Biblio VT
A cena dum dos romances do senhor Arnold Bennett é situada em certo beco sem saída da Brompton Road, quási em frente aos Correios do distrito de Brompton Ocidental. Chama-lhe Alexandra Grove, mas o seu verdadeiro nome é Victoria Grove. Como o descreve, as casas agora conseguem render o dobro, pois os jardins foram adaptados a estúdios, modernizando deste modo discreto Londres, por meio da habitação de traseiras pegadas, tão veementemente denunciada em Leeds como relíquia do barbarismo. Quando eu lá cheguei, emigrante irlandês de vinte anos, esta intensificação de povoamento não havia ocorrido ainda. As casas eram moradias reunidas duas a duas, com bastante espaço de ar ao derredor (podia-se até chamar-lhe jardim). Do outro lado do muro traseiro, havia pomares, pois o imenso Poor Law Infirmary que ocupa agora este espaço com a sua torre sobre Fulham Road não tinha sido ainda edificado. O terreno entre Brompton Ocidental e Fulham e Putney, agora empilhado de ruas e estradas suburbanas, tinha então bastante de pomar e de horta para lhe dar um ar campesino e para tornar possível viver-se ali, como eu fiz durante anos, sem sentir que se tinha de fugir para o campo ou secar na fumarada. Todas as alamedas paralelas ligavam Fulham Road a King's Road, Chelsea, onde Cremorne Gardens, alma penada do século XVIII, estavam lutando desesperadamente contra o seu exorcismo final, como rendez-vous da sociedade duvidosa. Daí estas vias, agora sem mácula, serem então reputadas boémias, enquanto Victoria Grove, rua sem saída, se mantinha tão respeitável quanto Clapham.
Vim de Dublim para Londres na primavera de 1876; encontrei minha mãe e minha única irmã viva (eu não tinha irmãos) instaladas no número 13, tentando tirar partido das suas prendas musicais: minha mãe ensinando, minha irmã cantando. Meu pai, deixado em Dublim, dispenva-nos uma libra por semana dos seus magros proventos; endividando-nos e ocasionalmente explorando-nos a nós próprios, levantando dinheiro de uma herança materna de quatro mil libras, da qual minha mãe podia dispor à sua ordem e que, por conseguinte, era liquidável aos poucos, à medida que os seus três filhos chegavam à maioridade, conseguíamos de qualquer forma continuar a vida.
A impecuniosidade era necessariamente crónica em nossa casa. Aqui distinguirei entre esta espécie de pobreza e a que fornece um elemento romântico nos começos de vida de muitos homens famosos. Estou quási tentado a dizer que é o único género de pobreza que conta, não possuindo as privações que tornam o sucesso impossível. Todos conhecemos o homem cuja mãe o criou, e mais dezanove irmãos e irmãs, com um rendimento de dezoito xelins por semana ganho à custa do seu próprio trabalho. O caminho da cabana do lenhador à Casa Branca, do banco da fábrica ao Banco do Tesouro, da pocilga à mansão em Park Lane, se não é exactamente uma rua apinhada, sempre tem umas poucas de figuras bem alimentadas na sua extremidade para nos contar tudo. Eu sempre asseguro a estes cavalheiros que eles não sabem o que é a pobreza e o insucesso. Começando com tanto quanto esperavam ou a quanto estavam acostumados, só conheceram promoções. A cada passo, têm o rendimento da sociedade para a qual se mudaram e vão conseguindo adquirir as suas roupas, a sua comida, os seus hábitos, as suas rendas e impostos. O que mais tem qualquer príncipe? Se quiserdes saber o que é a verdadeira pobreza perguntai ao filho mais novo de um filho mais novo de um filho mais novo. Para compreender a sua situação angustiosa deveis partir do cimo sem o rendimento do cimo, e amaldiçoar a vossa estrela porque não tivestes bastante sorte para começar de baixo.
A nossa instituição da primogenitura pode ter representado uma necessidade feudal. Conservava as baronias indivisas; e os barões e os seus aderentes forneciam ao rei e ao país um exército, uma magistratura e uma rede de governos locais. Mas não fazia caso dos filhos mais novos. Estes infelizes eram criados no castelo baronial. Representemos o rendimento da baronia pelo número mil. Tanto os filhos como as filhas eram criados sem o conhecimento de qualquer
8
modo de vida além da vida dentro deste orçamento. Quando o mais velho tomava conta de tudo, que restava para os dotes das raparigas e para as pensões dos rapazes? Só os resquícios do dote materno e as esmolas que o novo barão poderia querer (se tivesse meios para isso) conceder aos seus parentes pobres. O orçamento de um filho mais novo, especialmente se tinha muitos irmãos, podia facilmente ser vinte ou menos, até zero. O que faria o pobre do desgraçado, não conhecendo nenhuma maneira de vida senão a que custa mil? É fácil dizer-lhe que corte o casaco conforme o pano. É impossível fazê-lo sem se ter treinado para aquela medida desde a infância; impossível, em qualquer caso, sem cortar relações com todos os parentes e amigos deste mundo, e sem descer como um estranho suspeito, ridículo e deslocado ao círculo social da criada de sua mãe e do copeiro de seu irmão. É impossível muitas vezes até entrar para o exército onde um oficial não pode viver com a sua soldada, a menos que seja tarimbeiro promovido em regimento de linha e nem mesmo assim com muito desafogo. Nada há a fazer senão viver, para além do nosso rendimento, à custa alheia, mendigar, comprar a crédito nas lojas sem ter meios, pedir emprestado sem a esperança de poder pagar, e fazer chantagem com o barão apresentando-lhe a escolha entre pagar e ter seu irmão arrastado perante os tribunais por vigarice. A outra alternativa (casar com a filha de um novo rico, americano ou britânico) nem sempre se encontra. Quem seria honorable em tais termos, se pudesse evitá-lo?
Mas pensai no seu filho e no filho do seu filho: o plebeu sem disfarce, para quem, porque custa muito caro, não há nem a educação da Public School e da Universidade do irmão mais novo do barão e que não se pode servir das escolas públicas elementares e secundárias porque tal passo desclassificaria o filho-família! Pensai na tentativa para entrar em negócios com algum capitalzinho miserável! Pensai na luta para fazer a ocupação odiada dar com que viver! Pensai no filho para o qual nada há senão um emprego no escritório de algum negociante conhecido e generoso! E lembrai-vos que a descida implica que cada geração é, como o primeiro filho mais novo, criada num modo de viver mais dispendioso do que o que pode permitir o seu rendimento; de modo que é condenada a comer o pão que o
9
diabo amassou, da adolescência à sepultura! O meu habilidoso e florescente amigo A diz-me saber o que é a pobreza e o que é a bebida: não foi ele criado no Borough por uma mãe bêbeda? B, nadando em dinheiro, conta-me que quando era menino só comia carne duas vezes por ano. C, no galarim da fama, chama-me snob depois de contar alegremente as suas experiências na cozinha da lojeca de seu pai e como conseguiu estudar a sociedade das casas de campo pelo privilégio infantil de visitar a copa. Quão facilmente eu sobrepujo este sabor ao sucesso pela simples afirmação de que meu pai era primo segundo de um baronete, minha mãe a filha de um fidalgo provinciano cuja regra era hipotecar quando em dificuldades. Esta é a minha espécie de pobreza. Os Shaws eram filhos mais novos desde o princípio, como eu mostrarei quando revelar toda a minha árvore genealógica. Até o título de baronete era fundado nas fortunas dum quinto filho que veio para Dublim e transformou aquela cidade na sua ostra. Quem quiser que se enfeite com o seu armário desprovido de Carochinha, e chame a si as simpatias como homem que se elevou: eu era alguém que descia e o filho dum que descera. Se não fosse o acidente duma habilidade lucrativa, eu hoje seria mais pobre que Espinosa; pois ele ao menos sabia polir lentes, ao passo que eu não tinha meios para aprender qualquer arte. Felizmente a natureza ensinou-me uma.
Esta degríngolade social nunca pára nestas ilhas. Produz uma classe que merece uma História só para ela própria. Que não se fale da classe média: a expressão é sem sentido, excepto quando é usada por um economista para denotar o homem de negócios que fica a meio, entre a terra e o capital de um lado e o trabalho do outro, a organizar o negócio para ambos. Eu canto a minha própria classe: a miséria doirada, os parentes pobres, os fidalgos que não são fidalgos. Se quiserdes saber exactamente onde fiz a minha entrada, chegareis a factos tais como o dos meus muitos tios: só um, o mais velho, conseguiu arrancar uma educação universitária. O resto arranjou-se sem ela como melhor pôde (bastante melhor do que ele, na maioria). Um distinguiu-se como empregado público. Tinha espingarda e ia à caça. Outro fez fortuna nos negócios, e chegou a ter cavalos de carruagem; mas perdeu
10
a riqueza em certa tentativa prematura para desenvolver os recursos minerais da Irlanda, sem esperar pelos novos caminhos de ferro produzidos pela última guerra. Dois emigraram para a Tasmânia e, como o senhor Micawber, aí fizeram História. Um era cego e dependia dos irmãos: o outro cegou mais tarde, mas conservou-se independente e válido. Uma tia casou com o reitor da Igreja de Santa Brígida (agora demolida) em Dublim. As outras casaram-se bastante prosperamente, excepto a mais velha cuja concepção da dignidade da família era tão prodigiosa (o snobismo da família era mitigado, no seu caso, pelo senso do humor da família) que recusaria um conde porque não era duque, e assim morreu em virgindade muito antiga. Vivos ou mortos havia catorze deles; e todos, excepto talvez o mais velho, devem ter tido uma vida muito apertada na sua infância depois que o pai morreu, deixando minha avó para criar uma quantidade desrazoável de filhos com meios muito inadequados. O baronete veio em auxílio dando-lhe para viver uma casinha de campo bizarra, com janelas góticas de ponta, em Terenure (nós chamávamos o lugar Round Town). Está de pé ou antes arrasta-se até hoje pitorescamente ao longo do seu jardinzinho1 murado junto do términus dos eléctricos, embora o capacete de cobre e a espada de meu avô (pertencia à guarda-nacional ou milícia como fidalgo-soldado amador) já não estejam pendurados no vestíbulo. Profissionalmente era uma espécie de combinação de solicitador, notário público e corretor que estava na moda naquele tempo. Suspeito que os seus órfãos nem sempre tinham bastante de comer, pois os mais novos embora invencivelmente saudáveis e de longa vida, não eram atléticos e exibiam uma colecção tão notável de estrabismos (meu pai tinha um estrabismo estupendo) que mesmo hoje um estrábico me é tão familiar que dou tanto por ele como por um par de óculos ou até por um par de botas.
No todo conservavam a bem-amada respeitabilidade social, a despeito da sua falta de oportunidade. Deviam talvez qualquer coisa, à confiança que lhes era dada pelo sentido de família. A moda irlandesa falavam deles próprios como dos Shaw, como quem dissesse os Valois, os Bourbons, os Hohenzollerns, os Habsburgos, os Romanofs; e a sua sociedade concedia-lhes esse privilégio. Eu tinha um
11
desprezo enorme por este snobismo familiar, como lhe chamava, até que fui completamente reconciliado com ele por um certo senhor Alexandre MacKintosh Shaw, homem do clã, que, em vez de receber cegamente a sua árvore genealógica na usual maneira dos Shaws, a pesquisou e dela publicou particularmente cem exemplares em 1877. Alguém mandou-me um exemplar; e o meu contentamento foi sem limites quando li a primeira frase do primeiro capítulo, que rezava assim: "E da tradição geral, diz o reverendo Lachlan Shaw (Deus o abençoe!), que os Shaws descendem de McDuff, conde de Fife." Eu saltei apressadamente ao capítulo sobre os Shaws irlandeses para me assegurar de que eram a minha gente, e de que estavam ali, baronete e o resto, com a sua ascendência devidamente assinalada até ao terceiro filho daquele imortalizado, e não nascido, conde de Fife que, invulnerável aos guerreiros normalmente paridos, agarrou e matou Macbeth. Era tão bom como descender de Shakespeare, o qual eu estava inconscientemente resolvido a reincarnar desde o berço.
Anos depois desta descoberta, passava eu uns tempos nas margens do Loch Fyne; cozinhava para mim e governava a casa uma senhora de nome McFarlane, que me tratava com uma consideração que eu a princípio supunha ser devida à minha eminência como autor. Mas ela desiludiu-me, dizendo-me que os McFarlanes e os Shaws descendiam dos condes de Fife, e que eu não me deveria fazer barato demais. Acrescentou que os McFarlanes eram o ramo mais velho.
Meus tios não se ralavam com o MacDuff: representava já bastante para eles serem Shaws. Tinham a impressão de que o Governo devia dar-lhes emprego, preferivelmente sinecura, se mais nada pudesse ser achado; e eu suponho que foi por isto que meu pai depois de experimentar um ou dois empregos de escritório (um deles em certa fundição de ferro), teve enfim a sua posição reconhecida com um posto nas Four Courts, talvez porque a sua irmã tivesse casado com o irmão de um barão-magistrado. Em todo o caso o emprego que tinha era tão inegavelmente supérfluo que até foi abolido antes de eu nascer; meu pai naturalmente pediu uma pensão como compensação do ultraje. Tendo-a obtido, prontamente a vendeu, e entrou nos negócios como negociante
12
por grosso (a dignidade da família tornava a venda a retalho impossível) de trigo e dos seus concomitantes cereais. Tinha escritório e armazém em Jervis Street no centro da cidade; e possuía um moinho em Dolphin's Barn, no lado campesino do canal, na extremidade de uma ruazinha bastante bonita chamada Rutland Avenue. O moinho está a cair em pedaços; mas alguns restos dele podem ser ainda vistos do campo, com o açude atrás de Rutland House no extremo da avenida, e as suas duas águias de pedra nos marcos do portão. oraMeu pai costumava levar-me algumas vezes a este moinho antes do primeorairo almoço (passeio longo para uma criança) e eu gostava de brincar à roda dele. Não penso que tivesse na verdade qualquer outro uso, pois nunca rendeu; e o grosso dos negócios de meu pai fazia-se em comissões: era intermediário.
Eu deveria mencionar que, como ele nada sabia do negócio do trigo e como o seu sócio, um senhor Clibborn, tivesse sido aprendiz no comércio de panos, soubesse, se possível, menos, o negócio, comprado já pronto, deve ter continuado pela sua própria oportunidade e produzido automaticamente os seus resultados, tais quais eram, a despeito dos seus proprietários. Eles não trabalhavam para a indústria: ela é que trabalhava para eles. Continuava viva, mas não florescia. Cedo na sua história, a bancarrota dum dos seus clientes deu-lhe tal golpe que o sócio de meu pai debulhou-se em lágrimas, embora estivesse fortalecido pelo casamento com uma mulher de bens, e possuísse meios para considerar o seu negócio somente como coisa secundária. Meu pai, embora arruinado, achou a magnitude da catástrofe tão divertida, que teve de se retirar apressadamente do escritório para um espaço vazio do armazém e aí rir até ficar exausto. O negócio continuou a lutar e sustentou meu pai até à morte, habilitando-o a ajudar a família um pouco; depois resolveu uma desesperada situação financeira, emigrando para Londres, ou, de outro modo, abandonando esta cidade. Os dois últimos anos foram mitigados e desembaraçados por este passo. Ele nunca, que eu saiba, fez o menor movimento para uma reunião; e nenhum de nós jamais sonhou haver qualquer falta de sentimento na combinação. Na nossa família, não nos ralávamos sobre convencionalismos ou sentimentalidades.
13
A nossa ridícula pobreza era comum bastante na nossa classe e não bastante conspícua num país pobre para explicar totalmente a nossa separação social da família de meu pai, que era grande e (para a Irlanda) não desprovida de prosperidade. Antigamente o baronete, sendo solteiro, era acessível à gente do clã: ele recebia até os seus segundos primos em Bushy Park, e dava especial atenção a minha mãe. Eu mesmo nunca fui a Bushy Park, a não ser uma vez, quando do seu enterro (os enterros dos Shaws eram prodígios de pompa negra); mas se meu pai tivesse conseguido dar conta das suas oportunidades sociais, eu poderia ter tido um treino social bastante respeitável e normal. Minha mãe, muito aceitável socialmente, era bem recebida por todos os lados. Cantava muito bem; e os Shaws eram naturalmente uma família musical. Todas as mulheres sabiam tocar de ouvido melodias ao piano e acompanhá-las com acordes de tónica, sub-dominante, dominante e outra vez tónica; até uma sexta napolitana não estava além do seu alcance. Meu pai tocava trombone e podia introduzir um acompanhamento baixo a qualquer melodia com tanto que esta não fosse muito loucamente modulada. Meu tio mais velho (Barney; eu suponho que fui chamado Bernard por causa dele; mas era conhecido como o tio William) tocava oficlida, uma gigantesca trompa de cobre com chaves, agora vencida pela tuba. Berlioz descreveu-a como um novilho cromático; mas meu tio podia fazê-la mugir e urrar muito metodicamente. Minha tia Emília tocava violoncelo. A tia Shah (Charlotte), dona de lindas mãos e delicadezas de pessoa e carácter para as acompanhar, usava a harpa e o tamboril para as exibir. Leitores modernos rirão do quadro de uma tarde em Bushy Park com o solteirão sir Robert e o seu clã sentados em redor de uma otomana, sobre a qual o meu tio Barney estava de pé tocando solenemente a Anie Laurie na oficlida. O actual distinto herdeiro do título pode muito bem achá-lo incrível. Mas, naqueles dias, era moda que os convidados fornecessem a sua própria música e que os cavalheiros tocassem instrumentos de sopro como uma prenda social; na verdade aquela idade de bronze é ainda lembrada, e com saudades, pelos poucos fabricantes de instrumentos musicais cujas tradições remontam bastante longe.
E agora perguntareis porque com tais antecedentes, faltos
14
os de excepção e com saídas sociais, eu não fui educado com respeitabilidade? Infeliz ou felizmente (tudo depende de como se encarar o facto) meu pai tinha um hábito que eventualmente lhe fechou todas as portas e, por consequência, também a minha mãe que não podia certamente ser convidada sem ele. Se ia a um jantar ou a uma festa, nunca estava por completo desembriagado quando chegava; e encontrava-se, sem variação, escandalosamente bêbedo quando saía. Agora, um bêbedo sociável pode ser agradável numa sociedade alegre. Até um bêbedo brigão ou gabarola pode ser considerado interessante por pessoas não difíceis de contentar. Mas um bêbedo triste - e meu pai, em teoria abstinente, era atormentado pela vergonha ou pelo remorso até nos copos - é insuportável. Nós fomos por fim evitados socialmente. Depois da minha primeira infância não me posso lembrar de jamais fazer uma visita em casa de um parente. Se meu pai e minha mãe tivessem jantado fora ou ido a uma festa, os seus filhos ficariam muito mais espantados do que se a casa tivesse ardido.
Como a minha mãe se salvou desta encrenca, graças ao seu talento musical, contarei noutra parte. Meu pai reduziu a sua abstinência da teoria à prática quando um ataque benigno, que o fez cair no limiar da nossa porta numa tarde de domingo, o convenceu que tinha de deixar de beber, ou então morria. Não teve pior efeito; mas a sua regeneração embora completa e permanente, veio tarde demais para salvar a situação; e eu, separado da ginástica social que põe a gente à vontade na sociedade particular, cresci horrivelmente envergonhado e por completo ignorante da rotina social. Minha mãe, que tinha sido tão cuidadosamente educada à vitoriana, era caridosa demais para infligir a qualquer criança o que tinha sofrido; além disso, penso que ela imaginava o comportamento correcto vir de nascença e que muito daquilo que lhe tinha sido ensinado lhe era natural. De qualquer modo nunca no-lo ensinou. Deixou-nos completamente entregues às sugestões do azul do nosso sangue, com resultados que se podem imaginar.
Na Inglaterra, se as pessoas possuem natureza razoavelmente boa e amigável, perdoa-se-lhes qualquer espécie de excentricidade no comportamento, contanto que não sejam afectadas e presumidas. Se quando eu vim para Londres,
15
tivesse sido simplesmente acanhado à moda da província e com maneiras de comer incorrectas e vestimentas inadequadas; se eu tivesse comido ervilhas com uma faca e usado uma gravata vermelha com o smoking, pessoas bondosas, tomar-me-iam pela mão e treinar-me-iam, a despeito do infernal e muito tolo orgulho irlandês que nunca admitirá a necessidade de tal ensino. Mas as minhas dificuldades não pertenciam a espécie facilmente remediável. Eu era bastante sensato para me informar tão minuciosamente, que até sabia o que devia fazer com as tigelinhas para os dedos, quando colocadas à minha frente num prato de sobremesa, de maneira a poder guiar em tais assuntos outros noviços desesperadamente perdidos por aquele estonteante problema. Mulheres inteligentes e cheias de compaixão poderiam adivinhar com um olhar que eu era mortalmente envergonhado; mas aqueles que não conseguiam ver através da minha pele e estavam acostumados ao respeito, e até à veneração, por parte dos novos, podem ter-me achado insuportável, agressivo e impudente.
Quando um rapaz nada fez e nada faz, quando é obviamente tão pobre que deveria estar a fazer alguma coisa de maneira muito enérgica, é bastante penoso encontrá-lo a assumir autoridade na conversação e igualdade de termos que só o sucesso conspícuo e o talento distinto tornariam adequados. No entanto, isto é o que é feito quási inconscientemente por jovens que têm em si a potencialidade de tal sucesso e talento. Napoleão mal podia sentir reverência pelos seus generais franceses, de posição mediana antes da Revolução Francesa, quando ele era só aparentemente um subalterno corso de modo nenhum incensurável. General algum dessa espécie poderia gostar dele ou das suas maneiras naquele tempo, embora depois de Austerlitz até generais de primeiro plano corassem de contentamento à mais condescendente palavra de louvor da sua parte. Deve ter sido intolerável em Stratford-on-Avon, em
1584, para um magnate local de idade madura, representante da província e juiz de paz, ser contemplado de haut en bas e por um jovem dissoluto, caçador furtivo, e até diverti-lo por inadequamento intelectual. Estou certo de que Shakespeare era polido demais por natureza para fazer conscientemente tal demonstração; mas é inconcebível que o futuro autor de
16
Lear, que deveria morrer magnate proprietário de terras e ser inscrito no registo da paróquia como um gentleman, poderia ter lidado com sir Tomaz Lucy tal qual um fidalgo da província de idade madura espera ser tratado por um vulgar caçador furtivo com menos de vinte anos.
A verdade é que todos os homens estão em posição falsa na sociedade até terem compreendido as suas possibilidades e tê-las imposto aos seus vizinhos. Andam atormentados por um contínuo falhanço neles próprios; no entanto, irritam os outros pela sua presunção contínua. Esta discórdia só se pode resolver pelo sucesso ou pelo desastre: toda a gente está pouco à vontade até ele ter encontrado o seu lugar natural, tanto acima como abaixo do seu nascimento. O herdeiro, avaliado em excesso, de uma posição para a qual não tem capacidade, e o João Ninguém, avaliado em menos, que é um génio nato, estão, do mesmo modo, acanhados e ambos deslocados. Além disso, esta busca do nosso lugar pode tornar-se muito intrincada pelo facto de não haver lugar na sociedade vulgar para indivíduos invulgares. Para o homem mundanamente prudente, com ambições comuns, o caso é bastante simples: dinheiro, título, precedência, um lugar no Parlamento, uma pasta no Ministério, significarão sucesso, tanto para ele como para o seu círculo. Mas o que será de gentes como S. Francisco e Santa Clara? Que utilidade haverá para eles nos meios de viver a vida da casa de campo e da mansão do West-End? Literalmente não possuem neles próprios o sentido dos negócios e têm necessariamente de fazer lá figura triste e ridícula. Têm de fundar uma sociedade de franciscanos e de clarissas para si próprios antes de poderem trabalhar ou viver socialmente.
É verdade que os chamados santos não têm modos de santos em todos os tempos e em tudo. A comer e a beber, no alojamento e no sono, a conversar e a jogar, em resumo, em qualquer coisa excepto na resolução do seu destino como santos, o que é bastante bom para um lavrador não o é para um poeta, um filósofo, um santo, ou um alto matemático. Mas o trabalho de Hodge não é bastante bom para Newton, nem a conversação de Falstaff bastante séria para Shelley. Cristo adaptou-se tão amigavelmente à vida mundana do seu tempo, nos seus ócios, que foi acusado
17
de ser glutão e beberrão, e de ter frequentado círculos frívolos e sem cotação. Mas não trabalhava onde havia festas, nem adulava os Fariseus, nem pedia aos Romanos que o comprassem com qualquer sinecura. Sabia quando estava a ser festejado, bem tratado, feito "leão", aventura não desagradável de certo modo por uma vez; e não ia brigar com as pessoas que eram tão amáveis com Ele. Além disso, conhecer amostras da sociedade faz parte do ofício do profeta : deve ter conhecimento acima de tudo da classe governante, porque a sua ciência nativa da natureza humana não explicará as anomalias nela produzidas pelo capitalismo e sacerdotalismo. Mas nunca pode sentir-se bem à vontade nela.
O comunista nato, antes de saber o que ele próprio é, e de compreender porquê, está sempre acanhado e triste na sociedade plutocrática, e nas sociedades mais pobres que a macaqueiam na medida dos seus pequenos meios: em resumo, em toda a parte onde os valores espirituais são calculados como o imposto sobre o rendimento. Na sua menoridade deixa-se impor pelo prestígio que as classes proprietárias se têm conferido a si próprias e inculcado nas escolas, e pelo conforto, delicadeza e esplendor do seu equipamento, em contraste com a miséria do proletariado. Se tem sido educado para se considerar membro das classes proprietárias e tem o equipamento de falsas escalas de valor, nada lhe faltando, excepto o indispensável equipamento pecuniário, sem o qual a sua educação é inteiramente desprovida de sentido, o seu embaraço e o seu desconcerto são lastimosos e o seu isolamento muitas vezes completo; pois é deixado sozinho, entre o pobre, que ele olha como abaixo dele, e o rico, cujas escalas de gasto estão além dos seus meios. Tem vergonha da sua pobreza, com medo contínuo de fazer o que fica mal, ressentidamente insubordinado e sedicioso na ordem social que não só aceita, mas na qual reclama agora um papel privilegiado.
No momento em que escrevo, há uma loucura pelo que se chama psico-análise, ou a cura das doenças pela explicação ao paciente daquilo que tem: um plano excelente, se por acaso souberdes o que ele tem, especialmente quando a explicação é que não tem nada. Assim a abelha, tentando desesperadamente alcançar o canteiro através da
18
vidraça da janela, conclui que é vítima de espíritos maus ou que está doida; o seu fim será o esgotamento, o desespero e a morte. Contudo, se soubesse somente que não tem nada de mal, tudo que teria a fazer era sair como entrou, através da janela ou da porta aberta. O comunista nato começa como a abelha na vidraça. Rala-se a si próprio e a toda a gente, até morrer de impertinência, ou então é levado, por algum panfleto propagandista, ou pelos seus próprios impulsos intelectuais (se tem alguns), a investigar a estrutura económica da nossa sociedade.
Imediatamente tudo se esclarece para ele. A propriedade é roubo; a respeitabilidade fundada na pobreza é blasfémia; o casamento fundado na propriedade é prostituição; é mais fácil ao camelo passar pelo buraco de uma agulha, do que ao homem rico entrar no reino dos Céus. Ele agora sabe onde está esta sociedade que o tem intimidado tanto. Fica curado da sua mauvaise honte e pode então julgar-se tão à vontade com os príncipes deste mundo, como César com os piratas que queria crucificar quando, o que na verdade sucedeu, as fortunas da guerra tornassem o cativo em vencedor.
Se não é comunista nato, mas homem combativo e rapace, ansioso por deitar abaixo o vizinho, e feliz pelo contraste entre a sua prosperidade e a indigência dos outros, feliz também no desprezo robusto pelos covardes e fracalhões, a própria descoberta da natureza do nosso capitalismo influí-lo-á a fazer o jogo capitalista por tudo o que eles os dois valem. Mas a maioria dos homens move-se com a sociedade onde nasceu e donde tira o melhor partido dos seus acidentes, sem mudar a sua moral ou compreender os seus princípios.
De facto, eu era comunista e iconoclasta (ou quaker) nato sem o saber; nunca me dei bem com a plutocracia e com o snobismo até me entregar ao estudo da Economia Política, começando com Henry George e Karl Marx. Quando tinha vinte anos, em Victoria Grove, não estando em boas relações, à moda de César, com os piratas ou os seus sequazes, sentia-me um tanto como César se deveria ter sentido se tivesse imaginado que o navio pirata era o Mayflower, e estivesse ainda mais inclinado a desconfiar de si próprio do que da tripulação, por menor que fosse o respeito
19
que lhe mostrassem. Não que as minhas opiniões fossem convencionais. Lede o meu prefácio a Back to Methuselah, e ver-me-eis como o ateu completo daqueles dias. Eu tinha lido muita poesia; mas só um poeta era para mim sagrado Mr. Shelley. Lera piedosamente os seus trabalhos de princípio a fim, e nas minhas negações era ateísta e republicano até à medula. Digo nas minhas negações, pois não tinha alcançado nenhuma posição afirmativa. Quando, numa reunião pública da Shelley Society, escandalizei muitos dos membros ao dizer que me tinha inscrito porque, como Shelley, era socialista, ateu, e vegetariano, eu não sabia, que podia ter exprimido a minha posição mais acuradamente dizendo só que a minha concepção de Deus era. aquela sobre a qual se insiste no primeiro artigo da Igreja Anglicana, então como agora veementemente repudiado por todas as pessoas religiosas que vêem em Deus um cavalheiro substancial, de temperamento incerto e ocasionalmente selvagem, e um espírito somente no sentido em que um arcebispo é um espírito. Eu nunca tinha pensado em ler os artigos da Igreja Anglicana, e se o fizesse continuaria a empregar a palavra ateu como uma declaração de que estava do lado de Bradlaugh e Foote e outros que, como secularistas e ateus confessos, estavam a ser processados e presos pelas minhas opiniões. Desde criança que me acostumara a considerar-me como um céptico fora da religião instituída e, por conseguinte, alguém para o qual as observações convencionais da religião eram assunto permitido de zombaria. Nisto as minhas maneiras não eram melhores ou piores do que as da minha classe em geral. Nunca ocorreu a senhoras e cavalheiros religiosos respeitar um céptico; e nunca ocorreu a um céptico respeitar um crente: reprovação e ostracismo eram considerado naturais e até obrigatórios de um lado, como a derisão até à blasfémia do outro.
Na Irlanda, protestantes e católicos desprezavam-se, insultavam-se e ostracizavam-se mutuamente como coisa natural. Na Inglaterra, os Anglicanos perseguiam os dissentistas; e os dissentistas odiavam a Igreja Anglicana com uma agrura incrível para qualquer pessoa que nunca tenha sabido o que é ser um pequeno dissentista de aldeia em qualquer escola da Igreja. Não estou certo de que os modos da controvérsia
20
estejam agora melhores; mas certamente então eram odiosos: julgava cada um seu direito e seu dever desdenhar do homem que era herético na sua fé, se não o podia positivamente injuriar de qualquer modo. Como os meus modos neste assunto não eram muito melhores do que os das outras pessoas, e os meus poderes satíricos muito mais formidáveis, só posso fazer votos para que a minha civilidade natural, que me levava a recuar quando achava que estava a magoar os sentimentos dos outros, tivesse mitigado a minha ofensividade naqueles dias juvenis em que eu ainda considerava a controvérsia como não admitindo quartel. Faltavam-me tanto a crueldade como a vontade de vencer.
Pode-se perguntar aqui como vim a ter as minhas opiniões heterodoxas, visto que a nevrose alcoólica de meu pai, embora explique eu não ter frequentado a sociedade, não explica eu não ter frequentado a Igreja. A minha resposta, se apresentada nos termos convencionais daquele tempo, seria que fui mal educado porque a minha mãe foi tão bem educada. O seu carácter reagia tão fortemente contra o seu treino severo e sem amor, que a frequência da Igreja foi completamente abandonada na nossa família antes de eu ter dez anos de idade. Na minha infância, exercitei o meu génio literário compondo as minhas próprias rezas. Não posso lembrar as palavras da forma final que adoptei, mas recordo-me de que era em três movimentos, como uma sonata, e no melhor estilo da Igreja da Irlanda. Acabava com o Padre-Nosso; eu repetia-a todas as noites na cama. Tinha sido avisado pela minha ama de que rezas no quentinho não prestavam e que só ajoelhando à cabeceira, ao frio, podia esperar ser ouvido; mas critiquei este aviso desfavoravelmente por várias razões, sendo a verdadeira a minha preferência pelo calor e pelo conforto. Não desprezei a autoridade da minha ama neste assunto porque ela fosse católica romana: até tolerava o seu hábito de aspergir-me ocasionalmente com água benta. Mas o seu ascetismo não concordava com o carácter essencialmente artístico e luxuoso dos meus feitos de devoção. Além disso a penalidade não se aplicava à minha reza, pois não era um pedido. Eu tinha senso comum demais para arriscar a minha fé mendigando coisas que sabia muito bem não obter; assim não me importava
21
que as minhas rezas fossem respondidas ou não: eram um espectáculo literário para o entretenimento e propiciação do Todo Poderoso; e, embora eu não sonhasse de modo algum ousar dizer que se Ele não gostasse delas podia vendê-las por junto (eu tinha talvez bastante confiança na sua qualidade para temer tal respostada), certamente me comportava como se o meu conforto fosse condição indispensável para a realização do espectáculo.
Usei o Padre Nosso uma ou duas vezes como encantamento protector. As trovoadas são muito menos comuns na Irlanda do que na Inglaterra, e as duas primeiras de que me lembro assustaram-me horrivelmente. Durante a segunda, lembrei-me do Padre Nosso e confortei-me repetindo-o.
Continuei estes hábitos da devoção bastante tempo depois da obrigatoriedade convencional de frequentar a Igreja, e de a catequese ter cessado, e já não considerava tais costumes como possuindo qualquer relação com um espírito emancipado como o meu. Mas certa tarde, como vagueasse através das moitas de tojo em Torca Hill, ao lusco-fusco, perguntei de repente a mim mesmo porque é que continuava a repetir a minha reza todas as noites quando, como eu apresentei o caso, não acreditava nela. Sendo assim chamado à lição pela minha consciência intelectual, senti-me obrigado pela mais simples honestidade a restringir-me de práticas supersticiosas; e naquela noite, pela primeira vez desde que podia falar, não disse as minhas rezas. Senti tanto a falta delas que me fiz outra pergunta. Porque é que eu me sinto tão inconfortável com este assunto? Pode isto ser consciência? Mas na noite seguinte o desconforto desapareceu de tal modo que eu mal me lembrava dele; e na noite a seguir tinha esquecido tudo acerca das minhas rezas tão completamente, como se tivesse nascido pagão. Vale a pena acrescentar que este sacrifício da Graça de Deus -, como me tinham ensinado, à integridade intelectual, sincronizou com o alvorecer da paixão moral em mim que descrevi no primeiro acto de Man and Superman.
Até àquela época, eu não tinha experimentado o mais pequeno remorso em dizer mentiras todas as vezes que parecesse provável que me ajudariam a sair de dificuldades e até pelo contrário, deliciava-me no exercício da invenção dramática que isto requeria. Mesmo quando eu era bom rapaz;
22
só o era teatralmente porque, como dizem os actores, me ria na personagem; e isto ocorria com raridade, pois o meu gosto era tão forte pelos vilões e demónios do palco (eu pintei a parede caiada do meu quarto de dormir, em Dalkey, com frescos em aguarela de Mefistófeles) que devo ter-me enfeitiçado; pois, quando a natureza completou a minha fisionomia, em 1880 ou cercanias (eu só tive os mais tenros grelos de cabelo na cara até aos vinte e quatro anos), encontrei-me equipado com os bigodes e sobrancelhas ascendentes e as narinas sarcásticas do Diabo operático cujas árias (da autoria de Gounod) eu tinha cantado em criança, e cujas atitudes me tinha afectado quando rapazinho. Mais tarde, como as gerações passassem por mim, vi que as fantasias dos actores e pintores ganham vida como homens e mulheres reais. E comecei a perceber que a ficção imaginativa é para a vida o que o esboço é para a pintura ou a concepção para a estátua. O mundo está cheio de homenzinhos feios que foram levados ao teatro para ver o Yellow Dwarf ou Rumpelstiltskin quando eram crianças; e cedo teremos de todos os lados mulheres com as feições das vampes do cinema, porque, na infância, foram levadas aos animatógrafos e ficaram possuídas pela ambição de serem serpentes do velho Nilo.
Meu pai desaprovava a separação da sua família das observâncias convencionais que andavam associadas à representação da família Shaw. Mas possuía um sentido humorístico do anti-climax que eu herdei dele e usei com grande efeito quando me tornei comediógrafo. Quanto mais sagrada era convencionalmente uma ideia ou situação, tanto mais irresistível lho era como trampolim para mergulhar no riso. Assim, quando eu fazia pouco da Bíblia, ele imediatamente, e com muita sinceridade, ralhava comigo dizendo-me, com a pouca severidade que lhe era natural, que não se devia falar assim; que nenhum homem educado deveria dar tais mostras de ignorância; que a Bíblia era universalmente reconhecida como obra-prima literária e histórica; e tudo o mais que podia aduzir para o mesmo efeito. Mas quando alcançava o ponto de se sentir realmente impressionante, uma convulsão de risota encolhia-lhe os olhos; e (eu sabia sempre muito bem o que ia acontecer) terminaria o seu elogio por me assegurar, com ar de
23
perfeita lealdade, que até o pior inimigo da religião não poderia dizer pior da Bíblia do que ela ser o mais abominável feixe de mentiras jamais escrito. Esfregaria então os olhos e riria por bastante tempo. Tornou-se jogo não confessado entre nós que eu o provocasse a exibições desta natureza.
Com tal pai, a minha condição era claramente desesperada no que dizia respeito às convenções religiosas. Em assuntos essenciais, a sua influência era tão boa quanto o permitia a sua cultura. Uma das minhas lembranças mais afastadas é de ler-lhe o Pilgrim's Progress e de ser por ele corrigido por dizer grievious em vez de grievous. Nunca o vi, tanto quanto me posso lembrar, a ler outra coisa que não fosse o jornal; mas conhecia sir Walter Scott e outros clássicos populares, e sempre me encorajou a fazer o mesmo e a frequentar a National Gallery, a ir ao teatro e à ópera quando tivesse dinheiro. Os seus anti-climaxes dependiam, quanto ao efeito, do nosso sentimento da coisa sagrada contra a qual reagia: não haveria nenhum divertimento em dizer que as aventuras do Munchausen (por nós conhecido como o barão Mun Chawzon) constituíam um feixe de mentiras. Se os pastores e os mestres de minha mãe tivessem possuído um pouco do humor de meu pai, ela não teria simplesmente abandonado o assunto da religião com os seus filhos, numa aversão silenciosa, mas implacável daquilo que tinha ajudado a tornar a sua infância infeliz, e resolvido que não lhes faria o mesmo. O vácuo que fez por esta política possuía, penso, sérias desvantagens para minhas duas irmãs (a mais nova das quais morreu justamente antes de eu vir para Londres); mas, no meu caso, só limpou espaço para mais tarde ter crenças positivas.
Minha mãe, posso dizer aqui, não tinha impulsos para comédia e nunca proferiu um epigrama na sua vida: toda a minha comédia é de herança shaviana. Ela tinha bastante imaginação e, na verdade, vivia nela e dela. Seu irmão, meu tio Walter, que passava tempos connosco de vez em quando, nos intervalos das suas excursões pelo Atlântico como cirurgião nos paquetes da Inman, tinha um poder extraordinário de vocabulário pitoresco, em parte derivado, de cor, da Bíblia e do Livro de Orações oficial, em parte natural. A conversação das tripulações navegantes e dos comissários
24
dos nossos serviços oceânicos eram naquele tempo (qualquer que hoje possa ser) extremamente rabelaisiana e irreligiosa. O próprio Falstaff não sustentaria terreno com meu tio em anedotas obscenas, Limericks inimprimíveis, e de profanidade fantástica; e nada o ralava, quer o auditório consistisse nos seus camaradas de bordo, quer nos do seu sobrinho, ainda menino de escola: representava diante de ambos com o mesmo gosto. Para lhe fazer justiça, era sempre artista na sua obscenidade e blasfémia, e por conseguinte nunca descia ao nível da patifaria incontinente. Os seus esforços eram verificados, deliberados, fastidiosamente escolhidos e palavriados. Mas eram tanto mais efectivos em destruir toda a minha reverência infantil, inculcada pelo palavriado da religião, pelas suas lendas, personificações e parábolas. Em vista do meu trabalho subsequente no mundo, parece providencial que eu fosse levado ao que há de essencial na religião pela redução de todos os seus elementos factícios ou fictícios ao absurdo mais irreverente.
Seria o maior erro concluir que este estado de coisas chocante constituía mal para a minha alma. O caso era indecente, deplorável até onde o processo de destruir a reverência pelos revestimentos inessenciais da religião; e eu desejaria que os meus primeiros passos para a graça tivessem sido iluminados pelo espírito e pelo estilo de meu tio sem a sua obscenidade. A comédia de meu pai era inteiramente decente. Mas que o processo era necessário à minha salvação, não tenho dúvida nenhuma. Um livro popular da minha juventude era o New Pilgrim's Progress de Mark Twain, que horrorizou as gentes religiosas, sem pensamento, que se divertia à custa das coisas que chamam sagradas. No entanto, Mark Twain era realmente uma força religiosa no mundo: o seu Yankee at the Court of King Arthur foi a sua maior aproximação da blasfémia genuína; isto veio da sua falta de cultura, não da perversidade da alma. O seu treino como piloto no Mississipi deve ter sido, no que diz respeito à religião, muito parecido com o meu treino como sobrinho de um cirurgião de transatlântico.
Mais tarde, descobri que, durante as Idades da Fé, o desporto de fazer pouco dos acessórios e lendas da religião era organizado e praticado pela Igreja a tal ponto que quási fazia parte do seu ritual. As gentes eram instruídas
25
em História Espiritual e em Hagiologia por peças cheias de passos cómicos que poderiam ter sido escritos por meu tio. Ensinou-me ele, por exemplo, uma conversação supostamente travada entre Daniel, na furna do leão, e o rei Dario, na qual cada um lutava para vencer o outro em respostadas rabelaisianas. O autor teatral da Idade-Média, mais ousado do que meu tio, punha no palco conversações cómicas entre Caim e o Criador, nas quais a linguagem de Caim não era mais respeitosa que a dos Squire Western de Fielding, e similarmente indecente. Em todos os países católicos há uma hagiologia própria para publicação e outra que não o é. Durante a Idade-Média podem ter condenado uma história como imoral ou blasfema; mas não lhes ocorria que Deus ou a Sua Igreja poderiam ser abalados por ela. Ninguém, com alguma fé digna de respeito em qualquer religião digna de ser seguida, jamais sonha que ela pode ser abalada por um gracejo, menos que tudo por um gracejo obsceno. São os senhores Formalista e Hipocrisia que sentem a religião a ruir quando as formas não são observadas. A verdade é que o humor é um dos grandes purificadores da religião, mesmo quando ele próprio é tudo senão puro.
A instituição da família, centro de reverência para as crianças cuidadosamente educadas, era para mim justamente o oposto. Numa grande família há sempre alguma roupa-suja a lavar; e no clã de meu pai houve alguns tios, tias e primos, por conseguinte alguma roupa, por conseguinte alguma dela suja. A nossa roupa-suja particular era a bebedeira de meu pai. Combinava-se ela com a inocência e a humanidade que fizeram dele o menos formidável dos homens; assim era-lhe impossível impôr-se aos filhos da maneira que se torna medo e terror quási instintivos em algumas crianças. Possuía o grande mérito de ser incapaz de, deliberadamente, praticar qualquer impressão desta ordem, bêbedo ou não; mas, infelizmente, a bebedeira era tão humilhante que teria sido inaturável se nós não nos houvéssemos refugiado no riso. Tinha de ser ou uma tragédia de família ou um gracejo; e foi, no conjunto, um saudável instinto que nos decidiu a extrair disso todo o divertimento possível, o qual, contudo, era na verdade muito pequeno.
Se Noé se tivesse habituado a beber, cedo os seus filhos teriam perdido a piedosa solicitude que mostraram
26
quando do seu único lapso. Um rapaz que viu "o velho", com um ganso mal embrulhado debaixo de um braço e um presunto nas mesmas condições debaixo do outro (ambos comprados sabe Deus sob que ilusão de festividade), aos encontrões contra o muro do jardim na crença de que está a abrir o portão, e a transformar, nesse acto, a cartola numa concertina, e que, em vez de ficar coberto de vergonha e ansiedade diante do espectáculo, fica tão impedido pela alegria (ruidosamente partilhada pelo tio materno) que mal pode correr em socorro do chapéu e pilotar o seu possuidor a salvamento, não é claramente o rapaz que fará tragédias de ninharias em vez de fazer ninharias de tragédias. Se não nos podemos ver livres da roupa-suja da família, podemos ao menos exibi-la com graça.
E havia ainda meu tio William, homem muito simpático, com grande dignidade natural. Na sua mocidade tinha não só sido fumador inveterado, mas beberricador tão insistente que uma pessoa, que fez a aposta de que mostraria Barney Shaw sem estar bêbedo, bateu-lhe ao ferrolho às seis da manhã com esse fito e perdeu a aposta. Mas isso poderia ter acontecido a qualquer bêbedo vulgar. Mas o que deu ao caso o acabamento e o humor peculiares aos Shaws foi que o meu tio de repente, e num pronto, abandonou o fumo e a bebida de um só golpe, e devotou-se à sua prenda de tocar oficlida. Neste inocente e gentil passa-tempo continuou, solteirão sem mácula, durante muitos anos, e então, para estupefacção de Dublim, renunciou à oficlida e a todas as suas obras, casou com uma senhora de distinta posição social e grande religiosidade. Esta recusou-se, naturalmente, a ter quaisquer relações connosco; e, que eu saiba, tratou o resto da família do mesmo modo. De qualquer forma, nunca a vi, e quanto a meu tio, só o avistei furtivamente na rua depois do seu casamento, quando fazia tentativas sem esperança para me salvar no sentido religioso da palavra, talvez não sem algum secreto gozo shaviano dos gracejos irreverentes com que eu semeava o meu caminho para a perdição. Dizia-se que ele se sentava com uma Bíblia nos joelhos e um binóculo de teatro nos olhos contemplando o banho das senhoras em Dalkey; e minha irmã, que era nadadora, confirmou as más línguas no que diz respeito ao binóculo.
27
Mas isto era apenas o prelúdio de uma conclusão muito singular, ou antes de uma catástrofe. A fantástica retórica da Bíblia de tal forma se apoderou de meu tio que tirou as botas, explicando que esperava ser levado para o céu dum momento para o outro como Elias, e que sentia que as botas impediriam o seu celestial voo. Deu a seguir mais um passo, e forrou o seu quarto com todos os tecidos brancos a que pôde deitar mão, alegando que era o Espírito Santo. Finalmente perdeu a fala e assim permaneceu até ao fim. Sua mulher, prevenida de que as suas inocentes fantasias podiam tornar-se perigosas, fê-lo remover para um manicómio ao norte de Dublim. Meu pai pensou que uma comoção musical poderia tocá-lo, e foi procurar a oficlida mas não a encontrou em parte alguma. Levou, ao manicómio, em vez dela, uma flauta, pois todos os Shaws daquela geração parece que podiam tocar de ouvido qualquer instrumento de sopro. Meu tio, ainda obstinadamente mudo, contemplou a flauta por momentos, e tocou enfim nela Home Sweet Home. Meu pai teve de contentar-se com este pequeno sucesso, pois nada mais pôde obter do irmão.
Um dia ou dois mais tarde, meu tio, impaciente de ir para o céu, resolveu apressar a chegada lá. Todas as armas possíveis tinham sido cuidadosamente removidas do seu alcance; mas os guardas não contaram com a originalidade shaviana. Tinham-lhe deixado, de qualquer modo, ao alcance uma mala. Pôs a cabeça dentro dela, e, num esforço estrénuo para decapitar-se ou estrangular-se, fechou-a sobre o pescoço; pereceu com uma síncope cardíaca. Teria satisfação em acreditar que, como Elias, obteve a recompensa celeste que buscava; pois era homem belamente direito e criatura afável, inimigo de ninguém, excepto de si próprio, como soe dizer-se.
Desde então, que espécie de gravidade podia manter um rapazinho com uma história familiar desta ordem? Contudo não devo sugerir que todos os meus tios eram assim. Foram, na maioria, pessoas normais e respeitáveis. Só me posso lembrar de outras duas excepções à regra. Um dos meus tios casou com certa senhora de elegância e brilho, da qual se separou depois de escandalizar a família por lhe bater; mas como o próprio Job lhe teria batido quando ela perdia a sua não muito estável cabeça, ninguém, que a conhecesse
28
familiarmente, jamais o censurou no íntimo. Embora a nevrose que produzira o triste desejo do álcool de meu pai tivesse o mesmo efeito, com a mesma curiosa recalcitrância e final impermanência, num ou dois outros casos, e se lograsse talvez com os paroxismos ocasionais da família de piedade evangélica, e algum compartilhamento do amor comediante de meu pai pelo anti-climax, no entanto, ao todo, a nossa roupa-suja não era excepcionalmente abundante. Mas, em comparação com famílias inglesas similares, tínhamos um poder de dramatização escarnecedora que tornava ainda mais suja a roupa dos Shaws; e como eu possuísse este poder em grau anormal, e entretivesse frequentemente os meus amigos com histórias dos meus tios (com tanto efeito, que, por falar nisso, ninguém acreditava nelas) a família, longe de ser escola de reverência para mim, era antes mina da qual podia desenterrar material altamente divertido sem o trabalho de inventar um só incidente. Que fantasia minha poderia melhorar os factos verdadeiros da Vida e Morte do tio William?
Assim o resultado imediato do meu treino familiar nos dias de Victoria Grove foi que me apresentasse aos estranhos, não avisados, como o rapaz mais irreverente possível. O meu bigode e as minhas sobrancelhas mefistofélicas ainda não tinham crescido; não havia nada no meu aspecto que atenuasse o choque das minhas opiniões diabólicas. Mais tarde, quando me firmei na reputação pública como iconoclasta, a gente que me encontrava em particular ficava surpreendida com a minha gentileza e sociabilidade. Mas então não possuía reputação pública: consequentemente o que se esperava de mim era normal. E eu não era de modo nenhum reticente sobre as opiniões diabólicas. Sentia que eram vantajosas, assim como sentia que estava em posição superior na minha qualidade de irlandês, sem sombra de justificação por aquela arrogância patriótica. Como nunca me ocorreu esconder as minhas opiniões, tal como a minha nacionalidade, e como eu tinha, além disso, a desagradável mania de contradizer todos aqueles de quem pensava poder aprender qualquer coisa a fim de os fazer expor e habilitar-me a tirar partido deles, penso que devo ter impressionado muitas pessoas simpáticas como rapaz extremamente desagradável e indesejável.
29
E era todavia penosamente acanhado e ficava simplesmente aterrorizado de aceitar convites, donde o resultado de muito cedo deixar de os receber. Disseram-me que se eu desejasse progredir não deveria recusar sem apelo os convites - sobretudo convites para jantar - que tinham a intenção de me ajudar, e a recusa dos quais era quási um ultraje social. Mas eu sabia muito bem que cartas de recomendação não possuíam utilidade para alguém que não tivesse profissão e que nada pudesse fazer, excepto o que qualquer empregado de escritório pode. Sabia que era um ser sem utilidade, sem valor, sem vintém, e que antes de qualificar-me a fazer qualquer coisa e prová-lo fazendo-a, todo este negócio de visitar gentes que poderiam talvez fazer qualquer coisa por mim, de jantar fora sem dinheiro para pagar um trem, era tolice.
Felizmente para mim, o realismo, que me fez encarar a minha própria posição tão impiedosamente também, conservou à minha frente o facto de que se eu pedisse dinheiro emprestado não poderia pagá-lo, e, por conseguinte, poderia mais candidamente mendigá-lo ou roubá-lo. Sabia muito bem que se pedisse cinco libras emprestadas a um amigo e as não pudesse pagar, vendia esse amigo por cinco libras, e que isto seria um negócio idiota. Assim eu não pedia emprestado e, por conseguinte, não perdia os meus amigos, embora alguns deles, que não podiam ter nenhumas ilusões acerca das minhas capacidades financeiras, insinuavam que estavam perfeitamente prontos, e até ansiosos, de chamar empréstimo a um presente.
Sinto-me obrigado a confessar aqui, quanto à negligência dos poucos convites e oferecimentos de apresentações que chegavam até mim, que, atrás da convicção de que não levavam a nada do que eu queria, se achava o medo inarticulado de que poderiam levar a qualquer coisa que eu não desejava: isto é, emprego comercial. Eu já estava aborrecido disso. Sem dúvida seria grande alívio para minha mãe se eu pudesse ganhar alguma coisa. Eu poderia certamente ter ganho alguma coisa se, na verdade, o quisesse. Se meu pai tivesse morrido e minha mãe ficado muda e cega, eu teria, na verdade, de voltar para o emprego no escritório (destino da miséria doirada) e abandonar toda a esperança de adquirir uma profissão; pois até a das letras,
30
embora não peça curso académico e equipamento custoso, exige todo o nosso tempo e o melhor do nosso cérebro. No caso presente, eu esquivava-me instintivamente a todas as ofertas. Com excelentes informações e um certificado irrepreensível, eu era um inempregável sem emenda. Continuei a fingir (para mim próprio como para os outros) durante algum tempo. Respondi a anúncios, não muito ofensivamente, e até fiquei com determinado cargo numa companhia de telefones (então novidade sensacional), e tive algumas dificuldades em extrincar-me da empresa que a comprou.
Lembro-me da entrevista com um gerente de Banco em Onslow Gardens (que me foi arranjada, para meu desapontamento, por certo amigo obsequioso com o qual eu tinha jantado) com o fim de me empregar no Banco. Tratei com ele tão brilhantemente (se me permitirem empregar o advérbio com que anos mais tarde fui muito mimoseado pelos críticos amigos) que nos separámos nas melhores relações; ele declarando que, embora eu certamente devesse arranjar qualquer coisa para fazer sem a menor dificuldade, não julgava que um emprego bancário fosse o trabalho adequado para mim.
Eu disse que tinha excelentes informações como empregado de escritório. Havia, na verdade, levado quatro anos e meio a uma escrevaninha em Dublim antes de emigrar. Já dei as razões económicas por que os rapazes da minha classe têm de passar sem educação universitária, assim como de passar sem cavalos e espingardas. E, contudo, não posso negar que pastores protestantes, em não melhores circunstâncias que meu pai, conseguem de qualquer forma fazer começar a vida a seus filhos com um grau universitário. Consideram isso como necessidade absoluta e, por conseguinte, não olham a que possuam ou não meios para tal. Têm de tê-los. Tal necessidade pode ser uma ilusão; mas somos todos sujeitos a tais ilusões: homens há que não podem viver sem um piano de cauda, outros sem um barco, outros sem um mordomo, outros sem um cavalo e assim por diante através de uma escala completa de imperativos psicológicos. Tenho conhecido mulheres que criam orfanatos porque não podem passar sem crianças para bater. Colocai as suas necessidades em qualquer ordem racional e achareis que muitos deles não têm meios para estas coisas.
31
Tiram-se das dificuldades remodelando simplesmente a ordem racional como ordem psicológica e colocando as suas fantasias no cimo e as suas necessidades no fundo. De nada vale dizer-se a uma mulher que necessita de comida boa e abundante muito mais vitalmente do que dum chapéu de sete guinéus, dum frasco de tintura para o cabelo, dum fornecimento de pó de arroz e rouge, duma borla e duma velutina. Viverá de chá e de fatias de toucinho durante meses, de preferência a passar sem eles. E os homens são do mesmo modo pouco razoáveis.
Dizer que meu pai não tinha meios para me dar educação universitária é equivalente a dizer que não tinha meios para beber, ou que eu não tinha meios para me tornar autor. Ambas as afirmações são verdadeiras; mas ele bebia e eu tornei-me do mesmo modo autor. Devo, por conseguinte, explicar, tão seriamente como se meu pai tivesse cinquenta mil libras por ano, porque não tirei o grau em Trinity College, Dublim.
Não posso aprender nada que não me interesse. A minha memória não é indescriminada: rejeita e selecciona; e as suas selecções não são académicas. Não possuo o instinto da competição, nem anseio por prémios e distinções; consequentemente não tenho interesse em exames de concurso; se ganhasse, o desapontamento dos meus concorrentes entristecer-me-ia em vez de me alegrar; se perdesse, o meu amor-próprio sofreria. Além disso, tenho por demais o sentido da minha própria importância para sentir que ela pudesse ser influenciada por um grau ou uma medalha de oiro ou qualquer outra coisa. Existe só uma espécie de escola que me poderia ter preparado para sucessos académicos; e é aquela espécie em que os professores tomam cuidado que os alunos estejam ou decorando as lições continuamente, com todo o esforço desesperado que o terror pode inspirar, ou então chorando com aguda dor física. Nunca estive numa escola onde os professores mostrassem bastante interesse por mim ou pela sua profissão ostensiva, ou tivessem bastante convicção e crueldade, para se darem a tal trabalho; de modo que nada aprendi na escola, nem mesmo o que poderia e teria aprendido se qualquer tentativa houvesse sido feita para me interessar.
Felicito-me por isso, pois estou firmemente persuadido
32
de que toda a actividade forçada do cérebro é tão maléfica como qualquer actividade forçada do corpo, e que obrigar as pessoas a aprender coisas que não querem saber é tão pouco saudável e tão desastroso como alimentá-las com serradura. A civilização é sempre arrumada por darem às classes governantes o que se chama "educação secundária" que produz ignorância invencível, imbecilidade intelectual e moral, como resultado do abuso desnaturado da faculdade apreensiva. Criança alguma aprenderia a andar ou a vestir-se se os seus pés e mãos fossem conservados a ferros, só podendo mexer-se quando e como os seus tutores a puxassem ou empurrassem.
Eu sabia isto de qualquer modo quando comecei, cerca dos treze anos, a pensar em tais coisas. Lembro-me de dizer, em qualquer discussão que se levantou sobre o tema da minha educação, que os homens de Trinity College, Dublim, eram todos os mesmos (pelo que eu queria dizer todos errados) e que eu não queria frequentar a Faculdade. Não fui de modo algum tocado pelo idealismo universitário. Quando ele chegou até mim, mais tarde, reconheci quão ignorantemente tinha falado na minha meninice; mas quando avancei mais longe e aprendi que este idealismo nunca é compreendido nas nossas escolas e universidades, e só opera como máscara e engodo do nosso sistema de impressionar e escravizar crianças e estultificar adultos, concluí que a minha ignorância havia sido inspirada e me tinha servido muito bem. Desde essa época, nunca mais mudei de opinião.
De qualquer modo decidi, aos treze anos ou cerca disso, que naquela altura deveria entrar para o comércio e ganhar algum dinheiro e começar a ser gente grande. Existia naquele tempo, num dos cais de Dublim, uma firma de mercadores de panos, por nome Scott, Spain, e Rooney. Um amigo nosso conhecia Scott, e pediu-lhe que me desse um começo na vida com algum emprego. Fui visitar este cavalheiro à hora marcada previamente. A minha noção do que aconteceria era das mais vagas: tudo o que sabia era que ia "entrar para um escritório". Pensava que gostaria mais de entrevistar Spain, pois o nome era mais romântico. Scott apresentou-se na pessoa de um homem elegante e simpático, com bigodeira retorcida; e suponho que mais rapaz
33
menos rapaz no seu armazém lhe era indiferente quando havia um amigo a quem fazer favor: de qualquer modo, só disse umas poucas de coisas perfuntórias e estava arranjando o meu emprego quando, qui-lo a minha estrela, Rooney apareceu. O senhor Rooney era muito mais velho, nada elegante, mas alto, magro, grave e respeitável.
A última vez que vi o falecido sir George Alexander (o actor) descreveu-me ele a sua própria meninice, passada no armazém de fazendas em Cheapside, onde o carregavam com peças, e o louvavam altamente pela sua excelente conduta, galardoando-o depois de alguns anos, chegando mesmo a dar-lhe dezasseis xelins por semana. Rooney salvou-me dos fardos. Conversou um pouco comigo, e disse então, de modo bastante decisivo, que eu era jovem demais e o trabalho impróprio para mim. Considerava evidentemente que o meu recomendador, meus pais, e o seu sócio mais novo, não tinham pensado bem; e eu desci as escadas, salvo e desempregado. Como o senhor Rooney tivesse então certamente pelo menos cinquenta anos, deve ser hoje centenário se, como eu espero, ainda vive; se isto acontece, ofereço-lhe a garantia de que nunca esqueci a sua compreensão.
Um ano mais tarde, ou cerca disso, o meu tio Frederick, importante oficial no Valuation Office, a quem nenhum agente de terrenos ou solicitador de famílias em Dublim podia recusar qualquer favor, pediu a uma das principais e terrivelmente respeitáveis firmas de agentes de terreno, que negociava no número 15 de Molesworth Street, que me achasse um cargo. Assim o fizeram; e tornei-me o seu moço de escritório (chamava-me a mim próprio escriturário mais novo) com dezoito xelins por mês. Era começo muito bom para qualquer pessoa com futuro na qualidade de agente de terrenos, o qual naquele tempo na Irlanda era negócio de categoria profissional. Comigo foi como se o deitassem fora. Contudo, como o escritório tivesse a transbordar com senhores aprendizes que tinham pago importantes propinas pelo privilégio de cantar selecções de ópera comigo quando os chefes saíam, não havia nada para lamentar socialmente, até para um Shaw; e a atmosfera era tão pouco comercial quanto a de um escritório pode ser. Assim aprendi os hábitos do negócio sem ser infectado pelo seu
34
espírito. Quando cheguei a trinta xelins por mês, o oficial mais activo e responsável do escritório, o caixa, desapareceu; e como nós fôssemos, até certo ponto, banqueiros particulares, e os nossos clientes levantassem cheques sobre nós, e assim por diante, alguém tinha de tomar o seu lugar sem perda de uma hora. Um substituto mais velho resmungou contra o estranho trabalho, e, embora fosse homem hábil a seu modo, não podia equilibrar a caixa. Foi necessário, depois de um ou dois dias de confusão, experimentar o moço de escritório como tapa-buracos, enquanto corriam os anúncios para outro caixa de idade e responsabilidade apropriadas. Imediatamente a máquina se pôs de novo a trabalhar sem empecilhos. Eu, que nunca soube que dinheiro tinha eu próprio (excepto quando o algarismo era zero), mostrei-me modelo de apuramento quanto ao dinheiro dos outros. Adquiri a letra muito clara do meu predecessor, visto a minha inclinar-se e espalhar-se demasiado para o livro-caixa. Os esforços para preencher o meu importante lugar mais dignamente afrouxaram. Comprei um fraque e fui escarnecido por isso pelos aprendizes. O meu salário foi aumentado para quarenta e oito libras por ano, que era tanto quanto eu poderia esperar aos dezasseis anos e muito menos do que a firma teria de pagar a um adulto competente: para encurtar razões, saí-me bem a despeito de mim próprio, e achei, para meu desapontamento, que o Negócio, em vez de me expulsar como o impostor sem valia que eu era, estava a agarrar-me sem intenção de me deixar ir.
Eis-me pois, aos vinte anos, com um treino comercial, numa ocupação que eu detestava tão cordialmente como qualquer pessoa com todo o seu juízo se permite detestar qualquer coisa de que não pode fugir. Em Março de 1886 escapei-me. Preveni com um mês de antecedência. Os meus patrões pensaram naturalmente que estava dissatisfeito com o meu salário (84 libras, penso, naquele tempo), e explicaram-me calmamente que esperavam tornar a minha posição mais elegível. O meu único medo era que a tornassem tão elegível que todas as desculpas para a deixar me fossem tiradas. Agradeci-lhes e disse-lhes que estava resolvido a partir; e eu não tinha, já se vê, razão nenhuma nesta vida a dar-lhes sobre a minha resolução. Ficaram um pouco ofendidos, e explicaram a meu tio que haviam feito o possível mas que
35
eu parecia estar decidido. Estava. Depois de gozar durante uns poucos de dias o luxo de não ter de ir ao escritório, e sendo, se não o meu próprio patrão, pelo menos escravo de ninguém mais, arrumei a mala; abordei o barco do North Wall e deixei o comboio na manhã seguinte em Euston, onde, ao ouvir um carregador gritar, num acento completamente estranho para mim (eu nunca houvera talvez ouvido antes deixar cair um h) "Ensm faw weel?" que interpretei correctamente como "Hansom or four wheel?". Tive medo de dizer Hansom, porque nunca andara num e não estava certo se saberia entrar nele. De modo que me dirigi solenemente num growler, através de ruas com cujos nomes Dickens, me tornara familiar (Londres estava na sua melhor apresentação primaveril, que é a melhor das melhores), para Victoria Grove, onde o cocheiro aceitou quatro xelins, como paga razoável da viagem.
Não tornei a pôr o pé na Irlanda até 1905, e desta vez não foi pela minha própria iniciativa. Voltei para ser agradável à minha mulher; e curiosa relutância para voltar sobre os meus próprios passos fez-me desembarcar ao Sul e entrar em Dublim pelo fundo de Meath, de preferência a voltar como vim, pela frente sobre o mar. Em 1876, aborrecera Dublim. James Joyce no seu Ulysses descreveu, com uma fidelidade tão cruel que o livro mal se pode tolerar, a vida que Dublim oferece aos seus rapazes, ou se se preferir pôr o problema ao contrário, que os seus rapazes oferecem a Dublim. Sem dúvida, é muito parecida com a vida de rapazes em toda a parte na moderna civilização urbana. Uma certa dirisão fútil e frívola e um amesquinhamento que confunde o que é nobre e sério com o que é baixo e cómico parecem-me peculiares a Dublim; mas suponho que é porque a minha única experiência pessoal daquela fase da mocidade era uma experiência dublónica; pois, quando abandonei a minha cidade natal, deixei atrás de mim aquela fase, e já não me associei a homens da minha idade até que, depois de oito anos de solidão neste respeito, fui introduzido no renascimento socialista dos primeiros anos de 80, entre ingleses intensamente sérios e flamejantes de indignação com males muito reais e muito fundamentais que afectavam todo o mundo; de modo que a reacção contra eles ligava os melhores espíritos de todas as nações, em vez de os fazer acalentar-
36
o ódio uns dos outros como virtude nacional. Assim, guando abandonei Dublim não deixei (à parte umas poucas de amizades particulares) relações que não me enojassem. Ainda hoje a minha consideração sentimental pela Irlanda não inclui a capital.
Não me enamoro do insucesso, da pobreza, da obscuridade, do ostracismo e do desprezo que trazem consigo; e estes eram tudo quanto Dublim oferecia à enormidade da minha ambição inconsciente. As cidades de que um homem gosta são as cidades que conquistou. Napoleão não voltava de Paris para sentimentalizar sobre Ajácio, nem Catarina de S. Petersburgo para Stettin, como centro do seu Universo.
Sobre este assunto da ambição direi uma palavra. Na conotação vulgar do termo, sou o menos ambicioso dos homens. Já disse, e confirmo aqui, que sou tão pouco habilidoso em empurrões e lutas, tão pouco interessado nas suas recompensas, que me ergui pela mera gravitação, industrioso demais pelos hábitos adquiridos para deixar de trabalhar (trabalho como meu pai bebia), e preguiçoso e tímido demais por natureza para deitar mão da metade das oportunidades ou de um décimo do dinheiro que homens convencionalmente ambiciosos teriam agarrado com todas as veras. Nunca pensei de mim próprio como destinado a tornar-me o que se chama um grande homem: na verdade era desconfiado até ao mais desolador dos graus; sentia-me ridiculamente crédulo quanto às pretensões dos outros ao saber superior e à autoridade. Mas um dia no escritório tive um choque. Um dos aprendizes, de nome C. J. Smyth, mais velho do que eu e mais homem de sociedade, notou que todos os rapazinhos pensavam que iam ser grandes homens. Sobre um jovem realmente modesto, este lugar-comum não teria nenhum efeito. Deu-me isto abalo e eu fiquei tão perceptivelmente estomacado que, de repente, compreendi que nunca tinha pensado em vir a ser grande homem, simplesmente porque sempre tomara o facto como natural. O incidente passou sem deixar nenhuma preocupação que me empecilhasse; e fiquei tão desconfiado como sempre, porque ainda era na mesma incompetente. Mas duvido se jamais recobrei a minha completa inocência anterior de intenção subconsciente de devotar-me
37
àquela classe de trabalho na qual só poucos homens são excelentes, e a aceitar as responsabilidades ligadas à sua dignidade.
Agora isto levava-me directamente a abandonar Dublim, pelo que muitos jovens irlandeses de hoje julgam impossível perdoar-me. O meu papel na vida não podia representar-se em Dublim, sobre experiência confinada à Irlanda. Tinha que ir a Londres, tal como meu pai tinha que ir à Bolsa do Trigo. Londres era o centro literário da língua inglesa e da cultura artística, tal como podia ser fornecida pelo reino da língua inglesa (no qual me propunha ser rei). Não existia ainda naquele tempo a Liga Gaélica, nem nenhum sentimento de que a Irlanda possuísse em si própria a semente da cultura. Todo o Irlandês que sentia que o seu papel na vida era nos planos mais altos das profissões culturais, sentia que devia ter domicílio metropolitano e cultura internacional e quer dizer, sentia que a primeira coisa que tinha a fazer era sair da Irlanda. Eu sentia o mesmo. Quanto a Londres como Londres, ou a Inglaterra como Inglaterra, nada valiam para mim. Se o meu pendor houvesse sido para ciências ou música, teria ido para Berlim ou Leipzig. Se pintura, teria partido para Paris; na verdade, muitos dos escritores irlandeses que têm feito nome na literatura fugiram para Paris com a intenção de se tornarem pintores. Para Teologia teria ido para Roma, e para Filosofia Protestante para Weimar. Mas como a minha arma era a língua inglesa, nada havia para ela senão Londres. Em 1914, os Alemães ressentindo-se da minha descrição da sua situação política imperial como Potsdamnation, apontaram-me como um sujeito sem pátria. Tinham toda a razão. Não me ofendi mais de que se me tivessem acusado de pouco bairrista. Nunca me censuraram por fazer peregrinações a Bayreuth, quando as poderia ter feito com a mesma facilidade à Colina de Tara. Se me quiserem fazer sentir saudades da terra, relembrem-me a Fichtelgebirge da Turíngia, ou os largos campos e ares delicados da França, as gargantas do Tarn, os desfiladeiros do Tirol, o deserto norte-africano, o Corno de Oiro, os lagos suecos ou até os fiordes noruegueses, onde nunca estive, excepto em imaginação, e podereis comover aquela necessidade em mim tão facilmente - e, é provável, com mais facilidade - como em qualquer natural exilado destes
38
lugares. Só quando voltei à Irlanda como turista, compreendi o encanto do meu país, como perfeitamente independente do meu nascimento acidental nele, e que poderia fascinar um Espanhol ou um Inglês mais poderosamente do que um Irlandês, no sentir do qual deve sempre haver um anseio estranho, porque é o país onde foi infeliz e onde a vulgaridade é para ele vulgar. E assim sou um Europeu toleravelmente bom no sentido Nietzchiano, mas um Irlandês muito mau no sentido do Sinn Fein ou Povo Escolhido.
Durante os primeiros anos da minha vida em Londres nada fiz de decisivo. Representava e trabalhava na sombra o papel de alma do outro mundo para certo músico que tinha aceito um cargo de crítico musical; mas, como tais sombras não devem aparecer, estava, por conseguinte, proibido de ir ao jornal e não podia corrigir as provas, e as minhas críticas, na maioria muito cruéis, apareciam com tais "gralhas", tais mutilações e interpolações venais de outras mãos, tão inextricavelmente misturadas com outras críticas muito ofensivas ao meu sentido artístico, que desde então tenho escondido esta minha actividade como um segredo pecaminoso, não vá alguém desenterrar estas velhas notícias e imaginar que eu era responsável por tudo que está nelas e por elas. Mesmo agora, mal me posso obrigar a revelar que o nome do jornal era The Hornet, e que tinha passado às mãos de um certo capitão Donald Shaw, que não era meu parente e com o qual nunca me encontrei. Morreu nas mãos dele, e em parte talvez às minhas.
Então minha prima, Mrs Cashel Hoey, mulher de letras, filha da tia que tocava tamborim com as suas lindas mãos, deu-me uma carta de recomendação para Arnold White, então secretário da Edison Telephone Company. Encontrou emprego para mim na Secção de Licenças daquela efémera companhia; achei-me então a estudar a topografia do extremo oriental de Londres, e a tentar convencer toda a espécie de gente a deixar que a companhia pusesse isoladores, postes, suportes e outras coisas assim, nos telhados para aguentar as linhas telefónicas. Gostava da exploração envolvida nisso; mas o meu acanhamento tornava horrivelmente insuportável o facto de visitar estranhos; e a minha sensibilidade, que era extrema a despeito da "lata" que eu simulava, tornava ridiculamente ofensivas para mim as respostas
39
impacientes que tinha de aturar de vez em quando, em especial de mulheres muito aborrecidas que me tomavam por agente de publicidade. Mas livrei-me dessas provações, pois cedo tive que me encarregar da secção e de organizar o trabalho de aventureiros menos sensíveis, em vez de o fazer eu próprio.
Mais pormenores se podem achar no prefácio do meu segundo romance, The Irrational Knot. A Edison Telephone Company foi a seguir engolida pela Bell Telephone Company; agarrei a oportunidade para recobrar a minha liberdade destituída, recusando-me a requerer o emprego prometido pela fusão aos empregados em debandada. Foi o fim da minha carreira de empregado comercial. Cedo deixei até o fingimento de procurar qualquer renovação dela. Excepto durante um dia ou dois em 1881, quando ganhei umas poucas de libras contando os votos numa eleição em Leyton, fui um inempregável, um indigente válido, de facto se não por lei, até ao ano de 1885, quando, pela primeira vez, adquiri bastante dinheiro directamente pela minha pena para ganhar a vida. O meu rendimento naquele ano chegou a cento e doze libras; e desde então até que a guerra de 1914-18 nos ameaçou a todos momentaneamente com a bancarrota, não tive ansiedades pecuniárias, excepto as produzidas pela posse do dinheiro, que não pela sua falta. Estava acabada a minha fase de penúria.
O episódio telefónico ocorreu em 1879; e naquele ano havia feito o que todo aventureiro literário fazia naquele tempo, e muitos ainda fazem. Tinha escrito um romance. O meu treino de escritório deixara-me o hábito de efectuar qualquer coisa regularmente todos os dias, como condição fundamental da indústria a distinguir-se da ociosidade. Sabia que não iria para diante sem isto, e que nunca produziria um livro de outro modo. Comprei um fornecimento de papel branco de formato colegial a seis pence de cada vez; dobrava-o em quatro; e condenava-me a encher cinco páginas por dia, quer chovesse, quer fizesse sol, quer estivesse com inspiração ou sem ela. Tinha ainda em mim tanto do rapaz de escola e do empregado de escritório que, se as minhas cinco páginas acabavam no meio de uma frase, não a terminava até ao dia seguinte. Por outro lado, se faltava um dia, compensava-o fazendo tarefa dupla
40
no dia seguinte. Com este plano, produzi cinco romances em cinco anos. Foi a minha aprendizagem profissional, dificilmente suportável com toda a desconfiança e dissatisfação de um aprendiz com mestre muito crítico (a saber: eu próprio), ao qual não havia nada que satisfizesse e de quem não se podia fugir, e na qual perseverava para salvar o meu amor-próprio em condições de impecuniosidade que, em dois momentos agudos (ainda os relembro com um sorriso amarelo), juntava sapatos rebentados e andrajosidade cuidadosamente escondida a punhos, cujas dobras eram aparadas à tesoura e uma cartola tão mole com a idade que tinha de a usar de trás para diante, a fim de a poder tirar sem dobrar a aba.
Não tive sucesso como romancista. Mandei os cinco romances a todos os editores de Londres e a alguns da América. Nenhum se quis aventurar com eles. Cinquenta ou sessenta recusas, sem uma só aceitação, forçaram-me a uma feroz convicção de mim próprio. Tornei-me indescorajável, adquirindo uma insensibilidade sobrehumana ao elogio ou à censura que desde então me tem sido útil por vezes, embora noutras haja retardado os meus negócios, tornando-me indiferente à publicação e às representações das minhas obras, e até impaciente com elas como interrupção mal-vinda ao trabalho de escrever os seus sucessores. Em vez de apanhar toda a oportunidade de as trazer ante o público, tenho, muitas vezes com pretextos plausíveis, mas na verdade triviais, recusado propostas que deveria aceitar de braços abertos com todo o interesse do autor normal pela publicidade.
Depois de cinco anos a escrever romances, era um completo insucesso profissional. Quanto mais escrevia e melhor escrevia, menos agradava aos editores. Este meu primeiro romance, embora recusado, ao menos arrancou algumas expressões de boa vontade em ler quaisquer tentativas futuras. Blackwood até o aceitou e depois cancelou a aceitação. Sir George Macmillan, então sócio mais novo, não só me mandou um relatório bastante longo e evidentemente tomado em consideração pelo leitor da firma, John (depois Lord) Morley, mas também sugeriu que eu poderia ser-lhe útil na sua capacidade de editor da Pall Mall Gazette.
Todas as respostas desta ordem cessaram com o meu
41
segundo romance; e eu não tinha meios de saber, e era jovem e inexperiente demais para adivinhar que aquilo em que pecavam não era falta de competência literária da minha parte, mas o antagonismo levantado pela minha hostilidade aos respeitáveis pensamento e sociedade vitorianos. Não me deixaram um raio de esperança; não deixei, contudo, de escrever romances, tendo até planeado o meu quinto esforço em escala colossal; vi no fim daquilo que era para mim só as suas duas primeiras partes, que nada mais tinha a dizer e que faria melhor esperando até me haver educado muito mais longe. E quando, depois de um intervalo de jornalismo crítico, voltei a escrever ficção, fi-lo como dramaturgo e não como romancista.
Quatro dos cinco romances da minha menoridade, como lhes chamo, foram por fim impressos, como se descreve no prefácio já citado. Mas o primeiro nunca se publicou. Ao abrir o velho embrulho, como o faço agora (é como abrir um túmulo fechado durante quarenta e dois anos), encontro uma pilha de cadernos de vinte páginas cada e compreendo com algum receio que estou cara a cara com uma novela de quási duzentas mil palavras. O seu título é Immaturity. (1) A caligrafia, que se inclina um pouco para trás, tem toda a regularidade e legibilidade do meu livro-caixa. Infelizmente, os ratos comeram tanto em dois dos cadernos que os fins das linhas faltam. Isto é atrapalhante, pois acabo de dizer a mim próprio que não devo fazer tentativas para corrigir o trabalho do aprendiz com a mão do mestre; que assim como está deve ficar; estou velho demais agora para lhe tocar sem lhe produzir novas incongruidades mais desagradáveis do que as possíveis entre o estilo de 1879 e o gosto de 1921. Contudo se os ratos comeram muito, terei de fazer de macaco imitador, como Stevenson, e imitar a minha própria maneira juvenil como qualquer falsário das letras.
Podem perguntar porque imprimi isto: por que não o deixei em paz? Estou por completo disposto a fazê-lo; mas de qualquer forma tais coisas não devem ser feitas. Se Beethoven tivesse destruído o seu septeto para instrumentos de sopro, quando tinha progredido até à nona sinfonia e à missa em Fá Maior, muita gente, que se delicia com o septeto
(1) Título do original inglês que adiante traduzimos.
42
e que não pode compreender a sinfonia ou a Missa, sofreria uma privação gratuita; e embora o meu estilo primitivo agora me faça rir pelo seu pedantismo, no entanto possuo grande respeito pela conscienciosidade presumida dos meus primeiros esforços. Provam também que, como Goethe, eu sabia sempre, e tenho acrescentado mais do meu poder de manejar, ilustrar e dirigir o meu material do que ao próprio material.
De qualquer forma, restam-se poucas dúvidas de que Immaturity será pelo menos legível por compradores de livros fáceis de contentar, que devoram qualquer coisa em forma de romance, esteja ele como estiver, mesmo ridiculamente fora da moda. Sei que alguns leitores gostarão dele muito mais que dos meus trabalhos posteriores. Deve haver certa qualidade de mocidade nele que eu não poderia agora recapturar e pode ter até encanto juntamente com fraqueza e absurdo. Tendo relido os outros quatro romances para publicação e republicação em qualquer altura, posso garantir a propriedade do meu estilo primitivo. Era o que havia de mais correcto. Nunca procurei atingir estilo na minha vida: o estilo é uma espécie de melodia que entra por si própria nas minhas frases. Se o escritor diz o que tem para dizer tão acurada e efectivamente quanto pode, o seu estilo tomará conta dele, se é que ele tem estilo. Mas eu tinha erigido uma condição nesses meus dias da juventude. Tinha resolvido que nada escreveria que não fosse inteligível a um estrangeiro munido de dicionário, como o francês de Voltaire; por conseguinte, evitava a frase idiomática (mais tarde vim a procurar a frase idiomática como a forma mais altamente vitalizada da língua). Consequentemente não espero achar o inglês de Immaturity idiomático. Também nada haverá nele da voz do orador público, a voz que ecoa através de tantos dos meus trabalhos posteriores. Só quando Immaturity estava acabado, em fins de 1879, é que, pela primeira vez, me levantei num primeiro clube de debates chamado The Zetetical Society, para fazer em condições de nervoso aflitivo o meu primeiro assalto a um auditório.
Talvez fizesse melhor acrescentando uma palavra quanto aos caracteres do livro. Faço com alguma relutância, porque é desviante mencionar mesmo a mais pequena circunstância que liga uma pessoa fictícia a outra viva. Se Shakespeare
43
por acaso tivesse mencionado que fazia carregar pelo príncipe da Dinamarca uma colecção de tabuinhas enceradas e tomar notas nelas porque tinha visto sir Walter Raleigh fazê-lo, seria agora tradição invencível na literatura inglesa que Raleigh era o original de Hamlet. Teríamos escritores a seguir a indicação, como lhe chamariam, até chegarem à conclusão de que Raleigh era o verdadeiro autor da peça. Um dia, como estivesse sentado na sala de leitura do Museu Britânico, começando o meu quinto e último romance, An Unsocial Socialist (1), vi uma jovem de expressão atraente e cativante, audaz, vivida e muito esperta, trabalhando numa das mesas. Aquela simples vista de um rosto, imediatamente concebi o carácter e escrevi a descrição de Agatha Wylie. Nunca troquei palavra com a dama; nunca travei conhecimento com ela, vi-a outras vezes nas mesmas circunstâncias, mas muito poucas; revi-a; contudo, se mencionar o seu nome, que se tornou bem conhecido na literatura (provavelmente também estava escrevendo então um romance e talvez o herói lhe fosse sugerido pelo meu perfil), ela ficará assentada como Agatha Wylie até à morte, só Deus sabe com que mais invenções escandalosas acrescentadas para explicar o meu suposto conhecimento íntimo do seu carácter.
Antes e desde então, tenho usado modelos vivos tão livremente como faz um pintor e muito do mesmo modo, quer dizer, tenho algumas vezes feito o retrato aproximadamente fiel, fundado sobre relações pessoais íntimas e algumas vezes, como no caso de Agatha, desenvolvido o que um olhar de passagem sugeriu à minha imaginação. No último caso, tem acontecido algumas vezes que os incidentes inventados por mim pela incitação de olhar semelhante têm traduzido os factos de tão perto, que já me vi acusado de violações imperdoáveis de intimidade pessoal. Eu não espero ser acreditado quando disser que certa vez inventei um criado para um dos meus modelos e mais tarde soube que ele tinha, na verdade, esse mesmo criado. Entre os dois extremos de retratagem verídica e de fantasia pura, sugerida por um olhar ou uma anedota, tenho copiado a natureza com muitos graus de fidelidade, combinando estudos da vida no
(1) Obra traduzida em língua portuguesa com o título O Altruísta.
44
mesmo livro ou peça com aqueles tipos, composições e figuras tradicionais do romance e do palco que se chamam ficções puras.
Muitas das personagens neste meu primeiro romance deviam alguma coisa a pessoas encontradas por mim, incluindo membros da minha família (para não me mencionar a mim próprio), mas nenhum deles é retrato; com uma excepção os modelos são desconhecidos do público. A excepção era Cecil Lawson, cuja morte prematura nos privou do único pintor paisagista que jamais me lembrou as experiências espaçosas e fascinantes de Rubens naquele ramo da pintura. Quando eu vivia em Victoria Grove, os Lawsons (pai, mãe, Malcolm e duas irmãs) viviam numa das encantadoras casas velhas de Cheyne Walk, Chelsea. Cecil e outro irmão já casados, moravam fora. Malcolm era músico, e as irmãs cantavam. Uma, soprano, morena, viva, gorducha e brilhante, cantava alegremente. A outra, contralto, cantava com uma intensidade de expressão angustiosa, que aumentava vestindo-se à esteta, como então se dizia, ao gosto Rossettiano. Miss Lawson produzia este efeito, não pelas feias extravagâncias que tornaram ridícula a versão que as modistas em voga deram da moda estética, mas com vestidos muito simples, cinzentos e castanhos que de algum modo se harmonizavam com a sua expressão habitual de tristeza e até de sofrimento; de modo que quando cantava "Oh, don't deceive me: oh, never leave me", produzia um poema de pintura ao mesmo tempo que de som. Cecil, que acabava de adquirir posição pelas poucas obras primas que nos restam, estava muito no "movimento" da antiga Grosvenor Gallery (agora Aeolian Hall), então nova, e, passando através da voga sensacional, alcançada pelas suas revelações de Burne Jones e Whistler.
Malcolm dirigia uma Gluck Society na qual eu descobrira Gluck por um recital de Alceste, no qual Theo Marzials, que possuía uma encantadora Voz de barítono, cantava o papel de Hércules. Minha mãe encontrara Marzials durante as suas actividades musicais: apresentou-a a Malcolm Lawson: ela ajudou-o no coro da Gluck Society; e o resultado foi que me achei convidado a visitar os Lawsons, que recebiam em Cheyne Walk todas as tardes de domingo. Sofria tais agonias de acanhamento que, algumas
45
vezes, passeava para cima e para baixo no Embankment durante vinte minutos, ou mais, antes de me aventurar a bater-lhes à porta; na verdade teria mandado passear tudo aquilo, e corrido para casa perguntando a mim próprio de que valia torturar-me quando era tão fácil fugir, se não soubesse instintivamente que nunca deveria ceder-me deste modo se jamais quisesse fazer qualquer coisa na vida.
Poucos homens terão sofrido mais do que eu na minha juventude por simples cobardia ou ficado mais horrivelmente envergonhados com isso. Eu evitava e escondia-me quando o perigo, real ou imaginário, era de espécie que não tinha nenhum interesse vital a enfrentar; mas quando tal interesse estava em jogo, ia para a frente e sofria em proporção. O pior de tudo era que, quando aparecia na sala de visitas dos Lawsons, não fazia apelo ao bom coração da companhia como um noviço perdoável e até adequadamente acanhado. Ainda não havia então afinado a nota shaviana a nenhuma espécie de harmonia; e não duvido que os Lawsons me achassem discordante, cruamente presumido e insuportável. Espero que eles e todos os outros a quem eu desagradava naquele tempo me tivessem perdoado mais tarde, quando se provou finalmente que eu na verdade trazia alguma coisa para afirmar. A casa e a sua atmosfera artística eram-me agradabilíssimas; gostava de todos os Lawsons; mas ainda não dominava naquele tempo a arte social, e não podia suportar a exibição inartística de mim próprio, de modo que depressa cessei de os importunar, excepto por um encontro casual com Malcolm; saí das suas vidas depois de as tocar muito levemente e de passagem.
Cecil Lawson era o menino amimado da casa. Pontificava sobre arte com o modo negligente, resmungante, incoerente e meditabundo que lhe era próprio. Quando, seguindo o meu juvenil e muito irritante sistema de contradizer toda a gente de quem pensava poder aprender qualquer coisa, sugeri que Whistler não era completamente o maior artista de todos os tempos, ele não pôde formar uma frase para me esmagar, mas gemeu inarticuladamente por um momento, como relógio quási a dar horas, e então pronunciou as palavras Ticiano Turner Rembrandt Velasquez Whistler. Era bem-parecido, não alto, mas elegantemente construído,
46
com o cabelo crespo só o bastante para proclamar o artTsta sem comprometer o homem. Eu vira os seus trabalhos em exposições públicas (nunca em particulares); graças às minhas passeatas de rapaz na Dublin National Gallery (quando menino queria ser pintor, nunca escritor), conheci o seu valor. A sua morte prematura, que ocorreu pouco tempo depois das minhas visitas, deve ter abalado as tardes de domingo em Cheyne Walk. Não me aventurei a intrometer-me nelas depois disso.
Servi-me dele em Immaturity como modelo do artista Cyril Scott, nome inventado que foi depois tornado famoso por um compositor britânico. Escolhi-o porque Cyril se parecia com Cecil metricamente e porque eu pensava que Lawson era escocês (dizem-me que nasceu no Shropshire). Mas devo de novo advertir o leitor contra tomar o homem do livro como retrato autêntico do grande pintor, ou deduzir que o seu noivado e casamento ou qualquer das circunstâncias que inventei para ele, representam factos da vida de Lawson. Não conhecia nada em absoluto sobre ele, excepto o que dele vi durante as minhas poucas visitas a Cheyne Walk; e desde então nada mais soube. Pôs a minha imaginação a trabalhar e nada mais.
Agora já contei tanto quanto me parece necessário para as circunstâncias e os antecedentes relevantes do meu primeiro livro. E o livro de um jovem cru, ainda fora de contacto com o país para o qual se transportou; e se tenho de fazer confidências completas sobre este assunto devo acrescentar que a mera crueza, que cedo desaparece, era complicada por uma estranheza mais profunda que me tem tornado toda a minha vida num hóspede neste planeta mais do que um natural dele. Quer seja que eu tivesse nascido doido ou um tanto ajuizado demais, o meu reino não era deste mundo; eu só me sentia bem no reino da minha imaginação, e só à vontade com os mortos poderosos. Por conseguinte, tinha que me tornar actor, e criar-me uma personalidade fantástica, apta e adequada para lidar com homens, e adaptável aos vários papéis a desempenhar como autor, jornalista, orador, político, homem de committés, homem do mundo e assim por diante. Neste, eu mais tarde venci até bem demais. Na minha infância vi Charles Mathews representar numa farsa chamada Cool as a Cucumber. O herói era um
47
rapaz que acabava de fazer a volta ao mundo, para a qual tinha sido mandado a fim de se curar de um acanhamento aparentemente desesperado; e o cómico estava em a cura ter excedido os limites, transformando-o em monstro de impudência ultrajante.
Não estou certo de não me haver acontecido alguma coisa desta natureza, pois quando a minha impostura estava por fim terminada, e eu diariamente puxava os cordelinhos do boneco que me representava na imprensa pública, o aplauso que me saudava não era diverso do que Mathews ganhava em Cool as a Cucumber. Certamente os resmungos de nojo ressentido com que se resistia aos meus atrevimentos, lembravam de perto os do infeliz velho na farsa, cujos quadros e móveis o rapaz tão descaradamente arranjou ao seu próprio gosto. No tempo de que escrevo, contudo, ainda não aprendera a representar, nem chegara a compreender que o meu personagem natural era impossível num grande palco de Londres. Quando tinha de sair do reino da imaginação para o da actualidade ainda me sentia inconfortável. Estava fora da sociedade, fora da política, fora do desporto, fora da Igreja, se o termo tivesse sido inventado, eu deveria ser chamado The Complete Outsider (o completo homem de fora). Mas o epíteto só seria apropriado dentro dos limites do barbarismo britânico. Desde o momento que se falasse de música, pintura, literatura ou ciência, as posições ficavam invertidas. Eu é que era o insider (o homem de dentro). Tinha o hábito intelectual, e a minha combinação natural de faculdade crítica com recursos literários só necessitava de uma compreensão clara da vida à luz de uma teoria inteligível; em resumo, uma religião para a pôr em obra triunfante. Foi a falta desta última qualidade que me aleijou naqueles primitivos dias de Victoria Grove e que pôs limites a este meu desajeitado primeiro romance, com o qual não perdereis muito se o lerdes salteado.
Ayot St. Lawrence Verão de 1921
48
PRIMEIRA PARTE
ISLINGTON
- Verdes Anos
CAPÍTULO I
Ás quatro horas da tarde do dia mais curto do ano de 1878, um jovem passou, duma das principais ruas de Islington, a certo pátio, por sob um arco, no alto do qual estava, em placa de ferro, a inscrição: Dodds Buildings.
Dodds Buildings cercavam uma praça lajeada, cada lado da qual media apenas sessenta pés de comprimento; a praça continha, não obstante, onze casas severamente respeitáveis. Era sítio sossegado no meio de ruidosa vizinhança e dava a impressão de que Dodd, embora desprovido de imaginação como arquitecto, era homem estritamente religioso.
O jovem, depois de ter observado desanimadamente o pátio durante algum tempo, voltou à esquerda e bateu à porta número 3. Após intervalo, gritou dentro uma voz "Rosa!" Era voz de mulher zangada; diante deste som, mais desagradável do que todos os outros, o visitante recuou. Depois bateu outra vez causando nova e mais histérica invocação de Rosa.
Durante os poucos minutos seguintes, imaginou ociosamente se Rosa seria tão bonita quanto o nome. Quando já tinha expresso por terceira pancada antes uma admoestação do que um rogo para ser admitido, uma rapariga de dezanove anos, bem parecida, de fato preto economicamente talhado e em parte coberto por um velho chaile de Paisley, precipitou-se no pátio; abriu a porta do número 3 com tão pouco barulho quanto o fecho permitia; entrou em casa; pôs apressadamente o chapéu e o chaile debaixo duma prateleira móvel que servia de mesa de vestíbulo; e dirigiu-se ao paciente ocupador do limiar como se tivesse acabado de sair da cozinha. "Aluguei aqui um quarto", disse o rapaz.
"Mrs Froster", interpôs, do segundo andar, uma voz masculina: "julgo que estão a bater à porta."
"E o senhor espera que eu tome o lugar da minha
51
criada, Mr Fenwick?" retorquiu, do primeiro andar, a mesma, pessoa que tinha chamado pela Rosa. Mr Fenwick deve ter-se então retirado para o seu aposento; pois já não foi ouvido, enquanto a senhoria corria para baixo, ao vestíbulo, e, não vendo, à pouca luz, a esbelta figura do estranho começou através dos dentes cerrados, "vou dar-te uma ensinadela, minha menina".
"O senhor chegou", interrompeu Rosa, tão alto quanto ousava.
Mrs Froster conteve-se; ordenou a Rosa, em voz pouco firme, que fosse para cima; e acendeu a vela com mãos trémulas.
"Queira subir comigo, se faz favor, Mr Smith", disse em tom submisso. Ele subiu e ela seguiu-o. No terceiro degrau, explodiu de novo. "Não sabe o que é o mau génio daquela rapariga, Mr Smith. Tem o diabo no corpo. Já falei ao pastor sobre ela. Os meus inquilinos encorajam-na. Não vale de nada dizer as coisas a Mr Fenwick. Mas dia virá..." Aqui a senhoria deixou fugir um riso penoso, interrompido pelo tropeçar do seu companheiro nos degraus pouco familiares do segundo patamar.
"Eis o seu quarto", disse Mrs Froster abrindo a porta e introduzindo o novo hóspede num pequeno aposento, que continha duas cadeiras de cana, cama de mogno, algum mobiliário de quarto vulgar feito de pinho manchado de amarelo, e dois caixotes enviados naquela manhã por Mr Smith. As paredes estavam cobertas por papel branco enfeitado de florinhas azuis; e a estreita prateleira sobre o lar segurava um espelho emmoldurado de pau preto com um friso doirado. O quarto encontrava-se limpo; e o fogo ardia alegremente; mas a reflexão de que isto ia ser a sua morada deu calafrios ao coração do inquilino, enquanto esperava que a senhoria se retirasse, o que ela fez imediatamente quando o hóspede disse que desejava tomar chá o mais depressa possível.
Robert Smith, sentado sozinho diante do lume e esfregando arrependidamente a barriga da perna, era rapaz de dezoito anos, com cabelo loiro desmaiado e cortado rente, olhinhos cinzentos, corpo magro e esbelto. As feições delicadamente delineadas e as maneiras nervosas indicavam algum requinte; mas o seu acanhamento, embora
52
mais ou menos disfarçado, mostrava que a sua experiência da sociedade era limitada, e a sua disposição sensível. Quando já se tinha aquecido tanto que não tinha vontade de deixar o fogo, levantou-se; inspeccionou a cómoda e começou a desarrumar a mala e os caixotes. Da mala, que continha o seu guarda-roupa, transferiu para uma das gavetas maiores o fato de smoking preto, que tratou cuidadosamente. Com estes colocou a única gravata branca, duas camisas de peito de linho, uma caixa de botões de punho desbotada, e um par de luvas de cabrito, daquele tom pálido de primavera que passa por branco à luz do gás. Voltando-se então para um dos caixotes, tirou dele uma Bíblia familiar com ilustrações, um Shakespeare e um álbum de fotografias, todos três bem encadernados. O álbum era prenda de certo colega de escola. Os outros tinham sido acumulados em prestações mensais durante um período de dois anos e meio da sua meninice, e procediam do dinheiro para alfinetes que tinha extraído por importunidade ocasional a seus pais, pobres e descuidados em demasia para lhe darem mesada fixa. Depois dos livros, cuidadosamente colocados com as roupas de noite, fechou a gaveta à chave, que daí em diante constituía o seu cofre de tesouros, para só ser aberta em intervalos tão raros quanto o perigo das traças tornava aconselhável.
Prosseguiu então a dispor as suas roupas de todos os dias. Além do decente fato de passeio que trazia vestido, possuía outro muito usado, para casa; um respeitável casaco preto para visitas, um sobretudo e um boné de viagem que pendurou no cabide da porta, o chapéu de coco que havia acabado de tirar, algumas vezes chamado billy-cock, e uma cartola fora da moda, embrulhada em papel de seda e guardada numa chapeleira. As camisas de uso diário, em número de quatro, eram de algodão grosso azul, às riscas; e as peúgas haviam sido feitas à mão. Não possuía outra roupa de baixo. Tinha uma caixa dos melhores colarinhos alemães de papel; mas como custam dinheiro e meio cada e não eram laváveis, enquanto os colarinhos de linho, embora menos resplandecentes, podiam ser lavados por meio dinheiro, possuía fornecimento dos últimos para bater. Estes compartilhavam as suas duas caixas com meia dúzia de lenços de algodão, uma gravata domingueira e uma porção de miudezas, tais
53
como caixas de tintas baratas, uma retorta de vidro com pé e lâmpada de álcool, uns poucos de instrumentos de carpinteiro, gravuras tiradas de jornais ilustrados, um livro de recortes com receitas pirotécnicas e alguns selos estrangeiros, dois canhõezinhos de latão e uma pistola ordinária de ferrageiro. O proprietário destes objectos, enquanto contemplava a velha caixa de instrumentos que continha a maioria deles, parecia desanimado à sua vista. Eram relíquias da sua meninice e provas da sua falta de lar; pois quem é que muda tais coisas da casa de seu pai enquanto alguém do seu sangue ainda aí se encontra? Smith sacudiu a cabeça e colocou a caixa num canto com tanto cuidado como se ainda se interessasse pela artilharia em miniatura e pela química experimental.
A seguir pôs a sua biblioteca sobre a cómoda. Compreendia livros de escola, dicionários e bastantes clássicos em edições mais baratas, alguns dos quais rasgados e ostentando marcas de manuseio de rapaz, especialmente as obras de Byron, cujas gravuras estavam embelezadas com espadas e bigodes desenhados a tinta. Em seguida ficou provado que tinha gosto pela música, pois extraiu duas peças intituladas respectivamente Raffaelle, a Nocturne e The Bivouac, juntamente com um livro de exercícios de piano, na capa do qual se declarava que qualquer pessoa poderia tornar-se um perfeito executante, se tocasse o conteúdo cuidadosamente dezasseis vezes por dia e durante um ano. Estas provas de uma cultura não usual em Dodds Buildings forem completadas pela reprodução fotográfica enquadrada dum desenho de Alberto Dürer, que representava um cavaleiro acompanhado pela morte e seguido por um demónio, ambos grotescamente caprinos. Depois de ser pendurado na parede e a tábua de cima da lareira enfeitada com um despertador de lata, uma balança de cartas e um retrato em moldura de veludo, Smith pegou numa agenda escrevinhada e utensílios de escritório; pôs de lado as caixas e a mala e fez o seguinte cálculo:
54
Juros sobre as 800 Libras da mamã empregadas nos terrenos de Cork
O meu salário de Figgis Weaver
40
52
92 O O
Renda, lume e gás
Lavadeira
Comida
Roupas
Passagens de eléctrico para a City e volta
Assinatura na Biblioteca
£20
3
31
10
5 l
O
O
10
O
4 l
70 £ 21
J5
4
Smith deixou a régua. "E mais com teatros, dinheiro de Boas-festas, o jornal e uma coisa ou outra", disse ele, "bem sei que depressa isto se vai embora. Tenho de abandonar a ideia de alugar um piano. Eu deveria poder viver com o meu ordenado. Deixa ver se fiz algum erro".
Mas não tinha cometido nenhum. Então guardou a agenda e tocou para pedir a sua refeição da tarde e, enquanto esperava a chegada desta, pegou num livro; espevitou o lume em labaredas e entregou-se àquela preguiça satisfeita que usualmente se segue ao cumprimento de qualquer trabalho aborrecido.
Não o deixaram ficar por muito tempo à vontade. Os modos de Rosa enquanto dispunha a bandeja do chá confirmaram as dúvidas que já entretinha a respeito das qualidades de simpatia da sua senhoria. A rapariga manuseava a porcelana da patroa como se fosse a cabeça da dita; e os seus movimentos eram tão abruptos e a sua respiração tão ofegante, que Smith sentiu alívio quando a porta, por fim, bateu atrás dela. Não tinha ela saído havia muito, quando um ruído de vozes, ocasionalmente subindo a guinchos e depois caindo em murmúrio queixoso, se levantou do andar de baixo. Um cheiro a tabaco que logo após chegou às narinas de Smith pareceu pôr-lhe ponto. Depois de um intervalo de silêncio e de fumo, ouviu Mrs Froster subir apressadamente para o quarto debaixo e ali entrar em altercação ruidosa com o seu ocupante. Smith acabava de resolver não passar outra semana nos Dodds Buildings, quando foi surpreendido por um som de passos do lado de fora, seguido por uma pancada à porta.
55
"Entre", disse (1) Smith.
Imediatamente entrou um rapaz de aparência dissipada, cuja vestimenta e maneiras, a um tempo sujas e requintadas, mostravam a combinação da miséria e da pretensão, característica daquela espécie de dandy pobre e desleixado por natureza. Se as botas estivessem em bom estado, a roupa branca limpa, os olhos brilhantes e o andar firme, poderia passar por um moço bem parecido. Mas usava botas de verniz algum tanto rebentadas e parcialmente cobertas por um par de polainitos cinzentos-sujos. Os seus punhos e colarinhos estavam moles e enxovalhados. Os olhos eram ramelosos e a tez, cheia de espinhas, mostrava um amarelo doentio; e ele andava com aquele remeximento fraco de quem tem o hábito de ser tão insolente quanto ousa, mas que ousa pouco.
"Senhor", disse ele, "incomoda-o que eu fume no meu próprio quarto?"
"Não", disse Smith, sentindo repulsa pelo aspecto do visitante, "certamente que não."
"Eu estava certo que o senhor seria bastante cavalheiro para isso", disse o outro. Então, num tom mais baixo e lançando um olhar inquisidor em redor do quarto, acrescentou: "Penso que ela desceu." Smith não disse nada. "Espero que desculpará o meu intrometimento," continuou ele, com um acento que queria ser aristocrático e que tinha esquecido de afectar primeiro na sua excitação. "O meu nome é Fraser Fenwick. Vivo na sala e sentir-me-ei feliz (2) em prestar-lhe qualquer pequeno serviço de que precise."
Smith fez uma vénia.
"É tão desagradável para um homem de boa sociedade estar exposto à língua de uma mulher daquela ordem", disse Mr Fenwick, recaindo na irritação.
"Pois é", replicou Smith.
Fraser Fenwick examinou a cadeia fina de relógio de
(1) O autor, já então dramaturgo, usa quási sempre said, e só não o emprega quando a isso o obriga o movimento psicológico da entoação (N. do T.).
(2) Ainda não tinham então começado a dizer que estavam "very pleased". Julgá-lo-iam plebeu. "Very pleased" e "thanks very much" foram modas posteriores (N. do A.).
O texto diz "will be happy" (N. do T.).
56
senhora que Smith usava, e avaliou consigo próprio o preço do seu vestuário. Olhou para a maleta, à procura de um rótulo, e de boa vontade ter-se-ia demorado na esperança de descobrir alguma coisa a respeito do novo hóspede. Mas Smith não encorajou o visitante a ficar; e depois de mais desculpas pela sua intrusão, Mr Fenwick retirou-se, convencido de que o novo inquilino era qualquer filho da fortuna, pelo que ele indicava uma pessoa que não se honrava com as suas relações.
Smith acabou o chá muito desanimado, e tivesse ele dez anos a menos, ter-se-ia metido na cama e chorado até dormir. No caso presente, contemplou pensativamente a lareira, e lutou em vão por fugir a conversações imaginárias com a sua megera de senhoria, e o patife que morava debaixo das mesmas telhas. Às sete e meia sentiu sair este último. Pouco depois disto ouviu Mrs Froster chamar Rosa do vestíbulo para lhe fazer imediatamente alguns trabalhos domésticos. A seguir bateram com a porta da rua. Um minuto mais tarde, apareceu Rosa.
"Já acabou o chá?", disse ela amavelmente.
"Já, obrigado".
Rosa reuniu a porcelana na bandeja; remanchiou um pouco e falou outra vez.
"O senhor precisa de mais alguma coisa?"
Smith disse-lhe que um jarro de água para beber e um copo seriam tudo de que precisava naquela tarde. Rosa trouxe-lhos imediatamente. Cinco minutos depois de ela ter deixado o quarto, a porta da rua foi outra vez fechada, mas agora com o barulho penetrante, usualmente produzido por um esforço para tornar qualquer operação inaudível. O relógio pareceu então trabalhar com mais ruído do que antes; e Smith, conjecturando com razão que estava sozinho na casa, ficou mais tranquilo. Mas ainda se achava determinado a não permanecer mais de uma semana nos Dodds Buildings, e uma declaração para esse efeito tomou forma em tantos discursos, que ele se fez a si próprio uns após outros, que tirou um jornal da algibeira e tentou fixar a atenção no artigo de fundo, que abria com um relambório sobre os festivais pagãos, e concluía com o elogio das excursões do Natal propostas por certas companhias de Caminhos de Ferro. Mas o seu espírito voltou às suas
57
prévias reflexões desoladoras, e, deixando cair o jornal, ficou sentado a olhar para o fogo até que o ruído de uma chave na porta da rua o despertou. O barulho cessou; recomeçou e cessou de novo. No momento em que Smith tinha resolvido aborrecidamente que não era do seu ofício abrir a porta, o dono da chave bateu. A pancada revestiu carácter inesperado. Mrs Froster não podia ter manejado a maçaneta tão delicadamente, nem Mr Fenwick haveria batido de modo tão firme. Rosa teria dado uma só pancada; e esta agora era o que se chama "dobrada"; quer dizer compreendia cerca de oito toques, dispostos ritmicamente. Smith, aos dezoito anos, podia imaginar um romance em poucos segundos. Informado pela presença da chave de trinco que não estava em perigo de defrontar-se com um estranho à casa, desceu; acendeu o gás no vestíbulo; e abriu a porta.
Entrou então uma rapariga envolvida num impermeável, cujo capuz lhe cobria o chapéu. Disse apenas: "Obrigada", com acento escossês, e subiu as escadas.
Ele, dominado agradavelmente, seguiu-a com o olhar fixo at
é que o nevoeiro, entrando pela porta aberta o regelou.
"Deve ser inquilina", proferiu, enquanto voltava vagarosamente para o quarto. Desde então não mais pensou em deixar a casa de Mrs Froster.
58
CAPÍTULO II
Na manhã seguinte, às oito e meia, Smith deixou os seus aposentos, e foi, de carro eléctrico, a uma casa de comércio, em Aldersgate Street, onde trabalhava diariamente para Messrs. Figgis e Weaver, firma respeitável à qual atribuía os mais sórdidos fitos de existência. Deles ganhava o salário de uma libra por semana e o conhecimento crítico de tapetes e oleados dos quais tinham comércio por grosso. Em troca, gastava quási dois terços do tempo em que não dormia assentando as suas transacções em grandes registos cobertos de lona. Smith tinha alguma habilidade e gostava de trabalhar; mas odiava os deveres do seu emprego como um fossar estéril, que lhe entorpecia as faculdades e gastava o tempo. Contudo, o seu desprezo injustificável por Figgis e Weaver, que dentro do seu âmbito eram homens úteis, embora prosaicos, levava-o a cumprir o trabalho conscienciosamente a fim de não se tornar devedor deles por qualquer parte do salário, que, por desleixo, pudesse receber sem ter ganho. Sob este ponto de vista, a pequenez do seu emolumento, quando comparado com o que poderia ganhar se condescendesse com a vulgaridade da venda a retalho, consolava-o. Os patrões pensavam muito bem dele, concluindo que gostava das suas funções porque as preenchia escrupulosamente, não suspeitando que ele atribuía a prontidão em ser útil que lhes era proveitosa à sua própria covardia. Quando tratava Figgis por senhor, desprezando-o de coração, detestava o seu próprio servilismo. Quando ria com os outros empregados dos gracejos de Weaver, sentia-se o engraxador mais degradado do escritório. Não mudava contudo de conduta porque a má educação de que era incapaz, parecia-lhe a única alternativa.
Todas as tardes, às seis horas, começava a parte do dia que pertencia a Smith. Durante ela, apagava os negócios do espírito tão cuidadosamente que ressentia até um sonho do escritório como transgressão da parte de Figgis e Weaver. Na segunda-feira a seguir à sua chegada aos Dodds Buildings,
59
voltou para a lareira às seis e meia, e começava justamente a ler, quando foi perturbado por um matraquear contínuo no quarto vizinho, muito incomodativo para qualquer estudante. Irritou-o; e quando Rosa entrou com o chá, interrogou-a sobre ele.
"Que horrível barulho é aquele?" disse.
"É a máquina de costura de Miss Russel, senhor Smith", esclareceu Rosa.
"Miss Russell?"
"Mora no quarto de trás, senhor Smith. É modista."
"Há mais alguém - quero dizer - além do cavalheiro do andar de baixo?"
"Só o senhor", respondeu Rosa.
Smith ficou desapontado. Na sua imaginação uma modista era ou uma mulher vestida de farrapos pouco femininos, cantando a canção da camisa (1), ou uma costureirinha espevitada sem cultura ou dignidade. Nenhuma destas personagens se harmonizava com a sua impressão da pessoa a quem abrira a porta da rua na véspera à tarde. Tinha notado o seu acento; e fazer vestidos parecia-lhe ocupação pouco natural para uma escocesa (2). Passaram-se bem três minutos depois da partida de Rosa, antes que se lhe tornasse impossível imaginar Miss Russell sob outro qualquer aspecto que não fosse aquele que o ruído da máquina testemunhava.
Na véspera de Natal, Smith voltou ao seu aposento, rico, mas descontente consigo próprio; Figgis e Weaver tinham-no presenteado com cinco libras, que não tivera a coragem de recusar, embora o seu orgulho se revoltasse contra o receber de qualquer gratificação. Em vão se assegurou a si próprio de que nada era mais natural de que os seus patrões guardarem uma certa quantia do seu ordenado sob a sua fiscalização. Os seus companheiros, que haviam sido unânimes em considerar a soma elevada demais, e as que lhes tinham sido atribuídas como pequenas em excesso, pareceram-lhe
(1) No texto, as palavras the song of the shirt estão sem maiúsculas e sem aspas.
N. do T.
(2) O texto traz Scotchwoman.
N. do A.: Smith chamava sempre Scotswomen e Scotsmen Scotch. Agora procederia de outro modo.
60
mesquinhos; e acreditou que partilhava da sua degradação. Destas reflexões foi distraído por uma pancada na porta.
"Entre", gritou ele.
A porta abriu-se, e deixou ver uma linda mulher de olhos doces e cinzentos, que entrou e se dirigiu a Smith com extraordinária graça de movimentos e confiança nas maneiras. Reconhecendo-a como a pessoa que vira na noite da sua chegada, levantou-se fascinado pela doçura do seu sorriso, e dominado pela impressão de Poder que recebia das suas mãos belas e fortes e maxilas firmes. Trazia uma carta na mão.
"Espero que me desculpará", começou ela.
"De nada", disse Smith.
"Acabo de receber esta carta duma senhora francesa para quem trabalho e não entendo o que vem nela. Pensei que o senhor poderia talvez traduzir-ma, se quisesse ter essa amabilidade, pois Mrs Froster disse-me que sabia bastante."
Smith exprimiu dúvidas acerca da sua sabedoria, e, apressadamente, o seu prazer em prestar-lhe qualquer serviço e não com muita coerência. Também lhe ofereceu uma cadeira e ela, pensando que Smith, como homem bem educado, sabia o que era próprio que uma rapariga fizesse nestas circunstâncias, sentou-se. Então ele, pegando na carta, leu alto algumas palavras, pelas quais ela rapidamente compreendeu todo o texto; quando acabou ofereceu-se para lha escrever, não fosse ela esquecê-la; e, não gostando de recusar, Atirou um cartão e pediu-lhe que escrevesse nas costas. Ele deitou um olhar ao lado impresso e distinguiu o nome Miss Russell em letras grandes e tecidos fornecidos pelas freguesas, posto por baixo em caracteres mais miúdos. Escreveu a tradução no seu estilo comercial que tinha aperfeiçoado com a prática dos livros de Figgis Weaver. Ela então, julgando que já estivera bastante tempo no aposento de Smith, agradeceu-lhe e saiu com a graça de uma leoa. Smith, acostumado a ver mulheres que andam como papagaios, sentiu o peito arder de admiração e saiu para a rua, onde com as suas libras na algibeira olhou para as exibições do Natal nas montras das lojas, até que o seu passo elástico e o seu entusiasmo começaram a esmorecer.
61
Voltou para casa pela Euston Road. Esta via era uma das suas favoritas, por causa das livrarias que contém; raramente por lá passava sem parar a examinar os volumes encadernados em pele de bezerro sobre Teologia, Estatística e Viagens, que aí se ofereciam por alguns dinheiros cada. Nesta tarde, contudo, não achou nada que lhe interessasse comprar até que chegou a curta distância dos Dodds Buildings, quando viu, numa armação, um exemplar barato da Jerusalém Libertada de Tasso. Resolvido a não voltar sem alguma compra nova, decidiu aprender italiano e entrou na loja. A primeira pessoa que aí viu foi Miss Russel, a qual, ocupada em regatear, não deu por ele até que o lojista concordou em aceitar dois terços do preço a princípio pedido por uma obra que, segundo Smith tinha observado no entretanto, se inculcava como um método pelo qual a língua francesa podia ser perfeitamente adquirida sem mestre. Na incerteza se deveria dirigir-se-lhe e ansioso em extremo por o fazer, pagou o livro e então afectando notar a sua presença de repente fez-lhe respeitoso cumprimento.
Miss Russell, rapariga de boa aparência e desacompanhada, não podia ser facilmente abordada por homens; mas o nervoso que Smith deplorava em si próprio, concedia-lhe a confiança das mulheres. Ela não somente respondeu ao cumprimento, mas permitiu-lhe que a acompanhasse a casa. Julgando-o pelo que tinha visto dele, apreciava-o como jovem polido e bem educado; respeitava-o como alguém que soubesse muito e tinha pena dele como de um inocente rapazinho que dera um xelim e seis dinheiros a um livreiro que de bom grado lhe teria levado seis dinheiros.
"Vejo que vai aprender francês", disse Smith, quando seguiam.
"Vejo que é muito esperto", retorquiu Miss Russel.
"Não julgo que encontre neste livro um bom mestre," continuou.
"Para mim serve muito bem", disse ela. Como comprara o livro, estava resolvida a defendê-lo.
"Mas, Miss Russell," disse Smith, "não sabe nada acerca desse assunto, sabe?"
Desta vez ela não tinha a resposta pronta. Smith vendo-a descontente, apressou-se em suavizar o seu próprio triunfo.
"Creio que muitas vezes se desperdiça tempo a aprender,
62
o que eu julgo poder evitar-lhe, se mo permitir. Mas", acrescentou ele, com receio de ter ido muito longe, "talvez julgue isto um intrometimento."
"Ah, não!" disse ela, mais humildemente. "Ficaria muito contente com a sua ajuda."
"Ah! Ah!", pensou Smith. "Não te estás a sentir tão sábia como há um minuto". Mal se tinha deixado ir neste riso interior, quando viu uma expressão abstracta no rosto da sua companheira. Fraser Fenwick estava de pé na arcada que levava da rua aos Dodds Buildings, de conversa com um rapaz que poderia passar por uma tentativa, estragada e posta de parte, de cópia dele próprio. Afastaram-se quando a modista entrou na passagem; e Fenwick saudou-a tirando-lhe o chapéu. Ela passou sem dar sinal; e a primeira impressão de Smith sobre a sua força e graça tornou a dominá-lo tão fortemente quando ela tal fez que esqueceu os dois homens até que uma gargalhada grosseira, seguida por um cochicho desapontado, lhe inspirou o desejo de voltar atrás e de os agredir. Separou-se deles à porta do quarto e nela pensou continuamente durante o resto da tarde.
No entretanto, Fraser Fenwick explicava o insucesso ao companheiro.
"Ela é boa rapariga", disse ele, "mas tivemos um teiró no outro dia; e então engatou aquele badameco a modo de vingança."
"Porque não lhe dá uma bordoada?" disse o outro.
"Ora!" disse Fenwick. "Não é coisa que um homem bem faça, meter-se em sarilhos por causa de uma costureirinha. Ela cedo lhe dá o fora. Ficou aborrecida por causa da Selininha, lá do Bigleys. Onde vai agora?"
"Não tenho nada de especial a fazer. Mora aqui?"
"Provisoriamente", disse Fenwick, consciente de ter dado ao companheiro razão para esperar residência mais aperaltada.
"Ela vive no andar de cima." Aqui sorriu, e o sócio respondeu com ares velhacos e entendidos. "Você naturalmente não quer entrar", acrescentou ele, pouco hospitaleiro.
O outro respondeu entrando imediatamente; e Fenwick, desapontado, conduziu-o ao seu quarto da melhor maneira que pôde fingir. O visitante, cujo nome era Samuel Box,
63
declarou-se muito satisfeito com o aposento, no arranjo do qual a arrumação de Mrs Froster era destruída pelo desleixo do inquilino.
"Eis um alojamento confortável, Fenwick", disse Box. "E ela onde habita?"
"Quer um grogue?" disse o hospedeiro, quási grosseiramente.
"Obrigado", disse Box. "Posso tomar um".
Fenwick tirou whisky e água e misturou-os silenciosamente. O seu recente revés roía-o por dentro com azedume crescente, enquanto observava à luz do gás o aspecto pouco respeitável do visitante. Não se poderia esperar que Miss Russell, pensou ele, deixasse imaginar ao novo conhecido que se dava com uma pessoa que já tinha esquecido de tal modo a sua posição até conversar abertamente com um homem tão mal vestido como Box. O facto de saber que este último tinha gozado a cena constituía ofensa adicional e Fenwick tornou-se malvado à medida que bebia.
