado de muitas outras, essa tendência representa apenas a busca da definição de uma provável vocação, ou simplesmente o despontar de alguma vivacidade de espírito, ou a revelação de um gosto de coleccionador, ou de um espírito de aventura, ou do gosto pela descoberta, em Alexandrina essa tendência veio a revelar-se, de facto, vocação decisiva, definitiva. A minha amiga viria a tornar-se numa praticante da ciência arqueológica.
Se a maior parte da vida a passa ela em excursões por grutas e cavernas, em congressos e seminários da especialidade, colaborando ainda em revistas e exercendo actividade docente, não deixa também de se interessar pelas Artes, pelas Letras, pela vida social e política do País. Para além dos cientistas, seus colegas, maatém convívio com escritores, artistas plásticos e vários intelectuais. Os seus escritos científicos são apreciados pelo rigor dos métodos de trabalho e também pelo estilo comunicativo, claro, com que elabora a narrativa das suas pesquisas, sempre entremeada de peripécias, de certo tom de aventura e até de alguns momentos de poesia. Se, como arqueóloga, as suas buscas incidem na reconstituição do passado, não deixa de se debruçar atentamente sobre a observação do mundo vivo actual e das pessoas próximas. Posso afirmar, Vera
Alexandrina tem tanto de arqueóloga como de psicóloga e de escritora.
E aqui está o termo para onde dirijo esta minha apresentação: é que, em privado, Alexandrina tem feito várias tentativas literárias, logo depois destruídas porque o seu espírito crítico a leva a considerá-las meros tentames, não reveladores de autênticos méritos artísticos. Apesar disso nos últimos tempos aconteceu-Lhe levar até ao fim a escrita de um romance.
Apareceu-me há dias com uns poucos de grossos cadernos manuscritos, depositou-os sobre os meus joelhos e exclamou num tom entre o da alegria e o de um quase terror: Vê isto! Acabei um romance
Como eu olhasse para ela sem nenhum espanto, interpelou-me, ansiosa: Não te admiras? Não se trata de nenhum novo trabalho científico, ouviste? É um romance, um romance, que hoje terminei
Respondi-lhe: Não, não me admiro. Sempre pensei, isso da tua parte seria bem possível.
Ela, num abatimento: De facto escrevi esses cinco cadernos. Mas acho tudo um disparate e lamento o tempo perdido. Riu com amargura irónica e acrescentou: Agora sou romancista!
Interrompi-a: Por que não? "
- Simplesmente porque não sei fazer romances.
- Ora, Alexandrina, um romance, em última análise, como já tem sido dito, é contar uma história.
- Sabes melhor que eu, hoje já não se usa esse tipo de romance. O que é preciso é construir jogos de tempo, usar de habilidades com discursos indirectos livres, alternâncias de narradores, confusão de personagens, sei lá... Ao passo que eu fui escrevendo ao sabor da minha memória, das minhas interpretações, e também das minhas fantasias. E não calculas como tantas vezes, utilizando a educação científica, tive de refrear os meus ímpetos narrativos e, paulatinamente, entregar-me a uma analítica minuciosa, aprofundante, progressiva. Mas agora pergunto a mim própria se poderei apresentar em público este escrito como um romance, uma obra literária?
- Mas quem te irá dizer isso, Alexandrina?
- Tu! Por isso o trouxe, para que tu, minha amiga e escritora, faças uma leitura prévia. Se me disseres que encontras nele ao menos um interesse humano, atrever-me-ei a comunicá-lo. Porque o móbil da minha escrita foi esse, e só esse, a comunicação dos dramas humanos. Achei as minhas personagens tão interessantes, ou antes, a minha personagem, pois por agora acabei por dar apenas uma, ainda que outras aflorem aqui e além, e talvez venha a atribuir-lhes honras de personagens principais noutros romances. Vê só onde já vão os meus projectos... Tinha de escrever, compreendes, não é verdade?
Li o manuscrito de Vera Alexandrina, a minha amiga arqueóloga- psicóloga, e disse-lhe: Publica". Acrescentei:
- Olha, eu também sei pouco desses malabarismos ultramodernos - que já começam a cansar! - onde se estabelecem desconstruções, polifonias de sentido, combinações, arranjos e permutações de tempos, de espaços e de pessoas, e se deixam pistas para desenlaces à escolha dos leitores. Ou, como dizia um dos nossos críticos, romances onde os escritores, em vez de introduzirem o real nas palavras, se entretêm a colocar as palavras em jogatina com o mesmo real. Não sei nem quero saber. O que me interessa é a humanidade, os psiquismos, as problemáticas sociais, os significados metafísicos da existência. Tudo mais, em literatura, para mim, é nada. O teu romance, Alexandrina, nesse sentido dos formalismos técnicos, talvez esteja mal feito ou fora de moda. Talvez tenhas abusado da análise psicológica, coisa muito pouco do agrado da maneira de ser dos nossos compatriotas, todos dados a realismos, surrealismos, formalismos e historicismos. É verdade que, agora, muitos dos que começaram por naturalismos e neo-realismos, estão a acabar - acabar, é o termo - nos memorialismos românticos. Mas sempre sem entrarem pela psicologia, isso nunca, a psicologia é um tricô de senhoras, diz o nosso, aliás meu admirado, Vergílio Ferreira que, se não é psicólogo é metapsicólogo, e notável, ainda bem.
O teu romance, Vera Alexandrina, tem lá dentro uma personagem autenticamente feminina. A tua Ana Luísa (ou Ana Gallis) é uma mulher inquietante.
Aconselhei ainda Alexandrina a publicar o seu romance apresentando ao público todas as hesitações por ela sofridas quando procurava o ponto por onde começar a narrativa, iniciar a excursão pelas vidas das personagens. Ao que acedeu.
Será assim que o leitor poderá ver, por exemplo, como lhe custou encontrar um título para o livro, e como todos os que se lhe foram deparando correspondiam afinal a uma progressiva definição do seu tema profundo.
E como ela sentiu com acuidade terrível aquela velha dificuldade que todos os ficcionistas experimentam: a da justificação do seu testemunho.
Sim, como pode um escritor saber o que aconteceu ou está acontecendo em determinadas cenas privadas da vida das personagens? E como pode afirmar alguma coisa dos seus sentimentos íntimos e secretos?
Talvez fosse a mesma dificuldade que levava Leão Tolstoi, quando apresentava certos estados anímicos das personagens, a tomar a precaução de preceder essas descrições destas palavras: Era como se...
Problema de sempre, que tem sido resolvido ou torneado de maneiras diferentes, todas mais ou menos falazes. Corajosos e felizes os que se mantêm olimpicamente na sua omaisciência, omnipresença e omnipotência, contando, afoitos, o que sabem de ciência certa.
Agora que algumas dessas semideusas de vida turbulenta partiram, umas para a morte, outras para o esquecimento ou para a solidão, eu, que várias conheci, com elas convivi e às vezes Lhes ouvi as confidências, medito sobre o seu destino, procuro compreender gestos e actos, gostaria de decifrar certos enigmas ou de alcançar resposta para as grandes perguntas que elas faziam e nos deixaram.
Por exemplo. Qual era, afinal, a personalidade autêntica de Ana Gallis, a que mostrava, a que escondia, ou uma outra, produto do jogo entre as duas? Mas, de facto, se alguma escondia, porquê e para quê? Ana Gallis, a quem um dos amantes chamou de comediante e um outro retratou como louca... Como é que um homem sábio, dedicado a um disciplinado trabalho científico, desiste de uma vida quase monástica e se deixa envolver nas seduções dessa fêmea belíssima E como é ue outro, este um artista, deslumbrado, a toma para modelo dos seus quadros e chega a pintá-la como maga de poderes sobrenaturais? E como é que nela nasciam e morriam as paixões violentas por aqueles a quem chamava os heróis e os poetas da sua vida"? Qual o móbil e o fim último da sua agitação?
A perturbação, a comoção, o espanto e as grandes interrogações que em mim despertam a recordação dos destinos destas mulheres
- em especial o de Ana Gallis - acabou por fazeer renascer no meu espírito a já antiga propensão para exercitá-lo em algo mais que ultrapasse a disciplina rigorosa da actividade científica a que me entrego, a Arqueologia, ciência das coisas mortas, e me conduza ao contacto com as almas vivas que conheci, amei ou aborreci.
Certamente, na Ciência, para o caso na Arqueologia, também há lugar para a imaginação. Não é verdade que se visitamos umas ruínas nos parece começarmos a sentir movimentos e a ouvir murmúrios vindos das pedras? E que depois sonhamos, ressuscitamos asvidas que por ali em tempos se agitaram?
Neste momento sinto necessidade de fazer uma pausa nessa senda austera da Ciência, de dar largas à imaginação, de me lançar sem freios pelos caminhos da fantasia. Apetece- me agora divagar contar estórias de gente viva, a dessas mulheres singulares - Ana, Alda, Gaby - deparadas no meu caminho, transformá-las em heroínas de um romance.
Consta, muitos romancistas ao planearem uma obra começam por se lembrar logo de um ou até de vários títulos, mas o definitivo só o vêm a escolher depois do livro terminado. Curiosamente, não sendo eu romancista, comigo está a passar-se o mesmo.
Um dos primeiros títulos a aparecer- me foi o de Lusitnnns Heteras, em que as heteras seriam a Ana Gallis, a Alda Vilharigues, a Gaby von Schulten, ou outras, que se moveriam ao longo da minha narrativa.
Era este um título definidor, com alguma aproximação, do tema que me tentava. O adjectivo lusitanas pretendia atribuir a estas heteras uma nacionalidade, no intuito de esclarecer que elas viviam na capital de um ocidental, periférico, pequeno país euro-atlântico-mediterrâneo, no século XX, mas já não usavam túnicas pregueadas como as suas antepassadas gregas, nem sandálias com fitilhos entrançados nos tornozelos, não tocavam cítara, nem flauta, nem lira. No entanto, como elas também se davam às letras, às artes, à filosofia, à política, viviam como inspiradoras, companheiras, amigas ou amantes de também lusitanos intelectuais ou artistas célebres. Inteligentes, cultas, belas, galantes e ousadas, acenderam paixões, urdiram dramas, conspirações políticas. Como as gregas, foram libertárias e às vezes libertinas. Só que na Antiguidade Clássica elas existiam por direito consuetudinário, quase como uma instituição, não precisavam de reivindicar o seu papel na sociedade. Existiam porque os homens admitiam, desejavam a seu lado essa companhia estimulante, abrilhantadora de reuniões filosóficas, políticas ou artísticas, Ó belas, os poetas acolhei, cantará Ovídio, enquanto no recato do gineceu permaneciam, fiando e tecendo, cuidando das crianças e vigiando o trabalho das escravas, as discretas esposas legais, de cujo dote usufruíam e de quem haviam os filhos que todo bom cidadão devia fornecer à pátria.
Sucede que em relação às lusitanas heteras há ainda outra diferença: muitas delas, como Ana Gallis, a minha próxima futura protagonista, pertencem à classe das legítimas esposas. Estas, nascidas e criadas ainda no gineceu doméstico e tradicional, anseiam agora por outro papel na vida, por romper os liames a que a sua condição biológica e social as confinara ou reduzira. Por isso se tornaram revoltadas e reivindicativas. Não são propriamente nem sufragistas nem feministas, mas surgem como escritoras, jornalistas, artistas, e abeiram-se da política.
Declaradamente umas, por caminhos insidiosos outras, algumas acabam por abandonar a monotonia do gineceu, em busca de algo, elas o sonhavam, se encontraria numa via de liberdade solta.
Não estando a maior parte dos homens lusitanos preparados para esses encontros e companhias, aconteceram dramas e melodramas. E elas, as rebeldes, as que desejavam, no mínimo, a liberdade de desejar, muitas delas não passavam da já antiga classe das bas-bleus, mas em alguns casos, sem saberem como, tornaram-se autênticas "mulheres fatais".
No entanto, o título de Lusitanas Heteras, embora definisse ra zoavelmente o meu tema, no ponto de vista da estética sonora não me era agradável pela sua dureza e, mais, por seu cariz erudito.
Quando um dia destes entremeava os meus trabalhos de arqueóloga e a redacção destas páginas, com a leitura de um poeta, o irlandês Yeats, deparo este título, por ele dado a um dos seus lindíssimos poemas: "Rosa na cruz do tempo".
A ambiência lírica e metafísica em que me fez mergulhar a leitura desses versos, reconduziu o meu espírito, em emoção, para o outro mundo que nele também trazia em criação, o do meu romance, que começava a nascer. De súbito, a beleza do título desse poema impunha-se-me. Era belo e, afinal, como se ajustava às vidas dramáticas das lusitanas heteras, rosas também sacrificadas nas leis do tempo. e do lugar.
O lugar? O lugar onde viviam as lusitanas heteras? Pois, já o apontei: na cidade de Lisboa, como aquelas ninfas do Tejo, de que falava Camões, as Tágides "E vós, Tágides minhas, pois criado/Tendes em mim um novo engenho ardente..."
E ao grafar esta expressão ninfas do Tejo, nova evocação: de súbito à ideia me vêm as minhas primeiras tentativas de ficcionista (paralelas às minhas primeiras deambulações arqueológicas), quando me pus a escrever uma novela a que dei então o título de "AS NINFAS DO TEJO".
Ninfas em vez de Heteras. Muito mais leve, muito mais doce. Ninfas, divindades de categoria secundária relativamente às grandes deusas do Olimpo. Ninfas que viviam na terra, no leito ou nas margens dos rios, nos bosques, nos montes e "personificavam certas forças da Natureza. Também se chama ninfa a uma "mulher nova, esbelta e formosa. Para Homero, o poeta grego, as ninfas "como filhas das águas, crescendo sobre a terra e, no seio desta, vão caminhando por vias secretas, aparecendo depois sob a forma de mananciais... E eram todas formosas amigas dos jogos e das danças e uniam-se amorosamente com os simples mortais...
Surgiu-me então, nesses já longínquos anos de estudante liceal, o projecto de escrever uma novela e de intitulá-la: "AS NINFAS DO TEJO".
Numa aula fora lido um trecho sobre o Castelo de Almourol. Achei deliciosa a ideia de se construir um castelejo medieval sobre uma ilhota minúscula, aflorada no leito de um rio, aquele mesmo rio que banhava Lisboa, a cidade onde então eu já vivia.
Não conhecia a ilha, mas ela entrou para os meus devaneios de adolescente. Comecei por povoá-la com seres humanos femininos. Já não me recordo do nome de cada uma dessas jovens ninfas por mim expedidas para a ilha e para o castelinho taganos. Lembro-me bem é de ter atribuído a cada uma seu aspecto físico diferente, como se intentasse criar uma galeria de tipos femininos.
Assim nasceu uma primeira tágide, prototipicamente loura, de pele alva, olhos azuis, cabelo dourado, alta e esguia; uma segunda, prototipicamente morena: pele trigueira, olhos escuros, cabelos negros, estatura mediana; uma terceira, de aparência intermédia entre essas duas: pele clara, cabelos castanhos também claros, olhos verdes (mestiços dos azuis e dos castanhos), estatura mediana; e finalmente uma quarta ninfa, tão alta como a loura mas espectacularmente ruiva.
Não chegou a minha inventiva para atribuir a cada uma dessas extravagantes habitantes da ilhota, uma personalidade, um temperamento, um carácter próprio.
Apesar de todas as minhas hesitações, espero conseguir agora neste meu primeiro romance dar o retrato psicológico, pelo menos da minha protagonista principal, a Ana Gallis, e não me quedar apenas pela apresentação do seu retrato físico, aliás digno de uma descrição, pois merecedor de muita admiração era ele entre todos quantos a conheciam.
O tipo físico desta minha nova ninfa do Tejo, não corresponde a nenhum dos modelos da minha novela de adolescente.
Creio hoje que a um tipo físico corresponde sempre um tipo caracterial, só que em rigor não me é possível estabelecer correspondências termo a termo e apenas a intuição me dá algumas revelações.
Ana Luísa (ou Ana Gallis, seu futuro nome artístico) era dona de uma cútis não exactamente morena, mas de um mate notável, sobretudo pelo aspecto sedoso, húmido, como se permanentemente tivesse acabado de chegar de um vivificante passeio ao ar e ao sol, ou, então, viesse de surgir do mar, ressumando uma primordial seiva vital. Brilho, humidade onde se adivinhava uma alquimia composta de todos os ingredientes do universo, o calórico e a luz dos minerais, as essências, as resinas e os perfumes dos vegetais, as lubrificações de todos os sebos animais.
Os olhos, nem castanhos, nem verdes, nem azuis, mas de uma cor singular, olhos sui generis, olhos mutantes: o aparente castanho da avelã clara, conforme a luz do ambiente ou o calor das emoções, passava a um cor de fogo ou a um verde esquisito em seus raios de negro e cobre. Olhos de pálpebras sempre palpitantes numa contínua sugestão de aves e de voos.
A boca, notável também, não tanto pela polpa carnuda dos lábios, mas sobretudo pela aparência de um giocôndico permanente início de sorriso, talvez por causa das comissuras levemente arqueadas para cima.
A cabeleira, frondosa cabeleira a sua, de uma cor tão espantosa como a dos olhos. Nem loura, nem castanha, nem negra, nem ruiva, sim de um castanho-claro fulvo, qual juba de leoa. (E leoa chegaram a chamar-lhe. )
De estatura, nem alta nem baixa, nem magra nem cheia; mas a cintura estreita, o peito de tetinhas altas, algo pontudas; as pernas torneadas, com uns joelhos belíssimos, redondos mas sem gorduras, a rótula a acentuar-se sob a pele; os tornozelos finos, de cabrita, os pés esguios.
Em resumo: um corpo quase excessivamente feminino, todo curvas e maciezas flexíveis, encimado por um rosto cuja beleza se define por uma excitante combinação de harmonias e desequilíbrios, talvez com uma ambígua nota de perversidade. Um daqueles seres femininos a quem o misógino Tolstoi teria também dado o epíteto de o mais belo animal do mundo, como fez com a sua condessa Bezukov. Ou como Hemingway, repetindo-o, classificou a Ava Gardner. Uma mulher fisicamente fascinante, esta minha última ninfa do Tejo. Apetecível para os humanos masculinos, por uma soberana sugestão de sensualidade, de promessa de voluptuosidades.
Um tipo feminino assim não costuma andar aliado a uma aparência de distinção. Daí, talvez, aqueles escritores o terem qualificado de animal. Mas a minha protagonista não será apenas um belo animal, Vou atribuir-lhe um carácter, um temperamento e uma sensibilidade, femininos e bem complicados. Os que fossem poetas poderiam adoçar essa primeira impressão com a expressão de um nosso poeta nacional, o Teixeira de Pascoaes: Ó linda flor dramática e animal!"
Apesar de toda a aparência de fêmea sensual, Ana Luísa mantinha modos, gestos, uma presença de elegantes maneiras, muitas vezes discreta, gentil e de visível contenção. E isto porque ela será uma pessoa de esmerada educação, de requintada civilização.
O que o seu nascimento, a sua criação e ambiente familiar original perfeitamente justificam.
Assim como o seu tipo físico igualmente se define pela genética mestiça. Do pai, descendente de afidalgados nortenhos, teria herdado
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a finura de algumas formas, a distinção de gestos; da mãe crioula (filha de branco colono e de mulata são-tomense), receberia a ganforina anelada, o tom mate e a lubricidade da pele, a carnalidade dos lábios, algum exagero de curvas e de massas corporais. De ambos resultaria a esquisita cor dos olhos, o azul do pai misturado com o castanho da mãe teria originado essa singular coloração mutante, entre o avelã-fogoso e o verde-dourado.
AS NINFAS DO TEJO": e a evocação deste título veio aqui a propósito dos caminhos por mim seguidos para encontrar aquele que será o da presente narrativa, portanto o mesmo é dizer o seu tema profundo, embora o entrecho dessa antiga estorieta não tenha, para o efeito, nenhum interesse. Mas apraz-me recordá-lo:
As minhas primigénias ninfas do Tejo haviam comprado ao Estado o ilhéu de Almourol, por uma quantia insignificante, pois esse dito Estado mal se lembrava da existência de tal excrescência terráquea a meio do rio, com um castelinho medieval já a entrar em ruina.
Obtida a ilha, as ninfas instalaram-se. Talvez tivessem construido românticas choupanas, já não me lembro. Só me recordo de que, apesar do seu insulamento, as quatro ninfas esperavam ali, cada uma, por um principe encantado, que descobrindo-as, conhecendo-as e amando-as lhes trariam de novo para o mundo das outras gentes.
Esqueci completamente o destino da ninfa ruiva. Quanto à loura, o seu príncipe surgiria na pessoa de um aviador que, em exercicio de treino sofre um acidente; a avioneta vai cair no rio, mas, hábil e destro, o jovem salta heroicamente de pára-quedas e são e salvo tomba junto da muralha do castelinho onde o acolhe a ninfa branca.
A morena viria a partir para a América do Norte (teria a ruiva ido para a África) na companhia de um geógrafo ali aportado num iate de explorações hidrológicas.
Quanto à do tipo intermédio entre a loura e a morena, encontraria um destino mais feliz ou tranquilo. Unir-se-ia, na igreja de Constança (a vila próxima de Almourol) a um pescador de tainhas que costumava rondar a ilhota num pequeno bote e a quem elas, as ninfas, compravam boa parte da subsistência. Ficaria a viver na ilhota com o pescador talvez mais tarde viesse, juntamente com ele, a montar um restaurante onde serviria "tainhas à maneira de Almourol".
A minha novela detinha-se assim no encaminhamento do destino das quatro ninfas. Mais longe não ia.
Apresentados os títulos que se me depararam para esta narrativa nos momentos do seu início - e, afinal, ainda nenhum está definitivamente escolhido - irei agora explicar como me foi possível tomar conhecimento dos factos que vou contar. Porque, como disse, sinto uma necessidade absoluta de justificar esse conhecimento. Mas desde já aviso, vou ser uma narradora apenas de testemunho presencial, não intrometida na acção e, quando muito, intervirei nas conversas mantidas com a (ou com as) minha/as protago nista/as, e talvez ouse uma vez por outra alguma opinião ou sugestão.
A minha situação de convivente muito próxima de Ana Luísa justificará as minhas afirmações e suposições.
Se conheço Alda Vilharigues, a poetisa, desde a infância - somos conterrâneas e ainda aparentadas - só comecei a dar-me com Ana Luísa a partir da data em que deixei a minha aldeia caramulana para vir para a capital e passar a viver precisamente numa vizinhança muito próxima de Ana e da sua família. A minha presença assídua junto dela começou assim no princípio da adolescência, continuaria por toda a juventude e iria prolongar-se até à maturidade já avançada.
Oriundos e acomodados na província, lavradores que eram, resolveram os meus pais transferir-se provisoriamente para a cidade, a fim de que eu, sua filha única, pudesse seguir estudos", conforme entusiasticamente os aconselhava a minha professora de instrução primária. Veio assim o meu pai estabelecer-se com uma bem provida e moderna ervanária, precisamente em frente do chalet onde residia, na capital, a elegante família do engenheiro Anselmo de Lima e Castro, pai de Ana Luísa e de seus irmãos.
O nosso convívio viria a estabelecer-se por intermédio de uma das duas tias de Ana, senhora entusiasta de tisanas e mezinhas homeopáticas.
Apesar de a minha mãe não apreciar a minha frequência da família Lima e Castro, também não a impedia e, sempre que as meninas, ou, mais precisamente, sempre que Ana Luísa me convidava para lanchar, para brincar ou tagarelar, não se opunha.
Nunca a minha mãe me falou das razões do seu pouco agrado neste convívio, mas penso hoje que o seu temperamento castiço de serrana, a sua natureza amante de simplicidades naturais e tradicionais, não se coadunaria com a vida de requintes e elegâncias burguesas da família de Ana Luísa, nem se sentiria atraída por qualquer comunhão ou empatia com essas gatas afrancesadas, como chamava à mulher e às filhas do Eng. Lima e Castro.
Apesar da nossa assídua convivência, Ana Luísa e eu não nos tornámos aquilo a que se chama de verdadeiramente amigas, assim como, se bem que muitas vezes discutíssemos os mais íntimos temas femininos, jamais ela levou até a extremos as suas confidências.
Ana Luísa não era o tipo de pessoa que necessita de uma amiga ou amigo íntimos. Sempre a considerei em última análise e para além dos seus arrebatamentos, do aparente amor por prolixas discussões, avessa a uma exibição expansiva, franca, da sua profunda intimidade. Dir-se-ia, Ana sempre conservava algo de secreto, de escondido, de camuflado. Queria-me parecer que, não por receio, mais exactamente por cautela ou precaução, ela mantinha constantemente de reserva algumas cartas para lançar em momentos oportunos no jogo da vida - no jogo em que viria a tornar-se toda a sua vida.
Dentro da convivência a que nos expôs uma quase coabitação e a proximidade da idade, estou convencida, o sentimento maior que a minha pessoa despertava nela era o da curiosidade. Curiosidade de mistura com algo, não digo de inveja, mas de cobiça. É que para além das horas do nosso convívio havia também na minha vida pessoal muitas coisas diferentes da vida dela, que lhe aguçavam uma intensa curiosidade.
Enquanto eu cursava um liceu oficial, para onde me dirigia diariamente em companhia de Alda e de outras raparigas, também moradoras no mesmo bairro, utilizando os transportes públicos, ou quando nos apetecia, percorrendo a pé ruas e jardins, entrando sozinhas em lojas para comprarmos artigos escolares ou pequenas coisas do nosso agrado de adolescentes; enquanto o currículo liceal comportava numerosas disciplinas, desde a literatura às ciências naturais, passando pelo desenho, pela matemática, pelo canto coral; enquanto, cumprido o estudo secundário, ingressei na Faculdade para seguir o curso que havia de me conduzir à minha actual especialização de arqueóloga, permitindo-me a frequência de estágios no estrangeiro e a colaboração em congressos e seminários internacionais, as meninas, filhas do Eng. Lima e Castro, director do Gabinete Técnico de Engenharia do Ministério das Obras Públicas, ainda "estudavam em casa, com misses e mademoiselles.
Se os filhos do Eng. Lima e Castro, os rapazes, frequentavam já o liceu, para as filhas nunca ele admitiria a hipótese de, para se "ilustrarem, (como dizia), terem de se afastar para além das portas domésticas. Chegou mesmo a considerar, para elas, a alternativa de um colégio de freiras, procedimento muito em voga nesses anos trinta e quarenta, entre as classes abastadas. Mas tanto Ana Luísa, como a irmã mais velha, a Milena, mostraram tal relutância em aceitar esse projecto que chegaram às lágrimas e a ameaças de greve de fome. O pai desistiu da ideia mas estabeleceu ele próprio o currículo de estudos para as filhas: línguas, sobretudo o francês, o francês era fundamental, aliás todos os seus filhos o aprenderam como segunda língua desde muito pequenos, com M. " Lyotard, uma dessas francesas pobres mas de "boas famílias, que ousavam emigrar para países estrangeiros onde entravam para casas ricas, au pair, e passavam a preceptoras e professoras da sua língua. M. " Lyotard chegara na altura do nascimento de Nuno Miguel, o filho mais velho do Eng. Lima e Castro, era tratada como pessoa quase de família, pois fora já professora da mãe da Ana Luísa. As suas funções eram não só as de transmissão da sua civilizada língua, o que só por si, segundo o engenheiro, já conferia enorme "requinte e distinção, a quem a falasse, ficando assim com a capacidade de "substituir por termos franceses os correspondentes portugueses, múito rústicos e por vezes grosseiros, como as de ensinar, em todas as circunstâncias do dia a dia, as galantarias de uma educação parisiense, bem "rafinée", maneiras de estar à mesa, de se sentar e levantar conforme o assento, se cadeira, se sofá; de cumprimentar,
de sorrir, de receber, de conversar.
Para o ensino da língua inglesa veio, durante alguns anos, Miss Temple. Houve também uma professora de piano, tanto para as meninas como para os rapazes, e um professor, um goês idoso e de extrema boa educação, que ministrou alguns conhecimentos de aritmética, geografia, história, "com exclusão de literatura, por expressa determinação do engenheiro, "Nada de literaturas, nada de romances nem de poesias, essas coisas só servem para transtornar a cabeça da gente nova, principalmente das raparigas, frase que lhe ouvi algumas vezes.
A esposa do Eng. Lima e Castro, mãe de Ana Luísa, era uma espécie de bibelot, protegida numa redoma de luxo, de mimos do marido e de carinhos dos filhos. Passava parte dos dias a bordar (sobre linho, a seda e ouro), a tratar da sua cadelinha Niná, a que dava banhos perfumados e escovava o pêlo cor de mel; a folhear figurinos e revistas e a voltear delicadas peças de lingerie nas gavetas dos chiffonniers, a ensaiar os casacos de peles, o de astracã, o de vison, o de petit-gris, o par de raposas argeatés, as cloches, as braceletes, os broches, os pendentes. Como o governo da casa estava entregue às cunhadas e a M. " Lyotard, restavam-lhe também horas que preenchia escolhendo diariamente as roupas que os filhos deviam usar em cada circunstância e as prendas a oferecer aos seus amiguinhos. Ninguém seria capaz de adivinhar os seus sentimentos enquanto se entretinha com todas estas coisas boas e belas, porque Teresina falava pouquíssimo. Em compensação sorria permanentemente, franzindo ao mesmo tempo os olhos míopes, o que lhe aumentava a doçura do rosto e lhe dava uma expressão de que nunca se poderia dizer se era de intensa observação ou, pelo contrário, de profundo alheamento. Da parte da manhã, ainda em deshabillé, depois de escolhidas as toilettes dos filhos, informava-se também das visitas e dos divertimentos que os esperavam. Não se interessava muito pelos seus estudos, a instrução e educação das crianças era assunto da competência do pai, das tias e das preceptoras. Limitava-se a olhá-los, ou antes, a contemplá-los, num perene embevecimento, através desse doce e permanente sorriso (que no entanto se foi desvanecendo à medida que o tempo passava, e substituindo por um ricto quase de amargura, em que ninguém reparava, pois ela jamais se lamentava fosse do que fosse), a fazer-lhes festas nos cabelos, a abotoar-lhes os botões da roupa, a beijá-los; pouco lhes perguntava e também nada tinha para Lhes dizer. Quando o marido se zangava com eles é que ela, às escondidas, lá ia consolá-los, timidamente, Não fique triste, meu amor, seu pai vai acabar por desculpar tudo e depois pronto, já não é nada. Ele ralha mas é bom, é por gostar muito de si e de querer só o seu bem. Teresina gostava de dormir de tarde, quando não saía com as filhas a compras ou a visitas. Era um hábito que lhe ficara desde quando vivia ainda em São Tomé.
Diferentemente de seu marido, no sangue de Teresina não se descobriria a mínima gota de fidalguia. Era filha de um emigrante português, que em São Tomé se tornara rico roceiro e importante exportador de cacau. Em São Tomé teve de uma mestiça os filhos que criou até à adolescência. Chegados a esta idade enviou-os para a metrópole, para se educarem e estudarem, subirem na vida, como dizia. O rapaz seria médico e a filha, Teresina, queria vê-la menina fina e citadina. Vieram os dois jovens para Lisboa, para casa de um tio, ourives, estabelecido no Chiado. Casado e sem filhos, recebeu os dois sobrinhos e, enquanto o rapaz estudava medicina e entrava no convívio da média e da alta burguesia da capital, Teresina foi entregue aos cuidados de M. " Lyotard (que depois transitará para a sua vida de casada, onde já a vimos). E será por intermédio desta então ainda professora de francês em outras casas ricas, que Teresina virá a conhecer o jovem Eng. Anselmo de Lima e Castro, acabado de formar e já a trabalhar no Ministério das Obras Públicas.
Anselmo tem vinte e oito anos e entrara naquela fase em que os homens desejam sossegar" e assentar, em suma, pensam em casar e constituir família. Sofrera uma paixão por uma prima provinciana e também afidalgada, mas pobre. Não chegou a avançar o idílio, pois afinal pobre era ele igualmente e a prima acabou por encontrar um noivo rico. Anselmo mantinha um ideal não muito fácil de realizar: desejava encontrar uma jovem que lhe agradasse como mulher, no aspecto físico sobretudo, mas não subestimava a situação económica da futura esposa. Aliás, não conseguira definir o que para ele constituía o ideal quanto ao aspecto físico. Mas foi o coup-de foudre, quando Lhe apresentaram a jovem crioula, de olhos míopes semicerrados, como sonhando e sorrindo, de corpo roliço, encimado por uma cabeça coberta por um cabelo negro, lustroso, de ondas muito cerradinhas, corpo apoiado nuns tornozelos finos de gazela. É certo que a ascendência familiar de Teresina não era do seu agrado. E também Lhe pareceu de pouca vivacidade de espírito. Quanto ao primeiro factor, a boa educação de que era portadora, a situação do irmão já médico e cujo talento de cirurgião começava a dar-Lhe um nome, acabariam por torná-lo de somenos. Por outro lado, a vivacidade de espírito não interessava muito numa mulher. Para o engenheiro, próximo futuro pai de Ana Luísa, de inteligência uma mulher necessita apenas a suficiente para poder compreender o marido, os filhos, os assuntos domésticos, e saber conduzir-se em sociedade. Mulheres com estudos, como se iam vendo já algumas na sua geração, formadas em medicina ou professoras, isso era para as filhas da pequena burguesia ou dos lavradores remediados.
Não haveria uma autêntica distinção nos modos e na maneira de falar de Teresina, apesar dos muitos galicismos de que a impregnara M. Lyotard. A isso se opunham desde logo as suas poses langorosas, de quase indolência (crioula indolente, lhe chamavam as cunhadas). Mas o brando sorriso e a miopia punham-lhe no rosto a constante expressão de expectativa serena e de reserva, que acabavam por simular a reflexão e substituir com agrado a elegância segura e desenvolta das mulheres nascidas na alta sociedade.
Para além de todas estas considerações, a verdade é que Anselmo se sentiu inexoravelmente atraído e enfeitiçado precisamente por aquelas poses, entre langorosas e carecentes, da jovem crioula, e pode dizer-se que casou com ela em estado de paixão. Teresina iria permanecer, na sua vida de casada e de mãe, a mesma pessoa branda, aquiescente e tímida que aparentava ser. Mesmo quando começaram as desavenças dos filhos com o pai, desejando muitas vezes intervir em defesa deles e achando-se em discordância com algumas atitudes rígidas do marido, deixava-se ficar calada, sofredora, resignada. Se por temperamento era assim dócil e mansa, o casamento com um homem autoritário acabou por reduzi-la a uma quase incapacidade de reacção. E as cunhadas confinaram-na numa situação de subalterna no governo da casa.
Só mais tarde, quando o filho mais novo se revoltou contra a vida familiar e a obrigação que queriam impor-lhe de fazer uma carreira brilhante (como o irmão mais velho), e depois quando também Ana Luísa, já casada, começou a dar mostras de ansiedades aberrantes - como viria a ser o seu desejo de frequentar a Escola de Belas-Artes - é que Teresina ousará colocar-se na defesa dos filhos auxiliando-os por todos os meios, inclusivamente os económicos, mas às escondidas do marido.
A curiosidade que a minha vida pessoal despertava em Ana Luísa derivava daquilo a que ela chamava a minha liberdade.
Disse-me um dia, andaria pelos quinze anos, Sabes, eu também preferia estudar num liceu, como tu. Podia conhecer gente diferente, aprendia outras coisas. Tu estudas muitos assuntos que nem M. " Lyotard, nem Miss Temple, nem sequer o professor me podem ensinar. Por que não hei-de estudar Ciências da Natureza? E Literatura? E que aborrecimento ter sempre a Mademoiselle ao meu lado... Poder andar à vontade, como tu, pelas ruas da cidade. Mas não, é sempre esta vida: reuniões de família aqui em casa, os eternos con vidados dos solenes jantares de domingo, as festinhas com os priminhos, a santa árvore do Natal, os baptizados dos bebés, as comunhões, os casamentos dos nossos queridos parentes e conhecidos e, mal o calendário assinala o princípio do Verão, ala, aí vai a família toda para a Quinta de Rio de Mouro, por causa dos bons ares e dos adorados goivos e dálias da tia Francisquinha.
Respondi-lhe, Mas não te esqueças, não tens assim tanta razão de queixa, além dessas coisas do costume (e sublinhei do costume por saber como ela odiava costumeiras rotineiras, palavras suas), afinal tens muito mais distracções que eu. Quando eras pequena foram os belos cotillons, cheios de prendas, brinquedos, guloseimas; agora tens as matinées dançantes no Casino, serás apresentada no baile das debutantes; em breve passarás a frequentar as premières das óperas, como a tua irmã, e sempre com toillettes lindíssimas, feitas nas melhores modistas de Lisboa, às vezes até vêm de Paris; conheces raparigas e rapazes, tudo gente finíssima, que se diverte sem preocupações e não sabe o que são dificuldades económicas. "
E ela tornou-me: Sim, mas sempre com os chaperons ao lado, a Mademoiselle, a tia Ausenda, que é chatérrima, antiquada. Gostava de conhecer pessoas de outro género. Estas são todas iguais, no fundo aborrecem-me, não lhes acho graça nenhuma. Às vezes apetece-me conhecer outros mundos, ser livre, livre por horas, ao menos, para ver se me acontece qualquer coisa de extraordinário, nem eu sei bem o quê. Quem me dera ser mais crescida. Mas quando crescer, naturalmente vai acontecer- me o mesmo que à Milena, caso-me e pronto. "Caso-me e pronto".
Nessa ocasião não lhe perguntei o significado que ela atribuía a esse e pronto". De facto, talvez Ana Luísa não soubesse, então, claramente o sentido dessa breve, conclusiva expressão, pronunciada num tom onde me pareceu transparecer algo de amargura e de revolta. E ainda que o conhecesse, é provável que nessa idade não tivesse a coragem ou a desenvoltura suficiente para o comunicar. Mais: embora aparentemente Ana pudesse ser considerada pessoa extrovertida, até impetuosa, explosiva na afirmação de opiniões, como disse parecia-me restar sempre nela uma ponta de secretismo, algo de inatingível ou de incomunicável. Já nesses tempos da adolescência me deixava a impressão de esconder um formidável segredo, sempre protegido do perigo de alguma confissão descuidosa, talvez por uma intransponível muralha de pudor, talvez por uma vigilante medida cautelar. Em suma, muitas das suas atitudes pareciam oscilar entre uma impulsiva necessidade de afirmação e uma barreira de recúo defensivo.
Pode ser - estou no campo das hipóteses - que tais atitudes derivassem da sua educação regrada, da meticulosa observação das aparências consideradas convenientes e das convenções impostas pelo meio familiar. Daqui talvez, também, que apesar de toda a impulsividade do temperamento, dos entusiasmos arrebatados, em muitas ocasiões da sua vida soubesse dominar-se, tornando-se fértil e habilíssima nas chamadas manhas femininas", tão fértil e hábil que uma vez descobertas pelos outros, alguns terem acabado por considerá-la hipócrita e díssimulada.
Se Ana Luísa era díssimulada por natureza, ou por educação, ou por uma táctica adaptativa, oscilando entre a defesa e os aproveitamentos e conquistas, ignoro-o.
Admito hoje que, se na idade adolescente, Ana Luísa ainda não era capaz de definir objectivos, pelo menos no seu espírito agitavam-se já pulsões, ansiedades, sonhos, e uma coisa é certa: já nesse tempo ela era considerada na família como uma rapariga complicada, uma rebelde, e um tufão, conforme a definiam as tias; com ela, os trâmites familiares estavam longe de correr com a mesma docilidade com que eram aceites pelos dois irmãos mais velhos, a aristocrática Milena e o sensato Nuno Miguel.
Uma das cenas, exemplificadoras da sua rebeldia, a que tive ensejo de assistir, será a que vou descrever.
Como creio já ter dito, além da miss para as lições de inglês e da mademoiselle para as de francês, o Eng. Lima e Castro instituiu também como obrigatório o estudo do piano, tanto para as meninas como para os rapazes. As tias haviam estudado um pouco, mas esqueceram tudo. A esposa, igualmente estudante de piano em solteira, depois de casada só raramente se sentava diante do teclado, recordando melancolicamente alguma bercecise ou barcarolla de Chopin, em que chegara a tornar-se exímia. Os filhos estudaram o suficiente para tocar com demasiada energia e maior incorrecção umas tantas músicas em voga, polkas, fóx-trotes, paso dobles, valsas, e isto só enquanto a TSF não apareceu lá em casa. Quando em férias, na quinta de Rio de Mouro, a família então ainda completa se reunia na saleta para o serão familiar, os rapazes, joviais, tocavam a quatro mãos, mas os seus concertos acabavam em pequenas paródias, porque eles cometiam enormes erros e atropelos, aliás para grande gáudio das senhoras e meninas, e até as românticas canções napolitanas descambavam em galhofice e caricatura. Rapaziadas bem toleradas pelo pai que, entretanto, jamais admitiria brincadeiras semelhantes nas filhas. De qualquer modo, tanto os rapazes como Milena haviam acatado as lições de piano o tempo suficiente para satisfazer a vontade soberana do senhor seu pai. E Milena, assim que ficou noiva viu-se tacitamente dispensada desse aprendizado, todo o seu tempo passou a ser ocupado com os preparativos para o casamento.
Só com Ana Luísa, relativamente ao piano, as coisas se passaram de maneira diferente. A sua atitude a este propósito levantou uma das tempestades domésticas que costumava provocar.
Num sábado, estava o Eng. Lima e Castro em casa, como era seu hábito. Sábados, domingos e feriados dedicava-os à família, quer estivessem na casa de Lisboa, quer na da Quinta. Como sempre, compareceu para tomar o chá com as senhoras, ou seja, a esposa, as irmãs e as filhas. Eu, também presente.
A terceira lição de piano de Ana Luísa, terminara havia meia hora e a tia Ausenda perguntou-lhe, Então, Aninhas (empregava sempre este diminutivo tradicional), como correu a tua lição de piano? Hoje foi a terceira, se não me engano. A terceira e a última, resposta da Ana Luísa (andaria ela pelos doze anos, se a memória não me engana) com uma expressão entre voluntariosa e provocadora, enquanto ao mesmo tempo percorria com os olhos todos os presentes, acabando por fixá-los muito abertos na cara do pai, à espera da reacção, enquanto a mãe, amargurada, quase aflita, se quedava igualmente suspensa da resposta do marido. A tia Ausenda empertigou-se, a tia Francisca puxou do lencinho, fez que se assoou e tossicou de manso.
O pai bebeu dois ou três golos de chá pausadamente, pousou a delicada xícara no carrinho de serviço, e falou: A última? Como? Que disse a menina? Sempre na mesma postura, isto é, como se impávida e resoluta, Ana Luísa respondeu: Não quero continuar com as lições de piano. Não gosto. Minha filha! murmurou a mãe, assustada, suplicante. Esta pequena, esta pequena... disse, abanando a cabeça, a tia Ausenda, o que constituía o seu permanente comentário quando a sobrinha rebelde" levantava as complicações do costume. Complicações que residiam no atrevimento e na teimosia, escusados, de Ana apresentar, ou pelo menos tentar apresentar decisões próprias, opostas à vontade dos pais, ou, melhor, do pai, visto a mãe raramente se aventurar a qualquer sugestão, sobretudo quando o marido estava presente. Atitude merecedora de aprovação por parte das cunhadas para quem onde cantam galos não cacarejam galinhas.
Quando uma contrariedade surgia no espírito do Eng. Lima e Castro, os seus olhos acinzentados passavam a azul chispante. Ana Luísa conhecia bem o significado dessa transmutação, mas à medida que foi crescendo habituou-se a enfrentá-la e passou a abrir muito os seus - os seus olhos sensacionais, do tal castanho-claro dourado, que podia tomar o amarelo dos tigres, umas vezes, outras o quase vermelho dos leões - e a fixá-los obstinada, duramente, provocadoramente nos do pai.
Nesse momento de novo entre pai e filha se travava esse duelo de olhos através do qual cada um deles punha em jogo, do lado do pai o seu poder, do lado da filha a sua vontade de poder e o desejo de averiguar os limites até onde poderia fazê-la valer.
A menina vai continuar com o piano, sentenciou o pai, acrescentando em palavras marteladas, e agora retire- se para o seu quarto, pode pedir que Lhe levem lá o lanche.
Ana Luísa levantou-se, deitou um olhar apiedado à mãe, outro de desprezo à tia Ausenda, e dirigiu-se para a porta da sala. Antes de a fechar voltou-se para os presentes e, como se imitasse ironicamente o tom firme e sincopado das palavras que acabavam de Lhe ditar uma sentença e uma ordem, respondeu Não gosto de estudar piano. Tenho o direito de gostar ou de não gostar de certas coisas.
Saiu depois, deitou a correr pelas salas, galgou a escada que levava ao primeiro andar, onde ficavam os quartos de dormir, e entrou para o seu. Quando, reconhecendo pela minha maneira de bater à porta, que era eu a procurá-la, fui encontrá-la sobre a cama, os dentes cravados nas falangetas da mão direita, num estado onde um inicial tremor colérico deu depois lugar a atitudes que poderiam fazê-la tomar por uma histérica ou uma possessa. Mas além de mim ninguém mais a veria nesse estado, porque numa acalmia súbita, com voz rouca mas serena, pediu-me, Agora sai, fecha a porta e não digas a ninguém que me viste assim. "
Vou mostrar como a minha protagonista, nascida Ana Luísa de Lima e Castro, vem a escolher um nome artístico, aquele que irá adoptar um dia após a sua estreia como pintora e pelo qual ficará conhecida no meio da inteligência nacional.
Ela o escolheu, por achá-lo de uma sonoridade elegantíssima, Mas posso dizer, em parte concorri para essa escolha.
Era Dezembro e nas férias de Natal a família de Ana Luísa encontrava-se na casa de campo, e eu também fora convidada. Embora vivesse sempre saudosa do meu Caramulo, não deixava de apreciar outras paisagens. Rio de Mouro, onde ficava a quinta da família Lima e Castro, era nesse tempo uma premonição da maravilha sintrense. Por isso, quase sempre eu aproveitava o convite para uma estada nessa quinta, povoada de árvores seculares e com um grande tanque onde nos deliciávamos em banhos no Verão. Além disto, D. Teresina era de muita amabilidade para comigo e a tia Francisquinha costumava sair para os campos em tarefas de herborista, coisa em que eu gostava de acompanhá-la.
Dezembro não é tempo pródigo em flores, no entanto os verdes vegetais deste mês são de uma intensidade deslumbrante. Sobre os taludes e as bermas dos caminhos, é então o apogeu de umas pequenas flores, os morriões. Em tufos bastos, ininterruptos, os amarelos são como topázios sobre mantos de veludo verde ou pequeninos sóis a aquecer a algidez do ar invernal.
Por uma manhã, fresca mas agradável, subi ao mirante da quinta, de onde se avistava a serra de Sintra. As planícies próximas eram um tanto áridas, mas em Rio de Mouro quintas verdejavam e os terrenos estavam já iluminados por miríades de corolas de morriões.
Ana Luísa não era amante de paisagens campestres, muito menos de flores bravias, mas como tínhamos combinado uma leitura de poemas ali, no mirante (às escondidas), ela acompanhava-me.
- Olha essa beleza, essa quantidade de morriões! - chamei-lhe a atenção.
- Morriões? - respondeu, em tom de exclamação - Que nome feio
- Morrião é o nome vulgar. O nome científico é anagallis, e mais qualquer coisa que não me lembra.
- Anagallis! Esse sim! Nome maravilhoso! - exclamou outra vez Ana Luísa, mas agora em tom esfuziante, e continuava - Que belo som! Anagallis! Anagallis! - e, de súbito, num grito: Quando um dia for uma artista, uma poetisa, uma pintora, mudarei o meu nome e serei então Ana Gallis!
Sei bem, foi a sensibilidade estética de Ana Luísa o que a levou à escolha desse nome harmonioso. No entanto, hoje e desde sempre parece-me que, para além da beleza eufónica do vocábulo, nada existe na modéstia e vulgaridade da pequenina arvensis cerulea (como fiquei a saber, depois da consulta de um livro de botânica) que se coadune com a apresentação e as atitudes ostensivamente mundanas de uma jovem, apreciadora apenas de flores de cultura, como as aristocráticas magnólias, as delicadas rosas ou as luxuosas orquídeas.
Quando eu, nessa mesma manhã no mirante, lobriguei uma dessas corolas pequeninas, nascida numa fenda entre duas pedras do muro, a colhi e depositei nas mãos de Ana, Aqui tens um morrião ou, antes, um anagallis, ela olhou-a distraída, voltou o caule frágil entre os dedos e, atirando-o pelo ar e por sobre a amurada, continuou entretanto nas suas exclamações: Ana Gallis! Ana Gallis! Um achado
Com este episódio da escolha do futuro nome artístico de Ana Luísa, irei colocar em paralelo alguns outros, igualmente indiciadores para uma definição do seu carácter, e que virão reforçar a minha hipótese de que nele existiria uma bem forte inclinação para o sensacionalismo, um desejo intenso de chamar a atenção para a sua pessoa, uma necessidade de ser admirada, louvada.
Quando os primos e alguns amigos convidados vinham, na Primavera ou no Verão, passar uns dias na quinta com os meninos Lima e Castro (eram todos, incluindo Ana Luísa, adolescentes), havia uma brincadeira sua preferida, a da princesa Glicínia, em que os seus pequenos amigos verdadeiramente não participavam. Aliás, Ana Luísa apenas pretendia deles uma colaboração passiva, que se mostrassem espectadores admirativos da sua metamorfose em princesa. Afastava-se do grupo, dirigia-se para o caramanchão "arte nova", ao fundo do vasto jardim e, sôfrega, colhia ramos de glicínias pejados de cachos floridos. Com eles confeccionava uma espécie de vestido, de ostentosa redonda saia como uma crinolina, e também uma farfalhuda, espalhafatosa grinalda, a que chamava o diadema, depois aproximava-se, dengosa e altiva, do grupo e, enfática, propunha: Todos ao beija-mão da princesa Glicínia!
Um pouco aquém do caramanchão existia, quase a meio do jardim, um pequeno lago, conhecido na família por O Laguinho. Era uma superfície redonda, alimentada pela água nascida de uma mina existente lá para os confins do parque. No Laguinho vicejava um emaranhado de plantas aquáticas, rosados trevos de água, nenúfares de flores amarelas, golfões das três cores, brancos, purpúreos e cerúleos, e ainda lótus alvos, todos delicados seres vegetais, bem amados da tia Francisca e do engenheiro.
Como a tia Francisca não consentia ao jardineiro qualquer intervenção na flora do Laguinho, as plantas multiplicaram-se de tal forma que a certa altura ele se tornou em uma espécie de pequeno mundo superpovoado, não só de vegetais como de animálculos de vários tamanhos e feitios. Miríades de girinos, alfaiates, ovos de mosquitos e larvas várias infestavam e escureciam a água e, nas margens, repululavam rãs, sapos, lesmas, caracóis, libélulas.
O engenheiro considerou que o Laguinho adquirira o aspecto mais de um pântano que de um lago de jardim bem tratado e decretou a necessidade de udesembaraçá-lo de toda aquela confusão, de limpá-lo, em suma. E que, portanto, o melhor seria arrancar a praga dos trevos e dos jacintos de água, plantas de grande vulgaridade.
Sugeriu igualmente a supressão dos nenúfares altos, emergentes acima das outras plantas, e que quando atingiam a fase de maior desenvolvimento se tornavam numa autêntica floresta invasora, uma plebe cuja presença de certo modo conspurcava a nobreza das outras plantas", os lótus e os golfões que, esses sim, deveriam conservar-se, por seu aspecto fino, aristocrático mesmo
Todos acabaram por concordar com a opinião do engenheiro. Só Ana Luísa veio com uma ideia singular: Se fosse eu a decidir, apesar de também gostar muito dos lótus e dos golfões - gosto tanto que, até quando ainda não é o tempo deles, vejo as suas flores em sonhos! - arrancava tudo, mas tudo, e em seu lugar punha uma única planta, uma grande vitória régia! "
A tia Ausenda não se conteve, Lá vem a menina com mais uma das suas ideias extravagantes. Arrancar tudo? Pôr uma vitória régia? Então a menina, que se gaba tantas vezes de ter um alma de nrtista, acha que se pode comparar a beleza das corolas, tão delicadas, dos golfões e dos lótus, com essa autêntica bandeja de cozinha que é a vitória régia?
Todos remataram Que ideia! Que ideia! e, claro, ficou decidida a limpeza do Laguinho, conservando-se apenas as flores indicadas pelo pai da família.
Mais tarde, quando Ana Luísa subiu ao quarto de vestir, para se preparar para o jantar, tive ocasião de Lhe perguntar, Há pouco estranhei a tua escolha, Ana Luísa. Uma vitória régia, uma só dessas plantas, no meio dum lago tão pequeno, ficaria desproporcionada, isolada, um tanto ridícula até, porque essas plantas chegam a atingir diâmetros enormes. Estás a ver o seu prato - a bandeja, como lhe chamou a tia Ausenda - sobre a diminuta toalha de água? Que graça achas tu nesse paquiderme vegetal? "
Ao que ela respondeu, levemente amuada:
- Graça, verdadeiramente não acho. Os lótus e os golfões são muito mais bonitos. Mas é a sugestão que nos deixa o seu nome sonoro, vitória régia, é um nome que nos lembra imponência, domínio, triunfo!
Dominar, não seria exactamente o desígnio dos desejos profundos de Ana Luísa. Julgo, aquilo por que ela sempre haveria de ansiar era o conseguimento, o triunfo dos seus projectos, mais precisamente, o atingimento das coisas que a tornassem um alvo de admiração e aplausos.
Tão complexa era no entanto a sua personalidade que não se poderia jamais ter a certeza se ela procurava apenas admiração e aplausos, ou se aí se imiscuía ao mesmo tempo uma carência, quase sofredora, de reconhecimento de méritos e de uma vontade própria. Quando ela escolhia um ramo de rosas, o dispunha com arte numa jarra, como realmente sabia fazê-lo, e vinha depois chamar a atenção das visitas para o seu talento decorativo, sublinhando a beleza das flores que ela encomendara, que ela dispusera, isto com uma expressão não só de encantamento como de expectativa pela impressão causada, pelos elogios esperados, era difícil concluir-se se ela pretendia apenas a admirassem pelo seu bom gosto, ou reconhecessem, principalmente reconhecessem, ser ela possuidora de sentimentos estéticos.
Voltando à escolha do futuro nome artístico de Ana Luísa, sublinharei que, além da inadequação da imagem da modéstia da pequena florinha ao esplendor da sua beleza - daqui a pouco completarei a descrição da portentosa criatura feminina em que Ana Luísa viria a tornar-se - há ainda a acentuar, também mais uma vez, o seu fraco interesse pelas flores campestres e pelos ambientes rústicos.
Não posso negar, havia nela algum amor por aquilo a que se chama a Natureza, mas tratava-se de um amor puramente físico, direi um amor sensual pela Natureza.
De passagem, farei uma comparação entre esse amor físico de Ana Luísa pela Natureza, e o amor lírico-metafísico de Alda Vilharigues pela mesma Natureza. E aproveito para dizer desde já que esta Alda, atrás nomeada e aludida também como ninfa do Tejo, nesta narrativa não irá tornar-se uma personagem de relevo, surgirá apenas aqui e além, em aparições breves, é só em outro meu (provável) futuro romance virá a assumir o estatuto de personagem de primeiro plano. E aqui está como desde já declaro a quem me leia, que acabo de desistir do título sonhado, AS NINFAS DO TEJO.
O amor de Alda Vilharigues pela Natureza, não era de todo espiritual. Nem me parece que, pela Natureza, possa existir algum amor assim exclusivo. Da Natureza tudo nos entra pelos sentidos, com os tactos, os odores, as cores, os sons e os gostos, depois toca-nos a alma e anastomosa-se ao espírito. Nas pedras, seres primordiais na Evolução, dizia Alda, reconhecia ela o fogo interno nascido no planeta terreno em gestação, os cheiros minerais premonitórios dos perfumes florais, as texturas e os dinamismos dos animais futuros; os seus instantes de exaltação naturalista começavam por uma espécie de participação animista para alcançarem entusiasmos líricos e êxtases místicos e transcendentes.
O amor, apenas sensual, de Ana Luísa pela Natureza, levava-a a dizer: "Da Natureza, o melhor são as praias e o mar. Quando saio das ondas, já não sou uma mulher mas uma deusa, uma Afrodite a estender os braços para a vida! "
Vem a propósito de ter relembrado essa sua exclamação que, na época da sua actividade pictórica, irá ela tentar auto-retratar-se como "Vénus nascendo do mar", para o que tratou de copiar "O nascimento de Vénus", de Botticelli, mas colocando sobre o corpo venusino, um outro rosto, o seu.
Nem na estatuária da Antiguidade, nem na do Renascimento, nem nas pinturas modernas encontro um corpo feminino a que possa chamar belo, harmonioso. As Vénus gregas são mulheres possantes, de cintura espessa, ventre algo avultado, coxas fortes, como fortes e rijos são os seus quadris. As Vénus de Boticelli, ainda são estátuas pintadas; os rostos é que são maravilhosos, com aquelas madeixas de cabelos livres, naturais, humedecidos pelas águas marinhas, embora frios, estáticos. As mulheres de Rubens e as de Ingres são corpos só carnais. Mas a "Olimpia" de Manet e a "Maga desnuda" de Goya, corpos de duvidosa perfeição canónica mas de formas e carnações verdadeiras, por requebradas, sinuosas, são insinuadoras não apenas de sensualidade, como à primeira vista poderá parecer, mas também de uma complementaridade e interpenetração entre esses corpos sensíveis e as correspondentes almas, bem femininas.
O auto-retrato de Ana Luísa (Ana Gallis), como uVénus nas- cendo do man, além de ser apenas uma cópia (modestíssima) da Vénus botticelliana, era também incongruente: sobre um corpo de estátua clássica não dizia bem a sua cabeça de formosa leoa.
Quando os Lima e Castro se instalavam na quinta de veraneio para umas prolongadas férias, uma vez terminadas as aulas dos rapazes, Ana Luísa, ao contrário da irmã, não se deixava ficar pelo remanso caseiro, entre os mimos da mãe e as infindáveis ocupações das tias e da criadagem, ocupações que afinal prolongavam as da cidade; só a tia Francisquinha podia aqui dar maiores largas às paixões herborísticas e de jardinagem.
Além dos seus entretenimentos secretos" - conversas muito especiais com o irmão mais novo - em devaneios debaixo da copa da grande magnólia, Ana Luísa entregava-se então ao seu desfrute sensual da Natureza. Eram as excursões com os irmãos, sobretudo com os primos e os amigos convidados, pelas campinas e matagais bravios, riachos, pedregais e arbustos odoríferos que se estendiam para além dos muros da residência estival. Acompanhando-a muitas vezes tive ocasião de ver como ela, além de participar, esfuziante, nas corridas de natação dentro do grande tanque, nas passeatas de bicicleta, nos jogos de ténis, nos piqueniques, nas cavalgadas, em excursões à serra de Sintra, às Azenhas do Mar e outras praias das proximidades, evidenciava um gozo corpóreo correndo pelas vastidões dos espaços livres, enquanto acariciava folhas e troncos, mordiscava caules e bagas, esmagava líquenes e musgos, devassava recessos como pequenas grutas, cabanas rurais, alpendres e moinhos velhos onde faziam ninhos pássaros e morcegos.
A sua participação nesses divertimentos era feita não apenas com entusiasmo, mas direi com furor. Ela era violenta nas correrias, na travessia dos valados ou quando se lançava de chofre na água dos ribeiros. Fazia corridas, em desafio, com o irmão mais novo, o Rui, para ver qual chegava primeiro à meta escolhida. Apesar de correr contra um rapaz, chegava quase sempre antes dele. Mas depois, quando saía vitoriosa consolava o irmão, de quem era amicíssima, Ruizinho, eu não te queria vencer, foi só um pretexto para me sentir nesta correria. Adoro correrias, bem sabes.
Passadas manhãs e tardes, muitas vezes dias inteiros nessas aventuras, ela regressava numa espécie de embriaguez de ar, de sol, de resinas e odores e quando entrava em casa era a correr que galgava a escada que levava ao seu quarto e ia postar-se diante do vasto espelho do guarda-fatos a autocontemplar-se. Trazia dilatados e dourados os olhos, a pele húmida de um fino suor fragrante.
- Olha como fico bonita, depois destas passeatas e exercícios - disse-me um dia -, espirro saúde por todos os poros E eu concordei:
- Ficas bonita e com um ar sadio!
Ao que ela teve esta reacção:
- Não digas uma coisa dessas, por acaso, ao pé da Milena. Ela acha este ar sadio muito pouco distinto", ela que fica sempre um rosto pálido mesmo depois das férias. Mas, para mim, uma das coisas que me faz gostar de vir para a quinta é precisamente isto, arranjar estas reservas de saúde, a saúde dá-me beleza que chega para o Inverno na cidade. Gosto bem de ficar com este ar vital.
Outra das primeiras ocasiões em que me recordo de a ter ouvido empregar esse termo, vital, foi a propósito de um manjerico que o jardineiro lhe veio oferecer. Tomando o vaso em ambas as mãos, Ana levou a farfalhuda planta ao nariz e num ar deliciado, exclamou
- Este perfume!
Quando o jardineiro se afastou, a irmã, que estava presente, não se conteve:
- Não fale em perfume, referindo-se a um manjerico. Porque perfume só o têm certas flores delicadas. O manjerico é quase uma planta de jardin potager, até serve para temperos de cozinha. Há no seu cheiro, cheiro e não perfume, qualquer coisa de ordinário, de plebeu, não lhe parece?
O diálogo continuou com a resposta de Ana Luísa:
- Concordo consigo, Milena, quando acha que um perfùme não é o mesmo que um cheiro. Bem sabe como adoro o perfume das rosas do nosso jardim, de todas as rosas, e o das magnólias do nosso parque. Mas entre os perfumes e os cheiros, há os odores, os odores, os aromas, e até os cheirinhos, e estes são toleráveis, não serão? Com certeza não acha ordinário o cheirinho dos sachets de alecrim e alfazema que a tia Francisca põe nas gavetas...
- Não deixam de ser cheiros...
- Mas olhe que esses cheiros têm também qualquer coisa de antigo, de familiar. E voltando a manjerico, sabe que tenho um grande prazer em respirar aquela emanação tão forte, tão vital?
Aqui, Milena deu a conversa por terminada. Não lhe interessavam as subtilezas literárias" da irmã, como chamava a alguns surtos dialécticos do espírito de Ana Luísa.
