Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
VERDADE AO AMANHECER
«Em África uma coisa é verdade ao amanhecer e mentira pelo meio-dia e não devemos respeitá-la mais do que ao maravilhoso e perfeito lago bordejado de ervas que se vê além da planície salgada crestada pelo sol. Atravessámos essa planície pela manhã e sabemos que tal lago não existe. Mas agora está lá e é absolutamente verdadeiro, belo e verosímil.»
ERNEST HEMINGWAY
As coisas não eram muito simples neste safari porque as coisas tinham mudado muitíssimo na África Oriental. O caçador branco fora um amigo próximo durante muitos anos. Respeitava-o como nunca respeitara o meu pai e ele confiava em mim, o que era mais do que eu merecia. Valia a pena, no entanto, tentar merecê-lo. Tinha-me ensinado deixando que eu me desenvencilhasse e corrigindo-me quando fazia asneiras. Quando fazia alguma asneira ele explicava-me. Depois, se não voltasse a cometer o mesmo erro, voltava a explicar-me um pouco mais. Mas tinha um espírito nómada e acabou por ter de nos deixar porque precisava de estar na sua quinta, que era o nome que davam no Quénia a uma exploração de gado com oito mil hectares. Era um homem bastante complicado feito da mais absoluta coragem, de todas as belas fraquezas humanas e uma compreensão das pessoas estranhamente subtil e extremamente crítica. Era de uma dedicação total à família e à casa mas gostava ainda mais de viver longe de ambos. Adorava a casa, a mulher e os filhos.
- Tens algum problema?
- Não quero passar por parvo com os elefantes.
- Hás-de aprender.
- Mais alguma coisa?
- Convence-te que todos sabem mais do que tu mas que é a ti que cabe tomar as decisões e de as aguentar. Deixa o acampamento e essas coisas ao Keiti. Faz o melhor que puderes.
Há pessoas que adoram mandar e na sua pressa em tomar as coisas em mãos mostram-se impacientes com as formalidades de receber o poder de outra pessoa. Adoro o comando por ser uma liga ideal de liberdade e escravidão. Podemos ser felizes com a nossa liberdade e quando ela se torna demasiado perigosa buscamos refúgio nos nossos deveres. Durante muitos anos não tinha exercido nenhum comando que não fosse sobre mim próprio e isto começava a aborrecer-me pois que me conhecia assim como conhecia bem demais os meus defeitos e virtudes, que me deixavam pouca liberdade e muitos deveres. Ultimamente tinha lido vários livros escritos sobre mim por pessoas que sabiam tudo da minha vida interior, objectivos e motivações. Ler esses livros era como ler o relato de uma batalha que tivesse travado escrito por alguém que não só não estivera presente como, em certos casos, nem sequer tinha ainda nascido quando a batalha se dera. Todas essas pessoas que escreveram sobre a minha vida, interior ou exterior, faziam-no com uma segurança absoluta que eu nunca sentira.
Naquela manhã desejei que o meu grande amigo e mestre Philip Percival não se sentisse obrigado a comunicar naquela estranha estenografia de subentendidos que nos servia de língua oficial. Gostaria de poder perguntar-lhe coisas que era impossível perguntar. Mais do que qualquer outra coisa, gostaria de receber instruções tão completas e precisas como as que os britânicos fornecem aos seus aviadores. Mas sabia que as leis não escritas que vigoravam entre mim e Philip Percival eram tão rígidas como as leis costumeiras dos kambas. A minha ignorância, como há muito tempo fora decidido, só poderia ir diminuindo graças à minha própria aprendizagem. Mas sabia que deixaria de ter alguém para corrigir os meus erros e, ao lado de todo o contentamento que se possa ter por assumir o comando, fez com que me sentisse bastante só nessa manhã.
Há muito tempo que nos tratávamos um ao outro por Pop. A princípio, há mais de vinte anos, quando lhe tinha chamado Pop, Percival não se tinha importado visto que tal infracção às boas maneiras não era feita em público. Mas depois de eu ter chegado aos cinquenta anos, o que fazia de mim um ancião, ou mzee, começou também ele a tratar-me, jovialmente, por Pop, o que de certo modo era uma honra, graciosamente conferida e que poderia ser fatal se me fosse retirada. Não consigo imaginar uma situação, ou antes não desejaria sobreviver a uma situação em que o tratasse, em privado, por Sr. Percival ou em que ele se dirigisse a mim tratado-me pelo nome.
Assim, nessa manhã tinha muitas perguntas que gostaria de lhe por e muitas outras em que tinha andado a magicar. Mas éramos, por costume, mudos a tal propósito. Sentia-me muito só e ele sabia-o, claro.
- Se não tivesses problemas não tinha piada - disse Pop - Não és um tipo comum e aquilo a que agora chamam caçadores brancos são sobretudo tipos comuns que falam a língua e seguem as pistas dos outros. Os teus conhecimentos da língua não são muitos. Mas tu e os teus amigos pouco recomendáveis fizeram as pistas que existem e nada te impede de fazer umas quantas mais. Se não te ocorre a palavra certa em kikamba, que é a tua nova língua, fala em espanhol. Todos adoram isso. Ou deixa falar a memsahib. Ela desenrasca-se um bocadinho melhor.
- Vai para o diabo.
- Vou-te arranjar lá um lugar - disse Pop.
- E os elefantes?
- Não penses nisso - disse Pop - Umas bestas enormes estúpidas. Inofensivos, ao que todos dizem. Lembra-te só do perigo que tu és para todos os outros bichos. Ao fim e ao cabo não são nenhum mastodonte peludo. Nunca vi nenhum com presas que dessem duas voltas.
- Quem é que te falou nisso?
- Keiti - disse Pop - Contou-me que tu os abatias aos milhares durante o defeso. Sem falar no teu tigre de dentes de sabre e nos teus brontosáurios.
- Ai o filho da mãe - disse eu.
- Não. Ele acredita mesmo nisso. Tem uma cópia da revista e as foto- grafias têm um ar bastante convincente. Acho que há dias em que acredita naquilo e outros em que não. Depende se lhe trazes alguma galinha e da tua pontaria em geral.
- Era um artigo bestialmente bem ilustrado sobre animais pré-históricos.
- Era. Nada mau. Desenhos muito bons. E a tua reputação como caçador branco subiu a pique quando lhe contaste que só tinhas vindo para África por já teres atingido a tua quota de mastodontes na tua terra e que já tinhas ultrapassado o limite de tigres de dentes de sabre. Disse-lhe que era a pura verdade e que eras uma espécie de caçador furtivo de marfim que andava fugido de Rawlins, no Wyorning, que era assim uma espécie de enclave de Lado dos velhos tempos, e que tinhas vindo para cá para me prestar as tuas homenagens, por eu te ter ensinado quando eras rapaz, descalço claro, e a ver se não perdes a mão para o dia em que possas voltar e pedir uma nova licença de caça ao mastodonte.
- Pop, por favor, diz-me lá alguma coisa a sério sobre os elefantes. Bem sabes que tenho de me livrar deles se não se portarem bem e se me pedirem para o fazer.
- Basta lembrares-te da tua velha técnica com os mastodontes - disse Pop - Tenta enfiar-lhe o primeiro tiro no meio da segunda curva das presas. No frontal, sétima ruga do focinho a contar de baixo da primeira ruga no alto da testa. Têm umas testas altíssimas. Mesmo empinadas. Se estiveres nervoso aponta-lhes à orelha. Vais ver que é uma brincadeira.
- Obrigado - disse eu.
- Nunca me passou pela cabeça que não tomasses bem conta da memsahib, mas cuida também um bocado de ti e tenta portar-te bem tanto quanto possível.
- Tu também.
- Há anos que ando a tentar - disse ele. Depois, repetindo a fórmula clássica, acrescentou: - Agora é contigo.
E era. Era comigo naquela manhã em que nem uma aragem soprava no último dia do penúltimo mês do ano. Olhei para a tenda de jantar e para a nossa própria tenda. Depois voltei o olhar para as tendas pequenas e para os homens que se agitavam em torno da fogueira e então para os camiões e o carro de caça, que pareciam cobertos de geada com o orvalho espesso. Depois contemplei através das árvores a Montanha que se erguia enorme e próxima nessa manhã, com a neve a cintilar nos primeiros raios de sol.
- Achas que o camião vai dar?
- Sem dúvida. É uma estrada boa quando está seca, sabes?
- Leva o carro de caça. Não vou precisar dele.
- Deixa-te de peneiras - disse Pop - Levo o camião e mando-te outro como deve ser. Eles não têm confiança neste camião.
Eram sempre eles. Eles eram os indígenas, os watu. Em tempos tinham sido os boys. E para Pop continuavam a sê-lo. Mas ele ou os tinha conhecido quando eram mesmo rapazes ou tinha conhecido os pais deles quando os pais eram crianças. Há vinte anos atrás também eu lhes tinha chamado boys e nem a eles nem a mim ocorrera que não tinha esse direito. Agora ninguém se importaria se eu usasse a palavra. Mas da maneira que as coisas agora estavam isso tinha deixado de se fazer. Cada um tinha as suas tarefas e cada um tinha um nome. Não saber o nome de alguém era ao mesmo tempo incorrecto e um sinal de desleixo. Havia ainda todo o género de nomes especiais e diminutivos, alcunhas amistosas e inamistosas. Pop continuava a praguejar com eles em inglês ou em swahili e eles adoravam. Eu não tinha direito a praguejar com eles e nunca o fiz. Tínhamos todos também, desde a expedição a Magadi, alguns segredos e algumas coisas que partilhávamos privadamente. Agora havia muitas coisas que eram segredo e havia coisas que eram mais do que segredos e que se davam por entendidas. Alguns dos segredos não eram de modo nenhum amáveis e alguns eram tão cómicos que às vezes víamos um dos porta-armas desatar a rir-se subitamente, olhávamos para ele e percebíamos do que se tratava e desatávamos igualmente a rir de tal maneira que se tentássemos aguentar o riso ficávamos com o diafragma a doer.
Estava uma manhã clara e ensolarada quando rodávamos através da planície com a Montanha e as árvores do acampamento por trás de nós. Havia muitas gazelas de Thomson diante de nós na planície verdejante abanando a cauda enquanto pastavam. Via-se uma manada de gnus e gazelas de Grant a pastar perto de umas moitas. Alcançámos a pista de aterragem que tínhamos feito mim prado comprido desbravado andando de um lado para o outro com o carro e o camião na erva nova e curta e desenterrando os tocos e as raízes de umas moitas numa das pontas. O alto mastro cortado de uma árvore nova estava tombado pelo vento forte que tinha soprado na noite anterior e a manga de vento improvisada com um saco de farinha, pendia molemente. Parámos o carro e saí para verificar o mastro. Podia aguentar-se, apesar de tombado e a manga voltaria a flutuar assim que a brisa se levantasse. Alto no céu, havia nuvens a anunciar o vento e era um prazer avistar para além do prado verde a Montanha parecendo tão maciça e grande do sítio onde estávamos.
- Não queres filmar estas cores e a pista de voo? - perguntei à minha mulher.
- Já temos isso, ainda melhor do que hoje. Vamos ver as raposas com orelhas de morcego e espreitar o leão.
- Agora não está lá. já é muito tarde.
- Pode ser que esteja.
E assim avançámos seguindo os antigos rodados que tínhamos feito e que conduziam aos lameiros salobros. Ã esquerda havia uma extensão plana limpa e a linha interrompida de árvores de tronco amarelado e folhagem verdejante que assinalavam a orla da floresta onde devia andar a manada de búfalos. Viam-se enormes ervas secas ao longo da borda e havia muitas árvores caídas que tinham sido derrubadas pelos elefantes ou desenraizadas pelas tempestades. Em frente a planície estendia-se com um tapete verde de erva recente e à direita emergiam algumas clareiras com ilhas de moitas de um verde espesso e de onde a onde enormes espinheiros de cimos rasos. Por todo o lado havia caça a pastar. Iam-se afastando à medida que nos aproximávamos, irrompendo por vezes num galope repentino; por vezes num trote tranquilo; outras vezes limitando-se a evitar o carro para irem pastar mais longe. Mas acabavam sempre por se deter a pastar. Quando nos viam nesta ronda de rotina ou quando Miss Mary andava a fotografar não nos prestavam mais atenção do que ao leão quando não anda à caça. Mantém-se fora do caminho dele, mas não se mostram assustados.
Estava debruçado do carro à procura de marcas do rodado tal como o meu porta-armas, Ngui, sentado atrás de mim. Mthuka, ao volante, observava o terreno diante dele e de ambos os lados. Era ele que tinha os olhos mais agudos e rápidos de todos nós. Tinha um rosto ascético, fino e inteligente, exibindo nas duas faces as incisões tribais em forma de flecha dos wakamba. Era filho de M’kola, um ano mais velho do que eu e bastante surdo. Ao contrário do pai, não era maometano. Gostava de caçar e era admirável a conduzir. Nunca fazia nada de imprudente ou irresponsável, mas ele, Ngui C eu, formávamos o trio dos mal comportados.
Éramos amigos íntimos há muito tempo e um dia perguntei-lhe quando é que lhe tinham feito os enormes golpes rituais que mais ninguém tinha. E os que os tinham, não passavam de umas cicatrizes muito menos profundas.
Riu-se e disse: «Durante uma grande ngoma. Sabes como é... Para agradar a uma rapariga.» Ngui e Charo, o porta-armas de Miss Mary, riram-se. Charo era um maometano verdadeiramente devoto e também conhecido pela sua lealdade. Não fazia ideia da idade que tinha, claro, mas Pop dava-lhe mais de setenta anos. Com o turbante na cabeça tinha cinco centímetros menos do que Miss Mary e observando-os aos dois em pé um ao lado do outro, os olhos fixos além do extremo da extensão cinzenta nos antílopes que neste momento se aproximavam cautelosamente, contra o vento, da floresta, o grande macho com os cornos magníficos lançando um olhar para trás e para os lados antes de seguir no fim de todos OS Outros, pensei com os meus botões no estranho par que Miss Mary e Charo deviam formar aos olhos dos animais. Nenhum animal tinha medo deles quando os viam. Várias vezes tivemos prova disso. Longe de os assustar, a pequena loira de casaco verde e o negro ainda mais pequeno de casaco azul, pareciam despertar o interesse dos animais. Era como se lhes fosse dada a oportunidade de ver um circo ou pelo menos uma coisa bastante bizarra e os predadores pareciam indubitavelmente atraídos pelos dois. Naquela manhã estávamos todos descontraídos. Havia sempre alguma coisa, alguma coisa terrível ou alguma coisa magnífica, a acontecer todos os dias nesta parte de África. Acordávamos todas as manhãs tão excitados como se fôssemos competir numa pista de ski ou pilotar um bobsleigh num circuito. Alguma coisa ia acontecer, sabíamos, e normalmente antes das onze da manhã. Não me lembro de nenhuma manhã africana em que não acordasse feliz. Mas nesse dia estávamos descontraídos por nos sentirmos momentaneamente libertos do comando e eu fiquei contente por os búfalos, que eram o nosso problema básico, estarem obviamente num qualquer lugar onde não os podíamos alcançar. Para o que contávamos fazer, cabia-lhes a eles vir ter connosco e não a nós irmos atrás deles.
- Que vais fazer?
- Levar o carro até ali, dar uma volta para ver se há pegadas junto ao charco e depois ir para aquele sítio da floresta à volta do pântano para dar uma vista de olhos e depois venho-me embora. Ficamos a favor do vento do elefante e pode ser que o vejas. Se calhar não.
- Podemos voltar pelas terras dos gerenuks?
- Claro. Foi pena termos saído tão tarde. Mas com a partida do Pop e tudo.
- Gosto muito de ir até este sítio mais difícil. Posso ver o que podemos arranjar como árvore de Natal. Achas que o meu leão está lá?
- Se calhar. Mas não os conseguimos ver naquele tipo de terreno.
- Saiu-me um belo sacana de um leão. Porque é que eles não me deixaram dar um tiro àquele belo leão debaixo da árvore, no outro dia? É assim que as mulheres caçam leões.
- É assim que elas os caçam e o mais belo leão de juba preta abatido por uma mulher tinha aí umas quarenta balas no corpo. Depois tiram umas lindas fotografias e têm de passar o resto da vida com a merda do leão e a contar uma data de aldrabices aos amigos e a si próprias.
- Foi pena ter falhado aquele belo leão em Magadi.
- Não tenhas pena. Devias era estar orgulhosa.
- Não sei o que me deu. Tenho de o apanhar e tem de ser mesmo o melhor.
- Caçámo-lo demais, querida. É muito esperto. Agora tenho de o deixar recuperar a confiança e fazer alguma asneira.
- Ele não faz asneiras. É mais esperto do que tu e o Pop juntos.
- Querida, o Pop queria que tu o apanhasses ou então que o falhasses. Se não gostasse de ti, tinha-te deixado atirar a um leão qualquer.
- Não vamos falar dele - disse ela - Queria pensar na árvore de Natal. Vamos ter uma árvore de Natal fabulosa.
Mthuka tinha mandado Ngui reconhecer a trilha e aproximou-se com o carro. Entrámos e eu indiquei a Mthulça o ponto de água no canto do pântano. Ngui e eu debruçámo-nos para fora à procura de marcas. Viam-se os rodados antigos e as pistas das idas e vindas dos animais até ao pântano de papiros. Havia o rasto fresco de griu e as marcas das zebras e das gazelas.
Aproximávamo-nos agora da floresta enquanto a estrada ia descrevendo uma volta quando demos pelas pegadas de um homem. Depois de outro homem que trazia botas. As marcas mostravam ligeiros sinais de chuva e parámos o carro para ver melhor a pé.
- Tu e eu - disse a Ngui.
- Sim - disse ele com um sorriso - Um deles tem pés grandes e caminha como se estivesse cansado.
- Um está descalço e anda como se a espingarda fosse pesada demais para ele. Pára o carro - disse a Mthuka. Descemos.
- Olha - disse Ngui. - Um anda como se fosse muito velho e mal pudesse ver. O que está calçado.
- Olha - disse eu - O que está descalço anda como quem tem cinco mulheres e vinte vacas. Gastou uma fortuna em cerveja.
- Não vão chegar a lado nenhum - disse Ngui - Olha, o que vai calçado anda como se fosse morrer de um momento para o outro. Vai a cambalear com o peso da espingarda.
- Que achas que andam a fazer por estes lados?
- Como é que hei-de saber? Olha, o dos sapatos agora está mais forte.
- Está a pensar na shamba - disse Ngui.
- Kwenda na shamba.
- Ndio - confirmou Ngui - Que idade dás tu ao mais velho, o dos sapatos?
- Não tens nada com isso - disse eu. Dirigimo-nos para o carro e quando ele se aproximou subimos e eu indiquei a Mthuka a orla da floresta. O condutor ria-se e abanava a cabeça.
- Que é que andavam os dois ali a fazer a seguir as vossas pegadas disse Miss Mary - já sei que era muito engraçado porque todos se estavam a rir. Mas pareceu-me bastante parvo.
- Estávamos a brincar.
Esta parte da floresta fazia-me sempre sentir deprimido. Os elefantes tinham de comer alguma coisa e mais valia que comessem as árvores do que dessem cabo das culturas dos indígenas. Mas a destruição que causavam era tão grande em relação ao pouco que aproveitavam das árvores que derrubavam que era uma coisa deprimente de ver. Os elefantes eram os únicos animais que continuavam a aumentar em todo o território que actualmente cobrem em África. Multiplicaram-se até se tornarem num tal problema para os nativos que tiveram de ser abatidos. E então começaram a ser dizimados indiscrimina-damente. Havia homens encarregados de o fazer e que apreciavam a tarefa. Matavam os velhos machos, OS machos jovens, fêmeas e crias e muitos deles gostavam do trabalho. Tinha de haver um qualquer tipo de limitação do número de elefantes. Mas ao ver os prejuízos causados à floresta e o modo como as árvores eram derrubadas e descascadas e sabendo o que podiam fazer numa shamba nativa durante uma noite, comecei a pensar nos problemas de controlo. Mas ao mesmo tempo continuava a procurar o rasto dos dois elefantes que tínhamos visto chegar a esta parte da floresta. Conhecia aqueles elefantes e o sítio para onde provavelmente iam durante o dia, mas enquanto não desse com o rasto deles e tivesse a certeza que já iam longe, tinha de estar atento a que Miss Mary não andasse por ali às voltas à procura de uma árvore de Natal como deve ser.
Parámos o carro, eu peguei na espingarda grande e ajudei Miss Mary a descer.
- Não Preciso de ajuda - disse ela.
- Ouve, querida - comecei a explicar - Tenho de ficar ao teu lado com a espingarda grande.
- Vou só escolher uma árvore de Natal.
- Eu sei. Mas pode andar por aqui tudo e mais alguma coisa. já aconteceu antes.
- Então diz ao Ngui que venha comigo e o Charo que fique aqui.
- Querida, sou responsável por ti.
- E também és um bom chato.
- Eu sei - E chamei: - Ngui.
- Bwana?
Parou logo a brincadeira.
- Vai ver se os dois elefantes já andam longe na floresta. Vai até aos rochedos.
- Ndio.
Atravessou o descampado à procura de marcas no capim e empunhando na mão direita a minha Springfield.
- Só queria escolher uma - disse Miss Mary - Depois podemos voltar cá para a arrancar e a levar para o acampamento para a plantar enquanto ainda estiver fresco.
- Então vai lá - disse eu.
Estava a observar Ngui. Tinha-se detido e estava à escuta. Depois continuou a avançar com toda a cautela. Segui Miss Mary, que examinava aten- tamente os diversos arbustos espinhosos prateados a ver se encontrava algum com a forma e o tamanho ideais, mas continuei a lançar um olhar para trás por cima do ombro a observar Ngui. Tinha parado de novo à escuta e depois fez um sinal a apontar com a mão esquerda a floresta densa. Procurou-me com os olhos e eu fiz-lhe sinal para voltar. Aproximou-se depressa; o mais depressa que podia andar sem correr.
- Onde estão? - perguntei.
- Atravessaram e foram para a floresta. Ouviam-se dali. O velho macho e a askari.
- Óptimo - disse eu.
- Ouve - sussurrou - Faro - Apontou para a espessura da floresta à direita. Eu não ouvira nada. - Mzuri motocali. - disse ele, o que abreviadamente significava «É melhor entrar no carro».
- Vai buscar Miss Mary.
Voltei-me para onde Ngui tinha apontado. Não vi mais do que as moitas prateadas, o capim verde e a linha de árvores altas de onde pendiam lianas e trepadeiras. Depois ouvi o ruído, uma espécie de ronronar intenso e agudo. Era o ruído que fazemos quando encostamos a língua ao palato e sopramos fazendo a língua vibrar como um caniço. Vinha do sítio que Ngui tinha indicado. Mas não conseguia ver nada. Fiz deslizar a alavanca de segurança da .577 e voltei a cabeça para a esquerda. Miss Mary aproximava-se de viés para ficar atrás do sítio onde eu me encontrava. Ngui segurava-a pelo braço para a guiar e ela caminhava a pisar ovos. Charo vinha atrás dela. Depois ouvi de novo o mesmo ronronar agudo e rouco e vi Ngui recuar com a Springfield pronta a disparar e Charo avançou e tomou Miss Mary pelo braço. Estavam agora à minha altura e dirigiam-se para o sítio onde o carro devia estar. Sabia que o condutor, Mthuka, era surdo e não ouviria o rinoceronte. Mas quando os visse percebia logo o que se passava. Eu não queria virar a cabeça. Mas acabei por o fazer e vi Charo a puxar energicamente Miss Mary para o carro. Ngui seguia com eles a toda a pressa empunhando a Springfield e olhando para trás por cima do ombro. Não era permitido matar o rinoceronte. Mas teria de o fazer se ele ou ela carregasse e não houvesse outra saída. A minha ideia era de disparar a primeira bala contra o solo de maneira a desviar o animal. Se não se desviasse, matava-o com a segunda bala. E obrigadinho, disse para os meus botões. É canja.
Foi nesse preciso momento que ouvi o motor do carro de caça a arrancar e a acelerar em primeira na minha direcção. Comecei a recuar pensando que um metro era um metro e sentindo-me melhor a cada metro que ganhava. O carro de caça chegou até junto de mim fazendo uma curva apertada, carreguei no fecho de segurança e saltei para agarrar o puxador junto do banco da frente no momento em que o rinoceronte desembocava do emaranhado de lianas e trepadeiras, esmagando tudo à passagem. Era uma fêmea enorme e vinha a galope. Vista do carro tinha um ar ridículo com o filhote a galopar atrás dela.
Por momentos chegou a apanhar-nos mas o carro arrancou. Havia um bom descampado à nossa frente e Mthuka guinou vivamente para a esquerda.
O rinoceronte continuou a galopar em frente e depois passou para um trote mais lento com a cria também ao mesmo passo.
- Tiraste alguma fotografia? - perguntei a Miss Mary.
- Não pude. Vinha mesmo atrás de nós.
- Não a apanhaste quando apareceu?
- Não.
- Também não era fácil.
- Mas escolhi a árvore de Natal.
- Estás a ver porque é que queria proteger-te - disse eu desnecessariamente e estupidamente.
- Não sabias que ela lá estava.
- Vive por estes lados e vai beber ao ribeiro ao fundo do pântano.
- Estavam todos tão sérios - disse Miss Mary - Nunca os vi assim tão sérios, vocês que gostam tanto de brincar.
- Minha querida, era terrível se tivesse de matá-la. E também estava preocupado contigo.
- Todos tão sérios - disse ela - E todos agarrados ao meu braço. Eu sabia voltar para o carro. Não preciso que me levem pelo braço.
- Querida - disse eu, - estavam a pegar-te pelo braço para não enfiares o pé num buraco ou tropeçares em qualquer coisa. Estavam sempre a olhar para o chão. O rinoceronte estava muito perto e podia carregar a qualquer momento e nós não podíamos matá-lo.
- Como é que sabias que era uma fêmea com o filhote?
- Era lógico. Há quatro meses que anda por aqui.
- É pena ser mesmo no sítio onde estão as árvores de Natal.
- Havemos de ir buscar a árvore.
- Prometes sempre tudo - disse ela - Mas as coisas são muito mais fáceis e correm melhor quando o Sr. P. está cá.
- Lá isso são - disse eu - E é tudo muito mais fácil quando o G.C. cá está. Mas agora estamos cá sós e por favor não vamos pôr-nos a discutir em África. Por favor.
- Não quero discutir - disse ela - Não vou discutir. Só que não gosto de ver esta gente que gosta tanto de piadas a ficar tão séria e tão sisuda.
- Alguma vez viste alguém morto por um rinoceronte?
- Não - disse ela - E tu também não.
- É verdade - disse eu - Nem faço tenções de ver. Pop também nunca viu.
- Não gosto de os ver quando ficam todos tão sérios.
- Era porque não podia matar o rinoceronte. Se tivesse uma licença não havia problema. E também tinha de pensar em ti.
- Então deixa de pensar em mim - disse ela - Pensa em como vamos buscar a árvore de Natal.
Estava a sentir-me verdadeiramente sisudo e a desejar que Pop ali estivesse para mudar de assunto. Mas Pop tinha-se ido embora.
- Mas pelo menos voltamos pelas terras dos gerenuk, não voltamos?
- Voltamos - disse eu - Viramos à direita junto àquelas rochas ali à frente, do outro lado do lamaçal na orla do arvoredo onde estão a passar aqueles babuínos e depois seguimos pela planície para Leste até chegarmos a outra bosta de rinoceronte. E então vamos para Sudeste rumo à velha manyatta e já estamos nas terras dos gerenuk.
- Vai ser bom estarmos lá - disse ela - Mas vou sentir a falta do Pop.
- Também eu - respondi.
Há sempre países mágicos que fazem parte da nossa infância. Os que nos vêm à memória e que visitamos quando dormimos e sonhamos. São tão maravilhosos à noite como quando éramos crianças. Se alguma vez voltamos para os ver, desvanecem-se. Mas à noite não perdem nada da antiga beleza se tivermos a sorte de sonhar com eles.
Em África, quando vivíamos na pequena planície à sombra dos grandes espinheiros perto do rio que ladeava o pântano no sopé da grande montanha, tínhamos países assim. Não éramos já, no verdadeiro sentido, crianças, embora a meu ver o continuássemos a ser de muitas maneiras.
- Não sejas criança, querido.
- Espero bem que o seja. Não sejas tu criança.
É muito possível que gostássemos que ninguém com quem estamos dispostos a ligar-nos nos dissesse: «Vê se és adulto. Vê se és equilibrado, se és adaptado.»
A África, tendo em conta a sua longa idade, transforma toda a gente, salvo os invasores e os destruidores profissionais em crianças. Em África, ninguém diz a ninguém: «Vê lá se cresces!» Todos os homens e animais ganham um ano de idade mais todos os anos e alguns deles ganham um ano mais de conhecimento. Os animais que morrem mais cedo aprendem mais depressa. Uma jovem gazela é adulta, equilibrada e adaptada com a idade de dois anos. Com quatro semanas é já equilibrada e adaptada. Os homens sabem que não passam de crianças em relação à terra e que, tal como no exército, antiguidade e senilidade andam perto uma da outra. Mas ter o coração de uma criança não é desventura nenhuma. É antes honroso. Um homem deve comportar-se como um homem. Deve bater-se sempre, preferentemente e sensatamente, com tudo a seu favor, mas se necessário contra tudo e todos e sem pensar no que pode acontecer. Deve seguir as suas leis e costumes tribais tanto quanto puder e aceitar a disciplina tribal quando não puder. Mas não é nunca uma censura o ter mantido um coração de criança, uma ingenuidade de criança e a frescura e a integridade de uma criança.
Ninguém percebia porque é que Mary tinha de matar um gerenuk. Eram umas estranhas gazelas de pescoço comprido e os machos tinham uns cornos pequenos e encurvados implantados bastante à frente da cabeça. Tinham uma carne deliciosa nesta região em particular. Mas as gazelas de Thompson e os impalas ainda eram melhores. Os rapazes pensavam que tinha a ver com a, religião de Mary.
Todos percebiam porque é que Mary quis matar o seu leão. Para alguns dos mais velhos que já tinham estado em muitas centenas de safaris era mais difícil de entender porque é que tinha de o matar como dantes de caras. Mas todos os elementos mais duvidosos estavam convencidos que isso tinha alguma coisa a ver com a religião dela, como a necessidade de matar o gerenuk aproximadamente ao meio-dia. Como era evidente, não fazia nenhum sentido para Miss Mary matar o gerenuk de um modo normal e simples.
Ao fim da caçada, ou do reconhecimento da manhã, os gerenuks já tinham ido para a espessura da mata. Se por infelicidade avistássemos algum, Mary e Charo desceriam do carro para ir atrás dele. O guerenuk esquivava-se, corria ou fugia aos saltos. Ngui e eu seguíamos os dois perseguidores por sentido do dever e a nossa presença obrigava o gerenuk a continuar a fugir. Finalmente, ficava calor demasiado para continuar a andar atrás do gerenuk e Mary e Charo voltavam para o carro. Tanto quanto sei, nunca ninguém disparou nenhum tiro neste tipo de caça ao gerenuk.
- Sacarias de gerenuks - disse Mary - Vi o macho a olhar de frente para mim. Mas a única coisa que conseguia ver era o focinho e os cornos. A seguir escondeu-se atrás de umas moitas e nem percebi se não seria uma fêmea. Depois continuou a andar até o perder de vista. Podia ter disparado mas arriscava-me a deixá-lo ferido.
- Apanha-lo outra vez. Pareceu-me que fizeste uma boa caçada.
- Tu e o teu amigo não tinham nada que aparecer.
- Tínhamos, tínhamos, querida.
- Estou farta. Imagino que agora estão todos a pensar seguir para a shamba.
- Não. Acho que vamos direitos a casa ao acampamento e tomar uma bebida fresca.
- Não sei porque é que gosto tanto deste canto lixado da região - disse ela - E depois não é que tenha alguma coisa contra os gerenuks.
- É assim um espécie de ilha de deserto aqui. É parecido com o grande deserto que temos de atravessar para chegar cá. Qualquer deserto é bonito.
- Queria era disparar rápido e bem e logo que consigo ver para disparar. Se ao menos não fosse tão baixa. Não conseguia ver o leão quando tu o viste e todos os outros o conseguiam ver.
- Estava num sítio muito mau.
- Eu bem sei onde ele estava e não era assim tão longe daqui também.
- Não - disse eu. E para o condutor: - Kwenda na campi.
- Obrigado por não ires à shamba - disse Mary - Às vezes és bom com isso da shamba.
- Tu é que és.
- Não sou nada. Gosto que lá vás e que aprendas tudo o que tens a aprender.
- Não volto lá até eles me mandarem chamar por qualquer razão.
- Vais ver que te mandam chamar - disse ela - Não te preocupes. Quando não íamos à shamba, o caminho de volta era lindíssimo. As clareiras sucediam-se umas às outras. Formavam uma enfiada como lagos de que o arvoredo verdejante e a mata fossem as margens. Estava-se sempre a ver a garupa branca e quadrada das gazelas de Grant e o castanho e branco dos seus corpos quando fugiam, as fêmeas rápidas e leves e os machos com os cornos orgulhosos e fortes inclinados para trás. Depois rodeávamos uma longa curva de arbustos verdes e avistávamos as tendas verdes do acampamento com as árvores amareladas e a Montanha por trás.
Era o primeiro dia em que nos víamos sós no acampamento e, sentado debaixo do guarda-vento da tenda de jantar à sombra da árvore grande à espera que Mary acabasse de se lavar para podermos tomar a nossa bebida juntos antes do almoço, fazia votos para que não houvesse problemas e o dia corresse bem. As más notícias não costumavam demorar muito mas não tinha visto nenhum mensageiro à espera junto da fogueira. O camião da lenha continuava por fora. Haviam também de trazer água e quando voltassem deviam trazer notícias da shamba. Tinha-me lavado e mudado a camisa e posto uns shorts e um par de mocassins e sentia-me fresco e distendido na sombra.
A parte de trás da tenda estava aberta e corria uma aragem vinda da Montanha, refrescada pela neve.
Mary entrou na tenda e disse: «Então não bebeste nada? Vou fazer uma para os dois.»
Tinha um ar fresco de calças e camisa de safari desbotadas passadas de novo, bonita, ao servir o Campari e o gin nos copos altos, e enquanto procurava um sifão de água fria no balde de tela disse: «Estou tão contente por estarmos sós, a sério. Vai ser como em Magadi mas melhor.» Preparou as bebidas, passou-me a minha e tocámos os copos. «Gosto muito do Sr. Percival e adoro tê-lo cá. Mas assim tu e eu sós é maravilhoso. Não me vou zangar por tomares conta de mim e não vou ser irritadiça. Vou fazer tudo, menos gostar do Informador.»
- És um tesouro - disse eu - Divertimo-nos sempre mais quando estamos só nós. Mas tens de ser paciente comigo quando for estúpido.
- Não és nada estúpido e vamos passar um tempo maravilhoso. Este sítio é muito mais bonito do que Magadi e vamos ficar a viver aqui e ter tudo para nós. Vai ser uma maravilha. Vais ver.
- Muito bem - disse eu - Entre.
Era o Informador dos Serviços de Caça. Era um homem alto e solene envergando calças compridas, uma camisa azul escuro impecável com umas risquinhas brancas dos lados, um xaile pelos ombros e um chapéu de abas reviradas. Todos estes artigos de indumentária tinham ar de ter sido presentes. O xaile, reconheci-o por ser feito de tecidos vendidos num dos armazéns indianos de Laitokitok. O rosto castanho escuro tinha um aspecto distinto e devia ter sido bonito em tempos. Falava um inglês cuidado, lentamente e com uma variedade de sotaques.
- Sir - disse ele - Tenho a honra de comunicar que capturei um assassino.
- Que tipo de assassino?
- Um assassino Massai. Está gravemente ferido e está acompanhado pelo pai e pelo tio.
- Quem é que ele matou?
- O primo dele. Não se lembra? Foi o senhor que lhe pôs os pensos nas feridas.
- Esse não morreu. Está no hospital.
- Então é só tentativa de homicídio. Mas capturei-o. Vai mencionar isso no seu relatório, irmão, bem sei. Por favor, sir, o autor da tentativa de homicídio sente-se muito mal e quer que lhe ponha um penso nas feridas.
- OK - disse eu - Vou lá vê-lo. Desculpa, querida.
- Não tem importância - disse Miss Mary - Não tem nenhuma importância.
- Posso beber alguma coisa, irmão? - perguntou o Informador - A luta deixou-me cansado.
- Uma merda - disse eu - Desculpa, querida.
- Não faz mal - disse Miss Mary - Não há outra maneira de o dizer.
- Não estava a falar de bebidas alcoólicas - disse o Informador com um ar digno - Era só um golo de água.
- Vamos já tratar disso - disse eu.
O preso, o pai e o tio dele pareciam bastante abatidos. Cumprimentei-os e apertámos todos as mãos. O autor da tentativa de homicídio era um jovem moran, ou guerreiro, e tinha andado com outro moran a divertir-se, a fingir que lutavam com as lanças. Não foi por discussão nenhuma, explicou o pai. Andavam só a divertir-se e ele tinha ferido o outro sem querer. O amigo tinha-se atirado a ele e tinha-o ferido. E então perderam a cabeça e começaram a lutar a sério; mas nunca a matar. Mas quando viu os ferimentos do amigo ficou com medo de o ter matado e tinha fugido para o mato para se esconder. Agora tinha voltado com o pai e o tio para se entregar. O pai explicava tudo isto e o rapaz ia aprovando com acenos da cabeça.
Disse ao pai através do intérprete que o outro rapaz estava no hospital e que estava a melhorar e que me tinham dito que nem ele nem a família tinham apresentado queixa do filho dele. O pai disse que também tinha ouvido o mesmo.
Tinham trazido da tenda a caixa de primeiros socorros e pus um penso nos ferimentos do rapaz. Tinha feridas no pescoço, no peito, na parte de cima do braço e nas costas e todas elas estavam a supurar bastante. Limpei-as, deitei-lhes água oxigenada para provocar o efeito da magia borbulhante e para matar quaisquer larvas, voltei a lavá-las, especialmente a ferida do pescoço, pintei as bordas das feridas com mercurocromo, que lhes deu um efeito colorido muito admirado, e depois polvilhei-as abundantemente com sulfamida e pus um penso de gaze e adesivo a cobrir cada uma das feridas.
Através do Informador, que servia de intérprete, disse aos anciãos que a meu ver era preferível que os rapazes se exercitassem no uso das lanças do que andar a beber Golden Jeep em Laitokitok. Mas que eu não era a lei e o pai devia levar o filho à polícia dessa aldeia. Devia também lá ver como estavam as feridas e tomar penicilina.
Depois de receberem este recado, os dois velhos falaram um com o outro, depois dirigiram-se a mim e eu fui soltando uns grunhidos de entendimento com aquela inflexão ascendente especial que mostra a profundíssima atenção que se dedica ao assunto.
- Dizem eles, sir, que queriam que o senhor julgue este caso e que eles seguirão o que decidir. Dizem que tudo o que contaram é verdade e que o senhor já falou com os outros mzees.
Diz-lhes que devem apresentar o guerreiro à polícia. É possível que a polícia não faça nada, uma vez que não foi apresentada nenhuma queixa. Devem ir ao boma da polícia, as feridas devem ser vistas e o rapaz deve tomar penicilina. Têm de fazer isso.
Apertei a mão aos dois velhos e ao jovem guerreiro. Era um rapaz bem parecido, magro e muito aprumado, mas estava cansado e as feridas doíam-lhe, embora ele nem sequer tenha estremecido enquanto eu as lavava.
O Informador seguiu-me até à frente da nossa tenda de dormir onde lavei cuidadosamente as mãos com sabão azul. «Ouve - disse-lhe eu - Quero que digas à polícia exactamente o que eu acabei de dizer e o que o inzee me disse. Se te pões a inventar alguma coisa, já sabes o que te acontece.
Como é que o meu irmão pode pensar que não serei leal e não cumpro o meu dever? Como é que o meu irmão pode duvidar de mim? Será que o meu irmão me pode emprestar dez shillings? Devolvo-os no princípio do mês.
- Dez shillings não te vão resolver problema nenhum.
- Eu sei. Mas sempre são dez shilings.
- Aqui tens dez.
- Não quer mandar nenhum presente para a shamba?
- Eu trato disso.
- Tem toda a razão, meu irmão. Tem sempre razão e é generoso a dobrar.
- Deixa-te de tretas. Põe-te a andar e espera com os massai para entrar no camião. Espero que encontres a Viúva e que não te embebedes.
Voltei para a tenda e Mary estava à espera. Estava a ler o último New Yorker e a beber tranquilamente o gin-Campari.
- Estava muito mal?
- Não. Mas as feridas estão infectadas. Uma delas bastante.
- Não me admira, depois de ter estado na manyatta no outro dia. As moscas eram um verdadeiro horror.
- Eles dizem que o sopro das asas das moscas limpam as feridas - disse eu - Mas as larvas dão-me arrepios. Dá-me a impressão que mesmo que limpem a ferida acabam por a alargar mais. Aquele rapaz tem uma no pescoço que já não pode ser muito maior.
- As feridas do outro rapaz eram piores, não eram?
- Eram. Mas foi tratado logo a seguir.
- Estás a ficar com uma bela prática de médico amador. Achas que podes tratar-te a ti próprio?
- De quê?
- De qualquer coisa que apanhes. Não estou a dizer só coisas físicas.
- Por exemplo?
- Não pude deixar de ouvir a tua conversa com o Informador acerca da shamba. Não é que estivesse a escutar. Mas estavam ali à entrada da tenda e como ele é um bocado surdo tu falavas alto.
- Desculpa - disse eu - Disse alguma inconveniência?
- Não. Falaram só de presentes. Mandas-lhe muitos presentes?
- Não. É sempre mafuta para a família e açúcar e coisas que precisam. Medicamentos e sabão. Compro-lhe chocolate do bom.
- Do mesmo que compras para mim?
- Não sei. Se calhar. Só há de três tipos e todos são bons.
- Nunca lhe dás presentes grandes?
- Não. O vestido.
- É um lindo vestido.
- Temos mesmo de estar nisto, querida?
- Não - disse ela - Calo-me já. É que isto interessa-me.
- Se me disseres, nunca mais a vejo.
- Não é isso que eu quero - disse ela - Acho que é encantador teres uma rapariga que não sabe ler nem escrever e assim nem podes receber cartas dela. Acho um encanto que ela não saiba que és escritor ou mesmo que existam escritores. Mas não estás apaixonado por ela, pois não?
- Gosto daquele despudor tão engraçado dela.
- Eu também sou - disse Miss Mary - Talvez gostes dela por ela se parecer comigo. Pode muito bem ser.
- Tu agradas-me mais e além disso é de ti que gosto.
- Que é que ela pensa de mim?
- Tem-te muito respeito e tem muito medo de ti.
- Porquê?
- Também lhe perguntei. Disse que é por teres uma espingarda.
- Pois tenho - disse Miss Mary - Que presentes te dá ela?
- Coisas de comer, sobretudo. Cerveja ritual. Bem sabes que assenta tudo em trocas de cerveja.
- Que é que vocês têm em comum, realmente?
- África, acho eu, e uma espécie de confiança não demasiado simples e outras coisas. É difícil de explicar.
- Mas Parece que se sentem bem juntos - disse ela - Acho que é melhor chamar para o almoço. Comes melhor aqui ou lá?
- Aqui. Muito melhor.
- Mas comes melhor do que aqui no Sr. Singh em Laitokitok.
- Muito melhor. Mas tu nunca vens. Tens sempre alguma coisa que fazer.
- Também lá tenho amigos. Mas gosto muito de entrar na sala das traseiras e ver-te lá sentado todo contente a comer com Mr. Singh, a ler o jornal e a ouvir o barulho da serração.
Também eu gostava de ir ao Sr. Singh e gostava de todos os filhos dele e da Sra. Singh, que diziam ser turkana. Era muito bonita, muito simpática e compreensiva, extremamente limpa e asseada. Arap Meina, que era o meu amigo e colaborador mais chegado depois de Ngui e de Mthuka, era um grande admirador da Sra. Singh. Tinha chegado a uma idade em que o seu maior prazer em relação às mulheres era olhar para elas e disse-me muitas vezes que a Sra. Singh era provavelmente a mulher mais bonita do mundo a seguir a Miss Mary. Arap Meina, a quem eu andei meses a fio a tratar por «árabe menor» por engano, pensando que se tratava de «arab minor», uma daquelas alcunhas típicas das escolas públicas inglesas, era um lumbwa, uma tribo ligada aos massai, ou talvez um ramo dos massai, conhecidos por serem grandes caçadores, às vezes furtivos. Corria o boato que Arap Meina tinha sido um grande caçador furtivo de marfim, ou pelo menos tinha sido um caçador furtivo de marfim muito viajado e pouco detido, antes de se ter tornado num pisteiro de caça. Nem ele nem eu tínhamos a menor ideia de quantos anos teria, mas provavelmente teria entre sessenta e cinco e setenta anos. Era um caçador de elefantes muito corajoso e habilidoso e quando G.C., o chefe dele, não estava era ele quem fazia a vigilância dos elefantes nesta região. Todos gostavam muito dele e quando estava sóbrio, ou mais bêbado do que de costume, exibia uma atitude militar de rigor. Raramente me saudaram com a energia que Arap Meina conseguia pôr numa continência quando me anunciava o amor dele por Miss Mary e por mim, excluindo todos os mais, e com um amor a ponto de lhe ser insuportável. Mas até atingir tal ponto de consumo alcoólico com as suas concomitantes declarações de perene dedicação heterossexual tinha o costume de se sentar a meu lado na sala das traseiras do bar do Sr. Sitigh e ficar a contemplar a Sra. Singh a atender os clientes e a tratar das suas tarefas domésticas. Preferia observar a Sra. Singh de perfil e a mim dava-me gozo observar Arap Meina a observar a Sra. Singh e a examinar as gravuras e os quadros na parede com os Singli originais, habitualmente representados a estrangular um leão e uma leoa; um em cada mão.
Se houvesse alguma questão que quiséssemos deixar perfeitamente clara com o Sr. ou a Sra. Singli ou se eu tivesse alguma conversa formal com os anciãos massai, recorríamos a um rapaz educado na Missão que se postava no umbral da porta, empunhando uma garrafa de Coca-Cola bem visível. Normalmente procurávamos utilizar os serviços do rapaz da Missão o menos possível, uma vez que ele era oficialmente salvo e os contactos com o nosso grupo só o podiam corromper. Arap Meina alardeava ser maometano, mas há muito que eu tinha reparado que os nossos maometanos mais zelosos não comiam nada do que ele afirmava ter preparado halal; ou seja, ter feito o corte ritual na garganta do animal que tornava a carne própria para comer, se o corte fosse praticado por um muçulmano praticante.
Arap Meina, um dia em que estava já bem bebido, disse a várias pessoas que eu e ele tínhamos ido juntos a Meca em tempos. Os maometanos crentes sabiam que não era verdade. Charo tinha tentado converter-me ao Islão uns vinte anos atrás e eu tinha feito com ele o Ramadão completo, observando o jejum. Mas há muitos anos que tinha desistido de me converter. Mas ninguém sabia ao certo se eu tinha realmente ido a Meca, a não ser eu próprio. O Informador, que via em todos sempre o melhor e o pior, estava convencido que eu tinha ido a Meca várias vezes. Willie, um condutor mestiço que eu tinha contratado por ele me contar que era filho de um velho porta-armas muito conhecido que, como vim a descobrir, afinal não o tinha gerado, dizia a toda a gente no maior segredo que íamos os dois a Meca.
Finalmente, um dia em que Ngui me encostou à parede numa discussão teológica, acabei por lhe confessar, quando ele não me tinha perguntado nada directamente, para sua própria informação que nunca tinha ido a Meca e que não tinha a mínima intenção de lá ir. Isto deixou-o imensamente aliviado.
Mary tinha ido para a tenda fazer uma sesta e eu sentei-me à sombra da tenda de jantar e fiquei a ler e a pensar na shamba e em Laitokitok. Sabia perfeitamente que não devia pensar demasiado na shamba ou ainda acabava por arranjar uma desculpa qualquer para lá ir. Debba e eu nunca falávamos um com o outro diante de outras pessoas, a não ser se lhe dizia «Jambo, tu» e ela inclinava a cabeça com ar muito sério se houvesse outros presentes além de Ngui e Mthuka. Se só estivéssemos os três, ela ria-se e eles também e depois ficavam no carro ou afastavam-se noutra direcção enquanto eu e ela dávamos uma volta juntos. A coisa que ela mais adorava fazer em público era sentar-se no banco da frente do carro entre mim e Mthuka, que conduzia.
Sentava-se sempre muito direita e olhava para toda a gente como se nunca os tivesse visto na vida. Por vezes fazia educadamente uma vénia ao pai e à mãe, mas outras vezes era como se nem os visse. O vestido, que tínhamos comprado em Laitokitok, estava agora um bom bocado puído à frente de ela se sentar tão direita e a cor não resistia às lavagens diárias a que o sujeitava.
Chegámos a acordo quanto a um vestido novo. Ficou para o Natal ou para quando conseguíssemos apanhar o leopardo. Havia vários leopardos, mas este tinha uma importância muito especial. Por diversas razões, tinha para mim tanta importância como tinha para ela o vestido.
- Tendo outro vestido escuso de andar sempre a lavar este explicou ela.
- Lavá-lo tanto porque gostas de brincar com o sabão, disse-lhe eu.
- Se calhar - disse ela - Mas quando podemos ir juntos a Laitokitok?
- Brevemente.
- Brevemente não basta.
- É o que há.
- Quando vens cá beber cerveja ao fim da tarde? Brevemente.
- Detesto esse brevemente. Tu e o brevemente são dois irmãos mentirosos.
- Então nenhum de nós virá.
- Tu vens e traz o brevemente contigo.
- Está bem.
Quando viajávamos no banco da frente, ela gostava de afagar os relevos do couro do velho coldre da minha pistola. Era um motivo com flores, muito antigo e gasto e ela seguia o desenho com todo o cuidado com a ponta do dedo, depois retirava a mão e apertava fortemente a pistola e o coldre contra a coxa. A seguir deixava-se ficar sentada mais direita do que nunca. Passava-lhe um dedo ao de leve pelos lábios fazendo-a rir e Mthuka dizia alguma coisa em kamba que a fazia sentar-se rígida e encostar a coxa ao coldre com toda a força. Muito tempo depois disto ter começado percebi que o que ela queria, nessa altura, era gravar o relevo do coldre na coxa.
A princípio, falava-lhe sempre em espanhol. Aprendia muito depressa e torna-se simples quando começamos pelas partes do corpo e as coisas que podemos fazer, depois os alimentos e os diferentes parentescos e os nomes de animais e de pássaros. Nunca lhe dizia uma palavra em inglês e mantínhamos algumas palavras em swahili, mas o resto era uma nova língua feita de uma mistura de espanhol e kamba. O Informador servia para as mensagens. Nem eu nem ela gostávamos disso, porque o Informador sentia-se no dever de me dizer exactamente quais eram os sentimentos dela em relação a mim, o que ele sabia em segunda mão pela mãe dela, a Viúva. Esta comunicação a três era difícil, por vezes embaraçosa mas muitas vezes interessante e, esporadicamente, gratificante.
- Irmão - dizia o Informador - é meu dever informá-lo que a sua rapariga o ama muito, verdadeiramente muito, demais. Quando a pode ver?
- Diz-lhe para não amar um velho tão feio e para não te fazer confidências.
- Estou a falar a sério. O irmão não sabe. Ela quer que case com ela pela tribo dela ou pela sua. Não há despesas. Não há preço pela esposa. Ela apenas deseja uma coisa, ser a esposa se memsahib, a minha senhora, a aceitar. Ela sabe que memsahib é a primeira esposa. Também tem medo da memsahib, como sabe. Nem faz ideia como ela leva isto a sério. Tudo isto.
- Faço uma pequena ideia - disse eu.
- Nem imagina como as coisas estão desde ontem. Só me diz que lhe peça para mostrar uma certa consideração e uma certa cerimónia com o pai e a mãe. O caso ficou reduzido a isso. Nem se fala em pagamento. Só alguma cerimónia. Há algumas cervejas rituais.
- Ela não se devia ligar a um homem com a minha idade e os meus hábitos.
- Irmão, o caso é que liga. Podia contar-lhe muitas coisas. Isto é uma coisa séria.
- Mas a que é que ela pode ligar? - disse eu, fazendo uma asneira.
- Ontem houve aquela história de ter apanhado os galos da aldeia e de os ter posto a dormir com algum tipo de magia e de os ter deixado diante da morada da família. (Nem eu nem ele podíamos dizer a palavra cubata.) Nunca se viu tal coisa e nem lhe pergunto que magia foi aquela. Mas ela diz que o senhor se lançou a eles com um movimento que nem se viu quase como um leopardo. Desde essa altura nunca mais voltou a ser a mesma. Depois tem na parede da morada as fotografias da revista Life das grandes feras da América e da máquina de lavar, das máquinas de cozinhar, dos fogões miraculosos e das máquinas batedeiras.
- Tenho muita pena. Foi uma asneira.
- É por isso que está sempre a lavar o vestido. Está a ver se fica parecida com uma máquina de lavar para lhe agradar a si. Tem medo que sinta a falta da máquina de lavar e se vá embora. Irmão, sir, é uma tragédia. Não pode fazer nada de real por ela?
- Vou fazer o que puder - disse eu - Mas não te esqueças que pôr os galos a dormir não foi magia. É um truque. E apanhá-los é também só um truque.
- Irmão, ela ama-o muito.
- Diz-lhe que a palavra amar não existe. E a perdão também não.
- É verdade. Mas a coisa existe, mesmo não havendo palavra para o dizer.
- Eu e tu temos a mesma idade. Não são precisas tantas explicações.
- Só lhe conto isto porque é grave.
- Não posso ir contra a lei se estamos aqui para a fazer cumprir.
- Irmão, não está a entender. Não há lei. Esta shamba está ali ilegalmente. Não está em território kamba. Há trinta e cinco anos que dizem para sair dali e nunca se fez nada. Nem sequer há a lei do costume. Há só umas variantes.
- Diz lá então - disse eu.
- Obrigado, irmão. Deixe que lhe diga que para o povo desta shamba o senhor e o Bwana Caça são a lei. O senhor é uma lei maior do que Bwana Caça por ser mais velho. E também porque ele não está cá e por ter levado com ele os askarís. O senhor tem aqui homens novos e guerreiros como Ngui. Tem Arap Meina. Toda a gente sabe que é pai de Arap Meina.
- Não sou nada.
- Irmão, por favor, veja se não entende mal o que eu digo. Bem sabe em que sentido disse pai. Arap Meina diz que o senhor é pai dele. E depois foi o senhor que o trouxe de volta à vida quando ele morreu no acidente do avião. Trouxe-o de volta à vida depois de ele estar estendido morto na tenda de Bwana Mouse. É sabido. Sabem-se muitas coisas.
- Há muitas coisas que se sabem mal.
- Irmão, posso beber alguma coisa?
- Desde que eu não veja nada.
- Tchin-tchin - disse o Informador. Tinha pegado no gin canadiano em vez do Gordon’s e o meu coração ficou-lhe grato por isso - Deve perdoar-me - disse ele - Passei a minha vida com os bwanas. Posso contar-lhe mais ou já está farto da conversa?
- Estou farto de algumas coisas, mas há outras que me interessam. Conta-me mais coisas da história da shamba.
- Há coisas que não sei porque eles são kambas e eu sou massai. Isso mostra que há alguma coisa que não está bem com a shamba, senão eu não estava a viver lá. Há qualquer coisa que não está bem com os homens. O senhor viu-os. Por uma qualquer razão chegaram aqui em tempos. Isto fica bastante longe das terras dos kambas. Não há nem verdadeira lei tribal nem outras leis aqui. Também viu em que estado estão os massai.
- Temos de falar nisso um dia destes.
- Quando quiser, irmão. As coisas não andam bem. É uma longa história. Mas deixe-me falar-lhe na shamba. Porque foi lá de manhãzinha e lhes falou por meu intermédio na ngoma de uma noite inteira de grande bebedeira com tanta severidade, o povo agora diz que se podia ver a forca nos seus olhos. Aquele homem que estava tão bêbado que não compreendia nada do que se passava foi levado até ao rio e mergulharam-no na água que vem da Montanha até ele perceber e nesse mesmo dia seguiu para a província vizinha depois de subir a Montanha a pé. Nem imagina até que ponto o senhor é ali a lei.
- É uma shamba pequena. Mas muito bonita. Quem é que lhes vendeu o açúcar para a cerveja daquela ngoma?
- Não sei. Mas posso descobrir.
- Isso sei eu - disse eu e expliquei-lhe. Eu sabia que ele sabia. Mas ele era um informador e há muito que tinha perdido no jogo da vida e tinham sido os bwanas a arruiná-lo ainda que ele atribuísse o mérito de tal processo a uma esposa somali. Mas foi um bwana - um grande Senhor, o maior amigo de sempre dos massai, mas que gostava, como ele disse, de fazer as coisas por trás - que, se era verdade o que contava, o tinha arruinado. Ninguém pode saber ao certo o que há de verdade no que um Informador conta, mas o modo como descrevia este grande homem era uma tal mistura de admiração e remorso que parecia explicar muitas coisas que eu nunca tinha entendido bem. Nunca tinha ouvido falar em semelhante tendência de fazer as coisas às avessas da parte deste grande homem antes de conhecer o informador. Sempre mostrei a minha incredulidade face a algumas destas histórias espantosas.
- Hão-de contar-lhe, claro - disse o Informador, agora com o seu zelo informativo atiçado pelo gin canadiano - que sou um agente dos mau-mau e o senhor é capaz de os acreditar por eu ter falado assim nisto de fazer coisas por trás. Mas, irmão, isso não é verdade. Eu gosto sinceramente dos bwanas e confio neles. É certo que a não ser um ou dois os grandes bwanas estão todos mortos e eu devia ter levado uma vida muito diferente - disse o Informador. - Pensar nesses grandes bwanas que morreram enche-me de vontade de levar uma vida melhor e mais sã. Dá-me licença?
- É o último - disse eu. - E só como medicamento.
À palavra medicamento, o Informador animou-se. Tinha um rosto largo, belo e bastante distinto, marcado pelas pregas e as rugas do bom humor e de uma intemperança licenciosa sem culpa. Não era nem um rosto de asceta nem de depravado. Era o rosto de um homem digno que, sendo massai e tendo sido arruinado pelos bwanas e por uma esposa somali, vivia agora numa aldeia kamba ilegal com o estatuto de protector de uma Viúva e que ganhava oitenta e seis shillings mensais a trair quem quer que pudesse ser traído. Era no entanto um belo rosto, devastado e alegre, e eu tinha estima pelo Informador, embora o desaprovasse inteiramente e lhe tivesse dito várias vezes que o meu dever era mandá-lo enforcar.
- Irmão - disse ele - Esses medicamentos devem existir. Senão como é que o grande doutor com nome holandês ia escrever sobre eles numa revista tão séria como é o Reader Dígest?
- Existem - disse eu - Mas não os tenho aqui. Posso mandar-tos.
- Irmão, só mais uma coisa. A rapariga é um caso sério.
- Se voltas a dizer isso fico a saber que és parvo. Estás-te a repetir, como toda a gente que bebe.
- As minhas desculpas.
- Vá então, irmão. Vou ver, a serio, se te mando o medicamento e outros bons remédios. Quando te voltar a ver, espero que me possas contar mais da história da shamba.
- Tem algum recado?
- Não há recados.
Era sempre com um choque que me apercebia que eu e o Informador tínhamos a mesma idade. Não éramos exactamente da mesma idade, mas éramos da mesma faixa etária, o que era bastante próximo e bastante mau. E aqui estava eu com uma mulher que eu amava, que me amava e tolerava os meus erros e que chamava a esta rapariga minha namorada, sendo assim tolerante porque em muitos aspectos eu era um bom marido, e também por outras razões, por generosidade, por delicadeza, por desprendimento e por querer que eu soubesse mais desta terra do que alguma vez mereceria saber. Éramos felizes, pelo menos uma boa parte de cada dia e a bem dizer a noite toda, e naquela noite, juntos na cama, sob a rede mosquiteira, com as abas da tenda abertas para podermos ver os grandes troncos de lenha da fogueira quase consumidos e o maravilhoso escuro da noite que se rompia em fiapos sempre que o vento avivava o lume e se fechava subitamente ao cair o vento, éramos felizes.
- Temos muita sorte - disse Mary - Gosto tanto de África. Nem sei como é que a poderemos deixar um dia.
Estava uma noite fria, com a brisa que vinha das neves da Montanha, mas nós estávamos aconchegados debaixo dos cobertores. Os ruídos da noite começavam e tínhamos ouvido a primeira hiena e a seguir as outras. Mary gostava de as ouvir à noite. Fazem um som agradável para quem gosta de África e nós rimo-nos os dois ouvindo-as girar em torno do acampamento e passar ao largo da tenda do cozinheiro perto do sítio onde a carne estava pendurada de uma árvore. Não conseguiam chegar à carne, mas não paravam de falar nela.
- Sabes uma coisa? Se um dia morreres e eu não tiver a sorte de morrer contigo, se alguém me perguntar o que é que mais me lembra de ti hei-de responder que era todo o espaço que tu deixavas à tua mulher numa cama de campanha. Onde é que tu te metes, a sério?
- Assim de lado na beirinha. Tenho montes de espaço.
- Conseguimos dormir confortavelmente numa cama em que uma pessoa não se sentiria confortável se estivesse bastante frio.
- É isso. É preciso que esteja frio.
- Podemos ficar mais tempo em África e não voltar antes da Primavera?
- Claro. Ficamos até não termos um chavo.
Depois ouviu-se o ruído surdo do leão a tossir quando ele chegou para caçar do outro lado da vasta pradaria ao subir do rio.
Escuta - disse Mary - Abraça-me bem e com força e escuta. Voltou - sussurrou Mary.
- Não sabes se é o mesmo.
- Tenho a certeza que é ele - disse Mary - Há noites de sobra que o ouço. Desceu da manyatta, onde matou duas vacas. Bem dizia o Arap Meina que havia de voltar.
Ouvíamos a tosse rouca dele enquanto se movia pelo capim em direcção ao sítio onde tínhamos feito a pista de aterragem para a avioneta.
- Amanhã de manhã vamos saber se era ele - disse eu - Eu e o Ngui conhecemos as pegadas dele.
- Também eu.
- OK, segues tu a pista.
- Não. Só queria dizer que conheço as pegadas dele.
- São bestialmente grandes.
Sentia-me com sono e pensei que se na manhã seguinte íamos caçar o leão com Miss Mary era melhor dormir um bocado. Há muito tempo que sabíamos, em certas coisas, o que o outro ia dizer ou, muitas vezes1 pensar e Mary disse: «Acho que é melhor ir para a minha cama; assim ficas bem instalado e podes dormir melhor.»
- Podes dormir aqui. Estou bem assim.
- Não. Não ia ser bom.
- Dorme aqui.
- Não. Antes de um leão tenho de dormir na minha cama.
- Deixa-te de te armar em guerreiro.
- Sou um guerreiro. Sou a tua mulher e a tua amada e o teu irmãozinho guerreiro.
- Está bem então - disse eu - Boa noite, irmão guerreiro.
- Dá um beijo ao teu irmão guerreiro.
- Vai para a tua cama ou fica aqui.
- Talvez as duas coisas - disse ela.
Durante a noite o leão fez-se ouvir várias vezes enquanto andava à caça. Miss Mary dormia profundamente e respirava suavemente. Fiquei acordado a pensar em mil coisas, mas sobretudo no leão e na minha responsabilidade face a Pop, Bwana Caça e a outros. Não pensei em Miss Mary, a não ser na altura dela, que era de um metro e cinquenta e cinco, em relação ao capim alto e às moitas e que, por mais fria que estivesse a manhã, não devia usar muita roupa pois que a coronha da Mamilicher 6,5 era demasiado comprida para ela se o ombro estivesse enchumaçado e arriscava-se a que o tiro partisse ao levantar a carabina para disparar. Fiquei acordado a pensar nisto e no leão e na maneira como Pop teria lidado com o caso e como ele se tinha enganado da última vez e como tivera razão mais vezes do que as que eu vira um leão.
Antes que fosse dia, as brasas da fogueira cobertas pelo cinzento das cinzas que voejavam na brisa do amanhecer, enfiei as botas de lona e um velho roupão e fui acordar Ngui à canadiana.
Acordou estremunhado, de modo nenhum meu irmão de sangue, e lembrei-me que ele nunca sorria antes do sol se levantar e muitas vezes levava um certo tempo a emergir das regiões para onde o sono o levava.
Conversámos diante das cinzas mortiças da fogueira da cozinha.
- Ouviste o leão?
- Ndio, bwana.
Esta resposta, tão educada, era no fundo rude pois já tínhamos discutido a frase «Ndio, bwana», que e o que os africanos respondem ao Homem Branco para se livrar dele, não o contradizendo.
- Quantos leões ouviste?
- Um.
- Mzuri - disse eu, num tom que queria dizer que assim estava melhor, que era correcto e que tinha ouvido o leão. Cuspiu, sacou do rapé e ofereceu-mo; peguei num bocado e pu-lo sob o lábio superior.
- Era o leão grande da memsahib? - perguntei, saboreando a súbita mordida do tabaco nas gengivas e nas bolsas debaixo do lábio.
- Hapana - disse ele. Um não radical.
Keiti tinha-se aproximado da fogueira, exibindo o seu sorriso dúbio a fender-lhe o rosto. Tinha enrolado o turbante no escuro e havia uma ponta que ficara pendente. Os olhos pareciam cépticos também. Não parecia nada que tínhamos pela frente uma caçada a sério.
- Hapana simba kubwa sana - disse Keiti, o olhar trocista mas contrito e absolutamente confiante. Sabia que não era o leão grande que tínhamos ouvido tantas vezes. «Nanyake» - disse ele num tom de brincadeira matinal. Isto significava, em kamba, um leão suficientemente velho para ser um guerreiro, casar e ter filhos, mas não o bastante para beber cerveja. Ao dizê-lo e ao mandar uma piada em kamba estava a mostrar um sinal de amizade, ao amanhecer quando a amizade está num ponto de fervura baixo, para mostrar, delicadamente, que sabia que eu andava a aprender kamba com sujeitos que não eram muçulmanos e eram considerados más companhias, mas que ele estava de acordo ou não se importava.
Andava metido nesta história de leões a bem dizer desde que me lembrava de alguma coisa do que se tinha passado. Em África as nossas recordações vão até um mês se o passo se mantiver estugado. Tinha sido um passo quase excessivo e tinha havido o caso dos leões que acusavam de andar a criar problemas em Salengai, dos leões de Magadi, dos leões de cá, dos quais tinha havido queixas por quatro vezes e agora este novo intruso que não tinha, ainda, nem ficha nem dossier. Um leão que tinha tossido umas quantas vezes e que tinha andado a caçar aquilo a que tinha direito. Mas era preciso provar isso mesmo a Miss Mary e provar que não era o leão que ela perseguia há tanto tempo, acusado de tantas faltas e cujas pegadas enormes, a pata esquerda traseira com uma cicatriz, tínhamos seguido tantas vezes para acabarmos a vê-lo afastar-se entre o capim alto que levava à floresta densa dos pântanos ou à mata espessa das terras dos gerenuks perto da velha manyatta no caminho para os montes Chulu. Era tão escuro com a sua cerrada juba negra que parecia quase preto, e tinha uma cabeça enorme que balançava baixa quando se deslocava por terrenos onde era impossível a Mary segui-lo. Há anos que o perseguíamos e não era claramente o género de leão para fotografias.
Tinha-me vestido já e estava a tomar o chá a luz do clarear junto à fogueira que tinham acendido à espera de Ngui. Vi-o a atravessar o terreno com a lança ao ombro em grandes passadas através do capim ainda húmido do orvalho. Viu-me e aproximou-se da fogueira deixando atrás de si um rasto na erva molhada.
- Simba dumi kidogo - disse, anunciando-me que era um leão macho pequeno - Nanyake - acrescentou, fazendo o mesmo gracejo que Keiti tinha feito - Hapana mzuri for memsahib.
- Obrigado - respondi - Vou deixar dormir a memsahib.
- Mzuri - disse ele e afastou-se para junto da fogueira.
Arap Meina haveria de me informar se andasse por aí o grande leão de juba negra que os massai tinham avistado numa manyatta nas Western Hills, que tinha matado duas vacas e arrastado outra com ele. Há muito que os massai sofriam as suas investidas. Viajava sem descanso e nunca voltava ao sítio onde deixara as vítimas como seria de esperar de um leão. Arap Meina tinha a teoria de que este leão tinha voltado uma vez para comer uma presa que tinha sido envenenada por um antigo guarda da reserva, o que o tinha deixado terrivelmente doente, e que tinha aprendido, ou tinha decidido, nunca mais voltar a procurar as presas abatidas. Isso explicava a sua contínua deslocação quando muito, mas não o modo imprevisível das suas incursões às diversas aldeias massai ou às manyattas. Neste momento, a planície, os lameiros salobros e o mato estavam povoados de caça graças à erva tenra trazida pelas chuvadas de Novembro e Arap Meina, Ngui e eu esperávamos que o leão saísse dos montes e descesse à planície para caçar nas imediações do pântano. Era assim que costumava caçar nesta região.
Os massai podem ser bastante sarcásticos e o gado é para eles não só a sua única riqueza como muito mais do que isso, e o Informador tinha-me contado que um dos chefes tinha dito umas coisas desagradáveis por eu ter tido duas oportunidades de matar este leão e que tinha preferido esperar para deixar uma mulher fazê-lo. Mandei um recado a esse chefe a dizer-lhe que se os jovens dele não fossem mulheres que passavam o tempo em Laitokitok a beber Golden Jeep nem sequer precisava de me andar a pedir para matar o leão dele, mas que de qualquer maneira ia ver se o abatia a próxima vez que viesse para a zona onde estávamos. Se quisesse trazer os jovens dele, pegava eu numa lança ao lado deles e matava-se o leão dessa maneira. Pedia-lhe que viesse ao acampamento para falarmos no caso.
Apareceu uma manhã com mais três anciãos e eu mandei chamar o Informador para servir de intérprete. Tivemos uma conversa séria. O chefe explicou que o Informador tinha baralhado as suas palavras. Bwana Caça, o chefe de reserva C.C., sempre tinha abatido os leões que fosse preciso e era um homem corajoso e muito capaz e tinham uma grande confiança e grande apreço por ele. Lembrava-se também que da última vez que tínhamos vindo na época da seca Bwana Caça tinha matado um leão e Bwana Caça e eu tínhamos matado uma leoa juntamente com os jovens. Aquela leoa tinha causado grandes estragos.
Respondi-lhe que esses factos eram conhecidos e que era tarefa do Bwana Caça, e desta vez minha também, abater os leões que atacassem gado, burros, ovelhas, cabras ou pessoas. Que sempre o haveríamos de fazer. Que a religião da memsahib lhe exigia que abatesse aquele leão em especial antes do Nascimento do Menino Jesus. Que vínhamos de um país distante e pertencíamos a uma tribo desse país que exigia que assim fizéssemos. Que lhes apresentaria a pele desse leão antes do Nascimento do Menino Jesus.
Como sempre, senti-me ligeiramente alarmado com a minha oratória depois de acabar e senti o habitual sentimento de aperto face aos compromissos assumidos. Miss Mary devia, pensei, pertencer a uma tribo bastante belicosa para, sendo mulher, ter de matar um leão errante antes do Nascimento do Menino Jesus. Mas pelo menos não disse que tinha de fazer isso todos os anos. Keiti levava muito a sério o Nascimento do Menino Jesus por ter andado em muitos safaris com bwanas praticantes e mesmo devotos. A maior parte desses bwanas, uma vez que tinham pago tanto pelo safari e dado que o tempo era curto, não deixavam que o Nascimento interferisse nos seus planos de caça. Mas havia sempre um jantar especial com vinho e, se possível, champanhe, e era sempre uma ocasião especial. Este ano seria ainda mais especial, pois tínhamos um acampamento permanente e com Miss Mary levando as coisas tão a sério, sendo manifestamente uma parte muito importante da sua religião com tantos rituais, especialmente o da árvore, a que Keiti, que adorava a ordem e os ritos, atribuía grande importância. O rito da árvore exercia sobre ele um grande fascínio, pois na sua antiga religião, antes de se tornar muçulmano, um maciço de árvores era da maior importância.
Os pagãos mais endurecidos do acampamento achavam que a religião tribal de Miss Mary devia ser uma das religiões mais rigorosas por implicar o sacrifício de um gerenuk em condições impossíveis, o abate de um leão perigoso e a veneração de uma árvore que, felizmente sem que Miss Mary o soubesse, produzia o tipo de mistela que excitava e endoidecia os massai no combate e na caça ao leão. Não tenho a certeza se Keiti sabia que essa era uma das propriedades da árvore de Natal que Miss Mary tinha escolhido mas uns cinco de nós sabiam e mantinham-no em segredo absoluto.
Não acreditavam que o leão fizesse parte das obrigações de Natal de Miss Mary porque estavam com ela desde que andava atrás de um leão grande muitos meses antes. Mas Ngui tinha avançado a teoria que talvez Miss Mary tivesse de matar um leão grande de juba negra durante o ano antes do Natal e como era muito pequena para ver bem no capim alto tinha começado mais cedo. Tinha começado em Setembro para matar o leão antes do fim do ano ou lá quando era o Nascimento do Menino Jesus. Ngui não sabia ao certo quando era. Mas era antes da outra grande festa do Nascimento do Ano, que era dia de pagamento.
Charo não acreditava em nada disto por já ter visto variadíssimas merrisahibs matarem variadíssimos leões. Mas sentia-se inquieto por ninguém ajudar Miss Mary. Tinha-me visto ajudar Miss Pauline anos antes e estava espantado com o que se passava. Tinha sido muito afeiçoado a Miss Pauline mas nada que se comparasse com o que sentia por Miss Mary, que manifestamente era uma esposa de outra tribo. As cicatrizes rituais dela mostravam-no bem. Tinha umas incisões delicadíssimas traçadas numa face e outras traçadas ao de leve na fronte. Eram o resultado do trabalho do melhor cirurgião plástico de Cuba depois de um acidente de carro e ninguém se apercebia delas a não ser alguém habituado a ver as quase imperceptíveis cicatrizes tribais como era o caso de Ngui.
Ngui perguntou-me um dia inesperadamente se Miss Mary era da mesma tribo que eu.
- Não - disse eu - Ela é de uma tribo da fronteira Norte do nosso país. Do Minnesota.
- Nós reparámos nas marcas tribais.
Mais tarde, numa ocasião em que estávamos a falar de tribos e de religião, perguntou-me se íamos fazer fermentar e beber a árvore do Nascimento do Menino Jesus. Disse-lhe que provavelmente não e ele disse: «Mzuri».
- Porquê?
- Gin para vocês. Cerveja para nós. Ninguém acha que Miss Mary a devia beber a não ser que a religião o exija.
- Eu sei que se ela matar o leão não é obrigada a bebê-la.
- Mzuri - disse ele - Mzuri sana.
E assim essa manhã estava à espera que Miss Mary acordasse por sua própria iniciativa para que se sentisse repousada e ficasse com uma boa reserva de sono normal. Não estava preocupado COM O leão, mas os meus pensamentos iam muito para ele sempre por causa de Miss Mary.
Há tantas diferenças entre um leão selvagem, um leão errante e o género de leão que os turistas fotografam nas Reservas Nacionais como entre o velho urso pardo capaz de seguir o fio da nossa armadilha e dar cabo dela, arrancar o telhado da nossa cabana e comer as provisões sem nunca ser visto e os ursos que aparecem ao lado da estrada para serem fotografados em Yellowstone Park. É certo que todos os anos há pessoas feridas pelos ursos do parque e que se os turistas saem dos carros podem meter-se em sarilhos. Mesmo nos carros têm sarilhos às vezes e alguns ursos tornam-se perigosos e têm de ser abatidos.
Leões das fotografias habituados a que lhes dêem comida e a serem fotografados afastam-se por vezes da zona onde estão protegidos e como aprenderam a não ter medo dos humanos tornam-se presas fáceis para pretensos caçadores acompanhados das respectivas mulheres, sempre sob a protecção, claro, de um caçador profissional. Mas o nosso problema não era criticar o modo como outros tinham matado leões ou como os deviam matar, mas sim descobrir e fazer com que Miss Mary encontrasse e matasse um leão já muito perseguido, inteligente e devastador do modo que tinha sido estabelecido não pela nossa religião mas por determinados padrões éticos. Miss Mary caçava de acordo com tais regras já há um certo tempo. Eram regras bastante rigorosas e Charo, que gostava de Miss Mary, impacientava-se com elas. Tinha sido maltratado duas vezes por leopardos quando as coisas tinham corrido mal e achava que eu estava a impor a Mary regras de ética demasiado rígidas e ligeiramente assassinas. Mas não tinha sido eu a inventá-las. Tinha-as aprendido de Pop e Pop, na sua última caçada ao leão e pela última vez que orientava um safari, queria que as coisas fossem como nos velhos tempos antes da caça a feras perigosas se ter corrompido e tornado numa brincadeira por aquilo que ele chamava sempre «a porcaria desses carros».
Este leão tinha-nos batido por duas vezes e das duas vezes tive-o nas minhas mãos, mas não aproveitei por estar destinado a Mary. Da última vez Pop tinha cometido um erro porque estava tão ansioso que Mary apanhasse o leão antes de ele ter de partir que se enganou, como pode acontecer a quem quer que seja quando se quer forçar as coisas.
Mais tarde, sentados à fogueira ao fim do dia, Pop pôs-se a fumar o seu cachimbo enquanto Mary escrevia o diário, onde regista tudo o que não quer contar-nos, as suas mágoas e desilusões, assim como os conhecimentos que vai adquirindo e que não deseja exibir em conversas e os triunfos que não quer manchar ao falar neles. Escrevia à luz do candeeiro a gás na tenda de jantar e Pop e eu estávamos sentados junto à fogueira, de pijama, roupão e botas contra os mosquitos.
- É um leão bestialmente esperto - disse Pop - Hoje tínhamo-lo apanhado se Mary fosse um pouco mais alta. Mas a culpa foi minha. Evitávamos falar do erro de que ambos nos tínhamos apercebido.
- A Mary há-de apanhá-lo. Mas não tirem isto da ideia. Não me Parece que ele seja muito corajoso, reparem. É muitíssimo esperto. Mas se for atingido vai-se mostrar bravo, quando o momento chegar. Não deixem que esse momento chegue.
- Eu agora sei atirar bem.
Pop ignorou a observação. Estava a pensar. Depois disse: «Mais do que razoável, realmente. Mas nada de excessos de confiança, mas mantém-te tão confiante como agora. Ele há-de cometer algum erro e nessa altura apanha-lo. Bastava aparecer uma leoa com o cio. Nesse caso era trigo limpo. Mas agora devem estar para nascer as crias.
- Que tipo de erro é que ele pode fazer?
- Oh, algum há-de fazer. Logo verá. Gostava de não ter de partir antes da Mary o apanhar. Toma bem conta dela. Vê se ela dorme. já anda nisto há um bom bocado de tempo. Ela que descanse e o danado do leão também. Não lhe dêem caça a todo o momento. Deixem-no ganhar confiança.
- Mais alguma coisa?
- Se puderes, continua a fazer com que ela treine a pontaria e ganhe confiança.
- Pensei levá-la até uma distância de uns quarenta e tal metros e depois talvez a cerca de vinte.
- Acho que pode dar - disse Pop - já tentámos todo o resto.
- Acho que vai dar. Depois já pode disparar de mais longe.
- Ela tem uns tiros do caraças - disse Pop - Depois durante dois dias não se percebe para onde está a atirar.
- Acho que tomei tudo em conta.
- Eu também. Mas vê lá, não a ponhas a vinte metros de nenhum leão. Tinham já passado mais de vinte anos desde que Pop e eu nos tínhamos sentado pela primeira vez diante de uma fogueira ou das cinzas de uma fogueira a falar da teoria e da prática de caçar feras. Ele não gostava e até desconfiava dos caçadores género tiro ao alvo ou caça à marmota.