"Que linda coisa para um homem da sociedade, o ser ignorado por uma camiseira vulgar com uns poucos de xelins por semana entre ela e a rua", exclamou ele. "É uma honra, estou certo, viver na mesma casa que ela. Pena é que não alugue a sala em vez de morar nas águas furtadas. Julgo que pensa que eu me ralo por me conhecer ou não".
"Eu pensei que era por causa da Selininha", disse Box, arreganhando os lábios.
"Que diabo tem você com isso?" retorquiu Fenwick.
"Não tenho nada", disse Box, com uma afectação forçada de calma.
"Aquele filho da fortuna pensa que pode fazer o que quer, porque eu lhe liguei alguma importância na noite em que chegou. Ah, Ah! Talvez esteja orgulhoso do seu nome. Os Frasers Fenwicks são quási tão fora do comum quanto os Smiths".
"Pois bem! Que importância tem isso?" disse Box alegremente.
"Importância!" exclamou Fenwick. "Suponho que não lhe importa o que as outras pessoas pensam de mim, com você a pegar-se-me pelas ruas".
64
"Quem é você?" disse Box, empalidecendo de súbito e pondo-se de pé num salto.
Fenwick também se ergueu e olhou cheio de desprezo para o seu hóspede, mas estava com tanto medo que não podia falar. Box, igualmente aterrorizado, continuava a repetir "Quem é você?" mais com os lábios brancos do que com a voz.
"Sou o dono da casa," disse finalmente Fenwick ofegante. "Rua!"
"Já lá vou e bastante depressa," disse Box, tomando confiança enquanto fugia do quarto, "mas não a seu mandado, Senhor Dono da Casa. Pena é," continuou ele, fazendo pouco de Fenwick enquanto descia e elevando a voz à medida que se afastava. "Pena é que não se dê melhor com os seus inquilinos, sendo você um homem da boa sociedade. Lastimo não merecer ser visto na sua companhia, espero que pagará pela sua sala do fundo tão bem quanto pagou o velho Bigley por aquelas bebidas. E o que foi feito," aqui um passo zangado pareceu indicar que Mr Fenwick saíra em perseguição; e Box fugiu, fechando a porta da rua com uma violência que fez vibrar os soalhos.
Fenwick mal tinha tido um breve intervalo de paz, quando Mrs Froster bateu à porta. Empalideceu ao mandá-la entrar. Ela era alta e angulosa, com olhos negros, próximos um do outro, de cada lado dum nariz aquilino.
"Ora bem, Mr Fenwick," disse ela com voz forçada, "eis uma linda conduta."
"Nada de brigas, se faz favor," disse ele, num desespero embezerrado.
"Não quero ter nenhuns valentões de taberna gritando na minha casa," retorquiu ela. "Não quero maldição nenhuma sobre a minha casa. Não consinto."
Ele encolheu os ombros e nada disse.
"Ouviu, Mr Fenwick? Não me responde?"
"Que culpa tenho eu dum homem ser patife?" arguiu. "Se alguém não se sabe portar bem em casa dum homem de sociedade, a culpa é minha?"
"E desde quando esta casa lhe pertence?"
"Quero dizer o quarto."
"E desde quando", repetiu ela, "o quarto lhe pertence?" Mr Fenwick evitou-lhe o olhar e não replicou. Então, com
65
ferocidade súbita, ela gritou: "Quando é que paga a renda e se vai embora?"
"Já prometi."
"Posso viver das suas promessas?"
"Não posso de modo algum. Porque não se vai embora, Deus meu", exclamou ele, com grande agitação.
"Não diga blasfémias sob este tecto", exclamou ela. "Ele puni-lo-á. Ele puni-lo-á com o fogo."
"Cale-se", soluçou Fenwick, caindo numa cadeira e enterrando a cabeça nas mãos. "Tenho sido muito malvado; mas sou muito infeliz. Ninguém quer falar comigo ou conhecer-me. Vou morrer. Se for poupado, nunca mais beberei uma gota. Vou amanhã à igreja; vou mesmo. Há tempos que o quero fazer."
Mrs Froster, contida pela prostração súbita da sua vítima e exausta pelo seu arrebatamento, começou a ser infectada pelo terror dele.
"Espero que vá, Mr Fenwick", disse ela solenemente.
"Não pensa que morrerei durante a noite?" disse Fenwick, a tremer.
"Deus me livre de pensar tal coisa," replicou ela, encaminhando-se para a porta.
"Espere um minuto, Mrs Froster", suplicou ele, estendendo a mão trémula por sobre a mesa como para lhe agarrar o vestido, "só mais um segundo. Tenho medo de estar só. Não me vai deixar morrer aqui, pois não?"
Mrs Froster tentou falar, mas a língua pegou-se-lhe ao céu da boca; os membros pareciam ir faltar-lhe. Deixou o quarto rapidamente e foi para a cama, onde tremeu e soluçou alternadamente até à meia noite.
Mr Fenwick, deixado só, gemeu por alguns minutos. Então olhou a medo em derredor, e, reanimado pelo brilho do gás e do fogo, levantou-se e foi buscar whisky, e bebeu um copo. Tendo assim adquirido alguma confiança em si próprio por alguns minutos, despiu-se e foi para a cama, não ousando apagar a luz; um sono profundo livrou-o imediatamente dos horrores com que a sua imaginação enchia os cantos do quarto.
66
CAPÍTULO III
"Ando sempre a pensar que hoje é domingo," declararam toda a população do Reino Unido e diversos estrangeiros, no dia 25 de Dezembro do ano em que Robert Smith alugou aposentos em Islington. Este, caminhando em direcção a Hyde Park, disse-o em tom que indicava não aprovar a parecença. Sentindo-se na disposição de explorar novas localidades, e estando pouco familiarizado com o emaranhado de ruas chamado Mayfair, virou de Piccadilly para o Shepherds Market, e encontrou-se num pátio, onde várias pessoas se dirigiam apressadamente para a porta duma escola. Smith era curioso e observador. Também tinha o amor da aventura; e entrar para um lugar estranho sem ser convidado parecia-lhe audacioso. Assim, penetrou na escola e, mal passara do limiar, uma rapariga presenteou-o com um prospecto. Agradeceu e enfiou por um corredor, onde encontrou em sucessão um rapaz diligente que lhe rogou aceitasse um livrinho, um homem que o obrigou de modo austero a receber outro, e uma pessoa sorridente que lhe passou para a mão um folheto como se fosse o honorário de um médico, e o empurrou com gentileza para a sala de aulas. Os assentos da frente estavam ocupados por mulheres, principalmente raparigas acompanhadas por velhas de ar azedo. O resto do auditório eram negociantes respeitáveis, meia dúzia de soldados, e alguns mancebos que pareciam estar lá para zombar. Quási todas as mulheres se mostravam solenes; mas muitos dos homens sorriam constantemente e apertavam as mãos dos recém-chegados. Smith sentou-se, e leu os seus prospectos, os quais não achou nem críveis, nem cristãos, nem interessantes.
A reunião abriu-se por alguns hinos, que foram cantados mais ou menos: alguns dos cantores lendo por livros impressos em quási todas as variedades de simbolismo musical, excepto a notação vulgar pautada. Assim embora o grosso da congregação ou seguisse a melodia ou improvisasse um baixo zumbido que só se movia nas cadências, havia uma
67
tentativa tolerável para cantar por vozes; e Smith não encontrou defeitos na execução. Quatro hinos foram entoados sucessivamente, o último com as palavras "We will all be happy over there" (Lá seremos todos felizes) a servir de estribilho, no qual a frase "Over there" era repetida em todas as vozes, uma respondendo à outra. Este artifício antifónico foi muito popular; e a congregação repetiu o último verso de motu proprio. Smith juntou a sua voz incolor de barítono à harmonia, mas cedo parou, imaginando que uma menina sentada perto dele o estava a ouvir. Tendo observado isto, um homem pôs-lhe diante o seu livro de hinos, que ele aceitou, e do qual segurou um canto até findar a música. Então levantou-se um rapaz, fogoso e convencido da sua oratória, que ofertou uma longa oração, durante a qual sugeriu tais modificações nas leis da natureza que trariam o arranjo do Universo em conformidade com os seus próprios dados. Quando acabou, vários outros, fizeram discursos; mas faltava-lhes variedade, pois os oradores eram todos muito ignorantes. Os discursos de um ou deis dos homens que relatavam as atrocidades por eles cometidas antes da sua conversão enojaram Smith; espreitava por uma oportunidade de se ir embora sem dar nas vistas. Antes de alguma aparecer, um homem de cerca de trinta anos, com círculos escuros ao redor dos olhos, bigode pontiagudo, e longo cabelo negro, ergueu-se, e foi saudado pelas mulheres com um murmúrio de expectativa. Smith resolveu esperar para o ouvir. Ao contrário dos oradores que o haviam precedido, usava uma jaqueta de caça de tweed cinzento, e um cache-col de cores vivas. Um grande chapéu de feltro ficou no banco de onde se levantara. Embora frequentemente interrompido pela tosse, falou com fluência e fervor notáveis, e ilustrou o seu discurso com muitas anedotas. Concluiu declarando que ia morrer; que o seu médico lhe tinha oferecido a vida sob condição de repouso completo dos seus deveres evangelísticos; mas que ele estava resolvido a perseverar até ao fim, confiando num Médico ainda maior para a sua recompensa. Com esta peroração, deixou-se cair no banco tossindo violentamente, e uma emoção perceptível na congregação testificou da justeza com que tinha calculado o efeito. Smith, para o sentir mais culto do qual o cliiuax pareceu exagerado, sorria
68
ironicamente, quando de repente encontrou perto dele o olhar de uma rapariga de aparência modesta; os olhos, cheios de lágrimas, contemplavam-no com surpresa cheia de censura. Orgulhoso do seu cinismo, tomou um ar tão cheio de Desprezo quanto pôde; e ela, pensando que esta expressão fosse mostra de menosprezo por ela própria, inspirado por posição social superior, virou a cabeça. Smith, que tinha o bom senso de apreciar as suas próprias loucuras sem a presença de espírito para se refrear quando tentava cometê-las, arrependeu-se imediatamente, e observou a rapariga até que a reunião acabou, o que aconteceu depois de uma longa oração e de três ou quatro hinos. Enquanto a congregação se dispersava, os que tinham falado recebiam as felicitações dos seus admiradores. O homem de cabelo negro, que era o mais popular, foi tão assediado que teve por fim de abrir caminho e aproximar-se apressadamente da porta. Passou por Smith na entrada, e ia escapulir-se para a rua, quando a rapariga que tinha ficado comovida até às lágrimas pelo discurso, fê-lo parar e disse ardorosamente:
"Oh, Mr Davis, quero falar consigo sobre um assunto muito particular."
O pregador encetou a conversação, na qual ainda estavam ocupados quando Smith, depois de vaguear curiosamente pela sala e pelo corredor, se foi embora. Ao passar por eles ouviu dizer ao pregador:
"Irei ter com ele esta noite mesmo, agora mesmo."
"Oh hoje não, Mr Davis", disse a rapariga. "Não quero estragar o seu Natal."
"Estou pronto a responder ao chamamento do meu Mestre em todas as ocasiões, Miss Wakins. Sei muito bem que não tenho tempo a perder", acrescentou com um ataque de tosse.
Quando Smith voltou a Piccadilly, subiu para o tejadilho do ómnibus de Islington. No Oxford Circus, ficou surpreendido por ver Mr Davis subir para o veículo e sentar-se junto dele. Durante algum tempo o pregador esteve sentado, descansando a face cava na mão, adornada com um anel vistoso. Lançava ocasionalmente olhares a Smith e parecia disposto a travar conversação com ele. Estavam quási no fim de Portland Street quando se aventurou a fazer-lhe a seguinte pergunta pouco esperada:
69
"Talvez o senhor pudesse dizer-me, se passaremos junto de um lugar chamado Dodds Buildings."
Smith replicou que o Angel de Islington onde parava o ómnibus ficava a dez minutos a pé do lugar a que se referia, e acrescentou que morava lá.
Ouvindo isto, Mr Davis arregalou os olhos, tendo suposto, pela aparência de Smith, que fosse um homem de sociedade, conclusão que julgava incompatível com a sua residência em Dodds BuiLdings. Sentindo-se mais à vontade:
"Não o vi na nossa reunião desta tarde?"
"Viu. Passava por lá e entrei sem saber do que se tratava."
"Tenciona voltar?"
"Receio que me fique muito fora de mão."
"Não diga isso. Estou certo de que o senhor se incomoda dez vezes mais por dia por uma recompensa menor."
Smith pensou em Figgis e Weaver, e suspirou involuntariamente.
"Venha!" tornou Davis, notando isto: "Vejo que sente que tenho razão; e tenho-a, embora não do meu próprio saber. Vou dizer-lhe onde moro. Moro em Emmersmith. Dodds Buildings ficam-me fora de mão, mais do que Shepherds Market para si, mas isso não me importa. Vim cá neste dia arrancar um rapaz das garras do demónio, cujo escravo se tornou. E com a ajuda de Deus, arrancar-lho-ei. Se soubesse quanto o trabalho me torna feliz, juntar-se-ia a mim."
"Não há dúvida de que todos são felizes quando têm para fazer trabalho de que gostam e em que acreditam."
"Há bastante do mesmo trabalho para todos; e verá como gosta dele."
Smith sacudiu a cabeça, e nada disse. Não podia acreditar que um homem que deixava cair os hh (1) pudesse ter alguma coisa a ensinar-lhe. Só contava dezoito anos.
"Como pensa que me foi dado este trabalho?" disse Davis. "O rapaz que vou ver hoje - dia de Natal - estava noivo de uma prima. A prima viu-o cair, de degrau em degrau,
(1) O inglês traz ere, elp, ow, appy; todas, como é notório, palavras começadas por h na linguagem correcta. Emmersmith, mais acima, representa Hammersmith.
70
em maus hábitos, e não sabia como salvá-lo. Um dia, veio à nossa reunião, e o seu coração ficou tocado. O Senhor mostrou-lhe então o caminho; e hoje mesmo ela falou-me quando eu saía para a rua. "Oh Mr Davis" diz-me ela, "fale-lhe. Ele ouvi-lo-á. O senhor sabe como falar direito à alma humana; e pode salvá-lo melhor do que qualquer padre." De modo que eu saí imediatamente para o procurar; e se me for dado esse poder, trar-lho-ia outra vez como um homem de novo nascido."
Smith desejou-lhe sucesso, polidamente.
"Agradeço-lhe", voltou o outro; "mas prefiro rezas a desejos".
"A maioria das rezas são pouco mais do que desejos."
Davis olhou para ele duvidosamente. Smith encetou o assunto do tempo, a tendência de todos os Natais para serem menos parecidos com o Natal do que o precedente, e assim por diante. No Angel, desceram; e Smith propôs conduzir Davis aos Dodds Buildings, acrescentando que era muito perto.
"Seria uma coisa difícil de fazer", disse o pregador pouco à vontade, "visitar um estranho, se não fosse uma missão sagrada."
Smith achou isto impertinente, mas não o disse.
"Tenho sido mal entendido e mal tratado algumas vezes", continuou Davis; "mas tenho pensado comigo próprio quanto Alguém melhor e maior do que eu sofreu piores coisas. É uma boa cura de pensarmos demais em nós próprios."
"Não sei", disse Smith duvidosamente. "Poder-se-ia responder com o mesmo argumento que não é vergonha ser enforcado. Além disso, o hábito de comparar as nossas circunstâncias com as dos grandes homens agradaria antes ao egoísmo do que o destruiria."
"Penso que o senhor tem algumas ideias peculiares", disse Davis sorridente.
Smith replicou apressadamente que nunca podia compreender porque um bocado de senso-comum, quando não concordava com o preconceito popular, era posto de banda desprezivelmente como uma ideia peculiar.
"Peço perdão", disse Davis humildemente. "Deus me livre de falar com desprezo a alguém cuja alma é tão preciosa - ou antes, mais preciosa do que a minha própria."
71
"Não queria de modo algum dizer isso, juro-lho", disse Smith recuando. "Eis os Dodds Buildings", acrescentou, quando viraram para a arcada.
"Ah, sim?" disse Davis. "Estou-lhe muito agradecido. Talvez quisesse levar a sua amabilidade até me indicar o número três."
"Aqui está ele", disse Smith, abrindo a porta com a sua chave de trinco.
"Ora vejam, como as coisas acontecem!" exclamou o pregador. "Esteja certo de que isso não é um mero acaso. Conhece um certo Mr Fenwick, que aqui mora?"
"Mr Fenwick não está em casa agora", disse Rosa, que acabava de aparecer no vestíbulo.
Davis pareceu tão desapontado com a informação, que Smith não teve remédio senão convidá-lo para o seu próprio quarto, embora se envergonhasse da maneira com que teria de o receber. Foi tirado deste embaraço pelo aparecimento de Mrs Froster, que, com surpresa sua, lhe pediu que trouxesse o seu amigo para a sala. Davis aquiesceu com um cumprimento; e os três entraram na sala da frente, o salão nobre de Mrs Froster, que nunca o alugava. A mesa era de nogueira, e estava coberta por um pano carmesim, no centro do qual a vitrine de pássaros empalhados se encontrava sobre um assento de lã berlinense. Na escarpa da chaminé estava um relógio ornamental, uma peanha coberta de veludo para o relógio de algibeira, e dois vasos de gesso sobre redomas. Um espelho convexo, com uma moldura doirada de feitio diligentemente feio, pendia da parede em frente do tremó. A janela estava ornada com cortinas de damasco vermelho, que contrastava com as venezianas verdes; e o ar de todo o aposento era digno da boa aparência a que, através de muitos anos de luta, Mrs Froster nunca tinha perdido as suas pretensões.
"Gostaria de saber o nome do sujeito", pensou Smith, ao entrar. "Suponho que tenho de o apresentar". Mas Mrs Froster livrou-o outra vez.
"Mal pensava, Mr Davis", disse ela comovida, "ter a honra de o receber em minha casa no dia de Natal. Esta é Miss Russell, minha amiga. Harriet: este é o senhor de quem eu lhe tenho muitas vezes falado."
Miss Russell, sentada à lareira, deixou transparecer um
72
conhecimento momentâneo da existência de Davis, que fez um cumprimento rasgado demais, e a seguir, convidado pela dona da casa, sentou-se. Smith fez o mesmo. Um bolo de erva doce e uma garrafa de vinho de Marsala foram trazidos e partilhados por todos os presentes, excepto a modista.
"Vem muito raramente ver-nos a Finsbury agora", disse Mrs Froster.
"Não", replicou Davis: "trabalho por completo no West End. Não há deserto mais estéril em Londres do que Yde (1) Park, não pode haver lá vozes demais para clamar."
"O senhor vai a reuniões de oração?" disse Miss Russell à parte a Smith, enquanto Davis alargava os seus comentários sobre a infidelidade de Londres a proporções de prédica evangelística.
"Não", segredou Smith. "Fui hoje acidentalmente, porque não tinha mais nada que fazer, e sentia curiosidade. Encontrei-o quando voltava para casa; e como ele queria fazer cá uma visita, travámos conhecimento. Penso que pretende ressuscitar Mr Fenwick. Já o ouviu pregar?"
"Eu não", disse Miss Russell como se a pergunta atingisse o seu bom senso. Não baixou a voz enquanto falava; e Smith começou a pensar que ela, quando as pessoas não mereciam a sua simpatia, não as tinha em muita consideração.
"Como vai o seu francês?" disse ele.
"O senhor não tem nada com isso, Mr Smith", replicou ela.
Smith riu silenciosamente: "Vai pedir a minha ajuda antes de ter chegado ao meio do primeiro capítulo daquele método infalível", disse ele.
"Achou a reunião interessante?" disse ela friamente.
"Não muito: julgo que a senhora não deveria ficar zangada comigo por descobrir um segredo que foi a própria a contar-me."
"Não estou zangada", disse Miss Russell. "Mas penso que o senhor é muito perseverante (2)." A seguir, como ouvisse a cadência da sua própria frase, acrescentou apressadamente: "Muito perseverante mesmo".
(1) Ver nota anterior.
N. do T.
(2) O texto traz varra pairseverin, imitando a pronúncia escocesa, em vez de very persevering, como a própria Miss Russell corrige logo a seguir.
73
Smith, contente por ter abalado o seu auto-domínio, abandonou o assunto e começou a falar sobre ele próprio. Foi interrompido por Davis, que tinha estado a esperar em vão arranjar maior auditório do que Mrs Froster e que passou agora a dirigir-se directamente à modista.
"Já tive o prazer de a ver em alguma das nossas reiiniõezinhas, Miss?" disse ele.
"Harriet", disse Mrs Froster severamente, depois de uma pausa: "está a ouvir?"
Miss Russell virou-se, e com a alegria de um sorriso provocado por uma das graças de Smith ainda no rosto, olhou interrogativamente de Mrs Froster para o pregador, que empalideceu.
"Já tive?" disse ele referindo-se à sua pergunta.
"Já teve o quê?" disse ela, como se começasse a suspeitar que Mr Davis era mais parvo do que à primeira vista parecia.
"Mr Davis perguntava se você já tinha estado nas reuniões de Finsbury", disse Mrs Froster.
"Nunca vou a reuniões religiosas", disse Miss Russell.
"Você nunca vai a parte alguma, Harriet", disse Mrs Froster; "e Mr Davis não fará melhor opinião de si por isso".
"Certamente que não", disse Harriet mal escondendo o seu desprezo pela opinião dele.
"Poderei perguntar o que tem a dizer contra nós?" disse Davis, que não ficara agradecido a Mrs Froster pela sua observação.
"Fui criada por meu pai na crença de que essas coisas nada valem", disse Harriet simplesmente. Nesta altura Mrs Froster, vencida pelas suas reminiscências de Mr Russell, deu um gemido.
"Gostaria de falar a seu pai", disse Davis, com um sorriso confiante.
"Quem me dera a mim", disse Harriet. "Ele já morreu".
"Oh," exclamou Davis, e acrescentou entristecendo o rosto, flexível, "Deus meu!"
"Ele tem muito por que responder. Tem na verdade muito por que responder", bradou Mrs Froster.
"Não falemos mais em meu pai por ora, Mrs Froster",
74
disse Miss Russell. Mrs Froster teve um ar de rebeldia momentânea. Depois abrandou, e deixou cair o assunto.
"Teria Mr Fenwick já entrado?" notou Smith, ansioso por desviar a conversa.
"É verdade: já teria?" disse Davis. "Vim da outra banda de Londres para o ver. Tenho algumas palavras que calham a propósito, assim espero - para lhe dizer".
"Isso muito me alegra", disse Mrs Froster. "Os rapazes de hoje em dia vão além da minha compreensão".
"E afinal, duvido que o veja hoje", disse Davis, olhando para o relógio.
"De qualquer modo, não vai ainda fugir-nos, Mr Davis", disse a senhoria. "Vou dizer a Rosa que peça a Mr Fenwick para vir ter connosco logo que chegue."
Miss Russell levantou-se. "Tenho de me ir embora, Mrs Froster", disse ela.
"Não há mal nenhum em que se encontre com Mr Fenwick quando eu estou presente, e também Mr Davis", notou Mrs Froster.
"Não disse nada sobre Mr Fenwick. Tenho trabalho para acabar antes de sair".
"Oh, Harriet! Não vá trabalhar no dia de Natal!"
"Os que fazem dias santos deveriam dar às pessoas os meios de os guardar", disse Miss Russell, esboçando um ligeiro cumprimento para Davis ao deixar a sala, e não ligando nenhuma a Smith.
"Que rapariga teimosa e insubmissa", disse Mrs Froster aborrecida. "O seu mau génio é insuportável; e ela cede-lhe sem restrições. Não ouve uma reprimenda; falar-lhe é só tentá-la a dizer coisas pecaminosas."
"É sua parenta, suponho?" perguntou Davis.
"De modo algum", replicou Mrs Froster. "Ficaria muito triste se alguém da minha família tivesse ideias daquelas. Uma tia dela é velha amiga minha, e podia ter arranjado um bom lugar para Harriet com Mr Grosvenor em Richmond; mas ela julga-se superior a isso."
"Então não vive com a tia?" disse Davis.
"Ai não: mora comigo. Pelo menos", acrescentou Mrs Froster, "em consideração pelo facto de que a conheço, paga-me um quarto. É muito independente, e pensa que é melhor ser estranha na minha casa e rapariga sozinha em
75
Londres, do que viver respeitavelmente com a sua tia em situação adequada. As raparigas de hoje são muito diferentes do que eram dantes."
"Ambos os pais morreram já, suponho", disse Davis. A sua curiosidade foi muito agradável a Smith, que a sentia igualmente, mas era mais delicado.
"A mãe morreu quando Harriet nasceu", disse Mrs Froster. "Foi criada na Escócia pelo pai. Não faço julgamentos sobre ninguém, Mr Davis. Sou bastante má eu própria. Mas tenho pena que Harriet não tivesse tido melhor guia."
"Os homens muitas vezes afastam-se do caminho, quando a vontade de Deus quer que as suas mulheres vão para o repouso eterno: os homens da sociedade especialmente embora todos sejam iguais às portas do céu", disse Davis.
"Da sociedade!" bradou Mrs Froster. "Ele não era nenhum homem da sociedade, mas um medidor de vasilhas e agrimensor que recebia dinheiro em peitas e gastava-o em bebidas. Fugiu com a mãe dela e arrumou a família, que era gente muito respeitável, pois o avô dela foi Maior de Nothingham. Sua irmã, a tia de Harriet, é a única sobrevivente, e teve que tornar-se governante de Mr Grosvenor, como já disse. Ele é um senhor bondoso, e muito rico; mas receio que pense mais nas suas estátuas e pinturas francesas do que em coisas mais elevadas. Haverá pouca consolação em ornamentos vistosos quando chegar o dia de termos de dar conta de nós próprios, Mr Davis."
"Muito pouca na verdade!" disse o pregador. "Entristece-me ouvir o que me conta acerca do pai da nossa jovem amiga."
"Espanta-me que o fogo do céu não caísse sobre a convicção daquele homem", tornou Mrs Froster. "Não ouso repetir-lhe as coisas que dizia à filhinha. Não quis mandá-la à escola, receando que lhe ensinassem o ler o Livro dos Livros, onde dizia que ela só acharia maus exemplos. A única vez que fui à casa dele, dei à pequena Harriet um livro que trouxera de Londres chamado Gotas da Água da Vida, Devolveu-mo à frente dela com estas palavras textuais. "Harri", disse ele, "quando quiseres fazer o que está certo, verás o teu caminho bastante bem sem o auxílio da religião. Quando não o quiseres, facilmente poderás inventar desculpas tão boas quanto as que achares na Bíblia." Eu disse-lhe
76
imediatamente o que pensava dele; mas riu de mim, e disse coisas que me ficariam muito mal repetir. Então pedi-lhe que me deixasse apresentá-la ao pároco. "Não, Rebeca", disse ele, "ao pároco, não. Faço o melhor que posso para conservá-la entre pessoas honestas; e ela já conhece três contrabandistas, não me contando a mim que sou medidor de vasilhas.1 Pode imaginar que a pobre criança era assim tratada e amimada com tanta liberdade quanto uma mulher casada, e sozinha a tomar conta da casa. E ele ficava mesmo satisfeito quando ouvia observações sobre esse facto. "Não há nada como a liberdade", costumava dizer. "A minha Harry irá onde quiser, excepto à igreja; e dirá o que quiser, excepto rezas." Todas as noites se sentava regularmente numa taberna até às onze horas; e foi talvez uma graça do Senhor, pois desse modo ela pouco via dele. Há quatro anos, o médico avisou-o; e ele mandou Harriet para sua tia em Richmond. Enquanto ela lá estava, começou a beber como um louco; e depois de combinar ser enterrado e a casa vendida antes que ela ouvisse uma palavra sobre isso, morreu quási como se o fizesse de propósito".
"Espero que se arrependesse nos últimos momentos", disse Davis, gravemente.
"Espero que sim", disse Mrs Froster. "Quando voltou a si depois do ataque, alguns minutos antes de morrer, trouxeram-lhe um pastor. "Russell", disse este, "tenho pena que seja o nosso primeiro encontro." "Pois sim, e também o nosso último", disse Joseph; "e se lhe servir de algum consolo conhecer os meus pensamentos, posso dizer-lhe que se existe um Inferno para malandros, preguiçosos e indulgentes com eles próprios, lá irei ter sem a menor dúvida. "Russell", disse o pastor solenemente, "há conforto na religião para todos os estados. O maior conforto nela para mim no presente", disse ele, "é que eu nela não acredito." Aquelas horríveis palavras, Mr Davis, foram as últimas que ele falou na Terra."
"Suponho que Miss Russell ficou muito abalada pela sua perda, Mrs Froster", disse Smith.
"Se a conhecesse, não pensaria tal", disse Mrs Froster. "Não tem mais sentimentos do que uma pedra. E como poderia ela tê-los, quando nunca lhe tocaram o coração? Ele deixou-lhe uma carta, para lhe ser entregue depois da
77
sua morte; mas ela nunca a mostrou nem mesmo a sua tia ou a mim, e sempre falou sobre ele tão calmamente como se estivesse vivo."
"Ah!" disse Davis: "Não sabemos o que é a morte antes de sermos chamados nós próprios."
Esta observação, acompanhada de tosse, desviou a conversação para a saúde e trabalhos do pregador, de cuja doença pulmonar Smith já estava aborrecido. Pouco depois disto, Mr Fenwick voltou e tendo sido apanhado por Mrs Froster na escada, foi trazido à sala e apresentado a Davis, que lhe apertou a mão afectuosamente.
"Gostou do seu passeio?" disse Davis.
Mr Fenwick tinha ido à igreja, em seguimento da sua resolução da noite anterior e estava meio envergonhado do acto, e meio desejoso de fazer as pazes com Mrs Froster comunicando-lho. De modo que replicou descuidosamente que tinha ido à igreja de S. Paulo de manhã. "Uma pessoa quási se esforça por fazer qualquer coisa para passar o tempo nestes amaldiçoados dias santos", acrescentou ele.
Mrs Froster, sentindo que a conversão do seu inquilino deveria ser efectuada na intimidade, levantou-se; alegou algumas ordens a dar à criada, e, com muitas desculpas, deixou o aposento. Smith gostaria de seguir o seu exemplo, mas faltou-lhe a presença de espírito para inventar uma desculpa plausível. Mr Davis tossiu; fixou intensamente os olhos escuros no rosto de Fenwick; e colocando cuidadosamente a voz num tom tão baixo quanto possível, começou assim.
"Nunca o encontrei antes do dia de hoje, Mr Fenwick. Mas já ouvi falar de si, ouvi falar de si ansiosamente, por uma senhora que o conhece muito bem. Quero eu dizer Miss Watkins."
Fenwick corou. Sua prima era filha de um armazenista de produtos italianos em Bishopsgate.
"Ela encontrou a felicidade, grande felicidade", continuou o pregador.
Fenwick, tomando isto como um cumprimento para ele próprio, assumiu ares um bocado tolos e, replicou: "Ela é boa rapariguinha, e digna de ser requestada por qualquer homem, não importa de que posição social. Mas não há nada decidido."
"Não falo da felicidade transitória, fornecida pelas vãs
78
delícias do mundo", disse Davis, com voz ameaçadora. "Falo da paz que passa toda a compreensão, a consciência de ser salvo. Mr Fenwick: o senhor está salvo? O senhor encontrou a paz? Ó Mr Fenwick, o que faz da sua alma, da sua preciosa, da sua imortal alma? Está pronto a encarar o grande dia de terror? Ó não endureça o coração, Mr Fenwick. Esse dia pode estar mais perto do que pensa. Os sinais dos tempos mostram que esse dia já está a chegar. Receberam-se ontem notícias da Rússia..."
"Desculpe-me por dois minutos, Mr Davis", disse Smith, escapulindo-se apressadamente.
"Toda essa história sobre a Rússia é parvoíce", observou Fenwick. "Porque é que o dia não chegou depois da guerra da Crimeia?"
"Não o quis a Divina Vontade."
"Pois bem, então porque o quereria a Divina Vontade antes agora do que então?"
"E quem é o senhor, Mr Fenwick, para poder julgar dos tempos e estações do Todo-Poderoso? Lembre-se de que é para seu bem, é no serviço ao qual eu indignamente me devotei, que lhe digo estas coisas. Não pense num verme como eu. Outrora fui tão grande pecador quanto o senhor é agora..."
"Alto lá com isso!" exclamou Mr Fenwick, em tom de advertência.
"Pois sim, e muito maior", continuou Davis. "Eu era o servidor do demónio. Passava a vida nos botequins. Jogava a laranjinha com os malvados, e nunca abria a boca sem chamar o terrível julgamento que teria certamente recaído sobre mim, se não houvesse sido arrancado ao pecado. Ainda fiz pior do que isso."
Mr Fenwick quis piscar o olho, mas não conseguiu.
"Mas por fim veio-me o chamamento, como a Saúl de Tarsos; e fui salvo do vale da Sombra da Morte. Abriram-se-me os olhos. Vi que pecador tinha sido. E senti que estava salvo, sim salvo, Mr Fenwick. Ó" gritou Davis, erguendo os braços, "que coisa maravilhosa é estar salvo! Ó que coisa abençoada é estar salvo! Saber que somos um dos eleitos! Ver o lugar preparado para nós ante o Trono! Ó que pensamento de alegria! Ó que feliz, que abençoado pensamento!"
79
"Calma, calma, meu velho", disse Fenwick. "O senhor ainda não está lá!"
"Tenho mais segurança disso de a que podem constituir todos os títulos do Banco de Inglaterra", retorquiu Davis. "Pense bem antes de rejeitar a certeza. Pode estar mais perto da morte do que pensa (Mr Fenwick empalideceu). Eu pareço tão forte quanto o senhor e não tenho dois anos de vida. Sei-o muito bem; mas sinto-me feliz com o pensamento. Pode dizer o mesmo?"
"Mas eu não tenho nada."
"Como sabe isso?" disse Davis. "Eu estava a falar a semana passada a um rapaz: homem alegre, forte, inchado do orgulho da saúde. Disse-lhe o que agora lhe digo a si. "Mandá-lo-ei chamar, Davis", diz-me ele, "quando me sentir mal. Ainda não posso suportar a religião," diz-me ele, "a minha constituição é boa demais para isso", mas a mão da Morte alcançou-o, apesar de tudo. Dois dias atrás, na ante-véspera de Natal, diz-lhe a irmã, "William", diz-lhe ela, "venha à reunião comigo esta noite, só por esta vez. Não lhe fará mal, e você não voltará lá, se não gostar." "Não"" diz ele: "ficarei danado antes de lá ir." E saiu de casa. Foi trazido uma hora depois sobre um taipal de pinho ordinário, Mr Fenwick, trazido morto do Aymarket (1), onde tinha tido uma congestão. Não pense que pode dizer que ainda viverá vinte anos. Não continue a dizer "ainda há tempo bastante." Você não sabe onde estará amanhã."
"Nem quero", disse Fenwick, abalado.
"Quer sim", disse o pregador. "Sabe que não pode vir a pior neste mundo, e que melhorará no outro. Livrar-se-á do medo do Inferno. Pense nisso, Mr Fenwick, pense no que é o Inferno! Já leu nas histórias acerca de pessoas que foram torturadas. Já leu alguma coisa sobre a roda que põe em pedaços, sobre os tomilhos que apertam até que o sangue rebenta das unhas dos polegares, sobre o assar a fogo lento, sobre o mergulho em azeite a ferver, e sobre as grelhas ardentes. O que são eles comparado com o que se deve sofrer no Inferno? Imagine-os mil vezes mais terríficos e uma pessoa a sofrer neles pelos séculos dos séculos. Pense nisso!
(1) N. do T.: Ver nota da página 70, sobre a queda dos hh na pronúncia de Mr Davis.
80
Nenhum fim, nem um momento de descanso, nenhuma esperança de jamais dele sair, nada senão choro e ranger de dentes por toda a eternidade. Eis o que é o Inferno, Mr Fenwick; e aí irá o senhor ter, tão certo como estar sentado nessa cadeira, se não se arrepender. Mas arrepender-se-á. O Senhor é misericordioso, Mr Fenwick. Ele quer chamá-lo para junto de Si: Ele anseia por tê-lo junto de Si. Ele gosta de ver as pessoas felizes e boas. Ele só odeia o pecado. O senhor vem connosco, acompanha-nos? Quer lavar-se até ficar mais branco do que a neve? Quer nascer de novo? Quer entrar para o rebanho como uma criancinha e descansar para sempre a sua carga?"
O pregador parou e abriu a boca para respirar. Fenwick, aterrorizado e privado da sua presença de espírito pelo embate com aquela natureza mais intensa, murmurou algumas palavras deprecatórias, e estendeu a mão para a garrafa.
"Não", disse Davis, interpondo-se: "não vá buscar força aí para endurecer o coração. Sinta-se agradecido por sentir os seus pecados e o seu perigo. E evite essa maldição, que o tem conduzido à impiedade mais do que qualquer outra coisa no mundo. Eu não necessito de outro estimulante senão a fé: porque precisará o senhor?"
Mr Fenwick ia replicar quando foi interrompido por um rumorejar de seda do lado de fora, seguido pela entrada de Mrs Froster, cujo dólman de seda preta e missangas, chapéu enfeitado, e vestido de moiro à antiga, indicavam a intenção de comer o jantar do Natal fora de casa. Miss Russell apareceu à porta, à espera da senhoria.
"Receio que julgará as minhas maneiras muito pouco polidas", disse Mrs Froster; "mas já tinha prometido passar a noite em Richmond. Que a minha saída o não incomode."
"Também me vou embora", replicou o pregador, olhando para o relógio. "Miss Russell vai consigo?"
"Vai", afirmou Mrs Froster. "Temos de tomar o comboio das cinco e meia".
"Se me permitir", disse Davis, "irei convosco até Kingscross. Vou para Emmersmith; e viajaremos parte do caminho juntos."
Esta proposta foi aprovada por Mrs Froster; e o pregador, tendo recebido de Fenwick a promessa de ir à reunião da sexta-feira seguinte, e de reflectir sobre a sua conversação
81
no entretanto, declarou-se pronto a partir. Miss Russell foi imediatamente para baixo; e Davis, depois de se deter para virar o engaste do anel para fora, pôr à vista os punhos, e lançar um olhar ao espelho, seguiu-as.
Mr Fenwick, deixado sozinho, escutou sem respirar até que a porta da rua se fechou. Pegou então na garrafa e chegou-a aos beiços, entornou meio pinto do seu conteúdo, metade no estômago, metade sobre o pescoço e o peito. Retido pelo som dos passos de Rosa ao subir as escadas, tomou um gole final, tornou a pôr a rolha de vidro à pressa e deixou a sala. Rosa passou por ele no patamar, e ficando informada do seu procedimento recente pelo forte cheiro a Marsala, calculou acertadamente que mais um copo poderia a são e salvo ser posto à conta dele. Este bebeu-o ela, por conseguinte, em honra do dia.
82
CAPÍTULO IV
Na manhã de sábado, Smith estava a comer o seu pequeno almoço, e a afastar a sombra de Figgis e Weaver, que pendia sobre aquela refeição, com o conteúdo dum jornal sustentado em frente dele pela leiteira, quando foi perturbado por uma pancada à porta.
"Entre!" rugiu Smith, e imediatamente Mrs Froster apareceu risonha, com uma ardósia na mão. Nesta ardósia estava registada a soma devida pela alimentação e pelo alojamento por Mr Smith à sua senhoria durante a semana finda, a primeira da sua estadia em Dodds Buildings. Olhou para o total, e pagou. Embora fosse guarda-livros experiente, poderia com igual facilidade ter agarrado Mrs Froster e valsado ao redor do quarto com ela, como adicionado os seus algarismos enquanto estava em pé junto dele. Este ajustamento de contas semanal era, na sua opinião, a maior provação dos seus sentimentos, sofrida por viver em quarto alugado; e com uma mulher como Mrs Froster, que parecia sempre pouco à vontade, a transacção era especialmente canhestra.
"Não se deve surpreender se a lavagem da roupa for mais do que isto para a semana", disse ela. "Sabe que trouxe quási todas as suas roupas limpas quando veio."
"Bem sei, certamente", disse Smith.
"O pão subiu um farthing", continuou a senhoria; "de modo que não se surpreenderá de que eu peça um xelim por três pães."
"De modo nenhum", disse Smith. "Sei que está perfeitamente bem."
Mrs Froster remancheou um bocado, e disse: "Já estive a pensar em ir até Richmond por uns quinze dias, por causa da minha saúde."
"Folgo muito em sabê-lo", disse Smith. "Quero dizer, espero que lhe faça bem."
"Virei uma vez ou outra ver como vai a casa; e Miss Russell ofereceu-se para ajudar Rosa a tomar conta
83
dela enquanto eu cá não estiver. Estou certa de que o senhor será bem servido; de modo que talvez não se importe de que eu esteja fora."
Smith, enquanto admirava um grau de conscienciosidade que a sua experiência de donas de casas de hóspedes de Londres não lhe tinha deixado prever, sentiu-se aliviado com a ideia da sua ausência. Exprimiu a sua aprovação pelo que fora dito, e a sua ansiosidade por que a saúde de Mrs Froster pudesse ficar assim restabelecida. Ela então informou-o de alguns dos sintomas de que sofria, e das doenças a que os atribuía principalmente.
À volta do escritório, à tarde, encontrou a casa deserta; como Rosa aparecesse umas três horas mais tarde a perguntar se ele tinha tocado a campainha, pois tinha saído havia já alguns minutos para ir ao lugar de hortaliça da esquina, ele concluiu que Mrs Froster já estava em Richmond.
Às oito horas encontrava-se sentado diante do fogo, a ler, quando uma carta, que lhe servia de marcador escorregou da página para a lareira. Curvou-se apressadamente para a apanhar. A carta estava mais baixa do que os seus pés, que descansavam sobre o guarda-fogo, e teve que mergulhar até que o seu rosto desapareceu entre os joelhos a fim de a alcançar. Consequentemente readquiriu a carta e perdeu simultaneamente um botão indispensável.
"Maldição!" disse ele, com arrependimento.
Tendo-se assim expressado, apanhou cuidadosamente o botão, apertou o cinto que se tornara a sua única segurança, e tocou a campainha. Aparentemente Rosa tinha voltado para o lugar de hortaliça, pois tocou em vão. Pensou em Miss Russell, e hesitou sobre se seria decente bater-lhe à porta do quarto, onde agora estava audivelmente a trabalhar na máquina de costura. Lembrando-se de que ela não tinha hesitado em visitá-lo quando necessitava de que lhe fizesse um favor, pensou que não ficaria ofendida se tomasse liberdade semelhante. E assim atravessou o patamar e bateu à porta do quarto traseiro. O barulho da máquina parou e a porta foi aberta pela modista que olhou para Smith com alguma surpresa.
"Peço-lhe perdão, Miss Russell", disse ele; "mas não consegui que Rosa respondesse à campainha e gostaria que
84
me emprestasse uma agulha e linha, se me pudesse fazer esse favor."
"Linha branca?" perguntou ela, pensando numa camisa.
"Não", disse ele, corando um pouco: "linha preta forte, se faz favor."
"Alguma coisa que eu lhe possa fazer, Mr Smith", disse ela com a natural compaixão da mulher pelo homem obrigado a lidar com a agulha como consequência da sua solidão.
"Não, obrigado", replicou ele apressadamente, "posso fazê-lo eu próprio."
Enquanto ela procurava os objectos pedidos, Smith, de pé no limiar, inspeccionava o quarto. Era mais longo do que o dele, e recebia luz de uma janela aberta na parede, em frente da porta. À direita, o canto estava oculto por um biombo coberto de baeta vermelha-escura, e uma cortina da mesma cor, formando, na verdade, um quarto de dormir separado. A mesa, que era grande, estava coberta de couro e tinha por baixo gavetas rasas. Evidentemente houvera sido feita para algum escritório. Perto estava uma máquina de costura aparelhada com uma premedeira e, entre as duas, a cadeira de que se tinha acabado de levantar a modista. O resto dos móveis consistia num espelho bastante grande para reflectir o corpo inteiro, um guarda-fato de mogno, uma escrevaninha pequena e três cadeiras de aparência muito mais agradável do que a situada diante da máquina de costura. A aparência geral do quarto surpreendeu Smith, pois não só continha bens que mal julgava ao alcance dos meios da proprietária, mas também era perfeitamente diferente do ninho de chita sem mácula e flores frescas que tinha preenchido o seu lugar na imaginação dele. Nada ali havia de carácter puramente ornamental, excepto a escrevaninha, que fora desenhada com alguma aspiração à boniteza, o lugar poderia ser o atelier dum costureiro que tivesse sobrevivido às ilusões da sua mocidade. Estava perfeitamente arrumado e limpo, a não ser a mesa, sobre a qual se viam uma saia do avesso, um ferro de engomar, um bocado de vela, duas tesouras, e uma desordem de retalhos de calicô, linho, e tiras de tecido semelhante ao do vestido, misturados com alfinetes, bocados de barbas de baleia, novelos, moldes de papel, e rolos de franjas.
"Receio estar a incomodá-la", disse Smith a desculpar-se,
85
quando viu a modista a abrir gavetas e mais gavetas sem encontrar linha preta.
"De modo nenhum. Se eu pudesse achar a linha de passajar que guardei noutro dia. Espero que o barulho da máquina não o irrite."
"Pelo contrário, gosto dele. Faz-me companhia." Esta era a maior mentira de que Smith se tornara culpado desde que se tinha desenvolvido nele o sentido moral. E contudo, subsequentemente, tornou-se bastante verdadeira.
"Passou uma tarde agradável em Richmond no dia de Natal?" disse ele.
"Já estava escuro quando lá chegámos. Jantámos e tomámos chá com a minha tia, e voltámos para casa."
Smith, tendo consciência da falta de entusiasmo pela sociedade da tia, por parte da modista, resolveu generalizar.
"Richmond é um lugar muito bonito", notou ele.
"É bonito para a Inglaterra."
"Porquê? Não gosta do cenário inglês?"
"Tudo o que dele tenho visto são só campos relvados, árvores e um canal."
"Deve parecer fraco depois dos terrenos estéreis da Escócia."
"Nunca esteve na Escócia?"
"Não."
"Oh!" disse Miss Russell, sobriamente, tornando à sua busca, que a conversação acima tinha interrompido.
"Confesso que as minhas ideias da Escócia estão misturadas com Rob Roy e a Cruz de Fogo e outras coisas que tais", disse Smith. "Os Londrinos possuem geralmente noções muito ridículas de outros países."
"Quási tão ridículas como as que eles têm do seu próprio", disse Miss Russell. "Precisa de uma agulha?"
"Se faz favor, Miss Russell. Muito obrigado."
O barulho da máquina de costura recomeçou quando ele voltou ao quarto. Sentado a ouvi-lo, lembrou-se de que ela tinha parecido surpreendida quando abrira a porta. Pensava, evidentemente que a sua visita tinha sido de mau gosto. E mais: que conversação tão insípida a dele. Não fizera uma só observação que pudesse ter levado a um entendimento. Interrogara-a acerca de uma reunião de família com a qual nada tinha. Havia chamado ao seu país natal "estéril".
86
Agora que pensava nisso, era o termo mais compreensivamente desdenhoso que podia ter empregado. Tinha-a perturbado no seu trabalho. Parecera pouco à vontade enquanto estava de pé no limiar da porta. Tirou-se destas reflexões com um suspiro; fechou a porta à chave cuidadosamente; despiu a peça de vestuário avariada; e sentou-se em frente do lume para a consertar.
Pouco depois, um tumulto de violento remexer de fogo, bater de portas, raspar de panelas, e picar de salsa lá em baixo provou que Rosa estava em casa, e ansiosa por provar que ninguém deveria suspeitar de que aí não estivesse. A máquina de Miss Russell parou; e a sua campainha soou. A prática tinha afinado o ouvido de Rosa a tal ponto, que podia vulgarmente distinguir com toda a certeza se um dado chamamento era o primeiro toque de simples pedido, o segundo de impaciência, o terceiro de reprimenda ou o quarto de indignação, devendo ser seguido por um berro de zanga por sobre os balaústres. Mas a campainha de Miss Russell era sempre tocada quietamente, e embora Rosa lhe percebesse no tom qualquer coisa de agoirento, duvidou se não seria simplesmente o eco da sua própria consciência, ou antes daquela relutância em se deixar apanhar que lhe servia de consciência. Agiu imediatamente e com decisão. Um olhar para o espelhinho convenceu-a de que a sua aparência era demais correcta para uma criada de todo o serviço diligente. Agarrou num avental muito sujo, que tinha feito serviço durante dois dias como esfregão; e atou-o sobre si. A seguir, arregaçou os punhos, enrolou as mangas até aos cotovelos, e mergulhou as mãos numa mistura de água suja, gordura e folhas de chá, que se encontrava convenientemente em cima da mesa. Por fim, despenteou o cabelo que trazia muito bem escovado acima da testa, esfregou três dedos primeiro na cafeteira, e a seguir na cara, e correu ao andar de cima.
"Então, menina?" disse Rosa, pegando no puxador da porta com uma ponta do avental a fim de o salvar da contaminação.
"Rosa", disse Miss Russell, "você esteve fora durante esta última hora e passou toda a tarde na rua."
Rosa empertigou-se e deixou o puxador da porta.
"Pela minha saúde, menina," disse ela, "náo fui à rua
87
nem uma vez durante todo o dia, a não ser para comprar a hortaliça do jantar de Mr Fenwick."
"Mr Smith, que precisava muito de qualquer coisa, teve que ma vir pedir", continuou Miss Russell; "e eu não gosto de ter de ver os senhores vir ao meu quarto quando tenho que fazer - ou em qualquer outra ocasião."
"Custa muito a atender a gente naquele lugar", disse Rosa; "e eu tive que os atenazar todo o dia para poder trazer as coisas."
"Mrs Froster disse aos senhores antes de se ir embora que eu olharia pela casa", disse Miss Russell. "Se a casa não estiver em ordem e as campainhadas não obtiverem resposta a tempo, Mrs Froster terá de voltar. Acabou-se."
A língua de Rosa faltou-lhe quando tentou responder; carmesim de rebelião muda, deixou o quarto, fechando a porta com o ruído abrupto da má-criação, em vez do baque cortante da raiva com que costumava acabar as suas altercações com Mrs Froster.
"Consigo não se brinca," resmungou ela, enquanto descia, "você é boa, é."
De caminho ocorreu-lhe que se poderia expandir verificando se Mr Smith tinha, na verdade, querido qualquer coisa, repetindo-lhe o conto do lugar da hortaliça. De modo que voltou e bateu à porta dele. Um barulho de arrumação, acompanhado pelas palavras "um momento", sugeriu-lhe que Mr Smith não estava preparado para receber visitantes.
"Não faz mal. Pensei que o senhor tinha tocado a campainha", disse Rosa tranquilizante, e voltou para a cozinha.
No domingo à tarde, Fraser Fenwick vestiu-se com especial cuidado. Depois de examinar uma sobrecasaca preta pouco decente, e um colete feito da pele de qualquer animal que, quando vivo, aparentemente sofrera de sarna, tornou a pendurá-los devagar e deu às suas roupas do comum uma escovadela em regra. Um bocado de camurça e zarcão de joalheiro emprestaram novo brilho aos seus anéis, alfinete de gravata e cadeia de relógio; e uma aplicação liberal de sabão e de brilhantina prestou o mesmo serviço à parte visível dele próprio. Depois de vestir peitilho, colarinho e punhos limpos, durante um momento pareceu quási decente. Ao fim desse momento, vestiu sobretudo
88
cuja gola de peles parecia ter sido infectada pelo colete de foca, e o par de luvas em pele de cão, cujo estado dizia a má situação do proprietário. Quanto ao chapéu, tinha servido tantas vezes de travesseiro ao ar livre, durante os seus intervalos de etilismo, que, embora na tarde da véspera tivesse pago seis dinheiros ao chapeleiro para o passar a ferro, o resto das suas vestes parecia decente comparado com ele.
O primeiro objecto que atraiu a atenção de Fenwick ao deixar a casa, foi a cara do pregador Davis, à vista do qual, se retirou para o vestíbulo e resolveu negar a sua presença em caso de visita. Davis, contudo, não deixou a rua, mas atravessou a arcada andando vagarosamente, e olhando de modo interrogativo para o pátio sem virar a cabeça. Ele também se tinha vestido com pretensão pouco usual e trazia um fraque de velvetina cor de bronze. E para evitar estragar-lhe a simetria, trazia a Bíblia na mão em vez de na algibeira. O livro parecia concordar pouco com os seus olhos e madeixas escuros, o seu chapéu de feltro de abas largas e o seu fato, como de um artista que fosse à Igreja. Mr Fenwick espreitou o casaco de velvetina até que desapareceu ao virar do canto, e então precipitou-se na direcção oposta. Depois dum estirão apressado ao longo da City Road, Mr Fenwick chegou a Bishopsgate Street Without, e bateu à porta da loja que tinha por cima das montras tapadas a inscrição:
ARMAZÉM DE PRODUTOS ITALIANOS DE P. WATKINS
"Mr Watkins está?" disse Fenwick à criada.
"Não está, não. Miss Fanny está sentada sozinha na sala."
Mr Fenwick pôs o chapéu e o sobretudo sobre uma cadeira; subiu as escadas com alacridade; e bateu à porta da sala. Foi imediatamente convidado a entrar, e, ao fazê-lo, descobriu Miss Watkins sentada junto do fogo, vestida com um simples fato preto, lendo The Leisure Hour.
"Viva, Fan! Como vai isso?" exclamou Mr Fenwick com animação tentando roubar um beijo. "Que é que tem?" acrescentou, mais sobriamente, pois Miss Watkins repeliu-o e sentou-se lutando evidentemente com a vontade de chorar.
"Gostaria que não falasse comigo assim, Fraser."
89
"Assim como?" disse Fraser, esmorecendo.
"Desse modo desagradável, espevitado, ordinário que você, quer assumir."
À palavra ordinário, Mr Fenwick corou, e pareceu rebuscar uma resposta. Não encontrando nenhuma, virou-se para a porta com um movimento expressivo de mortificação e ressentimento. Miss Watkins perdeu a respiração; mordeu o lábio; e olhou em frente para as suas lágrimas.
"Vou-me embora", disse Fenwick. "Julgo que seria tão fácil dizer-me imediatamente que não me queriam cá!"
"Você sabe muito bem que eu nunca pensei tal coisa."
"É claro que não. Contudo, já que não está acostumada aos modos dos homens da sociedade, talvez seja natural que prefira sujeitos de Whitechapel, ou então aquele barqueiro do canal de Stratford, todo pimpão de quem você estava provavelmente à espera quando eu fui bastante tolo para entrar."
"Penso que isso é a coisa mais mesquinha que poderia dizer", disse Miss Watkins dando um salto e encarando-o. "Se Mr Hickson não é um homem da sociedade, fala sempre comigo como se eu fosse uma senhora."
"Ah, sim? Gostaria de saber onde é que ele aprendeu a falar com senhoras."
"E eu gostaria de saber onde você aprendeu a falar com mulheres."
Mr Fenwick, assim vigorosamente atacado, mudou de terreno. "Você parece estar bastante zangada", disse ele. "Eu supunha que tínhamos acabado com isso na reunião de sexta-feira".
"Pois sim", disse Miss Watkins amargamente, cedendo de novo às suas lágrimas. "Quando me fui embora você negou aos Peterses que eu fosse sua prima, e depois acompanhou a casa uma das caixeiras de Miss Mancini."
"Ela pediu-me que a acompanhasse; que podia eu fazer?" disse Fenwick, confundido por estas acusações.
"Você disse-lhe que era capitão."
"Eu não. Se ela disse isso, é porque é mentirosa."
"Como pode dizer isso? Sabe muito bem que o disse. Você está sempre a querer passar por oficial do exército."
"Eu disse-o simplesmente por brincadeira. Além de que
90
se essa gente é bastante pedante para julgar um oficial coisa melhor do que qualquer outra pessoa, a culpa é minha?"
Miss Watkins não condescendeu em dar resposta. Virou-lhe as costas, e sentou-se em silêncio.
"Julgo que é melhor ir-me embora", disse ele, resumidamente. "Não pensava que você fosse dessa espécie."
"É muito pouco amável. Não me importa que se vá embora ou não. Se for, não precisa voltar", disse ela, mas imediatamente escondeu a cabeça nas mãos e soluçou. Mr Fenwick hesitou, incerto se devia obedecer ao seu orgulho que clamava por uma retirada com dignidade, ou à sua prudência que lhe sugeria ser melhor tentar desfazer o mau efeito das suas indiscrições da sexta-feira última. Enquanto hesitava, ouviu-se o som duma chave de trinco em baixo, seguido pelo aparecimento de Mr e Mrs Watkins, que saudaram Mr Fenwick com polidez sarcástica.
"Que honra, senhor capitão Fenwick", disse o dono da casa.
"Que bondade da sua parte lembrar-se dos seus parentes pobres ao domingo", disse Mrs Watkins; "embora, é claro, não se possa esperar que conheça toda a gente aos dias de semana, especialmente às sextas-feiras."
"E não parece muito orgulhoso com isso", disse Mr Watkins. "É aquilo de que eu gosto a seu respeito."
"Deixe-o em paz, pai", disse Miss Fanny, comovida pelo aborrecimento e humilhação do namorado. "Ele vai pensar que o senhor está a falar sério se não se cala." Aqui murmurou qualquer coisa à mãe. "O quê?" bradou Miss Watkins. "Convidar um oficial para tomar chá! Não ouso fazê-lo."
"O senhor geralmente bebe champanhe nos Guardas Montados, não é?" inquiriu Mr Watkins.
Mr Fenwick murmurou uma imprecação inarticulada, e saiu do quarto, fazendo tinir as janelas com o modo por que bateu a porta e desceu as escadas. Mrs Watkins riu tão alto quanto pôde; o marido, descontente consigo próprio por ter levado a brincadeira tão longe e irritado com a violência de Fenwick, ficou hesitante, afectando indiferença; e Fanny, não ligando ao pedido cheio de desprezo de sua mãe para que não fosse tola, correu ao andar de baixo,
91
onde encontrou Fenwick puxando com violência o sobretudo para cima dos ombros.
"Ande daí Fraser", disse ela. "O pai não estava a falar sério. Você sabe que ele estava a brincar." Fenwick não replicou. "Não se vá embora assim", continuou ela agarrando-lhe o braço.
Mr Fenwick soltou-se com um repelão, e saiu para Bishopsgate Street. Miss Watkins observou por um momento a silhueta que se afastava, com cara desapontada, fez um esforço convulsivo como que para engolir o queixo, e foi chorar para o quarto.
"Maldita cambada de patifes", repetia Fenwick a si próprio várias vezes, enquanto voltava apressadamente para Islington. Quando chegou defronte de Dodds Buildings recuou no momento de atravessar a rua, porque viu a luz da lâmpada da arcada reflectida pelo casaco de velvetina cor de bronze de Davis.
O pregador, cuja palidez habitual estava aumentada pela fadiga, passava de novo vagarosamente pela arcada, além da qual deitava olhares furtivos como antes. Foi-se então embora depressa, e, depois de olhar para trás uma ou duas vezes em direcção à lâmpada, virou para uma travessa e desapareceu aos olhos de Fenwick cuja curiosidade foi excitada pela suspeita de que o pregador tinha estado a vaguear na vizinhança durante a última hora. Um polícia que se mantinha parado em frente desta travessa, voltou agora vagarosamente à sua ronda. Parou junto de Mr Fenwick, e, sem lhe pedir que seguisse, tornou-o tão inconfortável que este o fez alegremente por sua própria iniciativa. O polícia contornou então Dodds Buildings com a lanterna, e voltou até ao arco, dentro do qual se postou, invisível aos transeuntes até chegarem junto dele. Esta manobra foi notada por Fenwick, cuja curiosidade se reforçou por um sentimento de apreensão, pois tinha medo de ladrões, como muita gente que não tem nada que valha a pena roubar. A seguir viu o casaco de velvetina surgir de uma travessa paralela à acima mencionada, e ligada com ela por uma estrada que passava além dos fundos de Dodds Buildings. Davis tinha evidentemente feito um circuito com o objectivo de passar outra vez pela arcada. Aproximou-se rapidamente, mas, quando a umas poucas de jardas de distância,
92
afrouxou o passo, e por fim parou perto dela, inconsciente do olhar estúpido do polícia. Davis entrou então, cautelosamente, para o pátio e contemplou as janelas da casa de Mrs Froster. O polícia olhava-o cheio de dúvida; pois a sua expressão, embora fatigada e até tresloucada, era mais sentimental do que larápia; e é pouco usual que ladrões de casas vão trabalhar de Bíblia na mão e envergando casacos, de velvetina bronzeada. Depois de estar no pátio mais de um minuto, o pregador, perturbado pela abertura de uma janela, retirou-se apressadamente, e, como o fizesse, ficou muito desconcertado pelo dardejar súbito de uma lanterna nos olhos. Continuou contudo a marcha e afastou-se rapidamente. O polícia, em quem a presunção produzida por muitos anos de proeminência pública dentro do uniforme tinha engendrado gosto por tais efeitos teatrais, fechou a lanterna, e seguiu vagarosamente na mesma direcção.
Por este tempo, Miss Russell, que tinha estado a passar o domingo em Richmond, deixou o comboio em Kings. Cross, e encaminhou-se a pé para casa. Pois não possuía nem carruagem, nem criado ou criada, nem mesmo um cão para a acompanhar; e, por conseguinte, assim como algumas cem mil outras raparigas da classe trabalhadora em situação semelhante, estava acostumada a dirigir-se sozinha através de Londres a todas as horas e estações.
Nesta ocasião, havia atravessado Pentonville Road por alguma distância, quando percebeu que um homem, que se tinha estado a aproximar dela a toda a pressa, hesitava de súbito e aparentemente considerava se deveria avançar ou voltar. Como tentasse ultrapassá-lo, ele estremeceu, e dirigiu-se-lhe pelo nome. Ela cumprimentou-o em resposta.
"Vai deixar-me acompanhá-la a casa a salvamento. Tem de me deixar, Miss Russell", disse ele acompanhando-a. Arquejou e acrescentou: "chegou tão junto a mim, que me assustou e no momento mesmo em que pensava em si."
"Não precisa sair do seu caminho por minha causa",, replicou Miss Russell, "tanto me faz ir sozinha."
"Ai não! Não é fora do meu caminho!" disse o pregador. "Fui fazer uma visita a Mrs Froster esta tarde, mas soube que tinha ido até ao campo passar uns dias. Espera
93
que voltará melhor de saúde". Miss Russell acenou com a cabeça, e continuou a andar com a mesma velocidade.
"Eu próprio gosto muito do campo", continuou Davis; "mas calham-me poucas oportunidades de o ver. Não tenho razão de queixa. Graças a Deus estou bem de dinheiro, pois sou o mestre dum dos maiores fabricantes de móveis da Inglaterra. Na verdade ganho tanto que não sei o que faça do dinheiro. Minhas irmãs estão bem colocadas; e só me tenho a mim para sustentar."
"Tem muita sorte", disse a modista que não se interessava pelos negócios de Mr Davis, mas sempre podia compartilhar da alegria causada pela prosperidade material.
"E afinal para que me serve isso?" disse Davis. "Sou um homem só."
Miss Russell olhou para a cara dele, e começou a andar mais depressa.
"Deve achar ocupação nas suas prédicas", notou ela.
"Se não fosse isso, não saberia que fazer", disse ele. "Pensam muito bem de mim como pregador. Tenho-me tornado mais respeitado do que muitos pastores de sobrepeliz. Tenho, talvez, trazido mais homens fortes ao Senhor do que o próprio grande arcebispo de Cantuária, com todo o seu orgulho. Mas sinto e sei, que o homem não se deve conservar solitário. No porto da minha popularidade, sinto que estou sozinho. Há homens que pensam rir de mim porque não me envergonho do Evangelho. Mas posso dizer-lhe, Miss Russell, que tenho estado em casa deles e de outros que tais; e sei como tratam as mulheres, e escondem aos filhos o que despendem no botequim e no campo de corridas. Julgo que poderia tornar a mulher que eu amasse..."
"Boa noite, muito obrigada, Mr Davis", disse Miss Russell, interrompendo-o com pouca cerimónia, logo que chegaram à arcada.
"Boa noite", ecoou Davis, tornado irresoluto por este refrear súbito. E como ela se fosse embora, avançou em passo apressado e disse com grande diligência:
"Miss Russell, espere um momento. Só um momento. Quero falar-lhe sobre um assunto muito sério."
"Sabe muito bem, Mr Davis", disse a modista, encarando-o com a sua graça e segurança singulares, "que as
94
nossas opiniões sobre assuntos sérios não são as mesmas. Boa noite."
O pregador, envergonhado e sem respiração, ficou desnorteado, enquanto ela entrou no pátio, como se tivesse presumido qualquer coisa e sido repreendido. Então, sentindo-se fraco, encostou-se ao poste de iluminação, lutou com um ataque de tosse e, pela primeira vez na vida, ficou aterrorizado com o prospecto daquilo que a tosse significava.
Na manhã seguinte, Mr Fenwick recebeu a carta abaixo:
"Domingo à noite
Fraser - Fiquei muito aflita quando se foi embora esta noite tão zangado e espero que não ficasse ofendido. Não perdeu muito em se ir embora, pois Mr Davis, que ia passar a tarde connosco mandou recado que estava doente e que não podia sair de casa. Todas as pessoas na reunião ficaram muito desapontadas, pois Mr Davis nunca falta e receámos que fosse qualquer coisa de sério. Vamos ter algumas visitas para o chá no sábado que vem e minha mãe ficará contente se você vier. Não tenho mais a acrescentar, excepto que espero que não será tão pouco razoável até ao ponto de tomar a sério o que se passou ontem. Sou sempre, caro Fraser, sua prima afectuosa
Fanny."
95
CAPÍTULO V
Na tarde seguinte, pouco antes das seis horas, Mr Weaver teve ocasião de consultar a conta dum dos livros-mestres onde era dever de Smith fazer lançamentos, tirar provas, ratear e dar balanços. Tendo encontrado o que procurava, fechou-o com evidente prazer, no esforço requerido para tal fazer bateu-lhe com o punho e disse.
"Um livro manejável, han, Smith? Edição de algibeira."
Este era um dos gracejos que Mr Weaver repetia todas as vezes que vinha de bom humor à carteira do guarda-livros.
"Que miserável sicofante eu sou", pensou Smith. "Tenho de rir." E riu.
"Conheci uma vez um homem que valia um milhão", disse Mr Weaver reflectidamente, "que começou a vida com vinte cinco libras e dez xelins. Encontrava-se um dia na Bolsa do Trigo, quando ouviu dois sujeitos a discutir sobre certo carregamento de granza. Um ofereceu ao outro vinte e quatro guinéus, mas pediam vinte cinco libras e dez xelins. Este homem de que falo sabia tanto acerca de granza como o homem da Lua. Nunca tinha ouvido falar naquele produto. Mas calculou que valia vinte cinco libras e quatro xelins e que não podia ser muito cara por mais seis. Dirigiu-se ao sujeito e comprou a granza, que se revelou como sendo uma espécie de vegetal para fazer tinta vermelha, como a cochinilha, e, no dia seguinte, vendeu-a por trinta libras. Muitas vezes comprou e vendeu coisas que nunca vira ou nunca soubera o que eram; mas a granza lançou-o. Como disse, ele fez um milhão, e nunca fez lançamentos na vida. Guardava as contas numa algibeira e os recibos na outra. Isso não lhe serviria, pois não, Smith?"
"Afinal de contas", disse Smith, impressionado com a simplicidade do negócio, "ele não teria nem mais um dinheiro no fim do ano se fizesse os lançamentos mais correctamente."
"Não, mas o seu guarda-livros tê-lo-ia", disse Weaver.
96
E deixou o escritório com o espírito divertido por ter sido mais esperto que o seu jovem escriturário, de quem os colegas riram alto até que a porta se fechou atrás de Mr Weaver, e então tornaram-se sérios.
"Muito bem", disse um dos mais antigos a Smith, "você tem coragem para falar assim ao velho Weaver."
"Ora! Não me ralo nadai" disse Smith, guardando os livros no cofre. "Parece que o homem é o bezerro de oiro. Quem me dera a mim que ele tivesse a metade do senso comum do homem da granza."
"Gostaria de saber", disse Smith a si próprio, enquanto caminhava para casa, "se há alguma profissão no Mundo tão desprezível como a do empregado de escritório! Não oferece ao mais inteligente dos homens abalho nenhum que o mais estúpido não possa fazer tão bem, ou talvez melhor, como ele. Enquanto houver quantidades de criaturas que nada mais podem fazer além de ler e escrever, haverá quantidades de empregados competentes. Aqui estou eu a passar a minha vida fazendo entradas, cada milhar das quais nunca mais será consultado, por cada uma que o for; e mesmo se essa não aparecer, o mundo não deixará de rodar. Aqui está Weaver, com o exemplo do homem da granza a mostrar-lhe o idiota que ele é, por gastar deliberadamente quási mil libras por ano com o quadro de escriturários. Poderia substituir-nos pegando em sujeitos à toa na rua, se o desgostássemos por mostrarmos o mais ligeiro respeito por nós próprios; naturalmente nós somos uma miserável e servil matilha de cães. Penso até que arranjaria coisa melhor se experimentasse a rua. Mas como ele é prego velho já muito martelado pelas convenções, que nada pode fazer senão for da maneira usual, pede informações e experiência. Pensar num homem com conhecimento do mundo por três semanas e que liga alguma a informações! Senão vejamos: logo o primeiro caixa que ele teve possuía um testemunho de honestidade de treze anos, e cerca de três milhões haviam passado pelas suas mãos durante aquele tempo. Desapareceu com doze libras, dois xelins e seis dinheiros, a renda de trimestre da sua casa. O velho Simms, novo guarda-livros-chefe, guardara livros numa companhia de seguros por trinta e seis anos; e Figgis atirou-se a ele como ao tesoiro dos guarda-livros-chefes. E ele geralmente
97
tem que me perguntar de que lado deve lançar as entradas, e conta-me como é que Mr Beauchamps, secretário da companhia de seguros, costumava guardar os seus livros. Não há um só empregado no escritório a quem se não possa confiar a redacção de qualquer carta; e se houvesse, o velho Figgis desdenharia dele e alterar-lhe-ia as cartas por princípio. Como somos empregados de escritório, somos todos homens-bem. Um agulheiro de caminhos de ferro, que é obrigado a possuir alguma capacidade de agir sob a sua própria responsabilidade, não é homem-bem. Nem o é um cocheiro, que tem de ser piloto habilidoso. Canalizadores e carpinteiros que fazem coisas cujo trabalho dá azo a qualquer habilidade que possuam, são sujeitos ordinários. Não creio que os artistas fossem recebidos na boa sociedade se pudessem passar sem eles. Eu preferiria ser o mais humilde dos operários do que um empregado de escritório, senão fosse ficar sob a pata dum sindicato. Se aquele abominável escritório e todos os livros, tapetes, empregados e sócios fossem reduzidos a cinzas esta noite, eu contemplaria as ruínas amanhã de manhã com a mais viva satisfação."
Smith sorriu da sua própria loucura, e recaiu naquele anseio penoso que os homens alimentam melancolicamente aos dezoito anos, e por sistema mandam embora como incomodativo nos anos mais maduros por meio de excitamentos ou ocupações.
Quando chegou a casa, percebeu, enquanto atravessava o vestíbulo, que a porta da casa de estar de Mrs Froster estava aberta. Miss Russell saiu dela, e disse: "Boa tarde, Mr Smith."
"Boa tarde", disse Smith, batendo contra a prateleira móvel pendurada na parede.
"Mr Smith", disse a modista, "falava a sério quando se ofereceu para me ajudar a aprender francês?" "Perfeitamente", replicou Smith.
"Quando poderá começar?" disse ela, um pouco embaraçada.
"Quando quiser. Agora se o desejar", disse Smith, pondo o chapéu na prateleira.
"Estava a pensar", disse Miss Russell, "se pudesse dispensar o tempo depois do chá, poderia descer até aqui e ensinar-me os rudimentos."
98
Smith consentiu, e, enquanto subia as escadas, esqueceu o emprego de escritório e o descontentamento. No quarto dançou e fez caretas ao espelho; era este o seu método usual de exprimir contentamento. Quando se acalmou, melhorou a sua aparência tanto quanto pôde, sem tornar a tentativa óbvia; tocou para pedir chá; e, enquanto esperava, escolheu o Carlos XII de Voltaire da sua biblioteca como volume apropriado para ensinar os rudimentos a Miss Russell. Depois de acabar a sua refeição da tarde, julgou melhor não descer imediatamente, não fosse o seu reaparecimento parecer precipitado. Por conseguinte, deixou passar um intervalo, durante o qual ficou cada vez mais nervoso. De tal modo que tremia quando desceu as escadas. E bateu à da sala de estar com pouca firmeza nos nós dos dedos.
"Entre", disse Miss Russell.
A sala de estar de Mrs Froster tinha sido mobilada antigamente do mesmo modo que a sala de honra do andar de cima. Parecia uma sala de visitas posta de parte sem os enfeites. Miss Russell estava sentada junto da mesa, sobre a qual estavam a sua caixa de costura e o recentemente adquirido Método de aprender num mês a língua francesa sem mestre. Smith pegou neste livro cheio de confiança; pois, embora o seu conhecimento de francês só fosse tão correcto quanto é costume, algumas oportunidades de falá-lo que tivera na meninice deram-lhe certa facilidade em o manejar, inatingível pelo estudo livresco. A modista olhava para ele com respeito enquanto ele virava as folhas.
"Olhou para isto?" disse Smith, assumindo inconscientemente um ar magistral.
"Aprendi as duas primeiras lições", replicou Miss Russell, impedindo-se resolutamente de corar; "mas julgo que não o fiz perfeitamente bem, parecem-me tão fáceis."
Smith imediatamente propôs "o chapéu do alfaiate, e o do vizinho." A resposta dela fê-lo dar um pulo. traduziu correctamente; mas com excepção da palavra "chapéu" que lhe era profissionalmente familiar, verteu as palavras como se estivessem escritas foneticamente em inglês, Smith repetiu a frase ele próprio, a servir de guia.
"Isso tem som muito afectado", disse ela, cheia de dúvida."
"Pois bem, é claro que é uma afectação falar com
99
acento estrangeiro, e suponho que é a consciência disto que torna a maioria das pessoas tão acanhadas ao fazê-lo", disse Smith. "Torne a experimentar."
Miss Russell experimentou de novo, e desta vez pronunciou a frase em puro escocês. E embora, tendo bom ouvido, a modista progredisse depressa, ele notou que quando a sua discípula falava inglês, o qual se tinha acostumado a pronunciar cuidadosamente, pouco havia que a distinguisse dum natural, mas quando falava francês tornava-se escocesa sem confusão possível. A sua memória parecia a princípio tão contraditória que Smith estava abismado pelos seus caprichos. Compreendia tanto menos que se tinha educado a si próprio quásí inteiramente pela leitura, enquanto ela estava tão pouco acostumada a livros que o processo de decifrar a escrita ainda lhe era consciente. Quando, por fim, Smith viu esta diferença claramente, compreendeu que a inconsistência aparente da sua faculdade aquisitiva era devida a isto, tanto quanto se lembrava perfeitamente de tudo que lhe dizia, e esquecia tudo o que lia. Viu que depressa aprendia explicações isoladas, e permanecia impenetravelmente estúpida quando tentava fazê-la ver analogias na construção da linguagem, que ele tinha gosto pedante em evidenciar.
A primeira lição foi necessariamente breve. Depois de ter recitado os dois exercícios, disse ela:
"Falarei algum dia francês tão bem como uma francesa?"-
"Nunca, se não viver bastante tempo na França para esquecer a sua própria língua", disse Smith; "e então falará provavelmente melhor francês que os naturais. Pelo menos se não o fizer, os Franceses devem falar a sua própria língua melhor que os Ingleses a deles."
"Mas quando eu souber estas regras e verbos de que fala, que mais terei a fazer?"
"Somente aprender a língua. As regras só dão ideia de como empregar a língua quando a gente a sabe. Eu sei muito mais sobre a língua do que sobre as regras."
"E o que é que se chama a língua então?"
"Ora, saber como se diz em francês cão, gato, sim e não, isto é conhecer a língua. Nisso está a verdadeira dificuldade afinal de contas."
Miss Russell começou a ter dúvidas sobre a sensatez de se ralar com línguas estrangeiras, mas não disse nada. Pensou
100
que gostaria de renunciar ao francês como sem utilidade depois de o ter aprendido; mas fazê-lo no presente seria bater em retirada, e, por conseguinte, coisa ignominiosa.
"O francês", disse ela, "é de grande utilidade para uma modista."
"Gosta de fazer vestidos?" perguntou Smith, desejando descobrir quanto ela possuía o sentimento artístico do seu trabalho.
"Sou modista", replicou ela. "Julgava que o senhor sabia isso."
"Pois sabia", disse ele; "mas..." Sentindo que a explicação seria empresa desesperada, acrescentou, "por isso não, pois sou empregado de escritório e não gosto da profissão."
"Então porque não faz outra coisa qualquer?"
"Não sei. Suponho que é porque não estou apto para coisa melhor."
"Não poderia ensinar numa escola?""Fazê-lo, é quási que o dom mais raro do mundo," disse ele. Isto pareceu tão espantoso à modista, que começou a duvidar da sanidade do espírito do seu perceptor.
"É perder tempo estarmos a discutir os nossos negócios comesinhos", disse ela, gravemente. "O que há de mais feliz na vida é nunca nos sentirmos tão confortáveis que não esperemos qualquer melhoria."
"Eis uma reflexão filosófica demais para ser feita por uma rapariga," disse Smith.
"Era o que meu pai sempre dizia quando alguém não estava contente."
A conversação ameaçava agora suspender-se; e Smith sentiu que era aconselhável retirar-se.
"Como combinaremos as lições futuras, Miss Russell?" disse ele. "Estou livre depois das sete todas as tardes."
"Mrs Froster sai geralmente às segundas e quintas", disse ela; "de modo que podemos estar nesta sala à tarde."
"Gostaria de saber se ela se importa", disse Smith, que tinha dúvidas acerca da decência destas entrevistas sob o ponto de vista convencional.
"Falei-lhe acerca disso", disse Miss Russel; "e está até contente por me ir instruir, particularmente porque o senhor
101
é amigo de Mr Davis, que ela julga um dos melhores homens do Mundo."
"Pode ser que seja", disse Smith; "mas encontrei-o acidentalmente na véspera de Natal pela primeira vez na minha vida, e nunca mais o vi desde então."
"Mrs Froster está satisfeita com a combinação, de qualquer modo. Talvez o senhor não quisesse assim?"
"De modo algum", disse Smith apressadamente. "Será para mim um grande prazer."
"Então se quiser ter esse incómodo, daremos outra lição na quinta-feira."
"Pois bem, na quinta-feira?" concordou Smith, e voltou ao seu quarto.
"Não há dúvida", disse ele, enquanto espevitava o fogo,, "aquilo é a mulher mais insensível que eu já vi. Não deve ter alma. Bastava que tivesse consciência da sua graciosidade inexplicável, e seria a poesia personificada."
Daí em diante a convivência de Smith com a modista tornou-se assídua e familiar e depressa começou a afectá-lo de diversos modos. Tornou o seu isolamento ainda mais completo porque lhe retirou as razões de desejar companhia. Ela era a única pessoa que conhecia em Londres; pois ele representava diante dos seus colegas de escritório um papel que não acreditava ser uma verdadeira interpretação de si próprio; e estava satisfeito com esta única amizade, a ponto de impedir-se de contrair quaisquer interesses novos. A necessidade de recapitular os seus conhecimentos como o professor vivificava os fragmentos de saber que lhe tinham sido mecanicamente inculcados na escola; e as explicações que se sentia obrigado a oferecer à aluna (que raras vezes pedia por elas) levavam-no a arrumar os bocados de ciência que tinha adquirido durante muita leitura inconstante, e suprir as ligações que faltavam por pesquisas novas. Além disso, começou a adquirir uma intrevisão da natureza humana, subtil, se não imparcial; pois tinha-a constantemente diante de si nos seus aspectos extremos: na Mulher, que considerava como o passo visível entre a humanidade selvagem e a intelectual, e no Homem quando aparece incorpóreo no produto dos seus mais altos poderes. Smith ensinava a modista, e lia Ruskin, MIll, e os poetas. Depressa se tornou intolerante em tudo que não atingisse
102
o seu mais alto ideal de beleza e poder. Contraiu preconceitos contra todos os trabalhos que não tinham sobrevivido a alguma época passada; abandonou Byron, de cuja poesia tinha gostado, e substituiu-lhe Shelley; recusou-se a apreciar o que era mero entretenimento e de concepção bonita; e só lia o jornal quando se achava no restaurante sem alternativa entre fazer isto e nada fazer. Planeou uma religião austera para o culto da Verdade; e tentou tornar-se vegetariano, o que foi frustrado dentro de três dias pela inabilidade de Rosa em variar o regime de couve cozida. Acreditava quando um reformador apontava abusos e tornava-se céptico quando um conservador defendia instituições. Adoptou vistas fortes acerca da inferioridade natural do sexo feminino, e manteve que as mulheres eram destituídas de curiosidade científica, capazes de aprender que A era igual a B e que C era também igual a B, mas incapazes de daí deduzir que A era igual a C, incorrigivelmente pessoais na sua aplicação dos mais largos princípios, certas de dar razões erradas por conclusões verdadeiras, e prontas a aprender convenções, a fim de se poupar ao trabalho de verificar princípios. Em resumo, entrou naquela fase pouco prática do desenvolvimento na qual a protecção aguda, o ódio da falsidade, o amor da liberdade, verdades prenhes, e pureza escrupulosa, são complicadas pelo daltonismo mental, sofística inconsciente, intolerância, "chateza", e sutil epicurismo. Estando, através da indução defectiva da inexperiência, inabilitado a discriminar acuradamente o natural do acidental, adquiriu aquele fino instinto pela mais agradável metade da verdade que torna os rapazes completos só em partidarismo.
No entretanto Miss Russell parecia continuar estacionária. As lições vespertinas depressa se expandiram além do seu fito pretendido; e a modista tomou conhecimento com muitos factos que anteriormente ignorava. Mas não os assimilava, e as suas novas prendas, em vez de mudar a sua posição em relação ao mundo, pareciam ligarem-se-lhe externamente, como o mexilhão ao navio. Do francês, depressa teve conhecimento suficiente para fazer as observações requeridas nas conversas comuns, e para além disto nunca progrediu. Não tinha facilidade em traduzir, e tomava tão pouco interesse em Carlos XII, que Smith o substituiu por
103
Racine, de que ela ainda gostou menos. Experimentou então Molière; com este foi bem sucedido. A modista, é verdade, cuidava pouco do escritor ou da habilidade por ele mostrada na delineação dos caracteres. Mas entrava de corpo e alma nos amores dos Vallères e Leandres, e nunca se sentia em segurança quanto ao seu derradeiro sucesso até à última cena, pois a sua confiança no curso do verdadeiro amor no palco havia sido muito abalada pela catástrofe do Misanthrope (que, por acaso, foi a primeira peça que leu). Não queria saber de obras especulativas; a única literatura que lhe interessava, além da ficção romântica, era aquela parte das viagens descritivas que dela se aproxima mais claramente. Smith, a princípio, tinha alguma dificuldade em lhe escolher livros para ler. Os romances modernos desencorajavam-na: mal conseguia atravessar meio capítulo numa semana. Num dos seus momentos de entusiasmo, pôs-lhe diante as obras de Shelley que ela, para seu grande espanto, lhe devolveu como "um bom livro, só próprio para crianças". Por outro lado, deu-lhe Robinson Crusoe, e ela, perfeitamente inconsciente do sarcasmo, não só o leu diligentemente, mas defendeu a verdade da narrativa depois numa discussão animada com ele. Impressionado com isto, fez que se lhe seguisse o Pilgrim's Progress, que ela aceitou com má vontade por ter "boas" características, mas contudo leu até ao fim. O Vicar of Wakefield convenceu-a finalmente de que a leitura era prazer, pois anteriormente tinha-a considerado um massador processo educativo; e até demonstrou certo gosto pelas informações que Smith teria esperado que a fatigassem. Assim, embora nada conhecesse de pintura, leu um velho volume de Vasari, que Smith tinha trazido para a sala a fim de substituir um carritel saído da mesa. Lembrava-se de todas as histórias que lia, mas nunca do nome do autor, e não fazia a menor distinção entre John Bunyan e Walter Scott, embora avaliasse a distância entre Christian em luta contra Apollyon e Ivanhoe a atacar o Templário. Smith ficava constantemente intrigado com o contraste entre a sua esperteza e a sua simplicidade. Ela considerava-o grande sábio; mas essa admiração pela ciência dele era temperada por dúvidas acerca de que não soubesse mais do que lhe era preciso. Apreciava a sua intelectualidade e libertação do vulgar. Contudo, não podia acreditar
104
no verdadeiro valor de aquisições que deixavam ao seu possuidor rendimento e posição melhores do que os de muitas pessoas ignorantes. Via que ele não fazia caminhar os seus próprios interesses, que era fraco e moleirão em assuntos práticos. Embora ouvisse em silêncio as suas acusações ocasionais das leis e dos hábitos que ela tinha considerado como parte da natureza do Homem, sentia-se segura de que ele não tinha razão, mas sim o Mundo na maioria das suas divergências. Respeitava o que Smith tinha feito de si próprio sem ter a menor fé nos seus sucessos futuros, e, sendo uma utilitarista ambiciosa de propósitos fortes, e poucos sentimentos, possuía por ele uma consideração na qual entrava, mais do que ela sabia, aquela piedade parenta do desprezo.
O elemento romântico que entrava nas suas relações, embora sempre presente a Smith, era indefinido. A única pessoa que contemplava resultados práticos daí era Mrs Froster. Sentia como se Harriet fosse membro da sua própria família, e, por conseguinte, julgava que fazer vestidos era profissão inferior à sua posição social. Smith, por outro lado, era empregado de escritório, bem comportado e respeitável. Sabendo que ele tinha herdado uma renda muito pequena, costumava descrevê-lo como rapaz da sociedade com rendimentos e que andava a praticar comércio. Mrs Froster tinha sido acostumada a acreditar que casamentos nos quais a mulher era mais velha eram pouco religiosos; mas só se salvou do celibato na idade de trinta e dois anos pelo casamento com um homem de vinte e cinco, o que a levara a modificar aquela opinião até ao ponto de agora manter que o primeiro dever da mulher era casar-se; e como sabia que isto não era sempre fácil de levar a cabo, insistia com Harriet para que aproveitasse a primeira ocasião razoável, sem levantar objecçÕes que só eram expedientes no caso de senhoras cujas oportunidades estavam asseguradas pelas suas fortunas. Por conseguinte, não impedia as lições de modo algum, tendo tão boa opinião de Smith que o acreditava livre da malvadez corrente de aversão ao matrimónio, e sentia-se confiante que ele não permitiria que sua mulher trabalhasse a não ser em lã de Berlim e assuntos domésticos. O próprio Smith nunca suspeitou que uma mulher de idade o considerasse como apto a casar-se. Cedo perdeu a sensação
105
de delícia que os seus primeiros encontros com Harriet haviam produzido; todavia nunca lhe parecia poder aproximar-se mais dela à medida que as lições avançavam; pois, desde o princípio, ela tratou-o com tal franqueza, e tornou tão natural que não houvesse reservas cerimoniosas entre os dois, que não deixou barreiras para deitar abaixo. E, no entanto, era tão independente dele que Smith sentia haver entre ambos uma distância que não podia diminuir. Muitas vezes desejava arrancar-lhe alguma mostra de compreensão mútua, mais sentimental do que a camaradagem com o propósito de promover cultura; e este desejo algumas vezes o tentava a dizer-lhe alguma coisa terna - não sabia lá muito bem o quê. Mas quando se sentava junto dela, sentia a impossibilidade de assim se enganar a si próprio; e no dia seguinte, quando tinha recuperado o seu equilíbrio, ficava aterrorizado pela indiscrição que estivera prestes a cometer.
106
CAPÍTULO VI
Uma tarde, a família Watkins encontrava-se a beber chá na sua casa em Bishopsgate Street. Mrs Watkins era uma mulher alta, de olhos negros, espessas sobrancelhas negras, lábios grossos, tez dura e marcada, e aspecto, que a despeito dos seus quarenta e oito anos, apresentava garbo. Usava espartilho sem inconveniente, e produzia a impressão geral de que dava apreço à estreiteza da sua cintura, e de que não era mulher para brincadeiras. Seu marido era homem baixo, bem proporcionado, de cabelo castanho e ralo, feições pequenas e perfeitas, aparência de fraqueza física e habilidade mental, que vinha da sua pele húmida e baça, e olhos desconfiados, que se moviam continuamente como se evitassem algum objecto.
"Encontrei Mr Davis a sair da estação de Broad Street", disse Fanny que tinha acabado de entrar dum passeio; "ele diz que esta noite lhe fará uma visita, mãe, para lhe falar acerca de não me deixar ir às reuniões."
Mrs Watkins olhou severamente para a filha.
"Lembre-se, mãe", continuou Fanny, "que eu não lhe contei nada do caso; mas Mrs Robson fê-lo e ele acusou-me abertamente por isso. Não tive uma palavra para lhe dizer, tão tola me senti."
"Pois bem, suponho que fará melhor em vir", disse Mrs Watkins ameaçadora. "Mrs Robson devia meter-se com a vida dela."
"Ah!" disse Mr Watkins, relanceando furtivamente para a parede, "estes pregadores estão muito bem durante certo tempo; mas não aturam muito."
"Não é preciso dar-se ao trabalho de pôr lições dessa espécie na cabeça da criança porque este Davis perdeu a dele", disse Mrs Watkins.
Mr Watkins, imperturbável diante desta respostada, olhou de soslaio para a mulher e disse: "Vai recebê-lo, Flossy?" O nome de baptismo de Mrs Watkins era Florence.
"Vou. E dir-lhe-ei também o que penso dele."
107
"Escutem!" disse Fanny no momento em que uma pancada foi ouvida à porta.
"Não é ele", disse Mr Watkins. "Conheço a sua mão. É o jovem Larkins, o tesoureiro. Pode falar com ele sobre o assunto, Flossy; também vem por causa disso. Davis pensa que é melhor sondar-nos antes de vir ele próprio."
Larkins compareceu a seguir; estava bem vestido, falava com voz de soprano, e mostrava-se alegre nos modos. Era membro activo da congregação em que Mr Davis pregava, e popular como orador. Os seus poderes consistiam principalmente na veia humorística atenuada, e era antes seu costume fazer pouco do pecador do que ameaçá-lo.
"Venho", disse ele, "com medo de que tivesse acontecido qualquer coisa à família. Onde estiveram nos últimos quinze dias, Mrs Watkins?"
"Não gosto de ir a lugares onde não posso levar minha filha", disse Mrs Watkins.
"Mas certamente", disse o tesoureiro, "sua filha tem estado muitas vezes connosco, e muitas vezes ainda estará, se Deus quiser."
"Ah!" disse Mrs Watkins, "não sei o que aconteceu a Mr Davis. Nunca acreditaria naquilo. Vou dizer-lho sem delongas, Mr Watkins, que eu não irei à reunião, nem deixarei ir Fanny enquanto ele continuar assim."
"Mr Davis! Oh! Oh! Oh!" exclamou Larkins. Tendo posto todo o pasmo e censura que era capaz de exprimir nestas interjeições, contemplou Mr Watkins com tristeza. Então entrou a curiosidade; lutou com a tristeza e tirou-lhe o lugar. "Não quer dizer", disse ele, "que Mr Davis... Mr Davis! fez alguma coisa que não estivesse certa?"
"Não lhe atribuo nada", disse Mrs Watkins. "Mas nunca vi homem tão mudado para pior".
"Mas como, Mrs Watkins? De que modo?"
"Já o noto desde o último Natal; e mais gente do que eu o tem notado."
"Nunca o percebeu, pois não?" disse Mr Watkins secamente.
"De modo nenhum", disse Larkins com ênfase. "Eu sempre o considerei como um dos mais especialmente escolhidos, se assim se pode dizer, da nossa confraria. Tem grande dom de comover o coração."
108
"Hum!" tartamudeou Mrs Watkins.
"Diga-lhe tudo o que quiser, e acabe com isso", disse o marido.
"Lembra-se, no Natal passado, do discurso que ele fez em Finsbury?" disse Mrs Watkins.
"Muito bem", disse Mr Larkins com entusiasmo. "Falou sobre o texto "O coração conhece a sua própria amargura". Não havia olhos enxutos na sala."
"O senhor falou depois, e disse que julgava ser aquele o modo por que os apóstolos costumavam falar", disse Fanny.
"Ah", notou Mr Watkins, "ele era todo febre, e morte, e ir em missão aos Cafres."
"É pena que não fosse", disse Mrs Watkins.
"Oh! mamã."
"Esteja calada", disse Mrs Watkins, "é para seu bem que eu falo sobre o caso. Pois, Mr Larkins, deSde aquele tempo, Mr Davis não tem sido o mesmo homem; eu penso que ele se afastou para longe do caminho, embora não me pertença julgá-lo. Agora receio que não seja a religião o que traz nos lábios, nem tampouco no coração. O senhor vê-o agora falando, reprovando e exortando os rapazes? Ou as suas mães? Não: agora é todo confidências com as inocentes rapariguinhas e as mulheres que apreciam mais os seus colares e broches do que as suas almas."
Mr Larkins, ultrajado evidentemente nas suas impressões mais caras, contemplou silencioso Mr Watkins.
"E o que pensa que ele tenha a dizer-lhes?" continuou Mrs Watkins. "Fé e oração? Não, mas simpatia nas almas, a sua solidão, a falta de alguém para o amar, e outras tolices malvadas."
"Oh não!" disse Larkins. "Decerto está enganada."
"Não me engano não", disse Mr Watkins. "Não abri a boca sem estar certa. Toda a congregação vê como Mrs Meares faz dele o que muito bem entende e finge ter sentimentos por ele como se ela ligasse alguma a qualquer homem, com o marido sempre longe a viajar..."
"Flossy", interrompeu Mr Watkins, "continue com o que tem a dizer; e não fale nos nomes alheios."
Mrs Watkins reprimiu um impulso de amuo, e continuou: "Não há necessidade de mencionar os nomes. Sabe-se
109
bem demais. Há quinze dias começou ele a falar a Fanny dum rapaz que lhe dava atenção; e cedo veio ter à mesma coisa, à sua simpatia, desolação e todo o mais. Diz que tem também vontade de morrer, como se a hora do Senhor não fosse bastante para ele. Fanny, como uma parva, voltou para casa quási a chorar por causa dele, e disse o que ele lhe tinha estado a dizer. Eu sei de há muito o que esta espécie de coisas significa."
"Ela não quer dizer, veja bem", disse Mr Watkins, "que ele pretende fazer alguma coisa de mal."
"Não. Longe disso", disse Mrs Watkins, "mas ele não tem outra coisa para pensar senão em si próprio; não é companhia saudável para rapariga nenhuma, e muito menos apto a ser ministro do Evangelho. E de uma vez para todas ele pode ir para Cafres ou ficar aqui, mas Tom e eu acharemos outra casa de reunião para onde ir enquanto o deixam continuar como em Finsbury."
Assoberbado pela acusação assim feita subitamente contra quem havia imitado como modelo acima de censura; e, na qualidade de tesoureiro, alarmado pela defecção de Mr Watkins, que sobrescrevia cinco libras por ano para o sustento da capela de Finsbury, Larkins não teve presença de espírito para formular uma frase de comentário ou de protesto. Mr Watkins cerrou os lábios, e ocupou-se com a bandeja de chá. Fanny sentou-se de olhos baixos para o lenço que estava a embainhar. Seu pai ficou silencioso e furtivamente vigilante. O silêncio foi interrompido por uma pancada ruidosa à porta da rua. Mr Larkins corou; mas ninguém se mexeu excepto Fanny, que deixou cair o trabalho, e olhou consternada para a mãe. Então a criada anunciou "Mr Dayvidge", e o pregador entrou. Trazia a aparência alterada. A expressão diligente e o andar animado estavam modificados. Havia lucrado alguma carne balofa; não andava tão direito; os seus modos eram mais insinuantes; e o seu passo mais abafado. Nenhuma destas mudanças parecia muito marcada; mas afectavam perceptivelmente a impressão deixada pela sua personalidade.
Mrs Watkins olhou-o com feições rígidas, enquanto apertava prolongadamente a mão de sua filha. Decidiu recusar-lhe a dela e informá-lo por um cumprimento distante o quanto tinha caído na sua estima. Mr Davis adiantou-se,
110
com os olhos negros, brilhantes, fitos nela. Imediatamente os seus poderes de resistência se dissiparam. Cheia de indignação, mas impotente, submeteu-se a um aperto de mão semelhante, concluído por um "apertinho confidencial que aumentou a sua cólera. Cumpridas as restantes cerimónias, Mr Davis aceitou o convite tímido de Fanny para se sentar, e olhando por acaso para Larkins, percebeu que o tesoureiro lhe evitava o olhar cheio de confusão. Após um momento, durante o qual ninguém quebrou o silêncio, começou a suspeitar algum mal-entendido. Tossiu.
"Bonita tarde, Mr Davis", disse Mr Watkins.
"Maravilhosa!" disse Larkins, com a sua voz de soprano. Então, sentindo que por esta mostra exagerada de contentamento tinha atraiçoado a sua atrapalhação, baixou a cabeça com ar culpado.
"Não dei por si nas nossas duas últimas reuniões, Mrs Watkins", disse Davis.
"Não estava lá," replicou Mr Watkins, secamente.
"Os negócios do mundo interferem com os melhores dentre nós", disse Davis. "Mas por causa do exemplo, fica bem ser pontual. Desculpe-me que lho diga."
"Mrs Watkins vai deixar-nos", disse Larkins, quebrando, na sua perturbação, a voz do seu tom ordinário.
"Deixar-nos!" ecoou Davis. "E porquê?"
"Já me expliquei a Mr Larkins", disse Mrs Watkins.
Davis levantou-se, chocado, e disse austeramente, "Nunca acreditaria nisso, Mrs Watkins. Não acreditei quando Mrs Robson mo contou. Bem sei eu, depois de dois anos de luta, de que modo as nossas reuniões estão assediadas por escarnecedores, que fazem o possível para nos tornar assuntos de mofa. Disse a mim próprio, o seu riso é como o rebentar de espinhos sob um vaso. Não ligo nenhuma a gente como eles: posso deixá-los às suas próprias consciências. Mas quando os meus amigos e aqueles que eu conheço como pessoas religiosas, dão ouvidos; quando depois de todo o meu trabalho para me colocar acima de suspeitas, as minhas palavras são tomadas, e eu próprio transformado num libertino vulgar, isso doi-me. Custa. Custa muito." Aqui Davis sentou-se, e mergulhou o rosto nas palmas das mãos.
Mrs Watkins, abrandando, refugiou-se na ofensa, e disse:
"É a primeira vez que fui chamada zombeteira."
111
Davis levantou a cabeça, e dominou a sua comoção. Então, com um sorriso forçado nos lábios e uma lágrima em cada olho, levantou-se e pegou no chapéu.
"Peço perdão de ser tão fraco", disse ele; "mas a minha saúde não é a que poderia ser. Eu não deveria ceder" Mrs Watkins: não lhe peço agora para me apertar a mão. Sei intimamente que me compreenderá melhor algum dia. Até então, que tenha paz e prosperidade, assim como todas as bênçãos que uma boa mulher pode ter. Se jamais sentir que se deve censurar a si própria acerca da minha pessoa, não o faça; pois sou um pecador e mereço de muitos modos; e por causa de amabilidades passadas não os esquecerei quando lembrar os meus amigos nas minhas orações. Miss Watkins, sei que tomou o meu partido; e isso para mim é maior consolo do que a riqueza. Mas que nada a leve a ir contra a sua mãe. Mr Watkins, se posso tomar essa liberdade, falarei a um amigo meu pertencente à capela da Sociedade de Aldgate, onde nunca vou agora, e onde ouvirá oradores muito melhores do que eu. Receberão com alegria um membro como o senhor tem provado ser. Larkins, dá-me a sua mão?"
Mr Larkins soluçou, e agarrou fervorosamente a mão do colega. Mr Watkins também se adiantou e procedeu à mesma cerimónia amigável com um olhar desacostumadamente fixo, no qual estavam misturados crítica e admiração.
"Agradeço-lhe, senhor", disse Davis com emoção. "Deus os abençoe a todos." Saiu apressadamente.
Mr Watkins tornou a sentar-se em silêncio. Mr Larkins levou o lenço aos olhos, e fungou desamparado. Fanny curvou a cabeça sobre o trabalho, tentando em vão reter as lágrimas que sobre ele caíam em sucessão apressada. Mrs Watkins não podia falar. Nunca tinha compreendido o que é encontrar o perdão em lugar do ressentimento; e o orgulho era inútil como defesa contra isso. Todos escutavam os passos do pregador enquanto descia a escada. À porta da rua um murmúrio de vozes levantou-se como se estivesse a falar à criada. Chegou então o ruído do fechar da porta. A seguir, uma escaramuça e um grito abafado de voz feminina.
"Quem é que se está a meter com Selina?" disse Mr Watkins.
112
Larkins empalideceu.
"Que atrevimento é esse, ó senhor?" disse a voz de Selina. "Não estou para isso." Imediatamente depois a porta foi escancarada de maneira abrupta pela rapariga, que anunciou "Mr Fenwick" com rudeza indignada. Fenwick, que estava envergonhado pela consciência de que o ruidoso protesto de Selina deveria ter tornado as suas recentes proezas conhecidas dos ocupantes da sala, foi recebido friamente. Apressou-se, por isso, a distrair os seus parentes com uma conversação animada.
"Encontrei o velho Davis à porta de entrada", disse ele, "com um ar virtuoso de pomba sem fel." Este dichote foi recebido em silêncio.
"Aquilo é que é um pássaro bisnau, aquele Davis", continuou. "Suponho que não estaria tão tranquilo de espírito se soubesse com quantos dos seus feitos eu, por acaso, estou a par."
Larkins levantou-se excitadamente.
"Depois da nobre conduta de Mr Davis aqui esta noite", disse, "não ouvirei nada contra a sua pessoa e pelas suas costas."
"Ah"! muito bem", disse Fenwick desconcertado. "Não vale a pena brigar por causa disso. Desde que pertença à capela não pode andar mal. Se fosse outra pessoa, poderia ser notado que quando um sujeito passa toda a noite à espera duma rapariga..."
"Fraser!" disse Mrs Watkins ferozmente. "Lembre-se onde está."
Fenwick deixou a sua insinuação por acabar, e tornou-se amuadamente silencioso. Larkins, ennojado pelo visitante inoportuno, despediu-se. Então Mrs Watkins pegou na bandeja do chá e deixou a sala sem ligar importância ao sobrinho. Fanny, obedecendo ao seu olhar, seguiu-a.
"Fraser", disse Mr Watkins, "esteve a beber outra vez."
"De modo nenhum", protestou o sobrinho, "não tomava nada havia dois meses, quando encontrei um velho camarada que acabara de encontrar um bom emprego e bebemos um copo juntos."
"Porque não se pode calar diante das mulheres?" disse Mr Watkins. "Flossy descobriu Davis e pô-lo no seu lugar; mas fica furiosa quando você deita a tagarelar sobre
113
o pregador. Ele não tem estado a perseguir a rapariga ultimamente. Tem?"
"Não", disse Fenwick. "Ela deu-lhe logo a conhecer que não o queria. É uma perfeita megera; e além disso está metida com aquele badameco chalado, o Smith. Eu vejo passar o Davis de vez em quando; mas há muito que não volta à carga, de modo que penso que não vai de propósito. É formidável que a tia Flossy se tenha por fim virado contra ele."
"Ah!" disse Mr Watkins; "ela era capaz de dar os olhos da cara para fazer outra vez as pazes com ele. Deu-lhes um nó a todos aqui antes de você vir, a ponto de estarem prontos para chorar por perdê-lo. Mas Flossy não quer que se diga que cedeu a um engano; de modo que se foi embora. Sonso. É o que ele é: é sonso. E isso há-de tirá-lo sempre de dificuldades."
Seguiu-se uma pausa, durante a qual Mr Watkins aproximou a cadeira da do sobrinho.
"Fraser", disse, em voz baixa, "há alguma coisa acerca daquela égua de Gilhooly?
"Nada de novo", disse Fenwick. "Olhe aqui tio: apostou nela?"
"Eu apostar!" disse Mr Watkins austeramente. "Deixei-me disso; e, se quer um bom conselho, deixe lá isso também. Olhe, Fraser, nunca mais bebi um copo, nem fumei uma onça de tabaco, nem apostei um dinheiro em cavalos desde que casei com Flossy. Quando frequentava corridas, e fi-lo durante quási quinze anos, aprendi a ser bastante esperto; e se só tivesse podido parar quando estava com sorte, poderia ter ganho bastante. Quando Flossy me aceitou, pus alguma da minha esperteza na loja, e o resto na algibeira; tenho caminhado. Você não é esperto; é um toleirão; mas apegue-se ao ramerrão e isso dar-lhe-á lucro. Os tipos da capela não me enganam; mas vão para diante; e é o que é preciso para as raparigas; e rende; eu, por isso, dou-lhe o meu apoio. Frequente as reuniões, e aprenda quando deve estar calado, e também irá para diante. Com tudo isso, não deixo de querer saber o que vai pelo mundo fora, à socapa. Para dizer a verdade, não posso cortar com ele de todo, e embora nunca aposte nem meio dinheiro, não há cavalo no reino de que não conheça
114
as características. Por isso lhe pergunto pela égua de Gilhooly."
"Está muito bem que se dê o palpite certo a um amigo, se a gente não se serve dele", observou Fenwick.
"Pensa que sou algum tolo?" disse o tio, com ênfase desdenhosa.
"Por quê?"
"Quando o for", disse Mr Watkins, "deitarei a pôr dinheiro nas algibeiras dos outros, mas antes disso não."
"Mas não lhe custaria nada."
"Você ficou muito virtuoso e desinteressado de repente", disse Mr Watkins, torcendo o nariz. "Olhe cá: era melhor vir à sala de estar pôr tudo em pratos limpos com sua tia".
115
CAPITULO VII
Smith não frequentava habitualmente os teatros. Ainda era daqueles que vão ao espectáculo como a uma festividade especial, que esperam pela farsa (1) e para quem a quimera do palco é independente da rendição voluntária da imaginação. Retinha a preferência infantil pelo longínquo na cena, na acção e no vestuário. Aturava com grande paciência a exposição grave e o sentimento do drama; e, embora sensível à boa representação quando a havia, sem dificuldade era enganado por qualquer maneirismo de efeito que não chocasse o seu gosto. Esta última condição raras vezes era preenchida pelos espadachins vestidos de veludo das peças e óperas românticas (Marifana, A Boémia, O Trovador, eram as suas favoritas); nunca lhe ocorria ir às comédias modernas, onde prevalece o estilo mais natural de representar. Por consequência, ignorava o que dizia respeito a assuntos teatrais, e quando a intolerância já mencionada se desenvolveu pela convivência solitária que tinha consigo próprio, tanto directa como reflectidamente através da modista, cessou de preocupar-se de todo com eles. Desde o começo da sua estadia em Dodds Buildings até à última semana de Agosto, quando lhe aconteceu a aventura a seguir, só tinha entrado em teatros uma vez. Nessa altura havia convencido Miss Russell a ir com ele a Covent Garden para assistir à representação dos Huguenotes, de que tinham ultimamente traduzido a narrativa tentadora dum jornal francês. Achou que seria censurável viver ao alcance do espectáculo de tão bela obra pelos maiores artistas do Mundo, posta em cena com um primor desconhecido em qualquer outro país (pois esta, assegurou ele a Miss Russell,. era garantida pela reputação da grande ópera de Londres),
(1) Na meninice de Smith, os espectáculos teatrais ainda começavam e acabavam com farsas; e o pai dele teria sem dúvida, muitas vezes, seguido programas com cinco géneros. Digamos: uma tragédia, um melodrama ou uma pantomina de Natal, e três farsas.
116
sem a ir ver. Assim, numa tarde de Junho, subiram a uma galeria sufocante, de que tinham o privilégio de admissão porque pagaram meia coroa cada, e assim obtiveram uma vista nevoenta dos maiores artistas do mundo, muito diminuídos pela distância, berrando e gesticulando no abismo, em baixo. Nenhuma das belezas especiais, enumeradas pelo jornal francês, se tornaram aparentes a Smith; mas atribuiu isto à sua própria ignorância, e a inveja nacional do comportamento dum alemão sentado junto dele que falou dos cantores, actores e maestros indiscriminadamente, como da ralé. Miss Russell ficou desapontada e declarou não só não considerar o que estava a ouvir como música ou canto às direitas, mas que nada a levaria a ir outra vez à ópera. Acrescentou que julgava muito estranho da parte duma mulher apresentar-se vestida de homem diante da multidão, e sem estar pelo menos aparentemente, de modo nenhum envergonhada. Aprovou alguns dos vestidos, mas mostrou-se surpreendida que a amazona da rainha de Navarra fosse feita de veludo de seda, quando se poderia obter o de algodão reforçado que faria o mesmo efeito no palco. Smith sentiu que a experiência operática fora um fiasco, embora continuasse a afirmar que o espectáculo era esplêndido, e, como prova, leu-lhe no dia seguinte a crítica do jornal que confirmava plenamente a sua opinião. Miss Russell notou que ele lhe havia muitas vezes mostrado que os jornais cometiam erros ignorantes acerca de livros e de pinturas, e que era provável que também não tivessem razão sobre a música.
No outono, comunicou-lhe que tencionava ter férias, pois sua tia a convidava para ir a Richmond por quinze dias. A casa estaria vazia durante aquele tempo devido à ausência do dono em viagem pelo continente; como continha muitos tesoiros artísticos e era rodeada por um parque que se estendia até à beira do rio, antecipava passar algum tempo de maneira mais agradável do que os seus meios lhe poderiam permitir noutra qualquer parte. Smith aprovou cordialmente este projecto, tanto mais que considerava a mudança capaz de lhe fazer bem à saúde, pois, embora a modista parecesse estar à prova mesmo dos males passageiros que o clima mutável de Londres produz, a sua palidez e a regularidade deliberada com que trabalhava, faziam-na ansiar por ver-se livre no campo. O próprio Smith, pobre demais para gozar a ociosidade,
117
tinha ódio às férias, e só aceitava uma semana por ano" porque recusá-las tornar-se-ia odioso aos seus colegas de escritório. Contudo, adiava-as tanto quanto podia; a sua vez vinha raramente antes de Outubro estar bastante adiantado.
Foi numa bela tarde de Outono que levou a sua maleta, emprestada a Harriet nessa ocasião, ao Metropolitano de Kings Cross, poupando-lhe a despesa dum trem. Ela andava junto dele com mais animação que o costume. A sua tranquilidade terra a terra, embora sempre graciosa, era algumas vezes opressiva, particularmente durante as revoltas que algumas vezes ocorriam a Smith contra as suas circunstâncias e solidão. Agora indo em procura de divertimento, e prestes a mudar, por um tempo, os hábitos de quási oito meses, ela lembrou-lhe, pela sua aparência e figura, alguma daquela hesitação e leve ansiedade que o tinham cativado tanto na tarde em que pela primeira vez lhe agradara. Se não fosse o bater da maleta de encontro à sua perna, haveria sucumbido à influência do pôr do Sol e ter-se-ia tornado sentimental. Já estavam perto da estação quando falou.
"Hei-de sentir-me bastante desarvorado por passar uma semana sem a ver."
"Estava justamente a pensar", disse Harriet, recaindo inconscientemente no seu acento nativo, "que me parece conhecê-lo por muito mais tempo do que seis meses."
"Eu mal posso crer que seja verdade", disse ele. "Sinta como se a tivesse sempre conhecido."
"Faria melhor em me dar a valise agora", disse ela, enquanto entrava para a estação. "O homem não o deixará passar."
"Se não deixar, comprarei uma ida de terceira para Farrington Street e enganá-lo-ei assim", disse Smith. "Vou levá-la ao comboio custe o que custar." Dizendo isto, pegou no porta-moedas que ela lhe estendia, e comprou o bilhete, pois sabia por experiência que qualquer tentativa para ele o pagar resultaria fútil. A seguir o porteiro deixou-o passar, tendo antes pressentido do que compreendido a sua explicação; Smith acompanhou-a à plataforma. Ao despedir-se, ela deu-lhe a mão pela primeira vez.
Quando chegou de novo à rua, sentiu que passar a tarde em casa depois de tal separação seria impossível. Partiu,
118
por conseguinte, rapidamente para o West-End, e em breve mandou parar o ómnibus que o levou a Hyde Park Corner. Aqui desceu, e, encontrando-se com disposição para isso, passou a restante hora de luz do dia vagueando agradavelmente pela margem da Serpentina. Logo depois das nove horas, tendo sido expulso por um polícia dos Kensington Gardens, dirigiu-se para leste e às nove e meia chegou à região meio estrangeira meio teatral que rodeia Leicester Square. Infectado pela atmosfera prevalecente, foi invadido pelo desejo de ver algum espectáculo em harmonia com o aspecto do local. Ouviu dizer a um rapaz que um conhecido acabara de fazer parar: "desta vou ao Alhambra." (1) Smith ouvira falar do Alhambra como dum lugar de perdição, mas nunca lá tinha entrado. Decidindo-se agora a vê-lo com os seus olhos, depressa para lá se dirigiu, e pagou um xelim pelo privilégio de admissão. À entrada, encontrou-se num enorme teatro popular, iluminado por pequenas lâmpadas enfileiradas em linhas contínuas em redor do auditório. O centro da plateia era ocupado por assentos de várias denominações, de acordo com o seu grau de proximidade do palco; rodeando este, e dele separada por uma barricada, estava uma estreita faixa formando a circunferência extrema, onde não havia assentos, e à qual Smith descobriu que ficava limitado pela modesta soma que desembolsara pelo bilhete. Como o pano estivesse em baixo quando entrou, e a multidão que partilhava deste promenoir com ele andando para trás e para diante, ou bebendo nos vários bars abertos na parede em derredor, pôs-se a passear, observando a aglomeração, sentido-se inconfortável e esperando que não seria descoberto por alguns dos seus conhecidos em tal lugar. Havia muitos velhos presentes e também muitos jovens, que olhavam para os mais idosos com
(1) O antigo Alhambra, no sítio do Alhambra posterior. Deve aqui dizer-se que o estabelecimento do London County Council, cerca de dez anos depois da visita de Smith, foi alvo da vigilância municipal que tornou a atmosfera moral do novo Alhambra bastante diferente da do antigo, veridicamente descrito no texto. Os teatros de variedades vigiados em Londres são incomensuravelmente mais apurados e artísticos, mesmo nas suas imoralidades, que os antigos music-halls e teatros de opera bouffe. O antigo Alhambra incendiou-se uma noite. Viu-o arder gloriosamente.
119
aquela intolerância da dissipação que a juventude depravada exibe quando percebe as suas próprias franquezas reflectidas na velhice. Havia uns poucos de soldados, grande número de mulheres e alguns empregados de uniforme, cujo principal dever parecia ser a protecção do edifício contra a conflagração provocada pelos fumadores. A atmosfera era quente, cheirava a gás, a fumo de charuto e a licores efervescentes. Smith acabara de chegar à conclusão de que um teatro mal afamado sem espectáculo era tão aborrecido como um de boa fama nas mesmas circunstâncias, quando a banda reuniu. Apreciou a sua maneira de tocar, que embora grosseira e desleixada, tinha animação e lembrava-lhe a orquestra de Covent Garden, embora a pudesse gozar melhor. Foi obrigado a confessar que gostava de Offenbach. Fiado na autoridade do jornal francês, ele só respeitava Meyerbeer. Mas não se podia enganar até supor que gostava dele: só podia envergonhar-se a si próprio por não o fazer. Quando o pano subiu, o último acto de Le Voyage dans la Lane era representado por muitas raparigas robustas, donas de vozes poderosas, que elas procuravam estragar por todos os meios. Como as vozes que Smith ouvira em Covent Garden já tinham na maioria sido estragadas para benefício de auditórios continentais, não podia deixar de preferir as artistas do Alhambra e sentia que esta preferência era prova adicional da sua ignorância. Os vestidos magníficos e o cenário agradaram-lhe moderadamente; bocejou durante os desfiles e riu das graçolas, pois adorava o humor da palhaçada.
Quando o pano desceu, era tarde; mas o auditório aumentava; e Smith, por uma pergunta feita a um dos homens de uniforme, soube que o próximo divertimento consistiria no bailado intitulado The Golden Harvest. O Alhambra era famoso pelos seus bailados; e Smith resolveu esperar. Por fim, o prelúdio de flauta anunciou a atmosfera pastoral do espectáculo vindouro. O pano subiu, e descobriu uma aldeia decorada como para festa. Três damas com toucas e aventais de criadas, mas arreadas, no que respeita à vestimenta, para o rito da confirmação, apareceram e puseram-se a conversar por meio de bater de pés, mover de ambas as mãos em direcção à terra, pentear de faces com os dedos, e dar palmadas nas suas pessoas em vários lugares.