Enquanto Milena se me afigurava uma personalidade talhada em um só bloco, o temperamento de Ana Luísa, ainda que lhe possa atribuir um fundo de desequilíbrio ou de hesitações e perplexidades, mostrava uma abrangência existencial muito mais diversificada: se era capaz de se inebriar com o cheiro forte e quase áspero de um manjerico, também a sua sensibilidade não se mostrava indiferente aos perfumes requintados. Bastaria vê-la pedindo ao pai e às tias que não se esquecessem de recomendar ao jardineiro da quinta, plantasse todos os Verões o seu canteiro de goivos", cujo aroma ela adorava aspirar pelas tardes quentes ao pôr-do-sol". Posso até acrescentar que aos sentimentos mais ou menos gratos, nela excitados por cada perfume, acrescentava ainda as fantasias elaboradas em uma imaginação sempre efervescente. Recordo-me quando líamos ambas o poeta Eugénio de Castro, O perfume que ela traz hoje é frangipana... ", Ana Luísa pediu logo a M. " Lyotard se informasse qual a perfumaria de Paris de onde se poderia encomendar o frangipana".
Vital. Foi assim na adolescência que Ana começou a empregar este termo, que iria servir-lhe para exprimir várias ideias muito suas queridas. Vital significava para ela saudável, mas igualmente gosto de viver, exuberância. Mais tarde abrangerá também a ideia de força de vontade, de coragem, poder de decisão, capacidade de defesa dos interesses próprios, entusiasmo nas iniciativas, frenesim, pressa e, ainda, admito; vaidade e prazer consciente da própria vitalidade e sensualidade, pois, quando mulher já feita e vivida conscientizará e explorará com orgulho as qualidades pessoais, confessar-se-á, para quem a quiser ouvir, depositária assumida desse poderosofuror vital; mais, ostensiva, incisivamente reclamará e pugnará pelo direito de exercê-lo, de impô-lo e expandi-lo em todas as decisões da sua vida.
Ocorre-me outra atitude sua, corolário deste furor vital, que a tornava uma pessoa resoluta, e por vezes obsessivamente obstinada, indomável. Demonstrava-se numa prática, um tanto misteriosa, a que ela se entregava sempre que se aquietava um pouco e vinha sentar-se a meu lado (em algumas ocasiões até sozinha), sobre a grama das margens do ribeiro que corria ao fundo da quinta. Quedava-se como se pensativa, debruçada sobre a corrente. Contemplava o fluir da água, depois nela mergulhava uma das mãos, deixava-a correr por entre os dedos abertos, daí a pouco pegava em qualquer pequeno tronco por ali colhido e começava a limpar o fundo arenoso do ribeiro, libertando-o de pedritas, cacos, ramos, folhas, de todos os pequenos detritos depositados, até obter uma clareira desobstruída, limpa.
- Gostas muito destas limpezas - observei-lhe uma vez.
- Sim, para que a água possa correr bem livre, por aí adiante. Bem livre...
Só mais tarde vim a associar este hábito da sua adolescência e as suas palavras de então, com outras já da adultidade, frequentemente reafirmadas: Gosto de me libertar de todos os obstáculos que encontro no caminho. Gosto de lutar e de vencer. Já me tenho sentido enterrada no fundo do rio da vida, ou prestes a ser arrastada nos redemoinhos das suas águas. Mas sempre tenho conseguido salvar-me, erguer-me e vir à tona. Afundamentos e salvamentos, a minha vida está cheia deles.
Da personalidade do Eng. Anselmo de Lima e Castro, pai de Ana Luísa, não poderia dizer-se dominadora e dura; no entanto, devido à posição social e profissional, assim como ao estatuto que nesse tempo - estamos ainda na primeira metade do século XX, anos vinte, trinta, quarenta - era comummente atribuído a um pai-chefe de família, ele exercia com definida supremacia o poder paterno e a autoridade sobre os filhos, as irmãs solteiras, por ele mantidas, e até sobre a própria esposa, senhora já por si de carácter brando. Além desta patria potestas, social e tradicionalmente reconhecida, a posição e o prestígio derivados do elevado cargo desempenhado no Ministério das Obras Públicas, assim como a alta reputação de competência profissional e de integridade moral, criavam-lhe na sociedade lisboeta e na própria família uma aura de admiração e de respeito. Chegou a ser indigitado para ministro mas recusou. Porque, apesar de concordante acatador do Estado Novo, não estava no seu temperamento imiscuir-se a fundo na vida política.
Aliás, nunca aderira ao ideal republicano, permanecera numa inabalável convicção monárquica e é provável que a sua aquiescência para com o Estado Novo se encontrasse ligada à presunção de que o Dr. Oliveira Salazar, chefe do Governo, acabaria por promover o regresso à monarquia, ideia de que os monárquicos do tempo se encontravam suspensos.
Em questões de moral mostrava forte apego a tradicionalismos e conservadorismos. Na ascendência contava vários cavaleiros da Casa Real, militares, juristas e prelados ilustres, como autores de escritos teológicos e morais, cujos manuscritos conservava na sua biblioteca. Haviam sido seus antepassados gentes de solares e torres acasteladas, mas dos quais a maior parte viria a decair de estado e haveres por azares da fortuna e da história. Ele próprio nasceu já na capital, filho de um médico ainda coevo da monarquia, mas não lhe tendo cabido nenhuma farta herança, seguiu estudos com vista a uma profissão.
Fosse qual fosse a pregnância de sangue azul nas suas veias, ninguém deixaria de reconhecer-lhe na aparência física uma nítida finura de traços, com uma tez de um branco pálido, os olhos azuis acinzentados, o cabelo louro cendrado, ao que se acrescentava grande distinção de maneiras. Tipo físico recessivo, que viria apenas a manifestar-se na filha mais velha, Milena, pois os outros, entre eles Ana Luísa, como já disse, pareciam-se com a mãe crioula.
O conservadorismo relativamente aos costumes familiares e à moral social não o impediam de apreciar aquilo que designava por "os avanços da ciência". E era precisamente neste âmbito, e não pelo facto de permanecer monárquico, que poderia entender-se melhor qual o tipo preciso do seu conservadorismo. Apreciava os avanços da ciência como pura criatividade dos homens, mais exactamente de certa categoria de homens, as grandes inteligências, mas nessa criatividade interessavam-no e entusiasmavam-no sobretudo as repercussões que as descobertas científicas acabavam por provocar nas invenções tecnológicas e estas, por sua vez, na produção de artefactos úteis, que facilitavam a vida das pessoas, Só que, aqui, ele pensava apenas na vida das pessoas economicamente capacitadas para a sua aquisição. Por isso, em sua casa, ao lado dos móveis ricos e elegantes, de estilo, alguns já de valiosa antiguidade, instalava constantemente todas as aparelhagens mecânicas que pudessem introduzir na vida doméstica conforto, facilidade ou distracções agradáveis. Adquiria automóveis das melhores marcas e a sua casa foi das primeiras, no País, a poder contar com um frigorífico, uma telefonia e uma máquina, encomendada directamente dos Estados Unidos, para a lavagem de roupa. Muitas das vezes em que eu participava nos seus jantares de domingo, ouvindo as suas conversas com o filho mais velho, com o irmão médico, Afonso, e com os convidados masculinos (conversas em que não tomavam parte as senhoras), notava as constantes e entusiásticas referências à locomotiva Diesel eléctrica, criada na Suécia, às lâmpadas de néon, inventadas na França, ao primeiro serviço telefónico entre os Estados Unidos e a Grã-Bretanha, aos faróis para o nevoeiro, à fotografia a cores, ao tractor de lagartas, à iluminação fluorescente e a muitos outros inventos e descobertas ocorridos nessas primeiras décadas deste século mas que, lamentava, não tinham ainda chegado até nós.
Sendo o engenheiro tão grande admirador dos avanços da ciência, não parecia, nem ele nem os seus amigos, estabelecer quaisquer relações entre esses avanços e as transformações sociais e morais que acabavam por implicar. A pesquisa científica, para ele era uma actividade nobre" e não era plausível que lhe passasse pela mente a hipótese de tais avanços virem a vulgarizar-se, a democratizar- se, a tornarem-se acessíveis às classes de menos posses. Para ele seria impensável algum pequeno funcionário do Ministério dispor de um automóvel, ou a mulher, de um aspirador de pó; para ele era óbvio, um telefone, um esquentador, serem produtos do avanço da ciência", destinados a entrar apenas nas boas casas, nas boas famílias.
Também nos fragmentos de conversações que me foi dado apreender durante os referidos jantares, verifiquei ser um leitmotiv a ideia da necessidade da divisão da sociedade em classes, ideia natural, racional". Eles consideravam: as classes elevadas, formadas pela nobreza de linhagem, que felizmente continuava a existir, a alta burguesia, composta de gente muito válida"; e as classes populares, compostas por modestos funcionários, pequenos comerciantes (lojistas, retalhistas), artesãos, operários, e nestas incluía também certos escrevinhadores" como poetas, escritores, jornalistas, pelos quais mantinha notória antipatia.
As classes populares eram-no por sua natureza intrínseca, assim como as classes nobres e notáveis, o eram igualmente por natureza própria. Da mesma maneira que estas desde sempre haviam sobressaído e imposto por suas capacidades, as classes populares também se iam mantendo de geração para geração na sua inferioridade natural", de menor inteligência, de menor sensibilidade, de menor coragem para a guerra, para a alta administração das coisas públicas e pela relutância em se ilustrar. Daí o seu carácter plebeu, de acentuado pendor para os modos grosseiros, sem medida, para a linguagem reles, para as violências bestiais, enfim, como dizia Eça de Queirós, constituíam as plebes.
Além de que - consideravam à mesa, no fim dos óptimos jantares os convidados, ou enquanto se iam dirigindo para a biblioteca, simultaneamente sala de jogo, onde tomavam o café e os licores e fumavam charutos, continuando as suas conversas (só de homens) - era óbvio, as classes elevadas, para poderem conservar ao longo das gerações o seu padrão de valentia, de inteligência, de elegância e de requintes, de generosidade, de disponibilidade para a governação e, enfim, para a aquisição de ilustração", necessitavam de estar isentas dos trabalhos inferiores e rotineiros, pesados e sujos. Concordavam com a opinião do irmão médico, do engenheiro, que de facto essas classes deviam viver menos miseravelmente, pelo menos deveriam ser mais bem alimentadas, habitar em casas mais higiénicas, serem mais bem assistidas pela medicina. O banqueiro Joshua Balsemão, futuro sogro de Milena, entendia que, na verdade, a deficiência das produções nacionais, o nosso atraso industrial e agrícola podiam em parte explicar-se pelo baixo nível de nutrição e assistência médica dos camponeses, operários e mangas-de-alpaca. No entanto parecia-lhe haver o perigo de, um dia em que passarem a ser mais bem alimentados, a dispor de casas decentes, a tomar banho em tinas de água corrente, as classes populares poderem depois passar a exigir mais e mais, a sonharem passar da chita e da ganga para as sedas e para os veludos, das sardinhas para as lagostas, do carrascão para o champagne. Ao que, outro dos senhores contrapôs: Olhe que essas classes afinal não comem tão mal como isso. Alimentos grosseiros, pesados, é certo, feijoadas, boroa, couves, carne de porco salgadíssima. Mas são assim habituados desde pequenos e, em última análise, os sobreviventes são os mais fortes, actua a selecção natural. Se fôssemos a proporcionar soufflés e vols-aux-vents aos cavadores e medalhões de lagosta aos operários, eles ficavam cheios de fome. Além de que, meus amigos, as lagostas não chegam para todos...
De resto, quando os cavalheiros", os da casa e as visitas se abeiravam de certos pontos, nestas conversas, estas esmoreciam ou estacavam de súbito, para darem lugar a comentários sobre a excelência dos pratos saboreados no jantar. Era como se, sempre que se metiam por semelhantes discussões, no seu íntimo surgisse qual quer bloqueio e logo um ponto final, um tácito acordo de silêncio era aposto à frente das últimas palavras.
Entrados na biblioteca, ninguém mais ouvia o que diziam nas suas conversas só para homens, mas as senhoras da casa suspeitavam que eles tratariam então de assuntos políticos propriamente ditos.
A biblioteca, ou antes, a livraria, como a designavam as tias de Ana Luísa, constituía um domínio quase exclusivo do Eng. Lima e Castro, coutada defesa a quaisquer outros que não fossem ele próprio, seu irmão Afonso, o filho Nuno Miguel, quando começou a cursar Direito, e os selectos amigos.
Não que aos outros habitantes da residência faltassem umas tantas revistas ilustradas da época, bem como alguns livros de culinária, os álbuns de lavores femininos, os catálogos de móveis e de artigos para a decoração doméstica, figurinos, pautas de música. Mas estes faziam parte das estantes privativas instaladas nos quartos, e também na "salinha de estar, onde as senhoras passavam grande parte do tempo conversando, fazendo tricô, folheando as tais revistas de modas e de jardinagem, escrevendo cartas, ouvindo a TSF, e onde se tomava "o chá das cinco", muitas vezes na companhia das amigas mais íntimas.
A livraria era um dos mais amplos compartimentos do palacete - pois assim poderia ser classificada a residência lisboeta da família Lima e Castro - só ultrapassado pela solene casa de jantar, onde se realizavam as esplêndidas refeições de domingo ou os banquetes por ocasião de celebrações festivas.
Livraria recheada de abundantes maples de couro inglês, "capitonés", e de uma série de armários - estantes de acaju, uma scribane holandesa, uma mesinha de jogo, um licoreiro. Aqui, como vimos, o engenheiro passava os serões com os convivas masculinos, jogando o xadrez, o pocker ou o bridge, fumando-se charutos, cigarrilhas ou cachimbo, conforme as predilecções, provavelmente conversando sobre política nacional e internacional, provavelmente criticando decisões governamentais, insistindo nestes temas a um nível, senão mais profundo pelo menos mais pormenorizado e concretizante que aquele em que os abordavam ainda à mesa, quando, portanto, ainda estavam presentes os novos e as senhoras.
O recheio desta livraria - clube só para homens - tanto quanto me foi dado apreciar nas visitas furtivas que aí pudemos fazer, Ana Luísa e eu, e por revelações indiscretas de M. " Lyotard, que por assim dizer desempenhava também as funções de bibliotecária, era constituído por obras que proporcionavam aquilo a que o Eng. Lima e Castro encomiasticamente considerava como de "ilustração", e isto por oposição a outro conceito por ele relegado como "nefasto e deletério", o de "cultura".
Recordo, dessas surtidas clandestinas, vários tipos de obras. Entre manuscritos e impressos, álbuns ilustrados com a reprodução de armas e brasões, genealogias, obras piedosas de formação moral e religiosa, escritas por antigos eclesiásticos e algumas por freiras, hagiologias, obras de eloquência sagrada, biografias de cavaleiros e prelados ilustres do passado, histórias de congregações, tudo obras com encadernações ricas antigas, de couro lavrado e fecharia de prata. Havia uma biografia de Napoleão, outra de Bismarck, vários livros sobre a Maçonaria, enciclopédias, obras sobre "costumes curiosos" de diversos "povos estranhos e exóticos".
A Literatura estava escassamente representada. Vimos uma edição do séc. XVIII de "Os Lusíadas", outra da "Carta de Guia de Casados" de D. Francisco Manuel de Melo, e o "Frei Luis de Sousa".
Um dia, numa das gavetas fundeiras de uma das estantes maiores, que por acaso ficara aberta, descobrimos o "inferno" da livraria. Todas as bibliotecas, tanto as públicas como as privadas, possuem o seu "inferno", ou seja, o acervo de obras proibidas, ou porque ofendem a moral e os bons costumes, ou porque são subversivas para os poderes instituídos, ou por seu sadismo ou terrorismo psicológicos.
No "inferno" da Livraria do pai de Ana Luísa jaziam os dois romances mais "indecentes" de Eça de Queirós, "O Primo Basilio" e "O Crime do Padre Amaro, de parceria com "Madame Bovary, dois livros de galanterias picantes do séc. XVIII (aliás, com óptimas gravuras), um poeta licencioso romano, traduzido em francês, um tratado de anatomia onde se mostravam configurações realistas das partes pudendas do corpo humano, um álbum, também ilustrado, a cores, com semelháveis desenhos sobre os costumes sexuais dos "povos exóticos" e, por último, a "Fisiologia do Amor, de Paulo Mantegazza.
Na gaveta gémea desta, infernal, para maior espanto nosso descobrimos vários livros de poemas, todos com dedicatória. Apurámos mais tarde que esses infelizes livros não haviam sido comprados pelo engenheiro mas sim oferecidos por um seu amigo, versejador mas desconhecedor do baixíssimo conceito em que ele tinha toda a poesia e ficção romanesca, Coisa nefasta e deletéria, tanto para os espíritos fortes como para os fracos, tanto para os femininos como para os espíritos jovens em formação: sob essa capa de líricas imagens e finos sentimentos, são conduzidos a devaneios mórbidos e a um perigoso despertar da sensualidade.
Palavras que por mais de uma vez lhe ouvi, e proferiòas com alguma cólera, quando ele veio a descobrir que tanto Ana Luísa como o filho mais novo, o Rui, haviam começado a interessar-se pela leitura novelística, por poesia e por novidades da vida artística.
A livraria estava pois defesa às senhoras e aos filhos mais novos desta família. Apenas ao Nuno Miguel, como creio já ter dito, a partir da maioridade foi permitido o livre acesso a esse santuário da ilustração.
É que Nuno Miguel, e também Milena, eram os filhos, não digo mais queridos ou preferidos do engenheiro Lima e Castro, acredito que ele amava a todos por igual; mas como eram os mais acatadores, os melhores seguidores das suas normas, digamos dos seus princípios morais, mentais, políticos e sociais, partilhando das suas convicções conservadoras; era nestes que o pai depositava as maiores esperanças".
Nuno Miguel foi sempre o que se chama um rapaz bem comportado, un fils à papa, como com algum desprezo o designava o irmão mais novo. Desde muito cedo aprendeu a praticar com a maior seriedade e rigor as normas sociais da boa cortesia. Beijava respeitosamente e elegantemente a mão das senhoras, escutava os homens mais velhos, sobretudo os de maior importância social, com deferente aquiescência, servia de cavalier servant às primas e às meninas conhecidas, de boas famílias e do seu convívio. Aprendera jogos de salão com o pai e com o tio, praticava um pouco de golfe de ténis com os mais selectos colegas e amigos. Como estudante de Direito, entregara-se aplicadamente aos seus tratados, sem perder tempo com leituras divergentes, nem com participações fúteis e inúteis, em associativismos estudantis e teatros académicos. Literatura, artes, nada disso lhe interessava e, tal como o pai, considerava-as como distracções para aristocratas neuróticos ou compensações para proletários e pequeno-burgueses desejosos de se engrandecerem na escala social, Fazia questão de frequentar a ópera, de apreciar um bom actor ou uma boa actriz, os grandes toureiros, tal como discutia acaloradamente com os senhores seus conhecidos e amigos os grandes alfaiates e os mestres cozinheiros deste ou daquele hotel. Quando chegou a altura de escolher um curso superior hesitou: carreira forense? carreira diplomática? Optou pela advocacia, onde todos os senhores amigos do pai lhe prognosticavam uma carreira brilhante". Desde cedo ele sabia que a sua educação, os seus dotes oratórios", por todos reconhecidos, acabariam por introduzi-lo nas mais elevadas camadas sociais, senão do Poder, pelo menos nas já muito próximas e influentes. O Poder não lhe interessava muito mas a glória profissional e a fortuna vieram a cumprir-se nos projectos e ambições de Nuno Miguel, o ilustre irmão de Ana Luísa que, mais tarde, quando ela acabar por atraiçoar os princípios morais e consuetudinários da família em que nasceu, deixará de reconhecê-la como irmã.
Já o filho mais novo, o Rui, chegaria aos dezassete anos sem projectos para um futuro". Devaneias - censurava-o o paimas sonhar, ambicionar um futuro, como todos os rapazes devem, não é contigo. Vives nas nuvens, tens quase dezoito anos e ainda não fazes a mínima ideia daquilo que pretendes vir a ser. " E o Rui, um dia, perante esta recriminação mais uma vez repetida, ousou responder- lhe, E se eu lhe disser que queria vir a ser poeta, ou antes, poeta já eu sou, mas queria vir a publicar os meus poemas, isso não seria também sonhar? Não, bem sei que não. Para o pai, para o tio Afonso, para a tia Ausenda, para a mana Milena, tudo quanto eu devo desejar vir a ser é engenheiro, como o pai, médico como o tio, advogado como o Nuno Miguel, talvez banqueiro como o noivo da Milena", e concluiu, provocatório: A burguesia só conhece estas como profissões decentes. "
Foi a irmã Milena que o invectivou com severidade e altanaria: O menino devia abster-se de empregar essas classificações de sociologia esquerdista, burguesia para aqui, capitalismo para acolá. Em vez de estudares, como o Nuno Miguel, para tirares uma formatura, entretens-te com leituras inúteis, encharcas-te de poesia, de versalhada. O menino nunca ouviu dizer que poeta é igual a pateta?
Até anda amarelo desde que se afundou nessas leituras... culturais.
Estas e outras censuras tornaram-se frequentes na boca da irmã Milena quando, já noiva oficialmente, se sentiu com autoridade para admoestar o irmão mais novo, cujas "inclinações esquisitas (como dizia a tia Ausenda), se evidenciavam "assustadoramente. No solene banquete, comemorativo da formatura de Nuno Miguel e, simultaneamente, do pedido de casamento de Milena pelo banqueiro Joshua Balsemão, não se atreveu ele, diante do pai e de todos os convivas, num momento em que o tema da conversa geral incidia sobre a variedade de legumes e hortaliças consumidas pelos estrangeiros, em comparação com a indigência do nossojardin potager, pois nós, os portugueses, raramente passamos das nabiças e dos nabos, das cenouras e dos repolhos, e por isso é tão difícil encontrar courgettes, échalotes, endives, champignons - e exactamente na ocasião em que se nomeavam também os poireaux, não foi que ele, Rui, se atreveu a largar uma daquelas terríveis boutades em que se tornara useiro e vezeiro, "depois de se ter voltado para essa coisa da cultura, boutades amaríssimas para a família, quer pela inconveniência diante de convivas ilustres - não foi que ele, numa conduta (pois de uma conduta se tratava, e provocatoriamente adoptada! ), verdadeiramente deselegante, "plebeia, quando se referiram os poireaux ousou frisar: -"Poireaux? Ah, já sei, alhos-porros! - E, se não repetiu a graça, como parecia fazer menção, foi porque imediatamente o fuzilaram os olhos, azulíssimos tornados, do pai.
Porque um dos constituintes do "conceito de ilustração, nesta família (e em outras, suas semelhantes) consistia no emprego de estrangeirismos, principalmente de galicismos.
Até a linguagem das tias Ausenda e Francisca era formada por uma curiosa mescla de arcaísmos provincianos, de raiz nacional, e por uma gama de tais estrangeirismos.
Nesse tempo, em que a Rádio e a Televisão não tinham ainda invadido nem a vida pública nem a privada, essas práticas linguísticas não se prendiam apenas a ideias de requinte e ao tal conceito de "ilustração, pois é provável que as famílias ricas, as tais da alta e da média burguesia, adquirentes de certos artefactos e peças de mobiliário, de baixela, de determinados tipos de tecidos, não fabricados entre nós e importados do estrangeiro, acabassem por adoptar as correspondentes designações, em falta na língua nacional. Além disso, tais estrangeirismos desempenhavam também funções eufemísticas. Seria demasiado cru, pouco decente, que "uma autêntica senhora, dissesse, por exemplo, "roupa interior" ou "roupa de baixo, Lingerie era mais discreto e ainda mais elegante. Porque "roupa interior, o que lembrava logo eram camisas, corpetes, cuecas, coisas afinal antigas e "assaloiadas, peças de vestuário confeccionadas com panos grosseiros, opacos, ásperos, em suma "ordinários, deselegantes, plebeus, Ao passo que lingerie sugeria indefectívelmente cetins, musselinas, finíssimas rendas e bordados, aplicados em liseuses, déshabillés, chemisettes.
De maneira que os alhos-porros produziram nos ouvidos da família Lima e Castro o mesmo efeito que um termo espurco ou obsceno. Além de que tal expressão constituía mais uma prova cabal do "efeito deletério" da tal cultura por onde pareciam querer desnortear-se os dois filhos mais novos, o Rui e a Ana Luísa. Acrescentando a isso as alusões depreciativas ao valor atribuído às pro fissões "mais dignas. Não veria esse filho rebelde, como uma formatura universitária, sobretudo nos tempos correntes, em que "tantos títulos, direitos e bens haviam sido ilegalmente extorquidos à nobreza, durante e depois das famigeradas Lutas Liberais, e ainda com a recente mudança da monarquia para a república, não veria esse filho em vias de transviar-se, como uma formatura universitária ainda era o único meio que permitiria agora aos "espoliados, - como já permitira ao engenheiro, seu pai, a manutenção de um digno status social?
Que se aliasse a alguma das profissões dignificantes essa "coisa suspeita" a que chamavam "cultura", isso em nada enalteceria alguém aos olhos de Lima e Castro e dos seus amigos. Pelo contrário, um laivo de certo desprezo logo recaía sobre esse alguém. Porque, por um lado a dita "cultura andava quase sempre ligada a uma situação económica pouco brilhante, a uma situação de "pelintrice. Na sua maioria, os tais "cultos eram pessoas de origem muito modesta, pertencentes, por assim dizer, à "plebe em ascensão, Por outro lado verificava-se muito frequentemente, "nessa gente, a repudiável qualidade das tendências subversivas em todos os domínios, na religião, na moral, na política. Entre todos eles apareciam muitos utopistas, sem a noção da medida das realidades, os agitadores revolucionários, que perturbavam a paz social tão necessária ao progresso das nações, seduzindo o povo ingénuo com promessas vãs.
Era certo, vários dos grandes utopistas e agitadores de ideias haviam nascido nas classes mais elevadas, mas precisamente tais desvios e desvarios, tinham por causa a famigerada cultura, que viera usurpar o lugar da pura ilustração.
Numa autêntica boa sociedade", apenas devia admitir-se a ilustração, coisa bem diferente da cultura e também da instrução. A instrução, obviamente necessária, adquiria-se nas escolas, era o conjunto dos conhecimentos básicos e específicos, úteis para o desempenho das carreiras elevadas, dos futuros médicos, advogados, engenheiros, grandes financeiros, grandes titulares de cátedras universitárias. Já a matéria-prima da ilustração adquiria-se sobretudo através da conversação com gente ilustre por sua educação.
Além das pessoas viajadas, ilustres, verdadeiramente ilustres eram esses antigos nobres e prelados, entre os quais (como já disse) o Eng. Lima e Castro contava alguns antepassados. Gente cujas horas livres eram preenchidas não com leitura de ficções, mas com o exercício disciplinado, paciente, da redacção de crónicas históricas dos feitos dos reinos, ou da vida de homens santos ou valentes guerreiros de armas, ou da fundação e regimento de ordens religiosas, ou das regras para a conduta moral e acções piedosas das gentes. Igualmente nobilitante e ilustrante era a ciência do traçado das árvores genealógicas das famílias notáveis, assim como a redacção de um tratado de esgrima, de equitação, de etiqueta; admitidos ainda como de ilustração, certas memórias de grandes viajantes ou de evangelizadores dos gentios.
O conceito de ilustração acabava por se fundir, no espírito do Eng. Lima e Castro, com o de distinção. De qualquer modo, ficavam ambos ampliados e completados pelo teor das relações sociais que se mantivessem com pessoas importantes, de alto gabarito nos lugares preponderantes da governação e da banca, muito melhor ainda se a esses quesitos acresciam os de se ser viajado. Que cultura literária ou sapiência científica poderia comparar-se ao refinamento proporcionado pelo conhecimento directo das grandes capitais como Paris, Londres, Roma, Viena de Áustria e até Nova Iorque? Ter jantado no Savoy de Londres, conhecido Sevilha palmo a palmo, passeado no Bois de Bologne e nos Champs-Élysées, admirado a Torre Eiffel, o Sacré-Coeur, o Quartier Latin... Saber comparar os virtuosismos líricos e dramáticos dos grandes iatérpretes da Carmen, do Rigoletto, da Tosca... Discernir a peculiaridade de um autêntico roast-beefou de um spaghetti... Discutir a ameaça da Rússia, o perigo amarelo, a política de Lloyd George, de Clemenceau, de Wilson, os actos heróicos e galantes de Gabriele D'Annunzio, a grande depressão da Bolsa americana, a queda do Império Austro-Húngaro, a guerra dos Boers, a decadência do Ocidente... e, também, saber discutir sobre estilos de móveis, marcas de champagnes, tudo isso entremeado de muitos episódios e anedotário colhidos ao vivo e em directo numa vida cosmopolita e de alta-roda, isso sim, era de gente ilustre e distinta.
O conceito de ilustração amalgamava-se ainda com a habituação ao conforto e às maneiras requintadas.
Mais alguns apontamentos sobre esses hábitos e maneiras contribuirão para nos elucidarem sobre o ambiente em que Ana Luísa foi nada e criada, e isto principalmente porque apesar da sua futura rebelião contra a família, contra os valores burgueses, e apesar também do decaimento do estatuto económico em que acabará por se ver, na medida em que, mulher sem profissão e com uma ligação amorosa ilícita, vivida com um homem de situação financeira modesta, ela irá constantemente procurar recuperar certas notas de elegância e mundanismo.
O pai de Ana Luísa chegava ao ponto de se preocupar pessoalmente com certas práticas da vida doméstica. Não, obviamente, com as tarefas básicas e rotineiras do dia-a-dia. Essas estavam perfeitamente asseguradas pelo zelo da mana governanta, Ausenda, coadjuvada pela irmã boticária e jardineira, Francisquinha, pela cozinheira, pelo criado de mesa, pelas criadas de quarto e pelas preceptoras.
Não se estranhe não ser aqui mencionada a mãe de Ana Luísa, D. Teresina. É que esta, embora velasse pelo conforto e mimos dos filhos no que respeitava ao vestuário, às horas de estudo e de divertimento, devido ao seu temperamento indeciso, tímido e de total submissão e adoração pelo marido, deixava o governo da casa entregue às cunhadas e ao pessoal mais antigo. O que, diga-se entre parênteses, constituía para a cunhada Ausenda uma compensadora felicidade, na medida em que lhe proporcionava uma justificação de merecimento na sua qualidade de celibatária, economicamente dependente do irmão. E o que Lhe dava também o prazer de um pequeno ódio e muitas raivinhas por ver como a cunhada Teresina ficava assim livre de preocupações domésticas, para poder entregar-se à sua indolência africana, para dar largas aos seus caprichos de mulher mimada, entretendo-se só com os seus berliques e berloques", ataviando-se como uma concubina, palavras que chegava a pronunciar diante de M. " Lyotard e até de mim.
Aquando do banquete já referido, oferecido pelo Eng. Lima e Castro, por ocasião simultaneamente da formatura de Nuno Miguel, em Direito, e do pedido de casamento de Milena, ele em pessoa tratou com a mana Ausenda de todo o cerimonial que deveria ser observado, desde a baixela a utilizar até ao menu e às marcas dos queijos e dos vinhos a apresentar aos convidados, todos pessoas da maior ilustração.
Transcreverei o diálogo travado entre os dois irmãos, ao qual assisti, ao lado de Ana Luísa, e que ficou gravado na minha boa memória:
- O Mano - dizia a tia Ausenda - deve estar ciente de que eu posso não valer nada (e aqui, a sua expressão mordaz fez-me supor que, muito provavelmente, procuraria atingir indirectamente a indolência da crioula, sua cunhada), mas confeccionar um cardápio (cardápio, um dos tais termos vernáculos que as duas irmãs do engenheiro conservavam ainda, reminiscências da origem provinciana), seja ele de que género for, para baptizado, aniversário, casamento, ainda sou capaz. Posso não conhecer coisas muito modernas, e as pequenas fazem troça de mim, dizem que estou muito antiquada na maneira de vestir e de falar, antiquada até nos cardápios que componho, acham que eu devia meter uma cozinheira mais actualizada, que soubesse confeccionar pratos americanos, vejam só, como se a comida americana valesse alguma coisa! Elas vêem nas revistas essas fotografias espalhafatosas por tão coloridas, das saladas malucas que eles lá usam, em que misturam alfaces com ginjas, essas sandwiches barradas com molhos de bisnaga, quando a nossa Felismina faz uma mayonnaise melhor que as francesas! Vêem todas essas modernices, querem copiá-las, mas, por mim, fique o Mano ciente, enquanto eu governar a casa, sim, afinal quem governa a casa, não serei eu? sempre aqui se há-de comer comida verdadeira! Quer melhor canja que a nossa, feita com as galinhas da quinta? E os pratos franceses clássicos, não serão afinal os mais chics? O mano sabe muito bem como os nossos convidados gabam os soufflés e os consommés da Felismina, orientada por mim, já se vê...
Aqui, atalhando-a num momento de respiração funda e de pausa, com ar de dignidade o irmão interveio:
- Ninguém diz menos de tudo isso, mana Ausenda. Mas para este banquete será preciso escolher coisas menos vulgares.
Ausenda, retomando novo fôlego, mostrou-se um tanto magoada:
- Mas quem poderá achar vulgar o nosso consommé, em que se gastam quilos de carne limpa, leva tudo como deve ser, a gordura do lombo, as ricas cenouras, as esplêndidas cebolas, os belíssimos nabos, tudo da quinta, e aipo, sim aipo, uma coisa que rara gente usa, e poireaux? E em que a Felismina faz a mais perfeita das clarificações à custa de muitos ovos?
- De acordo, de acordo - interrompeu-a de novo o engenheiro, conhecedor da verborreia da irmã, sempre que surgia uma oportunidade -. Mas, em resumo, onde eu quero chegar é aqui: temos de apresentar algo de rico, requintado. Lembre-se de que vamos ter à nossa mesa dois catedráticos de Direito, e o próximo futuro sogro da Milena traz com ele, nada mais nada menos, o subse cretário de Estado das Finanças e o ministro do Comércio. Quer que lhe diga o que tenho andado a imaginar, para esta ocasião? Pois a reconstituição do menu de Beauvillier, com os seus doze pratos! De qualquer modo, como certamente isso não irá ser possível, não devemos deixar de apresentar, pelo menos uma sopa de tartaruga, perdizes, faisão, trufas, salmão, lagosta, camarões, trutas, espargos, endives, escargots.
- Mas evidentemente, Mano. Haverá alguma família verdadeiramente ilustre que não sirva essas iguarias? Compreendo muito bem o que o Mano pretende, pode ficar descansado.
E pela cabeça de Ausenda devem ter desfilado em galope aqueles nomes tantas vezes pronunciados lá em casa, de potage au tortue, de truites saumonnés, de aspic defois gras, creme de d'asperges, sauté de volailles aux truffes, perdreaux à la Periguex, faisan piqué, e as opulentas sobremesas, todas com designações distintas, que ela escrevia nos cartões do cardápio, decorados com grinaldas de flores, desenhadas por Ana Luísa, sob a supervisão de M. " Lyotard.
Depois, o engenheiro continuou - Pronto, Mana, quanto ao menu estamos entendidos. Agora pergunto-lhe: já chegaram os pratinhos para os fundos de artichauds? Faço imenso gosto neles, suponho que em Lisboa por enquanto só a viscondessa das Fontainhas os apresenta.
- Ainda não chegaram, mas estou convencida de que chegarão a tempo. Haverá já uns três meses que M. " Lyotard fez a encomenda para Paris.
(E digo aqui, entre parênteses, que depois, no banquete, os pratinhos para os artichauds, chegados a tempo, constituíram um dos animados temas de conversação, tanto para os cavalheiros como para as senhoras. ) Mas, continuemos com o diálogo entre os dois irmãos
- A propósito, Ausenda, quero que apresente tudo no serviço de porcelana inglesa Império, o de filete dourado.
- Fique descansado, Mano. Olhe que as raparigas já andam a limpar toda a argenterie. E aconselhei a Teresina a comprar mais duas dúzias de lavabos, ainda se encontram iguais aos que temos, acho que fiz bem, da última vez faltaram dois, tive de pôr outros, diferentes, uma arrelia, gosto de tudo a condizer.
- Fez muito bem.
- E olhe, pareceu-me ouvir dizer à Teresina que na baixela da Milena, oferecida pelo sogro, até há pratinhos para ostras e para escargots. Mas, ao menos se vierem os dos artichauts também seriam um êxito. E também já tenho uma receita muito especial para eles...
- Bem, e não se esqueça de mandar vir o relojoeiro para afinar o regulateur. Pronto, agora desça comigo à copa, vamos ver como estamos de bebidas.
A garrafeira, outra das preocupações do engenheiro em matéria de assuntos domésticos. Era grande conhecedor embora bebesse com moderação. Mas, conhecer as marcas dos bons vinhos, saber empregar os termos adequados para exprimir as suas virtudes, falar da limpidez, da adstringência, das cores: citrina, palha, granada, rubi; dos paladares: acídulos, frescos, macios, equilibrados, aveludados, encorpados; dos aromas: frutados, com bouquet, com estágio ou floral, e também das castas e dos caracteres das colheitas dos vários anos, era um dos grandes temas das conversas dos cavalheiros ilustrados.
No entanto, o supremo orgulho doméstico do engenheiro, muito superior ao da sua mesa, da sua livraria, da sua garrafeira e das novidades em utensílios modernos, era o seu luminaire, famoso em toda a capital. Aí, nenhuma casa de Lisboa, por mais rica, ilustre, ou nobre que fosse, podia comparar-se à sua. Era profundo conhecedor, coleccionador apaixonado e, nesse ponto, a sua casa podia considerar-se quasé um museu.
Distribuído por todo o palacete, a residência lisboeta da família, inclusivamente logo a partir do hall, subindo depois pela escadaria de balaustrada em sicupira, e visitando salas e saletas, alcovas e antecâmaras, podia admirar-se um conjunto feérico de lâmpadas suspensas, lustres, flambeaux, castiçais com suas bobèches, lanternas e lanternias, candeias, tocheiros, candelabros, quinquets, appliques, girândoles. Nos dias em que dava recepção, o engenheiro, numa visível satisfação de coleccionador, chamava sempre a especial atenção de amigos e convidados para certas peças mais raras, belas ou famosas deste luminaire, e entre elas sobressaía aquele lustre em forma de taça de bicos múltiplos, cópia encomendada de um outro, pertença do Museu de Nápoles, e que aqui rematava o centro do tecto de estuque "modera style", da sala de visitas. Mais espectacular ainda, a coroa de luzes, essa autenticamente medieval, de bronze dourado e esmaltado, que lhe custara uma fortuna" num leilão e se impunha a todos os olhares logo no hall de entrada.
As visitas mais íntimas conheciam também o par de girandoles Luís XIV, exibido sobre uma cómoda Luís XV, do boudoir da esposa, cómoda onde ela guardava os tais uberliques e berloques" a que se referia a cunhada Ausenda: as poudrières, os frasquinhos de perfumes franceses e egípcios, as escovas de cabelo com forro de marfim, de madrepérola ou de prata lavrada, os bibelots italianos, os escrínios das jóias, as caixas de charão com flores artificiais, as aneleiras, os suportes para os colares, as inúmeras pochettes para isto e para aquilo.
Para terminar a descrição de toda esta candelária, como por vezes vernaculamente dizia a tia Ausenda, não deixarei de recordar o grande, sumptuoso lustre da sala dos banquetes, todo de cristais maciços, assim como os bouts de table; de prata lavrada, e os candelabros-estatuetas, adossados aos espelhos para multiplicação das luzes, assentes sobre socos cilíndricos com guiclandas.
Aliás, neste salão dos banquetes pusera o casal Lima e Castro toda a sua complacência na montagem de um luxo burguesmente sólido, pesado, rico, aparatoso. Não faltavam as tapeçarias nas paredes, com os clássicos motivos de caça e alegorias relativas às quatro estações do ano, uma enorme mesa extensível, os cadeirões de espaldar com assento de couro lavrado e pregueado, um jogo de bufetes e aparadores, as maciças salvas de prata lavradas, as porcelanas da Índia e da China, os biscuits, a imensa carpete francesa, o já mencionado régulateur Regência, sem esquecermos os serviços de loiça de Sèvres, as porcelanas inglesas, os faqueiros de prata, a verrerie de cristal.
Hesitei em trazer para aqui estas descrições, aliás bem sumárias. Porém, cedi ao prazer de recordar algumas coisas belas que conheci nesta casa e continuo também a manter presente o pressuposto da necessidade de mostrar o ambiente físico-psíquico-familiar em que se moveu a primeira parte da vida da minha protagonista.
O receio de cansar os prováveis leitores deste romance, inibe-me de prosseguir a descrição, tanto do restante interior como do exterior das residências da família de Ana Luísa.
Desisto, portanto, também da descrição da nursery. Na época em que comecei a frequentar a casa de Ana Luísa (andaríamos, ela e eu, pelos doze anos), a nursery encontrava-se reduzida a um "Quartinho das saudades, como Lhe chamava a tia Francisquinha, saudosa da meninice dos sobrinhos, e onde conservava os brinquedos e jogos mais estimados deles e que haviam escapado aos seus vandalismos.
Limito-me a dizer que os filhos do Eng. Lima e Castro tiveram uma infância contemplada, nesse domínio, com tudo quanto na época havia de melhor no mundo, e que Lhes era oferecido pelos pais, pelos parentes e por amigos, em quantidades, direi, de exagero.
Além de que só Milena mostrava estima pelas relíquias do "Quartinho das saudades, e quando casou quis levar algumas das bonecas mais queridas; o Rui apenas apreciava álbuns de historietas ilustradas e os jornais infantis da época; pedira autorização aos pais, mais tarde, para oferecer os seus brinquedos "burgueses" aos pobres da vizinhança, tanto de Lisboa como da quinta.
Ana Luísa foi sempre a menos apreciadora dos caríssimos jogos e brinquedos com que a cumulavam. Tirando a trottinette, em que fazia corridas desenvoltas ("desvairadas, lhes chamava a "resmungona da tia Ausenda), de cabelos e vestidos esvoaçantes, e um ou outro puzzle que lhe espicaçava o gosto da descoberta, preferia brincadeiras de sua invenção, onde podia "dar largas às suas fantasias", e que a distanciavam um pouco do permanente núcleo familiar, "de papás e titis (como me dizia num ar irritadiço e azedo); por exemplo, ir para o quarto das arrecadações, nas águas-furtadas (na mansarda, dizia) mascarar-se e pintar-se, para se pôr como uma senhora, "quem me dera já ser mais crescida, chapinhar à doida nas poças do jardim quando ehovia, esconder-se na torre do mirante para ler livros "às escondidas do pai ou discutir com o Rui os seus assuntos misteriosos e proibidos, que passaria depois ao seu secretíssimo Caderno Lilás, caderno em que, além desses apontamentos, misturaria também os seus desenhos e pinturas.
E, a propósito, será oportuno falar desde já deste Caderno Lilás, mantido por Ana Luísa desde os onze anos até aos últimos dias da sua vida; embora com enormes hiatos no tempo. A esse Caderno me concedia ela às vezes um acesso de confidente a fim de que eu pudesse compreender melhor o sentido mais profundo de certos pensamentos e sentimentos seus, mal aclarados durante simples conversas entre nós. Nesse tempo, portanto, lia os "segredos", que ela confiava ao Caderno Lilás, mas evidentemente, eu não tomava quaisquer notas, não copiava quaisquer textos - o que só viria a acontecer mais tarde.
Quando me dispus a redigir este romance, veio-me imediatamente à memória esse Caderno Lilás, assim como algumas cartas escritas por Ana Luísa a mim e a outras pessoas.
Se eu fosse uma romancista profissional, os críticos literários e alguns leitores poderiam vir a acusar-me de, ao introduzir aqui passos deste Caderno, me socorrer de um estratagema fácil e até vulgar, muito em uso nos escritores do século passado, tal como é o de imiscuir no discurso narrativo diários, cartas, recortes de noticias jornalisticas, etc. Concordarei, de facto é um estratagema sem originalidade, mas a verdade é que não procuro ser original e apenas servir-me de todos os recursos possíveis para contar claramente (e isto para mim é muito importante, a clareza, a inteligibilidade da narrativa) a vida agitada que foi a da minha protagonista. Penso também: em matéria de recursos técnicos ficcionais, desde que de facto se pretenda dar uma estória com sentido, as inovações verdadeiramente são sempre uma ilusão.
Antes de me lançar na aventura deste romance, consultei um tratado de retórica. Aí se descrevem todos os processos clássicos, as várias modas da arte ficcional, e a conclusão é que, em última análise, todos esses modelos se reduzem a uns quantos protótipos e muitas das actuais técnicas que pretendem estabelecer a miscigenação entre o autor e as várias espécies de narrador (ou de narradores), com a reversibilidade dos tempos cronológicos e dos lugares, as aberturas polifónicas para várias conclusões ou destinos plausíveis, deixados ao arbítrio do leitor, a maior parte das vezes chegam a estabelecer no espírito das pessoas uma tremenda confusão, um grande desgosto ou até profunda náusea. O pior é que os mais desprevenidos desses leitores acabam por se considerar a si próprios como antiquados, ignorantes ou de inteligência acanhada, e só os ansiosos pelas coisas novas, pelas últimas modas se sentem em uníssono com a originalidade" dos vanguardistas, embora no fundo se tenham aborrecido e não tenham entendido nada. Mas, a esses, o que os deslumbra é precisamente a ousadia dos escritores que conseguem tão afoitamente deitar poeira aos olhos dos ingénuos que persistem em apreciar uma estória contada, uma descrição aceitável, uma conclusão coerente, plausível.
Não. Quero ver se consigo escapar ao grupo daqueles a quem alguém atribuiu a autoria dos intermináveis funerais do sentido".
No meu caso, em que estou apenas a tentar escrever o meu primeiro romance, não hesitarei em transcrever, sempre que vier a propósito, alguns passos desse Caderno, redigido pela minha protagonista.
Perdoem-me os prováveis leitores estes meus desvios teoréticos, e considerem que eles, afinal, fazem parte das minhas dúvidas e hesitações. Seja como for, o que é preciso é não perder o fio à meada". Por mais rodeios, recorrências e artimanhas de que nos sirvamos, é fundamental que a estória, ainda que por vezes deixe de se ver à superfície da narrativa, não pare nunca de fazer ouvir o murmúrio discreto do seu permanente fluir subterrâneo, e mais adiante sempre volte a irromper à superfície, visível e audível.
Como acho necessárias algumas palavras sobre a religião dos Lima e Castro, não poderei deixar de fazer ainda uma referência a mais duas dependências da sua residência: a capela e o oratório.
Neste tempo acontecia em muitas famílias nobres, ricas ou ilustres, existir uma capela anexa à própria residência.
A capela do palacete Lima e Castro apenas se abria para casamentos e baptizados. Era uma pequena construção sem especial valor arquitectónico ou outro qualquer e, como raramente era aberta, cheirava a mofo, tinha um ar inóspito, frio por ausência longa de presenças humanas.
Excepção feita das duas irmãs celibatárias do engenheiro, que compareciam dominicalmente na missa de Arroios (o palacete ficava à Estefânia), comungavam ao menos uma vez por ano, pela Páscoa, contribuíam com toalhas de altar arrendadas e flores, e ofereciam grandes lotes de roupa usada para os esmoleres privativos da igreja e, portanto, delas se poderia dizer, eram católicas praticantes, os restantes membros da família também se afirmavam católicos, como, aliás, a maioria dos seus compatriotas, tanto os cépticos como os indiferentes ou os que se dizem católicos à sua maneira, isto é, aceitam certos pontos doutrinais mas repudiam outros, o que não era o caso da família Lima e Castro.
Longe do espírito do engenheiro e de sua esposa quaisquer preocupações de ordem crítica, nem que fosse uma tão moderada e ingénua como essa de se ser católico à sua maneira", ou de se ser católico mas não praticante". A fé, a Igreja Católica e a sua doutrina, para eles eram temas indiscutíveis, de verdade assente, definitiva, intocável. De resto, a religião católica apostólica romana fora-lhes transmitida pelos antepassados; verdadeiramente jamais reflectiram sobre o assunto. É certo, depois de entrar na vida profissional e de ter criado responsabilidades familiares, o engenheiro negligenciara a prática de alguns actos culturais mais rotineiros, como a missa dominical e a comunhão anual. No entanto, casara religiosamente, baptizara solenemente os filhos, assim como, mais tarde, todos eles casariam pela Igreja e dentro da Concordata, que aprovavam plenamente, e também comparecia indefectívelmente nos funerais católicos de parentes, amigos e gente grada do Ministério ou do Governo.
Continuava pois, sem qualquer sombra de dúvida, no acatamento da Igreja Católica Apostólica Romana como mediadora de Deus junto dos homens e vigilante zeladora da sua moral e dos bons costumes.
O engenheiro entregou a orientação religiosa dos filhos às irmãs, que considerava como respeitáveis guardiãs das velhas tradições familiares, e assim foram elas que lhes ensinaram o Catecismo, o acompanhamento das principais cerimónias sacras, e os prepararam, com muitos carinhos e temores, em suma, com autêntico dramatismo, para a comunhão solene.
No entanto, nesta orientação surgiu, sem que o engenheiro de tal se apercebesse, um elemento anómalo, irregular, perturbador. É que Miss Temple, a inglesa que durante vários anos coabitou na família para ensinar inglês aos jovens, procurou introduzi-los na leitura e comentário da Bíblia. Ora a Bíblia para a maioria dos fiéis católicos nacionais é letra morta.
Os dois filhos mais velhos de Lima e Castro, Milena e Nuno Miguel, acolheram sem reflexões nem perguntas, tanto a postura paterna em matéria de religião, como os ensinamentos das tias, e a leitura da Bíblia não os interessou. Os seus casamentos realizaram-se com pompa e ortodoxia ritual na capela do palacete. Os mais novos, Rui e Ana Luísa, os rebeldes, iniciados no criticismo de Miss Temple, ousaram algumas atitudes menos acatadoras, nas conversas secretas que mantinham entre si (e às vezes também comigo), chegando a classificar as crenças costumeiras do pai, de religião mole e incrítica, e as das tias de superstições arcaicas e pagãs.
Mas, enquanto o Rui acabou por se tornar primeiramente um crítico duro e implacável, para se tornar depois incrédulo e ateu, a atitude de Ana Luísa foi (e permaneceu) muito mais complicada. Porque ela continuou a acreditar em Deus e a amar o seu filho, Jesus Cristo, mas ia-se desgostando progressivamente de rituais e obrigações religiosas convencionais.
O Caderno Lilás dá-me provas muito claras das suas preocupações nesse campo:
"Sinto-me sempre em culpa quando estou na igreja, é como se a autoridade do meu Pai continuasse onipresente. Acabo por confundir Deus com o meu Pai, quando ele me ralha e censura. Quando estou na igreja, sinto que umaforça poderosíssima, naturalmente Deus, se põe a examinar a minha alma até ao seufundo maisfundo e descobre coisas secretas e horriveis que eu própria ainda desconheço. Mas eu não gosto de ser vigiada nem dirigida e desejo que tudo quanto haja em mim, de meu natural, possa manifestar-se agora, ou um dia, em liberdade. Por isto prefiro rezar apenas quando me apetece, ser eu a aproximar-me de Deus, a chamá-Lo, a interrogá-Lo, a pedir-Lhe graças, e não que seja Ele a di tar-me mandamentos. Gosto de amá-Lo e de adorá-Lo a sós comigo mesma, na minha alma. É à noite, no silêncio e na solidão que gosto de rezar Como diz aquele versiculo do Evangelho de São Mateus, para o qual Miss Temple me chamou a atenção: "Mas Tu, quando orares entra no teu aposento e, fechada a porta, ora a teu Pai em secreto... "
Muitos anos mais tarde, numa daquelas cartas confessionais* (e melodramáticas) em que exaltadamente se comprazia em falar de si, dirigidas a Sebastião Mondeiro - o primeiro dos dois grandes romances da sua vida - em que falava dos sentimentos religiosos, dizia Ana Luísa:
"Saiba que me considero uma pessoa religiosa. Apesar de todos os pecados da minha vida, que lhe tenho confessado (ou que é costume chamar "pecados "), e de certa atracção pelo Mal, ouso afirmar que nmo a Deus, talvez "acima de todas as coisas", que O procuro e muitas vezes Lhe imploro amparo, auxilio e perdão.
Quer saber como é a minha religião autêntica
Embora tenha sido instruida no Catecismo pelas minhas tias e haja feito a comunhão solene - bem solene ela foi; na capela da
* Essas cartas foram-me dadas a ler por Paulina Mondeiro, personagem que iremos conhecer adiante.
nossa casa, com coro e organista encomendados, toilette vinda de Paris, na companhia de duas primas e de outras meninas da minha idade, do nosso entourage - e, até nos quinze anos tivesse cumprido a devoção da comunhão pascal, actualmente (e desde já há bastantes anos) as minhas práticas religiosas encontram-se reduzidas ao minimo: um padre-nosso à noite, na cama, depois de apagar a luz e antes de me deixar adormecer (qquando a insónia não se instala. ).
"Mas é uma oração muito meditada e senti-la, versiculo a versiculo, palavra a palavra, sem cansaço, e como sefosse sempre em uma primeira recitação. Sempre nova, nunca repetida.
"A invocação "Pai-nosso, que estais no Céu", é desde logo pronunciada na minha mente (na minha alma ) com maior intensidade. É o meu bater a porta da sua morada e o anúncio do meu abandono dos dias e do mundo, a declaração da minha entrada em outro universo, o qual é, ou está, ou há, para além deste. É uma chamada por Ele, mas é também a minha apresentação junto d'Ele, numa espécie de entrega total. Porque, para mim, Ele é na verdade Deus, o Criador, "Aquele que é ", como está no Evangelho de São João.
"Pai-nosso": da sua chamada e da minha apresentação, passo à imploração. Mas a maior parte das vezes não lhe imploro nada de concreto. Mostro-me apenas como um ser carecente, só, angus tiado, desamparado.
"Santificado seja o Vosso Nome": pela minha parte, veemente, afirmo-lhe a minha crença total no absoluto da Sua sacralidade. Disse "pela minha parte ", mas, estranhamente, parece-me que ao falar assim me sinto (não me torno, mas me sinto) acompanhada de todos os outros seres humanos da CriaÇão.
"Simultaneamente sou invadida por um grande sentimento de culpa, por a minha crença não ser apoiada, confirmada pelos actos da minha vida, e então compreendo a Igreja quando diz: "Não olheis aos nossos pecados mas à nossa fé. "
"Venha a nós o Vosso Reino, seja feita a Vossa Vontade, assim na Terra como no Céu. " Quando chego aqui, entro em confusão, direi em conflito. Paradoxalmente, suspendo o meu querer a minha aproximação. É que me assusta, em estranheza, a ideia desse Seu Reino e dessa Sua Vontade (ligados às ideias de Bem e de Pureza) se instalarem nesta Vida, neste Mundo que, melhor ou pior é o meu conhecido e no qual desejaria satisfazer todos os meus impulsos e desejos ainda que não sejam os que Ele aprova! Tal é, assim, o meu apego à integridade e à essencialidade do meu ser enquanto meu, enquanto afinal diferenciado d'Ele e... ouso perguntar: em oposição ao d'Ele
"O pão nosso de cada dia nos dai hoje. " Passo um pouco ao de leve sobre este versiculo. Sempre vivi na abundância mas pode-me faltar alguma vez esse "pão nosso de cada dia": é uma hipótese remota, fugaz no meu pensamento. Depois lembro-me da pobreza. Sim, é dito o "pão nosso", portanto não só o meu, mas o de todos os homens e mulheres do mundo. Mesmo quando recitada individualmente, o Pai-Nosso é uma oração em nome
colectivo. Aliás, todas as orações fundamentais da Igreja Católica são pronunciadas em nome colectivo, "Santa Maria, mãe de Deus, rogai por nós". Detenho-me. Aqui começa outro problema. Porque neste momento sou eu que oro, portanto esta é uma oração minha. E se se dissesse antes. Dai-lhes, Senhor, aos outros, e a mim também, o pão nosso de cada dia? " Não, é escusado. Em "Dai-nos, Senhor... ", eu já estou incluida, ao lado dos outros.
"Perdoai-nos as nossas ofensas, assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido. " Aturdida, em fuga de mim mesma, obliterando voluntariamente a minha memória, confesso-Lhe... Não, para isso seria necessário descer muita profundidade, eu não confesso as ofensas, apenas as declaro, de maneira verbal, global, numa expressão genérica, desejando que Ele (como eu) não se ponha a revê-las defacto, uma a uma. E fico assim aliviada, um pouco orgulhosa até, por tão consentaneamente haver eu, reconhecido que tenhofaltas, ofensas. Do mesmo modo - direi displicente - acrescento, num tom de condescendência - assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido, empurrando para longe qualquer afluxo de aborrecidas evocações...
- afastamento onde se anuncia desde logo o renascer da... raiva... do ódio? Esquecer? Perdoar
"Não nos deixeis cair em tentação. " Novamente em conflito. É que há tentações a que eu não gosto de resistir. Desejarei, afinal, sinceramente, seja feita a Vossa vontade?
"Mas livrai-nos do mal", a conclusão. E volto no estado de espirito com que iniciei a oração, uma criaturafraca, humilde, carecente, implorativa. O Mal e isso tudo que em mim (em nós) batalha, a minha (nossa) vontade de afirmação, os meus (nossos) egoistas desejos pessoais, as minhas (nossas) ousadias transgressoras, a minha (nossa) revolta contra tantas coisas e tantas pessoas. O Mal: o meu e o dos outros. O mal biblico, o mal maniqueu, fariseu, o mal natural concretizado em doenças, carências e catástrofes, crueldades. O mal da nossa imensa ignorância. O mal de todos os medos. O mal da Morte, o mal do Mal. Mas livrai-nos. Porquê o mas Ah, Sim! Será que o Mal também É
No Caderno Lilás, Ana Luísa terminava essa carta, também li terariamente, tal como se exprimia sempre em toda a correspondência epistolar:
"Apesar de toda a defeituosidade com que recito, só essa ora çãofundamental me é lenitivo para alma, pois para o músculo do coração e para os neurónios do cérebro, cá estão os comprimidos.
Como vê, uma religião ingénua, certamente, um pouco primitiva, talvez. "
Dentro desse teísmo quase espontâneo, natural (ainda que informado pela cultura judaico-cristã em que foi nada e criada) - embora conflituoso - iria Ana permanecer toda a sua vida. Depois da rotura do seu casamento abandonou completamente as reduzidas práticas religiosas que ainda cumpria, de um modo insincero, apenas para manter as aparências, na classe a que pertencia. E o problema religioso para ela ficou como que definitivamente em
suspensão, por satisfeita com essa "religião ingénua.
Em nenhuma das páginas do Caderno Lilás e nas cartas para Sebastião Mondeiro (cartas escritas na época em que procurava seduzi-lo com a exibição da sua riqueza moral e psicológica), Ana Luísa se referiu a outros aspectos da sua vida religiosa, de que tive também conhecimento presencial e me parecem interessantes e reveladores precisamente da sua psicologia. A mim, biógrafa de Ana Luísa, interessa-me nesses seus comportamentos adolescentes tudo quanto possa ser tomado como indício, não apenas do despontar de incipientes problemáticas místicas, mas simultaneamente e de modo indestrinçável, das grandes alvoradas da sensualidade e dos sentimentos estéticos, naquela que desejava vir a ser uma pintora.
As cenas a que assisti, relativas a essa fase, passaram-se (ou passavam-se, pois de quando em quando eram repetidas) no fantástico oratório das duas tias de Ana Luísa.
Estava o oratório instalado numa saleta contígua aos quartos das duas velhas senhoras. Constituía esse compartimento, onde nós, Ana Luísa, eu e Alda Vilharigues (que já então havia apresentado a Ana e aparecia de longe em longe) nos introduzíamos à socapa, quando as tias andavam lá para baixo, a tratar do jardim ou a dar ordens ao pessoal, uma espécie de gineceu secreto onde nem sequer as criadas podiam fazer operações de limpeza.
O oratório propriamente dito - por extensão chamava-se oratório ao próprio compartimento - era uma antiqualha preciosa, do século XVIII, uma espécie de altar de madeira entalhada e dourada, com docel lavrado e pequenas colunas salomónicas. Com os adereços e adornos com que as avoengas senhoras o foram enfeitando, e diga-se, atulhando, acabou por tomar o aspecto compósito que o fazia parecer algo entre um presépio popular e um andor processional minhoto. Não faltavam as florinhas de cera, as vestimentas das imagens sacras, agaloadas e franjadas a ouro velho, os múltiplos rosários trazidos de Roma, das visitas ao Santo Padre, das peregrinações à Terra Santa feitas por parentes e amigos devotíssimos, as relíquias encastoadas em marfim, bentinhos e ex-votos pintados à mão, guirlandas e borlas reluzentes, tranças de cabelo, mãozinhas, orelhinhas e perninhas de cera, em cumprimento de promessas e acções de graças por mercês recebidas, chaves de caixões com lacinhos de fitas já amareladas e amassadas, e todo o conjunto sobrepujado por grandes e coloridos palmitos, como os tais, dos andores minhotos. Não faltavam também, em pequenos solitários e vasos em forma de mãos de dedos abertos, as flores frescas, trazidas dos jardins residenciais.
Além das práticas devotas, era também no oratório que as tias se entregavam a outras devoções mais profanas mas que nem por isso deixavam, poderá dizer-se, de ampliar o seu carácter sagrado.
Era aí que Ausenda completava as suas funções de governanta, procedendo com minúcias argutas e sempre suspicazes à contabilidade doméstica, verificando repetidas vezes as contas feitas na cozinha com os fornecedores, com o chauffecr, com o jardineiro. Aqui ela guardava também a sua biblioteca privativa, os apontamentos de culinária, de medicina, de religião, os queridos cardápios, os moldes de costura, os desenhos de rendas e bordados, e os estremecidos e superacautelados inventários, onde se encontravam minuciosamente descritos os faqueiros e as salvas de prata; assim como os chaveiros de todos os móveis.
Aqui também a tia Francisquinha guardava os catálogos de jardinagem, mais os boiões e os frascos com as mesinhas de sua confecção, em que aplicava receitas antiquíssimas e secretas (e dando mostras do maior descrédito pelos conhecimentos do irmão Afonso, médico), mais os pacotinhos de sementes mandados vir do estrangeiro ou colhidos por ela própria, no jardim da quinta, a partir de determinadas flores muito escolhidas, e que depois em certos anos floresciam de maneira extraordinária".