- Acertam numa bola de golf em cima da cabeça do caddy a uma milha dizia ele - Um caddy em madeira ou em aço, claro. Não um caddy de carne e osso. Nunca falham até terem de acertar num kudu realmente grande a uns vinte metros. Aí nem numa montanha acertam. O sacaria do grande atirador com a carabina às voltas todo a tremer até eu próprio ficar a tremer - Tirou uma passa do cachimbo - Nunca confies em homem nenhum até o veres atirar a cinquenta metros ou menos a qualquer coisa realmente perigosa ou que ele quer a todo o preço. Nunca vás no que ele diz até o veres atirar a vinte metros. A distância curta revela o que ele tem nas tripas. Os que não valem nada falham sempre ou atiram de uma distância em que têm a certeza de não falhar.
Estava eu a pensar nisto, nos bons velhos tempos, na maravilha que esta viagem tem sido e como seria horrível se eu e Pop nunca mais nos víssemos, quando Arap Meina se aproximou da fogueira e nos saudou. Punha sempre a mesma solenidade na sua saudação mas o sorriso começava a despontar-lhe mal as mãos baixavam.
- Bom dia, Meina - disse eu.
- Jambo, bwana. Dizem na manyatta que o leão grande matou. Arrastou a vaca durante um bom bocado para o meio do mato. Não voltou junto da presa depois de ter comido mas foi em direcção ao pântano para beber.
- O leão da pata aleijada?
- Sim, bwana. Não deve tardar a descer.
- Muito bem. Mais novidades?
- Dizem que os mau-mau que estavam presos em Machakos fugiram da cadeia e vêm nesta direcção.
- Quando?
- Ontem.
- Quem é que disse?
- Um massai que encontrei no caminho. Tinha vindo no camião de um comerciante indiano. Não sabia de que duka.
- Vai comer alguma coisa. Preciso de falar contigo daqui a bocado.
- Ndio, bwana - disse ele e fez a continência. A espingarda brilhava ao sol da manhã. Tinha vestido um uniforme lavado na shamba e tinha um aspecto muito elegante e parecia estar contente. Trazia duas notícias interessantes. Era caçador e agora íamos caçar.
Pensei que talvez fosse melhor ir até à tenda ver se Miss Mary estava acordada. Se ainda estivesse a dormir, tanto melhor.
Miss Mary estava acordada, mas não completamente. Quando pedia que a acordassem sem falta às quatro e meia ou cinco, acordava depressa e bem e ficava impaciente se havia alguma demora. Mas nessa manhã acordou lentamente.
- Que se passa? - perguntou sonolenta - Porque não me chamou ninguém? O sol já vai alto. Que se passa?
- Não era o leão grande, querida. Por isso deixei-te dormir.
- Como sabes que não era o leão grande?
- O Ngui foi ver.
- E o leão grande?
- Ainda não desceu.
- Como é que sabes?
- O Arap Meina esteve cá.
- Estás a pensar ir verificar os búfalos?
- Não. Vou deixar tudo como está. Temos é um pequeno problema, de certo modo.
- Posso fazer alguma coisa?
- Não, querida. Dorme mais um pouco.
- Acho que fico mais um bocadinho se não precisas de mim. Estava a ter um sonho maravilhoso.
- Vê se consegues continuar a sonhar. Pede a chalcula quando estiveres pronta.
- Vou dormir só mais um bocadinho - disse ela - São uns sonhos mesmo lindos.
Enfiei mão debaixo do meu cobertor até encontrar o cinturão com a pistola, a alça a pender do coldre. Lavei-me na bacia, enxaguei os olhos com uma solução de ácido bórico, passei uma toalha pelos cabelos, agora cortados tão rentes que não era preciso escova nem Pente, vesti-me enfiei o pé direito pela alça da perna da pistola, puxei-a para cima e apertei o cinturão. Noutros tempos nunca andávamos com pistola mas hoje em dia era tão natural andar com pistola como abotoar a braguilha. Tinha dois carregadores de reserva num pequeno saco plástico no bolso direito do casaco de safari e munições extra num grande frasco de medicamentos com boca de rosca, antes reservado a pastilhas para o fígado. Os cinquenta comprimidos vermelho e branco que antes continha foram substituídos por sessenta e cinco cartuchos. Ngui andava com um e eu com outro.
Todos gostavam da pistola porque dava para atirar às galinhas do mato, às pequenas abetardas, aos chacais, que transmitiam a raiva, e podia matar hienas. Ngui e Mthuka apreciavam-na por causa dos latidozinhos que fazia como um cão a ladrar e os pufos de poeira que levantava à frente das hienas que fugiam, ouvindo-se então os plunc, plutic, plutic, fazendo a hiena abrandar o galope e começar a andar em círculo. Ngui estendia-me um carregador cheio que me tinha tirado do bolso, eu enfiava-o na arma e seguia-se mais uns borrifos de poeira, mais uns plunc, plunc, plunc e a hiena dava uma cambalhota, as patas para o ar.
Caminhei até à vedação para falar com Keiti sobre o que se tinha passado. Disse-lhe para vir comigo até um sítio onde pudéssemos falar à vontade e ele assumiu uma atitude distendida para me ouvir, com uma expressão de velho sabido céptico, meio incrédulo, meio divertido.
- Não acredito que cheguem cá - disse ele - São mau-mau wakamba. Não são tão estúpidos como isso. Vão perceber que estamos aqui.
- O meu único problema é se eles chegam cá. Se vierem, onde é que irão?
- Não vêm cá.
- Porquê?
- Estou a pensar no que eu fazia se fosse mau-mau. Não vinha cá.
- Mas tu és um mzee e um homem inteligente. Eles são mau-mau.
- Nem todos os mau-mau são estúpidos - disse ele - E estes são wakainba.
- De acordo - disse eu - Mas todos foram apanhados quando foram à Reserva fazer propaganda dos mau-mau. Porque é que foram apanhados?
- Porque se embebedaram e desataram a gabar-se que eram os melhores do mundo.
- Pois. E se vierem até cá onde há uma shamba kamba também vão querer beber. Vão querer comer e sobretudo beber se são os mesmos que foram presos por estarem bêbados.
- Já não são os mesmos. Fugiram da cadeia.
- Vão para onde houver de beber.
- Se calhar. Mas não vêm para cá. São wakamba.
- Tenho de tomar medidas.
- Sim.
- Depois digo-te o que decidi. Está tudo em ordem no acampamento? Alguém doente? Algum problema?
- Está tudo em ordem. Não há nenhum problema. O acampamento está bem.
- E quanto a carne?
- Vamos precisar de carne hoje à noite.
- Griu?
Abanou a cabeça devagar e fez o seu sorriso em fenda.
- Há muitos que não o podem comer.
- Quantos é que podem?
- Nove.
- E os outros o que podem comer? Impala mzuri.
- Há impalas a mais por estes lados e eu ainda tenho direito a dois disse eu - Eu arranjo a carne para logo à noite. Mas prefiro matá-los ao cair do dia para ter a carne fresca no frio que vem da Montanha durante a noite. Quero que embrulhem a carne num pano para as moscas não a estragarem. Somos hóspedes aqui e eu sou o responsável. Não devemos desperdiçar nada. Quanto tempo levam de Machakos até aqui?
- Três dias. Mas não vêm para cá.
- Diz ao cozinheiro por favor que prepare o meu pequeno-almoço. Voltei para a tenda de jantar, sentei-me à mesa e peguei num livro da estante improvisada com uns quantos caixotes de madeira vazios. Era um ano em que se tinham publicado uma data de livros sobre pessoas que tinham fugido de campos de prisioneiros na Alemanha e este livro era também uma história de evasão. Pu-lo no sítio e peguei noutro. Intitulava-se The Last Resort, e achei que devia ser melhor como distracção.
No momento em que abria o livro no capítulo sobre Bar Harbor ouvi o motor de um carro que se aproximava a grande velocidade e ao olhar pela parte de trás da tenda que estava aberta vi o Land Rover da polícia entrar no acampamento a toda a brida, levantando uma nuvem de poeira que cobriu tudo, incluindo a roupa a secar. O carro descapotável deteve-se subitamente numa pista de terra batida ao lado da tenda. O jovem polícia entrou, fez uma continência impecável e estendeu-me a mão. Era um rapaz alto e loiro com uma expressão pouco prometedora.
- Bom dia, bwana - disse ele, tirando o boné do uniforme.
- Tomas o pequeno-almoço?
- Não tenho tempo, hwana.
- Que se passa?
- A coisa estourou, bwana. Estamos arranjados. Foram catorze, bwana. Catorze do género dos mais perigosos.
- Armados?
- Até aos dentes, bwana.
- São os que fugiram de Machakos?
- São. Como é que soube?
- O guarda da reserva trouxe a novidade hoje de manhã.
- Governador - disse ele. Era um termo de respeito filial sem nenhuma relação com o título de governador da colónia - Temos de coordenar os nossos esforços mais uma vez.
- Ao teu dispor.
- Como é que fazia, governador? Para a coordenação da operação?
- Isso é o teu shauri. Eu sou apenas um substituto do chefe da reserva.
- Dê lá uma ajudinha, governador. Dê uma mão aqui ao rapaz. O senhor e o chefe da reserva já me desenrascaram outras vezes. Nestas alturas todos temos de jogar o jogo. E jogar até ao fim.
- Tudo bem - disse eu - Mas eu não sou polícia.
- Mas isso não o impede nada de fazer de chefe da reserva. Vamos cooperar. Que fazia o senhor, governador? Eu coopero em tudo a fundo.
- Montava uma ratoeira.
- Não tem um copo de cerveja que eu beba? - perguntou.
- Pega numa garrafa. Bebemos a meias.
- Tenho a garganta seca da poeira.
- Para a próxima vez vê se não fazes essa poeirada por cima da porra da nossa roupa -- disse eu.
- Desculpe, governador. Peço imensa desculpa. Mas estava preocupado com o nosso problema e estava convencido que tinha chovido.
- Anteontem. Já secou.
- Continue, governador. Então montava uma ratoeira.
- Sim - disse eu - Há uma shamba kamba por estes lados.
- Não fazia ideia. O C. D. sabe isso?
- Sabe - respondi - Há, ao todo, quatro shambas cá onde fazem cerveja.
- Isso é ilegal.
- Pois é, mas é o que se passa muitas vezes em África. Proponho que se destaque um homem para cada uma dessas shambas. Se algum desses sujeitos aparecer ele manda-me avisar, eu cerco a shamba e apanhamo-los.
- Mortos ou vivos - disse ele.
- Sabes o que estás a dizer?
- Claro que sei, governador. São tipos prontos a tudo.
- Era melhor ver se é assim.
- Não é preciso, governador. Palavra de honra. Mas como é que o avisam da shamba?
- Pensando numa coisa do género organizámos já uma espécie de Brigada Auxiliar Feminina. Bestialmente eficientes.
- Boa bola. Fico contente com isso. Tem uma boa rede?
- Nada má. Uma miúda bestialmente esperta à frente. Do tipo verdadeiramente clandestino.
- Posso vê-la um dia destes?
- Um pouco complicado, contigo assim fardado. Mas vou pensar nisso.
- Clandestino - disse ele - Sempre achei que era mesmo nisso que eu era bom. A clandestinidade.
- Porque não? - disse eu - Temos para aí alguns pára-quedas antigos e podemos praticar depois desta história ter passado.
- Pode avançar mais um bocadinho, governador? já temos a ratoeira. A ratoeira parece-me uma boa ideia. Mas não basta.
- Mantenho o grosso das minhas forças à mão mas absolutamente disponíveis para avançar para qualquer ponto sensível da ratoeira. Agora voltas para a Boma e pões as coisas em estado de alerta. Depois sugiro que montes uma barreira na estrada durante o dia na curva que fica a uns dezasseis quilómetros daqui. Vê pelo conta-quilómetros. Sugiro que mudes a barreira durante a noite para um sítio de onde a estrada se destaca do pântano. Lembras-te onde fomos quando andámos atrás dos babuínos?
- Nunca o esqueci, bwana.
- Aí, se tiveres algum problema entro em contacto contigo. Vê se tens muito cuidadinho ao disparar contra pessoas à noite. Há muito movimento para aqueles lados.
- Diziam que não há.
- Mas há. Se fosse a ti mandava pôr três avisos à porta das três dukas a dizer que o recolher obrigatório tem de ser rigorosamente obedecido nas estradas. Era capaz de te poupar algumas chatices.
- Pode dar-me alguns homens, bwana?
- Não, a não ser que a situação degenere. Lembra-te que faço a ratoeira por ti. Vou-te dizer o que vou fazer. Vou mandar um recado a dizer que podes telefonar passando por Ngong e vou pedir uma avioneta. De qualquer maneira ia precisar dela para outra coisa.
- Óptimo, bwana. Será que podia voar consigo?
- Não me Parece - disse eu - Fazes falta em terra.
Escrevi o recado a pedir a avioneta a qualquer hora depois do almoço no dia seguinte com o correio e os papéis de Nairobi e reservei duas horas de voo na região.
- Fazias melhor ir para a Boma - disse eu - E outra coisa, meu rapaz, nunca me apareças no acampamento daquela maneira à cowboy. É poeira na comida, nas tendas nos homens e na roupa a secar.
- Peço imensa desculpa, governador. Não volta a acontecer. E obrigado por me ter ajudado no comando disto.
- Talvez passe pela cidade hoje à noite.
- Boa bola.
Esvaziou o copo, fez a continência, saiu e desatou aos berros pelo condutor. Mary entrou na tenda com um ar fresco e radioso.
- Não era o miúdo da polícia? Temos sarilhos?
Contei-lhe que havia um bando que tinha fugido da cadela de Machakos e o que se tinha passado depois. Não se mostrou particularmente impressionada.
Durante o pequeno-almoço perguntou: «Não achas que é tremendamente caro mandar vir o avião nesta altura?»
- Preciso de receber aquele correio de Nairobi e uns cabos eléctricos. Temos de localizar os búfalos para tirarmos as fotografias. No pântano não estão de certeza. Temos de ver o que se passa para os lados dos Chulu e também posso tirar partido dele nesta história absurda.
- Não posso voltar com ele pra Nairobi para comprar as coisas de Natal enquanto não apanhar o leão.
- Tenho um palpite de que vamos apanhar o leão se não nos precipitarmos e o deixarmos descansar e se tu descansares. Arap Meina disse-me que ele vinha para cá.
- Não preciso de descansar - disse ela - Não é justo dizeres isso.
- OK. Quero que ele ganhe confiança e acabe por cometer algum erro.
- Espero que sim.
Cerca das quatro mandei chamar Ngui e quando chegou disse-lhe para ir buscar Charo, as carabinas e uma espingarda e dizer a Mthuka para vir com o carro de caça. Mary estava a escrever cartas e eu disse-lhe que tinha mandado buscar o carro e então surgiram Ngui e Charo que retiraram as armas dos estojos arrumados debaixo das camas de campanha e Ngui montou a grande .577. juntaram munições e contaram-nas, verificando as balas para a Springfield e a Maririlicher. Era o primeiro dos gestos do ritual da caça.
- Que vamos caçar?
- Estamos a precisar de carne. Vamos tentar uma experiência, de que estive a falar com Pop, para ganhar prática para o leão. Quero que acertes num griu a vinte metros. Charo e tu vão desembuscá-lo.
- Não sei se conseguiremos chegar assim tão perto.
- Vai-te arranjar. Não ponhas a camisola. Leva-a e veste-a quando voltarmos se estiver fresco. E arregaça as mangas agora se estás a pensar fazê-lo. Por favor, querida.
Miss Mary tinha por hábito, mesmo antes de ir a disparar, de enrolar a manga direita do casaco de safari. Nem que fosse fazer só uma bainha. Mas era quanto bastava para afugentar um animal a mais de cem metros.
- Bem sabes que já não faço isso.
- Óptimo. A razão porque falei na camisola é porque pode fazer com que a coronha fique afastada para ti.
Está bem. Mas se estiver frio na manhã em que apanharmos o leão? É só para ver como é que disparas sem ela. Para ver qual é a diferença. Toda a gente anda sempre a fazer experiências comigo. Porque é que não posso simplesmente sair, disparar e matar sem mais histórias?
- E podes, querida. É o que vamos fazer agora mesmo.
Seguimos ao longo da pista de aterragem. Ã nossa direita mais à frente estendia-se a parte acidentada do parque e num capinzal avistei dois grupos de grius a pastar e um velho macho deitado nas proximidades de um maciço de árvores. Apontei com o queixo a mostrá-lo a Mthuka, que já o tinha visto, e indiquei com a mão para fazermos um grande círculo para a esquerda e voltarmos depois por trás das árvores de modo a não sermos vistos.
Fiz sinal a Mthuka para parar o carro e Mary desceu, e a seguir Charo, levando uns binóculos. Mary empunhava a sua Mamilicher 6,5 e assim que pôs o pé em terra levantou a culatra, puxou-a atrás, fê-la deslizar para diante e verificou que o cartucho tinha entrado na câmara, voltou a fechá-la e desarmou a alavanca de segurança.
- E agora que é que eu faço?
- Viste o macho velho deitado?
- Vi. E vi os outros dois nas moitas.
- Vai com o Charo e vê o mais perto que podes chegar do macho velho.
O vento está bom e devem Poder chegar até às árvores. Estás a ver a clareira?
O velho griu estava deitado, escuro e com um ar estranho, com aquela cabeça enorme, de cornos revirados para baixo e abertos, com uma crina que lhe dava um aspecto inquietante. Charo e Mary aproximavam-se do maciço de árvores e o griu levantou-se. Tinha agora um ar ainda mais estranho e à luz parecia ainda mais escuro. Não tinha visto Mary e Charo e estacava de flanco para eles, olhando em direcção ao sítio onde nos encontrávamos. Era a meus olhos um animal magnífico e estranho, ainda que estivéssemos habituados aos gnus por os vermos todos os dias. Não era um espécime imponente, mas era um animal com um aspecto extraordinário e eu estava encantado ao apreciá-lo e a observar a lenta e dupla aproximação dos vultos curvados de Mary e Charo.
Mary encontrava-se na orla do arvoredo de onde podia agora disparar e nós observámos Charo a ajoelhar-se, Mary a levantar a carabina e a baixar a cabeça. Ouvimos o tiro e quase ao mesmo tempo o som da bala a atingir o osso e vimos a massa escura do velho macho erguer-se no ar e cair pesadamente sobre o flanco. Os outros grius romperam num galope desabalado e nós precipitámo-nos para Mary e Charo e a massa escura no meio do capim. Mary e Charo estavam já junto ao griu quando saltámos todos do carro aos encontrões. Charo mostrava-se muito satisfeito e empunhava a faca. Todos diziam: «Piga inzuri. Piga mzuri sana, memsahib. Mzuri, mzuri, sana.»
Passei o braço pelos ombros dela e disse: «Belo tiro, gatinha, e uma bela aproximação. Mas vê se lhe acertas exactamente na base da orelha esquerda, por amor de Deus.»
- Então não era para lhe acertar na testa?
- Não, por favor. Na base da orelha exactamente.
Mandou afastar com um gesto toda a gente, retirou a alavanca de segurança, levantou a carabina, apontou cuidadosamente, respirou fundo, soprou o ar, apoiou-se no pé esquerdo e disparou um tiro que fez um pequeno buraco no ponto exacto da junção da orelha esquerda com o crânio do griu. As patas da frente do animal distenderam-se lentamente e a cabeça voltou-se com um movimento suave. Mostrava uma certa dignidade na morte e eu pus o braço no ombro de Mary e desviei-a para que não visse Charo enfiar a faca no ponto preciso que tornaria o velho macho em alimento apropriado para todos os maometanos.
- Não estás contente por eu me ter aproximado até tão perto e o tenha abatido à primeira, e bem, e como devia ser? Não estás um bocadinho orgulhoso da tua gatinha?
- Foste magnífica. Fizeste uma aproximação impecável e mataste-o ao primeiro tiro, que ele nem sequer percebeu o que se estava a passar e não sofreu nada.
- Confesso que me pareceu tremendamente grande e, querido, até me pareceu com um ar feroz.
- Gatinha, vai-te sentar no carro e bebe um gole da Jinny. Eu vou ajudá-los a carregar na traseira.
- Vem tomar uma bebida comigo. Acabei de dar de comer a dezoito pessoas com a minha carabina e adoro-te e quero beber qualquer coisa. Viste como eu e o Charo nos chegámos tão perto?
- Foste maravilhosa. Não podias ter feito melhor.
A garrafa Jinny estava num dos bolsos da velha cartucheira espanhola. Era um frasco de um quarto de litro de Gordon que tínhamos comprado no Sultan Hamid e o nome vinha-lhe de uma outra antiga e famosa garrafa de prata que tinha acabado por se romper nas juntas a muitos metros de altura durante uma guerra e me fez pensar por momentos que tinha sido atingido nas nádegas. A antiga Jinny nunca tinha sido devidamente reparada mas nós tínhamos dado a esta garrafa achatada de um quartilho o mesmo nome da outra que se adaptava à forma da anca e que tinha um nome de rapariga na tampa de prata de enroscar, mas não os nomes das batalhas a que tinha assistido nem os nomes de todos os que tinham bebido por ela e que estavam agora mortos. As batalhas e os nomes teriam recoberto os dois lados da velha Jinny se aí tivessem sido gravados num tamanho modesto. Mas esta nova e insuspeita Jinny limitava-se a ritos tribais.
Mary bebeu um gole, eu outro e então Mary disse: «Sabes uma coisa? A África é o único sítio onde o gin puro não parece mais forte do que a água.»
- Um bocadinho é.
- Oh, dizia em sentido figurado. Bebo mais um gole, se me deixares.
O gin era realmente muito bom, puro, comunicava um calor agradável e tornava-nos alegres e quanto a mim não se parecia nada com água. Passei o cantil a Mary, ela bebeu uma grande golada e disse: «A água também é deliciosa. Não está certo comparar as duas coisas.»
Deixei-a de Jinny na mão e dirigi-me para a traseira do carro, que tinha o anteparo baixado para se poder carregar o griu. Içámo-lo inteiro para ganharmos tempo e para que os que gostam das vísceras pudessem aproveitar essas partes quando fosse amanhado no acampamento. Carregado e encolhido perdera toda a dignidade e jazia ali de olhos vítreos, a barriga inchada, a cabeça numa posição grotesca, a língua parda saída, como a de um enforcado. Ngui, que com Mthuka tinha feito o grosso do trabalho de o içar, pôs o dedo no buraco da bala um pouco acima da espádua. Fiz um aceno de cabeça e levantámos o beiral da parte de trás rapidamente e pedi o cantil a Mary para enxaguar as mãos.
- Bebe um gole, Papá - disse ela - Porque estás tão macambúzio?
- Não estou nada macambúzio. Mas dá lá um gole. Queres dar mais um tiro? Temos de arranjar uma Tommy ou um impala para Keiti, Charo, Mwindi, para ti e para mim.
- Gostava de apanhar um impala. Mas hoje já não me apetece dar mais tiros. Prefiro não, está bem? Não quero estragar tudo. Agora acerto exactamente onde quero.
- Para onde apontaste, gatinha? - disse eu, embora detestasse estar a fazer a pergunta. Bebi um gole ao fazer a pergunta para soar espontânea sem o ar natural forçado.
- Mesmo no meio da espádua. Mesmo no meio. Bem viste o buraco. Havia uma grande gota de sangue que tinha corrido do buraco minúsculo no alto da espinha dorsal e que tinha rolado até ao centro da espádua, onde se detivera. Reparei nisso quando o estranho antílope escuro jazia na erva com a parte da frente ainda viva mas Imóvel e a parte de trás completamente morta.
- Bravo, gatinha.
- Fico com a Jinny - disse Mary - já não tenho de dar mais tiros. Estou contente por ter disparado como tu querias.- É pena o Pop não estar aqui também.
Mas Pop não estava aqui e, à queima-roupa, ela tinha atingido o griu catorze polegadas acima do ponto que tinha visado, matando o animal com um tiro perfeito no alto da espinal medula. Por isso continuava a existir um certo problema.
Atravessávamos agora o parque contra o vento, tendo o sol pelas costas. À nossa frente, avistei as manchas brancas quadradas dos quartos traseiros das gazelas de Grant e as caudas ondeantes das Tommy, as gazelas de Thompson, que pastavam mais à frente, que fugiram aos saltos mal o carro se aproximou. Ngui sabia o que havia a fazer e Charo também. Ngui voltou-se para Charo e disse-lhe: «A Jinny».
Charo passou-lha por cima do banco entre a espingarda e a carabina penduradas de cano para cima nos ganchos. Ngui desenroscou a tampa e estendeu-ma. Bebi um gole e a água é que não sabia. Nunca podia beber quando caçávamos leões com Mary por causa da responsabilidade, mas o gin relaxava-me e todos estávamos um pouco crispados depois do gnu, excepto o carregador que se mostrava alegre e orgulhoso. Miss Mary estava também alegre e orgulhosa.
- Ele está morto por uma exibição tua - disse ela - Dá-lhe um espectáculo, Papá. Por favor, um espectáculo.
- OK - disse eu - Mais um para o espectáculo.
Estendi a mão para a Jinny e Ngui abanou a cabeça. «Hapana - disse ele - Mzuri.»
A nossa frente, na clareira que se seguia, viam-se duas Tommy macho a pastar. Tinham belas armações, excepcionalmente compridas e simétricas e abanavam as caudas enquanto tasquinhavam com vivacidade. Mthuka acenou a mostrar que os tinha visto e guinou o carro de modo que quando parasse pudesse cobrir a minha aproximação. Ejectei dois cartuchos da Springfield e introduzi duas balas, baixei a culatra e saí do carro, começando a encaminhar-me para o denso maciço de moitas como quem não quer a coisa. Não me baixei porque as moitas eram suficientemente altas para me taparem e eu tinha chegado à conclusão que ao perseguir a caça, quando havia muitos animais, era melhor avançar normalmente e sem ter o ar de os ver. Senão, havia o risco de alarmar outros animais que nos podiam ver e podiam alarmar as presas que visávamos. Lembrando-me que Miss Mary me tinha pedido para dar espectáculo, levantei devagar a mão esquerda e dei uma palmada ao lado do pescoço. Era para indicar o ponto onde ia tentar acertar, não me interessando outro qualquer. Ninguém pode antecipar assim um tiro num animal tão pequeno como uma Tommy quando ela pode fugir. Mas se a pontaria fosse boa servia para levantar o moral e se não fosse podia dizer que era uma coisa manifestamente impossível.
Era agradável caminhar pela erva salpicada de flores brancas e eu avançava num passo descontraído com a espingarda atrás junto à perna direita, o cano apontado para baixo. Ao caminhar não pensava em nada que não fosse aquele belo despontar da manhã e em como me sentia bem em África. Tinha agora chegado ao extremo direito do maciço e devia baixar-me e rastejar mas havia demasiadas ervas e flores a mais, estava de óculos e era demasiado velho para andar de rastos. Por isso, puxei a culatra, com o dedo no gatilho para não fazer nenhum estalido, levantei o dedo do gatilho para depois o pôr silenciosamente no sítio, regulei a mira e dei um passo para a direita das moitas.
Os dois machos Tommy fugiram desabalados assim que levantei a espingarda. O mais afastado tinha a cabeça voltada para mim quando eu apareci a descoberto. Escarvavam a terra com os seus cascos pequenos enquanto galopavam aos saltos. Visei o segundo na mira, deixei cair o peso do corpo sobre o pé esquerdo avançado, segui o animal com a mira adiantando-me depois num movimento seguido e puxei o gatilho quando o visor estava adiante dele. Senti o recuo da arma, a detonação seca, e quando enfiava a segunda bala vi as quatro patas rígidas no ar e o ventre branco e depois as patas voltaram a baixar lentamente. Aproximei-me, esperando não o ter atingido por trás deixando-o desfeito, ou ter acertado na espinha por engano OU na cabeça, e ouvi então o carro que chegava. Charo saltou para fora de faca na mão, correu para a gazela e deteve-se à espera.
Quando cheguei junto dele, disse: «Halal.»
- Hapana - disse Charo e tocou os pobres olhos mortos com a ponta da faca.
- Mas mesmo assim halal.
- Hapana - disse Charo. Nunca o tinha visto chorar e agora estava perto disso. Era uma crise de consciência e ele era um homem velho e devoto.
- OK - disse eu - Sangra-o, Ngui.
Todos tinham ficado muito calados por causa de Charo. Ele voltou para o carro e ficámos apenas nós, os descrentes. Mthuka apertou-me a mão e mordeu os lábios. Estava a pensar no pai que se via privado de carne de gazela. Ngui ria-se, mas esforçava-se para que não se notasse. O porta-armas de Pop, que ele deixara connosco, tinha um rosto redondo e muito castanho de duende. Pôs a mão por cima da cabeça em sinal de pena. Seguidamente deu uma palmada no pescoço. O porta-armas olhava-nos com um ar feliz, animado e estúpido, contente por estar na companhia de caçadores.
- Onde é que lhe acertaste? - perguntou Mary.
- No pescoço, receio bem.
Ngui mostrou-lhe o buraco da bala e juntamente com Mthuka e o carregador levantou a gazela e atirou-a para a traseira do carro.
- Parece mesmo feitiçaria - disse Mary - Quando disse para dares espectáculo não queria dizer a este ponto.
Chegámos ao acampamento, dando a volta cautelosamente para largarmos Miss Mary e para não levantar poeira.
- Foi uma tarde maravilhosa - disse ela - Obrigada a todos, muito obrigada.
Dirigiu-se para a tenda onde Mwindi devia ter o banho quente pronto a encher a banheira de tela e eu sentia-me contente por a ver contente com o tiro dela e deixei-me convencer, ajudado pela Jinny, que havíamos de resolver todos os nossos problemas e que se lixasse a pequena diferença de catorze polegadas mais para cima a vinte e cinco metros de um leão. Que se lixasse bem lixada. O carro partiu, lentamente, para o terreno onde costumávamos esfolar e esquartejar as presas. Keiti apresentou-se seguido pelos outros e eu saí e disse: «A memsahib abateu um griu, com um belo tiro.»
- Mzuri - disse Keiti.
Deixámos os faróis do carro acesos para podermos amanhar o animal. Ngui empunhava a minha melhor faca e juntou-se ao esfolador, que se tinha posto ao trabalho aninhado junto ao griu.
Aproximei-me, dei uma palmada no ombro de Ngui e chamei-o para fora da luz, Estava concentrado na tarefa mas compreendeu e afastou-se imediatamente da luz.
- Tira um bom bocado do lombo para a shamba - disse eu. E com o dedo indiquei-lho nas suas próprias costas.
- Ndio - disse ele.
- Embrulha-o numa parte da pança depois de a limparem.
- Está bem.
- Dá-lhes um bom naco de carne.
- Ndio.
Queria mandar um pouco mais de carne mas sabia que não estava certo fazê-lo e calei a consciência dizendo-me que fazia falta para os dois próximos dias de operações e ao lembrar-me disso disse a Nguí: «Põe também bastante carne miúda para a shamba.»
Depois afastei-me da luz dos faróis até à árvore ao lado da fogueira da cozinha onde a Viúva com o rapazinho dela e Debba estavam à espera. Traziam os vestidos coloridos, agora debotados, e estavam encostadas à arvore, O rapazinho precipitou-se para mim, bateu com a cabeça no meu estômago e eu dei-lhe um beijo no topo da cabeça.
- Então como vai a Viúva? - perguntei. Ela abanou a cabeça.
- Jambo, tu - disse para Debba. Beijei-a no topo da cabeça também e ela riu-se e eu passei-lhe a mão pelo pescoço e pela cabeça sentindo a sua beleza tão próxima e tensa e ela bateu com a cabeça duas vezes à altura do meu coração e eu beijei-lhe novamente a cabeça. A Viúva estava muito ansiosa e disse: «Kwenda na shamba», sugerindo que fôssemos para a aldeia. Debba não disse nada. Tinha perdido o seu adorável descaramento kamba e eu afaguei-lhe a cabeça inclinada, que senti encantadora, e toquei-lhe os sítios secretos por trás das orelhas e ela levantou as mãos, furtivamente, e tocou as minhas piores cicatrizes.
- O Mthuka vai-as levar de carro - disse eu - Há carne para a família. Eu não posso ir. Jambo, tu - disse eu, que é o que de mais brutal e mais terno se pode dizer a terminar do modo mais abrupto a conversa.
- Quando vai lá? - perguntou a Viúva.
- Um dia destes. Quando for em serviço.
- Vamos a Laitokitok antes do Nascimento do Menino Jesus?
- De certeza - disse eu.
- Kwenda na shamba - disse Debba.
- O Mthuka leva-te.
- Vem tu.
- No hay remedio - disse eu. Foi uma das primeiras coisas que lhe tinha ensinado a dizer em espanhol e ela repetiu-a agora atentamente. Não sabia nada mais triste em espanhol e achei que era talvez melhor para ela aprendê-lo cedo. Pensava que fazia parte da minha religião, que ela aprendia, uma vez que não lhe tinha explicado o que queria dizer, mas só que era uma frase que devia aprender.
- No hay remedio - disse ela com orgulho.
- Tens umas belas mãos e fortes - disse-lhe em espanhol. Era uma das nossas primeiras piadas e eu tinha-lha traduzido com cuidado. «És a rainha das ngomas.»
- No hay remedio - disse ela com modéstia. Depois do escuro repetiu muito depressa: «No hay remedio, no hay remedio, no hay remedio».
- No hay remedio, til - disse eu - Leva a carne e vai para casa. Nessa noite enquanto ouvia acordado as hienas a disputarem os restos da carne e olhando a luz da fogueira pela porta da tenda pus-me a pensar em Mary que agora dormia profundamente feliz com a bela caçada e o tiro certeiro no griu e a interrogar-me por onde andaria o leão grande e que estaria a fazer neste momento no escuro. Imaginava que voltaria a fazer vítimas ao descer para o pântano. Depois pensei na shamba e em como não havia remédio nenhum nem nenhuma solução. Sentia-me cheio de remorsos por me ter envolvido com a shamba mas no hay remedio agora e talvez nunca devesse ter começado. Não tinha sido eu a começar. Tinha começado por si próprio. Depois voltei a pensar no leão e nos mau-mau kamba e que devíamos contar com eles a partir da tarde do dia seguinte. Depois, por momentos, deixaram de se ouvir quaisquer ruídos na noite. Toda a gente tinha ficado suspensa e eu pensei bolas devem ser os mau-mau kamba e deixei-me apanhar de surpresa e peguei na Winchester que tinha carregado com zagalotes e pus-me à escuta de boca aberta para ouvir melhor ao mesmo tempo que sentia o coração a latejar. E então os ruídos da noite recomeçaram e ouvi um leopardo a tossir ao longe perto do riacho. Era um ruído que fazia lembrar a corda dó de uma viola baixo tocada com uma grosa de ferreiro. Voltou a tossir, à caça, e toda a noite desatou a falar dele e eu meti a espingarda debaixo da perna e comecei a adormecer sentindo orgulho de Miss Mary e que a amava e orgulhoso de Debba e que gostava imenso dela.
Levantei-me ao alvorecer e saí em direcção à tenda do cozinheiro e da vedação. Keiti era sempre bastante meticuloso e por isso inspeccionávamos o acampamento num estilo bastante militar e pude verificar que não estava preocupado com nada. A carne estava pendurada embrulhada num pano de gaze e havia carne que chegasse para alimentar os homens durante três dias. Alguma tinha já sido posta a assar pelos mais madrugadores. Recapitulámos o plano para interceptar os mau-mau se chegassem a uma das quatro shambas.
- O plano é bom mas eles não vêm - disse ele.
- Ouviste que ficou tudo calado antes do leopardo esta noite?
- Ouvi - respondeu e sorriu - Mas era um leopardo.
- Não pensaste que podiam ser eles?
- Pensei. Mas não eram.
- Muito bem - disse eu - Podes dizer ao Mwindi que vá ter comigo à fogueira?
Sentei-me junto à fogueira que tinham reacendido juntando as pontas dos troncos que não tinham ardido e pondo uns gravetos secos por cima das cinzas e bebi o meu chá. Já tinha arrefecido e MWindi trazia outro bule quando chegou. Era tão formal e meticuloso como Keiti e tinha o mesmo sentido de humor, embora menos polido. Mwindi falava inglês, mas compreendia-o melhor do que o falava. Era um homem de idade e tinha o ar de um chinês de rosto escuro e estreito. Era ele que tinha todas as minhas chaves e tinha a seu cargo a tenda, fazer as camas, trazer as banheiras, tratar da roupa e das botas, servir o chá de manhã e cabia-lhe também guardar o meu dinheiro e todo o dinheiro com que eu contava para organizar o safari. Este dinheiro estava guardado no baú de lata e era ele quem tinha as chaves. Gostava que confiassem nele como se confiava nas pessoas nos velhos tempos. Andava a ensinar-me kamba mas não o mesmo kamba que aprendia com Ngui. Mwindi achava que eu e Ngui exercíamos má influência um sobre o outro, mas era demasiado velho e demasiado sabido para se deixar perturbar pelo que quer que fosse a não ser o que pusesse em causa a ordem no seu trabalho. Gostava do que fazia e gostava das responsabilidades e tinha criado uma rotina ordenada e agradável na vida do safari.
- O patrão deseja alguma coisa? - perguntou, muito direito com um ar solene e humilde.
- Temos armas e munições a mais no acampamento - disse eu.
- Ninguém sabe - disse ele - Vem tudo escondido de Nairobi. Ninguém vê nada em Kitanga. Transportamos tudo sempre escondido. Ninguém vê. O senhor dorme sempre com a pistola encostada à perna.
- Eu sei. Mas se eu fosse mau-mau atacava este acampamento à noite.
- Se fosse mau-mau aconteciam muitas coisas. Mas não é mau-mau.
- Está bem. Mas quando não estás na tenda, tem de haver lá alguém armado e responsável.
- Por favor, patrão, manda-os ficar a vigiar do lado de fora. Não quero ninguém na tenda. Pela tenda, sou eu o responsável.
- Ficam de fora.
- Patrão, eles têm de atravessar um descampado a descoberto para chegar a este acampamento. Todos os viam.
- O Ngui e eu atravessámos por três vezes o acampamento de uma ponta à outra em Fig Tree e nunca ninguém nos viu.
- Eu vi-os.
- A sério?
- Duas das vezes.
- Porque não disseste nada?
- Não tenho de estar a dizer tudo o que vejo o senhor e o Ngui fazerem.
- Obrigado. Agora já sabes o que tens a fazer quanto à guarda. Se a memsahib e eu sairmos e tu não estiveres na tenda chama o guarda. Se a menisahib estiver cá sozinha e tu saíres, chama o guarda.
- Ndio - disse ele - Não toma o chá? Fica frio.
- Hoje à noite vou montar armadilhas à volta da tenda e vamos deixar uma lanterna naquela árvore.
- Mzuri. Fazemos também uma grande fogueira. O Keiti mandou ir buscar a lenha agora e assim o condutor do camião já fica livre. Vai a uma das shambas. Mas a gente que dizem que vem não virá aqui.
- Porque é que estás tão certo disso?
- Porque é estúpido vir meter-se numa armadilha e eles não são estúpidos. São mau-maus wakamba.
Sentado junto à fogueira com o novo bule de chá fui bebendo tranquilamente. Os massai eram um povo de pastores e de guerreiros. Não eram caçadores. Os wakamba eram caçadores; os melhores caçadores e pisteiros que conheci. E agora a caça deles tinha sido abatida pelos brancos e por eles próprios na reserva deles e o único sítio onde podiam caçar era nas reservas massai. A reserva wakamba estava sobrepovoada e cultivada em excesso e quando as chuvas falhavam não havia pastagem para o gado e as colheitas ficavam perdidas.
Sentado e a tomar o chá, ia pensando que a clivagem, uma clivagem amigável, no acampamento, mas uma clivagem no caracter e no aspecto, não era entre crentes e descrentes, nem entre bons e maus, ou velhos e novos, mas basicamente entre caçadores activos e guerreiros e os demais. Keiti tinha sido um combatente, um soldado, um grande caçador e pisteiro e era ele quem mantinha a unidade devido à sua grande experiência, conhecimento e autoridade. Mas Keiti era um conservador de considerável riqueza e bens e nos tempos de mudança que se viviam agora os conservadores não tinham a vida fácil. Os jovens que na altura eram demasiado novos para a guerra e que nunca tinham aprendido a caçar por ter deixado de haver caça nos seus territórios e que eram rapazes demasiado cumpridores e inexperientes para serem caçadores furtivos e sem treino para serem ladrões de gado olhavam o exemplo de Ngui e da gente do diabo que tinham feito a vida a guerrear na Abissínia e depois em Buriria. Estavam completamente do nosso lado em tudo menos na sua lealdade a Keiti, a Pop e ao trabalho. Não tentámos recrutá-los, converté-1os ou corrompê-los. Eram todos voluntários. Ngui contara-me tudo, confiava em mim e punha as coisas estritamente numa base de fidelidade tribal. Sabia que nós, os caçadores wakamba, tínhamos feito um bom bocado de caminho juntos. Mas ali sentado, a beber o chá, e a contemplar as árvores amarelas e verdes a mudar de cor à medida que o sol as ia tocando, reflectia no caminho que tínhamos feito. Acabei o chá e dirigi-me para a tenda e espreitei para o interior. Mary tinha tomado o seu chá matinal e a chávena vazia repousava no pires no sítio onde o mosquiteiro pendia agora sobre a lona do chão ao lado da cama de campanha. Tinha adormecido de novo e o rosto ligeiramente bronzeado e o magnífico cabelo loiro descansavam na almofada. Tinha os lábios voltados para mim e enquanto a olhava a dormir, profundamente tocado como sempre pela beleza do seu rosto, ela sorria suavemente no seu sono. Depois peguei na espingarda de sob os cobertores da minha cama e levei-a para fora da tenda para a descarregar. Esta manhã era mais uma manhã em que Mary podia dormir sossegada.
Segui para a tenda de jantar e disse a Nguili, que a estava a limpar, o que queria para o pequeno-almoço. Uma sanduíche de ovo com o ovo bem frito e com presunto ou bacon e rodelas de cebola crua. Se houvesse fruta também podia ser e antes disso queria uma garrafa de cerveja Tusker.
G.C. e eu bebíamos quase sempre cerveja ao pequeno-almoço a não ser que fôssemos caçar leões. A cerveja ao pequeno-almoço ou antes era muito boa, mas tornava os reflexos mais lentos, possivelmente um milésimo de segundo. Por outro lado, fazia com que as coisas parecessem melhor por vezes quando não eram grande coisa e era muito boa para quando ficámos a pé até tarde e sofríamos de remorsos gástricos.
Nguili abriu a garrafa de cerveja e encheu um copo. Adorava servir a cerveja e ver a espuma a subir até ao bordo e cobrir o copo sem se derramar. Era muito bem parecido, quase tão bonito como uma rapariga sem de modo nenhum parecer efeminado e G.C. costumava brincar com ele e perguntar-lhe se ele depilava as sobrancelhas. Podia muito bem fazê-lo pois que uma das grandes distracções dos povos primitivos é arranjar e voltar a arranjar o seu aspecto e isso nada tinha a ver com ser homossexual. Mas G.C. costumava meter-se demasiado com ele, achava eu, e como era tímido, amável e muito dedicado, um excelente criado de messe que adorava os caçadores e os guerreiros, levávamo-lo à caça connosco algumas vezes. Todos troçavam um pouco dele pela sua incrível admiração e ignorância dos animais. Mas ia aprendendo a cada expedição e era por afeição que nos metíamos com ele. Olhávamos qualquer ferimento ou acidente de que não resultasse invalidez ou morte como extremamente cómico e isso era uma coisa que custava muito a este rapaz tão delicado, amável e afectuoso. Queria ser um caçador e guerreiro mas em vez disso era aprendiz de cozinheiro e criado de mesa. Durante o tempo que ali vivemos nesse ano e em que éramos tão felizes, um dos seus maiores prazeres, uma vez que a lei tribal não lhe permitia ainda beber, era servir a cerveja aos que estavam autorizados a bebê-la.
- Ouviste o leopardo? - perguntei-lhe.
- Não, bwana, tenho o sono muito pesado.
Saiu para ir buscar a sanduíche que tinha mandado fazer ao cozinheiro e voltou rapidamente para me voltar a servir de cerveja.
Msembi, o outro criado de messe, era alto, bonito e tosco. Usava sempre a túnica verde dos criados com o ar de participar numa mascarada. Tal aspecto vinha-lhe da inclinação que dava à calota na cabeça e ao modo como torcia a túnica mostrando que embora a respeitasse por razões de serviço não deixava de se aperceber que era um pouco cómica. Quando estávamos sós, Mary e eu, não precisávamos de dois homens na messe mas como o cozinheiro estava para ir daí a pouco visitar a família e levar os salários dos homens às famílias, enquanto ele estivesse fora cabia a Msembi cozinhar. Tal como toda a gente excepto eu detestava o Informador e nesse dia quando o Informador apareceu no exterior da tenda da messe e tossiu discretamente lançando-me um olhar de entendimento, fez uma vénia, semicerrando ligeiramente os olhos, e saíram ambos.
- Entra, Informador - disse eu - Que é que se conta?
- Jambo, meu irmão - disse o Informador. Estava apertadamente envolto no xaile e tirou o chapéu - Está ali um homem que vem de mais longe que Laitokitok e que está à espera de o ver. Diz que a shamba dele foi destruída pelos elefantes.
- Conhece-lo?
- Não, irmão.
- Sai e manda-o entrar.
O dono da shamba entrou, fez uma vénia à porta e disse: «Bom dia, senhor.»
Reparei que tinha o corte de cabelo à mau-mau que se usava na cidade, com risca ao lado traçada à lâmina. Mas isso podia não querer dizer nada.
- Então os elefantes? - perguntei.
- Apareceram a noite passada e destruíram a minha shamba - disse A meu ver é o senhor que tem de os controlar. Gostava que viesse lá hoje à noite e matasse um deles para os afastar.
E deixar o acampamento sem defesa e toda esta loucura continuar, pensei eu. «Obrigado pela informação sobre os elefantes - disse eu - Está a chegar um avião daqui a pouco e vamos levar-te connosco para fazermos um levantamento dos prejuízos na tua shamba e tentarmos localizar os elefantes. Vais mostrar-nos onde rica a tua shamba e quais foram os prejuízos ao certo.»
- Mas eu nunca voei, sir.
- Vais voar hoje. E vais ver que é interessante e instrutivo.
- Mas nunca voei, sir. E posso ficar doente.
- Enjoado - disse eu - Não doente. Tem de se respeitar a língua inglesa. A palavra é enjoado. Mas nós damos-te sacos de papel. Não gostavas de ver as tuas terras do ar?
- Gostava, sir.
Vai ser muito interessante. Vai ser como se visses um mapa da tua região. Ficas a conhecer a topografia e os contornos que não podias ver de nenhum outro modo.
- Sim, sir - disse ele.
Estava a sentir-me um pouco envergonhado mas havia aquele corte de cabelo e o acampamento tinha material suficientemente interessante para uma incursão em força e que se Arap Meina, Ngui e eu fôssemos afastados daqui com uma história de elefantes qualquer não seria muito difícil de atacar.
E então fez uma nova tentativa sem se aperceber que de cada vez piorava as coisas mais um pouco.
- Está-me a parecer que é melhor não voar, sir.
- Ouve - disse eu - Todos aqui já voaram ou gostavam de voar. É um privilégio para ti poder ver a tua terra do ar, Nunca tiveste inveja dos pássaros? Nunca desejaste ser uma águia ou mesmo um falcão?
- Não, sir - disse ele - Mas hoje vou voar.
Ao ouvir isto pensei que mesmo que ele fosse nosso inimigo ou um aldrabão ou simplesmente porque queria matar um elefante pela carne tinha tomado a decisão certa e mais digna. Saí para o exterior e disse a Arap Meina que o homem ficava sob prisão mas que não lhe dissesse nada, e o vigiasse cuidadosamente e não o deixasse sair do acampamento nem espreitar para dentro das tendas e que o íamos levar no ndege.
- Fica sob guarda - disse Arap Meina - Eu também vou.
- Não. Já voaste o suficiente da última vez. Hoje voa o Nguí. Ngui sorriu também e disse: «Mzuri sana.»
- Mzuri - disse Arap Meina, e sorriu.
Disse-lhe que ia dizer ao dono da shamba para sair e pedi a Ngui que fosse lá abaixo ver a manga de vento e enxotar qualquer animal que andasse na pista de aterragem que tínhamos improvisado no capinzal.
Mary saiu da tenda da messe vestindo o seu conjunto de caça lavado de fresco e passado a ferro por Mwindi. Parecia tão nova e jovem como a manhã e reparou que eu tinha bebido cerveja com o pequeno-almoço ou antes.
- Pensei que só fazias isso quando cá estava o G.C. - disse ela.
- Não. Bebo muitas vezes de manhã antes de tu acordares. Não estou a escrever e é a única hora do dia em que está fresca.
- Soubeste alguma coisa sobre o leão pelas pessoas que estavam aqui a conversar?
- Não. Não há novidades do leão. Não o ouviram esta noite.
- Ouvi-te eu a ti - disse ela - Estavas a falar com uma rapariga que não era eu. Que é que não tinha remédio?
- Desculpa. Era eu a falar a dormir.
- Falavas em espanhol - disse ela - Era uma coisa qualquer que não tinha remédio.
- Então é porque não tem remédio. Desculpa mas não me lembro do sonho.
- Nunca te pedi que me fosses fiel nos sonhos. Vamos caçar o leão?
- Querida, que é que se passa contigo? Tínhamos combinado que não íamos à caça do leão mesmo que ele descesse. Vamos deixá-lo à vontade até ele ganhar confiança.
- Como é que sabes que não se vai embora?
- É esperto, querida. Só se vai embora depois de matar o gado. Mas também ganha confiança depois de matar o gado. Estou a tentar pensar com a cabeça dele.
- Talvez fosse melhor pensares um bocadinho com a tua própria cabeça.
- Querida - disse eu - Não queres pedir o pequeno-almoço? Tens fígado de gazela e bacon.
Mary chamou Nguili e pediu o pequeno-almoço muito amavelmente.
- Porque estavas a sorrir quando adormeceste depois do chá?
- Oh, isso era o meu sonho maravilhoso. Encontrei o leão e ele foi tão simpático comigo e tão culto e educado... Tinha andado em Oxford, disse ele, e falava quase com o tom da 1313C. Tinha a certeza de o ter já encontrado num sítio qualquer e então de repente ele devorou-me.
- Vivemos tempos difíceis - disse eu - Aposto que quando te vi a sorrir era antes de ele te ter engolido.
- Deve ter sido - disse ela - Desculpa eu estar zangada. Devorou-me tão de repente. Não me tinha dado nenhumas mostras de não gostar de mim. Nunca rugiu ou coisa assim, como o leão de Magadi.
Beijei-a e a seguir Nguili trouxe as belas iscas de fígado alourado recobertas de bacon da região, batatas fritas, café com leite de lata e um prato de doce de pêssego.
- Por favor, tira uma posta de fígado e bacon. - disse Mary - Vai ser um dia duro, querido?
- Não. Não me parece.
- Posso voar?
- Não me está a parecer. Mas talvez, se houver tempo.
- Há muito trabalho?
Contei-lhe o que íamos fazer e ela disse: «’1’enho muita pena de ter acordado mal disposta. Foi só por causa do leão me ter devorado, acho eu. Come o fígado com bacon e acaba a cerveja, querido, e descansa enquanto o ndege não chega. Ainda nada chegou à fase do no hay remedio. E nem em sonhos te passe isso pela cabeça.»
- E tu nunca te passe pela cabeça que o leão te devora.
- Nunca me acontece durante o dia. Não sou desse género de rapariga.
- Eu também não sou o género de rapaz no hay remedio, francamente.
- És. És um bocadinho. Mas agora és mais feliz do que quando te conheci, não és?
- Sou verdadeiramente feliz contigo.
- E és feliz com tudo o resto também. Caramba, era bom voltar a ver o Willie.
- Está muito melhor do que nós os dois.
- Mas podemos tentar ficar melhor - disse Mary.
Não sabíamos a que horas chegava o avião nem sequer se ele vinha de certeza. Não tinha havido confirmação da mensagem que o jovem polícia tinha enviado mas eu esperava o avião a partir da uma da tarde; mas podia ser que, se o tempo piorasse por cima dos Chulu ou no flanco leste da Montanha, Nillie pudesse vir mais cedo. Levantei-me e fui ver como estava o tempo. Havia algumas nuvens por cima dos Chulu mas a Montanha estava limpa.
- Gostava de voar hoje - disse Mary.
- Hás-de voar muitas vezes, querida. Hoje é só uma questão de trabalho.
- Mas posso voar por cima dos Chulu?
- Prometo. Voamos para onde quiseres.
- Depois de matar o leão gostava de voar até Nairobi para comprar as coisas de Natal. Depois queria voltar a tempo de arranjar a árvore para a decorar. Tínhamos descoberto uma magnífica antes de aparecer aquele rinoceronte. Vai ficar mesmo bonita mas tenho de comprar todas as coisas que é preciso e presentes para todos.
- Depois de matarmos o leão o Willie vem cá com o Cessna e tu podes ir ver os Chulu e subimos ao cume da Montanha se quiseres e vemos se está tudo em ordem na zona e depois voltas com ele para Nairobi.
- Temos dinheiro que chegue para isso tudo?
- Claro.
- Quero que aprendas tudo e fiques a saber tudo sobre todas as coisas para não ser apenas desperdiçar dinheiro para nada. A sério que não me importa nada do que fazes desde que seja bom para ti. Tudo o que quero é que seja de mim que gostas mais.
- É de ti que gosto mais.
- Eu sei. Mas por favor não magoes outras pessoas.
- Todos magoam outras pessoas.
- Mas tu não deves. Não me importo com o que faças desde que não magoes outras pessoas ou lhes arruines a vida. E não digas no hay remedio. Isso é muito fácil. Quando tudo é fantasia e vocês inventam essas mentiras todas e vivem nesse vosso mundo estranho, então é mesmo fantástico e às vezes fascinante e eu rio-me de ti. Sinto-me superior a essas tolices e a essa irrealidade. Por favor, vê se me entendes, porque sou também teu irmão. O porco do Informador não é teu irmão.
- Ele é que lhe deu para aí.
- E às tantas o absurdo torna-se tão real que é como se alguém nos cortasse um braço. Que o cortassem de verdade. Não é como cortarem-no em sonhos. Quero dizer cortá-lo mesmo a sério como o Ngui faz com a panga. Eu sei que Ngui é teu verdadeiro irmão - Não respondi nada.
E depois, falas com uns modos tão bruscos para aquela rapariga. Quando falas com ela assim é como ver o Ngui a esquartejar um animal. Não é assim a vida maravilhosa que temos onde todos se divertem.
- Não te divertes?
- Nunca na minha vida fui tão feliz, nunca, nunca. E agora que tens confiança na minha pontaria, sinto-me realmente feliz hoje e confiante e só espero que isso dure.
- Há-de durar.
- Mas estás a ver o que quero dizer com aquilo de tudo se tornar de repente diferente do sonho maravilhoso que estamos a viver? Esta impressão de viver um sonho ou os momentos mais encantadores de quando éramos ambos crianças. Estarmos aqui com a Montanha cada dia mais bonita e vocês todos a dizer piadas e todos felizes. Todos a gostarem tanto de mim e eu também gosto deles. E depois vem toda essa história.
- Eu sei - disse eu - Faz tudo parte da mesma coisa, gatinha. Nada é tão simples como parece. Eu não sou realmente brusco com a rapariga. É uma espécie de distância.
- Por favor, nunca sejas brusco com ela diante de mim.
- Está bem.
- Nem comigo diante dela.
- Está bem.
- Não a vais levar no avião, pois não? Não, querida. Dou-te a minha palavra.
- Quem me dera que o Pop estivesse aqui ou que o Willie chegasse também eu - repliquei, e saí a ver como estava o tempo outra vez, Havia mais algumas nuvens sobre os Chulti irias a espalda da Montanha continuava clara.
- Não vais atirar aquele dono da shamba do avião fora, pois não? Tu e o Ngui?
- Santo Deus, claro que não. Acreditas se te disser que nem tal me passou pela cabeça?
- Passou-me a mim quando te ouvi falar com ele hoje de manhã. E agora quem é que tem maus pensamentos.
- Não é que pense em coisas tão horríveis. Mas todos vocês fazem coisas desse modo tão repentino corno se não houvesse consequências.
- Querida, farto-me de pensar nas consequências.
- Mas tens aquele modo estranho tão repentino e essa falta de humanidade e as piadas cruéis. Em todas as piadas há morte. Quando é que tudo volta a ser bonito e maravilhoso como antes?
- Agora mesmo. Este absurdo não dura mais do que uns dias. Não nos parece que essa gente venha para aqui e para onde quer que vão serão apanhados.
- Queria que tudo voltasse a ser corno quando acordávamos todas as manhãs e sabíamos que alguma coisa maravilhosa ia acontecer. Detesto esta caça ao homem.
- Isto não é caça ao homem, querida. Nunca viste tal coisa. Isso é o que está a acontecer lá no Norte. Aqui todos são nossos amigos.
- Em Laitokttok não.
- Está bem, mas essas pessoas vão ser apanhadas. Não estejas preocupada com isso.
- Só me preocupo com vocês quando se portam mal. O Pop nunca se portou mal.
- Achas mesmo isso?
- Quando digo portar-se mal é o modo como tu e o C.C. são. Mesmo tu e o Willie portam-se mal quando estão juntos.
Saí a ver como estava o tempo. Via-se apenas a gradual formação de nuvens acima dos Chulu e o flanco da Montanha estava claro. Enquanto estava a observar pareceu-me ouvir o avião. Depois tive a certeza e mandei vir o carro de caça. Mary saiu e subimos para o carro, arrancámos do acampamento e seguimos as marcas de pneus na erva nova em direcção à pista de aterragem. Os animais a trote e depois a galope afastavam-se do nosso caminho. O campo encheu-se com a zoada do aparelho, que depois começou a descer, prateado e azul, com as belas asas a brilhar, e os grandes flaps baixados e por uns minutos rolámos quase a par até que Willie, sorrindo através do plexiglas quando o azul das hélices nos ultrapassava, poisou o avião no solo fazendo-o aterrar empinando-se ligeiramente como um grou e depois rolou um pouco antes de se dirigir para nós com as hélices a girar lentamente.
Willie abriu a porta e sorriu: «Olá, pessoal.» Olhou para Mary e disse: «já apanhámos o leão, Miss Mary?»
Falava numa espécie de cadência cantante que fazia lembrar o ritmo de um grande pugilista quando se move para diante e para trás com movimentos perfeitos, exímios. A voz tinha uma doçura que era genuína mas eu sabia que era capaz de dizer as coisas mais mortíferas sem a mínima mudança de tom.
- Ainda não o pude matar, Willie - gritou Miss Mary - Estou à espera que desça.
- É pena - disse Willie - Tenho para aqui umas trapalhadas para descarregar. O Ngui podia dar-me uma mão. Montes de cartas para si, Miss Mary. O Papá tem umas quantas facturas. Aqui têm o correio.
Atirou-me o enorme envelope de papel kraft que apanhei no ar.
- Gosto de ver que ainda não perdeu de todo os reflexos - disse Willie - G.C. manda saudades. Vem a caminho.
Passei o correio a Mary e começámos a descarregar o avião e a levar as caixas para o carro de caça.
- É melhor não se esforçar muito, Papá - disse Willie - Não se canse. Lembre-se que tem de se poupar para o Grande Acontecimento.
- Ouvi dizer que tinha sido anulado.
- Acho que não - disse Willie - Não é que vá pagar para ver isso.
- Empatados tu e o Willie - disse Mary - Vá, vamos para o campi - disse dirigindo-se a Willie.
- Vou já, Miss Mary - disse Willie. Desceu envergando a sua camisa branca com as mangas subidas, os calções de sarja azul e as botas curtas de couro e sorriu afectuosamente a Miss Mary ao apertar-lhe a mão. Era bem parecido com uns belos olhos sorridentes e um rosto vivo e bronzeado, cabelo escuro e tímido sem ser acanhado. Era a pessoa mais espontânea e bem educada que eu conhecia. Tinha toda a confiança em si próprio dos grandes pilotos. Era modesto e fazia aquilo de que gostava num país que adorava.
Nunca fazíamos perguntas um ao outro, a não ser sobre aviões e sobre pilotagem. Tudo o resto era dado por entendido. Presumo que tivesse nascido no Quénia por falar tão bem swahili e era amável e compreensivo com os africanos mas nunca me ocorreu perguntar-lhe onde tinha nascido e pelo que percebi podia muito bem ter vindo para África em pequeno.
Entrámos no acampamento rodando lentamente para não levantarmos poeira e saímos junto da árvore grande entre as nossas tendas e a vedação. Miss Mary foi ter com o cozinheiro para lhe pedir que fizesse o almoço já e Willie e eu dirigimo-nos para a tenda da messe. Abri uma garrafa de cerveja que ainda estava fresca no saco de lona pendurado da árvore e enchi um copo para cada um de nós.
- Então o que vai por aí, Papá? - perguntou Willie. Pu-lo ao corrente. Eu vi-o - disse Willie - O velho Arap Meina parecia tê-lo ali de olho. Tem bastante ar de ser desse género, Papá.
- Bem, vamos ver o que se passa na tal shamba. Talvez tenha mesmo uma shamba e talvez tenham tido sarilhos com os elefantes. Verificamos os elefantes também. Assim poupamos tempo e depois deixamo-lo aqui e vamos dar uma vista de olhos quanto ao outro problema. Levo o Ngui comigo. Se houver elefantes e se for preciso fazer alguma coisa o Meina conhece a região toda e ele, o Ngui e eu tratamos disso e assim eu e o Ngui já temos o reconhecimento feito.
- Parece-me boa ideia - disse Willie - Ainda assim vocês têm bastante que fazer para quem está numa zona tranquila. Lá vem Miss Mary. Mary entrou encantada com a perspectiva de um bom almoço.
- Temos costeletas de gazela, puré e salada. E não demora muito. E uma surpresa. Muito obrigado por ter desencantado o Campari, Willie. Vou tomar um. Também quer?
- Não, obrigado, Miss Mary. Estou a beber cerveja com o Papá.
- Willie, gostava muito de poder ir. De qualquer modo vou fazer as listas todas e vou fazer os cheques e escrever as cartas e depois de matar o leão vou no avião consigo para Nairobi para fazer as compras de Natal.
- Deve estar com uma bela pontaria, Miss Mary, a julgar pela linda peça de carne que vi ali pendurada embrulhada num pano.
- Tem uma coxa reservada para si e eu recomendei-lhes que a vão mudando para estar sempre à sombra e que depois a embrulhem bem embrulhada um pouco antes de se ir embora.
- Como estão as coisas na shamba, Papá? - perguntou Willie.
- O meu cunhado sofre de uma espécie de combinação de dores do peito e do estômago - disse eu - Tenho-o tratado com linimento Sloan. Foi um verdadeiro choque para ele a primeira vez que lhe fiz uma fricção com o Sloan.
- O Ngui disse-lhe que aquilo era uma coisa da religião do Papá - disse Mary - Agora têm todos a mesma religião e chegou a um ponto que no fundo é detestável. Comem arenques fumados e bebem cerveja as onze da manhã e explicam que faz parte da religião deles. Gostava que ficasse por aqui, Willie, e me dissesse o que vem a ser isto. Repetem umas frases horríveis e têm uns segredos medonhos.
- É o Grande Manitu Todo-Poderoso contra Todos os Outros - expliquei a Willie - Retemos o melhor de todas as outras seitas, leis e costumes tribais. Mas fundimo-los num todo em que todos podem acreditar. Miss Mary, como vem da Província da Fronteira Norte, o Minnesota, e nunca esteve nas Montanhas Rochosas antes de casarmos não pode compreender.
- O Papá fez com que todos, excepto os maometanos, passassem a acreditar no Grande Espírito - disse Mary - O Grande Espírito é uma das piores personagens que eu conheci. O que sei e que o Papá inventou a religião e a cada dia que passa vai-a tornando mais complicada. Ele e o Nguí e os outros. Mas o Grande Espírito às vezes deixa-me assustada.
- Eu bem tento segurá-lo, Willie - disse eu - Mas ele escapa-me.
- Que é que ele acha dos aviões? - perguntou Willie.
- Não o posso revelar diante de Mary - disse eu - Quando levantarmos voo farei a revelação.
- Tudo o que puder fazer por si, Miss Mary, pode contar comigo disse Willie.
- Só queria que pudesse ficar por cá ou que G.C. ou o Sr. P. estivessem aqui - disse Mary - Nunca tinha assistido ao nascimento de uma nova religião e isto deixa-me nervosa.
- Você deve ter mais ou menos o papel de Deusa Branca, Miss Mary. Há sempre uma bela Deusa Branca, não é?
- Não acho que seja. Um dos pontos básicos da crença ao que me parece que nem o Papá nem eu somos brancos.
- Muito a propósito.
- Toleramos os brancos e queremos viver em paz com eles, se bem compreendi. Mas à nossa maneira. Ou seja à maneira do Papá, do Ngui e do Mthuka. É a religião do Papá e é uma religião tremendamente antiga e agora ele e os outros andam a adaptá-la aos usos e costumes dos kamba.
- Nunca tinha sido um missionário, Willie - disse eu - É uma coisa exaltante. Tive muito sorte em ter aqui o Kibo que é quase a réplica exacta dos contrafortes de uma das vertentes da cordilheira de Wind River onde a religião me foi revelada pela primeira vez e onde tive as minhas primeiras visões.
- Aprende-se tão pouco na escola. - disse Willie - Pode dar-me uma ideia do que são as Wind Rivers, Papá?
- Chamamos-lhes os pais dos Himalaias - expliquei com toda a modéstia - A principal cadeia de montes mais baixos tem aproximadamente a altitude daquela montanha que o sherpa Tensing fez subir aquele conhecido apicultor da Nova Zelândia o ano passado.
- Seria o Everest? - perguntou Willie - Houve ume referência qualquer ao caso no East African Standard.
- Isso mesmo, o Everest. Estive todo o dia de ontem a ver se me lembrava do nome quando fizemos uma sessão de catequese na shamba.
- Esse velho apicultor montou um belo espectáculo assim a subir tão alto tão longe de casa - disse Willie - Como é que aquilo se passou, Papá?
- Não se sabe - disse eu - Eles são muito relutantes em falar.
- Sempre tive o maior respeito pelos alpinistas - disse Willie - Ninguém lhes arranca uma palavra. É uma gente tão muda como o velho G.C. e como você, Papá.
- E também sem fibra - disse eu.
- Como todos nós - disse Willie - Vamos então a esse almoço, Miss Mary? O Papá e eu temos de ir dar uma vista de olhos a estes domínios.
- Lete chalcula.
- Ndio memsahib.
Quando depois estávamos no ar e voando ao longo do flanco da Montanha observando a floresta, as clareiras, o ondulado da região e as fendas no solo dos pontos de água, vendo as zebras sempre gordas vistas do alto escorçadas pela perspectiva a fugirem abaixo de nós, o avião virando para apanhar a estrada de modo a que o nosso convidado sentado ao lado de Willie pudesse orientar-se quando lhe pusemos diante dos olhos a estrada e a aldeia, via-se a estrada que vinha do pântano atrás de nós e que agora conduzia à aldeia onde ele podia ver as encruzilhadas, os armazéns, a bomba de gasolina, as árvores ladeando a rua principal e as outras árvores no caminho para o edifício branco e a alta vedação de rede da boma da polícia onde podíamos ver o mastro com a bandeira a flutuar ao vento.
- Onde é a tua shamba? - perguntei-lhe ao ouvido e quando ele apontou com o dedo Willie girou e ficámos por cima da boma e subimos em direcção ao flanco da Montanha onde se viam várias clareiras, casas cónicas e campos de milho verdejantes a destacar-se na terra avermelhada.
- Vês a tua shamba?
- Vejo - E apontou.
E então a shamba surgiu a rugir diante de nós e estendeu-se verde, grande e bem irrigada, de ambos os lados da asa.
- Hapana tembo - disse Ngui em voz sussurrada ao meu ouvido.
- Marcas?
- Hapana.
- Tens a certeza que é a tua shamba? - perguntou Willie ao homem.
- Tenho - respondeu.
- Está-me a parecer em muito bom estado, Papá - gritou-me Willie para trás - Vamos dar mais uma olhada.
- Passe baixo e devagar.
Os campos voltaram a desfilar mas mais devagar e mais perto como se estivessem prestes a ficar a pairar. Não se viam prejuízos nem marcas de passagem.
- Não é preciso deixá-lo ir abaixo.
- Quem pilota sou eu, Papá. Quer ver o outro lado?
- Quero.
Desta vez os campos surgiram num movimento suave e lento como se fossem um disco verde tratado com cuidado delicadamente preparados para a nossa inspecção por algum criado amável e habilidoso. Não havia danos nem pegadas dos elefantes. Subimos rapidamente e demos meia volta de modo a ver a shamba e compará-la com o resto.
- Tens mesmo a certeza de que é a tua shamba? - perguntei ao homem.
- Tenho - disse ele, e não podíamos deixar de o admirar.
Nenhum de nós disse uma palavra. O rosto de Ngui não mostrava nenhuma expressão. Olhava pela janela de plexiglas e passou lentamente o primeiro dedo da mão direita pela garganta.
- Parece-me que podemos arrumar isto e ir embora - disse eu.
Ngui pôs a mão na parede do avião como quem agarra o puxador da porta e fez um movimento de quem a abre. Abanei a cabeça e ele riu-se. Quando aterrámos no capinzal e rolámos para o sítio onde tínhamos o carro de caça à espera junto à manga de vento pendurada no poste inclinado o homem foi o primeiro a sair. Ninguém lhe disse nada.
- Toma conta dele, Ngui - disse eu.
Dirigi-me então a Arap Meina e tomei-o à parte.
- Sim - disse ele.
- Deve estar com sede - disse eu - Dá-lhe um chá.
Willie e eu rodámos para as tendas do acampamento no carro de caça. Estávamos os dois sentados no banco da frente. Arap Meina vinha atrás com o nosso convidado. Ngui tinha ficado com a minha 30-06 de guarda ao avião.
- Tudo isto me cheira um pouco a esturro - disse Willie - Quando é que tomou a decisão, Papá?
- Sobre aquela história da lei da gravidade? Antes de sair-mos.
- Muito atencioso da sua parte. Mau para a companhia. Assim ficava no desemprego. Acha que Miss Mary aceitava dar uma volta hoje à tarde? Era capaz de nos animar a todos e podíamos ter um voo interessante, instrutivo e educativo enquanto se ocupava das suas tarefas e andávamos todos lá em cima até eu regressar.
- A Mary adorava voar.
- Podíamos dar uma vista de olhos aos Chulu e localizar os búfalos e os outros animais. G.C. havia de gostar de saber onde é que andam realmente os elefantes.
- Levamos o Ngui. Tomou-lhe o gosto.
- O Ngui tem um posto alto na religião?
- O pai dele viu-me uma vez transformado em serpente. Era uma serpente de urna espécie desconhecida nunca antes vista. Isso tem uma certa influência nos nossos círculos religiosos.
- É natural, Papá. E que estavam a beber os dois, você e o pai do Ngui, quando o milagre se deu?
- Só cerveja Tusker e uma certa dose de gin Gordon’s.
- Não se lembra que tipo de serpente era?
- Como é que podia? Quem teve a visão foi o pai do Ngui.
- Bem, o que eu espero para já é que o Ngui vigie o papagaio - Disse Willie - Não queria nada vê-lo transformado num bando de babuínos. Miss Mary estava morta por voar. Tinha visto o convidado na parte de trás do carro de caça e sentia-se muito aliviada.
- A shamba dele sofreu estragos, Papá? - perguntou ela - Tens de ir lá?
- Não. Não havia estragos e não temos de ir lá.
- Como é que ele volta?
- Acho que vai de boleia.
Tomámos chá e eu bebi um Campari e Gordon’S com um borrifo de limonada.
- Esta vida exótica é uma delícia - disse Willie - Quem me dera fazer-vos companhia. Que gosto tem essa misturada, Miss Mary?
- Muito bom, Willie.
- Reservo-o para a minha velhice. Diga-me, Miss Mary, alguma vez viu o Papá transformar-se em serpente?
- Não, Willie. Juro.
- Falhamos sempre tudo - disse Willie - Onde gostaria de ir no avião, Miss Mary?
- Aos Chulu.
E assim voámos até aos Chulu passando pelo Monte do Leão e atravessando o deserto privado de Miss Mary descendo depois para a grande planície pantanosa com as aves dos charcos e os patos a voar e todos os sítios traiçoeiros que tornaram aquela planície impraticável claramente visível de tal modo que Ngui e eu podíamos ver todos os nossos erros e nos permitia planear uma rota nova e diferente. Seguidamente vimo-nos a sobrevoar na extensão da planície as manadas de antílopes, cor de pomba, com riscas brancas e cornos em espiral, os machos maciços com uma graça desajeitada, distintos das fêmeas que são antílopes semelhantes a gado.
- Espero que não tenha sido muito aborrecido, Miss Mary - disse Willie - Estava a ver se não perturbava o gado de G.C. e do Papá. Era só para ver onde é que andava. Não queria afastar daqui o gado nem assustar o seu leão.
- Foi uma maravilha, Willie.
Depois Willie partiu, a princípio rolando em direcção a nós aos saltos pela pista traçada pelo camião, tornando-se num rugido à medida que os eixos abertos como as pernas de um grou se aproximavam aos solavancos afastando as ervas do sítio onde nos encontrávamos e subindo depois traçando uma oblíqua que nos apertava o coração até se orientar na sua rota e ir diminuindo na luz do entardecer.
- Obrigada por me teres levado - disse Mary, enquanto seguíamos com I os olhos o avião de Willie até desaparecer - Agora entramos e vamos ser bons amigos e bons amantes e vamos amar África por existir. Amo-a mais do que tudo no mundo.
- Também eu.
À noite ficámos juntos na cama grande com a fogueira lá fora e a lanterna que tinha pendurado na árvore para ter luz suficiente para disparar. Mary não estava preocupada mas eu estava. Havia tantos arames esticados e armadilhas à volta da tenda que era como estar no meio de uma tela de aranha. Estávamos apertados um contra o outro e ela disse: «Não foi lindo, no avião?»
- Foi. O Willie voa muito suavemente. E também é muito cuidadoso com os animais.
- Mas tive medo quando ele voltou a descolar.
- Era o orgulho de mostrar do que é capaz e lembra-te que não levava nenhuma carga.
- Esquecemo-nos de lhe dar a carne.
- Não. O Mthuka trouxe-a.
- Espero que desta vez esteja boa. Deve ter uma mulher maravilhosa para ser assim tão feliz e amável. Quando as pessoas têm uma mulher má é a primeira coisa que se nota.
- E um mau marido?
- Também se nota. Mas às vezes mais devagar porque as mulheres são mais corajosas e mais leais. Meu adorado Gatinho Grande, será que amanhã vamos ter uma manhã mais ou menos normal, sem todos estes mistérios e coisas más?
- O que é um dia normal? - perguntei com os olhos na luz da fogueira e a luz imóvel da lanterna.
- Oh, o leão.
- O bom leão normal e simpático. Pergunto-me por onde andará ele esta noite.
- Vamos dormir e esperemos que ele esteja tão feliz como nós.
- Sabes uma coisa? A mim nunca me pareceu que ele fosse do tipo feliz. L. A seguir Mary adormeceu realmente com uma respiração regular e eu dobrei a minha almofada para a tornar mais dura e mais alta de modo a ter uma visão mais completa da porta aberta da tenda. Os ruídos da noite pareciam todos normais e via-se que não andavam por ali pessoas. Daí a pouco Mary ia sentir-se um bocado apertada para dormir à vontade e iria dormir para a cama dela que estava já aberta e com a rede mosquiteira posta e quando visse que dormia profundamente punha uma camisola, botas de lona e um roupão espesso e ia pôr mais lenha e sentar-me junto à fogueira para me manter acordado.
Havia todo o género de problemas técnicos. Mas a fogueira, a noite e as estrelas faziam que parecessem insignificantes. No entanto havia coisas que me inquietavam e para não pensar nelas dirigi-me à tenda de jantar e servi-me um quarto de copo de whisky, deitei-lhe um pouco de água e trouxe-o para junto da fogueira. Mas depois enquanto bebia olhando as chamas senti saudades de Pop pois tínhamos estado tantas vezes assim sentados à fogueira ao lado um do outro que me fez desejar estar junto dele e ouvi-lo explicar-me as coisas. Havia material suficiente no acampamento para justificar um ataque em grande e G.C. e eu tínhamos ambos a certeza de que havia mui- tos mau-mau em Laitokitok e na região. G.C. tinha-os detectado há mais de dois meses e recebera como única resposta que era um disparate. Eu acreditava no que Ngui dizia, que os mau-mau wakamba não viriam para aqui. Mas achava que esse era o menos grave dos nossos problemas. Era evidente que os mau-mau tinham missionários entre os massai e estavam a organizar os kikuyu que andavam nos trabalhos florestais no Kilimanjaro. Mas se havia ou não uma organização armada era coisa que não sabíamos. Eu não tinha autoridade de polícia e estava apenas a substituir o Guarda Caça da reserva e estava perfeitamente convencido, talvez erradamente, que não teria grande apoio se me visse metido em sarilhos. Era como receber o encargo de formar uma milícia popular no Oeste dos velhos tempos.
G.C. apareceu a seguir ao pequeno-almoço, a boina sobre um dos olhos, o rosto de rapaz cinzento e vermelho da poeira e a sua gente na traseira do Land Rover com o mesmo ar impecável, perigoso e alegre de sempre.
- Bom dia, General - disse ele - Onde está a sua cavalaria?
- Sir - disse eu - Estão a passar revista ao nosso corpo principal. E isto é o corpo principal.
- Suponho que o corpo principal é Miss Mary. Não esteve a dar cabo de si para preparar isto tudo, pois não?
- Também me pareces um pouco cansado da batalha.
- Realmente estou mesmo estafado. Mas temos algumas boas notícias. Os nossos amigos em Laitokitok caíram todos na ratoeira finalmente.
- Quais são as ordens, Gin Crazed?
- Continue simplesmente as manobras, General. Vamos beber um bem fresquinho, depois quero ver Miss Mary e depois piro-me.
- Guiaste a noite toda?
- Não me lembro. A Mary demora muito?
- Vou-a chamar.
- Que tal a pontaria dela?
- Sabe Deus - disse eu num tom pio.
- É melhor combinarmos um código - disse G.C. - Mando dizer carregamento recebido se eles aparecerem do modo previsto.
- Eu mando o mesmo se aparecerem por aqui.
- Se vierem para aqui imagino que mo dizem pela rádio - e quando o mosquiteiro se abriu, prosseguiu: - Miss Mary. Está com um aspecto maravilhoso.
- Meu Deus - disse ela - Adoro o Chungo. É absolutamente platónico.
- Merrisahib Miss Mary, quero dizer - tomou-lhe a mão com uma vénia - Obrigado por inspeccionar as tropas. Você é o nosso Coronel Honorário, não sei se sabia. Tenho a certeza que ficaram todos muito honrados. Diga-me uma coisa, sabe montar à amazona?
- Também está a beber?
- Sim, Miss Mary - disse G.C. num tom grave - E permita-me acrescentar que não será apresentada nenhuma acusação de mestiçagem contra si pelo seu confessado amor pelo guarda-caça Chungo. O D.C. nunca virá a saber.
- Estão os dois a beber e a troçar de mim.
- Não - disse eu - Ambos te adoramos.
- Mas não deixam de estar a beber - disse Miss Mary - Que lhes posso oferecer como bebida?
- Uma cervejinha com este pequeno-almoço delicioso - disse G.C. Está de acordo, General?
- Vou-me embora - disse Miss Mary - Para poderem falar de segredos. Ou beber cerveja sem se sentirem observados.
- Querida - disse eu - Bem sei que durante a guerra as pessoas encarregadas de fazer a guerra te contavam tudo antes. Mas há muitas coisas que o G.C. não me conta. E tenho a certeza de que há pessoas que não contam nada ao G.C. muito tempo antes. E também quando te contavam tudo durante a guerra não estavas acampada no meio do território de um possível inimigo. Gostarias a sério de andar por aí sozinha sabendo o que se prepara?