120
A seguir dançaram. Interrompidas pelo som de sinos, curvaram o joelho em ângulo recto, apoiaram o cotovelo sobre ele e a bochecha no cotovelo, estenderam a outra perna tanto quanto possível para trás, e, nesta atitude, escutaram com ansiedade o clamor agora ensurdecente. Certas de que os seus ouvidos não as tinham enganado, puseram-se em fuga. Entrou uma companhia de segadores com foices, conduzindo cada segador uma ceifeira carregando o seu molho. Dançaram, cortando os segadores o ar como se cortassem os molhos estendidos pelas ceifeiras. Então apareceu o pálio, sob o qual vinham uma noiva e um noivo. O noivo vestia calções purpúreos, camisa branca e faixa carmesim, na qual se via uma diminuta foice de oiro. A noiva estava coberta com o véu adornado de flores de laranja. A orquestra parou no acorde de dominante, ela levantou o véu e revelou uma vestimenta nupcial bastante ligeira, consistindo num cinto e alças de setim branco, aos quais se prendia uma saia de cerca de quinze polegadas de comprimento. Além dos métodos comuns de comoção, havia adquirido o poder de andar nas pontas dos dedos grandes, de equilibrar-se em qualquer deles e de rodopiar sem ficar tonta. Estes feitos só admitiam poucas variações e Smith pensou que a dança deles resultante era deficiente na variedade, destituída de encanto e não melhor do que uma espécie de ginástica penosa e sem sentido. Seguiu-se um diálogo gesticulado e ininteligível: depois de uma tarentela, que concluiu com mais bimbalhar de sinos e a retirada do desfile, a cena mudou e mostrou um trigal flamejando num pôr do sol de outono. Aqui reapareceram os segadores e as ceifeiras que celebraram a ocasião com uma dança em redor dum pau de sebo, que levavam com eles, parecido com uma tabuleta de barbeiro enfeitada de fitas. Nestes divertimentos o noivo tomava um papel enérgico, e, bastante antes de acabar, sucumbiu ao cansaço e deitou-se no sopé duma almiara de feixes, onde adormeceu. A noiva deu por falta dele, e tendo-o procurado sempre em bicos de pés em todos os lugares, excepto naquele em que estava, expressou o seu desespero e foi-se embora. Os outros, depois de ajoelhar em obediência ao som do sino de Avé-marias, seguiram-na; e a noite caiu sobre a cena com rapidez tropical. A música tornou-se surda e cheia
121
de mistério. Uma lua poderosa projectou um halo sobre a figura adormecida do noivo e da almiara que o abrigava. Então os molhos entreabriram-se e um ser transcendente, o espírito da seara, apareceu, envolto nos tons do outono, desde a papoila vermelha de sangue ao laranja magnífico. Flores de trigo e espigas doiradas estavam fantasticamente entrançadas no seu cabelo negro; os seus olhos escuros, brilhavam no magnésio. Smith esqueceu o que o cercava. O auditório, as luzes, as pontas de charuto, as gargalhadas desagradáveis vindas dos bares, deixaram de colorir a sua impressão da cena. O palco tornou-se para ele verdadeiro trigal e a bailarina verdadeira fada. A sua impetuosidade era fogo sobrenatural; os seus membros tinham o instinto da música até aos próprios pulsos; aquele andar nos bicos dos pés, que lhe dera antes uma dor no tornozelo só de ver, agora parecia o resultado de fantasia e eterealidade eficaz. Ficou delirante ao vê-la dançar em redor do campo, num transbordar irrequieto de vitalidade, perseguida por toda a parte pelo halo da lua. Quando lhe lembrou a sua verdadeira circunstância ao fazer uma reverência, ficou irritado pela falta de entusiasmo dos aplausos que se seguiram, amaldiçoando a indiferença do rebanho pela arte quintessenciada e martelando com a bengala o batoque de madeira no qual se apoiava. Por um momento imaginou que lhe atraíra o olhar e que ela conhecia a sua presença. Noutro, lutou para estabelecer influência magnética sobre ela, fixando severamente a vista sobre o seu rosto e tolhendo a respiração. Levava a mal todo o aplauso que lhe não lhe fosse dirigido. Quási perdeu a cabeça quando uma mulher se levantou e lhe obstruiu a vista do palco por breves segundos. No entanto, a história da seara de oiro desenrolava-se tão rapidamente quanto o discurso da ilustração saltatória permitia. A fada depressa descobriu o noivo; acordou-o, fascinou-o, dançou com ele, enlangueceu-o nos seus braços, fugiu-lhe tantalicamente, e escolheu poses graciosas, as quais ele contemplava com tanto espanto quanto podia afectar, enquanto, segurando-a pelo cinto, sustentava as cento e vinte libras avoirdupois que não possuíam existência para Smith. Através da noite, que durou quinze minutos, o noivo resistiu aos encantamentos da feiticeira; mas no momento crítico, quando ele por fim vencido lhe ia colocar
122
um anel no dedo e assim entregar-se-lhe por um século, o galo cantou; a fada desapareceu; o Sol nasceu; o oboé, num baixo zumbido, discursou o espírito da manhã pastoril e os ceifeiros, voltando ao trabalho, encontraram o noivo agora adormecido e restituíram-no à noiva, a qual ele recebeu (por ser, segundo Smith, homem desprovido de gosto) sem fazer nenhumas comparações pouco lisonjeiras. Então caiu o pano e o auditório dispersou vagarosamente. No meio dele encontrava-se um velho cortês, cujas meias de seda preta e andar estudado, o proclamavam relíquia da geração passada. Discutia o espectáculo com um jovem oficial, que tinha atingido a mais alta perfeição do indescritível, não tendo individualidade nenhuma além das características gerais da classe a que pertencia.
"Muito bem, muito bem", dizia o mais velho. "A dança é hoje em dia uma arte perdida; mas esta mulher tem nela alguma coisa da velha escola. Na verdade é agora a única. Já vi Cerito, Carlota Grisi, Fanny Ellsler, e a grande Taglioni. Taglioni foi meu vis-â-vis outrora numa quadrilha, quando eu tinha dezasseis anos." O senhor de idade encolheu ligeiramente os ombros, o que Smith, que o tinha ouvido com o mais profundo respeito e prazer, interpretou como a expressão de tolerância oposta àquele pungir de ternura e de desespero misturados que as recordações evocam, quando dizem respeito a uma espécie de "coisas para sempre passadas.
"É uma mulher perfeita, uma boa pescada", replicou o oficial com energia. Smith atirou-lhe um olhar de desprezo, e passou à rua. Havia aí uma confusão de trens velozes, vendedores clamorosos de literatura obscena, violeteiras, e multidões de homens e mulheres brilhantemente vestidas, vagueando sem rumo com movimento apenas suficiente para satisfazer os polícias, com um fundo de montras iluminadas a gás, de cafés, botequins, tabacarias e casas de pasto, onde lagostas predominavam vermelhamente sobre os outros comestíveis. Através deste tumulto, Smith avriu caminho com rapidez e alcançou Dodds Buildings, pareceu-lhe quási que de repente.
Durante meia hora, depois da meia noite, andou para trás e para diante, pensando na dançarina, e inventando expedientes extravagantes pelos quais poderia vir a travar
123
conhecimento com ela. Lastimou não ter habilidade na arte de carteirista. Como seria fácil, pensou ele, esperá-la à porta dos artistas, a fim de se aproximar dela, roubar-lhe a bolsa e, em seguida, chamá-la e ganhar-lhe a gratidão, restituindo-lha! Esta ideia foi seguida por visões de carruagens sem governo, o Alhambra em chamas, naufrágios, e todos os desastres em que se podia conceber a si próprio unido a ela por perigos comuns. Coibiu-se repentinamente, e riu da sua indulgência naquelas mesmas loucuras que havia muitas vezes achado triviais nos romances; mas depois de cada refreamento desta natureza, tornava a recair, e só foi lembrado do avanço da noite pela pancada que Mr Fenwick, de chapéu de chuva em punho, envolto na camisa de dormir, e em pé numa cadeira, deu indignadamente no tecto do seu aposento, a lembrar ao seu companheiro de casa que não podia dormir com uma procissão a passar-lhe aparentemente por cima da cabeça. De manhã, Smith, lendo o ensaio do falecido Mr Mill sobre a liberdade religiosa como acompanhamento ao pequeno almoço, sentiu vergonha de si próprio. O seu orgulho de pensar compreensivamente como homem, estava ferido. Calçou as botas, e em seguida, verificando que ainda tinha alguns minutos de sobra antes de partir para o escritório, recostou-se na cadeira, e fez este discurso, contando cada secção pelos dedos.
"Quais são os factos do caso desta mulher? (Indicador.) A fim de conservar a sua habilidade ginástica deve passar horas por dia num treino que não possui nem um só elemento de progresso mental. Por conseguinte deve ser completamente ignorante e de espírito estreito. (Médio). Está disfarçada com camadas de rouge e de bismuto, e, delas privada, provavelmente apresentaria aparência grosseira. (Anular). Como é certo que dança bem, e como a excelência em qualquer acto só é atingida por muita experiência, deve ser bastante velha, (Mínimo). Á sua profissão é uma garantia da sua baixa origem e reputação duvidosa. Se a pudesse observar de perto, ficaria completamente desiludido. Por conseguinte irei outra vez hoje à noite e colocar-me-ei numa posição perto do palco - Ora!" juntou ele, erguendo-se dum salto e pondo o chapéu. "Que sofistice grosseira! Nunca mais entrarei no Alhambra."
124
CAPÍTULO VIII
Smith, naquele tempo, estava em circunstâncias desafogadas. As suas necessidades materiais eram poucas e, como não frequentava qualquer sociedade, podia sempre calcular as suas despesas. Possuindo forte aversão a dívidas de qualquer espécie, pagava tudo à medida que o adquiria. E assim se livrava da influência desmoralizadora dos embaraços pecuniários. Mas uma nova despesa foi importada para a sua economia na noite em que Miss Russell partiu para Richmond. Até aí, como já se viu, a sua frequentação de teatros havia sido desultória; e o hábito, peculiar aos moradores das grandes cidades, de seguir o progresso da arte no palco e de trocar o gozo suposto de aventuras emocionantes pela curiosidade que incita o crítico a observar como certos autores tratarão certos assuntos ou o que certos actores farão de certos caracteres, ainda não formava parte da sua cultura. Tinha dado o primeiro passo para a adquirir quando havia visto o bailado do Golden Harvest três vezes na mesma semana, o que era o seu caso no sábado a seguir àquele em que visitara o Alhambra pela primeira vez. No entretanto, saqueara a biblioteca de que era assinante à procura de livros sobre a história do bailado, e tornara-se sábio nas tradições da ópera. Revivia pela imaginação cada dançarina célebre cuja tradição literária era suficientemente poética, sob o aspecto da Signorina Pertoldi, prima-ballerina, como a sua feiticeira era intitulada no programa. Uma rival loira e gorda insistia em ser prima ballerina assoluta, e Smith odiava-a com ciúme cruel como o túmulo.
Os seus gostos musicais receberam tal estímulo da orquestra do Alhambra que não só tentou tocar as árias do bailado de ouvido na concertina alemã, mas comprou e leu o tratado de Heitor Berlioz sobre instrumentação e começou a entreter noções para se tornar compositor. A dançarina, em vez de ocupar a sua imaginação com a exclusão de tudo o mais, tornou-se um centro de actividade mental e causou um daqueles rompimentos da rotina intelectual
125
que, quando não ocorrem muito a miúdo e não são conscientemente buscados, são valiosos como ocasiões de renovação de pensamento. Smith, sem tomar isto em consideração, deplorava o seu próprio desvario e sustentava longas discussões consigo próprio sobre o carácter da sua fascinadora. Arguia que, se nela não existisse pelo menos algum elemento bom e generoso, não o haveria atraído. Então censurou-se a si próprio por auto-lisonja. Às suas primeiras inferências severas, replicou que o seu treino diário não era mais desmoralizador do que as ocupações cotidianas das pessoas vulgares, nem mesmo mais do que a redução mecânica da poesia a tinta, papel e gramática. As suas virtudes atléticas não lhe ocorreram: o único exercício de Smith era andar. Quanto ao seu range, as mulheres eram feias e bonitas no palco tal como fora dele, por conseguinte não havia evidentemente mágica em pigmentos para melhorar a natureza. A pintura, arguia, é um mero expediente para neutralizar o brilho da ribalta. Não se é necessariamente velha por se ser dançarina perfeita: aquela podia ter começado criancinha, o que só indica trabalho duro e constante, conscienciosamente dirigido para um fim artístico. Que poderia ser mais nobilitante? Quanto à sua origem baixa, sentia-se envergonhado de jamais ter pensado em tal coisa; quanto a assegurar que o seu ofício retirava a ideia duma reputação sem mancha, era, como havia lido num jornal de teatro, deitar uma nódoa pouco cavalheiresca sobre uma corporação de artistas que contavam entre elas mulheres que, tanto como amparos das suas casas, benfeitoras dos pobres, ou exemplos das mais claras virtudes do seu sexo, não cediam o lugar a quaisquer outras.
Dentro em pouco, porém, foi forçado a reflectir que um gasto de quinze libras e treze xelins por ano com The Golden Harvest poderia resultar em fome para si próprio. Além disso, não estava só envergonhado de sofrer o domínio da atracção sensual: os passeantes dissipados, entre os quais se tinha de mover no promenoir dum xelim no Alhambra, eram-lhe repugnantes. Evitava os empregados, não fossem habituar-se a reconhecê-lo como frequentador da casa. Deixou de aplaudir o objecto da sua admiração, para não o observarem e descobrirem o motivo das suas visitas. Repetidamente ficava desapontado pela sua execução,
126
que era muitas vezes feita mecanicamente como trabalho profissional, tornado possível pelo treino e pelo hábito. O temperamento variável da artista era perceptível a despeito do rouge, dos focos e da habilidade ginástica; e só em raras ocasiões exibia a graça jubilante que o tinha a princípio fascinado. Mesmo então, o auditório parecia brutalmente insensível, e reservava parte igual, e algumas vezes maior, do seu aplauso para outras em cujos feitos Smith só podia ver cambalhotas e caretas. Mais ainda: que música trivial, que falta de sentimento nos contos ali ilustrados! Smith, que derivava de livros as suas ideias de música, idealizava como uma sublimidade impossível; e tendo sabido, para seu grande espanto, que Mozart havia composto muitos bailados, censurou a ignorância e pouca fé dos directores do Alhambra por deixar no esquecimento esses trabalhos sem dúvida imortais. Antes de se ter passado uma quinzena, estava tão insatisfeito consigo próprio, e enojado com o teatro, que se espantava porque, chegada a hora, sentia uma vontade excitante de lá voltar.
Na primeira segunda-feira de Setembro, Miss Russel regressou a Islington. Veio no primeiro comboio, e Smith ainda dormia quando ela chegou; mas viu-a por um momento na escada quando saía; e a sua aparência, à luz da manhã, fez-lhe sentir como se tivesse acabado de passar daquela visão mal cheirosa da meia-noite de feixes doirados, céus pintados e radiância eléctrica, para uma verdadeira seara, cheia de ar fresco, pássaros chilreantes e luz do Sol.
Naquela tarde não se tocou em livros e a hora dada à descrição dos tesouros de Mr Grosvenor em Richmond e do modo por que Miss Russel havia passado as férias. Mrs Froster estava presente, ouvindo com interesse as particularidades acerca dos convidados titulares esperados pela sua amiga mais tarde durante a estação. Harriet não aprovava inteiramente os gestos de Mr Grosvenor. Admitiu que a casa era bonita e confortável, ao mesmo tempo que grandiosa; mas não podia compreender porque pendurava pratos de comer pelas paredes em vez de os guardar no armário da cozinha, ou porque escondia as suas pinturas mais lindas no quarto da sua tia, ou nos corredores. Também não admirava o gosto de fazer que os criados usassem vestimentas exóticas e de decorar as salas com pavões que davam
127
nas vistas, flamingos, cisnes pretos em lagos dourados, e outras imagens grotescas. Mrs Froster juntou-se-lhe na reprovação destas extravagâncias, com o fundamento de que arrumar a casa não era atribuição do homem, e que havia outras coisas sobre as quais lhe ficaria melhor pensar. Assegurou que todo o oiro que tinha espalhado sobre as suas paredes seria suficiente para preservar dez famílias pobres da fome durante um ano; mas os ricos não sabiam o que era a pobreza quando espatifavam o dinheiro em luxos pecaminosos.
Na tarde seguinte, quando Mrs Froster estava ausente, a modista perguntou a Smith em que tinha empregado o tempo durante as suas férias. Replicou, com inocência duvidosamente representada, que não tinha feito nada a não ser o ramerrão do costume. Conduziu então a conversa outra vez à casa de Richmond. Harriet descreveu-lhe a grande sala onde Mr Grosvenor dava os seus afamados bailes de máscaras; e, a propósito disto, Smith falou da dança e empregou as suas recentes leituras numa dissertação sobre música, a poesia de movimento e assuntos semelhantes. Como exemplo do facto de que a arte em questão ainda possuía representantes, descreveu The Golden Harvest, e repetiu a observação que havia ouvido ao senhor de idade à saída do teatro. Ela perguntou-lhe quantas vezes tinha ido ver esse espectáculo, pensando à medida que o fazia no que lhe contara Mrs Froster sobre as suas ausências à noite. Respondeu descuidadamente que a representação lhe tinha agradado tanto que voltara para a ver. A conversação afastou-se para outros assuntos; entre os quais os negócios da modista, de que poucas vezes falava.
"A minha tia Angel..."
"A sua quê?" disse Smith.
"Minha tia, com a qual estive - o seu nome é Angel Summer, gostaria muito que me estabelecesse em Richmond."
"Que diabo iria lá fazer?"
"Tenciono montar negócio na cidade. Minha tia diz que me poderia ajudar de muitos modos a arranjar clientela."
"Vai então seguir-lhe o conselho, não vai?"
Sacudiu a cabeça duvidosamente. "Tenho todo o tempo para pensar sobre o caso; e dou-me bastante bem aqui. Duvido se seria tão independente em Richmond. Prefiro lidar
128
com senhoras não altamente colocadas a fazê-lo com as criadas de grandes senhoras."
"Mas tem de trabalhar para Madame Fulana ou Cicrana aqui, e várias horas por dia."
"Por isso não, pois bem conheço as minhas horas. Conheço a minha tabela e sei fazer o meu trabalho; de modo que entre nós não há favores. É melhor ter só uma patroa do que muitas."
"Lá sabe o que faz. Não conheço bastante do negócio para a aconselhar. Que massador é o arranjo destas coisas!"
"Para mim não é", disse a modista com decisão, "e não sei porque o seria para si. Tem feito versos ultimamente?" Pois Smith possuía facilidade em rimar que o levava com frequência a manufacturar sonetos, de que se sentia envergonhado, e que contudo se habituara a mostrar à sua companheira, quando eram concebidos humoristicamente. Alguns de inspiração séria guardava-os para si. Infelizmente, acabara de compor uma apóstrofe de florido pouco usual em alexandrinos emparelhados, que lhe parecera possuir maior calor e força do que qualquer das que antes escrevera. Intitulava-se Lines to a Southern Passion Flower (Linhas a uma Flor da Paixão Meridional); aí descrevia vivamente a sua impressão pela dançarina. O instinto avisava-o de que não o devia mostrar à modista. A vaidade revoltou-se contra deixar morrer à nascença este fruto honroso da sua imaginação. Mostrou-lha, sentindo que ele próprio não lha poderia ler.
"Muito me espanta que um homem bem educado e instruído", disse ela, depois de ler, "se deixe seduzir por uma mulher que dança no palco."
"Que têm os versos que ver com uma mulher nue dança no palco?" disse Smith, espavorido.
"Têm ou não têm?" perguntou Miss Russell calmamente.
"E porque não haviam de ter?" replicou Smith. "A dança é uma arte."
"Que tolice!" disse a modista. "É agradável que uma rapariga a aprenda, mas não para ganhar a vida, ou executá-la diante da multidão sem estar decentemente vestida. Estou certa que mulher alguma com respeito por si própria faria tal coisa."
"De qualquer modo", disse Smith audazmente, "esta
129
mulher dançava com tanta poesia que inspirou - ou pelo menos a personagem que representava - estes versos ao meu espírito."
A modista não replicou, e, depois de silêncio de quási um minuto, Smith voltou ao francês.
Desta altura em diante a amizade que entre eles se havia estreitado por tantos meses, começou a afrouxar. As férias pareciam ser o cimo da colina, cuja encosta soalheira haviam subido juntos e sós, e que actualmente desciam na sombra da tarde por caminhos divergentes, com outros viajantes para lhes dividir os interesses. A atracção da dançarina fez sentir a Smith que a filosofia se torna monótona se não for aliviada por aquilo a que ele chamava um pouco de carne e osso, frase que significa, segundo a natureza do indivíduo que a emprega, ou muita sensualidade grosseira, ou um poucochinho de inocente fantasia. Mas a sua intolerância não reconhecia graus no rebaixamento; e ele resistiu à nova influência com tanta força quanto pôde. Contudo, a filosofia falhou tanto com argumentos como com ameaças em tornar a dançarina objecto de indiferença; e Smith começou a desejar uma amizade feminina que o encorajasse a perseverar na luta pela verdade e pela perfeição humana, durante os momentos em que a sua alegria cedia o lugar ao desespero. Felizmente, não encontrou nenhuma assim. O poder de ficar só vale a pena adquirir-se à custa de muita solidão penosa; e Smith que ora sentia, pela primeira vez, quanto a sua aluna era dura, fria e de espírito acanhado, não recebeu encorajamento para indulgenciar naquele clamor pelo sentimento, a expressão ululante do qual é algumas vezes considerada não só como consistente com a estabilidade comum do temperamento, mas também uma espécie de marca do génio.
A modista, por seu turno, estava enojada porque Smith, que havia subido a um alto lugar na sua estima e até na sua afeição, admirava os encantos pintados duma criatura de desprezar, a qual nunca sonhou que lhe pudessem negar tal direito. Em todos os assuntos dependentes do gosto, da educação, e da exclusividade que nasce de ambos, julgara-o sem mácula. Nada é menos fácil de recuperar do que a fé do adorador que descobriu pés de barro no ídolo. Há uma degradação reflexa na descoberta que lhe dá aguda
130
ferroada. Isto, acrescentado à comparação entre a consideração pela sua rival, intensificava todos os seus pensamentos prévios e pouco lisonjeiros sobre ele. De modo que a visita ao Alhambra produziu, da parte dele, desapontamento, e da dela ciúme sem amor, disfarçado em desprezo pela fraqueza masculina.
131
CAPÍTULO IX
Já havia passado outro Natal, e então veio a linda tarde de sábado de Fevereiro, em que entrou um homem no pátio rodeado pelos Dodds Buildings e olhou para as casas com ar crítico, o que levou Smith, por acaso à janela, a pensar que devia ser louco. A seguir juntaram-se ao homem um carpinteiro, que olhou para ele pacientemente, e um rapaz com o saco de palha da ferramenta, que olhou para o carpinteiro. Estes foram depressa seguidos por seis rapariguinhas com uma corda de saltar, uma criancinha do sexo masculino de pernas tortas, e um vendedor ambulante. Por este público de onze pessoas, Fraser Fenwick, de volta dum passeio, foi contemplado atentamente, de modo que, cheio de confusão, bateu em retirada para dentro de portas. Então o primeiro chegado tirou o livro de notas, e tendo, com a assistência do carpinteiro, medido o pátio, foi-se embora. As crianças, depois de ter apupado esta desapontadora conclusão da cena e forçado Smith a deixar a janela apressadamente por lhe dirigirem demonstração semelhante, também retiraram, e deixaram Dodds Buildings na sua solidão costumada.
Na manhã de segunda-feira, quando Smith estava no pequeno almoço, bateram à porta e Mrs Froster entrou. Smith, que se congratulava todos os sábados por se ver livre da senhoria durante mais uma semana, olhou para ela com pressentimento igual aos que usualmente excitam a carta sobrescritada por mão desconhecida, ou a amabilidade súbita nos modos de tratar dum conhecido distante.
"Desejava falar-lhe, se tivesse tempo, Mr Smith", disse a senhoria; "venho despedi-lo."
"Despedir-me!" ecoou Smith. "Quer dizer pôr-me na rua?"
"Lamento muito", disse Mrs Froster, um pouco assustada pela severidade involuntária do tom do inquilino; pois tinha algum medo dele, estava sempre tão quieto; "mas vendi o meu aforamento; e a casa vai ser deitada abaixo."
132
"E quando me devo mudar?" disse Smith.
"Acabo de receber o aviso de que a casa deve estar vaga deste sábado a oito dias", replicou a senhoria.
"Pois bem", disse Smith, resignando-se, "suponho que tenho de procurar alojamento. Alugou outra casa, Mrs Froster?"
"Em Londres não, Mr Smith. Penso em instalar-me no campo. Passei nesta casa quási vinte anos; e não me sinto com gosto para montar outra."
"Mas não pensa que vai achar o campo muito aborrecido depois de ter estado tanto tempo na cidade?"
"Sempre vivi no campo quando rapariga, Mr Smith, e lá fui criada. Posso mesmo dizer que tenho estado à espera de ocasião para lá voltar. O pensamento de ir viver perto de Angel - isto é, Mrs Summers, tia de Harriet - tal como outrora, tem-me encorajado muitas vezes. Quer dizer", acrescentou Mrs Froster, "tem-me levado a orar; e a oração deu-me forças."
"E Miss Russell? Vai consigo?"
"Pensa em instalar-se à parte em Richmond", disse Mrs Froster, sorrindo de modo muito desagradável para Smith; "se nada acontecer, é claro, que mude os seus projectos, é o melhor que tem a fazer."
Smith começou a desejar a partida da senhoria.
"Julgo que vai deixar a casa com alguma saudade: passou nela tanto tempo," disse ele.
"Esta casa tem-me dado muito trabalho", disse Mrs Froster; "e eu não chego a saber se tenho pena de a deixar, ou se me alegro que a deitem abaixo. Antes de se falar em venda, pensava todos os anos que já não podia viver nela por mais tempo; mas agora parece-me estranho ser posta fora dela quer queira, quer não. Tenho mais razão para ter saudades dos inquilinos do que da casa, pode-se assim dizer, Mr Smith. O senhor deu-me sempre muita satisfação; e estou certa de que Harriet lhe deve muito por tudo o que lhe ensinou."
Quando Smith voltou para casa naquela tarde, pensou que o seu quarto já se lhe afigurava estranho. Na véspera, a sua residência em Dodds Buildings parecia fazer parte da ordem da natureza. Agora esbatia-se numa experiência incidental, cuja própria realidade parecia duvidosa.
133
"Pois bem, Rosa", disse Smith, quando lhe trouxeram o seu chá, "já ouviu a novidade?"
"Já, sim, senhor", disse Rosa, mostrando os dentes; "vão deitar a casa para a rua."
"Tem pena?" disse ele.
"Eu cá não me ralo", replicou Rosa. "Arranjo facilmente coisa melhor."
"Ainda bem", disse Smith. "Miss Russell está agora lá em baixo?"
"Miss Russell? Ai não! Foi hoje de manhã para Richmond. Já não mora cá até que Mrs Froster se vá embora e a casa seja entregue aos homens das obras. Virá de vez em quando ajudar-nos com as coisas; mas já levou tudo o que era dela."
"Ah sim!"
"As mudanças são uma coisa muito incomodativa."
Smith concordou e Rosa retirou-se depois de se demorar o tempo bastante para lhe dar a oportunidade de lhe pedir que partilhasse da sua sorte futura, se a isso estivesse disposto, pois, embora uma declaração da parte de Smith a surpreendesse mais do que de qualquer outra pessoa conhecida, contudo o hábito de seguir o progresso simultâneo de cinco romances diversos num jornal hebdomadário, tinha-a preparado para todas as contingências matrimoniais possíveis.
"Pois bem", disse Smith, mal ficou só, "não há absolutamente razão nenhuma para que ela me tivesse contado os seus negócios. Cada qual segue a sua vida; viva quem é prático!"
Durante o resto da tarde, ficou um bocado perturbado pela reticência da modista, e bastante pela questão de alojamento e também com a soma apropriada para oferecer de presente a Rosa quando partisse.
Depois de deixar o escritório de Figgis e Weaver, no sábado seguinte, foi de comboio a South Kensington; daí, virando em direcção ao rio, pôs-se a observar as janelas das casas à procura do cartãozinho que indica quartos para alugar. Depois de atravessar Fulham Road, cartão após cartão convidava-o a informar-se dentro; mas passava adiante, não podendo decidir-se; e parecia-lhe que quanto mais longe ia, pior se achava. O alinhamento das casas degenerou em fila de lojas, das quais se desviou para contemplar os arcos botantes da igreja de S. Lucas, a cuja
134
sombra resolveu não morar. Pouco depois de a ter deixado para trás, chegou ao rio, onde, lendo a placa do canto, descobriu que estava em Cheyne Walk. O nome sugeria a Smith poetas, artistas, filósofos, velhas casas pitorescas, porcelana azul e branca, pontes de madeira, molhes flutuantes e vapores de viagens a dinheiro cada. Resolveu procurar quarto em alguma das ruas menos pretenciosas que se afastavam do rio. Rejeitando Oakley e Beaufort Streets de aparência dispendiosa, e outras por serem pouco mais do que becos, finalmente entrou numa via estreita denominada Danvers Street, Paulton Square. No número 90 informou-se, e mostraram-lhe dois quartos, cada um dos quais lhe pareceu ter as dimensões dum forno, guarnecidos com o essencial no género barato e frágil, e, que contrastavam desfavoravelmente com a solidez da mobília de Mr Froster. A senhoria era mulher nova, que, em circunstâncias mais felizes, poderia ter parecido bonita e simpática, mas cuja expressão denotava o cansaço do trabalho e a mansidão. Os seus modos tímidos agradaram a Smith, depois da amabilidade constrangida de Mrs Froster, em cuja presença ele nunca se sentia livre de apreensão. Chamava-se, disse-lhe, Amélia Tilly, e o marido era engenheiro, o que subsequentemente veio a averiguar-se querer dizer operário metalúrgico. Tinham um filho; mas como era a mais quieta coisinha do mundo e já tinha tido tosse convulsa, não havia perturbação a recear dele. As salas estavam ocupadas por um fotógrafo muito respeitável, cuja mulher tinha boas relações e algumas vezes tocava piano e cantava à noite, mas não o bastante para incomodar. A renda seria sete xelins e seis dinheiros por semana. Era pior negócio do que o que fizera com Mrs Froster; mas a proximidade de Cheyne Walk era compensação suficiente para Smith; por conseguinte alugou os quartos sem discutir, pagando imediatamente a renda duma semana a fim de poder mudar as suas coisas para lá em qualquer dia da semana seguinte que lhe parecesse mais conveniente. Mrs Tilly pensou que Smith era rapaz bem educado, de boas maneiras e bem falante, o que a consolou de não ter ousado pedir-lhe referências.
Embora o quarto de Smith em Islington fosse alugado de sábado a sábado, Mrs Froster não quis de modo algum receber a renda da parte da semana que ele pretendia lá
135
passar antes de se mudar. Por conseguinte sentiu-se obrigado a colocar-se à disposição dela para fixar a data do seu êxodo. A combinação a que chegaram foi a seguinte: na quarta-feira, Mrs Froster mudaria as suas coisas para Richmond, à excepção de alguma mobília que tinha separado para enviar ao leiloeiro, e que incluía a do quarto de Smith e a da sala onde se tinham dado tantas lições de francês. À tarde Miss Russell servir-lhe-ia o chá: uma determinação para a qual não havia necessidade, mas que em terreno sentimental, era agradável a todos os interessados. A seguir escoltá-la-ia ao comboio das oito e meia. Quando voltasse, Rosa seria recambiada para casa do pai e Smith dormiria só e pela última vez em Islington. Na manhã seguinte abriria a porta a uma mulher a dias; tomaria para pequeno almoço uma refeição de leite e pão preparada na véspera à noite; daria a bagagem ao carregador e à tarde seguiria directamente do escritório para Chelsea.
Todas as considerações acerca dos movimentos de Fenwick se tornaram supérfluas por ele ter, no domingo à noite, praticado um feito popularmente conhecido por "despedir-se à francesa". Aproveitando-se da ausência da senhoria, com o resultado usual duma visita de Rosa ao seu lugar de hortaliça favorito, vestiu todas as camisas tanto de dia como de noite, que possuía, uma sobre a outra, e pôs nas algibeiras três peúgas, dois lenços, um par de pantufas, uma escova, um pente, e uma esponja molhada; tudo isto dava linha excêntrica à sua figura. Carregando um embrulho de papel pardo debaixo do braço, que continha, entre outras miudezas, as cautelas em duplicado das suas vestimentas exteriores disponíveis, que ele havia empenhado na véspera, depositou a sua chave de trinco na prateleira do vestíbulo, e escapuliu-se. Quando Mrs Froster voltou a casa, os únicos resquícios visíveis do seu hóspede eram a chave de trinco, uma garrafa vazia, e uma miniatura, esquecida na fuga, representando uma linda criança de caracóis doirados, olhos azues e uma expressão inteligente, sentada, vestida com um elegante fato de veludo, tendo ao lado um tambor. Era este o retrato de Fraser Fenwick com a idade de seis anos.
A segunda e a terça-feira passou-as Smith em estado de inquietação que seria intolerável se não fossem as distracções
136
do trabalho. Chegou então o grande dia e ele encontrou-se ao almoço inconfortavelmente à espera do aparecimento da senhoria. Não esperou muito tempo. Mrs Froster, com o seu costumado bom governo de casa, tinha tudo pronto para o carregador de véspera; envergava agora o seu fato de ver a Deus de seda preta, para superintender a mudança e entrar com dignidade na sua nova casa.
"Bem, Mr Smith", começou ela, graciosamente confusa: "venho dizer-lhe adeus."
"Alegro-me imenso no seu interesse, e sinto muito no meu", disse Smith.. O discursozinho cairá bem.
"Decerto que não", disse Mrs Froster. "Quem me dera a mim ter sempre pessoas como o senhor em minha casa. Deve ter ouvido como Mr Fenwick me tratou?"
Smith ouvira. Rosa inquirira amargamente dele se era por sua culpa que os hóspedes fugiam, pois grande parte da indignação de Mrs Froster passara sobre ela por se ter ausentado tão inoportunamente.
"Julgo que se foi embora sem nada lhe dizer."
"Foi-se embora sem me pagar", disse Mrs Froster. "Linda coisa para um cavalheiro!"
"Não creio que Mr Fenwick fosse um cavalheiro," disse Smith gravemente, ansioso por concordar com ela.
"Quanto a isso nada sei", disse Mrs Froster. "Sei que tinha relações com muito boa gente. Quando criança, era bastante querido de Lady Geraldina Porter. Contou-me um senhor incapaz de mentir, e que conhece alguns dos seus parentes, que ela o deixava brincar na sua casa de campo como, um dos seus próprios filhos."
"Ele não parece ter lucrado muito com essa convivência da aristocracia", disse Smith.
"Se somente tivesse sido despertado para seu bem", replicou Mrs Froster, "teria um lindo futuro. Mas tinha de ser doutro modo, e ele esqueceu-se de si próprio. Pensou que podia beber, e jogar, endividar-se por vestimentas finas como se fosse na verdade homem de boa estirpe. Contudo, já se foi; e eu suponho que tenho de consolar-me com a minha perda. Para dizer a verdade, não tenho pena de me ver livre dele. Não se parecia nada consigo, Mr Smith. Sua mãe - se não se importa que lho diga - deve ter sido uma mulher feliz e orgulhosa de si."
137
Smith corou; mas não tendo consciência de ter sido entusiasticamente apreciado pela falecida Mrs Smith, nada disse. Seguiu-se uma pausa, durante a qual procurou em vão por uma observação natural, e Mrs Froster brincou com a cadeia do relógio.
"Então", disse ela por fim, com esforço. "Até à vista".
"Até à vista, Mrs Froster", disse Smith. Apertaram-se as mãos calorosamente; e enquanto ele debatia consigo próprio se seriam necessários mais cumprimentos, ela deixou o quarto.
"Afinal de contas", disse Smith, muito aliviado, "ela tem tão bom natural quando quer. Graças a Deus, acabou-se a provação!"
O número 3 de Dodds Buildings parecia mais desolado do que nunca naquela tarde. As cortinas e as sanefas tinham desaparecido; o único degrau diante da porta apresentava-se enlameado; e poejos de palha e pedaços de guita espalhavam-se pelo chão. Dentro, as escadas não possuíam passadeira, e o vestíbulo estava privado do oleado. As janelas da escada apresentavam-se desmanteladas; em todos os patamares, as portas abertas revelavam vistas desanimadoras de soalhos nus e portas de madeira despidas. A novidade deste espectáculo alegrou Smith. Sentiu que já não existia o abafamento do lugar; e o romance das tábuas nuas, nas quais batiam e rangiam as suas botas, tentou-o a cantar tão alto quanto pôde. Adiando a gratificação deste impulso até estar sozinho no edifício, foi para o quarto, que encontrou muito deteriorado na aparência pela falta da mesa e do espelho. Quando desceu à sala, encontrou Miss Russell a colocar uma cobertura acolchoada, parecendo, na forma, uma colmeia em cima da qual uma pessoa pesada tivesse estado sentada, sobre o bule do chá. Sentindo que a ocasião era uma daquelas em que intervalos de silêncio são canhestros, começou imediatamente a conversar.
"A casa está muito esquisita, não está?" disse ele.
"E porque a mobília foi retirada".
"Muito provavelmente", concordou Smith, reprimindo uma inclinação súbita para lhe atirar a leiteira à cabeça. "Aquele génio inspector já tornou a voltar - quer dizer o homem que vai deitar abaixo a casa?"
"Não", disse ela, com interesse. "Eu até gostei dele.
138
Parecia um homem quieto, sensato, habituado à prática."
"O que quer dizer", disse Smith, "que é tão acanhado de espírito quanto a sua profissão."
"Ou que tenha talvez tido a energia de aprender uma profissão que esteja a calhar para ele."
"Pode ser que sim. Teve, no entanto, muita sorte em o poder fazer."
"Não vejo nada que possa impedir alguém de fazer o mesmo."
"Ninguém o faz, excepto os que têm um dilema diante de si", disse Smith; "mas tome o meu caso por exemplo. Em primeiro lugar não sei que profissão me iria bem; e a seguir, se eu o soubesse, eu não teria meios para a seguir."
"Não pode arranjar um emprego público?" disse Harriet.
"Não, não posso", disse Smith.
"Porquê?" disse ela, no seu modo calmo e persistente.
"Porque", replicou ele, "teria de passar um concurso."
"E então? O senhor decerto poderia passar qualquer exame."
Smith sorriu complacentemente.
"E o que pensa", disse ele; "mas homens que têm longo treino em estender as pessoas com perguntas idiotas, não podem ser afrontados sem preparo especial e sob a direcção dum perito. Custar-me-ia o trabalho dum ano e o rendimento doutro, pelos cálculos mais baixos, para alcançar emprego, mesmo no fisco. Se eles me pusessem no escritório por eu mostrar que posso fazer trabalho de escritório, muito bem: estou pronto. Mas só mo darão com a condição de provar a minha habilidade em fazer qualquer outra coisa. Por consequência, não tenho probabilidades e como outros homens pobres e racionalmente educados, sou obrigado a ficar no frio exterior. Além disso, sobre fundamentos morais, recuso a submeter os meus méritos a uma prova falsa. De facto, estou amarrado de pés e mãos pelas circunstâncias. Nada posso fazer."
"Você tem bastante inteligência para defender tudo o que faz; e receio que é tudo quanto a sua esperteza jamais fará por si", disse Harriet.
"Pois bem", disse Smith, "que acha que eu devo fazer?
139
Executo a escrita de uma loja de tapetes. Ganho para meu sustento. O que mais quere"
"Vá para diante; e ponha negócio por sua conta",
"Essa noção de "ir para diante"", disse Smith dogmaticamente, "é uma ilusão muito espalhada..."
"Vejamos, de que serve falar assim?" rogou Harriet, interrompendo-o quási com impaciência. "Talvez não goste que eu fale tão abertamente acerca da sua vida."
"Que ideia!" disse Smith. "Provar-lhe-ei no mais claro dos modos..."
"Não adianta nada provar seja o que for diante do senso comum. Sei que aqueles que se metem a fazê-lo vão para diante e abrem caminho no mundo."
"É verdade; mas suponha que não vale a pena meter-se a fazê-lo. Suponha que se diverte mais ficando fora da corrida do que lutando nela, passando a vida a empurrar e a ser empurrado."
"Será deixado para trás, e escarnecido, e depois lastimá-lo-á. É só isto."
Smith encolheu os ombros e não replicou. Naquele momento sentia-se capaz de desafiar e desprezar todos os atiradiços práticos do mundo. A opinião sobre a vida expressa por ela era-lhe familiar tanto pelas suas próprias reflexões, como pelos conselhos dos outros; e ele havia decidido há muito que tal ponto de vista não concordava com o seu temperamento. Além disso, a acusação de ser pouco prático era das que julgava não merecer. Soubera, por um conhecimento da City, que Figgis o julgara como sujeito persistente, com grande talento para os negócios, e seguro de ir para diante; e, embora se risse da simplicidade de Figgis, isto ajudava-o a persuadir-se de que era elevação de gosto, e não falta de capacidade, que o havia levado a desprezar a sua ocupação diária.
"Suponho que vai abandonar agora as suas leituras, o seu francês e tudo mais", disse ele depois de uma pausa, "e entregar-se completamente aos negócios."
"Por que faria eu isso, depois de lhe ter dado a canseira de me ensinar? A princípio terei menos trabalho regular do que o costume até arranjar clientela em Richmond."
"Vai ter casa própria, ou viverá com Mrs Froster?"
"Mrs Froster vai viver numa casinha na propriedade de
140
Mr Grosvenor. Aluguei o andar superior duma casa na cidade, onde pretendo de futuro viver sozinha e comerciar por minha conta. Os quartos estão sobre uma confeitaria e a sala tem janelas envidraçadas e fará uma boa sala de exposições. Ficarei perto da minha tia Angel e de Mrs Froster, mas perfeitamente independente. Quer dizer, se for bem sucedida."
"É uma aventura ousada", disse Smith duvidosamente; "mas será com certeza bem sucedida,, se a princípio poder aguentar-se."
"Com o que tenho economizado, e a pequena soma que me deixou meu pai, poderei manter-me por mais de um ano; espero já ganhar para as minhas despesas antes disso. Já tenho trabalho de três senhoras."
"Será bem sucedida, não tenha medo," disse Smith, com entusiasmo. "Independência, iniciativa, operosidade nunca falham. Não lhe posso dizer como a admiro por abrir o seu caminho tão resolutamente deste lugar desgraçado, e tornar-se a sua própria patroa. Enoja-me ver idiotas e criaturas irresolutas fossando no mesmo caminho batido, nunca encontrando a energia de agarrar o destino pela garganta e de se conduzirem para uma esfera de actividade livre."
"Porque não olha para a sua própria vida desse modo Mr Smith?"
"Deixe lá a minha vida", disse Smith. "A sua interessa-me muito mais. Talvez faça planos algum dia, quando vir o meio de os fazer. Vê? Tem sobre mim uma vantagem: sabe fazer vestidos. Muito poucas pessoas sabem fazer vestidos. Eu só sei fazer escritas. Qualquer idiota pode fazer escritas. Por conseguinte os nossos negócios não são os mesmos; e olhar para eles do mesmo modo só acarretaria confusões."
"Pois bem, eu não nasci a saber fazer vestidos."
"Desculpe-me", disse Smith, que odiava que lhe trouxessem persistentemente diante dos olhos as suas circunstâncias materiais; "mas nasceu. Tinha o gosto e o jeito requeridos, e só precisava de aprender a técnica do fio e da agulha a fim de lhe encontrar o canal apropriado. Contudo, admitamos que sou uma criatura fraca..."
"Não disse nada disso", disse a modista apressadamente, corando com esta expressão concisa do seu pensamento.
"Está então a discutir acerca de coisa nenhuma", disse
141
Smith. "Creio que vou beber outra chávena de chá." Seguiu-se um daqueles silêncios acanhados, que ambos receavam, Smith pensou que a conversa, para uma última entrevista, mantivera-se até agora pouco sentimental, e ansiava por exprimir, de qualquer modo, o sentimento que lhe inspirava a sua separação. No entanto não se podia satisfazer quanto à prudência disto, diante da dura disposição dela e dos seus cinco anos de vantagem.
"Gostaria de saber", disse ele por fim, "se jamais nos tornaremos a ver?"
"Porque não? Richmond não é a Austrália... A menos que nunca lá vá".
"Nunca lá vou", disse Smith.
"Então", retorquiu a modista, "suponho que nunca mais nos veremos,"
"Por conseguinte", continuou Smith, "se de futuro lá for, será apenas com o propósito de a ver. O que, embora talvez não goste de o dizer, não lhe seria completamente agradável."
"Se assim pensa", disse ela secamente, "pode muito bem ficar em casa." Tocou então a campainha e ocupou o intervalo que decorreu antes da aparição de Rosa a vestir o casaco e a pôr o chapéu, (1) enquanto Smith deplorava o insucesso para se aproximar do aspecto patético da sua posição, e meditava se as suas observações teriam sido amáveis, a propósito ou brutais e do pior dos gostos.
Rosa, que apareceu para retirar as coisas do chá, deixadas por ela com a determinação particular de a mulher a dias as lavar, conseguira inflamar os olhos secos o suficiente para apresentar uma aparência decente de tristeza por deixar a patroa. Este tributo considerava ela devido à generosidade de Miss Russell em dar-lhe vestidos do seu guarda-roupa; custou-lhe isso alguma dissimulação laboriosa. Pois, sendo rapariga de expressão alegre e de boa tez, não lhe era fácil parecer triste na eminência da
(1) No texto vem a palavra bonnet, equivalente a capota (N. do T.).
Naquele tempo as mulheres usavam na cabeça umas coisas chamadas capotas. No zénite do seu desenvolvimento vitoriano, cerca de vinte anos antes, a capota era um toucado espantoso. A mulher da pintura de Ford Madox Brown Os Emigrantes traz a capota autêntica e o chaile. (N. do A.).
142
liberdade, mudando de cenário, e aparecimento público das suas novas vestes.
"Pode levar o tabuleiro para baixo, Rosa", disse Miss Russell. "As minhas botas estão prontas?"
"Estão sim, menina", replicou Rosa em voz desolada. "Trago-as para cima?"
"Não", disse Miss Russell. "Eu irei para baixo. Tenho algumas coisas a dizer-lhe antes de partir." E assim deixou a sala. Rosa seguiu-a a fungar. Smith subiu para ir buscar o chapéu, pensando, no entretanto, que, se não chegasse a um entendimento mais feliz com a sua antiga aluna antes de atingirem Kings Cross, separar-se-iam provavelmente em termos muito dúbios. Ela estava à espera dele no vestíbulo quando desceu, e saíram juntos.
"Acha a casa mais interessante agora que está a olhar para ela pela última vez?" disse ele.
"É a mesma de sempre. Só presta para ser deitada abaixo. Encontrei o madeiramento neste estado lastimoso quando tirámos os móveis. Não deve ter sido muito bem construída."
"Não, suponho que não. Esta noite está bastante quente para Fevereiro."
"Pois está."
Nem mais uma palavra passou entre eles até chegarem à plataforma de Kings Cross, e mal o tinham feito chegou um comboio.
"Segundas atrás, terceiras adiante. Comboio para Baker Street, Bayswater, Vitória!" vociferavam os carregadores.
"Echo, Globe, Evening Standard", cantava o garoto dos jornais.
O metropolitano não admite despedidas demoradas. Ele escolheu-lhe um compartimento à pressa. Apertaram-se as mãos; e Smith, sem sentir nenhum afecto preliminar de comoção, surpreendeu-se por achar lágrimas nos olhos. Enquanto o comboio partia numa salva de bater de portas, viu no seu último baixar de cabeça todo aquele encanto oculto que primeiramente o tinha atraído para ela e que desde então, na sua familiaridade, havia olhado como desilusão romântica. Foi-se então embora, notando a fuligem da estação e imaginando quanto tempo levaria um só homem a limpá-la. Tentou despedir esta ideia impertinente, em
143
parte porque queria pensar sobre a modista e em parte para que não lhe voltasse nalgum pesadelo. Mas não se queria ir embora; pois não pensou em mais nada, senão em oscilar com tonturas numa escada de mão entre as traves fuliginosas, tentando limpá-las com uma toalha e um alguidarzinho de água, até chegar a Dodds Buildings.
Foi para a sala, e sentou-se diante da lareira para pensar na mudança das circunstâncias. Achando, dois minutos depois, que a sua atenção divagava e que uma certa faceciosidade sem fito predominava sobre os sentimentos que pareciam próprios da ocasião, arranjou um livro, e começou a ler. Rosa apareceu cerca duma hora depois a pedir que a ajudasse a carregar a mala da copa que lhe servia de quarto de vestir; e ele imediatamente se encontrou no lanço de escada abrupto, puxando pela extremidade mais alta da pesada mala, à procura do meio termo entre quebrar as canelas e precipitar-se sobre ela de cabeça para baixo por cima da mala. Quando a propriedade dela ficou depositada no vestíbulo, a criada informou-o de que a mandaria buscar no dia seguinte e de que se ia agora embora. Smith, após isto, com muitas dúvidas acerca da mesquinhez do donativo, presenteou-a com três meias coroas, as quais ela, muito satisfeita, agradeceu permitindo aos seus membros que baixassem, retomando a posição primitiva depois de terem mergulhado cerca de doze polegadas.
"Até à vista, Rosa", disse Smith, abrindo-lhe a porta.
"Até à vista, senhor Smith", disse Rosa, corando e partindo.
Smith voltou ao livro e leu até depois das onze horas. Pegou então na vela e examinou a casa. Embora lá tivesse vivido por mais de um ano, havia muitos quartos em que nunca entrara. Primeiro, desceu à cozinha, onde examinou as gavetas do armário, e bateu a porta do forno. Passando daí à casa de lavagens, suspendeu a tampa da caldeira e espiou para dentro. Voltando à cozinha, foi às coisas do chá que Rosa deixara sobre a mesa, e bebeu o conteúdo restante da leiteira. Feito isto, riu ruidosamente, e subiu ao andar de cima onde encontrou a sala de visitas desarrumada e o compartimento vizinho ainda redulente do tabaco barato de Mr Fenwick. Visitou a seguir o quarto antes alugado por Harriet Russell, que só vira
144
uma vez antes. Achava-se já completamente vazio e não havendo agora nada que o retivesse em se aproveitar da sua ressonância, ergueu a voz e cantou The Heart Bowed Down com muita expressão. Quando se cansou de cantar, retomou a sua inspecção do edifício e retirou-se para ter algum descanso, com o sentido agradável de ter passado uma noite alegre.
Ás sete da manhã, foi acordado pelas pancadas da mulher a dias. Levantou-se contra vontade e fê-la entrar. A hora seguinte, consagrou-a a completar a toilette e a amarrar as malas. Às oito e meia veio o carregador e levou-as. Smith olhou então pela última vez para as flores azuis do papel da parede; entregou a chave de trinco à mulher a dias e saiu pela arcada. Vivera em Dodds Buildings um ano e dois meses.
145
SEGUNDA PARTE
ESTÉTICA
CAPÍTULO I
Mr Halket Grosvenor, de Perspective, Richmond, era patrono beneficiente e hospedeiro agasalhador de artistas pertencentes a todas as denominações. Era homem de feitio agradável. Borboletear era o que se dava melhor com a sua constituição mental. Sentia que lhe ficava bem admirar a diligência e a força, mas, achando que estas qualidades colidiam áspera e censuravelmente demais com a sua indolência luxuosa, evitava-as e enfrentava-as simultaneamente, atribuindo-as aos trabalhos a que só se poderiam considerar afectadas. De vez em quando cansava-se do seu diletantismo. Organizava então classes de costura, cozinhas económicas, e instituições para protecção às raparigas inglesas que estudassem música em Itália. Mas como estas só lhe ocupavam a cabeça por cerca de três dias e a mão por outros tantos minutos a assinar cheques, cedo recaía na sua rotina de campo, cidade, continente, galeria de pintura e ópera, com as igrejinhas e modas artísticas concumitantes.
Fisicamente, Halket Grosvenor era homem alto, de longa barba luzidia, cabelo encaracolado, com adaptação do nariz romano. Aos trinta e cinco anos de idade, o seu olhar húmido de carne esponjosa havia perdido o fogo e a dureza da origem; e o contágio da moleza em que ia entrar ainda não se pronunciara desagradavelmente. Chamavam-lhe um gourmet perfeito: em inglês, um glutão fastidioso. Como preliminar para cada refeição, engolia um copo de Curaçao; consequentemente estava mais avançado na força da vida do que o seu guarda-caça, que tinha mais quinze anos. Pagara a quási todos os artistas distintos da Europa lições em todos os ramos da arte. Aos vinte, pintara um quadro da escada de Jacó, e este trabalho, muito apagado por causa do uso liberal que fizera de peguimentos brilhantes mas pouco estáveis, ainda pendia em certa sala de Perspective, onde criava bastante divertimento para lhe conferir celebridade tão espalhada quanto a reputação pessoal de pintor. Começara muitos trabalhos depois disso, mas continuavam,
149
inacabados, e, nos últimos anos, Mr Grosvenor deixara de falar até das suas intenções a respeito deles. Sentia muito agudamente todos os sarcasmos sobre o seu talento de músico e de pintor; e isto era tão bem compreendido que raras vezes sofria com eles. Por outro lado recebia todas as expressões sobre a sua excelente hospitalidade com bom humor, replicando às mais impertinentes sugestões quanto ao arranjo da sua casa com gracejos à sua própria custa, e contos cómicos sobre as inconveniências sofridas por hóspedes anteriores como consequência da sua sovinice ou negligência. Este aspecto da sua disposição era-lhe particularmente útil, embora parecesse que um homem, ao receber a sociedade polida, mal podia ter ocasião de a demonstrar; pois em primeiro lugar qualquer espécie de talento, mesmo não associado necessariamente a boa educação, tinha admissão em sua casa; a seguir achava que os seus artistas favoritos não possuíam delicadeza instintiva. A sua riqueza era grande; e, para ele, a economia efectuada por um não-resoluto não valia o desagradável de ter de o dizer ao mendigo de boas maneiras.
A primeira grande festa do ano em Perspective teve lugar na semana da Páscoa. O domingo de Páscoa à tarde foi dedicado a um congresso artístico em que nenhuma das pessoas do largo círculo de conhecimentos de Mr Grosvenor se empenhava em primar pela ausência. Foi antecipada com orgulho e cuidado misturados pela governante, que tinha de preparar a casa para conseguir o conforto dos convidados, e presidir a uma mesa onde o chá era tomado por grupos sucessivos de senhoras.
O plano de recepção de Mr Grosvenor era simples. Quando esperava grande reunião, abria o corpo da casa" que consistia num bonito vestíbulo cuja cúpula se achava decorada com combinações fantásticas de oiro e cores brilhantes, aparentemente dispostas ao acaso. Na extremidade deste vestíbulo estava a luxuosa escada que levava a uma galeria, pela qual havia acesso a muitas bonitas divisões. Algumas destas eram salões forrados de veludo do qual pendiam grandes quadros de molduras doiradas e maciças a distâncias suficientes para o isolamento de cada uma. Outras tinham paredes de damasco azul pálido e florido, socos, pintados com procissões de pálidas donzelas desfolhando
150
flores, lendo livros, olhando estaticamente para cima, olhando contemplativamente para baixo, tocando guitarras abortadas com curva expressiva de pescoço e dos dedos, dançando, sorrindo para si próprias reflectidas em espelhos de mão, curvadas para a frente, inclinadas para trás, ou espiando, por sobre os ombros, a fímbria das saias, tudo isto num fundo de oiro velho. Estas salas destinavam-se à recepção de quadros de dimensões moderadas, tais como paisagens atmosféricas, estudos, representações de espírito, estações, e outras abstracções em drapejamentos diáfanos, além de Frineias e Faustinas sem drapejamentos nenhuns, e Margaridas de vestidos azuis, cofres ornamentados e alças. Num salão, dedicado a quadros de interior movimentados da escola francesa, as paredes estavam cobertas de cetim amarelo brilhante. A mais notável das galerias forrava-se de cortinas de tom verde poeirento, cuja monotonia só se quebrava pelos seus próprios festões e dobras, pela cor e superfície do chão castanho polido. Uns poucos de canapés, da forma mais simples e cobertos de veludo muito velho do menos brilhante dos carmesins, eram os únicos objectos que interferiam com a tristeza vazia do lugar, excepto as pinturas, as mais queridas procissões de Mr Grosvenor. Representavam incidentes remotos, derivados de Mitologia, da História Clássica, do Cristianismo primitivo, ou personificação das influências. Algumas delas, pela pureza da intenção e evidência que esforço laborioso para atingir regiões onde até a glorificação honesta na habilidade técnica seria elemento demasiado terreno, tornavam-se bem-vindas ao espectador capaz pelo apelo duplo da sua fraqueza disfarçada à sua simpatia, e a sua beleza magistral e trabalhosamente ganha à admiração própria. O resto, mais imitações destas, representavam personalidades vazias com aquele aspecto vago e olhar distinto, que na natureza é sintoma de uma forte constipação na cabeça. Estavam tolamente concebidas, mal interpretadas. Na extremidade da galeria, em frente da entrada, o visitante poderia erguer a cortina verde e passar para uma pequena sala constituída por veludo púrpura escuro. Aqui pendia um quadro de tamanho enorme, pintado por Tintoretto, cujo poder de insolência contrastava tão fortemente com as obras da galeria vizinha como as suas luxuosas cercanias purpúreas com as demasiadas
151
cortinas verdes. Todas estas divisões tinham tectos de vidro, sanefas e biombos com os quais a luz podia ser regulada com a passagem das horas.
No andar de baixo, junto à nave do grande vestíbulo, estava a sala de música, mobilada e ornada de carvalho escuro. As cadeiras representavam o mais moderno estilo de antiguidade; as folhas de vidro da janela arcada não tinham mais de um pé quadrado; a lareira era alcova de boas proporções, enquadrada em madeira esculpida que atingia o tecto; os lambris das paredes estavam decorados com espécimes de porcelana antiga; e a caixa do monstruoso piano, de manufactura americana, fora especialmente desenhada por artista iminente e cobriam-na arabescos e assuntos com pequenas personagens, pintados a óleo em fundo de oiro pálido e branco. A um canto, que podia, se quisesse, ser exclmuído do resto da sala por tapeçarias de Arras, encontrava-se o pequeno órgão de desenho tão antiquado como aquele com que um fabricante moderno pode ver-se obrigado a conformar-se. Perto, uma estreita janela gótica fendia a parede, pintada de maneira a representar S. Cecília a ouvir estática um querubim que, elevando-se triunfante através do ultramarino celeste, cantava acompanhado por duas harpas e flautas de Pã; os executantes, que eram anjos, estavam sentados em nuvens.
Além destas, havia muitas outras salas circundando o vestíbulo, salas pintadas, lambrizadas, almofadadas, atapetadas, azuis, verdes, doiradas, com pavões, flamingos, gaios e outros pássaros magníficos pintados nas paredes. Taças, pratos, castiçais e estatuetas e esboços havia-os por toda a parte. O efeito artístico, pelo qual se lutava cientemente, aparecia a cada passo.
As necessidades corporais satisfaziam-se em alguns quartos ocupados por bufetes, onde os convidados se desalteravam nas grandes reuniões sem cerimónia, conforme as suas inclinações. As assembleias da tarde eram, na verdade, tão numerosas que apanhavam o grande vestíbulo e o relvado fronteiro, que, para qualquer outro método, de recepção, seria extremamente inconveniente, senão impossível. Cada qual podia perder-se na multidão, vaguear pelas galerias, empanturrar-se nos bufetes, ser sociável, solitário, obscuro ou conspícuo, exactamente como melhor lhe agradasse.
152
Aqueles para quem a cerimónia é tão necessária como os grilhões ao antigo prisioneiro, não se encontravam entre os frequentadores de Perspective; ou, se por acaso tal pessoa aparecia, não repetiria a visita. Quem desaprovasse chapéus de feltro, roupas de tweed ou de velvetina, cabelo comprido, música ao domingo, pinturas de nu, mulheres literatas, e confissões de agnosticismo, ou dissimulava ou não ia lá; e assim todos os elementos antagónicos à boémia idealizada do lugar mondavam-se a si próprios. Ocorriam algumas vezes incidentes desagradáveis, mas eram daquela espécie de que sociedade nenhuma está isenta. Por exemplo: as estufas só eram abertas quando se podia contar com a guarda suficiente de jardineiros para impedir a apropriação em larga escala das flores; os objectos de dentro de casa especialmente tentadores para coleccionadores maníacos estavam debaixo de vidros e também fechados a sete chaves. Alguns roubos insignificantes eram de vez em quando feitos indulgentemente por algumas das senhoras; e, uma vez por outra, um desses convidados recebíveis em sociedade, que são cavalheiros por acidente de nascimento e também criminosos por natureza, levantavam imposto duma cesta não vigiada da baixela do hospedeiro. Algumas vezes dois campeões de escolas rivais levavam o calor da discussão demasiado longe e iam das alusões pessoais ao insulto e à ameaça. Dizia-se que uma vez certo poeta, ainda jovem, furioso pela aspersão do crítico que tinha, no meio dum círculo de jovens e belas mulheres, atribuído a sua inspiração ao delirium tremens, não só deitou por terra o seu caluniador, mas ia fazer passar o cortador de relva sobre o seu corpo, quando foi agarrado por certa condessa corajosa que lhe esbofeteou as orelhas e imediatamente se tornou famosa nas anedotas. Mas, no conjunto, as reuniões, considerada a sua numerosidade, composição promíscua, e expressão livre de opinião que imperava, eram bastante harmoniosas, pois até contribuíam para formar bom entendimento entre partidários acostumados a fazerem-se guerra noutros lugares com toda a virulência permitida pela ausência dos seus opositores.
153
CAPÍTULO II
Antes das duas e meia da tarde do Domingo de Páscoa, Perspective encontrava-se já cheia de visitantes. Entretanto, encaminhava-se para lá, pela estrada, um rapaz cujo vestuário se apresentava suficientemente inconvencional para lembrar que se trataria dum dos artistas hóspedes de Mr Grosvenor. Vestia jaqueta curta e larga de cor parda, que trazia desabotoada. O chapéu obedecia à moda suíssa e fora fabricado com feltro da mesma cor do vestuário. A mão direita empunhava a sombrinha como se fosse uma espada; a esquerda ocultava-a na algibeira. O cabelo era castanho muito escuro, empilhando-se no alto da cabeça, cujo desenvolvimento occipital se assinalava bastante. As feições apresentavam-se salientes e inquiritivas, a boca nervosa e as narinas estendidas, com a deliberação assertiva de próprio porte, e exprimiam a individualidade que distingue o operário do cavalheiro consumado. Era pequeno, nervoso, e, no trato familiar, cheio de generosidade.
As portas de Perspective, elevados exemplares de floreados em ferro batido, encontravam-se fechadas, mas na parede que lhes ficava próxima estava outra, mas de carvalho chapeado, provida de badalo, que o homem vestido à suíssa tocou. Uma rapariga, vestida de lã verde, com mangas golpeadas e em tufo, chapéu branco à maneira dum dos tipos usados pelas camponesas francesas, abriu a porta. O rapaz, não completamente surpreendido por aquela aparição, que levaria qualquer visitante pouco acostumado a confessar que viera interromper um baile fantástico, olhou para ela com ar crítico e proferiu um som inarticulado, que pareceu interrogativo.
"Mr Grosvenor anda no prado, senhor", disse a rapariga. "Devo enviar-lhe o seu nome, Mr Scott?"
"Não, obrigado", disse Mr Scott, e passou por baixo da varanda que ligava a porta com a avenida, graças à qual se aproximou do prado pelo caminho mais curto, que ia por entre as árvores. Aqui juntou-se a um grande grupo de pessoas.
154
Havia, entre estas, elegantes, indivíduos ostensivamente sujos e homens cujo vestuário nem preocupava os que o envergavam, nem - por consequência - qualquer outra pessoa. Havia sacerdotes, alguns vestidos tão fora da respectiva profissão quanto possível, e outros trazendo os colarinhos romanos firmados por alfinetes adereçados. Havia artistas com cabelos compridos, bochechas escanzeladas e bigodes sedosos, conversando avidamente com mulheres; artistas de barba opulenta e aspecto descuidado, falando uns com os outros. Havia jovens senhoras, engraçadinhas, mas agradáveis à vista, envergando vestidos largos, mantilhas ou roupas, que pareciam caídas do céu para elas, a escorregar dos seus ombros, e adornados com enormes laços atados por completo a um dos lados. Havia elegantes raparigas vacilando em altos tacões, a comprimirem-se na sua figura humana para mostrar a perícia das respectivas costureiras. Havia ainda as mães destas raparigas, sentadas nas cadeiras do jardim, conversando com os mancebos que tinham procurado em vão meter conversa com as filhas delas. Notava-se lá, em particular, a presença de Lady Geraldina Porter, quási quarentona, de cabelo pouco escuro, rosto agradável, gordo, mas aspecto tranquilo e bem formado. Ela, confortavelmente sentada junto do sítio onde Mr Grosvenor dava as boas-vindas a seus hóspedes, espiava Mr Scott que se aproximava devagar através da multidão, com a sombrinha na mão, a contemplar com arrogância aqueles junto de quem passava, e, de vez em quando, agitava a cabeça de maneira abrupta, em ar de reconhecimento ou de familiaridade.
"Veja Mr Cyril Scott", disse ela para um cavalheiro velho, sentado a seu lado. "Muito eu gostava que qualquer atleta desse àquele rapaz um rijo safanão".
"O quê?" disse o interlocutor dando um salto.
"Repito deliberada e prudentemente", retorquiu ela, que muito eu gostava que alguém lhe desse um safanão. Ele já não tem idade para levar açoites."
"Mas por quê?"
"Porque o seu aspecto é intolerável", disse Lady Geraldine. "Repare naqueles punhos. Que ocupações terá para vir aqui com aquela roupa ensopada em terebintina?"
"Ah!" disse o velho cavalheiro. "Estes artistinhas são
155
moços bastante descuidados. Suponho que ele esteve a pintar toda a manhã e que se enodoou com os seus óleos."
"Absurdo!" disse Lady Geraldina. "Quem ouviu jamais falar dum homem que trabalha com os punhos da camisa descaídos para baixo dos pulsos. Faz isso porque, pondo de propósito terebintina neles quando molha os pincéis, julga que fica parecendo artista."
"Oh! Oh!" exclamou um jovem que viera até às traseiras do assento e escutara esta conversa. "Conforme o costume, lá está em cima de Cyril, Lady Geraldina. É um moço esplendidamente esperto, um ilustre moço mesmo. Estive ontem no estúdio dele; executou um magnífico céu, tão lindo como qualquer de Turner, segundo eu penso."
"Quanto tempo costuma demorar-se nas suas visitas ao estúdio de Mr Scott?" perguntou Lady Geraldina.
"Por vezes toda a tarde", replicou o rapaz. "Ele é, na realidade, um belo companheiro, ainda que trabalhe como um negro. O velho Bond ofereceu-lhe quatro mil..."
"Ernesto", disse a dama, interrompendo-o, "pretende ter a amabilidade de nos dar uma opiniãozinha comum e o tempo necessário para ajustar a sua fantasia à nossa credulidade?"
"Mas garanto-lhe isto, pela minha honra, disse-me Woolly."
"Penso que teria feito melhor em ir e apreciar, meu caro", disse Lady Geraldina, olhando docemente para o interlocutor. Ele, por consequência, retirou-se, lançando um olhar rebelde para a dama quando se foi embora. Tendo-se afastado o jovem, ela continuou, "tenho a honra de ser tia deste rapaz. Quando estamos sós, ele costuma dar-me esse tratamento, mas aqui considera que o termo rebaixaria os seus anos e sabedoria. Eu gostava que o jovem Mr Scott deitasse fora aquela sombrinha. Para que é que a anda a brandir?"
"Julgo que ele é homem prometedor", redarguiu o velho cavalheiro. "Sabe que eu não sou versado em quadros, mas têm-me falado bem dele ao ouvido."
"Confesso que ele parece despejar várias canecas de cores na tela e depois considera o resultado como uma paisagem, tal como nós vemos quadros no fogo. Pelo menos, é isto o que eu posso ver. A arte atmosférica não passa de rebotalhos."
156
"Têm-me mostrado algumas produções dos "pintores desta nova harmonia", disse o velho cavalheiro, "e elas não me pareceram diferentes de certos lugares que tenho contemplado."
"Mas não são pinturas", disse Lady Geraldina.
"Não", respondeu o outro, agarrando-se com algum alívio a estas palavras: "É a pura verdade. Não são."
"Bem", redarguiu ela, "é que eles vão para as galerias, ver os quadros, e não os nevoeiros nem as saladas de lagosta."
Entretanto, Mr Scott, depois de ter apresentado os respeitos ao seu hospedeiro, entrara em casa. No vestíbulo, algumas das figuras proeminentes da última reacção artística receberam-no calorosamente, ao mesmo tempo que provocava carrancas em alguns mestres das antigas modas. Lançou uma vista de olhos pela sala de chá, onde um fornecedor napoleónico, a comandar o pelotão de criados, arrostava o ataque em força das mulheres, clamando todas pelo abastecimento do seu estimulante favorito e insidioso. Examinou em seguida uma das mais pequenas salas; encontrou aí certo número de homens encostados às paredes, atrás da fila de cadeiras ocupadas por mulheres vestidas singelamente, a maior parte já para além dos trinta e cinco, de olhar inteligente, mas não belo. No meio da sala, sentado numa grande cadeira, estava um homem a quem a testa larga, o queixo quadrado, o cabelo lustroso, a estatura ampla, e a negligência estudada da posição, davam aspecto imponente. Falava em voz sonora, com fraseado e acento estudados, como notou Scott. Este, não o conhecendo, chamou com um movimento de testa o sobrinho de Lady Geraldine, que se sentou junto.
"Macartney",, sussurrou Ernesto. "Moço extraordinariamente esperto. É a análise do Homem-Génio."
"Trata-se de cenáculo literário, na verdade?" disse Scott, olhando para o ajuntamento com desconfiança.
"Não sucede com pouca frequência", disse o homem da cadeira, "que por equívoco da verdadeira natureza desta função do espírito que nós resolvemos denominar imaginação, concepções obscuras e imperfeitas sejam muitas vezes consideradas o resultado de fantasias desmesuradamente vividas. O que se tem chamado Longínquo Afastamento
157
em arte constitui exemplo disto, e obtém-se principalmente entre pintores, que são, em regra, tão deficientes em poder imaginativo que não se mostram capazes de executar cenas, a não ser aquelas que não passam de meros agrupamentos de costumes teatrais e cores brilhantes. Esta falta de habilidade para entender o que é romântico na vida contemporânea, e a tendência para substituir o conteúdo das lojas de curiosidades antigas, representa o mais baixo abismo do sensacionalismo vulgar, e mantém-se omnipotente na arte pictorial."
Mr Scott proferiu um ronco desdenhoso e deixou a sala. Certa jovem, que fizera parte dum dos grupinhos de junto da porta, seguiu-o rapidamente. Era bonita e trazia vestido de cetim primavera e um atoalhado cinzento que adaptava cuidadosamente, como uma luva, ao seu peitilho acairelado.
"É um terrível blasfemo, Mr Scott?" disse ela, dirigindo-se ao artista, que a saudou com mostras de enfado. "Mas estou certa que ele nada entende de arte. Por vezes está a pensar em alguns pintores vulgares como... como Rembrandt, por exemplo (Scott pulou e fulminou-a com o olhar) Rembrandt é maravilhoso, na verdade, mas um pouco vulgar, não é? Um pintor por completo para o povo comum."
O artista olhou para ela com desdém, não se dignando a princípio responder-lhe. Depois disse com ênfase: "Houve apenas um artista, entre todos, que sempre viveu e que nem uma só vez foi vulgar. Esse artista era Rembrandt." Tendo-se livrado assim, afastou-se desdenhosamente e dirigiu-se para a sala de música.
"Bem", disse a irmã para a jovem em primavera: "e o que pensas tu agora do teu querido Cyril? A sua liberdade de convencionalismo é tão admirável como julgavas na quinta-feira passada, quando ousou repreender-me?"
"Não passa dum rude anilmazinho", disse abruptamente a jovem e voltou para a sala que acabara de abandonar.
A sala de música estava repleta. Um rapaz de cabelos compridos sentou-se ao piano batendo com as mãos como se tocasse as últimas poucas linhas do que ele agora apresentava ao seu auditório, uma Rapsódia Escandinava em forma de estudo a pulso livre, composta pelo próprio.
158
"Olhe aquilo, Grosvenor", disse Ernesto para o seu hospedeiro, que era mais velho do que ele cerca de dezassete anos. "Eu queria fazê-lo levantar para coisa que merecesse a pena. Vê Scott ali, junto da porta?"
"E depois?" inquiriu Mr Grosvenor.
"Acabam de o introduzir aqui por causa de Lady Geraldina, compreende? Ela deseja conhecê-lo, respeitosamente. Se ela tomar qualquer inclinação por ele, é capaz de fazer o velho Porter comprar-lhe todo o estúdio e em poucos minutos."
"Mas está certo de que ela gostará daquilo?" disse Grosvenor. "Não seria melhor eu esperar até que ela própria me fale no assunto?"
"Ela costuma proceder assim", respondeu Ernesto. "Coloca sempre Scott à frente e não condescenderá em introduzir quem quer que seja adiante de tal peixinho, como ela o considera. Mas se isso se puder fazer acidentalmente, ficaria muitíssimo satisfeita; ela até poderia vir a ser um bom amparo para Scott."
Mr, Grosvenor encarou Ernesto com ar duvidoso. Ele julgava que todos os artistas lhe deviam, pela sua generosidade, os maiores sucessos profissionais, e até a respectiva posição social; gostava de fazer figura de protector, mas considerava o sobrinho digno de um pouco mais de confiança.
E então começou o flagelo do canto de amadores. Meninas de vozes gastas testemunhavam a competência dos mais famosos mestres nacionais e estrangeiros dos fins do século dezanove. Cantavam com vozes agudas, o que causava satisfação a elas e a seus pais; cantavam abemoladamente e algumas até o faziam acompanhadas ao piano, mas em clave diferente. Outras excediam o acompanhador para se mostrarem com estrondo e assim atraírem sobre si a maior parte da atenção do auditório; outras ainda passavam pelo trecho apenas com a condição de a ária ter o compasso marcado no instrumento que tocava em unísono com elas. Os homens mostravam-se bastante menos ofensivos; a única nota sensacional da reunião era produzida por uma senhora céltica, possuidora de algumas faculdades inatas para a música, que entoou uma velha canção inglesa com pouca expressão. Uma rapariga alemã, enfim, cantou um
159
rondo turco de Mozart, que foi muito apreciado pelos ouvintes cansados.
"Que peça é esta?" perguntou uma senhora idosa, quando o pianista acabou.
"Quer dizer que trecho de Mozart?" respondeu o cavalheiro a quem se dirigira.
"Mozart?" disse a dama. "Oh! Não! Eu não me referi a nada que fosse clássico. Que linda coisa!"
"É de Mozart", disse o cavalheiro. "Mozart num dos seus mais alegres tons. Mozart com a profundidade germânica transitoriamente auxiliada, em sobrevivência, pelo humor gótico e pela melodia latina - a sua vivacidade infantil ganhando a maestria do seu profundo saber e daquele estupendo fatalismo que, na sinfonia menor em G, parece prefigurar o gigantesco Beethoven."
"Sim, certamente", disse a senhora idosa. "É lindo, muito lindo mesmo. Mas julgo que o rapaz tocou em estilo muito espevitado, como se se tratasse de qualquer trecho de música de dança ordinária."
"Chiu!" sussurrou o cavalheiro. "Bolingbroke vai tocar."
"Oh, como é interessante", disse a dama. "Mr Bolingbroke é profissional?"
"O quê?" exclamou o cavalheiro. "Não conhece Bolingbroke o poeta? Eremacausis de Lucifer, Epos de Demogorgon, etc.."
"São livros Ímpios, não são?" disse a senhora idosa com dúvida.
Antes do cavalheiro poder responder, o poeta, formoso rapaz de grandes olhos vidrados, onde a inteligência era superada pelo langor, colocou o pé direito com firmeza no pedal sonoro e iniciou uma improvisão disforme, insistindo, com gosto evidente, nos mais deliciosos acordes que pôde achar. Em geral tocava com brandura mas, por vezes, aos repentes e muito alto. No fim de dez minutos, uma dissonância feriu certo passo em piano; parou repentinamente; pensou um momento; agitou a cabeça com tristeza e abandonou o piano.
"Oh! peço-lhe que volte", disse uma jovem que o estivera escutando. O poeta olhou para ela com sorriso pesaroso.
"Não", respondeu. "Quebrou-se agora. Não poderia
160
executar outro esforço, ainda que a paga fosse a imortalidade."
"Que grande coisa ser músico! Como vos invejo!" disse outra rapariga.
"Não sou músico", disse o poeta lamentosamente. "Não sei o nome de qualquer dessas línguas de marfim que me falam quando as acaricio com os meus dedos. Procuro harmonias e elas vêm até mim. Mr Burton, estudioso daqueles diagramas que são livros selados para mim, chama fugas, sinfonias e baixos duplos, dir-vos-á como sou por completo ignorante na arte. (Burton, que estava em pé próximo, cabeceou enfaticamente). Apesar disso amo-a, sinto-a, embora julgue que os sábios não deram ainda qualquer nome ao que eu estava a executar."
"Deram, sim", disse Burton. "Até ao momento em que fala, já alguma coisa se fez, e tanto assim que você experimentou já sextas italianas e, por sinal, analisou-as, na sua maior parte, de maneira imprópria."
"O meu caro Burton fala-me em língua desconhecida", redarguiu o poeta, com um sorriso de piedade. "Nada sei dos seus raciocínios."
"Não considera a ciência como forte antagonista da verdadeira música, Mr Burton?" perguntou uma das senhoras.
"Eu, não!" respondeu o músico. "Afirmar e ligar lindos acordes é tanto fazer música, como afinar e ligar palavras aliterativas é fazer poesia."
Ao lado, um grupo de pessoas rodeava certa novelista, que falava sobre o mesmo assunto.
"A música", dizia, "é a única arte que empresta paixão aos nossos próprios sonhos, em vez de nos apresentar o brilho murcho dos alheios. Quando a oiço, fecho os meus olhos, e sinto-me como se estivesse sentada na floresta com as folhas do outono gotejando à minha volta, ou vagueando na praia pedregosa à sombra de rochedos escuros. A música de Weber, quando tocada como deve ser para mim, por suaves violas e flautas, sem os ásperos instrumentos de metal, constitui delicioso narcótico, cujas sensações de vago não nos produzem qualquer reacção enervante. Com Beethoven não me importo. Perturba e a sua música arrasta-se sobre a percepção intelectual, que seria abandonada para adormecer. Apela para o ininteligível,
161
ou, para melhor dizer, pede que a interpretem; pelo contrário, as rapsódias sonhadoras de Schubert e de Chopin morrem em cadências fartas que se afundam rapidamente na alma e abandonam por fim o espírito cansado. Conheci raparigas que estavam sentadas horas e horas enquanto as criadas passavam o pente pelos seus longos cabelos. Os potentados orientais mergulham no sono diante dos leques que os escravos agitam. O que o pente e o leque são para o corpo, é a música para a alma: um suave instrumento."
"Sim", disse Ernesto, "Meyerbeer conseguiu essa ideia na Africana. Há até a ária de ventilação respeitosamente boa no último acto." Julgando este reparo mal recebido e concluindo que não seria colocado no ponto que sentia confidente de o ter ilustrado exactamente, acrescentou: "Não há, Mr Burton?"
"Há", disse o músico; "mas o senhor erraria com certeza na questão, se não guardasse para si os seus juízos."
"Ah!" disse o novelista, adivinhando instantaneamente o pensamento do outro. "Verifico que não aprova o meu processo de escutar música."
"Pelo contrário", respondeu Burton. "Penso que é um plano muito agradável. Eu gosto muito de ler para dormir, por exemplo, que é a mesma espécie de processo. Mas não penso que os livros se escreveram com este fim e quando eu desejo apreciar e perceber um livro, julgo-o em geral necessário para o continuar durante muito tempo e quando estou acordado."
"Mas não existe certamente qualquer analogia entre um livro e uma peça de música", observou a novelista.
"Em certa proporção", respondeu o músico, alarmado com a perspectiva de se tornar o campeão impopular duma controvérsia para a qual ele não confiava na sua habilidade de tornar o seu partido inteligível, "todas as grandes obras de arte estão nas mesmas condições; considera-se prova de muito juízo e sensibilidade apreciar a nona sinfonia, ou a Zauberflöte, como se aprecia Laon e Cythna, ou Hamlet, ou até qualquer novela do século dezanove."
"De quem é a nona sinfonia?" perguntou o novelista, inclinado evidentemente a disputar neste terreno.
"De quem é a nona sinfonia?" ecoou irritado Burton.
162
"Porquê, a nona sinfonia. De Beethoven indiscutivelmente. A última que ele escreveu."
"Sim", disse Ernesto. "Ouvi Hallé tocá-la em St. James's Hall no outro dia. Executou as últimas cinco delas, uma descia e as outras avançavam. Ah! ah!"
Burton soprou largo suspiro e sentiu que esta explicação seria inútil.
"Espero que virá o dia", disse, "em que pessoas de cultura julgarão o conhecimento dos grandes clássicos da música pelo menos essencial à sua educação como progresso no reconhecimento das más pinturas duma bárbara quantidade de loucos e fracos com os quais ninguém se preocupa nem migalha."
Uma dúzia de bocas abertas instantaneamente denunciaram as desvantagens conseguidas pelo orador; mas foram interrompidas por uma voz poderosa que berrava grosseiramente o dissílabo:
"Osga!"
"Que é isto?" perguntou Mr Grosvenor, que nesse momento voltava à sala.
"É uma exclamação religiosa. É o trovejante Radical atacando George Lind", disse Ernesto alegremente.
No canto onde estava o órgão, com uma das mãos sobre o instrumento e a outra caída ao lado, estava de pé um rapaz, de coroa rapada, pálido clérigo, cuja fraca estatura saía do fundo da mancha da janela com um efeito que, - a julgar pela posição, não era inconsciente. Em frente dele encontrava-se outro homem, enorme, de curto bigode ruivo e faces bochechudas, que falava para o padre em voz estentórica, em franco gozo dos próprios argumentos e o mais completo dos desprezos pela sensibilidade dos presentes.
"Já disse, osga!" vociferou. "Você não gosta de Miguel Ângelo porque foi grande homem e desde o momento em que você se põe às turras com qualquer grande homem, não pode deixar de verificar que os homenzinhos que está para aí a impor constantemente como deusinhos não passam de pigmeus. Eu não aprecio as antigas pinturas exactamente pela mesma razão por que você não as aprecia, se você somente tivesse a coragem necessária para assim falar: porque há porcarias, cheias de maus debuxos, de piores perspectivas e mulheres disformes. Mas eu admiro Miguel Ângelo. Porquê? Porque
163
vou a Roma e vejo lá uma capela, que é o centro da religião cristã. (O sacerdote levantou a mão em ar de protesto). Repito: o centro da religião cristã. Na parede desta capela encontra-se um quadro concebido segundo o verdadeiro espírito desta religião, resumida em dois mil extraordinários pés quadros de gesso. Chova-lhes em cima; despedacem-nas com escápulas; firam-nas com remos e esmaguem-nas no inferno", continuou Radical, protegendo o peito com um braço e levantando o outro ameaçadoramente, enquanto contemplava com franzimento de sobrancelhas, não o padre, mas o chão, em baixo, e para o lado esquerdo. "E a religião do amor, pintada, e pintada verdadeiramente, por Miguel Ângelo. Sim, vocês podem todos aldrabar quanto lhes der na real gana, mas não podem alterar este facto omnipotente."
"Como poderei fazê-lo calar nesta vida?" disse Grosvenor, apelando para Lady Geraldina.
"Vá chamar a mulher", replicou ela prontamente.
"Ah, isso é que eu vou", disse Grosvenor. E deixou a sala.
"Sim, meu caro senhor", continuou o vigoroso homem. "Fé é argumento contra palavreado, esteja certo disto. Pela mesma razão, loucuras são argumentos contra o senso-comum. Você julgava também que seria melhor gosto da minha parte meter a viola no saco. Seria muito bonito, mas o que é bom gosto? Apenas desculpa para a covardia de discutir com a plebe. Não tenho dúvidas que o fundador da vossa religião, ou melhor, a pessoa que vocês carregam com a responsabilidade da vossa religião, feriu a sensibilidade dos Fariseus e que os veneráveis da sinagoga o consideraram má forma."
"Senhor", disse o padre. "Eu respeito as convicções, de V. Ex.a, mas não posso permitir que tire partido de argumentos conduzidos de maneira violenta e na casa onde eu apenas sou hóspede."
"As convenções da sociedade nada são para o homem que tem possuído o Espírito Santo..."
"Tom!" exclamou uma dama, que abria caminho por entre a turba, agora composta exclusivamente por homens e que estacionava presa pelo orador.
"Sim, minha querida", disse o homem. "Ia mesmo agora ter contigo à sala de chá."
164
"Como está, Mr Lind?" cumprimentou a dama, dirigindo-se ao sacerdote. "Espero que Tom não se adiantasse muito."
O padre sorriu com ar vago.
"Estava precisamente a dizer que eu sempre afirmarei, seja em que época for..."
"Agora acabou-se", interrompeu a dama. "Por que lhe liga importância ou porque lhe responde, Mr Lind? Isso até o torna pior e, no fim de tudo, só diz coisas que não deve."
"Não creio", disse o sacerdote.
"Porque não vem a nossa casa ver-nos a miúde?" disse a senhora, falando com rapidez para evitar nova explosão.
"Sim", exclamou o vigoroso homem, "por que não vem? Venha e jante connosco sexta-feira... ora espere: sexta-feira é dia de jejum. Venha na quinta; eu gostava de o apresentar a certo secretário particular do Papa. É o melhor juiz da Europa em vinhos; diz ele que está cá só por causa da saúde, o que é muito belamente uma mentira."
"Tom!" admoestou a senhora.
"Lastimo", disse o sacerdote, "mas tenho serviço todas as tardes às sete."
"Isso não tem importância, S. Lucas o absolverá."
"Anda", disse a dama: "somos capazes de perder o comboio."
Dizendo isto, acenou apressadamente adeus a Mr Lind e arrastou com ela o marido, que se despediu do dono da casa com o ar de quem se deleitou muito.
O êxodo dos convidados, que se começou a verificar, de maneira bastante variável cerca de meia hora antes, tornara-se agora mais activa; Mr Grovesnor, encontrava-se no terraço de pedra que punha em comunicação, por intermédio de vários degraus, cada uma das extremidades do grande vestíbulo com o prado, e estava ocupado em receber os cumprimentos dos hóspedes que abalavam. Quando já tinha partido o maior número, ele ficou com mais vagar entre os preguiçosos que estavam mais dispostos a madracear pelo terraço e pelas galerias, pairando ou observando o pôr do sol, do que a se meterem a passar uma estúpida tarde de domingo pela cidade.
165
"Ernesto", disse Lady Geraldina, quando caminhava, vestida de peles, do vestíbulo para o terraço: "vens ou não vens?"
"Cá estou, tia Joldie", respondeu o sobrinho. Quando ela se aproximou de Grosvenor, estava este em pé junto de Cyril Scott, que contemplava o Sol poente com atenção de artífice que contrastava com a melancólica absorção de alguns dos presentes. Era excelente oportunidade para haver apresentações. Lady Geraldina contemplou o pintor com sorriso de escárnio. Grosvenor tomando-o por expressão de interesse, pôs fim à cerimónia antes que qualquer das partes pudesse suspeitar a sua intenção. Lady Geraldina ficou com bastante curiosidade para compreender que a sua própria atenção se virara agora, pela primeira vez, para o confiante moço que estava na sua presença e, por isso, curvou-se graciosa e deliberadamente. Ele, pelo contrário, executou uma precipitada mesura e, envergonhado, guardou silêncio. Ernesto ficou em pé, ao fundo, arreganhando os dentes.
"Espero que não interrompi uma lição tirada da natureza, Mr Scott?" disse Lady Geraldina, relanceando o céu. O artista sorriu vagamente e interrompeu o seu pasmo para olhar, por momentos, na mesma direcção.
"Estou sempre ansioso por reclamar o seu favor para o pobre artista que é este meu amigo", disse Grosvenor, "sois tão afamada pelo vosso espírito crítico." As narinas de Scott dilataram-se com a palavra pobre e contraíram-se quando ouviu pronunciar crítico.
"Pobre de mim!" exclamou Lady Geraldina, afectando aflição. "Confesso que disfruto alguma nomeada por quadros, sem concepção, particularmente por alguns modernos. Mas venho para lhe apresentar as minhas despedidas, pois o comboio não quer esperar por mim. Suponho que seria lugar-comum cumprimentá-lo pelo sucesso do dia de hoje, Mr Grosvenor." E aquela Excelência, tendo apresentado despedidas ao seu hospedeiro e recebido do artista uma embaraçada mesura em troca de outra bastante grave, abandonou o terraço, seguida pelo respectivo sobrinho, que, como já lhe tivesse voltado o bom-humor, começou a ficar apreensivo pela falta de compostura de Grosvenor, que o despediu com nítida frieza.
166
"Que belo fedor envolveu Scott quando o velho Grosvenor o correu, an?" disse ele.
"Que boa coisa poderia ele fazer por si, Ernesto", respondeu Lady Geraldina, "para ser capaz de se portar em tal cerimónia com perfeita confiança e domínio em si próprio?"
"Bem", redarguiu Ernesto modestamente, "sabe que ele tem já juízo formado a meu respeito."
"Além disso", continuou ela, "você está em boa posição e nunca se esqueça de que, pelo menos, o favor de ser apresentado depende de si. E sabe ainda muito bem que pode conversar com agrado e que tudo é tão deliciosamente livre de qualquer dos absurdos mauvaise honte que desagrada tanto às pessoas ufanas, como às sensatas e que temem ser mal entendidas."
"Garanto-lhe, porém, que, quando o conhecer, também há-de concordar que Scott não é mau companheiro", disse Ernesto, "e a tia mostra pouca consideração por ele porque não se mostra perfeito cavalheiro como... bem, como, por exemplo..."
"Como você?" sugeriu Lady Geraldina.
"Não, irra! Sabe o que eu quero dizer. Além disso, sou republicano e não ligo nenhuma a tais distinções. Scott é rapaz muitíssimo inteligente, e apesar de toda a nossa velha árvore genealógica, eu gostava hoje de ter trocado o meu lugar por o dele."
"Não! Quereria na realidade? Como é desinteressado!"
"Sempre as ninharias", disse Ernesto. "A tia está a adquirir o mau hábito de ser sarcástica. Esta manhã, Scott era o maior fantoche da Inglaterra; agora, porque lhe convém compará-lo comigo, arma-o por completo em natureza sensitiva, à força de o colocar fora de qualquer continência. Mas isso não passa afinal do hábito que a tia cultiva porque o pode fazer na perfeição e eu digo-lhe que assim podem aparecer moços que a detestem. Já o,ouvi, de facto, observar."
"Sim", disse Lady Geraldina, divertida: "nessa observação há a agudeza suficiente para me convencer que ela não lhe deve a origem a si. Na minha idade, seria doloroso cair no desagrado dos moços. Prefiro vê-lo terminar os seus dias a lavrar do que a cobrir de relva canteiros para ajuda dos calcanhares, e depois pôr-se a passear pelo cascalho."
167
CAPÍTULO III
Durante dois meses, Smith viveu só em Danvers Street. Levantava-se todas as manhãs cedo e ia para a cidade no vapor. De tarde, quando se sentia cansado de ler, passeava ao longo das docas, observando as embarcações a deslocarem-se de esguelha, como cavalos guiados inabilmente, e escutando o ruído e o silvo dos comboios, que soaram a seu pai como o dobre de finados dos sentimentos bucólicos, mas que para ele eram a característica dos campos como o canto do melro. Para os seus olhos, considerava-se insulsa a paisagem que não mostrasse a familiar fileira dos postes brancos que suportavam a infinita pauta musical, onde os isoladores eram as únicas semínimas e onde, se se colocasse o ouvido junto do poste, se poderia ouvir um fulminante zunido. Até mesmo quando se atravessa o Tamisa e se circundam instalações e fábricas de gás decoradas com tubos semelhantes a colossais fagotes, são eles ainda os visíveis laços entre o labirinto de tijolo e estuque do lado de Middlesex e as larguras comuns de Surrey nas dunas da costa meridional.
Em certa noite de luar, Smith alongou o seu passeio até à prisão de Millbank (1), e estava a reparar se o aspecto simples desta estrutura não era suficiente para reprimir qualquer sentimento de boa vontade para com a comunidade que um indivíduo, com propensão passageira para o crime, poderia ainda conter, quando repentinamente pensou no Alhambra, que não frequentava havia já alguns meses. Após a quinzena que se seguiu à sua primeira visita, durante a qual ele foi lá quási todas as noites, impôs a si próprio a restrição de só o frequentar uma vez por semana; as violações a esta resolução que ocorreram primeiro foram mais do que as compensadas pela sua subsequente abstenção durante períodos de três semanas e, certa vez, de um mês. Por fim as visitas cessaram totalmente e agora a ideia
(1) Esta coisa infernal foi, depois, substituída felizmente pela Galeria Tate. (N. do A.)
168
de lá ir tinha a recomendá-la o ar da novidade. Por consequência, dirigiu-se a Westminster; percorreu Whitehall; atravessou Trafalgar Square, e, pouco depois, chegou ao seu destino, onde, para seu desgosto, encontrou um dos companheiros de escritório, jovem irlandês chamado Kennedy, que se arrogava do conhecimento íntimo da vida privada de todo o mundanismo de Londres.
A representação era ainda familiar a Smith. Um pequeno quadro na farsa seria talvez a única novidade. Consistia ele no aparecimento, em pleno coro, dum homem de olhos negros e flamejantes que se conduziu de maneira a impressionar a atenção de Smith, como se se tratasse do actor principal. Como nada daí resultasse, o efeito foi jocoso, mas Smith não riu; por algum tempo a sua memória vagueou laboriosa em torno da personalidade do homem. Kennedy, que tinha várias particularidades a comunicar acerca de todos os intérpretes, rejeitou todo o interesse ou todo o conhecimento deste corista e aceitou as perguntas de Smith como prova de inexperiência ou de fraqueza mental, cálculo que foi confirmado pela recusa do seu companheiro em ocupar os intervalos dos actos a beber. De qualquer maneira, como Smith escutasse com toda a credulidade as histórias de Kennedy sobre intimidades dos bastidores e este gostasse mais de dizer mentiras que de beber, e então só dizia o que tinha de mais barato, absteve-se, pela primeira vez na sua vida, de falar nesse assunto. Quando o bailado The Golden Harvest já estava a aparecer, um dos acidentes do tablado trouxe uma lembrança à sua imaginação. A linda dançarina esperava a vez de aparecer à assistência pela abertura duma almiara. Era ocupação do manipulador da luz conservar os raios sobre a meda até chegar o momento da entrada da dançarina. Smith admirava muitas vezes a destreza com que estes artifícios luminosos eram dirigidos; mas naquela ocasião o resplendor afastava-se prematuramente para o local adequado e denunciava ao espectador atento não somente que a almiara fora construída para cair em pedaços, mas também que qualquer pessoa com vestidos curtos e de tons brilhantes estava encoberta atrás. Smith ouviu imediatamente, apesar da música, a voz da dançarina pela primeira vez; era voz de mulher muito irada. O seu tom não se perdera com
169
o Febo da seara; a doirada almiara tornou-se imediatamente mais obscura. Smith ficou horrorizado. Kennedy, que também observara o incidente, riu e disse:
"As luzes estão a chatear a velha Biddy Muggins."
"A velha Biddy Muggins!" repetiu Smith, com a dor da desilusão.
"Olé: Mrs Muggins. Aí vem ela", disse Kennedy, quando o génio saltou do esconderijo e recebeu os aplausos que a bailarina agradeceu com uma inclinação de cabeça e um delicado revolver das palmas. "Quantos anos lhe dá você?"
"Eu diria que já passou dos trinta", disse Smith, afectando ar crítico.
"Fora o resto", comentou Kennedy. "Ela confessa trinta e cinco; mas eu sei que conta com certeza quarenta e três. Mesmo que tivesse oitenta dançaria na mesma, como uma baleia. Se tivesse um pouco mais de originalidade, seria tão boa como as outras."
"É casada?" perguntou Smith.
"Eu não lhe disse já?" replicou Kennedy. "O seu nome é Muggins; esteve casada mais tempo do que ela gosta de confessar; tem quatro filhos já crescidos, dois rapazes e duas raparigas. O mais novo é o favorito e está em Dusseldorf a estudar para pintor."
"O quê? O filho foi para Dusseldorf, diz você?"
"Sim, como lhe estou a dizer, Smith", respondeu Kennedy com ar protector. "A velha Biddy é profunda como um poço e tem noções ridículas. Deu aos filhos educações de primeira ordem e conservou-os nas escolas todo o tempo que pôde; nunca levou qualquer deles ao teatro, nem lhes disse qual era a sua profissão, ainda que tivesse sempre o cuidado de os levar com frequência a divertimentos quando estavam em casa, em tempo de férias. Certo dia ela comprou um bilhete para Exeter Hall (1) e deu-o a Horácio, o rapaz mais velho, para que fosse ouvir O Messias, uma espécie de cantarola religiosa onde aparecem alguns cantores de ópera. E lá foi o pimpolho sozinho, mas, no caminho, passou por aqui. Ouvira já alguns dos da gajada do colégio falar do Alhambra e que extraordinário lugar ele
(1) Café-concerto famoso antigamente pelas suas representações musicadas, substituído agora pelo Hotel Strand Palace. (N. do T.)
170
era para a pândega! Pensou, pois, de si para si que podia entrar sorrateiramente; nada disse a este respeito e até os convenceria depois em casa que tinha estado em Exeter Hall. Quando entrou, meu caro, ficou escandalizado com as mulheres "asseadas" que por lá viu e com tudo o resto; mas, como é de esperar, nada disse a esse respeito. Depois esteve a conversar com uma rapariga e a comer com o amigo dela, pensando que este não era perfeito cavalheiro e esperava, já bastante aflito, pelo momento em que viesse o bailado. Logo em seguida, meu amigo, viu a sua própria mãe, junto do tablado, com saias curtas, a atirar com as pernas para cima; o assombro, a bebida e o facto de sempre a ter julgado um anjo, fizeram-no procurar a saída desordenadamente; arrebatou o binóculo de ópera dum ancião e esmagou-o no soalho, derrubou um rapaz que ouvira fazer qualquer observação a respeito de sua mãe. Por fim três bobbies (1) levaram-no a guinchar, a berrar e engavetaram-no. Não queria ele indicar o seu nome e morada; na manhã seguinte levantou-se e chamou o guarda; pediu-lhe que o enviasse para o presídio por toda a vida. Em vez disto, sua excelência dignou-se dar-lhe qualquer coisa para ler, na esperança de que o sucedido seria um aviso para ele e deixou-o ir em liberdade, pois passara já a noite na cela. Voltou para casa e encontrou-os a todos levados dos demónios por sua causa; não lhes quis, porém, dizer onde estivera, mas teve um acesso de histerismo quando o importunaram com perguntas sobre se não tivera receio de andar só. Certo dia alugou um assassino para Sebastião, o mano, que era mais novo do que ele um ano. Sebastião estava a preparar-se para os estudos de pintura. Era tipo regular, que costumava aldrabar a mãe e chupar-lhe montões de dinheiro para comprar quadros e outras coisas em South Kensington, onde ela julgava que o filho estava a estudar, quando se divertia com todos os artistas e respectivos modelos em St Johns Nood. Ele desejava ir para Dusseldorf porque considerava podre o ensino em South Kensington e tinha de se lamber com as esquisites da cabeça do mestre de pintura, alguns dias por semana. Mas a mãe não tinha confiança no que ele faria sozinho no
(1) Uma das palavras com que no calão da classe média desta época se costumava designar os polícias. (N. do A.)
171
continente, mas não podia partir com ele. Quando as coisas chegaram a este pé, o irmão disse-lhe o que vira. Sebastião não conteve o dique e riu até poder pensar por que processos a velha Biddy conseguira ocultar-lhes os seus negócios. Depois foi direito a ela e pediu-lhe dez xelins para fazer o estudo duma dançarina. Respondeu-lhe então a mãe que não o queria a desenhar dançarinas por modelos naturais. Redarguiu-lhe o filho que se tratava de uma mulher tão linda como ela e que pensava do modelo nu apenas o que ela queria. A velha Biddy sentiu-se particularmente vexada, como você calcula; mas quando a beijou e lhe disse que alcançara grande renome e que lho devia por completo, ela deu-lhe uma libra; era assim que terminavam quási sempre as bulhas entre eles. Noutra noite, o rapaz foi ao Alhambra em traje de grande gala e colocou-se bem direito na primeira fila, defronte do palco. Pouco antes de começar o bailado ela veio dar uma vista de olhos para observar como estava a casa e a primeira pessoa em que caíram os seus olhares foi no mata-mouros do Sebastião. Recusou-se a dançar nessa noite e houve formidável barulho atrás do pano. Ela acabou por agarrar o tio Crow, o maquinista, pela gola e atirá-lo para fora do camarim. Teve de pagar cinquenta libras por quebra de contrato. Mas isto nada era, contanto que se evitasse a excitação doméstica. O caso de Horácio tornou-se público, naturalmente. O pai tomou o partido dos rapazes e disse que era ainda o melhor, como eles deveriam concordar depois; mostrou-se também contrário a ocultar-lhes qualquer coisa. Sebastião dizia que a única coisa a entristecê-lo era não a ter visto dançar, mas ela enviou-o na mesma semana para Dusseldorf, depois de ter passado a manhã a gritar como louca. O que é que você pensa de tudo isto, han?"
"Penso que tudo isso é medonho", respondeu Smith, olhando para a figura do palco com novo interesse. "Porque se envergonharia ela com a sua profissão; eu teria suposto, pela maneira como dança, que tinha toda a sensibilidade duma artista."
"Disso nada sei", disse Kennedy. "Ela afirma que é a maior profissão do mundo, e olha de alto para os actores e cantores de ópera como se fossem lama; mas ela não pensa que a maior parte dos espectadores vem para apreciar
172
essa profissão no próprio espírito; e esta é a razão por que não pode levar à paciência que os filhos se sentem entre eles. A velha Biddy sabe pregar tão bem como um pároco, quando lhe convém."
"E porta-se bem?" perguntou Smith.
"Bem, nós sabemos de que mulher se trata", disse Kennedy. "Mas nunca foi descoberta, de qualquer maneira, e assim pode procurar dar-se ares."
"De que terra é?" interrogou Smith. "Parece espanhola; mas o nome de solteira é italiano."
"Italiano o quê!" disse Kennedy. "E de Wexford, usa o apelido Delahunty e fugiu com um circo ambulante, ou coisa que o valha, quando era criança. Depois Deus sabe durante quantos anos rodopiou em Praga como primeira bailarina; apareceu depois disso em Milão e em Paris. Em seguida contrataram-na para a ópera de Londres, mas era tão melindrosa e tão lesta com as mãos - um autêntico demónio por temperamento - que os inchaços se viraram contra ela. Quando esteve aqui casou-se com certo mestre de obras chamado Muggins e então abandonou o palco. Mas depressa voltou para ele; como o marido andava sempre por fora em negócios, ela não podia estar ociosa, tinha de renunciar a todas as excitações e divertimentos. Anda a valsar por toda a parte, só voltando para Muggins e para as crianças quando pode. Prefere os contratos do continente pois julga que aí a apreciam melhor; mas vem para aqui muitas vezes em consequência de estar como que em sua casa".
"E agora, Kennedy", disse Smith, "ainda mais uma pergunta: como sabe você tudo isso a respeito dela?"
Kennedy pestanejou e sacudiu a cabeça. Depois, caindo em si, disse: "Bem, o facto é que meu tio Tim anda na vida de teatro e tem vestido quási todas as estrelas que têm aparecido por aqui nos últimos quinze anos. Se você o mandasse andar à roda da Ópera, nunca pararia. Viu-a quando ela veio pela primeira vez a Londres, com Masaniello. É por ele que eu sei como ela se lançou; o resto tirei daqui e dali. A história é muito conhecida."
Smith acreditou em tudo porque isso o fez sentir-se completamente desiludido. Os homens facilmente enganam o impulso da desilusão com o peso da bruta verdade. As circunstâncias de toda a história, desde o primeiro anti-climax
173
de Biddy Muggins até à importância final de certo tio imaginário, não passavam de desaforada ficção. Kennedy não podia já deixar de mentir assim, como podia deixar de respirar. Ele conhecia a verdade, que consistia nisto: a dançarina, Erminia Pertoldi, nascida em Trieste no ano de 1850, tinha vinte e oito anos; esforçava-se desesperadamente para manter a tradição da grande escola da dança italiana contra a ignorância britânica da qual nada se espera no tablado coreográfico a não ser percas morais e o poder de dar pontapés no chapéu de qualquer homem durante um cancã; a sua graça extraordinária e a impetuosidade de movimentos eram acompanhadas muito convenientemente pela linda voz de cantora, que ela nunca conseguiu fazer prevalecer no palco. Smith teria de cair no amor com maior falta de esperança do que nunca e talvez aprendesse assim que a principal objecção ao romance fictício é que ele raras vezes é tão romântico como a verdade, e, quando manufacturado por um Cervantes de dois patacos como Kennedy, não passa muitas vezes de cínico iconoclasmo. Tal como foi, conseguiu fazer crer a Smith que a dançarina era um ser humano e que os sonhos a respeito dela não podiam ser realizados certamente se ele se livrasse dela todas as noites num hansom (1) fugitivo, e muito menos se tivesse já obtido uma apresentação. Talvez fosse isso a melhor coisa que ele depois viesse a desejar. Já que, fora do palco, ela não recebia o encantador das estrelas que ele adorava, limitou-se a ser, para ele, tanto Biddy Muggins, née Biddy Delahunty de Wexford, como Erminia Pertoldi, de Trieste. Smith nunca mais voltou ao Alhambra até que, em certa noite, viu um enorme clarão no céu, e, correndo através de Leicester Square em sua direcção, encontrou o teatro em chamas, e admirou-se que não existisse em toda a cidade de Londres fogo com o formidável vulcão de faíscas que saltavam dele.
Separou-se de Kennedy, após a representação, não sem dificuldade, embora o aldrabão procurasse prender o caloiro;
(1) Hansons eram os veículos que se alugavam nas ruas de Londres antes da invenção dos táxis. Eram muito perigosos, e tão faltos de segurança na construção e no aspecto que quem nunca tivesse visto um poderia crer que eles jamais existissem. (N. do A.)
174
mas Smith fugiu-lhe tomando o autobus para Islington, esquecendo-se por completo nesse momento que já não morava ali. Quando se lembrou, apossou-se dele o desejo de se abandonar aos prazeres da reminiscência, no mesmo lugar onde encontrara Harriet Russell. O estranho aspecto do corista voltou-lhe nesse instante à memória, e confirmou-lhe a realização do projecto já meio resolvido, ainda que não pudesse encontrar qualquer conexão entre os dois. Os seus pensamentos estavam ocupados com a dançarina, o corista e Miss Russell quando chegou à sua antiga residência.
Aqui encontrou o arco tapado por uma porta provisória em madeira, aguentada por uma travessa com cadeado, encimado pela tabuleta onde se lia: É proibida a entrada a pessoas estranhas a esta abra. Havia um postigo na porta, o qual Smith experimentou com empurrões. O único resultado consistiu no estrépito da barra e no ruído dum pedaço de cortiça, o que lhe reduziu o desejo de entrar. Quando se virava com a intenção de ir para casa sem demora, ficou surpreendido por ver o corista encostado ao candeeiro e a olhar para ele atentamente.
"Veio, como eu, contemplar cenas do passado", disse o homem, com voz surda, cruzando os braços.
Smith parou com embaraço e murmurou algumas palavras.
"Naturalmente já não se lembra de mim", continuou o homem. "Mudei bastante, Mr Smith, não há dúvida."
"Devo conhecê-lo", disse Smith; "o seu aspecto é-me familiar. Mas, na verdade, não me posso lembrar neste momento do seu nome."
"O meu nome é Cartouche", disse o homem com solenidade.
Smith começou a sentir-se pouco à vontade. O nome recordava-lhe ideias que não o podiam tranquilizar à meia-noite e numa rua solitária. "Não o conheço certamente por esse nome", disse.
"Não", respondeu o homem, com sorriso melancólico. "Eu encontrava-me noutras condições quando me conheceu, Mr Smith. Há agora pouca coisa nas arruinadas feições que possam fazer lembrar o então próspero e respeitado pregador, S. John Davis."
175
"Oh, mas sim; na verdade; peço-lhe perdão", disse Smith, rindo-se do seu próprio esquecimento. "Como sou louco!"
O corista olhou durante um momento como se considerasse aquele palrador; mas visto que Smith lhe estendia a sua mão, afrouxou a severidade teatral dos seus modos e aceitou o cumprimento.
"Obrigado, senhor", disse. "Correspondo sem maldade, ainda que tenha boas razões para amaldiçoar a hora em que o senhor me trouxe a este lugar fatal."
"Porquê?"
"Contos largos, senhor, mas que podem ser narrados em duas palavras."
"Bem", respondeu Smith, "vou para ocidente, para Brompton, se quiser seguir esse caminho..."
"Acompanho-o durante algum tempo, se tiver coragem para isso", disse Davis amargamente.
Smith exprimiu o seu agrado com desejo sincero que vinha mais da curiosidade que de qualquer preocupação a favor do seu companheiro.
"Mr Smith", começou o corista, "esteve já alguma vez apaixonado."
Smith pensou na dançarina e em Harriet Russell. Mas, após breve momento de deliberação, respondeu:
"Não!"
"Ah!" exclamou Davis, "tanto melhor para si! Não sabe então o que é andar consumido, a arder em fogo lento, a caminho da loucura com o pensamento numa mulher, tal como eu, Mr Smith. Não sabe o que é passar noites sem dormir ansiando e desejando, como Dives, (1) a gota de água para humedecer a língua, tal como eu, Mr Smith. Não sabe o que é ser pisado, aborrecido, desprezado e escarnecido com todo o desdém, tal como eu, Mr Smith. Deus permita que nunca o possa saber! Não lhe falo por mim, mas pelo coração sabedor de tal assunto. Mas eu sei o que sei, como sofri e o que me dói. E porque não, Mr Smith? Porque não? Encontrava-me em excelente prisão. Era olhado com reverência por pessoas respeitáveis. Fiz em
(1) Alusão ao homem rico condenado às penas do Inferno, na parábola de Lázaro (S. Lucas, XVI, 19-31) - N. do T.
176
certa semana três libras com o meu trabalho e tinha todas as minhas despesas pagas pelos irmãos. Não porque eu fosse contrário a travar combates como cristão, onde, de resto, eu não podia tomar parte, mesmo que quisesse. Seria pior ver os homens a combater-se do que eu andar a correr atrás de raparigas durante toda a semana."
"Decerto", respondeu Smith lentamente. "E a senhora...?"
"Já lá vamos", disse o outro. "Foi no dia em que aqui vim para falar com aquele homem que a vi. Foi o início da minha queda. Fiquei louco por ela. Nenhum homem ainda amou como eu, Mr Smith. Os que aparecem nas novelas não podem amar à maneira dos homens ardentes, como eu podia. Preparei-me para atirar completamente o meu coração e a minha alma a qualquer coisa quando passado tempo os perdi. Outros homens tinham as suas almas para pensar, mas eu não. A minha estava salva, bem o sabia, mas sabia também que estava a cumprir a vontade de Deus quando a perdia no amor. Está ordenado na Bíblia que havemos de ser assim. Não obedecemos por partes à Bíblia, Mr Smith. Lancei-me demais; quási a adorei. Vim esta noite para junto do lugar donde pudesse contemplar a casa que ela ocupou. Muitas vezes passeei neste pátio enquanto o senhor dormia, somente para pensar que ela estava junto de mim. Não teria paciência para me ouvir se eu lhe contasse a maneira como me devotei a ela. Uma noite encontrei-a não longe do lugar onde estamos agora. Ela vinha do comboio e trazia uma malinha no braço. Falei-lhe então, mas afastou-me de si com escárnio, como se fosse uma senhora que vestisse sedas e cetins. Escrevi-lhe; devolveu-me a carta com a observação de que eu procedia erradamente. Era isto o que ela pensava dos meus sofrimentos. Um erro! Mas o orgulho terá o seu castigo; pode acontecer que algum dia fique satisfeita por lhe calhar um pior do que eu e triste quando pensar no que desperdiçou. Não encontrará facilmente um homem que lhe dê um coração como o meu."
"E qual o motivo por que deixou de pregar?"
"Indirectamente foi isto mesmo, Mr Smith. Suponho que o senhor ouviu informações da minha pessoa. Andavam na boca de toda a gente."
"Nunca", respondeu Smith. "Eu levava vida retirada
177
e, por isso, escapava-me muita coisa de interesse corrente."
"Não é fácil deixar o coração sangrar gota a gota e não se queixar", disse Davis. "Qual é a vida que não tem simpatias, Mr Smith? Quando quis afirmá-lo na minha congregação, fui mal compreendido. Algumas das mulheres que me iam ouvir, que pensavam noutras coisas fora da religião, com o seu ser invejoso e que nunca tinham passado pelo que eu então sofria, afastaram as filhas e espalharam boatos malvados a meu respeito. Perdoei-lhes de todo o coração e esperava que elas me perdoassem também. Mas julguei melhor abandonar a capela. Fizeram-me um lindo oferecimento quando saí, Mr Smith: uma corrente e um relógio em oiro com o meu nome gravado na tampa, encerrados em estojo de marroquim de forro azul e a bolsa em pérolas com vinte e cinco guinéus. Não era tanto o dinheiro em que eu avaliava tudo o que mais estimei, mas sim os sentimentos que isso representava. Pediram, e muito, para eu ficar; mas à minha incompetência repugnava dar azo a escândalos e vim-me embora."
"Tudo isso é muito interessante, muito interessante mesmo", murmurou Smith. "Mas o senhor abandonou por completo a sua carreira pública?"
"Bem!" disse Davis. "Eu tencionava ir para o palco. Sempre gostei dessa carreira. Disseram-me que tinha bonita voz de cantor e tenho-a cultivado ultimamente. De facto, estou a cumprir contrato num dos principais teatros, se bem que não deseje tornar-me conhecido. Naturalmente já me viu na Ópera, Mr Smith; digo-lhe que por aqui pagam quási nada por uma boa voz. Leio bem música, pois estudei na classe de solfejo que funcionava juntamente com a capela. De qualquer maneira, ninguém se rala agora com o que me possa vir a acontecer. Já lá vai o tempo em que tal coisa me daria cuidado; agora não. Há coisas que consolam um homem; ao coração esfacelado é precisamente uma das coisas que o podem também consolar. Bem, bem! Isto levar-nos-ia longe. Isto levar-nos-ia longe."
"Tenho medo que este seja o último autobus", disse Smith; "e eu vivo muito longe, por isso tenho de o tomar. Espero encontrá-lo com melhor disposição de espírito, quando nos tornarmos a ver."
178
O ex-pregador sorriu tristemente, estendeu a mão ao interlocutor e voltou para trás. Smith conseguiu trepar para o tejadilho do veículo que passava, e, quando viu o vulto já afastado de Davis, pensou que a maneira por que Harriet Russell guardara o segredo da proposta de Davis constituía outra prova da mais profunda necessidade que a modista sentia pela ambiciosa ilusão dele, uma simpatia que levava à completa confiança e à franca comunidade de pensamento.
179
CAPÍTULO IV
Cyril Scott permaneceu em Perspective até à segunda semana depois da Páscoa. Preferiu este período para a sua visita porque encontrara outras pessoas da sua profissão sob os tectos de Mr Grosvenor. Havia apenas quatro artistas na Inglaterra de quem Scott gostava e não mais de dois que gostavam dele. A maioria dos fazedores de quadros chamavam-lhe doido, charlatão e outros lugares comuns da mediocridade invejosa. O mais liberalmente disposto deles, muito bem instalado para temer a sua rivalidade, admitia que ele era rapaz esperto, que podia realizar boa obra se soubesse debuxar. Em compensação, Scott admitia os méritos dos seus inimigos com mordaz magnanimidade, a qual, na verdade, apenas os depreciava. Sobre as fraquezas, deles pouco dizia a não ser aos amigos íntimos, pois a estes dizia muito. Consumia-se com os sarcasmos, género de ataque a que a sua escola estava particularmente exposta; era incapaz de retorquir da mesma maneira porque era tão sério que a sua própria ironia, trabalhada e por vezes grosseira, parecia menos uma arma ofensiva do que um golpe. As suas maneiras para com os estranhos não eram cordiais. Apesar da sua mocidade e reputação crescente, estava disposto a vingar-se do mundo pelos seus desprezos, antes que obtivesse o reconhecimento relutante, que só lhe viria após várias desilusões, porque, considerando que ele não era francamente indulgente, não sentia dentro de si qualquer gratidão. Possuía ao mesmo tempo desconfiança e fé em si próprio, produzidas pela contemplação dos grandes predecessores e dos pequenos contemporâneos. Graças à generosidade e à obstinação que o caracterizavam, era um tanto despojado de superficialidade e tinha certas afectações no vestir e no tratar que levavam certas pessoas a ridicularizá-lo pela aparência, tal como sucedeu com Lady Geraldina.
Na manhã seguinte à sua chegada a Perspective, levantou-se cedo e desceu ao grande átrio. Não encontrou aí
180
qualquer pessoa e, conhecendo por experiência os usos da casa, resolveu procurar o almoço nas salas vizinhas.
"Bom dia, Mrs Angel", disse, ao encontrar a governanta na sala de chá.
"Bom dia, Mr Scott. O senhor é o primeiro a descer."
"Quando aparecerá o resto, Mrs Angel?"
"Receio, Mr Scott, que não antes de três quartos de hora. Deseja já o seu almoço, ou...?"
"Espero até que ele esteja pronto,. Mrs Angel, mas não mais tempo. Isto se não houver inconveniente. Não gosto de ser abelhudo." "
"Fique descansado", disse Mrs Angel, tocando a campainha. "Alguns dos cavalheiros descem cedo a fim de se escaparem à aglomeração e às conversas que começam lá para depois das nove e meia. Que deseja para o almoço, Mr Scott?"
Scott, em casa, tinha o hábito de comer sopa logo pela manhã, mas ali não se sentia com coragem para a pedir à governanta, pelo que se viu forçado a satisfazer o apetite com presunto e ovos. Enquanto tomava a refeição, Mrs Summers presidia à cabeceira da mesa tal como se ela estivesse a agasalhar cinquenta hóspedes, procedimento este que teria embaraçado qualquer rapaz. Mas Cyril tinha já vinte e oito anos; trabalhara com entusiasmo durante doze e com firmeza durante cinco. Não estava, por conseguinte, muito à vontade onde se ocupavam do seu apetite.
Quando acabou, passeou pelas galerias para ver os novos tesouros de arte que o seu hospedeiro adquirira desde a última inspecção. A galeria azul era a sua favorita; nesta penduraram Vexado e Fogos Doirados, o quadro que o arrancara à obscuridade. Rendera-lhe quarenta libras e custara a Mr Grosvenor quatrocentas e cinquenta. Raras eram as vezes em que visitava Perspective sem aproveitar algumas oportunidades, como a presente, para desapercebidamente cravar nele os seus olhos e verificar como as cores se conservavam. Quando entrou na galeria ficou bastante surpreendido por encontrar aí uma mulher. Vestia casaco pardo liso, admiravelmente acomodado ao corpo, com aba, mas não afestoado, atado atrás, coberto de pregas dispostas horizontalmente, mas de qualquer maneira, também não privado da dignidade simples do vestido vulgar. Quando Scott entrou,
181
descia ela a sala, e, entretanto, o pintor encontrara-lhe graça estranha nas maneiras e no aspecto da cabeça, formada com traços finos, que lhe lembrou imediatamente uma pantera ou a Vénus de Milo. Ficou admirado por não saber quem era. Ela não contemplava os quadros como artista; saíra da cama muito cedo para ser musicante, mas olhava em demasia para parecer dama. Não fazia parte do corpo das criadas, porque Mr Grosvenor adornava-as com golinhas e toucados de fantasia; nem sequer tinha a enfeitá-la uma jóia ou um canhão no casaco, embora, seguindo o hábito dos artistas que se dedicavam a estudos de mãos, ele agora lhe observasse, no dedo médio da mão direita um dedal em prata. Scott olhou mais uma vez para a sua figura e tossiu. Ela levantou os olhos e ele curvou-se. Ela mal agradeceu e encaminhou-se para a porta. Scott tornou-se nervoso quando reparou na sua face. Até então dividia o outro sexo em quatro secções: as mulheres convencionais, às quais se mostrava indiferente; raparigas inteligentes, que lhe desagradavam; velhas inteligentes por quem mostrava receio e fêmeas artistas que votava ao desprezo. A do casaco não pertencia a qualquer destas categorias e começaram a agitar-se dentro dele reminiscências de certo prazer que encontrara na sociedade de raparigas decentes, antes de se ter devotado inteiramente a esta arte.
"Desculpe-me se a perturbei", disse.
"De modo algum."
"Mas receio que a minha presença a levasse a retirar-se. Eu retiro-me, se considerar importuna a minha presença."
"Perdoe-me, senhor", respondeu ela, depois de ter hesitado um momento; "mas eu apenas sou a sobrinha da governanta, não devo estar aqui."
Scott fez-lhe outra vénia, como se as palavras constituíssem apresentação, e acrescentou, "Mrs Summers é minha velha amiga. Estou-lhe extremamente obrigado pela gentileza com que sempre me tem tratado aqui. Espero que não deixe de admirar os quadros; senti-lo-ia ainda mais porque a culpa é minha."
Harriet olhou para ele com desconfiança e, depois, disse simplesmente "Obrigado", afastou-se para a outra extremidade da sala e resumiu a sua atenção pelas pinturas. Scott, querendo evitar a aparência de puxar mais conversa, procurou
182
fazer o mesmo; durante cerca de um minuto os dois escutaram as mútuas passadas e contiveram com dificuldade o desejo que sentiam de se olhar, com receio que ambos escolhessem o mesmo momento para o fazer.