Enquanto Ana Luísa não atingiu a fase de suspensão do problema religioso", ele agitou por algum tempo o nosso espírito. E digo nosso, porque, então, foi precisamente no Oratório das tias que Ana Luísa, eu, e a nossa convidada Alda Vilharigues, travámos as nossas conversações metafisicas sobre a figura de Jesus Cristo, que por então muito nos preocupava.
O Cristo mitológico-divino, e o Cristo histórico-humano, digladiavam-se nas nossas dúvidas.
Alda, que já então evidenciava uma mistura de racionalismo e de poesia, dizia no seu tom grave: Penso como o escritor russo Dostoievski: Ainda que Cristo nãofosse a verdade, estaria com Cristo, antes que com a Tiedade."
Ao que lhe respondia Ana Luísa:
- A minha crença n'Ele é mais confusa. Acho que Ele é Deus feito homem, porque nós, humanos, precisamos dele assim, de uma prova humanizada. Além disso, só um Homem divino poderia ter tomado a atitude que Ele tomou para com as mulheres. Ainda bem que a Samaritana lhe deu um beijo. Eu, se tivesse vivido nesse tempo, teria feito o mesmo. E é perfeitamente compreensível que Maria Madalena se tenha apaixonado por Ele. Sim, porque quem ela amou verdadeiramente foi Ele, porque Ele era, foi, é e será sempre o Homem mais digno de amor do Mundo, para todas as mulheres de todos os séculos dos séculos. Não nos esqueçamos de que Ele escrevia na areia quando homens reles lhe levaram a mulher adúltera.
Alda apoiou-a: Ah! Sim! O Homem mais amável do mundo! Também eu preciso que Ele tivesse existido, de facto. Fundarei a minha fé na minha necessidade da sua vinda real ao mundo.
Ana Luísa não se limitava a estas opiniões que bem sabia, eram um tanto escandalosas para as pessoas estranhas". Pretendia que, para Lhe demonstrar o seu amor, a ele, Cristo - O Homem mais digno de amor do Mundo - devia prestar-lhe culto. Era então que, na nossa presença, enfiando a sua mais bela camisa de noite, soltando os cabelos, como Maria Madalena, dizia, se ajoelhava junto do grande crucifixo do oratório e, com um lencinho bordado, embebido em óleo de violetas (surripiado de um dos armários da tia Francisca), se punha, cariciosamente, a ungir-lhe os pés.
O casamento de Milena teve alguma influência nas atitudes de Ana Luísa. Não tanto pelo esplendor da cerimónia mas pelo alargamento de vida mundana que, reconheceu, ele trazia à irmã, na sua qualidade de esposa do filho de um dos mais ricos banqueiros do País.
Milena não terá nenhum papel de relevo neste romance. Mas porque era bem diferente de Ana Luísa e porque o seu retrato será mais um contributo para a caracterização do ambiente em que nasceu e cresceu a futura Ana Gallis, deixarei aqui algumas notas sobre ela.
Até no aspecto físico era diferente da irmã Ana. Enquanto esta era de estatura média, um tudo nada a tender, quanto a braços e pernas para o tipo roliço (já o disse) e ainda com alguns traços acrioulados, Milena era uma rapariga alta, esbeltíssima, de cabelo louro pálido e olhos azul-cinza como os do pai. O seu destino foi por ela escolhido em total acordo com as normas paternas e, desde logo, passou a ser tacitamente apresentado como modelo a seguir pela irmã Ana Luísa.
Enquanto esta, partilhando com ela, em solteira, uma casa elegante e toilettes requintadas - nas muitas exclamações que lhe ouvi demonstrava, no apreço dessas coisas, sobretudo um sentimento estético, quer pela sua beleza quer pela raridade - a Milena essas coisas pareciam dar-lhe mais prazer que alegria, e porque as apreciasse acima de tudo pela natureza de coisas luxuosas e de alto preço, dir-se-ia a faziam entrar num sentimento de plenitude orgulhosa, que acabaria por confundir com a felicidade.
Para Milena, todas as vidas que se moviam para além da sociedade", dir-se-ia não só não existirem como, quando em raras ocasiões mostrava vaga e distraidamente dar por elas, as achava sumamente desinteressantes e indignas de atenção. Até a vida de certas mulheres famosas, como a das estrelas do cinema que, ganhando fortunas e casando com milionários, podiam também ascender ao luxo e entregar-se a fantasias e a requintes, construir palácios, desfrutar de granjas imensas, com coudelarias, enormes piscinas privativas, exibir cães de raça, coleccionar jóias principescas e, para cúmulo, praticar algum benefício social adoptando crianças pobres ou órfãs - tudo isso apenas lhe despertava uma curiosidade em última análise desdenhosa: o luxo dessas estrelas não era como o dela, encontrado já à nascença, na própria família; constituía algo em que entrava sempre esforço e luta, em suma era desprezível porque não deixava de ser uma remuneração" auferida por determinadas actividades que em certa medida se podiam considerar trabalho e emprego. É verdade que o papá - dizia, em contraposição a Ana Luísa e ao irmão Rui, com quem se encontrava em permanente contradição, quando alguma vez, o que era raro, enta bulavam a discussão de qualquer problema - também ganha dinheiro à custa do seu trabalho, mas o papá, além de ser uma pessoa ilustre pela ascendência, exerce uma profissão também distinta.
Da sua categoria social fazia parte o saber tocar piano, no seu próprio piano" e ter portanto uma professora de música, o que era o caso, como já vimos, embora verdadeiramente nunca se tivesse interessado por esse aprendizado, tal como aconteceu com Ana Luísa. Simplesmente soube desobedecer ao pai de um modo subtil, em vez de abrir uma revolta declarada e reivindicativa, como foi a da irmã. Por entre gentis e meigos sorrisos disse ao pai, Não tenho jeito para a música e hoje já há muitos merceeiros que põem as filhas a aprender piano.
As revoltas de Ana Luísa irão nascer das raízes mais profundas da sua natureza e manifestar-se-ão principalmente quando aquilo a que ela própria chamava o seu furor vital entrar em choque com
o meio em que nasceu.
Algum tempo depois do casamento de Milena, ouvi, de Ana Luísa:
- Afinal, uma mulher tem mais liberdade depois de casada que em solteira.
- Liberdade como? Para quê? - perguntei naturalmente.
- É que eu sinto-me sempre vigiada, ao passo que a Milena assim pode conversar mais à vontade com quem quiser.
No Caderno Lilás a resposta a essa minha pergunta torna-se já mais explícita:
"A Milena agora é uma senhora casada, mulher de um homem importante. O mais certo é eu acabar também por me casar... Sim, já o disse e repito, acabar. Esse é o destinofatal de todas as raparigas, mais cedo ou mais tarde, a não ser que "fiquem para tias"... como aconteceu às minhas... tias. Bem, mas não haverá outras hipóteses? Por exemplo, seguir estudos, como a Vera Alexandrina, que daqui a pouco entrará para a Universidade e depois ou se formará professora ou investigadora cientifica. Mas esse destino, a mim está-me vedado. Eu pertenço a uma classe onde as raparigas não trabalham, nem estudam para mais tarde exercer uma profissão. À Milena, às minhas primas, às nossas amigas só resta o casamento, a formação de uma nova família, a direcção da casa é uma vida social ao lado do marido. É esta a nossa única via para um pouco mais de liberdade...
Havia aqui uma suspensão nas reflexões de Ana Luísa, como se ela tivesse chegado, mais uma vez, a um limiar de consciência onde havia uma zona escura. Mas logo prosseguia:
E aqui estou outra vez diante da pergunta feita por Alexandrina, pergunta a que afinal não sei dar resposta: "Para que quero eu a liberdade " E acrescento: "E que espécie de liberdade Até para mim própria isto é um mistério. "
Uns dias mais tarde continua ela, no Caderno, em tentativas para a descoberta do mistério:
Sim, também me casarei. Como a Milena serei esposa de um senhor importante, um médico, um diplomata, um advogado conhecido (o Alfredo González? ). Banquetes, garden-parties, cocktails, dancings, cabarets, viagens. Toilettes, muitas. E, se Milena é linda, distinta, eu, linda não serei, mas pelo menos bonita, lá isso sei que sou, posso até dizer sem falsa modéstia, estou a tornar-me espectacularmente bonita. É isto mesmo. A Milena lindíssima, sim, mas um tanto fria na sua distinção aristocrática. A minha beleza é menos fria, menos clássica, mas mais atractiva, mais vistosa, se não exagero mais picante e provocante (disse-mo outro dia uma artista que apareceu no último cocktail a que fui), em suma, tenho mais sex-appeal. Portanto já começo a ser tão notada e admirada como ela. Só que há aqui uma diferença. A Milena gosta de ser admirada, como todas as mulheres, não tanto pela beleza fisica como principalmente pela posição social. Ora, para mim situação social não é assim tão importante. Pertenço à "boa sociedade ", à "sociedade ", tout court, nasci nela, estou nela. Mas prefiro realmente ser admirada e lisonjeada pela minha beleza. Apesar de ter apenas dezasseis anos, muitos rapazes mais velhos e até senhores de mais idade, solteiros, viúvos e casados, todos me gabam e lisonjeiam, galanteiam e adulam. Este ano vou ser oficialmente apresentada na sociedade - irei ao baile das debutantes, daí por diante já poderei tomar parte em muitas mais reuniões. Brilharei então como uma estrela!
Como uma estrela! Aqui está outro problema. Que farei de todos os elogios, de toda essa admiração que já causo e irei continuar a causar? É bom ser bonita, admirada, ouvir galanteios. E daí Irei repeti-los, saboreá-los à noite, na cama, como uma criancinha mordiscando biscoitos sobre almofada? A Milena é admirada. E depois? Seria preciso que acontecessem coisas em consequência de se ser admirada. Não sei o que se passa com ela, a este respeito, mas tenho a impressão de que se satisfaz por orgulho, e apenas por orgulho, com essa admiração. Para mim seria ou será preciso que aconteçam coisas; que, à Milena, verdadeiramente já não podem acontecer certas coisas. Por exemplo, agora já não poderá ouvir outra vez "declarações de amor". Porque ela já está casada. Ao passo que para mim isso ainda me é permitido. E oiço tantas! Afinal, pelo menos essa liberdade perdeu-a ela com o casamento.
Como gosto de ouvir "declarações de amor"! Será por vaidade, por elas me confirmarem quanto sou bonita e atraente Talvez, mas há outra coisa...
Cá está de novo um mistério, ou o tal mistério, se todos os mistérios se resolverem num só mistério. Eu adivinho - e isto é mesmo uma adivinhação, uma espécie de pressentimento - que razão maisfunda por que eu gosto de ouvir declarações de amor e galanteios é porque cada úm deles poderá, ou antes, poderiam vir ser o principio de coisas a acontecerem-me... Mas que coisas? O tal mistério...
Ana Luísa nunca chegará ao desvendamento desse mistério. Um véu tingido de irisações ofuscantes para sempre permanecerá em redor da sua personalidade. Para ela própria e para aqueles que a encontraram nos caminhos da vida, para os homens que hão-de vir a amá-la ou a desejá-la, esse véu flutuante será uma cortina transfiguradora através da qual o corpo de uma bailarina chegará a surgir-lhes como a escultura de uma deusa sublime.
Para mim própria, narradora deste romance, também na minha personagem restará sempre algo de imperscrutável. Todas as linhas condutoras das atitudes e acções desta mulher - chamemos-lhe ansiedade, vaidade, egotismo, narcisismo, vontade de poder não serão suficientes para definirem com clareza, nem os objectivos momentâneos em cada circunstância da vida, nem o desígnio final da sua vontade, do seu desejo, ou dos seus sonhos, como quisermos chamar-lhes.
No Caderno Lilás, reconhece-se de facto certa propensão literatizante. Pois a ideia da escrita literária passou algumas vezes pela cabeça de Ana Luísa. Em umas primeiras páginas desse Caderno chegou a escrever: Gostava de vir a ser escritora. Ou poetisa, Só que, mais adiante, reflectia: Mas, se gosto de deixar a minha imaginação à solta e de quando em quando me sinto tomada de poesia, não sou capaz de fazer versos. Já tenho experimentado, não me saem. " E umas linhas depois concluía: Afinal, o que eu realmente desejo é desenhar e pintar. Deve ser esta a minha verdadeira vocação.
A vocação. No Caderno este tema é recorrente, insistente: Uma vocação. Será uma autêntica vocação este meu jeito para a pintura? Gostava, melhor precisava tanto de ter uma vocação para.
Por razões em absoluto minhas desconhecidas a frase não está concluída. O que pergunto é o motivo por que Ana Luísa empregou esse termo, que eu, agora, sublinho: precisava. Quem possui uma real vocação para alguma coisa não diz conscientemente "eu precisava de ter uma vocação para... sente-a, é impelido por ela, segue-a.
O conhecimento que hoje tenho da vida de Ana Luísa leva-me a concluir: talvez ela ao adoptar esse termo no Caderno tivesse afinal escolhido o termo exacto. Para ela, ter uma vocação seria uma via, não apenas para a expressão, por exemplo, dos tais arroubos de poesia, mas sobretudo para reforçar as atenções alheias sobre a sua pessoa, a fim de... E, aqui, sou eu a suspender uma conclusão. É que aquilo que neste romance está em indagação é precisamente a existência desse desejo e também qual o objectivo último desse apelo às atenções dos outros.
Revendo vários dos quadrinhos desenhados ou pintados por Ana Luísa durante a infância fazer desenhos e pinturas era um dos seus entretenimentos desde pequena e em adolescente - difícil será a algum psicólogo concluir de uma incipiente vocação plástica. Não que sejam completamente destituídos de capacidade de observação ou não exista nos seus traços certa captação das linhas e das formas. Mas neles não se nota uma qualidade de invenção, de imaginação, a fuga para uma surrealidade caprichosa, tão frequente nos desenhos infantis; apresentam as estereotipias de um copiar obsessivo e permanente. Aliás, não seria com as lições elementaríssimas de M. " Lyotard que Ana Luísa conseguiria desenvolver uma aptidão. A francesa ensinava-a apenas a decalcar a partir de figuras e estampas de livros e a aplicar-lhes depois aguadas coloridas. Pedagogia errada que, juntamente com a limitada capacidade imaginativa, poderá ter influído mais tarde na sua tendência para o pastiche, para o plagiato.
Característica curiosa e talvez significativa dos mais antigos desenhos de Ana Luísa em criança, quando, além dos costumados motivos do sol, da árvore; da casa, do gato, aparece também o esquemático esboço da figura humana, é o facto de, logo que foi capaz de escrever o seu próprio nome, ela nesses desenhos (conservados por Mlle. Lyotard) rabiscou por debaixo das figuras que representavam "uma menina, o nome do seu tratamento familiar: "A Aninhas.
Pelos treze anos, o gosto pelo desenhar e pelo pintar intensificou-se em Ana Luísa. Houve um período em que passava horas com o álbum e com os lápis, sobre os joelhos, sentada no quarto ou no caramanchão do jardim, quando estavam na quinta. Durante esses períodos de efervescência dizia para os familiares, sempre como quem lança um desafio: "Vêem como eu posso vir a ser pintora? Parecia que com esse ar de desafio sentia a necessidade de vencer uma latente e pressentida oposição nesses mesmos familiares.
E a oposição na verdade existia. Logo começava porque não ligavam importância àquela "fantasia da pequena". Sobre todos, o pai. Com "a queda para o desenho", ainda mostrava alguma tolerância; entre os seus antepassados "ilustres", além das prendadas bordadoras de bastidor, ou escultoras de flores com plumas de aves ou escamas de peixe, contava-se uma pintora, autora de retábulos de madeira, onde se viam seráficas efígies de santos e de santas, assim como naturezas-mortas com maçãs, romãs, limões, pães e jarrinhos de cobre, dos quais restava um, já muito sumido, no oratório das tias. Portanto, se Ana Luísa gostava "de se entreter com os lápis e as aguarelas, isso não era nada que ficasse mal a uma menina, Quando estavam na quinta existiam até muitos motivos "próprios para quadrinhos aprazíveis, as lindas rosas criadas pela tia Francisquinha, os frutos do pomar, as velhas árvores do parque... ", dizia o pai.
- E animais, papá, também, quem me dera saber desenhar animais, mas é bem difícil - interpôs uma vez Ana Luísa. - O nosso cavalo Luzidio, o caniche da Mamã, o burro do moleiro...
- Contente-se com as flores e com os frutos - respondeu o pai, sério. - Desenhar animais não é próprio para senhoras e muito menos para meninas. Bem, o caniche, se quiser pode desenhar.
- Mas por que não posso desenhar o nosso cavalo ou o burro do moleiro? - insistiu ainda Ana.
- Porque não - resposta seca, do pai.
De escriturações (o Caderno de Ana Luísa, era sempre escrito no quarto dela, com a porta fechada à chave e quando o pai não estava em casa) - e versalhadas, é que, repito, o Eng. Lima e Castro não podia ouvir falar e fazia longos discursos reprovativos sempre que surpreendia Ana ou o irmão Rui a lerem livros com poemas ou romancecos (secretamente emprestados por algum primo ou amigo dos primos) num recanto do parque ou do jardim da quinta: "Coisas mórbidas. Só fazem mal ao espírito. Vejam o que aconteceu a um tal Sá-Carneiro a quem a versalhada deu volta à cabeça, acabou todo rebentado com a estricnina, como um rato.
Tais atitudes paternas despertavam uma revolta no espírito de Ana Luísa e do irmão Rui. Ouvi-os algumas vezes, sentados na orla do bosquezinho que marcava a extrema da quinta, declararem o seu aborrecimento pela família. "Tão severo, tão antiquado, o papá. Lamentavam a falta de liberdade, sempre vigiados, guardados, demasiado protegidos, e também a falta de dinheiro... se
pudéssemos dispor de dinheiro nosso... O que me apetece é deixar tudo e todos, fugir" e, quando chegava a este ponto Rui parecia um desvairado, de tal modo que Ana procurava apaziguá-lo:
- Fugir. Deixar tudo e todos. Isso também não, Rui! Eles, afinal, gostam de nós. E nós gostamos deles. Além disso, como iria viver o menino, depois, sem dinheiro e habituado a tantos mimos?
- Somos ambos dois prisioneiros. Há uma porta fechada à nossa frente. Como abri-la?
No Caderno lêem-se algumas palavras complementares destas lamentações:
Se tivéssemos dinheiro nosso... O Rui, para poder dedicar-se à Poesia, quer desistir de uma carreira. Eu, sendo rapariga e pertencendo à alta sociedade, não poderei ter uma profissão. O Rui diz não se importar de passar necessidades, se issofor preciso para conquistar a liberdade, de andar mais mal vestido, em suma, de não dispor das mesmas comodidades que temos em casa dos nossos pais. Bem. Disso não seria, não serei eu capaz. Gostava de ser livre, sim, mas não posso pensar em viver sem as coisas boas de que disponho. E também me custaria muito dar desgostos aos meus queridos pais, porque afinal eu amo-os muito. É verdade que gostaria de conhecer mais sobre a vida existente para além da nossa casa, da nossa família, da nossa sociedade. No entanto desejo de certeza continuar a dispor de dinheiro para andar sempre tão bem vestida como ando agora. Mas também é verdade, seria bom poder quebrar alguns limites e certos costumes. Por exemplo, gostava de experimentar viajar sozinha, ou com amigos muito es peciais, de ser eu a poder tomar algumas decisões, escolher os hotéis, os passeios, variar os convivios, conhecer novos ambientes; participar em grupos de exploradores de montanhas, ou das regiões polares, ou dasflorestas virgens, e de tornar-me querida de todos eles pelos auxilios que lhes fosse prestando, pelos incitamentos e ousadias de que, tenho certeza, seria capaz, querida ainda pela minha presença agradável de rapariga bonita, até que um dia, terminada a expedição, o meu retrato viria no jornal ao lado do deles e as pessoas gabariam a minha coragem e o meu valor e talvez alguns deles se apaixonassem por mim... "
Quase de repente, quando chegou aos dezasseis anos, Ana Luísa largou os lápis e os pincéis e deixou de pedir, como havia algum tempo vinha fazendo, uma professora de pintura. Assim como deixou igualmente as conversas secretas e contestatárias com o irmão. E entrou então num culto apaixonado pela sua pessoa, começando a intensificar as preocupações com a apresentação. Trocou livros de poesia e romances pelos magazines mundanos e figurinos de modas, parecia ter adoptado a mentalidade da mãe e da irmã. Excedia-se tanto nos gastos de luxo que o próprio pai se viu na necessidade de Lhe dirigir palavras morigeradoras.
Passou também a entregar-se freneticamente aos divertimentos mundanos, logo após a sua apresentação "oficial na sociedade, no baile das débutantes, onde a sua beleza lhe trouxe um êxito invulgar. Boites elegantes de Cascais, matinées dançantes do Casino Estoril, bailes do Clube Naval passaram a tê-la como habituée, integrada em grupos de jovens da aristocracia e da alta burguesia da sociedade lisboeta e da Linha.
Como não podia deixar de ser, o elemento masculino, os homens, na pessoa de jovens e menos jovens, fazem por esta altura a sua aparição na vida de Ana Luísa. E ela vai tomar uma consciência muito clara de que esse elemento é qualquer coisa de muito importante.
Até então, as histórias de amor dos romances, dos filmes do cinema, dos libretos das óperas, e alguns episódios acontecidos na sua sociedade, por vezes envolvendo aventuras escandalosas, como ouvia classificá-las, de homens e mulheres que "tinham amantes, ou ainda os namoros, os noivados, os casamentos de familiares e conhecidos, tudo isso constituía uma espécie de meio em que ela semiconscientemente se achava mergulhada, e Lhe chegava muitas vezes numa aura de irrealidade.
O desabrochar da feminilidade veio provocar nela o aparecimento de um olhar diferenciador, revelando-lhe um pouco mais claramente a alteridade das pessoas e das circunstâncias, fazendo dela uma espectadora atenta, curiosa, interessada. Os homens tornaram-se o objecto maior dessa curiosidade, que em breve iria tomar aspectos complexos. Passou a apreciá-los positiva ou negativamente, quanto ao aspecto físico e ao carácter que deixavam transparecer. Agradavam-lhe ou desagradavam-lhe. Simultânea e independentemente dessas considerações, era visível nela uma perturbação quase exagerada, um entusiasmo exaltado pela presença masculina, um prazer intensíssimo em suscitar o interesse do sexo oposto.
E foi assim que o flirt se tornou para ela quase uma obsessão. Estonteada, deixava-se cercar, literalmente cercar pela roda dos admiradores, acabando nos actos públicos sociais em que tomava parte por aceitar os galanteios de todos indiscriminadamente. E o Caderno lá diz: Feliz! Feliz! Quando todos, todos me rodeiam! O que demonstra como a sua vaidade feminina se sobrepunha à hipótese de rendição a uma qualquer sedução realmente sentida, em relação a algum desses admiradores: Como é bom ser assim admirada!
Eu, narradora, nessa altura - andávamos então as duas pelos dezassete anos - sofria a minha primeira paixão". Mas não é este caso para aqui chamado senão porque, levada pelo meu estado de espírito, Lhe fiz a pergunta:
- Ana Luísa, tens tantos apaixonados! Mas tu, tu já te apaixonaste por alguém?
Pareceu-me que ela não foi de maneira nenhuma apanhada de surpresa pela minha pergunta. Dir-se-ia, ultimamente, apesar de todo o seu aturdimento já o problema se Lhe teria posto. E a resposta veio em palavras ponderadas, reticentes, eivada de um conjunto de reflexões que demonstravam de facto uma meditação sobre o assunto:
- Tenho recebido tantas e tantas declarações de amor! De amor! Olha, para mim a palavra amor é como o mar, sempre sem descanso a chocar com a terra. O rumor das ondas, quando dele nos abeiramos não nos larga os ouvidos, incessante. Amor. Parece uma coisa que o mundo, toda a gente nos quer impor à força, acabamos sempre por amar alguém, amar alguém, amar, amar, Pois fica sabendo que nenhum dos meus apaixonados ou admiradores conseguiu ainda interessar-me. Até agora tem sido só isso de ser admirada, adulada, mas eu ainda não escolhi ninguém. E pergunto-me: será que eu também chegarei algum dia a gostar de alguém com isso a que chamam amor?
Continuou, pensativa:
- Amor, casamento. Também terei de me casar?
Ficou uns momentos em silêncio e prosseguiu nas suas reflexões:
- Mas, ultimamente, parece-me, noto que começa a passar-se em mim qualquer coisa. Tenho a impressão, por enquanto é apenas uma impressão, de que de entre todos os meus admiradores há um por quem sinto o princípio de uma atracção. Ele é diferente dos outros. Começo a achar a maioria dos rapazes da nossa sociedade bastante patetas e vulgares. Ele é sóbrio, recatado na maneira como me trata. Solícito, mas nada de frases românticas e galanteios banais.
- É o Alfredo González - interpus.
- Claro, não te seria nada difícil adivinhar - respondeu, agora num tom mais leve e sorridente - Conhece-lo quase há tanto tempo como eu, filho dum amigo do papá, visita íntima da nossa casa. Mas acho que só agora começou a olhar para mim de maneira diferente, como se eu tivesse deixado de ser para ele a amiguinha da infância e da adolescência. E sei que a minha família já tem pensado em casamento.
- Mas gostas dele?
Ana Luísa teve uma expressão entre a amargura e o aborrecimento.
- Aí está outra vez o barulho do mar a bater na terra. Gostas Amas Amor o Amor. Por agora sei apenas que, se ele gostar de mim, então eu serei capaz de... de o aceitar.
Compreendo hoje as dúvidas de Ana Luísa. Pelo menos nas mulheres, talvez o amor não seja algo de espontâneo, mas sim uma construção por elas elaborada com os materiais - a própria ideia de amor - colocados à sua frente, interpostos no seu caminho, como se elas não tivessem outro destino na vida senão o de se tornarem arquitectas e operárias desse edifício que os homens desejam ver erguido para lá se instalarem confortavelmente. Talvez as mulheres apenas consintam em ser seduzidas; não se apaixonem, mas gostem de despertar paixões; não se dêem, apenas se emprestem. Talvez.
Alfredo González colocou no caminho de Ana Luísa a solicitude necessária e suficiente para ela acreditar que poderia aceitá-lo, E o amor revelou-se-lhe então como uma oportunidade para conduzir a sedução da parte dele, até ao seu empréstimo da parte dela.
Do Caderno
Fiz ontem dezassete anos. Se assinalo a data é porque a partir dela a minha vida vai mudar
Quando me sentei para descansar depois de ter dançado duas ou três vezes, o Alfredo veio sentar-se também, ao meu lado. Com o seu ar grave e o olhar intenso, disse-me, "Ana Luísa, pareces triste ".
A confusão que as pessoasfazem ao empregar o termo de tristeza. Se não é confusão então será uma maneira abreviada e fácil de definirem certos estados de espirito bem mais complicados. Triste. Posso afirmar verdadeiramente até hoje nunca soube o que é isso de estar triste. Acho, deve ser qualquer coisa envolver abatimento. Como eu não sei o que seja estar abatida, porque qquando as circunstâncias não me agradam ou as considero desfavoráveis, o que sinto é uma ânsia, quase violenta, de oposição, e uma vontade de negação, de contestação, de combate.
Por isso, se me lisonjeou que ele mostrasse interesse pela minha pessoa, "Estás triste ", ao mesmo tempo achei vulgar uma tal pergunta. "
Durante a minha festa dos dezassete anos, tantos e tantas me disseram, "Estás linda."
"Estar linda."
Gosto de "estar linda ". Mas, pergunto-me, "e daí" Deveria acontecer-me qualquer coisa em consequência de eu "estar linda", e, afinal, nada acontece.
"Não sei se o que neste dia veio acontecer-me será aquilo que eu desejo me aconteça. É que eu, no fundo, só sei que desejo me aconteça qualquer coisa. "
O Alfredo, ainda sentado ao meu lado, fez outra pergunta, "Tens continuado a desenhar? Outro dia esboçavas uma magnólia... "
Com esta pergunta acerca das suas actividades de aprendiza de desenho e de pintura, e a referência ao esboceto da magnólia, Alfredo González acabava de se abeirar dessa qualquer coisa indefinida nos anseios de Ana Luísa.
Primeiro porque a Magnólia, assim como O Laguinho ou o Caramanchão das glicinias, constituíam já na sua adolescência os dilectos motivos inspiradores das suas tentativas artísticas. Alguns dos devaneios a que costumam entregar-se os adolescentes estavam nela ligados a estes motivos.
E eu conheço-os porque ela, contando- mos prolongava ainda esses sonhos.
O mais importante de todos eles parece-me ser o da Magnólia etérea (designação dela, Ana Luísa).
Na quinta existia essa magnífica árvore, talvez já secular, de cuja copa se suspendiam na época própria, numa elegância lânguida, as evanescentes, ebúrneas magnólias, de onde emanava não um cheiro mas um dos mais intensos, requintados perfumes, sensuais e espirituais ao mesmo tempo, como todos os perfumes.
"Linda como um candelabro, musical como uma harpa, delicada como uma princesa, misteriosa como uma fada", ouvi-a recitar, sentada no banco do jardim, numa daquelas poses sensacionalistas que tomava tantas vezes (e sempre exibirá ao longo da vida), quando pretendia mostrar o seu espírito de artista".
- Isso é um poema à magnólia? - perguntei na ocasião.
- Não. Sinto a poesia das coisas e dos instantes, mas como já te tenho dito, não sou capaz de compor poemas sob a forma de versos. Saem- me só assim, em feitio de prosa. Ou então, de desenhos. Vou encher um álbum com o desenho ou a pintura, se for capaz, de todos estes meus pequenos paraísos.
Os seus pequenos paraísos - que hão-de reaparecer um dia, quando ela se apresentar em público como pintora...
Ana Luísa contava o devaneio da magnólia, mais ou menos assim:
Um poeta chega, que se apaixona por mim. Esse sim, virá ler-me os seus versos, sentado neste banco, debaixo da magnólia. E o mais curioso, vê tu, é que através dos versos dele acabo por ficar a ver que afinal magnólia sou eu própria! "
Ou, então, com esta variante:
Ultimamente não é apenas um só poeta que me aparece. São vários. Muitos. Até que finalmente surge um violinista, que colhe da árvore uma das flores. Leva a magnólia - que sou eu - para uma sala cheia de belos objectos, coloca a flor numa jarra de porcelana. A magnólia, na sua beleza, consegue sobressair de todas as outras coisas belas. O violinista fica ali horas e horas, tocando diante da magnólia-eu. "
A outra razão (segundo o Caderno) pela qual a referência de Alfredo González à magnólia comoveu Ana Luísa, foi a de lhe ter revelado como ele parecia assim interessar-se pelas suas ansiedades artísticas:
"A pergunta do Alfredo agitou qualquer coisa muito funda em mim. Finalmente encontro uma pessoa que parece interessar-se pela minha vocação. Ninguém da minha família se interessa pelo meu anseio de vir a ser uma pintora. Os pais, os manos, olham para os álbuns que eu encho de esbocetos com olhos distraidos ou tão só complacentes. Até o Rui, única pessoa a prestar-me algum apoio, me desilude: "Não te posso dizer se tens ou não uma vocação autêntica. Copias bem, por enquanto é tudo quanto posso afirmar."
Continuava o fluxo de vários pensamentos no Caderno:
"Mas ultimamente tão distraida ando com várias coisas que até os meus desenhos tenho esquecido. E continuo sem saber se este será verdadeiramente o meu caminho para... Caminho para onde Para quê? Tão confusa! Com o interesse do Alfredo tudo se complica ainda mais.
"Precisava tanto que os outros reconhecessem a minha inclinação, vocação. Ao menos o Alfredo mostrou algum interesse. "
Mas, na noite que se seguiu à tarde em que se tornou noiva de Alfredo González, escrevia Ana no Caderno:
"O mesmo caminho por onde seguiu a Milena. E as outras, quase todas. Não, este não é o tal caminho misterioso que me chama. Ainda que vá gostar do Alfredo...
"O jardim da quinta alagado neste luar de Verão... Distingo os canteiros dasflores, a arquitectura do mirante, a mancha do caramanchão, o Laguinho. Lá ao fundo, a magnólia. E até aqui chega o perfume dos goivos. Estonteante. Estonteada me sinto, o meu pensamento suspenso, dilui-se. As palavras de amor de Alfredo.
Que nada têm a ver com este jardim, este luar este perfume...
Ainda antes de Ana Luísa se ter tornado noiva de Alfredo González tivemos, o seu irmão Rui e eu, uma conversa sobre o caso que me deixou algo apreensiva, ou, melhor, veio ao encontro de apreensões nessa altura ainda vagas a respeito do futuro de Ana.
Observadora da sua rebeldia, ou antes, das suas tentativas de rebeldia em relação à família; dos seus anseios de uma realização através daquilo que ela supunha constituir uma vocação e das suas hesitações quanto à natureza desse chamamento: Gostava de ser escritora, Vou ser uma pintora, das angústias quanto ao objectivo da sua vida; e também das tendências para alguma futilidade, do gosto de ser requestada, admirada, lisonjeada, para se aturdir no meio da sua corte admirativa e da necessidade dia a dia mais obsessiva, desse aturdimento; do incipiente questionamento sobre o destino das mulheres e de temas tradicionais como o do amor - acabei por ficar surpreendida e chocada quando ela, ainda tão jovem, ela para quem o destino fatal do casamento parecia tão discutível, aceitou as pretensões de Alfredo González e pareceu depois entusiasmada com a perspectiva do próximo enlace.
Com Rui, o irmão de Ana Luísa, dava-se aquilo que é tão frequente: vermos claramente os perigos reais suspensos sobre certos encaminhamentos ou actos dos outros, embora nós próprios sintamos idênticos impulsos perigosos. Ele, também em rebelião contra a família a pretender impor-lhe uma carreira e uma orientação cultural alheias ao seu temperamento - (fugiria em breve para a Austrália) - era desde a infância o amigo maior de Ana Luísa. Sabia portanto como ela era, mas no fundo - disse-mo nessa conversa - Temia que a rebeldia dela ultrapassasse certos limites, via nisso alguns perigos, principalmente por ela ser mulher. Que ele era homem, podia correr riscos e aventuras que, a ela, muLher, deviam ficar vedados. Tu, por exemplo, também és mulher, mas poderás permitir-te certas experiências. Quando a Ana Luísa está pronta a casar, tu vais entrar na Faculdade, terminado o teu curso poderás ir para o estrangeiro, como pensas, para uma especialização.
Já sabes o que são obrigações concretas, estudo aturado, responsabilidade de provas a dar. Por outro lado não praticas o luxo, não vives o mundanismo da alta sociedade, o que parece agradar-lhe tanto, Que a Ana era bonita, inteligente, viva, extrovertida. Assim como obstinada e violenta nas preferências e decisões. E não tinha a certeza daquilo a que ela chamava a sua vocação artistica; adivinhava que na ânsia voluntarista de vir a ser pintora, devia imiscuir-se um grande desejo de causar sensação. Ela não tinha escola, nem métodos, nem muita perseverança, trabalhava sempre por impulsos. Ainda se os pais tivessem acedido a arranjar-lhe professores a sério. mas já se sabia como eles eram neste ponto; Agora ia casar e ainda não completara os dezoito anos. Perguntava a si próprio se o casamento viria apaziguar toda a turbulência do espírito de Ana Luísa. O Alfredo González queria casar com ela. Os pais consideravam-no um bom partido da mesma maneira que o filho do banqueiro fora um bom partido para Milena; achava que ele gostava dela mas considerava-o demasiado sisudo e pouco efusivo para o seu temperamento turbilhonante. E a Ana, gostaria verdadeiramente dele? Na sociedade, muitas vezes as raparigas e os rapazes nem chegam a saber o que seja isso de gostar ou amar, como queiram dizer. Os pais vêem as conveniências, o dinheiro, a posição social, a família; e eles, os novos, acabam por se ofuscar mutuamente com todo o brilho que os rodeia. São os projectos de uma vida esplêndida, as belas moradias, as boas mobílias, as ricas prendas de noivado, as cerimónias sociais. Confundem o esplendor com o amor. Das suas conversas com a irmã havia concluído, isso de amor, para ela era uma coisa irreal, distante, um tanto literária e mítica, Além de que - o que muito o assustava enquanto homem - para Ana Luísa o amor não devia ser um acontecimento singular na vida das pessoas, mas pelo contrário, devia tornar-se repetível, multiplicável!
E, aqui, Rui, apesar de toda a revolta contra o burguesismo e a opressão familiar, mantinha, enquanto exemplar do sexo masculino, a psicologia comum a todos os homens: Ana considera- se imune às vicissitudes desse amor, sente que será capaz de ser mais uma provocadora de amores - palavras dela! - que uma participadora. E perguntava, entre indignado e atónito: Será que todas as mulheres são assim? Fará isto parte da mais profunda natureza feminina? Ou tratar-se-á apenas de uma característica da minha irmã? "
Durante o curto noivado, Alfredo González jantava todos os dias em casa dos futuros sogros e trazia sempre presentes para Ana Luísa, óptimos bombons ingleses, perfumes franceses, bijutarias italianas e também já algumas jóias verdadeiras. Marcada a data
do casamento passaram os familiares a fechar os olhos sobre algumas pequenas ausências que eles faziam a sós pelo parque da quinta. Uma noite, num desses fins de tarde, um pouco antes do jantar, ainda não estavam todos à mesa, faltavam precisamente os noivos e as tias. Uma destas, Ausenda, regressando sub-repticiamente do parque e ao encontrar a irmã na marquise, ouvi-a murmurar, azeda e excitada, Lá por estarem noivos, não lhes deviam consentir liberdades destas. Uma vergonha. Principalmente ela. Onde é que já se viu uma rapariga de dezoito anos, que nem sequer namorou nem andou sozinha por parte nenhuma, portar-se daquela maneira?
Parece que já nasceu ensinada em certas coisas. Aquilo não é uma noiva, é uma amante!
Supus, a tia solteirona teria lobrigado os noivos a beijarem-se, talvez andasse a espiá-los até conseguir descobrir o que desejava.
É esta a última reflexão de Ana Luísa no Caderno, anterior ao casamento:
Gosto muito que ele goste de mim. Daqui poderei partir para ser eu também a gostar dele. E, por agora, ponto final em especulações sobre o assunto da paixão e do amor. Por agora o meu desejo maior é o de voltar a sentir a sua mão e sua boca na minha boca."
Continuei a conviver com Ana Luísa após o seu casamento. Não o convívio facultado pela minha presença quase quotidiana na casa familiar, mas ainda assim visitava-a muitas vezes, na medida das minhas possibilidades e nos intervalos da sua vida social.
Se em casa dos pais Ana Luísa conhecera já o conforto e muitos dos luxos das casas abastadas, na vida de casada esse nível iria ainda subir.
Na casa de solteira, as tias, provincianas e puritanas, transportavam os hábitos e a mentalidade de uma meia fidalguia tradicional, onde a par de certos costumes que, comparados com a pobreza e o primitivismo dos camponeses, constituíam já a fruição de muitas regalias da civilização e da riqueza, essas tias instauravam certo equilíbrio de disciplina na economia e na contensão de exageros. Censuravam, por exemplo, o excesso de bibelots adquiridos pela cunhada, a mãe de Ana Luísa, os dispêndios em perfumes, de Milena, e as atitudes de Ana Luísa quando, frenética e nervosa, se punha a escolher os sapatos a combinar com determinada toilette.
Depois do casamento Ana Luísa já não dependia da mãe para fazer compras nem do pai para obter dinheiro, tão-pouco de ouvir os remoques das tias. Agora o marido entregava-lho a rodos, tanto para o governo da casa como para gastos próprios, além de a presentear constantemente com jóias caríssimas. Basta dizer que Ana Luísa se tornou uma das mulheres mais luxuosamente vestidas da Lisboa desses anos quarenta. Vestia-se de uma forma completa, com todos os adereços complementares de uma toilette, de tal modo que chegava a parecer mais velha do que realmente era. Tornara-se assim uma mulher ostensivamente galante, envolvida emtailleurs ou foirrés das melhores casas de alta costura, usando os chapelinhos mais coquets, luvas de cano alto e, no inverno, opulentos casacos do mais caro astracã com a competente gola de vison.
A casa, mobilada logo na altura do casamento com todas as comodidades e luxo burgueses, foi-se pouco a pouco preenchendo, direi saturando, com mil objectos decorativos, adquiridos nas suas quase diárias andanças pelos antiquários e nas grandes lojas de ménage de Lisboa. Era tão assídua da José Alexandre como dos bricabraques da Rua D. Pedro V, do Bairro Alto, das ruas da Escola Politécnica e de São Bento. A sua casa de banho parecia um instituto de beleza, pelo número de boiões de cremes, loções, sais de banho, champus, perfumes, utensílios de massagem, toucas e luvas de toilette. Além de frequentar os melhores cabeleireiros, onde mantinha assinatura, dedicava grande parte do tempo à leitura de revistas de modas e da vida mundana. Podia entregar-se a todas essas devoções, com vagar e pormenor, porque o pessoal doméstico ao seu serviço era numeroso, contando com jardineiro, chauffeur fardado, cozinheira e várias criadas, governanta, aos quais, depois de nascidas as crianças, se juntou uma nurse.
De resto, este era o trem de vida da alta sociedade lisboeta nesses anos quarenta. Apesar de a Europa se encontrar então sob as agruras da Segunda Guerra Mundial, o nosso país ia escapando indemne ao âmago da tragédia, ou porque os contentores maiores não haviam ainda precisado de utilizar o nosso pequeno território, ou porque o hábil político, então condutor dos nossos destinos, como um equilibrista conseguia acrobacias prodigiosas com a sua manha da "neutralidade colaborante", ou, digamos, falando mais terra a terra, com o seu jogo do pau de dois bicos. Assim, embora houvesse continuamente uma terrível ameaça suspensa sobre a nossa cabeça, e várias carências se fizessem sentir sobretudo nas classes mais modestas, com o racionamento de géneros alimentícios e de combustível - lembro-me do açambarcamento que os proprietários do lar para estudantes onde eu então vivia (os meus pais assim que entrei para a Universidade regressaram à sua terra), realizavam por essa altura, comprando no mercado negro, vastas quantidades de carvão, de petróleo e de açúcar - com as bichas, e os aviões bombardeiros sobrevoando Lisboa, com os boatos terrificantes, com os espiões, às vezes misteriosamente assassinados, com as dificuldades dos estudantes para encontrarem nas livrarias os livros estrangeiros necessários, com as levas de refugiados que atravessavam o nosso país com destino aos Estados Unidos e a outros lugares longínquos - as classes mais abastadas, a alta burguesia continuava a sua dolce vita como se nada de anormal se passasse no continente onde habitava e também lá longe, para o Norte de África e para o Pacífico, onde se travavam os mais cruentos e devastadores combates.
Entre os homens dessas classes os problemas da política internacional não deixavam de ser discutidos e receados. Mas as suas mulheres, as mulheres dessa alta burguesia, entre as quais se contava a protagonista desta narrativa, embora se mostrassem temerosas de que as convulsões da guerra pudessem repercutir-se com algumas consequências no nosso país, que pelo menos viessem alterar "a ordem das coisas, em que assentavam os seus privilégios, o seu luxo, o seu bem-estar - viviam fundamentalmente inconscientes dos grandes problemas e dramas que agitavam a Europa, o mundo todo. Por isso continuavam a preocupar-se com as suas pérolas, com os plastrons dos maridos, a jogar à roleta e ao baccara no Casino Estoril, a rivalizar por causa dos cadillacs e dos astracãs.
Os dias de Ana Luísa eram então gastos entre as ordens dadas ao pessoal do serviço doméstico, ou, depois de ter tomado o pequeno-almoço na cama, os banhos diários, demorados e perfumados, o enfiar das toilettes e ensaiar dos respectivos adereços, no percorrimento de lojas e boutiques, e também na assistência aos chás com as amigas, nos jantares com o marido e seus conhecimentos, na presença obrigatória nas premières dos teatros, da ópera e de alguns concertos, e também em cabarés e bares elegantes de Lisboa e dos Estoris. De quando em quando acompanhava o marido quando ele participava em congressos e simpósios no estrangeiro, viajando pela Europa, pelo Canadá e pelos Estados Unidos da América, onde continuava a mesma vida de jantares, espectáculos e lojas caras. Os filhos, um menino e uma menina, pareciam completar este quadro de satisfações, de requintes e distracções constantes. Escusado será dizer, ela vestia-os como pequenos príncipes, cumulava-os de jogos e brinquedos caros, que também não se cansava de procurar e escolher.
Não deixarei de dizer, Ana Luísa não se limitava aos cuidados com o conforto físico e as distracções dos filhos. Apesar da futilidade da sua vida, mostrava dotes de educadora, procurava até entreter-lhes a imaginação contando-lhe muitas histórias de maravilha, jogando os seus jogos, desenhando e modelando para eles. A devoção posta por Ana Luísa na assistência pedagógica aos filhos faz-me pensar que, além do natural amor de mãe a aplicar-se assim generosamente nessas atitudes, representaria igualmente a necessidade, da sua parte, de preencher um pouco da sua vida com alguma coisa de menos egoísta e de maior mérito que a exclusiva preocupação com a sua pessoa.
Havia seis anos que Ana Luísa estava casada. Durante esse tempo concluíra eu o meu curso superior de Arqueologia e preparava-me para iniciar no estrangeiro um estágio de pós-graduação. Foi por esta época que Ana Luísa me pôs, um tanto abruptamente, a par da sua primeira aventura extraconjugal. Digo abruptamente, não porque em última análise isso constituísse para mim coisa impensável e impossível da parte dela. Nunca poderia admitir semelhante coisa da parte da irmã, Milena, mas reflectindo já, então, sobre o temperamento e certos indícios comportamentais de Ana, enquanto adolescente, eu ou qualquer outra pessoa minimamente psicóloga poderia ser levada a concluir existirem nela potencialidades para grandes ousadias e transgressões.
Ana Luísa sempre afirmou ter chegado a gostar do marido. Não era demasiado mentirosa. A mentira é um ardil primário e ela era suficientemente inteligente para ser díssimulada, antes que mentirosa. Mentiras, nela, só as necessárias e suficientes para a urdidura de circunstâncias factuais propícias aos seus intuitos, esses sim, por vezes imediatamente inconfessáveis, por secretos e transgressores. Por isso não ponho em dúvida a sua afirmação de ter chegado a gostar do marido. Assim ela chegará a gostar de alguns outros homens na sua vida. E gostou tanto deles, durante algum tempo, quanto veio a aborrecê-los mais tarde. Não digo odiar, mas precisamente, aborrecer. Se em alguns momentos se entregou contra eles a cenas de cólera, a vinganças, a chantagens, a injúrias, recriminações, e às tais pequenas mentiras, tudo isso só aconteceu quando a sua vida com eles atingiu precisamente a fase do aborrecimento. Aborrecimento cujos sinais apareciam a partir do primeiro instante em que esses homens pretendiam coarctar as manifestações da sua permanente ansiedade e da concomitante busca de apaziguamento para essa ansiedade. De resto, eles também se aborreceram dela, à medida da sua verificação de que Ana Luísa procurava mais alguma coisa na vida para além deles.
Para Ana Luísa, aborrecer os amantes era considerá-los, não tanto como inimigos mas como obstáculos a desviá-la das suas buscas pessoais. É certo, com o marido esse aborrecimento chegou algumas vezes a abeirar- se do ódio. Mas só a abeirar-se. Isto talvez por ela de todo em todo não conseguir apagar as recordações do entusiasmo e amabilidades iniciais para com ela, talvez por ser o pai dos seus dois filhos, talvez pelo remorso de, ao sentir esse aborrecimento e má vontade, não ter tido a coragem e a lealdade de o abandonar então.
Aliás, com os outros dois homens que virão a ocupar um lugar maior na sua vida, o aborrecimento também não irá conduzi-la imediatamente à ruptura. Reflectindo sobre o malogro antecedente, uma hesitação associada a momentos de arrependimento e a tentativas de ressurreição do antigo entusiasmo conduzi-la-á ao arrastamento de laços já desfeitos, obrigando-a a atitudes e a acções que eles, os homens, e as pessoas alheias chamaram de perversidade.
A fase de amor pelo marido foi a mais curta de todas as fases de amor, por Ana vividas. Indecisa sobre a natureza do seu sentimento quando ficou noiva, chegou no entanto a convencer-se de que o amava", quando ele nos primeiros tempos do casamento vivia numa espécie de idolatria perante a sua beleza, cumulando-a de mimos e atenções.
Quando o marido se apercebeu de que em Ana Luísa começavam a manifestar-se ansiedades que não se satisfaziam com essa idolatria, sentindo-a cada véz menos aquiescente e solícita, foi ele o primeiro a deixar de amá-la, tornando-se frio, distante, fugidio e por vezes rude e grosseiro.
Compreendo hoje como, da parte dela, toda a idolatria de um homem vulgar" (como ela acabou por defini-lo) não poderia jamais saciar a sede ansiosa de uma alma como a de Ana Luísa, por natureza insaciável.
Depois da confissão da sua primeira aventura extraconjugal, era eu própria quem, daí a dias, provocava o aprofundamento dessa confissão; interessava-me conhecer o que se passava no íntimo daquela jovem mulher a quem acabava de acontecer algo que não poderia deixar de lhe causar uma perturbação, qualquer que fosse a natureza e o nível dessa perturbação.
E sentia-me tomada de um quase espanto por certa mudança visível nela, depois do seu regresso e, portanto, depois do acontecido. Se Ana Luísa não era uma tímida - embora, perante certas pessoas, especialmente as conhecidas pela sua cultura e elevado grau de conhecimentos, nos primeiros contactos exibisse uma espécie de humildade cautelosa - mostrava agora um maior descontraimento ou desenvoltura nas atitudes e nas poses, direi uma maior expansão da sua vitalidade. Numa comparação vulgar, poderei dizer, ela era agora como uma flor à qual houvessem prodigalizado um fertilizante especialmente benéfico para seu viço e pujança.
Durante o aprofundamento da sua confissão" dir-me-á ela:
- O espantoso é que, depois daquela sessão de amor - (disse assim, tal qual: sessão de amor) - quando me olhei ao espelho achei-me a brilhar por todos os poros, luziam-me os olhos, as faces, o pescoço, os braços, fiquei mais bonita, em suma. "
Foram precisamente essas palavras - sessão de amor - a ponta por onde comecei a puxar a linha do meu interrogatório. Dei uma pequena gargalhada e repeti
- Daquela sessão de amor"! Então, isso, para ti foi assim como uma sessão de ginástica ou de fisioterapia?
Ela tomou um ar reflectido e foi respondendo, devagar:
- São esses os termos exactos...
Continuei:
- Isso, não te trouxe qualquer problema... de ordem moral... ou, pelo menos, de ordem psicológica?
Curiosamente, respondeu, sem hesitação:
- Nenhum problema. Apenas matéria para reflexões. Para já, uma conclusão extraordinária: foi um momento de plenitude vital, existencial, de felicidade, portanto. Um total apaziguamento. Só que breve, por instantes.
Interrompi-a:
- Mas... a que espécie de apaziguamento te referes? És casada, fazes vida íntima com o teu marido, suponho...
Foi a vez de ela me interromper:
- Talvez nunca tu, nem muitas outras pessoas consigam perceber uma coisa destas. É que o facto de eu fazer vida íntima com o meu marido, um homem que me proporciona uma vida de conforto e até de distracções, não preenche qualquer coisa que me falta. É difícil de explicar todas as coisas implicadas nesta insatisfação. Coisas estranhas, desde as do âmbito físico até às psicológicas. É que eu tenho ideias, talvez aberrantes. Por exemplo: acho que os corpos são para serem repartidos por vários momentos de vida, ou, para me explicar melhor, comparo-os a uma iguaria a ser consumida por vários convivas e não apenas em refeições domésticas. A própria nudez, se é bela, já de si deve também ser distribuída.
Ri-me do símile gastronómico, mas perguntei-lhe
- Serás uma exibicionista?
- No sentido de comunicar aos outros a minha vitalidade, serei. Quando saio das ondas, na praia, seminua, ou mesmo nua, gosto de ser contemplada e desejada.
- A tal sessão de amor foi portanto uma oportunidade para te exibires.
- Sim. Não se tratou de nenhum desejo especial pelo umeu holandês voador. Para o efeito, tanto podia ser ele, como outro. Mas houve sobretudo isso: uma oportunidade para a minha teoria da distribuiÇão ou da dádiva múltipla do meu corpo, do meu ser.
- Sabes - acrescentei - a Simone de Beauvoir tem aquelas palavras extraordinárias a respeito dos dias de exaltação maior do desejo físico feminino: ela encontrava-se então no Sul da França, em serviço, enquanto Jean-Paul Sartre, o seu amante, permanecia na Alemanha. Foi então que ela, tomada pelo desejo físico, um desejo não fixado em nenhum homem, um desejo apenas hormonal, uterino - histérico, no sentido etimológico - a levou a falar nos dias do "n'importe qui". Encontrando-se o teu marido assoberbado no congresso, nos relatórios, estarias tu num desses dias, quando da aventura com o tal holandês?
Ana, com toda a gravidade:
- Vejo onde pretendes chegar. Mas não. Neste caso não se tratou disso. Foi antes uma experiência e uma pesquisa.
- És então uma pesquisadora da feminidade.
- Sou. E quero continuar a sê-lo. Nesse momento encontrei uma parte da minha verdade. Outra descoberta, então, foi a de que, além da felicidade trazida pela alegria da minha distribuição, houve também o sabor de uma vitória, a do gosto de transgredir, de fugir do já conhecido.
Perante alguma perplexidade minha e provavelmente também para exercitar a sua auto-análise, acrescentou:
- Com o meu marido não tenho este gosto da transgressão. Aliás, com o Alfredo ainda não consegui, e jamais conseguirei mostrar-me a loba sedenta que eu sou, a ferocidade carnal de que sou capaz. Por pudor.
- Pudor da sensualidade, então?
Ficou meditativa:
- Sensualidade? Sim. Mas o que eu desejo também é este prazer da aventura, da novidade, da variedade, a exaltação de um recomeço, em exuberância, em naturalidade e liberdade. Sensual serei. Mas viciozinhos, não vás pensar... Isso são coisas para os homens, sobretudo para os impotentes ou coisa parecida. As mulheres submetem-se aos vícios deles, não os desejam, não os compartilham, não os apreciam. Lembras-te daquela cena de O "Primo Basilio", em que o Eça põe o primo a ensinar à Luísa um viciozinho, e conclui: "Ensinou-Lhe um vicio novo, tinha-a na mão, Oh! O Eça não percebia nada de mulheres...
- Concordo em absoluto - respondi. - Quem tem razão, sobre o assunto, é aquele psiquiatra, o Oswald Schwartz, não sei se conheces...
Nesses momentos, em que Ana Luísa me fazia estas confissões, estava de uma beleza, não sei se diga esplendorosa, se terrível, se terrívelmente esplendorosa. E ela era assim em todos os momentos em que caía em entusiasmo, em exaltação, os tais momentos a que ela chamava de furor vital, A sua beleza parecia então um pouco assustadora. Perante esse furor em beleza, algumas pessoas menos pujantes de vitalidade poderiam até chegar a sentir-se diminuídas ou insignificantes. E dir-se-ia existir nela a possibilidade de esse furor se intensificar até o grau da terribilidade, à medida que se aproximava dos momentos, não de alegria ou felicidade, mas de ira ou de raiva. Então nela se operava uma metamorfose que a transportava de uma aparência luminosa e clara, para outra, escura e densa, onde parecia surgir como um ser endemoninhado.
Apesar da frieza científica" com que eu procurava encarar os últimos procedimentos de Ana Luísa, sentia-me deslumbrada por essa luz dela irradiante. Acabei por deixá-la falar, desistindo de algumas perguntas que pensava ainda fazer-Lhe. Ela retomou a conversa:
- Somente agora... Não sei. Verei. Mas digo, pela primeira vez, depois daquilo, encarei o Alfredo, como... como um amante. Melhor: como outro amante possível. Passei à disposição de me dar voluntariamente, de também com ele transgredir qualquer coisa, talvez o nosso fundamental pudor, não sei. Só que. Só que me parece, o assustei, ele teve medo de mim! Senti nele algum constrangimento, uma deliberada atitude de moderação. Mais: a partir daí parece evitar-me um pouco. Será ideia minha? Não sei. Mas não posso esquecer-me de que, durante o nosso noivado, sempre que eu o beijava um pouco mais impetuosamente, no parque, era ele próprio quem dizia: Calma, Ana Luísa, calma.
E neste momento vieram-me à lembrança as palavras da tia Ausenda, quando a lobrigou num desses transportes: Aquilo não é uma noiva, é uma amante!
Quando chegou a esse ponto, Ana, que estava de pé, sentou-se, tomou uma pose já menos radiosa. De súbito esmoreceu, apoiou o corpo no braço do sofá, a mão esquerda no rosto, numa atitude não sei bem se sonhadora se obsessiva, e acrescentou devagar, espaçando as palavras:
- Não desistirei de procurar a minha verdade. Mas como indagar da verdade sem liberdade?
Daí a alguns meses, através de uma visita a Ana Luísa, subsequente portanto a estas confissões, comecei a vislumbrar os trilhos por onde procurava enveredar os seus passos, com o fito de prosseguir na busca da sua verdade". Trilhos que iriam obrigá- la a um árduo desbravamento, à remoção de enormes obstáculos.
Quando entrei na saleta de estar, sua privativa, ela folheava distraidamente, ou quase aborrecida, catálogos de perfumes, sentada num maple forrado a chintz.
A nurse acabara de dar o lunch às duas crianças e saiu a passeá-las para o jardinzinho que rodeava o palacete. As várias criadas trabalhavam paulatinamente, cada uma nas tarefas próprias. A casa estava em silêncio. Os cortinados de damasco, os bibelots, a estante branca com livros e revistas, o pequeno rádio, tudo parecia es tagnado ou entediado.
Repetiu pensamentos já antigos:
- Não sinto vontade de nada. Nem de ler, nem de ouvir música. Aborreço-me. Tão diferentes as nossas vidas, a tua e a minha. Eu, vinte e quatro anos, casada há sete, mãe de dois filhos; tu, a estagiares no estrangeiro, à beira de uma carreira científica, de uma profissão que te dará a independência económica. Tu podes traçar o teu próprio futuro. Eu tive de seguir um destino igual ao de todas as outras raparigas do meu meio. Não escolhi, escolheram tudo por mim. Continuo a viver no luxo em que nasci, o Alfredo ganha muito, compro tudo quanto me apetece, até o que não me apetece, muitas vezes compro coisas só por desfastio, para encher o tempo, a vida. Não posso dizer que não aprecie luxo, hei-de mostrar-te as últimas sandálias que descobri, René Mancini, uma maravilha. E o Alfredo gosta de ver-me bem vestida, embora me pareça, ele considera apenas o efeito geral das minhas toilettes, não tem tempo ou sensibilidade para os pormenores em que ponho tanto de mim. E ultimamente, tornou-se tão ensimesmado, quase deixou de me dar opiniões, será a profissão a absorvê-lo? Feitio? São os outros a dizerem-me coisas bonitas, a lisonjear-me: "Oh, tenho a certeza, os seus escarpins são de M'l'Aya, só esse tom carmesim!"
Interrompi-a:
- A lisonja é uma arma de conquista. Especialmente os homens usam sempre da lisonja quando nos assediam. O curioso é eles apenas nos lisonjearem a respeito de coisas mais ou menos fúteis, ou então das que lhe dão prazer a eles: gabam os nossos olhos, ou os nossos vestidos, ou os nossos cozinhados, e pouco mais.
- Tens razão - respondeu Ana Luísa. - E, precisamente, começo a perceber, eu não quero ser admirada e lisonjeada, seja por homens, seja por mulheres, apenas pelos meus olhos e pelo meu luxo. É que gostaria de ser apreciada também por outras coisas. Tu sabes falar de política, de arte, de ciência, de filosofia. Mas eu, que sei eu, afinal, do que vai pelo mundo? Das produções humanas apenas conheço as que me são úteis ou agradáveis. A guerra acabou há dois anos, estamos em 1947. Tal como o pai, o Alfredo também se aproveita da ciência e da técnica. Mandou há pouco vir da América películas fotográficas a cores, tu já as deves conhecer da Inglaterra, e fala em instalar na cozinha e na casa de banho isso a que chamam iluminação fluorescente. Eu já uso "meias de vidro", caríssimas, são as primeiras que apareceram no Sousa. Mas nada sei do que vai pelo mundo da Arte. Gostei tanto que o meu "holandês voador" me tivesse mostrado o Van Gogh, no Museu de Amsterdão. O pai, o Alfredo, as pessoas do nosso meio continuam a falar - quando falam... - apenas do Columbano, do Malhoa, do arquitecto Raul Lino e da sua "casa portuguesa". Enquanto todos os meus parentes e amigos, a "boa sociedade" lisboeta, durante a guerra estava do lado dos Alemães e com o Eixo, descobri, havia opiniões opostas. Enquanto eles, os meus, enchiam a boca com o megalómano do Albert Speer, o arquitecto de Hitler, o meu holandês mostrou-me uma reprodução da Guernica, de Picasso, que, por cá, ainda tão pouca gente conhece. Fantástico, como esse artista deu todo aquele trágico desarroi! Oiço vagas referências a uma filosofia nova, chamada existencialismo, a exposições de arte abstracta, que é isso? feitas em Nova Iorque, e aos escritores neo-realistas, que nunca li. Quando vamos a Paris, não saio da Rua de Rivoli, o Alfredo só quer experimentar restaurantes e, como distracções, a eterna Ópera e os eternos Moulin Rouge e Olympia...
Dei-lhe razão:
- E hoje, como sempre, há mulheres notáveis em tantos campos: tens de conhecer a vida de M. ª Curie, os movimentos das sufragistas, os arrojos de Isadora Duncan, os escritos de Karen Horney, para além da Marlene Dietrich ou da Greta Garbo; precisas de conhecer a nossa Vieira da Silva, a Irene Lisboa...
- Sim, o meu mundo é incompleto. Distorcido. Gostaria de transpor as barreiras da sociedade a que pertenço. Não ser apenas a filha do ilustre engenheiro Lima e Castro e a elegantíssima esposa do também já ilustre advogado, e já quase juiz, Alfredo González. Gostaria de ser notável por mim própria...
- Tens toda a razão.