- Nunca ninguém me deixa andar por aí sozinha e tenho sempre alguém a olhar por mim como se eu fosse indefesa e me pudesse perder ou magoar. De qualquer modo estou farta dos vossos discursos e todo esse jogo de mistérios e perigos. Não passas de um viciado na cerveja logo de manhã e estás a contagiar o G.C. nesses maus hábitos e a disciplina do pessoal é uma vergonha. Vi quatro dos teus homens que manifestamente tinham passado a noite a beber. A rir, a dizer piadas e ainda meio bêbados. Ás vezes és ridículo.
Ouviu-se uma tosse carregada fora da porta da tenda. Saí e deparei com o Informador, mais alto e mais solene do que nunca e impressionante na sua bebedeira envolta no xaile e coberta pelo chapéu de abas largas.
- Meu irmão, o teu Informador Número Um apresenta-se - disse ele Posso entrar e apresentar os meus cumprimentos a Lady Miss Mary e pôr-me a seus pés?
- Bwana Caça está a falar com Miss Mary. Não demora muito. Bwana Caça saiu da tenda da messe e o Informador inclinou-se. Os olhos de G.C. habitualmente alegres e amáveis semicerraram-se como os de um gato e despegaram a camada de bebedeira protectora que cobria o Informador como quem retira as camadas exteriores de uma cebola ou tira a casca a uma banana.
- Que se conta na cidade, Informador? - perguntei.
- Todos ficaram admirados por não ter voado a rasar por cima da rua principal nem feito uma demonstração da força britânica nos ares.
- Pronuncia-se «forca» - disse G.C.
- Com o devido respeito, eu não pronunciei. Enunciei - prosseguiu o Informador - Todos na aldeia sabem que o bwana nizee andava à procura dos elefantes desgarrados e não tinha tempo para exibições aéreas. O proprietário da shamba educado na Missão e que regressou à aldeia ao fim da tarde depois de ter voado no ndege de bwana tem na sua peugada um dos filhos do sikh barbudo dono do bar e duka. A criança é inteligente e tem registado todos os contactos. Há cento e cinquenta a duzentos e vinte mau-mau confirmados na aldeia ou nos distritos em redor. Arap Meina apareceu na aldeia pouco depois da chegada do proprietário da shamba que andou no avião e dedicou-se às habituais bebedeiras e abandono do serviço. Mostra-se muito falador sobre bwana mzee aqui presente. A história dele, que conta com crédito geral, é que o hwana tem a mesma posição na América que o Aga Khan no mundo muçulmano. Encontra-se aqui em África para cumprir uma série de promessas que ele e Menisahib Lady Miss Mary fizeram. Uma dessas promessas tem a ver com a obrigação que a Memsahib Lady Miss Mary tem de abater antes do Nascimento do Menino Jesus um certo leão matador de gado indicado pelos massai. Todos sabem e acreditam que grande parte do sucesso de todas as coisas conhecidas depende disso. Informei certos círculos que depois desta promessa ter sido cumprida o bwana e eu iremos de visita a Meca num dos seus aviões. Corre o boato de que uma jovem rapariga indiana está a morrer de amor pelo Bwana Caça. Diz-se que...
- Cala-te - disse G.C. - onde é que aprendeste a palavra peugada?
- Também vou ao cinema quando os meus modestos meios mo permitem. Há muito que aprender no cinema para um Informador.
- Estás quase perdoado - disse G.C. - Diz-me uma coisa. O hwana mzee é considerado bom da cabeça na aldeia?
- Com todo o respeito, bwanas, é considerado como um louco na maior tradição dos Homens Santos. Também se diz que se a Excelentíssima Lady Miss Mary não matar o leão errante antes do Nascimento do Menino Jesus a memsahib se imolará. Foi-lhe dada autorização para tal pelo Raj Britânico e foram marcadas e cortadas umas árvores especiais para serem usadas na sua pira funerária. Essas árvores são as que os massai usam para fazer aquele remédio que os dois bwanas sabem. Diz-se que por ocasião dessa imolação, para a qual todas as tribos estão convidadas, haverá uma ngoma gigantesca durante uma semana, e que depois disso o bwana mzee tomará uma esposa karriba. A rapariga já foi escolhida.
- Não há mais notícias da cidade?
- Quase nada - disse o Informador com modéstia - Umas coisas sobre o sacrifício ritual de um leopardo.
- Destroçar - disse G.C. ao Informador. O Informador fez uma vénia e retirou-se para a sombra de uma árvore.
- Bem, Ernie - disse G.C. - o melhor que Miss Mary tem a fazer é mesmo matar esse leão.
- Pois - disse eu - Há tempos que penso nisso.
- Não admira que ande um pouco irritável.
- Não admira.
- Não é que esteja em jogo o Império ou o prestígio branco pois que ao que parece prefere manter as suas distâncias em relação aos caras-pálidas que nós somos. Tornou-se numa questão bastante pessoal. Temos aqueles quinhentos cartuchos sem autorização de porte de arma que o seu fornecedor lhe enviou para não se arriscar a ser enforcado se lhos encontrassem. Tenho a impressão que fariam um belo efeito numa imolação mesmo no meio da pira. Infelizmente não conheço as regras.
- Eu pergunto ao Sr. Singh.
- Isso deve deixar Miss Mary ao rubro - disse G.C.
- O que me parece normal tratando-se de uma imolação pelo fogo.
- Ela há-de matar o leão, mas faça as pazes com ela e leve a coisa com )cito e com vagar e faça-o ganhar confiança.
- O plano é esse.
Estive a falar com os homens de C.C. e disse umas quantas piadas e depois eles partiram dando uma grande volta para evitar levantar poeira. Keiti e eu trocámos opiniões sobre o acampamento e o modo como estavam a correr as coisas e ele mostrou-se muito animado pelo que percebi que estava tudo bem. Tinha descido pela margem do rio e ido até ao outro lado da estrada enquanto o orvalho ainda estava fresco e não viu nenhuns sinais de pessoas. Tinha mandado Ngui dar uma grande volta para lá do capinzal onde ficava a pista de aterragem e ele também não tinha visto nada. Ninguém tinha aparecido em nenhuma das shambas.
- Vão pensar que sou parvo por deixar os homens ir duas vezes seguidas beber à noite - disse ele - Mas disse-lhes para dizerem que eu estava com febre. Bwana, hoje tem de dormir.
- Vou dormir. Mas agora tenho de ir e ver o que a memsahib quer fazer. No acampamento, encontrei Mary sentada numa cadeira debaixo da árvore maior a escrever o diário. Levantou os olhos para mim e sorriu o que me deixou contentíssimo.
- Desculpa por eu estar zangada - disse ela - O G.C. contou-me um bocado os teus problemas. Lamento ter calhado antes do Natal.
- Também eu. Tens aguentado tanta coisa e eu só queria que te divertisses.
- Estou-me a divertir. Está uma manhã maravilhosa e eu estou a apreciá-la e a observar os pássaros e a identificá-los. já viste aquele belo galo? Eu ficava contente só a observar os pássaros.
A calma reinava em torno do acampamento e todos se ocupavam nas suas tarefas habituais. Não me sentia muito bem por Mary pensar que nunca a deixavam caçar sozinha e já há muito tempo que tinha percebido porque é que os caçadores brancos eram tão bem pagos e compreendia porque é que deslocavam os acampamentos de modo a permitir aos seus clientes caçar onde eles os pudessem proteger de perto. Pop nunca permitiria que Miss Mary caçasse por aqui, sabia-o bem, e nunca permitiria qualquer negligência. Mas lembrei-me que quase todas as mulheres se apaixonavam pelos seus caçadores brancos e esperava que surgisse qualquer coisa de espectacular que me permitisse passar por um herói aos olhos da minha cliente e fizesse com que fosse amado como caçador pela minha legítima esposa e não como um irritante guarda-costas não retribuído. Tais situações não surgem demasiadas vezes na vida real e quando surgem são tão breves, por não lhes darmos o tempo de evoluir, que a cliente fica a pensar que são extremamente fáceis. Parecia natural que eu devesse ser chamado à ordem e não era certamente esse o comportamento que uma mulher espera de um caçador branco, esse sedutor de nervos de aço.
Fui deitar-me num cadeirão à sombra da árvore grande e quando acordei as nuvens tinham descido dos Chulu e cobriam escuras o flanco da Montanha. O sol ainda se via mas sentia-se já o frio a chegar e a chuva atrás dele. Dei um berro a chamar Mwindi e Keiti e assim que a chuva começou a cair, vinda da planície e por entre as árvores como uma cortina a principio de um branco espesso e depois rasgada, estávamos todos a espetar espeques, a desapertar as cordas das tendas para logo as esticar melhor e depois a cavarmos valetas. Era uma chuva cerrada e o vento furioso. Por momentos deu a impressão de que a tenda de dormir ia voar mas lá conseguiu aguentar quando pregámos solidamente a parte virada ao vento. Depois o rugido do vento cessou e a chuva foi esmorecendo aos poucos. Choveu toda essa noite e a bem dizer todo o dia seguinte.
Durante a chuvada da primeira noite apareceu um polícia indígena com um recado de G.C.: «Carregamento recebido». O askari estava todo molhado e tinha vindo a pé desde o ponto em que o camião tinha ficado encalhado na estrada. O rio tinha subido demais para se poder passar.
Fiquei a pensar como é que G.C. tinha recebido a informação tão depressa e como é que conseguiu mandá-la seguir. Devia ter-se cruzado com o batedor que lha levava e tinha-o mandado trazer-ma num dos camiões dos indianos. Como não havia outros problemas saí com um impermeável no meio da chuva cerrada pisando a lama espessa e rodeando as enxurradas e poças de água até à vedação para prevenir Keiti. Ficou admirado por haver um aviso tão rápido mas contente com o fim do alerta. Ia ser um grande problema se tivéssemos de prosseguir as manobras nestas condições. Encarreguei Keiti de dizer a Arap Meina que podia dormir na tenda da messe se aparecesse por cá e Keiti disse que Arap Meina era demasiado esperto para vir pôr-se de sentinela junto à fogueira numa chuva destas.
Tínhamos sido mimados por um tempo perfeito demais e os mais idosos mostravam-se mais incomodados e irritados pela chuva do que o pessoal mais novo. Ainda por cima, sendo maometanos, não bebiam e por isso não lhes podia dar um trago para aquecerem quando ficavam ensopados.
Discutia-se animadamente se as chuvas também teriam chegado às terras das tribos deles na região de Machakos e a opinião geral era que não tinha. Mas como não abrandava e continuava a chover sem parar a noite toda a ideia de que também devia chover no Norte apaziguou toda a gente. Estava-se bem na tenda da messe rijamente açoitada pela chuva e eu fiquei a ler e a beber um pouco sem me preocupar com mais nada. Não havia nada que estivesse na minha mão fazer e, como sempre, apetecia-me bendizer esta minha falta de responsabilidade e a magnífica ociosidade sem nenhuma obrigação de caçar, perseguir, proteger, intrigar, defender ou participar e abençoava esta oportunidade de poder ler. Estávamos a ficar bastante perto do fundo da mala dos livros mas ainda havia algumas preciosidades escondidas no meio das leituras obrigatórias e havia vinte volumes de Simenon em francês que ainda não tinha lido. Não há nada melhor do que Simenon quando somos apanhados pelas chuvas num acampamento em África e na sua companhia pouco me importava saber quanto tempo choveria. Sacam-se sempre três bons Simenon em cada cinco mas um viciado pode ler os menos bons quando chove e propunha-me encetá-los, e classificá-los em bons e maus; não há meio termo com Simenon e depois de ter seleccionado uma meia dúzia e cortado as páginas, ia lê-los regalado, transferindo todos os meus problemas para Maigret, aguentando ao lado dele todos os seus recontros com a estupidez e com o Quai des Orfèvres, e deliciado com a sua rara e lúcida compreensão dos franceses, coisa que só um homem da sua nacionalidade seria capaz, pois que uma qualquer lei obscura impede os franceses de se compreenderem a si próprios sous peine des travaux forcés à la perpétuíté.
Mas Mary parecia resignada à chuva, que continuava a cair mais regular mas não menos cerrada, e tinha renunciado a escrever a sua correspondência para ler uma obra que a interessava. Era O Príncipe de Maquiavel. Interrogava-me sobre o que se passaria se chovesse durante três ou quatro dias. Com as reservas de Simenon de que dispunha estava equipado para um mês se me detivesse a reflectir entre os livros, as páginas, os capítulos. Levado pela chuva incessante, podia pensar entre dois parágrafos, não a pensar em Simenon mas noutras coisas, e pensava poder aguentar dois meses fácil e proveitosamente mesmo que não houvesse nada para beber e me visse obrigado a recorrer ao rapé de Arap Meina ou a provar as diferentes infusões de plantas e árvores medicinais que tínhamos aprendido a conhecer. Observando Miss Mary, a sua atitude exemplar, o seu rosto maravilhosamente repousado durante a leitura, perguntava-me o que poderia acontecer a uma pessoa que desde muito cedo na adolescência se tinha alimentado das catástrofes da imprensa diária, os problemas da vida social de Chicago, da destruição da civilização europeia, dos bombardeamentos das grandes cidades, das confidências dos que tinham bombardeado outras cidades em retaliação, e dos grandes e pequenos desastres, dos problemas e das incalculáveis baixas do casamento que só algum unguento contra as dores poderia aliviar, algum remédio primitivo contra a varíola, uma mistela à base de novas e refinadas violências, mudanças de cenário, extensão dos conhecimentos ou exploração das diferentes artes, dos lugares, das pessoas, dos animais, das sensações; perguntava-me o que seria para ela uma chuvada de seis semanas. Mas então lembrei-me de como ela era boa e encantadora e corajosa e de tudo o que ela tinha suportado durante tantos anos e concluí que se portaria melhor do que eu. Quando pensava nisto vi-a poisar o livro, tirar o impermeável do gancho, vesti-lo, pôr o chapéu de lona e sair para a chuva que caía a prumo para ir ver como estavam as tropas.
Tinha-os visto de manhã e estavam impacientes mas bastante bem dispostos. Os homens dispunham todos de tendas e havia pás e picaretas para cavar valetas e não era a primeira vez que viam chuva. Tinha a impressão de que se quisesse manter-me enxuto debaixo de uma tenda canadiana até que a chuva passasse era capaz de preferir o mínimo possível de visitas de pessoas envergando roupas, botas altas e chapéus impermeáveis a inspeccionar as minhas condições de vida, tanto mais que não, podia fazer nada para as melhorarem a não ser que fosse para trazer algum grogue de fabrico local. Mas depois compreendi que isto eram ideias que não levavam a nada e que a melhor maneira de nos entendermos durante uma viagem era não nos pormos a criticar os parceiros e, ao fim e ao cabo, visitar as tropas era a única actividade positiva que se lhe proporcionava.
Quando voltou e sacudiu a chuva do chapéu, pendurou o Burberry no mastro da tenda e trocou as botas por umas pantufas secas, perguntei-lhe como estavam as tropas.
- Todos em forma - disse ela - É fantástico o modo como mantém o lume protegido.
- Puseram-se em sentido na chuva?
- Não sejas mau - disse ela - Só queria ver como é que cozinhavam debaixo desta chuva.
- E viste?
- Vá, não sejas mau e vamos dar-nos bem e aproveitar o tempo enquanto chove.
- Eu estou a aproveitar. Vamos pensar em como vai ser uma maravilha quando a chuva passar.
- Não preciso - disse ela - Sinto-me feliz por me ver obrigada a não fazer nada. Temos uma vida tão cheia de emoções todos os dias que é bom ser obrigada a parar e a apreciá-la. Quando passar vamos ter pena de não termos tido tempo de a saborear.
- Teremos o teu diário. Lembras-te de quando o líamos na cama a recordar aquela viagem maravilhosa pelos campos cobertos de neve ao redor de Montpelier e o extremo leste do Wyorning depois da tempestade de neve e as marcas na neve e quando víamos as águias e fazíamos corridas com a locomotiva que era o Perigo Amarelo e íamos de uma ponta à outra do Texas e eras tu a conduzir? Nesse tempo escrevias um diário. Lembras-te quando a águia apanhou o opossum e ele era tão pesado que teve de o largar?
- Desta vez estou sempre cansada e cheia de sono. Nessa altura parávamos cedo e ficávamos num motel com luz para escrever. É mais difícil agora que nos levantamos de madrugada e não é possível escrever na cama e temos de escrever lá fora e a luz atrai uma data de bichos e de insectos desconhecidos. Se soubesse os nomes dos insectos que se metem comigo era mais simples.
- Temos de pensar em desgraçados como Turbar e no estado de Joyce no fim da vida quando chegaram a um ponto que nem sequer podiam ver o que escreviam.
- Eu mal consigo ler o que escrevo às vezes e dou graças a Deus que mais ninguém consiga, com tudo o que eu escrevo.
- Pomos lá piadas de gosto duvidoso porque estamos numa equipa de engraçadinhos de gosto duvidoso.
- Tu e o G.C. são muito dados a essas piadas e as piadas do Pop também são bastante cruas. Eu também mando umas piadas assim, bem sabes.
Mas não tão cruas como tu.
- Algumas piadas passam em África, mas não se podem exportar porque as pessoas não tem a mínima ideia de como são o pais e os animais aqui onde tudo é o mundo dos animais e onde há predadores. As pessoas que nunca souberam o que é um predador não percebem do que é que estamos a falar. Nem as pessoas que nunca tiveram de matar a carne que comem ou que não conhecem as tribos e o que é natural e normal. Bem sei que baralho um bocado as coisas, gatucha, mas vou ver se escrevo isto de modo que se entenda. Mas há tantas coisas que dizemos e que a maior parte das pessoas nem compreendem nem sequer imaginam que se façam.
- Eu sei - disse Mary - E quem escreve os livros são os mentirosos e quem pode competir com um mentiroso? Como se pode competir com um homem que escreve que disparou e matou um leão e que o levaram para o acampamento num camião e que às tantas o leão voltou à vida? Como se pode competir com a verdade contra um homem que diz que o Great Rualia estava infestado de crocodilos? Mas nada te obriga a isso.
- Não - disse eu - E não o farei. Mas não podes criticar os mentirosos porque um escritor de ficção não é mais do que um mentiroso nato que inventa a partir da sua própria experiência ou da dos outros. Eu sou um escritor de ficção e por isso sou também um mentiroso e invento a partir do que sei e do que ouvi. Sou um mentiroso.
- Mas não eras capaz de mentir ao G.C. ou ao Pop, nem a mim sobre o que fez um leão, ou o que fez um leopardo, ou um búfalo.
- Não. Mas isso é pessoal. A minha justificação é que eu crio a verdade ao inventá-la mais verdadeira do que ela seria. É isso que faz um bom ou mau escritor. Se escrever na primeira pessoa, dizendo que se trata de ficção, os críticos vão continuar a querer provar que aquilo nunca se passou comigo. É tão idiota como tentar provar que Damel Defoe não era Robinson Crusoe e que portanto é um mau livro. Desculpa se dou a impressão de estar a discursar. Mas num dia de chuva assim podemos muito bem estar os dois a fazer discursos destes.
- Adoro falar sobre escrever e daquilo em que acreditas e sabes e do que conta para ti. Mas só por ser um dia de chuva é que podemos estar assim a conversar.
- Eu sei, gatucha. É por estarmos aqui numa altura esquisita.
- Quem me dera ter estado aqui nos bons velhos tempos contigo e com o Pop.
- Nunca aqui estive nos bons velhos tempos. Agora é que nos parecem bons. Na verdade agora é muito mais interessante. Nos velhos tempos nunca podíamos ter sido amigos e irmãos como agora somos. O Pop nunca me teria deixado. Quando Mkola e eu nos tornámos irmãos isso não era respeitável. Era só tolerado. Hoje o Pop conta-te uma data de coisas que nesses tempos não te teria contado.
- Eu sei. Sinto-me muito honrada com isso.
- Querida, estás aborrecida? Eu estou perfeitamente feliz a ler, sem ter de andar à chuva. E tu também tens cartas para escrever.
- Não. Gosto de falar contigo. É o que faz mais falta quando há agitação a mais e trabalho e nunca estamos sós a não ser na cama. É uma maravilha o tempo que passamos na cama e as coisas que me dizes são amorosas. Lembro-me disso e do prazer que me dá. Mas isto é outro género de conversa.
A chuva continuava o seu pesado e metódico tamborilar na lona. Tinha substituído todo o resto e caía sem variações de ritmo nem cadência.
- Lawrence tentou falar nisso - disse eu - Mas não consegui acompanhá-lo por causa de todo aquele misticismo cerebral. Nunca acreditei que tivesse dormido com uma rapariga indiana. Nem sequer que tenha tocado alguma. Era um jornalista sensível em visita à índia e tinha os seus ódios, teorias e preconceitos. E também podia escrever lindamente. Mas, ao fim de um certo tempo, precisava de ficar furioso para escrever. Fez algumas coisas na perfeição e estava a pontos de descobrir alguma coisa que a maior parte das pessoas ignora quando desatou a defender aquelas teorias todas.
- Percebo muito bem - disse Miss Mary -, mas que é que isso tem a ver com a shamba? Gosto muito da tua namorada por ser tão parecida comigo e acho que podia ser uma esposa suplementar preciosa no caso de precisares. Mas não tens de ir buscar escritor nenhum para te justificares. De que Lawrence estavas a falar, do D.H. ou do T.E.?
- OK - disse eu - Acho que tens muita razão e vou mas é ler o Simenon.
- Porque não vais até à shamba e tentas viver lá com a chuva?
- Sinto-me bem aqui - disse eu.
- É boa rapariga - disse Miss Mary - E é capaz de achar que não é muito simpático da tua parte não apareceres quando chove.
- Fazemos as pazes?
- Está bem - disse ela.
- Óptimo. Eu não me ponho com tretas sobre Lawrence e mistérios obscuros e ficamos os dois aqui pela chuva e a shamba que vá para o diabo. Não me parece que Lawrence apreciasse muito a shamba, de qualquer modo.
- Ele gostava de caçar?
- Não. Mas isso ninguém lhe pode levar a mal, graças a Deus.
- Então não havia de agradar à tua rapariga.
- Acho que não. Mas graças a Deus também não lhe podem levar a mal.
- Chegaste a conhecê-lo?
- Não. Vi-o a ele e à mulher uma vez em que estava a chover, diante da livraria da Sylvia Beach na Rue de l'Odéon. Estavam a ver a montra e a falar mas não chegaram a entrar. A mulher era uma mulheraça com um conjunto de tweed e ele era pequeno, de sobretudo, de barba e olhos muito brilhantes. Não parecia muito bem e eu estava incomodado por o ver ali à chuva. Dentro da livraria estava quentinho e agradável.
- Porque será que não quiseram entrar?
- Não sei. Era numa época em que as pessoas não falavam com pessoas que não conheciam e muito antes de as pessoas pedirem a alguém um autógrafo.
- Como é que o reconheceste?
- Havia uma fotografia dele na livraria por trás da salamandra. Eu gostava muito de um livro de contos dele, chamado The Prussian Officer e de um romance intitulado Sons and Lovers. Também tinha umas coisas magníficas sobre a Itália.
- Todos os que sabem escrever deviam ser capazes de escrever sobre a Itália.
- Deviam. Mas é difícil, mesmo para os italianos. Mais difícil para eles do que para quaisquer outros. Se um italiano consegue escrever bem sobre a Itália é um fenómeno. Stendhal escreveu como ninguém sobre Milão.
- Outro dia disseste que todos os escritores eram doidos e agora dizes que são todos mentirosos.
- Eu disse que eram todos doidos?
- Disseste, tu e o G.C.
- O Pop estava cá?
- Estava. E disse que todos os guarda-caça eram doidos e todos os caçadores brancos também e que os caçadores brancos tinham ficado doidos por causa dos guarda-caça e os escritores por causa dos automóveis.
- O Pop tem sempre razão.
- Disse-me para não ligar nem a ti nem ao C.C. porque eram os dois doidos.
- E somos - disse eu - Mas não digas a ninguém de fora.
- Mas não estás a falar a sério ao dizer que todos os escritores são doidos, pois não?
- Só os bons.
- Mas ficaste furioso com aquele tipo escreveu um livro a dizer como tu eras doido.
- Pois, porque ele não percebia nada daquilo nem de como funciona. Assim como não sabia nada de escrita.
- É tremendamente complicado - disse Miss Mary.
- Não vou tentar explicar. Vou tentar escrever alguma coisa para te mostrar como funciona.
Sentei-me então a reler La Maison du Canal e pensei nos animais que iam ficar ensopados. Os hipopótamos iam ter hoje um belo dia. Mas para os outros animais não era nenhuma festa, especialmente para os felinos. As feras tinham tantas coisas a afligi-las que a chuva só incomodava as que nunca a tinham visto o que quer dizer que eram só as que tinham nascido desde a última estação das chuvas. Interrogava-me se os grandes felinos caçariam quando chovia assim tanto. Deviam caçar, para viver. Devia ser mais fácil aproximarem-se das Presas, mas os leões, os leopardos e os lobos-tigre deviam detestar ficar molhados até aos ossos quando andavam à caça. Os lobos-tigre talvez menos por se parecerem um bocado com os cães e terem um pêlo mais adaptado ao tempo húmido. As tocas das serpentes deviam estar cheias de água com as serpentes fora e a chuva ia trazer também as formigas voadoras.
Pensei em como tivemos sorte desta vez por estarmos em África a viver no mesmo sítio durante bastante tempo de maneira a poder ficar a conhecer os diferentes animais e a conhecer as tocas das serpentes e as serpentes que lá viviam. Da primeira vez que tinha estado em África estávamos sempre com pressa de andar de um sítio para outro para caçar feras como troféus. Se víamos uma cobra era por acaso, como seria deparar com uma cascavel numa estrada do Wyorning. Agora conhecíamos muitos sítios onde viviam cobras. Continuávamos a descobri-los por acaso mas ficavam na área onde vivíamos e podíamos voltar lá mais tarde e quando, acidentalmente, matávamos uma serpente era uma serpente que vivia num determinado sítio e que caçava na sua área enquanto que nós vivíamos na nossa e tínhamos saído de lá. Tinha sido G.C. que nos tinha dado o grande privilégio de conhecer uma parte maravilhosa deste país e de aí viver com um trabalho para fazer que justificava a nossa presença e isso fazia-me sentir imensamente grato.
Os tempos de matar feras para troféus há muito que tinham passado para mim. Continuava a gostar de caçar e de acertar um bom tiro. Mas caçava para conseguir a carne de que precisávamos e para dar apoio a Miss Mary ou contra os animais que tinham sido condenados em nome daquilo que hoje se chama controlo dos animais errantes, dos predadores e das pragas. Tinha abatido um impala para fazer um troféu e um órix pela carne em Magadi, que depois se viu que tinha uns belos cornos para um troféu, e tinha matado um búfalo isolado numa situação de emergência que nos abasteceu de carne numa altura em que estávamos a ter falta dela em Magadi e que tinha um par de cornos dignos de serem guardados como recordação do mau momento que eu e Miss Mary tínhamos passado. Recordava-o agora com alegria e sabia que o haveria de recordar com alegria para sempre. Era uma daquelas pequenas coisas com que podemos ir para a cama, com que podemos acordar a meio da noite e que podemos recordar sempre que necessário sempre que nos sentirmos angustiados.
- Lembras-te da manhã com o búfalo, gatucha? - perguntei.
Mary fitou-me do outro lado da mesa da messe e disse: «Não me perguntes coisas dessas. Estava a pensar no leão».
Nessa noite, depois de um Jantar frio, deitámo-nos cedo, dado que Mary tinha escrito o diário ao fim da tarde, e ficámos estendidos na cama a ouvir a intensidade da chuva na lona esticada.
Mas apesar do ruído monótono da chuva não dormi bem e acordei por duas vezes a suar com pesadelos. O último tinha sido terrível e estendi a mão por baixo do mosquiteiro à procura da garrafa de água e do frasco quadrado do gin. Pu-lo a meu lado na cama e voltei a prender cuidadosamente o mosquiteiro debaixo do cobertor e o colchão inflável da cama de campanha. No escuro enrolei a almofada para ficar mais alta e poder estar estendido com a cabeça apoiada e apanhei a pequena almofada com agulhas de balsamina e enfiei-a por baixo do pescoço. Depois apalpei a pistola junto à perna e a lanterna de pilhas e finalmente desenrosquei a tampa da garrafa de gin.
Na obscuridade e enquanto ouvia o ruído da chuva tomei um gole de gin. Tinha um gosto limpo e caloroso e deu-me coragem para enfrentar o pesadelo. O pesadelo tinha sido tão horrível como mais não há e são já uns quantos pesadelos que tive na minha vida. Sabia que não devia beber enquanto caçávamos o leão de Miss Mary; mas não íamos à caça no dia seguinte com tudo molhado. Esta noite era uma noite má por uma boa razão. Depois de ter sido presenteado com tantas noites boas tinha começado a acreditar que se tinham acabado os pesadelos. Agora já sabia. Talvez fosse por a tenda ter sido reforçada contra a chuva e não estar bem ventilada. Talvez fosse por não ter feito nenhum exercício o dia todo.
Bebi outro gole de gin e sabia ainda melhor do que o anterior e parecia ainda mais o velho Giant Killer. Não era um pesadelo assim tão excepcional, pensei. Já tivera outros bem piores. Mas o que, eu sabia é que estava livre de pesadelos, aqueles mesmo a serio que nos deixam ensopados em suor, há muito tempo e que apenas tinha bons ou maus sonhos e a maior parte das noites eram sonhos bons. Depois ouvi Mary dizer: «Papá, estás a beber?»
- Estou. Porquê?
- Também há para mim?
Estendi-lhe o frasco debaixo do mosquiteiro e ela pôs a mão de fora e pegou nele.
- Tens a água?
- Tenho - disse eu e estendi-lha também - Tens aí a tua ao lado da cama.
- Mas tinhas-me dito para ter cuidado com as coisas e não queria acordar-te com a luz.
- Coitada da gatinha. Dormiste?
- Dormi. Mas tive uns sonhos horríveis. Nem tos quero contar antes do pequeno-almoço.
- Eu também tive maus sonhos.
- Toma lá a Jinny outra vez - disse ela - Podes precisar dela. Agarra a minha mão com força, por favor. Não estás morto e o G.C. não está morto e o Pop não está morto.
- Não. Estamos todos bem.
- Muito obrigada. E dorme também. Não amas mais nenhuma, pois não? Nenhuma branca, quero eu dizer.
- Não. Nem branca, nem preta, nem vermelha.
- Dorme bem, meu amor - disse ela - Obrigada por este belo copo da meia-noite.
- Obrigado por matares os pesadelos.
- É uma das coisas para que eu sirvo - disse ela.
Fiquei estendido a pensar, recordando muitos lugares e alguns momentos realmente maus e pensei em como seria maravilhoso depois da chuva passar e que os pesadelos afinal pouca importância tinham e então adormeci para a seguir acordar de novo a suar e aterrorizado, mas pus-me cautelosamente à escuta e ouvi a respiração suave e regular de Mary e voltei a adormecer para mais uma tentativa.
A manhã estava fria com uma nuvem pesada a cobrir a Montanha. Soprava de novo um vento forte e a chuva continuava a cair por aguaceiros, mas a chuva cerrada e contínua tinha passado. Fui até junto das vedações falar com Keiti e encontrei-o de excelente disposição. Tinha vestido um impermeável e um velho chapéu de feltro. Na opinião dele, no dia seguinte teríamos já provavelmente bom tempo e eu disse-lhe para esperarmos até a memsahib acordar antes de irmos cravar melhor os espeques da tenda e afrouxar as cordas molhadas. Keiti estava contente por as valetas terem funcionado tão bem e que nem a tenda de dormir nem a tenda da messe tivessem metido água. Tinha já mandado acender uma fogueira e tudo estava com melhor aspecto. Contei-lhe que sonhara que tinha chovido imenso no alto da Reserva. Era mentira mas achei que uma boa mentira podia fazer jeito caso tivéssemos boas notícias de Pop. Se nos pusermos a profetizar é melhor profetizarmos com as hipóteses a nosso favor.
Keiti ouviu o meu sonho com atenção e um respeito fingido. Depois disse-me ter sonhado que tinha chovido a sério até ao rio Tana, que ficava na orla do deserto, e que havia seis safaris bloqueados pelas cheias e que não se poderiam mexer durante semanas. Tudo isto, C era esse o fito dele, tornava o meu sonho bastante insignificante. Sabia que tinha escutado o meu sonho e que iria fazer uma verificação, mas senti a necessidade de o reforçar. E então contei-lhe, e era a pura verdade, que tinha sonhado que tínhamos enforcado o Informador. Ao contá-lo, descrevi-lhe todos os pormenores: onde, como, porquê, a reacção dele e como o tínhamos levado, depois, no carro de caça para ser comido pelas hienas.
Keiti detestava o Informador, e já há vários anos, e adorou este sonho mas prudentemente fez questão em que eu soubesse que ele não tinha sonhado com o Informador. Isso era importante, como eu sabia, mas ainda lhe forneci mais alguns pormenores da execução. Ficou deliciado com tudo e disse com uni ar melancólico, mas pleno de sensatez: «Não deve fazer isso».
- Não posso. Mas talvez o meu sonho possa.
- Não deve fazer uchawi.
- Eu não faço uchawi. Alguma vez me viste fazer mal a algum homem ou mulher?
- Eu não disse que era um uchawi. Disse que não devia ser uchawi e que não deve enforcar o Informador.
- Se queres salvá-lo, posso esquecer o sonho.
- Um bom sonho - disse Keiti - Mas traz demasiados sarilhos.
O dia a seguir a uma grande chuvada é um dia esplêndido para a propagação da fé, ao passo que a chuva propriamente dita parece afastar o espírito dos homens das belezas da sua religião. A chuva tinha agora cessado completamente e eu estava sentado junto à fogueira a beber chá e a contemplar o terreno ensopado. Miss Mary dormia ainda profundamente por não haver sol que a acordasse. Mwindi aproximou-se da mesa junto à fogueira com outro bule de chá quente e serviu-me uma chávena.
- Muita chuva - disse ele - Agora passou.
- Mwindi - disse eu - Sabes o que disse o Mahdi. «Vemos claramente nas leis da natureza que a chuva cai dos céus no tempo em que faz falta. A verdura e a vegetação da terra dependem da chuva celeste. Se deixa de cair durante algum tempo a água das camadas de cima da terra começam a secar aos poucos. Vemos assim que existe uma atracção entre a água do céu e a água da terra. A revelação mantém com a razão humana a mesma relação que existe entre a água do céu e a água da terra.»
- Água demais para campi. Muito de bom para shamba - proclamou Mwendi.
- «Assim que cessa a água do céu a água da terra começa aos poucos a secar; o mesmo se passa com a razão humana que sem a revelação divina perde a sua pureza e vigor.»
- Como é que sei que é Madhi? - disse Mwindi.
- Pergunta ao Charo.
Mwindi respondeu com um resmungo. Sabia que Charo era muito devoto mas não um teólogo.
- Se enforcar Informador deixa polícia enforcar também - disse Mwindi - Keiti disse-me para dizer isso.
- Foi só um sonho.
- Sonho pode ser muito forte. Pode matar como bunduki.
- Vou contar o sonho ao Informador. Assim perde a força.
- Uchawi - disse Mwindi - Uchawi kubwa sana.
- Hapana uchavi.
Mwindi mudou de assunto e perguntou-me quase bruscamente se queria mais chá. Tinha os olhos postos para além da vedação com o seu perfil chinês e reparei então no que ele queria que eu visse. Era o Informador.
Tinha chegado ensopado e pouco satisfeito. O estilo e a galanteria não tinham desaparecido mas tinham ficado molhados. Deu a sua tossidela habitual desde logo para que não deixasse dúvidas e era uma senhora tosse.
- Bom dia, irmão. Como é que aguentou este tempo, o senhor e a minha senhora?
- Tivemos alguma chuva por estes lados.
- Irmão, sou um homem doente.
- Estás com febre?
- Estou.
Não mentia. Tinha o pulso a cento e vinte pulsações.
- Senta-te, bebe alguma coisa e toma uma aspirina que eu dou-te já um medicamento. Vai para casa e deita-te. O carro de caça pode passar na estrada?
- Pode. Daqui até à shamba é caminho de areia e o carro pode rodear os charcos.
- Como está a shamba?
- Não precisava da chuva porque tem irrigação. Está uma shamba triste com o frio da Montanha. Até as galinhas estão tristes. Veio comigo uma rapariga que tem o pai a precisar de medicamentos para o peito. Já a conhece.
- Eu mando o medicamento.
- Está infeliz porque não veio lá.
- Tenho as minhas obrigações. Ela está bem?
- Está bem mas triste.
- Diz-lhe que vou à shamba quando tiver lá que fazer.
- Irmão, que história é essa de um sonho onde sou enforcado?
- Foi um sonho que eu tive mas não to conto antes de ter tomado o pequeno-almoço.
Mas há outros que o ouviram antes.
É melhor que não o ouças. Não era um sonho oficial. Não aguentava ser enforcado - disse o Informador. Eu nunca te enforcava.
Mas há quem possa estar enganado quanto às minhas actividades. Ninguém te enforca, a não ser que te ponhas a tratar com a outra gente. Mas eu tenho que tratar constantemente com a outra gente.
Bem sabes em que sentido estou a falar. Agora vai para junto da fogueira aquecer-te e eu vou preparar o medicamento.
- És um meu irmão.
- Não - disse eu - Sou teu amigo.
Dirigiu-se para a fogueira e eu abri a mala da farmácia e tirei Atabrina, aspirina, linimento, um pouco de sulfamidas e algumas pastilhas para a tosse e esperava com isso dar um pequeno golpe ao uchawi. Mas ainda me recordava de todos os pormenores da execução do Informador no que devia ter sido o meu terceiro pesadelo e sentia-me envergonhado de uma tal imaginação nocturna. Expliquei-lhe quais os medicamentos que devia tornar e os que devia dar ao pai da rapariga. Depois caminhámos juntos até à vedação e dei à rapariga duas latas de arenque fumado e um boião de caramelos e pedi a Mthuka que os conduzisse à shamba e voltasse logo a seguir. Ela tinha-me trazido quatro espigas de milho e não levantou os olhos uma única vez quando falava com ela. Encostou a cabeça ao meu peito como fazem as crianças e quando entrou no carro no lado onde ninguém a podia ver deixou descair o braço e com a mão aberta apertou-me os músculos da coxa. Fiz o mesmo quando ela estava no carro- e ela não levantou os olhos. Depois mandei tudo ao diabo e beijei-a no topo da cabeça e ela riu-se com a impudência de sempre e Mthuka sorriu e arrancou. A pista estava areenta ainda com alguma água mas o fundo estava firme e o carro de caça desapareceu entre as árvores e ninguém olhou para trás.
Disse a Ngui e a Charo que íamos fazer uma ronda de rotina pelo Norte até onde fosse possível ir assim que Miss Mary acordasse e tomasse o pequeno-almoço. Podiam ir já buscar as armas e limpá-las agora que não chovia. Recomendei-lhes que verificassem e limpassem bem os canos de quaisquer restos de óleo. Estava frio e havia vento. O sol estava coberto. Mas a chuva tinha passado, a não ser um ou outro aguaceiro. Todos se mostravam bastante atarefados e sem tempo para brincadeiras.
Mary estava radiante ao pequeno-almoço. Tinha dormido muito bem depois de ter acordado durante a noite e tinha tido bons sonhos. No sonho mau tinha sonhado que Pop, G.C. e eu tínhamos sido todos mortos. Não se lembrava dos pormenores. Alguém tinha trazido a novidade. Pensava que tinha sido numa emboscada ou coisa assim. Queria perguntar-lhe se tinha sonhado com o enforcamento do Informador mas achei que isso era uma interferência e o que contava era que tinha acordado bem disposta e impaciente por começar o dia. Pensei que tinha sido bastante bronco e bastante inábil em me envolver em coisas que não compreendia em África, mas não queria envolvê-la . Ela já se envolve o suficiente indo ao acampamento aprender música e os ritmos dos tambores e as cantigas, tratando bem toda a gente e sendo tão simpática que todos se apaixonavam por ela. Nos velhos tempos, sei que Pop nunca o teria permitido. Mas os velhos tempos tinham passado. Ninguém o sabia melhor do que Pop.
Depois de terminado o pequeno-almoço e de o carro ter voltado da shamba, Mary e eu fomos dar uma volta até onde o terreno o permitia. O solo secava rapidamente mas estava ainda traiçoeiro e as rodas patinavam e atolavam-se em sítios onde um dia depois o carro podia passar sem problemas. Era assim mesmo no terreno mais duro e onde a pista tinha sido consolidada e reforçada. A Norte, nas terras argilosas e escorregadias era impossível passar.
Podia ver-se a erva nova a despontar num verde vivo nas áreas planas e os animais andavam espalhados e pouca atenção nos prestavam. Não tinha havido ainda grandes movimentos da caça, mas vimos traços de elefantes que tinham cruzado a pista de manhã cedo depois de parar a chuva em direcção ao pântano. Pertenciam ao grupo que tínhamos visto do avião e o macho reconhecia-se pelas pegadas enormes mesmo tendo em conta que a lama húmida as tornava maiores.
Estava um tempo cinzento e frio e o vento soprava e por todo o lado nos prados e ao lado das pistas viam-se as tarambolas correndo atarefadas à procura de comida, lançando depois os seus gritos agudos e terríveis ao levantar voo. Havia três espécies e apenas uma era comestível. Mas os homens não a comiam e achavam que tinha desperdiçado um cartucho ao disparar contra elas. Sabia que deviam andar maçaricos nos planaltos mais acima mas podíamos ocupar-nos deles num outro dia.
- Podemos continuar mais para a frente - disse eu - Há uma saliência bastante boa numa elevação onde podemos dar a volta - disse Mary.
- Então vamos.
Neste momento começou a chover e pensei que era melhor dar meia volta onde o podíamos fazer e regressar ao acampamento antes de ficarmos atolados em algum sítio mole.
Nas Proximidades do acampamento, que surgia alegremente de entre as árvores e a névoa pardacenta, o fumo que subia das fogueiras e as tendas brancas e verdes tinham um ar confortável e acolhedor, viam-se galinhas do mato a beber nos charcos da pradaria aberta. Desci com Ngui para caçar algumas para comermos enquanto Mary prosseguia para o acampamento. Caminhavam com a cabeça baixa à roda das poças de água e espalhavam-se pela relva curta onde crescem os cardos das areias. Palravam incessantemente e não era difícil apanhá-las se lhes acertássemos logo ao levantar voo. Eram galinhas do mato de tamanho médio e assemelhavam-se a pequenos pombos do deserto roliços disfarçados de perdizes. Adorava o voo estranho delas, parecido com o do pombo ou do peneireiro, e a maneira maravilhosa como usavam as longas asas repuxadas para trás quando se encontravam em pleno voo. Surpreendê-las assim como fazíamos nada tinha a ver com disparar quando chegavam em longas fiadas e em grupos à água pela manhã durante a estação seca quando C.C. e eu visávamos apenas as aves que voavam mais alto e os grandes migradores e pagávamos um shilling de multa sempre que abatíamos mais de uma ave por cada tiro disparado. Ao levantá-las, perdíamos o som do cacarejo gutural que o bando fazia enquanto palrava pelos ares. Também não gostava de disparar tão perto do acampamento e por isso escolhi apenas quatro pares, o que nos dava para pelo menos duas refeições para nós dois e uma boa refeição se aparecesse alguém.
O pessoal do safari não gostava de as comer. Eu também não gostava tanto como de abetardas, cercetas, narcejas ou de tarambolas de asa em flecha. Mas eram saborosas e serviam para o jantar. A chuva miudinha tinha cessado mas a bruma e as nuvens desciam agora para o sopé da Montanha.
Mary estava sentada na tenda de jantar com um Campari-soda.
- Apanhaste muitas?
- Oito. Parecia um bocado o tiro aos pombos no Club de Cazadores del Cerro.
- Levantam muito mais depressa do que os pombos.
- Acho que só dá essa impressão por causa dos cacarejos e por serem mais pequenas. Não há nada que levante mais rápido do que um pombo forte bem lançado.
- Nem imaginas como prefiro estar aqui do que aos tiros no Club.
- Também eu. Nem me vejo a voltar a pôr lá os pés.
- Voltas, voltas.
- Não sei - disse eu - Creio que não.
- Há uma data de coisas que não me parece que volte a fazer.
- Quem me dera que não tivéssemos de regressar. Quem me dera que não tivéssemos nem propriedades, nem bens, nem responsabilidades. Gostava de não ter mais do que um acampamento de safari, um bom jipe para a caça e dois bons camiões.
- Havia de ser a mais popular anfitriã de tenda do mundo inteiro. já estou a ver a cena. As pessoas apareciam nos seus aviões privativos e o piloto saía e abria a porta para o cavalheiro e então o cavalheiro dizia: «Aposto que não sabem quem eu sou. Aposto que não se lembram de mim. Sabem quem sou?» Um dia destes é capaz de aparecer alguém a dizer uma coisa do género e eu vou pedir ao Charo para trazer o meu bunduki para lhe acertar mesmo no meio dos olhos.
- E o Charo pode fazer o halal.
- Eles não comem carne humana.
- Os walçamba dantes comiam. Na época a que tu e o Pop chamam sempre os bons velhos tempos.
- Tu és meio kamba. Eras capaz de comer carne humana?
- Não.
- Sabias que nunca matei um homem em toda a minha vida? Lembras-te de quando queria partilhar tudo contigo e me sentia tão mal por nunca ter matado nenhum nazi e como todos ficaram preocupados?
- Lembro-me muito bem.
- E se te fizesse agora o número em que mato a mulher que me rouba o teu amor?
- Só se me fizeres também um Campari-soda.
- Vou fazer e faço também o meu número.
Mary serviu o aperitivo vermelho e acrescentou uma gota de Gordon’s e depois juntou um jacto do sifão.
- O gin é a recompensa por ouvires o discurso. Bem sei que já ouviste o discurso várias vezes. Mas eu gosto de o fazer. Faz-me bem dizê-lo e faz-te bem ouvi-lo.
- OK. Começa.
- Ah, hah! - começou Miss Mary - Com que então pensas que podes ser uma melhor esposa para o meu marido. Ah aha. Com que então pensas que estão ideal e perfeitamente calhados um para o outro e que serás melhor para ele do que eu sou. Ah aha. Com que então pensas que tu e ele poderiam levar uma vida perfeita juntos e que pelo menos ele teria o amor de uma mulher que compreende o que é o comunismo, a psicanálise e o verdadeiro significado da palavra amor? Que é que tu sabes do amor, meu estafermo nojento? Que é que tu sabes do meu marido e das coisas que partilhámos e que temos em comum?
- Bravo. Bravo.
- Deixa-me continuar. Ouve, criatura nojenta, escanzelada onde devias ser robusta, e a rebentar de gorda onde devias mostrar alguns sinais de raça e de estilo. Ouve, mulher. Matei um inocente antílope a uma distância calculada em trezentos e quarenta metros e comi-o sem remorsos. Cacei o kongoni e o griu com quem tanto te pareces. Acertei e matei um grande e belo órix e que é mais bonito do que qualquer mulher e tem uns cornos mais decorativos do que qualquer homem. Matei mais coisas do que quantas manobras de sedução fizeste e digo-te que desistas e te deixes de andar toda espigada para o meu marido e saias deste país antes que eu te mate.
É um discurso magnífico. Não estás a pensar fazê-lo em swahili, pois não? Não é preciso fazê-lo em swahili - disse Miss Mary, que se sentia sempre um pouco como Napoleão em Austerlitz depois do discurso - O discurso é só para mulheres brancas. Não tem nada a ver com a tua namoradinha. Desde quando é que um bom e terno marido não tem direito a uma namoradinha se ela se contenta em ser uma esposa suplente? É uma posição honrosa. O discurso dirige-se contra qualquer nojenta mulher branca que pense que te pode fazer mais feliz do que eu. Alguma oportunista.
É um belo discurso e está a ficar cada vez mais claro e convincente. É um discurso verdadeiro - disse Miss Mary - Não há uma única palavra que eu não pense. Mas tentei retirar-lhe todos os traços de ressentimento e qualquer tipo de vulgaridade. Espero que não tenhas pensado que espigada tinha alguma coisa a ver com espigas.
- Não me parece.
- Ainda bem. Aliás, são realmente umas belas espigas as que ela te trouxe. Achas que as podíamos assar na cinza da fogueira? É como eu gosto delas.
- Claro que podemos.
- Tem qualquer significado especial o ela te ter trazido quatro?
- Não. Duas para ti e duas para mim.
- Gostava que alguém se apaixonasse por mim e me trouxesse presentes.
- Toda a gente está sempre a trazer-te presentes e tu bem o sabes. Tens metade do acampamento a fazer escovas de dentes para ti.
- É verdade. Tenho montes de escovas de dentes. Até tenho ainda uma data delas de Magadi. Seja como for, fico contente por teres uma namorada tão simpática. Gostava que tudo fosse sempre assim tão simples como aqui ao pé da Montanha.
- A verdade é que não são nada simples. Nós temos é sorte.
- Eu sei. E temos de ser bons e generosos um para o outro para merecermos tanta sorte. Oh, espero que o meu leão se mostre e que eu seja suficientemente alta para o ver bem quando chegar a altura. Fazes ideia do que ele representa para mim?
- Acho que sim. Toda a gente sabe.
- Há pessoas que pensam que sou maluca, bem sei. Mas nos tempos antigos as pessoas partiam em busca do Santo Graal e do Velo de Ouro e ninguém os achava idiotas. Um leão grande é melhor e mais sério do que qualquer taça ou pele de carneiro. Pouco me importa se eram sagrados ou de ouro. Toda a gente tem alguma coisa que deseja profundamente e o meu leão é tudo para mim. Bem sei como tens sido paciente comigo e como todos têm sido pacientes. Mas agora tenho a certeza que depois destas chuvadas o vou encontrar. Estou morta que chegue a primeira noite em que o vou ouvir rugir.
- Tem um rugido maravilhoso e hás-de vê-lo em breve.
- As pessoas de fora nunca poderão compreender. Mas ele compensa tudo.
- Eu sei. Não lhe queres mal, pois não?
- Não. Adoro-o. É maravilhoso e inteligente e não tenho de te dizer porque é que tenho de o matar.
- Não. Claro que não.
- O Pop sabe. E explicou-me. Falou-me também naquela mulher horrível e dos quarenta e dois tiros que o leão dela apanhou de toda a gente. É melhor nem falar nisso porque ninguém pode entender.
Nós compreendíamos porque certa vez tínhamos visto juntos a pista do primeiro grande leão. Tinha o dobro do tamanho das pegadas de um leão e como era um solo de areia fina ligeiramente molhada pela chuva que tinha acabado de cair pareciam uma verdadeira gravura. Eu andava com Ngui atrás de um kongoni para arranjar carne para o acampamento e quando vimos as pegadas apontámos para elas com uma haste de ervas e eu podia ver o suor a aparecer-lhe na testa. Esperámos por Mary sem nos mexermos e quando ela avistou as pegadas respirou fundo. Não era a primeira vez que via pegadas de leão e tinha já visto vários leões mortos mas aquelas pegadas eram inacreditáveis. Ngui continuava a abanar a cabeça e eu sentia o suor a correr-me debaixo dos braços e nas virilhas. Seguimos as pegadas como perdigueiros e vimos o sítio onde ele tinha bebido num riacho lamacento antes de seguir a ravina até ao escarpado. Nunca, mas mesmo nunca, tinha visto umas pegadas assim e na lama do riacho eram ainda mais nítidas.
Não sabia se havia de voltar para trás e continuar a perseguição do kongoni e correr o risco de afastar o leão da área com o barulho dos disparos. Mas precisávamos de carne e estávamos numa zona onde não havia assim tanta e toda a caça era bastante arisca por haver tantos predadores. Nunca se apanhava uma zebra que não mostrasse na pele as cicatrizes escurecidas das garras do leão e as zebras tinham-se tornado tão assustadiças e de tão difícil aproximação como o órix do deserto. Era uma zona de búfalos, de rinocerontes, de leopardos onde ninguém gostava de caçar a não ser G.C. e Pop; e mesmo Pop sentia-se aí pouco à vontade. G.C. tinha tantos nervos que acabou por não ter nervos nenhuns e nunca admitia haver perigo até ter de escapar dele aos tiros, Mas Pop tinha dito que nunca tinha caçado nesta região sem ter problemas, o que não impediu de o continuar a fazer, percorrendo as zonas planas perigosas à noite para evitar o calor, que podia atingir os cinquenta graus centígrados à sombra, muitos anos antes de G.C. cá ter estado ou de os automóveis terem chegado à África Oriental.
Era nisto que pensava quando avistámos as pegadas do leão mas depois, quando começámos a batida ao kongoni, era só nisso que pensava. Mas a pegada do leão estava no meu espírito como se aí tivesse sido marcado a fogo e sabia que Mary, por já ter visto outros leões, tinha-o imaginado tal como ele deveria ser ao avançar por aquela pista. Tínhamos matado O kongoni, fulvo, desajeitado, de focinho cavalar e de boa carne, tão ou mais inocente do que era possível conceber e Mary tinha-o abatido com um tiro na junção da cabeça com o pescoço. Tinha sido ela a disparar para aperfeiçoar a pontaria e por ser necessário e alguém ter de o fazer.
Sentado no interior da tenda pensava na aversão que deveria sentir qualquer genuíno vegetariano, mas quem quer que alguma tivesse comido carne sabia bem que alguém a tinha matado e uma vez que Mary, decidida a matar, queria matar sem infligir sofrimento, tinha necessidade de aprender e de praticar. Os que nunca pescaram um peixe, nem sequer uma sardinha de lata, e que param os carros se houver gafanhotos na estrada, e que nunca comeram sequer um caldo de carne não deviam condenar os que matam para comer e que eram donos da carne muito antes dos brancos lhes terem roubado o território. Quem sabe o que sentirá a cenoura, ou o rabanete ainda pequenino, ou a lâmpada eléctrica usada, ou o disco fonográfico gasto, ou a macieira no Inverno? Quem saberá os sentimentos do avião decrépito, a pastilha elástica mastigada, a beata do cigarro ou o livro posto de parte roído pelo caruncho?
O meu exemplar do Regulamento dos Serviços de Caça não abordava nenhum destes casos nem incluía qualquer regulamentação sobre o tratamento da bouba e das doenças venéreas que era uma das minhas tarefas quotidianas. Não havia nenhum regulamento sobre os ramos de árvore que caíam nem sobre a poeira ou as picadas de insectos diferentes da mosca tsé-tsé; ver zonas infestadas. Os caçadores que tiravam licenças de caça por um período limitado em determinados territórios massai que em tempos tinham sido reservas e constituíam agora zonas controladas recebiam uma lista dos animais que estavam autorizados a matar e depois pagavam uma taxa bastante simbólica que mais tarde era entregue aos massai. Mas os walçamba que correndo grandes riscos sempre tinham caçado em território massai para obterem carne, não tinham tal direito. Eram perseguidos como caçadores furtivos pelos pisteiros, que eram também, na sua maior parte, wakamba, e C.C. e Mary achavam que os pisteiros eram mais estimados do que eles.
Os pisteiros eram quase todos um elevadíssimo tipo de soldado saídos dos walçamba caçadores. Mas a situação estava a tornar-se num ukambani bastante difícil. Tinham cultivado a terra seguindo as práticas ancestrais mas reduzindo os tempos de pousio que deveriam durar o tempo de uma geração, ao passo que a população wakamba aumentava sem que o mesmo acontecesse com as terras, que sofriam da erosão que atingia o resto da África. Os seus guerreiros tinham combatido em todas as guerras travadas pela Grã-Bretanha e os massai nunca se tinham batido em nenhuma delas. Os massai tinham sido mimados, preservados, tratados com um receio que nunca poderiam inspirar e eram adorados por todos os homossexuais como Thessinger, que tinha trabalhado para o Império no Quénia e no Tanganica, por causa da beleza dos homens. Os homens eram muito bonitos, extremamente ricos, guerreiros profissionais que agora, há já bastante tempo, tinham deixado de combater. Sempre tinham sido viciados em drogas e agora estavam a tornar-se alcoólicos.
Os massai nunca matavam caça e apenas se preocupavam com o gado. Os conflitos entre os massai e os wakamba andavam sempre à volta do roubo de gado, nunca por causa de caça abatida.
Os wakamba odiavam os massai, que consideravam fanfarrões ricos protegidos pelo governo. Desprezavam-nos como homens que tinham mulheres que não sabiam o que era a fidelidade e quase sempre sifilíticas e como homens que não conseguiam levantar caça por terem os olhos destruídos por doenças imundas causadas pelas moscas; porque as lanças deles vergavam depois de as usarem uma única vez e finalmente, e sobretudo, porque só eram corajosos quando sob a influência de drogas.
Os wakamba, que gostavam do combate, o combate a sério, e não o combate massai, que não passa, normalmente, de uma histeria de massa que só sob influência de drogas se manifesta, viviam abaixo do nível de subsistência. Sempre tinham tido os seus caçadores e agora não tinham território de caça. Gostavam de beber e a bebida era rigorosamente controlada pelas leis tribais. Não eram bêbados e a embriaguez era severamente punida. A carne constituía a base da sua alimentação e agora tinha deixado de existir e estavam impedidos de caçar. Os caçadores ilegais eram tão populares como os contrabandistas em Inglaterra nos velhos tempos ou como as pessoas que introduziam álcool do bom nos Estados Unidos na época da proibição.
As coisas não estavam assim tão más a primeira vez que tinha estado lá anos antes. O que não quer dizer que estivessem boas. Os wakamba mostravam-se absolutamente leais para com os Britânicos. Mesmo os mais jovens e os maus elementos eram leais. Mas os jovens andavam perturbados e as coisas não eram de maneira nenhuma simples. Os mau-mau eram suspeitos por ser uma organização ktkuyu e os wakamba detestavam juramentos. Mas tinha havido infiltrações. Nada disto era referido no decreto de protecção dos animais selvagens. C.C. tinha-me dito para confiar no meu senso comum, se tivesse algum, e que só os chatos é que arranjavam sarilhos. Como sabia que por vezes podia incluir-me nessa categoria, tentei recorrer ao meu senso comum o mais cautelosamente possível e evitar as chatices tanto quanto podia. Há muito tempo que me identificava com os wakamba e agora tinha ultrapassado a última barreira, pelo que a identificação era completa. Não havia nenhuma outra maneira de consumar essa identificação. Qualquer aliança entre tribos só se torna válida de uma maneira.
De momento, com a chuva, sabia que todos estavam menos preocupados com as famílias e que se conseguíssemos um pouco de carne todos ficavam contentes. A carne fazia os homens fortes; mesmo os velhos pensavam assim. De entre os mais velhos do acampamento, achava que Charo era o único que talvez fosse impotente e nem isso era certo. Podia ter perguntado a Ngui que ele dizia-me. Mas não era uma pergunta muito delicada e Charo e eu éramos velhos amigos. Os homens kamba, se tiverem carne para comer, mantém a capacidade de fazer amor muito depois de fazerem setenta anos. Mas há certos tipos de carne que são mais indicados para o homem do que outros. Não faço ideia como é que me pus a pensar nestas coisas. Tinha começado com um kongoni abatido no dia em que vimos pela primeira vez as pegadas do leão grande da escarpa de Rift Valley e depois tinha começado a divagar, como as histórias que os velhos contam.
- E se fôssemos lá fora buscar um bocado de carne, Miss Mary?
- Estamos a precisar, não estamos?
- Pois.
- Em que estavas a pensar?
- Nos problemas kamba e em carne.
- Problemas kamba graves?
- Não. De um modo geral.
- Ainda bem. Que decidiste?
- Que precisávamos de carne.
- Bem, então vamos à carne?
É uma boa altura para arrancar. Se te apetece andar a pé. Apetece-me muito. Quando voltarmos tomamos um banho e mudamo-nos e faz-se uma fogueira.
Tínhamos encontrado o bando de impalas que normalmente andavam perto da estrada no ponto onde se cruza com o rio e Mary tinha abatido um velho macho que só tinha um chifre. Estava gordíssimo e em boa forma e fiquei com a consciência tranquila por o matarmos para carne, pois nunca poderia fornecer aos Serviços de Caça um troféu com algum valor e, dado que tinha sido afastado do rebanho, deixara de servir para reprodução. Mary tinha-o matado com um tiro magnífico atingindo-o na espádua exactamente no ponto que tinha visado. Charo estava orgulhosíssimo dela e pôde obter uma carne absolutamente legal por uma diferença de talvez um centésimo de segundo. Consideravam, a partir de então, que a pontaria de Mary estava nas mãos de Deus e uma vez que tínhamos deuses diferentes, Charo reivindicou todo o mérito do tiro. Pop, G.C. e eu tínhamos assistido todos ao aperfeiçoamento da pontaria de Miss Mary até conseguir aqueles tiros assombrosos. Agora era a vez de Charo.
- Memsahib piga mzuri sana - disse Charo.
- Mzuri. Mzuri - disse Ngui a Mary.
- Obrigada - disse Mary - já são três - disse ela para mim - Agora estou contente e confiante. É estranho isto da caça, não achas?
Fiquei a pensar em como era estranho e esqueci-me de responder.
- É uma crueldade matar alguma coisa. Mas é maravilhoso termos boa carne no acampamento. Quando é que a carne se terá tornado assim tão importante para toda a gente?
- Sempre o foi. É uma das coisas mais antigas e mais importantes. A África morria à fome sem ela. Mas se matassem a caça como os holandeses fizeram na África do Sul já não haveria nenhuma.
- Mas será que protegemos a caça para os indígenas? Para quem é que cuidamos da caça, na verdade?
- Por si própria e para dar dinheiro aos Serviços de Caça e permitir que o saque dos caçadores brancos prossiga e para dar algum dinheiro extra aos massai.
- Agrada-me proteger a caça pela própria caça - disse Mary - Mas tudo o resto parece-me um bocado sórdido.
- Está tudo baralhado - expliquei - Mas alguma vez viste uma terra mais baralhada?
- Não. Mas tu e o teu bando também são um bocado baralhados.
- Eu sei.
- Mas na tua cabeça tens uma ideia clara da situação, francamente?
- Ainda não. Por agora vivemos apenas o dia-a-dia.
- Bem, eu gosto disto assim - disse Mary - E ao fim e ao cabo não viemos para cá para meter a África na ordem.
- Pois não. Viemos para tirar umas fotografias e escrever umas quantas legendas para elas e depois para nos divertirmos e aprender o que pudermos.
- Mas não há dúvida que estamos metidos nisto tudo.
- Eu sei. Mas tens-te divertido?
- Nunca me senti mais feliz.
Ngui tinha parado e apontava para o lado direito da estrada. «Simba.» Via-se a pegada enorme, custava a acreditar, tão grande era.
A pata traseira do lado esquerdo mostrava claramente a antiga cicatriz. Tinha atravessado a estrada calmamente mais ou menos na altura em que Mary tinha alvejado o impala. Tinha-se internado no terreno acidentado do mato.
- É ele - disse Ngui. Quanto a isso não havia a mínima dúvida. Com alguma sorte tínhamo-lo encontrado na estrada. Mas ele haveria de ter cuidado e de nos deixar passar. Era um leão muito inteligente e sem pressa. O sol estava quase a pôr-se e com as nuvens não haveria luz para atirar daí a cinco minutos.
- Agora as coisas não estão tão complicadas - disse Mary com satisfação.
- Vai ao acampamento buscar o carro - disse a Ngui - Nós vamos ter com o Charo para esperar com a carne.
Nessa noite, quando estávamos deitados cada um na sua cama mas ainda não a dormir, ouvimos o leão a rugir. Estava a Norte do acampamento e o rugido soou rouco e a subir de intensidade até acabar num suspiro.
- Vou para junto de ti - disse Mary.
Ficámos estendidos lado a lado no escuro debaixo do mosquiteiro, o meu braço em torno dela, e ouvimo-lo rugir novamente.
- Não há engano possível quando é ele - disse Mary - Ainda bem que estou deitada contigo quando o ouço.
Avançava para Norte e Oeste, rosnando profundamente e depois rugindo.
- Está a chamar as leoas ou está zangado? Que é que ele anda realmente a fazer?
- Não sei, querida. Acho que esta zangado por se ter molhado.
- Mas também rugia quando estava seco e andávamos atrás dele no mato.
- Estava a brincar, querida. Ouço-o rugir e mais nada. Posso vê-lo quando ele pára e amanhã vais ver o sítio onde ele agora está a escavar o solo.
- O leão é demasiado sério para estares com brincadeiras.
- Tenho de brincar se vou ter de te dar cobertura. Não querias que eu estivesse preocupado com ele, pois não?
- Ouve - disse Mary.
Ficámos deitados à escuta. É impossível descrever o rugido de um leão.
O mais que se pode dizer é que o ouvimos e que o leão rugiu. Não é nada que se pareça com o ruído que o leão faz no início dos filmes da Metro Goldwyn Mayer. Quando o ouvimos começamos por o sentir no ventre e depois sobe pelo corpo acima.
- Faz-me sentir oca por dentro - disse Mary. É na verdade o rei da noite.
Pusemo-nos à escuta e ele voltou a rugir sempre avançando para Noroeste. Desta vez o rugido acabou em tosse.
- Esperemos que ele cace alguma coisa - disse eu - Não Penses nele demasiado e dorme bem.
- Tenho de pensar nele e apetece-me pensar nele. É o meu leão e eu gosto dele e respeito-o e tenho de o matar. Significa mais para mim do que qualquer outra coisa, excepto tu e a nossa gente. Sabes bem o que ele significa.
- Sei mais do que bem - disse eu - Mas tens de dormir, querida. Talvez esteja a rugir para te manter acordada.
- Então deixa-o lá manter-me acordada - disse Mary - Se o vou matar, também tem o direito de me manter acordada. Gosto de tudo o que ele faz e de tudo o que tem a ver com ele.
- Mas devias dormir um bocadinho, querida. Ele não havia de gostar que tu não durmas.
- Ele não se importa nada comigo. Eu é que me importo com ele e por isso é que o mato. Devias compreender.
- E compreendo. Mas agora devias dormir, gatinha. Porque amanhã de manhã vamos a ele.
- Durmo já. Mas queria ouvi-lo falar mais uma vez.
Mary estava cheia de sono e eu pensei que esta rapariga que toda a sua vida nunca tinha desejado matar o que quer que fosse até ter encontrado alguns sujeitos pouco recomendáveis durante a guerra dedicava-se há já algum tempo à caça ao leão de uma maneira perfeitamente limpa, o que, sem um profissional para lhe dar cobertura, era uma ocupação ou actividade nada recomendável e podia ser bastante má, como manifestamente o estava a ser. Depois, ouviu-se o leão a rugir novamente e tossiu três vezes. A tosse vinha do solo e entrou directamente na tenda.
- Agora vou dormir - disse Miss Mary - Espero que não tenha tossido por estar mal. Pode constipar-se?
- Não sei, querida. Vais dormir a sério, agora?
- Já estou a dormir. Mas tens de me acordar bastante antes do amanhecer, mesmo que esteja a dormir profundamente. Prometes?
- Prometo.
Adormeceu logo de seguida e eu afastei-me recuando até ao pano da tenda e vi que dormia suavemente e quando o meu braço esquerdo me começou a doer tirei-o de sob a cabeça dela e assegurei-me que estava confortável, desviando-me então para uma pequena parte da larga cama de campanha e fiquei a ouvir o leão. Manteve-se silencioso até às três da manhã, hora em que matou uma presa. Depois disso, ouviram-se as hienas e o leão dedicou-se a comer soltando uns roncos impacientes. Não se ouviram as leoas. Uma das que eu conhecia estava para ter filhotes e não devia estar interessada nele e a outra era amiga dela. Pensei que devia estar tudo ainda bastante molhado para o seguirmos quando amanhecesse. Mas havia sempre uma possibilidade.
Muito antes do amanhecer Mwindi acordou-nos com o chá. Disse «Hodi» e deixou o chá junto à porta da tenda em cima da mesa. Fui buscar uma chávena para Mary e vesti-me fora. O tempo estava coberto e não se viam as estrelas.
Charo e Ngui chegaram no escuro para virem buscar as espingardas e os cartuchos e eu levei o meu chá para a mesa junto da fogueira que os rapazes da messe estavam a acender. Mary estava a lavar-se e a vestir-se, ainda entre o sono e o despertar. Saí para o descampado atrás do crânio de elefante e os três arbustos grandes e reparei que o solo continuava bastante húmido. Tinha secado durante a noite e estaria muito mais seco do que no dia anterior. Mas tinha ainda dúvidas que pudéssemos levar o carro mais longe do que o sítio onde supunha que o leão tivesse matado a presa e tinha a certeza de que estaria demasiado húmido a partir daí e até ao pântano.
O pântano não merecia realmente o nome que lhe dávamos. Havia realmente um pântano de papiros com bastante ’água corrente que teria uma milha e meia de largura e talvez quatro milhas de comprimento. Mas chamávamos também pântano a uma área de grandes árvores que o rodeavam. Muitas delas cresciam num terreno relativamente elevado e algumas eram lindíssimas. Formavam uma cintura de floresta em torno do verdadeiro pântano mas havia partes deste arvoredo que tinham sido de tal modo destroçadas pelos elefantes à procura de comida que se tinham tornado a bem dizer intransitáveis. Havia vários rinocerontes que viviam nesta floresta; havia quase sempre algum elefante agora e por vezes autênticas manadas. Também duas manadas de búfalos aí moravam. Os leopardos viviam na parte mais densa da floresta onde também caçavam e era ainda o refúgio do tal leão quando descia para se alimentar da caça da planície.
Esta floresta de belas árvores enormes e caídas constituía a fronteira ocidental da planície vasta e arborizada e as magníficas clareiras que eram limitadas a Norte pelos planos salobros e a região acidentada de rochas de lava que conduzia ao outro grande pântano situado entre a nossa região e os Montes Chulu. A Este ficava o deserto em miniatura que era a zona dos gerenuks e ainda mais para Este estendia-se a região das colinas acidentadas e arborizadas que mais tarde cresciam em altura em direcção aos flancos do Kilimanjaro. Não era assim tão simples mas era a ideia que dava ao olhar um mapa ou a partir do meio da planície e da zona de clareiras.
O leão tinha por hábito caçar na planície ou nas clareiras pedregosas durante a noite e depois, tendo comido, retirar-se para a cintura de árvores.
O nosso plano era localizá-lo junto da presa e persegui-lo então; a não ser que tivéssemos a sorte de o interceptar a caminho da floresta. Se já estivesse tão confiante que não sentisse a necessidade de voltar para a floresta podíamos persegui-lo desde o local da presa até ao ponto onde estivesse a descansar depois de ter ido beber.
Enquanto Mary se vestia e depois atravessava o descampado seguindo a pista para se dirigir para a cintura de árvores onde se encontrava a tenda de lona verde que servia de latrina, pus-me a pensar no leão. Tínhamos de o atacar assim que houvesse a mínima hipótese de sucesso. Mary tinha conseguido alguns bons tiros e sentia-se confiante. Mas se a possibilidade era de apenas o assustarmos ou de o enxotarmos para o capim alto ou para alguma zona difícil onde ela não conseguisse vê-lo dada a sua estatura, era melhor deixá-lo em paz até ele ganhar confiança. A minha esperança era de que chegássemos à conclusão de que tinha desaparecido depois de se ter saciado, bebido na água estagnada que ainda se mantém nas covas de lama da planície, indo dormir num dos ilhéus de mato da planície ou nos maciços de árvores das clareiras.
O carro estava pronto com Mthuka ao volante e eu tinha verificado todas as armas quando Mary regressou. Tinha já clareado, mas não havia ainda luz suficiente para disparar. As nuvens cobriam ainda as faldas baixas da Montanha e o único sinal do sol era que a luz se afirmava. Visei o crânio de elefante no visor da minha carabina, mas estava ainda demasiado escuro para disparar. Charo e Ngui mostravam-se ambos muito sérios e solenes.
- Como te sentes, gatinha? - perguntei a Mary.
- Esplêndida. Como achas que me sentia?
- Puseste o Eygene?
- Claro - disse ela - E tu?
- Também. Estamos só à espera que fique um bocado mais claro.
- Para mim está luz que chegue.
- Mas para mim não.
- Devias tratar esses olhos.
- Disse-lhes que voltávamos para o pequeno-almoço.
- Vou ficar com dores de cabeça.
- Trouxemos umas coisas. Estão numa caixa ali atrás.
- O Charo tem munições suficientes para mim?
- Pergunta-lhe.
Mary dirigiu-se a Charo, que disse que tinha «Mingi risasi».
- Não queres arregaçar a manga direita? - perguntei - Pediste-me que to lembrasse.
- Não te pedi que mo lembrasses quando estivesses de tão mau humor.
- E se te zangasses com o leão em vez de te zangares comigo?
- Não estou zangada com o leão de modo nenhum. Achas que já há luz suficiente para poderes ver agora?
- Kwenda na simba - disse eu a Mthuka. E depois a Ngui: - Segue atrás de pé à espreita.
Largámos; os pneus aderindo perfeitamente à pista agora mais seca; eu debruçado para fora com as duas botas fora da abertura da porta; o ar frio da manhã vindo da Montanha; o contacto agradável com a carabina. Levei-a umas quantas vezes ao ombro a fazer pontaria. Mesmo com os enormes óculos amarelos de concentração da luz verifiquei que não havia ainda luz suficiente para disparar com segurança. Mas tínhamos ainda vinte minutos até chegar ao sítio para onde nos dirigíamos e estava a ficar cada vez mais claro.
- A luz vai estar boa - disse eu.
- já sabia que sim - disse Mary. Voltei-me. Estava sentada com grande dignidade a mastigar pastilha elástica.
Voltámos a subir o caminho passando a pista de aterragem improvisada, Viam-se animais por todo o lado e a erva nova parecia ter crescido uma polegada desde a manhã do dia anterior. Havia flores brancas a despontar também, evidentes na toalha verdejante e tingindo de branco toda a extensão do terreno. Havia ainda alguma água nas partes fundas da pista e fiz sinal a Mthuka para se desviar para a esquerda de modo a evitar as poças de água. A erva florida era escorregadia. A luz estava a ficar cada vez melhor.
Mthuka reparou nos pássaros solidamente empoleirados nas duas árvores da direita depois das duas clareiras que se seguiam e apontou para eles. Se continuavam lá em cima podia querer dizer que o leão estava ainda ocupado com a presa. Ngui bateu na cabina do carro com a palma da mão e nós parámos. Lembro-me de pensar que era estranho que Mthuka pudesse ter visto os pássaros antes de Ngui que estava muito mais alto. Ngui saltou para terra e aproximou-se pelo flanco do carro agachado de maneira a que o corpo ficasse abaixo da linha do carro. Agarrou o meu pé e apontou para a esquerda em direcção à cintura de árvores.
O leão grande de juba escura, o corpo parecendo quase preto e a cabeça e as espáduas oscilantes, trotava no meio da erva alta.
- Estás a vê-lo? - perguntei a Mary em voz baixa.
- Estou a vê-lo.
Agora estava na erva e apenas se viam a cabeça e as espáduas; depois só a cabeça; a erva baloiçava e fechava-se à sua passagem. Tinha evidentemente ouvido o carro ou então tinha-se dirigido mais cedo para a floresta e tinha-nos avistado a chegar pela estrada.
- Não vale a pena ires para lá - disse eu a Mary.
- Isso sei eu - disse ela - Se tivéssemos vindo mais cedo tínhamos dado com ele.
- Não havia luz suficiente para disparar. Se o tivesses ferido tinha de o seguir por ali dentro.
- Tínhamos de o seguir, queres tu dizer.
- Acaba com essa treta do nós.
- Então como é que estás a pensar apanhá-lo? - Estava furiosa mas furiosa apenas por a perspectiva de passar à acção e de acabar com aquilo se ter esfumado e não tão estúpida na sua fúria para exigir que a deixassem entrar no capim mais alto do que ela atrás de um leão ferido.
- Espero que se sinta mais confiante se vir que nos afastamos sem sequer nos aproximarmos da sua presa - Depois interrompi-me para dizer: - Sobe, Ngui. Continua poli poli, Mthuka. Ao sentir Ngui a meu lado e o carro a avançar lentamente pela pista com os meus dois amigos e irmãos a observar os abutres empoleirados nas árvores, disse a Mary: - Que achas que Pop teria feito? Que tinha ido atrás dele pelo capim e se tinha enfiado na floresta levando-te para um sítio onde tu não tens altura para poder ver? Para que é que estamos aqui? Para matar o leão ou para que tu te mates?
- Olha que deixas o Charo embaraçado se te pões assim aos berros.
- Não estava aos berros.
- Às vezes devias ouvir como falas.
- Ouve - sussurrei eu.
- Não me digas ouve nem te ponhas a sussurrar. E não me digas «bem assente nos dois pés» e «atirar no momento exacto».
- Não há dúvida que às vezes és capaz de tornar a caça ao leão numa coisa adorável. Quantas pessoas é que te enganaram até agora?
- Pop e tu e não me lembro quem mais. G.C. provavelmente também é capaz disso. já que sabes tanto disto, meu general da caça ao leão que sabe tudo, diz lá porque é que os pássaros não desceram se o leão largou a presa?
- Será porque uma ou ambas as leoas ainda estão a comer ou estão deitadas perto dela?
- E será que vamos ver isso?
- Lá mais adiante da estrada e fazendo para não as assustar. Quero que se sintam confiantes.
- Começo a estar um bocado farta da frase «quero que se sintam confiantes». Já que não consegues variar a maneira de pensar podias pelo menos tentar variar de linguagem.
- Há quanto tempo andas a caçar este leão, minha querida?
- Dá-me a impressão que é desde sempre e podia tê-lo matado há três meses se tu e o G.C. me tivessem deixado. Tive uma boa ocasião e vocês não me deixaram disparar.
- Porque não sabíamos se era este leão. Podia ser um leão que tivesse vindo de Amboseli por causa da seca. G.C. tem princípios.
- Tanto um como outro têm uma consciência de delinquentes pirados da selva - disse Miss Mary - Quando é que vemos as leoas?
- A quarenta e cinco graus para a tua direita a cerca de trezentos metros mais adiante nesta pista.
- E já agora a força do vento?
- Aproximadamente força dois - disse eu - Querida, estás a ficar um bocado pirada do leão.
- E haverá alguém com mais direito de o estar do que eu? Claro que estou. É que eu levo os leões a sério.
- Também eu, podes crer. E acho que os levo tão a sério como tu ainda que não fale nisso.
- Passas o tempo a falar nisso. Podes estar descansado. Mas tu e o G.C. não passam de uma parelha de assassinos a abarrotar de princípios. A proferir condenações à morte e a executar as sentenças. E o G.C. tem uma consciência muito melhor do que tu e o pessoal dele é mais disciplinado.
Dei um toque na perna a Mthuka para ele parar o carro. «Ouve, minha querida. Ali tens o que resta da zebra e lá estão as duas leoas. Fazemos as pazes?»
- Nunca estivemos em guerra - disse ela - Tu baralhas sempre as coisas. Podes passar-me os binóculos, por favor?
Passei-lhe os óptimos binóculos e ela observou as duas leoas. Uma era tão cheia com os filhotes que parecia um leão sem juba. A outra era possivelmente uma filha crescida; ou talvez apenas uma amiga dedicada. Estavam as duas deitadas no abrigo de uma maciço de arbustos; uma, tranquila, soberana, com um ar já maternal, as queixadas amareladas manchadas de sangue; a outra, jovem e ágil e igualmente com manchas escuras nos queixos. Não restava grande coisa da zebra mas continuavam a proteger a sua propriedade. Não me seria possível dizer pelos sons que tinha ouvido na noite anterior se tinham sido elas a matar para o leão ou se tinha sido o macho a matar e elas se tinham reunido a ele.
As aves solidamente empoleiradas em dois arbustos e na árvore grande numa das ilhotas de arvoredo deviam somar uma centena ou mais. Os abutres eram pesados, corcovados e prontos a atirar-se mas as leoas estavam demasiado perto dos quartos esfolados e do cachaço da zebra que jazia no solo. Avistei um chacal, gracioso e elegante como urna raposa, na orla de um dos maciços de mato e depois surgiu um outro. Não havia hienas à vista.