"Gosta de quadros?" perguntou ele, por fim.
"De alguns", respondeu ela.
"Não se sente atraída por eles?"
"Tenho feito mapas muitas vezes, mas nunca quadros."
"Mapas!" disse Scott, confundido com esta resposta. "Bom, em todo o caso são úteis."
"São mais úteis sob certos aspectos do que os quadros, mas eu preferia os quadros."
"Sim? E que género prefere?"
"Gosto das cenas em ponto grande de qualquer conto bonito", disse Harriet, abandonando-se à preocupação que lhe inspirara em primeiro lugar a face de Cyril, e, depois, a consideração pela tia como hospedeira dele também. "As que mais me agradam são as dos mestres antigos. São pintores que viveram há muito tempo e até alguns dos quadros deles podem ver-se no South Kensington Museum e na National Gallery. Nunca ouviu falar do pintor chamado Rafael?"
"Creio que sim."
"Gosto dos seus quadros, ainda que os tenham difamado muito. Todavia, quando os for ver, não lhe parecerão à primeira vista muito agradáveis, mas são realmente muito bonitos."
"Sim", respondeu Scott, fazendo uma careta, "eu também sou um grande admirador de Rafael, fique sabendo."
Miss Russell de repente tornou-se desconfiada e nada mais disse.
"Gosta de paisagens", disse o artista. "Aprecia, por exemplo, algum destes quadros?"
"Poucos somente", respondeu. "São todos de aspecto muito afectado. Prefiro debuxos e estampas."
"Aspecto afectado?" disse Scott com veemência. "Que quer dizer com isso? Qual é a palavra que considerou afectada?"
"Eu disse aspecto afectado", replicou Harriet, um pouco envergonhada, mas resolvida a não o mostrar. "Como se o pintor pensasse muito sobre a sua pessoa."
"Hum!" disse Cyril. "Mostre-me, entre estas, qualquer
183
das obras que você recusa com palavras tão prontas. Apenas um exemplo."
A face dela passou a exprimir quieta determinação. "Esta!" disse, apontando para o quadro da autoria do seu interlocutor.
Scott estremeceu. "Sabe", disse voltando-se para ela, "quanto estudo e quanto trabalho esta pintura custou ao homem que a executou? O que há aí que possa censurar? "Afectado" nada significa. Reproduz a natureza? Se difere dos céus azuis e brancos que está acostumada a ver nos outros trabalhos, é porque é mais ou menos verdadeiro?"
"Custou mais estudo, mas é o mais ridículo", disse resolutamente Harriet. "Não me agrada. Além disso, o que se pode dizer da natureza? Um pintor não a pode copiar com uma caixa cheia de barros bizarros trazidos para amassar com azeite." Para fazer esta observação, cuja verdade Scott verificara já várias vezes, valera-se ela do seu antigo preceptor Smith, que lha declamara naquela tarde de acesso de transcendentalismo intolerante, tão pouco usual nele.
"É uma observação muito sagaz e incontrovertível", reflectiu o artista. "Mas não destrói a verdade relativa que a pintura contém, o que se pode verificar com bastante facilidade. Há, evidentemente, excesso de espírito humano nos quadros, que os torna mais interessantes do que a natureza. Quantas vezes viu já o céu assim?"
"Só dei por ele há instantes!"
"Sim e não o achou interessante durante o contacto de alguns momentos. Disse há um minuto que muitas vezes Rafael não satisfaz de repente o seu olhar crítico. Se gastasse alguma coisa mais do que alguns minutos a julgar o resultado de anos de trabalho e de meditação, talvez suspeitasse do valor de conclusões precipitadas."
Harriet percebeu que o argumento sobre a sua experiência de Rafael era poderoso e também que o seu companheiro se mostrava de natureza pouco comedida. Submeteu-se por isso, dizendo: "Faço ideia quanto ele deve ter custado."
"E o que tem com isso?" disse Scott asperamente.
"Nada", respondeu Harriet com doçura; "gostava apenas de saber."
"Creio que Mr Grosvenor deu por ele quatrocentas e
184
cinquenta libras", respondeu ele, encafuando as mãos nas algibeiras e olhando de semblante carregado para a janela.
"Quatrocentas e cinquenta libras!" repetiu Harriet, atónita. "Mas também Mr Grosvenor é tão rico e tão generoso. Suponho que o pintor era algum pobre rapaz que ele queria encorajar."
Scott não pôde ter a presença de espírito necessária para responder, mas continuou a olhar para a janela, através da qual o sol matutino vinha iluminar o seu rosto. Harriet olhou para ele; reparou que estava furioso e então admirou-o ardentemente. Pareceu-lhe um verdadeiro homem, susceptível, intenso e por completo diferente do pálido estudioso de Islington, cujos pensamentos eram como que raquíticas sombras de consciência e lógica. Espantou-se com o ser dele tão perturbado pelas críticas que acabara de lhe fazer, e resolveu discutir outro assunto cujo mérito, pensava, lhe pertencia indiscutivelmente.
"Há no quarto de minha tia a gravura dum esplêndido quadro", disse. "Tenho muitas vezes pensado por que não o colocam nas galerias."
"Hum! exclamou Scott, procurando recobrar o seu bom humor. "De quem é?"
"Não me lembro", respondeu ela. "Representa uma estação de caminho de ferro. Os vestuários seguem modas muito antigas: crinolinas e chapéus largos; mas o quadro é mais vivo, mais interessante. Há uma noiva..."
"Sim", interrompeu Scott. "Conheço o quadro. É de Mr Frith."
"Não gosta?" perguntou ela.
"Nada tenho a dizer contra ele", replicou o artista, resolvido a ser justo. "Mr Frith é, sem dúvida, homem muito inteligente." Não se pôde, porém, conter e acrescentou: "E encontrou na estação de caminho de ferro o campo mais apropriado para exercitar o seu génio."
Harriet parou com ar de dúvida. Viu que o seu interlocutor não participava da sua admiração pela Estação de Caminho de Ferro. Ele desviou a vista e relanceou um olhar para Fogos Doirados, pendurado no lado oposto; comparou-os e fugiu. Não conseguiu sair impedido pelo aparecimento de Mrs Summers; o assombro desta por encontrar a sobrinha, cujo bom senso sempre respeitou e temeu, a
185
conversar, ainda de dedal, com um dos hóspedes de seu patrão na galeria de pintura, estava bem visível no seu rosto.
"Harriet", disse: "são nove horas".
Harriet estremeceu e disse: "Não calculava que fosse tão tarde." Fez depois uma vénia ao artista e deixou a sala, acompanhada pela tia.
"Quem é este cavalheiro, tia Angel?" perguntou, quando descia a escada de caracol.
"É Mr Cyril Scott", respondeu Mrs Summers, "um jovem por quem Mr Grosvenor tem muita consideração. É pintor e deu-lhe quatrocentas e cinquenta libras pelo quadro que ele te estava a mostrar lá em cima."
Harriet percebeu então o que se tinha passado. Nada disse a esse respeito à tia, mas começou a caminhar mais depressa, para que não o encontrasse outra vez.
"Harriet", disse Mrs Summers com timidez: "Espero que não procuraste falar voluntariamente a Mr Scott."
"Que ideia, tia Angel! Eu até me ofereci para sair quando ele entrou. No entanto, sempre lhe disse quem eu era; mas falou-me de si como de um amigo e dispôs as coisas de tal maneira que não me pude retirar."
"É um lindo cavalheiro, palavra de honra", disse Mrs Summers, "e eu conheço bem o teu bom senso, Harriet. Aí vem Miss Woodward à procura dele, vou-lhe dizer." Enquanto falava, a mesma jovem senhora que aparecera no domingo de Páscoa vestida de cetim primavera e que depois fora repreendida por Scott, chegou ao vestíbulo, mostrando-se tão fresca como a manhã, com chapéu de palha e lindo vestido de Holanda. Harriet olhou-a com ar de afronta, desceu as escadas, preparando a partida para o trabalho, em Richmond.
Miss Woodward, depois de ter relanceado os olhos pela sala de chá e de dar um breve passeio no terraço, dirigiu-se para a galeria azul, onde encontrou Mr Scott diante do seu quadro, hesitante entre o orgulho dos méritos que ele patenteava e o desejo de o destruir por causa das imperfeições que a sua mais recente experiência o tornara capaz de evitar.
186
CAPÍTULO V
Logo ao princípio da tarde, quando Lady Geraldina Porter, que era também hóspede de Perspective na segunda semana depois da Páscoa, estava sentada no prado a ler o jornal, foi interrompida por uma das jovens vestidas de verde.
"Desculpe-me, minha senhora, mas está uma pessoa no pavilhão que deseja falar com V. Ex.a. O seu nome é Fenwick."
"Bem sabe que não o admito à minha presença. Obrigado."
"V. Ex.a não o deseja ver?"
"Não, certamente."
A rapariga vestida de verde, que, com toda a evidência, fora gratificada pelo visitante, voltou ao pavilhão, onde se encontrava Mr Fenwick, encostado a um dos pilares da varanda, a espreitar furtivamente pela janela de grades para a mesa bem vasta que ele via na bonita residência do porteiro. O seu vestuário estava no fio, cheio de nódoas, roçado nas extremidades, cheio de rugas junto dos joelhos e dos cotovelos. O colarinho sujo, já muito flexível para se aguentar levantado, sujava o velho lenço estampado que lhe servia de gravata. As botas estavam rebentadas e os pés nus, cobertos de pó e de lama, viam-se perfeitamente pelos buracos. O par de punhos já surrados e os restos duma luva em pele de cão na mão esquerda mostravam que ele procurava mostrar-se bem vestido quando visitava Lady Geraldina. Uma expressão de ansiedade veio-lhe às faces quando viu a rapariga de volta. Esta, olhando-o com dureza, abriu primeiro a porta de carvalho e depois disse-lhe secamente:
"Lady Geraldina Porter não o pode receber."
Fenwick olhou-a consternado e pareceu que ia fazer algum apelo à rapariga, mas a fisionomia desta quando agarrou a porta aberta era inexorável. Ele hesitou; relanceou de novo a mesa preparada para a refeição; engoliu em seco e saiu com penoso blasonar. Mas, incapaz de sofrer a ideia
187
de se render sem luta, perguntou, quando atravessava o limiar.
"Qual será a hora mais conveniente para voltar?" Como resposta, a rapariga fechou-lhe a porta na cara; ele amaldiçoou-a com frenesim quando se começou a afastar. Caminhou depressa, até que a debilidade e a relutância de abandonar todas as possibilidades de conseguir o seu objectivo nas vizinhanças de Perspective o detiveram. A estrada era ladeada, numa das beiras, pelo muro de tijolo do parque de Mr Grosvenor e, do outro, pelo fosso húmido, em cujo talude oposto crescia uma sebe. Atravessou o fosso; estendeu-se ao sol sobre a relva do talude e começou a meditar, com ar contrafeito, sobre a sua posição actual. Sentiu-se débil e mesmo doente. De repente apoderou-se dele a convicção de que ia morrer; e este terror impediu-o de se levantar, para não perder a esperança de que ainda estava bastante forte para andar. Apalpou o pulso; e quando o achou rápido e incerto não soube se isso seria sinal favorável ou não. Pôs-se à escuta e até tomou consciência das pancadas do próprio coração; as possibilidades de doença encheram-no de vivas apreensões. Julgava que o fumo nunca o fizera correr perigo. Cobiçou então a migalha de tabaco que lhe abrandaria o mal-estar. A perspectiva da mendicidade ocorreu-lhe, mas tinha perdido já bastante orgulho para resistir à fome que ele, com tudo isso, sentia conduzi-lo necessariamente para lá. Nada possuía que pudesse empenhar; assim, sem comida, e, ainda por cima, sem esperança, deixou-se adormecer, com o sol a aquecer a sua esfarrapada figura e a extrair rutilantes raios doirados dos seus cabelos amarelos, que vagabundeavam pelo pescoço em madeixas empoeiradas.
Mais tarde, Lady Geraldina pedira emprestado o landó dum dos hóspedes e pagara algumas visitas pelos arredores. Quando voltou a Perspective por outra estrada, a sua atenção foi atraída por aquele corpo deitado, aparentemente adormecido na relva. Lady Geraldina era proprietária de uma herdade produtora de queijos e esposa dum magistrado. Auxiliava os vagabundos, posto que raras vezes os ouvisse. Preparava-se, por isso, para examinar aquele quando passasse. Como estava deitado, com a expressão aflita e fixa da fome no rosto e na boca, o lenço em desordem na garganta a esconder
188
a ausência de camisa sob o miserável vestuário, estava longe de qualquer sentimento que não fosse o da piedade.
O primeiro impulso de Lady Geraldina, ao reconhecê-lo, foi afastar-se o mais depressa possível. O segundo foi parar e dirigir-se-lhe. Antes de ela poder fazer qualquer coisa, o ruído das rodas despertaram-no; encaminhou os olhos fracos para a carruagem e começou imediatamente a vacilar em pé, com a vista implorante em Lady Geraldina.
"Venha ao portão e espere fora até que eu o mande buscar", disse ela com ar severo.
Um minuto depois desapareceu e Fenwick deixou-se ficar junto da porta de carvalho, diligenciando rapidamente compor a primor as suas vestes.
Quando a carruagem entrou na propriedade, Lady Geraldina apeou-se e dirigiu-se ao barracão.
"Gwendoline", disse para a rapariga de verde: "está aí a sua mãe?"
"Está lá em cima, minha senhora."
"Bem, empresta-me então o seu quarto, ou qualquer outro compartimento, por alguns minutos?"
"Certamente, minha senhora."
"Desejo receber a mesma pessoa que bateu esta manhã, mas não em casa."
Para obter a boa vontade de Miss Gwendoline, bastava apenas aos seus superiores sociais chamá-la pelo seu nome próprio, coisa de que ela tanto gostava. Mostrou o caminho para uma sala de visitas, com chaminé de telhado, mobília de carvalho, portas almofadadas em vidro e trofeus de caça. Aqui, Lady Geraldina pediu à pequena que admitisse Fenwick. Ela, consequentemente, abriu a porta de carvalho e disse:
"Venha por aqui, se faz favor."
Mr Fenwick entrou com altivez, a brincar com os restos duma das luvas. Gwendoline indicou-lhe o caminho até ao átrio do pavilhão, e, apontando a porta da sala de visitas, informou o visitante que Lady Geraldine o podia receber. Agradeceu à rapariga com polidez afectada que, em outra pessoa mais importante, poderia ser insultuosa e bateu à porta com alguma hesitação. Um imperioso "entre" amedrontou-lhe a afectação por um momento, mas obedeceu,
189
encolhendo-se ante o severo semblante de Lady Geraldina com um ar que era mistura de vergonha, medo e súplica.
"Bem! O que deseja?" disse ela, com a severidade que oculta o impulso para rir.
Fenwick fez rodar o chapéu nas mãos e resmungou qualquer coisa.
"Tire das mãos essa coisa que para aí traz e fale convenientemente", disse Lady Geraldina com impaciência.
Mr Fenwick deixou cair com precipitação o chapéu. Depois, encorajado pelo tom da interlocutora, o qual, ainda que inquietante, era mais familiar do que antes, começou:
"Lastimo bastante ter de tomar a liberdade de vos incomodar... de incomodar V. Senhoria. Tenho sofrido muitas infelicidades ultimamente. Estou sem trabalho."
"Porque abandonou o emprego que tinha?"
"A que se refere?" perguntou Fenwick.
"O seu lugar na casa de Mr Linton."
"Houve uma desinteligência por causa de uma ninharia e tive de o abandonar, mas..."
"Você roubou e foi despedido", disse Lady Geraldina. "É a isto que se refere?"
"Não, pela minha honra", respondeu Fenwick, sinceramente horrorizado. "Eu não faria tal coisa. De certeza não o faria. Somente pedi emprestado. Estávamos a vinte e oito do mês e o dinheiro era-me devido. Eu iria repô-lo dentro de dois dias e nunca se poderia saber qualquer coisa acerca de tal assunto. Eu tinha de pagar uma dívida de honra."
"De quê? Naturalmente alguma cautela de penhores."
"Não: não o faria por cinquenta penhores. Tinha perdido certa quantia nas corridas. A culpa não era minha; queira perguntar a Mr Porter se não é público e notório que Topsy perdeu..."
"Desta maneira o meu caro senhor é tão batoteiro como bêbedo. E que espera que eu faça por si com estas recomendações tão eficazes? Tem tido oportunidades que muito poucos conseguem. Ofereceram-lhe boas nomeações, mas não trabalhou para passar nos concursos. Colocaram-no em empregos uns a seguir aos outros e perdeu-os todos por beber, por madracear e por ser insolente. Finalmente, quando Mr Linton lhe arranjou ocupação como gentileza para com o meu solicitador, que, por sua vez, se interessou
190
pelo seu caso como favor feito à minha pessoa, roubou-o para conseguir fundos que iria depois gastar na batoteira. Não posso compreender porque ele não o mandou logo prender. Isto, ao menos, podia dar-lhe trabalho e arrancá-lo à bebida."
"Reconheço que não fui honrado. Mas tenho procurado sempre fazer o que me diz. Nunca esqueci que devo proceder como um cavalheiro."
"Como ousa dizer-me tal coisa!" disse Lady Geraldina. "O senhor tem procedido sempre como cavalheiro na sua vida? A bebedeira e o roubo fazem parte das virtudes dos cavalheiros?"
"Não foi um roubo", alegou Fenwick. "Eu tinha já ganho o dinheiro. Lá isso é que tinha."
"E a mulher em casa de quem você vivia em Islington e a quem fugiu, deixando-me a mim para lhe pagar a sua renda? Pagou-lhe muito dinheiro? Ou as muitas pessoas que você vigarizou usando o meu nome e ostentando cartas minhas para si; pagou-lhes o dinheiro que lhes ficou a dever, Fraser?", disse Lady Geraldina gravemente: "você não é bom rapaz e receio que eu tenha tido alguma interferência na sua desventura. Julgo que não me pode falar de qualquer acção desinteressada praticada na sua vida."
"Mas eu vou-me emendar", disse Fenwick. "Há muito tempo que não bebo; vou tirar amanhã as coisas do prego. Vou sossegar. Vou dar de mão a isso tudo, bem vejo que me arruino. A culpa não é só minha; para qualquer outra pessoa poderia ser, mas não para mim. A senhora sempre se mostrou minha amiga. Proporcione-me mais uma ocasião e verá se não me tornarei num crédito para si. Tenho a intenção de ir regularmente à igreja..."
"Quantas vezes não me abriu já esse rosário de promessas?" perguntou Lady Geraldina, asperamente interrompendo-o. "Não; nada mais quero consigo. Encorajando-o não mais faço do que dar-lhe meios para pilhar os outros. Basta, pois." E fez um movimento em direcção à porta.
"Mas, Lady Joldie", gritou Fenwick, com voz de criança que vai gritar, estendendo a mão como se procurasse agarrar-lhe os vestidos: "Tenho fome!"
"Reservou isso para último argumento?"
"Ainda não comi hoje", disse, fungando convulsivamente;
191
"e ontem apenas comi um dos pães de dinheiro cada. Empenhei tudo o que possuía, a não ser algumas coisas deixadas nos quartos onde vivi, que não me darão. Nos últimos dois meses tenho levado a vida dum perro. Vou morrer. Tinha já pensado muitas vezes nisto; mas agora sei que é verdade, mas não estou preparado. Não sei para que nasci, para nunca passar dum miserável." Quando chegou aqui, vencido pela fraqueza, sentou-se numa cadeira e começou, repentinamente, a gemer, com as lágrimas a fazerem canais brancos na poeira que lhe sujava a cara.
"Se eu o acreditasse dava-lhe algum dinheiro para comida e vestuário; mas suponho que iria gastar tudo numa noite de beberrónia", disse Lady Geraldina.
"Juro solenemente que..."
"Fraser!"
"Iria gastá-lo de maneira digna e trabalhar duramente, se me livrasse deste beco sem saída", afirmou Fenwick mais calmo. "Ver-me-á direito, se me auxiliar só esta vez."
"Onde está o seu tio com cuja filha está comprometido? Lembre-se que nas duas últimas vezes me garantiu que se ia pôr em condições para casar com ela."
"Já lá não vou", disse Fenwick. "Zangámo-nos. Pelo menos, nada mais dissemos depois da questão com Mr Linton."
"De tal maneira a coisa se escangalhou?"
"Assim penso. Desde então nunca mais vi Fanny. Não me julgo agora bastante bom para ela."
"Se pensasse um pouco menos sobre ser bastante bom para com as outras pessoas e arranjasse a maneira de se respeitar a si próprio, isto poderia constituir alguma esperança para si. Não é bastante bom para fazer com que alguma rapariga tenha esperanças em si, pois não passa dum infeliz louco. Agora escute-me. Vou dar-lhe dez libras. (Os olhos de Mr Fenwick brilharam). Volte à cidade e compre você mesmo o vestuário de que necessita; pague a renda e desempenhe aquelas das suas coisas que lhe possam ser úteis. Pergunte por mim em Wilton Place na próxima terça?feira, por volta das onze e meia, e leve consigo o recibo da renda. Se aparecer bêbedo, ou se olhar como se tivesse bebido, verá o que o espera. Não quero ouvir agradecimentos, nem outros quaisquer protestos. Fico satisfeita por
192
arriscar este dinheiro; se o quiser gastar no jogo ou em gin, pode fazê-lo, na certeza, porém, de que não deve voltar à minha procura. E repare que deve estar pronto a aceitar qualquer emprego que eu lhe possa arranjar, quer o considere ou não próprio da sua dignidade. Agora pode ir-se embora."
"Oh, Lady Joldie!."
"Basta", interrompeu Lady Geraldina. "Vá a Richmond e compre alguma coisa para comer. Olhe: em troca tome lá mais uns xelins. Agora, parta!",
Fenwick reprimiu a expressão de agradecimento e deixou a sala com humildade. Quando fechou a porta, deu uma gargalhada de prazer. Momentos depois, com dez libras, quatro xelins e seis dinheiros apertados na mão, atravessou a varanda com ares de birbante; olhou desdenhosamente para Gwendoline, que estava sentada a ler um romance; saiu num pulo para a estrada, que atravessou com rapidez, ligeiro como a bonina dos caminhos e exuberante com a fome que ele agora podia afogar em luxúria.
193
CAPÍTULO VI
Miss Isabella Woodward contava por esta época vinte e quatro anos. Os olhos e o cabelo eram daquele tom que passa por preto quando não o colocam em contraste com a verdadeira cor, e a sua expressão, animada e encantadora, quando em conversa com homens, mostrava-se aborrecida e cansada quando despreocupada entre pessoas do seu sexo. Originalmente de boa capacidade e de impaciente disposição, recebera a educação comum que se dá a quem se destina à vida elegante; abandonara a escola descontente, de temperamento violento, caprichosa, dissimulada e com as condições necessárias para sustentar em francês conversas sobre modas, para cantar quatro composições e interpretar ao piano a fantasia de Mr Prudent em melodias da Lucia di Lammermoor. Tinha um gosto e uma habilidade: o primeiro pela literatura emotiva, a segunda pelo namorico. Este vinha-lhe mais do instinto que de qualquer artifício. Seduzir qualquer homem com o olhar, ou com a lisonja, e no encontro seguinte tratá-lo com indiferença ou pretender esquecê-lo, era tão natural nela, que julgava o namorico hábito vulgar de que ela se supunha incapaz.
Quando tinha vinte anos, achando-se inquieta e infeliz em casa, zangou-se com a família e recusou-se a viver com ela. Pouco depois, alguém das suas relações afirmou-lhe que a felicidade perfeita só se alcançava no seio da Igreja Católica Romana. Sem reflectir que essa pessoa se encontrava tão longe da perfeita felicidade como ela, e como estivesse vagamente desejosa de alguma modificação na sua vida interior, transferiu, a despeito das exortações, ameaças e súplicas da família, a sua fé para Roma, na igreja dos Oratorianos de Brompton. Descobrindo, no entanto, que Isabel a Católica era precisamente a mesma que Isabel a Protestante, e que a atracção das massas às seis horas da manhã se modificava com a aproximação do inverno; sentindo-se, além disso, cansada com as velhas que professavam a sua fé presente, que ostensivamente a beijavam e amimavam, e,
194
em geral, com todos os do mesmo credo, que a tratavam como uma parvinha; e, principalmente, porque desgostosa com o confessor, que, embora ex-oficial das Guardas, nada conservava da galantaria da profissão anterior, deixara relaxar o vigor das regras que impusera a si própria e evitou, apenas por medo supersticioso, as reclamações da sua independência espiritual. Como sua mãe nessa altura estivesse às portas da morte, voltou para casa nos termos dum tratado doméstico, consistindo um dos capítulos em, apesar de ela poder assistir aos actos da sua crença nos lugares que preferisse, seu pai, irlandês protestante e membro do Parlamento, dispor da liberdade de correr a pontapé pela escada abaixo, de partir o nariz ou mutilar de outra qualquer maneira, todo o representante do Papa que tentasse atravessar a soleira da sua porta. Cumpriu assim a sua obrigação ou como a filha que se refugia das importunidades, ou como a que vai para elas como qualquer neófito; desde então passou a procurar consolo no entusiasmo pela arte, simulando que encontrara pela primeira vez ocupação feliz e agradável.
Tivera já seis propostas de casamento. A primeira veio dum oficial de artilharia, que se apresentou precisamente quando ela deixava a escola. Recusou-o imediatamente porque ele contava já vinte e quatro anos, não tinha imaginação, enervava-se porque ela podia apanhar um resfriamento quando saía em fato de passeio, mas sem luvas. O segundo chegou quando ainda se gozavam os triunfos da recusa do primeiro, de quem ainda compartilhou a sorte. Amou o terceiro candidato até à data da respectiva declaração, e ainda mesmo depois; mas este veio a casar-se com outra enquanto o fazia esperar pela resposta com requebros evasivos. Declarou ela, com isto, que a sua carreira acabara e ofereceu os seus serviços (que foram declinados) como enfermeira e mudou eventualmente a sua religião como antes se indicou. Durante o intervalo que decorreu após isto, começou a pensar que a regra de sociedade que prescreve sempre a cada pessoa a aceitação de convites, quer tivesse tenção de o fazer, quer não, se aplicava igualmente a pedidos de casamento; e desta época em diante ela passou a responder afirmativamente a todas as propostas. Comprometeu-se assim com três cavalheiros sem conseguir marido.
195
O primeiro destes três objectou-lhe ela ter pendente o compromisso com o segundo; este repudiou-a por ter cancelado, por causa dele, o seu contrato com o primeiro; e o terceiro retirou-se por alguns meses para a Escócia, donde, depois de a obrigar a aproximar-se mais dele pelo silêncio que impôs, lhe escreveu a dizer que nenhuma mulher que tivesse duvidado da sua honra jamais poderia representar alguma coisa para ele e que lhe desejava todas as felicidades com o homem a quem viesse a dar a sua mão. Depois disto, já então capaz de aguentar com ânimo tais reveses, declarou a todos os seus amigos que tinha acabado com a brincadeira e pôs-se à espera dos ataques do sétimo pretendente. Como depois sucedeu, tornar-se familiar com Scott, e ainda como o levasse, graças a alguns dos seus comentários ignorantes sobre a respectiva arte, a tratá-la com desprezo declarado, determinou que o pintor poderia ser o sétimo, se possível, e jurou a si própria, durante as vigílias nocturnas, que mal Cyril lhe proporcionasse ensejo, ela lançaria atrás do pretendente toda a sua infeliz vida passada, para se tornar a mais fiel, mais indulgente e mais desinteressada das esposas que jamais tomaram sobre si metade do peso da existência de artistas. Tais votos não eram infrequentes em Miss Woodward.
Cerca das cinco horas da tarde do dia em que Fenwick visitou Lady Geraldina, Miss Woodward, que levava debaixo do braço o cepo encaixilhado onde se esboçava um ruão, penetrou na parte dos domínios de Mr Grosvenor onde estes se inclinavam para a margem do rio e onde o terreno estava arborizado com olmos e castanheiros. Viu daí, pelo meio das árvores, Scott, em pé junto da água, a olhar para a cena que se desenhava na sua frente com ar de insatisfação, que a jovem senhora atribuiu à ausência na paisagem de nevoeiro, em cujo delineamento ele se esmerava. Quando se encontrava ainda a alguma distância, o pintor voltou-se e viu-a; e, ainda que fossem raramente atraentes os pedaços de luz solar a brilhar, através dos ramos, sobre o seu largo chapéu de palha e sobre o ligeiro vestido de verão, ele voltou rapidamente o rosto outra vez para o lado da margem. Nesta posição o pintor ouviu os passos a aproximarem-se através da relva e pararem muito próximo de si. Não olhou em volta. Ela não se lhe dirigiu, pois sabia que o pintor dera pela sua
196
presença e não lhe repugnava castigá-lo por fingir desconhecê-la. O artista manteve-se obstinadamente naquela posição até que sentiu o pescoço tornar-se vermelho atrás. Voltou-se então, exteriorizando pouco feliz diligência para simular surpresa.
"Está bom, Mr Scott?" perguntou ela, com satírica polidez.
"Bom?" disse ele grosseiramente. Achando difícil conservá-la à distância de, pelo menos, dois pés, deu um passo atrás enquanto falava. Lembrando-se a tempo que este movimento poderia precipitá-lo no Tamisa, voltou a si já em equilíbrio, na execução do qual fez cair o livro de esboços da jovem com uma pancada que lhe espalhou as folhas soltas pelo solo. Miss Woodward, que possuía percepção irlandesa do ridículo, começou a rir.
"Peço que me perdoe", disse Scott, sinceramente mas com petulância; não lhe agradava que rissem dele.
"Estive esboçando toda a tarde", volveu ela, tornando-se grave enquanto o outro a ajudava a recolher os papéis; "mas quanto mais me esforçava, menos conseguia atingir o objectivo que pretendia." O artista continuava a misturar os esboços dentro do livro sem sequer olhar para eles. "Suponho", acrescentou ela com fraco sorriso, "que os meus esforços lhe parecem muito parvos e presunçosos."
"Nunca vi qualquer deles."
"Tenho pensado muitas vezes em lhe pedir que os veja e que me aconselhe; mas sabendo como medita profundamente nos seus trabalhos, nunca ousei perturbá-lo com os impertinentes borrões que eu componho."
"Estimaria muito - creia - mas não vejo bem como a poderia aconselhar", respondeu ele rapidamente.
"Oh, bem sei que podia!" afirmou ela com entusiasmo. "Se pudesse ao menos dizer-me a sua verdadeira opinião sobre qualquer dos meus esboços - apenas de um - ficaria sabendo mais por isso do que por muitos anos que eu andasse às apalpadelas na escuridão. Outros artistas, como o velho Mr Vesey, concedem-me cumprimentos ocos que só me humilham. Vai dizer-me a verdade, não vai?"
Mr Vesey seguia a antiga escola. Cyril coçou a testa; encolheu os ombros e disse:
"Muito bem, Miss Woodward. Vou dar-lhe a minha
197
opinião, se assim lhe apraz. Pode tomá-la pelo que vale."
"Confesso que estou um tanto receosa", disse ela, fixando-o sorridente, como se hesitasse em lhe mostrar o esboço que segurava meio tirado da pasta. Esta modéstia não produziu efeito em Scott, que agarrou sem cerimónia a folha de papel e pôs-se a estudá-la de semblante carregado.
"Está muito mal?"
"Não, não muito... pelo menos... A verdade é, Miss Woodward, que esta coisata não pode ser feita por qualquer amador à laia de brincadeira. Garanto-lhe que estas coisas consomem a vida inteira ao homem que trabalhe, tanto quanto possível, por obter algumas condições para pintar. Você caminha agora como se se estivesse a divertir e escolheu um assunto que eu não tenho condições bastantes para atingir. É bonito, não há dúvida; mas esteja certa que nada vale."
"Julga que não devo continuar", disse ela, desesperada.
"Não", respondeu ele com tolerância. "Se tenta apenas simples efeitos, e nada tem de melhor a fazer, terá de perder o seu tempo com isso como com qualquer outra coisa."
"Obrigada", disse ela, começando, pela reflexão, a sentir-se um pouco mal. Scott falara com veemência bastante inferior à que sentia, pois não tinha consciência da severidade das observações que fizera, e julgou que se exprimira com indulgência. Receando que pudesse ser tentado a falar se o assunto prosseguisse, arrumou o esboço e disse:
"Não nos esqueçamos das horas. Já é tempo de nos irmos vestir para o jantar."
"Ah!" disse Miss Woodward, "estou certa que lhe aborrece ter de se vestir."
"Não gosto", respondeu ele. "Mas nada ganhamos em rosnar. Vamos embora."
"Levanta-se todos os dias de manhã cedo para ir contemplar os seus quadros, Mr Scott?" disse ela, quando ambos caminhavam em direcção a casa.
"Porquê?"
"Porque esta manhã fugia da galeria azul com tal pressa quando me viu, que fiquei certa de que tinha ficado lisonjeado com um olhar para Fogos que limpam."
198
"Não me lembro de ter dado tal nome a um quadro", respondeu o pintor de nariz torcido.
"Mas provavelmente sabe a que me refiro. É o quadro de que Mrs Summers tanto gosta. Vi-o depois disso a sustentar longa conversa com ela no átrio; suponho que falavam a esse respeito."
"Estimo muito em saber que segue os meus movimentos com tanto interesse, Miss Woodward."
"Isso é o mesmo que dizer que sou imprudente em o observar."
Scott não negou.
"Lamento muito, Mr Scott", disse ela com veemência afectada. "Nem mesmo lhe posso dizer como o lamento."
"Não sei, Miss Woodward", retorquiu ele com deliberada ênfase, "porque me deu a honra de me escolher para vítima das suas brincadeiras. Talvez que a minha profissão me desse o hábito de falar muito seriamente quando trato de certo número de coisas, que me tornam bastante incapaz aos olhos da esfera refinada e muito intelectual onde você brilha; mas não posso compreender que tenha qualquer direito para tornar as minhas acções particulares o objectivo das suas más interpretações humorísticas."
Após esta arenga, daquelas em que Scott baseava a alta opinião sobre o próprio poder satírico, os dois passearam em silêncio durante algum tempo. Quando saíam do bosque para o parque descoberto, Miss Woodward levantou o chapéu da testa e cantou alegremente um trecho de certa balada. O artista olhou com indignação para ela e fez acelerar a velocidade com que se dirigiam para os degraus e de tal maneira que a forçou a consagrar os bofes só à respiração.
"Quando há pouco se referia à sua experiência, Mr Scott", observou ela, "pensava que os artistas constituem o agradável modelo da sociedade?"
"Quando considerar a espécie de seres que constituem a sociedade, Miss Woodward, e o amontoado de pensamento e de trabalho por onde os artistas têm de passar, talvez possa compreender como eles sentem quando se encontram em salas. Se qualquer artista é, tanto quanto pode ser, sensível, um louco basta para o destemperar e estragar-lhe a tarde toda."
199
"Meu caro! Julgo sempre os artistas muito docemente comedidos."
"Na verdade, também os julgo assim. Não há dúvida que você os pode compreender melhor do que eu."
"Confesse, então, que estava terrivelmente irado comigo".
Enquanto falavam, entraram no átrio.
"Estou a ver que aqui não há ninguém; concluo por isso que a sineta já tocou", disse Scott friamente.
Arremessou depois os esboços para cima da mesa e pôs-se a passear em volta do compartimento. Miss Woodward apanhou a pasta e seguiu-lhe com alegria o exemplo, embora não por completo segura de que tinha tanta fome como ele. Mas a criada, que preparara o jantar, possivelmente não a chamara ainda.
Mr Grosvenor estava habituado a encontrar na sua sala classes sociais tão diversas, que de há muito adoptara, como o único meio de impedir ofensas, o plano de violar sistematicamente todas as regras de etiqueta. Dizia-se que na única ocasião em que um bispo atravessara o limiar de Perspective, este rebaixara-se com certa cantora de ópera, enquanto a esposa do dono da casa, quatro pares mais adiante, descia as escadas de braço-dado com certo gravador. Na ocasião presente, Mrs Mainwaring, irmã de Mr Grosvenor, já casada, procedia como dona da casa. À roda dela as conversas arrefeciam; não se davam opiniões e concedia-se aquiescência cortês a inocentes observações. Na extremidade oposta da mesa, o dono da casa, Miss Woodward, Lady Geraldina, Cyril Scott, Ernesto e Clytie, a irmã mais nova de Miss Woodward, com alguns jornalistas e críticos, formavam grupo loquaz. Mr Lind, o sacerdote, também se encontrava aí, observando apreensivamente o seu radical antagonista, que se sentava diante dele comendo à larga.
Cyril Scott conservou-se silencioso durante algum tempo. Procurava encontrar Miss Woodward, que estava contando a Mr Grosvenor, em voz baixa, certa anedota divertida acerca de alguém que caíra a um rio.
Lady Geraldina, que estava à espera de poder falar, tornou-se impaciente.
"O que vamos ter seu este ano na Academia, Mr Scott?" interrogou ela.
"É comigo? Oh, nada, nada de particular!"
200
"Nada é muito diferente de nada de particular."
"Absolutamente nada", disse Scott, corando e rindo. "Tenho dois quadros, mas um executado há três anos e o outro será de tipo... muito popular."
"Outro passo", disse Miss Woodward para o seu hospedeiro, "e ele cairia para dentro.- Depois ficou furioso, e ralhou comigo violentamente durante todo o caminho para casa. Tenho, por consequência, neste livro negro três grandes cruzes contra mim?."
Grosvenor riu e mudou de assunto, dirigindo-se a um dos críticos.
"Viu alguns dos sonetos de Hawkshaw?"
"Mandou-mos ontem", replicou o crítico. "Admirável, oh! admirável! São com certeza a melhor coisa do género depois de Suckling."
"Sim", disse Ernesto. "Vi as provas. O nome do quinto soneto, O Novo Endimião (1), é do meu tipo. É lindo, esplêndido! Por S. Jorge, é magnífico!"
"Não há dúvida", observou Grosvenor, "que Hawkshaw é mestre consumado nas formas francesas. Mas ouvi dizer que vai editar os dramaturgos elisabetianos."
"Isso não é exacto", respondeu o crítico. "Vou dizer-lhes em que está ele a trabalhar actualmente, mas para guardar segredo. A verdade é que está a realizar a lição do Hamlet para Simonton, que, lá para o mês próximo, vai abrir com isso o Gymnasium Theatre. Dá a Simonton estudos de cada cena; tudo aquilo virá a constituir simplesmente uma revelação."
"Isso é extremamente interessante, senhor", disse Mr Lind. "Eu admiro muitíssimo a eloquência de Mr Simonton. Que admirável obra que é o Hamlet!"
"Admirável!" ecoou outro crítico. "Objecto contra esta palavra, ou contra qualquer outra, aplicada ao Hamlet. Se o senhor qualifica uma obra, é porque declara compreendê-la. E quem compreende o Hamlet? No século dezasseis apareceu aqui o grande monumento que todos podiam admirar, mas ninguém conseguia decifrar a sua poderosa inscrição.
(1) Endimão, na mitologia grega, nome dum pastor amado por Seleneou Diana, que obteve para ele a graça divina de conservar a sua beleza em sono eterno. (N. do T.)
201
Assim permaneceu até ao dezanove, inescrutável como sempre. Desafio todo aquele que diga tê-la decifrado!"
"Tudo isso é, com certeza, muito verdade", comentou o primeiro crítico, "mas penso que muitas das ideias de Hawkshaw se aproximam extraordinariamente do motivo íntimo das suas composições."
"A despeito da celebridade desse Mr Hawkshaw, nunca me lembro do seu nome", respondeu o outro. "Presumo que é ainda jovem; evito duvidar de qualquer capacidade em agarrar satisfatoriamente um tema que tenha escapado aos intelectos mais experimentados."
"Oh, eu posso citar um", objectou Ernesto: "veja as Espigas!"
"Hamlet era louco?" continuou o crítico, que não dera por esta interrupção. "Aqui é que está a questão. Responda quem puder. Hamlet era louco?" E, enquanto dizia isto, lançava os olhos vagarosamente em roda, mas ninguém vinha ao encontro do seu olhar de espanto, à excepção de Lady Geraldina, que sorriu brandamente para ele. Por fim, o crítico olhou para o corpulento cavalheiro que se sentava defronte, muito ocupado a comer, mas que, ao tomar conhecimento do olhar inquiritivo do crítico, atirou com a faca e com o garfo; preparava-se para responder, quando o criado lhe levou o prato.
"Olá", disse o cavalheiro, cuja voz vencia qualquer outro som: "você parece que me quer tirar o jantar, pois não quer?" Depois, tendo recuperado a comida da mão do assustado serviçal, e relanceado alegremente a face cheia de censuras de sua esposa, disse para o crítico com tempestuosa cortesia: "Desculpe-me, mas fez-me alguma pergonta?"
"Estava apenas a apresentar este problema tão fútil, mas sempre presente: Hamlet era louco?"
"Que demónio de louco, senhor. Tinha modos disso. A peça é muito comprida. Hoje não há actores, nem público dignos dela." E voltou a comer.
"Este homem é o mais fresco dos bárbaros", disse Lady Geraldina.
"Quem é?" perguntou o artista.
"O seu nome é Tomline Musgrave", replicou Lady Geraldina. "É advogado e grande autoridade em assuntos de
202
código internacional. Como toda a gente que o conhece ou simpatiza com ele ou o detesta, suponho que deve ser inteligente. O seu principal dote social consiste em violar o decoro, sobretudo em maltratar a religião na presença de sacerdotes. Gosta muito de proceder assim, em parte porque isso aborrece a mulher, que nunca sabe que fresca ofensa ele vai soltar e, por consequência, vive constantemente sobre brasas. Fá-lo por malícia preconcebida, pois sabe comportar-se perfeitamente quando entende."
"Não há nada de novo sobre o tenor do Covent Garden?" perguntou Grosvenor, dirigindo-se a um jornalista de reputação mundial.
"Está assente o Seu aparecimento. Gye conseguiu o que queria; terá de defender seis acções de quebra de contrato, três na Itália, uma em Marselha e duas em Madrid. É um artista admirável. Até que enfim que o pobre papel de Mário vai ser preenchido."
"Certamente", disse Grosvenor. "Fiz mal em o ir ouvir a San Carlo. Donde vem ele? De quem é discípulo?"
"Esteve a estudar com Lamperti durante dez anos e ele bem o mostra. É senhor de todos os segredos do verdadeiro e velho bel canto italiano, no fraseado, no comando da mezza voce, confundindo todos os registos; tudo perfeito. Actor magnífico!"
"De facto ele é como todos os sucessores de Mário que têm aparecido e falhado nos últimos dez anos", observou Lady Geraldina. Depois, em tom mais baixo para Scott, "como aborreço a música!"
"An?" exclamou surpreendido Cyril.
"Aborreço-a", repetiu a dama. "É bastante má para se lhe dar atenção, ao passo que, por outro lado, rapazes e raparigas sensíveis se tornam ridículos ao piano, sem serem perseguidos pelos jantares recompensadores dessa algaraviada que não provam a satisfação de alguém, esses detestáveis lazzaroni convertidos em detestáveis derviches, que, contudo, o público inglês dificilmente pode ser induzido a tolerar, e, no entanto, são profundos artistas e cavalheiros acabados."
"Sei tudo o que respeita ao novo tenor", disse Ernesto. "Era engraxador num hotel de Nápoles; o velho Lamperti ouviu-o cantar três óperas todo curvado durante o tempo
203
em que puxava o lustro das botinas. E assim o engatou."
"Tive conhecimento duma singular anedota a seu respeito", observou Mr Lind, cujo som de voz fez Musgrave pôr-se muito atento. "Estudou dez anos, durante os quais o professor só o deixava cantar alguns exercícios, contidos numa simples folha de papel de música. No fim daquele tempo pediu licença para aprender uma canção. O professor, como resposta, disse: "Vai, rapaz. És o maior cantor do mundo."
"Até se podia encorporar essa história em qualquer nova edição da Bíblia", comentou Musgrave. "A extrema antiguidade, a extravagante improbabilidade e a universal aceitação que obteve, dão-lhe forte sabor a inspirada revelação."
Mrs Musgrave suspirou quando viu o esposo olhar preguiçosamente em volta com o apetite satisfeito e a face radiante de bom-humor post-refeicional.
"Tenho pensado muitas vezes", disse, "que a razão capital da sobrevivência da fé cega - que alguns loucos supõem estar morta - é a autoridade do criticismo musical. A não ser quando profetizam depois do facto, os críticos musicais enganam-se invariavelmente. Sei isto pela comparação dos seus veredictos com as experiências subsequentes. Quando alguns deles inventam, os outros crêem logo no que os primeiros afirmam. E isto sucede porque dispõem de enorme geringonça. Se qualquer pessoa usar termos que eu não entendo, não posso, como é natural, medir a superioridade que tem sobre mim e dou-lhe naturalmente o crédito da erudição estupenda. Sabe mais do que eu: isto já me parece bastante, se me levar vantagem numa só palavra ou em cinquenta ciências. Consequentemente, quando qualquer amigo me diz que há ou não há quintas ou relações falsas na música de Wagner, considero-me ignorante; e, verificando que ele podia melhor do que Wagner criticar a obra deste, penso como é lamentável que ele não vá escrever qualquer coisa que fique na mesma perfeição. An, Weeks?"
Mr Weeks, o crítico musical, respondeu afavelmente:
"Meu caro Musgrave: sabe que está a dizer absurdos. Suponha que eu, como resposta, lamento que não produza perfeita crítica musical, desde que se sinta capaz de criticar qualquer artigo vulgar."
204
"De acordo", disse Musgrave; "de acordo. Eu próprio formo a minha opinião sobre música, e penso sobre o que seja um executante, e não arranco a noção de que ele deveria ser feito do nevoeiro da tradição e da fama, ficando depois receoso de dizer que o conseguira de outra maneira. É nisto que consiste a verdadeira crítica, tanto quanto o podre conceito de crítica pode ser perfeito nesta vida. Eu bem sei do que gosto; e não sofrerei que uma parte dos amantes do campo dêem ordens aos meus gostos. Sim, meu caro senhor: eu também sou público; também posso guiar; e os críticos seguem-me; esforçam-se por seguir as minhas opiniões; justificam-nas ou renegam-nas se as elevam injustamente; e representam-nas com tanta verbosidade que me sinto envergonhado deles quando os leio."
"Mas então, segundo parece, devia estar de acordo com os críticos."
"Até certa época, que eu fixarei na geração passada, agradaram-me, porque me seguiram bastante. Mas esta geração representa a distância que eu, representando o mundo, estou à frente deles e, portanto, não agrado, a não ser nos pontos que têm sido estabelecidos há meio século para satisfação de todos os homens razoáveis. Estabelecemos que Beethoven podia escrever música. Fomos, contudo, tão longe como Schumann; e depois de passar cerca de trinta anos a bater com a cabeça nas paredes, os críticos passaram-se a toda a pressa para Wagner, para confessarem que tinham ficado muito atrasados. Considerando a velocidade com que o mundo se move agora, não tenho a menor dúvida de que dormi durante vinte e cinco anos, eu desejava muito simplesmente fazer despertar a crítica contemporânea."
"Tenho de deixar a mesa se não deixam de falar sobre música", disse Lady Geraldina para Scott. "Peço-lhe a fineza de dizer qualquer coisa para variar isto."
O artista, chamado assim tão repentinamente, estava a analisar o embaraço que tinha dentro de si, quando, para seu alívio, Lady Geraldina trocou olhares com Mrs Mainwaring e em poucos minutos os homens ficaram sós com o vinho. Em Perspective o átrio era ponto de reunião a todas as horas. Para aí se dirigiram agora as senhoras, certas de que a maioria dos rapazes iria imediatamente ao seu encontro.
205
Mr Grosvenor era doido por vinho, mas bebia-o várias vezes durante o dia e como considerava o costume dos homens ficarem à mesa a beber após a retirada das mulheres como sobrevivência do barbarismo saxónico, o que estava fora da harmonia com a cultura que ele desejava impor na sua casa, procurava abreviar tal hábito o mais possível. Por isso a casa de jantar ficou rapidamente deserta. Mr Lind, apreensivo com o humor de Musgrave, abandonou-a em primeiro lugar; o resto seguiu-lhe o exemplo, à excepção do dono da casa, Musgrave, alguns dos críticos de arte, e Scott, que começaram a discutir os preços que o primeiro dera ultimamente por alguns quadros e ele a contar histórias sobre os oferecimentos que todos os dias recebia de homens que, dois anos antes, fingiam ignorar a sua existência. Como o seu tom era amargo, os críticos depressa se cansaram do vinho. Musgrave em breve adormeceu. O dono da casa, por consequência, levantou-se e dirigiu-se ao átrio, onde os presentes tagarelavam e tomavam café. Miss Woodward estava sentada nos degraus da grande escada de caracol a ouvir Mr Lind que recitava poesias, ao mesmo tempo que olhava com admiração para ela do degrau de baixo, tudo coisas que ela engendrara na esperança de tornar Scott ciumento. Este, indiferente a tal espectáculo, tinha subido as escadas e voltava agora com o chapéu. Quando se dirigia para o terraço foi abordado por Ernesto, que lhe disse, com ar negligente:
"Não está uma bonita tarde?"
"Muito bonita!" respondeu Scott. "Acha, porém, bonita esta infernal conversa? Estive quási para perder o juízo ao jantar quando ouvi garantir que os lacaios de Grosvenor deviam estar prontos a pendurar os seus trabalhos por o terem escutado."
"Eu, pela minha parte, confesso que preferi divertir-me com tudo isso", acrescentou Ernesto, apanhado pela má disposição do artista, "É na verdade uma bela casa."
"Bah!" disse Cyril. "Cheira a dinheiro. Só a ideia dum homem como este que apenas pretende pendurar quadros! Com o seu Tintoretto encafuado no gabinete do Barba Azul para mostrar que sabe distinguir um mestre veneziano de qualquer falsário." Lembrando-se Scott neste momento que muitas vezes desprezara outros homens que lisonjeavam
206
Grosvenor quando na presença deste, e o insultavam pelas costas, reprimiu-se e continuou o seu caminho para o terraço deserto, onde olhou injuriosamente para a Lua, que não se parecia nada com aquela que ele gostava de pintar. O ruído do vestuário duma mulher interrompeu-o. Pôs imediatamente o chapéu na cabeça, desceu os degraus e desapareceu nas trevas do prado, enquanto Miss Woodward, desapontada, voltava ao átrio.
207
CAPÍTULO VII
Smith compreendeu que a aparência de Mrs Tilly, a proprietária do 90 Danvers Street, melhorava desde o primeiro encontro que tiveram. Começara ela ultimamente a sorrir muitas vezes e a prestar atenção aos adornos da sua pessoa. Smith observava-a com insistência e interesse quando ela saía nas tardes de domingo, elegantemente vestida, na companhia do marido, rapaz cujo ar grosseiro contrastava com as próprias afirmações por que expressava o seu ressentimento pelas desvantagens sociais da posição que ocupava. O aspecto deste melhorava com o da mulher; perdia gradualmente o seu carácter exaltado que tornava repulsivo o seu humor habitual; era ele quem pegava na criança nessas tardes de domingo e quando o menino esfregava a sua face na dele, não demorava muito que não mostrasse o seu prazer paternal com jactancioso garbo. Este melhoramento dos últimos tempos aparecia-lhe também na linguagem. Até então, quando perdia qualquer ideia no decurso das suas observações, interpunha a palavra "bloody" sem qualquer consideração pela importância desta, tal como os conversadores mais polidos usam "hm", "er" e outras que tais. Estava, no entanto, em vésperas de se libertar deste hábito. Numa palavra: parecia que avançava em ventura e respeitabilidade e Smith, que a princípio sentia forte aversão pelo seu senhorio, devia congratular-se por não ter estado em dificuldades de qualquer modo com ele ali em Easter. Ficou, pois, desagradavelmente surpreendido quando, na noite em que voltou bastante tarde a Chelsea, após a visita ao Alhambra e a Islington, ouviu bulha confusa de vozes que vinham da cozinha. Estava muito cansado e sonolento para se preocupar com tais assuntos; mas no dia seguinte, quando Mrs Tilly lhe trouxe o almoço, a expressão antiga de consumição estava-lhe outra vez nas faces e toda a antiga alegria dissipada. Ele atribuiu esta mudança à discussão da noite anterior, e julgou, pela tímida súplica dos modos da senhoria, que receava censuras por parte dele.
208
Quando naquela tarde voltava da cidade, viu Mr Tilly à esquina da rua, no momento em que saía a cambalear da taberna. Era evidente que a recente melhoria do seu senhorio e a maior felicidade da respectiva mulher tinham sido causadas pelo intervalo de moderação, de que tirara vantagens durante as férias em Easter para reincidir. Smith evitou-o e dirigiu-se para casa, onde teve de tocar três vezes a campainha antes de Mrs Tilly chegar com o chá. Estava esta quási a debulhar-se em lágrimas, e desculpava-se da demora dizendo que William trabalhara muito ultimamente e que não passava dum beberricador. Smith não mexeu no chá. O murmúrio vindo de baixo, no qual a voz ameaçadora de Tilly alternava com os ralhos e as carícias de sua mulher, tornara-o nervoso. Por fim, o estrépito de loiça quebrada decidiu-o a não aturar por muito tempo tal barulheira e saiu; uma pancada surda informou-o entretanto que o esforço de Tilly para subir as escadas da cozinha não dera resultado.
Smith não foi longe. Parecia cobardia abandonar Mrs Tilly sem qualquer pessoa que lhe acudisse no caso dela precisar de quem a protegesse contra a brutalidade do marido. A possibilidade de encontrar Tilly encheu Smith de temor, mas isto tornou-o mais descontente com a conduta própria. Após alguma hesitação voltou a casa. Encontrou a cozinheira, sem touca, à espera na rua, escutando avidamente pelas grades.
"O que há de novo por aqui?" perguntou Smith.
"O sor matou a sôra pas escalêras abaxo", respondeu a rapariga, arreganhando os dentes.
Smith fitou-a por um momento; depois correu para casa e aproximou-se da escada que levava para os fundos". Parou antes de descer; os fragmentos de conversa, que chegaram até ele pela porta aberta da cozinha, pareceram-lhe indicar estado menos agudo de coisas do que o descrito pela rapariga.
"Willie: não te vás embora outra vez. Agora não. Já bebeste bastante esta noite."
"Isso é que vou."
"Não estás capaz de sair. Podes ser preso e depois perdes o lugar. Queres ficar comigo?"
"Quem é que não está capaz de sair? Estou tão capaz de sair como qualquer outro homem; sempre gostava de ver quem é que me detém. Cá vou, percebes, diabo?"
209
"Não te deixo sair. Não quero tirar o pio da boca da criança para ires dar cabo de ti." Depois disto houve uma pequena pausa.
"Fica aqui, Amelia! Quero sair para ir ter com um gajo. Só para ir ter com uma pessoa. Vou a pensar no menino."
"Espera até amanhã. Vem para a cama, Willie. Estarás bom quando te levantares."
"Não me queres deixar ir?" Isto foi um ronco avinhado. Smith não hesitou mais. Quando descia as escadas, ouviu um grito e alcançou a porta da cozinha precisamente a tempo de ainda ver Mr Tilly lançar uma panela sobre a cabeça da mulher com tanta violência que a atirou ao chão. A face dela tornou-se muito branca; Smith sentiu-se mal quando corria em seu socorro, mas tentou levantá-la. Ela gemia e levava a mão à cabeça. Atrapalhado com o peso dos ombros da vítima, que ele aguentava em posição bastante inconveniente, e repugnando-lhe abandoná-la deitada no chão duro, Smith olhou esperançado para Tilly, que, paralisado pelo receio de que cometera um assassínio, deixara cair a panela e estava agora a contemplar os movimentos de Smith com remorso e consternação. Foram interrompidos por passos pesados na escada. Logo depois, um polícia, acompanhado pela cozinheira, entrou no compartimento. Parou no limiar da porta, olhou cautelosamente em volta e disse:
"O que é isto?"
Tilly encarou o guarda com impertinência e replicou dramaticamente:
"Fui eu. Dei-lhe uma reviravolta. Fui eu."
"Não tenha pressas na língua", respondeu o agente com severidade. "Deve ficar aborrecido quando o levarem outra vez, como me vai acontecer se eu tiver de carregar com você." Neste momento Mrs Tilly, com a assistência de Smith, ergueu-se, sentou-se na cadeira e começou a gritar.
"Julgo que não está ferida", disse Smith.
"Anda cá, Melia", disse o culpado, aproximando-se dela desajeitadamente: "tu sabes que eu falo a sério. Não te queria ferir por nada deste mundo." Mrs Tilly voltou o rosto e chorou ainda mais.
"Suponho que você é o marido", disse o agente.
210
"Sou", retorquiu Tilly.
"Esta mulher tem alguma coisa de grave?" perguntou o polícia, virando-se para Smith, que ele tomou por estudante de medicina ou empregado de botica.
"Espero que não. Julgo que já se encontra bem", respondeu Smith, sem pensar que estas palavras lhe acarretavam o peso da opinião profissional.
"Agora", acrescentou o guarda, dirigindo-se a Mrs Tilly, "você quer ainda continuar a aguentar o seu marido? Se quer, continua a viver com ele?"
"Eu não quero nada", respondeu,. Mrs Tilly a soluçar. "Não é da sua conta. Não o mandei chamar."
"Muito bem", disse o polícia. "Toma cuidado contigo, meu velho, ou então mais tarde ou mais cedo és capaz de carregar com mais força e depois terei de te dizer mais alguma coisa."
Tendo-se livrado assim do caso, saiu com a indiferença de quem já está habituado a estas violências domésticas.
"Precisa de mais alguma coisa, Mrs Tilly?" disse Smith, ansioso por se retirar.
"Não, não preciso", respondeu ela. "Mas espero que não volte a meter em casa polícias ou quaisquer outras pessoas sem lho terem pedido. Sempre o julguei muito cavalheiro para se não meter no que não lhe diz respeito."
E com isto recomeçou a soluçar.
"Olé", disse Tilly: "você é um abominável importuno, não acha?"
Smith, surpreendido e ferido por este ataque olhou para Tilly com imperturbabilidade mecânica e abandonou o compartimento. Houvesse outro telhado em Londres debaixo do qual ele pudesse pedir abrigo e teria deixado imediatamente aquela casa. Nas condições presentes, porém, limitou-se a subir a escada e a dirigir-se para a cama, onde se deitou com o espírito muitíssimo perturbado. Quanto mais se esforçava por pensar em assuntos indiferentes ou agradáveis, tanto mais o insulto que recebera atraía a sua atenção. Se o esquecia por um momento, era só para pensar em Mrs Tilly a cair com o rosto para baixo e a sentir outra vez o nojo que a realidade acabara de lhe causar. Duas horas depois, que lhe pareceram metade da noite, adormeceu e perdeu a noção de si próprio até de manhã, quando se levantou
211
com o espírito mais calmo, se bem que irritável. Não sentia apetite por alimentação sólida e receava voltar a ver Mrs Tilly, chamada pelo toque da sua campainha. Saiu de casa sem almoçar e foi à confeitaria que se encontrava no caminho que costumava seguir para a cidade. Bebeu aí três chávenas de chá e deteve-se a ler os jornais; chegou por isso cinco minutos mais tarde ao escritório. Na escada encontrou o velho Mr Simms, o guarda-livros chefe.
"Suba, suba, Mr Smith. Mr Figgis anda pelo escritório à sua procura. Está muito mal disposto. Suba depressa."
"Ora, Mr Figgis que se vá matar!" disse Smith. "O que quer ele de mim?"
"Chiu! Mr Smith", disse Simms, que sentia interesse pelo rapaz e conservava alta opinião pelo respectivo bom-senso: "não tem razão para falar assim. Mostre-se homem. Chegou tarde."
Smith encostou-se à parede para fazer crer que não entendera que se devia apressar. Depois, assumindo, com esforço, o ar burlesco com que tantas vezes se divertia à custa de Mr Simms, disse gravemente:
"Percebo que Mr Simms está a dizer que Mr Figgis já se esqueceu que não deve mencionar o meu nome antes das dez horas. O que quer ele?"
"Ora não seja incorrigível, Mr Robert. Há tempo para tudo. Mr Figgis foi consultar as contas de Kennedy e verificou que estavam em atraso cerca de quinze dias. Pediu depois o seu livro-caixa e começou a murmurar porque o senhor não estava ainda aqui."
"Estou surpreendido com essa audácia", disse Smith. Depois, sentindo-se mal disposto pelas suas palavras anteriores, subiu ao escritório, aborrecido porque a sua falta de pontualidade, que lhe era tão excepcional, podia ser comentada pelo patrão.
No meio da sala estava, em pé, Mr Figgis, rodeado pelo círculo dos escriturários amedrontados, frente a frente com Kennedy, que afrontava a altiva carranca do dono da casa. Com insolente sorriso.
"Nada tem a dizer?" disse Figgis com aspereza.
"Não!" respondeu Kennedy em tom familiar: "Nada tenho a dizer."
212
"Mr Forsythe", chamou o interlocutor, tornando-se purpúreo de raiva.
"Pronto, senhor Figgis", respondeu o caixa com timidez.
"Dê a este amigo o seu mês de salário e que se vá embora."
"Seu amigo", exclamou Kennedy, corando, "Seu amigo!"
"Nem mais nada", disse Figgis, voltando para a secretária para evitar outra discussão. Aqui, pôs-se a desfolhar as páginas do livro-caixa com mãos trémulas, conservando-se de pé, enquanto pagavam a Kennedy, que era lastimado, suspirado e acompanhado até fora do escritório pelos colegas; estes, a princípio afastados dele, julgaram depois preferível esforçarem-se por abrandar as asserções que fazia em alta voz, ao mesmo tempo que já então o consideravam tão digno como qualquer dos outros funcionários da casa, e até superior a qualquer filho da fortuna que só ficasse lembrado pelo muito dinheiro que conseguira fazer no desempenho do seu dever. Estas considerações conseguiram o respectivo objectivo, aborrecendo ainda mais Mr Figgis. Era temido pelos empregados, a quem raramente falava; o seu sócio é que usualmente vigiava a boa ordem do escritório e fazia os ralhos necessários quando se verificavam os casos excepcionais de incorrecções.
"Smith", bradou Figgis, virando-se para o mais novo dos guarda-livros.
"Senhor", respondeu Smith com voz sufocada, deixando de vestir o casaco do escritório.
"Oh! Até que chegou. É o senhor?"
"Sou", respondeu Smith, vencendo o repentino impulso de raiva intensa. Fez-se silêncio no escritório.
"É o senhor, é o senhor?" disse ainda Figgis, "talvez julgue que a entrada seja às nove e meia. Se isto assim não lhe agrada pode ir-se embora."
Smith não respondeu, mas começou deliberadamente a despir o casaco do escritório. Um estremecimento passou pelo grupo quando o contemplavam. Figgis, posto que fosse homem violento e reservado, não pôde impedir de se mostrar aliviado quando, com desapontamento dos empregados, se tornou aparente que Smith apenas tirara o casaco para melhor acomodar o que usava na rua. Depois deste arranjo, respondeu polidamente à última observação de Figgis.
213
"Os seus termos é que não me agradam, meu caro senhor. Vou-me embora."
"Como quiser", disse Figgis desdenhosamente, quando, após a pausa de espanto incrédulo, se tornou a virar para o guarda-livros. Smith, depois de pôr a chave da secretária em cima duma das mesas, retirou-se dirigindo aos presentes o "bom dia, senhores" de despedida. Já fora" riu consigo próprio em transporte de alegria, sentindo que saíra com dignidade. Quando descia as escadas encontrou o velho Simms, que voltava ao andar superior sem que tivesse servido de testemunha ao que lá se passara.
"Adeus, Mr Simms", disse-lhe Smith alegremente.
"Que significa isso?"
"Significa", respondeu Smith com um floreio de braços, "que eu calquei a pés aquele consumado patife, personificação de tudo o que é sórdido, e que incarna a afronta contra a amabilidade, esse Figgis, o espírito infernal dos tapetes, a cuja depravação durante tanto tempo servi de alcoviteiro."
"O que é isto, o que é isto!" exclamou Simms. "Você não deve, na realidade, falar assim. Falando a sério: você não causou qualquer prejuízo?"
"Prejuízo! Certamente que não", respondeu Smith.. "Para me exprimir grosseiramente, Mr Simms, dei a Figgis e Weaver o meu ordenado. Peço-lhe agora a si que faça o embrulho do meu casaco de trabalho e das poucas coisas que estão na secretária, que eu virei reclamar ou faça favor de me enviar quando quiser. Lego-lhe a escova de cabelo com espelho atrás, como sinal da minha estima. Desculpe que esteja já rachado."
"Mas, afinal, que sucedeu?"
"Figgis teve a audácia de me falar desrespeitosamente e por isso eu não podia ter outra alternativa senão sair e deixar o seu negócio entregue à ruína que a minha presença tinha, até agora, afastado."
"Não seja tão ridículo. Espero que não fosse coisa para esse procedimento."
"Isso é que foi."
"Mas você foi muito maluco. Você não tem razão nenhuma. Não creio numa palavra do que diz."
"Palavra de honra", disse Smith com seriedade, "Mr
214
Figgis falou-me sem que da minha parte houvesse a menor provocação, e de tal maneira que lhe peguei na palavra e saí. O senhor pode até ouvir tudo o que se passou lá em cima da boca dos colegas. Não gosto de permanecer tanto tempo em qualquer lugar como neste. Faz-me então o favor do embrulho?"
"Faço, certamente", disse Simms. "Mas para um rapaz com a sua inteligência estar a desperdiçar assim o seu próprio sustento! Pense um bocado. O que vai você fazer de si? O que tem conseguido com essas loucas ideias?"
"Liberdade!" disse Smith, apertando a mão do seu superior. "Já não sou o seu escriturário, digo adeus à alta capacidade do meu companheiro. O meu pé, Mr Simms, assenta na minha urze nativa: o meu nome, mr Gregor." Com este palavrório, desceu as escadas, deixando Simms com as mãos na cabeça.
Ao entrar na rua, foi detido por Mr Weaver, que raras vezes entrava no escritório antes das dez.
"Olá!" disse Weaver: "já a sair, Smith?"
"É verdade, senhor", respondeu Smith, que julgava agora o respeito um luxo.
"Porque é que volta assim tão depressa? Tenho aqui uma coisa para você fazer."
"Não a farei. Acabo de deixar o escritório, Mr Weaver."
"An! O quê! Por que razão?"
"Cheguei infelizmente esta manhã cinco minutos mais tarde e Mr Figgis falou-me a esse respeito de tal maneira que - por sugestão sua - me despedi."
"Que falta de juízo! Mr Figgis não queria dizer uma coisa dessas. - Bah! Volte comigo e vou resolver tudo isso."
"Estou-lhe muito obrigado, mas isso vem já fora de tempo."
"Venha, venha! Está você para aí a incomodar-se com tais coisas. Não queremos perdê-lo dessa maneira. Mr Figgis precipitou-se e não conhece o escritório como eu. Cinco minutos mais tarde! Pff!"
Smith sentiu que a irritação lhe voltava. "Já resolvi", disse. "Garanto-lhe que nada seria capaz de me induzir a voltar."
"Não seja precipitado, rapaz", disse Weaver com ar prudente. "Você por ora ainda está furioso. Tome algum
215
tempo para pensar e depois veremos. Mr Figgis pensa muito bem de si e eu também. Preciso que vá depressa à casa de Mason para falar com Mr Brown, e já, a ver se ainda lá o apanha. Tratarão do caso mais depressa consigo do que se enviasse Kennedy. Não perca tempo. Era bom que você me desse a resposta daqui a uma hora, mais ou menos, e depois podemos falar do seu caso."
"Muito obrigado, senhor", respondeu Smith. "Vou já à casa Mason."
Vinte minutos depois um escriturário da Mason esperava por Mr Weaver para lhe dizer que Mr Brown estava às ordens durante toda a tarde. Acrescentou que Mr Smith rogara o envio desta mensagem, porque ele não voltava ao escritório.
Entretanto Smith, a largas passadas, ultrapassava Temple Bar, completamente livre. Lastimava os escriturários dos advogados que fossavam, tal como eles o podiam ter lastimado se conhecessem a sua situação. As ruas pareciam-lhe alegres; a luz do Sol e os ruídos dos cais harmonizavam-se com a esperança e a energia com que encarava o futuro.
Assim exultante, a passear pela estrada marginal a caminho da sua residência, chegou a Westminster. Estivera havia já muito tempo na Abadia. Como qualquer escriturário, obrigado a voltar no dia seguinte ao respectivo livro-caixa, nunca pensara em a visitar. Agora, sentindo-se livre e feliz, entrou e percorreu as naves com o velho sentido religioso da paz que nelas reinava, mas sem o antigo constrangimento com que a sossegada calma da prostração, anterior à eterna bondade, se prejudicava com a consciência de descarregar um incompreensível dever, quando se está cerimoniosamente vestido. Tal como o homem muito afastado das idades passadas que encontra um romance histórico cujas personagens não tinham sentido para o tempo, assim Smith respirava a atmosfera do claustro com uma apreciação impossível aos que a respeitavam em silêncio. Qualquer observador perspicaz o podia ter observado pelo andar sossegado, pelo gesto impressivo e calma reflectida, como um livre-pensador bastante feliz.
Assim andou pela igreja durante cerca de uma hora, evitando as partes do edifício edificadas à parte, com fins comerciais. Por fim, a vagueação tornou-o satisfeito; o afastamento
216
dos ruídos do mundo exterior tornou-se menos completo e só então virou de bordo. Depois, pensando que podia dedicar a hora seguinte à sua pequena quantidade de recordações felizes, saiu da Abadia, voltou a Westminster Bridge, onde embarcou num vapor a dinheiro cada passagem.
Quando começou a descer o rio, só então, pela primeira vez desde que discutira com Figgis, sentiu nuvens a perturbar o seu espírito. O barco tinha quási passado Lambeth Palace quando se sentou e se pôs a pensar sobre o seu futuro. Começou por determinar cuidadosamente o seu caso tal como se lhe apresentava. Estava desempregado. Não conseguira juntar dinheiro. Não podia viver com a herança de quarenta libras por ano. Era escriturário competente. Tinha bom carácter, mas Figgis poderia não o querer comprovar. Isto, não obstante, preocupava-o, embora pouco; resolveu por isso que só em extremidade muito desesperada voltaria a trabalhar com o livro-caixa. Como não tinha experiência em qualquer outra ocupação lucrativa, nenhuma alternativa se apresentou ao seu espírito a não ser sustentar-se com pudins de legumes e sopa de lentilhas à razão de seis dinheiros por dia até que se lhe proporcionasse alguma casualidade a seu juízo apropriada. Pensou uma ou duas vezes em pé sobre a ponte e consumiu alguns momentos com a visão de ter vestido casaco de peles, calçado botas de Hérsia e cantado The Heart Bowed Down (O coração humilhou-se) a uma assistência arrebatada. Pensou em leccionar, mas desconfiava do saber próprio e do respectivo poder de manutenção do respeito. Lembrou-se também de ir para o mar. Desgostoso, enfim, com o seu senso comum, que condenava estas fantasias, mas não evitava que elas lhe ocorressem, determinou não se preocupar mais com tal coisa até ao dia seguinte, quando pudesse ler a página de anúncios do Times. Bem sabia que, se quisesse, podia ver com facilidade o jornal e imediatamente, mas o espírito de procrastinação obrigou-o a pôr de lado tal ideia para se poder sentir livre de ocupações ao menos durante um dia.
Quando se aproximava da sua residência, ocorreu-lhe à memória a intervenção que tivera na disputa dos Tillys, que fora apagada temporariamente pela excitação das primeiras horas do dia. Quando se lembrava da relutância que sentiu
217
em se encontrar com Mrs Tilly nessa manhã, resolveu não dar mais quartel a gente tão enfastiável. Por isso, o seu primeiro impulso foi tocar a campainha quando chegou ao quarto. Estava bastante embaraçado por ter feito isto; o quarto encontrava-se ainda em desalinho, pois a dona da casa tinha o hábito de só o arrumar quando o dia se mostrava já bastante adiantado. Mrs Tilly apareceu nesse momento com o vestuário de esfregar e a cabeça coberta com um lenço. Olhou pouco à vontade para ele, e viu com inquietação evidente como o seu hóspede viera cedo e de improviso.
"Eu apenas desejava comunicar-lhe que hoje é o último dia que estou aqui, Mrs Tilly", disse Smith. "Pedia-lhe que acabasse de arrumar o compartimento o mais depressa possível."
"Sim, senhor", respondeu Mrs Tilly fracamente. "Eu já o podia ter pronto, mas não pensava que tivesse interesse nisso. O quarto está quási pronto."
Smith retirou-se até que Mrs Tilly acabou a tarefa em que se ocupava. Esperou por ela, que andava dum lado para o outro, mas, tendo dado pelas demoras e pela tosse dela uma ou duas vezes, concluiu que desejava falar mais com ele.
"Há ainda mais alguma coisa?" disse Mrs Tilly, sacudindo o espanador.
"Suponho que há", pensou Smith, "se não, não me estarias para aí a perturbar a alma." Mas limitou-se a dizer: "Nada, muito obrigado, Mrs Tilly."
"Espero", começou Mrs Tilly com muita hesitação, "que não vai pensar mais no caso desta noite, Mr Smith."
"Oh! isso não teve nenhumas consequências. Peço-lhe que não se apoquente com tal coisa." Mal tinha acabado de dizer isto quando começou a pensar se não seria melhor uma despedida mais loquaz por causa da fractura do crânio daquela mulher.
"O que William disse não foi muito grave", disse Mrs Tilly; "estou certa que não o tomou a sério; ele não sabia o que estava a fazer e a dizer; mas tenho receio que no meio dos meus tormentos tivesse dito alguma coisa pouco decente para si quando apenas lhe devia estar muito agradecida pela gentileza que teve para comigo e pela paciência de que deu provas para com ele."
Smith protestou que a conhecia muito bem. A menção
218
da sua paciência para com o marido dela fê-lo ruborizar; lembrou-se então, pela primeira vez, que, de acordo com as convenções, poderia ter vingado com um soco derrubativo o rufianismo de que dera provas Mr Tilly quando atirou a panela à mulher, em vez de ter seguido o caminho da gentileza.
"Não sei que mosca lhe mordeu esta noite", disse ela. "Andava tão sossegado como qualquer outro homem desde o Natal. Não pense, pelo que se passou, que William seja má pessoa. Longe disso até, senhor. Quando está em si, não mata uma mosca e nunca levantou da mão para mim antes da noite passada. Eu é que tenho a culpa de as coisas se terem encaminhado assim e de ele, pobre homem, estar naquele estado. Se não fosse a bebida, ninguém poderia dizer uma palavra, fosse sobre o que fosse, contra ele."
"Desejo, no seu interesse, que, de futuro, ele tome mais conta em si próprio."
"Também eu. Nem quero pensar em tal coisa", disse Mrs Tilly soltando um soluço abafado, "é só pela criança. Acho que o governo devia fechar essas malvadas tabernas e arrancar à tentação os homens honestos, que, sem elas, nunca teriam causado a desgraça de suas casas. Eu nunca tive a polícia em minha casa."
"Tenho a dizer-lhe, Mrs Tilly, que não fui eu quem o chamou cá."
"Já sei e julgo que me perdoa outra vez o que eu lhe disse. A rapariga contou-me tudo o que se passou. Só pensar como eu lhe falei..."
"Peço-lhe que não falemos mais nesse assunto. Oxalá o ferimento não seja grave."
"Ah! não", respondeu Mrs Tilly apressadamente. "Isto não é nada. Não passou dum acidente, como se costuma dizer; podia ser pior. Caí desamparada, mas isso não quer dizer nada, garanto-lhe. Mas estou a ver que o estou a reter aqui, afastado dos seus livros, Mr Smith. Muito obrigado, senhor." Com estas palavras, Mrs Tilly, que evidentemente desejava evitar referências ao ferimento da cabeça, deixou o compartimento.
Smith gastou as horas seguintes a olhar para dentro das suas caixas; a queimar algumas cartas já sem importância; a ler fragmentos antigos de poesias, alguns dos quais lhe
219
sugeriram a ideia de obter emprego junto de Madame Pertoldi como criado, e a calcular se os trinta e sete xelins e seis dinheiros que desprezara não lhe fariam falta até receber a importância do trimestre seguinte. Esta ociosidade acabou por entristecê-lo; e, como a hora habitual de jantar passara já, dirigiu-se à casa de pasto vizinha, onde comeu. Feito isto, ficou sem qualquer ocupação e por momentos podia divertir-se anunciando em qualquer poste como escriturário de Figgis se a firma consentisse negociar com ele como agente independente. Por fim foi passear. Quando passava de Beaufort Street para Fulham Road, a sua atenção foi atraída por um veículo sem janelas, com grandes penas negras atadas ao tejadilho. Puxavam-no quatro cavalos também negros, de cauda muito comprida, cobertos da mesma cor, tendo cada qual a sua pena preta fixada entre as orelhas. A cor dos animais e o brilho vítreo dos olhos realçavam o efeito grotesco dos respectivos ornamentos. O condutor, indivíduo de feições grosseiras, de grande estatura, trazia botas à Wellington e um casaco de enormes abas, que parecia ter estado exposto em diversos algibebes. Do chapéu pendia uma comprida banda de crepe, que comunicava certo grau de excentricidade ao seu aspecto já de si grave. Em cada lado do veículo, que continha um cadáver em caixão de chumbo, caminhavam seis homens vestidos de luto, de perucas brancas e apêndices nos chapéus semelhantes aos do cocheiro. Cada um desses homens levava a sua bengala preta debaixo do braço. Atrás deles vinha outro carro com coberta negra, conduzido por um cocheiro muito parecido com o do primeiro veículo. Ocupavam-no quatro pessoas cuja tristeza fisionómica apresentava aspecto estranho no espectáculo fantástico de que faziam parte. Smith vira já muitos funerais, mas o hábito tornara-o tão indiferente a tais coisas como ao conteúdo dum talho. Julgando que o destino deste fosse o cemitério de Brompton, e como nunca tivesse visitado esse local, resolveu dirigir-se para lá. Depressa ultrapassou a marcha lenta do ataúde, e deixara-o já a alguma distância atrás de si quando alcançou o cemitério.
Aqui, errando por entre a aglomeração dos túmulos, entreteve-se a ler as inscrições, que raramente vão além de mero relato do facto até ao verso ou citação, sem se tornar
220
trivial ou divertido; Smith não perdera esta última qualidade, pois até conseguiu estimular o seu espírito poucas vezes burlesco. Observou, com melancólica ironia, a grandeza dos monumentos, que era mais enfática nas suas declarações graves que o objecto colocado por baixo, o qual não passava dum corpo para ali atirado e cuja assimilação pelos vermes seus hospedeiros não teria qualquer consequência. Observou também que muitos dos túmulos pertenciam a pessoas de cuja bem-aventurança eterna se falava nos epitáfios como de facto assegurado e que todas as sepulturas se enfeitavam com flores trazidas há pouco tempo. Depois de ter passado pela capela, chegou ao centro de um espaço aberto, rodeado por catacumbas, das portas das quais lanços de escadas em pedra desciam em intervalos. Smith desceu até uma dessas portas e apareceu entre as grades. Nada achou de especial a não ser um cheiro estranho, uma prateleira caiada onde estavam colocados caixões sujos e grinaldas podres das chamadas immortelles. Depois de contemplar os esquifes com a curiosidade que nenhuma outra descrição de receptáculos cheios de caliça pode inspirar, voltou, algum tanto desgostoso, à superfície do cemitério e prosseguiu no passeio. Por acaso, um padre, com sobrepeliz, livro e sombrinha, caminhava pelo mesmo caminho. Virando a uma das ruas laterais para evitar outro funeral, dirigiu-se à mulher vestida de luto, que, ajoelhada junto da sepultura, contemplava algumas flores aí plantadas. Smith recuou, não só porque a delicadeza o impediu de intervir nesta cena, mas também porque lhe veio uma perversa vontade de rir, quando concebeu a ideia da transmutação dos corpos através de horrendos períodos de decomposição até às próprias flores a que ela fazia festas com tanta solicitude. A alguma distância estava um trabalhador a cavar, vigiado por certo cavalheiro de cabelos grandes e brancos. Os dois pareciam estar a trocar algumas observações; e Smith, pensando em Hamlet e no coveiro, deslizou até à retaguarda deles, na esperança de escutar qualquer coisa da respectiva conversa.
"As pessoas aqui são sempre enterradas em caixões de chumbo, não são, meu amigo?" disse o velho cavalheiro.
"São-no quando têm massas para isso", respondeu o trabalhador. "Muitos vão em caixões de tábua."
221
"Em que se tornam esses caixões de tábua?"
"Apodrecem."
"Meu caro!" disse o cavalheiro, "julgo que um corpo nunca apodrece em caixão de chumbo."
"Não?" perguntou o cavador desconfiado. "Há-os que apodrecem. Saem dos caixões como de barris."
"Muito interessante! O que fazem vocês depois com eles?"
"Fazem-se buracos para dentro deles e deixa-se o gás sair."
"O gás, Deus nos ajude!"
"Olé, o gás", disse o coveiro. "Conheci também um homem que saiu da cama como morto. Pois conseguiu descoser o próprio caixão e ainda teve depois braços suficientes para trabalhar nesta vida, sem amaldiçoar ninguém, e por fim morreu."
O cavalheiro olhou para o seu informador com ar de desconfiança e foi-se embora. Smith deu-se pressa em alcançar a porta mais próxima do cemitério. Sentia o ar pesado e infecto, assim como o húmido vapor produzido pela chuva na relva. Opresso e em náuseas, andou tão depressa quanto pôde até conseguir alcançar a velha Brompton Road, onde, logo que deixou o cemitério bastante para trás, conseguiu respirar livremente. (1)
(1) Em 1878 esta cena constituía mais alguma coisa do que a descrição do aspecto macabro das fantasias dum rapaz. Era a apologia da cremação, que foi depois objecto de controvérsias muito maiores do que é agora. Era ainda a réplica ao protesto de Dickens contra as mascaradas grotescas dos funerais à moda antiga.
222
CAPÍTULO VIII
Na manhã seguinte, Smith levantou-se à hora habitual, e, tendo-se vestido cuidadosamente para estar pronto a responder em pessoa a qualquer anúncio, saiu e comprou um exemplar do Times. A manhã estava linda e, em lugar de voltar para casa com o periódico, deixou-se ir até aos jardins de Kensington, onde se sentou na cadeira de ferro que encontrou agradavelmente situada numa das avenidas que se estendem desde o tanque redondo até Long Water. Para obter esta acomodação foi logo compelido a dar um dinheiro pelo homem impertinente que trazia a tiracolo a mala para o dinheiro. Logo que o funcionário se retirou, Smith abriu o jornal e passou-o pelos olhos à procura dos anúncios. Ao fazer isto, a sua atenção foi atraída por um parágrafo de cabeçalho interessante. Leu o parágrafo e depois percorreu um par de artigos. Percorreu ainda todas as notícias sem ter dado por qualquer pedido; quando acabou, sentiu desejos de passear pelo parque e deixar as necessidades para outro dia. Mas estimulou-se num movimento e voltou a pôr mãos à obra. O primeiro pedido que os seus olhos então encontraram foi:
"Secretário, precisa-se. Avisar no espaço de dois dias em 300 Queens Gate, South Kensington, antes das 12."
Este anúncio forneceu a Smith uma nova ideia. Não ser secretário, porquê? Depois começou a duvidar. Não estava um secretário nas mesmas desvantagens que um criado de libré, ou como qualquer governanta com uma criada? Não era o servidor de qualquer firma pública mais independente do que o duma família privada? Mas Smith arguiu contra si próprio em vão; embora não soubesse como, decidira-se, logo ao primeiro raciocínio, a favor do secretariado. Prometia maior liberdade para exibições da individualidade do que a proibida ao lugar de guarda-livros. Queens Gate considerava-se esfera mais refinada do que a City. Esta última circunstância pareceu-lhe decisiva. Smith olhou para o relógio. Eram onze e meia. Tremeu como se estivesse metido na prova de competência pessoal para o emprego.
223
Mas o seu espírito ergueu-se aventurosamente ao mesmo tempo. Levantou-se; bateu no peito com o punho e lançou-se em direcção a Queens Gate a passos largos.
A campainha da porta do N.º 300 foi respondida, após longo intervalo, por um criado muito pouco inglês de libré vermelha, mas também vestido de tweed pardo.
"Toquei para responder ao pedido publicado no Times desta manhã", disse Smith.
O lacaio tornou-se grave e pensou durante um momento. "Sim", segredou ele confidencialmente. "Entre; vou dezer ao sor. Tem cartão?"
"Tenho", respondeu Smith, ao mesmo tempo que tirava um e o entregava ao criado, deixando-o por isso na posse do nonagésimo-nono da primeira centena que ele até então mandara fazer.
"Munto bem", disse o homem, com ares animadores. "Agora quêra sintar-se e na diga uma palavra até queu volte." Dizendo isto, afastou-se com o cartão. Passados poucos minutos voltou em bicos de pés.
"Então?" perguntou Smith, após breve pausa.
"Chiu!" respondeu o outro em voz baixa. "A finha está lá im cima co ele. Hê-de levá-lo junto dele cando tocar o badalo. O sor anda cun sorte."
"Porquê?" interrogou Smith.
"Têem estado aqui centos e milhares atrás do lugar antes de ele sair da cama. Acabou o almoço inda não há cinco minutos e, por isso, sará o senhor quim vai ter a primêra possibildade. Deus quêra ca sua pessoa lhe agrade."
"Obrigado", disse Smith, que lutava com alguma dificuldade para perceber o acento do homem. "Espero que sim.",
"É uma famila munto fidalga", disse o homem impressivamente. E donde vem o sor? Chiu, aí está o badalo! Venha daí e na tenha medo."
Smith, que empalidecera com o som da campainha, foi no encalço do seu guia por uma porta coberta de baeta verde, percorreu o corredor, ao fundo do qual estava um tanque. Quando penetraram no corredor, uma jovem de olhos e cabelos negros, linda, mas de aspecto triste, aproximou-se deles, vinda da outra extremidade. A sua expressão iluminou-se quando verificou que um homem seguia o
224
criado, no momento em que passavam, Smith sentiu um pequeno arrepio quando os olhos escuros observaram furtivamente a sua pessoa. Depois experimentou sentimento de indignação quando, logo que as portas verdes se fecharam atrás da jovem, o guia olhou em volta e piscou os olhos. Depois pararam e o homem bateu de mansinho com os nós dos dedos na porta situada junto do tanque.
"Entre", gritou uma voz.
"E cá intro consigo; fale-lhe alto", sussurrou o homem, lançando-se pela porta aberta de par em par. Smith entrou e achou-se numa sala grande, pouco asseada, arrumada à maneira de biblioteca. Cartas, jornais, almanaques, guias, papéis, aparos, molas de arame e caixinhas mostravam-se em confusão à roda da escrevaninha enlambuzada, que se elevava na extremidade da mesa mais próxima da janela. As cadeiras estavam já muito más para o uso; os cantos do compartimento estavam ocupados por cabides, montes de roupa e caixas cobertas de poeira; um par de bustos em gesso erguiam-se sobre as estantes e por detrás da porta surpreendia-se vasto sortimento de bengalas, sombrinhas, canas de pesca e rolos quebrados. Na lareira, bastante mal tratada, ardia grande fogo. O soalho fora mal varrido; os globos do gás mostravam-se cheios de pó. A desordem do compartimento e a obtusa cor vermelha do papel da parede davam aparência escura, que prejudicava o efeito do espaço de que aí se dispunha.
À escrevaninha sentava-se um cavalheiro de cabelos grisalhos com cerca de sessenta anos, expressão embaraçada e impaciente, que, pelo estado da casa, levou Smith a julgar que ele não primava pela ordem nas suas coisas e que não podia ser asseado. Era formoso e quando não se curvava sobre a escrevaninha, patenteava, como pilar direito, majestosa estatura e compleição poderosa. Trazia a barba crescida e todo o vestuário visível consistia num velho sobretudo, no colarinho desabotoado da camisa de noite e num par de chinelas de trança.
"Queira sentar-se; tome uma cadeira destas", disse ele, quando Smith entrou. "Um momento só enquanto eu acabo isto."
Smith sentou-se e observou o homem enquanto assinava a carta; este pôs-se depois à procura do claro onde poderia
225
colocar a caneta. Não o encontrando, deixou-a ficar no tinteiro. Procurou depois qualquer bocado de mata-borrão, e, após ter atirado grande número de cartas, todas lacradas a branco, encontrou um já rasgado e muitos restos já usados. Em seguida tornou a pegar na caneta, e, tendo-a colocado na boca, começou outra busca. Por fim, perdeu a paciência e exclamou, segurando nos dentes o cabo da caneta:
"Onde é que diabo me puseram os envelopes?"
Smith, como visse um maço debaixo duma das pontas do jornal, aventurou-se a estender a mão para lho entregar.
"Oh! ah! Obrigado, muito obrigado", exclamou o homem. "Não há coisa mais infernal do que viver em casa com gente pouco asseada. Ninguém pensa em dar atenção ao sítio onde se colocam as coisas. Por agora", disse em resumo, depois de dobrar e fechar a carta, "passou o perigo. Você veio para lançar ferro aqui, an? Que idade tem?"
"Pouco mais de dezanove", respondeu Smith.
"É muito novo", comentou o cavalheiro. "Em que escola esteve? Frequenta alguma universidade?"
"Estive empregado desde os dezasseis anos."
"Oh!" disse o cavalheiro. "Talvez não lhe valesse a pena vir aqui. E em que se empregava?"
Smith, um pouco envergonhado com o comércio de Figgis e Weaver, expôs em poucas palavras a sua situação.
"O facto é que", começou o outro, "eu recebo muita correspondência a que tenho de responder, o que, com uma coisa e outra, com a infernal porcaria, a procrastinação de todos e tudo o mais que há nesta casa, se torna muito superior ao que eu posso fazer só por mim. Experimentei aqui um rapaz para escrever parágrafos dignos de passar ao papel à razão de seis dinheiros; mas não me serviu. Que vá para o diabo, que nunca vi tamanho doido na minha vida. Há trabalho bastante para lhe ocupar todo o dia - toda a manhã, de qualquer maneira."
"Posso pôr todo o dia à disposição de V. Ex.a", disse Smith, "se isso for necessário."
"Oh! muito bem", disse o cavalheiro. "Suponho então que está tudo certo."
"E que salário vou receber?"
"É inglês, não é?" perguntou o cavalheiro, rindo.
226
Smith admitiu a sua nacionalidade com ar suspeito para que o cavalheiro, que era evidentemente irlandês, pudesse olhar o secretário saxão com inveja e mesmo pouca simpatia.
"Julguei isso pela maneira como fez a pergunta", explicou o cavalheiro. "Sou irlandês." Smith tentou exprimir surpresa. "Bem: costumo pagar cem libras por ano. Que lhe parece?"
Smith, que se esfalfara na cidade por muito menos de metade desta soma, sentiu um estremecimento de alegria, que o seu emprego o obrigava a ocultar. Mas escarneceu deste aviso como mancha em tapete de armazém, e disse: "isso há-de-me satisfazer, Excelência!"
"Suponho que só quer começar daqui a uma semana, ou a um mês", disse o cavalheiro. "Quando prefere?"
"Posso começar o trabalho já, se V. Ex.a assim o desejar", disse Smith, evitando voltar atrás, com esta pronta resposta de transacção concluída, como lhe sucedera com o ingresso em Figgis e Weaver, que lhe custara três entrevistas e bastantes informações.
"Bem, negócio fechado?" perguntou o cavalheiro.
"Se V. Ex.a assim entender", respondeu Smith. "Mas não deseja colher algumas referências?"
O cavalheiro pareceu ficar enleado. "Realmente, assim me parece", disse. "Pode dar-me a sua direcção e lá irei saber. Receio não ter hoje tempo disponível. É alguma coisa aos Smiths de Hackettstown?"
"Não", respondeu Smith. "Não pertenço a qualquer família distinta. Smith é apelido muito vulgar na Inglaterra."
O cavalheiro riu-se deste esclarecimento dirigido à sua ignorância irlandesa e acrescentou: "Bem, suponho que vamos trabalhar. Deus me abençoe, mas as manhãs vão desaparecer antes que o senhor perceba onde está. Deixe-me agora falar-lhe duma coisa que eu espero sempre de si: asseio. Quando tiver a minha idade poderá avaliar o valor disso. Creia-me, Smith: se um homem vivesse tanto como Matusalém, não teria tempo bastante para procurar andar sujo. Agora basta de conversa e vamos à obra."
"Por onde devo começar?" perguntou Smith, colocando de lado o chapéu.
"Bolas!" exclamou o interlocutor, coçando a cabeça.
227
"Ainda não sei bem. Espere um minuto; vou aqui ver estas coisas de Direito."
"Se me permite", disse Smith, "julgo que poderia ir arranjando alguns destes papéis."
"Certamente que pode", respondeu o cavalheiro. "Mas tenha muito cuidado com eles. Gosto de os ter todos sempre à mão; e se pensa que pode haver possibilidade de se desencaminharem, acho preferível não lhes tocar."
Smith prometeu cuidado e começou a reunir as cartas que traziam o carimbo postal com a marca do dia. Dirigiam-se a Foley Woodward, Esquire, M. P.. Extraiu depois daquela confusão uma quantidade de utensílios de escritório e de estampas; quando viu o ancião a olhar para ele, achou-se em condições de lhe entregar o que desejava no momento próprio em que precisava de qualquer objecto; por isso depressa o convenceu de que encontrara um tesouro no seu novo secretário. Também reuniu, etiquetou e acondicionou muitas cartas antigas por ordem alfabética. Em menos de uma hora a mesa estava em ordem.
"Julgo", aventurou-se ele a dizer, contemplando uma pilha de prospectos, envelopes velhos e outros papéis inúteis, "que um cesto de papéis teria aqui muita serventia."
"Está debaixo da mesa. Aqui... an?" O velhote fez uma pausa quando olhou para baixo e não viu lá qualquer cesto, deixou escapar uma imprecação e começou a gritar furiosamente: "Hamlet."
Smith, que nunca encontrara este nome fora do tablado, ficou surpreendido por ver o homem que lhe abrira a porta, entrar na sala.
"Pronto, Excelência!"
"Onde está o cesto que andava debaixo da mesa?"
"Na sei."
"E porque demónio não sabe você isso?" gritou Mr Woodward, enfurecido com aquela resposta. "Vá e traga-o imediatamente: ouviu?"
"Nunca o vi", começou Hamlet com ar queixoso, dando um passo em frente, "nunca o vi..."
"Saia e traga-o", interrompeu Mr Woodward. "Smith: ferre-lhe uma tareia com a pá e faça-o ir pelos ares para o corredor." O homem, para alívio de Smith, fugiu sem esperar a execução desta ordem, e, após certa demora, voltou
228
com o cesto de roupa, que parecia ter estado repleto com barro e que fora esfregado à pressa com sabão e água. Colocou-o defronte da mesa, espiando entretanto os movimentos do patrão, como se receasse ataque repentino da parte dele. Quando por fim saiu, Smith perguntou se Hamlet era realmente o seu nome.
"Trata-se de nome muito comum em algumas regiões da Irlanda, tal como o seu o é aqui", respondeu Woodward. ?"Pertence aos Carlow, ainda que seja oriundo de populações do condado de Louth e também um bom mariola. Algum destes dias faço-o ficar de cara à banda."
"Mas Hamlet é o apelido dele?" insistiu Smith.
"É, sim, Cornelius Hamlet. (Neste momento o criado reapareceu). Falai no mau... Bem, o que quer agora?"
"Miss Isabella pede a Boscência a feneza de ir passear com ela no trem despois do lanche; gostava também de saber se Boscência deseja subir e comer alguma coisa."
"Diga-lhe que estou muito ocupado," respondeu Woodward.
"Mas ela pediu-me que não voltasse sem a companhia de Vossa Honra", insistiu o lacaio com ar adulador. "Por favor, excelência: queira subir para tomar qualquer coisa. Que interesse podem ainda ter estas cartas velhas para Boscência?"
"Bem, bem: diga-lhe que vou já", disse Woodward com resignação.
"Deus recompense Vossa Honra!" respondeu Cornelius vigorosamente, e foi-se embora.
"Efectivamente", pensou Smith, que esperava ver o homem aliviado com este sinal de familiaridade, "estes irlandeses são gente muito extraordinária."
"Julgo que hoje não posso fazer mais nada", disse Woodward. "Tenho de me retirar, de me vestir e penso que o senhor também está com pressa para se ir embora. Faça o que quiser."
"A que horas devo amanhã vir ter com V. Ex.a?" interrogou Smith.
"Se puder, venha pouco depois das onze. Desço geralmente antes do meio dia."
Smith começou a sentir alguns escrúpulos sobre a aceitação de cem libras por ano em condições tão fáceis. Sugeriu
229
obsequiosamente que podia vir mais cedo; receber a correspondência diária e responder a uma parte de acordo com as instruções que o seu patrão lhe daria em resumo mesmo na cama ou durante o almoço. Também podia proceder à tarefa de sobrescritar essas cartas. Mr Woodward estava admirado com a previsão e o método demonstrado nestes planos e aprovou-os, prevenindo ao mesmo tempo o secretário que não tentasse fazer muita coisa, pois era melhor recuar um pouco e prosseguir na mesma obra, do que ser como a vassoura que só varre bem quando é nova. Declarou-lhe depois que não mexesse mais nos papéis, pois os criados tinham ordens para deixar cada coisa no lugar em que a encontravam. Depois, desejando-lhe bons dias, abandonou o compartimento.
Quando Smith pegava no chapéu e se dispunha a sair, entrou Hamlet.
"Ficou consigo?" perguntou ele, com vivo interesse em voz baixa.
Smith, desejando manter o criado a distância, mas não sabendo como fazê-lo, respondeu-lhe afirmativamente.
"Você teve sorte", comentou Hamlet. "Ele não é menhor do quum doido qalquer, Deus me perdoe. Você pode fazer o quintender co ele, se souber meter-lhe os dedos plos olhos. Todos os que pretendiam o lugar se foram embora imediatamente, embora muitos deles fossem burros porque eu bem os preveni do que iria acontecer. Chiu! Lá está a campainha a tocar. Raios a partam!" Com isto Hamlet saiu a toda a pressa e Smith deixou a casa. No vestíbulo cruzou-se com um homem alto com o fardamento de tarde. Era o criado que atendia à porta a partir das três horas da tarde, pois Cornelius Hamlet era muito inclinado aos encargos dos solecismos sociais para lhe ser confiado tal posto em South Kensington a tal hora.
Smith olhou para o relógio quando saía: faltava um quarto para as três.
"Bem", disse consigo próprio enquanto caminhava, "cansei-me durante três anos, à razão de nove horas por dia, naquela triste caverna e por uma libra semanal. Agora por aproximadamente duas vezes este dinheiro, um infeliz fidalgo irlandês julga-se feliz por mo dar em troca de o ajudar a fazer numa hora o que em geral lhe levava todo o dia, a
230
que a mim, sem outra qualquer ajuda, me leva apenas cinco minutos. Meu digno Figgis, meu excelentíssimo Weaver: não estive um dia desocupado e consegui o meu emprego em virtude de chegar tarde, o que, segundo os meus queridos amigos, constituía falta muito apreciável." Deu alegremente estalinhos com os dedos escarnecendo dos antigos patrões, e andou em direcção leste para jantar.
Durante o habitual caminho de regresso para os lados do ocidente, esteve quási tentado a comprar um par de luvas. Reprimiu-se, todavia, e preferiu passear pela Rotten Row, onde teve o gosto de ver Mr Woodward a passear na companhia de sua filha, de aspecto sempre insatisfeito. Smith ficou surpreendido ao verificar como é belo para qualquer cavalheiro ver o seu patrão substituir a camisa de dormir, sobretudo e sapatos de trança por vestes decentes. Admirou-se também quando reparou que Miss Isabella modificara por completo o aspecto que apresentava de manhã.
231
CAPÍTULO IX
Miss Woodward ausentara-se de Perspective durante um dia. Fora a Londres na quinta-feira à tarde; e agora, sábado ao meio-dia, estava no seu quarto em casa de Mr Grosvenor, a arrumar o vestido com que viajara até Richmond. Acompanhava-a Clytie, a irmã mais nova, que, depois de passear alguns momentos à roda do quarto, disse com ar de descuido:
"E então?"
"E então?" perguntou Isabella de mau humor, mas imitando a irmã.
"Oh!" respondeu Clytie, "vejo que esta manhã estamos muito amáveis." Isabella não retorquiu. Por fim Miss Clytie voltou a falar.
"O nosso aio fez mais alguns disparates desde que eu parti?"
"Arranjou novo secretário, um rapaz que foi acrobata ou coisa que o valha."
"O que entendes por acrobata?"
"Ou então esteve num estabelecimento de tapetes, não sei ao certo qual. Penso que ele se encontrava bem entre os tapetes. O papá está muito satisfeito porque o homem é asseado. Suponho que fazia massos com tudo quando a loja fechou. Pobre de mim! Já são horas para nos vestirmos e ir almoçar."
"Mas já o viste? É bonito?"
Isabella aborreceu-se e encolheu os ombros. "Mal o vi. Tem exactamente o tipo de homem que se pode esperar em quem é muito asseado. Tem duas jardas a mais do que o regular. De qualquer maneira, tem todas as condições para poder fazer juras ao papá quando as cartas se desencaminham."
"Que nome tem?"
"Que nome havia de ter? Smith, evidentemente. Olha à maneira de beleguim. Cornelius diz que ele é bom rapaz e põe em ordem admiravelmente as coisas do patrão.
232
Os outros criados têm passado o diabo. Nunca vi a casa em tal estado."
"E que idade terá esse vendedor de tapetes?"
"Não sei, mas, por favor, não me maces mais com ele. Parece ter vinte. Não te sentes em cima da minha capa de peles, maluquinha, ouviste?"
"Não é preciso estar com esses receios, Bella; não me vou embora para lá. Adeusinho; o que fizeste para teres agora a língua de Cyril Scott contra ti?"
"Clytie!"
"Não estejas apaixonada, querida. Precisarias de muita presença de espírito para ouvires o que ele disse ontem à tarde no pórtico. Mas que desgraçadinho tão maligno que ele é!"
"Não me interessa o que ele disse a meu respeito; mas a tua brutal vulgaridade custa mais a suportar. Admiro-me do facto de tu pensares que podes estar sempre a meteres-te comigo só porque julgas ter desculpa suficiente na circunstância de sermos irmãs. Peço-te que me fales com delicadeza ou então toma tento na língua."
"Ora na verdade!" exclamou Clytie. "Suponho que te estás a zangar muito. Quem é que começou a rabujar, muito gostava eu de saber."
"Começaste por aludir ao que Cyril Scott dissera a meu respeito", disse Isabella após uma pausa. "Eu estava a morrer por sabê-lo porque ele é por vezes malcriado e tu estás a morrer por mo dizer pela mesma razão."
"Estamo-nos a tornar filósofas", comentou Clytie, com gravidade fictícia. "Ontem à tarde eu estava sentada no terraço. A minha cadeira estava encostada ao edifício e muito junto da porta. Scott e o Grão Mongol vieram até ao pórtico, e depois de terem verificado se estavam sós olhando para todos os lados, menos para o que tinham debaixo dos narizes respectivos - como sempre sucede aos doidos dos homens - começaram a parolar. Scott precisava de falar sobre os seus quadros e eu julgo que Grosvenor estava farto deles; fugiu, por isso, ao assunto de Scott e por fim perguntou-lhe se nunca pensara em se estabelecer. Os homens falam sempre nisto em vez de casamento, como meio de abafar o tilintar da cadeia."
"Mas segue, não estejas para aí a perder tempo com
233
essas coisinhas", disse com impaciência Isabella. "Com certeza que ouviste o que eles disseram."
"Certamente; o mesmo terias tu feito se estivesses no meu lugar. Depois Grosvenor disse para o seu esperto camaradinha, com ar protector. "Anda cá, meu rapaz: Bella Woodward anda por aí a atirar-se valentemente a ti. Ela podia tornar a tua casa num brinco em menos de uma semana e o pai dela cairia facilmente se mostrasses desinteresse pelo dinheiro dele. Além disso é irlandês e pensará melhor de ti por pertenceres a família protestante, do que por seres o homem mais notável de toda a tua ascendência." Houve uma pausa e pareceu-me ouvir Scott torcer o nariz. "Digo-te, Scott, que não fazias asneira", acrescentou Grosvenor. "Não é bonita?" Scott bufou. "Não é esperta?" Deixou escapar outro bufo mais forte. "Não é boa rapariga?" Bufou tão terrivelmente que teve depois de se limpar ao lenço. "Ninguém duvida que o marido dela não venha a ser homem muito feliz", disse. Conheces a maneira por que ele diz as coisas com que pretende ferir. "Não pensas no facto de ela ser católica, pois não?" disse o Grão Mongol. "Quanto a isso", comentou Cyril - imagina que animalzinho - "não tenho dúvidas que eu seria capaz de a tornar adoradora do fogo, se assim o entendesse." Resolveu depois aparentar maior complacência e continuou com esta cláusula de misericórdia, "isto é, se ela realmente me honra tanto como me diz, o que me custa a crer." Julgo que Grosvenor suspeitou que Scott apenas duvidava dele, pelo que disse imediatamente, "mas pela minha honra, Cyril, tanto quanto um velho amigo o pode dizer" - velho amigo, assim mesmo! - "Não sentes inclinação por ela?" Scott inchou com isto como um turco. "O quê! Eu?" disse, "inclinação por Isabella Woodward, uma parvinha, uma petulante, que me quer só para a salvar do insucesso da sexta estação, que não passa de uma amateur!" Gostava que tu o ouvisses bolçar esta palavra amateur. Isto era tudo tão perverso que tive receio de escutar mais, com receio que eles dissessem alguma coisa tão ultrajante que eu não pudesse dar-lhes a conhecer com bastante calma que estavam a ser escutados. Levantei-me por isso imediatamente e saí dali como um raio. Gostava que visses as caras deles! Quando saíram do seu espanto, Grosvenor tossiu e fingiu aspecto amigável. Scott fez-me
234
uma carranca como se quisesse atirar a minha cabeça pela escada abaixo. Olhou depois manifestamente para a cadeira onde eu estivera sentada e foi-se embora. O Grão Mongol veio para junto de mim como um cordeiro, fazendo votos para que eu não estivesse muito fria e para que não molhasse os pés na relva. Devemos confessar que ele me julgava de volta, do prado. Mas sabia tão bem como eu que os estivera a escutar; julgo que se sentiram satisfeitos com isso."
"Suponho", disse Isabella com voz dura, "que tudo isso não é um amontoado de mentiras. Ou é?"
"Podes acreditar ou não, como melhor te agradar. Lá anda o maluco do Ernesto a madracear nas vizinhanças do bosque. Vou fazer com que ele convença o jardineiro a apanhar-me uma camélia. Muito eu gosto de fazer sangrar a bolsa dos parvos dos homens."
Durante algum tempo, após a partida de Clytie, Isabella dificilmente sentia consciência do seu desgosto; o primeiro pensamento definido que teve consistiu no desejo de ter ouvido, ela própria, a conversa. Haveria com certeza bastante desespero no que sentia, pois pensou, e até ouviu as palavras pronunciadas pela voz dele; e o drama que passava diante de Scott apresentava-se na sua face branca em censura silenciosa. (Nos momentos de excitação ela podia esquecer que a essência do seu temperamento era devida a aplicações, não afectações, das emoções próprias). Mas o insulto que recebeu por intermédio da irmã, que não disfarçou quanto ele a desgostava também, e cuja baixeza como espia parecera provavelmente ao artista fruto natural das relações domésticas da jovem, não a afligia somente, pois também a humilhava; neste momento, Isabella odiou a irmã com tal intensidade que só receios supersticiosos puderam impedi-la de implorar qualquer indescritível calamidade capaz de a fulminar. Em consequência das maneiras descuidadas com que sempre a presenteava, habituara-se a considerar Clytie sua inimiga natural. Quanto a Grosvenor e a Scott, resolveu nunca mais lhes falar e abandonar imediatamente aquela casa sem mesmo se despedir do respectivo dono. Abandonou depois este projecto porque o entendeu como o mais próprio para a expor ao ridículo, e pensou em cortar francamente com Cyril Scott, para informar o mundo (Queens Gate, Brighton, Perspective e mais alguns lugares) que o artista
235
se iludira quando a julgara desejosa de se tornar adoradora do fogo por amor dele. Também rejeitou este plano, com receio de que ele se vingasse tornando pública essa provocação, que ele compreenderia muito bem. Quando meditava nestas observações pessoais, começou a suspeitar que qualquer rival a atraiçoasse junto do artista. Como, argumentava ela, poderia Cyril Scott, que ninguém vira na sociedade quatro anos antes, saber que esta era já a sua sexta estação? Mas não podia abafar a convicção de que o artista a considerava longe do próprio senso comum e da reputação geral e, por fim, fatigada por estas reflexões atormentantes, viu-se ao espelho como preliminar para se encontrar com os outros hóspedes para o lanche. Reparou no seu estado de espírito tão fielmente reproduzido no rosto, que tentou ocultar essa aparência sob uma camada de rouge. Nessa ocasião, como estivesse na posse de pouca perícia e de menos paciência, o artifício apresentava-se com bastante clareza; depois de limpar a cor, contemplou atentamente a sua face alva com os olhos negros em desespero. Em seguida, compreendendo de repente quanto podia lucrar com isso, envergou um vestido de musselina branca arrendada, com mangas pendentes e pediu à criada um lírio, que colocou no seio. Assim preparada, desceu ao vestíbulo com passos lentos e expressão triste. A primeira pessoa que encontrou foi Cyril Scott, cuja tez se tornou da cor do tijolo vermelho e que se dirigiu rapidamente para a sala de música, fingindo não a ter visto.
Até à noite anterior, quando Scott descobriu, pela posição da cadeira de Clytie no terraço, que as suas palavras tinham sido escutadas, e que as ia provavelmente repetir a Isabella, o seu espírito suspeitou que ela não seria tão má quanto ele pensava. Sendo assim, ele caluniara-a, e, fugindo dela como o fizera, deu a entender que reconhecera o seu erro. Não podia admitir tal coisa; não dispunha de sentimentos magnânimos, ainda que a sua generosidade impulsiva o levasse a praticar acções que virtude mais racional poderia impedir. Sentia-se, contudo, envergonhado por se ter referido a ela em palestra amena com Grosvenor, homem a quem não votava qualquer respeito; resolveu voltar atrás e procurá-la, a fim de suavizar, por intermédio de algumas pequenas atenções, a severidade que aquela expressão triste chamara para os olhos
236
dela, se é que ele poderia realizar isto sem aparentar andar a mendigar o favor dela. Dirigiu-se, por isso, ao terraço onde a viu no meio de um grupo de jovens, para cujo divertimento um pintor executava caricaturas. Quando Scott se aproximava, ela, sem dar mostras de o ver, deixou o grupo, dirigiu-se lentamente para um dos sítios mais solitários do terraço, a cuja balaustrada se encostou, e pôs-se, ao mesmo tempo a contemplar com tristeza a paisagem. Ele seguiu-a, mas quando a jovem olhou em volta, estremeceu ligeiramente e sentiu-se tão pouco à vontade que desejou regressar ao vestíbulo, admirando-se de não ter tido o senso de ver que as circunstâncias eram de natureza a tornar impossível um apaziguamento e qualquer explicação um insulto.
"Linda tarde, não está?" perguntou ele por fim.
Miss Woodward mordeu o beiço inferior e não respondeu. Scott estava alarmado. Se ela fingisse não o ver, a posição dele seria bastante desairosa.
"Talvez não deseje que eu lhe fale", disse com certa grossaria.
"Não, com certeza," respondeu ela, olhando-o languidamente.
"Está, porventura, a estudar esboços futuros", comentou o artista, apontando a paisagem com um aceno.
"Não", respondeu ela. "Deixei-me de pinturas."
"Espero que não perdeu o entusiasmo por minha causa."
"Não fui desencorajada, mas convencida. Creio que a sua opinião se revestiu de bastante candura, ainda que me expusesse, ao pedi-la, às considerações de um intrometido."
"A pior coisa que pode haver é criticar uma senhora", disse Scott. "Acredita, com certeza, que as palavras que lhe dirigi como camarada (deixou escapar esta palavra com alguma dificuldade) eram a expressão do que eu pensava a seu respeito."
"Mas não, meu Deus!" replicou Miss Woodward. "As suas opiniões pessoais são expressas com muita liberdade e bastante violência para haver qualquer desculpa de confusão com as suas simpatias artísticas."
"Hum!" pensou Scott e acrescentou alto com alegria afectada : "Receio algumas vezes falar mais num dia do que o que me seria lícito num ano. Peço-lhe que não leve em conta todas as minhas explosões."
237
"Não levo em conta nada do que diz, Mr Scott, quando não me posso impedir de assim proceder. Se algumas das suas críticas têm cabimento, a culpa não é minha."
"Nesse caso, devo ter cobro na língua."
"Um pouco. Quando se pensa em qualquer coisa, é preferível - ou pelo menos mais honesto - dizê-la o melhor possível."
"Muitas vezes diz-se o que não se pensa. Pelo menos comigo assim sucede, sobretudo quando estou mal disposto."
"Sim, Mr Scott, mas quando estamos na presença daqueles de quem falamos. Na ausência somos mais sinceros."
"A não ser que passemos por servis hipócritas", acrescentou ele com severidade.
Miss Woodward, perturbada na sua triste tranquilidade por esta imprudente evasão, olhou-o indignada e recomeçou a contemplar a paisagem silenciosamente.
"Mr Woodward virá amanhã?" perguntou o artista, após curta pausa.
"Ainda hoje à noite."
"Ele está bem."
"Está bem, muito obrigada."
"Grosvenor dizia-me ontem que tencionava terminar o dia de amanhã com uma reunião ainda maior que a do Domingo de Páscoa."
"Sim. Eu ontem não estive aqui, mas Clytie contou-me o que se passou na minha ausência!"
"Será agradável mudança para Mr Woodward; ele que tão poucas vezes deixa a cidade."
"Muito poucas."
"Só te digo, Scott", interrompeu Ernesto, aparecendo repentinamente atrás deles na companhia de Clytie: "que estás a deixar perder toda a comida."
"Sim, na verdade," disse Clytie. "Há meia hora que estamos a fazer caricaturas de vocês como Romeu e Julieta do balcão."
"Porson não acabou o teu esboço, Cyril", disse Ernesto. "E reproduziu Miss Woodward de costas em dois traços."
"O de Mr Scott está melhor", disse Clytie. "O nariz está tal qual. E o vestuário é o mesmo do trovador do quadro de Pamplona."
238
"Realmente", disse Scott, "é uma honra ser escolhido para manequim de Porson. Sinto-me muito satisfeito ao saber que o guarda-roupa e o quarto dele vão ficando exaustos. Podem sugerir-lhe, enfim, o proveito que se tira dos estudos da natureza." Dito isto, abandonou o terraço e atravessou o prado, em direcção ao portão. Isabella ficou, mas não quis contemplar o esboço sem que o artista lho colocasse nas suas próprias mãos, o que ele fez em ar de solenidade escarninha como lembrança de ocasião. Recebeu-o com aparência de bom-humor, por deferência para com a idade e a fama de Mr Porson. Nesse momento ela concorreu secretamente para, a opinião que já ouvira muitas vezes formular na sua presença acerca dele, que o indicava como homem pouco amigo de falar sobre arte; doidejava com as crianças que lhe eram apresentadas; como recusava ler poesia moderna, não podia ser pintor verdadeiramente grande.
239
CAPÍTULO X
Cyril Scott, após deixar o terraço, caminhou pela estrada e dirigiu-se para a cidade de Richmond para fazer algumas compras. Ainda a alguma distância da ponte, passou pela montra duma confeitaria, que contemplou negligentemente, em obediência ao hábito que lhe ficara de apreciar doces. A sua atenção foi assim conduzida para a chapa de cobre colocada, havia pouco, na porta a seguir ao estabelecimento, onde se lia a inscrição: Miss Russel, modista e costureira. O artista seguiu e depois atravessou a rua para poder ver as janelas do primeiro andar. Nada aí se encontrava que merecesse em especial ser visto, mas as cortinas brancas e um manequim fez aumentar as vibrações de Scott até que, procurando melhor, verificou que terminava, sem cabeça, num colar de cobre. Tornou a atravessar a rua, meio resolvido a tocar à campainha e a visitar a modista sob pretexto de comprar um boné. Enquanto hesitava, a porta abriu-se, e Miss Russell, de vestido negro, mais ornado do que o casaco pardo que envergava quando da primeira conversa que tiveram, apareceu no limiar. Durante alguns segundos mantiveram-se imóveis, surpreendidos por se encontrarem quando menos o esperavam.
"Como está, Miss Russel?" disse ele, cobrando ânimo. "Parei aqui, ao ler o seu nome na porta e no mesmo instante a senhora apareceu; até me tirou a respiração.
"Desculpa-me, certamente, Mr Scott", respondeu Harriet com ar faceto, mas composto. "Boa tarde." Fechou a porta, fez uma vénia ao artista e pôs-se a caminhar rapidamente. Quando se preparava para a seguir, ocorreu-lhe que a modista podia ir para casa da tia e calculou que, tomando outro caminho em bom andamento, podia facilmente encontrá-la fora da cidade e acompanhá-la até Perspective. Mas esta tática era prejudicada pela ignorância que tinha do sítio, pois até lhe aconteceu que, no fim de andar três minutos, veio a encontrar-se na mesma rua. Para ele agora só lhe restava abandonar o seu intento ou então correr deliberadamente
240
atrás de Harriet. Decidiu-se pela segunda alternativa; a correria despertou muito as atenções. Mas nem escárnios, nem paródias, nem a indignação de abalar à caça duma costureira o detiveram; quando alcançou a estrada que vai parar a Perspective, Harriet, ainda que caminheira de truz, encontrava-se um pouco mais adiante.
"Parece", disse ele, esbaforido, quando a alcançou, "que vamos ambos com o mesmo destino."
"Vou a casa de minha tia, Mr Scott", respondeu ela, repreendendo-o com o seu aspecto grave. "O senhor parece que veio a correr desde Richmond."
Scott pretendeu considerar isto como gracejo.
"Andei bastante para a alcançar", arquejou ele, "e isso tirou-me um bocado de fôlego."
Harriet percebeu então que ele a procurara à vista de toda a gente. Ficou aborrecida que fosse ela a causa de tal coisa. Apesar disso, caminhava gravemente, aceitando aquela companhia com perfeita confiança em si própria.
"Tenho-a procurado todas as manhãs nas galerias na esperança de obter de si mais algumas ideias sobre arte", disse ele.
"Foi uma boa loucura da minha parte falar como falei sem saber quem o senhor era."
"Oh!" exclamou ele, só então notando que ela pronunciara o seu próprio nome quando se encontraram à porta da confeitaria. "Se soubesse que eu era pinta-monos presunçoso não teria sido tão severa. Penso que sempre se lembrará da esquerda lição que me deu sobre os meus defeitos."
"Mas não tinha o direito de julgar que as minhas maneiras eram assim tão más. Não pretendo fazer tal coisa e penso que devia logo dizer-me quem era", disse Harriet muito séria, com o seu acento escocês bem perceptível.
"Ha! ha!" gargalhou Scott, "dessa maneira diria o que não pensava a meu respeito! Isso teria sido muito sentimental."
"Eu não falo a respeito do senhor, mas do seu quadro. E eu não dizia o que não pensava. Apenas teria posto tento na língua."
"Tanto mal me fez uma opinião honesta. Como eu não cheguei ainda à fase de poder comprar os meus próprios
241
quadros, sou a única pessoa que a senhora pode comparar com eles sem me injuriar."
"É verdade", respondeu Harriet, que podia apreciar qualquer argumento comercial, "ainda hoje lastimo o que se passou."