Mas, ao chegar a este ponto, no arrebatamento da expressão dos seus desejos, Ana Luísa deixou escapar umas palavras que vieram revelar o lado uinteresseiro da sua ansiedade e da sua insatisfação
Notável por mim própria, para poder brilhar noutros meios
Durante umas pequenas férias em que voltei a Portugal, interrompendo o meu estágio no estrangeiro, como sempre fui visitar Ana Luísa. Assisti então a uma cena que veio demonstrar-me como, apesar da sua convicção e declaração de que a aventura com o holandês não Lhe trouxera nenhum problema, de nenhuma ordem, algum rasto ela deixara na sua vida. A realização concreta das suas ousadas teorias eróticas - distribuição do corpo, perla do pudor selvajaria da fêmea espontânea e volúpia da transgressão - como poderia não deixar marca no ser de uma mulher? E não estaria afinal Ana Luísa a puxar já e decididamente por uma visível ponta da meada, entretecida dos dois fios, densos e tensos, que eram a sua feminidade e a sua ansiedade? E alguém, eu ou os seus amantes, conseguirá algum dia separar esses dois fios tão fortemente urdidos, quase anastomosados, a sua feminidade, sôfrega por se expandir, e a ansiedade, angustiada na busca de um objectivo? Desejaria Ana Luísa alcançar notoriedade - brilhar noutros meios"
- para através dela chegar à expansão da sua feminidade, ou expandir essa feminidade para alcançar a notoriedade? Mas afinal que querem as mulheres " Freud não encontrou a resposta: tal como ele próprio disse de Karl Jung, também ele aqui, "Flutuou mas não mergulhou".
A cena a que assisti, durante essa nova visita a Ana Luísa, não me deixou dúvidas quanto à perturbação, já em desinvolução, na sua vida pessoal e conjugal.
Era de tarde e, como de costume, ela estava sentada no canapé de chintz. Como de costume a essas horas as crianças brincavam no jardim vigiadas pela nurse. Ana levantou-se, afastou os cortinados, olhou, mas não sorriu. Voltou para o canapé com um ar desfeito. A seguir disse, Desculpa, tenho de chamar a governanta. " Tocou a campainha e quando a senhora apareceu, ordenou-lhe, "Diga à cozinheira que eu já não faço o vol-au-vent para o Senhor Doutor. Olhe, escolha a senhora o jantar que entender e a Laurentina que o faça. "
A governanta atreveu-se: O Senhor Doutor gosta tanto do vol-au-vent feito pela Senhora... "
Vi como Ana Luísa reprimiu um leve assomo de furor e com a voz alterada concluiu, Mas hoje não o faço, estou mal-disposta e podia sair- me mal. Escolha e mande fazer. "
Quando a governanta saiu, Ana estirou-se abruptamente ao longo do canapé, estendeu um braço sobre o rosto e ouvi-lhe um soluço sem lágrimas. Logo em seguida endireitou o corpo e disse secamente, Nada de lágrimas. O que eu preciso é de uma decisão e não de lágrimas. "
- Posso ajudar-te? - perguntei.
- Talvez. Mas para já, não. Sabes o que eu devo fazer? Cortar com a minha vida exclusiva de esposa burguesa. Se o pai me ouvisse estas palavras... Fazer miminhos culinários para o maridinho, que muitas vezes nem um olhar, nem uma pequena palavra me dá. Entra em silêncio, come em silêncio, volta a sair, tem os dias muito ocupados? Graves responsabilidades? E eu, sozinha neste casarão... Ah! Sim, tenho as crianças, a criadagem, as tardes na Caravela ou na Marques, com as amigas, a canasta, as estreias na ópera, as actividades sociais próprias de uma senhora", como diz o meu pai.
Mostrei-me surpreendida, ignorava que Ana Luísa depois da minha partida para o estrangeiro se entregasse a quaisquer actividades que não fossem as familiares e as de ordem mundana distractiva. Depois lembrei-me de que, já em adolescente, ela, juntamente com a irmã, fizera parte de grupos coadjuvantes da Mocidade Portuguesa Feminina, e que durante a Guerra de Espanha tricotavam gilets para os soldados franquistas, a conselho do pai, como faziam tantas meninas e senhoras da boa sociedade.
Informou-me:
- O pai e a Milena acham, eu devo ter uma ocupação que me "preencha o espírito", por exemplo, interessar- me por obras caritativas. Como sabes, as senhoras da nossa melhor sociedade gostam de repartir umas migalhas dos bens com que a sorte as beneficiou, pelos desprotegidos que a mesma sorte entendeu maltratar. Além dos chás de caridade" - ah! se soubesses como começo a sentir-me mal nesses meios, rodeada de matronas e donzelas, piedosas e hipócritas, tão burguesas como eu, afinal. Elas são o espelho onde observo a minha situação na vida. Ultimamente tenho participado num grupo de puericultoras que vão pelos liceus ensinar as jovens mães pobres e ignorantes" a tratar dos seus meninos; ensinamos a dar banho, a esterilizar os biberãos, a pegar ao colo, a deitar, a levantar os nenés. Em suma, aborreço-me de morte.
- De facto, Ana Luísa, parece-me que essas actividades não serão as mais próprias para o teu temperamento.
Com piedade pelo drama a avolumar- se no espírito, na vida de Ana Luísa, lembrei-me de uma sugestão:
- Nunca mais desenhaste nem pintaste, pois não?
Denunciando algum desespero perante a evocação de um assunto que ainda num passado não muito distante parecia dar-lhe satisfação, ou, pelo menos, apaziguamento, Ana Luísa fincou os cotovelos, levou ambos os punhos juntos e fechados à testa, e respondeu-me numa voz transtornada:
- Desenhar... Pintar... Como? Há tanto tempo que não pego num lápis ou num pincel. Recomeçar? Ainda que eles não se importassem, o jeito, só, não chega. E precisava de me pôr a par de tanta coisa... Na Holanda, além dos museus andei por livrarias, vi óptimos álbuns de pintura, comprei alguns. Cheguei a uma conclusão: acho que precisava de receber umas lições. Até já me passou pela cabeça, sabes o quê? Matricular-me na Escola de Belas-Artes. Tempo não me faltaria. Era só roubar algum às canastas, aos salões de chá.
Quando chegou a esta última frase deu uma gargalhada amarga:
- Eu, a esposa do ilustre causídico Alfredo González, na Escola de Belas-Artes, ao lado dos jovens de trajes exóticos, extravagantes, com que eles costumam apresentar-se, a sentar-me em carteiras escolares, a assistir a aulas com reais modelos nus, a sentar-me pelos degraus das escadarias a esgalhar, esbocetos, a postar-me de bata suja diante do cavalete! O Alfredo, o meu pai, alguma vez aceitariam semelhante coisa?
Respondi-lhe desenvolvendo a minha anterior sugestão:
- Sim, parece-me, essa ideia cairia muito mal na tua família. E tu, talvez também já não te adaptasses a uma vida de estudante. Lembra-te de que nunca frequentaste uma escola, sempre tiveste apenas professores em casa. E ainda que isso te fosse possível, não te poderias matricular, os estudos domésticos que fizeste não te deram nenhum diploma que o permitisse.
Como iluminada, Ana Luísa interrompeu-me e interpôs:
- Não me tinha lembrado disso. Pensei nessa hipótese precipi tadamente, levada apenas pela minha ânsia de romper o cerco, de frequentar outro meio, de dar um passo. Mas já que isso não é possível, então poderia arranjar um professor, ou antes, uma professora. O pior é que não conheço ninguém. Espera, tu talvez me possas ajudar, és capaz de conhecer alguém.
Ana Luísa acabava de chegar a um ponto coincidente com o meu projecto de ajudá-la.
Como já disse, não acreditava verdadeiramente na sua vocação para a pintura, assim como, mais tarde, quando ela conseguiu inserir-se no meio artístico e chegou a alcançar o Grande Prémio Nacional de Pintura, nunca valorizei as suas realizações nesse campo. Considerava-a dotada de sensibilidade, sim, sobretudo como contempladora, não como criadora. Mas jamais reprovaria ou reprovarei as tentativas daqueles a quem a genética e a educação não conformaram um génio singular e autenticamente criativo. Em meu entender, tais tentativas estão para a Arte como os acontecimentos biológicos e as descobertas científicas para a evolução da natureza e da civilização humana, isto é, representam tentames para o alcance de uma conseguida adaptação. Como se o génio criativo fosse fazendo ensaios, ao longo da vida de vários indivíduos, até um dia vir a alcançar em alguns deles uma melhor performance. Além disso, em todos os casos essas tentativas dão prazer aos que as praticam, podem preencher-lhes um objectivo na vida. Por isso me parecia que o regresso de Ana Luísa aos lápis e aos pincéis poderia vir a constituir para ela, pelo menos um derivativo para o seu tédio e um exutório para a sua ansiedade. Embora daí pudessem igualmente resultar certos perigos, principalmente de ordem familiar.
Porque se ela viesse de facto a atingir certo grau de aprendizado e ficasse apta para válidas tentativas de realização artística, modestas elas fossem, igualmente havia de chegar a sentir a necessidade de averiguar os efeitos das suas experiências em outros espíritos, verificar se conseguia exprimir aquilo que sonhava, se tornava captáveis pelos outros as suas fantasias. E sendo, como era, uma extrovertida, ansiosa por brilhar (como a ouvimos dizer), acabaria por não se contentar com o aplauso de meia dúzia de pessoas, mais ou menos amigas, e passaria a desejar um público mais vasto que a admirasse, louvasse e exaltasse.
Mas tudo isto eram previsões minhas a longo prazo, passíveis de alterar-se por razões imperscrutáveis. Para já afigurava-se-me uma boa solução que Ana Luísa se entretivesse, com algumas lições de desenho e pintura. Depois se veria. E respondi-lhe de boamente
- Muito bem. Deixa estar, vou ver se encontro alguém.
Nessa mesma tarde, convidada para jantar, fiquei, embora soubesse que o marido de Ana Luísa não tinha por mim grande simpatia. Talvez porque para a sua mentalidade me considerasse de uma classe, no mínimo diferente, talvez porque para ele eu representasse o exemplo concreto de uma incipiente via da emancipação feminina, ou talvez simplesmente porque lhe desagradasse a minha presença junto de Ana Luísa como testemunha da sua vida conjugal.
De qualquer modo, isto não interessa para esta narrativa, pois me mantive sempre uma testemunha neutral, e se alguma vez interferi na vida deles, casal, como na dela, foi apenas nesta altura, quando servi de mediadora, ou antes, quando Ana Luísa entendeu servir-se da minha pessoa como mediadora no caminho que iria levá-la a uma mudança radical na vida do casal e na sua condição de mulher burguesa.
Durante o jantar, enquanto Alfredo González comia, em silêncio e carrancudo, o vol-au-vent, de exclusiva responsabilidade da governanta e da cozinheira, e não o feito, como de costume, pelas mãos da esposa, Ana Luísa provavelmente ainda dentro do espírito da sua conversa comigo durante a tarde, aproveitando oportunamente um momento fugidio em que ele, pousando os talheres, fazendo uma pausa, levantou a cabeça e a fitou por instantes, disse-lhe: - Apetecia-me (e, pareceu-me, com este apetecia-me talvez ela pretendesse dar às suas palavras um ar de caprichismo, de dito sem importância", de dito por dizer) voltar aos meus pincéis...
Ele só respondeu depois de mais uns trejeitos de mastigação, paulatina, e de beber um golo de Colares branco da garrafa de cristal
- Volta - e, ensimesmando-se, retomou o corte do folhado e o ar ausente.
Percebi (e aí estava de facto, eu, enquanto testemunha) como Ana Luísa teve de dominar uma onda de raiva, que lhe fez subir o sangue à cara.
- Mas, agora (sublinhou evidentemente este agora) vou precisar de estudo, de lições em algum sítio ou com alguém - e, ousada, lançou ainda:
- E se eu fosse para a Escola de Belas-Artes, apenas como ouvinte, visto não ter um diploma liceal?
Ana Luísa voltava assim a essa hipótese, que já sabia inviável, mas o seu desejo devia ser o de colocar perante o marido a sua ânsia de romper o cerco, numa espécie de provocação ou de tentativa de avaliar até que ponto poderia ir.
Alfredo González, que tinha começado o bavaroise, pousou a colher, olhou para Ana Luísa com uma expressão entre a de pavor e a de ódio, logo depois transmudada para a de uma amarga decepção. De seguida empurrou a cadeira, deixou a mesa e, abandonando ostensivamente a sala de jantar, bateu com a porta. Daí a pouco ouvíamo-lo atravessar o vestíbulo e sair para a rua.
Comemos as duas o bavaroise em silêncio.
Quando acabou, Ana Luísa, as feições distendidas, endurecidas, explodiu:
- Odeio-o
No âmago de tal tempestade, não considerava já a ocasião propícia para uma conversa mais aprofundada acerca da situação psicológica em que entrara o casal. Disse apenas:
- E ele, a ti, também te odeia?
Ela olhou-me, um pouco surpreendida.
Não sei se alguma vez teria perguntado a si própria quais seriam, no presente, os sentimentos do marido a seu respeito. Talvez, ainda no âmbito da convicção orgulhosa da intangibilidade dos seus fascínios femininos, considerasse que ela poderia sentir-se defraudada ou infeliz dentro do casamento, mas ele permaneceria inabalável no seu deslumbramento perante ela:
- Ele, a mim? Nem chego a saber bem. Acho que, odiar-me, não me odeia. Aliás, eu também não o odeio, foi força de expressão, raiva por causa desta vida. Mas é um orgulhoso, um egoísta, um casmurro. Acha que a sua presença junto de mim, a vida dourada que me dá, são suficientes para me fazerem feliz. O que ele odeia é o eu não me sentir feliz assim. E ainda ele não sabe - mas já deve ter começado a perceber - mais ódio sentirá quando souber definitivamente que anseio por outras coisas. A reacção dele é fechar-se, azedar-se, endurecer-se. Não temos uma conversa, a sua vida pessoal e para além da profissão, é tabu. Assuntos como problemas sociais, vida intelectual ou artística não lhe interessam. A educação das crianças é só comigo. Cumpre o dever conjugal, sim, mas exactamente assim, apenas como dever.
Perguntei-Lhe:
- Não haverá em tudo isso uma espécie de círculo demoníaco", como dizem os psicólogos? Ele fecha-se e afasta-se porque supõe, a vida que levas não te satisfaz, e por sua vez, o facto de ele se fechar, vem azedar-te; fechar-te e afastar-te, a ti, também? E se tentasses.
Ana Luísa não me deixou formular o meu raciocínio, aliás nem sabia bem o que poderia dizer-lhe, mas via nitidamente esboçar-se o caminho de uma ruptura e, no fundo, por tudo quanto conhecia dela desde muito jovem, adivinhava, o seu temperamento um dia havia de vir a provocar muitas tempestades (como na verdade veio a acontecer).
Antes do meu regresso ao estrangeiro, nova cena, esta passada também durante um jantar o jantar semanal em casa dos pais de Ana - veio confirmar-me na suspeita de que uma explosão estava para se dar na vida de Ana Luísa e na sua família. Aquilo a que ela chamava o cerco, mais uma vez se manifestou aí, com toda a intensidade.
A meio do repasto, quando o banqueiro, marido de Milena, contou ter adquirido um quadro de uma pintora portuguesa, uma paisagista então em voga, Alfredo González, até aí calado e mal-humorado (durante toda a semana seguinte à do jantar do vol-au-vent, nunca mais trocaram uma palavra, ele e ela), numa voz que se alongava por sobre a mesa e pretendia atingir todos os presentes, desde o sogro às tias, e à qual imprimiu a entoação de quem faz uma revelação só por si tão escandalosa que nem necessita de comentários, atirou:
- Sabem que a Ana Luísa pretende matricular-se, como ouvinte, na Escola de Belas-Artes, para o próximo ano?
A mãe, as tias, levantaram a cabeça e olharam: primeiro para ele, depois para ela: e a sua expressão não era a incredulidade, nem a estupefacção, somente a do terror puro e simples.
Milena e o marido, mais o irmão Miguel, limitaram-se a um sorriso complacente e amigavelmente irónico, de quem acaba de ouvir um gracejo de mau gosto ou uma piada infantil. Só o pai repetiu as palavras ouvidas como se quisesse certificar-se da sua exactidão:
- A Ana Luísa quer matricular-se nas Belas-Artes? - e, voltando-se para a filha, no mesmo tom de quem procura uma certificação - Tu, Ana Luísa, tu queres ma-tri-cu-lar-te nas Belas-Artes? Tu... queres... agora... ir frequentar uma escola? - e, pousando a faca e o garfo ao alto, numa atitude já nitidamente interrogativa, grave, solene - perante o silêncio sério e os olhos fixos dos filhos: - Que se passa, Ana Luísa?
Assisti a vários duelos mantidos por Ana Luísa com o pai, ainda em solteira. Relembro o das lições de piano, rebeldemente recusadas. Ela conhecia a autoridade do pai, mas até onde era possível gostava de desafiá-la (ou não vá ela revelar-se sempre como uma mulher de desafios temerários). Nesta noite deve ter sentido como, mais uma vez, sobre si se abatia o duplo poder masculino, o do marido e o do pai, em suma, o da família inteira, sobre a sua condição feminina.
Percebi que a mesma raiva do outro dia, para com o marido, voltava a inflamar-lhe o espírito e uma nova oportunidade para um combate se erguia aqui. Como quem assume toda a coragem possível, Ana Luísa respondeu:
- Não tenho a certeza de querer matricular-me nas Belas-Artes. Isso é mais uma das certezas, do Alfredo. Aliás, ainda que o quisesse - e de olhos fuzilantes sublinhou o Quisesse - não poderia porque nem sequer o quinto ano tenho (toda esta frase foi igualmente sublinhada).
E já provocante:
- Nós, as meninas Lima e Castro, só estudámos em casa... Depois, moderando-se um pouco, talvez assustada com a expressão quase tenebrosa do pai - Bom, o que eu queria era aprender pintura, a sério. Há muito que eu devia...
O pai, sem hesitar, taxativo, interrompeu-a, irónico, ameaçador:
- És a esposa do Dr. Alfredo González e mãe de dois filhos. Um grande silêncio se fez entre os convivas. Silêncio que ninguém parecia capaz de interromper. Até que a tia Ausenda, contando com a aquiescência do irmão, veio, um tanto caritativamente, continuar o terrível assunto:
- Além de que, isso de mulheres artistas, a menina bem sabe, não é nem para a nossa classe nem para a nossa família. A menina não sabe qual é a origem da maior parte dessas artistas agora na moda? Não sabe que os artistas vêm quase todos de classes modestas?
Ana retomou o fôlego:
- Não é bem assim. O Toulouse-Lautrec era de origem fidalga, era titular - e aqui, os olhos familiares fixaram-na, algo admirados, e ela continuou, aproveitando o quase embaraço de todos. Por outro lado, afinal as pessoas gostam de ter as obras dos artistas, a Milena e o marido acabam de comprar um quadro da pintora Sarah Afonso.
A tia Ausenda, com o seu arzinho de suficiência e ignorância:
- É verdade. Mas, de qualquer modo, esses artistas não passam de uma espécie de operários especializados, uns em estátuas, outros em retratos, paisagens, coisas que nós lhes compramos, lhes pagamos, para enfeitar as nossas casas.
Aqui Ana irritou-se:
- Minha tia, a senhora nasceu e cresceu no século passado, está muito longe de saber certas coisas.
Neste momento, a discreta tia Francisca e a tímida mãe Teresina deitaram olhares implorativos às duas, a Ausenda e a Ana Luísa, como se quisessem dizer uPor amor de Deus, acabem lá com essa discussão.
Já muito mais segura de si, Ana Luísa mostrou-se cautelosa e aquiescente (como tantas vezes virá a fazer, empregando cautela e aquiescência, não como consentimento ou transigência, mas enquanto táctica subtil):
- Bom. Isso das Belas-Artes foi apenas uma alusão, feita por fazer. A verdade é que poderei ter lições em casa ou no atelier de uma professora. Apenas como experiência ou passatempo. Para variar dos chás de caridade.
- Como passatempo ou para aumentar as suas prendasacrescentou a tia Ausenda e, depois, deixando vir ao de cima uma ponta da malha complicadíssima que eram os seus complexos de donzelona velha e frustrada em múltiplos aspectos da vida, uma vida vinda já do século passado, como antes Lhe apontara a sobrinha. - Quando eu era nova, também quis aprender a pintar porcelana à mão, ainda por aí andam uns caquinhos pintados por mim...
O jantar terminava, todos começaram a levantar-se e certamente achavam por bem laisser tomber o assunto. O Eng. Lima e Castro, travando do braço de Alfredo González e ladeado pelo outro genro, o banqueiro, dirigia-se já para a livraria, onde iriam passar o serão jogando o xadrez ou o poker do costume. Ainda o ouvi dizer para os dois acompanhantes:
- Há por aí certos exemplares que acabam por ter má influência nas pessoas. Ao lado da gentalha de esquerda existe também uma categoria de exaltados que, embora pessoas de boa origem e até da nossa sociedade, no fundo são igualmente agitadores... Por exemplo, esse tal Almeida Negreiros é um anarquista. Bom, quanto à Ana Luísa, aquilo há-de passar-lhe. É sol de pouca dura. O que ela quer é variar de distracções. Ó Alfredo, quando é que você a leva outra vez lá fora? Mas mudemos de assunto. O número de colónias da Europa a tornarem-se independentes vai aumentando, hem? Aí temos agora a Índia e o Paquistão, independentes da Grã-Bretanha. E as nossas colónias, qualquer dia...
O telefonema de Ana Luísa, alguns dias depois da cena dos dois jantares machistas (como ela própria os designou), veio avivar-me a convicção de que o seu estado de ansiedade e de exaltação acrescidas se confirmava. Ela pedia-me, numa voz de timbres entre resolutos e dramáticos, que antes de eu partir para o estrangeiro lhe arranjasse uma professora de pintura, claro, uma professora, porque um professor nem pensar, haveria mais um cataclismo familiar.
Não me agradava muito a incumbência por saber como o marido, e com toda a probabilidade o pai também, reprovariam a minha intervenção, considerando-me como acatadora de algo perigoso cuja consciência mantinham no plano das vagas suspeitas ou das intuições mal defmidas.
Ainda tentei libertar-me da dificuldade fazendo-lhe notar como ela, movendo-se num meio de tão amplas relações sociais, onde havia pessoas que mais não fosse senão por snobismo adquiriam obras de arte, quadros de pintores, cerâmicas, etc. por vezes encomendadas aos próprios artistas, e outras que iam adquirindo a pensar sobretudo na sua valorização futura, considerando-as como um emprego de capital rendível, e ainda outras com filhos estudantes que poderiam indagar de professores, encontraria certamente alguém.
Respondeu-me, "Prefiro uma pessoa escolhida por ti. Se fosse alguém da minha classe a tratar do assunto, havia de arranjar-me uma pintora de flores ou de abóboras ao lado de almofarizes de cobre. Não. Prefiro uma pessoa daquelas que tu conheces, dos meios modernos, progressistas, despreconceituosos, um tanto anarquistas.
Ri um pouco, ao telefone, quando ela empregou essa expressão, um tanto anarquistas". Depois, continuando nós a conversa, fiquei a compreender que para Ana Luísa os anarquistas, em Arte, constituíam uma classe, digamos, de costumes de vida não convencionais e que ao mesmo tempo confinavam com os praticantes de certa boémia: vestiam roupas extravagantes, não tinham emprego certo, não obedeciam às regras da moral comum em assuntos sentimentais, muitos casavam e descasavam, ou viviam malogradas ligações sucessivas, mobilavam (quando mobilavam... ) as suas casas com móveis improvisados, ou com peças antigas encontradas, não em antiquários de luxo (para o que não tinham dinheiro) mas em feiras ou em obscuras lojas de província, e davam grande valor a objectos do artesanato folclórico. Conheciam muita música, não só clássica como de países longínquos, cançonetas de contestação política, alguns pertenciam secretamente ao Partido Comunista ou à Maçonaria. "Isto pelo que oiço dizer - acrescentava
- porque não conheço ninguém desse meio, mas nem tu calculas o que eu daria para os conhecer algum dia.
Informei-a de que iria contactar alguém que, sem corresponder propriamente à ideia que ela fazia dos "artistas" - até porque não se tratava de uma artista mas de uma professora de desenho e de pintura, coisas não necessariamente coincidentes - era uma pessoa não convencionalista, mas com uma vida profissional, metódica, de espírito tolerante, democrático e aberto a inovações. Simplesmente, desde logo a avisei, teria de ser ela a deslocar-se a casa de Paulina Mondeiro, onde ela a leccionaria, como acontecia com outros aprendizes. O que não lhe seria difícil, visto dispor de tempo e de automóvel com chauffeur às ordens. Portanto, só lhe faltaria obter a autorização, do marido.
O que veio a conseguir, não sem uma nova cena", como depois me contou.
Paulina Mondeiro, a professora que apresentei a Ana Luísa, de facto não correspondia àquilo que ela sonhava dentro dos seus já referidos mitos sobre os artistas e, se acabou por se decidir a tomar lições com ela, foi por uma circunstância da qual eu não me lembrara de Lhe falar mas, depois, quando veio a conhecê-la, terá sido a razão por que se resolveu a aceitá-la.
Eu própria não conhecia a Paulina Mondeiro muito de perto. Vira-a apenas umas quantas vezes, de fugida, junto do irmão, a quem, esse sim, conhecia por ter sido meu professor na Faculdade e a quem considerava como amigo.
Além deste conhecimento, nos meios académicos Paulina era considerada excelente professora, assim como uma estudiosa, com obra publicada na didáctica da sua especialidade, e ainda uma divulgadora apreciada da história da arte.
Portanto, tudo recomendações para que eu a propusesse a Ana Luísa, como professora. Só que Paulina, embora pessoa dinâmica, viajada, culta, se não poderia classificar-se como mulher burguesa, também não era passível de ser integrada na tal categoria dos artistas mais ou menos boémios, mais ou menos anarquistas e libertinos, sonhados por Ana Luísa. Senhora de uma vontade firme, ela borava através da sua cultura e dos pendores naturais da sua mente os critérios próprios de conduta, no trabalho, nas relações sociais e na vida afectiva. Casada com um homem que a desiludiu, precisamente porque procurou cerceá-la na liberdade necessária para as suas actividades profissionais, não hesitou em divorciar-se. Porque ele a desiludiu, acabou por deixar de gostar dele: Não se pode continuar a amar um homem quando passamos a desprezá-lo moral e intelectualmente", ouvi-lhe um dia, em tom convicto e sem qualquer nota de amargura.
Paulina vestia com simplicidade e sem quaisquer atavios supérfluos, mas na sua simplicidade havia elegância, vários toques de bom gosto e até de alguma ousadia. Não se limitava ao clássico fato de casaco e saia" com uma discreta blusa; escolhia cortes e peças inusitados, sapatos invulgares, e já usava muito calças compridas, o que então, entre nós, nesses anos cinquenta ainda não se tornara comum.
Pessoa metódica, sabia gerir tão racionalmente o tempo que ele lhe chegava para a satisfação de interesses múltiplos, desde as aulas e sua preparação, até às horas para ouvir música, fazer ginástica ou frequentar alguns espectáculos. E conseguia conciliar, sem confusão nem nervosismo, o governo de duas casas, a sua e a do irmão.
É que após o divórcio passara a viver, não com o irmão, mas ao lado do irmão. E mantinham os dois uma fraternidade solidária mas respeitadora das respectivas independências.
Demorei-me um pouco a tentar esboçar o retrato psicológico de Paulina Mondeiro porque, para além de surgir desde agora como a professora que irá ministrar uns rudimentos de Arte a Ana Luísa
- e serão apenas rudimentos porque o temperamento de Ana não era compatível com uma aplicação a um estudo aturado e disciplinado - Paulina virá a interferir na vida da que, depois de se tornar sua aluna, se tornará igualmente dona e senhora do corpo e da alma do seu irmão.
As observações por mim ouvidas a Ana Luísa, após a sua apresentação a Paulina Mondeiro, observações discretas, alusivas e cautelosas, vieram confirmar-me que nem a pessoa da professora nem a sua casa, de móveis simples, escassos e bem arrumados, correspondiam às suas ânsias mais secretas. Perguntou-me, entre outras coisas, se Paulina Mondeiro costumava receber intelectuais e artistas", ao que eu respondi de acordo com a informação de que dispunha: Paulina era uma mulher de trabalho, que tanto quanto eu sabia, pouca vida mundana fazia, a menos que fosse solicitada para alguma reunião onde comparecessem colegas seus; possuía um restrito grupo de amigos, às vezes reunidos em sua casa, onde discutiam arte, educação, política, participavam também em excursões, mas era tudo gente pacata e sem extravagâncias, embora sem rígidos preconceitos sociais; alguns viviam com dificuldades económicas, outros tinham vidas um tanto escangalhadas no plano sentimental; mas não eram pessoas badaladas nas tertúlias e botequins da capital.
Estou convencida, o motivo que decidiu Ana Luísa a aceitar como professora uma mulher, para ela quase desagradável, foi o aparecimento do irmão, Sebastião Mondeiro, o cientista, o astrónomo célebre no País e, sobretudo, no estrangeiro, que se encontrava por essa ocasião em Lisboa, sem demora, pois ia partir em breve uma vez mais para os Estados Unidos, onde era investigador na Universidade de Princeton.
A casa de Sebastião Mondeiro era contígua à da irmã. Por uma galeria envidraçada passava-se de uma para a outra sem necessidade de serventia da escada exterior do prédio. Tratava-se de uma casa, daquelas que ainda hoje se encontram em algumas ruas da parte antiga da capital, com um complicado sistema de distribuição dos compartimentos. Paulina ocupava um dos extremos da galeria envidraçada e o irmão o outro; ambos dispunham de salas e saletas e se necessário de porta independente para a escada. Viviam por tanto numa contiguidade que Lhes permitia o convívio e o amparo mútuo, mantendo no entanto uma relativa independência.
Poder-se-á perguntar para que necessitava Sebastião Mondeiro desta casa na capital, se passava a maior parte do tempo dividido entre o Mosteiro, no Norte do País, e os centros científicos estrangeiros, onde dispunha dos instrumentos mais modernos e aperfeiçoados para as observações astronómicas.
A razão era conhecida: havia já algum tempo a sua inclinação monástica - surgida como escapatória para uma vida de homem excessivamente solicitado pelas mulheres, o que não lhe permitia uma entrega satisfatória aos trabalhos científicos - vacilava. Por isso pusera a hipótese de se instalar defmitivamente na capital, trabalhando no Observatório Astronómico, e onde contaria com o apoio da irmã, então já divorciada.
Repito: não foi uma autêntica vocação mística ou monacal o que levou Sebastião Mondeiro a tentar a vida de monge. Suponho, no seu íntimo existiria desde cedo um conflito ou um problema a necessitar de resolução. A vocação científica, sim, essa precocemente se definiu no rapazinho provinciano, no estudante liceal que, quando em férias, de retorno à aldeia se entretinha a observar o céu e a rever os exercícios matemáticos; ou na cidade, procurava contactar mestres e frequentar seminários, desprezando grupos de companheiros folgazões, namoradeiros, brigões, convivendo moderadamente com os da sua idade. Estou convencida, de facto não foi nenhuma vocação religiosa, tão pouco um espírito rigorosamente misantropo que o levaram em determinada altura da carreira de professor e de investigador, a procurar a vida monástica, mas sim a enorme desinquietação que as mulheres introduziam na sua vida.
O irmão de Paulina era um homem de beleza invulgar. Se quiserem um retrato físico, lembrem-se do rosto de apóstolo ou de profeta do nosso poeta-filósofo Antero de Quental, e terão uma aproximação da imagem do seu rosto e da sua cabeça. Poderão também consultar os jornais e as revistas da época, ele foi suficientemente famoso, no País e no estrangeiro, para ter o retrato muitas vezes publicado. Alto, bem constituído, uma voz quente e doce, um pouco contrastante com a estrutura forte do corpo, e sobretudo a bela cabeça com um cabelo de um loiro levemente arruivado, os olhos de um azul intenso. Havia no entanto uma diferença em relação ao rosto e à expressão fisionómica de Antero: a boca deste era fina, espiritual, e os olhos talvez demasiado longín quos e sombrios. A boca de Sebastião nada tinha de ascético. Sem ser grosseira, impressionavam os lábios, túrgidos e carnudos como os de um adolescente. E, ao contrário de Antero, cuja barba comprida era um tanto patriarcal, Sebastião, embora nesse tempo a barba não estivesse em moda, talvez na sua qualidade de aspirante a monge usava a sua curta, bem cuidada, barba de um louro ainda mais fulvo que o do cabelo. Uma bela figura, um belo rosto, aliados a uma sugestão de saúde e de temperamento doce; em resumo, um homem sedutor e, para mais, prestigiado por uma obra científica de valor.
Quando ele foi meu professor na Faculdade, as colegas e as alunas faziam-lhe um assédio incomodativo. Havia casos de paixão, aconteceu um suicídio, cenas de ciúme, armadilhas, intrigas, vinganças. Esteve prestes a casar-se com uma colega, rapariga modesta, tranquila, mas de súbito - segundo Paulina me revelou - teria chegado à conclusão de que essa rapariga "Seria a esposa de que ele precisava mas não a amante que também desejava. " Então deixou a Faculdade e ingressou no mosteiro.
" "Quero pôr em primeiro lugar a ciência. As mulheres atraem-me, eu também as atraio. Mas, como sabes, há que optar. Provavelmente nem casando-me elas me deixariam em paz e eu não sou imune às tentações. É precisamente para me sentir obrigado a repudiar o mundo e poder dedicar-me à Ciência que vou tentar a vida monástica" - escrevia Sebastião à irmã, poucos dias depois do seu ingresso (a título experimental) no mosteiro.
Na época em que Ana Luísa vem encontrar Sebastião em casa de Paulina, a sua indigitada professora de pintura, ele é já um homem de quase cinquenta anos. Mantém o aspecto saudável, mais, certo ar de "homem puro", alguém de quem se pressupõe a temperança e a sobriedade, a morigeração voluntárias. Contraditoria mente, porém, este ar de "pureza atiçava nas mulheres o impulso perverso de atacar precisamente aquilo que adivinhavam como um bastião de difícil conquista e rendição.
Se mais tarde Paulina irá apresentar a hipótese de o irmão, nesse dia em que eu a levei pela primeira vez a sua casa, ter ficado logo deslumbrado com "a beleza daquela leoa, eu, por meu lado posso afirmar, Ana ficou igualmente maravilhada com a beleza daquele homem", Uma figura apolínea, a expressão iluminada de um gé- nio ou de um santo! pois ela assim mesma se exprimiu num tom veemente, e direi, por estranho que pareça, desvairado.
Entretanto, por breves alusões e referências que lhe ouvi nos dias precedentes à sua entrada em casa de Paulina, deduzi uma coisa verdadeiramente interessante, não só a respeito da mentalidade e maneira de ser de Ana Luísa, como igualmente acerca de um dos aspectos das relações amorosas: em certa, talvez até em grande medida, uma paixão é desejada, inventada, até mesmo programada pelos seus protagonistas, ou, pelo menos, por um deles. Por isso, nunca consegui deslindar até que ponto a paixão de Ana Luísa por Sebastião foi também algo de real ou de inventado.
Apesar de tendências pessoais para o desregramento, para a rebeldia e contestação das orientações apontadas pela sociedade do tempo e da crítica que, desde jovem, fazia ao mito do amor, exactamente por esta altura começou Ana a falar da necessidade de se encontrar, ao menos uma vez na vida, uma grande paixão. Neste caso do seu grande amor por Sebastião", o grande sonho da sua alma, como dizia, teria ela sido convertida ao amor imediatamente assim que o viu? É minha convicção: simultaneamente, entraria em toda essa invenção do amor, um premeditado cálculo, obediente a algum projecto ou programa. E, mais tarde, irei ter, iremos ter, eu e Paulina Mondeiro, a oportunidade de verificar como a sua perspicácia sabia prever, delinear e até forçar as circunstâncias, tornando-as favoráveis aos seus intentos profundos. Paulina virá a ter razão quando, já depois de desfeita a vida - que por agora está ainda por acontecer - de Ana com o seu irmão, passará a referir-se a este designando-o por vitima.
Que projecto poderia Ana Luísa ter desenhado desde o início do seu encontro com Sebastião Mondeiro, ela, mulher casada com um homem que Lhe inundava o tampo da escrivaninha, ou a mala de mão, com grossos maços de notas, e se movimentava numa sociedade de facilidades e divertimentos? Estaria ela disposta - no caso de vir a ser correspondida por Sebastião, quando deu início ao seu assédio sedutor - a sacrificar essa vida, frívola e galante, à austeridade do companheirismo com um cientista, de modestos recursos económicos, ainda que já célebre pelos seus estudos? Estaria o desejo de permanecer ao lado do seu quase divino amante (palavras suas) ainda presente na opção definitiva por essa nova vida, quando as circunstâncias acabaram por acarretar uma ruptura do seu casamento?
Desde sempre suspeitei da impureza da paixão de Ana Luísa, de que a luz do fascínio sentido por esse quase divino amante era toldada por um daqueles múltiplos reflexos negros que Lhe ensombravam a alma.
Nesta época, porém, tudo isso se me afigura ainda como vago pressentimento. Quando Paulina vier um dia a tornar-se inimiga de Ana Luísa veremos então que na hipótese da impureza do seu amor, muitos aspectos existiam que fundamentavam a plausibilidade dos meus, dos nossos pressentimentos.
Continuemos, por agora, no campo das hipóteses.
Acompanhei Ana Luísa a algumas das lições de desenho e pintura em casa de Paulina Mondeiro. Nunca esquecerei o visível mal-estar desta perante aquela aluna bem diferente dos jovens que ela costumava preparar para o seguimento de cursos de artes plásticas. Nesse tempo, os novos não usavam ainda os fatos descontraídos e desportivos hoje na moda, blue jeans, ténis, os fatos de treino, os blusões insuflados como pneus, embora vestissem já roupas simples e práticas, elas de salto raso, eles, muitos, sem gravata.
Ana Luísa aparecia sempre vestida como uma senhora, e uma senhora chiquíssima; trazia muitas vezes um janota deux-pièces, na linha coleante então lançada pela casa Dior, de cintura bem vincada, sapatos de salto muito alto, meias caríssimas de nylon, então uma novidade, luvas de meio-cano, mala de crocodile, um infalível broche com uma pedra preciosa enorme em cabochon, a rematar o decote dos chemisiers de chiffon, e espalhava à sua volta largas ondas de Lanvain, de Rochas, e de outros, cujos nomes me escapam. A farta cabeleira bem penteada (tinha assinatura no Marius), as unhas como pétalas rosa-nacarado, o maquillage de perfeição notável: pálpebras em dois tons, bege e castanho-claro, com o extremo requinte de dois toques de lápis, untuoso e branco, um no canto externo, outro no canto interno da abertura ocular; as pestanas, reviradas pelo encaracolador, acentuadas pelo rimmel negro; as faces igualmente coloridas, num estudo de tons que se avivavam no pómulo e para as fontes se esbatiam; os polposos, largos lábios, não só avivados como debruados por um contorno mais nítido, e luzentes de um brilho especial.
Aparecia belíssima, só que junto de nós as duas e naquela sala, misto de escritório, de atelier e de espaço de convívio (tão diferente das salas da sua casa, mobiladas com luxo e aparato), Ana Luísa por assim dizer destoava e deixava Paulina pouco à vontade. Ela própria veio depois a reconhecer que, para vir àquelas lições, deveria apresentar-se com maior simplicidade. Optou então por tailleurs de corte clássico e dispensou as jóias. A certa altura mandou mesmo fazer uma bata de trabalho, embora não prescindisse de ajustá-la com um cinto, de modo a vincar-lhe bem a delgada cintura. As mulheres galantes, até em convívio exclusivamente feminino, não prescindem de gestos e ademanes coquets, como se sentissem necessidade, mesmo perante mulheres, de manterem o seu estatuto de elegância e sedução.
Nessa lição inaugural, em que Paulina se limitou a indicar-Lhe o material a adquirir e a fazer-lhe alguns testes a fim de avaliar as suas destrezas em traço, perspectiva, etc. Ana Luísa tomou uma daquelas atitudes que pareciam demonstrar um misto de ousadia e humildade. Ainda antes de Paulina a interrogar e pôr a desenhar sobre uma folha de papel, logo ela declarava, em palavras impetuosas e ansiosas, como era de seu natural:
- Eu sou muito ignorante. Deverá considerar-me tão em branco como esta folha de papel. Sinto um impulso enorme para desenhar e para pintar, conheço um pouco a minha sensibilidade e o meu gosto, mas sou como um pedaço de barro de onde um dia talvez possa surgir uma escultura. Terá de ensinar-me quase a pegar nos lápis e nos pincéis. Até aqui só tenho feito cópias, cópias, e não seriam as lições de uma M. Lyotard que poderiam pôr-me no bom caminho. Só tenho receio é de ser já demasiado tarde para começar.
Paulina respondeu com franqueza directa:
- Bem. Teria sido preferível se houvesse começado há mais tempo. Mas, tarde, ninguém poderá afirmar-lhe que já é tarde. Lembre-se do Gauguin...
- Gauguin - repetiu Ana Luísa como se tivesse acabado de ouvir algo que Lhe era totalmente desconhecido, e numa tal expressão de interrogação que Paulina, conhecedora da psicologia de muitos alunos, lhe perguntou:
- Não conhece a história do Gauguin?
- Não - foi a resposta de Ana, com o ar cândido, humilde, quase de postura de solicitação, que tomava em certas ocasiões, quando pressentia perigos ou escolhos para a sua desenvolturaNunca ouvi falar desse Gauguin.
Foi então que Paulina aproveitou a oportunidade para averiguar dos conhecimentos dela em história da Arte. Verificou que aquela mulher, de quase trinta anos, lisboeta, filha da alta burguesia, era de uma ignorância e de uma incultura enormes. A sua cultura era apenas a do mundanismo cosmopolita. Conhecia os melhores restaurantes de Paris e de Londres, deambulara em frente das montras da Quinta Avenida, em Nova Iorque, assistira a espectáculos nos centros mais famosos das várias capitais, mas, a não ser os museus de cera, poucos outros visitara, assim como de monumentos, vira tudo a correr".
- De pintura, Lá em casa dos pais havia algum Malhoa, algum Silva Porto, falava-se de Columbano, de Veloso Salgado, de Carlos Reis. Dos estrangeiros, por acaso li uma biografia do Toulouse-Lautrec, que era conde e boémio... e tenho visto as exposições do SNI; quando casei, em 1942, comecei a assinar o PANORAMA, que promovia uma melhor decoração das lojas mais luxuosas de Lisboa. Tenho ouvido nomear os modernistas e os futuristas dos anos 20 e 30, os surrealistas, os neo-realistas. Perdi a Exposição-Geral de Artes Plásticas de 1946 e a de 1947, que tanto excitaram os ânimos políticos, segundo consta...
Como Paulina desse por findo o interrogatório, Ana Luísa levantou-se também e, desistindo da sua atitude de humildade, retomou o melhor dos seus sorrisos (sorrisos que sempre me pareceram uma atitude mundana e um desejo de se tornar simpática, atraente) e, já com algum à-vontade, pôs-se a deambular pelo atelier a observar os quadros dispostos nas paredes, as pequenas esculturas, as peças de artesanato, as recordações de viagens dispersas pelas prateleiras e pelas mesinhas, sobre a cómoda-secretária e, perante cada um desses objectos, soltava uma daquelas expressões de admiração, hiperbólicas, próprias da gente bem, que usa e abusa de qualificativos superlativos a propósito de coisas e acontecimentos muitas vezes vulgares.
Na cómoda-secretária, entre vários retratos, encontrava-se um, de Sebastião Mondeiro, uma fotografia a preto e branco, emoldurada. Ana Luísa deve ter adivinhado imediatamente de quem era o retrato. Abriu muito os olhos, ergueu as sobrancelhas, como deslumbrada: Posso ver? perguntou a Paulina, já com a fotografia nas mãos. É o seu irmão, o astrónomo? Sim, ele mesmo, mas essa fotografia já tem uns dez anos. Uma cabeça admirável, prosseguiu Ana, sempre deslumbrada. Admirável por fora, concordo, e também pelo que tem lá dentro, acrescentou Paulina. Pois. Quem não ouviu falar do célebre Sebastião Mondeiro? Sou muito inculta, mas notícias dos trabalhos dele em Princeton, ainda me têm passado pelos olhos. É que as coisas que existem lá por "cima", os astros, as hipóteses sobre a formação do Universo atraem toda a gente, mesmo os ignorantes como eu. Os telescópios, instrumentos fantásticos! Como gostava um dia, ou antes, uma noite, de olhar o céu através de um telescópio! Os astrónomos devem passar a vida agarrados aos telescópios...
- Não só - interveio Paulina. - A Astronomia mete também muita matemática, altas matemáticas, muita física e química.
- Ah, isso é que já não me atrai, não tenho queda para as contas. Mas olhar o céu através de um telescópio... Se eu vier um dia a conhecer o seu irmão, hei-de pedir-Lhe que...
- Ele, qualquer dia está aí. Deve demorar-se uma semana, não sei ao certo quanto tempo, e depois segue outra vez para Princeton.
- Que, para dizer a verdade, vou ter imenso acanhamento de falar com ele, eu, uma ignorante...
- Ele é uma pessoa amável...
- Um cientista, um descobridor de estrelas... De várias super novas... - e aqui, Ana Luísa abriu de novo muito os olhos, perscrutando, suspeitosa, a expressão de Paulina, mas continuou: Os meus conhecimentos de Astronomia abrangem apenas as constelações, com formas de dragões e outras quimeras, o Cosmos para mim parece calmo, imutável. Medidas em anos-luz, ideias como finito mas ilimitacio, são coisas fora da minha compreensão...
Paulina sorriu e respondeu:
- Para os astrónomos o Universo é mutável, irrequieto, violento, cataclísmico... Bem. Juntamente com a história da Arte a Ana Luísa vai ter de ler alguma coisa sobre Astronomia para poder falar com o Sebastião.
A partir daqui eu vou deixar de comparecer (mas apenas provisoriamente) nesta narrativa como testemunha directa da acção. É que os meus estudos levaram-me algum tempo para a Itália, onde fui integrar-me num grupo de arqueólogos, os da Roma sparita". As cartas enviadas por Paulina Mondeiro, de Lisboa para Roma, me porão ao corrente do romance que vai desenrolar-se entre Ana Luísa e Sebastião Mondeiro. Assim como algumas outras, da própria Ana Luísa.
Entretanto, antes de me retirar, acrescentarei ainda a descrição das últimas confissões, ou meias confissões, a mim feitas por Ana, e que abrangem também informações sobre a evolução da sua vida familiar.
Os factos antecedentes à minha partida para o estrangeiro e correspondentes aos da aproximação da chegada de Sebastião Mondeiro a Lisboa, onde, como disse, se demoraria apenas umas semanas nos preparativos da sua nova viagem para Princeton, deram-me bem a medida do autêntico tufão vital que era Ana Luísa. Ela andava numa excitação impossível de disfarçar. Impaciências, en tusiasmos, alegrias, loquacidade, amabilidades excessivas, pressas. Entregava totalmente a governação doméstica ao pessoal, fazia vagas carícias aos filhos, ignorava quase por completo a vida do marido.
Ensaiava um novo estilo de vestuário, se bem que acabasse sempre por recair no rebuscamento e no preciosismo. Mas pôs de parte a profusão de jóias, Acho que uma artista, quero dizer, a futura artista que serei, não usa jóias, pelo menos as amigas de Paulina que vêm visitá-la, pintoras, escritoras, quase não põem uma jóia. E deixou também de pintar as unhas. Percorria avidamente (assim mesmo, avidamente) as melhores livrarias da cidade e os alfarrabistas, à procura de livros e álbuns de arte, que comprava sem olhar ao preço. Uma nova estante apareceu no seu escritório (passara a ter um escritório, além do boudoir). De permeio com todos esses livros de Arte, reparei também em algumas obras sobre Astronomia, embora de nível elementar, como de iniciação para jovens ou de divulgação.
Perguntada Paulina acerca das aptidões e progressos da nova aluna, respondeu-me, É cedo ainda. Não creio que a Ana Luísa possua o traço do desenhador mas tem muita sensibilidade cromática. Quer é avançar depressa de mais. "Gostava de brúler les étapes", diz-me muitas vezes. Por sua vontade atirava-se já a "compor um grande quadro. Está tomada de um entusiasmo quase frenético. Procuro moderá-la. Mas esse entusiasmo espicaça-lhe a inteligência, a imaginação, às vezes até parece mais inteligente e criativa do que na realidade deve ser. Tem intuições fulgurantes, só que depois lhe falta a contenção, o autodomínio paciente para uma execução aperfeiçoada e para a autocrítica. Até já sonha com uma Exposição! ",
Primeira carta de Paulina Mondeiro para mim, já em Roma (Acrescento aqui, desde já, que destas cartas transcreverei apenas os passos referentes a Ana Luísa):
Quanto à Ana Luísa, aquilo que tenho para contar vai deixar-te estupefacta. Não me refiro aos seus progressos "escolares" que alguns tem feito, principalmente no conhecimento da História da Arte. Dá muitas opiniões e acho, ela tem discernimento estético, até me admiro como conseguiu em tão pouco tempo assimilar as expressões dos historiadores da Arte, a sua terminologia. Creio que repete literalmente muitas das definições encontradas nos livros, mas absorve-as tão perfeitamente, chega imprimir-lhes uma convicção tão entusiástica que qualquer pessoa desprevenida pode concluir serem dela essas expressões, esses pensamentos. Não considerasse eu que isso deve corresponder uma espécie de treino e de sobreexcitação mental provocada pelo seu hiperentusiasmo, poderia ser levada à convicção de ela ser apenas um papagaio, uma citadora impenitente, quase uma inconsciente plagiadora. Oxalá, quando chegar à fase de compor os "seus quadros", saiba procurara sua identidade, seja original e independente.
Outra coisa. Durante os dias em que o Sebastião esteve aqui, conforme eu tinha dito a Ana Luísa, não haveria lições. Ela no entanto pediu-me que a deixasse vir pelo menos um dia antes de ele partir para os E. U. "Não queria perder a oportunidade de conhecer o nosso tão célebre cientista, pois apenas o tinha visto de fugida no dia em que lhe foi apresentado. " E confessou-me: "Calcule, para poder falar com ele, sem fazer uma figura demasiado triste pela minha ignorância, tenho lido várias obras sobre a origem do Universo, aformação e a vida das galáxias..." E a seguir fez-me uma pergunta ingénua e estranha no mesmo tempo, uma daquelas perguntas que só se fazem às amigas intimas, coisa que eu ainda não sou para ela (e não sei se algum dia virei a sê-lo): "Como acha que devo vir vestida parafalar com o seu irmão? Um cientista... Não acha, devo vir com uma toilette mais género prático Não gostaria nada que ele me achasse fútil, dada a minha condição de burguesa. Ah! Se soubesse como começo a detestar esta condição " Depois de um segundo consegui dominar a minha perplexidade e respondi-lhe apenas isto, "Não sei que lhe diga, uma coisa é certa, o meu irmão, como aliás a maioria dos homens, só atentam no efeito geral, de certeza não vai reparar se você se apresenta em estilo prático ou de toilette. Quem costuma reparar nessas coisas são alguns artistas, alguns escritores e os diplomatas habituados a frequentar constantemente recepções mundanas. Além disso o meu irmão é uma pessoa discreta, pouco expansiva, até algo tímida, não sei bem o que ele pensa sobre esses assuntos. Contacta muito os norte-americanos, e sabe como eles se apresentam nos seus ambientes, sobretudo nos de trabalho cientifico, vestem com muita simplicidade e senso prático. "
Julgo que ela acabou por optar por um traje intermédio entre o prático e o elegante. Apareceu com um tailleur de lã finíssima, azul céu, uma blusinha branca de seda natural, peça delicadíssima, vaporosa, com uma flor artificial branca na lapela (Da Fanny", informou-me). Só te digo, podiam os presentes não reparar nos pormenores, mas o efeito de conjunto era sensacional. Uma vez que o cabelo dela é cor de avelã, não poderei falar em "ouro sobre azul", mas certo é que o seu rosto ressaltava esplendoroso, daquele conjunto "celestial"...
Não fosse a estranha pergunta de Ana Luísa sobre a maneira como devia vir vestida para a circunstância de conhecer o Sebastião, nunca eu me teria lembrado de me pôr a perscrutar o rosto dele quando se puseram a conversar E digo-te, acho que o meu irmão ficou deslumbrado e, talvez perturbado, mas isto é apenas uma suposiÇão.
Lá que ela se portou de maneira singular isso é verdade. Conheço muitas mulheres e os truques de sedução que elas empregam para com os homens, nunca conheci nenhuma com uma "técnica" tão subtil, uma estratégia muito especial, que consiste em tentar seduzir mas disfarçando as tácticas da sedução. Dir-se-ia, toda a convicção própria acerca dos seus encantos, dos seus atractivosfemininos, por um lado naturais, por outro explorados, realÇados e valorizados ao máximo (como sabes), são deixados na sombra, esquecidos, e a sua grande arma torna-se então o jogo complicadíssimo de se mostrar ela, como seduzida, e simultaneamente reduzida a uma modéstia, a uma humildade que parecem di zer: Deslumbras-me mas não sou digna de ti. "
Agora reparo, Vera Alexandrina, estou talvez a fazer suposiÇões ousadas e perigosas. Tentaria ela, de facto, exercer os seus poderes sedutores sobre o Sebastião, tendo usado dessa arte subtil Ela é uma mulher casada e uma mulher da alta sociedade, onde os flirts são admitidos e todos os maneirismos e sofisticações apreciados. Pode muito bem acontecer que tudo se tenha resumido a um vulgar coquetismo, a uma espécie de curiosidade vaidosa de conhecer um grande cientista", como ela diz.
Ao ler esta primeira carta de Paulina, devo dizer, não fiquei minimamente "estupefacta, como ela supôs. Posso com toda facilidade imaginar o que teria sido esse encontro de Ana Luísa com Sebastião, numa oscilação entre a mais modesta humildade e a mais delirante ousadia. Quanto ao facto de ela ser casada também estou convencida de que isso não seria para ela nenhum obstáculo relativamente ao tal projecto por mim já pressentido. De resto, não só não me esquecera do "episódio do holandês, como dos de vários outros holandeses, ingleses, etc. objectos das suas escapadelas durante as viagens feitas com o marido ao estrangeiro: "Não há juramento que valha para Afrodite, disse o grego Platão. Sobretudo não me esquecia da sua "teoria da repartição. Mas, enfim, mantendo a minha atitude "científica, teria de aguardar os acontecimentos, os factos, para verificar se a minha hipótese do seu projecto se confirmava.
Segunda carta de Paulina Mondeiro
(da qual, tal como procedi com a primeira, revelarei apenas os dados de interesse para o romance que se aproxima - que já se iniciou - na cabeça de Ana Luísa, entre ela e Sebastião Mondeiro
- ou, se quiserem, para este romance que vou escrevendo):
"A Ana ficou muito impressionada com o suicidio da Ofélin Marques. Falámos do caso quando estiveram aqui algumas das pessoas nossas conhecidas. Depois da lição pusemo-nos a conversar ela também quis ficar. Vieram então à conversa os suicidios de vários homens portugueses, das letras e das artes, o Camilo, o Soares dos Reis, o Manuel Laranjeira, o Antero, o Mário de Sá-Carneiro, Florbela Espanca, e até o do militar Mouzinho de Albuquerque.
Nessa tarde de convívio estava cá o A. que vê "sexo" em tudo. Trouxe logo à baila o nome de Freud, que poucos por cá ainda conhecem, e referiu, mais uma vez, a sua teoria da origem sexual das neuroses e de muitos dos actos da nossa conduta. A Ana Luísa, com aquele entusiasmo que já Lhe conhecemos, começou a falar na ânsia de realizaÇão pessoal dos artistas, para além de todas as questões de sexo, e a defender "aquele amor que é capaz de reunir a admiração pelo aspecto físico e também pela beleza de um carácter". O A. com os seus ares um tanto irritantes, criticou a "santa ingenuidade" da Ana, que aindafalava da "beleza de um carácter". Aqui, logo a D. toda feminista, interveio em socorro de Ana, que começava a dar sinais de nervosismo e de alguma atarantação: "Aprovo as palavras de Ana Luísa. Não sei se se lembra, mas Platão diz no Banquete, pela boca de Pausânias, mais ou menos isto: Mau é esse amante segundo o Eros vulgar, mais enamorado do corpo que da alma... e se memória não me atraiçoa, o flósofo emprega exactamente essas palavras, a beleza de carácter"...
Impiedosamente, o A. trouxe então à colação o perverso Schopenhauer e perguntou a Ana se ela conhecia a Metafisica do Amor". Como ela confessasse o seu desconhecimento, resumiu-Lhe em meia dúzia de palavras a teoria desse filósofo misógino. Aliás, o A. também é misógino, como misóginos e machistas são muitos dos escritores portugueses, olha o Eça, o Torga... Como ia dizendo, o A. resumiu o conteúdo da Metafisica do Amor e foi acrescentando, dirigindo-se nesta altura especialmente à D. Que Schopenhauer classificara tudo quanto Platão dissera sobre o amor de mitos, fábulas e devaneios'; depois voltando-se novamente para Ana Luísa (que estava bastante "enfada"), repetiu, mitos, fábulas, devaneios", minha cara senhora, todas essas ideias sobre os lados "morais " e "espirituais " do amor: sexo e, pior ainda, para mal dos nossos pecados, apenas "instinto de reprodução da espécie, de procriação, como em todos os animalejos". A seguir pediu-me "ó Paulina se tem por aí a Metafisica do Amor' empreste-me, quero ler aqui, para esta senhora (dirigia-se Ana Luísa) uma interessante conclusão de Schopenhauer "
Folheou o pequeno volume e, dando largas à sua misoginia, tanto mais que se encontrava numa roda principalmente feminina e de tendências emancipativas, pôs-se a ler quase com sadismo: As mulheres não têm o sentimento nem a inteligência da música, como não têm o da poesia ou o das artes plásticas; o que há nelas é pura macaqueação, puro pretexto, pura afectação explorada pelo desejo de agradarem... Por consequência, a natureza leva as mulheres a procurarem em todas as coisas um meio de conquistarem o homem, e o interesse que parecem tomar pelas coisas exteriores é sempre um fingimento, um subterfúgio, isto é, pura garridice, pura macaqueação. "
A Ana Luísa tomou uma daquelas posições que mais tarde tantas vezes viria a conhecer-Lhe, Quando se sentia revoltada, indignada e simultaneamente incapacitada de reagir por não saber como cruzou as pernas, curvou a cabeça sobre o busto, apoiou o queixo sobre a mão direitafechada, como se quisesse evitar a explosão de palavras incontroladas, em suma, encaracolou-se como um bicho-de- conta Quando lhe tocam e procura defender-se escondendo-se na própria carapaça. O meu amigo misógino continuou, gozando o ingénuo assombro de Ana, porque qquanto às restantes presentes, já o conheciam, a ele e ao Schopenhauer e eram elas que se divertiam à sua custa, com as suas "ideias arcaicas", como diz a D. "E agora, minha senhora, quer ouvir ainda o que o nosso Schopenhauer diz sobre a questão da fidelidade no casamento Aqui vai: Em primeiro lugar deve-se notar que o homem é, por temperamento, propenso à inconstância no amor, e a mulher, à fidelidade. O amor do homem declina de um modo sensível a partir do instante em que foi satisfeito... O amor da mulher, pelo contrário, aumenta a partir desse momento. É essa uma consequência do fim da natureza, dirigido para a conservação, e por conseguinte, para o aumento, o mais considerável, da espécie... Por isso o homem anda sempre à procura de outras mulheres, enquanto a muLher se conserva fielmente dedicada a um só homem, porque a natureza a impele instintivamente e sem reflexão a conservar junto de si aquele que deve alimentar e proteger a pequena família futura. Daí resulta que a fidelidade no casamento é artificial para o homem e natural para a mulher. e portanto o adultério da mulher, por via das consequências que acarreta, e por ser contra a natureza, é muito mais imperdoável que o do homem. "'
"Entendi que devia pôr um ponto final na cena, visívelmente incómoda para Ana Luísa.
"Ela não veio à liÇão no dia seguinte, nem na semana subsequente e só depois me telefonou, explicando: "Sabe que fiquei muito traumatizada com aquilo que ouvi ao seu amigo A. "
"Penso, só por respeito para comigo Ana não abandonou ostensivamente aquela reunião. Não chego a avaliar bem a impressão que tudo isso lhe causou, mas segundo me parece ela não deve estar muito habituada a conversas deste género, é provável tenha ficado deveras perturbada. De qualquer modo, quando regressou às lições não aludiu mais ao assunto. Parecia era preocupada com o facto de o Sebastião ainda não me ter escrito, e é obsessiva a pergunta que ela faz de todas as vezes, "Então já teve noticias do seu irmão " Como se isso pudesse preocupá-la. Amabilidades mundanas, provavelmente.
Gostaria de ter estado presente na tal reunião em casa de Paulina, que ela descreveu na última carta. Poderia assim ter observado por mim própria as reacções da minha protagonista, e até talvez trocado algumas palavras com ela sobre o seu encontro com Platão e Schopenhauer, que ela, isso sei, desconhece completamente. É claro, Paulina estava inocente e bem longe de imaginar como, para mim, esse pequeno evento se apresentava cheio de significado (orientador para o fio da minha narrativa; dir-se-ia, pela boca do tal A. surgia em cena um corifeu que vinha esclarecer e profetizar a situação).
Porque, se não concordo de modo nenhum com a acusação de "puro pretexto" quanto à prática das artes por parte de todas as mulheres que a elas se dedicam, no caso de Ana Luísa é meu convencimento íntimo que, como tenho dito, se bem lhe reconheça sensibilidade, intuitividade rápida e aguda, e também um verdadeiro desejo de penetração no âmbito da cultura, não posso deixar de acreditar que em todas as suas condutas se imiscuía constantemente um toque de insinceridade, algo de impureza, ou seja, a contaminação de um interesse outro que não só esse desejo de aprofundamento intelectual e espiritual, e que esse interesse assumirá, em última análise, o carácter de um pretexto para a realização de um projecto: num primeiro momento uma ânsia de brilhar e agradar; e depois, de brilhar e de agradar para uma conquista, mas para uma conquista de quê? de um nome celebrado? da simpatia das outras pessoas? do interesse de outros homens?