- Não podemos assustá-las - disse eu - Na minha opinião não nos devemos aproximar de modo nenhum.
Mary estava agora mais branda. Ver um leão deixava-a sempre emocionada e entusiasmada, e por isso respondeu: «Achas que foram elas a matar ou que foi ele?»
- Acho que ele matou c comeu o que lhe apeteceu e que elas chegaram muito depois.
- Os pássaros virão à noite?
- Não.
- Está ali uma caterva deles. Olha aqueles a esticarem as asas para as secar como fazem os bútios na nossa terra.
- São tremendamente feios para serem Caça Real e quando apanham a peste bovina ou outras doenças do gado devem propagá-las imenso com os excrementos. Os insectos, as hienas e os chacais bastariam para limpar todas as presas abatidas aqui e as hienas podem matar no local as que estão doentes ou envelhecidas sem contaminar o resto da região.
Ao ver as leoas no seu abrigo e os abutres francamente horríveis agrupados em tão grande número nas árvores desatei a falar sem parar; isso e o facto de termos feito as pazes, assim como o pensar que não teria de entregar a minha adorada Miss Mary ao leão até à próxima oportunidade. E por outro lado detestava abutres e achava que a sua verdadeira utilidade como necrófagos tinha sido grandemente exagerada. Alguém decretara que eles eram os grandes tratadores de lixo da África e tinham-nos erigido em Caça Real, sem que se pudesse reduzir a sua população e falar no seu papel como propagadores de doenças era considerado uma heresia contra a palavra mágica Caça Real. Os wakamba achavam isso muito engraçado e chamávamos-lhes sempre os pássaros do Rei.
Não tinham um ar nada engraçado neste momento, no entanto, obscenamente empoleirados por cima dos despojos da zebra e quando a leoa grande se levantou, bocejou e avançou para voltar a comer, dois abutres enormes deixaram-se tombar assim que ela chegou junto da carcaça. A leoa mais nova agitou a cauda e correu para eles, obrigando-os a levantar-se precipitadamente num voo pesado enquanto ela os ameaçava com a pata com os gestos de uma gatinha. Deitou-se. Depois ao lado da leoa grande começando a comer e os pássaros ficaram nas árvores, com os mais próximos em risco de perderem o equilíbrio tal era a fome.
Não seria preciso muito tempo para que as leoas acabassem com o que restava da zebra e eu disse a Mary que se calhar era melhor deixá-las a comer e subirmos a estrada como quem não as viu. Mais adiante encontrava-se um pequeno grupo de zebras e pouco depois grius e muitas mais zebras.
- Adoro observá-las - disse Mary - Mas se achas que é melhor, podemos continuar para vermos como estão os chãos salobros e talvez ver os búfalos. Prosseguimos pois até ao limite dos terrenos planos salobros e não avistámos sinais de búfalo nem búfalo nenhum. Os planos estavam ainda demasiado escorregadios para um carro, assim como o solo para Leste. Deparámos’ com as pegadas das duas leoas na borda dos terrenos salobros que se encaminhavam para o sítio onde tinham abatido a presa. Estavam ainda frescas e era impossível adivinhar quando é que tinham atacado. Mas estava convencido que tinha sido o leão a matar e Ngui e Charo concordavam comigo, «Talvez que se voltarmos pelo mesmo caminho por onde viemos ele se habitue a ver o carro - disse Mary - Ainda não estou com dores de cabeça mas não , me importava de tomar o pequeno-almoço.»
Estava à espera que Mary fizesse tal sugestão.
- Se não dermos nenhum tiro... - detive-me porque ia a dizer que isso o tornaria confiante.
Talvez ele pense que é apenas um carro que vai para cima e vem para baixo - concluiu Mary por mim - Vamos tomar um belo pequeno-almoço e eu escrevo todas as cartas que tenho para mandar e vamo-nos portar bem como dois gatinhos cheios de paciência.
- Tu és uma boa gatinha.
- Vamos voltar para o acampamento como se fôssemos turistas a admirar os terrenos cheios de erva nova e a pensar no bom pequeno-almoço que vamos saborear.
Mas quando chegámos ao acampamento para o pequeno-almoço tínhamos à nossa espera o jovem polícia junto ao seu Land Rover salpicado de lama. O carro estava debaixo de uma árvore e os dois askaris tinham-se afastado para junto da vedação. Saiu do carro assim que chegámos com o rosto juvenil marcado pela preocupação e o peso das responsabilidades.
- Bom dia, bwana - disse ele - Bom dia, memsahib. A fazer uma ronda de inspecção matinal, pelo que vejo.
- Vai um pequeno-almoço? - perguntei.
- Se não incomodo. Viu qualquer coisa de interessante, governador?
- Fui só dar uma vista de olhos aos animais. Novidades da Boma?
- Foram apanhados, governador. Deitaram-lhes a mão no lado de lá. A Norte de Namanga. Já pode mandar de volta os seus homens.
- Uma operação em grande?
- Ainda não sei pormenores.
- Foi pena não termos tido acção por aqui.
Miss Mary lançou-me um olhar de alerta. Não estava muito contente por ter o jovem polícia para o pequeno-almoço mas sabia que era um rapaz só e embora não tivesse paciência com os parvos sentia-se de bom humor até termos avistado o polícia extenuado no seu veículo coberto de lama.
- Tinha sido muito importante para mim. Governador, tínhamos um plano a bem dizer perfeito. Talvez fosse mesmo perfeito. A única coisa com que estava preocupado era aqui a memsahibzinha. Desculpe-me dizer isto, minha senhora, mas não era coisa para mulheres.
- Eu não tinha nada a ver com isso - disse Mary - Quer um bocado de rim com bacon?
- Ai isso é que tinha - disse ele - Também fazia parte da ratoeira. Falo disso no meu relatório. Talvez não seja tão importante como uma referência nos noticiários. Mas sempre é um ponto no activo de qualquer um. Um dia os que lutaram no Quénia hão-de sentir-se muito orgulhosos.
- Descobri que depois das guerras as pessoas tornam-se normalmente mas é nuns grandes chatos - disse Miss Mary.
- Só os que não se bateram - disse o polícia - Os homens de combate e, com a sua licença, as mulheres de combate têm um código.
- Bebe uma cerveja - disse eu - Tens alguma ideia de quando voltamos a combater?
O senhor será o primeiro a ser informado, governador.
É muito simpático connosco - disse eu - Mas estou convencido que há glória que chegue para todos.
- Lá isso é verdade - disse o jovem polícia - De certo modo, governador, somos os últimos construtores de Império. De certo modo somos como Rhodes e o Dr. Livingstone.
- De certo modo - disse eu.
à tarde fui até à shamba. Tinha-se posto frio depois do sol ficar coberto pelas nuvens da Montanha e um vento forte soprar dos altos onde a chuva que se tinha abatido sobre nós se devia ter tornado em neve. A shamba ficava a uns seiscentos metros de altitude e a Montanha tinha mais de cinco mil e oitocentos metros. Os seus inesperados ventos gélidos, depois dos grandes nevões, eram uma dura punição para quem vivia nos planaltos. Mais acima nos contrafortes, as casas - não lhe chamávamos cubatas - eram construídas nas dobras das colinas de modo a ficarem abrigadas do vento. Mas esta shamba apanhava o vento em cheio e nessa tarde estava um frio cortante com o cheiro dos excrementos ainda não completamente gelados e todos os pássaros e animais tinham fugido do vento.
O homem a quem Miss Mary se referia como sendo meu sogro sofria de uma inflamação no peito e de dores reumáticas nas costas. Dei-lhe os medicamentos e depois dei-lhe uma fricção com linimento Sloan. Nenhum de nós, os kamba, o considerávamos como pai da filha, mas como o era na prática, dadas as leis e costumes da tribo, sentia que lhe devia respeito. Tratámo-lo abrigados pela casa, com a filha a observar. Trazia o filho da irmã na anca e usava a última camisola boa de lã e um boné de pescador que um amigo meu lhe tinha dado. Esse amigo tinha mandado bordar as minhas iniciais na parte da frente do boné e o pormenor tinha uma certa importância para todos nós.
Até ela ter decidido que o queria, as iniciais tinham sido sempre uma questão embaraçosa. Por baixo da camisola de lã trazia o último vestido tantas vezes lavado comprado em Laitokitok. Seria infringir a etiqueta falar com ela enquanto tivesse nos braços o filho da irmã e, rigorosamente, não devia observar o tratamento do pai. Resolveu a questão mantendo sempre os olhos baixos.
O homem que era conhecido por um nome que queria dizer potencial sogro não se mostrava particularmente corajoso ao sujeitar-se ao tormento do linimento Sloan. Ngui, que sabia muito bem como era o Sloan, e não tinha a mínima consideração pelos homens desta shamba, queria que eu o friccionasse com força e a certa altura chamou-me a atenção para umas gotinhas que tinham caído fora do sítio. Mthuka com as suas belas cicatrizes tribais nas duas faces sentia-se absolutamente feliz na sua surdez ao observar o que ele considerava um kamba sem préstimo a sofrer por uma boa causa. Eu observava uma ética rigorosa com o Sloan para grande desapontamento de todos incluindo a filha e a cena perdeu todo o interesse.
- Jambo, tu - disse eu para a filha quando partimos e ela baixando os olhos e com o peito levantado respondeu: «No hay remedio.»
Entrámos no carro, sem acenos de despedida de nenhum dos lados, com o frio a abreviar as formalidades. Era demais para ambos e todos nos sentimos mal ao ver uma shamba tão miserável.
- Ngui, - perguntei - Como é que pode haver homens tão desgraçados e mulheres tão maravilhosas nesta shamba?
- Passaram por esta shamba homens muito importantes - disse Ngui Em tempos era esta a estrada para o Sul até haver a estrada nova - Estava furioso com os homens da shamba por serem kamba inseparáveis.
- Achas que devíamos tomar esta shamba?
- Acho - disse ele - O senhor, eu, Mthuka e os guerreiros mais novos. Começávamos a internar-nos no mundo africano da irrealidade que é defendido e fortificado por uma realidade que ultrapassa qualquer realidade existente. Não era um mundo de evasão ou um mundo para devaneios. Era um mundo real impiedoso feito da irrealidade do real. Se havia rinocerontes, e nós víamo-los todos os dias embora fosse manifestamente impossível existir um tal animal, então tudo era possível. Se Ngui e eu podíamos falar com um rinoceronte, que já em si era um animal inconcebível, na sua própria língua suficientemente bem para que nos respondesse e se eu podia amaldiçoá-lo e insultá-lo em espanhol até o fazer sentir-se vexado e desandar, então a irrealidade era uma coisa sensata e lógica ao lado da realidade. O espanhol era olhado como sendo a minha língua tribal e de Mary e era considerado como a língua franca de Cuba de onde nós vínhamos. Sabia-se que tínhamos também uma língua tribal íntima e secreta. Não nos consideravam como tendo o que quer que fosse de comum com os britânicos a não ser a cor da pele e uma mútua tolerância. Quando Mayito Menocal esteve connosco era alvo de grande admiração devido à sua voz extremamente profunda, o cheiro que tinha, a sua cortesia e por ter chegado a África a falar espanhol e swahili., Respeitavam também as suas cicatrizes e como falava o swahili com um forte sotaque de Camaguey e tinha uma aparência de um verdadeiro touro, era na verdade quase reverenciado.
Eu tinha explicado que ele era filho do Rei da terra de onde vinha, no tempo em que lá havia grandes reis, e tinha descrito os milhares de hectares das terras que possuía e como eram, o número de cabeças de gado que sabia que ele possuía e as quantidades de açúcar que produzia. Como o açúcar era o alimento mais procurado pelos wakamba a seguir à carne e uma vez que Pop me tinha confirmado dizendo a Keiti que era tudo verdade e que Mayito era manifestamente um criador de gado autêntico que sabia exactamente do que estava falar e que, quando falava nisso, o fazia numa voz parecidíssima com a do leão e nunca se mostrara injusto, grosseiro, insolente ou fanfarrão, era objecto de uma sincera dedicação. Durante todo o tempo em que esteve em África, só um vez contei uma mentira acerca de Mayito. Foi a propósito das mulheres que tinha.
Mwindi, que era um genuíno admirador de Mayito, perguntou-me, do pé para a mão, quantas mulheres tinha Mayito. Todos andavam curiosos sobre isso e não era o tipo de estatística que poderiam arrancar a Pop. Mwindi tinha ar de estar num dos seus dias não e via-se que tinha havido alguma discussão. Não sabia que partido tinha ele tirado mas era evidentemente uma questão que estava encarregado de tirar a limpo.
Reflecti na pergunta e no que ela tinha de estranho e disse: «No país dele ninguém as desejaria Contar.»
- Ndio - disse Mwindi. Era a linguagem própria de um mzee.
Na realidade May1to tinha só uma mulher. Era lindíssima. Mwindi foi-se embora mais triste do que nunca.
Ora nesse dia, ao voltarmos da shamba, Ngui e eu tínhamo-nos lançado numa daquelas típicas ocupações dos homens, a planear operações que nunca viriam a realizar-se.
- Muito bem - disse eu - Vamos tomá-la.
- Óptimo.
- Quem fica com a Debba?
- Ela é tua. É tua namorada.
- Óptimo. E depois de a tomarmos como é que a aguentamos se eles mandarem uma companhia de K.A.R.?
- Pedes tropas a Mayito.
- Mayito está agora em Hong-Kong. Na China.
- Temos um avião.
- Não serve. Que fazemos sem o Mayito?
- Vamos para a Montanha.
- Frio demais. Um frio do caraças agora. Então perdemos a shamba.
- A guerra é uma merda - disse Ngui.
- Completamente de acordo - disse eu. Estávamos ambos contentes agora - Não. Tomamos a shamba aos poucos. Cada dia conta. Agora temos aquilo que os velhos pensam que terão quando morrerem. Temos boa caça; comemos boa carne; bebemos à grande quando a memsahib matar o leão dela; e fazemos aqui a Terra das Caçadas Eternas enquanto vivemos.
Mthuka era demasiado surdo para ouvir a nossa conversa. Era como um motor que funciona na perfeição mas que tem os contadores avariados. Normalmente estas coisas só acontecem em sonhos, mas Mthuka tinha a vista mais apurada de todos nós e era o melhor motorista da selva, e tinha, se tal coisa existe, uma percepção extra-sensorial absoluta. Quando subíamos para o acampamento e parámos o carro, Ngui e eu sabíamos que não tinha ouvido uma palavra do que tínhamos estado a dizer, mas ele disse: «É melhor, muito, muito melhor.»
Havia compaixão e bondade nos seus olhos e eu percebi que era um homem muito melhor e muito mais generoso do que eu alguma vez poderia ser. Estendeu-me a caixa de rapé. Era um tabaco a bem dizer normal sem nenhuma daquelas coisas bizarras que Arap Meina lhe misturava, mas sabia muito bem e eu pus uma boa pitada de três dedos por baixo do lábio superior.
Nenhum de nós tinha bebido nada. Mthuka mantinha-se sempre como um grou no tempo frio, com os ombros corcovados. O céu estava carregado, as nuvens rasavam a planície e quando lhe devolvi a tabaqueira, ele disse: «Wakamba tu.»
Ambos o sabíamos e nada se podia fazer; cobriu o carro e eu encaminhei-me para a tenda.
- Que tal estava a shamba? - perguntou Mary.
- Bem. Um pouco frio e duro.
- Há alguma coisa que eu possa fazer por alguém de lá?
Minha boa e adorada gatinha, pensei e disse: «Não. Acho que está tudo bem. Vou levar uma farmácia caseira à Viúva e vou-lhe ensinar a utilizá-la. É horrível não tratarem dos olhos das crianças quando são wakambas.
- Sejam wakambas ou não - disse Miss Mary.
- Vou falar com Arap Meina. Importas-te de dizer a Mwindi para me chamar quando o banho estiver pronto?
Arap Meina não achava que o leão fosse caçar esta noite. Disse-lhe que me tinha parecido bastante pesado quando nessa manhã se dirigia para a floresta. Também duvidava que as leoas fizessem alguma vítima essa noite embora fosse: possível e nesse caso o leão iria juntar-se a elas. Perguntei-lhe se achava que eu devia apanhar uma presa e atá-la ou cobri-la com folhagem para tentar atrair o leão. Ele respondeu que o leão era demasiado esperto para isso.
Uma grande parte do tempo em África passa-se a conversar. Nos sítio onde as pessoas são iletradas é essa a regra. Assim que começa a caçada a bem dizer não se pronuncia mais nenhuma palavra. Toda a gente se entende quando o tempo está quente a língua fica-nos seca na boca. Mas ao plane a caça ao fim do dia fala-se normalmente muito e é raro que as coisas saia como tinham sido pensadas; sobretudo se o plano for muito elaborado.
Mais tarde, quando estávamos ambos deitados o leão provou-nos a todos como estávamos enganados. Ouvimo-lo rugir para Norte do terreno onde tínhamos feito a pista de aterragem. Depois afastou-se rugindo por várias vezes. Depois ouviu-se outro leão muito menos impressionante rugiu umas quantas vezes. Em seguida ficou tudo calado durante muito tempo. Depois disso ouvimos as hienas e pelo modo como se chamavam e as risadas trémulas e agudas que soltavam fiquei convencido que o leão abatera uma presa. Depois ouviu-se o ruído dos leões que se batiam. Quando tudo serenou voltaram a ouvir-se os uivos e as risadas das hienas.
- O Arap, Meina e tu tinham dito que íamos ter uma noite sossegada disse Mary muito ensonada.
- Alguém matou alguma coisa - disse eu.
- Tu e o Arap Meina podem discutir o caso amanhã de manhã. Agora tenho de dormir para acordar cedo. Quero dormir bem para não estar de mau humor.
Sentei-me diante dos ovos com bacon, a torrada, o café e o doce. Mary ia já na segunda chávena de café e parecia bastante contente. «Vamos mesmo conseguir alguma coisa?»
- Vamos.
- Mas ele leva-nos sempre à certa todas as manhãs e é capaz de continuar assim indefinidamente.
Nessa tarde depois do almoço fizemos um controlo dos babuínos. Estávamos encarregados de manter a população dos babuínos baixa para proteger as shambas, mas tínhamos estado a fazer isso de um modo bastante absurdo, tentando surpreender os bandos em campo aberto e disparar sobre eles quando fugissem para o arvoredo à procura de refúgio. Para não afligir nem irritar os amigos dos babuínos não me vou alargar em pormenores. Não fomos atacados por estas feras temíveis e os seus formidáveis caninos estavam já inertes pela morte quando cheguei junto deles. Quando voltámos para o acampamento com os quatro corpos repelentes, C.C. já tinha chegado. Estava coberto de lama e parecia cansado mas feliz.
- Boa tarde, general - disse ele. Olhou para a parte de trás do carro de caça e sorriu - Com que então a babuinar. Dois pares. Boa caçada. Vai mandá-los empalhar pelo Roland Ward?
- Estava a pensar antes num número em grupo, G.C., consigo’ e eu no meio.
- Como está, Papá, e como vai Miss Mary?
- Ela não está cá?
- Não. Disseram-me que tinha ido dar uma volta com o Charo.
- Está boa. Tem andado um bocado com o leão na cabeça. Mas o morá está bom.
- O meu é que está em baixo - disse G.C. - Vamos tomar um copo?
- Adoro um copo depois de babuinar.
- Estamos bons para irmos babuinar um bom bocado e em grande disse G.C. Tirou a boina, enfiou a mão no bolso da túnica e tirou um envelope amarelado - Lê isto e fixa de memória o nosso papel.
Chamou Nguili para nos trazer as bebidas e eu pus-me a ler as instruções da operação.
- Parece-me lógico - disse eu. Li-o saltando, provisoriamente, algumas partes que não tinham nada a ver connosco e que tinha que verificar no Mapa, para ver em que sítio entrávamos em cena.
- É lógico, sim - disse G.C. - Não e por isso que o meu moral está em baixo. Isso é o que me levanta o moral.
- Que é que se passa com o moral? Temos problemas de moral?
- Não. Problemas de conduta.
- Deves ter sido uma maravilhosa criança problemática. Tens mais desses danados problemas do que uma personagem de Henry James.
- Digamos do que Harrilet - disse G.C. - E não era nada uma criança problemática. Era um menino muito feliz e bonito, só um bocadinho gorducho.
- Ainda hoje ao meio-dia a Mary estava morta que voltasses.
- Linda menina - disse G.C.
Vimo-los então a chegar através da erva nova de um verde vivo do capinzal; de estatura idêntica, Charo tão preto como alguém podia ser, usando o velho turbante sujo e um casaco azul, Mary de um loiro luminoso brilhando ao sol, com as roupas de caça verde destacando-se em mais escuro do verde vivo do prado. Falavam animadamente e Charo carregava a carabina de Mary e o enorme livro de aves. juntos, davam sempre a impressão de fazer parte de um número do Cirque Méctrano.
G.C. surgiu em torso nu por se ter estado a lavar. A sua brancura contrastava com o rosa acastanhado do rosto e do pescoço.
- Olhem para eles - disse - Que belo par.
- Imagina que davas com eles de cara sem nunca os teres visto antes.
- A erva vai-lhes dar acima da cabeça dentro de uma semana. Já quase que lhes dá pelos joelhos.
- Nada de criticar as ervas. Ainda só tem três dias.
- Olá, Miss Mary - gritou G.C. - Que andaram os dois a fazer? Mary endireitou-se toda orgulhosa.
- Matei um griu.
- E quem lhe deu autorização para o fazer?
- O Charo. Foi o Charo que me disse para o matar. Tinha uma pata partida. Realmente em bastante mau estado.
Charo passou o livro enorme para a outra mão e deixou o braço pendente para mostrar como estava a pata.
- Pensámos que ias precisar de um isco - disse Mary - Precisavas, não precisavas? Está junto à estrada. Ouvimo-lo chegar depois disso, G.C. Mas não o podíamos ver.
- Fizeram muito bem em o matar e íamos precisar de um isco, sim. Mas que é isso de ir à caça sozinha?
- Não fui. Andava a identificar pássaros e fiz uma lista deles. Charo não me levava para nenhum sítio onde houvesse bichos ferozes. Depois vi o griu e ele estava com um ar tão triste e a pata parecia em tão mau estado com o osso a sair. O Charo disse para o matar e foi o que eu fiz.
- Memsahib piga. Kufa!
- Acertei-lhe mesmo atrás da orelha.
- Piga! Kufa! - disse Charo e ele e Miss Mary fitaram-se com orgulho.
- É a primeira vez que assumo a responsabilidade de matar sem o ter a si, ao Papá ou ao Pop a meu lado.
- Posso dar-lhe um beijo, Miss Mary? - perguntou G.C.
- Claro que pode. Mas estou toda suada.
Trocaram um beijo e depois beijámo-nos nós e Mary disse: «Também gostava de dar um beijo ao Charo mas bem sei que não devo. Sabias que os impalas se puseram a ladrar para mim como se fossem cães. Ninguém tem medo de mim e do Charo.»
Apertou a mão a Charo e ele levou o livro e a carabina dela para dentro da tenda. «É melhor ir-me lavar também. Obrigado por ter sido tão compreensivo com o abate do gnu.»
- Vamos mandar o camião buscá-lo e pô-lo onde deve ser.
Dirigi-me para a nossa tenda e G.C. foi para a dele a fim de se vestir. Mary estava a lavar-se com o sabão de safarí, a mudar de camisa e a cheirar a camisa lavada de fresco com um sabão diferente e secada ao sol. Ambos gostávamos de ver o outro a lavar-se mas eu nunca a olhava quando C.C. estava por perto para evitar que ele se sentisse embaraçado. Estava sentado numa cadeira em frente da tenda a ler quando ela se aproximou e me passou os braços em torno do pescoço.
- Sentes-te bem, querida?
- Não - disse ela - Estava tão orgulhosa, e o Charo estava tão orgulhoso e tinha sido um golpe seco como o de uma pelota basca a bater na parede do frontão. Nem sequer ouviu a detonação e o Charo e eu trocámos um aperto de mão. Sabes como é quando fazemos urna coisa sozinhos pela primeira vez assumindo toda a responsabilidade. Tu e o G.C. sabem como é e foi por isso que ele me deu um beijo.
- Qualquer pessoa te dá um beijo em qualquer altura.
- Talvez se a mim também me apetecer. Ou quando eu os incito. Mas desta vez não foi isso.
- Porque é que te sentes mal então, querida?
- Bem sabes. Não finjas que não sabes.
- Não sei, não - menti eu.
- Apontei mesmo para o meio da espádua. Era enorme e preto e brilhante e eu estava a uns vinte metros dele. Ele estava meio voltado para mim e a olhar para nós. Podia ver-lhe os olhos e pareceram-me imensamente tristes. Parecia que ia desatar a chorar. Parecia mais triste do que tudo o que até hoje vi e a pata tinha um ar horrível. Querido, tinha uma cabeça tão comprida e triste. Não tenho de contar isso ao G.C., pois não?
- Não.
- Nem tinha de te dizer a ti. Mas vamos os dois caçar o leão e agora o raio da minha autoconfiança foi-se de novo.
- Vais conseguir um tiro magnífico. Tenho orgulho de estar contigo para o leão.
- O pior é que também sou capaz de atirar como deve ser. Tu sabes bem.
- Lembro-me bem dos belos tiros que tu deste. E todos os momentos maravilhosos em que atiravas melhor do que qualquer outro no Escondido.
- Estás a dizer isso para eu recuperar a confiança. Mas tenho tão pouco tempo.
- Hás-de recuperar e não vamos dizer nada ao G.C.
Mandámos o camião buscar o griu. Quando regressou, eu e G.C. subimos para lhe dar uma olhadela. Nunca são animais bonitos depois de mortos. jazia de pança inchada e empoeirado, toda a sua soberba desfeita e os cornos cinzentos e banais. «A Mary deu-lhe um tiro magnífico» - disse C.C. Os olhos do griu estavam vidrados e a língua saída. Também ela estava cheia de poeira e o tiro tinha-o atingido atrás da orelha mesmo na base do crânio.
- Diz lá, onde achas que ela estava na verdade?
- Atirou-lhe apenas a vinte metros. Tinha o direito de lhe atirar a essa distância se assim o quisesse.
- Iria pensar que ela visou a espádua - disse G.C.
Não disse nada. Não valia a pena tentar enganá-lo e se lhe mentisse G.C. nunca mo perdoaria.
- E essa pata? - perguntei.
- Alguém que andou à caça de noite com um carro. Ou outra coisa qualquer.
- Há quanto tempo podia ter sido?
- Dois dias. Está cheia de vermes.
- Então foi alguém lá de cima. Não ouvimos carros à noite. De qualquer maneira desceu até cá com a pata assim. De certeza que não ia poder voltar a subir.
- Não és tu nem sou eu - disse G.C. - É um griu.
Tínhamos parado junto da árvore que ia servir para prender o isco e todos saímos do carro. G.C. e eu dirigimo-nos ao camião onde ainda se encontrava o griu e ele explicou ao chefe dos pisteiros e aos outros que se tinham aproximado onde é que queríamos que atassem o isco. Era só preciso arrastá-lo da estrada até à árvore e depois pendurá-lo fora do alcance das hienas. Os leões conseguiam deitá-lo abaixo se acaso estivessem interessados. Tinha de ser arrastado para mais longe do que o sítio onde tinham matado a presa na noite passada. Deviam ir lá pô-lo e voltar o mais depressa possível ao acampamento. O meu pessoal tinha pendurado todos os iscos com babuínos, e eu disse a Mthuka que lavasse o carro muito bem. Ele respondeu que tinha parado no riacho e já o tinha lavado.
Fomos todos tomar banho. Mary tomou o dela primeiro e eu ajudei-a a secar-se com uma grande toalha e levei-lhe as botas de lona contra os mosquitos. Vestiu um roupão por cima do pijama e saiu para junto da fogueira para tomar uma bebida com G.C. antes de começarem a cozinhar. Fiz-lhes companhia até que Mwindi saiu da tenda e disse: «Bathi bwana», e então levei a minha bebida para a tenda, despi-me e estendi-me na banheira de tela, ensaboei-me e deixei-me relaxar na água quente.
- Que é que os antigos dizem que o leão vai fazer hoje à noite? - perguntei a Mwindi, que dobrava a minha roupa e preparava o meu pijama, o roupão e as botas contra os mosquitos.
- Keiti diz que o leão da memsahib talvez coma o isco e talvez não. O que diz o patrão?
- O mesmo que Keiti.
- Keiti diz que patrão fez mganga com o leão.
- Não. Só um bom remedinho para saber quando é que ele morre.
- E quando morre ele?
- Dentro de três dias. Não consegui ver em que dia.
- Mzuri. Talvez morra amanhã.
- Não me parece. Mas pode ser que sim.
- Keiti também não acha.
- Quando é que ele acha?
- Dentro de três dias.
- Mzuri. Passa-me a toalha, faz favor.
- A toalha mesmo aí ao lado da mão. Se queres eu dou.
- Sorry - disse eu. Não há palavra em swahili para dizer desculpa.,
- Hapana sorry. Só disse onde estava. Queres que esfregue as costas?:
- Não, obrigado.
- Sentes-te bem?
- Sinto. Porquê?
- Hapana porquê. Perguntei só para saber.
- Sinto-me muito bem.
Levantei-me e saí da banheira e comecei a enxugar-me. Queria dizer que me sentia bem e relaxado, um pouco ensonado, que não me apetecia muito falar e que tinha preferido carne fresca com spaghetti mas que não me tinha apetecido matar nada e que estava preocupado com os meus três filhos por diferentes razões e que estava preocupado com a shamba e que estava um bocado preocupado com G.C. e bastante preocupado com Mary e que eu era um bom charlatão como bom feiticeiro mas não mais charlatão do que os outros e que desejava que o Sr. Singh não se metesse em sarilhos e que esperava que a missão que nos tinha sido confiada a partir do dia de Natal corresse bem e que ainda tinha mais de 220 balas e que Simenon havia de escrever menos e melhores livros. Não sei de que é que Pop falava com Keiti quando tomava banho mas sabia que Mwindi queria ser amável comigo e eu também. Mas nessa noite estava cansado sem nenhuma razão especial e ele sabia isso e estava preocupado.
- Pergunta-me palavras wakamba - disse ele.
E pus-me então a perguntar-lhe palavras walçamba procurando memorizá-las e depois agradeci-lhe e saí para junto da fogueira vestindo um velho pijama do Idaho, com as pernas enfiadas num par de botas quentes contra os mosquitos feitas em Hong Kong e envergando um roupão de lã de Pendleton, Oregon, e bebi um whisky-soda preparado com uma garrafa de whisky que o Sr. Singh me tinha oferecido como presente de Natal e água fervida do riacho que corria da Montanha animada por um cartucho de sifão fabricado em Nairobi.
Sou um estranho aqui, pensei. Mas o whisky disse não e era a hora do dia em que o whisky tinha razão. O whisky tanto pode ter razão como não ter e dissera que eu não era um estranho e eu compreendi que estava certo a esta hora da noite. Seja como for, as minhas botas voltaram a casa porque eram de pele de avestruz e lembrei-me do sítio onde tinha encontrado a pele num sapateiro de Hong Kong. Não, não tinha sido eu a encontrar a pele. Tinha sido outra pessoa e então pus-me a pensar na pessoa que tinha encontrado a pele e nesses tempos e então pensei em diversas mulheres e como seriam em África e como tinha sido feliz em conhecer mulheres maravilhosas que gostavam de África. Tinha conhecido algumas francamente horríveis que apenas tinham ido lá para terem estado lá e tinha conhecido algumas verdadeiras cabras e várias alcoólicas para quem a África não tinha passado de mais um lugar para uma cabronice mais completa ou um mais completo alcoolismo.
A África possuía-as e mudava-as a todas de um modo ou outro. Se não conseguiam mudar, detestavam-na.
Sentia-me portanto muito contente por ter C.C. de volta no acampamento e Mary também. Ele estava contente por ter voltado porque nos tínhamos tornado numa família e tínhamos sempre saudades uns dos outros quando alguém partia. G.C. gostava do seu trabalho e acreditava nele e na sua importância quase com fanatismo. Gostava da caça e queria ocupar-se dela e protegê-la e isso a bem dizer era a única coisa em que acreditava, acho eu, a não ser um rigoroso e complicado sistema de ética.
Era um pouco mais novo do que o meu filho mais velho e se eu tivesse ido para Addis Abeba passar um ano a escrever nos anos trinta como tinha planeado, tê-lo-ia conhecido com doze anos de idade, pois que o seu melhor amigo nessa altura era filho das pessoas com quem ia habitar. Mas acabara por não ir porque as tropas de Mussolini se tinham antecipado e o amigo com quem eu ia ficar tinha mudado para outro posto diplomático e foi assim que perdi a ocasião de conhecer G.C. quando ele tinha doze anos. Quando o vim a conhecer, já ele tinha às costas uma guerra longa, difícil e ingrata mais o abandono de um Protectorado Britânico onde tinha iniciado uma bela carreira. Tinha comandado tropas irregulares, que é, se quisermos ser honestos, o modo menos gratificante de fazer uma guerra. Se uma operação é levada a cabo de modo tão perfeito que quase não se tem baixas e se infligem pesa- das perdas ao inimigo o Quartel General considera-a um massacre injustificado e condenável. Se se é forçado a combater em condições desfavoráveis e enfrentando grandes obstáculos e se vence mas à custa de uma carnificina o comentário é: «Morreram muitos homens».
Não há saída para um homem honesto que comanda tropas irregulares a não ser estar sempre a arranjar sarilhos. É duvidoso que um soldado verdadeiramente honesto e talentoso possa esperar outra coisa senão ser aniquilado.
Na altura em que encontrei G.C., já ele estava bastante lançado numa carreira diferente noutra colónia britânica. Nunca se mostrou ressentido e nunca olhava para trás. Com a ajuda do spaghetti e do vinho foi-nos contando que um novo funcionário recentemente chegado lhe tinha censurado uma palavra menos própria que tinha chegado aos ouvidos da esposa do tal funcionário. Uma coisa que me revoltava era que G.C. tivesse de aturar gente desta. Os pukka sahibs de outros tempos foram muitas vezes objecto de histórias e de caricaturas. Mas ninguém se tinha ocupado destas novas versões a não ser em certa medida Waugh no final de Black Mischiefe Orwell de uma ponta à outra de Burmese Days. Desejei que Orwell fosse ainda vivo e contei a G.C. a última vez que o tinha encontrado em Paris, em 1945, depois da Batalha de Bulge, quando ele envergando umas roupas vagamente civis tinha entrado no quarto 117 do Ritz onde ainda existia um pequeno arsenal para pedir uma pistola porque «eles» o andavam a perseguir. Queria uma pistola pequena que se pudesse esconder facilmente e eu arranjei-lhe uma e preveni-o que se atingisse alguém com ela a vítima acabaria por morrer mas era capaz de levar algum tempo. Mas uma pistola era uma pistola e ele precisava dela mais como talismã do que como arma, acho eu.
Era um homem descarnado e parecia andar em baixo e perguntei-lhe se não queria ficar para comer qualquer coisa. Mas tinha de ir. Disse-lhe que lhe podia dar dois tipos para o protegerem se «eles» o andavam a perseguir. Que os meus rapazes conheciam os «eles» do sítio que nunca o iriam aborrecer nem se meter na vida dele. Ele disse que não era preciso, que a pistola bastava. Trocámos notícias sobre alguns amigos comuns e ele foi-se embora. Mandei dois rapazes para o apanharem à porta e o seguirem a ver se andava alguém atrás dele. No dia seguinte o relatório deles era: «Papá, não há nada ninguém atrás dele. É um tipo muito fixe e conhece Paris muito bem. Interrogámos o irmão de fulano e ele disse-nos que ninguém o persegue. Está em contacto com a Embaixada Britânica mas não é um operacional. Isto são só boatos. Quer os pormenores dos movimentos dele?»
- Não. Tem-se divertido?
- Tem, Papá.
- Ainda bem. Não nos vamos preocupar com ele. já tem a pistola.
- Que não presta para nada - disse um dos rapazes - Mas avisou-o disso, Papá?
- Sim. Podia ter-lhe dado outra se ele quisesse.
- Talvez ele ficasse mais contente com uma metralhadora.
- Não - disse o outro rapaz - Uma metralhadora é demasiado comprometedora. A pistola está bem para ele.
Não voltámos a falar no caso.
G.C. não dormia bem e muitas vezes ficava uma grande parte da noite acordado a ler. Tinha uma óptima biblioteca na casa de Kajiado e trazia um grande saco de viagem cheio de livros que tínhamos arrumado dentro de caixas vazias na tenda da messe a servir de biblioteca. Havia uma livraria excelente no New Stanley Hotel, em Nairobi, e outra bastante boa um pouco mais abaixo e sempre que ia à cidade comprava a maior parte das novidades que me pareciam valer a pena. A leitura era o melhor paliativo para as insónias de G.C. Mas não era uma cura e vi muitas vezes que a luz se mantinha acesa a noite toda na tenda dele. Devido à sua carreira e também porque tinha recebido uma educação cuidada não podia ter nada a ver com mulheres africanas. Não as achava nem bonitas nem atraentes e as que eu conhecia e de quem gostava mais também não se mostravam interessadas por ele. Mas havia uma rapariga indiana ismaelita que era uma das pessoas mais adoráveis que eu tinha conhecido e que estava completa e desesperadamente apaixonada por G.C. Tinha-o convencido que quem estava apaixonada por ele era a irmã dela, que observava rigorosamente o purdah, e mandava presentes e recados a G.C. em nome da tal irmã. Era uma história triste, mas ao mesmo tempo pura e bela, de que todos gostávamos. C.C. não queria saber da rapariga mas falava amavelmente com ela quando ia à loja da família dela. Tinha as suas raparigas brancas em Nairobi de quem gostava muito, mas eu nunca falava com ele acerca delas. Mary certamente falava. Mas não tínhamos conversas destas a três quando se tratava de questões pessoais sérias
Na shamba era diferente. Lá e no acampamento junto à vedação não havia livros para ler, nem rádio, e então conversávamos. Perguntei à Viúva e à rapariga que tinha decidido que queria ser minha mulher porque é que não gostavam de G.C. e a princípio não queriam responder. Finalmente, a Viúva acabou por explicar que não era educado falar dessas coisas. Vim a perceber que se tratava de uma questão de cheiro. Toda a gente que tinha a mesma cor de pele que eu cheirava muito mal normalmente.
Estávamos sentados debaixo de uma árvore junto à margem do rio e eu estava à espera de uns babuínos que, pelo que se podia ouvir, se dirigiam para ali.
- Bwana Caça cheira bem - disse eu - Estou sempre a cheirá-lo. Tem um cheiro bom.
- Hapana - disse a Viúva - Você cheira como shamba. Cheira como pele fumada. Cheira a pombe.
Não gostava do cheiro a pombe e não sei se me agradava ter tal cheiro. A rapariga encostou a cabeça às costas da minha camisa de safari, que eu sabia que estava salgada do suor seco. Esfregou a cabeça contra as minhas espáduas e depois na minha nuca e depois deu uma volta para que eu a beijasse na cabeça.
- Estás a ver? - disse a Viúva - Tem o mesmo cheiro do Ngui.
- Ngui? Temos o mesmo cheiro?
- Não sei que cheiro tenho. Ninguém sabe. Mas tem o mesmo cheiro do Mthuka.
Ngui estava sentado do lado oposto da árvore a olhar para a corrente. Tinha os joelhos dobrados e a cabeça encostada à árvore. A minha lança nova estava a seu lado.
- Viúva, vai falar com o Ngui.
- Não - disse ela - Estou a olhar pela filha.
A rapariga tinha repousado a cabeça no meu regaço e apalpava o coldre da pistola. Eu sabia que queria que eu traçasse com os dedos o contorno do nariz e dos lábios dela e que depois tocasse a linha do queixo muito ao de leve e acompanhar a linha do cabelo que ela tinha cortado a direito na testa e dos lados e lhe acariciasse as orelhas e o alto da cabeça. Era um modo extremamente delicado de fazer a corte e tudo o que podia fazer com a Viúva a meu lado. Mas ela também podia fazer algumas explorações discretas, se assim quisesse.
- Minha linda de mãos rijas.
- Para ser boa esposa.
- Diz à Viúva para ir embora.
- Não.
- Porquê?
Ela explicou-me e eu beijei-a de novo no alto a cabeça. A mão dela iniciou delicadamente uma exploração e depois agarrou a minha mão direita e pô-la onde desejava. Apertei-a contra mim e pus a outra mão no sítio onde devia estar.
- Não - disse a Viúva.
- Hapana tu - disse a rapariga. Voltou-se e pôs a cabeça de frente para mim no mesmo sítio onde estivera e disse algumas palavras em kamba que não consegui compreender. Ngui olhava o rio correr e eu olhei para montante, e vi a Viúva mexer-se atrás da árvore e ali ficámos com os nossos tormentos confundindo-se, implacáveis, e estendi a mão para a arvore, empunhei a carabina e poisei-a junto à minha perna direita.
- Dorme, tu - disse eu.
- Não. Durmo à noite.
- Dorme agora.
- Não. Posso tocar?
- Podes.
- Como uma última esposa.
- Como a minha esposa das mãos rijas.
Disse mais alguma coisa em kamba que não compreendi e Ngui disse: «Kwenda na campi.»
- Eu tenho de ficar - disse a Viúva. Mas assim que Ngui se afastou no seu passo despreocupado, projectando uma sombra longilínea pelo meio das árvores ela acompanhou-o por instantes falando em kamba. Depois ficou de vigia a umas quatro árvores dali e a olhar para a corrente.
- Foram embora? - perguntou a rapariga.
Respondi que sim e ela mexeu-se para podermos ficar deitados e encostados um contra o outro e ela pôs a boca contra a minha e beijámo-nos muito cautelosamente. Gostava de brincar e de explorar, maravilhando-se com as minhas reacções e com as cicatrizes e depois agarrou os lóbulos das orelhas entre o indicador e o polegar no sítio onde queria furar os dela. Nunca tinha furado as orelhas e queria que eu sentisse onde os ia tirar por mim e eu apalpei-os delicadamente e beijei-os e depois dei-lhes uma pequena mordidela com muito cuidado.
- Morde a sério, com os dentes de cão.
- Não.
Mordeu os meus ligeiramente para me mostrar o sítio e era uma sensação deliciosa.
- Porque não os furaste ainda?
- Não sei. Na nossa tribo não é costume.
- É melhor fazê-lo. É melhor e mais honesto.
- Havemos de fazer muitas coisas boas.
- Já fizemos.
- Mas eu quero ser uma esposa útil. Não uma esposa de brincar ou uma esposa para abandonar.
- Quem te havia de abandonar?
- Tu - disse ela.
Não existe, como já disse, nenhuma palavra em kikamba para dizer amor nem para dizer desculpa. Disse-lhe em espanhol que gostava muito dela e que gostava de tudo dela, dos pés à cabeça, e contámos todas as coisas de que gostava e ela estava verdadeiramente feliz e eu também me sentia feliz e nem pensei em mentir sobre todas nem nenhuma delas.
Estávamos deitados debaixo da árvore, eu ouvia os babuínos que desciam em direcção ao rio e dormimos por instantes e então a Viúva tinha voltado para junto da nossa árvore e murmurou ao meu ouvido: «Nyanyl»
O vento soprava para jusante na nossa direcção e o bando de babuínos atravessava a corrente por cima dos rochedos do vau surdindo da mata em direcção à vedação do milharal da shamba onde o milho tinha uma altura de quase quatro metros, às vezes cinco. Os babuínos não podiam sentir o nosso cheiro e não nos viam deitados na sombra recortada da árvore. Saíram da floresta sem fazer ruído e começaram a atravessar o rio como um comando em acção. Viam-se três velhos machos enormes à frente, um maior do que os demais, caminhando cautelosamente, balançando e voltando as cabeças achatadas e os longos focinhos de queixadas poderosas. Via os grandes músculos, os ombros sólidos e os traseiros volumosos, com as caudas arqueadas e pendentes, os corpos enormes pesados e atrás deles seguia a tribo, as fêmeas e os jovens ainda a emergir da selva.
A rapariga rolou para o lado muito devagar de modo a deixar-me livre para disparar e eu ergui a carabina com cuidado e lentamente, ainda deitado, coloquei-a atravessada na perna e puxei a culatra para trás, segurando-a pela serrilha, com o dedo no gatilho e deixei-a voltar para diante com o cão levantado de modo a evitar o estalido.
Ainda deitado, apontei à espádua do maior dos velhos machos e puxei o gatilho devagarinho. Ouvi um baque mas não me detive a ver o que lhe tinha acontecido para rolar para o lado e me levantar e começar a atirar aos outros dois babuínos maiores. Recuavam já por cima dos rochedos em direcção ao mato e acertei no terceiro e depois o segundo que saltava por cima do outro. Voltei a olhar então para o primeiro babuíno que jazia de borco na água. O último a ser atingido estava aos guinchos e dei-lhe um tiro para acabar com ele. Os outros já estavam fora de Vista. Recarreguei a arma na mata e Debba perguntou se podia segurar na carabina. Pôs-se em sentido com a arma, imitando Arap Meina. «Estava tão fria - disse ela - Agora está tão quente.»
Com o ruído dos tiros começaram a aparecer pessoas da shamba. O Informador vinha com elas e Ngui chegou empunhando a lança. Não tinha voltado para o acampamento, mas sim para a shamba e já sabia como ele cheirava. Cheirava a pombe.
- Três mortos - disse ele - Tudo generais importantes. General Birmânia. General Coreia. General Malásia. Buona norte.
Tinha aprendido a dizer buona norte na Abíssinia no K.A.R. Tirou a carabina das mãos de Debba, que a empunhava com um ar grave e observando os babuínos em cima dos rochedos e na água. Não eram uma vista muito agradável e disse ao Informador que mandasse os homens e rapazes tirá-los para fora do rio e os pusessem sentados contra a vedação do milharal, com as mãos cruzadas no regaço. Mais tarde mandaria um bocado de corda para os pendurarmos da vedação a assustar os outros ou para os usar como iscos.
O Informador deu as ordens e Debba, muito grave, formal e indiferente, observava os enormes babuínos com os seus braços compridos, as panças obscenas e os focinhos realmente maldosos e as mandíbulas perigosas, enquanto os retiravam da água e os levavam pela margem acima para comporem a cena de morte encostados à vedação. Uma das cabeças estava atirada para trás como que em contemplação. As outras duas caíam para diante como que mergulhadas em profundos pensamentos. Afastámo-nos desta cena em direcção a shamba onde o carro estava parado. Ngui caminhava a meu lado; eu tinha recuperado a carabina; o Informador seguia a um dos lados e Debba e a Viúva vinham atrás.
- Grandes generais. Generais importantes - disse Ngui - Kwanda na campi?
- Então como se sente aqui a velha bisca do Informador? - perguntei.
- Irmão, estou sem sentimentos. Tenho o coração partido.
- Que se passa?
- A Viúva.
- É muito boa mulher.
- Pois é. Mas agora quer que o senhor seja protector dela e não me trata com consideração. Quer ir consigo e com o rapazinho que tratei como se fosse pai dele para a terra de Mayto. Quer tratar da Debba que quer ser esposa ajudante de Miss Mary. Toda a gente anda com o mesmo pensamento e ela está-me sempre a falar nisso a noite toda.
- É pena.
- A Debba nunca devia ter andado com a sua arma. - Reparei que Ngui olhava para ele.
- Não andou com ela. Só pegou nela.
- Não devia ter pegado nela.
- És tu quem o diz?
- Não. Claro que não, irmão. É a aldeia que diz.
- A aldeia que cale o bico senão retiro-lhe a minha protecção.
Era o tipo de declaração que não servia para nada. Mas o Informador também não servia para grande coisa.
- Aliás, nem sequer tiveste tempo para ouvir o que a aldeia diz Porque isso passou-se nem há meia hora. Não me comeces com intrigas. - «Ou ainda acabas como um que eu cá sei», pensei.
Tínhamos chegado à shamba, com a sua terra avermelhada, a grande árvore sagrada e as cubatas bem construídas. O filho da Viúva veio embater na minha barriga e deixou-se ficar especado à espera que lhe desse um beijo no topo da cabeça. Em vez disso, dei-lhe uma palmadinha no cocuruto da cabeça e dei-lhe um shilling. Depois lembrei-me que o Informador apenas ganhava sessenta e oito shillings por mês e que um shilling ficava demasiado perto do salário de um meio dia para se dar a um miudinho e por isso disse ao Informador para descer do carro e rebusquei no bolso da camisa à procura de umas notas de dez shilings coladas pelo suor.
Desdobrei duas delas e dei-as ao Informador.
- Deixa-te de tretas sobre quem pega na minha carabina. Não há nesta shamba homem nenhum capaz de pegar na ponta de um corno.
- Alguma vez disse que havia, irmão?
- Compra um presente à Viúva e conta-me o que se passa na cidade.
- Já é tarde para lá ir hoje.
- Vai até à estrada e espera pelo camião dos Anglo-Massai.
- E se ele não passa, irmão?
Normalmente, devia ter respondido «Está bem, irmão.» E no dia seguinte «Não passou, irmão.» Por isso apreciei a atitude e a boa vontade demonstrados,
- Vai ao amanhecer.
- Está bem, irmão.
Sentia-me mal ao pensar na shamba e no Informador, na Viúva e nas esperanças e planos de toda a gente e partimos sem olhar para trás.
Tinha sido vários dias antes da chuva e antes de o leão ter voltado e não havia razões para pensar agora nisso, a não ser que essa noite sentia pena de C.C., que devido ao costume, à lei e talvez também às suas opções, tinha de viver sozinho no safari e tinha de passar a noite a ler.
Um dos livros que tínhamos trazido era o Too Late the Phalarope, de Alan Paton. Tinha-o achado quase ilegível devido ao estilo superbíblico e à religiosidade excessiva. A religiosidade parece ter sido amassada numa misturadora de cimento e depois levada aos baldes para a construção do livro e com isso não existia odor nenhum de santidade; a religiosidade era como nafta no mar depois do afundamento de um petroleiro. Mas G.C. disse que era um bom livro e decidi lê-lo até o meu cérebro sentir que não valia a pena perder tempo com personagens tão estúpidas, beatas, horríveis, como as que Paton criou, com aquele terrível sentimento de pecado devido a um acto passado em 1927. Mas quando finalmente o acabei percebi que G.C. tinha razão porque Paton tinha procurado criar precisamente tais personagens, mas como ele próprio era mais do que meramente devoto, tinha recuado para tentar compreendê-las ou, pelo menos, não podia condená-las a não ser com uma dose maior das escrituras. Até finalmente, na sua alma grandiosa, lhes dar a sua aprovação; percebia o que G.C. queria dizer ao falar do livro, mas era triste pensar assim.
G.C. e Mary falavam animadamente sobre uma cidade chamada Londres que eu conhecia bastante bem de ouvido e que apenas tinha conhecido em concreto nas circunstâncias mais invulgares, de maneira que me limitava a ouvi-los e a pensar em Paris. Esta era uma cidade que conhecia a bem dizer em todas as circunstâncias. Conhecia-a e amava-a tão bem que nunca gostei de falar nela a não ser com as pessoas dos velhos tempos. Nesse tempo, todos tínhamos os nossos cafés pessoais onde íamos sozinhos e não conhecíamos ninguém a não ser os empregados. Esses cafés eram lugares secretos e nos velhos tempos quem quer que gostasse de Paris tinha o seu café pessoal. Eram melhores do que um club e recebíamos lá a correspondência que não queríamos que fosse enviada para a nossa morada. Normalmente tínhamos dois ou três cafés secretos. Havia um onde se ia para trabalhar e ler os jornais. Nunca se dava a ninguém o endereço deste café e ia-se lá pela manhã e mandava-se vir um café crême e um brioche na esplanada e então, depois de terem limpado o canto da nossa mesa, do lado de dentro junto à janela, ficávamos a trabalhar enquanto o resto do café ia sendo limpo, varrido e arrumado. Era bom haver outras pessoas a trabalhar e isso ajudava-nos no nosso próprio trabalho. Assim que os clientes começavam a chegar ao café, pagávamos a nossa meia garrafa de Vichy, saíamos e descíamos o quay até ao sítio onde tomávamos um aperitivo e depois almoçávamos. Havia lugares secretos para almoçar e também restaurantes frequentados por pessoas que conhecíamos.
Era sempre Mike Ward quem descobria os melhores lugares secretos. Conhecia e amava Paris melhor do que qualquer outra pessoa das minhas relações. Sempre que algum francês descobria um lugar secreto dava logo ali uma grande festa para festejar o segredo. Míke e eu andávamos à caça de cafés que ninguém conhecesse e que tivessem um ou dois bons vinhitos, que tivessem um bom cozinheiro, normalmente um bom copo, e que estivessem a fazer um último esforço para se aguentar antes de terem de ser vendidos ou de abrir falência. Não queríamos nenhum lugar secreto que estivesse a ficar de moda ou a subir de nível. Era o que acabava sempre por acontecer com os lugares secretos de Charley Sweeney. Quando calhava ele levar-nos lá já o segredo tinha sido tão revelado que tinha de se fazer bicha para conseguir uma mesa. Mas Charley era muito bom para descobrir cafés secretos e possuía uma maravilhosa e segura consciência do que era dele e do que era nosso. Esses eram naturalmente os cafés que nos serviam como poiso secundário ou para as tardes e para o princípio da noite. Durante esta parte do dia, quando queria falar com algum amigo acontecia por vezes ir ao poiso secundário dele ou ele vir ao meu. Por vezes dizia se podia vir com uma miúda que queria que eu conhecesse ou era eu a dizer-lhe que aparecia com uma miúda. Eram sempre raparigas que trabalhavam. Caso contrário, não eram sérias. Ninguém, a não ser os parvos, mantinha uma miúda. Ninguém tinha vontade de a trazer pendurada durante o dia nem queria os problemas que implicava. Se queria ser a nossa miúda e se trabalhava, então podia-se ter confiança nela e podia ser a dona das noites quando a desejávamos e alimentávamos a noite dela e dávamos-lhe as coisas de que precisasse. Nunca apareci muitas vezes com miúdas para mostrar ao Charley, que tinha sempre belas raparigas e dóceis, todas com emprego e todas sob perfeita disciplina, porque nessa altura a minha porteira era a minha miúda. Nunca tinha conhecido nenhuma porteira jovem, antes dela e era uma experiência entusiasmante. A sua maior vantagem era o nunca poder sair, não só para festas, mas em nenhuma ocasião. Quando a conheci, como inquilino, estava apaixonada por um guarda republicano. Um daqueles do tipo com penacho de plumas, cheio de medalhas, de bigode, e o quartel dele não ficava muito longe dali no mesmo quarteirão. Tinha um horário de serviço regular e era uma bela figura de homem e entre nós tratávamo-nos sempre cerimoniosamente por «Monsteur».
Não estava apaixonado pela porteira, mas nesse tempo sentia-me muito; só à noite e a primeira vez que ela subiu as escadas e entrou a porta, que tinha a chave na fechadura, e depois subiu a escada que dava para a espécie de mansarda onde a cama estava junto à janela com aquela maravilhosa vista do cemitério de Montparnasse e descalçou as pantufas de sola de feltro, se deitou na cama e me perguntou se a amava, respondi-lhe, com lealdade: «Naturalmente.»
- Já sabia - disse ela - Há muito tempo que eu sabia.
Despiu-se a toda a pressa e eu pus-me a ver o luar no cemitério. Diferentemente da shamba, não tinha o mesmo cheiro que eu mas era bem feita e frágil, graças a uma alimentação sólida mas insuficiente e prestámos homenagem à paisagem que nenhum de nós via. No entanto, estava presente no meu espírito e quando me disse que o último inquilino tinha entrado, ficámos estendidos e ela disse-me que nunca poderia amar realmente um guarda republicano. Disse-lhe que achava Monsieur um homem simpático, un brave homme et três gentil como eu disse, e que devia ficar bem a cavalo. Mas ela respondeu que ela não era nenhum cavalo e que havia outros inconvenientes.
Estava pois a lembrar-me de todas estas coisas de Paris, enquanto eles falavam de Londres e pensei que todos nós tínhamos tido uma juventude bastante diferente, e tínhamos muita sorte em nos darmos assim tão bem e desejei que G.C. não estivesse tão só à noite e que eu tinha uma sorte danada em estar casado com alguém tão encantador como Mary e que ia pôr as coisas a limpo na shamba e tentar ser um bom marido a sério.
- Está tremendamente calado, general - disse G.C. - Estamos a aborrecê-lo?
- Os jovens nunca me aborrecem. Gosto de ouvir a tagarelice despreocupada deles. Faz com que não me sinta a mais nem demasiado velho.
- Deixa-te de porras - disse G.C. - Que estavas para aí a pensar com esse teu ar meio profundo? Não me digas que estavas a cismar ou preocupado com o dia de amanhã?
- Quando começar a preocupar-me com o dia de amanhã hás-de ver a minha luz acesa na tenda até altas horas.
- Volto a dizer-lhe para se deixar de porras, general - disse G.C.
- Não diga palavrões, C. C. - disse Mary - O meu marido é um homem delicado e sensível e repugnam-lhe essas coisas.
- Folgo em saber que há coisas que lhe repugnam - disse G.C. Gosto de ver o lado bom da sua natureza.
- Ele esconde-o cuidadosamente. Em que estavas a pensar, querido?
- Num guarda republicano.
- Está a ver? - disse G.C. - Sempre disse que ele tinha um lado efeminado. Que vem ao de cima completamente sem mais nem menos. É o lado proustiano dele. Diz lá, era um homem muito atraente? Tento ser de ideias largas.
- O Papá e Proust viviam no mesmo hotel - disse Miss Mary. - Mas o Papá jura que foi em épocas diferentes.
- Sabe Deus o que realmente se terá passado - disse C.C. Estava muito bem disposto e nada tenso essa noite e Mary com a sua maravilhosa capacidade de esquecer estava também contente e sem nenhuma preocupação. Era capaz de esquecer do modo mais adorável e mais completo que me foi dado conhecer. Era capaz de passar uma noite a discutir mas ao fim de uma semana tinha esquecido o assunto completa e sinceramente. Dispunha de uma memória selectiva e que nem sempre era a seu favor. Perdoava-se a ela própria em memória e perdoava-nos também. Era uma rapariga muito estranha e eu gostava muito dela. De momento tinha apenas dois defeitos. Era muito pequena para caçar devidamente um leão e tinha um coração bom demais para matar e isso, como acabei por chegar à conclusão, fazia com que hesitasse ou desviasse ligeiramente a arma quando disparava contra um animal. Achava isso engraçado e nunca me senti irritado com o facto. Ela é que se irritava porque, na sua cabeça, compreendia os motivos por que matávamos e a necessidade de o fazermos e acabara por sentir prazer nisso, depois de ter julgado que nunca poderia matar um animal tão belo como um impala e que só mataria bichos feios e perigosos. Ao fim de seis meses de caçadas diárias tinha aprendido a gostar de caçar, com um sentimento de culpa embora isso nada tenha de vergonhoso se for feito de modo honesto, mas havia nela alguma coisa de demasiado generoso que funcionava a nível inconsciente e a fazia errar o alvo. Gostava dela por causa disso do mesmo modo que não poderia gostar de uma mulher que fosse capaz de trabalhar num matadouro ou de abreviar o sofrimento de cães ou gatos ou acabar os cavalos que partiam uma pata numa corrida.
- Como se chamava o guarda? - perguntou G.C. - Albertine?
- Ndo. Monsieur.
- Está a ver se nos leva, Miss Mary - disse G.C.
Continuaram a falar de Londres. E então comecei também a pensar em Londres, que não era desagradável ainda que demasiado barulhenta e pouco normal. Apercebi-me que não sabia nada de Londres e por isso voltei a pensar em Paris e com mais pormenores do que antes. Na realidade, estava preocupado com o leão de Mary e G.C. também estava, simplesmente lidávamos com o problema de maneiras diferentes. Era sempre bastante fácil no momento em que as coisas aconteciam. Mas esta história do leão de Mary já durava há imenso tempo e eu queria era ver-me livre dele.
Finalmente, quando os diversos dudus - que era o termo genérico com que designávamos todos os bichos, bichinhos e insectos - cobriam o solo da tenda de jantar numa camada suficientemente espessa para se ouvir um ligeiro crepitar quando os pisávamos, fomo-nos deitar.
- Não estejas preocupado com o dia de amanhã - disse eu a G.C quando se dirigia para a tenda dele.
- Vem aqui um bocado - disse ele. Estávamos a meio caminho entre as duas tendas e Mary tinha ido para a nossa - Para que parte desse desgraçado griu apontou ela?
- Ela não te disse?
- Não.
- Vai dormir - disse eu - Nós só entramos em cena no segundo acto de qualquer modo.
- Não podias fazer aquele número do velho marido e a esposa?
- Não. Há um mês que Charo me anda a pedir para o fazer.
- Ela é realmente admirável - disse G.C. - Tu também és bastante de admirar.
- Uma data de admirantes.
- Boa noite, Almirante.
- Meta um telescópio no meu olho zarolho e beije-me o cu, Hardy.
- Estás a confundir a frente de combate.
Nesse preciso momento ouviu-se o rugido do leão. G.C. e eu apertámo-nos a mão.
- Provavelmente ouviu a tua citação errada de Nelson - disse G.C.
- Ficou mas é farto de te ouvir a falar de Londres com Mary.
- Está com uma bela voz - disse G.C. - Vá para a cama, Almirante, e veja se dorme um bocado.
Durante a noite ouvi o leão várias vezes; depois fui-me deitar e Mwindi estava já a esticar os cobertores ao pé da cama.
- Chai, bwana.
Estava escuríssimo lá fora mas estava alguém a acender a fogueira. Acordei Mary para lhe levar o chá mas não se sentia bem. Sentia-se enjoada e estava com cólicas.
- Se quiseres adiamos, querida?
- Não. Isto é só uma indisposição. Talvez fique melhor com o chá.
- Podemos adiar. Talvez seja melhor dar-lhe mais um dia de descanso.
- Não. Quero ir. Deixa-me só ver se fico melhor se conseguir.
Saí e lavei-me na água fria da bacia e lavei os olhos com o bórico, vesti-me e fui para junto da fogueira. Podia ver C.C. a barbear-se em frente da tenda. Depois de acabar, vestiu-se e veio ter comigo.
- A Mary está com tonturas - disse eu.
- Coitada.
- Mas quer ir na mesma.
- Naturalmente.
- Dormiu bem?
- Sim. E você?
- Muito bem. Que acha que ele andava a fazer durante a noite?
- Acho que andava só a dar uma volta. E a armar.
- É muito falador. Vai uma cerveja a meias? Mal não nos faz.
Fui buscar uma cerveja e dois copos e fiquei à espera de Mary. Ela saiu da tenda e dirigiu-se à tenda latrina. Saiu e voltou para lá.
- Como te sentes, querida? - perguntei quando se sentou à mesa junto da fogueira a tomar o chá. Charo e Ngui tinham ido buscar às tendas as armas, os binóculos e os sacos de cartuchos e levavam-nos para o carro de caça.
- Não me sinto nada bem. Temos alguma coisa para isto?
- Temos. Mas vai-te dar sono. Também temos terramicina. Consideram-na eficaz tanto para uma coisa como para outra mas também te pode deixar esquisita.
- Porque é que havia de apanhar isto quando o meu leão anda por aqui?
- Não se preocupe, Miss Mary - disse C.C. - Vamos tratar de si e o leão vai sentir-se confiante.
- Mas eu quero ir atrás dele.
Era evidente que estava com dores e eu via que um novo acesso se preparava.
- Querida, vamos deixá-lo em paz esta manhã e deixá-lo descansar. É o melhor que temos a fazer, de qualquer modo. E tu podes descansar e tratar-te. O G.C. pode ficar mais uns dias, ao fim e ao cabo.
G.C. fez um gesto com a mão, as palmas para baixo, a dizer que não.
- É o teu leão e tu tens de ter tempo para estar em forma e poderes atirar e se o deixarmos à vontade todo este tempo ele fica cada vez mais confiante. É melhor ficarmos aqui a manhã toda.
Fui até ao carro e anunciei que não saíamos. Depois fui ter com Keiti junto da fogueira. Parecia estar a par de tudo mas deu provas de grande tacto e compreensão.
- Memsahib está doente.
- Já sei.
- Talvez spaghetti. Talvez disenteria.
- Sim - disse Keiti - Acho que spaghetti.
- Carne já antiga.
- Sim. Talvez algum bocado. Feito às escuras.
- Deixamos o leão em paz. Trata da memsahib. O leão ganha confiança.
- Mzuri - disse Keiti - Poli poli. Mate kali ou kariga. Mbebia faz um caldo para memsahib.
Depois de ter verificado que o leão não tocara no isco, se é que chegou perto dele, G.C. e eu fomos dar uma volta de inspecção no Land Rever. Pedi uma garrafa a Ngui. Estava embrulhada num saco molhado e ainda fresca da noite e sentámo-nos no Land Rover à sombra da árvore e bebemos da garrafa, o olhar fixo nos planos de lama seca a observar as pequenas tommies e o movimento escuro dos grius e das zebras que pareciam de um cinzento esbranquiçado a esta luz enquanto atravessavam o terreno chão em direcção à extensão verdejante na outra ponta em direcção aos montes Chulu. As colinas mostravam-se de um azul escuro nessa manhã e pareciam extremamente distantes. Quando nos voltávamos para observar a grande Montanha dava-nos a impressão de estar muito próxima. Dir-se-ia estar mesmo atrás do acampamento e a espessa camada de neve cintilava à luz do sol.
- Podíamos levar Miss Mary a caçar com umas andas - disse eu Assim já podia vê-lo por cima do capim alto.
- Não há nada contra isso no Regulamento de Caça.
- Ou então o Charo podia andar com um escadote como aqueles que há nas bibliotecas para as estantes mais altas.
- Boa ideia - disse G.C. - Estofavam-se os degraus e assim ela podia descansar com a carabina apoiada ao degrau de cima.
- Não seria um pouco parado?
- Encarregava-se o Charo de lhe dar um pouco de movimento.
- Havia de ser um belo espectáculo - disse eu - Podíamos montar uma ventoinha eléctrica.
- Podíamos contrui-lo em forma de ventilador - disse G.C. animado.
- Mas às tantas era considerado um veículo e ilegal.
- Se o fizéssemos rolar e Miss Mary ficasse dentro dele sempre a subir os degraus como um esquilo achas que ainda seria ilegal?
- Tudo o que rola é considerado um veículo - disse G.C. em tom magistral.
- Eu rolo um bocadinho ao andar.
- Então és um veículo. Se te processo, apanhas seis meses e és expulso da colónia.
- Temos de ser prudentes, G.C.
- Prudência e moderação tem sido a nossa divisa, não tem?
- Ainda há alguma coisa na garrafa?
- Podemos beber as borras a meias.
Estava um dia magnífico o dia em que Miss Mary matou o seu leão. E a bem dizer era a única coisa que havia de magnífico nesse dia. As flores brancas tinham desabrochado durante a noite de tal modo que aos primeiros alvores da manhã antes que o sol se erguesse a extensa pradaria dava a impressão de que um luar de lua cheia brilhava sobre uma camada de neve através de um véu de bruma. Mary tinha-se levantado e vestido muito antes do amanhecer. A manga direita do casaco arregaçada, tinha já verificado todos os cartuchos da sua Manrilicher 256. Disse-me que não se sentia bem e acreditei-a. Mal respondeu às nossas saudações, minha e de G.C., e nós evitámos dizer alguma piada. Não sabia o que ela tinha contra G.C. a não ser a tendência dele para a ligeireza perante uma tarefa inegavelmente séria. Mas o mau humor contra mim parecia-me pelo contrário uma reacção saudável. Se estava mal humorada, pensei que podia deixar vir ao de cima a sua ruindade e acertar os tiros mortíferos de que eu sabia que era capaz. Isto ia de encontro à minha teoria de que era demasiado boa para matar animais. Certas pessoas disparam por tudo e por nada; outras disparam com uma rapidez tremenda mas tão controlada que lhes dá o tempo preciso para enfiar a bala com os cuidados de um cirurgião que fizesse a sua primeira incisão; outros há que atiram mecanicamente e que são extremamente perigosos a não ser que alguma coisa interfira com a mecânica do tiro. Essa manhã tudo levava a crer que Miss Mary ia atirar com uma determinação implacável, com desprezo por todos os que não levavam as coisas com a devida seriedade, couraçada na sua fraca condição física, que lhe proporcionava uma desculpa para o caso de falhar o tiro, e possuída por uma decisão, imperturbável, concentrada, de ou vai ou racha. A mim parecia-me excelente. Era uma perspectiva diferente.
Esperámos junto do carro de caça que estivesse suficientemente claro para arrancar e estávamos todos com um ar solene e grave. Ngui estava quase sempre com um temperamento horrível ao começo do dia e por isso mostrava-se solene, grave e soturno. Charo estava solene, grave mas ligeiramente animado. Dir-se-ia a caminho do funeral de alguém por quem não sente uma pena por aí além. Mthuka estava contente como sempre na sua surdez observando com os seus olhos maravilhosos à espera do momento em que a luz romperia a escuridão.
Éramos todos caçadores e estávamos prestes a iniciar essa coisa maravilhosa, a caça. Escreveram-se muitas tolices místicas acerca da caça, mas é uma coisa provavelmente muito mais antiga do que a religião. Ou se é caçador ou não. Miss Mary era uma caçadora, corajosa e adorável, mas tinha começado tarde em vez de o ter feito em criança e grande parte da sua experiência de caça tinha-lhe vindo de modo tão inesperado como o primeiro cio de uma gatinha ao tornar-se numa gata. Assimilava em bloco todos estes conhecimentos e mudanças como coisas que sabemos e os outros não.
Nós os quatro, que a tínhamos visto atravessar todas estas mudanças e â víamos agora, há meses, a perseguir uma presa com a determinação e empenho contra tudo e todos, sentíamo-nos como a cuadrilla de um toureiro demasiado novo. Se o toureiro leva as coisas a sério, a cuadrilla tem de fazer o mesmo Conhecem todos os pontos fracos do toureiro e todos recebem uma boa paga sob uma ou outra forma. Todos tinham perdido completamente a fé no toureiro e todos a tinham recuperado outras tantas vezes. Sentados no carro ou por ali às voltas à espera do amanhecer vinham-me frequentemente ao espírito os momentos antes de uma tourada. O nosso toureiro mostrava-se solene; a assim nos mostrávamos nós também, pois que, ao contrário do habitual, amávamos o nosso toureiro. O nosso toureiro não se sentia bem. O que tornava ainda maior a necessidade de o proteger e de lhe dar ainda mais possibilidade de conseguir tudo o que tentasse. Mas ao estarmos ali sentados e encostados com o sono a desaparecer aos poucos, sentíamo-nos felizes como caçadores.
Provavelmente não há ninguém tão feliz como os caçadores com o dia sempre novo, fresco, prometedor à sua frente e Mary era também um caçador. Mas tinha determinado para si própria esta tarefa e tinha-se deixado guiar, treinar e endoutrinar na absoluta pureza e virtude da caça ao leão por Pop, que a tinha tomado como sua última discípula e lhe tinha transmitido a ética que nunca conseguira inculcar a outras mulheres, de modo que ao matar o seu leão o faria não como de costume tais coisas se fazem mas sim como devem ser idealmente feitas; Pop descobrindo finamente em Mary o espírito de um galo de combate incarnado numa mulher; um caçador adorável e tardio que tinha como único defeito o nunca se saber onde iria acertar o tiro. Pop tinha-lhe passado a ética e depois teve de ir embora. Agora ela conhecia a ética, mas só contava com G.C. e comigo e nenhum de nós merecia realmente a mesma confiança de Pop. E assim aqui ia ela novamente para a sua tourada sempre adiada.
Mthuka fez-me sinal de que a luz começava a estar aceitável e arrancámos através dos campos de flores brancas onde ainda ontem tudo estava verdejante. Assim que chegámos à altura das arvores da floresta com as enormes ervas secas amarelas à nossa esquerda, Mthuka abrandou e deteve o carro sem fazer ruído. Voltou-se e vi a sua cicatriz em forma de flecha na face e as incisões. Não disse nada e segui o seu olhar. O grande leão de juba negra, a cabeça enorme acima da erva amarelecida, vinha na nossa direcção. Só se via a cabeça acima das ervas altas eriçadas.
- Que dizes se fizéssemos um grande círculo para voltarmos ao acampamento? - sussurrei a G.C.
- Inteiramente de acordo - sussurrou ele.
Enquanto falávamos o leão voltou-se e recuou para a floresta. Tudo o que avistávamos dele era o agitar da erva alta.
Quando voltámos ao acampamento e tomávamos o pequeno-almoço, Mary compreendeu as razões porque tínhamos feito assim e concordou que tinha sido acertado e necessário. Mas a tourada acabara de ser novamente adiada quando ela estava já preparada e tensa à espera e a nossa popularidade ressentiu-se um pouco disso. Sentia muita pena por a ver doente e queria que se distendesse o mais possível. Não valia a pena continuar a dizer que o leão tinha acabado por cometer um erro. Tanto eu como C.C. tínhamos a certeza de que agora o iríamos apanhar. Não tinha comido durante a noite e tinha-se arriscado a aparecer de manhã para ir ver o isco. Tinha voltado para a floresta. Ia ficar lá deitado cheio de fome e, se nada o perturbasse, ia sair ao cair do dia, enfim, muito provavelmente. Se não fosse assim, C.C. teria de partir de qual quer modo na manhã seguinte e eu e Mary voltaríamos a ficar entregues a nós próprios. Mas o leão tinha rompido com os seus hábitos regulares e tinha feito um erro gravíssimo e eu já não, tinha dúvidas de que o apanharíamos. Talvez tivesse preferido caçá-lo só com Mary, sem G.C., mas também gostava de caçar com G.C. e não era tão estúpido ao ponto de querer que acontecesse alguma coisa de mal quando estivesse só com Mary. G.C. tinha posto muito bem o dedo na ferida. Sempre tinha alimentado a deliciosa ilusão de que Mary atingiria o leão exactamente no ponto devido e de que o leão cairia para o lado como tantas vezes me fora dado apreciar e ficar tão morto como um leão pode ficar. Se ainda estivesse vivo ao cair para o lado enfiava-lhe dois balázios e ficava o caso arrumado. Miss Mary matava o seu leão e ficava feliz para todo o sempre e eu não lhe teria dado mais do que a puntilla como ela compreenderia e ficaria a amar-me loucamente por todos os séculos e séculos amen. Ia agora nos seis meses que estávamos à espera disto. Foi então que surgiu um, Land Rever novo, do último modelo, maior e mais rápido, que nunca tínhamos visto antes, encaminhando-se para o acampamento através do maravilhoso campo de flores brancas onde há um mês só havia poeira e há uma semana lama. O carro era conduzido por um homem de cara avermelhada de altura mediana envergando um uniforme kaki debotado de um oficial da polícia queniana. Estava coberto do pó da estrada e viam-se ao canto dos olhos rugazinhas de sorrir traçadas a branco na poeira.
- Está cá alguém? - perguntou entrando na tenda da messe e tirando o boné. Através do mosquiteiro que cobria a abertura da tenda que dava para a Montanha tinha visto chegar o carro.
- Está tudo em casa - disse eu - Como está, Sr. Harry?
- Em forma.
- Sente-se enquanto lhe preparo alguma coisa. Fica cá esta noite, não fica? Sentou-se, esticou as pernas e espreguiçou os ombros com o prazer de gato.
- Não pude beber nada. As pessoas respeitáveis não bebem a uma hora destas.
- Que é que lhe sirvo?
- Vai uma cerveja a meias?
Abri uma cerveja, servi-lha e fiquei a vê-lo relaxar-se e a sorrir com os olhos mortos de fadiga enquanto erguíamos os copos.
- Vou mandá-los pôr as suas coisas na tenda do Pai. É aquela verde que está vazia.
Harry Durin era tímido, atarefado, amável e implacável. Apreciava os africanos e compreendia-os, e era pago para fazer cumprir a lei e executar as ordens. Era tão cortês como áspero e não era vingativo, nem odiento, nunca se mostrava estúpido ou sentimental. Não guardava ressentimentos num pais de ressentidos e nunca o vi ser mesquinho sobre o que quer que fosse. Empenhava-se em administrar a lei numa época em que reinava a corrupção, ódios, sadismo e uma considerável histeria, e dia após dia lançava-se ao trabalho para além dos limites a que outro homem poderia chegar, sem nunca trabalhar em busca de promoção ou de louvor pois sabia o que valia no seu trabalho. Miss Mary dissera uma vez que ele era uma verdadeira fortaleza ambulante.
- Têm-se divertido por estes lados?
- Muito.
- Contaram-me alguma coisa. Que é isso de ter de matar o leopardo antes do Nascimento do Menino Jesus?
- É uma reportagem para a revista ilustrada para quem andámos a fazer fotografias em Setembro. Antes de nos conhecermos. Tínhamos um fotógrafo e ele tirou milhares de fotografias e eu escrevi um artiguito e as legendas para as fotografias que eles escolheram. Têm uma magnífica fotografia de um leopardo e fui eu que o abati mas não é meu.
- Como foi isso?
- Andávamos atrás de um leão muito esperto. Foi no outro lado do Ewaso Ngiro depois de Magadi por baixo das escarpas.
- Muito para lá da minha zona.
- Andávamos a ver se apanhávamos esse leão e um amigo meu escalou um pequeno kope acompanhado pelo porta-armas dele para ver lá de cima se o leão se mostrava. O leão era para a Mary pois ele e eu já tínhamos matado leões. E não percebemos nada que raio teria acontecido quando o ouvimos disparar e vimos qualquer coisa desabalar a rugir no meio da pocírada. Era um leopardo mas a poeira era tão cerrada que formava uma nuvem opaca e o leopardo continuava a rugir e ninguém podia adivinhar de que lado iria sair da poeira. Esse tal amigo, Mayito, tinha-o atingido duas vezes lá em cima e eu atirei para o meio do turbilhão de poeira antes de me encolher e de me desviar para a direita onde era mais natural que ele surgisse. E então ele mostrou a cabeça uma vez fora da poeira, ainda a rugir enfurecido e eu atingi-o no pescoço e a poeira começou a assentar. Era uma espécie de ajuste de contas no meio da poeira diante de um saloon do velho Oeste. Só que o leopardo não tinha arma, mas estava suficientemente perto para poder abocanhar qualquer um e estava num estado terrível. O fotógrafo tirou fotografias de Mayito com ele, com todos e ele e depois uma minha com ele. Pertencia a Mayito pois fora ele quem o atingira primeiro e ainda uma segunda vez. Acontece que a melhor fotografia era aquela em que estava eu e a revista queria usá-la e eu disse-lhes que não podiam a não ser que eu matasse sozinho 1m bom leopardo sem ajuda de ninguém. Mas até agora é a terceira vez que falho.
- Não sabia que os princípios eram tão rígidos.
- Infelizmente são. E também é a lei. Primeiro sangue e perseguição continuada.
Arap Meina e o chefe dos pisteiros tinham voltado com a notícia de que as duas leoas e o jovem leão tinham matado uma presa num ponto afastado na orla do plano salobro. O isco não tinha sido atacado a não ser nas partes onde as hienas o tinham puxado e os dois pisteiros voltaram a pô-lo no sítio cuidadosamente. Havia abutres nas árvores em volta, o que não deixaria de atrair o leão mas as aves não conseguiam chegar aos restos da zebra, que estava suficientemente alta para chamar o leão. Não tinha matado nada nem tinha comido durante a noite e não tinha sido perseguido, por isso devíamos, quase de certeza, encontrá-lo em campo aberto ao fim da tarde.
Acabámos por almoçar e Mary estava muito bem disposta e encantadora com toda a gente. Acho que até me perguntou se queria mais carne fria. Quando respondi que não, obrigado, que já tinha comido o suficiente, disse que me fazia bem, que uma pessoa que bebe muito precisa de comer bem. Não só era uma verdade das antigas, como tinha sido o tema de um artigo no Reader Dígest que todos tínhamos lido. Esse número do Digest estava agora na latrina. Declarei que estava decidido a apresentar-me às eleições com um programa a favor da autêntica bebedeira e que não desapontaria nenhum dos meus eleitores. Churchill bebia duas vezes mais do que eu a crer no que se contava e tinha acabado de receber o prémio Nobel de literatura. Estava simplesmente a tentar elevar a minha bebida a um nível razoável para quando chegasse a minha vez de receber o prémio; sabe-se lá?