"Os que escutam nunca ouvem coisas boas a seu respeito, Miss Russell."
"Eis a razão por que são tão detestados: fazem-no aos que eles escutam com tão pouco à vontade."
"Detesta-me por isso?"
"De modo algum", respondeu Harriet, corando ligeiramente.
A suspeita de que estava quási a cair em amores com a costureira fê-lo guardar silêncio durante algum tempo. A pausa deveu-se mais à última observação dela do que ao embaraço de Harriet, embora não o mostrasse, pois continuou a caminhar com firmeza. O artista olhou-a de soslaio e, sem querer, comparou-a com Miss Woodward.
"Penso que se dermos uma volta pelo rio, poderemos poupar alguns minutos", disse ele imediatamente. "Já seguiu alguma vez este caminho?"
"Já", respondeu Miss Russell. "Tem cerca de um quarto de milha a mais do que o outro."
"O caminho em curva mais curto é, neste caso, o mais comprido para casa", disse Scott, confundido, desejando que ela não caminhasse com tanta rapidez.
"Parece que tem uma pressa desesperada", disse ele, por fim.
"Estou a andar rapidamente por sua causa", respondeu Harriet, moderando o passo. "Sou boa andarilha, e esqueci-me que não estou só."
"Posso andar com a pressa que quiser. Como lhe impus a minha companhia, a minha obrigação é acompanhá-la. Suponho que foi por eu não ter esquecido que não estava só que não consigo explicar a necessidade de tamanha pressa."
"Seria pelo mesmo motivo que o senhor pretendia seguir o caminho que dá a volta pelo rio?" perguntou Harriet.
Não obstante o aspecto calmo dela, o artista enganou-se ao atribuir aquelas palavras a coqueteria e respondeu, olhando atrevidamente para os olhos da interlocutora:
242
"Era certamente."
"Se eu soubesse isso, nunca teria consentido em andar consigo, Mr Scott", disse ela com ar resoluto, embora não quente. "Na minha posição, representa grande dificuldade ter cavalheiros como o senhor a falarem-me por toda a parte; mas não posso impedir a pretensão que mostram de procurarem a minha companhia."
"Hum!" fez Scott, ofendido. "É certo? Nunca me ocorreu que houvesse qualquer mal em lhe falar como falo a qualquer outra senhora das minhas relações."
"Deve haver", replicou Harriet com calma.
"Estou-lhe muitíssimo obrigado pela sua boa opinião. A senhora possui uma maneira admiravelmente delicada de chamar intruso a um homem."
Ela não respondeu e, após terem percorrido certa distância, o artista renovou a conversa.
"Compreendo, em consequência disso, que pretende não me falar mais."
"Não posso fazê-lo compreender tal coisa se preferir mostrar-se tão conflituoso", disse Harriet com certa impaciência.
"Você está completamente enganada a meu respeito; completamente", respondeu Scott irado. "Conflitos são coisas em absoluto estranhas ao meu carácter, ainda que eu tenha, sem dúvida, os meus defeitos. Foi você a primeira pessoa que me chamou conflituoso, ou que o pensou. Está a discutir comigo sem a mais pequena provocação."
"Nunca discuti com o senhor", respondeu Harriet, diligenciando afastar a ira com uma resposta branda.
"Não tenho evidentemente mais nada a dizer. Uma senhora pode sempre fazer calar um homem contradizendo-o de maneira declarada."
"O que espera de mim dizendo-me isso?" interrogou Harriet, estimulada pela calúnia que ele lançava sobre a sua polidez, cuja posição a tornou sensível. "Perdeu a sua presença de espírito, Mr Scott, e procura lançar as culpas sobre mim."
"Quando me conhecer melhor, mal me poderá acusar de perder a presença de espírito. Admito que tenha temperamento perigoso; mas tenho também poder para o regular. Há muito tempo que preparei o meu espírito de maneira a poder dominá-lo; e assim tenho feito."
243
"Se esta é uma das suas atitudes calmas, o senhor será certamente muito perigoso quando estiver zangado."
Scott tornou-se carrancudo e viu que um impulso para rir viera perturbar a calma que ela antes apresentava; mostrou-se mais infectada pela hilaridade no momento em que Cyril procurava mostrar-se severo; e, na continuação do esforço, as faces dele arreganharam os dentes tão forçadamente que a modista pôde com dificuldade evitar as gargalhadas. Chegaram assim ao portão de Perspective, onde se encontrava um cabriolé, cujo cocheiro deixava, com bastante mau humor, Cornelius Hamlet retirar uma mala da carruagem.
"Boa tarde", disse Harriet, curvando-se com rubor no rosto e que já não podia conter. Passou logo pelo portão rapidamente, e Scott, posto que ainda agora estivesse furioso, pensou na lindeza da vénia e do rubor e como diferiam das maneiras com que Miss Woodward ganhara tantos admiradores e tão poucos pretendentes. Entretanto o cocheiro rosnou lá da caixa.
"Deve ser demais para si arrancá-la daí. Você agora quer o seu xelim e mais alguma coisa ainda."
"Musha, bocê debia ficar estindido debaxo dela e já, na debia, sê desgarçado?" retorquiu Hamlet. "É pena qu o patrão na o pusesse a bocê na mala e na o dêxasse dromir lá dentro."
"Naturalmente ainda são capazes de lhe chamar cavalheiro, estou mesmo a ver", disse, indignado, o cocheiro, "e dá um homem o frete limpinho para um sítio onde não há possibilidade de engatar qualquer coisa para a volta. E ele vem do mesmo casebre que você, não vem?"
"E bocê está cum munta sorte", segredou Cornelius. "Muntos melhores que bocê palmilharam Dublin por sés dinhêros; e ê cá a bocê dava-le mêo dinhêro e só pra salvar a ialma. Irra", acrescentou ele, quando o cocheiro se preparava para lhe dar com o chicote e desatou a fugir.
"Olá, Hamlet", disse Scott; "é você? Mr Woodward está aqui?"
"E é o sor, Mr Scott?" respondeu Hamlet. "O patrão subiu ao vestiblo com Miss Bella."
"Como está ele?" disse Scott, detendo-se no portão para não encontrar Miss Bela.
244
"Munto ben, obrigado", disse Hamlet, içando a mala para as costas. "Deus dê muntos anos de vida a bossa honra", continuou ele, quando Cyril o ajudou a erguê-la. "Ele é coruja cheia de còtelas; só pensa em mostrar a camisa do clã e os casacos de cirimóina."
"Porque não o leva a si lá para cima?" disse Scott, caminhando ao lado de Cornelius.
"Deus o sabe! Quando o patrão viu Miss Bella à espera dele no portão pisgou-se, pagou ao cochêro, dêxando-me com o baú. Não a bia desde sexta-fera de pàxão; e ficou munto sastifêto por indar a passear eu e ela pelos jardins. Ele adora-a, Deus a abençoe."
"Você tem filhas, Hamlet?"
"Mas que maluco quê sou! Não, mas Miss Bella é um belo bocadinho, com perdão de V. Ex.a. É pena que ela gaste rios de dinhêro em vestidos, e na se rala nada em dar duas libras e dez xelins por um par de botas que ela calça quando vai passear com a cinta que lhe fica a matar. As mulheres são o diacho e de todas as manêras. Calquer delas seria capaz de arruinhar bem depressa um probe como eu. Estou admirado que não indem por aqui; vou à porta de trás."
"Sim, à da direita", disse Scott, dirigindo-se para o terraço. "Boa noite."
"Boa noite e munto agradecido a bossa honra."
Por esse tempo estava em Perspective certo James ou Jim Vesey, pintor de paisagens, que praticara a habilidade de copiar ruínas e luares até que conseguiu tornar-se célebre com as vistas de Melrose e de Muckross, dos quais pintou tantas quantas os negociantes podiam comprar. Os seus trabalhos eram todos iguais e os frequentadores de galerias reconheciam-nos sem recorrer ao catálogo, o que lhes causava satisfação e aumentava a reputação do artista. Aproximava-se ele então dos sessenta anos; e sendo de bom temperamento, amigo de toda a gente e capaz de prestar auxílios facilmente com dinheiro, consideravam-no um bom companheiro nas horas de ócio. Encontrava-se separado da mulher havia já alguns anos e não tinha filhos.
No sábado à noite, os hóspedes de Mr Grosvenor retiraram-se cedo. À meia noite, o átrio achava-se em penumbra, mal iluminado por poucas lâmpadas; tinham apagado
245
a grande luz do meio. De vez em quando, grupos de homens voltavam da sala de fumo (1) e subiam a escada. Os criados estavam ainda levantados, mas dando a entender de várias maneiras que ficariam muito satisfeitos se todos fossem para a cama.
Cyril Scott estivera a ler na biblioteca. Tendo encontrado o vestíbulo deserto, dirigiu-se à sala de fumo à procura de companhia. Encontrou Mr Vesey sozinho, sentado numa cadeira de braços, com as pernas num tamborete, e o copo de grogue em cima da mesa junto dele, de charuto na boca.
"Olá", disse este com preguiça, no momento em que Cyril entrava. "Aproxime-se e sente-se. Gostava de ter alguém que me fizesse companhia enquanto acabava o charuto. Parece que esta noite andam todos ansiosos por ir para o poleiro."
Cyril sentou-se a um canto da mesa.
"Bem, meu jovem amigo", disse Vesey: "que novas nos traz? Trate de fumar. Tem já whisky?"
"Não, obrigado", respondeu Scott. "Eu desejo saber a sua opinião acerca de uma coisa. Diz ela respeito ao matrimónio: não tenho experiência para formar opiniões a meu respeito, sinto-me feliz ao dizê-lo."
"Muito bem", respondeu Vesey. "Mas não sabe o que isso significa; qualquer dia saberá. Bem sei que espécie de rapaz você é."
"Bem, mas eu tenho muita necessidade da sua opinião. Suponha que certo artista prepara o espírito para se casar! Terá ele qualquer possibilidade de ser feliz com uma mulher que nada sabe de arte e mostra interesse por ela?"
"Meu caro rapaz: nada há como uma mulher que nada entenda de arte, a não ser uma ou duas do ofício, de quem Deus o livre, porque dois de qualquer ofício nunca cedem,, muito menos dois de uma bela arte. Desta maneira, parece-me que isto reduz a questão se você tiver de casar com uma mulher que venha a ter interesse pela sua pintura."
(1) Nem a Rainha Vitória, nem qualquer outra dama teria tolerado naqueles tempos que os homens fumassem por toda a parte. Contudo, as salas e as carruagens de fumo eram inovações; as damas mais velhas, até levavam os hóspedes a fumar ao ar livre ou junto das chaminés das cozinhas, se eles se entregavam a tão abominável hábito.
246
"Bom, mas não se trata de mim em particular. Qualquer colega deve proceder assim."
"Muito bem. Consideremos o seu caso só por causa do argumento. Agora, sou homem de experiência e vou-lhe comunicar o que ela me diz neste momento. Mas primeiro: o conselho que lhe dou consiste em nunca admitir que sua mulher intervenha nos seus negócios. Veja os seus concidadãos, talvez os melhores chefes de família da Inglaterra. Haverá um só entre eles que deixe a respectiva mulher ir ao seu escritório? Nenhum. Algumas raparigas bem querem e, de facto, muitas conseguem; mas não encontrará muitas matronas que o tenham feito três vezes. Sucede o mesmo na arte. Conserve a sua mulher afastada do estúdio, e só quando quiser tomá-la como modelo. E a não ser que ela seja belo modelo, você poderá encontrar qualquer profissional com quem se entenderá melhor, se a sua mulher não se lembrar de fazer cenas desagradáveis por causa disso."
"Bem, mas graças ao céu eu nada faço que necessite de modelos. Não vejo que analogia possa haver entre um negociante da cidade e um artista. Se qualquer homem tiver uma mulher decente - isto é, que o compreenda - ele pintará certamente melhor quando a tiver junto de si."
Vesey encarou Scott, sacudiu a cabeça e bebeu. "Dizia-lhe eu há momentos", continuou, "que lhe ia falar da experiência que tenho, e assim fiz. Você sabe que eu não vivo com minha mulher. Já a viu?"
"Sim. Alguém ma apresentou uma vez."
"Ora vamos: diga lá o que pensa dela."
"Falei-lhe durante muito pouco tempo. Realmente não sei o que dizer."
"Vamos! Diga! Você deve pensar qualquer coisa."
"Penso que ela é uma mulher de excelente espécie. Parece mostrar grande interesse por arte, embora não entenda muito disso."
"Ora aí está!", exclamou Vesey, batendo na mesa; "aí está o que ela é. É a melhor das mulheres, excelentemente educada, virtuosa, sempre pronta. Cumprir a sua obrigação, versada em Shakespeare e em música. Devia ter casado com um padre ou com um xerife, mas não comigo."
"Porque se casou o senhor com ela?" perguntou Scott, a rir.
247
"Não sei. O meu caso é comum. Lembro-me de duas lindas raparigas que me teriam pegado, mas, como muitos moços, eu usava de cautela; passou o tempo e veio o pior. Por fim cansei-me de não ter casa e resolvi assentar antes que fosse muito tarde. Emily esperava adaptar-se à minha maneira: boa rapariga e de melhor apresentação, por isso julgava eu que também, pelo meu lado, não podia ser melhor. Isto era demais para um casamento prudente! Por Júpiter, Cyril, digo-lhe que esta mulher seria uma esposa e não me engano! Desejei fazer uma viagem a Paris pela lua de mel, mas ela confessou-me preferir qualquer praia do litoral; acreditei-a e assim fiz. Na verdade ela desejava ir ao Continente, onde nunca estivera, mas pensou que a localidade à beira-mar ser-me-ia mais agradável, pois era mais barata e eu poderia aí fazer esboços. Assim propôs. Ela podia dizer mentiras às dúzias à conta dos deveres e sacrifícios próprios. Fomos ambos para esse lugar infernal julgando que o iríamos apreciar mais do que qualquer outra coisa. Ninguém havia junto de nós a não ser o banheiro e a nossa vida fazia-se com menos de uma libra por semana. Ao fim de três dias o som da voz dela enfastiava-me. Depois sentava-se junto de mim para não fazer caso do meu trabalho. Pensava que era sua obrigação encorajar-me, aconselhando-me perseverança e julgava que eu a evitava só por fantasia, quando deveria considerar negligência por ela. Sentia-me, então, como se nunca tivesse manejado o pincel, mas nada era melhor para mim do que sentar-me a contemplá-la ou passear com ela a meu lado. Organizei, por isso, excursões de estudo e ela acompanhava-me. Acompanhava-me, sim, meu rapaz; não me sentia com coragem para lhe recusar permissão de vir; ela determinara tomar interesse pela minha obra. Esbocei por inteiro a região situada entre o alto da colina e as profundidades do vale e ela sempre sentada a meu lado. Nunca esquecerei como pegava no trabalho que levava, como procurava compreender-me e como me afastava das minhas ideias com agulhadelas de coragem. Quando já não a podia aturar mais, dizia-lhe que os meus quadros estavam prontos e dava-lhe a guardar todos os esboços, o que fazia, segundo julgo, com todo o escrúpulo. Ela não me teria, contudo, feito desamparar os meus trabalhos e eu não me sentia capaz de ir em pessoa a Londres para comprar cores. Dizia, quando
248
voltava, que eu teria ido em segunda classe e que preferira ficar onde estivera. Prometia-lhe que voltaria no dia seguinte e ela mostrava pequena surpresa pela ceia preparada por mim. O meu coração sangrava pela pobre mulher, mas eu não podia partir nem, portanto, encará-la; assim, depois de conseguir uma semana extraordinária por me achar só, e de a ter esquecido, escrevia-me a dizer que eu despendia mais em telegramas para Londres do que ela a comer e então eu pedia-lhe que viesse; íamos depois até às pousadas de Torrington Square. Por esse tempo o seu entusiasmo refrescou e possuía alta opinião sobre a sua competência diante de um quadro. Encarregava-se, por isso, de me dar explicações, de me fornecer auxílios, conservando-me a assinatura e assim por diante. Assim nos arrastámos durante alguns anos, sem conhecer nada de melhor, pobres loucos que nós éramos. Se eu soubesse o que sei hoje, não me teria aguentado assim dois dias. Ela teria de intervir. Quanto mais eu arrancava a máscara, mais ela se agarrava a mim, pensando que tudo acontecia por sua culpa por não representar bem o papel de companheira simpática. Eu sentia o meu temperamento e as minhas digestões piorarem de dia para dia. Algumas vezes, quando me deitava no sofá para dormir a sesta e assim evitar que ela me falasse, costumava pensar nos casamentos que podia ter realizado e que não fiz por prudência; e quando andava junto de mim tão silenciosamente quanto podia com receio de me acordar, eu costumava lastimar não me ter casado com uma criada, ou com qualquer mulher mal educada que nada soubesse de obrigações. O pior é que não tinha suspeitas do que eu sentia, porque eu era tão afável para com ela quanto podia: na verdade não me dava desculpas; tinha como princípio crer em todos os meus incríveis pretextos por a evitar. Eu andava, consequentemente, havia muito tempo, persuadindo-me a deixá-la, visto que já estava farto dela e da respectiva solicitude. Receava que se matasse, pois não estava preparada. Isto diz-lhe como fui burro. Bom, mas quando eu já não podia mais, fui a um procurador e expus-lhe a situação. Pensou friamente e disse-me supor que eu não pretendia voltar para casa. Quando mencionei os meus receios sobre o efeito que poderia ter nela uma quebra repentina, vi-o olhar de maneira tão especial que me fez pensar. Observou-me
249
que se eu não estivesse disposto a enfrentar a separação que podia voltar para trás para viver de novo com ela, mas isto tinha de ser mais tarde ou mais cedo e o homem aconselhou-me vigorosamente a deixar o caso nas mãos dum profissional. Aceitei a sugestão e não recuei. O procurador encarregou-se de tudo. Como ela ficou não sei; por isso eu não me pude livrar de tal coisa sem um "hum" acompanhado dum encolher de ombros. Todavia não tenho dúvidas de que ela depressa achou que fora um alívio e, desde então, quando a vejo, ela olha-me sempre com um ar feliz desusado nela."
"Falam-se quando se encontram?"
"Eu geralmente, quando a vejo vir, corro para uma loja ou para qualquer rua lateral, mas, em certo dia, fui-lhe apresentado numa recepção por uma senhora que me julgava viúvo. Conversámos então algum tanto sobre o tempo; suspeito que a deixei admirada por nunca ter cuidado muito de mim, mas eu descaíra aos meus próprios olhos. Nós não falámos só como estranhos, pois eu senti realmente tanto como se ela fora um conhecimento casual que não via passados dez anos. O que pensa você desta história?"
Scott, embaraçado com a pergunta, limitou-se a sorrir.
"Tem uma moral que se aplica ao seu caso", disse Vesey, "e eu contei-lha porque você é moço e pensa muitas vezes em se casar. Ora vamos, meu jovem amigo; não negue: todo o homem que não é doido tem de pensar no estado em que deseja viver. Eu também lhe falo assim porque gosto que todos saibam o verdadeiro motivo da minha separação, para os prevenir do pior. Isto talvez não lhe diga respeito. O que lhe diz respeito está na lição que você puder tirar da minha experiência no verdadeiro ponto em que eu lha apresentei. Case com uma mulher que seja perfeitamente capaz de lhe dar, quando lha pedir, uma opinião racional sobre o quadro que você não teve tempo de ir ver. Case com uma mulher que tenha o bom-senso de saber que é a esposa do homem e não do artista, e que se sabe conservar no seu lugar. Mas não se case com uma devotada maçadora como Emily, porque você não pode ser capaz de se desembaraçar dela com tanta facilidade como eu fui. Lembre-se, meu rapaz, que onde há crianças, não se pode pensar em separações."
250
"É fácil dizer: "case-se com esta", ou "não se case com aquela", pois os homens mais experimentados cometem erros em matrimónio."
"Cometem, na verdade. E por quê? Porque o homem só aprende a escolher mulher por experiência. Não somos muito tolos em falar de arte a críticos, porque, aqui entre nós, os críticos muitas vezes encarceram-nos; e muitos - o diabo leve a justiça deles, Cyril - entendem bastante de quadros. Mas ponha qualquer desses a pintar, e que sabe ele? O mesmo sucede com filósofos, novelistas; outros sabem muito de mulheres: podem falar delas e explicar os erros matrimoniais alheios com muito engenho. Mas quando se casam, onde vão parar? Poderão ter mais sorte do que um louco, tal como qualquer crítico pode ter melhor sorte ao pintar um quadro do que outro indivíduo que nunca pensara em pinturas. Mas haveria tão pouca probabilidade de Shakespeare se adaptar melhor a isso do que um viúvo experimentado por já ter enterrado duas mulheres, como de um crítico exceder, logo à primeira tentativa, as coisas que alguns colocam nos mastros de Picadilly durante o verão. Tome, por conseguinte, o meu conselho, e se se casar - embora todos nós saibamos que o casamento é instituição artificial e empresa desesperada, é nosso dever, não obstante, obedecer a tentar - case-se com quem melhor lhe parecer e não cometa a loucura de tentar fazer cientificamente o que não souber de maneira nenhuma executar."
"Quer dizer que um homem deve juntar-se com a primeira mulher que entender, sem olhar às circunstâncias?"
"Sim, isso mesmo. Tome cem homens sagazes e acostumados ao estudo das ciências sociais e da natureza humana. Deixe cinquenta, com plena liberdade e tempo suficiente para pensar, escolher as respectivas esposas. Case os outros cinquenta com mulheres da mesma condição social, que eles nunca viram e que eles escolheram tirando à sorte os seus nomes de dentro dum chapéu. Encontrará a proporção de casamentos felizes tão elevada num dos lotes como no outro."
"Talvez. Isso tanto se pode aprovar como refutar."
"Muitas são as coisas assim; mas se uma teoria for ou
251
não verdadeira, se a achar recomendada pelo crédito instintivo de um homem inteligente, julgá-la-á mais ou menos insignificante do que qualquer outra. Mas, agora, já pensou porque é que a maior parte das pessoas se casa?"
"Levadas pelo costume, suponho. Muita gente pela-se por dizer que o motivo real é mero animalismo. Não sou filósofo, e nunca me preocupei com tal assunto. Talvez seja isso."
"Não, não é. O casamento é uma prisão sob vários aspectos. Qual é a sua ideia sobre os fins por que um homem se deve casar?"
"Hum" É difícil de dizer. Solidão. O desejo de gostar de alguém que goste de nós. Simpatia; companhia espiritual e assim por diante."
"Tudo é possível sem casamento. E nenhum desses factos pode ser tomado de renda. Ora pense outra vez."
"Nada posso conceber a não ser o que está dentro das possibilidades dum homem que se vai casar."
"Gosta de crianças?"
"Não!"
"Pois bem: é para isso que há casamentos. Os nossos filhos, reféns da fortuna, formas onde podemos ver renovada a nossa juventude, pronunciando hoje frases antigas, mas que são sempre verdadeiras. Não são a recompensa da alma ou do corpo oferecidos pela mulher, e isto não será mais agradável quando a mulher não é nossa esposa, mas a posse de rapazes e raparigas garante-nos a continuação da raça quando estivermos no caixão. Carece-se, por conseguinte, da mulher que lhe dê os melhores filhos e que seja a sua melhor mãe, e nunca pensará que teria feito melhor em a procurar noutros sítios. E agora, tome cautela porque já é uma e um quarto e já estamos na manhã de domingo."
"Tão tarde?" disse Scott. "Bem, boa noite." Apertou a mão de Vesey, que se levantara, com gemidos e bocejos, da sua confortável cadeira.
"Boa noite, boa noite. Ó meu Deus! Como eu gostava de me encontrar na cama sem o trabalho de sair daqui. Ô pobre de mim! Upa!
"Mas que cinicão!" murmurou Scott, quando Vesey se retirou. "Admiro-me como ele está seguro da loucura dos
252
casamentos prudentes." Sentindo sono, dirigiu-se ao vestíbulo, onde os olhares de censura dum criado lhe fizeram saber que ele era o último hóspede a andar pela casa. Quando saiu, o criado apagou as restantes luzes; este, após ter percorrido toda a galeria de vela acesa, como alma penada, desapareceu deixando o grande vestíbulo às escuras.
253
TERCEIRA PARTE
CORTE E CASAMENTO
CAPÍTULO I
Miss Russell fora bem sucedida como modista de chapéus e de vestidos em Richmond. A mulher dum pastor do lugar, conhecida pela exclusividade e pela economia no gasto do estipêndio de seu marido, averiguara que uma criada de quarto da vizinhança fora admiravelmente servida com uma capa pela nova costureira e em termos razoáveis. Pediram-na emprestada e fizeram-se moldes dela em papel, mas uma disparidade entre as proporções da moça e os da mulher do pastor tornou este expediente inútil. A senhora visitou depois Miss Russell; explicou que tinha influência na sociedade de Richmond e ofereceu-lhe o patrocínio da sua roda em troca de considerável redução nos preços. O oferecimento foi rejeitado. Na mesma tarde, Harriet falou a Mrs Froster e a sua tia deste incidente, exprimindo certa indignação pela natureza da proposta. Mrs Summers declarou arruinado o futuro da sobrinha e que a senhora ofendida iria usar a respectiva influência para impedir que os burgueses lhe dessem trabalho. Sugeriu que a aceitação do oferecimento, acompanhada de desculpas, fosse enviada imediatamente.
Mrs Froster acompanhou-a mais severamente, apresentando censuras contra a independência excessiva da jovem. Harriet nada disse e as senhoras, que a temiam secretamente, consideraram o silêncio dela de tão mau agoiro que julgaram o assunto resolvido, em breve. Mas sacudiram as cabeças e recomendaram-lhe que fosse mais cuidadosa, quando lhe desejaram boa noite; ela voltou às suas novas ocupações com modo pior do que nunca para os fregueses conciliantes. Apesar disso, recebeu, em menos de quinze dias, tantas encomendas que teve de empregar duas ajudantes. Este sucesso inesperado era devido à advertência que lhe fizera a vizinha sobre a sua ardente repulsa pela mulher do sacerdote, cuja exclusividade e dom de má-língua lhe tinham acarretado várias inimigas. A história da sua proposta fora comunicada pela ajudante de Miss Russell à dona da
257
capa; por esta à criada do pároco, que acrescentou pormenores, tal como ao corte do modelo, e pelas três aos conhecimentos, que depressa espalharam a notícia pela freguesia.
A nova modista tornou-se assim conhecida. Houve clientes que foram atraídas pela eminência profissional que a sua conduta independente parecia indicar e, em certos casos, pelo louvável aspecto e pela exibição da sua habilidade manual na presença da impopular senhora. Harriet demonstrou-a habilmente ao executar as encomendas de senhoras que sabiam, elas próprias, como talhar, e o seu gosto nas sugestões às menos hábeis. Uma rival, que durante dez anos fora enganada e mal paga pela aristocracia local, estava quási arruinada pela recém-chegada, a quem, entre outras consequências da prosperidade, chegavam oferecimentos das companhias de seguros, agências de câmbios, agências de aguardente-disfarçada-em-perfume, e pagamentos de capitação dos alunos internados em escolas preparatórias. Harriet afastou-se com desdém destes processos de ganhar dinheiro, alegando que o seu ofício era modista e não inculcadora. Mrs Froster e Mrs Summers insistiram ambas na aceitação destes oferecimentos com tal persistência, que ela por fim deixou de lhes mencionar tais assuntos. Os procuradores regulares de recomendações venais depressa a deixaram em paz; mas ela continuou sendo objecto da solicitação de muitas senhoras que lhe faziam encomendas, e, quando apareciam executadas, declaravam-se imediatamente mestras e pediam pagas liberais pelo emprego. As freguesas intensificavam loucamente a tentação com as confidências que lhe faziam de tantos detalhes sobre os enfados, desejos e indisposições de suas casas, de tal maneira que ela depressa passou a desejar clientes rigorosas que a tratassem com inteira reserva.
Entretanto, o conhecimento que adquiria das vidas daquelas damas arrancara-lhe a independência que o trabalho mecânico confere, tirara-lhe todos os refúgios, a não ser o do casamento, e tornou-a orgulhosa da sua posição e insolente para o que as suas protectoras consideravam abaixo dela. Contudo, desde que travara conhecimento com Cyril Scott, abafou uma ou duas vezes o desejo de rebaixar os que lhe eram socialmente iguais. Quando, depois da Páscoa, soube pela tia que não haveria visitantes em Perspective até
258
Setembro, sentiu-se involuntariamente desanimada pela duração do intervalo. Tornou a conter-se e resolveu não pensar mais no artista. Conseguiu-o em parte, porque estava muito ocupada, mas nos momentos de descanso pensava tanto na sua resolução que se viu forçada a confessar que tinha de pensar directamente em Cyril.
Era costume de Harriet passar o domingo em Perspective na companhia de sua tia; ia para lá no sábado à tarde, voltando na segunda-feira de manhã. No segundo sábado depois da partida dos hóspedes de Mr Grosvenor, acabava ela justamente de deixar as ruas de Richmond e de atingir a estrada, quando viu Scott que caminhava em sua direcção. A primeira emoção que por ela passou foi de prazer. Depois sentiu-se triste, ao suspeitar que o encontro fora intencional e desrespeitoso da parte dele e ao lembrar-se que a prudência exigia a não repetição de circunstâncias como esta. Por isso, quando ele tirou o enorme chapéu de feltro, fingindo que se encontrava ali por acaso, ela curvou-se com ar severo e prosseguiu rapidamente o seu caminho. O artista hesitou desencorajado, e esboçou um movimento pouco decisivo de continuar o seu caminho. Depois voltou-se, seguiu-a e alcançou-a. Ela parou.
"Boa tarde, Miss Russell. Poderei acompanhá-la sem a incomodar?"
"Muito obrigada", respondeu Harriet. "O senhor ia para a cidade. Não o quero deter."
"Não me detém, garanto-lhe. Não tenho destino. Desejava, de facto, encontrar-me consigo, para lhe pedir desculpa da minha rudeza naquele sábado."
"Não foi rude, Mr Scott. Muito grata lhe fico, mas penso que será melhor eu continuar só."
O pintor olhou ansiosamente para ela. "Peço desculpa de a interromper", disse. "Pensava eu que a senhora ia para Perspective como antigamente."
"Vou, mas só. Na minha posição dificilmente poderei proceder de outra maneira."
"Bem", respondeu ele já sossegado, "a não ser que prefira voltar para casa, peço-lhe que me deixe ir consigo ainda esta vez. Preciso de lhe falar: pelo menos gostaria de..." Aqui a voz tornou-se-lhe num vago murmúrio. Harriet, meia relutante, e confusa por repentina sensação de
259
deleite, consentiu, e caminhou com ele certa distância sem falar. Depois, com um sorriso embaraçado, o artista prosseguiu: "Juro-lhe que saí da cidade com a intenção de a encontrar."
Esteve quási para o censurar por ter voltado a encontrar-se com ela, mas não pôde. Scott, vendo apenas a face calma e o andar resoluto da modista, sentia cada vez mais falta de palavras. A beleza daquela tarde de primavera, com sombras esguias e ruídos distantes, tornava qualquer conversação vulgar indigna daquela hora e do amor que ele guardava.
"Gosta de campo?" perguntou por fim Cyril.
"Não. Prefiro a cidade."
"Na realidade! Suponho que se acha muito só por aqui."
"Não é isso. Prefiro estar só. Sou muito independente."
"Isso é muito cruel."
"Cruel? Para quem?" perguntou Harriet, olhando-a asperamente, quando descobriu tom sentimental na voz dele. Traçou uma linha entre a emoção, que respeitava, e a sentimentalidade, que aborrecia tão desdenhosamente.
"Para todos os que desejam a sua companhia", disse ele, "tais atracções não são desprezíveis a tal ponto que façam corar os que andam por lugares recônditos."
A isto, que foi dito furiosa e desassombradamente, Miss Russell respondeu com um olhar de altiva surpresa. Ele viu-o; fez um gesto como se fosse atirar algum peso para trás e respondeu com ímpeto:
"Não lhe venho dizer esta falta de senso. Desde que a vi pela primeira vez... ouve-me, Miss Russell?"
Harriet, que caminhava com firmeza a olhar o chão que se estendia na sua frente, fez sinal afirmativo com um aceno" com as cores bastante alteradas.
"Por favor, pare um momento. Não lhe posso falar com a senhora a andar dessa maneira."
Harriet deteve-se e encarou-o, pondo-se depois a olhar para o chão.
"Amo-a", disse Scott. "Eis tudo."
"Como ousa dizer-me isso?" perguntou ela, quando levantou os olhos e o fitou com uma expressão de ira de que ele não supunha capazes aquelas faces.
"Como ouso!" disse Cyril, com igual severidade. "Porque
260
não? Porque não? Se não deseja casar comigo, não me pode falar com civilidade?"
"Quando se é interrogado, espera-se cortesia", respondeu Harriet, assustada, mas com brandura.
"Eu interroguei-a."
"Não interrogou."
"E como ousa a senhora pensar que eu pretendia qualquer coisa?"
"Perdoe-me, mas deve lembrar-se da diferença das nossas posições, Mr Scott."
"Eu lembro-me lá de posições numa altura destas!" disse ele, cuja ira caminhava para a ansiedade. "Agora que me compreendeu, pode dar-me uma resposta?"
"Obrigada", disse ela, recomeçando a caminhar vagarosamente. "Cheguei a ver muito no casamento, mas hoje prefiro ficar como estou."
"Sim, sim, também eu; mas eu sei que isso não passa dum assunto miserável. Mas tal não se virá a verificar connosco. Estaremos preparados para as ninharias que ordinariamente as pessoas deitam por terra. Além disso, a senhora não pode ficar eternamente como está agora. Os que não se casam correspondem-se com maior frequência do que aqueles que não o fazem."
Harriet abanou a cabeça.
"Certamente", continuou ele, com certa amargura, pois esperava em vão por resposta mais explícita, "se não gosta de mim, isso compreende-se. As mulheres muito raramente se inclinam para os homens que são bastante loucos em se apaixonarem por elas."
"Há várias outras coisas além do gostar ou não gostar quando se tem em vista o casamento", respondeu com calma Harriet.
"Posso ganhar com facilidade mil libras por ano, se é isso o que quer dizer", respondeu ele rapidamente.
"Obrigado. Não desejo casar-me por dinheiro."
"Eu não pretendo casar-me consigo por dinheiro. Pretendo casar-me consigo por amor."
Harriet olhou para ele com um sorriso de prazer que durante instantes não foi capaz de reprimir. Depois, como reparasse no reflexo que isso teve nos olhos dele, tornou-se grave e disse: "Impossível!"
261
"Quer dizer que recusa?"
"Não posso deixar de o fazer."
"Podia fazê-lo, e muito facilmente, se quisesse."
"Acho que seria melhor não tratarmos agora mais deste assunto", observou a modista, evitando que uma súbita ansiedade instintiva vencesse a sua coragem.
"Não", respondeu Scott com veemência; "a senhora necessita de tempo para preparar o seu espírito para o casamento, mas deve saber muito bem se gosta ou não de mim."
"Que direito tem o senhor para esperar de mim uma resposta sobre tal assunto, Mr Scott?"
"Tenho todo o direito. Desejo saber se posso tirar algum lucro da minha insistência."
"Não haverá qualquer lucro na sua insistência."
"A senhora é a mais desarrazoada das mulheres. E porque não tirarei eu o lucro?"
"Não lhe posso dar uma resposta para a qual não está preparado", disse Harriet ofendida.
"Muito bem. Falando francamente: não gosta de mim. Isso basta."
"Eu não disse isso", acrescentou com rapidez Harriet, caindo a cada momento no esquisito escocês.
"Então que dificuldade pode levantar à minha proposta?"
"Mr Scott", respondeu ela com seriedade, parando quando avistaram os portões de Perspective: "receio não ter reproduzido o meu pensamento com exactidão no que diz respeito ao seu oferecimento, mas garanto-lhe que o considero grande amabilidade. Eu não seria a mulher ideal para si, e sei que após os seus primeiros entusiasmos se terem esgotado, não gostaria de receber as esposas dos seus amigos com vestidos que podiam muito bem ter sido executados por mim e que, ainda por cima, o olhassem com desprezo por minha causa".
"Mas se o fizessem", disse ele, interrompendo-a, "ser-me-ia muito fácil atirar com elas para a rua. O que posso eu apreciar em tal gente? A senhora não compreende a minha posição. Eu não sou um topa-a-tudo na sociedade. Não tenho tempo para a cortejar. Sou um artista e a sociedade não poderá viver sem mim. Sentem-se felizes em me
262
seguir e sentir-se-ão igualmente felizes em conhecer a minha mulher. Além disso, os amigos que eu estimo são homens de cultura, que nunca me perguntarão quem a senhora era, tal como se é a mais bela ou a mais inteligente de Londres."
"Mas não pense que eu me envergonho muito do que sou. Mas se alguma pessoa se sente assim, pode colocar o senhor nas mesmas circunstâncias e não quero correr o risco de me expor a tal coisa."
"Mas se eu estivesse envergonhado, ou se gostasse de estar como estou, ter-lhe-ia feito a proposta? Porque me tornei miserável em vida por causa de alguns loucos que não têm qualquer espécie de utilidade ou interesse por mim? O respeito pela opinião de tal gente nada mais pode ser do que cobardia moral, orgulho, egoísmo; em mim nada há senão amor. Se sentisse metade do que eu sinto por si, não me afastaria com receio de ser censurada por nadas."
"Não se sentiria sempre tão pouco inclinado para essa gente e tanto por mim." Estas últimas palavras saíram contra a vontade dela, o que lhe causou grande terror.
"Nunca gostarei de tais pessoas", respondeu o artista com veemência; "e sempre gostarei de si. Não lhe posso falar tão lamentosamente como já o fiz. Amá-la-ei acima de todas as coisas do mundo, à excepção da minha obra, e contudo nunca porei em execução o que sinto dentro de mim sem a sua companhia."
"E o que diria a sua família?"
Eu gostaria de os ver ter a ousadia de criticar qualquer pessoa que eu escolhesse. A senhora só procura encontrar objecções."
"Penso que são objecções muito naturais, Mr Scott. Eu pertencia à sua família se me casasse consigo e podia ser censurada. Sabemos tão pouco um do outro e os nossos temperamentos pode ser que não caminhem muito felizes quando juntos."
"Não posso compreender porquê. A senhora parece não ter mais génio ou sensibilidade do que um bloco de mármore. E eu não tomo sentido se o meu carácter é mau."
"Julgo que depressa se aborrecerá duma mulher desarrazoada e sem qualquer sensibilidade."
Scott, que estava quási a lançar um apelo apaixonado,
263
foi detido por esta descortesia e não pôde dar largas ao espírito próprio para a resposta. Fumava em silêncio. Então Harriet ofereceu-lhe a mão e desejou-lhe boa tarde.
"Bem", disse ele, "volto para trás sem nada conseguir?"
"Eu já me expliquei."
"Não me deu uma resposta", replicou Scott com violência. Mencionou grande abundância de razões para não se casar comigo, das quais não faço o mínimo caso. Ora eu desejava saber se a senhora gostava de se casar comigo, desde que essas objecções fossem postas de lado."
"Nada serve responder com ses. Penso que nós teríamos feito melhor se renunciássemos a tal ideia."
"Não quer então dar-me qualquer satisfação, não é isso?"
"Eu antes quero nada mais dizer. Boa noite!" E estendeu-lhe outra vez a mão. O artista, com o olhar turvo, bateu na poeira do caminho com os calcanhares quando se afastou dela e começou a caminhar tal como ela considerava, literalmente, uma lindíssima fúria. Quando o artista desapareceu numa curva da estrada sem ter virado a cabeça uma só vez, transpunha ela o portão.
Mrs Froster viera nessa tarde cedo para Perspective para dar à língua com a sua velha amiga antes de Harriet chegar, em cuja presença elas raramente conversavam sem o sentimento da reserva, devido em parte à impaciência que ela mostrava com as suas lamentações sobre a degenerescência dos tempos, e em parte também ao facto de as perspectivas dela sobre a vida formarem o tópico favorito das conversas das duas amigas. Naquela tarde discutiram elas os vinte e quatro anos de Miss Russell, o seu orgulho, as suas maneiras desencorajantes para com os homens, e as propostas de casamento que rejeitara já.
"Parece que esta noite viu passarinho novo, Harriet", disse Mrs Froster, quando ela se sentou para o chá.
Harriet riu-se e corou levemente.
"Julgo que tem muita razão para isso", continuou Mrs Froster. "Estávamos a falar a seu respeito quando chegou. Tenho-me deitado muitas vezes a pensar em si e sobressaltando-me sobre o que vai ser da Harriet."
"Vinte e quatro são já bastantes anos para uma rapariga solteira", disse Miss Summers, "e muitos rapazes julgam que isso se deve a alguma razão má."
264
"O casamento foi estabelecido pelos nossos primeiros pais", disse Mrs Froster; "e eu ficaria muito triste ao lembrar-me de que qualquer rapariga que eu muito prezasse não valia mais do que uma freira Católica Romana."
"Devo também dizer que não acho natural uma rapariga viver à sua custa e dirigir, ela própria, a sua vida", acrescentou Mrs Summers.
"Nunca se pretendeu, nem nunca houve quem se lembrasse disso quando eu era rapariga", disse Mrs Froster. "Tal coisa não sucederia se fosse feia. Mas não esqueça, com todo esse orgulho impensado, que os seus bons ademanes hão-de passar e que há-de ficar doente e triste, sem ninguém que cuide de si."
Então, pela primeira vez para a experiência de sua tia e para a de Mrs Froster, Harriet riu com gosto.
"Harriet", disse Mrs Summers com ansiedade; "o que tem esta noite?"
"Efectivamente!" proferiu Mrs Froster. "Pensar que você se manifesta assim!"
"De todos os cavalheiros que conhece, qual escolheria a tia para meu marido?"
"Interessa-lhe pouco falar de cavalheiros", disse Mrs Froster. "Faria bem se tirasse essas loucas ideias da cabeça, pois já tem idade para arranjar um lar para qualquer negociante honesto."
"Harriet", disse Mrs Summers, mais intuitivamente: "já se lhe declarou algum cavalheiro?"
Harriet recostou-se na cadeira, fechou os lábios e sorriu.
"Mr Davis não voltou certamente à carga?" disse Mrs Froster, desconcertada. Então, irritada pelo desdém que tal sugestão atraiu às faces de Harriet, acrescentou com ar irritante: "Oxalá não encontre outro pior do que ele. Ele havia de se sentir muito feliz, assim independente como é." Mrs Summers tremeu quando ouviu o tom com que falava a sua amiga e viu a afabilidade desaparecer do rosto da sobrinha.
"Não falemos agora de Mr Davis, Rebecca. Falemos de quem na realidade se trata, Harriet."
"Estava precisamente a pensar que acabo de dar uma recusa, mas não devo mencionar o nome da pessoa em
265
questão. Talvez eu fizesse mal em me referir a isto", disse Harriet, meditando.
"Mas que pode acontecer se no-lo disseres só a nós?" interrogou Mrs Summers.
"Nada, se fosse assunto só comigo", disse Harriet.
Houve uma pausa, durante a qual esperaram que ela voltasse a falar, o que não aconteceu. Então, Mrs Froster levantou-se e disse:
"Vou-me embora, Angel. Compreendo que não são negócios da minha regedoria."
"Não fiques aborrecida, Rebecca", exclamou Mrs Summers, levantando-se para deter a visita. "Mudaste completamente, afinal por nada. Senta-te, não queres?"
"Sim", respondeu Mrs Froster; "vocês conhecem bem o meu feitio assim como a minha língua. Não sirvo para negócios de crianças. Não sou boa bastante para uma rapariga que recebe propostas de cavalheiros."
"Mas que falta de senso!" gritou Mrs Summers. "Por que queres conduzir as coisas para esse caminho? Tenho a certeza de que Harriet não pretendia dar a entender nada disso."
"E como ousa ela então desprezar-me?" respondeu Mrs Froster, virando-se iradamente para Mrs Summers, que recuava diante da figura alta e magra da outra, de olhos coruscantes e feições torcidas. "Tomar-me-á por alguma das operárias dela?"
"Não há necessidade de levantar aqui a voz, Mrs Froster", disse Harriet, levantando-se resolutamente como se se dirigisse a criança traquinas. "As criadas podem ouvi-la."
"E que me importam a mim as criadas?" retorquiu Mrs Froster, com cólera.
"Minha tia dá-se muito com elas. Enquanto estiver neste quarto, terá de ter respeito pelo que a tia considera, se porventura nesse estado for capaz de ter considerações por alguma coisa."
"Harriet", advogou Mrs Summers: "não a ofendas."
"É atrevida!" exclamou Mrs Froster.
"Asneiras!" comentou Harriet. "Sente-se e esteja quieta. Não lhe fica bem andar assim na rua ou ser vista pela gente cá do sítio."
266
A garganta de Mrs Froster tornou-se convulsa e olhou ameaçadoramente para Harriet. Depois teve um acesso de tremura e deixou-se cair na cadeira, onde, após breve luta com as lágrimas, começou a gritar lastimosamente.
"Então, então, minha queridinha; isto não tem importância", disse Mrs Summers com suavidade, agitando a cabeça da amiga no seio.
Mrs Froster resistiu-lhe a princípio, mas depois submeteu-se e agarrou-se à outra, agitada por um soluço momentâneo.
"Ora vamos!" consolou Mrs Summers; "estás melhor agora, não estás, Kebecca? Caluda!"
"Disseram-me que não me ficava bem ser vista assim", lamentou Mrs Froster. "As criadas imaginam, coisas de mim porque não tenho reputação decente."
"Não, não", objectou Mrs Summers, "não penses mais nisso. Deixa lá."
"Não me sinto bastante forte para voltar a casa."
"Não estejas a fantasiar essas coisas. Ninguém te mandou sair, Rebecca."
"Nunca me disseram coisas assim."
"Leve-a para o seu quarto, tia", disse Harriet com calma, mas peremptória. "Faça-a deitar. Se se deitar só e lá a deixar ficar, tudo lhe passará."
Mrs Froster tremeu quando ouviu outra vez a voz de Harriet; murmurou um protesto e saiu encostada aos ombros de Mrs Summers. Quando elas abandonaram a sala, Harriet, com um gesto de impaciência, voltou-se para a janela e olhou para fora através do crepúsculo, aborrecida com Mrs Froster por esta a ter feito recordar-se do artista. Em seguida lembrou-se repentinamente de Smith e como desfrutara a intimidade deste e possuía a admiração de Scott, sentiu com orgulho que vivia em sociedade com artistas, estudantes e cavalheiros, em lugar de caixeiros, comerciantes e pregadores dos campos, para o meio dos quais a levara a sua condição social. Enquanto meditava, ouviu a tia passar de mansinho fora, suplicando em vão a Mrs Froster que ficasse. Decorridos alguns minutos, Mrs Summers voltou à sala só.
"Então?" perguntou Harriet. "Foi-se embora?"
"Foi. Não a consegui convencer a ficar. Julgo que ela
267
receia voltar a ver-te. Não lhe devias ter falado daquela maneira."
"Seria poupá-la muito", respondeu Harriet. "Verá que ela nunca mais procurará perder o mau génio comigo."
"Mas ela é que pode pensar nisso", objectou Mrs Summers.
"Cada qual pode pensar o que quiser."
"É uma grande pena. Tudo só por causa de uma falta; ela é a melhor das mulheres. Mas, tal como as crianças, ela perde a cabeça muito facilmente. Tenho pena que fosses tão pouco cortês para com ela. Não pode agradar a qualquer mulher na idade dela ser rebaixada por uma rapariga. Humilha ver dizer essas coisas, quanto mais senti-las."
"Ainda deve dar graças", disse Harriet, inflexível. "Não seria verdadeira benevolência acabar por a encorajar a ser afrontosa. Se não tiver conta em si própria, que a arranje, como fazem as outras pessoas."
"Talvez tenhas razão", respondeu Mrs Summers, com brandura. "Pobre Rebecca! É uma grande coisa ter espírito forte, Harriet, mas oxalá ele nunca te torne cruel."
268
CAPÍTULO II
Mr Woodward, posto que a princípio se queixasse quando pedia alguns detalhes ridículos sobre os processos adoptados pelo seu novo secretário, era agora capaz, pela primeira vez na sua vida, de dispor imediatamente dos papéis que Smith encontrara e de viver despreocupado com possíveis atrasos de correspondência. Era membro do Parlamento, embora não activo, raramente fornecendo ao debate mais do que uma observação chistosa, de que a Câmara, já habituada a ver nele um dos chocarreiros irlandeses, se ria como de coisa comum. Os seus bens da Irlanda encontravam-se nas mãos dum agente; o aviso de recepção das letras e contas deste constituía a única tarefa administrativa do senhorio. Estas contas eram agora entregues a Smith, que perdeu em vão duas noites a ver se descobria a base donde os rendeiros se permitiam deduzir a pobre contribuição e outros impostos das suas rendas e o que significava gale day (1). Julgou a princípio que se tratava de erro tipográfico por gala day (2).
Pouco tempo depois, Smith, ainda que desejoso por trabalhar para si, raramente conseguia ainda encontrar um pretexto que lhe permitisse consumir todo o dia com o seu patrão. Modificou aos poucos a sua aparência e os seus hábitos. Adquiriu um chapéu novo na casa Lincoln e Bennetts, e passou a usar luvas de pele de cão. A criada para todo o serviço de Mrs Tilly disse um dia à senhora que Mr Smith se estava a apurar muito. Pouco sabia sobre a família de Mr Woodward. Clytie viera ao escritório uma ou duas vezes para combinar a hora duma refeição ou para estar com o pai. Em algumas destas ocasiões, dirigia um bom-dia ao secretário, que concebia forte aversão por ela.
Certa manhã Cornelius anunciou "Sor Hawkshaw".
(1) Dia aprazado para o pagamento de uma renda. - N. T.
(2) (2) Dia de gala. - N. T.
269
"O que é que ele quer; sempre gostava de saber", murmurou Mr Woodward.
Parecia que o poeta desejava uma autorização para um dos seus parentes ser admitido na Câmara dos Comuns.
"Veio do campo, meu caro Mr Woodward", disse Hawkshaw, "e eu ficar-lhe-ia muito obrigado se me conseguisse uma autorização permanente. Lá o tenho todas as noites em casa a perseguir-me com isso. Maldita coisa esta de ter parentes!"
"Hum!" respondeu Mr Woodward. "Porque não experimenta ler-lhe os seus poemas?"
"Ele não os aprecia", disse Hawkshaw, com um sorriso. "Imagino que o julga pessoa direita. Mas suponho que o senhor nunca leu qualquer das minhas produções."
"Li uma ou duas."
"O que pensa delas?"
"Bom, para lhe dizer a verdade, penso que há nelas grande quantidade de palavreado. Mas não sou juiz dessas coisas."
"Tem muita razão. Há bastante, há", disse Hawkshaw, afavelmente.
Mr Woodward, convenceu-se e calou-se, fitou desiludido o pouco simpático visitante, até que se sentiu aliviado com a oportuna entrada de Isabella. Esta cumprimentou o poeta com efusão, enquanto Smith procurava estar ocupado a escrever, e escutava, consciencioso das suas deficiências próprias em relações de sociedade, a conversa do poeta com a senhora. Quando aquela durava havia já alguns minutos, Mr Woodward, que olhara várias vezes de soslaio para o seu hóspede, levantou-se e saiu da sala, prometendo voltar logo.
"Sim", respondeu Hawkshaw, continuando o diálogo: "Dizia eu que os bazares me divertem mais. Deixei o meu dinheiro em casa, à excepção apenas de meia libra que eu raramente gasto, pois a reservo para o trem quando regresso."
"Que esquisito!" disse Isabella.
"Vergonhoso, não lhe parece?" disse Hawkshaw sorrindo, e semi-cerrando os olhos. "Nada admiro aqui a não ser o seu vestido, que parece uma quimera. Como lho indicaram?"
270
"Ora! Uma coisa feita de pavão azul!"
"Espere!" disse Hawkshaw, abrindo os olhos. "Pavão azul, por associação estética, fez-me lembrar o meu infortunado amigo Cyril Scott. É verdade que ele endoideceu?"
"Cyril Scott endoideceu? Impossível!"
"Então ainda não ouviu dizer nada."
"Nada sei a seu respeito desde a Páscoa, quando ele estava, segundo creio, em casa de Mr Grosvenor. Ora deixe-me pensar. Sim: lembro-me perfeitamente de o ter visto e ele não parecia mais louco do que usualmente. O senhor não está a falar a sério?"
"Falo sempre a sério até às três horas, quando tomo o barrete, as bisnagas e a colecção dos cartões. Garanto-lhe, Lizzie Scott disse-me ontem que Cyril voltara para casa no último sábado à noite com mau aspecto e muito excitado. Trancou-se cedo no estúdio e fechou a porta a toda a gente. Ora vejam! O mais sociável dos homens. Quando o interrogam, torna-se quási uma fera."
"Não vejo em tudo isso nada de estranho!"
"Ah! Você é muito severa para com ele. Eu vi-o há cerca de três semanas, pouco depois de voltar de Richmond; falou de maneira extraordinária; desprezou a arte; pregou-me sermões e era um Cyril Scott diferente, como podia ser o mais sórdido filisteu. Cheguei à conclusão que ele se apaixonara em Perspective. Estive quási disposto a dar-lhe notícia desta aberração."
"Não sei porque o faz", disse Isabella, muito fixamente. "Mr Scott distinguiu-se em Richmond por algumas aventuras estranhas com uma senhora que fora favoravelmente identificada comigo, mas que se transformou na sobrinha da governanta." Quando disse isto, Miss Woodward, com um leve encolher de ombros, virou-se para o secretário e achou-o a olhar para ela. Ele voltou imediatamente à atitude de trabalho diligente, própria da sua posição.
"Ela é escocesa?" perguntou Hawkshaw, que não dera conta deste episódio.
"Não sei, mas com certeza", disse Miss Woodward desatenta. "Porquê?"
"Nada de particular. Qualquer coisa de que ele me obrigou a troçar acerca duma escocesa, mas não creio que tenha existência real."
271
"Talvez Mr Smith lho possa dizer. Conhece as pessoas mais extraordinárias."
"Por acaso conheço a sobrinha da governanta de Mr Grosvenor", disse Smith, em resposta ao olhar polido mas inquisitório de Hawkshaw. "Ela é, na verdade, escocesa."
"Curioso" E é atraente?"
"É pessoa de carácter notável, e a sua personalidade muito atraente; não desconhece assuntos artísticos, embora os seus conhecimentos andem talvez dispersos. É o saber adquirido inconscientemente, vindo dum esforço solitário com o mundo que na verdade a individualiza."
Hawkshaw e Isabella fitavam com admiração o ex-vendedor de tapetes.
"Desculpe-me", disse o poeta, recobrando ânimo, "mas e a posição social dela?"
"Não disponho de conhecimentos suficientes para falar sobre tais assuntos", respondeu Smith com cautela. Depois, mudando de opinião, acrescentou: "Quando a conheci, era o que se chama modiste (Miss Woodward torceu os lábios) e creio que ela possui agora um estabelecimento seu em Richmond."
"Ah!" disse Hawkshaw. "Então já não há certamente dúvidas sobre o casamento."
"Possivelmente não", continuou Smith. "Mas trata-se duma mulher excepcional; estou certo, porém, que Mr Scott não teria tido a mais pequena ocasião para se dar ao conhecimento dela, graças ao carácter zombador que a caracteriza."
Miss Woodward, mais pálida do que o costume, olhou para Smith, que recomeçou a escrever. Hawkshaw tossiu e estava quási a mudar de assunto quando foi interrompido pelo som de passos no corredor. Em seguida apareceu Cornelius.
"Está aqui... onde está o sor, Miss Bella?"
"Lá em cima. Ele desce já. O que há?"
"É o sor Scott. Entre, excelência", disse Cornelius.
"Oh"" gritou Hawkshaw. "Aí vem Rafael Rembrandt Ticiano Turner Scott. O que tem feito durante todo este tempo?"
"Qualquer coisa em que você faria muito de bom se seguisse o meu exemplo", replicou Scott. "Tive uma dura semana de trabalho."
272
"Trabalho!" disse Hawkshaw. "Você causa-me medo."
"Para que vivemos senão para trabalhar?" perguntou Scott. "Qualquer outra coisa terminaria em desapontamento. Só o trabalho nunca aborrece, pois sempre chega a bom termo."
"Amen", disse Hawkshaw, com um olhar significativo para Miss Woodward. "Você tornou-se ultimamente um poço sem fundo. Com que então qualquer outra coisa terminaria em desapontamento, não é? E que outra coisa tenta você? Lamenta você conhecer uma rapariga tão linda como enganadora?"
Scott olhou irado para o poeta. Depois, descobrindo Miss Woodward a observá-lo atentamente, disse:
"Talvez lhe agrade saber que fui rechaçado num negócio de coração."
"O quê, levou com a tampa?" disse Hawkshaw.
"Levar verdadeiramente com a tampa, não, mas errei o alvo."
"Chegou, viu..."
"E conquistaram-me. Vê que sou bastante generoso para dar ao mundo a satisfação de se rir de mim."
"Julgo que o senhor está a brincar", disse Isabella. "Ou então deve ter desejado muito cair assim dessa maneira."
Scott olhou para ela, que transformou o seu ar de pasmo noutro de franco triunfo. Smith inclinou-se mais sobre a carta para poder rir.
"Gostava que me desse a receita de vencer tão depressa um desgosto como parece que você conseguiu", disse Hawkshaw.
"Bem simples", disse Scott. "Para o meu caso bastou uma semana. Gastei o primeiro dia tentando uma tela; o seguinte passei-o a olhar para ela cheio de desespero. No outro apaguei tudo e comecei de novo. Até agora já consegui arranjar alguma coisa e disponho de algum trabalho bom para a estação de inverno."
"Homem incansável!" disse Hawkshaw, com um suspiro. "Se eu ao menos tivesse as suas qualidades de trabalho, seria autor de uma dúzia de epopeias, em vez de não passar de pobre sonetista. Bem, mas não pode haver comparação possível com o homem que derruba os seus camaradas
273
com a fria confissão do seu desastre. Mas que o trouxe aqui a esta hora desusada, se me é lícito formular esta p~ergunta?"
"Não esperava encontrar aqui qualquer pessoa a não ser Mr Woodward", disse Scott. "Desejo uma autorização de entrada na Câmara para mim."
"O quê! O mesmo recado que eu trago?" gritou Hawkshaw. "Você também tem algum primo provinciano?"
"Não", respondeu Scott, "mas eu tenho um posto na minha família. Desejo alcançar um lugar da Câmara para a madeira. (1) Faço tenção de entrar para lá a fim de pagar as minhas ocupações."
"O céu conserve o seu espírito, meu pobre camarada", disse Hawkshaw. "Você foi fortemente atingido."
Mr Woodward, que estivera a vestir a camisa e a pôr o colarinho, voltou neste momento. Cumprimentou Scott com maior cordialidade do que a demonstrada ao poeta. Depois de os dois jovens terem obtido as desejadas autorizações, a sua visita foi declarada no fim por um óbvio e embaraçado convite para o lanche, que foi habilmente rebatido por Hawkshaw na esperança da insistência, e recusado chãmente por Scott e sem desculpas.
"Não gosto deste Hawkshaw. É um insolente", disse Mr Woodward.
"É, no entanto, polido", disse Isabella, "é mais do que se pode dizer de Mr Scott."
Mr Woodward meteu os óculos na algibeira e abandonou a sala. Sua filha, para surpresa do secretário, ficou, mas pareceu inconsciente da sua presença quando se pôs a olhar pela janela. Smith aproveitou-se da desatenção dela para colocar um par de punhos nos pulsos da camisa e passar o pente de algibeira pelas suíças. Levantou-se e estava pronto a sair, quando Miss Woodward se virou.
"Estava a pensar, Mr Smith", disse ela, "e sinto-me absolutamente certa que quando eu estava em Richmond vi a pequena de quem falávamos."
"É muito possível", respondeu Smith, admirando os olhos de Miss Woodward.
(1) Naqueles tempos, os debuxadores de armas desenhavam primeiramente em cepos, para depois gravarem à mão.
274
"Não se trata de uma mulher morena, de rosto bonito, esperto e..."
"Não", interrompeu Smith, atónito com esta descrição. "Nada disso. Ela é precisamente o contrário."
"Meu Deus! Então a pessoa que me lembro ter visto com Mrs Summers não era a mesma. Mas o senhor não é muito cortês para ela."
"Como assim?"
"Disse que ela é o contrário de bonito."
"Não quis dizer isso. A senhora falava dum certo tipo de boniteza. Não é fácil descrever Miss Russell. Nunca seria capaz de a limitar a um tipo exterior. Ela é, em todos os sentidos da palavra, uma mulher de aspecto forte; há ainda uma brandura no seu rosto e uma graça em todos os seus movimentos que a tornam ainda mais fascinante. Para um estranho não duvido que ela pareça muito bonita. Vi-a, em certa época, com tanta frequência que perdi o hábito de considerar o seu aspecto."
"O" senhor descreve-a, com tudo isso, muito eloquentemente."
"É desta espécie de pessoas que deixam uma admirável impressão nos que as observam. Eu posso compreender que um artista a admire, o seu aspecto é tão natural e o seu carácter tão simples..."
Miss Woodward, que se espartilhara como uma ampulheta, olhou para Smith quando ele se referiu à figura tão natural de Miss Russel, mas não mostrando qualquer traço de ter achado segundo sentido na expressão, e estando certa que nenhum hotaem poderia descobrir que ela usava talas debaixo da roupa exterior; mas Isabella não aceitou a sua suspeita e disse com ar desanimado:
"Deve ser uma linda rapariga, essa modiste. Desculpe-me, Mr Smith, mas posso perguntar-lhe se o senhor lhe pertence de qualquer modo?"
"Ah, não!" respondeu Smith, demonstrando pela sensibilidade com que recebeu a pergunta que não era tão perfeito republicano como julgava ser.
"Eu não devia ter perguntado", disse Isabella, percebendo a perturbação do interlocutor; "no entanto todas essas circunstâncias parecem mostrar o contrário do que se poderia esperar."
275
"Não vai supor que eu tenha qualquer outra pretensão que não seja desconhecer vantagens pessoais", respondeu Smith, arrependido do palavreado com que antes falara. "Além disso, conheci-a acidentalmente. Morei durante um ano na mesma casa em que ela vivia."
"E ela pertence ao número das belezas desdenhosas?"
"Em caso de necessidade, não tenho dúvidas em o reconhecer", disse Smith, pensando no insucesso de Scott com alguma satisfação.
Neste ponto a conversa foi interrompida por Hamlet, que, como esperava encontrar a sala vazia, saltou precisamente da maneira como qualquer lacaio londrino de casaca teria preferido morrer a fazer tal coisa, e ficou boquiaberto diante do par.
"Pexo esculpa, Miss Bella. Binha pá arrumar a xala."
"Muito bem", respondeu Miss Woodward. "Arrume o que quiser, a não ser que Mr Smith precise de estar aqui." Então, com um dos olhares que ela costumava lançar aos homens que se tinham tornado já em hábito, desejou a Smith bom dia e saiu. Ele, depois de esperar bastante para evitar encontrá-la no átrio, seguiu-lhe o exemplo, e deixou o criado só no escritório.
"Azar de bossa insolência", disse Cornelius, incapaz de manter o susto que apanhara em silêncio e ameaçando o secretário ausente com o punho. "Atirando-se à filha do fdalgo. E é aquela menina esquiva! Tralmente é capaz de voltar p'aqui candeu me for imbora. Na quero saber, bou andar co olho em vocês. Ora bamos lá a ber!"
Entretanto, Smith achara que, ao descrever Harriet a Isabella, definira, pela primeira vez, a si próprio as atracções da mulher cuja intimidade ele deixara escapar. Sentiu desejo de a voltar a ver. No caminho da sua residência para a estação do caminho de ferro de Chelsea, que ele julgava ser um lindo lugar para considerar se deveria ou não ir a Richmond, discutiu consigo mesmo desta maneira.
"Estás a cometer uma formidável loucura", dizia o senso comum.
"Todos cometem loucuras de vez em quando", respondia o romance.
"Ela não quer ver-te", dizia o senso comum.
"Como sabes?" perguntava o romance.
276
"Não tens pretexto para a procurares", continuava o senso comum.
"Posso encontrá-la na rua por acaso", respondia o romance.
"Como pretendes agir para conseguir isso?" perguntou o senso comum.
"Há tempo bastante para pensar nisso quando lá chegar", respondeu o romance. "Além disso, se eu não a vir, um dia no campo far-me-á bem. E, no fim de tudo, eu ainda posso resolver não ir enquanto não chego à estação."
Uma hora depois já ele estava em Richmond, a pensar onde poderia encontrar Harriet. Sendo muito irresoluto para perguntar, andou pelas ruas à procura da oficina dela. Depois, sentindo fome, entrou numa confeitaria, onde obteve a refeição e perguntou à empregada que estava ao balcão se conhecia perto uma Miss Russell, modista.
"Cá em cima, senhor. Toque na porta, à direita do patamar; empurre-a se estiver aberta e suba ao primeiro andar."
Tomado de surpresa e certo de que a informadora o espiava pela janela, Smith seguiu as instruções antes de ter tempo de pensar na maneira de se apresentar à modista. Tocou à campainha; um arame vibrou e a porta moveu-se. Quando a senfiu aberta, empurrou-a; subiu as escadas e achou-se no primeiro andar, em frente duma porta de vidro, pela qual podia ver uma capa colocada num manequim de arame. O local pareceu-lhe impróprio para receber pessoas do seu sexo; entrou com a mesma trepidação, com que entraria numa casa de banho de senhoras. Do compartimento contíguo chegou-lhe aos ouvidos o ruído duma máquina de costura, o que lhe fez lembrar a noite solitária em Dodds Buildings quando o perturbaram pela primeira vez nas suas meditações. Tossiu e Harriet apareceu imediatamente da outra sala atraída, pensou ele, por alguma exigência especial; o vestido preto, ainda que simples, era muito mais elegante no desenho e no custo do material do que os vestidos lisos e pardos, chales macios e capas de chuva que a modista usava em Islington. Ao vê-lo, ela teve a mesma impressão, após a primeira surpresa, que sentiria ao encontrar a sobrecasaca, o chapéu alto ou as luvas dele. Recebeu-o com uma cordialidade que depressa dissipou todas as dúvidas que Smith trazia sobre a conveniência daquela visita. Ao contrário do
277
que também esperava, a reserva que ela sempre apresentava, mesmo nas horas mais familiares, posta completamente de lado, era agora invisível; as suas maneiras melhoraram com uma alegria que, não obstante o seu humor sagaz, ela antes nunca mostrara.
A recepção favorável que lhe fez nasceu em parte do prazer da visita e em parte do seu conhecimento, agora mais largo, dos homens; isso fê-la pensar que, nas deficientes qualidades por que o desprezara, ele não era tão inferior ao resto do mundo como ela supusera. A estima que acompanha uma reacção contra uma injustiça; o facto, por ela antes tido em menos conta, que ele era o seu único amigo íntimo; a sensibilidade feminina e a alteração externa na aparência e trato que seguiu à saída dele do escritório de Figgis e Weaver, tudo a dispôs para o receber bem. Esteve sentada com ele algum tempo na sala de exibição e como era já bastante tarde para trabalhar, não foram interrompidos pelo ruído da máquina de costura, movida pela ajudanta de Harriet, na sala contígua. Miss Russell contou-lhe então como se estabelecera em Richmond; descreveu-lhe a retirada de Mrs Froster, que continuava tão exaltável como sempre, disse ela. Em Dodds Buildings nunca discutira o temperamento da senhoria. Smith, em compensação, contou-lhe a sua história e ficou satisfeito por verificar que ela aprovava a sua conduta no que dizia respeito aos seus últimos empregos e considerou que o seu presente desejo era muito mais seguir os seus gostos e a sua habilidade, do que ser guarda-livros na cidade. Em resposta às perguntas sobre o cultivo que fazia de literatura e arte, ela respondeu que ultimamente repetia, nos momentos disponíveis, o estudo das obras de Ruskin, com o auxílio das notícias dos jornais (os preços dos livros estavam muito acima das suas posses), as quais a elucidavam por vezes, embora então não tomasse já grande interesse por elas. Justificava esta atitude pelo que observou a respeito dos quadros que vira em casa de Mr Grosvenor. Smith, por sua vez, descreveu a sua visita a Perspective, e acrescentou que o cavalheiro de quem era secretário se chamava Mr Woodward, um dos amigos de Mr Grosvenor.
"Mr Woodward!" disse Harriet. "Como as coisas se aproximam de maneira tão singular! Ele não tem uma filha?"
278
"Tem duas", respondeu Smith; "uma é formosa, a outra um animal - refiro-me ao espírito, pois é regularmente bonita."
"Como se chama a formosa?"
"Isabella." Harriet ficou desapontada. "Diga-se de passagem", continuou Smith, "ela tem ciúmes de si."
"De mim!" exclamou Harriet. "Se nunca me viu, como pode ela saber qualquer coisa a meu respeito?"
Smith repetiu então a conversa que tivera lugar, naquela manhã, entre Hawkshaw e Miss Woodward, e a confissão que depois fez Cyril Scott.
"E", concluiu ele, "a senhora acreditou-se como a pessoa a quem ele se declarou. A minha intenção era perguntar-lhe se era ou não, mas julgo que devo conter a língua."
"Essa pessoa sou eu, mas, na minha opinião, Mr Scott devia guardar segredo. Suponho que ele me julgou capaz de andar por aí a gabar do sucedido, e pensou que seria melhor tornar-me a dianteira."
"Não tenho essa opinião. Cuido que o disse num impulso de momento, despeitado pela zombaria de que estava a ser alvo. Parece ter excelente opinião a respeito de si próprio e julgo que a senhora lhe surpreendeu este conceito. Miss Woodward disse-lho na cara."
"Admirável!"
"E quando ele saiu, ela fez-me toda a casta de perguntas a seu respeito: foi a primeira vez que se dignou dar pela minha existência."
"Espero que nada dissesse a meu respeito."
"Disse. Regalei-a com uma ardente descrição da sua pessoa, com a qual não pareceu ficar muito satisfeita. (Harriet não pôde conter um sorriso). Não me lembro bem, mas agora, que volto ao assunto, suponho os adjectivos que eu resolvi empregar para aumentar o seu desgosto. Muito gostava eu de saber se ela ainda gosta de Scott."
"É na verdade estranho que as pessoas mais pacíficas não se possam livrar de cair nas bocas do mundo, sobretudo quando há assuntos que se deviam manter secretos."
"Bem, se a senhora deseja destruir a paz de espírito dos mais notáveis artistas da actualidade, e dissipar as esperanças dos mais queridos membros da sociedade, de que está ainda à espera? Não nasceu para viver na escuridão e tem de pagar o preço da popularidade."
279
"Absurdo!" respondeu Harriet. No fim de contas, a brincadeira não lhe desagradava. "Dá-me muita satisfação saber que Mr Scott terá o bom-senso de voltar ao trabalho e de se esquecer por completo de mim. Não deve dizer mais nada a este respeito, Mr Smith, senão pensar-se-ia que fui eu que me empenhei junto de si."
"Certamente que não", respondeu Smith, e riu-se.
"De que se ri?" perguntou Harriet com gravidade.
"Da ideia de Mr Scott a esquecer assim tão rapidamente. Sempre que um homem põe em mente esquecer qualquer coisa, daí apenas resulta uma lembrança sistemática."
Harriet, que tinha já alguma experiência disto com os seus pensamentos sobre o artista, não replicou, mas mudou de assunto, convidando Smith a tomar chá com ela. Ele declinou, receando inconveniência, e alegando que devia voltar a Londres no comboio seguinte."
"Sabe que a sua visita é bem-vinda?" disse Harriet.
"Voltaria, creia, se pudesse", disse Smith, com a veemência do mentiroso. "Garanto-lhe, porém, que é impossível." Reflectindo nas dúvidas anteriores quando descia a escada, disse para si próprio: "Porque não teria ficado satisfeita por me ver? Como me aflijo estupidamente quando suponho que os mais comuns sentimentos humanos se suspendem quando se trata de mim!"
280
CAPÍTULO III
Na tarde dum lindo domingo de Junho, a relva de cada um dos lados do atalho, que atravessa Hyde Park desde Marble Arch até à extremidade oriental da Serpentine, estava ocupada por grupos de vadios e de crentes, a cada um dos quais um orador expunha doutrina, sobretudo sobre a condenação iminente de todos os que estavam naquele parque, à excepção dos que falavam e dos seus apaniguados. Alguns demonstravam pela escritura a alternativa cristadélfica (1) do extermínio ou da comunhão no milénio. Outros identificavam a nação inglesa com as tribos perdidas de Israel e deduziam dos profetas vaticínios sobre o Imperador da Rússia. Aqui e ali grupos cercavam prelecções rogativas, interrompidas pela intrusão dum secularista, grupos de secularistas que tinham sido desafiados por um campeão da Christian Evidence; a causa consistia em saber se alguém do partido contrário ao do orador tinha ou não tinha sido sentenciado a três meses de trabalhos forçados por qualquer ofensa ignominiosa; verificava-se, porém, que, no calor da discussão, a religião ficara totalmente esquecida. Posto que a maior parte dos tranquilos predicadores fizesse o mesmo apelo e quási com as mesmas palavras, eles diferiam bastante entre si pelos processos. Havia suplicantes a atirar os respectivos braços para cima e a guinchar com sons desafinados a ponto de se pensar que iam quebrar. Havia homens robustos que pareciam arrastar os ouvintes para o céu, descrevendo-lhes, sarcasticamente, os deleites a encontrar no caminho do inferno. Havia-os dispensadores de vulgaridades, que procuravam sermões nas pedras e benefícios em tudo. Havia-os devotos, tremendo de ardor, que excitavam a mudança por eles causada nos ouvintes e suplicavam a todo o mundo que
(1) De Christadelphian, seita religiosa, também conhecida pela designação de Tomasistas fundada nos Estados Unidos pelo Dr. John (1805-71), cerca de 1850. Rejeitava a Trindade e cria somente na conquista da da vida eterna pela justiça. - N. T.
281
viesse compartilhar da êxtase em que se encontravam. Havia jovens, orgulhosos pela descoberta de que não estavam sem o poder de agitar assembleias, citando argumentos contrários e refutando-os com ar triunfante. Havia um oficial reformado, chamuscado pelo sol da Índia, que cortara com a família, com uma provisão de cadeiras desmontáveis, e uma Bíblia, que lia com a voz muito mal adaptada a tal propósito. Havia um cavalheiro barbado, intitulando-se Compreensionista (1), que encontrara em si a Metafísica, e, como estava persuadido de que esta descoberta era inteiramente nova, rogava ao povo que se alistasse como voluntário na seita Violeta, para a promulgação duma filosofia doméstica de género muito abstracto. Estava lá também Mr Larkins, que arengava a uma grande e ordeira congregação sob três árvores, próximo do Marble Arch; a sua voz de soprano levava-lhe as palavras às mais afastadas filas da multidão. Quando acabou a prédica, todos cantaram um hino, e entre os que o cantaram com maior reverência contava-se Fanny Watkins, que foi interrompida a meio do segundo versículo pelo toque leve feito por certa pessoa que se encontrava atrás dela.
"Como está, Fan?" Miss Watkins não ouvia aquele acento há meses; a sua voz vacilou quando o reconheceu; mas era muito devota para abandonar um acto de piedade e, por isso, voltou a pôr os olhos no livro. No fim do versículo repetiram a saudação; voltou-se então rapidamente, enquanto Mr Larkins anunciava as linhas seguintes para Fraser Fenwick. A aparência deste surpreendeu-a; estava tão bem vestido, a tez mostrava-se tão saudável e os olhos tão mais limpos do que antes, que Fanny voltou à sua antiga opinião a respeito dele; considerava-o o mais belo e o mais peralta dos cavalheiros. Respondeu-lhe: "Boa tarde. Não deve falar-me sem o hino acabar", e voltou-se para começar o terceiro versículo.
"Que se liche o hino!" disse Fraser. "Venha daí passear comigo a qualquer parte bem longe desta gente."
"Chiu!" sibilou uma mulher que se achava junto.
Fanny sacudiu a cabeça e cantou tão alto quanto pôde. Durante a longa prédica que se seguiu ao canto, Fenwick
(1) Os Compreensionistas desejavam a inclusão dos Inconformistas na Igreja da Inglaterra. - N. T.
282
conservou tirado o chapéu com receio de que alguém supusesse que ele era tão pobre de espírito que nem podia ser crente. Quando, enfim, aquilo tudo acabou, Fanny estava satisfeita por se retirar duma posição igualmente inaceitável para ele e para os que se encontravam próximos.
"Porque não a vi eu durante tantos meses, Fan?" perguntou Fenwick, quando começaram a passear, já afastados da multidão. "Tome o meu braço."
"Espere, Fraser. Eu mal sei se lhe devo ou não falar."
"Porque não?"
"Não sei; mas o papá ficaria muito aborrecido se o soubesse e a mamã proibiu-me que o voltasse a ver."
"Ora! Que temos nós a ver com isso? E ainda por cima agora, quando eu me estou a lançar. Hoje vão mudar bem depressa a opinião. Fiz progressos em determinado assunto e encontro-me tão seguro como qualquer pregador. Não toco num copo há dois meses, juro-lho. Pela minha alma, Fan, é um absurdo você pensar que um homem como eu possa voltar à mesma e a empenhar as coisas."
"Estou certa que se vai deixar disso, Fraser."
"Depende", disse Fenwick, tornando-se sério. "Prefiro ir para o diabo e ter negócios com ele. É tudo, afinal, o que me permitem."
"Porquê? Não fale com tanta perversidade. Sobretudo ao domingo!"
"Qual será a utilidade dum homem quando o lançam pela borda fora? Voltei-me firmemente para si. Trabalhei muito pela sua pessoa. E agora abandona-me. Suponho que a estas horas já está comprometida com Hickson."
"Não. Não tem o direito de dizer coisas dessas. Foi você quem me abandonou. Disse que não podia descer a falar mais com a família dum negociante."
"Sim: isso aconteceu quando seu pai me pôs na rua. Não há dúvida que você tem muito mais que eu para atirar em cara. Isto não é o que eu pensava de si quando andava a morrer de fome. Dizia de mim para mim que podia morrer se soubesse que Fanny me era fiel!"
"Morrer de fome! Morrer!..." exclamou, ou antes, gritou Fanny. "Oh, Fraser, o que quer dizer?"
"Andei a morrer de fome. Jazi num fosso et :jm a morrer, porque era muito orgulhoso para mendigar, quando uma
283
dama titular que eu conheci em dias mais felizes me levou na sua carruagem e me conduziu à casa onde voltei à vida. Era bastante fidalga para cuidar mal dum cavalheiro só porque ele estava reduzido a alguns miseráveis farrapos; emprestou-me algum dinheiro e apresentou-me ao comerciante do West End com quem actualmente ando em negócios. Ela não me deixaria morrer como um perro sem me dar uma prova de consideração."
"Como podia eu saber o que estava a acontecer?" alegou Fanny, a soluçar.
"Não podia certamente. Além disso, o que era isso para si? Julgo até que, nesse mesmo momento, você se encontrava com todo o conforto na sua sala de visitas, a falar com Hickson".
"Fico muito aborrecida com isso. Nunca vi Mr Hickson. Porque não escrevia?"
"Não: não sou bastante anjinho para cair nessa. E que ia você fazer se eu escrevesse?"
"Não sei, mas garanto-lhe que faria qualquer coisa. Em todo o caso, isso impedir-me-ia de andar satisfeita, quando você andava a cair de fome."
"Isso já não interessa," respondeu Fenwick com o rosto carregado. "Estabeleci-me agora com bastante rapidez. Vamos falar sobre qualquer outra coisa. Está uma linda tarde, não está?"
Fanny fungou e andaram em silêncio alguma distância. Então, com uma grande torrente de lágrimas, ela disse:
"Julgo que nós tínhamos outros sítios melhores. Não diga depois que viemos para aqui por minha culpa."
"Fan", disse solenemente Fenwick, "ainda me amas, ou já não?"
"Jurei que sim e eu respeito sempre os meus juramentos."
"Então", disse ele, abandonando o tom trágico rapidamente, "podes muito bem dar-me um beijo."
Fanny corou. "No meio do Parque, ao domingo, com tanta gente ao pé!" disse. "O que iam pensar!"
"Não há gente próxima", respondeu Fenwick, beijando-a. Mas Fanny não se deleitava com carícias públicas. Sentiu-se incomodada e até desacreditada; insistiu, por isso, em voltar para o lugar da reunião. De repente Fenwick tocou-a com o cotovelo e sussurrou, "anda comigo e não olhes em roda."
284
Fanny fez imediatamente aquilo por que a repreenderiam se não o fizesse e viu um homem de pé com os braços cruzados, atrás duma árvore, a Olhar para os restos da reunião.
"Fraser, é Mr Davis."
"Chiu", sussurou com impaciência Fenwick, "bem sei. Anda. Não o deixes ver-nos."
"Olha para aquele fato. Olha para aquela cara. Oh, Fraser, não achas que lhe devemos falar?"
"O que se ganha em lhe falar? Deixa-o lá, não queres vir?"
A sibilação irada do sussurro de Mr Fenwick chegou aos ouvidos de Davis. Olhou rapidamente à roda como um homem cujas circunstâncias o tornaram sensível a ruídos dessa natureza e viu Fanny a olhar pasmada para ele. Aproximou-se dela e disse-lhe, com voz surda.
"Ficou surpreendida por me ver aqui, Miss Watkins, espreitando como um enjeitado para onde eu já fui o observador de todos os observadores."
"Como está?" disse Fenwick a distância, mas inquieto, para que Davis o respeitasse.
"Ocupa ainda o seu lugar entre os eleitos?" perguntou o pregador.
"Estou sempre à espera das reuniões", disse Fanny. "Espero que tenha passado bem, Mr Davis."
"Ah! Sim, tenho passado muito bem, muito bem, mesmo!"
Fenwick tornou-se pálido; os lábios secaram-lhe quando encontrou o olhar brilhante do ex-pregador, cujo riso foi seguido pelo ruído áspero da tosse que aterrou Miss Watkins. "Fan", murmurou: "Vamos embora. Por S. Jorge, por tudo o que sabemos dele, deve estar louco."
Mas Fanny tinha medo pelo seu antigo apóstolo e não dele. Pela lembrança que conservava da doença que o atacara, pôde verificar que o rosto estava quási descarnado e a cor medonhamente escura, com uma mancha escarlate em cada face. Os olhos tinham sido sempre brilhantes, posto que menos desagradáveis do que actualmente. Era a ausência da segurança feliz, que a sua convicção de salvamento espiritual lhe dera outrora, que mais o perturbava. Continuava impressivo, mas essa impressividade era agora tão teatral que à jovem até parecia diabólica. A rapariga reparou também
285
a barba de uma semana, a expressão desdenhosa e as vestes esfarrapadas, que sendo as últimas, escolhidas com gosto teatral onde as encontrara, trazia-as agora só para as identificar consigo próprio.
"Pode ver", disse, "como me encontro bem. Há muito que a Morte me tocou pela primeira vez e um dia acabará por apertar o grampo."
"Oxalá não", balbuciou Fanny. "O senhor não tem certamente razões para a temer. O senhor..."
A voz faltou-lhe quando Davis, sem um sinal do antigo êxtase que calculava ainda poder chamar aos olhos, cruzou os braços e disse:
"Era fácil crer na religião da minha felicidade, quando eu era feliz; tenho estado aqui hoje a ouvir Larkins sem que ele me conheça. Esse é que é feliz. Está apaixonado pela sua pessoa, como eu estive pela minha. É uma paixão sem contratempos. Mas deixem Larkins apaixonar-se também por outrem, se ele tiver qualquer coisa de homem dentro de si, a ver se olha para a sua religião com conforto e para os pregadores com satisfação. Não deseja chegar até aí? Não sou religioso e morrerei como qualquer dos outros; posto que, quando o digo, esteja muito mais próximo da morte do que Larkins, que fala dela com muito à vontade e não crê que já chegou aos quarenta. Está admirada por eu falar assim, Mrs Watkins? Bem, não é para admirar. Larkins e os outros são agora grandes homens, mas nunca terão o público que eu tinha quando trabalhava com eles".
"Oh, Mr Davis, tenha cuidado consigo! O senhor anda desvairado: eu bem sei quem é a sua pessoa. O senhor, que tanto comoveu os nossos corações, não nos disse que a sua alma nunca poderia correr perigo..."
"Não te aproximes do maluco, Fanny", segredou Fenwick, agarrando o braço da pequena quando ela avançou um passo.
"A minha alma!" gritou Davis. "Estou pronto a pô-la em leilão na próxima assembleia se me prometerem que consigo obter lanços dignos dela. Não peço muito. Mandarei chamar uma mulher; por uma conversa de cinco minutos com ela, mesmo ainda, por uma sua dedicatória e até por um simples olhar, vender-me-ia inteiro, alma e corpo."
"Não, não; o senhor não sabe o que está a dizer", interrompeu
286
Fanny, começando a compartilhar dos receios do namorado.
"Melhor do que nunca eu o sabia quando antigamente lhes falava", disse Davis. "Falava-lhes então sobre religião. Agora digo-lhes que não há coisa pior do que a religião. Nada há como o destino. Julga que eu não vejo a sua dedada em me ter encontrado consigo aqui esta noite? Julga que eu não a vejo também no facto de o encontrar aqui consigo? (Apontou para Fraser Fenwick, que recuou). Julga que ela não se apresentou bem nítida no meu espírito na noite em que me dirigi à casa onde ela viveu, e a encontrei derribada, e em que o jovem cavalheiro que primeiro do que ninguém, me conduziu ao compartimento onde ela se encontrava e que costumava levá-la a museus e explicar-lhe pinturas - aí sabendo como eu me encontrava próximo deles - fora também até lá com o mesmo desígnio? Mas, felizmente para ele, ele é como é; muito eu gostaria de o estrangular quando o vi."
"Digo-te que ele está louco", murmurou Fenwick.
"Eis como o destino se apresentou aqui consigo. Foi a senhora, Miss Watkins, que me enviou para salvar seu primo. Para o salvar perdi-me eu, pois foi em casa dele que eu a encontrei. Já estava tudo disposto antes de eu nascer, e antes até que a senhora nascesse, que tomaria a religião com a finalidade de ser enviado àquela casa. Estava escrito que se encarregaria disso e que deveria enviar-me lá e não, como loucamente pensava, que dessa maneira a sua alma seria salva. Estava predestinado que seu primo tomaria por péssimos caminhos e que precisaria de mim para o arrancar ao fogo para que eu próprio viesse a cair nele. E qualquer que a salvação possa ser, estou livre dela; assim estava predestinado ; e nem toda a sabedoria do mundo, os pregadores dos eleitos podem levantar contra isso uma palha sequer."
"Receio que nós não consigamos chegar a casa", disse Fenwick, intervindo com abjecta grossaria, mas dificilmente capaz de evitar que a voz lhe tremesse. "Poderemos qualquer dia ter o prazer de o voltarmos a ver."
"Como o podemos saber?" disse Davis. "Voltar-nos-emos a ver se assim estiver destinado."
"Sim", respondeu Fenwick. "Está bem, pode ser o Destino; o senhor é que sabe. Boa noite."
287
"Ah! Boa noite", disse Davis com ar desdenhoso, o que indicava a maneira como apreciava a ânsia do outro em se desembaraçar dele.
Mas Fanny tirou uma oração da algibeira e estendeu-lha, dizendo:
"Desculpe que eu tome esta liberdade, Mr Davis, mas é um exemplar do primeiro livrinho que o senhor me deu. Tem-me feito tanto bem, que o trago desde então sempre comigo para o distribuir pelas outras pessoas. Sei perfeitamente que sou muito atrevida em lho oferecer, mas não conheço outra maneira de purificar e salvar com firmeza o seu coração."
"Não", respondeu Davis, com modos muito brandos e um sorriso melancólico, mas natural, a aparecer-lhe na fisionomia. "Agradeço-lha sinceramente; mas tive de trabalhar em orações com capacidade profissional, como lhe posso garantir; conheço a sua inanidade. Lastimo que a esteja a incomodar, mas, creia no que lhe digo, a não ser na maneira diferente de falar, sou o mesmo homem de outros tempos, ou, em todo o caso, os restos dele. Adeus."
Tirou o chapéu, tornou a pô-lo e desapareceu por entre as árvores.
"Ora aí está!" exclamou Fenwick triunfante. "Tanta coisa que falaram as bocas religiosas! Eu nunca procurei ser santo, mas nunca pensei que jamais chegasse a tão baixo, com todas as minhas apostasias. Vou-me tornar pessoa sempre precavida contra os reviralhistas fanfarrões. Espero agora que cortes com ele e que vás à igreja com respeito, como qualquer pessoa."
"É horrível pensar em tudo aquilo", disse Fanny lacrimejante. "Já pensaste no que ele realmente queria?"
"Vamos embora e não enlouqueças por causa daquele amigo", respondeu Fenwick. "Porque diabo não havia ele de dizer o que queria?"
Miss Watkins olhou atentamente para o namorado durante um momento, achando nele a menos o que, ainda há pouco, sentira abafado em Davis. Era-lhe agora urgentemente necessário dirigir-se para a cidade, pois era costume de Mrs Watkins pedir contas à filha de ausência prolongada de casa, com o resultado de que o engano sistemático da mãe, quando não envolvia mentira evidente, e outras vezes
288
quando a havia, representava o único pecado que Fanny se habituara a praticar, embora com escrúpulo, excepto aos domingos. Desta vez, ao menos, foi salvo pela generosidade de Fenwick, que chamou o trem em que se dirigiram a Broad Street; Fanny, porém, receava aproximar-se muito de casa na companhia proibida do namorado. A novidade de viajar de carruagem, o excitante risco de ser descoberta pelos pais e o encanto da companhia do primo tranquilizaram-na da sombria impressão que Davis lhe deixara; quanto a Fenwick, que aceitara de boa fé o título honorário de Capitão que o cocheiro lhe conferira, esse sentia-se tão feliz que inventou um chá dançante em Richmond, onde se colocou como o objecto mais admirado na descrição bastante circunstanciada que dele fez à pequena. Esta ria ainda animadamente no momento em que o trem parou. Viu logo Mr e Mrs Watkins junto dos portões da estação do caminho de ferro de Liverpool Street, a olharem pasmados, mas com bem visível carrancuda surpresa, quando, depois, ela desceu auxiliada pela mão de Fraser Fenwick.
"Agora, Fan. Olhos atentos se não queres ser atropelada", disse Fenwick, indo ao seu encontro depois de pagar ao cocheiro, e sem ter percebido ainda qual o motivo por que ela parara de súbito no meio da rua.
"Que bonita conduta, Miss", comentou Mr Watkins severamente. "Ande cá e trate de ir para casa com seus pais."
Fenwick sentia-se falto de coragem, mas não de impudência. Pela primeira vez, desde a sua meninice, que não devia dinheiro ao tio nem pretendia pedir-lho emprestado. Gostava de afirmar a sua independência quja oportunidade se lhe proporcionava e Mr Watkins não era suficientemente venerável para o atemorizar antes dêl" dizer qualquer coisa. Por isso piscou o olho a Fanny paV a descansar, tirou o chapéu e disse:
"Como está, tia Flossy?" Depois, estendendo a mão a Mr Watkins, acrescentou, "como vai esse corpanzil todo, meu velho?"
Mr Watkins deu um salto; dardejou o olhar sobre a face do sobrinho e ficou admirado com o colete que este trazia, que não o envergonhava de qualquer modo.
"Bem", respondeu ele, falando com os dentes cerrados, como era seu hábito, "sempre tens muito espírito! Vejo
289
pelo vestuário e pela cara que conseguiste arranjar alguma coisa boa."
"Vamos tomar uma rodada os dois e então posso contar-lhe, com mais assento, alguma coisa a esse respeito. O que é que bebe?
"Beber! Beber eu? Deixa-te desses ares comigo, meu rapaz; sou já bastante velho para ser seduzido por eles!
"com quem estás a falar, Tom?" perguntou Mrs Watkins, fingindo surpresa. "Não me deixe ver outra vez a sua cara, Miss, até estar bem fechada no seu quarto."
"Deixa-a lá sozinha, Flossy" disse Mr Watkins. "Fraser vem passear um bocadinho com a gente."
"Podes então guardá-lo para ti", respondeu Mrs Watkins. "Não vou passear à luz do dia - e muito menos ao domingo - na companhia dum ladrão."
"Chiu, mamã", disse Fanny asperamente. "Não deve falar assim."
"Já vais saber se és tu quem me pode ensinar como devo falar", retorquiu Miss Watkins tão ferozmente que Fanny recuou, na perspectiva de pancada.
"Flossy!" interpôs-se Mr Watkins com ar bastante repreensivo.
Mrs Watkins conteve-se; murmurou qualquer coisa sobre a perdição da rapariga; mandou a filha voltar para casa sem demora e pôs-se a caminhar de mau humor. O marido esperou até que ela chegasse a alguma distância e depois seguiu-a na companhia de Fenwick.
"Desde quando", perguntou, "podes tu andar em bonitos trens e vestires como fidalgo?"
"Chiu! Não há ainda muito que Lady Geraldina me arrancou ao lodo."
"Lady Geraldina! Mas ela veio ter comigo e disse-me nada mais ter contigo; aconselhou-me também a afastar Fanny de ti até que voltasses com mais honesto carácter."
"Sim. Ela teve a maldita ideia de que eu me poderia tornar mais sossegado desde que soubesse que a sua nova ajuda constituía a última possibilidade que eu receberia dela. Disse-me também que viria falar consigo, mas tratou de me segurar perguntando-me se eu pensara já alguma vez no vexame por que ela passava ao fazê-lo!"
Fenwick acrescentou uma versão da maneira por que se
290
livrara de Lady Geraldina, poupando, tanto quanto pôde, a dignidade própria e sem forçar a credulidade do tio. Garantiu-lhe ainda que actualmente estava empregado como caixeiro duma admirável papelaria em Mayfair.
"É certamente", dizia ele, "uma grande coisa para o homem ter um autêntico cavalheiro a atender as pessoas que frequentam a sua loja."
"Sem dúvida", confirmou com ar escarninho Mr Watkins! "E agora que chegámos à porta, podes subir desde que estejas disposto a ficar cara à cara com tua tia Flossy. Eu subo atrás de ti."
"Fica para outra vez. Será com certeza melhor ocasião do que agora. Adeusinho; não a deixe falar a Fanny muito mal de mim. Fui eu que a obriguei a vir comigo, pode crer. Boa noite!"
Mr Watkins afastou-se com pena; calculava que a presença dele poderia afastar a ira de sua mulher. Esta, se bem que na última discussão se lhe submetesse, fê-lo sob tão perceptível protesto, que a sua submissão trouxera ao marido tanto desconforto como o que lhe costumava causar a sua contumácia. Quando chegou à sala, sua mulher estava só no compartimento, sentada à mesa com um livro em frente. Era a auto-biografia dum pregador popular; narravam-se aí, com detalhe, tantas fràudes cometidas por ele, com tais sinais de reprovação, que o volume se tornava tão interessante para Mrs Watkins como o Illustrated Police News (Notícias Ilustradas da Polícia), que ela não considerava digno de se ler aos domingos.
"Onde está Fanny?" perguntou Mr Watkins, olhando em volta do compartimento.
- "Está no quarto, e continua tão teimosa quanto a tua
perversa indulgência a pode fazer. Talvez gostasses que ela caísse; tenho a certeza que tu ainda por cima eras muito capaz de aplaudir."
"Olha lá isso, Flossy, olha lá isso. Sabes que eu nunca me meto no teu procedimento para com ela, tanto mais que nunca lhe bato; já percebi que ela não vai com ralhos."
"Sim, mas vê as consequências das tuas noções! A andar pelas ruas públicas com esse velhaquete e ainda por cima a querer repreender-me na frente dele."
"Não há mal nisso. Estás naturalmente à espera que uma
291
rapariga crescida siga o seu caminho como uma criança ou como um gato manso."
"Se tu não julgas o caminho que escolhi próprio para a tua filha seguir, podes então tomar conta dela para a guiares, até onde quiseres, à tua vontade", respondeu Mrs Watkins, muito carrancuda.
"Não: mantenho-me fiel ao nosso contrato, Flossy. Sei que os meus princípios, não foram muito próprios para educar uma rapariguinha; eu sempre o reconheci. Não quero intervir nesses assuntos."
"Mas deves intervir. Que poder posso eu ter sobre a pequena se tu não me deixas castigá-la? Ela sabe isso muito bem, e liga tanto ao que eu lhe digo como se eu fosse de pau."
"Isso não é verdade, Flossy. Não existe na freguesia rapariga tão obediente como ela e eu até me admiro muitas vezes como ela consegue aturar-te tanto. Suponho até que pensas que ninguém mais deve ter génio senão tu. Eu tinha ido para os torrões porque não sofreria tanto de meu pai como Fanny sofre de ti todos os dias; pois se até um preguinho pode causar zaragatas nesta casa!"
"Estás sempre a encorajá-la e a tomar o partido dela contra mim. Na tua opinião, só eu é que devia ser condenada como espírito obstinado, enquanto era muito pequena; e..."
"Para mim", interrompeu Mr Watkins, virando-se para ela com feroz mas escarninho aspecto, "só tu representarias o verdadeiro demónio, e se ambos o fôssemos, quebraríamos o espírito da criança ou então forçá-la-íamos a vaguear por essas ruas."
Mrs Watkins desanimou, mas respondeu asperamente: "Oh! Oh! Bastante me batiam! Pelo que eu lhes estou agora bastante agradecida!"
"Estás persuadida duma mentira, e agora, para te justificares, queres afastá-la com as pancadas que dás na criança. Também me bateram muito, de manhã, à tarde, à noite, e bem sei o que tudo isso me fez, e tão bem como estou vendo o que se conseguiu contigo. Não tornarei dura a vida de Fanny só porque tu vens duma família muito conhecida pelo mau génio. Ficará com o rapaz se ele quiser. Tem já idade bastante para o fazer e sabe bem se deve ou não fiar-se nele."
292
"A minha família era tão boa como a tua."
"Os teus parentes não podiam ser todos piores, à excepção de Annie, a mãe de Fraser", disse Watkins com bastante candura.
"Mas ficavam muito contentes por seguir os exemplos que achavam na Bíblia; "despe a espiga e despoja a criança"."
"Ah! Talvez nos vás indicar quem diz isso na Bíblia."
"Salomão", respondeu ela com veemência.
"Ah!" repetiu o marido. "Talvez nos vás indicar com que espécie de punho Salomão entendeu ensinar seu filho."
Mrs Watkins calou-se.
"Nunca ouvi ler como Reboão se dirigiu aos maus", continuou ele, "sem pensar como eu me dirigi aos maus, e como meu pai me batia."
"Estou muito satisfeita por te saber tão sábio como Salomão."
"Não falo contra ele como homem sábio, mas se eu seguisse o seu exemplo em qualquer coisa, talvez tu fosses a primeira pessoa a impedir-me de o fazer."
"Não quero ouvir nenhuma das tuas palavras perversas", concluiu Mrs Watkins indo-se embora.
"Hás-de ouvir tantas quantas eu entender. Por muito que te pese deves ficar sabendo, desta vez por todas, que faço tenção de seguir o meu caminho enquanto me puder aguentar nele."
Mrs Watkins mordeu os lábios; torceu a cadeia do relógio em volta do dedo durante um minuto e depois abandonou a sala. O marido escutou o ruído que a porta fez quando se fechou atrás dela.
"Deus permita que ela abata!" pensou ele. Mas a mulher fechou-a devagar. "Hum!" e acrescentou: "Desta vez safei-me bem, fosse lá como fosse!"
293
CAPÍTULO IV
No sábado à tarde, estava Mrs Summers a fazer malha junto das janelas abertas da sua sala de visitas, gozando a calma e a claridade do tempo, quando a sua criada lhe anunciou Mr Scott.
"Mr Scott!" respondeu Mrs Summers, surpreendida. "Naturalmente alguma coisa acerca dos quadros que o patrão mandou para baixo na semana passada. Ai Jesus! E estão todos na sala de fumo, onde não há luz."
"Julgo que não, minha senhora", disse a criada: "Eu disse-lhe que fosse para a sala de música, mas ele continuou no vestíbulo e fez-me compreender que viera para a visitar."
Mrs Summers hesitou. Recordou a civilidade com que o artista a tratara no Domingo de Páscoa, mas começou a pensar que a criada talvez não tivesse razão. Em todo o caso, considerou que podia não haver inconveniente em o receber onde ela estava; deu ordem, por isso, à rapariga que o fizesse introduzir. Os modos embaraçados que o artista patenteava ainda mais fizeram aumentar as dúvidas da governanta. Depois da troca de saudações, a tia de Harriet tossiu e perguntou ao interlocutor se vira recentemente Mr Grosvenor.
"Não", respondeu Scott: "Desde que me fui embora só o vi uma vez e apenas durante um momento. E... Vamos ao que interessa. Vim aqui para lhe falar sobre alguns assuntos particulares, se quiser ter a bondade suficiente para tanto se interessar por mim."
"Certamente... tudo o que eu possa... muito honrada..." Mrs Summers afinou a garganta e ajuntou: "O que deseja de mim, Mr Scott?"
"Penso que sua sobrinha talvez já lhe falasse no mesmo assunto."
"Harriet!" exclamou Mrs Summers, mudando de cor.
"Há já algum tempo", disse Scott deliberadamente, "pedi-lhe que casasse comigo. Lembrei-me que ela já lhe tivesse falado a este respeito."
"Não me contou ainda uma palavra", replicou Mrs Summers,
294
fitando-o. "O senhor quer dizer que ela está comprometida consigo?"
"Não. Ela não me quis."
"O quê!"
"Repeliu-me, mas não aceitei essa recusa! Agora, para voltar a fazer-lhe a proposta, estive para me emboscar na estrada de Richmond. Receei, porém, que esse caminho talvez não fosse próprio, para me aproximar dela. Não tive, até agora, outra oportunidade para a encontrar. Bem sabe como os homens andam ligeiros quando se trata destas coisas; estou certo que me desculpará por não lhe ter falado a si primeiro."
"Os seus sentimentos honram-no muito, Mr Scott."
"E agora desejo que sancione as propostas que vou fazer a sua sobrinha e que me dê ensejo para lhe pedir que modifique a sua atitude."
Mrs Summers procurou assumir uma compostura conveniente. "Fui apanhada de tal maneira", disse ela, "que mal sei o que pensar. Não devo, na verdade, dizer que tenho quaisquer objecções a fazer-lhe, Mr Scott; muito longe disso até! O oferecimento de V. Ex.a é o melhor por que Harriet pode jamais esperar. Ao mesmo tempo, desculpe-me que seja a dizê-lo, penso que ela poderia fazer-se a esposa digna do mais alto fidalgo da terra; e tanto assim que, se houvesse possibilidade, havia de surpreender V. Ex.a ouvi-la falar de quadros ou dos livros que leu. Ela até é capaz de falar a um francês na língua dele e V. Ex.a sabe quais são as suas maneiras e a sua figura. Segue uma conduta que se pode qualificar das mais severas; se comete alguma falta, é porque ela é muito sentida para a idade que tem - é poucos anos mais nova do que V. Ex.a. Mas, para dizer a verdade, mostra-se sempre muito independente e receio que eu tenha exercido influência alguma vez no seu espírito sobre qualquer assunto. Aqui há tempo..."
"Não pretendo pedir-lhe que vá tentar persuadi-la", disse rapidamente Scott; "acho que será preferível não lhe falar no caso. Mas posso contar com a sua aprovação?"
"Pode, certamente. Demais, talvez Harriet vá pelo melhor. Ainda que, como digo a V. Ex.a, ela lhe possa ser útil alguma vez, pois poderá vir o tempo em que V. Ex.a poderá fantasiar alguma... alguma inconveniência."
295
"A única objecção a isso é que eu tenho pensado muito e que tenho o espírito preparado para tudo", respondeu Scott, com todos os sinais da sua característica impaciência. "Suponho que não há no mundo uma mulher casadoira acerca da qual não se possa apresentar qualquer possibilidade desagradável."
"Não há dúvida que tem muita razão, Mr Scott", disse Mrs Summers; "e como disse que tinha já considerado muito o caso, esperemos que Harriet decida."
"Devo então dizer que não há motivos para me recusar, a não ser a fantasia dela. Não há nenhum compromisso, ou qualquer coisa deste jaez?"
"Mas não. Absolutamente nada. V. Ex.a não devia ter perdido a coragem à primeira tentativa, Mr Scott. O senhor não podia esperar que uma rapariga de bons sentimentos lhe dissesse "sim" de mão beijada, ou esperava?"
Scott não respondeu. Começou então a pensar que Mrs Summers estava doida.
"Não pensa certamente em consentir que Harriet continue a trabalhar?"
"Certamente que não. Isso leva-me a perguntar se Harriet tem quaisquer outros parentes que se interessem por ela. Julgo que os pais lhe morreram. Poderei saber se ela tem também algum tutor legalmente reconhecido, além da senhora?"
"Nem vivalma. Eu e uma amiga minha - uma senhora digna, mas que não nos é nada - temos sido os seus únicos tutores desde que o pai lhe morreu e a deixou como ele mesmo disse - e penso que não é falta de respeito pela morte dizer que ele tinha muito má língua - mais capaz de se preocupar com uma dúzia de regateiras da Escócia do que estas por ela. Era para ele a melhor das filhas, mas o pai meteu-lhe algumas extravagâncias na cabeça, que até poderiam levar qualquer pessoa que a não conhecesse bem a formar opiniões bastante estranhas a seu respeito. Mas há-de livrar-se de tudo isso quando mudar de vida. E eu sei muito bem que V. Ex.a é cavalheiro muito sensato para dar atenção a algumas expressões loucas que ela repete, só porque as ouviu ao pai. Pobre órfã! A mãe morreu-lhe no cárcere."
"Segundo me parece, Harriet é presbiteriana, não é?"
296
Mrs Summers tossiu e respondeu em voz mais baixa:
"A mãe dela, que era minha irmã, pertencia à Igreja de Inglaterra. O meu pobre pai era cura em Nottingham, onde meu avô fora mayor (1). Fomos educados acima do que era devido à nossa posição. Seria desfiar um rosário de tristezas contar todos os nossos desgostos, Mr Scott: como a nossa casa foi desfeita por Hatty, que fugiu para se casar com Mr Russell, de origem escocesa; como meu pai morreu quando os seus negócios se achavam em maior confusão e como nos deixou abandonados no mundo; como vim para aqui com Harriet, ainda criança. Mas deve-se tudo isso àquele casamento com o escocês, ainda que fosse pequena a culpa da pobre Hatty em ter olhado para Joe Russell, homem tão falador, que até parecia não ter os cinco sentidos."
Mas ele não se encontrava bem?"
"Ao certo não sei dizer o que lhe aconteceu. Tratava muito bem Hatty. Mas, Deus me perdoe, era um homem horrível."
"Mas como é isso? Se ele tratava bem a mulher e era tão agradável, porque lhe chama então horrível?"
"Eu não me sei exprimir com maneiras da sociedade, mas a verdade é que em nada cria."
"Oh! Há diferenças?"
"Bastantes, julgo eu", disse Mrs Summers com gravidade. "Sinto muita pena em ter de o dizer, mas ele dizia com muita liberdade o que lhe ia pelo espírito na presença de Harriet; e é por essas e por outras que ela por vezes fala tão negligentemente, como se fosse uma criancinha. Julguei-me na obrigação de dizer isto a V. Ex.a; garanto, porém, que sabe quais são as suas obrigações."
"Sem dúvida", comentou Scott. "E o pai dela já morreu há muito tempo?"
"Há mais de cinco anos. Faleceu na Escócia, onde seguira a profissão de agrimensor."
Scott riu quando contou que Harriet lhe dissera, durante a primeira conversa havida entre ambos, que sabia desenhar mapas.
"O pai tinha também relações com o governo", continuou Mrs Summers, "como subordinado que era dos Comissários
(1) Chefe do corpo municipal, presidente da Câmara.
297
das Rendas do País. Consideravam-no até muito inteligente."
"Julga, Mrs Summers", disse o artista, "que eu poderia encontrar esta noite Miss Russell."
A governanta pensou na resposta que devia dar. Harriet não podia ficar satisfeita se ela anuísse, mas Scott ficaria melindrado se recusasse. Neste momento ele fitava-a à espera de resposta. Houve uma pausa. E então delineou-se uma sombra na janela e, pouco depois, Harriet entrou na sala, vinda das bandas do relvado. Mrs Summers ficou confusa; Scott, que se levantara rápido e carrancudo, como era seu hábito quando se sentia pouco à vontade, ficou depois um pouco mais sereno. Harriet cumprimentou o artista como se a presença dele ali fosse a coisa mais extraordinária deste mundo, fechou e pôs o guarda-sol no seu lugar com toda a tranquilidade. Como o tempo estava muito quente, abandonara o vestuário negro e fizera o vestido de alpaca cinzenta que trazia agora, cujo material, achando-se fora da moda, recomendava-se tanto ao artista pela novidade, como à modista pelo que apresentava de útil.
"Está tanto calor, tia, que resolvi beneficiar eu própria dum quarto de feriado", disse ela, quando se sentava. "Fechei, por isso, a loja às três e meia."
"Como podes falar dessa maneira?" perguntou Mrs Summers. "Pode até alguém julgar que estás sentada todo o dia atrás dum balcão a vender fitas."
"Não é o balcão que faz a loja", sentenciou Harriet com finura. Mrs Summers fingiu a custo não lhe dar importância. Desapontou-a ver Harriet tornar-se, como ela pensava, vulgar, quando era seu desejo que ela se apresentasse com o seu melhor.
"A mulher do pastor mandou-me chamar e pagou-me o dólman", disse Harriet, após uma pausa. "Está extremamente satisfeita com ele, e prometeu recomendar-me às amigas. É uma velhinha muito simpática, e palra de maneira muito amistosa, a despeito da sua corpulência. Mas maior de todas as novidades é que tenho agora outra freguesa: nada menos do que a criada de Lady Pentry, que deseja um traje completo de passeio."
"Sim, sim, Harriet", disse Mrs Summers; "mas talvez os teus negócios não interessem a Mr Scott."
298
"Pelo contrário", respondeu o artista, corando.
"Recebi na quinta-feira uma carta, sabe de quem?" continuou Miss Russell, não fazendo caso do que lhe dissera a tia; "uma carta que fora enviada da minha antiga morada em Islington e que passou pelas mãos de quási todas as Misses Russells de Londres, antes de chegar às minhas?"
"Não sei dizer, evidentemente", respondeu Mrs Summers.
"De Mrs Samson, que costumava ser tão amável para comigo em Little Kinrois. Vendeu a sua taberna a um americano, que a transformou em café. Tenho pena daquele lugar; creio ter corrido descalça centenas de vezes para a tabernita à procura de meu pai. Conhecia muito bem todos os frequentadores habituais e lembro-me que muitas vezes, quando era pequena, me punha em pé em cima da mesa a entoar cantigas para eles. Foi por isso que eu encontrei Mr Grubb, o vendedor de tábuas, que me deixou cinco libras em testamento. O meu pobre pai ufanava-se em mostrar aos seus velhos amigos como eu era esperta. Mrs Samson lembra-se com pena dele e diz em quatro passos da carta que não havia medidor como ele e que não pode confiar no que o veio substituir. Perdoe estas minhas extravagâncias, Mr Scott. A carta fez-me recordar as pessoas entre as quais passei toda a minha vida e o meio em que convivi com elas."
"Bem te podes desculpar, Harriet", disse Mrs Summers de mau humor. "Estou espantada contigo."
"Interessa-me tudo o que diz respeito a Miss Russell", observou Scott. Harriet fez-lhe uma vénia e calou-se. Apesar da sua tranquilidade habitual, sentiu-se largamente feliz. Mrs Summers guardou silêncio, mas nem estava satisfeita, nem à vontade; era seu desejo deixá-los sós, mas não podia encontrar pretexto plausível para o fazer. Uma abelha entrou pela janela; zumbiu à roda do vaso de flores que estava num tabuleiro de vidro, em cima da mesa, e saiu.
"Que dia tão amoroso!" exclamou Mrs Summers.
"Está, está!" respondeu Scott.
"Sinto-me satisfeita por estar tanto calor", disse Harriet. "Dizem que é o tempo mais adequado para fazer negócio."
Mrs Summers olhou para ela com ar de censura. Novo e mais longo silêncio. Quebrou-o uma pancada na porta.
299
"Entra", gritou Mrs Summers. Apareceu uma criada.
"Algumas senhoras e cavalheiros que desejam ver a casa", disse a rapariga.
A expressão de Harriet tornou-se resoluta. Os dedos de Scott tomaram posição de avidez. Mrs Summers, após uma desculpa e algumas observações sobre o aborrecimento de se estar sempre a ser incomodado por visitantes desta espécie, saiu da sala. Então Harriet virou-se atentamente para o artista, sem qualquer pretensão de se mostrar menos atenciosa, como era seu dever em Perspective, e esperou que ele falasse. Scott afinou a garganta e começou obstinadamente.
"Vim hoje aqui visto ter compreendido que na nossa última entrevista não consegui de modo algum exprimir a profundidade dos meus sentimentos acerca do assunto que discutimos e porque receei ter-lhe involuntariamente dado a impressão que não considerara de maneira capaz o aspecto prático do que eu falava. Talvez, também, certa bruteza de maneiras, que é um dos meus defeitos, lhe tenha desagradado. A minha única defesa está em eu ser artista e não um homem como os outros. Falei a Mrs Summers e expus-lhe o meu desejo, reconhecendo que não me podia valer da ideia de me encontrar consigo sem me prejudicar na sua estima. A senhora insistiu tanto em certas disparidades sociais que julga existirem entre nós, que eu até julgo que a profusão dos meus sentimentos me pode trazer a suspeita de que eles, apesar de tudo, são ainda insuficientes para si. Resolvi que já não haveria mais juízos errados e ainda que eu esteja certo de me exprimir muito imperfeitamente..."
"Pelo contrário, Mr Scott, o senhor quási que faz um discurso."
O artista, atrapalhado por completo, fitou-a durante um momento rubro de cólera. Então enfiou as mãos nas algibeiras, andou até à janela, encostou-se ao caixilho e disse:
"Desculpe-me. Lastimo profundamente ter sido tão aborrecido."
"De maneira alguma", respondeu com gentileza Harriet. "Porque insiste tanto em não me compreender."
"Eu! É a senhora quem constantemente dá má interpretação às minhas palavras. Contudo, se tivesse a amabilidade vulgar de me escutar, não teria tanto a peito apreciar dessa
300
maneira o que eu quero dizer, como se eu falasse, não para uma mulher, mas para as paredes."
"Lastimo muito", respondeu Harriet humildemente.
"Pode desculpar-me por dizer o que penso, Miss Russell, mas tenho pouco jeito para disfarces. E a minha paciência tem limites."
"É claro."
Mr Scott tornou a olhar para ela colérico e voltou para a cadeira, com arrogante indiferença, enquanto ela se sentava com as mãos no regaço e os olhos calmos, voltados, com ar de contentamento, para o exterior. Quando ele se preparava para fazer qualquer observação sarcástica, reconheceu repentinamente como se aproximara já tantas vezes da petulância de que dera provas durante a entrevista anterior, pelo que tomara a resolução de ser admiravelmente terno e amável na próxima vez.
"Já compreendeu com certeza que eu desejo renovar a minha proposta", disse ele, com hesitação. "O que responde?" e calou-se.
"Não lhe respondi claramente da outra vez?" respondeu Harriet, com tom pensativo, que não conseguiu reprimir.
"Não quero aceitar essa resposta", disse ele com veemência, levantando-se. "Julga que pode recusar um homem neste lindo aspecto? Porque me recusa? Adquiri já alguns direitos que devem ser considerados. Tenho trabalhado valentemente na minha arte e obtido sucessos. Nunca ofendi quem quer que fosse e nada devo a não ser amabilidades. Estou livre de tudo isso. Só tenho um desejo, só sinto uma necessidade, que é a senhora. Estou aqui para ser arruinado pelos seus caprichos? A senhora não é, com certeza, cobarde bastante para me recusar por qualquer razão."
"O senhor deve saber também que não está a falar com tino", respondeu serenamente Harriet. "com razão ou sem ela, não estou disposta a casar-me com o senhor, embora me pareça persuadido do contrário."
"Não estou persuadido de nada. Sei que não se acha disposta, mas quero que esteja."
"O senhor deu a entender que a minha recusa era cobardia. Com certeza que não espera de mim o abandono da liberdade de escolha porque, ainda que eu não tenha culpa de tudo o que se passa, isso havia de me desgostar bastante."
301
"Desgostar bastante! Em nome do Céu, a senhora possui afinal qualquer poder de raciocínio? Que pode haver de mais cobarde do que tornar desgraçado para toda a vida um homem cujo único crime é gostar de si? Que há de mais atroz do que destruir, logo à nascença, a carreira dum artista? A senhora pretende executar deliberadamente esses dois desígnios e ainda me diz que a culpa não é sua! A culpa será certamente sua se está à espera de conseguir realizar tudo isso."
"Mas como posso eu esperar fazer tal coisa?" perguntou Harriet, muito inexperta, não por ser superada pela veemência dele, mas antes por ter perdido o auto-domínio.
"Como! Ainda me pergunta como! Sabe tão bem como eu. Salvava tudo casando-se comigo."
"Mas se eu não me quiser casar com o senhor?"
"Deve estar agora a pensar em mais alguma coisa. As mulheres são sempre as mesmas. Juraram tornar-se a personificação da crença e do sacrifício. São egoístas por completo."
"Mr Scott", disse Harriet levantando-se, "não posso crer que o senhor esteja a zombar de mim. Mas, se me permite que lho diga, está a falar com tal ausência de senso que eu não tomaria a sério a sua proposta, mesmo que estivesse inclinada a fazê-lo", e deu um passo em direcção à porta.
"Não quer esperar um momento para ouvir o que tenho a dizer-lhe? Não perca a paciência."
Isto era já muito para a paciência de Harriet. Lançou-lhe um olhar de censura e dirigiu-se resolutamente para a porta. Scott postou-se-lhe na frente. Qualquer coerção representava, para o temperamento de Harriet, um ultraje. O seu aspecto tornou-se de mau agoiro.
"Um momento", implorou Scott. "Peço-lhe perdão. Estou tão esmagado que não sei se estou ou não a falar judiciosa e polidamente."
"Faça favor de me dar a liberdade de me retirar ou de estar como me apetecer."
"Não quero. Resolvi hoje não me retirar sem a palavra que ainda não foi dita."
Harriet fitou-o, e ele retribuiu-lhe o olhar de maneira a mostrar-lhe que não tencionava deixar a porta. Tinha nervos e musculatura, mas era pequeno. A robustez e a agilidade
302
dela, assim como a indiferença pelo sexo de Scott em combate, podiam ser ratinhadas por alguns dos valentões de Little Kinross; e o artista, quando a jovem soltou um profundo suspiro e voltou para a cadeira, onde se sentou com expressão de quem sentia a sua paciência profundamente triste, mal sabia que o último pensamento dela antes de executar isto tinha sido de pena por não poder obedecer, com dignidade, ao impulso de o agarrar e atirá-lo pela porta fora, como uma vez fizera, tinha apenas treze anos, a um vaqueiro de quinze, que tentara fechá-la num terreno com um touro muito conhecido pela sua ferocidade. Não amara o vaqueiro, cuja cabeça ela depois quebrou no portão, mas amava o artista. Não obstante, os dedos latejaram-lhe quando olhou para ele com a aventura do portão no espírito.
"Pedi-lhe", continuou Scott, aproximando-se dela, "que considerasse seriamente o que eu lhe disse. Não pense no ar, mas decida depressa porque se trata dum assunto que, para mim, está acima de todas as coisas deste mundo. E sobretudo, não me mantenha neste estado de suspensão. Diga-me por uma vez se eu me posso considerar um homem com assento e felicidade para o futuro."