Pela Terceira Carta de Paulina deduzi: se algum combate se travou no espírito de Ana Luísa, depois da audição desses trechos do filósofo alemão, ela pouco teria dado a entender e apenas teve estas palavras: Esse tal Schopenhauer devia ser um complexado diante das mulheres. Por mim, estou decidida a mostrar ao seu amigo A. que nós, as mulheres, também somos capazes de levar a arte a sério, não somos apenas macaqueadoras! Mas ainda bem que houve esse encontro, serviu para me confirmar e afirmar na necessidade de estudar muitas coisas para mim desconhecidas, para poder falar e discutir sobre elas. Foi por não me sentir preparada que nada respondi ao seu nmigo. Ah! Mas, agora, além das minhas lições consigo, vou também ler muito, e de tudo, literatura, filosofia, biologia, sei lá. Há muitos problemas para discutir... Eu reflito sobre muitas coisas, tenho até as minhas opiniões, mas preciso de saber fundamentá-las e defendê-las.
Não seria honesto da minha parte limitar-me a pesquisar os lados impuros da minha protagonista. (Sigo o conselho de um romancista inglês do séc. XVIII, o Henry Fielding: Não devemos condenar uma personagem como má, só porque não é inteiramente boa. ") Não nos esqueçamos da sua condição de mulher da alta burguesia, da sua educação entre doméstica e mundana, do seu aturdimento no luxo e nos divertimentos sócio-galantes, e do seu destino de mulher predeterminado pela rotina, pela mitologia, pelas convenções, pela tradição, pela época histórica. Logo aqui, perante o choque com o famigerado misógino, ela, se ruminou consigo própria algum desgosto, soube enfrentá-lo e decidiu-se a combatê-lo. E será também essa uma das virtudes que, ao longo da sua vida de Vénus turbulenta*", do seu destino espasmódico, como diria Ortega Gasset, ela sempre manifestará: muitas vezes, à beira do naufrágio, juntará todas as forças que lhe restem, no corpo e no ânimo, para voltar à superfície, dirigir os próprios movimentos, flutuar, sobrenadar e de novo encontrar um chão em que se possa firmar, de mãos enclavinhadas. Corajosa, combativa: Uma Leoa" como às vezes a designava Paulina.
Tal como os Diários, as Cartas também podem ser consideradas um recurso vulgar, simplista, antiquado, enquanto bordão novelístico. Mas a verdade é que, primeiro, por um lado parafraseando Virginia Woolf no seu Orlando, eu escrevo o que e como me apetece"; por outro, nestes anos trinta a sessenta, em que se vem desenrolando esta estória, as cartas são ainda meios de comunicação e de expressão em pleno uso. Estando eu, Narradora, ausente do convívio directo com Ana Luísa e com Paulina, evidentemente as cartas de ambas são o meio que me vai permitir o seguimento do romance entre a primeira e o irmão da segunda. Como não sou uma Narradora omnisciente, omnipresente e omnipotente (porque não o desejo aqui), resta-me portanto, por agora, delinear conjecturas, imagi nar situações e sentimentos a partir dessas cartas.
Na Carta Quarta, que me dirige para Roma, Paulina foca um ponto, de facto do maior interesse para as nossas tentativas de adivinhação - minhas e dela - daquilo que estaria a passar-se no espírito de Ana Luísa. E, precisamente devido a essa focagem por parte de Paulina, eu vejo como esta começava também a mostrar vagas suspeitas sobre o estado de tumulto íntimo de Ana Luísa":
Calcula tu, a Ana, que parece mais do que nunca possuida de um autêntico furor de aprendizado, e vem experimentando atabalhoadamente todos os processos no desenho e na pintura, o carvão,
* Esta designação não é minha, enquanto Narradora. Encontrei-a numa obra sobreMitologia e Simbologia, em que um dos atributos da clássica deusa do Amor é o da turbulência a pena, a aguarela, o óleo, mostrou uma decepção espectacular quando viu que o Sebastião, em vez de lhe responder directamente às cartas enviadas para Princeton, onde ela lhe pedia que arranjasse lá vários livros e álbuns, o fez indirectamente através da sua correspondência comigo: "Diz à Senhora D. Ana Luísa González que eu vou procurar as obras pedidas e, ou Lhas enviarei por alguém que vá daqui ou, então, se ela assim preferir eu próprio as deixarei aí aquando do meu próximo regresso.
E continua Paulina:
"A Ana parece-me uma pessoa de reacções um tanto exageradas, apesar da educação. Não compreendo bem a sua decepção espectacular repito. Acrescentou ela então, "É curioso, o seu irmão não quis responder-me directamente! " Ao que eu Lhe disse: "É natural, praticamente não teve convivio consigo. Além disso sabe tratar-se de uma senhora casada e, não se esqueça, ele ainda é um aspirante a monge. " Aqui o alarme dela apaziguou-se mostrou então uma expressão de conformidade e aquiesceu, "É verdade, ele prepara-se para se tornar monge... E mostrou também ser um homem de alta civilidade ". Depois, já com outra expressão, esta de encantamento, "O seu irmão deve ser uma pessoa interessantíssima, moral e intelectualmente. Além de ser dono de uma belíssima cabeça. Nunca fez o retrato dele Se eu tivesse talento para tanto... e ele estivesse disposto a deixar-se retratar. " "O meu irmão vive apenas para o estudo. Se tenta tornar-se monge é apenas para poder ser cientista em paz e sossego" acrescentei.
Pus-me a reflectir: Ana encontrou já dois pretextos para se aproximar de Sebastião, os livros de Arte que lhe pediu e o retrato dele. No entanto, se se vier a proporcionar a oportunidade de ela lho propor, espero tenha o bom senso de, em última instância, se limitar a exprimir-lhe, e só a exprimir-lhe, o seu gosto de lhe fazer o retrato. Se isso acontecer, estou já a vê-la a recorrer, mais uma vez, a uma daquelas quedas bruscas no sentimento da humildade, por consciência das suas limitações. Uma coisa tenho como certa: se for verdade Ana Luísa arquitectar algum projecto, e desde já o digo por claro - o projecto de seduzir Sebastião Mondeiro - ela não hesitará, nenhumas considerações de ordem moral, a seu respeito ou a respeito dele, a demoverão. E, do mesmo modo que (segundo afirmações suas, já transcritas) desde sempre alimentou a ambição de se tornar uma mulher célebre e admirada, igualmente poderia desejar alcançar essa celebridade através, por exemplo, do amor conquistado de um homem notável. Mas podia acontecer também não serem as coisas assim tão simples. Sabia como ela acabara por considerar o marido uma pessoa desinteressante, vulgar, materialista, antiquada, inculta e tacanha". E, entretanto, tudo poderia ser aqui ainda muito mais complexo.
Quinta Carta de Paulina:
"Quanto à minha aluna "especial" continua a trabalhar entusiasticamente e a sonhar bem alto, com o dia em que poderá participar numa exposição. Começa a fazer tentativas de trabalhos "não académicos", entende ser "necessário aparecer tomar responsabilidades". Mas está tão verde ainda, a pobre rapariga! No final da última lição pediu-me que a ajudasse a escolher o seu futuro nome artistico. E acrescentou, "Aliás, já está escolhido de há muito", e que tu sabes dessa escolha. O nome será o de Ana Gallis, mas gostaria muito lhe desse a minha opinião. Que havia eu de dizer-lhe, é um assunto tão pessoal, toca tanto as idiossin crasias, as vivências, a história das pessoas... Respondi-lhe "Acho Ana Gallis um nome muito belo do ponto de vista da eufonia, mas não condiz bem com a sua personalidade. O anagallis vem a ser a modestíssima flor dos vulgares morriões e a Ana Luísa é uma pessoa ambiciosa. É certo, o anagnllis' apesar da sua corola pequena, é uma florinha deslumbrnnte. " Então, Ana acrescentou que mal tinha reparado nessas flores até ao dia em que tu pronunciaste o seu nome diante dela, e fora a elegância do termo que a seduzira e talvez, ainda mais, as sugestões de requinte nele envolvidas: "Repare: Gallis faz lembrar Gália, e quem diz Gália diz França, a França da cultura e da civilizaÇão, França exquise. "
"Tu, Alexandrina, que gostas de estudar as pessoas, aqui tens umas achegas para o conhecimento da personnlidade desta minha aluna "especial ".
Nada disto constitui novidade para mim. Os esclarecimentos dados a Paulina acerca do requinte afrancesado sugerido pelo nome Gallis apenas vieram confirmar as impressões que me haviam ficado da antiga conversa, havida entre nós sobre o mesmo assunto, quando Ana Luísa sonhava já com um nome artístico, muito antes de se tornar ou revelar como pintora.
Casos existem em que, através da adopção de um pseudónimo ou de um nome artístico, um autor procura uma definição da sua personalidade ou de uma alteridade.
No caso de Ana Gallis a metáfora é falsa, pois ninguém se lembraria de ver nela algo de comparável à humildade de uma plantinha herbácea. Se ela nem sequer ligava o nome à planta!
Lembrando-me agora, por associação de ideias, daquele jogo de salão em que se pergunta aos convivas: "Se F. fosse um móvel, uma jóia, uma bebida, uma flor... que móvel, jóia, bebida, flor, seria? " - se eu quisesse comparar Ana Luísa a uma flor, a qual iria compará-la? Uma certeza tinha para começar: jamais a compararia a uma flor pequenina, nem de cores suaves, nem de aparência frágil; os tons da sua pele, do seu cabelo e dos seus olhos, compunham uma paleta de tons intensos, saturados, violentos. A boca polposa, os braços roliços, as coxas fortes, as pernas torneadas, faziam pensar numa flor vistosa, pujante, decorativa, de pétalas quase carnais. Mas também não iria compará-la a uma "flor carnívora", seria demasiado brutal para um ser que era na verdade requintado por suas maneiras (e, além do mais, ela não chegará "a digerir" nenhum dos homens por ela "capturados"). Flor insectívora, talvez, pois à sua volta adejavam como insectos em redor de uma luz os borboleteadores masculinos por ela atraídos.
Uma orquidea? Não estaria muito mal. É uma flor carnal mas aristocrática. No entanto a orquídea é apenas um design para uma futura flor, um artefacto ou uma imitação de flor, ou uma flor só de carne mas sem espírito floral. Ora a Ana Luísa, além de um corpo era também morada de uma alma. Se pura ou impura, é outra questão. Entretanto decido a minha comparação assemelhando-a a uma begónia tuberosa. Porque no nome desta flor se conjugam bem as cores gritantes, a túrgida carnação das pétalas e a sonoridade do nome: a aberta e exdrúxula sílaba gó, e, quanto ao qualificativo de tuberosa, tem a ver com túbera; mas a associação em mim despertada vai dar a tuba, ou seja, trombeta, que é um instrumento de sopro, de metal, com embocadura de pistões e de timbre baixo e solene". Em sentido figurado, a tuba significa o que anuncia, o que proclama. " Todas estas coisas me levavam à ideia de proclamações sonoras, de estridências operáticas, enfim, desta associação por confusão entre túbera e tuba, cheguei a imagens de celebridade. E agora vejamos: flores de pétalas coloridas e carnudas, mais um qualificativo evocador de sonoridades, aqui temos a flor a que eu compararia a bonita Ana Luísa, tão ansiosa por notoriedade, fama e glória: a begónia tuberosa.
As curtas férias que vim passar a Lisboa coincidiam com uma igualmente breve estada de Sebastião Mondeiro junto da irmã. Vinha fazer uma série de conferências no Observatório Nacional de Astronomia e aproveitou para combinar com Paulina a instalação dos aposentos destinados a essas estadas temporárias, visto a maior parte da sua vida decorrer actualmente em Princeton e o seu projecto de vida monacal se encontrar suspenso.
Já me referi àquele anexo da casa de Paulina, separado desta por um corredor envidraçado, e onde existiam mais algumas dependências. Sebastião tencionava utilizar o mais pequeno desses compartimentos como quarto de dormir e o mais amplo como gabinete de trabalho.
Paulina manifestara a Ana Luísa a sua intenção de interromper as lições com ela e com os outros alunos, a fim de poder dedicar-se melhor aos preparativos dos aposentos do irmão. Ana mostrou-se pesarosa (excessivamente pesarosa) com essa interrupção, mas (notei visívelmente) lembrou a Paulina o seu gosto de receber em pessoa os álbuns e os livros de Arte pedidos por carta a Sebastião, e ainda o seu interesse em voltar a vê-lo mais demoradamente que no dia da fugidia apresentação.
Paulina pediu desculpa por ter esquecido, tanto o caso dos livros como o desejo dela de conhecer o irmão, mostrando-se cordial e receptiva. Ana pareceu então perder a hesitação e timidez com que lhe lembrara esses desejos, e como se subitamente se tivesse sentido encorajada, adiantou, Se a Paulina quiser poderei vir ajudá-la nos arranjos da casa do seu irmão. É uma conhecedora de Arte mas eu também entendo de móveis e decoração de interiores. De qualquer modo, até se precisar de costuras, umas cortinas, uma coberta, sei lá, terei muito gosto em dar-lhe uma ajuda, há costureira permanente na minha casa.
Paulina pareceu um tanto admirada com todas estas demonstrações e respondeu, reticente, Agradeço a boa vontade, mas acho que não irei precisar do seu auxílio. Sabe, vai ser tudo arranjado de uma maneira muito simples. O Sebastião é pessoa de exigências modestas. O que ele precisa para as breves temporadas que aqui irá passar, será um quarto "monacal" (e neste passo, enquanto Paulina sorria da leve ironia com que pronunciara estas palavras, Ana Luísa abria uns olhos espantados), e de um gabinete de trabalho igualmente simples. Ficará com mais conforto do que num hotel, mas nada de complicações. O que ele não dispensa, esteja onde estiver, é uma boa mesa para os seus trabalhos... "
Então, Ana Luísa, como se se agarrasse a uma tábua de salvação:
- Conhece a Casa Bual? Tem lá mesas de castanho, autênticas do séc. XVII, estupendas. Eu conheço o Senhor Bual, se quiser posso passar por lá consigo.
Paulina pareceu interessar-se:
- Uma mesa de castanho... Não é que ele vá reparar muito nisso, mas será o aspecto de solidez, a cor escura, a austeridade, digamos, de uma mesa desse tipo que lhe saltarão à vista e imediatamente lhe hão-de agradar.
Combinaram a visita ao antiquário para o dia seguinte. Nos olhos de Ana Luísa brilhou um reflexo de vitória.
A pedido de Paulina acompanhei-as ao antiquário. Da parte dela, achei natural o convite. Não só mantínhamos também convívio, como possívelmente ela não desejaria afectar para com Ana Luísa uma intimidade ainda não existente ou demonstração de afinidades profundas.
Da parte de Ana Luísa não estranhei ela não me ter convidado para acompanhá-la. Creio já o ter dito, mas repito, Ana Luísa praticava frequentemente uma conduta oportunista conforme os interesses momentâneos. Tornava-se atraente, interessada, solícita e amável quando precisava de certas pessoas; esquecia-as quando elas já não podiam ou deixavam de servir-lhe". É um comportamento vulgar em todos os humanos, mas nela tornava-se evidente, dados os exageros das atitudes tomadas, quer na fase de se mostrar simpática e amável, quer na do abandono daqueles que não convinham mais aos seus intentos.
Neste caso da visita ao antiquário, calculo como ela preferiria a minha ausência: poderia assim manobrar" mais à vontade junto de Paulina, sem testemunhas, e sem que alguém se colocasse em defesa da professora. Pois eu estava convencida de que Ana Luísa iria procurar tirar o maior proveito" desta ida ao antiquário, com o fito de dar mais uns passos na realização do tal projecto, por mim suspeitado.
Não me enganei. Simplesmente, se fui testemunha de gestos e palavras, não interferi de modo nenhum em qualquer das cenas presenciadas. E sublinho mais uma vez: em tudo quanto aconteceu nas vidas destas pessoas, nunca me afastei dessa postura de testemunha, e as minhas profecias e processos de intenções, guardei-os para mim (ou seja, para este romance).
Ana Luísa, aliás, nunca aceitaria sugestões, muito menos conselhos ou avisos, os seus projectos eram obsessivos, ela demasiado voluntariosa e, vá lá, corajosa, para não arriscar "levar até ao fim" (como ela própria costumava dizer) tudo o que sonhava e desejava.
Quanto a Paulina, aceitaria sugestões e opiniões. Além de que o seu espírito por vezes se mostrava um tanto vacilante e sujeito a temores e contradições, ora por timidez ora por excessivo respeito e tolerância para com as pessoas. Paulina irá, desde este dia, deixar-se seduzir" por Ana Luísa. Mais tarde, no entanto, há-de chegar à conclusão de que Ana afinal era um pântano de hipocrisia, de egoísmo, de ambição e de vaidade. Como referi, Ana Luísa era uma frequentadora de bricabraques, conhecia todos os antiquários da capital, até às mais pequenas e escondidas lojecas. O seu gosto pelos móveis de estilo, raros e antigos, vinha já da casa paterna; o pai, disse-o também, era um bom conhecedor e coleccionador. A residência conjugal ia- a ela igualmente recheando de peças valiosas, para o que não lhe escasseava o dinheiro. Os seus amigos da sociedade procuravam-na para conselho sobre o assunto e informação da existência neste e naquele estabelecimento do género.
Paulina não estava disposta a adquirir um móvel caro. A ideia da mesa de castanho séc. XVII foi de Ana Luísa. É muito provável que a eventualidade de, mais uma vez, se lançar numa démarche tão do seu gosto - a escolha de um móvel de estilo - a entusiasmasse verdadeiramente. Quantas vezes me dava ela sugestões para o arranjo do meu próprio apartamento, ou opiniões sobre os penteados que eu devia usar, as cores de vestuário que poderiam favorecer-me, (e ela filosofava, entusiasticamente sobre este tema da procura daquilo que nos poderia favorecer). Porém, neste momento não funcionaria tão-somente esse gosto pelas artes decorativas: o tal, por mim já pressentido, seu projecto secreto, deve aqui ter interferido e sobreposto. Ajudando Paulina na aquisição da mesa de castanho, ela conseguia um pretexto para imiscuir-se mais intimamente na sua vida, o mesmo será dizer, para poder aproximar-se de Sebastião.
Os antiquários podem classificar-se em duas categorias principais: os mais modestos ferros-velhos e os de alto gabarito, ligados às redes de importação e de exportação internacionais (às vezes também às dos saques em monumentos abandonados, palácios em ruínas, igrejas mal guardadas). Entre estes dois extremos existe uma gradação variada quanto à quantidade e qualidade das peças possuídas, há os que as vendem por restaurar e os que as apresentam já remendadas e convenientemente lustradas; os que as expõem mais ou menos esteticamente e os que se limitam a empilhá-las como um armazém de retém. A Casa Bual pertencia a esta última categoria, só que se distinguia das congéneres pelas enormes dimensões e pela tipologia das espécies armazenadas. Aqui encontrava-se a mais extraordinária variedade de antiqualhas, desde grandes portões, que teriam servido em boas quintas, balcões e armários gigantes, maciços, de antigas lojas, pequenas escadas férreas de caracol, arcarias para trepadeiras, em ferragens arte-nova, enormes escrevaninhas e contadores de múltiplas gavetas, sofás e cadeirões mastodônticos, lavatórios e grades de ferro, pias e estatuetas esculpidas por velhos canteiros e que deviam ter ornado parques e jardins, lápides tumulares, molduras, imagens sacras, enfim, só visto, eu paro com o inventário. Lembro-me de ter reparado especialmente numa colecção de cadeiras, em nogueira clara, preciosas pelo primor dos entalhes e pela antiguidade, eram do séc. XVI, e que iriam parar (já estavam compradas) à Embaixada da U. R. S. S. Ana Luísa ficou maravilhada diante de um par de grandes candeeiros de mesa, também arte-nova, de compridas franjas, em tons de laranja, verde e rosa. Um pouco caro - disse - mas não resisto, são maravilhosos! " Puxou de um cheque, deu o endereço, mandou que Lhos entregassem ainda naquele dia. Acrescentou: Queria agora era encontrar também a mesa de castanho, eu sei que elas existem cá, olhem aqueles móveis empilhados a esmo uns por cima dos outros, já tenho descoberto assim preciosidades, aqui é preciso paciência e golpe de vista, eles muitas vezes misturam coisas valiosíssimas com outras, insignificantes, vamos por aqui, cuidado Paulina, cuidado Vera Alexandrina, as passagens são estreitas, o menor movimento mal calculado pode fazer desabar estas montanhas.
Chegámos ao canto, lá ao fundo. Freneticamente Ana Luísa percorreu os empilhamentos sucessivos, com olhos ávidos, desde baixo até ao alto e do alto até baixo, e a certa altura exclamou, entusiasmada, Já vi algumas mesas, Paulina. Nós olhávamos também, soltávamos algumas palavras, mas Ana Luísa nem nos ouviu, somente a sua própria devassa parecia interessá-la e movê-la, como se desde o princípio a procura da mesa devesse ser exclusivamente tarefa sua. Finalmente descobriu qualquer coisa de interessante: Aqui! Olhem esta! Vai ser esta! ", e chamou logo o moço do armazém. Quero vê-la, tire-a, ponha aqui neste espaço, bem à minha vista! " Só quando a mesa foi libertada e deposta no chão, pareceu lembrar-se da nossa presença: Digam, digam se não é mesmo isto, diga, Paulina, não lhe parece a mesa ideal para o seu irmão? Repare: primeiro, é bastante grande, oxalá caiba na sala de trabalho dele. Deve caber, interpôs Paulina, entre atarantada e estupefacta com o entusiasmo e a resolução de Ana Luísa, que continuou, Depois é linda, com estes rebordos canelados, os pés elegantíssimos, e a lisura do tampo, a madeira antiquíssima, por muito que o seu irmão seja indiferente a estas coisas... Indiferente não é, só que põe o seu trabalho acima de tudo e não tem tempo para... - interveio Paulina de novo e Ana Luísa continuou
- Muito bem, isso não vai com certeza impedi-lo de apreciar uma coisa boa e bonita, os cientistas não hão-de ser destituídos de sensibilidade para outras coisas da vida, suponho. Para mais com aquela cara tão... tão... espiritual, com certeza não é apenas inteligente, há nele sensibilidade, diria até, sensualidade. No seu irmão, a cabeça é de sábio, os olhos são de santo, mas a boca é de pecador... e, aqui, Ana Luísa ergueu para Paulina um rosto amplamente risonho e contente, enquanto simultaneamente estendia os dois braços sobre o tampo da mesa e o afagava, cariciosa. Quando ele chegar, vai encontrar esta mesa no escritório. Esta mesa escolhida por mim. E quero que ele saiba, fui eu que a escolhi! Neste ponto tomou um braço de Paulina e fitando nos olhos dela os seus, luminosos de felicidade, perguntou, Aprova a minha escolha? Diga-me que sim, porque, claro, afinal quem tem a última palavra é a Paulina, a minha querida professora, e, impetuosamente, abraçou-a e beijou-a repetidas vezes nas faces.
Paulina, que continuava como entontecida, aprovou com a cabeça e deixou-se conduzir por Ana Luísa até à porta do estabelecimento. Ana chamou o chauffeur e mandou seguir para o atelier de Paulina.
Aqui chegadas, Ana não se conteve e pediu a Paulina a deixasse ver o sítio onde iria ser colocada a mesa, Se não se importa até poderei dar também algumas sugestões quanto à colocação da nossa mesa. Bem sei, a Paulina não precisa dos meus conselhos para nada, mas já que fui eu a escolhê-la, gostava de ver como vai ficar.
Ana Luísa começou depois a mostrar algum nervosismo. Ela podia movimentar-se à vontade durante o dia, no entanto tinha um horário regulamentar a cumprir. Por exemplo, só excepcionalmente poderia justificar a sua ausência nas horas do jantar das crianças ou quando eram os pais que convidavam o casal, ela e o marido, para reuniões familiares. O chauffeur esperava-a pacientemente, nos sítios onde Ana Luísa ia, mas ela sabia que, em casa, ainda que o marido não comparecesse por obrigações profissionais ou motivos ignorados, ela, embora os serviços domésticos girassem apoiados na governanta, na nurse e nas criadas, ela deveria sempre presidir pessoalmente.
Por isto foi muito rápida a visita ao futuro apartamento de Sebastião, só para ver o sítio onde iria ficar a sua mesa de trabalho. De resto, não existiam quaisquer alternativas para a colocação da mesa no escritório do astrónomo: era um compartimento não muito espaçoso, que iria ainda contar também com um armário, portanto a mesa tinha de ficar na posição desde logo indicada por Paulina ao portador que a trouxera, paralelamente a uma das paredes, recebendo da esquerda a luz que entrava pelo amplo pátio interior.
Os olhos de Ana Luísa percorreram apressadamente os dois aposentos principais que Paulina lhe mostrava, o escritório onde ficaria a mesa de castanho, e o quarto de dormir, onde por então se via apenas uma cama individual e um reposteiro a encobrir a porta que dava para a escada (estabelecendo assim a independência destas instalações relativamente à parte ocupada por Paulina).
Quando atentou no reposteiro pesado, a meio da parede, Ana Luísa não se conteve: É pena este reposteiro aqui. Porquê na parede, Paulina? ao que a professora respondeu, Não é lá muito bonito, é verdade, mas serve para ocultar a porta. Porque isto é um quarto independente, tem saída própria para o exterior. O que é da maior conveniência, sobretudo se Sebastião um dia vier a instalar-se cá em definitivo, pelo menos a fazer estadas mais prolongadas, não precisa de passar sempre pela minha casa. "
Quando ouviu Paulina referir-se à porta do quarto, que estabelecia comunicação com o exterior, Ana Luísa ergueu de súbito as sobrancelhas, no ar de quem acaba de descobrir algo de muito interessante.
A seguir teve uns bravíssimos segundos de recolhimento e respondeu como se a preocupasse qualquer ideia: Por esse lado está bem... ", mas depois mostrou um sobressalto, pegou na malinha de mão, pousada sobre a mesa de castanho e, de repente, despediu-se: Bem, já estou atrasadíssima, tenho de ir. Se quiseres, levo-te, Vera. Despeço- me, Paulina, já sei, as nossas lições vão ficar interrompidas durante a estada do seu irmão. É pena. Não sei se ele sempre trará os livros que lhe pedi... "
- De certeza - respondeu Paulina. - Aliás, ele falou-me nisso numa das cartas, não é pessoa para se esquecer. Vai deixá-los aqui para si, antes de partir novamente para os E. U. Quando retomarmos as lições cá os encontrará.
Ana Luísa ordenou ao chauffeur me levasse primeiro a mim, a minha casa, antes de seguir para a dela. Durante o percurso notei a sua atitude. Parecia extremamente contrariada, quase à beira de uma irritação explosiva, e de facto não se conteve:
- Não compreendo por que será preciso interromper as lições enquanto durar a estada do irmão de Paulina. E por que não me convidou ela para ir lá a casa nessa altura? Ela sabe muito bem do meu gosto em conhecer o irmão. E os livros... Supondo que ele sempre os traz, queria agradecer-lhos pessoalmente. Paulina parece querer levantar uma muralha à volta do irmão...
- De facto, defende-o. Ele, quando vem, por um lado procura um pouco de descanso, por outro costuma ter o tempo muito ocupado com simpósios e conferências.
Como anteriormente - quando foi informada da existência de uma porta independente no quarto de Sebastião Mondeiro - Ana Luísa mostrou outra vez a mesma expressão de surpresa agradávèl:
- Ele vem fazer conferências? A Paulina não me disse...
- Certamente sem qualquer intenção. Mas... interessam-te as conferências dele? Olha que a Astronomia, nos seus aspectos matemáticos e físicos, certamente estará fora dos teus interesses, suponho. São temas só para gentes da especialidade, a menos que ele desta vez se proponha fazer palestras de divulgação sobre as últimas descobertas astronómicas.
- De qualquer modo, se ele trouxer os livros, só me resta aparecer numa das conferências para lhos agradecer, já que a Paulina me afasta. E por isto mesmo também não quero estar a telefonar-lhe para me informar sobre o assunto. Tu, se souberes, por eles ou pelos jornais, por favor me dirás alguma coisa.
Calou-se e, até ao momento de nos despedirmos, seguiu em silêncio, como se amofinada contra tudo e todos.
Ainda me passou pela cabeça, Ana Luísa aparecesse em alguma das conferências públicas em que Sebastião Mondeiro foi o principal interventor. Paulina e eu estivemos presentes em todas.
Embora ela, conforme me disse, tivesse afinal chegado a receber um telefonema de Paulina com a notícia de que o irmão trouxera os livros e os álbuns de pintura por ela pedidos, e a título de oferta amável, Ana não apareceu em nenhuma das conferências. No entanto - e isto é tão insólito que ainda hoje me custa a acreditar - numa das tardes, terminada a conferência de Mondeiro tive a impressão, quase poderia dizer, sofri uma alucinação ao ver, primeiro o BMW azul-escuro dela, estacionado em frente e a alguns metros do portão do Instituto, por onde se fazia a entrada dos assistentes aos colóquios. E, lá dentro, no lugar do condutor, quem se encontrava? Não o chauffeur fardado, como de costume, mas ela, Ana Luísa, ela própria, o rosto meio encoberto por uma capelina de abas largas.
O primeiro momento da minha visão" espantosa foi de uma certeza total; a dúvida só veio depois, mas logo a seguir se instalou de novo a certeza, tanto mais ela pertencer ao número das poucas mulheres condutoras de automóvel, nesses anos cinquenta.
Se Ana tivesse ido assistir a qualquer das conferências de Sebastião Mondeiro, apesar de considerar a sua impreparação para o assunto, desconfiada como estava acerca dos seus desígnios secretos, não me espantaria esse comportamento e achá-lo-ia lógico. Mas esta estranha atitude de Ana Luísa - espreitar de longe aquele que tanto desejava ver de perto - deixou-me um tanto desorientada e insegura sobre a validade dos conhecimentos que eu julgava possuir acerca da sua pessoa. Sabia-a resoluta e ousada. Suspeitava-a capaz de planos sinuosos. Mas Ana apareceu-me então como um ser de evolução tão imprevisível como a da trajectória de uma partícula física elementar, que pelo menos aparentemente é arbitrária. Ou um ser vivo, cujo corpo se encontra enrolado sobre si próprio de tal maneira que, olhando-o, não o conseguimos identificar, e só à medida que ele se vai esticando e desdobrando os membros, começamos então a reconhecer de que espécie de animal se trata.
Quando nós os três, Sebastião Mondeiro, a irmã, e eu, passávamos próximo do local onde Ana Luísa se encontrava, no carro, ei-la que num movimento decidido abre a porta, se encaminha para nós e com um dos seus melhores sorrisos se dirige a Sebastião:
- Desculpe. Não está a reconhecer-me? Sou aquela ualuna adulta" da sua irmã, vim aqui de propósito para lhe agradecer os livros e os álbuns. Grande amabilidade sua. Não me foi possível assistir às suas conferências, como seria do meu gosto... e do meu interesse, agora que resolvi instruir-me, como a Paulina já sabe. Vim só para lhe agradecer. Obrigadíssima, mais uma vez. Então já está novamente de partida?
Sebastião respondeu, visívelmente admirado, cerimonioso e com algum embaraço:
- Sim. Parto amanhã por mais uns meses. E as suas lições? Tem feito progressos?
- A sua irmã é que sabe, mas esforços tenho feito muitos. Bem, não Lhe tomo mais tempo, eu também estou com alguma pressa. Querem que os leve?
- Obrigada - adiantou-se Paulina. - Então lá a espero para continuarmos as nossas lições.
- E verei finalmente os livros que o seu irmão me trouxe. Quando apertou a mão de Sebastião olhou para ele, fitando-o longamente e deslumbrada, como se estivesse a ver-lhe uma estrela na testa.
Logo que o irmão partiu, Paulina disse-me numa conversa telefónica, Reparaste naquela atitude da Ana Luísa, fazer-nos uma espera no dia da última conferência do Basty, só para Lhe agradecer os livros, que ainda estão aqui? Julguei dispensável mandar-Lhos a casa, visto em breve retomarmos as lições e então logo os poderá levar. Também não achei necessário vir ela buscá-los pro positadamente, não se trata de nada de urgente, suponho, simplesmente a Ana Luísa parece-me, ficou um tanto magoada com isto tudo, deve ser uma pessoa muito ansiosa... "
Eu ia para interrompê-la e acrescentar Mais que ansiosa, é fre nética. Contive-me e disse apenas, Sim, é uma pessoa habituada a caprichismos e a ter tudo quanto deseja. Além disso, com o teu conhecimento vê abrir-se diante dela um meio muito diferente daquele em que vive. Conhecer artistas, intelectuais, um cientista de nome - o teu irmão - é uma experiência nova para ela, que para mais supõe também ter descoberto na sua própria pessoa uma vocação artística. Mas não te preocupes, Paulina, ainda que ela tenha ficado um pouco contrariada, suponho, por não ter tido oportunidade de agradecer pessoalmente os livros de Sebastião num momento mais calmo e mais íntimo, ela acaba sempre por superar todos os contratempos, todas as decepções e todos os desgostos. É dotada de um voluntarismo, direi quase feroz, e quando se Lhe mete uma coisa na cabeça nada a fará deter.
- Também me parece. Sabes que está mesmo decidida a ir fazerjá uma primeira exposição de quadros? Com tanto que precisa ainda de aprender.
Mesmo que não fosse, como sou, uma pessoa de formação científica, nunca aceitaria a crença no Destino. Acolho uma predeterminação das nossas orientações e condutas devido às cargas hereditárias de que somos portadores e ao meio social e familiar em que nascemos e nos desenvolvemos. Aceito a interferência do Acaso, ou seja, a de uma ordem factual cuja complexidade é tão imensa que não pode ser abrangida pelos cálculos probabilísticos actuais; já a interferência de diferentes ordens cósmico-temporais, como admitiu o psicólogo Carl Jung, fica fora das minhas pessoais capacidades de compreensão. Mas admito a interferência da vontade de cada indivíduo no sentido de uma intensificação ou de um abrandamento, de uma aceleração ou de um amortecimento da velocidade de todas as predeterminações. Chego à admissão de um desviacionismo no campo da evolução biológica humana e ao livre arbítrio no âmbito moral.
Vem isto a propósito, por um lado, do ritmo acelerado que Ana Luísa parecia ter imprimido à sua vida a partir do momento em que resolveu fazer uma primeira exposição de quadros; por outro, a propósito da quase desorientação assim lançada sobre as minhas previsões acerca do seu comportamento, mais concretamente, acerca do tal projecto por mim entrevisto através das suas atitudes.
As novas cartas de Paulina Mondeiro, enviadas para Roma, onde eu já me encontrava outra vez prosseguindo os meus estudos, vieram fazer-me acreditar que de um momento para o outro Ana Luísa se esquecera ou desistira do seu projecto.
Um catavento, esta rapariga, era assim que a tia Ausenda a defmia. No entanto Ana não costumava desistir daquilo que desejava, Só largo uma coisa ou uma pessoa depois de as ter conquistado e esgotado até ao fundo do meu interesse ou dos meus desejos, dizia de si própria. Sucedia era existir nela uma grande rapidez na devoração dos objectos e pessoas conquistados.
O tempo acabaria por demonstrar o acerto das minhas previsões, pois Ana Luísa não desistira do tal projecto. Simplesmente, como não lhe foi possível seguir em linha recta, ou seja, pela distância mais curta entre dois pontos, executou uma sinuosa curva e alguns malabarismos que por então me confundiram.
Hoje, depois de tudo quanto se seguiu, e, principalmente depois da leitura das múltiplas cartas por ela escritas a Sebastião para os E. U. (cartas que me vieram mais tarde a ser reveladas por Paulina), é que eu vejo claramente como Ana Luísa estudou, planeou e concretizou o seu projecto,
Uma das frases por ela tantas vezes repetidas ao longo das cartas românticas e dramáticas escritas a Sebastião, era esta: Quero merecer a sua amizade. "
À luz destas palavras compreenderemos porque se lançou ela numa extemporânea exposição de pintura, apesar de todas as prevenções de Paulina, que não a considerava preparada. E igualmente porque teria aceite o mecenato de Ulricho Stichini, o editor de um álbum luxuosíssimo com a reprodução dessas primeiras pinturas, assim como o agente financiador da sua promoção na imprensa.
Quero merecê-lo", como quem diz: Desejaria ser uma mulher de valor para merecer um homem da sua importância. Se me tornar uma artista de renome, talvez seja digna da sua atenção. " É que, com Sebastião, ela não estava certa de que os seus dotes físicos fossem suficientes para seduzi-lo. Preferiu tentar uma conjugação de factores, a oferta da sua beleza e também a da glória de uma nomeada. As cartas de Ana Luísa para Sebastião acrescentavam também a lisonja que sempre representa para o espírito masculino uma declaração de amor, por parte de uma mulher, ainda que ele não lhe corresponda.
Entretanto, uma reflexão mais aprofundada sobre a maneira como se processara já uma espectacular aventura com o nababo, esteta excêntrico e perdulário megalómano, há-de levar-nos a hipóteses bem complicadas sobre a tortuosidade complexa da alma de Ana Luísa; a ela jamais alguém poderia aplicar os versos daquele fado lisboeta que fala das que se perderam por amor, ". Ana nunca se perdeu e muito menos por amoe
O inglês Laurence Sterne diz maliciosamente no seu Tristram Shandy: Onde está o lado bom, onde está o lado mau da mulher? Eis aquilo que tenho a esconder. " Quanto a mim, o que desejava seriamente era descobrir os limites onde começa um e acaba outro, mas reconheço tratar- se de tarefa impossível. O que não esconderei é isto: as cartas apaixonadas de Ana Luísa, enviadas para Sebastião Mondeiro, coexistem, no tempo, com a aventura delirante por ela vivida com o tal nababo. E acho que ela era sincera na distribuição" dos seus arrebatamentos pelos dois. Como não admitir essa sinceridade quando ela própria já um dia me havia confessado Sou capaz de gostar de vários homens ao mesmo tempo. Sinto-me feliz neste extravasamento. " No entanto, nas cartas para Sebastião falava de um sentimento supremo, único, sempre desejado e só agora experimentado! " (Devo dizer que reproduzo as próprias expressões, encontradas nessas cartas. )
Quando um dia chegou ao conhecimento de Paulina que essa correspondência de Ana com o irmão foi contemporânea dos entusiasmos com Ulricho; que Ana se mostrava epistolarmente como uma nova Mariana Alcoforado, enquanto ao mesmo tempo se entregava a "orgias estético-eróticas" com o nababo e a sua roda, essa mesma Paulina tomará posições inimigas contra "essa criatura dúplice e perversa". Por agora limitemo-nos a assistir às cenas relacionadas com a primeira exposição de pintura de Ana Luísa, com a estreia de "uma nova e prometedora pintora" (como começou por dizer a crítica), seguindo as notícias que Paulina continuava a enviar-me para Roma:
Ana Luísa está decidida a participar no próximo Salão da Primavera. Queria utilizar o meu estúdio, não porque não disponha de um espaço apropriado no palacete onde vive, e em casa dos pais também não lhefaltariam disponibilidades. Mas o intento dela era ter-me à mão, pronta a guiá-la, a corrigi-la a todo momento. Neguei- me. Já que, contrariamente à minha opinião - como sabes não a considero ainda suficientemente amadurecida - pretende apresentar-se em público, então assuma as suas responsabilidades, caminhe pelo seu pé e sem muletas.
"Ana Gallis - partir de agora Ana Luísa passou a assinar assim, este será de ora avante o seu "nome de guerra" - lá compareceu no Salão da Primavera da Associação Nacional de Pintores.
É claro, tecnicamente nos seus quadrinhos nota-se uma incipiência flagrante, ou, como ela diria, se pudesse autocriticar-se, uma gaucherie visível, sobretudo na execução, pois quanto à composição nada haverá a dizer trata-se de umas quantas aguarelas e de um óleo, em que os motivos têm por tema recordações da infância e da adolescência.
"Chamou ao conjunto: Pequenos Paraísos. Não será para ti novidade se te revelar o que vêm a ser os seus Pequenos Paraísos. Suponho que os reconhecerás, visto teres frequentado as casas em que ela vivia com os pais, tanto a de Lisboa como a de Rio de Mouro, e até, provavelmente, estarás a par das vivências que alimentam as suas recordações juvenis: O Laguinho, A Mesa do Serão, o Caramanchão das Glicinias, a Magnólia Etérea.
"Para dizer a verdade, o encanto destes Pequenos Paraísos reside sobretudo no titulo dos quadros, pela sugestão que nos trazem de beleza e de ternura para sempre fixadas no espirito de uma adolescente. Quanto à execução, como te disse, é esquemática, cheia de defeitos de perspectiva e também no tratamento técnico das tintas. Somente A Magnólia Etérea alcança já certo grau de conseguimento; como ela se serviu aí do processo do óleo espatelado, dá certa aparência de autêntica pintura.
A carta seguinte de Paulina constituía uma enorme explosão de sentimentos, que pareciam entrechocar-se, por indefinidos ou con traditórios, e mostrava igualmente como nela começava também a despontar uma suspeita acerca do tal projecto secreto de Ana em relação a Sebastião. Dir-se-ia que pressentia um perigo a aproximar-se do irmão e, ao mesmo tempo, algo que iria proporcionar-lhe uma grande, arrebatadora experiência, ainda desconhecida na sua vida. E que ele por um lado temia mas por outro desejava esse acontecimento. Paulina, desiludida com o casamento, divorciada e sem filhos, parecia ter concentrado no irmão uma mistura de admiração, de desvelo carinhoso e de ternura maternal. Talvez sonhasse inconscientemente que essa amizade fraterna preenchesse os va zios sentimentais de ambos. Mas a sua generosidade também a levaria a desejar uma "felicidade autêntica e pessoal" para Sebastião. E isso, ela sabia-o, só poderia trazer-Lho outra mulher, uma esposa, ou uma amante, que não apenas uma irmã. É dentro destas suposições que interpreto a sua indignação quando soube daquilo a que chamava, na carta, "a conduta escandalosa de Ana Gallis":
" "Queres saber o que se passou " - escrevia-me ela - Quando começaram a sair as primeiras criticas ao Salão da Primavera, como é costume gastaram duas ou três linhas com os estreantes, meia dúzia de palavras inócuas (e até irresponsáveis) e seguiram adiante com os consagrados. Houve quem, demorando-se a citar a lista dos estreantes; incluisse o nome de Ana nos "tentames incipientes, aqui e além reveladores de alguma sensibilidade, como é o caso de Ana Gallis, com os seus Pequenos Paraísos ".
Já faltava pouco mais de uma semana para o encerramento do Salão quando começaram a aparecer na Imprensa coisas como esta: "Um novo talento feminino surge na nossa pintura", "Ana Gallis, a grande revelação deste Salão da Primavera", "Estreia e consagração: Ana Gallis conquista o patrocínio de Ulricho Stichini. " Emjornais e revistas, espectaculares legendas entusiásticas e retratos da "novel e talentosa pintora". E o cúmulo ainda não decorrera um mês sobre o fecho da exposição e já nos escaparates das livrarias surgia um luxuoso álbum com a reprodução a cores dos Pequenos Paraísos.
"Eu estava positivamente aturdida. Chegava duvidar dos meus conhecimentos técnicos de professora, da minha lucidez de conhecedora de Arte. É certo que a critica de esquerda se mostrava de um negativismo ácido e virulento, como costuma usar a respeito de todas as obras não seguidoras da sua doutrina do "realismo social": falavam de "maneirismos alambicados", ou de "futilidades romanescas "; de "temáticas burguesas ", de "devaneios pictóricos de menina prendada e ociosa, da alta sociedade, que se entretém a pintar magnólias lânguidas e evanescentes", e houve um desses criticos que chegou a escrever "Só lhe falta vaporizar as telas com os mesmos perfumes franceses de alto preço com que essas damas impregnam as garçonnières onde mantêm os seus rendez-vous com os amantes banqueiros e mecenas. " E o facto é que no meio intelectual e artistico lisboeta começou a espalhar-se mais um daqueles boatos em Que, como sabes, é tão useiro e vezeiro "Que a pintora dos Paraísos era agora a favorita e a protegida do conhecido mecenas, amigo das artes, Ulricho Stichini! "
E então eu pergunto-me: Teria de facto existido a intervenção de Stichini junto de alguma imprensa no sentido de favorecer o elogio de Ana Gallis No meio de tanta intrigalhada, da bisbilhotice costumeira, da inveja e das politiquices, sempre imiscuídas nestas coisas, como saber a verdade Que o homem foi o promotor-pagante da ediÇão do álbum luxuoso dos Pequenos Paraísos, isso sabe-se, de certeza. Ele deu mesmo uma esplendorosa festa mundana no seu palácio da várzea de Colares, uma daquelas féstas para que são convidadas cabeças coroadas, convidados banqueiros, grandes senhores da indústria, artistas famosos e gente mundana, e onde, depois das costumadas ceias opíparas, entremeadas com cenas de fado, surgiu o espectáculo máximo da noite, produto da sua fantasia: O Bailado da Magnólia, em que várias senhoras "da nossa melhor sociedade", entre elas Ana Gallis, evolucionavam sobre um tablado, à beira da piscina, o corpo envolvido em musselinas, ondulando ao som de citaras ou de harpas. etéreas.
"Claro, toda a gente relacionou o Bailado da Magnólia com a publicação do álbum das pinturas da estreante pintora Ana Gallis. E o mais curioso é que depois de tudo isto Ana quase abandonou as nossas lições! Aparece às vezes com um ar estonteado ou inebriado, iluminado. E diz grandesfrases como: "Finalmente encontrei-me, achei a minha autêntica personalidade. " "Agora, para sempre todos passarão a chamar- me Ana Gallis. Sou uma pintora, uma artista. Já não apenas afilha do Eng. Lima e Castro ou a esposa do Dr. Pedro González. " "Recebo cartas de admiradores e admiradoras, convites para vernissages de outros artistas, para participação em colóquios, pedem-me entrevistas, declaraÇões... "
- Isso torna-nfeliz - perguntei-lhe.
- Sim, muito feliz.
"Fiquei por aqui; senti ter chegado a um ponto além do qual não poderia passar
"A vida particular da minha aluna "especial" não me diz respeito. Além disso sabes como não sou puritana e conheço os distúrbios amorosos Que vão pelos nossos meios artisticos e intelectuais, de todas as categorias, os oficiais e os contestatários, os da "direita " e os da "esquerda ". Um ponto, no entanto, gostaria de esclarecer. No caso de serem verdade os boatos sobre "os amores estéticos " entre Ana e o mecenas - ela aludiu muito fugidia e risonhamente, ao facto - teria havido... quanto me custa empregar o termo... teria havido corrupção da parte dela? Teria o banqueiro, "grande apaixonado das artes", comprado a beleza da Ana a troco da sua promoÇão artistica e da publicação do álbum Sei como no nosso meio artistico existem coisas dessas. Nem só a politica e as capelinhas de amigos para o elogio mútuo servem de trampolim para proventos e prestigios; por aqui há muita menina, sobretudo entre essas que ainda há algum tempo eram chamadas de "bas bleus", que vão para a cama com este e com aquele, dos quais esperam um votozinho no júri de um concurso ou uma criticazinha favorável. Não conheço bem a Ana Luísa e, no entanto, um dia te falarei, cá por certas coisas.
A minha posição entre Ana Luísa e Paulina Mondeiro tinha de manter-se dentro da neutralidade, era amiga das duas. E não seria a partir de boatos que, até só para mim própria, me seria legítimo afirmar algo a respeito, não só das possíveis relações entra Ana Luísa e o mecenas, como, sobretudo, da hipótese aflorada no espírito de Paulina. Falando apenas para mim, quanto às relações eróti cas entre ambos nada me custa a acreditar. Já o sabemos, não seria a primeira vez que Ana se entregava a uma aventura extramatrimonial. Já referi mesmo a sua teoria da distribuição da beleza feminina e os seus louvores quanto à fruição da variedade". Mas estou convencida de que até então ela apenas se entregara à aplicação dessas teorias nas ocasiões em que se encontrava em meio estranho ao da sua sociedade e do seu país, como acontecia nas aventuras sem continuidade nem perigo, a que ela própria chamava os casos com os seus holandeses voadores, No seu país, ser-lhe-iam mais difíceis quaisquer escapadelas.
Tivesse ou não existido um relacionamento de carácter erótico entre ela e o Stichini, certo é os últimos acontecimentos da sua vida - a participação no Salão da Primavera, a publicação do álbum a expensas do mecenas, a festa retumbante por este oferecida em Colares, com o Bailado da Magnólia, mais a roda-viva de entradas e saídas, telefonemas, encontros, em que ela passou a andar
- terem vindo provocar enormes tempestades, tanto na casa conjugal como na família.
Se existia uma alta burguesia onde quase tudo era permitido em matéria de extravagâncias e de vida erótico- sentimental, onde se levava aquilo a que os italianos chamam la dolce vita, também se encontrava nela uma larga faixa onde só aos homens eram tolerados certos atentados à boa moral, sobretudo quando esses atentados apenas implicavam mulheres sem comprometimentos familiares, bailarinas e actrizes célebres, demi-mondaines toleradas, conquanto isso não acarretasse a destruição da família legal, mas onde a regra de ouro era a da manutenção de uma equilibrada e respeitável ordem familiar, com o bom recato e modesta resignação das senhoras e meninas, que podiam frequentar a sociedade e os seus divertimentos, mas dentro de limites estabelecidos e aceites. Sobretudo quando essas famílias traziam ainda um forte lastro de tradições aristocrático-religiosas e provincianas. A família de Ana Luísa, bem como a do marido, como vimos, pertencia a esta última faixa.
Por conversas entre nós as duas, tomei conhecimento de novas cenas violentas com o marido. Ana Luísa não sabia ao certo se os boatos difamatórios haviam chegado aos ouvidos de Alfredo. Mas ainda que nada tivesse constado, já sabemos como, por princípio, sempre ele reprovou a ideia de Ana Luísa se matricular na Escola de Belas-Artes, apenas consentindo as lições particulares com uma professora. A participação dela no Salão da Primavera, e tudo quanto se seguiu, deixaram-no em estado de desespero e fúria. Passava do mutismo absoluto, com a expressão mais severa e dura, para transportes de cólera furibunda, à mesa ou em qualquer lugar, chegava a arremessar objectos ao chão, a bater com as portas e até a puxar-lhe violentamente pelos braços e a empurrá-la. Um dia esbofeteou-a, chamando-a "desavergonhada e "grande cabra, Ausentava-se de casa dias seguidos, sem dar notícias, e Ana Luísa era informada por diversas formas de que o viam por aqui e por ali, acompanhado de mundanas famosas.
O pai de Ana interveio também. Reuniu o clã familiar, com a filha e o filho mais velho, e submeteu-a, primeiro a um autêntico julgamento, depois a demorada pregação. Foi assim considerada "absolutamente culpada perante o marido e perante a família, pelas faltas, "Que - pronunciou o pai em tom solenemente exclamativo e altamente dramático - Deus tenha permitido, não houvessem chegado ao crime: Culpada de "leviandade, de excentricidades ridículas, de falta de sensibilidade e de respeito para com os seus deveres de filha, de esposa e de mãe", de "futilidades infantis", de "rebaixamento da dignidade própria e de decaimento social" e, por fim, de "uma irresponsabilidade que poderia ter colocado em perigo a sua vida material e a dos filhos, pois ela bem sabia que dependia economicamente do marido"; em conclusão: "No caso de não voltar imediatamente atrás na sua conduta perniciosa e de não abandonar de vez o sonho disparatado de ser pintora, com tudo o que de irregular uma vida artística acarreta para uma mulher, e de, em consequência, vir a destroçar o seu casamento, ficasse a saber, não poderia contar com o perdão e com o apoio do seu pai."
Nessa reunião familiar, em que o pai, então - foi-me contando Ana Luísa - num gesto arrebatado, a arrancou do maple em que ela "jazia" e, arrastando-a, a colocara diante do marido intimando-a: "Vamos, pede-lhe perdão e promete-lhe que te vais deixar desses disparates" - ela caíra no chão, "não nos pés dele, como todos devem ter pensado, mas somentejunto dos pés dele". Desatara depois num choro rouco e desvairado, sem palavras, "só uma es pécie de pequenos grunhidos, do animal ferido que eu me sentia. " E que eles deviam ter interpretado estas atitudes como o reconhecimento das suas próprias loucuras e o desejado pedido de perdão. "Mas não, nada disso. Raiva, uma raiva imensa contra tudo e contra todos, era o que eu sentia e então vinguei-me fingindo que me submetia, tornando-me hipócrita. "
Com estas últimas palavras Ana Luísa confessava o não convencimento próprio das suas culpas.
Observei-lhe:
- Para mim, se alguma coisa existe de estranho em tudo isso, vem a ser o mecenato espectacular do Stichini. Que ele é um entusiasta da Arte, já se sabe, tem gasto muito da sua fortuna na fundação de escolas e oficinas de artes plásticas, patrocina concertos, espectáculos de teatro, exposições. No entanto, nunca protegeu nenhum artista "estreante" em particular. Contigo abriu uma primeira excepção e apareceu a falar de incentivos para os jovens artis tas. Sei, sabemos, eu e Paulina, que te promoveu na imprensa.
Custeou-te um álbum luxuoso com a reprodução dos teus quadrinhos, deu aquela célebre festa, com o Bailado da Magnólia, em
que tu foste a principal bailarina. Entusiasmado, em suma...
Ana, que continuava num estado de excitação, explodiu:
- Também tu? Onde queres chegar? - e, sem esperar pela minha resposta:
- Pois bem. É verdade: não sei onde começou o entusiasmo dele pelos meus quadros ou a atracção pela minha pessoa. Eu, por meu lado, também ignoro se o que nele me seduziu foi a sua fascinante personalidade, se os seus actos incentivadores. Quero ou quis acreditar que nele - como sabes é homem de muitas mulheres e nenhuns amores - a atracção, o entusiasmo partiu dos meus quadros para a minha pessoa, não pela sua perfeição pictórica, mas pela poesia que neles deixei e ele tão bem captou. Pelo menos foi o que deduzi das suas palavras. Ele entusiasmou-se por mim enquanto criadora dos Pequenos Paraísos: Ainda não és uma grande pintora, mas vibras em poesia. E eu entusiasmei-me por ele enquanto receptor da minha poesia, do meu desejo de fixar ou eternizar a beleza e a alma dos meus Pequenos Paraísos. Comovemo-nos ambos, reciprocamente, com as nossas próprias comoções.
Abruptamente lancei:
- Portanto não houve corrupÇão entre os dois, nem da parte dele ao proteger-te, nem da tua parte ao...
Logo ela me interrompeu em exaltação:
- Também pela tua cabeça passou essa ideia... E pela dos meus familiares terá perpassado, mas logo a sufocaram e repudiaram; remeteram toda a indignação para a reprovação da minha mania de ser artista. Pois fica sabendo: não houve corrupção, prostituição, talvez quisesses dizer... Queres saber o que houve? Pois apenas tudo isso que já te disse e procurei aprofundar. Os seus oferecimentos, numa primeira impressão, como era natural, para mim ou para qualquer outra mulher, deixaram-me deslumbrada porque... porque iriam proporcionar- me um pouco de glória.
- Dai-nos, Senhor, um pouco de glória em vida, disse o Miguel Torga - interrompi-a, com uma ironia que apenas pretendia desdramatizar a nossa conversa.
Ela, já um pouco mais calma: - Sim. Mas o que quer dizer essa glória? Só o prestígio, a celebridade, a fama? Não atribuirá esse também à glória o sentido de uma iluminação do nosso espírito, libertado neste mundo das suas tantas misérias morais e materiais, uma amostra do reino dos céus na terra? Para mim a glória seria isso tudo, o prestígio, o incenso, é verdade, mas também o reconhecimento da minha validade, da minha pessoa autêntica, para além daquela, vulgar, de que todos me querem revestir, um pouco de luz a iluminar essa minha pessoa opaca e escondida dentro de uma máscara e numa casa escura. Mas, acredita, ainda não foi apenas isso. Simultaneamente os oferecimentos de Ulricho apareceram-me como gestos carinhosos, protectores, de um pai amigo, dispensador de benesses e dádivas benévolas. Foi tão bom sentir-me presenteada! E sobretudo aceite, aceite na minha extravagância, na minha marginalidade! Já vês como os dias de intimidade que vivi com ele - porque os vivi, confesso- te a ti - não foram movidos apenas por vã cobiça.
Para Paulina contavam mais os actos que as analíticas desculpabilizantes das complexidades psicológicas. Paulina para sempre irá permanecer na dúvida a respeito deste caso de Ana com o mecenas: para além das inclinações edipianas dela, em busca de um bom pai e, da parte de Stichini, dos seus dons pigmalionescos, teria havido em Ana uma aceitação interessada, a fim de conseguir aquilo por que tanto ansiava: a conquista de um nome de artista, ou apenas, de um nome falado.
O compromisso de regeneração de Ana, perante a família e o marido, ficou limitado à sua não participação em mundanidades artísticas. Admitir-lhe-iam que se dedicasse à pintura mas os seus trabalhos não poderiam ser alvo de outras apreciações senão as dos familiares e de alguns amigos íntimos das duas casas. Quanto às lições em casa de Paulina continuavam toleradas.
Mas eu sabia que, a partir de agora, Ana Luísa já não poderia suportar tal constrangimento. Como eu me encontrasse de novo em Lisboa, e com alguma demora, passou a visitar-me frequentemente e tornara-se mais expansiva:
- A minha vida - disse-me logo na primeira dessas visitas encontra-se num beco sem saída. Proibem-me de me dedicar a uma autêntica vida artística, a coisa que eu mais ambiciono, e não vejo outro remédio senão o de me conformar com a proibição. Ah Se eu tivesse um emprego...
- Conheço um caso muito semelhante ao teu, pelo menos nesse aspecto, e quantos mais haverá. Ela era também uma rapariga, filha de distintas famílias, o pai um homem de nome respeitado, um juiz. Ela, a filha, casou com um médico que se fixou numa cidadezinha da província, onde se tornou apreciado e conseguiu a clientela, não só da pequena cidade como das terras em redor. Viviam numa moradia linda, sobre uma espécie de minúscula ínsua a meio de um rio, rodeada de árvores e de pássaros. Com a idade de pouco mais de trinta anos, ela já tinha quatro filhos. Julgavam-na feliz. Mas um dia deixou de poder suportar essa vida exclusivamente doméstica, rotineira, limitada às ocupações de esposa, mãe,
dona de casa e criadagem. Veio para Lisboa com os filhos. Teve de procurar trabalho para poder sobreviver. Como tu, não possuía di plomas nem conhecia ofício. Então passou por empregos de ocasião, empregada de balcão em boutiques elegantes da Baixa, angariadora de assinantes para obras em fascículos, monitora de chás para promoção de tupper-wares, guia-intérprete...
- E limitou-se a essas coisas, foi para isso que ela deixou o marido e o conforto?
- Não. Ela tem dito, em declarações várias, que desejava encontrar-se a si própria, realizar-se, Lutou, esforçou-se, e finalmente começou a abrir-se-lhe a vida pública, com que no fundo, sempre sonhara. Tornou-se recitadora, locutora e actriz em pequenos papéis.
- E tem de facto algum talento? Alcançou nome?
- Um talento modesto, um nome modesto. Nas entrevistas que agora dá, considera que no entanto o mais importante foi a libertação, o encontro consigo própria.
Ana meditativa:
- Não sei... se terei a coragem que essa teve. Sei apenas, preciso também de me definir, de uma vez por todas. Além de que deixei decididamente de gostar do Alfredo. Se é que alguma vez gostei. Uma coisa é certa: não me sinto capaz de viver para todo sempre neste apagamento de burguesa rica.
Vários passos das cartas enviadas por Ana Luísa a Sebastião, para os E. U. farão parte dos libelos acusatórios que Paulina virá um dia a apresentar contra ela.
Dentre essas cartas, as primeiras, correspondentes ao período pré-declaratório da sua "paixão", não eram ainda totalmente desveladas. Porque a sua condição perante ele, que afinal apenas conhecia de o ter encontrado duas ou três vezes, continuava a ser a de senhora casada. Entretanto, sem qualquer justificação e invo cando apenas o pressentimento" de que nele encontraria compreensão, Ana Luísa manifestava-se já exuberantemente um temperamento exaltado. Falava muito de si própria, das suas aspirações recalcadas, da incompreensão da família", e aludia, ainda que discretamente, à grande decepção de um sonho para sempre destruído, embora em simultâneo referisse também "a esperança, ainda não de todo perdida, de vir a encontrar uma oportunidade de o ver tornar-se realidade.
Ignoro quais seriam as reacções de Sebastião Mondeiro a essas cartas recebidas de uma mulher que afinal lhe era quase desconhecida.
Uma coisa é provável: como homem, e os homens dispõem para isso de uma intuição infalível, Sebastião percebia como Ana Luísa mantinha intenções particulares relativas à sua pessoa.
Outra coisa é certa (como acabará por revelar mais tarde à irmã): ainda que a princípio se sentisse algo lisonjeado com aquelas provas de interesse vindas de uma mulher tão galante, essas cartas acabavam por importuná-lo, lia-as contrariado e um tanto revoltado; embora lhe respondesse delicadamente fazia-o breve e evasivamente, porque a hipótese de qualquer complicação romanesca com Ana viria contrariar as suas disposições de exclusiva dedicação à ciência e, além disso (como a mim própria confessaria um dia), se considerava Ana Luísa uma mulher sobremaneira atraente, do ponto de vista físico, senhora de uma daquelas belezas a que costuma chamar-se de capitosas, simultaneamente encontrava nessa beleza algo de agressivo, de quase grosseiro. No aspecto psicológico achava-a dotada de vivacidade e sagacidade, não de autêntica inteligência; quanto à sua sensibilidade estética, talvez fosse um tanto fictícia, sugerindo espectacularmente interesses culturais e huma nísticos que no entanto não aprofundava; admitia-a como aparentemente egoísta e calculista.
Quando um dia vier a dar-se o rompimento das suas relações, Sebastião, em uníssono com a irmã, chegará a traçar de Ana Luísa o retrato de uma mulher perversa e pervertida", e não lhe pouparão ainda outros cognomes de ignomínia.
Mas o rompimento ainda vem longe; por agora nem sequer se deu a ligação fatal (como virá a designá-la Paulina).
Ligação ou enlace que se iniciará através de um momento de muita poesia.
Imaginemos esse momento, como eu faço, atentando nas palavras, estonteadas de felicidade", com que a própria Ana Luísa me o descreveu:
Eu estava desejando um pretexto para me encontrar a sós com ele, fora das vistas de Paulina. Mostrei-Lhe uma grande vontade de observar o céu, de noite, com um telescópio. Pedi-Lhe que me proporcionasse esse espectáculo, levando-me no Observatório.