G.C. disse que o prémio a bem dizer já era meu e que eu o devia ganhar mais que não fosse pelas minhas fanfarronices uma vez que Churchill o tinha recebido, pelo menos em parte, graças aos seus dotes oratórios. G.C. disse que não tinha seguido a atribuição do prémio tão de perto como devia mas que eu o merecia pelo meu trabalho no campo religioso e pelo meu interesse pelos nativos. Miss Mary sugeriu que se eu tentasse escrever, às tantas, poderia ganhá-lo pela minha obra literária. Isto comoveu-me imenso e respondi que assim que ela matasse o leão passaria a dedicar-me inteiramente à escrita só para lhe agradar. G.C. perguntou se planeava escrever alguma coisa sobre o mistério de África e que se planeasse escrever em swahili podia arranjar-me um livro sobre o swahili do interior que poderia ser-me indispensável. Miss Mary disse que já tínhamos esse livro e que, mesmo tendo o livro, era melhor que eu tentasse escrever em inglês. Sugeri então que podia copiar algumas passagens do livro para entrar no estilo das terras do interior. Miss Mary disse que eu não conseguia escrever ou de dizer uma única frase correcta em swahíli e tive de concordar com tristeza que era a pura verdade.
- O Pop fala tão bem e o C.C. também e tu és uma desgraça. Nem sei como é que há alguém que fale uma língua tão mal como tu.
Estive para dizer que em tempos, anos antes, dava a impressão de que o ia falar bastante bem. Mas tinha feito a asneira de não ter continuado em África e em vez disso tinha voltado para a América onde tinha abafado as minhas saudades de África de diversas maneiras. Depois, antes que pudesse voltar, veio a guerra civil espanhola e eu vi-me envolvido no que estava a acontecer ao mundo e deixei-me ficar por lá para o melhor e para o pior até ao dia em que finalmente voltara. Não tinha sido fácil voltar nem romper as cadeias das responsabilidades que se vão tecendo, ao que parece, com a leveza de teias de aranha mas que prendem como cabos de aço.
Estavam todos divertidos agora a dizer piadas e a meterem-se uns com os outros e eu também disse umas brincadeiras mas com cuidado para me mostrar muito modesto e contrito na esperança de recuperar as boas graças de Miss Mary e esperando que ela se mantivesse de bom humor para o caso do leão se mostrar. Tinha estado a beber Bulmer’s Dry Cider, que tinha descoberto ser uma bebida maravilhosa. G.C. tinha trazido alguma de Kajiado dos armazéns. Era muito leve e refrescante e não nos entorpecia para a caça. Vinha em garrafas de litro com uma rolha de rosca e acostumei-me a bebê-la à noite quando acordava em vez de beber água. O mais que simpático primo de Mary tinha-nos oferecido duas pequenas almofadas quadradas em tela cheias com agulhas de balsamina. Eu dormia sempre com a minha debaixo do pescoço ou, se dormia de lado, debaixo da orelha. Era o aroma do Michigan de quando era rapaz e desejei ter um cesto de glicérea para a guardar nas viagens e para a ter debaixo da rede mosquiteira à noite no quarto. A cidra tinha também o gosto, do Michigan e lembrava-me sempre do lagar de cidra e da porta que nunca estava fechada, mas apenas segura por um ferrolho e um pino de madeira, e o cheiro dos sacos utilizados na prensagem e depois estendidos a secar e que se deitavam por cima das cubas fundas onde os homens que vinham espremer os vagões de maçãs deixavam a parte que tocava ao lagar. Abaixo da represa da cidraria havia um grande reservatório onde se percebia o remoinho da queda de água debaixo da barragem. Quem fosse lá pescar e tivesse paciência acabava sempre por apanhar alguma truta e sempre que pescava alguma matava-a punha-a no grande cesto de pesca em vime que deixara à sombra e cobria com uma camada de fetos e ia então até ao lagar de cidra, pegava numa medida de metal de um prego na parede por cima das cubas, levantava os pesados sacos de uma delas e enchia a medida para beber. A cidra que agora bebíamos fazia-me lembrar a do Michigan, especialmente com a almofada.
Sentado à mesa agora, sentia-me contente por ver que Mary pareci melhor e esperava que o leão se mostrasse ao fim da tarde e que ela o matasse, mais morto que merda de serpente e que ela fosse feliz para todo o sempre.
Acabámos o almoço e todos se mostravam animadíssimos e todos dissemos que íamos dormir uma sesta e que eu chamaria Miss Mary quando fosse tempo de irmos ver se encontrávamos o leão.
Mary adormeceu a bem dizer logo que se estendeu na cama. A parte de trás da tenda tinha sido levantada e corria uma bela brisa fresca da Montanha através da tenda. Normalmente dormíamos voltados para a entrada aberta da tenda, mas peguei nas almofadas e coloquei-as do outro lado da cama dobradas em duas e com a almofada de balsamina debaixo da nuca estendi-me na cama depois de ter tirado as botas e as calças e fiquei a ler com a luz por trás de mim. Andava a ler um livro realmente bom de Gerald Hanley, que tinha escrito outro belo livro intitulado The Consul at Sunset. Este livro era sobre um leão que causava uma data de sarilhos e que tinha matado quase todas as personagens do livro. G.C. e eu costumávamos ler este livro pela manhã na latrina para nos inspirarmos. Havia umas quantas personagens que o leão não matava, mas como todas elas estavam destinadas a uma qualquer sorte funesta não ligámos muito. Hanley escrevia muito bem e era um livro excelente e muito estimulante para quem andava na caça ao leão. Eu tinha visto certa vez um leão a avançar, a toda a brida, e tinha ficado muito impressionado e ainda hoje me impressiona. Nessa tarde estava a ler o livro devagar por ser um livro tão bom e não o querer acabar. Estava esperançado que o leão matasse o herói ou o Velho Major por eles serem personagens tão nobres e simpáticas e por me ter afeiçoado ao leão e querer que ele matasse uma personagem da alta. O leão estava a safar-se muito bem e tinha acabado de matar mais outra personagem simpática e importante quando decidi que era melhor poupar o resto e levantei-me, vesti as calças, calcei as botas sem sequer puxar o fecho e fui ver se G.C. estava acordado. Tossi diante da tenda dele como o Informador costumava fazer à entrada da tenda da messe.
- Entre, general - disse G.C.
- Não - disse eu - Em sua casa todo o homem e rei. Estás com disposição para enfrentar as feras mais perigosas?
- Ainda é muito cedo. A Mary dormiu?
- Ainda está a dormir. Que está a ler?
- Lindbergh. É mesmo bom. E tu que andas a ler? The Year of the Lion. Ando a suar a leão.
- Há um mês que andas a ler isso.
- Seis semanas. Como é que anda a tua mística do ar?
Nesse ano, tínhamos ambos andado, com algum atraso, imbuídos da mis rica do ar. Eu tinha acabado por desistir da mística do ar em 1945 ao regressar a casa num voo de um B-17 decrépito sem revisão.
Quando chegou a hora, fui acordar Mary enquanto os porta-armas iam buscar a carabina dela e a minha espingarda de sob as camas e verificavam as balas e os canos.
- Está à tua espera, querida. Está à tua espera e vais apanhá-lo.
- Já é tarde.
- Não penses em mais nada. Sobe só para o carro.
- Tenho de calçar as botas, não achas?
Ajudei-a a calçá-las,
- Onde está o raio do meu chapéu?
- Toma lá o raio do teu chapéu. Vamos lá, mas escusas de correr, para o primeiro Land Rover que aparecer. Não penses em mais nada senão em acertar-lhe.
- Não me estejas com essa conversa toda. Deixa-me em paz.
Mary e G.C. iam no assento da frente ao lado de Mthuka a conduzir Ngui, Charo e eu seguíamos na traseira aberta com o pisteiro. Eu verificava , se os cartuchos estavam bem enfiados e o carregador da 30-06, verificando os que tinha nos bolsos e verificando e limpando com um palito os mínimos , sinais de pó do ponto de mira. Mary empunhava a carabina na vertical, proporcionando-me uma bela vista do cano escuro limpo de fresco e a fita adesiva que prendia as alças da mira, da nuca e do seu chapéu coçado. O sol, tinha acabado de aparecer por cima dos montes e nós tínhamos saído do campo de flores e seguíamos para Norte pelo velho trilho que corre ao lado., da floresta. Algures à direita andava o leão. O carro parou e todos desceram excepto Mthuka, que se manteve ao volante. As pegadas do leão seguiam para a direita em direcção a um maciço de árvores e mata do nosso lado da árvore isolada onde o isco estava tapado com um monte de folhagem. O leão não, estava perto do isco, também não se viam aves. Estavam todas em cima das árvores. Olhei de novo o sol e não lhe dei mais do que dez minutos para desaparecer atrás das montanhas mais distantes a Oeste. Ngui tinha trepado ao formigueiro e do cimo observava cuidadosamente em redor. Apontou para qualquer coisa à frente dele, com a mão tão colada ao rosto que mal se conseguia vê-la mexer, e desceu apressadamente do montículo.
- Hiko huko - disse ele - Anda lá em baixo. Mzuri motocah.
C.C. e eu olhámos de novo para o sol e G.C. acenou a Mthuka para se aproximar. Subimos para o carro e G.C. disse a Mthuka como devia fazer.
- Mas onde está ele? - perguntou Mary.
G.C. pôs a mão no ombro de Mthuka, que imobilizou o carro.
- Deixamos aqui o carro - disse G.C. a Mary - Deve estar escondido atrás daquele maciço de árvores e mato. O Papá vai pelo flanco esquerdo para o impedir de voltar para a floresta. E nós dois vamos a direito para onde ele está.
O sol estava ainda acima das colinas quando avançámos para o ponto onde devia estar o leão. Ngui seguia atrás de mim e à nossa direita Mary caminhava um pouco à frente de G.C. Charo estava atrás de G.C. Dirigiam-se para as árvores rodeados de mato pouco cerrado. Agora podia ver o leão e continuei a caminhar para a esquerda, avançando para o lado e para a frente. Ele estava a observar-nos e eu pensei na má situação em que desta vez se tinha colocado. A cada passo que dava mais ele ficava cortado da segurança onde tantas vezes tinha procurado refúgio. Agora não tinha outra escolha que não fosse romper na minha direcção, ir de encontro a Mary e G.C., o que não faria se não estivesse ferido, ou tentar chegar à próxima ilhota de árvores e mato espesso, que ficava a cerca de quinhentos metros dali para Norte. Para o atingir tinha de atravessar um grande terreno raso a descoberto.
Achei que já tinha andado o suficiente para a esquerda e comecei a avançar em direcção ao leão. Ele deixou-se ficar no meio da mata cerrada que lhe chegava às espáduas e vi-o voltar-se uma vez para me observar; recuperando depois a posição inicial para seguir Mary e G.C. A cabeça era enorme e escura, mas quando a movia não parecia desproporcionada em relação ao corpo.
O corpo era pesado, soberbo e alongado. Não fazia ideia até onde G.C. estava a pensar levar Mary em direcção ao leão. Não estava a olhar para eles. Observava o leão à espera de ouvir o disparo. Estava a boa distância agora, com espaço suficiente para o apanhar se ele aparecesse e tinha a certeza que se fosse ferido romperia na minha direcção pois que o seu refúgio natural estava nas minhas costas. A Mary deve estar a disparar, pensei. Não pode aproximar-se mais. Mas talvez G.C. a queira mais próxima. Olhei para eles pelo canto do olho, a cabeça baixa, sem desviar o olhar do leão. Via que Mary queria disparar e que G.C. a impedia. Não tentavam aproximar-se mais pelo que calculei que do ponto onde estavam deveria haver alguma folhagem entre Mary e o leão. Olhava para o leão e reparei na mudança de cor da pelagem no momento em que o primeiro cume das colinas escondeu o sol. Era uma boa luz para disparar, mas não iria tardar a desaparecer. Observei o leão que se movia muito ligeiramente para a direita e depois fixou Mary e G.C. Via-lhe os olhos. Mas Mary continuava sem disparar. Então o leão voltou a mexer-se muito lentamente e ouvi a carabina de Mary a partir e o baque da bala. Tinha-o atingido.
O leão deu um pulo para dentro do mato e reapareceu no lado oposto rumando para a cobertura a Norte. Mary continuava a disparar e percebi que o tinha atingido novamente. Ele avançava em saltos compridos com a cabeça enorme a balançar. Disparei e levantei uma nuvem de pó atrás dele. Segui o balanço dele e premi o gatilho no momento em que lhe passei adiante e mais uma vez acertei atrás dele. A grande arma de dois tiros de G.C. fazia-se ouvir, e vi brotar os mesmos tufos de poeira. Disparei de novo com o leão no visor e ajustando a arma para diante e o tufo de poeira eclodiu diante dele. A corrida parecia agora pesada e desesperada mas a imagem dele começava a diminuir no visor, dando a impressão de que conseguiria atingir o abrigo distante, quando o apanhei de novo na mira, agora mais pequeno e avançando mais depressa, e ajustei o tiro lentamente e premi o gatilho no momento em que a mira lhe passou à frente, e não houve borrifo de poeira e vi-o cair para diante as patas dianteiras a arrastar e a cabeça enorme para baixo antes de ouvir-mos o embate da bala. Ngui deu-me uma palmada no ombro e abraçou-me. O leão tentava agora erguer-se e G.C. disparou e ele rolou sobre o flanco.
Fui ter com Mary e dei-lhe um beijo. Estava contente mas havia alguma coisa que não estava bem.
- Disparaste antes de mim - disse ela.
- Não digas isso, querida. Disparaste e atingiste-o. Como é que eu podia ter disparado antes de ti quando estávamos à espera há tanto tempo?
- Ndio. Memsahib piga - disse Charo, que tinha estado mesmo atrás de Mary.
- Claro que lhe acertaste. Acertaste-lhe o primeiro tiro, na pata, acho eu. E depois voltaste a acertar-lhe.
- Mas foste tu que o mataste.
- Tínhamos de impedir que ele atingisse a mata depois de estar ferido.
- Mas tu atiraste primeiro. Bem sabes que sim.
- Não atirei nada. Pergunta ao G.C.
Subíamos todos em direcção ao ponto onde o leão tombara. Era uma boa caminhada e o leão parecia cada vez maior e mais morto à medida que avançávamos. Com o sol a desaparecer, estava cada vez mais escuro. A luz do disparo tinha já desaparecido. Sentia um aperto dentro de mim e um grande cansaço. G.C. e eu estávamos ensopados em suor.
- Claro que lhe acertou, Miss Mary - disse G.C. - O Papá não disparou até ele aparecer a descoberto. Você acertou-lhe duas vezes.
- Porque é que não me deixou disparar quando eu queria, no momento em que ele não se mexia e estava a olhar para mim?
- Havia ramagens que podiam desviar o tiro ou fazer ricochete. Foi por isso que lhe disse para esperar.
- E depois ele mexeu-se.
- Tinha de se mexer para você o poder atingir.
- Mas é verdade que fui eu quem lhe acertou primeiro?
- Claro que foi. Ninguém ia disparar antes de você o fazer.
- Não estão todos a mentir só para eu ficar contente?
Era uma cena que Charo já antes tinha presenciado.
- Piga! - disse ele com veemência - Piga, memsahib. PIGA!
Dei uma palmada com as costas da mão na coxa de Ngui e pus os olhos em Charo e ele prosseguiu.
- Piga - disse ele rudemente - Piga memsahib. Piga bili.
G.C. aproximou-se de mim caminhando a meu lado e eu perguntei-lhe: «Porque está a suar tanto?»
- Que distância visaste à frente dele, meu filho da mãe?
- Uns cinquenta centímetros. Sessenta. Um tiro de arco e flecha.
- Vamos medi-lo na volta.
- Ninguém vai acreditar.
- Acreditamos nós. É quanto basta.
- Vai falar com ela e mostrar-lhe que lhe acertou.
- Ela acredita nos rapazes. Partiste-lhe a espinha.
- Eu sei.
- Reparaste no tempo que passou antes de se ouvir o barulho do impacto?
- Sim. Vai lá falar com ela.
O Land Rover parou atrás de nós.
Agora estávamos junto ao leão e o leão era de Mary e ela sabia-o agora e viu como era grande e escuro e belo. As varejeiras cobriam-no já e os olhos amarelos não estavam ainda apagados. Passei a mão pelo preto espesso da juba. Mthuka tinha parado o Land Rover e aproximou-se para apertar a mão a Mary. Ela estava ajoelhada ao lado do leão.
Vimos então o camião que atravessava a planície, vindo do acampamento. Tinham ouvido os tiros e Keiti tinha vindo com toda a gente excepto os dois guardas que tinham ficado no acampamento. Cantavam a canção do leão e quando saltaram do camião Mary deixou de pôr em dúvida de quem era o leão. já vi matar muitos leões e muitos festejos. Mas nenhum corno este. Queria que as honras coubessem por inteiro a Mary. Tinha a certeza de que agora se sentia bem e encaminhei-me para o maciço de árvores e de mato espesso que o leão tinha procurado atingir. Quase o tinha conseguido e fiquei a pensar no que teria acontecido se G.C. e eu tivéssemos de penetrar ali para o desentocarmos. Queria dar uma vista de olhos antes de a luz desaparecer. Mais uns sessenta metros e tinha chegado lá e já estaria escuro para lá entrarmos. Pensava no que teria acontecido e voltei para o sítio onde os outros festejavam e tiravam fotografias. Os faróis do camião e do Land Rover estavam focados em Mary e no leão e G.C. tirava as fotografias. Ngui trouxe-me a Jinny que estava no saco de cartuchos do Land Rover e eu bebi uma golada e passei-a a Ngui. Ele bebeu um pouco, abanou a cabeça e devolveu-ma.
«Piga», disse ele e desatámo-nos a rir. Bebi um longo gole e senti o seu calor reconfortante e a tensão a abandonar-me como uma serpente a largar a pele. Até esse momento não me tinha apercebido de que tínhamos finalmente apanhado o leão. Sabia-o em teoria assim que o tiro como que de arco e flecha o tinha atingido e rompido a sua fuga e Ngui me dera a palmada no ombro. Mas depois seguira-se a inquietação de Mary, o mal estar e a caminhada até ao leão tinha-se feito com a mesma reserva e desprendimento que o final de um ataque. Agora com a bebida, os festejos a correr e a fotografia, a odiosa e imprescindível fotografia, com a noite já adiantada, sem flash, sem profissionais que a tirassem como deve ser para imortalizar o leão de Miss Mary, ao ver o seu rosto resplandecente na luz ofuscante dos faróis e a soberba cabeça do leão demasiado pesada para que a pudesse levantar, cheia de orgulho e de amor pelo leão, sentindo-me tão vazio como uma sala vazia, vendo o sorriso em fenda de Keiti quando se inclinou por cima de Mary para tocar a incrível juba negra, com toda a gente a tagarelar em kikamba como pássaros e com cada um a sentir-se pessoalmente orgulhoso deste nosso leão, deste leão que nos pertencia a todos e a Mary pois que o caçava havia meses e o tinha atingido respeitando aquelas frases censuradas «bem assente nos dois és» e «atirando no momento exacto», agora feliz à luz dos faróis semelhante a um pequeno arcanjo, não verdadeiramente exterminador, radiosa e rodeada de afeição, ela e o nosso leão, comecei então a distender-me e a divertir-me. Charo e Ngui tinham contado tudo a Keiti e ele dirigiu-se a mim e apertámos as mãos e ele disse: «Mzuri sana hwana. Uchawi tu.»
- Foi sorte - disse eu, e Deus sabe até que ponto isso era verdade. Não sorte - disse Keiti - Mzuri. Mzuri. Uchawi kubwa sana.
Lembrei-me então que os tinha dispensado à tarde pela morte do leão e que tudo tinha chegado ao fim e que Mary tinha vencido e pus-me a conversar com Ngui e Mthuka e o porta-armas de Pop e os outros da nossa religião e abanámos incrédulos a cabeça e rimos e Ngui quis que eu bebesse mais uni, gole da Jinny. Queriam esperar até chegarmos ao acampamento para bebermos cerveja mas queriam que eu bebesse agora em companhia deles. Apenas tocaram a garrafa com os lábios. Mary levantara-se depois da fotografia e viu que estávamos a beber e pediu que lhe passasse a garrafa, bebeu um, gole e passou-a a G.C. Devolveram-ma e eu bebi e depois ajoelhei junto ao leão e falei-lhe em voz baixa em espanhol e pedi-lhe perdão por o termos matado e sempre a seu lado procurei as feridas com os dedos. Havia quatro.
Mary tinha-o atingido na pata e na anca. Acariciando-lhe o dorso descobri o sítio onde lhe tinha acertado na espinha e o buraco mais largo que a bala de C.C. fizera mais adiante no flanco por trás da espádua. Durante todo este tempo continuei a acariciá-lo e a falar com ele em espanhol, mas muitas das moscas pardas começaram a interessar-se por mim e então desenhei um peixe na terra diante dele apagando-o depois com a palma da mão.
Durante o caminho de regresso, Ngui, Charo e eu mantivemo-nos em silêncio. Ouvi Mary perguntar a certa altura a G.C. se eu realmente não tinha disparado antes dela e ouvi-o responder que ela tinha matado o leão dela. Que o tinha atingido em primeiro lugar e que estas coisas nem sempre correm de um modo ideal e que quando um animal é ferido tem de ser abatido e que tínhamos uma sorte danada e que ela devia estar feliz. Mas eu sabia que a sua felicidade ia e vinha, pois nada se tinha passado do modo que tinha esperado, sonhado, temido e pensado todos aqueles seis meses. Sentia-me tremendamente infeliz por ela e percebi que isso não tinha nenhuma importância para ninguém, mas tinha toda a importância do mundo para ela. Mas se tivéssemos de recomeçar tudo de novo, não poderíamos fazê-lo de modo diferente. G.C. tinha-a levado até mais perto do que qualquer outro, mas um grande caçador tinha esse direito. Se o leão atacasse quando ela o atingiu, G.C. apenas teria tempo de disparar um tiro antes de o leão os alcançar. A sua arma era mortífera e eficaz no caso de o leão ter atacado, mas era um problema se tivesse de disparar a duzentos ou trezentos metros. Ambos o sabíamos e até brincávamos com isso. Disparando sobre o leão do sítio onde se encontrava, Mary tinha corrido um grande perigo e tanto G.C. como eu sabíamos que à distância onde ele a tinha levado, Mary tinha, ainda ha pouco, feito um erro de dezoito polegadas ao acertar num animal vivo. Mas agora não era ocasião para falar nisso e Ngui e Charo também o sabiam e esta ideia tinha-me assediado muitas noites. O leão, ao decidir travar o combate na vegetação cerrada, onde tinha muitas possibilidades de apanhar alguém, tinha feito a sua escolha e por pouco não tinha vencido. Não era um leão estúpido e muito menos cobarde. Queria travar o combate onde a sorte o favorecia.
Chegámos ao acampamento e sentámo-nos em cadeiras à volta da fogueira, estendemos as pernas e bebemos por copos de festa. Era de Pop que precisávamos e Pop não estava. Disse a Keiti que levasse alguma cerveja aos homens do acampamento e fiquei à espera do que se iria seguir. E o que se seguiu irrompeu tão bruscamente como uma torrente enchendo o leito seco de um riacho com o rugido encrespado de espuma de uma tromba de água. Não tinha demorado mais do que o tempo de decidir quem carregaria Miss Mary e logo de detrás das tendas rompeu a vaga frenética dos wakamba curvados e dançando a entoar a canção do leão. O rapaz alto da messe, acompanhado do condutor do camião traziam a cadeira que depuseram no chão e Keiti, dançando e batendo as mãos, conduziu Miss Mary para a cadeira e depois levantaram-na e começaram a dançar à volta da fogueira com ela, dirigindo-se depois para as vedações e à volta do leão no sítio onde o tinham depositado e depois para o meio do acampamento, à roda da fogueira da cozinha e da fogueira dos homens e à volta dos carros e do camião da lenha, de um lado para o outro. Os pisteiros tinham apenas os shorts vestidos, assim como todos os demais, com excepção dos velhos. Observei a cabeça luzente de Mary e os belos corpos negros e fortes que a conduziam, agachando-se e martelando o solo ao ritmo da dança, levantando-se a seguir e esticando a mão para a tocarem. Era uma dança do leão bela e selvagem e no fim depuseram Mary no chão ao lado da sua cadeira junto da fogueira e todos lhe apertaram a mão pondo fim à festa. Mary estava feliz e tivemos um jantar excelente e animado até que nos fomos deitar.
Acordei durante a noite e não consegui voltar a adormecer. Acordei em sobressalto e reinava um silêncio absoluto. Depois ouvi a respiração regular e serena de Mary e experimentei um sentimento de alívio com a ideia de que não teríamos já de a atiçar contra o leão todas as manhãs. Depois senti invadir-me a tristeza por a morte do leão não ter correspondido ao que ela esperava e planeara. Com a festa e a dança verdadeiramente selvagem, o carinho que os amigos lhe dedicavam e a lealdade que lhe tinham manifestado o seu desapontamento tinha sido anestesiado. Mas estava convencido que depois de mais de cem manhãs a perseguir um grande leão a decepção haveria de voltar ao de cima. Mary ignorava o perigo que tinha corrido. Ou talvez o soubesse, sem que eu me apercebesse. Nem G.C. nem eu queríamos dizer-lho pois tanto um como o outro tínhamos feito as contas rés-vés e não era sem mais nem menos que tínhamos ficado a suar daquela maneira no fresco do cair da tarde. Lembrei-me da expressão dos olhos do leão quando olhara na minha direcção, baixando-os depois e olhando para Mary e G.C. e como não os largara dos olhos. Estendido na cama, pensava como um leão podia correr cem metros, parado à partida, em pouco mais de três segundos. Avança mais perto do chão e mais depressa do que um galgo e não salta até estar em cima da presa. O leão de Mary pesava à vontade mais de duzentos quilos e tinha força suficiente para saltar por cima dos grandes arbustos espinhosos da sebe de uma boma transportando uma vaca. Há anos que o caçavam e era inteligentíssimo. Mas tínhamo-lo embalado até cometer um erro. Sentia-me feliz por antes de ter morrido o leão ter podido estar estendido em cima da grande elevação amarelada com a cauda caída e as patas enormes confortavelmente diante dele contemplando o seu território até à floresta azul e as altas neves alvas da grande Montanha. Tanto eu como G.C. queríamos que fosse o primeiro tiro de Mary a abatê-lo ou, se ferido, pela recarga. Mas o leão tinha conduzido o jogo à sua maneira. O primeiro tiro não deve ter sido mais do que uma picadela aguda, brutal. O segundo, que tinha atravessado a parte de cima do músculo da pata quando saltava em direcção à vegetação cerrada onde pretendia dar-nos combate, deve ter-lhe causado o efeito, quando muito, de uma forte palmada. Preferia não pensar no efeito do meu tiro de longe que o tinha apanhado em cheio, na esperança de o crivar de chumbo e o fazer tombar, quando por acaso o apanhou na espinha. Era uma bala de duzentos e vinte grãos e não tinha de pensar no que ele teria sentido. Nunca tinha partido as costas e não podia fazer ideia. Ainda bem que o belo tiro à distância de G.C. o matou instantaneamente. Agora estava morto e íamos também sentir a falta de andarmos a persegui-lo.
Tentava adormecer mas comecei a pensar no leão e em como teriam sido as coisas se ele tivesse conseguido atingir o refúgio arborizado, lembrando-me das experiências de outras pessoas em circunstâncias semelhantes e depois mandei tudo às urtigas. Era coisa para eu e G.C. discutirmos e para falar com Pop. Ansiava que Mary acordasse e dissesse: «Estou tão feliz por ter caçado o meu leão.» Mas isso era esperar demasiado e eram três horas da manhã. Lembrei-me que Scott Fitzgerald tinha escrito que não sei quê não sei quê do não sei quê não sei quê da alma são sempre três horas da manhã. Durante vários meses tinham sido três horas da manhã às duas da manhã, ou hora e meia, antes de ser tempo de levantar, de vestir e de calçar as botas para ir caçar o leão de Miss Mary. Desprendi a rede mosquiteira e estendi a mão até agarrar a garrafa de cidra. Estava fresca com o ar da noite e empilhei as duas almofadas dobrando-as em duas e recostei-me sentindo sob a nuca o áspero da almofada de balsamina e pus-me a pensar na alma. Comecei por verificar em espírito a citação de Fitzgerald. Tinha surgido numa série de artigos em que ele tinha renunciado a este mundo e os seus primeiros ideais de pechisbeque e se tinha referido a si próprio pela primeira vez como a um prato rachado. À força de recuar na memória acabei por me lembrar da citação. Que era: «Na noite mais escura da alma são sempre três horas da manhã.»
E ali sentado em plena noite africana pus-me a pensar que nada sabia da alma. As pessoas passavam o tempo a falar nisso e a escrever sobre isso mas quem sabia do que se tratava? Não conhecia ninguém que soubesse alguma coisa disso ou sequer se tal coisa existia. Parecia uma crença estranhíssima e eu sabia que não me seria nada fácil explicá-la a Ngui e Mthuka e aos outros, mesmo que soubesse alguma coisa. Antes de acordar tinha estado a sonhar e no sonho tinha corpo de cavalo mas com cabeça e ombros de homem e perguntava a mim mesmo porque é que até então ninguém tinha reparado. Era um sonho muito lógico e dizia respeito ao instante preciso em que a transformação se dava no corpo que o tornava num corpo humano. Parecia um sonho bastante bom e pensava no que diriam os outros quando eu o contasse. Agora estava acordado e a cidra estava agradável e fresca, mas podia ainda sentir os músculos que tinha no sonho quando o meu corpo era o de um cavalo. Isto não me levava muito longe quanto à alma e tentei pensar no que ela poderia ser em função daquilo que acreditava. Provavelmente uma fonte de água pura e fresca que nunca diminuísse durante a seca nem gelasse no Inverno estava mais perto daquilo que tínhamos do que a tal alma de que todos falavam. Lembro-me que nos meus tempos de rapaz o Chicago White Sox tinha um terceira base chamado Harry Lord que conseguia mandar bolas para fora da linha da terceira base até o lançador adversário ficar esgotado ou cair a noite e o jogo ficar adiado. Eu era muito novo e tudo assumia proporções exageradas mas ainda me lembro de quando começava a ficar escuro, isto passava-se antes de haver iluminação nos estádios, e o Harry continuar a mandar bolas para fora e a multidão a gritar: «O Senhor, o Senhor Salve a Tua Alma.» Isto foi o mais perto que cheguei quanto à alma. Uma vez pensei que a minha própria alma tinha voado de mim quando era rapaz e que mais tarde me tinha voltado. Mas nesse tempo eu sentia-me o centro de tudo e tinha ouvido falar tanto na alma e lido tanto sobre isso que partia do princípio que também tinha uma. Depois comecei a pensar se Miss Mary, ou G.C., ou Ngui ou Charo ou eu tivéssemos sido mortos pelo leão as nossas almas teriam voado para algum lugar. Não era capaz de acreditar em tal coisa e pensei que teríamos pura e simplesmente morrido, mais mortos talvez do que o leão, e ninguém estava preocupado com a sua alma. O pior de tudo seria a viagem para Nairobi e o inquérito. Mas tudo o que eu sabia é que a carreira de G.C. ficaria seriamente comprometida se eu ou Mary tivéssemos morrido. No caso de ser G.C. a morrer seria um caso de pouca sorte. Seria indubitavelmente muito mau para os meus escritos se eu tivesse sido morto. Nem Charo nem Ngui teriam gostado de ter morrido e se Miss Mary tivesse morrido seria para sua grande surpresa. Era uma coisa a evitar e era um alívio não termos de nos encontrar dia após dia numa situação em que tal pudesse acontecer.
Mas que é que tudo isto tinha a ver com «Numa noite realmente negra da alma são sempre três da manhã»? Será que Miss Mary e G.C. tinham alma? Nenhum deles tinha uma crença religiosa, tanto quanto sabia. Mas se as pessoas têm uma alma, também eles a deviam ter. Charo era um muçulmano muito devoto por isso devíamos creditar-lhe uma alma. Apenas ficava de fora eu, Ngui e o leão.
Eram agora três da manhã e estiquei as minhas recentes pernas de cavalo e pensei em levantar-me, ir até lá fora e sentar-me junto às brasas da fogueira a saborear o resto da noite e o alvorecer. Pus as minhas botas mosquiteiras e fui para junto do borralho. G.C. estava lá sentado na sua cadeira.
- Porque estamos para aqui acordados? - disse ele muito suavemente.
- Sonhei que era um cavalo. Era muito real.
Falei a G.C. em Fitzgerald e na citação e perguntei-lhe o que achava ele.
- Qualquer hora pode ser má quando não dormimos - disse ele Não sei porque terá escolhido as três horas precisamente. Mas parece-me bastante bem.
- A meu ver é só medo, inquietação e remorsos.
- Ambos tivemos uma boa dose disso tudo, não?
- Se tivemos. De sobra. Mas acho que ele estava a falar da sua consciência e do seu desespero.
- Tu nunca sentiste desespero, pois não, Ernie?
- Ainda não.
- Provavelmente já o terias sentido se tivesses de o sentir.
- Já o senti suficientemente perto para o poder tocar mas consegui sempre recusar.
- Por falar em recusar, vai uma cerveja a meias?
- Vou-a buscar.
A garrafa grande da Tusker também estava fresca no saco de água de lona e enchi dois copos e pus a garrafa em cima da mesa.
- Lamento ter de ir embora, Ernie - disse G.C. - Achas que ela vai mesmo reagir mal?
- Acho que sim.
- Tira isso da ideia. Pode ser que reaja perfeitamente bem.
Entrei na tenda a ver se Mary tinha acordado, mas continuava profundamente adormecida. Tinha acordado e bebido um pouco de chá e depois voltara a adormecer.
- Vamos deixá-la dormir - disse a G.C. - Não faz mal nenhum esperar até às nove e meia para o esfolarmos. Tem de dormir o mais possível. G.C. estava a ler o livro de Lindbergh mas essa manhã não estava com estômago para The Year of the Lion e por isso pus-me a ler o livro das aves. Era um bom livro recente da Praed and Grant e percebi que à força de andar tão empenhado atrás de um bicho e concentrado nessa tarefa tinha perdido muitas coisas ao não observar os pássaros como devia. Se não houvesse nenhuns animais tínhamos passado um belo tempo a observar os pássaros, mas sabia que os tínhamos desprezado enormemente. Mary tinha aproveitado melhor. Estava sempre a ver pássaros em que eu não tinha reparado nem observado com atenção quando me instalava na minha cadeira de acampamento e me punha a olhar para a paisagem. Ao ler o livro das aves vi como tinha sido estúpido e o tempo que tinha desperdiçado.
Em casa, sentado à sombra na ponta da piscina, sentia-me feliz por ver as aves-do-paraíso em voo picado para apanhar insectos na água e a apreciar o branco acinzentado do papo a tingir-se de verde com o reflexo da piscina. Adorava observar os ninhos das pombas nos álamos e os tordos a cantar. Ficava entusiasmado ao ver chegar as aves migradoras durante o Outono e a Prima- vera e achava que era uma tarde bem passada ficar a ver os pequenos botauros que vinham beber na piscina e à procura das rainetas nos bueiros. E aqui em África havia sempre pássaros maravilhosos à volta do acampamento.
Empoleirados nas árvores e nos maciços de espinheiros ou saltitando pelo chão e eu apenas os entrevia como manchas de cor em movimento, enquanto Mary os amava e conhecia a todos. Não chegava a perceber como é que me tinha tornado tão estúpido e indiferente e sentia-me bastante arrependido.
Apercebia-me que durante muito tempo apenas tinha prestado atenção aos predadores, aos necrófagos e às aves que se podiam comer ou que tinham a ver com a caça. Depois, à medida que pensava nas aves em que tinha reparado, começou a ocorrer-me uma tão longa lista delas que deixei de me sentir tão mal, mas apesar disso decidi passar a observar os pássaros que andavam em torno do acampamento e a consultar Mary acerca dos que não, conhecia, e sobretudo vê-los realmente e não simplesmente olhar sem os ver.
Isto de olhar para as coisas sem as ver era um grave pecado, pensei, e em que é fácil cair. Daí não podia vir nada de bom e pensei que não merecíamos viver num mundo que não víamos. Tentei perceber como é que tinha chegado ao ponto de deixar de ver os passaritos que andavam pelo acampamento e achei que em parte se devia a passar demasiado tempo a ler a tentar afastar as ideias da caça a sério e por outro lado claramente por bebe para me relaxar assim que chegava ao acampamento. Admirava Mayito, que não bebia quase nada por querer lembrar-se de tudo de África. Mas G.C. e eu bebíamos e eu sabia que não era simplesmente um hábito ou um escape. Era a vontade deliberada de amortecer uma receptividade tão sensível, como o pode ser uma película, que se a nossa sensibilidade se mantivesse sempre ao mesmo nível poderia tornar-se insuportável. Arranjas sempre motivos muito elevados, pensei, e também sabes muito bem que tu e G.C. bebem porque gostam e Mary não bebe menos e divertimo-nos à brava quando bebemos. Vai mas é ver se ela já acordou, pensei.
Fui portanto ver se ainda dormia. Era sempre muito bonita quando dormia. O rosto adormecido não era nem feliz nem infeliz. Limitava-se a existir. Mas nesse dia as suas linhas pareciam mais finamente delineadas. Desejei poder fazê-la feliz mas a única coisa que podia fazer para isso era deixá-la dormir.
Continuei a ler o livro das aves e identifiquei um picanço, um estorninho e um abelharuco, tendo então ouvido um movimento no interior da tenda e entrei para deparar com Mary sentada na borda da cama a calçar os mocassins.
- Como te sentes, querida?
- Horrível. E tu atiraste ao meu leão antes de mim e preferia não te ver.
- Então vou desaparecer por uns tempos.
No acampamento Keiti contou-me que os pisteiros estavam a preparar uma ngoma realmente grande; todos no acampamento iam participar na dança e a shamba inteira ia aparecer. Keiti disse-me que tínhamos pouca cerveja e Coca-Cola e eu disse que ia a Laitokitok no carro de caça com Mthuka e Arap Meina e todos os que quisessem comprar alguma coisa na cidade. Keiti queria também mais algum posho e eu ia ver se conseguia arranjar um saco ou dois assim como algum açúcar. Os wakamba gostavam da farinha de milho que vinha de Kajiado e era vendida na duka indiana de um seguidor do Aga Khan. Não gostavam da outra que era vendida nas outras mercearias indianas. Aprendi a conhecer a variedade que preferiam, pela cor, a textura e o gosto, mas havia sempre o risco de me enganar e tinha lá Mthuka para verificar. A Coca-Cola era para os maometanos que não podiam beber cerveja e para as mulheres e as raparigas que vinham à ngoma. Ia deixar Arap Meina na primeira manyatta massai para ele convidar os massai a aparecer para verem o leão e constatarem com os seus próprios olhos que tinha sido morto. Não eram convidados para a ngoma, que se destinava exclusivamente aos wakamba.
Parámos em frente das bombas de gasolina e da duka onde fazíamos as compras e Keiti apeou-se. Passei a espingarda a Mwengi, o porta-armas de Pop, que a prendeu a cadeado na grade improvisada nas costas do assento da frente. Disse a Keiti que ia a casa do Sr. Singh encomendar a cerveja e as bebidas sem álcool e pedi a Mthuka que metesse um depósito de gasolina e fosse ter comigo a casa do Sr. Singh e deixasse o carro à sombra. Não entrei com o
Keiti na grande mercearia, continuando antes a pé pela sombra das árvores até ao Sr. Singh.
Lá dentro estava fresco e cheirava aos cozinhados que vinham do interior da parte da habitação e também à serradura da serração. O Sr. Singh só tinha três caixas de cerveja, mas achava que podia arranjar mais duas num sítio do outro lado da rua. Entraram três anciãos massai que tinham estado a beber num sítio pouco recomendável na porta ao lado. Éramos conhecidos e cumprimentámo-nos com dignidade e percebi pelo cheiro que já tinham estado a beber Golden Jeep, o que explicava a afectação que se confundia com a dignidade que exibiam. O Sr. Singh só tinha seis garrafas de cerveja geladas por isso comprei duas para eles os três e uma para mim e disse-lhes que Miss Mary tinha matado o leão grande. Brindámos uns aos outros e a Miss Mary e ao leão e depois pedi licença para ir tratar uns negócios com o Sr. Singh à sala das traseiras.
Não havia negócios nenhuns a tratar. O Sr. Singh queria que eu comesse alguma coisa com ele e bebesse um whisky com água. Tinha umas coisas para me dizer que não entendi bem e saí para ir buscar o rapaz da Missão para nos servir de intérprete. O rapaz usava calças, camisa branca enfiada na cintura e umas botas enormes e pesadas de biqueira quadrada que eram o símbolo da sua educação e civilização.
- Sir - disse ele - O Sr. Singh aqui presente solicita-me que lhe diga que estes chefes massai estão constantemente a abusar do senhor em termos de cerveja. Reúnem-se na cervejaria do lado que se chama a si própria salão de chá e assim que o vêem chegar vêm para aqui com o único fito de se aproveitarem da sua presença.
- Eu conheço estes três anciãos e não são chefes.
- Utilizei a designação de chefe por estar a falar para um europeu disse o rapaz educado na Missão - Mas a observação do Sr. Singh aqui presente é exacta. Eles abusam da sua amizade em termos de cerveja.
O Sr. Singh abanou a cabeça solenemente e passou-me a garrafa de White Heather. Tinha compreendido duas das palavras que o rapaz dissera: amizade e cerveja.
- Há uma coisa que quero que fique clara. Não sou europeu. Nós somos americanos.
- Essa distinção não existe. Estão classificados como europeus.
- É uma classificação que pode ser corrigida. Não sou europeu. Eu e o Sr. Singh somos irmãos.
Deitei água no meu copo e o Sr. Singh imitou-me. Fizemos mutuamente um brinde e demos um abraço. Depois levantámo-nos e observámos a oleogravura do Singh original a estrangular os dois leões, um em cada mão. Ambos nos sentíamos profundamente emocionados.
- És um seguidor do Menino Jesus, presumo - perguntei ao chagga educado na Missão.
- Sou cristão - disse ele com um ar digno.
O Sr. Singh e eu fitámo-nos com um ar desolado e abanámos a cabeça. E então o Sr. Singh disse qualquer coisa ao intérprete.
- O Sr. Singh aqui presente disse que está a guardar as três cervejas geladas para o senhor e para o seu pessoal. Quando os inzees massai voltarem vai dar-lhes vinho.
- Boa ideia - disse eu - Importas-te de ver se o meu pessoal já chegou com o meu breque de caça?
Saiu e o Sr. Singh bateu com o indicador na cabeça e estendeu-me a garrafa quadrada e atarracada de White Heather. Disse que lamentava que não tivéssemos tempo para comer com ele. Eu recomendei-lhe que não andasse a rolar pelo raio dessas estradas à noite. Ele perguntou-me que tal achava o intérprete. Respondi que era uma maravilha e que tinha uns sapatos pretos fortes a atestar a sua fé cristã.
- Dois dos seus homens estão lá fora no camião de caça - anunciou o intérprete ao entrar.
- Breque de caça - corrigi e saí para dizer a Mthuka que viesse ter connosco. Entrou, com a sua camisa axadrezada; alto e curvado, de lábios grossos, as faces ostentando as belas incisões em flecha dos wakamba. Cumprimentou o Sr. Singh atrás do balcão onde se empilhavam os rolos de tecido, contas de colar, medicamentos e artigos de fantasia e olhou para tudo com um ar apreciativo. O seu avô tinha sido canibal e o pai dele era Keiti e tinha pelo menos cinquenta e cinco anos. O Sr. Singh deu-lhe uma das garrafas de cerveja gelada e estendeu-me a minha, que tinha sido desrolhada. Bebeu um terço da sua e disse: «Vou levá-la ao Mwerigi».
- Não. Temos aqui uma gelada para ele também.
- Levo-lhe esta agora e ficamos a olhar pelas coisas.
- Ainda sobram duas - disse o Sr. Singh. Mthuka assentiu com um aceno.
- Dê uma Orange Crush ao intérprete - disse eu.
Com o refrigerante na mão, o intérprete disse: «Antes que os seus amigos massai cá voltem posso fazer-lhe algumas perguntas, sir?»
- Que perguntas?
- Sir, quantos aviões possui?
- Oito.
- Deve ser um dos homens mais ricos do mundo.
- Pois sou - disse eu com um ar modesto.
- Mas então, sir, porque vem para cá fazer o trabalho de um guarda-caça?
- Porque é que há quem vá a Meca? Porque é que se vai a algum lado? Porque irias a Roma?
- Não sigo a fé católica. Não iria a Roma.
- Também percebi que não eras dessa fé pelos sapatos que usas.
- Temos muita coisa em comum com os católicos, mas não adoramos imagens.
- É pena. Há imagens admiráveis.
- Gostava de ser pisteiro e trabalhar para o senhor, sir, ou para Bwana Caça.
Nesse momento entraram os anciãos massai trazendo com eles mais dois camaradas. Nunca os vira antes mas o mais velho de entre os meus amigos anciãos explicou-me que tinham muitos problemas com os leões que lhes levavam das bomas não apenas o gado mas também os burros, os moram, os totos, as mulheres e as cabras. Gostavam que Miss Mary lá fosse e os livrasse desse terror. Todos os massai estavam já bastante bêbados e um deles mostrava-se um pouco inclinado a ser malcriado.
Tínhamos conhecido massai admiráveis e alguns deles excepcionais e massai ainda puros, mas a bebida era uma coisa tão estranha aos massai como era, natural para os wakamba e isso acabou por os destruir e alguns dos mais velhos ainda se lembravam de quando eram uma grande tribo de guerreiros e saqueadores que ditava a lei e não esta curiosidade antropológica, adoradora de gado e roída pela sífilis. Este novo camarada ancião estava bêbado às onze da manhã e com um álcool violento. Isso via-se pela primeira pergunta que fez e decidi utilizar o intérprete para estabelecer uma distância protocolar entre nós e assim, dado que os cinco anciãos empunhavam lanças com um comprimento próprio para os morani, o que mostrava uma má disciplina tribal, era quase certo que o primeiro a ser trespassado pelas lanças seria o intérprete pois que seria ele quem pronunciaria as palavras de provocação se tais palavras viessem a ser proferidas. Quem entrasse em disputa com os cinco massai bêbados e armados de lanças na salinha da frente da mercearia podia ter a certeza de ser atravessado por uma lança. Mas a presença do intérprete significava que havia uma possibilidade de poder abater à pistola três dos nossos amigos bêbados em vez de um só ou talvez dois. Fiz rodar o coldre de modo a ficar na parte da frente da perna, que me agradou que estivesse desapertado, e com a ponta do mindinho levantei a fivela da alça.
- Sapatos Grandes, traduz lá - disse eu - Traduz com cuidado.
- A pessoa aqui presente, sir, diz que ouviu dizer que uma das suas esposas, ele disse mulheres, matou o leão e ele pergunta se na sua tribo são as mulheres quem mata os leões.
- Diz ao grande chefe que eu não conheço que na minha tribo às vezes deixamos as mulheres matar leões, tal como ele deixa que na tribo dele os jovens guerreiros bebam Golden Jeep. Há jovens guerreiros que passam o tempo a beber e que nunca mataram leão nenhum.
O intérprete nesta altura suava por quantos poros tinha e as coisas não tinham ar de se comporem. O massai, que tinha o ar de um velho bem parecido possivelmente da minha idade ou mais velho, falou e o intérprete disse: «A pessoa aqui presente, sir, diz que se quisesse ser educado e falar como um chefe fala a outro, teria aprendido a língua deles de maneira a que ele e o senhor pudessem falar de homem para homem.»
O perigo tinha passado e sem grandes perdas e por isso respondi: «Diz a este chefe que até agora não conhecia que tenho vergonha de não ter aprendido a língua dele. A minha missão era matar leões. A esposa que trouxe comigo tem por missão matar leões. Matou um ontem e há aqui mais duas garrafas de cerveja gelada que tinha de reserva para os meus homens mas que bebo uma delas com este chefe apenas e que o Sr. Singh vai buscar vinho para todos os outros chefes.»
O intérprete repetiu isto e o massai avançou e apertámos a mão. Apertei a fivela do coldre e empurrei a arma de novo para o lugar dela na anca.
- Uma Orange Crush para o intérprete - disse eu ao Sr. Singh.
O intérprete pegou na bebida, mas o massai que tinha tentado arranjar sarilhos dirigiu-se a ele num tom animado e confidencial. O intérprete bebeu, uma golada de refrigerante para aclarar a garganta e disse-me: «O chefe aqui presente pergunta sob o maior sigilo quanto pagou o senhor por esta esposa que mata leões. Diz que tal esposa utilizada para criação poderia valer tanto, como um bom touro.»
- Diz ao chefe, que vejo que é um homem de grande inteligência, que paguei dois aviões dos pequenos e um dos maiores e cem cabeças de gado, por esta esposa.
Servimo-nos ambos das nossas bebidas, o ancião massai e eu, e então dirigiu-se a mim novamente num tom rápido e grave.
- Diz ele que é um preço elevado para pagar por uma esposa e que nenhuma mulher pode valer tanto. Disse que o senhor falou de gado. Eram vacas ou touros também?
Expliquei que os ndege não eram aviões novos e que já tinham sido usa, dos na guerra. O gado, disse eu, eram apenas vacas.
O velho massai achou isto mais aceitável, mas que nenhuma mulher podia, valer tanto dinheiro assim.
Concordei que era um preço elevado mas que aquela esposa o valia bem, Agora, disse eu, tenho de voltar para o acampamento. Mandei vir outra rodada, de vinho e deixei a garrafa grande de cerveja ao ancião. Tínhamos usado copos e eu pus o meu copo voltado para baixo em cima do balcão. Ele insistiu para, que bebesse mais um copo e eu enchi meio copo e bebi-o de um trago. Apertámos as mãos e senti aquele cheiro de couro, fumo, estrume seco e suor que não é desagradável e saí para a luz ofuscante da estrada com o carro de caça meio protegido pela folhagem. O Sr. Singh tinha mandado carregar cinco caixas de cerveja na traseira do carro e o empregado trouxe-me a última garrafa gelada embrulhada num jornal. Tinha feito a conta da cerveja e da garrafa de vinho que oferecera aos massai num bloco de papel e eu paguei e dei ao intérprete uma nota de cinco shillings.
- Preferia um emprego, sir.
- Não tenho nenhum emprego para te dar a não ser como intérprete. Foi o combinado e o que foi pago.
- Gostaria de o acompanhar como intérprete.
- E servias de intérprete entre mim e os animais?
- Podia aprender, sir. Falo swahili, massai, chagga e inglês, claro, como pode ver.
- Falas kamba?
- Não, sir.
- Entre nós fala-se kamba.
- Podia aprender facilmente, sir. Podia dar-lhe explicações para falar bem swahili e o senhor podia ensinar-me a caçar e a falar a língua dos animais. Espero que não tenha preconceitos a meu respeito por eu ser cristão. Foram os meus pais que me mandaram para a Escola da Missão.
- Não gostaste da Escola da Missão? Lembra-te que Deus está a ouvir. Ouve a mínima das tuas palavras.
- Não, sir. Odiava a Escola da Missão. Sou cristão por educação e por ignorância.
- Podíamos levar-te à caça uma vez ou outra. Mas tens de vir descalço e em shorts.
- Odeio os meus sapatos, sir. Tenho de os usar por causa de bwana McCrea. Se lhe fossem contar que andava sem sapatos ou que tinha estado com o senhor em casa do Sr. Singh seria punido. Ainda que só tivesse bebido Coca-Cola. A Coca-Cola é o primeiro passo, diz bwana McCrea.
- Vamos levar-te à caça um dia destes. Mas tu não és de uma tribo de caçadores. De que serve isso? Vais ficar assustado e vais-te arrepender.
- Sir, se não se esquecer de mim, prestarei as minhas provas. Com estes cinco shillings vou dar um adiantamento para pagar uma lança no bazar Benji. Vou andar descalço à noite para fortalecer os meus pés como os dos caçadores. Se me impuser alguma prova farei essa prova.
- És um bom rapaz, mas não quero interferir com a tua religião e não tenho nada para te oferecer.
- Posso prestar uma prova - disse ele.
- Kwisha - disse eu. E para Mthulça: - Kwenda na duka.
Na duka estava muita gente, com massai a fazer compras e a observar os que compravam. As mulheres fixavam os olhos em nós ousadamente dos pés à cabeça e os jovens guerreiros com os seus rabos de cavalo e tranças cobertas de ocre mostravam-se insolentes e animados. Os massai cheiram bem e as mulheres têm mãos frias e quando põem as mãos nas nossas nunca as retiram, deliciando-se com a tepidez das palmas das nossa mão e exploram-na alegremente sem se mexerem. O Benji era um lugar animado e efervescente como os bazares índios da nossa terra num sábado à tarde ou num dia da paga mensal. Keiti tinha encontrado posho do bom e toda a Coca-Cola e bebidas sem álcool necessárias para a ngoma e encomendou umas quantas inutilidades das prateleiras de cima só para poder observar a adorável e inteligente indiana, que estava apaixonada à distância por G.C. e que todos admirávamos e por quem nos apaixonaríamos se não fosse de todo sem esperança, a tirá-las para baixo para lhas apresentar. Era a primeira vez que me apercebia de quanto Keiti adorava ver esta rapariga e estava encantado com este pormenor que nos dava um motivo para pegar com ele. Falou para mim na sua voz adorável e perguntou por Miss Mary e disse que estava muito contente por causa do leão e enquanto eu tirava grande prazer de a estar a contemplar, a ouvir a sua voz e ao apertar-lhe a mão não podia deixar de verificar até que ponto Keiti estava apanhado. Foi só então que reparei no chique das roupas que envergava, frescas e bem passadas, e que envergava o seu melhor uniforme de safari e o turbante dos grandes dias.
O pessoal do bazar, ajudado por Mthuka, começou a carregar os sacos de farinha e os caixotes de refrigerantes para fora e eu paguei a conta e comprei meia dúzia de apitos para a ngoma. Depois, como a duka não tinha muito pessoal, saí para guardar a espingarda enquanto Keiti ajudava nos caixotes. Gostaria de ajudar a carregar, mas era coisa que não pareceria bem. Quando andávamos sós a caçar costumo sempre trabalhar ao lado dos outros, mas na cidade e em público isso seria mal visto e por isso sentei-me no banco da frente com a espingarda entre os joelhos a ouvir os pedidos dos massai que queriam descer a Montanha connosco. O chassis do camião Chevrolet onde assentava o corpo do carro de caça tinha bons travões, mas com a carga que levávamos não podíamos levar mais do que seis pessoas. já tinha havido dias de levar doze ou mais. Mas era muito perigoso nas curvas, que por vezes faziam enjoar as mulheres massai. Nunca tínhamos levado guerreiros a descer a estrada da Montanha embora por vezes lhes déssemos boleia na subida. A princípio isto mereceu algum melindre mas agora tornara-se numa prática aceite e os homens que levávamos na subida explicavam-na aos outros.
Acabámos por carregar tudo e na traseira levámos quatro mulheres com as suas trouxas, cabaças e tralha variada, mais outras três no segundo assento à direita de Keiti, seguindo eu, Mwerigi e Mthuka à frente. Arrancámos com os massai a acenar e eu abri a garrafa de cerveja gelada ainda embrulhada em jornais e ofereci-a a Mwengi. Fez-me sinal para beber eu e recostou-se no assento para ficar fora do alcance do olhar de Keiti. Bebi e passei-lhe a garrafa e ele bebeu avidamente com o canto da boca para que não se visse a garrafa. Devolveu-ma e eu ofereci-a a Mthuka.
- Mais tarde - disse ele.
- Quando alguma mulher enjoar - disse Mwerigi.
Mthuka conduzia com grande cuidado, tomando em conta a carga que levava nas curvas apertadas da descida a pique. Normalmente púnhamos uma mulher massai entre mim e Mthuka; uma que já conhecíamos, nada sujeita a enjoos e outras duas que ainda tinham de dar provas entre Ngui e Mwengi no banco de trás. Desta vez parecia-nos que três mulheres para Keiti era um desperdício. Uma delas era uma beldade famosa tão alta como eu, com um corpo maravilhoso, e com as mãos mais frias e insistentes que já conheci.
Habitualmente ficava entre mim e Mthuka no banco da frente e pegava na minha mão e com a outra cortejava Mthuka ligeira e intencionalmente enquanto nos fitava e se ria se havia alguma reacção às suas atenções. Era de uma beleza clássica com uma pele adorável e era de um total impudor. Sabia que tanto Ngui como Mthuka lhe concediam os seus favores. Mostrava-se curiosa a propósito de mim, gostando de provocar reacções visíveis e quando a largámos para seguir para a manyatta dela havia quase sempre alguém que descia também com ela para voltar mais tarde a pé para o acampamento.
Mas hoje descíamos a estrada contemplando toda a extensão do nosso território e Mthuka nem sequer podia beber cerveja por causa do pai dele, Keiti, ir sentado mesmo atrás dele e eu interrogava-me sobre tais questões de moral enquanto ia bebendo com Mwerigi; tínhamos rasgado um bocado do papel em que a garrafa estava embrulhada para marcar o sítio em que a cerveja ficava toda para Mthuka. Segundo uma moralidade primordial estava perfeitamente certo que dois dos meus melhores amigos fossem com esta mulher massai mas se eu o fizesse numa altura em que estava posto à prova como mkamba e enquanto Debbe e eu tivéssemos uma relação séria, seria considerado responsável, desavergonhado e pouco sério. Por outro lado, se não respondesse de modo visível, a um contacto fortuito ou quando estimulado, teria ficado muito mal visto aos olhos de todos. Estas observações rudimentares dos costumes tribais tornavam sempre as expedições a Laitokitok agradáveis e instrutivas, mas por vezes, até compreender, podiam revelar-se frustrantes e de concertantes, a não ser que se soubesse que para ser um bom mkamba era preciso nunca se sentir frustrado e nunca admitir que se ficou desconcertado.
Às tantas alguém gritou da traseira que havia uma mulher com enjoo, eu fiz sinal a Mthuka para parar o carro. Sabíamos que Keiti ia aproveitar para ir urinar na mata e assim que ele se afastou com um ar muito digno natural passei a garrafa de cerveja a Mthuka e ele bebeu rapidamente a p dele deixando o resto para mim e Mwengi.
- Beba antes que fique quente.
O carro voltou a encher-se, mas ao fim de mais três paragens e livres das nossas passageiras e atravessámos a ribeira e atravessámos o terreno do parque que nos separava do acampamento. Vimos um bando de impalas que corria através do arvoredo e desci do carro juntamente com Keiti para lhes fazer uma batida. Ganhavam uma cor avermelhada contra o verde prado e um jovem macho olhou para trás quando apitei quase em silêncio. Contendo a respiração, apertei o gatilho suavemente e parti-lhe o pesco, e Keiti correu para ele para fazer o halai ritual enquanto os outros saltavam e pulavam como que flutuando no ar em direcção a um refúgio.
Não acompanhei Keiti enquanto ele procedia ao ritual, pois que era questão que só dizia respeito à sua consciência e eu sabia que a sua consciência não era tão rígida como a de Charo. Mas como não queria que a carcaça ficasse só para os maometanos, tal como não tinha disparado, encaminhei-me lentamente através da erva primaveril para junto dele e vi que tinha cortado a garganta do impala e sorria.
- Piga mzuri - disse ele.
- Porque não? - disse eu - Uchawi.
- Hapana uchawi. Piga mzuri sana.
Havia gente por todo o lado debaixo das árvores e do lado de fora da vedação, as mulheres com as suas adoráveis cabeças e rostos tostados cobertas com panos garridos e com belos e largos colares de contas e pulseiras. Tinham trazido o grande tambor da shamba e os pisteiros tinham mais três. Ainda era cedo, mas a ngoma começava a tomar forma. O carro ladeou a multidão e os preparativos e deteve-se na sombra, as mulheres desceram e as crianças acorreram para ver descarregar os animais. Passei a espingarda a Ngui para limpeza e encaminhei-me para a tenda da messe. O vento soprava agora com força vindo da Montanha e a tenda estava fresca e agradável.
- Levaste a nossa cerveja fresca toda - disse Miss Mary. Parecia muito melhor e mais repousada.
- Trouxe uma garrafa de volta. Vem aí com o saco. Como estás, querida?
- Estamos muito melhor, o G.C. e eu. Não encontrámos a tua bala. Só a do G.C. O meu leão tem um ar tão nobre e bonito agora que está branco e esfolado. Tem um ar tão majestoso como quando estava vivo. Correu tudo bem em Laitokitok?
- Sim. Fizemos as compras todas.
- Receba-o bem, Miss Mary - disse G.C. - Mostre-lhe a casa e ponha-o à vontade. já viu uma ngorna, não é verdade amigo?
- Yes, sir - disse eu - E também as fazemos na nossa terra. É uma coisa de que gostamos muito.
- É a isso que na América chamam beisebol? Sempre me pareceu que era uma espécie de patuscada.
- Na nossa terra, sir, as nossas ngornas são uma espécie de Festa das Colheitas com danças folclóricas. É mais do género do vosso cricket, acho eu.,
- Tal e qual - disse G.C. - Mas esta ngoma é uma coisa nova. Vai ser dançada inteiramente por nativos.
- Que engraçado, sir - disse eu - Será que posso acompanhar Miss Mary, como chamou a esta senhora encantadora, até à ngoma?
- Já estou comprometida - disse Miss Mary - Vou à ngoma com Q! Sr. Chungo do Departamento dos Pisteiros de Caça.
- E é que está mesmo, Miss Mary - disse G.C.
- Será que o Sr. Chungo é aquele senhor bem apessoado de bigode e de shorts que estava a colar plumas de avestruz na cabeça, sir?
- Deu-me a impressão de ser boa pessoa, sir. É um dos seus colegas do Departamento de Pisteiros de Caça? Devo dizer, sir, que tem um magnífico conjunto de homens.
- Estou apaixonada pelo Sr. Chungo e é o meu herói - disse Miss Mary. - Ele disse-me que você era um mentiroso e que nunca acertou em leão nenhum! Disse que todos os rapazes sabem que é um mentiroso e Ngui e alguns , apenas fingem ser seus amigos porque lhes dá presentes e não impõe disciplina nenhuma. E contou como é que Ngui partiu a sua melhor faca que lhe tinha custado uma fortuna em Paris um dia em que tinha chegado a casa bêbado.
- Sim, sim - disse eu - já me lembro de ter visto o velho Chun em Paris. Sim, sim. já me lembro. Sim. Sim,
- Não, não - disse G.C. com ar distraído - Não. Não. Não era o S Chungo. Ele não é membro.
- Sim. Sim - disse eu - Receio bem que o seja, sir.
- O Sr. Chungo disse-me outra coisa muito interessante. Disse-me que costuma usar veneno de setas kamba nas suas balas e que é Ngui quem prepara para si e que toda essa treta de risasi moja de presas de um só ti se deve ao veneno. Até se propôs mostrar-me a velocidade a que o veng de seta sobe um fio de sangue da sua própria perna.
- Ora vejam isto! Acha que é uma boa ideia que ela vá à ngoma com seu colega Sr. Chungo, sir? Tudo isto é muito bonito, mas uma niem uma memsahib, sir. Continua a estar abrangida pelo White Man’s Burd
- Então vai à ngoma comigo - disse G.C. - Não nos dá nada que se beba, Miss Mary?; espere, deixe estar, eu sirvo.
- Ainda sou capaz de preparar uma bebida - disse Miss Mary - E não façam essa cara tão sinistra. Era tudo inventado, isso sobre o Sr. Chungo. Alguém tem de dizer umas piadas aqui, além do Papá e dos seus pagãos ou do Papá e você com as vossas tolices e travessuras nocturnas. A que horas se levantaram hoje?
- Não muito cedo. Ainda estamos no mesmo dia?
- Os dias enfiam-se uns nos outros e uns nos outros e uns nos outros - disse Miss Mary - É do meu poema sobre África.
Miss Mary andava a escrever um grande poema sobre África, mas o problema era que por vezes o compunha na cabeça dela e depois esquecia-se de o escrever e tudo se esfumava como nos sonhos. Chegou a escrever uma parte mas não o mostrava a ninguém. Todos tínhamos uma grande fé no seu poema sobre África e ainda temos mas ficava mais contente se ela o passasse a escrito realmente. Andávamos todos a ler as Geórgicas na tradução de C. Day Lewis. Tínhamos dois exemplares que andavam sempre a perder-se ou extraviados e nunca vi livro tão extraviável como aquele. A única crítica que poderia fazer ao mantuano era o ele fazer crer a qualquer pessoa de uma inteligência normal que também seria capaz de escrever assim boa poesia. Dante apenas fazia crer aos parvos que poderiam escrever grande poesia. Não era verdade, claro, mas também quase nada era verdade e especialmente em África. Em África uma coisa é verdade ao amanhecer e mentira pelo meio-dia e não devemos respeitá-la mais do que ao maravilhoso e perfeito lago bordejado de ervas que se vê além da planície salgada crestada pelo sol. Atravessámos essa planície pela manhã e sabemos que tal lago não existe. Mas agora está lá e é absolutamente verdadeiro, belo e verosímil.
- É mesmo do teu poema? - perguntei a Miss Mary. - É, claro.
- Então passa-o a escrito antes que comece a soar como um acidente de viação.
- Não precisas de dar cabo dos poemas dos outros nem de atirar aos leões dos outros.
G.C. lançou-me um olhar de puro de escola aborrecido e eu disse: «Encontrei as minhas Geórgicas se querem o livro. É um que não tem a introdução do Louis Bromfield. É por causa disso que o conheço.»
- O meu conhece-se porque tem o meu nome escrito.
- E uma introdução do Louis Bromfield.
Quem é esse Bromfield? - perguntou G.C. - É um nome de guerra?, É um tipo que escreve, que tem uma quinta muito conhecida na América, no Ohio. Como é muito conhecido por causa da quinta, a Universidade de Oxford encomendou-lhe um prefácio. Ao voltar as páginas, ele vê a quinta de Virgílio, os animais de Vírgilio, a família de Vírgilio e até a sua expressão, austera e rude ou o aspecto, já não sei bem. Deve ser o aspecto rude, já que é agricultor. Seja como for, o Louis consegue vê-lo e diz que o todo forma um grande e eterno poema ou poemas para qualquer tipo de leitor.
- Deve ser a edição que eu tenho sem Bromfield - disse G.C. - Acho que a sua ficou em Kajiado.
- A minha tem o meu nome escrito - disse Miss Mary.
- Oprimo - disse eu - E o teu Swahíli do Interior também tem o te nome escrito e neste momento está no meu bolso da anca, todo suado e colado. Vou-te buscar o meu e podes escrever o teu nome nele.
- Não quero o teu para nada. Quero o meu e porque é que hás-de suar assim ao ponto de colar as páginas e dar cabo dele?
Não sei. Se calhar faz parte do meu plano de dar cabo da África. Mas aqui o tens. Aconselhava-te a ficar com o que está limpo.
- Este tem palavras que eu escrevi e que não estão no original e tem notas!
- Desculpa. Devo tê-lo metido no bolso por engano uma manhã qualquer às escuras.
- Tu nunca te enganas - disse Miss Mary - Todos sabemos isso. E tinha feito melhor se te pusesses a estudar o teu swahili em vez de estares sempre tentar falar em Língua Desconhecida e a ler só livros franceses. Todos sabemos que lês em francês. Era preciso ter feito este caminho todo até África para e em francês?
- Talvez. Não sei. Foi a primeira vez que apanhei uma colecção completa dos livros de Simenon e a empregada da livraria da galeria do Ritz muito simpática para os encomendar e mos mandar.
- E depois deixaste-os em casa do Patrick no Tanganica. A não ser uns quantos. Achas que eles os vão ler?
- Não sei. O Par é um pouco misterioso em certas coisas como eu. Talvez os leia ou talvez não. Mas tem um vizinho que é casado com uma francesa e ela há-de gostar de os ter. Não. O Par vai-os ler.
- Chegaste a estudar francês e a aprender a gramática?
- Não.
- És um caso desesperado.
C.C. fez-me um sinal com os olhos.
- Não - disse eu - Sou um caso desesperado porque ainda tenho : esperança. O dia em que deixar de a ter hás-de sabê-lo bestialmente depressa. Que esperança tens tu? De indigência mental? De pegar nos livros dos outros? De te deitar a mentir sobre um leão?
- E quase um pleonasmo. Basta dizeres deitar.
Deito-me agora para dormir.
Conjuga o verbo deitar e com quem
E o prazer que pode ser.
Conjuga-me todas as manhãs e todas as noites
E arde, nem neve, nem candeia
A Montanha fria e próxima quando dormes
Os escuros renques de árvores não são teixos
Mas a neve é sempre a neve.
Conjuga-me uma vez a neve
E porque se aproxima a Montanha
E se afasta ainda mais.
Conjuga-me amor conjugável,
Que espigas de milho trarás?
Não eram palavras muito bonitas especialmente para alguém que tem Virgílio presente, mas o almoço tinha chegado e o almoço representava sempre um armistício em quaisquer mal-entendidos e os convivas que partilhavam a sua excelência gozavam da mesma imunidade a que os malfeitores de outros tempos, ao que dizem, tinham direito nas igrejas ainda que a lei os perseguisse, se bem que fosse pouca a minha fé em tal refúgio. Por isso riscámos tudo e apagámos a ardósia e Miss Mary foi dormir uma sesta depois do almoço e eu fui ver a ngorna.
Era muito semelhante a outras ngomas, salvo que estava extraordinariamente agradável e calorosa e os pisteiros não se tinham poupado a esforços. Dançavam em shorts e todos os quatro exibiam Plumas de avestruz na cabeça, pelo menos no começo. Duas das plumas eram brancas e duas tingidas de rosa e estavam presas com todo o tipo de expedientes, desde correias e tiras de couro a cordel ou arame no cabelo. Usavam guizos nos tornozelos para a dança e dançavam bem e numa bela ordem contida. Havia três tambores e alguns batiam em latas e bidões de gasolina vazios. Quatro das danças eram tradicionais e três ou quatro improvisadas. As mulheres novas, as raparigas e , as crianças não entravam na dança até às últimas danças. Todas dançavam mas não tomavam parte nas figuras e nas danças em duas filas até ao fim da tarde. Via-se pela maneira de dançar das crianças e das raparigas que estavam habituadas a ngomas muito mais impetuosas na shamba.
Miss Mary e G.C. apareceram para tirar fotografias a cores e Miss Mary recebeu os parabéns de toda a gente e apertou a mão a todos. Os pisteiros exibiram-se em proezas de agilidade. Uma delas consistia em fazer girar uma roda de carroça por cima de uma moeda meio enterrada no chão e depois., parar a roda mantendo os pés a pino no ar e baixar a cabeça até ao sol, dobrando os braços, apanhar a moeda com os dentes e pôr-se em pé de un pulo num único movimento. Era bastante difícil e Denge, que era o mais forte dos pisteiros e o mais ágil, mais simpático e cortês, conseguiu-o muito bem.
Fiquei a maior parte do tempo sentado à sombra e participei num dos ritmos de base batendo na base de um bidão de gasolina vazio ao mesmo tem, que observava a dança. O Informador veio sentar-se a meu lado, envergando o seu xaile imitação de cachemira e o seu chapéu de abas moles.
- Porque está triste, irmão? - perguntou.
- Não estou triste.
- Todos sabem que está triste. Devia estar alegre. Olhe para a sua noiva. Ela é a Rainha da Ngorna.
- Tira a mão do meu tambor. Estás a abafá-lo.
- Toca muito bem, irmão.
- Toco uma porra. Não tenho jeito nenhum para isto. Limito-me a não estragar. O que é que te traz triste.
- O Bwana Caça falou comigo num tom muito zangado e despediu-me. Depois de todo o nosso magnífico trabalho diz que não faço aqui nada e manda-me para um lugar onde me podem matar com toda a facilidade.
- Podem-te matar em qualquer lugar.
- Sim. Mas aqui sou-lhe útil a si e morria feliz.
A dança estava a ficar mais agitada. Gostava de ver Debba dançar e ao mesmo tempo não gostava. Tão simples como isso C. pensei eu, a mesma coisa devia ter acontecido a todos os seguidores deste género de bailado. Sabia que se estava a exibir por minha causa porque acabou por dançar ao ritmo do bongo do bidão de gasolina.
- É uma rapariga muito bonita - disse o Informador - E a Rainha da Ngorna.
Continuei a tocar até ao fim daquela dança e depois levantei-me e fui ter com Nguili, que trazia a sua túnica verde, e pedi-lhe que fosse ver se as raparigas tinham Coca-Cola.
- Anda ali à tenda - disse eu ao Informador - Estás a sentir-te doente, não estás?
- Irmão, estou mesmo com febre. Pode tomar-me a temperatura para ver.
- Vou-te dar Atabrine.
Mary continuava a tirar fotografias e as raparigas posavam rígidas e direitas com os peitos espetados debaixo dos lenços semelhantes a toalhas de mesa. Mthuka estava a juntar algumas raparigas e percebi que estava a ver se conseguia uma boa fotografia de Debba. Observei-as e reparei como Debba baixava modestamente os olhos diante de Miss Mary e como se tinha direita. Tinha desaparecido toda a impudência que demonstrara na minha presença e mantinha-se em sentido como um soldado.
O Informador tinha uma língua tão branca que parecia criar giz e quando lhe baixei a língua com o cabo de uma colher vi que tinha uma mancha amarela com mau aspecto e uma mancha esbranquiçada e amarela ao fundo da garganta. Pus-lhe o termómetro debaixo da língua e tinha mais de trinta e oito graus,
- Estás doente, meu velho Informador - disse-lhe eu - Vou-te dar,, penicilina e umas pastilhas para a infecção e vou-te mandar levar a casa no carro de caça.
- Bem dizia que estava doente irmão. Mas ninguém se importa. Posso, beber alguma coisa, irmão?
- A mim nunca me fez mal com a penicilina. Pode ser que te faça bem à garganta.
- De certeza que faz, irmão. Acha que o 13wana Caça me deixará ficar cá ao seu serviço agora que pode testemunhar que estou doente?
- Não vais ser grande espingarda enquanto estiveres doente. Talvez fosse melhor mandar-te para o hospital de Kajiado.
- Isso não, por favor, irmão. Pode tratar-me aqui e sempre estou à mão para qualquer emergência e posso ser os seus olhos e ouvidos e a sua mão direita na batalha.
Deus me livre, pensei, mas estas ideias vêm-lhe sem ter bebido álcool nem alguma droga ou alguma dessas coisas e com uma garganta infectada e possivelmente uma amigdalite. É o que se chama ter o moral em alto, mesmo que seja só de boca.
Estava a preparar meio copo de Rose’s Lime Juice e whisky em partes iguais para limpar a garganta e depois dava-lhe a penicilina e as pastilhas e levava-a casa.
A mistura fê-lo sentir-se melhor da garganta e com a bebida o moral subiu mais.
- Irmão, sou um massai. Não tenho medo da morte. Desprezo a morte. Fui arruinado pelos bwanas e por uma mulher somali. Levou-me tudo; 94., meus bens, os meus filhos e a minha honra.
- Já me contaste.
- Sim, mas agora que me comprou a lança começo a vida de novo.
Mandou buscar o remédio que nos dá a juventude?
- Está a chegar. Mas só pode dar juventude quando há juventude para dar,
- E há. Prometo, irmão. já a sinto correr dentro de mim.
- Isso é o álcool.
- Pode ser. Mas também sinto a juventude.
- Vou-te dar os medicamentos agora e depois levo-te a casa.
- Não. Por favor, irmão. Vim com a Viúva e ela tem de voltar comigo. Ainda é cedo para ela voltar. Perdi-a durante três dias na última ngorna. Vou esperar e voltar com ela quando o camião partir.
- Devias ir para a cama.
- É melhor esperar pela Viúva. Irmão, não sabes o perigo que e a ngoma para uma mulher.
Fazia uma pequena ideia do perigo que era e não queria que o Informador se pusesse a falar com a garganta naquele estado, mas ele perguntou: «Posso beber só mais um copo antes do medicamento?»
- Está bem. Acho que não faz mal, do ponto de vista médico.
Desta vez deitei açúcar no Rose’s Lime Juice e fiz um copo bem cheio. Já que ia esperar pela Viúva e ia demorar um bom bocado e o sol não demorava a pôr-se e ia arrefecer.
- Ainda havemos de fazer grandes coisas juntos, irmão - disse o Informador.
- Não sei. Não te parece que era melhor fazermos algumas proezas cada um para seu lado para nos treinarmos?
- Diga uma proeza e eu faço-a.
- Hei-de pensar numa grande proeza assim que estiveres bom da garganta. Tenho uma data de pequenas proezas que tenho de fazer para já.
- Posso ajudar em alguma pequena proeza, irmão?
- Nestas não. Estas tenho eu de as fazer sozinho.
- Irmão, se fizermos grandes proezas juntos leva-me consigo a Meca?
- Talvez não vá a Meca este ano.
- E no ano que vem?
- Se for essa a vontade de Alá.
- Irmão, lembra-se do hwana Blixen?
- Até demais.
- Irmão, há quem diga que o hwana Blix não está morto. Dizem que só desapareceu até os credores morrerem e que depois voltará à terra como o Menino Jesus. Na teoria do Menino Jesus. Não quer dizer que ele apareça como o verdadeiro Menino Jesus. Será que é verdade?
- Acho que tudo isso não tem nada de verdade. O bwana Blix está mesmo morto. Houve amigos meus que o viram morto na neve com a cabeça partida.
- Morreram demasiados grandes homens. Somos poucos os que restam. Fale-me, irmão, da sua religião de que ouvi contar. Quem é esse grande Senhor que dirige a sua religião?
- Chamamos-lhe Gitchy o Grande Manitu. Mas não é o verdadeiro nome dele.
- Estou a ver. Ele também foi a Meca?
- Ele vai a Meca como tu ou eu vamos ao bazar ou entramos numa duka.
- E representa-o directamente, como ouvi dizer?
- Na medida em que sou digno disso.
- Mas dispõe do poder dele?
- Não são perguntas que me faças.
- Perdoe-me, irmão, a minha ignorância. Mas ele fala pela sua boca?
- Fala pela minha boca se assim o quiser.
- É possível aos homens que não são... Nada de perguntas.
- Podem...
- Vou-te dar a penicilina e podes ir embora - disse eu - Não se deve falar de religião numa tenda de messe.
O Informador não tinha a confiança na penicilina oral que eu esperava de um potencial autor de grandes proezas, mas talvez se devesse ao seu desapontamento por não poder mostrar a sua coragem perante a grande seringa. Mas apreciava o gosto agradável e tomou duas colheres deliciado. Fiz-lhe companhia com duas colheradas para o caso de pensar que o tinha envenenado e também porque nunca se sabe o que pode acontecer numa ngoma.
- Se sabe tão bem achas que pode ter efeito, irmão?
- Até o grande Manitu a toma - disse eu.
- Faça-se a vontade de Alá - disse o Informador - Quando é que tomo o resto do frasco?
- De manhã ao acordar. Se acordares durante a noite chupa uma destas pastilhas.
- Já me sinto melhor, irmão.
- Então vai lá olhar pela Viúva.
- Vou já.
Durante todo esse tempo continuámos a ouvir o bater dos tambores, o ténue tilintar dos guizos dos tornozelos e os apitos de sinaleiro. Continuava a não me sentir muito animado ou com vontade de dançar e por isso, depois da partida do Informador, preparei um gin Gordon’s com Campari e deitei-lhe um pouco de gasosa do sifão. Se isto combinasse bem com a dose dupla de penicilina oral, talvez fosse prova de alguma coisa, embora não diga que seja no domínio da ciência pura. Parecia que tudo se combinava harmoniosamente, pelo menos avivava o bater dos tambores. Escutei atentamente a ver se os apitos de sinaleiro estavam mais estridentes, mas pareciam-me a mesma coisa. Vendo nisto um bom sinal desencantei um litro de cerveja fresca no saco de água de lona gotejante e encaminhei-me de volta para a ngoma. Vi que estava alguém a tocar na tampa do meu bidão de metal e por isso escolhi uma boa árvore para me encostar, onde o meu amigo Tony veio ter comigo.