"Já lhe disse o que tinha a dizer."
O artista ficou espantado. "Porquê?" perguntou ele, levantando as sobrancelhas.
"Porque uma criança pode conduzir um cavalo até onde está a água, mas dez homens não o podem fazer bebê-la."
"Oh!" disse Scott. Depois de ter esperado baldadamente por uma resposta, acrescentou: "E a quem interessa isso nesta vida?"
"O senhor obrigou-me a escutar. Mas não pode forçar-me a responder."
"Julgo que não a ofendi", disse ele, com rústica humildade.
"O senhor nada deixou de dizer ou de fazer que não me pudesse ofender."
"Mas, pela minha honra, a parte ofensiva do que eu disse era exactamente aquela que eu não queria dizer. Exprimi-me mal..."
"Também me pareceu, Mr Scott", interrompeu Harriet, "isso foi o que o senhor quis dizer. Quando é artificial, soltando
303
discursos preparados e seguindo o desígnio deliberado de se tornar agradável, mostra-se bastante educado. Mas quando esquece esse desígnio e cai em si, consegue fatigar mais a minha paciência do que eu própria o conseguiria numa hora. O senhor julga que eu o posso aturar assim durante uma vida inteira?"
"Eu não lhe causaria um desgosto momentâneo por nada deste mundo. Seria claramente estúpido, mais do que qualquer outra coisa. Porque não me diz que me estou a tornar louco? Eu teria esperado mais um ano do que procurar incomodá-la agora."
"Quando procurei fazer com que o senhor o compreendesse pela forma mais simples, forçou-me a pôr tudo de parte, pois as maçadas que depois vieram foram tantas como as imposições, e agora até surge a violência."
"Julga-me mal. Eu apenas procurava evitar que procedesse apressadamente." Harriet sacudiu a cabeça. "Podia ter saído pela janela." A maneira como ela apertou os lábios preveniu-o que esta frase fora muito parva; então arguiu: "Foi mero impulso, um movimento instintivo da minha parte."
"Eis precisamente porque ele me desagradou", respondeu Harriet. "As acções estudadas fazem muitas vezes injustiça aos respectivos autores, que podiam tê-las delineado de maneira bastante diferente dos seus melhores sentimentos. Acções instintivas são revelações involuntárias da natureza real, da qual procuram afastar-se." Isto representou uma citação verbal de Smith.
"Eu só tenho que pedir desculpa", disse Scott, sentando-se abatido. "Se somente me desse o direito de lhe falar como eu queria, não teria mais razões para se queixar por eu ir para posições extremas através da maçada de auto-constrangimentos excessivos."
Ele alegrou-se um pouco quando disse isto e então olhou inquisitivamente para a jovem, que não lhe deu atenção. Harriet deixara-se ir mais uma vez atrás do cálculo que a preocupava muito durante os últimos quinze dias. Havia de melhorar quer se tornasse opulenta e independente negociante, mas sem amigos, salvo os do tipo de Mrs Froster, quer viesse a ser esposa, governanta, ou ainda ama dum jovem artista apaixonado por ela e que a pudesse introduzir na sociedade
304
onde, como julgava, as suas boas qualidades não se perderiam, nem as suas graças pessoais gastariam mais circunspecção para se conservarem do que lhes permitiria o valor que poderiam possuir; e seria ainda a confidente dos êxitos dele por aguentar suficientemente a sua petulância, o que lhe permitia associar-se a esses êxitos sem qualquer sombra de dependência.
"Mr Scott", disse ela, em resposta à última observação do pintor, após nova pausa, "já considerou que, se se casasse com uma modista, os seus amigos, quer o senhor gostasse quer não, diriam que fizera casamento pouco digno de si? E já pensou em mim não somente como eu sou neste momento, mas também como uma companhia constante, que envelhecerá e de quem não se poderá separar?"
"Já pensei completamente em tudo. Garanto-lhe que não é para mim agir sem reflectir."
Harriet recaiu na meditação e pareceu perturbada.
"Está a hesitar", disse Scott, levantando-se, e agarrou a cadeira com uma das mãos como se só esse objecto o impedisse de correr para ela. "Não teria ainda respondido às minhas perguntas se não quisesse dizer... se realmente não quisesse dizer sim?"
Vendo que ele apenas esperava pela sua afirmativa para a estreitar nos braços e a beijar, Harriet puxou a cadeira algumas polegadas para trás com um sentimento que se aproximava da aversão. Pareceu-lhe bastante mau tornar-se propriedade dum homem sem prolongar o instante em que o negócio se ia concluir.
"Serei sua mulher com duas condições..."
"Concedido!" gritou Scott, deixando a cadeira e dando alguns passos para ela.
"Espere", disse Harriet, determinante. "As duas condições, são: primeiro, que o nosso casamento não seja religioso."
"Eu estava para lhe propor isso mesmo; mas julguei que nenhuma mulher esquecia o vestido e outras coisas mais quando se ia casar."
"Segundo: que, por eu tentar respeitar, tanto quanto puder, o que é devido à sua posição, o senhor não procurará tratar desairosamente os meus amigos que não são damas nem cavalheiros."
305
"Certamente que não. E agora?"
"E agora", respondeu Harriet, estendendo a mão na esperança de impedir as carícias iminentes, "estamos entendidos. Aceito."
Scott agarrou-lhe a mão, e, curvando-se, beijou-a com tanto ardor quanto um cavalheiro, não obstante a sua estatura, pode, quando está em pé, exibir, sem perder o equilíbrio, ao cumprimentar uma dama que está sentada. Depois ajoelhou junto da cadeira dela, passou-lhe o braço em torno da cintura, apertou o ombro dela junto do seu peito, enquanto lhe olhava com avidez para os olhos. Mas as meiguices não surtiram efeito. Harriet apenas as aturou durante um escasso meio minuto, pois imediatamente se começou a libertar delas com brandura, ao mesmo tempo que dizia, mitigando o pedido com palavras ditas no mais doce dos tons:
"Espere. Sente-se. O casamento é coisa muito séria. Eu agora não posso brincar consigo."
Scott, vencido pela tristeza, ainda teve prazer em obedecer, não só porque a posição em que se encontrava lhe fazia doer os joelhos, mas também porque compreendera rapidamente que a sua conduta era indecorosa e ainda porque Harriet era mais séria para com ele do que ele o era para com ela. Arrastou uma cadeira para junto da de Miss Russell e sentou-se em silêncio. Antes que qualquer deles recomeçasse a falar, Mrs Summers voltou. Vendo-os sentados sem nada dizer e aparentemente zangados, receou ter voltado muito depressa e parou com óbvio embaraço.
"Tia", disse Harriet com gravidade: "vais ficar satisfeita quando souberes que prometi casamento a Mr Scott."
"Sim! Deus meu! Como vai ser lindo!" disse Mrs Summers.
A este cumprimento titubeante seguiu-se uma pausa.
"Julgo que seria melhor tomarmos chá", acrescentou depois.
Enquanto a tia punha a mesa, Harriet foi ao jardim, onde o artista a foi imediatamente encontrar.
"Eu queria que se fosse agora embora", disse ela.
"Porquê?"
"Porque hoje eu dei um grande passo; e até que eu esteja só e completamente em paz, sentir-me-ei como se estivesse a carregar um enorme peso. Compreende?"
306
O artista só agora percebera.
"Sou um animal chapado", disse ele, "mas compreendi. Os artistas compreendem melhor o amor do que o casamento, mas sou capaz de aprender este novo capítulo e só por sua causa."
Harriet sorriu radiante.
"Poderei voltar amanhã, ao princípio da tarde?" per
guntou ele. Ela consentiu com um aceno de cabeça. Pegou então no chapéu e despediu-se de Mrs Summers, para surpresa e alívio desta.
"Boa tarde, querida", disse o pintor, quando se encontrou de novo com ela no jardim e lhe tomou a mão.
"Boa tarde, Cyril", respondeu-lhe a modista, com outro sorriso. Então ele beijou-a com solenidade infantil.
307
CAPÍTULO V
Numa tarde de Junho, Lady Geraldina Porter sentou-se na sala de visitas, quando os cegos se encontravam lá em baixo. Fora de casa, os pavimentos resplandeciam ao sol e os que passavam pela rua tomavam todos pelo lado mais sombrio. Ás quatro e cinco Ernesto entrou estrondosamente na sala, a suar.
"Está um calor de respeito", disse, deixando-se cair numa cómoda cadeira. Lady Geraldina olhou-o repreensivamente.
"Vim para estar consigo", acrescentou ele, com um sorriso. "Eu sei como fica satisfeita quando me vê."
"Então tenha a bondade de se sentar com calma", respondeu Lady Geraldina. "Os seus modos grosseiros e a sua conversa aborrecida poderão ser a sua desgraça. Continua com o mau costume de inutilizar todas as cadeiras onde se senta."
Em seguida chegou Hawkshaw, que parecia mais fresco.
"Que calor desgraçado!" disse ele, quando se sentava com atitude lânguida para o tempo e respeitosa para a dona da casa.
"Que medonha calmaria!" comentou Isabella Woodward, entrando logo atrás do poeta. "Deixei agora Clytie na carruagem a caminho de Victoria, onde se vai encontrar com o papá; é capaz de apanhar alguma ponta de sol ou de se encher de sardas, o que seria bem pior."
Consideraram então se aquele dia ou o de terça-feira anterior não teriam sido os mais quentes da estação; discutiram também vestidos de verão, bebidas estivais, hidrofobia e a razão por que tanta gente abandonara já a cidade.
"Quando voltava", disse Lady Geraldina, dirigindo-se a Hawkshaw, "vi, há já dias, o seu amigo Mr Scott admirando alguns móveis através da montra duma loja. Um jovem muito ocupado constitui sempre para mim objecto de suspeitas."
"V. Ex.a ainda mais suspeitaria dele", replicou Hawkshaw, "se tivesse - como eu tenho - o privilégio de o acompanhar em passeios pelos arredores. Em cada casa que
308
ostenta um papel na janela, pára; arregala os olhos; vacila e segue finalmente o seu caminho com visível relutância".
"Acabou agora de executar um quadro admirável", disse Ernesto. "Obra gloriosa. Ofereceram-lhe um cheque em branco e já assinado, para que ele o enchesse com a quantia que entendesse; não ficou ainda satisfeito. Não posso ter a liberdade de dizer quem fez o oferecimento."
"Digam-me, fazem favor", pediu Isabella, "é verdade que Mr Scott se vai casar? Já estou farta de ouvir boatos a esse respeito."
"Como sou o seu único amigo confidente, não estou, evidentemente, em situação de poder dizer qualquer coisa."
"Então é porque ele se vai casar, porque se assim não fosse o senhor não disporia de motivo possível para deixar a notícia incontradizível", disse Lady Geraldina. "Olhe, Mr Hawkshaw! O senhor tinha agora uma desculpa para não nos falar a esse respeito, que eu julgo ser tudo por que tem estado à espera."
Hawkshaw sorriu para a sua hospedeira e respondeu:
"Tive recentemente o prazer de ser introduzido junto duma jovem senhora por quem o meu infortunado amigo mostra grande interesse. Se ele, na verdade, estiver inclinado a casar-se, ela tornar-se-ia provavelmente sua cúmplice, se tal fosse necessário."
"Ora vamos, Mr Hawkshaw", disse Lady Geraldina. "O senhor atraiçoou-o. Tenha dó da nossa curiosidade com esses ses." -
"Ela é admiravelmente encantadora, não é?" interrogou Isabella.
"Se eu consultasse os meus desejos, teria agora evitado qualquer resposta", respondeu Hawkshaw. "Mas Lady Geraldina tê-la-á. Então, com franqueza, lá vai: ela é a mais desagradável das mulheres que eu jamais tive o infortúnio de encontrar."
"Jesus!" disse Lady Geraldina. "Então a descrição que me fez há bastante tempo, baseado na autoridade do secretário de Mr Woodward, não passa de simples romance, ou não se trata da mesma senhora?"
"É a mesma, sem qualquer dúvida", respondeu Hawkshaw. "Mas o excelente Mr Smith é peculiar nos seus gostos. Talvez seja ainda muito novo, e não vê as coisas pelo
309
nosso prisma social. Não admira, pois, que também o pobre Cyril sofra de depressão crónica!"
"Mas como é ela?" perguntou Isabella, "Tem mau aspecto? O senhor não esperava, com certeza, que ela tivesse boas maneiras."
"Sim, realmente", disse Hawkshaw, "eu não posso negar que ela seja formosa à sua maneira. Ainda hoje, a beleza depende de associações. Quando eu era criança, considerava um navio de guerra, um daqueles antigos ainda de madeira, a mais linda coisa do mundo. Continuo a pensar como as coisas inanimadas se concernem. Graça, grandeza, vigor e um poder vigilante ao qual só falta o desafio para devastar como o redemoinho, tudo se combina para o tornar logo admirável, belo e terrível. Mas admirar uma mulher tão dotada! Seriam capazes de encontrar nela o mesmo encanto que se acha em qualquer grande navio? Querem que continue a descrição?"
"Evidentemente", respondeu Ernesto com gravidade.
"Eu mal sei como descrevê-la", diz Hawkshaw. "É formosa; a sua individualidade está acima de qualquer vulgarismo no que toca a boas maneiras; o entendimento que possui é aflitivamente agudo. Qualquer afectação ocasional de simplicidade é nela tão esquisitamente perfeita que, confesso, para mim será astúcia ou auto-comando. Mas ela é feita de aço, com coração de neve, triplicemente escocesa, o ideal da circunstanciadora, o sepulcro da emoção, o relicário e o santuário do fingimento. O pobre Cyril é o seu brinquedo. A pretendida conhece-lhe todas as notas da sua escala; assim que se levanta uma questão entre ambos, arranja logo barulho, coloca-o a seu jeito e Cyril submete-se, arrebatado por aquele mau génio."
"Pobre Mr Scott!" disse Isabella. "Eu logo considerei muito provável que iria cair na armadilha, quando o senhor contou que ela não aceitara a primeira proposta."
"A infinidade dos desígnios desta mulher", continuou Hawkshaw altaneiro, consciente de que Ernesto bebia as suas palavras até à intoxicação, "não é mais insignificante do que o aspecto exterior e a ausência de paixão. É o que há de mais sublime no sórdido. Agora Cyril, posto que não esteja ainda livre da brutalidade do artífice, faz derivar a sua inspiração da verdadeira fonte do idealismo, o mito antigo.
310
A simpatia que vota à natureza velada, quando os perfis se acham ainda sombrios e a impressão toma o lugar da percepção, parece bem evidente nos eternos nevoeiro, bruma e tempestade com os quais ele passa a tela para a natureza e para o pensamento. Num espírito como este, a colisão com tudo que lhe é mais estranho, combinado e ornado com certa medida de beleza e uma subtil porção de graça, deve, necessariamente, produzir um todo estranho, quási capaz de encantar. A miragem deslumbra. O homem, ilimitadamente fértil em si próprio, não sente a aridez do deserto onde armou a sua tenda, porque o escoadouro traiçoeiro da inspiração sedenta não a deixou tornar-se inteligível. Mas até receio pensar no que ele vai fazer quando a ilusão se desvanecer, e a areia absorvida o puser exausto."
Ernesto deixou escapar um murmúrio reverencioso, como resposta a uma ladainha.
"Se litigam, podem separar-se, como hoje faz muito boa gente", disse Lady Geraldina impaciente. "É mulher bonita? Apresentável, julgo?"
"Confesso que entre as maiores impressões que recebi, quási esqueci já as que se referem às maneiras. Tanto quanto a minha humilde opinião sobre tão profundas circunstâncias pode merecer confiança, parece-me que a posso dizer apresentável. Estes escoceses nunca são tão educados como qualquer das classes inglesas. Mas, sim: de qualquer maneira ela é apresentável. Creio sinceramente que até era capaz de ocultar o descaramento próprio numa festa de deuses."
"Em resumo, porta-se como uma dama."
"Não. Não pode haver ponto para comparações. Mas acho-a original e capaz de salvar todas as situações."
"Tenha, por favor, compaixão da minha limitada inteligência, Mr Hawkshaw. Se ela estivesse sentada numa sala na nossa companhia, apresentava-se como uma desmazelada, ou como uma ordinária? Será capaz de tornar ridículo Mr Scott e nos colocar a nós todos pouco à vontade, se eu os convidasse a ambos?"
"Não, decididamente, dentro dos limites da classe média. Porque, enfim, Cyril pertence à classe média. Esta é a nossa tragédia, de nós, artistas. Constituímos uma classe
311
única, separada por completo das outras; mas todos nós temos classes médias relativas, sobretudo as mulheres."
"Não há dificuldades para as mulheres", disse Lady Geraldina. "Há adições necessárias e saudáveis ao talento dos respectivos maridos, que, sem elas, ficariam desacreditados. Mas as jovens que apenas estão comprometidas não podem ser convidadas sem que as mães, ou quem quer que seja, as acompanhem. No caso presente, cumpre a Mrs Summers a execução deste dever. Pela parte que me toca não tenho a objectar a mais pequena coisa, tanto mais que ela é tão conhecida que a sua presença aqui não exigiria explicações; talvez Mr Scott não seja capaz de apreciar isto como seria sua obrigação."
"V. Ex.a encontra-se perdida na escura aristocracia desta terra", disse Hawkshaw com galantaria. "Deveria ser a presidente duma república de intelectuais."
"É tão admiravelmente corajosa, Lady Geraldina", disse-lhe Isabella. "Invejo-lhe a independência com que desafia os preconceitos da sociedade. Deve ter o cuidado de mandar pôr num dos cantos dos seus cartões: "Não se admitem os vestidos confeccionados por Miss Russell de Richmond." Consideremos agora como ela se sentiria entre as antigas freguesas!"
"Simplificarei a questão não permitindo que ninguém pense em quaisquer cartões", respondeu Lady Geraldina. "Não simpatizo com tais disparates; e tenho exclusivismo bastante para não estar disposta a aturar uma gente que não pode comparticipar da minha indiferença. Além disso, como estamos nós a viver? A antiga maneira de viver, em que se passava o tempo na contemplação dos nossos privilégios, é hoje coisa tão obsoleta como os jantares às seis em Bloomsbury. Devemos dispor de pessoas inteligentes que possam falar connosco. Agora, a habilidade verdadeira consiste apenas em encontrar entre as gentes pessoas de quem se dependa e que nos sustentem. Nada mais parece capaz de ser imputado a muitos homens. Vejam as admiráveis criaturas que nós encontrámos em Halkett de Grosvenor! Como havia lá tanta gente que se esforçara por levar consigo parentes, naturalmente até para divulgar as particularidades dos primeiros trinta anos das respectivas vidas domésticas! Além disso, são as únicas pessoas a quem vale a pena a maçada das reuniões."
312
"Gostam tanto de se consolar com contactos de segunda ordem nelas que até é uma pena não poderem ouvir-nos falar assim", disse Hawkshaw. "Mas porque não aplicar isso ao catita do Cyril sem relampejar o boato do casamento?"
"Simplesmente para mostrar ao senhor que se ela realmente for dotada de inteligência, apresentável e digna do nosso respeito, não nos importará o nada que foi. Se se casasse com um homem vulgar, o caso seria outro. Mas Mr Scott é um aborrecido esteta. Não procura agir como os restantes mortais; a esposa terá ainda maior interesse se for uma rapariga escocesa, ou uma irlandesinha (1) ou qualquer outra de tipo romântico. Por consequência, não sou mais corajosa do que as outras se me aproximar dela: apenas vejo longe. Dentro de alguns anos todos os da espécie do marido terão feito o mesmo."
"Julgo que ela nunca conseguirá entrar na melhor sociedade", disse Isabella.
"Isso abre a questão de saber qual seja a melhor sociedade", respondeu Lady Geraldina. "Há, segundo dizem, um círculo inatingível de pessoas respeitáveis, a verdadeira nata da humanidade extravagante, inacessíveis à vista, indigestas, estagnadas e superiores, tal como deve ser qualquer nata. Mas é tão impossível viver com tais indivíduos, como à Rainha estar a toda a hora com a coroa na cabeça. Contudo, eu tinha de os aturar por causa de meu marido ter infelizmente de jantar com eles duas vezes por época, e eu mal sabia se a sua existência era ou não um mito, como as divindades pagãs tão favoritas de Mr Hawkshaw. Eu bem sei que, quando me retiro para a vida, em sentido comum, recebo grupos de pessoas só porque falam bem e cantam, ou não cantam, qualquer coisa. Se se fala muito delas, eu não faço perguntas, e fico-lhes imensamente grata por me terem evitado a despesa de contratar artistas profissionais, a que eu me oponho pois destroem o carácter social das minhas reuniões e apenas viriam transformar a minha casa num mero teatro. Por exemplo: para a minha última tarde desta estação tenho de contratar um coro profissional de dezasseis indivíduos sobre cuja competência e respeitabilidade o agente que
(1) No texto cotleen, palavra irlandesa equivalente a young girl, maiden. - N. T.
313
me trata destas coisas me deu a sua palavra de honra. Resultado: estou a ser importunada por pedidos de convites por parte de pessoas que eu nunca conheci nem pretendi conhecer, embora não disponha de sala para todos os meus amigos pessoais, a não ser que lhes patenteie a cozinha."
"Presumo que esse coro vai ser contratado em meu benefício", disse Hawkshaw.
"Não sei, mas garanto-lhe o que lhe digo", respondeu Lady Geraldina. "O senhor foi tão gentil em se oferecer para recitar as suas traduções de certa obra grega - precisa de me dizer o respectivo nome: esqueci-me logo dele - e é bem evidente que de vez em quando o coro tem de o interromper. Não consegui compreender a organização que fizeram; mas esteja descansado que, tal como disser, assim se executará o espectáculo, acerca do qual lhe devo confessar que, embora eu antegoze o grande prazer da sua recitação, ainda não percebi absolutamente nada. Filisteia como sou, aprecio a estética como uma moda, e estou sempre satisfeita por ter pelo menos uma reunião todos os anos que lhe seja dedicada, embora por vezes não seja de expoente tão superior como o senhor me garante, quando se digna garantir-me o sucesso que vou alcançar."
"V. Ex.a é muito boa", disse Hawkshaw. "É pena que tenhamos de conservar uma velha versão para o coro. Foi manufacturada para a música, que, como me parece, não segue os meus processos. Falei a Burton, que ia trabalhar na capela, sobre mudanças musicais, pois suponho que aquilo se pode facilmente adaptar aos meus ritmos, mas, como todos os músicos, ele é o conservantismo personificado e, como lhe parece evidente, considera a música a principal figura de interesse. Deixei por isso as coisas como estavam."
"De que música se trata?" perguntou Isabella.
"Não sei", respondeu Hawkshaw. "Mozart ou Verdi, ou qualquer destes músicos de aluguel."
"Penso que se trata de Mendelssohn", observou Ernesto. "Burton é forte em Mendelssohn."
"É muito possível", disse Hawkshaw, levantando-se para se despedir. "Não tenho dúvidas de que um homem pode fazer as coisas tão bem como outro qualquer."
Retirou-se então na companhia de Ernesto, que nunca perdia a ocasião de se mostrar em Picadilly na companhia
314
dum dos homens de letras da moda. Quando saíram, Lady Geraldina suspirou fundo e disse:
"Eu podia suportar as coisas vãs que Mr Hawkshaw diz com tanta ligeireza todos os dias, contanto que arrastasse sempre consigo Ernesto. As visitas que o meu sobrinho me faz às três horas terminam comumente às sete quando janto fora, porque, de outra maneira, não acabam antes da meia-noite. Como está Mr Woodward? Parece que não anda com metade das preocupações com que andava antigamente."
"É porque conseguiu um secretário."
"Ah! O amável rapaz que lhes disse tudo a respeito da futura Mrs Scott?"
"Sim. Tem agora no escritório tudo junto dele; o papá tornou-se muito preguiçoso, e a tal ponto, que acabou por julgar que Mr Smith poderia executar todos os seus trabalhos melhor do que ele próprio e que era ainda capaz de responder a toda a correspondência da família. Actualmente faz Mr Smith abrir todas as cartas. Há dias, quando lá entrava, encontrei-o a rir por causa dum grande rol de Madame Lesparre, com a indicação de roupas minhas e outras coisas. Disse-me que tinha instruções para o pagar, se eu respondesse pela sua exactidão."
"No entanto, ia pagá-lo...!"
"Tal qual. Verifiquei-o por alto. Mr Smith é muito útil, e agora nada se faz sem a sua intervenção. Clytie chama-lhe o droguete, mas ele não sabe. Por nada faz enormes discursos. "Uma das minhas realizações", diz ele, "consiste no discernimento adquirido com labor no contacto com tapetes, roupas e tecidos para assoalhados". Ele até os compra para nosso uso. Põe o dedo num rolo de oleado e afirma: "Durante cerca de três anos trabalhei com o livro-caixa do homem que introduziu na Inglaterra este detestável padrão." Clytie julga-o muito estúpido porque ele percebe sempre quando ela o escarnece. Penso que é bom rapaz, pois lê todas as noites um capítulo da Bíblia antes de se deitar. Devo ainda dizer que é bastante bonito, considerando..."
"Considerando o quê?"
"Bem, a sua posição e antecedentes, certamente. É um alívio considerar que, ao menos, nunca foi merceeiro."
"Ninharia! Não posso compreender como os seus irlandeses
315
estão, a este respeito, tão atrás da nossa época. Se eu fosse irlandesa, seria republicana ardente. Traria sobre mim capas vermelhas e faria da minha despensa um arsenal de piques. Isabella é pior do que os hindus na sua devoção pela casta. Como é pena que a vossa cultura não se compare aos vossos miolos!"
"Mas, entre os ingleses, os miolos não se comparam às culturas? Não julgue, porém, que estou disposta a defender a minha terra. Odeio a Irlanda. É a mais preguiçosa, a mais atrasada terra do nosso tempo, o lugar mais grosseiro e mais detestavelmente pedante da superfície da terra. O papá pretendeu levar-me este inverno para Dublin, mas eu não quis. Sinto que vivemos no meio dum movimento de grande Arte, e eu não posso viver sem artistas: a vida sem eles é brutalidade, como alguns dizem. A canalha dos negociantes prósperos de Dublin, advogados e médicos, com a sua eterna esperteza saloia, a grasnar zombarias, todos eles ostentando a mesma natureza - não: nunca! Eu preferia consumir a minha vida na aldeia mais afastada do continente do que numa das nossas horríveis casas em Pembroke Road."
"Meu Deus! Estou a fazer muitos progressos no conhecimento dos seus irlandeses!"
"A senhora é inglesa. Meu pai diz-me que nos atribui todas as virtudes românticas dos rapazinhos de escola - nas quais, afinal, somos muito deficientes - para evitar tratar-nos como povo responsável."
"A carruagem de Miss Woodward", anunciou uma criada.
"Significa isso que Clytie e Mr Woodward não pretendem honrar-me com uma visita", disse Lady Geraldina. "Adeus!"
"O papá está ainda muito cansado da viagem que fez a Brighton", disse Isabella. "Além disso, depois do jantar, deve ter a correspondência destes últimos três dias para passar pelos olhos na companhia de Mr Smith, e em qualquer ocasião tem tantos afazeres que constantemente crê não dispor de um instante a perder. Adeus, querida Lady Geraldina."
Era seu costume, quando sofria qualquer perturbação nervosa, procurar o alívio de duas maneiras: quando abatida, gritava e bebia chá forte; quando irritada, batia a intervalos com os pés e ejaculava com veemência: "Apre!"
316
Em ambos os casos, os remédios predispunham-na a sofrer mais brevemente o ataque seguinte. Por agora, nenhum dos dois recursos se aconselhava; sentou-se por isso num balcão formado pelo telhado do pórtico, onde podia ser vista, através da janela, por seu pai e por Smith, que estavam sentados à mesa, na sala de visitas das traseiras. Mr Woodward estava excepcionalmente ocupado em consequência de ter recebido uma petição cuja resposta os seus constituintes desejavam para logo. Além disso, como tivesse feito um discurso-chapa para ser lido no Parlamento uma vez em cada sessão, pedira a Smith que examinasse o livro de notas onde tinha o apanhado da compilação de certa arenga, longa bastante para encher, pelo menos, uma coluna do jornal irlandês local.
"Julgo que pusemos já toda a correspondência em ordem", disse ele, a bocejar.
Smith concordou, notando que o patrão se preparava para adiar qualquer trabalho ulterior.
"Já teve tempo para dar uma vista de olhos por este livro de notas?" disse Mr Woodward, encetando o assunto involuntariamente.
"Li-o todo com cuidado..."
"Valha-me Deus!" exclamou Mr Woodward, "você não me está a dizer que o leu todo?"
"Li-o e julgo que extractei dele tudo o que me pareceu necessário!"
"Antes quero que você o leia do que eu. Faço ideia do que tratará esta petição. Já a leu?"
"Já." Mr Woodward olhou para ele com admiração. "Mas não a percebi muito claramente. Um homem chamado Magrath..."
"Magra", corrigiu Mr Woodward.
"...Magra", disse Smith, "atira-se a um bailio porque lhe fora roubada qualquer coisa, parece-me que é isto o que ele quer dizer, e foi enviado para a cadeia penal. Pela petição pretende a sua amnistia, fundando-se em que o provocaram; que a mãe do bailio bem podia oferecer-se para prender o filho e outras razões que me parecem muito irrelevantes."
"Mas que corja de doidos! Eles sabem tão bem como eu que a petição é toda uma parvoíce. Mande-lhes isso outra vez e diga-lhes que não me macem. Lembro-me do pai de
317
Magrath ainda nos tempos em que estávamos em Shanaverts (1); era um bom malandro. Bem, bem! Nada há mais a fazer aqui?"
"Só se V. Ex.a desejar ditar-me o discurso."
"O melhor será transcrevê-lo; posso passar os olhos por ele quando acabar. Hão-de gostar dos seus longos períodos e do seu estilo literário." Smith corou. "Poderá encontrar informações sobre os últimos anos no velho jornal que eu tinha há um minuto na mão. Deus sabe onde é que ele se meteu agora! Dirá o que quiser. Tudo o que tem a fazer consiste em encher o discurso com estes nomes e figuras e alterar alguns pontos para salvar as aparências. Podia alguém lembrar-se de mostrar isto àqueles loucos. Apenas lerei metade: dir-lhes-ei então tudo o que me vier à cabeça."
"Mas", respondeu Smith alarmado, "não será de um acto diferente para o Parlamento, ou de alguma medida nova que V. Ex.a vai falar?"
"Nada disso. É sempre a mesma coisa todos os anos. Quando vamos receber o subsídio, consigo arrancar dez ou vinte mil libras pelos votos para as alcaidarias. Tudo o que eu desejo consiste em algumas novas figuras por que eles não esperam; não passam todos duns indolentes patifes escondidos pelas estradas da mais calma região do mundo; Deus bem sabe o que nós poderíamos fazer sem eles! Ainda não tinha pensado que o podia arranjar para mim?"
"Vou tentar."
"Muito bem. E agora, estou tão cansado e abatido de viajar, correr, escrever, e duma coisa e doutra, que só me sentirei bem na cama."
"Então talvez fosse melhor levar o discurso comigo para casa e trabalhar lá nele."
"Ah, não! Sente-se onde está. Nas duas horas mais próximas ninguém lhe dirá uma palavra. Somente não trabalhe em excesso. Escrever e ler demasiado tem alterado muito a saúde do homem. Saia logo que se sinta cansado. Bem. Boa-noite!"
(1) Palavra irlandesa, formada por Xan (em inglês Shan) e Van Vocht, nome místico da Irlanda, que significa: a pobre velha. É muito vulgar no texto de poetas e romancistas. - N. T.
318
Smith retribuiu-lhe a boa-noite. Mr Woodward levantou-se, esfregou os olhos e dirigiu-se para o quarto.
"Bella, minha querida", disse, "oxalá não apanhes aqui algum resfriamento."
A filha sacudiu a cabeça sem se virar.
"Não tens dor de dentes?"
"Não", respondeu ela, irritando-se. "Quem te meteu isso na cabeça? Vais para a cama?"
"Vou. Estou cansado e... Boa-noite!"
"Boa-noite!" respondeu a filha, beijando-o e sentindo vontade de gritar quando ele lhe deu uma pancadinha familiar. Quando o pai se retirou, olhou para o escritório e viu o secretário sentado à luz da vela da escrevaninha, na mesa distante, a escrever, a analisar e a pensar alternadamente. Após a primeira revisão do exemplar impresso do discurso pronunciado no ano anterior, Smith reduziu-o a cerca de três quartos; neste estado pareceu-lhe ter lucrado bastante e, por isso, resolveu submetê-lo a Mr Woodward, na esperança de que ele preferiria a concisão e elegância à verbosidade obscura. Para que não pudesse parecer, pelo menos, ter executado de má vontade o trabalho de organizar um longo discurso, parafraseou por completo o original, remodelando-lhe, a seu gosto, a porção ornamental e introduzindo ainda uma citação de Tomás Moore. Pôs-se assim em condições de oferecer ao patrão um discurso de duplo feitio; enfim, Mr Woodward poderia entregar o condensado à junta de abastecimentos, e enviar o outro ao periódico local, reconhecendo em ambos prova segura da capacidade do seu secretário.
Começava Smith esta tarefa, quando Isabella voltou fatigada das profundas sombras do telheiro, das estufas e das edificações intermináveis do sítio da Exposição. Atravessou o limiar da sala descuidadamente e parou junto do lado da mesa oposto àquele onde o secretário se encontrava a escrever. Este levantou os olhos; notou como ela tinha o rosto puxado e os olhos melancólicos; conjecturou o estado de espírito da jovem e manifestou o desejo de que ela se encontrasse bem.
"Mas não, meu Deus!" respondeu ela.
"A vista de alguém a escrever é quási tão incomodativa como a de observar duas pessoas a falar em voz baixa.
319
É uma comunicação de ideias em que o espectador não toma parte", disse Smith.
Isabella estava muito aborrecida para saborear a setenciosidade inveterada de Smith. Resolveu não responder e ele resumiu o trabalho em silêncio.
"Como o invejo!" disse ela, depois de o ter observado durante algum tempo. "O senhor pode trabalhar."
"Tenho de trabalhar", respondeu Smith, "e quando uma coisa, não importa se ela pode ser ou não boa, se torna obrigatória, deixa de constituir luxo. Eu, pelo contrário, invejo-a porque pode trabalhar e escolher a tarefa. É grande vantagem poder-se dizer: "Eu posso trabalhar". Há alguma coisa digna de menos crédito do que dizer-me: tenho de trabalhar."
"Está tudo muito bem. Mas há pessoas que nunca trabariam se não as obrigassem a isso."
"Tanto pior para elas; se não tiverem juízo estarão sempre mal."
"É para isso, o Céu o sabe, que há castigos suficientes."
"É provavelmente a única aflição, na verdade terrível, que excita a repulsa em vez da simpatia; à excepção, talvez, do enjoo. O trabalho é a única coisa adequada para isso."
"Porque será que, sendo mais agradável trabalhar do que se ser preguiçoso, prefere-se geralmente a preguiça?"
"Exactamente pela mesma razão por que, sendo mais agradável ter conhecimentos que nos permitam falar alemão, só alguns ingleses o falam. Não é muito agradável estudá-lo. É precisamente tão necessário aprender a trabalhar como aprender a fazer qualquer outra coisa; e a aprendizagem é tão desagradável que se julga melhor sofrer a preguiça do que fazer-lhe frente."
"Mas, para nos prepararmos, temos de trabalhar muito, e eu penso que todo o trabalho é agradável desde que o hábito de trabalhar esteja já formado."
"Ponho as minhas dúvidas. A preguiça não existe; os mandriões muitas vezes são pessoas bastante ocupadas, mas consideram-se insatisfeitas. Entendo o trabalho no sentido em que nós o julgamos sustentado pelo esforço inteligentemente dirigido, e desde que consiga resultados na produção ou alcance de algum fim digno. Não há dúvidas que Shakespeare,
320
se revelou pelo poder de escrever peças com aquela extensão que largamente lhe pagaria o trabalho de as sujar com tinta; mas ele, provavelmente, sentiu tanto interesse pelo caderno de cópia e pela gramática inglesa como qualquer menino de escola."
"Então eu gostava de ter aprendido a trabalhar."
"Mas a senhora pode... sabe pintar."
"Eu não posso pintar, Mr Smith; o senhor sabe isso perfeitamente."
Smith compreendera a incerteza do temperamento de Miss Woodward; mas isso ainda foi só um primeiro lampejo.
"Todos os artistas se desesperam pela perfeição", disse ele.
"Obrigado pelo sarcasmo."
"Garanto-lhe que não quis dizer nada disso. Em resumo: se está resolvida a nunca mais pintar enquanto não atingir a perfeição - ponto que até agora nenhum homem acreditou ter alcançado - a senhora ficará como aquele camponês que não queria lançar-se à água sem ter aprendido a nadar."
"Tive uma opinião profissional sobre esse assunto: Mr Scott disse-me que eu não podia pintar, nem mesmo que pensasse em reservar os estudos para mais tarde. Sei muitíssimo bem que para nada sirvo."
"Crer que para nada serve é atingir o primeiro degrau para aí chegar", respondeu Smith, aproveitando, como sempre, a ocasião para ditos sentenciosos.
"Como eu gostava de morrer: se ao menos houvesse um processo fácil de o conseguir."
"Garanto-lhe que há vários processos fáceis", disse gravemente Smith. "Se realmente se quiser matar, estou certo que lhe posso indicar a melhor maneira. Arranjei alguns livros sobre toxicologia em South Kensington e lá verei o assunto que lhe interessa."
"Muito obrigado. Quando estiver com pressa de morrer, eu mesma poderei encontrar por mim um processo qualquer. Uff! Nem parece bem que estejamos a falar nestas coisas, Mr Smith."
Smith riu-se.
"Lembra-se da fábula da morte e do couteiro?" perguntou ele.
321
"Por favor não me fale na morte", respondeu ela com um estremecimento.
"Peço-lhe desculpa pela maneira descuidada como estava a tratar este assunto", disse Smith, orgulhoso da sua indiferença pelo terror que estava visível no rosto dela. "Estou tão acostumado a pensar em tal coisa que me acho apto a esquecer que ela é muito menos familiar aos outros."
Isto confirmou a impressão de Isabella de que o secretário era religioso. "Suponho que o medo da morte é natural em todos", disse ela, "mas não maior terror para um católico."
"Não duvido", respondeu Smith, surpreendido por este inexplicável acrescento à sua observação.
"Muito longe disso", continuou ela, olhando para o interlocutor como se o desafiasse a contradizê-la, "o Catolicismo é a única religião que pode garantir a vida futura. Não deixa ninguém no leito de morte numa vaga incerteza, como sucede com o Protestantismo. Podemos expiar os pecados e ficar certos da felicidade eterna, sem qualquer terrível alternativa de tormento perpétuo."
"Isso depende do valor da segurança", disse Smith, ainda muito jovem e céptico militante para abandonar o ponto insofismável. "Além disso, a senhora tem a certeza dos tormentos do purgatório, e como, se um homem crer em alguma coisa no seu leito de morte, isso não é, todavia, bastante mau para levar alguém para o inferno, porque eu imaginava que um protestante receberia a sua salvação com maior conforto."
"Nós não cremos ou deixamos de crer em coisas, conforme elas são ou não confortáveis para nós."
"Isso é muito verdade", respondeu Smith, voltando prudentemente ao trabalho.
Miss Woodward olhou-o desapontada, pois preferia a contradição dogmática a um assentimento que desmentia evidentemente a convicção do seu oponente. Esquecendo que Smith era inglês, compreendeu que ele, naquele momento, se deleitava com o conhecimento da superioridade com que qualquer protestante irlandês considera o catolicismo romano.
"É pena", acrescentou ela com azedume, "que tanta gente não distinga a hipocrisia da religião."
"Não há diferenças reais", respondeu Smith, "A única
322
pessoa em The Pilgrims Progress (1) que não é hipócrita é Mr Worldly Wiseman. Eu não daria dez réis partidos pelo meio pela fé dum devoto que não se afastasse de todo o género humano se este diferisse dele."
"Então fico-lhe muito grata por saber que o seu talento é inferior à sua vontade. Eu teria muita pena se fosse tão piedosa como o senhor. Mas desde que eu mudei de crença comecei a verificar que os protestantes são na verdade hipócritas. Quando dava fé do que pensava na minha meninice, imaginava que os católicos eram todos uns malvados perseguidores; para os refutar bastava abrir a Bíblia, e isto explica que a rainha Isabel e Lady Jane Grey (2) estivessem no hábito de fazer calar os cardeais com os seus argumentos e mais alguns outros factos igualmente opostos à verdade. Agora conheço tudo isso melhor; mas a minha experiência deve servir de aviso aos que confiam muito nas suas opiniões próprias."
"Nunca a aplicou às suas opiniões presentes, Miss Woodward?"
"Não é necessário, porque as minhas opiniões presentes têm a sanção da Igreja de Deus. Além disso, mostrei, pela renúncia aos erros que me tinham ensinado, que eu não estou dominada pelo preconceito."
"Julga então que uma falsa religião é como o sarampo ou a escarlatina: ninguém os apanha duas vezes."
"A minha religião não é falsa", disse Isabella, indignada. "Faça favor de falar da sua e encontrará, possivelmente, alguma coisa para aprender."
"Desculpe-me. Não desejei impor um facto a quem preferia qualquer espécie de indiferença, mas eu desaprovaria em mim próprio a influência de qualquer religião, fosse ela qual fosse."
"O senhor não quer dizer que é ateu", disse Isabella, com interesse súbito e mudando por completo de tom.
"Ateu é, entre nós, mau mostrador de interpretação; para isso exige-se provavelmente uma impressão por completo
() A Viagem do Peregrino, alegoria religiosa da autoria de John Bunyan (1628-1688), escritor místico inglês. - N. T.
2() Princesa de Inglaterra, neta de Maria, irmã de Henrique VIII que Maria Tudor mandou decapitar. Quando morreu, Jane contava apenas 17 anos (1537-1554). - N. T.
323
diferente para cada um de nós. Implica, além disso" afirmação. A minha posição é de puro negativismo. Sou agnóstico."
Smith, quando falava, sentia-se como o Professor Tyndall (1) ou como Mr Huxley (2).
"É estranho! Nunca pensei que frequentasse tanto a sociedade. Suponho agora que escreve em revistas."
"Eu não. Mas que curiosa associação de ideias!"
"Bem, os homens que tendem hoje para a estética não crêem em nada. Muitas mulheres intelectuais fazem o mesmo. Quando alguém pensa nisso, fico realmente aterrorizado. Pela minha parte, confesso a intensa devoção que consagro aos pintores bizantinos."
"São valiosos e interessantes agora porque já estão felizmente mortos. Mas deviam constituir um obstáculo bem lamentável aos olhos dos seus contemporâneos pensantes que se mostravam impacientes pelo avanço da civilização."
"Mortos! Mas eu julgo ver larga influência deles nos quadros de Mr Donovan Browne."
"Pelo contrário", respondeu Smith, levantando-se e pondo os papéis de lado, "não há neles uma migalha sequer que revele essa influência. Angélico e Filippo Lippi e os restantes pintaram como se os tivessem enviado à Terra para glorificar Deus. Mr Donovan Browne pinta como se se tivesse dedicado à tarefa de produzir lindos quadros, ou, por outras palavras, de enobrecer os seus amigos; e se nós não estivéssemos cansados do seu génio, que pertence ao nosso tempo, e fascinados com o que pertence à época infinita da mais elevada arte, poderíamos delinear um triunfante contraste em vez duma comparação apologética entre ele e uma escola admirável mas obsoleta que deve a sua concentração à estreiteza mental."
O próprio Hawkshaw teria tido dificuldade em ir mais longe. Isabella esgazeava os olhos. Smith desejou boa noite e deu-se pressa em sair, com receio de perder o efeito da sua eloquência pela subsequente trivialidade.
(1) John Tyndall, físico irlandês, autor de notáveis trabalhos sobre o calor (1820-1893). - N. T.
(2) Tomás Henrique Huxley, naturalista inglês, defensor do transformismo. Esforçou-se por demonstrar as afinidades entre o Homem e o macaco antropóide (1825-1895). - N. T.
324
CAPÍTULO VI
A meio do dia imediato, um grupo de excursionistas, que passava de barco por Richmond, a caminho do palácio Hampton Court, divertiu-se muito com um homem que estava deitado sobre algumas almofadas postas a ré dum bote, onde remava uma rapariga vestida de pano às riscas e com um enorme chapéu de palha sem enfeites. Manejava ela os remos com habilidade, conservando a sombra no banco, mas mostrando-se, na aparência, indiferente ao calor do sol do meio-dia.
"Muito bem, guloso. Tem cuidado contigo", gritou um dos homens que iam no barco.
"Tens aqui uma coluna", gritou outro, lançando fora um saco de papel já amarrotado.
Um ronco seguiu este dichote. A remadora parou o bote até alcançar a esteira do navio. O homem carregou o semblante para os motejadores e voltou-se novamente para a sua companheira. Vendo-a rir do ridículo a que os esforços dela o expuseram, modificou o seu aspecto e começou a rir também.
"É impossível apreciar um basbaque", disse ele, "a não ser quando se está no campo, a gozar férias. Os canais devem ter sido feitos para eles, se vão à vela. Não apreciam o cenário e ainda por cima se metem com as ocupações dos artistas."
"Apreciam-nas, mas à sua maneira, e tanto como tu. Olha: os pingos das pás estão-nos a alcançar e vais ficar salpicado. Eu bem te dizia", acrescentou ela, a rir, quando algumas gotas caíram na face dele, provocando-lhe uma exclamação de impaciência. A jovem então inclinou outra vez os remos e o bote andou tão rapidamente que o companheiro ficou deitado de costas nas almofadas.
"Ajuda-me a levantar", disse este quando recobrou ânimo.
"Não gosto de me sentar preguiçosamente, nem de deixar outra pessoa fazer o que eu posso muito bem fazer."
"Também eu."
325
"Mas tu podes."
"Não há dúvida de que sabes dirigir o bote melhor do que ninguém, e podes até ensinar Noé a navegar. Mas muito eu gostava de remar."
"Só pensas assim. Nunca pode constituir prazer executar o que nós não podemos fazer bem. Poderias deleitar-te tanto com isso como eu a pintar um quadro. Não obstante, tomarás ao menos um remo quando voltarmos para a amarra."
"Eu gostava que te viesses sentar aqui e que deixasses o bote ir como ele quisesse. Preciso de te dizer uma coisa."
"Não. Não me vou estiraçar com um tempo destes. Falemos como estamos". Fez passar o bote um pouco além do banco, onde fundeou e disse: "Ora vamos lá a ouvir!"
"Desejo saber quando casamos", disse ele. "Os esponsais podem constituir o mais agradável tempo para muita gente; a mim só me podem servir de opressão. Não me deixas dar-te presentes, nem gastar metade do meu tempo disponível contigo. Cada sentimento que me vem mais do coração que da cabeça é, na tua opinião, um "disparate. Receio vir a ser tratado como se quási nada fosse para ti, ou que penses que eu seja louco, ou ainda que me sinta como tal. Parece que tomas maior interesse pelos negócios e assuntos externos do que pelo respeitante mais de perto às nossas pessoas."
"Pobre Cyril!"
"Sim, mas eu gostava de saber quando é que deixo de ser o pobre Cyril."
"Não vejo nenhuma razão que nos impeça de casar imediatamente."
"Nem eu", disse ele, levantando-se sobre os cotovelos, "mas estás pronta?"
"Estou pronta desde terça-feira."
"E porque não me disseste ainda isso?"
"Não te queria apressar."
Ele fez um gesto de impaciência.
"Eu estava somente à espera de acabar a transferência dos meus negócios para duas operárias muito boas que se associaram comigo em Londres e que desejavam entrar de sociedade comigo. Deram-me duzentas libras pela assinatura do arrendamento, e eu entreguei-lhes os fundos da casa por causa das antigas relações comerciais, e assim me vi livre
326
de tudo o que lhes dizia respeito. Quando considerar que não pus nos negócios mais de cento e trinta libras, que ainda ganhei três a cinco por cento enquanto o aguentei e que a realização das relações não passava duma questão de sorte, penso que agi com argúcia."
"Estou satisfeito por te teres livrado de tudo isso; ainda que, no que respeita a tal assunto, eu podia ter-te dado as duzentas libras e salvo tudo o resto. Mas neste momento em que tantos três por cento e tantos oito por cento estão fora do teu espírito: posso começar agora a arranjar, seriamente, tudo para o casamento?"
"Seriamente, estarei pronta quando tu estiveres pronto. Não faças o bote sossobrar."
"Estou a desembarcar e a ir à primeira igreja ou registo que encontrarmos."
"Eu não penso assim, pois tens de arranjar a autorização e o anel. Era também bom formar qualquer ideia sobre o sítio para onde havemos de ir quando estivermos casados."
"Suponho que sairemos para qualquer parte" Onde gostavas de ir." .
"A Jerusalém."
"E Madagáscar?"
"Muito eu gostava. Desejo ver a Itália, onde viveram os pintores de Vasari. (1) Desejo ver a Palestina e preferia realizar todas as minhas viagens antes de nos fixarmos na nossa casa. A variedade das viagens ajudar-te-á a saber como viver comigo. Se nós formos para qualquer lugar estúpido, em breve ficarás aborrecido de mim."
"Nunca. Lembra-te que eu ainda disponho de todos os meus direitos de galanteio, porque tu me defraudaste nos de cortejamento. Vamos para qualquer lugar calmo, ainda que seja por pouco tempo."
"Lembra-te do destino de Mr Vesey. Mas, vamos, Cyril: tens também alguns planos?"
"Não. Eu estava a pensar que talvez gostasses de ir até à Escócia."
"Para que ponto da Escócia?"
(1) Giorgio Vasari, pintor e erudito italiano, nascido em Arezzo, autor da preciosa compilação Vidas dos melhores pintores, escultores e arquitectos (1572-1574). - N. T.
327
"Não sei exactamente. Talvez St Andrews, Edimburgo, Glasgow, ou... Há mais algumas povoações na Escócia?"
"Uma ou duas mais. Agora, queres ouvir o meu plano? É caro e incómodo."
"Deixa lá as carezas! Qual é ele?"
"Amanhã vais a qualquer sítio cá da terra arranjar uma autorização para a data mais próxima que possas. Não uma destas autorizações especiais, que são caras, pois não é costume gastar cinquenta libras para poupar duas semanas. Depois - quer dizer, quando estivermos casados, - se te agradar, iremos para qualquer lugar de campo onde passaremos quinze dias. No fim destes, estarás já tão cheio de pressas para voltar, como agora para ires. Não me interrompas. Estaremos em Londres o tempo necessário para preparar a viagem e então iremos por esse mundo fora tão longe quanto no-lo permitam tempo e dinheiro; isto é, tu podes trabalhar em alguns sítios, pois assim não interromperás a tua carreira."
"Nada disso. Havemos de chegar os dois a uma conclusão. Começarei por arranjar umas férias de dez dias. Tenho necessidade de trabalhar onde houver nuvens e sol no céu; assim não se perderia tempo. Não penses que eu julgo obrigação de qualquer homem ir até Londres como à praça mais próxima e menos à moda, para lá encontrar qualquer coisa de valor digna de pintar, mas de execução tão difícil como a baía de Nápoles, ou um pôr de sol em Damasco, que se poderiam fazer com bisnagas de cor vermelha de seis dinheiros cada. Nem eu, como artista, posso permanecer tanto tempo nas galerias de pinturas como a maioria dos turistas. Não obstante, desafio qualquer região da terra que não me ensine qualquer coisa; desafio ainda todo o mundo a fatigar-me enquanto estiveres ao meu lado."
Harriet mergulhou os remos e atirou com eles um vigoroso golpe. Depois disse:
"Estou meio duvidosa se não faço asneira em casar contigo. Falas como se nunca na tua vida tivesses visto gente."
"Eu nunca vi um casal como resolvi que nós fôssemos. Porque estás persuadida de que havemos de ser infelizes?"
"Não tenho a intenção de ser infeliz, mas há diferentes espécies de felicidade. Somos agora muito felizes, remando molemente pelo rio num amoroso dia de estio - eu, pelo
328
menos, sinto-me feliz. Todavia, uma vida assim seria suportável, ou mesmo aprazível?"
"Qual é o uso que damos a nós próprios quando não há possibilidade de despender a nossa vida assim? Nada de mal aconteceria, se eu somente tivesse a tua simpatia e se nós passeássemos de mãos dadas..."
"Sim, eu sei e espero que havemos de andar. Bem", continuou ela, mais alegremente: "o meu plano é bom?"
"Capital. Falaremos dele logo que eu consiga a autorização."
"Ora! Andas sempre a adiar tudo. No entanto, acho-me tão pouco disposta a isso hoje como tu; pois também adquiri o direito de estar ociosa. Todas as minhas coisas estão prontas e os meus negócios em ordem. A tia Angel guardará o que eu possuo que não se possa transportar até que tenhamos a nossa casa. A que horas ficou Mr Hawkshaw de estar aqui?" (
"As três e meia", disse ele.
"Então levanta-te e desamarra este remo grande; podemos rebocá-lo até à ponte", disse Harriet. "Estou a ficar tonta; faze o favor de não virares o bote, como costumas quando te lembras de algum disparate."
Scott levantou-se; fez o bote tomar balanço e levou-o a vacilar até ao lugar que lhe fora designado, não lhe dando em resposta nenhuma ternura senão uma pancada no ombro com o seu joelho. Quando ela o conseguiu acalmar garantindo-lhe que o caso não fora de natureza mortal (apesar da solidez da colisão, ele sentiu tanto como se pisasse uma borboleta); ambos puxaram vigorosamente em direcção à ponte, onde agora os estava a saudar Hawkshaw, que desceu para a margem e embarcou com menos graça lânguida de movimentos do que o seu habitual. Destreza no manejo de botes não constituía umas das prendas que o poeta e o artista adquiriram nos dias da sua já antiga intimidade.
"Permita-me que tome o seu lugar, Miss Russell", disse Hawkshaw.
"Obrigada", respondeu Harriet, "conservo-me nele até chegarmos a sítio menos fundo."
"Não ouso contrariá-la", disse Hawkshaw, encolhendo os ombros; "mas é desagradável sentarmo-nos inactivos e vê-la a remar".
329
"Ainda é mais desagradável nadar com esses fatos", respondeu Harriet. "Agora, Cyril: puxa com força e põe-nos na corrente."
Scott empurrou com toda a sua força e salpicou muito os seus companheiros. O poeta abriu a sombrinha de Miss Russell, colocou-a entre si e a lâmina do remo do seu amigo, e deixou-se ficar deitado nas almofadas até que o bote voltou a estar em águas solitárias, já fora da cidade. Puxaram então em direcção ao banco; depuseram os remos e começaram a conversar.
"A delícia de deslizar, abandonado ao vosso cuidado, em cenários como este, é uma destas sensações que só os poetas estão à altura de compreender", disse Hawkshaw. "A senhora, Miss Russell, faz tudo admiravelmente."
"Ainda bem que temos aqui connosco um poeta para apreciar tudo isto", replicou Harriet. "Tinha muita pena se desperdiçássemos tal sensação."
"Hawkshaw", disse Scott. "Harriet e eu vamos casar amanhã."
"Amanhã!"
"É o mais depressa que eu posso", continuou o pintor. "Desta maneira vais ter a complacência de oficiar como testemunha, ou pai, ou padrinho, ou qualquer outra coisa cujas funções tu possas exercer."
"Estou pronto, prontinho. Mas, se tanto me for lícito perguntar: quais são os vossos subsequentes planos?"
Scott informou-o do plano que Harriet lhe propusera.
"Vocês estarão na cidade durante a última semana de Julho?" perguntou Hawkshaw.
"Suponho que sim", respondeu Scott.
"Dêem-me então um dos vossos cartões de casamento para lhes enviar qualquer coisa."
"Um cartão!" exclamou Scott duvidosamente. "Vamos arranjar cartões impressos, Harriet?"
"Certamente que não, pelo menos pela parte que me toca", disse Harriet."
"Queres os cartões para quem?" perguntou Scott.
"Vou dizer-to", respondeu Hawkshaw. "No dia 28 à tarde, a nossa amiga Lady Geraldina Porter, de constituição espiritual tão robusta, celebrará a sua última recepção desta época. Durante ela, este vosso indigno criado pretende regalar
330
a assistência com a leitura da sua última obra, uma tradução do grego. Haverá quem cante. Grosvenor vai comparecer, assim como muitos outros."
"Mas que tem tudo isso connosco?" disse Scott. "Excepto, claro está, nos desejos de sucesso para a tua tradução."
"Tem paciência, trata de me ouvires. À reunião falta um factor essencial para o seu brilhantismo, e se eu pudesse colocar Lady Geraldina em posição de o poder obter, eu, em seu lugar, consagrar-te-ia eterno reconhecimento. A única coisa a fazer falta é..."
"Eu, estou mesmo a ver", disse Scott, olhando indignado para Hawkshaw.
"Ah! ah! ah! Não. Lady Geraldina ficará moderadamente satisfeita com a melhor metade de tão ilustre homem. Numa palavra: meteu-se-lhe em cabeça a distinção de ser a primeira pessoa a dar as boas vindas a Mrs Cyril Scott; e se vocês se escapam sem dizer "água vai", ela dificilmente achará explicação para tal acto."!
Scott olhou inquisitivamente para Harriet.
"Julgo que isso não quer dizer que eu vá a casa duma dama que nunca me viu, só porque os seus amigos me desejam observar", disse Harriet, perturbada.
"Minha querida Miss Russell", começou Hawkshaw: "as coisas são como são. A senhora será observada e muito bem observada, enquanto houver gosto nos homens e inveja nas mulheres (Harriet sacudiu a cabeça com impaciência). Lady Geraldina, como disse, nunca a viu; por conseguinte, o Único sentimento directamente pessoal por si que ela pode talvez sentir será o de mera curiosidade. Mas a disposição dela para consigo, como esposa de Cyril, por quem ela tem um interesse quási maternal (Scott repudiou esta afirmação com uma abanadela de cabeça), é graciosamente extrema. Deve distinguir entre o convite de Lady Geraldina e uma tentativa para proteger os seus encargos de satisfação da curiosidade social. Não é sua amiga; mas convida-a para que o possa vir a ser. Ela procede assim, e eu fico muito sensibilizado se aquela ilustre senhora puder receber uma graça ainda mais invejável do que é em si pelo o facto de a conferirem; e assim o seu orgulho não deve hesitar em aceitar uma distinção que a sua condescendência poderá prodigamente pagar."
331
"Creia-me, Mr Hawkshaw", disse Harriet, "o senhor tira muito maior proveito da sua habilidade de compor lindas frases do que qualquer satisfação que elas me possam arrancar. Espero poder prolongar o meu primeiro mergulho, ou melhor, o meu primeiro impulso, na sociedade até voltarmos do continente; mas eu resolveria ir se ficasse certa que tanto prejudicava Cyril indo como não indo."
"Pelo amor de Deus", respondeu Scott. "Em nada dependo da sociedade. Se me ferirem, eu poderei trabalhar mais facilmente do que ela sem mim. Hum! Os artistas, quaisquer que sejam as suas faltas, não podem ser considerados sapateiros de escada."
"Como sempre, Ajax esbraveando entre as ovelhas", disse Hawkshaw. "Estou certíssimo - pondo de parte, como muito absurda por contraditória, a possibilidade de a sua presença poder prejudicar Cyril em qualquer coisa - que a sua ausência seria atribuída ao receio da sociedade."
"Pior do que isso", respondeu Harriet, começando a falar precisamente no momento em que punha de parte uma expressão de desconfiança de Scott, "eu até julgo que esse receio, ou, pelo menos, qualquer desejo de resolução, exerce influência sobre mim. Melhor será irmos."
"Depois são capazes de dar explicação diversa", disse Scott, "vão dizer que eu vou porque Harriet quer, e não porque eu não ligo importância à sociedade, ou a qualquer das suas desconfianças, atribuições ou interferências no que diz respeito aos outros."
"Isso seria descrito num elegante bilhete que depois iriam distribuir pelos hóspedes", replicou Hawkshaw.
"Vai para o diabo", respondeu Scott, voltando-se aborrecido para o outro lado. Depois, envergonhado pela falta de respeito desta imprecação na presença de Harriet, acrescentou, "desculpa, Harriet, mas este... este burro é capaz de provocar toda a gente."
"Oiça como ele abusa do seu melhor amigo, Miss Russell", disse Hawkshaw. "Posso então contar com a sua ida?"
"Haverá possibilidade de nos ligarmos de corpo e alma a Lady?..."
"Sim", respondeu Harriet, interrompendo Cyril, "iremos, se ela não pensar em nos convidar mais."
"Eu não posso responder pelo que ela quer", redarguiu
332
Hawkshaw. "A propósito, Cyril, quem estará no casamento além deste vosso amigo?"
"Ninguém que eu saiba", respondeu Cyril, lançando um olhar interrogativo para Harriet. Hawkshaw percebeu que o pintor a nada respondia sem se fazer esta muda referência.
"O quê? Nem da tua família?"
"Decididamente não", respondeu Scòlt. "Não quero ser importunado por uma data de mulheres que querem vestir-se, comer e tornar a cerimónia pouco confortável por não conhecerem Harriet. Ela poderá conhecê-las depois. Arranjámos as coisas para só te termos a ti."
"Mas um padrinho não basta", disse Hawkshaw. "E a respeito de Mrs Summers?"
"Prefiria que não viesse", disse Harriet; "mas se ela quiser, eu ficaria aborrecida se lhe fizesse uma última objecção; assim contaríamos com ela. Se condescender em ficar em casa, e se for necessária outra pessoa, conheço um Mr Smith que certamente virá. Não sei, porém, se tem já a idade necessária para paraninfar, mas, de qualquer maneira, eu ficaria satisfeita com a sua presença. Ele é a única pessoa na Inglaterra com quem estou em termos que justificariam um convite para tal cerimónia; e, na verdade, eu devo-lhe tanto que penso dever pagar-lhe com o cumprimento (se ele tanto vale) de lhe participar como reconheço as minhas obrigações."
"Nunca me falaste dele", disse Scott.
"Nunca terias tanto interesse por ele como ele teve por mim", respondeu Harriet. "Mr Hawkshaw já o conhece. É o secretário do seu amigo Mr Woodward."
"O pai de Isabella!" exclamou Scott.
"Nunca me falaste dela", disse Harriet.
"Chiu!" disse Scott. "Julgo que conheço também o homem de que falas. Lembras-te", continuou, voltando-se para Hawkshaw: "havia um rapazinho magro como um caniço, sentado à mesa na manhã em que te encontrei em Queens Gate."
"É esse, é", respondeu Hawkshaw. "Nessa manhã ele estava a falar e a descoser-se quando tu chegaste e o fizeste calar."
"Posso pedir-lhe que venha?" perguntou Harriet.
"Certamente, se tu quiseres", respondeu Cyril.
333
"Então", disse Karriet, "temos já tudo arrumado e devíamos voltar. O jantar está pronto às cinco e meia."
"Tivesse eu uma hospedeira menos imperiosa", disse Hawkshaw ritmicamente, "e pediria licença para ficar aqui deitado enquanto o Sol se aguentasse acima do horizonte."
"Tenho pena de o aborrecer e ainda mais de o chocar", disse Harriet, "mas a sua imperiosa hospedeira remou muito e está cheia de fome."
"Está bem: é senhora e não escrava dos preconceitos humanos. Participa um pouco do romance ter fome. Mas eu vou com uma condição: consentir que eu tome também um remo."
"Muito bem", disse Harriet com relutância. "Vocês os dois vão remar agora por mim, a caminho de casa. Oxalá cheguemos bem."
"Com tal carga", replicou Hawkshaw, "só nos pode faltar excesso de cuidados." Levantou-se enquanto falava, e, cheio de cautela, trocou o lugar com Harriet, que se deitou nas almofadas enquanto os dois jovens lançavam o bote pela água em ziguezague: Cyril salpicando tudo à volta, enquanto Hawkshaw manejava o seu remo com toda a prudência e com o ar do homem ocupado em tarefa difícil, resolvido a não a executar de maneira comprometedora.
"Este barco é mais gracioso do que aquele que nós alugámos há dias", disse ele, quando conseguiu ficar suficientemente habituado a manejar o remo e a falar. "Foste pô-lo no mesmo lugar?"
"Não era alugado", respondeu Scott. "Era de Grosvenor. Eu disse-lhe na semana passada que estava no hábito de vir até aqui e ele ofereceu-me as possibilidades do seu posto náutico."
"Sim", disse Harriet, "e Cyril veio no dia seguinte e insistiu em passear numa das duas gôndolas que estão aqui."
"Uma gôndola!" disse Hawkshaw. "Porque não se meteram nela hoje?"
"Não me queiras meter nela outra vez", disse Scott. "Todos a namoram; ninguém a pode governar com os remos e, além dessas duas, há ainda no posto náutico uma tão podre que se quebraria ao meio se a tripulasses, e uma outra ainda que se fende como um cesto."
334
"O destino usual de tais noções", disse Hawkshaw. "Onde fica o posto náutico?"
"No outro lado", disse Scott. "Arranca!"
Atravessavam agora aquele ponto em que o rio dava para o parque de Perspective. Defronte achava-se um edifício rectangular, em pedra, até onde a água subia através dum portão de madeira.
"Isto até podia ser a cena da tua aventura com Isabella Woodward", disse Hawkshaw. "Ela fartou-se de a narrar."
"Não sei de que estás a falar", respondeu Scott. "Qual aventura?"
"Segundo o que ela conta", começou Hawkshaw, "vagueavas pela margem do rio em doce comunhão com ela, quando escorregaste; empurraste-a para o bosque no meio duma nuvem de esboços e caíste de cabeça, desamparado, para a água."
"Cyril, Cyril?" gritou Harriet. "Estás a regar-me. Põe o remo como deve ser!"
"Como essa mulher mente tão vergonhosamente!" exclamou Cyril. "Tal coisa nunca aconteceu. Eu estava por aí certa manhã, quando ela me surgiu do bosque e creio que eu lhe bati no álbum por acaso. Isto foi tudo. Só me dou bem com as pessoas que não andam a misturar o nome delas com o meu, como se nós fôssemos mais do que simples conhecidos. Ainda teve a audácia de me mostrar alguns esboços miseráveis... Eh lá! Já passámos o posto náutico. Temos de andar para trás."
"Lá isso, temos", disse Harriet. "Deixe de remar, Mr Hawkshaw. Meta o remo na água e prenda-o aqui bem seguro; e tu, Cyril, puxa com toda a força que puderes."
Quando Hawkshaw colocava, do seu lado, a lâmina do remo na água, ficou surpreendido por encontrar o cabo a recuar de encontro ao seu peito; subindo sempre, conseguiu chegar-lhe à barba; o poeta rolou para trás por cima do banco para o fundo do bote, onde ficou a resfolgar. No mesmo momento, Scott, dando um vigoroso golpe, não conseguiu atingir a água com o remo, que, roçando pela superfície, lhe atirou os pés para a cabeça, colocando-o numa posição similar à do amigo, cuja queda, todavia, não fora tão repentina nem tão violenta. Harriet, colocando fora rapidamente as mãos nas bordas da embarcação, evitou
335
que esta se virasse, mas não foi capaz de agarrar os remos, que flutuavam atrás dela, ao sabor da corrente. Neste momento, o artista, com as faces rubras, os cabelos em desordem, levantou-se, seguido mais deliberadamente por Hawkshaw, que estava pálido, sem fôlego, em parte despeitado, em parte divertido com o incidente.
"Para que fizeste esta malandrice?" disse Scott.
"Meu querido amigo, não acrescentes a censura injusta à angústia física dum infortúnio de que estou longe de ser o responsável, tanto mais que ainda não compreendi a sua natureza. O meu remo ficou possesso do demónio."
Harriet ria tanto que o bote tremia.
"Estou muito satisfeito por te estar a divertir", disse Scott. "Onde estão os remos? Sempre gostava de saber."
"A esta hora em qualquer sítio, nas vizinhanças de Teddington", respondeu Hawkshaw.
"Bom! Bonita coisa. Perdemos os remos de Grosvenor e ainda por cima tenho um alto na parte de trás da cabeça do tamanho dum ovo."
"E - não aludindo ao facto de todas as partes salientes da minha pessoa estarem bem tocadas - eu sou, disso estou eu certo, um estudo em preto e azul."
"Que te sirva para pagar a tua estupidez. Porque fizeste tudo isto?"
"Só sei o que fez o meu remo - ou melhor, o remo de Grosvenor", disse Hawkshaw, olhando para o rio; "mas, pela minha vida, não posso compreender como ficaste envolvido nos meus fados."
"Oh, meu caro! Oh, meu caro!" disse Harriet. "Desculpe-me, Mr Hawkshaw: eu não oposso ajudar a rir. A queda de Cyril foi por culpa dele. Ele pôs-se a apanhar caranguejos."
"Como podes dizer tal asneira?" interrogou Scott. "Era possível que eu pudesse pensar em agarrar um só caranguejo depois de ter remado todo o dia? Não sou tão idiota como isso. Foi Hawkshaw que fez alguma detestável asneira e que, por isso, veio a deslizar ao longo do bote."
"Não faça caso, Mr Hawkshaw. Mas nós devemos ir imediatamente atrás dos remos se os quisermos alcançar. Vou tomar os de pá e podem ficar ambos aí. Não há tempo a perder. Vocês deviam estar envergonhados por não
336
se oferecerem a tomar o meu lugar depois do que se passou."
"Sinto-o profundamente", respondeu Hawkshaw, arrastando-se para ré. "Faça como quiser, Miss Russell. Eu prefiro escrever uma epopeia a ter de remar esta noite ainda mais uma milha."
"Harriet", disse Scott com severidade; "senta-te. Eu remo."
"Cyril", disse Hawkshaw, "não procedas como um velho louco. Perderás o teu último par de remos, se, como é mais provável, quiseres agarrar outro caranguejo, e então a maré encarregar-se-á de nos levar aos altos e baixos até chegar o nosso momento derradeiro."
"Eu agora não estou para brincadeiras", respondeu Cyril. "Decidi remar."
Quando ouviu isto, Harriet sentiu subir-lhe a ira à cabeça, mas logo que a conseguiu reprimir, sentou-se no banco que o poeta acabava de deixar, e disse:
"Cyril, estás aborrecido?"
"Apanhou um galo na sua admirável cabeça, o pobre amigo", disse Hawkshaw por detrás deles.
Scott olhou furioso para baixo, irresoluto para ela e depois alternativamente da direita para a esquerda, com um sorriso envergonhado. Por fim pegou na mão de Harriet, apertou-a, beijou-a e dirigiu-se para ré, onde se atirou para o lado de Hawkshaw, enquanto sua noiva punha os remos fora da embarcação e remava ligeira ao sabor da corrente. Iniciaram em silêncio a procura dos remos, e depressa viram um deles enredado nas algas, próximo do banco. Pouco depois encontraram o outro; agarraram-no e dirigiram-se de novo para a corrente, e, aproximando-se da margem, apanharam o que tinham avistado primeiro, quando passavam.
Ao jantar, Hawkshaw forneceu a Mrs Summers uma engraçada descrição do acontecido.
"Graças a Deus!" disse a tia de Harriet. "É um milagre não terem todos morrido afogados. E que ia eu fazer se os remos se tivessem perdido?"
"Com uma judiciosa parada dos nossos corpos", respondeu Hawkshaw, "poderia afastar as atenções gerais para a menor das calamidades."
337
"Não praza a Deus tal coisa! Admiro-me que o senhor, Mr Hawkshaw, fale a brincar, como se dois reinos tivessem mais importância do que as vidas de três criaturas amigas."
"Tem muita razão", disse Hawkshaw. "Foi uma frase pouco decente e estou envergonhado da minha negligência."
Após o jantar, discutiram os melhores processos de viajar, e os dois homens apresentaram as suas experiências de turismo continental até que chegou a hora de partirem. Harriet acompanhou Scott até ao portão. Hawkshaw deixou-se ficar propositadamente para dizer algumas palavras a Mrs Summers acerca dos seus vasos com flores, a respeito dos quais se julgava em condições de falar: alguns dos seus mais curtos poemas nada mais eram do que listas rimadas de produtos de jardinagem.
"Cyril", disse Harriet, quando atravessavam a soleira, "dize-me a verdade sobre a casa de Lady Geraldina Porter. Eu devo lá ir?"
"Porque não?"
"Bem, viajando juntos, havemos de encontrar muita gente e então terei algumas oportunidades de me tornar prática nos usos da sociedade. Pensas que te sentirias mais à vontade se eu adiasse até essa altura a minha ida lá contigo?"
"Tira tudo isso da cabeça", disse Cyril, para quem a sensação de animar Harriet era agradavelmente nova. "Se tu não aprecias a minha opinião, podes estar seguríssima que Hawkshaw não estaria desejoso por conseguir a promessa do teu aparecimento, a menos que ele te julgasse, como eu, acima da crítica. Ele é elegante e pode ser encarregado de tais encargos. Estuda até a maneira de conciliar a sociedade, o que vai além do que eu jamais pensara merecer a nossa atenção."
"Mr Hawkshaw não é muito delicado quando escarnece da tia Angel na sua presença; e eu não receio a sociedade que se sinta satisfeita com ele. Mas não tenho a certeza de que o hábito de conciliar as outras pessoas não o faça alcançar de vez em quando vantagem sobre ti."
"Queres dizer que eu sou mais interesseiro do que ele?" disse Scott corando.
"Não em assuntos mais importantes", disse Harriet gravemente.
338
"Eu ficaria triste se te comparassem a sério com ele. Mas sabes que tem muito melhor bom-humor do que tu e é mais sensível para perdoar os pequenos aborrecimentos que de vez em quando nos acontecem?"
"Eu sei que fiz figura de louco, por momentos no bote. Não é agradável estar cônscio de ter assim procedido, como eu estou muitas vezes. Mas deves ser um pouco indulgente para quem tem a desgraça de ser artista. Está tudo muito bem para Hawkshaw, que deita fora coisas valiosas para afectar agora e sempre um desesperado paroxismo de actividade, e que consegue a todo o momento conquistar ao público crédito para esse paroxismo, com o fim de obter sempre o que deseja com facilidade. Ele é diferente de mim; eu tenho trabalhado anos e anos e fui abandonando tudo para só me dedicar ao trabalho. Se lhe fosse fácil trabalhar, o que podia suceder quando arrebatado pela esperança de algumas ninharias durante um acesso de entusiasmo, como a poesia dele, qualquer homem poderia conservar os seus nervos sempre robustos. Mas é que todos os dias se consegue tirar do nada a largura duma cabeça, a colocação de retoques com o coração nas mãos, coisas que tornam o pintor sensível; assim tenho trabalhado até agora; não me sinto ainda com a mão tão segura - e tenho pago bem o preço de me tornar tolerável executante - que não me esteja a aparecer sempre qualquer coisa de novo, e assim o desejo a toda a hora, senão tenho de fazer emendas, tal como Vesey, umas sobre as outras, no mesmo erro, o que eu espero nunca me acontecer. Sou mestre no meu ofício e aprendiz na vida, encontro-me molestado por observações, impertinências, mentiras de críticos e pedantes, os quais, desprezíveis como são, o que ninguém deve ignorar, sabem como facilmente se pode faltar a qualquer verdade. Quando se admira durante seis meses um pedaço de tela, vemo-lo de maneira tão diferente dos outros que até se é capaz de crer mais depressa na vista alheia do que na nossa. Depois de sofrer tais choques, a mais pequena coisa provoca grandes reacções no nosso espírito; e, além disso, adquirimos também, como segura recompensa da nossa paciência, o hábito de calcular o que torna os enredos gratuitos do lugar comum da vida duplamente insofríveis. Pensava precisamente nisto quando me viste irritado durante um momento com qualquer
339
bagatela, e, acima de tudo, lembra-te que é esta sensibilidade que fornece simpatia tão indescritivelmente preciosa ao artista."
Harriet olhava pensativa para o chão e nada disse. Scott, depois de pronunciar esta espécie de discurso que faz o respectivo autor sentir-se ridículo quando deixa de causar impressão, olhou para ela desapontado. Por fim, disse:
"Já te ocorreu alguma vez que a simpatia constitui uma necessidade tão real como o dinheiro, o vestuário, ou até os cozinhados?"
"Penso que esta necessidade de simpatia constitui um costume bastante mau, e nada mais representa do que um costume. Creio que hoje toda a gente anda orgulhosa de ser impertinente, e julgo isso uma grande coisa porque todos se mostram feros em agradar, afirmando que não podem permitir isto, que não podem sofrer, que são uns incompreendidos..."
"Eu não estava a falar de artifícios."
"Não tenho a certeza."
"Não tens a certeza de quê?"
"Não quero dizer que os sentimentos que tu descreveste não sejam reais; mas se te achas orgulhoso por te sentires prejudicado, ou te julgas um pouco menos obrigado a sentir a tua parte nos prejuízos diários do que todas as outras pessoas, julgo que isso é precisamente o que tu chamas artifícios."
"Sim? Supões então que os sentimentos de um artista são tão rústicos como os dum corretor?"
"Não vejo por que um corretor não possa ter sentimentos como qualquer artista, embora tenha de aprender a guardá-los dentro de si e a reconhecer a sua verdadeira posição no mundo. Mas em qualquer caso, se o artista for superior em sentimento, não deve também ser superior em autodomínio?"
"Pareces saber muito a respeito de artistas."
"De acordo com o que tenho podido ler, eles parecem ter o mesmo temperamento que os outros homens. Suponho que o pintor quando se encontra impaciente diz: "Isto é a sensibilidade do artista." E quando está de bom humor pensa que se trata de qualquer coisa muito especial nele."
Scott não lhe respondeu. Quando se aproximavam do
340
portão, o pintor virou-se e viu Hawkshaw que os seguia a alguma distância, calçando as luvas com todo o vagar.
"Queres vir?" gritou o artista. "Vamos perder o comboio."
Hawkshaw olhou surpreendido para ele; pegou no relógio, sacudiu a cabeça e não se deu a pressas.
"Que capricho", disse, quando chegou junto deles, "abandonar este sítio encantador, e os seus adereços ainda mais encantadores, com todos os lânguidos graus do sentimento."
"Boa noite", disse Scott, tomando a mão de Harriet com cortesia formal.
"Boa noite", respondeu ela, olhando-lhe para o rosto. Neste momento, porém, lembrou-se da cambalhota do bote e sorriu. Ele, não querendo deixar-se encantar, dirigiu-se para o portão, e Hawkshaw desfrutou o resto do sorriso.
"Adieu, Miss Russell", disse, sacudindo-lhe delicadamente a mão. "Este dia ficará consagrado na minha memória como um idílio." O poeta pronunciava sempre a palavra idyll com i breve, porque lhe era assim mais conveniente para formar rima com fiddle, middle e riddle (1).
Seguiu Scott até ao portão, agradecendo a Miss Gwendoline com tanta urbanidade, que ela, enquanto mantinha a passagem aberta, lhe fez uma vénia muito amável, já depois de ele ter passado. "Se esta escocesa", pensou ela, "que nada mais é do que sobrinha da governanta, pode arranjar um artista, porque não terei eu a boa sorte de conseguir um poeta?"
"Meu querido Cyril", disse Hawkshaw, quando se juntou ao amigo. "Dou o dito por não dito. Ela é totalmente encantadora. Quando eu dizia que não tinha doçura, nem sentimentos, nem simpatia, blasfemava. Sob o véu da sua incomparável originalidade, conciliou-nos a nós os três."
"Fico satisfeito por teres descoberto tal coisa."
"Oh! De que lado sopra o vento neste bairro?" Como não recebesse resposta, continuou: "Em todo o caso, lográmos penetrar na anterior impassibilidade. Céus! Como ela ria quando estávamos aflitos no rio!"
"Hum!"
(1) Violino, intervalo e enigma, respectivamente.
341
"Que reprovação à vaidade humana! Eu cria realmente que o bote recebia de nós o seu governo, até ao momento em que o Tamisa afirmou a sua supremacia sobre o meu rosto. Sei que amanhã me vou sentir bastante quebrado em consequência disso. Invejo a tua insensibilidade, meu amigo. Vocês, os mestres, que se afadigam dia após dia, até que o esforço se torna a vossa rotina, brutalizam-se com qualquer coisa que não seja o vosso próprio trabalho. Quiseste apanhar um caranguejo; enfureceste-te até à raiva e sentiste o desastre de maneira essencialmente vulgar, como qualquer barqueiro. Mas eu, que nunca trabalhei muito na minha vida, sou criatura de impressões, e bastante sensível para sentir como que uma deslocação durante uma semana por causa do poema dum dia."
Scott levantou o rosto como que para dar alguma resposta pronta, mas conteve-se.
"Porque estás tão triste?" interrogou Hawkshaw.
"Não me maces."
"Pobre coitado! Esqueci as tuas núpcias iminentes. Não admira que estejas triste. Nada mesmo. Tem coragem, meu amigo. Ainda não estás casado."
"Mas estou quási. Ela vendeu o negócio e comprometeu-me irrevogavelmente."
"Não digas isso! Ela deve gostar muito de ti. Não julgo, porém, que seja mulher para confiar a sua vida às promessas dum mortal até que o tenha encadeado para toda a vida. Feliz Cyril!"
"A confiança é o cadeado, como compreenderás se tiveres algum senso comum. Todavia, não devemos falar disso agora. Se não estou doido, pouco falta. Não me enchas mais os ouvidos com isso."
Hawkshaw levantou as sobrancelhas, apertou os lábios e deu um assobio que desceu uma nona antes de cessar. Depois encolheu os ombros e os dois amigos encaminharam-se para o comboio sem trocarem mais palavras.
342
CAPÍTULO VII
Na manhã do dia primeiro de Julho, Scott e Hawkshaw, quando andavam dum lado para o outro sobre a plataforma da chegada da estação de Waterloo, encontraram-se com Smith.
"Ah! o nosso amigo Mr Smith!" disse Hawkshaw, apertando alegremente a mão do secretário.
"Como está?" perguntou Scott, que não parecia estar à sua vontade. Apertou, no entanto, a mão do outro com vigor amistoso.
"Há ainda bastante templo", disse Smith. "Ainda temos de esperar dez minutos."
Os três consultaram os relógios.
"Esta é uma daquelas ocasiões", disse Hawkshaw, "em que as consequências de ser retardatário são tão inexplicáveis que até os mais fortes espíritos se lançam ao extremo oposto e vêm a toda a pressa. Mr Scott e eu temos estado a perambular sobre esta extremidade afastada da plataforma há oito minutos. Sugiro que continuemos até que o comboio entre."
Enquanto passeavam num sentido e no outro até tão longe quão possível, passaram por expedidores de bagagens, carregadores, cocheiros e funcionários dos correios, Hawkshaw e Smith tagarelavam; Scott, de vez em quando, ria e, por momentos, afectava indiferença, pondo depois os dedos na algibeira do colete para se certificar de que nenhum dos objectos aí guardados ocasionalmente tinha sido perdido ou esquecido. Quando chegou a hora em que o comboio devia passar, puseram-se na borda da plataforma e olharam para a linha em silêncio; Smith invejou a descuidada alegria de Hawkshaw, e este, embora consciente do sucesso da sua dissimulação, também invejou a aparente imperturbabilidade de Smith. Por fim, os carregadores, que ainda andavam por ali entretidos, atravessaram a correr a linha e conseguiram alcançar a plataforma a tempo de evitar os pára-choques da máquina; Scott apalpou as algibeiras
343
pela última vez; o comboio parou e Harriet desceu. Apertou a mão de Smith e então os quatro sorriram uns para os outros.
"E a sua bagagem?" perguntou Smith.
"Foi toda enviada para St Pancras, muito obrigada", respondeu Harriet.
"Bem", disse Smith; "suponho que nós devemos antes tomar um four-wheeler para..."
"Para a cena da acção", sugeriu Hawkshaw.
"Poupa-se tempo se formos em dois hansoms", disse Smith. "Vou chamá-los."
"O nosso amigo prova inesperadamente ser homem de acção e recursos", comentou Hawkshaw. "Sinto-me envergonhado comigo mesmo por não me antecipar à sua feliz lembrança."
O ruído dos trens impediu a continuação da conversa até que atingiram a Strand, onde um acidente interrompeu o tráfico.
"Porque pararam?" perguntou Harriet.
"Algum obstáculo, suponho eu", disse Scott. "Parecem sempre muito satisfeitos em os fazer aparecer por aqui durante todo o santo dia. Gostava que todos os transeuntes desta rua se fossem casar."
"Eu diria antes que a maioria deles estão já casados, a julgar pelas faces respectivas."
Cyril olhou para ela, e depois para os transeuntes mais próximos, que não lhe pareceram felizes. Mas os outros sim, os que estavam junto do obstáculo. O tráfico achava-se agora muito reduzido e Scott nada mais disse, mas meditava quando partiram. Harriet estava também pensativa. Estiveram juntos durante várias semanas, e, embora conseguissem muito prazer por essa proximidade, esta enfadara-os, mais do que antes. O artista, porque não se preparara para isto, e a costureira, porque se preparara, sentiram-se desesperados quando se prepararam para realizar o seu contrato irrevogável.
Quando surgiu o obstáculo, Hawkshaw, no outro hansom, perguntou a Smith se os Woodwards passavam bem.
"Pessoas agradáveis, não são?" disse ele, deixando-se estiraçar nas almofadas.
"São", respondeu Smith.
344
"Que rapariga tão encantadora que é Miss Woodward, não acha?" disse Hawkshaw, encarando o secretário.
"A qual das Miss Woodward se refere?"
"An?"
"Refere-se sem dúvida a Miss Isabella."
"Não há dúvida. Parece óbvio, pelo que diz, que nunca pensou sobre ela dum ou doutro modo."
Smith resolveu rebater o poeta.
"As minhas observações não são de confiança", disse ele. "Um caso extraordinário, relacionado com o que diz, obriga-me a calar; por esta razão: não sei por que quási sempre o facto de um homem pensar sobre uma jovem senhora é usualmente interpretado como indicação de assunto romântico. Ela parece-me ser interessante no estudo, mas com certeza muito frívola para ser admirada."
Pouco depois, os dois trens pararam à porta da repartição do Registo Civil, antes que Cyril Scott e Harriet Russell contratassem um com o outro tornarem-se marido e mulher. Durante as formalidades da muito simples, mas bastante impressiva cerimónia do casamento civil, a noiva manteve a sua compostura ordinária. Scott mostrava-se apressado e nervoso, conforme o seu costume, e desconcertado com o compassivo interesse com que o oficial parecia olhar para ele. Tentou apossar-se do ofício de casamento de Harriet, e ficou completamente fora de si quando o funcionário lhe frustrou o intento. Ficou depois surpreendido quando lhe disseram que o contrato ficara pronto antes de ele ter extraído o anel da algibeira do colete. O oficial informou-o então que o rito de pôr o anel, posto que desnecessário, pode ser executado para divertimento dos amigos; e Harriet recebeu o símbolo do seu novo estado, que lhe foi imposto na frente de Smith e Hawkshaw, que se conduziram com decente gravidade durante o acto. Feito isto, despediram-se do funcionário; reentraram nos trens e dirigiram-se para St Pancras. No caminho para aqui, não se fizeram considerações em ambos os veículos além das que se poderiam observar entre conhecimentos pouco íntimos. O casal recém-casado ia nesse dia para York e continuaria a viagem para a Escócia na manhã seguinte. Enviaram a bagagem à frente, e depois de Cyril reclamar uma bolsa de viagem na secção de pacotes, e de pôr no seguro uma bagagem
345
vazia, nada ficara por fazer até à partida do comboio, antes da qual houve ainda cerca de dez minutos para lhes apresentar cumprimentos e despedidas. Scott voltou-se de sua mulher para o amigo.
"Bem", disse. "Ainda te hei-de ver antes de ir para o estrangeiro."
"Sim", respondeu Hawkshaw, "isso far-me-á passar de amigo do homem para amigo da família."
"Larachas! A sério: o meu casamento não deve causar a mais pequena diferença nas nossas relações".
"Meu querido companheiro, não causará, mas isso terá de se verificar. Assim sucede sempre. Há um ano eu estava logo a seguir no teu coração viril, acima do que mereço, pelo que em vão procuro aparentar falta de sentimentalismo nas presentes circunstâncias. Agora estou logo a seguir, mas de outra pessoa. Dentro de um ano, ficarei, na melhor das hipóteses, a seguir de duas. E assim sucessivamente."
"Porque não te casas?"
"Isso seria queimar a vela da amizade em ambas as extremidades. Prefiro esperar e ver os resultados da tua experiência. Além de que bem te deves lembrar que eu não posso nadar em guinéus como tu."
"Bem podias se trabalhasses com bastante afinco."
"Não me ofereças o espectro da Foçanga num momento destes. Devia trabalhar quando partires, mas talvez a bebida me consolasse mais, porque estou convencido de que sou ainda bastante novo para deixar esta plataforma com a mais desolada das sensações."
"O que sempre tens feito é beber."
"Necessito absolutamente de aguardente para me fazer correr as ideias. Sei o que significa esse sacudir de cabeça; mas são ideias capitais, garanto-te. Mais vale viver dez anos a beber e escrever um cento de poemas, do que sobriamente sessenta e compilar sem qualquer sopro de alma para os editores. Sacrifico-me pela arte."
"Nunca me persuadirás que um homem trabalha melhor com a bebida do que sem ela."
"Não digas isso. Comamos e bebamos - sobretudo isto - para morrer amanhã."
Entretanto, Harriet e Smith também conversavam.
"Espero", disse ele, "que não queira pôr o passado tão
346
completamente de parte que não se recorde dos nossos antigos estudos quando a senhora se contar entre os que falam francês, ou quando passear pelas galerias de Itália, que nós costumávamos visitar em espírito, por preço tão baixo: o da imaginação."
"Tenho a certeza que vou gozar muito. Quando ficar cansada de ver preguiçosamente as exposições, encontrarei muito que fazer nas confusões da viagem: bagagens, alojamentos e outras coisas que tais. Espero observar especialmente os quadros."
"Sim, será melhor do que South Kensington à luz do gás, e do que as tardes dos sábados na National Gallery. Mr Scott discutirá os quadros consigo melhor do que eu."
"Duvido que ele escute as opiniões com tanta paciência. Devo ao senhor a minha capacidade de apreciar viagens."
"Receio que quando estiver a analisar os trabalhos de que nós costumávamos ler descrições e entrar na sociedade dos homens da imprensa que escrevem a respeito de quadros, eu fique em lugar muito insignificante. Posso apenas consolar-me com a reflexão de que, embora perdêssemos a admiração pelos nossos mais antigos guardiões e instrutores, quando crescemos, ainda mantemos por vezes o nosso respeito por eles."
"Talvez o senhor, Mr Smith, possa ter a oportunidade de crescer ao mesmo tempo que eu, conservando a sua dianteira anterior. É tão fácil levantar e animar, como sentar e ser-se estúpido."
"Tudo depende da constituição de cada um. Não tenho condições para animar, e apenas faria figura de louco se o tentasse. Sei bastante bem qual é a sua opinião a meu respeito, mas eu posso percorrer só o meu caminho."
"é um caminho muito mau, se torna em nada a sua educação e a sua inteligência. Desculpe-me que o esteja a repreender."
"Fazem favor de tomar os seus lugares", gritou o expedidor.
Scott apertou cordialmente a mão de Smith e com fervor a de Hawkshaw.
"Adeus, meu querido camarada", disse o poeta, aguentando a voz com dificuldade. "Assim termina o nosso primeiro acto; ficaremos diabolicamente velhos e sórdidos
347
antes que o segundo comece." Scott sacudiu a cabeça e nada disse.
"Adeus, Mrs Scott", disse Smith.
"Adeus", disse Harriet, rindo-se da primeira menção do seu novo nome. Despedindo-se alegremente dos dois homens, entrou na carruagem, seguida pelo marido, que apareceu pouco depois à janela com a capa de viagem. Os três homens contemplaram-se tão alegres quão possível, e olharam ao longo da plataforma, até que o último passageiro tomou lugar e a última porta bateu com violência. Então o expedidor deu o sinal e o comboio começou a deslocar-se; Hawkshaw agitava a luva em resposta à ondeante capa do noivo.
Quando se perdeu de vista o comboio, Smith voltou-se para o companheiro com a consciência triunfante do seu forte espírito e da fraqueza daquele cavalheiro único e tão fino, cujos olhos estavam húmidos.
"Mr Hawkshaw", disse ele, "estou certo que o senhor preferia digerir esta cena sem companhia. Bom dia. Espero que perdoe a minha rudeza."
"Certamente", respondeu Hawkshaw friamente. "Bom dia."
À tarde, Smith foi a South Kensington, aos jardins da Horticultural Society, (1) de que era sócio Mr Woodward, que lhe fornecera o bilhete de admissão. Aí, enganou o tempo observando partidas de ténis, que estavam a ser jogadas em todos os campos disponíveis dos jardins por grupos de senhoras e cavalheiros. Numa das redes exibiam-se Miss Woodward, sua irmã Clytie e Ernesto.
Smith recuou a fim de os evitar e dirigiu-se para outro ponto dos terrenos. Poucos minutos depois ouviu passos atrás de si. Ao voltar-se, viu Isabella, que se aproximava de raquete na mão.
"Porque foge de nós?" disse ela, olhando, não para ele, mas para a relva do seu lado direito.
"Não tinha a certeza de que a senhora me reconhecia o direito de aproximação do seu grupo como coisa usual."
(1) Agora substituída pelo Imperial Institute e pelo Natural History Museum.
348
"Que disparate!"
"A senhora é muito benévola, mas julgo a mana de V. Ex.a um pouco intolerante para com este infeliz que tem um tapete no lado esquerdo do escudo."
"Clytie mal pode pretender ser aborrecida quando aceita as atenções dum idiota como o Ernest Porter. A propósito: julgo que hoje saiu da cidade."
"Eu! Não!"
"O Papá disse-me que o senhor hoje saíra para ir a qualquer parte; e isto sugeriu-me a ideia de que estava no campo."
"Obtive a permissão de esta manhã sair antes que S. Ex.a descesse, porque eu tinha um compromisso antigo. Estive num casamento."
"Suponho que não foi o seu. O senhor parece muito satisfeito."
"Não foi o meu, sintome satisfeito em dizê-lo, Miss Woodward, mas dum amigo meu que, segundo creio, também o é seu."
"E casaram-se, na verdade?"
"Então não soube nada a esse respeito. Penso que era segredo profundo até esta manhã."
"Calculei, quando me falou de casamento, de quem poderia ser. Tenha a bondade de me dizer o que há sobre esse assunto. As senhoras, como sabe, são muito curiosas com coisas desse género."
"E os cavalheiros, infelizmente, nunca lhes podem fazer descrições capazes. Pode imaginar como seriam pouco interessantes as figuras do noivo, de Mr Hawkshaw e a minha. Éramos as únicas pessoas presentes além de Miss Russell, e depois desta chegar. Encontrámo-la em Waterloo; dirigimo-nos a um oficial do Registo Civil em dois trens; casaram-se, isto é, ela casou-se; fomos depois direitinhos a St Pancras e partimos: os principais intérpretes foram ambos para a Escócia e as testemunhas cada qual para o seu retiro de solteirão."
"A noiva estava naturalmente encantadora. Vamos passear um pouco."
"Omito a descrição do vestido por ignorância pura. Ela pareceu-me muito bem; apresentou-se em simples trajo de passeio."
349
"Foi o senhor ou Mr Hawkshaw quem a acompanhou no trem até ao Registo?"
"Que pergunta, Miss Woodward! Mr Scott é que foi com ela."
"Deve ser uma mulher estranha para ir casar-se no mesmo veículo em que viajava o noivo. E não ia nenhuma senhora com ela?"
"Não. A tia não tem desembaraço suficiente para tais expedições, pois até pretextou uma indisposição e medo da calmaria. Suspeito, porém, que ela vê no contrato civil um rito selvagem, e que teria comprometido a sua fé se estivesse presente nele; ainda desejou também que a acompanhasse uma amiga, que Miss Russell declinou convidar, porque era necessária em casa com Mrs Summers."
"Na minha opinião essa gente deve sentir-se feliz por se ver livre dela."
"Espere até que a veja, Miss Woodward. Presentemente continua uma impressão muito falsa."
"Tal como pensa, Mr Smith. Mas eu sei o que são as mulheres."
"Garanto-lhe que está enganada, Miss Woodward. Mas não a pode imaginar, porque é única."
"Sim, sim. Estou farta de ouvir falar das suas virtudes. Mr Hawkshaw fala como se ela fosse a única mulher de Londres. Pobre rapariga, os seus encantos hão-de gastar-se bastante depressa. Suponho que ela vai tentar a entrada na sociedade."
"Não sei."
"Se assim for, tenho pena de Mr Scott. Ela só conseguirá lástimas para as suas penas. Talvez, porém, as suas fibras sejam bastante grosseiras para ser lastimada. Admiro-me como Mr Scott gostasse tanto duma mulher assim. Ele é muito sensível e creio que ou se matava, ou enlouquecia. Na verdade já deve estar louco, por se ter casado tão bem."
"Duvido que conseguisse arranjar melhor."
"Oh, o senhor não Sabe como ele era popular! Mr Scott devia ter tido muito por onde escolher. Como podem os homens ser capazes de fazer coisas assim tão loucas? Dinheiro, nascimento, um apreço que ele procurava em vão na natureza comum, tudo destruído por mera fantasia. A sinceridade
350
arruinou-o. Qualquer mulher que não andasse perturbada por auto-consideração em excesso ter-lhe-ia dado uma volta; não há dúvida de que essa Miss Russell viu a ocasião propícia e fez o máximo que pôde para não a deixar perder. Repare que eu não a censuro. Ela está no seu direito, desde que vejamos as coisas sob o seu ponto de vista. Ah! Como eu invejo os que conhecem o mundo e não têm escrúpulos."
Smith calou-se.
"A carreira dele terminou, certamente."
"Como assim?"
"Ele afastou-se e a sociedade vai afastá-lo ainda mais."
"Talvez a experiência que Mr Scott tem da sociedade o tenha levado a crer que a mulher nada tem a oferecer-lhe que ele tanto aprecie como o privilégio de se casar com a pessoa de quem mais gostava."
"A pessoa de quem mais gostava! Que ideia; um homem apanhado no laço por uma operariazinha astuta, e a fazer vista de escolhedor independente, de pessoa que obedece aos seus gostos! Havemos de ver, quando ele despertar do seu sonho."
"A senhora deve lembrar-se que ele viu grande número de mulheres que nunca trabalharam. É possível que ao comparar deliberadamente os resultados das frívolas com as de trabalho, ele então preferisse estas, tanto mais que, como sabe, ele também é pessoa de trabalho."
"Isso pode ser uma linda filosofia, mas não faz parte do senso comum da sociedade."
"O senso comum da sociedade pode constituir um guia admirável para as formas comuns dessa mesma sociedade, mas não é aplicável a muitos assuntos muito menos comuns,- como a escolha da respectiva mulher por cada pessoa."
Isabella deixou escapar uma exclamação de impaciência. "Não se pode falar com um homem em tais coisas", disse. "Eles nunca podem compreender nada do que se encontra debaixo dos seus narizes."
Smith pensou que a jovem devia estar sinceramente convencida daquilo, para estar assim a exibir os seus sentimentos como o fazia no momento presente. "Permita-me que lhe leve a sua raqueta", disse ele, procurando desta maneira tão pouco hábil mudar de assunto.
351
"Obrigada; mas eu prefiro trazer sempre qualquer coisa na mão", respondeu ela, sacudindo o objecto desassossegadamente dum lado para o outro, enquanto passeava. Seguiu-se uma pausa, durante a qual ela olhou duas vezes para o rosto do companheiro.
"Espero que o senhor não vai supor que eu tenha qualquer objecção pessoal a fazer ao casamento de Mr Scott", disse ela, por fim. "Os homens andam sempre à pesca de escândalos."
"Posso concluir que a senhora sente interesse por Mr Scott, e que se sente triste por crer - erroneamente, porém - que ele deu um mau passo."
"Mas está muito enganado. Eu não sinto interesse por Mr Scott. O seu destino deixa-me por completo indiferente."
"A senhora está com certeza a ser injusta consigo própria, Miss Woodward. Um homem jovem e belo, dotado de génio, deve inspirar algum interesse em todos os espíritos cultivados."
"Mas eu estava a falar de interesse pessoal."
"Oh! A senhora quer dizer que não está apaixonada por ele!"
"Não, não é bem isso - Como o senhor é absurdo, Mr Smith! Que idade tem Mr Scott, se é que eu a posso perguntar sem incorrer na suspeita de ciúmes?"
"Não me lembro exactamente, embora já a tenha ouvido mencionar. Tenho a impressão de que deve contar vinte e quatro ou vinte e cinco."
"Ela é provavelmente mais nova do que parece", continuou Smith. "O seu aspecto não é de jovem, mas essencialmente mulheril. O seu amadurecido auto-domínio constitui um dos seus encantos."
"Com que então o senhor envolvera-se no caso já por várias vezes. Esta manhã até trazia uma capa verde. Comecei a pensar que Mr Smith não sairia do seu contacto com ela muito ileso."
"Não me lembro de já ter estado apaixonado. Mas não tenho dúvidas que eu o ficaria inconsideradamente se ela mo permitisse. Sinto-me feliz por não o ter consentido. No fim de tudo, teria sido ridículo, pois sou muito mais novo do que ela."
Enquanto falavam, perderam de vista o campo de ténis
352
que Isabella abandonara. Vários cavalheiros juntaram-se a Clytie. Isabella levou a mão à cabeça para se certificar da sua elegância e para se compor. Smith observou todas estas circunstancias.
"Vejo que a minha licença já terminou", disse ele quando viu o relógio. "Tenho de ir para casa."
"Não quer andar connosco?"
"Não posso."
Miss Woodward correu para o campo ténis, onde chegou com os olhos faiscantes e a afectar cansaço. Smith abandonou os jardins.
353
CAPÍTULO VIII
Os amigos de Lady Geraldina Porter encontravam-se reunidos em Wilton Palace na tarde de 28 de Julho, para ouvir Mr Patrick Hawkshaw recitar a sua recente tradução duma tragédia grega, com música de Mendelssohn.
Smith chegou pontualmente às quatro horas, e saudou Lady Geraldina com ar leviano, efeitos do temor causado pela sua inexperiência nas fórmulas da sociedade. Devia o convite, que lhe fora enviado por intermédio de Mr Woodward, à fama de testemunha do casamento romântico, tanto mais que a dona da casa concluíra que qualquer honra que lhe conferisse agradaria à noiva. A sua presença viu-se reconhecida por um aceno de cabeça de Hawkshaw, que vestia um grande casaco preto, calças pardas, luvas cor de canário e capa de tons bronzeados, firmada por um broche que representava um pequeno escaravelho amarelo, de olhos rubros. Tirando este aspecto, que era mais efusivo do que o costume, ele não parecia perturbado pela iminência duma tarefa que só pensar na sua execução fez com que Smith dobrasse ambos os joelhos.
Isabella chegou às quatro e um quarto. Ostentava chapéu de palha preto, com pena de avestruz carmesim e aba estranhamente larga, cosida com seda branca, de pregas brilhantes, com as quais fazia uma auréola em volta do rosto. O vestido era de seda preta, enfeitado com guarnições douradas e decorado com nós de carmesim. Apertado atrás para lhe definir as formas, fizeram-no com mangas e saias bastante curtas para mostrar as botas altas de pele de gamo e as luvas pretas; estas atingiam o cotovelo, com três linhas finas de carmesim, que partiam das costas das mãos. A cor do vestuário fez lembrar a Smith o usado pelo inimigo do homem nos palcos da ópera. O extremo contrário do gosto estava representado por uma jovem senhora de cabelo curto, volátil e trigueiro, e que só apresentava visível um vestido, que era de cor pesada, apertado como fato de banho acabado de sair do Oceano. Conservava os olhos
354
largamente abertos; movia-se com rapidez e olhava com melancolia. Smith veio a descobrir depois que se tratava da irmã de Scott; verificou que era pessoa de humor vivo e agradável, e quando ele o pôde suspeitar, logo se lembrou como era pequena em muita gente a disposição para transformar a mágoa num sentimento de realidade e que muitos só a transformam para a considerar pelo trato sério ou pelas brincadeiras.
A sala em breve se encheu. Um criado encaminhou-se para o leitoril, sobre o qual colocou uma pasta de veludo verde, donde saíam algumas folhas do manuscrito. Mr Burton apareceu ao piano, e, depois de contemplar a assistência, voltou-se para as páginas da partitura com ar crítico. Aproximou-se depois uma fila de oito mulheres, duas de meia idade e vigorosas, quatro já velhas e engelhadas, uma jovem e bonita, outra de olhos e encantos duvidosos. Sentaram-se nas cadeiras situadas atrás do leitoril: quatro sopranos à esquerda e quatro contraltos à direita. Seguia-as igual número de homens, alguns dos quais eram modestos e traziam a cabeça rapada, outros grosseiros e usavam bigodes. Sentaram-se, por sua vez, atrás das colegas: quatro tenores à esquerda e quatro baixos à direita. Entre estes via-se um de longa cabeleira preta, feições proeminentes, faces pálidas, digno de dó porque era jovem e bem construído. Quando tomou o seu lugar, examinou a assistência com arrogante expressão, tomada para ocultar o embaraço causado pela pouca familiaridade que tinha com os presentes. Smith, tendo-o reconhecido, voltou o rosto para evitar que ele o visse. Isabella observava a porta e o secretário viu-a passar da curiosidade ávida à impaciência, à medida que os convidados entravam uns após outros. Agora Mr Burton levantava a tampa do grande piano e tirou a vista da porta, até então gozada pelos coristas que estavam à direita. Apareceu então Ernesto, apontando com o polegar em direcção à escada, fazendo compreender a todos, por esta expressão e por esta conduta, que estava a chegar algum convidado eminente. Seguiu-se um meio silêncio, durante o qual os que não deram pelos gestos de Ernesto ouviram as próprias vozes tão distintamente que também se calaram, e voltaram-se ainda a tempo de ver entrar Scott, rubro pelos raios de sol e pela confusão, acompanhado de Harriet e um pequeno
355
grupo que se lhes juntara no vestíbulo e nas escadas. Os que não compreenderam o interesse observado no que estava a suceder pediram informações aos vizinhos. Os convidados situados próximo da porta adiantaram-se e puseram-se nas pontas dos pés. Outros, mais afastados, até se puseram de pé em cima das cadeiras para ver o que os restantes contemplavam. Havia traços de ansiedade na expressão de Harriet, que se ruborizou um pouco quando respondeu à quente saudação de Lady Geraldina. Isabella contemplou-a durante muito tempo e depois voltou-se rapidamente para Scott. Não pôde, porém, encontrar nenhum sinal de desapontamento no rosto deste, que se mostrava vigorosamente feliz. Parecia sentir-se ridículo como qualquer recém-casado, mas submeteu-se de bom-humor a muitos apertos de mão, e mostrava-se satisfeito de maneira bem evidente com a cordialidade da recepção. Lady Geraldina deleitava-se com Harriet, cujo aspecto não só dissipara todas as suas dúvidas, mas também conseguira ultrapassar as favoráveis esperanças que pusera nas informações de Hawkshaw.
Vendo o poeta excitar a inveja geral por se apressar a apresentar os seus respeitos a Mrs Scott, Smith resolveu seguir-lhe o exemplo. Deixou, por consequência, o canto para onde se retirara e encaminhou-se para o sofá, junto da porta, onde estava sentada Harriet; mas antes de o alcançar, Burton, que a cada momento ficava mais impaciente, executou alguns acordes no piano e a assistência, afrouxando as vozes, voltou para os respectivos lugares. Smith ocupou o que lhe ficava mais próximo. Isabella sentou-se no próprio sofá; Ernesto e Miss Scott ficaram entre ela e Harriet. Scott, sempre contrário à sociedade, sobretudo durante concertos, ficou de pé num grupo de homens, encostado à porta; a sua retirada para aqui chamava o isolamento e o sono nas outras salas de recepção.
Hawkshaw avançava agora; para a tribuna. Estavam nela um leitoril, uma cadeira de braços, uma mesinha com o copo de água e uma campainha. O poeta tirou o lenço da algibeira e pô-lo na mão e esta sobre a mesa; bebeu um pouco de água; tirou as luvas; abriu o manuscrito e agitou algumas folhas antes de as pôr em condições de começar a leitura. Disse então que impusera a si próprio a honra de apresentar um seu indigno esforço para interpretar ao seu
356
Auditório um dos espíritos superiores da Hélada, cuja gigantesca sombra ilustrara toda a subsequente poesia dramática. O intelecto poético, acrescentou, não trairia o paradoxo gráfico, chamado bula. Seguiu-se uma breve crítica da literatura grega e concluiu com a promessa de que Mr Burton e o coro seriam estudiosos capazes da colisão de diversos temperamentos para analisar a maneira por que o gracioso judeu ilustrara com a sua divina arte as inspirações do rude titã do antigo cântico. Quando Hawkshaw penetrou na sua cadeira e parecia perdido em pensamentos, começou a música. Chegou a vez do coro, que fora seleccionado menos pelas vozes e aparência do que pela sua proficiência a ler de livro aberto, embora executasse de maneira indiferente. Hawkshaw, que se queixara em particular da excisão de algumas das suas mais apaixonadas linhas por Lady Geraldina sob o pretexto de que não eram próprias para serem lidas numa casa respeitável, embaraçara tantos os ouvintes com adjectivos compostos que eles ficaram divididos entre a admiração pelo seu génio e a lástima de terem sido obrigados a ouvi-lo.
Entretanto, o principal baixo atraía a atenção geral. A sua voz grosseira e trémula, afundada pelos maus tratos e pela imitação dos processos comuns na ópera italiana, tinha um som áspero quando ele a forçava até à proeminência sobre todos os outros, o que enervava os ouvintes medrosos. Inchava os bofes tão amiúde como os colegas, que não se mostravam, porém, muito capazes na arte de acompanhar o seu fôlego; nos intervalos, ocupados pela recitação, ficava coberto de transpiração e parecia sofrer de sucessivos extremos de calor e frio. Além disso, quer estivesse sentado quer a cantar, colocava-se sempre com ares provocantes, como se desafiasse qualquer comparação entre a sua pessoa e a de Hawkshaw, cuja figura brilhante, afectação refinada e voz não mais ressoante de que o ordinário, ele aparentemente desprezava. Quando se levantou pela primeira vez e se tornou visível para os que estavam junto da porta, Smith viu Harriet reconhecê-lo e encostar-se para trás até se poder ocultar com a cunhada. Ernesto aliviou o tédio da observação da sala procurando divertir Isabella com a macaqueação das peculiaridades de diversas pessoas, embora ela se esforçasse em vão por envergonhar o interlocutor com a
357
severidade da sua expressão. Lady Geraldina sentou-se junto, observando com aspecto rigoroso o sobrinho, ao mesmo tempo que julgava excepcional o seu gosto pela tragédia ática.
Por fim Hawkshaw fechou o manuscrito, agradeceu a simpatia da assistência e desceu da plataforma rodeado de aplausos. Em seguida todos se levantaram. Senhoras jovens, vestidas como Miss Scott, apertaram a mão ao poeta. Rapazes de longa cabeleira patearam-no lá para trás. Algumas pessoas agradeceram a Mr Burton a selecta música, mas eram recebidas friamente por ele. Scott, e outros que passaram aquela hora lá em baixo, reapareceram e declararam-se arrebatados pela execução. Smith deixou-se ficar no seu lugar até que os coristas se levantaram e abandonaram a sala, e só então se dirigiu a Harriet e postou-se na frente dela na posição de quem a escondia das pessoas que passavam atrás de si. O estratagema obteve êxito: Davis nem identificou Smith pelas costas, nem a viu, pois saiu imitando o andar elástico que antigamente o caracterizava e que ele procurou evitar quando desceu as escadas, amparado à balaustrada.
"Obrigada", disse Harriet, quando estendeu a mão a Smith. "O senhor gostou, pois foi muito intelectual e belo."
Ser cumprimentado pelas suas qualidades era coisa nova para Smith. "Aquele pobre infeliz parece que vai morrer", disse ele. "Espero que passasse bem durante a sua permanência na Escócia."
"Muito melhor do que eu esperava. Passeámos muito durante a primeira semana. Depois residimos numa casa de campo lindíssima, situada numa herdade queijeira; esforcei-me por fazer Cyril pintar, mas sem grande resultado. Quando não estava sentado no baloiço da propriedade, vendo-me a trabalhar com uma trolha de pedreiro, deitávamo-nos sobre a relva, conduzíamos vacas, sujávamos tudo com o leite quando o estávamos a bater, e a nossa conduta não era das mais sensatas. Nunca pensei que Cyril fosse tão garoto e eu certamente nunca teria acreditado que pudesse ser tão garota."
"Devia ter sido muito romântico."
"Sim, e, como sabe, sou muito pouco romântica."
"Isso confirma o que se costuma dizer: que as pessoas
358
românticas não têm sentido bastante de serem realmente felizes."...
"Que heresia estou eu a ouvir Mr Smith dizer?" disse Isabella, aproveitando a oportunidade oferecida por Ernest e Miss Scott, que se levantaram, e assim se dirigiu a Harriet.
"Fazia apenas uma citação", respondeu Smith; "desta maneira não me pode tomar como responsável."
Harriet conteve um impulso de se afastar rapidamente daquelas vizinhanças. Levantou os olhos sem qualquer aparência de interesse especial. Olhou para o grande chapéu, para o vestido apertado e para as luvas tão compridas, e não admitiu que Miss Woodward possuísse qualquer atracção para seu marido, Isabella, consciente deste exame, retribuiu-o, na esperança de encontrar qualquer desvantagem que a distância tivesse, até então, ocultado. Descobriu que as férias de Harriet lhe tinham deixado pequenas sardas, e que as botas desta, quadradas e bastante largas para os pés que calçavam, estavam fora da moda. Neste momento Scott subiu, cumprimentou Smith e não deu pela presença de Isabella.
"Segundo parece, já se esqueceu de mim", disse esta em voz baixa, quando o artista se postou à frente dela, rindo para Smith com menos reserva do que costumava nos tempos de solteiro.
"Perdoe-me", respondeu o pintor, olhando em volta e agarrando a mão que a interlocutora lhe oferecia. Esta olhou-o durante um momento com um sorriso que comunicava uma terna censura. Ele abandonou imediatamente a mão.
"Parece muito feliz", disse a jovem com mágoa, mas sempre a sorrir.
"Suponho que sou", respondeu Scott com certa grossaria. "Porque não havia de ser? Como está seu pai?"
"Bem, como sempre."
"E a senhora, como tem passado?" Isabella estava quási a responder que já não teria muito tempo de vida e que não se importava se morresse muito em breve, quando ele continuou: "Mas não precisa de me dizer. A senhora aparenta a perfeição da saúde e... e da beleza." Este foi o primeiro galanteio que ele lhe dirigiu.
"Ora vamos", respondeu Miss Woodward. rejeitando
359
a sua prudência num impulso súbito; "o senhor não deve temer agora, falsas interpretações". Ele riu e disse:
"Não. Vê as vantagens de um homem ser casado."
"Bem vejo que mudou."
"Julga-me então mudado?" perguntou Cyril, com mal composta chocarrice.
"Parece-me que está agora menos opresso pelo sentimento da sua dignidade estética do que antigamente."
"Como assim?"
"O senhor actualmente está a condescender em alguns pontos, como, por exemplo, com o bom-humor."
"Hum!" disse Scott, com a sua velha petulância. "Pensa então que arte e artificialidade são uma e a mesma coisa e pensa também que eu me tornaria ridículo se procurasse usar naturalidade."
"Não penso em nada disso. O senhor continua muito sensível."
"Sensível, eu!" exclamou Scott, muito espantado para se indignar.
"Vivi no campo muito tempo, longe desta sociedade cobarde e em contacto diário com a Natureza."
"Com esse chapéu?" perguntou Cyril, olhando para ela com ar muito duvidoso.
Isabella, agora seriamente aborrecida, respondeu com aspereza: "Por favor, Mr Scott, o senhor está a rir do meu vestuário."
"De maneira alguma. Admiro-o até. É altamente original."
"Outra mudança operada pelo matrimónio! O senhor nem sequer sabia distinguir se uma pessoa vinha vestida ou não. Não há dúvida que a sua atenção perdeu independência desde que entrou para o estado doméstico."
A cor de Scott escureceu e ele olhou-a ferozmente a fim de descobrir nas faces dela qualquer sintoma de alusão ao antigo ofício de sua mulher. Isabella carregou o semblante, com os lábios separados e os dentes apertados. Felizmente Hawkshaw reuniu-se-lhes nesse momento e fez mudar o rumo da conversa.
Entretanto, Lady Geraldina encontrava-se no patamar a admoestar um homem enfarpelado, não obstante a estação que então decorria, num sobretudo castanho, com gola de
360
astracã. O bigode estava encerado nas pontas e encolhia os ombros com ares de súplica como um napolitano. Mas o seu acento era britânico e o ar estranho adquirira-o em Leicester Square (1).
"Quem é ele e o que quer?" interrogou Lady Geraldina.
"Signor Cartouche", começava o homem puxando para trás os cotovelos e virando para cima as palmas das mãos enluvadas, quando Lady Geraldina o interrompeu imperiosamente.
"Como ousa o senhor enviar a minha casa um homem chamado Cartouche?"
"Que podia eu fazer, Madame? Eu não podia enviar artistas. V. Ex.a pretendia bons leitores e toda a gente sabe que quem sabe música pelas notas deixa de ser artista. Os maiores cantores italianos..."
"Asneiras. Eu nada sei a respeito de artistas. Pedi-lhe pessoas respeitáveis."
"Mas, Madame, pela minha honra, Signor Cartouche é digno de todo o respeito. Já falou em público, pois foi pregador. Infelizmente a sua saúde deixa muito a desejar, mas lê música de maneira admirável e os que o podem e sabem fazer são agora muito difíceis de encontrar, tanto mais que ambos os teatros de ópera estão abertos, e com ensaios todos os dias; eu não tinha, por isso, quem o substituísse em Londres. Além disso, tem uma voz magnífica."
"É quási inútil falar-me em vozes magníficas. Nada entendo de música. Mas entendo de senso comum e sei que o aparecimento desse homem envergonha, a sua conduta importuna e, ainda por cima, a sua voz é muito sonora para a minha sala de recepção. Bebeu grande quantidade de taças de clarete na sala de jantar; agora está excitado e a causar muito desagrado."
"Estou profundamente desolado, Madame. Não o tornarei a contratar."
"Não pretendo arruinar O pobre homem", disse Lady Geraldina, assustada. "Peço-lhe, em compensação, que o leve imediatamente de minha casa."
"Vai deixá-la e já", respondeu o agente.
(1) Praça pública em Londres. - N. T.
361
"Tanto melhor!" comentou Lady Geraldina. "À excepção dele, estou muito satisfeita com o que me arranjou. Boa tarde." Virou-lhe as costas e entrava na sala de recepção, quando lhe apareceu pela frente Ernest.
"Onde estão os Scotts?" perguntou. "Desejo que desçam."
"Vá ter com Mr Scott e não verá o fim duma caçada", disse Ernest. "Ela e o velho Musgrave estão a sustentar uma batalha bastante ordenada com Hawkshaw e Bella Woodward sobre poesia, pintura e o diabo sabe que mais. Musgrave está a sondar, Mrs Scott está a tornar-se barulhenta. Repare na bulha que para ali vai."
Lady Geraldine observou e ouviu os tons ressoantes de Musgrave sobre a falácia de todos os outros.
"O senhor já nada tem mais a dizer, Mr Hawkshaw. O senhor foi derrubado, Mrs Scott tem muita razão e o senhor nem mesmo tem uma perna para se apoiar. Venha descer comigo, minha senhora, e vamos refrescar um pouco. Há muitas provisões na sala de jantar."