Ele, a principio, pareceu hesitar levantou algumas objecções: "Que, de noite, só os astrónomos de serviço podiam entrar no Observatório"; "Que, em última análise, se eu ia tantas vezes ao estrangeiro, podia visitar um planetário, é um engenho tão sugestivo, poderia assim fazer uma ideia"; "Que, apesar de tudo, o que um telescópio nos dá é apenas um magro sector do espaço, o seu maior interesse está na focagem de determinados e precisos astros e zonas celestes. "
Então, como ele tentava esquivar-se, tive uma ideia a que, como vais ver se pode chamar verdadeiramente luminosa.
Encontrávamo-nos apenas a dois dias da Noite de S. Lourenço. Os astrónomos anunciavam para este ano uma chuva de estrelas, não só sensacional como perfeitamente visível no nosso céu. E disse-Lhe "De qualquer modo, se não se importa depois de amanhã irei ter ao Observatório, à noite, pelas onze horas. Primeiro mostra-me o céu pelo telescópio e depois assistiremos os dois à chuva de estrelas. É a noite de São Lourenço, e está anunciado que este ano será um espectáculo excepcional. "
Foi a noite mais bela da minha vida! Em que vi um dos espectáculos mais maravilhosos que os nossos olhos podem contemplar!
Estávamos num dos grandes terraços do Observatório e era essa noite de Agosto, uma daquelas "noites de beleza cósmica" como ele disse. O ar puro, de um escuro transparente, como um véu subtil suspenso entre o Céu e a Terra.. Uma temperatura morna roçando-nos com uma envolvência de sedas macias. Um perfume de jasmim subindo do parque, lá em baixo. Miriades de vibrações, uma universal música de élitros, continua, fremente. Sob os nossos pés as pedras do terraço ainda quentes do sol de verão. Lá em cima, na cúpula celeste, as estrelas, aos milhões de milhões, mais luminosas que ainda vi.
São quase onze horas. De súbito uma luz verde traça um risco fosforescente entre o Céu e a Terra. Logo a seguir umfogo cruzado, em todas as direcções, em múltiplas linhas, de incontáveis projécteis luminosos, de todas as cores, ziguezagueiam em correria vertiginosa pelo firmamento.
Estamos os dois em silêncio. Emudecidos. Sufocados por tanta beleza.
Durou apenas uns minutos o espectáculo divino. Começaram os projécteis a rarear um último correu, voou e extinguiu-se.
Não conseguiamos falar De manso, retirámos as mãos da balaustrada. Voltámo-nos um para o outro. Caimos nos braços um do outro. "
Precisamente nessa noite de São Lourenço, definida por Ana Luísa como a mais bela da sua vida, recebeu Paulina um telefonema que a deixou apreensiva, e na ocasião a obrigou, por feminina imtuição, a uma pequena mentira: Está aí em sua casa a Ana Luísa? " No primeiro momento, de espanto, pois não tinha havido qualquer combinação para uma reunião nocturna com Ana, Paulina respondeu Não, não está. Mas quem fala? Uma voz masculina respondeu, O marido", e foi então que, de imediato, antes que ele desligasse o auscultador, Paulina obedecendo a essa intuição teve ainda tempo de acrescentar, Não está mas já esteve. Partiu com algumas pessoas aqui reunidas, para uma visita ao Observatório Astronómico, para assistir à chuva de estrelas desta noite, calculada para as 11h. pouco mais ou menos. Muito bem, obrigado, despediu-se o marido.
- Não consigo compreender - disse-me ela - como semelhante invenção me veio à ideia. Alguma coisa trabalha no meu subconsciente...
Ia para Lhe responder, E acertaste, mas embora Ana Luísa não me tivesse pedido segredo sobre a sua confidência - a da noite mais bela da sua vida, - entendi por bem não Lhe fazer qualquer referência nem comentar as suspeitas sobre o que iria no seu subconsciente.
Aliás, o seu subconsciente não lhe teria dado no caso nenhuma novidade, visto já por mais de uma vez haver mostrado desconfiança a respeito das intenções de Ana Luísa em relação ao irmão.
Perante o telefonema de Alfredo González, Paulina reagiu com essa mentira representativa, não tanto da preparação de uma defesa para a Ana, mas sobretudo de uma defesa para Sebastião.
Decididamente não lhe agradava a hipótese de Ana vir a intrometer-se na vida do irmão. Por várias vezes me havia dito como gostaria que ele tomasse assento, no ponto de vista sentimental. Não porque ela desejasse independentizar-se dele, pois não estava nas suas intenções, pelo menos por então realizar uma nova experiência conjugal ou coisa semelhante, mas porque entendia ser benéfico para ele o encontro de uma mulher, boa companheira em todo sentido.
Ele passara já os cinquenta anos, levara até aí, durante o tempo de professorado, uma vida algo agitada, de ligações pouco duradouras com colegas e alunas. A partir do momento em que passara a dedicar-se exclusivamente à investigação científica, e uma vez que, terminados os estágios mais duradouros no estrangeiro, ten cionava fixar-se em Lisboa, tornando-se investigador do Observatório Astronómico, embora continuasse com a frequência de congressos e seminários, Paulina considerava natural que ele se casasse, pelo menos no sentido etimológico do termo, isto é, arranjasse uma casa, um lar seu, com a respectiva companhia feminina. Mas não seria ela, sua irmã, quem iria tomar a atitude de boa conselheira. Desagradar-lhe-ia muito, isso sim, se ele acabasse por se enredar em qualquer caso que de algum modo pudesse trazer uma perturbação perniciosa à sua vida escolhida, de cientista. E ela pressentia, se Ana Luísa se intrometesse nessa vida, o caso poderia ultrapassar os limites de um adultério mais ou menos vulgar e acaso inconsequente. Ainda não conhecia bem Ana, mas adivinhava: "Acho-a perigosa. É uma mulher fisicamente atraente e parece-me capaz de causar tempestades, por ambiciosa, ansiosa, exibicionista, egocêntrica. Suspeito-a por isso incapaz de uma dedicação desinteressada e propensa a tentar dominar quem por ela se deixar enfeitiçar. Naquele caso com o mecenas deve tê-la movido uma tendência para se servir dos outros, e com o fim de alcançar notoriedade, uma das coisas que ela mais deseja, disso não tenho a menor dúvida. Não sei se anseia a notoriedade pela notoriedade em si mesma, ou se sonha atingir outros objectivos se e quando viesse a tornar-se notável. Em que poderia ou poderá servir-lhe essa ânsia de dar nas vistas se por desventura viesse a arranjar uma complicação com o Sebastião? Ele tem um nome feito, é verdade, mas como sabes, os cientistas entre nós têm pouca cotação. Vale muito mais publicar um livro com meia dúzia de poemas, mais ou menos vãos, ou um romanceco sem pés nem cabeça. Aqui, o que se sabe é que ele tem nome no estrangeiro, mas verdadeiramente não lhe conhecem a obra. A coisa estranha é que me parece - li há pouco tempo algumas cartas que ela escreveu ao Basty, para Princeton (ele deixou-as em cima da mesa) - e nessas cartas, aliás bem escritas, embora de um confessionalismo patético, ela procura alguém que a compreenda e ajude, Dá a entender que não é feliz com o marido, fala da incompreensão familiar, da repressão paterna, de muitas feridas recebidas na infância e na adolescência. E ao mesmo tempo expande-se numa intensa idealização da pessoa do Sebastião. O meu receio é que ela esteja a servir-se dele como um espelho, em que narcisisticamente projecta a sua própria imagem, ao mesmo tempo bem amada e mal amada, como sucede nestes casos.
Perante estas opiniões de Paulina fiquei, posso dizê-lo, um tanto chocada. Ela acabava de usar conceitos, talvez verdadeiros, no entanto quase brutais ou impiedosos, que deixavam transparecer não só receios mas também antipatia. Admito que a leitura das cartas de Ana para Sebastião a tenha levado a convicções mais definidas, quando até aí apenas existiriam no seu espírito vagas desconfianças.
Eu não queria adiantar nada que a ajudasse nessas convicções. Conhecedora do ambiente familiar em que fora nada e criada Ana Luísa, compreendia como muitas das suas atitudes eram influenciadas por esse mesmo meio. A mãe, inteiramente submissa ao marido, buscava ser amada através dos desvelos com que rodeava os filhos, se bem que muitas vezes mosttrasse ausências, e abatimentos inexplicados. O pai não duro nem cruel, mas austero, repressivo e de quando em quando despótico, imbuído daquelas já nossas conhecidas convicções tradicionalistas e classistas, tornadas mais evidentes quando se tratava de questões relativas ao sexo feminino, principalmente quando estavam em jogo as aparências. Assim, eu encontrava algumas atenuantes para as atitudes de Ana, das quais Paulina me falava com tanta dureza.
Mas ela não aceitou os meus propósitos moderadores:
- Sim, sim, ela própria numa das cartas para o Sebastião, como já te disse, refere-se às tais "feridas recebidas na infância e na adolescência": "Aquele período da vida, Que para tantosfica como idade do paraíso, mas que para mim, se é verdade que materialmente não me faltava nada, permaneceu como um tempo sombrio em que não me era permitido fazer muitas coisas que me tornariam felicíssima."
Ouve, Vera Alexandrina, eu não aceito muitas dessas explicações mais ou menos psicanalíticas, que nos vêm com os tais traumas infantis, complexos de Édipo ou de Electra, influências da "Mãe" ou do "Pai, terriveis. O fundamental é o temperamento, o carácter que a pessoa traz, o tal programazinho genético de que é portadora. A Ana, para mim, é uma narcisista típica, e gente desta é perigosa...
Respondi:
- Os psicanalistas reconhecem esse tipo, alguns consideram-no até como uma quarta estrutura da psique, ao lado do inconsciente, do subconsciente e da consciência; mas não são tão radicais assim, entendem possível a transformação desse carácter através de uma terapêutica apropriada.
- Pois eu também não levo muito a sério as terapias psicanalíticas. São tantos os malogros e as recidivas... O grande drama de um carácter como aquele que eu suponho ser o da Ana Luísa Oh! agora é a pintora Ana Gallis! - é passarem a vida, não bem a ver-se ao espelho, mas à procura de espelhos que, servilmente, lhe devolvam a sua bela imagem.
- O que aí vai, Paulina! A Ana é uma rapariga inteligente e sensível. Ansiosa, concordo. O meio em que nasceu, o país em que estamos não favorece muito o desabrochar da cultura feminina. Tu, que vens de um meio da média burguesia, desejoso de se valorizar, de "subir na vida", como os seus costumam dizer, onde têm de conseguir tudo à custa de trabalho e de estudo, de economia e morigeração, tu, eu, repara, somos mulheres desse meio, conquistámos a nossa independência com muito estudo e equilíbrio na satisfação dos nossos desejos e necessidades. Somos mulheres modernas, um tanto livre-pensadoras, como nos consideram os puritanos, despreconceituosas relativamente a alguns tabus e reservas da moral consuetudinária, lemos literatura de vanguarda, pensamos em política, desprezamos o excessivo coquetismo, o luxo... Mas, entendo, devemos esforçar-nos por compreender a luta daquelas - e são bem raras - que nascidas nesses outros meios, como é o caso da Ana Luísa, possuidoras de algum espírito crítico, bem incomum entre toda essa gente, especialmente nas suas fúteis mulheres, olha o caso da irmã, a Milena, afundadíssima no contentamento da riqueza e do fulgor social, sem jamais lhe passar pela cabeça os problemas que afectam o País e o mundo. Pois, à primeira vista dir-se-ia que a Ana Luísa vive exactamente a mesma vida, talvez seja até mais mundana. No entanto há alguns rumores que lhe vão chegando, dos problemas universais. E digo rumores porque ao seu mundo só vagos rumores dessas coisas podem chegar, principalmente às suas mulheres. Mas o espírito dela está desperto ou procura despertar. Ela já compreendeu que há outros mundos para além do dos seus familiares e amigos. Acho até comovedor como ela espreita, desorientada, portas que possa abrir para poder entrar, pé ante pé. É o caso desse desejo dela de conhecer pessoas do nosso meio, da arte, da ciência, do pensamento, de passar a frequentar conferências e exposições, de estudar, de se informar. Sim, ela está talvez desorientada, daí a sua ansiedade, o seu frenesim de actuar, de se agitar, de fazer qualquer coisa.
Não quis mencionar, ao referir a sua desorientação, aquela estranha teoria da distribuição erótica, da sua beleza. Se bem que não puritana nem convencional, Paulina, por sua noção de autenticidade e equilíbrio nas relações entre homens e mulheres, nunca poderia aceitar senão como libertinagem moral, a dita teoria.
As suspeitas de Paulina de que o irmão passara a receber frequentemente uma mulher nos seus aposentos, sempre que se encontrava em Lisboa, foram confirmadas. Para além das clássicas provas físicas de uma presença albeia (concretamente de uma presença feminina), como, por exemplo, o perfume, que reconheceu como o mesmo usado por Ana Luísa, havia a prova indubitável de um pequeno caderno de esbocetos aí esquecido, que vira já nas mãos dela. Depois, dada a contiguidade das duas casas, fácil lhe foi observar discretamente de uma janela as movimentações da própria Ana, em pessoa real e verdadeira, algumas vezes saindo de um táxi, outras de um pequeno Austin cinzento, agora conduzido por ela, visto ter prescindido do chauffeur e do solene BMW; como Lhe dissera, para as pequenas voltas não se justifica que para ir a uma loja ou a casa de uma amiga me desloque sempre naquele carrão de luxo e com chauffeur, isso está a passar de moda, chego a sentir pudor de exibir-me assim. Principalmente agora, que vai aumentando o número de mulheres a conduzir. Passei a ter o meu próprio carro, conduzido por mim. Dá-nos tanta independência... "
- Aqui tens, o meu pressentimento confirmou-se: a Ana Luísa é agora amante do meu irmão! - Confessou-me Paulina, daí a umas semanas, com uma expressão entre quase dramática e também de resignação perante o irremediável - Só espero, saibam ao menos guardar as aparências. Receio muito a reacção da família dela, se vier a saber. Se bem que, no caso do Stichini, caído no domínio público do boato lisboeta, como sabes, não tivesse havido notícia de qualquer reacção da parte da família, nem sequer do marido...
- Nos meios da alta burguesia essas coisas geralmente ficam em família", é como com os políticos, combatem que nem galos nos palcos parlamentares mas depois, acabada a refrega, vão todos amigalhaços para almoçaradas nos mesmos restaurantes. Certas coisas são toleradas inter pares", olha o caso do marido da Leonor Teles, quando lhe foram com a história de que a mulher lhe punha os cornos", teria respondido, Pois sim, mas são de ouro", visto o parceiro do adultério ser o próprio rei. Com o banqueiro mecenas não houve dramas, parece que até o próprio marido não tugiu nem mugiu. Aliás, não havia provas provadas. O Bailado da Magnólia, em que Ana figurou como a flor escolhida (e colhida? ) pelo banqueiro-poeta", não constituía de modo nenhum uma prova, tanto mais que o Stichini tem colhido tantas flores"... O que a família não tolera são as suas actividades de pintora, a frequência de artistas e intelectuais.
- Com o meu irmão - continuou Paulina - é que o caso pode tornar-se sério, se vier a descobrir-se. E receio não queira ela, que anda num alvoroço, começar a exibir a nova conquista. Talvez até gostasse de que em Lisboa se propalasse: Sabem quem é o amante de Ana Gallis? O Sebastião Mondeiro, o célebre astrofísico.
Não me contive e para atenuar um pouco os terrores de Paulina gracejei
- O descobridor de buracos negros...
Paulina não gostou do meu gracejo:
- Não leves o caso para brincadeira. Pode vir a ser uma coisa séria. Já te disse, tenho muito medo das pessoas ansiosas e narcisistas.
Retomei a seriedade, sugeri-Lhe:
- E se tivesses uma conversa com o teu irmão?
- Eu não sou tutora do Sebastião. Ele não tem o dever nem a necessidade de me dar satisfações por receber uma mulher nos seus aposentos. E, se não fosse a Ana, outra seria, mais tarde ou mais cedo. As nossas casas são contíguas mas a nossa independência recíproca mantem-se. Para já, conservar-me-ei à distância e numa posição discreta, tanto em relação a ele como a ela que, de resto, ultimamente nem tem vindo às lições (a família deve supor que vem), talvez entenda poder prescindir de mais aprendizados. E, a propósito: ela continua a sonhar com uma nova exposição, mas desta vez individual, toda com obra sua. Obra que ainda nem sequer está feita.
Continuou, entregue aos seus pensamentos:
- Estou a lembrar-me daquele interesse dela em ajudar a encontrar a melhor posição, no escritório do Sebastião, para a colocação da mesa de castanho. Ah! Agora vejo, nessa alturajá ela andaria interessada nele...
Não respondi mas intimamente concordava, os meus pensamentos iam ao encontro dos de Paulina. Já disse das minhas adivinhações acerca do projecto secreto de Ana Luísa e recordo-me também da sua curiosidade, no escritório do Sebastião, em querer saber se a porta do quarto dele, a tal, oculta por um reposteiro, tinha comunicação independente com a entrada privada do seu quarto.
Sempre que me encontrava em Roma, prosseguindo as minhas pesquisas, acontecia vários compatriotas passarem pela minha casa, ou antes, pelo pequeno estúdio que eu alugara à beira do Tibre, perto do antigo e castiço bairro do Transtevere. Parece- me ser este um hábito muito dos portugueses, o de procurarem compatriotas no estrangeiro. Não sei se com os nacionais de outros países acontece o mesmo, é natural que sim. Isso significa talvez uma necessidade de encontrar um semelhante num meio diferente, ou uma necessidade de descansar do uso, um tanto fatigante, de uma língua estrangeira, retornando à facilidade da língua materna. O facto é que durante as minhas estadas em Roma me via por assim dizer obrigada a matar-lhes as saudades do bacalhau com batatas e do cozido à portuguesa. Por isso levava sempre daqui os géneros, o bacalhau e os enchidos, e depois era vê-los entrarem no sentimentalismo, e esses ágapes patrióticos acabavam em grandes corais onde se cantava infalívelmente, de copo na mão e olhos molhados, uma rapsódia composta de Ó Malhão, Malhão", de Os olhos da Marianita, A saia da Carolina tem um lagarto pintado, Ó Rosa arredonda a saia, Indo eu, indo eu caminho de Viseu" e da Minha amora madurinha".
Não conhecia a maior parte dos que apareciam mas levavam bilhetinhos de intermediários e lá os tinha. De entre todo o tipo de compatriotas que podiam surgir, jamais esperaria, durante uma dessas minhas estadas, ouvir a campainha e, ao assomar ao patamar da larga e antiga escada do meu quinto andar, reconhecer, ainda que - incrédula, estupefacta - a silhueta de Ana Luísa subindo os degraus apressadamente.
Não me deu tempo a exprimir uma palavra de espanto e precipitou-se, é o termo, precipitou-se desvairadamente pela casa dentro, atirou-se num choro desabalado sobre o primeiro assento que viu, o pequeno divã do igualmente pequeno vestíbulo de entrada.
Fechada a porta corri para ela, debrucei-me, segurei-a pelos pulsos procurando erguê-la.
- Ana, Ana, que significa isto? Como é possível, tu, aqui... sozinha?
Rapidamente, passaram-me em tumulto várias hipóteses, desde a necessidade do recurso a um cirurgião altamente cotado para uma intervenção de urgência por alguma doença súbita de familiar, um dos filhos, por exemplo, ou a comparência extraordinária do marido em qualquer reunião de carácter internacional, até àquela que afinal se me afigurava como a mais provável, a fuga de Ana Luísa à família e em companhia de quem? só poderia ser na companhia de Sebastião Mondeiro.
Limpando-lhe as lágrimas, batendo-lhe ao de leve com um lenço molhado em água fria na testa, na tentativa de libertá-la do choro espasmódico, consegui sentá-la amparando-a pelos ombros e pela cintura, e perguntei-lhe:
- Fugiste, Ana? Tu fugiste?
Desprendeu-se dos meus braços, voltou a atirar-se sobre o divã em soluços desesperados e lá conseguiu articular numa voz rouca, Quem fugiu foi ele, ele fugiu de mim!
Desisti de forçá-la e, sentando-me junto dela perguntei-lhe, Mas quem, Ana, quem é que te fugiu?
- Quem é que te fugiu Ana? - insisti - Que significa tudo isto, tu aqui sem mais nem menos
Endireitou-se, abriu os olhos desvairados e quase desabridamente respondeu
- Mas tu não sabes? Não adivinhaste ainda?
Saber, não sabia ao certo. Adivinhar sim, quanto à pessoa do fu gitivo, mas não quanto aos motivos da fuga:
- O Sebastião?
De novo encostada à parede, os olhos fechados, mas agora de expressão já suavizada:
- O Sebastião, sim.
- Ana, vê se recobras um pouco de espírito. Vamos para a saleta. Ficas ali sentada num maple, eu vou preparar um chá.
Depois, enquanto tomava a tisana a goles pequenos ia começar a contar a sua história. No entanto não me contive e interrompi-a:
- Mas como explicar a tua presença aqui, no estrangeiro, sozinha, ou antes, pelo que ouvi, na companhia de Sebastião (admitia ter havido da parte dela qualquer resolução definitiva, como a de ter abandonado a casa conjugal)?
E ela:
- Antes de mais, diz-me, alguém da minha família telefonou a perguntar por mim, aqui, em tua casa?
- Não.
- Se telefonarem, peço-te, diz que eu estou cá instalada desde anteontem, mas não fales no Sebastião, por amor de Deus! E que devo regressar já depois de amanhã a Lisboa, ou no dia seguinte, o mais tardar.
- Vê se me colocas mal perante a tua família... Afigura-se-me, metes-te numa aventura perigosa em vários sentidos.
- Já não quero saber de perigos. O grande perigo agora são as hesitações do Sebastião, daí a sua fuga.
- Explica tudo, então.
- Bem. Oficialmente eu vim para Roma para assistir a um cursilho básico de desenho anatómico para artistas plásticos, dado por um famoso mestre italiano. Oficialmente, se pude aproveitar essa oportunidade foi por tu te encontrares aqui, poderes dar-me hospedagem e acolhimento em tua casa. Portanto, não te esqueças, se telefonarem... Mas, na realidade, vim com o Sebastião.
- Vieste com ele oufugiste com ele?
Limpando ainda algumas lágrimas continuou:
- Fugir com ele! Como seria bom! Não, apenas vim com ele, à sombra dessa mentira do cursilho e, tornando-se quase patética:
- Ó Vera, se soubesses como foi exaltante este sonho de poder viver estes tão escassos dias com ele, só com ele, longe de todos... Vivermos uma espécie de lua-de-mel! Tu, que já tiveste duas ou três ligações, deves compreender o que são estes dias em que se vive como duas borboletas voando, coladas, por sobre as mesmas flores, dias de uma plenitude total em que só o nosso ser existe e mais nada e mais ninguém. No egotismo e egoísmo totais, assim se vive o máximo de um estado de paixão... que eu não conhecia. Como compreendo a felicidade da Marguerite Duras, quando ela se encontrava a sós com o amante chinês, no apartamento dele...
- Deixa que te pergunte: Que preferias, poderes viver essa paixão - ou esse amor - às claras, ou mantê-lo antes nessa situação de clandestinidade?
Ana olhou-me um tanto desolada e algo perplexa:
- Esse é o meu grande problema. Neste momento desenrola-se um enorme conflito no meu espírito. O Sebastião, para mim, é como um ídolo para adorar. Sou feliz prestando-Lhe culto e dele só pretendo que me deixe adorá-lo. Tudo mais me é agora indiferente. A família, até a Arte. Gostaria de viver para sempre assim, nesta exaltação e... sim, neste secretismo egoísta. Mas sei, isso não é possível, nem pela minha situação. nem pela dele. A crisálida em que vivemos vai romper-se e de lá sairão duas borboletas que talvez venham a separar-se para sempre. Ele quer fugir-me, ele tem medo, ele talvez não goste tanto de mim como eu gosto dele. Disse-me que tinha de comparecer imediatamente em Princeton por causa da deflagração de uma supernova, e tomou hoje mesmo de manhã o avião para os Estados Unidos! Mas, pressinto, o que ele quis foi libertar-se da minha idolatria, talvez da minha simples presença, talvez fosse também assaltado pelo medo do escândalo, ou tivesse receio de não ser capaz de se sentir à altura de suportar algum contratempo perigoso resultante da nossa fuga. Preciso tanto de esclarecer tudo isto... No entanto, se ele gostasse verdadeiramente de mim arrostaria todos os perigos, não achas?
- Não sei - respondi. - Há pessoas muito autodominadas que acabam por conseguir sobrepor uma conduta definida e voluntária aos impulsos do espírito ou dos sentidos. Parece-me que o Sebastião é homem para isso. O seu próprio celibato, talvez seja a prova de que para ele o caminho de cientista é como um sacerdócio, colocado acima de tudo.
- Muitos cientistas são casados. Não é forçoso ser um monge para se dedicar à ciência. Se ele chegou, ou melhor, ultrapassou os cinquenta anos sem uma ligação duradoura, talvez seja porque no fundo não tem vocação para o casamento. Talvez nem para o amor...
- Oh, lá para o amor, pelo menos para o amor com a minúsculo, tem, e em grande escala. Conheço-lhe a crónica. Acontece é que arranjou sempre maneira de nunca se envolver em situações complicadas, por exemplo, com mulheres casadas. Tu deves representar para ele um primeiro caso difícil, tu és a mulher casada", tu condu-lo ao adultério. Além de que, se bem que ele te aprecie como fêmea - desculpa a crueza da expressão, mas sabes bem como isso é próprio dos homens - e sei que ele te aprecia desse modo, desconheço no entanto em que conta tem ele outros aspectos da tua personalidade. Tu pertences àquela categoria de mulheres, com um físico esplendoroso, o que prejudica outras qualidades que elas possam ter; os homens são atraídos por esse atributo, pelo lado sensual, mas receiam instintivamente esse tipo de mulheres. Por isso muitos preferem, para o casamento, alguma desengraçada ou pãozinho sem sal, contanto possuam as boas qualidades morais que suspeitam não poderem existir nas outras.
Não estou a tentar provocar-te nenhuma desilusão, mas repara, um homem que sai para uma lua-de-mel" com a amante - saída em que ela se arrisca completamente - pois ninguém sabe até que ponto o marido e a família acreditarão na tal história do cursilho"
- e, ao fim de dois dias, lhefoge para longe, sim, de facto disseste bem, a partida dele deve ter sido uma autêntica fuga de ti, ou, pelo menos, dos perigos que tu representas. Se a tua família e o teu marido vierem a descobrir a verdade, agora ou na continuação, em Lisboa, só terás duas ou três soluções: deixares o teu marido e ires viver com o Sebastião, se ele o quiser; retornares para casa dos teus pais com os teus filhos, se eles te quiserem; procurares um emprego e, depois, tomares um rumo, com o Sebastião ou sem ele...
Ana Luísa apoiou a cabeça numa das mãos e deixou-se ficar assim, sentada à mesa, em frente da chávena já vazia, durante longos minutos. Eu permaneci também ali durante algum tempo, em silêncio, como ela. Depois levantei-me, comecei a juntar as chávenas e os pratinhos. Ela fez menção de me ajudar, não aceitei.
Ergueu-se devagar, dirigiu-se para o vestíbulo onde tinha deixado a mala e o casaco. Disse: Vou para o hotel. Se houver bilhete regressarei já depois de amanhã a Lisboa. Por favor, não te esqueças, se alguém telefonar, que eu estou contigo: se for de dia, que saí para o cursilho, se de noite que já estou a descansar. "
- E que fazes amanhã sozinha, posso perguntar-te? Eu, de dia não te posso acompanhar; mas talvez te fizesse bem distraíres-te um pouco. Aproveita para fazer umas compras, sabes tão bem como eu as coisas belas que há nesta Roma, para nós, mulheres. Não te digo vai ver museus, sei que neste momento não te sentirás com disposição. Olha, se quiseres vir um pouco à noite, tomas um táxi, tenho cá uma pequena reunião de convívio, talvez pudesse também servir-te de distracção, gente de nações e profissões variadas, um casal de suecos especializado em datação pelo carbono 14, um biologista, contador de histórias fantásticas, anda louco por encontrar peixes fósseis e costuma dizer: "Se encontrasse um coelacanthus seria o homem mais feliz do mundo! mais um jovem que vai juntar-se ao "Che Guevara, e um inglês arqueólogo, um belo homem.
- Os ingleses, para mim, são os homens mais interessantes interrompeu-me Ana Luísa, que me pareceu, começara a animar-se e a interessar-se pela minha sugestão - os ingleses e os indianos com feições de caucasianos. Em matéria de homens detesto são os tipos play- boy ou latin lover.
- Por latin lover: conheci uma francesa que achava os portu gueses efeminados, vê só isto! Eles, tão convencidos de serem uns machões! Quando lhe perguntei porquê, explicou-me: "Uma vez veio aqui, a Paris, um grupo de estudantes de Coimbra para uma actuação coral. Depois do espectáculo, houve convívios, divertimentos, flirts. Mas muitas de nós, francesas, achámos ridículos os seus maneirismos, certo falso à- vontade e exibicionismo infantil. "Des efféminés,
A propósito destas atitudes "efeminadas, ou antes, parece-me, tímidas mas disfarçadas de ousadia e galantaria, de uma maneira geral na vida social oscilam os nossos compatriotas entre uma arrogância sobranceira e manhãzinhas infantis ou de lisonja e má fé; as nossas relações de convívio, com amizades frustres e difíceis, raramente são francas, naturais, simpáticas, espontâneas e duradouras. Somos reservados, desconfiados, timoratos, precavidos. Basta observar como até para o gesto simples de uma vulgar saudação, entre pessoas conhecidas ou do mesmo meio, procuram os que se cruzam em algum lugar esquivar-se, de olhos enviesados e fugidios. Uns tímidos, uns gauches, como também dizia a minha amiga francesa, inconscientemente mergulhados num infeliz complexo de inferioridade-superioridade, eis o que permanecemos do berço à tumba, ainda que tenhamos muito viajado ou muito vivido lá fora".
Respondeu Ana Luísa:
- E talvez tivesse alguma razão, essa francesa. No fundo deve ser tudo provincianismo. Quem sabe se o Sebastião...
- Põe de parte semelhante hipótese. No caso do Sebastião as coisas são diferentes. Primeiro, já não é nenhum rapaz. Depois tem o sentido das responsabilidades, talvez não te conheça suficientemente do ponto de vista psicológico, talvez, admitamos, se bem que te deseje, tu não lhe interesses sob outros aspectos. Podemos agradar a muitos mas não a todos. Vens amanhã à noite?
Ficou de vir.
Telefonei-lhe ainda da parte da manhã. Sabia que Ana não era pessoa para comportamentos trágicos, por exemplo, pensar num suicídio. Pelo contrário, se alguma coisa eu admirava nela era, como talvez já tenho dito, a sua extraordinária capacidade de sobrevivência às maiores desilusões e decepções, a desgostos e malogros de toda espécie que a vida lhe pudesse trazer. Ainda que uma crise a fizesse cair passageiramente em momentos de dor e abatimento, raro entrava em desespero ou perdia o controle da situação. Entretanto julguei prudente informar-me do seu estado. Que já tinha al moçado satisfatoriamente e saíra para ver lojas e montras, comprara coisas lindíssimas, bijouterie, e trapos, montes de trapos! Se ultra passassem os 21 kg permitidos na bagagem do avião, deixaria o restante comigo, quando eu regressasse a Portugal lho levaria. E que ia passar a tarde a tratar da cara e do cabelo para vir à reunião em minha casa, era uma óptima ideia, iria fazer-lhe muito bem. "
Não transcreverei aqui todas as conversas havidas durante o pequeno convívio internacional" no meu apartamento. Eu e os meus colegas arqueólogos e também de ciências interdisciplinares, nas pesquisas da Roma Sparita, depois das horas de trabalho juntávamo-nos frequentemente em trattorias e para espectáculos, ou então reuníamo-nos ora em casa de um, ora de outro, e cada um experimentava as suas iguarias nacionais, canções e danças tradicionais.
Eram reuniões sem qualquer aparato, de camaradagem, destinadas apenas a descansarmos do trabalho e a distrairmo-nos contando episódios, anedotas, curiosidades, de mistura com alguns comentários sobre política mundial.
Desse convívio apenas interessam para este romance a presença e as atitudes de Ana Luísa. E direi desde já, a presença dela veio destoar, de maneira quase chocante, dos outros convivas. É certo, as estrangeiras, europeias ou americanas, costumam distinguir, quanto ao traje, entre horas de trabalho e horas de distracção, à noite, alin dando-se e penteando-se melhor, por muito discreta e modestamente o façam. Excepção feita para as inglesas, sempre extravagantes. Quanto a Ana Luísa, não que viesse extravagante, só que me pareceu demasiado elegante para o meu modesto studio. Estreara - era evidente - um dos maravilhosos vestidos italianos de malha de seda, e um dos não menos maravilhosos sapatos, também italianos, com uma fivela que era quase uma jóia. O cabelo, a que emprestara tonalidades ruivas sobre o natural castanho-avelã, esplendia e, apesar das lágrimas da véspera, os olhos de mel cintilavam.
Numa primeira impressão, a sua presença causou algum constrangimento, até entre os homens. As mulheres presentes devem ter-se sentido, não digo invejosas, não eram pessoas para isso, mas destoantes, elas, daqueles requintes, e os homens, suponho, constrangidos por não serem ali costumados galanteios eflirts e, no entanto, uma tal presença feminina, inflacionariamente feminina e bela", como mais tarde me veio a dizer um deles, quase os obrigou a mudar de atitudes, prestando a devida homenagem a tão galante mulher.
Ana Luísa correspondia afinal, enquanto representante do sexo feminino, àqueles portugueses maneiristas referidos pela minha amiga francesa: se bem que viajada, continuava a apresentar-se como protótipo das mulheres da sociedade a que pertencia.
Apesar de toda essa ostensividade, tornada mais evidente devido à sua beleza natural, percebi, e os outros convivas devem igualmente ter-se apercebido de como Ana Luísa se sentia também um tanto constrangida e, embora falasse o francês tão bem ou melhor que a própria língua, e o inglês aceitavelmente, não ousava tomar parte na conversação, limitando- se a um sorriso permanente, a alguns yesses e ouis, e a várias interjeições. Só quando, por gentileza, um dos meus convidados começou a dirigir-se-lhe directamente ela se decidiu a responder-lhe com pequenas frases. Finalmente, chegada a hora de eu servir uma breve ceia, Ana, para me ajudar, pôs-se a circular, passando as xícaras do caldo, os croquettes, as sandes, os docitos e, finalmente, quando se abriu uma garrafa de porto, já estava desinibida e dirigia amabilidades a todos. Foi nessa altura que eu reparei como o meu amigo inglês se deteve num pequeno diálogo com ela, na sua língua e a meia-voz, referindo-se muito ao oporto e, de permeio, consegui distinguir um elogio à sua beleza. Ela, enquanto lhe estendia a bandeja com a garrafa e os cálices, começou por levantar as pálpebras devagar, para depois as ir subindo até deixar surgir os grandes, luminosos olhos, de pestanas bem alongadas e arqueadas, fitá-los nos dele por uns segundos, mas uns segundos em que eu li: A minha beleza é distribuível. Pode ser para ti também.
De facto, quando os meus convidados já tinham saído todos, o inglês ofereceu-se para levá-la no seu carro ao hotel onde ela estava, e eu fiquei absolutamente convencida de que nessa noite Ana Luísa não teria tido muita capacidade nem oportunidade para chorar a fuga de Sebastião.
Quando regressei a Lisboa, passados dois meses, o romance de Ana- Sebastião (ou talvez possa chamar-Lhe o romance de Ana-Sebastião- Paulina... ), contra todas as previsões tomara um desenvolvimento acelerado. Depois da sua partida de Roma nunca mais me escreveu, o que não me admirava, já sabia como ela era irregular nas manifestações de convivência. Mas o silêncio de Paulina durante este mesmo tempo causou- me alguma apreensão, não respondera a duas cartas minhas. Só depois de uma terceira ela me enviou estas breves linhas: Desculpa o meu silêncio. Quando regressares te porei ao corrente de tudo.
E o tudo era espantoso: Ana Luísa vivia agora, "de cama e pu carinho", com Sebastião Mondeiro Deixara o marido, os filhos, trouxera as suas coisas e instalara-se no apartamento de Sebastião.
Como é que o irmão de Paulina, tão reticente quanto à ligação com Ana, dois meses antes, aceitava agora uma situação de facto que alterava toda a sua vida, assim como a de Ana e a de Paulina e, mais, uma situação rodeada por todos os lados de tantos problemas e que se tornara um dos grandes escândalos da sociedade lisboeta? Estava em jogo a condição moral (e económica) de uma mulher casada, filha e esposa de homens "de posição, com filhos, para mais; e também a dele, cientista até aí respeitado.
Paulina, ainda perturbada, digamos, indignada e irritada, desabafou
- Perante o escândalo, ele viu-se na obrigação de ficar com ela! Não calculas as cenas e os melodramas que aconteceram. Quando a Ana regressou de Roma, o Sebastião também já tinha voltado de Princeton. Confessou-me: "Remorsos de a ter deixado sozinha numa altura daquelas, com a minha fuga covarde. E uma recordação inapagável do ímpeto com que ela se me entrega, de corpo e alma! " "De alma também? perguntei-lhe. "De alma também. A sua é uma alma carenciada, precisa muito de ser com preendida e aceite, procura um renascimento total na vida. "
Não digo que o Sebastião mitificasse as coisas. Como talvez saibas, nunca a paixão de uma mulher comoveu um homem, eles só correspondem se estão eles próprios interessados nessa mulher. Seja como for, deve haver nela alguma coisa que o atrai, embora me pareça impossível não ver como ela é possessiva, ansiosa e fútil em última análise. Foi o corpo dela, a juventude dela, o que o atraiu. Até aqui ele tem conhecido só modestas e simples raparigas, apesar das suas atitudes independentes. Eis que se lhe depara
- se Lhe mete à cara, é o termo - esta mulher requintada, ousada, impetuosa, ambiciosa, com aspirações artísticas e queixosa da incompreensão da família, e ainda por cima, dona daquela beleza física! Aqui tens um cinquentão enleado, enfeitiçado, e talvez torturado entre sentimentos contraditórios de atracção e de repulsa, e com todos os seus escrúpulos morais, sentindo-se culpado e responsável pela queda dela!
Perguntei:
- Foi ela a abandonar o marido ou ele a repudiá-la?
- Antes fosse ela a abandonar o marido. Teria sido uma atitude de coragem e autenticidade. Mas não. É que se deu o escândalo: desconfiados com a precipitada viagem dela para a Itália, a pretexto do tal cursilho, o marido e a família puseram-se a espiar-lhe os passos. Chegaram a contratar um detective particular que seguia o Austin dela para todos os lados. Um dia o marido veio esperá-la aqui, quando ela saía do apartamento do Basty! Porque eles continuaram a encontrar-se depois de ambos terem regressado do estrangeiro e feito uma apaixonada reconciliação. O marido, acto contínuo, meteu-a no carro dele e foi entregá-la aos pais. O pai, por sua vez, depois de palavras indignadas, concedeu-lhe um tempo para ficar mas somente até ela arranjar um sítio para onde fosse viver; que lhe daria uma pequena mesada para não morrer de fome e atendendo às súplicas da mãe, sua esposa, mas não a queria mais lá em casa.
Foi então que ela veio procurar-me e me "suplicou" a aceitasse como uma irmã, como a companheira do Sebastião, que iria passar a ser e tinha a certeza, iriam viver muito felizes, ele era o seu ideal sob todos os aspectos (frisou), ele seria para ela também um protector um guia, "a estrela da sua vida"...
Ana trouxe os seus pertences, apenas os objectos de uso pessoal; quanto ao resto, deixou tudo, devolveu todas as jóias, nada quis desse passado, a não ser os filhos, mas eles tiveram de ficar com os pais dela, não lhos deixaram trazer. Quanto à sua situação legal continuaria a ser de mulher casada". Não lhe era possível o divórcio, casara pela Igreja Católica e a Concordata não o permitia. Um dia pensaria em pedir a separação jurídica de pessoas e bens, ou, então, talvez a pedisse o marido.
O apartamento de Sebastião, contíguo ao da irmã, permitia-lhes uma quase independência. Além do quarto e do escritório, havia ainda uma casa de banho e uma kitchenette onde ele costumava fazer um café quando ficava a trabalhar até altas horas.
À medida que Ana Luísa ia aprofundando a sua instalação na vida de Mondeiro, começou a dar mostras de desejar estabelecer um renovado círculo de relações sociais - adoro receber, costumava dizer - e tornava-se evidente, o pequeno apartamento não dispunha de nenhuma sala adequada para o efeito. Tanto em solteira, como depois de casada, estava costumada a viver em vastas e apalaçadas moradias, com muitas câmaras e antecâmaras, saletas e, sempre, um salão; conforme o número e a intimidade das visitas, se recebia na salinha de estar, no boudoir, na sala de visitas e, como vimos, para as grandes solenidades, no salão.
Ana Luísa começou a sonhar com o atelier-studio de Paulina, como sala de receber", quando lhe aprouvesse. Embora isso lhe desagradasse, Paulina, porque desejava muito a tranquilidade e a estabilidade para Sebastião, não fez oposição e acabou por lhe permitir a utilização desse compartimento.
E dizia Ana:
- Uma nova fase se abriu na minha vida. Agora, sim, vou poder livremente continuar a estudar e a pintar, o Basty acha lindamente, só me diz, Contanto que respeites por tua vez a minha liberdade e me dês tranquilidade para os meus trabalhos", e como não, se uma das coisas que nele me atraiu foi precisamente a sua qualidade de estudioso!
- Ele não te pode dar as toilettes e certos requintes a que estavas habituada... - observei-lhe.
- Precisa uma pintora de mandar vir vestidos de Paris? Ou de usar perfumes e jóias que custam fortunas? Com o Sebastião estou a aprender a ser autêntica, a encontrar a minha personalidade, a reflectir. Só não posso dispensar é o convívio social. Mas agora será com pessoas de outro género, acabaram-se as mulheres dos banqueiros e dos ministros, os dandies pegajosos e os play-boys que só sabem dançar. Procurarei reunir outros cientistas, artistas, escritores, gente da inteligência.
- Mas não te esqueças, o Sebastião não é um artista nem um literato. A Ciência não é mundana e só dificilmente é política. Ele precisa de tranquilidade e gosta da privacidade.
- Claro. No entanto ele não é um monge, felizmente desistiu desse intento. E gosta de viajar. Sabes que já projectámos várias viagens turísticas, para além dos congressos obrigatórios? A propósito de congressos: quando ele tiver de ir ao Havai, numa missão de astrónomos que estudam a possibilidade de utilizar o monte Mauna Kea para a construção de um telescópio mais potente que o do monte Palomar. Mas só estará pronto lá para 1968. Ir ao Havai... Ainda agora estamos em 1956.
Aqui não me contive, fiz uma alusão um tanto irónica:
- Poderás então vestir-te de havaiana e dançar o huln-hula. Tambémjá te vestiste de magnólia...
Ela reagiu e teve uma expressão de amuo:
- Viste alguma coisa de reprovável nisso?
- Nisso, exactamente, não - respondi.
Ela ficou em silêncio durante um ou dois minutos e concluiu:
- Foi principalmente o meu quadro da Magnólia Etérea que levou o Ulricho Stichini a patrocinar a publicação de Os Pequenos Paraísos. Essa imagem da magnólia, disse-me ele, impressionou-o tanto que além do álbum quis organizar o bailado. Ele é um artista...
Não insisti no assunto. Um assunto atravessado, tanto na minha cabeça como na de Paulina.
A não ser quanto à separação dos filhos, o que não tenho dúvida, a fazia sofrer, Ana entrava numa nova vida, não quero falar de felicidade, mas visívelmente numa espécie de aturdimento feliz e extrovertido, só de quando em quando interrompido por breves momentos, combatidos e disfarçados, de preocupação melancólica.
Pelo menos no âmbito das relações íntimas iniciaram os dois amantes um período de euforia. Segundo Paulina eles comportavam-se como dois seres fisicamente possessos um do outro. Dizia ela que chegava a ter de bater previamente a todas as portas, até às que pertenciam às salas de uso comum, pois já Lhe acontecera en contrá-los em momentos ruidosos e espectaculares de possessão carnal, em sítios inesperados, como por exemplo o chão do corredor-marquise ou o vestíbulo da porta principal. Involuntariamente ficara a conhecer a mulher entusiástica que ela era no acto genesíaco. Juntando isto à sua beleza e juventude, compreendia como Sebastião estaria preso, pelo menos ao corpo dela.
A satisfação erótica era complementada por aquela, de outra natureza, que lhe proporcionava a partilha da vida com um homem de nomeada. Tenho orgulho no Sebastião", Sou agora a companheira de um cientista célebre", dizia-me a mim e a Paulina. Havia apenas um pequeno senão" - acrescentava - é que eu estava habituada a um intenso convívio social e agora, perdida a maioria das minhas anteriores relações, que aliás não me deixaram saudades, preciso de conquistar um novo grupo de amigos, mas de outra esfera, gente culta, das artes e das letras. A Paulina, de longe em longe junta aqui umas pessoas, mas quero alargar o leque, es colher eu também os meus novos amigos, oferecer, eu, as minhas próprias recepções.
E assim, depois de instalada na vida de Sebastião Mondeiro, à medida que ia sendo reconhecida como companheira do cientista, Ana Luísa acabou por retomar os hábitos mundanos. Não relativamente à frequência de certos chás" e festas elegantes, de dancings e boites - isso seria impensável na companhia de Sebastiãomas chamando à sua casa artistas e literatos. Sentia curiosidade e prazer nesses novos convívios, e além disso esse tipo de reuniões proporcionava-lhe a exaltante oportunidade de se tornar alvo de atenções e elogios. Mais: de exercitar e apurar a qualidade, por muitos reconhecida, de boa observadora dos caracteres alheios, de perspicácia na descoberta de aspirações e motivações secretas e disfarçadas.
Esses seus poderes bruxos, em meu entender exerciam-se apenas em dois campos únicos: o do erotismo e o das ambições de prestígio, deste e desta, daquele e daquela. Ana adivinhava amores nascentes, amores moribundos, ciúmes e artimanhas, tanto nos espíritos femininos como nos masculinos. Suspeitava igualmente propósitos, planos, estratégias e tácticas para o conseguimento de objectivos secretos. Tal limitação dos seus campos de observação devia derivar da sua pessoal absorção em âmbitos idênticos, o do erotismo e o da ambição de prestígio.
Perante a resignação (primeiro, mais tarde o aborrecimento) de Sebastião, Ana Luísa inicia assim e vai ampliando as reuniões mundano-culturais com literatos e artistas. Aí, o exercício das suas virtudes de intuitiva psicóloga tornara-se-lhe muito mais grato que a informação cultural auferida na conversação dos convidados. O largo conhecimento que possuía sóbre jogos de salão, servia-lhe às mil maravilhas para a prática dos seus dons. Entre esses, o seu preferido era o jogo do carácter: nomeava-se um director do jogo", oferecia-se a cada convidado uma folha de papel, o qual convidado devia escrever nela a primeira resposta que lhe ocorresse às nove perguntas formuladas pelo director: 1. ) escrever o nome da personagem histórica do passado que gostaria de ter sido; 2. ) o século em que gostaria de ter vivido; 3. ) que faria se ganhasse uma grande soma de dinheiro na Lotaria ou no Totobola; 4. ) qual o defeito que mais detesta nas pessoas; 5. ) qual a qualidade mais apreciada nas pessoas; etc. etc. As respostas dos convidados permaneciam secretas e a solução do jogo consistia em atribuir o maior número de respostas ao verdadeiro autor. O director do jogo ficava encarregado de adivinhar a origem de cada resposta, mas todos os assistentes podiam contribuir para resolver o enigma. Ana Luísa era então quase sempre a grande adivinhadora, descobrindo infalívelmente a quem pertencia esta, aquela e aqueloutra resposta, e depois deliciava-se a encontrar a chave do carácter dos respondentes. Pedro era um romântico, Paulo um impetuoso, Lucy estava apaixonada por alguém, Betina vivia uma crise de ciúmes...
Outra das distracções que deliciavam os convidados de Ana Gallis eram as conversas, e também as experiências, sobre o tema da percepÇão extra-sensorial. Ouviam-se então narrativas pessoais onde entravam casos de telepatia, escrita automática, psicoquinese. Outros temas muito apreciados eram as grandes histórias de mistério, acontecimentos ou lendas mantidos intactos na curiosidade e nos humanos medos fundamentais por várias gerações: a morte de Luís II da Baviera, o rei louco"; o destino trágico-misterioso da família imperial russa, Terão os bolcheviques assassinado toda a família imperial ou terão alguns escapado? Será Anastácia, de facto, filha do imperador? Teria Rasputine - o monge diabólico
- enfeitiçado o casal imperial da Rússia? "; Serão correctas as profecias de Nostradamus? "; Seria Mata-Hari, na verdade, uma espia? "; e a história de Drácula"; Afinal quem era Shakespeare? "; e Os crimes de Jack, o Estripador de Londres"; Quem era o uHomem da máscara de ferro? " no tempo de Luís XIV, rei de França? "; Qual a verdadeira causa do afundamento do grande paquete Titanic em 1912? "
Procuravam também as artes divinatórias. A própria Ana Luísa se considerava um espírito pitónico" e tomava poses de pitonisa. Por isso apareciam muitas vezes nas suas reuniões astrólogos, hipnotizadores, pseudopsicanalistas. Falava-se então entusiasticamente de filtros de amor, feitiçarias, horóscopos, sonhos e visões, orixás e macumbas, sabats, espiritismo, oráculos, cartomancia e qui romancia, fisiognomonia, mistérios de Elêusis, cabala, alquimia,
hermafroditismo, androginia e teratologia, ioga, demonismo, missas negras, ciências satânicas, talismãs, magnetismo, necromancia e metamorfoses, vampirismo, médiuns, mesas falantes e levita ções, transmigrações, alucinações, histeria, incúbos e súcubos,
Templários, Rosa-Cruz, Maçonaria,
Quando Ana Luísa começou os seus convívios esotéricos" (conforme lhes chamava Paulina), Sebastião comparecia, embora me parecesse sempre bastante contrariado. Mas um tempo chegou em que ele passou a recolher-se ao gabinete de trabalho, ainda antes da saída dos convivas. Paulina contava-me como, nos dias seguintes a essas reuniões, às vezes prolongadas até altas horas da noite, ele se mostrava agastado com o cheiro dos cinzeiros, repletos de pontas de cigarro e de escórias de cachimbadas. Ana Luísa chegava a levantar-se especialmente cedo para os despejar e arejar o estúdio - antes de ele se levantar.
Sebastião continuava no entanto a fazer o sacrifício" de estar presente, pelo menos durante uma hora ou duas. Chegava até a observar com certa curiosidade o borboletear daqueles espíritos que ironicamente classificava de paracientíficos. Mas demonstrou o mais vivo repúdio e irritação, quando uma ou duas vezes assistiu às transmutações assumidas, entre os convidados de Ana Luísa, na abordagem de determinados temas de mistério". Enquanto eles mantiveram as suas parlendas e atitudes dentro de uma atitude va gamente recreativa e diletante, por entre uma curiosidade algo céptica e uma ironia pacífica e risonha, ao brincarem, à confecção de horóscopos, à leitura amadorística do destino nas linhas das mãos, comunicando sonhos e experiências telepáticas, Sebastião Mondeiro conservava uma atitude de benevolência e tolerância para com aquilo que designava como a eterna e universal remanescência do infantilismo na mente humana", os vestígios da sua fase arcaica, predecessora da fase racional, ou a residual inquietação acerca de mistérios, pelo menos provisoriamente impenetráveis, no campo da evolução humana".
Mas quando Ana Luísa (nunca percebi claramente se expandindo a sua ânsia de chamar as atenções alheias, se participando sinceramente numa atitude espiritual de tentativas para a penetração de mistérios) passou à promoção de tomadas de posição e de orientação para práticas já com aspectos de crença efectiva, de cariz sectário, organizando, por exemplo, autênticas sessões de espiritismo, com a colaboração de médiuns eleitos entre os presentes, ou de hipnotismo amadorístico, Sebastião começou a retirar-se, de mau humor, saindo na primeira oportunidade de concentração dos assistentes, sem se despedir de ninguém. Uma noite houve em que desabafou para comigo, num murmúrio: A que ponto isto chegou!
Por seu lado Ana mostrava-se também entre deprimida e irritada quando Sebastião era procurado por algum pequeno grupo de colegas cientistas. Suponho como lhe devia custar o sentir-se na obrigação de abdicar do seu natural, quase sempre esfusiante, das suas atitudes de coquetismo, da sua presença possessiva, para ouvir dis creta ou atentamente discorrer tão-somente acerca de assuntos gravíssimos e seriíssimos" (assim os adjectivava), sobre o estado da ciência e da política internacional. Estás a ver - dizia-me - o que é passar umas horas a ouvir só falar da bomba de hidrogénio, da próxima central atómica viável, do modelo de molécula do
ADA, da bateria solar de silício, do amplificador de moléculas, do expansionismo dos E. U. A. do fim do colonialismo europeu, da recuperação económica da Alemanha Ocidental e do Japão, da troca de ameaças entre a URSS e os E. U. Só me interesso quando eles " falam da possibilidade de uma Terceira Guerra Mundial. Fico com medo, gosto tanto de viver! E depois, sabes, nestas reuniões muito
científicas, muito sérias, desculpa, tu também és cientista, mas felizmente não pertences à categoria das insípidas esposas que acompanham aqueles sábios e sisudos senhores, tu sabes vestir-te, és bonita, eu gosto de me ver no meio de mulheres bonitas, não tenho a mínima inveja, as mulheres que apreciam a elegância no fundo sentem uma camaradagem, uma comunhão de sentimentos, de interesses... Agora estas senhoras cientistas e esposas de cientistas, confundem simplicidade com mau gosto, despreocupação com desmazelo. Outro dia recebemos um casal de soviéticos, ele era físico, ela matemática. Se visses a apresentação dela, gordíssima, uma cara balofa, o corpo perfeitamente à vontade, sem soutien (pareceu-me), por causa do peito todo espalhado para os lados e caído sobre a barriga, metido num vestido justo de malha de seda plissada, desses que andam por aí nos cestos das vendedeiras de rua...
A Ana Luísa não era possível tornar as suas reuniões tão frequentes quanto desejava. Eram dispendiosas, havia que comprar flores naturais, sempre caras, e oferecer algo de comer e de beber aos convidados. No entanto conseguia se débrouiller, como dizia, com pouco dinheiro, pois aprendera muitas habilidades, com as governantas e cozinheiras do seu passado, era exímia na confecção de fofos de fiambre ou de queijo, de folares, pizzas, soufflés doces e salgados, tartes, bolachinhas e bolinhos fritos, maçãs de variadas maneiras, pãezinhos, scones, canapés; assim como na preparação de bebidas frias e quentes; os convidados saudavam especialmente os deliciosos acompanhamentos para cocktail, os vários palitinhos, quadradinhos, rodelinhas, tirinhas, rolinhos, que mastigavam por entre risos e golos de drinks coloridos.
Do mesmo modo que os ganhos de Sebastião não Lhe permitiam receber, de igual maneira opulenta à que fora habituada, também em outros aspectos da sua vida Ana Luísa se via agora obrigada a mudar de hábitos.
Aquando da separação do marido, Ana levara para a sua nova vida apenas o vasto guarda-roupa e alguns objectos de uso estritamente pessoal. Tão vasto era esse guarda-roupa que somente uma pequena parte coube na sua nova casa e eu tive ainda de recolher várias malas de viagem completamente recheadas de vestidos, lingerie, casacos de pele, sapatos e variadíssimos adereços de toilette. Toda essa bagagem poderia vir a servir-lhe de reserva para continuar a exibir os esplêndidos e dispendiosos trajes a que estava habituada. Mas as coisas não se passaram bem assim, devido a outro factor, até aí da maior importância na vida de Ana Luísa: o "andar na moda". É evidente, a uma senhora da alta burguesia compete-lhe acompanhar rigorosamente a moda. Mas a moda é uma entidade mutante e por isso em pouco tempo toda essa rouparia ficava démodée. No entanto sempre veio a ser-lhe de algum auxílio e representou durante dois ou três anos uma farta reserva de onde ela extraía bons proveitos. Nesse tempo ainda existiam modistas de categoria modesta e boas costureiras que aceitavam as chamadas "transformações", ou seja, mudavam feitios, faziam arranjos e combinações capazes de transmudarem o antigo em moderno, o já visto em algo de novo. De modo que muito do tempo livre ao seu dispor gastava-o Ana Luísa em febris estudos para as transformações a mandar executar à custa das antigas toilettes.
Disse "febris estudos" porque - e foi para isto, precisamente, que eu trouxe à colação o caso do guarda- roupa de Ana Luísa: é que desde sempre e a partir de agora muito mais vincadamente, uma das manifestações do seu temperamento era uma espécie de frenesim constante de estar ocupada, de estar sempre a fazer ou a iniciar qualquer tarefa. Se se cansava de ouvir música ia ler, se de ler ia escrever cartas ou fazer um bolo, telefonava constantemente para lojas e para pessoas, abria os manuais de pintura e desenho e fazia esboços num caderno, mudava a decoração dos compartimentos, passava revista aos objectos pessoais, fazia tratamentos de beleza, estudava novos exercícios de ginástica, ensaiava roupas diante dos espelhos, ia a muitas matinées com os filhos.
Mas raramente era vista em alguma pose de reflexão. Não dizia Paulina nem pretendo eu afirmá-lo, que ela não reflectisse sobre a sua vida e outros assuntos, só que se nos afigurava: os seus momentos de reflexão também nunca eram calmos, pelo contrário, parecia sempre ora ansiosa, ora obcecada, ora neurasténica, e esses momentos iãm geralmente dar a resoluções rápidas, por vezes ful minantes. Em termos filosóficos poderia alguém dizer, ela era uma criatura muito mais do fazer que do ser. Ou pelo menos era o que a sua agitação permanente e frenética (tambem descrita por Paulina) levava a admitir.
Um físico talvez comparasse essa agitação à de uma partícula sujeita àquilo a que eles chamam o movimento browniano, mas eu prefiro compará-la às correrias vertiginosas, em direcções totalmente imprevisíveis, ao ziguezaguear aleatório (será?) daquelas minúsculas mosquinhas do vinagre" que se deslocam sobre os mosaicos das nossas cozinhas e casas de banho.
Mas Ana Luísa não deixava de despender os ganhos extraordinários de Sebastião (os pequenos acréscimos obtidos sobre o seu vencimento de astrónomo com esporádicas conferências e publicações sobre temas da especialidade) em aquisições que ele, por si, bem dispensaria. Ela, educada no gosto das antiguidades, comprava pequenas peças decorativas, que jaziam meio esquecidas nos armazéns de ferro-velho ou em antiquários de pequena categoria. E devo dizer, ela possuía para essas coisas, tal como para as roupas, uma verdadeira arte de tirar proveito de objectos em si mesmos pouco valiosos, e de inventar constantemente novas distracções para os seus convivas, um disco com uma nova canção, um livro de versos de alguém ainda desconhecido mas em quem suspeitava talento, uma receita culinária deliciosa e pouco dispendiosa", um souvenir exótico de viagem, trazido por um amigo.
Começou assim a imiscuir-se um pouco naqueles mercados marginais que funcionam em circuitos fechados, particulares, onde se negoceiam; umas vezes artigos passados pelo contrabando, outras objectos e valores vendidos em segunda mão ou a prestações ou com a recomendação de uma excelência ligada a uma exclusividade, precisamente a dessa circulação privada. Negócios em que participam, desde representantes da alta burguesia até modestas senhoras da pobreza envergonhada (recebendo uma comissãozinha"). Onde aparecem as damas que procuram desfazer-se de um casaco de peles porque em certos misteriosos apertos financeiros precisam de imediato de fazer dinheiro, e então telefonam às conhecidas, e assim vai passando a oferta de amiga para a amiga da amiga da amiga, com o pretexto de que a dona está farta daquele casaco preto de opossum. e deseja agora um de mouton doré", ou porque "o marido lhe ofereceu mais um, ou "não suporta a ideia de ir a este banquete com o mesmo, já exibido no outro; onde aparecem as escriturárias de repartições públicas tornadas monitoras da venda de tupper-wares; ou vendedoras de jóias a prestações, exibindo as paletas de mostruário por cabeleireiros e institutos de beleza. Assim Ana Luísa se encarregou de propor às suas conhecidas preciosas rendas de bilros antigas, agora vendidas por uma condessa do Norte; e encomendou a um pastor minhoto artísticas peças de osso, "espiches, burilados a canivete, comprados por uma bagatela e vendidos aos seus conhecimentos, todos amadores do artesanato autêntico; e eu vi-me também "obrigada a adquirir meia dúzia de pequenos vitrais, pintados à mão por uma pintora sua amiga.
Paulina comentava todas estas actividades de Ana Luísa, classificando-as de "dispersivas", e irritavam-na os adjectivos exageradíssimos com que ela louvava todos esses objectos, oferecidos ou transaccionados: "Não sei se correspondem a opiniões sentidas, se a um desejo de agradar ou de ser solicitada ou para que lhe demonstrem admiração pelo seu bom gosto e sentido da descoberta das coisas valiosas, belas.
Durante um intervalo de tempo a que poderei chamar a primeira parte da vida comum entre Ana e Sebastião, tudo parecia decorrer normalmente entre os dois. Apenas a permanente agitação dela e o indefectível ar grave e um tanto constrangido de Basty - era assim que ela agora o tratava - poderiam levar-me a pensar que alguma perturbação, alguma nuvem escurecia um pouco aquela ligação.
Havia sete anos que eles faziam essa vida comum, por assim dizer estavam já conjugalizados, pelo menos aparentemente. Ele parecia conformado ao mundanismo dela. Acompanhava-a tanto quanto lhe permitia a vida científica. Mas distanciava as saídas para o estrangeiro, a frequência de simpósios e congressos. No entanto, na Primavera e no Verão continuavam as viagens turísticas, sobretudo pela Europa, e tomando-a como educanda servia-lhe de guia cultural nas visitas a museus e monumentos de arte.
Suponho, nestes passeios culturais, na companhia permanente de Sebastião, não teria Ana a possibilidade, como acontecia no tempo do marido, em que este partia geralmente sozinho para as reuniões e congressos e ela ficava no hotel ou ia fazer compras, de se entregar às costumeiras escapadelas para distribuição da sua beleza".