Tony era bom tipo e um dos meus melhores amigos. Era massai e tinha sido sargento no Regimento de Blindados e tinha sido um soldado corajoso e competente. Se não fosse o único massai no Exército Britânico era de certeza o único sargento massai. Trabalhou para G.C. no Departamento de Caça e eu sempre invejara C.C. por ter um homem destes por ser um bom mecânico, leal, dedicado e sempre bem disposto, além de falar bem inglês, um massai perfeito, naturalmente, swahili, algum chagga e algum kamba. Tinha uma compleição pouco massai, com pernas curtas, bastante arqueadas e um peito, braços e pescoço fortes e poderosos. Tinha-lhe ensinado o boxe e treinávamos uns socos juntos bastantes vezes e éramos bons amigos e companheiros.
- Uma bela ngoma, sar - disse Tony.
- Sim - disse eu - Não danças, Tony?
- Não, sar. É uma ngorna kamba.
Dançava-se agora uma dança complicadíssima que as raparigas dançavam também numa figura a sugerir intensamente a cópula.
- Estão ali algumas raparigas muito bonitas. De qual gostas mais, Tony?
- Qual delas prefere, sar?
- Não me consigo decidir. Há ali quatro realmente bonitas.
- Há uma que as bate a todas. Está a ver qual é, sar?
- Uma beleza, Tony. De onde é ela?
- Da shamba kamba, sar.
Era a mais bonita delas todas realmente, e ainda mais do que isso. Ficámos os dois a contemplá-la.
- Viste Miss Mary e o capitão da reserva?
- Vi sim, sar. Ainda agora aí estavam. Fiquei muito contente por Miss Mary ter matado o leão. Lembra-se dos primeiros tempos e da caça ao leão com lanças e dos massai aterrorizados, sar? Lembra-se do acampamento de Fig Tree? Há muito tempo, sar, que ela andava atrás daquele leão. Hoje de manhã falei-lhe num provérbio massai. Ela contou-lhe, sar?
- Não, Tony. Acho que não.
- Falei-lhe num provérbio que diz «Fica sempre tudo muito silencioso quando morre um grande leão.»
- Grande verdade. Está tudo muito silencioso neste momento, mesmo com o barulho da rigorna.
- Também reparou nisso, sar?
- Sim. Estive todo o dia silencioso por dentro. Queres uma cerveja?
- Não, obrigado, sar. Hoje à noite fazemos um pouco de boxe?
- Apetece-te?
- Se o senhor quiser. Mas há muitos rapazes novos para experimentar. Amanhã talvez seja melhor, sem a ngoma.
- Se quiseres, pode ser hoje à noite.
- Talvez seja melhor amanhã. Um dos rapazes não é muito simpático. Não é mau. Mas não é simpático. Está a ver o género.
- Um tipo da cidade?
- Mais ou menos, sar.
- Sabe boxe?
- Nem por isso, sar. Mas é rápido.
- Bons socos?
- Sim, sar.
- Que dança é esta?
- A nova dança do boxe. Está a ver? Imitam o corpo a corpo e os ganchos de esquerda como o senhor ensina.
- Melhor do que eu ensino.
- Amanhã é melhor, sar.
- Mas amanhã já não estás cá.
- Já me esquecia, sar. Desculpe, por favor. Ando esquecido desde que morreu o grande leão. Fazemos isso quando voltar, então. Vou dar uma vista de olhos ao camião.
Fui à procura de Keiti e dei com ele junto dos dançarinos. Tinha um ar animado e de dono da casa.
- Importas-te de os mandar para casa no camião quando ficar escuro? disse eu - Mthuka também pode fazer uns quantos carregamentos no carro de caça. A memsahib está cansada e temos de jantar cedo e ir para a cama.
- Ndio - concordou.
Encontrei Ngui e ele disse: «Jambo, bwana», num tom sarcástico no crepúsculo.
- Jambo, tu - respondi - Porque não danças?
- Regras a mais - disse ele - Não é o meu dia de dançar.
- Nem o meu.
Nessa noite tivemos um jantar animado. Mbebia, o cozinheiro, tinha feito escalopes de leão panados e estavam excelentes. Em Setembro, quando tínhamos comido costeletas de leão pela primeira vez, tínhamos passado o tempo a discutir e havia quem visse nisso uma excentricidade ou uma barbaridade. Agora todos as comeram e as achavam um pitéu delicioso. A carne era branca como a do veado e tenra e deliciosa. Não tinha nada o gosto da caça.
- Acho que ninguém a poderia distinguir de uma costeleta milanesa num bom restaurante italiano, a não ser que a carne é melhor - disse Mary. Tinha a certeza de que seria uma carne de primeira desde o momento em que vi pela primeira vez um leão esfolado. Mkola, que era o meu porta-armas nesse tempo, disse-me que o lombo era o melhor bocado. Mas nessa altura tínhamos sido chamados à ordem por Pop, que tentava fazer de mim pelo menos um semipukka sahib e nunca tive coragem de cortar um pedaço de lombo e de pedir ao cozinheiro que mo preparasse. Mas este ano quando matámos o primeiro leão e disse a Ngui que cortasse os dois lombos, tinha sido diferente. Pop disse que era uma barbaridade e que ninguém comia leão. Mas este era certamente o último safari que faríamos juntos e tínhamos chegado ao ponto em que começávamos a lamentar mais as coisas que não tínhamos feito do que as que tínhamos feito e por isso limitou-se a manifestar uma oposição de princípio e quando Mary ensinou Mbebia a preparar as costoletas e nos chegou o cheiro do seu sabor delicado e ele viu a carne a ser cortada exactamente como se fosse vitela e que todos a achavam deliciosa, experimentou também e gostou.
- Também se come urso na América quando o caçam nas Montanhas Rochosas. É como porco, mas com um gosto mais forte. Comemos porco e um suíno come muita mais porcaria do que um urso ou um leão.
- Não me amole - dissera Pop - Estou a comer o raio da carne.
- Não é boa?
- É. Caraças. É boa, é. Mas não me amole.
- Tire mais um bocado, Mister P., só mais um bocadinho - disse Mary.
- Está bem. Mais um bocado - exclamou exasperado numa voz de falsete - Mas não fiquem para aí de olhos arregalados a ver-me comer.
Era um prazer falar de Pop que tanto eu como Mary adorávamos e por quem sentia mais afeição do que por qualquer outro homem que eu conhecesse. Mary contou algumas coisas que Pop lhe tinha confiado durante a longa viagem que tinham feito juntos pelo Tanganica quando tínhamos ido caçar na região do Grande Ruaha e nas planícies de Bolioro. Ao ouvir aquelas histórias e imaginando o que ele não tinha contado dava-me a impressão de que Pop estava ali e pensei que mesmo estando ausente tinha esta capacidade de fazer com que as coisas corressem bem mesmo quando não eram fáceis.
E depois também era delicioso estar a saborear o leão e ter com ele um laço final tão íntimo e com um gosto tão bom.
Nessa noite, Mary declarou que estava muito cansada e foi-se deitar na sua própria cama. Estendi-me um bocado e depois saí e fui-me sentar junto à fogueira. Na cadeira, a observar as chamas e a pensar em Pop e em como era triste ele não ser imortal e em como me sentia feliz por ele ter estado connosco tanto tempo e como tínhamos tido sorte por termos vivido duas ou três coisas juntos que eram como as dos velhos tempos juntamente com a simples alegria de estarmos juntos a falar e a rir, acabei por adormecer.
Enquanto dava uma volta ao romper do dia observando Ngui que caminhava a largas passadas pelo meio da erva a pensar como éramos irmãos e como parecia idiota ser branco em África e lembrei-me de vinte anos atrás me terem levado a ouvir um missionário muçulmano que nos tinha explicado, à audiência, as vantagens da pele escura e as desvantagens da pigmentação do homem branco. Eu estava com uma pele que de tão bronzeada me permitia passar por mestiço.
- Observem o Branco - dizia o missionário - Anda ao sol e o sol mata-o. Se expõe o corpo ao sol, o corpo queima, cobre-se de bolhas e apodrece.
O desgraçado deve ficar à sombra e destruir-se com álcool, stinglias e chutta-sodas por não conseguir suportar o horror do sol a erguer-se no dia seguinte. Observem o Branco e a sua mwanamuki; a sua memsahib. A mulher cobre-se de manchas castanhas se ficar ao sol; as manchas castanhas são os sinais anunciadores da lepra. Se continuar a andar ao sol a pele começa a cair-lhe como a de alguém apanhado por um incêndio.
Nessa bela manhã não fiz grandes esforços para continuar a recordar o sermão contra o Homem Branco. Tinha sido há muito tempo e tinha-me já esquecido das partes mais inspiradas, mas não me tinha esquecido do Paraíso do Branco, apresentado como mais uma das suas crenças abomináveis onde o obrigavam a andar às pancadas a umas bolinhas brancas com um pau por um campo fora ou a atirar outras bolas maiores de um lado para outro de uma rede, igual às que se usam nos grandes lagos para pescar, até o sol levar a melhor e o obrigar a retirar-se para um Club a destruir-se a si próprio com álcool e a amaldiçoar o Menino Jesus, a não ser que a sua wanawaki estivesse presente.
Na nossa caminhada, Ngui e eu passámos por um maciço de arbustos onde uma cobra tinha a sua toca. A cobra, ou ainda estava fora ou tinha saído em visita sem deixar endereço. Nenhum de nós os dois era grande caçador de cobras. Era uma obsessão Própria dos Brancos, e necessária, pois as cobras, se as pisam, mordem o gado e os cavalos e havia uma permanente recompensa em shillings na quinta de Pop; tanto para cobras como para víboras. Caçar cobras, por dinheiro, era o mais baixo que um homem podia cair. Para nós as cobras eram criaturas de movimentos rápidos e sinuosos em busca das tocas que eram tão pequenas que parecia impossível que aí pudessem entrar, o que se tornava tema das nossas piadas. Corriam histórias de mambas ferozes que se erguiam nas suas caudas e perseguiam os colonos indefesos ou os intrépidos guarda-caça nas suas montadas, mas tais contos deixavam-nos indiferentes pois vinham do Sul, onde falavam de hipopótamos com nomes próprios que percorriam centenas de quilómetros de terras áridas à procura de água e onde as serpentes realizavam prodígios bíblicos. Eu sabia que tais coisas deviam ser verdade pois tinham sido escritas por homens veneráveis, mas eram serpentes diferentes das nossas e em África as serpentes que contam são as nossas.
As nossas serpentes eram ariscas ou estúpidas, ou misteriosas e poderosas. Eu exibia um grande fervor de caçador de serpentes que não enganava ninguém a não ser, talvez, Miss Mary, e todos execrávamos a cobra cuspideira que tinha cuspido contra G.C. Nessa manhã, quando descobrimos que a cobra tinha saído e ainda não voltara para a toca, disse a Ngui que era capaz de ser o avô de Tony e que devíamos respeitá-la.
Ngui apreciou a observação, pois as cobras são antepassados de todos os massai. Acrescentei que a cobra podia muito bem ser um antepassado da amiga dele da manyatta massai. Era uma rapariga alta, adorável, e havia nela muito de cobra. Ngui sentiu-se espevitado e ligeiramente horrorizado com a ideia da eventual ascendência do seu amor clandestino e perguntei-lhe se já tinha pensado que a frieza das mãos das mulheres massai e a ocasional frieza ainda mais estranha de outras partes do corpo se poderia dever ao sangue de serpente que corria nelas. Primeiro disse que era impossível; que os massai sempre assim tinham sido. Depois, caminhávamos então lado a lado em direcção às árvores altas do acampamento que se recortavam em amarelo e verde contra a base castanha rugosa e as altas neves da Montanha; o acampamento ainda fora da vista, a não ser pelas árvores enormes que o delimitavam; acabou por dizer que talvez fosse verdade. As mulheres italianas, disse ele, tinham mãos frias e quentes. A mão podia ser fria e depois tornar-se quente como uma nascente de água quente, mas de outro modo eram tão escaldantes como uma nascente quente se nos conseguíssemos lembrar disso. Não tinham mais bubu, o castigo pelas relações sexuais, do que os massai. Talvez os massai tivessem sangue de serpente. Eu disse então que a próxima vez que matássemos uma serpente havíamos de tocar o sangue para vermos. Nunca tinha tocado o sangue a correr de uma serpente por me causarem aversão e sabia que com Ngui se passava o mesmo. Mas combinámos tocar no sangue e fazer com que os outros, se conseguissem vencer a sua repugnância, também o tocassem. Tudo isto no interesse das nossas observações antropológicas que todos os dias efectuávamos e continuámos a caminhar e a reflectir nestes problemas e nos nossos pequenos problemas que tentávamos integrar nas preocupações mais elevadas da antropologia até que as tendas do acampamento surgiram sob o amarelo e verde do arvoredo que a primeira luz do sol transformavam num verde escuro e um dourado resplandecente e podíamos ver o fumo cinzento das fogueiras perto da vedação, a partida dos pisteiros e, sentado junto à fogueira diante das nossas tendas agora bem recolhidas entre as árvores e ao sol do novo dia, a silhueta de G.C. sentado a ler numa cadeira de campanha junto à mesa de madeira com uma garrafa de cerveja nas mãos.
Ngui pegou na carabina e pô-la à bandoleira com a velha espingarda e eu aproximei-me da fogueira.
- Bom dia, general - disse G.C. - Parece que madrugou.
- Nós, caçadores, temos uma vida dura - disse eu - Sempre de pé ligeiro e sempre na brecha.
- Um dia alguém devia reparar essa brecha. Para poder passar mesmo sem pé ligeiro. Vai uma cerveja?
Encheu um copo cautelosamente até ao bordo, inclinando a garrafa sem fazer a espuma cair e depois enchendo gota a gota até o copo ficar cheio.
- Satã há-de sempre arranjar trabalho para as mãos ociosas - disse eu e levantei o copo cheio de tal modo que dava a impressão que uma bolha de cerveja ambarina pairava suspensa como o bordo de uma avalanche e levei-o cuidadosamente aos lábios sem derramar e sorvendo uma primeira golada com o lábio superior.
- Nada mau para um caçador falhado - disse G.C. - Foram mãos tão firmes como essas e esses olhos vermelhos e injectados de sangue que fizeram a glória da nossa Inglaterra.
- «Sob o fogo da metralha e em qualquer banda, esvaziamos o copo como Deus manda» - disse eu - Continua a sobrevoar o Atlântico?
- Passei por cima da Irlanda - disse G.C. - Uma monotonia de verde. Mal se vêem as luzes do Bourguet. Vou aprender a voar, general.
- Muitos o disseram antes de si. A questão é saber como.
- Seguindo a direito e lançando-me em altos voos - disse G.C.
- Com o pé ligeiro e sempre na brecha?
- Não. No avião.
- Se calhar no avião é mais seguro. E serão tais princípios para seguir na Vida, meu filho?
- Beba lá a cerveja, Billy Graham - disse G.C. - Como é que vai viver depois de eu ir embora, general? Nada de depressões nervosas, espero. Nada de traumas? Sente-se à altura, espero eu. Não é ainda tarde para dar o flanco.
- Que flanco?
- Um flanco qualquer. É um dos poucos termos militares que não esqueci. Sempre me apeteceu dar o flanco. Na vida, passamos o tempo a defender o flanco e a apoiá-lo num ponto qualquer. Até dar o flanco conseguiram sempre lixar-me.
- Mon flaric gauche est protégé par une colline - disse eu, lembrando-me perfeitamente - J’ai les mitrailleuses bien placées. Je me trouve bien ici et je reste.
- Está a refugiar-se numa língua estrangeira - disse G.C, - Mais um copo e vamos fazer as medições enquanto os meus rufas que por aí andam espalhados bem apimentados fazem o que lhes der na gana antes de irem para a entrada da cidade mendigar pelo resto da vida.
- Já leste o Sergeant Shakespeare?
- Não.
- Depois passo-to. Foi o Duff Cooper quem mo deu. É ele o autor.
- Não são reminiscências?
- Não.
Tínhamos andado a ler as Reminiscências publicadas em folhetim num jornal em papel bíblia que chegava a Nairobi a bordo dos Comets que aterravam em Entebbe. Não gostei muito daquilo nos episódios do jornal. Mas tinha gostado muito do Sergeant Shakespeare e tinha gostado do Duff Cooper sem a mulher. Mas ela estava tão presente nas Reminiscências que tanto eu como o C.C. tínhamos desanimado.
- Quando é que escreves as tuas reminiscências, G.C.? - perguntei Não sabes que em velho se esquece?
- Para dizer a verdade nunca pensei realmente em as escrever.
- Mas tens de escrever. já não há muitos dos velhos tempos. Podias começar pelos primeiros tempos. Avançar com os primeiros volumes. Muito Longe e Há Muito Tempo na Abissínia seria um bom começo. Salta os tempos da universidade e de boémia em Londres e no Continente e passa directamente ao Um Jovem entre os Escarumbas e depois avança para os primeiros tempos na reserva de caça, enquanto ainda te lembras deles.
- Será que podia usar aquele teu estilo inimitável que esculpiste em pau de nogueira no Uma Mãe Solteira na Frente Italiana? - perguntou G.C. De todos os teus livros foi o que eu gostei mais, salvo o Sob Duas Bandeiras. É teu não é?
- Não. O meu é o Morte de Um Soldado da Guarda.
- Um bom livro também - disse G.C. - Nunca te disse, mas a minha vida foi moldada por esse livro. A minha mãe deu-mo quando fui para o colégio.
- Não estás mesmo com ideias de ir fazer essa treta das medições, pois não? - disse eu esperançado.
- Estou sim.
- Levamos testemunhas imparciais?
- Não há. Vamos nós próprios percorrer o terreno.
- Então vamos a isso. Vou só ver se Miss Mary ainda está a dormir. Dormia ainda, tinha bebido o chá e dava a impressão de que ainda dormiria umas boas duas horas. Tinha os lábios apertados e o rosto parecia tão liso como marfim sobre a almofada. Respirava regularmente, mas como mexia a cabeça percebi que estava a sonhar.
Peguei na carabina da árvore onde Ngui a tinha pendurado e subi para o Land Rover ao lado de G.C. Arrancámos e acabámos por encontrar o caminho que tínhamos feito e o sítio de onde Miss Mary tinha disparado contra o leão. Muitas coisas tinham mudado como sempre acontece num qualquer antigo campo de batalha mas encontrámos os cartuchos vazios dela e de G.C. e mais à esquerda encontrámos o meu. Meti um no bolso.
- Agora vou guiar até ao ponto onde ele foi morto e tu vais medi-lo a passo em linha recta.
Observei-o a afastar-se no carro, o cabelo castanho a brilhar ao sol da manhã; o cão grande voltou-se para me ver e depois continuou a olhar em frente. Assim que o Land Rover deu meia-volta e parou do meu lado do maciço de árvores e mata eu afastei o pé um passo para a esquerda do cartucho ejectado mais para Oeste e comecei a contar os passos enquanto avançava em direcção ao carro. Levava a carabina ao ombro com a mão direita no cano e quando iniciei a caminhada o Land Rover parecia minúsculo e reduzido pela perspectiva. O cão grande tinha descido e G.C. dava uns passos. Pareciam também pequeníssimos e por vezes apenas conseguia ver a cabeça e o pescoço do cão. Quando cheguei ao Land Rover detive-me no ponto onde a erva estava deitada no sítio onde o leão tinha caído pela primeira vez.
- Quantos? - perguntou G.C. e eu respondi-lhe. Abanou a cabeça e perguntou: - Trouxeste a Jinny?
- Trouxe.
Bebemos ambos um gole.
- Nunca nunca diremos a ninguém a distância do tiro - disse G.C. Bêbados ou sóbrios, a trastes ou a pessoas decentes.
- Nunca.
- Agora vamos ligar o conta-quilómetros, tu guias de volta em linha recta e eu conto os passos.
Havia a diferença de uns quantos passos na nossa contagem e uma ligeira discrepância entre o conta-quilómetros e os passos, por isso descontamos quatro passos no total. Depois voltámos para o acampamento contemplando a Montanha e com um sentimento de tristeza porque não voltaríamos a caçar juntos até ao Natal.
Depois de G.C. e os seus homens terem partido fiquei só com a mágoa de Miss Mary. Não estava realmente só Pois havia Miss Mary no acampamento e o nosso pessoal, assim como a grande Montanha do Kilimanjaro a que todos chamavam Kibo e todos os animais e pássaros, os novos campos de flores e os vermes que saíam do solo para comer as flores. As águias castanhas desciam a comer os vermes ao ponto de se tornarem tão comuns como galinhas e viam-se as águias com longos calções de penas e outras águias de cabeça branca que se juntavam às galinhas do mato ocupadas a comer os vermes. Os vermes tinham instaurado um armistício entre todas as aves e todas andavam lado a lado. Depois chegaram grandes bandos de cegonhas europeias também a comer os vermes e viam-se grandes extensões de cegonhas que se deslocavam numa estreita faixa da planície que as flores brancas pareciam tornar mais elevada. A mágoa de Miss Mary resistia às águias porque as águias não pareciam representar tanto para ela como para mim.
Mary nunca tinha estado deitada debaixo de um arbusto de zimbro acima do nível do arvoredo no topo de um desfiladeiro das montanhas do nosso país com uma carabina .22 à espera que as águias descessem sobre um cavalo morto que tinha servido de isco para o urso que tinha matado. Servia agora de isco para as águias e depois voltaria a ser isco de urso. As águias planavam altíssimo quando as vi pela primeira vez. Tinha-me enfiado debaixo do zimbro, quando estava ainda escuro e vira as águias surgir do sol logo que clareou no pico oposto do desfiladeiro. Este pico não passava de uma pequena elevação coberta de ervas e coroada por uma formação rochosa e arbustos de zimbro nas encostas. Nesta zona a região era plana e por isso bastante fácil de percorrer uma vez chegados a esta altura e as águias tinham vindo de longe em direcção às montanhas nevadas que poderia ver se estivesse em pé e não deitado sob os arbustos. Viam-se três águias que giravam, planavam e usavam as correntes e eu observava-as até o sol me deixar com manchas nos olhos. Depois fechava os olhos e através do vermelho o sol continuava ali. Abria-os, olhando para o lado até ao limite em que o sol cegava, e podia ver as rémiges abertas e o largo leque das caudas e sentir os olhos nas suas cabeças enormes à espreita. Tinha estado frio no princípio da manhã e tinha reparado no cavalo e nos dentes agora velhos e expostos em demasia que nunca podia ver antes sem ter de lhe levantar os beiços. Tinha um lábio mole como borracha e quando o tinha levado para aquele sítio para morrer e largado o cabresto, o cavalo detivera-se como sempre aprendera a fazer e quando o tocara na marca que tinha na cabeça escura onde os pêlos brancos se faziam ver ele tinha-se baixado para me mordiscar o pescoço com os beiços. Lançou um olhar para mais baixo onde tinha deixado o cavalo selado que ficara no último renque de árvores como que perguntando-se o que estaria ali a fazer e que nova brincadeira seria esta. Vinha-me à ideia a maravilhosa capacidade que ele tinha de ver no escuro e como me tinha agarrado à cauda dele com uma pele de urso empilhada de través na sela para descer sem ver absolutamente nada por picadas que ladeavam a borda de uma ravina no escuro e pelo meio das árvores. Nunca se enganava e compreendia todos os jogos que lhe ensinava.
E então, cinco dias atrás, tinha-o trazido a este sítio pois alguém tinha de o fazer e eu podia-o fazer se não com suavidade pelo menos sem sofrimento e o que depois se passaria pouca diferença faria. O problema era que, no fim, ele pensava que era um novo jogo e procurava aprendê-lo. Deu-me um beijo amigável com os lábios de borracha e depois verificou a posição do outro cavalo. Sabia que eu não o podia montar dada a maneira como o casco estava rachado, mas era uma coisa nova e queria aprendê-la.
- Adeus, Old Kite - disse eu e agarrei-lhe a orelha direita para a acariciar na base - Sei que farias o mesmo por mim.
Ele não compreendia, claro, e queria dar-me outro beijo para mostrar que tudo estava bem quando viu eu levantar a arma. Pensei que podia fazer com que não a visse, mas viu-a e os olhos sabiam do que se tratava e deixou-se ficar muito quieto a tremer e eu dei-lhe um tiro no ponto de intersecção das diagonais que iam dos olhos às orelhas opostas e as patas vergaram-se debaixo dele e tombou de um golpe e não passava já de um isco para ursos.
Agora, deitado debaixo do zimbro, não me tinha ainda passado a mágoa que sentia. Haveria de sempre sentir o mesmo pelo velho Old Kite o resto da minha vida, ou pelo menos foi o que disse a mim próprio, mas olhei para os seus lábios que já não se viam porque as águias lhos tinham arrancado e para os olhos que também tinham desaparecido e para o sítio onde o urso o tinha esventrado de tal modo que agora estava oco e a parte que o urso tinha devorado antes de eu o ter interrompido, e fiquei à espera que as águias descessem.
Uma delas, finalmente, aproximou-se com o ruído de um obus a cair e travou, com as rémiges esticadas para diante, as patas emplumadas e as garras em riste para aferrar Old Kite como se o fosse matar. Passeou-se então ufana em torno dele e lançou-se ao ataque das entranhas. As outras aproximaram-se com mais suavidade, num voo pesado mas com as mesmas asas de penas compridas e os mesmos pescoços espessos, cabeças enormes, bicos recurvados e olhos de ouro.
Deixei-me ficar estendido a vê-las comer o corpo do meu amigo e parceiro que eu tinha abatido e pensei que eram muito mais bonitas nos ares. Uma vez que estavam condenadas, deixei-as continuar a comer e a disputar-se, pavoneando-se em passinhos miúdos com pedaços de vísceras. Desejei ter uma espingarda de caça, mas não tinha. Por isso acabei por pegar na Winchester .22 e apontei cuidadosamente a uma delas na cabeça e depois a outra duas vezes no corpo. Ainda tentou voar mas não conseguiu e tombou com as asas abertas e tive de andar atrás dela pela encosta acima. A bem dizer todos os outros animais ou aves fogem para baixo quando estão feridos. Mas as águias fogem para cima e quando a agarrei contra o solo prendendo-lhe as patas acima das garras mortíferas, pondo-lhe os mocassins em cima do pescoço, ela dobrou as asas juntas com os olhos cheios de ódio e em desafio, que nunca vi outro animal ou ave fixar-me como aquela águia. Era uma águia real, em plena maturidade e suficientemente grande para levar um borrego big-horn e segurá-la não era coisa fácil e enquanto observava as águias lado a lado com as galinhas do mato e me lembrava que tais aves nunca se deixavam aproximar por outras, invadiu-me um sentimento de pena pela mágoa de Miss Mary mas não podia dizer-lhe o que as águias significavam para mim ou porque tinha matado aquelas duas, a segunda esmagando-lhe a cabeça contra uma árvore mais abaixo no bosque, nem o que tinha comprado em Lame Deer na Reserva com os despojos delas.
Rodávamos no carro de caça quando avistámos as águias e as galinhas do mato juntas nas clareiras da floresta que tinham sido em parte destruídas com a passagem da manada de mais de duzentos elefantes que tinha por ali passado no princípio do ano, arrancando e marrando contra as árvores. Tínhamos ido até lá para controlar o bando de búfalos e talvez surpreender o leopardo que sabia viver por ali nas grandes árvores que tinham escapado perto do pântano de papiros. Mas não tínhamos visto nada, a não ser a invasão de lagartas e o estranho armistício entre as aves. Mary tinha localizado mais umas quantas árvores de Natal possíveis e eu tinha pensado demais em águias e nos velhos tempos. Imaginávamos que os velhos tempos eram mais simples, mas não é verdade; eram apenas mais duros. A Reserva era mais dura do que a shamba. Talvez não. Não sabia ao certo, o que eu sabia era que os brancos ficavam sempre com as terras dos outros e enfiavam-nos em reservas onde podiam ir para o diabo ou darem cabo de si próprios como num campo de concentração. Aqui as reservas índias davam lugar às reservas e era tudo uma louvaminhice sobre o modo como os nativos, agora designados africanos, eram administrados. Mas não se permitia aos caçadores caçar nem aos guerreiros guerrear. G.C. detestava os caçadores furtivos porque tinha de ter alguma coisa em que acreditar e decidira acreditar no trabalho que fazia. Insistia, naturalmente, que se não acreditasse no seu trabalho não o teria aceitado e nesse ponto também tinha razão. Mesmo Pop, numa das maiores extorsões de todas, a burla dos safari, observava uma ética rigorosíssima; a mais rigorosa. O cliente pode ser esbulhado do mínimo centavo, mas tem de receber algo em troca. Todos os Grandes Caçadores Brancos eram comoventes ao explicarem como amavam os animais e como detestavam matar o que quer que fosse, mas em geral a única coisa em que pensavam era em proteger a caça para o próximo cliente que viesse. Não queriam assustá-la com tiros à toa e queriam proteger um território onde pudessem conduzir outro cliente e esposa ou um novo par de clientes e lhes desse a impressão de estar intacto, virgem de quaisquer tiros, a África primitiva que pudessem fazer atravessar à pressa pelos clientes garantindo-lhes os melhores resultados.
Pop tinha-me explicado tudo isto uma vez muitos anos atrás e certa ocasião em que andávamos à pesca mais a Norte na costa no fim do safari disse-me: «Sabes uma coisa? Não há ninguém com tão pouca consciência que pudesse fazer isto duas vezes a outras pessoas. Se gostarmos delas, quero eu dizer. A próxima vez que cá vieres e se trouxeres carro, e é melhor trazê-lo, arranjo-te uns rapazes e podes ir caçar para um sítio onde tenhas estado e depois descobres outros e não te fica mais caro do que caçar na tua terra.»
Mas o que se viu é que os ricos gostavam das coisas que lhes ficavam caras e voltavam uma vez e outra e de cada vez era mais caro e tornava-se num luxo a que nem todos se podiam permitir, o que aumentava o fascínio. Os mais velhos iam morrendo, mas havia sempre outros mais novos e os animais iam-se extinguindo e o mercado bolsista prosperava. Era também uma indústria extremamente lucrativa para a Colónia e por essa razão o Departamento de Caça, que exercia o controlo sobre todos os que estava m ligados a esta indústria, inventou novas normas que regulavam tudo, ou quase tudo.
Não era o melhor momento para se estar a pensar em normas e ainda menos a pensar em Lame Deer onde se fica sentado numa pele de mula em frente de um tipi com duas caudas de águia abertas em leque com a parte de baixo voltada para cima para que se vissem as admiráveis pontas brancas e as penas delicadas sem dizer nada enquanto as observavam e contendo a língua durante o regateio. O Cheyerme que estava mais interessado só via as penas da cauda. Todas as outras coisas não existiam para ele, ou todas as outras coisas tinham desaparecido. Para ele, as águias das terras da Reserva existiam enquanto desenhavam círculos nos céus e eram inatingíveis quando poisavam num montículo de rochas cinzentas a observar o território. Por vezes conseguiam apanhar-se no meio de uma tempestade de neve quando se enfiavam debaixo dos rochedos voltando as costas à neve que fustigava. Mas aquele homem também não estava bom para tempestades de neve. Só os mais jovens conseguiam, e esses tinham partido.
Ficava-se sentado sem dizer nada, sem dizer nada e estendendo por vezes a mão para tocar as caudas das águias e afagar as penas delicadamente. Pensa-se no cavalo e que o segundo urso tinha vindo pelo desfiladeiro até junto do cavalo depois do abate das águias quando era ainda um isco para ursos e no modo como tinha sido atingido com um tiro demasiado baixo com a pouca luz, apontando-lhe da orla do bosque onde se estava contra o vento, e como o urso tinha rolado, erguendo-se de seguida com um urro batendo em si próprio com as patas como se estivesse a afugentar alguma coisa que o picasse e depois tombara nas quatro patas e avançara aos sacolejos como um camião que tivesse saído da estrada até receber mais dois tiros enquanto descia a encosta, a última vez tão perto que se podia cheirar o pêlo queimado. Pensa-se nele e no primeiro urso. A pele tinha-lhe sido tirada e saca-se do bolso da camisa as longas garras do grizzly para se colocarem atrás das caudas das águias. Depois não se diz mais nenhuma palavra e o negócio começa. Há muitos, muitos anos que não se viam garras de grizzly e o negócio correu bem.
Os negócios não corriam lá muito bem nessa manhã, mas o melhor de tudo eram as cegonhas. Mary só as tinha visto duas vezes em Espanha. A primeira vez tinha sido numa vilória de Castela quando atravessávamos as montanhas em direcção a Segóvia. A vila tinha um belo largo e tínhamos parado lá na hora do calor e fugido da luz que cegava para o escuro fresco de um albergue a encher as botas de vinho. O albergue era fresco e acolhedor e tinham uma cerveja fresquíssima e na terra havia uma tourada um dia do ano na tal linda praça onde todos os que queriam tourear podiam enfrentar os três touros que eram largados dos currais. Havia quase sempre pessoas feri- das ou mortas e era o grande acontecimento social do ano.
Naquele dia particularmente quente de Castela, Miss Mary tinha descoberto as cegonhas anichadas no cimo do campanário da igreja que tinha assistido a tantos acidentes tauromáquicos, A mulher do alberguista tinha-a levado ao quarto de cima da casa de onde as podia fotografar e eu fiquei no bar a falar com o dono da empresa local de transporte e camionagem. Falámos das diferentes cidades castelhanas que tinham sempre ninhos de cegonha nas igrejas e pelo que dizia o camionista continuava a haver muitíssimas. Ninguém fazia mal às cegonhas em Espanha. São uma das raras aves que são realmente respeitadas e, naturalmente, dão sorte à aldeia.
O alberguista falou-me num compatriota meu, ou inglês ou coisa assim; pensavam que era canadiano que estava na terra há certo tempo com uma avaria na mota e sem dinheiro. Sabia que acabaria por receber dinheiro e tinha encomendado para Madrid a peça que a moto precisava, mas continuava à espera. Todos gostavam dele na vila e tinham pena que ele não estivesse para eu poder conhecer um compatriota que sabe-se lá se não seria da mesma cidade que eu. Tinha ido pintar para um sítio qualquer, mas eles disseram que se podia mandar alguém procurá-lo para o trazer. O alberguista explicou-me que esse tal compatriota meu não falava nada de espanhol a não ser a palavra joder. Era conhecido como Sr. Joder e se eu quisesse deixar algum recado para ele podia deixá-lo ao alberguista. Pus-me a pensar na mensagem que poderia deixar a um compatriota com um nome tão decisivo e finalmente acabei por lhe deixar uma nota de cinquenta pesetas dobrada de uma certa maneira bem conhecida dos mais batidos das viagens em Espanha. Todos se mostraram encantados e todos garantiram que o Sr. Joder não deixaria de gastar essa noite aqueles dez duros sem descolar do bar mas que ele e a mulher iam fazer com que comesse alguma coisa.
Perguntei-lhes então que tal era a pintura do Sr. Joder e o camionista disse: «Hombre, não é nenhum Velásquez nem nenhum Goya ou Martínez de León. Isso garanto eu. Mas os tempos agora são outros e quem somos nós para estar com críticas?» Miss Mary desceu dos aposentos de cima onde tinha estado a fotografar e disse que tinha tirado umas boas fotografias, bem nítidas das cegonhas, mas que não serviriam de muito porque não tinha teleobjectiva. Pagámos uma rodada de cerveja fresca aos presentes e todos foram dizer-nos adeus enquanto rolávamos pela praça na luz ofuscante em direcção à encosta íngreme que dominava a povoação e às montanhas que nos levariam a Segóvia. Parei por cima da vila e olhei para baixo, avistando a cegonha macho a voltar fielmente num voo elegante ao ninho do campanário. Tinha descido ate ao rio onde as mulheres batiam a roupa e mais tarde vimos uma ninhada de perdizes a atravessar a estrada e depois um lobo ainda nessa região desértica das montanhas cobertas de fetos.
Foi no mesmo ano em que estivemos em Espanha a caminho de África e agora aqui estávamos no meio de uma floresta amarela e verde destruída pelos elefantes quase na mesma altura em que atravessávamos a montanha em direcção a Segóvia. Num mundo em que tais coisas podiam acontecer não me ficava muito tempo para tristezas. Antes, estava convencido que não voltaria a ver Espanha e só lá voltei para mostrar o Prado a Mary. Como me lembrava de todos os quadros que realmente amava e que portanto me pertenciam como se fosse dono deles não sentia a necessidade de os ver de novo antes de morrer. Mas era muito importante para mim vê-los com Mary se tal fosse possível e se pudesse fazê-lo sem compromissos nem indignidade. Queria também que ela visse Navarra e as duas Castelas e queria que visse um lobo nas montanhas e um ninho de cegonhas numa aldeia. Gostaria de lhe mostrar a pata de um urso pregada na porta da igreja de Barco de Ávila mas se calhar era esperar demasiado pensar que ainda lá estaria. No entanto, tínhamos encontrado as cegonhas com bastante facilidade e haveríamos de ver mais e tínhamos visto o lobo e contemplado Segóvia de uma elevação próxima e agradável, chegando por uma estrada que os turistas não conhecem mas que os viajantes tomam habitualmente. já não existem estradas assim em torno de Toledo, mas Segóvia ainda se pode ver como se chegássemos a pé da montanha e assim observámos a cidade como se fosse vista pela primeira vez por pessoas que a descobrissem por acaso mas que desde sempre tinham desejado conhecê-la.
Existe, em teoria apenas, uma certa virgindade no nosso primeiro olhar sobre uma bela cidade ou uma grande pintura. Isto é apenas uma teoria e parece-me que falsa. Todas as coisas de que gostei, olho-as sempre com um olhar novo, mas é sempre maravilhoso mostrá-las a outra pessoa e faz-nos sen- rir menos sós. Mary tinha adorado Espanha e África e tinha aprendido naturalmente os seus segredos e a bem dizer sem perceber que os tinha aprendido. Nunca lhe expliquei tais segredos; apenas as coisas mais técnicas ou divertidas e o maior prazer para mim próprio vinha-me das descobertas dela. É estúpido estar à espera ou confiar que a mulher que amamos venha a gostar de todas as coisas que amamos. Mas Mary tinha gostado do mar, de viver num barquinho pequeno e gostava de pescar. Gostava de pintura e tinha gostado do Oeste dos Estados Unidos quando lá fomos pela primeira vez. Nunca fingia, e isto constituía um grande presente que nos fazia, pois tinha já acompanhado uma grande simuladora em tudo e a vida com uma grande simuladora dá a um homem uma visão realmente pouco sedutora de uma data de coisas levando-o por vezes a apreciar mais a solidão do que a partilhar o que quer que seja.
Enfim, nessa manhã em que o dia se tornava cada vez mais quente e o vento fresco da Montanha não se tinha ainda levantado andávamos a ver se descobríamos uma nova picada para sair da floresta que os elefantes tinham destruído. Quando desembocámos na pradaria aberta depois de termos sido obrigados a abrir caminho pelo meio de alguns sítios impraticáveis avistámos o primeiro grande bando de cegonhas à procura de comida. Eram verdadeiras cegonhas da Europa, pretas e brancas, de pernas vermelhas e estavam ocupadas com as lagartas como se fossem cegonhas alemãs bem disciplinadas. Miss Mary gostou delas e elas significavam muito para ela desde que tínhamos lido um artigo que nos deixara inquietos ao afirmar que as cegonhas estavam em vias de extinção e agora verificávamos que tinham simplesmente tido o bom senso de vir para África tal como nós; só que elas não a aliviaram das suas mágoas e prosseguimos em direcção ao acampamento. Não sabia o que devia fazer quanto à mágoa de Miss Mary. Parecia ser à prova de águias e à prova de cegonhas, que a mim me deixavam perfeitamente sem defesas, e comecei a perceber como aquela mágoa era profunda.
- Em que estiveste a pensar a manhã toda, que estiveste tão calada, contra o que é costume?
- Em aves e em sítios e em como és simpático.
- Muito simpático da tua parte.
- Não era nenhum exercício espiritual.
- Vou ficar melhor. As pessoas não saem logo dos poços sem fundo onde caíram.
- Vão incluir isso nas provas dos próximos Jogos Olímpicos.
- Ganhas tu, muito provavelmente.
- Tenho os meus apoiantes.
- Os teus apoiantes estão todos mortos como o meu leão. Provavelmente mataste os teus apoiantes um dia em que te sentias especialmente bem.
- Olha, outro campo de cegonhas.
A África é um lugar perigoso para uma grande mágoa perdurar quando há apenas duas pessoas num acampamento e quando escurece pouco depois das seis da tarde. Deixámos de falar de leões ou de pensar neles e o vazio onde vivera a mágoa de Mary começava de novo a encher-se com a rotina e a estranha beleza desta vida e o cair da noite. Quando a fogueira começava a apagar-se eu puxava um dos ramos compridos e pesados do monte de lenha seca que o camião tinha trazido à tarde e juntava-o às brasas e ficávamos sentados nas nossas cadeiras a ver a brisa da noite a reanimar as brasas e a ver a lenha romper em chamas. Esta brisa nocturna era um ventinho que chegava das neves da Montanha. Era tão ligeiro que mal se sentia, mas podia ver-se nas chamas. Podia ver-se o vento de muitas maneiras, mas a mais maravilhosa era à noite ao atiçar, avivando-as e atenuando-as, as chamas da fogueira.
- Nunca estamos sós junto à nossa fogueira - disse Mary - Estou contente por agora estarmos só nós e a nossa fogueira. Achas que aquele tronco vai arder até de manhã?
- Acho que sim - disse eu - Se não se levantar vento.
- É estranho já não termos que ir à procura do leão pela manhã e tu agora já não tens mais problemas nem preocupações, pois não?
- Não. Agora está tudo calmo - menti.
- Sentes a falta de todos os problemas que tu e o C.C. tinham?
- Não.
- Talvez agora seja possível tirar umas fotografias mesmo boas do búfalo e outras fotografias a cores. Onde achas que andarão os búfalos?
- Devem andar para os lados dos Chulu. Logo se vê quando o Willie chegar com o Cessna.
- Não é estranho que a Montanha ao cuspir todas aquelas pedras há centenas e centenas de anos possa ter criado um lugar onde é impossível chegar ao ponto de ninguém poder lá entrar e nunca ninguém tenha lá ido desde que o homem começou a andar sobre rodas?
- O homem hoje sente-se perdido sem as suas rodas. Os nativos já não querem ser carregadores e as moscas matam os animais de carga. As únicas partes de África que se mantêm são as que estão protegidas por desertos e pelas moscas. A mosca tsé-tsé é o melhor amigo dos animais. Só mata os animais de fora e os intrusos.
- Não é estranho amarmos realmente os animais e mesmo assim os matar-mos a bem dizer todos os dias pela carne?
- Não é muito diferente de tratar das galinhas e continuar a comer ovos ao pequeno-almoço e comer frangos quando nos apetece.
- É diferente.
- Claro que é. Mas o princípio é o mesmo. Apareceu tanta caça com a erva nova que não devemos ter nenhuns problemas de leões por muito tempo. Não há motivos para andarem a inquietar os massai com toda a caça que agora há.
- Os massai têm muito gado, de qualquer maneira.
- Isso é.
- Às vezes penso que fomos parvos em andar a defender-lhes o gado.
- Quem não se sente parvo em África uma boa parte do tempo é porque é um parvo completo - disse eu com um ar bastante pedante, dá-me a impressão. Mas estava a fazer-se suficientemente tarde para as generalizações começarem a aparecer, do mesmo modo que algumas estrelas parecem distantes relutantes da sua distância e desinteresse e outras parecem fulgurantes na sua claridade.
- Achas que é hora de ir para a cama? - perguntei.
- Vamos - disse ela - E vamos ser bons gatinhos e esquecer tudo o que não correu bem. E quando estivermos deitados podemos escutar a noite. Fomos pois para a cama e sentimo-nos felizes e amámo-nos sem mágoas e escutando os ruídos da noite. Uma hiena chegou perto da tenda depois de termos abandonado a fogueira e eu esgueirei-me por baixo do mosquiteiro e de entre os lençóis e cobertores e fiquei encostado ao pano da tenda deixando a Mary a maior parte da cama. A hiena fez-se ouvir várias vezes naquela sua estranha maneira cada vez mais aguda e outra respondeu-lhe e andaram Pelo acampamento e depois ao longe. Podíamos ver o brilho das brasas a avivar-se com o vento e Mary disse: «Somos dois gatinhos em África com a nossa bela e fiel fogueira e as feras que andam na sua vida nocturna. Gostas mesmo de mim, não gostas?
- Que te parece?
- Acho que sim.
- Não tens a certeza?
- Tenho, tenho sim.
Passados instantes, ouvimos tossir dois leões que andavam à caça e as hienas calaram-se. Depois a uma grande distância para Norte, para os lados da orla da floresta de rochas, Para além do território dos gerenuk, ouvimos o rugido de um leão. Era o rugido poderoso e vibrante de um grande leão e eu abracei Mary com força enquanto o leão tossia e resmungava de seguida. É outro leão - murmurou.
Pois é - disse eu - E não temos nada contra ele. E sempre quero ver se me aparece algum massai a dizer mal dele.
- Vamos olhar bem por ele, não vamos? Para ele ser o nosso leão como a fogueira é a nossa fogueira.
- Vamos deixá-lo ser o seu próprio leão. É a única coisa em que realmente está interessado.
Mary tinha voltado a adormecer e pouco depois adormeci também e quando acordei e voltei a ouvir o leão ela já ali não estava e podia ouvi-la a respirar regularmente na cama dela.
- Mensahib doente? - perguntou Mwindi enquanto empilhava as almofadas para que Mary pudesse ficar deitada com a cabeça voltada para a entrada da tenda aberta de par em par e verificando o colchão de ar da cama com a palma da mão antes de esticar o lençol sem uma prega por cima do colchão e de os apanhar firmemente por baixo.
- Está. Um bocado.
- Talvez por comer leão.
- Não. Já estava doente antes de matar o leão.
- Leão corre muito depressa muito depressa. Estava muito zangado e muito triste quando morreu. Talvez faz veneno.
- Tretas - disse eu.
- Hapana tretas - disse Mwindi num tom grave - Bwana Capitão também comer leão. Também doente.
- Bwana capitão doente com a mesma doença há muito tempo desde Salengai.
- Comer leão em Salengai também.
- Mingi tretas - disse eu - Ele doente antes de eu matar leão. Hapana comer leão em Salengai. Comer leão aqui depois de safari de Salengai. Quando leão esfolado em Salengai tudo metido em caixas de carne. Ninguém comeu essa manhã. Lembras-te mal.
Mwindi encolheu os ombros sob a sua longa túnica. «Comer leão bwana Capitão doente. Mensahib doente.»
- Quem comeu leão e está bem? Eu,
- Shaitam - disse Mwindi - Ver patrão doente de morrer antes. Muitos anos antes quando patrão homem novo e doente de morrer depois de matar leão. Todos sabem tu morto. Ndege sabe. Bwana sabe. Memsahib sabe. Todos se lembram quando tu morto.
- Tinha comido leão?
- Não.
- Estava doente antes de matar esse leão?
- Ndio - disse Mwindi relutante - Muito doente.
- Eu e tu falamos demais.
- Somos mzee. Patrão fala se quer falar.
- Kwisha conversa - disse eu - Estava farto daquele inglês macarrónico e não me encantava muito a ideia que se formava.
- Memsahib vai para Nairobi no ndege amanhã. O doutor em Nairobi cura doença dela. Volta de Nairobi bem e forte. Kwisha - disse eu pondo fim à conversa.
- Mzuri sana - disse Mwindi - Fazer malas.
Saí da tenda e Ngui estava à espera debaixo da árvore grande. Tinha a minha espingarda.
- Sei onde estão dois kwali. Mate-os para Miss Mary.
Mary ainda não tinha voltado e descobrimos os dois francolins que se espojavam num pedaço de lama seca na orla das grandes árvores da febre. Eram pequenos e corpulentos e muito bonitos. Agitei a mão para eles e desataram a fugir rentes ao solo em direcção aos arbustos e acertei num ainda em terra e o outro ao levantar voo.
- Mais algum?
- Dois bastam.
Passei-lhe a espingarda e retomámos o caminho de volta, levando eu na mão as duas aves rechonchudas, tépidas e de olhos brancos com as penas suaves agitadas pelo vento. Ia pedir a Mary que as procurasse no livro dos pássaros. Tinha quase a certeza que nunca os tinha visto antes e que deviam pertencer a uma variedade do Kilimanjaro. Um deles dava um belo caldo de legumes e o outro calhava bem para o caso de ela querer uma comida mais consistente. Ia dar-lhe um pouco de terramicina e de clorodina para pôr as coisas em ordem. Não estava muito certo quanto à terramicina, mas parecia que Mary não reagia mal.
Estava sentado numa boa cadeira no fresco da tenda da messe quando vi Mary a chegar à nossa tenda. Lavou-se e depois veio ter comigo e entrou na tenda e sentou-se.
- Santo Deus - disse ela - Não quero falar no caso.
- Podia levar-te e trazer-te no carro de caça.
- Não. É tão grande que parece um carro funerário.
- Engole agora isto se podes aguentar.
- Era muito arriscado se tomasse um gimlet para me animar?
- Não devias beber, mas eu sempre bebi e ainda aqui estou.
- Eu não sei bem se aqui estou ou não. Gostava de saber.
- Vamos já saber.
Preparei um gimlet e depois disse-lhe que não havia pressa para tomar os medicamentos, que podia ir deitar-se um bocado e ler se lhe apetecesse ou que eu podia ler para ela se preferisse.
- Que é que caçaste?
- Um par de francolins pequenos. Parecem perdizes pequenas. Vou-os já buscar para tu veres. Vão ser o teu jantar.
- E o almoço?
- Vamos ter um bom caldo de tommy e puré. Vamos livrar-te dessa história num instante e não estás assim tão mal que não comas. Dizem que a terramicina é mais eficaz do que o Yatren de antigamente. Mas preferia que tivéssemos Yatren. Estava convencido que o tínhamos na farmácia de campanha.
- Estou sempre com sede.
- Eu lembro-me. Vou mostrar a Mbebia como é que se faz água de arroz e vou-a pôr ao fresco numa garrafa dentro do saco de água e depois podes beber quanta quiseres. É boa para a sede e não perdes forças.
- Não percebo porque é que tenho de ficar doente. Levamos uma vida tão saudável.
- Gatinha, podias estar também com febre.
- Mas eu tomo o remédio contra a malária todas as noites e lembro-te que tomes o teu e usamos sempre as nossas botas contra os mosquitos quando estamos junto à fogueira à noite.
- Exacto. Mas no pântano depois do búfalo fomos picados centenas de vezes.
- Não, dúzias.
- Centenas, no meu caso.
- Tu és maior. Põe os braços nos meus ombros e abraça-me com força.
- Somos uns gatinhos com sorte -- disse eu - Todos apanham febres quando vão para uma terra onde isso é o prato do dia e já estivemos em dois países de febres más.
- Mas eu tomei os meus medicamentos e fiz que tomasses os teus.
- E por isso não apanhámos febres. Mas também estivemos num país onde havia essa doença do sono tramada e bem sabes a quantidade de moscas tsé-tsé que lá havia.
- E eram bem tramadas junto ao Ewaso Ngiro. Lembro-me de voltar a casa ao fim do dia e elas picarem como uma daquelas pinças de arrancar pêlos aquecida ao rubro.
- Nunca vi aquecer ao rubro uma pinça de arrancar pêlos.
- Nem eu, mas era assim que elas picavam naquela floresta cerrada onde vivia o rinoceronte. Aquele que se atirou ao G.C. e ao cão dele Kibo e os atirou ao rio. Mas foi um acampamento maravilhoso e divertimo-nos a valer quando começámos a caçar sozinhos. Era vinte vezes mais divertido do que andar com alguém e eu portava-me bem e era obediente, lembras-te?
- E estávamos tão perto de tudo naquela floresta verde que era como se fôssemos as primeiras pessoas que lá entravam.
- Lembras-te daquele sítio onde havia tanto musgo e as árvores eram tão altas que dava a impressão que nunca lá tinha entrado o sol e nós caminhávamos tão silenciosos como índios e tu levaste-me até tão perto do impala sem ele nos ver e quando encontrámos a manada de búfalos mesmo do outro lado do riacho a seguir ao acampamento?
- Lembro-me, gatinha linda, e agora não me vais adoecer porque a terramicina vai tratar disso hoje à noite ou amanhã de manhã.
- Acho que já está a actuar.
- O Cucu nunca teria dito que era melhor do que o Yatren e o Carbsone se não fosse mesmo eficaz. Os remédios milagrosos fazem-nos sentir abananados enquanto não fazem efeito. Mas ainda me lembro de quando o Yatren era um remédio milagroso e nesse tempo era mesmo.
- Tenho uma bela ideia.
- O quê, minha gatinha querida?
- Estava a pensar que podíamos dizer ao Harry que viesse com o Cessna e tu e ele iam ver todos os vossos animais e os vossos problemas e depois eu seguia com ele para Nairobi para ir a um bom médico tratar esta disenteria ou lá o que é e podia comprar presentes de Natal para todos e tudo o que é preciso para o Natal.
- Aqui diz-se Nascimento do Menino Jesus.
- Eu continuo a dizer Natal - disse ela - E há uma data de coisas que precisamos. Não era assim muito má ideia, não achas?
- Acho que era uma maravilha. Vamos mandar recado por Ngong. Quando é que querias o avião?
- Que dizes se fosse depois de amanhã?
- Depois de amanhã é o dia mais maravilhoso que há a seguir a amanhã.
- Vou ficar estendida só a sentir a brisa que vem da neve da nossa Montanha. Vai fazer urna bebida para ti, lê e descansa.
- Vou mostrar a Mbebia como se faz a água de arroz.
Mary sentia-se muito melhor ao meio-dia e à tarde dormiu mais um pouco, de modo que à noite já estava completamente boa e com fome. Eu estava contentíssimo por a terramicina ter dado efeito e por ela não ter reagido mal e disse a Mwindi, batendo com os nós dos dedos na madeira da coronha da minha espingarda, que tinha curado Miss Mary com uma dava poderosa e secreta mas que a ia mandar no dia seguinte de ndege a Nairobi para confirmar a cura por um doutor europeu.
- Mzuri - disse Mwindi.
Fizemos por isso um jantar ligeiro, se bem que delicioso e alegre, e o acampamento voltou a encontrar a sua alegria e a doença e a tristeza causadas pela festa-da-comida-de-leão, que pela manhã se tinha afirmado, dissiparam-se corno se nunca tivessem existido. Havia sempre aquelas teorias que surgiam a explicar qualquer desgraça e a primeira e mais importante era atribuir as culpas a alguém ou a alguma coisa. Dizia-se que Miss Mary era perseguida por uma extraordinária e inexplicável má sorte, que andava a expiar, mas que também tinha o poder de dar muita sorte aos outros. Dedicavam-lhe uma grande afeição. De facto, Arap Meina venerava-a e Chungo, o chefe dos pisteiros de G.C., estava apaixonado por ela. Arap Meina venerava muito poucas coisas pois a sua religião tinha-se tornado numa confusão inextricável, mas tinha-se dedicado a uma veneração de Miss Mary que, ocasionalmente, atingia picos de êxtase, próximos do fanatismo. Adorava G.C., mas com uma espécie de fascínio de miúdo mesclado de dedicação. Tinha acabado por me dedicar uma grande afeição, ao ponto de me sentir obrigado a explicar-lhe que o que me interessava eram as mulheres e não os homens, embora fosse capaz de amizades profundas e duradouras. Mas todo o seu amor e devoção que tinha distribuído por toda uma encosta do Kilimanjaro com total sinceridade e quase sempre sendo retribuído, dispensando-os sem distinção a homens, mulheres, crianças, rapazes e raparigas e a todos os tipos de álcool e ervas-dos-heróis disponíveis, concentravam-se agora nesta sua enorme capacidade de afeição por Miss Mary.
Arap Meina não era de uma beleza por aí além, apesar de muito elegante e marcial no seu uniforme com as abas do boné cuidadosamente dobradas por cima das orelhas de modo a formarem uma espécie de nó como o que as deusas gregas usavam no cabelo à maneira de uma trança de Psyche. Mas tinha para oferecer a lealdade de um velho caçador furtivo de elefantes reconvertido numa reconversão tão impecável que a podia oferecer a Miss Mary como quem oferece a sua virgindade. Os wakamba não são homossexuais. Os lumbwa não sei pois Arap Meina era o único lumbwa que eu conhecia de perto, mas iria dizer que Arap Meina se sentia fortemente atraído por ambos os sexos e o facto de Miss Mary, com o mais curto dos cortes de cabelo à africana, apresentar o puro rosto de um rapaz hamita com um corpo que era tão feminino como o de uma boa esposa massai jovem era um dos factores que tornara a dedicação de Arap Meina em veneração. Não lhe chamava Mamã, que é o modo habitual como os africanos se referem a uma mulher branca casada quando não está virado para a tratar por memsahib, mas sempre mummy. Nunca ninguém chamara mummy a Miss Mary, que disse a Arap Meina para não a tratar desse modo. Mas esse era o mais elevado título que ele tinha apurado dos seus contactos com a língua inglesa e por isso chamava-lhe Mummy Miss Mary ou Miss Mary Mummy, consoante tivesse estado a consumir cascas e ervas-dos-heróis ou simplesmente viesse de um encontro com o seu velho amigo, o álcool.
Estávamos sentados diante da fogueira depois do jantar a falar da devoção de Arap Meina por Miss Mary, mostrando-me eu inquieto por não o ter visto ainda nesse dia, quando Mary disse: «Não será mau que todos estejam apaixonados por toda a gente como acontece em África, que dizes?»
- Não.
- Tens a certeza de que isso não vai causar qualquer coisa de terrível de um momento para o outro?
- Isso está sempre a causar coisas terríveis entre os europeus. Bebem demasiado e metem-se nas vidas uns dos outros e depois dizem que é por causa da altitude.
- Há qualquer coisa que tem a ver com a altitude ou com a altitude no equador. É o único sítio de que me lembro onde o gin sabe a água. É mesmo verdade e por isso deve ter alguma coisa a ver com a altitude ou coisa assim.
- Claro que alguma coisa há. Mas nós que nos desunhamos a trabalhar, que caçamos a pé e suamos o álcool que bebemos, escalamos o raio dessas escarpas e subimos essa Montanha, não temos de nos preocupar com a bebida. Sai-nos pelos poros. Querida, tu andas mais a pé quando vais à latrina para cima e para baixo do que o que andam a pé em toda a África a maior parte das mulheres que cá vêm em safari.
- É melhor não falar na latrina. Agora há um belo carreiro até lá e está servida pelo melhor material de leitura. já acabaste o tal livro sobre o leão?
- Não, Estou a guardá-lo para quando partires.
- Não guardes coisas demais para quando eu partir.
- Foi só isso.
- Espero que te ensine a seres prudente e bom. - já o sou naturalmente.
- Não és nada. Tu e o G.C. podem ser uns bons monstros às vezes, bem sabes. Quando penso no que um bom escritor como tu, um homem estimável e meu marido, anda a fazer com o G.C. nessas coisas horríveis à noite.
- Temos de estudar os animais à noite.
- Não é o que fazem. Andam mas é a fazer coisas abomináveis para se armarem diante um do outro.
- Não acho que seja isso, a sério, gatinha. É para nos divertirmos. Quando se deixa de fazer coisas para nos divertirmos é o mesmo que estar morto.
- Mas não é preciso fazer coisas que vos ponham em risco e andar a fingir que o Land Rover é um cavalo e que estás numa corrida no Grand National. Nenhum dos dois monta suficientemente bem para correr sequer em Aintree.
- Lá isso é verdade e por isso é que estamos reduzidos ao Land Rover. G.C. e eu temos as distracções simples dos honestos homens do campo.
- Vocês são dois dos mais desonestos e perigosos homens do campo que eu conheço. Já nem sequer me esforço por os disciplinar porque bem sei que é inútil.
- Não digas mal de nós lá porque nos vais deixar.
- Não é isso. É só porque por uns instantes senti-me horrorizada a pensar em vocês os dois e na vossa ideia de divertimento. Seja como for, ainda bem que G.C. não está cá para não ficarem os dois aqui sozinhos.
- Trata de te divertires em Nairobi e vai consultar o médico, compra tudo o que quiseres e não te preocupes com esta manyatta. Vai ser tudo bem administrado, e em boa ordem e ninguém vai correr riscos inúteis nenhuns. Vou governar isto às mil maravilhas enquanto estiveres fora e vais ficar orgulhosa.
- Porque não escreves alguma coisa para eu ficar realmente orgulhosa?
- Talvez escreva alguma coisa também. Quem sabe?
- Não me importo com as tuas namoradas desde que gostes mais de mim. Gostas, não gostas?
- Gosto mais de ti e ainda hei-de gostar mais quando voltares.
- Quem me dera que também pudesses vir.
- Eu não. Detesto Nairobi.
- Para mim é uma cidade completamente nova e gostava de a conhecer e também há lá pessoas simpáticas.
- Então vai lá, diverte-te e volta.
- Agora gostava de não ser obrigada a ir. Mas vai ser divertido voar com o Willie e depois ter o prazer de voltar para junto do meu gatão e o prazer dos presentes. Não te esqueces de apanhar um leopardo, pois não? Bem sabes que prometeste ao Bill arranjar um leopardo antes do Natal.
- Não me esqueço, mas prefiro fazê-lo sem ter de andar preocupado.
- Era só para ter a certeza de que não te tinhas esquecido.
- Não me esqueci. E não me vou esquecer de lavar os dentes nem de apagar as estrelas à noite nem de pôr a hiena lá fora.
- Não troces. Vou embora.
- Bem sei e não tem piada nenhuma.
- Mas depois volto e vou trazer grandes surpresas.
- A maior e a melhor surpresa é quando vejo a minha gatinha.
- Ainda é melhor quando é no nosso próprio avião. E vou ter uma surpresa especial e fantástica mas é segredo.
- Acho que devias ir para a cama, gatinha, porque ainda que pareça que estás a ficar boa, tens de descansar bem.
- Leva-me ao colo para a cama como eu pensava que ias ter de fazer quando me senti a morrer esta manhã.
Peguei, pois, nela ao colo e senti que tinha o peso exacto que a mulher que amamos deve ter quando a levantamos nos braços e não era nem grande demais nem demasiado pequena, sem as longas pernas pendentes das beldades americanas. Era fácil e bom levá-la nos braços e deslizou para a cama com tanta graça como um barco na calha de lançamento.
- A cama não é um coisa maravilhosa?
- A cama é a nossa Pátria.
- Quem disse?
- Eu - afirmei todo orgulhoso - Mas tem outro impacto em alemão.
- Não é bom não termos de falar alemão?
- É - disse eu - Especialmente porque não sabemos.
- Tu impressionaste-me bastante a falar alemão no Tanganica e em Cortina.
- Era a fingir. Por isso é que impressiona.
- Gosto muito de ti em inglês.
- Também eu e agora vê se dormes bem para teres uma boa viagem amanhã. Vamos dormir como dois lindos gatinhos e ficar todos contentes por já estares boa.
Quando Willie passou em voos rasantes por cima do acampamento, precipitámo-nos para o sítio onde estava a manga de ar, pendendo inerte contra o tronco de árvore descascado e ficámos a observar a sua curta e delicada aterragem nas flores esmagadas que o camião tinha alisado antes. Transportámos a carga para o carro de caça e eu passei uma vista de olhos pelo correio e pelos cabos enquanto Mary e Willie conversavam no banco da frente. Separei as cartas de Mary e as minhas, pondo no maço de Mary as que tinham Sr. e Sra. no endereço. Não havia nenhumas notícias verdadeiramente más e duas eram encorajadoras.
Na tenda da messe, Mary ficou a uma mesa a ler o correio e eu partilhei com Willie uma garrafa de cerveja ao mesmo tempo que ia abrindo as cartas com pior aspecto. Todas elas dispensavam sem problemas uma resposta.
- Como vai a guerra, Willie?
- Continuamos a aguentar o Palácio do Governador, acho eu.
- E o Torrs?
- Definitivamente nas nossas mãos.
- O New Stanley?
- As terras de trevas e sangue? Ouvi contar que C.C. mandou avançar uma patrulha de hospedeiras do ar até ao Grill. Parece que um tipo chamado Jack Blod o está a aguentar. Belo gesto de valentia.
- Quem está com os Serviços de Caça?
- Preferia não falar no caso. Pelas últimas notícias que tive estavam a bem dizer numa coisa de cara ou coroa.
- Cara conheço eu - disse eu - Mas o coroa quem é?
- Um tipo novo, acho eu. Ouvi dizer que Miss Mary matou um belo leão enorme. Vamos levá-lo, Miss Mary?
- Claro, Willie.
À tarde a chuva parou tal como Willie tinha previsto e depois de terem levantado voo senti-me muito só. Não tinha querido ir à cidade e sabia que me ia sentir bem com as pessoas e os problemas da terra que amava, mas sentia a falta de Mary.
Havia sempre um sentimento de solidão depois da chuva, mas tinha a sorte de poder ler as cartas a que não tinha dado nenhuma importância ao recebê-las e voltei a dispô-las ordenadamente e pus os jornais em ordem também. Havia o East Afrícan Standard, as edições para avião do Tímes e do Telegraph num papel que parecia casca de cebola, um Tímes Literary SuppIement e uma edição para avião da Time. As cartas começaram por parecer sem interesse e fizeram-me sentir feliz por estar em África.
Uma carta que os meus editores solicitamente tinham feito seguir à custa de uma grande franquia era de uma mulher do lowa:
Guthrie Center, lowa
27 de Julho de 1953
Sr. Ernest Hemingway
Havana, Cuba
Li há alguns anos o seu «Na Outra Margem Entre as Árvores» quando foi publicado em folhetim na Cosmopolitan. Depois da bela descrição inicial de Veneza, esperava que o livro prosseguisse no mesmo tom, e se revelasse de peso considerável, mas fiquei profundamente desapontada. Não há dúvida que era a ocasião de desvendar a podridão que FAZ as guerras, assim como de denunciar a hipocrisia da própria organização militar. Em vez disso, o seu oficial mostra-se sobretudo desconsolado por ter sofrido o INFORTÚNIO PESSOAL de perder duas companhias de soldados e, por essa razão, não ter sido promovido. E é pouca ou NENHUMA a mágoa que mostra pelos próprios homens. Pareciam mais os vãos esforços de um velho a tentar convencer-se a si próprio e a outros velhos como ele que mulheres jovens, belas e mesmo ricas amariam um velho apenas por aquilo que ele é e não por ele lhes poder dar a riqueza e uma posição de relevo.
Mais tarde foi publicado O Velho do Mar e eu pedi ao meu irmão, que é um homem maduro, e passou quatro anos e meio na tropa durante a II Guerra, se este livro seria mais maduro emocionalmente do que o Rio e As Árvores e ele fez uma careta e disse que não.
Muito me surpreende que tenha havido um grupo de pessoas que lhe tenha atribuído o Prémio Pulitzer. Embora nem toda a gente esteja de acordo. Este recorte de jornal foi tirado da coluna de Harlan Miller, À Mesa do Café, publicada no The Des Moines Register and Tribune e há uns tempos que andava para lho enviar. Bastaria acrescentar que Hemingway é EMOCIONALMENTE IMATURO E UM TREMENDO CHATO para a crítica ficar completa. Viveu com quatro «esposas» e, se ainda não atingiu a moral, devia pelo menos aprender com os erros do passado a ter um pouco mais de Juízo. Porque não escreve ALGUMA COISA que valha a pena, antes de morrer?
Sra. G.S. Held
Via-se que esta senhora não tinha gostado nada do livro e tinha todo o direito de não gostar. Se estivesse no lowa tinha-lhe devolvido o dinheiro que tinha gasto para recompensar a eloquência dela e a referência à II Guerra. Parti do princípio que queria dizer II Guerra e não Longa e Lamentável e li também a parte onde tinha incluído o recorte:
Talvez me tenha mostrado ligeiramente caturra em relação a Hemingway: o escritor mais sobrevalorizado da nossa época, mas apesar de tudo um bom escritor. Os seus principais defeitos:
1) escasso sentido de humor, 2) um realismo de tipo juvenil, 3) um idealismo deficiente, se não inexistente, 4) um estilo bombástico de pêlos no peito
Era um prazer estar ali sentado a uma mesa da tenda vazia da messe a sós com a minha correspondência e a imaginar o irmão dela emocionalmente maduro a fazer uma careta talvez na cozinha a trincar um croquete tirado do frigorífico, ou sentado em frente da televisão a ver a Mary Martin no Peter Pan e pensei em como tinha sido simpático da parte desta senhora do lowa ter-me escrito e em como seria agradável ter aqui neste momento o tal irmão emocionalmente maturo a abanar a cabeça com uma careta.
Não se pode ter tudo, velho escriba, disse eu filosoficamente para os meus botões. O que ganhas por um lado, perde-lo noutro. O que tens a fazer é esquecer esse irmão emocionalmente maduro. Esquece-o, a sério. Tens que te desenrascar sozinho, meu menino. Por isso, esqueci e continuei a ler Nossa Senhora do lowa. Em espanhol, imaginava-a como Nuestra Señora de los Pategos e ao me ocorrer um tão magnífico nome percorreu-me uma lufada de devoção e de ardor à la Whitman. Mas que se dirijam bem a ela, disse em advertência para mim próprio. Não deixes que se desviem para o homem das caretas.
Era também estimulante ler o tributo do brilhante e jovem colunista. Havia nele aquela simples mas súbita catarse a que Edimind Wilson tinha chamado «o choque do reconhecimento», e ao reconhecer a qualidade deste jovem colunista que poderia perfeitamente ter encontrado um futuro brilhante no East African Standard, tivesse ele nascido no Império e desse modo assegurado uma autorização de trabalho, os meus pensamentos voltaram-se de novo, como quem se aproxima da borda de um precipício, para o bem amado rosto e as caretas do irmão da minha correspondente, mas agora os meus sentimentos pelo homem das caretas tinham-se mudado e já não me sentia tão atraído por ele como a princípio, imaginando-o antes sentado no meio de um milharal, incapaz de controlar as mãos à noite enquanto ouvia crescer as plantas do milho. Na shamba tínhamos espigas de milho que atingiam o tamanho do milho do Middle West. Mas ninguém as ouvia crescer durante a noite porque as noites eram frias e as espigas cresciam à tarde e à noite; ainda que crescessem à noite, não se poderiam ouvir devido ao falazar das hienas e dos chacais e dos leões quando andavam à caça e à algazarra que os leopardos faziam.
Mandei para o diabo aquela estúpida cabra do lowa a escrever cartas a pessoas que não conhece sobre coisas de que não percebe nada e desejei-lhe a graça de uma morte feliz o mais brevemente possível, mas lembrei-me da sua última frase: «Porque não escreve ALGUMA COISA que valha a pena, antes de morrer?» e pensei: sua cabra ignorante do lowa, já o fiz e hei-de voltar a fazê-lo muitas vezes.
Berenson estava bem, o que me deixou contente, e estava na Sicília, o que me desagradou desnecessariamente uma vez que ele sabia melhor do que eu o que andava a fazer. Marlene andava com problemas mas tinha conseguido um triunfo em Las Vegas e juntava os recortes dos jornais. Tanto a carta como os recortes eram comoventes. A casa de Cuba estava OK, mas havia muitas despesas. As feras estavam todas bem. Ainda havia dinheiro no banco de Nova lorque. Idem aspas no de Paris mas na zona baixa. Todos em Veneza estavam bem, excepto os que tinham sido enfiados em casas de saúde ou estavam a morrer de várias doenças incuráveis. Um dos meus amigos tinha ficado gravemente ferido num acidente de carro e vieram-me à memória os súbitos mergulhos num nevoeiro que faróis nenhuns conseguiam atravessar quando se rodava ao longo da costa pela manhã cedo. Pela descrição das múltiplas fracturas punha em dúvida que ele, que amava a caça acima de todas as coisas, pudesse voltar a disparar um tiro. Uma mulher que eu conhecia, admirava e amava estava com um cancro e não lhe davam nem três meses de vida. Outra rapariga que eu conhecia há dezoito anos, tendo-a encontrado pela primeira vez quando tinha dezoito anos, que eu tinha amado e de quem era amigo e que amara enquanto ela casava duas vezes, que tinha feito quatro fortunas graças à sua inteligência e tinha-as aguentado, esperava eu, e que tinha ganho todas as coisas tangíveis, que se podiam contar, usar, armazenar ou penhorar, e tinha perdido todas as outras, escrevia-me uma carta cheia de novidades, mexericos e mágoas. Havia verdadeiras notícias e as magoas não eram fingidas, e exprimia todas as queixas que cabem às mulheres. Tornou-se na carta mais triste de todas, pois que não poderia agora vir para África onde poderia ter uma vida agradável mesmo que não fosse por mais do que duas semanas. Sabia agora, já que não viria, que nunca mais a veria a não ser que o marido ma enviasse em viagem de negócios. Iria a todos os sítios onde eu tinha prometido levá-la, mas eu não iria com ela. Podia ir com o marido e chatearem-se um ao outro. Ele andaria sempre com o telefone de longa distância que lhe fazia tanta falta a ele como a mim um pôr do sol ou a Mary ver as estrelas à noite. Poderia gastar dinheiro, comprar coisas e acumular bens, comer em restaurantes caríssimos e Conrad Hilton abria, comprava ou projectava hotéis para ela e para o marido em todas as cidades do mundo que em tempos tínhamos planeado ver juntos. Não havia problemas para ela agora. Podia com a ajuda de Conrad Hilton levar a sua beleza perdida para camas confortáveis, com o telefone de longa distância sempre ao alcance da mão, e quando acordasse a meio da noite podia saber ao certo o que era o nada e o que não valia a pena essa noite e exercitar-se a contar dinheiro para adormecer de maneira a acordar tarde e não ter de enfrentar um novo dia demasiado depressa. Talvez Conrad Hilton abrisse um hotel em Laitokitok, pensei. Já ela poderia vir até cá e ver a Montanha e haveria guias do hotel para a levarem a conhecer o Sr. Sitigh e Brown e Benji e seria, talvez, colocada uma placa a assinalar o sítio da antiga boma da polícia e poderiam comprar recordações nos Anglo-Massai Stores Ld. Haveria Caçadores Brancos correntes quentes e frios em todos os quartos, todos com fitas de pele de leopardo nos chapéus e em vez das Bíblias Gideon haveria em todas as mesinhas de cabeceira ao lado do telefone de longa distância exemplares de Whíte Hunter, Black Heart e de Something of Value autografados pelos autores e impressos em papel especial todos-os-usos com retratos dos autores nas costas das capas de maneira a brilharem no escuro.
Pensando neste hotel e no modo como estaria decorado e administrado de maneira a reproduzir um safari de vinte e quatro horas, com todas as feras garantidas, e dormindo todas as noites no próprio quarto guarnecido de TV coaxial, os menus, o pessoal da recepção todo de comandos anti-mau-mau e os melhores Caçadores Brancos, e as pequenas atenções dedicadas aos hóspedes como por exemplo deixar na primeira noite ao lado do prato de cada conviva ao jantar a sua nomeação como Guarda-Caça Honorário e na segunda noite, e em geral na última, o cartão de Membro Honorário da Associação de Caçadores Profissionais da África Oriental, deixava-me encantado mas não queria esgotar o tema completamente antes de ter ali juntos Mary, G.C., Willie. Miss Mary, tendo sido jornalista, era dotada de magníficas capacidades inventivas. Nunca a ouvi contar uma história duas vezes da mesma maneira e deu-me sempre a impressão de que a retocava a cada nova edição. Também tínhamos necessidade de Pop pois precisava da autorização dele para o colocar em tamanho natural na entrada do hotel no caso de ele algum dia vir a morrer. Era capaz de ter de enfrentar alguma resistência da parte da família dele mas poderíamos discutir o projecto no seu conjunto de maneira a chegar à solução mais razoável. Pop nunca manifestara um amor por aí além por Laitokitok que olhava mais ou menos como uma armadilha do pecado e acho que gostaria de ser enterrado nas altas colinas do seu próprio país. Mas podíamos, pelo menos, discutir o caso.
Compreendendo que não havia nada melhor para afastar a solidão do que as piadas, a derisão e o desprezo pelas piores consequências do que quer que seja e que o humor negro era o mais eficaz senão o mais duradouro, dado que é necessariamente momentâneo e frequentemente mal visto, desatei-me a rir ao ler esta carta tão triste e ao pensar no novo Hilton de Laitokitok. O sol estava quase a pôr-se e sabia que Mary estaria neste momento no New Stanley e possivelmente a tomar banho. Gostava de pensar nela no banho e esperava que passasse uma noite divertida na cidade. Não gostava dos lugares suspeitos que eu frequentava e pensei que provavelmente iria ao Travelers Club ou a um sítio desses e agradava-me a ideia de ser ela e não eu quem se divertia desse modo.
Deixei de pensar nela e pensei em Debba e que tínhamos prometido levá-la a ela e à Viúva a comprar tecidos para roupas para vestirem nas festas do Nascimento do Menino Jesus. Esta compra oficial de roupas com a minha noiva presente e a escolher o tecido que eu pagaria sob a observação de quarenta ou sessenta mulheres e guerreiros massai era o mais formal e decisivo acontecimento que Laitokitok podia oferecer na temporada social ou provavelmente em qualquer outra. Sendo escritor, o que é uma desdita mas também muito cómodo por vezes, perguntava a mim próprio, incapaz de conciliar o sono, como é que Henry James teria gerido esta situação. Recordei-o na varanda do hotel em Veneza a fumar um bom charuto e interrogando-se sobre o que se poderia passar numa cidade onde é muito mais difícil ficar longe dos sarilhos do que meter-se neles e lembrei-me de quando, nas noites em que eu não conseguia dormir, me sentia reconfortado pela ideia de Henry James em pé na varanda do hotel a olhar a cidade a seus pés e os passantes, todos com as suas necessidades e obrigações, os seus problemas, as pequenas economias e alegrias paroquiais, a bem organizada vida regular do canal, a ideia de James, que não conhecendo nenhum dos sítios onde se devia ir, ficava ali na varanda a fumar um charuto. Feliz, nessa noite em que podia dormir ou não conforme me apetecesse, agradava-me pensar em Debba e em James e pus-me a imaginar o que aconteceria se arrancasse o consolador charuto dos lábios de James e o estendesse a Debba que talvez o pusesse atrás da orelha ou talvez o passasse a Ngui, que tinha aprendido a fumar charutos na Abissínia, onde como fuzileiro do KAR. enfrentando, por vezes, soldados brancos com os seus seguidores e derrotando-os, tinha aprendido muitas outras coisas. Depois deixei de pensar em Henry James e o seu charuto de consolação e sobre o belo canal que eu imaginava com um vento ameno vindo para ajudar todos os meus amigos e irmãos que trabalhavam contra a maré e afastei dos meus pensamentos o homem de figura sólida, atarracada, calvo e a dignidade do caminhar e os problemas de linha de partida e pensei em Debba e na grande cama coberta de peles, escurecida pelo fumo, a cheirar a limpo e polida à mão, na cubata enorme, nas quatro garrafas de cerveja sacramental que eu pagara para utilizar, sendo respeitáveis as minhas intenções, e possuindo a cerveja o seu próprio nome tribal segundo o costume; julgo que era, de entre as várias cervejas rituais, uma conhecida pelo nome de A Cerveja Para Dormir Na Cama Da Sogra e equivalia a possuir um Cadillac nos círculos do John O’Hara se é que tais círculos ainda existiam. Esperava piamente que tais círculos ainda existissem e pensei em O’Hara, gordo como uma jibóia que tivesse engolido um carregamento completo de uma revista chamada Collier e teimoso como uma mula que tivesse sido mordida pela mosca tsé-tsé e continuando a arrastar-se sem perceber que tinha morrido, e desejei-lhe boa sorte e felicidades sem fim, recordando bastante divertido o laço de cerimónia de pontas brancas que ele usava na festa de recepção em Nova lorque e o nervosismo da anfitriã quando o apresentava, com a ousada esperança de que ele não se desintegrasse. Por mais que as coisas possam correr mal qualquer ser humano se sentirá animado ao lembrar-se de O’Hara no pico da sua glória.