Harriet desceu as escadas na companhia de Musgrave, seguida por Hawkshaw e Isabella. Lady Geraldina juntou-se-lhes. Quando chegaram ao átrio, ouviram na sala próxima um sossego desusado, apenas interrompido por alguns passos e pela voz dum homem que falava em tom opresso e branda ênfase, o que fez Lady Geraldina parar e olhar interrogativamente para Hawkshaw.
Musgrave, desatento, continuou a caminhar com Harriet, e encontrou-se num espaço estreito formado pelas pessoas que vinham em sua direcção, passando por onde se encontrava Davis, cujos olhos brilhavam mais do que antigamente, as faces vermelhas e o braço metido no do agente, que o persuadia a deixar a casa.
"Anda, anda, Cartouche", dizi"-lhe o agente. "És um bom camarada. Estás um pouco fatigado com o trabalho desta tarde."
"É como eu te digo", disse Davis desdenhosamente. "Não há aqui quem seja tão bom como eu. Posso falar aqui tão bem, ou melhor, do que qualquer outro. Ninguém aqui..."
"Sim", disse o agente. "Bem conheço as tuas qualidades. Quero dizer-te qualquer coisa, mas só lá fora. São apenas
362
duas palavras sobre um negócio muito importante. Como cavalheiro, faze-me o obséquio, anda, Cartouche! Como cavalheiro."
"Não sou cavalheiro", respondeu Davis, fazendo o possível por se livrar do outro. "Eu vou dizer-lhes", continuou, virando-se para os que estavam à sua volta, com um gesto de repreensão, "que está para vir o dia em que o vosso vestuário fino, os vossos altos títulos e as vossas maneiras delicadas para nada vos servirão. Digo-lhes que está para vir o dia em que os vossos vinhos custosos e as vossas vitualhas se tornarão poeira entre os vossos dentes como as maçãs que se criam no Mar Morto, onde estavam as cidades que pensavam tanto no que lhes estava reservado como vós agora. Vejo nas vossas faces como num espelho o destino que vós procurais evitar. Mas vós não podeis. Vós não podeis. Digo-lhes que ninguém pode fugir ao destino que lhe foi fixado. Haveis de procurar simpatias quando os vossos corações estiverem esmagados, mas não as encontrareis. Achareis os vossos amigos a evitar as preocupações próprias, capazes de se voltarem para o vosso lado e sem fazer caso de vós."
"Permita-me que me afaste, Mr Musgrave", disse Harriet. "Não me quero encontrar com aquele homem."
"Não tenha medo", disse Musgrave. "Não lhe fará mal, garanto-lhe."
"Não tenho medo", respondeu Harriet; "mas..." não acabou a frase, porque Davis, que parara para examinar as faces dos que o rodeavam, a reconheceu repentinamente. Smith, que entrara no compartimento um minuto antes, adiantou-se de maneira irresoluta, receoso de alguma erupção do pregador. Davis viu-o e olhou atónito para um e para o outro. Durante a pausa que se seguiu, Grosvenor e uma parte dos homens entraram acompanhados por Scott, que, vendo sua mulher próxima de um louco, como Davis lhe pareceu, se colocou na frente dela.
"Deus meu, onde estão os criados?" exclamou Lady Geraldina. "Ponham-no fora."
Após isto, Grosvenor e mais alguns aproximaram-se de Davis. Este, bastante quente, mas passando evidentemente por um dos seus ataques passageiros de fraqueza, não deu por eles, mas continuou a contemplar Harriet com expressão
363
tão desgraçada que os seus atacantes ficaram logo desarmados.
"Olha cá, sabes, meu amigo", disse Grosvenor: "tens de te ir embora. Não tens o direito de te comportares desta maneira." Dizendo isto, agarrou Davis meigamente pelo braço e insistiu de maneira insinuante em o conduzir para fora da porta.
"Anda!" disse um cavalheiro, cujo porte severo e vestuário metódico o marcavam como oficial. "Fora contigo, meu rapaz." E agarrou o braço do cantor.
Davis libertou-se instantaneamente com tal violência que limpou um espaço à sua volta.
"Scott", disse Musgrave. "Leve esta senhora daqui. O nosso amigo dá antes sintomas dum caso de febre. Eu vou cuidar dele."
Quando ouviu esta sugestão, Grosvenor tornou-se pálido e retirou-se. O oficial conteve-se para não renovar o seu acto contra o pregador. Davis, que estivera a fazer a diligência por segurar os seus lábios trementes, lançou-lhes um olhar de desconfiança e recobrou o autodomínio, após ligeiro estremecimento.
"Nenhum dos presentes deve temer que eu vá cometer qualquer desgraça", disse. "Mas ninguém pense também que me vai desgraçar por me pôr na rua como um cão. Tenho sido menosprezado e posto de parte por cavalheiros muito dignos; mas eu gostava de ver qual era o cavalheiro, de entre os presentes, que seria capaz de me expulsar desta sala antes de eu decidir retirar-me, por muito alquebrado que esteja. Fiz homens tão bons como quaisquer outros virem-me implorar o vigor da minha voz e o poder do espírito que eu tinha em mim; e isto ainda é mais admirável porque eu hoje vejo-os a ensinar nos colégios só com as línguas mortas a servirem-lhes de base. Acho-me assim porque esse era o meu destino e falo em tal coisa, não por vaidade, mas para mostrar que me desprezam não pela minha vileza ou pela superioridade desses tais, mas porque o meu fado ordena que eu seja desprezado, tal como seria o meu fado ser respeitado e apreciado, e muito mais do que é actualmente a arrogante senhora, dona desta casa, se o outro fado não me caísse em cima."
Ernest soltou baixo um riso cacarejante e murmurou:
364
"Está gloriosamente bêbedo."
"O riso dos loucos", exclamou Davis quando o ouviu, depois olhou-o de semblante carregado, "é exactamente como queimar abrolhos debaixo duma panela. Incendeiam-se com barulho e fumo, que depois se desvanece como uma nuvem pálida no céu distante. Mas não vão pensar das minhas palavras com desdém durante a noite, dizendo uns para os outros: "Ora! Ele estava bêbedo!" Não! Não estava também bêbedo quem me rebaixou. Eu agora não estou bêbedo, nem nunca estive, nem nunca estarei; e um dia, quando chegar a vossa hora, chegará junto de cada um de vós a notícia de como eu agora estou são. Que cada um de vós tenha o entendimento de que bem precisa. Não o tendes porque sois ricos e podeis manter cortinas de seda entre vós e o pobre das ruas. Mas as cortinas de seda não vos afastarão do vosso destino. Contar-vos-ia a história de uma pessoa que julgava poder resistir ao fado, mas um dia compreendeu o seu erro. Sim, sim, podeis vós murmurar... Não pretendem ouvir-me, embora estejais sempre prontos a aguentar uma hora sentados para ouvir poesias maçadoras dum da vossa espécie."
Smith escutou inquieto esta arenga. Sentiu que tanto Harriet como Lady Geraldina deviam estar a olhar com desdém a sua falta de coragem e de maneiras por não intervir, esquecendo-se ele, porém, que os restantes convidados se encontravam nas mesmas desvantagens. O sentido da responsabilidade era instintivo na sua pessoa. Em consequência disso, dirigiu-se a Davis e disse em voz baixa, que, não obstante, foi distintamente compreendida no meio do silêncio geral:
"Perdoe que lhe fale em nome dum antigo conhecimento, Mr Davis. Eu vou sair, e ficar-lhe-ia muito agradecido se quisesse acompanhar-me. Gostaria de lhe dizer algumas palavras, mas a sós, se quiser ter a amabilidade de as ouvir."
"Senhor", disse Davis com arrogância e ainda um pouco envergonhado, "muito lhe agradeço. Tenho tido notícias suas, assim como de outras pessoas, mas não vim aqui para as afligir; isso seria fazer considerar uma desgraça o conhecimento da minha pessoa, por pretender conhecê-los nesta assembleia. Juro que não me introduzi nesta casa nem noutra qualquer."
365
"Nunca pensei em tal coisa", respondeu Smith, oferecendo o braço e sentindo-se tristemente confuso pela publicidade da sua situação, embora parecesse em plena posse do seu auto-domínio.
"Não nego que o senhor tenha sido sempre um perfeito cavalheiro, Mr Smith, e os nossos destinos têm sido os mesmos no que toca à sua estrutura, creio eu. Respondo com alegria ao chamamento de uma só pessoa, embora não me mexesse para obedecer às ordens de dez." Agarrou o braço de Smith enquanto falava, e saiu da sala com tanta dignidade quanta permitia esta incómoda amizade. Todos os presentes o observaram enquanto se afastava; mas, à excepção dum relancear para Harriet, que baixou imediatamente os seus olhos antes tão resolutos, não olhou para ninguém. Até a porta se fechar, houve perfeito silêncio. Verificou-se então um estrondo de conversas.
"Pobre rapaz!" dizia Musgrave. "Não está certo deixá-lo assim. Sinto grande desejo de ir atrás dele e dar-lhe uma carta para o Brompton Hospital."
"Mas não farás uma coisa dessas, Tom", comentou Mrs Musgrave. "Deixa-o ir em paz, agora que ele se foi embora, e fiquemos muito felizes por nos vermos livres dele."
"Oh! Esse abençoado Mr Smith!" disse Lady Geraldina para Grosvenor. "Bem o devem ameigar os Woodward. Espero que ele não apanhe a febre daquele pobre miserável."
"Está bem", disse Grosvenor. "O agente diz que aquilo é apenas a tísica."
"Harriet", disse Cyril, que se encontrava perto na companhia de sua mulher. "Se não tomas cautela, desmaias. Tudo passou: o homem foi-se embora. Pela tua cara, creio que receaste que ele perdesse o juízo."
"Não se preocupem comigo", disse Harriet, em voz baixa. "Este homem já foi pregador e pretendeu casar comigo."
"O quê!" exclamou Scott, atónito e nada satisfeito. "Ele conhece-te, então?"
"Penso que deve ter sido quando me viu que ele ficou naquele estado tão estranho. Se não fosse Mr Smith, ele já me teria reconhecido lá em cima. É muito extraordinário que eu o viesse encontrar aqui."
366
"Tenho esperança de que não devemos voltar a encontrar mais conhecimentos teus", disse Cyril, algum tanto aborrecido.
"Não tenhas medo", respondeu Harriet, gravemente. "Aquele é o único dos que eu considero crível e aborrecido voltar a encontrar."
Scott observou, muito tarde como o costume, que a sua observação não fora feliz. Enquanto tentava imaginar alguma terna expiação, Lady Geraldina levou Harriet da mesa. Agora o pintor ouvia a voz de Musgrave atrás dele.
"Olá, mestre Scott! Com que então você conseguiu casar, an?"
"Consegui", respondeu Scott, estendendo-lhe a mão com um sorriso.
"E como se acha? Gosta?"
"Mais do que esperava."
"Está bem, está bem. Chiu! Você vê aquela encantadora criatura, perto da mesa? Você estava com ela um minuto antes de eu chegar."
"Mas o que tem ela?" perguntou Scott, surpreendido.
"Devia ter casado antes com aquela. Tem mais tino na barulheira que arma do que todas is outras mulheres que aqui estão nos respectivos chapéus. Olhe para ela. Ela até sabe como deve andar. Quero que me diga quem ela é. Suponho que você a conhece."
"Não muito bem. Casei-me com ela há apenas quinze dias."
"Ah! ah! ah!" gargalhou Musgrave, apertando segunda vez a mão de Scott; "não podia ter feito melhor. Não acreditei que você tivesse tanto juízo; acreditei, porém, que ela tivesse muito mais. Foi mal empregada em você."
Desde esse momento até à hora da partida, Harriet foi falada por quási todos os que nessa altura não estavam a conversar com ela. Os homens louvaram-na unanimemente; no entanto, alguns acrescentaram que antes queriam que ela fosse mulher de Scott do que deles, pois parecia muito habilitada a tomar cuidado de si própria e de seu marido também. Quanto às mulheres, umas admitiam que ela era irrepreensível, mas protestavam contra a admiração dos homens, por lhes parecer despropositada. Outras diziam-na muito bonita e de boas maneiras, admirável
367
de facto, considerando o que ela fora. Uma terceira afirmava que se pode falar como se quiser duma senhora não imaginária desde que ela se apresente sempre bem vestida; por isso uma costureira conhecedora do seu ofício saberia sempre onde ir buscar o que deseja e, melhor do que ninguém, como atrair simpatias a seu favor. Uma quarta estava a pôr fora de dúvida a falta de gosto de Mrs Scott, mas os presentes eram totalmente incapazes de reconhecer qualquer coisa naquela mulher. Uma quinta admirou-a mais do que os homens; chamou-lhe meiga, bonita e de aspecto inocente, nada encontrando nela de desfavorável. As restantes abanaram as cabeças quando interrogadas, e afirmaram que Mrs Scott era mulher inteligente e que sabia perfeitamente bem o que tinha a fazer. No fim de contas, como os homens a admiraram e as mulheres não se sentiram seguras de ter qualquer superioridade sobre ela, Harriet não teve motivos para ficar descontente com a recepção, mas encontrava-se esgotada pela constante circunspecção que teve de manter, e disse ao marido, quando caminhavam ao longo de Mayfair em direcção ao hotel em que estavam hospedados:
"Lady Geraldina é muito simpática, mas eu gostava que me dissessem qual é o prazer que ela encontra em permitir a toda aquela gente que lhe frequente a casa como a própria, falando a respeito de nada, e voltando para casa sem ter realizado qualquer coisa de bom. Vi várias pessoas que nada ouviram do que Mr Hawkshaw leu. Devo até dizer que considero isto um processo estúpido de matar o tempo. O único interesse pessoal que eu fui lá encontrar consistiu no homenzarrão de voz estrondeante; a mulher garantiu-me depois que ele era diferente de todos os outros. A senhora parecia muito envergonhada com ele."
"São processos muito estúpidos", respondeu Scott, também bastante fatigado; "mas tens de os usar com eles."
"Também gostava de saber porque terei de cair na maçada de utilizar uma coisa tão aborrecida e de nenhum valor para mim. Suponho, no entanto, que isso te é útil para travar conhecimentos. Já te esqueceste que temos de ir buscar os cartões de visita?"
"Não", respondeu Smith; "é mesmo ali, na outra esquina." Mandou o trem parar à porta duma papelaria e
368
entrou, deixando Harriet só. Um rapaz insolentemente polido trouxe-lhe os cartões, agradeceu-lhe e perguntou se desejava dele mais alguma coisa. Scott lembrou-se de aparos e pediu alguns ao caixeiro.
"Sim, senhor. Estes (mostrando os bicos dourados das extremidades operativas duns dezasseis, com uma polegada de largura) são os favoritos de quási toda a gente. Tenho recebido encomendas de muitas senhoras. Seis dinheiros uma dúzia."
Scott rejeitou os bicos largos, para não o julgarem escriturário. Apesar disso, quando saiu do estabelecimento, o rapaz acompanhou-o delicadamente até à porta, curioso pela senhora que se encontrava no trem; quando a pôde ver ficou logo atónito, e permaneceu imóvel no limiar da porta até que o veículo desapareceu.
"Por S. Jorge, já está casada!" exclamou, quando voltava para o balcão. "Mrs Cyril Scott só e sem morada! O cartão do marido sem um Mister, só o nome, mais nada. Parece bem claro que não se trata dum cavalheiro, apesar do aspecto do seu rosto, pois, em caso contrário, bem sabia o que tinha a fazer. Sabe quem é", acrescentou, dirigindo-se ao patrão, "Mr Cyril Scott?"
"Referes-te ao artista?"
"É isso", respondeu o caixeiro. "Eu bem devia ter logo visto que se tratava apenas dum profissional."
Harriet, quando o marido voltou para o trem, lembrou-se de lhe ter dito, em casa de Lady Geraldina, que não haveria mais encontros desagradáveis a recear além do de Davis, e achou estranho que ao trivial incidente de comprar cartões se seguisse a recordação do que ela pretendia não se lembrar, e com poucas probabilidades de vir a esquecer-se completamente. No entanto, como ela nunca admitira relações com Fraser Fenwick, não julgou necessário explicar a Cyril que o caixeiro que acabara de o servir era pessoa familiar das suas circunstâncias antigas, e, tal como Davis, também um velho admirador.
369
CAPÍTULO IX
Quando deixou a casa de Wilton Place, Davis, com o braço ainda enlaçado no do secretário, em quem por vezes se arrimava pesadamente, tomou em silêncio o caminho de Wilton Crescent e daí, através Grosvenor Place, para o Green Park, onde se sentou por estar exausto. Após um acesso de tosse, arquejou durante alguns momentos e então voltou-se para Smith, dizendo:
"Encontrei-a enfim. O senhor vê nisto a mão do Destino?"
"É uma singular coincidência, não há dúvida."
"Não é coincidência. Não se engane com palavras. Era o destino a perseguir-me por toda a parte. Eu sei o que são crenças; respeitei-as e fiquei farto delas. Mas dê-me a certeza de que tudo o que acontece confirma a verdade delas, e antes que derrubem a sua fé dez vezes em cada minuto. Eu disse muitas vezes: "Senhor, auxiliai-me na minha incredulidade." Por fim, quando reuni todas as coisas que me aconteciam e vi com pasmo uma coisa sair de outra, comecei a verificar que o que eu considerara revelações da Providência, eram apenas obra dum imutável destino. Quando me virei para a Bíblia, fiquei espantado da minha cegueira; em cada linha dela estavam proclamados os Fados! Citei as profecias da condenação que estava certamente para cair sobre o povo e de maneira que ninguém lhe "podia escapar; houve homens que se levantaram e julgaram mal os perigos que lhes apontei; outros mergulharam na perversidade e desesperaram do que fora profetizado sobre os anos da sua vida, muito antes de eles virem ao mundo: que a classe elevada seria derrubada e a baixa exalçada. O que lhe ensinaram? O que lhe ensinaram os dois homens que lavravam o campo e as suas mulheres que moíam a farinha na azenha? Porque foi tomada uma delas e a outra abandonada? Porque não foi esta a tomada e aquela a abandonada? Por nenhum pecado ou por nenhuma acção delas, mas só porque era esse o seu destino. Rio-me agora quando
370
vejo Larkins e quejandos a quererem modificá-lo, quando eles apenas estão sendo conduzidos pela sorte que lhes foi apontada. Mas não há muitos homens em cuja vida o dedo do fado se mostre tão francamente como na minha. Ora pense no que sucedeu hoje! Foi o senhor quem me conduziu pela primeira vez para junto dela. Foi precisamente o senhor quem me afastou dela pela última vez. E como podia isto acontecer? Foi uma combinação havida entre nós? Seria o encontro em casa de determinada dama da alta sociedade uma coisa que se pudesse esperar mais dia menos dia? Quando no domingo à noite dei um golpe de vista à minha volta nas reuniões onde eu pregava habitualmente, quem havia eu de encontrar em pé, na minha frente? O jovem Fenwick, que bebia só para que eu pudesse ser condenado por causa dele. E o que o trouxera aí? Ele sabia que eu estava lá? Poderia um réprobo ir, por sua própria iniciativa, às reuniões dos pregadores? Porque escolheu ele aquela noite de entre tantas noites que tem o ano para fazer o que nunca fizera? Olhe para mim! Porque abandonei as orações para cantar num coro? E eu que pensava ter procedido por minha livre vontade! Sei agora que o fiz porque estava escrito que havia de ir a uma casa onde ela estava. E porque estava ela lá também, ela, que não nasceu em meios superiores aos das criadas que hoje a servem? Eu podia ir fazendo-lhe perguntas até ao toque derradeiro da trombeta, e não me responderia a nenhuma senão com a palavra Destino, que responde a todas. E o meu fado, o fado do senhor, o fado dela e o fado dele."
"O fado dele? Conhece então Mr Scott?"
"Eu conheço o rapaz: Fenwick, julgo que se chama assim. Em quem está o senhor a pensar? Quem anda embrulhado nisso?"
"Não conhece com certeza", respondeu Smith, aborrecido consigo próprio por haver mencionado o nome. "Talvez eu devesse antes dizer-lhe que é inútil inquietar-se mais com ela. Ela já casou."
"Com um cavalheiro?"
"Com um cavalheiro."
"Porquê? Levantá-la quando eu desço. Arrebatar o fado que estava a ser percorrido. Eu nunca mais pensei um instante em possuí-la depois de saber o que ela era, e como podia
371
valer pouco para um verdadeiro homem, quem quer que ele fosse; mas estou a ver que o senhor também não teve sorte com ela. Mas agora só as notícias desse caso preocupam o meu espírito. Foi ela quem primeiro me fez revoltar contra a morte e é ela também quem me faz não pensar mais nisso agora, quando eu os sentir a pôr as mãos em cima de mim e a expulsar-me daquela casa. Veja como tudo isto se realizou por minha causa."
"Mas desculpe-me, Mr Davis. Eu não lhe quero provar com toda a certeza que o acontecimento não estava destinado a acontecer; mas..."
"Não", respondeu Davis com firmeza; "nem mesmo toda a sabedoria dos Caldeus o podia negar."
"Justamente. Mas o que se verifica no mundo são só crenças? Isso limita-se simplesmente a dizer que o que é, é. É muito mais fácil dizer: estou vivo, estive desiludido, adquiri um chapéu novo, ou quebrei uma perna, do que estava determinado que eu devia viver, o fado era a desilusão, eu estava marcado para adquirir um chapéu novo, ou era o destino deste bocado de casca de laranja estar colocado onde eu devia escorregar e quebrar, por isso, a minha perna. As duas formas conduzem precisamente ao mesmo ponto."
Davis sacudiu a cabeça e sorriu. "Espere", disse. "Quebrá-la-ia em casa qualquer dia, e então poderia explicar isso por intermédio da sua cega razão humana, se assim preferisse."
"Parece-me que o senhor adquiriu o hábito de se persuadir que as suas ideias são revelações sobrenaturais, e de crer nelas por isso. O senhor teve exactamente a mesma convicção sobre o poder dispensado pela Providência que tem agora sobre a existência dos irrevogáveis decretos do Fado."
"Na verdade..." disse com calma Davis. "E o que é a Providência senão o nome sob o qual nós escondemos o Fado? Toda a gente ora à Providência. Os pregadores já modificaram isso? Nem uma gota de água. Oram por qualquer coisa. Se o seu desejo é alcançado, é porque nunca falaram a um pregador. Mas eles deviam antes pensar (pobres vermes!) que o Destino se encontrava ao lado do seu pedido. Similarmente, se não o alcançam, persuadem-se que
372
ficam melhor sem ele; e assim se enganam até pensarem que podem mudar o que é imutável."
"Bem, bem, não se pode arguir sobre o que se pode provar ou reprovar, particularmente quando o que se discute, em qualquer dos casos, não possui nenhum valor. O senhor conseguiu obter um bom bocado de Metafísica, e, como se trata de coisa barata e vulgar, nada a não ser o seu bom senso conseguirá pô-lo fora dela."
"Os homens vulgares e os viventes baratos têm tanto direito à verdade como os ricos à terra."
"Quási não compreende o sentido em que eu empreguei as palavras", disse Smith. "Deve crer-me que não tinha o propósito de ofender. Sou tão pobre mas de maneira alguma tão notável como o senhor."
Davis olhou para ele durante um momento com ar de dúvida e então estendeu-lhe a mão. Smith apertou-a, mas aproveitou a ocasião para se levantar e preparar o cumprimento de despedida.
"Uma palavra antes de nos separarmos, senhor", disse Davis, apertando muito a mão. "Há-de ter paciência de testemunhar que eu não me dignei hoje falar-lhe na presença dos seus grandes amigos."
"De muito boa vontade", respondeu Smith. "O senhor mostrou a maior das delicadezas."
Davis apertou ainda mais a mão: "Ela costumava falar-lhe a meu respeito bem ou mal?"
"Não me lembro", respondeu Smith, embaraçado. "De facto, tenho a certeza que nunca me falou de si. É de natureza muito reservada. Adeus."
O pregador largou Smith com relutância e viu-o caminhar por Piccadilly e desaparecer. Esteve sentado durante muito tempo olhando desatento para o chão; de vez em quando levantava a cabeça e olhava para o sol poente com vaga amargura. Não jantara, mas a sua enfermidade atingira o ponto em que o comer constitui uma perturbação. Por vezes, como lhe viessem acessos de fraqueza que o deixavam horrorizado, sentia ânsias como se o espectro da morte andasse à sua volta, mas não achava ninguém junto dele a quem se gloriasse. Nesses momentos reconhecia como se é miserável quando não se tem amigos, e censurou Smith por o ter deixado. Apesar de tudo, até então ele
373
ainda olhava o fim do seu declínio como coisa remota. Um médico dissera-lhe uma vez que provavelmente poderia ainda durar mais um ano; e aquilo, em vez de o impressionar com a iminência de dissolução, deu-lhe o hábito de olhar para ela como para um acontecimento que poderia ter lugar num prazo curto, mas não imediatamente.
Quando o sol se pôs, ele começara já a dormir o mais profundo sono que gozava desde há muito. Foi perturbado por uma luz sobre os olhos e por uma mão a sacudir-lhe asperamente o ombro.
"Vamos embora", disse o polícia. "Já é tempo."
Davis olhou rapidamente em volta. Estava escuro e os candeeiros brilhavam em Piccadilly. Vendo que o polícia esperava que ele se mexesse, levantou-se a custo e pôs-se a caminhar para o outro lado, perguntando a si próprio se uma suspeita não lhe teria assegurado o privilégio de permanecer ali sem ser perturbado até de manhã.
"Agora", disse o polícia, "você não pode sair por esse caminho. Tem de ir pela barreira."
Davis obedeceu e o guarda seguiu-o até se sentir satisfeito com a capacidade que o vadio mostrava em voltar para casa. A noite estava quente e as ruas cheias quando ele se dirigia em direcção a Lambeth, onde morava. Durante algum tempo manteve certa velocidade, caminhando a passadas largas com qualquer coisa do antigo vigor. Mas a este esforço seguiu-se um ataque febril de fraqueza. Voltou-lhe a sonolência e então passou a só observar os passeantes como o homem que passeia em sonhos por planície desabitada. Nestas condições dirigiu-se para o rio, andando firmemente com o aspecto familiar a peões cansados, porque se parasse para descansar, durante um momento que fosse, ficaria incapaz de continuar o caminho.
Em Westminster Bridge, o caminho dos peões está separado do dos veículos por um cano de ferro, e serve para derrubar os transeuntes cuja atenção fora atraída pelo tráfico de que se deveriam afastar, ou quando se preparavam para o atravessar. (1) Logo após o anoitecer, quando a obstrução é
() Esta precaução já não existe. - N. A.
374
invisível, em consequência do negrume da noite, estes acidentes são comuns. E na verdade inevitáveis para os transeuntes que atravessam a rua neste sítio e não se encontram devidamente informados do perigo por experiência prévia. Quando Davis se aproximou, um grupo de três estudantes conversava com duas raparigas. Mal dando conta da presença deles e receando cair em alguma distracção se se afastasse do estreito caminho, o pregador foi de encontro à mulher que estava mais próxima do canal e foi imediatamente recompensado com um violento empurrão vibrado pelo cotovelo dela, que o fez ir cair desmaiado no pavimento dos veículos, onde, depois de tropeçar na esquina de ferro, caiu de costas no empedrado. Seguiu-se uma gargalhada dos estudantes, de mistura com ameaças e insultos da mulher, logo acabada quando o grupo, ao ver a sua vítima incapaz de se levantar, se escapou através da multidão. Davis fez um esforço para se levantar. Deixou-se ir para trás convencido de que nunca mais se poderia levantar. Um grupo de pessoas, organizado imediatamente à volta dele, contemplava-o com interesse. Um homem sacudiu o corpo do prostrado com a ponta do pé, e, não descobrindo qualquer sinal de vida por este meio, seguiu o seu caminho. Pouco depois chegou um par de polícias.
"O que é isto?" perguntou um deles.
"O gaje dê um terne no cano e na se pode indireitar", disse um garoto.
"Anda!" disse o polícia, deixando de sacudir Davis pelo ombro, mas dando conta do cheiro do clarete de Lady Geraldina. "Levanta-te!"
"Está bem!" respondeu Davis débil e vagarosamente. "Deixem-me só. Prefiro estar deitado aqui. Não posso andar."
"Oh, podes com certeza!" exclamou o polícia. "Talvez penses que te vamos levar de carrinho." Dizendo isto levantou o pregador, com a assistência do seu camarada. "Vamos pra frente", continuou o guarda, dando-lhe um safanão; "tu podes andar bastante bem se quiseres."
"Que direito tem você para pôr a sua mão em mim?" perguntou Davis, estimulado pela violência com que o tinham levantado.
"Agora, nada de asneiras, ou será pior para ti", respondeu o polícia com dureza.
375
Davis, durante um momento, contemplou-o irado; mas as suas ideias sobre o que estava a acontecer eram tão confusas que se submeteu, preferindo ir onde eles quisessem levá-lo a executar o esforço de fazer outra objecção. Até então, nunca gostara que as mãos dos homens lhe tocassem. Durante alguns metros caminhou bem. Depois cambaleou e tentou encostar-se a um dos polícias, que o repeliu com rudes sacudidelas, seguidas de um empurrão. Davis escapou-se ao guarda, andou à roda e agrediu-o no rosto. Mal soube o que se seguiu. Vacilante e quási sufocado, compreendeu que o estavam a arrastar, que os nós dos dedos dos polícias lhe amolgavam o nariz e que lhe apertavam e torciam os braços. Algum tempo depois voltou um pouco a si, e pôde então verificar que se encontrava num posto policial, com o fato rasgado e coberto de lama, o chapéu deformado, e isto enquanto um inspector tomava conhecimento da bebedeira e da agressão pela boca do polícia irado e com um olho negro. Pediam-lhe agora o nome e a morada.
"Não estou embriagado", disse. "O meu nome é St John Davis. Peço que me enviem um médico para os certificar que me encontro mal, mas não ébrio. Quero estar deitado em qualquer parte." Quando disse isto, a sua atenção delirou e a nada mais deu sentido até que o sacudiram outra vez. "Conheço a lei tão bem como você", disse por fim. "Tenho também o direito de falar nesta casa. E ouso dizer-lho para que não me impeça de o fazer. Vou mandar prender este polícia já e com ele no calaboiço até as grades ficarão envergonhadas."
Isto provocou algumas gargalhadas; levaram-no para uma cela sem mais cerimónia.
"Não estou bêbedo. Estou seriamente mal", protestava ele, enquanto tropeçava.
"De manhã estarás melhor", respondeu jocosamente um guarda, ao mesmo tempo que lhe fechava a porta.
E, na verdade, na manhã seguinte Mr Davis estava morto.
376
QUARTA PARTE
NAMORO
CAPÍTULO I
Durante o outono, a casa de Queens Gate esteve arrendada a um oficial da polícia e sua mulher. Mr Woodward viveu em Rosstrevor e sua irmã em Dublin. O secretário fora convidado a dispor da sua liberdade até à volta dos patrões; não abandonou, porém, Londres; a preocupação e a despesa de umas férias aterrorizavam-no mais pelo seu acanhamento e inexperiência do que o prazer da perspectiva de mudar de ares. Continuou a bater diariamente à porta de Queens Gate, onde despachava as poucas cartas que aí se recebiam; levava alguns livros do patrão quando se sentia disposto a ler e, por vezes, via os álbuns, onde havia fotografias de Isabella, com saias de balão e sombrinhas japonesas, vistas de praias e tempestades de neve. O resto do tempo gastava-o a passear, a ler (coisa por que, na verdade, sentia o seu gosto a declinar) e a relembrar as tentativas de poesia, estas últimas com maior sucesso do que as dos tempos de Islington, sobretudo desde que se tornara menos sentimental e mais crítico. Depressa, receoso de se deteriorar com a preguiça, começou a meditar uma mudança no seu modo de vida. Reflectiu que podia ao mesmo tempo perder o seu lugar por morte ou por capricho de seu amo, e que um secretariado particular podia até servir de má recomendação para outro emprego de escritório. Após alguma meditação e busca de informações oficiais, resolveu, por conseguinte, obter uma nomeação de Mr Woodward e apresentar-se perante o Civil Service Commissioners (Serviço Civil de Agentes) para exame dos assuntos julgados necessários para a admissão como escriturário na secção de ciência e arte em South Kensington. Tendo isto em vista, fez reaparecer uma manhã à luz do dia os seus livros escolares e, enquanto gastava perto de uma hora a pensar nas cenas que a sua aparência, a sua impressão e as suas folhas lhe recordavam, começou a encher a memória com nomes geográficos, definições de simunes, de correntes e operações sobre fracções decimais. Como a sua experiência
381
nos livros-caixa de Figgis e Weaver o qualificara capaz de praticar sem dificuldade façanhas com somas compostas, e como as suas lições com Harriet tornaram mais sólidos os seus conhecimentos de francês, a única língua estrangeira exigida, depressa verificou que não havia razão para duvidar que, se obtivesse a admissão a concurso, poderia conseguir bons resultados no exame. Resolveu ainda obter a ajuda dum perito como melhor método de preparação, e, por isso, respondeu ao anúncio de certo Mr Sadler, cuja ocupação consistia em preparar candidatos a satisfazer ou enganar os professores nomeados para os examinar. Este cavalheiro recomendou a Smith que viesse estudar com ele, de noite, em sua casa, situada na Tavistock Square, durante três meses. Smith, em resposta, perguntou-lhe as condições em que o aceitaria por duas semanas. Mr Sadler, enquanto lhe assegurava que a questão poderia resolver-se num mês por um guinéu, concordou em aceitar três libras, dez xelins e seis dinheiros. Smith pagou-lhe esta quantia e nos princípios de Setembro dirigiu-se, pela primeira vez, a Tavistock Square.
Perguntou por Mr Sadler numa grande cancela pintada havia já vários anos, mas que, em compensação, fora borrada com tintas quási diariamente durante o mesmo espaço de tempo. A janela, sem cortinas, estava obscurecida por uma chapa de zinco furado e ainda por grande abundância de lama. A mobília consistia em dois armários de madeira, uma grande mesa, certo número de cadeiras, com a madeira trabalhada, fundo de cana - umas, estofadas outras, todas mais ou menos partidas, com os assentos rebentados e rasgados. Sentados à mesa estavam alguns rapazes que escrevinhavam em folhas de papel e olhavam para os volumes abertos na sua frente com expressão confusa, que, pela sujidade das cabeças e do vestuário, sugeriu a Smith chá forte a horas tardias e fraca compreensão. Quando entrava com Mr Sadler, o ruído de vozes desapareceu e um homem ainda novo, cujo braço estava levantado a fim de arremessar um pedaço de pão, pretendeu fingir que coçava a própria face. Quando se arranjou um lugar para o recém-chegado, e imaginado um trabalho que atestasse as suas faculdades ortográficas, o maçador (assim definiam tecnicamente Mr Sadler) tomou o seu lugar numa carteira na extremidade
382
da mesa e retomou as suas ocupações, que naquele momento diziam respeito a quatro discípulos que interpretavam Horácio. Um deles apresentava elegante vestuário e maneiras arrogantes; oferecia, sem qualquer receio, soluções erradas a cada dificuldade proposta por Sadler e nunca admitia os seus erros quando lhos apontavam. Dois outros eram rapazinhos agradáveis, aparentemente superiores aos restantes em inteligência, mas negligentes incorrigíveis no estudo. Um pálido adolescente, com grande casaco e capuz de lã, que se sentava junto de Smith, informou-o de que estava já farto da licença que obtivera numa repartição pública. Smith, desejando ser agradável, exprimiu-lhe a sua simpatia e o desejo de saber se uma licença era fácil de obter nos meios oficiais. O mancebo respondeu que, em consequência da repartição pública em questão estar edificada sobre um cano de esgoto, mais de metade do pessoal estava geralmente incapacitado pela febre tifóide, e que o seu principal objectivo, ao procurar destino noutro lugar, era salvar a própria vida. Era de opinião que os méritos profissionais de Mr Sadler estavam muito acima do normal. Isto fez Smith recobrar coragem, cuja confiança no maçador fora abalada pelos outros estudantes, que lho denunciaram como um patarateiro, sempre que ele deixava o compartimento.
No fim duma hora, Smith, acostumado a solitária independência, começou a sentir-se descontente naquele estado de tutelagem entre rapazinhos de liceu ou de escola. Esteve ocioso o resto do tempo à espera duma informação que contivesse particularidades dos exames prévios para o cargo a que pretendia concorrer, pensando, por outro lado, que se a comprasse de antemão, salvaria os seus três guinéus e meio.
"Bem, Smith", disse Sadler, espreguiçando-se e erguendo-se, quando o novo discípulo se preparava para abalar, "você fez progressos?"
"Não fiz muitos esta noite."
"Não sei se fez", respondeu o maçador com secura. "Sabe que para passar terá de depender só de si. Eu não o posso fazer trabalhar. Eu apenas posso dizer-lhe em que deve trabalhar."
"Isso é muito certo. Estive a olhar para os papéis e não
383
me senti particularmente preocupado com o sucesso. Se houvesse envolvido nisso qualquer testemunho da minha habilidade, poderia sentir-me duvidoso. Mas assim, se eu puder conseguir lembrar-me de alguns nomes e regras até ao acto de exame, tenho a certeza de que me safarei." ,
"Ah, certamente!", comentou Mr Sadler, com sarcasmo.
"Bem", disse Smith, irritado a seu modo, "o que deve qualquer exame provar além de memória?"
"Não pode passar em composição inglesa e em matemática só à força de memória. Mas fugiu à questão. Não se trata de saber se o sistema é perfeito, mas se você está ou não em condições de se apresentar ao acto. Ou teremos ainda de voltar aos empenhos?"
"Em todo o caso, houve alguns homens que caminharam por esse sistema", disse Smith com acinte.
"Bem", disse Sadler, levantando-se novamente, "se não gosta do sistema, poderá caminhar sozinho mais à vontade. Ninguém deseja forçá-lo a aceitar o serviço do governo. presumo também que não deseja ser admitido no lugar que pretende para nada fazer."
"Não, certamente", respondeu Smith. "Boa noite!"
"Boa noite", disse Sadler. "Amanhã às sete em ponto. Não venha tarde."
Smith não respondeu.
"Pensar que dei a este idiota a exorbitância de quási quatro libras!" disse quando se encaminhava para a estação de Gower Street. Pensou então no que podia ter comprado com aquela quantia. "É muito certo", concluiu. "Vou-me arrastar durante estas tardes calmas de outono naquela sórdida espelunca."
Apesar desta declaração, para lá foi na noite seguinte, para que depois não se censurasse com rapidez rabujenta. Mas a segunda prova pareceu-lhe menos tolerável do que a primeira e, no fim de uma hora, alegou ocupação e deixou Mr Sadler mais condescendente do que mal humorado. Nunca mais lá voltou, nem mesmo escreveu a desculpar-se, sentindo que iria dizer uma mentira; o silêncio deveria ser menos ofensivo do que a explicação. Sadler não o aborreceu com perguntas. Na primeira noite de ausência do seu discípulo, perguntou : "Onde está Smith?" E na segunda: "O que teria sucedido a Smith?" Na terceira, "É muito
384
esquisito que Smith não tenha enviado uma palavra dizendo o que isto significa." Na quarta, observou aos estudantes que considerava o comportamento de Smith muito impertinente, mas que isso não o podia molestar de maneira nenhuma. Acabou por esquecê-lo.
Certa manhã Smith encontrou em Queens Gate uma carta que lhe era dirigida, escrita em caligrafia desconhecida, com a marca do correio de "Warrenpoint", lugar de que nunca ouvira falar. Deu voltas ao sobrescrito com suspeitas; depois abriu-o e tirou dele quatro folhas de papel, a primeira das quais estava encimada por estas palavras: "Carlingford House, Rosstrevor". Era, evidentemente, de Isabella. Tornou a pôr as folhas no sobrescrito; subiu à sala de visitas; olhou para o álbum e dirigiu-se a Kensington Gardens, onde tomou uma cadeira ao Sol, e leu:
"Caro Mr Smith:
"Fica admirado, bem o sei, por eu lhe escrever, não fica? mas tenho de desabafar os meus sentimentos, mesmo os mais delicados, com alguém. Além disso, eu gosto sempre de escrever às pessoas em cuja compreensão eu posso confiar...
(Smith levantou a vista da carta para o cimo das árvores e sorriu).
"...Não pode conceber como este lugar onde estou é bestial. (Sei muitíssimo bem que é pouco decente senhoras sublinharem as suas cartas; mas nenhum outro espírito poderia exprimir tão bem o que eu sinto sobre Rosstrevor sem ênfase muito particular. É realmente muito bestial). Em primeiro lugar, nenhum inglês pode possivelmente imaginar como são por completo detestáveis estas povoações ao norte da Irlanda. Nada têm em absoluto que seja irlandês; apenas uma espécie de mestiçagem escocesa; as horas de descanso gastam-se em brigas e a escrever coisas indecentes nas paredes sobre o rei Guilherme ou o Papa, conforme as opiniões de cada um. São pouco corteses, avarentos, grosseiros, falsos e ferozes. Admito que sejam asseados, mas eu preferia muito mais estar entre os meus sujos, geniais, pitorescos e mandriões camponeses do sul.
385
"Carlingford Lough é uma baía muito larga com uma saída apertada, cercada de montanhas, a maior parte das quais têm enormes rochedos nos cimos, que o povo lhe afirmaria terem sido arrastados até ali das regiões situadas no lado oposto por gigantes parentes de Finn McCoul, se é que o senhor já ouviu falar dele alguma vez. Se se estiver, em Warrenpoint, situado na extremidade do lado da terra da lagoa, e se olhar para o mar, Rosstrevor fica para o lado esquerdo, uma ou duas milhas pelo litoral, e Greenore encontra-se mais para a direita. De Warrenpoint fomos há dias a Greenore no vapor; reparámos então nada mais ser do que um banco de areia, com estação de caminho de ferro, oficinas de gás, e um armazém de guarda-costas aí edificado. Há quem faça excursões até lá como quem Vai a Hampton Court, mas todos voltam desgostosos por nada terem visto. É a maior impostura que eu conheço em panoramas, à excepção de Shanklin Chine; e contudo isto produz alguma satisfação aos infortunados ingleses (espero que não me vai julgar muito pessoal) que nunca estiveram em Dargle, e, por conseguinte, não se lhes pode exigir que saibam fazer distinção entre um rego e um verdadeiro vale.
"Outro convite que nos fizeram consistia na visita a Bessbrook, a aldeia modelo, cujos habitantes nem blasfemam, nem se embebedam, mas parece-nos que apreciam muito uma e outra coisa. Este lugar teria real e sinceramente feito Mr Ruskin gritar se o visse, tão feio é ele. Nada mais do que uma fábrica gigantesca, cobrindo com a sua sombra algumas ruas cinzentas e hediondas, onde vivem os operários. Nos terrenos da fábrica encontra-se o tanque das máquinas hidráulicas. com o fim de o assemelhar o mais possível a um lago, mantêm aí um cisne, que, disso estou eu certa, passa o tempo a lastimar que não se possa afogar. Não quis que me mostrassem a fábrica, e nós voltámos todos irritados. O pior de Bessbrook é que nunca se suspeita da sua existência quando se caminha ao longo dum inocente atalho até ao momento em que se tem de virar uma esquina; e vimos que está informada da civilização unicamente pela presença do poste do candeeiro público quando o negrume nos envolve com o seu acinzentado estéril e lança o nosso espírito para a lembrança do que seja um dia. A cidade mais próxima de nós é Newry, um buraco
386
de escuridão indescritível. Atravessam-na um canal, um rio e dois ramais de caminho de ferro, mas que parecem quarenta quando se passeia pela cidade e se encontra uma ponte ou uma passagem de nível por cada meia dúzia de jardas que se percorra. Se puder imaginar um feixe de chaminés de fábricas, alguns mercados onde erram bandos de gado, amarrados todos e vindos do fundo dum vale escuro, terá, para toda a sua vida, uma imagem de Newry. Em comparação, Blackwall é quási parisiense. Rosstrevor parece-me inegavelmente linda; mas é monótona e a vida aqui decorre opressivamente vagarosa. A Cultura compreende-se aqui tão mal como em quási toda a Irlanda; os naturais mostram-se chocados quando lhes falo de teatro, e qualquer tentativa de vestuário artístico, põe a menear portentosamente todas as cabeças do lugar. Eu podia considerá-la no meu íntimo digna para sempre de motejos, sobretudo quando estou na minha terra; mas ponho fora a consideração por quaisquer sentimentos e contenho-me. A única instituição sensível na ilha de esmeralda é o absentismo.
"Acabo de receber uma carta de Miss Scott. Diz-me que a cunhada lhe escreveu de Roma há já alguns dias, e que o feliz casal se encontra muito bem, só o noivo tem sido mordido pelos mosquitos. Como deve estar furioso! A noiva está, certamente, já habituada a dominá-lo, e isso até deleita, como novidade da sua posição.
"Não tenho mais notícias a dar-lhe. Vamos lá a ver se eu as tenho a meu e a seu respeito; aqui as discussões limitam-se aos assassínios e desordens que de tempos a tempos lançam um raio de excitação sobre a nossa comunidade social. Parece, na verdade, surpreendente que esta vida possa ser tão estúpida, quando o espírito popular é tão explosivo.
"Peço-lhe agora que me faça um favorzinho"...
("Bem pensava eu", disse Smith.)
"... mas muito em particular. Quer dizer: não é perfeitamente particular; mas eu preferiria que mais ninguém tivesse conhecimento dele. Desejava eu que o senhor fosse à gaveta de cima do lado esquerdo do meu toucador e tirasse um estojo de marroquim que lá há-de encontrar, segundo
387
me parece, num dos cantos, junto de um maço de ganchos. Julgo ser o único estojo que se pode encontrar no toucador; não se deve, por isso, enganar. Se introduzir no embrulhinho a nota inclusa e o levar imediatamente a Mr Hawkshaw no N.º 16-b Ladbroke Grove, Notting Hill, ter-me-á prestado um inestimável serviço e mostrado uma sincera amizade. Não sei o que pensa do meu pedido, mas nada há nele de estranho. Mr Hawkshaw deseja o estojo imediatamente e não tenho outro processo de lho restituir, a não ser por seu intermédio.
"Receio ter sido terrivelmente prolixa, mas o dia está hoje muito chuvoso e nada mais posso fazer senão escrever. Suponho que já teve notícias do papá e que sabe tanto dele como eu. Clytie está a provocar uma pequena sensação em Dublin, o que não é muito difícil nesta terra. Ora deixe ver... Não, nada mais tenho a dizer, quer chova, quer não. Creia, caro Mr Smith, sinceramente na
Isabella Woodward."
"P. S. - Não fará certamente menção disto a ninguém. Seria perseguida por perguntas sem fim."
Smith tornou a ler a parte final da carta.
"O caso é", pensou, "que deve haver qualquer rotura para Woodward proceder como medianeiro de sua filha; nisto tudo deve haver uma intriga de qualquer espécie, e, se assim não fosse, para que faria ela tanto segredo com aquilo?"
Quando voltou a Queens Gate, considerou se a explicação dada na carta seria verdadeira. Não havia razão que impedisse Isabella de pedir emprestado um estojo de marroquim ao poeta, e de não lho restituir logo. Por consequência, não havia outro processo de restituição que parecesse plausível a não ser o que ela adoptara.
"No fim de contas", concluiu Smith, "não posso recusar o que ela me pede sem a ofender; nada mais tenho, pois, a fazer senão obedecer. Preferia que ela tivesse recorrido a outra pessoa."
Quando chegou a casa, soube que o correio da Irlanda
388
chegara durante a sua ausência, e que lhe trouxera um sobrescrito e um embrulho. Consistia este numa caixa de papelão com algodão de joalheiro e uma chave. Dentro do sobrescrito vinha uma nota brevíssima sem direcção, mas envolvida num pedaço de papel onde Miss Woodward escrevera: "Patrick Hawkshaw Esq., 16-b Ladbroke Grove. P. E. F. de Robert Smith Esq. (1)". Smith pegou na chave e perguntou à criada qual era o mais bonito dos quartos da senhora da casa. Respondeu, desconfiada, que não sabia. Smith subiu as escadas preocupado como um ladrão inexperiente.
O primeiro quarto em que entrou pareceu-lhe ser o que procurava, pelo crucifixo pendurado na escarpa da chaminé e pela reprodução da Monna Lisa de Leonardo de Vinci por cima dela, escolhida aparentemente, na ausência duma Madona, como a sua melhor substituta. Smith examinou o mobiliário do compartimento, luxuoso em comparação com o das águas-furtadas de Islington e Chelsea. Levantou as galerias e admirou a sua imagem completa no espelho do guarda-roupa. Cheirou os frascos de vidro lapidado que se encontravam em cima da mesa e abriu as caixinhas espalhadas sob o vidro do toucador, nas quais encontrou dois papéis frisados, uma borla de pó inutilizada, uns brincos partidos, um medicamento especial para calos e grande quantidade de cabelos. Introduziu depois a chave na gaveta de cima do lado esquerdo da mesa, onde encontrou o estojo de marroquim entre os ganchos, tal como Isabella indicara. Tornou a fechar a gaveta e levou o objecto que procurara para o escritório, onde o abriu a fim de colocar nele a nota. Continha um broche e um par de brincos com pingentes de feitio bastante incómodo, minuciosamente trabalhados em ouro fosco, com um desenho que lhe fez lembrar os enfeites da orla dum velho relógio de algibeira que ele vira em tempos a seu avô. Estavam armados com diamantes, alguns dos quais eram do tamanho de grãos de pimenta; Smith chegou à conclusão de que, se as pedras eram autênticas,
(1) Esq., abreviatura de Esquire, à letra, escudeiro; título honorííico, mais ou menos equivalente ao Ex.mo Sr. em português e ao Don em espanhol. Os ingleses usam esta abreviatura nas direcções das cartas em vez de Sr. - N. T.
389
o conteúdo do estojo devia ser muito valioso. Ocorreu-lhe então que se os artigos pertencessem, não a Hawkshaw nem a Miss Woodward, mas a seu patrão, ele poderia ficar implicado num roubo. No entanto, como não considerava Isabella capaz de furtar qualquer coisa a seu pai, pôs o estojo de marroquim na algibeira, dirigiu-se a Notting Hill e resolveu acreditar na possibilidade de o caso se resolver sem prejuízo para alguém.
Não eram ainda onze horas da manhã quando chegou a Ladbroke Grove; a criada abriu a porta do N. 16-b, e disse-lhe que Mr Hawkshaw se encontrava na cama. Smith mandou anunciar o seu nome, alegando assunto particular. Foi então conduzido até defronte da sala, cuja mesa estava pronta para o almoço e a porta com uma das batentes aberta, descobrindo um quarto de cama, para onde o poeta o convidou a entrar. Em consequência disso, passou pela porta e foi encontrar Hawkshaw no leito, com uma mesinha na frente, sobre a qual se encontravam algumas garrafas de soda, outra de aguardente e um copo.
"Bom dia, Mr Smith", disse ele, levantando preguiçosamente a cabeça desgrenhada da almofada. "Desculpe-me. Desejo-lhe tudo o que possa haver de imaginável em saúde, riqueza e sabedoria; quanto a mim, venho para a cama tão tarde que, se me levanto cedo, fico parvo para todo o dia. Já almoçou?"
"Almocei há já três horas, muito obrigado."
"Louvado seja Deus! Tal é o poder da poesia. Dr. Watts era o maior dos professores de canto. Deseja um bocado de aguardente com soda? Não. Homem feliz, que se fortifica na calma sombra da temperança. Sente-se, faça favor."
Smith, pouco à vontade, sentou-se perto da cama. Hawkshaw estava ansioso por saber de que assunto se tratava. Ambos, no entanto, meditavam no poder que cada um possuía para desconcertar o outro.
"Pedi para lhe falar em consequência de esta manhã ter recebido uma carta de Miss Woodward."
Hawkshaw pensou que a visita podia ter como causa o ciúme.
"Ela disse-lhe, sem dúvida", começou o poeta, "que eu estive durante as últimas três semanas em Rosstrevor - um sítio bárbaro, onde só há água, lá no norte da Irlanda.
390
Só cheguei aqui anteontem, após uma execrável viagem via Greenore e Holyhead."
"Não me disse uma palavra."
"É singular!" comentou Hawkshaw, com um sorriso. "Como éramos os únicos seres racionais lá do sítio, andávamos sempre na companhia um do outro. Ou Miss Woodward é a mais esquecida das mortais, ou o senhor deixou de fazer parte, e de maneira muito extraordinária, do número dos seus confidentes."
"Pelo contrário, - encontro-me entre eles muito mais do que eu desejava."
O ar de zombaria de Hawkshaw transformou-se em suspeita.
"O que quer dizer?" perguntou com frieza.
"O que isto lhe diz", respondeu Smith, exibindo o estojo de marroquim.
Hawkshaw olhou para o objecto.
"Isto é dramático, Mr Smith", afirmou ele, fitando o interlocutor com ar divertido, "mas, tal como certas circunstâncias dramáticas, muito incompreensível."
"Não compreende, então?" perguntou Smith, pressentindo que a explicação de Miss Woodward era falsa.
"A menos que se trate dum caso de pistolas, no que eu não creio, para crédito do seu senso comum", respondeu o poeta, tornando-se pálido.
"Pistolas!" repetiu Smith, perdendo também a cor e confundido pela observação, para cuja importância ele em nada contribuíra.
"Em resumo, Mr Smith, que diabo quer o senhor dizer com isso tudo?"
"Miss Woodward..."
"Não falemos de Miss Woodward, se faz favor. Queira limitar a conversa só a nós."
"Não o compreendo", disse Smith, indignando-se com esta interrupção, "mas, se assim entende, vou enviar a Miss Woodward essa resposta." Enquanto falava, levantou-se com a intenção de abandonar o quarto.
"Um momento!" disse Hawkshaw. "Vejo que não nos estamos a entender. Queira sentar-se e explique-se, peço-lho encarecidamente."
"Miss Woodward escreveu-me a pedir que lhe restituísse
391
este estojo. Fui buscá-lo a uma gaveta em casa de Mr Woodward durante a ausência da família; descobri depois como o seu conteúdo é valioso. A sua carta, que procurava esgotar todas as notícias da visita que fizera a Rosstrevor, nada mencionava da estadia do senhor lá. Descrevia também este estojo, dizendo que lhe devia ser restituído, mas verifica-se agora que Mr Hawkshaw nunca o tinha visto. Desculpe-me que lho diga, mas parece-me verificar que não sabe o que há-de pensar deste assunto. Também eu. Este é que é o caso. Pode encontrar uma nota no embrulho, onde eu mesmo a pus."
Hawkshaw pegou no estojo; olhou confuso para as jóias durante um momento e abriu, por fim, a nota. Era breve e, enquanto a lia, corou, e depois pôs-se a olhar irresolutamente do papel para os diamantes e deles para Smith, cujo olhar procurou evitar, virando-se na almofada e fingindo ler a nota outra vez. Depois disse, bastante atrapalhado:
"Muito obrigado, muito obrigado. Está tudo certo."
"E agora, Mr Hawkshaw", disse Smith, "queira ter a bondade de me dar um recibo destas jóias."
"Mas porquê? Recebeu instruções no sentido de obter provas documentais de eu as ter recebido?"
"Não. Peço-as por iniciativa minha. Penso que o senhor admite como é desagradável a minha posição neste caso, e, como homem de negócios, desejo aumentar as minhas autoridades documentais relativas ao facto de eu ter ido buscar uma porção de diamantes à gaveta duma casa vazia, e, por similar evidência, de ter disposto deles de forma honesta."
"Mas julga que se pode levantar alguma questão?" perguntou Hawkshaw com ansiedade.
"Nada sei a esse respeito. Quando eu obtiver o seu recibo, ficarei em condições de poder provar que fiz o que me mandaram. Sem ele, posso ser apontado como o ladrão dos diamantes e não terei possibilidade de provar que os entreguei."
"Mas eu posso prová-lo. Não duvida certamente da minha honra."
"Suponha que perde as jóias e que morre no dia seguinte", respondeu Smith, no mesmo tom realista com que os empregados de Figgis e Weaver se acostumaram a
392
propor semelhantes dilemas aos fregueses que se colocavam atrás da honra".
"Está certo", disse ironicamente Hawkshaw. "O senhor é, na verdade, um autêntico homem de negócios, e as razões que apresenta para obter um recibo são irrecusáveis. Mas as razões por que eu lho daria não são também claras. Suponha agora - para adoptar o seu hipotético estilo de argumento - que o senhor ia vender o meu recibo ao pior dos agiotas logo que o obtivesse! Esse procedimento ficaria muito bem a um homem de negócios. Dispondo duma comodidade negociável, que poderia haver de mais natural do que colocá-la como caução?
"O que quer dizer?" perguntou Smith, compreendendo-o, mas fingindo desconcerto, para afastar a agitação. "Que valor pecuniário se poderia atribuir a um recibo desses?"
"Não, obrigado, Mr Smith", disse Hawkshaw, atirando-se para trás e sorrindo friamente já com a cabeça na almofada: "não sou negociante, e oponho-me a ser interrogado. Para terminar: estou-lhe imensamente grato por tão gentil cumprimento da comissão da sua patroa e recuso-me positivamente a entregar-lhe qualquer aviso de recepção escrito, porque não vejo que o senhor tenha tido qualquer interferência na transacção, a não ser a que o carteiro tem no conteúdo das cartas que entrega."
"Todo o carteiro pede um recibo da correspondência registada."
"Bem respondido", respondeu Hawkshaw, observando com satisfação que o secretário perdera a presença de espírito; "mas não pretendo discutir a conclusão já apresentada. Como as nossas disposições parecem ter-se afastado daquele grau de proximidade que tão necessário é às relações cordiais, talvez não me julgue pouco hospitaleiro se eu sugerir que nos afastemos agora com expressões de mútua consideração."
"Não, porque não tenho pelo senhor qualquer consideração. Vou informar Miss Woodward de que lhe trouxe as jóias e que não consegui obter qualquer agradecimento, a não ser uma involuntária vergonha."
O rosto de Hawkshaw modificou-se num instante, e Smith saiu acrescentando um "bom dia", sentindo que fora
393
ele próprio quem vibrara o último e mais forte golpe. Quando, no regresso, passava por Notting Hill Gate, amaldiçoou a insolência do poeta, posto que preferisse dar-lhe uma sova, desde que soubesse por que maneira.
Quando chegou a Queens Gate, procurou alívio deste estado de espírito escrevendo a Isabella a narrativa de tudo o que se passara; mas, quando acabou, a sua calma estava em parte restaurada e, ao ler o que escrevera, achou-se tão comprometido com a redacção que rasgou o papel e compôs uma segunda e mais dignificante carta. Depois de ter despachado a missiva e a chave para a Irlanda, foi para casa estudar e meditar na sua aventura, alternadamente, durante o resto da tarde.
394
CAPÍTULO V
Carlingford House, em Rosstrevor, estava situada num terreno em declive entre uma estrada, da qual o viajante podia olhar o respectivo telhado, e o mar, que molhava as bases rochosas do jardim. Isabella encontrava-se sentada neste, só, acompanhada dos instrumentos necessários para esboçar. Era meio-dia e havia uma névoa nos raios solares que fazia sentir a impressão de tremura nos objectos distantes, quando vistos através daqueles, o passo que os sons pareciam vir intactos da praia de Sough. Não obstante os seus preparativos, Isabella não pintava, pois deixava-se estar reclinada no chaile que estendera sobre a relva por baixo dum velho toldo de carroça que lhe servia de tenda. Uma carta fechada encontrava-se sobre o chaile, atrás dela. Outra, que era como segue, conservava-a na mão:
"16 b Ladbroke Grove, 27 de Setembro
"Minha belle Belle:
"És generosa como linda. Como te hei-de dizer em prosa o que não sou capaz de te contar em poesia? Ai de mim, meu querido amor, rainha das ilhas de coral, feiticeira do Atlas e minha benigna deusa encerrada como relíquia no mais oculto nicho do meu coração dos corações, a lâmina da minha pena está tocada pela carga da gratidão que eu quisera impor-lhe. A linguagem vulgar é muito fria e a hipérbole muito artificial para exprimir a profunda mas espontânea humildade, o puro êxtase que o teu sublime acto me causou. Ah, meu amor! deste-me com mãos benignas e eu beijo-as ambas através do Canal de S. Jorge. Que estas estrelas substituam o que eu quero exprimir, mas que não posso escrever. Salvaste-me do exílio e da mendicidade.
"E agora deixa-me dizer-te, minha querida, que eu não quero de maneira alguma abusar da tua munificência até
395
ao ponto de esbanjar a tua linda herança. Receio fazer figura triste se não o restituir imediatamente, e se não me julgar rico sem limites por possuir o coração que o ofereceu. Mas o facto, minha querida Isabella, é que não pode haver no mundo coisa tão honesta -ainda que eu tenha esquecido quási tudo à excepção do amor. As minhas dívidas são verdadeiras dívidas e seria orgulho indigno da parte do teu eleito se as procurasse esconder e roubar os meus créditos mais depressa do que pedir emprestado uma jóia do teu alvo colo, que não precisa de ornamentos para conservar a sua beleza...
(Isabella parou para reflectir e começou a parecer desconsolada).
"... Numa palavra, não venderei os diamantes, mas conseguirei com eles o dinheiro suficiente para afastar as minhas dificuldades imediatas e para me conceder o tempo necessário para terminar o meu livro e entregá-lo aos editores. Nada posso, evidentemente, esperar dele, porque lho hipotequei já tão pesadamente que estou meio receoso de que a sua venda mal os possa reembolsar. Feito isto, vou trabalhar como até agora nenhum homem trabalhou para realizar outro volume e fazer Simonton produzir um drama que eu já planeei, conservando sempre diante de mim a tua imagem para me encorajar todas as vezes que eu enfraqueça. Hei-de, por isso, desempenhar os teus adornos e levar-tos em triunfo, e (quem sabe?) talvez até a dizer-te: "Sou rico e famoso e não será preciso esperar muito para pedir a tua mão." Entretanto, o Céu sabe como preciso de coragem. Terei de viver como um ermita, trabalhar furiosamente nesta penosa tarefa de criticar. A fama é uma moça com pés de chumbo. Pedi, na semana passada, a Tabuteau, meu editor, outro adiantamento, e eu estava bastante aflito para não dizer uma palavra acerca da minha crescente reputação. Ele retorquiu, com aquele prazer de fazer o "bota-abaixo" dos homens sensíveis que ele distingue de toda a tribo dos negociantes, que a minha reputação se estabelecera tão bem na pandilha a que pertenço que ninguém tem dúvidas sobre a facilidade que ela terá em se espalhar sobre um raio de quatro milhas no espaço de alguns anos. Tive de
396
rir; devo-lhe muito dinheiro, Julga agora se não tenho ainda mais razão para te amar, a ti, que me abriste uma porta doirada por onde posso escapar a esta escravidão.
"A propósito de homens de negócio, lembrei-me agora, por muito incrível que isso possa parecer, que tenho qualquer coisa a censurar-te. Como podes ser tão precipitada que vais meter num assunto tão delicado o secretário de teu pai? Sempre desconfiei dele e desempenhou a missão de que tu o incumbiste de uma maneira que muito confirma as minhas suspeitas. Teve a audácia não só de me pedir uma prova da entrega para sua satisfação própria, mas também, em consequência da minha recusa, de sugerir muito directamente, que eu me encontrava em tais relações contigo que até podia aceitar um roubo. Disse-lhe que se fosse embora, mas eu não o teria feito assim tão depressa se nessa altura não estivesse ainda na cama, e portanto, não me encontrava em posição de arriscar uma disputa com ele. Quando, porém, meditei a frio e só sobre o caso, acheio-o bastante divertido, mas confesso que me irritou ouvir o teu nome na boca desse jovem malcriado e rigorista. Peço-te o favor de lhe escreveres imediatamente, exigindo que ele te devolva a tua carta de instruções, porque estou quási certo que ele é muito capaz de a utilizar para te extorquir dinheiro ou para obter favores de teu pai, fazendo-lhe saber coisas desagradáveis a teu respeito. A tua dádiva foi profanada pelo contacto deste emissário tão detestável. Livra-te sempre dos rapazinhos cristãos que afectam grande franqueza quando falam. Smith não passa de má imitação dos piores aspectos da sua amiga Mrs Scott, com a adição de alguns outros vícios que lhe são peculiares. Mas já disse bastante acerca dele, pois nada tem que o faça entrar no nosso meio. É uma fortuna que ele não tenha relações.
"Quando, em nome daquela eternidade que existe em cada minuto de separação, poderei voltar a ver-te? Não queres, certamente, permanecer no Ulster para sempre. Está já muita gente em Londres. Suspeito até que mais de metade dos nossos conhecimentos não chegaram a sair. Grosvenor está em Milão, mas pretende passar o inverno em Perspective. Lady Geraldina está onde ela devia sempre estar: a dirigir a queijaria de Devonshire. Nada mais ouvi dizer sobre Cyril Scott desde que partiu; não estranho, no
397
entanto, tal facto, pois sei que ele prefere pintar trinta quadros a escrever três linhas. Eis no que se resume o meu actual depósito de má-lingua.
"O meu relógio diz-me que tenho de deitar imediatamente esta carta no marco postal, se não quiser perder a tiragem. Deixa-me ainda agradecer-te mais uma vez e abençoar-te, posto que estes sentimentos, genuínos como são, nada mais sejam do que exuberâncias do meu amor e do meu orgulho de possuir uma amada como tu. Eu estava quási tentado a invejar o humilde zagal que cobre a sua distante senhora com beijos por intermédio da simples estenografia do sinal da cruz. Espero, contudo, consegui-lo em delirante actualidade muito em breve. Até então, pensa ao menos uma vez por dia no sempre teu
Patrick Hawkshaw."
"Uff!" exclamou Miss Woodward, olhando para o papel com ar crítico, tão habituada estava ela a receber cartas de amor. "Bastante exagerado. Se ele é assim, não deve passar dum pobre desgraçado e eu fui muito louca em lhe enviar os meus diamantes! Faço ideia o valor deles! A mamã dizia que andava à roda de quinhentas libras, mas deve ser erro. Ora vamos lá a ver qual é a versão do detestável emissário. Muito eu gostava de os ver à bulha - os loucos!"
"300 Queens Gate, Kensington, 27 de Setembro
"Prezada Miss Woodward:
"Recebi esta manhã a sua carta e fui imediatamente entregar o estojo a Mr Hawkshaw, ao seu quarto em Ladbroke Grove, como me pediu. Envio a chave no mesmo correio.
"Penso ser minha obrigação comunicar-lhe que, quando descobri o valor do conteúdo do cofre e compreendi pelos modos de Mr Hawkshaw que ele nunca o tinha visto nem esperava recebê-lo, excedi as suas instruções pedindo um escrito onde se provava a sua recepção. Devo ainda acrescentar que não procedi desta maneira em seu interesse (embora me ocorresse depois que se eu tivesse feito o pedido em vosso abono, ele se tornaria mais plausível e realizável),
398
mas apenas para um dia poder provar, no caso de surdir qualquer dificuldade, que eu dispusera honestamente destas valiosas jóias, que eu tomara na ausência da família da casa onde tive o privilégio de entrar. Receio que fique ofendida com as minhas dúvidas, mas a peculiaridade da minha posição, o facto de saber que, por vezes, as senhoras realizam acções loucas e impulsivas com as melhores das intenções e ainda porque a criada suspeitou evidentemente de qualquer desígnio malvado quando lhe perguntei onde ficava o seu quarto, tudo isto se combina para me colocar numa posição tão inconfortável, que julgo a precaução de pedir um recibo desculpável parte do serviço, que prestei. O meu pedido, no entanto, resultou inútil, pois Mr Hawkshaw recusou-se positivamente a aceder; seguiu-se uma cena ridícula: ele a acusar-me com sarcasmo de ter o desígnio de obter "evidências documentais" para serem empenhadas, e eu a exprimir as minhas suspeitas dos motivos da recusa do que eu lhe pedia. Pôs-me polidamente na rua e eu abandonei o quarto com o espirito de vingança que despejei na primeira carta que escrevi, mas que depois rasguei. Relato-lhe tudo isto para que saiba os termos em que me encontro com Mr Hawkshaw, no caso de tencionar pedir-me qualquer outro serviço que tenha qualquer conexão com ele. Peço-lhe, acredite que me encarregarei com satisfação de qualquer encargo; o que eu quero dizer é que ele pode recusar-se a ter qualquer comunicação comigo.
"Espero que desculpará o incfómodo que lhe causei por causa duma dificuldade que provavelmente só a mim interessava. Lastimo que a sua permanência em Rosstrevor lhe seja menos agradável do que me foi a sua descrição desse lugar. Mr Woôdward não me deu ainda qualquer informação sobre o seu regresso. Sou, prezada Miss Woodward, muito honrado
Robert Smith"
A correspondência de Hawkshaw com Isabella nasceu desta maneira. Ao encerrar-se a estação de Londres, como estivesse ameaçado pela bancarrota e incapaz de obter mais adiantamentos da parte dos editores, ocorreu-lhe que se se
399
comprometesse com a filha de qualquer rico membro do Parlamento, os seus credores teriam muito prazer em esperar, e até consentiriam o alargamento das dívidas, sempre na esperança de serem reembolsados com o dote dela. Embora contrário ao matrimónio, ficou certo que teria de enveredar eventualmente por ele, como outros têm feito, embora antes lhe fizessem também muitas objecções. Hawkshaw não amava Miss Woodward, mas era a única jovem disponível que ele provavelmente poderia obter; para o mundo elegante ele impunha-se como hóspede agradável e poeta distinto, não como possível marido de suas filhas. Confiava na notoriedade dela como namorico e nas solidões de Rosstrevor como a sua salvação; se falhasse seria considerado aventureiro de matrimónios. Por consequência, meteu alguns volumes de poesia na mala, pediu emprestadas cinco libras em notas e atravessou o Canal Irlandês em direcção a County Down, onde encontrou Isabella. Dentro de pouco tempo confessou-lhe que a seguira de propósito, e depois, após alguns encontros desnecessariamente clandestinos, com passeios pela praia feitos ao luar, declarou-se-lhe. Ela, depois de lhe dizer que não podia ser, permitiu que o poeta a abraçasse de encontro ao peito e até que a beijasse. Ambos concordaram que o namoro devia manter-se secreto até que ele se encontrasse em situação de a poder desposar; mas Hawkshaw, tendo apenas em vista os seus propósitos, e não confiando na discrição da jovem, imediatamente se apressou a fazer espalhar em Londres a notícia do seu noivado. Pouco depois, enfadado de Rosstrevor e de Isabella, disse-lhe que teria de voltar aos seus trabalhos literários que o chamavam na capital. Ela não entristeceu quando tal ouviu e combinou uma entrevista de despedida, na qual rompeu em agonia tão histérica, que o poeta, pela primeira vez, se sentiu orgulhoso pela paixão que inspirara e, mais, seguro da sua realidade.
Veio encontrar em Londres grande quantidade de letras à sua espera. Estas, assim como o enjoo, abateram-no tanto que escreveu a Isabella uma narrativa da expatrição e da mendicidade que o ameaçavam. Ela, por sua vez, julgando-se capaz de nobres acções, e ansiando praticá-las, resolveu oferecer-lhe uma colecção de diamantes que sua mãe lhe legara, os quais, como ostentavam cravações já fora da
400
moda, raramente usava. A satisfação causada por este impulso não lhe recompensou o seu espírito durante muito tempo. Escreveu a Smith de má vontade quando começou a ter dúvidas sobre a ruína e o heroísmo de Hawkshaw. Quando recebeu a carta deste, por cuja recepção tanto ansiara, e se enfastiou com os agradecimentos nela contidos, lastimou os diamantes que lhe enviara; desprezou-o ainda mais por tê-los aceitado e começou um novo romance, baseado no respeito pela virtude. A figura a quem agora atribuía todas as mais por completo opostas às de Hawkshaw era à do decente e reservado secretário de seu pai. Antes do Sol posto já imaginara um Smith fantasma, superior a todas as paixões e associações da terra, e sentia-se humilhada diante dele, desejando encostar-se ao seu apoio, ou conseguir o seu respeito por algum acto de auto-abnegação.
Nessa mesma tarde dirigiu-se pela primeira vez à igreja Católica Romana de Warrenpoint, prosseguindo sempre nas suas fantasias, enquanto caminhava, a ponto de se julgar repudiada por Smith, sentindo-se depois excitada pelo remorso de não morrer nos braços dele. Manteve-se no templo em oração até observar que havia um padre à espera de receber confissões e, incidentalmente, de a ouvir. Isabella aproveitou a oportunidade para dar uma má informação de si própria em geral, mas inocente em particular, a um bom homem que era já bastante idoso por ter aprendido boas maneiras em Salamanca em vez de latim em Maynooth, e que não estava disposto a ser severo com essa rapariga que evidentemente sofria de tristeza, embora ele compreendesse as respectivas causas muito melhor do que ela. Isabella voltou confortada a Rosstrevor, mas um tanto desapontada por terem feito tão pouco caso dos seus pecados.
401
CAPÍTULO III
Na noite de S. Miguel, Mrs Watkins, tendo preparado um ganso, e indicado as sete horas para jantar, em vez das duas e meia, conversava com Mr Larkins e Mr Fenwick em Bishopsgate Street. Convidara o tesoureiro com a esperança de que ele viesse a casar com Fanny. Mr Watkins desejara a presença de Fenwick com o fundamento de que actualmente o filho de sua irmã se comportava bem e não podia ver que se continuasse a tratar com frieza o pobre rapaz. Mrs Watkins, por seu lado, condescendera, visto acreditar que o sobrinho se distinguia por gentileza de maneiras excepcional, que provavelmente faria Larkins pensar bem da posição social que ele ocupava.
O jantar decorreu com alegria. Larkins, que passara duas semanas em Bolonha, fez a descrição da língua, usos e instituições da França. Fanny sentia-se muito feliz porque o namorado se reconciliara, finalmente, com a sua família. Os pais estavam ocupados a servir e a escutar Larkins. Fraser Fenwick, que nunca estivera em França, procurava admirar-se pelo facto de se poder ligar qualquer interesse a um lugar qualquer próprio para excursões familiares como seria Bolonha. Quando levaram os restos do ganso, estavam todos muito alegres; mas, após o bolo inglês, sentiram-se mal dispostos e a conversação de Larkins, que tomara tom religioso depois de ter recusado uma terceira fatia, cessou por completo quando a criada reuniu desordenadamente os pratos.
"Selina", disse Mrs Watkins, "tira as migalhas antes de vir a sobremesa."
"Sim, snhora", respondeu Selina, indo ao aparador buscar uma bandeja e uma escova, com que atirou as migalhas para o colo de Mr Larkins, bateu-lhe nos nós dos dedos e limpou um pequeno espaço defronte dele. Depois de ter concedido tal honra ao visitante, ia a retirar-se.
"Selina", chamou Mrs Watkins. "Percorra toda a mesa."
"Sim, snhora", respondeu a rapariga, repetindo a tarefa.
402
Seguiu-se outro silêncio, durante o qual Mrs Watkins olhava para baixo como se rendesse graças e os hóspedes afectaram indiferença. Selina acabou a limpeza defronte de Fenwick, que lhe apontou uma migalhinha em que ela não reparara, e, às escondidas, agarrou-lhe a manga com o indicador e o polegar, de tal maneira que quando ela colocou a escova defronte da migalha, o seu cotovelo foi inesperadamente puxado para trás, e o conteúdo da bandeja espalhou-se.
"Bonita coisa, Selina", disse Mrs Watkins, olhando severamente para o sobrinho, que lhe apresentava impassível um dos perfis e piscava o olho do outro para a criada. Veio depois a sobremesa. Consistia numa garrafa de Xerez e outra de Porto, num prato de vidro com amêndoas e uvas, uma travessa verde com maçãs e um vaso de barro amarelo cheio de pêras e laranjas. Havia também uma chaleira colocada em cima dum tijolo quente e uma garrafa negra.
"Mr Larkins!" chamou a dona da casa.
"Para mim água fria, se me fizer o favor, Mrs Watkins", respondeu com firmeza o tesoureiro.
"Oh, não diga isso!"
"Estou a ser muito tentado", respondeu o abstémico com um sorriso. "Apenas encontrei algumas palavras de resistência, onde eu devia obter, como desejava, vigor contra a tentação e não obrigações a satisfazer."
"Ora, mas isso é um grande aborrecimento", comentou Mrs Watkins. "Não quer provar um pouco de vinho?" Larkins sacudiu a cabeça. "Haverá porventura alguma coisa que eu lhe possa mandar trazer?"
"Aceitarei um pouco de fruta", respondeu. "Eu só concebo o sumo natural dos frutos tal como nos é dado; vale por todas as bebidas fermentadas e espirituosas do mundo. Agradecia se me desse apenas uma chaveninha de chá."
"Evidentemente", respondeu ela. "Fanny, passa a Mr Larkins as amêndoas e as uvas. Fraser, parece-me que ainda não provaste nada."
"Muito pouco", respondeu Fenwick, olhando para a garrafa.
"Passas melhor sem ele, Tom."
"Não podes dar ao rapaz uma pinga?" disse Mr Watkins em voz baixa, que Larkins fingiu não ouvir.
403
"Garanto-lhe que prefiro não tocar num copo", disse Fenwick.
"Tom!" tornou a chamar Mrs Watkins.
"Não", limitou-se a responder o marido.
Mrs Watkins olhou de forma irresoluta para Fenwick. Este preparava uma laranja para Fanny. Aquela olhava para o marido, que procurava não a ver.
"Fanny, minha filha", disse Mr Watkins, "não gostavas de beber qualquer coisa?"
"Não, obrigada, papá", replicou Fanny, que temia a mãe no caso de aceitar aquele oferecimento.
"Calhando em conversa", disse Fenwick, "o que é feito do vosso santarrão, Larkins? Aquele camaradinha ignorante que costumava pregar tão fulminantemente: Davis, ou como diabo se chamava ele."
"Chi-i-i-u!" fez Mrs Watkins.
"Oh, Mr Fenwick", respondeu Larkins, "como pensamos pouco no que dizemos quando falamos negligentemente das criaturas de Deus!"
"O que o teria ofendido?"
"Julgo que nada o ofendeu", disse Larkins. "Julgo e confio que nada o ofendeu."
"Por onde anda ele?"
"Nenhum mortal o sabe dizer", disse solenemente Larkins. "Subiu, segundo penso."
"Subiu", repetiu Fenwick. "Nunca calculei que ele andasse em negócios por conta própria. Mas porque calcula que ele quebrou? Julgo que o senhor anda muito zangado com ele."
"O homem, não se trata de falência", disse Mr Watkins. "Davis morreu."
"Não me diga que ele esticou o pernil!" exclamou Fenwick.
"Que linda expressão na frente dum ministro do Evangelho, quási na presença da própria morte!" comentou Mrs Watkins.
"Seja como for, tia Flossy, Davis também gostava de brincar com as palavras", respondeu Fenwick.
"Tem vergonha!" disse Mrs Watkins. "Tem vergonha de ti, Fraser."
"A morte de Davis constituiu uma respeitável lição,
404
Mr Fenwick", começou Larkins, "Para mim nunca houve coisa que tanto chocasse a convicção da instabilidade da vida humana, como me aconteceu com a notícia do triste fim daquele homem. Possuía um espírito audaz e poderoso. Podia discutir com os mais estudiosos e pô-los fora de combate como crianças. Nunca pensava na sua pessoa. Tinha um tal dom de pregar como nenhum de nós jamais teve, nenhum, Mr Fenwick, nenhum. Era até capaz de mover as próprias pedras se elas tivessem ouvidos para o escutar. E vejam o que afinal lhe veio a acontecer. Para aí jaz no pó da terra, depois de ter morrido, como para aí se diz, no cárcere dos delitos comuns. E para aqui ando eu a arrastar a sua obra, valendo-me dos bons sapatos que sempre me julguei indigno de calçar."
"Ele parecia estar sempre num estranho estado de saúde", disse Fenwick. "Penso até que ele chegou a estar doido de todo."
"Julgo que podia ter estado", respondeu Larkins, sacudindo a cabeça. "Lá isso julgo."
"Ora bem, descosa-se lá para ver se eu o entendo", disse Fraser. "Porque julga você isso?"
"Vou dizer-te porquê", respondeu Mr Watkins, com impaciência. "Porque ele morreu da mesma maneira por que morrerás tu também se voltares à vida de tempos antigos. Encontraram-no bêbedo na ponte de Westminster a empurrar mulheres para fora do caminho dos peões e, quando a polícia lhe deitou a mão, lutou até ficar com o fato reduzido a farrapos. Na esquadra, meteram-no, só, numa cela, e quando depois o foram ver, por volta das três da manhã, já estava morto. Ninguém, a não ser eu, o conhecia, para felicidade do sub-delegado de saúde, que assim o pôde identificar. Soube-se que lhe dera para cantar e que por aí andava, havia já um ano, com o nome de Cartouche. O médico disse que ele não vivia nem mais um mês, tanto tinha decaído, e que as poucas forças que ainda lhe restavam as consumira na luta com os polícias. O corpo mostrava isto bem à evidência, pois tinha um olho todo negro, como tive ocasião de ver. Soube-se por um homem que tem uma loja de música e que costumava contratar Davis para concertos e teatros como vocês fazem com os pianistas e os quartetos, que ele estivera empregado no dia da sua morte em casa dum
405
baronete em Wilton Place, onde se portou de maneira ultrajante. E, para mostrar como as coisas se ligam: Fraser, sabes de quem era a casa? De Lady Geraldina Porter!"
"Coisa muito extraordinária!" disse Fenwick, puxando o bigode e dirigindo-se a Larkins. "Sucede que Lady Geraldina Porter é minha amiga íntima."
Larkins, em vez de fazer alta opinião do que Mr Fenwick acabava de dizer, formou mau critério de Lady Geraldina.
"O fim foi", continuou Mr Watkins, "que a comissão dos peritos atribuiu a morte a causas naturais aceleradas por uma convulsão da bebedeira, ou coisa que o valha lá" em palavras deles. Disseram que o polícia agredido nos olhos devia ter feito sair alguma coisa, por sua parte, no peito do pobre. A noção de um homem a apanhar pancada com vida só para um mês devia lisonjeá-los muito; mas o sub-delegado não pareceu olhar para aquilo dessa maneira. Pelo menos nada deixou ver que mostrasse o contrário."
"Se Davis", disse Fenwick, "se deixasse ficar em casa, talvez não tivesse sido tão galhofeiro, embora esteja certo que ele era melhor do que muitos outros, e teria morrido em sua casa como um cavalheiro."
"Tenho a certeza", exclamou Fanny, contendo a vontade de soltar gritos, "que a polícia mentiu e que o maltratou. Não tenho dúvidas em acreditar muito mais em Mr Davis do que num polícia, ou mesmo em Lady Geraldina Porter."
"Tem tento na língua, Fanny", disse Mrs Watkins, severamente. "Não te compete tomar a defesa de Mr Davis, como sempre fazes."
"Não vejo porque não o devo defender, se ninguém o faz", retorquiu Fanny. "A mamã era a primeira a dizer-me que eu o devia respeitar."
"Não, deixa-te disso", disse Mr Watkins, interpondo-se logo para salvar a filha da repreensão, "pois está muito certo o que Fanny declara. Um polícia gosta sempre do seu bocadinho de autoridade e pode tornar-se descortês com as mãos como qualquer outro homem."
"Interessa agora pouco saber o que qualquer tribunal terreno pode pensar dele", disse Larkins. "Quando me ponho a reflectir no seu fado desgraçado, digo para mim: se não devo estar bastante agradecido por tal infelicidade não
406
me acontecer? Tanto mais que eu não tenho melhor vigor que ele. Não sou forte, como ele era. Não sou ágil, como ele era. Mas no fim não ganhou a batalha; e porque não? Porque O que não pode errar diz que a velocidade nem sempre pertence ao ágil, nem a batalha ao forte. O que não pode errar diz que o poderoso pode cair; que o primeiro pode ser último e o último primeiro. É o caminho da fé que conforta o fraco. Quando vemos os ritos e os grandes deste mundo a pensarem tão pouco em nós e a porem-nos de lado, e a passarem-nos para o caminho das vãs eminências que eles estimam, que nos consola? A palavra de Deus consola-nos, pois fala-nos daqueles indivíduos que nos atropelam e que um dia estarão debaixo dos nossos pés e serão desprezados, ao passo que nós reinaremos na bem-aventurança no século dos séculos. Isto pode parecer inverosímil, mas um dia se verá. Os nossos inimigos podem ter tão pouca consideração pelas promessas próprias como pela do pobre homem de cuja queda temos estado a falar, mas serão transformados nos nossos escabelos antes de nesta vida nos passarem por cima."
"Admiro-me que nada tenham para responder", disse Fanny repentinamente, quando Larkins parou para tomar fôlego.
"Deixa ouvir, deixa ouvir!" gritou Fenwick, martelando a mesa com o cabo da faca.
"Fan, minha filha", disse Mr Watkins, enquanto sua mulher se mostrava espantada com a audácia da filha, "isso não é bonito."
"Fanny", exclamou Mrs Watkins, recobrando ânimo, "vai-te embora."
"Oh, não, minha senhora! Por minha causa não", admoestou Larkins. "Deixe a menina estar - é um favor que me faz."
"Um favor que lhe faz, ora na verdade!" disse Fanny, que se tornara vermelha com a ordem da mãe. "Não preciso que me proteja como se eu fosse uma criança."
Então rompeu em lágrimas e levantou-se para abandonar a sala.
"Venha cá e sente-se, Miss, e já", disse furiosa Mrs Watkins.
Fanny saiu e fechou a porta com tal violência que o tabuleiro do chá caiu com estrépito no aparador.
407
"Tal mãe, tal filha! An, Larkins?" disse Mr Watkins, a sorrir.
"Lastimo ter de o dizer, meu caro senhor, mas os nervos da menina ficaram transtornados pelo que nós estávamos a dizer: um assunto repugnante e terrível, Mrs Watkins, e, por isso mesmo, espero que lhe perdoareis a precipitação."
"Não era em absoluto assunto que se discutisse à frente de senhoras", disse Fenwick. "Miss Watkins teve muita razão em sair da sala."
"Ora na verdade!" exclamou Mrs Watkins. "Talvez andasses melhor se guardasses as tuas opiniões até que tas pedissem." ,
"Andaste mal em não pedir o conselho de tua tia Floss, Fraser", disse Mr Watkins.
"Sinto-me muito envergonhada que filha minha se tenha comportado desta maneira na sua presença, Mr Larkins; mas que posso eu fazer quando o pai está disposto a arruiná-la?"
"Bem, bem, nós devemos todos fazer concessões", disse Larkins. "Espero que Miss Watkins desça para tomar o chá e restabelecer a alegria nesta mesa."
"Se maldade e obstinação são todas as qualidades com que ela pretende tornar-se feliz, que se deixe ficar onde está", disse Mrs Watkins. "Não pode voltar a entrar nesta sala sem confessar a Mr Larkins a sua rudeza."
"Não, não", disse Larkins em tom reprovativo. "Desculpe-me, mas se a menina ofendeu alguém - e qual de nós não tergiversou uma ou outra vez? - não é a mim que ela deve pedir perdão. Não me posso colocar em tão alto lugar; não somos todos iguais? Não, não consinto que me coloquem acima das outras pessoas."
"O senhor é muito modesto, Mr Larkins", disse Mrs Watkins. "Ela não precisa ser humilhada."
"Todos nós precisamos", replicou Larkins. "Mas toca-nos a nós humilharmo-nos uns aos outros, arruinarmo-nos mutuamente."
Mrs Watkins mordeu os lábios e não respondeu.
"Fraser", chamou Mr Watkins, "não te importas de subir a escada e convencer Fanny a descer para tomar chá?"
"Espero que não vai mandar o rapaz ao quarto de cama de sua filha, Mr Watkins."
408
O marido franziu as sobrancelhas, como costumava sempre que ela se lhe dirigia com este tratamento.
"Ora vamos", disse ele, "isto tudo já nos trouxe bastantes coisas desagradáveis. Se ela não quiser vir por instâncias de Fraser, não virá também pelas de qualquer outra pessoa; é melhor, por isso, que ele vá. E deixemo-nos de mais asneiras acerca do quarto de Fanny.
"Não há necessidade disso", - teimou Mrs Watkins, corando. "Vou mandar lá Selina com as minhas ordens e ela há-de vir e logo.".
"Sim, e ela, provavelmente, vem logo, logo! Larkins: desculpe se o estamos a importunar com esta discussão, sem importância afinal. Renunciemos àquele assunto e sejamos sociáveis. Põe-te a andar, Fraser, - e dize-lhe que nada mais haverá sobre o caso e que volte como se nada tivesse acontecido."
Fenwick saiu. Voltou imediatamente, parecendo alarmado.
Um golpe de apreensão tocou Mrs Watkins. Larkins, antecipando-se a qualquer excitação, olhou com curiosidade para Fenwick. Só o dono da casa teve mão em si.
"Bem. O que há? Dize lá."
"Saiu."
"Saiu!" disse Mr Watkins. "Para onde?"
"Não sei. Olhei primeiro para dentro do quarto e depois para as escadas. Selina ouvira-a sair havia já algum tempo."
"Tens a certeza, Fraser?" perguntou a tremer Mrs Watkins.
"Não tem necessidade de estar a pensar que possa haver qualquer erro, tia Flossy", disse Fenwick. "Ela teve muita razão em não querer estar aqui muito tempo; pronto, aqui tem, se deseja conhecer a minha opinião."
"Sentemo-nos e estejamos quietos", disse Mr Watkins. "Larkins, eu não conseguirei muito, mas pode ficar aqui até que eu volte. Não precisa de contar, seja a quem for, o sucedido."
Deixou a sala e em seguida ouviu-se a porta da casa fechar-se brandamente atrás dele.
"Estou certo que ela voltará dentro de minutos", disse Larkins consolador. "Um impetozinho, nada mais."
409
"Mas ela pode estar em casa. Esta Selina nunca sabe o que diz, Mr Larkins: não se importa que eu vá e veja com os meus olhos?" perguntou Mrs Watkins.
"Pode querer afastar a sua preocupação, mas já lhe disse que ela saiu", disse Fenwick, sentando-se.
Mas Larkins rogou à dona da casa que procedesse como se não tivesse ninguém a considerar; ela saiu então a procurar e a repetir o nome da filha pela casa.
"Diabo da mulher", disse Fenwick, quando se achou só com Larkins. "Se eu fosse Watkins, dava-lhe tantas até que a deixasse pronta."
"Não sejamos cruéis, senhor. Não há dúvida que ela foi um pouco precipitada."
"Qual precipitada! Ela é sempre a mesma, capaz de estar sempre a sair da razão. Tanto pensa que é um anjo como pensa que cumpre os dez mandamentos. Muito eu gostava que houvesse o décimo-primeiro, feito de propósito para dominar selvagens. Ela honra pai e mãe porque já morreram - a mãe era uma megera como ela - e toma o bom cuidado de fazer, pela pancada, com que os filhos a honrem muito enquanto estiver viva."
"Receio, Mr Fenwick, que o senhor ainda não pensasse a sério no real décimo-primeiro mandamento.
"Oh, o diabo leve o real décimo-primeiro mandamento! É como qualquer pecado imperdoável, pois também pretende pregar contra tudo o que qualquer pessoa faz."
Larkins foi interrompido pela volta de Mrs Watkins quando ia a responder; a expressão dela mostrava bem que as pesquisas resultaram inúteis. A dona da casa nada disse, mas bateu na chaleira; seguiu-se uma inconfortável pausa. Larkins procurava consolá-la, mas encontrava Fenwick a contrariá-lo todas as vezes que decidia falar, pelo que voltava ao silêncio, o qual apenas era interrompido pelos sobressaltos de Mrs Watkins; os dois homens olhavam-se mutuamente quando lhes atraíam a atenção ruídos na escada, ou passos a arrastarem-se na rua fronteira à casa onde se encontravam.
Mr Watkins voltou enfim e pediu chá, ao mesmo tempo que lançava olhares ansiosos à mulher. Quando tomou o que pretendia, percorreu a mesa com a vista com o ar furtivo que o caracterizava, e disse:
410
"Está bem. Ela foi para casa da tia Virgínia."
"Como o sabes, Tom?"
"Como o sei? Bem fácil. O polícia viu-a virar para Liverpool Street. E ainda melhor o suspeitei depois quando perguntei na estação e lá me disseram que comprara um bilhete precisamente para Leytonstone. Foi Strahan quem lho vendeu. Por isso ela se conseguiu escapar. A mudança de ar vai fazer-lhe bem. Dá-Lhe mais um bocadinho de pão e para Larkins mais uma chávena de chá, fazes favor, Flossy."
Agora que os seus receios estavam dissipados, Mrs Watkins abriu as válvulas do ressentimento e declarou que a filha deveria estar onde melhor lhe quadrasse, na certeza, porém, de que nunca mais voltaria a pôr os pés em Bishopsgate Street.
"Talvez ela mesmo não o pretenda", disse Fenwick.
Uma resposta furiosa foi desviada por Larkins, que se levantou para se despedir, protestando que consumira uma tarde muito agradável e exprimindo a esperança de que Miss Watkins seguiria em breve o exemplo do filho pródigo.
"Tom", disse Mrs Watkins contrafeita, quando o outro saiu. "Penso que alguém devia ter ido atrás daquela rapariga ainda esta noite."
"Vou eu com muito prazer", respondeu-lhe o sobrinho,
"E dize-me, se fazes favor, porque hás-de ir tu?" respondeu Mrs Watkins, voltando a exibir os seus modos provocantes.
"Eu não sei bem, mas parece-me que Fraser Fenwick seria a pessoa mais indicada para ir", disse Mr Watkins. "Fanny continuará a teimar se eu for e continuaria, do mesmo modo, a teimar se tu fosses, mas podia tranquilizar o seu espírito para agradar a Fenwick e ele, então, poderia chamá-la ao bom caminho, fazê-la voltar e dizer-nos se ela estaria disposta a isso."
"Põe-te no teu lugar", disse Mrs Watkins, encolerizada. "Se meninos rebeldes merecem mais consideração do que os outros, eu então passo a lavar as minhas mãos de tudo isto."
"São onze e meia", disse Mr Watkins, "por isso, se quiseres ir até Leytonstone e voltar ainda esta noite, Fraser,
411
será melhor partires já. O último comboio voltou às onze e dez. Apanharás o do quarto para a meia noite em Fenchurch Street, se andares depressa. Olha! Eu prefiro pagar-te as passagens, pois vais em meu serviço." .
"Desculpe-me. Mas isso é em absoluto desnecessário."
"Bem", disse Mr Watkins, guardando o dinheiro, "ninguém pode discutir contigo as qualidades de cavalheiro, e como tu fazes questão de pagar isso... logo que voltes bate à porta da loja e vou imediatamente abrir. Fico levantado e vou dar uma vista de olhos pelos meus livros."
"Muito bem", respondeu Fenwick. "Suponho que não a tornarei a ver, tia Flossy."
E enquanto dizia isto, avançou para lhe apertar as mãos.
"Boa noite", disse Mrs Watkins, cruzando as mãos no regaço.
Fenwick conteve-se, fez uma vénia e retirou-se.
O dono da casa e a mulher, deixados juntos e sós, não procuraram começar a conversa porque sabiam que terminaria em disputa. Quando o silêncio se tornou embaraçante, e Mr Watkins compreendeu que ela não poderia aguentar por muito tempo a língua, desceu as escadas e foi para a loja, ao passo que a mulher ficava na casa de jantar a superintender nos objectos do chá e depois, durante a continuação da ausência de Fenwick, a fazer meia. Durante três horas manteve-se sentada a defender a cólera contra os remorsos, que lhe apareciam reforçados pela lembrança de acidentes de caminhos de ferro, de raparigas enganadas por homens de mau porte, destinos nunca conhecidos, confidências impróprias, assassínios e todos os perigos duma cidade depravada, até que um ruído lá em baixo, seguido de um som abafado de vozes, lhe anunciou o regresso do sobrinho. Seguiu-se um período de suspensão. Ouviu depois os dois homens a andar, como se a respectiva conversa tivesse atingido o fim. Pôs-se depois à espera do ruído da porta a fechar-se sobre Fenwick, mas, em vez dele, ouviu um grito como o duma mulher que se encontra presa de terror extremo. Mrs Watkins sentiu muito medo e saiu a correr, quási morta de susto. Nas escadas, cerca de oito degraus acima do nível do patamar, encontrou Selina, meia a rir, meia a choramingar.
"Perdão", disse Selina a arquejar, "era Mr Fenwick. Eu
412
vinha para a cama às escuras e ele saía da loja sem que eu o visse; depois, encostou-se às grades da escada, agarrou-me de repente pelas ancas, não sabendo quem ele era. Quási que me senti morrer."
"E porque não tinhas ido já para a cama?"
Selina esfregou a boca com o avental.
"Que bonita conduta, andar aos gritos dessa maneira pelo meio da noite. Devias ter vergonha de ti. Estive a observar o teu comportamento com Mr Fenwick, Selina, e na próxima vez em que eu veja disparates tão escandalosos, irás direitinha para o olho da rua. Agora vai para a cama e não penses em te desculpares com estas horas perdidas se amanhã de manhã não tiveres o lume aceso, como aconteceu na segunda-feira."
Selina foi para a cama envergonhada; a patroa desceu ao estabelecimento, onde Mr Watkins estava a arrumar os livros.
"O que foi isso, Flossy?" perguntou ele. "Naturalmente Fraser agarrado a Selina, como de costume."
"É verdade, a desavergonhada!"
"Oxalá ele deixasse a rapariga voltar só.".
"A culpa é dela. Podes ter a certeza que ele a respeitava se ela também o respeitasse."
"Ah! Não devemos procurar ter criadas quando elas possuem um respeito muito particular por si próprias. Na sua maior parte só pensam na cara. E ainda por cima esta encontra Fraser, que não respeita ninguém, nem mesmo a si próprio."
"Que novidades trouxe ele, Tom?"
"Está bastante segura em casa da tia Virgínia."
"Hum!" exclamou Mrs Watkins, ocultando o seu alívio. "E quando poderá ela condescender em voltar para casa?"
"Por ora nem quer ouvir falar em tal coisa. Diz mesmo que nunca voltará. Talvez seja questão de tempo. Foi Larkins triunfante sobre Davis que a enfraqueceu. O caso é, Flossy, que ela era complacente para com aquele rapaz. Não te lembras como o defendeu quando nós o corremos?"
"Mas isso foi há já muito tempo."
"Ora, mas a questão revive. Eu sempre pensei, quando tu quiseste arrancar a fotografia dele do álbum para a queimar
413
e não a encontraste, que ela a tinha em qualquer parte. Talvez não chegue a quebrar o coração por causa dele e como Virgínia a guarda por ora, nada mais digamos até que o assunto arrefeça."
"Virgínia está pronta com certeza a tomar o partido de Fanny contra o meu."
Mr Watkins resolveu não responder, mas tirou o candeeiro a gás, trancou a porta e foi para a cama.
414
CAPÍTULO IV
Em Outubro, Smith teve de superintender certos preparativos para a recepção da família em Queens Gate. Precedera-os uma irlandesa chamada Mrs Daly, que fora muito afeiçoada à falecida Mrs Woodward, e, desde a morte desta, trabalhava como criada, governante, ama, e, em caso de emergência, aia das meninas. Smith lia-lhe todas as manhãs as instruções escritas por mr Woodward e Isabella. Para cada uma delas, como eram ditadas parcimoniosamente, Mrs Daly inventava explicações destinadas a descansar Smith quanto à riqueza e grande importância da família; ele começou logo a considerá-la pessoa aborrecida, que tinha uma opinião exagerada da credulidade dele. Era muito iletrada e dizia muitas vezes ao secretário que não sabia ler manuscritos. Contudo, Smith percebeu que era capaz de identificar sempre a caligrafia duma carta, bastando, para isso, olhar para o sobrescrito.
Um dia Smith disse-lhe que a família inteira atravessava nesse momento o canal. Mr Woodward viajando pelo norte, e Isabella pelo sul, vieram ao encontro de Clytie em Dublin.
"A bagagem deve chegar a Euston às seis e meia", disse Smith. "Miss Isabella diz nesta carta que você deve deixar o tapete da casa de jantar como dantes, e ainda que ponha a serapilheira do buraco debaixo do contador preto da sala de visitas."
"Na é quê lhinvêije o dinhêro", disse Mrs Daly, "mas ela pinsa que sã boas p'á Londres coisas quêla na puinka no esterquêro dos porcos lá da terra. O Cornelo tamém veim cum eles, sor Smith?"
"Suponho que sim. A carta nada diz a esse respeito."
"Povre rapáz! Nunca gostou de falar", disse Mrs Daly, suspirando!
Na manhã seguinte, quando Smith chegou a Queens Gate, Mr Woodward estava ainda na cama. Havia, porém, algumas cartas a atender, mas, em menos de meia hora, o
415
secretário encontrava-se já ocioso. Pouco depois apareceu Hamlet, de mau aspecto e bastante fatigado.
"Olá, Cornelius", disse Smith, com alegria. "Com que então já de volta. Como tem passado?"
"Oh, case morrido."
"A travessia foi difícil?"
"Tirando a só persença..."
"Cornelius", interrompeu uma voz lá fora, "o senhor quer a água quente."
"Sim, Miss Bella", respondeu Hamlet com submissão, e retirou-se.
Isabella escapara aparentemente ao enjoo, pelo que apresentava bom aspecto. Smith, que não a via desde que ela se afadigara com os prazeres da estação em Londres, sentiu-se como se a jovem tivesse trazido para a sala qualquer coisa da frescura marítima de Carlingford Lough. Nunca lhe vira os olhos tão brilhantes e o sorriso tão natural. Isabella adiantou-se e apertou-lhe a mão em silêncio.
"Espero que fizesse uma viagem agradável", disse Smith, consciente, em parte, da agradável perturbação que ela sentia no espírito, mas não se aventurando a encontrar-lhe o olhar.
"Foi muito difícil, mas eu sou boa marinheira; por isso o papá e eu conseguimo-nos livrar. Já o mesmo não lhe posso dizer de Clytie e ainda menos do pobre Cornelius!
- Mas o senhor viu-o."
"O estágio no mar beneficiou-a."
"Suponho que sim. Rosstrevor é um lugar tão encantador..."
"Sempre pensei que estivesse sinceramente aborrecida dele. Não está satisfeita por voltar a Londres?"
"Satisfeita! Considero Londres um lugar detestável. Depois das montanhas, do mar, e do belo ar fresco, até parece impossível que haja quem seja capaz de respirar nesta prisão que é a cidade. Apesar disso, cá estou e aqui devo estar. Mas eu não desci para lhe falar a meu respeito. Como lhe poderei eu agradecer suficientemente o serviço que o senhor me prestou com aqueles miseráveis diamantes?"
"Mas Miss Woodward já me agradeceu na carta muito mais do que eu merecia por aquilo em que a servi. Fez-me
416
sentir quanto eu pensava na pequenez do que fiz, e na prudência com que eu correspondi."
"Como é nobre por pensar assim!"
"Não diga isso!" respondeu Smith abruptamente.
Isabella reparou que não soubera calcular o gosto que ele sentia pela adulação.
"O senhor", respondeu a jovem, com o seu habitual ar de descontentamento, "considerou certamente a transacção estranha e não muito respeitável."
"Achei-a na verdade estranha, mas mais nada."
"Fui bastante fraca por pretender fazê-lo acreditar na carta que lhe escrevi que eu apenas restituía aquelas jóias. O senhor deve ter sentido pouco respeito por mim quando achou (como me escreveu) que eu lhe dissera uma mentira."
"Mas não me pareceu que a senhora estivesse na obrigação de me fazer confidências. Aceitei tudo isso como desculpa convencional, como a fórmula "não está em casa" a substituir o "não o quero ver". Compreendi que as suas palavras significavam: "não te quero dizer", nada mais."
"O senhor é realmente um homem muito franco, Mr Smith. Consegue limpar as aparências de tudo."
"Tenho muita pena de ser assim. As pessoas muito francas são grandes estorvos, e sempre o serão, e ainda mais por estarem em minoria."
"A ração está pronta, Miss Bella", disse Hamlet, falando do outro lado da porta.
"Muito bem", respondeu ela. Depois, voltando-se para Smith, disse: "Vou-me embora. Sei que o meu segredo está seguro porque se encontra confiado à sua guarda. Uma vez mais, muito obrigada. Adeus!"
"Uma palavra só", disse Smith. "O que é que se pode entender por ração?"
"Refeição, evidentemente", respondeu Isabella. "Ora, senhor, o seu inglês!" Após esta apóstrofe, fez uma careta graciosa, e correu pelo corredor fora.
"Muito engraçado", comentou Smith. "Até faz lembrar um antílope de saltos altos!" Apesar de tudo, o ridículo deste fraseado, egresso à custa dela, era sentido de maneira especial, pois ele começava a experimentar por Isabella certos sentimentos que lhe lembravam os que noutros tempos Mademoiselle Sangallo lhe inspirara.
417
Mr Woodward naquele dia não apareceu no escritório até ao meio-dia, hora em que surgiu lá com a pasta onde trazia quási todas as cartas que lhe tinham sido enviadas durante a ausência. Encontravam-se no mesmo estado de confusão que envolvia toda a sua correspondência antes de contratar Smith, que compreendeu como era vã a esperança de que a sua nomeação para o serviço civil não encontraria dificuldades, graças ao sistema que ele próprio introduzira, para quaisquer necessidades ulteriores dos serviços que desempenhava em Queens Gate. Bateram as três horas antes que as cartas estivessem em ordem e expedida as respostas devidas.
"Agora, senhor", disse Smith, "julgo que há já alguma coisa em ordem."
"Que diabo fez você a todas as cartas que estavam na pasta?" perguntou Mr Woodward, porque supunha que só se tinha executado uma pequena parte do trabalho ordinário da manhã.
"Já está tudo arranjado."
"Ora na verdade, Smith, eu não sei o que faria se não fosse você. Mas que grande camaradão!"
"Isto não passa de simples manha rotineira. Qualquer escriturário faria outro tanto, e provavelmente por menos dinheiro."
"Então porque não compareceram quando eu precisava deles?" interrogou Mr Woodward de bom humor.
Smith resolveu suspender a resposta e despedir-se. No vestíbulo encontrou Hawkshaw, de conversa com o lacaio. O poeta olhou para o secretário, quando este passava, sem exteriorizar qualquer sinal de conhecimento. Smith, que estivera quási para se curvar, conteve-se e fingiu abstracção até que chegou à rua.
Entretanto, Hawkshaw, tendo-se assegurado pelo criado que Miss Woodward se achava só, preparou-se para uma cena.
Ela estava sentada junto da janela quando o poeta entrou na sala; a primeira coisa que o poeta observou foi que a jovem conservava o vestido com uma ordem de botões cónicos que trazia na última vez que a abraçara. Lembrando-se que nessa ocasião o seu peito ficara salpicado de pequenas e dolorosas contusões, resolveu, desta vez, contentar-se com
418
um beijo. Mas ela, sem se levantar, afastou-o com a mão e desejou-lhe, friamente, os bons-dias.
"Clytie está na cama e o papá no escritório", disse ela, "desta maneira fiquei eu só para receber qualquer visita que estrelas infelizes conduzissem para aqui. É por verdadeiro acaso que nos encontra, pois chegámos da Irlanda na noite passada."
Hawkshaw ficou surpreendido, mas determinou conhecer imediatamente as intenções dela.
"Isabel", disse, "esqueceste o que se passou entre nós durante o nosso último encontro."
"Certamente alguma coisa que merece uma discrição muito afectuosa. Esqueci-me, na verdade."
"Ó céus!" gritou Hawkshaw, "se isso não faz parte de algum requebro, constitui a mais descaroável perfídia que jamais um cérebro de mulher concebeu."
"Mr Hawkshaw!" admoestou Isabella, empalidecendo um pouco.
"Não sei que suspeita se está a desenvolver em mim", disse Hawkshaw, batendo na fronte e percorrendo dum lado para o outro, em passadas rápidas, toda a sala. "O engodo com que me atraíste - as jóias - a gradual intimidade de confidências e de ardor, depois - o teu silêncio durante estes quinze dias últimos - a desculpa trivial de que os preparativos da partida não te deixavam tempo - pff! Vejo infernal intriga em toda esta negra atrocidade e ela conseguiu obter um excelente triunfo, e com ele perdeu-se a minha honra. Mas, ao menos, dize-me quais os motivos disto. Trata-se da vingança de alguma fantasiosa ofensa? Ou não passa de mero deleite na desgraça que as mulheres tanto apreciam desde que a serpente envenenou a primeira mulher?"
"Não sei de que está a falar. Eu atraí-o? Que cobarde o senhor deve ser para me insinuar uma coisa dessas!"
"Um cobarde! Sê-lo-ia na verdade, se determinasse guardar silêncio perante tal resposta. Chame-me doido se quiser, pois, após ter devotado tudo o que havia em mim para cantar as traições do seu sexo, caminhei eu próprio de olhos cerrados para a armadilha. Pois bem, goze o seu triunfo. A ave do paraíso apanhou o caçador. O que a pode interessar sobre os sentimentos da vítima?"
419
"Se tem alguma coisa com que me acuse", disse Isabella, irada, "diga o que é, e deixe de dizer velharias."
"Acuso-a", disse Hawkshaw, encarando-a, "de me ter enlaçado com falsas pretensões, com mentiras sorridentes, suspirantes, executadas e transmitidas por abraços e apertos de mão, até ao ponto de sentir a obrigação que tenho pela vossa mais do que infernal traição, de reparar tudo isso com honra em momento propício, quando, como sabe, eu podia tão facilmente agarrar as estrelas, como cumprir um pouco só que seja da minha palavra. Acuso-a de ter planeado isto desde o princípio para que eu não pudesse escapar como outro qualquer homem infeliz, mas beber até às fezes o cálice da amargura de uma desprezível desonra."
"Eu nunca pedi que me pagasse. Não desejo que me pague. Foi o senhor quem quebrou a sua promessa. Porque já recebi, e posso até mostrá-las, cinquenta cartas de cumprimentos com que tenho sido perseguida desde que o senhor tão diligentemente espalhou a notícia do nosso compromisso."
"Ah! Tenho as minhas fraquezas sempre prontas a saírem-me da boca, não há dúvida. Suponho que falei demais, sobre aquilo com que o meu coração andava tão cheio. Sinto-me, não obstante, muito satisfeito por, ao menos, admitir o nosso namoro."
"Eu não. Desafio-o a citar uma simples promessa que eu lhe fizesse."
"Não o tentarei, pois sei que teve sempre muito cuidado em tudo o que dizia e que até mente em silêncio. Eu pensava tão pouco em observar as suas palavras, como pensei que o seu mensageiro de aluguel, com a sua grosseira tentativa de malandrice, nada mais fazia do que agir conforme as suas instruções."
"Que infame sugestão! Eu penso que o mais comum dos agradecimentos o induziria a ser compassivo para comigo."
Hawkshaw mudou de maneiras e curvou-se humildemente.
"Sim", respondeu, "esqueci. Muito obrigado por se lembrar de mim enviando-me aquilo que eu aceitei da vossa bondade. Houve momentos em que cheguei a pensar que eu era um homem e por isso saí fora de mim."
420
"Eu não quis dizer isso: mas, pelo menos, irritou-me de tal maneira que houve um instante em que cheguei a pensar o mesmo. O senhor veio muito bem por causa das jóias e não julgo que esteja a fazer-me qualquer cumprimento, tal como não mas pediu. Mas como as aceitou (e creio que com alegria bastante para as levar não sei onde), não tem o direito de me acusar de armadilhas, mentiras, traições e de tudo o mais que quis insinuar, o que não é varonil, nem polido."
"E a senhora pode ser tão ingénua a ponto de crer que um homem ofendido com tais injúrias, como eu estou a ser, possa observar as convenções da sociedade? Não, Miss Woodward, elas foram feitas para ocasiões menos graves. Há, pelo menos, uma coisa que a senhora não pode negar: que trocou galanteios comigo. Em Rosstrevor permitiu-me que eu me dirigisse a si de maneira que implicava que ou a senhora me considerava como seu prometido esposo, ou que estava já tão acostumada a ter namoros que chegavam àquele ponto para além do qual as mulheres sérias nada mais consentem. Qual destes aspectos devo eu aceitar?"
Isabella hesitou. Hawkshaw falava agora com razão.
"Eu não pretendo discutir a decência da minha conduta consigo", disse ela.
"Tem razão", respondeu o outro. "Seguiremos, nesse caso, a primeira alternativa. Quando saí da Irlanda, considerava-me comprometido consigo. Quando voltou a encontrar-me, a senhora deu mostras de ignorar isto, e tratou-me como um simples conhecido."
"Bem", disse Isabella impaciente, "o senhor esperava que eu lhe saltasse ao pescoço, que o abraçasse no momento preciso em que aparecia à porta? Talvez ficasse desapontado porque eu não estava no balcão atirando-lhe beijos quando vinha na rua."
"Tal procedimento não teria sido mais extremo do que aquele por que preferiu seguir", respondeu Hawkshaw, um pouco retraído.
"O senhor oprime-me com essa torrente de invectivas, desde que chegou."
"Quer dizer que tenho sido precipitado?"
"Penso que "precipitado" é um termo muito delicado
421
para aplicar à linguagem e conduta que tem seguido nestes últimos cinco minutos".
"Bem deve considerar como eu sinto profundamente tudo isto", disse Hawkshaw, confundido, e sentindo necessidade de se afastar da sua precipitação anterior. "Pense ao menos no que me vai custar perdê-la!".
Ela sentou-se, olhou pela janela e apertou os lábios.
"Isabella", disse o poeta, "conserva-me em suspensão. Que devo eu concluir da sua frieza?"
A jovem continuou com o olhar afastado dele e não respondeu.
"Isabella", continuou Hawkshaw, com emoção, aproximando-se muito da cadeira onde a interlocutora se sentava, "minha querida Isab..."
"Mr Hawkshaw", disse então ela, interrompendo-o, "devemos, se faz favor, voltar aos termos das nossas antigas relações. Desculpe-me que lhe diga, mas o senhor mostrou-se-me hoje sob um aspecto perfeitamente novo: aquele que me convence que tanto a sua felicidade como a minha não devem ser favorecidas pelo prosseguimento na louca veia do sentimentalismo em que nós infelizmente caímos quando estávamos em Rosstrevor."
"Miss Woodward", disse Hawkshaw, com dignidade, "a senhora soube enganar-me. É como lhe digo. Após tudo o que se passou, ninguém podia, possivelmente, esperar tal desfecho. Estou certo que neste ponto eu tratei-a honrosamente. Deixo-a com o meu coração doente, mas com a consciência sã. Bom dia."
"Antes de se ir embora", disse Isabella, "deixe-me ainda dizer-lhe que as suas suspeitas a respeito do meu empregado Mr Smith e sobre as instruções que eu lhe teria dado são inteiramente infundadas, ainda que eu creio que a doença do seu coração o perturba tão pouco como o vigor da sua consciência."
"Tem o génio inato da resposta pronta", disse Hawkshaw, curvando-se. "Não me aventuro a contestá-la numa liça onde o meu inglês, que só utilizo para fins honestos, para nada me serviria."
"Para nada, é verdade", retorquiu Isabella, "porque é muito transparente."
"Bom dia, Miss Woodward."
422
"Bom dia", respondeu Isabella, desdenhosamente, ao mesmo tempo que tocava a campainha.
Hawkshaw retirou-se. O lacaio,, ao examinar-lhe o vestuário e o porte, compreendeu que tal homem, apesar de poeta, encontrava-se abaixo de toda a crítica. Além disso, apesar de miúdo como era no que dizia respeito ao rigor da sua conduta em público, Hawkshaw entrou num botequim em High Street, onde bebeu alguma aguardente com água. Depois andou a vaguear pelos jardins de Kensington Palace, meditando na mudança que acabara de verificar no rumo das suas circunstâncias. A perda da pessoa de Isabella não lhe causava nenhuma mágoa, mas sabia que ela poderia agora desmentir a notícia do compromisso tomado, o qual conseguira adiar o dia de pagamento aos seus credores, que depositavam mais confiança nas suas maneiras especiosas e exteriores, do que na habilidade literária que pretendia aparentar. Voltava, portanto, a estar em perigo de bancarrota, de que procurava fugir e de que já estava tão desacostumado. Encontrava-se igualmente inquieto pelas suas obrigações acerca das jóias, que conseguira empenhar por quarenta e cinco libras. Com parte desta soma satisfizera as reclamações daqueles comerciantes cujo negócio todos os dias o abastecia de objectos indispensáveis, porque, para ele, a penúria era incompatível com a existência. O resto foi despendido velozmente em luvas, trens e flores. A importância que lhe restava considerava-a muito abaixo da que, com qualquer acrescento que pudesse arranjar, lhe seria necessária para resgatar os diamantes. Teria de fazer qualquer outro tipo de esforço para os restituir a Isabella, pois esta dívida era a única de que se envergonhava.
De repente concebeu uma ideia. Não era privilégio dos poetas converter os infortúnios em dinheiro? Outro discípulo da sua escola, admirado poeta e respeitado homem, ao ter a boa fortuna de perder, por falecimento, a mulher com quem vivera em termos muito desagradáveis, versificara a sua perda num poema que impressionava todos os que o liam e, com ele, em muito adiantou a sua reputação de escritor; passou a ser alvo, com proveito, de sarcasmo sobre as verdadeiras relações em que vivera com a defunta, que só o lamento poético conseguira aproximar do seu próprio espírito. Piores rimadores do que Hawkshaw tinham feito a
423
mesma coisa em ocasiões menos graves do que a dor dum coração ferido pela perfídia duma mulher: uma descrição com a conduta de Isabella marcaria em poesia. Hawkshaw chamou um trem que passava e dirigiu-se a Ladbroke GroVe, bebeu mais aguardente e, ainda antes da meia-noite, acabou um poema aliteratado onde colocava a sua conduta em tal posição que foi para a cama cheio de simpatia por si próprio.
424
CAPÍITULO V
Certa manhã Mr Woodward encontrou entre as cartas que acabava de receber um pacote cuja direcção estava escrita com a caligrafia de sua cunhada, Mrs Fley.
"Mas que raio de coisa teria Kate para me enviar?" exclamou ele, agarrando-o e esforçando-se por lhe tirar o papel que o envolvia. "Tch! Como teria ela conseguido embrulhar tudo isto no mesmo pacote? Olha pra isto!" gritou ele com impaciência, atirando o embrulho para a mesa de Smith: "Abra isso se puder. Se não puder, atire com essa maldita coisa para o fogo. Fez ela muito bem em colar e atar uma carta destas. Ora o diabo!"
Smith abriu o pacote e tirou dele um pequeno volume encadernado em vitela negra, não trazendo a capa nem ornamentos, nem inscrições, mas apresentava-se forrado com seda branca. As folhas eram de papel áspero, pesado, com os cantos sem enfeites. Em cada página as margens brancas ocupavam tanto espaço quanto a parte impressa.
"Que nome tem?" interrogou Mr Woodward.
Smith abriu o frontispício e desatou imediatamente às gargalhadas.
"Bem!" disse Mr Woodward. "Vamos lá ouvir de que brincadeira se trata."
"Peço muita desculpa", disse Smith. "Eu realmente nem sabia o que me fazia rir. Isto é "Uma Canção do Ramo Suspenso e dos Loiros Quebrados" por Patrick Hawkshaw, autor de "Bagos de Trigo", Hamlet, ou um "Segundo Livro de Revelações" e de outros trabalhos. Décima quarta impressão. Existia então, não longe do lugar onde eles se encontram, um castelo, chamado o Castelo da Dúvida, cujo dono era o Gigante Desespero; e era nos seus territórios que eles estavam agora a dormir. Londres: Irmãos Tabuteau, Paternoster Row. N. B. - A circulação deste livro é limitada aos amigos do escritor, sem cuja autorização ninguém poderá receber qualquer exemplar. Como o objectivo da publicação não é aproveitar a curiosidade do público em geral, o preço de
425
cada exemplar assinado e numerado foi fixado em dois guinéus. A composição será desfeita após a centésima impressão."