Mas se aparentemente ela se mostrava feliz e encantada com o seu amado Basty", como afirmava, além do já referido constrangimento e frequente azedume nas palavras dele para com ela, havia uma nota que não podia deixar de passar despercebida a bons observadores: ela, agora, com quarenta e poucos anos, surgia sempre, nos seus vestidos então mais modestos mas sempre ajanotados, como uma pessoa esfuziante de juventude e de entusiasmo vital, ao passo que ele, já na casa dos sessenta, começava a denotar algum emurchecimento, sobretudo devido a esse ar amarfanhado, grave, contrariado, visívelmente indisfarçável.
Paulina Mondeiro continuava a lamentar esta união. De quando em quando entregava-se a prognósticos de um desenlace catastrófico, que poderá ser a ruína dele, porque isto não vai bem, veremos daqui a algum tempo,
Uma primeira grande tempestade surgiu por ocasião da participação dele na já referida missão de estudo no Havai, onde prosseguiam os trabalhos para a construção do telescópio Keck, que deveria ser instalado daí a uns cinco anos, lá para 1968, no monte Mauna Kea, um vulcão extinto.
Se em férias o casal fazia viagens turísticas, raramente Ana Luísa acompanhava Sebastião a reuniões científicas. Ele mostrava-se pouco interessado em levá-la, e ela, dentro do espírito de acatamento e de quase submissão, aparentemente adoptado para com ele, parecia conformar- se. Na ausência dele, segundo Paulina, passava então os dias em grandes obras de beneficiação da sua beleza física.
Desta vez Ana exigiu - foi o termo empregue por Paulina para caracterizar a atitude dela - participar na viagem ao Havai.
Sebastião punha as maiores objecções: Que o Observatório ficava a quatro mil metros de altitude e, portanto, nessas condições o ar rarefazia-se, os trabalhadores que lá actuavam em permanência tiveram de aprender a respirar de maneira a não contraírem doenças pulmonares e a sustentar o coração. Que ali o solo era rochoso e havia ventos fortíssimos. A maior parte dos técnicos e dos astrónomos presentes sofriam de violentas dores de cabeça... E aqui ela interrompera-o:
- Pois então, tu, que de vez em quando já sofres de enxaquecas, vais para um sítio desses...
E ele:
- Vou para, não; vou a, e apenas por meia dúzia de dias. Tomarei as precauções aconselhadas. É uma necessidade de trabalho a que me leva lá. Ao passo que tu, qual é o interesse que uma coisa destas pode ter para ti?
Resposta dela:
- Era uma oportunidade de realizar um sonho que tenho há tanto tempo, ir ao Havai. Enquanto tu andasses lá por cima, junto do vulcão, eu poderia ficar no hotel a gozar o solzinho tropical.
Ele ainda, com azedo humor:
- E a pôr ao pescoço um colar de flores, como as americanas velhas...
- Quando o diálogo chegou aqui - continuou Paulina - ela explodiu. Nem podes imaginar o espectáculo. Aliás, eu também não fazia a mínima ideia da transformação mágica que ela podia sofrer. Uma autêntica metamorfose! Ela, até aí sempre de maneiras comedidas ou controladas, apesar da sua impetuosidade constante... Uma fúria! Uma megera!
Que ele a devia levar. Que precisava de cortar o fastio de Lisboa. Que não era só viajar para ver museus e mais museus, catedrais sobre catedrais, estátuas, velharias, erudições, precisava de respirar ar fresco, de sentir uma luz e um calor revigorante em todo o corpo e na alma, e de alimentar a imaginação para poder voltar à sua arte, ser outra vez uma pintora...
Que depois saíra, batera com a porta e fora fechar-se no quarto. Nós os dois ouvimo-la num choro que nos deixou gelados, parecia o uivo de uma loba esfomeada em campo de neve.
O pobre do Sebastião estava como uma criatura assombrada. Após os primeiros momentos de estupefacção deixou- se ficar sucumbido, desfeito, no canto do sofá e parecia disposto a passar ali a noite. Eu mantive-me ao seu lado, em silêncio, durante algum tempo. Depois levantei-me, levei-lhe um café e um cobertor para ele se cobrir.
Antes de me retirar, disse-lhe ainda: E se levasses a rapari- ga...
Depois deste relato Paulina ficou algum tempo junto de mim, preocupada, alterada. Percebi, no seu espírito deviam desencadear-se alguns conflitos. Se bem que ela se encontrasse quase sempre do lado das mulheres" em muitas questões, aqui era certo, conseguia sobrepor à realidade dos factos a sua amizade por Sebastião. Quando voltou a falar, depois de um demorado silêncio, as suas palavras demonstraram como ela havia percorrido em angústia uma íntima dialéctica alternada de defesa e de condenação, umas vezes de Sebastião, o homem-irmão, outras de Ana Luísa, a mulher sedutora desse homem-irmão.
A sua conclusão foi esta:
- De qualquer modo, ela não é uma inocente
Não fiz nenhuma observação a essas palavras. Regressei ao meu apartamento. Perturbada, reflectia em tudo quanto acabava de ouvir. Rememorando frases e juízos que se me afiguravam como saltos mortais sobre um espaço sem rede, passos de gigante sobre abismos sem pontes, passei o resto da tarde e grande parte da noite a avaliar aquela situação um tanto estranha, aquele ménage à trois" em que dois dos parceiros eram um homem e mulher, amantes, e o terceiro elemento uma irmã quase superprotectora e suspeitosa acerca da mulher que fascinara o irmão.
Já tive ocasião de o dizer: Paulina era uma mulher liberal mas não libertária. No campo pessoal, quando entendeu que o seu casamento já não era viável, tomou uma decisão e anulou-o. Essa anulação de um vínculo formal foi para ela a consequência lógica, natural, coerente, de um sentimento já desfeito. Daí não se seguiu que ela deixasse de ser uma mulher regrada e orientada. Manteve a profissão, os seus estudos e, se não dava sinais de inquietação e de novos projectos sentimentais era porque, pelo menos até então, eles não tinham voltado a surgir.
Nenhuma de nós as três era aquilo a que costuma chamar-se uma feminista". Para Paulina, o que devia existir em relação aos dois sexos era a autenticidade e a liberdade nas condutas. Repudiava a moral por convenção e tradição e exigia acima de tudo pureza. Pureza significava para ela lealdade, sinceridade, amor ao risco pela verdade acreditada, entrega isenta de cálculos, ausência de premeditação e prevenções interesseiras. Precisamente aqui incidia a sua convicção da impureza de Ana. A paixão, o sacrifício de tudo - da situação social, do desafogo material - pelo irmão, jamais Paulina os acreditou como puros, ou seja, isentos de contaminação por sentimentos de vaidade, narcisismo, exibicionismo, leviandade, e de romantismo anacrónico e enfático, como dizia, irónica e ácida. Que Ana Luísa tivesse tido vários amantes, antes de Sebastião, isso não a tocava no mesmo sentido em que poderia abalar a moral consuetudinária, tanto mais que acreditava no desacordo fundamental entre Ana e o marido. O que ela sempre teria desejado descobrir seria o motivo da sua saltitância e aventureirismo. O caso do mecenato de Ulricho Stichini, para ela verídico, acabou por conduzi-la à terrível suspeita de corruptibilidade. A partir daí, para além das evidentes mostras de ansiedades neuróticas de Ana, em relação à sua realização artística, Paulina ficou, digamos, com a pedra no sapato".
Agora, através daquela conclusão sibilina, De qualquer modo ela não é uma inocente", para mim tornou-se evidente como a sua suspeita acerca da impureza da amante do irmão se mantinha desperta.
Quanto a Ana, ainda que dentro em breve vá assumir publicamente atitudes de reivindicação de liberdade feminina, ela própria sempre repudiou a classificação de feminista". Conheci-a suficientemente para poder afirmar, todas essas reivindicações próximas futuras, causadoras de grandes tempestades entre os dois, Sebastião e ela, virão a ser principalmente motivadas por um interesse muito próprio, bem individual e egoísta.
Ana ficava em estado de furor quando alguém, dado ao emprego de frases feitas e conceitos vulgares, se lembrava de considerá-la feminista. Durante as nossas conversas era desta maneira incisiva que definia as feministas militantes: Trata-se de mulheres social e sexualmente frustradas, pobretonas armadas em revolucionárias, ou lésbicas não assumidas ou mais ou menos transexuais, desprovidas de sex- appenl feminino, em última análise sempre ridiculizadas pelos homens.
Eu, no entanto, por pequenos parênteses e reticências detectadas nessas conversas, concluía que a sua condenação tão taxativa dessas mulheres lutadoras - quase sempre cheias de razão - vinha acima de tudo por ela ter percebido como qualquer mulher, explicitamente arvorada em feminista, em defensora da igualdade de direitos sociais, cívicos e políticos para a sua classe sexual; aparecia aos olhos dos homens, muitas vezes até aos dos inteligentes e cultos, como pessoa um tanto caricata e carecente daquele atractivo feminino constituído, por um lado, pelo tal sex-appeal, por outro destituída também da fragilidade que Lhes daria ensejo à sua máscula protecção. Ora, por nada deste mundo ela incorreria nessa aparência, desistindo do seu natural coquetismo e do seu prazer de agradar, brilhar e seduzir, sobretudo aos homens. Contestar, sim
- dizia convicta - mas sempre feminina, através de tudo.
Ana não teve qualquer desabafo comigo sobre o assunto da viagem ao Havai. Mais uma vez ela dominava os impulsos confessionalistas quando este projecto especial se lhe apoderou do espírito. Projectos especiais, corolários ou fases a percorrer para o conseguimento dos grandes desígnios da sua vida: a celebridade e a sedução de um público que a admirasse. Eu desconfiava assim que a sua paixão" pelo homem extraordinário e admirável, encontrado na pessoa de Sebastião Mondeiro, não passava agora, nem digo de um fogo extinto, mas muito mais dramaticamente, de uma situação vivida já por arrastamento, para a qual desejaria secretamente uma solução.
No caso da viagem ao Havai, não estaria ela já na busca concreta dessa solução, mas pelo menos ensaiaria um primeiro passo aventuroso fora da convenção em que, mais uma vez na vida, acabara por se enredar.
Aliás, para espanto de Paulina e meu, após o ataque de fúria ao saber que não poderia acompanhar Sebastião na visita de estudo ao monte Mauna Kea, durante as duas semanas da sua ausência Ana Luísa mostrou-se conformada e pacífica. E disse-nos: "Vou aproveitar este tempo para fazer novas tentativas na pintura, vamos ver se consigo finalmente alguma coisa que se veja, e falou-nos ainda longamente dos temas que trazia na cabeça.
De facto, passou dois dias no atelier a fazer esbocetos, num tra balho frenético. Depois, de repente, caiu numa breve depressão (as suas depressões eram sempre intensas mas pouco duradouras) e declarou-nos, em desalento: "Já perdi a mão, não sou capaz, não me vêm as ideias, perdi o treino, pois, estes anos todos dedicados só à adoração do Basty...
Recuperado o habitual estado de tensão vital, larga lápis e pincéis e entrega-se a uma empresa de que ultimamente vinha falando frequentemente: obter o perdão do pai para "as suas faltas, e reconquistar a amizade da restante família. Depois da separação do marido, e da ruptura com o pai, continuara a manter contactos com a mãe. Contactos mais ou menos clandestinos, efectuados na ausência do pai. Porque, da mãe, desde sempre recebera compreensão e perdão, e também generosas dádivas, mesmo em dinheiro, que lhe permitiam pequenos devaneios e garridices no traje, na cosmética e até a compra de alguns objectos decorativos com que procurava requintar o novo lar.
"Tenho a certeza, se eu conseguisse qualquer coisa que me resgatasse, o meu pai não só me perdoaria como acabaria por aceitar o Basty, congeminava.
Eu pressentia que, ao acrescentar estas palavras, "acabaria por aceitar o Basty", Ana o fazia com alguma intenção: por amabilidade para com Paulina? Para desviar alguma suspeita? Mas suspeita de quê, perguntava então a mim própria, embora concluindo que se se levantasse alguma suspeita em qualquer de nós, só poderia ser a nova forma que estaria a tomar o seu permamente e sempre ansioso projecto, ou projecto de projecto.
Quanto à "qualquer coisa que a resgatasse, aí foi ela clara e muito lógica: "Se finalmente aparecesse de uma vez por todas como uma boa pintora, uma verdadeira artista, se alcançasse aplausos importantes nos meios artísticos - ainda que o meu pai não aprecie os pintores actuais nem as pessoas desses meios - no entanto não poderia deixar de se sentir orgulhoso com a glória (ela disse precisamente glória) da filha. "
Deve ter sido este o motivo por que aproveitou também a ausência de Sebastião para escrever longas cartas ao pai, onde, depois de muitas justificações para as suas condutas, com a narrativa das infelicidades com o marido e a descrição da sua ansiedade por encontrar finalmente na vida um homem de valor, que ela pudesse não só amar como admirar, e isso é muito importante para nós, mulheres... Por isso mesmo é que eu te amo tanto, meu pai, apesar de tudo, não só por seres meu pai como também pelo teu valor, pela tua dignidade. Um homem que também lhe permitisse a busca da sua própria realização como a artista que julgava ser e acreditava, viria ainda a revelar-se em plenitude".
Foi depois de todas estas cartas (que me leu na maior parte), fi cadas sem resposta, mas ela tinha a certeza, não deixariam de calar fundo na consciência e no coração daquele que continuava a ser o seu pai querido", que Ana Luísa, recuperados alento e entusiasmo, recebeu Sebastião com as mais efusivas demonstrações de amor, as quais procurava até tornar públicas, durante os convívios sociais.
Ana exibia uma felicidade exuberante, parecia que algo de extraordinário acontecera ou estava para acontecer de novo na sua vida.
A primeira coisa a acontecer foi a intensificação e dilatação dos seus convívios mundanos. Já não lhe bastavam as pequenas reuniões em casa. Por intermédio do amigo misógino de Paulina acabou por realizar um dos sonhos que já várias vezes eu lhe tinha surpreendido através de vagas alusões: ser recebida no salão da mais célebre das intelectuais da capital, Gaby von Schulten.
Tenho visto referido que o salão literário de Maria Amália Vaz de Carvalho foi o último salão literário de Lisboa. Mas não é bem assim. Além dos salõezinhos mais modestos, animados por gente mais ou menos culta, frequentados por pessoas de relações mais ou menos amistosas, da mesma categoria social e da mesma "cor" política, existiu ainda na primeira metade deste século o célebre salão de Veva de Lima, mulher rica e dada a extravagâncias. Desse salão nos falou a escritora Fernanda de Castro, descrevendo-o como "o mais concorrido, o mais disputado e certamente o mais original de todos, E acrescenta, acerca dessa dama exótica: "Veva de Lima... era uma senhora que me dava muitas vezes a impressão de uma personagem de romance... Umas vezes recebia os seus convidados, hierática e com um sorriso sempre um pouco esfingico, no alto das escadarias da sua casa; outras, reclinada no leito romano, no mais belo dos salões. Quando se levantava e circulava entre os convidados, os seus vestidos de "lamé", de brocado ou de "chiffon ", os seus sapatos ou os seus coturnos, faziam-na parecer mais alta e ainda mais delgada. Era uma figura delicada, requintada, à moda da época, isto é, de um certo barroquismo.
"veva de Lima tinha um dom muito especial: sabia juntar como ninguém, as pessoas mais variadas, representantes da mais alta e mais velha nobreza, da alta burguesia e, ao mesmo tempo, gente nova, ainda sem nome e sem obra realizada, mas com um denominador comum - o talento, ou, pelo menos, a inteligência. Receber um convite para uma das suas reuniões era sempre um prazer O cenário ao mesmo tempo sumptuoso e exótico...
"Como em todos os outros salões literários, poetas, incluindo a dona da casa, liam os seus últimos poemas... Conversava-se, tomava-se chá e vinho do Porto e encontravam-se sempre algumas dasfiguras mais carismáticas da época..."
Impossível saber se alguma vez terá passado pela cabeça de Gaby tornar-se uma imitadora ou sucessora de Veva de Lima.
O certo é que Gaby vem de origem bem diferente da de Veva. Enquanto esta era filha de um homem célebre no seu tempo e mulher de um embaixador na Inglaterra, e dava as brilhantes recepções no seu elegante palacete, às Amoreiras, Gaby, nascida Gabriela, era filha de uma costureira, emigrada da raia de Espanha para ganhar a vida na cidade em casas particulares e, quanto ao pai, incógnito, corriam boatos sobre a sua profissão: contrabandista? e a sua etnia: cigano? mourisco?
Quando a pequena Gabriela entrou na adolescência, a mãe, mulher pobre e desvalida, não viu outro destino para a filha senão o de encaminhá-la para uma profissão igual à sua, apesar de a professora da escola em que a pequena fizera a instrução primária, gabando-lhe a inteligência e a sensibilidade, a ter ido procurar, aconselhando-a a fazer todos os sacrifícios para a mandar estudar.
Sucedia desde muito cedo, Gabriela além da inteligência dava mostras de inquietismo e voluntariedade, por isso ela própria repudiou a perspectiva de estudos disciplinados, obrigatórios. Aos treze anos tomava a iniciativa de se fazer contratar como caixeira numa capelista. Aos dezasseis saltara já para uma das mais luxuosas lojas de móveis e tapeçarias da Rua Ivens. Aí teve portanto os seus primeiros contactos com a clientela rica da casa. Frequentou um curso nocturno de desenho, aos dezoito apresentava-se como Gaby Flávia, decoradora de interiores. Tornara-se uma jovem de notável beleza e corpo elegantíssimo. Demonstrava revolta contra as sujeições femininas em que a mãe e todas as modestas relações de bairro e vizinhos procuravam mantê-la. Tornara-se notada por algumas ousadias no vestuário e, quando arranjou um namorado, atrevia-se a ir com ele, sozinha, às matinées do cinema, o que nesses anos trinta da sua juventude primeira era algo de quase escandaloso.
Namorado esse que conseguiu levá-la ao casamento. Consta a sua biografia está repleta destes consta" - que esse primeiro marido seria um empregado do escritório da empresa onde ela então era decoradora de montras e salões de modas, escriturário esse que demonstrava por ela uma paixão malsã, pois, de tantos ciúmes, cedo começou a espancá-la e até a sequestrá-la. Consta, esse casamento durou apenas um ano e, a partir daí, parece que Gabriela resolveu abandonar de vez o bairro modesto da sua morada, os mo destos namorados, o modesto marido, e lançar-se na vida em mais
altos voos. Com algum dinheiro - pedido de empréstimo, consta
- montou uma boutique de artigos decorativos, onde pintores, ceramistas e outros artistas ainda sem nome vinham fazer as primeiras exposições das suas criações.
Se na loja de móveis de luxo conhecera gente rica e requintada, agora travava conhecimento com a classe intelectual e artística.
Estes também Lhe notavam a inteligência e a desenvoltura. Homens havia que, feitos "pigmaleões, lhe emprestavam livros e, por assim dizer, se tornavam seus professores, orientando-a em estudos humanísticos.
Começou a ser conhecida na cidade por se apresentar inopinadamente vestida com saris indianos ou cabaias chinesas: "Gosto de me mascarar, dizia muitas vezes; e sempre fumando a longa boquilha de madrepérola e oiro, em reuniões festivas para as quais era infalívelmente convidada, e também por seus ditos mordazes, afoitos e algumas vezes um tanto desbocados. Em breve alcançou o estatuto de cronista, publicando em vários jornais e, aí, através de um estilo jucundo, barroco e truculento, lançou-se em críticas sociais e artísticas nas quais se tornava sensacional a sua faceta irónica e contundente.
A primeira vez que eu vi Gaby, foi numa livraria do Chiado, aí pelo meio da década de cinquenta. Estava ela vestida de uma maneira como poucas mulheres ousariam nesse tempo: um vestido negro, sem qualquer enfeite mas totalmente colado ao corpo e com um decote dorsal em amplo triângulo, cujo vértice alcançava já a região lombar. Os seus modos com os livreiros e com as pessoas que aí a iam cumprimentando, desvanecidas, eram os de uma muLher perfeitamente segura de si, espectacular, e com a mais completa indiferença pelos que lançassem algum olhar de espanto ou reprovação pela sua apresentação ousada.
Nesse tempo tinha ela acabado de desfazer um segundo casamento com um subsecretário de Estado, que a introduziu e "exibiu, nos esplendores das embaixadas.
Curiosamente, na lenda que sobre ela se ia avolumando nos meios intelectuais da capital, havia um ingrediente, vulgaríssimo nas "lendas, sobre outras mulheres, sobretudo aquelas a que chamei As Ninfas do Tejo, mas que na dela nunca estava presente: se Lhe apontavam extravagâncias, como a de organizar em sua casa certos espectáculos, em que representava sempre a primeira figura, exibindo-se em papéis de mulheres célebres, como os da espia Mata-Hari, completamente nua sobre um palco, coberta apenas de braceletes e de dois discos metálicos que lhe ocultavam os seios, ou os da bailarina Isadora Duncan, dançando descalça e também nua, ou vestindo-se de tailandesa, ou de africana - nunca falavam de alguma sua paixão ou grande amor.
E para mim, que durante certo tempo frequentei também o seu salão, apesar de todas essas lendas parecia-me que de facto Gaby era uma mulher afectivamente morna e, suspeitava ainda, talvez
também sexualmente frígida. Sempre supus, ela guardasse uma grande angústia por não ter conhecido um pai e apenas mãe, muLher pobre, triste, desamparada, enganada, por um sedutor, como então se dizia.
Daí o seu gosto pelas máscaras e pelo espectáculo, por tudo quanto concorresse para a ocultação ou disfarce da sua fundamental amargura existencial. E, se fosse verdadeiro o seu lesbianismo, talvez também as esotéricas filosofias que um dia viria a adoptar, sobre a prevalência da mátria - terra das mães, - sobre a pátria - terra dos pais - juntamente com a teoria do equilíbrio de antagonismos finalmente atingido na união de contrários, o feminino e o masculino, realizado no Andrógino, representassem afinal um esforço por compensar na sua alma o desgosto e a piedade pelo infortúnio da mãe e pelo desamparo da sua orfandade de um pai.
Em desacordo com Paulina Mondeiro, eu aceito a Psicologia das Profundidades, se não como terapêutica, pelo menos como complemento da explicação psicogenética e psicodinâmica dos comportamentos individuais.
De qualquer modo, adiante, vamos às nossas estórias. Homens havia que se gabavam de ter recebido os seus favores eróticos. No entanto, neste ponto, a lenda sobre Gaby incidia sobretudo nas práticas especiosas, em que seria mestre mais que nas de fornicação propriamente dita. A lenda a seu respeito, neste campo, acabou ainda por ser ampliada com mais um dado, a partir de um sarau, por ela idealizado e organizado, em que num cenário composto por símbolos da cultura clássica antiga, Gaby, vestida de
grega e rodeada por um grupo de jovens mulheres, de túnicas plissadas e sandálias de atilhos, teria declamado para a assistência os versos belíssimos da poetisa de Lesbos. Da sua lenda passou então a constar também que Gaby seria lésbica.
Só poderei incluir Gaby no grupo das Lusitanas Heteras (ou Ninfas do Tejo), porque ela se tornou uma relevante animadora do mundanismo cultural da cidade, e não porque, como as outras, Ana Luísa, por exemplo, tivesse inspirado paixões nos homens notáveis do tempo. Muitas destas, embora libertárias no amor, não se limitavam a seduzir, elas próprias se deixavam igualmente enredar nas paixões que faziam nascer; destas se poderia dizer, repetindo Nietzsche, que levavam o caos no coração, mas *206 rinvam estrelas à luz.
Com o seu terceiro casamento, Gaby Flávia passava a usar o nome de Gaby von Schulten. Conheceu esse terceiro marido, um empresário alemão, estabelecido em Portugal com uma cadeia de boites e dancings nos Estoris, quando ele a contratou como decoradora para o último desses estabelecimentos acabados de abrir. Di ziam-no rico e divorciado de várias mulheres, que depois de casadas acabavam por verificar afinal não Lhes ser possível suportar in definidamente a intimidade com um homem que, à noite, ao deitar, desmontava as duas próteses que lhe serviam de pernas, e de manhã voltava a colocá-las numa operação complicada de aplicação de correias e fivelas.
Com Gaby estabeleceu ele um novo contrato nupcial e ela passou então a usar o nome de Gaby von Schulten. Dispondo agora de apreciável desafogo económico, Gaby pôde ampliar a frequência das suas apreciadas recepções. Permitia-se oferecer lautas ceias aos convidados. A sua vida anterior de decoradora tornara-lhe possível o conhecimento de meios bem diferentes daquele em que nascera e crescera. Conhecera nessa época como se conduzem os ocupantes de um hotel ou de um paquete de luxo, do Hotel Scribe ou do navio Queen Mary, das carruagens dos wngons-lit, no Sud Express, dos foyers dos cinemas elegantes, dos teatros da moda, das touradas em Espanha, dos campeonatos de canasta na Quinta da Marinha, dos concursos de gastronomia e das tournées snobs para o estudo do folclore nacional, das visitas às exposições do SNI no Palácio Foz, das casas de fado, das ceias à algarvia, ou à minhota, dos fins de ano festivos nos hotéis chiques da Madeira, das férias em Vilamoura no Algarve, das viagens a Sevilha, a Tânger, à Suíça, a Roma, a Los Angeles e a Nova Iorque.
Depois do casamento com o alemão, Gaby deixou as actividades de decoradora. Rodeou-se de serventuárias. Desempenhavam estas em sua casa o papel de criadas, governantas, secretárias e até de aias. Constava, as suas aias não só lhe arrumavam a roupa nas gavetas como lhe preparavam a água para o banho, depunham a pasta dentífrica na escova, a ajudavam a vestir-se, a pentear-se e, quando se sentia cansada, a partir-Lhe os alimentos no prato. Constava também, na sua lenda, ser ela em matéria de actividades domésticas incapaz de preparar a mais vulgar tisana ou estrelar um ovo.
Gaby pôde então dedicar-se por completo ao aprofundamento dos seus interesses culturais. Contratou uma professora de dicção e os seus saraus tornaram-se apreciados recitais de poesia, onde ela actuava, por entre aplausos da assistência, como empolgante declamadora.
Simultaneamente os frequentadores do salão de Gaby passaram a deparar em todas as reuniões a presença constante de um homem que - constava - vivia aboletado na residência dos Von Schulten, não se sabia bem a que título. Atribuíam-lhe as funções de preceptor mental e de professor de filosofia de Gaby mas constava, talvez fosse também seu amante. Os frequentadores do salão apreciavam a cultura desse homem e, como gente sem preconceitos, acatavam displicentemente o seu aboletamento naquela casa.
Nos anos sessenta, o salão de Gaby von Schulten estava no auge da celebridade e influência na vida intelectual lisboeta. Havia na actividade desse salão dois aspectos, em muitos casos bem interli gados. Aí se expandiam ludicidade culturais, semelhantes às das
reuniões mais modestas de Ana Luísa, e eram aquelas já aludidas, em que Gaby se exibia, ela própria, sob a máscara de mulheres célebres, dançando, cantando e declamando, ou então propunha a uma assistência, selectivamente convidada, por sua celebridade ou excentricidade, saraus-temáticos, onde se discutiam questões ousadas nessa época, quase sempre daquelas que poderiam ser passíveis de juízos censores, tanto de privados como de entidades insti tucionalizadas. Recordo como os de maior êxito, aqueles a que ela deu o título: a um, de Erotismo na Literatura", a outro o de Absinto e Poesia, aos quais compareeeram desde literatos a psicana listas, mas, sobre os quais o escritor Henry Miller, então de passagem por Lisboa e por ela convidado, declarou a alguém que tudo aquilo a que assistira e ouvira lhe dera a impressão de ter recuado até ao século XVIII!
Como seria de esperar, nas reuniões deste tipo convergiam tanto personalidades ilustres e consagradas, como certo género de intelectuais, conhecidos de toda a gente mas mais ou menos considerados como marginais no campo da inteligência" nacional. Eram tipos geralmente classificados como abjeccionistas ou miserabilistas. Eles não eram desprovidos de talento nem de cultura, só que, não tendo jeito para viver, levavam voluntariamente (ou pensavam que assim fosse) uma existência desregrada, vagabunda, por vezes miserável, sem eira nem beira, chegando por vezes a passar fome verdadeira. Lembro-me de dois, nesse colóquio sobre Absinto e Poesia, meio escondidos atrás dos reposteiros, troçando de tudo e de todos mas devorando, esfaimados, croquettes, sandes e pastelinhos. Não se tratava exactamente de revolucionários, fixados em alguma ideologia estruturada e sistematizada; eram antes uma espécie de terroristas intelectuais, em cujas bombas os explosivos eram os sarcasmos, correspondentes afinal a vinganças lançadas não sobre uma sociedade, que não os glorificava nem recompensava, mas antes sobre pessoas que os irritavam por seus êxitos cívicos ou artísticos, outras por suas vidas bem ordenadas. Riam-se dos que se submetiam a um emprego certo, com horários e directores, dos que concluíam cursos universitários, das mulheres que faziam compotas ou croché. Em suma, eram uns tipos ino fensivos.
Um deles, poeta e jornalista, depois desses colóquios, sempre terminados por copiosas ceias, abundantemente regadas a whisky e champagne, veio a publicar num jornal um longo poema de sua autoria, repleto de imagens e metáforas auridas nas mitologias clássicas, em que exaltava como uuma deusa, Gaby, a dona da casa, a organizadora daqueles colóquios revolucionários, comparando-a a Vénus pela beleza, a Minerva pela sabedoria, e a Safo pela sensibilidade; e louvando ainda a subtileza, a espiritualidade dos acordes que ela nessas noites extraía da sua flauta...
Ao ler esse poema, Gaby riu a bom rir e mostrou-se desvanecida: Agora toda a gente vai dizer que eu também toco flauta!
Mais uma achega para a minha lenda! Oh! Como eu gosto de ser lendária! "
Quanto a mulheres, o salão de Gaby era frequentado por categorias heterogéneas, desde aspirantes a mundanas, a mundanas já "consagradas", umas, outras na pré-reforma. Havia abundância de divorciadas, algumas lésbicas e algumas intelectuais, desde licenciadas a escritoras, actrizes e artistas plásticas, já com nome. Havia-as ainda ingénuas e provincianas, como Alda Vilharigues, uma espécie de segunda Florbela Espanca, de quem um velho filósofo, feio, celibatário e aristotélico, um dia se aproximou e murmurou ao ouvido: "Minha bela senhora, silente e taciturna"; também as havia já bem batidas em salões e cocktails, e às quais Gaby mandava servir sucessivos bules não de chá mas de whisky; assim como apareciam também cocottes, finalmente casadas, entre as quais se destacava a recém-titular viscondessa do Lordelo, mais conhecida por do Lardelo, numa alusão ao seu corpo lardeado" por abundantes banhas". Todas aparentemente felizes com a sua beleza, os seus talentos e celebridades, mas fazendo suspeitar de enormes fomes e frustrações, desde as físicas às mais profundamente psíquicas e morais.
Os frequentadores do salão de Gaby von Schulten, tudo gente progressista e democrata, acatavam bem o casal Ana Luísa-Sebastião Mondeiro. Aliás, Sebastião (e eu) éramos os únicos cientistas presentes em tais reuniões. Mas embora literatos, ali habitués, mostrassem deferência pelo notável astrónomo", Sebastião Mondeiro não conseguia disfarçar um ar contrariado. Eu supunha, se Sebastião acompanhava agora Ana Luísa nessa vida mundana de uma nova espécie, em que ela tanto sonhara lançar-se, era porque se sentia na obrigação mor de acompanhá- la, emprestando publicamente um estatuto de sen dade e autenticidade à relação em que viviam os dois. No entanto nunca cheguei a uma conclusão indubitável sobre se ele se prestava a esta nova fase de mundanismo de Ana, para agradar à mulher que o seduzira, se procurava apenas emprestar um remédio moral ao seu envolvimento numa situação que fora considerada escandalosa.
Fosse como fosse, durante essas reuniões o aspecto de Sebastião não era nunca menos que sombrio. Costumava escolher o canto mais discreto que pudesse encontrar e aí ficava, enterrado ou escondido, num mutismo quase total. No regresso tardio desses saraus, no carro o seu ar sombrio e o seu mutismo demudavam-se então numa irritação explosiva, num azedume expandido. Implicava com quaisquer palavras que Ana pronunciasse, contradizendo todas as suas opiniões e criticando aberta e ironicamente palavras e atitudes que presenciara. Qualquer pessoa que assistisse, como me aconteceu a mim frequentemente, na qualidade de amiga dos dois ou dos três (Paulina também aparecia nesses convívios de quando em quando), acabaria por compreender como ele não tomava a sério aquela sociedade de intelectualóides e politiqueiros, réplica anacrónica das antigas academias barrocas, de sécias e peral tas, de gente fútil e inepta", diletantes e exibicionistas, amparados pela petulância de outros patetas, parasitas medíocres da mesa fornida do alemão, vociferava Sebastião, quase furibundo.
No final dos anos cinquenta, o Salão de Gaby von Schulten sofrera uma transformação: até aí sobretudo de cariz mundano-artístico-literário, assume o papel de um centro, não sei se de conspirações, mas pelo menos de intensa informação e discussão políticas. Ela, Gaby, não se integra em nenhuma corrente doutrinária definida, a sua atitude é sobretudo a de uma contestação onde se criticam genericamente as hipocrisias morais da sociedade, a falta de democraticidade e de abertura para uma ampla liberdade de expressão e actuação, no pensamento e nos costumes. É assim que ela passa a ser conotada com a Oposição ao regime autocrático e conservador, nascido em 1926, tomando parte em todas as ténues movimentações oposicionistas possíveis: listas de assinaturas contra a Censura nos meios de comunicação, contra as prisões políticas, recados para exilados, jantares que terminam em discursos alusivos, participação nas campanhas eleitorais. Gabriela atingia assim, depois de toda uma luta pela aquisição de instrução e cultura, uma craveira social onde finalmente se espojava também todo o seu desejo de bulício, de provocação e afirmação. Admiravam-na, adulavam-na. Os mais famosos cabecilhas dos meios políticos da Oposição prestavam-lhe homenagem, solicitavam o seu apoio, embora fossem, alguns, de tendências opostas. E ela parecia espectacularmente orgulhosa, sobranceira até, e feliz, por ter atingido a camada mais elevada da inteligência e da acção política. Profetizava-se, viria a ser ministra quando caísse o Regime.
É certo, existiam nessa Oposição alguns homens, mais graves e rigorosos, avessos a mundanismos e clubismos, que a consideravam uma política sem autênticos compromissos, um pássaro de voo sem risco. Mas outros não hesitavam em utilizar as suas artes e artifícios, possibilitadores de múltiplas relações nos meios conspirativos. Atingida esta culminância, os temas no seu salão passam então para o nível dos mais graves problemas, não só nacionais como do mundo todo.
Na sua vida com Sebastião, Ana Luísa continuava ainda aproximadamente na mesma ignorância, num estar no mundo feito apenas para o gozo da vida, com os seus problemas pessoais, passionais, românticos e galantes. Inclusivamente, quando os seus convidados (ou os de Gaby von Schulten), os literatos, os filósofos, os artistas, se punham a especular sobre a ansiedade e a angústia existencial, o absurdo da vida moderna, a solidão do Homem no Universo", e vinham à colação os nomes dos mais célebres representantes dessas filosofias, Sartre, Giacometti, Samuel Becket, as atitudes destes homens que reflectiam sobre o drama da existência humana apareciam aos olhos de Ana Luísa não como interligações e consequências de todas as tragédias deste nosso mundo inquieto e feroz, mas como destilações e urdiduras de espíritos requintados, situados para além da vulgaridade e da chateza dos acontecimentos-concretos. A frequência do Salão de Gaby - tornada para ela indispensável - o acompanhamento das transformações que ele veio a sofrer com uma intelectualização e politização crescentes, acabam por provocar no espírito de Ana uma notável mudança. Passou então a assistir não apenas à abordagem de assuntos muito científicos, que ignorava, ou ao tratamento superficial de temas paraculturais, mas também a ouvir e a penetrar pouco a pouco em outros, que começavam a interessar-lhe. Assim se ia esforçando por compartilhar críticas, repúdios, entusiasmos e aplausos por notícias e acontecimentos candentes, excitantes: ouvirá a descrição dos começos da desestalinização, após as atitudes de Kruchtchev no Segundo Congresso do Partido Comunista, entusiasmar-se-á com o lançamento do Sputnik I, ouvirá disputas excitantes sobre regimes ditatoriais e democracias, ficará preocupada com a poluição do ambiente e o esgotamento das reservas naturais, inquietar-se-á com a guerra fria, entre as grandes potências, com a probabilidade de uma catástrofe nuclear; espantar-se-á com a ousadia de se comunicar a invenção do dispositivo contraceptivo intra-uterino e das pílulas orais, para o mesmo fim, e com as consequências que tais descobertas iriam imediatamente provocar nas relações sexuais. Contra a vontade de Sebastião, aceitou um convite para participar com uma pequena palestra num Colóquio sobre a condição social da mulher portuguesa, organizado por elementos da Esquerda, palestra em que insistiu na dependência económica as mulheres ainda sem profissão, nas manhas atribuídas pelos homens à natureza intrinsecamente feminina, que não passavam afinal dos recursos naturais de qualquer ser vivo para se movimentar com alguma liberdade.
Simultaneamente, o conhecimento de artistas das mais variadas tendências, frequentadores do Salão de Gaby, tornaram-lhe então mais familiares as diferentes correntes artísticas de vanguarda. Um novo estado de intensa exaltação, um furor vital", um Desejo" com maiúsculo, vasto, inundante, quase insuportável, de vivên cias e experiências, tomava conta dela, Quero, quero, mas nem sei bem o que quero. E, dir-se-ia, a agitação, as contestações germinantes a fermentar no País, assolapado ainda na Ditadura, mas prestes a eclodir em alguma próxima futura revolta, pareciam electrizar todos os espíritos, e o dela, já de si efervescente, vibrava com todas as cordas.
Na década de sessenta Ana Luísa acaba por se declarar já consciente da sua posição na sociedade, considerando-se uma vítima, não só da repressão familiar, da moral convencional, da sua completa impreparação para uma profissão que lhe proporcionasse aquilo que era agora uma das suas maiores ambições: a independêcia financeira dos homens, a independência dos homens em todos os sentidos... Um dia concluiu: Atingi, finalmente, o estádio da mulier sapiens sapiens.
Durante a primeira fase da sua vida conjugalizada, com Sebastião, Ana Luísa ouvia, submissa, as suas opiniões e críticas e só timidamente ousava interpor alguma dúvida. Quando ele começou a manifestar aborrecimento pelas reuniões por ela organizadas lá em casa, com a presença de poetastros e pseudofilósofos, como os classificava, a partir de certa altura atreveu-se ela a confessar-lhe o prazer que lhe proporcionavam todas essas conversações entre poéticas e místicas, simplistas, concordava, mas imediatamente satisfatórias na medida em que eram espontâneas e representavam tanto o nascimento como a permanência profunda de grandes problemas da alma humana. E fazia-lhe notar: O direito de cada um de se abeirar dos problemas segundo as suas possibilidades e os seus conhecimentos. Sebastião rebatia-a: Que reconhecia o direito à curiosidade, sim, mas desde que as pessoas curiosas e reflexivas não se esquecessem do dever de prosseguir numa atitude de insatisfação permanente, sem autocomplacência pelas soluções encontradas, por muito agradáveis elas fossem, desde que procurassem, enfim, o caminho da autêntica racionalidade.
Mais tarde chegarão os dias em que, impelida por ainda secretas revoltas e mal definidas animosidades, mais afoita na capacidade de argumentação, lhe ripostará com teimosia, veemência, quase ira, com o direito de cada um pensar e praticar os esoterismos que entender", defendendo os incógnitos valores da irracionalidade e os méritos da luta contra a frieza do cientismo,
A vida febril que passou a ser a de Ana Luísa, depois da sua en trada no Salão de Gaby, com cirandar alvoroçado por exposições, colóquios, saraus, jantares, a maior parte das vezes e por último já sem a companhia de Sebastião, acabou por instalar definitivamente na relação entre eles um inevitável amortecimento e desgosto. Absorvido pelos estudos, Sebastião fechava-se no seu gabinete, fazia longas permanências no Observatório e parecia quase alhear-se, aborrecer-se com a presença de Ana Luísa, ou então com as suas saídas e entradas precipitadas, ruidosas, já sem horários nem desvelos de companheira. Por sua vez, ela, para além desta agitação, nos escassos momentos que permanecia em casa parecia também cair em desalento ou desolação. Paulina só não falava em apatia, quando se referia a esse novo estado de Ana, porque, considerava, de quando em quando surpreendia-lhe mal disfarçados gestos de furor, Ana deambulando por aqui e por ali como se se encontrasse numa casa estranha, remexendo distraidamente nos objectos ou pegando-lhes no jeito de quem procura desfazer-se deles ou da sua presença, e acabando por pousá-los no mesmo lugar com uma expressão decepcionada e cansada.
Paulina transmitia a verdade.
- Estou a atravessar de novo outra fase terrível na minha vida.
- Consegui ouvir de Ana Luísa quando nos sentámos ambas num
sofá, num canto do salão da exposição que acabávamos ambas de
visitar. Entendi por bem aproveitar a oportunidade para sugerir-lhe mais uma vez a terapêutica da realização artística: "Atira-te a um grande quadro. Tens dito, gostavas de fazer um dia uma coisa boa, mesmo boa. E ela respondeu, de olhos febris, mas no vago: Sim, talvez seja um caminho de salvação.
Caberia perguntar-lhe: Salvação de quê? mas foi ela a adiantar-se e a continuar: Preciso, preciso, entendes?
Os olhos de Ana Luísa mostravam uma expressão a que só poderia dar-se o nome de fome ou de sede: Preciso em absoluto de realizar qualquer coisa que...
Não concluiu a frase. Eu também não tinha coragem de levá-la a concluir, preferi apresentar um argumento:
- Estás num momento psicológico semelhante àquele em que ansiavas por te libertar da tua vida de casada, da tua primeira vida de casada, porque afinal, embora ilegitimamente, voltaste a ser uma mulher casada, ou seja, com casa, ou, mais precisamente, com uma casa e um homem certo lá dentro...
De repente, Ana Luísa juntou ambas as mãos à frente do peito, os braços comprimidos contra o torso. Pareceu- me, iria gritar. Mas logo depois abriu os braços, as mãos, beijou-me em silêncio e saiu sozinha.
O Terreiro das Suas Danças
Agora, outra vez se detinha
e pela brecha saltavam a ambiÇão,
essa megera, a poesia, essafeiticeira, e a ânsia de glória, essa rameira,
e de mãos dadas faziam do seu coração o terreiro das suas danças!
Virginia Woolf, em "Orlando"
O quadro de Ana Luísa, O Meu Clã, que viria a fazer dela uma pintora galardoada com o mais alto prémio atribuído, em âmbito nacional, a obras do género, como todas as obras de arte não nasceu por acaso. Mas a sua gestação, nascimento e criação ficaram a dever-se a uma conjuntura especialmente favorável de situações e acontecimentos.
Os modelos das personagens figurantes em O Meu Clã não os tomou ela das pessoas frequentadoras do Salão de Gaby von Schulten. De facto, Ana Luísa não seria capaz de as retratar, no sentido realista do termo. Não só não seria capaz, como nem o na turalismo, nem neo-realismo eram tendências de sua eleição es tética.
Como acontece com a maioria dos artistas, de qualquer arte, é sempre o passado a fonte profunda e primacial onde vão encher os pequenos ou os grandes vasos da criatividade. Já o sabemos, Ana Luísa recordava com algum desgosto a infância e a adolescência, onde a rebeldia ansiosa do seu temperamento se vira constrangida nos formalismos familiares e pela autoridade paterna. No entanto, todos os mimos, a protecção e o carinho maternos, a dedicação de M. " Lyotard, a amizade dos irmãos, as férias deliciosas na quinta de Rio de Mouro, a sua pequena Sintra, a profusão de brinquedos, de guloseimas, de vestidos, os múltiplos festins, os bailes, os jogos, as passeatas, constituíam lembranças afinal consoladoras, inesquecíveis. Até as velhas tias, Ausenda com a sua austeridade e rabugices, mas igualmente com o sortilégio de guardiã de velhas tradições, e Francisca com os seus desvelos e ternura, permaneciam recordações queridas.
Se em Os Pequenos Paraísos quisera dar eternidade", dizia, a coisas que lhe tinham formado a alma, em O Meu Clã lá fi- cariam também eternizados, ou pelo menos, glorificados, todos aqueles a quem, afinal, amava":
À volta da longa mesa da sala de jantar, num dos lados, a meio, a figura temida (mas querida) do pai todo-poderoso; à sua direita, a aristocrática irmã Milena; à esquerda o distinto, correcto e empertigado irmão Nuno Miguel, o advogado; nas cabeceiras as tias, com o cabelo ao alto, os xailinhos de malha pelos ombros, em tons um tanto esbatidos, como sumidas se apresentavam sempre na presença de seu augusto irmão e dono da casa; a mãe, fronteira ao pai, em primeiro plano mas de costas: menos esbatida que as tias, mas ainda assim com presença discreta, suave, viam-se-lhe apenas os delicados ombros, o pescoço cingido pelo colar de pérolas, que nunca abandonava, e a terna cabeça pequena, de cabelos de um ondeado cerradinho, apanhados na nuca por uma fina travessa de brilhantes; de pé, um criado fardado, de luvas brancas, preparava-se para servir Milena; ao lado da mãe, M. " Lyotard; no plano de fundo lá estava o imponente relógio Régence, o espelho de moldura em talha dourada e, sobre o vulto de outros móveis, brilhavam ainda várias peças de argenterie, e flores; realçados os cadeirões pregueados onde se sentavam os convivas e, do tecto, em chispas, pendia o lustre de cristais.
Não é meu intento criticar o quadro de Ana Luísa quanto às suas qualidades técnicas e artísticas. Paulina Mondeiro é que o classificou de modesta pintura naive. Quanto à maneira como lhe surgiu o tema, aí já me afoitarei a algumas suposições, e tentarei contar a história da sua gestação, porque me foi dado acompanhá-la.
Uma noite, no salão de Gaby, discutiu-se o célebre quadro do restaurante Leão de Ouro, Os Vencidos da Vida. E tanto se insistiu e empregou a palavra grupo, que uma ideia ou esboço de ideia começou a agitar-se, a emergir, a delinear-se e a desenovelar-se no espírito de Ana Luísa: a de pintar também um grupo, e a primeira forma como o grupo se Lhe apresentou foi a de uma amálgama ou - torvelinho de rostos, figuras, mímicas e gestos, que pouco a pouco se foi adensando, definindo, contornando e colorindo até lhe aparecerem identificáveis várias das pessoas frequentadoras das suas reuniões esotéricas,
Começou Ana Luísa por realizar alguns esbocetos, guiada por esta ideia de grupo. Só que, não sabia porquê, sobretudo quando tentava o tratamento das figuras femininas, acabavam estas por se parecerem todas entre si - e, como Paulina lhe apontou, ironicamente - não só por se parecerem entre si, como, em última análise, com ela própria, Ana Luísa.
Desistiu.
Mas a ânsia de fazer qualquer coisa, uma coisa mesmo boa, uma coisa que fosse a sua salvação! - continuava a persegui-la como os tavu perseguiram Io, a bezerra errante.
Sem que ela pudesse dizer como, as personagens conhecidas, com as quais pensara primeiramente compor o grupo, esbateram-se, apagaram-se, até que um dia subitamente viu, de forma clara, quase luminosa, um outro grupo em que os figurantes eram agora as pessoas de família, o seu simultaneamente tão aborrecido como amado clã familiar.
O plano pictórico de Ana Luísa só virá a ficar completamente amadurecido, ela só se lançará na execução da sua tela após um outro pequeno acontecimento, afinal revelado como da maior importância, pois será ele a facultar-lhe o outro elemento de que ainda não dispunha: uma técnica fácil e algo inusitada, técnica depois considerada pelos críticos que virão a premiá-la, da maior originalidade.
E fui eu a mediadora ocasional desse acontecimento. Tinha participado num Simpósio de Arqueologia, na Alemanha, onde conheci uma jovem colega arqueóloga que nas horas vagas se dedicava à pintura, e por essa ocasião apresentara, juntamente com várias fotografias e desenhos dos seus trabalhos de cientista, numa das alas onde decorria o simpósio, alguns dos seus quadros de pintora amadora. Um desses quadros foi muito apreciado, noticiado em revistas de Arte e alguns comentadores lhe dedicaram atenção.
A arqueóloga-pintora compusera também nesse quadro um grupo, ao qual deu o nome de A Minha Família. Quanto à técnica, tivera a ideia de palhetar todas as partes vestidas das figuras com uma camada subtil de poalha dourada e prateada. Ingebord veio a oferecer-me um slide do seu quadro.
Num dos encontros de Ana Luísa comigo, em minha casa, falando eu displicentemente da minha última viagem de estudo, trouxe à colação o caso da jovem arqueóloga-pintora, que com um dos seus quadros chegara a alcançar aplausos não só entre os colegas cientistas como igualmente já no meio artístico. E isto devido à ousadia, ingénua mas digna de atenção, da técnica do palhetado. Foi precisamente neste momento que Ana Luísa, como deslumbrada se levantou do maple e exclamou, numa alegria a que poderei chamar selvagem: Eureka! Empresta-me esse slicie por uns dias!
Tive imediatamente a intuição, ela acabava de descobrir alguma coisa que procurava: a técnica que Lhe iria emprestar a tal originalidade, referida pelos críticos. De facto, também as figuras do seu quadro, depois de esboçadas foram contornadas por grossos traços escuros, os espaços correspondentes às zonas de carnação recobertos de espessa tinta pastel, na tonalidade de um rosa-vivo; por último, todas as superfícies que representavam peças de vestuário, polvilhadas com uma chuva de palhetas douradas e prateadas.
Reunidos finalmente todos os elementos para a criação da sua nova obra - a urgência íntima de fazer qualquer coisa, mais o tema do grupo, e agora a maneira de o executar - Ana Luísa entregou-se ao trabalho com o fervor impetuoso com que procedia em tudo; de vez em quando pedia conselhos, sugestões e correcções a Paulina.
Quando deu o quadro por terminado, Paulina deu a sua opinião: Que aquela composição conseguia contagiar-nos o entusiasmo com que ela a realizara; as suas figuras acabavam por se impor, porque embora o traçado pudesse considerar-se apenas delineado, ela chegava a transmitir-lhes alguma personalidade e alguma vida; mas era evidente um todo de improviso e várias imperfeições e, portanto - concluía -, achava que Ana Luísa não deveria ainda abalançar-se a concorrer ao maior prémio nacional para pintura.
Coisa impossível seria alguém tentar demover Ana de um intento fixo. Estava decidida a concorrer ao Grande Prémio: Embora estime muito a opinião de Paulina, entretanto quero ouvir mais alguém. A Paulina está a ficar um tanto académica e perfeccionista. Sei que O Meu Clã tem deficiências, mas sinto também, aquele grupo diz qualquer coisa. Por isso, antes de tomar uma decisão definitiva, vou fazer uma coisa: irei procurar um crítico, um autêntico crítico de pintura.
Interpus uma hipótese que acabava de me passar pela cabeça: uma ideia. Mas repara, um "desses autênticos críticos", poderá vir a ser um dos membros do júri para o Prémio, é quase certo. Assim, não te ficará bem ires procurá-lo para te dar uma opinião, vê só a posição critica em que vais colocar esse crítico. Parece-me preferível correres o risco e tomares sozinha a responsabilidade. Os nomes dos membros do júri devem estar a ser publicados e então já podes decidir com quem deves ou não falar.
Ana Luísa abriu os olhos, fixou-os em mim durante alguns segundos, mas sem me ver. Percebi, fitava para além da minha pessoa um ponto vago, nos longes, qualquer coisa a tomar forma, talvez na sua ideia, e respondeu apenas de modo vago também, como quem não vai completar um pensamento: De facto... "
Tudo quanto se seguiu (conforme vim a saber depois) veio con firmar: esses olhos abertos e fitos na lonjura sonhavam já com alguma coisa que Ana Luísa nesse preciso momento começara a esboçar, um novo projecto, tal como acontecera ao projectar a conquista de Sebastião.
E Ana procurou o crítico. Escreveu-lhe, suplicando-lhe" (segundo Paulina) consentisse fosse ela a depô-lo junto dele, pois já que tão amável, caridosamente", anuira ao seu pedido, seria ela própria quem teria o dever de levá-lo à sua presença.
Fiquei completamente convencida de que entre Ana Luísa e o crítico aconteceu aquilo a que ela chamava un moment d'ivresse. É que durante alguns dias, esfuziante, referia-se frequentemente às delícias dos moments d'ivresse. Houve até uma conversa em que se pôs a filosofar sobre a diferença entre un moment d'ivresse e uma aventura, daquelas, por exemplo, que costumava ter com os seus holandeses voadores: No moment, se bem que ele venha ao encontro de uma disponibilidade e de um anseio, profundos e permanentes, não existe uma procura; ao passo que na aventura há busca quase intencional, um farejar de oportunidades. Um "moment d'ivresse", acontece, uma aventura se procura. "
Quis-me parecer que, com toda esta analítica, Ana Luísa reflectiria e até talvez procurasse uma justificação para algum comportamento seu, recente, o qual poderia muito bem ter sido o que tivera com o crítico de arte. E, para mim, estabelecesse ela as diferenças que quisesse, entre os tais moments d'ivresse e as sobreditas aventuras, mantinha-se a suspeita do seu cálculo, do seu novo projeclo.
Por então a minha suspeita consistia na presunção de que o famoso crítico, presidente do júri que premiou O Meu Clã de Ana Gallis, teria sido seduzido, por assim dizer violado por ela. Ele era um homem casado, de quem nada constava a respeito de relações extraconjugais ou de corruptibilidades. Um tipo fechado consigo próprio, feiote, de ar azedo, nada dado a boémias nem a mundanismos, militante da ideologia marxista e da filosofia do materialismo dialéctico. Alcançara notoriedade já nos anos cinquenta, combatendo as teorias da arte pela arte, todos os abstraccionismos, surrealismos e formalismos, e defendendo, enquanto marxista, a prática de uma "crítica de Partido", vituperando asperamente, dogmaticamente as "estéticas isoladas", que deveriam ser substituídas por uma "consciência política".
Tanto eu como Paulina ficámos estupefactas e desorientadas quando Ana Luísa, poucos dias após a sua visita ao crítico, relatando a opinião dele acerca do seu quadro, nos descreveu, jubilosa, "O enorme entusiasmo que ele mostrou. Eu nem esperava tanto. Posso agora dizer, foi ele quem me revelou a mim própria! ": "Sim, vocês, os artistas criadores - disse-me ele! - muitas vezes nem têm consciência do alcance humano das vossas visões. Artistas produzem verdadeiras encantações!" Tal foi o efeito provocado nele por O Meu Clã: "Que eu sou uma artista já desalienada, visto ter atingido o plano do social, "Que eu mostro um enorme ímpeto para a plenitude com necessidade de intensificar a percepção sensorial, o prazer e a alegria! "Que eu consegui unir uma perspectiva crítica e social a um imenso amor pelos homens, como diz o Henri Lefebvre, em que ele se apoia; e falou ainda muito de musicalidade, de poesia, de sedução, de li- berdade!
Se Paulina Mondeiro já então mantinha determinadas suspeitas - e estou convencida de que sim, mas, por honestidade mental, considerando como suspeitas não são certezas nem provas - suspendia afirmações precipitadas. Eu, pessoalmente mantinha algumas convicções, que no entanto também não ousava afirmar, nem diante de Paulina nem de quem quer que fosse; convicções assentes apenas nas minhas deduções e portanto dificilmente demonstráveis. Aliás, a transcrição entusiástica feita por Ana Luísa, das palavras do crítico a respeito do seu quadro, fizeram-me chegar a duvidar das minhas próprias capacidades quanto à avaliação de uma obra pictórica, assim como das de Paulina, ao julgar muito modesto o talento de Ana Luísa. Mas considerei também, deveria dar um desconto às palavras de Ana ao transcrever as apreciações entusiásticas do crítico, pois já sabia como ela era de exageros es pectaculares.
A declaração de voto, que o crítico viria a apresentar na cerimónia comemorativa da entrega do Grande Prémio Nacional de Pintura, desse ano, acabaria por confirmar como a citação das suas palavras, por Ana Luísa, não era afinal exagerada. E, mais, que de facto o grande crítico se encontrava, nem basta dizer convicto, mas sim em estado de possessão passional pela obra premiada.
Como é que aquele homem sóbrio, discreto, comedido, se entusiasmara assim com uma obra, em última análise modestíssima e, mais, mas isso não o saberia ele - também plagiada? - perguntávamos, Paulina e eu, confundidas.
Apontei alguns dos passos do seu discurso de voto sobre a premiada: o grande crítico esforçava-se por demonstrar e valorizar sobretudo a luta pessoal da pintora Ana Gallis para ultrapassar os limites e as dificuldades que a sociedade opunha à sua actividade pessoal; e neste ponto citava logo Marx, afirmando que a artista se esforçara por incorporar na sua obra a totalidade das manifestações da vida"; depois referia Engels, declarando que O Meu Clã atingia o realismo, na medida em que constituía uma obra original, isto é, apresentava seres ao mesmo tempo fortemente indivi dualizados e típicos, apreendendo as tendências profundas, essenciais da realidade viva"; e, àqueles que por acaso viessem a denunciar esta obra como saudosista, visto o tema essencial do quadro rememorar uma cena familiar do passado de Ana Gallis, "ele contraporia desde logo a luta da artista contra a alienação, embora por si própria não a pudesse abolir, mas fazendo ressaltar a sua dureza; e que o quadro de Ana Gallis representava "um esboço de conscientização num determinado período da história da Arte, Seguidamente fez ainda breves considerações, no seu papel de crítico profissional, sobre a composição e a técnica e as relações desta com aquela. Antevendo as críticas que poderiam dirigir- lhe, dada a sua posição de marxista, de materialista dialéctico (e sempre apoiado em Henri Lefevre), defendeu a ideia de que "a esponta neidade humana, numa obra de arte, se penetra de consciência durante a própria criação, isto é, durante a procura de uma expressão... sublinhando que "o conteúdo emotivo ou afectivo é já um conteúdo social. Insistiu enfaticamente sobre o "movimento interior, em "toda a palpitação e estremecimento de vida" presentes no quadro. Terminou com a recomendação de que a Teoria da Arte não deve deixar de levar sempre em conta "a subjectividade do artista, a sua necessidade "interior de realização. Contanto - frisou - que o artista não se sinta no direito, por isso, de "extrair daí uma exaltação romântica da subjectividade ou da interioridade puras,
Não é minha intenção deixar aqui quaisquer observações sobre estas palavras do crítico, enquanto crítico, tão-pouco sobre as doutrinas estético-políticas por ele partilhadas. Direi apenas que me pareceu ter ele feito um máximo esforço - contrariando ou mitigando atitudes suas anteriores - por afastar algum radicalismo dos negadores do mérito de uma obra onde os valores materialistas se apresentem ainda numa fase de "esboço de conscientização, isto provavelmente para se defender dos mesmos quando repudiam totalmente toda a subjectividade e interioridade da obra de arte. O que equivaleria a defender exactamente um dos aspectos facilmente atribuíveis ao quadro premiado de Ana Gallis. Também não posso deixar de sublinhar o entusiasmo, a paixão com que o fez, atitudes igualmente nele invulgares e contrárias à serenidade de um crítico.
Soube-se, de resto, que durante as reuniões do júri para avaliação das obras concorrentes, ele se bateu afincadamente contra os membros de opinião contrária, chegando ao corte de relações com o seu mais teimoso contraditor; finalmente prevaleceu a sua opinião como presidente do júri.
O Prémio Nacional de Pintura veio transportar o nome de Ana Gallis, de um modesto lugar ocupado na nossa Arte para os píncaros da celebridade. Esquecida quase a aura momentânea obtida com a sua primeira exposição e com a publicação do álbum dos Pequenos Paraísos, Ana, como tantos outros e outras aspirantes à realização e à celebridade, apenas era tratada por pintora no meio de artistas, escritores e publicistas vários, mais ou menos amadores e diletantes, praticantes do elogio mútuo e do auto-elogio. Para a celebridade nesses meios, muito mais que um autêntico e relembrado apreço pelos seus primeiros trabalhos, contavam sobretudo a sua beleza, a admiração pela burguesa da alta-roda que ousara transgredir normas, abandonando o seu meio e ingressando noutro, assim como o picante de murmurações sobre as suas aventuras galantes e, acima de tudo, a ligação com o nosso mais notável astrónomo. Mas um prémio, ainda que contestado, ou às vezes evidentemente imerecido, acaba sempre por chamar alguma atenção. Com a conquista do Grande Prémio; Ana Gallis voltou de novo a conhecer as celebrações na imprensa, a receber numerosos convites para entrevistas, colóquios, cartas, telefonemas, que lhe enchiam a vida e a alma daquilo que ela sempre tanto desejara: a glória.
A exaltação extrema então apoderada do espírito de Ana Gallis, não era apenas uma consequência do momento de glória alcançado.
Estávamos em 1968. Rajadas de contestação contra o status das sociedades ocidentais varriam o mundo, da América à Europa. E as mensagens de Maio, vindas da França e da revolução dos hippies americanos não atingiam somente os jovens dos finais dessa década. Curiosamente, os aspectos contraculturais desses movimentos o que muitos desconhecem - chegaram ainda a tempo de alcançar, entre nós, as mulheres intelectualizadas que se encontravam já entre os quarenta e os cinquenta anos. Muitas delas pensaram: É o momento de queimarmos os últimos cartuxos! O que as move é o desejo de aproveitarem a oportunidade para demonstrar uma antiquíssima revolta, desde sempre sentida mas abafada, desde as longínquas eras em que não passavam ainda de toscas hominídeas.
De França chega a contestação da disciplina, da burocracia, do autoritarismo no Estado, na Universidade, na Sociedade. Os estudantes de Nanterre não querem o Poder mas a abolição da sociedade velha, repressiva, Queremos o mundo e queremo-lo já, cantava-se; Queremos a liberdade e queremo-la já, antes que seja tarde, murmuravam para si as quarentonas e as cinquentonas, solteiras, casadas, viúvas ou divorciadas. Estas mulheres organizam colóquios sobre o seu papel na sociedade, assumem atitudes políticas, falam da guerra do Vietname, do racismo e das discriminações sociais, do puritanismo. Ousam censurar o tabu da virgindade, os preconceitos da castidade; criticam a família, a monogamia dos casais burgueses, falam em amor livre". Quer pela idade, quer pela situação ainda de ditadura conservadora que se vive no país, não Lhes seria possível participar em algum Wood Stock, mas entusiasmam-se pela música pop, adoptam jeans, dançam o rock, colam grandes flores de cores vivas nos vidros dos seus automóveis, como insígnia do Flowerpower.