Pensei nos nossos projectos para o Natal de que sempre gostara e que me lembrava de passar em tantos países. Sabia que este Natal ia ser ou maravilhoso ou verdadeiramente catastrófico, uma vez que tínhamos decidido convidar todos os massai e todos os wakamba, o que era o tipo de ngorna que podia pôr termo às rigornas se não corresse bem. Haveria a árvore mágica de Miss Mary que os massai reconheceriam como o que ela era na realidade, caso Miss Mary o ignorasse. Não sabia se deveríamos contar a Miss Mary que a árvore dela possuía na verdade um tipo de efeito-marijuana extrapotente, pois havia que ver o problema de vários ângulos. Antes de tudo, Miss Mary estava firmemente decidida a ter este género de árvore em especial e isso tinha sido reconhecido pelos wakamba como fazendo parte dos seus costumes tribais desconhecidos de Thief River Falls, tal como a exigência de matar o leão. Arap Meina tinha-me confidenciado que ele e eu podíamos ficar bêbados durante meses com esta árvore e que se um elefante comesse a árvore que Miss Mary tinha escolhido ficaria, o elefante, bêbado durante dias.
Eu sabia que Miss Mary devia ter passado uma boa noite em Nairobi porque não era parva nenhuma, porque era a única cidade que tínhamos e porque havia salmão fumado fresco no New Stanley e um chefe de mesa compreensivo, ainda que conivente. Mas o peixe dos grandes lagos, o peixe sem nome, estaria delicioso como sempre e haveria pratos de caril embora não devesse comer tão cedo depois da desinteria. Mas tinha a certeza que tinha jantado bem e esperava que estivesse num bom night-club e pensei então em Debba e no momento em que iríamos comprar o tecido para as duas adoráveis colinas que ela ostentava tão garbosamente e com tanta modéstia e em como o tecido lhes daria relevo como ela bem sabia e como iríamos apreciar os diferentes estampados e como as mulheres massai com as suas salas compridas, as moscas e os tolos, pretensiosos e mimados maridos nos haveriam de observar com todo o seu invejoso descaramento e a sua beleza sifilítica, de mãos geladas e em como nós, os kamba, todos sem orelhas furadas, mas orgulhosos e piores que insolentes pelas mais variadas razões que os massai nunca poderiam saber, haveríamos de apalpar os tecidos e apreciar os padrões e comprar outras coisas que nos dariam importância no armazém.
Quando Mwindi trouxe o chá pela manhã já eu estava levantado e vestido sentado junto às cinzas da fogueira com duas camisolas e um casaco de lã. Tinha arrefecido bastante durante a noite e não sabia que tempo faria durante o dia.
- Quer fogueira? - perguntou Mwindi.
- Fogueira pequena para uma pessoa.
- Vou mandar - disse Mwindi - É melhor comer. Menisahib parte e patrão esquece comer.
- Não gosto de comer antes de caçar.
- Talvez caça demorada. Melhor comer agora.
- Mbebia não acordou.
- Todos os velhos acordados. Só os novos dormem. Keiti diz que comas.
- OK. Eu como.
- Que queres comer?
- Pastéis de bacalhau e batatas salteadas.
- Vais comer fígado de gazela e bacon. Keiti diz que memsahib disse para dizer patrão tomar as pastilhas da febre.
- Onde estão as pastilhas para a febre?
- Toma - disse estendendo o frasco - Keiti diz para eu ver se comes elas.
- Óptimo - disse eu - já as comi.
- Que vais vestir? - perguntou Mwindi.
- Botas e casaco quente para começar e a camisa de pele com as munições quando aquecer.
- Vou mandar preparar gente. Hoje dia muito bom.
- Ai sim?
- Todos acham. Até Charo.
- Óptimo. Também acho que vai ser um bom dia.
- Teve algum sonho?
- Não - disse eu - Não, a sério.
- Mzuri - disse Mwindi - Vou dizer Keiti.
Depois do pequeno-almoço rumámos direito aos Chulu pela trilha boa que seguia para Norte através do território dos gerenuk. A trilha que ligava a velha manyatta às colinas onde deviam andar os búfalos agora que voltavam para os pântanos estava coberta de uma lama cinzenta e traiçoeira. Mas seguimo-la o mais longe que podíamos e depois deixámos Mthuka com o carro, sabendo que a lama secaria com o sol. O sol assava já a planície e nós avançámos para as pequenas colinas acidentadas e íngremes, cobertas de gobos de lava e uma erva nova cerrada ainda molhada da chuva. Não tencionávamos matar nenhum búfalo mas era preciso termos as duas armas à mão porque havia rinocerontes nas colinas, pois tínhamos avistado três deles no dia anterior ao Cessna. Os búfalos deviam ir a caminho das novas pastagens fartas na orla do pântano de papiros. Queria contá-los e fotografá-los se possível e localizar o enorme macho velho com uns cornos magníficos que já não víamos há mais de três meses. Não queríamos assustá-los ou dar-lhes a perceber que os seguíamos, mas unicamente ver como estavam para os podermos fotografar bem e em boas condições quando Mary voltasse.
Tínhamos interceptado os búfalos e a manada enorme deslocava-se abaixo de nós. Viam-se os machos orgulhosos que conduziam a manada, as velhas fêmeas enormes, os jovens machos, e as fêmeas jovens com as crias. Podia distinguir as curvas os cornos, o enrugado áspero, a lama seca e o couro coçado em alguns sítios, a pesada massa escura em movimento, uma extensão acinzentada, e os pássaros, minúsculos e de bico afiado ocupados como estorninhos na relva. Os búfalos moviam-se lentamente, pastando enquanto andavam, e atrás deles a erva desaparecia e o cheiro forte do gado chegava até nós e a seguir chegaram as moscas. Eu tinha repuxado a camisa por cima da cabeça e contei cento e vinte e quatro búfalos. Como estávamos contra o vento, os búfalos não sentiram o nosso cheiro. Os pássaros não nos viram por estarmos mais altos do que eles e apenas as moscas deram por nós, mas naturalmente não iam dizer nada.
Era quase meio-dia e estava muito calor e sem que o soubéssemos a sorte esperava-nos. Rodávamos através dos terrenos do parque com todos à espreita de uma árvore que parecesse indicada. O leopardo que procurávamos era uma fera que andava a causar problemas à gente da shamba, onde já tinha matado dezasseis cabras, e tinham-me pedido para o abater e uma vez que o fazia em serviço era legítimo utilizar o carro de caça para o perseguir. O leopardo, em tempos oficialmente considerado uma praga e agora Caça Real, nunca ouvira falar de tal promoção e reclassificação pois que senão nunca teria matado as dezasseis cabras que faziam dele um criminoso e o devolviam à categoria onde tinha começado. Dezasseis cabras eram muitas cabras para matar numa noite, quando não podia comer mais do que uma. E depois, é certo, oito das cabras pertenciam à família de Debba.
Chegámos a uma bela clareira e à nossa esquerda via-se uma grande árvore com um dos ramos que se estendia numa linha paralela direita para a esquerda e outro ramo mais espesso estendendo-se para a direita. Era uma árvore verdejante com uma copa de folhagem cerrada.
- Aqui está uma árvore ideal para o leopardo - disse eu para Ngui.
- Ndio - disse ele em voz baixa - E está lá um leopardo.
Mthuka tinha-nos visto a olhar e embora não nos pudesse ouvir nem ver o leopardo do lado dele parou o carro. Desci empunhando a velha Springfield que trazia de través nos joelhos e quando estava já firmemente assente nos meus dois pés avistei o leopardo pesadamenre estendido no ramo da direita da árvore. A sombra das folhas que fremiam com o vento salpicava a longa forma pintalgada. Estava a uns dezoito metros do solo, o sítio ideal para aquele belo dia, e tinha cometido um erro mais grave do que o de ter matado inutilmente as dezasseis cabras.
Levantei a carabina inspirando profundamente uma vez para logo expirar e disparar com extremo cuidado para o ponto onde o pescoço fazia uma bossa atrás da orelha. Saiu um tiro alto, que falhou redondamente e o leopardo esticou-se, comprido e pesado ao longo do ramo, enquanto eu despejava o cartucho e o visava na espádua. Ouviu-se um baque pesado e ele tombou num meio circulo. A cauda para cima, a cabeça para cima, o dorso para baixo. O corpo recurvado como um quarto minguante caiu no chão com uma pancada surda.
Ngui e Mthuka davam-me pancadinhas nas costas e Charo apertava-me a mão. O porta-armas de Pop apertava-me a mão e chorava pois a queda do leopardo tinha-o emocionado. Não parava de me sacudir a mão com o aperto secreto dos kamba. Não perdi tempo a recarregar a arma com a mão livre e Nguí, na sua excitação, pegou na 577 em vez da espingarda para avançarmos cautelosamente a ver o corpo do flagelo que tinha matado as dezasseis cabras do meu sogro. O corpo do leopardo tinha desaparecido.
Havia uma cova no chão no sítio onde ele tombara e os sinais de sangue, vivos e em manchas, conduzia a um maciço de vegetação para a esquerda da I. árvore. Era impenetrável como as raízes de um pântano de mangais e mais ninguém me dava apertos de mão à maneira secreta dos kamba.
- Meus senhores - disse eu em espanhol - A situação mudou radicalmente.
E tinha mudado na verdade. Conhecia a manobra pois tinha-a aprendido com Pop, mas qualquer leopardo ferido no meio de vegetação cerrada é um leopardo ferido diferente. Não há dois que reajam do mesmo modo, a não ser que todos atacam e atacam sem quartel. Foi por esse motivo que comecei por apontar para a base da cabeça e do pescoço. Mas agora era tarde demais para autópsias a tiros falhados.
O primeiro problema era Charo. Tinha já sido filado duas vezes por leopardos e era um homem idoso, ninguém lhe sabia a idade, mas seguramente com idade para ser meu pai. Estava tão excitado como um cão de caça para a batida.
- Tu ficas mas e fora desta treta e sobes para o tecto do carro.
- Hapana, bwana - disse ele.
- Ndio caraças Ndio - disse eu.
- Ndio - disse ele sem acrescentar bwana, o que entre nós era insultuoso. Ngui tinha estado a carregar a Winchester de calibre 12 com SSQ que em língua de gente se chamam zagalotes. Nunca tínhamos matado nada com zagalotes e como não queria ver-me em apertos accionei o ejector e carreguei-o com cartuchos de chumbo miúdo n.o 8 e enfiei o resto da caixa nos bolsos. A curta distância uma carga de chumbo miúdo de uma espingarda bem atochada é tão compacto como uma bala e lembro-me de ter visto o efeito num corpo humano, o buraco pequeno e orlado de um azul carregado nas costas do blusão de couro e a carga toda enfiada no peito.
- Kwenda - disse para Ngui e começámos a seguir a pista de sangue, eu com a espingarda a cobrir Ngui, que apontava o rasto, e o porta-armas de Pop que tinha regressado ao carro com a .577. Charo não tinha subido para o tecto mas estava sentado no banco de trás com a melhor das três lanças. Ngui e eu íamos a pé e seguíamos a pista de sangue.
Baixou-se sobre uma mancha de sangue coagulado e pegou num fragmento aguçado de osso que me passou. Era um bocado da espádua e pu-lo na boca. Não sei explicar este gesto. Fi-lo sem pensar. Mas ligou-nos mais intimamente ao leopardo e mordi-o e senti o sabor do sangue fresco que era semelhante ao meu e percebi que o leopardo não tinha apenas perdido o equilíbrio. Ngui e eu seguíamos os traços de sangue até ele se internar nas matas cerradas como raízes de mangais. A folhagem destes maciços eram verdes e brilhantes e a pista do leopardo, marcada por saltos de tamanho irregular, perdia-se no emaranhado deixando manchas de sangue à altura do pescoço no sítio onde se tinha agachado para lá se enfiar.
Ngui encolheu os ombros e abanou a cabeça. Estávamos agora os dois com ar grave e não tínhamos nenhum Homem Branco para nos comunicar em voz baixa e com ar entendido a sua sabedoria, nem nenhum Homem Branco para nos dar ordens exasperadas estupefacto corri a estupidez dos seus «boys» e praguejando com eles por se mostrarem uns cães de caça atemorizados. Tratava-se apenas de um leopardo ferido com tudo contra ele que tinha sido abatido de um ramo alto de árvore, sofrido uma queda a que nenhum ser humano sobreviria e se tinha refugiado num sítio onde, se mantivesse a sua magnífica e inacreditável vitalidade de felino, podia mutilar ou ferir gravemente qualquer ser humano que se lançasse em sua perseguição. Lamentei que tivesse matado as cabras e que eu tivesse assinado um contrato para abater feras e ser fotografado em revistas de difusão nacional, ao mesmo tempo que mordia com satisfação o pedaço de espádua e fazia sinal ao carro para se aproximar. A ponta aguçada do fragmento de osso tinha arranhado a parte de dentro da boca e senti o gosto familiar do meu sangue confundindo-se com o sangue do leopardo e disse: «Twendi kwa chui», empregando o imperativo plural majestático. «Vamos ao leopardo.»
Não nos era fácil chegar ao leopardo. Ngui tinha a Springfleld 30-06 e tinha também bons olhos. O porta-armas de Pop levava a .577 que o atirava de cangalhas se disparasse e que tinha também bons olhos. Eu empunhava a velha Winchester 12 de carregador tubular, que tanto amava, que já uma , vez ardera, que tinha sido três vezes refeita, agora polida pelo uso, mais rápida que uma serpente e que, ao fim de trinta e cinco anos de andarmos juntos, se tornara tão chegada como um amigo e companheiro com quem partilhara segredos, triunfos e desastres nunca revelados, como aquele amigo que um homem mantém pela vida fora. Espiolhámos as raízes entrelaçadas e emaranhadas do matagal a partir das manchas de sangue para a esquerda, para Oeste, onde se via o carro nas proximidades mas nada de leopardo. Depois voltámos agachados e espreitando para o escuro das raízes até atingirmos a outra ponta. Não víramos o leopardo e regressámos a rastejar até ao ponto onde o sangue estava ainda fresco nas folhas verdes.
O porta-armas de Pop mantinha-se atrás de nós com a arma enorme pronta e eu, sentado, comecei a disparar cargas de n.o 8 em direcção ao emaranhado de raízes indo da esquerda para a direita. Ao quinto tiro o leopardo rugiu enfurecido. O rugido chegava-nos de um ponto bastante à frente da I mata cerrada e um pouco para a esquerda das folhas com sangue.
- Estás a vê-lo? - perguntei a Ngui.
Voltei a carregar o carregador comprido e disparei dois tiros rápidos para o sítio onde ouvira o rugido. O leopardo voltou a rugir e depois tossiu duas vezes.
- Piga tu - disse a Ngui e ele disparou para o sítio do rugido.
O leopardo voltou a rugir e Ngui disse: «Piga tu.»
Dei dois tiros em direcção ao rugido e o porta-armas disse: «Estou a vê-lo.» Levantámo-nos e Ngui avistou-o, embora eu continuasse sem o ver. «Piga tu» - disse-lhe.
E ele: «Hapana. Twendi kwa chui.»
Por isso voltámos a internar-nos nos maciços mas desta vez Ngui sabia onde íamos. Não podíamos avançar mais do que um metro ou pouco mais, mas havia uma pequena elevação de onde saíam as raízes. Ngui orientava-me através de pancadas na perna de um lado ou de outro enquanto rastejávamos. Vi então a orelha do leopardo e as pequenas manchas no topo do alto do pescoço e da espádua. Visei o ponto onde o pescoço se une à espádua e voltei a disparar, sem que se tivesse ouvido nenhum rugido e voltámos a rastejar para fora para recarregar a arma e rodeámos o maciço para Oeste em direcção ao carro que se via ao longe.
- Kufa - disse Charo - Mzuri kubwa sana.
- Kufa - disse Mthuka. Ambos conseguiam ver o leopardo, mas eu não. Saíram do carro e todos entrámos na mata e eu disse a Charo que se deixasse estar atrás com a lança. Mas ele disse: «Não. Está morto, bwana. Vi-o morrer.»
Cobri Ngui com a espingarda enquanto ele abria caminho à panga batendo nas raízes e no mato como se fossem nossos inimigos e então ele e o porta-armas de Pop levantaram o leopardo nos braços e atiraram-no com um balanço para as traseiras do carro. Era um belo leopardo e tínhamos-lhe dado boa caça com animação e como irmãos, sem Homens Brancos ou Guarda-Caças e sem pisteiros e era um leopardo kamba condenado por abates desnecessários numa shamba kamba ilegal e todos nós éramos wakamba e todos estávamos cheios de sede.
Charo era o único que observava atentamente por ter sido filado duas vezes por leopardos e mostrava-me o sítio onde as cargas de chumbo disparadas de perto tinham acertado, quase ao lado da primeira bala na espádua. já calculava, como também sabia que as raízes e o talude tinham desviado os outros tiros, mas estava mais do que contente e orgulhoso com todos nós e como nos tínhamos portado o dia todo e feliz por podermos voltar para o acampamento e para a sombra e para a cerveja fresca.
Entrámos no acampamento a apitar e acorreu toda a gente e Keiti estava feliz e a meu ver orgulhoso. Pulámos todos do carro e Charo foi o único que ficou ainda a observar o leopardo. Keiti ficou ao lado de Charo e o encarregado de esfolar o animal tomou conta dele. Não tirámos fotografias nenhumas. Keiti tinha-me perguntado: «Piga picha?» e eu respondi: «Piga rnerda.»
Ngui e o porta-armas levaram as armas para a tenda e puseram-nas em cima da cama de Miss Mary e eu levei as máquinas fotográficas e pendurei-as. Disse a Msembi para pôr a mesa debaixo da árvore e trazer cadeiras e cervejas para todos e Coca-Cola para Charo. Disse a Ngui para não se preocupar a limpar as armas agora e para ir buscar Mthuka; que íamos beber uma cerveja de cerimónia.
Mwindi disse que devia tomar um banho. A água estaria pronta num abrir e fechar de olhos. Disse-lhe que ia tomar banho na bacia e que fizesse o favor de me trazer uma camisa lavada.
- Devias tomar grande banho - disse ele.
- Tomo o grande banho mais tarde. Estou com muito calor.
- Como arranjaste esse sangue todo? Do chui?
Era uma ironia mas cuidadosamente dissimulada.
- Dos ramos das árvores.
- Lava bem com sabão azul. Eu ponho aquilo vermelho.
Usávamos sempre mercurocromo em vez de iodina quando o podíamos arranjar, embora alguns africanos preferissem a iodina porque fazia arder e por isso era considerado um medicamento mais eficaz. Lavei e esfreguei as arranhadelas abrindo-as para Mwindi as pincelar cuidadosamente.
Vesti as roupas lavadas e percebi que Mthuka, Ngui, o porta-armas de Pop e Charo estavam também a pôr roupas lavadas.
- O chui atacou?
- Não.
- Porque está toda a gente tão contente, então?
- Shauri muito divertido. Caça muito divertida a manhã toda.
- Porque queres ser africano?
- Vou ser kamba.
- Talvez - disse Mwindi.
- Talvez uma merda.
- Aí vêm os teus amigos.
- Irmãos.
- Irmãos talvez. Charo não é teu irmão.
- Charo é bom amigo.
- É - disse Mwindi com ar abatido, estendendo-me umas sapatilhas que sabia serem um pouco apertadas e observando se me doíam muito quando as calçava - Charo bom amigo. Multa má sorte?
- Porquê?
- Porque sim. E é homem feliz.
Fui ter com os outros, em pé à volta da mesa com Msembi envergando a sua túnica verde e calota verde em sentido com a cerveja no saco de lona de um verde desbotado. As nuvens estavam altíssimas no céu e o céu era o céu mais alto do mundo e eu voltei o olhar para além da tenda e podia ver a Montanha alta e branca acima das árvores.
- Meus senhores - disse eu com uma vénia e todos se sentaram nas cadeiras dos bwanas e Nísembi serviu as quatro cervejas das grandes e a Coca-Cola de Charo. Charo era o mais velho e por isso cedi-lhe a prioridade e Mwindi serviu a Coca-Cola em primeiro lugar. Charo tinha mudado o turbante para um ligeiramente menos cinzento e usava um casaco azul com botões de latão apertado no pescoço com um alfinete de ama que eu lhe oferecera vinte anos antes assim como uns shorts todos chiques e bem remendados.
Quando as bebidas foram servidas levantei-me e propus um brinde: «À Rainha.» Bebemos todos e depois eu disse: «Ao Senhor Clintt, meus senhores. Que é Caça Real.» Bebemos de novo respeitando as maneiras e a etiqueta mas com entusiasmo. Msembi voltou a encher os copos desta vez começando por mim e acabando por Charo. Tinha um grande respeito por um ancião, mas custava-lhe a respeitar uma bebida carbonatada ao lado de uma cerveja Tusker.
- À noite - disse eu com uma inclinação dirigida a Ngui que tinha aprendido algum italiano nos bordéis capturados em Addis-Abeba e com as amantes precipitadamente abandonadas de um exército em fuga. E acrescentei: - «Wakamba rosa e la liberta, wakamba rosa triomfera.»
Bebemos de um trago os nossos copos e Mwindi voltou a enchê-los.
O brinde seguinte foi um bocado desabusado mas com a tendência desses tempos e a necessidade de dar à nossa nova religião um certo tipo de programa realizável que mais tarde pudesse ser encaminhado para os mais altos e nobres fins, propus: «Turiaua.»
Bebemos com um ar solene a este propósito, embora reparasse na hesitação de Charo e quando nos sentámos, disse: «Na jehaad tu», procurando ganhar o seu voto muçulmano. Mas é um voto difícil de ganhar e todos sabíamos que ele apenas estava ali connosco por causa da cerveja de cerimónia e pela fraternização e que nunca poderia estar ao nosso lado na nova religião ou na política.
Msembi aproximou-se da mesa e voltou a servir e disse que agora a cerveja era quisha e eu disse que aquilo era uma intendência que deixava muito a desejar e que íamos mas era montar em sela e ir a Laitokitok buscar mais cerveja. Levávamos alguma carne fria para comer pelo caminho e umas quantas latas de arenque fumado para petiscar. Mthuka disse: «Kwenda na shamba.» Concordámos por isso em ir à shamba buscar algumas garrafas de cerveja se lá as houvesse para nos desenrascar até podermos ir a outra shamba onde fizessem cerveja ou a Laitokitok. Ngui disse que eu podia trazer a minha namorada e a Viúva e que ele e Mthuka não tinham nada contra a terceira shamba massai que ficava mais longe na estrada. O Porta-armas de Pop disse que por ele estava OK e que seria o protector da Viúva. Queríamos levar Msembi mas já éramos quatro e com a Viúva e a minha namorada fazíamos seis e não sabíamos que massai íamos encontrar pela frente. Havia sempre numerosos massai em Laitokjtok.
Fui à tenda e Mwindi abriu o baú de lata onde tinha o meu velho casaco de tweed de Hong Kong com o dinheiro guardado nos bolsos interiores.
- Quanto quer? - perguntou.
- Quatrocentos shillingi.
- Muito dinheiro - disse ele - Que vais fazer? Comprar mulher?
- Comprar cerveja, talvez algum posho, medicamentos para a shamba, presentes de Natal, comprar uma nova lança, encher o depósito de gasolina, comprar whisky para nitoto da polícia, comprar latas de kippah.
Riu-se ao ouvir-me falar nos kippah. «Traz cinco centos» - disse ele «Queres shillingi fortes também?»
Os shillingi fortes estavam numa bolsa de couro. Contou trinta e perguntou: «Pões casaco bom?»
O casaco com que ele gostava de me ver era uma espécie de casaco de montar que também tinha trazido de Hong Kong.
- Não. Levo casaco de couro. Com fecho de correr.
- Leva camisola também. O frio desce da Montanha.
- Veste-me como quiseres - disse eu - Mas quero as botas que me servem bem.
Mwindi deu-me meias lavadas de fresco, calcei-as e ele enfiou-me os pés nas botas e deixou-as abertas sem puxar os fechos do lado. Ngui entrou na tenda. Usava os shorts novos e uma camisa de desporto nova que eu nunca tinha visto. Disse-lhe que íamos levar apenas a 30-06 e ele respondeu que levava munições. Limpou a arma enorme e pô-la debaixo da cama. Não tínhamos chegado a usá-la e a Springfield tinha sido carregada com cartuchos de pólvora que não era corrosiva e podia ser limpa à noite.
- Pistola - disse ele num tom severo e passei a minha perna direita pelo laço na ponta do coldre e ele afivelou-me o cinto à cintura.
- Frasco Jinny - disse Mwindi e passou o pesado saco de couro de munições espanhol a Ngui.
- Dinheiro? - perguntou Ngui.
- Hapana - disse eu - Dinheiro kwisha.
- Dinheiro a mais - disse Mwindi. Tinha a chave corri que fechara o baú de lata onde guardava o dinheiro.
Saímos em direcção ao carro. Keiti mantinha o mesmo ar condescendente e perguntei-lhe num tom formal se era preciso alguma coisa para a guarnição. Disse que trouxesse um saco de posho se houvesse algum de boa qualidade que tivesse chegado na carreira de Kajiado. Parecia triste quando partimos e a cabeça pendia-lhe um pouco para diante e para um dos lados embora mantivesse o seu sorriso em fenda.
Senti-me triste e sem razão por não lhe ter perguntado se queria vir mas rolávamos já pela estrada da shamba. Era uma estrada em bastante mau estado e ainda ficaria pior antes de tudo estar acabado, pensei eu.
Mthuka não tinha roupas finas a não ser uma camisa limpa axadrezada e as calças lavadas com remendos. O porta-armas de Pop trazia uma camisa desportiva amarela sem padrões figurativos que combinava bem com a de Ngui, que era de um vermelho vivo de capa de toureiro. Lamentava estar vestido de modo tão conservador mas como tinha rapado a cabeça no dia anterior depois da partida do avião e depois tinha esquecido o caso, temia ficar com um ar grotesco quando tirasse o boné. Quando a rapava, ou mesmo quando cortava o cabelo rente, a minha cabeça, infelizmente, ficava com o ar de ser algum vestígio histórico de uma tribo há muito perdida. Nada de tão espectacular como Grand Rift Valley mas com notáveis aspectos históricos do terreno que poderiam interessar simultaneamente arqueólogos e antropólogos. Não faço ideia de qual iria ser a reacção de Debba, mas como tinha um boné de pesca com uma grande pala de viés não estava muito preocupado nem inquieto quanto à minha aparência quando nos dirigimos para a shamba e parámos à sombra da árvore grande.
Mthuka, como mais tarde descobri, tinha mandado Nguili, o rapaz que queria ser caçador mas que trabalhava como ajudante na messe, para avisar a Viuva e a minha namorada de que íamos chegar para as levarmos a Laitokitok a comprar roupas para o Nascimento do Menino Jesus. Este rapaz era ainda um nanake para os kamba e por isso não podia beber cerveja, mas tinha feito o trajecto muito rapidamente para mostrar que era capaz de correr e estava agora a suar com ar feliz encostado ao tronco da grande árvore e a tentar não parecer esfalfado.
Saí do carro para esticar as pernas e agradecer ao nanake.
- Corres mais do que um massai - disse eu.
- Sou um kamba - disse ele, esforçando-se para respirar sem esforço e, eu podia imaginar o gosto das moedas na boca dele.
- Queres ir à Montanha?
- Quero. Mas não parecia bem e tenho os meus deveres.
Nesse momento o Informador veio ter connosco. Trazia o xaile e caminhava com um ar muito digno, o peso distribuído pelos dois calcanhares.
- Boa tarde, irmão - disse ele e reparei em Ngui que voltava a cabeça e cuspia ao ouvir a palavra irmão.
- Boa tarde, Informador - disse eu - Como vai essa saúde?
- Melhor - disse o Informador - Posso acompanhá-lo à Montanha? ’ Não.
- Podia servir de intérprete.
- Tenho um intérprete na Montanha.
O filho da Viúva fez a sua aparição e bateu com a cabeça no meu estômago com força. Beijei-o na cabeça e ele deu-me a mão e deixou-se ficar muito direito.
- Informador - disse eu - Não posso pedir cerveja ao meu sogro. Por favor, vai-nos buscar cerveja.
- Vou ver a cerveja que há.
Para quem gosta de cerveja da shamba não estava mal, com o gosto das coisas feitas em casa no Arkansas nos tempos da Proibição. Havia um homem que era sapateiro e que tinha combatido muito bem na Primeira Guerra Mundi4 que fabricava uma cerveja muito parecida que costumávamos beber na salinha da frente da casa dele. A minha namorada e a Viúva apareceram e a minha namorada entrou no carro e sentou-se ao lado de Mthuka. Mantinha os olhos baixos a não ser uns breves relances vitoriosos que lançava às outras mulheres da aldeia e usava um vestido que tinha sido lavado vezes sem conta e um lindíssimo lenço, de importação na cabeça. A Viúva sentava-se entre Ngui e o porta-armas de Pop. Mandámos o Informador buscar mais seis garrafas de cerveja mas só havia quatro na aldeia. Ofereci as quatro garrafas ao meu sogro. Debba não olhava para ninguém, sentada muito direita com os seios tesos no mesmo ângulo do queixa.
Mthulça pôs o motor em marcha e arrancámos deixando a aldeia, os que nos invejavam ou desaprovavam, muitas crianças, as cabras, as mães que amamentavam, as galinhas, os cães e o meu sogro.
- Que tal, tu? - perguntei a Debba.
- En la puta gloria.
Das frases que sabia em espanhol, esta era a segunda de que mais gostava. É uma expressão curiosa e não deve haver duas Pessoas que a traduzam do mesmo modo.
- O chui feriu-te?
- Não. Não tive nada.
- Era grande?
- Nem por isso.
- Rugiu?
- Muitas vezes.
- E feriu alguém?
- Ninguém. Nem sequer a ti.
Apertava o coldre de couro gravado contra a coxa e depois colocou a mão esquerda no sítio que queria.
- Mimi bili chui - disse ela. Nenhum de nós sabia muito de swahili mas lembrei-me dos dois leopardos da Inglaterra e devia ter havido alguém versado em leopardos noutros tempos.
- Bwana - disse Ngui e a voz dele soava rouca, como o pode ser no amor, na cólera ou na ternura.
- Wakamba, tu - disse eu. Ele desatou-se a rir e quebrou as nossas coisas equívocas.
- Temos três garrafas de Tuskah que o Msembi roubou para nós.
- Obrigado. Quando chegarmos ao fim da subida grande parámos um bocado para comer uns kippah.
- Boa carne fria - disse Ngui.
- Mzuri - disse eu.
Não há homossexualidade entre os wakamba. Em tempos os homossexuais depois do julgamento de King-ole, que Mwindi me explicou significar a reunião solene que se fazia para matar um homem, eram condenados, metidos atados no rio ou num poço de água durante uns dias para os tornar mais tenros e depois matavam-nos e comiam-nos. Havia de ser um triste fim para muitos autores teatrais, pensei. Mas, em contrapartida e já é uma grande sorte ter alguma contrapartida em África, era considerado dar muito azar comer alguma parte de um homossexual mesmo depois de ter estado a amolecer no Athi numa poça limpa e praticamente clara e no dizer de alguns dos meus amigos mais velhos um homossexual tinha um gosto pior do que um antílope dos pântanos e podia causar furúnculos em qualquer parte do corpo especialmente nas virilhas e nos sovacos. O coito com animais era também punido com a morte embora não fosse olhado como uma prática tão revoltante como a homossexualidade e Micola, que era o pai de Ngui, uma vez que eu tinha provado matematicamente que eu não o podia ser, contara-me que um homem que tivesse fornicado com as ovelhas ou as cabras era tão saboroso como o griu. Keiti e Mwindi nunca teriam comido griu, mas isso era uma parte da antropologia que eu ainda não tinha atingido. E enquanto reflectia nestes factos e confidências e dedicava as minhas atenções a Debba que era uma rapariga kamba sem inclinações dessas e cheia de modéstia e de uma insolência básica genuína, Mthuka parou o carro debaixo de uma árvore de onde se via a grande falha do terreno e avistava a região e o brilho fraco dos telhados de zinco de Laitokitok contra o azul da floresta na Montanha que se erguia com as suas encostas esbranquiçadas e o topo quadrado para nos dar a nossa religião e a nossa duradoura esperança revelando atrás de nós todo o nosso território estendendo-se perante os nosso olhos como se estivéssemos num avião mas sem o movimento, os nervos e a despesa.
- Jambo, tu - disse eu a Debha e ela respondeu: «La puta gloria.» Deixámos que fosse ela e a Viúva, que se tinha sentido muito bem entre Ngui e o porta-armas de Pop com as suas camisas vermelha e amarela, braços negros e pernas delicadas, a abrirem as latas de arenques salgados e as duas latas de salmão falso da Holanda. Não conseguiam abri-las devidamente e uma das chaves partiu-se mas Mthuka recorreu a um alicate para dobrar a tampa da lata expondo o salmão fumado falso que era a glória da Holanda em África e comemos todos, partilhando as facas e bebendo das mesmas garrafas. Debba limpou o gargalo e as bordas da garrafa a primeira vez que bebeu usando o lenço da cabeça mas eu disse-lhe que o venéreo de um homem era o venéreo de todos e depois disso todos bebemos sem mais cerimónias. A cerveja estava mais quente do que fria mas a três mil metros de altitude e com o espaço que tínhamos diante dos olhos e podíamos ver como se fôssemos águias, era uma cerveja maravilhosa e bebemo-la até ao fim com a carne fria. Guardámos as garrafas para as trocarmos e empilhámos as latas, tirando-lhes as chaves, e deixámo-las debaixo de uma maciço de urzes perto do tronco da árvore.
Não havia pisteiros presentes e por isso não havia ninguém que tivesse vendido o seu património wakamba para denunciar os irmãos nem devoção a Miss Mary nem carrasco nem filhotes da polícia de maneira que de certo modo éramos livres e contemplámos o espaço que nenhuma mulher branca jamais pisara, nem mesmo Miss Mary, a não ser que contasse aquela vez em que a levámos, relutantes mas com a excitação de crianças, até ao plaino a que nunca tinha pertencido nem compreendido até que ponto os seus pontos fracos igualavam as suas pequenas glórias.
Contemplávamos pois o nosso território e as colinas Chulu azuis e estranhas como sempre e sentimo-nos todos felizes por Miss Mary nunca lá ter estado e regressámos então ao carro e eu disse estupidamente a Debba: «Hás-de ser uma esposa inteligente» e ela, inteligentemente, apoderou-se do meu lugar e do meu adorado coldre e disse: «Sou uma esposa tão boa agora como em qualquer altura.»
Dei-lhe um beijo na cabeça crespa e continuámos a rolar pela estrada magnífica de curvas inesperadas que serpenteava pela Montanha acima. A cidade de telhados de zinco cintilava ainda ao sol e à medida que nos aproximávamos surgiam os eucaliptos e a estrada de traçado regular que, sob uma sombra espessa e determinação britânica, subia até ao fortim, à cadeia e às casas de vilegiatura onde as pessoas que participavam na administração da justiça britânica e nas secretarias vinham passar férias quando não tinham meios que lhes permitissem passá-las no país natal. Não iríamos perturbar o descanso deles, ainda que isso significasse perder o espectáculo dos jardins de rochas e o riacho saltitante que, muito mais abaixo, se tornará num rio.
A caça ao leão de Miss Mary tinha-se arrastado e toda a gente, a não ser os fanáticos, os convertidos e os verdadeiros crentes de Miss Mary estava já farta há muito tempo. Charo, que não pertencia a nenhum desses grupos, tinha-me dito: «Dispara ao mesmo tempo que ela e arruma-se o caso.» Tinha abanado a cabeça pois não era crente mas sim um seguidor e tinha feito a peregrinação a Compostela, que valera bem a pena. Mas Charo tinha abanado a cabeça com repugnância. Era muçulmano, mas hoje não havia muçulmanos entre nós. Não precisávamos de ninguém que cortasse o pescoço ao que quer que fosse e todos nós estávamos atentos à nossa nova religião que tinha a sua primeira estação de um qualquer caminho da cruz que fosse à porta do Bazar Benji’s. Esta estação era uma bomba de gasolina e era dentro do bazar que Debba e a Viúva iam escolher o tecido para fazerem os vestidos para o Nascimento do Menino Jesus.
Não parecia bem entrar com elas apesar de gostar muito dos tecidos variados e do cheiro da loja e das massai que conhecíamos, as wanawaki, vivas mas sem comprarem nada, enquanto os cornudos dos maridos mais adiante bebiam Golden Jeep da África do Sul com a lança numa mão e a garrafa na outra. Eram corneados em pé numa única perna ou nas duas e eu sabia onde os encontrar e desci pelo lado direito da rua estreita e sombreada que era no entanto mais larga do que as asas do nosso avião como sabiam todos os que lá viviam ou lá passavam e avancei com os pés a doerem-me e, assim o esperava, sem a insolência ou o orgulho de quem usa pistola em direcção ao sítio onde os massai estavam a beber e disse: «Sopa» e apertei umas quantas mãos frias e voltei a sair sem beber nada. Andados oito passos para a direita, entrei na loja do Sr. Singli. Demos um abraço e dei um aperto de mão à Sra. Singh e depois beijei-lhe a CY mão, o que sempre lhe agradava pois era turkana e além isso eu tinha aprendido a beijar a mão muito bem e parecia que tinha feito uma viagem a Paris de que ela nunca ouvira falar mas que faria boa figura no mais belo dia que Paris pudesse ter. Seguidamente mandei chamar o Intérprete educado na Missão.
- Como está, Sitigh - perguntei, através do Intérprete.
- Menos mal. Aqui. Nos meus negócios.
- E a bela Madame Singh?
- Faltam quatro meses para o bebé.
- Felicidades - disse eu em espanhol e voltei a beijar a mão de Madame Sitigh seguindo o estilo de Alvarito Caro, então Marquês de Villamayor, um a cidade onde em tempos tínhamos entrado antes de termos sido expulsos,
- Todos os Singlis mais novos estão bem, espero.
- Todos bem, a não ser o terceiro rapaz, que fez um corte na mão na serração.
- Quer que eu o veja?
- Recebeu tratamento na Missão. Com sulfamidas.
- Excelente para as crianças. Mas dá cabo dos rins dos velhos como nós. A Sra. Singli soltou uma risada com o seu honesto riso de turkana e o Sr. Singh disse: «Espero que a sua memsahib esteja bem. Que os seus filhos estejam bem e todos os aviões estejam bem.»
O Intérprete traduziu a referência aos aviões como em bom estado e eu disse-lhe para não ser tão pedante.
- A memsahib, Miss Mary, está em Nairobi. Foi no avião e volta também de avião. Todos os meus filhos estão bem. Com a ajuda de Deus os aviões estão todos bem.
- Ouvimos a notícia - disse o Sr. Singh - O leão e o leopardo.
- Toda a gente é capaz de matar um leão e um leopardo.
- Mas o leão foi Miss Mary.
- Naturalmente - disse eu; e senti percorrer-me o orgulho na magnificamente esculpida, inteira, irascível e adorável Miss Mary corri uma cabeça de moeda egípcia, os seios de um Rubens e um coração de Bernidji, ou de Walker ou de Thief River Falls, uma qualquer cidade com quarenta abaixo de zero no Inverno. Uma temperatura boa para fazer corações quentes que também podem tornar-se gélidos.
- Com Miss Mary não há problemas com leões.
- Mas era um leão difícil. Houve multa gente que sofreu por causa daquele leão.
O Grande Singh estrangulava-os com uma só mão. Miss Mary usou uma Mantilicher 6,5.
- Isso é uma arma pequena para um leão tão grande - disse o Sr. Singh e percebi nesse momento que tinha feito o serviço militar. E assim fiquei à espera que fosse ele a recomeçar a conversa.
O Sr. Singli era esperto demais para recomeçar e Madame Singli disse: «E o leopardo?»
- Qualquer homem pode ser capaz de matar um leopardo antes do pequeno-almoço.
- Come qualquer coisa?
- Com a licença de Madame.
- Coma, se faz favor - disse ela - Isto não é nada.
- Vamos para a sala das traseiras. Não bebeu nada.
- Podemos beber aqui se quiser.
O Intérprete seguiu-nos até à sala das traseiras e o Sr. Singh trouxe uma garrafa de White Heather e um jarro de água. O Intérprete tirou os sapatos da Missão para que eu visse os pés dele.
- Só andei de sapatos quando havia informadores da religião à vista explicou ele - Nunca falei do Menino Jesus senão com desprezo. Deixei de rezar as minhas orações da manhã e da noite.
- E que mais?
- Nada.
- Fazes parte dos conversos negativos - disse eu. Ele encostou a cabeça dele à minha barriga com força, tal como fazia o filho da Viúva - Pensa na Montanha e nos Campos Felizes de Caça. Podemos vir a precisar do Menino Jesus. Nunca fales dele sem respeito. A que tribo pertences?
- À mesma que o senhor.
- Não. Como é que te registaram? Massai-chagga. Somos da fronteira. Houve bons homens da fronteira.
- Yes, sir.
- Nunca digas sir na nossa religião ou na nossa tribo.
- Não.
- Como eras tu quando te fizeram a circuncisão?
- Não era o melhor, mas era bom.
- Porque te tornaste cristão?
- Por ignorância.
- Podias ter feito pior.
- Muçulmano é que não - e ia começar a acrescentar sir, mas eu interrompi-o.
- É uma estrada comprida e esquisita e se calhar era melhor deitares fora os sapatos. Vou-te dar um belo par usado e tu podes adaptá-los ao teu pé.
- Obrigado. Posso voar no avião?
- Claro. Mas não é coisa para crianças nem para rapazes da Missão. Neste momento deveria dizer desculpa mas é uma palavra que não existe em swahili nem em kamba e é uma boa maneira de aprender uma língua pois sabemos que não devemos cometer erros.
O Intérprete fez-me perguntas acerca dos arranhões e eu disse que eram dos espinhos dos arbustos e o Sr. Sitigh assentiu com um aceno e mostrou ao Intérprete o corte que tinha feito no polegar com a serra em Setembro. Era um golpe impressionante e lembrei-me de quando tinha sido.
- Mas também lutou com um leopardo hoje - disse o Intérprete.
- Não houve luta. Era um leopardo mediano que tinha matado dezasseis cabras na shamba kamba. Morreu sem dar luta.
- Todos dizem que lutou com ele com as suas próprias mãos e depois o matou com a espingarda.
- São todos mentirosos. Matámos o leopardo com uma carabina primeiro e depois com uma espingarda.
- Mas a espingarda é para os pássaros.
O Sr. Singh riu-se ao ouvir isto, o que me levou a interrogar-me novamente acerca dele.
- És um bom rapaz da Missão - disse eu para o Intérprete - Mas as espingardas não são só para os pássaros.
- Mas em princípio são. É por isso que se diz espingarda em vez de carabina.
- E que havia de dizer a porra de um babu? - perguntei ao Sr. Sitigh em inglês.
- Um babu estaria em cima de uma árvore - respondeu o Sr. Singh, falando inglês pela primeira vez.
- Tenho grande estima pelo senhor, Sr. Singh - disse eu - E respeito o seu grande antepassado.
- Eu respeito todos os seus grandes antepassados embora o senhor não tenha falado neles.
- Não eram nada.
- Hei-de ouvir falar neles na devida ocasião - disse o Sr. Singli Vamos beber? Mulher, turkana, traz mais comida.
O Intérprete agora estava sedento de novos conhecimentos e o cheiro deles tinha-lhe chegado à altura do peito e era meio chagga e tinha um tronco curto mas forte.
- Na biblioteca da Missão há um livro que diz que o grande Carl Akeley matou um leopardo com as mãos nuas. Acha que acredite?
- Se quiseres.
- Pergunto a sério como um rapaz que quer saber.
- Isso foi antes do meu tempo. Muitos homens se puseram a mesma pergunta.
- Mas preciso de saber a verdade.
- Há muito pouco disso nos livros. Mas o grande Carl Akeley era um grande homem.
Era impossível desviá-lo do cheiro dos conhecimentos, quando nós próprios os tínhamos perseguido pela vida fora e tivemos de nos contentar com factos, equivalências e declarações concedidas sob efeito de bebedeiras ou aceites sob pressão. Este moço, que tinha descalçado os sapatos e esfregado os pés no soalho da sala das traseiras do Sr. Singh e estava tão ávido de conhecimentos que ignorava que eu e o Sr. Singli. nos sentíamos embaraçados com a sua pública exibição do endurecimento da planta dos pés, transitou, tão descalço como um cão de caça, da geometria plana para algo que ia além do cálculo.
- Que justificação dá para um europeu tomar uma africana como amante?
- Não justificamos. Essa é a função do sistema judiciário. A polícia toma medidas.
- Por favor, não fuja às questões - disse ele - Peço desculpa, sir.
- Sir é uma palavra mais simpática do que bwana. Em tempos tinha algum significado.
- Pode consentir, sir, uma tal relação?
- Se uma rapariga ama um homem e não há imposição, para mim não é pecado nenhum se forem tomadas medidas adequadas para regular a questão por estirpe e não per capita.
Isto surgiu como um bloco inesperado e senti-me tão contente como o Sr. Singh por poder lançá-lo sem alterar o andamento. O Intérprete voltou então às noções de base em que o tinham enfronhado.
- É um pecado aos olhos de Deus.
- Será que andas com Ele às costas? E que tipo de gotas usas para Lhe garantir a mais clara das visões?
- Por favor não faça troça de mim, sir. Deixei tudo para trás para entrar ao seu serviço.
- Eu não tenho servidores. Somos os últimos indivíduos livres num país ligeiramente maior do que o Connecticut e acreditamos numa divisa bastante maltratada.
- Posso ouvir a divisa?
- As divisas são uma chatice, meu jovem da Missão... Vida, liberdade e busca da felicidade - E seguidamente, tendo conjurado a maldição graças a uma divisa e como o Sr. Singh assumia um ar solene pronto a reiterar, acrescentei: - Endurece bem os pés como tens feito. Mantém os intestinos desobstruídos e lembra-te que há sempre um canto numa terra estrangeira que será para sempre Inglaterra.
Não conseguia largar o que talvez fosse o seu sangue chagga ou o que poderia ser a sua tensão massai e disse: «Mas o senhor é um funcionário da Coroa.»
- Do ponto de vista técnico e temporariamente. Que queres? O shilling da Rainha?
- Seria um prazer aceitá-lo, sir.
Era um pouco rude o que fazia, mas o conhecimento é ainda mais rude e mais pobremente recompensado. Saquei a moeda do bolso e pu-la na mão do rapaz. A nossa Rainha parecia muito bonita e resplandecente de prata e disse: «Ficas nomeado informador; não, está mal», pois reparei que o Sr. Singh se mostrava chocado com o termo insultuoso. «És nomeado intérprete temporário do Serviço de Caça com uma remuneração de um soldo de setenta shillings por mês pelo período em que me couberem as funções de Guarda-Caça interino. Com a expiração do meu mandato cessará a tua nomeação, sendo-te atribuída uma compensação de desmobilização de setenta shillings. Esta compensação será paga dos meus próprios fundos privados e tu, abaixo-assinado, reconheces não ter outros direitos de qualquer natureza a reivindicar ao Serviço de Caça ou outros, etc., e que Deus tenha piedade da tua alma. A compensação será feita num pagamento único. Qual é o teu nome, meu jovem?
- Nathaniel.
- Serás conhecido nos Serviços de Caça como Peter. É um nome honroso, sir.
- Ninguém pediu a tua opinião e as tuas tarefas limitam-se estritamente a fazer uma tradução rigorosa e completa sempre que e se para tal fores convocado. O teu contacto será com Arap Meina, que te fornecerá as instruções complementares. Queres receber um adiantamento?
- Não, sir.
- Então podes sair e ir enrijecer os pés nas colinas que ficam atrás da cidade.
- Está zangado comigo, sir?
- De modo nenhum. Mas quando cresceres pode ser que descubras que o método socrático de aquisição de conhecimentos está ultrapassado e que se não fizeres perguntas não te responderão com mentiras.
- Tenha muito bom dia, Sr. Singh - disse o ex-convertido enfiando os sapatos para o caso de andar por ali algum espião da Missão - Bom dia, sir.
O Sr. Singh fez um aceno e eu disse: «Bom dia.»
Assim que o rapaz saiu pela porta das traseiras o Sr. Singh dirigiu-se quase distraidamente para a porta voltando logo a seguir para mais um copo de White Heather e passou-me a água no jarro frescol instalou-se confortavelmente e disse: «Mais o raio de um babu.»
- Mas não é nenhum sacaria.
- Não - disse o Sr. Singh - Mas está a perder tempo com ele.
- Porque é que nunca tínhamos falado em inglês?
- Por respeito - disse o Sr. Singh.
- O Singh das origens, seu antepassado, falava inglês?
- Não faço ideia - disse o Sr. Singh - já não é do meu tempo.
- Qual era o seu posto, Sr. Singh?
- Quer também o meu número de matrícula?
- Desculpe - disse eu - E é o seu whisky. Mas já há um bom tempo que aguenta a Língua Desconhecida.
- Era um prazer - disse o Sr. Sitigh - Aprendi muito da Língua Desconhecida. Se assim quiser, ficaria muito contente por entrar para o seu serviço como voluntário sem pagamento - disse o Sr. Singh - Neste momento forneço informações a três governos, e nenhum deles coordena as informações que recebe nem possui qualquer sistema de ligação correcto.
- As coisas nem sempre são o que parecem e é um Império que já funciona há muito tempo.
- Admira o modo como funciona nos nossos dias?
- Sou um estrangeiro e um hóspede e não faço críticas.
- Gostaria que lhe fornecesse informações?
- Com cópias em papel químico de todas as outras informações fornecidas?
- Nada de químicos nem de informações verbais a não ser que tenha um gravador. Tem um gravador?
- Comigo não.
- Com quatro gravadores podia-se mandar enforcar metade de Laitokitok.
- Não tenho desejo nenhum de enforcar meio Laitokitok.
- Nem eu. Senão quem havia de fazer compras na duka?
- Sr. Singh, se fizéssemos bem as coisas arranjávamos aqui uma catástrofe económica, mas agora tenho de ir até onde deixei o carro estacionado.
- Acompanho-o, se não se importa. Três passos atrás e para a esquerda.
- Não quero dar-lhe maçada.
- Não é maçada nenhuma.
Despedi-me da Sra. Singh e disse-lhe que íamos passar com o carro para levarmos três caixas de Coca-Cola e saí para a encantadora rua principal e a única de Laitokitok.
As cidades de uma só rua despertam o mesmo sentimento que um barco pequeno, um canal estreito, a nascente de um rio ou uma trilha num despenhadeiro. Por vezes Laitokitok, depois do pântano e das diferentes regiões acidentadas, o deserto e as colinas Chulu proibidas, parecia uma capital importante e outros dias tinha o aspecto da Rue Royale. Nesse dia era a Laitokitok pura com uns toques de Cody, Wyoming, ou Sheridan, Wyorning, noutros tempos. Ao lado do Sr. Singh, foi um passeio descansado e agradável que ambos apreciámos e diante do Benji’s com a sua bomba de gasolina, a larga escadaria semelhante à de um grande armazém ocidental e os numerosos massai aí postados, lá estava o breque de caça à espera. Detive-me junto a ele e disse a Mwerigi que ficava com a carabina enquanto ele ia fazer compras ou beber. Ele disse que não, que preferia ficar com a carabina. E assim subi as escadas e entrei no bazar apinhado. Debba e a Viúva estavam ainda a ver tecidos, com Mthuka a ajudá-las, e pondo de lado os estampados uns a seguir aos outros. Eu detestava fazer compras e escolher tecidos e dirigi-me para o canto oposto do balcão em forma de L e comecei a comprar medicamentos e sabões. Assim que foram empacotados num caixote passei à compra de enlatados; sobretudo arenque fumado, sardinhas, cavalas, camarão e vários tipos de salmão falso juntamente com algumas latas de carne de conserva local para oferecer ao meu sogro e depois comprei duas latas de cada tipo de peixe exportadas da África do Sul incluindo uma variedade com um rótulo que dizia apenas PEIXE. Seguidamente comprei meia dúzia de latas de lagostas do Cabo e, lembrando-me que estávamos a ficar desprevenidos, comprei uma garrafa de linimento Sloan e meia dúzia de sabonetes Lifebuoy. Nesta altura havia já uma multidão de massai a observar as minhas compras. Debba baixava os olhos e sorria orgulhosa. Ela e a Viúva ainda não se tinham decidido e já não havia mais do que uma meta dúzia de rolos de tecido para examinarem.
Mthuka deslocou-se ao longo do balcão para me vir dizer que o carro estava carregado e que tinha encontrado o posho do bom que Keiti queria. Dei-lhe uma nota de cem shillings e disse-lhe que pagasse as compras da rapariga.
- Diz-lhes que comprem dois vestidos - disse eu - Um para o cambia e outro para o Aniversário do Menino Jesus.
Mthuka sabia que nenhuma mulher precisa de dois vestidos. Precisava do velho que tinha e de um novo. Mas foi ter com ela e disse às raparigas em ktkamba e Debba e a Viúva baixaram os olhos, toda a impudência cedendo o lugar a uma adoração radiante como se eu tivesse acabado de inventar a electricidade e as lâmpadas iluminassem os mais remotos recantos de África.
O meu olhar não se cruzou com o delas, prosseguindo as minhas compras, agora no sector dos bonbons, em bocais, e os vários tipos de pastas de chocolate com avelãs e simples.
Nesta altura não fazia ideia se o dinheiro ainda chegava, mas já tínhamos metido gasolina e comprado o posho e por isso disse ao parente do dono que estava a atender atrás do balcão para pôr tudo num caixote com cuidado que eu depois passava a buscá-lo e a pagar. Isto deu a Debba e à Viúva mais algum tempo para escolherem e para eu levar o carro até à loja do Sr. Singli para ir buscar as caixas de garrafas.
Ngui tinha ido para a loja do Sr. Singh. Tinha encontrado o pó de tingir que queríamos para tingir as minhas camisas e casacos de caça com as cores massai e bebemos uma garrafa de Tusker e levámos outra para Mwerigi que estava no carro. Mwengi estava de faxina mas da próxima vez trocava com outro.
Na presença de Ngui o Sr. Singh e eu voltámos a falar na Língua Desconhecida e não em swahili macarrónico.
Ngui perguntou-me em kamba se eu gostava de dar uma trancada com a Sra. Singh e eu fiquei encantado por ver que ou o Sr. Singh era um grande actor ou que nunca tinha tido ocasião de aprender kamba.
- Kwisha maru - disse eu a Ngui, o que dava a impressão de ser uma algaraviada qualquer.
- Buona norte - disse ele e tocámos as garrafas uma na outra.
- Piga tu.
- Piga tu.
- Piga chul, tu - clarificou Ngui já um pouco encervejado, pensei, dirigindo-se ao Sr. Singh, que se inclinou em felicitações e apontou para as três garrafas dizendo que eram por conta da casa.
- Nunca - disse eu em húngaro - Nem, nem, soha.
O Sr. Singh disse qualquer coisa em Língua Desconhecia e eu pedi-lhe por gestos para me dar a factura, que ele começou a escrever, e eu disse para Ngui em espanhol: «Vámonos. Ya es tarde.»
- Avanti Savoia - disse ele - Nunatia.
- És um estupor - disse eu.
- Hapana - disse ele - Irmão de sangue.
Carregámos então o carro com a ajuda do Sr. Sitigh e vários dos filhos dele. Compreendia-se que o Intérprete não ajudasse pois não ficava bem a um aluno da Missão carregar caixas de cerveja. Mas parecia tão triste e estava tão manifestamente perturbado pela palavra nunaua que lhe pedi para levar a caixa de Coca-Cola.
- Posso ir no carro quando for a conduzir?
- Porque não?
- Podia ter ficado a guardar a carabina.
- Não se fica de guarda à carabina logo no primeiro dia.
- Desculpe. Só queria dizer que podia ter dado uma ajuda ao seu irmão kamba.
- Como sabes que é meu irmão?
- Tratou-o por irmão.
- E é meu irmão.
- Tenho muito que aprender.
- Nunca te deixes desanimar - disse eu estacionando o carro diante das escadas do Benji’s onde os massai que queriam descer a Montanha estavam à espera.
- Fuck ’em all - disse Ngui. Era a única frase que ele sabia em inglês ou pelo menos a única que ele usava, pois que de há uns tempos para cá o inglês era considerado a língua do carrasco, dos representantes do governo, dos funcionários e dos bwanas em geral. Era uma bela língua mas estava a tornar-se numa língua morta em África e toleravam-na mas não a aprovavam. Dado que Ngui, que era meu irmão, a tinha usado, usei-a também em resposta e disse: «Fuck’em all the long and the short and the tall» - Fodam-se todos, grandes, pequenos e altos.
Ngui fitou os importunos massai que se tivesse nascido nos velhos tempos, que eu ainda conhecera, teria gostosamente comido ao jantar e disse em kamba: «Todos os altos.»
- Intérprete - disse eu, para logo corrigir e dizer: - Peter, queres fazer o favor de ir à duka e dizer ao meu irmão Mthuka que estamos prontos para carregar?
- Como é que reconheço o seu irmão? É kamba tu.
Ngui não gostava do intérprete nem dos sapatos que usava e estava já a abrir caminho com a compacta insolência de um kamba sem armas através dos massai armados de lança que se tinham juntado na esperança de uma boleia, sem arvorarem nas lanças à laia de bandeira os seus testes Wassermann positivos.
Finalmente toda a gente saiu e carregaram-se as compras. Eu desci para entregar o volante a Mthuka, para deixar subir Debba e a Viúva e para ir pagar a conta. Depois de pagar, sobravam-me dez shillings e já estava a ver a cara de Mwindi quando me visse voltar de bolsos vazios. Ele era não só o Ministro das Finanças mas também a minha autoproclamada consciência.
- Quantos massai podemos levar? - perguntou Mthuka.
- Só os kamba e mais seis.
- Isso é demais.
- Mais quatro.
Mandámo-los então subir, com Ngui e Mwngi a escolhê-los e Debba muito emocionada, hirta de orgulho e o olhar distante. Seguíamos três à frente e cinco atrás, apenas kamba, indo a Viúva com Ngui e Mwerigi e quatro segundas favoritas sentadas nos sacos de posho e das compras na traseira. Podíamos ter levado mais dois mas havia dois sítios difíceis na estrada onde as massai ficavam sempre enjoadas.
Descemos a colina que era como chamávamos à encosta mais pequena da Montanha grande e Ngui abria as garrafas de cerveja que são tão importantes na vida wakamba como um qualquer sacramento. Perguntei a Debba como se sentia. Tinha sido um dia longo, e sob certos aspectos duro, e com as compras e a mudança de altitude e as curvas tinha mais do que o direito de se sentir como se sentia. A planície estendia-se diante de nós com todos os Pormenores do terreno e ela apoderou-se do coldre da pistola e disse: «En la puta gloria.»
- Yo, también - disse eu e pedi a Mthuka o rapé. Ele passou-mo e eu dei-o a Debba que mo devolveu, sem tirar nenhum. Era um rapé muito bom; não tão forte como o de Arap Meina mas o bastante para sabermos que era rapé quando púnhamos uma pitada no lábio superior. Debba não usava rapé mas passou a caixa, no seu orgulho e quando descíamos a encosta, à Viúva. Era um excelente rapé de Kajiado e a Viúva serviu-se e devolveu-o a Debba que mo passou e eu dei-o a Mthuka.
- Não tomas rapé? - perguntei a Debba. Já conhecia a resposta e foi uma estupidez tê-lo perguntado e a primeira coisa menos agradável que se tinha passado entre nós.
- Não posso tomar rapé - disse ela - Não sou casada contigo e não posso tomar rapé.
Não havia nada a responder a isto e por isso não dissemos nada e lá voltou a pôr a mão no coldre que ela realmente adorava, que tinha sido gravado em Denver, melhor do que tudo o que alguma vez foi gravado ou tatuado, por Heiser & Company, num belo motivo floral agora alisado pela cera de sela e delido e gasto pelo suor, ainda com ligeiras marcas da manhã de hoje, e disse: «Tenho-te todo inteiro nesta pistola.»
E eu respondi uma coisa muito grosseira. Entre os kamba há sempre urna certa impudência das mulheres que se torna em insolência ou ainda pior quando não há amor. O amor é uma coisa terrível que não se deseja a um vizinho e, como em todos os países, é uma festa móvel. A fidelidade não existe nem nunca está implícita excepto no primeiro casamento. Fidelidade do marido, quer-se dizer. Este era o primeiro casamento e eu pouco tinha para oferecer a não ser o que tinha. Era pouco mas não para desprezar e nenhum de nós o duvidava.
Afinal foi uma noite bastante calma. Na tenda, Debba não quis tomar banho e a Viúva também não. Tinham medo de Mwindi, que devia trazer a água quente, e tinham medo da grande banheira de tela verde assente nos seus seis pés. Era compreensível e foram compreendidas.
Tínhamos largado algumas pessoas na manyatta massai e já tínhamos ultrapassado a fase de dar espectáculo e as coisas, no escuro e num sítio preciso, estavam um pouco desabridas e não houve escapatória nem premeditação. Tinha dito à Viúva para ir embora mas uma vez que era o seu protector não sabia se, segundo a lei kamba, ela devia estar ali. Estava disposto a conceder-lhe todos os seus direitos ao abrigo da lei kamba, sendo ela uma mulher muito amável e delicada de maneiras educadas.
O Informador tinha aparecido durante um período de perturbação e tanto eu como Debba tinhamo-lo visto roubar a garrafa de gordura de leão. Tratava-se de uma garrafa vazia do Grand MacNish e Debba e eu sabíamos que Ngui a tinha adulterado com gordura de cefo antes de ele e eu termos decidido ser irmãos. Era a mesma coisa que ter um whisky de oitenta e seis graus em vez de um de cem graus e no momento em que acordámos vimo-lo a roubá-la e ria-se toda feliz, tão feliz como sempre que se ria, e disse: «Chui tu» e eu disse: «No hay remedio.»
«La puta gloria», disse ela. Não tínhamos um vocabulário muito extenso e não éramos grandes conversadores nem tínhamos necessidade de intérprete a não ser em matéria de lei kamba e fomos dormir um ou dois minutos, com a Viúva ferozmente em guarda. Tinha visto o Informador roubar a garrafa deformada com a gordura claríssima de leão que todos conhecíamos perfeitamente e tinha sido uma tossidela dele que nos chamara a atenção.
Chamei então Msembi, o bom rapaz um pouco rude que servia na messe e que era um caçador kamba e não um cultivador, mas que não era grande caçador e que se vira reduzido, desde a guerra, ao estatuto de servir na messe. Todos nós éramos servidores, pois até eu estava ao serviço do governo, no Serviço de Caça, e também ao serviço de Miss Mary e de uma revista chamada Look. Os meus serviços a Miss Mary estavam, temporariamente, suspensos com a morte do leão. Os meus serviços à Look tinham, temporariamente, terminado; definitivamente, esperava eu. Claro que me enganava. Mas nem Msembi nem eu nos importávamos minimamente de servir e nenhum de nós tinha servido tão bem o nosso Deus ou o nosso Rei para nos enchermos de peneiras.
As únicas leis são as leis tribais e eu era um inzee, o que quer dizer um ancião, continuando a manter o estatuto de guerreiro. É difícil ser ambas as coisas e os anciãos mais velhos mostram-se ressentidos com esta posição ambígua. Deve-se largar alguma coisa, uma qualquer se necessário, sem tentar agarrar tudo. Tinha aprendido esta lição num lugar chamado Schrice Eifel onde tinha sido necessário passar de uma posição ofensiva a uma defensiva. Cede-se o que se conquistou a grande custo como se não tivesse custado um chavo para conseguir Lima posição de notável fácil defesa. Não é coisa fácil de fazer e muitas vezes corre-se o risco de ser executado por isso; mas pode-se ser executado ainda mais depressa quando não nos ajustamos à situação.
Disse por isso a Msembi que servisse o jantar daí a meia-hora na tenda da messe e que pusesse lugares para Debba, para a Viúva e para mim. Ele mostrava-se perfeitamente encantado e cheio de energia e malícia kamba e saiu para transmitir as ordens. Infelizmente, não foi assim que as coisas se passaram. Debba era corajosa e Ia puta gloria é um melhor lugar do que aquele, que a maioria dos mortais jamais virão a atingir ou conseguir. A Viúva sabia que era uma ordem desacertada e sabia que ninguém tinha tomado a África num dia ou noite precisa. Mas era assim que ia ser.
Keiti deu cabo da coisa em nome da lealdade aos bwanas, à tribo e à religião muçulmana. Teve a coragem e o bom gosto de não delegar em ninguém as suas instruções e bateu com os nós dos dedos no mastro da tenda e perguntou se me podia dar duas palavras. Devia ter dito que não, mas sou um rapaz disciplinado. Não à força de doze das melhores como Pop impunha a disciplina mas pela implacável disciplina de toda uma vida. Disse ele: «Não tem nenhum direito de tomar a rapariga pela violência. (A este respeito estava enganado. Não tinha havido violência nenhuma, nunca.) Isso poderia criar grandes sarilhos.»
- Muito bem - disse eu - Falas em nome de todos os mzees?
- Sou eu o mais velho.
- Então diz ao teu filho que é mais velho do que eu para trazer o carro de caça.
- Não está cá - disse Keiti o que não ignorávamos nem a sua falta de autoridade sobre os filhos e porque é que Mthuka não era muçulmano, mas era demasiado complicado para mim.
- Eu guio o carro - disse eu - Não é assim tão difícil.
- Por favor, leva a rapariga para casa para a família. Vou contigo se queres.
- Eu levo a rapariga, a Viúva e o Informador.
Mwindi, na sua túnica verde e a calota, viera-se postar ao lado de Keiti pois era uma verdadeira tortura para este falar inglês.
Msembi não tinha ali nada que fazer mas gostava de Debba como todos nós. Ela fingia que dormia e era a esposa que todos nós desejaríamos comprar, todos nós sabendo que nunca possuiríamos nada que tivéssemos comprado.
Msembi tinha sido soldado e os dois anciãos sabiam-no e não ignoravam que tinham traído ao tornarem-se muçulmanos e, uma vez que todos acabam por vir a ser anciãos, atirou-se rapidamente à complacência de que davam mostras e com o genuíno sentido de litigância africano, recorrendo a títulos, que tinham sido abolidos, e ao seu próprio conhecimento da lei kamba disse: «O nosso bwana pode ficar com a Viúva pois ela tem um filho e é o protector oficial dela.»
Keiti abanou a cabeça em assentimento e Mwindi aprovou.
Para acabar com o caso e sentindo-me mortificado por causa de Debba que fruindo a sua glória tinha comido a refeição e tinha dormido a noite, se bem que não estivéssemos autorizados a dormir como tantas vezes já tínhamos feito sem atender ao julgamento dos magníficos anciãos que apenas tinham atingido a sua posição, enfim, não será bem assim, à sua antiguidade, disse para dentro da tenda: «No hay remedio. Kwenda na shamba.»
Foi este o princípio do fim do dia da minha vida que me ofereceu mais oportunidades de ser feliz.
Respeitando a decisão dos anciãos e tendo conduzido Debba, a Viúva e o Intérprete de volta à shamba onde a deixei com as coisas que lhe tinha comprado, regressei ao acampamento. Com as compras que fizera as coisas tornaram-se diferentes e Debba e a Viúva tinham tecido para os novos vestidos. Não fui falar com o meu sogro e não lhe dei quaisquer explicações e todos fizeram de conta que estávamos de volta, talvez um pouco tarde, de uma ida às compras. Tinha reparado na bossa formada pela garrafa do Grand MacNish com a gordura de leão adulterada embrulhada no xaile do Informador mas não fazia mal. Tínhamos gordura de leão melhor do que aquela e podíamos ter ainda melhor se assim o desejássemos e não há nada que se compare a esta pequena satisfação íntima de ver alguém, desde um escritor até mais acima, e este acima pode ser bastante alto, a roubar-nos pensando que ninguém dá por nada. No caso dos escritores, nunca lhes devemos dizer para não lhes partirmos o coração no caso de o terem, e alguns têm-no, e além disso porquê julgar a resistência cardíaca de outro homem se não estamos a competir com ele? Com o Informador era diferente, envolvendo, como era o caso, o seu grau de lealdade que era já discutível. Keiti odiava o Informador, com muito boas razões pois tinha servido em tempos sob as ordens de Keiti e tinham uma data de contas antigas por ajustar datando de quando o Informador era condutor de camião e torturava Keiti com a sua insolência então juvenil e com uma franqueza traiçoeira face àquele homem de ar tão nobre que era, na opinião de outros mais que o Informador, uma pessoa retrógrada. Keiti tinha gostado de Pop desde o momento em que entrara ao seu serviço e com o ódio que os kamba votavam à homossexualidade não podia tolerar que um massai condutor de camião pudesse acusar um Homem Branco especialmente tão ilustre e quando os vadios pintaram com batom os lábios da estátua que tinha sido erguida a tal homem, como faziam todas as noites em Nairobi, Keiti desviava os olhos quando por lá passava de carro. Charo, que era um muçulmano mais devoto do que Keiti, olhava-o de frente e ria-se como todos nós fazíamos. Mas quando Keiti aceitou o shilling da Rainha, fê-lo para a vida. Era um verdadeiro vitoriano e todos nós, que tínhamos sido eduardianos, depois georgianos, depois novamente eduardianos por um breve período antes de nos tornarmos novamente georgianos e éramos agora completa e genuinamente elizabethanos tanto quanto nos permitia a nossa capacidade de servir e as nossas lealdades tribais, pouco tínhamos em comum com o vitorianismo de Keiti. Nessa noite sentia-me demasiado abatido para julgar alguém ou sequer pensar em ataques pessoais e sobretudo para ser injusto com alguém que admirava e respeitava. Mas sabia que Keiti estava mais chocado por Debba, a Viúva e eu podermos jantar juntos à mesa da messe do que preocupado com a lei kamba pois era um homem adulto que possuía cinco esposas e uma bela esposa jovem e quem era ele para julgar a nossa conduta moral ou a falta dela?
Rolando pela noite fora, procurando não ser ressentido, e pensando em Debba e na arbitrária privação da nossa felicidade por razões formais que bem podiam ter sido ignoradas por todos independentemente da idade que tivessem, pensei em guinar para a esquerda e seguir a estrada de terra avermelhada que levava à outra shamba e onde poderia encontrar dois membros do nosso grupo e não a mulher de Lot ou de Putifar, mas sim uma esposa massai e ver se podíamos reconverter o venéreo em amor verdadeiro. Mas também não era a coisa mais indicada e por isso continuei a guiar em direcção a casa onde estacionei o carro e me sentei na tenda da messe a ler Simenon. Msembi estava aborrecidíssimo com toda esta história mas nem ele nem eu éramos grandes conversadores.
Fez-me então uma proposta bastante aventurosa: pegar no nosso camião e trazer a Viúva. Respondi-lhe que hapana à sugestão e continuei a leitura de Simenon.
Msembi sentia-se cada vez mais pesaroso e ainda por cima não tinha Simenon para ler e a sua sugestão seguinte foi de que ele e eu devíamos pegar no carro e ir buscar a rapariga. Disse que a um costume kamba e não havia nada a pagar além de uma multa. Além do mais, disse ele, a shamba era ilegal; ninguém tinha direito de nos levar a tribunal e eu tinha dado muitos presentes ao meu sogro assim como tinha matado um leopardo por ele nesse mesmo dia.
Reflecti na proposta mas decidi rejeitá-la. Ainda há pouco tempo tinha pago uma multa tribal por ter dormido na cama da minha sogra, o que é uma coisa bastante crua. Como é que Keiti o teria sabido? Competia-lhe saber tudo mas o plano que tínhamos posto em prática era extremamente cuidado e talvez um pouco mais cru do que o que lhe tinham contado. Não averiguei muito mais sobre o caso pois tinha grande respeito e admiração por ele especialmente desde Magadi. Tinha aí conduzido a batida, quando a tal não era obrigado, com as tranças acima dos maxilares a saírem-lhe do turbante até eu me sentir exausto e quando Ngui começava a sentir-se em dificuldades. Tinha levado a cabo esta batida sob um calor de quarenta graus à sombra medidos pelo bom termómetro do acampamento e a única sombra de que dispúnhamos era quando eu, arrazado, fazia uma pausa debaixo de alguma arvorezita, aceitando esta sombra como uma grande dádiva e respirando profundamente tentando calcular quantas milhas nos separavam do acampamento; aquele lugar fabuloso à sombra maravilhosa das figueiras, o riacho murmurante e os sacos de água a ressumar frescura.
Keiti tinha-nos estimulado sem nenhuma ostentação e não era sem mais nem menos que o respeitava. Mas nesta noite ainda não sabia bem a que se devia a sua intervenção. É sempre para nosso bem que as pessoas se metem na nossa vida. Mas há uma coisa que eu sabia: Msembi e eu não voltaríamos atrás com uma teimosia de beberrões para refazer a manobra.
Diz-se que os africanos nunca se sentem mal com o que quer que seja. Isto não passa de uma invenção dos brancos que se encontram temporariamente na região. Diz-se que os africanos não sofrem porque não choram, ou melhor alguns deles não choram. Embora não mostrar sofrimento quando lhes é infligido seja uma coisa tribal e um grande luxo. Enquanto nós, na América, temos televisão, filmes e esposas custosas sempre com mãos delicadas, cremes no rosto à noite e casacos de arminho natural, e não de viveiro, depositado num armazém frigorífico com um talão como numa casa do prego para o reaver; o africano, nas melhores tribos, têm o luxo de não mostrar sofrimento. Nós, os moi, como Ngui nos chamava, nunca tínhamos conhecido verdadeiras dificuldades a não ser na guerra o que é uma vida enfadonha e nómada com a ocasional compensação do combate e o prazer da pilhagem oferecido como o osso atirado a um cão pelo dono que não quer saber dele para nada. Nós, os moi, que neste momento eram Msembi e eu próprio, tínhamos vivido a pilhagem de uma cidade e ambos conhecíamos, embora o assunto nunca tenha sido abordado entre nós e fosse partilhado apenas em segredo, os mecanismos e os métodos para pôr em prática aquilo que a frase da Bíblia significa quando fala dos homens passados à espada e as mulheres levadas como cativas. Eram coisas que já não se faziam mas aquele que o tinha feito era um irmão. Os bons irmãos são difíceis de encontrar mas um mau irmão em qualquer cidade se encontra.
O Informador era meu irmão como ele não parava de declarar. Mas eu não o tinha escolhido. Na presente situação, que não era um safari e na qual bwana se aparentava bastante a um insulto pessoal, Msembí e eu éramos bons irmãos e nessa noite, sem que o mencionássemos, ambos nos lembrámos que os traficantes de escravos que tinham cá aparecido das diferentes estradas que vinham do mar eram todos muçulmanos e eu sabia que era essa a razão por que Mthuka com a cicatriz em flecha em cada face nunca haveria, nem à força, de se converter à religião da moda na qual o pai, Keiti, tal como o caro e bravo Charo e Mwindi, o honesto e hábil snob, tinham sido recebidos.
Deixei-me pois ficar sentado, partilhando ambos uma parte da nossa mágoa. Nguili apareceu uma vez, com o ar humilde que cabe a um nanake, mas mostrando desejos de contribuir com a sua parte de mágoa se isso lhe fosse permitido. Não lhe foi permitido e dei-lhe uma palmada no rabo trajado de verde, afectuosamente, e disse: «Morgen ist auch ein tag. » É uma velha máxima alemã que é o oposto de no hay remedio, que é uma bela frase e verdadeira mas que me fazia sentir culpado por a ter popularizado assim como sentia as culpas de um derrotista ou de um colaboracionista. Traduzi-a o melhor possível para kamba com a ajuda de Msembi e então sentindo a culpabilidade de um fala-barato de máximas pedi a Ngui que fosse buscar as minhas lanças porque queria ir caçar quando a lua aparecesse.
Era qualquer coisa de bastante teatral mas também Hamlet o é. Estávamos todos profundamente emocionados. Possivelmente eu era o mais emocionado dos três, por ter cometido o velho erro de não calar a boca.
A lua brilhava agora por cima do ombro da Montanha e eu lamentava não ter um bom cão dos grandes e não ter manifestado a intenção de fazer alguma coisa que me tornasse num homem mais admirável do que Keiti. Mas agora estava feito e por isso inspeccionei as lanças, calcei os mocassins macios, agradeci a Nguili e abandonei a tenda da messe. Havia dois homens de guarda com as carabinas, munições e uma lanterna em cima da árvore que ficava fora da tenda e deixei para trás essas luzes e deixei a lua por cima do meu ombro direito e iniciei a minha longa caminhada.
Era bom sentir na mão o peso da lança, que estava revestida a adesivo para não escorregar com o suor. Muitas vezes, ao usar a lança, sua-se bastante debaixo dos braços e o suor escorre para a haste da lança. O restolho das ervas era agradável debaixo dos pés e depois comecei a sentir a superfície lisa do rodado dos pneus no trilho que levava à pista de aterragem que tínhamos improvisado e à outra pista a que chamávamos a Grande Estrada do Norte. Era esta a primeira noite em que saía com a lança e tinha pena de não contar com um bom velho Honest Ernies ou um cão dos grandes. Com um pastor alemão sabia-se sempre se havia alguma coisa no maciço seguinte porque ele voltava logo para trás e avançava com o focinho encostado ao nosso joelho. Mas o sentir o legítimo medo que eu sentia quando saía com a lança à noite era um prazer que tinha de se pagar e tal como os maiores prazeres a maior parte das vezes valia bem a pena. Mary, G.C. e eu partilhávamos muitos prazeres e alguns deles tinham-se mostrado potencialmente caros mas, até agora, todos tinham valido bem a pena. Eram as coisas estúpidas da vida corrente e a sua persistente erosão que não valiam o que custavam, pensei e inspeccionei as várias moitas e árvores mortas com buracos de cobras esperando não tropeçar em nenhuma delas se andassem por fora a caçar.
No acampamento tinha ouvido duas hienas mas agora tinham-se calado. Ouvi um leão para os lados da velha manyatta e decidi ficar longe da velha manyatta. De qualquer modo, faltava-me a coragem para ir até lá e ficavam também aí as terras do rinoceronte. Mais à frente, na planície, podia distinguir alguma coisa que dormia ao luar. Era um griu, macho ou fêmea, e fiz um desvio para o evitar; veio-se a ver que era um macho; e voltei para o trilho.
Havia muitas aves nocturnas e tarambolas e avistei duas raposas de orelhas de morcego e lebres aos saltos mas os olhos não brilhavam como quando nos cruzávamos com elas no Land Rover pois não trazia lanterna e a lua não se reflectia. A lua estava agora bem alta, dava uma boa luz e eu segui pelo trilho feliz por andar cá fora à noite sem me importar que me aparecesse alguma fera. Todas as tolices a propósito de Keiti, da rapariga, da Viúva e do nosso banquete falhado e da noite na cama pareciam sem importância e quando olhei para trás tinha deixado de ver as luzes do acampamento mas podia ver o alto da Montanha com o seu topo quadrado a brilhar claro ao luar e esperava não deparar com nenhuma presa a abater. Podia perfeitamente ter matado o griu, talvez, mas se o tivesse feito teria de o limpar e depois ficar com a carcaça para que as hienas não a apanhassem ou então acordar o acampamento para trazer o camião e dar espectáculo e lembrei-me que apenas seis de entre nós comiam carne de griu e que o que eu queria era alguma carne da boa para quando Miss Mary voltasse.
Prossegui portanto o caminho ao luar ouvindo os animais pequenos a moverem-se e a gritaria dos pássaros quando se levantavam da poeira do trilho e pensei em Miss Mary e no que estaria a fazer em Nairobi e como lhe ficaria o novo corte de cabelo e se o iria cortar ou não e nas formas dela e em como quase não havia diferença entre as formas dela e as de Debba e em como teria Miss Mary de volta pelas duas horas daí a um dia e em como isso era uma coisa muito boa fosse do ponto de vista que fosse.
Nesta altura estava quase a chegar ao ponto onde ela tinha acertado no leão e podia ouvir um leopardo a caçar na orla do grande pântano para a esquerda. Estive quase a continuar até aos planos salobros mas sabia que se o fizesse me deixaria tentar por um qualquer animal e por isso dei meia volta e lancei-me no trilho de regresso ao acampamento com os olhos na Montanha e sem pensar em caçar.