"Duzentos guinéus!" exclamou Mr Woodward, tirando o livro das mãos de Smith, e olhando depois para ele com espanto. "Ele devia ter dourado os cantos para valer mais alguma coisa, em vez de ter a amabilidade de não as cortar. Admiro-me como Kate pensa que eu vá ler isto. Não admito que ela tivesse cara de me pedir que aceitasse um exemplar destes por dois guinéus. Hum! Hum! Observe lá o que diz este amigo:
A minha traidora herdou de tal senhor
A chama escarninha do marmóreo calor,..
Os versos são como ele. Tenho de ler a carta para ver o que ela quer dizer enviando-me este cisco. Talvez seja para Isabella; não sei, no entanto, porque enviou isto para mim. Ramo Suspenso e Loiros Quebrados! Isso é pior do que os Tratados que a tia dela me costumava enviar todos os meses para a pobre criança."
Enquanto Mr Woodward abria e lia a carta da cunhada, Smith ia virando as páginas do livro, diligenciando apanhar o sentido dele pelas linhas que lia aqui e ali. Foi interrompido pelo amo.
"Smith", chamou Mr Woodward, com precipitação; "deixe-me ver já o livro. Obrigado. Vá escrever imediatamente, agora que ainda está com a mão na massa, a Fagan, e diga-lhe que eu não quero que os Morriseys entrem pela abertura da leiva deles e que meta uma carga de chumbo, se não o puder tratar de outra maneira, no corpo do menino Shea, se o vir à gandaia pela outra margem do rio,"
Smith obedeceu. Mr Woodward pegou no livro, fingiu dar especial atenção a uma página e acabou por depô-lo junto de si de maneira a poder descansar a mão nele. Fez depois uma rápida leitura da carta, murmurando o texto entre dentes, ao mesmo tempo que coçava repetidas vezes a cabeça. O secretário, entretanto, observava-o com certa apreensão, porque, tendo reparado que ele o impedira de continuar a cuidar do livro, ocorreu-lhe que o patrão podia descobrir alguma coisa que se referisse a Hawkshaw.
426
"Smith", disse Mr Woòdward, quando acabou de ler a carta e de a ter enrolada nas mãos durante alguns minutos; "fazia o favor de tocar por mim aquela campainha?"
O secretário tocou e Hamlet imediatamente respondeu.
"O xôr tocou?"
"Miss Isabella está em casa?"
"Na sei, xôr", disse Cornelius com ternura. "Digo-le que venha cá?"
"Vai ver onde ela está e depois vem dizer-me; tem cuidado com a língua e anda depressa," disse Mr Woodward severamente.
Hamlet desapareceu, mas voltou logo para dizer que Isabella se encontrava só na sala de almoço. Mr Woodward deixou o escritório, levando o livro e a carta consigo.
"Mas que tem ele esta manhã, pra estar axim de monco caído?" perguntou Cornelius a Smith.
"Provavelmente alguma coisa que lhe diz respeito só a ele."
"Trata-xe de Miss Bella, aposto. Ele parece que está a ir para a sala de almoço para lhe dar algum xabonete por causa do mau caminho que a pequena segue. E, muito bom tem ele sido, o pobre homem. Vai pra lá armar um sarilho com ela, como qualquer frango cheio de tesuras mas um bocado depois é já a só queridinha que não pode ficar atrás de ninguém. Na Irlanda deu um colete de peles à sobrinha de Mrs Daly que não usara uma dúzia de vezes e que lhe custara um ror de dinhêro."
"A sobrinha de Mrs Daly é sua irmã, suponho eu?"
"Deus proíba... que na podia ser! É minha prima!"
"Em todo o caso, julgo pensar bem supondo que Mrs Daly é sua tia?"
"Sim, me caro sor, e qué uma mnher ben ladina."
A campainha fez Smith separar-se do criado, e, pouco depois, como tivesse já terminado as suas obrigações, resolveu ir para casa, pois nada havia que indicasse o regresso de Mr Woodward. Quando entrava no corredor, viu Mrs Daly no tanque, pelo que se apressou a sair, com receio de que ela o demorasse em conversa; mas, ainda antes de chegar ao vestíbulo, já ela o chamava pelo nome num sussurro bem perceptível. O secretário parou e resignou-se a aturar novamente a algaraviada da irlandesa, que tanto detestava.
427
Mas esta, porém, limitou-se a tirar um bilhetinho do avental, pô-lo na palma da mão com os dedos trigueiros, piscou os olhos com uma vivacidade extraordinária para a sua idade e retirou-se rapidamente sem falar. Smith olhou para ela atónito e depois abriu o bilhete.
"Caro Mr Smith:
"Era favor vir ter comigo aos jardins de Hort, hoje às quatro e meia, junto do local onde jogávamos ténis quando da outra vez que lá nos encontrámos. Estou terrivelmente preocupada. Não falte, senão desgraça-me. Rasgue este bilhete.
W."
Smith riu-se destas palavras, mas lembrou-se com inquietação da parte que desempenhara no negócio dos diamantes, que certamente, disso se sentia seguro, não fora posta a descoberto por Mr Hawkshaw. Esperou com impaciência a chegada do momento indicado; faltavam três minutos para o primeiro quarto depois da hora quando ele entrava em Horticultural Gardens. Estava a dar o terceiro quarto quando Isabella apareceu, arquejante e desculpando-se da demora.
"Demorei-me com o papá", disse. "Tive de ir com ele ao caminho de ferro e a estas horas pensam que eu ando a pagar as visitas. Clytie, por sua vez, julgará que nada faço de importante. Mas isto é o que menos interessa. Vim ter consigo para lhe pedir auxílio. Está tudo descoberto."
"Mas não compreendo", respondeu Smith.
"Falo das jóias. Mr Hawkshaw, para se vingar de mim, teve a vileza de dar publicidade a toda a história num poema que foi parar às mãos de minha tia. Ela enviou-o esta manhã ao papá acompanhado de uma enorme carta, onde lhe diz que toda a gente está a falar de mim e ainda que circulam histórias de todas as espécies a respeito dos diamantes. E foi só ontem que qualquer pessoa muito estúpida disse à tia que era eu a real "Isabel", e ainda que todos os parvos diziam que a condessa disto, a duquesa daquilo e a princesa
428
de tal não passavam de invenções. E agora o papá quer ver as minhas jóias. O que devo fazer para evitar, custe a que custar, que a miserável verdade apareça?"
"Esquece-se que eu não sei qual seja a verdade. Permita-me lembrar-lhe que eu não fazia parte do número dos seus confidentes antes de me envolver em tudo isto como leva-e-traz dos seus ornamentos. Não me dê conhecimento do segredo sem pensar que, eu cheguei à conclusão, muito precipitadamente, que já o conheço."
"Mas eu preciso de si para me aconselhar sobre o que tenho a fazer."
"Diga-me então o que fez, Miss Woodward."
"Eu julgava que o senhor já sabia de tudo. É muito óbvio. Mas os homens nunca vêem coisa alguma. Julgo que lhe devo contar tudo, embora julgue louca a minha confissão. Pois bem: Mr Hawkshaw disse-me que estava à beira da ruína e, como uma idiota, dei-lhe os meus diamantes para os vender e com eles se salvar."
"Isso foi muito generoso da sua parte. E ele deve ser muito vil se abusou da sua bondade."
"Mas não houve assim tanta gen... Além disso, ele procura ainda fazer constar que eu lhe estava prometida."
"Não vejo como isso possa alterar o caso. Estava-lhe realmente prometida?"
"Não", respondeu Isabella, encarando bem os olhos do seu interlocutor, como era sempre seu hábito quando mentia.
"Qual é então a dificuldade?"
"A dificuldade? Devo evitar que o papá saiba que dei as jóias da mamã a Mr Hawkshaw, que ele nunca pôde tolerar. Imagine agora o que ele e todas as outras pessoas podem imaginar de uma coisa assim!"
"Não vejo porquê."
"Então o senhor não sabe como esta gente é? Faça favor de não ser estúpido... Quero dizer, ao menos, não seja pouco prático. Eu tenho um plano que me pode ajudar a conduzir a bom caminho. Prometa-me que o faz."
"Antes de prometer, gostaria primeiramente de saber de que plano se trata", respondeu Smith, cuja prudência foi desperta pelo tom adulador dela.
"Ninguém então poderia prometer. Um amigo deve
429
saber de antemão se deve ter ou não esperança no que pede."
"Estou pronto a auxiliá-la, mas não me quero comprometer em qualquer plano, porque continuo a não ver necessidade dele."
"Então bem, é isso. Tenho de entregar os diamantes à respectiva sorte. Preciso de si para ir a casa de Mr Hawkshaw e saber dele o que lhes fez. Calculo que ou os vendeu ou os empenhou; quando eu souber onde se encontram terei de conseguir adquiri-los novamente, ou comprando-os ou desempenhando-os."
"Pense, porém, no que isso lhe vai custar! Umas gemas como aquelas não serão revendidas por qualquer negociante senão por preço muito elevado; e, no entanto, para as desempenhar será necessário mais dinheiro do que o que a senhora pode reunir... não há dúvida também que dispõe de largos recursos."
"Acha que eles me vão pedir assim tanto dinheiro? Aqueles objectos estão já muito fora de moda."
"Diamantes nunca estão fora da moda."
"Mas eu tenho uma grande porção de coisas que já não quero e Mrs Daly pode conseguir-me dinheiro com elas."
"Será prudente dar assim tanta confiança a uma criada?"
"Oh, Mrs Daly sabe de tudo o que se passa! Ela já me arranjou dinheiro algumas vezes."
Smith fitou-a.
"Suponhamos contudo que conseguia readquirir as jóias", disse ele, "o que pretendia então fazer?"
"Ficaria tudo muito bem de acordo com um plano que eu arranjei. No momento em que os alcançasse, enviava-os logo à sobrinha de Mrs Daly, que está encarregada de cuidar da nossa casa na Irlanda. Ela, por sua vez, reenviá-los-ia ao papá."
"O quê?"
"O quê? Isto há-de conseguir-se e assim mesmo como lhe digo. Que perfeito inglês que o senhor é, Mr Smith!"
"Desculpe-me. Não há dúvida que eu sou de raciocínio muito lento, por isso tenho estado até agora verdadeiramente perplexo. Mas o que disse: que este plano há-de conseguir-se?"
"O papá perguntou-me pelos diamantes esta manhã.
430
Tive de lhe dizer que os deixara em casa, isto é, na Irlanda."
Smith recuou e olhou-a com surpresa e desaprovação. Ela, por sua vez, contemplou-o ansiosa, e acrescentou, apologeticamente:
"Que outra coisa podia eu fazer?"
"Devo confessar-lhe, Miss Woodward", disse Smith, "que cada vez percebo menos o seu plano. O motivo por que condescendeu em negar qualquer acção a seu pai é melhor conhecido por si; mas quando essa acção é uma daquelas que a obrigavam a ufanar-se e quando a sua ocultação envolve perda de dinheiro, a corrupção por grosso dos seus servidores e uma teia de decepções, esse plano, permita-me que lhe diga, parece-me a mais inconcebível das loucuras."
Isabella mordeu o lábio e ficou perplexa entre o desapontamento, a vergonha e o orgulho ferido.
"Não me quer então ajudar. É isso o que quer dizer?" disse ela.
"Eu não iria certamente ajudá-la a ser indigna de si própria."
"É muito fácil para si, que é independente e que nada tem a recear, pregar dessa maneira", respondeu a jovem colérica; "mas o senhor não compreende a minha posição. Neste mundo, todos consideram mais o que constitui um expediente. No fim de contas, eu não posso admitir que me esteja a comportar assim com tanta maldade. As jóias eram minhas e eu gozava de todo o direito de dispor delas como entendesse. E agora apenas me esforço por poupar ao papá um grande aborrecimento, que eu lhe infligiria desnecessariamente se lhe dissesse a verdade."
"Ele teria preferido que lhe infligisse um ruim aborrecimento do que o enganasse, conspirasse com os criados contra ele e destruísse toda a confiança que deposita em si e o prazer que sente quando está na sua companhia."
"Tudo isso é mera sofística, Mr Smith. Como poderá ele perder a confiança que deposita em mim se nunca souber que eu o enganei?"
"Por quanto tempo é possível ignorar-se um segredo que é conhecido por Mrs Daly, por Hawkshaw, que até publica poemas a respeito dele, pela sobrinha de Mrs Daly e provavelmente por muitos outros?"
431
"Em Mrs Daly e Lizzie deposito, implicitamente, toda a confiança."
"E nos outros? Em Hawkshaw, por exemplo?"
"Mas que vou eu fazer?" interrogou Isabella, quási a chorar. "Para que serve continuar a argumentar se já lhe expliquei tudo? Não posso recuar."
"É melhor recuar do que avançar de acordo com esse seu plano."
"Eu gostava que nunca tivesse visto os diamantes", gritou Isabella. Depois bateu com os pés na relva e acrescentou em audível murmúrio:
"Malditos!"
Smith estremeceu. Uma jovem que não podia raciocinar e cujas ideias de direito e de ofensa procediam de considerações pessoais, para ele não passava dum lugar-comum. Mas uma jovem que mentia deliberadamente, que empenhava as suas roupas pelas mãos das criadas e que dizia imprecações, chocava-o.
"Não posso aconselhá-la com muita confiança", disse, "a confessar a Mr Woodward o que aconteceu às jóias. Se não fosse desairoso, eu acrescentava que quando ele a apanhou de surpresa esta manhã, a senhora devia ter apresentado uma desculpa arranjada à pressa para lhe evitar algum aborrecimento; devemos aceitar como penitência o facto de lhe ter dito o que não era verdade."
"Sim", respondeu Isabella, iluminando-se. "Começo a verificar que, afinal, o senhor tem razão. Se eu apresentasse as coisas dessa maneira, ele não ficaria muito zangado, pois não?"
"Não se trata de pôr as coisas nesta ou naquela maneira", respondeu Smith com intolerância. "Eu apenas sugeri o que eu supunha constituir a verdade."
"Certamente. Mas acha que ele ficaria aborrecido comigo? Eu sei que o senhor me julga muito má; mas real e sinceramente eu não podia admitir que o papá se virasse contra mim."
"Pelo contrário, eu não me admiraria que ele concebesse uma boa opinião da sua sinceridade se lhe tivesse logo dito tudo; e certamente não lhe ralharia metade do que devia sobre o negócio dos diamantes, pois teria o espírito muito preocupado com a sua confissão."
432
"Então, no fim de contas, talvez fosse bom eu não lhe ter dito nada."
Smith olhou-a muito sério. -
"Penso que devo proceder como me diz", disse ela, após uma pausa; "mas confesso que ue sentirei terrivelmente medrosa quando lho for dizer, pois nem sei como hei-de começar."
"Fico muito satisfeito por verificar que já se convenceu. Agora, que já se descartou do seu plano, devo dizer-lhe, sem que pareça tentar abandoná-la a um mau procedimento por um motivo sem importância, que, na minha opinião, não conseguia obter bom resultado com isso."
"Julga que não?"
"Estou certo disso. No entanto, se conseguisse dinheiro suficiente, do que eu muito duvido, a demora tê-la-ia traído."
"Talvez, sim. Acho, na verdade, que tem muita razão. É uma consolação, quando se abandona um plano por se saber que ele não seria aplicável."
"Receio muito, Miss Woodward, que, no fim de tudo, o tenha rejeitado principalmente por causa dos sérios inconvenientes que encerrava. Porque não escolhe a melhor das alternativas?"
"Não há prejuízo em convencer alguém de que o caminho direito constitui sempre o melhor expediente, ou há?"
"Não", respondeu Smith, contendo-se quando ficou em condições de se poder congratular da sua virtude superior; "e já que falo nisso, digo-lhe que não estou muito certo de ter qualquer outro motivo que me leve a recomendar-lhe honestidade rígida, a não ser a minha convicção da sua superior conveniência."
"Julgo que não", respondeu a jovem, com invejosa melancolia. "Creio até que a sua encantadora honestidade se deve a esse motivo."
"Precisamente. Eu apenas não posso com exactidão explicar porque ela se deve a esse motivo."
"Explica-se por esse motivo, suponho eu", respondeu Isabella, com alguma impaciência. "Meu caro, há quanto tempo estamos nós aqui a conversar! Já passa das cinco. Tenho de me ir embora."
433
"Está então resolvida a adoptar o melhor caminho, Miss Woodward?"
"Sim, assim penso."
"Pensa assim?"
"Pois bem: quero-o. Estou quási certa que o quero."
"Desculpe, mas eu desejo que chegue a uma perfeita certeza antes que nos separemos."
Miss Woodward hesitou. "Não tenho o costume de afectar uma virtude indomável, Mr Smith", disse ela; "pois desgraçadamente temo bastante ir falar nisto ao papá e eu sei também que toda a minha coragem desaparecerá quando chegar a hora própria."
"Eu sempre considerei Mr Woodward o mais indulgente dos pais. Se o é, será com certeza acção muito ingrata afastar-se dele com terror."
"Mas é isso mesmo que me mete medo. Não vê que os meus receios se tornam assim mais negros? Se ele fosse áspero e cruel, como são muitos pais, até seria um prazer desafiá-lo e iludi-lo. Mas assim, julgar-me-ia ingrata por lhe contar uma historieta e fazer tenção de mostrar virtude forçada pela necessidade de confessar o que eu não pude ocultar por mais tempo. Eu queria que, de qualquer maneira, ele tivesse notícia do plano que sacrifiquei. Ele saberia então que lho teria imposto se preferisse executá-lo, e que a minha confissão se fez voluntariamente porque eu não queria pensar em o enganar."
"É inútil aconselhá-la", exclamou Smith, que não era nunca capaz de encobrir desgostos. "As mulheres não têm senso moral."
"Não esteja tão zangado por pensar mal de mim, Mr Smith. Eu não disse que ia confessar a verdade ao papá. Desejo plenamente falar-lhe."
"Sim, e não terá motivos para recear o que qualquer pessoa possa pensar de si, visto que vai satisfazer as exigências que lhe impõe o seu respeito próprio."
Isabella, entretanto, metia o dedo no cinto e olhava inquieta alternadamente para o chão, para os edifícios e para Smith.
"Suponho", disse por fim, "que já não existe a possibilidade de Mr Hawkshaw ter ainda as jóias em seu poder. É também admissível que ele as não tenha vendido."
434
"É natural, mas não muito provável. Isso, porém, não altera o caso."
"Não, não certamente." Durante alguns momentos Isabella permaneceu silenciosa, continuando a passar o dedo pelo cinto. Depois disse: "Acho melhor ir aos Oratorianos para falar com o frade Ignatius. É ele quem me vai aconselhar o que tenho a fazer."
"Mas para que é preciso ir ter com um padre? Um homem cujos preconceitos profissionais e afastamento do mundo o tornaram o pior conselheiro possível! Além disso, um padre, por muito bem intencionado que possa ser, baseia todos os assuntos éticos em alicerces falsos e possui todas as suas noções de verdade e de erro mais ou menos pervertidas."
"Admiro-o, Mr Smith. O senhor é a derradeira pessoa que eu teria esperado encontrar submetida a tão absurdos preconceitos."
"Admitia então, como esse frade Ignatius está informado da sabedoria eterna, que ele lhe pode dizer mais alguma coisa além do que já sabe sobre este assunto? A senhora não esperava certamente que ele admitisse a possibilidade de ir mentir para junto de seu pai."
"Não, suponho que não", respondeu Isabella, batida, com toda a evidência, por este argumento. "Mas então não deve haver perigo nenhum em procurá-lo."
"Não há em qualquer dos modos. Ele vai limitar-se a impor-lhe uma penitência pelo que fez."
"Fá-lo-ia em qualquer caso e em qualquer ocasião, quando lho confessasse; e receio que ele me imponha uma mais pesada por ter estado com o senhor, por causa da nossa santa religião."
"Em todo o caso, a senhora mal pode impedir que se fique com a impressão de que procedeu mal, e tem ainda um caminho fácil para se conseguir libertar da responsabilidade: pedir uma absolvição."
"Cale-se, por favor, Mr Smith. Eu não posso ouvi-lo falar sobre estes assuntos."
"Para encurtar razões", disse Smith, "não concordo que vá aos Oratorianos, porque aprendi por experiência própria que as pessoas nunca recorrem à religião em termos práticos, a não ser quando pretendem a desculpa de uma acção
435
má. O que se chama falsamente um caminho estreito e recôndito é, na realidade, largo e óbvio, posto que pouco frequentemente por lá se passe; mas, como qualquer outra estrada, só o podemos ver ao ar livre e não de dentro duma igreja."
"Isso pode ser muito certo com as outras igrejas, mas não com a verdadeira. Olhe! Faça favor de não falar mais no caso. É já muito tarde para ir agora aos Oratorianos e tenho de sair logo que jante; de resto, pode estar tranquilo, quanto ao frade Ignatius. Tenho de ir a correr para casa o mais depressa que puder. Adeus!"
"Concluo que tudo isto ficará aclarado ainda antes de amanhã."
Miss Woodward sacudiu a cabeça e começou a correr. Smith encaminhou-se a largas passadas para casa, excitado pelo seu ódio à religião, inchado pelo sucesso da sua legítima esquisitice e divertindo-se com visões de igrejas destruídas e de padres rebatidos.
436
CAPÍTULO Vi
Na manhã seguinte, Smith esperava o aparecimento de Mr Woodward com certa agitação, pois sabia que se o conselho que dera a Isabella se realizasse, isso poderia causar a sua demissão.
"Bom dia", disse ele, quando entrou Mr Woodward.
"Bom dia", murmurou o patrão.
"Bem!" pensou Smith. "Ela, no fim de contas, teve a
amabilidade de lhe contar." Nada mais se disse até à execução dos trabalhos habituais da manhã; só então Mr Woodward olhou severo para o secretário, franzindo as sobrancelhas, embora as narinas se mexessem como quando estava alegre, e dirigiu-se-lhe em tom desabrido.
"Você era um bom vagabundozinho se abandonasse o serviço duma casa, não era?"
Não sabendo como responder, Smith nada disse e sorriu. "Porque está a arreganhar os dentes?" Smith olhou sério durante um momento e depois voltou a sorrir.
"Então?" perguntou Mr Woodward.
"A minha única quebra de confiança, se houve alguma", disse Smith, "foi arriscada à custa de muitas dúvidas. Mas não vejo como eu poderia recusar arriscá-la."
"Não me podia escrever directamente a contar o que se estava passando?"
"Eu não sabia o que se estava passando, Mr Woodward. Se não pensasse que V. Ex.a estava melhor informado do que eu, teria sido eu o informador da mais pequena suspeita que eu entendesse não dever ocultar."
"Hum! Você tem estado a aconselhar Bella sobre a conduta que ela há-de ter comigo, an?"
"Miss Woodward estava ontem tão perplexa, que me mandou chamar, visto ser eu a única pessoa que conhecia o caso."
"Ela pede-lhe conselhos assim com muita frequência?"
437
"Não", respondeu Smith corando.
"Garanto-lhe que ela preferiu ir ter com os seus santos padres de Brompton Road", disse Mr Woodward, que era firme protestante à maneira irlandesa. "Não admira que a pobre criança ande cheia de confusões nos seus princípios, com aquelas imagens, aquelas velas e aquelas confissões! Creio que lá lhe ensinaram a obrigação de me dizer mentiras porque meu pai foi chefe duma loja de Orange. (1)"
Smith não se sentiu obrigado a defender a Igreja Romana ou qualquer outra.
"Siga o meu conselho, Smith", disse Mr Woodward, renunciando ao seu habitual tom roncador, e falando grave e gentilmente; "sempre que veja uma rapariga a fazer negociatas como esta em que você se encontrou envolvido, esteja certo que ela está a praticar uma autêntica loucura; não deixe de se importar com a sua honra, mas ou comunique o que se passa aos pais dela, ou disponha a vida de maneira a atravessar-se na frente dela, dando-lhe a entender que lhes vai, de qualquer maneira, contar o sucedido. Se não lhe agradar proceder assim, afaste-se por completo das coisas dela. E agora, visto que esteve tão activo a ajudar Bella a oferecer os diamantes, desejo saber se está igualmente disposto a ajudar-me a rehavê-los."
"Estou disposto e ainda mais: desejoso."
"Então, visto isso, eu queria que fosse ter com esse ladrão para saber o que fez deles."
Smith então contou-lhe o que se passara com o poeta durante a entrevista que tivera lugar em Ladbroke Grove, e também como eles, desde então, cortaram as relações um com o outro; acrescentou ainda o receio de, no caso de tentar comunicar pessoalmente com Hawkshaw, lhe ser recusada a entrada em casa do recebedor dos diamantes.
"Eu gostava que você lhe tivesse quebrado o nariz", disse Mr Woodward. "Não quero ter qualquer espécie de
(1) Em inglês: Orange Lodge. Os orangistas (orangemen) constituíam uma seita secreta, de carácter político, dos Protestantes Irlandeses. O seu nome tirou-se de Guilherme III, primeiro príncipe de Orange (1650-1702). - N. T.
438
conversa com ele; escrevi-lhe, por isso, a dizer que amanhã o mando a você lá para trazer os diamantes se ele for capaz de os rehaver neste espaço de tempo. Incluí na carta um cheque de cinquenta libras para que os possa desempenhar, pois suponho que os pôs no prego. Pelo seguro, digo-lhe que, no caso disto não ser bastante me escreva imediatamente para eu lhe remeter o que faltar. É como as coisas se arranjam hoje."
"Então amanhã irei ter com ele."
"Não tenho a certeza de proceder bem confiando-lhe o cheque", disse Mr Woodward, coçando a cabeça; "calculo, porém, que não há outro remédio. Palavra de honra, é um apavorante montão de dinheiro que afinal voa por nada, mas o diabo que o leve! Entra!"
"O xôr Hawkshaw!" disse Hamlet, abrindo a porta.
"Que espere um pouco", gritou Mr Woodward, dando um salto repentino; "não o deixes..."
Foi interrompido pela entrada de Hawkshaw.
"Não o quero demorar mais de cinco minutos, se me conceder este tão curto espaço de tempo", disse o poeta, por deferência graciosa para com a idade de Mr Woodward. "Talvez fosse preferível não começar a esclarecer o meu assunto sem estarmos sós."
"Este meu jovem amigo está perfeitamente informado do único assunto que nós provavelmente temos a tratar", respondeu Mr Woodward. "Queira sentar-se."
Smith estendeu uma cadeira a Hawkshaw.
"Mr Woodward", começou o poeta; "permita-me que lhe restitua o cheque de cinquenta libras, para a aceitação do qual por mim, V. Ex.a se fundou em motivos para os quais eu creio enfaticamente nunca lhe ter fornecido as mais pequenas causas para me julgar capaz de as admitir. Permita-me também que lhe restitua estas jóias. Ao aceitá-las como as aceitei, cometi, não resta a menor dúvida, uma loucura. Tive de escolher entre aceitar uma dádiva que era, julgava eu, indício da mais pura e da mais nobre das simpatias, sacrificando embora a débil rebelião da minha vaidade pessoal e um temor indigno das ignóbeis más interpretações de outros. Fiz a minha eleição como poeta e não como qualquer homem do mundo. Espero que é desnecessário acrescentar que estas gemas nunca deixaram de estar em
439
meu poder até este momento. Renuncio agora a elas porque já não posso mais desejar ardentemente abraçar o pescoço de minha esposa, pois constituem uma triunfante vingança do meu desinteresse e uma eloquente recordação do meu amor."
Smith sentiu-se tomado de remorsos e começou ainda a recear que fora injusto para com Hawkshaw.
"Procedeu convenientemente ao restituir as jóias", disse com gravidade Mr Woodward, "embora não andasse bem em as aceitar."
"O meu sentido da honra está, afinal, em ambos os pontos", respondeu Hawkshaw, "e, sendo assim, eu consideraria talvez fraqueza qualquer sentimento ulterior. Pensei ainda que o simples facto de restituir as gemas seria suficiente para desarmar qualquer suspeita."
"Não desejo discutir este assunto", disse Mr Woodward. "Fico-lhe muito obrigado por me ter trazido os diamantes de minha filha."
"Não posso dizer", respondeu Hawkshaw, levantando-se, "que me convenço da sinceridade dos agradecimentos de V. Ex.a."
"Porquê, homem, pelo sangue de Deus", exclamou Mr Woodward, abandonando de repente a sua digna compostura, "você esperava que lhe ficasse muito agradecido por ter tornado a minha filha o assunto de todas as conversas da cidade, a dois guinéus por cabeça? Julgava que me causava vergonha se não me desempenhasse ontem ao prestamista estes diamantes, com o dinheiro que o seu escandaloso livro lhe pôs nas algibeiras?"
"Não fico surpreendido do seu erro", disse com calma Hawkshaw."
"Ah, não? Pois bem, e eu fico surpreendido que você me julgue com tão pouco senso para ser embaído na minha idade com desculpas que tais. Bella mandou-lhe recado sobre o caso no dia seguinte ao da nossa chegada da Irlanda. E há quanto tempo estamos à espera? Há mais dum mês, e só hoje restitui os diamantes e não antes de lhos terem pedido."
Hawkshaw curvou-se, pegou no chapéu e dirigiu-se para a porta.
"Toque aí a campainha, se faz favor, Smith", disse
440
Mr Woodward, exasperado com a suavidade dp poeta. "Deve considerar-se muito feliz por ir assim, Mr Hawkshaw. No meu tempo, um rapaz daria mais depressa um tiro nos miolos do que aceitaria presentes duma mulher; e assim se evitava alguma coisa que não fosse vergonha de ser posto na rua."
"Um mau argumento, creia-me", disse Hawkshaw. "Bom dia." Saiu. Esperava-o Hamlet, que, tendo chegado ainda a tempo de ouvir as últimas palavras do patrão, carregou a fisionomia para o poeta, enquanto acompanhava este até à porta, e fechou-lha com violência nas costas no mesmo momento em que o outro atravessava a soleira.
"É um argumento que te teria acabado eficazmente, e de qualquer maneira", murmurou Mr Woodward, quando Hawkshaw desapareceu. "An, Smith?"
"É um argumento com o qual ele teria a mesma possibilidade de acabar com o adversário. O homem ofendido acerta no alvo às vezes."
"Na verdade! Sim, talvez tenha razão. Você é bastante sensato para a sua idade. De qualquer maneira, argumento ou não argumento, estou satisfeito por já cá ter outra vez as jóias e sem arriscar as cinquenta libras. O pobretanas deve ter feito muito dinheiro com o tal livro, senão nunca me teria dado o cheque."
"Não crê então que ele estivesse por completo pelos sentimentos que ostentava?"
"Psh! O que ele é, é doido!" Com estas palavras, Mr Woodward queria dizer que Hawkshaw não era doido. "Talvez à força de repetir todo o fio do discurso, de o escrever e de o rimar, esteja quási a crê-lo por fim. A sua ocupação é torcer o senso comum e justificar a maldade como recompensa, como diz Isaías. Não é assim? "Ai de vós os que ao mau chamais bom, e ao bom mau; pondo trevas por luz e luz por trevas; pondo o amargo pelo doce, e o doce pelo amargo" (1) Julgo que o passo é assim, an?"
"Tanto pior para os poetas!"
"Precisamente o que eu ia dizer. Bem! Há ainda mais cartas para responder?"
Não se fez mais nenhuma alusão aos diamantes, ainda
(1) Isaías, v. 20.
441
que um estremecimento momentâneo de Mr Woodward mostrasse que ele estava satisfeito consigo mesmo por ter dito o que sentia a Hawkshaw. Mas o secretário pensava que o comportamento do poeta fora na verdade superior em dignidade durante a última parte da entrevista.
Quando Smith atravessava Cromwell Road a caminho de casa, passou por ele uma carruagem aberta, na qual se sentavam Isabella e Mrs Daly, que um vestido de seda preta e um boné converteram na imitação de uma fidalguinha. Ao vê-lo, Isabella mandou parar a carruagem. Ele, em consequência disso, aproximou-se da porta do veículo, sob cuja manta pôde ver grande quantidade de lenha e alguns bocados de papel pardo.
"Estivemos numa missa cantada", disse Isabella." Hoje é um dos nossos dias santos."
Smith olhou para a lenha e perguntou se ela se consagrava a algum rito que não fosse do seu conhecimento.
"Não", respondeu Isabella; "nós não levámos isto aos Oratorianos, Mr Smith. Mrs Daly comprou-a nos armazéns cooperativos. Eu queria perguntar-lhe se o senhor já foi especialista em árvores de borracha."
"O que é uma árvore de borracha?"
"Ora, o senhor conhece-a muitíssimo bem. Estas coisas grandes e verdes."
"Todas as árvores que eu conheço são verdes."
"São de verdade? Tenciono ir hoje ao viveiro de Parson, em Kings Road, para comprar algumas plantas, e lá, entretanto, poderei dar-lhe algumas novidades. Pode lá ir?"
"com muito prazer. Às três?"
"Sim, às três", respondeu Isabella, e, dirigindo-se ao cocheiro, mandou seguir, o que ele fez com a pretensão de não ter ouvido a ordem, mas de ter agido por iniciativa própria; fê-lo, porém, de tal maneira que foi traído pela profissão.
"É um pobre diabo", observou Mrs Daly, com compaixão, quando o trem recomeçou a andar. "Não passa dum João Ninguém, na minha opinião."
"Tanto melhor", disse Isabella. "Tenho tido bastantes do outro género. Conforta ter encontrado por fim um homem que é realmente bom."
"Ai credo! e chama àquilo um homem? O que é ele mais do que um garotelho que anda lá por casa a arrumar
442
as cartas como o senhor gosta? Lembro-lhe, porém, Miss Bella, que ele não pertence à sua classe."
"Não me importunes, Essie", foi a única resposta.
Às três horas, Smith encontrou a carruagem junto do portão do florista, em Kings Road", penetrou no viveiro com Isabella, deixando Mrs Daly a fazer excursões dum lado para o outro pelas vizinhanças a fim de beneficiar os cavalos. A questão de se comprar uma árvore de borracha resolveu-se rapidamente. O jardineiro, um escocês de feições grosseiras e já quarentão, admirou os olhos negros de Miss Woodward e aproveitou o negócio para uma dádiva tão liberal de flores, que Smith se sentiu obrigado a dar-lhe uma gratificação. Após isto, nenhuma objecção apareceu quando Isabella pediu licença para andar pelas estufas a fim de admirar as orquídeas. E logo ficou só com o secretário numa atmosfera húmida, com fragrâncias térreas, onde flores de variegados tons e fantásticas formas saltavam de vasos em madeira.
"Já sabe, suponho eu, que contei tudo ao papá", disse ela.
"Sei. Deduzi isso do que ele disse esta manhã. Ouviu falar na visita de Mr Hawkshaw?"
"Ouvi, mas queria ouvi-lo a si a esse respeito. O papá não me forneceu particularidades; deu-me apenas as jóias e disse-me que o salteador, como ele chama a Mr Hawkshaw, é que dispôs as coisas de maneira a desempenhá-las com o que conseguiu obter graças àquele odioso livro."
Smith contou-lhe o que se passara entre o poeta e Mr Woodward. Quando acabou, a jovem disse:
"Causa-me satisfação que o papá lhe fizesse saber como fora vil a conduta que seguira. Desejava apenas dizer-lhe qual era a minha opinião. Mas isso deve-se à infelicidade de eu pertencer ao meu sexo. A repreensão, não importa como possa ela ser, soa sempre dos lábios de uma mulher com ares intimativos."
"Não soa tão dignificante, como a que se ouve de um homem, Miss Woodward", moralizou Smith.
"Sim, mas um homem é muito diferente, pois não precisa de se acautelar. No entanto, não devo esquecer que tenho a agradecer-lhe ter evitado que eu me envolvesse numa terrível confusão, e que perdesse a estima de meu pai
443
e a minha, para sempre. Ele não estava, enfim, zangado comigo, pois toda a sua raiva ia contra Hawkshaw. Não me lançou a sombra de uma censura; na verdade, eu julgo que o seu principal sentimento para comigo era o de ansiedade para que eu não começasse a gritar como uma idiota, como estive quási para fazer. O que o senhor me disse era muito verdade. Era coisa indigna de mim receá-lo e isso mostra o que receios cobardes, ou, pelo menos, as loucuras, nos podem fazer."
"Fico satisfeito por os bons costumes terem feito vingar a conveniência. E agora, se não fosse ser esquisito demais, eu poderia perguntar-lhe a significação de qualquer coisa que a senhora mencionou ontem à noite e que não percebi bem?"
"Não hesite em me perguntar o que quiser."
"Eu gostava de saber, então, que motivo tinha Mr Hawkshaw para se vingar, e qual motivo seria, segundo disse a senhora, a causa da publicação do poema. Ele não é com certeza tão mau que seja capaz de ofender quem o tratou tão generosamente."
"Não sei que motivo ele poderia ter, a não ser uma frieza que nasceu entre nós quando voltei de Rosstrevor."
"Uma frieza?"
"O caso é este, Mr Smith: nós andávamos tão ligados em Rosstrevor que chegou a pensar da minha parte em qualquer coisa mais do que realmente existia, e quando, logo após o nosso regresso, lhe tirei essa ideia, saiu da nossa casa furioso. Os homens nunca esquecem os prejuízos causados à sua vaidade."
Smith cofiou o bigode a reflectir, mas nada disse. Isabella tornou-se repentinamente agitada e acrescentou: "É uma mentira famosa esta que eu lhe disse. O livro dele está cheio delas e, no outro dia, teve a vileza de mo dizer."
"Não faça caso", respondeu Smith acalmando-se. "Ninguém, acredita no galã desprezado."
"É certo? Há gente tão má, que são precisamente as insinuações odiosas as mais aceites por toda a gente."
"De qualquer maneira, o melhor processo de o desacreditar é votá-lo ao desprezo. O que é que as outras pessoas podem pensar a esse respeito?"
"É isso mesmo, Mr Smith; mas qual é a maneira de negar
444
a alguém o prazer de se comportar levianamente se, por isso, outrem não lhe der crédito?"
"Considera isso um prazer, mas pode crer que não o é."
"Mr Smith", disse Isabella, após uma pausa, "crê na verdade que a virtude constitui uma recompensa nesta vida?"
"Se o não for", respondeu ele com prontidão, "será então um vício." .
"Isso é um absurdo."
"Então, como recompensa, será condenada no outro mundo", respondeu Smith, com um sorriso céptico. "Seja virtuosa, senão irá para o inferno."
"Chiu", disse ela a tremer. "Eu queria que o senhor arranjasse qualquer outra coisa mais confortável para falarmos do que em religião."
"Este compartimento é o mais quente dos que já percorremos. Sinto-me enfraquecer. Vamos às feteiras?"
"Mas evidentemente. Sinto-me que parece que estou a apanhar um banho turco mesmo vestida. Uff! Por contraste, como está frio aqui!"
Nos sítios por onde tinham acabado de passar, encontravam por vezes os jardineiros, porque, noutras ocasiões, evitavam-nos para não se molharem com a água que lançavam pelas mangueiras. Nas feteiras, porém, encontraram-se completamente sós.
"Que labirinto de verdura!" exclamou Isabella, olhando em volta." Acredita que estamos em Kings Road e não no Paraíso?"
"Antes um paraíso artificial", disse Smith, evitando o caminho que ela lhe oferecia.
"Antes um Adão artificial, quer o senhor dizer."
Smith corou, consciente de que se ela substituísse Eva por Adão, as palavras da jovem exprimiriam o pensamento dele próprio.
"Artificial porquê?" perguntou.
"O senhor é tão pouco imaginativo! Nunca leu poesia? De que livros gosta mais... depois dos provérbios de Salomão, claro?
"Das máximas de La Rochefoucauld", respondeu Smith.
"Ah, sim! Mas brincadeiras à parte, os seus epigramas são tão deleitantes que ninguém repara como são falsos,
445
ofensivos e até meretrícios. Brilhantismo meretricioso, eis, segundo penso, o que descreve exactamente La Rochefoucauld. Mas não era desta espécie de literatura que eu lhe falava. Aprecia poesia?"
"Não tenho lido muito, de maneira que julgo não a apreciar muito."
"Mas quando lê, quem é o seu poeta favorito?"
"Shelley."
"Ah! Sim, certamente. Sempre considerei Shelley um pouco antiquado e são muitos os poemas dele que não se devem ler."
"Muito irreligioso?"
"Não, meu caro! Não caio em tais preconceitos. De resto, estamos todos já tão acostumados a este género de poesia. Julgo, porém, que é possível ao poeta ser muito imaginativo. A sensualidade de Shelley corrompeu tudo o que ele nos deixou."
Smith fitou-a sem tentar responder.
"Julgo que nunca tentou escrever", disse ela.
"Sinto-me corar para lhe dizer que pertenço à raça ridícula dos poetas amadores."
"Oh!" exclamou Isabella, apertando as mãos. "Vai mostrar-me algumas das produções que escreveu."
"Desculpe-me, mas ainda não caí no abismo de trazer as minhas efusões poéticas na algibeira para as recitar à mais pequena provocação."
"Prometa-me que me deixará, ao menos, ver uma delas."
"Tomei a resolução de nunca trazer comigo os meus esforços para serem admirados. Nada tenho a ganhar com eles a não ser um sentido de absurdo e alguns louvores pouco sinceros."
"Não diga isso. Eu é que tenho alguma coisa a lucrar, tanto mais que tenho grande desejo de ver esses poemas que o senhor oculta tanto. Dir-lhe-ei exactamente o que pensar deles, garanto-lhe."
"Bem", disse Smith, esquecendo-se do que dissera a respeito de Shelley. "Concedo, mas deve lembrar-se que todos eles não passam de trechos fugidios. Muitos foram compostos numa noite, e não foram conscienciosamente polidos como deviam, embora não o mereçam. Estipulo, porém, que ninguém mais os deve ver."
446
"Eu não pensaria em os mostrar a quem quer que fosse sem sua autorização."
"Então trago-lhos qualquer dia e terei muito gosto em ouvir a sua opinião a seu respeito."
"Muito bem. Lembre-se bem, olhe que prometeu! Que horas são?"
"Quatro cerjtas."
"Deus meu! Estamos aqui há uma hora. NRs Daly deve estar muito zangada. Vamos embora já."
Smith despediu-se de Isabella sem suspeitar que Miss Woodward o considerava quási um santo porque ele não se portara na feteira como o teria feito Hawkshaw.
"Só visto, Essie!" disse ela, quando o trem as conduzia. "Perdemo-nos nas estufas e andámos a tentar encontrar a saída durante muito tempo, antes que conseguíssemos achar alguém que nos indicasse o caminho."
"Deve tomar muita cautela, Miss Bella", disse Mrs Daly, inquieta, "ou então perder-se-á onde não houver senão um jardineiro escocês a pôr as coisas no seu devido lugar."
"Deixa-te disso, Essie, não sejas impertinente."
"Sim", disse Mrs Daly, deixando escapar algumas lágrimas, "é sempre o que acontece. Quando há atrapalhação ou alguma coisa a empenhar, é Essie para aqui, Essie para ali e Essie para acolá. E agora, que eu estive à espera uma hora debaixo deste frio, já não tenho o direito de abrir a boca. Isto assim não pode ser. Algum dia vê-se livre de mim, se Deus quiser."
"Ora vamos, Essie", disse Isabella, meia impaciente, meia adulante: "não sejas burra-velha. Sabes que me têm aborrecido muito com sermões. Não deves fazer com que o cocheiro te oiça chorar."
Mrs Daly fungou, mas não fez mais objecções à ama, que já então meditava na probabilidade de algum dos sonetos de Smith ter sido inspirado pela sua pessoa, se a vaidade de Hawkshaw não era comum, em maior ou menor grau, a todos os componentes do seu sexo.
Naquela tarde, nos seus compartimentos de Danvers Street, Smith pôs-se a examinar o livro onde existiam quatro exemplares de todas as suas composições, e considerou se o devia emprestar a Isabella, ou se não seria preferível transcrever os melhores poemas que lhe destinasse
447
em folhas separadas. Este recurso, pensou, poderia privá-lo dos créditos de fertilidade, seria maçador, e, como as suas obras favoritas poderiam ser as que menos se adaptassem ao espírito dela, tiravam-lhe os meios de examinar os únicos exemplos em que a jovem seria capaz de fazer justiça. Ele não corria riscos por enviar o livro a não ser o da sua perda, a qual, disso estava Smith certo, apesar de parecer castigo da vaidade implicada pela ânsia de saber a impressão que provavelmente se faria do conteúdo, não seria grande. Para fazer maior impressão, copiou todas as peças poéticas que pôde encontrar, separando-as umas das outras por uma linha de asteriscos e encabeçando-lhes o título: Fragmentos. Quando procurava mais composições que ficassem bem sob este título entre os seus papéis velhos, encontrou um intitulado: Versos a uma Flor-de-Paixão meridional. Sentiu-se envergonhado quando se lembrou da enfatuação com que se sentira ao escrevê-lo. Lendo-o, achou-o, para sua grande surpresa, superior a todos os sonetos que acabara de rever, pois escrevera-o com fervor por causa de uma mulher, em vez de o ter feito friamente por causa de uma abstracção. Copiou logo esses versos para o livro, ainda que durante isto parecesse ter perdido muito do seu ardor. Ficou convencido, mesmo assim, que eles seriam melhor apreciados por Isabella do que o foram por Harriet.
448
CAPÍTULO VII
Certa manhã, um mês depois de Miss Watkins ter abandonado a casa de seus pais, Fraser Fenwick encontrava-se defronte do palácio de Sire John Porter em Wilton Place, considerando se devia anunciar a sua presença por um forte puxão na campainha da porta de serviço, ou por outro mais delicado na de visitas; tendo seguido a segunda alternativa, ficou frente a frente com um homem já nada novo, de casaco preto e calças de fantasia, que o contemplava com ar de reserva ao mesmo tempo que esperava, em silêncio, a explicação daquele aparecimento às onze e meia da manhã.
"Queira comunicar a Lady Porter que Mr.. que Fraser Fenwick lhe ficaria muito obrigado se se dignasse recebê-lo só por um momento.)"
"Negócios?"
"Negócios particulares", respondeu Fenwick.
Depois, receando que uma ofensa pudesse implicar a recusa tácita, assumiu ares geniais e acrescentou:
"Negócios particulares tanto quanto o podem ser. Diga-lhe o meu nome e tudo ficará certo. Isto fará as vezes do bilhete de visita de Fraser Fenwick, meu velho."
"É melhor pôr-se em cima da esteira", disse o homem. "Vou ver se não perturbo S. Ex.a a esta hora com o seu pedido, já que não quer mandar recado dos tais negócios." Ditas estas palavras, percorreu com o olhar o vestíbulo para se assegurar de que não havia objectos portáteis valiosos ao alcance do visitante e dirigiu-se à presença de Lady Geraldina, a quem notificou o desejo de Mr Fenwick.
"Está decentemente vestido?" perguntou Lady Geraldina.
"Sim, minha senhora", respondeu o homem com relutância.
"Está com ar de quem não bebeu?"
"Não encontrei nele qualquer sinal que me indicasse o uso de bebidas, minha senhora. Eu só troquei com ele meia dúzia de palavras à porta."
449
"O aspecto geral mostra que se trata de pessoa que ultimamente se tem comportado bem?"
"Como diz V. Ex.a?"
"Nada. Mande-o subir."
Lady Geraldina achou divertido uma entrevista com Fenwick, ainda que ele nunca lhe aparecesse senão quando se encontrava em apuros. Afivelou então uma expressão de severidade vigilante e sentou-se numa cadeira de regalo, junto da janela. Entretanto Fenwick, tendo recebido do criado apenas um seco "por aqui", dito num acesso de altivez, subia as escadas com a coragem a enfraquecer à medida que o corpo ia vencendo os degraus. Recuou quando a porta se abriu precipitadamente na sua frente, em ar de desprezo.
"Entre", gritou Lady Geraldina com severidade. Fraser tremeu e entrou.
"Olá, Fraser, fico muito satisfeita por poder verificar no seu aspecto que se tem portado bem", disse a dama, convencida, pela visita, do contrário.
"Muito obrigado, Lady Joldie; creio que, por fim, consegui livrar-me de todas as minhas malditas dívidas. No outro dia, aumentaram-me o salário para trinta xelins por semana. Penso agora que mereci a sua recomendação."
Lady Geraldina sentiu-se envergonhada pela sensação de desapontamento que esta resposta lhe causou.
"Assim espero", disse. "Não veio por mais nada senão para me falar do seu salário."
"Peço desculpa se sou importuno..." começou Fenwick, corando.
"Não tome à letra as minhas palavras. Nada devo objectar às suas visitas sempre que tenha qualquer coisa a dizer que aumente o seu crédito. Mas estou certa que deseja qualquer coisa, porque eu bem sei que se não precisasse não estaria aqui."
"Garanto-lhe, Lady Joldie, que eu preferia estar junto de si, mesmo como criado, do que ao pé de qualquer outra pessoa; eu apenas receio que a falta de me ver lhe agrade mais. Eu considero-a minha mãe."
"Então tome liberdade, muita liberdade mesmo. Para o futuro, tenha a bondade de me considerar parente muito
450
afastada, que de modo algum só responsabiliza pela sua educação."
"Não há dúvida", respondeu Fenwick, que fora hábil adulador na infância; "mas com a sua bondade e a minha solidão..."
"Fraser" interrompeu Lady Geraldina, "desde que deixou de beber, as suas exibições sentimentais perderam a plausibilidade que conseguiam obter pela fé que você depositava nelas. Os seus nervos encontram-se agora suficientemente sãos e por isso deve abandonar todas as tentativas para me convencer. O que o trouxe cá?"
"Eu não vim exactamente..." Pausa.
"Então, Fraser? Ia a dizer que não veio exactamente. Julgo que você devia acrescentar algumas observações mais explícitas."
"Receio que não aprove o que eu vou fazer."
"Provavelmente não."
"Vou... vou-me casar."
"O quê! Você?" exclamou Lady Geraldina, olhando para ele severamente. "E quem é essa infeliz mulher?"
"Ela não se considera infeliz."
"Muito bem! E qual é a sua opinião?"
Fenwick agitou o chapéu e nada respondeu.
"Então? Ainda não me disse quem é ela."
"É Fanny Watkins, a minha prima."
"Oh, eu sempre julguei que ela tivesse corrido consigo!"
"Andámos afastados durante certo tempo, Lady Joldie. Mas ela zangou-se com a família e como nós voltáramos a namorar um pouco antes, senti-me obrigado a propor-lhe o casamento para já, como um cavalh... Quero dizer, senti-me preso à minha honra."
"A rapariga está doida! E então, como ela se separou da família, vai casar-se consigo sem fazer caso dos pais?"
"Não. Já tínhamos a combinação feita muito antes de se verificar a bulha."
"E os pais aprovam tudo isso?"
"Eu não sei o que pensa o tio Tom. A mãe dela não aprova, mas ela nada aprova a não ser os próprios planos, ou o que toda a gente reprova. Foi até por causa dela que Fanny fugiu de casa."
"Fugiu
451
Para casa da tia. Enviaram-me logo atrás dela e foi então que nós combinámos não esperar mais, sobretudo para a tornar logo independente."
"Independente! Oitenta libras por ano é uma linda independência para a filha dum bom comerciante. Estou mesmo a ver que ela pensa conseguir assim a liberdade, pobre doidinha! Ora faça favor de me dizer o que espera de mim para o ajudar nesse admirável negócio?"
"Pois bem, Lady Joldie, eu gostaria de estar reconciliado com o tio Tom para o casamento. Ele, um comerciante tão bom, que me poderia ajudar de várias maneiras! Além disso, Fanny mostra-se muito afectuosa para com ele, embora esteja muito satisfeita por se ver livre da mãe. Se quisesse ser assim tão benévola - tanto mais que nunca me abandonou quando eu antigamente me encontrava em piores circunstâncias - penso que ele a escutaria."
"Espero que sim", disse Lady Geraldina energicamente. "Se eu tivesse uma oportunidade para lhe falar, dir-lhe-ia que levasse a filha para casa e que a fechasse bem até que tivesse idade bastante para poder cuidar de si própria."
"Mas ela gosta de mim, sem qualquer dúvida", disse Fenwick.
"Que ilusão! Gosta de si! Durante quanto tempo julga que ela podia gostar de si com oitenta libras por ano? Durante quanto tempo você gostaria dela, tendo de a sustentar, de aguentar a casa, naturalmente com muitos filhos, tudo a fugir-lhe com o dinheiro seis vezes mais depressa do que você, se vivesse só, o poderia fazer?"
"Fizemos cálculos e julgámos que o dinheiro, no fim de contas, não seria assim tão pouco."
"Sois um belo par de calculadores. Lembra-se como pedia emprestado quando tinha metade, quando muito, do que tem agora e só cuidava de si?"
"Tenho a certeza de que eu podia ter mulher com metade do que eu então gastava, Lady Joldie. Não conhece Fanny. É uma boa dona de casa. Nem ela podia ser de outra maneira, depois de ter vivido durante tanto tempo com a mãe, que chega a contar uma por uma as achas de lenha que põe no lume."
"Isso mostra como você sabe o que está a dizer, Fraser. Nunca há duas governantas na mesma casa. As filhas de
452
mulheres como a sua tia nunca sabem o valor do dinheiro, pois nunca lhe tocaram."
"Se nós nos reconciliássemos com o tio Tom, nada haveria a temer. Sei de muitos empregados de escritório que aguentam famílias enormes e ganham apenas uma libra por semana.."
"Conhece as mulheres deles?"
"bom, sei que têm mulheres. Já tenho falado com algumas delas."
"E consideram-se todas muito satisfeitas com a sabedoria de que deram provas ao casar com empregados de escritório que apenas ganham uma libra por semana?"
"Não parecem pensar nisso."
"Buff Com certeza que elas não lhe vão dizer o que pensam de si próprias. Uma vez por todas, Fraser: você não tem necessidade de se casar e sua prima tem apenas uma birra. No entanto vou mandar chamá-la, se ela estiver ao meu alcance, mas em vez de a aconselhar a casar-se consigo, vou dizer-lhe que vá para casa e que espere até que tenha um pouco mais de experiência."
"Eu preferia que não fizesse isso, Lady Joldie."
"Não me interessa o que você preferia ou não preferia que eu fizesse. Você é precisamente tão doido como ela, e mais tarde seriam bastante infelizes. Daqui a seis meses já o veríamos a consolar-se com todos os seus antigos vícios."
"Nunca. Trabalharei até que os dedos fiquem sem carne."
"O que poderá fazer, se ninguém lhe pagar o seu trabalho? Muita gente deseja trabalhar, mas desejo não é costume, embora, com ele, haja possibilidade de lá chegar."
"Onde há desejos, há possibilidades."
"Devo perguntar-lhe", disse Lady Geraldina irritada, "se pensa que é você quem me deve lembrar esse provérbio, ou eu a você?"
"Ou a senhora a mim?" perguntou Fenwjck confuso.
"Oh! Não tenho paciência para o aturar, Fraser. Você é muito estúpido." Nisto o mordomo apareceu à porta.
"Então o que temos?"
"Uma pessoa, minha senhora... um homem... Thomas
453
Watkins, diz ele, deseja que lhe consintam falar a vossa senhoria."
Fenwick assobiou com a surpresa.
"Está alguém com ele?" perguntou ele.
O mordomo olhava respeitosamente para a patroa, ignorando Fenwick.
"Faça-o subir", disse Lady Geraldina.
"Vai haver agora uma bulha admirável", disse Fenwick, quando o criado saía. "Vai tomar o meu partido, Lady Joldie?"
Como resposta, Lady Geraldina carregou o semblante. Então Mr Watkins entrou; fez uma vénia e ficou junto da porta, examinando com desassossego todos os objectos que não se encontravam muito acima do nível do chão. Durante alguns momentos não atribuiu significação a nada do que via. Estava desejando que pudesse expor o seu assunto ao balcão da sua loja, em vez de o fazer em cima do espesso tapete dum palácio em Wilton Place.
"Bom dia, Mr Watkins", disse afável Lady Geraldina,.
"Bom dia a vossa senhoria", retorquiu o homem em tom circunspecto e com outra vénia.
"Sente-se", disse Lady Geraldina. "Fraser: dê uma cadeira a seu tio."
Mr Watkins levantou rapidamente os olhos e fitou o sobrinho.
"Como está, tio?" perguntou Fenwick, apresentando-lhe uma cadeira, ao mesmo tempo que lhe dirigia uma piscadela de olhos.
"A sua família está bem?" disse Lady Geraldina.
"Muito bem, muito obrigado a vossa senhoria. Faço votos para que vossa senhoria esteja na mesma."
"Obrigado, Mr Watkins; estou muito bem. Acabo de saber por Fraser que o senhor teve um desgosto doméstico que diz também respeito a seu sobrinho."
"Sim, minha senhora. Eu vinha até falar a V. Ex.a sobre esse assunto, caso não pareça importunidade. Eu tomo sempre muito sentido para que nada a não ser a bondade de vossa senhoria vos conduza a ocupar-se de casos como este."
"Faça favor de não falar em importunidades, Mr Watkins. O senhor é sempre benvindo."
454
"Muito obrigado a vossa senhoria. Minha filha é uma boa rapariga, mas não gosta de ser guiada com muita severidade e teve um ataque de mau génio, dos que as raparigas costumam ter. Agora, eu tomo a liberdade de dizer que Fanny teve a boa sorte de se encontrar nesta vida como qualquer outra jovem da sua posição desejaria; eu gostava que ela esperasse um pouco e visse se não poderia realizar coisa melhor do que ela entende fazer já. Note-se: não quero, nem de longe, negar a grande recomendação que é para Fraser a protecção de V. E.X.a; mas onde está a necessidade de tanta pressa? Quando tiver vinte e um anos, que se case com quem quiser e os meios dele não serão piores depois de um ou dois anos de espera. Se vossa senhoria dá a graça da sua simpatia a Fraser, não pretendo atravessar-me no caminho de V. Ex.a mas tenho os desejos e as dúvidas em que todos os pais pensam, e eu quero fazer o melhor que puder pela minha filha."
"Então, Mr Watkins, o senhor certamente não quer casá-la com este desajeitadão. Não julgue que eu aprovo esse consórcio. Estava eu até a dizer a Fraser o que pensava a esse respeito quando o senhor chegou; e se pensa que sua filha me escutará (no que eu tenho muito pouca esperança), dir-lho-ei com o maior prazer e tentarei dissuadi-la dum acto tão prejudicial."
"Não vejo por que ele possa ser chamado assim tão prejudicial", observou Fenwick.
"Fraser", interrompeu Lady Geraldina com severidade; "sente-se."
Fenwick, que entretanto se levantara, obedeceu.
"Agora tenha tento na língua", continuou a dama, "até que eu o deixe falar."
Mr Watkins, sentindo-se na obrigação de secundar Lady Geraldina, olhou com ar de censura para o sobrinho, o qual, após um momentâneo impulso de revolta, se submeteu fazendo uma careta.
"Eu estou muitíssimo agradecido a vossa senhoria por pensar em Fanny e tomar o meu partido", disse o homem. "Isso é muito melhor do que eu podia esperar."
"Lembre-se, porém, que eu de pouco lhe poderei valer, se estes garotos forem teimosos. Fraser é independente e nada tem a ver comigo, mas mesmo que não fosse, não tenho
455
razões para crer que houvesse qualquer consideração terrena capaz de o impedir de cometer qualquer acto louco. Por outro lado, nada poderá ensinar sua filha senão a experiência. Suponho, contudo, que a poderá reprimir enquanto ela estiver na menoridade."
"É muito teimosa", respondeu Watkins com desespero. "Não a podemos ter fechada a sete chaves e uma rapariga que fugiu uma vez pode torná-lo a fazer se tiver o espírito virado para Fraser. Receio que ela, depois do que se passou, não se sinta bem em casa. Penso que talvez vossa senhoria o possa conseguir, falando, com toda a calma, a Fraser no caso."
"Eu já lhe disse isso mesmo. Mas se o senhor não pode obrigar sua filha, como poderei eu obrigar Fraser, que não me é nada, a não ser uma maçada periódica?"
"A senhora prometeu auxiliar-me se eu me emendasse", argumentou Fenwick; "e eu assim fiz. Tenho agora o direito de me casar, não tenho?"
"Não", disse Lady Geraldina; "não tem com certeza. Um homem sem meios não pode dispor do direito de pensar em se casar."
"Mas eu tenho meios. Houve tempo bastante para abusar de mim quando arrastava a minha vida de miséria. O estar casado obrigar-me-á a trabalhar e a manter-me nos bons princípios. Isto também é demais, eu não sou assim um assassino sem eira nem beira, como parecem pensar."
"Acalma-te, Fraser, acalma-te", disse Mr Watkins.
"É muito bom de dizer "acalma-te", mas não consigo mais consideração estando calmo do que de qualquer outra maneira. Temos o caldo entornado se começam a mexer muito em tudo isto."
"Faça favor de não ser desordeiro, Fraser", disse Lady Geraldina. "Não seria melhor aproveitar a oportunidade para dizer a Mr Watkins o que você pensa fazer da filha se ele lha der?"
"O quê?" disse Mr Watkins, estremecendo repentinamente. "Mas porque andas tu a engodar Fanny nas minhas costas, em vez de te dirigires a mim francamente e perguntar-me se eu posso fazer alguma coisa?"
"Porque bem sabia que o tio não me auxiliaria", disse
456
Fenwick, "e porque não podia falar-lhe sem ter o consentimento de Fanny."
"E quando o tiveste, porque não vieste então?"
"Eu ia, mas vim aqui esta manhã pedir a Lady Geraldina que me ajudasse a convencê-lo."
"Assim foi", disse Lady Geraldina, em resposta ao olhar interrogativo de Mr Watkins.
"E então eu conseguiria demovê-lo", contituou Fenwick, amargamente. "Teria sido muito melhor ter ficado em casa."
"Que bonita maneira de falar na presença de S. Ex.a, Fraser."
Esta repreensão apenas produziu em Fenwick um pigarro petulante, o qual, como lembrasse a Lady Geraldina os modos da sua infância de penúria mas bela, conseguiu mais em favor dele, do que a anterior submissão.
"Mr Watkins", disse ela; "eu não ouso aconselhá-lo a escutar Fraser. Foi, na verdade, um rapaz muito mau, até aqui há seis meses. Desde então, conseguiu tornar-se muito digno de crédito. Teve uma vez a habilidade de conseguir o interesse das pessoas que o empregaram, mas abandonou o abuso invariável da bondade dessas pessoas e desfez-se do seu antigo aspecto, dos maus hábitos e das más companhias; não tem agora de quem depender, a não ser da coragem que ele deve adquirir pelo trabalho duro. Enfim, tem-se portado ultimamente de maneira irrepreensível e talvez, como ele mesmo o diz, o estabelecimento do lar torne permanente esta mudança de hábitos. Mas receio que ele não consiga chegar até aí sem contar primeiro com algum auxílio seu."
"Vou dizer a verdade a vossa senhoria. Eu pessoalmente nada tenho contra Fraser. Quando a mãe dele, a pobre Annie, era ama na família de V. Ex.a, embora não me parecesse, eu andava em pior rumo de vida do que ele jamais se encontrou em qualquer altura. Annie nunca me desamparou quando todos o fizeram e isto não nega que foi o casamento que me fez assentar. Tive, por conseguinte, pensamentos que, com certeza, Fraser também já teve muitas vezes. Mas, como vossa senhoria vê, aqui é que está a dificuldade. Eu seria muitas coisas, mas era, sem dúvida, hábil, e esta minha habilidade auxiliou-me quando me lancei no negócio. Fraser, porém, não é hábil. Com todas aquelas rufiagens, jogatinas
457
e apostas, nunca aprendeu como se devia impor. Gastou muito dinheiro só para o verem num belo trem, ou para percorrer uma pequeníssima distância, ou ainda para fazer uma caixeira pensar que era oficial das Guardas, o que qualquer homem verdadeiramente hábil teria evitado fazer uma vez no ano. As pessoas de bom porte aborrecem-no e mostram que apenas o consideram como uma criança. Somente por isto eu o poderia tomar lá no meu negócio..."
"E viver com a tia Flossy?" interrompeu Fenwick. "Isso nunca!"
"Ouve V. Ex.a?" disse Mr Watkins, aborrecido. "Para que serve fazer alguma coisa por ele? Não tem o juízo bastante para ver o que é um bom oferecimento."
"Eu não sabia que me estava a oferecer alguma coisa", disse Fenwick. "julguei que se estava a desculpar de não me fazer o tal oferecimento por me considerar doido."
O seio de Lady Geraldina arquejava. Mr Watkins deu por isso e compreendeu que a dona da casa reprimia um bocejo.
"Já roubámos bastante tempo a sua senhoria", disse ele. "Uma vez por todas, Fraser Fenwick, se eu vir possibilidade de te fornecer uma boa oportunidade, és muito cavalheiro para te sentires desdoirado por vender ovos e toucinho em cima dum balcão para poderes viver?"
"Não, se eu puder fazer mais com isso do que eu faço agora vendendo papelarias, e se eu puder viver onde eu quiser."
"Então, desce as escadas e espera-me na rua. Eu ficaria muito satisfeito se pudesse dizer uma palavrinha em particular a sua senhoria a respeito de uma coisa que eu gostava de lhe expor. Mas isto com a permissão de V. Ex.a."
"Terei muito prazer", respondeu Lady Geraldina. "Bom dia, Fraser."
"Bom dia", respondeu Fenwick, que se retirou um pouco aborrecido.
"Eu estava a pensar, Ex.ma Senhora", disse o comerciante, levantando-se, e falando em tom de confidência, mas respeitoso, "colocar Fraser num estabelecimento filial que eu espero abrir em breve aqui na parte ocidental da cidade. As maneiras dele agradariam, visto que, em caso contrário, ficaria perdido em Bishops Gate, se Fanny determinou viver
458
com ele, porque eu tenho de fazer tudo isto o melhor que me for possível, e dar-lhe tantas possibiidades quantas eu puder. Suponhamos que isto se faz, estaria vossa senhoria inclinada a auxiliá-lo dando-lhe a sua freguesia?"
"Certamente que não... Pensa que eu vou abandonar assim sem mais nem menos o meu antigo fornecedor, que me tem servido tão bem, por Fraser, que nunca serviu ninguém?"
"Está bem, excelência; como eu gostaria que todos os fregueses fossem assim tão honrados e tão conscienciosos! Bem, vossa senhoria fará tudo o que puder pelo rapaz e agora vou eu fazer por ele o que estiver dentro da medida das minhas forças, isto é, se Fanny estiver inclinada para ele, não tenho mais dúvidas, desde que o nosso homem se saiba portar, e assim conseguirá um amigo."
"Assim espero", disse com ar de dúvida Lady Geraldina.
"Desejo a vossa senhoria muito bom dia", disse Mr Watkins, curvando-se.
"Bom dia, Mr Watkins", respondeu ela com doçura, e suspirou de alívio quando se viu só.
O mesmo fez o comerciante quando voltou mais uma vez ao pavimento onde os seus direitos eram iguais aos de qualquer outro britânico; respirou mais à vontade e resolveu nunca mais procurar a companhia dos que ele considerava seus superiores, por muito amáveis que eles pudessem ser, ou por mais que a respectiva grandeza pudesse servir de baluarte à constituição da sua terra.
Nessa tarde, Lady Geraldina recebeu outro visitante: Ernest.
"Sempre esperei", disse-lhe ela, com espanto irreprimível quando o outro lhe apareceu, "que estavas seguro em Richmond durante um mês, pelo menos."
"Não tenho estado em casa de Grosvenor. Não gosto de ser importunado e ainda menos perder o tempo com aqueles tipos."
"Significa isso que não és lá desejado. Tenho muita pena de o admitir, mas como te consentiram a liberdade de vires visitar a minha pessoa... o teu, costumado refúgio quando ninguém mais te pode aturar?"
"Eu sei que sente sempre muita alegria em me ver."
459
"Na verdade! Mas agora sentir-me-ia muito grata para contigo se tu te fosses embora."
Ernest sorriu e sentou-se.
"Estava precisamente a pensar que tinha algumas novidades a dar-lhe", disse ele. "Fui até Perspective no domingo passado para ver o que havia por lá."
"Havia lá alguma coisa ou alguém em particular que merecesse a pena ouvir... além de ti, claro está?"
"Parece-me que sim. Havia Hawkshaw, que era a sensação do momento. O seu caso é digno de ser visto. Vou contar-lho."
"Sempre havia qualquer coisa que se visse."
"Sim, mas o homem está aniquilado: não o reconheceria, o pobre rapaz! Nada há que o aguente. Começou a usar luto, grandes casacos, colarinhos largos e bengala preta. A casaca e a cabeça! Parece que não as limpa há seis semanas. Não usa luvas e, a julgar pelo que se pode ver pelos canhões, parece que também não usa camisa. É um regular espantalho e tornou-se miserável como ninguém: viaja em terceira classe; percorre a pé distâncias enormes e entra numa sala de visitas com botas tão grandes como as dos operários do gás, todas sujas de lama."
"Em resumo: toma tantas liberdades com a sociedade como se, na realidade, fosse um homem de génio."
"Mas fique sabendo que é", disse Ernest. "Por lá dizem que, apesar de tudo, ele podia evitar tudo aquilo, pois fez uma boa porção de dinheiro com o livro que publicou. Não porque lhe possa servir de alguma coisa, pois aparenta ter mais vinte anos do que diz a data em que se publicou."
"Impondo dois guinéus por cada exemplar e mascarando com infame vestuário com o fim de obter maior publicidade, eis um processo muito curioso de conseguir lucros com um livro."
"Já não são dois guinéus. A procura foi tão grande que ele se sentiu forçado a consentir uma edição mais barata. Mas a tia nunca admitiu que um poeta possa ter coisas como o coração. Suponho que só gostaria dele se se vestisse esplendidamente e dentro apenas tivesse fel."
"Como estás eloquente! Espero que não vais chorar, Ernest."
"Não é assunto para rir. Sei, por um facto que ele narrou
460
a Parry, o editor de A República das Artes, a verdadeira história de O Ramo Quebrado. Encontravam-se ambos sós no escritório da Margem. Parry, que não é nenhum patinho, nem podia falar, chegou a curvar-se para beijar as mãos de Hawkshaw e depois desatou a chorar como uma criança."
"Julgo que isso não é verdade, porque é um pouco fastidioso para me divertir. Imbecilidade tão fraca está, contudo, abaixo de qualquer homem. Ninguém mesmo poderia sonhar em atribuí-la a uma mulher, mas como nós somos todas. Peço-te agora que não pretendas compreender e simpatizar com as tristezas de Mr Hawkshaw. Desempenhas de maneira passável o papel de bobo, mas se fores esperto nunca te confundirás com um homem de sensibilidades."
"Eu seria um grande louco se esperasse de si qualquer apreciação sobre a sensibilidade dum poeta", disse Ernest, aborrecido.
"Poupa-me então o coração quebrado de Mr Hawkshaw e dize-me de que trata, mais ou menos, o livro dele, segundo o último boato. Já sei que não vale a pena lê-lo. Margaret Scott insistiu em mo emprestar e abandonei-o quando cheguei à quarta página."
"O maior poema do século! Mas repare: viu-o com tranquilidade?"
"Não: restituí-o no dia seguinte a tê-lo recebido."
"Foi então muito feliz, pois é muito difícil conseguir pôr as mãos num exemplar. Vou ver se consigo que Meg Scott mo empreste."
"Estou a ver que ainda não leste o maior poema do século."
"Bom, eu tenho na verdade uma ideia do que ele é. Não se importaria de lho pedir outra vez? Eu gostava muito de o ler."
"Importo-me e muito."
"Mas porquê?"
"Porque nunca empresto livros que não sejam meus a rapazinhos que só os restituem quando são absolutamente forçados a isso, depois de estarem guardados durante um ano e de os tratarem muito mal."
"Está bem. Está bem. Não é preciso falar mais nisso. Posso consegui-lo por intermédio de uma dúzia de pessoas
461
e logo que eu queira. A propósito: estava a pensar se o teria achado decente."
"Compreendi-o todo. E agora, qual é a mais recente tagarelice a respeito dele? A megera pérfida que tão incompreensivelmente aparecia na companhia do poeta traído e duma pedra preciosa de qualquer género, diziam-na, primeiro, uma princesa; era depois uma duquesa e ainda depois uma actriz. O que é ela agora?"
"Chiu!" disse Ernest. "Toda a gente sabe que se trata de Isabella Woodward."
"Sim, mas o que fez Isabella Woodward?"
"Bom, talvez não saiba que isso é uma questão delicada. Não vai repetir o que eu lhe vou contar?"
"Por nada deste mundo. Naturalmente não vou acreditar."
"Fora de brincadeiras, nem por mil libras eu queria que se soubesse que eu disse qualquer coisa sobre este assunto. Sabia com certeza que Isabella andou loucamente apaixonada por Cyril Scott."
"Não sabia. Mas se tal for necessário para a tua historieta, finjo que sei."
"Sobre isso não há a menor dúvida. Ela estava quási louca quando ele lhe virou as costas. Pois bem: a nossa amiga fez o voto de se vingar, fazendo um homem sofrer tanto quanto ela sofrera, e, para dar a conhecer isto a Scott, escolheu o amigo mais íntimo deste. O pobre Hawkshaw encontrou-a em Rosstrevor e caminhou para a armadilha de olhos vendados. Nem é necessário dizer-lhe como um homem assim sente o amor quando nele cai."
"Não faço a menor ideia."
"Em todo o caso, ficou apaixonado por ela e ambos comprometidos um com o outro. Rosstrevor, segundo parece, é um daqueles lugares luarentos, com o mar junto e assim por diante; o nosso poeta costumava passear com Isabella à noite pelos rochedos e aí fazia planos sobre a sua felicidade futura, nunca sonhando, certamente, que tudo aquilo constituía uma brincadeira das dela. Hawkshaw teve, por fim, de voltar a Londres e deu-lhe, como garantia do seu amor, o soneto que publicou agora no livro. Leu-o, suponho. Chama-se Sinfonia."
"O que significa isso?"
462
"Ah!. sim... é... bem, suponho que é o nome de alguma deusa. No entanto, para o assunto isso não importa. Ela, por sua vez, deu-lhe um monte de diamantes como sendo a garantia dela, no valor aproximado de quarenta mil libras, sabendo que ele caíra numa situação desesperada de tristeza por causa de dinheiros perdidos, pensando que seria uma tortura para ele ter nas suas mãos uma mina de saúde como aquela, pois não o julgava capaz de tocar num real para se livrar de morrer à fome. Antes de regressar, ela escreveu-lhe um sem número de cartas pintando-lhe as alegrias do encontro e elevando os seus sentimentos a uma altura formidável. Voltou e encontraram-se."
"Muito bem."
"Eu queria que não me interrompesse. É muito amável, sabe, tia Joldie?"
"Ora segue, anda. Paraste no ponto mais excitante, tal como nos romances policiais."
"Ah! ah! ah!" rugiu Ernest, lisonjeado inesperadamente por aquela gracinha. "Oh! oh! oh! Posso fazer juramento! Ah! Bem, vou ficar condenado!"
"Ernest!" gritou Lady Geraldina. "Porta-te como deves. Julgas que uma enfiada de juramentos constitui elocução natural num cavalheiro inglês?"
"Não, não julgo isso. Mas se atrapalhar qualquer moço com os seus gracejos, ele tem de desabafar de qualquer maneira."
"Muito bem. Agora que desabafaste, como dizes, talvez vás acabar a tua história. Estavas a dizer que eles se encontraram."
"Nada mais tenho a dizer. Ela garantiu que mal o conhecia; atirou-lhe com o soneto à cara e deixou-o quási louco. Ele morreria só para ter o alívio de escrever o livro. Restituiu-lhe os diamantes, certamente. Toda a sua vida ficou queimada, pois se até, veja onde chega o dinheiro, o casamento teria sido uma bela negociata para ele."
"Assim parece. Devo dizer-te que a versão da história dada por Isabella é mais plausível do que a tua."
"Que diz ela?"
"Simplesmente que Mr Hawkshaw lhe contara em Rosstrevor uma historieta tão lastimosa da respectiva pobreza que ela foi bastante louca para lhe oferecer algumas jóias
463
que a mãe lhe deixara. Recebeu-as e empenhou-as; depois andou por aí a espalhar o boato de que Isabella se comprometera com ele. Sabedora disto, recusou recebê-lo, e o nosso poeta lançou imediatamente o seu livro. Só então ela contou tudo o que era passado ao pai, que obrigou Mr Hawkshaw a restituir os diamantes, oferecendo-lhe, ao mesmo tempo, o dinheiro suficiente para os desempenhar. No entanto, graças à venda do livro, a oferta não foi aceita e Mr Hawkshaw salvou os seus créditos à última hora, com a restituição das jóias que iria readquirir à sua própria custa."
"Isso é invenção dos Woodwards. Ele nunca as empenhou. Eram recordação de amor."
"Se assim fosse, nunca teriam sido enviadas pelo secretário de Mr Woodward, como julgo que foram. E se nunca estivessem empenhadas, teriam sido restituídas logo no momento em que Isabella quebrou com ele, em vez de estarem guardadas até que lhas pedissem, e até que ele dispusesse dos meios necessários para as desempenhar. Isabella desta vez tem a seu lado o senso-comum. Hawkshaw nada mais tem do que um bocado de fantasia poética a contradizê-lo; penso que ele exibiu uma baixeza extrema ao aceitar os diamantes da rapariga logo à primeira instância, e absoluta velhacaria em arrastar todo esse negócio para defronte da sociedade com o fim de depois poder encher as algibeiras."
"Tenho muita pena, mas não posso concordar consigo", disse Ernest, levantando-se a abotoar o casaco.
"Vais-te já, Ernest?"
"Vou, vou."
"Naturalmente estarei agora muito tempo sem te ver."
"É possível que não."
"Estás ofendido?"
"Não, certamente. Não tenho de que estar ofendido. Bom dia".
"Bom dia", respondeu Lady Geraldina. "Realmente", acrescentou ela de si para si, quando o sobrinho saiu, "parece-me que prefiro Fraser."
464
CAPÍTULO VIII
Smith levara o livro de poesias para Qeens Gate, e metera-o na sua gaveta do escritório havia já uma semana. Quando Isabella lhe recordou a promessa que ele fizera, fingiu tê-la esquecido.
"Deve prometer não deixar destruir a cordialidade das nossas presentes relações", disse ele
"Pois sim, mas quem não chora não mama, diz o papá", respondeu Isabella. Smith pensava, entretanto, na sua anterior grosseria. Não obstante, entregou-lhe as poesias, que Isabella declarou ter a certeza que seriam muito lindas.
Na noite seguinte, o tempo, que estivera frio e seco, tornou-se quente e húmido; quando a manhã chegou, Smith, com os olhos muito quentes e não podendo pronunciar as consoantes nasais, soube que Miss Woodward estava na cama em consequência dum resfriamento.
"Palavra dhonra, xôr", disse Hamlet. "Tou a bê-lo munto mal. O patrão tá num estado horrible, Deus o ajude. É um raio de chuva, esta inglesa!"
Durante três dias, Isabella esteve de cama; seu pai, Smith e Cornelius dobraram os respectivos lenços. No quarto dia, Mr Woodward disse para o secretário:
"Temos aqui uma carta de Stannard, que estava para falar esta noite no Irish Land Bill sobre qualquer agravo dos seus constituintes. Partiu inesperadamente para Plymouth para tratar do filho que se feriu lá na amura dum navio, e agora quer que eu tome a questão em seu lugar. Diz ainda que eu conheço tudo que se relaciona com o assunto e que me posso aguentar melhor do que ele. Estou certo, porém, que entendo tanto daquilo como um bebé ao nascer; aqui há dias somente, quando Stannard conversou comigo durante meia hora sobre o direito foreiro do Ulster, fiz a justiça de lhe dizer que ele era o único membro da Câmara que conhecia tudo o que se relaciona com aforamentos. Você é capaz de dar uma vista de olhos por esta carta e ver se consegue aproveitar qualquer coisa nessas
465
figuras e nessas datas, enquanto eu aqui lhe escrevo? De qualquer maneira, não posso deixar de o auxiliar. Tenho pena que o pobre rapaz esteja assim tão aflito."
Smith agarrou na carta, e logo compreendeu que ela exigia algum estudo. Perguntou, por esta razão, se a podia levar para casa, pois aí estaria com mais descanso.
"Isso seria de tudo o melhor", disse Mr Woodward. "Não podia até passar por aqui um pouco antes das nove, para me dizer alguma coisa sobre o que entende dever fazer ao palavrório de Stannard?"
À hora marcada, Smith regressou a Queens Gate. Estava uma noite húmida, e quando ele despiu o sobretudo e descalçou as galochas, foi convidado a subir à sala de visitas, onde encontrou o amo sentado defronte da braseira.
"Só por causa de Stannard", disse Woodward, "a Câmara é capaz de me assobiar esta noite. Sente-se e dê-me novidades."
Smith sentou-se e comunicou o resultado dos seus estudos a Mr Woodward. Este, depois, tocou a campainha. Hamlet, de rabona e colete carmesim, respondeu pressuroso.
"Arranja-me um trem", disse-lhe Mr Woodward.
"Pra quê?" objectou Cornelius, "o xôr na vai xair a chober a potes, ainda é capaz de se auguentar com uma ponta dar, xabe?"
"Vai-te embora e faze o que eu te pedi, meu velhaco, e mete-me essa língua no estojo."
"E onde le bô ê arrinjar um trein a estas horas, cando na há um só na cedade que na esteja alugado?" Ao ouvir isto, Mr Woodward arrastou num pronto a cadeira pelo tapete, parecendo prestes a levantar-se para cometer um homicídio. Hamlet raspou-se e voltou depressa para anunciar que um trem esperava à porta.
"Não deve retirar-se sem que isto abrande um pouco, Smith", disse Mr Woodward, quando se preparava para sair. "A propósito: está uma carta na chaminé, do encarregado de Old Brompton Road. Gostava que a visse e que lhe respondesse amanhã, mas quando lhe desse mais jeito."
Smith, deixado sozinho na sala de visitas, aqueceu-se à lareira e começou a ler a carta do encarregado. Nesse momento
466
entrou na sala Isabella, com o cestinho de costura e um livro nas mãos. Sentou-se, com o langor da convalescença, na poltrona que o pai ocupara e, sem dizer palavra, estendeu a mão a Smith, que mal lhe tocou, pois ela logo a retirou para a meter no regaço.
"Faço votos para que esteja muito melhor", disse o secretário, vagamente alarmado.
"Obrigada. Não me sinto muito forte, mas suponho que estou a melhorar."
"Terrível tempo", disse Smith, depois de espreitar por momentos para a poça de água feita pela chuva na varanda.
Isabella recostou-se na cadeira e olhou para ele com um sorriso, onde era visível alguma ironia.
"Pois está," disse ela. "Ai!"
Enquanto falava, a jovem fazia os olhos parecerem maiores e mais lustrosos, e Smith, menos à vontade do que antes, sentiu desejos de ir para casa. Contudo, como o livro que ela trazia no cesto era o dele, resolveu esperar um pouco mais.
"Permita-me que lhe faça uma confissão, Miss wodward", disse ele, assumindo uma conduta jocosamente grave. A jovem sorriu desvanecida e fez um gesto de súplica. "Desde que chegou a esta sala, ainda não fiquei plenamente convencido se leu ou não as minhas poesias."
"Oh, Mr Smith, que loucura!"
"Garanto-lhe que lhe falo a sério."
"Chiu! Não me conhece, como não se conhece. Só se eu fosse cega é que não o teria feito já!"
Smith sentiu agitar-se a raiz dos cabelos e os joelhos enfraquecerem.
"O caso é este", disse ele, com voz incerta, que, com a palidez, desmentia a graciosidade afectada das suas maneiras; "o que pensa então das minhas poesias?"
"Ora vamos!" disse a jovem, apercebendo-se da agitação que o minava, mas desconhecendo a respectiva causa. "Sente-se e vamos falar com calma. Sei que posso ter confiança na sua paciência e reconhecer a verdade com firmeza."
Ela estava animada, por isso pôde ter uma genuína emoção, nunca antes exibida diante de qualquer namorado.
467
Smith ficou satisfeito por se sentar, pois mal se podia ter já de pé. A cadeira que Miss Woodward lhe indicara era a pequenina, colocada próximo da sua. Quando se sentou, puxou-a até ficar junto da interlocutora, pois bem sabia que ela desejava que ele fizesse isso mesmo, e também porque o seu estado de espírito se confundia singularmente com o receio de julgar que as suas acções estavam a ultrapassar algum tanto os domínios da sua vontade.
"Estou a compreender", disse ele com cautela, "que as minhas presumidas tentativas poéticas a... a desiludiram."
"Não. Inquietaram-me por sua causa, mas não me desiludiram. Fizeram-me até pensar no heroísmo da sua conduta."
"Não compreendo muito bem. Não tenho a consciência de ter procedido assim tão heroicamente."
"Faz pouco caso, naturalmente. Mas creia no que eu lhe digo: não fico insensível à fidelidade com que o senhor, sem uma palavra de queixa, levou as minhas jóias àquele indigno homem. Não me espanto que lhe tenha falado asperamente e ainda que me procurasse proteger contra ele. Percebo agora por que se esforçou tão valentemente para evitar que eu procedesse de maneira indigna de mim, e no mesmo momento me perguntasse se eu estava noiva do seu rival. Reconhecia-me melhor nesses instantes do que quando se encontrava só a escrever estas rapsódias sobre o meu pobre rosto. Escute: nada mais diga acerca disto. Nunca a vaidade de uma mulher poderia julgar estes versos merecidos. Julga que me considero melhor do que o senhor? Do que eu, que tenho gasto anos a contemplar-me ao espelho! Creia-me, eu podia rir-me de tudo o que diz acerca da flor-de-paixão meridional, se eu não soubesse como sentia inteiramente o que escreveu."
Smith contemplou os olhos dela com admiração, e observou, pela primeira vez, que olhos e cabelos eram negros, tal como os da dançarina.
"Repare", continuou ela, "que lhe estou a falar com perfeita sinceridade, para evitar qualquer maneirismo falso ou convencional que o mundo poderia julgar adaptado a esta ocasião; é o mínimo tributo que eu posso pagar à verdade. Mas esqueçamos toda esta loucura sem esperança. Não procure
468
apressar-me a resposta. Sejamos amigos, amigos muito próximos, irmão e irmã, se quiser."
"Miss Woodward", disse Smith, sentindo que a sua posição se estava tornando muito séria para justificar qualquer decepção posterior. "Lastimo muito que tenha compreendido tão mal as minhas poesias. Eu não ouso continuar com mais cerimónias. O facto é que eu nunca lhe votei sentimentos como os de irmão, nem desejo que me olhe como tal."
Isabella suspirou e sorriu com tristeza. Depois disse: "Bem, bem, seja como quiser, Robert." (Smith deu um salto). "Não espero dar-lhe o meu coração. Quando eu mais tarde empenhar a minha fidelidade, será como esposa de Cristo. O claustro é mais pacífico; não se pode ser menos feliz do que no mundo."
Ela sacudiu a cabeça e acrescentou:
"Nunca mais voltarei a estar comprometida."
"Já esteve então comprometida alguma vez?... mas, na verdade, eu não tenho o direito de fazer uma pergunta destas."
"Não seja ciumento, meu amigo. Foi há muito tempo,
ou, pelo menos, assim parece. Era ainda criança. Devia ser ainda muito nova, pois fui capaz de amar e de me lamentar quando fui atraiçoada."
"O quê! Foi atraiçoada?"
"Fui", respondeu ela, batendo com a mão no regaço e olhando para o fogo.
"E não em sentido impróprio, pode ter a certeza; mas ele foi-me infiel e fui bastante louca para ficar surpreendida... ofendida até. Como vê, sobrevivi, talvez para amar novamente e novamente ser atraiçoada."
"Julgo que não", disse o interlocutor muito sério.
Tocada repentinamente pelo contraste entre este simples comentário e a apaixonada retratação que procurava provocar, voltou-se para Smith, com os olhos radiantes, os lábios abertos, e colocando ao de leve a mão no braço dele, disse:
"Há então um amor firme e permanente a esperar de
entre as ruínas de tantos outros, interesseiros e transitórios?"
"Só a experiência pode testemunhar o valor de cada
469
amor", disse Smith, esforçando-se por conservar a sua serenidade de espírito, sob a acção do contacto da jovem.
"Tem razão. Ah, estou tão fatigada de fanfarrões, que avaliam o coração da mulher por alguns falsos juramentos!"
Seguiu-se uma pausa, durante a qual ambos se limitaram a olhar para o fogo.
"Como acaba, enfim, tudo?" disse ela depois, ficando um pouco impaciente com a conduta com tanto escrúpulo modesta que ele estava a seguir. "Já pensou nisso?"
"Tenho pouco hábito de pensar nessas coisas", respondeu. "Os factos não mudam. Para mim é impossível aspirar à parte de amante. Cinco sétimos dos meus rendimentos dependem de Mr Woodward. Não sou bastante louco para intentar pedir uma mulher que venha compartilhar das minhas quarenta libras por ano. Durante algum tempo esperei uma oportunidade favorável para obter de seu pai a nomeação para qualquer cargo público; mas depois do que se passou sinto que fazer isso seria quási representar papel de pérfido."
"Isso é próprio dum homem, Robert. Leva o seu escrúpulo aos extremos mais imaginários. E é característica muito deliciosamente sua falar de cinco sétimos a propósito de amor. Mas nós não ficaremos ainda namorados. Olhe para mim: ficará contente em ser meu amigo?"
"Suponho que fico", respondeu Smith, com um sorriso.
"Não concorde assim com tão má vontade. Considere o que é um lindo nó de amizade. É pouco convencional, mas é desinteressado. Seja um intercâmbio de santos deveres. Pode guiar-me pelo caminho direito com a influência da sua integridade de coração duro. Eu posso oferecer-lhe uma simpatia de mulher e isso, posto que possa não ter valor, nunca é coisa sem importância aos olhos dum homem."
"Nunca o será decerto para os meus", respondeu Smith galantemente. "Receio que o proveito do negócio seja até todo para mim e as desilusões para si."
"Vou tentar a minha sorte assim", replicou ela. "Gostava, evidentemente, que isso saísse certo, pois sei muito bem como é fraca, a amiga que adquiriu, e como possivelmente o senhor é pequeno para preservar qualquer respeito por ela."
"Esperemos então, visto que ambos estamos preparados
470
para as desilusões, que não ficaremos Motalmente desapontados Pela minha parte; tirando os respeitos que costumo usar para comigo, estou cheio de esperanças."
"Bem, permito-lhe que as tenha", disse ela, deixando escapar involuntariamente um olhar malicioso através da sua expressão de tristeza estudada. "Oh! diabo!" acrescentou, levantando-se. "Vem alguém. Eu não queria que Clytie o encontrasse aqui."
Smith levantou-se rapidamente, preparado e muito desejoso, de se retirar.
"Apertemos as mãos pela nossa combinação", disse Isabella, numa voz indescritível, perdendo todo o domínio sobre os caprichos que impunha aos seus olhos maganos. Smith, confundido por completo, de nada se pôde lembrar senão da galante convenção que diz: o homem que perde a possibilidade de beijar uma mulher linda é louco. Agarrou-lhe a mão, passou o braço esquerdo em torno dela, beijou-a duas vezes e saiu a correr da sala. Quando passava pelo vestíbulo, encontrava-se com tal ânsia de fugir, que, depois de bater no chapéu, arrepanhou o sobretudo e as galochas e chegou à rua sem se deter para os envergar, fechando a porta com violência atrás de si. Depressa o deteve a chuva, que escorria por ele em tal cópia, que teve de se recolher debaixo do alpendre do pórtico da porta seguinte, e envergar os objectos que o punham à prova de água.
"Ah! ah l" gargalhou!le, quando emergiu pela segunda vez; "isto não é assim tão mau para um rapaz respeitável como Mr Smith, que é cãozinho mais pândego do que muita gente julga."
Em Fulham Road, viu uma parede coberta de cartazes, alguns dos quais pendiam em farrapos encharcados, e outros, afixados havia menos tempo, resplandeciam com a chuva à luz dum candeeiro de rua. O tempo era daqueles em que os transeuntes, correndo para os abrigos, nem param para ler letreiros; Smith, porém, ao ver numa das folhas amarelas a figura dum transatlântico e a palavra Austrália em grandes letras, parou e leu atentamente. Soube que podia ser transportado aos antípodas de Queens Gate pelo mínimo de quinze guinéus, ou pelo máximo de setenta. Os seus gostos levaram-no a preferir o luxo para estar descansado
471
pela soma maior que teria de gastar: os seus recursos eram inferiores ao que lhe seria necessário despender com a viagem mais barata. Lembrou-se de que, se ficara inadvertidamente comprometido com Isabella, Mr Woodward poderia auxiliá-lo com meios para emigrar, ou, mais simplesmente, expulsá-lo de casa. Uma sensação de humidade nos pulsos e nos cotovelos depressa o obrigou a afastar-se.
Quando se sentou, já com vestes secas, diante do seu fogo em Danvers Street, a lembrança da entrevista que tivera com Miss Woodward humilhou-o. Quanto mais procurava rir, mais lhe parecia ridículo o seu comportamento. Puxou o bigodinho; foi ao espelho e contemplou a face que assistira à admiração duma mulher. Tentou imaginar-se casado. Isabella, num compartimento decorado, com os seus lindos fatos e os seus olhos expressivos, era uma figura atraente; mas sempre Isabella, Isabella por todos os lados; inevitavelmente o primeiro rosto a ver logo pela manhã e o último à noite; Isabella a aparecer-lhe quando doente ou quando desgostoso; Isabella de mau humor, e com papelotes na cabeça, mesmo às refeições; Isabella velha e decadente; Isabella mãe e dona de casa, a arrastar a cadeia da união sempre mais cansada do que o marido! Smith sacudiu a cabeça.
"E ainda não me sentia livre dela", disse de si para si. "As mulheres menos ilustres são as menos consistentes; ela podia meter na cabeça conseguir um triunfo de constância para o seu humilde namorado de hoje, que nada, a não ser uma lua de mel, podia desprezar. Eu devia ter queimado aquelas malditas poesias. Procedi como um maroto ou, o que é a mesma coisa, como um doido. Pois bem, o que está feito, feito está. Com este dito sentencioso, eu, D. Juan Lothario Smith, vou para a cama, para a cama e para a cama."
472
CAPÍTULO IX
Uma manhã, por volta das cinco e meia, Smith, achando-se acordado e agradavelmente só, sentiu-se presa de um apetite de aventura. Resolveu dar um passeio matinal para ver como Chelsea parecia lá muito em baixo, pois esta seria a maior aventura em que se podia meter um homem na sua situação. No inverno, um projecto como este devia ser executado imediatamente ou então teria de o pôr de parte; saltou da cama e puxou pelas calças para não se demorar ao frio, na certeza de se apresentar com sono à hora do pequeno almoço, e com a fome que ataca os viajantes matutinos novatos. Vestiu-se com o mesmo cuidado com que o faria para um passeio à tarde; desceu as escadas; abriu a porta silenciosamente e saiu para Danvers Street, que nunca lhe pareceu menos alegre do que nesse momento, à meia luz da manhã.
Caminhando com passos vigorosos para se aquecer, Smith percorreu o dique, donde pôde ver o rio, e Cheyne Walk, cinzento e deserto. Deu as costas ao rio pela Chelsea Bridge, atravessou Sloane Street em direcção a Brompton Road, por onde alcançou o South Kensington Museum. Aqui, depois de olhar para o relógio, verificou que eram apenas seis e vinte. Achando-se já aquecido e liberto das sensações inconfortáveis com que se levantara, diminuiu a velocidade e entreteve-se a observar as poucas pessoas que se dirigiam para a igreja dos Oratorianos, para aí esperarem a primeira missa, com o mesmo interesse com que podia ter admirado um grupo de peregrinos que se dirigisse para qualquer templo budista. Enquanto se distraía assim, aproximava-se uma jovem senhora, vestida confortavelmente com um casaco de pele de foca e regalo. Olhou para ele e parou.
"Miss Woodward!"
"Robert!"
"Felizmente falei eu primeiro, e estive quási para dizer Isabella", pensou Smith.
Depois comentou:
473
"É uma hora estranha para andar cá por fora."
"Como soube que eu tencionava vir? Não o disse a vivalma."
"Para lhe dizer a verdade, a minha presença aqui é puramente acidental. Ando a passear desde as seis horas. Posso perguntar-lhe aonde vai a esta hora tão pouco terrena?"
"Vou à missa dos Oratorianos", disse com gravidade Isabella. "Julgo que não vou atrasada." Olhou para o relógio. "Ah! não! Tenho muito tempo; não começa antes das seis e meia."
"Não vá. Vamos dar um passeio."
Ela abanou a cabeça e disse:
"Esperava esse mau conselho de toda a gente, menos de si."
"E eu ainda menos esperava que não o aceitasse", disse Smith, que estava com o espírito petulante e sarcástico, próprio dos aventureiros.
Isabella encarou-o e interrogou:
"Para que é isso?"
"Para nada", respondeu ele. "Apenas um impulso para dizer alguma coisa de mau génio. Pois bem: determinou ir ali... à casa de êxtase."
"Determinei. Quer vir comigo? Se não quiser, ficarei a pensar que é por temer a influência do seu escárnio."
"A cerimónia demora muito tempo?"
"Apenas meia hora. Venha. Não há mal em experimentar uma vez."
"Muito bem. Vou, embora duvide que seja bonito; vou apenas por curiosidade... à parte, claro está, o prazer de a acompanhar."
"Não fale no motivo. Venha escarnecer e acabará por orar."
Smith olhou para o relógio da igreja. A meia hora passara, e ambos se dirigiram para a porta: ela ia adiante com firmeza, ele seguia nervoso, com a face solene.
"Tem de me ensinar o que devo fazer", murmurou ele, quando atravessavam o pórtico. "Sou completamente ignorante em questões rituais."
"Chiu! Tem apenas de tirar o chapéu."
474
Smith obedeceu, abriu a porta, mas fez um esgar por causa do odor a incenso cediço, que, para ele, era sinal de superstição.
Seguiu, contudo, Miss Woodward até ao lugar dela com o comportamento reverente próprio dos pouco habituados a igrejas, sentindo em si qualquer coisa da alegria própria do comediante em sucesso. A companheira, relanceando os olhos de vez em quando para o jovem, pensava que as cerimónias rituais que iam decorrendo estavam a exercer qualquer impressão nele. Mas Smith era muito Filisteu e muito Protestante, dentro da sua pequena cultura, para se deixar impressionar por uma simples missa. O seu espírito era acessível aos livros, mas não aos espectáculos. Nem uma palavra foi trocada entre ambos até.que deixaram a igreja e saíram uma vez mais para a rua. Ele então respirou profundamente e disse:
"Permite-me que lhe pergunte quantas vezes tem sido testemunha do acto a que acabamos de assistir?"
"Milh... Centenas de vezes pelo menos."
"Oh! Então está já tão acostumada que já nem repara. Pela minha parte, não posso conceber como qualquer pessoa de juízo pode aturar aquilo duas vezes."
"Penso que gostou", disse Isabella, "mas é um terrível hipócrita."
"É verdade. Mas a hipocrisia é o castigo com que eu pago o facto de ter ido a um lugar que não tinha necessidade de visitar. Não escolhi, por questão de bom gosto, entre contemplar o que eu não aprecio e andar a passear cá por fora. Espanto-me como pessoas com a vossa cultura patrocinam ocupações tão estúpidas."
"Estará muito em moda atacar as mais preciosas convicções dos outros, só porque não conseguem conquistar, agrado para as próprias?"
"Cada pessoa que admite uma crença, ou uma descrença, tem o direito de se tornar um propagandista, em ambos os casos para dar testemunho de si e esclarecer os outros. Ao mesmo tempo, como recebi, durante a meia hora passada, uma dose de religião que vai chegar para um ano e da sua pessoa nem metade do que preciso para um dia, eu preferiria antes falar a seu respeito."
"Parece-me que esta manhã está com espírito muito diferente do usual. Sátira e cumprimento não costumam
475
aparecer juntos nos seus lábios. As únicas novidades que lhe posso dar a meu respeito é que me vou embora."
"Sim?" perguntou Smith, mostrando, por esquecimento, mais cortesia do que a habitual. "Para onde vai? E volta depressa?"
"Suponho que me quer fazer crer que se importa muito comigo."
"Queria fazer-lhe crer que eu, pelo menos, não sou por completo indiferente."
"Então acredito, embora suponha que, se fosse comigo, eu ficaria triste, como aconteceria com qualquer outra mulher. Pois bem, vou com minha tia Mrs Foley para uma casa em Derbyshire, onde não há gentes ricas e estúpidas, nem pessoas sociáveis."
"Então porque vai?"
"Fui convidada e tenho de ir. Além disso, nesta época é absurdo estar em Londres quando se pode muito bem sair de cá. O papá gosta também que eu vá. Em resumo: não sei ao certo porque vou, mas vou."
"Faço votos para que se vá divertir."
"Não há a mais pequena possibilidade de o fazer. O proprietário é um velho, indiano e a casa está sempre cheia de indianos igualmente velhos: criaturas amarelas, que comem caril e agar-agar, e que nos entretêm fazendo citações em hindu por cada frase que se lhes diz. Sinto-me envergonhada quando lá estou por ter tipo diferente deles."
"Quando parte?"
"Hoje, ao meio-día."
"Tão depressa!"
Pois é."
"E não a torno a ver?" perguntou Smith gravemente.
"Porque não? Pretendo voltar", respondeu ela com alegria. "Esteve quinze dias sem me ver e, quando nos encontrámos, não se portou como devia."
"Quando volta?" interrogou ele, sempre grave.
"Não sei. Estarei fora até Janeiro, se me convidarem a passar o Natal no campo."
"Nessa altura serei um criado cortês e já me esqueceu por completo."
"Vai deixar o serviço do papá?"
"Vou."
476
"E crê que a minha memória é tão curta como o alcance da minha vista? Muito mais razões tenho eu para recear ser esquecida por si, se pudesse comparar a sua constância com o seu entusiasmo. Mas vou dar-lhe a minha direcção. Espero que me escreva."
"Impossível. Não poderei escrever-lhe enquanto esperar um favor de seu pai, sabendo que ele o desaprovaria. Além disso, não me poderá escrever... eu, pelo menos, penso que não pretende adoptar a suspeitosa prática de escrever clandestinamente a um homem."
"Decerto que não", respondeu Isabella, com um pequeno rubor, olhando para o solo para não se deixar trair, provocada pelo estupendo olhar fixo de Smith, que a fez pasmar com a sua moralidade inconcebível.
"De maneira que nunca poderei saber se as minhas cartas lhe seriam agradáveis. Há-de ver, quando reflectir, que a recepção de tais cartas ser-lhe-ia tão prejudicial como responder-lhes. Nenhum de nós ficaria com as mãos limpas neste caso. Penso que faríamos melhor nunca nos escrevermos senão quando tivéssemos alguma coisa de especial a dizer."
"Julgo que tem razão", disse Isabella, passando adiante e levantando os olhos para ele com um misto de ridículo e de admiração. "É um tal monstro de propriedade, que eu recearei escrever-lhe, mesmo no caso de não haver qualquer das objecções que acaba de mencionar. Já chegámos a Albert Hall. Penso que os seus princípios não o impedem de me levar pelo caminho mais comprido para casa."
"Não sou por completo adamantino. Concluo, pela sua paragem, que não devo ir mais adiante consigo."
"Julgo que seria melhor não ir."
"E eu só a verei daqui a três meses, ou talvez nunca."
"Não serão três meses completos."
Smith percorreu com o olhar a rua em ambas as direcções e viu que estavam à vista operários, leiteiros e vendedores de jornais. Quando se virou para Isabella, já ela estava sob o pórtico de Albert Hall.
"Digamos então adeus", disse ele, seguindo-a.
"Sim, adeus", respondeu ela, sem afecto.
"Permita-me que seja mais uma vez descortês", e deu-lhe rapidamente um beijo; o grito dum leiteiro que caminhava
477
próximo pareceu escarnecer dele por isso. Soltou-a e olhou inquieto em volta. Isabella dirigiu-se apressadamente para Queens Gate. Antes de desaparecer, voltou-se e disse adeus com a mão. Smith tirou o chapéu em agradecimento e seguiu o seu caminho, muito longe de calcular a inépcia com que se conduzira.
Quando chegou a casa, encontrou um bilhete pedindo-lhe que nesse dia não fosse a Queens Gate antes do meio-dia e meia hora, pois Mr Woodward esperava estar ocupado com assuntos de família durante toda a manhã. Após o pequeno almoço, teve a fantasia de ir gastar as horas disponíveis no centro da cidade, onde não voltara desde o casamento de Harriet Russell. Para isso, dirigiu-se no vapor a London Bridge, e, depois de vaguear durante algum tempo, entrou na estação do caminho de ferro de Liverpool Street para comprar o jornal. Quando passava por um dos quiosques de livros, atraiu-lhe a atenção um grupo que se encontrava junto do aquecimento, à frente do qual, mostrando-se de maneira que era impossível dizer se a sua intenção era assertiva se apologética, estava Fraser Fenwick, envergando um resplandecente chapéu, uma sobrecasaca curta azul com flor na lapela, colete branco, luvas que cheiravam a alfazema, botas de coiro amarelo e calças de riscas brancas e pretas. Smith não conhecia as pessoas que o acompanhavam, e ficou tão surpreendido com os melhoramentos que achava no garbo e no rosto do seu antigo companheiro de residência, que teve de olhar para ele segunda vez a fim de ficar bem certo da respectiva identidade e só então adquiriu a certeza de que o reconhecera. Smith tirou o chapéu, em sinal de deferência para com uma mulher alta de aspecto desembaraçado que se encontrava no grupo. Fenwick, surpreendido, mas satisfeito, retribuiu o cumprimento, considerando que o aspecto de Smith era suficientemente cavalheiresco para impressionar bem as pessoas que o acompanhavam. Smith então atravessou para a plataforma, mas foi impedido por Fenwick.
"Como está?" disse Fraser, oferecendo-lhe a mão.
"Estou bem, muito obrigado", respondeu Smith, apertando-lha.
"Sim, senhor. Sabe o que se realiza hoje?"
"Eu diria que ia, pelo menos, para um casamento."
478
"Eu diria o mesmo, por S. Jorge. Mudei de estado antes do meio-dia, meu caro senhor. Amor, honra, e obediência, ou meiguice, é tudo a mesma coisa."
"É então o seu."
"Sim, senhor, o meu. Um homem, quando só, cai para aí de um dia para o outro. Lady Geraldina Porter, uma grande amiga da minha pobre mãe, resolveu fazer alguma coisa por mim. Por isso aqui estou, com o nó dado, enfim."
"Desejo-lhe todas as felicidades possíveis, Mr Fenwick."
"O senhor continua a ser homem livre, não é verdade?"
"Continuo", disse Smith, sorrindo, mas empalidecendo à lembrança de Isabella.
"Deixe-me dizer-lhe uma coisa", disse Fenwick. "Venha daí para me ver executado. E só ali em Leytonstone; haverá um bom almoço. Responsabilizo-me por que todos ficarão muito satisfeitos em o conhecer."
"Teria muito prazer, mas tenho de estar em Kensington ao meio-dia; no entanto, agradeço como se aceitasse."
"Gostaria que lá estivesse. Para nós, todas estas cerimónias e discursos são coisas enervantes; um homem precisa de ser encorajado. Mas, se quiser vir, certamente..."
"Não posso na realidade. Tenho de estar num sítio um tanto afastado daí. Permita-me, uma vez mais, que o cumprimente. Uma feliz lua de mel. Adeus."
Smith seguiu ao longo da via férrea em direcção aos bairros ocidentais da cidade e chegou a Queens Gate ao meio-dia e meia hora. Quando subia as escadas, apareceu defronte do prédio uma carruagem com Clytie. Ele voltou à porta e abriu-lha.
"Bom dia", disse ela. "Acabo de me despedir de Bella que foi para o Norte. O senhor agora vai sentir-se muito só, Mr Smith."
"Porquê?" perguntou Smith, que aprendera a defender-se da zombaria com que Clytie habitualmente o tratava, fingindo quási sempre demora na compreensão.
"Contudo", continuou ela, não dando importância à pergunta, "ficará assim mais inspirado. Realmente, Mr Smith, o senhor não calcula como eu chorei sobre algumas das suas poesias."
"As minhas poesias! Onde as viu?"
479
"Porque, durante o mês passado, andaram aos pontapés por toda a casa."
"Peço-lhe a fineza de as queimar quando as tornar a encontrar. É uma pena ter a casa carregada de lixo, particularmente de lixo em que se dê pontapés."
"Oh, isso seria muito condenável! Adivinha qual foi a poesia que eu preferi."
"Não tento. Mas fico muito lisonjeado por saber que teve uma favorita."
"Lembra-se daquela chamada O cavaleiro Árabe?"
"Lembro-me. E prefere essa?"
"Sim, desapontou-me a princípio. Esperei encontrar uma historieta com homens em cima de tapetes mágicos que voavam pelos ares."
"Muito obrigado, mas fartei-me de tapetes quando estava na cidade. Sabia que eu lá tratava de tapetes?"
Era evidente que Smith nem estava envergonhado da cidade, nem sem uma certa satisfação por a ter abandonado pelos bairros ocidentais. Era também evidente que o seu único sentimento por Clytie consistia numa superioridade de bom-humor. Ela estava a sentir-se aborrecida com ele em extremo, e aliviou o espírito tocando a campainha violentamente. Apareceu então Hamlet, muito carrancudo.
"Sabes há quanto tempo estou eu aqui?" perguntou Clytie.
"A xôra teria feto menhor se dêxaxe a porta aberta", respondeu Cornelius de mau humor.
Smith continuou a subir, mas agora à pressa, para se abandonar à sua indignação contra a maneira negligente com que isabella tratou as suas poesias. Como encontrasse o escritório vazio, sentou-se, e, numa repentina reacção contra a sua recente procrastinação, resolveu falar a Isabella inequivocamente na próxima entrevista, confessando-lhe que o seu coração nada sentia por ela e que nunca mesmo sentira, se a eventualidade de abandonar o serviço de Mr Woodward não suspendesse para sempre esse encontro.
Alguns meses depois, Smith, sentado em sua casa, recebeu, cerca das nove da manhã, a seguinte carta:
480
"Bangalore, Derbyshire, 4 de Janeiro
"Caro Smith:
"Acabo de tomar conhecimento da sua carta, e fico muitíssimo satisfeito com a notícia do seu triunfo no exame. Não tenho dúvidas de que, se continuar a ser o mesmo rapaz perseverante que eu sempre conheci, em breve conseguirá uma posição de primeira ordem no seu novo emprego. Como hoje vamos sair para ver o Peak (1), apenas disponho do tempo necessário para lhe enviar algumas linhas, mas espero que me virá ver algumas vezes, ou dar-me-á informações sobre a maneira como as suas coisas vão caminhando. Actualmente encontro-me bastante aborrecido, pois tenho toda a minha correspondência em atraso. Ando aqui com tanta falta de tempo que as cartas se acumulam aos montes. Verei quando devo preveni-lo do meu regresso. Antecipei um mês os meus negócios em consequência do rápido casamento de minha filha Isabella, já em Março, com um cavalheiro que ela veio encontrar aqui: certo Mr Saunders, que voltou há pouco da Índia. Tive um ataque de bronquite na semana passada, mas agora vou melhor, e, de maneira geral, não tenho razão para me queixar da minha estadia aqui.
"Disponha do
Foley Woodward."
Mrs Tilly, que entrava neste momento no quarto, com a bandejinha que costumava deixar ao hóspede antes de se retirar para descansar, recuou espantada, pois pareceu-lhe achar-se ali só, na companhia dum lunático. Smith, que não dera nem pela pancada que batera na porta com os nós dos dedos, nem pela sua entrada, estava de pé de costas para ela. Na mão tinha uma carta, com que fazia curvas no ar, ao mesmo tempo que atirava para trás a cabeça, proferindo um som sussurrante e rouco. Repetiu este gesto duas vezes,
(1) Cadeia de montanhas no condado de Derby. - N. T.
481
e só então, ao voltar-se, viu Mrs Tilly no limiar com a bandeja a tinir-lhe nas mãos e as faces pálidas pela apreensão.
"Desculpe-me", disse ele, "não a ouvi entrar. Recebi tão boas notícias nesta carta que estava a dar três vivas em silêncio. Não tenho outro meio de dar saída aos meus sentimentos; assim, ao menos, não perturbo os meus vizinhos."
482
EPÍLOGO
Uma tarde Smith saiu de casa, em Thurloe Square, South Kensington (2ó lhe agradavam sítios como Belgrave e Grosvenor Square), e, como a Lua estava cheia e o tempo bom para passear, tomou a direcção de Putney. Aqui atravessou a ponte, deteve-se a meio dela solenemente e donde contemplou o rio ao luar; depois encaminhou-se para uma pitoresca casa, situada na praia de Surrey. Quando perguntou por Mrs Scott, foi introduzido numa sala do rés-do-chão, onde encontrou Harriet, pouco mudada na aparência pelos anos e pela modificação das circunstâncias; realmente, para um observador superficial, nada mudara. Com ela achava-se um rapazinho, cujas feições apresentavam uma representação das dela em pequena escala, e uma impudente expressão que ironizava a antiga petulância de Cyril Scott. O pequenino protestava que não queria ir para a cama antes do pai voltar; em tudo isto, exibia uma combinação de impetuosidade e teimosia que bem mostrava como herdara as qualidades dos pais.
"Vejo-me e desejo-me com esta criança", disse Harriet, agarrando a cabeça do seu fogoso filho e movendo-a dum lado para o outro contra o seio, onde, numa tentativa para a lisonjear, ele a colocara descuidadamente. "Cyril, diz ele, prometeu-lhe que Mattie o levaria para a cama, mas Mattie está no Cristal Palace a ver o fogo de vista. Isto é uma injustiça para Henry, pois, quando ele vai ao fogo de vista, Mattie vai para a cama sem se queixar."
"Seria melhor deixá-lo só até que adormeça e então ficará satisfeito por ter ido", disse Smith.
"Não pense que haja alguma coisa capaz de o levar a confessar ter sono. Porque não queres ir para a cama, Henry?"
Henry explicou, de uma maneira geral, que quem ia para a cama eram as almofadas e, em particular, que não queria fazê-lo porque gostava de mostrar a Mr Smith um dos seus quadros. Baseados neste último ponto, chegaram todos a
483
um compromisso, nos termos do qual Smith ficava para ver o tal quadro, e Henry devia, depois de saber a opinião do visitante, retirar-se sem mais demora.
"Olhe!" disse Harriet, mostrando uma tábua onde a criança aplicara as mais berrantes cores da paleta de seu pai: "Isto é a reprodução feita por Henry do fogo de vista que ele admirou, pintada à maneira dos reflexos espectaculares de Cyril."
"Diga-lhe o que Mrs Duncan declarou", gritou Henry.
"Mrs Duncan disse que considerava isto de longe o quadro mais sensível dos dois. Henry ficou muito mais satisfeito com esta crítica do que o pai."
"É a primeira tentativa e, na verdade, bem bonita", disse Smith. O pintor olhou para ele com ar céptico, como as crianças costumam quando as afastam, não com enganos, mas com agrados.
"Agora vamos, Henry!" disse Harriet.
"Suponho que tenho de ir agora", disse ele, metendo as mãos nas algibeiras exteriorizando indiferença. "Não vou passear, mas vão levar-me ao colo."
"Queres que eu te leve?" perguntou Smith.
"Não", respondeu o pequeno. "Quero que a mamã me pegue. Além disso, sou muito crescido para ti."
"Já não te lembras que o teu pai te disse que não me fizesses zangar?" perguntou Harriet.
"Não me fales nisso. Mandarei regular tudo isso com o governador. Vamos embora! Espera", acrescentou ele, quando Harriet se preparava para lhe bater. "Deixa-te de brincadeiras. Promete-me que não me vais fazer cócegas... Ah!
O contrato terminou num guincho de risota, quando Harriet o levou à força nos braços com uma facilidade que bem provava que ela nada perdera do antigo vigor.
Um quarto de hora depois, Harriet voltou e veio encontrar o visitante a olhar pensativamente para o tecto.
"Um dinheiro pelos seus pensamentos", disse ela, fazendo-se notar o acento escocês.
"Estava a pensar que de todas as crianças, as vossas correriam menor risco de saírem mal educadas."
"Também penso muito nisso. Mas, no fim de contas, o que se podia esperar de nós? Cyril foi uma criança mal
484
educada, e ainda o é, sob vários aspectos. Eu fui igualmente uma criança mal educada, mas, ao menos, meu pai nunca me contrariou fosse no que fosse. Se Henry vier a ser como Cyril, ficarei muito satisfeita com ele; não temo, por isso, de o educar um pouco mal. Cyril cria mal Mattie, baseado no mesmo princípio, ou talvez porque é esse o único método de educação que melhor quadra ao seu espírito. São ambos, sob aspectos diversos, muito precoces, muito destemidos, e prodigiosamente interesseiros, como devem ser todas as crianças saudáveis e da idade deles; são, porém, muito mais brincalhões e mais capazes de se esforçarem por si próprios do que se os oprimissem. Numa palavra: são, provavelmente, menos traquinas do que muitos outros. Detesto ver crianças, ou quem quer que seja, com medo."
"Não há dúvida que tem razão. Lembro-me como eu detestava em silêncio as solenes histórias que meus pais costumavam impingir-me, quando lhes dava na vontade atacar-me com deveres."
"O senhor era um rapaz muito estranho quando eu o conheci. Isto é, se o senhor chegou alguma vez a ser rapaz."
"Não sei se o fui", respondeu Smith. "Nunca me considerei como tal, e com certeza ainda menos quando a encontrei."
"É este o embaraço que há a seu respeito", disse Harriet. "O senhor não é rapaz e o senhor não cresceu. Algum dia afasta-se dos seus livros e vem conhecer o mundo para nele se estabelecer convenientemente. Mas até agora ainda nada disto se verificou consigo. O senhor é, na verdade, um mau sucesso dos verdes anos."
"Eu nunca me pude sentir crescer, mas creio que a senhora nasceu já crescida. Receio que eu seja um caso incurável."
"O tempo é que o há-de curar. Confesso-me cheia de curiosidade por ver como o senhor estará quando chegar aos quarenta."
"Talvez casado, mas não me sinto capaz de me casar. Duvido que alguma vez o faça. O casamento é realmente um triunfo?"
"Para que pergunta isso? Que outra coisa tem a fazer
485
se tiver de possuir um lar decente? Isso, porém, não é próprio para muita gente e muita gente não é própria para isso. E não se encontram muitos casais dignos como Cyril e eu. Para a maior parte a rotina é: um ano para tentarem persuadir-se que são felizes, seis meses na dúvida e dezoito meses na convicção de que o casamento não passa dum miserável erro. Eles então sentem-se cansados para se molestarem sobre tal assunto, e caem no lugar comum doméstico,, por completo desiludidos, mas não tragicamente infelizes. As crianças causam, na verdade, grandes modificações, mas muita gente cansa-se com elas, tal como acontece às crianças com qualquer brincadeira quando a sua novidade desaparece."
"Não parece que isso se venha a verificar comigo", disse Smith. "Deve ser tudo muito certo, mas se isso não existir eu nunca sonharei em o procurar para mim. Boa noite!
"Não quer esperar por Cyril, para depois cear?"
"Não, obrigado. Pretendo voltar a Thurloe Square, o que me ocupará até à hora de me deitar."
"Bem, como quiser. Sabe muito bem que aqui só tem a consultar a sua vontade."
"Pelo contrário, tenho os meus hábitos. Se eu fosse seguir a minha vontade, ficaria aqui durante uma semana, pelo menos. Boa noite!"
"Boa noite!
Quando Smith voltou a atravessar a ponte, deteve-se num dos nichos a meditar nos seus verdes anos e a olhar para a beleza das quietas extensões de alvo luar e negras sombras que se dilatavam na sua frente. Por fim sacudiu a cabeça negativamente e voltou para casa.
Bernard Shaw
O melhor da literatura para todos os gostos e idades