Ana Gallis integra-se nesse grupo de mulheres. Para mais, fora também um tanto ou quanto doutrinada em teorias de esquerda pelo grande crítico que a premiou. Pela primeira vez - confessou-me - tomava consciência do imenso drama representado pela infeliz, interminável guerrilha que nós, Portugueses, movíamos em África contra as acções de libertação das nossas colónias; assim como da amplitude da Censura e polícia políticas, das rebeldias estudantis, do catolicismo progressista, da existência de um Partido Comunista na clandestinidade, mas bem organizado; foi o crítico que lhe deu a ler o Livrinho Vermelho, de Mao, lhe recitou poemas de Alberti, lhe falou do Che Guevara, dos filósofos Marcuse e Sartre, dos extremistas maoístas. No entanto - observava - nunca chegou a perceber claramente se ele era comunista, se maoísta, se anarquista, se apenas independente de esquerda, se um contestatário que desejava uma libertação da ditadura e uma mudança revolucionária. O certo é que toda a doutrinação recebida nos seus breves encontros com o grande crítico deixaram Ana muito perturbada. Nunca, como presentemente, avalio a extensão da alienação (passou a usar e a abusar deste termo) em que tenho vivido a minha vida de burguesa. Demasiado centrada em mim própria, sem entender o mundo à minha volta. Até o meu passo de libertação em direcção a Sebastião foi ainda uma rebelião burguesa e romântica. Depois as suas palavras incidiam mais definidamente na sua situação concreta: Este prémio, o discurso em que Octávio Mendes me definiu perante mim própria, as coisas que ele me pôs diante dos olhos fizeram- me ver, por exemplo, como a influência de Paulina afinal acaba por me constranger e limitar com o seu perfeccionismo e o seu moralismo. Sim, porque ela é uma pseudolibertária. Além disso acho que ela, no fundo, me detesta. Que te parece a ti, Vera Alexandrina? "
Fui apanhada um pouco de surpresa e depois de uns segundos consegui responder:
- Se te detesta, não sei. Suponho, acima de tudo desconfia de ti.
- Desconfia em que sentido?
- Da tua vocação, por exemplo.
- Só da minha vocação?
- Talvez também do teu amor por Sebastião.
Os seus olhos tomaram aquela já conhecida expressão de fixidez longínqua:
- O meu amor por Sebastião... Acaso ele também ainda me terá amor? Cada vez o vejo mais frio e distante. Parece-me, este prémio, em vez de torná-lo orgulhoso de mim encheu-o de desencanto.
E neste momento o seu tom passou a ser o de uma quase indignação:
- Sabes que mais? Os homens, todos, todos, sonham com mulheres apenas domésticas e que resumam as suas aspirações a uma devoção exclusiva pela sua pessoa. Mulheres cientistas, artistas, políticas, profissionais dedicadas, no fundo não as desejam como companheiras.
- Mas o Sebastião sempre aceitou que te dedicasses à pintura.
- Sim, como passatempo. A partir do momento em que a pintura me traz consequências sociais, mundanas, acho que isso o deve fazer sentir-se frustrado, inquieto, desamparado, talvez ciumento.
- Terás de procurar um equilbrio cauteloso entre o amor que por ventura ainda lhe tenhas e as várias solicitações da tua vida artística. Este prémio criou (estive para dizer ampliou) um enorme alvoroço no ritmo da tua existência. Se até aqui já mantinhas uma vida intelectual-mundana que não lhe agradava - e deves saber o sacrifício que ele faz para te acompanhar a casa de Gaby e aceitar os teus convidados, teus, sim, porque dele não são... O corropio em que andas tornou-se agora mais intenso, e ele tem os seus estudos, as suas investigações, nem sempre poderá acompanhar-te.
- Mas para que será preciso ele acompanhar-me sempre? Foi quase encolerizada que pronunciou esta pergunta. De chofre, exclamou:
- Preciso de me empregar! Preciso de independência económica!
Depois continuou, mais calma:
- Tantas mulheres que já ganham hoje o seu dinheiro... Como sabes, os meus pais apesar da vida luxuosa, fortuna não possuem. Portanto os filhos nunca virão a ser grandes herdeiros. E eu, eu nesta situação... Sim, eu não sou casada com o Sebastião, que por sua vez também vive apenas do seu vencimento de investigador. Preciso em absoluto de trabalhar, de ganhar dinheiro. É já um tanto tarde, estou nos quarenta e cinco, não tenho diplomas, nenhuma habilitação específica. Poderei tentar utilizar as minhas aptidões plásticas; para viver da pintura, claro, não dá, mas para trabalhar para jornais ou revistas, como ilustradora, como capista... Vou começar a bater a algumas portas.
- O facto de teres agora ganho o Grande Prémio Nacional talvez te possa ajudar. E a propósito da tua situação de não casada com o Sebastião: vocês nunca puseram a hipótese do casamento legal?
O caso constituía para mim um enigma, que não ousava abordar nem com Sebastião, nem com Paulina, nem com Ana. Estava no entanto convencida, devia existir aí um complexo bloqueio que nenhum dos três desejaria ultrapassar.
Vejamos primeiro o caso de Sebastião. Ana perguntara-me:
"Acaso ele também ainda me terá amor?" E, para mim, secretamente perguntei-me também: Acaso algum dia ele sentiu autêntico amor por Ana Luísa? A minha convicção, neste ponto, sempre foi: ele, por um lado sentiu-se deslumbrado pelo esplendor da beleza física e pela juventude de Ana Luísa, e igualmente "comovido", dentro daquela inclinação que sempre lhe conheci, de auxiliar
e proteger raparigas mais novas, qual Pigmaleão procurando modelar jovens em busca de uma realização. Por outro lado parece-me ter ele sido assediado e seduzido, acabando por se ver na condição moral de tomar a sua quota de responsabilidade para remediar uma situação embaraçosa, a de "sedutor" de uma mulher casada e com filhos, em consequência repudiada pelo marido e pela família. Passada a fase de loucura sensual, da parte dele (e dela a de entusiasmo e alegria pela conquista de um homem célebre), a ansiedade permanente de Ana Luísa, a perturbação por ela causada na sua vida de cientista, contrária a mundanidades e futilidades, deve ter começado a provocar-Lhe, primeiro aborrecimento, depois decepção e desgosto, por último arrependimento. Ele, que algum tempo antes de conhecer Ana Luísa chegara a pensar tornar-se monge - certamente para, perante a própria consciência erguer uma razão suficiente para escapar a assédios femininos e dedicara-se exclusivamente à ciência - não iria agora falar-lhe em legalizar uma união tornada já periclitante.
Por mim não sentia coragem para me aventurar a qualquer conversa sobre o assunto, mas adivinhava que um dia seria ele próprio
a abrir-se comigo e a dizer qualquer coisa, um desabafo, um lamento, um juízo, uma resolução talvez.
Considero agora a posição de Ana Luísa sobre a própria situação a que jamais ela pusera tal problema, o de legalizar houve um dia em que chegou a declarar: Ainda que não encontrasse a oposição da minha família - seria quase certa - eu própria também não desejo casar-me, por várias razões.
Uma dessas razões - sobre as outras nunca falou - era a de que, presentemente, Estava contra o casamento. Julgava: há certo tipo de mulheres, como certo tipo de homens, que devem abster-se do casamento. É um compromisso que parece apenas formal mas acaba por se tornar desgastante, constrangedor, a-li-e-nan-te! Só se deve manter uma ligação enquanto ela for livremente desejada. O casamento acaba sempre por coarctar toda a nossa disponibilidade. "
Eu sabia, no fundo do seu pensamento, Ana Luísa não discordava em absoluto da posição da família em relação à hipótese de um novo casamento que, entretanto, deveria ser precedido de um divórcio, coisa intolerável para as convicções dessa família. Ana aceitava teoricamente o divórcio, mas algo existia aí que não conseguia superar. Na sociedade de onde provinha, os casamentos faziam-se na aceitação tácita ou explícita, tanto da parte dos familiares como dos nubentes, da classe social a que se pertencia; o casamento era uma instituição, intocável como todas as instituições, houvesse os atropelos que houvesse à harmonia conjugal. Ana amava os pais e sentia-se emocionalmente ligada às vivências solidárias da família, do seu clã. Ser-lhe-ia impossível ultrapassar tal vínculo. Se ao abandonar a vida conjugal isso fora para ela um acto heróico, um perigosíssimo salto abissal, a participação numa espécie de tragédia grega, nesse acto persistia algo que se lhe afigurava ainda incompleto, talvez não totalmente consumado. O seu desejo era o de que fosse o ex-marido a tomar a iniciativa do divórcio; ela, por si, não conseguia pensar num segundo casamento legal.
Mas até que ponto esta incapacidade de transgressão dos mais fortes tabus e sentimentos familiares, coabitava paradoxalmente, com a sua ânsia de manutenção de uma indefinida disponibilidade, talvez ela própria não o soubesse dilucidar, tão pouco se explicava claramente sobre aquilo em que consistia essa disponibilidade, várias vezes referida. Acontecimentos da sua vida futura irão mostrar como apesar dessa ignorância (ou ocultação? ), ela se movia impetuosamente dentro das suas contradições.
Por ocasião da primeira exposição de pintura de Ana Gallis, aquela em que se estreou com Pequenos Paraísos e com a Magnólia Etérea, ao lado de algumas palavras de louvor, patrocinadas" (segundo Paulina) pelo nababo Ulricho Stichini, surgiram também, como vimos, aspirantes a comentadores cripticamente ligados à oposição política, e todos esses se pronunciaram negativamente. Desta vez bastou a atribuição de um prémio, em cujo júri se encontrava um dos mais prestigiados nomes da Crítica de Arte e figura carismática dos meios intelectuais da mesma Oposição, para logo todos eles reconhecerem em O Meu Clã o retrato de certa sociedade", atribuindo à autora as mais elevadas capacidades tipicantes e simbolizadoras, impregnadas de um criticismo desalienante e construtivo".
Como é natural, o inebriamento trazido pela glória, pela celebridade desde sempre tão ansiada, acabou por deixá-la autoconvencida da personalidade crítica que os políticos lhe atribuíam e simultaneamente entendeu ser seu dever mostrar-se também impregnada, senão de um ideário de esquerda, pelo menos de intensas preocupações sociais. E, suponho, daí derivaria igualmente o fervor por ela demonstrado em todos os colóquios e palestras para que era convidada, em defender a necessidade de uma desalienação e autonomia das mulheres, o seu direito à procura de uma realização plena da personalidade, independentemente dos trilhos tradicionais e rotineiros do seu exclusivo papel de mães e de do mésticas", assim como de que se deveria reconhecer a existência de vários tipos e caracteres de mulheres, pois se havia, e seriam a maioria, as que se coadunavam a uma exclusiva domesticidade e maternidade, outras mostravam diferentes tendências e aspirações"; no entanto, também não se esquecia de sublinhar muito nitidamente, Ninguém a supusesse, por essas afirmações, uma feminista, pois entendia, a actuação e a realização femininas devem processar-se sempre ao lado dos homens e não contra os homens. "
Eclodiu um dia uma violenta altercação entre Ana Luísa e Paulina, quando esta (declaradamente aborrecida pelo abandono afectivo e presencial, por ela progressivamente demonstrado em relação a Sebastião) aludiu ao feminismo das novas sufragistas" e Ana lhe retorquiu que, Ela, Paulina, afinal estava imbuída dos mesmos preconceitos dos tradicionalistas de direita; que o facto de ela, Ana Luísa, defender a independência económica das mulheres, assim como a sua libertação da escravatura doméstica e conjugal, não tinha necessariamente a ver com as atitudes radicalistas e espectaculares das sufragistas do princípio do século; ela, o que defendia era apenas a conquista da independência económica, permissora de escolhas livres e experiências que libertassem as mulheres da queda permanente em certos mitos, como o do nmor eterno; ela também condenava as atitudes das mulheres armadas em viragos ou amazonas guerreiras, a ponto de perderem os atractivos femininos; e que isto, afeminilidade, para ela era uma coisa que através de tudo as mulheres nunca deveriam perder...
E, mais tarde, já a sós comigo, retomando o tema acrescentou ainda:
Nunca abdicarei destes delicados sapatos italianos, talvez não muito cómodos, é verdade, mas bem mais femininos que os sapatorros masculinos da Paulina. "
Mas eu adivinhava: o motivo profundo que levava Ana Luísa a alinhar obsessivamente em todos esses colóquios e simpósios sobre a libertação da mulher, além do seu prazer de se exibir em público como a vencedora do Grande Prémio Nacional de Pintura, insistindo sobre a independência económica e a realização pessoal das mulheres, era uma quase premente necessidade de encontrar uma solução para o seu actual problema pessoal, e sempre a constante ansiedade de uma movimentação que chamasse sobre si as atenções alheias, pois se via agora condicionada por uma situação que afinal a aprisionava quase tanto como as anteriores, a da casa paterna ou a da casa conjugal. Porque, bem vistas as coisas, acabara por se conjugalizar outra vez na sua vida com Sebastião e, para mais, tendo sempre à beira a sombra vigilante e crítica de Paulina.
Além de que - e pela primeira vez fazia tal alusão - Sebastião começava a dar sinais de algum entorpecimento físico e igualmente de cansaço perante convívios para ele desinteressantes.
Num fim de tarde desse agitado Verão de 68, surge Ana Luísa no meu apartamento, afogueada, a cabeleira revolta, calças claras, chemisier desportivo, sandálias. Entrou com o saco de praia, afundou-se imediatamente na senhorinha da minha saleta de estar, estendeu as pernas, apoiou as mãos nos braços do assento e ficou a olhar para mim, de olhos saltitantes, o sorriso largo, ar de contentamento em todo o ser. Manteve-se assim uns segundos, sem falar. Fui eu a interrogá-la:
- Aconteceu alguma coisa?
Esticou ainda mais as pernas, atirou a cabeça para trás, apoiada sobre ambas as mãos cruzadas sob a nuca e respondeu com uma expiração de felicidade:
- Aconteceu-me liberdade!
Passou-me pela cabeça uma ideia correspondente às observações que eu vinha fazendo sobre os últimos acontecimentos da sua vida: ela ter-se-ia separado de Sebastião. Mas não me encorajei a avançar tal hipótese.
Interpus apenas:
- Arranjaste um emprego?
- Lá iremos. Lá iremos. Para já apenas uma pequena conquista: fui à praia sozinha!
Sem tornar explícitos vários raciocínios perguntei de chofre:
- Com a anuência de Sebastião?
Ana Luísa recolheu as pernas, cruzou os braços sobre o peito, o sorriso feliz desfez-se e deu lugar a uma expressão dura, quase terrível
- Por que há-de ser sempre necessária a anuência (e vincou bem este termo) do Sebastião em todos os passos da minha vida? Acaso ele me consulta quando tem de ir ao Observatório ou ao estrangeiro? Ele detesta praia, detesta campo, ele no fundo detesta largar os seus estudos, os seus telescópios (e vincou de ironia estes seus telescópios). Mas eu, eu preciso de me movimentar, de conviver, sabes bem como fui habituada a ir à praia desde pequena; depois que vivo com ele isso tornou-se raro; mas preciso de sol, de água com sal e algas e...
Atalhei-a e completei-lhe o pensamento: - e de liberdade!
Ao que ela acrescentou convicta, reafirmante:
- E de liberdade, evidentemente! Lá porque uma mulher é casada, ou vive como se o fosse, aliás agora tenho vivido muito mais aprisionada que no tempo do meu marido, também deve dispor de horas de privacidade, de liberdade de convívios, não é possível passar os dias, os anos na contemplação de uma só pessoa. Recuso tantos convites para participar em colóquios sobre Arte e outros assuntos, não posso frequentar tertúlias nem grupos, o que me vale ainda são as pequenas reuniões lá em casa e a frequência de Gaby, nem sei como ele ainda dá a sua anuência (e aqui voltou o tom mordaz) a estas coisas, mas para ele são um sacrifício, e cada vez mais. Aliás, a Paulina também ajuda, está sempre a criticar a Gaby, vê só como ela a define: Essa libertina anarquista, ou, pior pseudo-anarquista, essa gueixa lésbica ou cigana afadistada, esse pássaro de voos sem risco! Vê só os apelidos que a senhora professora Paulina Mondeiro dá a uma mulher rara no nosso meio, uma animadora da vida intelectual, uma autêntica democrata e progressista. Se não fosse o Salão dela as noites da inteligência lisboeta não passavam de uns serões na provincia! Há muitos responsáveis políticos que lhe devem bons serviços. É verdade, a Gaby é um tanto pedante, egocêntrica, exibicionista e espectacular, mas é uma mulher inteligente, ousada, corajosa e cheia de espírito. Lembras-te daquela vez, num bar do Bairro Alto, quando ela se levantou e, de copo na mão, se pôs a cantar: "Maldita cocaína, tu mataste o meu amante..." Canta bem, dança bem, agora desenha fatos para bailarinas...
- Uma mulher interessante, de facto - concordei.
Depois de uns momentos de silêncio, de repente Ana Luísa disse:
- Sabes? Fui ontem à ginecologista, levar-lhe o resultado das análises. Tudo óptimo. E ela comentou: Aos quarenta e seis anos está como nova! O seu índice de hormonas femininas no auge! " A propósito, lembrei-me agora daquele nosso escritor misógino, tu sabes quem é, ele tem um conto, tudo se passa à mesa de um café, numa cidade de província: há uma mulher de quarenta anos, de olhar ansioso para os homens, e o escritor tem este comentário céptico, lamentoso e um tanto escarninho: Mas aos quarenta anos, uma mulher.
No primeiro momento não pude deixar de rir com a notícia do exame ginecológico, e Ana Luísa que, ao saltar da reprovação das atitudes de Sebastião e de Paulina para esta notícia, deixara o anterior ar azedo contundente para reassumir uma expressão de alegria quase esfuziante, concluía:
- Tu ris-te! Pois, ainda não está nos nossos hábitos falar destas coisas por claro. Até os escritores, ou as velam de romantismo ou falam filosoficamente de um Desejo... transcendental!
- Bem, bem. Não te esqueças dos escritores do séc. XVIII, cheios de picante e de malícia, e de muitos dos actuais, que até
caem na pornografia. Ri-me, mas fica sabendo, levo as hormonas muito a sério. Aliás, nem precisava das informações da tua ginecologista para perceber como as tuas hormonas estão no auge. Vê-se
nos teus olhos brilhantes, no cetim húmido dos teus braços, nos teus movimentos felinos... e também na intensificação das tuas ansiedades. Estás outra vez a entrar numa nova fase da tua vida, Ana Luísa! No entanto, deixa que te diga, vê se consegues alguma serenidade e se medes bem as consequências dos teus actos.
Sonhadora, respondeu:
- Os meus actos... Lembras-te de quando íamos para a beira do rio, ao fundo da quinta, nas férias, eu mergulhava a mão na água e me punha a tirar pedrinhas do fundo e a alisar a areia para que a água corresse sem obstáculos? É que há sempre obstáculos no rio da minha vida... Quando removo uns, logo outros se amontoam. Mas de facto já tenho conseguido remover alguns.
Ia para perguntar-lhe, "Qual é agora o obstáculo?", achei melhor não forçar confidências. Parecia-me preferível que a situação para onde ela avançava amadurecesse um pouco mais, embora estivesse já convencida de que uma nova fase de turbulência iria tomar conta daquela alma inquieta e ansiosa.
Ana Luísa não completou o raciocínio acerca dos prováveis obstáculos actualmente à vista no curso da sua vida, mais de torrente fragorosa que de rio deslizante.
Sentada agora lateralmente no maple e de pernas bamboleantes, portanto sem me olhar de frente, acrescentou:
- Um dia importante na minha vida, este. Além dessa minha conquista, a da liberdade de ir sozinha onde me apeteceu, houve ainda outra coisa, uma coisa linda! Queres ouvir? Saía eu do banho, como Vénus nascendo das ondas. Aliás em tempos, tentei fazer o meu próprio retrato, a sair do mar; já vais saber porque interpus esta imagem - e dirigia-me para o sítio onde tinha deixado a toalha e o chapéu, quando um homem, que trazia um largo caderno na mão esquerda e um crayon na direita, se aproxima de mim, me detém e diz: "Por favor, não avance Pare aí, onde está, tal como está, com essa água a escorrer por todo o seu corpo de Vénus. Um momento apenas, para eu tirar um croquis, se não se importa, claro. Falava com tal convicção, com um ar tão sério, que de facto parei, não dei nem mais um passo. Ele ajoelhou-se na areia e, olhando-me de baixo para cima, em gestos longos, firmes - e com olhos deslumbrados, oh! sim, disso tenho a certeza! - traçou rapidamente um esboceto. "Já está? perguntei quando me pareceu que ele terminara - "Já posso continuar a caminhar? " Ele então aproximou-se, tomou-me ambas as mãos e disse "Obrigado. Depois, como o nosso rei D. João quando foi surpreendido pela rainha, sua esposa, a beijar uma dama da corte, acrescentou: "Foi por bem. " Diante da expressão dele, tão grave e ao mesmo tempo tão doce, saíram-me espontaneamente estas palavras: "Acredito. E acrescentei com curiosidade: "Posso ver o seu desenho? Ele apertou o caderno contra o peito, como num gesto de defesa e de pudor: "O desenho será seu quando estiver pronto. Posso mandar- lho?
"Fiquei perplexa, em silêncio durante momentos. Para onde deveria ele enviar o desenho? perguntara a mim própria. Lá para casa, nem pensar. Pensei na tua casa, na de Gaby, mas não queria estar a incomodar-vos. Enquanto permaneci na frente dele, a pensar na resposta, reparei melhor no seu rosto, nas mãos, na figura: era um homem de meia-idade, alto mas não muito, magro mas não muito, olhos azuis, cabelo castanho; vestia um fato de caqui claro, já com algum uso, uma camisa de pano com motivos de xadrezinho, sem gravata, sapatos de atanado. O que impressionava na sua expressão, na sua atitude toda, em nada semelhante à dos nossos concidadãos, era o ar grave, inteligente e ao mesmo tempo de naturalidade e de modéstia, quase de humildade, quase um pouco de "cão batido". O que logo me comoveu. Tenho tanto medo desta espécie de comoção que nasce da piedade! Piedade por um homem piedade pelos homens... Pode, deve uma mulher ter piedade pelos homens? Eu, pessoalmente não tenho razão de queixa, tenho sido amada, desejada, sou eu sempre a deixá-los, nenhum nunca me atraiçoou. Mas quantas mulheres, tu sabes, sofrem com a duplicidade masculina, com o "aproveitamento" de que eles são capazes em relação ao amor ou ao desejo delas. Tão arrogantes e safados, nesse aproveitamento; tão humildes e abnegados quando Lhes chega a vez de serem eles a amar, a desejar.
Pressenti um mistério, algo de diferente naquele homem que acabava de esboçar o meu retrato. Não compreendo como permiti a sua aproximação, um tanto audaciosa, abusiva talvez. Mas a curiosidade e uma ponta de espírito de aventura levaram-me, não a responder imediatamente à pergunta mas a ser antes eu a perguntar-Lhe: "É estrangeiro? " "Sim e não", foi a resposta. "Como assim? " perguntei mais. "Sou naturalizado português", respondeu.
Ficou combinado, ele não me enviaria o retrato; por sugestão minha seria eu quem iria vê-lo no sítio por ele indicado. E acabei por lhe dizer: "Também sou artista, pintora. " Descobríamos assim uma afinidade.
Quando Ana Luísa saiu, fiquei a pensar em tudo quanto ela acabara de contar, sobretudo nas suas palavras relativas aos obstáculos. O episódio do encontro com o artista que tão entusiasticamente esboçara o seu retrato, enquanto Vénus saindo das águas, apenas poderia fazer-me sorrir, de tão romanesco. Entretanto, o facto de ela vir contá-lo imediata e também entusiasticamente, continha um significado e, dado o meu conhecimento da sua maneira de ser, fazia com que nada tivesse de insólito o aparecer-me a hipótese de que, para ela, na situação de instabilidade afectiva e de ansiedade aguda em que novamente se achava, o encontro com o artista na praia representaria uma porta aberta para uma aventura diante da qual ela não recuaria fossem quais fossem os obstáculos.
E um deles, talvez o maior, era agora a sua condição de companheira já socialmente reconhecida, de um conceituado homem de ciência. O escândalo suscitado pela deserção do casamento legal, tanto na família como nos meios da alta sociedade, estava apagado. Porque os escândalos esquecem depressa. A sociedade agita-se, estremece, revolta-se ou entusiasma-se, conforme a natureza do escândalo; mas porque ele participa da natureza da paixão, igualmente em rapidez se desvanece no efémero; talvez corresponda a uma necessidade vital da natureza humana, é como um alimento que, uma vez digerido logo o corpo pede de novo mais, ou seja, é preciso um novo escândalo.
Havia já largos anos que Ana Luísa e Sebastião Mondeiro viviam na mesma casa, eram vistos em restaurantes e em convívios sociais, em férias, em espectáculos. E ela recebia, na casa comum, como dona e senhora. A única diferença na vida deles, em relação a um casal legítimo, era apenas a de a sua coabitação não estar legalmente registada.
E não seriam as atitudes um pouco frias de um para com o outro, nem o ultimamente constante ar contrafeito, mesmo aborrecido, dele, que poderiam levar alguém à suspeita de que tal acasalamento não estava muito firme e não se destinava a durar até que a morte os separasse, pois essa é geralmente a apresentação da maior parte dos casais, legítimos ou não.
Vim a ter conhecimento das diligências frenéticas de Ana Luísa para conseguir uma coisa onde ganhasse algum dinheiro. Várias pessoas me falaram dos seus insistentes telefonemas, como de uma pessoa desesperada, à beira de uma situação aflitiva. "
Embora ela pudesse então amparar-se à aura de glória trazida pelo Grande Prémio Nacional de Pintura, a verdade é que da parte de várias empresas e instituições surgia algum constrangimento em aceitá-la. Por várias razões. Primeira, todos a sabiam uma mulher vinda da alta sociedade, sem hábitos de horários a cumprir e de ordens a acatar. Depois, para começar, já não era nova. Também o facto de viver com um homem de nomeada não punha à vontade os presumíveis empregadores. Finalmente, as provas públicas dadas em exposições de carácter artístico e até a conquista de um prémio, não demonstravam a sua capacidade de realização de trabalhos de índole comercial, onde a preparação prática e o sentido do concreto eram mais importantes que o talento artístico.
Soube também que em alguns casos ela não hesitou em tomar atitudes sedutoras, quando deparava responsáveis aparentemente mais vulneráveis a encantos femininos. Acabou finalmente por encontrar uma revista onde por recomendação de Gaby Lhe ofereceram um contrato de trabalho provisório e a meio-tempo, para se ocupar da decoração artística da capa e da execução de pequenas vinhetas e cercaduras ornamentais em algumas páginas.
O vencimento proposto, modestíssimo, dava-lhe apenas para alguns dos seus alfinetes; continuava, para o mais, na dependência de Sebastião. Mas, como veio a dizer-me, Não me chega, evidentemente, no entanto dá-me a oportunidade de sair mais vezes, de me libertar da prisão. "
A nova situação de mulher empregada obedecia sem dúvida ao seu novo projecto: tornar-se economicamente independente de Sebastião, poder movimentar-se conforme lhe apetecesse, sentir a alegria que devia ser possuir disponibilidade, liberdade".
Para uma já satisfatória independência económica, muito mais que o precário emprego na revista veio a concorrer um acontecimento de há muito desejado e perseguido por Ana Luísa: o restabelecimento das relações com o pai, com toda a família, ofendida e inimistada desde a separação conjugal do legítimo marido e a junção com um homem de temperamento sombrio, e de um meio social que lhes era alheio.
Houve no entanto algo de estranho na maneira como se efectivou o restabelecimento dessas relações, o que mais uma vez vinha demonstrar os caminhos sinuosos por onde o espírito de Ana Luísa prosseguia até alcançar os objectivos dos seus frequentes e obscuros projectos.
Pois, agora que a sua paixão por aquele homem admirável sob todos os aspectos, por aquele que a tinha revelado a si própria e lhe fizera conhecer que afinal o amor existe, agora que essa paixão se apagava, ou estava já apagada, não é que ela, provavelmente com algum cálculo, promovia a aproximação da família junto de um homem que se preparava para abandonar?
A família de Ana Luísa aceitou o convite que ela Lhe dirigiu para virem a sua casa, onde conheceriam finalmente Sebastião e a irmã Paulina. Eu, velha amiga de todos, estaria também presente.
E, aos brindes, pelas pazes feitas, o pai falou: Acabava de reconhecer que a filha encontrara finalmente uma orientação definida na vida. Provava-o a conquista do Grande Prémio de Pintura, a entrega a uma verdadeira vocação de artista, só expandida junto de alguém que a compreendia e ajudara a realizar-se em plenitude. E não deveria também esquecer a amizade e os bons conselhos com que a orientara a sua professora Paulina Mondeiro, irmã de Sebastião.
Pessoalmente custou-me assistir a este convívio, mas foi-me impossível recusá-lo. Solicitada pelos pais de Ana Luísa e por ela própria, como amiga de sempre, e também por Sebastião e por Paulina, que invocaram - um tanto misteriosamente - o desejo da minha presença, para Lhes dar certo amparo psicológico", como disseram, e ainda, confidenciou-me Paulina, enigmática, para terem uma testemunha, cá por coisas.
Sebastião manteve-se discreto durante toda a cerimónia. Assim chamo a esse jantar onde se sentia um acentuado constrangimento, apesar das efusividades exageradas de Ana Luísa; Paulina, se não fria, pelo menos à altura de uma cerimónia, isto é, cerimoniosa, com o que talvez pretendesse marcar algumas diferenças.
Se este jantar não trouxe a abertura de um franco convívio entre Sebastião, Paulina e a família de Ana Luísa, proporcionou pelo menos a realização do tal projecto, que no seu espírito lhe estaria ligado: a mãe de Ana, que acabara de herdar consideráveis bens de uma velha tia, resolveu dispor em vida da maior parte a favor dos filhos. Ana Luísa, feitas as pazes, seria também contemplada; passaria assim a poder contar com uma mensalidade; junta aos dinheiros ganhos na revista ou com outros trabalhos que pudesse vir a fazer, isso permitir-lhe-ia finalmente uma independência económica, se não folgada pelo menos suficiente para se bastar a si própria.
À sua frente abria-se assim uma estrada larga onde caberiam todos os projectos com que a sua ansiedade lhe preenchia a alma e agitava o corpo.
Terminado o jantar, depois de os parentes terem saído, Ana Luísa, exuberante de alegria e contentamento, propôs que fôssemos ao sarau de Gaby. Sebastião e Paulina, entre espanto e desgosto, alegaram cansaço, recusaram e recomendaram: "Vai, vai tu com a Vera, se ela quiser acompanhar te. Eu sentia-me mais mortificada que cansada, mas a curiosidade, acima de tudo, levou-me a aceitar.
E nessa noite assisti a uma cena não só insólita como a uma en tontecedora precipitação de acontecimentos.
Lá para o meio da ceia, quando todos os convivas de Gaby se achavam já um tanto inebriados pelas bebidas e pela sensação de à vontade, Ana Gallis, no meio de uma roda, ela, embora habitualmente expansiva, nessa noite permitiu-se mais, ou, melhor, deixou-se arrebatar por uma espécie de embriaguez, e com o copo de whisky na mão pôs-se a sapatear e a declamar:
- Yo quiero hacer um ruido con los pies. - repetindo estas palavras várias vezes, estonteada.
- De quem são esses versos? - perguntou Gaby, risonha, interessada.
- De um poeta chileno, Nicanor Parra...
- Extraordinários! - exultava ainda Gaby - Oh! Como é verdade que todos nós, às vezes, precisamos de hacer un ruido con los pies...
Então, os presentes, homens e mulheres, novos e velhos, apertaram o círculo em volta de Ana Gallis e de Gaby. Todos, semiébrios, gingavam o corpo e sapateavam, enquanto cantarolavam em coro:
Un ruido con los pies! Un ruido con los pies!
Gaby, que nunca perdia a presença de espírito, pressentiu: a cena onde havia muita gente já bebida, poderia descambar em algo de imprevisível, fora do seu controlo e, para mais, encontrava-se presente o seu actual maior amigo e admirador, um célebre ensaísta ligado à Oposição. Como disse, se bem que em tempos houvesse ela própria participado em pequenas "orgias estéticas, como lhes chamava, abandonara essa exclusiva realização por via estética, e assumia-se no presente como uma intelectual, não só animando e incentivando os artistas, mas também portando-se como uma interveniente política, uma "conspiradora.
Gaby arrastou Ana Gallis para fora da roda do coro, abraçou-a pela cintura, como se a amparasse, e falou para a assistência:
- Digo eu agora os restantes versos de Nicanor, que a Ana Gallis não completou mas me confiou:
" " Yo quiero hacer um ruido con los pies que mi alma encontre su cuerpo
- Belíssimos! Belíssimos! Viva Gaby! Viva Ana Gallis! Viva Nicanor! - gritaram todos.
Noutros tempos talvez Gaby estivesse interessada em tomar esses versos como tema para um daqueles simpósios mundano-intelectuais de que o seu salão era palco. Actualmente, que os seus gostos e interesses se dirigiam para contactos mais sérios e responsáveis - do que era prova a amizade com o grande ensaísta da Oposição - mantendo embora o estatuto de artista libertária, de mulher progressista e livre de preconceitos burgueses, Gaby afastava deci didamente da sua casa todos os eventos que pudessem assumir "um cariz de boémia gratuita, como declarava para alguns amigos.
De intuições rápidas, anteviu claramente como aqueles versos, escapados da boca de uma amiga em estado de embriaguez, poderiam suscitar em alguns dos presentes, vários dos quais também já bastante "tocados", um pretexto para disparates ou "filosofices alarves".
Levou Ana para um quarto e pediu-me:
- Acompanha a Ana Luísa. Ela está perturbada. Não apenas por ter bebido um pouco de whisky a mais, mas talvez por qualquer problema.
A cabeça apoiada na almofada do banco ao meu lado, no carro, Ana deixou-se conduzir placidamente e em silêncio. Mas no momento em que eu metia o automóvel pelo princípio da rua onde ela vivia com Sebastião, bruscamente endireitou-se e como desvairada, gritou:
- Por favor, Vera Alexandrina, deixa-me ficar contigo em tua casa, esta noite, e por alguns dias! Não quero voltar para a companhia deles! Não posso! Já não os suporto mais!
Por muito me custasse o papel de mensageira de tal decisão junto de Sebastião e da irmã, a minha consciência estava sossegada, eu não atraiçoava nenhuma amizade, nem a que mantinha pelos dois nem a dedicada a Ana Luísa, já mais antiga.
Eles foram discretos, não exteriorizaram sentimentos de desgosto ou de indignação. Sebastião há muito percebera como o entusiasmo de Ana Luísa pela sua pessoa estava extinto, como ela vivia contrariada e se sentia, de novo, tal como no passado, uma prisioneira. Ele começara também a perceber que os seus sessenta e tal anos já não podiam acompanhar o estado de exaltação permanente em que Ana se agitava, ele necessitava de tranquilidade, ao passo que ela queria bulício, projectos renovados, como ela própria afirmava.
Encarreguei-me de retirar os pertences de Ana Luísa da casa de Sebastião. Ela pediu-me também a deixasse ficar comigo apenas o tempo suficiente para encontrar uma casa, visto agora já a poder pagar, e para reflectir sobre o destino a tomar".
Nos primeiros tempos, após a ruptura com Sebastião, encontrei algumas vezes Ana Luísa sentada, chorando em silêncio. Nunca lhe perguntei a causa dessas lágrimas. Eu poderia pensar simplesmente: É natural. Ela conta já duas grandes decepções na vida. " No entanto, sabia, este desgosto em breve iria ser, não digo apagado, porque ela não era desprovida de sensibilidade afectiva, mas o temperamento reactivo, o seu inato furor vital, a tudo se sobreporiam.
De facto, daí a algum tempo recomeçou a cuidar da aparência, embora não revelasse grande entusiasmo em iniciar o trabalho na revista, pediu até um adiamento. E vi-a retomar a sua natural vivacidade quando Lhe trouxe a notícia extraordinária de que o grande dirigente do Partido Democrático Internacionalista, o temido e odiado, pela Direita, Lidador vermelho", se encontrava incógnito entre nós e vinha realizar um comício clandestino numa embaixada benévola, onde a polícia política dificilmente poderia entrar.
Perante esta insólita notícia, nos olhos de Ana passou a minha já conhecida expressão de delineamento de um novo projecto, e ela disse imediatamente:
- Quero ir vê-lo! Vou bater a várias portas até arranjar um convite.
Por muito habituada que eu estivesse às decisões repentinas de Ana, e visse como ela, pelo menos aparentemente se mostrava interessada nos movimentos da Esquerda desde os seus contactos com o Crítico de Arte, não fui capaz de vislumbrar qual o interesse ela pudesse ter em comparecer no meio de um ajuntamento comicial, ela tão avessa a contactos com as massas populares, ela que sempre censurava o mau gosto de apresentação das mulheres esquerdistas: Até as mais cultas, não se sabem vestir. Parolas licenciadas como diz de algumas a Milena. - Já reparaste nos vestidos delas, escolhem-nos daquela horrívél cor castanha, com florinhas amarelas e brancas, cores de vomitado, cores de caca. Ou então são os casacões de xadrez, também nas cores mais feias que há, sobre saias de borboto, não sabem combinar cores nem texturas, as blusas de gola "à mamã"... E ainda por cima tomam um ar triunfante, acabam por ser mais petulantes que todas as mulheres coquettes.
Pois conseguiu o convite. Lá foi ao comício clandestino, ou antes, lá fomos (eu estava interessada em ver o que iria passar-se relativamente a Ana Luísa).
Imprevisívelmente eis a elegante Ana Gallis misturada com a massa rumorejante (e não vociferante, por causa da polícia, lá fora), de punho no ar - se bem que postada em lugar privilegiado, dada a proximidade do tablado onde se erguia a tribuna para o grande Lidador, logo à frente - distinguível da amálgama pelo vestuário, pela toilette, direi com mais precisão.
Quando ela resolveu comparecer no comício, decidiu simultaneamente: Não penses que eu, só para não destoar, vá vestida como qualquer das militantes, armada em freira laica. Claro, não levarei nenhum dos meus vestidos. O tailleur verde-limão fica-me a matar mas, para o efeito, é demasiado catita; em última análise, não é nada de luxo, mas tem aquela cor tão exquise... Não. Vou imaginar qualquer coisa de simultaneamente elegante e sóbria, só com uma leve nota de garridice, olha, levarei um tailleur azul-escuro. O azul-escuro, de maneira geral, é cor ingrata, combina mal, embora diga bem com vermelho e o branco, mas isso "faz bandeira francesa"; com o amarelo dá farda de arrumadora de cinema; com o bege ou com o branco, traje de asilada, sobretudo se a chemisette for de gola simples, desportiva, das tais, à mamã. Olha disfarçarei a austeridade do azul-escuro do tailleur com a ousadia de uma blusa bem janota. De gola subida mas com um jabot de organdi branco, debruado com um folhinho plissado, e os punhos iguais...
Achara. Realizara. E assim foi postar-se, bem diante do tribuno revolucionário: bela e embevecida.
Eu, presente, um pouco mais para trás, já no seio das plebes, atentei precisamente na atitude dela: admirativa, deslumbrada, diria apaixonada.
Quando o grande Lidador terminou as suas falas e estalaram na assistência dos adeptos e militantes a ovação, mais o coro dos slogans partidários, vi Ana Luísa deixar o seu lugar, rodear a tribuna, e por uma escadinha lateral, subir ao estrado erguendo alto na mão um grande ramo de cravos vermelhos. Ana avançava, subia os degraus, e os seus olhos deslumbrados, enfeitiados, fixos no rosto duro, seco, obcecado, do grande chefe. Chegada junto dele estendeu-Lhe o ramo das flores, enquanto ao mesmo tempo inclinava graciosamente a cabeça, num jeito humilde, terno, como aquele que as crianças tomam quando querem pedir alguma coisa e sorria
sorria, com o seu sorriso insinuante (no entanto de uma pressentida ambiguidade, a deixar suspeitar algo entre a generosidade e o egoísmo, a sinceridade e a falsidade, a timidez e a ousadia, a candura e a sensualidade); depois, num tom de voz quase soluçado, disse para o lider: Viva, Dâmaso Espinhal, viva! Aceite as flores da minha admiração!
O revolucionário, com um sorriso forçado, ergueu o ramo no ar e com ele seguro no punho, acenou energicamente para a multidão.
A seguir deu a Ana Gallis um aperto de mão igualmente enérgico e, voltando já o rosto para outro lado, disse ainda, também energicamente, Obrigado, voltando a sacudir - a brandir - energicamente, o ramo no ar.
Quando regressámos a casa, Ana Luísa vinha esmorecida. Ouvi-lhe apenas, num murmúrio decepcionado: Não se acendeu a centelha. Não se deu o clique. "
Compreendi então imediatamente qual era desta vez o seu projecto. Estupefacta, perguntei-lhe:
- Mas que é que tu querias?
Ensimesmada, respondeu apenas:
- Conquistar... o inconquistável.
O Cruzeiro das Ninfas
Durante dois ou três dias Ana Luísa entreteve-se a ler. Estava abatida. Até que uma tarde voltei a encontrá-la de novo animada, mas desta vez havia na sua animação uma espécie de indignação. Supus que a incomodassem os últimos telefonemas, insistentes, do artista da praia, interroguei-a e ela respondeu, com a tal indignação, como se respondesse a algum invisível interlocutor aborrecido:
- Ele atrai-me, isso é verdade. Mas por agora vou desistir. Ou estará uma mulher condenada a cair eternamente nas armadilhas do Amor? O que é o Amor? Lembro-me daquele nosso escritor que, irónica e merencoriamente, põe em quase todos os seus livros os versículos do libreto de uma ária de Mozart: Voi che sapete che cosa l'amore, E sabeis, Vós? Ou julgam que sabem? Tu sabes? Ele sabe? De uma coisa estou certa, nesta fase da minha vida: quero ser livre, pelo menos por algum tempo. Quero sentir-me disponível, quero aprender a ser eu a escolher os meus rumos. Alguma vez as minhas decisões foram livres? Da família, dos mitos, dos tabus, das hormonas? Não quero ver-me de novo enclausurada em uma morada de um só postigo, com vistas só para um lado, quero rasgadas janelas largas que me deixem olhar para todos os pontos cardiais. Acima de tudo gostava de descobrir se o meu desejo mais fundo é o de que a minha alma encontre o seu corpo ou o de que o meu corpo encontre a sua alma. "
Calou-se. Reflectia. Acalmou-se. Depois levantou-se e, resoluta, concluiu:
- Tenho um projecto. Vou organizar uma excursão, um cruzeiro. Um cruzeiro só para mulheres. Convidarei amigas e conhecidas. A minha ideia é a de nos reunirmos, à porta fechada, sem a
presença de homens, e discutirmos vários temas sobre a nossa condição feminina e sobre o Amor. Gostava que viesses também.
Não me seria possível por essa altura acompanhá-la, trazia em preparação o meu doutoramento. Mas prometi entregar-lhe uma pequena dissertação que, supunha, havia de se integrar no sentido geral dos assuntos que elas iriam tratar.
Ana começou a organizar o Cruzeiro, como era de seu natural com um entusiasmo alvoroçado. Remexia folhetos turísticos, livros, rabiscava notas, escrevia cartas e fazia inúmeros telefonemas.
Por este tempo Sebastião Mondeiro partiu para os Estados Unidos, para uma estada de duração indeterminada. Despediu-se de mim com uma carta onde me confiou: A Ana, como se disse da Vénus de Milo, que não tem braços, é a mulher que atrai mas que não prende. "
Quando lhe mostrei as palavras de Sebastião, a reacção dela foi a do despeito, com alguma cólera:
- Não prende mas também não deseja ser presa de ninguém. " Não Lhe revelei, no entanto, pela mesma ocasião, as palavras mordazes ouvidas de Paulina (que adoptava, creio, outras de Bernard Shaw):
"Ela era uma coruja adoentada por alguns dias do sol, que para ela foi o Sebastião."
Gastas umas semanas agitadas na organização do Cruzeiro, Ana Luísa deu-me a ler os tópicos propostos às convidadas, para discussão:
Soyez amoureuses et vous serez heureuses
Eu quero amar amar perdidamente... este e Aquele e mais o outro...
A princesinha de lâ estava apaixonada sou jovem e ardente. Tenho ardor suficiente para todos e desejo compartilhar do bem que possuo.
Pero yo quisiera estar en el diván con Juán, en el colchón con Ramón, en el canapé con José, en la silla com Medinilla, en en
suelo con el que yo quiero, pegado al muro con el lindo Arturo en la gran chaise-longue con Juán, con José, com Medinilla, con Arturo con Ramón.
Ay! Ay! Ay! Ay! Yo me quiero casar me han hoido Yo me quiero casar con un mocito, con un militar con un arzobispo, con un ma, canado de macanear veinte mocitos de Portugal.
Interrompi-a com um gracejo:
- Já que procuras metáforas poéticas para a expressão dos teus problemas, pergunto-te também, citando uns versos do Ulisses, de James Joyce:
Não estás cansada de ardentes vias,
Sereia de serafins caidos
e deixa, acrescente estes outros, do nosso Teixeira de Pascoaes que, como sabes, admiro:
És um liriofugindo espavorido Ante a pura visão do seu perfume. És assustada fonte ao ver erguido O seu liquido corpo em névoa d'alma.
Ela olhou-me demoradamente e repetiu, vaga, meditativa
O seu liquido corpo em névoa d'alma...
para, de súbito tomar uma expressão irritada e exclamar:
- Sabes que mais? Não estou em maré de análises psicológicas nem de especulações metafísicas. Por isto não aceitei a proposta que a Gaby queria trazer para o nosso Cruzeiro. Ela anda agora muito dada à metafísica e à metapsicologia. Interessada na metafísica do sexo, lê o Julius Evola e constrói teorias sobre a perfei ção do Andrógino e sobre o Espírito Santo. Quero coisas mais prosaicas neste Cruzeiro. Os restantes tópicos, que serão tema das nossas pesquisas, fui buscá-los à Arte de Amar", de Ovídio. Ele começa logo por prevenir que só ministra o ensino de ligeiros amores, e será esse o nosso verdadeiro tema, os ligeiros amores:
- Colhei aflor mulheres! Se ela nãofor colhida Cairá por si mesma fanada e emurchecida.
- Como é dificil à mulher A um só homem agradar!
- Mil homens poderão gozar vossos encantos Sem nada lhes tirar
- Que as tuas asas te levem Onde o sopro do vento te levar
- Não penses que arvorado em severo censor Te condeno a não ter mais que um amor
- E tu também, ó longo véu que tapas das matronas os pés, vai- te no vento! Eu só a quem é livre me dirijo:
Apenas me dirijo a quem não teme Os prazeres mais afurto concedidos...
- Nos nossos jogos, definitivamente não entra nenhum manto de matrona.
- Abomino a mulher que se entregou
Apenas porque tem de se entregar
E que nenhum prazer experimentando
Frigidamente faz amor pensando
No novelo de lã.
Finalmente a última tese para discutirmos neste Cruzeiro. Mas, vê só onde a fui buscar, ou antes, onde a desencantou a rainha Margarida de Navarra: no Roman de la Rose,
A qual Margarida, depois ainda teve a coragem - repara que ela viveu no séc. XVI! - de a estampar na novela nona do seu Heptâmeron"
Cá vai:
E perante todos os doutores limita-te a citar a Velha do "Roman de la Rose ", que diz
Rapazes, acreditem, nós somosfeitos, Todas para todos, e todos para todas. "
Como Ana Luísa desse por terminada a leitura dos tópicos ovidianos por ela seleccionados, comentei:
- Espantosa Margarida! Temas ousados, ainda hoje! Polémicos, perigosos! Na verdade, vocês, participantes nesse Cruzeiro, bem farão em discuti-los à porta fechada, longe de ouvidos masculinos...
Ana Luísa também não quis levar para o seu Cruzeiro das Ninfas do Tejo a dissertação" que eu lhe prometera. Perante o meu comentário de que havia, quanto aos tópicos por ela escolhidos para discussão, muitos outros assuntos que deviam ser tratados, para por assim dizer se estabelecerem pontes entre os vários problemas, ela respondeu-me, Tens razão, mas por agora, ficaremos por aqui ".
A minha dissertação justificava-a eu, partindo também de Ovídio, mas de um passo por ela omitido:
Se em cofres não estão encarcerados os mistérios de Vénus, não são acompanhados por pancadas frenéticas de cimbalos.
Todos os homens participam deles, mas querem praticá-los em segredo. A própria Vénus, se o vestido despe, inclina-se para afrente e com a mão tapa os secretos encantos.
Por toda a parte unem-se abertamente os animais domésticos; e a donzela mesmo quando já viu esse espectáculo, vira às vezes a cara.
Para osfurtivos encontros procuramos um quarto bem fechado.
E quanto é impudico nós tapamos
com em véu recatado;
e se as trevas inteiras não buscamos,
um quebra-luz usamos,
que a iluminação do claro dia
pudicamente faça desmaiar
Ainda lhe disse:
- O tema do pudor, Ana Luísa, como seria interessante para nós, mulheres... Como vês, o próprio Ovídio tinha a sua estética do pudor.
Não a convenci.
Entretanto, peço eu, Narradora, licença aos Leitores para transcrever aqui o meu trecho, recusado por Ana Luísa. Trecho que corresponde a umas notas por mim recolhidas de uma conversa em tempos presenciada, entre Ana e Alda Vilharigues (aquela poetisa já apresentada neste romance, e que em adolescente vinha conversar connosco, comigo e com Ana Luísa, para falarmos sobre Jesus Cristo; e que agora embarcava também no Cruzeiro das Tágides).
Nessa conversa trataram elas precisamente desse tema do pudor, agora recusado por Ana Gallis:
- Pois eu aprecio a nudez total do homem, gosto de contemplar a agressividade do seu sexo - dizia Ana.
A poetisa Alda, respondeu quase patética:
- Ana, como é possíveljuntar a ideia de contemplação à de sexo?
Ana Luísa abriu muito os olhos, a sua intuição mostrou-lhe que devia começar a tornar-se mais subtil perante a poetisa:
- Bom. Talvez tu, Alda, tenhas razão. Bem vistas as coisas, o termo não deve estar correctamente empregado. Defacto, um sexo masculino não se contempla. É só para ver com os olhos da pele e do tacto, ou seja, com os do nosso sexo feminino.
Alda, que me parecia um tanto chocada pela crueza do assunto introduzido por Ana, respondeu no entanto com seriedade:
- Com os olhos do nosso sexo feminino, não. Porque o sexo feminino é apenas uma boca, pronta a aspirar a sugar e a triturar. Vagina dentata.
Ana Luísa continuou:
- Assentemos em que o sexo masculino não é digno de contemplação, mas apenas de olhares gulosos, como um alimento bom para saciar o apetite, ou antes, afome.
Alda levou a discussão para o campo que verdadeiramente lhe interessava:
- Seja como for nem sequer gosto de ver os sexos, tanto o do homem como o da mulher são obscenos precisamente porque são horrívelmente feios. Assim como a cópula carnal, é simplesmente bestial. E ridícula! Imagina-te suspensa por cima de um casal na cama, durante o acto, e diz-me. se não acharias cómicos aqueles movimentos de êmbolo do homem Olha os pobres dos cães, até inspiram piedade, parecem cumprir uma condenaÇão, os coitados. E nós, mulheres! Sabem o que o Georges Bataille diz de nós, os termos que emprega quando fala dos arrebatamentos amorosos de uma mulher cuja extrema elegância impressiona um homem? " Diz que durante o acto sexual é como se uma cadela raivosa tivesse substituído a personalidade de tão digna senhora...
Ana Luísa, entusiasmada, defendia as suas ideias
- Nada disso! O que vejo é repressão, os tabus em que fomos criadas, que se intrometem na nossa vida desde pequenas, conformam as nossas opiniões, as estéticas, as morais. Para mim, apesar do seu ar animalesco e agressivo, repito, o sexo masculino é belo, e por isso mesmo.
Alda, também entusiasmada:
- A maioria dos animais são feios. As andorinhas, não sei se já reparaste, oh! as célebres andorinhas em seus volteios ágeis, silhuetas delicadas recortadas nas tardes claras de verão, tão gentis! Quais Vocês já viram andorinhas bem de perto Hediondas com aquela cabeçorra de um redondo bruto bronco os olhos turvos nocturnos estúpidos maus. E os insectos Observem-nos de perto: peludos, as patas eriÇadas loucas cheias de pinças articulações engenharias primárias especiosas. Os animais são feios! As soluÇões encontradas pelos seus corpos na luta pela vida, na adaptação nos meios ecológicos, criaram neles órgãos instrumentos esquisitos maquinarias monstruosas. É como se o Criador tivesse andado, andasse ainda, em tentames, esforçando-se por encontrar soluÇões entre a engenharia e a estética. Para já, só conseguiu seres toscos ou brutais. Lembrem-se dos répteis do Jurássico! Cabecinhas mínimas a rematar toneladas de músculos e de escamas. Afinal deve ter sido por causa dessas cabecinhas atrofiadas que eles foram varridos da face da Terra, não me venham cá com teoria catastrofica do apocalipse meteórico! Corpo mais, cabeça a menos, só isso! E é que não se trata só de fealdade, há também o tal ridículo de que falei há pouco. Ridícula a tromba do elefante, ridícula a bocarra dos hipopótamos, os corpos lineares das cobras e das minhocas, as arborizações córneas dos veados; as cortinas franjadas dos bodes, o comprimento do pénis dos burros.
- Mas então interrompeu-a Ana Luísa - não consegues encontrar alguns animais, pelo menos elegantes e graciosos? Um leão, um tigre, uma gazela, um gato, um pombo, uma doninha, até um lobo Alda:
- Em certo sentido são belos. Ou pelas linhas do corpo, ou pelos movimentos, ou até pelos pelames. Mas é que a fealdade que vejo nos animais não é só do seu aspecto exterior É uma coisa que resulta precisamente da sua animalidade, daquilo que se revela para lá das aparências: é toda a sua sôfrega ânsia vital, o alerta ávido, astuto, cruel, atento na espera da presa próxima, voracidade com que estraçalham carnes, cartilagens, ossos, e os deglutem. Como é hediondo esse mastigar lamber engolir pelos bicos, beiços, linguas e goelas! Ainda se não tivessem de se caçar e devorar mutuamente... Afinal, o Criador o Autor de um Cosmos tão vasto (parece), dir-se-ia que no campo da nossa vida terrena dispôs (ou dispõe) de pouquíssima matéria. Como um aprendiz de modelagem, possuindo apenas uma única barra de plasticina, vai enformando figuras várias; mas depois desfá-las, volta a amassar e a enformar com a mesma plasticina, e assim sempre sucessivamente. Em resumo, os animais devoram-se uns aos outros incessantemente, a vida devora a vida, a vida é um círculo vicioso, precisamos do coração para bombear o sangue e do sangue para alimentar o coração, para este tornar a bombear o sangue, etc. etc. e é assim com todas as nossas funções, qual é o sujeito independente de todas elas o nosso corpo Mas o nosso corpo é os nossos órgãos mais as suasfunções, e as suasfunções mais os nossos órgãos constituem o nosso corpo, estas são as minhas mãos, esta minha cabeça, mas afinal de quem se eu não sou eu sem as minhas mãos e a minha cabeça
Ana Luísa voltou à questão do sexo:
- Achas, Alda, que o sexo masculino também nos devora, nós, mulheres
Eficou um tanto espantada quando Alda Vilharigues, a poetisa, respondeu:
- De maneira nenhuma. Só se for em sentido figurado. Em termos fisiológicos não, porque a vagina é indevorável. Porque vagina não pertence ao reino animal. Nem ao vegetal. Nem ao mineral. Olha, a vagina é do dominio da metafisica. Senão, repara: não se integra na definição cartesiana de matéria, visto ser um espaço vazio, uma cavidade virtual, o que dentro da mesma defni ção vem a dar uma contradição. Porque espaço quer dizer extensão, a extensão pressupõe a qualidade de ser extenso, portanto material.
Um momento - interrompeu-se Alda a si própria - precisava de um qualquer "Manual elementar de Filosofia", mesmo antigo.
Ana rebuscou numa estante, entregou o livro e Alda continuou:
- Muito bem. Aqui está: "Na linguagem ordinária, o termo extensão e o termo espaço são por vezes considerados como sinónimos. Mas, para falarmos com propriedade, extensão e espaço designam duas noções diferentes. A extensão é a propriedade de uma coisa extensa assim se fala da extensão de um campo. O espaço, pelo contrário, não é propriedade de coisa nenhuma; é considerado como uma realidade absoluta. " Portanto, a vagina é "esse espaço, realidade absoluta que não é propriedade de coisa nenhuma. " Ou seja, ela é o NADA. Não se lembram daquele trecho do Henry Miller no "Trópico de Câncer", em que ele foca uma lanterna sobre a vulva aberta de uma prostituta e exclama: "Nada! Isto é o nada!"? O sexo feminino é portanto um abismo, um vórtice, um "buraco negro" onde se perde e aniquila o corpo bem material, esse sim, que é o sexo do homem.
- Já que estamos no campo da metafisica, isso só se poderia dizer da vagina propriamente dita, enquanto cavidade virtual, preciso. Mas gostaria - e foi minha, de mim, Narradora, esta in tervenção - gostaria fizéssemos agora a comparação estética entre o sexo do homem e o da mulher. Porque se somente o do homem, como diz Alda, é o exemplo por excelência do obsceno, e precisamente porque começa logo por sê-lo da fealdade, o da mulher na sua totalidade - refiro-me à vulva e não apenas à vagina - se nesta totalidade talvez ela não seja bem um objecto, pelo menos será uma superficie de matéria extensa...
Ana Luísa interrompeu-me, dirigindo-se de novo a Alda:
- Serás capaz de afirmar tu, Alda, que o nosso sexo, na sua totalidade, é mais bonito Que o do homem
- Estou bem longe de pensar isso. Todos os sexos são feios, com excepção do das crianças que, esses, talvez sejam os "bibelots" naturais mais bonitinhos da Criação. Agora o sexo das mulheres A sua essência não só é a da fealdade como também a da imbecilidade, o que está bem expresso em alguns dos termos com que o povo o alcunha, por exemplo os de pássara e pachacha!
Intrometi-me:
- No entanto, Alda, poetas como tu têm-no comparado a uma flor ou a um búzio...
Alda:
As definiÇões exactas e realistas, são essas, as que estão contidas nesses engraçadíssimos termos de pássara e pachacha. Os que
falam de pétalas esquecem os espinhos; os que falam de búzio, descrevem-no como faria um boi ou um cavalo, se pudessem falae Mas vocês bem sabem: de pernas abertas, o que nós mostramos é, de facto, uma pássara ou uma pachacha. Com seu ar estúpido, insisto, ninguém me tira esta ideia: o sexo feminino é uma espécie de careta parva, com uma expressão obstinada de espera, como a de um passarolo no ninho, a boca aberta à espera de alimento para engolir.
Quanto à pachacha, sem dúvida, trata-se de outroplebeismo. Os dicionários costumam dizer que esse plebeismo se refere às partes pudendas da mulher", mas curiosamente não dão a sua etimologia.
Já tenho perguntado muitas vezes a mim própria: então de onde vem este termo de pachacha ? De paxá? Paxá, escreve-se assim, com x, mas uma grafia menos correcta também apresenta pachá. É fácil supor uma origem onomatopeica, se imaginarmos os sons produzidos pelos contactos do choque dos dois sexos... Mas, façamos entrar aqui um pouco mais de imaginaÇão, aventuremo-nos numa fantasia etimológica: os nossos Descobrimentos maritimos... - e, aqui, eu, Narradora não pude deixar de dar uma gargalhada e de comentar:
- Onde isso já vai, até os Descobrimentos vêm à baila... Mas Alda continuou:
- Os nossos Descobrimentos vêm à baila a propósito de tudo. Ora, como dizia, os nossos Descobrimentos maritimos puseram-nos em contacto com os magnates do Oriente, devem ter-nos familiarizado com o espectáculo dos paxás reclinados em larguíssimos efundíssimos divãs, de pernas cruzadas à sua maneira oriental, em atitudes negligentes, indolentes, de senhores ricos e adulados. Reparem: é costume dizer-se de pessoas ociosas, que gostem de se espapaçar em bons sofás Parece mesmo um paxá e, de quem é preguioso e não trabalha, Leva uma vida de paxá. "
E agora continuemos. As odaliscas dos haréns, lembrem-se do Ingres, do seu quadro das Odaliscas no banho turco, de todo aquele talho de carnes rosadas, daquelas atitudes de fêmeas repletas de roscas de gordura, saídas do banho quente e perfumado, à espera de serem levadas ao seu dono e senhor no paxá. Que eram essas mulheres senão as pachachas do pachá?"
Recebi um telegrama, enviado por Ana Luísa a partir daquela lusitana nau onde navegavam já as Tágides...
O telegrama continha apenas esta citação, tirada do Orlando", de Virginia Woolf:
"E eram muitas as lindas histórias que contavam e muitas as divertidas observações que faziam, pois não se pode negar que quando as mulheres se reúnem - mas psiu! - têm sempre o cuidado de verificar se as portas estão fechadas e nenhuma das suas palavras vai ser impressa. "
Lida a notícia enviada por Ana Luísa e meditando sobre todos os acontecimentos da sua vida, respondi-lhe para bordo com este outro telegrama, cujas palavras reproduziam estes versos das Canções", de Gabriela Mistral:
"Nos limites vários que toquei, feri-me. Tomei-os por pássaros maritimos, niveos. Os pontos cardiais são quatro delirios. Os grandes alciões não trago cativos.
Recolhi apenas rubor e vertigem.
Telegrama de que depois me arrependi. Porque, considerei, com ele tomava uma atitude moralista, quando o que eu tinha a fazer era reflectir, e muito, sobre aquelas estranhas palavras um dia escritas por Sigmund Freud:
"A grande pergunta (. ) para qual não encontrei nenhuma resposta durante trinta anos de pesquisas sobre a natureza das mulheres, é a seguinte afinal que querem elas "
E, ao pôr um ponto final (aliás de interrogação) neste romance, com esta citação, eis, Leitores, que outro título me veio à ideia: e se eu lhe chamasse "A GRANDE PERGUNTA"?
Natália Nunes
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