De manhã Mwindi trouxe-me o chá e eu agradeci-lhe, indo tomá-lo para fora da tenda junto aos restos da fogueira pensando e recordando enquanto bebia, e depois vesti-me e fui ter com Keiti.
Não ia ter o dia completamente calmo nem dedicado à leitura e à contemplação com que tinha sonhado. Arap Meina surgiu junto da aba aberta da tenda, fez uma saudação marcial e disse: «Bwana, há uns problemazitos.»
- De que género?
- Nada de grave.
Na parte que servia de sala de visitas na área a seguir às fogueiras de cozinha onde havia várias árvores enormes estavam os responsáveis de duas manyattas massai à espera. Não eram chefes pois um chefe é alguém que aceitou dinheiro ou uma medalha de lata dos britânicos e é um homem vendido.
Estes eram simplesmente os que estavam à frente das suas aldeias, distantes umas das outras mais de vinte e quatro quilómetros, e todos eles tinham problemas com um leão. Sentei-me na cadeira fora da tenda com o meu bastão de mzee e tentei emitir uns grunhidos de compreensão e dignidade sempre que compreendia ou não compreendia e Mwindi e Meina iam interpretando. Nenhum de nós era muito versado em massai mas estávamos perante homens bons e sérios e as preocupações deles eram manifestamente legítimas. Um dos homens apresentava quatro arranhões compridos num ombro que pareciam ter sido feitos com um ancinho e o outro tinha perdido um olho numa altura qualquer e apresentava uma ferida atroz que começava um pouco acima da linha do cabelo e descia, por cima do olho estropiado, quase até aos queixos.
Os massai gostam de falar e de discutir mas nenhum daqueles homens era muito loquaz e eu disse-lhes, a eles e aos que os acompanhavam e estavam ali especados sem dizer palavra, que íamos tratar dos problemas deles. Para isso tinha que falar com Mwindi que depois falou com Arap Meina que a seguir falou com os nossos clientes. Apoiado no meu bastão de nizee que apresentava incrustado na ponta um shilling achatado de prata, ia resmungando no mais puro massai que soava um pouco como a Marlene Dietrich quando quer exprimir prazer sexual, compreensão ou afecto. Os sons variam. Mas são sempre profundos e têm uma inflexão ascendente.
Apertámos todos a mão e depois Mwindi que adorava anunciar as mais terríveis notícias disse em inglês: «Bwana, há duas damas com bubu.» Bubu designa qualquer forma de doença venérea, mas inclui também a bouba com o que as autoridades na matéria não concordam. Não há dúvida que a bouba apresenta uma espiroqueta bastante parecida com a sífilis mas as opiniões dividem-se quanto ao modo como se propaga. Diz-se que se pode apanhar esta boa velha rala ao beber de um copo usado ou ao sentar-se desprecatadamente no assento de uma retrete pública ou ao beijar um desconhecido. Com a minha limitada experiência nunca conheci ninguém tão azarado.
A bouba, ao fim de algum tempo, conhecia-a tão bem como conhecia o meu irmão. Quer dizer que tinha frequentes contactos com ela sem nunca ter sido capaz de lhes reconhecer o seu devido valor.
As duas damas massai eram ambas bastante bonitas e isto reforçou a minha teoria de que em África quanto mais bonito mais bouba se apanha. Msembi adorava a prática da medicina e trouxe todos os remédios para a bouba seria que tivesse de lhos pedir. Fiz uma limpeza geral e atirei o que daí resultava, para as cinzas ainda acesas da fogueira. Depois disso pincelei as bordas da les com genciana violeta para o efeito psicológico. A genciana exerce um efeito magnífico no espírito do paciente e inspira o médico e os espectadores e a sua adorável cor púrpura a fugir para o dourado. Tinha por norma, habitualmente, fazer uma pequena marca com ela na testa do marido.
Mwindi, que tinha apanhado o sentido de tudo e tinha envergado a sua túnica e a calota verdes e achava que éramos todos uns bons madraços não muçulmanos mas também madraços kamba, disse: «Bwana, há mais um massai com bouba.»
- Trá-lo cá.
Era um rapaz simpático, ainda guerreiro, e orgulhoso se bem que tímido por causa do seu defeito. O clássico. O venéreo que já não era recente tinha endurecido e depois de o ter palpado fiz de cabeça as contas à penicilina de que ainda dispúnhamos e lembrei-me que um homem não deve entrar em pânico e que tínhamos um avião que podia trazer mais e disse então ao rapaz que se sentasse e voltámos a ferver a seringa e a agulha, embora não pudesse saber se o que podia apanhar não seria pior do que o que já tinha, e Msembi limpou, com algodão e álcool, a região das nádegas, desta vez duras e lisas como o traseiro de um homem deve ser, e eu dei-lhe a injecção e observei o ligeiro ressumar oleoso que era a marca da minha ineficiência e o desperdício daquilo que agora equivalia à Hóstia, e recorrendo a Mwindi e a Arap Meina disse ao rapaz, agora em pé e empunhando a lança, quando devia voltar e que devia vir seis vezes e depois ir ao hospital com um recado que eu lhe ia dar. Não nos cumprimentámos porque era mais novo do que eu. Mas trocámos um sorriso e ele sentia-se orgulhoso por ter passado a prova da agulha.
Mthuka, que não tinha aqui nada a fazer, mas que tinha andado por ali às voltas a observar a prática da medicina e na esperança que eu viesse a efectuar um qualquer tipo de cirurgia pois já tinha praticado cirurgia seguindo um livro que Ngui segurava diante de mim e que tinha umas ilustrações fascinantes, algumas das quais dobradas e que se podiam abrir de maneira a verem-se os órgãos quer da frente quer de trás do corpo ao mesmo tempo. Todos gostavam da cirurgia mas hoje não havia cirurgia e Mthuka aproximou-se, alto, distendido, surdo, com as suas magníficas cicatrizes feitas há muito tempo para agradar a uma rapariga, e disse, envergando a sua camisa aos quadros e o chapéu que em tempos pertencera a Tommy Shevlin: «Kwenda na shamba.»
- Kwenda - disse eu, e acrescentei para Ngui: - Duas espingardas. Tu, eu e Mthuka.
Hapana halai?
- OK. Traz o Charo.
- Mzuri - disse Ngui, pois teria sido insultuoso matar uma boa peça de carne sem a degolar ritualmente para os anciãos muçulmanos. Keiti estava farto de saber que todos nós éramos maus sujeitos, mas agora que tínhamos o suporte de uma religião séria, e eu tinha explicado que esta religião na sua origem era tão antiga se não mais antiga do que a Montanha, Keiti tomava a coisa a sério. Acho que poderíamos ter convencido Charo, o que seria uma coisa terrível pois que ele tinha o conforto da sua própria religião que estava muito mais bem organizada do que a nossa, mas não fazíamos proselitismo e fizemos um grande avanço quando Charo levou a nossa religião a sério.
Miss Mary detestava o que conhecia da nossa religião, que era muito pouco, e não sei bem se todos os membros do nosso grupo desejavam a adesão dela. Se era membro por direito tribal, tudo bem, todos lhe obedeceriam e a respeitariam por isso. Mas se a entrada se fizesse por aprovação não tenho a certeza de que o conseguisse. Claro que no seio do seu próprio grupo, incluindo à frente todos os pisteiros e conduzido pelo magnífico, bem engomado, erecto e belo Chungo, até seria eleita Rainha do Céu. Mas na nossa religião nem pensar em admitir membros do Serviço de Caça e uma vez que pensávamos abolir o chicote e a pena de morte, excepto para os nossos inimigos e acabar com a escravatura a não ser quanto aos que fossem aprisionados pessoalmente por nós e abolir completa e absolutamente o canibalismo excepto em relação àqueles que o praticavam, Miss Mary podia não recolher o mesmo número de votos que a sua própria gente lhe poderia dar.
Rodámos pois para a shamba e mandei Ngui buscar Debba e com ela sentada a meu lado, com uma mão a agarrar o coldre gravado da pistola, pusemo-nos a caminho, com Debba a acolher as saudações dos miúdos ou dos idosos como um coronel honorário que agradecesse a homenagem do seu regimento. Nestas ocasiões imitava o comportamento em público que via nas fotografias das revistas que eu lhe tinha dado e tinha optado pelo porte e a graça das personagens reais dando a impressão de se mover por cima dos rolos de tecido da duka. Nunca lhe perguntei quem é que estava a imitar nas suas aparições em público mas acabávamos de passar um ano de desfiles mais do que fotografados e ela tinha muito por onde escolher. Tinha tentado ensinar-lhe o movimento do pulso e o ondular dos dedos com que a Princesa Aspasia da Grécia me saudava quando eu entrava na algazarra enfumarada do Harry's Bar em Veneza mas não tínhamos ainda um Flarry’s Bar em Laitokitok.
Debba respondia pois às saudações e eu mantinha uma afabilidade estática enquanto rolávamos pela estrada que fazia uma curva ao subir a encosta da Montanha em direcção ao ponto onde esperava matar um animal suficientemente grande, gordo e suculento para deixar toda a gente feliz. Caçámos diligentemente e deitámo-nos quase até ao escurecer num velho cobertor numa saliência elevada de uma encosta à espera que algum animal aparecesse a descoberto à procura de alimento. Mas não apareceu nenhum e quando estava já na hora de voltar matei uma gazela que de facto era o que estávamos a precisar. Apontei e sentado ao lado de Debba pus o dedo dela no gatilho à frente do meu e enquanto eu seguia a presa com a vista sentia a pressão do dedo dela e a cabeça encostada à minha e podia sentir os esforços dela para conter a respiração. Então disse «Piga!» e o dedo dela apertou o gatilho apenas um nadinha antes do meu e a gazela, que abanava a cauda enquanto pastava, caiu morta com as quatro patas bizarramente rígidas voltadas para o céu e Charo corria para ela nos seus shorts esfarrapados, o velho casaco azul e o turbante sebento para lhe cortar a garganta e fazer a carne legal.
- Piga mzuri - disse Ngui a Debba e ela voltou-se para ele, tentou pôr o seu ar real mas não o conseguiu e desatou a chorar e a dizer: «Asanta sana.» Estávamos ali sentados com ela a chorar até se calar de repente. Observámos Charo nas suas funções e o carro de caça aproximou-se vindo de trás do cume da colina até perto da presa e Mthuka desceu para baixar o anteparo traseiro e juntamente com Charo, os vultos pequenos vistos de longe e o carro enorme também reduzido, baixaram-se, levantaram e atiraram a carcaça para a parte de trás do carro. Depois subiram a colina em direcção a nós, aumentando a cada momento à medida que se aproximavam. A dado momento senti vontade de medir a distância do tiro. Mas era perder tempo com uma ninharia e um homem deve estar pronto a atirar a qualquer distância fazendo o devido desconto por estar a disparar para baixo da encosta.
Debba observava-o como se fosse o primeiro antílope que via na vida e pôs o dedo no buraco por onde a bala tinha entrado pelo meio do topo das espáduas e eu disse-lhe para não se sujar com o sangue do fundo do carro.
O fundo tinha umas barras metálicas para a carne não ficar em contacto com o calor do carro e deixar o ar circular e embora fosse sempre cuidadosamente lavado tinha o aspecto de um açougue.
Debba desinteressou-se da sua presa e rolámos pela encosta abaixo com ela sentada entre mim e Mthulça e ambos percebíamos que ela estava num estado esquisito mas não dizia nada, limitando-se a segurar com força o meu braço e a agarrar apertadamente o coldre gravado. Na shamba reassumiu a pose real mas sem pôr a alma nisso e Ngui esquartejou a gazela e atirou aos cães as tripas e os pulmões, abriu-lhe a barriga e pôs o coração, os rins e o fígado no saco do estômago e entregou-o a um miúdo para o ir levar a casa de Debba. O meu sogro estava presente e eu fiz-lhe um aceno. Ele pegou no saco branco e húmido com o seu conteúdo vermelho e púrpura e entrou em casa que era realmente uma construção bastante bonita com o seu tecto cónico e as paredes vermelhas.
Saí do carro e ajudei Debba a descer.
- Jambo tu - disse eu, mas ela não respondeu e entrou em casa.
A noite tinha já caído e quando chegámos ao acampamento a fogueira estava acesa e a minha cadeira e a mesa com as bebidas estavam prontas. Mwindi tinha o banho preparado e tomei um banho, ensaboando-me cuidadosamente, vestindo depois o pijama, as botas mosquiteiras, um pesado roupão e saí para junto da fogueira. Keiti estava à espera.
- Jambo, bwana - disse ele.
- Jambo, Sr. Keiti - disse eu - Matámos uma gazela pequena. O Charo já deve ter dito que é OK.
Sorriu e percebi que voltáramos a ser amigos. Keiti tinha o sorriso mais simpático e mais franco de toda a gente que conhecia.
- Senta-te Keiti - disse eu.
- Não.
- Queria agradecer-te o que fizeste ontem à noite. Agiste correctamente e fizeste exactamente o que devias. Conheço o pai da rapariga há algum tempo e trocámos as devidas visitas e presentes. Mas tu não o podias saber. O pai dela não presta.
- Eu sei. Quem manda naquela shamba são as mulheres.
- Se tiver um filho daquela rapariga há-de receber uma boa educação e pode escolher ser soldado, médico ou advogado. Assim mesmo. Se quiser ser caçador pode ficar comigo como meu filho. Está claro?
- Está claríssimo.
- Se tiver uma rapariga dou-lhe um dote ou pode vir viver comigo como minha filha. Está claro?
- Está claro. É melhor, talvez, ficar com a mãe.
- Farei tudo de acordo com a lei e o costume dos karriba. Mas não posso casar com a rapariga e levá-la para casa por causa de leis estúpidas.
- Um dos teus irmãos pode casar com ela - disse Keiti.
- Eu sei.
O caso estava encerrado e voltávamos a ser os mesmos velhos amigos de sempre.
- Gostava de vir uma noite e irmos caçar de lança - disse Keiti.
- Ainda ando a aprender - disse eu - Não percebo nada e sem um cão é difícil.
- Ninguém conhece a noite. Eu não. Nem tu. Ninguém.
- Quero aprender.
- Hás-de aprender. Mas tem cuidado.
- Eu tenho.
- Ninguém conhece a noite a não ser numa árvore ou num sítio seguro. A noite pertence aos animais.
Keiti era demasiado delicado para falar em religião mas eu via nele o olhar de alguém que fora levado até ao cimo de um alto monte e vira as tentações do mundo estendidas diante de si e lembrei-me que não devíamos corromper Charo. Percebi que estávamos agora vitoriosos e que eu poderia ter a rapariga e a Viúva a jantar com ementa escrita e cartões a marcar o lugar. Assim, estando a ganhar, forcei um bocado para marcar mais um ponto.
- Claro, na nossa religião, tudo é possível.
- Pois. Charo falou-me na sua religião.
É muito pequena mas muito antiga. Pois - disse Keiti.
- Bem, então boa noite - disse eu - Se está tudo em ordem.
- Está tudo em ordem -, disse Keiti e eu voltei a desejar-lhe boa noite e ele fez mais uma vénia e eu invejei Pop por ter um homem como Keiti. Mas, pensei eu, começava a ter os meus próprios homens e embora Ngui não se possa nunca comparar a Keiti em muitos aspectos é mais duro e mais divertido e os tempos agora são outros.
À noite fiquei estendido a ouvir os ruídos da noite e tentando compreendê-los a todos. O que Keiti dissera era verdade; ninguém conhecia a noite. Mas havia de aprender a conhecê-la se possível sozinho e a pé. Mas havia de aprender e não queria partilhá-la com mais ninguém. Partilhar está bem para o dinheiro, mas não se partilha uma mulher como não se partilha a noite. Não conseguia dormir e não queria tomar nenhuma pílula para dormir porque queria ouvir a noite e não tinha ainda decidido se me ia levantar para ir ver a lua a aparecer. Sabia que não tinha ainda experiência com a lança para ir caçar sozinho sem arranjar sarilhos e que era tanto meu dever como o meu grande e adorado prazer estar no acampamento quando Miss Mary voltasse. Era também meu dever e um prazer maravilhoso estar com Debba mas tinha a certeza de que ela dormiria bem pelo menos até a lua aparecer e que depois da lua se levantar todos pagávamos a parte de felicidade ou de mágoa que tivéssemos comprado. Fiquei na cama com a velha espingarda rigidamente encostada a meu lado e a pistola que era o meu melhor amigo e mais severo crítico de qualquer falha nos reflexos ou na decisão repousando confortavelmente entre as minhas pernas no estojo gravado que Debba tinha polido tantas vezes com as mãos duras e pensei em como era feliz por ter conhecido Miss Mary e por ela me ter concedido a grande honra de casar comigo e Debba a Rainha das Ngornas. Agora que tínhamos a religião era fácil. Ngui, Mthuka e eu podíamos decidir o que era pecado e o que não era.
Ngui tinha cinco esposas, o que sabíamos ser verdade, e vinte cabeças de gado, do que todos duvidávamos. Eu tinha apenas uma esposa legal devido à lei americana, mas todos se lembravam e respeitavam Miss Pauline que tinha estado em África muito tempo antes e era muito admirada e amada especialmente por Keiti e Mwindi e eu sabia que acreditavam que ela era a minha esposa índia morena e que Miss Mary era a minha esposa índia loira. Todos eles estavam convencidos que Miss Pauline tinha ficado a guardar a shamba na nossa terra enquanto eu vinha a este país com Miss Mary e nunca lhes disse que Miss Pauline tinha morrido porque isso iria deixar toda a gente triste. Também não lhes falámos noutra esposa de quem eles não gostariam que tinha sido reclassificada, de modo que já não tinha essa qualidade nem categoria. Pensava-se em geral, mesmo entre os anciãos mais conservadores e cépticos, que se Ngui tinha cinco esposas eu devia ter pelo menos doze dada a diferença de fortuna.
Ao que todos pensavam eu estava casado com Miss Marlene que, a julgar pelas fotografias e cartas que eu recebia neste safari, devia trabalhar para mim numa pequena shamba de diversões que eu possuía chamada Las Vegas. Todos conheciam Miss Marlene como sendo a autora de «Lili Marlene» e muita gente pensava que Lili Marlene era ela e todos a tínhamos ouvido no primeiro safari muitas vezes a cantar uma canção chamada «Jonny» no velho gramofone de manivela quando Rhapsody in Blue era uma melodia recente e Miss Marlene falava na canção em «Muts around the phlegm». Esta música deixava sempre toda a gente profundamente emocionada e nas raras ocasiões em que nesse tempo me via abatido ou desanimado, Keiti perguntava-me: «Muts around flem?» e eu dizia-lhe para pôr o disco e ele dava à manivela no fonógrafo portátil e todos nos sentíamos felizes ao ouvir a bela voz profunda e fora de tom da minha magnífica esposa inexistente.
É desta massa que se fazem as lendas e o facto de se pensar que uma das minhas esposas era Lili Marlene não prejudicava a religião. Tinha ensinado Debba a dizer «Vámonos a Las Vegas» e ela gostava do modo como soava quase tanto como «No hay remedio.» Mas continuava a temer Miss Marlene embora tivesse uma grande fotografia dela vestida com o que a mim me parecia coisa nenhuma na parede por cima da cama dela ao lado de um anúncio de máquinas de lavar, de dispositivos para eliminar o lixo, os bifes de duas polegadas de espessura e as fatias de presunto, as gravuras de mamutes, o cavalinho de quatro dedos e o tigre de dentes de sabre que tinha cortado da revista Life. Eram todas maravilhas do novo mundo e apenas Miss Marlene lhe metia medo.
Como agora estava acordado e não tinha a certeza de que voltaria a adormecer, pus-me a pensar em Debba e Miss Marlene e Miss Mary e outra rapariga que eu conhecia e de quem, nessa altura, gostava muito. Era uma americana alongada de andar desajeitado e com o habitual dom americano das formas sinuosas tão admiradas por aqueles que não sabem como são melhores os seios pequenos, duros e bem feitos. Mas esta rapariga tinha umas belas pernas de negra e era muito ardente embora estivesse sempre a queixar-se de alguma coisa. Mas era um agradável tema em que pensar à noite quando não conseguia dormir a ouvir a noite e pensava um pouco nela, na pequena cabana em Key West, no pavilhão e nos vários locais de jogo que costumávamos frequentar, nas manhãs de frio cortante das caçadas que tínhamos feito juntos com o vento a soprar no escuro e o sabor do ar das montanhas e o cheiro da salva nesse tempo em que ela pensava em caçar outras coisas sem ser dinheiro. Nunca se está realmente só e as chamadas horas escuras da alma quando são sempre três horas da manhã são as melhores horas de um homem quando não é nenhum alcoólico nem tem medo da noite e do que o dia trará. Eu tinha tanto medo como qualquer outra pessoa do meu tempo e talvez mesmo mais. Mas com os anos, o medo passara a ser considerado como uma espécie de estupidez, a ser classificado juntamente com as contas em negativo, as doenças venéreas que se apanhavam ou comer bombons. O medo é um vício de crianças e ao passo embora gostasse de o sentir aproximar-se, como sempre acontece com qualquer vício, era uma coisa descabida num homem adulto e a única coisa de que se devia ter medo era a presença de um perigo verdadeiro e iminente numa forma de que temos consciência e deixarmo-nos de tolices quando temos a responsabilidade de outras pessoas. Era o medo instintivo que nos eriça os cabelos face ao verdadeiro perigo e se perdemos esta reacção é melhor começarmos a pensar noutro tipo de actividade.
Pus-me pois a pensar em Miss Mary e em como tinha sido corajosa durante os noventa e seis dias em que tinha perseguido o leão dela, sem sequer ter altura que lhe permitisse vê-lo perfeitamente; fazendo uma coisa nova com conhecimentos incompletos e ferramentas inadequadas; arrastando-nos a todos com ela de maneira a estarmos todos a pé uma hora antes do nascer do sol e fartos de leões, especialmente em Magadi, e Charo, fiel e leal a Miss Mary mas velho e farto de leões, tinha-me dito: «l3wana mata o leão e não se fala mais no caso. As mulheres não matam leões.»
Era um belo dia para andar de avião e a Montanha parecia muito próxima. Sentei-me encostado à árvore a observar os pássaros e a caça que pastava. Ngui apareceu para receber ordens e disse-lhe para ele e Charo limparem e olearem as armas e afiarem e untarem as lanças. Keiti e Mwendi removiam a cama partida e levavam-na para a tenda vazia de Bwana Mouse. Levantei-me para ir ver. Não estava partida de modo irremediável. Uma das pernas da armação tinha uma racha comprida e um dos pilares que seguravam a lona estava partido. Reparava-se facilmente e disse-lhes que ia arranjar madeira e mandar cortá-la à medida e aparelhada na serração do Sr. Singh.
Keiti, que estava todo contente com a chegada de Miss Mary, disse que podíamos usar a cama de Bwana Mouse que era igual e eu voltei para a minha cadeira e para o livro de identificação de pássaros e mais chá. Sentia-me como alguém que se tivesse vestido para uma festa demasiado cedo nesta manhã que dava a impressão de se estar na Primavera num alto planalto alpino e ao dirigir-me à tenda da messe para tornar o pequeno-almoço perguntava a mim próprio o que o dia iria trazer. A primeira coisa que trouxe foi o Informador.
- Bom dia, irmão - disse o Informador - Como vai a sua boa saúde?
- Melhor que nunca, irmão. Que há de novo?
- Posso entrar?
- Claro. Já tomaste o pequeno-almoço?
- Há horas. Tomei-o na Montanha.
- Porquê?
- A Viúva estava tão complicada que a deixei para ir passear sozinho à noite como o senhor faz, irmão.
- Sabia que aquilo era mentira e disse-lhe: «Queres tu dizer que seguiste a estrada e apanhaste uma boleia até Laitokitok com um dos rapazes do Benji’s no camião?
- Mais ou menos isso, irmão.
- Continua.
- Irmão, vêm aí coisas terríveis.
- Serve-te do que te apetecer e conta lá.
- Está tudo preparado para a noite de Natal e para o Dia de Natal, irmão. Parece-me um massacre.
Estive quase a perguntar: «Por eles ou por nós?» mas contive-me.
- Conta mais - disse eu, fitando o rosto orgulhoso, bronzeado, curtido enquanto ele levava o copo de gin canadiano com um pingo de bitter aos lábios de um cinzento avermelhado.
- Porque não bebes Gordon's? Vivias mais tempo.
- Eu sei qual é o meu lugar, irmão.
- E o teu lugar é no meu coração - disse eu, citando o falecido Fats Waller. As lágrimas assomaram aos olhos do Informador.
- Então a noite de São Bartolomeu é para a noite de Natal - disse eu Ninguém respeita o Menino Jesus?
É um massacre.
Mulheres e crianças também? Ninguém falou nisso.
Quem disse o quê?
Falava-se disso no Benji’s. Falava-se muito nas lojas massai e no salão de chá.
- Os massai vão ser executados?
- Não. Os massai vão estar aqui todos para a sua ngoma do Menino Jesus,
- Fala-se muito da ngoma? - disse eu para mudar de assunto e para mostrar que as notícias sobre o massacre iminente não eram nada para mim, um homem que tinha sobrevivido à guerra contra os zulus, com antepassados que tinham acabado com George Armstrong Custer em Littie Big Horn. Um homem que ia a Meca não sendo muçulmano como quem vai a Brighton ou a Atlantic City não se pode deixar perturbar com boatos de massacres.
- Na Montanha só se fala na ngoma - disse o Informador – Tirando o massacre.
- Que diz o Sr. Singli?
- Foi malcriado comigo.
- Ele participa no massacre?
- Provavelmente é um dos dirigentes.
O Informador desembrulhou um embrulho que trazia no xaile. Era uma garrafa de whisky White Heather numa caixa.
- Um presente do Sr. Sitigh - disse ele - Aconselho-o a examiná-la atentamente antes de beber, irmão. Nunca ouvi esse nome.
- É pena, irmão. Pode ser que seja um nome novo mas é um bom whisky. As novas marcas de whisky são sempre boas a princípio.
- Tenho uma informação para o senhor acerca do Sr. Singli. Tenho a certeza de que fez o serviço militar.
- Custa a crer.
- Tenho a certeza. Ninguém me podia dizer os insultos que ele me disse se não tivesse servido o Raj.
- Achas que o Sr. Singli e a Sra. Singli são subversivos?
- Hei-de investigar isso.
- As informações hoje foram um pouco nebulosas, Informador.
- Irmão, tive uma noite difícil. O coração de pedra da Viúva, as minhas andanças pela Montanha...
- Bebe mais um copo, irmão. Falas que nem O Monte dos Vendavais.
- Foi alguma batalha, irmão?
- De certo modo.
- Tem de ma contar um dia.
- Lembra-me disso. Agora quero que passes a noite em Laitokitok, sem beber, e me tragas informações que não sejam só tretas. Vai para o Brown’s Hotel e dorme lá. Não, dorme na varanda. Onde dormiste a noite passada?
- No soalho do salão de chá debaixo da mesa de bilhar.
- Bêbado ou sóbrio?
- Bêbado, irmão.
Mary iria certamente esperar a abertura do banco para poder receber a correspondência. Estava um belo dia para voar, sem formações nebulosas à vista e não me parecia que Willie ficasse com pressa de ir embora. Pus duas garrafas de cerveja fresca no carro de caça e segui com Ngui e Mthuka em direcção à pista de aterragem com Arap Meina na traseira. Meina ficaria de guarda ao avião, todo garboso e chique no seu uniforme, com a sua .3O3 de alça polida e engraxada de fresco. Demos a volta ao prado para obrigar os pássaros a levantar voo e depois retirámo-nos para a sombra de uma árvore enorme onde Mthuka desligou o motor e todos ficámos confortavelmente sentados. No último minuto tínhamos apanhado Charo, pois era o porta-armas de Miss Mary e mandavam as regras que a fosse esperar.
Passava do meio-dia e abri um dos quartos de Tusker e Mthuka, Ngui e eu bebemo-lo. Arap Mema estava de castigo devido a uma recente bebedeira mas sabia que eu lhe daria alguma mais tarde.
Disse a Ngui e Mthuka que tinha sonhado essa noite que devíamos rezar ao sol quando ele se levantava e de novo quando ele se punha.
Ngui disse que não se ia ajoelhar como um condutor de camelos ou um cristão mesmo em nome da religião.
- Não precisas de te pôr de joelhos. Voltas-te de frente para o sol e rezas.
- Que é que nós pedíamos no sonho?
- Viver como bravos, morrer como bravos e ir directamente para as Terras das Caçadas Eternas.
- Bravos já nós somos - disse Ngui - Para que é que temos de rezar para isso?
- Pede o que quiseres, desde que seja para o bem de nós todos.
- Eu rezo para ter cerveja, carne e uma nova esposa com mãos rijas. A esposa pode-se partilhar.
- É uma boa oração. E tu Mthuka, que é que pedes? Que não se perca o carro.
- Mais nada?
- Cerveja. Que não aconteça nada ao patrão. Boa chuva em Machakos. Terras das Caçadas Eternas.
- E tu que pedes? - perguntou Ngui.
- A África para os africanos. Kwisha mau-mau. Kwisha todas as doenças. Boa chuva em todo o lado. Terras das Caçadas Eternas.
- Reza para te divertires - propôs Mthuka.
- Reza para dormir com a mulher do Sr. Singh.
- É preciso rezar bem.
- Leva a mulher do Sr. Singh para as Terras das Caçadas Eternas.
- Há muita gente a querer entrar para a religião - disse Ngui - Quantas pessoas deixamos entrar?
- Começamos com um pelotão. Talvez uma secção, talvez uma companhia.
- Companhia muito grande para Terras de Caçadas Eternas.
- Também me parece.
- Tu comandas as Terras das Caçadas Eternas. Nós formamos um conselho mas és tu a comandar. Nada de Grande Espírito. Nada de Grande Manitu. Hapana Rei. Hapana Estrada da Rainha. Hapana Sua Excelência. Hapana Comandante Distrital. Hapana Menino Jesus. Hapana polícia. Hapana Black Watch. Hapana Serviço de Caça.
- Hapana - disse eu.
- Hapana - disse Mthuka.
Passei a garrafa de cerveja a Arap Meina.
- És religioso, Meina?
- Muito - disse Meina.
- Bebes?
- Só cerveja, vinho e gin. Também pode ser whisky e todas as bebidas alcoólicas brancas ou de cor.
- Andas sempre bêbado, Meina?
- Devia sabê-lo, meu pai.
- Que religiões praticaste?
- Agora sou muçulmano - Charo recostou-se e fechou os olhos.
- E antes o que eras?
- Lumbwa - disse Meina. Os ombros de Mthuka abanavam – Nunca fui cristão - disse Meina com ar digno.
- Falamos demais de religião e continuo a fazer de Guarda-Caça e daqui a quatro dias festejamos o Nascimento do Menino Jesus - olhei para o relógio de pulso - Vamos enxotar os pássaros da pista e acabar a cerveja antes que chegue o avião.
- O avião vem aí - disse Mthuka. Pôs o motor em marcha, eu passei-lhe a garrafa e ele bebeu um terço do conteúdo. Ngui bebeu um terço e eu bebi metade de um terço e passei o resto a Meina. Carregávamos já contra as cegonhas fazendo-as dispersar à nossa aproximação e, depois de uma breve corrida, esticar as patas como se recolhessem o trem de aterragem para se lançarem num voo relutante.
Vimos o avião a chegar azul e prateado com as patas escanzeladas a zumbir sobre o terreno e começámos a rolar a toda a velocidade ao longo da pista enquanto ele chegava no sentido oposto, com os flaps descidos, passando por nós para ir aterrar sem nenhum abalo e começar a descrever um círculo, o nariz erguido e arrogante, lançando poeira para as flores brancas que nos chegavam aos joelhos.
Miss Mary surgiu à porta e saiu com um pequeno salto maravilhoso. Abracei-a com força e beijei-a e depois ela cumprimentou toda a gente, a começar por Charo.
- Bom dia, Papá - disse Willie - Diga ao Ngui se dá uma ajuda a descarregar umas coisas. Está um bocado pesado!
- Estou a ver que compraste Nairobi inteira - disse eu a Mary.
- Tudo o que pude. Não quiseram vender-me o Muthaiga Club.
- Mas comprou o New Stanley e o Torr’s. - disse Willie - Por isso temos sempre um quarto assegurado, Papá.
- E que mais compraste?
- Queria comprar-me um Comer - disse Willie - Arranjam-se agora verdadeiras pechinchas, não sei se sabe.
Rodámos para o acampamento com Miss Mary a meu lado no banco da frente. Willie falava com Ngui e Charo. No acampamento Mary mandou descarregar tudo na tenda vazia de Bwana Mouse e disse-me que me afastasse e não olhasse. já antes me tinha dito para não olhar para o que trazia no avião, e eu não olhei. Havia um grande maço de cartas, jornais e revistas e alguns telegramas e levei-os para a tenda da messe e fiquei a beber cerveja com Willie.
- A viagem foi boa?
- Não tivemos buracos. O solo já não aquece muito realmente com estas noites frias. A Mary viu os elefantes dela em Salengai e uma grande matilha de cães selvagens.
Miss Mary entrou. Tinha recebido todas as visitas oficiais e resplandecia. Era amada, bem recebida, e toda a gente o tinha mostrado de modo formal. Mary adorava que a tratassem por memsahib.
- Não sabia que a cama do Mousie estava partida.
- Está?
- E nem te disse nada sobre o leopardo. Deixa-me dar-te um beijo. G.C. fartou-se de rir com o que escreveste no telegrama sobre isso.
- Agora já têm o leopardo deles. já não precisam de se preocupar. Nem eles nem ninguém. Nem sequer o leopardo.
- Conta como foi.
- Não. Um dia quando voltarmos para aqui mostro-te o sítio.
- Posso ver as cartas que já leste?
- Abre-as todas.
- Que é que tu tens? Não estás contente que eu tenha voltado? Diverti-me imenso em Nairobi ou pelo menos saía todas as noites e toda a gente se mostrava simpática comigo.
- Vamos todos treinar um bocado a ser simpáticos contigo e daqui a pouco vai ser tal e qual como em Nairobi.
- Por favor, Papá, não sejas mau. É disto que eu gosto. Só fui a Nairobi para ser tratada e para comprar presentes de Natal e bem sei que querias que eu me divertisse.
- Ainda bem, e agora estás de volta. Dá-me cá um abraço apertado e um beijo antinairobi dos bons.
Era delicada e resplendente nas suas roupas kaki, o corpo rijo e com um cheiro delicioso, com o cabelo de ouro prateado, cortado curtinho, e eu aliei-me à raça branca e europeia tão facilmente como um mercenário de Henrique IV declarando que Paris valia bem uma missa.
Willie mostrava-se feliz por assistir à aliança e disse: «Papá, então e outras novidades além do chui?»
- Nenhumas.
- Nada de sarilhos?
- A estrada à noite é um escândalo.
- O que me parece é que eles contam um bocado demais que o deserto seja intransitável.
Mandei buscar o lombo de carne para Willie e Mary foi à nossa tenda buscar o correio dela. Apanhámos o carro e depois Willie levantou voo. Todos os rostos se iluminaram com o reflexo do avião ao girar e depois, quando não passava já de um ponto prateado ao longe, voltámos novamente para casa.
Mary mostrava-se terna e adorável e Ngui estava pesaroso porque não o tinha levado. Não tardaria a cair a noite e a ter a Time e as edições para o estrangeiro dos jornais britânicos, com o brilho declinante do crepúsculo e a fogueira e uma bebida.
Que se lixe o resto, pensei. Tinha complicado demasiado a minha vida e as complicações multiplicam-se. Vou mas é ler uma qualquer Time que Miss Mary não queira e tenho-a aqui de volta e vou gozar a fogueira e vamos gozar a nossa bebida e jantar depois. Mwindi estava a preparar o banho para ela na banheira de lona e a seguir tomava eu banho. Ia lavar-me de tudo e ficar de molho no banho e depois de a banheira de lona ser esvaziada e lavada e novamente cheia com água aquecida em antigos bidões de gasolina, estendi-me na água e fiquei a marinar e a ensaboar-me com o sabonete Lifebuoy.
Esfreguei-me com a toalha e vesti o pijama e as minhas velhas botas mosquiteiras da China e pus um roupão. Era a primeira vez desde que Mary tinha partido que tomava um banho quente. Os britânicos tomavam um à noite sempre que podiam. Mas eu preferia lavar-me de manhã numa bacia ao vestir-me, e de novo quando voltávamos da caça ao fim do dia.
Pop odiava isso, pois o ritual do banho era um dos raros ritos do velho safari que ainda restavam. Por isso sempre que ele estava connosco impunha a mim próprio tomar um banho quente. Mas corri o outro sistema de nos lavarmos dava pelas carraças que tivesse apanhado durante o dia e Mwindi ou Ngui tiravam-mas quando não lhes conseguia chegar. Nos velhos tempos, quando caçava só com Mkola, apanhávamos matacanhas que se enfiavam entre as unhas dos pés e todas as noites tínhamos de nos sentar a catar-nos um ao outro à luz das lanternas. Nenhum banho nos livraria delas, mas também não tínhamos banho.
Estava a pensar nos velhos tempos e na intensidade com que caçávamos, ou antes simplicidade. Nesses tempos para se mandar vir um avião tinha de se ser incomensuravelmente rico e não estar para suportar nenhum canto de África onde houvesse qualquer dificuldade em viajar ou então queria dizer que se estava a morrer.
- Diz lá como é que te sentes agora, querida, depois do teu banho e se te divertiste?
- Estou mesmo bem. O médico deu-me a mesma coisa que estava a tomar e bismuto. As pessoas foram muito simpáticas comigo. Mas tive sempre saudades tuas,
- Estás lindíssima - disse eu - Como é que arranjaste um penteado kamba assim tão bonito?
- Cortei-o a direito nos lados mais um bocadinho hoje à tarde - disse ela - Gostas?
- Conta coisas de Nairobi.
- Na primeira noite conheci um senhor muito simpático que me levou ao Traveler’s Club que não era muito mau e depois levou-me de volta ao hotel.
- Como era ele?
- Não me lembro assim muito bem, mas era muito simpático.
- E na segunda noite?
- Saí com o Alec e a namorada e fomos a um sítio qualquer que estava a abarrotar. Tinha de se estar vestido a rigor e Alec não estava. Não me lembro se ficámos lá ou se fomos a outro sítio.
- Deve ter sido maravilhoso. Tal e qual Kimana.
- E tu que fizeste?
- Nada. Dei umas voltas com o Ngui, o Charo e o Keiti. Acho que fomos a um almoço da igreja ou coisa assim. E que fizeste na terceira noite?
- Querido, a sério que já não me lembro. Ali, sim. Fomos a um sítio qualquer, o Alec, a namorada, o G.C. e eu. O Alec estava chato. Fomos a mais dois sítios e depois levaram-me de volta.
- O mesmo género de vida que nós aqui. Só que foi o Keiti a ser chato em vez do Alec.
- Foi chato como?
- Já nem me lembro - disse eu - Qual das Time queres ler?
- Dei uma vista de olhos numa. Tens alguma preferência?
- Não.
- Não disseste se gostas de mim e se estás contente por me teres de volta.
- Gosto de ti e estou contente por te ter de volta.
- Ainda bem e estou contente por estar em casa.
- Não contas mais nada de Nairobi?
- Pedi ao tal senhor simpático com quem tinha saído que me levasse ao Coryndon Museum. Mas acho que para ele foi uma chatice.
- Que comeste no Grill?
- Havia bom peixe dos grandes lagos. Filetes, mas pareciam percas ou lúcios. Não sabiam o nome. Diziam só que era samaki. Havia um salmão fumado fresco realmente bom que tinham mandado vir de avião e havia ostras, acho eu, mas não me lembro ao certo.
- Bebeste aquele vinho branco seco grego?
- Litros. O Alec não apreciou. Esteve na Grécia, em Crera, acho eu, com aquele teu amigo da RAE Também não gostou dele.
- O Alec foi mesmo chato?
- Só com ninharias.
- Não vamos ser chatos com nada.
- Pois não. Faço-te outra bebida?
- Muito obrigado. O Keiti está cá. Que é que tu queres?
- Um Campari com um niquinho de gin.
- Gosto quando estás em casa na cama. Vamos para a cama logo a seguir ao jantar.
- Óptimo.
- Prometes não sair esta noite?
- Prometo.
E assim, a seguir ao jantar sentei-me a ler a edição para avião da Time enquanto Mary escrevia o diário e depois saiu com a lanterna para ir à tenda da latrina e eu desliguei a luz a gás e pendurei uma lanterna na árvore e despi-me dobrando as roupas com cuidado em cima da mala aos pés da cama e enfiei-me na cama, prendendo o mosquiteiro debaixo do colchão.
Ainda era cedo mas sentia-me cansado e cheio de sono. Pouco depois Miss Mary meteu-se na cama e eu pus de parte a outra África e então recriámos a nossa própria África de novo. Era uma África diferente daquela onde tinha estado e a princípio senti que corava pelo peito acima mas depois aceitei as coisas e deixei de pensar e limitei-me a sentir o que sentia e era maravilhoso estar na cama com Mary. Fizemos amor e voltámos a fazer amor e depois fizemos amor uma vez mais, sem ruído, no escuro, sem falar, sem pensar e depois como uma chuva de meteoros por uma noite fria adormecemos. Talvez tivesse havido uma chuva de meteoros. Estava bastante frio e bastante claro. A certa altura durante a noite Mary foi para a cama dela e disse: «Boa noite, tesouro.»
Acordei com o romper do dia, vesti uma camisola e as botas mosquiteiras por cima do pijama e passei o cinto da pistola à volta do roupão e fui até junto de Mseríbi que acendia a fogueira, para ler os jornais e beber o bule de chá qkle Mwendi tinha trazido. Primeiro pus todos os jornais por ordem e comecei por ler o mais antigo. As corridas de cavalos deviam estar a chegar ao fim nesta altura em Auteil e Enghien, mas os jornais ingleses não davam os resultados das corridas francesas nestas edições para avião. Fui ver se Miss Mary estaria acordada e encontrei-a a pé e vestida, fresca e radiosa a pôr gotas nos olhos.
- Como estás, querido? Que tal dormiste?
- Maravilhosamente - respondi - E tu?
Acordei agora mesmo. Voltei a adormecer logo depois do Mwindi me ter trazido o chá.
Apertei-a nos braços aspirando a camisa fresca e o seu corpo tão harmonioso. Picasso tinha-lhe chamado o meu Rubens de bolso certo dia e era realmente um Rubens de bolso, mas devidamente reduzida a cinquenta e seis quilos e nunca tivera uma cara à Rubens e agora sentia-a limpa, lavada de fresco e sussurrei-lhe algumas palavras ao ouvido.
- Oh, sim. E tu?
- Também.
- Não é maravilhoso estarmos aqui sós com a nossa Montanha e o nosso adorado território e nada que nos aborreça?
- É. Anda, vamos tomar o pequeno-almoço.
Teve um pequeno-almoço a sério com fígado de gazela assado com bacon e metade de uma papaia da cidade com limão espremido e duas chávenas de café. Eu bebi uma chávena e café com leite de lata mas sem açúcar e ainda tomava outra mas não sabia o que íamos fazer e não queria andar com o café às voltas no estômago.
- Tiveste saudades minhas?
- Se tive.
- Tive muitíssimas saudades tuas mas havia sempre imensas coisas para fazer. Não tinha tempo nenhum, a sério.
- Viste o Pop?
- Não. Não velo à cidade e eu não tive tempo nem transporte para ir ter com ele.
- Viste o G.C.?
- Apareceu uma noite. Disse para fazeres como achares melhor mas seguindo de perto o que tinha sido decidido. Obrigou-me a decorar tudo.
- É tudo?
- É tudo. Tinha-o decorado. Convidou o Wilson Blake para vir cá no Natal. Chegam um dia antes. Disse para te preparares para gostar do chefe dele, Wilson Blake.
- Mandou-te decorar isso?
- Não. Era só um recado. Perguntei-lhe se era uma ordem e ele disse que não, que era só uma sugestão interessada.
- Estou aberto a sugestões. Como estava o G.C.?
- Não foi chato como o Alec. Mas está cansado. Diz que tem saudades nossas e não está com rodeios com as pessoas.
- Que queres dizer?
- Acho que começa a estar farto de idiotas e trata-os mal.
- Coitado do C.C. - disse eu.
- Vocês têm realmente má influência um sobre o outro.
- Talvez sim - disse eu - E talvez não.
- Bem, a mim parece-me que tens má influência nele.
- Não falámos já nisto uma ou duas vezes?
- Esta manhã não - disse Miss Mary - Em todo o caso nos últimos tempos não. Escreveste alguma coisa enquanto estive fora?
- Muito pouco.
- Não escreveste cartas?
- Não. Ali, sim. Escrevi ao G.C. uma vez.
- Que fizeste então todo este tempo?
- Umas coisinhas e a rotina do costume. Fui dar uma volta a Laitokitok depois de termos matado o desgraçado do leopardo.
- Bem, vamos arranjar uma árvore de Natal a sério e pelo menos é uma coisa que fica feita.
- Óptimo - disse eu - Temos de arranjar uma que caiba no carro de caça. Mandei embora o camião.
- Vamos buscar a que tinha escolhido.
- Está bem. já sabes que tipo de árvore é?
- Não, mas depois vejo no livro das árvores.
- Óptimo. Vamos lá buscá-la.
Arrancámos, finalmente, para ir buscar a árvore. Keiti acompanhava-nos e levávamos pás, pangas, sacos para as raízes da árvore, espingardas grandes e pequenas na grade fixada nas costas do banco da frente e disse a Ngui que trouxesse quatro garrafas de cerveja para nós e duas de Coca-Cola para os muçulmanos. íamos decididos a cumprir a tarefa e a não ser no que tocava à natureza da árvore, que era capaz de deixar um elefante como bêbado durante dois dias se a comesse, íamos levar a cabo uma tarefa tão nobre e inquestionável que podia escrever sobre ela para qualquer revista religiosa.
Todos nos esforçávamos por nos portar devidamente e reparámos que havia pegadas mas não fizemos nenhum comentário. Líamos o registo de tudo o que tinha atravessado a estrada durante a noite. Reparei no voo das galinholas traçando um longo arabesco ondeante em direcção à água para além dos plainos salobros e Ngui também as observava. Éramos caçadores mas nessa manhã trabalhávamos para os Serviços Florestais do nosso Senhor, o Menino Jesus.
Na verdade, trabalhávamos para Miss Mary e sentíamos uma grande volta nas nossas fidelidades. Éramos todos mercenários e era evidente que Miss Mary não era nenhuma missionária. Nem sequer seguia nenhum mandamento cristão; não tinha de ir à igreja como faziam as outras memsahibs e esta história da árvore era uma coisa do seu shauri como o leão tinha sido.
Dirigimo-nos para a floresta de troncos amarelos e de um verde denso seguindo a nossa velha estrada agora invadida pelas ervas e pragas desde a última vez que ali tínhamos passado até chegarmos à clareira das árvores de folhagem prateada. Ngui e eu descrevemos um círculo, eu para um lado e ele para outro, para ver se o rinoceronte e a fêmea não andariam por ali. Não encontrámos nada, a não ser um impala e eu deparei com o rasto de um leopardo dos grandes. Tinha andado a caçar nas margens do pântano. Medi as pegadas com a mão e voltámos para junto dos que desenterravam a árvore.
Vimos que não podiam estar todos a cavar ao mesmo tempo e como Keiti e Miss Mary dirigiam as operações, fomos para a orla do arvoredo sentar-nos e Ngui estendeu-me a lata de rapé. Tomámos ambos uma pitada e observámos os especialistas florestais a trabalhar. Todos trabalhavam arduamente excepto Miss Mary e Keiti. Deu-nos a impressão de que a árvore nunca caberia na parte de trás do carro mas quando finalmente a sacaram da cova viu-se que cabia e que era tempo de irmos ter com eles para dar uma ajuda a carregar. A árvores estava cheia de espinhos e era difícil de carregar mas lá acabámos por conseguir. Pusemos sacos molhados por cima das raízes e atámo-la, com cerca de metade a sair pelas traseiras do carro.
- Não podemos voltar pelo mesmo caminho - disse Miss Mary - A árvore partia toda naquelas curvas.
- Vamos por um caminho diferente.
- O carro poderá passar?
- De certeza.
Seguindo a trilha através da floresta deparámos com o rasto de quatro elefantes e viam-se excrementos frescos. Mas a pista seguia para Sul. Eram machos de um tamanho razoável.
Eu levava a espingarda grande nos joelhos porque tínhamos visto essas marcas, eu, o Ngui e Mthuka, quando cruzavam a estrada mais a Norte à vinda. Talvez viessem do curso de água que atravessava o pântano dos Chulu.
- O caminho para o acampamento está livre - anunciei a Mary.
- Ainda bem - disse ela - Vamos poder plantar a árvore em bom estado. No acampamento Ngui, Mthuka e eu ficámos para trás e deixámos os voluntários e os entusiastas cavar a cova para a árvore. Mthuka foi buscar o carro à sombra assim que a cova ficou pronta e a árvore foi descarregada e plantada e ficou muito bonita e alegre em frente da tenda.
- Não é um encanto? - disse Miss Mary. E, eu disse que era. - Obrigado por nos teres trazido de volta por um caminho tão bom e por não teres inquietado ninguém por causa dos elefantes.
- Não paravam ali. Devem ir para Sul para terem um abrigo bom e comida. Não nos iam incomodar.
- Tu e o Ngui foram espertos com eles.
- São aqueles machos que vimos do avião. Eles é que foram bem espertos. Mais do que nós.
- Para onde vão agora?
- Devem ficar um bocado na floresta a comer perto do cimo do pântano. Depois atravessam a estrada à noite e enfiam por aquela parte que vai dar a Amboseli que os elefantes costumam usar.
- Tenho de ir ver se eles acabam bem o trabalho.
- Eu vou até à estrada.
- A tua namorada está ali debaixo da árvore com o pau de cabeleira.
- Eu sei. Trouxe-nos umas espigas. Vou levá-la a casa.
- Ela não quer vir ver a árvore?
- Acho que não ia compreender.
- Fica na shamba para o almoço, se quiseres.
- Ninguém me convidou - disse eu.
- Então voltas para o almoço?
- Antes.
Mthuka levou o carro até à árvore onde estavam à espera e disse a Debba e .à Viúva para subirem. O rapazinho da Viúva bateu com a cabeça na minha barriga e eu dei-lhe uma palmadinha. Ele sentou-se no banco de trás com Debba e a mãe mas eu saí e disse a Debba que viesse sentar-se à frente. Tinha-se mostrado uma rapariga de coragem vindo ao acampamento, trazendo as espigas e ficando junto à árvore à espera até nós chegarmos e eu não queria que ela voltasse para a shamba sem ser no seu lugar do costume. Mas Miss Mary com a simpatia que mostrava para com a shamba tinha-nos deixado a todos como se fosse sob palavra de honra ou como se nos tivesse dado liberdade provisória.
- Vês a árvore? - perguntei a Debba. Ela deu uma risadinha. Sabia de que espécie de árvore se tratava.
- Havemos de ir caçar outra vez.
- Ndio - sentou-se muito direita enquanto passeávamos diante das primeiras cubatas antes de nos determos debaixo da árvore grande. Saí para ver se o Informador tinha alguns espécimes botânicos para entrega, mas não encontrei nada. Provavelmente tinha-as posto no ervário, pensei. Quando voltei Debba tinha desaparecido e Ngui e eu subimos para o carro e Mthuka perguntou para onde íamos.
- Na campi - disse eu. Depois pensei e acrescentei: - Pela estrada grande.
Nesse dia estávamos à espera, suspensos entre a nossa nova África africana e a velha África que tínhamos sonhado e inventado e o regresso de Miss Mary. Em breve estariam de regresso os pisteiros que G.C. decidisse trazer e a presença do grande Wilson Blake que definiria uma linha política e nos deslocaria ou nos despediria ou fecharia alguma área ou arranjava maneira de dar seis meses a alguém com a mesma facilidade com que nós levávamos um pedaço de carne à shamba.
Nenhum de nós estava muito animado mas estávamos descontraídos e não nos sentíamos infelizes. íamos matar um antílope para o Natal e eu ia fazer o possível para que Wilson Blake se sentisse bem. G.C. tinha mandado dizer para eu fazer um esforço para simpatizar com ele e ia fazer os possíveis. Quando o conheci não tinha gostado muito dele, mas provavelmente também não me tinha esforçado muito. Talvez estivesse a ficar velho para gostar das pessoas quando fazia esforços para isso. Pop nunca tinha feito nenhum esforço para gostar das pessoas. Limitava-se a ser cortês ou moderadamente cortês e depois ficava a observá-las com os seus olhos azuis, ligeiramente raiados e de pálpebras caídas sem as ver. Estava à espera que cometessem algum erro.
Sentado no carro debaixo da árvore grande no flanco da colina decidi fazer qualquer coisa para mostrar o meu apreço e estima por Wilson Blake. Não havia muito em Laitokitok capaz de o interessar e não o estava a ver muito feliz numa festa em sua honra numa das shambas massai ilegais onde faziam cerveja nem na sala das traseiras do Sr. Singli. Tinha sérias dúvidas de que ele e o Sr. Singh se dessem bem. Já sabia o que devia fazer. Era indubitavelmente o presente ideal. íamos encomendar a Willie um voo com Mister Blake por cima dos Chulu e todo o seu território que ele nunca tinha visto. Era incapaz de imaginar um presente tão refinado nem tão útil e comecei a gostar do Sr. Blake e quase a conceder-lhe o estatuto de nação mais favorecida. Não os acompanharia, ficando antes em casa a fotografar modesto e industrioso os meus espécimes botânicos, talvez, ou a identificar pardais enquanto G.C., Willie, Miss Mary e o Sr. Blake descobriam a paisagem.
- Kwenda na campi - disse para Mthuka e Ngui abriu outra garrafa de cerveja para a podermos beber ao atravessar o ribeiro no vau. Era uma ideia abençoada e todos bebemos uma golada da garrafa enquanto observávamos os peixinhos na bacia acima da longa língua do vau. Havia bom peixe-gato na corrente mas estávamos com demasiada preguiça para pescar.
Miss Mary estava à espera à sombra do duplo paravento da tenda da messe. Tinham levantado a parte de trás da tenda e o vento fresco da Montanha corria.
- Mwindi anda preocupado por tu ires caçar à noite descalço.
- O Mwindi parece uma velha. Tirei as botas uma vez porque rangiam e rangiam por culpa dele que não as tinha engraxado devidamente. É todo picuinhas.
É muito fácil chamar picuinhas a alguém que só quer o teu bem. Deixa lá isso agora.
Então, porque é que andas sempre com tantas cautelas e às vezes não tens cuidado nenhum?
- Porque às vezes se fala na possibilidade de andarem por aí tipos perigosos e depois ouvimos que foram para outros lados. Só tomo as cautelas que é preciso.
- A não ser quando sais sozinho à noite.
- Há sempre alguém a tomar conta de ti e das armas e há sempre luzes. Estás sempre bem guardada.
- Mas porque sais?
- Tenho de sair.
- Mas porquê?
- Porque já há pouco tempo. Sei lá se podemos voltar cá. Será que voltamos cá um dia?
- Estou preocupada contigo.
- Normalmente dormes como uma pedra quando eu saio e continuas a dormir como uma pedra quando volto.
- Nem sempre. Às vezes estendo a mão para a cama e não estás lá.
- Bem, só posso ir quando a lua aparecer e a lua agora levanta-se tarde.
- Tens assim tanta vontade de sair?
- Tenho, a sério, querida. E deixo sempre alguém a tomar conta de ti.
- Porque não levas ninguém contigo?
- Não tem piada nenhuma se for alguém comigo.
- É mais uma das tuas loucuras. Mas pelo menos não bebes quando sais, pois não?
- Não. Lavo-me bem e ponho gordura de leão.
- Obrigada por só a pores depois de sair da cama. A água não está fria à noite?
- Está tudo tão frio que nem se dá por ela.
- Deixa-me preparar-te agora uma bebida. Que é que queres? Um gimlet?
- Um gimlet vinha a calhar. Ou então um Campari.
- Vou fazer um gimlet para os dois. Sabes o que eu queria para o Natal?
- Isso gostava eu de saber.
- Nem sei se te deva dizer. Talvez seja caro demais.
- Não, se tivermos dinheiro.
- Gostava muito de viajar e de ver alguma coisa de África. Vamos voltar para casa e não vimos nada. Gostava de ver o Congo belga.
- Eu não.
- Tu não tens ambição nenhuma. Preferes ficar parado num sítio.
- Já alguma vez estiveste num sítio melhor?
- Não. Mas há o resto que não vimos.
- Prefiro viver num sítio e entrar realmente na vida desse sítio do que ver coisas novas que não conheço.
- Mas eu gostava de ver o Congo belga. Porque não hei-de conhecer uma coisa de que ouvi falar toda a minha vida quando estamos tão perto?
- Não estamos assim tão perto.
- Podemos ir de avião. Podemos fazer a viagem toda de avião.
- Ouve, querida. Andámos pelo Tanganica de uma ponta à outra. Estiveste nos planaltos de Bohoro e em baixo do Grande Ruaha.
- Acho que foi interessante.
- Foi educativo. Estiveste em Mbeya e nas terras altas do Sul. Viveste nas colinas e caçaste na planície e viveste aqui no sopé da Montanha e no fundo do Rift Valley para lá de Magadi e caçaste quase até Natron.
- Mas não estivemos no Congo belga.
- Não. É realmente isso que queres para o Natal?
- É. Se não for muito caro. Não temos que ir logo a seguir ao Natal. Tens tempo.
- Obrigado - disse eu.
- Não tocaste na bebida.
- Desculpa.
- Não tem piada nenhuma dar um presente a alguém se isso não nos dá prazer.
Bebi um gole da agradável bebida de lima sem açúcar e pensei em como gostava do sítio onde estávamos.
- Não te importas que eu leve a Montanha connosco, pois não.
- Também há lá montanhas maravilhosas. É lá que ficam as Montanhas da Lua.
- Li umas coisas sobre elas e vi uma fotografia na Life.
- No número sobre África.
- É isso. No número sobre África.
- Quando é que te veio a ideia desta viagem?
- Antes de ir a Nairobi. Vais gostar de voar com o Willie. Gostas sempre.
- Depois combinamos a viagem com o Willie. Ele vem cá a seguir ao Natal.
- Vamos só quando te apetecer. Ficamos até acabares aqui. Toquei com os dedos na madeira e bebi o resto da bebida.
- Que é que pensaste fazer hoje à tarde e à noite?
- Pensei em dormir uma sesta e em pôr em dia o diário. Depois saímos juntos à noite.
- Óptimo - disse eu.
Arap Meina entrou e perguntei-lhe como estavam as coisas na primeira manyatta. Disse que andava por lá um leão e uma leoa, o que parecia pouco habitual para esta época do ano, e que tinham matado cinco cabeças de gado na última meia lua e que a leoa tinha filado um homem a última vez que tinha fugido por cima da boma de espinheiros, mas que o homem estava bem.
Não anda ninguém a caçar na região, pensei, e não tenho tempo de enviar um relatório a G.C. antes de o ver, e por isso é melhor mandar o Informador espalhar a notícia dos leões. Devem andar no sopé da colina, ou na encosta, mas vamos voltar a ouvir falar deles a não ser que vão para Amboseli. Vou fazer um relatório para o G.C. e ele que tome a decisão final.
- Achas que vão voltar a essa manyatta?
- Não - disse Meina, abanando a cabeça.
- Achas que são os mesmos que atacaram a outra manyatta?
- Não.
- Vou a Laitokitok comprar gasolina hoje à tarde.
- Talvez pudesse ir ver se ouvia alguma coisa por lá.
- Está bem.
Fui à tenda e encontrei Miss Mary acordada a ler com a parte de trás da tenda levantada.
- Querida, tenho de ir a Laitokitok. Queres ir?
- Não sei. Estava quase a adormecer. Porque é que temos de ir?
- O Arap Meina apareceu com uma história de leões que têm andado a causar sarilhos e eu tenho de ir buscar gasolina para o camião. Sabes, o que costumávamos chamar gasosa para o camião.
- Vou-me levantar e dar uma lavadela e vou já. Tens shillingi que cheguem?
- O Mwindi dá-mos já.
Tomámos a estrada que atravessa a parte descoberta do parque e vai dar à que sobe a Montanha e avistámos duas belas gazelas Tommy que estavam sempre a pastar ao lado da estrada.
Mary sentou-se no banco de trás com Charo e Meina. Mwengi estava sentado na traseira em cima de uma caixa e comecei a ficar preocupado; Mary tinha dito que não tínhamos de partir enquanto não me apetecesse. Ia ver se aguentava durante três semanas depois do Ano Novo. Havia trabalho de sobra para fazer depois do Natal e ia haver sempre trabalho. Sabia que nunca tinha estado num sítio melhor, tendo uma bela vida, ainda que complicada, e a aprendendo coisas novas todos os dias e correr a África toda de avião quando podia voar sobre o meu próprio território era a última coisa que me apetecia fazer. Mas talvez conseguíssemos arranjar uma solução.
Tinham-me dito para manter uma certa distância com Laitokitok mas esta visita para comprar gasolina e provisões e para Arap Meina colher informações sobre os leões tornava a nossa visita completamente normal e necessária e tenho a certeza que podia contar com a aprovação de G.C. Não tencionava ver o jovem da polícia mas pensava parar para uma bebida com o Sr. Singh e comprar alguma cerveja e Coca-Cola para o acampamento como costumava fazer. Disse a Arap Meina para ir até às lojas massai e contar as notícias que tinha dos leões e colher outras e fazer a mesma coisa noutros poisos dos massai.
Na loja do Sr. Singh estavam vários anciãos massai que eu conhecia e saudei-os e apresentei os meus cumprimentos ao Sr. Singh. Conversámos os dois no nosso swahili de manual. Os anciãos estavam mesmo a precisar de uma garrafa de cerveja e lá a paguei e bebi uma golada simbólica da minha.
Peter entrou para dizer que o carro estava a chegar e mandei-o ir chamar Arap Meina. O carro desceu a estrada com o bidão atado e três mulheres massai atrás. Miss Mary falava animadamente com Charo. Ngui entrou para levar as caixas juntamente com Mwengi. Estendi-lhes a minha garrafa de cerveja e entre eles acabaram por a esvaziar. Os olhos de Mwengi brilhavam absolutamente deliciados quando bebia. Ngui bebia como um piloto de corrida a estancar a sede numa paragem nas boxes. Deixou metade a Mwengi. Ngui tirou uma garrafa para eu e Mthuka partilharmos e abriu uma Coca-Cola para Charo.
Arap Meina apareceu com Peter e subiu para a traseira junto às mulheres massai. Todas tinham uma. caixa para se sentarem. Ngui sentou-se à frente comigo e Mary com Charo e Mwerigi atrás da grade das espingardas. Despedi-me de Peter e abalámos pela estrada fora antes, de voltarmos para Oeste na luz do sol.
- Encontraste alguma coisa do que querias, querida?
- Não havia quase nada para comprar. Mas encontrei umas coisas que faziam falta.
Veio-me à lembrança a última vez que lá tinha estado a fazer compras mas não valia a pena pensar nisso e Miss Mary tinha estado em Nairobi que é uma cidade bem melhor que Laitokitok para fazer compras. Mas eu tinha começado a aprender a fazer compras em Laitokitok e gostava disso porque me fazia lembrar de quando ia à mercearia e ao posto de correio em Cooke City, Montaria.
Em Laitokitok não havia aquelas caixas de cartão com cartuchos de calibres obsoletos que os velhotes compravam aos dois e aos quatro de cada tipo de cada vez no fim do Outono quando queriam fazer reservas de carne para o Inverno. Em vez disso vendiam lanças. Mas era um sítio com um ar caseiro para comprar coisas e podia dar-se um uso a quase tudo que se via nas prateleiras e nas latas quando se vivia por estas paragens.
Mas nessa altura estava-se no fim de outro dia e no dia seguinte seria um dia diferente e de momento ainda não havia ninguém a caminhar em cima da minha campa. Ninguém que eu pudesse ver a contemplar o sol ou as terras que se estendiam diante de mim e assim a olhar a paisagem enquanto descíamos a Montanha esquecia-me que Mthuka devia estar com sede e enquanto eu abria a garrafa de cerveja e lhe limpava o gargalo e as bordas, Miss Mary perguntou muito a propósito: «As esposas nunca têm sede?»
- Desculpa, querida. O Ngui pode dar-te uma garrafa cheia, se quiseres.
- Não. Só quero um gole dessa.
Passei-lha e ela bebeu o que queria e devolveu-ma.
Achei maravilhoso que não houvesse nenhuma palavra africana para dizer desculpa, e depois pensei que era melhor não pensar nisso para não criar barreiras entre nós e bebi uma golada de cerveja para a purificar do contacto com Miss Mary e limpei o gargalo e as bordas da garrafa com o meu lenço limpo e passei-a a Mthuka.
Charo observava tudo isto com um ar reprovador e teria preferido ver-nos beber como deve ser por copos. Mas bebíamos como bebíamos e também não queria pensar em nada que criasse uma barreira entre mim e Charo.
- Acho que bebia mais um gole de cerveja - disse Miss Mary. Disse a Ngui que abrisse uma garrafa para ela. Bebia-a a meias com ela e Mthuka podia dar a dele a Ngui e a Mwengi quando já não tivesse sede. Mas não expliquei nada disto em voz alta.
- Não percebo porque és tão complicado com a cerveja - disse Miss Mary.
- Da próxima vez trago copos para nós.
- Não compliques ainda mais. Não preciso de copo nenhum quando bebo contigo.
- É uma coisa tribal - disse eu - Estou a fazer o que posso para não complicar as coisas mais do que o que elas são.
- Porque é que tens de limpar a garrafa com tanto cuidado depois de eu beber e limpá-la depois de beberes antes de a passares?
- Tribal.
- Mas o que é que hoje tem de diferente?
- Fases da lua.
- És todo tribal quando te convém.
- É muito possível.
- Acreditas nessas histórias todas.
- Não. Limito-me a praticá-las.
- Não sabes o suficiente para o praticares.
- Aprendo um bocadinho todos os dias.
- Acabemos esta conversa.
Descíamos uma encosta prolongada quando Miss Mary avistou um kongoni a uns seiscentos metros, alto e amarelo na crista mais baixa da encosta. Ninguém o vira antes de ela o apontar, mas depois todos se aperceberam no mesmo instante. Parámos o carro e ela e Charo saíram para ir atrás dele. O kongoni estava a comer mais longe e o vento não poderia levar o cheiro deles pois soprava alto pelo flanco onde estava o animal. Não havia animais perigosos na zona e nós ficámos atrás do carro, para não estorvar a aproximação.
Observámos Charo deslocando-se à frente de um esconderijo para outro e Mary seguindo-o, agachando-se como ele. O kongoni estava agora fora da vista mas vimos que Charo se imobilizava e Mary se aproximava dele e levantava a carabina. Depois ouviu-se a detonação e o baque pesado da bala e Charo correu para diante saindo da vista com Mary seguindo-o.
Mthuka levou o carro para fora da estrada através dos fetos e as flores até junto de Mary e Charo e do kongoni morto. O kongoni ou veado do Cabo não é um animal muito bonito nem vivo nem morto, mas este era um velho macho, muito gordo e em perfeitas condições, e o focinho comprido, triste, os olhos vidrados, a garganta cortada não o tornavam atraente para quem comia carne. As mulheres massai estavam muito animadas e impressionadíssimas com Miss Mary e não paravam de a apalpar maravilhadas e incrédulas.
- Fui eu quem o viu primeiro - disse Miss Mary - A primeira vez que fui eu a ver alguma coisa primeiro. Viu-o antes de ti. E tu e o Mthuka iam à frente. Vi-o antes do Ngui, do Mwengi e do Charo.
- E também antes do Arap Meina - disse eu.
- Ele não conta porque ia a olhar para as mulheres massai. O Charo e eu aproximámo-nos dele sozinhos e quando ele olhou para nós eu acertei-lhe exactamente no ponto que queria.
- Em baixo da espádua e direito ao coração.
- Foi para aí que apontei.
- Piga mzuri - disse Charo - Mzuri inzuri sana.
- Vamos pô-lo na traseira. As mulheres podem passar para a frente.
- Não é nada bonito - disse Mary - mas para comer prefiro matar alguma coisa que não seja bonita.
- É uma maravilha e tu és uma maravilha.
Bem, precisávamos de carne e vi o melhor tipo de carne que se podia arranjar, gorda e o maior depois do antílope e fui eu a vê-lo e fui só eu e o Charo a ir atrás dele e fui eu a matá-lo. Então, diz lá que gostas de mim e que não vais enfiar-te sozinho nos teus pensamentos.
- Passa para a frente agora. Por hoje acabou-se a caça.
- Posso beber um bocado da minha cerveja? A caça deu-me sede.
- Podes beber a tua cerveja toda.
- Não. Bebe tu também para comemorar ter sido eu a vê-lo primeiro e por voltarmos a ser amigos.
Tivemos um jantar agradável e deitámo-nos cedo. À noite tive pesadelos e quando Mwindi veio trazer o chá já eu estava acordado e vestido.
Nessa tarde fomos dar uma volta pelo território e vimos pelas pegadas que os búfalos tinham voltado para a floresta junto ao pântano. Tinham vindo pela manhã e tinham traçado uma pista larga e funda como uma pista de gado mas que estava já fria e os insectos dos excrementos ocupavam-se a rolar bolas de bosta de búfalo. A manada tinha-se internado na floresta onde as clareiras e os espaços descobertos estavam cheios de erva fresca e abundante.
Sempre gostei de ver os insectos dos excrementos a trabalhar e tinha aprendido que eram considerados escaravelhos sagrados no antigo Egipto e, numa forma ligeiramente modificada, poderiam vir a ocupar algum lugar na nossa religião. Trabalhavam afanosamente neste momento pois começava a fazer-se tarde para a bosta fresca desse dia. Observando-os, ia pensando na letra para um hino aos escaravelhos da bosta.
Ngui e Mthuka observavam-me pois apercebiam-se que me encontrava num momento de profunda meditação. Ngui foi buscar a máquina fotográfica de Miss Mary para o caso de ela querer tirar alguma fotografia dos escaravelhos da bosta, mas ela não lhes ligou e disse: «Papá, quando estiveres farto de observar os escaravelhos da bosta, achas que podemos continuar e ver outras coisas?»
- Claro, se estás interessada, podemos encontrar um rinoceronte e também andam por aí duas leoas e um leão.
- Como é que sabes?
- Houve muitas pessoas que ouviram os leões a noite passada e o rinoceronte atravessou a pista dos búfalos ali mesmo.
- Já é tarde para ter uma boa luz.
- Não faz mal. Podemos só ficar a observá-los, talvez.
- Sempre são uma melhor inspiração do que os escaravelhos da bosta.
- Não ando à procura de inspiração. Procuro o conhecimento.
- É uma sorte teres um campo de exploração assim tão vasto. Pois é.
Disse a Mthuka para tentar encontrar o rinoceronte. Era um animal de hábitos regulares e agora que se deslocava podíamos saber mais ou menos onde o podíamos encontrar.
O rinoceronte não estava longe do sítio que prevíamos mas, como Miss Mary dissera, era já tarde para boas fotografias a cores com a velocidade do filme de que então dispúnhamos. Tinha ido até uma cova de argila branco-acinzentada e no verde da selva recortado contra as rochas de lava negra, tinha um aspecto de um branco fantasmático.
Afastámo-nos sem o incomodar, deixando-o magnifica e estupidamente alerta, depois de os pássaros que o catavam das carraças se terem afastado num voo circular para reaparecerem, finalmente, nos baixos salobros que se estendiam até às bordas do pântano. Quase não haveria lua essa noite e os leões andariam à caça e eu pus-me a pensar no que sentiriam os animais com a aproximação da noite. A caça nunca estava em segurança mas nessas noites ainda menos e pensei como seria numa noite escura como a desse dia que a grande cobra pitão saía do pântano para as bordas dos plainos onde se escondia enrolada à espera. Ngui e eu tínhamos seguido o rasto dela uma vez até ao pântano e era como seguir as marcas de um camião pesado só com um pneu. Ás vezes tão fundo que parecia um rego cavado.
Encontrámos as pegadas das duas leoas na parte plana e depois ao longo da picada. Uma delas era bastante grande e esperávamos vê-las deitadas, mas não vimos nada. O leão, pensei, devia andar pela velha manyatta massai abandonada e devia ser o leão que tinha atacado os massai que visitámos de manhã. Mas eram só conjecturas e não constituía prova que justificasse o abate. Essa noite haveria de os escutar à caça e no dia seguinte vimo-los e seria capaz de os voltar a identificar. G.C. tinha dito, a princípio, que talvez fosse preciso desembaraçar a zona de quatro ou mesmo seis leões. Tínhamos abatido três e os massai tinham matado um quarto e ferido outro.
- É melhor não irmos para muito perto do pântano, para o nosso cheiro não chegar aos búfalos e talvez amanhã eles venham pastar para aqui outra vez - disse eu a Mary e ela concordou. E assim voltámos a pé para casa e Ngui e eu íamos interpretando os sinais nos plainos salobros enquanto caminhávamos.
- Vamos levantar-nos cedo, querida - propus a Mary - para termos todas as hipóteses de encontrar os búfalos em terreno aberto.
- Vamos deitar-nos cedo e fazer amor e ouvir a noite.
- Bela ideia.
Estávamos na cama, estava bastante frio e eu enrolava-me encostado do lado do pano da tenda sentindo o conforto maravilhoso dos lençóis e cobertores. Ninguém tem o bom tamanho para a cama, somos todos do mesmo tamanho e as dimensões são perfeitas quando nos amamos e deixámo-nos ficar deitados sentindo os cobertores a proteger-nos do frio e a nossa tepidez que nos invadia aos poucos e falávamos em voz baixa e depois ouvimos a primeira hiena que rompeu na cantoria do seu flamenco como que ampliado por um alto-falante na noite. Estava perto da tenda e ouviu-se então outra para além da vedação e eu sabia que era a carne que tínhamos deixado a secar e a presença dos búfalos que andavam por perto que as tinham atraído. Mary sabia imitá-las e fê-lo baixinho debaixo dos cobertores.
- Vais chamá-las para dentro da tenda - disse eu. Ouvimos então o leão a rugir a Norte para os lados da velha manyatta e depois de o ouvirmos chegaram-nos as tossidelas roucas das leoas e percebemos que andavam à caça. Pensámos ouvir as duas leoas e depois um outro leão a rugir muito ao longe.
- Quem me dera nunca mais sair de África - disse Mary.
- Quem me dera nunca sair daqui.
- Da cama?
- Temos de deixar a cama durante o dia. Não, deste acampamento.
- Também eu.
- Então porque é que temos de sair?
- Talvez haja lugares ainda mais maravilhosos. Não te apetece ver os lugares mais maravilhosos que há antes de morrer?
- Não.
- Bem, agora estamos aqui. Não pensemos agora em viagens.
- Óptimo.
A hiena entoou de novo o seu canto nocturno e levou os agudos ao mais alto que era possível. Depois fez um corte seco três vezes seguidas.
Mary imitou-a, fazendo-nos rir e a cama de campanha parecia um grande leito maravilhoso e sentíamo-nos confortáveis e em casa dentro dela. Pouco depois disse: «Quando estiver a dormir, estende-te como deve ser e ocupa a parte de cama a que tens direito e eu vou para a minha cama.»
- Eu vou-te aconchegar a roupa.
- Não, ficas a dormir. Eu sei aconchegar-me sozinha, mesmo a dormir.
- Então vamos dormir.
- Óptimo. Mas não me deixes ficar até ficares com caimbras.
- Não fico.
- Boa noite, meu amorzinho.
- Boa noite, meu tesouro.
Quando estávamos a adormecer ouvimos o leão que estava mais perto soltando uns grunhidos roucos e ao longe o outro leão a rugir e ficámos os dois muito ternamente abraçados e assim adormecemos.
Já dormia quando Mary foi para a cama dela e não acordei até se ouvir o outro leão a rugir bastante perto do acampamento. Parecia abanar as cordas da tenda e as tossidelas roucas soavam muito perto. Devia andar a rondar perto da vedação mas, quando me acordou, dava a impressão de ir a atravessar o acampamento. Depois voltou a rugir e percebi a que distância estava. Devia andar na beira da picada que ia dar à pista de aterragem. Fiquei à escuta enquanto se afastava e depois voltei a adormecer.
GLOSSÁRIO DE SWAHILI
askari (substantivo) Soldado, palavra de origem turca.
bíli (adjectivo) Forma incorrecta de dois. Deveria ser mbili.
boma 1. (substantivo) Sebe, área protegida ou fechada por qualquer tipo de vedação; 2. (substantivo) Edifícios e terrenos adjacentes de um quartel-general distrital.
bunduki (substantivo) Espingarda, palavra de origem árabe.
bwana 1. (substantivo) Título que precedia o nome de um europeu que não tivesse outro título; 2. (substantivo) Sir (usado pelos africanos quando se dirigiam a um europeu).
chai (substantivo) Chá. chakula (substantivo) Comida. chuí (substantivo) Leopardo.
dudus (substantivo) Plural inglês da palavra que significa bicho: dudu. duka (substantivo) Loja.
dumi (substantivo) Animal macho. hapana (interjeição) Não.
hiko huko (frase) Está ali.
hodi (interjeição) Olá, Ei (para chamar a atenção, ou respondendo a quem chama).
jambo 1. (substantivo) Preocupação; 2. (interjeição) Saudação: «Tudo bem?» a que a resposta correcta é «sijambo»: «Tudo bem» (Literalmente: «sem problemas»).
kanga (substantivo) Galinha do mato. kidogo (adjectivo) Pequeno.
kikamba (substantivo) Língua falada pela tribo karnha. kongoni (substantivo) Veado do Cabo.
kubwa (adjectivo) Grande.
kufa (verbo intransitivo) Morrer.
kuhalal (verbo transitivo) Cortar a garganta de. kuleta (verbo transitivo) Trazer.
kupiga (verbo transitivo) Disparar, também atingir ou abater. kuua (verbo transitivo) Matar.
kwalí (substantivo) Francolim, uma ave de caça dos planaltos semelhante ao faisão.
kwenda (verbo intransitivo) Ir.
kwisha (verbo intransitivo) Está acabado. Contracção de «imekwisha». mafuta (substantivo) Gordura, toucinho.
manyatta (substantivo) Palavra massai equivalente a «borna».
mbílí (adjectivo) Dois (Note-se o uso deliberadamente impróprio de H. na conversa com Debba no capítulo 14).
mchawí (substantivo) Feiticeiro.
memsahib (substantivo) Título que precede o nome de uma mulher europeia quando não tem outro título. Contracção de «Madam Sahib».
mganga (substantivo) Mágico. Um feiticeiro bom. mimí (pronome pessoal) Eu.
míngí (adjectivo) Muito. moja (substantivo) Um.
moran (substantivo) Palavra massai equivalente a «askari». mtoto (substantivo) Criança.
mwanamuki (substantivo) Mulher. mzee (substantivo) Ancião.
mzuri (adjectivo) Bom.
ndege (substantivo) Pássaro, avião. ndio (interjeição) Sim.
ngoma (substantivo) Dança.
nyanyi (substantivo) Babuíno.
panga (substantivo) Catana, espada, machete. polipoli (advérbio) Devagar.
pombe (substantivo) Cerveja caseira. posho (substantivo) Farinha de milho. rísasí (substantivo) Bala.
samaki (substantivo) Peixe. sana (advérbio) Muito.
shamba (substantivo) Pequeno campo cultivado. shauri (substantivo) Negócio, assunto, ocupação. símba (substantivo) Leão.
tembo (substantivo) Elefante. Também pode significar bebida alcoólica forte. tu (adjectivo) Somente, apenas.
uchawi (substantivo) Feitiço, no mau sentido. ukambaní (frase) No território da tribo kamba.
wanawaki (substantivo) Forma plural de «mwanamuke», mulher. watu (substantivo) Povo.
Ernest Hemingway
O melhor da literatura para todos os gostos e idades